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ABSORVENTE E ATERRORIZANTE

HISTÓRIA DE UMA FAMÍLIA


EM SUA IMPLACÁVEL BUSCA DE PODER!

Com uma simples penada ou uma palavra dita à pessoa certa os Bouchard podiam mudar o destino de nações - e o fizeram.
Mas nem tudo corria perfeitamente dentro daquela família, aparentemente uma fortaleza inexpugnável...
Havia Henri, consumido pela sua ânsia de poder - e por uma paixão ilícita pela mulher de outro homem.
E Celeste, devotada durante toda uma vida ao marido, que falhara como homem. Ela detestava Henri, mas não tinha forças para lhe oferecer
resistência.
E Peter, um inválido, cuja coragem representava uma ameaça de revelar a traição da família Bouchard.
A HORA DERRADEIRA - um romance como somente Taylor Caldwell poderia escrever!
Orelhas:
A HORA DERRADEIRA
TAYLOR CALDWELL
Não somente segue a tradição dos grandes trabalhos de Taylor Caldwell, A Hora Derradeira figura, muito justamente, entre os melhores livros
da brilhante romancista.
Em A Hora Derradeira a autora faz um libelo contra a monstruosidade das guerras mundiais ao mostrar que enquanto o povo pensa em
patriotismo — enviando seus filhos para a morte, em defesa da Pátria e de ideais e padrões em que foram criados — os poderosos, os
políticos inescrupulosos e os fabricantes de armas desapiedadamente sacrificam essa juventude, visando apenas aos seus lucros.
Numa história portentosa, com um elenco de personagens notáveis, avultam as figuras de Henri, poderoso chefe do clã dos Bouchard — família
que domina todo o livro; Celeste, bela e sofredora mulher; Christopher, seu irmão que nutre por ela uma paixão incestuosa; e muitos outros
membros dessa família, pairando acima de suas vilezas a figura suave de Annette, toda doçura e abnegação, e Peter, fisicamente doente, mas
um verdadeiro idealista, que deseja iluminar o mundo com a tocha da Verdade para salvá-lo do HOLOCAUSTO.
A Hora Derradeira é um romance que consagra definitivamente Taylor Caldwell como uma das maiores escritoras da atualidade.
Título original norte-americano
THE FINAL HOUR
Copyright © 1944 by Janet M. Reback
Copyright renewed © 1972 by Janet M. Reback
O contrato celebrado com a autora proíbe a exportação deste livro para
Portugal e outros países de língua portuguesa.
Direitos de publicação exclusiva em língua portuguesa no Brasil
adquiridos pela
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.
Rua Argentina 171 — 20921 Rio de Janeiro, RJ
que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil

Este e-book: Digitalização, ocerização, correção, formatação, e epub The Flash


Revisão: JaciLu
A
Burt e Phoebe Wetherbee, com amor.
AGRADECIMENTO

A autora agradece sinceramente a Marcus Reback por seu incentivo, solidariedade e assistência constantes.
ÍNDICE

Livro Um: NOSSOS PRÓPRIOS TAMBORES


Livro Dois: O COMEÇO DAS DORES
Livro Três: A TERRA PERMANENTE
“Todos nós temos uma terrível e inevitável hora final, quando é preciso escolher entre as coisas pelas quais vivemos ou aquelas pelas quais
morremos.”
BARÃO OPPERHEIM
Livro Um
Nossos Próprios Tambores
“— Veja, senhor, minhas feridas!
Adquiri-as a serviço do meu país, quando
Alguns dentre vocês, irmãos, fugiam
Do som de nossos próprios tambores.”
SHAKESPEARE (Coriolano)
Capítulo 1

— Lugar encantador! — disse o Conde Wolfgang Bernstrom, olhando ao redor. — Cada vez que o vejo parece-me mais maravilhoso. Sou um
homem de sorte em alugá-lo de você para o resto do verão, caro Ramsdall.
— E eu — respondeu George, Lorde Ramsdall, um tanto secamente — tenho sorte em alugá-lo para você. Há uma epidemia em Cannes neste
verão. — Parou e lançou um olhar de soslaio ao alemão.
Von Bernstrom encolheu violentamente os duros ombros militares, como se fossem feitos de madeira e não de carne e osso. Ajustou o
monóculo e examinou o terraço com satisfação, antes de replicar:
— Há muitos boatos, meu caro Ramsdall. Muita histeria. Eu, pelo menos, não acredito em nada, não sei de nada, não ouço nada. Uma atitude
bastante cômoda, que recomendo com entusiasmo. Por que antecipar um fato desagradável que provavelmente não acontecerá? Que
desperdício de energia! É preciso conservar energias nestes dias turbulentos. É preciso estar prevenido, mas não demais.
Num sorriso, seu rosto pálido e árido enrugou-se com uma espécie de júbilo que realmente nada tinha de alegre. Seus olhos também eram
pálidos e áridos com um curioso brilho nas retinas, como se feitas de mármore polido. Os cabelos brancos e finos eram cortados à moda
Junker; o queixo era pontiagudo como uma espada, a boca fina frequentemente se abria num sorriso singularmente charmoso apesar de não
possuir calor humano. Esse sorriso exibia dentes excelentes e brilhantes. Faces encovadas, como se tivessem sido espremidas: entre elas o
nariz adunco e fino era agressivo possuindo, entretanto, transparência — como se feito unicamente de cartilagem e pele. Ele dava a impressão
de não ser de carne, pela altura e magreza fora do comum; sob seus maravilhosos ternos de tweed inglês parecia haver apenas ossos
aristocráticos. A apurada limpeza dos teutões nele era exagerada: ele exalava uma aura de sabonete, água fria, loção de barba e água-de-
colônia, aura que ia até Lorde Ramsdall, através do vento morno e salgado.
Dizia-se que Lorde Ramsdall era impressionantemente parecido com Winston Churchill, a quem odiava com verdadeira histeria. Baixo,
troncudo, rosto corado como o de um querubim, olhos azuis proeminentes, nariz em forma de um botão cor-de-rosa: aparentava amigável
astúcia.
A cabeça grande e redonda era coberta por fiapos de louros cabelos desbotados, através dos quais seu couro cabeludo reluzia roseamente
como uma careca de bebê, nada parecida com a do Sr. Churchill. Gostava de ser chamado Johnny Bull e procurava desempenhar essa
caracterização com modos afáveis e calorosos, vasta e redonda gargalhada, modo vigoroso de falar e um sorriso aberto e cativante. Se tinha
conhecimento de que sua única e amada filha Úrsula era chamada ‘a cadela de Cannes e de certos locais do Leste’, ou de que atualmente era
amante do Conde von Bernstrom, não o demonstrava. Se era detestado e odiado na Inglaterra pela opressão que fazia aos operários de sua
grande usina de aço (subsidiária da Robson-Strong) e se desconfiavam muito dele entre aqueles a quem se referia com desprezo como
‘vermelhos’, e também se o seu jornal — o London Opinion — era acusado de alcovitar a política pacifista do titubeante Chamberlain (com risco
para o império britânico) nada disso era de importância aparente para o feliz e generoso nobre. Nessa linda manhã de 9 de maio de 1939 tudo
parecia bem com George, Lorde Ramsdall, e ele aparentava ter apenas na cabeça uma suave afeição por von Bernstrom e um prazer simples
porque o elefante branco, sua villa (que felizmente havia podido alugar ao jovem casal americano nos últimos cinco anos, por uma quantia
bastante satisfatória), estava para passar às mãos de seu caro amigo — por um aluguel substancial.
Situada próximo ao mar, entre Juan-les-Pins e Cannes, a villa cintilava branca e fulgurante sob o brilho do sol de maio; cada uma de suas
janelas francesas reluzia. Localizava-se sobre rochas castanho-escuras, mas três de seus lados ficavam sobre estreitas faixas de relva, frescas
e aparadas, lindamente circundados por arbustos e canteiros de flores. Dava frente para o cintilante mar azul; o ar era doce, puro, salgado, e
com a fragrância dos jardins. Tudo era tão tranquilo, tão suave e calmo que Lorde Ramsdall por momentos lamentou deixar Cannes quase que
imediatamente pela poeirenta e suja Londres, onde tanta coisa deveria ser feita e sem demora. Pensando assim, lançou um olhar a von
Bernstrom e fechou quase completamente as pálpebras.
O alemão parecia bem mais jovem do que realmente era, já que estava na casa dos cinquenta. Dava a impressão de não ter idade, como um
falcão. Havia sido o mais jovem general do Kaiser na última guerra, mas recusava-se a ser chamado pelo seu antigo título.
— Não quero mais saber de coisas militares — dizia, com um gesto duro da mão ossuda. Desviava a cabeça estreita ao dizer isso e mostrava
o perfil, perfil austero como se alguma coisa nauseante tivesse sido mencionada.
Ele jamais falara sobre o Terceiro Reich ou sobre Hitler, e se esse assunto fosse tocado em sua presença caía em silêncio soturno, retraído,
desculpava-se e em seguida se retirava. Nunca, em momento algum, deu a impressão de ser contra ou abominar o regime atual de seu país,
exceto através dessas pequenas manifestações. Que, entretanto, bastavam até mesmo para os ingênuos. Quanto aos iniciados, as atitudes e
expressões de von Bernstrom causavam-lhes júbilo austero, embora secreto. Raramente visitava a Alemanha. Havia morado na França
aproximadamente dez anos, num exílio aparentemente melancólico e reticente, um aristocrata que nem mesmo podia referir-se aos impostores
vulgares, vagabundos e assassinos que agora infestavam seu país. Consequentemente — para as senhoras românticas em particular — ele
era uma figura fascinante a quem perdoavam pela mulherzinha gorda. Na verdade, costumavam até esquecê-la. Seu caso com Úrsula Ramsdall
era por elas aprovado, admirado, aplaudido. Se essa senhora havia anteriormente expressado a mais vitriólica paixão pelos nazistas, desde
sua ligação amorosa com von Bernstrom ela havia mudado de opinião.
Havia também boatos persistentes de que suas propriedades na Prússia tinham sido confiscadas pelo onipotente Hitler como vingança contra
a falta de entusiasmo pelo pintor de paredes austríaco, e que suas visitas à Alemanha, apesar de raras, eram perigosas para ele. Entretanto,
para quem se dizia viver praticamente sem recursos financeiros, ele vivia bem, até mesmo perdulariamente. Ramsdall comentou uma vez,
vagamente, que “talvez o sujeito haja aberto uma conta no Banco da Inglaterra, França e América”. Em todo caso, nenhum negócio importante
era realizado sem a presença de von Bernstrom, e ele era visto frequentemente no cassino, ganhando ou perdendo vastas somas com grande
indiferença.
Se alguém de natureza desconfiada indagasse sobre o passado daquele fino aristocrata, salientava-se severamente que ele vivera algum
tempo na villa do Barão Israel Opperheim, na Riviera, e que os dois eram grandes amigos.
Von Bernstrom caminhou pelo terraço maciamente, observando tudo com prazer discreto. Por uma janela aberta, espreitou rapidamente a sala
de visitas cuja penumbra era convidativamente calma e fresca. Viu o brilho escuro dos assoalhos, o lustre de cristal, o vulto de um grande piano,
a lareira de mármore branco. Havia flores sobre o vidro escuro de todas as mesas e sua doce fragrância enchia o ar tranquilo, como incenso.
Ele deixou a descorada aspereza de sua expressão suavizar-se antecipadamente. Lorde Ramsdall o observava. Havia uma ponta de astúcia
em seus lábios grossos e vermelhos.
— Ah! —- suspirou o conde. — Encantador! Encantador! Estranho como parece fascinante uma perspectiva, quando próxima de ser nossa! —
Sua voz, suave e com sotaque apenas perceptível, era agradável. — Que gosto, meu caro Ramsdall! Você foi sempre conhecido por seu bom
gosto, não?
Ramsdall inclinou a cabeça:
— Muito simpático de sua parte dizer isso, Wolfgang. Houve, porém, um toque feminino por aqui, sabe? Uma jovem de bom gosto,
considerando que ela é americana.
Ouviram um barulho de passos suaves. O conde imediatamente recuou para junto de seu amigo no terraço lajeado e ambos fingiram estar
enlevados em feliz contemplação do mar azul.
Uma jovem senhora, que entrara no salão, agora estava a uma das janelas antes de descer ao terraço, de pé junto à soleira, observando-os. O
conde e Ramsdall voltaram-se com um olhar de agradável surpresa e prazer. Inclinaram-se.
— Espero não tenhamos chegado cedo demais, cara Sra. Bouchard, — disse Ramsdall —•mas como Wolfgang está para ser meu próximo
inquilino, decidiu que gostaria de chegar um pouco adiantado. Regozijo, talvez.
A senhora sorriu timidamente. Estendeu a mão, que o conde tomou e levou aos lábios. Ele a examinou com verdadeiro prazer e cobiça.
— Tive um prazer e perdi outro, cara senhora — murmurou. — Ficaremos desolados com sua partida.
Como a senhora Bouchard e seu marido raramente recebiam convidados e pouco se importavam com os que se aglomeravam avidamente
pela costa, a observação do conde foi absurda. Mas a jovem senhora não demonstrou surpresa.
— Muita gentileza, conde — disse ela, num tom de voz doce, mas indiferente.
O conde se aborreceu e, como sempre, irritou-se. Essas mulheres americanas! As mais lindas mulheres do mundo, com seios maravilhosos,
lindas pernas e cinturas. Mas frias como a morte. Ele preferia as francesas, que sabiam mais sobre amor e sobre ‘safadezas’-. Adorava
mulheres ‘safadas’. As americanas nunca eram ‘safadas’, mesmo as tolas apaixonadas expatriadas que se espremiam ruidosamente (em
trajes requintados) em volta das mesas do cassino. Faltava-lhes maturidade, postura, graça, e suas imitações de libertinagem eram infantis.
Quando exageravam, eram vulgares e desagradáveis. Ele desconfiava que houvesse nelas algo de puritano. O falso puritano era a criatura
mais revoltante, pois não tinha gosto nem discrição.
A senhora Bouchard, entretanto, não era de forma alguma ‘pervertida’, pensou ele. Era, porém, como uma pedra, dura e rija como a morte. Uma
linda estátua de carne congelada — o que era mais raro ainda, em se tratando de mulher tão jovem, com seus trinta anos. Mais propriamente
feita para o amor e o mistério — continuaram suas reflexões. Ela havia morado naquela villa, naquele panorama, podendo ver e ouvir toda a
sutil e deliciosa perversão da notória costa e havia permanecido — como a mulher de César — pura, distante e indiferente. Seria inocência ou
repugnância? O conde não acreditava em nenhuma das hipóteses. Era simplesmente incapacidade de ser alegre, de viver, de sentir prazer.
Sem dúvida alguma ela era imbecil, quase tanto quanto sua mulher alemã. Essa ideia abrandou-lhe a vaidade e ele passou a encará-la com
mais afabilidade e até mesmo com superior piedade. Era estarrecedor ter morado aqui, diante da alegria, do prazer e do arrebatamento, por
mais de cinco anos, e nunca haver experimentado um momento sequer de excitação e enlevo! Mas isso com toda a certeza por causa do
marido inválido e de sua devoção a ele.
O grande e transparente nariz do conde contraiu-se com nojo. Lamentável o martírio daquela encantadora jovem com quem era, visivelmente,
menos da metade de um homem! Ele, Wolfgang von Bernstrom, teria ficado encantado se ela lhe tivesse permitido aliviar o tédio dessa vida
tão opressiva; ele e muitos outros... Porém, ela nunca permitiu que algum homem se aproximasse. Que devoção! Que estupidez!
Ele puxou-lhe uma cadeira branca no terraço e ela sentou-se. Os cavalheiros também se sentaram e sorriram ternamente para ela, que dirigiu
um olhar indiferente ao alemão:
— Receio que este almoço venha a ser muito aborrecido — comentou ela sem o menor pesar. — Convidei apenas o senhor, conde, o senhor,
Lorde Ramsdall, e o Barão Opperheim. Todos vocês são muito amigos e foram gentilíssimos com meu marido. Seremos então apenas seis:
minha mãe, vocês três e meu marido, ninguém mais. Peter não tem passado bem ultimamente e não quis incomodá-lo, entendem?
— Minha cara, cara Sra. Bouchard! — exclamou Ramsdall, com expressão de afetuoso entendimento e lástima — claro que entendemos. Na
verdade, foi muita gentileza sua convidar-nos. Somos gratos, garanto-lhe.
— Partimos amanhã — continuou a jovem senhora. — Faremos uma parada de alguns dias em Paris e em seguida iremos diretamente para
casa.
Por um instante sua expressão foi reveladora, triste, melancólica e bastante cansada. Ela não desejava voltar para casa, pensou o conde. Quer
dizer que não é completamente imbecil. Ele tinha a experiência de que as mulheres americanas muito ricas eram invariavelmente estúpidas e
insensíveis. Mas aquela deliciosa criaturinha com enorme e incrível saúde tinha também momentos humanos de tristeza, insegurança e
sofrimento. Ah! Se tivesse descoberto isso mais cedo! Talvez a tivesse corrompido pela alegria...
Ele a observava atentamente, sem trair sua análise. Ela era pequena e extraordinariamente bem-feita, de linda aparência, frágil e, a seu ver,
magra demais. Excessivamente elegante, ele concordava. Quase sempre usava um fino vestido preto, muito simples, mas de feitio impecável,
abrandado apenas por um pequeno colar de pérolas rosadas. Que pernas delgadas! Encantadoras! Adoravelmente curvas na panturrilha,
afilavam junto aos frágeis tornozelos e minúsculos pés arqueados! Ela sentou-se graciosamente em sua cadeira, distante e despercebida de si
mesma e provavelmente de suas visitas também. O conde deliciava os olhos com a fragilidade daquela cintura e a linha perfeita dos pequenos
seios sob o tênue tecido preto. O olhar fixo do conde encontrou a alvura do pescoço onde as pérolas se moviam sob a respiração calma.
Depois de um instante ele lhe olhou o rosto. Quão perfeitamente adorável, como era maravilhoso em sua perfeição!
O rosto pequeno e angular parecia esculpido em mármore, tão firmes e claros seus contornos, suas linhas e curvas. Ele não via imperfeição,
violência, crueldade naquela escultura. Entretanto, havia uma espécie de rigidez em seus traços, uma dureza sutil que, para ele, era repelente,
desumana. Tinha também aparência cansada, não muito tolerante quando reprimida e determinada. Aquela aparência se estendia à pequena
boca vermelha e seus cantos profundos, em volta das narinas afiladas, e pairava numa espécie de fixidez empedernida na profundidade e
beleza dos olhos azuis, onde as nítidas linhas pretas dos cílios pareciam curvas acetinadas de asas de pássaros. Os cabelos negros, muito
sedosos, cheios de vida e de ondas lustrosas, eram escovados para cima — parecendo uma coroa antiga no topo da cabeça. Ornadas com
brincos de pérolas, as pequenas orelhas eram brancas como alabastro transparente e ficavam completamente a descoberto. Ela possuía uma
palidez luminosa, bastante vivida e sem o menor resquício de cor nas faces, cuja maciez e brilho suscitavam ódio e inveja a todas as mulheres
que a olhavam.
Lembrou-se o conde que ela era de ascendência francesa, principalmente porque nas maçãs do rosto, na linha dos ombros, na pequenez dos
pés e das mãos, na graciosidade de porte e atitude havia nitidamente um toque francês. Mas o espírito não era francês. Ela também tinha
sangue inglês, o que justificava a fleuma, indiferença, frieza e discreta arrogância. No entanto, lembrou-se de que em uma ou duas raras
ocasiões vira nela certo brilho, uma veemência contida, um sinal disfarçado e ansioso de calor humano, uma generosidade de temperamento
imediatamente reprimida. Mais uma vez, sentiu doce piedade por ela. Como é deplorável tornar-se vítima ao serviço de um abominável
inválido, um marido que aparentemente não era marido! Não era de espantar que a vida tivesse passado por ela...
Ele pensou naquele marido e a pele embranquecida de seu rosto enrugou-se como papel.
Nesse ínterim a jovem senhora e Lorde Ramsdall estiveram conversando com amável desinteresse, sobre absolutamente nada.
— Os empregados, logicamente, ficarão para o conde — disse ela. Hesitou: — Exceto Pierre, o cozinheiro, e sua esposa Elise. Eles me
disseram que preferem voltar a Paris, se não encontrarem emprego aqui.
O conde voltou a si diante dessa catástrofe. Franziu a testa:
— Mas, Madame! Isso é impossível! Intolerável! Como poderei manter a casa sem eles? A senhora era invejada por todos pelo fato de possuir
tamanhos tesouros. Isso é insuportável e inadmissível! — Voltou-se carrancudo para o amigo: — Meu caro Ramsdall, pensei que os
empregados estivessem vinculados à villa.
Antes que Ramsdall pudesse responder, a jovem senhora olhou diretamente para o conde. Pela primeira vez havia nela um clima de agitação,
como se estivesse indignada ou com raiva. Seus olhos azuis-escuros brilharam. Porém falou suavemente:
— Eles não têm nenhum vínculo com a villa. Pierre e Elise vieram comigo de Paris. É perfeitamente compreensível que, se eles não desejarem
ficar depois que partirmos, poderão voltar para casa.
Mas o conde mal a ouviu. Fez um gesto brusco, ignorando-a como se ela fosse uma criança tola, uma intrusa, alguém a quem não se deve
consideração. Arrogância e intolerância estavam implícitas na fria violência de seus modos. Ele apenas olhou para Ramsdall:
— Insisto em que essas criaturas fiquem. Como poderei continuar sem elas? Não aprovo sua partida.
A senhora Bouchard empertigou-se na cadeira. O rosto corou de repente:
— Não estamos na Alemanha, meu caro conde. — E sua voz se ergueu, clara e forte. — Pierre e Elise são livres cidadãos franceses. O senhor
‘insiste’ em que eles fiquem: é inacreditável! — Sorriu com raiva e desprezo.
O conde virou-se para ela, mostrando-lhe todo o ódio intolerante nos olhos, o desejo de domínio, a fúria de um homem não habituado à
resistência, a ira covarde de uma raça cujos desejos jamais foram repelidos.
“Peter tem razão” — pensou ela. — “Eles são impossíveis! Perigosos! Venenosos!”
Ela continuou, antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa:
— Quando Pierre me disse que voltariam para Paris, tentei substituí-los para o senhor. Amanhã, um casal belga vai procurá-lo para uma
entrevista. Achei-os dignos de confiança e eficientes.
Ramsdall tentou persuadir o amigo. Inclinou-se solicitamente sobre ele e disse:
— Sim, sim a senhora Bouchard me falou sobre isso. Ela foi muito gentil, Wolfgang, em tentar substituir esse casal. Foi realmente muita
generosidade sua. Não tinha obrigação de fazê-lo. Acho que o casal belga é na verdade excelente.
O conde cerrou o punho e deu um soco no braço da cadeira, provocando um barulho surdo e curiosamente violento.
— Não estou interessado nas ‘gentilezas’ de madame — disse ele com brutalidade. — Eu estava contando com Pierre e sua mulher.
A senhora Bouchard, com uma pequena exclamação chocada, apoiou-se, indignada e cheia de ódio, nos braços da poltrona como se fosse
levantar-se e disse rápida e mordazmente, num fôlego só:
— Talvez lhe interesse saber, conde, que o filho do Pierre, Bernard, foi morto na Espanha. Capturado, torturado e depois assassinado por um
oficial alemão.
Seus olhos azuis incendiaram-se; ela era muito branca. Os seios arquearam-se violentamente, como se por um sentimento reprimido. Olhou o
conde e em seu rosto transpareceu uma emoção profunda.
Surpreendido por aquele olhar, ele caiu em silêncio profundo. Disse então desagradavelmente e com sorriso insolente:
— Ah! Nossos queridos Pierre e Elise são comunistas! Muito interessante! Por demais interessante!
Ela fez um gesto de repulsa:
— Absurdo! O senhor sabe que é absurdo. Os que detestam os fascistas são necessariamente comunistas? Meu marido os odeia! Eu os
odeio! Eis por que vivemos. — Fez uma pausa, como se tivesse tomado consciência de sua impetuosidade vulgar, indiscrição, e impulsividade
infeliz que a provocara. Quando a cólera sobrepujou a repressão, continuou ainda mais depressa: — O senhor me chamaria de comunista,
conde? Porque odeio e desprezo essa sociedade de Cannes, corrupta e inútil, esses parasitas, essas criaturas desprezíveis que são
coniventes com todos os fascistas que aqui chegam para seduzir os queixosos privilegiados de todos os países da Europa? Sou comunista
porque detesto as mulheres da França, Espanha, Alemanha e Inglaterra sustentadas pelos políticos que se aglomeram por essa costa?
Criaturas desprezíveis que venderiam a liberdade e a honra de seus países por camas macias, segurança e a garantia de suas contas
bancárias? Se tudo isso me faz comunista, então tenho orgulho de o ser!
Eles a olhavam, pasmos. A criaturinha fria, requintada, a pequena estátua inumana encheu-se de vida, selvagem e indignada, cheia de paixão e
ardor. O conde quase esqueceu suas palavras, tão intrigado e excitado ficou. Ele viu como lhe tremiam os seios, as mãos agarravam os braços
da poltrona até ficarem brancas as articulações, olhos brilhando como metal em fusão. E ela voltou esses olhos primeiro para Ramsdall, depois
para von Bernstrom, com desprezo e repugnância sugestiva e consciente.
— Minha cara Sra. Bouchard — disse Ramsdall apressadamente — o conde foi infeliz em suas palavras. Ele realmente não acredita no que
disse. Tenho certeza de que a senhora sabe que ele está virtualmente exilado da Alemanha pois não pode suportar esse abominável impostor
austríaco. — Tossiu e olhou disfarçadamente para o alemão. Von Bernstrom viu o olhar: era furioso e continha uma advertência. Mordendo os
lábios, Ramsdall continuou: — Tenho certeza de que Wolfgang está de pleno acordo com a senhora. Falou impensadamente.
O nobre sorriu insinuantemente para a moça, que empalidecera demais e que permanecia sentada, em silêncio.
— Naturalmente ele se aborreceu quando soube que perderia o melhor cozinheiro de Cannes. Quem não se aborreceria? Devemos entender
seu desapontamento, cara senhora Bouchard. Como sabe, ele pretendia oferecer na próxima semana seu primeiro jantar em homenagem ao
mais ilustre, posso até dizer, real casal, e esse fato alterou seus planos. Um casal real em exílio virtual — acrescentou, lançando-lhe um sorriso
significativo.
Ela ergueu a pequena mão num gesto desdenhoso. Foi um gesto eloquente que fez com que as bochechas gordas e enrugadas de Ramsdall
enrubescessem de ódio. Ela disse suave e claramente:
— Sim, eu conheço esse casal. Não o permitirei nesta casa enquanto for a locatária. Ele é grande amigo seu, não, conde von Bernstrom?
Ele respondeu com dignidade sufocada:
— Realmente, madame, tenho muita honra em admiti-lo.
— Eu sei — disse ela gentilmente.
Agora os olhos estavam novamente vividos, cheios de coisas por demais assombrosas para serem ditas, mas completamente compreensíveis.
Suspirou e afundou de novo na poltrona, como se exausta. Estava pálida demais; até os lábios estavam brancos. Parecia doente. Depois de
instantes recuperou-se, e sua voz foi então seca:
— Os belgas vão satisfazê-lo. Contudo, não há obrigação alguma de sua parte de ficar com eles.
O conde recuperou-se da ira, pelo menos aparentemente. Disse brandamente e com ódio educado:
— Senhora, lamento, falei sem pensar. Sou-lhe muito grato. A senhora tem sido mais do que gentil. Nunca vi ninguém que tivesse pensado
tanto no meu bem-estar.
Ela replicou, sem encará-lo:
— Tenho certeza de que esse casal real apreciará a comida.
O conde cumulou-a com excessivos protestos de gratidão.
Nesse ínterim, mentalmente acrescia outro item, relacionado com ela e seu ridículo marido, a um dossiê guardado entre documentos secretos
em Berlim. Sorriu, lembrando-se daqueles itens — todos referentes às palhaçadas de certo Peter Bouchard, membro de uma família com quem
o conde estava bastante familiarizado, bastante mesmo! Seu sorriso tornou-se mais amável e confiante à medida que exprimia outra vez seu
arrependimento e gratidão. Percebeu que ela não o estava ouvindo e ficou bastante irritado: não estava habituado a mulheres tão insensíveis
ao seu fascínio. Ela parecia mergulhada em pensamentos que a perturbavam, irritavam e revoltavam demais.
Ele disse:
— Embora eu não negue estar encantado em ser o próximo locatário desta villa, com prazer me resignaria se a senhora e seu marido, cara
senhora, quisessem permanecer. Todavia devo supor que o senhor Bouchard recuperou a saúde e sente poder voltar ao seu país? É uma feliz
notícia.
Ela veio à tona dos seus pensamentos e o fitou com o olhar puro e direto das crianças:
— Meu marido afirma sentir-se mais forte. Logicamente, ainda não se recuperou, não poderá nunca recuperar-se completamente do mal de
seus pulmões, causado pelo gás tóxico durante a guerra. Mas agora deseja voltar para casa — fez uma pausa. — Acha que devemos voltar
para casa antes da guerra.
— Antes da guerra! — exclamou Ramsdall, com um sorriso incrédulo. — Minha criança querida, não haverá guerra nenhuma.
— Sei disso por autoridade confidencial — confirmou o conde.
— Autoridade confidencial? — murmurou a senhora Bouchard. — Qual? De Hitler? — O tom de sua voz era tristemente satírico.
O conde deixou transparecer uma expressão de desagrado. Desviou abruptamente a cabeça, como sempre fazia ao se mencionar aquele
nome ‘repulsivo’.
— Madame — falou rispidamente — devo protestar. Não, minha informação vem dos que têm a mente equilibrada e sensata.
— Apesar disso, haverá guerra — disse a senhora Bouchard. Sorriu estranhamente para o conde e ele percebeu aquele sorriso. Sua fronte
pálida contraiu-se suspeitosamente:
— Seu distinto marido acredita realmente nisso? — perguntou — Como deve ser deprimente para ele! Deve feri-lo muito. Todos nós sabemos
o quanto ele abomina a guerra. Seu livro The Terrible Swift Sword, (A Terrível Espada Veloz. — N. da T) revelação comprometedora sobre a
indústria de armamentos, e as conspirações internacionais contra a paz mundial, foi muito popular na Alemanha. Ainda é excessivamente
popular. Meus amigos na Alemanha assim me garantem.
Para ele, ela ficou inexplicavelmente agitada.
— Conde von Bernstrom, devo pedir-lhe que não mencione hoje esse livro ao meu marido. Isso o transtorna. Todo o seu significado foi
deturpado. Ninguém o entendeu. Não foi apenas a indústria de armamentos que ele pretendeu denunciar. Esse fato foi o de menor importância
para ele. Peter desejava chamar a atenção para a doença do mundo, o ódio, a crueldade, a maldade dos homens em todos os países. Desejou
mostrar que as guerras não são causadas por apenas um grupo de homens, mas pela perturbação mental de todos os homens, em todas as
partes. A indústria de armas serviu unicamente de instrumento para a insanidade mental. Aprovisionou-a. Sem a insanidade, acha Peter que
não haveria a indústria de armas. As guerras são causadas pelo ódio e a corrupção das mentes de todos os homens: elas fazem com que eles
percam a responsabilidade moral que tem cada um para com seu semelhante.
— Ele tentou mostrar — continuou ela, com genuína agitação que a fazia incoerente — que as guerras são a expressão da violência latente nos
corações humanos. Ele chamou a atenção para o fato de que a guerra é apenas o prolongamento de princípios políticos, os mais primitivos e
diretos prolongamentos e conclusões. Se ele odiava, e ainda odeia, a indústria de armamentos, é porque ela é, por si só, a expressão da
cobiça dos homens que se aproveitam da fraqueza de todo o mundo.
O conde fingiu estar espantado com aquelas palavras impetuosas e incompreensíveis. Ergueu naturalmente as mãos e sorriu para ela,
suplicante:
— Creio não compreender, cara senhora. É muito confuso! Já não foi dito ser a guerra a mais natural expressão do homem? Sem dúvida
estava errado quem disse isso: tentaria simplificar uma situação complexa. Entretanto, existe alguma razão nessa observação.
Ela não se iludiu com aquela sinceridade:
— Afirma Peter que a intenção do cristianismo é sublimar os instintos humanos primitivos, pela consciência de suas responsabilidades morais.
Hoje, ele acredita que o cristianismo tenha falhado. Não porque estivesse errado, mas porque é ignorado e deturpado. Em sua deturpação
mais concentrada, o fascismo eclesiástico na Espanha, Itália e França, ele se tornou um horror, a morte e uma ameaça para a existência da
civilização e da democracia.
Ramsdall a ouvia argutamente, com disfarçado e pressagioso sorriso:
— Tenho certeza — disse calmamente — de que os suficientemente inteligentes apreciariam os propósitos do senhor Bouchard. Sei que não
tive dificuldade alguma. Nenhuma, mesmo. O senhor Bouchard pretende continuar seu trabalho quando voltar para a América?
Ela ficou absolutamente imóvel. Disse então depois de alguns momentos, claramente:
— Sim. — E os fitou com aqueles brilhantes olhos azuis. —- Ele tentará transmitir à América o que aprendeu aqui, o que viu, o que sabe. Antes
que seja tarde.
O conde e Ramsdall trocaram um rápido olhar.
— Mas o senhor Bouchard mal saiu da villa! — disse Ramsdall especulativamente, inclinando-se um pouco até o peito tocar a barriga.
— Mas escutou — disse ela firmemente.
A mente de Ramsdall voou rapidamente para alguns anos atrás, quando conhecera os Bouchards. Tentou lembrar-se de cada homem e mulher
que os tivesse visitado. Sentiu algo de sinistro no tipo daqueles que haviam sido convidados. Lembrou-se de que, naquela época, quando ele
frequentava a casa, lá havia gente estranha e também pessoas a quem detestava e de quem tinha razões para suspeitar. Ficou alarmado.
Sorriu tolerantemente, mas não disse nada.
Uma senhora idosa, franzina e curvada, de movimentos suaves e expressão gentil, entrou no terraço. Tinha um rosto gasto e enrugado, doce e
triste, e grandes olhos castanhos cheios de sabedoria, cabelos brancos e sedosos. Vestia-se também de preto, mas um preto deprimente e
desalentado. Os homens se levantaram e fizeram-lhe uma mesura. A senhora Bouchard beijou-lhe o rosto com profundo afeto.
— Como vai, Mama? — perguntou, num diapasão suave. —. Não muito cansada, espero, depois de toda essa arrumação.
Ela sorriu ternamente para a filha:
— Não, querida, estou bem. — Virou-se e olhou os cavalheiros, com expressão repentinamente muito fatigada e distante. Sentou-se na
poltrona que o conde puxara para ela.
— Vamos sentir muito a sua falta, senhora Bouchard — disse Ramsdall, galantemente.
— Muita gentileza sua — murmurou ela. Olhou para ele firmemente, com aqueles olhos castanhos muito simples, inteligentes e ingênuos. Por
um motivo qualquer, ele sentiu um calor subir-lhe pela garganta. Ela se virou para a filha:
— É quase meio-dia, querida. Não vi Peter esta manhã. Ele está bem?
— Sim, Mama — respondeu a jovem senhora Bouchard. —. Ele está de pé desde as oito horas. O Barão Opperheim está agora com ele.
Estão juntos desde as dez horas.
O conde agitou-se ligeiramente:
— Desculpe-me, senhora. Disse Opperheim?
— Sim, conde. São grandes amigos, o senhor sabe, há já cinco anos. O barão vem muitas vezes aqui.
A expressão enrugada do conde permaneceu suave e apenas polidamente interessada:
— Claro. Foi estupidez minha esquecer isso. — Sorriu com prazer. — O barão e eu temos muito a nos dizer. Não o vejo há um mês. Quando lhe
telefonei esta manhã disseram-me que já havia deixado o hotel.
— Ele tem estado em Paris — disse a jovem senhora Bouchard, indiferentemente.
A velha senhora Bouchard nada disse. Olhou demoradamente do conde para Lorde Ramsdall. Apenas ela vira a rápida troca de seus olhares.
Sentiu um calafrio.
Não suportava aqueles dois. Seu olhar vagueou pelo terraço, listrado e pintalgado pela luz do sol. Olhou além do brilho azul do mar. Ouviu-lhe o
som macio e sussurrante, viu a delicadeza das asas dos pombos que circundavam o golfo. Muito distante, uma vela branca dividia a água da
pura incandescência do céu do meio-dia. Havia no ar um leve sussurro de folhas, um cheiro morno de grama, sal e flores. Quanta paz! Quanta
serenidade e mansidão! Seu corpo se sentiu frio e muito, muito velho...
Voltou para a filha os tristes olhos castanhos e viu uma fixidez cansada naqueles lindos olhos azuis e nos cantos profundos dos lábios de
Celeste Bouchard. Seu coração palpitou num desgosto profundo demais para ser expresso em palavras, pensamentos, ou mesmo lágrimas...

Capítulo 2
Em ondas de luz radiante o vento penetrou pelas janelas. Dali se podia ver o imenso e resplandecente azul do oceano, as escuras montanhas
molhadas sobre as quais a villa se empoleirava, o deslizar cortante das gaivotas contra o puro e apaixonante céu da França. A paz e o
tremulante brilho do meio-dia impregnavam o ar sereno, como uma bênção. Daquelas janelas não havia nenhum sinal da vida agitada e
decadente de Cannes, nada além da purificação das águas, os gritos das gaivotas, e o suave farfalhar do vento.
Havia silêncio no quarto. As altas e desbotadas paredes e o teto luziam com brilho sombrio. Havia um reflexo ondulante nas frias e obscuras
flores, nas formas dos simples, mas perfeitos móveis escuros, nos potes e vasos de flores espalhados nas mesas e na lareira. Num canto
distante havia uma cama em forma de dossel preparada, como se esperasse alguém. No entanto, próximos às janelas, olhando para fora, para
a serenidade e resplendor do verão, estavam sentados dois homens, em extrema quietude.
Não era, porém, a quietude da paz, da meditação tranquila. Coisas haviam sido ditas em voz abafada, atrás delas uma aura de amarga
violência, desespero, desesperança, lamento impotente. Estendia-se o mais moço numa chaise-longue, um xale fino sobre os joelhos
descarnados. A cabeça descansava num travesseiro arredondado, rosto virado para as janelas. Aquele rosto era branco e imóvel. Tão quieto
como a morte, que parecia nunca estar longe dele. Era um homem próximo dos quarenta anos, de colorida palidez e formosura, cabelos
sedosos e ralos. Sinistramente magro, o rosto parecia feito dos mais delicados ângulos, delicados, porém estranhamente fortes: salientes ou
encovados, os ossos eram agudamente visíveis sob a magreza. Era um rosto gentil, severo, triste, reflexivo, e cheio de intenso intelecto. Sua
atitude revelava profunda exaustão, mas também um espírito que não lhe permitia descansar a carne moribunda, de tão imbuído de paixão,
coragem indomável e mágoa infinita. As mãos descarnadas, mas finas e pequenas, pousavam sobre o xale; e embora ele por muito tempo
permanecesse calado, os dedos se mexiam, tremiam, convulsivamente cerrados sob o ímpeto de pensamentos tumultuosos. Fixos no mar, os
olhos eram fortemente azuis e diáfanos, cheios de valor e destemidos, ardendo agora em louca infelicidade.
O homem sentado a seu lado era bem mais velho. Um homenzinho moreno, seco, enrugado, com uma barbicha acinzentada, careca. A
expressão excêntrica e amarga, mas generosa e resignada, refletia-se nos grandes olhos castanhos fitos no homem mais jovem. Nele havia
quietude, meditação, um sentido de grande sabedoria que contrastava visivelmente com a prostração agonizante implícita na atitude do outro.
Ele pensou:
“Eles nunca aceitam, esses gentios. Seus clamores crescem tempestuosamente, e longe de seus desesperos abandonam tudo. Isso porque
vivem no círculo do Hoje, na bolha do Agora. Atrás deles não podem enxergar o passado ou o futuro. Quem pode resistir sem a noção do ontem
e do hoje? O desespero é prerrogativa da criança, mas a estupidez o é do homem. Sim, estou desolado. Na verdade, arruinado. Não vejo
esperanças para mim. Mas não desespero. Que importância tenho eu? O amanhã não me pertence. E a vida ludibria os amanhãs,
inevitavelmente, mundo sem fim. Por que o meu caro amigo não pode entender isso? Ele está absorvido com o hoje. Nele enxerga a imagem
de todos os amanhãs. Mas o hoje, embora seja terrivelmente medonho e lance sua sombra ensanguentada no futuro, traz também uma
esperança para esse futuro. O homem morre, mas a humanidade continua. Porém esses gentios creem que as agonias de cada homem são as
agonias do mundo... sua morte, a morte do mundo. Estão presos por suas carnes intolerantes. Nós, pelo menos, temos uma visão mais ampla
da humanidade, de sua diversidade, da obrigação moral de recuperar-se da angústia, da luz distante de outros sóis brilhando em seus rostos.
Eu sucumbirei, mas meu irmão viverá.”
O homem mexeu-se lentamente nos travesseiros e disse, em voz fraca, em alemão:
— Não consigo suportar, Israel! Não consigo! — Ergueu as mãos cansadas e entrelaçou-as numa convulsão reprimida: — Que posso fazer?
Que pode alguém fazer?
O Barão Opperheim olhou para o amigo com piedade profunda. Esfregou o lado do nariz fenício e tossiu levemente. Murmurou algo. O homem
virou-se para ele. O barão falou mais alto:
— Eu estava citando uma passagem de Egmont, de Goethe. Lembra-se do pranto de Ferdinand? “Devo apoiar e assistir passivamente...
impotente para salvar-te ou apoiar-te! Que voz nos lamenta! Qual o coração que se não destroça ante tamanha angústia?!”
O jovem estava calado. Mas os olhos fixavam o outro com intensidade exausta e mortal. As mãos entrelaçadas apertavam-se.
O barão inclinou a cabeça e deu seu sorriso de esguelha e lamuriento. Mas o olhar permanecia compassivo quando disse suavemente:
— E Ferdinand continuou a dizer ao seu caro amigo Egmont: “Deves manter-te calmo, deves renunciar, levado pela necessidade, deves
avançar para a terrível luta com a coragem de um herói! Que posso fazer? Que devo fazer? Deves conquistar-nos e a ti mesmo, és o vencedor;
tu e eu sobreviveremos. Perdi minha luz no banquete, perdi minha bandeira no campo. O futuro para mim é negro, desolado, perplexo.”
Silenciou um momento, depois sorriu ternamente. Inclinou-se para o amigo e repetiu, com suave insistência:
— “Deves avançar para a terrível luta, com a coragem de um herói.”
De repente o jovem virou o rosto, para que o amigo não visse o que se passava em seus olhos.
— Goethe — continuou o barão ponderadamente — foi um grande homem. Até que esqueceu o mundo por si mesmo. Quando clamava por
todos os homens, tinha a estatura de um gigante. Quando se lembrava apenas de si próprio, era um pigmeu. Quando lamentava os tormentos
de todos os homens, sua voz era ampla como o vento. Quando começou a lamentar-se, a prantear sua impotência em voz intolerante, a bradar
seus sofrimentos numa estridente voz feminina, então essa voz foi esmagada entre os próprios dentes. Não foi esse Goethe quem disse em
Egmont: “Era meu sangue e o sangue de muitos corações bravos! Não! Ele não teria sido derramado em vão! Para a frente, bravo povo! E
quando o mar irromper e destruir as barreiras que resistiriam à sua fúria, nós também esmagaremos o baluarte da tirania e em torrentes
impetuosas o expulsaremos da terra usurpada. Eu morro pela liberdade por cuja causa tenho vivido e lutado, e para a qual me ofereço para
mais do que um sacrifício doloroso.”
Ele suspirou:
— Sim, Goethe foi um grande homem quando acreditou no poder de apenas uma alma. Foi um homenzinho perdido quando não mais acreditou
nisso.
O homem mais novo entreabriu os lábios pálidos como se fosse falar e os fechou novamente. Rugas de sofrimento crônico lhe vincavam
profundamente a boca.
— Você deve prosseguir. Deve falar. Deve prevenir, caro Peter. Nada deverá calar-lhe a boca, enquanto viver. A destruição está aqui. Mas não
é irremediável. Ela não destruirá totalmente o mundo enquanto existir um único homem com uma grande alma. Você tem uma grande alma. Se
apenas uns poucos homens o ouvissem, eles bastariam para salvar a humanidade. Lembra-se da história de Sodoma? Foi necessário apenas
produzir alguns homens íntegros para salvar a cidade da justa ira de Deus. — Sorriu: — Certamente você não está só. Hão de existir no mundo
dez homens como você, para salvar a cidade! — Riu suavemente: — Talvez Deus concorde. Talvez Ele esteja de acordo em poupar a cidade
se apenas dez, se apenas cinco, se apenas uma alma virtuosa puder ser encontrada.
Peter Bouchard ergueu do colo as mãos entrelaçadas e respirou com dificuldade. Havia um som rascante em sua respiração, que vinha da
alma e dos pulmões.
— É estranho! — continuou o barão. — Eu, como qualquer outro, jamais acreditei em Deus nos dias de paz e tranquilidade. Mas hoje creio. —
Voltou a cabeça para as janelas e Peter viu seu perfil hebraico, sereno, meditativo, pesaroso, cheio de tristeza, mas bastante calmo. — Eu
creio — repetiu.
— Porque não pode fazer mais nada. Como todos nós, você é impotente — comentou Peter com profunda amargura.
O barão virou-se rapidamente para ele. Os olhos vivos cintilavam:
— Não, não sou impotente! Creio em Deus!
Peter comprimiu as mãos sobre o rosto e os olhos, pensamentos cheios de mortal desprezo. Pois lhe parecia que o mundo dos homens era um
mundo de ódio, no qual era impossível viver, dar o menor suspiro livre e feliz. Sentia a condenação suspensa sobre o mundo como uma
espada. Sua sombra já havia caído sobre cada cidade, cada aldeia, cada oceano, cada rio, cada torrente. O fio a que ela estava presa
balançava ao vento de uma fúria crescente. A condenação justa. Que se deixe a espada cair. O mundo merece isso. Coragem, ternura, honra,
paz, piedade, justiça e clemência: mentiras! Não havia amor — nunca existira! Nunca! Honra? Oh! principalmente honra não havia! Apenas
ódio. O mundo voltou-se sempre para ele com férreo clangor, eco condenatório da perfídia e da perversidade humanas.
Ele pensou:
“Não posso viver num mundo como esse, no mundo que está para vir.”
As palavras do barão ‘Eu creio’ pareciam-lhe a essência de triste absurdo. Ele apenas podia lembrar-se das coisas que o barão lhe dissera.
Perguntou:
— Você tem certeza, Israel? Hitler vai invadir a Polônia? Haverá guerra? Eu sempre disse que haveria guerra, mas dificilmente acreditava.
Você me fez acreditar.
O barão acenou afirmativamente:
— Sim, caro Peter, haverá guerra. Quando Hitler atacará a Polônia não tenho certeza. Mês que vem? Agosto, setembro, outubro? Não sei. Mas
será breve. Devemos aceitar isso.
— E a França? a Inglaterra?
— A Inglaterra entrará na guerra. Desta vez não ousará ignorar o desafio. Confio na Inglaterra. Sob a corrupção, deslealdade, pusilanimidade
de seus líderes está o povo inglês. Sempre sob a cobiça dos poderosos permanece o povo. Em todo lugar. Não apenas na Inglaterra. Em todo
lugar. — Olhou mais uma vez pelas janelas: — Até na França.
— Pode afirmar isso depois de tudo que vimos e soubemos?
— Sim, meu caro Peter. Mesmo depois de tudo isso. Quando os capitães e os reis partem com suas bandeiras e os enfeites de suas infâmias,
o povo é abandonado no campo de batalha. Será ele finalmente quem vencerá, quem compreenderá, quem reconstruirá e enterrará os mortos.
— Acrescentou suavemente: — Ele é que ouvirá a voz dos dez, dos cinco homens honrados de Sodoma.
Peter estava silencioso. O barão olhou-o com profunda piedade. Havia morte naquele homem tão jovem. Ela estava ali, nas sombras
acinzentadas de seu rosto descarnado. Lá estava ela como uma luz espectral em sua fronte. Mas a voz ainda vivia. Podia ainda falar, e na
loucura e no tumulto crescentes alguém a ouviria e dela se lembraria.
— Quando voltar à América, fale, escreva, não descanse nunca. Diga ao seu país o que sabe. Será odiado e ridicularizado pelos que
conspiram contra seu povo. Será xingado de vários nomes. Que significa tudo isso para você? Em algum lugar alguns homens o ouvirão. Eles
não esquecerão. Eles se lembrarão quando a tormenta estiver no auge.
Continuou:
— Eu não iria apenas a Paris, onde a decadência e o vício sobrevivem e tramam: iria por todo o campo. Falaria ao povo. Ele está perdido e
aterrorizado. Confuso. Traído. Alguém precisa ficar sabendo disso. Eles sabem disso, em seus corações tolerantes. Eis por que estão assim
tão confusos. Mas chegará o dia em que não mais ficarão confusos nem amedrontados. Em que perceberão quem são os que os traíram. Será
um dia terrível. Mas será também o dia da força, da coragem e do valor. Pois o povo são os filhos daqueles que destruíram os direitos dos reis,
o poder dos opressores, o domínio de um clero assassino e corrupto. Eles se lembrarão. Eles lutarão outra vez com os punhos de seus pais.
Peter nada disse. Mas olhava o barão com repentino estímulo nos olhos exaustos. As mãos erguidas permaneciam no ar, num gesto de
extrema atenção.
— E na América — acrescentou o barão — também se lembrarão. Você deve ajudá-los a lembrar. A próxima guerra não será entre líderes,
generais, reis, monstros e opressores. Será uma guerra entre filosofias. A filosofia da coragem, da vida, da liberdade, e a filosofia da covardia,
da morte e da escravidão.
Um leve barulho de passos e Celeste entrou no quarto. O barão levantou-se rapidamente e curvou-se. Ela lhe sorriu, e a suave austeridade de
seus lábios e de sua expressão suavizaram-se.
Debruçou-se sobre Peter e sentiu a temperatura de sua fronte. Ele virou-lhe a palma da mão e beijou-a. Ela lhe deu uma suave pancadinha no
rosto e olhou-o com infinita ternura e ansiedade.
— Está se cansando, meu querido — disse ela. — Tem ânimo de descer para o almoço? — Fez uma pausa. — O Conde von Bernstrom e
Lorde Ramsdall já estão aqui.
Peter olhou para o barão, que rapidamente lhe retribuiu o olhar:
— Sim, querida, estou me sentindo muito bem. — Parou um pouco. Olhou de novo para o barão: — Estou me sentindo muito bem — repetiu —
na verdade, nunca me senti melhor.

Capítulo 3
Foi um almoço simples e delicioso, servido no terraço cheio de sombras de onde se avistava o mar e ouviam-se seus ruídos. O conde
enfureceu-se mais uma vez com o fato de perder os excelentes Pierre e Elise — aqueles fazedores de milagres que haviam transformado um
insípido pássaro num faisão assado por anjos do céu. Os pitus, a salada, os pãezinhos doces, estalando, os pequeninos petits-fours, o café
ainda ajudaram a aumentar-lhe a raiva, pois permaneciam vivos em seu paladar. Sentiu-se bastante injuriado. Consequentemente, aumentou a
ira contra os Bouchards, a quem obstinadamente culpava por sua perda.
Ele desejava demais Celeste Bouchard, mas agora sadicamente. No íntimo, sorriu com escárnio do seu marido. Um exemplo de pura
decadência, sem dúvida alguma. Que mais se podia esperar daquele casamento consanguíneo? O conde estava bastante familiarizado com
as ramificações da família Bouchard, aquela poderosa empresa de material bélico que dominou todas as outras existentes no mundo, e cujos
dedos curvos e magros se apossaram de tantas indústrias aliadas. Esse Peter Bouchard: o conde meditava. Era primo em terceiro grau de sua
mulher, nascida Celeste Bouchard. Reconhecia o conde que o casamento consanguíneo enfatizava traços positivos e eliminava os vulgares.
Era só considerar a criação de cavalos. Porém isso inevitavelmente leva também à decadência, um apuro tão extenso que se torna tênue e
implícito com o declínio. O pai de Celeste fora Jules Bouchard, esse velhaco brilhante e sem escrúpulos que se tornara lendário. O primo dele,
Honoré Bouchard, era inteligente e íntegro. Era evidente haver legado tais qualidades ao filho mais novo, Peter. O conde fungou de novo.
Inteligência e integridade! Atributos de tolos! Pura decadência.
O conde relanceou o olhar à senhora Bouchard mais velha, a viúva de Jules. Não uma autêntica Bouchard, mas como tantos outros aristocratas,
ela também possuía essa aura de deterioração física e espiritual, comentou consigo mesmo. Ele próprio, refletiu, era um aristocrata. Porém a
aristocracia germânica, devido à sua comparativa mocidade, ainda retinha a virilidade e a crueldade do bárbaro. Os franceses e os ingleses
estavam velhos, acabados. Sorriu para consigo mesmo.
Adelaide, mãe de Celeste, misteriosamente ‘sentiu’ os pensamentos do alemão. Voltou para ele, relutantemente, os fatigados olhos castanhos.
Ele percebeu-lhe o olhar, inclinou a cabeça cortesmente e com uma indagação. Ela se desviou em silêncio.
Lorde Ramsdall estivera fazendo-se agradável para sua anfitriã e o marido. Repetira que Cannes não seria a mesma após sua partida.
— Não posso acreditar nisso — falou Peter, que mal provara o almoço. Olhou para cima, e seus claros olhos azuis eram diretos: — Claro, é
muita bondade sua dizer isso, Ramsdall, porém Celeste e eu não temos sido exatamente a vida da Côte... — Relanceou um olhar para a
esposa e, por um momento, sua expressão se tornou triste e pesarosa: — Ficamos muito retraídos... ninguém sentirá falta de nós.
Como se lhe sentisse a tristeza, o pesar, o desgosto, Celeste procurou-lhe a mão, sob o punho de rendas, e a apertou calorosa e ternamente.
Olhou para Ramsdall:
— Ingenuamente, não tivemos muito em comum com os turistas ou os residentes permanentes. Não demos importância às coisas que os
atraem. Viemos aqui para descansar, acalmar-nos, e pelo clima.
O Barão Opperheim estivera muito silencioso durante o almoço. Contudo, seu velho rosto expressivo, moreno e inteligente, o mirar de seus
olhos fundos e perspicazes, tão compassivos, pesarosos e gentilmente amargurados, pareciam ter contribuído muito para a desconexa
conversa em torno da mesa. No momento, lentamente passeava o olhar por todos os rostos, e seus silenciosos comentários pareciam
observações reais e audíveis. Chegou, por fim, à velha Sra. Bouchard e lhe sorriu. Seus lábios fizeram doce esse sorriso, doce e íntimo.
Perguntou:
— Lamenta deixar-nos, senhora?
Sua fatigada abstração se aligeirou quando ela se voltou para ele. Aparentemente havia nele algo que despertava nela uma emoção profunda:
— A alguns de vocês — afirmou a senhora, voz cansada e gentil. — Especialmente ao senhor, Barão.
Ele inclinou a cabeça, agradecendo a gentileza:
— Gostaria de ir com vocês, querida amiga!
Peter se voltou para ele num fatigado alerta:
— Sim, gostaria de perguntar-lhe outra vez, Israel. Por que não pode ir? Seria fácil obter-lhe um passaporte. Eu... eu poderia fazer isso para sua
filha, o marido e as crianças.
— Bem, muito bem! Pensa que esqueço? Mas para mim... não.
Calou-se, tocou a barba. Von Bernstrom ouvia atentamente, com uma expressão de afeto nas feições apergaminhadas. Falou:
— Israel não é alarmista. Não acredita, como o senhor, Sr. Bouchard, que haverá guerra.
O barão se virou para ele com branda, porém penetrante simplicidade. Seus olhos fitaram o amigo com fixa concentração:
— Pelo contrário, Wolfgang, creio que haverá guerra. Vai negar que também sabe disso?
— Absurdo! Absurdo! — gritou Ramsdall, vigorosamente, segurando o copo de vinho na mão atarracada. — Por que haveria guerra?
Admitindo tudo que sabemos de Hitler, que é um louco paranoico, com manias de grandeza, que é um monstro, devemos também admitir que
não é idiota. Ele sabe que não pode vencer. Buscará vitórias incruentas, tais como a de...
— Munique — disse Peter, e uma pálida contração lhe passou pelo rosto.
Ramsdall tossiu. Falou, gravemente:
— Sabe que nunca concordei com você, Peter, a respeito de Munique. “Paz em nossos dias.” Que nobre frase! E não duvido de sua validade.
— Recostou-se na poltrona e sorriu ao jovem: — Confesso que nunca entendi isso em você, Peter. Julgaria que você, acima de todos os outros,
teria ficado deliciado com Munique. Você sempre odiou a guerra com uma paixão louvável e civilizada. Todavia, não ficou encantado. Nada
disso. Explicou que...
— Disse e repeti vezes sem conta que Munique trouxe a guerra para mais perto do mundo que qualquer outro ato durante os últimos cinco anos
— observou Peter, com impaciência febril. — Tivéssemos admitido a Rússia às discussões, tivessem Chamberlain e Daladier recusado ir a
Berchtesgaden sem um representante de Stalin, tivesse estado aqui esse representante, não teria havido um ‘Munique’ no atual sentido da
palavra. Quando repudiamos a Rússia assinamos nosso consentimento para a guerra. Agora, o sangue do mundo cairá sobre nossas cabeças.
Ramsdall sorriu indulgentemente:
— Tenho de discordar de você, Peter. Tivesse estado aqui o representante da Rússia, haveria guerra do mesmo jeito. Os bolchevistas estão
desejando a guerra. Gostariam de ver nossa mútua destruição, para que pudessem assumir o controle. Qualquer estudante de História
moderna sabe disso. Stalin nos instigaria para combate.
Hitler, depois se sentaria, sorrindo, vendo-nos cortar as gargantas uns dos outros. Mas fomos muito espertos para ele.
— Espertos demais... — observou Peter, com ênfase sombria.
— Agora, combateremos Hitler sozinhos.
— Drang nach Osten — murmurou o barão.
— Perfeitamente certo, caro Israel! — exclamou o conde. — Drang nach Osten. Se Hitler lutar, o que ele certamente não fará, atacará a Rússia.
Não a Inglaterra, não a França, não a América.
O barão sorriu de esguelha. Esfarelou um pedacinho de pão entre os dedos morenos e lentamente relanceou o olhar em torno da mesa.
Peter suspirou, como se a conversa o fatigasse. Olhou para o barão:
— Mas falávamos de você, Israel. Por que não pode ir conosco? Ficaremos em Paris por algum tempo. Você pode obter um passaporte:
esperaremos por você.
O barão balançou a cabeça:
— Para mim... não! É muito simples, mas ninguém compreende. O que aconteceu na Europa é culpa de todos nós. Seu julgamento será sobre
todos nós. Sou um covarde? — Deu de ombros:
— Parece-me que sair daqui será a maior das covardias. Poderia eu haver ajudado a evitar esse horrível desastre? Poderia qualquer de nós
tê-lo feito? Não estou sendo claro — acrescentou apologeticamente. — Todos somos culpados: ingleses, franceses, alemães. — Bateu na
testa e depois no peito, significativamente: — Aqui e aqui é que jaz a culpa, é que o mal começa a florescer. Não em Hitler, não em Franco, não
em Mussolini. Só aqui e aqui. Na alma. No coração. Na mente. Em qualquer homem. Correr e deixar a sentença cair sobre um companheiro
pecador é covardia.
— Que poderia você haver feito? — gritou Peter, com impaciência. — Você, um judeu? Você, a primeira vítima?
Porém o barão olhou para Ramsdall, para o seu amigo von Bernstrom, daquela sua maneira direta e fatal. Respondeu a Peter, mas só olhava
para aqueles dois.
— Que poderia eu ter feito? Poderia haver pensado com minha alma. Poderia ter-me voltado para Deus. Poderia ter tido fé. Eu, nós, não o
fizemos. Há em Deus um estranho poder... — acrescentou, em tom suave e quase inaudível, e seu rosto se tornou velho e profundo sob a dor.
Os grossos lábios vermelhos de Ramsdall se franziram com deleite. Porém havia um brilho maligno em seus olhos, cheios de um desprezo
hostil:
— Os judeus sempre recorrem a Deus quando falha o poder do seu dinheiro... — comentou.
Peter, sua esposa, sua sogra, o olharam, chocados. O conde fez uma careta.
Mas o barão inclinou a cabeça quase com humildade:
— Tem razão — murmurou suavemente. — Nisso diferimos de vocês. Vocês nunca cedem a Deus. Até o fim acreditam em dinheiro, em poder.
Mesmo na forca, acreditam nele. Vocês nunca compreendem.
Ramsdall tossiu:
— Espero não o ter ofendido, Opperheim. Não tive essa intenção, asseguro-lhe. De certa forma, estava elogiando seu povo. Vocês cedem
muito mais cedo que nós. Mas, francamente, não consideram isso uma grande covardia?
O barão sorriu e não respondeu. Suas mãos continuavam a esfarelar pão, e agora os movimentos dos dedos pareciam decisivos enquanto
lentamente deixavam cair migalha a migalha de modo a formar um montículo como de cinzas.
Houve um silêncio em torno da mesa. A aragem forte levantou as abas da toalha de renda, reluziu na prataria. Havia no ar um forte perfume de
rosas. O mar arremetia com um sussurro profundo, e a despeito da luz e do sol havia nesse fôlego cósmico rara qualidade agourenta.
O barão olhou a pilha de migalhas na toalha e, levados por sua atenção, os outros também a contemplavam. Ninguém poderia haver explicado
o que tanto lhes atraía a atenção. Porém o montículo de migalhas parecia de importância enorme e-terrível para eles. Sentiam uma pressão na
atmosfera, uma constrição no peito — mesmo Ramsdall, mesmo von Bernstrom.
— Quando criança tive uma babá — começou o barão, em voz macia. — Eu desperdiçava pão: era uma criança muito teimosa. Empilhava
migalhas, assim. Era minha ocupação favorita. Certa vez ela me disse: “Quando se desperdiça pão, o pão sagrado, desse modo, a alma nunca
terá descanso depois que deixar o corpo. Irá vagando pelo mundo até que a última migalha seja reunida fora da terra, fora dos estômagos das
aves e dos animais, fora da água. Você vagará por muito tempo. Pois cometeu um grande pecado.”
Ergueu a cabeça e pela última vez olhou vagarosamente para cada rosto.
— “Vagará por muito tempo.” Logo o mundo estará cheio de almas procurando... Cometemos um grande pecado.
O conde acendeu um cigarro, com movimento gracioso, ainda que canhestro. Soprou uma coluna de fumaça azulada no ar luminoso e
observou-a a enroscar-se. Seus pensamentos eram virulentos, e cheios de desdém. Porém mantinha uma expressão impassível e distante.
Quando voltou a atenção para os outros, após um longo momento, o barão o observava, os olhos escuros atentos, expressivos, cheios de
melancolia e profunda reflexão. Por alguma estranha razão, o conde sentiu-se imediatamente impregnado de raiva impotente e de aversão.
Ramsdall estirou-se desconfortavelmente na poltrona:
— Bem, quanto a mim, estou satisfeito em dizer que estou de volta à Inglaterra. Existem movimentos aqui na França. Confesso não gostar
deles. Não gosto da implicação de julgamento aqui, recentemente. Na Inglaterra o clima é mais saudável, apesar de chover quase
constantemente — e riu com simpatia.
Voltou-se para Peter:
— Você gostará de saber que pretendo continuar minha política de paz, no meu jornal. Sempre apoiei Chamberlain, que você não aprova, meu
caro rapaz. Entretanto, creio que o velho excêntrico tem razão. Nada temos a ganhar com a guerra, mesmo que haja a mais remota
possibilidade de tal catástrofe, coisa que não há. Seus artigos em meu jornal, Peter, eram muito louvados pelas pessoas previdentes.
Podemos esperar por outros do mesmo tipo?
— Não! — disse Peter calmamente.
Ramsdall ergueu os sobrolhos ante essa impolidez. Adotou uma expressão esquisita e suspirou, inclinando-se para depositar as cinzas do
excelente charuto no cinzeiro de prata.
Disse o conde:
— Se pensasse que ia haver guerra, meu caro Sr. Bouchard, eu deixaria a França imediatamente. Tenho amigos na Alemanha que me mantêm
informado. Observe que estou perfeitamente à vontade na França. Não sairei. Permaneço. Isso não lhe significa nada?
— Sim — afirmou Peter.
Os olhos dos dois homens se encontraram e se sustentaram.
No silêncio ressoante que se seguiu à réplica de Peter, Celeste ergueu-se — e os cavalheiros com ela, todos exceto Peter, mantido em sua
cadeira pela leve pressão da mão da esposa em seu ombro.
— Desculpem-nos, a minha mãe e a mim — disse Celeste, em sua voz suave. — Ainda temos que empacotar algumas coisas.
Estendeu a mão a Lorde Ramsdall, que a pegou calorosamente. O rosto da moça tinha o olhar fatigado de delicada severidade, porém o olhar
era direto entre as negras pestanas curvas:
— Então é adeus, Lorde Ramsdall.
— Não, e sim ‘até à vista’, cara senhora Bouchard — replicou o homem galantemente. — Espero estar na América em outubro. Confio em que
os verei então?
Ela sorriu brevemente, depois voltou-se para o conde, que levou sua mão aos lábios: então a severidade dela se tornou fixa e dura.
Sua mãe, Adelaide, recebeu em polido silêncio as observações de pesar dos cavalheiros. As senhoras saíram do terraço. Sua partida logo foi
seguida pela de Lorde Ramsdall e do Conde von Bernstrom. O barão permaneceu.
Por longo tempo ele e Peter ficaram no terraço iluminado pelo sol, sem falar, mas contemplando o golfo onde o mar suspirava agitado.
— Será um dia infeliz para a França, se ou quando von Bernstrom se tornar um gauleiter — comentou o barão, cansadamente.
Peter se mexeu em sua poltrona, e bateu as mãos:
— Tem certeza, Israel? É este o plano? Inacreditável!
O barão deu de ombros:
— Tenho amigos na Alemanha que me mantêm informado — citou, com aquele sorriso triste e esquisito.
— Mas a França! A Linha Maginot!
— Disse-lhe inúmeras vezes, caro Peter, que mil Linhas Maginot não poderiam resistir à iniquidade do coração dos homens...
— Israel, tenho de perguntar-lhe outra vez: por que não informa Daladier, Bonnet, Renaud, todos eles? As autoridades? Que esse infame é um
espião, um perigoso conspirador?
Novamente o barão deu de ombros e espalmou as mãos:
— Já lhe disse: eles já sabem. São indefesos, ou fazem parte da conspiração. Que fazer?
Peter gemeu:
— Digo-lhe que não acredito nisso! Deve ser engano! Isso é fantástico! É um pesadelo!
— É uma Noite de Valpúrgia! — concordou o barão. — O mundo está penetrando na longa noite! — E acrescentou: — A dança dos loucos! O
carnaval dos palhaços! A folia dos assassinos! Ouça: pode escutar o lamento das flautas insanas, a batida dos terríveis tambores. O cenário
está preparado. A assistência é o mundo, o mundo que pagou os atores e os chamou ao palco. Pagou seu preço para vê-los, com voracidade,
ódio e traição. Ele deixará o teatro mergulhado em sangue. Seu próprio sangue.
Ele continuou, em voz tão baixa que Peter mal o ouvia:
— Não Hitler. Não Mussolini. Não. Não são esses os culpados! É o mundo inteiro! Não apenas a Alemanha. Não. Inglaterra, França, América.
Esse o jogo que pediram. Esses os atores que chamaram. E que Deus tenha piedade de nossas almas!
Sua antiga e enorme doença apanhou Peter novamente, uma doença da alma, angústia e impotência da mente.
— Houve a Manchúria — falou o barão. — E Deus disse ao mundo: “Agora? Quer opor-se aos maus agora?” Porém os gananciosos
responderam: “Não. Enriqueceremos com essa conquista!” Deus é paciente. Houve a Etiópia. “Agora?”, perguntou Deus. Porém não, ainda
não era agora. Houve a mesma resposta dos gananciosos, e os estúpidos choraram e gritaram: “Serei o guardião de meu irmão?” E houve a
Espanha: “Oh!”, gritou Deus, “certamente é agora? Olhem o sangue dos inocentes, dos corretos, dos justos, dos amantes da liberdade, pobres
e honestos homens!” Porém os iníquos escarneceram, os gananciosos estenderam as mãos, os traidores se afastaram. E os estúpidos, como
sempre, tremeram e ocultaram o rosto. Vieram depois Tchecoslováquia, Áustria, de suas profundezas, fora da Alemanha, veio o apelo de
homens bons, homens inocentes, homens desamparados. “Mundo”, falou Deus severamente, “é agora? Certamente é agora?” Porém houve
apenas silêncio, ou gargalhar, ou gritos de ódio.
Deteve-se. Agora sua voz era solene, abafada, gélida:
— Virá outro dia. Muito em breve. E a voz de Deus encherá o universo como um terrível trovão cósmico, dizendo: “Homens, certamente
morrereis, pois ignorastes o pranto de vossos torturados irmãos. A punição paira sobre vós. Esta é a hora final! Todos nós temos uma terrível e
inevitável hora final, quando é preciso escolher entre as coisas pelas quais vivemos ou aquelas pelas quais morremos. A hora já está sobre vós.
É AGORA. Deve ser agora, oh! geração adúltera e sem fé?”
Peter ouvia com atenção apaixonada. Perguntou:
— Será “agora”, Israel?
O barão ergueu a cabeça e olhou para o céu. Juntou as mãos, como em prece urgente, humilde e profunda, murmurando:
— Creio, certamente creio: será AGORA!
Capítulo 4
Celeste e sua mãe ocuparam lugares de honra à mesa do comandante do íle de France. Era o comandante um bretão carrancudo, que não
gostava do mar, e tinha particular aversão por passageiros ricos. Provinha de uma longa linhagem de pescadores, que consideravam o mar um
imenso animal cuja existência podia ser tolerada apenas porque separava a costa da França da costa da Inglaterra, e continha peixes. Não
tinha ilusões românticas a respeito das grandes águas; vira homens demais — inclusive seu próprio pai — morrer nelas. Segurança e alimento:
isso o mar fornecia. Assim, tinha razão para existir. Mas não podia acreditar que uma de suas razões fosse proporcionar transporte luxuoso
entre continentes para os vadios, os ricos e os viciosos. Usava-se o mar como um baluarte, uma necessidade. Usá-lo para recreação, cavalgar
o topo de seus abismos aquosos e profundos horrores era para ele algo de amedrontador. Constantemente meditava sobre isso. À noite ficava
na ponte, olhando o espumante negrume com ódio, impassível ante o fragmentado o caminho prateado da lua, ou a fosforescência que cintilava
na esteira do navio. Em seu ódio havia medo. Mas os aloucados que dormiam, bebiam, dançavam, fornicavam e mentiam e comiam lá
embaixo nada sabiam sobre ‘medo’ — exceto o medo de que os anos vindouros poderiam não ser tão bons para eles.
O comandante apertava os punhos e sorria sinistramente. Anos vindouros! Outrora fora primeiro-oficial num navio de guerra francês. Flexionou
o braço. Não era velho! Ainda podia lutar! Com seu ouvido íntimo, ouvia o som oco das armas cavalgando as ondas como se fosse um urro de
gigantes. Ah!, como lutara! O mar tinha outro uso além de segurança e alimento; podia levar as proas de navios de ferro até as entranhas do
inimigo. Viu bandeiras contra o céu! O Boche! Como odiava o Boche! Quase tanto quanto odiava o mar. O Boche lhe parecia horror maior do
que as águas, pois o Boche tinha mente e fazia o mal deliberadamente. Coração palpitando mais fortemente do que o fizera em anos, o
comandante temporariamente se sentiu superior ao mar. Curvou-se sobre a ponte e cuspiu nele:
— Você é muito idiota! — dirigia-se a ele: — Não afunda os navios do Boche imediatamente quando ele embarca sobre você. Se você fizesse
isso eu poderia suportá-lo. Poderia perdoá-lo.
Cogitou o quanto demoraria antes que o Boche se recuperasse e se pusesse a caminho pela antiga trilha de guerra. Ele, o comandante, tinha
no cofre certo envelope selado, a ser aberto apenas em caso de guerra súbita. Que conteria o envelope? Que ordens? O escuro rosto
enrugado do comandante tremeu. Receberia ordens para permanecer num porto neutro com seu navio? Isso seria mau. Sentia-se doente. Ou
receberia ordens de render-se ao Boche — navio com toda a equipagem? Pensou nisso, incrédulo. Recordou que durante a última guerra
nunca pensou semelhante coisa: pensar isso seria uma desonra, merecedora de morte. Mas nestes dias malignos tudo era possível. Não era
desonra pensar coisas assim. Para o comandante isso parecia terrível. Considerava os inimigos ocultos da França, espreitando como lesmas
loucas sob pedras, como víboras venenosas escondidas em pequenas tocas, sob samambaias, em lugares sombrios e úmidos. Esses
inimigos sempre existiram, mas no passado não ousavam mostrar-se a menos que um tacão forte os esmagasse. Agora, esperavam. Não
mais havia tacões fortes, ou estavam impedidos. Havia o clero, os que odiavam o liberalismo, esclarecimento e liberdade, sempre esperando
com suas interdições, suas faces estreitas e venenosas, suas cruzes, suas correntes, sua crueldade e seu ódio. Havia os estadistas
pusilânimes, os conspiradores, os servidores das mulheres roucas e venais, os covardes, os choramingas, as criaturas sem fortaleza de ânimo
ou sem honra, os doentes, os mentirosos e traidores, os idiotas ricos que de nada se lembravam e odiavam sempre.
No que se transformara a França! Ele pensou em seus compatriotas que ele levara à América por simples diversão e depois trouxera de volta à
França, um pouco mais tarde. Em suas sujas mulheres não havia sequer um prazer sadio. Eram podres de doenças; em seus olhos
depravados não havia luz de alegria. Pensou nos gordos e morenos industriais, nos políticos, nos fornecedores de perfumes, nos diplomatas,
nas costureiras, nos chapeleiros, nos autores de literatura elegante e obscena, nos jesuíticos cavalheiros enfraquecidos, impotentes e
efeminados. Eram eles a França! Não!, disse o seu coração, com súbita paixão. Ainda havia o pescador bretão, o camponês em seu campo, o
pequeno artesão, o homem na fábrica e nas minas. Ele os conhecia. A França estava morta e cheirando mal à superfície. Porém o tronco era
sadio. Então se sentiu mal outra vez. Uma árvore sempre morre primeiro no topo. Quem, nesta situação desesperadora, cortaria com mão
certeira a madeira podre, para que pudessem crescer novos ramos? Quem salvaria a árvore antes que a decomposição chegasse às raízes?
Havia a bordo um prelado da Igreja, de rosto comprido e sinistro. Também ele se sentava à mesa do comandante. O comandante arrotou e pôs
a mão no ventre. Não, não precisava do bismuto. Só precisava afogar o prelado. Depois poderia digerir adequadamente de novo...
Nessa viagem havia a bordo uma porcentagem extraordinariamente alta de americanos. Ah!, os ratos tinham ouvido o trepidar das madeiras
da Europa! Pressentiram o fogo distante. Ouviram o pesado rumor das botas de ferro. Farejaram os eflúvios do gás tóxico. Assim, estavam de
volta à sua pátria imensa e farta, onde poderiam esconder-se por trás de seus bancos e das barricadas de suas ações. Julgavam-se a salvo.
Eram demasiado estúpidos para saber que, desta vez, ninguém estaria a salvo em lugar nenhum do mundo. As trombetas do julgamento
estavam soando embaixo de cada muro do mundo. Já a argamassa ia sendo peneirada de entre as pedras, enchendo o ar de poeira
sufocante. As grandes pedras gemiam enquanto se deslocavam desajeitadamente uma sobre outra. Oscilavam e guinchavam os portões.
Poderiam esses idiotas, esses ricos vagabundos, imbecis inúteis, apodrecidos, ouvir e sentir tudo isso? Ele duvidava. Não, eles de nada
lembravam, nada aprendiam, não pensavam nada. Não pensavam senão em sua carne, seus ventres, sua luxúria — homens e mulheres
igualmente.
Talvez a ruína próxima fosse uma boa coisa. Talvez destruísse esses glutões vorazes, como paredes ao desmoronar destroem o cupim que as
devora. As paredes de gesso e os dourados das catedrais cairiam, enterrando o mau cheiro dentro delas; os tronos dos reis, os tetos
impregnados de mentiras do governo: também esses tremeriam no terremoto que estava a chegar. E quando a fumaça se retirasse das
cidades arrasadas se descobriria que o fogo as purificara, as limpara de mentirosos, exploradores, assassinos, conspiradores e imbecis?
O comandante realmente odiava americanos. Pois eles se julgavam diferentes do comum dos mortais, e viviam em algum plano esotérico que
podia estar em comunicação com o plano dos demais homens, mas não ser invadido por eles! Quando diziam: ‘Sou um americano’, sorriam
presunçosamente, como se declarassem ser habitantes de Marte e da Lua — nada tendo em comum com a Europa e a Ásia — que
respirassem outro ar, fossem pressionados por outra atmosfera, e seu ser fosse de outro tipo de carne e de outro universo, turbilhonando
placidamente acima do mundo como uma nebulosa inexpugnável. Quem lhes disse isso?
Que mentirosos, que conspiradores, que traidores, em seu próprio governo, entre seu próprio povo, lhes transmitira essa mentira sobre sua
morte vindoura? Existe apenas um mundo, apenas uma raça de homens. Se os americanos não aprenderem isso logo, logo, certamente
morrerão. Pensou nessas tolas e tagarelas mulheres americanas a bordo do navio, as depravadas mulheres cheias de joias, com suas
gargalhadas altas e agudas, seus homens igualmente desmiolados e complacentes, e rosnou uma praga.
Então se deteve. Lembrou-se das duas senhoras americanas à sua mesa, as Madames Bouchard. Porém essas senhoras eram bem
estranhas, não eram como suas colegas americanas. Eram discretas, bem-nascidas, voz macia e educada, quase sempre silenciosas e
retraídas. A mais jovem lhe recordava sua própria filha, que fora educada em um convento. Madame Bouchard possuía a mesma doçura,
delicadeza e timidez, bem como o mesmo aristocrático orgulho. Ah!, e que fisionomia, austera e frágil, de contornos delicados, tão bela! Havia
também sua mãe, uma grande dama. Sentiu-se mais benévolo e indulgente. Não havia conhecido muitas senhoras americanas tão distintas,
mas talvez essas não fossem as únicas.
Depois, havia também o pobre Monsieur Bouchard, com a morte estampada na face, voz clara e firme, penetrantes olhos azuis-claros,
integridade e honra. Não um americano típico. O capitão deu de ombros ao pensar no típico homem americano, que era ou obeso ou atlético,
jogador ou apaixonado por cavalos e mulheres, ruidoso, dogmático, ignorante, egoísta, arrogante, acreditando que tudo estava à venda. (Mas...
não estaria mesmo?, refletiu o capitão com ironia ácida.) Monsieur Bouchard não se assemelhava a seus camaradas americanos. Pena que só
tivesse comparecido à mesa duas vezes nesses últimos quatro dias da viagem. Estava doente. Mas não tinha enfermeira, nem médico
particular — embora sua família fosse uma das mais ricas do mundo. Nem tinha tomado o camarote mais luxuoso e caro. (Esse estava
ocupado por uma americana cujo único título para a fama foram seus notórios adultérios, dos quais extraíra quantias verdadeiramente
impressionantes. E tudo isso durante sua carreira de soubrette, nadadora, dançarina apenas vestida de leques, e oradora enfática no cinema!
Na verdade, um país fantástico, essa América!) Não: a suíte ocupada pelos Bouchards era modesta: três quartos de dormir, uma pequena sala
comum, e um banheiro. Diziam que a jovem Sra. Bouchard era enfermeira do marido, e que o servia com infinita devoção, essa, provavelmente,
a razão para o aspecto cansado e a fixidez do olhar e da boca, e certa severidade na sombra azulada junto a suas delicadas narinas. O
comandante suspirou. Esses não eram os expatriados habituais. Ouvira dizer que Monsieur Bouchard vivera na França por motivos de saúde.
Se assim foi, não havia melhorado nada. A morte o andava rondando com seu sopro gelado. Mas podia-se compreender que um cavalheiro de
tal gabarito estava de volta à América por alguma razão especial.
A jovem Sra. Bouchard não frequentara a mais simples festa durante a viagem. Não seria de esperar que comparecesse ao último baile, que
se realizaria nessa noite. No dia seguinte chegariam a Nova York.
Tão jovem, tão bela, e tão sem luz, sem vida, sem alegria! Só aquela esquisita severidade de alguém unicamente dedicada ao dever. Quão
pathétique!
Celeste bateu gentilmente à porta do quarto de Peter e, ante seu convite para entrar, pôs o rosto brejeiramente dentro do quarto e depois
entrou, sorrindo brilhantemente. Peter estava na cama, seu remédio na mesinha-de-cabeceira ao alcance da mão. Sentava-se recostado nos
travesseiros, pois não podia ficar deitado. Por vezes, durante a noite, a longa e solitária noite, Celeste podia ouvir-lhe a tosse até não suportar
mais, tendo de cobrir os ouvidos.
A luz suave da lamparina destacava o encovado e a palidez de suas faces, a boca com sua sugestão de fanatismo intelectual, as olheiras, a
testa resoluta. Devolveu o sorriso da esposa com fatigada paixão e amor, estendendo-lhe a mão:
— Alô, meu anjo! Veio dar boa-noite ao seu triste marido?
Para abafar uma revolta momentânea contra a débil autopiedade dele, ela se curvou e o beijou gentil e graciosamente:
— Alô, coitadinho! — falou, carinhosamente.
Sua voz suave o iludiu um pouco. Afofou-lhe os travesseiros, deu uma olhada ao reloginho recamado de pedras preciosas, serviu-lhe uma dose
do sedativo que ele sempre tomava: habitualmente agia em cerca de quinze minutos. Ele o ingeriu obedientemente, a olhá-la ternamente.
Depois ergueu-lhe as mãos e beijou suas palmas. Suspirou. Ela se sentou a um canto da cama. Seu rosto era belo em sua compaixão, sua
coragem, e seu amor.
— Nossa última noite fora de casa — ela comentou. — Amanhã estaremos em Nova York. Que virá depois?
Ele estava silencioso. Ergueu a mão e tocou os lábios, tossindo automaticamente. Disse depois:
— Somos vagabundos sem lar. A que vida a conduzi! Planos?
Ela se curvou e levantou uma caixinha após outra em sua mesinha-de-cabeceira, examinando os conteúdos:
— Peter! Não tomou suas vitaminas ao jantar! Se eu não o vigiar constantemente, você se descuidará. Como uma criança. Bem, já é muito
tarde. Amanhã tomará dose dupla.
Voltou-se para ele e tornou a sorrir:
— Sim, planos. Não sei. Podemos escolher uma meia dúzia de lares ou mais, de nossos queridos parentes. Preferiria o de quem, até
encontrarmos nossa própria casa, ou construir uma? Naturalmente, levaria um ano para construir, e podemos circular entre a família,
permanecendo até que nos expulsem.
Riu alegremente. Ele apenas sorriu distraidamente, olhando para longe dela.
Depois ele começou a falar com hesitação:
— Olhe, isto pode ser embaraçoso. Recebi hoje um radiograma de Henri, convidando-nos para ficar com ele e Annette em Robin’s Nest.
Ela ficou rígida de surpresa e choque. Mas não disse nada: apenas o observou atentamente.
Ele falou em tom mais alto, como a justificar-se, ou tentando quebrar a resistência dela — que julgava inevitável:
— Francis, Jean, Hugo, meus preciosos irmãos. Eu tinha uma espécie de predileção por Francis. Agora, não sei mais. Todos nos convidaram.
Toda a família. Muito generoso e cheio de afeição por parte deles. Podemos ficar indo da casa de um para a de outro indefinidamente, até
decidir o que fazer. Não gosto da ideia. Além disso, eles me enojam. Já lhe disse quanto desprezo a todos eles?
Teve um riso breve, que lhe acarretou um acesso de tosse. Celeste deu-lhe um copo d’água. Ele não viu que a mão dela tremia um pouco.
Bebeu: cessou a tosse. Recostou-se nos travesseiros, aspirando exaustivamente, gotas de suor na testa e no lábio superior. Os olhos azuis
estavam injetados. Ela o olhou, e seu coração frio foi retorcido como por dedos de ferro. Seu rosto estava tão pálido quanto o dele.
No súbito silêncio podiam ouvir o barulho do mar fora das vigias, as risadas e os passos de homens e mulheres no convés, o som distante de
música de dança.
Ele falou de repente, olhando-a com sofrimento:
— Minha querida, que vida tem tido comigo! Que lhe dei eu? Era tão jovem quando nos casamos, pouco mais que uma criança! E era tão feliz
antes de conhecer-me... Que foi que eu lhe trouxe? Cuidados para com um desprezível inválido, uma vida errante, desabrigo, noites sem sono,
enfermagem constante. Você nunca teve um lar. E nunca teve um marido... — acrescentou em tom mais baixo, muito calmo, porém cheio de
dor, e também de vergonha: — Como perdoar a mim mesmo? Desprezo a mim próprio!
A dolorosa ferida no coração dela aumentou, expandiu-se, até que toda a sua carne estava mergulhada em sua angústia. Recostou o rosto no
travesseiro, ao lado do dele. Podia sentir-lhe o calor, podia ouvir o ruído rascante de sua respiração difícil. Beijou-lhe a face, os lábios... e
lágrimas lhe saltavam, ardentes como metal em fusão.
— Peter, como pode dizer isso? Eu o amo tanto! Sempre o amei terrivelmente! Realmente, nunca me importou coisa alguma ou alguém, só
você! Você me trouxe uma felicidade imensa, tão grande que odiei a mim mesma por fazer tão pouco por você. Tenho estado tão assustada!
Não sabia ser tão covarde... Nunca acreditei em nada, de verdade. Mas desde que me casei com você, tenho rezado! Rezado de verdade. —
Riu sufocadamente. — Você me fez ficar religiosa, querido.
Ele moveu a cabeça e apertou a face contra a dela com força febril, e suspirou repetidamente, o som triste parecendo vir de suas torturadas
entranhas. Com ternura infinita, e sofrimento, alisou os negros cabelos no travesseiro ao lado dele...
— Tudo que tivemos foi tão, tão precioso! — ela sussurrou, sorrindo radiante nos olhos dele, rosto banhado em lágrimas. — Muito, realmente
muito precioso. E tanto, que eu não trocaria isso por coisa alguma do mundo! É por isso que tenho rezado.
Ele continuava a acariciar-lhe os cabelos com seus dedos emaciados. Pensava: “Será melhor para ela quando eu morrer. Devo apressar-me.
Devo fazer logo tudo que determinei. Isso feito, poderei partir. Será fácil partir. Mas devo apressar-me, antes que ela sofra demais. Antes que
seja demasiado tarde para que ela refaça a sua vida, que eu quase arruinei. Ela ainda é jovem. Tem ainda tempo para ser feliz...”
O pensamento proporcionou-lhe uma alegria súbita, um súbito bem-estar. Um leve colorido voltou ao rosto lívido. Deu umas pancadinhas nas
faces:
— Bem, as preces devem ter tido algum efeito. Neste último ano estive bem melhor. Sabe disso. Antes dos últimos doze meses estive
praticamente acamado por dois anos. Agora, estou quase normal. Posso levantar-me por quatro... seis... horas por dia. Sairei do navio por mim
mesmo. Deve contar-me a respeito de sua nova religião. Talvez eu também possa utilizá-la!
Ela sentou-se, enxugando as lágrimas e rindo um pouco:
— Oh! Peter, lembra-se de como o arrastei a Lourdes? Não foi ridículo? Não foi absurdo? Fazê-lo beber daquela água abominável, ajoelhar
entre aquela mistura de pessoas diferentes, olhar para aquela estúpida gruta? Eu era tão determinada! Ajoelhei com você. Muitas vezes me
perguntei por que me fez a vontade, indo lá...
Ele disse, sorrindo de leve, pegando-lhe a mão de novo:
— Mas isso lhe fazia tanto bem, meu anjo! Não era mesmo? Você parecia refrescada depois disso, cheia de esperança...
Ela balançou a cabeça, seu sorriso fazendo brilhar os alvos dentes à luz suave:
— Bem, havia todas aquelas muletas, e pessoas gritando que estavam curadas... Realmente casos sem esperança. E tudo que você tinha
eram algumas manchas nos pulmões. Eu o considerei uma pechincha para os poderes místicos! Apenas algumas manchas. Era um trabalhão e
tanto curar os aleijados, pensei, e os cegos e os surdos. Durante a distribuição sobrenatural, suas manchas apenas seriam um leve tremular do
punho espiritual, mera bagatela de generosidade. E, por falar em esperança, você não tossiu durante dois meses depois disso!
Riram juntos, na plenitude do amor e das recordações.
— Psicologia — falou Peter afinal. — Você sabe, uma boa metade dos sofrimentos humanos vem da mente. Por fim sabemos disso, como os
feiticeiros da selva e os supostos santos sempre souberam. A medicina moderna é apenas presumir, enquanto desgrenhados e arquejantes na
retaguarda das bruxas e dos curandeiros pagãos. Talvez um dia isso se superará. Beijar a barra pétrea de uma estátua de Hera ou Juno, ou a
imagem de Isis, ou as relíquias dos mártires e santos cristãos... tudo é a mesma palhaçada. O altar de Diana, a gruta de Lourdes. A mesma
coisa. Supernaturalismo? Só o supernaturalismo, a incompreensão da alma e da mente humanas. E, talvez, o mistério de Deus, o que é
provavelmente a mesma coisa. Sim, fui ajudado em Lourdes. Não se pode estar em presença da fé, mesmo a fé ignorante e supersticiosa, sem
ser atingido.
— Percebi, rebaixei a você e a mim mesma — disse ela. — Parecia tão medieval... Repelente, repugnante, mórbido, supersticioso.
— No entanto, fui ajudado. Não podemos negar isso. Frequentemente tenho cogitado se não haverá localidades no mundo fortemente
impregnadas do que chamamos ‘supernaturalismo’. O que provavelmente não é absolutamente supernaturalismo, porém o remanescente de
desconhecidas e misteriosas cargas de força, força cósmica. Como depósitos de carvão, ou petróleo. Podem haver cristalizado, como
diamantes, quando o mundo estava esfriando de seu estado de fusão. Que são tais depósitos de força oculta? Sabemos que o universo
consiste em tremendas cargas atômicas de nêutrons e elétrons, que o que conhecemos como ‘matéria’ são apenas essas cargas, em fluxo
constantemente, em movimento incrível. Os hindus jamais acreditaram em ‘matéria’, e inúmeros místicos tampouco. Acreditavam que ‘matéria’
e Deus são sinônimos. Quando me dei tempo para pensar, também acreditei nisso.
Ele continuou, reflexivamente:
— Na verdade, eu quase creio nesses depósitos cósmicos de força misteriosa em certas localidades do mundo. Exatamente como por vezes
acredito que existam benevolentes depósitos de força oculta do que chamamos ‘bem’, também existem depósitos do que chamamos ‘mal’. E
esse mal explode no mundo periodicamente como um vulcão ativo, atingindo todos os homens. Está explodindo agora. Pode-se senti-lo. A
razão, como uma vela, apenas pode iluminar bem pouco. Porém por trás de sua luz tão fraca ouvimos estranhos ecos cósmicos, percebemos
sombras de mistério.
Voltou-se para ela, rindo gentilmente:
— Bem, estamos ficando filósofos. Voltemos à superfície e às coisas como aparentam ser.
Hesitou:
— Chegou um cabograma de Henri. Pensei no assunto. Você e Annette eram muito chegadas. Gostaria de ficar com ela por algum tempo?
A expressão dela era impenetrável. Ele não podia perceber-lhe a agitação. Ela pensou: “Ele esqueceu. Muito sensato, claro. Como éramos
tolos!” Disse:
— Recebi um cabograma de Annette nos convidando. Você vai rir de mim: pensei que ia recusar. Antigamente Henri era muito hostil... embora
ele e Annette fossem gentilmente ao nosso casamento, e vocês apertassem as mãos, depois, com toda cordialidade.
Peter achou graça. Enquanto ria, parecia quase bem:
— Isso foi há muito tempo. Agora estamos mais velhos.
Deteve-se, e já não parecia divertido. Olhou-a com sinceridade:
— Vou dizer-lhe a verdade, minha querida. Sabe o que planejo fazer? Logo que possível, voltarei ao trabalho. Outro livro. Talvez vários. Você
conhece meus planos. Por isso é que estamos voltando a Windsor. Devo estudar os Bouchards. Estudei os da França, da Inglaterra, da
Alemanha, da Itália, da Rússia. Sei o que têm feito. Sei que mãos movem o Departamento de Estado, os diplomatas americanos e
estrangeiros. E sei de quem são as mãos mais fortes: de Henri.
— Mas, querido, nossa família não é tão onipotente assim! Sei que é muito poderosa. Porém não passa de uma organização. Não pode
manipular o mundo inteiro tão facilmente...
— Você esquece suas ramificações. Esquece que está enredada com todos os homens de poder: na política, na indústria, no governo. Ela
simboliza todos os homens de poder, os homens do mal. Ao escrever, deve-se confinar o geral ao particular. Não se pode abarcar toda a
humanidade num simples livro: apenas se pode usar alguns caracteres, uns poucos incidentes. Uma sinfonia não contém toda a música. Mas
sugere toda ela. Contém elementos de toda a harmonia escrita e ouvida. Henri é o mais poderoso dos Bouchards. É o ‘homem-chave’ dos
‘homens-chave’ do poder. Por isso é que desejo estudá-lo de perto.
Ela olhou o aro cintilante em sua mão esquerda. Balançou a cabeça, sorrindo:
— Isso não será um pouco traiçoeiro? Nós lhe aceitamos a hospitalidade, e você o coloca sob um microscópio! — E riu.
Ele a tomou a sério:
— Acha que seria desonroso? Se pensa assim, não aceitaremos seu convite. Eu não violaria mesmo o mais leve escrúpulo seu, minha querida.
Ela tornou a rir:
— Queridinho! Que falta de humor! Eu estava gracejando. Você tem seu trabalho a fazer. Sabe como sou devotada ao seu trabalho. Quase
tanto quanto você. Farei tudo para ajudá-lo. Iremos, então. Telegrafarei imediatamente a Annette. Ela e Henri vieram a Nova York
especialmente para encontrar-nos, e acho que foi muita bondade deles. Estão no Ritz-Plaza, informou.
Inclinou-se e beijou-o. O sedativo começara a agir. As pálpebras dele estavam pesadas. Havia em seu rosto exausto uma expressão de paz.
Ele a observou deixar o quarto. Os olhos dele a seguiram com apaixonado enternecimento até ela desaparecer...

Capítulo 5
Sozinha, Adelaide estava à sua mesa de leitura, no seu quarto, quando a filha bateu maciamente à porta. Celeste entrou, sorrindo:
— Mamãe? Venho perturbá-la? — Trazia na mão o cabograma enviado a Peter.
— Não, querida — respondeu Adelaide, pondo o livro de lado. Olhou a filha com profundo carinho e tristeza. A moça estava tão pálida, tão
contida, tão rígida que o coração de Adelaide doeu. Vivera na maior intimidade com Celeste e Peter durante os últimos cinco anos, porém
agora conhecia menos a filha do que há catorze anos atrás, quando Celeste casara com Peter. Nunca havia a menor indicação do que ela
pensava, naquele belo rosto de marfim, nenhuma centelha dos seus pensamentos mais profundos naqueles olhos azul-escuros. A tristeza de
Adelaide era mais do que podia aguentar. Teria errado ao manobrar em favor desse casamento, julgando-o o melhor para Celeste?
Certamente o casamento apenas trouxera dor e ansiedade para a moça, só temores e noites insones. Trouxera um amor profundo? No
começo, Adelaide acreditara nisso. Agora, não tinha tanta certeza. Se tivesse havido um filho! Porém ela sabia, com a sutil onisciência de uma
mãe, que pelos últimos dez anos, pelo menos, não tinha havido a possibilidade de um filho. Pensou na terna dedicação, nos cuidados
pacientes e incessantes que Celeste dispensara ao marido. Certamente, isso devia ser amor! Mas, com Celeste, não se podia garantir. Havia
nela um severo puritanismo, uma paixão pelo dever silencioso, pela mais dura autoimolação.
Muitas vezes Adelaide quisera gritar à filha querida, em lágrimas de angústia:
“Diga-me, querida! É feliz? Ama o pobre Peter? Não lamenta o que tem passado? Deve dizer-me, para que eu tenha um pouco de paz!”
Mas nunca pudera! Era uma velha agora, muito velha. Morreria em breve. Estava tão cansada... Porém nunca, mesmo que vivesse para
sempre, arranjaria coragem para fazer tais perguntas. Se ouvisse a resposta, poderia expirar em uma convulsão de agonia cheia de remorso.
Ora, ela podia ficar em paz. Não ousou correr o risco da primeira e terrível possibilidade.
Por vezes ela se consolava com a lembrança de que Celeste é que tomara a decisão final de desposar Peter, ela é que rompera o
compromisso com o primo Henri Bouchard, cruel e friamente violento. Não havia fraqueza em Celeste. Sob aquela delicada atitude e gentileza
havia um caráter firme como uma rocha, algo de duro, inflexível e determinado. Nada poderia obrigar Celeste a um casamento que lhe
repugnasse. Sim, ela amara Peter. Disso Adelaide estava agora certa. Ainda o amaria? Ela, Adelaide, algum dia saberia?
Talvez Celeste sempre soubesse que essas perguntas atormentavam sua mãe. Talvez fosse a razão para o seu firme alheamento, seu olhar
resoluto que desafiava Adelaide a intrometer-se impertinentemente, seu calmo afastamento quando a conversa parecia querer tornar-se íntima.
‘Até aqui você pode ir, não mais adiante’ — era a lei silenciosa de Celeste Bouchard. Adelaide não se sentira ferida por essa dureza. Apenas
temia que Celeste não ousasse permitir nenhuma intimidade, pelo bem de sua própria alma, sua própria coragem, sua própria segurança. Ela
fizera a coisa: casara com Peter. Tudo isso era irrevogável. Escolhera seu caminho, e o palmilhava brava e calmamente, não se arrependendo,
não se desviando, nem ao menos suspirando.
Por vezes, com terror, Adelaide cogitava se Celeste teria amado Henri Bouchard. Oh!, nem ousava pensar nisso! Durante o noivado, ela,
Adelaide, não podia pensar senão que Henri, com sua fria depravação, sua arrogância, sua força implacável, destruiria a moça. Violaria a
virtude de Celeste. Agora, Adelaide não estava tão certa. Às vezes o terror a esmagava. Recordava sua parte na quebra do compromisso.
Seria agora sua punição o observar o sofrimento paciente e sem queixas de sua filha? Não lhe seria dada oportunidade para descansar sua
própria mente, oferecer consolação, simpatia e afeição? Para pedir perdão?
A desesperançada pergunta ainda lhe bailava na mente quando Celeste se sentou perto de sua mãe. Sorria seu habitual sorriso calmo e
desmaiado. Usava uma fina blusa de renda preta, através da qual sua carnação muito alva brilhava como mármore. Seus lustrosos cabelos
pretos estavam deliciosamente penteados, embora ela não tivesse camareira. A boca vermelha seria perfeita em sua face pálida e luminosa
não fosse pela dureza nos cantos delicados, dureza provinda de longa paciência. Sacudiu o papel e riu um pouco:
— Sabe que vamos passar o verão em Crissons, Mamãe?
— Sim, querida — replicou Adelaide, com enternecido amor na voz trêmula.
Celeste riu e fitou o espaço. Seus olhos azuis-escuros estavam pensativos e um tanto satíricos:
— Acaba de ocorrer-me que não temos um lar absolutamente! Crissons é propriedade de Christopher, embora ele viva agora na Flórida e
raramente pise lá. Deixe-me ver: há uns três anos que ele esteve lá. Muita gentileza dele oferecer-me Crissons.
— Você é irmã dele — disse Adelaide, retraindo-se como sempre que se mencionava o nome de seu filho mais novo. — Por que você não
usaria Crissons? Afinal de contas eu contribuí para o mobiliário, embora o ache medonho!
Celeste sorriu:
— Sim, a casa é austera. Jamais gostei dela, por dentro ou por fora. Edith a odeia. Creio que ela se sente satisfeita porque ela e Christopher
foram para a Flórida quando se casaram. Nunca os visitamos na Flórida. Poderemos fazê-lo, neste verão. Christopher nos convidou. O clima
pode ser bom para Peter. — Calou-se. Ao falar o nome do marido, a tênue sombra de tristeza, como sempre, empanou-lhe as feições, fazendo
sua calma oscilar e romper-se por um momento. Continuou, num tom ligeiramente mais firme: — Sim, poderá ser bom para Peter. Mas você
sabe do antagonismo entre ele e Christopher. Ainda não lhe perguntei. Talvez seja melhor não falar nada a este respeito.
— Se vocês não quiserem Crissons, poderemos ir para Windsor, e ficar em Endur — falou Adelaide, esperançosa, lembrando-se de seu antigo
lar.
Celeste deu de ombros:
— Não creio que Endur me atraia. Jamais gostei daquela casa, também. Além disso, Armand, o novo superintendente, não a alugou? Sim,
lembro-me que ele me escreveu a este respeito.
Riu outra vez, sem alegria:
— Realmente não temos um lar! Os primeiros dois anos em que Peter e eu estivemos casados foram passados em Nova York. — Ergueu os
dedos da mão esquerda e os contou com a direita:
— Depois, passamos quatro anos na Inglaterra, em Torquay. Voltamos a Nova York por um ano. Foi quando morreu o pobre Etienne.
Ocupamos o apartamento dele. Que lugar fantástico! Depois, pensando que as montanhas poderiam ajudar Peter, fomos para a Suíça por dois
anos, ou um pouco mais. Depois, Paris, por alguns meses. E então Alemanha, e Itália. Finalmente, Cannes, por cinco anos. Que horríveis
expatriados somos!
Ela sorriu pensativamente.
— Por que não ficar em Nova York por algum tempo, e então você e Peter poderão escolher com calma onde preferem viver? — sugeriu
Adelaide, apertando as mãos nodosas no gesto crônico de dor.
Celeste, sem responder, ergueu o papel dos joelhos e o estudou ponderadamente. Apareceu uma leve ruga entre seus olhos. Esteve calada
por pouco tempo. Depois disse:
— Gosto de Windsor. Sinto que tenho raízes ali. Talvez porque seja praticamente infestada de Bouchards. Todos nós. Nós a possuímos,
mentalmente, fisicamente, espiritualmente. E financeiramente. Sinto-me importante em Windsor. Não inútil, como agora. Peter não disse que a
odiava. Acho que, para ele, é perfeitamente indiferente. Também acho que ele poderia vir a amar a cidadezinha, como eu amo.
Estava calada de novo. Estudou o papel atentamente. Havia nele poucas linhas. Adelaide o reconheceu como o cabograma. Depois teve a
sensação de que Celeste estava procurando ganhar tempo, de que, por uma vez, estava hesitante — ela, sempre tão resoluta.
— Isso é um cabograma, querida? — perguntou Adelaide, numa tentativa.
Ainda contemplando o papel, Celeste acenou que sim. Ergueu a cabeça e fitou sua mãe, quase desafiadoramente:
— Poderíamos ficar com Armand, ou Emile, ou Jean, ou qualquer um do resto de nossos numerosos parentes durante algum tempo, até nos
decidirmos. Todos nos convidaram. Afinal de contas, Francis é irmão de Peter, e já tiveram algo em comum. Naturalmente, George nos
convidou para ficar com ele e Marion na sua fazenda em Dutchess County. Eu não gostaria disso, embora ele e Peter sejam grandes amigos.
Eu na verdade detesto Marion. Imagino se ela é tão sagaz como sempre... Lembra-se? Papai sempre falava por que ela ia por toda a danada
da cidade com toda aquela ‘sagacidade’. Meu Deus! — acrescentou, após um momento — tenho estado longe por tanto tempo que não sei
nada da família. Certamente teremos parentes mais jovens!
Com terror súbito e irracional, Adelaide pensou: “Ela está pensando em algo. Pelo menos uma vez, tem medo de falar nisso. Está hesitando!”
Obrigou-se a falar calma e indiferentemente:
— Bem, logo você saberá tudo a respeito de nossos parentes, ao voltarmos. Que decidiu fazer, querida?
Celeste tornou a fitar a mãe, que percebeu uma centelha de crueldade nos belos olhos da jovem mulher.
— Na verdade, entre a multidão de parentes existe apenas um com quem tive certa afinidade: Annette — referia-se à sobrinha, filha de seu
irmão mais velho, Armand. — Sim, Annette. Éramos muito chegadas. E quase da mesma idade. Sempre gostei muito de Annette.
Então o terror acabou de cerrar-se sobre Adelaide. Annette, esposa de Henri Bouchard! Pobre pequena Annette, que quase morreu quando
Celeste ficou noiva de Henri! Desde o casamento de Annette e Henri, Celeste os havia visto apenas três vezes em catorze anos, mesmo assim
por momentos. Verdade que Annette e Celeste se haviam correspondido assiduamente, sempre, com afeição. Porém cartas não são contato
pessoal.
Adelaide inspirou profundamente. Encontrou os olhos de Celeste, e seus lábios murchos ficaram secos.
— Está tentando dizer-me que realmente pensa em ficar com Henri e Annette em Robin’s Nest, Celeste? Você e Peter? Recordando ... tudo?...
Celeste ainda tinha os olhos fixos. Sua expressão era imóvel. Uma sobrancelha preta se ergueu de modo crítico:
— Oh! Mamãe! Isto é tão cansativo! Porque fui, há muito tempo, uma garota boba, e noivei com Henri, não quer dizer absolutamente nada. Foi
há tanto, tanto tempo... Todos já esquecemos isso. ‘Recordando... tudo’, disse você. Tão melodramático! Que há para recordar, a não ser um
pequeno engano? Estou certa de que Henri já esqueceu há muito tempo. Se você se lembra, ele não ficou inconsolável: casou com Annette
quase imediatamente.
Adelaide forçou-se a falar em tom tão indiferente quanto o da filha. Mas sua voz estava bem fraca:
— Mas, por que Annette, querida? Afinal, há Emile, seu próprio irmão, e a esposa, Agnes. Emile é meu filho. Eu preferiria ficar com meu filho a
ficar com minha neta e o marido.
Celeste a fitou com uma candura que era, no entanto, impenetrável.
— Bem, isso nos traz a um impasse, Mamãe. Não podemos, os três, desabar nas costas de nossos parentes, podemos? Assim, sugiro que
você vá para Emile, ou para Armand, enquanto Peter e eu iremos para Annette e Henri até nos estabelecermos.
Adelaide, completamente sem fala, olhou para a filha. Seu rosto enrugado e triste pareceu deprimido. Pensou: ‘Exilei-me com você e seu
marido, minha filha. Vagueei por todo o terrível mundo com você. Em sua esteira arrastei meus velhos ossos, querendo apenas estar com você,
servi-la e ajudá-la, porque só a você amei, de todos os meus filhos. Porque você, de todos os meus filhos, é que tem integridade de caráter,
honestidade, virtude. Eu assim julgava. Será possível que me haja enganado em todos esses anos? E está me recompensando por tanta
dedicação com esse frio e cruel repúdio? Que estará por trás disso? Por que está fazendo isso comigo, com você mesma?”
E ela sabia que, uma vez separada de Celeste, nunca mais lhe seria permitido estar com ela. Será que Celeste compreenderia isto? Buscou o
rosto da filha com doloroso fervor, com súplica apaixonada. Se Celeste compreendeu que estaria para sempre separada de sua mãe —
estaria fazendo isso intencionalmente? E por quê?
Estaria ela amedrontada?
O pálido rosto macio à sua frente, com a firme boca florescente e os olhos quase violeta e polidos como ametistas em sua brilhante dureza,
nada lhe disse. Mas Adelaide estava doente de medo, de terror.
Com um supremo e desesperado esforço ela chorou, estendendo-lhe as mãos:
— Minha querida, sejamos francas, por uma vez, em todos esses catorze anos! Você quer livrar-se de mim? Diga-me, honestamente! Eu lhe
falhei de algum modo?
As feições de Celeste apenas expressaram uma surpresa impaciente:
— Mamãe! Como pode dizer isto? Você tem a imaginação fértil! Não seria a mais sórdida das criaturas se esquecesse o que tem feito por
mim e por Peter? Que teria eu feito neste mundo sem você?
Adelaide se calou. Torcia as mãos. Olhou para elas, tão descoradas e cheias de manchas e de veias grossas, juntas ossudas. Ouviu um
movimento macio. Celeste se ajoelhava a seu lado e punha os braços quentes e brancos em torno dos seus ombros, rindo um pouco,
sacudindo-a carinhosamente:
— Oh! Mamãe, como pode ser tão tola! Olhe para mim. Não sabe o quanto a amo, minha querida?
Adelaide contemplou o rosto sorridente da filha e os olhos profundos, agora tão temos. Mas pensou: “Nunca foi tão indecifrável como agora...”
Uma horrível impotência se abateu sobre ela e um novo medo, mesmo quando beijava a filha e lhe apertava uma das pequenas mãos. Estamos
falando através de uma vidraça, pensou. Isto não tem sentido real.
— Claro que sei que você me ama, querida. Sempre foi minha criança favorita. Dei o que pude. Pensa que esses anos foram fáceis para mim?
Sou uma mulher idosa, muito idosa. Ando na casa dos setenta. Não viverei muito mais. Sabe — acrescentou, incoerentemente — tenho tanto
medo! Sempre a achei muito vulnerável, querida. Os honestos e os virtuosos são sempre vulneráveis. Sempre tive medo por você.
Tomou o rosto de Celeste nas mãos, sentindo-lhe o calor e a textura aveludada contra suas trêmulas palmas. Segurou esse rosto em trêmulo
desespero. Viu como uma fina película branca pareceu deslizar sutilmente sobre ele, ocultando todos os pensamentos, toda expressão.
— Ora, Mamãe, isso é tolice — disse Celeste, ligeiramente. Gentilmente afastou as mãos da mãe, apertou-as, levantou-se e voltou a seu
assento. — Sabe, eu sou uma parada dura. Acho que nunca tive medo de ninguém. A não ser de Christopher, uma ou duas vezes. Porém era
minha imaginação, já ultrapassei isso. Sabe, estamos fazendo tempestade em copo d’água. Aqui estou eu, sugerindo que aceitemos o convite
de Annette, Peter e eu, e que você vá para a casa de Emile ou para a de Armand, seus próprios filhos, por algum tempo, até que nos
instalemos. Francamente, pretendo não sair mais de Windsor. Nasci lá. Dúzias de Bouchards nasceram lá. Quero sentir-me novamente
enraizada. Peter não poderá continuar a viajar por muito mais tempo. Não estou me iludindo. Provavelmente não estaremos com Annette em
Robin’s Nest por mais de uma ou duas semanas. É melhor que um hotel, estou certa.
Aumentou em Adelaide o senso de desesperança, de confusão:
— Mas por que Henri e Annette? — tornou a insistir. — Já imaginou como Peter considerará isto? Você sabe como ele antipatiza com Henri.
Sempre antipatizou.
Celeste riu outra vez, aquele riso instável e indiferente:
— Mamãe querida, isso foi há muito tempo! Se é que você se lembra, ele e Henri se escreveram várias vezes desde que estamos no
estrangeiro. Cartas muito amigáveis. Acha que algum deles tem tido tempo para relembrar uma tola rixa romântica? Afinal, Henri está com
cerca de quarenta anos agora, e Peter ainda é mais velho. Mamãe: você, como tantas outras pessoas mais velhas, vive agudamente no
passado. Nós esquecemos tudo. Tudo, a respeito de nossa juventude e nossa adolescência. Era tudo tão idiota... Você esqueceu que Peter
teve Henri como seu procurador para cuidar dos negócios dele enquanto estávamos fora, e que não pediu isso a seus próprios irmãos, Francis,
Hugo e Jean? E você ainda vem com velhas armadilhas vitorianas, falando como os pais de Romeu e Julieta! Diga-me: isso não é tolice?
Acrescentou, com impaciência crescente:
— Tudo isso é um absurdo. Vou radiografar para Annette e Henri que aceitamos o convite deles.
Levantou-se, alisando as dobras do vestido de renda preta.
Adelaide pensou:
“Serei mesmo estúpida? Estarei fazendo um barulhão à toa? Estarei, como todos os velhos, pensando só no passado? A minha querida ainda
é jovem. Esqueceu o passado.”
Entretanto seu temor permaneceu. Pensou, com um sofrimento agudo:
“Essa menina está com medo. Mas, de quê?”

Capítulo 6
— Lá está ela, a queridinha! — gritou Annette Bouchard, na ponta dos pés para espiar por cima das cabeças ondulantes no convés do grande
navio. Sacudia o lencinho de renda, atirava beijos.
— Celeste! Celeste! — chamou. — Olhe, Henri, lá está Peter ao lado dela, acenando. Ora, ele parece muito bem, Deus o abençoe. Celeste! —
tornou a gritar, quase dançando de delícia, depois comportando-se. Mas sua satisfação permanecia, uma radiância em seu pobre rostinho,
mais brilhante que o brilhante sol.
— Ela não pode ouvi-la, queridinha — disse Henri, indulgentemente. — Sim, ela viu você. Mas não grite tanto.
Ele se voltou para Rosemarie Bouchard, de pé ao lado dele, e sorriu ligeiramente. Rosemarie devolveu o sorriso com uma curva dos lábios
vividamente pintados, e um pestanejar de desdém. Passou por trás de Annette, pequena e agitada, pegou a mão dele, apertou-lhe na palma a
unha pontuda do dedo mínimo. Ele fez uma careta de dor fingida. Ela simulou um beijo exagerado.
Segundo as ramificações do clã dos Bouchards, Henri e Rosemarie eram primos distantes. O pai de Henri fora François Bouchard, irmão de
Jules Bouchard, ambos primos de Honoré, avô de Rosemarie. Assim, Rosemarie era também vagamente prima de Celeste, como Jules — o
pai de Celeste — fora primo do avô dela. (O pai dela, Francis, era primo em segundo grau do falecido Jules.) A avó de Rosemarie, e falecida
Ann Richmond Bouchard, fora excelente genealogista, e mantivera gráficos do parentesco da família. Porém agora ninguém se importava. Era
por demais complexo. O nome de família, mais do que o parentesco, é que mantinha o clã consolidado. Antigos retratos de família se alinhavam
nas paredes das residências de todos os Bouchards, porém era por demais complicado traçar as linhas de descendência e intercasamentos, e
da progênie resultante. O nome e o ódio mútuo eram melhores para a unidade que reminiscências de sangue. Mesmo as senhoras que
entraram a fazer parte do clã pelo casamento, embora perfeitamente amigáveis e afeiçoadas no começo, invariavelmente cedo absorviam o
orgulho e o ódio e superavam os Bouchards. Estelle Carew, mãe de Rosemarie, fora de início uma agradável e sadia criatura, sem odiar
ninguém. Agora ela apenas antipatizava com os Bouchards — de modo que era, aparentemente, uma mulher sem caráter sólido.
Phyllis Bouchard, irmão de Rosemarie, casara com o filho do Morse National Bank de Nova York: assim era designado pelos Bouchards,
embora seu pai tivesse o nome de Richard Morse. Phyllis tinha agora quatro meninas. Embora a família Bouchard fosse episcopal há muito
tempo, Phyllis (casada com um provisor presbiteriano) subitamente se convertera ao antigo catolicismo do clã dos Bouchards, e suas filhas
andavam com cruzes recamadas de pedras preciosas, medalhas e escapulários, fizeram a primeira comunhão, e frequentavam colégios
religiosos. Tudo isso para divertimento dos Bouchards, que consideravam Phyllis uma idiota afetada, cheia de romantismo. Lembravam-se dela
como o ‘pastelzinho’ — apelido posto por Christopher — e a abrupta conversão de Phyllis os divertia continuamente. De uma moça turbulenta e
irreverente tornara-se uma matrona empertigada e carrancuda, diligentemente devota, e rancorosamente fanática em sua nova religião. Se
alguém mencionasse a Igreja Romana com a mais leve indiferença ou ridículo, ou o mais remoto desdém, ela ficava completamente histérica,
sua voz tremia, tornava-se rubra, os olhos negros faiscando com o que Henri chamava ‘a luz do auto-da-fé’. Estava constantemente brigando
com os parentes, tentando convencê-los da ‘verdade’, orando por eles com ódio virulento, fazendo novenas por sua conversão, e pagando
quantias tremendas de seu próprio dinheiro e do de seu marido por missas pelas almas de seus antepassados, agora penando no Purgatório
— esperando remissão via dinheiro dos Bouchards. Embora os Bouchards odiassem todos os demais membros da família, Phyllis os odiava a
todos com adequada crueldade e arrebatamento. Eles a engodavam, a arreliavam, quando de bom humor. Ela os aborrecia completamente,
quase constantemente.
Rosemarie, embora atraente, era desagradável; muito elegante, muito francesa. Cursava a escola na França. Agora falava com sotaque
francês, pura afetação, muito divertida para os Bouchards. Sua voz era áspera, elegantemente rouca — embora em momentos de tensão ela
esquecesse, e lhe permitisse voltar a ser estridente. (Certa vez — distraidamente e à moda irlandesa, franca e direta — sua mãe a avisou,
durante uma reunião de família, que ela acabaria por arruinar suas cordas vocais por compressão — pelo que a filha jamais a perdoou. Quando
sua voz estava mais rouca, a família costumava murmurar algo a respeito de ‘compressão’, palavra calculada para tornar a jovem
completamente violenta.)
Era alta e esguia, porém com esbeltez. Usava com classe suas roupas elegantes e simples, de modo que o olho do observador ficava
fascinado. Parte desse fascínio se devia a seu magnetismo pessoal, pois era espirituosa, discretamente obscena, cheia de réplicas originais, e
de humor. Era, também, excepcionalmente inteligente e dissimulada. E esperta demais para ser cínica, atributo do eterno adolescente, e não
confiava em qualquer homem ou mulher, o que não evitava que tivesse muitos admiradores. A humanidade sempre a divertia; ela a desprezava
mais do que a odiava, já que a achava constantemente divertida. Raramente admirava alguém, não sentia afeição por ninguém, embora fosse
capaz de fogosa e feroz paixão — como Henri Bouchard descobriu havia pelo menos cinco anos. Desleal, traiçoeira, brilhante, maliciosa, até
venenosa por vezes, nada sentimental, insensível e gananciosa, e, como todos os Bouchards, intrinsecamente egoísta, ela variava ao infinito, e
nunca era monótona.
Aproveitou muito suas características desagradáveis, até que se tornassem fascinação. Os cabelos escorridos, como os de uma índia, eram
sempre severamente penteados, escovados para trás, bem lisos num preto-azulado passando por trás das orelhas, e enrolados num coque na
nuca. Chegavam-lhe aos joelhos. Sua trisavó, Antoinette, mulher do fundador dos Bouchards, Armand, fora italiana: talvez aí a explicação para
sua tez cor de oliva, os maldosos olhos negros pequenos, porém vivazes, e o longo nariz mouro de narinas móveis. Tinha boca ampla e fina,
que pintava parecendo uma vívida cutilada, e espessas sobrancelhas negras sob a testa baixa. Estava sempre em atividade constante, mesmo
quando aparentemente serena. Sua expressão astuta, cintilante, cautelosa, divertida e desencantada, dava-lhe ao rosto desgracioso, mas
atraente, um aspecto alerta e de forte malícia. Fora uma das inúmeras amantes de Henri durante pelo menos quatro anos. Estava agora com
vinte e sete, e não encontrara ninguém com quem gostasse de casar, exceto Henri, que parecia firmemente unido a Annette.
Ela sabia que Henri não amava a esposa. Única, talvez, entre os Bouchards, sabia que ele ainda amava Celeste: em consequência, ela odiava
Celeste com paixão selvagem. Fora a Nova York a compras, e a inocente Annette a convidara para acompanhá-los ao cais, para receber os
expatriados. Não fora capaz de resistir ao convite, desejando ver a reação de Henri à vista de Celeste. Tanto quanto pudera discernir, as
maneiras dele foram absolutamente calmas e indiferentes.
A excitação de Annette aumentou. Mal podia conter-se. Chilreava e esvoaçava como um passarinho agitado. Estava agora com cerca de trinta
anos, mas nunca perdera sua aparência infantil, sua imaturidade de corpo. De pequena estatura e franzina, sempre com um jeito suave e
tímido, caminhava tão gentilmente e de ombros curvados de modo que dava uma impressão de deformidade. Mas não era em absoluto
deformada: é que seu corpo era todo delgadeza e fragilidade. Nunca pôde usar roupas sofisticadas: teriam parecido absurdas sobre seus
delicados ângulos e busto apenas vagamente formado. Por isso era obrigada a usar estilos infantis, bonitinhos, enfeitados de fitas, fofos, que a
faziam parecer ainda mais imatura do que realmente era. Podia-se apostar que mesmo em idade avançada ela conservaria a infantilidade de
feições. Quando ria, era como que se desculpando e suplicante, e olhava para os outros com timidez de avezinha e gentilmente amedrontada,
pois era uma alminha terna, toda doçura, castidade e bondade. Tinha um rostinho triangular, muito alvo, alquebrado de sofrimento (estivera
tuberculosa na adolescência). A boca pequena, o nariz de porcelana, as linhas do queixo, da testa e das faces eram insignificantes, porém
possuía os mais extraordinários e imensos olhos azuis-claros, cheios de luz, e angelicais em sua pureza. Tinham a íntima radiância dos puros
de coração, sem astúcia ou crueldade. Seu pai a chamava ‘Anjo’ — como o fazia o marido nas raras ocasiões em que ela o tocava fundo, e
despertava sua compaixão quase moribunda. Os cabelos cinzentos, com brilhantes ondulações, foram cortados e lhe enquadravam o rostinho
em anéis como o de uma criança.
Nenhum dos Bouchards podia odiar essa pequena e doce criatura, que não pensava mal de ninguém. Apiedavam-se dela, alguns até a
amavam. Rosemarie apenas a desprezava de modo indolentemente afetuoso. Ela era a queridinha do pai — que não amava a ninguém, só a
ela — e era amada até pelo maléfico irmão, Antoine, de quem diziam, rindo, ser a reencarnação do letal e elegante Jules, seu avô.
Ao lado da morena e elegante Rosemarie, em seu fino costume preto de linho, Annette estava mais infantil que nunca em seu franzido vestido
branco e amplo chapéu de renda branca. Sua cabeça mal chegava acima dos ombros do marido, que não era nenhum gigante.
Se Antoine, irmão de Annette, era a reencamação de Jules, Henri Bouchard era a reencarnação de Ernest Barbour, seu bisavô, o real fundador,
o verdadeiro espírito da grande firma de armamentos agora chamada Bouchard & Sons. Entroncado, largo, ombros fortes, calmo e imponente
de movimentos, ele dava uma impressão de força inexorável. Tinha uma cabeça extraordinariamente grande para um homem com a sua altura,
e isso, combinado com topete de cabelos claros (não se podia dizer se eram cinzentos, ou meramente descoloridos), lhe dava uma aparência
de perenidade. Tanto poderia estar no começo da casa dos trinta como com cinquenta. Na verdade, estava com cerca de quarenta anos. Seu
rosto, também largo, era quase quadrado, com vincos fundos em volta dos lábios pesados, quase brutais. Tinha o nariz curto e grosso de
Ernest Barbour, com as largas narinas grosseiras, e seu rude queixo quadrado com covinha funda. Os olhos, no entanto, é que eram a
característica dominante. Pálidos, fixos, implacáveis, com brilhantes pupilas negras, eles fascinavam o observador e o enchiam de medo.
Quando sorria, não passava de uma convulsão de seus lábios. Os olhos nunca sorriam. Possuía um corpo compacto e vital, com toda essa
solidez. Suas roupas eram invariavelmente excelentes, bem-talhadas. Seu velho amigo Jay Regan, o mestre financista do mundo, declarou que
Henri parecia incongruente em roupas modernas. Precisava do casacão de couro, das pantalonas, da gravata enrolada no pescoço e dos
babados de seu bisavô para estar vestido apropriadamente. Sua voz era calma, firme, indomável.
Ele era a força dos Bouchards. Seu sogro, o gordo, corpulento, irresoluto Armand se havia aposentado. Henri era agora presidente de
Bouchard & Sons, chefe de suas subsidiárias, maquinador do destino delas e, através delas, maquinador da América e, com outros, manejador
do mundo.
Ficou de pé ao lado da esposa e de Rosemarie, e indolentemente observava os viajantes deixarem o navio. Annette era toda gentil
impaciência para estar com sua amada Celeste e com Peter. Porém Henri a continha:
— Espere, amor. Eles têm de passar pela alfândega, você sabe.
— Por favor — ela implorou, olhando-o com todo o amor de seu puro coração aparecendo em seus olhos límpidos. E lhe tocou timidamente o
braço. Ele pressionou a própria mão sobre sua mãozinha enluvada. Rosemarie fez uma careta:
— Por que a pressa? — perguntou naquela voz áspera. — É só questão de poucos minutos. — Acrescentou, indolentemente: — Vocês vão
mesmo voltar amanhã de manhã? Por que essa correria toda?
— É por causa de Peter — disse Annette, com a anelante e preocupada justificativa que sempre usava com os exigentes, os gananciosos e os
egoístas, como se assim lhes aplacasse a crueldade. — Ele tem estado bem doente, sabe.
“Doente! — pensou Henri. — São catorze anos! Eu lhe dava cinco, no máximo. Catorze anos! Não quero esperar mais.”
Encontraram Celeste, Peter e Adelaide entre suas malas, caixas e outras bagagens. Adelaide parecia muito velha e pálida. Celeste, em sua
toalete castanho e dourado, estava calma e eficiente, serena e segura, dando assistência ao funcionário da alfândega, a quem já havia
encantado. Sob a aba larga do chapéu castanho seu rosto estava fresco e luminoso, como pedra branca pintalgada de sol. Peter sentou-se
numa valise, emaciado e fraco, lábios bem cerrados para guardar sua débil exaustão. Os olhos estavam encovados, sombreados de
sofrimento. Tossiu roucamente, e levou um lenço aos lábios enquanto observava a esposa.
Peter, mais que Celeste, é que Henri viu primeiro, e o que viu fê-lo sorrir internamente, com brutal satisfação.
Annette, num esvoaçar de rendas brancas, correu, chorando, para sua jovem tia, os frágeis bracinhos estendidos, toda lágrimas e sorrisos:
— Celeste! Oh, minha querida! Há tanto tempo! — atirou os braços em torno de Celeste, ficando na ponta dos pés para alcançar-lhe os lábios,
apertando-a com paixão.
Celeste, rindo amorosamente, devolveu os beijos e abraços. Manteve Annette afastada um momento para estudar, com secreta seriedade, o
rostinho triangular sob o chapéu de renda branca. O que viu lhe deu um baque no coração.
— Avozinha querida — disse Annette, virando-se para Adelaide e beijando-a. Nem sabe o quanto é bom tornar a vê-la! — Beijou a face úmida
de Peter, com calorosa compaixão. Ele lutara para pôr-se de pé, e olhava para baixo, para sua prima distante com um sorriso tão gentil quanto
o dela.
— Parece que fomos esquecidos — comentou Rosemarie, divertida. Mas seus brilhantes olhos negros, quando olhava Celeste, estavam cheios
de ódio e ferocidade. Havia esperado que a longa enfermagem de Peter, a longa ausência podiam haver destruído aquela beleza tão perigosa
para sua própria paz de espírito.
Celeste, rindo, um leve colorido agora nas faces, desculpou-se, estendeu a Rosemarie as mãos enluvadas e deu-lhe um beijo frio:
— Bonita como sempre — e sorriu. — Ainda não casou, Rosy?
Henri adiantou-se, e Celeste se voltou para ele. Olhou-o firmemente enquanto ele se aproximava. O macio véu branco deslizou sobre suas
feições, e seu sorriso era o sorriso de uma estátua. Estendeu-lhe a mão. Ele a apertou fortemente, olhando-a bem nos olhos com gravidade. O
coração dela começou a palpitar com a mais estranha sensação e ela sentiu um ardor na carne, uma longa vibração como um tremor
passando-lhe para o braço pela mão que ele segurava. Suas narinas se dilataram um pouco, como se lhe fosse difícil respirar.
— Bem-vinda ao lar — falou ele, calmamente. — Demorou muito... Você não mudou nada, Celeste.
Como eram azuis os olhos dela à sombra do chapéu! Como violetas, como lobélias, como ametistas... Sim, neles havia o brilho e a dureza de
uma joia, um colorido sem expressão. Agora estava uma mulher, ele pensou. Mais bela que nunca! Ela me pertence, sempre me pertenceu...
Está com medo, sempre teve medo de mim. Por quê? Acho que sei: tem realmente medo de si mesma... Pobre tolinha!
Ele sorriu de leve, apertou-lhe a mão, soltou-a, virou-se para Adelaide:
— Como está, Tia Adelaide? — Seus lábios grossos, embora sorrissem, estavam trombudos.
Então ele não havia esquecido que ela fora sua inimiga, que ajudara a derrotá-lo, que, no mundo inteiro, só ela o havia derrotado um dia. Porém
ele era muito cortês, e inclinou a cabeça, quase numa reverência, reminiscência de seu treinamento europeu.
Ela o olhou amedrontada. Lembrava-se muito bem de Ernest Barbour. Esse podia haver sido o homem terrível de que se recordava, inexorável,
cheio de poder, poderoso como um exército, implacável como a morte. Como poderia ela haver esquecido a semelhança desse homem com o
falecido bisavô? Até a voz, silenciosa agora por cerca de meio século, era a mesma. Seu medo aumentou:
— Que bondade a de todos vocês virem receber-nos — ela agradeceu num tom trêmulo. Seus olhos castanhos estavam acesos, com seu terror
irracional. Olhou rapidamente para Celeste, o olhar da mãe cujo filho está ameaçado.
Não se deu conta do beijo cuidadoso de Rosemarie, nem do fato de que na face murcha lhe ficou uma mancha de pintura daquele beijo. Todos
os seus pensamentos e sensações se centralizavam em Celeste, que se voltara tranquilamente para responder a uma pergunta do funcionário
da alfândega.
Nesse ínterim, Peter e Henri apertavam-se as mãos. A voz de Henri se tornara calorosa, cheia de amizade:
— Ótimo! Você está com aparência muito melhor que na última vez em que esteve em casa!
Peter estava sorridente. Em sua face lívida havia um brilho de desalento. Olhou Henri de modo penetrante — os olhos azuis-claros de mártir
heroico — mais intenso que nunca.
— Obrigado — disse ele, tentando fazer a voz tão forte quanto a de Henri e, como resultado, tendo de abafar a tosse. — Foi muito bom que
viessem ao nosso encontro, que nos convidassem. Espero que não estejamos sendo incômodos, Henri.
— Absolutamente não. Estamos deliciados em tê-los conosco. Deve saber disso.
Nada poderia ser mais caloroso que as maneiras e o sorriso de Henri. Mas os pálidos olhos de basilisco não tinham calor de amizade. Peter
sentiu a personalidade dele, com frieza e temor. O homem de poder. O mais terrível homem de poder. O velho ódio, o medo antigo, a
repugnância de sempre o dominaram. Receoso de que Henri pudesse perceber-lhe os pensamentos, obrigou-se a ser excessivamente cordial:
— Muito bem, igualmente. Receio que nos ache cansativos. Mas ficaremos por pouco tempo.
Sua mão magra estava doendo devido ao forte aperto de Henri quando se voltou para Rosemarie, que tinha estado observando os dois
homens, com um sorriso cínico e odioso. Ela o beijou cordialmente. Ele era seu tio, irmão de seu pai — Francis Bouchard — e relacionado com
ela também através de outras ramificações do clã.
— Bem, Peter, em casa outra vez. Pensando em alguma nova peregrinação?
Pessoas como Rosemarie invariavelmente o faziam tremer. Eram tão firmes, tão impiedosas, tão refinadas e desumanas... Gaguejou enquanto
tentava replicar-lhe com ligeireza.
— Reservamos uma suíte para vocês passarem a noite, no Ritz — informou Henri. — Melhor descansar antes de começar a viagem para casa.
Celeste estava tendo alguma dificuldade com a alfândega. Imediatamente Henri foi em seu auxílio. Em tempo inacreditavelmente curto havia
resolvido tudo. Celeste o observava, um pouco à parte: viu o respeito quase rastejante dos funcionários. Ela sorriu, um tanto tristemente. Todos
o olhavam. Ele atraía olhares, e estava completamente inconsciente deles, como se desdenhasse até a existência de outrem.
A limusine de Henri esperava. Estava intenso o calor em Nova York, nesse último dia de maio. Uma poeira amarelada rodopiava de encontro
às vidraças do carro. Era demasiado intensa a luz nas grandes torres, doloroso o ruído. Celeste recostou-se nas almofadas e fechou os olhos.
Mas podia sentir o olhar de Henri em seu rosto, a pressão do braço dele contra o dela. Suas maneiras haviam sido indiferentes, e casual a
atitude. Agora ele conversava com Peter, fazendo-lhe perguntas amigáveis. Porém ela sentia seus pensamentos enlevados nela, como mãos
exigentes em seu corpo e a que não podia resistir, e seu corpo respondia com calor e terror. Uma fraqueza circulava nela... seu coração
palpitava tão fortemente que não podia ouvir a conversa em torno dela: chegava-lhe abafada e desarticulada. Seus joelhos estavam
liquefeitos... os dedos lhe tremiam dentro das luvas...
E pensou:
“Nunca deveríamos ter aceito...”, seu espírito lutando com as invisíveis, mas terríveis mãos que a agarravam, a subjugavam, tal como seu corpo
teria lutado com mãos carnais. Arquejou no desejo de escapar, e quando estava cônscia desse desejo ele a abandonou, voluptuosamente.
Calafrios lhe percorreram rosto, pescoço e seios. Ela o odiava; temia-o; não podia resistir-lhe. Sentiu o movimento do ombro dele de encontro
ao seu quando ele respirou, e soube, sem olhá-lo, quando ele a mirava com o canto dos olhos.
Cogitou:
“Teremos de dar alguma desculpa. Amanhã, daremos alguma desculpa. Emile ainda está em Windsor. Podemos mudar de ideia... Sim, é isso.
Não posso suportá-lo. Antigamente podia. Cheguei a pensar que o amava. Agora, eu o odeio! Como ousa pensar em mim, como ousa olhar
para mim! Amanhã teremos de fazer outros planos. Não me lembro, agora, por que aceitei. Outros planos...”
Ela não fez outros planos. Na noite seguinte, ela e Peter ocupavam um belo apartamento de Robin’s Nest, em Roseville, subúrbio de Windsor,
Pensilvânia.

Capítulo 7
Celeste esperava, vagamente, que a paz anelante e sinistramente brilhante que permanecera sobre a Europa nesse verão de 1939 ficaria
ausente da América, de seu velho lar em Windsor. Assim não foi. Invadiu a América, também, como um mar de cromo rutilante que podia
apartar-se momentaneamente para revelar as pontas de ofuscantes baionetas. A Depressão, “aquele homem na Casa Branca”, trabalho,
desemprego, o New Deal — eram, contudo, importantes em debates, em jornais, em livros, e no rádio. Porém o tópico principal era Hitler, o
Corredor Polonês, as perspectivas de guerra.
Havia na América uma revolta silenciosa, uma inquietação, um olhar para o leste com medo, ódio ou esperança. Através desses mares azuis,
tão calmos e suaves neste verão, tão cheios de alegre tráfico, vinham sinistros murmúrios, o sopro de ventos frios, os sons de exércitos
invisíveis. E com eles vinham os gritos dos torturados, a sombra de uma multidão de braços erguidos clamando por socorro, as longas formas
nebulosas da duplicidade e da traição, ganância e assassínio, terror e condenação, lançando seus reflexos no oceano cromado como
presságio espectral do destino.
Celeste obrigava-se a acreditar em paz, contra o que realmente sabia, contra a cansada voz de Peter. Recusava-se a discutir com ele fosse o
que fosse:
— Descansemos um pouco, meu querido — suplicava. — Só um pouco.
Sabia agora o quão nostálgica estivera. Mesmo seus numerosos parentes, os Bouchards, que já temera e com quem antipatizara, lhe pareciam
adoráveis. Aceitava-lhes a cordialidade e a afeição superficiais. Seus dois irmãos, Armand e Emile — ainda em Windsor — e suas famílias
estavam sempre entrando e saindo de Robin’s Nest. Seus outros parentes, Francis, Hugo, e Jean, e suas mulheres e filhos, eram visitantes
frequentes, e mesmo Nicholas, aquele ‘homem sujo’. André Bouchard, mulher e filhos também vinham. Só Christopher, seu amado irmão, e a
esposa Edith, irmã de Henri, ainda não haviam chegado da Flórida, mas eram esperados a qualquer momento.
Celeste sentiu a cordialidade da família. Estava inteiramente em sua mente, como Adelaide Poderia, triste, haver-lhe dito. Porém Adelaide
estava com o filho, Emile, e a família dele. Sempre tivera um fraco por Agnes, a esposa de Emile, que, além de ser cínica, cruel, dissipada, e
gananciosa, era também honesta. Por alguma razão, Agnes não ‘era capaz de enfrentar’ visitas frequentes a Robin’s Nest, embora Emile
muitas vezes desse uma passadinha por ali quando ia para casa, ao voltar do escritório. Portanto Adelaide via a filha e Peter não mais que
uma vez por semana, e até menos. Sentia uma sensação estranha na atmosfera, e por mais que tentasse afastá-la, a impressão permanecia.
Sabia que bastava pedir um carro, ou mandar chamar um carro de aluguel, e poderia ir sozinha a Robin’s Nest. Mas a estranha barreira erguida
contra ela, que sentia, em que não queria acreditar, evitava que fosse lá. Mas telefonava a Celeste pelo menos uma vez por dia, para ouvir,
doloridamente, o tom da voz de Celeste mais do que suas palavras afetuosas.
Havia muitos outros parentes, além dos de nome Bouchard, e muitos amigos que iam visitar Celeste. Ela estava emocionada. Não esquecera
que, outrora, não se importavam com ela, mais especialmente depois de seu casamento. Dificilmente era encontrada em casa. Peter, em
recuperação da viagem à França, raramente a acompanhava às inúmeras casas onde a recebiam. A princípio ela recusara, porque Peter não
podia ir; porém, vendo que de repente e inexplicavelmente ela manifestava uma ânsia de alegria e diversão, e pela presença de sua gente, ele
quase implorara que não pensasse nele por uns tempos, e tratasse de distrair-se:
— Você merece isso, querida — dissera, gentilmente, beijando-a na mão. — Estou muito bem. Só preciso descansar. Em uma ou duas
semanas estarei em condições de ir com você a qualquer lugar.
Observou que frequentemente ela jantava fora. Ele, Henri e Annette jantavam sós quase todas as noites. Henri não fazia comentários. Annette
resplandecia de prazer:
— Nunca vi ninguém tão popular! Isso é bom para a nossa querida também.
Ouvindo isso, Henri inclinava a cabeça e sorria um pouco para si mesmo. Imaginava perfeitamente bem por que tão raramente encontrava
Celeste em casa. Ele podia esperar um pouco mais. Compreendia essa fuga. Se Celeste não fugisse com tanta frequência, e tão
persistentemente, ele não ficaria tão satisfeito. Sua ausência lhe dizia muito — para sua selvagem satisfação.
As forças de Peter não voltavam. Isso fazia com que o casal não pudesse fazer ainda planos de futuro. Ele não estava em condições de ser
perturbado, de mudar-se, de ser agitado — os médicos haviam informado à esposa. Eles concordavam profundamente com Henri, que tivera
uma conversa particular com eles. Ele os prevenira para não dar a ele a mais leve pista dessa conversa.
Um competente trio de enfermeiras aparecera em Robin’s Nest. Celeste protestara; Peter protestara.
— Você deseja recobrar a saúde tão rápido quanto possível, não? — perguntara Henri com impaciência, enquanto Annette carinhosamente
implorava. — Além disso — Henri dissera privadamente a seu hóspede — se você recusa, Celeste ficará aprisionada aqui. Não acha que ela
merece um pouco de liberdade, após todos esses anos?
Assim, infeliz como se sentia, e estranhamente apreensivo, Peter concordou com as enfermeiras, derrotando os protestos de Celeste. Sentiu-
se recompensado pela nova juventude, felicidade e alegria que se tornou evidente no rosto de Celeste. Ela recuperou a vivacidade de sua
juventude. Por vezes, essa vivacidade parecia febril a seu marido. Certamente, embora risse tão frequentemente e tivesse adquirido muita
graça, quando em repouso ela parecia cansada. Estava mais amorosa que nunca; por vezes agarrava-se a Peter com uma espécie de
desespero. Nessas vezes, ela dormia no quarto dele na caminha da enfermeira, e obstinadamente recusava ser desalojada.
Quando Peter se tornava agitado, pedia papel e certos livros, parecia prestes a começar sérias discussões com Henri, tudo isso era
jeitosamente evitado pelo anfitrião cortês. Mais tarde, o médico visitava o irritável inválido, com recomendações de que “descansasse” um
pouco mais, relaxasse, ficasse calmo, que sua saúde estava melhorando e seria loucura destruir os benefícios já adquiridos. Pelo bem de
Celeste, Peter se submetia. Porém sua insônia aumentava.
Sentia-se rodeado de inimigos, embora todos fossem extremamente solícitos. Por vezes, em palavras mais febris, sugeria isso a Celeste.
Contudo Celeste, que conversara com o médico, lhe implorava que fosse paciente. Peter ficava silencioso. Mas olhava a esposa com olhos
apaixonados onde se vislumbrava a confusa luz de um prisioneiro.
Ele estava experimentando a lenta impotência de alguém acorrentado. Estava rodeado de cuidados e amizade, e da afeição de Annette, que
era doida por ele. Nada ouvia de significativo nas vozes bondosas dos parentes. Lembrava-se dos rodeios, habilidade e ganância de seus
irmãos, suas exigências homicidas. Todavia, agora via apenas rostos suaves, só ouvia expressões de solicitude, e riso fácil. Onde estavam as
tendências ocultas de que se recordava, o ódio, as conspirações, a sensação de coisas terríveis acontecendo em silêncio e em segredo? Não
estavam presentes em absoluto. Predominavam completa benevolência e calma. Todos apareciam no melhor dos termos, apenas interessados
em opiniões sorridentemente desdenhosas sobre o Presidente, golfe, planos para o verão, e afeições de família. Gracejavam, riam, traziam
pequenos presentes para o inválido, e muitos convites. A Depressão parecia não os afetar.
— Estamos aguardando — disse Francis, irmão de Peter, frigidamente louro, agora grisalhando.
— Aguardando? — diria Peter, sombriamente. — O quê?
Mas ninguém lhe responderia, exceto com uma leve risada, uma pressão no ombro, a mudança de assunto...
Entretanto, muito lentamente, à medida que os dias passavam, ele começou a sentir novamente tendências ocultas, mais fortes, mais
assustadoras, mais significativas e sinistras do que jamais se lembrava. Isso o lançou num frenesi. Era um cego às apalpadelas através de
cavernas medonhas cheias de ecos abafados, com o sussurro de inimigos apavorantes, com o bafo de terrores desconhecidos. Não podia
falar deles mesmo a Celeste, interessada agora apenas em sua saúde. Nunca via Adelaide mais de uma vez por semana — ela, que fora mais
sua confidente do que a própria esposa. Quando a via, ela estava sempre com outros.
Ele estava só, paralisado com a inércia dos que são sozinhos. Estendeu as mãos no escuro, para as formas suspeitas, as vozes sussurrantes...
e nada encontrou. Mas seu terror e medo cresceram à proporção que os dias deslizavam como um sonho prateado indo para junho, para julho.
Ouvia o apelo urgente a distância, e não podia erguer-se. Orava. Em suas preces havia o terror dos ameaçados, o terror de alguém que sabe
não ter poder, não ter palavras para expressar o que sabia.
“Devemos sair daqui — pensou — não fiz bem em vir para cá.” Sugeriu a Celeste que deixassem Robin’s Nest; porém, amedrontada pelas
palavras do médico, ela resistiu, com doces palavras e toques suaves.
Lentamente chegou a ele a convicção — com medo dominante e supersticioso — de que estava sendo vigiado. De que mesmo quando os
muitos parentes conversavam com ele inteiramente à vontade sobre as coisas menos importantes, estava sendo vigiado por eles. Disse a si
mesmo que estava adquirindo a introspecção suspeitosa e lamurienta de um inválido. Mas não adiantou. Ele via o súbito brilho de um olho aqui
e ali, imediatamente prevenido.
Por que estariam a vigiá-lo, se é que estavam? Absurdo! Estava louco. Não tinha poder entre os Bouchards. É verdade que o seu livro
antiguerra, antiarmamentos — The Terrible Swift Sword — fora imensamente popular na América. Ele poderia pensar que teria tido muita
influência. (Seu parente, Georges Bouchard, o editor, lhe havia amigavelmente assegurado, no entanto, que a influência de um escritor era
romântica e totalmente superestimada, especialmente na América, onde tão poucos eram mentalmente literatos.) Porém o livro já não era
mencionado, mesmo casualmente, nos jornais ou nas revistas literárias. Ele julgou isso inevitável: o livro fora publicado há tanto tempo... Não
sabia que sua família tivera muito a ver com a supressão em periódicos ou jornais de qualquer menção ao livro. Nem soube que a família havia
evitado a sua venda para a indústria cinematográfica, e que uma forte quantia trocara de mãos discretamente.
Por que, então, teria ele a sensação de estar sendo incessantemente vigiado? E isso, que ninguém conversava nada de importância com ele.
Perguntavam-lhe, carinhosamente, a respeito das celebridades que conhecera na França, Alemanha, Itália e Inglaterra. Porém no momento em
que ele falava, com paixão crescente, do que vira lá e compreendera, mudavam languidamente de assunto, os rostos se tornavam
desinteressados, e aborrecidos. De início pensou que percebiam que ele ia ficando alterado — e isso o aborrecia, pois só quando debatia
esses assuntos é que se sentia reviver. Contudo, mais tarde começou a prestar atenção.
Lia o Windsor Courier, o jornal de sua gente. Nele tudo era restrito e conservador: protestava contra a iminência de guerra. Ria tolerantemente
de qualquer sugestão governamental de terríveis eventos futuros. Achava isso intolerável: assinou vários periódicos liberais, porém só lhe
chegavam de longe em longe, e tinham o hábito de desaparecer.
Pelos fins de julho ele estava em efervescência! Seu terror era uma coisa viva.
Por vezes pegava Henri quase à força, pedindo que lhe dissesse o que se passava na companhia, e nas subsidiárias. Henri erguia as
sobrancelhas sobre aqueles olhos pálidos e implacáveis, dizendo:
— Vamos indo... Marcando tempo. O que o interessa em nossos negócios? Francamente, não sei o que faremos se não nos livrarmos daquele
homem na Casa Branca no próximo ano. Os negócios estão parados.
“Não é verdade — pensou Peter, atemorizado e em desespero. — Sei o que vocês estão fazendo...”
Porém nada podia fazer, a não ser olhar para Henri, com medo impotente, ódio concentrado, e esmagadora confusão.
Tentou levar os parentes a discussões sobre política. Todavia, além do fato de serem entusiasticamente vitriólicos à menção do nome de
Roosevelt, nada diziam de significativo, exceto aludir a uma vitória republicana na eleição presidencial do ano próximo.
— Já temos nosso homem — Jean foi indiscreto o bastante para confessar; mas quando Peter pediu esclarecimentos, Jean desconversou,
com os outros parentes a dardejar-lhe olhares furiosos
De modo que nada descobriu. Não deveria ter vindo para Robin’s Nest, para ser sufocado por esta sinistra solicitude. Estava prisioneiro. E era
mantido incomunicável.
Nesse ínterim, a brilhante atmosfera de paz era constantemente agitada por ventos cheios de presságios e de horror. Poderia ter sido sua
imaginação, no que dizia respeito aos Bouchards. Mais ainda em vez de melhorar, ele piorava, sendo sutilmente envenenado pela inércia que
lhe era infligida por outros. Jazia acordado à noite, pensando nisso, pensando que estava ficando louco. Sua razão repudiava seus terrores.
Mas o instinto o avisava agourentamente.
Absorto em si mesmo, asfixiado em Robin’s Nest, não via a febre no rosto pálido de Celeste, que ia perdendo sua qualidade luminosa. Não lhe
via os olhos desesperados, a crescente repressão em sua boca.
Havia outra coisa: em todas as discussões para planos de verão, observou Peter que nenhum dos Bouchards esteve ausente de Windsor por
mais de alguns dias. Também eles esperavam, como ele esperava. Sentia-lhes os olhos, fixos e perigosos, virados para o leste, para além do
mar. O mundo esperava.

Capítulo 8
Em 26 de julho de 1939 Christopher Bouchard (“o Robô de Cromo”) e a esposa, Edith, irmã de Henri, vieram para Robin’s Nest. Christopher
vinha da Flórida, ostensivamente para ver a amada e única irmã, Celeste. Fora o tutor dela, substituindo Jules, o pai a quem odiara tão
monstruosamente. Ele quase destruíra a moça. Ela nunca soubera disso. No fim, antes da implacabilidade final, enfraquecera. Não pudera
completar a destruição. A fé que Celeste tinha nele a havia salvo e, estranhamente, também a ele.
Christopher estava à beira dos cinquenta agora, mas possuía a perenidade daqueles de seu temperamento e sua tez. Parecia-se muito com o
pai, exceto pela tez, que era clara, pálida, com aquela sugestão de brilho do cromo polido que lhe havia proporcionado o seu apelido.
Descorado, com um pequeno crânio lustroso com cabelo castanho grisalho, lóbulos das orelhas tão delicados e pequenos que eram quase
transparentes, leve e esbelto e não excessivamente alto, voz sem tonalidade e sem ênfase, ele a princípio não dava indícios de sua mortal
personalidade, crueldade sádica, íntimo terror egoísta, exigências homicidas. Também suas mãos eram delicadas, com veias azuis e unhas
pálidas. Movia-se maciamente, como a “serpente prateada” com quem se parecia, no dizer de seu irmão Armand. Suas feições eram
apuradas, nada expressando, e havia uma lividez argêntea em seus olhos “egípcios”. Ao sorrir, era um sorriso imóvel. Não confiava em
ninguém. Odiava a todos. Havia uma qualidade odienta mesmo em seu amor pela esposa e pela irmã. E só sua esposa, sua mãe e sua irmã o
amavam. Pela mãe, Adelaide, sentia apenas a mais indiferente malícia e desdém. Habitualmente esquecia sua existência; certa vez, quando
lhe lembraram que ela ainda vivia, exclamou, para Edith:
— Quê! Ainda não morreu? Meu Deus, deve estar com quase oitenta, então!
Jamais esqueceu que foi Adelaide quem ajudou a contrariar seu esquema de casar sua irmã com Henri, e assim melhorar suas próprias
fortunas, suas próprias conspirações contra o irmão Armand, o herdeiro de seu pai. Ele era agora presidente de Duval-Bonnet, fabricantes de
aviões, na Flórida.
Edith Bouchard, irmã de Henri — bisneta do terrível Ernest Barbour — e esposa de Christopher, era uma mulher simples, mas aristocrática, no
começo da casa dos quarenta. Morena como os Bouchards “latinos” em oposição aos Bouchards “saxões” louríssimos, de cabeça erguida,
tinha uma espécie de fria arrogância. Corpo sólido, mas muito esbelto, ombros largos e finos, era quase da altura do irmão, parecendo mais
alta devido ao rosto de extrema mobilidade. Em alguns traços parecia-se com a elegante Rosemarie, pois seu rosto era estreito e de maçãs
altas, o nariz um pouco longo e fino, e o queixo quadrado e firme. Usava pouca maquilagem e sua pele naturalmente escura era coberta apenas
por uma leve camada de pó-de-arroz escuro não realçado por carmim ou batom. Os olhos eram castanhos, mas sem a característica afetiva
desse colorido, eram francos e diretos, e completamente honestos. Porém era dotada de brilho, classe, bom gosto, e certa elegância que a
mais ostentosa Rosemarie não possuía. Mesmo seu cabelo, negro, liso e lustroso, e penteado como o de Rosemarie, aumentava-lhe a
aparência de inteligência.
Não tinha filhos, nunca os desejara, pois, enquanto tinha profunda e oculta bondade, e integridade, era destituída de sentimentos, e
completamente egoísta. Havia ainda outra razão, que ela dificilmente confessava mesmo a si própria: receava gerar mais um Bouchard.
Completamente desiludida a respeito do marido ela, no entanto, o amava com a única paixão de sua vida. Ela e o irmão, Henri, haviam sido
muito chegados, muito amigos, porém ela nunca sentira por ele essa completa dedicação de coração e alma. Entretanto, se acontecesse uma
real competição entre seu irmão e seu marido — como sabia que se daria algum dia — ela examinaria desapaixonadamente a situação, sua
opinião e apoio indo resolutamente para o que considerasse menos perigoso. Christopher sabia disso. Muitas vezes a irritava a respeito do
seu “puritanismo”, mas respeitava-a por isso.
Por Celeste sentia uma afeição casual, um deleite estranho, piedade, e, por vezes, pena. Detestava a pobre pequena Annette, como detestava
tudo que era doentio e impotente. Peter era a única exceção: por ele sentia apenas compaixão e um indiferente senso de indignação por seus
sofrimentos.
Muitas vezes refletiu que catorze anos haviam passado desde o casamento de Celeste com Peter, e cada ano era como outro forte na área
vulnerável que rodeava Peter. Contudo, agora Celeste e o marido estavam sob o teto do implacável e paciente Henri — e a primeira reação
dela ante as notícias fora de desgosto e apreensão. Conhecia Henri muito bem. Certamente, mesmo esses inocentes, Peter e Celeste, deviam
conhecê-lo um pouco agora. Certamente poderiam haver lembrado, ainda que vagamente, que ele nunca esquecia, nunca perdoava, e nunca
desistia do que havia desejado. Ele desejara Celeste. O cordeiro de olhos azuis fora abrigar-se exatamente na tocaia do lobo...
Christopher e Edith chegaram inesperadamente, num domingo de manhã, de avião. Era ainda muito cedo. Henri os recebeu à porta, na esteira
dos criados, que se empenhavam em tirar do carro as bagagens. Edith o beijou carinhosamente, examinando-lhe as feições atentamente,
embora soubesse de nada adiantar: Henri nunca revelava nada que desejasse manter oculto. Apertou calorosamente as mãos de Christopher.
Ali estava de pé, no terraço, forte, um tanto atarracado, em roupas matinais pois o dia estava bem quente, e a irmã tornou a sentir o impacto de
sua força formidável. Mesmo enquanto apertava a mão de Christopher, sua mão esquerda retinha os dedos morenos da irmã, e ele os
pressionava com real afeição.
— Estão todos na cama, menos eu — falou. Encaminhou-se para a casa, entre a irmã e Christopher. — Mas já foram avisados. Daqui a pouco
estarão todos aqui. Como foi a viagem?
— Excelente. Avião Duval-Bonnet, claro! — respondeu Christopher com seu sorriso metálico, que lhe marcava a pele seca com uma rede de
rugas. A respeito dele, refletiu Henri, como já o fizera muitas vezes, existe uma qualidade de cabeça-de-morto, ressecada e quebradiça,
sardônica e perigosa.
Os dois homens entraram na mansão, porém Edith se demorou sozinha, na linda manhã, olhando em tomo com um estranho anseio, uma
doçura que não lhe era habitual. Sempre amara Robin’s Nest, a casa construída por seus antepassados no subúrbio de Roseville. Havia dois
anos não vinha ali. Agora o seu frio coração doía de nostalgia.
Essa era a grande casa georgiana de pedra cinzenta, construída para a trágica Gertrude Barbour por seu marido, Paul. Através dessas janelas
gradeadas Gertrude devia, muitas vezes, ter olhado lá embaixo a estrada sinuosa que levava através da propriedade enorme como um parque.
Por quem esperaria ela, até sua morte prematura? Por Phillippe, o primo com quem estava para casar, e que fora mandado embora por seu
pai? A ampla avenida arborizada lá estava, diante de sua neta Edith, serena, dourada ao sol do verão, sombreada pelo púrpura das árvores,
altas e majestosas, rosadas nas ramarias mais altas. Havia uma beleza formal e severa nos gramados. Mas nos fundos, Edith sabia haver
imensos roseirais, grutas, pequenos caminhos sinuosos, fontes, e salgueiros chorões cheios de vento e de misteriosos murmúrios.
Pelos padrões americanos, a casa era “velha”, e bastante arcaica. Os quartos enormes não tinham “estilo”, como Lady Bouchard declarava
com frequência. Contudo, Edith recordava seu frescor e encanto, sua calma penumbra no calor do dia, as lareiras imensas em cada peça, sua
dignidade e graça clássica, seus tetos imponentes e assoalhos escuros e polidos. Lembrava-se do ar de formalidade mesmo nas festinhas
mais íntimas, a restrição das madeiras apaineladas e das paredes adamascadas. Das heroicas proporções do vestíbulo de recepção uma
escada em espiral, graciosa e delicada, se enroscava para cima. Por vezes, em noites solitárias quando ela morava aqui, Edith em sua cama
imaginava ouvir o farfalhar de tafetá nas escadas, o eco de um triste suspiro jovem vindo de um coração que ia lentamente se rompendo...
Ficou sozinha na vereda que levava à casa, ouvindo a onda de vento quente nas árvores, aspirando o aroma da manhã quente e úmida e a
ilusória fragrância dos jardins de rosas e da terra viva. A luz do sol brilhava no severo rosto moreno sob o chapéu elegante e ela sentiu o seu
calor nas mãos enluvadas. A brisa agitava o seu fino costume preto e o simples colar branco. Acalmados por sua imobilidade, pássaros
corriam pela verde pelúcia do gramado, quase aos seus pés. Ela lhes ouvia o doce trinado nas árvores, via o brilho do sol em suas asas
quando se arremessavam para as sombras. O fresco e brilhante silêncio da manhã fluía sobre tudo como água. Às vezes a hera que revestia as
pedras cinzentas da mansão se tornavam brancas ao vento.
A longa rampa da entrada para carros, todo aquele verde, as árvores ondulantes eram um brilhante deslumbramento ante seus olhos. Ela e
Henri haviam nascido aqui. Este era o seu lar. Ela sentia sua carne uma com a casa — a verdadeira substância viva de sua parte na terra. A
casa tinha quase cem anos de construída, mas só duas pessoas haviam nascido ali: ela e o irmão. Fora feita para grandes famílias de crianças
felizes, que brincariam nessas móveis sombras cor-de-malva debaixo das árvores, que encheriam os quartos imponentes de risadas e bonitos
vestidos e faces rosadas. A sala de música ressoaria com os dedinhos no grande piano de cauda. Agora existe lá uma harpa, refletiu Edith, a
harpa de Annette. Sem dúvida a penumbra tilintaria com as notas argênteas evocadas por dedos frágeis. Sentiu-se ultrajada.
Talvez se Christopher e eu morássemos aqui, em vez de Henri e Annette, eu pudesse ter tido filhos — ela pensou. Porém devia haver uma
maldição sobre a casa, ela refletiu, com estranho humor. Mesmo sua mãe, Alice, não nascera ali, mas em casa de Ernest Barbour. O
nascimento escapava desse recinto majestoso.
Aumentou seu senso de coragem. Como Henri podia ter sido tão obtuso que não visse logo que a frágil Annette nunca lhe daria filhos? De
repente Edith, a despeito de sua dureza fundamental, sentiu a profundeza da terra. Pela primeira vez em sua existência, parecia-lhe que a vida
era mais importante que poder e riqueza. Estava surpresa! Era uma verdadeira Bouchard, indiferente, falsa, e mesmo astuta, apesar de toda a
sua honestidade e franqueza. Nunca pensara nessas coisas: que filhos, lar, serenidade e amor podiam ser mais preciosos que as coisas pelas
quais viviam os Bouchards. Haviam tido senso de dinastia, sim. E assim haviam produzido filhos para prosseguir com essa dinastia. Porém
filhos como carne, como vida, como saúde e doçura e força de coração e alma — isso nunca lhes ocorrera. Poder e vingança impulsionavam
Henri. Não se importara em que isso tornara sua virilidade impotente na estéril Annette. Nunca teria desejado filhos, ao menos pelo bem da
dinastia? Ele era seu irmão; seguramente devia, por vezes, ter sentido a agitação que agora criava aquela triste destruição em sua própria
carne. Ela estava cheia de ardente compaixão por ele.
Henri casara com Annette num último esforço para recuperar o poder que fora cruelmente roubado do bisneto de Ernest Barbour pelo sobrinho,
Jules Bouchard. Agora, para Edith, toda essa desapiedada recuperação de poder parecia louca e trágica, e muito infantil.
“Estou sendo absurda!” — pensou.
E então, sob a sombra do elegante chapéu preto de marinheiro com sua fita branca, seus olhos castanhos se arregalaram. O coração se
acelerou apreensivamente: Henri, casado com a estéril e doente Annette; Celeste, casada com o moribundo Peter. Henri... e Celeste! Ela teve
misteriosa e assustadora premonição de que o Destino, assim como Henri, podia ser considerado como vaga, porém gigantesca sombra atrás
da presença de Celeste nesta casa. Henri, também, deve ter sentido a força instigadora desta casa.
“Não! — pensou. — Estou sendo absurda!”
Contudo, sua apreensão logo se transformou em medo. Inclinou a cabeça e correu para a fresca e sombria imensidão do vestíbulo. Seu
pensamento era: “Mas isso é impossível!” Mais cedo, naquela manhã, não pensara nisso. Tivera ideia completamente diferente. Agora, o
encantamento e o poder da casa a dominavam, e o forte ar a prevenia.
Celeste sempre impressionara Edith por sua puerilidade e simplicidade de mente e de pensamento. Uma eterna criança, pensara outrora.
Contudo agora via que Celeste era uma mulher. Podia ainda haver certa qualidade infantil nos olhos azuis que olhavam direta e calmamente.
Podia haver simplicidade em sua maneira digna. Mas era agora uma mulher. Podia não ser falsa como todos os outros Bouchards, mas não
cultivava ilusões. Isso, também, Henri devia saber.
Edith e Celeste nunca tinham sido amigas. Edith apenas sentira uma divertida superioridade para com a criança silenciosa que seu irmão tanto
desejava. Não julgara Celeste à altura de tal homem. Também ela tivera grande parte no impedimento de Henri, convencida de que ele não
encontraria felicidade na pura inocência de Celeste. Ter-se-ia enganado? Fazia a si mesma essa pergunta que Adelaide se perguntara com
tanta frequência.
Os cinco — Celeste, Henri, Annette, Christopher e Edith — tomaram o desjejum na saleta cheia de sol, cujas janelas francesas se abriam para
o roseiral. Como sempre, Peter não descera para o café da manhã.
Annette estava adoravelmente deliciada com a presença de seus hóspedes. Seu pequeno corpo, tão frágil e esbelto, vestia um roupão matinal
de renda branca. Os cachinhos de seu brilhante cabelo claro lhe emolduravam o rostinho triangular, destacando-lhe a palidez. Mas os olhos
azuis extraordinariamente belos, tão grandes e ternos, estavam radiantes. Henri sentava-se a seu lado. Com um sorriso ouvia sua alegre
conversa infantil, às vezes olhando-a com ternura. Ela já não era jovem demais, porém ainda parecia imatura. Quando relanceava um olhar para
o marido, seus olhos tinham uma luz de patética admiração, e ela corava um pouco.
Como podia Henri suportar essa coisinha doente?, pensou Edith, como sempre pensara, mas agora com um desgosto novo e vigilante,
pesarosa e ultrajada. Todavia, ele nada revelara a não ser um misto de bondade e solicitude pela esposa. Ele raramente dava um olhar a
Celeste, sentada em frente a ele, em seu roupão azul-escuro que combinava com seus olhos.
Havia muitos anos Edith não via a cunhada, que também lhe era aparentada pelo sangue. Era a mesma Celeste, mas com uma severidade não
familiar, uma expressão cansada nas narinas e nos lábios. Havia paciência ali, dominada e firme, e segurança. Ela sorria raramente. Mas
estava mais bela que nunca, em sua maturidade, Christopher mal podia afastar os olhos de sua amada irmã. Quando ela encontrou o olhar
dele, ele sorriu, e havia uma estranha busca de ternura nesse sorriso, apesar de sua qualidade imóvel e metálica.
Polidamente indagara a respeito de Peter, e ouvira com atenção quando Celeste respondeu:
— Está muito melhor. Apenas tosse um pouco durante a noite. Logo iremos procurar um lugar para morar.
Ouvindo isto Henri ergueu a cabeça, e dirigiu um pálido olhar a Celeste. Porém os grossos lábios com vincos brutais em volta não se moveram.
Um momento depois ergueu os olhos para Christopher — olhos em branco que nada expressavam. Entretanto, todos os músculos de
Christopher estremeceram numa espécie de surpresa alerta, e cálculo.
“Impossível!” — pensou. — “Isso acabou há muito tempo! Mas... nada acaba para sempre, com um homem assim!”
Entretanto, sentiu um divertimento negro e perigoso. Voltou para a irmã seu olhar brilhante, e as rodinhas cromadas de sua mente começaram
um rápido e silencioso rodopio. Ela o arruinara, por seu casamento com Peter contra os seus planos. Como Henri, também ele nunca
esqueceu, nunca perdoou inteiramente. Contudo, enquanto a estudava, a íntima traição dele mesmo que nunca pôde resistir ao amor que tinha
por ela encheu-o de obscura ansiedade. O amorzinho! A louquinha! Ela arruinara a própria vida, a vida de Henri e a dele, Christopher. Ela
causara aquela aparência fechada e profunda que havia em seus olhos e em sua boca, e o olhar de paciente sofrimento. Sentiu-lhe o
marmóreo coração, e cogitou, pela centésima vez, como nunca se apercebera disso, quando ela fora criança e sob seus cuidados. Sua
ansiedade amenizou-se um pouco. Ela fora uma “parada” para todos eles, porque era desprotegida. Era um páreo muito mais difícil agora,
porque entendia as coisas e era uma mulher, por fim.
Intensificou-se o exame que fazia. Henri conversava com ela, indolentemente, de coisas sem importância. Ela devolvia o olhar dele
indiferentemente. No seu rosto, grave e pálido, não havia o menor sinal de emoção. Sua mãozinha branca descansava perto da xícara de café
em atitude indolente — sem qualquer tremor.
A mente de Christopher aumentou a velocidade. Henri controlava os Bouchards, através de seu casamento com Annette, devido à sua própria
força de caráter. Annette. Christopher relanceou um olhar à cunhada, que era também sua sobrinha. Frágil e delicada como uma estatueta. Mas
nem sempre se pode contar com a extinção prematura de criaturas tão pequenas. São tenazes, e agarram-se à vida até caírem dela como as
folhas caem das árvores no outono. No entanto, às vezes morrem quando lhes partem o coração. Ele se lembrava que ela quase morreu
quando Celeste ficara noiva de Henri. Agora, se ela morresse...
Se ela morresse. A mente de Christopher se fixou no pensamento assim como mãos ávidas se firmam num fruto maduro, o suco espirrando por
entre os dedos no firme aperto. Se Peter devesse morrer... Um olhar de total malevolência brilhou por um instante em seus olhos cruéis. Depois,
haverá apenas Henri e Celeste. Uma repentina quentura, quase como uma febre, lhe tocou a face.
Sentiu alguém a olhá-lo: era Henri. E Henri estava sorrindo, as pálpebras estreitadas.
Mas Henri disse, no tom mais casual:
— Gostaria de subir para ver Peter, Chris?
— Esperarei um pouco — disse Edith, que odiava inválidos. — Nós, garotas, temos muito que conversar.
Os dois homens se levantaram e deixaram a mesa do café. Entraram no longo corredor que levava ao vestíbulo. Christopher caminhava atrás
de Henri, e não podia despregar os olhos da grande cabeça napoleônica, a posição desses largos ombros. Henri se movia rápida e
firmemente. Ao chegar ao pé da escada, virou-se e olhou o cunhado, com aquela expressão vazia.
Nada fora dito, nada sugerido. Mas, enquanto os dois homens se fitavam na penumbra, o ar impalpável estava cheio de presságios.
Christopher viu o pálido fulgor dos olhos de Henri, seu sorriso desmaiado. Viu-lhe a mão forte e larga no corrimão. Henri plantara um dos pés no
primeiro degrau. Ali ficou, sem se mover: apenas olhava para o cunhado e esperava.
Christopher começou a sorrir. Disse, maciamente:
— Então, ele está aqui. Como está ele?
— Morrendo — falou Henri, calmo, impassível.
Novamente o silêncio.
— Tão aloucado como sempre?
Henri deu de ombros. Olhou a própria mão, ergueu-a distraidamente, e mordeu a unha do dedo indicador. Com um choque, Christopher
lembrou-se de sua própria infância, desse gesto inesquecível de Ernest Barbour.
— Acho — disse Henri por fim, examinando a unha que mordera — que ele sabe muito. Sabe demais. Está queimando, por isso. Mas não
sabe o bastante... deste lado. Quer a todo custo descobrir. Tem a obsessão de que nós, os sórdidos Bouchards, estamos conspirando,
preparando guerra. — E sorriu.
Christopher também sorriu:
— Deve interessar a ele saber que, desta vez, temos outros pensamentos. Mas isso pode ser pior que suas ideias presentes. Muito pior. Na
verdade, com a estúpida obsessão que ele tem agora, pode ser de ajuda inestimável. — Tossiu gentilmente.
— Meu pensamento, exatamente — concordou Henri, com amigável calor. Eles se miraram divertidos.
— Ele poderia ser delicadamente encorajado — continuou Christopher.
— Exatamente — repetiu Henri.
— Deve ser manejado jeitosamente...
— Com finesse. Ele pode ser manejado. Teremos uma reunião do clã. Ele nunca foi muito brilhante... — acrescentou Henri.
— Está com algum livro em gestação agora?
— Está incubando, eu diria. Em minha opinião, não poderia ter voltado em melhor ocasião. Mas teremos de trabalhar depressa. Dificilmente
terá mais que alguns meses de vida. Vi as chapas de raios X!
Houve um silêncio vibrante, ali no vestíbulo, enquanto os dois homens se fitavam, impassíveis.
Então Christopher tocou os lábios com os dedos esqueléticos:
— E a pequena Celeste? Será mau para ela...
O olhar fixo de Henri não abandonou o cunhado.
— Talvez... —- murmurou. — Quem pode dizer?
Christopher, que odiava Henri mais do que qualquer dos outros Bouchards — por causa da humilhação pública e da ignomínia que Henri
outrora lhe infligira — adiantou-se e pressionou o braço do outro com afeição:
— Estaremos à mão, para ajudá-la a suportar o golpe — disse, em tom jocoso.
Porém Henri nada falou. Subiu a escada. Christopher o seguiu, observando-o com os olhos apertados.
Henri bateu a uma porta no vestíbulo de cima, e ele e Christopher entraram nos aposentos de Peter.

Capítulo 9
Peter estava sentado numa poltrona funda perto de uma janela ensolarada, aberta para permitir a entrada do vento. Em uma mesa junto a seu
cotovelo direito estava empilhada uma quantidade de papéis, livros e revistas. De algum modo conseguira obter algumas folhas de papel e,
aparentemente, estivera tomando rápidas notas durante algum tempo. Uma criada se ocupava na limpeza do quarto.
Sorrindo, Christopher olhou atentamente para o cunhado e não perdeu detalhe desse rosto pálido e exausto, faces encovadas e lábios
exangues, olhos cheios de sofrimento. O que viu animou-o excessivamente. Exclamou:
— Muito bem! Então, aqui estamos!
Aproximou-se de Peter, de mão estendida. Peter olhou-o em silêncio, mesmo enquanto mecanicamente lhe apertava a mão. Sentiu uma
vibração do antigo asco e desgosto ao toque dessa carne fria e seca e à leve pressão dos dedos ossudos. O “Robô” não melhorara com o
casamento. Estava de modos mais soltos, é verdade, e tinha ainda mais do inumano sangue-frio que sempre o distinguira. Mas sua qualidade
letal ainda permanecia ali, esperando, como veneno num frasco.
— Você não mudou. Christopher — disse ele.
Christopher riu ligeiramente:
— Ora, deixe disso! Nenhum de nós é mais o mesmo, sabe disso. Mas obrigado, Peter.
Henri sorriu irreprimivelmente. Peter não era conhecido por seu tato... Não tinha rodeios. Henri julgava que ele poderia ter esclarecido o que
realmente quis dizer — o que teria sido divertido... Mas Peter, por um esforço, não esclareceu. Retirou a mão febril da de Christopher, e ficou
silencioso novamente.
— Todos estamos satisfeitíssimos de que você esteja em casa — disse Christopher, sentando-se perto do outro. — Demorou muito...
— Demais! — observou Peter.
— Também acho isso. Como está passando? A mim você parece perfeitamente bem. — Nada poderia ser mais carinhoso que o sorriso de
Christopher, seu ar de solicitude.
— Estou muito melhor — murmurou Peter. Hesitou: — Na verdade, vou insistir para que todos parem de tratar-me como a um inválido.
— Certíssimo! — falou Henri, encaminhando-se para a janela e olhando indolentemente por ela. — Chega de tantos agradinhos. Mas, você
conhece as mulheres: galinhas cacarejando em torno dos pintinhos... Celeste o vem mimando muito, Peter. Acha que aguentaria uma festa, um
jantar com toda a danada família?
— Gostaria disso — disse Peter, em voz baixa. O perfil de Henri se voltava para ele, brutal, áspero, rudemente esculpido como se talhadeira
poderosa o fizesse. — Tenho querido isso.
Não podia despregar de Henri o olhar. O homem parecia fascina-lo. Nesse ínterim, Christopher estudava a pilha de papéis e livros na mesa:
— Outro livro, Peter? Espero que, desta vez, seja algo de mais caridoso.
Peter colocou as mãos, protetoramente, sobre o conteúdo da mesa junto dele. Olhou Christopher com olhos que de súbito eram fogo azul:
— Tenho meus planos — falou, calmamente. Respirou profundamente. Os dois outros homens ouviram o ruído rascante em seu peito, o chiado.
— Tenho estado coletando material. — Ergueu um livro fino; Christopher viu-lhe o título: Deutsche Wehr. Peter o segurou e o fitou.
— Uma publicação militar alemã, 13 de junho de 1935 — comentou Christopher. — Deve ser interessante. Mesmo que apenas como estudo
psicológico da mentalidade germânica. Sempre odiei os alemães. Um povo odioso e pervertido. Completamente louco. Mas suponho que não
concorda comigo, Peter? Nunca acreditou na virulência de povos.
Contudo, Peter falou calmamente:
— Pelo contrário, concordo com você. Desta vez. Não o fazia, a princípio. Um nobre sueco me disse, certa vez, que há um provérbio em seu
país: “Louco como um alemão.” Sim, é um povo insano. Não é Hitler. É a Alemanha, mesmo. Cada alemão, homem, mulher ou criança.
Qualquer alemão, em qualquer lugar. Lá existe uma massa de insanidade. Mas isso não significa que devemos prover a essa insanidade,
sabe. Todo homem inteligente compreende que pessoas loucas devem ser isoladas. Porém há homens, por todo o mundo, que pretendem
aproveitar a demência da Alemanha para seu próprio uso. Pensam que, mais para diante, podem acorrentar a Alemanha. Mas não se pode
facilmente pôr loucos de volta no hospício depois de tê-los usado...
— “Você não pode culpar um povo inteiro” — murmurou Henri. — Não foi você mesmo quem disse isso, em seu próprio livro?
— Não estou culpando os alemães — replicou Peter. Um colorido febril lhe cobriu as faces. — De certa forma, apiedo-me deles. Eles são
intrinsecamente loucos. Não se mata um louco. Tem-se pena dele e o encarceramos onde não possa fazer mal à sociedade. Tentamos curá-lo
por sugestão, ou drogas, ou tratamento... se podemos.
Deteve-se. O rubor apagou-se de seu rosto. Tornou-se lívido. Ergueu-se a meio na poltrona, e apesar de suas próprias advertências íntimas,
não pôde controlar-se:
— Vi tanto na Europa! Ninguém quis ouvir-me... fui a toda parte... Vi tanto, tão terrivelmente! Por isso voltei, para contar o que vi! Talvez alguns
me ouçam.
— Meu Deus! — interrompeu Henri, cansadamente, virando-se da janela e olhando para Peter: — Temos tido uma avalancha de livros a
respeito da Europa. Profetas têm percorrido a América, gritando advertências. Tem havido Jeremias uivando em cada porta. O povo está
cansado disso, acho. Você não pretende juntar-se aos profetas e Jeremias, não é, Peter? Não adianta. Temos tido legiões deles... Eles nos
aborrecem de morte.
Peter estava tremendo violentamente. Eles podiam ver isso. Henri e Christopher trocaram um olhar malevolente de diversão. Christopher
pensou:
“Ele está sendo impedido. Não lhe permitem falar. Henri está cuidando disso. Agora, deixa-o falar: quer que eu o ouça.”
Ele, Christopher, sentiu o antigo fermentar de excitação, a satisfação de que seu implacável cunhado estava conspirando com ele novamente.
Peter gritou, em voz fraca e chocada:
— “Aborrecem vocês de morte!” Meu Deus! Pois não podem ver? — Parou, as mãos apertadas sobre a publicação militar alemã. Seus olhos
eram uma chama azul, e a boca rígida. Falou em tom mais baixo: — Sim. Vocês veem, muito bem. Sei disso. Não há nada que lhes possa
dizer. Vocês sabem de tudo. Isso é o que eu temia!
Henri deu de ombros e sorriu:
— Por Deus! Você acredita nisso, não é mesmo? Continuará a nos lisonjear falando em onipotência, onipresença e onisciência. Você é nosso
melhor propagandista, nosso melhor relações-públicas, Peter. Não se incomode. Acalme-se. Talvez a Alemanha não seja tão louca quanto a
julgamos. Isso passará. Você vai ver.
As mãos trementes de Peter abriram o livro:
— Deixem-me ler isto para vocês — falou, em voz tão forçada e agitada que era dificilmente audível: — “Vitória totalitária significa a total
destruição da nação vencida e seu completo e final desaparecimento da arena histórica. Na realidade, a guerra totalitária nada mais é que uma
gigantesca luta de eliminação cujo desfecho será terrível e irrevogável em sua finalidade.” — Fechou o livro, olhou lentamente de um para o
outro: — Suponho que já leram isto?
Henri riu, com indulgente fastio:
— Já ouvi isto em algum lugar, sim. Quem dá ouvidos às palavras bombásticas dos alemães? Todos são brigões e covardes e berradores.
Deveríamos ter imposto o Tratado de Versalhes. Não o fizemos. Foi nosso sentimentalismo...
— Sua conveniência! — gritou Peter, desperto agora da inércia das últimas semanas.
Christopher estava silencioso, sorrindo de leve. Henri estava “chorando” o idiota, para seus próprios propósitos. De modo que Christopher
ouvia atentamente, compreendendo que nessa conversa aparentemente incoerente e tola havia um plano e um modelo que Henri pretendia que
ele percebesse.
— Nossa conveniência? — disse Henri, tornando-se mais frio e pesado à medida que crescia a apaixonada agitação de Peter. Ele estava
estudando o doente com implacável interesse: — Não seja tolo, Peter. Sim, lembro-me do que disse em seu livro: “Homens perigosos buscam
destruir o Tratado de Versalhes, pedem uma moratória sobre as reparações da Alemanha, ajudam-na secretamente a armar-se e soltar sua
loucura sobre o mundo novamente, por lucro.”
Deteve-se. Sorriu com agradável ferocidade. Estendeu um de seus largos dedos indicadores para Peter e continuou:
— Agora, deixe-me dizer-lhe algo, Peter. Você, e os seus iguais, destruíram o Tratado de Versalhes. Você e os seus iguais influenciaram
Hoover em sua perigosa moratória. Em consequência, vocês são a causa do rearmamento da Alemanha e do perigo presente nela implícito
para o mundo. Você e os seus escritores pacifistas; você e os seus escritores anti-munições. Você e os seus investigadores de corrupção. Que
temos agora, aqui na América? Um povo moroso e obstinado, determinado a não saber mais de complicações europeias, um povo que olha
com ódio e suspeita todos os fabricantes de munições e armamentos. Um bando de sociedades pacifistas e anti-guerra, de mulheres
guinchadoras e de eunucos. Veja nossa situação militar agora. Que planos reais temos? Que tanques? Que exército, que armada? Que defesa
vital?
Deteve-se. Deixou cair o dedo que apontava. O sorriso permaneceu. Os pálidos olhos luziam de divertida malevolência:
— Sim, Peter, vocês nos ajudaram a desarmar a América. Nós, Bouchards, não podemos fazer um movimento sem as estúpidas massas
mugindo que estamos “conspirando guerras”. Nossos relações-públicas nos dizem que não adianta nada intrigarmos, ou apelarmos, ou
trabalharmos. O próprio Roosevelt, na ânsia de rearmamento, está sendo chamado “fomentador de guerras”. Se a coisa tivesse sido deixada a
nós, Bouchards, com outros como nós, a América poderia não estar agora olhando para a Europa com tamanho terror, a Inglaterra poderia não
ter feito um Munique, a França poderia não estar em tais condições de degenerescência e decadência. Dizem que buscamos lucros:
confessamos isto. Somos negociantes. O negócio é rearmar a América.
Deteve-se outra vez. Peter recaíra em sua poltrona. Olhava para Henri sem pestanejar. Seus olhos eram buracos azuis e imóveis no rosto
exausto. Henri inclinou a cabeça e olhou o homem doente, com aquele seu frio sorriso homicida.
Então Peter falou, quietamente:
— Você simplifica as coisas. Deduz que sou um tolo. Mas não sabe o que eu sei. — Inspirou profunda e audivelmente.
Henri ergueu os sobrolhos:
— Então não sabemos o que você sabe? Garanto-lhe que sabemos muito, meu amigo. Espere, ainda não acabei. Veja a América, outra vez.
Olhe para nós, uma gorda nação desarmada, vociferante com tolas vozes berrando contra o rearmamento. Você despertou essa tempestade
de vozes, Peter. Você, e outros como você, com seus livros imprudentes e histéricos. Agora, estamos impotentes. E agora você corre de volta
para casa, para a América, para apregoar a “verdade”! Se houver uma guerra, que não vai haver, naturalmente, e a América mergulhar nela,
indefesa, e for conquistada pela Alemanha, você terá a satisfação de saber que terá ajudado essa realização. Sabe que sociedades pacifistas
você ajudou a criar aqui? Em breve terá oportunidade de descobri-lo. Isso deverá dar-lhe uma sensação de poder. Era isso que buscava, não
é?
Peter estava calado. Fixava Henri com uma espécie de horror tranquilo, como se algo naquele pálido semblante o fascinasse. Parecia não ter
ouvido o que o outro dissera.
— Sim — falou Christopher gentilmente — é tudo verdade, Peter. Você ajudou. Ajudou a criar a situação de que agora veio correndo avisar-
nos. Muito, muito contraditório...
Peter os contemplava no silêncio imóvel e glacial que desabara sobre ele. Havia uma espécie de incredulidade horrorizada em seu olhar. As
mãos apertavam os braços da poltrona. Esses homens terríveis! Esses macios e diabólicos mentirosos! Sentiu o coração inchando e subindo
em seu peito de tal forma que pensou que iria sufocar até à morte — ali, diante deles, para sua satisfação e divertimento. Não fale! — uma
vozinha instou com ele. Não deixe que saibam tudo que você conhece. Estão tentando descobrir.
Mas a paixão não o deixaria completamente silencioso!
Ergueu a mão e a dirigiu para Henri.
— Responda-me a uma pergunta, Henri Bouchard — disse, quase num sussurro. — Diga-me o que estava fazendo na Itália em dezembro
último, na Alemanha em janeiro, na Espanha em março.
Pela primeira vez, Henri involuntariamente ficou agitado. Christopher olhava, alerta, o corpo descarnado contraído na poltrona. Ele e Henri
trocaram um de seus rápidos olhares.
— Sim! — gritou Peter, erguendo-se um pouco. — Sim! Diga-me, “Mr. Britton”! Assim o chamavam, não? Pensava que ninguém sabia. Só
alguns sabiam. Eu era um deles.
Pesado e perigoso silêncio encheu o quarto ensolarado. Peter sentou-se aprumado, tremendo violentamente. Henri baixou os olhos sobre ele,
e a larga face descorada estava fechada e rígida. Porém ele não se mostrava desconcertado. Disse afinal:
— Creio que não ocorreu a essa cabeça esquentada que eu poderia estar lá em missão secreta para ajudar a manter a paz, pois não? Para,
incógnito, vigiar a situação?
Apesar de todo o seu conhecimento dos Bouchards, Peter estava horrorizado, furioso por um novo sentimento de impotência e desespero. Eles
estavam tentando reduzi-lo à loucura, ao ridículo. Acima de tudo, ousaram mentir-lhe tão imprudentemente, como se ele fosse um idiota, um
mentecapto, um desprezível pardalzinho num ninho de falcões. Por um momento sua própria vaidade foi ultrajada, enraivecida. Isso foi
imediatamente substituído por um real e enorme terror.
“Fique calado” — avisava-lhe a vozinha severamente. — “Você está nas mãos deles. Fique calado, em nome de Deus!”
Porém ele não podia calar-se, o que o aterrorizava ainda mais.
— Quando estava na Itália, Henri, teria sido possível que visitasse a Assoziane fra Industriali Metallurgici Mecannici ed Affini? As indústrias de
automóveis Fiat? Lega Industriale de Turim? Societá Ansaldo, os construtores de navios? As indústrias de aço de Veneza Giulia? Banca
Commerciale de Milão, Banca Italiana di Sconto? E, quando na Espanha, seria possível que tivesse tido uma calma conversa com o Duque de
Alba, um dos assassinos donos da Espanha e do fascismo? Viu Juan March, aquele criminoso incrivelmente rico, aquele assassino dos pobres
e desamparados? Viu o Cardeal de Llano, o alcoviteiro de Franco, aquele destruidor da liberdade e ilustração da nova Espanha? E, enquanto
na Espanha, visitou os funcionários de Rio Tinto, a maior aventura de mineração do mundo de hoje?
Henri nada disse. Apenas observava Peter, com interesse alerta e imóvel. Levou o dedo indicador aos dentes, e distraidamente um sabugo de
unha. Christopher cobrira os lábios com os pálidos dedos.
Peter estava aprumado em sua poltrona. Novamente esticou a mão e gritou:
— E quando estava na Alemanha, não é possível que tivesse ido visitar Hitler, Göring, Thyssen, a I. G. Farbenindustrie, o presidente do
Reichsbank? E quando Mr. Claude Bowers, o Embaixador americano na Espanha, o chamou, não lhe disse, na presença do Embaixador
britânico na Espanha que, com a vitória de Franco sobre o povo espanhol, a Inglaterra encontraria Hitler em Gibraltar, e assim perderia o
controle do Mediterrâneo? E você não se divertiu com a resposta do Embaixador britânico de que “na Inglaterra os interesses privados são
mais fortes que os nacionais”?
“Cristo!” — pensou Christopher. — “Quem disse isto a este suíno? Por onde vazou a informação?”
Mas Henri estava muito calmo. Disse, com indiferença:
— Tudo isso é possível. Você parece esquecer que temos interesses no mundo inteiro, que os acionistas americanos em nossas companhias
e subsidiárias têm de ser protegidos. Era meu dever investigar, no interesse da América, em nosso próprio interesse, e no de nossos
acionistas. Assim, por que toda essa agitação?
Peter apertou as mãos juntas, e literalmente as torceu. “Você é um louco” — dizia sua voz íntima, severamente, — “Que fez? Esses homens são
mais poderosos que você. Estão a reduzi-lo a uma ridícula impotência.”
Henri falou, numa voz subitamente alta e cruel:
— Meu único interesse é proteger a América. Deixe-me dizer-lhe isto, meu amigo, e pode acreditar ou não: não estou interessado em guerra.
Farei tudo que possa, todos nós faremos tudo que pudermos, para manter a América fora de qualquer guerra que possa ocorrer na Europa.
A voz soava no quarto, inexorável e potente. Peter a ouvia. Subitamente, uma sensação de desfalecimento o oprimiu. O quarto girou em volta
dele em grandes e lentos círculos cheios de faixas luminosas.
Em meio ao caos que o rodeou ele pensou com incrédulo e desesperado horror:
“É verdade! Disse-me a verdade, por fim! Eles não querem guerra, para a América... Há uma hora atrás eu acreditava que estavam
conspirando para mergulhar-nos em tal guerra. Agora, creio, sei que não a querem... para a América. Farão tudo para manter-nos fora de
qualquer conflito. Nunca descansarão... Por quê?”
Um fraco vislumbre da verdade apavorante começou a aparecer diante dele. Não ousou olhá-lo. Pensou: “Se eu pudesse morrer! Não posso
viver, e saber!” Sentia o coração palpitar em grande agonia no peito abafado.
A voz de Henri lhe enchia os ouvidos, muito perto, como um vendaval enorme:
— De modo que, se você teve a ideia de que iria “denunciar-nos”, como já nos “denunciou” antes, está perdendo seu tempo. Se pensou que
estávamos “incubando guerras” novamente, meu Deus, que estupidez, pode descansar a cabeça. Se pensou mostrar que estivemos intrigando
ou manipulando para meter a América em qualquer danada confusão forjada na Europa, posso dizer-lhe com absoluta franqueza que é um
completo idiota. A América não tomará parte nela. Cuidaremos disso. Isso deve acalmá-lo consideravelmente.
“É verdade” — pensou Peter. — “Por quê? Oh, Deus! Por quê?”
A voz enorme e esmagadora continuava:
— Eu lhe direi um segredo, Peter. No instante em que a guerra estourar na Europa, teremos sociedades na América, sociedades para a paz,
que nosso dinheiro ajudou a organizar. Grandes sociedades, que pisarão, aniquilarão quaisquer tentativas para fomentar bons sentimentos
para com a Inglaterra, a França, a Espanha. Seremos neutros, tanto como nunca fomos antes. Você nos encontrará apoiando abertamente
qualquer Lei de Neutralidade que o Congresso ache necessário legislar. Vê, você ajudou a incitar um montão de sórdida sujeira contra nós. No
interesse da autopreservação, ninguém será mais anti-bélico do que nós.
Então Peter, ultrajado, apavorado, ouviu sua fraca voz dizendo:
— A América deve preparar-se...
Ouviu uma enorme gargalhada... Parecia vir do espaço rodopiante. Não pôde relacioná-la com a boca aberta de Henri, onde os dentes muito
grandes reluziam. Nem, para seus sentidos confusos, parecia vir de Christopher.
— Meu Deus! — gritava Henri. — Será possível que você esteja dizendo isto? Você, o pacifista, inimigo dos fabricantes de armas e
investigador da corrupção, o amante da fraternidade?
E então Peter soube que havia naquele quarto um poder mais terrível, mais terrível do que jamais vivera entre os Bouchards, ou no mundo.
Agarrou-se aos braços da poltrona para evitar desmaiar. Sentiu o impacto de ventos cósmicos em sua carne, em seu rosto. Sentiu o vasto
movimento de coisas ignotas e aterrorizantes...
“Por quê?” — uma voz possante gritava nele. — “Por que tudo isso?”
Não ousou tentar responder. Apenas podia sentar ali e olhar para Henri. Não sabia que sua expressão era completamente cadavérica.
Como num sonho de horror, em que tudo se move vagarosa e sonolentamente, viu a porta abrir-se. Celeste ia entrando. Christopher levantou-se
para puxar-lhe uma cadeira. Ela sorria, um tanto ansiosamente. Olhou somente para Peter. Foi diretamente a ele. O que viu fez toda expressão
abandonar-lhe o rosto. Virou-se para o irmão e Henri:
— O que andaram fazendo a ele? — gritou. — Ele ainda está tão doente... Seu pulso está... está... — Seus dedos se crispavam no pulso do
marido, os olhos cheios de uma raiva apaixonada. Muito pálidos, os lábios lhe tremiam.
Henri franziu as sobrancelhas. Deu um passo em direção a ela:
— Pelo amor de Deus, Celeste, não seja tola! Não fizemos nada. Seu marido voltou às velhas acusações... que estamos “fomentando guerra”.
Estávamos apenas a convencê-lo do contrário. Que há de errado nisso? Deverá dar-lhe alguma paz de espírito.
Ela olhou Henri em agitado silêncio, e o olhar daqueles olhos azuis-escuros fê-lo franzir as sobrancelhas novamente, um colorido embaçado
subindo-lhe desagradavelmente às faces. Mas devolveu-lhe o olhar de modo imperativo e com considerável desdém.
Então ela se virou para o irmão e, em voz trêmula, exclamou:
— Christopher, você sempre transtornou Peter desse jeito. Que fez agora?
Christopher a olhou zombeteiramente:
— Ora, minha querida, isso é absurdo! Pensamos, para o bem da saúde de Peter, e sua paz de espírito, que devia ser desiludido.
Aparentemente a verdade é demais para ele.
A respiração de Peter enchia o quarto de sons rascantes. Ele estava lutando por controlar-se. Pegou a mão de Celeste, e a sua estava fria e
úmida de suor. Mesmo assim falou bem calmamente, olhando-a com um sorriso:
— Sim, minha querida, é isso mesmo. Eles acabaram de dizer-me a verdade. E, como diz o Chris: aparentemente é demais para mim.
Apertou-lhe a mão e ela o olhou espantada, enormemente abalada.
— Não se preocupe, querida. Estou bem. Eu... voltei à vida. Todas estas semanas, apenas sentado aqui... realmente, sinto-me bastante forte.
Tenho muito trabalho a fazer, e você deve ajudar-me. — Ergueu-lhe a mão e pressionou os lábios em sua palma, pequena e trêmula.
As sobrancelhas de Henri, claras e espessas, se juntaram enquanto ele apreciava essa pequena cena, e agora seus olhos estavam cheios de
maldade. Christopher, observando-o agudamente, viu como seus punhos se apertavam, e com o lábio superior se arregaçava deixando os
dentes à mostra.
Celeste falou, suavemente, vendo apenas o marido:
— Sairemos daqui, Peter querido, imediatamente. Iremos para qualquer lugar. Amanhã?
Christopher se levantou, sorrindo para si mesmo:
— Parece que não somos queridos aqui, Henri, meu rapaz. Assim, deixemos a sós esse devotado casal.
Saíram do quarto. Fecharam a porta cuidadosamente, vendo, como última cena, Celeste ajoelhando ao lado de Peter, a cabeça no ombro dele,
os braços em volta do marido. Ele lhe alisava ternamente os negros e lustrosos cabelos. Ela chorava.
Os dois homens se afastaram. Henri estava muito calmo. Christopher tocou-lhe o braço, dizendo:
— E então?
Henri voltou-se para o cunhado. Falou, maciamente:
— Ele sabia muito. Agora, sabe demais.
— Então...? — indagou Christopher, gentilmente.
Henri deu de ombros e sorriu:
— Homicídio ou será fratricídio?, não é aprovado pela polícia. Nem pelos Bouchards. Vamos: que sugere?
Christopher ergueu os sobrolhos:
— É evidente que ele não aguenta a verdade. Ora, doses maciças dela poderiam...
— E — refletiu Henri — sempre se pode mantê-lo impotente. Ninguém ousaria publicar o que o imbecil poderia dizer. Ainda há leis contra a
difamação, você sabe. Nem mesmo nosso querido parente, Georges, ousaria. A propósito: seus negócios publicitários não estão indo muito
bem ultimamente. Existem outros negócios dele, também, que podem não suportar a clara luz do dia. Acho que um de nós deve visitar o
querido Georges.
Christopher assobiou de leve:
— Georges? Que conseguiu sobre o velho Georges?
Henri tornou a sorrir:
— Não omiti possibilidades. Georges, que não deve gostar muito de nós, poderia facilmente ser induzido a publicar alguma insanidade. De
modo que fiz algumas investigações. Não se preocupe. Pode ser que eu nunca use o que sei. A propósito: ele não publicou recentemente um
panfleto a respeito de “negociar com Hitler”? Chamava-se, creio: “O Louco e o Industrial”. Tudo a respeito da impossibilidade de ter um normal
relacionamento comercial com o forrador de paredes? Teve grande saída, acho. Embora fosse demasiado técnico para a rude mente
americana média. Foi lido quase exclusivamente por nossos competidores mais cristãos, porém menores. Nenhum prejuízo. Mas a insanidade
de Peter pode ser importante. Não se incomode. Posso deter tudo isso antes que se torne perigoso.
No quarto de que eles haviam saído, Peter estava dizendo a Celeste:
— Eles não querem guerra! Tentarão manter-nos de fora... Por quê? Celeste, pode dizer-me por quê? Meu Deus, por quê?
Continuou, sufocadamente:
— Secretamente, ajudaram a Alemanha a rearmar-se. Forneceram o dinheiro através de bancos americanos, franceses e ingleses. Mas não
nos querem na guerra. Por quê? Por quê?

Capítulo 10
Henri foi ver sua mulher, Annette.
Ela se vestia para o jantar, tendo acabado de banhar-se e repousar. Sua saúde frágil necessitava de longos períodos de descanso e sono.
Durante o primeiro ano de sua vida de casada, instintivamente compreendendo que sua doença e fraqueza física repugnavam ao marido,
tentara dispensar esses períodos, e pateticamente assumira uma vivacidade e atividade que mais tarde a prostraram e a confinaram ao leito
por perto de três meses. Daí por diante, não houve mais questão de compromissos para a tarde. Ela se recolhia quase invariavelmente às dez
da noite, não se levantando até quase às nove horas da manhã seguinte. Não que fosse uma inválida, porém uma enfermidade congênita e a
fragilidade física a compeliam a uma vida calma e de semi-convalescente.
Sua maior agonia mental era que o médico a prevenira de que qualquer tentativa para ter filhos provavelmente lhe causaria a morte, e que, de
qualquer forma, não viveria muito após o nascimento de um filho. Na melhor das hipóteses, ficaria inválida. Havia querido tentar essa
desesperada possibilidade, mas Henri não permitira. Ele fora muito “nobre” a respeito da situação — ela confiaria a Celeste, em lágrimas.
Ninguém teria sido mais cheio de consideração, mais compreensivo, mais gentil. Ele não lhe permitia sequer voltar a falar do assunto com ele.
— Não, minha querida — dissera — não podemos discutir isso. Para mim, sua vida é mais preciosa que a possibilidade de ter filhos. Não
posso suportar perdê-la, sabe disso.
Ele sorrira um pouco ao dizer isso, não de modo jocoso, mas severamente. Annette não compreendera absolutamente esse sorriso. Seu
coração chegara a doer de apaixonada gratidão, e de alegria. Os anos seguintes do casamento tinham sido iluminados de felicidade. Havia
amado Henri com êxtase irresistível antes de casar com ele. Discernira que ele não tivera por ela tal paixão e absorção, mas apenas uma
afeição indiferente... se tivesse. Por que casara com ela em tais circunstâncias, não sabia. Para ela fora suficiente que casasse. Durante o
noivado, algumas vezes ela o pegara a olhá-la fixamente, o que a aterrorizara. Sua ingenuidade e inocência, a falta de familiaridade com as
emoções e reações humanas a haviam protegido, não lhe haviam deixado entrever o completo significado desse olhar — que implicava
repugnância, repulsa, e desdenhosa piedade. Apenas o vago palpitar de seu coração, mais do que a razão, lhe causara terror. E então, vendo-
lhe o medo, o terror, ele de súbito se tornava solícito, cheio de consideração, e mesmo terno. Revelava um cuidado quase extravagante por ela,
o que, em lugar de lhe despertar suspeitas, as atenuava.
Nunca lhe ocorreu que ele casara com ela porque era a filha única e muito amada de Armand Bouchard, o presidente de Bouchard & Sons.
Pois não era ele dono poderoso dos bônus Bouchard? Que mais poderia ele desejar? Ela não conhecia Henri Bouchard. Viria um tempo em
que isso se daria, mas não agora. Até aquele momento, ela não compreendera seu ódio inquieto porque Jules Bouchard, seu avô, havia
manipulado de tal forma os negócios da mãe de Henri que o filho, bisneto de Ernest Barbour, fora reduzido à impotência. Henri dissipara essa
impotência. Era ele agora o poder entre os Bouchards e o presidente da companhia da mãe desde a aposentadoria do diabético Armand. Mas
o ódio permaneceu. Era parte da sua personalidade. Não lhe era possível esquecer uma ofensa, uma injúria. Por vezes ele a olhava de maneira
mais estranha, lembrando-se de que ela era neta do sutil e maquiavélico Jules.
Annette tornara objetivo o poder que ele mantinha por trás da cena. Ela fora uma coisinha demasiado frágil e gentil para conhecer ou
compreender o que ele fizera imediatamente antes de seu casamento com ele. Ela ouvira fracos ecos do trovão, o sombrio tremor da terra sob
todos os Bouchards. Porém seu casamento a tornara inconsciente de tudo mais. Sabia haver uma espécie de terribilidade a respeito dos
Bouchards, mas acreditava ser porque era tão frágil e fraca e eles tão fortes. Não odiava ninguém; nem sequer antipatizava com o mais
repelente dos Bouchards. Apenas ansiava por afeição, bondade, por mãos e vozes e olhos gentis. Agora que era esposa de Henri, tinha tudo
isso à vontade. Sua gratidão era tocante, mesmo para o mais empedernido coração. Regozijava-se de que sua família agora a aceitasse como
um ser humano completo, que muitos a ouvissem respeitosamente, e que fossem solícitos para com ela. Não fazia perguntas. Era muito doce,
muito humilde, muito tímida.
Essas qualidades é que a protegiam contra as fúrias glaciais e a brutalidade sem remorsos de Henri Bouchard. Quando ele vira a prima pela
primeira vez em 1925 (o pai dele e a avó dela tinham sido irmãos) imediatamente se deu conta de que ali estava uma pobre criatura
instintivamente dominada por um conhecimento subconsciente do caráter de sua família. Soube que eles a desprezavam, quando ela,
raramente, lhes chamava a atenção. Somente a antiga posição do pai como executivo dominante dos negócios dos Bouchards a defendera de
abusos encobertos ou às claras. Sua juventude gentil, sua timidez, sua fraqueza física, seu aspecto de deformidade (que na realidade não
existia) lhes lembrava uma antiga, lendária figura da família: Jacques Bouchard, filho do co-fundador da dinastia, o velho Armand, avô do avô
dela. A lenda persistira na família, um conto furtivo que ainda despertava risos silenciosos entre os de mentalidade mais sórdida. Diziam que
Jacques estivera “apaixonado” por Martin Barbour, irmão do terrível Ernest, e se matara quando Martin casou com Amy Drumhill, prima da
esposa de Ernest. Emile, irmão de Annette, possuía uma velha e apagada miniatura de Jacques e, na verdade, o pobre deformado era
estranhamente parecido com a pequena Annette. Os mesmos imensos olhos azuis, claros e radiantes, as mesmas feições delicadas, idêntico
rosto triangular, pálido e indeciso, igual massa de cabelos claros e flutuantes. Até a expressão, gentil, trágica e atraente, era espantosamente
parecida.
A primeira emoção de Henri ao ver Annette fora de indiferente compaixão. Mais tarde, ficou ligeiramente interessado por sua inteligência,
doçura e inocência. Porém nunca se recobrou de uma sensação de forte aversão por ela. Por vezes a odiava, como se o houvesse ofendido só
pelo fato de existir, embora ela lhe houvesse economizado anos de trabalho ao dar-lhe o controle de Bouchard & Sons. Sua razão se aborrecia
ante essa reação emocional contra uma gentil criatura que nenhum mal lhe fizera, e que o amava tão apaixonadamente. Seu aborrecimento
consigo mesmo causava esses intervalos de frieza para com ela que tanto a espantavam e amedrontavam, e que a enchiam de um sentimento
de culpa. Esses intervalos aconteciam raramente. Ela era agora apenas a dona-de-casa, a anfitrioa, sua terna amiguinha sempre que ele lhe
permitia isso, sua idólatra. E existem poucos homens capazes de resistir à idolatria... Ele apenas tinha de ser bom e cortês para satisfazê-la,
para transformá-la numa alegria radiante.
A família estava completamente cônscia do motivo que o levara a casar com Annette, e o admirava por isso — mesmo quando riam à socapa
ante o espetáculo do implacável Henri acasalado com esse esvoaçante passarinho. Conheciam-lhe as muitas ligações, mas pelo medo dele
não eram levados ao conhecimento de Annette os saborosos fatos. E especialmente desde o advento de Rosemarie na vida amorosa dele.
Também tinham Francis Bouchard, pai dela, com quem contar na eventualidade de um escândalo. Francis saberia? Acreditavam que sim. Com
perspicácia conjeturavam que Francis até encorajava o “caso”, na esperança da morte prematura de Annette e que Henri casasse com
Rosemarie.
Desse modo, um muro de afeiçoado silêncio rodeava Annette. Ocasionalmente, no entanto, ela percebia as formas obscuras da realidade
passando atrás do espelho, ouvia os apagados ecos ásperos de vozes cruéis, mas tensa como estava, com medo, não discernia nada de
bastante definido para despedaçar o espelho e ficar desolada e tremendo. Talvez isso fosse porque não ousava olhar mais de perto. Forçava-
se a satisfazer-se com as coisas como apareciam à superfície. Sempre fora demasiado introspectiva e sensível, muita medrosa. Mesmo no
Paraíso ela procuraria a serpente, observaria o eterno sol buscando sinais de tormenta, acreditaria que os ventos sussurrantes do céu
continham as vozes ardilosas dos inimigos. Assim disse a si mesma.
Pois Annette não era tola. Anos de vida calma e reclusa lhe haviam inclinado a mente para livros e música, longos pensamentos e silêncios
meditativos. Isso lhe dera clareza de percepção — coisa perigosa para os desamparados. Sua consciência tinha sido como um emaranhado
de antenas trêmulas a cada vento sutil emanado de outras personalidades. Fora capaz de sentir os pensamentos de outrem, suas reações, não
apenas para com ela, mas para com as circunstâncias, o ambiente, as vozes, até mesmo para o sol e o tempo. Ela lhes percebera o passado e
a reação deles a esse passado. Isso frequentemente lhe dava tal senso de desorientação e confusão que ela muitas vezes sentia sua própria
personalidade a desintegrar-se na massa geral de reações a seu respeito — e não podia dizer se estava pensando assim ou assado, ou se
outros é que pensavam de tal maneira.
Agora sabia que, se devia manter sua personalidade, se tinha de viver, de suportar tudo, deveria proteger-se contra esse exaustivo render-se a
impressões alheias, e desamparadas identificações com suas personalidades. Devia adquirir uma crosta; melhor: devia encerrar-se em
concreto. Se — como por vezes pensou — esse concreto tinha a qualidade de um sarcófago, pelo menos ela estaria comparativamente segura
contra uma perceptibilidade que ameaçava sua própria existência, física e mental.
Pois, como seu parente Peter, sabia que certamente morreria se compreendesse demais sobre o mundo dos homens. Sua vida era agora uma
luta sem fim para não ver mais do que o necessário para sua sobrevivência, não ler o verdadeiro sentido sob palavras casuais, aceitar as
declarações dos outros com uma fé simples, acreditar que seus gestos significavam apenas o que pretendiam transmitir, que seus rostos
expressavam o que eles aparentemente desejavam que expressassem.
De modo que tinha uma espécie de paz, feliz embora estática, em seu torturado coração. Se se pilhava ouvindo o severo e sinistro eco por trás
de vozes casuais e amigáveis, se se via buscando um trejeito maldoso e um olhar cruel atrás de sorrisos afetuosos, ela austeramente cobria os
ouvidos espirituais com as mãos e fechava os claros e desesperados olhos. Quem poderia conhecer a verdade a respeito da humanidade, e
continuar a viver?, ela sussurrava para si mesma.
Quando Henri entrava em seus aposentos durante os primeiros meses, ou mesmo anos, de seu casamento, o olhar dela instintiva e
medrosamente se cravava nele, seu coração palpitava mais rapidamente, atemorizada, o sangue lhe esfriava, de modo que ela tremia como se
esperando um choque mortal. Já havia superado isso. Aceitava-o como ele desejava ser aceito por ela. Se ele sorrisse afetuosamente — como
fazia nesta tarde — ela aceitava essa afeição. Porém ainda não podia controlar o instintivo desamparo de um coração que pedia a verdade,
mesmo que morresse por isso.
Sua camareira lhe colocou nos ombros magros um roupão de rendas e discretamente saiu do quarto. Annette sorriu alegremente para o
marido, estendendo-lhe a mãozinha. Ele a tomou: como sempre, ela tremia um pouco. Seus grandes olhos claros se fixaram nele com uma
súplica desamparada a que ele já se acostumara e que nunca deixava de excitar-lhe a compaixão. De modo que se inclinou e beijou-lhe a
testa, depois lhe tocou nos cabelos com mão terna.
— Estou interrompendo algo de importante, querida? — perguntou.
Ela suspirou, e sorriu: passara o perigo iminente. Sempre passava. Contudo, ela sempre esperava por ele, num terror incompreensível. Ela
sentou numa cadeira estofada de cetim, como se estivesse fraca. Ele se sentou perto dela.
— Não, meu querido. Nada mais é importante, quando você aparece — disse ela. Suas mãos esvoaçavam, como se ela desejasse
desesperadamente apoderar-se dele e sentir sua força.
— Muito bem: gostaria de oferecer uma grande reunião de família em homenagem a Celeste e Peter? — perguntou o marido, olhando-a com
indulgente ternura. Seus pálidos olhos inexpressivos tinham até um leve sorriso.
— Oh!, querido! — ela exclamou. Juntou as mãos, suavemente. Agora era toda alegria, e delícia. Depois o rostinho se ensombreceu: — E
Peter? Ele aguentará? E gostará disso?
— Acho que ele está bastante bem, doçurinha. Francamente, penso que o temos mimado demais. É como você faz, Annette: está sempre tão
solícita e o mimando, como uma danadinha de uma carriça.
A isso ela riu, feliz, e adorou:
— Oh! Henri, isso é injusto! Não foi você mesmo que me avisou que o pobre Peter não devia ser perturbado, que precisava ser tratado
cuidadosamente? Não foi você mesmo quem sugeriu as enfermeiras? Foi tanta bondade sua, tanta bondade! Mas foi você quem insistiu nisso
tudo. Se realmente pensa que Peter pode suportar uma festa, então ficarei feliz em oferecer-lhe uma, bem como a Celeste. Quando acha que
deve ser?
Porém ele ficou silencioso por um momento, olhando-a em penetração. Imediatamente ela se sentiu apreensiva. Ele disse:
— Você é louca por Celeste, não é verdade, doçura?
Logo ela ficou radiante:
— Oh, sim! — falou vivamente. — Sempre fomos muito boas amigas. Você nem imagina. Celeste foi minha única amiga. Somos quase da
mesma idade, embora ela seja minha tia. Estávamos juntas sempre que tio Christopher o permitia. Acho que também fui a única amiga que a
pobre querida teve. Tio Christopher a mantinha como uma freirinha. Eu faria qualquer coisa por Celeste — acrescentou, com a vivacidade do
sofrimento e do amor. — Sei que ela é muito infeliz agora, por causa do Peter.
Ele não moveu um músculo; mesmo assim ela teve a estranha sensação de que se aproximara dela, como se para não perder a mais simples
expressão, ou solitária entonação de sua voz.
— Por que pensa que ela é tão infeliz, Annette?
Ela sentiu a pressão poderosa de sua personalidade, sua presteza. Isso a confundiu, de modo que só pôde gaguejar:
— Ora, não é óbvio, querido? Peter esteve tão doente, ainda está. Parece não haver muita esperança de recuperação para ele. E Celeste lhe é
tão dedicada, ama-o tanto! É terrivelmente tocante: por vezes não posso aguentar isso... — Sua voz se apagou; havia lágrimas em seus olhos.
Henri deu de ombros:
— Ela casou com ele, não foi? Sabendo que era um homem doente? Que poderia esperar?
Ela falou aflitamente, como se implorando sua compaixão para Celeste e Peter:
— Sim, ela sabia. Mas era tão jovem... Acreditava que ele se curaria. Afinal de contas, os médicos eram otimistas. O dano em seus pulmões
era profundo, mas não irreparável, diziam. Porém ele não se curou. Até piorou. — Ela hesitou, novamente implorando piedade com aqueles
olhos iluminados: — Certa vez Celeste me confiou que havia algo mais que tornava Peter tão doente. Disse que... pensava ser devido a não
poder suportar as coisas que soubera a respeito... a respeito... — Sua voz silenciou, e agora os olhos estavam cheios de terror, como se
ouvisse em si mesma o eco de coisas que não ousava ouvir.
Henri ergueu as sobrancelhas, numa expressão divertida. Riu:
— Ora, não vamos ficar metafísicos. Não consigo entendê-la quando fala esses absurdos, ratinho. É minha opinião, e a do doutor também, que
Peter é por demais introspectivo, demasiadamente absorto em si mesmo e no que acredita. O egoísta supremo. Olhe, não estou querendo ser
maldoso, assim não me olhe desse jeito. Estou dando minha opinião, após longo estudo de nosso sensível inválido. Por isso é que estou
sugerindo uma festa. Pode ajudá-lo. Arrancá-lo de si mesmo. Além disso, Celeste também necessita distrair-se. Já observei que ela se sente
infeliz. Por vezes cogitei se não estará arrependida de se haver casado com Peter.
— Oh, não! — gritou Annette, num tom singularmente alto e desesperado. — Está enganado, Henri! Ela o ama demais, sei disso!
— Como pode saber disso? — ele perguntou, obviamente aborrecido, e levantando-se. — Ela deve estar cheia de bancar a enfermeira. Não
tem tido uma vida normal. Eu não a censuraria se estivesse farta disso.
Ela o olhou, alargando e estreitando os olhos até que todo o rostinho parecia cheio de uma angustiada tonalidade azul.
— Henri, você não compreende. Celeste é tão... tão austera! Não se permitiria pensar tais coisas. Conheço Celeste. Sei que prefere sua vida
com Peter, embora ansiosa e infeliz como tem sido por vezes, a uma vida mais normal e serena com algum outro. Por favor, acredite-me. Eu
sei.
— Celeste lhe disse isto?
Ela tornou a sentir que ele se aproximara dela demais. Havia em sua garganta uma sensação de sufocação. Ergueu as mãos como para
afastá-lo, e ele pensou:
“Ele também fez isso, esta manhã... São parecidos, esses patéticos coitados!”
— Não, não, ela não me disse! — ela gritou. — Apenas, eu sei! — Agora apertava as mãos na almofada a seu lado como se prestes a saltar e
fugir.
Ele viu sua angústia, mas não tinha remorsos. Estudou-a atentamente. Pensou:
“Ela está apavorada. Receia olhar a verdade. Ela conhece a verdade.”
Relaxou e sorriu. Tomou-lhe o rostinho nas mãos: estava frio e úmido ao toque. Inclinou-se e tornou a beijá-la. Ela estava vibrando como um
diapasão tocado muito violentamente. Mas sob seu toque forte, seu sorriso, sob seus olhos deliberadamente amorosos, ela se apaziguou,
sentindo apenas uma profunda fraqueza.
— Agora, estamos ficando muito excitados sem motivo nenhum — ele disse, de maneira calmante. — Por que se agita assim, sua tolinha? —
Afagou-lhe as faces novamente, depois endireitou-se. Tirou do bolso a cigarreira de ouro que ela lhe havia presenteado no último aniversário, e
indiferentemente acendeu um cigarro. Ela observava todos os seus movimentos, deliberados, pesados, calmos, e não podia desviar dele os
olhos. Ele lançou algumas baforadas, franzindo as sobrancelhas pensativamente ante a fumaça espiralante.
— Tenho a impressão de que você talvez tenha razão — ele reconheceu. — Esta manhã mesmo Celeste disse algo, diante de Peter, quanto a
deixar-nos em breve.
Ela deu um leve grito de protesto. A fraqueza ainda se abatia fortemente sobre ela, mas esqueceu-lhe a causa diante do que agora se
apresentava.
— Oh, não posso ouvir isto! Esperei que Celeste e Peter ficassem conosco indefinidamente... Não posso suportar perdê-la agora, Henri!
Ele sorriu com satisfação oculta.
— Bem, não podemos acorrentá-los, você sabe. Entretanto, você deveria mencionar seus sentimentos a Celeste o mais breve possível. Diga-
lhe que precisa dela, ou algo assim. Ela adora saber-se necessária.
Havia alguma coisa em seu tom, alguma coisa de cruel ou sardônico, que fez a pobre criaturinha tremer. Porém ela se obrigou a pensar: “Ele é
tão bom! O meu querido é muito bom! Sempre pensa em mim!” E disse:
— Farei isso, meu querido. Talvez esta noite.
E se levantou quando ele se dirigiu à porta, seguindo-o como uma frágil sombra branca. No limiar ele se deteve, para tocar-lhe o rosto de leve.
Abriu a porta e saiu. Ela a fechou lentamente.
As palmas de suas mãos adejaram de encontro à madeira polida. Seus lábios quase a tocaram. Depois, bem devagar, eles entraram em
contato com a porta. Ela ficou ali, encostada à porta, como se crucificada de encontro a ela, como se desmaiada contra ela, incapaz de afastar-
se por medo de cair na escuridão total, para sempre...

Capítulo 11
Imediatamente antes do jantar Annette foi aos aposentos de Celeste e Peter.
Sua fingida vivacidade tornara-se involuntariamente um hábito, e ela se movia rapidamente em suas perninhas finas e pezinhos minúsculos, mal
parecendo tocar o chão em seu andar. Seu vestido primaveril azul e branco enfatizava a infantilidade de seu todo, e os cachinhos que lhe
emolduravam o pálido rostinho destacavam sua aparente imaturidade. Nada poderia ser mais doce que o seu sorriso quando, após uma leve
batida à porta, entrou na sala de estar de seus hóspedes.
Encontrou Celeste sentada perto de Peter, enquanto aguardavam a sineta para o jantar. Celeste, de vestido branco, parecia toda frialdade e
frescura, embora o dia tivesse sido extremamente quente e abafado. Como de costume, Peter estava exausto. O olhar rápido e perceptivo de
Annette ficou preocupado: seria imaginação sua ou Celeste estava anormalmente pálida e de olhos e lábios tensos? Certamente o olhar dela
era mais austero que de hábito, e seu queixo arredondado mostrava uma severa obstinação. Teriam os queridinhos estado brigando? Como
sempre, ao menor sinal de uma atmosfera perturbada e violenta, o coração de Annette se enchia de inquietação e de medo. Seu sorriso se
tornou ainda mais terno e ansioso, e suas mãos se ergueram a meio, como se para implorar, para suavizar.
— Não esteve horrivelmente quente? — falou infantilmente. — Não, não, querido Peter, por favor, não .se levante. Ficarei apenas um minuto, até
o jantar: já está na hora.
Adiantou-se e pegou na mão de Celeste, enquanto se sentava, e a olhou com seriedade muda e implorativa. Estariam cansados dela? Será
que os aborrecia com sua tola impotência? Estaria a incomodá-los?
Celeste, que sempre conhecera tanto a respeito da sobrinha, sentiu uma aflição sem nome. Teria a pobre criaturinha “sentido” as palavras de
protesto, frias e amargas ali trocadas antes de sua chegada? Teriam tais palavras deixado um som de discórdia no ar? Forçou-se a sorrir
afetuosamente:
— Esteve bem quente, porém mal o sentimos aqui em Robin’s Nest.
— Não sairemos neste verão, como de costume — disse Annette, pateticamente grata ao sorriso de Celeste e à pressão em sua mão. — Henri
achou que não devíamos fazê-lo, com as coisas como estão na Europa. Quer estar em casa, caso haja “evolução” dessas coisas... Porém eu
não acho que isso poderá piorar, não acham? Seria tão estúpido, tão terrível... Nem se deve pensar nisso!
Peter olhou rapidamente para a esposa. Porém ela não o olhou. Era toda atenção para com Annette.
— Bem, estou certa de que não poderíamos encontrar local mais agradável do que Robin’s Nest, querida — disse Celeste. — Foi tanta
bondade de vocês nos convidarem... Estamos muito gratos. — Deteve-se. Seus lábios se apertaram numa linha fina. — Mas deve ser muito
cansativo para você, ter-nos no seu caminho todo o tempo. Por isso já falei com Peter que devemos procurar onde morar.
Annette ficou imediatamente alarmada e angustiada. Com ambas as mãos apertou estreitamente a de Celeste, e se inclinou para ela:
— Henri pensou que vocês teriam isso em mente — falou, a voz quebrada. — Não pude, realmente, acreditar nisso. Você nem sabe o quão
feliz me fez, querida, só por estar na mesma casa que eu. Estabeleceu uma grande diferença. Por vezes sinto-me tão solitária... Eu... eu pensei
que vocês ficariam indefinidamente. Se vocês se forem quebrarão meu coração.
Celeste ficou silenciosa. Seus lábios ficaram mais rígidos que nunca. Desviou os olhos. Porém Peter soergueu-se um pouco em sua poltrona.
Disse:
— Isso é o que eu estava dizendo a Celeste, Annette. Deveríamos ficar um pouco mais. — Ele parecia um tanto confuso, e um leve rosado lhe
chegou às descarnadas maçãs do rosto. — Estive delineando meu trabalho. Não gostaria de interrupções logo agora. Mas Celeste acha que
estamos atrapalhando vocês.
— Continuo achando — falou Celeste, em tom áspero. Olhou para o marido diretamente. — É demais para Annette. Devia dar-se conta disto,
Peter. — Mas seus olhos continuavam sua zangada discussão com ele.
Ele havia declarado, imediatamente antes da entrada de Annette, que devia ficar, que precisava ficar, que uma vez fora dessa casa nada
saberia de Henri. Aprendera tão terrivelmente muito naquela manhã... Tinha de saber mais. Ele — dissera — simplesmente não podia
compreender Celeste. Ela se tornara mórbida, supersensível, histérica mesmo. Por que, Senhor! Insistia em sair dali? Ela não respondera.
Porém o olhara estranhamente, com uma espécie de medo desesperado e sem palavras. Ninguém diz ao marido:
“Devemos deixar a casa desse homem para nossa própria salvação. Você não compreende que eu nunca o esqueci, que por todos estes anos
ele tem estado em minha mente, como uma praga, ou uma obsessão, ou uma moléstia? Acreditei odiá-lo; pensei que nunca esquecemos
aqueles a quem odiamos. Não sei. Será que o odeio? Ele me repelirá? Eu o detesto? Não sei! Só sei que não posso parar de pensar nele, que
lhe ouço a voz em todo lugar, que quando o vejo mal posso respirar, e que quando fico insone à noite vejo seu rosto diante de mim no escuro.
Que, quando ele me toca, mesmo se apenas ao passar, ou por acidente, fico em fogo! Sempre foi assim, desde o começo, quando o vi pela
primeira vez. Ainda não compreendo. Só sei que estou em perigo, talvez mais por mim mesma do que por ele. Por sua salvação, meu querido,
devemos sair daqui.”
Não, nunca ninguém disse isso: apenas se levanta e foge. Olhou para Peter, e o perigo parecia adejar em torno dele, para destruí-lo, e todo
esse perigo provinha dela mesma, e não de Henri.
Em seu desespero ela tomou a falar, bem alto, para fugir à voz implorativa de Annette:
— Devemos sair, Annette. Não podemos impor-nos a vocês por mais tempo. Todas essas enfermeiras, essa inconveniência, essa perturbação
de sua rotina. Vocês têm de pensar em nós antes de fazer seus próprios planos. Têm de adaptar suas vidas à nossa. Não é justo para vocês.
Podemos dizer a uma querida anfitrioa, a quem amamos:
“Tenho de ir embora, antes que a destrua? Não pode compreender que me parece terrível vê-la como esposa de Henri, que por vezes a odeio,
minha querida, e que receio que algum dia tenha esperança que você morra? Não pode ajudar-me a salvar-me dessa coisa horrível? Cada vez
que vejo Henri... há em mim pensamentos terríveis: Ajude-me a salvá-la e salvar-me...”
Pensando essas coisas, cheia de terror, olhou de Peter para Annette. Pela primeira vez percebia a misteriosa semelhança entre eles. Ambos
eram puros de coração, ambos ternos e vulneráveis, ambos gentis e castos e demasiado honrados para compreender as coisas vergonhosas
que podem invadir os corações de outros. Ela se sentia de espírito tenebroso e violento, de mente retorcida e atavista diante de sua pureza de
coração, sua verdade e sua fé. Ela se sentia impura, degradada, corrupta, toda calor e trevas úmidas, toda tempestade. Não ficou prostrada
por isso. Antes, sentia-se forte e mais consciente, vital e de peito quente e pernas trêmulas. O perigo, nela, era todo volúpia, cheio de quente
langor e de um desejo a que não ousava dar nome... E eles apenas olhavam para ela com seus diáfanos olhos azuis-claros, perturbados e
angustiados, como para uma criança voluntariosa e egoísta.
Então Annette levantou-se, inclinou-se sobre sua jovem tia e a beijou ternamente. Havia doçura em sua voz:
— Oh, querida, como pode dizer tais coisas? Como pode ser tão cruel? Eu a amo, Celeste. Se você se for, não lhe posso dizer a falta
medonha que me vai fazer...
Lágrimas ardentes pesavam nos olhos de Celeste, embora ela as desviasse. Disse:
— Mas não vamos para longe!! Ficaremos em Windsor.
— Mas onde, querida? — instou Annette. — Vocês têm de construir. Pensei que ficara entendido que vocês permaneceriam conosco até
construir sua própria casa...
Celeste estava silenciosa.
— Já andamos estudando planos e plantas — falou Peter, friamente. — Havíamos quase decidido sobre o tipo de casa que queremos. E agora
Celeste quer ir-se, antes que as coisas estejam estabelecidas. Seria só por um pouco mais.
Annette olhou para a tia, para aquele branco e severo perfil. Dificilmente podia conter as lágrimas. Curvou a cabeça de modo a poder ver
claramente o rosto de Celeste, e a massa de seus cabelos claros e fofos lhe caiu sobre o rosto da maneira mais tocante.
— Querida, olhe para mim. Não gosta mais de mim? Está cansada de mim? Realmente quer deixar-me? Aborreço-a tanto assim?
Celeste ergueu rapidamente a cabeça, entreabrindo os lábios. Mas quando seus olhos deram com a líquida pureza azul dos de Annette, e viu
seus rogos, sua dor, sua patética inocência, apenas pôde permanecer silenciosa. Beijou a frágil face tão junto da sua, e tentou sorrir.
Finalmente falou:
— Como pode ser tão tolinha! É que eu julgava que os estávamos incomodando. Já estão aqui Christopher e Edith. Pensei em sua saúde...
— Oh, eu estou muito, muito vigorosa! — gritou Annette, tão depressa como sempre que se mencionava seu estado físico. — Sou muito
enganadora. Diz o doutor que gente como eu vive para sempre. “Nanicos têm muita vitalidade”, disse-me. Posso ser pequenina, mas sou forte
como aço. Você nem faz ideia. Muitas vezes Henri me diz que o deixo exausto. Disse que não ficaria surpreso se eu o enterrasse meio século
antes de minha morte, e que acabaria meus dias como uma velhinha a um canto da chaminé. Por vezes chego a acreditar nele, embora ele seja
tão extravagante. A cada ano fico mais forte. De verdade. — Sorriu radiante e pôs o bracinho magro em volta dos ombros de Celeste,
convidando Peter a rir com ela.
“Contudo — pensou Celeste — seu coração se romperia, e então você morrerá. E seguramente nós partiremos o seu coração e também o de
Peter, Henri e eu, a menos que me deixe ir. Não tenho a força de vocês, meus queridos. Não tenho sua bondade e confiança. Vocês não
sabem o que sou! Até ultimamente, eu mesma não me conhecia...”
Depois pensou:
“Não poderei confiar em mim por mais algum tempo, por amor deles? Não terei decência nem autocontrole? Certamente não sou tão fraca, tão
depravada assim!”
E disse:
— Vejo que vocês dois me venceram, de modo que suponho não haver nada que eu possa dizer. Peter — e se voltou para o marido com a
antiga gentileza — você realmente se decidirá amanhã a respeito dos planos? Você foi tão indeciso...
Agora que havia dominado, Peter estava ansioso por acalmá-la:
— Claro! E também consultaremos Annette: haverá aposentos para Annette, quando nos visitar. — Sorriu para Annette, que lhe retribuiu
alegremente o sorriso. Ela batia palmas e quase dançou de delícia.
— Mas que ótimo! E, claro, darei um grande jantar para homenagear vocês dois! Henri falou nisso. Ele é sempre tão cheio de consideração...
Não será perfeito?
Capítulo 12
Enquanto Annette estava ocupada em sua amorosa persuasão de Celeste para permanecer em Robin’s Nest, Armand Bouchard — pai de
Annette, irmão de Celeste — chegou para jantar, com o filho, Antoine, “a reencamação de Jules Bouchard.”
Armand era viúvo. Morava com o filho solteiro em seu castelo enorme e quase ridiculamente palaciano, sobre o rio Allegheny. Tinha quase
duzentos quartos e, como declarara um espirituoso, abrigava criados em número suficiente para formar o núcleo de uma florescente aldeia. Sua
esposa tentara sobrepujar os castelos e palácios dos demais Bouchards pelo tamanho e a majestade das proporções — e conseguira produzir
uma vasta monstruosidade pseudo-medieval de ostentação. Não tivera bom gosto. Armand, embora lhe permitisse satisfazer seus gostos em
questão de castelo e de mobiliário, tivera a prudência de chamar os melhores jardineiros paisagistas da América para suas terras. Em
consequência, o ridículo do castelo foi em grande parte modificado, amenizado, pela beleza, magnificência, e luxuriante esplendor do meio
ambiente. Para minimizar as tremendas proporções do edifício, os jardineiros instalaram terraços que gradualmente desciam até o rio, haviam
transplantado elmos e carvalhos gigantes para sombrear esses terraços, fizeram longas rampas que levavam às muralhas de pedra cinzenta,
onde uma casa-de-guarda vigiava os altos portões de ferro.
Em meio a tudo isso vivia o diabético e obeso Armand. Henri o fizera Presidente do Conselho de Bouchard & Sons, o que pouco exigia de
Armand, exceto um ocasional e pomposo aparecimento e maneiras sérias e judiciosas durante as reuniões. Nessas ocasiões, sentava-se em
sua grande cadeira forrada de pelúcia, estendendo o grosso lábio inferior, a olhar com perspicácia de rosto em rosto, com aqueles olhinhos
feito contas, emitindo profundos resmungos sob a respiração e, nesse ínterim, fazendo retinir um punhado de pequenas moedas de prata no
bolso sujo. Sempre que ouvia o retinido, sorria com patético prazer, e cantarolava de boca fechada. Por vezes passava a mão na grande
cabeça redonda de cabelo grisalho à escovinha, ou esfregava as costas da mão vigorosamente no nariz acharparrado. E novamente, por
vezes, “aliviava-se” de uma opinião sem a menor importância. Todos o tratavam com a máxima cortesia, inclinando a cabeça respeitosamente
sempre que ele falava; e muitas vezes, disfarçando um sorriso, algo brilhava friamente nos pálidos olhos de Henri. Assim, permitiam a Armand
acreditar que ainda era uma força entre os terríveis Bouchards. Era um velho agora. Já era suficiente que Henri o houvesse admitido, embora
os Bouchards com frequência expressassem ligeira surpresa por que ele tivesse feito mesmo isso, pois Henri não era dado a ações
caritativas. Poucos chegaram a notar o fato de que as mãos do gordo velho, em repouso, tinham um movimento trêmulo crônico, impotente e
trágico, como as mãos de um cego. Estavam mais interessados em contemplar as ruínas de quem fora outrora todo-poderoso, e depois tão
completamente anulado pelo genro. Cogitavam quais seriam seus pensamentos, se teria noites de raiva frenética e fútil, ou de grande tristeza.
Por vezes até se apiedavam dele, desdenhosamente. Ele nunca fora um favorito, fora escarnecido mesmo em seus dias de grandeza. Pois era
desasseado, grosseiro, não era limpo de hábitos nem com a sua pessoa, apesar de uma quantidade de criados. Calças acabadas de passar
logo se enrugavam em suas coxas grossas; coletes imaculados, imediatamente, ficavam manchados; e as camisas, amarrotadas e sujas.
Só seu irmão, o vitriólico “Trapista rabelesiano” Christopher, tinha perspicácia para adivinhar os pensamentos que ocasionalmente acudiam ao
velho irmão. Sabia Christopher que, durante toda a vida, Armand tinha sido atormentado por uma espantosa consciência de classes que, em
última instância, não lhe deixava fazer certas coisas. Não eram muitas, essas coisas, porém eram o bastante para despertar a hilaridade dos
Bouchards, e seu divertido desprezo. Por conseguinte, Armand, mesmo quando mais atarracado, tinha sempre um ar de perplexidade, medo e
hesitação.
Entretanto, Christopher tinha a ideia perspicaz de que Armand desfrutava de alguma paz desde que fora removido do poder. Por vezes, quando
as discussões se tornavam muito secretas e cheias de intriga, um vago olhar de medo e inquietação lhe encobria a expressão fofa e florida, e,
após alguns momentos — tendo primeiro pigarreado, sacudido a cabeça, esfregado o nariz, fungado e piscado. — Armand se levantava com
dignidade e alegava indisposição, ou um compromisso. Depois saía gingando da sala da Diretoria, naquelas pernas curtas e inchadas,
apressando o passo ao chegar à porta. Parecia fugir, e os outros o olhavam, rindo à socapa. Por vezes, tratava-se de um truque deles, para
fazê-lo sair antes de debates realmente sérios. Não queriam testemunhas para esses procedimentos — especialmente não uma testemunha
como Armand.
Christopher também achava que Armand, agora, tinha realmente apenas dois interesses na vida: a amada filha Annette, e sua diabete. Devido
à sua “largueza” em matéria de alimentação, a moléstia foi uma catástrofe. Sempre fora um comilão. Durante anos, quando tinha de enfrentar a
necessidade de uma decisão iníqua — que deveria tomar pela sorte da Companhia, ou repudiar pelo bem de sua consciência — ele
repentinamente abandonava a iminência de decisão por uma sessão à mesa. Seus cozinheiros tinham ordens de produzir os pratos mais ricos
e deliciosos, e Armand sentava-se diante deles em desesperada concentração e comia, literalmente, durante horas. Havia algo de orgiástico
nessas ocasiões. Armand não falava; muitas vezes ficava só, nos espaços vastos como os de uma catedral da sua sala de jantar. Prendia sob
o queixo um guardanapo que era um verdadeiro “lençol”, erguia os ombros, empunhava garfo, faca, colher, e enchia o silêncio da sala com o
som de um mastigar alto e frenético, e um engolir, e um remoer glutão. Seu grande rosto fofo ficaria mais rubicundo, congesto, coberto por uma
camada de suor gorduroso, as orelhas ficando arroxeadas nas bordas. Mais tarde, ele “baixaria” em seus aposentos na semi-coma de uma
torturada digestão, e, envolto em aflições físicas, esqueceria as agonias mentais. Um camareiro lhe traria vários sedativos para os intestinos,
lhe aplicaria saco quente no ventre inchado, e mais tarde chamaria um médico. Quando, finalmente, chegasse a dormir, uma aparência de paz
semelhante à morte estaria em suas feições.
Agora tinha sua diabete, que lhe ameaçava a vida se descuidada ou ignorada. Tinha sua agulha de insulina — que se tornara de interesse
absorvente para ele. Na ocasião, tinha pouco que o perturbasse, e só ocasionalmente recorria aos prazeres da mesa para suavizar seus
conflitos psíquicos. Nunca se sentava para uma refeição sem a lista de sua dieta diante de si — documento que era agora mais importante
para ele do que qualquer outro outrora ligado à Companhia. Levava com ele a sua lista para todo lugar onde fosse convidado a jantar com os
parentes; e, quando a conversa ameaçava tocar nos negócios da Companhia e suas várias subsidiárias, ele a interromperia com avisos a
respeito de determinados pratos:
— Este — dizia, apontando com o garfo ou a faca — é praticamente veneno. Cheio de açúcar. Cheio de albumina. Proteína demais. Vocês não
fazem a menor ideia, estou vendo, sobre o que pode fazer ao pâncreas de vocês. Meu médico me dizia, no outro dia mesmo...
Por isso, Armand era raramente chamado pelo nome entre seus alegres parentes. Era designado como “A Lista”. Causava grande alacridade
entre eles devido a suas discussões a respeito da necessidade de “refeições simples, completas, cheias de minerais, simples e substanciais,
bem fortificadas com vitaminas”. Muitas vezes, gravemente visitava os cozinheiros de sua família em suas próprias cozinhas, e os exortava a
respeito de manteiga demais, molhos demais, muito vinho, temperos em excesso. Ele enchia o prato de saladas sem sabor, uma fatia de carne
magra, algum vegetal cru, e dizia aos outros (cujos pratos estavam cheios de “veneno”) que estavam cavando suas sepulturas com os dentes.
Então os observava a devorar o “veneno” com gosto, seu próprio rosto expressando avidez. Certa vez, com ingenuidade patética, chegara a
convidar alguns dos parentes para observar a aplicação da injeção de insulina, o que não fora aceito.
Além de sua saúde e de sua injeção, tinha só uma paixão: a filha. Pelo filho, Antoine, agora secretário de Bouchard & Sons, sentia apenas
medo e um ódio secreto, e uma aversão aterrorizada. Por vezes Antoine o fascinava, pela semelhança com seu próprio pai, Jules. Certas
ocasiões, tinha sonhos em que via o velho Jules, sutil, sorrindo, sardônico, cheio da antiga gargalhada maquiavélica. E então via que não era
Jules absolutamente, mas Antoine: acordava tremendo e banhado em suor, e durante dias evitava Antoine.
No entanto, Antoine era todo respeito pelo pai, ouvia-o com cortês gravidade quando Armand discursava sobre dieta, pedia-lhe conselho sobre
matérias de menor importância da Companhia, e chegava a diverti-lo com comentários picantes sobre outros membros da família. Pois Antoine
era espirituoso, um fazedor de epigramas, boa palestra, pessoalmente elegante e afável — o retrato perfeito do cavalheiro francês do tempo
antigo. Havia um retrato de Jules na biblioteca apainelada de Armand cheia de ecos desolados, e muitas vezes Armand parava diante dele a
mirá-lo com a tristeza, o temor instintivo, a inquietação e aversão que sentira pelo pai nos últimos anos da vida dele. Depois, com terror
crescente se bem que obscuro, observava as feições de Antoine naquela expressão dos sutis olhos negros, a boca satírica e cheia de
mobilidade com o canto esquerdo erguido, o nariz longo de narinas estreitas. Todas as qualidades intelectuais, a astúcia refinada, a delicadeza
cruel, a vivida perversidade, a vigilância vivaz daquele rosto, se haviam reproduzido em Antoine, mesmo as sobrancelhas oblíquas com seu
olhar inquisitivo. Era a fisionomia de Mefisto, fascinante, rutilante de sadística diversão, perceptiva e letal.
Havia respirado num alívio sem nome quando Antoine, alguns anos antes, declarara não estar absolutamente interessado nos Bouchards ou
suas preciosas velhacarias ou sua rede de subsidiárias. Ele era um poeta — dissera, com um sorriso que zombava de si mesmo tanto quanto
dos outros. (“Céus! Iremos ter outro François na família?” — perguntara Christopher, lembrando-se do trágico pai de Henri, que se matara em
face deste áspero mundo.) De modo que Antoine, após uma brilhante carreira em Harvard, estudara na Inglaterra, na França e na Alemanha,
viajara quase constantemente, gastara bem, porém discretamente, e parecia haver decidido que a carreira de um diletante consumado e
aperfeiçoado lhe convinha admiravelmente. Publicara um volumezinho de poemas excepcionalmente irreverentes, mas intelectuais, aclamados
deliciadamente no mundo inteiro. Era um conhecedor das várias artes, mas apenas pela fama, para sua própria distração, e seu gosto era
impecável. Ora considerava candidamente o palco, ora se interessava pela pintura futurista, ora só dava atenção a miniaturas. Era soberbo o
seu conhecimento de música, e era um fino pianista. Mesmo seus vícios se distinguiam pelo refinamento e uma elegância nativa, suas amantes
sendo de tão alta linhagem quanto ele próprio. Ainda não estava casado, embora já na casa dos trinta.
Essa flor da família Bouchard era muito popular, mesmo entre a sua própria gente — o que não é dizer pouco a respeito de suas graças de
temperamento e personalidade. As senhoras da família rivalizavam por sua presença à sua mesa, pois nenhuma festa seria enfadonha com
Antoine Bouchard. E elas todas estavam mais ou menos apaixonadas por ele; até os parentes masculinos faziam questão de sua presença. Ele
era um imprestável, diriam, provavelmente um louco, porém era decorativo, e acrescentava distinção à família.
Então, cinco anos antes, esse gracioso, esse completo, esse vivaz e arguto jovem calmamente anunciara à família que pretendia identificar-se
com ela, isto é: com a sorte da família.
— Não se apressem! — disse, com um sorriso, e estendendo as mãos naquele sempre lembrado gesto de Jules. — Não sou impaciente.
Repousarei placidamente em casa enquanto vocês, rapazes, rivalizam por meus serviços. Quando tiverem algo de sólido para me oferecer,
tragam-no em bandeja de prata. O mais alto licitante obtém os incomparáveis serviços de Antoine Bouchard, garantidos para acrescentar
colorido e vida ao mais insípido dos escritórios.
A princípio não o levaram a sério. Porém Christopher aparentemente o fez. Dentro de uma semana escreveu a Antoine, oferecendo-lhe a
posição de Secretário em sua própria companhia, a Duval-Bonnet, fabricantes de aviões na Flórida. Com a posição vinha um excelente salário.
Mas Antoine prontamente recusou:
— Não suporto o clima — disse, numa nota amigável ao tio.
Depois, garantindo uns aos outros que eram uns idiotas em dar atenção ao brilhante e inútil Antoine, todos lhe fizeram ofertas. Francis, Jean,
Alexander, Emile, até Nicholas se apresentaram, discretamente, com sugestões. Hugo, o Senador pela Pensilvânia, sugeriu política. Antoine
fingiu investigar cada uma dessas amigáveis proposições, porém afinal pesarosamente declinou.
— Ele não está realmente interessado... — disse Francis. — Que é que vocês esperavam?
Então Georges, o editor em Nova York, fez ao jovem uma oferta que todos tinham certeza que ele aceitaria, considerando seus poemas e sua
familiaridade com os negócios de publicidade. Para surpresa geral, também isso foi recusado.
— Está cheio de disparates — foi o veredicto da família. — Gosta de brincar com ideias.
Contudo havia alguém que não estava certo disso, e esse alguém era Henri Bouchard, seu cunhado e primo. E só Henri não fez qualquer oferta.
E Henri é quem escutava, e observava, com um impenetrável sorriso íntimo, e silêncio.
Pois fora Henri quem, em sua vingança, sua ganância e implacabilidade, despojara Armand, pai de Antoine, de seu poder; quem, saído da
obscuridade e da impotência, se apoderara do trono dos Bouchards. Na ocasião Antoine era muito menino, um garoto de escola e, portanto,
indiferente e inconsciente da geleira que se movera inexoravelmente sobre a família, uma geleira a erguer-se de uma base oculta, reunindo
força e terror em silêncio, irresistível em sua força e implacabilidade. Antoine chegara à idade viril, viajara por todo o mundo buscando seus
prazeres, sorrindo, cheio de savoir faire, gracioso e indiferente, gastando de sua própria e enorme fortuna, não demonstrando interesse por
coisa alguma. Depois, de repente, languidamente, a sorrir, dando de ombros, espalmando as mãos, anunciara seu interesse casual nos
negócios dos Bouchards.
Isso foi o que Henri observou, divertido, de lábios cerrados. De modo que não ficou absolutamente surpreso quando Armand, acanhado e
confuso, acompanhou o filho ao escritório de Henri e anunciou que Antoine finalmente decidira que gostaria de entrar para o “negócio”.
— Ele pensou bem em todas as propostas — falou Armand, como vaga desculpa. — Nada atrai o rapaz. Então... então sugeri você, Henri. Ele
está disposto a aceitar o que você oferecer.
Haviam-se sentado à escrivaninha de Henri, o pai e o filho, enfrentando o homem formidável de olhos pálidos e brutais lábios grossos. Henri
usava a escrivaninha antiga de Armand: sentou-se ali, diante da vasta extensão de mogno, a mão quadrada de grandes unhas descoloridas
agarrando uma caneta. E Armand sentou-se do outro lado da mesa, a mesma mesa onde outrora ele fizera todos os planos para Bouchard &
Sons — quase um suplicante agora, um homem velho e impotente, completamente despojado por essa reencarnação mais jovem e mais
terrível de Ernest Barbour.
E então Henri lentamente voltou os olhos para Antoine, ali sentado tão graciosamente e com um sorriso tão brilhante, ao lado do pai, e
completamente à vontade, cheio de elegância e compostura, aparentemente apenas divertido, aparentemente apenas casual e amigavelmente
interessado na súplica de seu pai. Calmamente encontrou os olhos de Henri, os seus próprios reluzindo e cheios de leve júbilo, um cigarro
numa longa piteira de ouro pendurado nos seus finos dedos morenos.
“Então é assim!” — pensou Henri, brincando com a caneta em suas mãos, bem devagar.
Ampliou-se o sorriso de Antoine. Era um sorriso muito atraente, que as mulheres achavam irresistível.
— Nada de exaustivo, compreende, Henri? — disse ele, e tinha a voz melíflua de Jules, cheia de subtons musicais que ameaçavam romper
numa risada. — Nada de muita clausura. Tenho apólices e ações em Bouchard e nas subsidiárias, e só Deus sabe o que mais. Muito confuso!
A boca de Henri se apertara até parecer um fino talho no rosto pálido.
— Conhece alguma coisa a respeito da casa Bouchard? — perguntou, a voz poderosa em granítico contraste com a de Antoine.
— Afinal de contas, você tem sido uma espécie de playboy, não é verdade? Que garantias posso ter de que isso não é apenas um novo e
temporário interesse que se esgotará em poucas semanas? Isto aqui não é um circo, sabe; nem um carnaval, com um carrossel, uma banda e
dançarinos. Tenho de saber um pouco mais.
Ante seu tom sardônico, desdenhoso e condescendente, Armand foi subitamente despertado de sua indolência doentia, sua inércia comatosa.
Ergueu o vulto poderoso da cadeira onde outros suplicantes se haviam sentado durante sua própria gestão. Por um momento ou dois houve
nele um selvagem e raivoso clamor, uma confusão, uma fúria! Aquela era a sua cadeira, na qual esse assustador intruso sentava-se agora! Era
a seu filho que o intruso dirigia essas palavras condescendentes e escarnecedoras! Seu filho, que deveria sentar-se agora ali, o poder dos
Bouchards! Seu filho, que fora espoliado tão espantosamente de seus direitos de nascimento!
Seu gordo rosto ficou arroxeado. Os olhinhos cor de azeviche faiscaram. Um longo tremor lhe passou pelo corpo, pelo ventre, como uma
ondulação visível. Falou, com a voz sufocada:
— Henri, estou certo de que Antoine... se dá conta. Ele... ele não é um louco!
Deteve-se. O sangue lhe subiu à cabeça. Gritou:
— Este é meu filho! Meu filho!
Suas palavras expressavam todo o seu ultraje, a súbita compreensão, o completo ódio e desespero.
Henri virou a cabeça maciça e o olhou com a face formidável de Ernest Barbour. Nada disse: apenas o fitou, sem expressão. Armand sentiu o
impacto desse olhar, como um soco mortal de um punho pétreo.
Então Antoine riu de leve. Dera uma olhada em seu pai, surpreso. O velhote devia, pois, ter-lhe alguma amizade, sob o medo instintivo, o ódio e
a aversão. Armand captou esse olhar. Seu pai também o olhara com essa jovial surpresa em seu leito de morte, quando o filho —
incoerentemente, mas com dolorosa sinceridade — protestou: não queria que Jules morresse. Armand estava completamente arrasado. Sentia
uma enorme necessidade de chorar. Todos aqueles anos, anos loucos, infrutíferos, impotentes, arruinados! — pensou, confusamente. E agora
estava de volta à estaca zero, face a face com Jules, com Ernest Barbour... e se sentia fatigado e doente, muito doente...
— Olhe! — disse Antoine — não sejamos sentimentais. Isso compete a Henri, meu pai. Ele tem direito a fazer perguntas. Se não me quiser, e
Deus sabe que não há muito em minha vida para fazer com que alguém me queira, isso é lá com ele.
Jules e Ernest! Armand passou nos olhos a mão gorda e trêmula, esfregou o nariz freneticamente. Ele os olhou, encarando a um e a outro, e o
passado era uno com o presente. Queria levantar-se, fugir para a escuridão e o olvido... Que terrível família aquela! Que assassinos, ladrões, e
mentirosos, que bandidos e monstros! Agora ele via isso. E não podia suportá-lo!
— Sou um homem doente. Não sei de nada... — resmungou.
Eles o ignoraram. Estava ali sentado, prostrado em sua poltrona, as mãos agarrando-lhe os braços, os olhos enevoados fitando cegamente o
vácuo. Nada soube do que se falou: apenas ouvia os ecos da voz calma de Henri, os tons claros e leves de Antoine. Mais tarde Antoine lhe
disse que Henri lhe fizera uma oferta: ele entraria para Bouchard & Sons como um chefe de escritório, um secretário, a fim de familiarizar-se
com os negócios da Companhia. Henri lhe prometera um secretariado assistente, se provasse ser bom no trabalho.
Três anos mais tarde Antoine era Secretário de Bouchard & Sons.
Desde o início os Bouchards ficaram assombrados e incrédulos.
“Isso não vai durar — diziam. — Logo ele sairá.”
Porém durou, e Antoine ainda não saíra. Mais ainda: para espanto de todos eles, provou ser excepcionalmente brilhante, audacioso e
perspicaz. Henri expressou sua aprovação ao novo Secretário. Lentamente, no decorrer dos anos, uma aparentemente grande confiança se
desenvolveu entre eles. Antoine nunca ousava: cedia diante de todas as decisões de Henri. Sugeria, porém jamais insistia. Sob esse exterior
gracioso e elegante havia uma mente de aço flamejante, ao oposto da clava de ferro da mente de Henri.
“O homem de Neandertal e o espadachim dançarino — dizia Christopher, observando atentamente através dos anos. — O homem em pele de
urso e o de casaco bordado.”
Muito discretamente, os Bouchards procuraram seduzir Antoine para uma discussão sobre o seu inexorável parente. Mas Antoine era todo
lealdade, todo admiração entusiasta, todo deferência. O que ele pensava não conseguiram saber. Mas Henri sabia. Ele não era audacioso ou
demasiado imaginativo por natureza. Era o homem de força, e sabia que homens de força são os mais poderosos.
Mas compreendia o que se passava sob o estreito e escuto crânio de Antoine com o cabelo liso como um selo úmido. Sabia que tinha, em seu
escritório, o inimigo mais implacável que já conhecera. Por vezes se sentia alta e sombriamente divertido, divertimento tingido de um desdém
brutal. Sabia quem era o mais forte. Nesse ínterim, isso o divertia.
Havia entre os dois homens uma sutil compreensão, uma admiração mútua. Não precisavam “escrever livros” para se tornar claros um para o
outro. A tal ponto que Henri fez de Antoine seu confidente. Podia confiar — teria dito a si mesmo — no irmão de sua mulher. Sabia que durante
sua própria vida Antoine não ousaria nada ameaçador ou surpreendente; pelo menos, acreditava saber que o jovem estava completamente
consciente da desesperança de qualquer ação assim. Mas, depois de sua morte, que aconteceria? Antoine era muito mais moço que ele.
Provavelmente se casaria, e haveria filhos. Quanto a ele, não tinha filhos, e de Annette jamais poderia esperar tê-los. O senso de dinastia era
muito poderoso em Henri Bouchard. Desejava filhos, que manteriam seu poder quando estivesse no túmulo. Sua virilidade era como um rio
enorme e tumultuoso contido por uma represa. Ele compreendeu que Antoine nunca esqueceu que devia estar ocupando o trono de Armand.
Compreendeu que em Antoine ardia um incessante espírito de vingança, lascívia e determinação. Eram inimigos. Porém também eram amigos
que se admiravam. Odiavam-se mutuamente. Mas se dedicavam também uma afeição profunda e traiçoeira.
Antoine era visitante frequente em Robin’s Nest. Henri apreciava muitíssimo a sua companhia. Antoine nunca deixava de distraí-lo. Ele até se
descobria tornando-se sutil na presença de Antoine, e compartilhavam piadas secretas. Surpreendia-o que Antoine tivesse uma ternura
especial pela irmã, Annette, um curioso senso de proteção, e que aquela fisionomia jesuítica insensivelmente se adoçasse à vista dela. Isso era
tanto mais estranho porquanto Annette, embora aparentemente louca pelo irmão, demonstrava certa inquietação na presença dele, um alarme
crônico.
Henri chegou a buscar uma esposa apropriada para Antoine. Uma da família, se possível. Talvez Dolores, a filhinha de Jean, jovenzinha
aparentemente inofensiva de rostinho angelical e uma nuvem de cabelos claros. Exatamente o tipo capaz de atrair o moreno e divergente
Antoine. Fez com que Annette convidasse Dolores com frequência.
Agradava muito a Annette que Henri invariavelmente demonstrasse satisfação quando sabia que Antoine jantaria com eles. Sua pesada
equanimidade se aligeirava consideravelmente, e aquela sua qualidade granítica se tornava mais alegre.
Foi o primeiro no fresco terraço, nessa noite, a receber Armand e Antoine. Annette, Celeste, Peter, Christopher e Edith ainda não haviam
descido. No entanto, logo Christopher apareceu, e os quatro homens tomaram um drinque extra enquanto esperavam. Henri, que herdara do
bisavô a aversão pelo álcool, apenas provou um cálice de xerez, sem nenhuma satisfação, enquanto Christopher e Antoine bebiam uísque e
soda. A olhá-los ansiosamente, Armand tomou o seu suco de frutas, sacudindo a cabeça negativamente para o uísque.
Entre Christopher e Antoine havia um ódio profundo, embora se entendessem perfeitamente. Christopher estava melancólico, como sempre,
fascinado pela espantosa semelhança entre Antoine e seu próprio pai, Jules. Por vezes ficava a contemplá-lo por longos minutos, ainda ouvindo
a voz que se calara desde o Dia do Armistício, vendo em cada gesto, cada movimento da pequena cabeça lustrosa, cada sorriso, cada erguer
das “diabólicas” sobrancelhas, o fantasma de alguém a quem odiara e temera. Quando falavam ao mesmo tempo, era como a leve dança dos
floretes.
— Como está Peter? — perguntou Antoine, com seu sorriso moreno e resplandecente. — Há semanas não o vejo. Melhoras?
— Consideráveis — disse Henri. — Está ficando impaciente.
— Ainda intransigente?
Henri deu de ombros, olhando calmamente para Christopher.
— Nosso cavalheiro branco de armadura de prata está afiando a sua lança — falou Christopher. — Há sons de trombetas no ar. O torneio está
prestes a começar...
— E Celeste? — indagou Antoine. — Está amarrando o laço de fita azul em seu braço outra vez, como de costume?
— Que esperava você? — observou Christopher cuidadosamente. Ele podia ridicularizar a irmã, mas não gostava que outrem o fizesse. Amara
a irmãzinha com amor profundo: fora seu tutor após a morte do pai. Por vezes lhe parecia estranho que Antoine fizesse tiradas peçonhentas
contra Celeste, ele, a viva imagem do avô, Jules, pai de Celeste, e cuja única adoração fora a filha.
— Houve uma transformação em Celeste nestes últimos anos — comentou Antoine, acendendo um de seus intermináveis cigarros que tinham
monograma. — Eu tinha cerca de dezesseis anos quando ela casou com Peter, mas lembro-me dela claramente. Havia nela uma espécie de
“virtude”, uma inocência. Se quisesse ser afetado, eu diria que uma espécie de “pureza”. Mais da mente do que qualquer outra coisa. Tudo isso
se foi. Ela agora é “um osso duro de roer”! É uma Bouchard, afinal. Mas não pensem que estou insultando a minha tiazinha. De certa forma, eu
a estou cumprimentando. Porém algo fugiu dela, provavelmente para sempre.
— Diria que ela está mais amarga — comentou Armand, procurando no bolso do casaco pela sua lista de dieta, e contraindo as feições gordas
e congestas na apreensão momentânea de havê-la esquecido. Sua expressão relaxou: a lista estava ali. — Amargurada. A palavra é esta. Ela
era sempre tão doce...
Christopher girou a haste do copo de coquetel em seus dedos delicados. Nada disse. Henri era todo brandura:
— Talvez apenas tenha crescido. Era quase uma criança quando casou com Peter. Que esperavam vocês? Afinal de contas, está com mais de
trinta. Já não é tão jovem...
— Que diabo de vida ela teve! — comentou Antoine, com humor impiedoso e um riso leve, como se o pensamento lhe desse um prazer
perverso. — Era de esperar, por tudo que tenho ouvido... Por que alguém não a impediu de casar com ele? Que houve com você, Henri? Você
estava noivo dela. Por que a deixou ir tão facilmente? Você não é desse tipo.
Henri apenas sorriu. Aceitou um dos cigarros de Antoine, embora não gostasse de tabaco. Mas descobrira que fumar, o aceitar a cortesia de
alguém, por vezes estendia uma ponte para desfazer um momento embaraçoso. Permitiu que seu Secretário o acendesse para ele. Por um
instante, enquanto o isqueiro lhe iluminava o rosto granítico, os olhos dos dois homens se encontraram — os de Antoine sutil e cruelmente
divertidos, os de Henri tão sem expressão como uma pedra polida.
“Então, bem... — pensou Antoine. — Ele não esqueceu... A esfinge não é tão invulnerável, afinal...”
— Por que trazer à baila um assunto tão indelicado? — perguntou Christopher. Permitiu que o mordomo lhe enchesse o copo novamente. —
Temos coisas mais interessantes para tratar, estou certo.
— Especialmente quando sua própria irmã é agora esposa de Henri — falou Armand, reprovadoramente. Virou sua redonda cabeça à
escovinha, de cabelos quase brancos, de um para o outro: — Não é um bonito tópico de conversa.
— De todo jeito, vamos conversar a respeito de dietas —• falou Christopher, com um olhar que era veneno puro em direção de seu irmão. —
Como vai o pâncreas, Armand?
Seu ridículo se perdeu no enfatuado Armand, que pareceu grato.
— Meu médico me disse que posso reduzir a insulina a uma injeção por dia. É algo novo. Concentrado, creio. Muito conveniente. Nada mais de
rebuliços quanto a pedir água fervente, quando vou jantar fora. Às vezes as pessoas ficam pasmas...
Sorriu para eles, como se acabasse de realizar um ato meritório que devessem aplaudir. Henri observava as volutas da fumaça de seu cigarro;
Christopher bebeu rapidamente; Antoine sorriu para todos eles.
Abriu-se a porta francesa e Celeste apareceu. Eles se levantaram para recebê-la.
— Bem, tiazinha, está tão radiosa como sempre! — disse Antoine, pegando-lhe a mão e beijando-lhe a face com afetação. Adorava mulheres
bonitas, mesmo quando eram suas parentas. Estudou-a astutamente divertido. Uma mulher que valia a pena! Ela se sentou e aceitou um dos
cigarros de Antoine, que o acendeu para ela. “Pétrea — ele pensou. — Mas a pedra racha sob golpes repetidos...” Fechou o isqueiro com
movimentos lentos e pensativos.
— Peter descerá diretamente — ela informou. Nos olhos de um azul profundo havia uma espécie de véu quando os olhou. — Já não precisa da
enfermeira do dia, é o que acha — acrescentou, embora ninguém lhe houvesse perguntado nada a respeito do marido.
— Acha que isso é tolo, e eu também acho. A Srta. Tompkins pode ir no fim da semana. Ele dorme bem à noite e raramente tosse. Amanhã
quer sair para um passeio.
Recostou-se na poltrona, e suas mãos brancas apenas tremiam um pouco. Sorriu. Olhou para Christopher:
— Você foi muito mau, Christopher. Agitou-o terrivelmente esta manhã. Deveria ter sido mais bondoso, considerando o que tem acontecido.
— Por Deus! Ele será uma criança? — perguntou Christopher.
— Você sabe muito bem que ele é inclinado a discussões. Sempre foi beligerante e acusador. Depois, jamais gostou de mim. Que lhe fiz eu?
Fez-me algumas perguntas, e eu as respondi. Celeste, sabe que não é sua mamãe...
— Você esquece o quão doente ele esteve — ela replicou. — Bem, esqueça. Vocês dois nunca estiveram de acordo.
Apesar de toda a sua calma aparente, havia nela uma agitação contida. Vendo-a de perto, Antoine atentou em que ela nunca olhava
diretamente para Henri, que parecia aborrecido. Ele virara a cabeça: estava olhando o vasto gramado que, ao crepúsculo, se ia tomando
misterioso... O céu estava heliotrópico, os topos das grandes árvores brilhavam às luzes do enfraquecido sol poente. A penetrante doçura do
roseiral chegava até eles trazida pelo vento morno da tarde. Os pássaros trinavam com melancolia nos ramos altos. Em torno deles havia uma
grande paz, porém Antoine, com sua aguda percepção, sabia não haver paz naquele calmo terraço.
— Ele vai escrever outra vez? — perguntou.
Mas Celeste apenas moveu de leve a cabeça.
— Outra denúncia sobre os Bouchards — resmungou Antoine. — Os Fomentadores de Guerra. Que pensa ele que estamos fazendo agora?
Ficaria surpreso.
Ao ouvir isso, Henri se voltou para ele, e algo naquela fisionomia imóvel e implacável fez com que Antoine se calasse. Havia ocasiões em que
esquecia o poder de Henri Bouchard, em que podia pilheriar com o cunhado e impudentemente desafiá-lo. Mas tinha a impressão
enraivecedora de que essas ocasiões só apareciam com o consentimento de Henri. Um macaco ágil pode atormentar um leão, quando o
último se sente indiferente ou indulgente. De outras vezes isso pode ser extremamente perigoso. Esta era uma dessas vezes. Antoine se
acalmou. Mas enterrou as unhas nas palmas das mãos.
— Nada a respeito da família surpreenderia Peter — observou Celeste, amargamente. Deteve-se, abruptamente: Peter e Annette vinham
entrando no terraço, Annette rindo docemente, Peter caminhando devagar e com deliberada firmeza. Por trás deles apareceu o rosto moreno
de Edith e seu elegante vestido.
Cadeiras foram oferecidas às senhoras, e Antoine, com muita gesticulação, ofereceu uma a Peter, cujo rosto descarnado corou ante essa
ostentosa cortesia. Graciosamente Antoine lhe perguntou por sua saúde. A silenciosa Edith aceitou um coquetel. Annette começou sua
parolagem infantil, em sua doce voz.
— Não é ótimo, Henri? Celeste e Peter decidiram ficar conosco mais um pouco, até construírem sua própria casa. Levei um tempão para
convencê-los — acrescentou, com um olhar cheio de amor para a jovem tia. — Ela acreditava estar nos importunando. Ora veja que absurdo! —
E olhou para eles, radiante.
“Então — pensou Antoine — Celeste queria fugir! Muito interessante ...” Ao nítido dossiê de sua mente anexou outro fato.
Anunciaram o jantar, e todos se levantaram. Antoine sentiu que havia reunido informações muito divertidas e úteis nos últimos cinco minutos,
informações que ele acreditava poderem um dia destruir Henri Bouchard.

Capítulo 13
Armand colocou sua lista perto do prato e ansiosamente a consultava sempre que o mordomo lhe apresentava um prato. Ajustava os óculos,
espiava a lista, após um olhar reprovador para as velas que iluminavam mal, então ou aceitava ou recusava o que lhe era oferecido. As janelas
permaneciam abertas: uma brisa fresca e perfumada invadia a sala encantadora. Em algum lugar um tordo cantava à aproximação da noite.
Acima dos muros do jardim subia a lua crescente, deslizando como uma foice de prata contra o azul profundo do céu noturno.
Annette era toda felicidade. Para ela, era lindo ter os parentes em sua casa. Demorava o olhar em cada um deles, ternamente, de seu lugar ao
fundo da mesa. Nunca sentira tamanha paz, tanto contentamento. Aquele momento encostada à porta do seu quarto estava esquecida. Em
algum lugar lá fora, no espaço, o inferno esperava, mas aqui tudo eram luzes, flores, o brilho das pratas, o cintilar da água nos copos de cristal,
os rostos daqueles a quem amava. Às vezes se inclinava para estudar com o pai a sua lista: ele se sentava à sua direita. Enquanto os seus
cabelos macios e brilhantes captavam as luzes dos candelabros, e sua gentil boquinha rosada se franzia em profunda concentração, Armand
esquecia a dieta para esquadrinhar o doce e suave perfil com uma dor estranha e desesperada no coração aterrorizado.
— Papai — falou ela, reprovadoramente — diz aqui: você pode comer salada de frutas. Você a recusou. E eram frutas deliciosas.
— Mas não gosto de melão...
— E peixe. Também pode comê-lo. Mas você não quis.
— Não quando há carne. Proteínas demais.
Peter estava absorto em alguma das suas sombrias meditações. Sentava-se junto de Edith, que o observava com muita tristeza. “Quanto ele
tem sofrido toda a vida!” — ela pensou. Porém ele era um dos que nascem na dor, vivem em tristeza, e morrem em angústia. Seria melhor para
eles morrer depressa; e ainda melhor se não tivesse nascido. “Morra logo, pobre Peter!” — pensou. — “Isso seria a coisa mais misericordiosa
para você...”
Viu-lhe as mãos cansadas, apaticamente segurando os talheres. O rosto fino tinha um colorido febril. Ele lutava para reprimir a vontade de
tossir. Celeste o observava, como sempre, e enquanto o fazia aumentava a expressão fatigada de seus olhos, e os cantos de sua boca
baixavam, abatidos. Ela foi quem lhe encheu o prato silenciosamente, embora ele abanasse a cabeça automaticamente. E então, ante seu
olhar ansioso, ele lhe sorriu breve e ternamente, e obedeceu a seus pedidos silenciosos.
Antoine e Christopher é que viram como Henri vigiava aqueles dois, sem parecer fazê-lo, e como a brutal opressividade aumentava em seu
rosto. Christopher observou isso com íntima satisfação, e Antoine sorriu internamente.
Celeste receara certo constrangimento após o acontecido pela manhã, mas Christopher era a própria amabilidade, especialmente para com
Peter, que respondia com relutante laconismo. Edith estava distraída: observava o marido, com uma curiosa prega entre os olhos castanhos, e
depois seu olhar tocou no irmão, rapidamente. Annette conversava docemente; Armand estudava sua lista, e advertiu a filha a respeito da
provável quantidade de albumina em seu farfait (sobremesa preparada com ovos e creme batido. (N. da T.)).
— Mas estou certa de que não há ovos nisso, querido!
Ele provou cautelosamente a deliciosa mistura, balançou a cabeça, depositou a colher com resoluta decisão:
— Certamente que há ovos — falou. Annette perdeu o apetite.
Nesse ínterim, Christopher se empenhara numa conversa a respeito de gasolina com Henri:
— Estamos experimentando com o motor de um novo avião lá em Duval-Bonnet, o que promete ser excitante, animador. Porém isso exige uma
gasolina de alto teor, além de tudo que já se criou ou desenvolveu. Naturalmente, temos estado empregando o princípio da catálise. Contudo,
um de nossos químicos pensa ter descoberto um fluido catalítico de fracionamento que, como você deve saber, é realmente um pó muito fino, e
pode ser canalizado e bombeado e tratado exatamente como um líquido. Você pode não achar isso muito dramático, ou importante, mas
garanto-lhe que é uma das descobertas mais espetaculares deste século.
— Já o usou na gasolina que você emprega em seus aviões? — perguntou Henri, com interesse aparentemente fora de proporção com o
assunto.
Porém Peter subitamente levantou a cabeça, alerta, e ouviu com intensa avidez.
— Sim. — Christopher se calou, e olhou para Henri de modo significativo. — Construímos quarenta desses fragmentadores, tamanho normal.
Foi um experimento dispendioso. Deu resultado.
— E o projeto do motor? — perguntou Henri casualmente.
— Para usar a nova gasolina?
— Temos uma oferta. Uma oferta excepcionalmente esplêndida. Provavelmente a aceitaremos. A oferta inclui o novo processo.
Peter depositou o garfo. Olhou para Henri e Christopher.
— Essa famosa oferta terá vindo da Alemanha? — perguntou.
Voltaram-se para ele, Christopher com astuta surpresa, Henri com o costumeiro olhar imóvel.
— Por Deus! Mas que imaginação você tem! — exclamou Christopher com um riso leve. — Não, a oferta não veio da Alemanha. Poderia, você
sabe, ter vindo de nosso próprio abençoado Governo. É tudo que posso dizer-lhe.
Henri sorriu um pouco. Pegou a cigarreira, bateu um cigarro em sua tampa, acendeu-o. Através da fumaça seus olhos fulguravam como frias
ágatas.
“Você mente!” — pensou Peter, com desespero.
Depois de um longo sorriso para Peter, Christopher tornou a voltar-se para Henri.
— Como sabe, estivemos fazendo experiências com butadieno... acrescentando estirênio e várias outras coisas. Temos esperanças nisso.
Eventualmente nos libertará da borracha das Índias Orientais. Há muito trabalho a ser feito. Você deveria ver nossa nova fábrica e os
laboratórios. Há uma história química em formação, ali.
— Por que — perguntou Peter — lhe é necessário experimentar com esse... esse butadieno? Não estão esperando agressão do Japão nas
Índias, estão?
Christopher tornou a rir. Porém os olhos de Peter coruscavam, um músculo tremeu em sua face.
— Cristo! — falou Christopher maciamente. — Você é um monomaníaco, Peter! Não esperamos nada, nem mesmo uma guerra na Europa.
Não estamos interessados. — Repetiu, ainda mais maciamente: — Não estamos interessados. No presente momento, nosso único interesse é
tornar a América autossuficiente.
Por um momento Peter nada disse, depois falou com muita calma.
— Ouvi dizer que a Alemanha já aperfeiçoou um processo de borracha sintética. Não seria o seu processo, seria, Christopher?
Christopher estava completamente espantado, e irresistivelmente divertido.
— Como posso saber? Afinal de contas, os “crânios” não estão confinados na América. É possível que os químicos alemães também andem
fazendo experiências.
A expressão de Peter era severa, fria como gelo:
— Ouvi dizer que é chamado “processo americano”. Dois de seus homens estiveram na Alemanha há oito meses atrás, Chris, e passaram seis
semanas com os químicos germânicos.
Por um instante a brilhante máscara metálica sobre as delicadas feições de Christopher se obscureceu. Ele encontrou os olhos de Peter,
porém Peter estava inabalável. Devolveu o olhar de Christopher, com amargura e desdém, e grande desolação.
— Está mal informado, Peter — falou Christopher por fim, gentilmente. — Sempre o tem sido. Ninguém de Duval-Bonnet esteve na Alemanha.
Quem lhe disse isso?
— Seus nomes — continuou Peter, como se não o tivesse ouvido — eram Carl Brouser e Frederick Schultzmann. Esses nomes lhe são
familiares?
Christopher sorriu. Mas seus dedos agarraram o garfo como se fosse uma arma. Henri baixou a mão que segurava o cigarro, e lentamente
olhou de Peter para Christopher. A fumaça se lhe espiralava por entre os dedos fortes. Por alguma razão, Antoine achou Henri mais
interessante nesses tensos momentos do que Christopher. Edith, erguendo, alerta, a cabeça escura, fitou o marido, de lábios franzidos; e
Celeste apenas pôde sentar-se ali em silêncio, os olhos violeta brilhando. Esquecido, Armand estudava sua lista com auxílio da filha ansiosa:
suas cabeças estavam juntas.
— Brouser e Schultzmann nunca estiveram afastados de Duval-Bonnet senão por poucos dias, no decorrer dos últimos quatro anos — falou
Christopher. — Alguém andou lhe impingindo contos de fadas... — Então Henri falou, e olhava só para Christopher:
— É mesmo? — perguntou, com profunda calma.
Era medo o que se revelava nos olhos claros de Christopher, pensou Antoine, e ódio defensivo? Por um momento, ficou sem fala.
— É mesmo? — repetiu Henri, em voz mais alta, mas ainda calmamente. No entanto, em seu tom havia algo de terrível e violento.
— Bom Deus! Mas o que é isso?! Certamente, é mentira. Carl e Fred são nossos químicos de maior confiança. Têm família na Flórida,
também. São cidadãos americanos. Como a maioria dos químicos talentosos, estão sempre absorvidos em seu trabalho. Por vezes passam
vinte horas por dia nos laboratórios. Boas praças. Devotados. Geniais.
— Muito interessante — comentou Henri, interrompendo rudemente o ‘discurso’ de Christopher. — Entretanto, não estou absolutamente
interessado nas famílias deles ou em sua poética devoção a Duval-Bonnet. Só quero saber se estiveram na Alemanha como disse Peter.
Não se moveu; a fumaça do seu cigarro se elevava, tranquila, por entre seus dedos. Contudo, dava a impressão de fria e colossal violência
mesmo sentado, imóvel, em sua poltrona.
Aparentemente Christopher estava espantado, e apenas podia fitar o cunhado. Ainda olhando para ele, Henri disse a Peter:
— Peter, onde conseguiu a informação?
Peter se voltou para ele, e o estudou, perplexo. Viu aquele perfil grande e pétreo, com sua mortal falta de expressão. Seria possível que Henri
estivesse representando, para livrar-se dele, Peter? Mas quando olhou para Christopher, e viu o tremor espectral de sua boca, os olhos
indecisos e coruscantes, já não estava tão certo. Disse, vagarosamente:
— Tenho meios para descobrir. Não lhe direi, Henri. Isso poria em perigo os homens que me contaram. Os Socialdemocratas Germânicos que
formam o Underground na Alemanha. Dois deles são empregados numa empresa química no Ruhr. É tudo que posso dizer. Provavelmente já
ouviu falar da Gestapo, não?
— Digo-lhe — afirmou Christopher, emocionado — que isso é mentira! Brouser e Schultzmann nunca estiveram afastados de seus postos por
mais de um dia ou dois. — Deteve-se. Suas delicadas narinas fremiam. — Sou positivo a respeito da lealdade deles. Entretanto, é possível que
haja espiões, mesmo em Duval-Bonnet, mas custo a acreditar nisso.
— Brouser e Schultzmann estiveram na Alemanha. Mostraram-me fotografias — falou Peter.
— Tem essas fotografias? — perguntou Henri, ainda observando Christopher.
— Não. Claro que não. Mas posso identificar os homens, se os vir.
Uma escura veia roxa inchou nas têmporas lívidas de Christopher, palpitando visivelmente. Edith ficara extremamente pálida. Fitava o marido,
olhos dilatados.
— É fácil tirar fotografias de qualquer pessoa — disse Christopher. — Falsificar fotografias, também. É muito possível que seu ridículo espião
obtivesse tais fotografias diretamente da Flórida, e as passasse dramaticamente para você como sendo tomadas na Alemanha.
— Göring aparece ao fundo: sua mão está no ombro de Schultzmann — informou Peter, calmamente.
Christopher explodiu numa risada:
— Cristo! Pensa, caso isso fosse verdade, que ousariam bater tais fotografias, ousariam distribuí-las, ousariam torná-las acessíveis a qualquer
um?
— Era uma fotografia secreta, tomada por um dos alemães do Underground. Conseguiu fazer uma câmara tão pequena que cabe em um anel.
Devo acrescentar não haver necessidade de procurar essa câmara: está destruída agora, ou muito bem escondida. A fotografia me foi
mostrada, e mais uma ou duas outras, para determinado propósito: o espião desejava que esta informação fosse exposta perante as
autoridades americanas.
Christopher, embora ainda sorrindo, bateu o punho fechado, de leve, na mesa. Mas seus olhos eram malignos, enquanto olhava Peter:
— Era uma fraude, uma fotografia falsificada. Insisto nisso. Qualquer amador poderia fazê-la.
— O espião — afirmou Peter — falou livremente com Schultzmann e Brouser. Mas não mande seus amigos procurá-lo: não o encontrariam.
Em torno da mesa houve um silêncio sinistro. Sentindo algo de prodigioso na atmosfera, Armand esqueceu sua lista. Lentamente olhou-os a
todos, apreensivamente silencioso. Não ouvira a conversa: apenas sabia que estava acontecendo alguma coisa de terrível. Umedeceu os
grossos lábios ressecados.
Então Henri se moveu um pouco, e sorriu. Era como um basilisco sorrindo...
— Tudo não passa de um absurdo, claro! — disse, serenamente. — Desculpe-me, Peter, mas o drama não foi convincente. Se Brouser e
Schultzmann estivessem lá realmente, Chris deveria saber.
Christopher puxou uma respiração inaudível de pulmões que tinham estado completamente comprimidos:
— Mas claro que eu teria sabido! Entretanto, questionarei os rapazes rigorosamente, quando voltar.
Peter pensou:
“Será possível que Henri não soubesse, que esteja zangado, que faça alguma coisa para descobrir? E se. não sabia, por que se importa? É
associado da I.G. Farbenindustrie: para ele, seria a coisa mais natural do mundo arranjar para dar aos alemães o processo de fracionamento e
o projeto para os novos aviões... por uma bela quantia. Seria natural que Christopher tivesse sua aprovação. Em tais circunstâncias, por que
isso o enraiveceu e o fez olhar para Christopher desse modo homicida? Sempre fizeram coisas assim durante um século, os Bouchards.”
Ele estava totalmente perplexo. Não era natural que Henri não soubesse, que sua aprovação não fosse obtida de início nessa espantosa
transação. Desde o princípio fora convicção de Peter que o poder da família Bouchard arranjaria a questão. Quem ousaria fazer fosse o que
fosse na família sem o consentimento de Henri?
Contudo Henri estava olhando Christopher, com aquela fria e aterradora firmeza, mesmo enquanto dizia:
— Concordo em que é um absurdo. — Espichou-se na poltrona, como para levantar-se.
Christopher estava calado. Mas sob as pálpebras abaixadas os olhos pareciam os de uma serpente.
“Por que o implacável, o monstruoso Henri se importaria, desde que estivessem garantidos grandes lucros? — pensou Peter.
— A menos que tenha outros planos?...”
Então Henri se voltou para Edith e falou, tranquilamente:
— Como está Galloway se comportando com esse seu braço? Afinal é mesmo artrite?
Edith se sobressaltou. Fitou o irmão, estupidificada. Seus lábios finos estavam lívidos. Passou-se um bom momento antes que pudesse
responder:
— Não. Não é artrite, graças a Deus! Uma entorse. No tênis, há alguns meses.
De repente seus olhos escuros ficaram nublados de lágrimas. Levantou-se, relanceou um olhar para Celeste e Annette, que também se
levantaram:
— Meninas, vamos empoar o nariz —•disse.
Peter também se ergueu. Tremia tanto que se sentia extremamente doente:
— Têm de desculpar-me — murmurou. E saiu da sala.
Depois que as mulheres se foram, Henri ficou silencioso enquanto era servido o porto e acesos os cigarros.
Depois olhou para Christopher e disse:
— Você é um mentiroso acabado. Eu sempre soube disso. Ainda não sei se está mentindo. Você pode decepcionar até a mim.
— Sua mão se fechou sobre um pequeno saleiro. Os olhos descoloridos estudavam Christopher à luz dos candelabros, e havia algo de
amedrontador em sua expressão parada. — Espero que não esteja mentindo. Seria muito mal para você se estivesse. Sabe disso.
Christopher corou, e sua fisionomia se tornou diabólica de raiva e impotência. E de medo, pensou Antoine. Contudo, mais que qualquer outra
coisa, sua humilhação pelo modo de falar de Henri e suas maneiras o envenenavam.
— Duval-Bonnet é minha — disse, num tom neutro. — Quero que se lembre disso, Henri. Eu a fiz; eu a construí; eu a possuo.
— Interessante! — sublinhou Henri, com um sorriso. — Esqueceu que possuo trinta e cinco por cento do estoque? — Chupou o cigarro um
momento, tirou-o da boca, olhou-o com profundo desgosto. — Fora disso, posso arruiná-lo, você sabe. Posso fazer bom trabalho em arruinar
alguém. Qualquer pessoa. Em poucos meses seria muito perigoso que o Governo soubesse a respeito dos aviões e do processo de
fracionamento. Ouvi dizer que Leavenworth é um lugar muito desagradável... Mais tarde, se estivermos em guerra, não posso imaginar se
esquadrões de fuzilamento não serão usados.
A impotente humilhação de Christopher fez com que inchassem todas as veias em suas têmporas:
— Por Deus! Será você idiota o bastante para dar ouvidos aos disparates daquele imbecil? Aceita a palavra dele contra a minha? — Afastou
da mesa a sua cadeira. Agora estava fora de si. — Você sabe o que ele é. Mesmo assim, tem a audácia de ouvi-lo, a estupidez! Conhece as
tolices que ele escreve. E sabe o que ele anda procurando. Sabe tirar proveito de tudo, mentiras e meias verdades e outras idiotices. Ele não
dirá nada, não fará nada. Olhe, mande um investigador a Duval-Bonnet. Que ele faça todas as verificações a respeito de Brouser e
Schultzmann. — Deteve-se, quase chocado em sua cólera reprimida: — Tenho recursos pessoais. Se esse idiota publicar alguma calúnia, eu o
processarei. Arrancarei dele até o último níquel.
Henri estava silencioso. Por trás da ampla fronte ele pensava rapidamente. De repente começou a sorrir. Mas Antoine lhe viu os olhos, e fez
uma careta para si mesmo...
— Por que toda essa agitação? — perguntou Henri. Empurrou a cadeira de junto da mesa. — Esqueçamos tudo isso, está bem?
Ergueu-se. Christopher e Antoine também. Haviam esquecido Armand, que estivera a observá-los, fascinado e horrorizado. Seu rosto papudo
era cor de toucinho. Não se levantou: não podia. Apenas podia estar sentado em sua cadeira, as mãos apertando a bendita lista.
— Esquecer? — perguntou Christopher, glacialmente. — Fácil dizer. Acha que posso esquecer tão facilmente as suas ameaças? Suas
desprezíveis ameaças?
Henri estava imperturbável:
— Não ameacei levianamente. Não sou um tirano, espero. Apenas quero as coisas se processando de modo correto. Apenas desejo saber o
que está acontecendo. E existem certas coisas que não me agradam. Espero que essas “mentiras” não sejam uma delas.
Pôs a mão no ombro de Christopher:
— Sempre que tiver um plano em mente, faça-me saber, está bem? Assim ficaremos todos satisfeitos. Mas os planos, tenho certeza, não
incluirão deixar que os nazistas tenham os projetos dos aviões, os processos de fracionamento, e a borracha sintética. É tudo. Vamos ao
encontro das senhoras, para ver se têm algo de mais interessante para conversar?
Afastou-se deles. Christopher e Antoine se olharam. Nem sequer relancearam um olhar ao paralisado Armand, sentado ali como uma massa
informe. Antoine ergueu as sobrancelhas jocosamente para Christopher que, derrotado e furioso, lhe devolveu o olhar.
Christopher não falou. Porém lenta, lentamente começou a sorrir. Tocou no braço de Antoine, e os dois seguiram Henri até o terraço. Antoine
principiou a sussurrar musicalmente, boca fechada.
Christopher pensou:
“Tenho de escapar imediatamente. Preciso ver se consigo pegá-los numa ligação interurbana...”

Capítulo 14
Celeste gastou uma exaustiva meia hora com Peter, antes de conseguir convencê-lo a ir para a cama. Ele estava muito excitado, confuso e
veemente.
— Digo-lhe que existe algo por aqui que não compreendo! — gritou ele. — Foi esta manhã... e agora à noite. Há alguns anos atrás, eles eram
perfeitamente óbvios. Mas, e agora? Dizem não querer guerra. Acredito. As coisas vêm seguindo um padrão. Hugo trabalhou para invocar a
Lei da Neutralidade contra a Espanha, quando foi Secretário Assistente de Estado. Pode-se pensar que ele se oporia a que... Sei que, por
natureza, os Bouchards seriam fascistas. Porém nunca desdenharam lucros, e oportunidades para estimular guerras. Têm sido muito ardentes
a respeito de nacionalismo, com um propósito. Mas aqui há coisa... — Calou-se, e uma total expressão de horror se fixou em seus olhos, ao
olhar para a esposa. — Estou pensando na França... — sussurrou, em voz chocada.
Celeste lhe deu uma dose forte de sedativo:
— Nesse andar, em breve não estará mais pensando em nada, magoando-se com especulações desse tipo — falou a moça. — Espere até se
haver recuperado de todo, querido.
— O que anda Henri perseguindo? — ele continuou, infatigável, sem sequer a ouvir. — Posso perceber que eles têm medo dele. Ele os
governa como um ditador. Que será que estão tentando esconder dele?
— Estou certa de que você está imaginando coisas — comentou Celeste, maciamente, abanando-se com o lenço.
A noite estava opressiva, quase insuportável. Ela ergueu um pouco os braços, como para ajudar-se a respirar. De repente, sentiu-se sufocada
por sua tristeza, sua prisão, sua desesperança. Peter ameaçava ter uma noite má. Ela não podia ir a parte alguma, não podia escapar ao
menos por algumas horas, quando uma fuga se tornara a mais exigente necessidade de sua vida. Se Peter ao menos dormisse uma ou duas
horas lhe seria possível vaguear pelos gramados, sentar-se quietamente sob alguma grande árvore, ficar só. Relanceou o olhar para o relógio:
quase dez. Havia estado quase uma hora tentando acalmar Peter — que insistia em falar, em confusão e desespero. Annette já devia ter-se
recolhido. Armand se fora às nove e meia, Christopher e Edith aceitaram um convite para a noite, e Antoine se lhes juntara. Sem dúvida Henri
teria saído também. O casarão estava cheio de calor e sussurrante calma. Deveria estar lindo no jardim, com a curva prateada da lua acima
das árvores.
Porém Peter, com suas terríveis preocupações, não lhe via o rosto cansado e o brilho fixo de seus olhos. Discutiu com ela quando insistiu em
ajudá-lo a ir para a cama. Por uma ou duas vezes até lhe empurrou as mãos pacientes. Ela, porém, apertou os lábios firmemente e recusou ser
posta de lado, recusou ouvir. Quando ele já estava na cama, ela não lhe trouxe o bloco de escrever e a caneta. Ao tocar nele, sentira seu calor
febril. Por fim, foi obrigada a chamar a enfermeira Tompkins, que chegou com um sorriso profissional e, após rápida olhadela em Celeste, seu
rosto fundo e cansado, pô-la para fora do quarto.
— Eu lerei para o Sr. Bouchard — prometeu. — dormir logo. Inválidos em recuperação são, muitas vezes, irascíveis. — Afofou os travesseiros
de Peter: ele a olhou furiosa e desesperançadamente.
— Que deverei ler para o senhor?
— Nada. Apenas vá embora — ele respondeu, com fatigada rudeza. — Tenho coisas a dizer à Sra. Bouchard.
A enfermeira sacudiu o dedo para ele, brejeiramente:
— Ora, estamos sendo muito mauzinhos... — Ele a olhou com desgosto. — A Sra. Bouchard está muito cansada. Está uma noite desagradável,
muito quente. Não devemos sobrecarregar a mocinha, devemos?
Pela primeira vez Peter olhou para Celeste e a viu.
Ela hesitou, e tornou a aproximar-se da cama:
— Talvez fosse melhor que eu lesse -para o Sr. Bouchard. Não tenho nada mais para fazer, e ele prefere que seja eu quem leia para ele.
Peter estava silencioso. Via o quão esgotada ela estava. Via que se tornara muito magra, e que sua palidez luminosa se reduzira a branca
exaustão. Havia escuros entalhes em seus olhos. Ele se encheu de medo por causa dela, e de remorso. Obrigou-se a sorrir.
— Não, minha querida. Vá, e descanse. Estarei perfeitamente bem.
Estendeu para ela a mão quente e trêmula, e ela a pegou. Ele a beijou demoradamente. E pensou:
“Eu a estou matando! Sou teimoso e egoísta. Espero demais dela. Fiz dela minha criada, minha audiência, minha escrava, minha confidente. É
demasiado! Porém, quem mais eu tenho?”
Ele estava esmagado por sua solidão, por sua desolação. Agora se sentia muito doente outra vez: recostou-se nos travesseiros e fechou os
olhos.
Celeste deslizou pelo silêncio da casa, até o terraço. Estranho como seu coração palpitava com uma dor tão sufocante e tamanho desalento...
Ficou de pé no terraço por um momento, contemplando os escuros e murmurantes gramados. Soprava um vento através dos topos das árvores
indistintas, porém nenhuma brisa na terra, que deslizava com uma luz pálida e espectral que não podia provir da fina orla da lua. Tinha o céu um
curioso palor, contra o qual os pontudos cimos de choupos distantes oscilavam em negros contornos. As estrelas estavam turvas, embora não
houvesse nuvens a tocar a curva brilhante da lua... e o aroma da grama, das rosas e das folhas — como marés, avançando e recuando em
direção de Celeste e para longe dela — pressagiava tempestade. Por vezes, contra o escuro e fantasmagórico céu, as plumas dos salgueiros
se sacudiam e se acalmavam como as saias gigantes de uma bailarina, e às vezes o silencioso lampejo de um relâmpago iluminava algum
inquieto pano de fundo de folhagens.
Celeste sabia que no roseiral havia bancos de ferro pintados de branco, onde se podia sentar sob as árvores. Começou a caminhar pelo
gramado. Subitamente os grilos principiaram um coro vociferante, e do lago dos lírios — mais longe, à sua esquerda — veio a resposta
abaritonada dos sapos-bois. Pirilampos se arremessavam a seus pés, e havia o roçar espectral de asas minúsculas junto dela. O vento vinha
chegando mais perto da terra: ela lhe sentiu o hálito quente em suas faces úmidas. Erguia mechas de cabelo de sua nuca, enrolava-lhe nas
pernas as saias finas. Mas não esfriava ou refrescava.
As rosas estavam em plena e luxuriante floração, e ela viu a mancha confusa de sua brancura ao crepúsculo, e lhes aspirou a poderosa
fragrância. Descobriu um assento debaixo de uma árvore e se recostou, dominada pela fraqueza. Porém era belo não ouvir vozes, e saber que
ali não havia ninguém a não ser ela mesma. A noite, o silêncio, o coro dos grilos, o profundo murmúrio misterioso das árvores, o súbito lampejo
do relâmpago silencioso, o isolamento e a paz, o ar dá noite solene e mística, lhe proporcionavam calma e proteção.
Ela ousava pensar tão raramente... Mantinha seus pensamentos severamente controlados, rechaçando-os como se rechaçam cães raivosos a
chicote. Quase sempre receava ficar só, por causa desses pensamentos. Mesmo quando pensava, apenas permitia a seus pensamentos que
se tornassem meras sombras de emoção, recusava-se a enfrentá-los.
Ao sentar-se ali, no escuro, disse a si mesma:
“Estou velha. E, de certa forma, não me importo. Não me interessa se vivo ou morro. Não existe nada para mim, absolutamente nada no mundo.
Devo compreender, por fim, que Peter não viverá por muito tempo. Tenho de enfrentar isso. Como o aceitarei? O que será de mim depois?
Terei uma vida vazia e inútil. Estou esgotada. Não existe mais nada em mim. Nada para consolar e preencher as horas e dias e noites sem
fim... Nada que importe, nada.
Agora via tudo claramente. Perdera a capacidade de sentir agudamente. Uma inércia entorpecedora a penetrava. Ergueu as mãos e as
contemplou à luz crepuscular. Estavam vazias e inúteis. Não tinha desejos de enchê-las. De repente o vazio dessas mãos lhe parecia parte de
sua própria alma. Essa total falta de desejar era semelhante à morte. Não podia sentir no coração ou na mente nada que pudesse inspirar vida
ou alegria, prazer ou utilidade. Ela era formada de uma névoa sem consistência. E nessa névoa havia um núcleo de dor e de tristeza. Ela se
afastou de si mesma como nos afastamos de uma pesada exaustão, doente e cheia de aversão.
Todos esses anos havia ajudado e mimado Peter, e vagueado pelo mundo com ele. Até recentemente fora una com ele em seu terror,
indignação e desespero. Fora seu eco. Agora não era sequer um eco. Simplesmente não se importava mais. Desejava deitar-se, apertar-se de
encontro à terra, morrer, esquecer! Pois sabia que ainda não ousava pensar, que, se realmente se permitisse pensar, seria destruída — e
outros com ela. O núcleo de dor e tristeza nela começou a arder, a tornar-se incandescente como uma ameaça de fogo resplandecente e
destruidor.
Sentiu lágrimas involuntárias nas faces, mas não as enxugou. Anos atrás, sentara-se assim, solitária na noite, e tudo fora para ela o distante
trovão da promessa, a promessa de sua vida. Era então jovem, ardente, apaixonada... E inocente e estúpida. Estupidamente ávida de viver.
Podia relembrar como se sentira, como a memória de um sonho. Esse vento, a obscura riqueza da noite, embora sinistra, essa onda de
perfume de rosas e a fragrância da grama, eram antes recordações do que acontecimentos presentes.
“Vejo, mas não sinto, como é belo!” citou para si mesma. Sentou-se, não no presente, mas em uma recordação do passado. Nela mesma havia
apenas um caos sem som, o nada informe.
Como poderia alguém suportar os infindáveis anos futuros de uma vida, sentindo apenas a lembrança da emoção, sentindo somente o perfume
das lembranças de uma esperança morta, nada experimentando a não ser recordações de acontecimentos passados? Fosse o que fosse que
acontecesse no mundo de amanhã não tinha significação para ela, nem dor, ou sequer terror. Ela seria um fantasma neste mundo, apenas
desejando a morte, impassível ante qualquer catástrofe. Já estava morta.
A dor tornou-se imensa!
“Mas não sou velha!” — ela gritou para si mesma, silenciosamente, nos últimos frenéticos movimentos de desespero ante a ameaça de
dissolução. Devia haver uma promessa de alegria no futuro ou, pelo menos, a promessa de uma vida ativa, de apaixonada insegurança.
Contudo, mesmo quando pensava isso, não se importava.
O vento nas árvores aumentou como uma multidão de vozes roucas e sinistras. Ela ouvia. Ouvira vozes assim com Peter, outrora, também num
jardim escuro e uma noite escura, e elas a haviam excitado. Havia-se agarrado a ele e virado o rosto, corajosamente, para as vozes,
desafiando-as. Agora, elas apenas vagamente a aterrorizavam. O relampejar ficara mais forte, e misturado ao vento havia o eco surdo do
trovão que se aproximava. Porém o brilho da lua não diminuira. Agora o aroma da grama e das flores estava asfixiante, enquanto as folhas e as
pétalas eram agitadas com crescente agitação.
Ela olhou para a casa. Escondia-se entre as árvores, menos uma janela distante, que brilhava com uma luz amarelada. Seria a janela de Peter?
Levantou-se a meio do banco, levada pelo velho hábito de correr para ele quando não podia dormir. Mas enquanto se levantava, apagou-se a
luz. A enorme mansão, agora, não era sequer uma sombra na noite.
Ela permaneceu ali, sob as árvores, as mãos caídas aos lados do corpo, fisionomia imóvel. Não se moveu. Não tinha desejo de dar nem um
passo.
Houve um ruído perto dela. Virou a cabeça nessa direção. Talvez um esquilo insone, ou uma serpente, ou um sapo saltador. O ruído chegou
mais perto e ela teve a sensação súbita e inexplicável de que alguém se aproximava dela, embora nada visse. Algum instinto fora das
primordiais fontes de instinto fez com que ficasse perfeitamente imóvel, aguçando os ouvidos, os olhos tentando varar a escuridão. O ruído
cessou. Porém a sensação de haver alguém perto dela era mais aguda que nunca.
Sabia, também, que aquele que ali estivesse sentira a presença dela e estava precavidamente silencioso, “sentindo-a” na atmosfera. Seu
coração disparou, como com medo. Mas isso era absurdo! Algum criado, talvez, incapaz de dormir na noite quente. Ou talvez um assaltante.
Mas Robin’s Nest era rodeada de altos muros, e patrulhada por dois vigilantes com cães.
Ela estremeceu violentamente quando uma voz abafada disse:
— Há alguém aí?
Era a voz de Henri, calma e baixa como sempre, embora vivamente interessada.
Celeste não se moveu. Mas de repente uma labareda a envolveu, de modo que se sentiu incandescente, ardendo na escuridão, tão visível
como uma coluna de chamas. Seu coração começou a pulsar tumultuosamente. Súbito, a inanimada confusão da noite, todos os sons sem
sentido, toda a pesada inércia e espantosa deformidade, tomam um significado selvagem e universal, tornam-se tão próximos e estrondosos
como ressacas tempestuosas. Ela se tornara o núcleo da voragem, e todos os seus sentidos eram presas de tumulto. Experimentava uma
consciência de si mesma como jamais lhe acontecera, bem como consciência de tudo a respeito dela própria.
Não poderia haver falado mesmo que o quisesse. Só podia permanecer ali, vergastada por ventos poderosos. Um lampejo de luz iluminou o
céu e revelou a sua presença ali, no côncavo da árvore, imóvel, tão imóvel como o tronco da árvore atrás dela.
— Celeste! — exclamou Henri, com genuína surpresa. Agora estava escuro novamente. De súbito o vento cessou, embora ainda houvesse
turbulência nos ramos mais altos das árvores. Como um sopro quente percorreu o gramado. O trovão murmurou bem longe, no espaço. Celeste
mais sentiu do que viu Henri se aproximando. Agora, via-lhe a silhueta escura na obscuridade.
Forçou-se a falar, e era fraca sua voz:
— Está quente! Saí para refrescar-me.
Ela se moveu, então, sem se dar conta de que dera um passo em direção a ele. Foi um passo involuntário, e suas mãos se ergueram como
conchas numa onda, depois caíram. Todo o seu corpo era também como uma concha, frágil como um sopro. Parecia-lhe estar sonhando. Se
Henri percebeu isso ou não, não deu a menor indicação. Apenas ficou ali a olhá-la, contemplando o branco oval de seu rosto.
— Sim — falou, calmamente. — Está quente. Também saí para ver se posso respirar um pouco de ar fresco.
Chegou mais perto dela:
— Não vai entrar agora? Vamos sentar-nos um pouco. Acho que vem aí uma tempestade. É possível que refresque. A casa está como uma
fornalha.
Ela se viu sentada no banco novamente, com ele ao lado. A doçura de um sonho, misturada com um terror inominável, aumentava dentro dela.
Estava ficando languidamente entorpecida, e sem resistência. Viu um pequeno raio de luz na escuridão. Henri abria a cigarreira e a estendia
para ela. Com dedos quase insensíveis ela tirou um cigarro. Quando ele o acendeu para ela, a chama a cegou de modo que fechou os olhos
momentaneamente. Ele lhe viu a brancura das pálpebras, a palidez, o vago colorido dos lábios. Acendeu o seu cigarro, recostou-se no banco, e
fitou a escuridão.
— Já quis instalar ar condicionado aqui, mas parecia tolice já que sempre vamos para fora veranear — comentou ele, no tom de voz mais
casual e indiferente. — Mas acho que farei isso.
Ela ouvia a voz, porém não as palavras. Agora, tudo nela era forte quentura e pungência, um langor e uma estranha palpitação que pareciam
provir do próprio ar. Ela tremia. Ela nada se perguntava, não pensava em nada, estava apenas sentindo. Respirou profundamente.
— Sim — murmurou. As pontas acesas de seus cigarros pareciam vaga-lumes na quente escuridão. Seus lábios formaram palavras, e ela as
ouviu vagamente, como se ditas por uma estranha: — Annette já foi dormir?
— Sim, há muito tempo. E Peter?
— Estava inquieto, e o deixei com a enfermeira Tompkins. Vi que sua luz já se apagou.
Ele lhe ouviu a voz, e percebeu seu tom sonhador. Não respondeu. Ficaram ali em silêncio. A respiração de Celeste se tornava cada vez mais
difícil. Transpirava muito. Estava cheia de emoção, o sangue lhe cantava nas veias e havia um prolongado rugido em seus ouvidos. Porém não
desejava mover-se. Apenas queria sentir-se assim, para sempre, nunca mais se mover, apenas sentir...
— Acho que ele está muito melhor — comentou Henri por fim, quietamente. — O descanso lhe tem feito bem.
Aumentou a confusão de Celeste. Obrigou-se a compreender as palavras de Henri. De quem falavam? Peter! Ela ali se sentava, rigidamente,
sentindo-se mal, com uma espécie de choque. Agora estava totalmente cônscia de si mesma, de Henri, e cheia de um terror mortal. Fez um
movimento, como para levantar-se, e ele lhe pegou o braço — embora parecesse não ter feito qualquer movimento. Ela sentiu o forte aperto de
seus dedos, que desceram lentamente e lhe pegaram a mão. Sua própria mão tremia e queimava!
— Não! — ele disse. — Fique comigo por alguns minutos. De que tem medo?
Ela estava sem fala, coração intumescido:
“Se fico — ela pensou — cairei. Certamente fraquejarei!”
— Não tenho tido um minuto a sós com você — falou ele, ainda lhe agarrando a mão firmemente. — Afinal de contas, somos parentes, sabe
disso. Você é minha hóspede, porém mal a vejo, indo ou vindo. Como um fantasma.
Ela não pôde falar. Podia sentir o doce e pesado langor a percorrê-la e tentou resistir:
— Há tantas pessoas a visitar... Estive longe por muito tempo.
— Tempo demais — disse ele, gentilmente.
Soltou-lhe a mão. Imediatamente uma tremenda desolação caiu sobre ela, uma sensação de perda, aguda e dolorosa. Ele se estava inclinando
para diante, mas distante dela, cotovelos nos joelhos, a mão calma levando o cigarro aos lábios.
— Lembra-se do dia, há muito tempo, quando você veio aqui pela primeira vez, e todos passeamos no roseiral? — ele perguntou. — Isso foi
quando Edith e eu viemos para casa. O velho Thomas estava conosco, então: morreu na Flórida, quando estava com Edith e Christopher. Era
uma tarde quente quando a vi pela primeira vez. Você chegou com sua mãe e Christopher, e não passava de uma garotinha. Foi em julho de
1925?
— Creio que sim — ela murmurou. Sua mão ainda sentia o aperto que já não estava nela. Seu coração estava devorado por uma fome
estranha.
Ele riu maciamente:
— Uma menininha! Com um chapéu enorme e de vestido branco. Você até usava fitas azuis! Que romântico era o Chris, naquele tempo... Eu
nem podia acreditar que você existia, quando a vi. Ele devia guardá-la sob uma redoma. Você era, também, inacreditavelmente linda! —
Deteve-se. — Você mudou, Celeste. Não é só por estar mais velha. É algo mais.
“Devo ir-me daqui! Imediatamente!” — ela pensou. Mas não se mexeu. Sentia a força e o poder dele, embora estivesse tão quieto, e isso a
mantinha imóvel. As emanações de seu corpo e sua personalidade eram como pesadas cadeias nos braços e pernas dela, que não podia lutar
contra elas.
Então ela sentiu, mais do que viu, que ele se estava voltando para ela:
— O que foi, Celeste? Que lhe aconteceu?
Ela juntou e apertou os dedos e falou quase incoerentemente:
— Fiquei mais velha, foi isso. Já não sou uma criança. Não sou, mesmo, muito jovem. Deve-se permanecer a mesma?
Ele ficou silencioso por alguns minutos. Ela lhe sentia os olhos nas sombras de seu rosto.
— É alguma outra coisa — ele repetia, por fim, e ela estremeceu ao som daquela voz na escuridão. — Você possuía uma qualidade de frescor
e simplicidade, de fé e de força. Isso se foi. Lamento muito.
Ela não respondeu. Havia em torno deles um silêncio pesado, a não ser pelo vento. Até os grilos se haviam calado. Um longo ribombar à
distância. Um cheiro sulfuroso passou pela grama invisível.
— Devia ter casado comigo — disse ele, e seu tom era casual, bem leve.
Agora ela pôde mover-se. Gritou:
— Não deve dizer isto! Não deve repetir isto, nunca...
E nada mais pôde dizer. Mas sua garganta se apertou, lágrimas lhe saltaram, correndo-lhe pelas faces. O coração estava estrangulado em seu
peito.
— Por que não? — perguntou ele, sensatamente. — Afinal de contas, agora já não importa. — Deteve-se. Tornou a pegar-lhe a mão,
apertando-a. — Agora não importa mais, importa?
Ela tentou puxar a mão, depois rendeu-se:
— Não... — sussurrou.
— Conseguimos o que queríamos — falou Henri, em tom divertido. — Você, Peter. Eu, Annette. Somos muito felizes agora. E satisfeitos.
Deveríamos parabenizar um ao outro.
— Não! — ela tornou a gritar, como se numa dor insuportável.
— Por que não? É verdade, não é?
Arrancou a mão da mão dele. Por um momento cobriu o rosto com as mãos, apertando-as contra os olhos. Estava doente de pura angústia.
— Lembra-se do dia em que me mandou embora? — perguntou o homem, gentilmente. — Cheguei, e você me entregou meu anel. — Ficou
silencioso por um momento. — Então, fui embora. Mas você ficou me espiando, pela janela. Vi seu pobre rostinho lá, enquanto me
encaminhava para o portão. Por que ficou me olhando, Celeste?
Ela retorceu as mãos, torceu o lenço:
— Como vou saber? Foi há tanto tempo... Talvez eu estivesse triste... triste por tê-lo magoado.
Porém ele replicou impiedosamente:
— Eu sei por quê. Era porque você realmente me amava, Celeste. Soube disso, por fim, não é? Não era o Peter que você queria, na verdade.
Talvez se tivesse convencido de que o queria; era o que ele dizia, tão novo e único, que fascinava sua pobre ingenuidade. Ele era um herói.
Combatia os dragões Bouchards. Você não gostava da sua família. Todos a aterrorizavam, a faziam sentir tola, pequena e inferior. Peter os
combateu: era um herói! E tão romântico! Eu não era romântico, receio bem.
A voz dela tremia, mas agora estava dura como ferro:
— Não deve falar assim. É estúpido. Muito estúpido. Você é injusto. Sempre foi injusto, Henri. De qualquer modo, que importa isso agora? Foi
tudo há muito tempo. Eu era apenas uma criança. Nada mais importa agora. Palmilhamos um longo caminho. Já não somos jovens.
Contudo, ele disse, como se ela não tivesse falado:
— Você era boa e doce e tinha um peculiar tipo de “virtude”. Então Peter a atraiu. De certo modo, talvez você tenha realmente se importado
com ele. Porém era a mim que amava. Sempre amou. — Após um momento, acrescentou: — Sempre amou. Mesmo agora. Por isso é que tem
medo de mim, Celeste?
O terror a dominou. Pôs-se de pé. Ele também, porém muito mais vagarosamente. Ela o encarou e gritou:
— Não tenho medo de você, Henri Bouchard! Sabe o que penso de você? Penso que é um covarde. Um trapaceiro! Se não fosse, não me
falaria assim! Não tem vergonha? Não pensa em...
—- Annette? Em Peter? — Ela estava trêmula e aterrorizada ante a súbita mudança na voz dele, que se tornara rouca e brutal: — Posso dizer-
lhe algo a seu próprio respeito, Celeste? É uma idiota. Está agora com mais de trinta, mas ainda é uma mocinha romântica, cheia de sonhos
idiotas. Quando ouve a verdade, se intimida e encolhe-se, delicadamente. Não gosta da verdade, gosta? Deixe-me dizer-lhe algo mais: eu a
desprezo.
A voz dele e suas palavras a chocaram tão profundamente que ela não podia mover-se, nem falar: podia apenas fitar o contorno do rosto dele
acima do dela, na escuridão que se tornava mais espessa.
— Sim — disse ele — eu a desprezo. Você não é o que eu pensava. Nunca pensei que fosse uma mentirosa, especialmente que mentisse a si
mesma. Pensa ser nobre e honrada quando mente assim, não é? Toda lealdade, e orgulho, dedicação e dever. Você pensa: “Que seria do
mundo se renunciássemos ao dever, ou fôssemos desleais, ou encarássemos a verdade?” Pois deixe-me dizer-lhe que princípios como os
seus tornaram o mundo doente. Isso foi que fez do mundo o que ele é. A loucura sentimentalista de pessoas como você fez mais para emperrar
o progresso que qualquer outra coisa que possa nomear. Digo-lhe que tem de encarar a verdade e viver de acordo com isso. Se o mundo tem
de sobreviver, terá de encarar a verdade.
O choque ainda lhe fazia vibrar a came. Gritou desdenhosamente:
— E você, Henri Bouchard, pensa que encarou a verdade?! Não sabe que eu sei o que você é? Realmente pensou que eu era tão cega, e
idiota, e estúpida, que não soubesse? Disse que me despreza. Bem, deixe-me dizer-lhe que sei que você é um mentiroso, um charlatão, um
malfeitor, um embusteiro em escala colossal. Você é um canalha, Henri. Um animal. Quando o mundo se livrar de pessoas como você, será um
lugar melhor, um lugar mais limpo e mais seguro... — Deteve-se, sufocada pela raiva e impotência.
Porém mesmo nessa impotência e nessa raiva tornou-se cônscia de que ele a ouvia atentamente e chegara mais perto dela:
— Sim? Quem lhe disse todas essas coisas? Peter?
— Você pensa que estivemos cegos todos esses anos na Europa? — ela gritou, amargamente. — Não sabe que Peter tem estudado,
entrevistado pessoas, lido, pesquisado?
E então ouviu-o a rir incontrolavelmente. Ela parou de súbito.
— Oh, Deus! — ele exclamou. — Se isso não é a mais maldita podridão! E você o tem arrastado pelo mundo, ouvindo isso, fielmente gravando
as idiotices dele! Eu tinha ideia de algo assim. Mas não imaginava toda a extensão da coisa...
Agarrou-lhe a mão e puxou-a de encontro a ele violentamente:
— Você é uma tola, Celeste.
Ela ainda tentou lutar, porém ele segurou-lhe o rosto e beijou-lhe brutalmente os lábios. Tomou-a nos braços e a beijou repetidamente até deixá-
la atordoada e cega, sem nenhuma resistência.
Com as mãos ela lhe empurrava o peito:
— Solte-me! — gritou, por entre os dentes cerrados. Seus joelhos, porém, estavam fracos demais. Se ele a tivesse soltado ela cairia. Seus
lábios ardiam como fogo.
— Não! — disse ele suavemente, beijando-a mais uma vez.
— Não a soltarei nunca mais! Você nunca desejou que eu fosse embora. É uma impudente, não é, querida? Eu a tenho observado nestas
últimas semanas: sabia que bastaria ir ao seu encontro... e você cederia. Você também sabia disto. Eu a toquei e logo cedeu. Bastante
simples, não é?
Ela lhe agarrara os braços, para empurrá-lo, mas suas mãos perderam a força. Explodiu em lágrimas, quando ele a segurou. Ele inclinou a
cabeça e juntou sua face à dela, embora ela tentasse afastar o rosto.
— Deixe disso, querida! — falou ele, com grande ternura.
— Desculpe-me ter-lhe dito essas coisas. Mas precisavam ser ditas. Eu soube de tudo a esse respeito. Não sabe o quanto a amo, Celeste?
Não sabe que nada importa a não ser você? Há coisas que eu gostaria de fazer, mas iriam magoá-la. Assim, teremos de esperar. Não, não
esperar pelo amor. E não esperar demais, por outras coisas. Já esperamos muito tempo. Tenho muita paciência, caríssima. Mas não demais.
Alisou-lhe os cabelos, murmurando ao seu ouvido. Apertou o rosto contra o dela. Ela era toda angústia, toda desdita, vergonha e resistência.
Mas subitamente foi dominada por uma alegria delirante. Sem ser por sua vontade, agarrou-se a ele, devorada pela ânsia e pelo primeiro
desejo que jamais sentira. Seus lábios floriram e amaciaram sob os dele, e os olhos se arregalaram fitando as estrelas, que se encolheram e
faiscaram em pontos de luz. Vento, árvores, o trovão e o distante rumor da tempestade em formação cantavam, exultantes, com paixão atávica
e êxtase! Ela sentiu o giro da terra sob seus pés, e sua selvagem rotação lhe invadiu o corpo quando ele a ergueu nos braços e a carregou
para a escuridão que estava quente, clamorosa e impenetrável... e cheia de vozes harmoniosas ...
Christopher e Edith estavam sentados no calor sufocante do enorme salão, todas as lâmpadas acesas. Ouviram a tempestade em formação
que, embora a chuva ainda não houvesse chegado, sacudia as janelas com um som subterrâneo.
Silenciosa e triste, Edith enxugava os olhos. Christopher se mantinha imóvel. De tempos a tempos, olhava o relógio.
— Não compreendo! — comentou, em sua voz neutra. — Disseram que ela não saiu. Pelo menos, não mandou vir o carro. O mordomo a viu no
terraço, há mais de uma hora, sem chapéu. Teve a impressão que ela ia dar um passeio. E ninguém sabe onde está Henri. Também ele não
saiu agora à noite.
Edith suspirou. Depois disse, cansadamente:
— Está uma noite quente. Talvez estejam aí fora, nos gramados, juntos, tentando tomar um pouco de ar fresco.
— Sem dúvida — respondeu Christopher.
De repente, ele se pôs de pé e se dirigiu a uma das janelas, que refletia cada uma das luzes. Um relâmpago lhe iluminou o rosto, que parecia
uma máscara de gesso, descarnado e mau, encovado e abatido sob as faces ossudas. Estava de costas para Edith: ela apenas via o contorno
de seus ombros, porém sentia nele algo de violento e reprimido.
— Acha que deveríamos sair e procurá-los? — perguntou Edith, agitada. — Afinal de contas...
Christopher ficou calado por um momento. Depois falou, sem se voltar:
— Não. Estarão aqui logo. Onde poderiam ter ido?
— Receio... por Celeste — comentou Edith, levando novamente o lenço aos olhos. — Seria terrível para ela, Christopher. Ela e Adelaide são
tão unidas... Ela nunca se perdoará.
Christopher se virou e então ela lhe viu o rosto: num medo súbito, levantou-se a meio da cadeira. “Seria possível — pensou — que ele tivesse
uma secreta afeição por sua mãe, que isso fosse assustador para ele? Aquela palidez de gesso, o brilho apagado dos olhos, eram alarmantes
para ela. Ou (e esta seria a explicação mais lógica), se preocupava por Celeste, temeroso de sua grande tristeza...”
Contudo, havia algo no olhar dele que era incongruente com a sua suspeita de sentimentos mais brandos — algo que aumentava seu temor
instintivo e sua confusão.
— Christopher, o que é? — gritou involuntariamente.
Ele não a ouviu. Estava à escuta. Ela virou a cabeça e também se pôs a escutar. Ouviu abrir-se a porta do terraço, mas não ouviu vozes. Agora,
havia apenas silêncio. Edith permaneceu no centro da sala, perto do marido, e o coração começou a palpitar-lhe exageradamente. Christopher
lhe agarrou o pulso, e tão inesperado e desagradável foi esse aperto que ela quase gritou. Ele não a olhava: fitava a grande arcada vazia da
sala. Depois empurrou-a para trás, de modo que ela quase caiu na poltrona, e ele se encaminhou para a arcada tão silenciosamente como uma
pena flutuando. Ela o via ir, como na névoa de um pesadelo.
Viu-o parar rigidamente no limiar, ao chegar ali. Porém ela não via o que ele viu: Henri e Celeste apertados um contra o outro no silencioso
abandono da paixão, à sombra da escada. Edith queria ir até o marido, enquanto ali estava vendo o que ela não podia ver, mas algo no rígido
contorno dos ombros dele, a esculpida imobilidade da cabeça descarnada, a segurou em sua cadeira.
Christopher pensou, com brilhante claridade: “Cadela!”
Não poderia obrigar-se a mover-se ou a falar. Apenas podia observar e sentir dentro de si uma seca desintegração, um vento pulverulento de
ódio, acompanhado de traiçoeiras punhaladas de amargura e de dor. Misturada a isso, uma horrível espécie de humilhação e aviltamento
pessoal.
Em toda a sua vida ele amara apenas uma criatura com ternura e completa pureza, com absoluta doçura e gentileza. E fora a irmã, Celeste,
que desde o nascimento fora de seu exclusivo encargo. Mesmo quando ela casara contra a sua vontade, e fora para longe por tantos anos,
nunca a esquecera por um momento sequer, e desejara a sua volta com uma espécie de desespero frio. Sempre a considerara diferente e
acima das outras mulheres, algo de puro e intocável, vestida de castidade, integridade e nobreza que nada poderia destruir. Esse foi seu
sentimentalismo, sua ingenuidade e, agora, sua vergonha, sua degradação.
Há muito tempo sabia que Henri Bouchard nunca desistiria de Celeste, não importando o quanto tivesse de esperar. Porém Christopher, com
uma curiosa simplicidade, acreditara que Celeste é que resolveria o período de espera e lhe imporia os limites. Esses limites seriam a morte
do marido e o divórcio de Annette e Henri.
Durante esses últimos meses ele, Christopher, vivera numa espécie de vácuo abafado de indecisão, dúvida, e obscura ansiedade. Tudo
dependia do que transpirasse entre Henri e Celeste, do que fosse decidido por sua irmã. Agora, enquanto ficava ali, devorado pelo ódio mais
terrível, a raiva e a humilhação própria, tomou sua decisão. Sua degradação não diminuiu, apenas aumentou pela confirmação de que fora um
ingênuo e um tolo sentimental, um sentimental vitoriano. Só lhe restava a vingança. Pensou:
“Ela não é melhor que qualquer outra. É suja e corrupta, torpe e nojenta. Rendeu-se facilmente, sem sequer lutar.”
Em outro homem, esses pensamentos o divertiriam, e lhe forneceriam comentários jocosos sobre a simplicidade e o absurdo da natureza
humana. Não achou nada de engraçado em si mesmo.
Pensou:
“Agora, sei o que fazer! Devo ir a ele e matá-lo! Gostaria de mostrar-lhe o que sei!”
Mas não ousou fazê-lo. Não ousou deixar que Henri Bouchard sequer soubesse o que ele havia visto.
Então, não fora suficiente para Henri Bouchard tê-lo humilhado, a ele, Christopher, catorze anos antes, tê-lo despojado e degradado diante de
toda a família, tê-lo traído publicamente e o destruído, e tê-lo enviado para um virtual exílio. (E depois, triunfante, Henri se apoderara do poder
dos Bouchards, que Christopher cobiçara tão maligna e incessantemente: como Napoleão, pusera a coroa na cabeça com as próprias
mãos...). Não, isso não fora o bastante para ele. Não fora o bastante até apossar-se de Celeste e a desgraçar, sob este teto que abrigava o
irmão e o marido dela! E o irmão ali estava, sofrendo a humilhação final, a mortal impotência.
Bem fundo no redemoinho, Christopher estava cônscio do quente núcleo de dor, que não podia analisar, apenas sentir.
A concentração de seus olhos, a violência das emoções que estavam quase a destruí-lo, devem ter chegado à consciência de Henri Bouchard,
pois ele ergueu a cabeça e a virou na direção de Christopher.
Por alguns instantes os dois homens se fitaram num silêncio intenso. Então Henri, gentilmente, afastou Celeste.
— Sim? — falou ele, quietamente, com aquela forma direta, brutal que sempre intimidava os outros. Celeste, agora, permanecia ao lado dele,
nos olhos uma expressão remota e agreste. Os cabelos estavam desgrenhados, uma massa de cachos negros a rodear-lhe as faces e o
pescoço.
“Cristo!” — pensou Christopher, olhando-a. Sentiu um impulso de correr para ela e esbofeteá-la até que ela caísse.
Edith apareceu na arcada. Adiantou-se um ou dois passos, primeiro relanceando os olhos para o irmão e depois para Celeste. Então seu rosto
comprido ficou vermelho.
Mas disse à perturbada Celeste:
— Celeste, temos más notícias. Voltamos... há poucos momentos. E havia um recado. Sua mãe sofreu um derrame cerebral, em casa de
Emile. Você deve ir para lá, imediatamente. — Deteve-se, e as lágrimas começaram a correr, com raiva obscura. — Esperamos por você.
Celeste você deve ir imediatamente!

Capítulo 15
Henri relanceou os olhos para o relógio: três horas. Recomeçou o inquieto caminhar acima e abaixo na sala clara e vazia, estranhamente
brilhante e silenciosa nessa manhã. Os grilos já não trilavam no gramado quente; a lua crescente deslizara para trás das grandes árvores. Fora
breve a tempestade: passara com a mesma rápida violência com que viera, deixando apenas o fresco e apaixonado aroma da terra e da
folhagem embebidas de água.
À uma hora, Christopher telefonara brevemente, da casa de Emile, para avisar que Adelaide Bouchard, sua mãe, acabara de falecer, após um
ou dois momentos, apenas, de consciência. Henri pretendia informar Annette, neta de Adelaide, imediatamente? Não, replicara Henri. Não
havia necessidade de incomodá-la. Isso iria apenas chocá-la e perturbá-la. Melhor deixar que ela soubesse pela manhã, depois de uma boa
noite de descanso. Nesse ínterim ele, Henri, esperaria a volta de Christopher, Edith e Celeste. Não estava cansado em absoluto — replicou
impacientemente, ante a sugestão de Christopher de que fosse para a cama. Ele próprio teria ido para a casa de Emile, não fosse o receio de
que Annette acordasse e notasse a sua falta, ficando alarmada. A todo momento ia até a porta do quarto verificar se ela ainda dormia. Ouvindo
isso, Christopher sorriu enigmaticamente para si mesmo e desligou, depois que Henri tardiamente lhe apresentou seus pêsames pela morte da
avó de sua mulher, e que era sua tia.
Henri, que raramente fumava, só o fazendo em companhia de outros — e que era conhecido por seus hábitos de precisão e de higiene —
enchera vários cinzeiros com pontas de cigarros nas últimas horas. Ele as olharia com nojo ao encontrá-las, como se feitas por um estranho
não dotado de boas maneiras, mas acenderia outro cigarro, que fumaria inquietamente. Sentava-se, às vezes, passando os dedos pelos
cabelos que ainda não estavam grisalhos, mas de aparência descorada, e ficava olhando fixo diante de si. Pensava em Celeste, mas também
pensava em muitas outras coisas.
Há muito descobrira que os pensamentos podem ser anormalmente agudos nas primeiras horas antes da aurora. As sobrancelhas retas se
juntaram em grande concentração.
Não era seu costume ficar remoendo ideias, saborear em retrospecto frutos já comidos, nem vinho já bebido o embriagava. “Deixe-o pegar o
que for capaz; deixe-o segurar o que puder” — sempre fora a sua filosofia de vida, e continuava sendo. Amanhã devia visitar Jay Regan, o
envelhecido, mas ainda poderoso financista. Agora isso era impossível. Mesmo ele não poderia omitir as amenidades necessárias após um
passamento. Estava aborrecido. Adelaide não poderia haver morrido em ocasião mais inoportuna. Não era hábito do Sr. Regan enviar
convocações secretas a qualquer de seus amigos, a menos que pressagiasse algo de grave, algo iminente e da mais profunda importância.
Por uma vez, Henri estava perplexo. Especulou sobre a comunicação de Regan, e amaldiçoou a pouca sorte da morte de Adelaide. Uma pobre
velha apagada, insignificante, que devia ter morrido anos atrás! Ela havia distorcido, praticamente arruinado várias vidas com sua maldita
nobreza. Quanto mal o bem pode fazer!
Henri refletiu que há em todos os homens uma sede de poder, porém nos “bons” a ânsia é maior que nos “iníquos”. Mais ainda: o iníquo pode
por vezes deter-se a instâncias da razão, mas os bons são sem razão. Portanto, são os mais destrutivos, os mais perigosos. Ao homem mais
iníquo falta uma completa convicção; os bons são impudentes devido a isso. O que acontecera naquela noite foi o resultado, a longo prazo, da
“bondade” e nobreza de caráter de Adelaide. Tornou a franzir os sobrolhos. Esperava que Celeste não reagisse de maneira ridícula à morte da
mãe. Se o fizesse, tornaria a coisa um pouco mais difícil para ele. Mas era só. Ele gostava que os acontecimentos se dessem de modo
ordenado e progressivo, e consequentemente fossem arquivados para futura referência. Tê-los regurgitando desordenadamente dos arquivos e
todos espalhados era desagradável e irritante para ele. Durante os catorze anos do casamento de Celeste, nos quais a vira muito de longe em
longe, não fizera qualquer tentativa para chegar a ela. Aguardara a hora apropriada, quando o ato pudesse realizar-se, e ficasse como alicerce
para acontecimentos futuros. Nesses anos tivera de consolidar sua posição. Nem mesmo por Celeste teria arriscado essa posição. Agora,
quando tudo estava a salvo e seguro, movimentara-se para apoderar-se dela. Seria muito aborrecido se ela outra vez se tornasse
temporariamente inacessível. Isso tomaria tempo, e tempo, agora, era muito importante para ele, e não devia ser desperdiçado com uma
mulher tola que teria de ser novamente seduzida. Por um momento pensou em deixar de persegui-la. Por que não a deixar ir em sua loucura e
simplicidade? Ele tinha coisas mais importantes para absorver sua atenção.
Sempre lhe fora absolutamente inacreditável que homens poderosos fossem frequentemente destruídos por sua ânsia por uma simples mulher,
ou, por vezes, apenas mulheres. Isso o espantava. Não podia pensar em qualquer ocasião em que sua paixão por Celeste fosse irresistível a
ponto de fazê-lo desviar-se de questões mais importantes e cometer disparates por causa dela e perder a cabeça.
“Como um cão libidinoso” — pensou, enojado. As mulheres eram as recompensas do poder, as recompensas finais. Apenas isso. Mas na
América adolescente (que, em meio à sua própria adolescência já estava podre) a recompensa era considerada a única coisa de valor. Essa
era a influência das mulheres, que acreditavam que os traseiros que se empoleiravam nos joelhos daquele que se sentava no trono eram mais
importantes do que o trono. Por Deus! O mundo estava cheio de traseiros vorazes, e realmente havia homens que se apoderavam de um deles
e se deixavam arrumar durante sua preocupação! Seu nojo aumentou.
Se seu interesse por Celeste a qualquer momento ameaçasse pô-lo em perigo, então a deixaria ir-se. Sempre soubera disso. Embora, a tal
pensamento, fosse dominado por um desânimo assustador. Tornou a levantar-se e recomeçou o inquieto caminhar abaixo e acima. Não havia
razão para deixar Celeste. Apenas era irritante que pudesse ter de começar tudo de novo exatamente quando era mais importante que sua
mente se ocupasse em coisas mais relevantes. Devia levar as coisas de sua vida particular a um clímax muito em breve. Tinha confiança em si
mesmo, em que poderia manobrar sua vida privada sem pôr em perigo o que era principal em sua vida: o poder.
Estava tão preocupado que ficou completamente espantado ao ver que Edith, Christopher e Celeste haviam voltado. Foi ao encontro deles.
Celeste não chorara — ele notou, após o olhar penetrante que lhe lançou. Seu rosto parecia de mármore branco, e os olhos estavam
arregalados e brilhantes. Estava muito quieta. Olhou para ele cegamente, como o faria uma estátua, e parecia não saber o que fazer. Edith
tinha um braço em volta dos ombros da jovem mulher. Ela, mais do que Celeste, dava sinais de tristeza, pois tinha as pálpebras inchadas.
Christopher, muito pálido, era impenetrável como sempre.
— Bem? — falou. Olhava Henri, sem a menor expressão.
— Sinto muito — disse Henri, olhando apenas para Celeste. — Porém ela já estava muito velha. Temos de lembrar-nos disso.
Por que Celeste olhou para ele daquele jeito? Ele franziu a testa.
— Acho — disse Christopher à esposa — que será melhor que você leve Celeste para a cama.
— Venha, querida — falou Edith para Celeste. — Você está tão cansada...
Então Celeste abriu muito a boca, e ainda olhando para Henri falou como uma sonâmbula, numa voz alta e sem vibrações:
— Não posso esquecer o que ela disse. Disse que devo ir-me, imediatamente. Foi exatamente antes de morrer. Falou: “Afaste-se daquele
homem mau, vá para onde ele não possa alcançá-la, e matá-la. Em nome de Deus, vá embora e nunca mais torne a vê-lo!”
Depois de dizer isso, ela ficou ali, rígida como uma estátua, fitando-o com o cego azul brilhante de seus olhos.
Um rubor passou pelo rosto carrancudo de Henri. Christopher sorriu disfarçadamente, e tocou os lábios com os dedos ossudos e delicados.
Edith se sentia muitíssimo embaraçada.
Henri olhou lentamente de um para outro, percebeu o sorriso de Christopher e a fria raiva de Edith quando ela encontrou os olhos dele. Ele
apertou os punhos. Abaixou a cabeça como um touro e as narinas se lhe dilataram. Isto era ridículo, humilhante. Virou-se para a irmã, dizendo
secamente:
— Leve-a para a cama.
— Sim. Não se deve recordar o que diz um moribundo — comentou Christopher, acenando de cabeça para Edith. — Ela não sabe o que está
dizendo.
— Devo ir embora... — falou Celeste arrancando-se do aperto de Edith e afastando-se deles, um súbito desespero estampado no rosto. —
Devo ir-me imediatamente! Vocês podem ver isso, não podem? — Agora sua voz já se transformara em grito, e ela torcia as mãos
ruidosamente.
— Está histérica — disse Christopher, friamente. Segurou o braço da irmã e falou alta e claramente: — Vá para a cama, Celeste. Quer que eu
chame o médico para que a faça dormir como qualquer outra mulher idiota? Comporte-se. Você já não é uma criança.
Ela o encarou, branca e trêmula, e tentou retirar o braço do seu forte aperto. Porém ele a agarrava firme.
— Você não compreende... — falou Celeste num tom de mágoa tão agoniado que os olhos desumanos de Christopher estranhamente se
adoçaram. Ela ergueu a mão para o irmão num gesto patético: — Nunca o esqueci. Não podia esquecer. Fiquei fora, fugi, durante anos e anos.
Era terrível! Não havia nada que eu pudesse fazer, a não ser ficar longe. E então voltei... e então houve ontem à noite... — Ela se deteve e
gritou, numa voz cheia de dor: — Você não sabe a respeito de ontem à noite! Foi quando eu soube que fora inútil toda aquela fuga, que eu não
poderia ficar afastada dele! Que devo fazer? Christopher, diga-me o que fazer!
Apesar de sua tristeza, Edith estava nauseada:
— Que cena! A família sempre foi conhecida por suas suculentas cenas de família, porém esta é a mais revoltante! Celeste, não se
envergonha? Não sabe o que está dizendo? Por favor, Chris, ajude-me a pô-la na cama imediatamente, antes que os criados ouçam e venham
bisbilhotar!
Voltou-se para o irmão e disse:
— Bem, diga alguma coisa! Não fique aí como a imagem de um touro prestes a atacar! Que fez a ela? Oh! Deus, mas é uma desgraça!
— Concordo com você — disse Henri, calmamente. Ainda estava vermelho. Foi até Celeste e falou, em voz dura e penetrante: — Não
aconteceu nada. Você está histérica, minha cara. Vá para a cama. Teve uma noite difícil e não é responsável pelo que diz, mas, pelo amor de
Deus, tente controlar-se!
Ao som de sua voz ela tremeu violentamente. Ficou rígida, mas tremendo, ainda segura pelo irmão. Relanceou os olhos para Henri, numa
espécie de horror de pesadelo. Depois, de repente começou a chorar, as lágrimas correndo como um rio.
— Henri — disse, alquebrada, e deu um passo em sua direção. Christopher a soltou. Ela ergueu as mãos para Henri e ele as pegou bem
gentilmente, tentando controlá-la com o poder de seus olhos.
— Sim, querida — falou, suavemente — eu sei. Vá para a cama. Descanse. Falaremos a este respeito em outra hora.
Mas Celeste murmurou, lábios trêmulos:
— Ela disse que devo afastar-me de você, Henri. Você sabe que não posso fazer isso. Nunca mais. Henri, por que não morro? Por que voltei?
Mas você queria que eu voltasse, não queria?
Henri estava silencioso. Edith recuou alguns passos com uma expressão de desdenhosa aversão e um embaraço ainda maior. Porém
Christopher observava atentamente. Via que Henri e sua irmã, o haviam esquecido bem como a Edith. Então Henri concordou:
— Sim, Celeste, eu queria que você voltasse.
Puxou-a para si, e ela descansou a cabeça em seu ombro. Ele lhe acariciou a cabeça gentil e ternamente. A violência do choro dela começou a
diminuir quando se agarrou a ele, com mãos desesperadas. Quando ele a beijou, ela se achegou a ele mais e mais, os cachos negros a cobrir-
lhe os dedos fortes.
Edith olhou para o marido, que parecia muito calmo, e falou:
— Bem, eis uma coisa bem vergonhosa, devo dizer. Uma linda cena. Chega-se a esquecer, claro, que Annette e Peter estão lá em cima
dormindo como cordeirinhos. Isto não é nada bonito, sabe. Elegante, fino e romântico! Acho que é apenas sujo, sórdido e repugnante. Lavo as
minhas mãos quanto a toda essa coisa!
Ergueu a cabeça escura, endireitou os ombros, e caminhou para fora do quarto. Christopher sorriu, e depois ficou em silêncio, observando a
irmã e Henri. Agora a moça estava mais calma, soluçando baixinho, enquanto Henri lhe murmurava ao ouvido palavras inaudíveis para
Christopher, embora este se esforçasse para captá-las.
Outrora ele usara a irmã para enlear e prender Henri para seus próprios desígnios. Agora — refletia exultante — podia usá-la para destruir
Henri. O basilisco de pedra tinha sua mancha de carne vulnerável, através da qual poderia ser ferido no coração. Christopher esperara por
muito, mas não tanto assim. Sua exultação cresceu até o delírio. Sobre suas feições secas e descoradas passou um relâmpago de luz
assassina.
Henri estava aos poucos se liberando do abraço de Celeste. Dizia-lhe gentil e lentamente:
— E agora, deve ir para a cama e descansar. Sabe disso, não é?
Ele olhou em torno, buscando a irmã. Ela se havia metido no vestíbulo, ao lado da sala, e esperava ao pé da escada, pálida e carrancuda. Ele
levou Celeste como uma criança até Edith, que esperava e observava, boca cerrada, olhos cheios de desdém.
— Ela irá agora. Ponha-a na cama — ele disse e, ante seu olhar implacável e sem expressão, ela sentiu o velho medo dele, e tornou a pôr o
braço nos ombros de Celeste. Henri observou as duas mulheres a subir lentamente a escada; depois voltou para a grande sala iluminada onde
Christopher ainda esperava.
Christopher abriu a cigarreira e ofereceu, casualmente:
— Cigarro?
Henri o fitou como se em dúvida sobre o que era isso, depois aceitou. Christopher o acendeu para ele, acendeu um para si mesmo. Falou:
— O enterro é quinta-feira. Uma pena que minha mãe não tivesse morrido antes de chegarmos lá. Viveu o tempo exato para ver Celeste. Deve
ter esperado por ela. A pobre menina passou o diabo!
Henri sentou-se e olhou diretamente para Christopher com aqueles olhos descorados, que haviam recuperado seu antigo fulgor:
— Quem mais ouviu? — perguntou abruptamente.
— Só Celeste, Edith e eu. Só éramos admitidos em grupos de dois ou três para ver a velha senhora. Isso foi bom. Não que alguém mais
houvesse entendido. Provavelmente pensariam tratar-se de Peter. — Riu silenciosamente.
Henri olhou o cigarro, atirou-o fora:
— Sente-se — comandou.
Sob os altos malares de Christopher houve um leve colorido. Em todos esses anos nunca se acostumara — como acontecera com os demais
parentes — às ordens ditatoriais de Henri. Seu ódio venenoso lhe trouxe à boca um gosto metálico. No entanto, sentou-se. Podia esperar,
aturar, um pouco mais
Fora, os pássaros haviam dado início ao seu coro matutino. O vento começava a soprar. A leste, o céu ia vagarosamente ficando acinzentado.
Henri acomodou-se em sua poltrona, as mãos descansando nos braços dela, e olhou o cunhado em longo e meditativo silêncio.
Havia em seus olhos um desprezo divertido, compreensão? Nunca se podia dizer, com esse formidável bastardo. Intimamente contorcido em
sua impotência, Christopher dificilmente podia conter-se. Havia em seu desamparo uma voluptuosa qualidade, de modo que de súbito se sentiu
fraco e desgraçado. Porém seu ódio era mais maligno que nunca.
Esperou. Seguramente, o suíno deve dizer algo, fazer algo!
Mas Henri apenas disse, com um sorriso peculiar:
— Posso oferecer-lhe minhas condolências pela morte de sua mãe?
Christopher estava silencioso. Henri é que esperava. Estudava a máscara da face de Christopher, agora enigmática e fechada. Tornou a sorrir.
Levantou-se com a habitual facilidade e calmamente saiu da sala.

Capítulo 16
Jay Regan sentou-se na vasta e sagrada obscuridade de seu escritório, como uma catedral, e observou Henri Bouchard caminhar firmemente
pelo soalho escuro e polido em sua direção. A grande secretária de mogno era como um espelho escuro diante do velho gordo, tão poderoso e
tão sombrio, e lhe punha reflexos bruxuleantes no grande rosto cansado de bigode aparado, quase branco. Atrás dessa secretária, nessa
obscuridade, ele era quase invisível, porém mesmo Henri ficou impressionado. Esse poderoso bucaneiro das finanças parecia, em sua idade,
não bravo, não aventureiro, mas um poder que, ao erguer a mão, poderia fazer impérios em pedaços, ao mero som de cuja voz profunda e
calma os cabeças de parlamentos mundiais se voltariam para ele, como hipnotizados. Aí estava o verdadeiro imperador do mundo, o real
ditador. Hitlers e Mussolinis, com todas as suas trombetas e estilo bombástico, devem, no fim, ouvi-lo e agachar-se diante dele.
Porém ele estava velho, agora, aproximando-se da morte. Durante todos os anos em que Henri o conhecera, nunca sentira nele uma ânsia de
poder, ou exultação por possuí-lo. Era uma força simples e natural, sem prazer aparente pelo conhecimento de que o terror e a ruína podiam ser
invocados por ele. Nem jamais fora uma força espetacular, uma força teatral e dramática, amando publicidade e um cortejo de servidores.
Sempre que se movimentava, era em abissal silêncio e obscuridade, e só a longa reverberação de um terremoto, afastando-se do silencioso
centro dele, dava provas de que o Titã se havia mexido ou falado. Haveria lampejos de significativos relâmpagos na imprensa; haveria Comitês
Congressionais, ou reuniões em escritórios semelhantes a este, em Wall Street, ou uma reunião dos milhares de membros da Associação
Americana de Industriais, ou presidentes conferenciariam e políticos procurariam acordos. E, longe, na Europa, na Ásia, na América do Sul os
ventos começariam a mover-se inquietamente ao sopro do terremoto, e brancos palácios de Governo zumbiriam como colmeias, e as portas
de bronze da Bolsa, do Reichsbank, do Banco da Inglaterra, dos bancos da Itália, Romênia, Hungria, Escandinávia captariam fagulhas
amarelas de luz solar quando abrissem e fechassem numa atividade febril. Mas sempre ele se movia por trás de um muro de sombras, em
silêncio aveludado, e nem mesmo o ouvido mais aguçado ouviria o eco maciço de seu passo através das colunatas do mundo.
Esse o homem que puxara os cordões do títere Mussolini, e insuflara em seu peito de madeira o verdadeiro sopro da vida. Em 1927 esse
miserável contorcionista e impostor, esse pequeno charlatão, esse desprezível ator de terceira classe, esse paranoico com ilusões de
grandeza chegara ao ponto de colapso, ridicularizado e escarnecido por seus próprios realísticos compatriotas, que, amando a verdadeira arte
e adorando um ator de verdade, achavam seus gestos e sua voz absurdos e ridículos, sem o menor traço de arte. Os italianos perdoam
qualquer coisa enquanto se tratar de arte, e um homicida com graça e destreza, boa voz e maneiras, pode inspirar-lhes admiração e aplausos.
Aplaudiriam um Bórgia, se envenenasse com classe e tivesse uma cortina apropriada para sua manga quando levantasse uma dramática mão
para deitar veneno numa taça recamada de pedrarias, e mostrasse certa grandeza heroica de perfil. Eles amavam a ênfase sobre a graça, a
ressonância de um período bem burilado, num mundo que sabiam ser insensível e frequentemente sem beleza. Porém esse charlatão perverso
não tinha esplendor, nem beleza. Sequer sabia representar. Se um homem não fosse dotado da verdadeira apreciação do gesto elegante, não
tivesse consciência de que uma frase deve ser completada com certas ricas entonações, nenhuma sutileza de atitudes, então era sem valor, e
muito provavelmente um idiota.
Sua “marcha sobre Roma” interessara os vivos e inteligentes italianos, com sua adoração pela arte apropriada. Isso reviveu lembranças das
entradas de César, com pajens, trombetas, bandeiras vermelhas contra o ardente céu azul, a marcha pesada de cavalos brancos e o brilho de
capacetes ao sol, a luminosidade captada na ponta das lanças daquela imortal claridade da luz italiana, o trovão dos vitoriosos pés blindados.
Por algum tempo, o interesse deles permaneceu. Mas logo reconheceram que esse César era fictício, ridículo, um louco sifilítico, e que mesmo
sua perseguição a mulheres não tinha classe, era apenas o bamboleio de um Pan velhusco correndo atrás de costureirinhas. Ele os punha
doentes. Os que o apoiavam, os grandes industriais e financistas da Itália, estavam consternados. Exibiam seu César cada vez mais à
populaça irreverente e escarninha, pondo-lhe à cabeça um absurdo fez com borlas, inventando para ele uniformes aparatosos, ensaiando-o em
seus discursos, descobrindo para ele mais e mais beldades com que coabitar publicamente, ataviando suas coortes com púrpura e ouro e
armando-as de espadas cinzeladas. Aumentou o divertimento dos italianos. O Affaire Mussolini se tornou, para os civilizados romanos, a
invasão dos sonhos de grandeza de um camponês — e sentiam-se insultados.
“Má ópera”, diziam, balançando a cabeça. Para um italiano, “má ópera” era o crime supremo, sem perdão.
Jay Regan compreendeu tudo isso. Onde a arte não podia engodar, disse, o dinheiro poderia ser usado como uma clava. Foi naquele
portentoso março de 1927 que ele emprestou cem milhões de dólares aos fascistas emboscados por trás de Mussolini, e os espantados
italianos descobriram que, “má ópera” ou não, esse maligno ator de terceira categoria estava sobre eles com uma adaga equilibrada, e os
constrangia não só a observar seus nojentos desempenhos como a aplaudi-los, também. Eles o viram pavonear-se no cenário da História, e
ficaram nauseados por sua voz roufenha, sua falta de técnica, sua ignorância mesmo das mais elementares atitudes da verdadeira arte. Deram
de ombros fatalisticamente e foram cuidar da sua vida, esperando que o desprezo universal em breve aquietasse esse portador de lança para
sempre.
Mas o portador de lança, que deveria ter mergulhado no olvido a mando do povo italiano, tinha amigos não tão amantes da arte quanto esse
povo. Tinha Mr. Regan, na América. Tinha o Banco da Inglaterra, e o silencioso movimento de mãos de ouro voltadas para ele. Tinha os
banqueiros da França, que odiavam o seu país. Mas não tinha a Alemanha. A República Germânica o observava com alarma e tristeza, e seus
confusos protestos se perderam nos gritos violentos dele, no sapatear dos seus pés chatos. Os alemães não tinham muita certeza a respeito
do que protestavam, exceto que seu instinto, sempre tão elementar e primitivo, cheirava perigo. Alguns condescendiam em explicar que, para
eles, Mussolini era realmente valioso. “Ele fez os trens italianos correrem no horário” — disseram, com solenes acenos de cabeça.
“Porém — indagou um grande liberal alemão, a quem Mussolini nunca perdoou, e mais tarde foi torturado até à morte num campo de
concentração nazista, a mando do charlatão — o que têm a ver os trens no horário com o espírito humano, com o esclarecimento humano, com
a liberdade humana?”
Tamanha ignorância, estupidez tão ingênua, foi devidamente ignorada. Os alemães continuaram a perguntar, e ninguém respondeu. Nesse
ínterim, o heroico fundo da História carregou a atitude e a sombra arrogante de um lunático criado e mantido por uma centena de mãos
secretas que o manipulavam. E essa sombra aumentou, e aumentou, e as espadas que a seguiam não eram espectrais, porém feitas de aço
forjado na América, na Inglaterra, na França.
Por fim, mesmo aqueles alemães que, sob certas circunstâncias, tinham um olhar apropriado para a pontualidade de trens tiveram seu próprio
problema, e temporariamente esqueceram Mussolini, pois outro charlatão, que nem sequer usava um fez com borlas, nem tinha o esplendor de
uniformes para recomendá-lo, erguera a voz roufenha em seu próprio meio. Havia, na Alemanha, um amor pelo que fosse de estatura heroica,
por capacetes, pelo clangor de espadas, pelos Nibelungen, por pés alados e blindados, por vozes wagnerianas. Porém esse miserável
homúnculo, esse empregadinho de expressão desagradável, esse sapo saltador nada tinha que o recomendasse, nem sequer o conhecimento
da “má ópera”. Mas possuía uma Voz, e essa Voz ecoou no silêncio de catedral do escritório de Jay Regan, nas austeras paredes do Banco da
Inglaterra, na Bolsa febricitante. O povo germânico ouviu, exausto pelo langor de anos infelizes, e se desviou com hesitante fadiga. Só os seus
inimigos ouviram em seu próprio país, os loucos, os lunáticos, os perversos, os gananciosos, os depravados, e os danados. Porém outros
ouviram e puseram ouvidos atentos através dos oceanos, através das montanhas, através das estraçalhadas fronteiras. E depois de ouvir um
pouco, movimentaram-se — e a vasta maquinaria da destruição começou a ronronar, a elevar um rugido secreto.
Pois o Sapo prometera que mataria o Homem da Barba Vermelha que jazia como um gigante deitado além dos Montes Urais, sempre
observando o mundo dos homens e, em silêncio, afagando sua barba. Ninguém sabia o que o gigante estava pensando, ou o que estava
ponderando. O mundo dos homens podia aturar tudo menos silêncio, e podia ser levado à loucura por ele. Apenas sentiam os ferozes olhos
azuis indo lentamente de nação a nação em meditação profunda, e ficaram histéricos ante a ameaça que acreditavam existir nele. Deixem-no
sair de sua contemplativa imobilidade atrás de suas montanhas — diziam — deixem-no pôr-se ereto como um colosso, e fortalezas ruiriam ao
som de sua voz, e governos se desfariam ao eco de seus passos. Deixem-no andar, e à sua sombra contra o sol os povos escravizados do
mundo se erguerão como uma maré negra e inundarão seus senhores.
Até o momento o Monstrengo era apenas uma voz. Mas logo teve dinheiro. Com as espadas douradas veio um exército de assassinos,
mentirosos e ladrões, vieram longos e mortais sussurros de cada canto do mundo. E o Monstrengo cedo eclipsou um mau ator, embora não
possuísse sequer uma arte própria, mesmo má. O Sapo, com sua voz coaxante, o italiano ensaiador de atitudes que mal podia inabilmente
manejar seu disfarce, se ergueu diante das turbas estupefatas, armadas com espadas forjadas em segredo em outros países. Olharam para o
Homem da Barba Vermelha, guincharam sua desconfiança a respeito dele, e agitaram as espadas em sua direção. E então a Igreja ouviu, a
Igreja que odiava a nova libertação dos homens. Na fresca penumbra das catedrais, na umidade mofada dos pequenos tabernáculos, ergueu-
se uma tempestade de vozes, guinchando, gritando, cheias de veneno, medo e ódio — e ressoaram e ecoaram em todas as nações do mundo.
O Homem da Barba Vermelha era o Inimigo Supremo de governos ordeiros, da lei, da moralidade, do casamento, da autoridade estabelecida,
de Deus, da Bíblia, da virtude feminina, da obediência infantil, do comércio, do pequeno prédio escolar vermelho, e da mercearia da esquina. O
Sapo e o Mau Ator eram Messias gêmeos que protegiam os leitos das boas mulheres, as pequenas contas de Banco, o trabalho, o governo, a
Bíblia de dólar, e a igreja modesta com campanário de madeira.
Começara a sedução do Homem Comum.
A sedução — como os Mestres bem sabiam — não foi difícil. Só se tinha de inscrever a Igreja. Ano a ano, o próprio Homem Comum se
apegara às picuinhas do preconceito, da estupidez, ignorância e medo e ódio e se sentava sobre esse material facilmente inflamável
esperando pela centelha que incendiaria o refugo. A Igreja tinha essa centelha, já preparada e guardada para a hora própria. Sempre, através
dos séculos, tinha ela tal centelha, abrigada por suas mãos sinistras. Acenderam as fogueiras. Por sua luz desvairada, os homens se
convenceram de estar vendo a sombra agachada do Homem da Barba Vermelha, equilibrado para saltar sobre os limites do mundo.
O trabalho estava pronto. O fogo se espalhava. O mundo penetrava em um universo de nuvens carmesins.
Nesse ínterim, o Homem da Barba Vermelha mantinha seu silêncio. Contudo, ele sabia. Começou a mover-se por trás de suas montanhas.
O Povo Comum, enamorado de lendas e de contos de fadas, sempre acreditou que o homem do destino arderia como um cometa a explodir
contra os céus do mundo. Gracejavam, sempre na implicação de que homens do destino se sentavam atrás de secretárias reluzentes em
vastos e calmos escritórios, e falavam juntos em palavras do vernáculo. Quem, entre os distantes italianos, os distantes e aterrorizados
alemães, sabia que seus Césares eram controlados por homens de ternos amarrotados, calças desmazeladas e sem vinco, em Nova York, em
Berlim, em Londres, em Roma, em Paris? Quem sabia que os fogos da destruição ardiam na ponta de bons charutos em mesas de mogno
com pilhas de documentos? Quem sabia que a voz da destruição não vinha dos espaços ressoantes do tempo, mas sussurravam quietamente
em Wall Street, na Bolsa, no Reichsbank, e que com frequência essa voz tinha sotaque inglês ou francês ou americano? Fora-se o tempo dos
heróis. O terror usava paletó e empanturrava uma pança inchada, e usava tônico na cabeça calva.
Nem mesmo a angustiada Espanha pôde despertar o Homem Comum, ou puderam seus gritos atravessar as paredes de sua casa, ou pôde a
claridade de suas cidades incendiadas atingir-lhe as pálpebras entorpecidas.
Assim, quando Henri Bouchard se aproximou do seu velho e poderoso amigo, viu nele todo o enorme e subterrâneo poder que agora ondeava
com força crescente através do mundo. Mas, sentado ali estava apenas um homem idoso e doente, olhos como que emboscados, bigode
branco aparado, mãos quietas, e um sorriso peculiarmente encantador.
Tinha grande predileção pelo homem mais jovem, bem como indulgente admiração. Diante dele, na secretária, espalhava-se uma enorme folha
de papel na qual aparecia algo como uma árvore genealógica. O Sr. Regan estivera estudando esse papel durante horas, mudando-o de lugar
vez por outra. Era na verdade uma espécie de árvore genealógica. No topo aparecia: Bouchard & Sons, e daí se estendiam as múltiplas
subsidiárias controladas por aquela companhia, os nomes dos presidentes e outros funcionários.
Estendeu a mão a Henri, apertando a dele calorosamente:
— Senti muito ouvir a respeito da morte de sua tia. Pretendia assistir ao sepultamento, mas apareceu algo. Recebeu meu telegrama?
— Ela era muito velha — respondeu Henri, sentando-se. — Completamente sem importância. Além disso, essa morte fez com que eu não
pudesse vir vê-lo, conforme havia sugerido.
Sorriram um para o outro. O Sr. Regan esfregou o queixo. Disse, como invariavelmente o fazia ao ver Henri:
— Não posso deixar de espantar-me pela sua semelhança com seu bisavô. Posso vê-lo agora, sentado exatamente onde você está. A última
vez em que veio a este escritório foi quando estava com setenta e cinco anos. Mas ainda potente. Você lhe herdou os olhos.
— E suas outras virtudes, espero — falou Henri.
Sempre se divertia com essas preliminares. Sabia que o Sr. Regan estava sutilmente tentando gravar nele que devia agir como faria seu
bisavô, que devia considerar o que Ernest Barbour teria feito em face de certas circunstâncias iminentes.
O Sr. Regan girou em sua cadeira e abriu uma gaveta, de onde tirou uma garrafa de prata e dois copinhos. Essa era uma cerimônia habitual.
Beberam juntos. O Sr. Regan acendeu um charuto para Henri, que não gostava de charutos. Por trás das pesadas portas entalhadas havia uma
atividade constante, mas nenhum som chegava até ali. As janelas eram tão pesadamente encortinadas que pouquíssima claridade as
atravessava. Portanto surpreendeu Henri quando o grande velho pesadamente se ergueu e foi até uma das imensas janelas, olhando
distraidamente para fora. Espiou, inclinou a cabeça, pareceu muito interessado, depois desinteressou-se. Seu vasto e atarracado perfil
aparecia indistintamente contra a nova luminosidade que invadiu o escritório.
— Ontem — disse por fim — um homem honesto passou pela Street.
— E isso é raro — comentou Henri.
— Muito raro — concordou Regan, com um sorriso. Novamente esfregou o queixo, e continuou a espiar.
— Espera-o agora? — perguntou Henri.
— Infelizmente, não. Mas espero vê-lo com frequência. Na Casa Branca.
Henri ergueu as sobrancelhas, surpreso:
— Não sabia que — mencionou o nome de certo cavalheiro que, fora combinado, seria o próximo Presidente — estava em Nova York! Está?
Gostaria de dar-lhe uma palavrinha nesta viagem.
— Ele não está aqui — informou o Sr. Regan, calmamente. Voltou à secretária, tornou a sentar-se na poltrona de madeira entalhada e veludo.
— Além disso, não é a ele que me refiro. Você o conhece ligeiramente: Wendell Wilkie.
Henri o fitou, genuinamente espantado:
— Commonwealth & Southern! Está brincando, Sr. Regan! — E explodiu numa gargalhada.
O Sr. Regan sorriu. A claridade da janela estava por trás dele, mas Henri teve a impressão esquisita de que havia algo de estranho na face de
gigante.

Capítulo 17
— Não estou brincando — afirmou o Sr. Regan.
— Mas, por Deus! O homem não tem a mais leve noção de política! Ninguém jamais ouviu falar dele, exceto a Street. Não pode estar falando
sério!
— Estou — falou Regan, quietamente. Cruzou as mãos sobre a enorme barriga e se recostou na poltrona. — Sabe, Henri, estou sofrendo do
estômago. Ulceras na barriga espiritual. Por isso o chamei aqui.
Henri mal o ouvia. Estava de olhar fixo, os olhos desbotados a luzir na meia luz. Sua expressão era carrancuda:
— Não Wilkie — falou maciamente. — Um joão-ninguém, no que se refere ao povo. Quem o quereria? Não é homem para nós. Nunca foi nosso
homem.
— Por isso o quero para Presidente — sorriu Regan.
— Não compreendo, Sr. Regan. O homem que escolhemos é o nosso homem. Outro Coolidge; um segundo Harding. Mesmo um eco de
Hoover. Seguro. Temos de consegui-lo. Para o próximo ano. A máquina já foi posta em movimento. — Seu espanto cresceu. Inclinou-se para o
velho amigo: — Ainda não acredito que esteja falando a sério. “Um homem honesto.” Sabe qual a mais recente cotação de Commonwealth &
Southern?
— Sei. Não é culpa de Wilkie, sabe. Ele não criou a TVA.
Henri estava calado. Sentava-se ali, imóvel, a não ser pelo tamborilar de seus dedos fortes nos braços da poltrona. Então disse:
— Minha ignorância é terrível. Poderia esclarecer-me por que está tão apaixonado por Wilkie assim de repente?
Os olhinhos do Sr. Regan começaram a cintilar, mas a expressão era sombria. Tocou a montanha de papelada sobre a secretária:
— Henri, sabe o que é isto? — Com um ágil movimento da mão atarracada empurrou os papéis em direção ao mais jovem, que os olhou
atentamente.
Henri sorriu:
— Sim. Sei. O que isto tem a ver com Wilkie, seu “homem honesto”? E, se é tão danadamente “honesto”, que quer o senhor com ele? Não
temos tido honestidade bastante na Casa Branca desde 1933? Pensei que se havia fartado...
Regan falou tranquilamente:
— Jamais gostei de Franklin, mesmo quando ele era jovem. Por muitas razões. Além disso, ele não é o homem... para os anos vindouros.
Precisamos de mocidade, força e virilidade. Assim... Wilkie é o meu homem.
— O homem para o seu dinheiro? — perguntou Henri.
Regan ficou silencioso por um momento. Olhou o espaço:
— Não — respondeu brandamente — não o homem para o meu dinheiro.
— O Partido não o quererá. Mesmo o senhor não pode fazer isso, contra os desejos de todos. Já decidiram sobre nosso homem, para a
nomeação em junho próximo.
— Está querendo dizer — disse Regan, saindo de uma preocupação na qual caíra momentaneamente — é que desta vez você e os outros não
querem apoiar o meu homem.
— Estou querendo dizer é que já lhe demos ouvido, Sr. Regan — falou Henri maciamente. — O outro era seu homem. Temos estado a
robustecê-lo por suas ordens mesmo de há menos de um ano atrás. Não podemos mudar. Por um capricho súbito e inexplicável.
Regan bateu as mãos na barriga e contemplou Henri por um longo momento:
— Primeiro, falaremos a respeito de uma porção de outras coisas, filho. Depois voltaremos a Wilkie. Que idade tem, Henri? Quarenta e um?
Quarenta e dois? Boa idade. Está no clímax de seu vigor mental e físico. Congratulo-me com você. Henri, você e eu estivemos de acordo no
ano passado... a respeito de certo assunto. Continua de acordo?
ano passado... a respeito de certo assunto. Continua de acordo?
Henri não respondeu. Mordeu levemente o indicador, sem afastar do velho amigo os olhos implacáveis.
— Mudamos nossa opinião, acho — continuou Regan — a respeito de algumas coisas. Henri, qual é a sua posição hoje?
— Sabe qual é. Hitler nos deu um pontapé no traseiro. Descobri isso, eu mesmo. Por isso fui à Europa este ano.
— E...?
— Francamente, e simplesmente... fomos logrados. Somos tolos, Sr. Regan. É uma ideia humilhante. Isso não se ajusta em absoluto à
concepção que tenho de mim mesmo. — E Henri sorriu ligeiramente. — Sabe, em nossas discussões com Hitler, esquecemos a geopolítica
alemã. Esquecemos a geopolítica alemã que por mais de cem anos tem declarado mais ou menos abertamente que a Alemanha pode, e deve
conquistar o mundo. Hitler foi o sonho dos professores do Messias militar, mas um Messias que realizaria a conquista sem guerra ou
derramamento de sangue. Esses professores, e os outros mais brandos, os intelectuais germânicos, acreditavam que a conquista moderna era
através da economia, e pela "superior mentalidade” germânica. Não pode vê-los, em suas bibliotecas bolorentas e laboratórios, em suas
universidades em desintegração, ficando líricos a respeito da robusta ideia de “Força através da Alegria?” Não há nada de que um emaciado e
brando intelectual goste tanto quanto de um flexionar de músculos... em outro homem. Já os vi acariciando tais músculos; um fato. E com
olhares de adoração. Para o casual olho masculino americano, isso seria indecente, vergonhoso; para alguém com conhecimentos
elementares de psicologia, era significativo e nem ao menos homossexual.
— Continue — animou Regan, quando Henri se deteve. O velho grande e gordo inclinou-se para diante, cotovelos na escrivaninha, mãos sob o
queixo.
— Sim, esquecemos a geopolítica alemã, a ideia do Pangermanismo que tem mais de um século de existência. Acredito que os American
Gounding Fathers estavam cônscios disso. Agora, acho isto muito significativo, também. Por que não foi dada publicidade à ideia, exceto para
os alemães? Isso me parece, hoje, a coisa mais importante... essa ideia de Pangermanismo. Negligenciamos a coisa. Pensamos poder fazer
negócios com Hitler. Ou melhor: com os economistas alemães, que sabiam que a guerra significa ruína tanto para o vitorioso quanto para o
vencido, e preferem lucros e mercados a expansão territorial. De modo que os economistas, o Reichsbank, os intelectuais, estavam todos em
um campo entusiástico: conquista sem guerra. Estavam bem a caminho disso, também.
Intelectualismo e economia... eram capazes de dominar a intrínseca psicologia de guerra do povo germânico, nos que eram inteligentes. Porém
havia muitos que não eram inteligentes: a massa germânica, o povo que se esgoelava, cujo protótipo, cujo herói, cujo deus era Hitler. E Hitler,
descobri, não ligava a mínima para a economia intelectual geopolítica.
Regan franziu a testa:
— Receio não estar acompanhando o seu raciocínio, Henri.
Henri deu uma risada:
— Espere um pouco. Não acabei. Como sabe, durante o período 1933-38, houve uma luta interminável entre Hitler e os economistas
germânicos. Hitler organizou cada fase da vida germânica, inclusive indústria e economia. Todos sabemos que a Alemanha não tinha ouro com
que comprar matérias-primas; o pessoal encarregado da estrutura econômica pôs-se em campo para criar o crédito germânico em todo o
mundo. Hjalmar Schacht, o líder e organizador, inaugurou o sistema de trocas. Chegava ao mercado, fosse onde fosse, em que houvesse
excedentes, e comerciava quaisquer matérias-primas que pudesse comprar... fosse café, aço, cobre, etc. Pagava por elas com produtos
acabados, tais como máquinas de escrever, e bugigangas e dispositivos baratos de toda espécie, e inundava outros países com eles,
especialmente a América. Em seguimento a seu comércio, criou e controlou as maiores linhas aéreas da América do Sul, como sabe.
Incidentalmente: Duval-Bonnet, preocupação de Christopher, forneceu a maior parte dos aviões.
“Assim a Alemanha foi capaz de competir em grande escala conosco e a Inglaterra na Europa, e na América do Sul, até que encontramos
vários mercados fechados para nós. Estão ficando muito maus, como sabe. Nós e os britânicos vimos que as coisas estavam ficando
péssimas. Schacht e seus amigos planejaram uma conquista econômica lenta e gradual, primeiro por infiltração e comércio, e segundo, por
verdadeiro controle de finanças. Instaram com Hitler para que tivesse paciência. Acreditavam que gradualmente, através de competição e pela
utilização de trabalhadores alemães e dos países satélites, nos reduziriam a nada. Conquista completa, pois controlariam finanças, comércio e
indústria. Lamuriavam-se de ser um ‘povo sem nada’, para que os idiotas na América e na Inglaterra não ficassem desconfiados, e chegaram a
angariar ampla simpatia entre imbecis e sentimentalistas. Porém durante esses anos nunca ficaram sem matérias-primas... pelo que devem
agradecer a Bouchard e subsidiárias, receio bem. Esperavam tornar-se tão potentes econômica e financeiramente que dentro de quinze anos
a Alemanha não precisaria ir à guerra pela conquista de mercados.
— Ah! — fez Regan, maciamente. — E isso nos deixa... onde?
— Há dois anos — continuou Henri — percebi isso claramente. Ainda não havia dado muita atenção à geopolítica alemã e aos militaristas.
Assim, comecei a reduzir os embarques, para a Alemanha, ou através da América do Sul, para evitar o Tratado de Versalhes, ou diretamente,
por meio de cartéis. A Alemanha poderia, sim, ter certa quantidade de material. Contudo, não a supríamos mais com coisas que poderiam pôr-
nos em perigo, como os mais recentes planos para aviões, processos novos, e uma dúzia de outras coisas. Meu plano era integrar toda a
produção americana, no referente a armamentos; tê-la preparada, aumentar os embarques de armas e materiais para a Inglaterra e a França
através da América do Sul. Um lento e firme desvio do fluxo da Alemanha. Fizemos com que nossos políticos aumentassem na América a
mentalidade para um plano pague-e-leve, que redundaria em vantagem para a França e a Inglaterra. Fizemos planos a longo prazo,
quietamente. Pois víamos o que estava por vir: a Alemanha se apoderaria de todos os mercados e, percebendo a fraqueza militar de outras
nações, as desafiaria a retomá-los dela.
— Continue — insistiu Regan, pois Henri parara por um momento para examinar as mãos, e franzira a testa ao olhá-las.
O homem mais jovem ergueu a cabeça e fixou os olhos inexoráveis no rosto do grande financista:
— Mas o senhor sabe de tudo isso. Já o discutimos antes.
— Mas gosto de uma sinopse — Regan sorria.
— Cooperamos com a Alemanha, nós industriais e economistas da Inglaterra e da América. Porque fomos fraudados por um supercanalha:
Hitler, que não só nos desiludiu como também a Schacht e a todos os demais financistas e economistas da Alemanha. Hitler prometera
proteger o capitalismo germânico, no qual todos estávamos interessados, contra o comunismo e os sindicatos organizados. Ele viria a ser
nosso estado-tampão entre a Rússia e a Europa, o que era muito satisfatório, considerando-se nossas subsidiárias e outros investimentos, na
Europa. Ele protegeria nossos compromissos e investimentos europeus, e nosso controle financeiro lá. De modo que cooperávamos com ele,
agradavelmente. Então, de repente, descobri a verdade!
“Eu achava que um forte controle econômico e financeiro na Alemanha asseguraria a toda a Europa liberdade contra o comunismo, e à
América também. E então li Mein Kampf, e empreendi um sério estudo da geopolítica germânica. Originalmente, como sabe, os antigos
geopolíticos germânicos pretendiam a conquista militar do mundo pela Alemanha. Os modernos geopolíticos a pretendiam pela conquista do
mercado, e a economia. Pensei que a velha ideia estivesse morta. Descobri que estava muito viva.
“Pois subitamente descobri que Hitler desprezava a geopolítica moderna, e Schacht, e todos os professores e intelectuais que odiavam
sangue. Que ele era um anacronismo, um geopolítico militar. Acreditava em cortar caminhos... pela espada. Estava começando a mostrar
grande desprezo pelos mestres financistas e industriais, e agora que conseguira iludi-los, levando-os a ajudá-lo, na Alemanha, na América, na
Inglaterra e na França, era uma força, uma poderosa força militar. A respaldá-lo tinha os Junkers. E tinha a massa do povo alemão, que nunca
poderia entender as sutilezas da nova geopolítica, e queria excitação, assassinatos, força e sangue. Os insignificantes amam a violência. Hitler
era o imperador de todos os insignificantes de todo o mundo, e não apenas na Alemanha.
— Em resumo... — murmurou Regan.
— Em resumo: ele queria guerra. Por sua própria causa. A moderna geopolítica era mais lenta e segura, e tinha como objetivo a completa
subjugação dos mercados e das finanças mundiais. Isso não é bastante para o insignificante. Ele deseja arcos triunfais, percorrer estados
escravizados, trombetas, bandeiras, tronos e coroas... toda a parafernália da lírica conquista militar. Almeja os sinais visíveis da conquista. Não
é bastante para os conquistadores sentarem-se polidamente em Bancos internacionais. Aspira a marchar nas capitais através de um mar de
sangue. Quer ser Deus, não o protetor de banqueiros e industriais e de toda a maquinaria cromo-prateada do grosseiro comércio e dos lucros.
Não haveria exultação entre a massa de insignificantes germânicos se seus próprios banqueiros e industriais pudessem explicar liricamente
que tinham posto a América e a Inglaterra para fora das máquinas de escrever, dos aviões, das fábricas e dos mercados financeiros do mundo.
O que adiantaria isso ao alemão médio em seu miserável escritório, e em sua fazendola? Ele queria outros funcionários e outros fazendeiros
para beijar-lhe os pés, saudá-lo como um super-homem, agachar-se diante dele, servi-lo, enquanto ele os esmagava. Esta é a verdadeira
psicologia germânica, que negligenciamos enquanto perdíamos tempo com Schacht. Este é o animalesco, o irracional espírito germânico: o
ódio por todos os outros homens, o desejo de esmagá-los fisicamente, pisoteá-los, chicoteá-los, torturá-los, matá-los. E isso é o que
enfrentamos agora: o espírito germânico.
— E agora lhe deixaram nas mãos um fino maquinismo econômico ... mais Hitler e o povo alemão.
— Sim. Por isso é que agora me levanto e deixo que alguém me dê um pontapé no traseiro. E imagino que centenas de outros como eu, por
todo o mundo, estão fazendo a mesma coisa. Pois não se pode fazer negócios com Hitler.
— Então, que pretende fazer?
Henri se levantou e vagarosamente palmilhou abaixo e acima a vasta sala. Em seu largo rosto, ora havia luz, ora havia sombras. Seu passo era
pesado. Então parou diante da mesa de Regan, nela pousou as mãos, e falou quietamente:
— Teremos de deixar que a Europa se vá. Hitler atacará em breve. Sabemos disso. Teremos de deixar que a Europa se vá... para ele. Nada
mais podemos fazer. Motivamos isso, todos nós. Mas podemos cortar nossas perdas, e salvar o que pudermos. Na América. Na América do
Sul. Um mau negócio. Mas não temos escolha.
— E como espera realizar isso, meu caro Henri? — Regan sorria tristemente.
— Fazendo-nos fortes demais para atacar. Hitler não nos atacará, quando vir que a luta será demasiado custosa. Mas... não podemos ter uma
guerra. Isso nos arruinará a todos. Será o fim do capitalismo e da indústria como os conhecemos hoje. Será uma revolução econômica interna
na América, bem como um banho de sangue e a bancarrota, se formos à guerra. Nesse ínterim, enquanto recuperamos nossa própria força,
que perdemos através das ideias americanas idiotamente sentimentais de desarmamento, temos de aguentar a Inglaterra e a França, torná-las
fortes o bastante para resistir a Hitler, pelo menos por um pouco de tempo. Não podemos negociar com Hitler. Tampouco podemos ter uma
guerra. Temos de nos tomar bastante fortes para resistir à ideia de fazer negócios com Hitler e aos provocadores de guerras.
Sorriu subitamente, e ergueu as mãos da secretária de Regan.
— Assim — continuou — dei ordens a todas as nossas subsidiárias para que cortassem todos os embarques de materiais para Hitler, e aos
nossos Bancos para que negassem crédito aos alemães. Temos de apressar-nos. Agora, o tempo é essencial.
Regan esfregou o queixo:
— Naturalmente, patriotismo nada tem a ver com isso?...
Henri ignorou isso como uma piada absurda entre eles.
— Fomos enganados — repetiu. — Nosso nobre defensor contra o comunismo, contra o trabalho organizado em todo o mundo, nos chutou
solidamente e está se voltando contra nós. Devíamos ter tido mais inteligência antes de nos meter, e à América, a Inglaterra e a França nesta
maldita confusão. Não tivemos inteligência. Agora, devemos salvar o que pudermos. Fizemos Hitler. Agora ele está a caçar-nos com as
mesmas armas que lhe demos para defender-nos.
Deteve-se.
— Como sabe, durante muito tempo tivemos outro plano, que aparentemente não vai lá muito bem desde Munique. Pensamos em virar contra a
Rússia o militarismo de Hitler. Afinal de contas, pensamos razoavelmente: isso é o que ele realmente odeia, não é? A Rússia? A Rússia era
inimiga dele e nossa. A Rússia, com sua odiosa revolução proletária. Outra forma de insignificância. O despontar do Homem Comum. Temos
de evitar isso. Agora, perdi a esperança de que Hitler deixe a Europa em paz, e ataque a Rússia. Todos estamos nisto.
Houve um longo silêncio na sala, enquanto os dois homens se fitavam sombriamente. Então Regan falou:
— Sabe, acho que isso não vai dar certo, Henri. E que entraremos também na guerra.
Henri bateu com o punho solidamente na mesa:
— Não! — disse, carrancudo. — Não vamos. Não permitiremos isto. Já traçamos planos. Seria a ruína final... para nós. A economia americana
de guerra seria tão colossal que seríamos destruídos. Isso daria a Roosevelt sua mais forte oportunidade de destruir-nos e provocar uma forma
de socialismo na América, na qual nosso atual sistema de lucros, capitalismo e indústria não poderia sobreviver. Nós, “realistas econômicos”,
como ele tão lindamente nos designou, seríamos comandados, controlados, regulados, e postos fora dos negócios. Por isso é que não
podemos ter guerra... para a América. Nossos senhores seriam as massas americanas dos insignificantes, o homem comum, o caixeirinho e o
fazendeiro miseráveis e o camponês das fábricas, bem como os sindicatos vociferantes.
Regan pôs a mão na boca, e falou num tom abafado por trás dos dedos:
— E sua grande família, Henri: qual a sua atitude?
— Eles também não querem guerra. Todos concordamos nisso. Não o permitiremos, nenhum de nós. Contudo... discordam de mim quanto à
ideia de que não podemos negociar com Hitler. Acham que podemos. Tiveram uma ideia inteligente que, confesso, a princípio me atraiu.
Acreditavam há muito tempo que os Grandes Negócios poderiam sair do controle da indústria e das finanças para o atual poder sobre o
destino do povo. Como autocratas benevolentes, estão dispostos a conceder certos privilégios e benefícios às massas, contanto que o poder
supremo seja para eles mesmos na política, para ganhar não só a esfera de influência na América, como o controle internacional da matéria-
prima em todo o mundo: sua manufatura, distribuição e partilha. Em outras palavras, a revolução dos gerentes de negócios. Como eu disse,
isso outrora também me atraiu. Eu não fazia objeção — e sorriu largamente — a ser o ditador econômico de todo o danado mundo.
“Eles, os Bouchards, acreditavam que, acontecesse o que acontecesse na Europa, poderiam fazer um acordo com Hitler. Diziam que ele
simplesmente ‘não se arranjaria sem eles’. Julgam que podemos comprar uma dúzia de Görings. Assim, queriam continuar a suprir Hitler com
tudo que ele quisesse, através de cartéis na América do Sul, e têm vindo formando um sentimento pró-Alemanha, encorajando fascistas nativos
e conciliadores, e andam ocupados com planos para a criação de várias sociedades pacifistas por todo o país. Ficaram incrédulos quando
lhes falei a respeito da antiga geopolítica germânica. Estão obcecados com a ideia de que uma Europa controlada por Hitler é nossa melhor
garantia contra o comunismo na América, ou radicalismo, ou o New Deal, ou sindicalismo. Riram de mim quando lhes disse que Hitler deseja a
conquista militar e física do mundo. Mesmo que o fizesse, argumentam eles, seus inteligentes economistas, financistas e industriais o
controlariam. Assim sendo, desejam manter seu apoio material e financeiro a ele. Ele só quer a Europa, dizem eles. Deixem-no tê-la, com
nossas bênçãos.
“Mas eu afirmo que ele quer o mundo! E vou detê-lo. Porém não pela guerra. Pus freios em nossas companhias. Não estamos vendendo a
Hitler nada que nós mesmos possamos precisar. Estamos guardando nossas patentes e nossos novos e inumeráveis processos... em casa.
— Então, Henri, você e sua família estão resolvidos a ter paz. Mas está determinado a fazer a América forte, de modo que Hitler não nos possa
atacar fisicamente. Não está interessado em desenvolver a América. Acha isso desnecessário?
— Penso que isso está subentendido, Sr. Regan.
Regan ficou muito quieto por um ou dois minutos. Depois disse, de forma quase inaudível, mas com estranha penetração:
— Henri, já lhe ocorreu que sua família realmente deseja que Hitler conquiste o mundo, literalmente, bem como de outras maneiras?
Henri o fitou. Seus olhos claros pestanejaram, atônitos. Não se moveu, porém, suas mãos lentamente se apertaram. Então disse, com o maior
desprezo:
— Ridículo!
— Não tão ridículo, Henri. Vejamos os fatos. Suponha que Hitler não só conquiste a Europa como a nós também. Precisará de fortes homens
nativos da América, homens poderosos, para manter a indústria americana trabalhando e aumentando, suprindo-o do que precisar. Sob tal
sistema, esses homens terão mais poder, sob Hitler, sobre os destinos dos povos americanos do que teriam sob nosso presente Governo
independente. Sim, eles poderiam então negociar com Hitler! Poderiam reduzir o trabalho americano à servidão, produzir uma economia de
senhores e escravos. Senhores não só da finança e da indústria, mas senhores de homens. Sob o domínio de Hitler, claro! Mas isso não
importa muito.
Henri estava silencioso. Então, inclinou-se para a frente e disse, maciamente:
—O senhor não fala sem razão. Sr. Regan. E tem provas, não?
— Tenho, Henri — replicou Regan, em voz lenta e grave.
Ergueu-se pesadamente e foi até um cofre disfarçado na parede apainelada. Retirou um grosso rolo de papéis, que pôs diante de Henri. O
homem mais jovem pegou-os e começou a lê-los rapidamente. Houve um silêncio prolongado na grande sala, quebrado apenas pelo ruído dos
papéis. Regan observava Henri enquanto este lia. O rosto pálido e maciço não mostrava emoção, nem raiva. Estava rígido como uma pedra.
Era a face de Ernest Barbour, toda glacial selvageria e calma sobre-humana.
— Proprietários de jornais, famosos heróis “militares” da última guerra, sacerdotes, mulheres de sociedades pacifistas, escritores que
pesquisam e denunciam casos de corrupção, traidores, mentirosos, idiotas, senadores, políticos, quase-lunáticos, conspiradores, espias; estão
todos aí, não estão, Henri? — disse o velho, por fim, quando Henri lentamente abaixou os papéis. — Conseguiram juntá-los todos
aparentemente organizados, não é mesmo? E não para o bem da “paz”. Não apenas por causa de “negociar com Hitler”, como você
acreditava. E você viu a ligação aí, não viu, com nazistas estrangeiros e fascistas? Não é um quadro muito bonito, hein, Henri?
Henri não respondeu. Mas sua expressão era terrível, tanto mais quanto não expressava absolutamente nada.
— Eles não veem, como você vê, Henri, que o domínio de Hitler sobre a América significa o verdadeiro fim do capitalismo, da empresa privada,
da indústria. Esquecem Thyssen, por exemplo. É o egoísmo deles, Henri — e agora ele bateu as mãos gentilmente na secretária. — Descobri
algo. Somente numa democracia o capitalismo pode florescer, servir a si mesmo, servir ao povo.
Mas Henri apenas disse:
— Então, contra as minhas ordens, estão continuando a suprir Hitler com o que é o nosso próprio sangue! Desafiaram-me.
Levantou-se.
— Estão dispostos a arruiná-lo, Henri — disse Regan, no mais gentil dos tons. — Porque você não joga no time deles. Querem seu escalpo,
Henri. Não há nada que não façam para isso. Estão se preparando para entregar a América a Hitler numa bandeja. E entregarão você também,
provavelmente.
— Mês passado — comentou Henri, relanceando um olhar para os papéis na mesa — embarcaram uma tremenda quantidade de níquel
canadense para Hitler. Quando precisamos de níquel tão desesperadamente... — Ele parou, e sua respiração era rouca.
— E na última semana — falou Regan, pensativamente — seu cunhado Christopher teve um almoço agradável com certos cavalheiros, entre os
quais estava seu cunhado Emile, seus parentes Jean e Nicholas Bouchard, o senhor Doutor Meissner, do Reichsbank, o Cônsul Geral alemão,
o presidente de sua própria organização, a American Association of Industries, o filho do Sr. Hiram Mitchell, piedoso pequeno fabricante de
automóveis para milhões de insignificantes, o Sr. Joseph Stoessel da Nazareth Steel Company, rival da sua própria companhia de aço,
Sessions, os presidentes de quatro de suas maiores subsidiárias americanas de várias partes do pais, dois senadores de nomeada
conhecidos por odiar a Inglaterra e amar os fascistas, seu parente Hugo Bouchard, assistente do Secretário de Estado, o Bispo Halliday, esse
harmonioso antissemita, antitrabalhista, anti-Roosevelt, antibritânico, e antiliberal bastardo do rádio General-Brigadeiro Gordon MacDouglas,
proprietário de uma das mais influentes cadeias de jornais da América, o Conde Luigi Pallistrino, chargé d’affaires italiano, o Sr. Horace
Edmund, vice-presidente de sua companhia britânica associada e subordinada de armamentos, Robsons-Strong, o Sr. John Byran, meu
estimado competidor na Street, e outros de maior ou menor importância. Sim, também estava aquele cavalheiro que havíamos escolhido para a
nomeação para a lista de candidatos republicanos no próximo ano, e certo infame cavalheiro a quem não nomearemos agora, mas que
também já foi nosso homem. A propósito: um dos mais íntimos associados do Sr. Roosevelt estava lá, também, fato que surpreenderia
excessivamente o Presidente, e faria com que esquadrinhasse o seu Gabinete um pouco mais apuradamente do que parece fazê-lo.
— E? — indagou Henri, calmamente.
Regan se maravilhou ante sua tranquilidade. E disse:
— Discutiram o que já lhe contei. Também discutiram você. Parece que o Sr. Hitler não gosta de você, Henri. Não gosta absolutamente. O
Cônsul Geral entregou algumas acerbas citações. Chegaram, afinal, à decisão de que deviam livrar-se de você, e logo, logo: você é um
“obstrucionista”. Essas foram as ordens de Hitler. — Ele sorriu austeramente: — Já teve um ataque de coração, Henri?
— Não sejamos melodramáticos — replicou Henri, sentando-se com imensa calma. Então ficou silencioso, lábios comprimidos, olhos fixos com
uma expressão terrível, as mãos apertando os braços da poltrona.
— Garanto-lhe não estar sendo melodramático em absoluto, meu caro rapaz. Pensa que se deterão ante qualquer coisa para livrar-se de você?
Você é um dos homens mais poderosos da América, e seu obstrucionismo pode ser fatal para eles. Estamos enfrentando os adversários mais
perigosos que o mundo já viu. Maquiavel, Mettemich, Napoleão, Torquemada, Richelieu, etc., eram meros diletantes de intrigas de boudoir
comparados com esses. Eles jogam, não só por territórios e mercados, Henri, mas por todos os povos do mundo. E... estão muito dispostos a
ter o que querem. Você se atravessa em seu caminho? Bem, um ataque de coração, ou um assassinato por um “bolchevista” intransigente são
meios rápidos para morrer.
Com mais agilidade do que habitualmente mostrava, Henri tornou a levantar-se e começou a caminhar abaixo e acima, cabeça abaixada, os
braços rigidamente dobrados no peito. Então, essa imperturbalidade pétrea podia ser abalada, e abalada até a base... O rosto largo se tornara
terrível de paixão, e perigosamente carregado. A testa ampla estava visivelmente úmida.
Parou abruptamente e olhou para Regan:
— E assim, devido a seus empréstimos a Mussolini e seus arranjos de empréstimos para Hitler, e os embarques Bouchard de materiais, os
cartéis e designações chegamos a isto!
— Todos somos culpados, confesso, Henri. Porém... você e eu tivemos a mesma ideia: fazer de Hitler um “tampão” entre a América e o
comunismo, entre a Europa e o comunismo. A ideia não foi má... na ocasião. De fato, sob outras circunstâncias, ainda seria uma boa ideia. E lá
estava nosso Departamento de Estado. Sob nossa instigação, fez um bom trabalho para a França. De certa forma, ainda é nosso
Departamento, embora seu parente, Hugo, ande ocupadíssimo em solapá-lo.
Henri ficou de pé diante dele, a olhá-lo fixamente sem realmente vê-lo. Regan balançou a cabeça:
— Não adianta, Henri. Agora, já não pode mantê-los na linha. Os prêmios são grandes demais. Não pode fazer isso sozinho.
Aí Henri ficou roxo com a raiva mais violenta que jamais sentira. Sua egolatria fora mortalmente golpeada. Ante essa mortificação, essa fúria,
deu-se conta de toda a extensão de sua degradação e impotência.
Regan levantou-se e se aproximou dele. Pôs-lhe a mão no ombro e, de sua tremenda altura, olhou-o, os olhinhos brilhantes a trespassá-lo:
— Quer deter tudo isso, não quer? Por você mesmo. Eu também o desejo. Por causa da moléstia que está a comer-me vivo.
— E quanto à publicidade? — perguntou Henri, mais para si mesmo que para Regan. — E se expuséssemos os fatos ao Presidente?
Regan balançou a cabeça lenta e pesadamente:
— Não adianta. Imagino que o Presidente tenha alguma suspeita. Isso não pode ser exposto. Seria uma revolução. Talvez o que querem os
demônios. Na confusão, no tumulto, tomariam conta do poder. Mais ainda: devem ter seus homens espalhados pelo Congresso, também, e em
cada Ministério. É um escândalo que não pode ser denunciado, por medo das consequências, mesmo que pudesse ser provado. E, Henri, não
podemos expor coisa alguma, você e eu, sem que fatalmente nos envolvamos. Gostaria de Leavenworth, Henri?
— Então — disse Henri, sombriamente — estamos indefesos diante da chantagem?
— Estaria disposto — prosseguiu Regan — a sacrificar-se por seu país?
Quando Henri não respondeu, o velho continuou:
— Mesmo sob as melhores circunstâncias, meu rapaz, você estaria arruinado. Você, um “realista econômico”. O Sr. Roosevelt poderia
encontrar em sua confissão a grande oportunidade de sua carreira: destruir os verdadeiros senhores da América.
— Poderíamos tentar um acordo com ele — murmurou Henri, mordendo o lábio.
Regan riu melancolicamente, apertando a mão no ombro do outro:
— Não se deve tentar nenhum acordo com Franklin. Lembra-se de como o tentamos, há alguns anos? Não, Henri, estamos entre a cruz e a
caldeirinha.
Olharam um para o outro.
— Henri — falou Regan — creio que posso confiar em você. Acho que sei de um meio de escapar. Existem alguns como você, que também
não querem o que os Bouchards querem: a Amalgamated Carbide Company, por exemplo, seu competidor no fabrico de vários produtos
sintéticos. A American Motors Company. Várias outras que posso nomear. E eu mesmo. Além disso, temos ao nosso lado alguns
congressistas, você sabe. — Parou um pouco. — Quer jantar comigo na próxima semana, Henri? Um jantarzinho calmo, com alguns
convidados?
Henri ficou silencioso. Juntara as sobrancelhas, em funda concentração. Disse, finalmente:
— E, nesse ínterim, farei o que tenho de fazer.
Regan estava alarmado:
— Henri, eles não devem saber ao que você se propõe, compreende? Se tiverem a menor pista, estaremos perdidos.
O peso total da catástrofe subitamente se impôs a Henri Bouchard. Incharam as veias de sua testa.
— Deus! — exclamou, maciamente. — Os desgraçados ousaram desafiar-me! Ousaram fazer-me isso!
Regan o olhou, em completa surpresa:
— Então, você é um ególatra infantil, também! Esperava algo melhor que isso, Henri. Deixe para lá... Ainda tenho fé em seu poder, em sua
força pessoal. Se Deus quiser nos safaremos desta.
Voltou à secretária e caiu na cadeira, como se estivesse exausto. A poderosa cabeça lhe descaiu para o peito. Fitou a secretária às cegas, e
suspirou repetidas vezes.
— Veja, Henri, como é a coisa. Aqui é que entra Wendell Wilkie. Mesmo sob Roosevelt, tivemos oportunidade de romper tudo isso. Porém,
com Wilkie, que conhece muito mais a respeito das intrigas dos senhores, teremos ainda melhores oportunidades. Mais ainda: teremos
conosco as pessoas melhores e mais inteligentes, com Wilkie. Os negociantes menores, de comparativa integridade, por exemplo, além da
população. A sólida classe média. Roosevelt não deve tê-los. Wilkie é um realista. Podemos expor-lhe a coisa toda, e ele não pulará em nosso
pescoço em gritos de alegria, como Roosevelt faria. Com Wilkie, a América vem em primeiro lugar. Quando eu disse que ele era um homem
honesto, quis dizer muitas coisas. E todas elas elogiosas para um grande realista, um grande americano, um grande homem de negócios.
Ergueu a cabeça e estendeu a mão a Henri:
— Bem, Henri? Estamos nisto juntos. Continuamos juntos?
Henri tomou-lhe a mão. Sorriu, e esse sorriso, no rosto congesto, era horrível de ver.
— Continuamos juntos — confirmou.
Sentaram-se em silêncio, por algum tempo, enquanto Regan tornava a encher de brandy os copinhos. Não estava surpreso, e sorriu apenas um
pouco, enigmaticamente, quando Henri bebeu com rápida brusquidão e devolveu o copo para ser cheio novamente.
Então, enquanto a sala ia ficando mais escura à medida que o dia descambava para o ocaso, Regan começou a falar com macia e grave
lentidão:
— Henri Bouchard, eu sou um velho, e em breve morrerei,
Henri, que havia estado pensando numa porção de coisas, ficou momentaneamente espantado com a mudança de conversa. Mas disse,
polidamente:
— Claro que não. Não está doente, não é, Sr. Regan?
Contudo, Regan apenas o olhou num silêncio estranho e imperturbável por algum tempo:
— Não — disse, lentamente — não adiantaria. Não adiantaria mesmo.
Henri estava evidentemente embaraçado. Depois sorriu, um sorriso desagradável, e levantou-se.
Depois que ele se fora, Regan pensou:
“Sim, você continuará comigo, filho de uma cadela! Sim, continuará, bisneto de um cão colossal! Mas não pelas razões que eu
sentimentalmente esperava. De fato, a ideia de seus preciosos parentes deveria ter tido considerável atração para você, sob outras
•circunstâncias. Talvez, se a tivessem respeitosamente discutido com você. Sim, estou certo disto.
“Mais continuará comigo porque ousaram desafiar sua soberania, mesmo se foi um desafio totalmente expresso em particular. Continuará
porque eles estão tentando destruí-lo, desalojá-lo, atirá-lo fora. E isso você jamais lhes perdoará; é uma coisa que sua monstruosa egolatria
não consegue engolir: que ousassem pensar que poderiam fazer isso a você. Por isso, não se deterá diante de coisa alguma.

Capítulo 18
Henri Bouchard permaneceu em Nova York por vários dias, trancado em sua suíte no Savoy-Plaza. Durante esse tempo teve o “calmo
jantarzinho” com Jay Regan e certas pessoas. Fosse ele um verdadeiro aventureiro e poderia ter apreciado o que foi dito naquele jantar, que
planos foram traçados em face da precária enormidade da situação. Poderia haver sentido muita excitação e contentamento ante a
perspectiva, e ao pensamento de confundir e arruinar seus inimigos.
Porém ele não era um verdadeiro aventureiro. Era um conspirador em escala gigantesca. No entanto não era dotado de audácia, tal como o
bisavô. Acreditava na força, na obtenção do poder que lhe permitisse usar força e coerção como um bastão nodoso.
Ele estudou muitos documentos. Deu atenção especial ao estudo de seu cunhado, Christopher Bouchard. Durante longas horas roeu a unha do
indicador, e pensou. Depois, careteando de desgosto e raiva fria, fez uma ligação para Christopher, que ainda estava em Robin’s Nest.
— Surgiu algo — disse, em tom confidencial. — Gostaria de falar com você, privadamente. Aqui mesmo. Qual é o mais cedo que pode vir?
Praticamente, deve ser já, já. Incidentalmente devo dizer que será de tremenda importância para você.
Christopher estava espantado, e cauteloso. Seu perfil parecia mais agudo quando pensava. Seria possível que o ameaçador e inflexível
demônio soubesse de alguma coisa? Mas isso era incrível. Quis tornar a ouvir a voz de Henri, julgar pelo seu tom de voz, pegar uma pista, de
modo que disse, amigavelmente:
— Certamente, irei de imediato! De avião. Estarei aí antes da meia-noite. Será tarde demais para vê-lo?
— Absolutamente! — tranquilizou-o Henri, fazendo sua voz soar agradável e amiga. — Quanto mais cedo, melhor. Como eu disse, isto é muito
importante. — Com esforço, deixou a voz cair mais, tornar-se incrivelmente amigável: — A propósito, como estão as coisas em casa?
Christopher riu um pouco. Conhecia Henri muito bem. O suíno não sabia disfarçar: a voz sempre o traía.
— Bem, você não vai gostar disto, acho, mas Celeste empacotou Peter e a bagagem abruptamente hoje e se mandou.
Os olhos de Henri se estreitaram e ele sorriu sombriamente. Porém disse, fazendo eco à risada de Christopher:
— Realmente, não é muito bom. Bem, para onde foram, nessa fuga de Herodes?
— Deixei-os em Endur, que Celeste afirmou detestar. Tiveram uma conversa com Annette, que se banhou em lágrimas, com Edith consolando.
Celeste explicou que, como Peter começou a escrever sua denúncia de corrupção, precisa da mais completa calma. Peter pareceu meio
espantado ouvindo isso, mas está claro que a rapozinha o havia chamado à ordem previamente a respeito de irem embora, pois não fez
nenhum comentário. Foram-se rapidamente. Claro, para estar fora de lá antes da sua volta. Celeste cuidou de tudo com presteza e arrogância.
Nunca pensei que tivesse tais qualidades. Quando tentei, um discreto protesto, virou-se para mim como um demoninho e disse-me que tratasse
da minha vida. — Tossiu, gentilmente: — A propósito: ela está com uma aparência terrível! Acossada por fantasmas, é a melhor descrição.
Refugiada de um campo de concentração. Parece estar sofrendo muito com a morte de minha mãe.
— Hein? — falou Henri, apanhado desprevenido: havia esquecido tudo a respeito de Adelaide. — Oh, sim, claro! Foi péssimo para ela...
Acrescentou, depois de um momento:
— Então o verei, antes da meia-noite?
Depois de acabar sua conversa com Christopher, recapitulou o estudo dos documentos. Por vezes olhava fixo o espaço, imóvel como uma
pedra. Devia ser hábil, agora. Devia enredar e observar, jogar delicadamente: tudo coisas que desprezava. Às vezes ficava branco de raiva
contra a família que ousara conspirar contra ele. Não era sadista, como Christopher, que amava a vingança pelo seu próprio sabor. Devia
vingar-se, devia esmagar. Subjugar, destruir, mas só por sua própria proteção e pelo ensinamento, de uma vez por todas, de que ele era o
supremo, nunca deviam conspirar contra ele, ou opor-se a ele de maneira alguma. Seu ultraje era o ultraje de um Napoleão: tinha de ensinar
que seus medíocres e traiçoeiros irmãozinhos tinham ousado sonhar que poderiam derrubá-lo.
Quando Christopher chegou — muito antes da meia-noite — Henri estava tão calmo e contido como sempre. Christopher lhe dardejou um olhar
agudo, mas nada achou naquele rosto largo que lhe causasse algum mal-estar. Henri estava perfeitamente à vontade, mandou vir uísque e soda
para seu hóspede, e riu enquanto dizia:
— Suponho que é algo de iníquo chamá-lo aqui a esta hora da noite. Mas acontece que terei de tomar certa decisão amanhã, e... preciso de
suas sugestões, e de sua própria decisão.
Imediatamente, Christopher ficou alerta e intrigado. Sentou-se perto de Henri, numa espécie de cômoda intimidade, e ninguém que observasse
esse “voraz lobo cromado”, como o chamavam os irmãos, suspeitaria da secreta malignidade por trás do sorriso amigável que dirigia ao
cunhado.
— Terei prazer em ajudar — afirmou, com grande cordialidade, passando a mão sobre o crânio estreito e delicado.
Henri se recostou na poltrona e o observou com humor melancólico:
— Importa-se se eu passar em revista sua história, por um momento? É muito interessante. Não tenciono ofendê-lo, claro, mas é necessária
uma refrescada na memória.
Christopher sorriu e deu de ombros, dizendo:
— Vá em frente.
Henri juntou os dedos e os contemplou meditativamente:
— Estou certo de que todos concordam que lhe foi distribuída uma suja missão por seu colorido pai, Jules, quando deixou o controle de
Bouchard & Sons a Armand e fez de você um insignificante funcionário inferior. Sua fortuna pessoal, quando se pensa nas fortunas Bouchards,
era comparativamente escassa. Penso que ele fez isso deliberadamente. Bem, não importa. Mas você trabalhou bem por si próprio. E
conseguiu Duval-Bonnet, sua própria criação. Alguém já o parabenizou por isso? — E ele sorria zombeteiramente
Christopher riu. Permitiu que Henri tornasse a encher-lhe o copo.
— Sim — continuou Henri com franqueza — você fez bastante por si mesmo. Com ajuda. Minha ajuda — acrescentou, franzindo os lábios
comicamente. — E acho que sabe que nunca apoio ninguém sem razão. Você se tem mostrado à altura das expectativas. Há muitos anos que
o observo, Chris, e você jamais cometeu um erro.
— Obrigado — falou Christopher, secamente.
Estudou Henri com olhos brilhantes como os de uma serpente, e igualmente cautelosos. Uma fraca pulsação de medo começou a latejar nele,
medo desse homem formidável que ainda podia esmagá-lo e pisoteá-lo. E seu ódio aumentou junto com o medo. Misturada a isso, uma raiva
gelada ante a condescendência que sentia na voz de Henri, embora amigável e cheia de afeição.
Henri ficou silencioso por um momento, enquanto ele lhe estudava as mãos grandes e poderosas. Depois ergueu os olhos descoloridos e
inexoráveis e os fixou em Christopher.
— Você me permitirá ser um pouco sentimental, não? Bem, nós, Bouchards, sempre fomos grandes procriadores, até à dinastia que chegou à
nossa geração. Agora já não vamos tão bem. Um ou dois filhos, no máximo. Isso é mau. Vejamos Bouchard & Sons, por exemplo. Armand, que
está de fora, e não importa muito, só tem o filho, Antoine, para contribuir com alguma carne para a Companhia. E, de todo jeito, não tenho muito
prazer ao pensamento de que os filhos de Antoine podem vir a herdar Bouchard & Sons. Na verdade, já cuidei dessa parte. Compreende que
isso lhe é dito estritamente em confidência?
Christopher sentiu uma súbita e bravia excitação. Pousou o copo cuidadosamente e prestou a máxima atenção ao cunhado. A pulsação de
medo fora substituída por essa nova emoção. Sorriu:
— Antoine não gostará disso — comentou maciamente. — Ele tem... ambições.
Henri lhe devolveu o sorriso, com uma inclinação de cabeça:
— Sei disso. E gosto de bloquear ambições, quando não se encaixam nos meus planos. Assim, Armand não tem senão Annette, sua filha e
minha esposa. Não preciso dizer-lhe que Annette nunca terá filhos, e o que isso tem significado para mim. Quando você casou com minha irmã,
tive algumas esperanças. Mas você e Edith parecem tão estéreis como outros na família. Vocês não produziram sequer uma menina!
Mas Christopher estava tão rígido como metal:
— Quer dizer que se tivéssemos filhos, poderiam ser seus herdeiros?
Henri abanou a mão negligentemente:
— Por que não? Edith é minha irmã. Sou louco pela Edith, como você já deve ter descoberto. Contudo, o tempo de ter filhos já passou para
Edith. Inconveniências da natureza.
Christopher relaxou subitamente na cadeira, e agora seu ódio volátil se virou contra a esposa a quem ele, de fato, amava profundamente.
Lembrou-se do que ela dissera quando de seu casamento, havia catorze anos: “Não, Chris, nada de filhos. Não quero ser responsável por
trazer mais nenhum Bouchard a este mundo!” Na ocasião, ele não se importara particularmente. Apenas rira. Para ele era o bastante ter Duval-
Bonnet e Edith. Na verdade, detestava crianças. O senso de dinastia não era absolutamente forte nele.
Henri viu-lhe o olhar e sorriu internamente. Abriu as mãos e deu de ombros:
— De modo que aqui estamos: eu, com Bouchard & Sons e sem herdeiros; você, com Duval-Bonnet e sem herdeiros. Gosta da ideia de
Bouchard & Sons, embora você já não esteja ativamente ligado à Companhia, indo para o filho de seu amado irmão Emile, Robert?
Christopher teve uma rápida visão íntima de Robert, secretário pessoal de Emile, Robert, o baixote, o escuro, carrancudo e depravado, sempre
silencioso e cronicamente ressentido. Dificilmente se prestava atenção a esse rapaz, de voz fanhosa e negros olhos salientes, tão parecido
com o pai — só que Robert nada tinha da falsa genialidade de Emile e sua gorda vivacidade. Porém agora Christopher via Robert claramente,
e seus lábios finos se apertaram.
Henri inclinou a cabeça e disse:
— A coisa é assim. Quem mais temos? — Acrescentou, quando Christopher não respondeu: — Não admiro Robert. Contudo seu pai já tem
isso planejado.
“Então — pensou Christopher — este é o jogo! Nunca deixou escapar nada... Enquanto ia conspirando conosco, tinha em mente o danado do
filho, todo o tempo!” Contemplou a visão íntima do sobrinho, com aversão e fúria. Contudo, nada transpareceu na máscara de seu rosto
emaciado. Apenas balançou a cabeça, vagarosamente.
— Claro, isso parece lógico — concedeu Henri. — Posso compreender. Emile tem direito a planejar. Afinal de contas, é vice-presidente de
Bouchard & Sons. Natural que tivesse ambições pelo filho. Além disso, a mulherzinha de Robert, Isabel, parece que em breve irá presentear
Bouchard & Sons com um principezinho. Uma grande procriadora, ao que parece. Há quanto tempo estão casados? Menos de nove meses,
mas o ovo está praticamente pronto para abrir-se, não é? E ela é católica, sendo que os católicos não limitam a natalidade. Sim, tudo parece
funcionar de acordo com um plano. Emile está se fortificando. Sua fortuna pessoal é enorme. Possui um grande bloco de ações da Bouchard, e
grandes porções das subsidiárias. Sua mulher, Agnes, também é muito rica. Depois, a pequena Isabel, neta de nosso louco fabricante de
automóveis, Mitchell, herdará muita prata por direito próprio, pois seu avô era realmente um “Ku-Kluxer” e adorador da Bíblia, e não aprovou
que o filho, Edmund, casasse com uma católica romana. Entendo que nossa Isabel é seu “bichinho de estimação”. — Fitou Christopher com
afeiçoada imobilidade: — Não se importa de dizer-me, Chris, se já havia pensado em tudo isto antes?
Christopher estava silencioso. Os dedos descarnados se torciam num movimento letal. Ele odiara o irmão, Armand, mas agora meramente o
desprezava desde que descera do poder nas complexidades da Lista. Pelo irmão Emile ele tinha um ódio natural enorme, congênito e
incompreensível. Agora, quando via a “conspiração natural”, estava dominado por uma sensação de sufocação impotente, como se estivesse a
afogar-se.
Henri mexeu-se na poltrona, suspirou, e ergueu as sobrancelhas. Ao leve som que Henri fez, Christopher estremeceu visivelmente, lentamente
fixou os olhos no rosto de Henri. Disse, quietamente:
— Você. Você pensou em algo, não pensou? Você não vai deixar que Bouchard se vá tão facilmente, vai?
— Não! — disse Henri, francamente, após um momento. — Não vou. Por isso você está aqui.
Ouvindo isso Christopher sentiu um tal alívio que ficou realmente fraco. Nunca depreciara o poder de Henri Bouchard. Em outro homem ele
chamaria a isso ingenuidade, essa crença na onisciência de seu cunhado. Sua voz estava rouca ao dizer:
— Sim. Continue.
Mal podia conter-se. Levantou-se, rápido, caminhou abaixo e acima por um ou dois minutos, passando as mãos no crânio pequeno e ossudo.
Depois tornou a sentar-se, alerta como um lobo magro. Seus olhos começaram a cintilar de maldade sorridente.
— Adiante, adiante! — repetiu.
— Pensei longamente num meio de sair dessa — continuou Henri, genialmente. — Planejei um meio desde o início: Celeste.
À menção do nome da irmã, Christopher se endireitou na poltrona, com um movimento de quase violenta energia. Fitou Henri com ferocidade
fria, porém furtiva.
— Sim, Celeste! — murmurou. Respirou fundo: — Mas ali também não há esperança de filhos. Sabe disso. — Seus olhos começaram a pular
em suas cavidades alongadas.
— Talvez não agora — falou Henri, maciamente — não com Peter. Não. Mas comigo... sim.
Christopher mal podia respirar, depois dessa espantosa declaração. Inclinou-se para diante, apertando os braços da poltrona. Suas feições
estavam vivas, fluidas, brilhantes:
— Você quer dizer?...
— Quero dizer — falou Henri com equanimidade — que pretendo em breve divorciar-me de Annette. E casar com Celeste. Depois que aquele
coelho tossidor, Peter, morrer. E morrerá logo, é o que lhe garanto.
Christopher recostou-se na poltrona. Depois, subitamente foi sacudido por uma repugnante e terrível alegria. Sua pequena Celeste! Então
estava tudo ótimo! Tudo ótimo! Esqueceu tudo, ao pensamento de Celeste. E então lembrou-se de Emile e o filho, Robert, e de repente pôs-se
a rir alto, um som agudo e desagradável.
Embora Henri estivesse bem cônscio da paixão de Christopher pela irmãzinha, ainda assim ficou espantado. E uma compaixão rara nele o
agitou um pouco. Sempre acreditara haver algo mais que um pouquinho incestuoso no amor de Christopher, com muito de paternal. Mas nunca
se havia dado conta da extensão de tudo isso. Sabia que Celeste amava o irmão mais moço, mas também o temia e tinha certa aversão por
ele, especialmente desde o casamento com Peter. Daí a compaixão de Henri. Parecia-lhe deplorável que tanto amor, tanta feroz proteção,
tanta sinceridade e devoção inexorável pudessem haver brotado de um homem tão implacável e tortuoso para uma irmã cujo amor, nesses
últimos anos, fora apenas indiferente. Todo homem tem o seu ponto fraco. O de Christopher era Celeste. Novamente Henri sentiu piedade.
Tinha outro pensamento: talvez agora não fosse necessário prosseguir com seus planos. Talvez Celeste fosse o bastante. Olhava para
Christopher fixamente. Não, não faria mal nenhum apelar também para sua rapacidade. Amor e rapacidade: uma combinação invencível.
Disse, em tom bondoso:
— Por que tão surpreso? Certamente sabe que nunca desisto? Deve saber que eu sempre quis Celeste, e pretendia tê-la algum dia. — Sorriu
fracamente: — E minhas intenções sempre foram honradas, garanto-lhe. Outrora, ela pensou que me odiava. Na verdade, nunca o fez. Voltou
completamente condescendente. Quando Peter morrer, não haverá dificuldade. Mas, naturalmente, tudo isso é absolutamente confidencial,
como sabe. Celeste e eu tivemos uma conversa, naquela noite em que sua mãe morreu. Está tudo arranjado.
Henri continuava a observar Christopher firmemente, olhos apertados. Fora tão fácil... Novamente sua piedade se agitou. Ele não tinha a menor
intenção de divorciar-se de Annette e sua fortuna enquanto Armand vivesse.
Mudou para uma posição mais confortável na poltrona, tornou a encher o copo de Christopher que, ainda exultante, pegou-o automaticamente e
bebeu.
— E agora — disse Henri, com deliberada mudança de tom — acabamos com os sentimentalismos. Naturalmente, não havia necessidade de
toda essa explanação. Você deve ter sabido disso sempre. Não o chamei para discutir uma coisa tão óbvia. Era para algo totalmente diferente,
algo imediatamente importante.
Christopher acordou de seu sonho de triunfo e alegria com um estremecimento, e uma nova cautela. Como podia haver esquecido! Com dedos
trêmulos buscou sua cigarreira de platina, acendeu um cigarro. Porém o cigarro ficou secamente pendurado em seus lábios, enquanto ele
pensava. Podia erguer uma mão assassina contra o irmão de sua mulher; poderia regozijar-se, num regozijo mortal e virulento, com a queda de
Henri Bouchard. Porém o marido de Celeste era outra questão. Todo o triunfo e a alegria que dele fluíam se congelaram. De repente, sentiu-se
muito doente.
Henri viu tudo isso. “Sim — pensou — tinha toda a razão. O amor não era tão invencível quanto a rapacidade.” Via agora, pela constante
vibração das pálpebras de Christopher, que ele estava subitamente conspirando outra vez. Estava além das suas forças tentar separar Celeste
de Henri, como proteção a seus próprios planos. O pensamento estava causando a Christopher uma verdadeira agonia mental. Mas por trás
disso estava a sua rapacidade. Henri soube o exato momento em que o amor de Christopher perdeu a luta para a sua avidez todo-poderosa.
Foi então que Henri tornou a mexer-se, e sua piedade se fora inteiramente, substituída pela maldade implacável.
— Voltemos aos negócios, Chris. Passa de uma hora da manhã e ainda não chegamos ao que importa.
Porém Christopher estava mergulhado profundamente em seu caos particular. Henri teve de altear a voz para trazê-lo de volta. Ele estremeceu.
Os olhos cor-de-cromo haviam perdido todo o brilho: estavam desvairados. Perturbado, mal entendeu as palavras iniciais de Henri:
— Vamos reduzir a coisa ao essencial. Sabemos que Hitler ocupará a Polônia em poucos meses, talvez mais cedo. Haverá guerra. A Inglaterra
e a França atacarão Hitler. Terão de fazê-lo: desta vez estarão apavoradas. É agora ou nunca. Mas você conhece tudo isso...
Christopher nada disse. Mas agora estava completamente alerta. Tivera um choque. Obrigava-se a se recuperar.
— Tem sido firme crença minha, pelo menos tornou-se minha crença recentemente, que não podemos negociar com Hitler — resumiu -Henri. —
Você, Chris, e alguns dos outros não concordavam comigo. Presumo que ainda discorde?
Agora Christopher esqueceu tudo só para ouvir intensamente. Voltou-lhe a vaga pulsação do medo, porém mais forte agora, latejando
pesadamente em seu peito e suas têmporas. Olhou Henri fixamente em silêncio por alguns momentos, antes de sorrir facilmente, e erguer a
mão num gesto de imploração.
— Ainda penso que podemos negociar com Hitler — falou.
Henri balançou lentamente a cabeça:
— E eu sei que não podemos. Mas isso é história antiga. Já voltamos a isso uma dúzia de vezes. Não quero discutir com você. A única coisa
em que concordamos é em que a América não vai entrar em nenhuma guerra maquinada na Europa.
Christopher acenou de cabeça:
— Cuidaremos disso.
— Como todos concordamos antes, uma guerra nos arruinaria. Roosevelt se inclina para um governo dominador, ou pelo menos uma forte
forma de socialismo. A guerra, se entrarmos nela, será para ele uma dádiva divina. A América se tornará o paraíso do Homem Comum. Nesse
curral, a civilização será pisoteada sob cascos. Não que não apreciemos os bons serviços que o Homem Comum nos prestou e continuará a
prestar no futuro! Você pode sempre contar com as Massas para ir grunhindo, em tropel, e mastigando para onde você as dirija. Suínos!
— Sim — disse Christopher sorrindo e recordando. — Cada vez que nosso santo reverendo Halliday envia seu veneno sonoro pelo rádio, há a
ameaça de um massacre organizado, os poloneses de Detroit se preparam para puxar barbas de judeus, os aristocráticos Oakies do Sul
acariciam cordas e sonham linchar negros, e Mitchell, anjo da guarda de Halliday, massacra outro sindicato em suas fábricas de automóveis
baratos. A populaça nunca aprende, graças a Deus.
— Graças a Deus! — Henri lhe fez eco. — E assim, se tivermos guerra, a populaça seguirá Roosevelt no socialismo, e mugirá por nossos
escalpos. No passado, fizemos bom trabalho com as massas. Não posso confiar em que continuaremos um trabalho igualmente bom se
entrarmos na guerra. Quando a coisa se torna uma escolha: os camponeses se empanturrando ou odiando outros, preferem o
empanturramento. Roosevelt lhes enche a barriga; nós lhe damos ódio. Eles preferem seus ventres.
— Entretanto — disse Christopher — as massas instintivamente amam o fascismo. Podemos contar com isso. Amam a bota e o chicote. Isso
lhes proporciona uma espécie de orgasmo... uma volúpia. Não são os alemães os únicos perversos. As massas amam matar e torturar. Deem-
lhes a oportunidade, e elas a aproveitarão, gritando de alegria. Por isso o fascismo é tão popular. Porque seria popular também aqui.
Henri o contemplou por um momento:
— No entanto o fascismo, embora pessoalmente me atraia, não vingaria na América. Não quererei servir a nenhum amo. E, acredito, concorda
comigo?
— Certamente! — falou Christopher, maciamente.
Agora o medo estava forte, um gosto metálico em seus lábios, Henri parecia crescer diante dele. Tornar-se gigantesco e terrível e ameaçador.
Mas Henri estava rindo, levemente:
— Não que haja perigo de real fascismo na América. Conhecemos os limites. Para nossa própria sobrevivência. Mas receio que isso seja mau
para os negócios. Quando chegar a guerra, teremos a nossa maior oportunidade. Na América do Sul. Quando a Alemanha estiver envolvida na
guerra, será incapaz de controlar suas linhas aéreas na América do Sul: aí teremos a oportunidade de assumir o controle.
Christopher moveu-se imperceptivelmente na poltrona, mas deu a impressão de inclinar-se para a frente, observando Henri, de olhos
semicerrados.
— Tenho agora a oportunidade de obter o controle da Eagle Aviation Company — explicou Henri, impassível: — Foi-me oferecido. A ação está
abaixo de cinco dólares a quota. Porém eles têm planos e patentes já prontos para grandes aviões de passageiros que podem facilmente ser
transformados em bombardeiros.
Christopher nada disse. Estava mais branco do que nunca.
— Agora — comentou Henri, com um gesto casual — sua companhia, a Duval-Bonnet, só fabrica aviões de combate. A Eagle Aviation também
fabrica aviões de combate, e possui patentes para aviões de caça. Enquanto você, você mesmo, aperfeiçoou aviões quanto à velocidade, não
tem facilidades para fabricar grandes naves, nem os motores para eles. Nossa própria subsidiária, Giant Motors, está fabricando o tal motor
para os aviões planejados pela Eagle Aviation.
Christopher sentia-se asfixiar. Pôs a mão, momentaneamente, na garganta. Mas não denunciou de outra maneira nada do que estava
pensando. Através de um nevoeiro brilhante viu que Henri sorria brandamente.
— Se eu adquirisse a Eagle Aviation poderia pôr Duval-Bonnet fora dos negócios. Mas — disse ele — algo de pouco fraternal seria isso,
naturalmente. E, claro, isso não passa de um pensamento, como você pode imaginar. Mas tive um pensamento muito agradável, que vai
interessar-lhe.
“E é este: vou adquirir a Eagle Aviation. Você pode promover a fusão da Duval-Bonnet com ela, sob o nome de Eagle Aviation, com você,
naturalmente, como presidente com um excelente salário. Isso deve atraí-lo. Sua fortuna pessoal, da maneira em que estão as fortunas
Bouchard, não é muito grande... graças a seu delicioso pai. E, como presidente das companhias incorporadas, você estará no controle do mais
poderoso monopólio de fabricação de aviões do país.
Confuso, entorpecido, Christopher — ouvidos zunindo, coração em tumulto — apenas podia fitá-lo. Súbito, não pôde conter-se. Literalmente
pulou. Começou a caminhar abaixo e acima na sala, rosto cor-de-cinza, olhos faiscantes. E Henri o observava, sorrindo horrivelmente consigo
mesmo. Christopher parou diante dele, abruptamente.
— O que deseja? — perguntou, em voz baixa e trêmula.
— Sente-se, Chris. Nunca o vi tão agitado. — Henri sorria calmamente. — Por Deus!, terá que ser sempre uma questão de barganha entre nós
dois?...
— Sim — afirmou Christopher, num tom de voz que informou Henri que ele estava a ponto de estourar. — É sempre uma questão de acordo.
Que quer você?
— Sente-se, já disse. Assim é melhor. Agora, podemos falar razoavelmente. Que quero? Quero a Eagle Aviation. Quero você como presidente.
Afinal, você é marido de minha irmã. A propósito, você sabe que eu ainda controlo os bônus e quotas de Edith em Bouchard. Achou que isso
não era generoso de minha parte, não achou? Gostaria de controlá-los, como marido dela. Infelizmente, penso de modo diferente. Nada de
ressentimentos, espero?
Christopher não respondeu. Sentou na beira da poltrona, as mãos ossudas agarrando os joelhos. Não podia despregar os olhos de Henri.
— Claro, isso ainda é passível de discussão — continuou Henri. — Posso mudar de ideia... amanhã. Apenas queria conhecer sua reação à
minha sugestão.
— Você apenas queria... — repetiu Christopher, com um sorriso fraco. E não pôde dizer mais nada.
— Na eventualidade de que se consume o acordo, e você esteja disposto a fundir a Duval-Bonnet com a Eagle Aviation, tornando-se seu
presidente com, digamos, quatro vezes o seu salário atual, reterei cinquenta e um por cento das ações preferenciais das duas companhias, o
que me dará o seu controle. Naturalmente, você se dá conta de que eu lhe fornecerei os Giant Motors e os instrumentos Spark.
— Então isso lhe dará também o controle — falou Christopher numa voz sufocada — sobre Duval-Bonnet, a minha própria companhia.
— Apenas — interveio Henri suavemente — figurativamente. Não estou interessado em aviação. Tenho Bouchard & Sons, e em breve
estaremos ocupadíssimos fabricando armamentos. A propósito, já lhe disse que na próxima segunda-feira também comprarei a Concord Ars?
Ótima companhiazinha! Pretendo fundi-la com a Kinsolving Arms, depois de uma conversa com Francis.
Christopher estava sem fala. Só uma vez em sua vida ele já fora tão abalado. Sua rapacidade clamava, nele, exultante! Mal podia conter-se.
Mas forçou-se à imobilidade, obrigou seus olhos a sustentar os descorados olhos do terrível Henri Bouchard.
— Você quer alguma coisa! — sussurrou.
Houve na sala um breve silêncio. Henri recostou-se na poltrona e vigiou o cunhado com calma atenção.
— Sim — falou, quietamente — quero algo: quero você!
Christopher ouviu tais palavras com terror imediato. Pensou:
“Será que ele sabe? Será possível que saiba? Como poderia? Inacreditável que esse formidável suíno possa ter ouvido o mais leve murmúrio!
Mas, se sabe, então vai se mexer. Ainda há tempo!” Ainda havia tempo para esmagar os conspiradores, e Christopher não tinha ilusões de que
seria poupado...
Naquele silêncio, os dois homens se fitaram. Havia um som cantante no cérebro de Christopher, uma dor em seu coração. Saboreou o amargor
do completo terror. Tentou penetrar a larga máscara inexpressiva que era o rosto de Henri. Mas nada pôde ler.
Mesclada ao terror havia a crescente onda de sua rapacidade exultante. Estava com mais de cinquenta, mas, comparado aos outros
Bouchards (que, ele sabia, riam dele pelas costas), era um ninguém. A enorme fortuna da esposa ainda era controlada pelo irmão: o marido
não podia tocá-la. A mãe de Edith dera a Henri esse controle, por maldade, devido ao ódio pela filha. Christopher, exilado na Flórida, era um
nada aos olhos dos parentes, até mesmo uma figura burlesca, graças a Henri Bouchard. Agora chegara a oportunidade de dar-lhe poder igual
ao de qualquer outro membro da família — exceto Henri. Era o preenchimento de um sonho sonhado durante centenas de noites de ódio,
insones e corrosivas.
Gritou subitamente, acima das suspeitas e do terror:
— Que quer você?
— Por Deus! — disse Henri brandamente: — Já lhe disse. Talvez tenha havido uma mudança em meu coração, também. Afinal de contas. Edith
é minha irmã. Gostaria de vê-la com maior frequência. Depois, como já lhe disse, você me impressionou com sua habilidade. Há anos que o
venho observando. Quem mais escolheria eu naturalmente para a Eagle Aviation, a não ser você? Quem mais, aqui, é tão familiarizado com as
coisas da aviação? Pode apontar-me alguém mais na família?
Christopher estava quieto. Mas seus olhos estavam pregados nos de Henri, com renovado medo e confusão.
— Outra coisa! — disse Henri, no tom mais gentil. — É uma questão de precaução. Não que eu não confie implicitamente em você, claro.
Porém, para proteger meus interesses, terei meus próprios homens na companhia... para assisti-lo. Só para assisti-lo, naturalmente.
“Ele sabe!” — pensou Christopher. E imediatamente ficou confuso de susto.
— Quero que esteja comigo — disse Henri, ainda mais gentilmente. — Mas quero confiar em você. Sabe, não gostei da história de Peter a
respeito de Brouser e Schultzmann. Apesar de, estou certo, não ser verdade. Entretanto, isso me perturbou. Não gosto de... mentiras.
Christopher se levantou outra vez, andou pra cá e pra lá, passando as mãos na cabeça — velho gesto seu, parecido com o do pai. E Henri o
observava, sem expressão.
Aceitar tudo isso significava o abandono da conspiração, da associação com os outros, seu sonho de poder e vingança. Porém — ele pensou,
em sua febre — já não havia necessidade de vingança, devido ao que Henri se propunha fazer com Celeste. E conspirações podem ser
descobertas, conspiradores procurados e destruídos. Embora os conspiradores fossem poderosos, a conspiração ainda era precária, cheia de
perigos mortais. O que Henri oferecia era seguro e certo. Contudo, aceitar faria dele um dos homens de Henri. Nada poderia fazer contra Henri
sem destruir a si mesmo.
“Ele sabe” — ele se repetia, selvagemente.
Aqui estava o meio de escapar de uma conspiração sobre a qual sempre tivera suas dúvidas. E essa fuga lhe traria riqueza, poder, triunfo! Isso
o forçaria a trair, porém trair seus parentes não o aborrecia nada, nada! Seria seu triunfo pessoal sobre eles, depois de anos de ridículo e de
risos não muito secretos.
Parou abruptamente diante de Henri, e Henri viu todo o mal que havia nesse homem, sua exultação cruel, sua decisão selvagem e mortal.
Contudo, Henri disse:
— Repito: devo confiar em você. E — acrescentou com um sorriso — você não ousará fazer com que eu não confie.
Olhou para o cunhado e esperou, impassível.
Christopher respirou fundo:
— Posso oferecer-lhe uma sugestão? — perguntou, numa voz esquisita. — Livre-se de Antoine, meu brilhante sobrinho. Imediatamente.
“Então — pensou Henri — está feito!”
— Sim? — falou, quietamente. — Antoine? Alguém mais? Christopher tornou a sentar-se. Sua respiração ainda vinha em rápidos haustos.
— Acho que devemos ter uma conversinha.

Capítulo 19
Peter escreveu, febril e rapidamente:
“Esta é uma história contada à classe média da América, do mundo. Os poderosos não precisam dela: conhecem a história muito bem. As
massas são incapazes de esclarecimento, devido a uma imaturidade biológica da mente que só séculos de evolução podem erradicar.
Embora sofram nos dias que correm, sofrem como sofrem os animais, cegamente, estupidamente, sem questionar, sem sequer desejar mudar.
As forças da reação, o vigor do status quo não residem nos poderosos, como se acredita popularmente, nem na cautelosa classe média, como
eles próprios julgam, mas nas massas. Por conseguinte, a tentativa para esclarecer as massas é um fracasso. O velho aforismo de César, de
que a populaça só deseja pão e circo, ainda é válido. Se César puder fazer com que esses circos sejam sangrentos, ressoando com os gritos
dos moribundos, as massas ficarão felizes, contentes, satisfeitas, e voltarão a seu tugúrios e sarjetas sem o menor desejo de melhorar a
própria sorte. Daí a finalidade dos circos.
“Portanto, este livro não é dedicado às massas iletradas — realmente os maiores sofredores nas mãos de seus senhores. Pois não são as
massas que reformam governos, que destroem tiranos, que derrubam os opressores. Os homens que lideram as massas, homens de boa
vontade, de compaixão, piedade, justiça e indignação, vêm, na maioria dos casos, da esclarecida e inteligente classe média. Nem eu desejo o
apoio e a ira dos intelectuais, esses eunucos suaves impotentes que pouco sabem de governanças, muito de livros, e absolutamente nada de
homens. Suas ácidas indignações são impotentes. Seus gritos são gritos de crianças zangadas. São ignorados pelos tiranos e contemplados
com desprezo pelos homens sadios e vigorosos.
“Assim, este livro é dedicado àquela classe ainda pouco corrompida: a classe média do mundo. Pois essa é a classe que tem dado a cada
república, cada democracia, os soldados mais sóbrios, a melhor arte, os governos mais fortes e decentes, os maiores melhoramentos sociais,
a estabilidade mais firme, a mais limpa moral espiritual, a mais judiciosa indignação, as reformas mais sólidas, a ciência mais avançada.
Destruída essa classe, toda a nação perece — seja destruída pelos poderosos (permanentemente conspirando contra ela), seja pelas massas
(que permanentemente a invejam e odeiam). Ela permanece só, forte, sadia, por vezes desnorteada, quase sempre saudável, e sobre isso e
seu esclarecimento depende toda a estrutura da civilização, toda a progressiva evolução do homem, toda a esperança do futuro.
“As massas são facilmente mantidas em sujeição pelos opressores. Na verdade, preferem a sujeição, governo fortemente paternalista e
orientação autocrática, pois lhes faltam os órgãos com que pensar, pesar, julgar e planejar.
“Na América, hoje em dia, a conspiração contra a classe média já foi tramada, pronunciada sua sentença, sua destruição planejada. Isso foi
feito na Alemanha, por Hitler. Se tais coisas fossem permitidas na América, veríamos o fim da civilização, o reduzir-se a Terra à habitação de
escravos e príncipes, cuja condição, embora amada pela Igreja e procurada pelos senhores, é tão horrível, tão repugnante, tão espantosa que o
último dos homens de boa vontade deveria pôr um nó corrediço em torno do pescoço e morrer de desespero.
“A você, pois, a grande, sólida, saudável e esclarecida classe média a minha saudação, todas as minhas esperanças, todas as minhas preces
sabendo que só você pode salvar o mundo dos homens, sabendo que só você pode mudar a América de uma República realista para uma
Democracia, sabendo que só por sua própria vontade você pode perecer, e todos nós com você.
“Esta, América, é a história de seus inimigos.
“Você acredita ter muitos inimigos. É esse obtuso e estúpido político, ou aquele outro. O ‘Comunismo’, talvez. É este homem que deseja mantê-
la isolada do mundo dos homens, ou o homem que você amargamente denuncia como ‘provocador de guerra’. É este Presidente, ou este ex-
Presidente, é Hitler ou Winston Churchill ou Stalin. É esta religião, ou aquela raça. Você não gosta deste homem de nariz comprido? Não gosta
do inglês, ou do francês? Talvez os judeus a aborreçam? Talvez os italianos a irritem com sua ferocidade, ou sua alegria, ou suas risadas?
Seus sacerdotes e professores lhe disseram que todos os homens são irmãos, e que Deus é seu pai. Mas alguém lhe disse, não foi, que isso é
absurdo, perigoso, fantástico, o sonho de loucos que a levaria à guerra e à morte e à ruína econômica?
“Sim, você tem muitos inimigos. Mas os que lhe foram apresentados não existem: apareceram conjurados pelos seus verdadeiros adversários,
por seus senhores na América que não conhecem raça nem nacionalidade, mas conspiram com seus camaradas secretos em cada país do
mundo — não apenas contra você, mas contra todos os seus irmãos sob todos os sóis, e contra o próprio povo deles.
“Você pensa que seus senhores e inimigos americanos odeiam, temem e desprezam seus companheiros conspiradores na Alemanha, na
Inglaterra, na Itália, no Japão, na América do Sul, na Rússia? Se o faz, você é ingênuo e estúpido. Você é perigoso em sua ignorância. E em
seu perigo, a América pode morrer.
“Se houvesse guerra — e haverá, que Deus se apiede de nós! — pensa que seus inimigos americanos recusarão firmemente negociar com
seus inimigos de além-mar? Pensa que os senhores, os Bancos, as indústrias, automaticamente erguerão muralhas uns contra os outros?
Novamente você é ingênuo e estúpido. Enquanto você morre, enquanto você se arrebenta de fome, enquanto você luta, reza, espera e se
sacrifica, seus senhores americanos estarão alegremente reunidos com seus co-conspiradores na Suíça, talvez, ou qualquer outro local
“neutro”, e trocas financeiras e de utilidades e de materiais de guerra serão facilmente arranjadas, passados dinheiro e créditos — tudo num
espírito da mais afetuosa camaradagem, e seu destino decisivo decidido numa atmosfera que transcendeu nacionalidade, raça e fronteiras.
Você provavelmente estará em luta mortal com a Alemanha. Mas quando bretões e americanos estiverem lutando, metidos até os joelhos na
lama e no sangue, contra alemães e italianos, e outros, os banqueiros americanos, os banqueiros britânicos, e os banqueiros alemães estarão
calma e afetuosamente reunidos para debater trocas de créditos — em algum lugarzinho anônimo. Pensa que seus jornais lhe contarão isso?
Outra vez, você é pateticamente ingênuo. Nenhuma reportagem chegará a seus ouvidos.
A cortina negra será puxada sobre os conspiradores e você nunca saberá...
“Enquanto a América estiver, febrilmente, a armar-se e a seus aliados futuros, seus senhores americanos estarão cuidando de embarques de
utilidades vitais de guerra para os alegados “inimigos” através de cartéis internacionais. E essas necessidades de guerra, traduzidas em
armas, balas e bombardeiros, serão dirigidas contra as vidas de seus filhos e de seus amigos.
“Foi Hitler quem inventou o fascismo, ou Mussolini? Olhe mais de perto, irmão, nesses imponentes escritórios por trás da fumaça dos moinhos
e das fábricas, naquele boudoir, naquele suave salão de jantar onde as resplandecentes damas e seus benfeitores se sentam e devoram os
ricos do mundo, naquele poderoso Banco de portas de bronze, nas salas da bolsa internacional de valores, e por trás daquelas catedrais
altaneiras em meio de cidades famintas. Nesses lugares a conspiração contra a humanidade foi inventada, planejada, executada em ação de
âmbito mundial.
“Quando a Manchúria foi invadida, quem orientou para que a matéria fosse tratada obscuramente, que seu antagonismo fosse sutilmente
despertado contra os chineses? Quando a Etiópia foi torturada, quem inspirou os jornais com comentários entusiásticos de que Mussolini
‘fizera os trens da Itália correr no horário?’ Quando a República Espanhola foi atacada pelos mercenários da reação, escravatura e exploração
e ignorância, quem foi que lhe disse que a República era ‘comunista’, criminosa, assassina de inocentes e de padres? Quem o ensurdeceu
contra os gritos dos atormentados e dos desamparados, e lhe embotou a consciência quando seu irmão estava morrendo? Quem distorceu as
notícias vindas da Rússia, quem inspirou sua desconfiança e ódio, quem ameaçou com vagas calamidades a menos que a Rússia fosse
completamente derrotada e dominada, e negou embarques para a Rússia a não ser que fossem pagos imediatamente em ouro — enquanto
outros embarques eram enviados à Alemanha através de cartéis internacionais sem ouro? Quem chamou a Rússia de ‘descrente, ímpia,
conspiradora contra o mundo, contra a ordem, contra Deus, contra a moral’? Quem, quando o mundo de homens sãos, civilizados e decentes
era traído em Munique, saudava o senil Chamberlain como um grande homem, um herói?
“Não é tarde demais. Você só tem de olhar, de compreender, de aprender. Só tem de afastar as ricas cortinas e ver seus desprezíveis inimigos
cochichando em segredo — os homens de todas as nações, que inventaram Hitler, Mussolini, Franco, e suas abomináveis conspirações contra
a espécie humana.
“Entre esses homens, seus inimigos americanos são os mais poderosos. Esses homens decidiram que forma de governo cada país deve ter e
manter, eles os traíram com seus eternos inimigos, roubaram os recursos naturais de suas terras natais, elevaram loucos ao poder e autoridade
sobre povos subjugados, atraíram sacerdotes e príncipes da Igreja para seu secreto exército de destruição, estenderam as mãos rapaces aos
cantos mais distantes do mundo, decretaram como você deve viver, o que deve ler, comer, usar e pensar, que políticos deve apoiar, que bons
homens deve matar, que vítimas você- deve torturar ou ignorar, que exército deve manter ou não manter, se deve viver, ou morrer em agonia e
ódio.
“Pois esses homens têm tal controle sinistro e indisputado sobre os destinos do povo americano, e o destino do mundo, que podem decretar o
que vender, quanto vender, quanto produzir, e a que preço, em qualquer lugar da Terra. Podem decretar a quem eleger como Presidente dos
Estados Unidos, qual deve ser nossa política externa, que modificações ocorrerão em nosso governo, ou mesmo decidir sua derrubada! Quem
deve sentar nos tronos da Europa, quem deve controlar as chancelarias, quem deve marchar, quem deve aposentar-se, quem deve morrer?
Essas decisões estão nas mãos de tais homens.
“Seus mercenários e lacaios no Congresso, suas organizações de caráter fascista, de combate aos sindicatos trabalhistas, seus clérigos
assalariados, seus partidários homens de negócios e industriais, seus jornais subornados e editores traidores, sua máquina política, têm, como
meta final, a substituição do poder político do povo americano, e o estabelecimento deles mesmos como ditadores supremos sobre todas as
fases da vida do mundo.
“Povo da América! Que agonias tem você suportado nas mãos desses homens, em guerras, em fomes, em desespero, em desesperança e em
pobreza, em exploração e perda de liberdade! Que agonias ainda terá de sofrer — a menos que olhe atrás das paredes dos jornais, dos
políticos, dos clérigos e do silêncio, paredes que eles construíram em torno de si mesmos, para esconder-se...
“Pois decidiram que você perca sua liberdade, seus privilégios, suas liberdades civis, sua dignidade, sua honra e sua virilidade. Criaram Hitler
como uma defesa contra o comunismo. Se a defesa está agora ameaçando tombar sobre nossas próprias cabeças, seus inimigos olharão
além das ruínas para o futuro. Eles não quiseram guerra com sua criatura, Hitler. Esperaram que ele pudesse ajudá-los a subjugar e escravizar
você. Se ele não o fizesse — se nós, o povo americano, devêssemos erguer-nos e destruir o monstro que eles criaram — então mudariam
rapidamente de planos, conspirariam para que o fascismo não seja totalmente destruído na Europa, e se assegurariam de que o futuro bicho-
papão seja a Rússia, de que nenhum homem de boa vontade entre na Casa Branca, de que uma forma odiosa e perigosa de nazismo seja
instituída na América. Trabalharão incansavelmente para essa finalidade, haja guerra ou não.
“Este livro é escrito para contar-lhe o que deve saber. É planejado para fazer com que você deixe de olhar os seus circos, suas bugigangas e
seus brinquedos baratos — e fixe os olhos em seus reais inimigos.”
Lentamente a pena escorregou dos dedos de Peter num gesto de completa exaustão. Inclinou a cabeça na mão magra e fechou os olhos. Com
frequência sentia essas ondas de fraqueza, que provinham mais da alma que do corpo devastado. Por trás das pálpebras viu círculos e bolas
de fogo, girando numa nebulosa de azuis e carmesins e amarelos. Apertou as mãos contra eles. Agora, uma familiar debilidade o dominou,
durante a qual seus pensamentos turbilhonavam numa espiral de névoa, formada de dor, e flutuava afastando-se dele.
Em meio a essa desintegração, ele só tinha um pensamento claro: como era possível abranger, entre as estreitas páginas de um livro, toda a
incrível e gigantesca história? Apenas podia aflorar aqui e ali, como relâmpagos brilhando nos mais altos picos de montanhas, mas deixando
as profundas fendas dos valores, os oceanos e os rios tumultuosos em completa escuridão. Ele só podia tornar audíveis algumas vozes
trovejantes, vindas de distâncias várias. Seu quadro, portanto, devia ser desconjuntado, incoerente, e, por isso, cada vez mais fantástico e
inacreditável. As pessoas só acreditavam em pequenas histórias comuns. Consideravam os ecos de gigantes, o estremecer de seus passos,
suas silhuetas esfumadas, como fantasia, a pavorosa quimera criada por escritores de histórias de fadas ou de lendas épicas. Podiam até
achar que imagens tão imensas teriam uma qualidade heroica ou semidivina, que suas almas mesquinhas deviam admirar. O povo sempre
anseia por heróis, por super-homens, por deuses olímpicos. Ele, Peter, devia ser extremamente cuidadoso em não apresentar tais imagens à
mente do público, por sua adulação infantil. As imagens deviam ser terríveis, mas também odiosas. Deveria ser mostrado que, afinal de contas,
eles não passavam de homúnculos, porém mais dotados que a maioria de avidez pelo poder, de impiedade, de crueldade e rapacidade e
traição. Mas como fazer isso, quando apenas os picos mais elevados poderiam ser mostrados pelos relâmpagos, quando apenas as mais
estupendas alturas podiam ser reveladas... no limite de um livro?
Abriu os olhos e mirou em torno de si. Sua mesa estava empilhada de dados, centenas de páginas deles, e cartas, e livros. Devia escrever uma
verdadeira livraria se devia produzir mesmo uma história bidimensional. Mais ainda: não podia citar nomes, por medo de processos. Apenas
podia dar “pistas”, dotar seus verdadeiros caracteres com apelações estranhas, desfigurar mais do que um pouco, realçar fora de proporções,
reduzir outros fatos a um escuro pano de fundo. Ele devia fazer tudo isso, apenas para ter o livro publicado.
Sua cunhada, Estelle, mulher de Francis, instara com ele para que escrevesse “algo que atraísse a atenção de Hollywood, Peter, se você
realmente deseja passar uma ‘mensagem’ ”.
Como, então, poderia alguém despertar essa imensa multidão americana, essa multidão cantante, amante dos esportes, egoísta, estúpida e
generosa que amava apenas pequenos prazeres? Ao pensar isto, Peter era dominado por uma angústia de amor, raiva e sofrimento. Como a
América poderia ser grande, quão nobre e forte se apenas ouvisse, compreendesse e pulasse de pé com um grito de indignação e de fúria?!
Sua impotência o oprimia. Tanto a dizer, tanto a contar e revelar, e tudo isso devia passar através do fino rangido de sua pena e das gotas de
uma tinta desenxabida! A história, terrível e total, devia ser reduzida a rabiscos que provavelmente apenas atrairia os olhos de uma pequena
minoria... E hora a hora a destruição se aproximava mais rapidamente, despercebida entre os clarões das Main Streets, não ouvida entre as
obscuras delicias dos cinemas.
A Noite de Valpúrgia se vinha fechando sobre a humanidade, mas o profeta gesticulava sozinho nos bazares desertos, e o eco de sua voz lhe
voltava das praças vazias! Os vendedores e os compradores haviam afluído para ouvir a voz insegura de alguma prostituta na cidade...
Da pilha de cartas junto à sua mão Peter tirou uma e a releu. Era de seu parente Georges Bouchard, o editor:
“Há de lembrar-se, Peter, que seu livro The Terrible Swift Sword não foi bem recebido pelo público. As pessoas não estão interessadas em
não-ficção -— pelo menos, ainda não. (Pessoalmente, creio estar chegando o dia em que estarão.) Ainda não estão receptivas para livros
como os seus. Ficam apenas perturbadas por eles, e finalmente incrédulas. Não querem ser incomodadas.
Você me dirá que se eu lhe houvesse permitido usar seu próprio nome, em vez de um pseudônimo, o livro teria despertado mais atenção de
críticas e de público igualmente. Porém, como lhe disse, havia nisso muitas desvantagens. Mau gosto em primeiro lugar, embora você não
concordasse comigo, como de costume. O público não gosta de homens que atraiçoam suas famílias, mesmo quando por uma “boa causa”.
Depois, havia o ângulo do libelo. Ainda não simpatizo com a ideia de minha família a cair em cima de mim, en masse, nem você o quereria, se
pensasse nisso ao menos um pouquinho.
Isso nos traz ao novo livro que me propôs, The Fateful Lightning. Olhei o seu resumo, e pensei seriamente no assunto. E, francamente isso me
aterroriza completamente. Que espera conseguir com ele? Realmente pensa que o público americano se importaria com ele, o tomaria em
consideração, iria pesá-lo, seria despertado por ele? Como editor de certo gabarito e há alguns anos, discordo de você. Seria apodado de
melodramático, insano, bombástico e inacreditável. Além disso, já houve uma verdadeira inundação de livros escritos sobre o mesmo assunto,
e não levantaram a mais leve brisa. Então, sua cândida ideia de usar nele seu próprio nome me apavora.
E também estou em posição delicada. Sou um Bouchard: simplesmente não posso ver-me publicando tal livro.”
Ele acrescentou (e isso Peter não poderia perdoar):
“É péssimo que já não tenhamos conexões de publicações na Alemanha. Estou certo de que Goebbels apreciaria The Fateful Lightning. Seu
livro The Terrible Swift Sword foi recebido muito cordialmente por ele.”
Peter comprimiu os lábios pálidos. Continuou a ler a carta: “Entretanto, se você está realmente resolvido a publicar o livro sob seu próprio
nome, recomendo-lhe que procure Cornell T. Hawkins, de Thomas Ingham’s Sons. É uma firma antiga de grande prestígio, forte e conservadora,
e altamente respeitada. Antigamente só publicava a literatura mais decorosa e textos eclesiásticos, mas parece que um novo espírito vem
animando a casa, recentemente. Acho que é influência de Hawkins. Você deve ter ouvido falar nele, pelo menos, embora nunca houvesse
mencionado tê-lo conhecido, um grande homem; um grande editor. Posso até afirmar, um grande democrata e aristocrata — embora isso
pareça paradoxal. Embora seu ambiente apropriado devessem ser as austeras e brancas paredes de alguma mansão da Nova Inglaterra, ele
tem um espírito moderno, frio embora apaixonado, e um intelecto notável. Mesmo que não faça nada mais, ele o ouvirá simpaticamente, e lhe
dará algum bom conselho. Pode confiar nele. E quando digo isto, quero assegurar-lhe que raramente o disse de outro ser humano.”
Peter atirou a carta para o lado e cobriu com as mãos a dolorida cabeça. Sua exaustão se tornou insuportável. Se fosse mulher, explodiria em
lágrimas terríveis. Após longo tempo, deixou cair as mãos e fitou através da janela.
Estremeceu, como sempre, ante o que viu. A partir das paredes da casa, a Endur de Christopher se estendia, uma campina feito um lençol de
verdes gramados até os muros distantes e os portões lustrosos. Tudo era completamente rígido e luzia brilhantemente ao vento quente e estéril
e sob um sol que parecia uma bola de vidro em chamas. Não havia árvores a refrescar esses vastos relvados, exceto onde, a cada lado da
imensa área, duas filas idênticas de álamos pontudos e rígidos, parecendo de madeira pintada de encontro a um descolorido céu de verão, as
agudas sombras arroxeadas tão imóveis como eles mesmos. Vazio o cenário radiante, insuportável no calor intenso, pois Christopher tinha
aversão a flores. O panorama combinava com o interior do casarão quadrado, com seu espelhante mobiliário de cromo, colocado em seus
próprios reflexos contra paredes de vidro ou madeira branca.
Nenhuma curva graciosa da asa de um pássaro amaciava tal cenário de vazio e de ardente radiância. Só os ventos desimpedidos sem
obstáculo à frente, secos como o ar que sai das fornalhas, faziam algum som audível na casa ou nos gramados. Esse vento era quase
constante. Exacerbava os nervos de Peter. As janelas eram amplas e claras como as de um laboratório, e as cortinas estreitas eram colocadas
ao longo das paredes e não das vidraças, de modo que não se podia escapar à ardente austeridade do panorama.
“Estéril como a morte, desapaixonado como o próprio dono” — pensou Peter. Detestava Endur. Sua desolação, sua falta de sombra
misericordiosa, seu desabrigo, que parecia o cauteloso desabrigo diante de uma fortaleza onde nenhum inimigo poderia esconder-se, dizia
bem do caráter de Christopher. Contudo deveria permanecer aí até que estivesse pronto seu próprio lar, em Placid Heights.
Enquanto contemplava tão amargamente através da janela, a carta de Georges na mão, Peter pensou subitamente no pai, Honoré Bouchard.
Muito estranho que pensasse tão frequentemente no pai, agora, e a cada vez a visão era mais nítida, aguda, urgente, mais bondosa. Em todos
os anos desde a morte de Honoré no Lusitânia, sua lembrança permanecia com o filho mais jovem, seu favorito, como a gentil melancolia de
um horizonte outonal. Foi em 1932 que Peter começou a ter essas cálidas visões, cheias de substância e claridade, como se Honoré, ao vivo,
estivesse diante dele, falando. Ele não passava de um colegial quando seu pai soçobrara nos abismos do Atlântico e, com o passar dos anos,
a fisionomia e o aspecto de Honoré se haviam tornado apagados, incertos, a voz cava. De modo que era muito estranho que Peter o visse
agora tão claramente, e lhe ouvisse a voz tão fortemente.
Capítulo 20
Parecia a Peter — enquanto recordava o pai agora — que Honoré sempre fora atacado por uma espécie de melancolia desesperada, era
silencioso, paciente, gentilmente sorridente, e distraído. Nunca se queixara, nunca fora rabugento ou irritável ou desatento, embora por vezes
dado a gestos inexplicáveis de silenciosa violência bem no meio de alguma observação casual. Seus três filhos mais velhos — Francis, Hugo e
Jean — achavam isso um tanto divertido; a esposa, Ann Richmond, achava aborrecido. Porém Peter, quando viu tais gestos, viu como o sorriso
bondoso do pai subitamente se tornava fixo, quase uma careta, e sentiu-lhe o coração ao desamparo com um medo obscuro e muita
compaixão. O Honoré que falava, que mantinha uma aparência firme, que ouvia atentamente e com simpatia, não era o Honoré que vivia sob a
superfície da carne, atormentado, desesperado, desanimado e sem esperança. Isso Peter sabia, mesmo quando ainda muito jovem.
Não era pequena a parte do presente êxito de Bouchard & Sons que se devia a Honoré Bouchard. Peter, apesar de buscas ansiosas, nada
pôde descobrir que justificasse sua esperança de que o pai fora menos inescrupuloso, menos inexorável, menos venal e rapace do que Jules
Bouchard, seu primo e amigo. Verdade que fora bom e compadecido, que suas caridades tinham sido amplas e praticamente secretas, que
fora simpático e gentil para todos, mesmo em relação à esposa, viciosa e ávida, que deve tê-lo enojado muitas vezes; e que, de um modo
estranho, tivera integridade e caráter. Entretanto seguira todos os conselhos de Jules —tanto quanto Peter podia ver — ouvira Jules,
reconhecera sua perspicácia e talento. A pesquisa de Peter nada revelou de objetivo que lhe esclarecesse e aligeirasse o coração e o
consolasse. O registro de Honoré Bouchard foi aberto a seus olhos, e não havia exemplo de caso em que Honoré houvesse posto o bem-estar
da América acima dos lucros, ou a segurança da espécie humana acima do poder em ascensão da dinastia Bouchard.
Mas Peter não se podia livrar da recordação dos profundos olhos castanhos do pai com sua expressão de melancolia desesperada e abstrata
meditação. Lembrava-se daquela cabeça redonda com seu topete de cabelo grisalho, a figura vigorosa, os ombros largos e sólidos, o nariz um
tanto curvo, e o sorriso bondoso e pensativo. Havia em Honoré um estranho silêncio, como se estivesse ouvindo algo que ninguém mais ouvia.
Por vezes Peter até havia esperado que seu pai tivesse sido um fraco, demasiado fraco para resistir à pressão do primo, Jules, e dos outros,
que fosse bom demais para opor-se a eles, ou que tivesse havido nele uma indiferença espiritual ou física que não o deixasse lutar com os
outros Bouchards. Mas não tinha havido fraqueza, nem indiferença, naquele rosto forte e simples, Peter tivera de admitir mais tarde, com
tristeza. Ele podia ter aversão pelo ávido e o exigente, o egoísta e o cruel (e demonstrara isso bem vigorosamente muitas vezes na presença
de Peter), mas, quando se tratava da fortuna, do poder e dos lucros dos Bouchards, ele era tão inexorável como o primo Jules.
Que distorção de alma acontecera nele que fazia esse homem habitualmente reservado tornar-se gárrulo, volúvel, quando descobria alguma
malignidade pessoal, rapacidade ou crueldade em um membro de sua família imediata — a ponto de infligir punição física aos filhos — mas o
mantinha silencioso, aquiescente ou cooperativo quando se tratava da riqueza dos Bouchards, dos lucros dos Bouchards, ou do
engrandecimento dos Bouchards? Não importava, então, se multidões sofressem, se a honra nacional fosse traída, se houvesse conspirações
em andamento contra a paz e o bem-estar de uma nação inteira ou do mundo todo! Às vezes Peter via um brilho de prazer em seus parentes
ante o êxito de algum esquema abominável, uma satisfação maligna, rindo à socapa. Nunca viu isso em seu pai. Ao invés, observara que a
melancolia se aprofundava nos olhos de Honoré; ele se tornava mais silencioso e mais solitário que de costume.
Peter se atormentou eternamente pelo enigma que seu pai representava. As lembranças mais nítidas que tinha eram da voz profunda e cheia
de bondade de Honoré, sua mão gentil e afetuosa, o sorriso doce e pensativo, a filosofia meditativa e a estranha e amargurada sabedoria. De
todos os Bouchards, só Honoré era um estudioso. Possuía uma biblioteca imensa, e gastava noites sem fim lendo ao pé do abajur. Entre todos
os parentes, estranhamente, ele parecia preferir Jules Bouchard, seu primo: na presença alegre e cortês de Jules ele ficava quase alegre,
risada invulgarmente fácil, fisionomia iluminada de real prazer.
Haveria algo de fundamentalmente semelhante nesses dois? — pensava Peter, sentindo-se miserável. De certo, tudo de bom e íntegro e
decente em Honoré devia ter sido violado pelo suave Jules. Embora, se foi violado, não havia sinais disso.
Então Honoré, enviado por Jules em alguma missão secreta e perigosa na Europa, subitamente mergulhou no caos: morreu no Lusitania.
Peter recordava bem aquela noite. Agora, enquanto lembrava, tirou a mão dos olhos e ergueu a cabeça dolorida. Os olhos azuis se estreitaram,
tornaram-se atentos, enquanto ele olhava sem ver através da janela resplandecente do quarto. Algo parecia estar se formando ante seus olhos,
algo significativo, algo que iria explicar-lhe o enigma de seu pai. Suas mãos se apertaram lentamente no papel à sua frente, enquanto com
calma desesperada ele tentava concentrar-se. Agora via as feições do pai, via claramente, graves, bondosas, cautelosas e sem esperança. Viu
os lábios do pai moverem-se em silenciosa, porém urgente explanação.
A notícia — ele se lembrava — chegara primeiro a Jules, por alguma rota misteriosa. E Jules foi ferido, no mesmo instante, pelo primeiro de
seus terríveis ataques de coração. Peter se lembrava que Leon, irmão de Jules, fora à casa de Honoré naquela noite para comunicar à recente
viúva a morte do marido. Leon, carrancudo, volumoso, de voz sombria, entrara na casa, completamente aniquilado, fisionomia cinzenta e
abalada. Deu a notícia incoerentemente, e Peter recordou que a maior preocupação dele era pelo irmão, Jules, e que muitas e muitas vezes
exclamara, em meio às lágrimas da viúva, que “isto matará Jules!”
Peter, então muito jovem, escutara Leon, ouvira-o através de uma ondulante névoa de sofrimento. Sentira uma raiva dolorosa de Leon, por
ousar tais exclamações a respeito de Jules. Não se espantara de que esses olhos fundos e carrancudos se enchessem de curiosas lágrimas,
de que as fortes mãos quadradas literalmente se torcessem numa espécie de distração. Sabia que Leon tinha por Jules uma afeição relutante,
porém profunda. Porém era certamente estranho que sua única preocupação não tivesse sido pela trágica morte de Honoré, mas pelo estado
de Jules, pelo sofrimento de Jules, e que, por fim, se tivesse levantado distraído, e declarado que devia voltar imediatamente para junto do
irmão.
Peter aceitara isso como dor, como todos o fizeram. Mas agora, enquanto estava ali sentado em tão dolorosa concentração, pôs-se a cogitar.
Jules, é verdade, devia ter sentido a mais profunda tristeza de sua vida com a morte do primo bem-amado. Porém — pensou Peter — tinha
havido um esquisito significado nas palavras de Leon, em suas maneiras.
— Meu Deus! — resmungou, esfregando a testa com os nós dos dedos.
Algo ali estava diante dele, cheio de explicações: era só olhar e compreender. Forçou-se a manter-se calmo. Viu outra vez o rosto do pai bem
claramente, e tentou ler as palavras silenciosas nos lábios que se moviam.
Depois recordou algo mais, algo que veio das sombrias profundezas de sua memória como uma névoa que lentamente tomou forma.
Tinha havido uma testemunha da morte de Honoré. Os barcos salva-vidas se haviam enchido rapidamente até à capacidade máxima após a
explosão do torpedo germânico. Havia um lugar vazio, e um oficial do navio, mesmo em meio a tal catástrofe, ainda plenamente consciente do
poder dos Bouchards, instara com Honoré para que tomasse esse lugar. Porém ele recusou. Disse a testemunha que Honoré ficara de pé no
convés inclinado, e balançara a cabeça lenta e quietamente. E que sorrira do modo mais estranho. Tinha um olhar misterioso de paz e
contentamento, de recolhimento e desinteresse. Olhara em redor as centenas de pessoas frenéticas e aterrorizadas que não seriam salvas,
que deviam morrer. E apertara as mãos na balaustrada, erguendo a cabeça. Morrera com elas, recusando viver.
O que causara aquele terrível ataque de coração de Jules? Apenas sofrimento? Apenas o pensamento de que fora ele que enviara o primo
para a morte? Peter agora acreditava, com apaixonada convicção, de que não fora isso.
Aos poucos, a verdade foi surgindo, coração agitado, Peter teve consciência de que Jules sabia que Honoré morrera porque já não suportava
viver.
Fora isso, então, que derrubara Jules.
As pálpebras de Peter queimavam! Mas seu espírito ficou súbita e dolorosamente aliviado. Seu coração doía com renovado sofrimento por seu
pai, mas também com exaltação: estava solucionado o enigma! A morte autodecretada de Honoré fora o repúdio final de sua vida, de todas as
coisas que fizera, de todas as coisas que fora persuadido a fazer. Fora uma expiação deliberada.
Então, ele devia ter odiado sua vida...
As coisas começaram a encaixar-se. Peter lembrava-se de uma estranha conversa que tivera com o pai na véspera de sua primeira partida
para a escola. Tinha apenas catorze anos. Honoré o chamara para a biblioteca e, desajeitadamente, tomara a sua mão. Não era dado a
demonstrações de afeição, e o jovem Peter ficara muito comovido — tão faminto de coração estivera, tão solitário e temeroso em meio a seus
terríveis irmãos. Sabia, claro, que fora o favorito do pai, porém Honoré nunca o tocara tão gentilmente, ou lhe sorrira com tão grave afeição.
“Você vai para a escola, meu filho, e ficará sozinho” — dissera Honoré, com aquele sotaque francês que sempre espantara Peter. Filho de
Eugene Bouchard, francês, Honoré nascera na América, mas havia adquirido o sotaque de seu pai. O que emprestava à sua voz uma espécie
de calor e dignidade.
“Sim — repetira Honoré — você estará sozinho. Mas isso não lhe importa, não é, Peter? Você sempre esteve sozinho. Exatamente como eu
era, outrora.”
E depois mirou o filho bem nos olhos, com profunda e melancólica concentração:
“Sempre nos entendemos bem, não é verdade, filho? E assim, algum dia, você se lembrará que se um homem tem de permanecer como Deus
quer que ele seja, ele deverá sempre esforçar-se para estar sozinho em seu coração. Desde que esse coração se abra para coisas do mundo,
sejam essas coisas poder, ou ambição, ou ganância, ou mesmo um grande amor, estará perdido para sempre. O vaso está quebrado. Nunca
mais poderá conter água.”
Depois acrescentou, olhando para além de seu filho, embora lhe segurasse a mão ainda mais estreitamente:
“Não há remendo para vidro. Nunca se inventou um cimento capaz de colá-lo ou de dissimular as rachaduras. Nunca mais poderá conter água.”
Tudo isso, pois, Honoré tentava explicar a Peter mesmo nessa hora tardia. E essa explicação era a resposta ao enigma. Diminuiu a
sensibilidade dolorosa no coração de Peter. Agora só sentia pelo pai uma apaixonada compreensão, e um profundo amor sem nada de
impuro.
De imediato sentiu-se forte e integrado novamente, quase exultante. Desapareceu sua exaustão. O rosto de Honoré se desvaneceu ante seu
olhar íntimo. Porém podia sentir-lhe o sorriso, terno, em paz.
Peter pegou a caneta. As palavras vinham mais facilmente agora. Já não havia nele qualquer conflito, nenhuma dor. Podia trabalhar. Podia ter
fé. Nada mais importava além de seu trabalho, nem mesmo Celeste. Sentia-se invulnerável como nunca fora antes!

Capítulo 21
—- Que tocarei? — perguntou Annette, afastando da testa uma mecha dos finos cabelos claros e sorrindo para a jovem tia. Sentava diante da
harpa, os finos dedinhos a tocar as cordas brilhantes, maciamente, os braços brancos lançando uma sombra na escultura dourada do
instrumento.
— Alguma composição sua, querida — replicou Celeste.
Estava sentada na fresca penumbra do grande salão, o colo cheio de rosas magníficas dos jardins de Robin’s Nest. Todo o rosto permanecia
na penumbra, porém tomara emprestada sua qualidade luminosa de modo que suas feições tinham a aparência pálida e polida de uma
máscara de mármore, austera e rígida. No contorno de sua testa havia uma quietude petrificada, e certa rigidez nos lábios.
Os dedos de Annette feriram as cordas com muda gentileza: as notas se ergueram como borboletas douradas a expandir-se à luz do sol.
Celeste podia ver essas borboletas, absorvendo nas asas a luz pura, mergulhando, circulando, movendo-se rapidamente como folhas
brilhantes, dançando numa súbita lufada de ar, em movimentos murmurantes com a mais suave harmonia, dificilmente ouvida, porém doce
como uma melodia imaginada. Era música ouvida em sonho, pura e alegre, descendo a um sussurro, subindo até uma fina e deliciosa nota
única, subitamente dispersa numa explosão de som pungente, frágil e esvoaçante, para novamente mergulhar num incoerente capricho de
movimento radiante, quase inaudível...
Celeste estava extasiada! As mãos tensas que jaziam sobre as rosas relaxaram. Seus olhos se fixavam na visão iluminada e inocente evocada
pela harpa. Sob a harmonia inócua e brilhante havia a doçura de melancolias, de delicadas tristezas. Então ela ouviu, sob o murmúrio das asas
das borboletas, um vento a erguer-se, indistintamente agourento, carregado de sombrios presságios. A claridade nas asas dançantes se tornou
severa e rígida, como a súbita luz perfurando através de nuvens escuras. Mais depressa, mais depressa moviam-se as borboletas, agora num
frenesi francamente discordante, lutando contra a voz da ventania —•que se tornara rouca e ameaçadora. Agora as borboletas eram pálidas
formas fantasmagóricas, sem dourados, sem brilhos, e o vento tinha uma forma, ondulante, cinzenta, espiralada como fumaça, a subir numa
forma ampla como uma parede de escuridão. E em meio ao redemoinho adejavam as penas frias e descoloridas de pequeninas asas a cair,
frenéticas...
Agora as notas se tornavam mais altas, desoladas e dissonantes, como se vindas de longas faixas de gelo negro de regiões de morte
trovejante. A última pena caiu e se desintegrou. Caos no mundo! Celeste discerniu gritos selvagens em meio ao vórtice, perdidos gritos de
almas perdidas. Um derradeiro rodopio de som discordante, um súbito estalar de cordas, e então houve apenas silêncio.
Pesada inércia caiu sobre Celeste. Mexeu-se, morosamente, olhando para Annette — que ficara muito pálida e olhava para diante, olhos
arregalados e vazios. Celeste começou a falar, depois cerrou os lábios. Mirou Annette por muito tempo. As mãos de Annette ainda pousavam
nas cordas, porém molemente, mãos mortas e sem sangue. O rostinho estava extremamente quieto, de expressão trágica em sua imobilidade.
A esbraseante luz solar batia nos largos peitoris das janelas em dolorosa radiância. A sombra verde das árvores lançava reflexos ondulantes na
sala tranquila. Em algum lugar pássaros piavam sonolentamente ao calor, a brisa de verão recendia ao perfume de trevo ceifado, cálido e doce,
e a rosas.
Então Annette subitamente sorriu. Um sorriso gentil, alegre como sempre. Porém os grandes olhos azuis-claros, tão lindos, permaneceram
vazios. Olhou para Celeste:
— Não tenho nome para isso, ainda — disse, deixando cair as mãos nos joelhos. — Gostou, querida?
Celeste hesitou. Depois disse, em voz tensa:
— É... é terrível! Sim, terrível. Como pode pensar tais coisas, Annette?
Os dedos de Annette se entrelaçaram, num movimento convulsivo. Porém ela ainda sorria, embora o sorriso fosse fixo:
— Acho terrível? Mas verdadeiro, não? Tudo que era inocente e adorável, gentil e puro, está finalmente destruído. Isto é o que quero expressar.
Celeste levantou-se abruptamente. As rosas se espalharam a seus pés. Ficou de pé por trás delas, como se fossem uma barricada.
— Não diga isso, Annette — falou em voz baixa. — Não é verdade. Não pode ser.
Porém Annette olhava as rosas caídas, e não se moveu nem falou. Celeste curvou-se e remexeu nas rosas. Espinhos lhe espetaram os dedos.
Os olhos estavam opacos, e o coração palpitava de tristeza e temor.
Ergueu-se, por fim, as rosas nos braços. Viu que Annette a fixava agora, gentilmente, tragicamente, e com terna quietude.
— É tão bela, Celeste! — disse, em sua doce vozinha.
Mais se aguçou o medo em Celeste, e o sofrimento.
— Algum dia escreverei uma serenata para você — prometeu Annette. Sorria um pouco.
Celeste olhou as rosas. Pensou:
“Eu não devia ter vindo hoje...” Mas os pedidos de Annette lhe haviam finalmente quebrado a decisão de ficar longe de Robin’s Nest para
sempre. Viera para almoçar com a sobrinha. Nessa mesma sala ouvira falar da doença de sua mãe, e aí, mais tarde, ocorrera aquela cena que
não podia recordar sem vergonha e angústia. No momento, como tornou a lembrar, o próprio ar quente estava impregnado com a
personalidade de Henri. Celeste ergueu a cabeça com um sofrimento súbito e insuportável, e viu que Annette a contemplava com um sorriso
triste. Seria possível que Annette soubesse? Não podia ser! Ela, Celeste, não poderia suportar isso!
Celeste gaguejou.
— Não se incomode escrevendo nada para mim, querida. Não estou interessada absolutamente. — As palavras fúteis, sem sentido, lhe
chocaram os próprios ouvidos, como uma imbecilidade.
Entrou uma criada com o chá. Celeste a olhou e explicou:
— Não. Devo mesmo ir agora. São quase quatro horas. Peter há de estar cogitando...
Annette se levantou com os movimentos leves e sem esforço de uma criança. Fora-se o olhar estranho e triste. Estava ansiosa outra vez, e
procurando agradar:
— Por favor! Há tanto tempo não a vejo... Sempre recusa nossos convites para jantar. Agora não vou deixá-la ir tão cedo.
Sentou-se num sofá, diante do qual a criada colocou a bandeja com o aparelho de chá. Toda a sua aparência estava novamente leve e alegre,
cheia de inocente felicidade. As mãozinhas se moviam rapidamente por entre o tilintar das porcelanas e das pratas. Encheu uma xícara e,
sorridente, a estendeu para Celeste, que estava de pé desajeitadamente ali por perto, as rosas ainda nos braços.
— Oh! Venha! — disse Annette. Os olhos estavam brilhantes.
Nas últimas três horas Celeste só sentira a inércia pesada e apática que caíra sobre ela desde a morte da mãe. Tinha a vaga sensação de que
essa inércia era provocada, uma proteção contra pensamentos que seriam intoleráveis. Forçara-se a mover-se lenta e cuidadosamente, como
um homem drogado, pois qualquer gesto rápido, qualquer palavra apressada teriam aberto as grossas cicatrizes que lhe cobriam as feridas
com uma crosta quebradiça. Cuidado, cuidado! — sussurrara sua mente. Não pense. Não se recorde.
Todavia, agora a crosta fora quebrada. Sua mente e seu corpo palpitavam em dolorosa união. Ela estava doente de tristeza, desespero e
medo. E ainda havia uma doentia e dominadora vergonha. Tudo que queria era fugir desta sala, fugir à visão do rosto lindo e frágil de Annette
com os grandes olhos inteligentes que sabiam tanto, e nunca haviam estado cheios de ódio, e eram sempre tão compreensivamente gentis.
Aceitou a xícara que Annette lhe passou, e ficou a olhá-la estupidamente. Annette estivera falando. Vários minutos se passaram antes que
Celeste se desse conta, com um vago sobressalto, de que havia silêncio na sala já há algum tempo. Ergueu os olhos. Annette a contemplava
com uma expressão singular, cheia de profunda compaixão.
— Creio que não sou lá muito boa companhia... — balbuciou Celeste.
— Sei — falou Annette, suavemente. Pôs a mão na de Celeste: — Mamãe e eu não éramos tão chegadas como você e a vovó, querida.
Mesmo assim, foi terrível para mim, quando ela morreu.
Celeste estava quieta. O azul profundo dos olhos de Annette estava muito perto dela, de modo que não via nada mais. Sentia o coração cheio
de sofrimento.
Para evitar o olhar de Annette, virou o rosto em outra direção, e seus olhos deram com o retrato de Ernest Barbour acima da lareira. De
imediato, uma tal agonia de avidez, desejo e paixão a invadiu que chegou a tremer. Pôs a mão no rosto e pressionou os dedos fundamente na
carne, num espasmo de angústia. Esqueceu tudo: apenas via o rosto retratado, que tomara o aspecto, a terceira dimensão, a cor da carne viva.
Voltou-se para Annette e depositou sua xícara:
— Devo ir-me — falou, abruptamente, em voz bastante rouca.
Agora estava tomada de terror. A qualquer momento Henri podia voltar, Henri a quem não havia visto havia quase um mês. Annette não se
moveu. Apenas ergueu os olhos, em silêncio, e seu rosto, imóvel, era indecifrável. A xícara estava em seus joelhos, seu conteúdo ambarino
captando um raio de sol, de modo que parecia ouro líquido.
Celeste se voltou e mais uma vez juntou suas rosas. O forte perfume a nauseava.
— Peter ficará tão grato... — murmurou. — Não há flores em Endur.
— Eu sei — falou Annette. — Deve ser muito triste.
Ouviram-se passos no terraço, leves e rápidos. Com renovado terror Celeste virou a cabeça, alerta, na direção dos passos. Seu coração,
subitamente trovejante, mandou-lhe o sangue para o rosto, de modo que sua palidez foi inundada por uma onda carmesim. Então relanceou os
olhos para Annette, ali sentada rígida e imóvel, e que a observava com a mais estranha intensidade.
Mas não foi Henri quem entrou. Foi Antoine, Antoine do sorriso resplandecente, crânio pequeno e lustroso, presença elegante e graciosa.
Trouxe com ele aquele ar que Christopher declarara pertencer à Internationale des Salonards. Seus sutis olhos negros reluziram
sardonicamente à vista da irmã e da tia, e fez-lhes uma exagerada reverência.
— Senhoras! — exclamou. Atirou-lhes um beijinho. — Bem a tempo para o chá, estou vendo. Mas poderia eu ter uísque e soda, bichinha? —
acrescentou, curvando-se para beijar Annette, que passou a mãozinha frágil no rosto dele, num gesto de afeição.
— Claro! Toque a campainha. Não sabia que você viria aqui hoje. Nunca se sabe quando se vai vê-lo novamente... Como vai Papai?
— Papai? — repetiu Antoine, dando à palavra um jeitinho de sutil ridículo. — Oh! Papai, como sempre, está interessado na Lista. Noite
passada comeu pâncreas de vitela, e está observando a reação. Você sabe: a velha superstição de que “saliva de leão cura feridas de leão”. A
pedra mágica na cabeça do sapo cura pedras nos rins — continuou ele, ante o olhar interrogativo de Annette. — Cérebros de cães curam febre
cerebral, ou tumores no cérebro. Comer fígado é bom para quem tem mau fígado. E assim, o querido Papai acredita que o pâncreas de um
inocente animal normalizará seu próprio pâncreas. Nós observamos e esperamos.
— Você é repelente! — falou Annette, com um sorriso afetuoso. Suspirou: — Pobre Papai! Quando não posso vigiá-lo, tem as ideias mais
exóticas e perigosas. Pâncreas de vitela estão na Lista?
— Nunca estudei esse interessante documento — replicou o irmão.
Voltou-se galantemente para Celeste, que continuava de pé, silenciosa. Ele pensou: “Está ficando mais magra e mais pálida... Está
descarnada, a linda cadelinha Desejo, sem dúvida. Que olhar devorador tem ela...”
Disse:
— Então, Celeste, como vai o nosso gênio?
Ela se sobressaltou um pouco, e o olhou com dureza, odiando-o, repudiando-o.
— Suponho que se refere a Peter? — respondeu a moça, com o mais completo desprezo. — Peter está bem. Muito ocupado.
A criada entrou, com o uísque-soda. Antoine se inclinou sobre a bandeja e encheu um copo. Aspirou-o delicadamente. Sacudiu a -cabeça com
tristeza:
— Seu estimado marido, minha bichinha, tem um gosto execrável para uísque! Um dia desses eu lhe darei uns conselhos. Este cheira a bebida
fermentada de banheira, do tempo da Proibição.
— Você é muito grosseiro — falou Annette. — Sabe que Henri bebe muito raramente, ou não bebe de todo.
Antoine sacudiu a cabeça várias vezes, vagarosa e sabiamente:
— Mas deveria, minha querida. Deveria, realmente. Creio que esta é a dificuldade com ele. Um homem que não bebe é perigoso. E, por vezes,
também é vulnerável.
Bebeu e fez uma careta:
— Um homem que não foge ocasionalmente à realidade, eventualmente enlouquecerá — observou, erguendo o copo e virando-o nos dedos
morenos e finos. — Hitler não bebe. Ergo, é louco. Henri não bebe. Ergo...
Annette riu. O doce e musical trinado de sua risada era como a nota de um passarinho...
— Ergo? — repetiu.
— Ergo, ele é seu marido — disse Antoine, ligeiramente.
Tornou a voltar-se para Celeste. Seus olhos negros, postos nela, faiscavam diabolicamente:
— Estou certo, Celeste?
Ela o olhou:
— Você diz absurdos! — Hesitou, e acrescentou: — Querida, na verdade, tenho de ir embora.
Porém Annette estendeu a mão e apertou a dela calorosa e carinhosamente:
— Oh! Não se vá ainda, querida! Antoine acabou de chegar!
— Enchendo o ar de brilho e de alegria! — observou Antoine.
— Sou um demônio fascinante, não é mesmo, Celeste? Não como nosso pesado vilão, Henri? É verdade que as mulheres preferem os
demônios? Ou preferem geleiras como o nosso Homem de Ferro?
— Antoine! — protestou Annette, com uma risada. — Não chame Henri assim!
— Bem, então que tal velho “Cara de Pedra”? — ele perguntou, desmanchando os leves e brilhantes cabelos dela. Sua mão estava
extremamente terna. Ela ergueu os olhos para ele, enternecida:
— Você é tão malvado! Tem um nome para todo mundo, não tem? Como me chama, seu miserável?
Ele fez uma pausa. Contemplou-a com uma estranha mudança em suas elegantes feições morenas, e disse:
— Talvez a “Dama de Shalott”. Lembra-se? Ela se sentava em frente de um espelho e fiava grandes teias de tecido prateado. Não ousava
afastar-se do espelho e olhar o mundo real que ele refletia.
Calou-se por um momento. Virou-se para Celeste tão rapidamente que ela recuou, como para evitá-lo. — Você se lembra, não, Celeste?
— Não — ela falou friamente, os braços apertando as rosas.
— Nem eu — disse Annette. Recostou-se no sofá e sorriu.
— Continue, Antoine.
Ele tornou a encher o copo, mas não bebeu. Fitou seu conteúdo, sorrindo de modo peculiar:
— Havia uma maldição sobre a Dama de Shalott. Estava condenada a nunca olhar o mundo diretamente, mas apenas seu reflexo no espelho.
Ela viu o rio verde através dele, perto de seu castelo, e as ladeiras arborizadas, e o tráfego sobre a água, e as torres da cidade distante. Viu
Lancelot no espelho, e apaixonou-se por ele. E então... afastou-se do espelho para vê-lo claramente.
Ergueu aqueles chispantes olhos negros e olhou para Celeste, mas falava à sua irmã:
— E quando ela viu Lancelot, sem ser no espelho, morreu. E o espelho rachou de alto abaixo e caiu sobre ela em milhares de estilhaços
prateados.
Annette estava muito pálida, mas sorridente:
— Era bonita, essa Dama de Shalott? — perguntou.
— Tão linda que chegava a ser uma lenda — replicou o irmão, tornando a voltar-se para ela. — Sou um demônio caprichoso, não é, bichinha?
Sempre poeta... Não se incomode. Nunca olhe fora do espelho. Ele rachará. Sempre racha. — Subitamente, acrescentou para Celeste: — Seu
espelho já rachou?
Porém ela contrapôs, com um sorriso forçado:
— Como me chama, Antoine?
Ele a fitou, meditativo, e fingiu concentrar-se nela:
— Outrora eu a teria alcunhado “Inocente no Estrangeiro”. Mas, de certa forma, isso já não lhe assenta. — Estendeu a mão e lhe deu uma
palmadinha no ombro, alegremente: — Encontrarei um nome para você, não se preocupe. Alguém já lhe disse que seus olhos são como
delphiniums (Delphinium = esporinha dos jardins. (N. da T.)) Celeste? Não, estou enganado. São pedras azuis. Punhais azuis. Isso é melhor.
Disse Celeste, olhando-o fixamente:
— Sabe seu próprio nome? Chamam-no “Substituto”. — Parou e o olhou de cima abaixo com deliberado desdém: — Mas... não sei. Você
sabe: meu pai, seu avô, era um cavalheiro.
Os olhos negros de Antoine se estreitaram até ficarem como fendas brilhantes no rosto escuro e diabólico. Era desagradável o sorriso de
Celeste. Ela virou-se para Annette, cuja aflição era evidente:
— Adeus, querida — falou, beijando a sobrinha com súbita gentileza. — Vou telefonar-lhe em breve. Virá almoçar comigo.
Saiu da sala, andando rápida e ereta. Antoine a via afastar-se, com um sorriso virulento. Annette gritou:
— Oh! Antoine! Como pôde ser tão cruel? Agora você a magoou, e eu a amo tanto! Gastei um tempão para convencê-la a vir aqui hoje, e agora
ela não voltará...
Ele se sentou ao lado dela, passando o braço por seus ombros infantis. Apertou-a de encontro a si. E estava agora muito grave:
— Queridinha, posso dar-lhe um conselho? Mantenha-se longe de Celeste. Deixe-a em paz. Será melhor para vocês duas.
Caminhando com pés entorpecidos e desajeitados, Celeste entrou em seu pequeno carro, depositando as rosas a seu lado. Saiu da ampla e
sinuosa avenida de Robin’s Nest e se encaminhou para a estrada quente e solitária. Então fez alto sob uma grande árvore, parou o carro,
descansou os braços no volante. Ficou a olhar para diante de olhos enxutos, durante muito tempo, antes de dar partida ao carro novamente e
voltar a casa.
Encontrou Peter descansando após seu dia de trabalho. Ele a recebeu ansiosamente. Porém, antes de beijá-lo, ela pôs a mão em sua testa e
no rosto quente. Sua mão era gentil e cheia de ternura. Sentou-se perto dele, depois de colocar num jarro de água as rosas de Annette.
Ele lhe perguntou como fora o seu dia, porém ela sabia que estava apenas sendo polido e afetuosamente solícito. Ele queria que ela lhe
perguntasse a respeito de seu trabalho. Ela assim o fez, e ele se inclinou sobre a mesa e pegou um maço de papéis. Agora os olhos exaustos
eram patéticos em sua incerta exultação.
— É muito difícil condensar coisas. É uma questão de classificar e eliminar, escolher os pontos culminantes, descartar e encurtar. Quando
escrevi meu primeiro livro, tinha um tema só: a formação de guerras pelos fabricantes de armamentos e os políticos venais. O campo de suas
atividades era necessariamente estreito e bem definido. A separação entre as nações era bem definida. Mas agora não há limites, não existem
fronteiras. Mesmo no campo da indústria, uma coisa se estende dentro de outra num intrincado sistema de subsidiárias. Os industriais são
agora os verdadeiros governantes do mundo. Não posso resumir nada. Quando comecei com os Bouchards, descobri esse sistema de raízes
alastrado na Bolsa, no Reichsbank, no Banco da Inglaterra, e depois na I.G. Farbenindustrie, e numa quantidade de outros interesses industriais
por toda a Europa, no mundo inteiro. É uma rede sinistra. Puxo uma ponta, e toda a estrutura se movimenta. Eu precisaria escrever uma dúzia
de livros, e isso seria apenas o começo.
Celeste pegou o maço de papéis. Sentia-se esgotada e doente. Num momento ele se daria conta. Disse, em voz alta e clara:
— Posso ler isto, querido? Agora?
— Claro! — ele replicou, ansioso, e tocantemente lisonjeado. Ficou a observá-la enquanto ela lia os papéis com toda a aparência de
concentração. Depois de muito tempo, ela baixou a papelada e o fitou vagamente:
— A história é tão horrível, tão fantástica, que não será acreditada, Peter. Esta é a salvação deles: a enormidade da verdade é inacreditável.
Sim, eu tinha uma ideia de tudo isso, pelo que tenho ouvido e pelo que você me disse. Contudo, mesmo eu acho isto inacreditável. Como,
então, será aceito pelo povo?
Ele se inclinou para ela com súbita paixão:
— Nos dias que correm, Celeste, a moderação é omitida, a prudência aborrece. Tudo é de tamanho desproporcionado, gigantesco,
clamoroso. Se eu escrevesse de modo contido, negligenciasse ou depreciasse fatos, sussurrasse de modo conservador, o livro não teria valor,
nem público. Como já disse, realcei os pontos críticos, exibi apenas os crimes mais importantes, só revelei os maiores criminosos. Talvez você
ache isso sensacional. Mas só o sensacional atrai a atenção do povo americano. Isto não é um manual de criminologia, Celeste. É uma
revelação. Ninguém se lembra dos revolucionários princípios de Lutero. Lembra, sim, que ele atirou um tinteiro no demônio.
Celeste pousou na mesa o maço de papéis:
— Georges publicará isto, Peter?
Ele hesitou, entristeceu:
— Receio que não. Mas deu-me um conselho: sugeriu que eu fale com o editor de Thomas Ingham’s Sons, em Nova York, Cornell Hawkins.
Sabe, de repente Georges ficou muito suscetível a respeito da Família. Além disso, está ficando velho. E cauteloso. — Acrescentou: — Irei a
Nova York segunda-feira, para ver Hawkins. Francamente, não tenho muitas esperanças. Vai dizer-me, naturalmente, que os leitores
americanos não estão interessados. Ou melhor: que as mulheres americanas não estão interessadas. E, neste país, as mulheres formam a
maioria dos leitores. Elas preferem “simples histórias de amor” e outras bobagens, especialmente se houver uma “heroína” adorável.
Sua voz se tornara amarga. Empurrou os papéis de súbito com mão desesperada, depois cobriu os olhos por um momento.
— Eu estaria interessada — disse Celeste. — Certamente as mulheres americanas, cujos maridos e filhos vão morrer, também se
interessarão. As mulheres, agora, é que ouvem a voz que chora no deserto. Os homens estão ocupados demais ganhando dinheiro. Aprovam
qualquer coisa, desde que sejam deixados em paz o tempo suficiente para acumular uma conta no Banco, ou comprar bugigangas. Parece-me
que essas bugigangas substituíram o interesse político na América. Se os colonizadores americanos tivessem estado interessados num fluxo
diário de bugigangas nunca teríamos tido uma Revolução. O progresso tecnológico matou o desejo do homem comum de participar do
Governo.
— Porque isto serve ao amor infantil do homem comum pelos brinquedos — afirmou Peter, com insistência. — E brincar com essas coisinhas
destrói a idade da razão, a capacidade de pensar. Sabe, deve haver um desígnio profundo e sinistro em tudo isso.
Celeste estava silenciosa. Mirava através das amplas janelas. Só ao pôr-do-sol Endur era suportável. Então os terrenos vazios, despidos de
folhagens e outras obstruções naturais, ofereciam um panorama imenso, amplo e solene, do céu ocidental. Esse céu era agora um lago de
chama palpitante, onde flutuava o sol vermelho e incandescente. O gramado liso e vazio tinha um sombreado róseo, como o reflexo dos céus.
Naquele lado da mansão, a cavalgada de pontudos álamos estava de pé contra o céu escarlate e imóvel. Imenso era o silêncio, como se toda
vida estivesse em suspenso.
Celeste falou apressadamente, numa voz ligeira e sem tonalidade cheia de dor contida:
— Amanhã vamos até Placid Hills, Peter, para ver em que pé está a construção da nossa casa. Odeio Endur! É como um deserto... Além disso,
você mesmo notou que Edith e Christopher não têm pressa alguma de voltar à Flórida. Edith sugeriu, esta manhã, que eles poderiam querer
voltar a Endur. Claro, ficariam muito satisfeitos de ter-nos como hóspedes permanentes, ela disse: — A boca de Celeste se torceu com
amargura. — Nunca pude suportar este lugar!
Peter hesitou. Estava quase a dizer que no dia seguinte desejava trabalhar, e que não estava particularmente interessado na casa em
construção em Placid Heights. Mas algo na voz de Celeste o fez ficar silencioso. Pela primeira vez ele a via claramente. Durante semanas havia
estado tão engolfado em seus pensamentos, nos planos para o livro, que na realidade nem enxergava a esposa. Agora ficou alarmado. Ergueu-
se a meio da poltrona, e olhou penetrantemente seu perfil. Seria apenas a sinistra luz do ocaso que a fazia parecer tão magra, tão doente, tão
perturbada e contida? Suas feições estavam afiladas, havia um sombreado escuro sob os ossos da face, e os lábios, habitualmente
florescentes e cheios, estavam ressecados e pálidos. As narinas, sempre delicadamente arfantes, agora estavam tão distendidas que
pareciam perpetuamente em luta para respirar. Viu que os dedos dela estavam apertados numa atitude de autocontrole.
— Celeste! — falou, alarmado. — Minha querida, você parece doente! Que se passa?
Adiantou-se e cobriu com as mãos as mãos dela, tensas. Sentiu-lhes a firmeza e a frialdade. Mas seu sorriso, quando se voltou para ele, era
completamente calmo, cheio de ternura. No entanto, havia uma opacidade em seus olhos, e ela não o olhou diretamente:
— Nada de errado, querido! Talvez eu esteja um pouco cansada. Tem estado muito quente, você sabe. Nem sei dizer-lhe o quão ansiosa estou
para que tenhamos a nossa casa.
Pôs-se de pé, subitamente, empurrando-lhe as mãos gentilmente. Riu um pouco, tensa.
— Sabe de uma coisa, Peter? Acho que não posso suportar ver mais os Bouchards. Eles... me asfixiam! Coisa horrível para dizer a respeito da
própria família, não é? Antoine chegou hoje, exatamente quando eu estava deixando Annette. Ele é uma criatura horrível, é cheio de insinuações
e de malícia. Jamais gostou de mim, e receio, agora, que eu o odeie!
— Insinuações? — repetiu Peter, lentamente, olhando-a atentamente. — Que insinuações, Celeste?
Ela estava apavorada! Os olhos de Peter, fixos nela, eram tão claros e firmes, tão perceptivos... Em seu medo ela não podia mover-se ou falar,
e o olhar de Peter a esquadrinhava, a examinava. Ela contemplou seu rosto emaciado e intelectual, suas têmporas com veias altas, e os finos
cabelos claros. Estava indefeso, esse homem bom e honrado, que a amava, e a quem ela traíra... Quem podia comparar-se a Peter? Peter,
que nunca pensava em si mesmo, cuja única paixão e preocupação era por toda a humanidade, seu sofrimento, seu desespero? Ela se sentiu
impura, degradada, imprópria para ser vista por ele. O remorso era uma quentura metálica em sua boca, uma dor ardente em seu coração, que
ela não podia suportar. Encarou-o sem palavras, olhos arregalados de tormento.
— Você quer dizer “insinuações” a meu respeito? — ele continuou. Sorriu, tristemente: — E isso importa, querida? Eu nunca me importei, você
bem sabe. Não gosto de Antoine. De certo modo, ele me lembra seu pai, e Jules e eu andávamos sempre às turras.
E agora a ofendi — acrescentou, vendo o tormento aumentar nos olhos de Celeste.
— Não! — ela murmurou. — Oh, não, Peter! Você nunca poderia ofender-me.
Caiu de joelhos ao lado dele, mas não o tocou. O olhar dela implorava, apaixonadamente, desesperadamente. Ele estava alarmado e
espantado. Então sorriu com infinito amor, e gentilmente lhe tocou os cabelos. Ela deixou cair a cabeça em seus joelhos, e ficou imóvel.

Capítulo 22
— Não, não me compreendeu — falou Peter, com a urgência febril que ia aumentando nele. — Tentei mostrar que toda essa vilania, toda essa
conspiração implacável e rapace, todo esse império industrial inter-relacionado que não conhece limites nacionais, nem lealdades, nem
idealismo, não operam em separado do resto da humanidade. Tentei mostrar que a indiferença do mundo, a ganância particular e a estupidez,
a falta de valores humanitários é que permitiram, e estão permitindo, o crescimento desse império industrial internacional que se inclina a
escravizar todos os outros homens. Se esses monstros e vilões, esses conspiradores, foram finalmente bem-sucedidos, e receio bem que o
sejam, a culpa recairá sobre todos os homens em todos os lugares... não sobre apenas uns poucos.
“Você só tem de olhar a América. Em certo tempo, nos primeiros dias da República, era a política a preocupação principal do jovem povo
americano. Por isso elegemos um Washington, um Adam, um Jefferson, um Jackson, um Lincoln. Cada candidato era examinado
minuciosamente por seus eleitores. Tivemos um ilustre desfile de Presidentes. Mas agora abandonamos a política aos políticos. A política
opera acima e além do povo, que não quer ser perturbado, mas deseja que o deixem gozar seus esportes e prazeres infantis, e seus múltiplos
brinquedinhos... que lhe foram dados para distrair-lhe a atenção. Desde Lincoln, que Presidente tivemos que fosse nobre, um homem de
Estado, preocupado com o bem-estar de seu povo e o bem-estar do mundo? Poderá citar Wilson, Sr. Hawkins. Mas os políticos americanos é
que o mataram. Tivesse o povo estado desperto, cônscio, e não fosse estúpido e insensível e fascinado pelo movimento da Bolsa e por lucros
fáceis e brinquedinhos, Wilson teria sido bem-sucedido em seus planos para regenerar o mundo, despertá-lo para responsabilidades morais e
espirituais para com seus vizinhos. Como pode ter êxito um herói se seu povo é ignorante, egoísta, cego e surdo? E o plano de seus novos
senhores é mantê-lo assim. De modo que o que vai acontecer à humanidade em futuro próximo é culpa do povo americano, do povo britânico,
do povo francês, e não apenas do povo alemão.
— O senhor quer dizer — falou o Sr. Hawkins — que o povo cria seus próprios destruidores e opressores?
— Sim — replicou Peter. Ficou silencioso um momento, apertando as mãos na pasta que continha parte de seu manuscrito. Sua expressão
tornou-se sombria. — Depois, há outra questão, em que pensei. Nos primeiros tempos da República, o povo americano era uma raça
homogênea. Havia herdado a consciência política e o interesse de seus ancestrais britânicos. E isso, combinado com o “pensamento elevado
e o modo simples de viver” dos Puritanos, deu a esse povo um senso de responsabilidade nacional e uma universalidade de percepção. Era o
melhor dos povos: eram homens simples, mas inteligentes, com idealismo e racionalidade. Compreenderam que o mundo não podia viver
meio-escravo e meio-livre. Por isso é que entusiasticamente apoiaram e ajudaram a Revolução Francesa. Por exemplo: se ainda houvesse a
escravidão negra no Sul, duvido muito que o povo americano pudesse ser levado, naquele tempo, à indignação, a uma cruzada contra essa
escravidão.
“Por quê? Porque já não somos espiritualmente homogêneos. Grande parte de nossa população se compõe de imigrantes de nações-
escravas, que legaram a seus filhos sua filosofia escrava, sua ignorância espiritual e sua preguiça. A instrução em nossas escolas públicas não
os esclareceu, ou lhes aumentou a paixão pela liberdade, pelos ideais americanos. Os filhos dos insensíveis alemães escravos, dos
camponeses eslavos, dos italianos famintos não podem possuir a alegria ardente da liberdade. Não podem, e jamais poderão sentir esse
brilhante entusiasmo pelos direitos do homem que os primeiros americanos acharam a coisa mais preciosa da vida. Não vieram para a
América, como os Colonizadores e os Puritanos, por não poder mais aturar o antagonismo da Europa para com seu ódio à opressão, seu
desejo de liberdade. Vieram para comer, para devorar, para violar, para destruir. E para trair.
Acrescentou, sombriamente:
— Quando chegar para a América a hora final de prova, como pode essa multidão-escrava ser despertada para defender nosso país, morrer
por ele, se necessário? No momento de nosso perigo, não é possível que essa multidão, através da influência de seus sacerdotes, seus
senhores, seus exploradores, deserte, traia, e nos destrua?
— Sombria perspectiva... — observou o Sr. Hawkins, pensativamente. — Acredita que isso possa acontecer, Sr. Bouchard?
— Certamente. Você só tem de olhar nossas várias organizações estrangeiras inventadas. A Bund teuto-americana. As várias organizações
ítalo-fascistas. Os ucranianos “Brancos”. As organizações que deram ajuda e conforto a Franco. Que farão essas na hora final? Como poderá o
povo americano sobreviver a elas? Subornaram membros de nosso Departamento de Estado. São financiadas por nossos grandes financistas
e industriais. À medida que o ritmo se eleve, depois que a guerra for declarada na Europa, elas se tornarão mais ativas, e mais perigosas. E
enquanto agem assim, o povo se tornará mais apático, mais isolacionista, mais desunido. Nisso reside o nosso perigo.
Cornell Hawkins estava silencioso. Reclinou-se em sua antiga cadeira giratória e fitou Peter com seus gelados olhos azuis. Esse descendente
dos Puritanos da Nova Inglaterra, de discípulos de Thoreau, de Emerson, era enxuto e esbelto nos seus cinquenta anos, grisalho, ríspido e
pensativo. Sua fisionomia calma e reflexiva expressava a força de intelecto que já adquirira fama entre sábios e artistas. O seu não era a
ostentação e o brilho de homens inferiores e mais explosivos. Seu intelecto tinha a dispersão, aquela totalidade e fria austeridade de uma
paisagem da Nova Inglaterra vista sob os claros céus hibernais. Nada de vago, de confuso, de duvidoso, no seu quieto e penetrante olhar.
Possuía aquela tranquilidade e consciência, aquela indiferença patrícia que é a marca do aristocrata. Seu sorriso era lento e de esguelha,
porém gentil; seu modo de falar, baixo e hesitante, mas incisivo. Só ria silenciosamente, e bem raramente, e então sua jovialidade desiludida
aparecia apenas em seus olhos — com brilho maior e mais azul.
Era sincero e bondoso, pensativo e cauteloso, cortês, mas firme. Possuía a indiferença aristocrática pela elegância de alfaiate — que assinala
o plebeu. Raramente estava sem o chapéu um pouco usado, e não fazia poses. Eternamente segurando um cigarro aceso, sua mão era magra
e bem-formada. Quando ouvia uma frase que lhe interessava, suas feições adquiriam vida, tocadas de uma luz fria, brilhando com um real
prazer.
Peter, sentado à desordenada secretária desse grande e afamado editor, sentia paz. Sua insistência já não era quente e confusa. Era
compreendido. Suas incoerências se tornaram coerentes sob essa espécie de olhar glacial. Acreditou que suas palavras desajeitadas não
eram levadas em consideração, mas seu pensamento era entendido. As empoeiradas janelas do escritório amplo e desguarnecido deixavam
entrar a jorros o sol do verão, fazendo brilhar as partículas de pó em suspenso. Aqui não havia pretensão, nada de grossos tapetes e mobiliário
fino para impressionar. Pilhas de manuscritos se mostravam na secretária lascada, cinzeiros transbordantes, desordenadas pilhas de cartas,
canetas e lápis espalhados. O assoalho era encardido e desbotado. Cadeiras de pernas rinchadoras encostavam-se às paredes mofadas.
Porém, do meio dessa desordem, desse desleixo e indiferença pela elegância, havia saído alguma da mais fina e nobre literatura do mundo.
Esse homem tinha classe, nessa sala cheia de rigorosa e quente luz solar, de grandeza e simplicidade. Sabia-se instintivamente que a um
aterrorizado autor novato seria dada a mesma cortesia e consideração que ao mais vistoso e popular escritor que se podia gabar de dez ou
vinte “grandes tiragens.”
Peter sabia que o Sr. Hawkins não estava impressionado pela presença de um Bouchard em seu escritório. Era visto como um homem, como
um autor apaixonado, apenas. Se o Sr. Hawkins julgasse que seu trabalho tinha valor, integridade, e colorido, então podia estar certo de
merecer uma audição, e talvez publicação. Se o Sr. Hawkins acreditasse que era um estúpido, amador, sem valor e inutilmente violento, não
haveria considerações que pesassem a seu respeito.
Algo compacto, indefeso, e medroso em Peter relaxou. Pensou:
“Gostaria que esse homem fosse meu amigo. Não tem rodeios, nem crueldade, nem astúcia. Existe nele uma qualidade mística, uma dúvida e
uma busca filosóficas. Nunca tive um amigo! Se ele gostar de mim, então estarei livre. Se considerar meu trabalho, saberei que tem valor."
Por sua vez, o Sr. Hawkins simples e abertamente estudava Peter, sopesando-o. Peter lhe enviara a primeira quarta parte de seu manuscrito
uns dias antes. Ele encontrara tempo para lê-lo, entre grande quantidade de manuscritos. Ficara impressionado com a paixão e a sinceridade
de Peter. Agora descansava a mão na pilha que havia lido, e pensativamente a desfolhava.
— Diz que seu primo, Georges Bouchard, não quer considerar a publicação disto? — perguntou.
— Não — replicou Peter, brevemente, corando um pouco. — Considerações de família, sabe como é...
O Sr. Hawkins sorriu tristemente;
— É caso de difamação, claro!
— Mas tenho as provas, os documentos! — gritou Peter, com novo desespero.
— Entretanto, verdade não é garantia contra um processo por difamação — disse Hawkins, estranhamente. — Se Jesus fosse vivo hoje, e
fazendo suas observações a respeito de certos fariseus, Ele seria processado por meio milhão de dólares. Naquele tempo, apenas puderam
crucificá-lo. Naturalmente, processos por difamação são uma forma de crucificação. Temos de ser cautelosos, bem sabe.
Esfregou os lábios finos com a mão, pensativamente, e fixou Peter com o fio azul de seus olhos:
— Não pensou em publicar isto o senhor mesmo, Sr. Bouchard?
A cor de Peter se alterou. Respondeu, rispidamente:
— Não! Pensei que seria péssimo! Há um estigma em publicar o próprio trabalho. Como se ninguém o achasse digno do risco. Meus parentes
se divertiriam enormemente, e se sentiriam gratificados, se eu não achasse um editor.
— Mas Georges Bouchard publicou seu primeiro livro, The Terrible Swift Sword?
— Sim, anonimamente — disse Peter, penosamente. — Além disso, a família não o processaria. Isso seria lavar a roupa suja em público.
Especialmente porque assim meu anonimato teria sido exposto.
— E apenas considerações de família fazem com que ele não publique este? Por que, então, publicou o seu primeiro?
Peter ficou silencioso por alguns momentos. Mordeu o lábio. Então falou, hesitante:
— Francamente, não compreendo. Pensei que alguma pressão forçara o velho Georges: é só o que poderia explicar isso
A cadeira de Hawkins rinchou quando gentilmente se balançou nela. Acendeu outro cigarro, de onde puxou algumas fumaças meditativamente.
Peter o observava com profunda ansiedade.
— Olhe, tem de dizer-me uma coisa, Sr. Hawkins: fora suas revelações, meu livro tem algo que o recomende? É amadorístico, mal escrito?
— Não, não é amadorístico — falou Hawkins, pausadamente. — Tem drama, e fogo, e cores fortes! O que é raro em escritos informativos. Sou
um antigo jornalista, e querem que exerçamos contenção em nosso trabalho. Temos de adquirir aversão a adjetivos. — Falou incisivamente, em
sua voz calma e hesitante. Depois sorriu: — Entretanto, gosto de adjetivos. Não gosto do moderno modo rígido de escrever, que substitui por
pontos de exclamação e obscenidades a boa perícia profissional. Não há exuberância ou paixão entre os escritores modernos. Acham isso
vulgar, ou coisa assim. Riqueza de frase e opulência de adjetivos... são “vitorianos”. Muito luxuriante, acreditam. Pessoalmente, lamento isso. A
rigidez pode ser decadente, o senhor sabe, especialmente a moderna rigidez autoconsciente. Só quando pura e sincera a rigidez é sadia e
cheia de beleza.
Peter ouvia, e aumentava seu senso de bem-estar e liberdade:
— Então, pode considerar a publicação disto?
Mais uma vez, Hawkins sorriu estranhamente:
— Serei franco, Sr. Bouchard. Seu nome tem de ser tomado em consideração, claro. Num livro, seu nome aumentará a possibilidade de
grandes vendas. Quero que compreenda isso, para que não pense que tomamos seu livro, se o fizermos, sob falsos pretextos. Os editores são
negociantes, também. Vendemos livros. Devemos ter lucro, ou deixar os negócios. Isto é que é tão difícil de compreender, para o autor comum.
Ele roseamente acredita que um livro deveria ser publicado por seus méritos... e o seu próprio livro, claro, sempre tem uma porção de
qualidades, a maioria “artísticas”... Arrogantemente desdenha o fato de que seu livro provavelmente não venderá. Se mencionar isto, ele o
favorecerá com um olhar de soberbo desprezo. Que importa isso?, pergunta. O público precisa que livros de mérito lhe sejam empurrados
garganta abaixo, para seu próprio bem. Acha que os editores deveriam ser os cruzados de uma nobre causa. Superóleo-de-fígado para um
público que gosta de pirulitos. Felizmente para seus acionistas, os editores discordam dessa opinião. Publicamos livros que pensamos, ou
esperamos, que venderão: aí todo mundo, do impressor ao autor, ficará feliz.
Deteve-se. As faces emaciadas de Peter coraram de mortificação. Hawkins o observava atentamente. Sorriu um pouco, embora estivesse
comovido pela expressão de Peter:
— Não estou falando pessoalmente, claro. Dinheiro não é consideração em nosso caso. O senhor é um cruzado. Mas escreveu de modo
interessante, e com força. O que tem a dizer é grave e significativo; melhor ainda, é bem escrito. Acho que pode ser popular. Não posso
garantir. Mas penso que pode. E seu nome despertará interesse preliminar entre os críticos, e o público. Penso que é chegado o dia em que o
público estará mais interessado em não-ficção do que em ficção. Meus competidores não concordam comigo nisso. Pensam que a história de
amor é a coisa mais importante para escrever. Chamam a isso: “interesse humano”. Como se não houvesse interesse humano em nada que
não seja um par de adolescentes e seus sentimentos mútuos.
Ficou silencioso um momento, depois continuou mais fortemente:
— Acho que há interesse humano no que escreveu. O mais terrível e pressago interesse humano. Também acredito que os leitores americanos
estão “crescendo”. Acredito que se deve dizer agora aos americanos quem são seus inimigos, e por que devem defender-se. Sabe, sou
americano.
Tornou a sorrir, um tanto tristemente. Mas a frieza de seus olhos se desfez em bondade. Levantou-se:
— Vamos almoçar. Falaremos mais a este respeito. Tenho de discutir seu livro com o Sr. Ingham, primeiro, claro. Em poucos dias lhe darei
uma resposta.
Enquanto Peter acompanhava o editor no elevador rangente, mais uma vez experimentou aquela sensação de libertação, de conforto, de paz,
porque tantos haviam passado na presença desse homem grande e simples que tinha apenas bondade para o sincero, e simpatia para o
honesto, porém o máximo desprezo para com o afetado e o néscio.
Livro Dois - O Começo das Dores
“Levantar-se-á nação contra nação e reino contra reino, e haverá fomes e pestes e terremotos em diversos lugares... Tudo isso é o começo das
dores.”
Mateus XXIV: 7,8
Capítulo 23
Armand estava só em sua grande casa cheia de ecos. Estava sempre muito só. Vagueava pelos imensos quartos, fracamente iluminados, os
cantos cheios de sombras como teias, os pés hesitantes sem lazer som devido aos grossos tapetes. Era um homem anulado por uma
integridade que nunca fora o bastante. Em algum lugar, nos vagos recessos do seu íntimo, sabia disso, mas estava apenas confuso,
espantado. Tinha ido longe, e praticado muito mal. Sofismara petulantemente apenas nas pequenas coisas, mas aí com aguda veemência,
sentira então um suavizante de sua consciência, um afrouxamento de tensão. Assim, por muitos anos se iludira achando-se melhor que sua
família, e que era um homem intrinsecamente bom. “No coração — diria a si mesmo — sou realmente um homem bom.”
Mas agora a fórmula de encantamento já não agia. Ele a repetia vezes sem conta, agora que estava velho, mas não lhe trazia conforto. Estava
face a face consigo mesmo, mas ainda não podia mirar-se no desapiedado espelho mantido diante de si.
Certa vez gritara para si mesmo:
“Se ao menos eu fosse completo!” Queria significar que desejava nunca ter tido aquela pequena integridade que tanto o atormentara toda a sua
vida e nada lhe trouxera, nem ao menos um pouco de paz.
“Ninguém vem visitar-me...” — teria pensado, enquanto ia, inquieto, de sala em sala. — Embora eu ainda possua cinquenta e um por cento das
ações de Bouchard.” Ainda não chegara ao ponto de poder sorrir disso, ou explodir em riso. Ainda era uma questão, para ele, de queixosa e
solitária cogitação. Repetia vezes sem conta; “Cinquenta e um por cento!” E depois sacudia as moedas que trazia no bolso e, com satisfação
infantil, ouvia o seu tilintar.
“Cinquenta e um por cento...”, murmurava, depois que o tinido das moedas o acalmava um pouco. E sorria. Enquadrava os ombros gordos e
curvados e olhava desafiadoramente em torno de si, embora nada a não ser paredes silenciosas seus olhos encontrassem. Então, ainda era
poderoso! Os cinquenta e um por cento se interpunham entre ele e a horripilante realidade. Nesses momentos mais otimistas podia iludir-se de
que o ciúme e a inveja é que o mantinham tão solitário em sua vasta e vazia mansão. Os parentes o odiavam por seu poder financeiro. Davam
vazão a seus ressentimentos evitando-o.
Por vezes ele espiava através das janelas escuras, que refletiam as lâmpadas espalhadas, e olhava lá embaixo a estrada silenciosa que lhe
atravessava o parque. Às vezes prestava ouvidos ao som de algum carro, ou de pneus cantando no asfalto... mas não havia som: apenas o
vento. Ia para outra sala, olhava através de outras janelas que revelavam o rio escuro e faiscante e o distante cintilar de luzes do outro lado. Um
vapor apitava; as árvores perto da janela chocalhavam asperamente. Muitas vezes ele ouvia o apito de um desolado trem, o eco de sua
passagem se o vento estivesse em sua direção. A mais fria e solitária das luas batia nos peitoris das janelas ou tocava com sua luz prateada
suas bochechas gordas e desanimadas. Era o rosto de um fantasma que espiava esperançosamente através das vidraças polidas.
Movendo-se sem barulho pelos grandes vestíbulos acarpetados, os criados tinham rápidas visões desse velho gordo indo de sala em sala. Ele
relanceava o olhar sobre eles sem vê-los, lambia os lábios, franzia a testa, e caminhava. Eles o viam andar, viam como se sobressaltava —
como se pensasse ouvir o tilintar de um telefone, ou passos nas calçadas, fora. Porém ninguém, a não ser a filha, lhe telefonava, e isso
habitualmente de manhã. Por vezes ele abria a porta do seu quarto e vinha para o vestíbulo, julgando ter ouvido uma voz. E depois a porta
voltava a fechar-se, e o silêncio o rodeava...
Não tinha amigos. Nos primeiros anos, fora muitas vezes convidado a jantar nas casas dos parentes, ou conhecidos. Mas isso, quando era
presidente de Bouchard & Sons. Sua conversa nunca fora brilhante. Era tímido e desconfiado, obtuso e sem imaginação. Como a maioria dos
homens com temperamento igual ao seu, dava impressão de medo, até mesmo de covardia. Ninguém jamais se preocupara com ele o
bastante para descobrir por que estava atemorizado, ou o que tanto o aterrorizava. Ele mesmo não o sabia. Quando lhe pediam uma opinião,
pesquisava o rosto amável do perguntador com seus olhinhos negros salientes, como se conjeturando que ardilosa vilania, que desejo de
apanhá-lo numa armadilha, que motivo dúplice havia inspirado ainda a mais inocente e polida das indagações. Depois respondia
cautelosamente, observando cada expressão no rosto do interlocutor que lhe pudesse revelar que se havia tornado vulnerável ou ridículo. Em
consequência, suas palavras eram sempre sem conteúdo, pesadas, sem cor ou vitalidade. Se por vezes esquecia de si mesmo, e replicava
espontaneamente, movido por alguma emoção, depois gastava longas horas ansiosamente examinando sua resposta, a ver se teria dito algo
que pudesse ser usado contra ele. Mesmo nos primeiros tempos, raramente discutiu política, acreditando — em seu patético egotismo — que
suas palavras eram sopesadas e gravemente anotadas, e mais tarde citadas em conferências como chave para uma “tendência”. Não havia
alívio ou consolo para ele em livros, pois sua única absorção na juventude fora sua Companhia. Não compreendia música, nunca dera
importância a isso: era coisa de efeminados, própria apenas para aqueles europeus decadentes que não tinham “Companhia” para interessá-
los. Não gostava sequer de golfe, esse último recurso dos ignorantes homens de negócios americanos.
Só lia o jornal de propriedade da família, o Windsor News, e o Times de Nova York. Pelo Times conseguiu alguns conhecimentos do mundo;
fora a tremenda biblioteca de notícias, ele pôde obter alguma consciência do mundo dos homens, de política, de História. Mas nunca lia nada
além dos relatórios das cotações das ações na Bolsa, notícias financeiras, obituários, e um ou dois dos editoriais mais conservadores que os
mais esclarecidos evitavam. Agora que fora afastado de sua própria Companhia, dificilmente lia alguma coisa a não ser as seções financeiras
e comerciais, e então apenas para observar a Bolsa de Valores e regozijar-se com a alta das ações Bouchard, ou desesperar-se com seu
declínio.
Por algum tempo ficara muito animado a respeito da Europa, antes do fiasco de Munique. Sem ser convidado, fora à casa dos parentes e lá se
agarrara aos homens — que entendiam de negócios. — E exortara, discutira e se encolerizara por horas. Porém eles logo descobriram que
seu conhecimento era escasso, seus preconceitos ignorantes, embora veementes, e infantil sua excitação. Mesmo os jovens e as mulheres não
puderam deixar de rir-lhe no rosto. Desde então não sabia praticamente de nada. Encerrara-se em sua solidão e infelicidade, e olhava pelas
janelas. Nada mais tinha para dar a ninguém. Já não possuía poder com que subornar ou coagir. Não era dotado de dons pessoais que o
fizessem desejado por si mesmo. Não tinha amor ou temperamento cálido, nenhuma preocupação pelos outros homens, que pudesse torná-lo
benquisto. Tinha apenas duas moedas tilintantes, seus “cinquenta e um por cento”, seu diabetes para fazer-lhe companhia nos longos dias e
nas noites infindáveis.
O seu “médico da corte”, apesar de seu enorme adiantamento em dinheiro, achou-o insuportável naqueles dias. Pois Armand chegara à última
extremidade: chamava o médico ao telefone pelo menos quatro noites por semana, para discutir com ele gravemente algum novo sintoma
suspeito em sua moléstia. As conversações demoravam pelo menos meia hora de cada vez. Nessas ocasiões o velho rosto balofo,
intumescido, ficava vivo e iluminado, os olhos brilhavam. Sentava-se na beira de uma cadeira, agarrando o telefone, a voz tremendo de ânsia
absorta, e até mesmo fanatismo. Que achava daquela nova insulina concentrada sobre a qual havia lido na mais recente edição da revista da
Associação Médica Americana? Havia algo a tal respeito? Afirmava a revista que se vaticinava que seria necessária apenas uma injeção por
semana. Que há de errado com vocês, moços? Que há de errado com as pesquisas? Estão deixando morrer toda a coisa?
O médico — homem realmente brilhante interessado em pesquisas — na verdade pudera obter, mediante lisonja, muitos milhares de dólares
do apertado bolso de Armand para certa pesquisa de laboratório na qual jovens médicos, talentosos e devotados, sem meios particulares,
trabalhavam dia e noite para descobrir novas curas e novos remédios para aliviar as agonias de homens como Armand Bouchard. Entretanto, o
dinheiro não fora suficiente, pois o médico informara a Armand, nos primeiros meses de esperança, que o laboratório precisava de milhões.
Armand não podia entender isso. Queixou-se lamentosamente a respeito da “ganância” desses jovens pesquisadores. Por que não se
contentavam em trabalhar abnegadamente pela salvação da humanidade? Por que não compreendiam que eram realmente “consagrados”?
Por que se importavam com “gordos” salários? Não era bastante servir à humanidade? Quando o médico explicou que os jovens tinham
famílias, obrigações, Armand sentiu-se ultrajado. Famílias e obrigações, na verdade! Como ousavam os bem-dotados sacerdotes da ciência
médica ter tais coisas? Eram traidores, exploradores! A ciência médica deveria ser uma fraternidade monacal, onde homens dedicados ao céu
deveriam gastar suas vidas em devoção, em nada pensando a não ser no serviço. Serviço! — Armand repetia, de má vontade fazendo outro
pequeno cheque e atirando-o ao seu médico. Quando este mencionou a Fundação Rockefeller, Armand sorriu acidamente e disse que, graças
a Deus, ele não tinha nada na consciência. Então o médico o olhou sombriamente e perguntou silenciosamente: “Não?”
O médico era corrupto e voluptuoso, não era nenhum santo abnegado. Mas às vezes fitava Armand por longo tempo e cogitava se as vidas de
homens assim valiam o trabalho dos jovens pesquisadores de olhos brilhantes naquele laboratório pobre e quente. Pensou na exaustão deles,
nas suas mãos magras e ansiosas, sua paixão pela análise, sua alegria na descoberta. Tudo isso seria primacialmente destinado a prolongar
a existência inútil e miserável de velhos gordos com moléstias causadas por mentes fatalmente afetadas? “Quem pode atender a uma mente
doente?”, citava para si mesmo. Pois estava chegando a acreditar, relutantemente, com muitas iradas rejeições, que as moléstias da carne
eram apenas manifestações externas e visíveis de doenças da alma. Descobrira — com demasiada frequência para sua própria paz de
espírito — que o sofredor de doenças do coração, de diabetes, de câncer estava enojado do mundo, e da vida, e de si próprio. Seriam essas
moléstias apenas um desejo subconsciente de morrer, de obliteração de uma mente que incessantemente o acusa, uma ânsia pela
tranquilidade eterna de um insone desespero? A carne luta por sobreviver. Mas, nos olhos do sofredor, muitas vezes o médico percebe a
agonia de uma alma que nada mais deseja... a não ser a escuridão e o nirvana, e fugir à consciência... As doenças que mutilam, também: não
serão essas o sinal de uma alma que mudamente implora ser aliviada de participação ativa em um mundo que febrilmente trabalha para nada?
Era consciência, ou desespero, ou sofrimento que adoeciam a alma, e adoeciam a carne. Isso, o médico estava começando a acreditar.
Estava revoltado, zombava de si mesmo por tornar-se um crente da Ciência Cristã, ou outras “superstições”. Mas a evidência ia crescendo.
Achou-se, completamente contra a sua vontade, hesitante com uma nova Bíblia que comprara recentemente, e iradamente lendo os
testemunhos do Novo Testamento das curas dos doentes, feitas por Jesus. “Toma a tua cama e anda” (Novo Testamento, S. Joâo V-3-8. (N. da
T.)) Jesus advertiu o paralítico. “Toma tua cama, tem coragem, tem virilidade, enfrenta o mundo da realidade e o combate com fé e bravura”, Ele
deve realmente ter querido dizer.
Para o médico, o mundo se estava tornando cheio — apesar de sua “esclarecida” resistência — de milhões de almas angustiadas e
desesperadas que não podiam suportar a existência em lugar tão horrível. Também observou que, à medida que aumentava a tensão entre as
nações, e o ódio florescia como uma flor sangrenta em todos os habitantes do homem, e o medo explodia como um gás envenenado através
das cidades, as moléstias aumentavam. Morte e o desejo de morrer estavam golpeando as almas dos homens como a ferrugem ataca as
árvores frutíferas, enegrecendo-as, murchando- as, matando os ramos floridos.
Outrora estivera a ponto de dizer a Armand:
“Dê milhões, não milhares, para meu laboratório de pesquisas, compreendendo que ajudará a ciência a descobrir novos métodos de curar
doenças — não apenas para você, mas para milhões de outros homens. Então talvez se cure.” Mas sabia que suas palavras seriam recebidas
com a maior indignação, ou consideradas com total incompreensão. Queria arrancar-se a tais especulações com uma palavra irada, ou um
gesto de desdém. Ia para seu laboratório de pesquisas, e cautelosamente e com circunlóquios, daria sugestões a suas especulações.
Descobriu, com grande surpresa, que os jovens médicos sabiam tudo a tal respeito, e por sua vez também especulavam muito.
De modo que, com maior gentileza que a habitual, ouviu as ansiosas perguntas de Armand, suas sugestões, as longas e tortuosas discussões
sobre sua doença. Sob esse fluxo de palavras, procurava uma pista sobre a causa real do sofrimento desse homem idoso, a causa real da
recusa de suas glândulas para trabalhar. Finalmente, conseguiu a pista: Armand vivia num medo crônico. De quê? De si mesmo? De outrem?
A Lista era agora o evangelho de Armand, a mágica que lhe prolongava a existência. Mas não a estava prolongando, o médico sabia. Dia a dia
ficava mais fraco. Morrer, o desejo de sua alma, em breve daria fim à vida de seu corpo. Por que isso?
O médico podia haver recebido uma pista certa noite em que Armand, em seus solitários aposentos, ouvia rádio.
Armand detestava rádios. Alguns anos antes nunca se poria a ouvir o fluxo que se movia pesadamente pelo éter. Mas agora, em seu solitário
final, ele ouvia. Da Europa, das capitais do mundo vinham vozes ansiosas, vozes exultantes, aterrorizadas, estimulantes, todas preocupadas
com uma só coisa: a decadência da civilização, a guerra próxima e inevitável, as torturas e agonias da humanidade face a face com a sua
dissolução autoconstruída. Algumas das vozes censuravam Hitler, instavam para que o mundo se levantasse contra esse louco criado pelos
poderosos, pelos concupiscentes, pelos que odiavam a raça humana. Declaravam algumas das vozes que os “provocadores de guerra
britânicos, americanos ou franceses é que estavam trazendo essa condenação sobre todos. Outras denegriam os interesseiros, os
exploradores, os velhacos, os conspiradores, os ambiciosos. Eram censurados os pacifistas que haviam mantido a América desarmada; os
“fabricantes de armamentos”, declaravam outras, haviam conspirado o horror que estava chegando — por amor a seus lucros. Nenhuma
proclamava que todos os homens em todos os lugares é que tinham concebido, tolerado ou consentido na catástrofe em ascensão. Nenhuma
afirmou que nas almas dos homens é que a culpa jazia, sangrenta. A loucura germânica ali estivera para que qualquer pessoa pudesse vê-la,
mas ninguém a revelara ao mundo. Alguns a haviam visto, mas calaram-se, esperando tirar proveito do mal.
Agora, só tumulto, desordem vinha do ar, e através de milhões de rádios em lares indefesos. Mas nenhuma voz gritou: “Vocês, que ouvem, são
culpados disto!”
Armand ouvia, encolhido em suas salas escuras, inclinando os ouvidos para o instrumento, a claridade difusa que vinha dele sendo a única luz a
iluminá-lo. E, enquanto ouvia, seu rosto se contraía, e franzia as sobrancelhas grisalhas muito juntas. Seria uma súbita fraqueza e
desintegração, uma febre entorpecedora, uma angústia sem nome.
Ele sofria como sofre um animal, com uma surpresa embotada ante sua própria dor silenciosa, com incompreensão. E com isso havia um
horror doentio e uma culpa informe. Por vezes considerava a si mesmo na obscuridade difusa, e se dizia:
“Onde estive durante todo esse tempo? Que aconteceu?”
Não tinha imaginação, nem a capacidade de analisar-se ou a outros. Apesar disso, dentro dele crescia um enorme senso de culpa, de tal modo
que sentia o sangue circular mais rápido com uma espécie de terror. Onde estava sua culpa? Não sabia. Mas o mal-estar crescia nele.
Começou a ver o rosto de Jules Bouchard no dial iluminado do rádio. Era uma face sorridente, enigmaticamente exultante, sutil e irônica.
Quando algum comentarista histericamente gritou contra os “fabricantes de armamentos”, Armand se pôs de pé e berrou: “Isto é um absurdo!
Como se um punhado de homens como eu tivesse algo a ver com tudo isso!” Sentia a veracidade de suas próprias palavras e ficou
momentaneamente confortado. Que insensatez acreditar que, alguns homens realmente tratavam de criar guerras para obter lucros! Como
ousavam os cretinos enfatizar tais idiotices! O pior é que os ignorantes e os estúpidos podiam acreditar nisso...
Sentou-se de novo, tremendo com a primeira raiva forte que sentira em muitos anos. Desligou a furiosa irrupção de palavras, e sentou-se
arquejante na obscuridade, apertando os punhos e batendo com eles nos gordos joelhos. Onde estavam Henri, Christopher, Antoine, Francis,
Emile, Nicholas — toda a maldita família? Por que permitiam todo esse infernal absurdo? E, então, viu-lhes os rostos, a passar lentamente
diante dele, e ficou silencioso.
Começou a falar em voz alta, lentamente, pesadamente, incredulamente:
“Sim, naturalmente! São culpados. Todos somos culpados. Não apenas nós — não os Bouchards apenas. Mas gente como nós, na Alemanha,
na França, na Inglaterra. Pessoas como nós, que fizemos Hitler, que o armamos, que embarcamos para ele material de guerra, que lhe
emprestamos dinheiro, que conspiramos com ele, contra nossos próprios países, nosso próprio povo! E por que o fizemos?”
Franziu as sobrancelhas, e mordeu os lábios na escuridão. Havia nele um tremor tão profundo que vagamente chegou a pensar que a casa toda
oscilava numa vasta agitação. Apertou os punhos sob o queixo e se encolheu na cadeira, figura grotesca com uma grande cabeça parcialmente
coberta por cabelos grisalhos. Nessa obscuridade, podia parecer um gordo gnomo, a concentrar-se como não o havia feito por muitos anos, a
mente doendo e palpitando, coração agitado.
Recordava todos aqueles anos em que fora Presidente do Conselho de Bouchard & Sons, após haver cedido a presidência a Henri. Mesmo
agora, em retrospecto, sentia o estremecimento profundo, a súbita saudação, o impulso de lutar, que sentira durante o comparecimento às
reuniões do Conselho. Lembrava-se como seus ouvidos de súbito retiniam, ficavam surdos, de modo que as palavras e declarações dos outros
eram indistintas, e sem sentido. Porém ele ouvira, a despeito de si mesmo, e o que ouvira lhe voltava agora tão vividamente que parecia escrito
em letras de fogo nas paredes escuras da sala. Sua mente subconsciente ouvira e recordava — e agora era como uma mão a abrir livros
inexoráveis para que lesse.
Rostos, rodeados de uma luz sinistra, flutuavam diante dele. Viu-lhes os sorrisos, as sobrancelhas erguidas, ouviu suas vozes abafadas. Lábios
se moviam sem som, depois subitamente trovejavam, de modo que ele captava cada palavra, cada distinta e sinistra palavra, antes que se
desfizesse de novo no silêncio.
As vozes falavam de dinheiro, alimentos, petróleo, algodão, chegando à Espanha de Franco depois do colapso e ruína da República, um fluxo
constante que fora recusado ao valente e faminto povo que sacudiu o poder esmagador da Igreja e a exploração do Estado. Ouviu a voz de seu
parente, Hugo Bouchard, Assistente do Secretário de Estado, instando para que metais preciosos e material de guerra fossem enviados a
Franco, pedido concedido pelos Bouchards e os presidentes de suas subsidiárias. “Naturalmente — disse a voz de Hugo, soando aguda e
clara na quente obscuridade da sala da Armand — existe a questão de certos radicais: por causa deles Franco necessita de tão enormes
quantidades. Pode-se até indagar se muito desse material não está se encaminhando para Mussolini e Hitler. Agora nós, rapazes,
empregamos homens de relações públicas e de publicidade muito dispendiosos, e depende deles aquietar a coisa. Podem fazê-lo. Já
realizaram trabalhos maiores e mais importantes que isso. Serão loucos, ou pior, se jamais transpirar as reais quantidades que enviamos a
Franco. Que diabo! Estamos ajudando Franco desde 1936 — vocês, rapazes, em posições ativas, e eu e alguns amigos no Departamento de
Estado. Não vamos parar agora. Hitler precisa...” e a voz desceu a um murmúrio, perdeu-se, pois foi nesse momento, anos atrás, que Armand
murmurara algo de incoerente e fugira da sala, seguido pelos olhos zombeteiros dos outros.
Agora a voz de Christopher, vitriólica e incisiva, ergueu-se na escuridão:
“Espero que não estejamos a iludir-nos a respeito da imensidão da luta que está por vir na América, haja ou não guerra na Europa. O trabalho
está rapidamente escapando ao controle, sob esta Administração. Com todos os diabos! Temos de trabalhar, e sem demora! Francis, o que
está fazendo com os sindicatos?”
A voz de Emile:
“Hitler pode ganhar a próxima guerra. Digam-me, rapazes, o que têm sido seus embarques para Hitler, através da Holanda e da América do
Sul? Tenho aqui os meus algarismos, de Bouchard & Sons, mas não estou muito familiarizado com o trabalho de vocês. Henri, o que há com
esses cartéis? Que há em números de produção?"
A voz de Jean:
“Digo-lhes que o fascismo é a única proteção que temos contra o trabalho. Alguns de vocês cogitaram a respeito da reação das massas
americanas a tal regime. Mas digo-lhes que agora o povo não quer pensar. Quer ser conduzido, governado, que se pense por ele, e até ser
dirigido, dirigido firme e fortemente ‘para seu próprio bem’. Pensam que a multidão americana é mais inteligente que a germânica ou a
italiana? Se pensam isso, são uns idiotas.”
A pomposa voz de pároco de Alexandre:
“Temos de ter na América um Governo de Gerentes. Gerentes de Negócios. Ora, tenho a aprovação bíblica para isso...!”
A voz do Presidente da Associação Americana de Industriais: “Digo-lhes que isto não vai ser fácil. Interessante dizer que destruímos a
democracia na América. Mas vocês devem lembrar que existe um barulhento grupo minoritário todo a favor da democracia jeffersoniana, e se
forem bastante eloquentes haverá perturbações por aqui. Especialmente se houver guerra. Somos fortes, admito. Mas o que faremos, na
prática?
“Vejam os fatos: idealistas tipo ‘filhinhos-da-mamãe’; professores marxistas; políticos do New Deal; jornalistas vociferantes e bêbados já estão
mugindo e arruinando a confiança pública em nossa estrutura de negócios. Somos ‘fascistas, conservadores, reacionários e Tories’.
Conseguiram adeptos, e isso pode crescer entre as massas estúpidas. Veja os benefícios trabalhistas, desde que aquele tratante está na
Casa Branca! Acham que o trabalhismo vai renunciar facilmente a seus direitos, e quietamente deixar que destruamos sua danada e preciosa
democracia? Se pensam assim, são uns malditos asnos!”
Novamente a voz macia e risonha de Jean:
“Podemos dar-lhes algo mais colorido. Já organizamos fortes minorias, reacionárias e seguras. Qual é essa sua nova organização, Chris, para
quando a guerra estalar na Europa? America Only Committee? Teremos cinco milhões de membros de um dia para o outro, e todos odiarão
qualquer coisa que lhe mandemos odiar: ‘provocadores de guerras’, judeus, homens de Estado radicais, idealistas de nariz sujo. Qualquer
coisa. Enquanto estão odiando tão vigorosamente, podemos dar a conhecer nossos próprios Guardiães da América, legais e conciliadores
sucessores da Ku Klux Klan. Não esqueçam, também, que temos a Legião Americana com seu ódio pelos comunistas. Tudo que precisamos
agora é de alguns bons slogans, e nosso pessoal da publicidade deve ter capacidade de encontrá-los. Temos comitês suficientes, acho, para
entontecer e desorganizar as massas malcheirosas o tempo suficiente para deixar Hitler vencer na Europa e manter a América fora do barulho.
Depois, quando Hitler tiver posto em ordem o equilíbrio da Europa lhe pediremos que nos dê assistência aqui. É o mínimo que ele pode fazer,
depois de tudo que fizemos por ele.”
E então a voz de Antoine, acompanhada por seu sorriso moreno e resplandecente:
“Vi o bastante na França, entre meus elegantes parceiros, para saber que a França, com todo o seu fervente patriotismo e sua ‘devoção’ a
liberté, égaliíé, fraternité, cairá facilmente durante os primeiros meses do assalto germânico. Está tudo decidido lá. Um fraco show de
resistência, para afastar as suspeitas públicas, depois uma situação ‘insuportável’ que terminará na capitulação imediata. Os líderes franceses
fizeram seu trabalho excelentemente, mesmo em país tão homogêneo onde as massas professam adorar a França. Será ainda mais fácil na
América. Quem ama a América? Descendentes de alemães, de italianos, de poloneses, e só Deus sabe que outra escória humana? Também,
o povo americano é o mais estúpido e ignorante do mundo! Permitirá que o fascismo ganhe ascendência aqui muito mais depressa do que o
francês o faria. Concordo com Jean. Uns poucos comitês e organizações ativos, todos odiando alguém ou alguma coisa com a sincera delícia
que anima o homem americano de Neandertal, alguns linchamentos provocados, extorsões, processos, e um bom esparrame de rico e vulgar
ridículo — e está feito o trabalho. Trabalhismo? O trabalhismo é por demais iletrado, ganancioso demais, demasiado grosseiro e animalesco
para erguer uma mão. Quando assumirmos o Governo sob o novo nacionalismo, o trabalhismo simplesmente adorará trabalhar doze horas por
dia apenas para manter cheia a barriga.”
“Além disso, não temos a Igreja, na América, com seu evangelho de trabalho, procriação, família, obediência e ignorância para as massas?
Deus sabe que subsidiamos isso bastante! Depois, temos nossos jornais, nossas cadeias. Creio que justificarão nossa fé.”
As vozes chegavam rapidamente agora aos ouvidos de Armand, malévolas, exultantes, rindo, conspirando. E agora a voz de Douglas Flannery,
editor do Clarion de Detroit, que se gabava de ter quatro milhões de leitores não só na área de Detroit como muito além disso:
“Meu jornal ganhou mais de um milhão de leitores durante os últimos seis meses. Isso não lhes significa nada, senhores? Vergastei tudo: do
New Deal à Inglaterra, França e Espanha, dos líderes trabalhistas aos comunistas, e orgulho-me do recorde. Enfatizei que precisamos em
Washington de homens de negócios, sólidos e conservadores, que coloquem as necessidades da América antes das necessidades marxistas
dos radicais europeus. Não tenho receio!” — continuou triunfantemente a voz pomposa e retumbante. — “Sou o único jornal da América que
ousa atacar os judeus e os negros; e no caso de alguma insatisfação ou confusão na América — que possa interferir com seus planos,
cavalheiros — um pogrom, uma epidemia de linchamentos pode facilmente ser arranjada. Isso distrairá a mente do público. Vejam meus
colunistas! Posso dizer que esses rapazes estão fazendo maravilhosamente o seu trabalho. Se Roosevelt tiver a audácia de apresentar-se
para um terceiro mandato — o que ele não fará, claro! — nós o demoliremos abertamente.
Na escuridão, Armand subitamente pôs as mãos nos ouvidos, e balançou-se desoladamente em sua cadeira. A testa enrugada estava úmida e
fria como gelo.
Agora as vozes se tornaram uma confusão no quente silêncio da sala, vozes de conspiração contra a América, contra o mundo, contra toda a
humanidade. Vozes de ganância, crueldade, rapacidade e imensa astúcia. Vozes que falavam do rearmamento da Alemanha, dos camaradas
conspiradores na Inglaterra e na França, dos conservadores, dos Tories, dos conspiradores nas classes rurais inglesas e na Riviera francesa,
de enormes empréstimos a Hitler, do intrincado labirinto de cartéis internacionais que restringiam o armamento da América, e da conversão de
sua economia em eficaz produção de guerra, da divisão — sob esses cartéis — da América do Sul entre companhias alemães e americanas,
da supressão de competição — sob esses mesmos cartéis — e do monopólio dos mercados da América, da troca de patentes vitais com
Hitler, de propaganda através do mundo que serve como apologia para o nazismo e louva as vitórias em países fascistas sobre o trabalhismo e
a 'decadência’, de arranjos para embarques de vital material de guerra para Hitler em caso de guerra — através da América do Sul e outros
países neutros. As vozes se erguiam como uma tempestade, como um furacão, de modo que o homem doente ouvindo-as, enquanto se
balançava desoladamente em sua cadeira, pensou que a própria abóbada celeste ecoava com elas, e as devolvia aos ecos terrestres.
E depois elas desapareceram numa derradeira nota aguda. Mas o ar do mundo vibrou com elas, tremeu como cordas sendo tangidas, que
embora silenciosas agora, ainda tremiam com reverberações não ouvidas...
Armand ergueu a cabeça do peito e olhou cegamente à sua volta. Tinha a boca aberta, e arquejava. Sua doença estava a devorá-lo como um
tigre.
Os anos de sua vida passavam diante dele, aqueles anos confusos, medrosos e informes, cheios de hesitação e de temor. Tivera tão pequena
integridade, que nunca fora suficiente para coisa alguma a não ser provocar nele essa moléstia mortal. Todos aqueles anos, quando poderia ter
feito alguma coisa! Ao invés, sua fraca consciência o roera, devorando as células de sua carne, petrificando nele as forças vitais, entregando-o
por fim a essa desolação e a esse desespero, essa solidão e desesperança, espanto e tortura...
Não lamentava: apenas sofria. “Que poderia eu haver feito? — murmurava para si mesmo. — “Na realidade, nunca me importa. Por que, então,
me sentia atormentado? Por que fugira?”
Levantou-se, e uma lamúria fugiu-lhe dos lábios: “Eu era bom! Odiava tudo isso! Eu era melhor que eles! Eu realmente tinha a capacidade...”
Agora o terror o inundava e ele apertava convulsivamente as mãos gordas e olhava em volta, apavorado.
Nunca soubera o que é patriotismo. Sua única lealdade fora para consigo mesmo, para com sua família. Não podia compreender. Mesmo
agora, conscientemente, não sentia temor pela América, nenhuma preocupação pelo mundo. Só estava cônscio do terrível e subjugante temor.
“Eu era realmente um homem bom!” — tornou a gritar, para a sombria escuridão.
E então soube que toda a sua vida desejara ser bom, e simples. Mas fora um covarde. Mesmo esse desejo fora parte de sua covardia. Nunca
fora capaz de sobrepujar sua rapacidade e avareza nativas. Viu que fora criminoso ainda maior que Henri, e Christopher, que todo o resto de
sua sinistra família.
Nunca tivera fé em coisa alguma. Murmurou: “Deus!” Mas a palavra não lhe significava absolutamente nada. Era um encantamento sem magia.
Seu coração palpitava em fortes pancadas, como se estivesse se afogando.
Sentira agora que as salas de sua casa se estavam amontoando em torno dele, as paredes inclinando-se sobre ele como os paredões de um
penhasco, que estava a ponto de ser esmagado. Abriu a boca e soluçou. Disse em voz alta, com espanto:
“Minha consciência só tinha medo por mim mesmo, medo de quaisquer possíveis consequências que poderiam desabar sobre mim devido às
minhas conspirações e às dos outros.”
Aumentou o seu terror mortal. Sentiu a morte dentro de si. Relanceou o olhar em volta como um animal acuado. Quando um ramo de árvore
raspou a janela deu um grito e tremeu violentamente.
E então ouviu o distante abrir e fechar de uma porta, os passos de seu filho a subir a grande escadaria de mármore.
Uma onda de suor inundou-lhe o corpo. Correu para a porta da sala, tropeçando, cambaleando. Escancarou a porta, segurou-se ao portal.
Gritou e gritou, numa voz que percorreu os corredores como a de um homem torturado:
—Antoine! Antoine! Antoine!

Capítulo 24
Antoine, que acabava de ter a tarde mais deliciosa e intrigante, e estava agora embriagado com agradáveis pensamentos, ficou muito
espantado ao ver o pai assim, tão transtornado, todo trêmulo, à porta do seu aposento. Havia algum tempo que Antoine entrara na casa do pai.
A luz do corredor era difusa e suave, o que dava à aparição uma qualidade misteriosa e irreal. Mas o jovem ficou espantado com os olhos, que
faiscavam, captando a luz nos globos arregalados. Viu como o pai se agarrava ao portal, como seus joelhos estavam curvados. Viu-lhe o terror
esmagador e desvairado, viu a boca aberta e soluçante, e o peito carregado.
Rapidamente se dirigiu a ele, exclamando com inusitada aspereza:
— Mas o que é isso, papai?
Porém Armand não se moveu nem falou. Apenas olhava o filho numa espécie de horror hipnotizado, observou sua aproximação em completo
silêncio.
Pensou, angustiado:
“É meu filho. Mas é como meu pai. Nunca vi isto tão claramente antes. É meu pai, olhando para mim, e eu o odeio. Como pode ele ajudar-me?
Apenas me destruirá, se eu lhe disser. Rirá no meu rosto. Meu Deus! Não há nada que eu possa dizer ou fazer.”
Em seus olhos havia um terror assustador enquanto Antoine continuava a avançar para ele, e embora ele ainda não se movesse, pareceu
encolher, minguar.
Antoine, levemente alarmado agora, pegou o braço do pai. Estava rígido como madeira sob a sua mão, e tremia constantemente:
— Que há de errado? Está passando mal? Vamos entrar. Você deve sentar-se.
Armand tropeçou quando o filho o encaminhou de volta à grande sala quente, tão escura. Antoine foi obrigado a ampará-lo. Levou o pai até uma
cadeira e com um cuidado incomum fê-lo sentar-se. Acendeu algumas lâmpadas. Armand o observava, encolhido na ponta da cadeira, as
mãos trementes cobertas de pelo ruivo, apertadas nos gordos joelhos, a cabeça mergulhada nos ombros. Parecia um velho animal doente,
ofegante e aniquilado.
— Devo chamar o Dr. Billingsley? — perguntou Antoine, de pé junto dele e a olhá-lo penetrantemente.
Armand murmurou:
— Não... não... Isto não é nada.
Ergueu as mãos e as pressionou de encontro ao rosto. Suspirou. O som parecia vir de suas entranhas. Quando baixou as mãos, sua expressão
era rígida, abstrata.
Antoine hesitou. Puxou uma cadeira para perto do pai e sentou-se. Ainda observando o velho, acendeu um cigarro, levou-o aos lábios com
gestos lentos e delicados, e pensativamente soprou a fumaça para o alto. Aquela estreita cabeça morena, tão lisa e pequena, as faces
morenas, os cintilantes olhos negros e a boca sutil se imprimiam vividamente na atormentada consciência de Armand, como nunca acontecera
ainda. Sim, era o pai que se sentava ali, diante dele, não o filho. Esta era a suave elegância de Jules e sua delicada compostura; e agora,
como Antoine sorriu um pouco, era o sorriso de Jules, secreto, levemente divertido, quietamente cruel.
— Deve ter acontecido alguma coisa — comentou Antoine. — Você parecia mal como o diabo ainda há pouco. Que foi que o amedrontou?
“Que foi que me amedrontou? — disse Armand para si mesmo, ainda fitando o filho. E pensou: — Você!”
O desespero o chocava. Por um momento pôs a mão no peito, e tornou a soluçar. Falou:
— É só porque eu estava sozinho.
— Ah! — murmurou Antoine. Seus olhos se estreitaram: “furavam” Armand como pequenos rapinantes negros. Pensou, desdenhosamente:
“O velho idiota! Vagando por este mausoléu como um sujo fantasma gordo. Nunca teve coragem! Que quer ele? Alguma coisa fez com que a
vida fugisse de seu corpo...”
Viu que Armand ainda o fitava rigidamente, e algo nesse olhar fixo o pôs momentaneamente pouco à vontade.
— Você se parece com meu pai — disse o velho.
— Já ouvi isso — replicou o filho, sorrindo. — Isso o assusta?
Armand respondeu com súbita calma:
— Sim.
Depois sua rigidez desapareceu, as feições se contorceram, os olhos novamente demonstravam um terror selvagem. Gritou:
— Estou doente! Estou morrendo!
Antoine franziu a testa. A fumaça do seu cigarro lhe flutuava diante do rosto e os olhos luziam através dela, pensativamente:
— Absurdo! — falou, quietamente. — Disse-me Billingsley, na semana passada, que você vai indo esplendidamente. Entretanto, afirmou que
você precisa de algum interesse, alguma motivação em sua vida. Você pensa demais em si próprio, caro papai. Nunca teve nenhum hobby, ou
qualquer diversão. Está ficando mofado nesta casa. Verde de mofo. Claro, posso ver que está solitário. Que pode esperar? Vive para o
chamado de Annette todas as manhãs, depois cai na inércia outra vez. Nunca sai, a não ser para visitá-la, e a família há muito tempo desistiu
de convidá-lo: quase invariavelmente você recusa convites. Compreendo que você nem sequer dá um passeio de manhã, como fazia antes.
Ficou tão danadamente interessado em sua lista que abandonou mesmo os poucos interesses que tinha outrora. Introspectivo demais. Não
devia ter-se retirado tão cedo dos negócios.
Sua voz, sedosa, calmante, embora cheia de macia crueldade jesuítica, prendeu a atenção distraída de Armand. Ele ouvia, não desviando do
filho o olhar, esfregando os nós dos dedos no gordo nariz avermelhado ou contra a boca trêmula.
“Aqui existe algo!” — pensou Antoine. Seu instinto brutal estava alerta. Pois notou a súbita vivacidade nos olhos do velho ante suas últimas
palavras. Repetiu, observando-o atentamente:
— Não devia ter-se retirado tão cedo dos negócios.
—Não — murmurou Armand. Baixou as mãos outra vez até os joelhos. A cabeça inclinou-se para o peito. Sua voz chegou, ao filho sufocada,
quase inaudível:
— Ninguém me conta nada... Nunca sei. Estive ouvindo o rádio. Eles... acreditam que Hitler atacará em breve. A Polônia. Haverá guerra.
Estaremos nela...
Antoine se mexeu ligeiramente na cadeira. Abaixou a mão que segurava o cigarro, e ela estava tensa e dura, a fumaça a enroscar-se
lentamente.
— Não. Não estaremos nela. Isso o preocupa?
Armand ficou silencioso.
— Então, não precisa preocupar-se — continuou Antoine, sorrindo novamente. — Posso dar-lhe minha garantia pessoal. Você jamais gostou
da ideia de guerra, não é? Pois bem, não precisa ter medo nenhum absolutamente. A América não se meterá em nenhuma confusão europeia.
“Evitar que nossos rapazes lutem em solo estrangeiro.” Este é o nosso slogan. Pela primeira vez na História os Bouchards não estão
interessados em guerra para a América.
Armand ergueu a cabeça, e novamente fitou o filho, imóvel:
— Sim, sei disso.
— Então, por que se preocupa?
Porém Armand disse, olhando-o de relance com a mais estranha fixidez:
— Jamais acreditei em alguma coisa. Nunca fomos religiosos, nós os Bouchards. Nunca fomos americanos. Não é muito esquisito... nunca ter
sido americanos?
“O idiota em sua senilidade...” — pensou Antoine. Fumou outra vez, para ocultar o sorriso irreprimível.
A voz de Armand era fraca e sem tonalidade quando continuou:
— Escolas francesas. Escolas alemãs. Nunca fomos americanos. Nada temos a fazer com a América, ou para a América.
— Construímos uma vasta rede industrial — disse Antoine, novamente observando o pai atentamente. — De certo modo, ajudamos a
desenvolver a América. Estamos em tudo. Isto devia torná-lo orgulhoso! Você costumava ser orgulhoso. Lembro-me disso, quando eu era
criança. Aço, mineração, armamentos, produtos químicos, cobre, carros, estradas de ferro, aviação... estamos em tudo! Na verdade, somos
americanos, afinal de contas.
Armand desviou dele o olhar e olhou o rádio com silenciosa imobilidade:
— E nisto também, naturalmente.
Antoine franziu a testa:
— Rádio? Provavelmente.
Armand começara a balançar a cabeça lentamente. Isso continuou. Parecia não poder controlar a coisa.
Então um fluxo de palavras saiu de seus lábios ressecados, mas num sussurro tão fraco que Antoine teve de inclinar-se para diante para
perceber os sons:
— Conte-me algo a esse respeito. Ninguém nunca me conta coisa alguma. Não sei de nada. Que acontecerá? Se Hitler vencer... o que
acontecerá por aqui? E com a América? Que está acontecendo no mundo? Você tem de dizer-me.
Antoine ficou silencioso por alguns momentos. O brilho do terror estava novamente nos olhos de Armand. Começara a socar os joelhos com os
punhos cerrados. Antoine deu de ombros:
— Não lê jornais? Você ouve rádio, não ouve, papai? Então, sabe tanto quanto nós. Suponha que Hitler tome o Corredor, tome a Polônia. Isso
não é da conta da América. A Europa sempre teve suas malditas brigas. E sempre quis. A Inglaterra pode atacá-la. Não sei. Aliás, não estou
muito interessado. No momento, estamos preocupados com a América.
Então notou um maço de jornais ao lado da cadeira do pai, abertos nas páginas financeiras. Riu ligeiramente. Apontou os papéis:
— Isso é que o está preocupando? A Bolsa de Valores? Bem, concordo com você que não vai lá muito bem. Entretanto, estamos esperando
uma alta. — Armand nada disse. Antoine continuou, num curioso silêncio: — Naturalmente, você ficaria preocupado. Afinal de contas, ainda
possui cinquenta e um por cento das ações Bouchard. Assim, se a Bolsa o tem preocupado, posso garantir-lhe, pessoalmente, que isso não
acontecerá por muito tempo mais. — Esperou um momento. Disse, mais rapidamente: — Isso o tem preocupado, não tem? A Bolsa?
— Sim — afirmou Armand. Aumentou a estranheza em seu olhar. — Pensa que o Mercado de ações subirá? Habitualmente cai por algum
tempo, após a eclosão de uma guerra. Por que pensa que subirá?
“Ele na verdade não sabe de nada...” — pensou Antoine, sorrindo internamente. Deu de ombros levemente:
— E por que não o faria? Estamos decididos a ganhar dinheiro. É realmente muito simples.
— E a Lei da Neutralidade? — falou Armand outra vez, num sussurro.
Antoine riu:
— Ora, papai! Você não pode ser tão ignorante! Há a América do Sul, e a Holanda, e meia dúzia de outros caminhos.
— Para a Alemanha?
Antoine se calou. Estreitou os olhos:
— Sim. Quem mais? Não haverá nada para a Inglaterra, ou a França, se pudermos evitá-lo.
Armand se afastou mais para a beirada de seu assento. Havia em seu olhar uma apaixonada intensidade:
— Nunca fizemos isso antes. Vendíamos a ambos os beligerantes... Por que a Alemanha agora, e não... os outros?
— Porque — replicou Antoine, lenta e cuidadosamente — queremos que Hitler vença. Pensei que soubesse disso, papai. Hitler é nossa única
esperança, em todo o mundo. — Falava como se fala a uma criança estúpida, escolhendo palavras simples: — Temos de livrar-nos da
democracia ou do comunismo: querem dizer a mesma coisa. O trabalhismo está ficando fora de controle, sob esse imundo New Deal. Temos
de ter uma nova perspectiva, uma nova filosofia, na América. Não apenas negócios, como de hábito. Queremos o negócio de controlar a
América totalmente. Conseguiremos isso, também. Com a ajuda de Hitler. — Deu uma palmadinha no joelho do pai: — Depois veja suas ações
subir!
— Você quer dizer: fascismo na América? — murmurou Armand.
— Palavra desagradável! — sorriu Antoine. — Digamos, antes, o controle da América por homens de negócios. Por gerentes. Sensato, não?
Hitler prometeu nos ajudar: deu-nos sua palavra, pelo que ela vale.
— Como pode ele “ajudá-los”? — a voz de Armand estava mais clara agora, e mais alta.
Antoine hesitou:
— Há meios para isso — replicou, agradavelmente.
Levantou-se. Armand ainda estava sentado. Ao erguer os olhos•para contemplar o filho, estavam muito brilhantes.
E agora odiava Antoine como nunca odiara ninguém, nem mesmo seu pai — para quem tivera um olhar apavorado peculiar sob seu ódio.
Estava gelado com seu terror renovado. Apertou as mãos, e um longo tremor lhe tomou o corpo. Pensou: “Tarde demais! Nada posso fazer.
Nem sequer sei o que fazer, ou se quero fazê-lo. Tudo está muito confuso. Eu deveria ter-me mantido informado, saber o que estava
acontecendo. Ninguém me diz nada, nunca... Não sei de nada.”
Antoine estava sorrindo para ele:
— Aconselho-o a sair mais. Annette e eu temos nossos próprios interesses. Já não somos crianças. Ouvi dizer que você recusou o convite de
Estelle para jantar no sábado. Por que não reconsidera?
— Farei isso — disse Armand, obedientemente. — Sim, acho que sim.
Quando Antoine se foi, Armand se sentou encolhido em sua poltrona, cabeça inclinada para a frente, e mordendo os lábios. Dentro dele havia
uma grande luta. Embora não se movesse por perto de uma hora, sua testa e o crânio calvo estavam úmidos e lustrosos. Finalmente, levantou-
se e quase caiu de tão fraco. Tateou em busca do telefone e, embora fosse quase meia-noite, telefonou ao seu advogado e marcou uma
entrevista para o dia seguinte, em Nova York.

Capítulo 25
Henri Bouchard estava só, nesse dia quente de agosto, sentado à sua secretária nos grandes escritórios Bouchard. As pesadas portas se
achavam fechadas, e ele recomendara à sua secretária que não devia ser incomodado pelo menos durante uma hora. As cortinas cor de
bronze haviam sido parcialmente puxadas contra a luz cegante que passava pelas janelas, e havia na sala um silêncio sombrio, quase religioso.
Aqui e ali um raio de sol feria alguma peça de metal na escrivaninha.
Henri fumava. Raramente fumava quando só. Era seu único sinal de alguma profunda perturbação íntima. Não se movia, em seu terno cinza-
grafite que lhe valera de Antoine o cognome de “Homem de Ferro”. Fitava diante de si, imóvel, o rosto largo e pálido. Acendia cigarro após
cigarro, mas dificilmente os levava aos lábios: queimavam lentamente entre seus dedos. Por vezes os olhos davam momentaneamente com a
pilha de papéis diante dele e ali ficavam por longos momentos, numa espécie de transe sombrio.
De quinze em quinze minutos fazia uma discagem direta para Wall Street, e ouvia cuidadosamente a voz metálica que o informava dos mais
recentes acontecimentos na situação europeia. Recolocava o fone — nem um músculo se movia em sua face — acendia outro cigarro e
novamente contemplava os papéis.
Um relatório lhe chegara aquela manhã: “O povo americano permanece apático durante esta crise crescente na Europa. Só entre certos grupos
existe algum interesse profundo. A opinião de peritos é que a inércia do povo se deve menos ao medo de futuros acontecimentos do que à
ignorância e indiferença estáticas. Acredita um perito que a indiferença deve ser atribuída aos passados esforços de pacifistas profissionais e
senadores isolacionistas. Outros, mais informados, mais afinados com a mente pública, acreditam que Hitler se tornou tão extraordinariamente
popular com o povo americano — com seu antissemitismo, antidemocracia, e desumanidade — que esse povo não se pode levantar contra
ele, exceto por ocasião de um ataque direto à América. Sem dúvida, Hitler compreende isto, portanto se absterá de tal ataque, cônscio de que
se ele não se der, poderá contar com a apatia do povo americano para não colocar obstáculos em seu caminho de conquista.”
Henri sorriu tristemente, ao ler isto. Ainda sorria ao recordar o relatório. Mas o que esperar de uma nação de primeira e segunda gerações de
europeus escravos, que deviam sentir-se insondavelmente apreensivos em presença de uma liberdade criada e amada por um punhado de
bretões no passado distante e amargo? Como lidaria George Washington com essa nação servil de suínos e escravos? Reconheceria, nesses
obstinados rostos teutônicos, nesses miseráveis trigueiros do mediterrâneo, o povo de cujo sangue compartilhou, cuja linguagem falou, e com
quem lutara e sofrera? Se pudesse achar-se entre eles hoje, não os desprezaria, compreendendo a ameaça implícita neles para a América e a
sobrevivência da América? Roma aprendera a lição mortal — que nunca se deve admitir entre as pessoas livres os filhos de escravos libertos.
Os vândalos às portas de Roma não tinham sido os Godos e os Visigodos.
Estranhos pensamentos para Henri Bouchard! Sorria desdenhosamente quando os pensava. Mas não podia dissipar a inquietação que havia
nele, o ódio, a aversão e a raiva. Que era a América para ele? Verdade que, exceto pelo leve traço de sangue francês em sua própria corrente
sanguínea, ele era da raça e, publicamente, da religião daqueles que haviam fundado a América. Sua herança era britânica. Porém nunca em
sua vida sentira uma vibração de patriotismo ou paixão pela América.
Ergueu o maço de papéis, fitou-os, empurrou-os para longe dele. Jay Regan, o financista idoso e moribundo, lhos enviara por mensageiro
especial. Disse a si mesmo que a raiva contra os parentes que ousaram conspirar contra ele é o que o perturbava agora. Afinal, seria
patriotismo apenas medo ciumento e inveja e ódio ignorante? Finalmente concluiu que devia ser isso mesmo.
Tornou a erguer o fone, e agora a nítida voz metálica estava aguda e sem fôlego de excitação:
— Há um boato de que a Rússia e a Alemanha chegarão muito em breve a um acordo, pelo qual a Rússia não se oporá a qualquer ambição
territorial por parte de Hitler, contanto que a própria Rússia não seja atacada!
Rússia! Isso não era impossível, claro! Henri recordou Munique, quando a oferta de assistência da Rússia fora ignorada, quando ela fora
excluída da vergonhosa conferência em Berchtesgaden. Isso seria, então, sua vingança, nascida da amargura contra esses hipócritas que
falavam de paz, covardes que venderam o tesouro de séculos a um assassino e mentiroso, conspiradores que odiavam seu próprio povo?
Henri sorriu subitamente. Sentiu uma severa simpatia pela Rússia. Quando o ataque contra os hipócritas, os covardes e os conspiradores
começasse, haveria um justo julgamento deles. Então seu povo guincharia que tinha sido traído, censurando “os industriais e os capitalistas” ou
“os políticos”, não compreendendo que antes que a morte possa subjugá-los deve a moléstia, primeiro, destruí-los internamente. Quando chegar
a hora final, as pessoas, claro, não terão consciência de que a podridão primeiro estivera nelas mesmo — que vivessem em mansões ou na
sarjeta — que seu próprio ódio animalesco, ignorância e falta de valores os haviam traído para seus inimigos.
Mesmo os Bouchards, e todos os seus amigos, não poderiam destruir a América se a América não estivesse madura para a destruição.
Sementes do mal só podem germinar em solo predisposto ao mal.
Henri se levantou e caminhou pesadamente acima e abaixo. Não era sujeito a qualquer mal-estar do espírito, a nenhuma inquietação. Toda a
sua vida soubera o que queria, e o conseguira. Sua mente tinha sido simples e integrada. De modo que não podia compreender seus
pensamentos pesados e sombrios. Ouvia as palavras em seu espírito como se fosse a voz de um estranho a quem não podia expulsar. Estava
impaciente e perturbado como nunca estivera antes.
Seria medo por si mesmo, ou reação contra parentes que conspiraram contra ele? Ambas as coisas, acreditava.
Houve uma leve pancada na porta, e iradamente ele disse:
— Entre.
Seu secretário entrou se desculpando, e se encolheu ante seu olhar.
— Desculpe, Sr. Bouchard, mas o Sr. Armand Bouchard está aqui e deseja vê-lo. Diz que é muito urgente.
Henri franziu a testa:
— Por favor, diga ao Sr. Bouchard que o Sr. Antoine no momento não está.
Depois se deteve, abruptamente. Que quereria com ele o velho idiota? Não estivera nos escritórios desde que fora fazer o apelo pelo filho. De
repente, uma curiosa excitação o animou: seu instinto estava desperto. Sentou-se à sua mesa:
— Por favor, introduza imediatamente o Sr. Bouchard.
Enquanto esperava por Armand, tamborilava na secretária. Que diabo estaria dominando o miserável velho bajulador? Que teria ouvido?
Desprezava Armand, raramente pensava nele, e quando o fazia era com desprezo. Armand estava acabado, velho, destruído por alguma
doença crônica — que Henri já havia suspeitado não ser apenas a imensa barriga. Porém ainda era latentemente poderoso. Ele, Henri,
conhecia Armand o bastante para acreditar que haveria momentos em que o sogro se lembraria disso.
Agora toda a sua inquietação de há uma ou duas horas, toda a raiva latente e o aborrecimento se concentravam na visão de Armand, e sua
intrusão. Sentia-se aborrecido consigo mesmo por tal criancice, mas a fria emoção permaneceu. Mantinha a maior parte dos bônus Bouchard,
porém sua posição dominante em Bouchard & Sons era apenas por consentimento de Armand e seus preciosos cinquenta e um por cento. Era
uma situação que há muito enraivecia Henri e que estimulava muito de sua cautela, situação que por vezes se tornara quase insustentável para
ele.
De modo que, quando Armand já desorganizado, já sacudido de terror até as entranhas, já confuso e doente de corpo e alma, encontrou o olhar
glacial de Henri, recuou como se o rapaz o tivesse golpeado com o punho. Seu primeiro impulso foi fugir. Ficou de pé longe da mesa, e
realmente tremia, umedecendo os lábios secos e intumescidos, contemplando Henri em total silêncio e desintegração, chapéu na mão como
um mendigo.
Henri se levantou lenta e relutantemente. Puxou uma cadeira para o sogro. Que haveria de errado com o velho idiota? Olhava como se tivesse
ouvido as notícias mais apavorantes, e estava à beira de um colapso. Então Henri esqueceu sua raiva e frustração: ficou subitamente alerta,
pôde até sorrir.
— Bem, isso é muito agradável — disse, em sua voz pesada e sem inflexões, que negava o alegado prazer da visita. — Sente-se, pai. Talvez
não saiba que Antoine não está no momento? Gostaria que tivesse telefonado primeiro, para poupar-se o incômodo.
Armand sentou na beira da cadeira. Agora o tremor visível lhe invadia os joelhos, que se batiam nas calças sujas. Tornando a sentar-se, Henri
viu o colarinho sujo que pouco mais era que um farrapo manchado em torno do gordo pescoço de Armand. As lapelas de seu casaco estavam
salpicadas de caspas. O colete, mal abotoado, deixava escapar um tufo de camisa. A grande cabeça redonda, com suas curtas mechas
grisalhas, oscilavam fracamente, como se o velho estivesse com paralisia. Porém seu rosto cor de cera, os negros olhinhos fixos, o
incontrolável tremor dos músculos faciais é que chamaram a atenção de Henri. Era evidente que Armand estava doente de medo e desespero.
Continuava a tocar a boca com a mão trêmula. Por alguns momentos não pôde falar, mas depois disse, de modo quase inaudível:
— Eu não queria ver Antoine. Vim porque sabia que ele não estava aqui.
— Sim? — falou Henri, em tom macio e calmo. — Bem, há algo que eu possa fazer por você, pai? Está se sentindo mal?
Mudamente, Armand o fitou de olhos esgazeados por longos minutos. Depois seus lábios se moveram num murmúrio:
— Sim. Sim, estou me sentindo muito mal.
Olhou seu chapéu como se nunca o tivesse visto; depois, timidamente, colocou-o na mesa que outrora fora dele. Henri observava todos esses
movimentos hesitantes, incertos. Depois, como seus olhos encontrassem os de Armand, ficou chocado e espantado ante o brilhante terror que
viu neles, o desespero súbito e esmagador. Levantou-se a meio, depois tornou a sentar-se, num silêncio alerta.
Houve alguma coisa. Disso ele estava certo. Não viu acusações na fisionomia de Armand, nenhum protesto queixoso. Podia ser que houvesse,
realmente, uma súplica naqueles olhos atormentados, naquelas gordas mãos incertas, cobertas de pelos ruivos, que se erguiam e tornavam a
cair?
— Que há de errado? — perguntou Henri. — Você parece perturbado... Sabe, se puder ajudá-lo, ficarei satisfeitíssimo.
Pensou: “Ele teve um choque..
Percebeu que Armand não sabia o que dizer, que os caóticos e aterrorizados pensamentos em sua mente eram por demais horríveis para falar,
para começar ordenadamente. Era um velho animal mortalmente ferido que se sentava ali à sua frente, tentando deter o tremor dos lábios com
os dentes amarelos e manchados. E Henri viu que isso não era coisa nova, porém a manifestação de uma vida de temor, de servilismo, de
angústia inominável. Estava surpreso. Nunca dera suficiente atenção a Armand para conjeturar a seu respeito, embora a evidência cumulativa
que estivera guardada em seu subconsciente agora nitidamente se encaixasse e se revelasse como um padrão visível para ele.
Sua surpresa aumentou e, com ela, uma cínica compaixão por Armand, tão atormentado, tão aniquilado, tão confuso e torturado.
Estudava-o com curiosidade alerta e crescente. Viu que Armand, por sua vez fixara nele os olhos com súbita penetração e apaixonada avidez,
e que ele se endireitava em sua cadeira como se esse negócio fosse tão urgente que ele dificilmente pudesse forçá-lo nos limites ordenados
de meras palavras.
As palavras brotaram dele em gaguejante e discordante confusão: inclinou-se para Henri, pondo as duas mãos na secretária e pressionando-
as tanto que as veias saltavam:
— Existem tantas coisas de que me lembrei ultimamente!
E agora falou em francês, que o pai insistira que aprendesse, embora os demais Bouchards rissem disso, achando uma afetação. Henri tinha
de ouvir atentamente para compreender. Por que tensão devia estar passando esse miserável velho que o levava, em seu frenesi, a
inconscientemente usar a linguagem da sua infância?
As mãos de Armand se moviam no ar em fortes sacudidelas, como para garantir inteira compreensão para suas palavras incoerentes. Os olhos
estavam brilhantes e febris, e à medida que expressava cada palavra ele a enfatizava como faz o gago nos sons que não pode controlar:
Todas as coisas... durante anos, que posso lembrar, Henri! Meu pai. Jules. Era um homem terrível! Sempre conheci o terror. Ele me aterrorizava
muito.
Embora ouvisse com forte interesse, Henri observou que esse idioma, fluindo dos trêmulos lábios de Armand, não estava enferrujado, como
seria de esperar de alguém que não o usara por muitos anos, mas sim forte e naturalmente modulado, embora rouco com inflexões rústicas
como se a própria carne de Armand recordasse o sangue antigo. Esses eram, também, antigos gestos rústicos, e mesmo em seu rosto
apareceu uma máscara sutil, áspera, enérgica.
Agora as palavras vinham mais depressa, de modo que Henri perdeu muitas:
— Veja você, Henri, isto sempre foi muito embaraçoso para mim. Nunca me dei conta, até recentemente. Mas eu devia ter sabido. Havia algo
em mim que se revoltava. — Bateu no peito firmemente, embora os olhos nunca abandonassem os de Henri. — Eu não tinha palavras para a
coisa. Ficava estúpido. Sem palavras. Mas ia crescendo algo em meu coração. Eles apenas riam. Talvez vissem tudo em meu rosto. E, para
eles, era muito ridículo. Compreende? Bem, não havia nada que eu pudesse fazer, nem mesmo por mim próprio. Não podia entender isso: era
tão excessivamente absurdo... Acha que é absurdo, meu filho?
Alguma coisa fez com que Henri dissesse rapidamente:
— Não, não acho absurdo. — Falou em inglês e uma curiosa agitação passou pelo rosto de Armand por um instante.
Ele continuou:
— Não compreendo mesmo agora. Só sei que estou doente. A agulha... não me ajuda. Como posso dizer isto ao doutor? Ele não pode
entender. Ninguém sabe. Mas está aqui. E agora sei que me matará.
Ficou silencioso. Mas as mãos que pressionavam a mesa polida espalhavam uma aura em tomo delas como de suor. Curvou-se ainda mais
perto de Henri e buscou-lhe o rosto com aqueles olhos assustados e patéticos.
Henri o olhou pensativamente, recostou-se na poltrona, e nada disse. A que ponto chegara, nesse corpo gordo e volumoso, essa alma
torturada, que devia pedir socorro mesmo a um homem como ele... — pensou Henri. Jamais houvera muita amizade entre Armand e o homem
que desposara sua filha, nunca qualquer confiança, simpatia ou benevolência. De fato, Henri não se lembrava de nada disso entre Armand e
outro ser humano, exceto Annette. A mesquinha e irritadiça mulherzinha de Armand, seus brutais irmãos, o pai sutil e pervertido, a mãe infeliz:
entre todos, ele nunca tivera um amigo ou confidente. Vivera sozinho nesse corpo — desajeitado e pesadão mesmo na juventude; e se jamais
desejou ter comunicação com alguém, nunca deu sinais disso.
“Dia, infernal!” — pensou Henri, inquieto, relembrando os pensamentos que haviam precedido a chegada de Armand. E agora esse velho idiota
ali sentado diante dele aumentava seu incompreensível mal-estar!
Disse, com entorpecida piedade, e escolhendo seu caminho com cuidado através de seu pedregoso francês:
— Alguma coisa o está perturbando. Se puder ajudá-lo, eu o farei. De que se trata? Disse que “se rebelou”. Não vou fingir que o compreendi
totalmente. Disse-me o bastante para indicar-me que sua consciência o faz sofrer. — Apertou fortemente os lábios para evitar sorrir ante a
ridícula palavra.
Armand o fitou, depois lentamente ergueu a mão e esfregou a boca com força. Murmurou:
— Minha consciência... Será que algum dia tive uma consciência?
Tomou uma respiração profunda, e falou com longos intervalos entre as palavras, como se se tivesse tornado uma questão de terrível
importância para ele que Henri pudesse compreender:
— Veja, tudo é tão confuso... Uma ou duas vezes pensei: “Não posso continuar fazendo essas coisas, conspirando. Mas continuei. Por quê?
Porque eu era ganancioso. Eu era fraco. Tinha medo de parecer ridículo. Por vezes Christopher suspeitou. Ele me olhava com aqueles olhos
maldosos e espertos. Eu não podia suportar suas suspeitas.
Parou, depois perguntou:
— Haverá guerra, Henri?
Henri ficou silencioso um momento, depois replicou judiciosamente:
— Não sou profeta, pai. Como posso dizer? Mas sou firmemente contra a guerra. Pela primeira vez os Bouchards não querem guerra.
Armand acenou com a cabeça, e sorriu tristemente:
— Sim, eu sei. Isso é o que me parece tão terrível. Você compreende?
Henri ficou de olhos arregalados, franziu a testa: “Então, ele compreendeu! O velho idiota não é inteiramente idiota. Sorriu:
— Sim, compreendo.
Olharam-se, num longo silêncio, e então uma onda de estranha simpatia passou entre eles. Henri estava cônscio de uma crescente excitação
em si mesmo.
Armand contemplou seus dedos trêmulos. Falou, com hesitação:
— Há muito tempo, esperei que você fosse meu filho. Sabe, não tenho filho.
— Não tem filho... — repetiu Henri. E nada mais disse. Olhou dentro dos olhos de Armand, tão brilhantes, trágicos e perturbados.
— Antoine é realmente como meu pai. Ninguém pode ser pai de um Jules, Henri. Sinto um medo terrível! Antoine vai desposar a filha de
Andrew Boland.
Então Henri esqueceu tudo, em seu espanto e apreensão:
— O demônio! Você quer dizer Mary Boland?
Então Antoine “se arrumara”, pegando a filha daquela piedosa serpente velha, Boland, “Rei do Alumínio”, e proprietário de um dos maiores
monopólios de petróleo do mundo!
Armand viu a perturbação de Henri e acenou sombriamente:
— Você vê como é. Devemos mexer-nos muito depressa, não é?
Henri nada disse. Mas ao olhar para Armand, sua excitação aumentou e ele sentiu o coração palpitar mais rápido.
Armand deu a impressão de chegar mais perto do rapaz. Agora suas palavras vinham numa arremetida confusa:
— Lembro-me de muitas coisas a seu respeito, também, Henri. Você não é um homem bom, não é mesmo? Você é rapace e desapiedado...
como os outros Bouchards. Faria qualquer coisa por poder e lucros. Mas não o estou condenando. Como poderia? Você, pelo menos, nunca
teve consciência, de modo que nada se poderia esperar de você.
“Lembro-me das lendas do velho Ernest Barbour, seu bisavô. Ele nunca foi realmente cruel, sutil ou depravado. Isso porque nunca teve o menor
laivo de consciência. Era uma força. Uma força natural. Não se pode censurar uma geleira ou um vulcão. Não adianta nada. Por vezes, pode
ser admirado. Você é assim, Henri.
“Eu não compreendia isso completamente até que ouvi sua conversa com meu irmão, Christopher, quando você o advertia da conspiração dele
com os alemães. Então recordei outras coisas, também. Formavam um todo. Diga-me, Henri, o que deseja, o que pretende fazer na América.
Henri não falou por vários momentos, embora estudasse Armand atentamente, com aqueles olhos descorados e inexoráveis. Soube que devia
avançar cautelosamente.
Começou a falar com pesada lentidão:
— Pensei que soubesse. Não é que eu tenha sofrido uma mudança em meu coração — e sorriu. — Penso no que é melhor para a América,
porque o melhor para a América é realmente melhor para nós. As coisas mudaram. Afinal de contas, o mundo pertence ao povo que o habita, e
não a uns poucos escolhidos... nem mesmo aos Bouchards. Quando homens fortes devoram tudo, matam de fome os mais fracos que
preparam o alimento para eles.
“A guerra que está a caminho foi trazida pela ganância de industriais e banqueiros para perpetuar o status quo. E esta guerra pode bem ser a
arma que destruirá o sistema que eles laboriosamente construíram pela manipulação de tudo que possa ser explorado. Ora, acredito que todo
homem, mesmo um Bouchard, pode operar melhor um sistema tal como o nosso: democracia capitalista. Ele só pode ser salvo, no futuro, por
métodos evoluídos para dar ao povo tanto quanto possível, parando de imediato de destruir o capital que trabalha. Depois da guerra,
indubitavelmente, teremos mercados novamente criados no mundo. “Produção para uso!” Devemos inaugurar um mais alto padrão de vida em
todo o mundo, não apenas na América. Isso aumentará firmemente os mercados para produtos de tempo de paz, e será a maior força contra
guerras futuras.
“Nossos parentes não concordam comigo. São uns loucos completos. Veem-se a si mesmos como uma família de poderosos Hitlers, operando
na América. Não se dão conta de que a tirania devora-se a si mesma, ao fim de tudo. Não compreendem o povo em absoluto. Querem lutar até
a morte pelo status quo, com seus aliados europeus. Seu maior sonho é reduzir o mundo novamente ao medievalismo, apoiado por um Estado
inerte e uma Igreja exuberante. Não se apercebem do quanto são ridículos. Agora o mundo está cheio de uma diferente geração de homens.
Armand ouvira com a mais penosa atenção. Uma ou duas vezes acenara avidamente. Relaxara o suficiente para ser capaz de voltar a sentar
em sua cadeira.
— E Antoine? — falou, agora em inglês, como se tivesse afastando alguma tensão insuportável. — Não concorda com você? Conspira contra
você?
Henri ficou surpreso. Franziu a testa e nada disse. Como, diabos, esse velho idiota podia ter sabido disso, absorto como sempre andava
naquela lista infernal?
— Sei tudo a esse respeito, embora ninguém me tenha dito nada — continuou Armand. — Sim, ele é realmente meu pai. Posso ver isso.
Seu rosto estava com melhor cor, e mais firme e resoluto:
— Eu conhecia seu pensamento, Henri. Por isso vim aqui esta manhã. Sabe, ontem eu estava em Nova York, com meus advogados. — Tirou
de um dos bolsos um papel dobrado. Suas mãos já não tremiam. Por essa hora, foi novamente o velho Armand, hesitante, mas sólido,
desajeitado, porém prático. Olhou o papel e disse:
— Fiz um novo testamento. Mas ninguém saberá disso, a não ser você, eu mesmo e os meus advogados. Criei um fundo fiduciário com os
meus cinquenta e um por cento de ações Bouchard, para você e minha pequena Annette. Eu cobrarei a renda durante toda a minha vida, mas
estou lhe dando poder de procurador para votar como lhe parecer melhor em qualquer ocasião. Depois da minha morte, as ações e a renda lhe
pertencerão em conjunto. Eventualmente passarão para o sobrevivente, claro.
Olhou para Henri com um sorriso profundo. Henri ficara singularmente pálido. Sentou-se, imóvel como granito.
— Quanto a Antoine, meu filho, deixo-lhe apenas minhas participações menores em outras corporações. Ele não terá nada a ver com
Bouchard. Esse é o perigo que eliminei.
— Deixe-me pensar sobre isso por um momento — disse Henri, numa voz curiosamente abafada. — O fundo já foi realmente criado? E agora
tenho poderes de procurador?
Levantou-se e começou a andar acima e abaixo. As narinas do seu curto e potente nariz se haviam dilatado, porque respirar se tornara difícil. A
exultação tomou conta dele e o encheu como um gás brilhante e em expansão, ameaçando queimá-lo internamento. Não podia acreditar!
Ergueu a cabeça e cerrou os punhos. Agora, tinha tudo, e não meramente pelos favores de Armand Bouchard. Seu poder fora o indolente
Armand, apenas. Agora era dele mesmo!
Parou junto à cadeira de Armand e contemplou o vulto gordo ali esparramado. O rosto de Armand estava erguido. Tinha uma expressão de
completa paz e de contentamento. Os olhos estavam fechados. Henri, que estivera a pique de falar, ficou silencioso. Lenta e pensativamente
mordeu o dedo indicador.

Capítulo 26
O livro de Peter ia-se desenvolvendo com rapidez febril e grande facilidade. Ele era como um homem que trabalha rápida e ansiosamente
durante o espaço de tempo em que o céu escurece e ele relanceia o olhar por sobre o ombro às primeiras ameaças do trovão e aos primeiros
coriscos vermelhos do raio. Apesar de sua razão, que lhe dizia que os homens raramente ponderam, e quase nunca entendem, ele possuía
essa fé intoxicante do autor-cruzado de que a palavra impressa podia desviar a fúria e acalmar as paixões ignorantes da raça humana. Só
quando escrevia assim acreditava, mesmo que por um momento, que a pena era mais poderosa que a espada. Não foram os panfletos de
Voltaire que destruíram os opressores da França? Não foi sua palavra que derrubou o trono dourado e instituiu a guilhotina nas praças? Atrás
do clamor de suas frases apaixonadas veio o ruído surdo das carroças, e todo um continente despertou de sua dormente letargia ao ardente
toque de clarim de sua alma.
Então Peter experimentou um desespero insondável. Uma nação encantada por beisebol e histórias em quadrinhos, por prostitutas pintadas de
Hollywood, e automóveis, possivelmente não poderia sentir a antiga e mística ânsia por um ideal. Uma nação assim é, por natureza, tímida e
conservadora, desconfiada e embotada, facilmente odiando o fraco, facilmente submissa ao forte. Talvez só entre os filhos da Nova Inglaterra e
entre a decadente aristocracia dos estados sulinos poderia ser encontrado um homem de características e mente similares às dos mais nobres
avoengos.
Se pudessem ser despertados e sacudidos homens assim (e quão poucos haveria na América!), o que poderiam fazer? Pela primeira vez em
sua vida Peter teve dúvidas da democracia, onde a voz do boi é tão importante como a voz do sábio. Ele poderia despertar cem mil homens
esclarecidos para o terrível perigo que estava explodindo como um furacão nos telhados do mundo. Eles poderiam erguer-se, gritando bem
alto. Que poderiam fazer numa nação de cento e trinta milhões de tolos e ignorantes que bocejariam sem compreensão ante os rostos sérios e
graves, e ouviriam estupidamente os gritos de advertência? Não tinha ilusões de que esses poucos homens possuíssem qualquer poder
considerável na América, na política e em lugares públicos. A própria democracia americana desconfiava da capacidade e da aristocracia
mental, era hostil à superioridade; e colocava no poder apenas aqueles grandes charlatães, aqueles palhaços presumidos, aquelas mentes
ardilosas e inferiores que mais se parecessem com a maioria do povo.
Durante toda a sua vida adulta Peter antipatizara com a política da Igreja Romana, que aparentemente mantivera milhões em servidão mental, e
elevara apenas alguns (nos países em que era poderosa) a posições de poder e autoridade. Agora começava a cogitar se a Igreja não era
dotada de uma sabedoria sutil e antiga, e se não teria compreendido totalmente que a maioria dos homens ainda está na aurora da civilização.
Porém fascismo não era a resposta à ignorância animalesca e confusa que parecia parte tão integral da democracia. Nem era válida e
adequada, ou mesmo inteligente, a apaixonada afirmativa de tolos idealistas de que os homens precisavam apenas de “educação” livresca
para fazê-los caminhar em suas pernas traseiras. Então, qual a resposta? Como poderia ser encontrado um caminho para que homens
superiores, de integridade, compaixão, pureza de mente e coração, com sutileza e capacidade, fossem eleitos para encher as poderosas salas
do Congresso e os assentos de autoridade? O maior obstáculo era que a tais homens faltava a ostentação teatral, o baixo tonitruante, aquela
ágil bufonaria, a barulheira barata e colorida tão amada pelas massas.
A tais pensamentos, a caneta de Peter se tornou tão pesada em seus dedos finos que caiu na mesa, e ele ficou a olhar no vácuo durante muito
tempo. A impotência lhe paralisou todos os músculos. Realmente, não havia solução... Muitos homens brilhantes haviam confessado isso, com
tristeza. Sua advertência de perigo só seria atendida por aqueles que já conhecessem o perigo. E eles, também, seriam impotentes.
Falou a Celeste sobre seus pensamentos. Ela o ouviu gravemente, mudamente. Depois um dia lhe disse: “Você só pode fazer o que pode. E se
cada homem inteligente fizesse o que pudesse, isso seria de valor, fosse ele um escrevente de cartório ou um filósofo de uma grande
universidade, um simples político, ou um industrial solitário. É sua tarefa, Peter, fazê-los ver esse valor, e como, no total, podem ter considerável
potência. Mesmo as minorias podem ter alguma força.”
O egotismo de Peter como autor, a ânsia de poder que espreita mesmo no homem mais abnegado, seu desespero e sentimento de inaptidão
não se sentiam confortados com essa observação. Porém era tudo que podia fazer. Talvez as imponderabilidades da sorte pudessem agir
suficientemente para colocar uns poucos homens dispersos em posições de autoridade e poder. Era sua única esperança. Recordou que
alguns senadores e deputados, alguns políticos, já estavam tão cônscios quanto ele do negro perigo, e embora fossem atacados como
“provocadores de guerras, internacionalistas e intervencionistas”, pela imprensa vendida e pelos astuciosos inimigos do povo, não poderiam
ser silenciados. Deveria mostrar-lhes o caminho, deveria encorajá-los e animá-los.
Continuou a escrever.
Em sua preocupação, estava apenas vagamente — e irritadamente — cônscio de que Celeste se estava tornando excessivamente pálida,
silenciosa e abstrata. Ele era de natureza gregária, mas subitamente tinha consciência de que ele e a esposa raramente aceitavam convites,
nunca tomavam pequenas férias, ou tinham quaisquer outras diversões. Lembrou-se, também, de que enquanto ele e Celeste tinham morado
com Annette e Henri, Celeste estava quase sempre ausente e atendendo a algum compromisso. Agora vivia isolada com ele nessa horrível
Endur.
Foi assim que numa quente manhã de agosto Peter sentiu que a vida se tornara, de repente, agudamente insuportável. Ouvira, durante horas, a
excitada e sinistra corrente de vozes que vinham do rádio, estalando com boatos, com relatórios da reunião de divisões germânicas perto da
fronteira polonesa, com as pomposas declarações das “autoridades” americanas, e os medrosos murmúrios dos covardes. Completa e
esmagadora sensação de desânimo, de seca exaustão, de aversão e nojo o subjugavam e entorpeciam, tornando-o incapaz de pensar, e
despertando nele um desejo apaixonadamente voraz de algum refrigério, de um pouco de alegria e liberação. Voltaram-lhe todas as dores
vagas e as prostrações de sua doença, e, embora não o reconhecesse como isso, o último desesperado desejo de viver o atormentava.
Vestiu-se com dedos trêmulos, cônscio de sua insuportável premência, de sua ânsia de fuga. Quando Celeste, como de costume, trouxe sua
bandeja com o desjejum, ficou surpresa ao encontrá-lo vestido e de pé junto à janela, contemplando as brilhantes extensões de gramados. Os
altos choupos de Endur se inclinavam como plumas gigantes ao vento quente do verão, ondulando e alvejando e agitando-se. Ele fechou os
olhos por um momento e se voltou para a esposa.
— Não — disse, irritadamente — não estou assim tão inválido! — E acrescentou, mas gentilmente: — Vou descer com você, querida. Não
posso escrever hoje. Na verdade, poderia dizer: não posso escrever. — Tentou sorrir.
Celeste nada disse. Depositou a bandeja na mesinha-de-cabeceira, depois endireitou-se e estudou Peter. Ele estava agora tão magro que sua
carne parecia translúcida e frágil. Ela reprimiu a pancada em seu coração, e voltou a sorrir.
— Muito bem! Tem trabalhado demais, querido. Francamente, estou cansada de comer sozinha. Descemos agora?
A irritação dele continuou a aumentar durante a refeição, que lhe sabia mal. Empurrou a xícara de café e disse, com o vago calor e a aflição que
distinguem os nervosos:
— Que tem feito, Celeste? Nunca vamos a parte alguma. Ninguém vem visitar-nos. Seremos párias? Sei que nunca fomos os queridinhos da
família, mas por Deus! Ainda podemos pagar nossas despesas... Não somos mendigos, meu bem. Não somos parentes pobres. Nunca amei a
família, sei, mas por que esse espesso silêncio?
Lentamente Celeste depositou sua xícara de café. Um olhar ansioso e reservado lhe veio ao rosto. Relanceou um olhar pela saleta de almoço,
tão rígida, tão reluzente de vidros e peças cromadas, tão vaziamente estéril, e estremeceu um pouco. Falou, sem olhar para Peter:
— Não sei. Pensei que você queria tranquilidade para trabalhar.
— Não quero estar calado como algum maldito eunuco monástico! — gritou Peter, com invulgar irascibilidade. Ela viu como a mão dele estava
magra, pois estava na mesa, ossos e veias bem visíveis. — Olhe, desculpe-me, querida. Creio que é minha culpa, também. Então, devo ficar
tranquilo, não? O autor sério e severo afastado do mundo enquanto escreve sua importante farolagem, destinada a mudar a face do mundo!
Que importa que eu escreva ou não? Quem se importa? Sentimentalismo egotista acreditar que algo tem importância, num tempo como este, a
não ser iniquidade, desumanidade e ganância. Aqui fico eu, como uma infernal “Lady de Shalott”, fiando minhas teias idiotas... — Deteve-se
abruptamente, pois Celeste o fitava com uma expressão estranha. — Que aconteceu, Celeste?
— Nada — ela replicou, após um momento. — Acabo de lembrar que você me disse que o Sr. Hawkins tinha uma alta opinião sobre o que você
escrevera. Não parecia achar que fosse farolagem, não é?
— Diabos! Não estou interessado no que alguém pense! — ele exclamou, com crescente exasperação. — Espere até que ele veja o último lote
de manuscritos. Apertará o nariz e mandará tudo para o incinerador. Com todo o maldito egotismo, acreditar...
Celeste estava calada. De olhos baixos. Sentava-se ereta. Ele sentiu aborrecimento de si mesmo por magoá-la, mas perversamente sua
irritação se fortaleceu:
— Sim, é minha culpa. Dei-lhe uma ideia errônea. Você ainda é jovem, querida, e senta-se aí, dia após dia, como uma discípula aos pés de
algum miserável pequeno messias. E, claro, nunca pensou que eu poderia desejar alguma mudança. Quantas semanas temos estado
encerrados nesta prisão metálica? Sem ver uma alma sequer?
Celeste o olhava quietamente:
— Que gostaria de fazer, Peter? Devemos oferecer um jantar? E quem gostaria de convidar? Para dizer a verdade, estou muito contente que
você tenha voltado à vida! É sinal de que sua saúde está voltando.
— Não importa quem, minha querida. Dois ou três da família. Meu irmão Francis, talvez, e sua rústica Estelle. Mas não meu irmão Jean. Esse
cogumelo venenoso... Christopher e Edith já voltaram para a Flórida? Ele é o seu irmão querido, de modo que suponho que gostaria de
convidá-lo. Está agora em Nova York? Bem, é um alívio! Poderia convidar Annette e Henri, embora eu possa suportar muito bem se ele não
puder vir. Mas sou louco por Annette. Sei que vocês duas eram muito amigas. Está afastada de nós, também?
— Annette tem telefonado quase todos os dias, mas pensei...
— Sim, eu sei. O grande transformador-da-face-do-mundo não deve ser perturbado em seu labor de fazedor de história. Assim, Henri e Annette
devem ser convidados. Olhe, você não tem amigos fora do círculo da família?
— Alguns. — Celeste começou a contar nos dedos. — Acho que seria agradável um jantar pequeno. É mais apropriado, penso. Não gosto de
jantares formais. — Seus gestos e voz eram sem vida, demasiado quietos. — Que tal uma semana a partir do sábado à noite?
— Perto de duas semanas! E nesse ínterim, claro, continuaremos estagnados! Não posso escrever, estou-lhe dizendo! Estou morto por dentro.
Não quero seu consolo e sua inspiração, Celeste. Hoje não, obrigado. — Seu olhar e suas maneiras eram frenéticos, e ela viu, alarmada, que
ele estava desvairadamente atemorizado, com medo de alguma coisa. — Não pode fazer mais cedo esse jantar?
— Tentarei.
Sua ansiedade aumentava. Cogitava se devia chamar o médico. Se o fizesse, ele não deveria sabê-lo, no seu estado atual.
— Será que seria altamente impróprio se você telefonasse a alguém e sugerisse que apreciaríamos um convite para jantar dentro de uma ou
duas noites, ou talvez para hoje à noite?
Ela nunca o ouvira dirigir-lhe sarcasmo tão cru, e seu medo se avivou.
— Primeiro, você sabe, Peter, que todos lhe julgam de luto. E Armand e Christopher também, e outros membros da família. Mas não se
importe: podemos ter jantarezinhos calmos. Gostaria de sair para um passeio de carro esta manhã?
Ele concordou, com súbita avidez. Celeste suspirou. Foi trazido um carro, e ela e Peter foram conduzidos pelas quentes campinas da região
rural. A aragem parecia um sopro vindo das regiões infernais. Passaram campos emurchecidos, as espigas a brilhar ao sol, prados onde o
gado modorrava. Embora Peter estivesse firme, olhando pelas janelas que rapidamente ficavam empoeiradas, ela lhe sentiu a dolorosa
excitação e a exaustão. Porém mais tarde, nessa tarde, ele não conseguiu descansar em seu quarto sombreado.
Ele estava a ponto de erguer-se do leito quente quando Celeste entrou, maciamente. As cortinas do quarto estavam corridas, setas e lascas de
fogo dourado dardejavam através das ripas das venezianas. Porém mesmo nessa quente escuridão ele podia sentir nela uma rigidez, uma
tensão estranha.
— Está acordado, querido? Annette e Henri passaram aqui, para convidar-nos pessoalmente para jantar amanhã. Devo dizer-lhes que você
está cansado demais para recebê-los agora?
— Não! — ele gritou, com violência alarmante. — Em nome de Deus, Celeste! Vou vestir-me e estarei lá embaixo em um ou dois minutos. —
Levantou-se e esqueceu a peculiaridade da aparência e as maneiras de Celeste. Ela saiu do quarto, em silêncio.
Mas achou-se invulgarmente fraco quando desceu a escadaria para as salas embaixo. Foi obrigado a parar a meio caminho. O grande
vestíbulo embaixo — branco e cinza e prata — parecia um vácuo quente diante de seus olhos, e a crua luz solar, sem sombras, que o enchia
todo lhe feria a visão. Sua mão úmida escorregou na balaustrada de cromo, e cambaleou. Recorreu a toda a sua força de vontade para manter-
se consciente. Sentiu uma náusea aguda à vista daquele desolado esplendor espelhante.
Ao entrar no amplo salão, a náusea o pegou mais forte, e ele odiou todo objeto inanimado que seus olhos encontraram. Também aqui tudo era
branco e cinza e cores pastel e cromo e prata polida — do pálido capacho à cegante palidez das paredes, das redondas mesas de vidro aos
divãs azuis-claros e às cadeiras coral e nos imóveis espelhos sem moldura. Como puderam, ele e Celeste, aguentar aquelas semanas dentro
daquela casa apavorante? Nem uma flor, sequer, nos jarros retorcidos de vidro e prata, aquelas monstruosidades empoleiradas nas mesas.
Desviou o olhar para Annette e Henri, à sua espera. Dificilmente avistou Celeste a distância, sentada numa cadeirinha azul, as mãos no colo.
Por alguns minutos não ouviu vozes. Porém quando ele entrou, Henri se levantou, sorrindo, tão firme, calmo e imperturbável como sempre.
— Alô! — disse. — Pensamos em vir sem nos anunciarmos, para que você não pudesse esconder-se de nós. Como vai? Parece muito melhor.
Sua voz era cordial e amigável, os olhos descorados pensativos e penetrantes. Apertaram-se as mãos, e Peter, aliviado do horror da casa sem
uma presença humana, estava recobrando seu sorriso com grande prazer.
Achou delicioso ver mesmo Henri, apesar do que sabia, a despeito dos anos de ódio violento e inimizade entre eles. Ele estava como um
homem que viveu por muito tempo num deserto onde o silêncio só era quebrado pelo grito de alguma ave predatória e o rumor do vento e que,
por fim, ouve uma voz humana e fica dominado pela alegria — embora essa voz já o tenha revoltado, outrora. Virou-se para Annette e pegou-lhe
a mão pequenina e macia. Olharam-se com profunda ternura, os olhos azuis grandes e parecidos, brilhantes e móveis. “A querida e gentil
criaturinha — ele pensou — tão ingênua, boa e compreensiva!” Seu fino vestido azul fazia quase vívido o pequeno rosto triangular, e se lhe
refletia nos olhos. As mechas do fino cabelo, brilhante, encaracolavam-se em torno de um chapeuzinho branco do feitio de um solidéu. Sua
aparência era ao mesmo tempo indefesa e forte, doce, porém firme, inteligente embora inocente. Ela lhe apertou a mão, respondeu gentilmente
às perguntas sobre sua saúde, e indagou a respeito da de Peter.
— Oh!, vou indo esplendidamente! — ele replicou, com ânimo invulgar, de animação quase febril. — Celeste pode dizer-lhe que minha tosse
praticamente foi-se. Parece que o trabalho me faz bem.
Henri sorriu para si mesmo. Deu uma olhada em Celeste, pelo canto do olho. Porém ela ali estava sentada em algum sonho petrificado e
abstrato, olhando fixo para diante, os lábios muito descorados. Parecia nada ouvir.
— Estamos tão interessados em sua nova e linda casa em Placid Heights... — disse Annette, sorrindo radiante para Peter quando ele se
sentou ao seu lado. — Esteve lá por estes dias, para ver o andamento do trabalho?
Peter respondeu que não, por estar muito ocupado. Mas sabia que Celeste ia lá frequentemente. A isso, Celeste se agitou, ergueu a cabeça
morosamente, e virou o rosto para ele como se tivesse ouvido mal. Disse:
— Estive lá há uma semana. Esperamos que esteja pronta pelo Natal.
Annette brilhava de entusiasmo! Olhou travessamente para o marido e exclamou:
— Vocês vão achar-nos intrometidos, ou curiosos, claro, mas Henri e eu temos estado lá com frequência, e Henri tem sido severo com os
operários e com o arquiteto. Havia algo a respeito das calhas de cobre.
— Tem-se de vigiar esse pessoal — observou Henri. — É uma boa planta, Peter. Simples, apropriada e não muito grande. Estamos ansiosos
pelo convite para a festa da cumieira.
— A vista é deliciosa — falou Annette, chegando para a beira -da cadeira, animadamente. — Todas aquelas montanhas em volta, e o vale, e a
ondulada região campestre... Será maravilhoso ali no outono! Invejo vocês... Não que eu não goste de Robin’s Nest, claro — e olhou Henri com
tocante adoração — mas casas novas sempre me põem muito animada.
Celeste deu ordens para o chá, depois recaiu em seu silêncio profundo. Parecia literalmente incapaz de mover-se sem um esforço terrível. Uma
madeixa de seu brilhante cabelo negro caía sobre a testa petrificada e alva, e outro anel lhe acariciava a face pálida. Os ombros estavam
curvados, todo o seu corpo parecia à beira de um colapso.
Henri e Peter conversavam agradavelmente, mas Henri estava agudamente cônscio da proximidade de Celeste. Via-lhe as brancas mãos
caídas molemente no regaço, a curva das coxas, a linha caída dos seios. Parecia doente. Ele tornou a sorrir para si mesmo. Ela estava sentada
tão perto dele que poderia tê-la tocado, e ele a sabia tão cônscia dele quanto ele o estava dela, e que ela não ousava olhá-lo diretamente.
Annette voltou-se para a sua jovem tia e exclamou:
— Querida, você parece tão cansada! Sabe, estou realmente ofendida com você, recusando assim meus convites persistentes. De modo que
viemos para insistir com você e Peter para que jantem conosco amanhã. Ou hoje, seria melhor.
Peter olhou de sua esposa para Annette, e sorriu desagradavelmente:
— Celeste pensa que sou um monge, sabe. Só hoje descobri que a razão de estarmos aparentemente no ostracismo é porque ela trancou as
portas e fechou as janelas. Porém acho que é também minha culpa. Devo ter-lhe dado a impressão de ser um trapista de coração.
— Sei — disse Annette, suavemente. Olhou para o perfil imóvel de Celeste com a mais estranha expressão, compadecida, triste, e muito
pesarosa, embora um momento depois sorrisse brilhantemente e suspirasse:
— Você nem sabe o quanto me faz feliz vê-los sair deste retiro. Hoje eu ia ser muito desagradável, se recusassem nosso convite. Hoje à noite,
querida? Ou amanhã?
Celeste disse, indiferentemente:
— Amanhã, se Peter assim o prefere.
— Sim, amanhã — ele respondeu, apressadamente. Aquela horrível fraqueza o estava assaltando outra vez, embora lutasse seriamente contra
ela. Nessa noite não poderia, mesmo, sair de casa. Inspirou profundamente. — Será bom sair um pouco deste lugar! Não que não sejamos
gratos a Christopher e Edith, naturalmente. Mas a casa é apavorante, não é?
Pela primeira vez Celeste pareceu completamente cônscia da conversa. Até corou um pouco, e os olhos reluziram com um súbito fogo azul ao
olhar o marido:
— Isso não é muito bonito, Peter. Jamais gostei de Endur, mas outrora foi o meu lar, e Christopher foi muito atencioso conosco. — Ela pensou:
“Ele não está em si! Não deve saber o que está dizendo. Está apavorado e perturbado.”
— Claro, minha querida — replicou Peter, contrito. — Desculpe-me. Mas não posso evitar que me deprima: lembra-me demais o seu irmão...
O chá foi trazido, e Celeste, sem o menor tremor nas mãos, encheu as delicadas chávenas com o líquido cor de topázio. O seu fino vestido
preto fazia com que a garganta alva e os braços parecessem de mármore polido. Passou uma chávena a Annette e outra a Henri, que a aceitou
com um sorriso casual e uma inclinação de cabeça. Ela não o fitou. Ela disse:
— Peter, não deveria ter a sua gemada em vez de chá?
— Oh! Deus! — resmungou Peter, lançando-lhe um olhar impaciente. — Você não preferiria que eu pedisse uma mamadeira e um bico de
borracha?
Ela o estudou por um momento, e o alarma que sentia lhe fez bater o coração mais depressa. Momentaneamente esqueceu Annette e Henri.
Henri estava rindo de um modo nada agradável, e Annette parecia embaraçada. Mas Celeste só via a palidez de Peter, os olhos demasiado
brilhantes, os lábios quentes e secos. De repente ele começou a tossir violentamente, e Celeste tremeu visivelmente. Após um ou dois minutos,
encheu uma chávena para ele e lhe entregou, como se nada houvesse acontecido e ela não tivesse ouvido sua observação impertinente. Seu ar
de dignidade e calmo orgulho fez doer o doce coração de Annette, cujos olhos se encheram de lágrimas. Falou animadamente a Peter:
— Como vai indo o livro?
A antiga altaneria e inquietação de Peter tornavam a aparecer a qualquer menção a seu trabalho. Hesitou, deu uma furtiva olhadela a Henri,
depois replicou:
— Não muito bem, Annette. Estou ficando sem inspiração. Talvez me tenha apegado demais a isso.
— Ou melhor — falou Henri, brandamente — talvez você não conheça bastante o seu tema.
— Henri não quis ser indelicado — murmurou Annette sem jeito.
Mas Peter a ignorou. Olhou para Henri, com sua velha aversão e desagrado:
— Não, o pior é que conheço demais, tenho material demais. Não consigo organizá-lo. Gostaria de pôr tudo ali. É tão enorme, tão horrível e
pressagioso... Para fazer justiça ao assunto eu teria realmente de escrever uma biblioteca documentada. Quando vejo quão impossível é fazer
mais do que sugerir, condensar, encaixar, sinto-me desesperado! Parece um pesadelo, e o inocente e o não iniciado dificilmente acreditarão
nisso. — Agora seu olhar para Henri era duro e sombrio, e cheio de desprezo.
Mas Henri sorria:
—- Ora, vamos! não estamos assim tão mal! De fato, se você escreveu a história de qualquer indústria ou empresa na América, quer se trate
de tecidos ou matadouros, siderurgia ou fabrico de bebidas fermentadas — a coisa pode ser apresentada de tal forma, tão realçada, tão
exagerada e colorida que poderá ficar parecendo a história de Ali Babá e os Quarenta Ladrões. Pois, você sabe, o elemento humano ali está,
inevitavelmente, e seja o que for que o elemento humano toque, provavelmente terá mau cheiro ou será desonesto. Entretanto, o resultado final
é habitualmente inofensivo, e nesse ínterim grande número de pessoas prospera de modo inocente e feliz.
— Presumo — disse Peter, voz trêmula, desaparecida toda a cor febril, de modo que estava outra vez de rosto translúcido e cheio de sombras
— que o “grande número de pessoas” que tem aproveitado de suas companhias e subsidiárias tem sido apenas os Bouchards? E quanto ao
resto do mundo? E quanto ao mundo que está por vir? Pode afirmar que também ele “prosperará de modo inocente e feliz” no tipo de
civilização que vocês estão criando para ele agora?
Henri riu ligeiramente. Seus olhos descorados se pousaram em Peter indulgentemente:
— Francamente, não sei. Tenho meus negócios para cuidar, e isso me toma muito tempo: não me sobra nenhum para filosofar.
— Mas eu posso dizer-lhe isto agora: Você não pode honestamente declarar a uma pessoa: “Olhe, aqui está seu opressor, você é a vítima.” A
propósito, a vítima cria o opressor. Nada é separado do resto do mundo. O mundo, tal como o conhecemos agora e no passado, é o resultado
visível da natureza humana total, seu trabalho e sua vontade. Por exemplo: o povo alemão inventou Hitler. Ele foi seu desejo feito carne, para
parafrasear a Bíblia. Assim, se certos “homens maus” obtiveram o controle da América, o que eu nego, é porque americanos foram demasiado
indolentes, gananciosos demais, muito estúpidos e negligentes para evitá-lo, e assim tacitamente o permitiram. Eles não existem isolados de
seus “exploradores”, nem esses “exploradores” existem isolados deles.
Aí Peter esqueceu tudo, exceto sua paixão ardente, sua aversão, ódio e raiva contra esse homem!
— Você faz isso parecer muito simples — disse, e agora sua voz tremia tanto que dificilmente podia controlá-la. — Mas não é assim tão
simples. Admitindo que a estupidez e a indolência do povo tornem possíveis os tiranos, isso não faz virtuosa a tirania, ou inevitável. Os
criminosos tiram vantagem da confiança dos desamparados ou dos indefesos. Esse é o seu crime.
Henri estava silencioso. Mas ainda sorria. Olhou para Annette, que ficara muito pálida e torcia os dedos. Olhou para Celeste. Porém ela fitava
Peter, rosto branco e imóvel, e ouvia atentamente. Henri franziu o sobrolho pensativamente, e tamborilou sem som no braço da cadeira.
— Sim — disse Peter, agora em tom mais calmo — em uma coisa concordo com você: nada existe isoladamente de tudo mais, e devemos
lembrar-nos do elemento humano. Todavia, existe um elemento, talvez, de que você não sabe nada, Henri, e esse elemento é o desejo
profundamente enraizado de todo homem de acreditar que ele e seu trabalho são importantes. O desejo pode ser consciente ou inconsciente,
mas está lá, exigindo que acredite que ele e seus esforços são necessários a seu próximo e a seu bem-estar. Você pode achar isso muito
bobo. Penso que é a única coisa nobre no homem. Quando esta crença está morta num homem, e a indústria moderna a está matando
depressa, por sua monotonia, seu automatismo, e padrão mortalmente mecânico, então o homem perde sua vontade de viver, que é sempre
muito precária mesmo no mais forte de nós.
“Os homens de poder tampouco souberam do lastimável desejo humano de ser de alguma importância para o mundo, e de melhorá-lo por
trabalho e esforço voluntários, ou não se importariam com isso. Para eles nada representa que esse desejo contenha a promessa mais
profunda de bem para o mundo, uma promessa de harmonia universal, e grandeza e bondade, e que tenha o poder de curar muitos dos males
e danos da raça humana.
Deteve-se, e continuou em tom mais baixo:
— Talvez você tenha razão em outra coisa. Há muito tempo você me disse que a guerra é um dos mais fortes instintos do homem. Começo a
acreditar que sim. Pois guerra é a expressão do desejo de matar de massas inteiras de povo. O problema é tornar a vida tão venturosa, tão
vital, significativa e importante para cada homem que ele não queira, em seu desejo de morte, recorrer ao suicídio em massa.
— E como propõe que isto seja feito? — perguntou Henri, com o mesmo olhar brando e enfurecedor, como se falasse a algum louco furioso.
Peter hesitou, e agora seu olhar estava austero e firme:
— Talvez, como eu disse antes, deixando que os homens acreditem, outra vez, que são importantes para o mundo. A religião tem uma forte
influência sobre o homem apenas na razão direta da porção de importância que lhe confere. Você quereria que eu fosse prático, não? Pode
mostrar-me como a indústria moderna permite a um homem, por um momento que seja, acreditar que é importante e que ele, e só ele, dá a seu
trabalho algum toque peculiar que ninguém mais daria? Nossas máquinas eliminaram a alegria pessoal da habilidade manual, do artesanato
individual, da criação. Que alegria existe em fazer peças fundidas ou tiras de metal iguaizinhas, em máquina idêntica, por um idêntico robô
humano? Quando a indústria moderna eliminou o elemento pessoal de suas gigantescas lojas, usinas e fábricas, começou a destruir o desejo-
de-viver do homem, o qual se baseia em seu senso individual de importância. E no mesmo passo estabeleceu os fundamentos para guerras
devastadoras. Acredito que por isso é que o fascismo leva inevitavelmente à guerra. É a derradeira convulsão de um povo sem esperança.
Acrescentou:
— A guerra é, afinal de contas, deliciosa para o povo, por ser agora a única coisa que permite a um homem acreditar que é individualmente
importante, e que algo depende dele, pessoalmente.
O rosto fino e exausto foi subitamente iluminado pela paixão, a piedade e a tristeza.
— É uma coisa terrível! — falou baixinho, como para si mesmo.
Agora ele contemplava Celeste. Ela lhe sorria, e seus olhos estavam dilatados e brilhantes. Henri os olhava, lentamente, um de cada vez.
— Está pondo tudo isso em seu livro? — perguntou.
Peter voltou a ter consciência de sua presença, após a longa troca de olhares com a esposa, e franziu um pouco a testa:
— Há tanto... sim, estou tentando contar isso. A coisa toda é tão... enorme!
Estava outra vez exausto, tendo esgotado o fogo breve e candente. Mais uma vez sentia-se desesperadamente doente.
Annette falou, e sua voz estava trêmula, bem como as mãos em seu regaço:
— Oh! Peter, gostaria que houvesse alguma coisa que eu pudesse dizer agora, que o fizesse saber o quanto mexeu comigo! Nunca tenho as
palavras apropriadas para nada, mas sei que você está certo. — Seus cílios estavam úmidos, e os lábios trêmulos.
— De qualquer modo, deverá ser muito interessante — comentou Henri, com a superior e amável condescendência tão exasperante para
qualquer autor. — Pode contar comigo: fico com um exemplar. Ingham é quem vai publicá-lo?
— Sim — falou Peter, brevemente.
Tomou o chá distraidamente: já estava frio e nauseante para ele. Seu desespero era nele uma desolação, uma calmaria... Como era impotente!
O quão claramente Henri lhe mostrara sua impotência, em face do próprio grande poder, força e solidez físicas!
Durante sua abstração não se dava conta de que Henri o esquadrinhava atentamente. Tê-lo-ia espantado o saber o quão importante era agora
para Henri, e que o outro homem tratava de refletir rapidamente.
— Olhe aqui — falou Henri, abruptamente. — Você diz que tem material demais. Por exemplo: está cônscio, com suas malditas provas
documentadas, de que certo grupo de homens em Washington e outros lugares está resolvido a derrubar o Governo e substituí-lo pelo
fascismo? Com a ajuda real de Hitler?
Peter ergueu o olhar com tamanha rapidez que chegou a quase entornar sua chávena. Não podia acreditar no que ouvia. Henri estava
acenando com a cabeça, com um sorriso triste.
— Garanto-lhe que é verdade. E não sou um deles, esteja certo. Isto o surpreende, não é verdade? Calculo que haja tido suas suspeitas. Quer
verificar?
Peter estava estupefato. Os olhos esgazeados instintivamente procuraram Celeste. Porém ela olhava Henri, com uma rígida expressão de
choque, e olhava plenamente pela primeira vez.
— Imagino — continuou Henri, olhando só para Peter — que você tenha dado umas tintas a este respeito em seu manuscrito. Mas apenas
insinuações sempre podem ser atacadas e destruídas. Os fatos não.
Contudo, Peter não podia mesmo falar.
Henri recostou-se confortavelmente na poltrona, e levantou as sobrancelhas com uma expressão zombeteira. Porém os olhos estavam fitos com
rara intensidade em Peter.
— Quero dizer: é uma conspiração real, que só recentemente chegou ao meu conhecimento. Serei franco com você. Quis que a América se
mantivesse fora da guerra que está a chegar porque a guerra destruirá o status quo, e sou muito apegado ao status quo. Não me importo a
mínima com o que Hitler faz na Europa. Mas quero mantê-lo fora da América. Desgraçadamente, existem alguns homens, e você ficaria
surpreso se soubesse quem são, que querem Hitler aqui ou, pelo menos, desejam a influência dele aqui. Estão trabalhando para isso. Um
cavalheiro muito chegado a alguns de nós disse, recentemente: “Precisamos de Hitler, e sua eficiência. Para pôr a maldita multidão de volta em
seu lugar. Digo: aliciem-no!” Você pode achar isto muito impudente e rude. Mas não é. Eles traçaram os planos vigentes.
Peter arrancou-se à sua letargia de estupor e gaguejou:
— Por que me diz isso? Agora? Você?
Henri deu de ombros, e respondeu brandamente:
— Porque não quero Hitler aqui. Estou muito satisfeito com as coisas como estão. Não estou muito interessado no que Hitler faz na Europa,
mas estou resolvido a que não o faça com qualquer dos nossos materiais... se eu puder evitá-lo. Não estou muito certo de poder evitá-lo.
Naturalmente, estou trabalhando para isso. Coagi — sorriu um pouco — ou melhor: persuadi alguns outros a juntar-se a mim, pois estou seguro
de que não tenho desejo de ser um Thyssen para Hitler. Não é patriotismo. Só estou dando a você um esboço, um resumo. — Deteve-se,
cogitando se estava sendo indiscreto, estúpido e ingênuo. — Posso ser bem-sucedido. Como a coisa aparece agora, posso não ser. Você
pode imaginar o resto.
De súbito, Peter pôs-se de pé e, em profundo silêncio, palmilhou a sala abaixo e acima a passos sacudidos. Punha as mãos no rosto e
deixava-as cair, com um suspiro. As duas mulheres estavam transidas em suas poltronas, Celeste observando Peter, Annette vigiando Henri.
As faces de Annette estavam de um vermelho vivo, os olhos demasiado brilhantes.
Então Peter parou diante de Henri. Seus lábios se mexeram com esforço:
— De alguma forma, acredito em você. Não sei por quê. Compreendo por que me falou. Não é por patriotismo ou decência. Você deseja
proteger-se. Isso não importa. Que posso fazer?
Henri estava agora muito grave e sério. Inclinou-se para Peter:
— Seu livro estará terminado tarde demais, receio bem. Suponha que seja publicado daqui a um ano ou mais. Já não fará bem algum: o dano
estará causado, dano provavelmente irreparável.
“Entretanto, acabei de ter uma ideia. Suponha que você escreva para o rádio. Não poderá, claro, fazer tais palestras você mesmo, por razões
mais que óbvias. Mas eu posso advertir o povo por meio de dois ou três comentaristas competentes. Já tenho em mente esses comentaristas.
Dois foram recentemente tirados do ar por falta de patrocinadores. Acontece que sei por que eles não têm patrocinadores agora. Acho que
você pode adivinhar, também. Eles não precisam de patrocinadores: eu pagarei pelas transmissões. Nenhum dos canais ousará manter esses
homens fora do ar quando eu der a ordem. Também eles estão cheios de fatos, que eu darei a você. Lembre-se: no próximo ano haverá uma
eleição — e a rudeza em seu rosto se abrandou por um momento. — Francamente, não me importa se é eleito Roosevelt ou qualquer outro
homem de opinião igual à dele. Estou pensando em um homem que me foi mencionado ultimamente por determinado velho cavalheiro. Ele
pode não ser escolhido. Se não o for, e o Partido Republicano eleger algum pateta, algum testa-de-ferro, então podemos ter Roosevelt. Isto o
surpreende, não? Mas digo-lhe agora que nem mesmo a maior das burrices do New Deal tem mais qualquer importância. A única coisa
importante é tornar impraticáveis aqueles esquemas de que acabei de falar-lhe. Tudo mais pode esperar.
Continuou, pois Peter ainda não podia falar:
— Toque o seu livro para a frente. Mas essas palestras pelo rádio são mais necessárias, mais imediatas. Que me diz?
Os olhos de Peter ardiam no rosto magro. Ele ainda estava vivo, ardente e apaixonado. Quase gritou, exultante. Após um momento, falou:
— Meu Deus! Não posso acreditar! Claro que farei isso! Você só tem de me dar os fatos, uma orientação de vez em quando!
Mal podia respirar, com seu senso de potência novamente excitado, como excitados estavam todos os seus sentidos. Mas Henri se mantinha
perfeitamente calmo, sorriso macio como sempre.
Levantou-se:
— Muito bem. Você será bastante discreto, naturalmente, para não dar a mais leve pista sobre onde obtém suas informações. Seria
desastroso: devo trabalhar nos bastidores. Devo desmascarar todos os conspiradores e fazer o que posso, pelo meu lado, para detê-los em
seu caminho. Nesse ínterim, você pode despertar muita gente para o perigo que corre. Estude os comentadores, que são subsidiados pela
Associação Americana de Industriais, uma de nossas organizações. Wright Benson é o mais apto. Você pode obter muitas indicações de sua
propaganda, que é muito adequada, para dizer pouco. Você perceberá o fino controle italiano por trás do que ele diz. Estude os jornais,
especialmente aquele poderoso refugo em Detroit. Você terá seu trabalho talhado para você, e isso não vai ser fácil.
Peter apertava as mãos nas têmporas latejantes. Celeste estava agora de pé ao lado dele, vendo só a ele. Ele se voltou para ela e lhe leu nos
olhos a ansiedade sem palavras. Gritou:
— Meu Deus, querida! Nada mais importa, só isto! Pode perceber? — passou o braço em torno dela, que deitou a cabeça nos ombros dele.
— Eu lhe enviarei algum material amanhã, por mensageiro especial — disse Henri, estendendo a mão a Peter, que a contemplou, e depois
apertou-a. — Outra coisa — falou Henri, sorrindo, como se se divertisse profundamente — não seja muito intelectual em seus ataques. Use
palavras de uma só sílaba, se possível. Lembre-se: a maioria do povo é de ignorantes. Tem uma suspeita natural pelo que chama “professores
universitários”. Faça a coisa simples, impressionante, violenta e espetacular. Nada medido e restrito. De outro modo o “isolarão”. Ouça o Bispo
Halliday, esse pio suíno. Copie seu estilo, e o melhore. Ele é um bom incitador da populaça. Seja um incitador da populaça.
Peter sorriu convulsivamente. Henri viu que sua mente já se lançara num excitado e turbulento estado, e já estava formulando o que iria
escrever. Mas disse:
— Será fantástico, trabalhar com você, Henri. Ainda não posso crer!
— Acredite — replicou o outro. — Eu lhe darei alguns fatos muito interessantes amanhã à noite, depois do jantar.
Annette estava silenciosa. Mas suas mãozinhas apertavam o sólido braço de Henri e ela sorria, radiante, nada mais vendo senão o rosto dele.
De modo que ninguém observou que Celeste, também, olhava para Henri, lábios entreabertos, olhos escuros e estranhos.

Capítulo 27
Peter havia comprado dez acres de terra em Placid Heights para seu novo lar.
A terra compreendia uma colina inteira, e por trás dela erguiam-se as dobras cor de malva dos contrafortes mais altos, de modo que ela
parecia encerrada no anel de uma imensa fortaleza circular. A casa, agora em processo de construção, ficava no topo de sua colina. Os
terrenos seriam adequadamente ajardinados, mas nessa estação — fins de agosto — a colina estava escura e ressecada, tendo aqui e ali uma
árvore espigada e resistente. Portanto, a casa tinha um lado exposto e vulnerável à gritante luz solar, suas fortes paredes cinzentas um tanto
austeras, e o telhado vermelho demasiado brilhante e natural.
Mas a colina se inclinava gentilmente para uma estreita fenda entre as colinas, um vale cheio de névoa radiante e translúcida, de modo que as
árvores espalhadas por ali estavam imóveis numa luz prateada. Nenhuma outra casa era visível. Havia apenas o pálido brilho do céu, as dobras
arroxeadas das colinas, o vale semelhante a um sonho, tão longe quanto a vista podia alcançar. Nada de vento, nem um som de pássaro
naquela vastidão, sob a universal catarata da luz solar. Apenas o serrar de madeira, o clamor dos martelos dos operários, uma ocasional voz
áspera, ou uma pisada forte no novo e inacabado assoalhamento. O cheiro de serragem fresca saturava o ar quente e estéril.
Um pouco abaixo da ladeira estava estacionado um pequeno carro azul e, perto dele, sentada numa pedra, Celeste, cujo vestido vermelho era
uma mancha de cor de encontro ao declive amarelado. Ela não examinava a casa. Fitava o vale, lá embaixo, as mãos imóveis a seu lado, uma
madeixa de cabelo ondulando ao mais leve sopro de brisa. A rígida quietude do seu rosto relaxara; os lábios estavam mais macios, mais
gentis, do que haviam estado por algum tempo. Uma ou duas vezes sorriu, rapidamente, depois suspirou, e por um instante a antiga rigidez lhe
cerrou as feições, para desaparecer uma vez num vivido relâmpago de renovada doçura.
Viera para discutir com o arquiteto o apainelamento da biblioteca. Ele se fora. Ela ficara só. O diamante em sua mão brilhava à luz do sol como
um prisma redondo. Estava ali sentada havia perto de uma hora.
Ninguém que a olhasse poderia adivinhar a excitação febril que a dominava, as súbitas rajadas de negro desânimo que se seguiam, que por
sua vez eram seguidas por uma selvagem aceleração que a fazia torcer as mãos e penetrava a intumescência de seu coração com mudo
êxtase e uma profunda e apaixonada tristeza. Depois, como se exausta por suas próprias emoções, ela se tornava hesitante e calma, para
recomeçar o ciclo de emoção dentro de poucos minutos.
Estivera morta por tanto tempo...
Desde a última noite, quando Henri propusera seu plano a Peter, este ficara tão violentamente excitado, tão exultante que Celeste fora incapaz
de contê-lo. Qualquer sugestão de que se acalmasse era recebida com uma explosão, ele gritando que ela não o compreendia, que estava
tentando dominar a primeira alegria que tivera em meses, em anos. De modo que, finalmente, ela nada mais dissera. Viu que Peter, também,
havia estado completamente desesperado, cheio de impotência, medo e desesperança. Agora lhe fora dada uma oportunidade de alcançar
milhões, que deviam ser despertados.
Celeste pensava no homem que tornara possível a Peter voltar a viver, sentir uma vez mais a maravilhosa sensação de poder realizar algo. E
ela sentia em si mesma um tremor que lhe tolhia a respiração. Quantos anos se haviam passado desde que experimentara emoção tão
vibrante! Tornou-se cônscia, depois de tanto tempo, da pungente presença do mundo, sua apaixonada violência, sua maravilha e cores vividas.
Tinha de novo aquela clareza de percepção, aquela jovial veemência que uma vez sentira e havia esquecido há tanto, tanto tempo! Agora,
enquanto pensava em Henri Bouchard, seus sentidos despertos observavam tudo com tal vivacidade que chegava a ser dolorosa. O cascalho a
seus pés tomava formas significativas. A sombra de uma árvore retorcida perto dela estava cheia de significado, e quando suas grandes folhas
se inclinavam ao mais fraco dos ventos, ela dificilmente podia aguentar a pungência da luz solar sobre elas. Ergueu para o céu olhos
ofuscados, e lhe pareceu que os flutuantes contornos das nuvens pálidas eram mais do que poderia suportar.
Tão absorta estava que nem ouviu o ronco de um carro que subia a colina sem estradas, nem a batida de sua porta. Nem viu de imediato a
forte figura que começou lenta ascensão em sua direção. Quando discerniu quem era que se aproximava dela, pareceu-lhe apenas a
continuação de seu sonho radiante. Apenas pôde ficar ali sentada na pedra, sorrindo vagamente, contemplando o homem que subia.
Depois, de súbito, tornou-se cônscia de quem era ele, e foi como um choque por todo o seu corpo, um selvagem despertar. Não pôde levantar-
se. Apenas podia ficar ali sentada, as mãos agarrando os lados da pedra, o rosto branco e imóvel. Quando ele ergueu a mão num aceno
amigável, ela não respondeu. Estava paralisada; o coração parecia querer parar.
Ele se deteve por um momento, alguns metros abaixo de onde ela estava, e enxugou o rosto úmido com o lenço:
— Alô! — chamou.
Os lábios e a garganta da moça estavam secos. Ainda estava incapaz de mover-se. Ele subiu lenta e facilmente até ela, depois tornou a parar.
— Peter está aqui? — perguntou.
A voz dela era rouca, emitida com esforço infinito:
— Não.
Agora pôde levantar-se. Ele lhe sorria da maneira mais amigável:
— Não está doente de novo, está?
Os lábios dela formaram a negativa, mas não saiu nenhum som.
— No último minuto Annette decidiu que estava muito quente, assim pensei em vir sozinho — falou ele.
Celeste estava ansiosa. Encararam-se e, então, também ele não falou. Sua grande cabeça se inclinava gravemente, tinha a expressão séria.
Ela esperou o que ele diria a seguir, com uma agonizante agudeza de todos os sentidos. Porém ele apenas disse por fim:
— Bem. E como vão indo as coisas por aqui? Sabe, costumamos vir aqui.
— Muito bem — ela replicou, ainda lutando para falar. Seus membros estavam fracos e trêmulos.
Ele afastou-se dela, e sorriu de novo:
— Gostaria de ver por mim mesmo — disse, e subiu até a casa.
Mudamente, ela o observava. Depois de muito tempo, tornou a sentar-se na pedra, tremendo de vontade de fugir, entrar no carro e descer para
o vale. Esse desejo de fugir era como uma chama a abrasá-la, mas não tinha vontade suficiente para reagir.
Não sabia há quanto tempo ele havia ido, mas de súbito ei-lo de novo ao seu lado. Não a olhava: contemplava o vale, lá embaixo, com uma
expressão satisfeita.
— Muito bonito! E não muito longe da cidade. Sabe, vi algumas vezes a velha mansão Sessions, quando era garoto. Ouviu falar dela, Celeste?
Se me lembro corretamente, a planta de seu interior era semelhante à desta, e exteriormente também tinha certa parecença. — Riu um pouco:
— Deveria ter sido bem preservada como monumento de família. Existe uma história de que ela inspirou o velho Ernest Barbour toda a sua
vida. Depois foi finalmente abandonada pela família, depois que minha bisavó, May Sessions, morreu, em 1910. Já então era rodeada de
favelas, mas ainda está lá. Meu bisavô deve ter sido um demônio fascinante, hem? A casa foi lentamente caindo aos pedaços, mas minha
bisavó permaneceu lá, pensando nele. Quando ela por fim morreu, a família mandou demolir a casa, para que não degenerasse numa casa de
pensão ou coisa pior.
Tornou a rir. Seus dentes grandes e fortes faiscavam à luz do sol, enquanto ela o olhava, mudamente.
— Sabe, eu teria gostado da ironia final: a velha mansão Sessions transformada em bordel... Há um epigrama nisto. Aquilo que a princípio
inspira um homem finalmente se torna sua degradação. Sou inteligente, não?
Agora ela pôde sorrir, doloridamente. Ergueu-se, alisou o vestido.
—- Devo ir — murmurou.
Ele ergueu a mão facilmente e lhe pegou o braço, com firmeza. Ela estremeceu, e dificilmente conteve o impulso humilhante de arrancar o
braço de seu apertão. De modo que ali ficou, rígida e fria. Mas um súbito e agudo calor se espalhou dos dedos que a seguravam, espalhou-se
pelo seu braço e por todo o corpo. Então seus olhos se arregalaram e se fixaram nele, ardendo com uma vivida luz azul, orgulhosa, amarga,
incandescente.
— Ah, Celeste! — ele murmurou.
Qualquer movimento — ela pensou, desesperadamente — a tornaria ridícula, aumentaria sua selvagem humilhação. De modo que não se
mexeu. Porém seu coração palpitava em tumulto, numa dor deliciosa. Ele a observava atentamente, sorrindo, com o pálido brilho de seus olhos
que se estreitavam entre as pálpebras.
— Caminhemos um pouco — convidou.
Estreitou-lhe a mão fortemente. Puxou-a atrás de si, e ela o seguia cambaleando, vendo apenas o chão flutuante a seus pés, demasiado
absorta em sua vergonha para resistir.
Moveram-se ao longo do barranco até determinado ângulo em que um montículo os escondia da curiosidade de qualquer operário na casa
acima. Ali havia uma árvore curta e grossa, de sombra espessa. Pararam ali, à sombra. Aí, Henri largou a mão de Celeste e eles se
enfrentaram em silêncio, um silêncio quase violento em seu mudo poder.
Depois Henri falou, gentil e lentamente:
— É tempo de termos uma conversa, não acha? E decidir o que vamos fazer.
Celeste sorriu amargamente, e ergueu a cabeça:
— Você está considerando a ideia de divorciar-se de Annette? — perguntou, com áspera zombaria, olhar brilhante e direto.
Esperava que ele hesitasse. Porém lenta e gravemente ele sacudiu a cabeça:
— Não. Ainda não. — Sua voz era firme. — Por uma razão que não lhe posso dizer agora. Surgiu muito recentemente. Mas torna impossível
para mim divorciar-me dela... agora. A oportunidade virá mais tarde. Não muito tarde, espero. E agora, você. Vai esperar até que Peter morra
para que comecemos a viver?
A audácia dele, inexorável como era, a espantou. Só pôde fitá-lo, aturdida, por muito tempo. Depois, palavras incoerentes e furiosas se
atropelavam em seus lábios num tal fluxo que ela chegava a gaguejar, como quem tropeça, hesita, corre e cambaleia em fuga:
— Oh, você é desprezível! Como pode...! Você é um miserável! Não há nada que eu lhe possa dizer a não ser isto: deixe-me em paz. Fique
longe de mim. Já não me feriu... e a Peter, bastante? Acha que me é fácil olhar para ele? Agora? Tenho de compensá-lo... Como suportar olhar
para ele, todos os dias, todas as noites? Você nunca entenderia isto... Nunca houve em você um impulso decente, nem honra, nem fidelidade,
nem bondade. Mataria a pobrezinha da Annette facilmente, se isso o ajudasse de alguma forma. Por vezes penso que a está matando:
ultimamente ela tem um olhar impressionante! O que vou fazer? Nada! Nunca! Nunca, nunca!
Afastou-se dele e tentou correr. Porém ele a agarrou logo e a puxou para ele, sacudindo-a com violência:
— Celeste, está maluca? Pare de lutar, você está ridícula. Olhe para mim, Celeste!
Ela agora chorava a não poder mais. Contudo, ante o perverso desdém na voz dele, a ordem implacável, parou, soluçando, olhando-o com ódio
mudo e intenso. Ele deixou cair as mãos que estavam nos ombros dela.
— Muito bem, assim está melhor. Você age como uma criança, uma criança estúpida, irracional e romântica. Já não somos crianças, pequena
imbecil. Esta é uma questão a ser enfrentada, compreendida e resolvida. Sim, agora está me odiando, não é verdade? Fez uma confusão
danada de nossas vidas, mas ainda tem a impudência de olhar-me furiosa como se eu fosse digno de censura e você não. Fino mecanismo de
defesa, porém covarde, como todos os mecanismos de defesa. Ou isto está além da sua inteligência?
Um fluxo de vermelhidão cobriu o rosto dela. Estava agora muito quieta. Disse, olhando-o fixamente:
— Sim, talvez eu seja covarde. Sempre pensei que fosse. Mas isso não importa agora, sou esposa de Peter. Pode surpreendê-lo saber que
não quero que Peter morra! Eu o amo.
—E então — ele a interrompeu, ironicamente — prefere discutir a questão depois da morte de Peter? É isso que tem em mente? Não percebe
a sordidez disso? Ora, você me enoja Celeste! Por que não pode ser honesta? O fato de haver decidido pensar nessas coisas só depois de
viúva não realça a sua fina honra, sua virtude e correção. Não desfaz qualquer “erro” seu em relação a Peter, pois o erro já foi cometido. Não a
desobriga o fato de não encarar as coisas até que seu marido esteja morto. O pensamento já está lá.
Ela ficou silenciosa um momento, ainda a fitá-lo. Depois respirou profundamente e disse:
— Muito bem. Decidirei agora. Quer Peter viva ou morra nunca haverá nada entre nós, Henri. Nunca. Nem se você se divorciar de Annette. Nem
se Annette morrer... e você deseja furiosamente que ela morra, não deseja?
Ele começou a sorrir:
— Annette morrer? Sim, não me importaria. Não é que desgoste daquela coisinha. Na verdade, sou louco por ela. Mas simplificaria muitas
coisas se ela morresse cedo. Cedo, mas não agora.
— Agora estou certa de que o odeio! — disse Celeste, com uma espécie de espanto. — Sim, estou certa disso.
O sorriso dele se transformou numa gargalhada.
— Assim é melhor. Gosto que você me odeie. E você realmente ainda não se decidiu, já? Será que Christopher alimentou com leite e
romantismo toda a sua vida? Acho que me lembro disso. Você é uma desordenada pequena romântica. Seu cabelo está todo em desordem.
Claro que estou falando figuradamente. Vê, tenho de ser muito cuidadoso na escolha de palavras que não estejam além de sua limitada
inteligência. Tem pensado em si mesma como uma alta e nobre intelectual todos esses anos ciganeando pela Europa com Peter, não é
mesmo? Você ouvia os mestres em todas as mesas internacionais de chá. Assim, tem agora Mente e Alma. Sim, meu amor, você me enoja!
Acrescentou:
— Jamais gostei de romantismo doentio. Pedi-lhe, julgando que tivesse adquirido um pouco de senso, que discutisse comigo o que iremos
fazer agora. E você me vem com Jane Eyre...
Afastou-se dela e inclinou a cabeça em direção a seu carro lá embaixo, na ladeira. Porém seus olhos duros e cruéis não se afastaram de seu
rosto:
— Nunca persegui mulheres. Francamente, não gosto de mulheres. Não gosto de você, jamais gostei. Mas eu a amei. Não estou muito certo,
neste exato minuto, se ainda a amo. Idiotas me fazem vomitar. Você é uma completa idiota, sabe disso. Porém eu a amei. Poderia mesmo
voltar a amá-la. Mas neste momento, não tenho certeza. Não estou certo, sequer, de querê-la. Estou quase certo de que não.
Calou-se. O rosto dela estava branco feito marfim, à sombra. Não podia desviar dele o olhar. Nada disse. Mas seu coração caiu nas mais
negras profundezas do desespero e da desolação, de uma angústia tão aguda e tão imensa que parecia que seu coração ia parar. Ele a
observava atentamente.
Ele ergueu a mão lentamente e apontou para ela: seu dedo era como um punhal:
— Vou começar a andar, Celeste. E a qualquer momento antes que eu alcance meu carro, você pode chamar-me de volta. Mas depois que eu
entrar nele, e partir, será o fim. Pense nisso por um momento, honestamente, como um ser humano decente. Quando eu partir, estará tudo feito.
Não haverá nada mais. Nunca, nunca! — acrescentou, com calma.
Aguardou um pouco. Porém ela permaneceu imóvel. Ele sorriu severamente. Com infinito vagar e resolução ele se afastou dela, começando a
caminhar na direção do carro. Ela o observava ir.
Ele chegara a um montículo de rochas. Ela pensou:
“Ele está realmente indo embora... Nem olha para trás. Nunca voltará.”
Agora todas as suas pulsações eram como corações separados em sua garganta, nas têmporas, nas mãos, nos joelhos. Podia sentir-lhes o
palpitar e o saltar, tremendo até seus limites, forçando em sua boca um gosto de sal. Estava agora a uns vinte metros do carro. Caminhava com
firmeza, não titubeando sequer por um momento, nunca se apressando, nunca fingindo demorar-se. Ela via o seu amplo dorso à luz do sol, e a
parte de trás da grande e brutal cabeça. Parecia tão despercebido de sua presença como se ela não existisse.
Então uma dor enorme se apoderou dela com dentes de ferro, e ela literalmente sentiu-os a rasgar-lhe a carne, a apertar-lhe as partes vitais.
“Não! — ela gritou dentro de si mesma. — Oh! não! Henri, não!”
A forte figura a mover-se tão inexoravelmente à luz solar excluiu tudo mais de sua consciência. Foi um pesadelo, um sonho que arrastou cada
horrível momento à sua decisão definitiva, nunca se apressando, nunca se detendo.
Agora os dentes de ferro caíram em suas derradeiras defesas vivas, e ela sentiu um amargor da agonia em seu corpo e seu espírito que era
intolerável. Isto foi que a fez gritar, um grande grito, menos um ato de sua vontade do que puro tormento — que já estava além de seu poder
combater.
Ele ouviu esse grito. Através de uma névoa ondulante e obscura voltou para ela, não vagarosamente agora, mas caminhando apressadamente.
Ela não soube que ergueu os braços para ele...
E agora ela estava apertada contra ele, passando as mãos nos ombros dele e nos seus braços, chorando selvagem e terrivelmente, agarrando-
se a ele como o faria quem estivesse a afogar-se. Ele não a consolou, mas a manteve bem apertada nos braços. Sentiu o abrandamento das
pulsações do coração dela, seu sofrimento. Quando ele tentou afrouxar o aperto em que ela o mantinha, acalmá-la, ela se tornou menos
controlável. Ele ficou alarmado, e olhou em volta, inquieto: alguém podia ter ouvido aquele grito terrível.
Ele se libertou com violência. Tomou entre as mãos aquele rosto convulso e, olhando-a nos olhos, forçou-a a acalmar-se. Ela chorava
novamente, porém mais quietamente. Mas segurou os pulsos dele, tão próximos a seu rosto — e seus dedos pareciam de ferro, a morder-lhe a
carne.
— Henri — gritou, roucamente. — Você teria ido embora? Não de verdade?
Ele a apertou mais de encontro a si:
— Sim, meu amor — falou, suavemente — eu teria ido. Realmente. — Depois acrescentou, mais asperamente: — Não me faça mais isso,
Celeste, nunca mais!

Capítulo 28
Foi naquele dia de setembro de 1939 que um mundo acabou e nasceu outro, novo, estranho e terrível, que Antoine Barbour Bouchard se casou
com Mary Eloise Boland.
O casamento foi muito quieto. Como foi destacado em muitos jornais, o jovem Sr. Bouchard perdera sua avó recentemente, e a jovem Srta.
Boland fora “privada” de sua mãe havia apenas dois meses. O casamento se realizou (por “razões de tradição de família”, diziam os jornais) na
linda capelinha antiga da Episcopal St. Mary’s-on-the-Hill, em Windsor. A capela, que não era assim tão velha, era em estilo normando antigo
— pesados muros cinzentos e marfim e fortes torres curtas, para combinar com o prédio de origem, agressivamente normando e imponente.
Os vitrais coloridos eram excepcionais, com justa razão: haviam sido retirados em conjunto de uma verdadeira igreja normanda na França e
transportados, com enormes despesas, para sua nova colocação pelo velho Ernest Barbour, que construíra o prédio. Aqui ele próprio
repousava à luz iridescente e misteriosa lançada pelos vitrais, e aqui outros Barbours e Bouchards dormiram em seus frios travesseiros de
cetim antes de serem levados para seus estreitos nichos no cemitério. Aqui as crianças Bouchards haviam sido batizadas e mais tarde
crismadas; haviam-se casado; haviam-se revezado nos solenes bancos da igreja; haviam bocejado e se espreguiçado, cochilado e
conspirado, haviam-se entregue a seus pensamentos peculiares e a suas tristezas, haviam ponderado sobre suas cobiças e seus ódios.
A Família ficou extremamente deliciada com a escolha de Antoine. Nenhum membro jamais fez um casamento inadequado. Antoine obedecera
à tradição, apesar da passada inquietação a seu respeito. Os Bouchards masculinos sempre tiveram inclinação por grandes damas. Mary
Boland era uma grande dama. E também — feliz e apropriadamente — muito estúpida. Era baixa e gorduchinha, e possuía lindas mãozinhas
brancas e pés pequenos, também gordinhos e brancos como leite. Tinha covinhas nas articulações das mãos bem cuidadas. Como muitas
jovens com o seu físico, possuía um busto redondo e muito alvo, quadris arredondados e cintura breve. Também o rosto era redondo, macio e
com covinhas, e ela sorria quase constantemente com o mais doce dos temperamentos — as covinhas aparecendo deliciosamente nas faces,
no queixo e junto aos lábios sempre que sorria, o que era praticamente sempre. Boquinha redonda e rosada, nariz pequeno, faces naturalmente
rosadas e floridas, e olhos grandes e brilhantes rodeados de pestanas cor de bronze. A partir da testa baixa erguiam-se as ondas do fino
cabelo ruivo, preso num coque na nuca. Era muito bonita; muito encantadora; tinha o riso mais doce e cristalino. Nunca dizia algo que tivesse
alguma significação, porém jamais pronunciou uma palavra que não fosse delicada, graciosa ou apropriada. Estava com vinte anos e era
virgem. Nunca tivera um pensamento original ou perspicaz, pertinente ou profundo, impudico ou compassivo.
Melhor que tudo: era uma grande herdeira! E adorava Antoine. Portanto, a Família só podia aprovar sua escolha. Era uma típica mulher
Bouchard e, como tal, perfeita.
Mary Boland era filha única de um pai que era um bandido implacável, que tivera três esposas antes de desposar a mãe de Mary. Nenhuma das
esposas lhe dera filhos, de modo que se livrara delas. A princípio o sexo de Mary o deixara furioso, porém ela finalmente o vencera com seu
encanto, doçura e imbecilidade. A menina não tinha mais de um ano de idade quando ele começou a procurar em volta dele um marido
apresentável para ela. Ao aparecer Antoine em cena, ele se sentiu altamente gratificado. Estava agora com setenta anos, e começara a
preocupar-se a respeito da filha.
Ao pai, Armand, Antoine dissera:
— Ela é realmente uma criaturinha deliciosa e satisfatória. Sua mãe veio de uma família prolífica, de modo que você provavelmente terá pelo
menos uma meia dúzia de netos.
Em suma: a escolha de Antoine foi universalmente aprovada.
Embora sem alardes, o casamento foi perfeito. Mary Boland parecia um róseo querubim em seu diáfano véu branco, vestido de cetim branco
bordado, de cauda bem longa, as demoiselles d’honneur afetando timidez em seus vestidos água-marinha flutuantes, de tule. Seu primo — o
ambicioso vice-presidente do Morse National Bank — foi o padrinho. Ela ficou de pé no altar com Antoine, e através do véu seu rostinho
redondo brilhava como uma lua rosada.
Devido ao sinistro acontecimento que explodira no mundo, a lua-de-mel foi curta e calma. O feliz casal voltou para morar no grande e sombrio
castelo de Armand.
Em menos de uma semana Armand estava apaixonadamente louco pela nova filha. Quanto a ela, “amava” todos os Bouchards, considerava-os
as criaturas mais brilhantes, mais soignêes, melhor dotadas do mundo. Era-lhes muito grata por adotá-la em seu clã tão fechado. Isso não
contribuiu para diminuir a aprovação de todos, claro!... Embora, depois de cinco minutos, a achassem tediosa.
Ela resolveu tornar-se indispensável a Armand, pois era realmente muito boa, desde que não ficasse confusa ou tivesse de pensar numa
situação. Viu que Armand estava doente e velho, e isso despertou a sua piedade. Seu próprio pai era rijo e seco como uma velha árvore
desgastada. Aqui estava uma criatura a quem ela poderia adotar, e o instinto maternal era muito forte na jovem Sra. Antoine. Para ela, bastava
que ele estivesse doente e abandonado, que todos rissem de sua “Lista”, que ninguém considerasse importante essa “Lista”. A Sra. Antoine a
achou muito importante. Todos os dias, gastava horas com ele, debruçada sobre o desprezado papel, séria e gravemente discutindo com ele
vários cardápios, e pessoalmente cuidando para que só os artigos selecionados aparecessem à mesa.
“Meu amor, eu não tenho diabetes — protestava Antoine quando aparecia ao jantar outro prato de pâncreas de vitela ou de carne magra ou de
frango grelhado. — Nem tenho aversão a batatas. E detesto vegetais cozidos em água e temperados com óleo mineral.”
Mas a jovem Sra. Antoine era muito firme. Em consequência, Antoine passou a jantar em casa apenas uma ou duas vezes por semana. Nem
davam por sua falta. Armand e sua nova filha passavam uma feliz hora de jantar discutindo o cardápio do dia seguinte. Não foi de espantar que
ele começasse a adorá-la...
Dentro de menos dois meses ela estava grávida com a maior felicidade.
Num mundo doente de morte, que vivia num pesadelo de fúria, loucura, confusão e ódio, tão sacudido e atacado por mil boatos, que
apresentava uma enorme quantidade de aspectos elevados ou deprimidos pelo clarão de uma selvagem Noite de Valpúrgia, que ressoava
com os guinchos e gritos de loucos sem rostos — a jovem Sra. Antoine vivia uma existência plácida e isolada.
“Você é tão repousante, meu bem! — costumava dizer Antoine para ela ao café da manhã, quando ela falava alguma asneira. — Você não
chega a ter o cérebro de um camundongo...”
Ele conhecia muitas mulheres sem cérebro de ratos, porém elas nunca pareciam dar-se conta disto. Eram cheias de seriedade, e discutiam
muitos problemas com ares de intelectuais. Era delicioso encontrar uma que felizmente aceitava o fato de ser uma idiota, estava contente com
seu papel insignificante, e tinha um lindo riso que não significava nada.
O sombrio castelo à margem do rio começou a tomar ares de festa e de alegria, incongruente com suas características. “Como uma antiga
giganta usando um chapeuzinho maluco de banda a cobrir-lhe um olho” — comentava Antoine. Porém agora a luz do sol invadia as imensas
peças escuras. Vasos de flores apareciam nos peitoris de todas as janelas. Antoine nada disse, até que seus queridos Rubens e Goyas
subitamente desapareceram, e ele descobriu que seu armário de antigas e curiosas caixinhas de rapé haviam sido atiradas no depósito em
cima de uma das garagens.
“Mas aquelas caixinhas eram tão repelentes, querido! — disse a jovem senhora, vermelha, e com os olhos cheios de lágrimas. — Eu as olhei.
Algumas tinham figuras tão horríveis nas tampas... Eram mofadas e velhas, e não tinham nada de bonitas. Além disso, ninguém mais usa rapé,
então para que você as quer?”
O armário reapareceu na biblioteca, e Antoine guardava a chave. A Sra. Antoine pôs um vaso de flores sobre ele, e arrumou as cortinas das
janelas de jeito a que o armário ficasse sempre à sombra.
E então, de repente, Antoine achou sua mulher intoleravelmente cansativa.
Ele sempre havia admirado sua parenta Rosemarie Bouchard. Era mulher inteligente e perversa, possuía um espírito sagaz e língua viperina.
Ele sabia de seu caso com Henri Bouchard, como também sabia que ela possuía muitos outros interesses. Tinha algum talento para escrever
“pequenos perfis” de pessoas preeminentes, escritos por ela, frequentemente apareciam nas revistas da moda, e mesmo em jornais.
Presentemente Rosemarie estava em Washington, onde tinha muitas amigas entre as esposas de senadores e funcionários do Departamento
de Estado. Andava escrevendo colunas ocasionais para o jornal de um sindicato, e Antoine se deliciava com sua inteligência, sabor picante,
suas observações sutis e perspicazes sobre a situação nacional e a internacional. Visitou-a várias vezes. Aborrecia-o que ela ainda estivesse
tão interessada em Henri, porém lentamente começou a ter esperanças para si próprio. Dessas visitas voltava muito estimulado e com a mente
confortada, e era capaz de tratar sua pequena esposa com muita afeição. Após um estimulante jantar, um frappé doce era bem apreciado.
Rosemarie, por sua vez, começou a esperar pelas visitas de Antoine com crescente interesse e prazer. A semelhança de temperamento e
modo de pensar entre eles, mesmo a semelhança física, a divertiam. Além disso, ela era de grande utilidade para ele. Podia informá-lo a
respeito dos mais leves boatos, das mais ligeiras mudanças de opinião dos poderosos de Washington. Ele começou a anotar suas
informações, enquanto se achava no pequeno e elegante apartamento dela. Discutia com ela muitas questões de importância e, embora
perfeitamente cônscio de que ela era corrupta, traiçoeira e gananciosa, sabia poder dispensar excessos de precaução durante essas tardes
com ela. Desejavam as mesmas coisas. Compreendiam-se. Podiam ajudar-se. Nos começos da primavera de 1940, estavam apaixonados.
Ela não esteve mais com Henri — mesmo durante suas breves visitas a Washington — mas podia contar a Antoine muitas coisas a respeito do
odiado parente, coisas de extrema importância para ele.
Devido a seu livre acesso aos salões de Washington, ela podia também contar-lhe muitas outras coisas. Agindo como sua espiã, ela procurou
políticos, proprietários de jornais, preeminentes politiqueiros, mulheres poderosas, e, finalmente, foi capaz de pôr-se em excelentes termos com
os homens altamente colocados do New Deal. Todos a julgavam meramente uma mulher brilhante e intelectualmente curiosa, de aparência
encantadora, gosto excelente, e grande simpatia. Tudo que lhe contavam era relatado a Antoine, com as opiniões sutis de Rosemarie.
Quando o America Only Committee subitamente surgiu em preeminência, Rosemarie apareceu entre os organizadores — mas apenas sob
sigilo: era por demais inteligente para permitir que seu nome fosse usado. Ela sabia que uma parte de sua família estava fornecendo as
enormes quantias necessárias para sua existência e sua expansão. Por causa disso, foi procurada pelos funcionários do Comitê. Escreveu
muito da propaganda que aparecia em seus panfletos. Escreveu muitos dos textos para rádio que eram lançados ao espaço por locutores
comprados subornados e traidores. Antoine lhe fornecia certas informações e sugestões. Estava entendido, claro, que o nome Bouchard jamais
aparecia de qualquer forma.
Foi Rosemarie que trouxe muitos senadores ao America Only Committee por meio de polpudos cheques, promessas, ou mesmo delicada
chantagem. Rosemarie nunca apareceu na Embaixada germânica, e até a ouviram expressar seu desprezo a aversão pelo Terceiro Reich e
por Hitler. Entretanto, era curioso que muita da propaganda escolhida de Goebbels aparecesse em seus escritos, inteligentemente
transformada e disfarçada, mas ainda virulenta.
“Lembre-se: o motivo deve sempre ser americanismo, e muito patriótico” — prevenira Antoine. — “E apoie o ‘Constitucionalismo. Tudo deve
ser muito digno, sólido e respeitável. Pode deixar os clérigos gritarem tanto quanto possível: tudo é desculpado sob o nome da religião. A
propósito, você deve gravar neles que o motivo deles é ‘cristianismo’, em oposição a ateísmo, judaísmo e comunismo. Também é necessário
que nos asseguremos os serviços de algum herói nacional, algum homem preeminente. Procure-o.”
Portanto, foi Rosemarie Bouchard que achou o “herói nacional” que podia agir como o porta-voz do America Only Committee.

Capítulo 29
O Capitão August Jaeckle era de velha cepa germano-americana; nascera em Wisconsin, a 2 de janeiro de 1900. Aproximava-se agora dos
quarenta e era de considerável beleza. Possuía aquela indestrutível mocidade de rosto e de aparência tão irresistível às mulheres, pois era de
estatura mediana, cabelos claros, crânio de adolescente, e feições imaturas e um tanto estúpidas. Mesmo nessa idade ainda possuía uma
murcha juventude; a mente por trás da lisa testa inclinada se petrificara nos catorze anos de idade. Era um grande atleta, frequentemente citado
quanto à necessidade de ensinar à juventude a resistência física e a construir uma musculatura, e suas observações sobre a clássica tendência
das escolas americanas eram muito fortes e desdenhosas.
“Vejam a Europa! — dizia, com profundo escárnio. — Temos de ensinar nossa juventude a honrar o corpo.”
Como suas observações sempre se distinguiam por uma profunda estupidez, o público americano o considerava um verdadeiro oráculo.
Deliciavam-se com fotografias dele. Com seu semblante sério e insípido, de feições pequenas e um tanto efeminadas, a madeixa de cabelos
claros a cair-lhe na testa, seu ar de inocência e grave dedicação, os grandes olhos azuis-pálidos brilhando de fanatismo, atraía irresistivelmente
as mulheres americanas e também certo tipo de homens. Não lhes importava que ele fosse um idiota e um ignorante poseur, sempre buscando
apaixonadamente publicidade barata (apesar de sua aversão altamente anunciada pela “imprensa”. Ele era um herói! Personificava a
“juventude americana.”
Um herói, na verdade!
Pois August Jaecklé, na tenra idade de dezessete anos, nobremente mentira a respeito de sua data de nascimento e se alistara no Exército
americano em maio de 1917. Dois de seus irmãos já estavam servindo na Marinha.
“Eu costumava chorar, depois que mamãe me dava o beijo de boa-noite — gostava de dizer, com um doce sorriso retrospectivo, e esse seu
arzinho tímido punha em convulsões de terno êxtase mulheres de meia-idade. — Eu não podia aguentar isso, pensar em George e Heinrich
firmemente estabelecidos em seus couraçados, com o vento em seus rostos, enquanto eu desperdiçava meu tempo no Ginásio Shinehaha.
Mamãe tentava consolar-me: eu era o mais jovem, o seu caçulinha! Não suportava pensar em mim juntando-me a meus irmãos na defesa de
nosso país. Foi ainda pior para ela quando George foi morto no mar. Ela chorava muito. Mas havia algo em mim... talvez a voz de meu pai: ele
foi morto na guerra hispano-americana, sabe, exatamente antes que eu nascesse... que me instigava a servir a meu país. George Washington e
Lincoln sempre foram meus heróis. Assim, um dia dei-lhe um beijo de despedida. Ela não tinha a menor ideia de que não tornaria a ver-me por
perto de dois anos. Mas eu sabia. Ela pensou que eu estava indo para as aulas. Mas fui a um posto de recrutamento.”
Aí, ele sorria de novo, adoravelmente, com grande ternura para a visão daquele valente escolar marchando para a guerra, com o beijo de sua
mãe ainda estampado em sua face infantil. Os olhos ficavam úmidos. A voz tremia. Dava uma respiração funda e trêmula em seu peito imaturo,
ainda efeminado aos trinta e nove anos. Quase sussurrava: “Mamãe!” A esta altura, não era raro que senhoras sensíveis controlassem os
soluços. Já então todos sabiam que a mãe Jaeckle morrera de pneumonia, durante a epidemia de influenza, sem sequer ver seu valoroso filho
já nas trincheiras da França.
Também todos sabiam que August se tornara um herói quase da noite para o dia. Sozinho, destruiu um ninho de metralhadoras de quinze
alemães (também rapazinhos), fizera vinte prisioneiros, e os fizera marchar para suas próprias linhas, tendo no rosto um olhar severo e
exaltado. Ninguém, a não ser August, sabia que fora um pequeno atirador judeu, apanhado com ele e mais dez outros numa cratera produzida
pela explosão de uma granada, quem realmente destruiu o ninho de metralhadoras, morrendo poucos minutos depois com uma bala no
coração. Felizmente, uma granada de mão de outra cratera isolada destruíra as outras testemunhas desse ato de suprema perícia e heroísmo,
deixando August sozinho e quase louco de terror. Ele se erguera gritando de sua própria cratera e, na corrida de volta a suas linhas, cruzara
com os vinte alemães amedrontados em outra cratera. Exaustos, famintos, doentes e desesperados se renderam a ele com gritos de alegria.
Na verdade, literalmente o perseguiram, implorando que os aprisionasse. Ele finalmente voltara a si, e fizera a vontade a seus “cativos”.
Sempre vivia em seu estúpido e amedrontado coração o medo de que alguém, em algum lugar, pudesse saber a respeito do pequeno atirador
judeu. Em consequência — e em virtude do mecanismo de autodefesa que opera tão obscuramente na alma humana — ele se tornara um
antissemita radical. Durante os seus dias de escola nunca fora religioso. Mas agora se tornou um “cristão” militante, um odioso e fanático
inimigo de tudo que fosse irreligioso. O mecanismo de defesa operando vigorosamente, a Rússia se tornou para ele o símbolo do “anticristo”.
Odiava todas as coisas com sabor de comunismo que, de modo peculiar, era para ele símbolo do judaísmo. Por vezes, à noite, quando diante
do seu olho interno se erguia a fisionomia do pequeno atirador judeu, severo, repreensivo e desdenhoso, ele não podia dormir. Caminhara
incansavelmente, transpirando, chorando, torcendo as mãos, todo o seu ser ardendo de ódio. Era então que desabafava nos gritos mais torpes
e obscenos, ou em voz baixa e sussurrante, intensa de loucura.
Pois ele amava seu heroísmo. Amava sua publicidade. Usava suas medalhas com egotismo apaixonado, apesar de toda a sua propalada
“modéstia e timidez”.
Aos trinta anos casou com uma viúva rica e jovial, uns dez anos mais velha que ele. Algumas senhoras fátuas declararam que ela era para ele o
“símbolo materno”; e na verdade muitas vezes o ouviram confessar timidamente, com um olhar profundo para sua mulher, que “Emma se parece
muito com a minha querida mãe”. Depois de um ano de casamento, começou a chamá-la “Mama”, embora ela não tivesse tido um filho. A viúva
era mulher de não pequena inteligência, e possuía considerável perspicácia. Embora não gostasse de ser chamada de mamãe (pois era
bonitona e tinha grande estilo), ela nunca o demonstrou. Seu primeiro marido fora apenas um gordo negociante de notável desonestidade, e a
seu respeito nunca houvera nada para inspirar rapsódias na imprensa. Na verdade, como fizera o seu dinheiro fornecendo cobertores
ordinários para o Exército, preferia a obscuridade. Assim a Sra. Jaeckle usou orgulhosamente a sua nova fama, transferiu uma considerável
fortuna para o marido “menino”, sorria-lhe em público, muitas vezes alisando-lhe (com ostentação) a mecha rebelde, e posava com ele, de
modo juvenil, para fotógrafos de imprensa. Também deu entrevistas para repórteres femininas, nas quais gorjeava sobre o querido August, “sua
doce juvenilidade, simplicidade, mente profunda e científica, e louvável timidez”. Isso depunha em favor das habilidades histriônicas da mulher,
pois conhecia muito agudamente a mesquinhez mental do marido, sua estupidez, ignorância, avareza e petulância. Sabia-o, também, capaz de
apenas uma grandeza: odiar. Desprezava-o. Mas lhe era grata por elevá-la do anonimato, pois era mulher inteligente, de talentos e realizações.
Contudo o público, embora adorador, tem um novo herói a cada dia. August não podia competir para sempre com belos atores de Hollywood,
jogadores de futebol, cantores de rádio, e o mais recente e colorido gangster. A Sra. Jaeckle viu a nuvem de adoradores se diluindo no ar. O
brilho das medalhas já não era o bastante para deslumbrar os caprichosos olhos do público.
A Sra. Jaeckle era realmente esperta. Mais: tinha um olhar autêntico para homens verdadeiramente grandes e nobres. Entre seus amigos havia
um cientista, um conde belga, que na ocasião lecionava trigonometria em alguma obscura universidade de Nova Jersey. Aparentemente estava
condenado a passar sua vida nessa estagnação quando, subitamente, descobriu um novo sistema de matemática que o ergueu, por algum
tempo, à mesma fama precária do mais recente assassino italiano de Chicago. Apenas poucos e brilhantes homens podiam pretender
compreender o último sistema no domínio da mais clássica das artes: a matemática. Todavia o aplauso dos jornais e o mistério tornaram o
público cônscio desse novo herói, embora onde residisse seu heroísmo o homem comum não pudesse dizer...
Então, um homem compreendeu, um homem entre os cinco que achavam que o sistema não era mistério para eles. Claro, esse homem era o
Capitão August Jaeckle, agora quase esquecido. A fama nem sempre traz recompensas lucrativas. O conde belga estava bem cônscio dessa
verdade amarga e não hesitou muito mais de uma hora de aceitar o cheque de dez mil dólares da Sra. Jaeckle, uma pensão anual permanente
de dois mil dólares e uma pequena casa novinha perto do campus da universidade. Por essa recompensa recebida na calada, ele deixou que
soubessem — com muita relutância — que o Capitão August Jaeckle estudava com ele há muito tempo. Sendo que o Capitão August, em sua
timidez, nunca havia permitido que o público adivinhasse sua secreta devoção pela matemática.
“Foi sempre uma espécie de vício que tive” — confessou August, corando e piscando muito os olhinhos brilhantes.
Dois de seus antigos professores no Ginásio de Shinehaha ficaram muito espantados com tudo isso, mas compreendendo que não adiantava
nada refutar, concordaram em ser entrevistados, com fotografias, e declararam que “o querido August sempre fora o garoto-prodígio em
matemática em suas classes”. Ficaram muito gratos pelos cheques substanciais enviados pela ainda mais grata Sra. Jaeckle.
A fama da matemática serviu por um ano de nova e elevada publicidade para August.
A Sra. Jaeckle era infatigável. A ânsia de notoriedade era uma doença naquele corpo de cinquenta anos de idade. Quando a nova fama
começou a declinar, buscou febrilmente novos campos para August conquistar. Fez alusão a divórcio. Os jornais enlouqueceram! Ela negou os
boatos. Isso serviu por dois meses. Ela e August quiseram adotar duas crianças. Fotografias de uma multidão de órfãos apareceram nos
jornais, com grandes cabeçalhos indagando apropriadamente: “Será este?” August, por sua vez, ficou muito interessado por aviação,
mecânica, economia, problemas sociais. Era uma autoridade sobre o Presidente Roosevelt — a quem odiava. Fez conferências. (A esposa
escreveu as conferências.) Viajou, falando sobre praticamente todos os assuntos, sempre tímido, modesto e juvenil.
Nesse ínterim, a fortuna da Sra. Jaeckle começou a mostrar sintomas de desgaste, devido às novas teorias sociais da Administração. O que
despertou nela um amplo e histérico ódio. Achou eco em August, que mais que tudo temia a pobreza e a obscuridade. August começou a falar
sobre o “bolchevismo americano”, “o novo comunismo americano”, “a ditadura de Roosevelt”, “conspiradores internacionais contra o
americanismo puro.” Sugeriu que o mundo feminino e o Lar estavam na mira de nefandos conspiradores. Estava novamente famoso.
August foi convidado pelo Governo alemão para visitar o Terceiro Reich, e ver por si mesmo como a nova ordem estava operando na
Alemanha, como a propriedade privada, a empresa e a iniciativa privadas eram recompensadas e encorajadas, como a pura feminilidade era
protegida, como a juventude era treinada em cultura física, como era reverenciado o Lar. Acompanhado pela “Mama” August foi à Alemanha: foi
festejado, fotografado, seguido por multidões (cuidadosamente pastoreadas por tropas de choque em posições estratégicas para os
fotógrafos), e condecorado pessoalmente por Hitler. Voltou para a América, estonteado com a adulação, seu mesquinho e impuro coraçãozinho
inchando de orgulho e emoção. Foi consultado por funcionários do Departamento de Estado sobre a “verdade” a respeito da Alemanha, e suas
observações lhes deliciaram os corações. Sua primeira conferência, após a volta, foi uma apologia do antissemitismo germânico. A segunda
declarava que a Alemanha era invencível no ar, em terra, e no mar. A terceira: que Hitler era um semideus!
“Devemos aprender que existe um novo espírito surgindo no mundo!” — gritou, para um auditório de gordas senhoras de meia-idade que
gostavam de ouvir falar do masculino desdém de Hitler por tudo que fosse feminino. “Devemos aprender que a correnteza da evolução humana
não pode ser prejudicada por tolos idealistas e democratas desgastados! Não podemos fugir à dinâmica revolução da alma humana, como é
expressa na política. Política é História! Na Alemanha se ouve o estrondo de um poderoso renascimento do mundo! Por mais que cerremos os
ouvidos, o trovão penetrará. O futuro está na Alemanha! Não podemos silenciar sua voz. Podemos apenas acompanhá-la, se formos covardes,
ou marchar com Hitler, na vanguarda, se temos coragem, orgulho e o espírito da verdadeira América em nossos corações.”
Sempre falava com ardor e autêntica paixão, pois ultimamente o rosto do pequeno atirador judeu tinha um modo terrível de encontrá-lo todas as
noites, quando ele estava só.
August estava famoso outra vez, mais famoso que nunca. A indignação, o escárnio e o furioso desprezo de seus inimigos apenas o faziam
mais famoso. Violentas controvérsias ocorreram em toda a América, na imprensa, em fóruns públicos, em salões e em cozinhas. O Bispo
Halliday fez uma série de palestras no rádio sobre esse “vibrante jovem herói americano que ouviu o apelo do Futuro”. Organizações
subversivas, que já se formavam às escondidas — usando nomes heroicos como Amigos da Constituição Americana, Guardiães da América,
Soldados de Washington, etc. — convidaram-no para falar.
A guerra deu a August sua maior oportunidade. Ele fez inúmeras conferências sobre a loucura de “intervir nos conflitos europeus”, e de dar
ajuda e conforto à Rússia, a arqui-inimiga de Hitler. Hitler era o baluarte contra o comunismo universal. Mais ainda: nós não tínhamos nada com
a guerra. Hitler nunca, em nenhum momento, sonhou atacar a América. Que ele pretendia fazê-lo foi mentira de “intervencionistas, comunistas,
anticristãos, banqueiros internacionais, provocadores de guerras que desejam lucros com as mortes de nossos rapazes, americanos de
primeira geração, Moors (mouros, termo eufemístico para judeus), políticos do New Deal, que querem uma guerra que os mantenha no poder”,
e praticamente todos que discordassem de August. Seu slogan “O Trovão Chegando” inspirou um pequeno e bem-sucedido volume escrito por
Franz Haas — mais tarde acusado de agente do Governo alemão.
O público americano, suando em secreta e terrível inquietação desde o horrível ataque à Polônia por Hitler, finalmente se tornou selvagemente
vociferante e excitado. Muitas regiões, antes adoradoras de August, começaram a desprezá-lo, a chamá-lo de louco, de herói de fancaria,
mascarado, charlatão insignificante, bobo presumido, soleníssimo idiota, ignorante e tapeador. Em sua ira, viam o herói como ele era, e sua
fúria contra ele era fúria contra si mesmas por ter sido parte do seu cortejo de adoradores. Suas pretensões à erudição foram desmascaradas.
Uma de suas professoras, que nunca cessara de lamentar sua duplicidade, e que tinha um ancestral que lutara e sofrera com Washington,
agora declarou sua loucura e a sedução que sofrera por parte da Sra. Jaeckle. Todavia, como ninguém nunca entendeu a fama da matemática
de qualquer maneira, essa trêmula voz mal foi ouvida.
Homens sérios e inteligentes atacaram August na imprensa, no púlpito, e no rádio. Esfolaram-no vivo. Expuseram-no à zombaria de seus
ouvintes esclarecidos. Um a um, demoliram seus tolos argumentos. Denunciaram-no como um simplório e um imbecil, ator barato, e puseram
em dúvida sua lenda de heroísmo e sua alegada aversão por publicidade.
Entretanto, como esses homens eram inteligentes cavalheiros de ciência, sabedoria e compreensão, o povo americano antipatizava com eles
intensamente. Preferia os gritadores que defendiam August, pois esses gritadores eram violentos, coloridos, dramáticos e maliciosos. Suas
mentiras eram extravagantes e monstruosas, e inspiravam a delícia das massas. Pregavam o ódio mais desprezível, e as massas se
contorciam de lascívia sadista.
“Minta para o povo, procure agradá-lo em seus preconceitos, faça com que deseje sangue — especialmente o sangue dos indefesos — faça-o
odiar, faça-o ansiar por morte e destruição, e pode fazer dele o que quiser”, disse o Bispo Halliday, um astuto servo de Cristo, e também amigo
querido e servente do Barão von Teckle, Chargé d’Affairs na Embaixada alemã.
No Sul, onde viviam americanos de antigo sangue britânico, August era amaldiçoado. Em muitas partes do Oeste isso também era verdade,
exceto nas regiões cheias de descendentes de alemães. Grande parte dos adeptos de August estava entre as populações das cidades do
Norte, originárias da Polônia, Itália, Alemanha e Irlanda. Após uma conferência de August, muitos judeus foram atacados nas ruas de Nova
York. O Bispo Halliday estava deliciado!
Tudo isso, no entanto, enquanto fazia August muito famoso, ou infamado, não aumentava a sua fortuna, ou melhor: a da Sra. Jaeckle. August
estava maduro para a subversão.
Rosemarie Bouchard conhecia muito bem a Sra. Jaeckle e a procurou muito discretamente. Os detalhes nunca foram conhecidos. Mas,
subitamente, August se tornou funcionário do America Only Committee, e sob seus auspícios adquiriu alta e sólida respeitabilidade. Rosemarie
poliu os escritos dele, escreveu muitas de suas conferências públicas. Ele, que no passado só havia adorado a si mesmo, começou a adorá-la,
a segui-la, a tocar-lhe a mão timidamente, a sonhar com ela. Essa mulher morena e vital, que de modo nenhum parecia “Mama”, nem a Sra.
Jaeckle (agora enorme de gorda, informe e bigoduda), lhe perturbava os sentidos. Trabalharia para ela sem qualquer recompensa a não ser
seu sorriso, e a promessa contida nesse sorriso.
O Capitão August Jaeckle tomou-se uma das mais importantes e perigosas figuras da história contemporânea americana durante o primeiro
ano da Segunda Guerra Mundial.
Rosemarie Bouchard encontrara seu herói para o America Only Committee. A facção de Antoine ficou altamente satisfeita.
Capítulo 30
Antoine, com os gestos graciosos e maneiras despreocupadas que herdara do avô Jules, serviu outra dose de Cointreau no delicado copo do
tio Christopher. Sorria ao fazê-lo. Christopher recostou-se na cadeira, ergueu o copo contra a luz, apreciativamente, e também sorriu.
— Então, recebeu também a Águia da Aviação — observou Antoine, voltando a sentar-se e erguendo o copo numa saudação. — Bom
julgamento por parte do velho Cara de Pedra. Pague ao diabo o que lhe deve, ele geralmente escolhe o homem certo. Então não voltará à
Flórida?
— Ficarei transando entre Windsor, Flórida e Detroit. Temos planos de construir uma grande fábrica em Buffalo, também, e talvez em Los
Angeles. Henri sugeriu que o Governo britânico já se aproximou dele com uma oferta para ajudar na construção das fábricas. O plano pague-e-
leve em breve estará em operação. Sempre existe um meio de contornar a Lei de Neutralidade, e o bom velho Hugo está trabalhando para
essa finalidade no Departamento de Estado.
Antoine riu:
— Jogando as extremidades contra o meio, o habitual jogo Bouchard. Nesta guerra, faremos isso por algum tempo. Não que eu o aprove, claro.
Temos nossos planos. A Inglaterra não deve ser muito bem abastecida: esta é nossa ideia original. Você ainda concorda?
— Naturalmente! — replicou Christopher, gravemente. Girou o copo nos dedos descarnados e transparentes, e olhou o sobrinho fixamente com
aqueles olhos gateados, tão enigmáticos e imóveis.
Os dois homens estavam confortavelmente instalados na grande e sombria biblioteca do castelo de Armand. Um belo fogo ardia na lareira de
mármore negro; fora caía, maciamente, uma neve acinzentada, nesse princípio de dezembro.
— Acho que é melhor convocarmos uma reunião, Chris — sugeriu Antoine após um olhar pensativo ao fogo.
— Quanto mais cedo melhor. Hugo está vindo para casa passar o Natal, e sei que está trazendo com ele o Senador Briggs e um ou dois outros.
Agora devemos mover-nos rapidamente. Sei de fonte certa que a França cairá na primavera. O que será o começo do fim.
O sorriso cintilante de Antoine brilhou na penumbra da sala aquecida:
— O fim! O fim do Império Britânico! Sabe, sempre odiei os ingleses seja pelo que há de francês em mim. De modo que tenho uma razão
pessoal. Quanto tempo você pensa que se passará até que o Leão seja esmagado até o cerne?
Christopher ficou silencioso por alguns momentos. Depois disse, maciamente:
— Já pensou na Rússia?
— Rússia! Por Deus! Stalin assinou um pacto com Hitler, não é?
Aí Christopher sorriu seu curioso sorriso gelado:
— Conto-lhe mais alguma coisa. Hitler atacará a Rússia em algum momento do próximo verão.
— Impossível! — Mas Antoine olhava de modo penetrante para o tio. — Não até que a Inglaterra esteja acabada. Pensa que, na ocasião, a
Inglaterra já terá soçobrado?
— Não — redarguiu Christopher, placidamente. — Não penso isso. E porque a Inglaterra não será esmagada, Hitler se voltará para o Leste.
Sempre foi essa a missão dele, você sabe.
Antoine levantou-se rapidamente e começou a caminhar abaixo e acima. Franzia a testa, atentamente:
— Não gosto disto. Você nunca falou sem saber o que estava comentando, Christopher. Se Hitler ataca a Rússia antes que a Inglaterra esteja
acabada...
— Então — disse Christopher, muito suavemente — ele está acabado.
Houve silêncio na sala, enquanto Antoine se movia silenciosamente acima e abaixo nos espessos tapetes. Repetidamente relanceava o olhar
para o rosto magro e encovado de Christopher. Mas nada podia ler ali, embora o fogo avermelhado reluzisse nos ossos frágeis e tensos e
tornasse vívidas as cavidades dos olhos.
— Ele deve ser detido — falou Antoine, por fim, parando diante do tio.
— Como?
— Vou a Nova York na próxima semana. Von Teckle deverá encontrar-se comigo lá.
— Isso é perigoso, Antoine. Se forem vistos.
— Não serei. Irá comigo?
Christopher hesitou. Depois assentiu:
— Sim.
Antoine tornou a sentar-se na beira da poltrona, os braços resistentes dobrados sobre os joelhos. Contemplou Christopher num longo silêncio,
sorrindo de modo peculiar:
— Gostaria de ter certeza sobre você, Chris — observou, suavemente.
Christopher deu de ombros:
— Meu querido papai costumava dizer: “Nunca confie em ninguém a não ser no diabo.”
— Você está nisso conosco profundamente, Chris — disse Antoine, reflexivamente, voltando-se para o fogo outra vez com uma expressão
gentil.
Agora Christopher estava sorrindo, divertido:
— Por acaso está me chantageando?
Antoine, a sorrir-lhe também, fez um gesto latino com aquelas ágeis mãos morenas:
— Claro que não! Certamente não! Mas, como disse o meu querido avô, “Nunca confie em ninguém a não ser no diabo.” Você não é
completamente um diabo, Chris. Mas o velho Cara de Pedra há de ser duro de convencer.
Christopher o estudou curiosamente:
— Ainda tem medo dele, hein?
Antoine lhe relanceou um olhar cheio de ódio e de ira. Mas disse, com bom humor:
— Você deve lembrar que o meu querido papai é também pai de Annette. E enquanto permanecer este fato, Henri continua um Bouchard.
Estive pensando...
— Sim?... — acudiu Christopher, prontamente.
Contudo Antoine voltou para ele os olhos negros e penetrantes, antes de responder:
— Acha que a Galeria Cinzenta esqueceu sua inclinação por nossa pequena Celeste?
Christopher não se moveu. Mas cada músculo nervoso ao longo de seu corpo estremeceu. Disse:
— Não sei. Terá esquecido?
Antoine tornou a levantar-se e se dirigiu à janela. Olhou para fora, a neve. Sem se virar, perguntou:
— E... se não o fez... qual é a sua posição?
Christopher depositou o copo cuidadosamente na mesa, muito corretamente, muito precisamente:
— Minha posição? Nenhuma. Celeste pode cuidar de si mesma, no que me diz respeito. Não é uma criança. O que faz é de sua própria
escolha. Mas posso dizer-lhe uma coisa: ela não se divorciará de nosso moribundo Galahad.
— Mas, e após sua morte?
— Henri sabe onde lhe aperta o sapato. Ele não se divorciará de Annette. Pode imaginá-lo fazendo algo de tão indiscreto? Tão desastroso?
— Não — confessou Antoine, voltando-se da janela.
Meteu as mãos nos bolsos. Esse gesto em nada perturbava sua elegante aparência ou roubava graça à sua esbelta figura. Agora seu rosto
estava numa tal sombra que Christopher não podia vê-lo. Mas lhe sentia o alerta maligno.
— Naturalmente você sabe que nossa angelical Celeste tem se encontrado com o Homem de Ferro num confortável rendez-vous de Nova York
com absoluta regularidade?
Pela primeira vez Christopher demonstrou alguma perturbação. Suas mãos estremeceram nos braços da poltrona. Mas disse calmamente:
— É mesmo? Quem é seu informante?
Sentiu, mais do que viu, o sorriso perverso de Antoine:
— Não lhe posso dizer isto. Mas sei que a fonte é autêntica. Será possível que esteja perturbado, Chris?
Deliberadamente, Christopher relaxou, e disse:
— Não. Como observei antes, o caso é com Celeste. Mas a que leva tudo isso?
Antoine voltou à sua cadeira, sentou-se, inclinou-se para o tio, sorriso amplo e brilhante:
— Sim, você está nisto conosco bem profundamente, Chris. Henri poderia estar interessado em saber o quão profundamente. Guardamos
minutas, você sabe. A propósito, ele ainda não tem a menor ideia?
— Posso votar por isso — disse Christopher, mantendo um tom de voz neutro. — Se tivesse, não acha que ele teria se mexido antes disso?
Ainda pode esmagar-nos. Sim, como você tão sutilmente salientou, estou muito metido nisso. Mas, como lhe perguntei há um momento: a que
nos leva tudo isso?
— Só isso — replicou Antoine, docemente: — Se minha irmãzinha ouvir falar desse rendez-vous delicioso, calculo que imediatamente se
divorciará da Geleira Cinzenta. E... se houver um divórcio... — Adejou rapidamente as mãos, e fez com os lábios um gesto como se soprasse
uma pena.
— Henri estará acabado — concluiu Christopher. — Bem acabado. Meu gordo irmão o atirará para fora de Bouchard, bônus ou não bônus.
Claro, em tal caso, Henri poderia ser levado a arruinar Bouchard. Pensou nisso?
Antoine estava silencioso. O rosto moreno se franzia secamente. Os olhos se fixaram no rosto sem sangue de Christopher, cuja boca sorria de
leve.
— O plano, seu plano, cheira mal — disse Christopher, ainda em tom gentil. — Não podemos arriscar o esmagamento de Bouchard. Já ouviu
falar em Sansão? Há algo em Henri que me lembra Sansão. — Deteve-se, depois continuou:
“Se ele destruir Bouchard, destruirá a si mesmo, diria você. E quanto a você? Você é Secretário de Bouchard. Gostaria de fazer parte da
destruição?
Antoine não respondeu. Começou a esfregar a boca franzida muito delicadamente com o dedo indicador. Isso não lhe era habitual. Christopher
viu o gesto, e subitamente foi como se ocorresse uma espantosa explosão em seu peito. Recordou aquele gesto, delicado, reflexivo: era do seu
próprio pai. Agora ele estava vivo, ardendo, estimulado, com o mais fantástico e irresistível ódio por Antoine. Suas mãos agarraram os braços
da poltrona, e suas narinas transparentes se dilataram. Por algum truque das luzes brincando nas feições de Antoine, tão morenas, tensas e
estreitas, era o rosto de Jules que estava voltado para Christopher.
— Você não gostaria de destruição — ele repetiu, numa estranha voz rouca.
Antoine começou a sorrir:
— Então é assim... Você ainda está bem envolvido com a sua querida, hein?
A explosão de ódio incontrolável em Christopher ainda o sacudia. Mas disse, com bastante calma:
— Suponha que deixemos minha irmã fora disto. Apenas destaquei que você não poderá arruinar Henri sem arruinar a si próprio. Quer
arriscar?
Ficou surpreso quando Antoine disse pensativamente:
— Gostaria de ver o testamento do velho idiota. Naturalmente, Annette terá sua parte. Haverá também a minha parte. Haverá alguma cláusula,
naturalmente, para que Henri seja mantido como presidente de Bouchard. Entretanto, eu gostaria de conhecer os termos exatos do testamento.
Tem alguma ideia? Afinal de contas, papai é seu irmão.
— Nunca fomos muito ligados, você deve lembrar-se — salientou Christopher. Seu triunfo era pouco menos desastroso em seu efeito físico
sobre ele do que o seu ódio. — Jamais confiou em mim.
— Vocês empregam a mesma firma de advogados. Você poderia descobrir, Chris. Algumas perguntas discretas...
Christopher estava calado. Mas sorria outra vez. Ele se regozijava intimamente. Pela primeira vez triunfava sobre o pai ao triunfar sobre
Antoine.
Antoine suspirou, abanando as mãos outra vez:
— Sim, como você observou, o plano cheira mal. Eu gostava muito dele. Havia envolvimentos pessoais, também. Entretanto, eu o terei em
mente. Se formos forçados a usá-lo, você não objetará.
— Por que o faria?
Antoine subitamente sentiu-se aliviado quando pensou em algo:
— Manteremos as coisas quietas por um ano. A esse tempo, muito provavelmente, já não importará. O velho Cara de Pedra não estará em
posição de esmagar Bouchard. Ainda assim, gostaria de conhecer aquele testamento.
Estudou atentamente Christopher:
— Eu também sou louco por minha irmã.
Christopher riu um pouco;
— Você sabe o quanto ela adora Henri. Annette não é uma imbecil. Eu não ficaria surpreso absolutamente se ela tivesse alguma ideia das
vadiações de Henri. As esposas sempre sabem por alguma danada intuição. Se não fez objeções no passado, não fará agora.
— Pode ter sido obrigada a isso.
Christopher acendeu um cigarro:
— Eu não contaria com isso. E agora, poderíamos deixar de lado esse assunto? Temos coisas mais importantes para discutir, eu acho, do que
o estado dos corações das mulheres.
Antoine começou a rir amavelmente:
— Gosta do nosso herói, Jaeckle? Está nos custando cinco mil dólares por mês, mas vale isso.
— Foi um ato inteligente — confessou Christopher. — Cinco mil dólares? Saem de que bolso?
— Do fundo geral, naturalmente. Rosemarie manobrou a coisa muito bem. Em nossa próxima reunião, sugerirei considerável aumento nos
fundos para o Comitê. Ele agora tem mais três comitês subsidiários que também precisam de financiamento. Especialmente no Sul, entre os
Ku Kluxers. Estamos considerando também o ângulo negro. Negros no Sul, judeus no Norte, mexicanos no Sudoeste, trabalhismo no Leste. Um
programa muito nítido, posso dizê-lo. Podemos desorganizar tanto o maldito país que ele deixará de olhar para a Europa, durante algum tempo.
Precisamos disso, enquanto completamos nossos planos. Hitler deve ter o campo limpo: não deve aborrecer-se por preparativos alarmistas na
América. Deve ser estimulada a desunião. Não será difícil. A população não tem sequer o cérebro de um piolho.
“Rosemarie é uma moça brilhante. A família não a apreciou devidamente. Está agora organizando uma sociedade pacifista a ser denominada
‘Mães da América’. Todas as mamães nos espasmos da libido aderirão com entusiasmo, para proteger seus ‘meninos’. Tínhamos começado
a subsidiar Halliday também, como sabe. Três mil por mês. Nossa próxima providência será organizar a classe média. Já ouviu falar daquele
canalha de Nova York, o Patrick McHenry? Há anos vem bradando que Roosevelt está decidido a liquidar a classe média, mas ninguém lhe deu
ouvidos por lhe faltarem fundos. Pretendemos fornecê-los.
Christopher ouvia atentamente. A intervalos balançava a cabeça, com ar de grave aprovação.
— Daremos a Roosevelt o bastante para pensar no que há em casa sem perturbar seu terno coração a respeito da Europa — acrescentou
Antoine. Deteve-se: — Acha tudo isso muito cru? Falta delicadeza? Quando é que foi necessário usar táticas elegantes com as massas?
Especialmente as massas americanas?
— Eu não disse que achava cru — disse Christopher.
Antoine pensou em algo mais:
— A propósito, ouviu o mais recente comentador, Gilbert Small? Estamos delineando um plano para que Jaeckle o denuncie como comunista,
instrumento de Stalin, um provocador de guerra, intervencionista e mercenário do New Deal e enganado pela Inglaterra. Temos um dossiê a seu
respeito. Uma pena que não seja judeu. Não é sequer um nova-iorquino, o que é sempre bom para nosso ramo de propaganda. É do Meio-
Oeste, sendo sua mãe nativa do próprio Estado de Martin Dies. Tudo isso nos desarmou, temporariamente. Ele também é, infelizmente, um
herói de guerra. Tentamos descobrir uma conexão entre ele e os comunistas espanhóis, mas devo confessar que seus despachos para seu
antigo jornal, o New York Times, eram finos exemplos de reportagens neutras e desapaixonadas. Mais: como sabe, ele escreveu um livro sobre
a Rússia que para sempre o barrou dos domínios de Stalin. Entretanto, para fins públicos, ele é um comunista. Pressionamos a cadeia de
radiodifusão que lhe permite transmitir suas bobagens. Porém, por alguma razão misteriosa elas são resistentes, apesar das ameaças. E,
mistério outra vez, ele está adquirindo uma turba de adeptos na América. Já o ouviu?
— Sim — disse Christopher, pensativamente. — Ouvi. Seus escritos são excelentes. Exatamente a quantidade certa de fogo, e muita lógica.
Simples também, e emocionantes. Não é o estilo dele, sempre monótono e do tipo de reportagem. Imagino quem estará realmente redigindo
esses trabalhos...
— Tentaremos descobrir isso, também. Mas permanece um mistério. Ele é perigoso para nós. Está ligado à American Freedom Association.
Eu também gostaria de saber quem está financiando essa Associação. Nenhum de nós, pode estar certo.
A fisionomia de Christopher estava apropriadamente séria e interessada.
— Naturalmente — continuou Antoine — nosso America Only Committee tem até agora mais de três milhões de membros, enquanto a
American Freedom Association tem menos de dois milhões, se tanto. E nosso Comitê está aumentando a cada dia. — Riu: — A Associação
cometeu o engano de empregar cavalheiros e sábios, com exceção de Small. Ao passo que nos concentrávamos em vagabundos, incitadores
da populaça, e mentirosos. Consequentemente, sempre seremos mais poderosos na América do que a Associação.
Ele estava se animando. Seu amor pela intriga era exaltado. Christopher o observava atentamente:
— Recentemente você esteve de visita a seu sogro, Boland, a respeito de embarques de petróleo e alumínio para a Alemanha? E quanto ao
Canadá? O embarque de níquel?
— Vou vê-lo quando estiver em Nova York, Chris. A Itália tem bastante alumínio para Hitler. Mas petróleo e níquel são outras matérias. O
problema do níquel será solucionado na próxima semana. Nossa subsidiária no Canadá já recebeu suas ordens. É só questão de uns discretos
navios para a América do Sul... o que também está sendo arranjado. Porém mais importante do que isso: vou procurar o marido de Phyllis e
seu sogro, o Morse Nacional, na próxima semana. Hitler vai precisar de fundos imensos em futuro muito próximo. Podem ser arranjados
empréstimos através de Bancos na América do Sul, para não mencionar o Banco da França e o Banco da Inglaterra, e outros. O Dr. Schacht se
encontrará com nossos representantes na Suíça em alguma ocasião durante os próximos três meses. A propósito: Phyllis, a irmã mais nova de
Rosemarie, está organizando as Catholic Wives and Mothers of America, para ajudar nosso Comitê. Esperamos venha a ser uma potente
organização.
Houve uma pancadinha na porta, que se abriu mansamente, mostrando o rostinho redondo e rosado da Sra. Antoine:
— Chá, queridos! — ela trinou carinhosamente. — E a querida Annette também está aqui, tio Christopher. Acabaram seus negócios muito,
muito importantes?

Capítulo 31
Havia um grande fogo em um dos amplos salões, e ali, como se acocorados em redor do calor e da luz na imensidade de alguma caverna
primitiva, cheia de sombras indistintas e de teto obscuramente esculpido, lá em cima, sentavam-se a jovem Sra. Antoine, Annette e Armand. A
luz do fogo brilhava roseamente nas pratarias e no reflexo rosado das xícaras de chá. Por trás deles espreitavam as formas do pesado
mobiliário e os dorsos espelhantes de longas mesas, como animais pré-históricos, entrevistos à luz tremeluzente. Haviam sido corridas as
cortinas das janelas, cortinas que iam do chão ao teto e eram do formato de aberturas de catedral. Porém o vento rugia de encontro a elas
como uma forte presença resistente. Nos quietos intervalos se podia ouvir o silvar seco da neve. Por vezes o fogo fulgurava e mostrava os
escuros retratos nas paredes, os rostos espectrais aparentemente voltando à vida por um instante.
Antoine e Christopher se juntaram ao grupo perto do fogo. Antoine era todo afabilidade, o sorriso cintilante completamente radiante e cheio de
risos. A Sra. Antoine, serenamente servindo o chá, de tempos a tempos lhe relanceava o olhar ternamente, o rostinho redondo e rosado
florescendo de saúde e placidez, a silhueta baixinha já denunciando traços da próxima maternidade. “O querido Tony é tão inteligente! —
pensou para si mesma. — “Ele brilha mesmo num dia como este.” Ela era muito feliz.
Armand abrira um grande guardanapo branco sobre os joelhos. Como de costume, sua roupa estava amarrotada e manchada. Entre os
espaços de suas madeixas grisalhas, o crânio brilhava. Envelhecera muito nos últimos três meses, mas andava mais calmo, quase contente,
desde o casamento do filho. Por trás dos óculos, os olhinhos pretos estavam menos assustados, menos apreensivos. Entretanto, quando viu
Antoine com Christopher, suas feições achaparradas se contraíram e disse, numa voz estranha:
— O inverno chegou cedo este ano.
Christopher ergueu a cabeça, alerta, e voltou os enigmáticos olhos para o irmão. Mas Antoine comentou, ligeiramente:
— Guerras sempre trazem invernos prematuros e cruéis.
— Que andaram vocês dois conspirando, novamente? — perguntou Armand, limpando migalhas dos lábios grossos. Sorriu, mas o sorriso era
outra vez inquieto, medroso e astuto.
— Gostaria de saber? — disse Christopher, e um relâmpago cruel e divertido lhe passou no rosto magro.
Armand ergueu as mãos e as agitou. O prato balançou precariamente em seus joelhos: segurou-o quando ia a escorregar, com seu conteúdo.
— Não, não! — falou apressadamente e com outro sorriso amedrontado. — Acabei com tudo isso. Tudo que quero é que me deixem em paz.
Enxugou uma ou duas gotas de chá do colete. Christopher observou que a mão lhe tremia. O velho, seus olhos procurando refúgio, encontrou
sua filha, Annette.
— Tony jamais conspira: ele é alegre demais — disse a jovem Sra. Antoine, graciosamente enchendo xícaras para o marido e o “tio
Christopher.”
— A queridinha quer dizer que não tenho miolos para “conspirar” — falou Antoine, destramente beijando a mãozinha gorducha que lhe
entregava a xícara.
A Sra. Antoine sorriu, satisfeita:
— Como você torce o sentido de minhas palavras! Não quis dizer isso, Tony, e sim que você é bonzinho demais e feliz para importar-se com
qualquer coisa além de seus livros e seus quadros. E alguns desses quadros são tão horríveis... Especialmente aquele... aquele Renoir. Aquela
mulher gorda, completamente sem formas.
— À luz do sol, seu corpo havia de parecer um Renoir — comentou Antoine galantemente. — Toda gordinha e rosada e sombreados
madrepérola.
A moça corou:
— Como sabe, garoto malcriado? Nunca me viu à luz do sol.
Annette, depois de cumprimentar o irmão e o tio com um fraco sorriso, nada havia dito. Sentava-se junto ao pai, o vestido preto fazendo-a
parecer mais frágil que nunca. O rostinho triangular estava completamente perturbado, e parecia haver encolhido, diminuído ultimamente.
Porém os grandes olhos azuis, tão cheios de luz, estavam mais gentis e mais profundos que nunca. A luz do fogo cintilava em sua cabeleira
loura de um modo que ela parecia rodeada por um halo.
O vivido olhar de Antoine se demorou nela pensativamente por um momento. Depois ele disse:
— Onde está o Homem de Ferro? Não veio com você, Annette?
— Não. Teve de ir a Washington esta manhã. Presumo que se refere a Henri? — replicou Annette, com seu calmo e brilhante sorriso.
— Acho Henri um amor! — gorjeou a Sra. Antoine, olhando em torno contentinha, e amando seus parentes. — Ele me diz as coisas mais
amáveis. Disse-me na semana passada que eu era exatamente aquilo para que fora feita, e que você me merecia, Tony. Não é lindo?
— Muito! — respondeu Antoine, meio de esguelha. Christopher ria, aquele riso silencioso e virulento que fez sua cara de caveira parecer
assustadora à luz do fogo. Antoine tornou a voltar-se para a irmã: — Veio sozinha, coelhinha? Por que Celeste não veio também? Pensei que
fossem muito amigas.
Annette mexeu o seu chá e aceitou um pequeno sanduíche do prato dourado que a Sra. Antoine lhe oferecia. Sua fisionomia estava calma:
— Celeste está em Nova York: uma discussão de última hora com os decoradores. Creio que há um par de lampiões de prata em Madison
Avenue que ela quer e os decoradores são violentamente contra eles. Ela pretende acabar com as discussões e trazer com ela os lampiões.
— Então — disse Antoine, vagarosamente, olhando para Christopher, e sorrindo malevolamente — você e Peter estão sós em suas tumbas.
Você em sua tumba quente, e Peter em seu mausoléu de vidro e cromo. Deveria tê-lo convidado, Mary.
Por um instante Mary ficou embaraçada:
— Oh! tenho convidado tio Peter e tia Celeste com frequência, querido. Mas nunca vêm. Desde outubro não vêm aqui. O querido tio Peter me
deprime: parece tão doente... E o Dr. Gordon acha que não devo ficar deprimida.
Christopher já não sorria. Suas feições tinham a cor e a textura de gesso, outra vez. Sorveu o seu chá pensativamente. Antoine sorria
diabolicamente. Zumbia suavemente sob a respiração.
— Celeste espera ter a nova casa completamente pronta lá pelo Natal — observou Annette. — Já nos convidou para o jantar de Natal. Todos
da família que estejam em Windsor na ocasião. Faltam poucas coisas para completar a casa.
— Tal como os lampiões da Madison Avenue — concordou Antoine, sorrindo para ela.
Por um longo momento irmão e irmã se olharam num silêncio subitamente rígido. O rostinho de Annette estava pálido, os olhos brilhantes:
— Tal como os lampiões — ela concordou, por fim. Sua mão não tremia quando ergueu sua chávena.
Enquanto a olhava, o rosto de Antoine perdeu seu olhar malvado, tornou-se escuro e fechado à luz ondulante. Havia em seu peito uma dor
peculiar, uma dor muito estranha. Afastou-se dela, mas sabia que ela ainda o fitava, indomável em sua fragilidade. “Ela sabe...” — ele pensou.
— Ouviu algumas notícias pelo rádio hoje, papai? — perguntou a Armand.
Armand apressadamente mastigou e engoliu um pedaço de bolo antes de replicar:
— Não. Nunca as ouço. São muito deprimentes. Já tenho a minha dose de perturbações. Estou deixando que o mundo se agite por si mesmo.
— Sorriu pouco à vontade, e novamente seus olhos buscaram refúgio.
— Ouvi William Benson esta tarde — chilreou a Sra. Antoine. — Sempre pensei que devemos manter-nos informados. E as coisas são tão
emocionantes agora, tão excitantes! É fácil ficar amedrontada. Mas o Sr. Benson é tão tranquilizador! Diz que devemos manter-nos calmos, e
sensatos. Devemos apenas ser espectadores, e guardar a nossa paz. A Europa não é da nossa conta. Hitler não nos ameaça. Há três mil
milhas de água, diz ele, e os provocadores de guerra não podem ultrapassá-las.
— Talvez os aviões possam — disse Annette, olhando afetuosamente a esposa de seu irmão.
Porém a Sra. Antoine estava “por cima”:
— O Sr. Benson tocou nesse ponto, Annette querida. Nenhum avião poderia fazer uma viagem de ida e volta. Além disso, Hitler não está
absolutamente interessado em nós! Esta é uma briga europeia; estão sempre brigando, essas estranhas criaturas de nomes bizarros. Não há
nada conosco, o Sr. Benson é tão inteligente! Tem uma porção de argumentos que não compreendo muito bem, mas sei que são inteligentes.
Ele compreende tantas coisas, mais do que a pobrezinha de mim...
Christopher olhou para Antoine:
— Esse Benson não é o novo comentarista da Rede Verde? E não é o homem da Associação Americana de Industriais?
Antoine estava muito malicioso:
— Não sabia disso. Tanto quanto sei, ele está na meia hora da Limonada Limey. Limonada Limey! Vocês têm de admitir que nós, americanos,
temos um inconsciente senso de humor.
Armand estava dando sinais de inquietação:
— Temos de falar a respeito da guerra? Não teremos coisas mais agradáveis para discutir?
Havia medo de verdade, e angústia, naquele rosto gordo e intumescido.
— Tal como a Lista? — sugeriu Antoine. Voltou-se para a esposa: — O que é esta noite? Fígado? '
A Sra. Antoine empertigou-se. Sacudiu para ele o dedinho rosado, com um sorriso:
— Ora, ora, Tony! Hoje é quinta-feira, e sempre temos fígado às quintas. É tão bom para papai! Cheio de vitaminas, e sangue, acho. É bom
para você também.
Antoine estremeceu exageradamente, e os outros riram.
— O que você tem para o jantar hoje, Annette? — perguntou à irmã.
— Na verdade, não sei — ela sorria ao responder. — Creio que é frango. Nossa governanta mencionou isso esta manhã, acho. Ou talvez o
capão seja para amanhã. Por quê?
— Se for capão, ou qualquer outra coisa menos fígado, irei com você para sua casa.
O rostinho da Sra. Antoine estava franzido como se estivesse prestes a chorar:
— Oh! Tony, como pode ser tão mau? Desde sexta-feira que não janta conosco. Não vai realmente sair esta noite! Creio que há cebolas para
você, se as quiser com o fígado.
Ele lhe deu um tapinha na mão:
— Se Annette não tiver capão, ficarei para o fígado — prometeu. — Sou louco por capão. Em Nova York até me chamam Capão...
— Duvido — falou Christopher — duvido mesmo! Poderia citar exemplos.
Até Armand riu da piada. Porém Mary olhou de um rosto jovial para outro, muito espantada:
— Nunca entendo as piadas de vocês — queixou-se. — Por favor, expliquem-me esta.
— O tio Christopher estava apenas sendo vulgar, bichinha — disse o marido, dando-lhe palmadinhas no rosto. — Eu não lhe sujaria os ouvidos.
Christopher estava consultando o relógio:
— Quase seis horas. Se não se importa, Antoine, gostaria de ouvir nosso misterioso Gilbert Small esta noite.
— O rádio? — exclamou Armand. — Temos de ouvir essa máquina berrar?
Mas Christopher já se havia levantado e se encaminhava para o alto armário Chippendale onde ficava o rádio. Uma vez ligado, um momento
depois uma calma voz masculina invadiu a grande sala:
“Aqui fala a sua KLDB. Temos o prazer de trazer-lhes de novo a esta hora o Sr. Gilbert Small, autoridade em casos europeus. As opiniões do
Sr. Small não são necessariamente as desta estação. Ele não tem patrocinador comercial, portanto fala francamente, como quiser.
Houve uma curta espera. A chávena de Armand tiniu irritadamente em seu pires, e ele suspirou e se mexeu ruidosamente em sua cadeira.
— Não sei por que... — murmurou.
— Posso dar-lhe mais chá, querido papai? — perguntou a Sra. Antoine. Começou a conversar brilhante e claramente enquanto a voz grave e
firme do Sr. Small emergia do rádio. Antoine virou-se para ela e disse, suavemente:
— Queridinha, quer por favor fechar a boquinha por um momento?
Ela o fitou inexpressivamente, boquiaberta, piscando. Olhou tristemente para Annette, mas Annette inclinava-se para diante em sua cadeira,
olhos fixos no rádio. Christopher estava de pé junto do armário, cabeça inclinada.
“Hoje — dizia o Sr. Small — os nazis assassinaram dez mil homens, mulheres e crianças na Polônia. Hoje, mil estudantes tchecos foram mortos
a bala em Praga. O mais velho tinha dezessete anos. Hoje, num pogrom em Munique, duas mil crianças judias foram arrastadas dos braços de
suas mães e embarcadas em trens de gado para a morte. Hoje, vinte intelectuais austríacos foram assassinados numa adega em Viena.
“Existe uma grande calma na América. Esta noite, num estádio de Nova York, dois famosos pugilistas estão lutando por uma bolsa de
cinquenta mil dólares. Esta noite, num teatro de Nova York, um cantor de rádio está atraindo um auditório de seis mil frementes mulheres e
moças, que suspirarão e desmaiarão umas sobre as outras enquanto a doce voz dele as emociona da cabeça aos pés. As ruas da América
estão cheias de homens e mulheres carregando pacotes de presentes de Natal. Em Hollywood, Marianne Vincent anunciou que pretende, muito
em breve, divorciar-se do quinto marido. Eu disse que estamos calmos. Não. Estamos muito excitados. Temos coisas muito importantes em
que pensar. Mas nenhuma dessas coisas se refere aos acontecimentos na Polônia, na Tchecoslováquia, em Munique ou Viena. Ora, Polônia,
Tcheco- Eslováquia, Munique e Viena estão tão longe, e as pessoas são tão estranhas... Não são realmente nossos irmãos, nossas irmãs e
nossos filhos. São criaturas à parte.
— Muito verdadeiro! — murmurou a Sra. Antoine, feliz, esquecendo a censura do marido.
Olhou em volta para os habituais sorrisos afetuosos. Mas todas as fisionomias estavam graves, afastadas dela. A cabeça de Armand descaíra
para o peito; suas mãos estavam flácidas, como que penduradas nos braços.
“Esta noite — continuou o Sr. Small — quando ouço tais coisas, tenho a mais curiosa visão de certo jardim ao acaso. Um jardim totalmente
mítico, vocês hão de concordar. Há um grande silêncio no jardim; acima das enormes árvores escuras o pôr-do-sol é rubro como fogo, e arde
vividamente. Até os pássaros estão quietos, e o rio próximo corre sem um som, a superfície esbraseia com uma luz carmesim. Há paz no
jardim; as flores inclinam as corolas.
“Mas de repente, trata-se apenas da minha visão, compreendam, vejo ali um morto, um jovem inocente. Seu rosto adormecido está coberto de
sangue. É muito triste. Ele nunca fez mal a ninguém, jamais prejudicou a quem quer que seja. Apenas tem sido feliz, e apenas tem querido viver
pacificamente com seu irmão. Entretanto, mão brutal e selvagem deu-lhe a morte. Onde está o assassino? Esconde-se em algum lugar entre
essas árvores, acocorado à sua negra e confusa sombra, as mãos a cobrir-lhe o rosto suado.
“O ocaso escurece. E então, de repente, uma ventania terrível e furiosa sopra por entre as árvores, curvando-as, empalidecendo-as, atirando-as
contra o céu avermelhado. Os pássaros gritam nos ramos. As flores ficam pálidas como a morte e penduram suas cabeças, caindo ao chão. E
de além do vento vem uma voz formidável, ecoando pelo espaço: ‘Onde está Abel, teu irmão?’ ”
“De algum lugar, fora dessa caverna de troncos retorcidos, fora da fúria e turbulência do vendaval e da Voz cósmica, vem um fraco murmúrio:
‘Serei o guardião do meu irmão?’
A voz do Sr. Small silenciou subitamente. Mas o ar ainda vibrava com sua lembrança. Christopher ergueu o rosto imóvel e olhou para Antoine,
que sorria largamente. Armand não se mexeu. Poderia estar morto, ou adormecido, esparramado em sua poltrona. As pequenas mãos de
Annette se agarravam a seus joelhos. A Sra. Antoine sentava-se boquiaberta junto ao fogo, piscando, espantada e confusa.
Então a voz do Sr. Small ergueu-se num elevado arco de som acusatório:
“Tornei a ouvir a Voz; e devo novamente avisar a meus ouvintes que tudo isto é apenas um sonho meu. E a Voz gritava: ‘Que fizeste? A voz do
sangue de teu irmão chegou até Mim.’
Deteve-se outra vez, com paixão, e então prosseguiu:
“Vocês me dirão, meus ouvintes, que não são Caim, que não mataram Abel no pacífico jardim, que não é o seu sangue que brada contra vocês.
Mas eu lhes digo que são Caim, que mataram Abel, que é o sangue dele que está gritando contra toda a América, contra o mundo inteiro. Se
não erguermos nossas mãos, hoje, na Polônia, na Tchecoslováquia, em Munique e em Viena, damos nossa aquiescência ao verdadeiro
assassino. Damos a aquiescência do silêncio. Sabemos que está ali o jardim da morte. Mas estamos fora, na cidade, celebrando e adorando
nossos pugilistas e nossos cantores de rádio, nossas prostitutas de Hollywood. Se ouvimos a Voz que do espaço gritava para nós, apenas
dissemos ao maestro da banda para bater seu tambor mais alto, e que seus trompetistas toquem mais ensurdecedoramente. A coisa não é
conosco. Caim não estava nos ameaçando. Havia o rio entre o jardim e a cidade, e o rio nos mantém a salvo dele. Muito longe para que ele
nade. Além disso, tratava-se apenas de uma briga entre Caim e o irmão, e não nos dizia respeito. Sempre soubemos que os dois irmãos
brigaram durante anos, e isso se tornara muito aborrecido.
“Não ouvimos a Voz quando se afastou de Caim e gritou para nós: ‘E agora tu és amaldiçoado pela Terra, que abriu a boca para receber, de
tua mão, o sangue de teu irmão: Fugitivo e vagabundo serás na Terra’.
“E isso, meus amigos, é no que a América se tornou hoje: um fugitivo e vagabundo na Terra, se escondendo e se lamuriando em teatros e
estádios, enquanto Abel jaz morto no jardim. Deve ser uma visão horrível para Deus, ver-nos aqui. E deve estar doente.
Outrora, calculo, Ele se orgulhava de nós. Outrora, éramos valentes, fortes, bravos e cheios de indignação contra opressores e assassinos.
Agora nós os desculpamos. Agora os financiamos. Agora lhes enviamos mais armas para matar mais inocentes. Agora silenciamos aqueles
que desejam avisar-nos de que Caim está à nossa porta, o Caim que admiramos, financiamos, desculpamos, por meia dúzia de anos. Em
futuras irradiações darei os nomes, esboçarei as maquinações dos homens que fizeram tais coisas, que conspiraram contra vocês, que estão
abrindo as portas para Caim. Têm estado muito ativos. Ficarão mais ativos no futuro, mentindo para vocês, tranquilizando-os, decepcionando-
os, para que vocês não se possam erguer e pedir armas contra seus inimigos, e vingança pela morte dos inocentes assassinados hoje, e o
maior número dos que o serão amanhã. Sabem, eles acreditam que Caim pode ser sua arma contra uma América livre. Eles não querem a
América livre. Desejam uma nação de escravos. Você. E você. E você.
“Serão bem-sucedidos? A alma adormecida da América brilhará mais uma vez em realidade, poder e paixão? Não sei. Só vocês podem dar a
resposta. Sinto-me atemorizado. Atemorizado de que a América haja vendido seu sonho por um punhado de rebuçados.
“Há uns versinhos de Wordsworth que eu gostaria de citar-lhes agora:
‘Para onde fugiu o visionário raio?
Onde estão agora a glória e o sonho?’
Ele falou as últimas palavras lentamente, claramente, claramente, depois sua voz caiu em profundo silêncio. Christopher desligou o rádio e ficou
parado perto dele. Ele e Antoine trocaram um olhar agudo.
— Farolagem melodramática — comentou Antoine. — Se isso é o melhor que ele pode fazer, não oferecerá perigo.
— Não sei — resmungou Christopher. — Não estou tão certo disso. — Voltou lentamente para junto do fogo. — Lembre-se: melodrama atrai a
populaça.
— Mas não se há baionetas em suas costas. Todos são surdos a qualquer apelo que inste com eles para lutar, ou ponha em perigo suas
barrigas. Ouvirão mais prontamente a um homem que os aconselhe a esconder-se no porão, e lhes prometa barriga cheia se mantiverem a
boca fechada.
Agora Annette falou, a voz leve estava vibrante, os olhos azuis brilhando estranhamente à luz do fogo:
— Você tem uma opinião muito má a respeito do povo americano, não é, Antoine?
— Minha querida — ele replicou, ligeiramente —não se trata de apenas uma opinião: é conhecimento pessoal. Existem alguns idiotas que
acreditam que os americanos ainda podem sentir o impulso de erguer-se por um ideal, de sacrificar-se para que outros possam viver. Não
creio nisso. Como o nosso Sr. Small destacou tão pungentemente: eles preferem as prostitutas de Hollywood, os lutadores em busca de
prêmios. Uma nação assim não tem mente, nem espírito, decência, orgulho ou inteligência. Como vê, sou muito franco.
Annette estava silenciosa. Mas seu pequeno corpo estava tenso como uma lâmina de aço.
— Acho o Sr. Small horrível! — gorjeou a Sra. Antoine. — Ele não passa de um provocador de guerra, como o Sr. Roosevelt. Quer que nossos
rapazes morram em solo estrangeiro. Apenas pelos judeus, ou os tchecos, ou seja lá quem for. Ouviu o Capitão Jaeckle na outra noite? Ele
disse que ninguém quer atacar-nos, e além disso há três mil milhas de água entre nós e Hitler. Alguém devia expulsar esse Sr. Small do rádio.
Quer levar-nos à guerra, e nós não queremos! As mães não deixarão os provocadores de guerra levar nossos rapazes para morrer.
Antoine gesticulou para a esposa, mas fez uma careta para Christopher:
— Aqui fala a voz do povo americano — disse, sardonicamente. — Que mais quer você?
Ninguém deu atenção a Armand. Estava de olhos fechados. Parecia dormir. Mesmo quando as visitas se levantaram para ir embora, ele
continuou imóvel em sua poltrona.
Mais tarde nessa semana, Christopher se fechou com Henri. Falou durante uma hora, enquanto Henri ouvia e tomava algumas; notas.
— Sim, acho que é uma boa ideia você ir com ele a essa conferência — falou Henri. — Isso é muito interessante, na verdade. Naturalmente, ele
nem suspeita?
— Ele sugeriu que eu estava “nisso profundamente” — falou Christopher, rindo. — Tem a mão ligeira na chantagem, mas a mão é inocente. A
propósito — acrescentou, curiosamente — existe algo a respeito das irradiações de Small que me soa familiar. Você não tem ideia de quem
redige seus textos, ou quem está pagando pelo tempo dessas irradiações?
Henri o olhou calmamente, com um pálido sorriso:
— Não! Por que deveria?

Capítulo 32
Hugo Bouchard, segundo irmão de Peter, e Assistente do Secretário de Estado, vivia com magnificência em Washington com a bela esposa,
de solteira Christine Southward, cujo pai fora “Billie” Southward, Presidente do Partido Republicano da Pensilvânia. Hugo herdara essa elevada
posição após a morte do rotundo e afável Billie; e devido à sua própria personalidade, que era afável, de riso fácil, possuindo aquelas
qualidades extrovertidas de companheirismo, bom humor, aberta simpatia e moderação, tornara-se duas vezes mais popular como o sogro —
o que era um verdadeiro feito. Advogado de consideráveis talentos e sagacidade, ainda recebia um grande salário de Endicott James de Nova
York (agentes de publicidade e procuradores de Bouchard & Sons). Sua fortuna pessoal, aumentada pelo milhão e meio da esposa, era
gigantesca — fato que ele, por muitas razões, guardava modestamente em segredo. Seu irmão, Jean, declarara que ele era um taco de veludo
castanho com cabo de ouro, observação a que não faltava perspicácia. Pois Hugo Bouchard era de estrutura larga e sólida, sem frouxidões ou
protuberâncias, e tinha uma presença imponente que mais inspirava confiança do que timidez. Rosto avermelhado, brilhantes olhos dourados
cheios de riso e de amizade, nariz rombudo e amável, grande boca com dentes excelentes e brilhantes. Seus cabelos, outrora também
avermelhados, eram agora uma massa prateada e ondulada, embora ele estivesse apenas com cinquenta e poucos anos. Tudo isso,
combinado com certo esplendor, calor e solidez, fez dele o político ideal, em quem muitos confiavam, antipatizado por poucos, e admirado por
quase todo mundo. Com todos esses admiráveis recursos, certa franqueza genuína e uma voz afeiçoada e brincalhona, muitos poucos
discerniam que ali estava um consumado velhaco, um homem avarento e implacável, sem escrúpulos e sem consciência. Mesmo sua esposa
desconhecia isso, pois que ele era de boa moral em questões sexuais, e era pai devotado das três filhas: Elsie, Alice e Joan. A única pessoa
que realmente o compreendia, e lhe tinha uma aversão sem reservas, era o filho mais novo, Hilary, agora com quase dezessete anos.
Ninguém realmente gosta de ser “compreendido”. Hugo não era exceção. Tomara uma quase imediata antipatia por Hilary, quando a criança
mal tinha uma semana de nascida. Pois Hugo era daquela natureza inteiramente masculina que tende a adorar filhas e sente indiferença pelos
filhos. Ele idolatrava as três meninas. Christine idolatrava Hilary. Isso aborrecia Hugo. Hilary era pequeno, moreno e sólido, “como o danado do
Jules” — declarou Hugo, desdenhosamente. (Ele não admirava seu parente, Antoine, como decididamente não admirava Jules, seu primo em
segundo grau, e avô de Antoine.) Como Hugo tinha grande admiração pelo tipo físico “ariano”, que acreditava fosse alto, robusto, e rudemente
masculino — acompanhado pela alvura da cútis e franqueza de compostura — a elegante pequenez de Hilary, suas delicadas mãos e feições,
vivos olhos negros, sorriso leve — sutil mesmo na sua infância — sua tortuosidade e graça latina o afrontavam e lhe causavam aversão.
Mais ainda: Hilary exibia inteligência rara e brilhante, e infinito interesse por conhecimentos. Também amava tudo que fosse belo, de modo que
adorava sua linda mãe. Christine não era muito brilhante, mas possuía a intuição do amor: assim, todos os seus presentes para o filho
demonstravam um gosto delicado e consideração. Mesmo na sua infância, ela lhe enchia o quarto de objetos de arte que havia diligentemente
desencavado em Nova York, Paris, Viena e Londres. Ficava sem fala, em apaixonada admiração por sua capacidade e graça, e não achava
música mais doce de ouvir do que os elogios que os professores faziam a Hilary. Aos dezesseis anos foi aceito em Harvard. Hugo, a despeito
de si mesmo, apesar de seu desdém pelo estudo e por todas as artes intelectuais, foi temporariamente dominado por um relutante orgulho. O
forte de Hilary era a matemática, essa arte grande e clássica. Hugo queria que o rapaz estudasse leis, e, com frequência, em tom de
brincadeira declarava que em breve Hilary seria de grande valor para os Bouchards. Também observou que enquanto Antoine era um
adequado “substituto” de Jules, Hilary é quem herdaria a fama sutil de Jules Bouchard.
Essa observação traía a profunda ignorância de Hugo a respeito do filho. Pois Hilary, embora possuindo notável semelhança com Antoine, e
com o avô de Antoine, e mostrando aqueles aparentes traços de caráter — esperteza, tortuosidade, cinismo e capacidade — que haviam sido
as características salientes de Jules, tinha uma forma de espírito totalmente diferente, que poucos já haviam discernido.
Pois, espantosamente, essa jovem cópia de Jules se parecia com o tio Peter em caráter. Era honrado, bravo, firme e compassivo, e
delicadamente sensível. Porém, diferente de Peter, que tendia a ser abrupto, zangado, agressivamente honesto e sombriamente quieto em
certas ocasiões, Hilary era perspicaz, cético, cínico e desiludido por natureza. Mais: possuía enorme e delicado tato, e um senso de humor
altamente desenvolvido, um equilíbrio de temperamento incrível em alguém tão jovem, e uma aguda consciência da necessidade de manter sua
própria opinião praticamente sempre. Nele havia pouco de sonhador, mas, estranhamente, muito de místico. Sua conversa era deliciosa, sua
aparência muito soignêe — para citar a enfatuada Christine.
“Ele se parece demais com Goebbels para me agradar” — era a disparatada observação de Hugo. — “Todos os malditos Bouchards latinos se
parecem com Goebbels.”
Essa observação, citada a Antoine e outros da “linhagem de Jules”, não tornou Hugo benquisto entre seus parentes.
Desde muito cedo Hilary tomou uma aversão incessante pela Família, com poucas exceções. Só vira Peter poucas vezes, e embora
compreendendo esse tio especial, e sentindo grande compaixão por ele, com pesar o considerava algo assim como um louco. Na opinião de
Hilary, só loucos se desarmam, tornam-se vulneráveis, por motivo de sua própria integridade e honestidade. Acreditava Hilary que o caráter de
alguém deveria ser conhecido apenas por si mesmo e por Deus, mas, preferivelmente, apenas por si mesmo. Dever-se-ia mostrar ao mundo
apenas o que se desejasse que o mundo conhecesse e, como a virtude era sempre suspeita e a integridade escarnecida, esses traços
deveriam ser guardados como um tesouro e revelados apenas em ocasiões extremas. Como consequência dessa filosofia, poucos dos
Bouchards sabiam alguma coisa a respeito de Hilary, e ele era unanimemente declarado a completa réplica de Jules, mais ainda que Antoine.
Hilary tinha profunda afeição por Annette, uma ternura casual por suas três irmãs — que o adoravam, apesar da aversão de seu amado pai —
indiferença completa por praticamente qualquer outro membro da família, e, estranhamente, um misterioso apego por Henri, a quem chamava
“tio Henri”, não ligando a desenredar as ramificações de relacionamento. Era muito equilibrado e demasiado frio para odiar fortemente, mas
odiava verdadeiramente o pai: julgava-o um louco arrogante, um completo mentiroso, um perigoso velhaco, e um cão traiçoeiro. Como Hilary
era demasiado egotista para dissimular essa fina opinião a respeito de Hugo, e por demais indiferente a ele como homem, a inicial aversão de
Hugo não se poderia esperar que diminuísse com o passar dos anos.
Havia outra razão profunda e subterrânea para o ódio entre os dois. Embora Hugo adorasse todas as filhas — que eram elegantes, lindas e
vivazes, e loucas por ele — a mais nova, Alice, era a queridinha. As duas mais velhas eram, como sua atraente mãe, não muito “brilhantes”,
embora amáveis e encantadoras. Mas Alice era capaz e inteligente, cheia de risos e de súbita seriedade, e possuía ávido interesse em viver.
Era pouco mais de um ano mais velha que Hilary; haviam crescido juntos. À diferença de Hilary, tinha tendência a ficar alta. Tinha a mesma
graça, tato e percepção aguda dele, bem como seus maneirismos insinuantes e gestos elegantes. Mais: muito cedo ele percebeu que ela
possuía integridade e senso de honra; as duas mais velhas eram demasiado complacentes, amáveis demais e também felizes demais para ter
caráter, a não ser encanto e delicioso egoísmo. A pressão de Hilary sobre a mãe, que por sua vez pressionou Hugo com determinação, é que
resultou na ida de Alice para uma boa universidade para estudar Direito, ao invés de ir para uma escola de aperfeiçoamento para moças, que
Hugo julgava mais de acordo para as moças Bouchard.
Alice era muito sadia, mas não agressivamente. Não tinha aquela aparência saudável, suada, aquela exuberância de natureza animal que tão
frequentemente distingue as robustas fêmeas americanas. Como Hilary, detestava esportes. Sua pele, de um branco leitoso e bem macia, e as
faces jovens, firmes e rosadas não precisavam de artifícios. Tinha os olhos dourados do pai e longos cílios cor de bronze e sua expressão era
viva e ávida, porém profunda. A boca, um tanto grande, era doce, firme e forte, e brilhantemente colorida, de modo que não se tomava
conhecimento do tamanho. Os cabelos, de dourado mais claro do que os olhos, eram lisos e lhe caíam nos ombros. Nela tudo expressava
delicada força e fineza: excelente a sua aparência. “Grego clássico” — diria Hugo, orgulhosamente. E ainda tinha bom gosto, e natural
simplicidade no vestir, o que lhe realçava a beleza.
Hugo, embora nunca fosse sutil, e mais malicioso do que sensível, muito cedo percebeu haver algum laço apaixonado entre a sua querida e o
filho odiado, Hilary. Quando crianças, só desejavam a companhia um do outro. Hugo tentou enviar Hilary para uma escola militar, para que
“fizessem dele um homem”. Mas Christine se opôs violentamente. Hugo esperou. Esperou até Hilary ir para Harvard. Mas longas cartas eram
trocadas entre irmão e irmã. Alice não lamentou a ausência do irmão. Mas tornou-se mais séria. Quando por sua vez se foi para uma
universidade, escolheu uma não longe de Harvard. Hugo sabia que o filho e a filha passavam muitos fins de semana juntos em Nova York, em
estado de completa felicidade e gentis relações. Para contra-atacar, frequentemente visitava Nova York indo ao encontro de Alice e levando-a
com ele, deixando Hilary sozinho em estranho e sorridente silêncio. Hugo não tinha a elementar polidez de convidar Hilary para juntar-se a eles.
Como muitos homens com seu temperamento, Hugo tinha a mente obscena, de crua vulgaridade. Nas raras ocasiões em que era provocado,
exibia violenta brutalidade, linguagem lasciva, e tremenda crueldade. Tinha o cuidado de ocultar esses traços a seus pares, mas seus inferiores
os conheciam bem demais. Sempre suspeitava o pior de todo mundo. Em sua opinião, não havia mulher virtuosa: todas as mulheres (exceto
sua esposa e filhas) eram vagabundas, prostitutas complacentes de mente suja. (Dos homens tinha opinião ligeiramente mais elevada, embora
projetasse neles seus próprios reflexos.) Sinceramente convencido da vileza da humanidade, e da venalidade dos homens, suspeitava as
maiores loucuras numa troca de sorrisos entre os sexos, na mais leve galanteria ou na mais inocente coqueteria. Tinha uma provisão de
histórias depravadas. Todas enfatizando a sexualidade em sua forma mais crua e mais perversa.
Com uma mente assim, e com seu ódio incompreensível e aversão pelo filho, imaginou que o amor de Hilary por Alice era pervertido, impuro e
perigoso. (Alice, claro, era a donzela pura sem a mais leve suspeita dos horríveis desejos do irmão.) Por fim, Hugo já não imaginava: acreditava
saber, tinha certeza. Então seu ódio assumiu um caráter doentio, nascido de seu ciúme. Nunca lhe ocorreu estar precisando de um psiquiatra
para vasculhar nas sombrias cavernas de sua própria mente.
Claro, Hilary sabia de tudo isso. Sua repugnância fora tão intensa que chegara a ficar física e mentalmente nauseado. Sentira indiferença pelo
pai, e desdenhosa diversão, mas agora ele o odiava! Também ficou extremamente alarmado pela amada irmã. Mas sabia que nunca ousaria
esclarecê-la a esse respeito. Fez suas cartas mais curtas e mais raras. Estava sempre muito ocupado quando ela sugeria encontrá-lo em Nova
York. Nas suas folgas, forçava-se a fazer relações mais íntimas com amigos. Esse rapaz, que apenas completara dezessete anos, achou-se
metido num espantoso problema do qual não via escapatória para si mesmo, a irmã, ou o pai. Pois via que, por gentilmente renunciar ao apego
de Alice por ele, estava abrindo caminho para a obsessão do pai.
Via, também, que a melhor esperança de Alice escapar de uma situação horrorosa era através do casamento. Portanto, sempre que podia,
perguntava-lhe se estava interessada em algum jovem. Quando se encontrava com ela em Nova York, frequentemente levava com ele colegas
mais velhos. Nenhum interessou a Alice, até que o irmão apresentou a um jovem chamado Charles Miles.
Infelizmente, Charles provinha de uma obscura família de fazendeiros do interior do Estado de Nova York. No seu tempo de ginásio mostrara-se
tão brilhante em pesquisa científica que recebera uma bolsa de estudos para Harvard. Entretanto, precisavam tanto dele em casa que não
pudera aproveitar a oportunidade, e só quando estava com vinte e quatro anos sentiu-se livre para beneficiar-se dela. Na ocasião em que Hilary
o apresentou a Alice, Charles estava com vinte e sete anos, invulgarmente maduro, pensativo, grave, talentoso e intelectual. E também
paupérrimo.
Alice imediatamente apaixonou-se por ele. Esse rapaz magro, moreno, que — ela pensou ternamente — tanto se parecia com seu querido
irmão, maravilhou-a, conquistou-a. Sua gentileza, atenção bem-humorada, bondade e interesse logo lhe inspiraram respeito e afeição. Após
seis encontros, três deles a sós depois da discreta retirada de Hilary, ficaram noivos.
O alvoroço que aconteceu em Massachusetts Avenue podia ser ouvido três casas além. Não foi preciso muita astúcia por parte de Hugo para
discernir a fina habilidade do jovem Hilary. O ódio de Hugo se tornou assassino, insano! Ameaçou Alice pela primeira vez em sua vida. Mas a
moça, assustada, branca, se manteve firme. Fora avisada antecipadamente pelo irmão. Casaria com Charles Miles, disse ela, não importando
o que acontecesse. Christine, embora não muito inteligente, era perspicaz. Suas vagas suspeitas se fortaleceram. Ficou ao lado da filha: se
Hugo apertasse os cordões da bolsa, ela, Christine, providenciaria para que nada faltasse ao jovem casal.
Ninguém jamais fizera frente a Hugo Bouchard. Ele estava como um touro enraivecido. Teve acessos de fúria, guinchou, berrou, ameaçou com
as coisas mais obscuras e aterrorizantes. Sua família, assustada, afastou-se dele. Christine tremeu vezes sem conta em seus agradáveis
aposentos. Suas duas filhas mais velhas se arrastavam pela mansão, escondendo-se do pai. Alice foi para Nova York para ficar com sua
parenta, a senhora Phyllis Morse, que era doida por ela.
Hugo estava desmoralizado e cheio de terror, bem como cheio de raiva, de ódio e de ciúme. Sentia agora a sua impotência. Desejava matar!
Ficou afastado do Departamento de Estado, mesmo nesses dias importantes. Estava doente, numa agonia, frustrado, angustiado, e
atormentado pela mais inominável das paixões. Naturalmente, ele as havia racionalizado: Charles Miles era um joão-ninguém servil e
desprezível, um mendigo, um morto de fome, um caça-dotes, um vira-lata e um suíno. Horrível que um tipo assim ousasse erguer os olhos para
uma moça Bouchard, esse canalha sem vintém, esse fazendeiro desengonçado, essa lesma rastejante. Não permitiria que Charles pisasse em
sua casa. Ameaçou matá-lo, fazê-lo expulsar de Harvard, publicar uma provável folha de antecedentes policiais. Chegou a escrever ao diretor
da Harvard, pedindo-lhe a expulsão de Charles. Se isso não fosse feito, ameaçou, não haveria mais dinheiro Bouchard a correr-lhe para os
cofres. E notificou a universidade que Hilary seria retirado imediatamente.
Mas Christine agiu de novo. Hilary permaneceria: ela, Christine, pagaria sua instrução. Sem alarde, escreveu ao diretor, por sua vez pedindo
que Charles pudesse continuar, e explicando que “o Sr. Bouchard estava apenas temporariamente zangado, mas em breve estaria
recuperado”.
Nessa casa desordenada e furiosa, Henri apareceu um dia quando dezembro já ia adiantado. Ouvira boatos do rebuliço, mas à sua moda
característica, dificilmente acreditou que um homem sensato pudesse perturbar-se verdadeiramente por negócios referentes a qualquer mulher.
Hugo soube dessa opinião do seu parente, e tratou de acalmar-se o suficiente para lidar com Henri exatamente dois dias antes do Natal. Tinha
o maior receio e respeito por Henri, e nada mais desejava que sua boa opinião.
Capítulo 33
Henri não subestimava seu parente, Hugo, nem estava convencido de que aquele enganoso sorriso sincero, aquela amena afabilidade, aquela
risada sonora e galhofeira eram atributos de um idiota. Sabia que Hugo, como homem, político, e Bouchard, era uma das pessoas mais
poderosas do Departamento de Estado. Hugo foi quem trouxe os mais intransigentes para o lado que apoiou, perdoou e se desculpou por
Franco, que impediu o embarque de alimentos, suprimentos médicos e materiais de guerra para as desesperadas cidades legalistas. Foi
Hugo quem deturpou a opinião pública americana na crença de que os legalistas eram “vermelhos, perigosos comunistas e radicais,
matadores de sacerdotes, e ateus”. Mais tarde, depois da queda da República Espanhola, foi a influência de Hugo que acelerou embarques de
petróleo e refugos, alimentos e munições para a Espanha angustiada e escravizada de Franco. Se muito de tudo isso achou seu caminho para
Hitler, isso não era da conta de Hugo, nem do Departamento de Estado, que agira na boa e virtuosa fé americana.
Fora Hugo, que tinha profunda consideração pela política conservadora britânica, quem induzira o Departamento de Estado a proceder com
precaução nos negócios europeus, e que havia inspirado admiração pelos Homens de Munique. Quando a opinião pública americana gritou
indignada pelos embarques de sucata e petróleo para o Japão, foi Hugo quem inspirou a publicação pela imprensa desculpando os
homenzinhos amarelos, e sugerindo que a China não era a virtuosa e nobre democracia tão docemente imaginada pelos americanos. A
maioria dos homens do Departamento de Estado se parecia muito com Hugo: cautelosos, conservadores, fascistas em pensamento se não em
intenção, homens de carreira, enfatuados e arrogantes, cheios de astúcia e ganância. Uma coisa possuíam em comum: uma profunda e
aristocrata repugnância pelo “homem comum”, “o gado sem miolos ou entranhas”. (Embora “entranhas” fosse implicado mais do que dito,
sendo os cavalheiros tão excessivamente refinados.) Hugo era mais robusto do que muitos dos afeminados cavalheiros do Departamento de
Estado, e era muito mais perigoso. Eles pelo menos acreditavam estar protegendo sua “classe”. Hugo, e outros como ele no Departamento, só
cuidavam do status quo, sua riqueza e seu poder — que estavam absolutamente determinados a que permanecessem intactos. Um círculo
ainda mais fechado acreditava que poderia ser necessário, em dia próximo, obter a ajuda de Hitler para subjugar as massas americanas —
que andavam mostrando alarmantes sintomas de começar a pensar por si mesmas.
Foi Hugo quem ajudou vigorosamente na formação de uma política de desconfiança e ódio para com a “Rússia Vermelha”, quem estivera por
trás da exigência de que a Rússia pagasse em ouro por seus embarques. Dos discretos e fastidiosos corredores do Departamento de Estado
vieram as publicações pela imprensa que minimizaram as forças russas, que “escarneceram” do pacto entre a Rússia e a Alemanha, que
insinuaram os terríveis desígnios da Rússia sobre a paz e a segurança do mundo. A maioria dos cavalheiros do Departamento tinha a mais alta
consideração por Mussolini; dois deles tinham medalhas conferidas por aquele esperto charlatão. Quando o General “Billy” Mitchell avisou o
povo americano da necessidade de uma poderosa força aérea, foi o Departamento de Estado, liderado por Hugo, que manchou, destruindo
publicamente o seu nome, partindo o coração daquele valente e trágico soldado. Os nobres efeminados temerosamente acreditavam que para
a América estar a salvo era apenas necessário que permanecesse desarmada e se abstivesse de provocar gestos hostis por parte de Hitler e
de Mussolini. Mas havia um círculo ainda mais restrito, composto por Hugo e os mais implacáveis e selvagens realistas, que desejavam que a
América permanecesse desarmada por suas próprias e monstruosas razões.
E foi o Departamento de Estado que se submeteu timidamente à certa organização religiosa, que foi o mais terrível inimigo da democracia e
do liberalismo em todo o mundo, mais forte e mais terrível do que o próprio Hitler. Por causa dessa organização, o Departamento de Estado foi
inflexível em sua pressão sobre o Governo para recusar visto e passaportes para um torturado e moribundo gueto judeu. Os cavalheiros do
Departamento, que tinham uma afetada repugnância de todos aqueles que não fossem diplomados por Harvard e não se pudessem gabar de
avoengos entre os primitivos americanos (embora esses avoengos fossem prostitutas de Londres e presidiários varridos das sarjetas das
cidades inglesas e transportados para a América), tinham uma aversão apavorada a pessoas que não pudessem falar inglês sem sotaque, ou
cujas feições não estivessem corretamente de acordo com o tipo predominante de feições existentes no Departamento de Estado.
Em suma: foi Hugo quem esteve mais poderosamente por trás dos elementos timoratos, com espíritos de classe, fascistas, velhacos, e
caçadores de feiticeiros do Departamento. Eles nunca eram vulgares, mesmo em seu desdém, ódio e suspeita do Sr. Roosevelt. Tudo que era
liberado pelo Departamento brilhava de restrição cavalheiresca e frases polidas, e pálida elegância. As mais vulgares declarações de Hugo
eram expurgadas e desodorizadas antes de tornadas públicas. Mas a conspiração lá estava, no entanto.
O Departamento de Estado oportunamente se manifestava, em tom queixoso, contra a França, a Rússia, a China. Mas nunca, nunca, contra a
Inglaterra, a Itália ou Mussolini. Em algumas ocasiões reprovou alguns estadistas ingleses mais honestos e valentes sobre suas observações
indignadas a respeito da fraqueza dos sentimentos da América para com Hitler. Esses estadistas, jovens, honrados e realistas, eram anátema
para o círculo régio dentro do Departamento de Estado e eram desdenhosamente estigmatizados como “provocadores de guerra, desejosos
de envolver a América nos conflitos europeus”. O círculo régio não podia, na verdade, desprezar esses ingleses como não sendo pukka sahibs,
pois a maioria deles era de descendentes de antigas e nobres famílias britânicas. Mas deduziam, com pesar, que não estavam preservando
sua “classe” — o maior de todos os crimes.
Henri Bouchard sabia que a “panelinha” de Hugo formava apenas um segmento do Departamento de Estado, e que era implacável, vulgar,
apropriada e grosseira. No entanto, influenciava muito perigosamente as demais “panelinhas” e, em seu poder combinado, poderiam
sobrepujar o próprio Secretário. O Secretário nada podia fazer contra o libelo de que o Sr. Roosevelt era dominado pelos “judeus” (ao invés de
pelo Departamento de Estado, o que seria mais apropriado), ou de que o New Deal se compunha de bandidos, intelectuais com estrelas nos
olhos, “brilhantes jovens de Nova York, de ancestralidade dúbia”, e comunistas. O Secretário aparentemente achou tudo isso muito risível.
Também ele era um cavalheiro, e estava convencido de que cavalheiros não são eficientes.
Nesse ínterim, durante esses primeiros dias da guerra, o Departamento de Estado estava em total confusão. Sua natural inclinação pela
Inglaterra, e reverência pela política inglesa (e a mais recente política inglesa de apaziguar Hitler e apoiá-lo) o fazia sentir uma simpatia natural
e preocupação pela Inglaterra. Sem embargo, o velho hábito de apaziguar, aplacar, desculpar e apoiar Hitler ainda era muito forte. Nessa
gangorra, portanto, eles ficavam muito compreensivelmente doentes do estômago, saltando no ar assustadamente, voltando à terra com fortes
impactos, e assim desorganizando seus delicados sistemas nervosos.
Contudo, Hugo e sua realista “panelinha” não tinha a menor simpatia pela Inglaterra ou pela França, fato que cuidadosamente ocultavam a seus
pálidos e delicados colegas: tinham seus próprios desígnios, seus próprios planos.
E esses desígnios, esses planos, eram bem conhecidos de Henri.
Henri, que descontara muitos dos boatos que lhe haviam chegado sobre a fúria frenética em casa de Hugo Bouchard, entretanto estava agora
impaciente, cônscio de que muitos desses boatos deviam ser verdade. Hugo foi tão cordial como sempre ao receber o seu parente. Sua risada
ainda era brincalhona. Mas Henri viu que o colorido avermelhado do rosto de Hugo já não era o habitual, que seu riso era forçado, seu aperto
de mão foi úmido e alarmantemente trêmulo, seus olhos dourados estavam fundos e febris. Seu corpo avantajado também estava menos
redondo e firme, sob as casimiras caras. Tinha um olhar perturbado, um nervosismo distraído, mesmo quando sorria ou fumava, ou contava
alguma das suas piadas. Tinha sido sempre um bebedor prodigioso, mas agora engolia copo atrás de copo numa espécie de frenesi.
Um dos atributos de Henri era a capacidade de tomar conhecimento de condições predominantes e estudar como tirar vantagem delas.
Poderia fazê-lo numa observação instantânea. Mesmo enquanto conversava amavelmente com Hugo, sua mente trabalhava, conspirando,
conjeturando, negociando. Encorajava Hugo a beber, mas gentilmente recusava ter seu próprio copo reenchido mais de uma vez.
Hugo deu uma grande risada:
— Sempre com os pés na terra, hein, Henri? Sempre o Homem de Ferro! Você é um demônio esperto, mas eu sei tudo a seu respeito! Você
nunca me enganou!
Henri sorriu, à vontade, e disse:
— Jamais cuidei de enganar quem quer que fosse. Além disso, sabe muito bem que não bebo muito. Não foi você quem disse, no último Natal,
que meu uísque era uma lavagem?
Hugo riu ainda mais alto. Chegou mais para a frente e deu um tapinha afetuoso na coxa de Henri. “Está bêbado, — pensou Henri — porém
mais de suas malditas emoções do que de uísque”. Agora Hugo ergueu o dedo indicador e o sacudiu brejeiramente:
— Quem está buscando, hein? Você não veio até Washington deixando certa... Ora, deixa isso pra lá, não precisa fazer essa carranca! Quero
dizer: não é uma visita casual, é? Você está atrás de alguma coisa, como de costume. Que é? Os rapazes não o vêm satisfazendo
ultimamente?
Henri sorriu de novo. Observou Hugo atentamente. Apesar do barulho que fazia, Hugo tinha o ar de um homem que procura ouvir algo a
distância. Por vezes se sobressaltava nervosamente, lançava um rápido olhar à maciça porta de madeira da biblioteca.
Henri disse ao que vinha, os descorados olhos, imóveis, fixos no rosto de Hugo que tinha contrações musculares:
— Estou encarregado de uma missão. De Annette. Gostaríamos de tê-los, a você e sua família, para o Ano-Novo. Sabe, vocês recusaram
convite para o Natal, sob o pretexto de um compromisso prévio. Agora Annette não ficará satisfeita até que venham a Windsor.
Hugo chegou a abrir a boca para falar, depois a fechou rigidamente. Seu corpo pareceu encolher dentro da roupa. Sua mão grande e áspera
bateu na longa mesa de carvalho ao seu lado, aumentando os movimentos enquanto fitava Henri. Mas disse, com bastante calma:
— Falarei com Christine. Quanto tempo se demora conosco? Até amanhã? Ela lhe dirá. Mas com certeza você sabe que Alice não está
conosco?
Henri ergueu os sobrolhos:
— Não, não sabia. Como saberia? Onde está a menina? Ela é uma espécie de bichinho de estimação para mim, você sabe.
Hugo fez um som estranho:
— Ora, deixe disso! Vocês não estão murados, isolados lá em Windsor! Devem ter ouvido algo!
— Não estou interessado nos assuntos privados da família — disse Henri com impaciência. — Não são da minha conta. Espero o mesmo
respeito pela minha vida particular.
Hugo se calou. Esquadrinhava Henri, desconfiado. Depois falou, roucamente:
— Bem, Alice não está conosco. Está passando as férias com aquela maldita Phyllis Morse, em Nova York. Prefere assim, parece. Filhos são o
maior desperdício de tempo. Você deve dar graças por não ter nenhum. Bem, talvez iremos, Christine, Elise, Joan, e... — Subitamente parou.
Seu rosto tomou uma expressão horrível, retorcido, cheio de ódio e de fúria.
“Então, é assim!” — pensou Henri, a mente trabalhando rapidamente. Ergueu o copo e fingiu beber. Disse, cuidadosamente, sem dar atenção à
expressão do seu parente:
— E Hilary, naturalmente. — Depositou o copo. — Muitas vezes pensei no quanto ele se parece com o Antoine, de Armand. Você já notou a
semelhança?
Hugo reprimiu uma praga involuntária. Os dedos que tamborilavam se apertaram; ergueu o punho e o bateu pesadamente na mesa uma ou
duas vezes. Henri sabia muito bem com que aversão, repugnância e desdém Hugo considerava Antoine, e quão frequentemente havia sofrido
sob os hábeis ataques e o leve ridículo do alegre jovem. Esperava que sua manobra tivesse sido inteligente, e não servisse apenas para
enraivecer Hugo contra ele mesmo.
Quando Hugo tornou a falar, numa voz abafada e incoerente, Henri soube que a manobra fora, realmente, muito inteligente:
—- Sim, aquele maldito!, bem que percebi a semelhança! E a coisa é mais profunda, vai mais além: ele se parece com aquele suíno em caráter
também. Afetado, ardiloso, mentiroso, cheio de mesuras, intrigante. Esplêndido filho para Hugo Bouchard! Um porco fedorento! O único filho
que tenho, e ele tem de... tem de... — Sua voz ficou subitamente estrangulada e um fluxo arroxeado passou sob a sua vermelhidão. Seus globos
oculares brilharam à luz das lâmpadas.
— Ora, deixe disso! Hilary é apenas um garoto! — disse Henri, observando-o agudamente. — É verdade que se parece com Antoine de modo
notável, mas Antoine não é nenhum idiota, você bem sabe. É um brilhante conspirador. Exatamente agora — acrescentou, após uma pausa —
está metido numa conspiração realmente tortuosa.
A expressão de Hugo mudou: tornou-se rudemente mal-humorada e inquieta. Levantou sua mão enorme e deu um puxão no lábio. Fitou Henri, e
seus opacos olhos amarelos se estreitaram:
— Não sabia nada a esse respeito — murmurou, pouco à vontade. E passou a mão nas espessas ondas de cabelos brancos.
“Então — pensou Henri — é como suspeitei”. E soube.
Henri tinha aversão a gestos de intimidade de qualquer natureza, e nunca cedia a eles com outros. Porém agora obrigou-se a inclinar-se para
Hugo e dar-lhe uma pancadinha no braço:
— Hugo, você e eu sempre fomos bons amigos. Outrora nos comportamos brilhantemente. Lembra-se? Contra a facção de Armand; em outras
palavras: contra a facção de Jules Bouchard. Não esqueci sua ajuda. Eu não poderia ter feito nada sem essa ajuda. Você me serviu, eu o servi.
Existe um grande laço entre homens como nós. Especialmente quando servimos a nós próprios enquanto servimos a nossos amigos.
Embora resistindo pouco à vontade por alguns minutos, Hugo não se pôde opor a essa lisonja não muito sutil. Seu medo de Henri, e seu
respeito, haviam aumentado com o passar dos anos. Tentou sorrir. Seus punhos relaxaram sobre a mesa.
— Nunca o subestimei, Henri, meu rapaz. Eu sabia a quem estava ajudando. Fiz como você sugeriu, quando no Departamento, e antes. Pode
sempre contar comigo.
Henri se recostou em sua poltrona, e seu rosto se obscureceu:
— Creio que posso, Hugo. Mas, desta vez, a coisa é muito séria. Disse que Antoine tem estado conspirando. Conspiração perigosa. Não sei
do que se trata exatamente. Mas preciso de sua ajuda.
Tão grande, agora, eram o alarme, a perturbação e as suspeitas de Hugo que ele momentaneamente esqueceu suas tragédias particulares.
Começou a transpirar. Puxou do lenço e o passou na testa ampla, testa de estadista.
— Que maldita “conspiração” é essa? Não acredito nisso. Que conspiraria ele? Não ouvi falar nada.
— Confesso que também não ouvi muito, Hugo. Mas talvez eu seja médium — e Henri sorriu agradavelmente. — Sinto as coisas. Sinto algo no
vento. Talvez você me possa dizer.
Porém Hugo deu de ombros, mal-humorado, e olhou para um ponto um pouco atrás dos olhos de Henri:
— Imaginação... — murmurou por fim. — Que conspiraria esse afetado idiota?
— Não subestime Antoine — avisou Henri. — Ele é esperto. Como seu filho, Hilary.
A isso, Hugo se sobressaltou com extraordinária violência. Seus olhos, postos em Henri, ficaram cheios de um fulgor amarelo. Rangeu os
dentes; suas narinas se distenderam como as de um boi.
Ora, Henri tinha muita consideração por Hilary, mas sabia que este não era o momento para agrados. Acrescentou:
— Você subestimou Hilary no passado. Eu sempre soube disto. Como sempre soube que ele se parece com Antoine mais do que apenas
fisicamente. Lisonjeio-me de conhecer os homens: esse é o meu negócio. Eu compreendo Antoine. Não sei o que anda buscando, mas tenho
uma vaga ideia. Vê, estou lhe demonstrando muita confiança, Hugo: sei que você o merece.
Os punhos de Hugo se dobraram nos braços de sua poltrona de couro vermelho. Respirava forte. O clarão amarelo aumentou em seus olhos.
Henri observava sua incerteza agonizante com resoluta proximidade.
— Que quer você? — perguntou Hugo, voz abafada. — Sempre quer alguma coisa. Você não me engana — repetiu.
— Sim — falou Henri, quietamente — quero alguma coisa. Quero sua ajuda. Quero que use sua influência para deter os embarques de sucata e
petróleo para o Japão. Imediatamente.
Hugo sobressaltou-se, outra vez. Os dentes brilharam entre seus lábios. Contudo a voz estava curiosamente quieta e firme quando disse:
— Não.
Os dois se olharam em profundo silêncio. Henri parecia imperturbável. Não mexia um músculo. Sua expressão era plácida e controlada. Hugo
estava como um touro encurralado, pronto para o assalto contra o inimigo. Esperou que Henri falasse novamente, mas Henri estava silencioso.
Então Hugo falou:
— Por quê?
— Porque — explicou Henri, tranquilamente — não quero que o Japão fique mais forte. Penso que sua vítima derradeira é a América. Tenho
consideração pela América, nem que seja apenas como campo para negócios proveitosos.
Então Hugo careteou, desagradavelmente:
— Tolice. Por que o Japão nos atacaria? Tem a China em suas mãos. E a China levará uma geração para ser dirigida. Se chegar a fazê-lo.
Que lhe importa isso?
— Não partilho seu otimismo, Hugo. Pense que somos os próximos na agenda. O Japão se voltará para o Ocidente. Não gosta de nós, você
bem sabe. Além disso, há os seus compromissos com Hitler. Está muito envolvido, confesso. Porém, do jeito que as coisas vão, Hitler ficará
muito aborrecido conosco. Poderia induzir o Japão a atacar.
— Ele não atacará! — exclamou Hugo, com violência. Remexeu-se em sua cadeira, brincou com objetos na mesa, depois se voltou para Henri:
— Isto é pura tolice! Além do mais, não teria razão. Não vamos ajudar a Inglaterra. Isto é certo. Posso garantir-lhe.
— E eu — falou Henri, calmamente — posso garantir-lhe que vamos. Temos pegue-e-leve agora. Em breve, teremos algo de mais importante.
Como sei? Não lhe posso dizer. Mas garanto-lhe que usarei toda a minha influência.
— Você! — exclamou Hugo. Explodiu numa risada rouca. — Desde quando os Bouchards ficaram tão danadamente patriotas? Desde quando
ficaram do lado de “liberdade, Deus, e o direito”?!
Novamente esperou que Henri falasse, mas Henri não lhe fez a vontade. Então Hugo perdeu o controle. Começou a gritar:
— Deixe-me dizer-lhe algo! Não queremos que a Inglaterra vença, na Europa! Sabe disso! O meu pessoal não quer, e até mesmo a Inglaterra
não o quer! Quer é uma paz negociada, e rápida. Por que iria ela destruir Hitler, e abrir-se para o bolchevismo da Rússia? Ela precisa de uma
Alemanha forte para protegê-la. Como sempre. Esse foi sempre o seu jogo. No Departamento sabemos disso. Sempre soubemos. Assim
como sabemos que a França cairá na primavera. Está tudo arranjado. E ainda vem você, respirando doçura e luz e “cremos em Deus”, e
querendo que atiremos todos os nossos planos no mar... Não, meu rapaz, não pode ser, realmente não pode ser.
Então Henri falou, em voz aguda e penetrante:
— E agora, eu lhe direi algo. O que diz a respeito da Inglaterra é verdade, de certo modo. Apenas de certo modo. Você fala pela chamada
classe dominante na Inglaterra. Mas deixe-me dizer-lhe isto: em breve Chamberlain cairá fora. Eden ou Winston Churchill tomarão seu lugar. A
“classe dominante” terá diarreia muito em breve, devido ao medo, ao terror. Porque o povo britânico está agora desperto. Não estou apenas
profetizando quando digo que a Inglaterra não assinará uma paz negociada com Hitler. Lutará até o fim. Agora é: Hitler ou nós. Você quer Hitler
na América?
Hugo o fitou, e lentamente empalideceu. Nada disse. Henri balançou a cabeça, severamente:
— Tenho uma suspeita, realmente tenho. Penso, na verdade, que você foi enganado por Antoine. Você é inteligente, Hugo, mas não tanto
quanto Antoine. Ele não lhe falou sobre os seus planos, falou? Talvez você pense que ele é “todos por um, e um por todos”. Tenho outra
suspeita: creio que o Senhor Antoine está trabalhando apenas para si mesmo. Ele não tem muita consideração por você, Hugo, nem tem em
alta conta a sua inteligência.
Hugo ainda estava sem fala.
— Acredito — continuou Henri, severamente — que Antoine o convenceu de que a Inglaterra cederá, assinará uma paz negociada com Hitler, e
que Hitler dominará a Europa e fará excelentes negócios conosco. Estou certo?
Porém Hugo estava silencioso. De olhos arregalados, fitava Henri.
— Concedo-lhe o crédito de não haver sido completamente enganado por nosso fino manipulador, que o tem usado para seus próprios fins,
Hugo. Concedo-lhe o crédito de guardar sua própria opinião. Agora, estou certo ou errado?
Sabia que seu ataque fora rude, calculado para ter efeito apenas sobre a mais brutal e exigente forma de mente. Seu desprezo por Hugo
aumentou ao ver a selvagem e violenta incerteza, o egotismo atormentado nesses fixos olhos amarelos.
Tornou a falar, mas agora muito, muito quietamente:
— Hugo, quanto confia você em Ignatius O’Connor e Francis O’Malley, do Departamento?
Por um momento Henri pensou que Hugo não o ouvira, tão parada era sua expressão. E então Hugo disse, voltando a si:
— Por quê? Que tem você contra Iggy e Frank? — porém uma aparência manhosa lhe surgiu ao canto da boca.
Henri sorriu:
— Um belo truque: responder uma pergunta com outra pergunta. Mas eu conheço tudo a respeito desse truque: eu próprio costumo usá-lo. —
Mudou sua expressão para uma de extrema gravidade, e ergueu a mão por um momento, deixando-a cair depois num gesto de resignação: —
Muito bem. Vejo que não estamos indo a parte alguma. Devo confessar que estou desapontado. Você e eu sempre fomos amigos; melhor,
trabalhamos juntos. Vim falar-lhe em confiança... mas vejo que não adianta...
Tirou a cigarreira, dali extraiu um cigarro, acendeu-o calma e pensativamente, como se sua mente já estivesse ocupada com outra questão.
Hugo o observava, truculentamente, um punho apertado na mesa. Sentava-se na beirada da cadeira; parecia um perigoso leão, fulvo e
superalimentado, traiçoeiro embora idoso.
Então ele disse, beligerantemente:
— Não vamos meter-nos nessa coisa, é o que lhe digo! O povo não quer isso. Sentimentos contra nós nos envolvem outra vez com a Europa,
Roosevelt ou não Roosevelt. Nenhum político na América é bastante forte para convocar uma razão válida para atacar Hitler. Além disso, Hitler
é muito popular aqui, devido à sua perseguição aos judeus. Você acha que pode conseguir que a populaça americana lute pela “liberdade”? —
Seu olhar agora era de sorridente aversão: — E o que a populaça quereria com a liberdade? Digo-lhe que se Hitler aparecesse nas costas de
Nova York, os ratos de sarjeta iriam ao seu encontro com flores! Eles o amam, é o que lhe digo. A liberdade nunca foi muito bem com
estômagos americanos... o povo ainda tem lembrança da feliz e irresponsável escravidão.
Henri se permitiu sorrir:
— Você é um completo psicólogo, não é? Sabe, de certo modo sou obrigado a concordar com você: não ligo a mínima para a populaça. Mas
ligo por mim mesmo, por Bouchard, por todas as nossas subsidiárias. Você confia em Hitler? — A expressão de Hugo mudou, tornou-se mal-
humorada, porém ele nada disse. Entretanto seus olhos se estreitaram até ficar feito uns pontinhos de lua amarelada.
“Francamente, não confio nele — continuou Henri, pesarosamente. — Sou bastante cândido para admitir que, se julgasse que podíamos, eu
consideraria certas coisas. Mas sei que não podemos confiar nele. Não o quero aqui. Nós, Bouchards, somos poderosos na América. Gostaria
de manter esse poder. Você bem sabe o que ele fez aos industriais na Alemanha para ter uma ideia do que fará aqui.
“Não estou interessado na Inglaterra, ou na França. Deixe Hitler desmontar o Império Britânico, e ao diabo com ele. Quem se importa? Mas não
o quero aqui. E virá para aqui, inevitavelmente, a menos que o detenhamos. Como? Por isso é que vim vê-lo: para descobrir se podemos
preparar algum programa.
Hugo começou a esfregar o queixo, mas ainda mirando Henri cuidadosamente:
— O que quer você dizer ao indagar se confio em O’Connor e O’Malley? — perguntou, sombriamente.
Henri hesitou:
— Bem, francamente, é exatamente o que andei lendo nos jornais. Não estão acabando de enviar Myron Taylor ao Vaticano? Não estão
acabando de tentar desacreditar os chamados “liberais”1 no Departamento, que tomaram o banco das testemunhas contra Franco, e que têm
causado agitação para evitar embarque de sucata e de petróleo para o Japão?
Hugo riu asperamente:
— E daí? Não estamos em posição de aborrecer Hitler nem o Japão. Não temos exército, nem armas... nada. Chame a isso apaziguamento,
se quiser, ou diplomacia. Suponho que se refere à campanha interna contra Summer Welles, que sempre gostou da Rússia? Você não pode
censurar Iggy e Frank: são católicos, sabe.
— Desde quando — falou Henri, meditativamente — temos baseado nossa política externa em sensibilidades católicas? Lembra-se de sua
história, Hugo? Leitura muito interessante...
Hugo golpeou a mesa selvagemente:
— Não estamos indo a parte alguma! — berrou. — Que está você querendo? Tentando sutilezas, para variar, hem?
Henri endureceu a expressão do rosto. Inclinou-se para Hugo:
— Pois muito bem: Já lhe disse que pouco me importa o que acontece na Europa. Mas importa-me o que acontece aqui. Acontece que gosto
de minha posição. Decidi fazer seja o que for para mantê-la. Estou disposto a arriscar qualquer coisa. — Deteve-se um momento, depois
continuou: — Não tenho base real para minhas suspeitas, confesso. Mas sei de algumas coisas. Sei que nosso querido Antoine ultimamente
encontrou o Chargé d’Affaires alemão, e O’Connor e O’Malley estavam com ele. Imagina o que terão discutido?
Foi um golpe arrojado. Observou Hugo estreitamente. Falara a fim de descobrir se Hugo tivera conhecimento daquele encontro, embora não
estivesse presente. E então um alívio: a expressão de Hugo, branco com o choque, boca entreaberta, o súbito brilho em seus olhos,
convenceram Henri que Christopher fora correto em sua suposição de que Hugo não soubera do encontro.
E por que não soubera? Christopher tivera dúvidas sobre esse ponto, embora tivesse lá suas ideias. O’Connor e O’Malley, ele julgava, estavam
fazendo seu próprio jogo, com sua própria panelinha católica. Panelinha católica. Hugo, apesar de sua liderança, suas conspirações, sua
cooperação, não era realmente único com sua panelinha dentro de uma panelinha. Não confiavam nele completamente: ele era Bouchard, e o
rico, afinal, é quase sempre conservador e temeroso, alarmando-se quando o perigo chega muito perto.
— Não acredito nisso! — exclamou Hugo, o rosto intumescido e úmido. — Não ousariam! Por que fariam isso, sem me dizer, sem meu
conhecimento e... — Parou abruptamente.
“Sem que você estivesse presente” — terminou Henri para si mesmo.
Henri deu de ombros:
— Pouco se me dá que você acredite ou não, meu caro Hugo. Acontece ser um fato. Posso preveni-lo? Se falar nisso, eles negarão; saberão
que houve uma denúncia. Não gostam de você, Hugo. Julgarão que mandou espioná-los. Tenho ideia de que não confiam inteiramente em
você. Confiarão ainda menos, se lhes falar disso. Você ficará fora da estacada, e Antoine e os outros dirigirão o Departamento, sub rosa.
Gosta da ideia de ser um office boy glorificado com a fina presença italiana de Antoine ao fundo?
Então todo o ódio de Hugo por seu parente Antoine, toda a sua aversão subconsciente por ele, tanto por ele quanto pela semelhança de Hilary
com ele, toda a sua natural suspeita, ciúme e amor ao poder, tudo isso lhe rugiu na cabeça. Ficou literalmente sem palavras, enquanto sentado
em frente de Henri, cheio de fúria insana e raiva. Porém sua mente trabalhava rapidamente. Lembrou-se de muitas coisas que o haviam
espantado, e o haviam iludido, ultimamente, no Departamento de Estado; porém tinha estado tão interessado com os motins em sua própria
casa que pensara nelas apenas vagamente, embora seu instinto tivesse sido desperto. A lembrança dessas coisas intangíveis é que o
convenceram de que Henri estava dizendo a verdade.
— Então — murmurou entre os dentes cerrados — estiveram fazendo seu próprio joguinho, não?
— Contra nós — falou Henri, gentilmente. — Pensa que eles gostam dos Bouchards? Você acha que Antoine nos tem amor? Posso dizer-lhe
isto: quando Armand morrer, Antoine não será tão cômodo aos negócios Bouchard. Sei disso com certeza. Talvez ele suspeite. Como
vingança, e em seu próprio desejo de poder, fará qualquer, coisas contra nós, contra nossos interesses.
Olhou seu cigarro, e disse:
— Não sei por que estou lhe contando isso. Você poderá prejudicar-me se o repetir. Porém, como já disse, sempre fomos amigos, trabalhando
juntos. Pensei que você poderia trabalhar conosco agora.
— Quem você quer dizer com esse “conosco”? — perguntou — Hugo. Respirava com óbvia dificuldade.
Henri o olhou com brandura:
— Suponho que não faz mal que lhe diga. Antoine deve haver suspeitado, e provavelmente já lhe disse: Alex, Jean, e Emile... talvez. E... alguns
outros, não ligados, apenas remotamente à Família.
Hugo virou a cabeça e fitou uma fotografia da amada filha, Alice, que estava na secretária. Henri podia ver-lhe o perfil, incorreto e violento.
— E quanto a Christopher? — falou Hugo, afinal, num resmungo.
Henri abanou a mão:
— Bem, talvez Christopher esteja trabalhando com Antoine. Entretanto, não sei disso. Tenho apenas suspeitas.
Hugo virou-se para ele com violenta rapidez:
— Muito bem — rosnou. — Que quer você?
Henri sentiu-se relaxar, era quase como uma fraqueza de alívio. Olhou para o parente, sentiu-lhe a fúria, o ciúme, a suspeita selvagem e o ódio
por aqueles que o haviam traído, por aqueles que ele agora julgava terem estado a usá-lo. Quando Hugo pensou em Antoine lhe fazendo isso,
sua garganta se elevou a alturas loucas.
Disse Henri, tateando seu caminho com precaução:
— Deixe-me avançar mais um pouco: acabei de ter mais alguma informação. Alguns de nossos... menos patrióticos cidadãos-financistas
acabaram de encontrar-se com o Dr. Schacht na Suíça. Não sabia disto? Bem, entre os arranjos feitos, os Bouchards não estavam incluídos.
Por quê? Ter alguma ideia?
Hugo parecia ainda mais espantado, se possível.
Henri continuou:
— Pensei que não soubesse. Mas Antoine, sim. Creio que ele arranjou isto. Vê, ele não deve mesmo gostar de nós em absoluto. A propósito,
enquanto talvez você, mal orientado, acreditasse que a conquista do mundo por Hitler podia só ter resultados benéficos para a Família, Hitler
não pretendia isso absolutamente. Sabe, acontece que tenho fonte interna de informação. Hitler é, de longe, mais encantado pela América do
Sul com suas classes superiores falangistas católicas, do que pela América, onde tantos de nós são de origem anglo-saxônia. Ele na certa
acredita que não se pode copiar em um anglo-saxão. Depois, Franco é uma de suas focas amestradas, e Franco já havia enviado uma centena
de bem-treinados padres falangistas para a América do Sul para preparar o caminho para a conquista definitiva daquele continente pelas
forças fascistas. Os industriais sul-americanos, que têm completo controle trabalhista, com a assistência da Igreja farão admiráveis serventes
de Hitler, e ele sabe disso. Já existe muita propaganda iniciada ali, de que o destino da América do Sul é uno com o destino da Espanha, sua
"mãe”. Qual será o resultado inevitável se... certas contingências tornarem Hitler dominante na América? Parafraseando o velho ditado: “O
Oeste é o rumo do Império!” eu diria: “O Sul é o rumo do Império.” Com tudo que isso signifique. Que será de nós então?
Hugo mordia o lábio, em silêncio, contemplando fixamente seu parente. Sua fronte tinha uma série de fundas rugas. Era evidente que estava
pensando rapidamente.
— Acho que Antoine sabe disso — falou Henri, maciamente. — Ele já está muito envolvido com a América do Sul, e profundamente interessado
nos cartéis nazistas lá.
Hugo tornou a golpear a secretária, em silêncio fulminante.
— Ele está brincando, mesmo agora, com a força de seu sangue “latino” — acrescentou Henri, com um sorriso divertido.
Esperou que Hugo falasse, porém Hugo manteve silêncio. Henri deu de ombros imperceptivelmente:
— Estou bem informado, Hugo. Sabe, nunca ajo drasticamente. Por exemplo: sabe que há um plano em andamento para apresentar o nome de
certo proprietário de um jornal fascista do Estado de Nova York na próxima convenção republicana? Não gosto do homem. Prefiro outro. Um
que Regan sugeriu. Também sugiro que você concorra à Vice-Presidência. Isto pode ser arranjado.
Hugo estremeceu. Virou-se completamente para Henri. Agora seus olhos cintilavam. Mas ainda disse:
— Quem é o homem?
— Wendell Willkie, de Commonwelth & Southern.
Hugo deu uma súbita e turbulenta gargalhada:
— Willkie! Quem jamais ouviu falar de Willkie, exceto na Street? Quem você vai conseguir que vote nele? E por que Willkie?
— Pela peculiar razão — disse Henri, com um sorriso — que ele é um homem honesto, um bom americano, sadio e inteligente. Investiguei-o o
mais possível: não há nada de sujo em sua carreira. E melhor homem que o astuto Roosevelt, que gira como um catavento com qualquer vento.
Sua política, acredito, será conservadora, realística e honesta. Nada encontrei nele que me leve a crer que ele trairá a América, e tudo indica
que lutará pela América, se eleito. Não há nada de ilusório ou imprevisível nele. Se a América deve sobreviver precisa dele... não só durante os
anos de guerra como mais tarde. Poderei apresentar o seu nome para seu Vice-Presidente.
Falou com poder e autoridade, e a tendência de Hugo para o ridículo diminuiu:
— Quem está por trás de Willkie?
Henri tornou a sorrir:
— Um velho senhor pesado de pecados, talvez. Que deseja salvar a América da ruína que ele antigamente maquinou. Um homem muito, muito
poderoso.
Tossiu, depois prosseguiu em tom mais animado:
— Só para mudar de assunto momentaneamente: a fortuna de Christine não está pesadamente investida na United States Chemical Produts
Company?
Hugo piscou ante tão abrupta mudança:
— Sim.
— Nada de muito importante. Mas ouvi dizer que a American Carbide Company tem intenção de comprar essa companhia. Pretendem fazer
isso para acabar com um competidor. Mas tudo isto é confidencial.
Hugo ficou muito pálido:
— Tem certeza disso? — murmurou, num tom estranho.
— Tenho. Pensei que você poderia estar interessado. Mas nunca foi minha política interferir com outras companhias; já tenho muito que fazer
em casa. Mas posso dizer-lhe isto: a American Carbide me pediu que ajudasse a financiar a venda. Em troca, oferecem-me um bloco de ações
muito atraente.
Agora os dois se fitavam como antagonistas. Hugo respirava barulhentamente. Toda a sua vermelhidão havia desaparecido, substituída por um
colorido malva e apoplético. Seus punhos cerrados caíram abertos na secretária, e ele pareceu encolher. Diante de seus olhos Henri pareceu
crescer, expandir-se, tornar-se mais terrível e implacável.
— Você não faria isso... a nós? — sussurrou roucamente.
— Eu disse que sequer considerei o caso? — perguntou Henri, brandamente. — Embora esteja interessado na American Carbide, e não
apenas por razões financeiras: seu presidente é meu amigo muito chegado.
Subitamente Hugo se pôs de pé. Fitou sobranceiro Henri Sua respiração se tornou mais difícil, os olhos estavam violentos:
— Que quer você?
Henri o estudou por um momento longo e penetrante:
— Quero... várias coisas. Quero que parem os embarques para o Japão. Quero uma redução, ou mesmo a interrupção, dos enormes
embarques de petróleo, aço e alimentos para Franco. Quero supervisão na Espanha, para a distribuição dessas coisas— se forem enviados
embarques menores, por americanos de confiança, que não gostam de Franco. Só para ter certeza que nenhum desses embarques vai para
Hitler. Quero que sua panelinha se alinhe com os liberais do Departamento. Summer Wells é muito popular na América do Sul; quero uma
espécie de política de “boa amizade” a ser iniciada nos países sul-americanos. Por muitas válidas razões, os sul-americanos não gostam de
seus grandes vizinhos do Norte. Devem ser levados a confiar em nós, e isso pode ser feito... se virem que somos sinceros. Devem juntar-se a
nós num bloco continental contra Hitler, aconteça o que acontecer na Europa. Um pouco mais tarde, quero investigação daquelas companhias
americanas que têm arranjos de cartel com Hitler e lhe estão oferecendo equipamento. Desejo que seja dada a mais ampla publicidade à
investigação, nos jornais. Quero uma atitude mais amigável em relação à Rússia...
Hugo aspirou profundamente, e sorriu, embora continuasse esverdeado.
— Nunca ouviu falar do pacto germano-russo, meu ladino Maquiavel?
Henri estalou os dedos:
— Gostaria de profetizar que Hitler muito em breve atacará a Rússia. Nesse ínterim, lance os fundamentos no Departamento. Você tem de se
afastar dos elementos mais perigosos de sua panelinha, e arrastar os incertos com você, de qualquer maneira. Também quero uma atitude
profundamente simpática para com a China.
Hugo caminhou abaixo e acima no espesso tapete da biblioteca:
— E isso é tudo que você quer, hein? Apenas umas coisinhas, umas bagatelas... — Voltou-se para Henri: — E quanto aos cartéis europeus nos
quais você está pessoalmente interessado?
— Eu os estou bloqueando contra Hitler — e Henri acrescentou: — Se você e alguns dos seus camaradas que confiam em você juntarem seu
peso ao dos liberais no Departamento, podemos fazer todas essas coisas.
Levantou-se e encarou Hugo: fora-se todo o seu ar casual. Seu rosto largo e pálido estava carrancudo e mais terrível que nunca, e inexorável.
Seus olhos decorados e fixos mantinham Hugo em súbita e atemorizada fascinação:
— Digo-lhe, Hugo, que estou falando muito sério. Se você não puder... fazer... isto, então eu me movimentarei. E as coisas também começarão
a movimentar-se. Você, pessoalmente, não gostará do que vai acontecer. Sinto muito, mas nisso existem interesses mais altos que o seu
próprio bem-estar, apesar de sempre termos sido amigos. Olhe, sei de muitas e grandes coisas que você nem suspeita que eu sei.
— Está me chantageando? — perguntou Hugo, incrédulo, mas com terror.
— Eu o estou prevenindo — disse Henri, quietamente.
Depois de um momento, Hugo apertou as mãos sobre os olhos:
— Deixe-me pensar — falou, de modo quase inaudível.
Henri esperou. Disse, após um momento:
— O Departamento sempre admirou a Inglaterra. Mas ultimamente a admiração esfriou. Quero-a revivida.
Hugo deixou cair as mãos. Parecia velho e desfigurado:
— Você me pegou! — falou, exausto. — Devia ter vindo a mim antes.
Henri sorriu sombriamente:
— Queria ter certeza...a respeito de certas coisas. E agora você tem de mexer-se depressa, Hugo. Muito depressa mesmo.
Hugo ficou silencioso.
— Mexa-se com cautela — disse Henri. — Não faça nada demasiado súbito. Fale da coisa com aqueles membros de sua panelinha em quem
possa confiar. E... mantenha-me informado. Você deve fazer-me saber suas próprias... opiniões.
— Está me pedindo que espione meus amigos?
Henri riu zombeteiramente:
— Ora, não seja tolo! Quem tem “amigos”? Você mudou de ideia a respeito de muitos dos objetivos de sua panelinha. Todos têm direito a
mudar de ideia. Mas não deixe que sua mudança se torne suspeitamente súbita. Olhe, preciso saber de mais algumas coisas antes que você
abandone os seus amigos íntimos.
— Meu Deus! — murmurou Hugo.
Henri pôs a mão amavelmente no braço trêmulo do outro:
— Você tem muito a ganhar, e nada a perder. Um pouco mais tarde, informarei à American Carbide que não estou interessado em sua
proposta. A propósito, tenho alguns palpites para você, diretos da Street, e um pouco mais tarde eu os discutirei com você. Você ainda não me
disse se gostaria de ser Vice-Presidente. Ou, talvez, algo ainda mais importante possa ser arranjado.
Hugo respirou fundo, e estranguladamente:
— Que faremos agora? Cantar o hino nacional?

Capítulo 34
Peter Bouchard sentava-se com o Sr. Cornell T. Hawkins no quente e confortável salão de jantar do Ritz. O final do manuscrito do Relâmpago
Fatídico estava na mesa branca entre eles. O Sr. Hawkins pensativamente bebericou seu coquetel e contemplou as páginas. Depois ergueu os
olhos e polidamente esquadrinhou o rosto perturbado de Peter com os lábios brancos e azulados. Viu os olhos fundos e rodeados de olheiras,
o pulsar febril das finas narinas. Algo do que ele pensava, compadecido, deve ter-se comunicado a Peter, pois que ele disse com um sorriso de
esguelha:
— Estou satisfeito por ter acabado, Cornell. Tenho a sensação de que não lhe verei a publicação. Estive esta manhã com o meu médico, antes
de vir vê-lo.
Hawkins nada disse: seu silêncio implicava uma indagação preocupada. Porém Peter, com um movimento de cabeça, mudou de assunto.
— Estou trabalhando, agora, em outras coisas que me ocuparão toda a atenção. Este livro... não tem ideia de quando será publicado?
Hawkins sacudiu a cabeça:
— Em cerca de seis semanas, talvez, você terá as galés para quaisquer correções, cancelamentos ou acréscimos. Depois, mais tarde, as
provas. Depois disso, nós usualmente damos algum tempo aos críticos para que leiam o livro. Então, a publicação. Tudo depende de nossa
lista na ocasião. Queremos fazer disto uma grande coisa. Faremos o melhor possível, mas nunca se sabe qual será a reação do público.
Baseamos nossa publicidade nas vendas de pré-publicação para as várias agências distribuidoras. Isto é tudo que posso dizer-lhe, Peter.
— De boa vontade pagaria para esbanjar publicidade — falou Peter, ansioso. Depois corou, pois, os gelados olhos azuis de Hawkins estavam
piscando. — Por favor, não me compreenda mal. Não estou tentando nenhum conchavo. Porém é tão importante para mim, sabe, que o público
leia este livro, e quanto mais público melhor... Pensei até em distribuição gratuita.
Os olhos de Hawkins continuavam a piscar, embora ele não falasse. Girou seu copo entre os dedos. Hawkins tinha um cinismo profundo e
reservado, que nem sempre podia controlar; e, como todos os homens com esse tipo particular de cinismo, tinha bondosa e sensível percepção
dos outros, e uma compaixão traiçoeira que com frequência o fazia inquieto, desconfiado de si mesmo. Olhou fixamente a febril expressão de
Peter e sua fisionomia agonizante, e aquela compaixão fez seu coração contrair-se dolorosamente.
Então Peter, com um olhar que implorava perdão com antecedência, falou, hesitante:
-— Meu primeiro livro, The Terrible Swift Sword, foi misteriosamente silenciado no auge de sua popularidade. Já lhe contei isto. — Deteve-se:
— Eles... poderiam tentar intimidá-lo...
Agora a expressão de Hawkins mudou, tornou-se fria e firme. Disse, com reserva áspera e calma:
— Ninguém jamais me intimidou. — Acrescentou, curiosamente: — O que me contou a respeito de Henri Bouchard é muito interessante. Ele foi
muito franco com você. Naturalmente ele sabe a respeito deste livro?
— Sim. — Peter ficou também inquietamente reservado. — De fato, deu-me material para ele que eu não teria conhecido de outra maneira. É
difícil compreendê-lo. Não confio nele, mesmo agora. Não estaria fazendo tudo isso, e arranjando os programas de rádio, se não estivesse, ele
mesmo, vitalmente preocupado, e se não tivesse interesse próprio. Acredita, bem firmemente agora, que o avanço contínuo da democracia
industrial-capitalista é o clima único em que todos podem ser salvos... e a América pode ser salva. Outrora eu mesmo acreditava nisto. Agora
sei que devemos ir ainda mais longe... devemos ter na América uma espécie de socialismo em que seja eliminada a competição, e cada
homem sirva a seu vizinho mais do que a si próprio.
Hawkins estava muito surpreso. Contemplava Peter com espantada descrença:
— Porém você teria, primeiro, de transformar a natureza humana! E até agora, na história humana, não descobri nenhum sinal dessa
transformação. Parece-me que devemos proclamar todos os avanços sociais baseados nos fatos estabelecidos da personalidade humana.
Não podemos ir de encontro à natureza sabe, mesmo se suas ideias são sublimes e belas. A menos — e o gelado azul de seus olhos estava
triste — que possa usar de forças.
—- Usamos força para fazer coisas ruins. Por que não para fazer coisas boas? — indagou Peter.
Hawkins parou um pouco, e em sua boca houve uma curiosa expressão:
— Parece-me ter ouvido isso antes, em algum lugar... Não foi Hitler quem disse isso?
Peter corou fortemente:
— Receio que não haja compreendido, Cornell.
Porém Hawkins apenas ergueu o copo e bebeu apreciativamente.
“Era a coisa mais abominável, mas realmente existe bem pequena diferença entre bons fanáticos e fanáticos perigosos — ele refletiu. — Eram
igualmente perigosos para o bem-estar humano. Ambos eram inimigos do lento e tortuoso avanço da sociedade humana através da vontade
livre e da liberdade gradual. Eles não deixam margem para escolha...”
— Sempre odiei a coerção, de qualquer tipo — falou Hawkins meditativamente. — Seja essa coerção para o bem ou para o mal. Mesmo a
“boa” coerção é um insulto à dignidade humana. Por isso é que nunca aprovei os métodos de Roosevelt.
O rosto de Peter havia endurecido, de irritação. Contudo, Hawkins tinha muito tato. Mudou de assunto. Não adiantava discutir com um fanático,
mesmo quando esse fanático era um homem virtuoso. Hawkins se tornara ainda mais desconfiado de homens virtuosos do que dos amorais.
Lamentava isso, pois lhe aumentava o cinismo. Estava chegando, rápido, ao ponto em que não afirmaria nada e não acreditaria em nada.
Dava-se conta de que, se tal atitude trazia paz, eventualmente, também trazia inércia, um adormecimento espiritual. Acreditar em alguma coisa
era necessário à vida.
Disse:
— Quando acredita que haverá real atividade na Europa? Até agora, alemães e franceses apenas se olharam mutuamente por cima da Linha
Maginot.
Então um colorido escuro, como de iminente desagregação, espalhou-se sobre as feições de Peter. Suas mãos começaram a mover-se a
esmo e fracamente por entre os talheres. Estava como um homem que não pode livrar-se de um eterno pesadelo.
— Não sei... — murmurou. — Quem sabe? — Subitamente, perdeu o controle e colocou as mãos momentaneamente sobre os olhos,
pressionando-os. — Não posso suportar isto — disse, inaudivelmente. — Há algo de terrível...
Deixou cair as mãos e falou:
— Tenho um amigo na França. Está em Paris, agora. Barão Israel Opperheim. Pude ajudar seu filho a sair da Alemanha. Tentei fazer Israel sair
da França. Em sua carta me dizia estar quase convencido. Mas com Israel nunca se sabe. É um cínico.
Estava desperto o interesse de Hawkins. O que Peter dissera era estimulante. Porém ele não disse mais. Porém Hawkins, com súbita nitidez,
sentiu o misterioso “cinismo” do Barão Opperheim através de sua própria consciência, embora não pudesse pôr isso em palavras. Estava
cheio de tristeza, uma espécie de estranha comunhão com esse desconhecido Opperheim na ameaçada Paris. E teve outra sensação peculiar:
acreditava, implicitamente, que o Barão Opperheim devia ter olhado para Peter da mesma maneira reflexiva dele, Hawkins.
Fora das altas amortalhadas janelas caía uma nevasca de janeiro, o ar estava triste e escuro. Hawkins observou os grandes e pesados flocos
de neve a cair inexoravelmente. Nele havia algo de místico. Sentiu a morte e a implacável tristeza do dia lutuoso através de sua carne e seu
espírito, e a doentia desesperança do homem compreensivo e inteligente era como um gosto de cinzas em sua boca.

Capítulo 35
Celeste vagava inquietamente na estufa da grande casa nova de Placid Heights. Carregava uma cesta, e sob o truculento olhar do jardineiro
cortava rosas do telheiro. Não apreciava particularmente esse tipo de rosas: davam-lhe a sensação vagamente repulsiva que sempre tinha em
sua contemplação do artificial. Esses espinhos eram fracos e flácidos, um simulacro de defesa, como se as flores soubessem instintivamente
não haver nada de que tivessem de defender-se. Eram meticulosamente cuidadas; seus inimigos naturais nunca as atacariam; todo perigo de
um ambiente hostil, que as fortaleceria, lhes daria vigor e vida robusta, tinha sido eliminado. Não era de espantar, pois, que fossem débeis,
demasiado delicadas e decadentes. O ambiente hostil dos campos, bem como a luta pela existência e a competição natural entre todas as
formas vitais, fazia rosas cheias de colorido, de resistência e de saúde, de seus espinhos fazia armas de vigorosa defesa, tornava seus ramos
fortes e fibrosos com a urgente determinação de viver e sobreviver, fazia que exalassem o perfume pesado e intoxicante que essas coisinhas
fracas jamais possuiriam.
Celeste achou a imagem muito interessante. Deteve-se, parou de cortar para olhar vagamente através das vidraças enevoadas a que se
grudavam os pesados flocos de neve. Suponha que os idealistas e os teoristas pudessem fazer o que quisessem, e a vida humana fosse
privada da necessidade de lutar pela existência, e fosse eliminada toda competição vigorosa. Suponha que a humanidade fosse protegida
contra as forças naturais que a ameaçam e contra um ambiente hostil. Suponha, desde que fosse removido esse ambiente hostil, que os fracos
pudessem sobreviver. Não se tornaria a humanidade, como essas rosas de telheiro, flácida, decadente e de espírito fraco, não lhe faltariam cor
e vitalidade, saúde e vigor? Não se tornaria uniforme, sem interesse e variedade, em tal sociedade? E os sobreviventes, fracos, molengas,
amimados e consequentemente inferiores, embora dotados de sua estranha capacidade para procriar prodigamente, finalmente não
ultrapassariam em número e inundariam seus superiores?
Como era artificial, tão perigoso e macio ambiente não sobreviveria sob tensão. E eventualmente a tensão chegaria. Quando chegasse, não
morreriam imediatamente esses homens enfraquecidos, tendo-lhe sido roubadas suas naturais armas de defesa, sua saúde, vigor e
resistência?
Sim, era um pensamento interessante. As negras sobrancelhas de Celeste se juntaram, em sua concentração. Discutiria isto com Peter.
Outrora ele acreditara nisso, como agora ela acreditava. Porém depois ele ficara excitado e lamuriento, e veementemente defendera a causa
da rosa de telheiro. O homem tinha direito a ser protegido de seus inimigos naturais; tinha direito a pedir a seus governantes que seu meio
ambiente fosse fácil, doce e confortável. Tinha direito a insistir que fosse tirada de seu caminho a competição “desleal”. Em outras palavras —
pensou Celeste, desgostosa — era direito do homem ser alimentado a papas, reclinar-se em merecido conforto, e agarrar-se, como uma
lesma gorda e vulnerável, ao tronco da ordem social. Por quê? Simplesmente por ser um homem! E, sendo homem, era inerentemente superior
aos animais inferiores que lutavam naturalmente e saudavelmente com um ambiente hostil, obtendo vigor dessa luta!
Será que Peter agora, tendo alguma noção de realismo, defenderia essa insana premissa por sentir o mortal aumento da fraqueza em si
mesmo, por sentir as dores mais fortes da desintegração? Talvez sempre fosse a rosa mais fraca e moribunda que acusasse as companheiras
mais fortes de a estar prejudicando, impedindo-lhe a entrada, enquanto esticava para a luz as suas hastes não crestadas. E pedia, também,
que esses talos não crestados fossem cortados, que o brilhante e colorido botão fosse desbastado para que à flor carunchosa fosse dada a
oportunidade de desabrochar suas pétalas doentes sem competição, e enchesse o jardim com seu aroma em decomposição.
A despeito de seu amor e piedade pelo marido, Celeste sentiu um forte movimento de discordância e impaciência. Então decidiu não discutir
com Peter: estaria exausto ao voltar de Nova York. Suspirou, afastou-se das rosas, e deixou as flores cortadas na mesa de madeira. Não as
queria. Se ficassem em suas mesas, estariam a lembrar-lhe a questão, e ela tornaria a sentir aquele movimento de paixão, raiva e impaciência.
Sentia-se mudada, e muito mais velha. Lembrou-se de si mesma em jovenzinha, e sua boca se torceu com irritação. Era sempre o ignorante
que esposava a causa dos fracos? Dos inexperientes, os inocentes, os iludidos? Ela não sabia. Certo pensamento a importunava, embora
vago. Estaria Henri a influenciá-la. Sentiu um cálido tremor por todo o seu cansado corpo, e o coração acelerou-se.
Entrou em um dos escuros e silenciosos salões e correu uma cortina. Os canteiros ainda não haviam sido ajardinados: era projeto para a
primavera. O inverno caíra de repente sobre toda nova mansão de pedra cinzenta, cobrira a longa ladeira para o vale — como fizera durante
séculos antes, com pesada e luzente onda de neve. A entrada para carros ainda era só cascalho; seu caminho baixo era fracamente visível em
úmidas faixas escuras e macias curvas recortadas.
As antigas árvores ainda não haviam sido mexidas ou aparadas, e como se curvavam sob a neve pareciam velhos esqueléticos dobrados ao
peso dos anos. Pairava sobre a casa o crepúsculo do inverno precoce, e sobre as colinas gotejantes e as árvores retorcidas, como a
insondável profundeza de águas paradas, em cuja dimensão distância e substância se perdiam e todos os objetos adquiriam as formas
ondulantes e indistintas dos sonhos. O vale ao fim da longa ladeira se perdia numa espécie de cinzenta névoa opaca. Nada se movia nesse
silêncio macio, exceto os flocos de neve caindo. Não havia vento. Isolada como era a casa, encalhada como um desolado casco de navio em
ondas brancas petrificadas e redondas que se estendiam infindavelmente espaço e tempo afora, Celeste tinha a sensação de que a casa
estava realmente encerrada numa vasta bola de vidro cheia de névoa que rolava em todas as superfícies.
Por trás dela, de pé junto às janelas com suas vidraças no formato de diamantes, estendia-se a casa, tão sem forma, feito um sonho, tão vazia
como o mundo exterior. Era uma casa de sombras. Ela ouviu o crepitar do fogo numa lareira distante na grande sala silenciosa, porém isso não
tinha veracidade para ela. Através de todos os seus sentidos percebia a curva irreal da imensa escadaria no vestíbulo atrás da sala, os
corredores superiores, os quartos que se abriam para eles, o salão de jantar e a biblioteca, a sala de almoço e os terraços. Mas não podia
acreditar em sua existência. Tudo era um sonho. Nada existia realmente, exceto sua consciência presa num universo nublado sem forma ou
substância. Em algum lugar, nas profundezas da casa, os criados se moviam sem ruído. Mas Celeste também não acreditava em sua
existência.
Um medo curioso e glacial a invadiu, uma espécie de inércia alerta e de consciência. Achou-se ansiando desesperadamente por um rosto
humano, uma voz humana. Peter ainda estava em Nova York. Ela tinha apenas que mandar preparar um carro para estar na cidade, logo, logo.
Mas o pensamento não lhe trouxe alívio. Pesada letargia a dominava. Não podia forçar-se a acreditar que havia alguma cidade além daquela
névoa sombria lá embaixo.
Finalmente, não pôde sequer acreditar em sua própria existência. A dispersão lá fora também se aplicava a ela. Sentiu sua personalidade
silenciosa e maciamente a desintegrar-se, de modo que todas suas células se moviam e flutuavam. E bem lá no fundo de si mesma havia um
quente núcleo de dor entorpecida.
Ficou estupidamente surpresa ao descobrir que estava chorando. A dor em seu coração ficou mais forte, porém ela não sabia o que causava a
dor. Não ousava analisá-la e examiná-la. Apenas sabia que não podia suportar essa casa, que nunca pudera suportá-la, que a temera desde o
momento em que fora colocada a primeira pedra. Vagamente esperara — e isso desde o princípio — nunca precisar viver ali: quando chegou o
dia de entrar para ali, sentiu-se mal, com uma espécie de horror inexplicável. Sua beleza era, para ela, a beleza fantástica de um pesadelo,
grotesco e irreal. Contudo, era um edifício simples e majestoso, e ela própria escolhera todo o mobiliário, fizera toda a decoração. Porém fizera
tudo isso nas profundezas da fantasia, e sem alegria.
Sem alegria. Sim, toda a sua vida tinha sido sem alegria, até conhecer Henri. E essa alegria se misturara a dor e sofrimento. Suas lágrimas
vinham mais rápidas agora. Porém não chorava por si mesma. Não poderia dizer por que chorava. A neve caía mais depressa e mais
inexoravelmente por trás da vidraça. Não brilhava. Era apenas um pálio de morte. Ela lhe sentia a morte através de si mesma.
Pensou na guerra, guerra “de mentira”, onde terríveis antagonistas se fitavam mutuamente em mudo silêncio, e esperavam. Mesmo a guerra era
irreal para ela. Não lhe podia sentir a iminência, a realidade. Pensou em Peter, também ele uma sombra... Entretanto, a dor saltou em seu
coração como uma coisa assustada.
Por alguns momentos, não teve consciência de que havia estado fitando um pontinho infinitesimal de luz cintilando longe de casa, pontinho que
ondulava de um lado a outro, e ia aumentando de brilho. Quando estava totalmente cônscia dele, mal podia acreditar no que via. Quem poderia
vir ali naquele desolado dia hibernal? Não esperava ninguém. Os parentes e amigos sempre telefonavam primeiro, antes de visitá-la.
Observava a luz chegando mais perto. Agora, lá na ladeira, podia ver o formato de um carro preto, saltando nos sulcos, resvalando, oscilando,
os faróis perfurando o nevoeiro, e rodeado por uma aura tênue através da neve. Apertou o rosto de encontro à vidraça fria. Seria Henri? Mas
Henri estava em Washington. Ainda esta manhã lhe telefonara.
As rodas do carro encontraram a entrada para carros e se esforçavam pesadamente, no cascalho, para subir. Celeste podia ouvir o trabalho do
motor, seu ronco abafado. Estava se esforçando ao máximo nos sulcos gelados e no cascalho escorregadio. Depois, com um arfar áspero,
triunfante, deu a volta diante da casa e parou.
Era uma grande limusine preta, como um carro funerário. Agora Celeste o reconheceu. Pertencia a seu irmão Emile. Mas por que viria Emile —
perfeitamente indiferente a ela, e por quem ela nada sentia a não ser aborrecimento — visitá-la? O motorista saía do carro. Abria a porta. A alta
figura de uma mulher de preto estava descendo com dificuldade, pois o carro inclinava-se para um lado nos montes de neve. Era Agnes,
esposa de Emile.
Agnes Bouchard! Agnes, que ela sempre temera e evitara, a dura e cínica Agnes, de olhos cruéis e divertidos. Por que viria visitar a jovem
cunhada, a quem abertamente desdenhava e achava excessivamente aborrecida?
Celeste acendeu as luzes, e o grande e calmo salão se encheu de calor e agradável quietude. Até o fogo tomou coragem, e suas labaredas
saltaram. A neve e a morte ficaram perdidas atrás das janelas subitamente escuras e protetoras. Agora toda a casa se tornou real e tangível,
sólida e forte, não mais um confuso e enevoado delineamento de paredes. Mesmo gostando pouco de Agnes, Celeste sentiu prazer com essa
aproximação de outro ser humano. Ouviu a voz de Agnes no calmo vestíbulo, voz enérgica e cortante. Essa voz não mais a fazia tremer.
Adiantou-se para a passagem em arco, com um sorriso de boas-vindas.
Agnes apareceu. Embora não fosse Bouchard por nascimento, mas apenas por casamento, possuía todos os atributos dos Bouchards “latinos”.
Era de boa altura, de compacta e excelente figura, muito elegante e esbelta. Estava agora com cerca de quarenta e nove anos, mas o brilho e a
avidez de sua aparência faziam-na parecer muito mais jovem. Movia-se com graça e leveza. O rosto branco e fino, com o longo nariz patrício,
tinha um olhar alerta e cruel, cínico e sagaz, e não havia gentileza na linha fina dos lábios, violentamente pintados. Os olhos negros, frios e
duros, tinham um brilho maldoso. Agnes Bouchard não tinha fé na natureza humana, nem em nenhuma de suas “virtudes”. Não acreditava que
ela possuísse qualquer altruísmo, bondade, justiça ou piedade, ou mesmo decente honestidade, ou que tivesse mais inteligência que um
macaco. Achava lamentável, mas também divertido, que os únicos homens bons que havia encontrado tinham sido loucos, e impotentes. “Os
filhos da escuridão são mais sábios em sua geração do que os filhos da luz” — costumava citar, com convicção, e nenhuma tristeza. Não
encontrou dificuldade em adaptar-se a um mundo tão escuro e ameaçador, e constantemente se divertia a esse respeito, porque era esperta e
de considerável intelecto e muitos conhecimentos. Sob muitos aspectos se parecia com sua parenta mais jovem pelo casamento, Rosemarie
Bouchard; só que ela era criteriosa e possuía muita integridade inata e retidão, bem como aberta e desdenhosa coragem, e nela não havia
sadismo como em Rosemarie. Tinha pelo marido uma espécie de afeiçoado menosprezo e indiferença, e um frio desdém pelo filho, Roberto,
íntimo e escravo de Antoine Bouchard.
Trouxe à sala vivacidade, frieza e movimento. Não tirou o macio casaco de peles negro; ele resvalou, mostrando o elegante vestido preto e
estola vermelha. Havia um boné à moda russa, da mesma pele do casaco, sobre o perfeito penteado das suas madeixas prateadas. Estava
tirando as luvas, mas era evidente que não permaneceria por muito tempo.
— Agnes — disse Celeste, estendendo-lhe a mão, um real prazer a brilhar em seu rosto. — Estou tão contente que tenha vindo! Mas que dia
terrível!
Os olhos penetrantes de Agnes percorreram sua jovem cunhada: neles havia um brilho ameaçador. A linha escarlate de seus lábios se curvou:
— Dentro de cinco minutos você já não estará tão satisfeita com a minha vinda... — disse, com desdenhosa brevidade. Aproximou-se do fogo,
esfregou as mãos, contemplou a sala, comentando: — Bonito lugar. Provavelmente não tornarei a vê-lo.
Celeste estava espantada. Toda a sua vida sentira-se atemorizada ao som de vozes cruéis e implacáveis, e o velho tremor, a antiga tensão lhe
puseram os nervos na defensiva:
— Por que, Agnes? Que há de errado?
Agnes continuava a esfregar as mãos, o que produzia um som seco em toda a sala. Ela começara a sorrir, seu perfil agressivo delineado
contra o fogo. Então tornou a virar a cabeça e fitou Celeste com brutal curiosidade, como se a jovem mulher fosse um objeto que lhe
despertasse desdém e espanto. O temor inexplicável aumentou em Celeste. Retraiu-se involuntariamente. Agnes afastou-se do fogo e se
sentou numa cadeira. Celeste também se sentou e esperou, apertando as mãos.
— Celeste — começou Agnes, uma voz fria e curiosa — não sabe de alguma coisa? De nada mesmo? Você é uma idiota completa? Sempre
pensei que fosse, sabe disso. Pensei isso desde o primeiro momento em que a vi. Você estava com cerca de cinco anos, então, não estava,
ou um pouco menos? Tinha trancinhas negras e grandes olhos azuis-escuros, e uma estúpida boquinha vermelha. Estava sempre com medo.
As pessoas sempre falavam de você como de uma tenra criaturinha que devia ser protegida. As mulheres nunca se sentiram assim a seu
respeito, mesmo quando você era uma pirralhinha. Eram sempre os homens.
Celeste estava silenciosa. O rosto branco estava imóvel e tenso. Mas os olhos se fixavam em Agnes, à espera. Agnes sacudiu a cabeça, com
sorriso cínico:
— Sim, você sempre foi boa nessa atitude. Pensavam ser defesa. Mas sei que era invulnerabilidade. Você sempre tomou excepcionais
cuidados com você mesma. Ainda faz isso.
Deteve-se, e comicamente ergueu a mão e começou a contar pelos dedos:
— Primeiro, foi seu pai, Jules, que arrumou as vidas dos filhos por sua causa. “A pequena Celeste tem de ser protegida.” Ele nunca pensou que
os rapazes realmente deviam ser protegidos contra você. Para começo de conversa, eles não eram filhos e irmãos muito amorosos; e a
distribuição que Jules fez de seus bens, para “proteger” você, não contribuiu para aumentar o amor e a bondade entre Armand, Emile e
Christopher. Provavelmente eles disputariam, de qualquer modo, e conspirariam uns contra os outros, mas não com a ferocidade que
mostraram por sua causa. Jules saberia disso? Às vezes fico cogitando... jamais gostou dos filhos. Era um homem muito sutil.
Os pálidos lábios de Celeste se separaram e ela disse, quietamente:
— Isso é muito interessante. Mas histórias de família me aborrecem. Não devo ser censurada pelo testamento de meu pai. Também devo
confessar que não vejo em que isso lhe interessa, Agnes, ou em que é da sua conta. Emile tem-se saído muito bem, pois não? Ou você quer
mais? Você sempre foi muito avarenta.
Agnes ainda mantinha as mãos no ar, na atitude de contar, mas, sobre elas, olhou para Celeste com olhos apertados e um sorriso maldoso:
— Então, você tem garras! — comentou. — Eu sempre soube disso. Ninguém mais parece haver percebido.
Continuou, com inexorável animação:
— Agora, vejamos: Jules foi o primeiro homem a cair sob seu “encanto”. Depois foi seu irmão, Christopher. Ele não nasceu um santo, mas a
sua existência fez dele um demônio. Por você ele lutou com seu pai. Eles lutaram por você desde o momento em que você nasceu. Você sabe,
claro, que Christopher esteve apaixonado por você durante muitos anos, Celeste? Tão apaixonado que nunca se importou muito com qualquer
outra mulher. A história não é muito bonita, não é? Um tanto horrorosa? Sempre tive muita pena de Edith, a esposa de Christopher.
Um olhar de terror, repúdio e nojo relampejou na fisionomia de Celeste. Ela se levantou, agarrando-se às costas de sua cadeira.
— Você é uma mulher suja, Agnes — falou, e sua voz não passava de um rouco sussurro. As órbitas de seus olhos se estreitaram com seu mal-
estar e repugnância, de modo que estavam cheios de uma flama azul.
Agnes balançou a cabeça, com sorridente ferocidade:
— As pessoas honestas são sempre sujas, minha cara. Ninguém gosta delas. São rejeitadas. Dizem coisas devastadoras e impróprias. Fui
honesta agora. Pela salvação de sua alma. Pela salvação de coisas muito mais importantes que você, miserável coisinha desventurada. Não a
estou censurando pela paixão de seu irmão por você. Você não podia evitar isso, suponho. Você era adorável, suave e inocente... uma
combinação que vira a cabeça dos homens. Mas porque Christopher a amava, e ainda ama, acho, você arruinou a vida dele. Ele é quase louco,
você bem sabe. Ele mataria por você, destruiria tudo por você, mesmo a própria vida. Sob certas circunstâncias presentes, isso é muito
afortunado. Mas voltarei a isto mais tarde. O que estou dizendo agora é que a sua própria existência, Celeste, fez dele um demônio, ao invés de
apenas o mau Bouchard comum que poderia ter sido. Odiou os irmãos; todos eles se odiaram mutuamente. Mas você tornou pior o ódio.
Celeste continuou de pé junto de sua cadeira, agarrando-se com mãos úmidas. Seu peito, sob o agasalho azul, se erguia e baixava com
apaixonada agitação. A testa branca, o pálido lábio superior brilhavam de umidade.
Agnes continuou com dura serenidade:
— Agora, vejamos: Henri veio a seguir, você se lembra. — Parou e esperou.
Celeste não se moveu, mas pareceu minguar e encolher, tornar-se menor. Entretanto, fitava Agnes firmemente e em petrificado silêncio. Agnes
estava sorrindo novamente, com renovada maldade:
— O que você fez ao Henri! Oh, claro que você não podia evitar isso! Você nunca pôde. Não foi por sua culpa que Henri voltou à América, para
tentar reaver o que lhe fora roubado. Teria feito isso mesmo se você não existisse. Admito isto. Porém ele veio e viu, e você conquistou.
Naturalmente, você era jovem e inexperiente, e tinha o direito de mudar de opinião. Para começar, Henri era um homem mau; todos os
Bouchards o são. É parte de seu encanto irresistível. No entanto, Henri era o pior de todos eles. Não obstante, não teria sido tal monstro se não
fosse por você, se nunca a tivesse visto. Pois parece, desgraçadamente, que você tem a capacidade de fazer surgir o que houver de pior nas
criaturas. Sei que fez isso comigo... — e ela riu brevemente. — Pensei que Henri havia escapado quando você finalmente o jogou fora e casou
com Peter. Pensei que ele então se tornasse apenas um Bouchard naturalmente mau, um Bouchard normal. Você se foi. Mas depois voltou.
Parou, pois Celeste se movera, só um pouquinho, porém mesmo esse ligeiro movimento era como se um raio a tivesse tocado.
— Voltarei a Henri mais tarde — disse Agnes, com cruel suavidade. — Agora vamos ao pobre Peter. De certa forma, ele parece haver
escapado à natureza pestilencial dos Bouchards. Foi um “bom” Bouchard. Não tem havido muitos. Com minha própria experiência, não me
lembro de nenhum outro. Sim, ele foi um Bouchard “bom”.
“Não foi culpa sua se Peter foi intoxicado por gás na guerra... gás Bouchard, diga-se de passagem. Como não foi culpa sua se Peter voltou
para aqui. Você não sabia absolutamente nada a respeito de Peter até sua chegada. Ele estava doente, mas ainda vivo. E ainda tinha
coragem, força e pureza. Casou com você, e foram viajar. Não estou afirmando que ele poderia ter sido mais feliz, ou mais saudável, com
qualquer outra mulher. Pelo menos, até que voltaram. Porém ele está morrendo agora. E morrendo em infelicidade e desesperança. Talvez isso
nada tenha a ver com você. Ouvi dizer que você tem sido a mais terna das esposas, e ele parece que lhe é devotado. Dou-lhe este crédito.
Contudo, por vezes fico pensando, você nunca lhe deu paz, ou felicidade verdadeira, pois não está em você o dar felicidade a ninguém: só
paixão, loucura, desespero e ruína.
Sem remorso, fitou Celeste. Pois o controle de Celeste se havia rompido súbita e violentamente. Sua fisionomia, os olhos, expressavam terror
supremo. Ficara de pé por trás de sua cadeira; erguera as mãos, as palmas para fora, em direção a Agnes, como para desviar algum ataque
brutal e mortal. Gritou, incoerentemente:
— Vá embora! Não ouvirei nem mais uma palavra! Saia de minha casa, agora, imediatamente!
Mas Agnes estava imperturbável. Olhou Celeste com atenção aguda e significativa:
— Sei... Estou percebendo uma porção de coisas... Você não está tão ofendida pelo que eu disse a respeito de Peter. Está é com medo do
que direi a seguir, não é mesmo?
Celeste ficou silenciosa. Mas tremia toda. Deixou cair as mãos. Depois murmurou:
— Meu Deus! Vá embora! — E recuou, em direção à porta.
— Volte, Celeste. — Falou Agnes, quietamente. Levantou-se. Havia-se apagado seu sorriso. Suas feições estavam endurecidas. — Volte.
Sente-se. Não saí com esse tempo bestial só para fazer-lhe um sermãozinho. Por mim, você pode dormir com uma dúzia de homens. Pode
enroscar-se numa dúzia de camas, e eu apenas darei de ombros. Isso é só da sua conta. Suponho que você, também, sofra algum enfado.
Celeste parou em sua retirada, mas não voltou à cadeira. As duas mulheres se encararam na sala silenciosa. Celeste já não parecia tão cheia
de terror e apreensão. Estava rígida como gelo, e igualmente sem expressão. Seus olhos estavam vazios, como se o choque por que passara
lhe tivesse arrancado a alma.
Por um momento Agnes experimentou uma espécie de piedade, e profunda curiosidade.
— Celeste — falou, em tom mudado — lamento por você. Era muito jovem e inexperiente quando casou com Peter. A culpa foi de Christopher:
queria guardá-la para ele mesmo. Talvez você também tivesse agido mal. Talvez não seja completamente culpa sua. “Vítima das
circunstâncias”, talvez. Quando voltou, você era já uma mulher, não uma criança. Sempre amou Henri, não? Nunca o esqueceu. Percebo isso
agora. Pensei que estivesse apenas aborrecida de seu marido doente, e procurando uma última aventura. Henri deve ter-lhe parecido muito
romântico, pensei. Além disso, ele não a esquecera. Nenhum dos homens que a amaram jamais puderam. Pensei, erroneamente, com certeza,
que você sabia disso e estava procurando tirar vantagem do caso. Enganei-me. E lamento, por você, Celeste.
Celeste tentou falar. Depois, com um gesto infinitamente patético e trágico, cobriu o rosto com as mãos. Agnes a observava. Seu próprio rosto
escureceu, e os duros olhos negros ficaram subitamente gentis e tristes, como nunca o estiveram antes.
— Pobre criança! — disse, compassivamente. — É tudo tão terrível!...
Depois de um momento riu um pouco: havia uma nota trêmula e amarga nesse riso:
— Sinto muito por você, querida! E, acredite ou não, também sinto por Henri. Inacreditável, não? Sentir por um homem como Henri?
Celeste deixou cair as mãos. O rosto estava molhado de lágrimas. Seus lábios tremiam:
— Annette sabe? — perguntou, doloridamente. — E Peter sabe?
Se Agnes ainda tinha dúvidas sobre as verdadeiras emoções de Celeste, essas abnegadas palavras as destruíram. Hesitou. Depois foi até
Celeste e pôs-lhe os braços em volta, com uma ternura alheia à sua natureza:
— Venha, querida, sente-se. Ainda tenho muito que dizer-lhe.
Levou Celeste de volta à sua cadeira, e com seu próprio lenço perfumado enxugou as lágrimas da jovem mulher.
— Não — disse por fim, pensativamente — não creio que Annette e Peter saibam. Mas praticamente todos os demais sabem, acho.
Celeste estremeceu. Inclinou-se para diante e agarrou com as mãos os braços cruzados, encolhendo-se numa atitude de total colapso e fria
angústia. A cabeça lhe descaiu para a frente. Os brilhantes cabelos negros lhe cobriram o rosto.
— Não posso crer que Henri fosse ingênuo a ponto de esperar não ser descoberto — falou Agnes. — Penso que existe outra explicação. Acho
que, em seu egotismo, acreditou que ninguém ousaria falar a respeito dele, ou murmurar a respeito dele abertamente, temendo vingança. Ele
sabe que todos o temem. Provavelmente sabe que andam comentando. Isso não lhe importa. Contanto que não tentem nada hostil. Sabe lidar
com inimigos. E circunstâncias. Mas que tentem injuriá-lo; ou a você, por causa disso, e ele os esmagará, é o que acredito. O caso é: estão
tentando. E podem ser bem-sucedidos. O que será muito triste. — Deteve-se. — Não estou pensando em você, Celeste, ou mesmo em Henri,
quando digo que será triste. Estou pensando em coisas muito mais importantes.
Celeste se mexeu vagarosamente, nas profundezas de sua depressão e desespero. Ergueu a cabeça. O cabelo caiu em anéis desordenados
em volta das faces úmidas. O medo e o pânico estavam vividos em seus olhos; seu rosto parecia sombrio.
Agnes sentou-se perto dela e inclinou-se para diante, falando com calma intensidade:
— Celeste, querida, você não sabe mesmo de nada? — perguntou com surpresa piedade. — Henri não lhe falou nada a respeito do que está
tentando fazer? Ou você é apenas sua favorita esposa de harém, mantida em purdah, por trás de telas, véus e muros? Será que ele a julga uma
mentecapta, que não compreende?
A expressão perturbada de Celeste mudou:
— Ele me contou só um pouquinho — murmurou.
Agnes recostou-se na cadeira e contemplou a jovem mulher por um momento. Sua própria expressão era sombria:
— Entendo... — murmurou. — Sim, ele deve ter-lhe dito. Ele é muito esperto. Sabia que a perdeu outrora porque lhe era repulsivo ... suas
ideias, suas intrigas e seus planos eram repulsivos. Talvez vocês tenham estado juntos uma ou duas vezes, levados por atração irresistível,
quando você voltou da Europa. Contudo, ele sabia que isso não era o bastante para guardar você. Foi isso, não foi? Assim, teve de dizer-lhe.
Não tenho dúvidas de que enfeitou um pouco a coisa, de modo a adquirir uma espécie de nobreza a seus olhos, até mesmo abnegação. Deus
nos ajude! Imagine isso, de Henri! Seria muito divertido se não fosse tão danadamente sinistro. Francamente, você pode imaginar Henri
fazendo algo de heroico e nobre devido a patriotismo, mudança de coração, virtude ou grandeza? — Ela riu duramente.
Mas Celeste nada disse. Apenas aguardava.
— Entretanto — continuou Agnes, mudando novamente para uma intensidade sombria — o que está fazendo agora é a única oportunidade de
sobrevivência para a América... para todos nós. Sabe disso, não sabe? E sabe quem são os inimigos dele, e o que estão tentando fazer?
— Sim — sussurrou Celeste — sei. Ele me disse.
— São inimigos terríveis — continuou Agnes. — Existe apenas fraca possibilidade de que ele vença. Ele está determinado a vencer. Arrastou
com ele alguns dos Bouchards, porque estão aterrorizados, porque ele os intimidou, subornou-os, ameaçou-os, e os coagiu. Não importa. Sabe
— acrescentou, pensativamente — se eu fosse mais nova iria perseguir Henri. Ele tem alguma coisa! É um homem e tanto!
Novamente mudou a expressão de Celeste, tornou-se intensa de paixão e tragédia. Fixou os olhos em Agnes e esperou, respiração suspensa.
— Não me espanta que o ame — disse Agnes, com gentileza. — Ele tem tudo. Não existem muitos como ele agora, na América... E tem uma
terrível luta pela frente. Emile está nessa com ele. Apesar de Emile ser o meu marido bem-amado, não passa de um rato preto inchado. Ao
ameaçá-lo, Henri fez um bom trabalho. Christopher está nisso com ele, e Alex, e Francis. Mas existe outra facção, e bem pestilencial. Sabe
disso?
Celeste acenou que sim.
— Antoine, aquele amigo brilhante e cheio de mesuras. E outros. Outros, não apenas uns poucos Bouchards, porém outros igualmente
poderosos em política, no campo jornalístico, na indústria. Os Bouchards menos importantes estão se revolvendo incertamente ao longo das
bordas de ambas as facções. Henri está tentando pô-los na linha. Antoine está tentando também, com muito mais finesse. E por trás de ambos
está uma América amorfa e confusa. As coisas estão pretas, Celeste querida. Você sabe disso. E quanto ao futuro? A América rolará atrás do
vencedor. Queremos que Henri vença. Você e eu. E muitos outros, também. Viveremos... com Henri. Nós, e a América, morreremos com
Antoine.
Levantou-se, como se a pressão de seus pensamentos fosse demasiada para ela. Começou a caminhar de um lado para o outro no salão,
essa mulher elegante e segura, fechando e abrindo as mãos:
— Nunca fui patriota. Nunca fui uma “americana”. Quantos americanos existem na América? Terrivelmente, terrivelmente poucos! Quantos
amam a América? Tenho medo de responder. Só sei que a América é inerte, estúpida, louca, fátua e inanimada. Devemos agradecer isso a
tipos como Antoine. Uma nação de mentecaptos de barriga cheia lhes é muito necessária. E uma nação de lunáticos. Você conhece a respeito
das organizações que ele está apoiando. Cheias de mulheres insanas, de odientos, gananciosos cruéis, estúpidos e criminosos? Pregamos a
formação, aqui na América, de um robusto partido nazista. Ódio é o seu deus, e Jaeckle é seu profeta. Conseguiram o suporte de sacerdotes,
assassinos, ladrões, mentirosos e loucos. Este é o panorama na América, esta a perspectiva que Antoine está favorecendo. Você sabe por
quê.
Respirou profundamente:
— Engraçado! — murmurou. — Mas acredito, agora, que sou uma americana! Devido ao perigo que corre a América. Por causa dos loucos.
— Eu sei — sussurrou Celeste.
— O America Only Committee — continuou Agnes. — Metade deles é de loucos sinceros e imbecis, que talvez ainda amem a América e não a
querem ver envolvida no que chamam guerras “estrangeiras”. Como se jamais houvesse alguma guerra “estrangeira”! Poder-se-ia pensar que a
América é um planeta rolando por aí serenamente em sua própria órbita, ao invés de parte de um mundo! É como se um homem tivesse câncer
numa remota parte de seu corpo, e sua mente lhe perguntasse o que fazer com ele. Era só na barriga, pois não? Que tinha isso a ver com seus
braços, ou seus olhos, ou o coração, ou os pulmões? Por algum milagre, esse homem diz a si mesmo, que ele pode ignorar o câncer em sua
barriga. Mas lá chega o dia em que ele todo morrerá. Ele esquece isso.
“E, então, pairando pelas bordas do America Only Committee estão as organizações lunáticas, as mulheres orgíacas que gostariam de
despedaçar criancinhas com suas mãos nuas, que gostariam de torturar outras mulheres, que gostariam de dormir com os próprios filhos, que
gostariam de revolver-se no sangue dos assassinados. Por que estremece, Celeste? Não conhece nada sobre a raça humana? Eu sim,
infelizmente.
“E ainda há os padres assassinos e avarentos, que gostariam de torturar os desamparados, que gostariam de roubar-lhes seus bens, que
gostariam de escravizar o mundo, que estão inchados de ódio e de loucura. E depois há os criminosos, que querem violentar, atormentar e
matar, e veem a oportunidade de fazer essas coisas sem punição. Sim, existe muita loucura no mundo. E muita dessa loucura está atrás de
Antoine.
Então parou. Estava de pé junto de Celeste. A neve silvava nas janelas. O vento de inverno se erguia no longo arco de uma concha.
Subitamente Agnes gritou:
— Como tudo isso é apavorante! Como se pode aguentar isso? A Noite de Valpúrgia de fúria e de morte está sobre nós. E esperando, em
seus calmos salões, estão os ávidos do poder. Esperando em Washington, esperando em suas fábricas imensas. Esperando pela ruína da
América.
Pressionou os dedos finos e brancos de encontro às faces:
— Loucura! Loucura! O mundo inteiro está louco! Agora existem bem poucos homens sãos. Só alguns como Henri. Que importa se está
pensando apenas em si mesmo? Ele pode salvar-nos, a todos nós!
Voltou-se, rápida, para Celeste:
—•Henri pensa que entraremos nesta guerra?
— Ele não sabe — suspirou Celeste. — Há alguns meses atrás ele estava certo de que não. Mas agora, não. Está tentando deixar-nos de fora.
Está certo que isso significaria o fim da América como a conhecemos, se formos arrastados a ela. Agora, ele quase acredita que será o fim da
América se não entrarmos nela.
— Ele ainda odeia Roosevelt? — perguntou Agnes, com um sorriso breve.
— Não sei. Outrora o Presidente o irritava terrivelmente. Mas agora ele é indiferente. Diz que esta coisa é muito maior do que a política.
Entretanto, pensa que o Partido Republicano tem oportunidade de vencer a eleição se puder achar um homem bom e espetacular que atraia
todos os elementos. De uma coisa ele está certo, no entanto: Roosevelt concorrerá a um terceiro mandato, contra todos os precedentes,
preconceitos e tradições, e talvez o candidato republicano seja derrotado.
Porém Agnes parecia não ter ouvido isso. Voltou a sentar-se perto da cunhada:
— E agora, Celeste, tudo isso nos traz de volta a você.
— A mim?
— Sim. Você e Henri. Os inimigos de Henri não se deterão diante de coisa alguma para destruí-lo. Eles sabem, agora, o que ele está tentando
fazer. Não sei que outras coisas terão em mente, mas estão prontos para expor você. Farão isso também. Pensa que o povo americano não
estará interessado? Bem, pois então se lembre que homens mais importantes que Henri foram destruídos por um pecadillo. A vasta massa do
povo americano é muito infantil, facilmente influenciável. Todos se julgam muito virtuosos. Os inimigos de Henri podem fazer tal escândalo
nacional sobre isso, esse pequeno caso, que qualquer coisa que ele tente fazer daí em diante será enlameado. Acha isso infantil? Garanto-lhe
que não é. Cada inimigo sacerdote neste país fará um cavalo de batalha da “infidelidade” de Henri, até que o destino da América se tornará um
casinho sem a menor importância, em comparação. Claro, os mais inteligentes apenas rirão. Porém a massa pueril, e adúltera, de americanos
não rirá. Em sua estupidez argumentarão que um homem que dorme com a esposa de outro homem deve ser um completo canalha em quem
não se deve confiar, e capaz dos crimes mais odiosos e traiçoeiros e, se deve desconfiar de tudo que ele faz. Muitos heróis fracassaram,
muitos grandes líderes do povo foram desacreditados devido a suas agradáveis pequenas excentricidades, e marcados como infames. Esse é
o jeito da populaça. E os inimigos de Henri sabem disso.
Celeste estava mortalmente branca:
— Não acredito! O povo americano não pode ser tão estúpido e ignorante! — gritou.
Agnes abanou a cabeça gravemente:
— Garanto-lhe que pode. Como tantos de nossa classe, você acredita que sua mente, sua razão, sua inteligência são partilhadas em
quantidades iguais por todas as outras pessoas. Nisso reside nosso erro fatal. O pequeno operário, a modesta balconista, o dono de loja, o
pequeno artesão, cujas vidas estão em perigo nestes tempos, ficarão excitados, indignados e furiosos porque o homem que está tentando
salvá-los da morte e da escravidão dorme ocasionalmente com a esposa de outro homem. Acha incrível? Só lhe peço que considere a História.
Não apenas a mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita: na América, o próprio César deve ser um eunuco. Esta é a nossa
herança puritana.
Ela hesitou:
— E, claro, esta questão também diz respeito a Armand. Esqueceu que Annette é filha dele? Que acontecerá se contarem a ela, e a moça se
divorciar de Henri? Não trema tanto, minha cara. Tem de pensar em tudo isso. Se Annette se divorciar de Henri, então Armand irá esmagá-lo.
Armand é um idiota, um doente, mas também é maligno, e ama a filha. Lembre-se: Henri é apenas presidente da Bouchard devido ao poder de
Armand. Se for tirado da jogada, então estará acabado o trabalho que está tentando realizar.
Parou e aguardou. Mas Celeste nada disse.
— Você só tem de esperar um pouco — instou Agnes, pondo a mão no ombro de Celeste. — Só até que Armand morra, talvez. Na pior das
hipóteses, só até que Henri tenha resolvido certos assuntos. É uma coisa pequena, realmente, comparada com toda a América, não acha?
— Que posso fazer? — disse Celeste, desanimada. — Henri não me ouvirá. Dirá que isso é ridículo, que devo deixá-lo cuidar de tudo, e me
deixará sem palavras.
— Sim, eu sei, querida. Por isso é que não deve contar-lhe o que eu lhe disse. É um maldito egotista. Francamente, não sei como você
manobrará isso. Diga-lhe qualquer outra coisa. Diga-lhe que Peter precisa de você. Diga-lhe que não quer voltar a vê-lo enquanto Peter for vivo.
A coisa agora é com você, Celeste.
Celeste era toda resignação, toda renúncia. Suspirou, e tornou a suspirar. Murmurou:
— Se ele se for, pode nunca voltar. Disse-me isto uma vez. Nunca voltará. Sei disso. Outrora eu o mandei embora... Mais tarde, quando ele
compreender, pode não querer voltar...
— Isso é o que você tem de arriscar... — disse Agnes. — Sei como se sente, querida. Mas tudo isso não é nada, comparado às coisas
maiores.
Ela se levantou e começou a calçar as luvas. Olhou piedosamente para Celeste, tão desamparada, tão sem vida. Então curvou-se rapidamente
e beijou a testa da jovem mulher, dizendo:
— Oh! Minha querida, minha querida! — E se foi.
Celeste ouviu o roncar do carro quando se afastava. Ouvia com intensidade, como para obstruir seus próprios pensamentos. Então, quando
tudo estava novamente silencioso, exceto pelo vento e estalar do fogo, a onda de desolação, pesar e agonia que a percorreu dificilmente podia
ser suportada. No extremo de sua dor nem podia mover-se. Apenas podia fitar o fogo, até que as órbitas de seus olhos eram um clarão de luz
refletida.
Passou-se um bom tempo até que pudesse levantar-se e arrastar-se para o seu quarto. Acendeu as luzes. Ouviu o macio chamado do gongo
para o jantar. Mas sentou-se à escrivaninha e puxou para si uma folha de papel. Começou a escrever, e cada palavra era um punhal em seu
coração.
Principiou sem cumprimentos:
“Cheguei à conclusão que não podemos voltar a encontrar-nos sob as presentes circunstâncias. Por favor, acredite-me: desta vez minha
decisão é definitiva. Não tente procurar-me, por favor. Será inútil. Talvez algum dia seja capaz de compreender.”
Selou a carta, endereçou-a a Henri, no escritório.
Livro Três - A Terra Permanente
“Geração vai, geração vem; mas a terra permanece para sempre.”
ECLESIASTES, 1:4
Capítulo 36
Annette Bouchard sofria da tristeza comum aos gentis e despretensiosos: era sempre posta de lado e esquecida, embora fosse amada por
muitos. Pois mesmo o cruel e o malicioso nada tinham de mau para dizer-lhe, e se fossem culpados de observações depreciativas sobre a sua
paciência e doçura, eles as faziam com remorso e piedade.
Sua mente era altruística. Não que não tivesse consciência do sofrimento e da maldade, e de todas as falsidades inerentes à espécie humana.
Mas tinha a firme consciência do fluxo da eternidade. E era infinitamente compassiva e compreensiva.
O último dia de fevereiro caiu sobre Robin’s Nest como uma diáfana cortina cinzenta de fumaça, onde tudo ficou indistinto. Mas havia calor e
paz na grande e velha casa que jamais conhecera o nascimento de uma criança. “Uma casa tão grande e forte — ela pensava — com tantos
quartos lá em cima que poderiam ser transformados em berçários!” Poderia existir coisa como uma “casa estéril”? Crianças viveram ali, sim.
Henri e Edith brincaram nesses salões tão quietos, correram acima e abaixo na escadaria em espiral, viram árvores de Natal em um canto do
enorme salão, viram a chuva a. cair em gotas prateadas pelas vidraças oitavadas das janelas, haviam dormido nos quartos calmos, haviam
lutado, brigado, rido e chorado dentro dessas paredes. Mas apenas duas crianças, afinal de contas. Annette quisera adotar crianças, mas
Henri se enfurecera a essa ideia, e lhe lançara um olhar tão terrível que ela jamais voltara a tocar no assunto.
Deu a Annette melancólica felicidade o saber que vivia na casa em que Henri passara sua primeira infância. Gostava de pensar nele como
criança. Tentou muitas vezes. Mas seus esforços não lhe evocavam imagem nenhuma. Quando tentou imaginá-lo como garoto, seus
pensamentos inquietos voltaram ao retrato do bisavô dele, Ernest Barbour que estava pendurado no maior dos salões. Então uma curiosa
compulsão lhe vinha: em qualquer parte da casa em que estivesse, tinha de ir àquela sala e olhar para o retrato. Muitas vezes esse impulso lhe
vinha depois de meia-noite, e tinha de descer a escadaria, acender uma lâmpada, e contemplar o quadro por muito tempo.
Lembrava-se de que, ao entrar nessa casa pela primeira vez, como noiva, o retrato parecera olhá-la com fria indiferença, curiosidade, e mesmo
uma remota inimizade. Esses pálidos olhos de basilisco a fitaram com estranha fixidez, e por uma ou duas vezes lhe pareceu que eram
desdenhosos. Mais tarde, ficaram meramente indiferentes. Quando ela julgava que seu coração se estava rompendo (o que era frequente),
imaginava haver um vivido alerta naqueles olhos, como se a fisionomia pintada demonstrasse pensamentos e interesse. Contudo, nunca
imaginara piedade neles, ou bondade. Fúria, sim, raiva glacial, maldoso desdém, e por vezes aversão e repugnância — mas nunca piedade.
Às vezes pareciam compreendê-la, e escarnecer o que compreendiam.
Nunca, no começo, acreditara no que outros afirmavam: que Henri era a cópia do bisavô, que os olhos eram idênticos, bem como as largas
faces descoloridas, o topete de cabelos claros. Por vezes admitia haver alguma semelhança física — mas a expressão era diferente.
Sem embargo, neste último ano, medrosamente fora obrigada a reconhecer que Henri estava agora precisamente como Ernest Barbour fora.
Havia o mesmo sulco profundo entre os olhos, as mesmas pregas pesadas em volta da boca brutal, a mesma força abrupta no nariz curto, o
mesmo olhar de inexorável determinação. Por vezes ela estava certa de que o retrato virava a cabeça com gesto idêntico ao de Henri, e muitas
vezes lhe parecia que franzia os lábios como Henri fazia exatamente antes de abri-los para falar em sua voz monótona. Ernest Barbour estaria
mais ou menos com a idade de Henri agora quando o retrato foi pintado, e havia a mesma sombra de cinza prematuro no leve cabelo claro.
Por alguma razão misteriosa, essa semelhança crescente a amedrontava. Com frequência, tinha o confuso pensamento de que não era mais
Henri Bouchard que morava nesta casa com ela, mas Ernest Barbour. Então vagava pelas salas quietas e vazias, sentindo-se uma estranha
que não tinha direito a viver ali. Erguia-se a cortina e May Sessions, primeira e última esposa de Ernest, aparecia, em seu espesso vestido de
veludo carmesim, azafamada, os cachos ruivos presos no alto da cabeça, uma joia no pescoço muito branco, o bonito rosto arredondado
prestes a abrir-se num gracioso sorriso — que era uma lenda na família. (Havia no quarto de Henri um pequeno retrato de sua bisavó, e tinha tal
expressão de bondade, tão bem-humorada, fascinante, que Annette sentira a nostalgia de não haver conhecido essa grande dama.) Ernest se
havia divorciado de May, que o amara com força e paixão, e casara com a prima dela, Amy Drumhill, viúva do irmão dele, Martin. Havia
também um retrato de Amy em um dos quartos de dormir de Robin’s Nest, e ela fora adorável — pensava Annette. Amy tivera um rostinho doce
e gentil, sonhador e celestial, olhos grandes e suaves, e cachinhos castanhos. O retrato fora pintado quando ela era mocinha, e os esbeltos
ombros brancos apareciam inteiramente abaixo do acetinado marfim de sua garganta. Porém ela não tinha realidade para Annette, que
gostava de pensar que, após a morte de Amy, Ernest tornara a casar com May, e que ambos morreram na velha mansão Sessions —
inspiração e ruína daquele homem terrível. A velha casa Sessions tinha sido um entulho por muito tempo, e há muito largada em ignominiosa
ruína, e May nunca vivera em Robin’s Nest onde sua filha, Gertrude, sofrera tal agonia. Entretanto, era May que Annette sempre esperava ver,
entrando através do sombrio arco, a deslizar para cima ou para baixo da grande escadaria. Se Ernest Barbour era o malfazejo e insone
frequentador a assombrar a casa, May era seu espírito beneficente e bondoso.
Annette suspirou. Pensou, pesarosamente, que Henri devia realmente ter casado com alguém como May Sessions, sempre graciosa e bonita,
e forte e vivaz. Uma mulher que lhe tivesse dado filhos. Não era de espantar, pois, que o retrato a olhasse com desprezo e inimizade, e que os
pálidos olhos fixos fossem frequentemente ameaçadores.
Henri teria ficado espantado se conhecesse os pensamentos de Annette. Pois em seu idolatrado amor por ele, muitas vezes ponderara sobre a
oportunidade de conceder-lhe um divórcio que o capacitasse a voltar a casar e ter os filhos que ela nunca teria. (Frequentemente ela podia
ouvir essas crianças-fantasmas a correr pelos corredores, rindo nas salas distantes, arremessando-se escadas abaixo, pedindo, acariciando,
chorando.) Era então que sua dor se tornava insuportável, e ela podia lançar-se em acessos de choro que a punham doente por dias e dias.
Porém após um ano ou dois de sua vida de casada, soube que não poderia dar o divórcio a Henri. Não enquanto Armand fosse vivo. Annette
sabia muito que ninguém mais sabia ou ousava falar.
Certa vez ouvira a cruel Rosemarie Bouchard dizer à irmã, Phyllis:
“Essa horrível criaturinha retorcida nunca se divorciará do pobre Henri. Fincou-lhe as garras muito apropriadamente. Ela sabe que ele não pode
se divorciar dela por causa daquele velho inchado, o Armand. De modo que se regozija toda convencida, sabendo que o tem bem seguro.”
Annette ficou terrivelmente doente durante seis meses depois de ouvir isso, tão doente que quase morreu. Ninguém soube por que; seus
médicos estavam espantados. Só o pensamento de que, se morresse, Henri poderia ficar arruinado foi que a trouxe à vida. Pouco depois de
poder sair da cama, visitou um advogado obscuro e fez um testamento deixando para Henri tudo que possuía ou viria a possuir, e incluíra uma
carta selada para o pai, na qual lhe implorava que sua parte dos bens, e mesmo mais, fosse para seu marido, que Armand se lembrasse dele e
lhe fizesse justiça. Mas ainda temia que, por sua morte, Henri pudesse ser destruído.
Somente alguns meses atrás é que Armand, que ficara doente outra vez, choramingara a verdade para ela, falando do que ele considerara seu
leito de morte. Ela sentira tamanha alegria, tal alívio, que esqueceu os receios pelo pai. Mais tarde, a dúvida e o medo lhe voltaram. Se Henri se
divorciasse dela, ou o caprichoso e doente Armand mudasse de ideia, a ameaça de ruína permaneceria. Armand esquecera o que lhe dissera
em seu meio delírio, mas Annette não esqueceu. Agora eram três a saber: Armand, Henri, e sua esposa.
Só ultimamente é que ocorreu a Annette uma coisa estranha e terrível: esperava, com triste impaciência, que seu amado pai morresse, e com
ele morresse a ameaça a Henri. Com horror, percebeu que estava buscando sinais de dissolução no rosto doente de Armand, e tremeu
intimamente quando a esperança da imediata morte dele lhe invadiu os pensamentos. Tão curto é o tempo... — diria para si mesma,
desesperançadamente. Henri já não era jovem: se tivesse de casar com uma mulher de verdade, e ter filhos, teria de fazê-lo o mais cedo
possível. E Armand protelava a coisa, com sua agulha, sua Lista, suas queixas e sua miséria física.
Seu horror ante seus pensamentos, sua impaciência, sofrimento e tristeza estavam devorando suas últimas forças e a tornavam mais
transparente, os enormes olhos azuis mais assombrados e exaustos. Sentia que todo o mal estava nela. Mas não podia controlar o desejo
apaixonado de que o pai morresse logo.
Embora os Bouchards se apiedassem de sua descendente, julgando-a uma idiota inválida e perturbada, Annette nunca estivera inconsciente
das frequentes faltas conjugais de Henri. Acompanhara o desenrolar dos seus “casos” amorosos com sofrimento e interesse. “Oh! Com essa
não!” — dizia a si mesma, com terror, quando um caso ou outro parecia prolongar-se indevidamente. Não aquela mulher, com aqueles astutos
olhinhos verdes e boca avarenta, não aquela mulher com seu cruel e doce sorriso e suas mãos esvoaçantes, não aquela mulher que a ninguém
amava a não ser a si mesma. E, bom Deus! Nunca Rosemarie Bouchard, aquele esbelto demônio parisiense! Mesmo se Armand morresse,
nunca daria a Henri um divórcio que lhe permitisse casar com uma daquelas. Só lhe trariam desdita e ódio.
A cada vez que ele começava outro “caso”, ela dava um jeito de conhecer a mulher, para estudá-la. E em todos esses anos nunca encontrara
uma por quem renunciaria a Henri. Não até ultimamente.
Sempre, desde o início, soubera que Henri amara Celeste, que nunca o esquecera. Mas quando Celeste voltou, Annette só sentira angústia.
Porque Henri não podia desposar Celeste. Celeste era esposa de Peter, e nunca se divorciaria dele. Nunca ela ousou confessar a si mesma,
mesmo no recesso mais escuro da noite, o que já sabia. O pensamento era por demais doloroso. Henri não casaria com qualquer outra mulher,
isso Annette compreendia agora. Contudo, ele não podia casar com Celeste. E Annette, com a culpa da esperança de que Armand logo
morresse, não podia estender a mesma esperança para incluir o pobre Peter, a quem amava ternamente.
Tivesse a ligação trazido alegria a Henri, Annette teria extraído um melancólico contentamento desse fato. Mas não estava trazendo alegria a
ele. Frequentemente ela o estudava a distância, e não podia notar nele nenhum novo frescor, nem nova vitalidade ou prazer de viver. Ao invés,
nesses últimos dois meses, ele se tornara mais austero, envelhecido, selvagem, mais friamente violento. E não era por causa do trabalho
incessante que realizava; Annette compreendeu isso. Era algo mais.
Nas últimas semanas ela se dera conta de que ele já não se encontrava com Celeste. Estava confusa e espantada, e amedrontada com isso.
Não podia acreditar que estivesse cansado de Celeste, ou ela dele. Então, por que isso?
Por vezes pensava, com triste surpresa e humildade:
“Talvez estejam perturbados por minha causa... Talvez pensem que é ‘errado’...” Sentiu um estranho e inexplicável conforto, e uma súbita dor no
coração de tanta ternura — e não podia compreender tudo isso, embora fosse diplomada na arte da autoanálise. Houve nela um súbito alívio,
um suavizar e dissolver tristezas que lhe trouxe lágrimas aos olhos.
Pois às vezes, no passado, durante as brutais e indiferentes faltas de Henri ao dever conjugal, ela se arrancava de seu transe de sereno
autocontrole com a confusa sensação de despertar de um sono drogado. Então experimentava a dor agônica, o desespero e o repúdio da
resignação. Seu próprio desejo humano de amor, paz e segurança não podia ser controlado nessas ocasiões. Perguntava-se com frenético
sofrimento e rebeldia, por que deveria ter sido alijada para o desamor e a infelicidade. Que fizera? Não era uma mulher, que apenas desejava
amar e servir, e ter um pouco de paz? Por que toda a abnegação deveria ser dela? Henri não poderia ter-lhe dedicado um pouco de afeição,
um pouco de consideração, um pouco de ternura?
Fora muito pior quando Celeste voltou. Ela não confessou nem a si mesma o quão freneticamente esperava que Henri e Celeste não se
reunissem. Isso porque sempre amara e admirara Celeste, e nela confiara. “Celeste — ela pensava infantilmente, mas com fé — tinha
demasiada integridade, muita honra, bondade e senso de dever, para trair a sobrinha e o marido.” Se Celeste se tornasse infiel, então
desapareceria a última defesa de Annette contra um mundo monstruoso.
Mas Celeste e Henri se juntaram. Annette adivinhava a luta que devia ter atormentado a mulher mais velha. Sua piedade era profunda e intensa.
Entretanto, seu coração era injuriado e despedaçado por uma dor confusa. Se ao menos não fosse Celeste! Annette não podia explicar, até
para si mesma, por que sentia tão selvagem desespero. Observava Celeste, notava como evitava fitar a sobrinha nos olhos, como aumentavam
dia a dia sua palidez, silêncio e frieza, como cada palavra era distraída e incoerente ou triste. Nesses momentos o desespero e a raiva de
Annette se suavizavam e ela apenas sentia compaixão. Uma ou duas vezes tivera de conter-se para não gritar:
“Não importa, querida! Não sofra tanto! Estou realmente satisfeita. ”
Mas alguma virtude na alma da pobre criaturinha se escoava e sangrava como um órgão separado e ferido, e seu último fraco apego à vida,
sua última fé na espécie humana se perdiam.
E então soube que Henri e Celeste já não se encontravam. Após a primeira confusão, ficou arrebatada de alegria. Celeste não podia continuar
a traí-la. Renovaram-se sua fé e sua esperança, sua coragem e sua tranquilidade.
Hoje estava esperando por Henri. O quarto cálido e calmo estava fortificado com as luzes das lâmpadas e do fogo contra a melancolia e o
acinzentado da penumbra, contra sua ameaça fria e semelhante à morte. Annette usava um vestido de macia lã amarela e seus cabelos finos e
brilhantes se enroscavam em anéis em volta da cabeça. Toda a sua aparência era gentil, e os olhos azuis brilhavam. Ouviu a aproximação de
Henri, e a velha pulsação dolorida começou em sua garganta. Virou-se para ele, sorridente, e estendeu-lhe a mão:
— Alô, querido! — disse, suavemente, buscando-lhe a face com íntima ansiedade.
Ele a olhou em silêncio, depois falou, brevemente:
— Boa-noite. — Falou com esforço, quando acrescentou: — Dia miserável, não?
Sentou-se pesadamente, perto do fogo, cotovelo no braço da poltrona, queixo na mão. Contemplava o fogo. Ele a havia esquecido. Ela viu sua
melancolia e abstração, e ficou impotente. Se ao menos ele bebesse, como fazem outros homens! Se pudesse haver o alegre tilintar nos copos
altos, o pungente odor de uísque, o silvo alegre da soda! Mas Henri Bouchard não tinha consolo, nem fuga da realidade. Nada desejava. Seria
isso uma fraqueza, ou uma força? Annette não sabia. Apenas sabia que o álcool lhe repugnava, sabor e cheiro o enojavam. Certa vez dissera
desejar que fosse vendido em cápsulas, de modo que não se precisasse conhecer-lhe o gosto, mas se sentisse o efeito. Mas realmente não
falara a sério. Não desejava nenhum efeito.
Timidamente Annette sentou-se junto dele, um brilhante sorriso fixo no rostinho. Bateu as mãos e disse, em tom ligeiro:
— Gostaria de uma cápsula, Henri?
— Quê? — perguntou, virando a cabeça lentamente para fitá-la. — Uma cápsula?...
Ela se sentiu uma boba sob aquele olhar longo e inexorável que a condenava por sua futilidade. Estremeceu, ainda sorrindo:
— Lembra-se, querido. Você muitas vezes falou de cápsulas. Para álcool. Está um dia tão feio, e anda tanta gripe por aí... Pensei que talvez
gostasse de uma bebida.
Ela esperava uma recusa abrupta e aborrecida. Para sua surpresa, ele começou a sorrir. Deixou cair a mão. Olhou-a amistosamente:
— Não é má ideia! Muito bem. Mas não uísque e soda: é uma bebida muito comprida. Algo concentrado... e forte. Não sei o quê.
Ela estava tonta de excitação e felicidade. Havia muito tempo que ele não condescendia em falar-lhe casualmente, ou em dar-se conta de que
ela existia. Ele agora a fitava com uma expressão curiosamente pensativa, e havia uma excitação nos olhos descorados e inexoráveis que a
miravam atentamente. Ela pulou imediatamente e tocou a campainha. Ao criado encomendou dois Manhattans.
— Mas muito fortes, por favor — murmurou. Voltou para Henri e tornou a sentar-se. Seu sorriso era amplo e forçado.
Ela sabia muito bem que tinha inteligência e eloquência, mas com Henri sempre fora muda e absurda. Queria dizer, como sempre, coisas
brilhantes e sutis, que lhe inspirassem admiração. Mas as palavras que lhe acudiam eram sempre tolas e sem vitalidade. Ela o amava
terrivelmente, e o temia ainda mais. Apenas podia contemplá-lo com os lustrosos e brilhantes olhos tão azuis, e desejar desesperadamente
poder aproximar-se dele, que ele lhe dissesse tudo que o atormentava nesses dias terríveis. Estava certa de que ele ficaria espantado com a
extensão de seus conhecimentos.
Embora Henri não fosse um homem sutil, era astuto e penetrante. Sabia muito o que sua esposa estava pensando. Annette estava
completamente enganada: ele não a considerava uma tola. Sob muitos aspectos, achava que ela era superior a Celeste; sua mente era
translúcida, mais madura, mais civilizada. Com frequência a lamentava, e se zangava consigo mesmo por sua própria brutalidade, pois
ninguém, ele sabia, devia ferir essa pobre criaturinha linda sem sofrer algum dano em si mesmo. Não era dado à compaixão, mas sentira mais
piedade por Annette do que jamais sentira por outro ser humano.
Embora seu olhar ainda estivesse curiosamente pensativo e alerta, enquanto a fitava, permitiu-se relaxar um pouco. Quando foram trazidos os
coquetéis, ele lhes deu uma olhadela de desgosto, levou o copo aos lábios e bebeu apressadamente. Fez uma careta, limpou a boca com o
lenço. Annette bebericou o dela vagarosamente, esperando e orando para que a rigidez em seu corpo diminuísse, e que ela fosse capaz de
falar com ele em tom casual. Toda a sua vida de casada sonhara com uma hora em que ela e Henri conversassem facilmente, pudessem
chegar a amizade e intimidade, pudessem rir juntos à luz da lareira. Seria esta a hora? Nunca antes estivera com ele quando estava tão
pensativo, tão disposto. O coquetel criou nela uma radiante e ardente excitação, e o tenso tremor de seus músculos relaxou. Poderia ser sua
imaginação, mas Henri parecia menos duro agora, e suas mãos largas e fortes pousavam relaxadas nos braços da poltrona. Seu coração se
tornou uma enorme e trêmula massa informe no peito, e houve de repente lágrimas em seus olhos.
— Estava bom? — perguntou, num tom meio tremido. — Quero dizer: a cápsula?
— Sim — disse ele, amigavelmente. — Nada mau. Exceto pelo sabor. Por que não inventam bebidas que não repugnem ao paladar? Isso seria
uma dádiva de Deus. Sinto-me aquecido agora. Estive gelado o dia todo.
“Que posso dizer que o interesse?” — pensou Annette, desesperadamente. Mas nada achou para dizer. Ouviu-se falando:
— Ouvi de papai há uma hora. Está doente outra vez. E terrivelmente assustado. Ganhou vários quilos, o que é muito mau.
Por que estaria ele interessado em Armand? Mas, para sua surpresa, ele estava interessado:
— Ele come demais — comentou. — E quanto à Lista? Está se descuidando?
— Não sei. Acho que ele está apenas infeliz — disse Annette, baixando a voz tristemente.
— Por que estaria infeliz, Annette? Ele jamais gostou do negócio. Tem sido um alívio para ele não estar mais na ativa. Está solitário? Nunca se
importou muito com companhia.
Annette falou, sem premeditação, e com sofrimento:
— Ele está doente da alma, Henri. Acho que ele nem sabe por quê.
Henri ficou silencioso. Mas seus olhos permaneceram nos dela, pensativamente. Disse, depois de um longo momento:
— Sim. Sim, percebo isso. É tarde demais para ele. Sempre foi tarde demais.
Estava menos pálido. Havia mesmo certa vermelhidão em seus olhos enquanto o álcool ia fazendo efeito em seu estômago não acostumado a
ele. Falou:
— Por vezes penso que é sempre tarde demais para todos nós. Talvez eu seja um sentimental. Mas você sabe o que dizem os chineses: “Cada
homem vive uma vida de quieto desespero” — Sorriu um pouco.
O álcool fez Annette dizer impulsivamente, inclinando-se para ele:
— Henri, você vive uma vida assim? Ninguém jamais soube nada a seu respeito. Vive? Vive, Henri?
Ele não respondeu por um momento, ficando apenas a fitá-la. Depois disse, com estranha quietude:
— Sim, vivo.
Ela apertou as mãos juntas, e gritou:
— Deixe-me ajudá-lo, Henri! Sempre desejei fazê-lo, você sabe!
Ele ergueu a mão e cobriu a meio a boca. Por cima da mão olhou-a com estranha intensidade:
— Por quê? — perguntou.
As lágrimas engrossaram em suas pestanas douradas. Ela falou, com triste humildade, baixando a cabeça:
— Porque eu o amo.
Houve um silêncio súbito e espesso na sala. Henri viu essa linda cabeça inclinada, o tremor do peito imaturo, as mãos brancas e tensas nos
joelhos infantis. Viu-lhe a desolação, tristeza e desesperança. Franziu o sobrolho, e seus lábios se juntaram numa linha dura, como se ele
estivesse muito envergonhado e embaraçado, e intoleravelmente comovido. Suspirou. Ela nunca o ouvira suspirar, e o som lhe trespassou o
coração. Olhou-o e exclamou, a voz trêmula:
— Oh! Henri, Henri!
E agora ele lhe via o rosto comovente, sua dor, fadiga e solidão.
— Não! — ele disse, rápida e abruptamente, e afastou-se.
Pôs-se de pé. Começou a caminhar de um lado para outro na sala, as mãos juntas e apertadas atrás, nas costas. Seus passos se aceleraram.
Parecia tê-la esquecido. Ela o observava através de um véu de lágrimas.
Então ele principiou a falar, em voz baixa:
— Você não devia ter casado comigo, bem sabe. Foi há muito tempo, não adianta falar nisso agora. Tinha minhas razões. Pensei que pudesse
achar tempo de ser bom para você. Não encontrei o tempo ou, talvez, a inclinação. Você sabe o que eu era. Nunca houve tempo em minha vida
para nada a não ser...
Deteve-se. Ela se levantou involuntariamente, e ficou de pé junto à sua cadeira, agarrando-se ao seu encosto. Gritou:
— Sim, sei de tudo a esse respeito, meu querido! Mas sempre o amei tão terrivelmente! Não se censure. Você me fez muito feliz, verdade
mesmo, só de estar casada com você.
Ele voltou a cabeça sobre o ombro e a fitou incredulamente. Estava de pé, agora, embaixo do retrato do bisavô: eram dois rostos idênticos que
a olhavam com descrença total. Uma onda de confusão a envolveu. Seu coração palpitava loucamente.
Ele estava sorrindo novamente: voltou à sua cadeira e sentou-se.
— Sente-se, minha cara. Não fique tão tensa. É muito romântica, sabe. Não posso imaginar que só o estar casada comigo lhe tenha dado
muito...
— Oh, deu sim! — ela sussurrou.
Sentou-se na beirada da cadeira. Os olhos estavam cheios de luz. Sua humildade, sua sinceridade, o tornaram muito embaraçado. Ergueu a
mão e mordeu o dedo indicador, evitando olhá-la de frente.
O embaraço e a inquietação dele aumentaram. E novamente sentiu repulsa por ela. Era como se ela lhe houvesse tocado a carne com dedos
amorosos — e todo o seu corpo tremia em repúdio. Lamentava essa involuntária sensação, mas não podia evitá-la. Se ao menos ela não o
olhasse assim, se não fosse tão intensa, se ao menos pudesse ser casual! Porém ela nunca seria como ele queria, de modo que, durante
todos esses anos, ele a repelira por medo de sua intimidade.
O álcool havia amolecido suas reações normais, no entanto; assim, após um momento, pôde controlar o embaraço e a piedade. Disse, sem
olhá-la:
— Você me perguntou, Annette, se poderia ajudar-me. Acho que pode.
— Sim? — ela gritou. — Por favor, diga-me como.
Não podia acreditar ter ouvido direito. Inclinou-se para ele. Suas mãozinhas esvoaçaram como se fossem tocá-lo. Novamente, os músculos
dele se retesaram, e ele se envergonhou disso.
— Sabe o que está acontecendo hoje... na América? — perguntou, quietamente, furtando-se à avidez e intensidade dela. — Você vive tão
reclusa, minha querida! Muitas vezes tenho cogitado se está cônscia do que está acontecendo e do que tudo isso significa para nós.
Ela corou. Mas fez sua voz tão quieta e impessoal quanto a dele:
— Não sou inteiramente idiota, Henri. Leio e ouço. Sim, eu sei. E me sinto tremendamente impotente e apavorada com tudo isso. —
Acrescentou: — Frequento as reuniões públicas da American Freedom Association. — Hesitou: — Por favor, não se zangue, mas sou membro.
E um dos maiores contribuintes.
— Não! — ele exclamou, surpreso. Mas não havia aborrecimento em seu olhar, só interesse. — Não sabia disso. Não estou zangado, querida.
Na verdade, estou satisfeito. Sabe — hesitou só um pouquinho — eu sou o maior contribuinte. Também financio Gilbert Small, o locutor de
rádio.
Inundou-a uma onda de delícia e excitação. Isso era intimidade além de todas as suas esperanças. Estava metida numa conspiração com ele.
Mal podia controlar-se. Começou a rir incoerentemente.
— Sabe algo a respeito do que estou tentando fazer — ele perguntou, quando ela se acalmou. Inclinou-se para ela sobre o braço de sua
poltrona, e estava muito grave. — Não sabe nada, nada?
— Não. Pode contar-me alguma coisa?
Ele ficou silencioso. Olhou-a penetrantemente. Depois falou breve e rapidamente. Ela ouvia, mal respirando, a luz brotando em seus olhos, o
rostinho muito pálido e atento, esquecendo tudo, menos o que estava ouvindo. Só uma vez murmurou, como se não pudesse controlar-se:
— Eu não sabia!
Ele estalou a mão pesadamente no braço da poltrona e deu de ombros:
— Bem, agora sabe — falou, categoricamente.
Depois calou-se, contemplando o fogo. Ela o observava.
— E agora — ele continuou, depois de um longo momento — eis como poderá ajudar-me. Isso se está disposta a fazê-lo, sem perguntas. As
coisas estão pretas: encaminham-se para uma crise. Eu lhe dei apenas um esboço do que se está passando. Agora, preciso de sua ajuda.
— Sim? — ela sussurrou. — Qualquer coisa, Henri. Tem só de pedir-me.
— Pode não ser fácil... Você julgará — ele preveniu. Calou-se um momento, e agora só olhava para o fogo. — Gosta muito de seu irmão,
Antoine?
— Gosto muito dele — disse ela, com simplicidade.
— Eu temia isso. Naturalmente você não sabe que ele é o cabeça da facção que se opõe a mim?
Ela estava emudecida de espanto. Ante o silêncio dela, ele virou a grande cabeça e a olhou com tensa severidade:
— Sim — disse, lentamente — é isso mesmo. Por isso é que ainda desejo saber se quer mesmo ajudar-me. E, ao ajudar-me, ajudar a destruir
seu irmão e os que o acompanham. Por isso é que provavelmente fecharei minha boca e nada mais direi.
Ela não podia falar. Fora-se toda a sua alegria, deixando atrás apenas terror e angústia. Porém ela o olhou resolutamente.
— Seu pai sabe — falou ele, astutamente. — Sabe tudo a esse respeito.
Viu como a moça lutava para respirar. Ela ergueu o queixinho. Ela era muito clara e os brilhantes anéis de cabelos eram como um topete
lustroso, curiosamente forte, mas também curiosamente comovedor e vulnerável.
— Diga-me o que fazer — ela falou, em voz baixa e firme. Ele viu o pulsar de sua pequena garganta branca, tão macia, e sentiu um novo
respeito por ela.
— Eu lhe direi então — ele falou lentamente, observando-a. — Amanhã, visite Antoine e Mary. Só uma visitinha casual, sabe como é. Você
imaginou como iriam passando, e queria ver seu pai. Depois, expresse pena por que Christopher e eu estejamos brigados. Fale
impulsivamente, como se estivesse triste e confusa. Conte a Antoine, muito casualmente, e aflita, que Chris e eu tivemos uma disputa violenta.
Naturalmente, você não sabe por quê. Mas isso a preocupa. Tudo a preocupa.
Parou um pouco. Annette o olhava, em silêncio. A luz do fogo tremeluzia na cabecinha erguida, com seus cachos indomáveis.
Então ela disse:
— Christopher está...?
— Sim — ele explicou, impaciente. — Mas você havia prometido não fazer perguntas. Só lhe posso dizer que Antoine suspeita de algo, e ele
não deve suspeitar. Se o fizer, então não saberemos nada mais do que ele está fazendo à socapa, por Christopher. Mas olhe, estou perdendo
tempo.
“Depois, você deve confessar que tenho andado lhe pedindo dinheiro emprestado. Muito dinheiro. Que eu pareço muito preocupado. Que fui a
Nova York para ver o velho Regan, e voltei muito deprimido. Você está muito preocupada comigo. Você está cogitando o que poderá ser tudo
isso. Você gostaria que eu me abrisse com você. — Ele se deteve e sorriu rigidamente: — Tudo isso lhe parece muito idiota, não?
— Não — ela retorquiu com firmeza.
— Bem, então você deduziu que o velho Regan não quis receber-me ou algo assim. Você dirá que reuniu tudo isso. Depois, acrescentará que
eu briguei com Emile, Nick e Francis a respeito de alguma coisa. Muito violentamente. Você está espantada. Não sabe o porquê de tudo isso.
Gostaria de saber. Quer ajudar-me?
— Sim — disse ela, simplesmente.
— E há outra coisa — falou ele, com intensidade. — Antes de falar assim com Antoine, que ficará muito interessado e simpático, a propósito,
você deve ir ver seu pai. Deve dizer-lhe isto: que ele deve fingir que eu tentei tornar cinco milhões de dólares emprestados dele, com minhas
ações como garantia, E que ele recusou. Aí então leve-o para baixo, para Antoine. Faça-o falar nisso de mau humor e dizer a Antoine que
recusou. Seu pai compreenderá. Na presença de Antoine, você lhe pedirá que me empreste esse dinheiro. Ele recusará, zangado. E se
queixará de mim, que eu pareço estar perdendo a “garra”, e que ele está começando a ter dúvidas a meu respeito. Ele dirá coisas
desagradáveis. Não há dúvida de que ele as pensará no calor do momento — e Henri sorriu severamente, divertido.
Mas Annette não sorriu. Havia uma estranha brancura em seus lábios, que estavam rígidos.
Depois de muito tempo, ela perguntou com firmeza:
— Tudo isto finalmente ferirá Antoine? Muito?
— Sim — ele disse cruelmente, observando-a. — Realmente muito. Isto o arruinará.
Ela não falou. Apenas o olhou, angustiada.
— Se você o fizer, isso encorajará Antoine a ser um pouco menos cauteloso. Ele se moverá mais rápida e abertamente. É o que queremos. Ele
está escondendo muitas coisas. O tempo é curto. Não podemos esperar. Ele tem de expor-se.
Ela estava silenciosa. Estranhamente, ele se odiou pelo que disse a seguir:
— Olhe, querida, não preciso dizer-lhe o que o meu êxito significa para a América, para o mundo, para todos nós. Você pode imaginar isso.
Reduzindo tudo a uma simples declaração, significa isto: ou eu falho, ou falha seu irmão. Agora você compreende. Terá de decidir entre nós.
Ela sentiu a enorme implicação das coisas que ele deixara por dizer. Pareceu-lhe que a grande sala acolhedora estava cheia de significado,
terrivelmente importante. E em meio a essa vasta complicação, essa severidade e fúria universais, ela tornou a ouvir as palavras dele: “Ou eu
falho, ou falha seu irmão.”
Sentiu tão grande dor que momentaneamente, e com abstração, cogitou se poderia suportar isso e viver. Ela estava muito rígida. Viu o rosto de
Antoine diante de si. Uma vida inteira passou diante do seu olho interno. Lembrou-se de si mesma e de Antoine quando crianças. Ele fora tão
alegre, brilhante e cheio de modos engraçados... Ela fora muito negligenciada, e só Armand e o irmão dela a tinham cuidado. Armand já muito
velho: não podia entender muito. Mas Antoine compreendera. Muitas vezes ele se arrancara de seus casos deliciosos para distraí-la e animá-la,
e fazê-la rir. Ela via as alegres coisinhas que ele lhe trazia para fazê-la sorrir, em suas muitas doenças: um macaco num bastão, que gritava
agudamente e corria acima e abaixo com um meneio da cauda; um cão mecânico que ladrava e se virava da maneira mais absurda; uma
caixinha de música que tilintava, e se abria para mostrar pequeninos dançarinos; um livrinho que não tinha folhas dentro, mas explodia quando
aberto; um homenzinho mecânico que se empertigava quando se virava uma chave, e apresentava armas. Quando ela estivera demasiado
cansada para ler, ele se sentara ao seu lado durante horas, pacientemente mergulhando em romances clássicos, pacientemente ajudando-a
com seu francês, e contando-lhe anedotas impróprias, mas faiscantes naquele idioma. Ela nunca o viu, mesmo agora, sem sorrir a tais
lembranças. Ele sempre a fizera rir. Ele nunca se compadecera dela: sempre fingira que ela estava “tapeando”. Quando ela se obrigava a sair
da cama e sentar-se em sua poltrona, Antoine não lhe trazia flores, mas apenas as mais tolas das revistas cômicas cheias dos cartoons mais
impróprios. Quando ela ia a bailes e festinhas, ele sempre estava lá para acompanhá-la, trazia-lhe buquês para o vestido, dizia-lhe que era a
garota mais bonita da festa. Comprou-lhe discos com as suas árias favoritas, e as cantava com os grandes cantores, numa voz notável pela
profundidade e sentimento. Podia vê-lo agora vividamente, seu sorriso faiscante, seus gestos extravagantes, seus olhos que dançavam; podia
ouvir-lhe a voz, ressonante de real beleza e sentimento.
Fechou os olhos, num espasmo. Sabia que Antoine era um homem perigoso. Mas sempre lhe perdoara isso. Porque o tinha amado, e ele a
tinha amado. Ela “fingira” que o mal não podia realmente existir num jovem tão risonho e vivaz, que o que ele fazia, fazia-o por diabrura e alegria
do espírito. Agora ela o via.
Abriu os olhos vagarosamente para ver Henri a observá-la atentamente, com um sorriso triste e cínico:
— Não importa. Vejo que é pedir-lhe demais. Mas quero que esqueça o que lhe disse. Você me deve isso.
Estirou-se pesadamente, como se fosse levantar-se. Porém ela foi mais rápida que ele. Ajoelhou-se ao lado dele. Agarrou-lhe a braço com
mãos desesperadas.
— Não! — gritou. — Farei o que você quer, Henri! Não importa. Tenho de fazê-lo. Não é só por você...
Não pôde dizer mais nada. Toda a força lhe fugiu. Deixou cair a cabeça no braço dele, menos como rendição ou amor do que por total
prostração.
Henri olhou a cabecinha em seu braço, e seu rosto tremeu de compaixão e tristeza. Ergueu a mão e a colocou gentilmente nessa cabeça. Ela
não se moveu: parecia haver desmaiado. Ele sentiu a macieza dos cachos sob seus dedos, tão infantil e indefesa era ela, e tudo isso lhe
abalou os nervos e comoveu seu coração com uma tristeza pungente.

Capítulo 37
Como quando o jovem Henri Bouchard se encaminhou para ele através dos ricos e escuros carpetes de seu escritório, e o velho Jay Regan
tivera o espantoso e confuso pensamento de que Ernest Barbour (morto há muito) voltara à vida e se aproximava dele — assim agora o velho
financista tinha impressão similar e igualmente confusa de que esse jovem era Jules Bouchard, ressurreto, sutilmente vistoso, brilhante e
sorridente.
Ele vira Antoine Bouchard passageiramente em muitas ocasiões, mas apenas a distância, e mal trocara meia dúzia de palavras com ele.
Ficara perturbado com a semelhança do jovem com o falecido avô, Jules, mas nunca tão espantado, tão instantaneamente atemorizado e
deprimido como estava agora.
“Meu Deus! — pensou — não é possível!” Mas lá estava Jules novamente, suave, gracioso, ágil e sutil com o bem lembrado crânio pequeno no
qual o cabelo parecia o de uma foca lustrosa, o rosto estreito, moreno e um pouco franzido, os lábios secos e velhacos, sorridentes agora para
formar o brilhante sorriso que era uma réplica do de Jules, as sobrancelhas maquiavélicas, inclinadas e esquisitas, as orelhas pequenas
grudadas à cabeça, o andar leve e ligeiro, e toda a aparência de zombeteiro agrado. E, mais que tudo, os vividos olhos demoníacos, tão cheios
de riso, alegria, e cruel requinte.
Jay Regan não tinha a hábito de levantar-se para receber seus hóspedes, pois já estava muito velho, e sempre fora por demais formidável para
conferir tal honra a gigantes menores. Porém agora sua surpresa, e seu estranho e reprimido terror, fizeram-no erguer-se involuntariamente. Era
como se um fantasma houvesse invadido os limites catedralescos de seu escritório. Ali ficou de pé, apoiado à polida escrivaninha, imóvel
como imóvel é uma montanha. Era ao mesmo tempo um homem mais jovem e um ancião, sentindo sua idade, sua fadiga, seu desgosto e
medo, tudo através de sua carne, que despertara para uma idade intermediária.
Ele e seu pai tinham sido tão intimamente ligados à família Bouchard que ele começou sem formalidades:
— É Antoine, não? — hesitou. Depois ergueu a mão grande e sólida, toda cheia de veias grossas, e a estendeu a Antoine.
Antoine era todo deferência, todo graça à antiga, e admiração:
— Eu realmente nunca o conheci, Sr. Regan. Apenas o vi poucas vezes, casualmente. Há já muito tempo que nos encontramos, pois não?
Regan silenciou por um momento. Seus olhos protegidos e à espreita estudaram sombriamente o jovem:
— Sim — falou, com estranha lentidão e ênfase — muito tempo.
Tornou a sentar-se. Colocou as mãos, palmas para baixo, pesada e chatamente na escrivaninha. Uma aura, como de calor e suor, se espalhou
em torno delas, na face escura e muito polida da mesa. O vulto avantajado do homem surgiu, pesado. Seu peito e a barriga se tornaram um
grande monte arredondado, e a grande cabeça abobadada estava colocada sobre esse monte como a cabeça de algum Buda arruinado e
infinitamente antigo, superado pelos séculos, superado pelo mal.
Antoine, sentou-se. Espalhava uma atmosfera de elegante, porém mortal vitalidade e delicada exuberância. Tudo nele parecia crepitar.
“Um dia desses ele explodirá” — o pensamento irrelevante acudiu ao velho Regan.
O jovem era cheio de graça e deferência. Permitiu que um olhar pensativo de admiração e respeito aumentasse o fulgor de seus olhos. Vendo
isso, Regan sorriu intimamente. Que quereria o demônio? Pela primeira vez em muito tempo sentiu pruridos de precaução e vigor; seu velho
sangue vagaroso acelerou-se, seus instintos de antigo pirata voltaram a agitar-se, refrescados.
— Serei franco, senhor — disse Antoine — muito franco. Devo-lhe isto, pois sei que não tem tempo a perder com preâmbulos elaborados. De
modo que estou preparado para ser sincero.
“Ah! — pensou Regan, feliz. — ‘Serei sincero’ era uma das mais perigosas expressões de Jules, calculada para fazer a serpente enrolar-se
sobre si mesma em cautelosa expectativa.” Regan disse, abruptamente:
— Seu avô e eu éramos grandes... amigos. Você o lembra muito. Fizemos muitos negócios juntos.
Satisfeito com esta abertura, Antoine falou rapidamente:
— Sim. Sei disso. Portanto espero que possamos fazer... negócios... tal como fez com meu avô. Negócios muito sérios.
Deteve-se, delicadamente. Assumiu uma expressão de embaraço. Regan se inclinou para ele, deliciado, sentindo-se jovem outra vez.
Exibiu aquele grande aspecto de paternal benevolência que era considerado encantador:
— E como vai a pequena Mary, Antoine? Almocei com o pai dela na semana passada, e ele falou do feliz acontecimento que está para vir.
Antoine tomou uns ares de indulgência marital:
— Mary está esplêndida, Sr. Regan. Esperamos o acontecimento para junho. Ainda não decidi por menino ou menina. Francamente, prefiro
menina.
— Quê? Não tem ambições de dinastia?
— Estou pensando na inteligência do moleque — falou Antoine, com outro de seus alegres sorrisos. — Por vezes os varões Bouchard não são
lá muito brilhantes, sabe.
Regan esperou. Porém todo o seu velho rosto estava riscado de mil linhas de um riso secreto, como se uma rede jovial tivesse sido espalhada
sobre ele.
— Tal como — ele sugeriu, gentilmente — Robert Bouchard?
Apesar de sua despreocupação, Antoine estava espantado.
Traiu isso apenas estreitando os olhos negros, e por um tremor na boca — só por um instante. Logo depois estava sorrindo:
— O senhor é tão onisciente como onipotente, Sr. Regan.
Regan espalmou as mãos em gentil negação:
— Para ambas as afirmativas, a minha completa negação. Sou apenas digamos, apenas... observador e afeiçoado. Os Bouchards e os
Regans têm sido sempre muito unidos.
Mas Antoine estava muito pensativo. Estudou o imenso velho em frente a ele. Sua despreocupação foi abalada, e por um momento sentiu-se
desajeitado. Então o velho demônio não estava senil, nem desastrado nem frouxo, como Antoine esperava. O poder de Wall Street era ainda
um terrível poder. Antoine se deu conta de que sua campanha planejada teria de ser consideravelmente revisada e ajustada ao verdadeiro Jay
Regan. Em sua mente repassou tudo rapidamente. Nesse ínterim, Regan, que compreendia tantas coisas, compreendeu também isso.
— Bob e eu somos grandes amigos, apesar de parentes... — falou Antoine, e se desprezou imediatamente por tão ingênua “gracinha”.
Entretanto, também imediatamente viu que essa aparente ingenuidade podia decepcionar Regan e torná-lo menos cauteloso. De modo que
acrescentou, com ar animado: — Afinal de contas, a geração mais jovem está emergindo. Eventualmente herdaremos Bouchard, sabe, e
devemos escolher com antecedência nossos companheiros.
— E seus partidários, e subordinados, e aliados, também — acrescentou Regan, com o ar mais afeiçoado e amigável, como se tivesse os
melhores sentimentos pelo jovem.
Antoine riu:
— Ora, claro! Creio e espero não ser impertinente ao sugerir que gostaria de ter alguma garantia de que o grande Sr. Regan poderá ser um
aliado, futuramente?
Regan ficou silencioso. Lentamente, buscou um charuto na caixa de prata perto de sua mão. Cortou-lhe a extremidade, pôs o charuto na boca.
Antoine, sem pressa, ergueu-se e acendeu o isqueiro para o velho. Por alguns momentos Regan fumou com concentração. Através da fumaça
seus olhos de Buda fixaram Antoine com sabedoria intemporal e aguda fixidez.
— Acho melhor ir direto ao assunto — disse o tortuoso Antoine. — Assim, o melhor é dizer-lhe logo, Sr. Regan, que acabei de saber que o
senhor recusou a meu cunhado, Henri Bouchard, um empréstimo considerável.
Recostou-se na cadeira, e sorriu elegantemente. Regan tirou o charuto da boca abruptamente. Ficou a segurá-lo, enquanto as volutas da
fumaça se lhe enroscavam aos lados da cabeça como incenso. Estava imóvel. Os pequenos olhos reluziram um instante sob as sobrancelhas.
“Que demônio!” — pensou. Não se mexeu, mas uma súbita tensão em seu corpo que ficou rígido. Perguntou.
— Posso perguntar quem lhe deu esta... informação?
Antoine ergueu a mão afetadamente:
— Isso seria violar uma confidência, senhor! Por favor, perdoe-me, mas não lhe posso dizer. Só que a recebi. Posso perguntar-lhe, sem
impertinência, se isto é verdade?
Porém Regan estava calado. Em sua cadeira, parecia de granito. Sua mente dardejava, conjeturava, cogitava. Henri teria espalhado tal
mentira, e, se o fez, para que fim? Disse, finalmente:
— Não é impertinente que você pergunte, Antoine, mas seria indiscreto de minha parte dar-lhe uma resposta definida, não é? Suponha, então,
que você continue a partir deste ponto.
Antoine inclinou-se para ele com súbita seriedade:
— O senhor conhece minha situação, Sr. Regan. Sou secretário de Bouchard. Meu pai, embora retirado da participação ativa, ainda é o poder
da Companhia. Pode ver, então, o quanto isso me preocupa. Se existe algo de... errado, é vital para mim sabê-lo.
— Então receio — disse Regan, suavemente — não ser a pessoa a quem deve perguntar. Realmente acreditou que eu lhe contaria, Antoine?
Ora vamos, você não podia realmente acreditar que eu lhe diria quem negociou um empréstimo comigo, ou por que, podia?
Continuou, sorrindo ironicamente:
— Por que não pergunta a Henri? Afinal, é marido de sua irmã. Suponho que estejam em boas relações...
— Oh, excelentes, certamente! — replicou Antoine, sentindo-se picado em todo o corpo e se amaldiçoando por sua inabilidade. — Mas é uma
questão delicada. Como lhe disse, no entanto, é uma questão de vital importância para mim, e se fui tão estúpido a ponto de fazer-lhe tal
pergunta, espero que compreenda que é só devido a minha natural ansiedade.
— Muito natural — acedeu Regan. Esperou um momento; depois, cautelosamente abrindo caminho na mais completa escuridão, acrescentou:
— Se existe algum modo de acudir-lhe, Antoine... Se existe algo que lhe está causando tanta ansiedade, teria prazer em ajudar. Naturalmente,
estou interessado em... todos os aspectos da questão.
E então se permitiu parecer perturbado. Deixou a mão cair e mostrar um leve tremor. Permitiu que uma aparência de desintegração lhe
arrepiasse as feições. Falou, lentamente:
— Sempre tive a mais profunda admiração por Henri. Quando eu era muito jovem, vi o bisavô dele, Ernest Barbour, no escritório de meu pai.
Pensei que ele se parecia com Ernest. Por vezes já não estou tão certo. A semelhança física existe, mas...
O “mas” ficou boiando no ar com tremendo significado. “Então — pensou Antoine, exultante — é verdade!”
Riu, levemente:
— Não conheci o velho Ernest Barbour. Mas, a julgar pelas histórias que ouvi dele, qualquer semelhança entre ele e Henri é só coincidente. Ora,
eu deveria dizer, física. Parece-me que o plano puro e simples do velho Ernest era beneficiar o velho Ernest, e para o inferno o resto do mundo.
Ele não tinha patriotismos senis, nem sentimentalismos, nada de medo ou escrúpulos, ou obscuros idealismos. Sabia o que queria, partia sem
medo para consegui-lo, e sempre o conseguia. Que o diabo fique com o homem inferior. Mas Henri, infelizmente, não é assim, embora
ocasionalmente dê essa impressão.
— Quer dizer, Antoine, que ele respeita o inferior? Bem, cá por mim jamais soube de uma ocasião em que o homem inferior jamais
beneficiasse o homem superior, ou lhe demonstrasse a menor gratidão. Ora, vamos: não acredito isso de Henri. Ele não se tornou sentimental.
O moral e a esperteza de Antoine estavam se elevando. “Agora Jules — pensou Regan — começaria a sentir alguma prudência, e principiaria
a pensar.” Mas esse jovem patife tinha um traço de sangue latino mais forte, que o levava a crer que praticamente todos eram tolos. Ou seria
um traço teutônico?
— Sentimental não — disse Antoine. — Não posso acusá-lo disso. Diria que estava apavorado de morte. Ele foi um dos grandes
investigadores da conspiração para rearmar a Alemanha, violando o Tratado de Versalhes. Através de cartéis internacionais, através de sua
associação com a I. G. Farbenindustrie. Mas sei que compreende tudo isso. Ele pensou, e corretamente, que era necessário construir uma
Alemanha forte e ditatorialmente controlada contra a expansão do bolchevismo, e Hitler era o seu homem. Ele era, e ainda é, o homem para
nós, e em breve atacará a Rússia. Isso nos livrará da ameaça comunista. Mais tarde lidaremos com o trabalhismo, especialmente depois que
Roosevelt der fim a ele limpamente.
“Tenho certeza de que conhece nossos planos. O negócio do mundo, e o mundo é negócio, está inevitavelmente nas mãos dos grandes
industriais e corporações. Por isso é que o trabalhismo não deve, e não pode, ter voz no futuro. Hitler vencerá esta guerra, deve ser ajudado a
vencê-la. Nós lhe fizemos promessas, e ele nos fez suas próprias promessas.
Parou, delicadamente:
— Concorda comigo, Sr. Regan?
Regan assumiu uma expressão de embaraçada preocupação. Fitou Antoine com relutante e furtiva admiração.
— Não estou me comprometendo, meu rapaz. Continue. — Disse para si mesmo: “Jules saberia.”
— Uma democracia controlada pelo trabalhismo simplesmente não pode existir mais — comentou Antoine. — Depois que Hitler assinar uma
paz negociada com a Inglaterra, depois de haver atacado a Rússia e a conquistado, entraremos em certos conchavos com ele. Nesse ínterim,
já teremos controlado o trabalhismo, eleito um Presidente de nossa escolha, e escolhido um governo fascista em que o trabalhismo não terá
parte, e será obrigado a obedecer a nossas ordens. Este é o nosso plano. Mas já há algum tempo que o senhor o conhece.
— Sim — disse Regan, pensativamente. — Mas já vivi muito, e estive pensando. Existe algo de imponderável na vida humana. E se a Inglaterra
recusar assinar uma paz negociada, não importa o que aconteça? E se Hitler atolar-se na Rússia? E se entrarmos na guerra? Você bem sabe:
há grande número de “provocadores de guerra” aqui. Tudo isto, claro, não passa de especulações.
Antoine sorriu levemente:
— Não pense que omitimos os imponderáveis, Sr. Regan. Supõe, então, que a Inglaterra não assinará a paz, e que Hitler encontrará extremas
dificuldades na Rússia? Supõe que entremos na guerra, sob a pressão de políticos irresponsáveis, ou de alguma outra maneira? Temos
nossos planos, também. Por exemplo: na I Guerra Mundial, Bouchard & Sons tiveram um lucro líquido de duzentos e cinquenta milhões de
dólares. Então compramos doze milhões de cotas de certa corporação de motores, que agora dominamos completamente. Temos uma grande
ramificação na Alemanha atualmente, e estamos fornecendo motores a Hitler... excelentes motores.
“Agora, meu sogro, como sabe, controla um dos maiores cartéis de petróleo do mundo, suprindo a Alemanha de petróleo no presente
momento. Também controla certa patente de borracha sintética extremamente boa. Incidentalmente, respondendo a parte de sua pergunta: a
América terá grande dificuldade para obter o controle dessa patente para fazer borracha sintética, caso o suprimento da Índia nos seja cortado.
Meu sogro quer ter certeza de que não o conseguiremos, sob o pretexto ético, de início, de que foi concedida à Alemanha. Guerra ou não
guerra, essa patente permanecerá em poder da Alemanha, e nosso ramo de motores também continuará a fabricar motores para Hitler, mesmo
que ocorra a remota possibilidade de que nós mesmos entremos na guerra. Meu sogro planeja uma ação de retardamento na América, o que
não nos permitirá fabricar borracha sintética por muito tempo. Tudo isso terá péssimo efeito em nossos preparativos para combater Hitler.
Regan assentia de cabeça, lentamente. Dava a impressão de esforçar-se para não demonstrar muito interesse, mas de estar na verdade
extremamente excitado. Antoine notou isso com satisfação.
— Então — falou Antoine — meu sogro é um dos diretores dessa companhia de alumínio que tem compromisso de cartel com a Alemanha.
Esse arranjo permitirá à Alemanha adquirir todo o alumínio de que precisar para aviões, mas limitará enormemente o suprimento para a
América. Novamente, isso terá mau efeito em nossos preparativos para a guerra. Por fim: haverá uma ação protelatória enquanto os
estonteados professores do Sr. Roosevelt se preparam.
Regan girou o charuto lentamente nos dedos, mirando-o fixamente.
— Onde entra Henri em tudo isso? — perguntou.
Antoine riu:
— Henri estava em tudo isso. A princípio. Depois, de repente mudou de opinião. Parece que não confia em Hitler. Ora, e quem confia? Porém
Hitler, e nós, sabemos que é nossa mútua vantagem trabalharmos juntos. Ele ganhará a guerra, com nossa ajuda, e a ajuda das grandes
corporações inglesas, francesas e outras, e, em consulta conosco, terá marcada esfera de influência. Então, na América, poderemos levar a
cabo com êxito uma forma fascista de governo, com todos os enfeites para satisfazer os fátuos e os imbecis. Isso será o fim da democracia,
que não pode coexistir conosco.
“Henri foi muito favorável. Na verdade, ele pensou em quase tudo. Depois, mudou de ideia: não confiava em Hitler. Acreditava que Hitler partiria
para a conquista da América. O que é totalmente verdadeiro. Planejamos isso, também. Depois que Hitler tivesse conquistado a América,
assumiríamos o seu controle industrial. Aí é que houve a cisão com Henri. Ele acredita que Hitler não nos deixará tomar o controle. E não
consegue ver-se dominado por Hitler. Nós conseguimos.
Regan recostou-se na cadeira e relanceou para Antoine uns olhos estranhamente vazios:
— Todo o plano é corajoso, só um pouco terrível. Planos têm o hábito de sair pela culatra, sabe. Você censura o povo americano. Não vou
entrar em nenhuma discussão com você a respeito da inteligência dele. A propósito, deixe-me perguntar-lhe isto: você e seus associados ainda
estão fornecendo a Hitler petróleo, motores e outros materiais? Creio que Henri havia mandado parar com isso.
— Henri — falou Antoine delicadamente — não sabe de tudo.
E então, enquanto Regan ouvia com a mais dolorosa atenção, Antoine contou o que tinha sido feito para frustrar as ordens dadas por Henri
Bouchard. Enquanto Regan ouvia, permitiu que lhe aparecesse na boca um sorriso, meio de incredulidade, meio de espantada admiração.
Uma ou duas vezes disse a si mesmo: “Jules não contaria a ninguém neste mundo de Deus!” Passou-se meia hora, e a voz macia de Antoine
continuava. Então, quando terminou, houve um longo silêncio nas imensas e obscuras distâncias do salão.
Regan começou a falar, e fez a voz tremer:
— Percebo. Percebo tudo. Estou velho, e tive minhas mãos em muitas conspirações, mas agora estou pasmo! Esta é a maior e a mais incrível.
Posso entender seu ponto de vista: esta guerra já não é uma luta entre nações, mas uma luta entre uma ideia e outra. A luta do povo, em
qualquer nação, contra aqueles que estão determinados a dominá-lo, controlá-lo e governá-lo. Sim, posso ver isso. Francamente, como você
diria, a ideia me ocorreu muitas vezes no passado, mas desisti dela como fantástica. Agora, vejo que tem possibilidades...
E agora ele se permitiu parecer enormemente excitado. Balançava-se para trás e para a frente na cadeira. Esfregou a boca várias vezes com a
mão que, obviamente, não tremeu demais. Dava a impressão de que estava tentando controlar-se, de que não queria deixar Antoine discernir o
quanto ele estava agitado, ou quão sombriamente exultante.
Também, muito convincentemente, deu a Antoine a impressão de que ele, um velho, se tornara cauteloso e cuidadoso. Disse:
— Devo voltar ao povo americano. Que há com ele? Pode mantê-lo subjugado, enquanto Hitler vence, e desarmado, até que Hitler se volte para
ele?
Antoine tornou a rir:
— Não é muito difícil. Conseguimos Jaeckle, muito poderoso aqui, e que tem uma multidão de seguidores. Temos o America Only Committee e
uma dúzia de comitês subsidiários, nos quais a orla dos mais violentos fanáticos pode ter suas pequenas excitações. Temos a Igreja, com seus
gritos histéricos a respeito dos “comunistas judeus internacionais” e “banqueiros judeus internacionais”. Falar em banqueiro foi um “toque” de
talento, não foi? Acha por demais óbvio? Receio, Sr. Regan, que nunca haja investigado completamente a estupidez abissal do povo
americano. Acredita em tudo, contanto que lhe dê oportunidade de odiar algo. Temos nossos planos para tumultos raciais, para linchamentos
de negros, e estamos organizando fortes organizações pacifistas em conjunção com outras. Temos locutores para atrair a timorata e
econômica classe média, que de todo jeito odeia o trabalhismo. Temos nossos colunistas de jornais que repisam sobre as iniquidades dos
sindicatos trabalhistas, nossos comentaristas de rádio, nossos senadores, nossos deputados. Temos nossos planos para confusão e desunião
em nível nacional, se o povo começar a mostrar alguma tendência para interferir com Hitler. Não será difícil desmoralizar Roosevelt: já temos
excelente trabalho feito neste sentido. Ele nunca será reeleito. Já temos nosso homem escolhido...
— Ouvi falar de Willkie, Wendell Willkie, mencionado como possível candidato — disse Regan, abstrato.
— Willkie? — Antoine riu com extrema alegria. — Também ouvi esse boato. Ele nunca será aceito pelo partido. Cuidaremos disso, garanto-lhe.
Não que eu tenha nada contra ele, pessoalmente, mas é um fator desconhecido, ao passo que o nosso homem sabe o que queremos e o que
planejamos. Pode estar tranquilo sobre esse ponto, senhor.
Novamente houve silêncio na sala. Depois de um longo momento, Regan disse pensativamente:
— Sabe, não posso deixar de recordar que foram as massas britânicas, contra a vontade de seu governo, que insistiram sobre a guerra com
Hitler. E se isso acontecer aqui? Sabe, realmente existe uma consciência vasta, muda e amorfa nos povos... e isso é o maior dos
imponderáveis.
— Nada na América, Sr. Regan. Não há consciência nacional ou racial. Apenas quarenta por cento das pessoas são de origem britânica. As
outras odeiam a Inglaterra. Mais: o povo geralmente é muito estúpido para pensar logicamente. Mais ainda que o próprio povo germânico, são
acessíveis a mentiras e à propaganda hábil. Não falaremos delas por um momento.
Deteve-se, depois continuou:
— Não há possibilidade de falharmos, agora ou no mundo de pós-guerra. Por isso vim ao senhor hoje.
Regan não afastou do jovem aqueles olhos penetrantes, embora movesse e rearrumasse objetos na polida superfície da escrivaninha.
— Sim? — falou, maciamente.
— Foi boa notícia para nós, Sr. Regan, quando soubemos que havia, recusado um empréstimo a Henri. Pode interessar-lhe saber, também,
que ele tem tomado de empréstimo grandes quantias à minha pobre irmã, e tentou com meu pai, que igualmente recusou. Ele precisa de
enorme quantidade de dinheiro para lograr-nos. Não terá esse dinheiro. Queremos sua garantia de que ele continuará a não o obter do senhor.
Regan ergueu a mão e tornou a massagear os lábios. Surgiu-lhe nos olhos um olhar agudo e curioso. Disse:
— Não financio causas perdidas.
Antoine sorriu, e o escuro brilho desse sorriso invadiu-lhe todo o rosto:
— Obrigado — falou, no mais gentil dos tons.
Com uma graciosa inclinação de cabeça, calorosa e deferente, acendeu um cigarro, e os dois homens fumaram em quieta cordialidade por
algum tempo.
— E agora, chego a outra pequena questão — disse Antoine. — James, irmão de Lorde Ramsdall, é, como o senhor sabe, diretor de Logan
Hollister, o correspondente londrino do seu Banco. James é um demônio cauteloso, mas o velho Georgie fez-me saber, discretamente, que
James o está vigiando estreitamente, para saber seu próximo movimento; e que ele próprio está retendo as licenças que permitem à
Venezuelan Oil Products Company embarcar petróleo para Hitler através dos portos sul-americanos. Como o senhor sabe, ele controla a
Venezuelan Oil Products e também é diretor da Argentina Property & Industries, da Argentine South-Eastern Railroad, da Buenos Aires
Waterways Dock Company, da Uruguay Railroad Systems Company, e uma ou duas outras. Justamente agora necessitamos da total
cooperação delas, urgentemente, na questão de suprir equipamento de guerra para Hitler. James, como todos os Tories britânicos, está
determinado a que Hitler não seja derrotado na Europa; ou, se a guerra se virar contra ele, o que não é muito provável, que uma paz negociada
seja assinada com ele e na qual ele retenha o poder político na Europa. Os Tories britânicos, tal como nós mesmos, não ousam deixar que
sobrevivam ideias democráticas ou liberais. Entretanto, James está observando o senhor, aguardando o seu próximo passo. Se o senhor puder
dar-lhe o sinal apropriado, a marcha da guerra será imensamente acelerada, e a conquista da Europa por Hitler completada a breve prazo. Os
Tories britânicos estão muito mais apavorados do que nós sobre o que chamamos os “imponderáveis”.
— Os imponderáveis da consciência dos povos — murmurou Regan, de modo quase inaudível.
— Como disse? — perguntou Antoine.
— Nada. Apenas observei para mim mesmo sobre o que possivelmente não será absolutamente nada — respondeu Regan. — Então, James
espera uma palavra minha, não? Ele a terá. Garanto-lhe.
Abriu uma gaveta da secretária e dali retirou uma garrafa de cristal e dois pequenos copos. Encheu-os delicadamente. Antoine observava o
licor dourado a escorrer nos copos. Perguntou:
— Napoleão?
— Napoleão — concordou Regan. — Sempre o uso para selar um acordo.
Sorriu agora, amigavelmente, e de modo encantador. Observava Antoine enquanto o jovem bebericava apreciativamente.
— Eu disse — comentou Regan, poucos momentos depois — que nunca financio ou me associo a causas perdidas. Gostaria de saber os
nomes dos poucos homens que estão nisso com você, os cabeças das corporações. Compreendo, naturalmente, que têm de mover-se
cuidadosamente, mas ninguém veio procurar-me. Quem são eles?
Quando Antoine saiu do escritório, após o mais caloroso aperto de mãos, Regan fez uma ligação para Henri Bouchard, em Windsor. Falou
rápida e concisamente:
— Olhe aqui: daqui por diante, quando tiver de fazer uma pequena e importante mentira, por que não me informa com antecedência? Há mais
de uma hora vim passando maus pedaços com seu parente, nosso pequeno Antoine, que veio visitar-me. Mas peguei a intenção. A propósito,
é muito importante que venha ver-me amanhã, seja o que for que tenha de deixar aí. Ah, sim: ele não é como Jules absolutamente. —
Acrescentou, irado: — Ele pensa que já estou senil.
Após o telefonema a Henri, falou para certo grande homem da política britânica, e durante a conversa muito foi dito a respeito de James
Gordon, irmão de Lorde Ramsdall, o poderoso proprietário de jornais.

Capítulo 38
Richard Morse, presidente do Morse National Bank, girou sua maciça cadeira de couro com um grunhido de satisfação, depois de haver
estudado atentamente os boletins de notícias que lhe haviam chegado por intermédio de seu serviço particular de informações. Sentado, suas
pernas eram tão curtas que os pés balançavam alguns centímetros acima do chão. Ele sorriu de má vontade para Antoine:
— Bem, talvez você não tenha feito mal nenhum em abrir a boca desse jeito para o velho Regan. Nossos amigos não poderiam ter-se movido
tão depressa sem aquele petróleo venezuelano. Adiantou um pouco o horário deles. No entanto, o fato é que eu poderia matá-lo a sangue-frio!
Você não tem a menor garantia de que Regan não o estava sondando, para distribuir a informação onde nos poderia prejudicar mais.
Mas Antoine apenas riu:
— Conheço o bastante a respeito da querida raça humana para compreender que um velho pirata como Regan não se torna religioso, suave e
penitente da noite para o dia. Isso leva tempo... e indigestão, gota ou úlceras. Ele não deve ter nada disso, assim, não se apresse tanto para
salvar-lhe a alma. Que fez ele durante os últimos cinco anos que nos faça duvidar dele? Financiou Mussolini em 1927; tornou possível a Hitler
obter crédito nos lugares mais improváveis; pressionou o Banco da Inglaterra e o Banco da França; estendeu créditos ao Japão e adiantou
dinheiro para explorar a Manchúria. Ele e o Dr. Schacht são velhos amigos. Em novembro de 1938 encontrou-se com Schacht em Berna, onde
foram feitos proveitosos arranjos para créditos alemães em todo o mundo.
— Muito bem, muito bem. Mas o que tem ele feito ultimamente? Nada! Durante seus preciosos cinco anos tem estado carrancudo, sentado em
seu traseiro gordo lá no seu escritório. Sempre teve uma queda pela Inglaterra. Sim, sim, lembro-me da reunião com Schacht em novembro de
1938, mas isso foi só para salvaguardar seus próprios investimentos. Você se arriscou, Tony, arriscou-se muito...
— Mas o senhor deve confessar que foi uma boa jogada. Ele prometeu dar o sinal a James Gordon. Evidentemente o sinal foi dado: o petróleo
se moveu da Venezuela quase imediatamente. E agora — e Antoine fez um gesto expressivo com as estreitas mãos morenas — Noruega,
Dinamarca, Holanda. Nada poderia ser feito sem esse enorme suprimento de petróleo.
Richard Morse grunhiu, chupou seu charuto. Era um homenzinho baixo e gordo com um enorme rosto vermelho, de expressão
decepcionantemente benigna e amável — a não ser pelos penetrantes olhinhos azuis. Os cabelos brancos eram aparados rentes à cabeça
redonda, mas no topo havia uma porção de cachos nevados. Tinha mãos pequenas e brancas, caprichosamente cuidadas, e usava um grande
diamante na mão esquerda, ostentosa peça de joalheria que, entretanto, não lhe prejudicava a sólida aparência. Achava que o cinza-claro era a
cor que mais lhe assentava, e era exigente até o último detalhe.
Os dois homens se sentaram em pensativo silêncio, por algum tempo, um silêncio rico e satisfeito. Então o Sr. Morse falou, e sua expressão se
tornara menos satisfeita:
— Qual será a reação do país a essas novas invasões? Senti-me inquieto. Todo o país pode danar-se, você sabe. Talvez se apavore com isso.
Especialmente após as constantes garantias de Hitler de que não planejava mais conquistas na Europa. Quantas pessoas pensa você que
engolirão essa história que ele anda espalhando, que tem de “defender” a Noruega, a Dinamarca e a Holanda contra à agressão britânica...
quando até o mais cretino dos americanos sabe que a Inglaterra não tem aviões, tanques nem homens para proteger a si mesma, e assim
como poderá invadir qualquer outro país no Continente?
— Já lhe disse vezes sem conta, senhor, que o povo americano não pensa. Posso garantir-lhe que a única reação verdadeira dos americanos
será um impulso mais medroso para o isolacionismo. Meter-se num buraco e fechá-lo atrás de si. Foi dada ordem a nossas organizações para
aumentar as atividades. Por exemplo: o Bispo Halliday fará uma irradiação esta noite instando ainda mais violentamente para que cuidemos de
nossa própria vida, que Hitler não tem más intenções a nosso respeito, que todos os avisos e boatos apavorantes dos “fazedores de guerra”
são inspirados pelos banqueiros judeus internacionais.
Parou, pois o Sr. Morse erguera a mão abruptamente, e estava carrancudo:
— Sabe, jamais gostei de misturar as coisas com religião desse modo. “Deixe a religião fora dos negócios” tem sido sempre minha regra de
ouro. Não se pode depender de religião. É explosivo. É uma insanidade. É uma droga, uma moléstia. Não é seguro. Você aceitá-la num minuto,
e não a aceitar no minuto seguinte. É... é o grande imponderável nos casos humanos, e eu me tenho mantido limpo a tal respeito. Oh! Concedo-
lhe que tem servido muito bem a nossos propósitos ultimamente, e até agora não deu sinais de que não continuará a servir. Mas não confio
nisso. Uma terrível confusão pode ser instigada aqui na América. Fora alguns ministros protestantes que odeiam a Inglaterra, os judeus e a
democracia, a grande maioria do povo americano, que é de protestantes, não esqueceu a bênção que o Papa conferiu ao Exército italiano
quando saía para esmagar a Etiópia, e não esqueceu a Concordata entre Hitler e o Papa, e não deixou passar o fato de que os países satélites
e aliados de Hitler eram católicos. E agora, os países que ele invadiu são países protestantes. As vibrações protestantes em toda a América
vão estar desconfortavelmente excitadas, sabe. Vão examinar Halliday e seu bando um pouco mais estreitamente, assim como os líderes do
America Only Committee, e o resto deles.
— Jaeckle, nosso melhor homem, é um protestante — lembrou Antoine maciamente. — E um dos líderes do America Only Committee é um
judeu. Mantivemos os líderes católicos ativos ao fundo da cena exatamente pela probabilidade dessa emergência.
O Sr. Morse bateu na mesa com a palma da mão:
— Não gosto dessa história de se misturar com religião. Olhe aqui: os protestantes na América vão pensar um pouco. Nunca aprovei essa sua
teoria de que todos os americanos são asnos e mentecaptos. Alguns pensam, e quando pensam ficam furiosos. Vão fazer a si mesmos uma
porção de perguntas: como é que os aliados e satélites de Hitler são católicos? E o que pensar do papel desempenhado pelo Papa na Europa
durante o último ano? Não demorará muito para convencê-los de que esta é na verdade uma guerra religiosa, sob a superfície, uma luta
mortalmente final entre as forças da reação católica e o progresso liberal protestante. Você dirá que isso é fantástico? Meu rapaz: o elemento
fantástico é que sempre surge inconvenientemente, quando menos se espera.
— Mas isso é um absurdo, senhor! Apesar de idiota como é, o povo americano não chegará a tal conclusão! Não é verdade, e o senhor sabe
disso. Os três líderes mais poderosos da American Freedom Association, nosso pior inimigo, são católicos romanos. O Arcebispo Mueller
denunciou Halliday cem vezes, e instou conosco não só para que nos preparássemos para defender-nos como para declarar guerra a Hitler. Os
católicos estão tão divididos nesta guerra como estão os protestantes...
— Não obstante — disse Morse, alta e rudemente — a propaganda pode ser espalhada. E se tivermos lutas religiosas neste país? Na
confusão o povo começará a pensar, de modo rudimentar. Isso não serve a nossos propósitos, é o que lhe digo. Precisamos de uma nação
determinada e resolvida a ter paz: que o inferno estoure em qualquer outro lugar. É péssimo, isso de misturar as coisas com a religião.
Acrescentou, com súbita explosão de raiva:
— E lá está a esposa de meu filho, aquela miserável... organizando as Mães Católicas da América, que está imprimindo aos milhões
propaganda antissemita, antidemocrática pró-Alemanha. Fino punhado de parentes você tem, em alguns lugares! O que você acha que a
maioria dos americanos, a maioria que é protestante, irá pensar a respeito das Mães Católicas da América e sua viagem quando, finalmente,
chegar a pensar?
— Quando isso se espalhar, se chegar a espalhar-se... será tarde demais — respondeu Antoine.
Morse balançou-se violentamente em sua cadeira, e ficou carrancudo:
— Digo-lhe que não gosto disto. Católico pra cá, católico para lá... todos odiando alguma coisa. Tornando-se malditamente arrojados, eles
estão esquecendo que são realmente odiados e temidos sob a superfície, esquecendo que são ainda menos de um quinto do povo americano.
Que Deus os maldiga, eu os odeio! Arrastando meus quatro netos para a Igreja, apesar do que eu disse e fiz bem claro. Meu filho é um... — e
expressou a sua opinião a respeito do filho, fraco e tímido, em tais palavras que Antoine, a despeito de seu alarma, teve de sorrir.
— Phyllis tem boas intenções — disse Antoine, reservadamente, pois detestava essa parenta, e desprezava seu assustado marido.
— Ela representa um perigo danado para nós! — gritou Morse, ficando quase roxo. — Um de meus ancestrais lutou com Cromwell, e fez um
bom trabalho, empurrando esse suíno irlandês até o mar. Maldito seja, eu não me importaria de ter alguns tumultos anticatólicos na América, e
se eles não pararem logo de falar, irão tê-los!
Lutava para respirar:
— Olhe aqui: precisamos ter a nação unificada para a paz, até que Hitler esteja em condições de ajudar-nos. Nada mais de malditas
sociedades católicas para estragar tudo. Fui bem claro?
Antoine acenou afirmativamente:
— Claro. Mas isso não está exatamente dentro das minhas atribuições, Sr. Morse.
Morse socou a mesa com ambos os punhos
— Ela é sua maldita prima, não é? Essa Phyllis? Diga-lhe que se cale. A esposa de meu filho não vai arruinar as coisas para nós. Esta é minha
palavra final.
Antoine estava divertido:
— Não pode censurar a Igreja Católica, nem os Bouchards, por causa de Phyllis.
Não obstante, estava extremamente inquieto, apesar de sua expressão afável. Era a coisa mais abominável! Sempre tivera o mais alto respeito
pelo implacável e venal Richard Morse, que se podia ter certeza de ser avarento e oportuno, sem emoções perigosas ou duvidosas. Ainda
assim, expressara o ódio mais primitivo, e explodira contra uma Igreja que, paradoxalmente, muito fizera para promover seus interesses. Na
selvagem hora final, então, não havia razão, não havia sequer vantagem pessoal, que fizessem as decisões que abalassem o mundo: era
emoção, paixões primordiais, e a profunda e inexplicável pulsação do amorfo coração humano.
Jay Regan murmurara algo que julgara inaudível, mas o ouvido de Antoine havia captado: “Os imponderáveis da consciência dos povos”. (No
caso de Morse fora o imponderável do ódio instintivo pelo estrangeiro.) Os imponderáveis da consciência dos povos! Pela primeira vez em sua
vida, Antoine sentiu apreensão e dúvida. E se, na selvagem hora final, a consciência do povo americano explodisse em vida terrível? E se
começasse por seus leitos, suas escrivaninhas, suas máquinas, suas mesas, com um alto e terrível grito de raiva e indignação? Que
aconteceria, então, a seus inimigos, os homens secretamente jurados para traí-lo, escravizá-lo e despojá-lo?
“Inacreditável” — pensou Antoine. Entretanto, sua apreensão se tornou profunda inquietação. Essa raça híbrida chamada “americanos”, esse
produto das sarjetas da Europa, essa horda confusa, estúpida, ignorante, atormentada pela Igreja, pelo ódio e por mentiras, jamais poderia ter
uma voz unificada, poderia forçar suas diversas pulsações a bater em uníssono. Seus senhores, seus traidores eram fortes demais, frios
demais, cruéis demais, espertos demais para ela.
A máquina de notícias começou a tiquetaquear furiosamente. Resmungando obscenidades, Morse se arrancou de sua cadeira, alcançou a
máquina, ergueu a longa e fina fita branca vomitada em rapidez frenética. Leu rapidamente. E então o rosto vermelho ficou da cor de um bolo
velho de farinha, e a boca aberta. Ficou de pé com a fita na mão, e não se moveu.
Antoine se levantou rapidamente e foi até ele. Morse não podia falar. Antoine lhe tirou a fita de papel da mão imóvel:
“O Honorável James Gordon, da firma de banqueiros britânicos Logan Hollister, acaba de ser preso sob a acusação de traição ao Império...”
Os dois homens se olharam num silêncio enorme. A máquina aumentou o ritmo de seu tique-taque. Entorpecido, Morse tornou a erguer a fita, e
leu:
“Informação em conexão com o Sr. Gordon foi fornecida a Washington, na crença de que os associados americanos do Sr. Gordon...”
Antoine disse:
— Então? Muito bem, ainda somos neutros. Mau para Gordon, porém ele nada pode fazer-nos.
Morse falou densamente, lábios rígidos:
— Exceto que o equipamento e o petróleo serão cortados na América do Sul, para Hitler. — Começou a proferir maldições em voz baixa,
entorpecido e incoerente.
A máquina tornou a estalar. Estupefatos, leram:
“O irmão do Sr. Gordon, George, Lorde Ramsdall, proprietário de jornais em Londres, também está sob custódia para investigação em
conexão com certos artigos subversivos que apareceram em suas publicações, e que, conforme a acusação, têm o propósito de dificultar o
esforço de guerra britânica. Espera-se que acusações mais sérias serão proferidas pela Scotland Yard contra Lord Ramsdall. ”
— Malditos! — gritou Morse. — Então não sabem que estão acabados? Não sabem que o Império está no fim? Não sabem que Hitler os
invadirá numa questão de meses, e os esmagará? Malditos loucos!
Antoine nada disse. Ficou de pé junto de Morse, o rosto moreno muito pálido. Por fim disse:
— Não sei. Eles estarão acabados? Não sei! — Tornou a ouvir, com medo súbito e agudo: “Os imponderáveis da consciência dos povos.”
Jay Regan estava rindo à socapa quando se sentou à secretária e telefonou para Henri Bouchard em Windsor:
— Bem, pegaram Gordon e Ramsdall. Nossa pequena manobra teve grande êxito. Ah! Ah! Ah!

Capítulo 39
Por toda a América, imediatamente após a invasão da Noruega, da Holanda e da Dinamarca, passou um som curioso — como um fôlego
gigantesco, aspirado e mantido. Era como se um homem se sentasse a uma pacífica mesa, preguiçosamente observando a luz do sol e as
sombras sobre campos não ameaçados do lado de fora da sua janela, e então se tornasse cônscio do som longínquo, mas terrível, destrutivo e
sinistro. Não era trovão, pois o céu ainda estava sereno, o azul aéreo ainda suave e brilhante, as sombras e a luz ainda imóveis na paz
tranquila. Os pratos cheios continuavam a fumegar fragrantemente sobre a branca toalha da mesa, a prataria a luzir, e os pássaros nas árvores
a trinar e roçar nas folhas. Nada havia mudado depois que havia passado aquele som terrível, só que o silêncio era, de alguma forma, mais
profundo, mais intenso, e mais expectante. O homem podia ouvir aquela espera: lembrava-lhe, com súbita e pavorosa inquietação, um animal
agachado entocando-se no chão silenciosamente, contraindo-se, depois que a sombra das asas de uma águia circulando passara
vagarosamente, indagadoramente sobre ele. As asas se foram, mas permaneceram o terror e a espera do animal, e seu coração continuou a
pulsar aceleradamente de terror.
Essa era a espera e o medo que fez a América recolher o fôlego numa convulsão universal, e prendê-lo. Ela forçava os ouvidos. O som não
voltou. Seu coração ainda pulsava; ela sentia sua inquietação, sua rapidez, através de todo o seu corpo. Do espaço de onde viera o som, agora
havia apenas silêncio. Mas já não o silêncio sereno e cheio da luz do sol. A luz pacífica sobre seus campos aparecia esbraseada ao ocaso; os
espaços azuis do céu pareciam menos tranquilos do que agourentos. Quando os pássaros cantam sua última canção do entardecer há um
estranho som penetrante nas notas, acentuado com o medo inominável. E as próprias árvores, tão imóveis nos gramados, parecem menos
sonhadoras ao resplendor da tarde do que silenciosas no silêncio oco e desolado do coração de um furacão.
Foi alguns dias antes que uma centena de vozes, reduzidas ao mutismo por algum tempo, começou sua selvagem gritaria, seus guinchos
histéricos novamente. Tornavam a gritar que mesmo isso não era da conta da América, que o que a América tinha ouvido era apenas o eco de
uma tempestade que passara inofensivamente bem longe dela.
Porém agora, milhões de americanos outrora entorpecidos, outrora por demais ansiosamente amedrontados, outrora muito indiferentes, por
demais cruéis, estúpidos e ignorantes, impaciente e distraidamente, ignoraram essas vozes perigosas e inimigas como se ignoram nuvens de
mosquitos espantando-os com um movimento do braço. E esses americanos olharam para o brilhante espaço nos céus de onde viera aquele
som terrível e sinistro, e seus rostos ficaram pálidos, os olhos fixos, à luz demasiado brilhante do ocaso metálico. Pois estavam ouvindo.
A verde neblina das frágeis vestimentas de abril agarrava-se a milhares de árvores em Placid Heights, perto de Windsor. No vale, o rio parecia
de prata, correndo livre e rapidamente através de novos campos. Brilhavam as ladeiras das colinas. O céu tinha uma claridade fraca, mas
transparente que tocava o coração com esperança misteriosa, e do solo subia o forte bafo da terra jovem.
Operários se azafamavam na casa que Peter e Celeste haviam construído. Haviam despojado o rico solo escuro dos arbustos e plantas
rasteiras, e nesse solo semeavam grama. Já haviam sido plantadas novas mudas. Montículos baixos de vários formatos em breve seriam
canteiros. Sempre-vivas eram amontoadas onde apenas ervas daninhas e madeiras esparsas cresciam antes. Cobriam de cascalho os
caminhos; havia no límpido ar frio um cheiro pungente de piche, pois as entradas para carros estavam sendo asfaltadas. No ar havia também o
odor de serragem limpa, o som de muitas vozes. Construíam a estufa, atrás da casa. As vozes ecoavam de volta das colmas. Os ventos da
primavera curvavam as árvores, gemiam gentilmente nos pinheiros das ladeiras que se afastavam da casa.
De sua janela Peter observava a atividade. Estivera novamente bem doente. Sentava-se agora numa cadeira de rodas, pois só alguns dias
antes lhe fora permitido sair da cama. Fora avisado: muitas semanas se passariam antes que lhe fosse permitido passear fora de casa. Para si
mesmo ele completara: “Será nunca!”
“Quantos dias ainda me restam?” — perguntara a si mesmo, ansiosamente. Fora-lhe ordenado não trabalhar, pelo menos não durante muitas
horas. Porém sua mesa fora empurrada para perto das janelas, com papel e seus utensílios de escrever. Os médicos não objetaram mais.
Inatividade forçada, disseram, poderá matá-lo mais depressa do que trabalho. Por alguma razão que não podiam discernir, ele devia trabalhar.
Escreveu programas de rádio. Sob um nome suposto, escreveu artigos, encaixando as informações recebidas de Henri, que revistas obscuras
e “radicais” publicavam sem recompensa. Algumas vezes, a pressão de uma mão ignorada obrigava revistas mais importantes a publicar-lhe
os artigos. Seu livro estava terminado, em breve seria publicado. Ele sabia não poder começar outro. Ele não tinha mais tempo. O que fizesse
agora devia ser rápido, pungente, impressionante, como um grito de advertência na escuridão: devia ser agudo e bem alto, para que os
adormecidos acordassem.
Estava agora escrevendo um artigo intitulado: “Qual é Nossa Hora?”
Porém sentia estar lutando cegamente contra um muro onde não havia uma saída, embora atrás do muro estivesse uma cidade ameaçada.
Sua voz era tão fraca... Poderia atravessar aquele muro?
Ele foi uma das primeiras vozes a gritar que o Japão, como um grande pássaro que se alimenta de carniça, já estava circulando sobre a
cidade. Seus artigos, sob a pressão daquela mão desconhecida, tinham sido publicados relutantemente em duas ou três preeminentes
revistas. Como resultado, “William Conrad” estava agora sendo vigorosamente atacado não só em jornais inimigos e pelos locutores públicos
como em pleno Congresso. Exigia-se sua identidade. Foi denunciado como um provocador de guerra, um mentiroso, um encrenqueiro,
provavelmente a soldo de fabricantes de armamentos e de “banqueiros internacionais”. Foi acusado de esforçar-se por criar relações tensas
entre a América e o Japão, “nosso bom amigo e excelente freguês.”
Não obstante, foi colocado um embargo sobre embarques de petróleo e sucata para o Japão.
Ele continuava a trabalhar. Contava cada hora que lhe restava de vida. Sentia a morte em toda parte de seu corpo. Não pensava senão no
trabalho. Isso era tudo que importava. Celeste, ele próprio, sua vida nada eram agora. A última palha do ego ardia na fogueira de seu terror
pela América.
Celeste, compreendendo tudo isso, já não instava com ele para conservar suas derradeiras forças. Apenas o confortava quando sua dor era
grande demais, e o ninava. Via o quão terrível era sua agonia. Nada podia fazer para minimizá-la. Quando Henri chegava, levava-o a Peter e
deixava os dois homens a sós.
Raramente viu Henri nesses dias, embora ele viesse com frequência, às vezes sozinho, às vezes com Annette. Sua consciência estava
afastada dele. E de si própria. Não ousava pensar em si mesma pois, se o fizesse, temia enlouquecer. Pois a mais terrível contingência estava
sobre ela, na qual não ousava pensar, mesmo quando estava só. Peter, ela sabia, devia morrer em breve. E nessa morte estava a sua própria
salvação. Mesmo assim não pensava nisso com frequência. Toda a sua vida e seus esforços se concentravam no marido.
Quando Henri chegou, e ela o encontrou, olhou para ele como se de muito longe, não o vendo. Ele era sempre cortês e frio, e indiferente,
passando-lhe à frente no limiar da porta de Peter como se ela fosse uma criada. Por vezes, porém só muito raramente, havia nela um fraco
tremor, como a memória entorpecida de uma dor reprimida sob um narcótico. Porém mesmo ele não importava. Quanto a ele, se viu que havia
agora alguns fios brancos entre os cabelos pretos dela, nem sequer a olhou diretamente. Se percebeu o quão confuso e descarnado estava
agora o seu rosto, e pálidos os seus lábios, e a sombra azulada em torno dos seus olhos — não deu sinais disso.
Foi Christopher quem viu, naturalmente, e quem sofreu, apesar de toda a sua maldade. A todos os demais parentes se pedira, delicadamente,
para não visitar Peter e Celeste durante esses últimos dias de vida de Peter. Eles telefonavam, convidavam Celeste para jantar, mas era tudo.
Christopher e Edith vinham, e Henri com Annette.
Foi Christopher que soube, mesmo antes de sua esposa saber, ou Annette. E certamente antes de Henri. Apesar de tudo que Christopher era,
sua afeição por Celeste sempre fora algo de grande e de puro em sua vida. Assim, aconteceu que num dia de abril, particularmente brilhante e
suave, ele veio visitá-la, e só a ela.

Capítulo 40
Celeste descansava em seu quarto, depois de uma manhã de atendimento a Peter. Estava quase adormecendo, de pura exaustão, quando
uma criada, entrando de mansinho, avisou que Christopher havia chegado, e queria falar-lhe, a sós.
Celeste estirou-se preguiçosamente, saindo das profundezas de seu sofrimento anestesiante e de sua fadiga. Estava deitada numa chaise-
longue de veludo amarelo, e puxou um pouco mais para cima a coberta de seda antes que Christopher entrasse. Ele fechou a porta atrás de si,
e depois foi até ela. Ela o olhou e sorriu languidamente, estendendo-lhe a mão. Ele olhou aquela mão como se fosse algum objeto curioso;
depois, com o mais estranho e convulsivo dos suspiros, pegou-a e a apertou tão estreitamente que ela sentiu dor. Dor que ela esqueceu
imediatamente, pois seu coração começou a latejar com um mau pressentimento.
Até então ele não pronunciara uma só palavra. Sentou-se na, beira da chaise-longue perto dos joelhos dela, e olhou-a. Ainda lhe segurava a
mão. Podia sentir-lhe a fria fragilidade, a magreza. Olhou-a, e automaticamente começou a esfregá-la nas palmas das suas mãos, que eram
mais quentes que as dela.
Ela sempre o amara tanto... — pensou ela, vagamente. Ele sempre fora irmão e pai para ela, mesmo quando mais o temera, e mais o odiara. O
perfil estreito e agudo, os olhos frios e enigmáticos, os lábios apertados e sem cor, ao mesmo tempo tão velhacos, e tão sutis, eram imutáveis
para ela. Ele ainda era para ela o jovem irmão e protetor, e seu amigo. Se seus cabelos finos estavam grisalhos agora, tendo apenas algumas
mechas do primitivo castanho, isso nada significava para ela.
Havia algo em sua quieta atitude, em sua calma e silêncio, agora, que parecia aliviar a tensão angustiosa nela, que sussurrou:
— Christopher!
E ele suspirou, repetidas vezes, como se algo se agitasse em seu coração com alivio incomparável, mas também com insuportável sofrimento.
Ele estava muito grave. Lentamente, inclinou-se para ela e beijou-lhe a face.
— Pobre Celeste! — disse, gentilmente. — Pobre criança!
Ela corou a essas palavras, como se ele tivesse proferido algo de embaraçosamente indecente, ou sem tato, ou absurdo. Afastou a mão,
baixou os olhos, e respondeu:
— Por quê?
Quando ele não falou, ela lhe relanceou os olhos rapidamente, e viu que ele estava sorrindo só um pouquinho. Mas os olhos argênteos não
sorriam: estavam muito gentis, e doces. Ela não vira essa doçura desde que era criança e ficou muito emocionada. Sua respiração contida era
quase um soluço. Tornou a corar.
— Celeste — disse ele — muito tempo se passou desde que lhe pedi que confiasse em mim, não é? E da última vez você não tinha razões
para confiar... Mas vou pedir-lhe que o faça agora. Olhe, sei de muita coisa a seu respeito que você julga ignorada por todos. Nada disso é
ignorado por mim, querida.
Ela ouvira desde as suas primeiras palavras numa atitude de retraimento; mas às suas últimas palavras ela tremeu, olhou-o rapidamente,
branca de medo. Mas disse, bem calmamente:
— Não sei do que está falando, Christopher.
Ele ficou silencioso por um momento, depois disse, pesadamente:
— Sim, minha querida, você sabe.
Aguardou. Ela não falou. Seu rosto estava mais branco que nunca. Quando ergueu a mão para afastar da testa uma mecha de cabelos, ele viu
que a mão dela tremia.
— Não sou uma criança, Kit — disse ela, inconscientemente usando o apelido dele que não usava desde a infância. E quando o usou, ele
estremeceu um pouco, como se doesse. — Tenho minhas preocupações, sabe disso. Mas o mesmo acontece a muitas outras pessoas. Eu me
queixei?
— Não — ele respondeu, distraidamente. Suspirou: — Então, não vai confiar em mim, não é, querida? Não sei como ajudá-la. Agora. Mas,
pensei que poderia representar algum alívio...
Ficou surpreso quando ela subitamente explodiu apaixonadamente:
— Nada poderá jamais ajudar-me! Ninguém jamais poderá ajudar-me! Oh, Deus! Gostaria que me deixasse em paz, Kit! — E apertou
subitamente as palmas das mãos de encontro ao rosto, mexendo-se violentamente na chaise-longue.
Ele esperou, sem tocá-la. Após longos momentos, ela deixou cair as mãos e mostrou-lhe o rosto, totalmente, e ele estava desfigurado e
convulso.
— Vá embora, por favor, Kit! — murmurou.
Ele se levantou, como para ir-se, mas ao invés caminhou vagarosamente de um lado para outro pelo quarto, cabeça abaixada, como se
pensasse. Ela o observava, aspirando e expirando convulsivamente, como se chorasse. Mas seus olhos sofredores estavam enxutos e
vigilantes. As mãos estavam enclavinhadas, as unhas branqueando sob a pressão.
Então ele parou ao lado dela, e ficou subitamente severo:
— Tem de confiar em mim, Celeste. Tem de falar a alguém. Quem mais você tem, além de mim? Lembra-se como recorria a mim para tudo...
Ele se deteve, pois que ela começara a sorrir com amargura, e os olhos fixos nele estavam brilhantes e duros.
— Teria sido melhor — disse ele, quietamente — se eu tivesse sido bem-sucedido há quinze anos atrás, quando tentei fazê-la casar com Henri,
não é verdade? Olhe, sei que está pensando agora que eu quase tive êxito em impedi-la de casar com Peter...
O que ele dizia era brutal, mas a resposta de Celeste foi amarga, e implacável:
— Se me tivesse casado com Henri então, tudo teria acabado para mim. Você sabia disso. Se mamãe não tivesse interferido, você poderia ter
tido êxito. Você não pensou em mim.
Sua natural crueldade acendeu-se nele, que proferiu violentamente contra ela:
— Tudo isso é requentar o velho lixo, não? Mas quero lembrar-lhe, minha querida, que “não acabou tudo para você” desde que voltou. Acabou?
— Acrescentou, quando ela apenas o fitou com terror: — Olhe, sei muito, queridinha. Sei que não pensou que estaria pondo em perigo a sua
alma imortal, ou coisa assim, ao cabriolar por aí com Henri por algum tempo...
Ela sentou-se, rigidamente, o rosto desfigurado por um pavor tremendo. Não podia falar. As mãos lhe caíram, flácidas, nos joelhos. Ele não
pôde aguentar vê-la assim, e sentou-se rapidamente ao lado dela. Pegou uma de suas mãos, frias e rígidas. Porém ela apenas olhou para ele,
sem poder falar.
— Celeste, tem de confiar em mim, querida — ele instou. — Pois não vê que não há ninguém mais? Realmente acredita que eu a trairia,
agora?
Esperou. Porém ela ainda não podia falar. Ele a sentia tremer.
Com a mais gentil das vozes, ele continuou:
— Olhe, eu soube de você e Henri há muito tempo, desde o começo...
Ela o interrompeu em voz alta e áspera:
— O que eu gostaria de saber é: quem não sabe a este respeito?
Ele franziu a testa, espantado:
— Acho que ninguém sabe, a não ser você, eu e Henri.
— Pois perca as suas ilusões, Christopher — disse ela, nesse tom de voz fora do natural, alta e brilhante: — Parece que, praticamente, todos
sabem.
Ele deixou que ela puxasse a mão que estava na dele. Estava enormemente perturbado:
— Não, Celeste, está enganada! Sei disso. As pessoas mais interessadas, por exemplo: Annette e Peter, não sabem. Isso é tudo que importa,
não é?
— Então, quem lhe disse?
Ele esperou um momento, depois disse, calmamente:
— Henri.
Ela o fitou, totalmente incrédula. Então, forçando a voz através dos lábios ainda rígidos, gritou:
— Não creio em você! Ele não... Você está mentindo!
— Ele o fez! — afirmou Christopher, inexoravelmente. — Desde o princípio. Discutimos isso.
Agora seu rosto perturbado ficou carmesim e os olhos estavam nublados:
— Você... você discutiu isso! — ela repetiu, numa voz abafada. — Você, meu irmão...
— Deixe de ser uma idiota romântica e sentimental! — ele exclamou. — Claro que discuti o caso com ele! Quando descobri. Afinal de contas,
você é minha irmã, sabe? Se você fosse vagabundear por aí, eu quereria descobrir por que, e desejaria evitar que sofresse. Eu sabia o que era
ele; sempre soube. Sempre soube, também, que as mulheres não eram importantes para ele, apesar de que sempre a quis. Sei que ele é
vingativo e que seduzi-la... eta palavrinha vitoriana!... o faria sentir-se completamente satisfeito, depois de você ter-lhe dado um pontapé há
alguns anos. Eu não ia ficar por perto para vê-la sofrer... não se pudesse evitá-lo. De modo que... discutimos o assunto.
Uma vergonha horrível a percorreu toda! Pôs as mãos na garganta, e desviou a cabeça. Ele estendeu a mão para tocá-la, depois retirou-a.
— Sejamos sensatos, minha querida — ele disse, mais gentilmente. — Sem dúvida você sabe que ele sempre odiou a todos nós. Até você,
provavelmente. Voltou para esmagar-nos. Ele queria você, e vi que se você casasse com ele eu teria um aliado de qualidade, embora seja um
maldito suíno traidor. Você estragou os meus planos, e casou com Peter. Depois voltou. Vi logo que havia algo entre vocês. Talvez você tivesse
crescido, e visse que na verdade o desejava. Não a estou censurando. Mas sabia que provavelmente você sofreria. Por isso o obriguei a
discutir o caso comigo.
— Você o obrigou... — repetiu Celeste, e agora ele viu que ela estava sorrindo desdenhosamente. E ante o sorriso dela seu rosto sombreou-se
malignamente. — Você não está me dizendo a verdade — acrescentou Celeste. Quando ele não replicou, ela se voltou para ele e seu sorriso
era muito malévolo: — Não está mesmo, não é?
E então ele percebeu que devia ser sincero com ela, se queria aliviar-lhe a agonia e garantir a sua confiança. Apertou os lábios, depois olhou
para ela diretamente:
— Não, não completamente — falou. — Isto é: não lhe estou contando tudo. Mas o que não lhe estou contando, não importa. Digamos, por
exemplo, que eu descobri, e falei com ele a esse respeito.
Ela ficou parcialmente desarmada pelas palavras dele. Voltou-lhe o rosto novamente:
— Que lhe disse ele? — ela perguntou de modo quase inaudível.
— Disse — continuou Christopher, com renovada gentileza — que pretendia divorciar-se de Annette, após a morte de Armand, e casar com
você. E tenho razões para acreditar que estava falando a verdade. — Acrescentou: — Ele quer filhos: não é só você, minha cara!
Ela estava silenciosa. Mas agora toda a amargura e dureza haviam desaparecido de sua expressão, que estava pesarosa. Suspirou,
pressionou os olhos com os dedos, deixou-os cair, e olhou fixamente para as janelas que se abriam ao ar de abril.
— E depois -— ele continuou — descobri que você não o tem visto desde janeiro. Não, ele não me contou. É um diabo fechado! Mas descobri,
talvez por intuição. Por que, Celeste? Sei que não é por culpa dele, e sim sua. É por causa de Peter?
— Não — ela disse claramente. — Não foi por causa de... Peter. Sei que me acha histérica, mas não começo algo para terminá-lo
emocionalmente, sem uma razão. Se tivesse sido... Peter, eu nunca teria começado.
— Por que então, querida? Você não estava cansada do “caso”, estava? — Quando ela não respondeu, ele disse: — Eu realmente não tenho
meios de saber, mas tenho uma ideia de que você também não disse a ele por quê. Não tem muito boa opinião dele, o bastante para dizer-
lhe?
Ela ainda não o olhou, porém, seu perfil se tornou rígido e muito pálido. Torceu os dedos, e disse calmamente:
— Não ousei. Havia muitas outras coisas a considerar, coisas mais importantes do que nós.
Ele ficou perplexo, abriu a boca para mais perguntas, mas não falou. Fixou a atenção no perfil dela, e seu próprio rosto se contraiu, tomou-se
extremamente pensativo. Ele era sutil e excessivamente intuitivo. À medida que suas deduções progrediam tornou-se incrédulo, sacudiu a
cabeça uma ou duas vezes como se discutindo consigo mesmo; depois, como “lia” no rosto da irmã com crescente nitidez, sua incredulidade
desapareceu.
Disse, reflexivamente:
— Não creio que alguém haja tentado injuriá-lo. Ninguém ousaria.
Contudo, mesmo ao dizer isso, dúvida e alarma se avivaram nele. Levantou-se e começou a caminhar de um lado para outro novamente, a
passos acelerados. Finalmente, parou aos pés da chaise-longue e disse:
— Talvez tenha razão. Posso ver isso. Mas, por que não lhe disse, ao invés de acabar com tudo deste jeito?
Ela falou, em voz surda:
— Quem jamais lhe pôde dizer algo? Ele é demasiado brutal, egotista demais. Quem jamais ousou erguer a mão contra o poderoso Henri
Bouchard? Sim, ele pensaria isto. Sempre pensou assim. Esquece que todo homem é vulnerável, especialmente aquele que só pensa em
destruir seus inimigos.
Christopher sentou-se rapidamente perto dela outra vez:
— Celeste — falou, com insistência — quanto ele lhe disse?...
Ela deu de ombros, impaciente:
— Muito! Isso importa? Sei que se lhe disse, não adiantaria nada. Ele não ouviria. Tem tamanha presunção! Assim, tive de fazê-lo por mim
mesma. — Então teve uma expressão de dor enorme, e suspirou repetidamente: — E agora, suponho, para ele está tudo acabado. Mesmo que
eu explicasse, após certo tempo, quando fosse seguro, ele não se importaria.
Mas Christopher apenas ficou ali sentado, a esquadrinhá-la.
A precaução dela, seu controle, tinham acabado. Ela continuou, em voz mais alta e rápida, esfregando as mãos, encolhendo-se como se
estivesse gelada:
— Eu sabia que não poderíamos... voltar... a ver-nos, enquanto Armand vivesse. Seria fatal para ele. Eu não poderia vê-lo até que se
divorciasse de Annette. E, tudo considerado, ele não poderia fazer isso até que Armand morresse. Havia tantas coisas... As pessoas são tão
perversas
Ela falava incoerentemente. Depois não pôde dizer nada mais, e ficou silenciosa. Sentindo sua impotência, estendeu as mãos num gesto de
desolação.
Finalmente, murmurou:
— Eu lhe direi, algum dia, quando for seguro. Mas aí ele já não se importará. Escrevi-lhe: nunca tentou ver-me novamente. Outrora me dissera
que, se eu o mandasse embora, ele nunca voltaria. Assim, ele nunca voltará.
Christopher estava cheio de piedade por ela. Pôs a mão na dela:
— Sim, ele voltará. Tudo que você tem a fazer é mandar chamá-lo. Sei disso.
Porém ela balançou a cabeça, com profunda convicção:
— Não, não voltará. — Acrescentou: — Mesmo quando eu explicar, ele não voltará. Estará furioso. Sentirá que eu o insultei ao sugerir que era
vulnerável. Como vê, conheço tudo a seu respeito.
Christopher começou a falar, depois calou-se. Seu rosto estreito e descolorido subitamente corou um pouco. Balançou a cabeça levemente,
para si mesmo. Depois, com resolução, pôs as mãos nos ombros da irmã e a forçou a voltar-se para ele. Olhou bem dentro dos seus olhos
desolados. Disse, maciamente:
— Acha que ele não voltará... quando for seguro, claro... por causa da criança?
Agora o embotamento dos olhos dela se diluiu num súbito relâmpago de terror. Ela tentou arrancar-se das mãos dele, porém ele a segurava
firmemente. Sua boca se abriu completamente, de surpresa, e ele lhe viu o reluzir dos dentes.
— Celeste! — falou, agudamente, aterrorizado por ela.
Porém agora tinha uma força frenética. Livrou-se dele. Pôs-se de pé, tremendo como se tivesse sido golpeada. Gritou:
— Como é que sabe? Alguém sabe?
Ele se levantou. Sabia que tinha de acalmá-la, pois parecia prestes a uma fuga selvagem, e só Deus sabe a que excessos, em seu terror.
Agarrou-lhe os braços e a manteve segura, com mãos que eram gentis, porém firmes. Mas não podia suportar ver-lhe a expressão demente.
— Não, estou certo de que ninguém sabe, exceto eu. Afinal de contas, quem vem aqui? Você não tem estado com Annette há mais de um mês,
e tanto quanto sei, Henri nem olha para você, quando os visita. Edith não vem aqui já faz tempo, também. De modo que eu sou o único. E eu
não teria sabido, no que se refere a algum sinal externo. Chame a isto: minha intuição. — E ele sorriu ligeiramente, um sorriso que pretendia
tranquilizá-la. — Sente-se, querida. Cairá, se não o fizer. Assim, deixe-me ajuda-la.
Porém ela subitamente virou-se para ele e agarrou-se a ele em desespero, pondo a cabeça em seu ombro. Começou a soluçar, loucamente e
sem controle. Ele a rodeou com os braços, deixando-a chorar, sabendo ser este o seu único consolo. Pressionou-lhe a cabeça de encontro ao
seu ombro, murmurando palavras de ternura, compaixão e compreensão como nem a esposa nem ninguém jamais ouvira. E pela primeira vez
em muitos anos sentiu o velho enternecimento de seu coração pela irmã, a antiga emoção protetora.
Passou-se muito tempo até que ela relaxasse o suficiente para que ele a pusesse de novo na chaise-longue. O céu havia escurecido de modo
geral, mas para os lados do oeste ainda estava estático, de um azul profundo, com uma pequena nuvem fixada nele e orlado de um fogo pálido.
Celeste tremia tão violentamente que Christopher fechou a janela e lhe cobriu os ombros com a coberta do divã. Ela sentou, cabeça baixa.
Então, uma vez mais ele sentou junto dela, e a estudou com grave piedade:
— Por que não faz algo a respeito disso... antes? — perguntou.
Ela falou, em tom dificilmente audível, e sem levantar a cabeça:
— Poderia tê-lo feito. Mas Peter adoeceu logo depois... logo depois que mandei Henri embora. Ficou muito mal por perto de três meses.
Quase morreu, como você sabe. Não tive tempo... para pensar. Tive uma vaga ideia de que algo estava errado... em março. Mas tudo estava
tão confuso... Houve muitas noites em que pensamos que Peter morreria. E eu andava exausta! Não tinha tempo para pensar, em absoluto. E,
quando tive, não podia deixá-lo, mesmo para... isso. Continuei a esperar, pensando a cada dia poder deixá-lo um pouco, três ou quatro dias,
pelo menos. Porém ele continuava a piorar. Não podia mesmo deixá-lo. — Tomou uma respiração funda. — Então, na semana passada,
quando pude deixá-lo por algumas horas, fui a um médico em Filadélfia. — Fez uma pausa. Sua cabeça abaixou mais. Murmurou: — Disse-me
que era muito tarde. Nada podia fazer por mim. Ninguém podia.
Christopher não pôde deixar de dizer, alarmado:
— O médico a conhece?
— Não. Escolhi-o ao acaso. E, claro, não lhe dei meu nome.
— Há quanto tempo?... — perguntou Christopher.
— Mais de quatro meses, agora — ela murmurou.
Agora que tudo havia sido dito, Christopher estava aterrorizado. Procurou um cigarro, acendeu-o, fitou-o cegamente. Depois, ofereceu-o a
Celeste. Ela o tomou, ele acendeu-o para ela. As lágrimas lhe corriam pelas faces pálidas. Porém ele viu que ela agora estava mais calma.
— Você deve ter alguns planos, Celeste, não tem? Como para explicar isto... a Peter? — acrescentou, hesitante.
Ela replicou numa voz completamente inexpressiva:
— O médico de Peter afirma que ele morrerá a qualquer minuto.
Apesar do que era, ele se sentiu mal a estas palavras. Involuntariamente franziu as sobrancelhas.
— E depois disso? Depois que Peter morrer? Como irá você...
— Não posso ir-me — disse ela, com a calma do desespero. — Logo todo mundo virá a saber. Assim, todos hão de pensar que é filho de
Peter.
Ele não pôde deixar de exclamar:
— Espera que acreditem, Celeste?
Quando ela deu de ombros, pesadamente, ele viu o quanto ela estava aniquilada:
— Não importa. Não ousarão negar isso na minha presença. Se eu me for, terão razões para falar disso abertamente. Se eu ficar, e o farei, não
ousarão...
— Mas todos sabemos que você e Peter...
Ela ergueu a cabeça e lhe sorriu triste e completamente:
— “Todos vocês sabem.” Mas nenhum de vocês ousará dizê-lo abertamente.
Olhou-o duramente e seu frio sorriso era produto de extremo desespero. Ele sentiu uma compaixão dolorida e intensa por ela.
— Você é corajosa, minha bichinha! — disse ele, olhando-a com admiração triste e incrédula. — Sim, percebo o que quer dizer. Ninguém, a
não ser a família, duvidará. Mas não falará disso, a não ser em cochichos. Há o orgulho de família, sabe, e embora nos odiemos uns aos outros,
apresentamos uma sólida fachada a qualquer estranho. E depois de certo tempo, se você mantiver a boca fechada e a cabeça erguida, todos
fingirão com você. Uma espécie de pervertida lealdade de família. Sim, você pode escapar impunemente, se suportar a coisa e olhá-los de
frente.
E ele lhe sorriu afetuosamente:
— E Edith e eu, naturalmente, estaremos ao seu lado. Você e Peter têm tão poucos amigos que ninguém sabe de nada a respeito de seus
negócios.
Então teve um pensamento alarmante:
— E se Peter não...
Ela falou, calmamente:
— Em tal caso, claro que terei de ir-me daqui antes que se torne demasiado óbvio para ele. Tenho de poupá-lo a isso, você bem sabe. Nada
de confissões, e tudo isso, embora ele me desse todo o apoio moral, estou bem certa.
Houve entre eles um longo silêncio. Celeste terminou seu cigarro na pesada serenidade do desespero e da resolução. Mas o de Christopher
ardeu sozinho até o fim, em seus dedos descarnados. Depois ele disse:
— Há outra coisa: eventualmente, Henri saberá. Já pensou nisso? Que acha que ele fará?
— Esta é outra razão para que eu permaneça aqui, e enfrente tudo. Quando todos virem que espero que acreditem tratar-se do filho de Peter,
ele não ousará dizer nada. Até mesmo ele não ousará dizer nada. Você realmente pensa que ele esboçará uma atitude e anunciará ao mundo
que o filho é dele? Não, se é que conheço Henri!
— Sei, sei. Claro, você tem razão. Mas há outra coisa: você não acha que ele poderia precipitar as coisas, então, e divorciar-se de Annette?
Ela o olhou, assustada; depois sacudiu a cabeça:
— Não. Não sob as presentes condições. Não. Ele saberá que não deverá fazer isso enquanto Armand está vivo. Enquanto não for seguro para
ele fazê-lo.
Depois disse, tristemente:
— Acho que ficará muito satisfeito em estar fora disso tudo...
Subitamente, pôs-se a chorar de novo, beicinho tremendo infantilmente:
— De qualquer maneira, terei a criança — comentou, com simplicidade. — Já é alguma coisa...
Por algum tempo Christopher se divertiu com certos pensamentos maliciosos. Depois tornou-se cônscio de Celeste novamente, com renovada
compaixão e amor. Tomou-a nos braços e a manteve bem junto de si:
— Pobre querida! Você é um valente diabinho, sabe... Sempre foi. Deus a ajude!
Ela se afastou dele um pouco:
— Não tão valente — disse, imperturbavelmente. — Várias vezes pensei em matar-me.
Naquela noite, em Endur, Christopher contou a Edith sem emoção, e com um ar de indiferença. Conhecia sua força e ausência de perturbações
emocionais. Ouviu-o consternada, embora nada dissesse até que ele terminasse.
— Meu Deus, que terrível! — E, caracteristicamente: — Quão terrível para Henri!
Christopher sorriu desagradavelmente:
— Você quer dizer: quão terrível para Celeste, não é? Ou ainda tem aquela fixação por seu irmão, doçura?
Ela o fitou, os olhos castanhos cheios de uma expressão que ele jamais percebera neles, tão implacável, tão ameaçadora era.
— Não estará enganado, Christopher? — ela indagou, calmamente. — Está falando de sua própria fixação por sua irmã, não está? Não se
incomode. Disputando não iremos a parte alguma. —- Olhou-o plenamente, e agora seus olhos estavam turvos. — Você nunca me amou
realmente, não é, Christopher?
Ele estava a ponto de dizer alguma coisa, com a virulência de sua natureza, mas ficou quieto. Depois disse, reflexivamente:
— Creio que amei, sim. Sim, creio que amei.
Ela engoliu com dificuldade. Sentou-se diante dele em sua pungente franqueza, cruzadas as longas pernas. O cabelo castanho estava estriado
de linhas prateadas, mas o perfil moreno ainda era magro, firme e jovem:
— Você é um bruto, sabe... Mas já lhe disse isso muitas vezes. Como é mesmo que o chamam? “A serpente branca”. Nunca pensei isso a seu
respeito. Algumas vezes pensei que você me amava...
Ele repetiu, ainda pensativo:
— Sim, creio que amei.
— Acredito que esteja me dizendo a verdade. Sabe, sempre odiei um pouco a Celeste, por sua causa. Não creio que a odeie agora. Estou
contente de que me haja dito que me ama, Christopher — acrescentou, com simplicidade. — Nunca me disse antes, não com tantas palavras.
Ele ficou emocionado. Foi até ela, pegou-lhe a mão, depois inclinou-se e a beijou:
— É uma tolinha, Edith. Mas é a única mulher brilhante que já conheci, também. Gosto de mulheres brilhantes.
Ela ergueu os braços e os passou em torno do pescoço dele, puxando-lhe a cabeça de modo a poder beijar-lhe os lábios. O sorriso dela era
suave e trêmulo, a despeito das habituais linhas duras em volta de sua boca:
— Você me magoa o tempo todo, seu suíno. Mas não pode deixar de ferir alguém... Compreendo-o, sabe... Bem, obrigada por pequenas
gentilezas, queridinho. Sei que nunca disse a qualquer outra mulher que a amava.
Afastou-o dela, com uma risadinha, de que ele compartilhou. Então ela franziu as sobrancelhas pensativamente:
— Sua querida irmãzinha tem coragem! — ela confessou, resmungando. — Nunca havia notado isso. Então, estamos numa conspiração de
silêncio, hem? Você não acha que haverá dificuldades com Henri?
— Não. Óbvio que não. E quando Peter morrer, e praza a Deus que seja logo!, Celeste será tratada ternamente pela família, pelo menos em
público. Com você na vanguarda, como a mais terna. A família a teme um pouco, meu doce anjo. Não ousarão rir-lhe no rosto.

Capítulo 41
Peter sabia: cada dia que vivia era um dia tomado de empréstimo à morte. Soubera disso com a mente, porém não com a plena consciência
de seu corpo e espírito juntos. Era como um fato estabelecido pelo frio intelecto, mas nunca aceito pelos sentidos e as emoções.
Porém nesse dia de maio acordou de manhã cedinho, antes da aurora. Embora ainda estivesse muito escuro, a obscuridade tinha essa
penetrante qualidade da terra que precede imediatamente o nascer do sol. Era uma animação, uma consciência de tudo, essa qualidade,
como se ele estivesse de pé numa escura antecâmara olhando para uma porta maciça e fechada atrás da qual fervilhasse muita vida e grande
movimento, invisível e despercebido. Havia acordado, e embora estivesse cônscio de um imenso cansaço e torpor em seu corpo, sua mente
estava anormalmente clara, vivida e alerta. Quando movia as mãos, mal sentia o movimento, tão entorpecida estava a sua carne; e estava muito
espantado por descobrir que a pressão do leito sob ele mal era percebida por seu corpo. Prestou ouvidos à escuridão, à sua substância clara
e oca. Não podiam ser vistas as janelas de seu quarto. Tudo era impenetrável, e cheio de paz.
Então, àquela paz vasta e vazia, imóvel e sem fôlego, chegou o primeiro fraco murmúrio das brisas da aurora, macias, sussurrantes como as
notas dos instrumentos de madeira de uma orquestra. Murmuravam solenemente, mal se movendo. Lentamente se aprofundaram, tornaram-se
mais fortes. As árvores recentemente cobertas de folhas se moviam e erguiam seus ramos e suas vozes, tornando mais fortes as leves notas
distantes. Agora, em toda a volta, vindas das escuras colinas imóveis, do vale distante e do rio longínquo outras vozes se erguiam. O tremolo
dos pássaros começou a canção, até que todo o ar vibrou, atravessado por notas douradas...
Peter se ergueu pesadamente na cama e afastou uma cortina. A terra ainda estava sob um mar escuro e ventoso, porém por trás das colinas a
leste havia uma linha de fogo brilhante, moldando a silhueta das colinas. Esse fogo corria eletricamente pelas orlas, e acima o céu vibrava
lentamente num rosa trêmulo, estriado de fina flama. Agora o coro de mil vozes se intensificava, exultante; o vento aumentou o tempo de suas
notas de violoncelo; a doce flauta dos pássaros se tornou de uma tal pungência cristalina que Peter sentiu que lágrimas lhe assomavam aos
olhos.
Nunca lamentara a necessidade da morte. Sempre estivera tão ocupado, tão ansioso, tão atormentado, que nunca sentira que a morte podia
alcançá-lo, pessoalmente. Pelo menos, nunca sentira isto com suas emoções. Sentia agora. Estava cheio de ativo pesar, com tristeza
imensurável, e uma nostalgia que era como uma dor insuportável em seu coração.
Preocupado sempre com as agonias dos homens, com injustiça, crueldade, loucura e fúria, estivera por demais absorvido para concentrar-se
em contemplação. Raramente pensara em Deus. Quando certos homens lhe haviam falado de Deus, ouvira com íntima impaciência. Que tinha
“Deus” a ver com os problemas terríveis e imediatos da humanidade? Era uma apoteose a ser tolerada apenas por metafísicos, por aqueles
que não tinham real consideração por seus irmãos. Na pior das hipóteses, “Deus” tinha sido o abracadabra dos pecaminosos, dos loucos e
dos tiranos. Se Peter pensara em Deus agudamente em sua vida, particularmente nos últimos anos, fora com raiva e ódio, detestando-o. Se
havia “Deus”, como fora Ele capaz de ficar em complacente silêncio todos esses anos, através da última década, vendo o que havia para ser
visto? Como podia Ele ter observado a degradação e violência da raça humana, a tortura de inocentes, mortes, lágrimas e desespero dos
indefesos, as multidões que morreram de mãos erguidas para os céus mudos — e não se haver comovido em Seu poder eterno e destruído
seus inimigos? Quantas preces incontáveis devem ter-se elevado dos guetos da convulsa Polônia para Deus silencioso e desatento! Quantos
gritos angustiados de socorro devem ter partido das celas ensanguentadas dos campos de concentração, das paredes calcinadas de igrejas e
sinagogas, das túrgidas sarjetas onde crianças morriam em tormento, de casas arruinadas e campos destruídos!
Mas os céus permaneceram mudos. Nem o menor sinal d’Ele, que declarara ser melhor que uma pedra de moinho fosse atada ao pescoço de
um homem e ele fosse atirado ao mar do que infligisse ele sofrimentos a um desses “pequeninos”. Milhares e milhares desses “pequeninos”
pereceram, as bocas entupidas com seu próprio sangue, braços estendidos para mães que não estavam lá... e Deus dormia, ou não se
importava. Os inocentes morreram sem socorro e sem consolo, em agonia, separados pelo homem, abandonados por Deus.
Então, por causa de seus pensamentos, devido à sua angústia pelos desamparados com quem ninguém se importa — houve em Peter um
ódio profundo e aversão por qualquer “Deus” que pudesse existir. Sentia seu espírito nu e solitário no topo de uma montanha desolada,
amaldiçoando Deus pelo horror que infligira aos homens. Não havia justificativa; as desculpas e explicações dos sacerdotes era idiota e
ultrajante loquacidade, resmungos de imbecis que deviam ter sua mágica idiota mesmo em face da agonia desesperada do mundo. Havia
quem declarasse que Deus estava “testando” a humanidade por meio desse horrível espetáculo de depravação humana e humano sofrimento.
Havia os que prometiam que aqueles que morressem desamparados, e em tortura, entrariam num “mundo melhor”.
Contudo, para Peter nenhum “mundo melhor” justificava o último estertor na garganta de uma criancinha. Que eras de bem-aventurança eterna
poderiam jamais apagar a lembrança final dessa morte, daquela desesperança? Se o inimigo pagasse e pagasse através da eternidade por
sua crueldade e sua loucura, não seria o suficiente para tirar dos registros do tempo o vidrado dos olhos confusos e sofredores de uma criança,
enquanto morria em solidão e dor. Simplesmente não havia explicação, nem desculpa para•o derradeiro patético erguer da mão de uma
criança moribunda, para o último grito selvagem da mãe a buscar em meio a ruínas o corpinho brutalmente assassinado, para o último gemido
de um homem num campo de concentração. Não havia perdão para os homens que fizeram tais coisas. Não havia perdão para o Deus que as
permitiu.
O ódio e a aversão de Peter por “Deus” se estendiam às vis criaturas que Ele criara, a todo o mundo.
Agora, enquanto observava a amanhã surgir por sobre as colinas, estava dominado por sua dor. Um sofrimento universal o invadia. Ele sentia a
tristeza universal da Terra. E por fim, nele, o ódio se foi deixando apenas lágrimas e tristeza. Viu que o atormentador sofria igual à sua vítima,
que no fim morria em igual angústia. Assim a tristeza de Peter, muito funda para o desespero, profunda demais para palavras. Sentiu a dor
universal através de seu espírito, sentiu um sofrimento enorme demais para algo que não fosse a prece, para nada além da compaixão.
E com isso ele soube, com todas as suas emoções, que estava para morrer.
A ideia, assim de repente, trouxe-lhe uma paz solene e infinita. Observou a aurora brilhando, ouviu as vozes triunfantes da Terra. Mas não sentiu
alegria com sua paz, nem realização. Não pôde enganar a si mesmo que “compreendia”. Apenas aceitou. Sentia-se contente por estar a ponto
de morrer. Esperava apenas que não houvesse lembrança. Quão pavoroso seria carregar para a eternidade a lembrança do horror dos
homens, da indiferença de Deus, da misteriosa desesperança do mundo!
Quando Celeste entrou maciamente no quarto dele às sete e meia, pensou que Peter estivesse dormindo. Porém quando se aproximou da
cama, viu que seu rosto estava voltado mudamente para a janela, onde ele podia ver o sol da manhã nos topos das árvores. Virou-se para ela,
quando teve consciência de sua presença, e sorriu.
Ela disse para si mesma:
“Está morrendo!”
E então lhe pareceu que havia em seu coração uma dor dilacerante, sufocante, despedaçadora. Ajoelhou-se ao lado da cama e tocou a mão
dele. Sentiu-lhe a frialdade, a dureza esquelética dos dedos. Ela não pôde falar. Fitou-lhe os olhos, e permaneceram assim por longo tempo,
olhando-se profunda e mutuamente na alma e no pensamento.
Finalmente Celeste deitou a cabeça no travesseiro, ao lado da do marido, e continuou ajoelhada, mal respirando, não pensando.
Por fim sentiu a mão dele em sua cabeça, acariciando-a gentil e lentamente. Quando ela ergueu os olhos, eles estavam secos e ardendo: viu
que ele sorria novamente. Sua voz, calma e fraca, veio de seus quietos lábios:
— Minha querida, parece tão cansada... tão exausta... Faria algo por mim? Saia hoje. Vá a algum lugar. Dê um passeio. Olhe, o sol está
brilhando, depois de uma semana de chuvas.
— Não.
— Você deve querida! — disse ele, com grande premência. — Isso me agradaria muito. Estou muito melhor, você bem sabe. Daqui a pouco
vou levantar-me e trabalhar um pouco.
— Não, Peter, não deve trabalhar hoje. Parece... tão cansado... Não dormiu muito, dormiu?
Ele não respondeu por um momento, depois disse, virando um pouco a cabeça no travesseiro:
— Não, não muito. Mas não faço exercício... Aqui deitado, ou sentado... isso não é muito.
Ela olhou seu perfil, tão emaciado, tão delicado e tenso com qualquer emoção, qualquer ânsia ou saudade. Mesmo assim, não era um perfil
pacífico. Era, sim, de profunda resignação e paciência exausta. Era tão forte a dor em seu coração que ela apertou as mãos no peito, e estava
cega de sofrimento.
Viu, por fim, que ele tornara a voltar a cabeça para ela e a contemplava com profundo e penetrante amor e compaixão.
— Celeste!
— Sim, querido! — ela sussurrou.
As mãos dele se moveram, inquietas, sobre o leve cobertor que o cobria:
— Você sabe, querida, e eu sei, que não me resta muito a viver. Gostaria de saber que, quando for livre, será feliz, que encontrará felicidade.
Em algum lugar. — Sua voz era muito gentil e muito calma.
— Peter — ela começou. E não pôde dizer mais nada. Mas as lágrimas chegaram, muito lentamente, a correr-lhe pelas faces. Ele levantou a
mão e, com um sorriso e um fraco suspiro, e com ternura infinita, limpou-lhe as lágrimas.
— Que é isso, querida! Não chore. Por que deveria chorar? De muitas maneiras fomos bem felizes juntos! Gosto de recordar quão felizes...
Não foi vida para você. Gostaria de pensar que você pode ser feliz realmente outra vez.
E novamente se olharam em profundo silêncio.
Celeste sentia-se morrer de dor. Pegou a mão dele e apertou de encontro a seu rosto.
— Ainda é jovem, minha querida! — ele disse, agora mais fracamente. — A vida não terminará para você. Sofreu muito em minha companhia!
Espero que esqueça tudo isso, e relembre as coisas agradáveis... as coisas que vimos juntos, as conversas que tivemos, os passeios, as
vezes que rimos, os novos lugares que visitamos, os amigos...
— Se relembrar tudo isso, não serei capaz de viver... — ela disse, de modo quase inaudível.
E então lhe pareceu que seu coração se quebrava e dividia num imenso e atormentado grito. Apertou o rosto no leito. E desatou em soluços.
— Perdoe-me, Peter! — gemeu. — Perdoe-me!
Suas mãos agarraram os lençóis e cobertores; puxaram-nos e se contorceram entre eles. Seus soluços estremeciam a cama. Esqueceu tudo
que não fosse sua angústia, desespero e remorso.
Só algum tempo depois se deu conta de que Peter não se havia movido nem falado, nem lhe respondera. Quando por fim ergueu o rosto
desfigurado, viu que ele a olhava com gentileza grave e firme, e com triste e apaixonada compreensão. Então ele levantou a mão e apertou os
dedos na longa mecha branca que mergulhava em sua cabeleira, a partir da testa. Levantou essa mecha e a moveu entre os dedos:
— Nunca vi isto antes, minha querida.
Ela abriu os lábios trêmulos para acusar-se novamente, porém ele sacudiu a cabeça. Repetiu:
— Nunca vi isto antes. Tenho estado tão cego, tão imperdoavelmente cego...
E então moveu a cabeça para poder beijar a branca marca do longo sofrimento dela. Ela sentiu a pressão dos lábios dele e fechou os olhos
num espasmo de agonia que lhe golpeou a consciência e fez com que tudo se desvanecesse em torno dela.
Quando o médico terminou sua visita diária a Peter, desceu para ver Celeste, que o esperava. Disse, gravemente:
— Ele está muito fraco. Naturalmente sabe, Sra. Bouchard, que ele pode ir-se a qualquer momento. Está descansando agora. Pediu-me
particularmente que lhe dissesse que fosse passar o dia fora. — Parou, parecia querer dizer algo, hesitou, e nada disse.
— Ele disse por quê? — perguntou Celeste.
— Há algumas pessoas — replicou o doutor — que desejam estar sozinhas quando... se dão conta. Querem pensar a respeito. Sabe, acho que
ele não se deu conta de tudo completamente antes... Mas agora, sim. Quer pensar. Não está sofrendo por isso. Parece muito melhor,
mentalmente, do que tem estado há já algum tempo. Fisicamente, claro, está muito mais fraco. — Estudou-a atentamente. Lembrou-se do que
dissera Peter por fim: “Sinto que está chegando. Quero poupá-la. Desejo ficar só. Ela não deve ficar aqui.” Naturalmente, isso era um absurdo.
Homens doentes frequentemente sentem assim, dizia o doutor para si mesmo. — Voltarei daqui a cerca de duas ou três horas. A enfermeira
está com ele agora. Acho que agradaria a ele se a senhora saísse por algum tempo.
Continuou, quando viu que ela não falava:
— O Sr. Bouchard tem razão, naturalmente. A senhora parece muito cansada e doente.
Com mais compaixão do que usualmente sentia por aqueles a quem servia, viu o quão transtornada ela estava. As pálpebras estavam
vermelhas e inchadas, os lábios brancos e ressecados. Ela ainda era jovem, mas parecia velha, especialmente agora, quando a mecha de
cabelos brancos caía em desordem pela testa.
— Iria fazer-lhe bem — instou. — Não faz bem nenhum, adoecer e tratar de um inválido. Este é o primeiro dia bonito em muito tempo. Por que
não sai por algumas horas, Sra. Bouchard?
Celeste acenou que não, porém ao afastar-se ele cogitou se o teria ouvido. Algo lhe chegou à consciência, a consciência de um médico. Havia
algo a respeito dela a que não dera atenção, em sua preocupação por Peter. Balançou a cabeça, impaciente, admirado.
Então, por fim, se deu conta do que era, e ficou profundamente espantado. Sim, ela estava com os seios muito cheios, a silhueta mais pesada.
Estranho que não houvesse notado tudo isso antes! Quão trágico, então, para a pobre jovem senhora! Imaginou quando... Lembrou, com a
maior perplexidade, que estivera atendendo ao Sr. Bouchard havia mais de seis meses. Durante esse tempo seu paciente estivera muito
doente, completamente acamado.
O doutor se deteve de chofre, sacudiu a cabeça, aborrecido. Não se deve pensar uma coisa assim. Um médico, especialmente, não deve
pensar coisas assim, e mais especialmente não de patrões ricos e poderosos!
“Bem podia ter acontecido! — exclamou para si mesmo. — Que outra explicação existe? Afinal de contas, ele não estava tão terrivelmente
doente, no princípio. Estranhas coisas acontecem! Ora, houve o caso do senhor Jonathan, que esteve acamado por dois anos com um coração
fraco, e sem poder levantar a cabeça do travesseiro. Mesmo assim sua esposa produziu um vigoroso bebê dois dias depois da morte do
marido! Assim, não era inconcebível...

Capítulo 42
Às duas horas, Celeste, usando um conjuntinho de lã preta e peles, e um pequeno chapéu preto com uma alegre pena vermelha, entrou para
comunicar a Peter que estava seguindo seu conselho e saindo para uma volta de carro. Fizera uma maquilagem cuidadosa e tinha muito boa
aparência. Peter olhou-a, suspirou intimamente, e lhe devolveu o beijo quando ela se inclinou sobre ele. A enfermeira sorriu bondosamente.
— Não se apresse em voltar — disse ele, apertando-lhe a mão enluvada. — Você mesma vai dirigir?
— Vou. Gostaria de estar só, no campo, meu querido. Tem certeza de que não vai precisar de mim?
— Absolutamente não! — ele respondeu, com imensa alegria. — A Srta. Broder está aqui. Vai ler um pouco para mim. Depois, talvez mais
tarde, vou escrever alguma coisa. Amanhã é dia de irradiação, você sabe.
Ela relanceou o olhar para ele e pensou:
“Certamente ele está melhor. Parece mais descansado. Está até levemente corado.”
Tornou a beijá-lo e saiu. Ele ficou a ouvir atentamente até o carro dar a partida. Então se ergueu ligeiramente e observou o pequeno carro
vermelho a descer rapidamente a longa entrada para carros. Ao fim do declive, deu a volta, rodando para o vale, e se perdeu entre as árvores
meio amareladas e as capoeiras. Depois tornou a recostar-se nos travesseiros, e suspirou repetidas vezes. Uma sombra acinzentada lhe
cobriu o rosto, e os olhos azuis-claros mergulharam fundo nas órbitas.
A enfermeira lhe trouxe a correspondência da manhã, sentando-se ao lado dele e abrindo as cartas, que lhe ia passando. Ele as lia
indiferentemente, deixando as folhas cair da mão, como se fossem demasiado pesadas para segurar.
— Ora, aqui está uma carta do estrangeiro! — ela exclamou. Espiou o selo: — Vem da França!
Ele ergueu a cabeça ansiosamente e lhe tomou o envelope da mão, examinando-o:
— É de Israel — disse. — Há dois meses não tenho notícias dele. É tão teimoso! Suponho que aqui esteja a resposta à minha carta pedindo-
lhe que obtenha um visto e venha para cá.
Rasgou o envelope com dedos trêmulos, recusando a ajuda da enfermeira. Caiu uma fina folha de papel, coberta com delicada escrita em tinta
azul. Peter começou a ler. Dizia:
“Meu querido, querido amigo: quando receber esta já não estarei na França. Estarei na Alemanha. Ouvi dizer que o Governo alemão tomou em
custódia dois caros amigos meus, como reféns contra meu retorno — para julgamento, dizem, por nefandos crimes contra o Reich. Meus
queridos amigos são pessoas boas e inocentes. Um deles era professor de ciências físicas na Universidade de Berlim. É um querido e
bondoso velho, que jamais fez mal a ninguém, que viveu num gigantesco e místico mundo próprio, no qual se movia com Deus.
Desgraçadamente seu Deus não foi capaz de protegê-lo, pois ele é judeu.
O outro amigo é o escritor Emil Meyer, que escreveu aqueles deliciosos e fantásticos semi-contos de fadas dos antigos deuses teutônicos.
Parece que não tinha direito de tecer suas histórias daqueles deuses porque ele, também, é judeu. Ambos os meus amigos estão em Dachau.
Prometeram-me que os soltarão, quando eu voltar. Não sei se essas promessas serão mantidas, pois não há mais homens na Alemanha, mas
apenas feras loucas. Entretanto, isso não importa. Sem dúvida, serei confinado em Dachau também, mas lá poderei ver os meus queridos
amigos e confortá-los — pelo tempo que nos restar para viver.
”Eu não devia ter saído da Alemanha. Não devia ter deixado meus amigos que sofriam. A humanidade tem obrigação de sofrer com seus
irmãos, não fugir, não desertá-los em suas aflições. A agonia de um é a agonia de todos.
“Não se entristeça por mim, meu amigo querido. Fiquei satisfeito. Sou um velho, e não posso viver vendo as coisas que estão sendo feitas
agora. Fique feliz com a minha morte. Deixe-me citar as palavras de Fausto:
"Eh bienl puiesque la mort me fuit,
Pourquoi n’trais-je pas vers elle?
Salutf O mon dernier matinl
J’arrive sans terreur au terme du voyage;
Et je suis, avec ce breuvage,
Le seul mmtre de mon destin!”

“Pois bem! já que a morte me foge,


por que não ir ao seu encontro?
Salve! minha última manhã!
Chego sem terror ao fim desta viagem;
E sou, com esta beberagem,
O único senhor de meu destino!”
(N. da T.)
A enfermeira, que estivera observando o seu paciente com aquela bondade afetada e adorável reservada quase exclusivamente para os ricos,
ficou alarmadíssima com o acinzentado funéreo que de súbito apareceu no rosto de Peter. Suas feições se tornaram atormentadas, e os lábios
azulados. O susto da enfermeira foi grandemente aumentado quando Peter a olhou com uma expressão vazia e entorpecida, o papel
escorregando-lhe da mão para a cama. E, quando se inclinou sobre ele, o rapaz falou, bem quietamente:
— Srta. Broder, gostaria de ficar só por algum tempo, por favor.
— Sente-se mal, Sr. Bouchard? — perguntou, ansiosa, sua mão quente estendendo-se para tocar-lhe a testa. Porém ele afastou a cabeça e
repetiu, muito gentilmente:
— Por favor, gostaria de ficar só.
Então ela o deixou, demorando-se, com grandes olhares de ansiedade. Fechou a porta ao passar, mas ficou de pé junto dela. Finalmente, foi
telefonar para o médico.
Peter observou a enfermeira sair. Depois que a porta se fechou, pegou a carta do Barão Opperheim e tornou a lê-la, cada palavra, lenta e
cuidadosamente. Por fim sua mão caiu; a carta flutuou até o chão.
Peter voltou a cabeça e olhou o brilhante sol de maio a jorrar pelas janelas, tocando o tapete, as colunas da cama, o lado da cômoda, as
alegres lombadas dos livros em uma pequena estante perto da lareira. Olhou o intenso e quente azul do céu, e o desenho das folhas verdes que
tremulavam contra as janelas. Tudo estava silencioso, a não ser pelo leve sussurro das árvores, o sonolento zumbido da máquina de cortar
grama nos amplos gramados perto da casa.
Não sentia dor no coração. Sentia apenas um completo desalento, total e pesada desolação que era como o peso esmagador de grandes
pedras em cima dele. Sob esse peso ele não podia respirar nem mover-se. Tristeza era palavra muito insignificante para o que estava
suportando. Era como se a última frágil esperança, a derradeira sensação de paz se tivesse ido para sempre, deixando-o por fim face a face
com a mágoa profunda e a agonia muda da eternidade... “Salve! minha última manhã! Chego sem terror ao fim desta viagem!” — dissera
Fausto, e Israel o citara. “E sou, com esta beberagem, o único senhor de meu destino!”
Mas Peter não podia sentir a nobreza e a grandiosidade das palavras. Sentia apenas o mortal desperdício, a angústia pavorosa e inútil, a
imortal desesperança!
De repente não pôde mais suportar isso. Ergueu-se nos travesseiros e gritou furiosamente, e em agonia moribunda, para a luz do sol, para o
céu infinitamente azul:
— Israel! Israel!
Seu corpo se contorceu de ódio contra o céu e o sol, contra o Deus que não erguera a mão para evitar a tragédia de todas as eras. Vasto caos
tombava diante de seus olhos ofuscados. Vastas montanhas se erguiam em existência tumultuosa, desmoronavam numa névoa vermelha;
milhares de fragmentos brilhantes explodiam ante sua visão. Perdeu toda sensação de integração; era uma centelha de ardente maldição a
rodopiar num espaço pesado e ilimitado, uma centelha que pranteava e maldizia, e implorava numa furiosa ventania de imprecações e
agonizante desespero...
De alguma forma, nessa imensa confusão ele sentiu na boca um gosto de sal quente, que aumentou para uma inundação sufocante. Sentiu-se
cair no vácuo, numa escuridão enorme, cheia de dor...
Abriu os olhos lentamente, como se tivesse pesadas pedras sobre as pálpebras. A luz do sol ainda enchia o quarto. Não havia sensação em
seu corpo. Estava apenas fracamente consciente.
Então se deu conta de que Annette estava sentada ao seu lado, a segurar-lhe a mão. Seus cabelos brilhantes formavam uma auréola luminosa
e suave em torno do seu rosto. Os grandes olhos azuis se fixavam nele, seus lábios tremiam. Ele a via através de um nevoeiro. Atrás dela havia
formas confusas. Não sentia curiosidade a respeito delas, embora vagamente compreendesse que eram dois de seus irmãos: o cinzento
frígido Francis, de olhos azuis-gelo, o pequeno e moreno Jean. Emile, o “inchado rato preto”, e Armand, e Christopher, irmãos de Celeste,
também lá estavam, e Agnes, esposa de Emile. Atrás da porta, esperando e preocupada, Estelle, esposa de Francis, e Alexa, a pobre gorda
estúpida, esposa de Jean, e outros parentes e vários amigos.
O médico se achava lá, também, e a enfermeira. Peter a ninguém via claramente: só Annette. Como a olhasse, ela lhe sorriu docemente,
apertou-lhe a mão, e curvou-se para ele:
— Meu querido — disse, suavemente — é Annette.
— Sim — ele sussurrou. Olhou-a, e houve em seu olhar uma súbita intensidade.
— Estamos procurando Celeste — falou Annette, apertando-lhe mais a mão. — Logo será encontrada.
Porém ele ainda a mirava com aquela brilhante intensidade que parecia sob o cintilar de seus olhos.
Não sentia dores agora, nem tristeza, ou sequer desespero. Estava apenas supremamente consciente.
Relanceou os olhos para Annette e viu, com conhecimento súbito e profundo, que ali estava outra igual a ele, vulnerável, gentil, compadecida e
desprezada. O derradeiro forte fluxo de seu espírito partiu para ela em reconhecimento e fraternidade. E ela o contemplou também, os enormes
olhos azuis se alargando e aprofundando, com a compreensão de seu reconhecimento. Chegou ainda mais perto dele. Curvou-se sobre ele.
Comunicaram-se em silêncio, em tristeza, e ternura.
— Sim — murmurou Annette. — Sim, meu querido!
Tocou-lhe com os lábios as frias faces descarnadas. Lágrimas lhe inundaram o rosto. Quando conseguiu enxergá-lo novamente, viu que ele lhe
sorria.
... Suas pálpebras estavam tão pesadas... “Vou dormir um pouco” — ele pensou. Surpreendia-o, vagamente, que não houvesse sensação em
sua carne...
A escuridão por trás de suas pálpebras era suave e espessa, mas cheia de vida expectante, como a hora antes do amanhecer. Rendeu-se à
escuridão. Um estranho conforto se insinuava lentamente através dele, a mais doce das consolações, como se um amigo tivesse sorrido e
falado. Ouviu uma voz, fraca como se viesse de longe, mas perfeitamente clara. Chamava por seu nome. Ele tentou responder, e ouviu sua
própria voz ecoando de volta para si mesmo na noite, como se viesse de mil lugares ressoantes. Subitamente ficou apavorado, cheio de horror.
Então o chamado se repetiu, mais perto, mais forte, tranquilizante. Havia agora uma vaga luminosidade, o som de passos que se aproximavam.
Alguém, na penumbra, que era agora um nevoeiro prateado, pegou-lhe a mão, segurou-a firme e calorosamente — e ele sentiu a presença de
alguém amado!
Ele sabia, agora! Sentia-se inundado de luz, alegria e paz! Agarrou-se à mão que segurava a sua. E lá se foi pelo espaço, espiando através da
névoa as feições do amigo.
— Israel! — disse.
Ao longe, da escuridão que havia deixado, ouviu o som de choro. Hesitou, recuou da força poderosa da mão do amigo. O choro lhe dilacerava
o coração.
— Venha — disse o amigo, com urgência... — Venha! A manhã chegou!

Capítulo 43
Cornell Hawkins olhou longa e pensativamente para seu visitante. Então, este era o mais formidável e o mais terrível dos Bourchads, este
homem forte e atarracado, com um topete de cabelos grisalhos a partir da testa ampla e brutal, e os descorados olhos implacáveis que eram
tão opacos como pedra polida... Há muito Hawkins desejava conhecer esse homem em pessoa; tivera muita curiosidade a seu respeito. Esse
rosto largo e de feições pesadas raramente aparecia nos jornais, como raramente se mencionava sua vida particular. Havia-se movido invisível
e obscuramente, como fazem os deuses, percebendo-se apenas seus prodígios, apenas a mais vaga das sombras gigantescas atiradas no
vasto horizonte dos acontecimentos.
Por sua vez, Henri Bouchard contemplava o Sr. Hawkins Com igual curiosidade, oculta e impassível. Porém pensava:
“Calculo o quanto aquele pobre coitado lhe terá dito, a meu respeito, a respeito da família?”
Ao seu primeiro olhar ao Sr. Hawkins, soube que ali estava um homem que seria inútil tentar interrogar, examinar, embora habilmente isso fosse
feito. Henri conhecia os nativos da Nova Inglaterra, sua reserva clássica, sua fria aristocracia, constrangimento e gelada sutileza. Qualquer
pergunta, não importando o quão delicada, encontraria uma glacial atitude evasiva ou um silêncio de censura. Por isso Henri admirava o Sr.
Hawkins, e seu rosto se animou com amável interesse. Acima de tudo, admirava aquela aristocracia de espírito que o outro homem
personificava, uma aristocracia nunca venal, nunca insignificante ou desprezível, nunca maldosa ou mesquinha.
— Naturalmente, eu sabia que Peter estava muito doente — falou Hawkins, em voz baixa. — Disse-me, certa vez, que não viveria muito. Mas
nunca se sabe... Já vi muitas pessoas viverem até uma vigorosa idade avançada, sempre “morrendo”, e fazendo testamentos e últimas
vontades. E convocando os parentes para o seu leito de morte. Eu... esperei que fosse este o caso com Peter.
Sorriu de leve, mas sua expressão era triste.
— Se soubéssemos que o senhor e ele eram tão amigos o teríamos convidado para o enterro — disse Henri. — Porém pensamos que o
relacionamento entre vocês fosse puramente o que existe entre autor e editor. E os editores nem sempre são amigos dos autores que editam,
não é mesmo?
— Não — replicou Hawkins.
Seu sorriso era um tanto severo, ao pensar em alguns dos seus autores. Pensou também que bem gostaria de comparecer ao funeral de
alguns deles — contanto, claro, que primeiro tivessem feito entrega de um ou dois últimos lucrativos manuscritos para serem publicados
postumamente. Via alguns deles agora, com seu olho interno. Miseráveis, presunçosos, e canalhas exigentes! Quem inventou, algum dia, a
lenda de que os autores se movimentavam sonhadoramente muito além dos domínios repulsivos das finanças? Alguém, evidentemente irritado
por encontros recentes com autores, observara que o autor médio podia exceder em esperteza e superar no regateio o maior barbaça de um
bazar levantino. Hawkins apenas conhecera um ou dois grandes autores em sua vida, e tinham sido homens bondosos e modestos, sem
afetação, pose ou ganância. Mas o autor médio, que apenas a si mesmo considerava grande, era uma espécie perniciosa de voz
peculiarmente penetrante e exigente, com uma enorme vaidade, e deliberadamente fingindo ser temperamental. Ou por vezes era um animal
gordo e relaxado, de expressão arrogante, grande predileção por bares e mulheres desordeiras. Esses eram bastante maus, pensou Hawkins.
Eram superados em aborrecimentos apenas por autoras. Disse:
— Peter e eu éramos muito bons amigos. — E novamente sua expressão entristeceu. — Onde está enterrado?
— No cemitério da família, em Windsor. Perto da mãe dele. O pai, o senhor deve saber, morreu no Lusitânia. Há apenas um monumento a ele.
Peter era louco pelo pai.
— Eu sei. Peter me falou a respeito dele.
Hawkins olhou para além de Henri. O céu de junho estava cinzento, com espessas nuvens de chuva, porém por entre algumas de suas dobras
um fraco resplendor tremulava em longas e largas faixas.
Agora havia silêncio no escritório. Hawkins tinha alguma ideia do que trouxera Henri Bouchard até ele, mas não pretendia tornar a aproximação
mais fácil para esse homem inflexível.
Henri estava colocando um envelope na mesa de Hawkins:
— Encontramos esta carta, endereçada ao senhor, entre a papelada de Peter. Eu a teria trazido mais cedo, mas fui nomeado testamenteiro
dos bens de Peter, e houve algumas questões a que atender.
— Obrigado, Sr. Bouchard. Mas, poderia tê-la enviado, sabe. — Hawkins tocou gentilmente o envelope.
— Sim. Mas queria falar-lhe a respeito do livro de Peter — disse Henri, após ligeira pausa. — Pelo que sei, está para sair na próxima semana.
Hawkins acenou que sim. Observava Henri acuradamente.
— Vi as provas — continuou Henri. Sorriu indulgente. — Ele tem ali uma porção de excelentes informações, de fontes seguras. Porém escreve
melodramaticamente.
Os olhos de Hawkins se tornaram reservados e retraídos.
— Sabe, existe uma ideia errônea — falou, secamente — de que uma coisa só é verdadeira quando seca e dura como uma crosta bolorenta.
Quando toda vida se evaporou dela. E, perversamente, se uma coisa é colorida, forte e veemente, a tendência é julgá-la ficção. Por quê?
Apenas as coisas mortas são verdadeiras, e mentiras as vivas e brilhantes?
— Então o senhor aprova seu estilo flamejante? — o olhar de Henri era um tanto irônico.
O Sr. Hawkins estava aborrecido:
— Nunca achei necessário vestir a verdade em roupas lutuosas. Poderia até dizer que as coisas mortas não são verdadeiras. Se o fossem,
estariam ainda vivas. E a verdade, como a mulher bonita, merece cor e paixão.
Agora também o sorriso de Henri era irônico. Porém Hawkins percebeu que não passava de pose. Disse, abruptamente:
— Temos as melhores intenções do mundo de dar a este livro, The Fateful Lightning, todas as possibilidades de êxito. Isto é o que deseja
saber, não é, Sr. Bouchard?
Henri ficou surpreso ante tanta agudeza. Como todos os homens de sua espécie, ele subestimava a inteligência e a percepção de outros
homens. Disse:
— Sim. Isto é o que eu desejava saber. Quero que esse livro seja bem-sucedido, Sr. Hawkins. Quero que tenha toda a publicidade que é
possível obter. Quero que seja ampla e persistentemente anunciado. Quero que todos os jornais tragam anúncios grandes e chamativos, todos
os dias, durante meses. Talvez durante anos.
Hawkins estava silencioso. Aguardava. Deliberadamente, então, Henri puxou seu talão de cheques. Hawkins ainda esperava, observava
enquanto Henri pegou a caneta e lentamente a destampou. Hawkins começou a sorrir. Perguntou calmo:
— Por quê?
Henri não fingiu não o entender:
— Não conheço bem a respeito de publicidade — respondeu sorrindo. — Não estamos nesse negócio. Mas sei que custa muito dinheiro para
lançar um livro. A propósito: há grande pagamento antecipado sobre as vendas?
— Não conversei com o Sr. Dalton, nosso gerente de vendas, ultimamente — disse Hawkins, ainda a observá-lo. Sentiu-se muito maldoso: —
Entretanto, creio que anda por volta dos dez mil... embora possa ser mais ou menos.
— Isso não é suficiente — interrompeu Henri, testa franzida.
Hawkins não falou. Henri pôs a pena sobre um cheque e olhou firmemente para o outro homem, olhos atentos:
— Quanto, Sr. Hawkins?
— Para quê?
— Para dar a este livro um lançamento apropriado e larga publicidade — suas claras e espessas sobrancelhas se juntaram outra vez.
Hawkins recostou-se na poltrona, que estalou. Acendeu um cigarro e deu uma tragada. Através da fumaça, seus gelados olhos azuis cintilaram,
mas Henri não tinha certeza se de diversão ou raiva.
— Sr. Bouchard — começou o editor, após longo silêncio — disse que não conhece muito a respeito do negócio de publicidade. Concordo
com o senhor. Suponho que nunca lhe ocorreu que, algumas vezes, os editores publicam livros só porque esses livros têm valor intrínseco, sem
pensar nas vendas, já?
— Não — disse Henri, sorrindo — não me ocorreu. Isso acontece com frequência?
— Muita frequência. A coisa o surpreenderia. Digamos que o fazemos, talvez, pelo bem de nossas almas. Mesmo que percamos dinheiro
nisso... o que frequentemente acontece. Por vezes, sabe, nos sentimos mal por ter de publicar escória, mesmo quando essa escória chega a
trezentos mil exemplares, e o cinema a compra. Não pensou que alguns de nós possuem integridade, pensou?
— Não — repetiu Henri, francamente, e com um amplo sorriso. — Quem tem?
A raiva revolveu o peito de Hawkins. Levantou-se, abruptamente:
— Não precisamos do seu dinheiro, Sr. Bouchard. Faremos tudo que pudermos pelo livro de Peter. Temos uma grande verba para isso.
Henri afastou a caneta e o talão de cheques. Olhou sombriamente para Hawkins:
— Receio que não haja entendido. É muito importante para mim que esse livro seja amplamente anunciado, e largamente comprado. Não creio
necessário dizer-lhe por quê. Isso diz respeito só a mim. Eu não estava tentando suborná-lo. Estava só tentando garantir grande número de
leitores para o livro.
Deteve-se. Mas Hawkins não falou.
— Suponho que não fará objeções se eu cuidar para que o livro seja comentado por certos preeminentes locutores de rádio — disse,
sardonicamente.
— Nenhuma — replicou Hawkins, friamente.
— E se críticos o puserem em destaque?
— Acha que pode comprar os críticos, Sr. Bouchard?
— Posso tentar — Henri sorria outra vez, desagradavelmente. — Ora, não me diga que eles também têm “almas”. Talvez alguns deles tenham.
E talvez ainda mais não tenham. Ultimamente andei lendo críticas de livros. Alguns dos críticos ficaram extáticos diante da maldita escória
amor-sexo escrita por mulheres sórdidas, ou por homens que deveriam ser mulheres. Cheguei a ler alguns dos livros tão calorosamente
recomendados. A literatura americana vai mal, não, Sr. Hawkins?
— A literatura americana, Sr. Bouchard, é principalmente lida por mulheres — disse o editor, agora também sorrindo.
— Acha seja esta a explicação para a ênfase sobre mulheres?
— Mulheres gostam de ler a respeito de mulheres, confesso — disse Hawkins. — Também gostam de acreditar que os homens estão
interessados em mulheres. Por vezes se apressam para voltar para as mulheres. Quando os homens começarem a ler bastante, talvez
venhamos a ter melhor literatura na América, algo que se preocupe com as coisas da vida. Um Thomas Mann, um Feucht-wanger, um
Wassermann, não serão populares na América até que os homens leiam. Talvez possa sugerir como fazer para que os homens leiam.
Quando Henri não respondeu, Hawkins continuou:
— Quando os homens americanos deixarem de pensar que fazer dinheiro é a única coisa para a qual nasceram, então as artes na América
terão nova força sobre a vida, outra vitalidade, e real imortalidade. Então teremos uma literatura vital e válida, e verdadeira grandeza em livros.
Mas enquanto os homens não lerem na América, nossa literatura se limitará a ser o reflexo das bobagens que aparecem nas revistas
femininas, com ênfase sobre “o amor das mulheres e problemas do casamento”, e as cabriolas e escaramuças de adolescentes... livros que
tratam de encontros sexuais romantizados. E pior. Temos algumas grandes escritoras, mas não são muito populares. Escritores populares são
como estes — e ele ergueu um volume da escrivaninha e o passou a Henri. — Este já vendeu trezentos e cinquenta mil exemplares. Hollywood
pagou, ontem, duzentos mil dólares pelos direitos de filmagem. Será também uma peça de teatro.
Henri examinou o livro com desagrado. Intitulava-se: The Angry Four. De Ralph Coniston.
— É a respeito de problemas de amor e de sexo de quatro mulheres — explicou Hawkins, com um sorriso desagradável. — Nós o publicamos.
Os poucos homens da história são frívolos bonecos de papelão, em duas dimensões. Como bonecos de papel para recortar. Criaturas
absolutamente sem importância, sem vida própria exceto quando vão a violentos encontros amorosos com as quatro atraentes mulheres. As
mulheres gostam disso.
E acrescentou:
— Os homens americanos não gostam disso. Não leem isso. Pelo menos, temos de creditar-lhes algum bom gosto. Mas posso dizer-lhe isto,
que é muito encorajador: os homens estão começando a comprar livros que não são de ficção, a respeito da Europa, e da guerra, em
quantidades regularmente crescentes. Publicamos outro livro recentemente, chamado Thirty Days in Germany. Um aviador da RAF o escreveu.
Foi derrubado sobre território germânico e alguns simples e obscuros camponeses germânicos o ajudaram a escapar dos nazis. É muito
popular, entre os homens. Os homens americanos estão tornando novo interesse pelo mundo, além das preocupações americanas. Isto é muito
encorajador.
Continuou:
— O senhor não poderá comprar todos os críticos, Sr. Bouchard. Estranho dizer: muitos deles têm integridade. O que é uma boa coisa para o
futuro da literatura americana.
Disse, então, Henri:
— Bem, vejamos, então. Farei com que grande número de importantes comentaristas de rádio mencione o livro de Peter. E farei com que
grande número de jornalistas o mencione editorialmente, e por outros meios. Nenhuma objeção?
— Nenhuma — confirmou o Sr. Hawkins. — Também gostamos de vender livros, sabe. E eu gostaria particularmente de ver este livro
extremamente popular, e não por uma questão de dinheiro.
Henri ignorou isto, e os finos lábios de Hawkins se apertaram.
— Quero mil exemplares — disse Henri. — Para distribuição pessoal, discretamente, claro!
Levantou-se e sorriu:
— Quer almoçar comigo, Sr. Hawkins? Ficarei muito satisfeito.
Hawkins hesitou. Depois, de repente, sentiu a urgente necessidade de uma bebida. Pôs na cabeça o chapéu gasto e se levantou devagar.
— Que me diz do Ritz? — perguntou Henri.
Porém Hawkins sacudiu negativamente a cabeça. Era sentimental, sem dúvida, mas não podia sentar-se com Henri Bouchard onde se sentara
com Peter. Se o fizesse, estaria vendo claramente as feições de Peter...

Capítulo 44
Annette entrou no frio e obscuro vestíbulo da casa de Placid Heights: foi recebida por Edith Bouchard, esposa de Christopher, que a
cumprimentou com mais afeição e calor do que usualmente empregava para com os membros da família.
— Querida, não devia ter vindo, especialmente depois de ter estado tão doente! — falou Edith. — Como está agora?
— Foi apenas uma gripe, realmente, Edith, e me atacou os nervos — replicou Annette, tirando as luvas brancas e o pequeno chapéu. O dia de
junho estava quente, com uma insinuação de tempestade no ar. Annette sorriu. Seu pequeno rosto triangular estava abatido, mas os enormes
olhos azuis eram firmes e brilhantes. — Como está Celeste?
Edith hesitou. Sua expressão se tornou reservada:
— Bem, ela ainda não quer ver ninguém ou ir a nenhum lugar, exceto ao cemitério. Tentamos dizer-lhe que isto é mórbido, porém ela não se
importa. Há dias não sai de casa: só vai até o jardim de manhã cedo e antes do anoitecer. Muitos amigos têm vindo visitá-la, porém ela se
esconde deles. Naturalmente, ela acabará por superar isto, mas agora não adianta pressioná-la. Por isso digo que não devia ter vindo, querida.
Duvido que mesmo a você ela queira receber.
Encaminhou-se para o salão tranquilo, cujas janelas francesas se abriam para os verdes gramados. Rosas enchiam todos os vasos. Salpicos e
faixas de luz do sol faziam manchas brilhantes e pequenas poças nos tapetes e nos móveis, e luziam nos tampos das mesas polidas. As duas
mulheres se sentaram, encarando-se, e se olharam em grave silêncio. Então Edith falou:
— Christopher e eu estamos com ela, até sentirmos que é seguro para ela ficar só.
— Seguro?... — murmurou Annette, angustiada.
— Bem, eu deveria dizer: até que ela volte ao normal. Mal fala, sabe? Parece confusa e abstrata. Ela não sofre da maneira usual, a pobrezinha!
Não a vi chorar uma só lágrima, nem no enterro nem depois. Só caminha por aí em silêncio, e temos de falar duas vezes antes que ela nos
responda. O médico está muito preocupado com ela, e sugere que vá viajar por uns tempos. Porém ela não quer, claro! — E agora o rosto
moreno de Edith estava mais taciturno que nunca.
— Pobre, pobre querida! — suspirou Annette. Seus lindos olhos se encheram de lágrimas, e ela engoliu em seco. — Sempre a amei tanto, e
acho que também ela me ama. Está certa de que não me quer ver?
Os lábios de Edith se apertaram pensativamente: seus olhos castanhos estudaram Annette. “Ora, dane-se! a coisa tem de vir à tona, mesmo, e
pode muito bem ser Annette quem espalhe a notícia! Sim, ninguém melhor do que a pobre Annette. Não ousarão rir na cara da pobre
criaturinha, e ela tem tão delicada coragem...”
— Celeste poderá receber você — disse Edith. — Vou pedir-lhe. Naturalmente, as coisas já estava bastante más sem esse outro...
Annette ergueu a cabeça, alarmada:
— Que quer dizer, Edith?
Edith a fitou, erguendo as sobrancelhas:
— Meu Deus! Annette! Você não sabe?...
— Por favor, diga-me! — gritou Annette, erguendo-se a meio de sua cadeira em sua aflição. — Ela está doente? Oh! Eu já sabia! Algo me
dizia!
— Você quer dizer — falou Edith, incrédula — que ela não lhe contou? Pensei que fossem muito amigas, minha querida! Não lhe contou que vai
ter um bebê?
— Um bebê! — repetiu Annette, perturbada. Tornou a sentar-se na poltrona. Era uma poltrona enorme, e ali ela parecia uma menininha, os
pezinhos balançando a alguns centímetros do chão. As mãos, tão frágeis, brancas e pequeninas, descansavam nos braços da poltrona. Sua
clara e brilhante cabecinha ficava a meio caminho do topo do encosto.
Mas não era o rosto de uma criança que fitava Edith. Mas sim o de uma mulher sofredora, quieta e imóvel. E estava em sombras, esse rosto, e
translúcido. Mas os olhos se alargaram, brilhavam na sombra como um luzeiro azul. A boca entreabriu-se um pouco, e foi tudo.
Edith queria afastar o olhar dessa dor esmagadora, desse choque. Mas não podia! Forçou-se a olhar Annette, com espanto:
— Isso é mesmo coisa de Celeste! — observou, irritada. — Mas, naturalmente, temos de desculpá-la: Peter estava passando muito mal e ela
cuidava dele sem cessar. No entanto, ela me contou desde o início, antes que ele piorasse tanto.
Annette estava silenciosa. Parecia uma figura de cera. Seus olhos se fixavam em Edith, sem pestanejar. Linhas de sofrimento se delinearam
em torno de sua boca, e apareceram sombras azuladas sob os olhos.
— Há quanto tempo? — murmurou.
Edith deu de ombros:
— Cerca de seis meses agora, creio. O bebê é para setembro. É terrível para ela, você pode imaginar... — Falou casualmente, mas devagar,
mirando Annette com calma deliberação: — Lembra-se, no princípio do inverno Peter parecia muito melhor. Ele e Celeste foram a Nova York
várias vezes e todos tínhamos esperanças de que ele se recuperasse de todo, apesar do veredicto do médico. Pelo menos, ele parecia muito
mais feliz e mais forte, então. Isso talvez porque o bebê já tivesse começado, e ele tivesse acabado o livro, e o futuro lhes parecesse mais
brilhante, pobrezinhos!
Sua voz era fria, indiferentemente compadecida. Porém para ela era um esforço tremendo continuar olhando para Annette, ali -sentada tão
rígida, como uma boneca. Repetiu com ar de surpresa:
— Ela realmente não lhe contou, Annette?
Os pálidos lábios de Annette mal se abriram, e disse quase inaudivelmente:
— Não, não contou. Não nos víamos muito, naquela ocasião, e depois, em fevereiro, Peter ficou tão mal...
— É verdade... E ela nem teve tempo para pensar em si mesma, depois daquilo. Tentamos animá-la — continuou Edith, num tom vivo que até a
ela mesmo parecia fingido. — Tentamos dizer-lhe que, pelo menos, teria o bebê de Peter para consolá-la. Já é alguma coisa, sabe, após todos
esses anos. Por vezes — acrescentou, com uma ponta de tristeza — penso que a pobre pequena morreria, não fosse o bebê!
Subconscientemente ela se dá conta disto, e toma algum cuidado consigo mesma.
— Sim... — sussurrou Annette. E agora seus olhos se afastaram lentamente de Edith e se fixaram cegamente na luz fulgurante que vinha da
janela perto dela. Edith viu-lhe o perfil, contraído e transido de angústia, porém muito quieto. Quando tornou a falar, sua voz era forte e clara, em
notável contraste com o rosto: — Pobre Celeste! Porém agora tem algo por que viver! Estou muito magoada porque ela não me contou...
Suas mãozinhas frágeis se mexeram súbita e violentamente nos braços da poltrona, como numa contração. Ergueram-se, palmas para cima,
rígidas e esticadas. Depois caíram, lenta e pesadamente, os dedos a esticar-se para a frente nos braços adamascados da poltrona, e
agarrando-os como numa convulsão de agonia. Mas seu perfil continuou calmo, como uma máscara. Os leves anéis de seu cabelo se ergueram
e ondularam gentilmente à brisa quente que vinha pela janela e, de alguma forma, essa visão foi como um sopro quente no gelado coração de
Edith. “Que Deus te ajude, minha querida!” — pensou ela, com rara compaixão e tristeza.
Annette tornou a voltar o rosto para Edith. Sorriu, gentilmente:
— Estou tão contente, Edith! — disse com doçura. — Tão contente por Celeste! Quando o bebê nascer, ela se dará conta de quão maravilhoso
isto é. Mal posso esperar.
Edith tentou falar, mas sua garganta estava seca. Apertou as mãos. Baixou os olhos. “Havia um limite para o que mesmo ela podia aguentar” —
pensou.
— Gostaria de ver Celeste — disse Annette, e sua voz clara estava perfeitamente controlada. — Acha que ela me receberia?
Edith levantou-se, aliviada ante a esperança de fugir àquilo:
— Vou falar com ela. Está no quarto. Tentarei trazê-la para baixo. — Hesitou, depois acrescentou: — Seja branda com ela, se consentir em vê-
la, Annette. Afinal de contas, não é coisa muito feliz para ela que se lembrem que Peter nunca verá seu filho.
— Terei cuidado, querida — prometeu Annette, suavemente. Como estavam azuis e firmes os seus olhos, e quão brilhantes!
Edith virou-se para a porta e parou, abruptamente: Celeste estava de pé no umbral, quieta e silenciosa como uma pedra. Ao vê-la, Annette
ergueu-se involuntariamente. E seu gentil coração se contraiu num espasmo de dor. Era Celeste realmente quem estava ali, aquela mulher
esquelética e esgotada, de expressão gelada e cabelos relaxados? Annette deu um grito abafado. Segurou as mãos dela, e então as lágrimas
transbordaram de seus olhos.
— Celeste! — gritou francamente. — Oh! Celeste, minha querida!
“Espero em Deus que ela tenha ouvido o que eu disse!” — pensou Edith.
Celeste não se moveu, nem mesmo quando Annette veio ao seu encontro e lhe pegou a mão fria. Seu vestido completamente negro mais
acentuava sua palidez espectral. A mecha branca lhe caía na testa. Mesmo seus olhos de um azul-escuro estavam menos azuis, sem
profundidade, vítreos.
Fitou Annette como se não a visse. Annette começou a chorar, apertando a mão de sua jovem tia. Por fim Celeste a olhou. E murmurou, em voz
baixa e triste:
— Annette...
— Sim, querida. Eu tinha de vê-la, apesar de você não querer receber nenhum de nós. — Agora Annette sorria, embora as lágrimas ainda
corressem. — Importa-se muito se a forcei deste jeito?
— Não — disse Celeste, ainda a fitá-la com aquele olhar distante. Aspirou profundamente: — Estou contente. Queria ver você.
“Oh! meu Deus!” — pensou Edith, alarmada. E falou, em tom firme e lento:
— Annette acaba de dizer-me que você não lhe contou a respeito do bebê, Celeste. Ficou muito magoada com isso, não ficou, Annette?
Annette olhou firmemente nos olhos de Celeste:
— Sim, querida, fiquei muito magoada. Deveria ter-me dito, sabe? — Acrescentou, clara e fortemente: — Sempre a amei tanto, Celeste, e
pensei que também me amasse. Devia ter-me dito. Mas, não importa. Estou tão feliz por você, meu bem! Agora você tem algo por que viver:
tem o filho de Peter!
E seu olhar, mais firme que nunca, mais constrangedor, se fixava lealmente em Celeste. Os lábios de Celeste se afastaram convulsivamente;
sua mão tremeu na de Annette.
Annette falou, ainda mais alta e claramente:
— Não deve sofrer por que Peter não conhecerá o filho, querida. Deve é pensar como será maravilhoso! Agora, nada mais importa a não ser o
bebê. Nada importa, Celeste. Só deve pensar no bebê.
Sua voz, forte e penetrante, finalmente alcançou a consciência de Celeste. A loucura se desvaneceu em seu rosto. Contemplou Annette em
angustiado silêncio, como se suplicasse.
— Nada importa a não ser o bebê — repetiu Annette. — Não existe nada mais.
O coração de Edith, que havia disparado, começou a aquietar-se. Encaminhou-se para Celeste e pôs a mão em seu braço:
— Annette está certa, Celeste: você deve pensar só no bebê, em nada mais. Não seria bom para o bebê. Você... não importa. O pobre Peter
não importa. Ninguém importa. A criança tem direito à vida, bem sabe. E você não tem direito de interferir com isso.
Automaticamente, tristemente, Celeste virou a cabeça e olhou para Edith. Olhou-a por muito tempo. Depois tomou a voltar-se para Annette, que
sorria.
— Sim, entendo — falou Celeste. — Nada mais importa.
Sorriu, sombria e pesarosamente, ergueu a mão e afastou os cabelos do rosto.
— A família ficará muito surpresa — disse Annette, em tom animador e amigo. — E provavelmente tão magoada como fiquei porque não me
contou. Importa-se se eu lhe disser, querida?
Celeste ficou silenciosa por algum tempo. Olhou Annette longa e sombriamente:
— Por favor, faça-o, Annette. Ficarei contente se o fizer.
Algum pensamento a feriu, e no rosto pálido houve um súbito rubor; afastou-se:
— Estou cansada — murmurou — Acho que vou deitar-me um pouco, se me dão licença.
Afastou-se, movendo-se de modo lento e hesitante, como se fosse cega. Em silêncio, Annette e Edith a viram ir-se.
— Terrível, não é? — murmurou Edith, depois que Celeste desapareceu. Levou Annette até sua poltrona, e sentou-se perto dela. Tomou fôlego:
— Mas penso que lhe fez bem ver você. Daqui a alguns dias convidarei Agnes e Estelle para um chá, e você também, querida. Celeste
simplesmente tem de voltar à vida normal.
— Sim — concordou Annette.
Edith tocou a sineta para mandar servir o chá. Estava profundamente aliviada. Mas ainda não podia olhar diretamente para Annette, sentada ali
tão resolutamente, e sorrindo tão gentilmente.
Quando Annette se foi, Edith subiu para ver Celeste. Achou-a sentada ao pé da janela, olhando vagamente os jardins e as árvores.
— Celeste — falou, abruptamente — assim não vai, não, aqui só meditando e se aborrecendo, como uma prisioneira. Convidei Agnes e
Estelle, e Annette, para um chá, na terça-feira. Você precisa de companhia. Precisa de alguma diversão. Vou levá-la a Nova York na próxima
sexta-feira, para ver algumas peças e fazer compras.
Celeste virou para ela a face convulsa e gritou, violentamente:
— Não! Não quero! Por que não me deixam em paz, todos vocês?
Mas Edith colocou uma cadeira junto da cunhada:
— Não seja tola, Celeste. Ouviu o que disse Annette: tem de pensar na criança. Peter já se foi. Você sabia que ele iria cedo. Foi uma bênção
para ele: sofreria muito. Há muito tempo você sabia que ele não poderia viver. Pensa que o faria feliz saber que você está deliberadamente
tentando matar-se?
Celeste cobriu o rosto com as mãos.
Edith continuou, implacável:
— Não sei o que tem em mente, se é que tem alguma coisa... Mas agora nada significa. A vida continua. Não acaba para você no túmulo de
Peter. Celeste, pensei que tivesse alguma coragem, alguma resistência, e orgulho. Mas não tem. Está procedendo como uma histérica
vitoriana. Está cometendo um refinado tipo de suttee ((sati): costume hindu de queimar a viúva com os restos mortais do marido. — (N. da T.))
Aguardou. Celeste não falou. Seus dedos finos e transparentes lhe ocultaram o rosto.
Edith continuou, em tom mais baixo:
— Imagino o que a família irá pensar, com você a esconder-se deste jeito, como uma criminosa ou coisa assim.
Celeste deixou cair as mãos abruptamente, e fitou Edith com olhar perturbado:
— Que quer dizer? — perguntou roucamente.
Edith deu de ombros. Olhou a distância, pela janela:
— Fico imaginando se não pensarão que você está biruta. E cogitarão...
Só depois de algum tempo tornou a voltar-se para Celeste: estava sentada quieta, mãos no colo. Mas perfeitamente composta:
— Tem razão, Edith. Convide quem quiser. Desculpe-me. Isto tem sido difícil para você, não é mesmo?
Dando graças intimamente, Edith falou, vivaz:
— Danado de difícil! Não gosto de viver reclusa. Tive a sensação de ser uma enfermeira particular cuidando de uma paciente mental. Também
não tem sido nenhuma delícia para Christopher. Deveria estar agora em Detroit, ao invés de procurar aliviar-me de meus deveres de
enfermeira.
Mal podia acreditar quando ouviu Celeste rir. Era apenas uma pequena risada, mas não sem jovialidade. E agora os olhos azuis-escuros
brilhavam com as primeiras lágrimas desde a morte de Peter. Muito comovida, Edith se levantou e pôs os braços em volta dos ombros da
jovem mulher.
— Ora vamos! Por que não chora de verdade? Iria fazer-lhe um grande bem, tenho certeza. E sei que ainda não se recuperou por não estar
aqui quando Peter morreu. Ele é que a mandou afastar-se: sabia que a hora estava chegando, e queria poupá-la. Isso, chore! Chore bastante,
querida! Mais forte!
Mais tarde, quando Celeste dormia pacificamente — como não o fizera desde que Peter morrera — Edith foi ao telefone e chamou Christopher
que ela sabia em conferência com Henri.
— Olhe, filhinho, Annette esteve aqui. Já sabe. E acho ser uma boa ideia contar a Henri, antes que vá para casa. Não, está tudo bem. Celeste
dorme como um bebê. Olhe, esse tom ultra preocupado me fere! Lembre-se: sou sua esposa...

Capítulo 45
Christopher voltou a Henri. Haviam estado discutindo, com gravidade e compreensão, o colapso da França. Havia livros abertos na mesa de
Henri, que ambos consultavam. Quando Christopher se sentou, Henri disse:
— Tudo se está passando de acordo com o previsto, embora um pouco mais cedo do que Hitler esperava. Tudo, agora, está indo mais
depressa. Quais as últimas?
— Acabei de ver o relatório — disse Christopher. — Os britânicos se estão retirando para o litoral. Tudo está em desordem. Francamente, não
sei que diabos vamos fazer. Você vai a Washington amanhã?
— Sim. Falei a Hugo esta manhã. Está tremendo como uma maldita folha. Por vezes penso que ele arderá com a pressão que estamos pondo
nele. Não pode assentar a cabeça em nada desde que Alice fugiu com Charlie, e casou com ele. Não que isto seja mau para nós. — E sorriu,
tristemente: — Já repisei bastante sobre a semelhança de Hilary com nosso queridinho Antoine. E, como sabe, foi Hilary quem maquinou a fuga
da irmã com o namorado.
— Continuamos a manter nossas mulheres misturadas em nossas preocupações — disse Christopher, impaciente. Começou a tamborilar na
secretária com os dedos descarnados.
Henri deu uma risada curta e áspera:
— Sim, sei disso. Você mesmo era mestre nisso. Só que não adiantou...
Christopher sorriu friamente:
— Não foi por minha culpa. — Parecia abstrato. Havia agora um tosco rubor em suas faces. — Tem razão. É mesmo uma coisa mesquinha,
misturar nossas mulheres conosco. E também humilhante. Por que precisamos de mulheres? É como um filme barato. Gostaria que
pudéssemos mantê-las fora das coisas.
Henri o observava. Disse, abruptamente:
— Que há, Chris?
Christopher deu de ombros, voltou-se para o cunhado:
— Era Edith me chamando. A respeito de Celeste.
Henri nada disse. Recostou-se na cadeira. Seus olhos descorados eram inescrutáveis. Finalmente, disse:
— Bem, o que há com Celeste? Ainda chorando Peter?
Christopher acendeu um cigarro, depois o fitou gravemente:
— Não é só isso. Também está doente fisicamente. Algumas mulheres são assim, quando estão grávidas.
Continuou a fitar o cigarro. Depois, casualmente, ergueu os olhos. Henri não fizera o menor gesto. Estava recostado na cadeira, com olhos fixos
em Christopher. Não havia expressão no rosto largo e pálido, exceto um curioso tremor na boca.
— Grávida? — perguntou, sem a menor inflexão na voz. — Não sabia disso. Há quanto tempo?
— Seis meses — disse Christopher, indiferente. — Não sabia? Pensei que todos soubessem. Um filho póstumo habitualmente desperta algum
interesse, e simpatia.
Olharam-se num silêncio intenso. A mão de Henri levantou um objeto em sua mesa, deixou-o cair maciamente.
Depois Henri disse:
— Peter, está claro, não sabia?
— Não. Acho que a própria Celeste mal sabia. Havia coisas mais importantes. Ele estava muito doente, como deve lembrar-se. Esperava-se
que morresse, quase diariamente. Ela cuidava dele todo o tempo. De outro modo poderia ter feito alguma coisa a esse respeito. Não é a coisa
mais agradável para uma mulher, suponho, ter um filho póstumo. — E continuou, olhando calmamente para Henri: — Não que não estejamos
todos prontos e ajudá-la, e a dar-lhe todo o consolo que pudermos.
Henri mudou de lugar o objeto que levantara. Olhava-o absorto.
— Annette visitou Celeste hoje — disse Christopher, com expressão de simpatia. — Ficou muito transtornada porque Celeste não lhe havia
contado. Pode-se contar com Annette.
Henri girou sua cadeira para ficar de frente para as janelas.
— Sim — disse, em tom neutro — sempre se pode contar com Annette. — Continuou, sem a menor mudança na voz: — Eu não sabia. Há
algum tempo não via Celeste. A sós.
— Sim, sei disso.
— Isso explica uma porção de coisas — comentou Henri, pensativo.
Christopher esteve a ponto de falar, depois nada disse.
Então Henri falou:
— Imagina quanto tempo passará antes que o maldito do Armand morra?
Christopher riu desagradavelmente:
— Ouvi dizer que está ficando descuidado. Empanturrando-se. Não deve demorar muito.
Mas Henri falou, distraidamente:
— A família. Quantos sabem a respeito de Celeste?
— Você agora, e Annette. Francamente, mesmo Edith e eu não sabíamos até recentemente. Mas já era tempo. Claro, pode-se compreender.
Celeste estava por demais preocupada com Peter para cuidar de qualquer outra coisa.
Henri voltou-se para ele. O velho olhar implacável pesava em suas feições:
— Agora compreendo uma porção de coisas... Celeste é uma tola, você sabe. Creio que sempre concordamos nisso.
Christopher respondeu, um brilho maligno nos olhos:
— Não estou bem certo de que seja assim tão tola. Pense nisso um pouco, por um minuto.
Henri pensou, sentado como uma pedra em sua cadeira. E disse.
— Sim, percebo. — Sua expressão mudou levemente.
— E não seria muito seguro, digamos, para você vê-la a sós a qualquer tempo. — Christopher observou. — De todo jeito, não agora.
Henri levantou-se abruptamente, e pôs-se a caminhar. Christopher o observava com uma satisfação maldosa que não podia controlar. Depois
Henri perguntou:
— Por quanto tempo Edith vai ficar com ela?
— Tenho de voltar a Detroit. Sabe disso. Edith ficará o tempo que seja necessário. Porém ela é minha esposa. Acabou de recordar-me isso...
— E também é minha irmã. Se eu lhe pedir que fique, ela ficará,
O rosto estreito de Christopher corou:
— Acho que preciso lembrar-lhe, também, que ela é minha esposa.
— E Celeste é sua irmã — subitamente Henri sorriu. — Ora, vamos! Estamos brigando! Importa-se se Edith ficar?
— Ficarei furioso se ela não ficar — assegurou Christopher.
Henri tornou a sentar-se. Apertou as mãos, sobre a mesa, e os dois homens se fitaram atentamente, em silêncio.

Capítulo 46
Antoine observava o pai, Armand, enquanto ele sub-repticiamente limpava o espesso molho de carne do seu prato com grandes pedaços de
pão. Curvado desajeitadamente sobre o prato. Armand, cujo encaracolado cabelo grisalho luzia fracamente à luz dos candelabros, não se
julgava observado. Todos os seus movimentos eram ávidos. Comeu, como sempre, com pressa voraz, quase devorando. O traço camponês,
tão forte e profundo nele, assegurava-lhe com seu instinto irracional que um homem deve comer, e comer depressa, se quiser nutrir-se e encher
a barriga adequadamente. Três gerações de poder e riqueza na família não extinguiram aquele instinto animal, tão cobiçoso, tão bestial, tão
enormemente esfomeado por sustento contínuo contra um tempo de penúria. Armand não tinha consciência do instintivo impulso que fizera dele
um glutão, um ansioso devorador de provisões. Sempre tivera — ele diria — apetite vigoroso. Nos anos da maturidade esse instinto tinha sido
seu único conforto, sua única defesa contra um mundo que se tornara horrível, ameaçador e cheio de dor espiritual.
Cedo descobriu que os parentes achavam repugnante esse seu empanturramento. Tentava aprender melhores maneiras. A si mesmo
prevenira, repetidas vezes, que não devia “avançar” na comida como um chinês esfomeado, ou um lobo. Mas só aprendera a ser furtivo, a
comer um pouco mais devagar — enquanto intimamente tremia de pânico primordial por essa forçada contenção.
Durante os últimos meses, quando cada dia lhe trazia novo terror e novo desespero, havia freneticamente abandonado a Lista. O impacto de
acontecimentos o forçara a abandonar a Lista, e ele mais uma vez voara para a mesa num medo irracional e no apaixonado desejo de consolo.
Os avisos dos médicos agora nada eram para ele. Nada restara a não ser sua fome, ao mesmo tempo física e espiritual, e comia como um
moribundo no deserto engole a água que sabe envenenada, mas que lhe oferece momentânea pausa de seu tormento antes que a morte tome
conta dele.
Nessa necessidade, nesse desespero, lançara um ultimato à pequena Mary, a esposa de Antoine: não comeria mais espinafre, nada mais de
fígado, nada de vegetais sem tempero e pães de glúten. Se não podia ter a comida “correta” em sua própria casa, iria a qualquer outro lugar,
declarara, mesmo à vista das lágrimas de Mary. A própria Mary, então chegando ao fim da gravidez, sentia-se por demais enervada para lutar
com o sogro, e finalmente rendeu-se. Os pratos ricos e saborosos tornaram a aparecer na mesa, e Armand lhes caía em cima com tal avidez,
tal delícia e louca pressa, a fronte suada e lustrosa, que Antoine, o delicado, estava revoltado. Entretanto, com sua usual sutileza, ele
compreendia.
Assim nessa noite, como sempre, Antoine observava o pai. Mary não estava: continuava no hospital, onde uma semana antes dera à luz um
garotão, que seria batizado de Stuart. (“Nada mais .de malditos nomes franceses na família, pelo que me diz respeito” — declarara Antoine.)
Antoine observara o pai atenta e curiosamente durante toda a elaborada refeição, de que nenhum dos itens fora calculado para contribuir para
a saúde de Armand. Este engordara muito: agora estava inchado, coberto de carne que mais parecia massa de pão. Sua vermelhidão se fora
permanentemente. Gordurosas e pesadas dobras de adiposidade lhe haviam distorcido e minimizado as feições, de modo que tinha a
expressão de um velho varão diabético, cheio de medo crônico. Havia três papadas abaixo do queixo natural, que tinha uma aparência oleosa.
À medida que declinavam sua saúde e sua vida, e à proporção que aumentavam a circunferência e o peso, ele perdia os últimos vestígios de
capricho pessoal. Com frequência, ficava sem barbear-se por dois ou três dias a seguir, de modo que sempre havia uma sombra cinza-
avermelhada nos queixos e nas faces. Suas roupas eram deploráveis, manchadas e amarrotadas. Sua desintegração era quase completa.
Porque não podia forçar os pés inchados em sapatos, usava chinelos constantemente, e andava com eles pela casa como um enorme e
inquieto fantasma, procurando com desespero algo que não podia encontrar. Nunca tendo sido de boa conversa, agora ficava por vezes dias
sem falar, nem mesmo ao filho.
Enquanto Antoine o observava atentamente, seus olhos negros reluziram, em um débil sorriso lhe assomou à boca satírica. “Já não demora
muito...” — pensou, com satisfação. Enquanto pensava isso, o pai subitamente deixou cair o talher no prato, respirou com dificuldade, ficou de
repente arroxeado, e lutou por levantar-se. Alarmado, Antoine levantou-se e foi até Armand, que sacudiu no ar as mãos gordas, lutando por
respirar. Seus olhos, mergulhados em dobras de gordura, se fixaram no filho em agonia.
Foram precisos dois criados, além de Antoine, para levar Armand para a cama. Seu médico chegou prontamente e lhe aplicou uma injeção.
— Sem dúvida sabe, Sr. Bouchard, que seu pai se está matando?
— Sim, doutor, estou cônscio disso. Porém ele prefere morrer à sua maneira, ao que parece. Acho que prefere morrer após uma esplêndida
refeição do que “morrer de fome com comida de vaca”, como diz. Já descobrimos ser inútil tentar fazer seja o que for com ele.
— Então, deve ir para um hospital por algum tempo — disse o médico. — Onde sua dieta seja observada estritamente e planejada. De outro
modo, não viverá. Posso afirmar com segurança: ele pode morrer a qualquer momento, desse modo.
Antoine considerou o caso, e finalmente disse:
— Falarei com minha irmã; é a única a ter alguma influência com ele.
Antoine telefonou a Annette e lhe pediu que fosse imediatamente à casa do pai. Nesse ínterim, o doutor indicou três enfermeiras para cuidar do
velho doente e desesperado, arquejando em sua cama, lutando por cada golfada de vida.
Annette chegou depressa, sozinha, sem fôlego e perturbada. Fora, uma tempestade caía com estrépito, violentamente, raios invadindo com
relâmpagos sinistros os escuros salões. Havia gotas de suor no rosto de Annette, muito pálido, e lágrimas em seus olhos lindos e dolorosos.
Quando Antoine a levou para cima, para o quarto do pai, encontraram Armand adormecido por fim, uma montanha de carne empilhada em
ondas de travesseiros. A enfermeira murmurou-lhes que ele “estava muito melhor”, e não devia ser perturbado. Annette desceu com o irmão
para um dos salões, onde se sentou e chorou silenciosamente.
Pensativo, Antoine acendeu um cigarro. Depois sentou-se junto da irmã e lhe pegou a mão.
— Não, querida! — disse, gentil — sabe como papai é. Não adianta. Esperamos que você consiga convencê-lo a ir para um hospital particular
para tratamento e cuidados. Enquanto estiver em casa não haverá esperança para ele, você sabe.
— Mas por que desejará morrer? — implorou Annette, olhando o irmão com os olhos tristes e úmidos. —- Ele deve querer morrer, Antoine. Está
cometendo suicídio.
Antoine estava silencioso. Estreitou as pálpebras e observou a fumaça que expelia para o teto.
— Talvez as coisas sejam demasiadas para ele — murmurou.
— Sim, sei — gritou Annette — sei tanto a respeito de papai que ninguém parece saber.
— Uma das coisas que são demasiadas para ele são você e Henri — falou Antoine, como se não tivesse ouvido a irmã.
Annette afastou o lencinho dos olhos, deixou as mãos caírem no regaço e as apertou rigidamente no pedacinho de linho rendado.
— Que quer dizer, Antoine? — perguntou, em voz trêmula. — Que há de errado com Henri e comigo?
Ele se virou para ela. Ela estava muito pálida. Porém seus olhos encontraram os dele com grande coragem e bastante calma.
Ele hesitou. Depois pôs sua mão sobre os dedos dela e os pressionou gentilmente:
— Querida, sei que isto é terrível para você. Mas, realmente engoliu a ficção a respeito do “bebê de Peter”?
As narinas de Annette se dilataram, e o lábio superior se ergueu, tenso. Mas seus olhos não deixaram os do irmão. Demonstravam um medo
profundo, embora a coragem brilhasse neles. Ela respondeu, muito calma.
— Não sei o que quer dizer, Antoine.
Antoine não falou, embora a olhasse de modo penetrante. Depois simulou fraqueza e desgosto. Afastou-se da irmã, como se o vê-la o
enchesse de insuportável compaixão. Disse, com raiva contida:
— Minha querida! Minha querida!
Annette nada disse. Ele esperou. Dela não vinha o menor som.
Então ele fingiu uma grande raiva reprimida, e virou-se para ela outra vez:
— Annette, deve saber, claro, que aquele não é filho de Peter.
Annette estava imóvel. Ele podia ver-lhe o brilho dos olhos, tão corajosos, tão firmes.
— Antoine, que coisa horrível e cruel para dizer a respeito de Celeste, irmã de seu próprio pai! E quão insultuosa e covarde! Você não ousaria
dizer isto a ninguém mais.
Ele riu brevemente:
— Minha doce maninha, todos na família falam disto... aos cochichos, claro. Orgulho de família, e tudo o mais. Você deve ter ouvido — ele
acrescentou, incrédulo.
— Nunca dou ouvidos a mentiras, especialmente a mentiras, vulgares e cruéis — ela respondeu, em voz firme. Seus olhos estavam cheios de
indignação. — E estou horrorizada, Antoine, de que você ajude a espalhá-las.
Ele lhe sorriu, com elaborada descrença, abanando a cabeça lentamente:
— Não se incomode — falou, calmo.
Os lábios de Annette estavam frios como gelo. Disse:
— Continue, Antoine. Quero ouvir o resto da mentira:
Ele deu de ombros fatalisticamente:
— Muito bem! Eu lhe contarei. Todos sabemos que o filho é de Henri, seu querido esposo.
Annette não falou, apenas olhou para ele fixamente.
— Deve saber, minha querida, que ele andou se encontrando com ela durante meses, em pequenos rendez-vous em Nova York e em outros
lugares. Não sabia, querida? — ele continuou, com avivada compaixão, que não era inteiramente simulada agora.
— Não sabia — ela afirmou. — Nem ninguém mais. Porque não é verdade. Os inimigos de Henri estão apenas tentando injuriá-lo.
Antoine a estudou com meditativa piedade. O rosto poderia estar murcho, a boca gentil azulada de dor, mas o olhar permanecia claro e firme.
Então ele franziu a testa:
— Os inimigos dele? Que quer dizer, querida? Pois ele não é o Homem de Ferro, o Rosto de Pedra Bouchard? Quem poderia feri-lo? Pois não
declarou abertamente que Gibraltar era uma insignificante pedrinha comparada com ele, ou palavras que quisessem dizer o mesmo? — Sua
boca se contraiu num desdém divertido, mas os olhos de súbito ficaram alerta.
A mente de Annette sobrepujou seu dolorido coração, e estudou o irmão atentamente antes de responder:
— Homens como Henri sempre têm inimigos. Você sabe disso, Antoine. Assim, quando algo difamatório é dito a respeito de tal homem,
sempre se imagina quem espera ganhar com isso, ou que inimigo está tentando arruiná-lo.
— Realmente pensa que sou inimigo de Henri? — perguntou Antoine, com afetuoso desdém e divertida indulgência. — Que lhe deu esta ideia?
Ela já não podia aguentar olhá-lo, aquele rosto moreno que ela amava. Lágrimas pesadas e salgadas como sangue lhe encheram os olhos e
sua garganta palpitava. Porém ela disse, maciamente:
— Não quero pensar que você é inimigo de Henri, querido. Só acredito que alguém tem estado mentindo para você, por malícia ou
perversidade, e que você está tentando evitar que eu sofra.
Quando voltou a olhar para ele, viu que sua cabeça escura estava curvada e ele examinava um anel em seu dedo com imensa concentração.
Não pôde ver-lhe o rosto.
Então ele disse, a voz mudada, e sem a olhar:
— Sim, meu bem, estou tentando evitar que sofra. Sempre foi a minha queridinha. Não quereria mentir-lhe, ou passar-lhe boatos maliciosos.
Por isso investiguei primeiro a coisa toda. Lembra-se quando voltaram na última primavera, Peter e Celeste? Foi pouco tempo depois que
começou o pequeno caso dele. Ele sempre a quis, não é? Chegaram a ficar noivos. Lembro-me disso. Depois houve a separação. Ela e Peter
foram para a Europa, você e Henri se casaram. Você era bem feliz então, não era?
A branca garganta de Annette se contraiu, porém, ela ergueu o queixinho, bem alto:
— Sim, eu era muito feliz.
— Porém ela e ele não tiveram escrúpulos absolutamente em destruir sua felicidade, minha querida. Nenhum escrúpulo. Não sei quando
começou o “caso”, mas não creio tenha sido muito depois da volta deles. Não importa quem me contou. Disseram-me. Investiguei. Queria,
primeiro, ter certeza.
A cabeça de Annette ainda estava erguida, e seu sorriso corajoso, gentilmente incrédulo.
Ele suspirou, e o suspiro não era de todo hipocrisia:
— Seus encontros eram muito frequentes. Sabe, o Homem de Ferro é completamente louco se pensou poder ocultar-se permanentemente.
Nunca teve o retrato nos jornais, de modo que se julgou a salvo. Celeste, também, esteve fora por muito tempo, de modo que não foi facilmente
reconhecida. Mas tais coisas, como assassinatos, acabam vindo à tona.
Annette respirou fundo:
— Segundo seus informantes, Antoine, eles ainda se encontram?
Ele franziu a testa, relanceou-lhe um olhar ferino:
— Creio que pararam de encontrar-se em janeiro último. Pelo menos foi o que me disseram. Por que, não sei, só que Peter adoeceu, e
suponho que ela tenha querido representar a esposa devotada... para consumo público.
Annette perguntou calmamente:
— Você teve certa dificuldade em dizer-me essas mentiras, Tony. Que espera que eu faça agora?
Ele ficou aliviado. Mais uma vez tornou-se alerta e vital, pegando-lhe a mão fortemente:
— Quero que se divorcie dele, Annette, ou, melhor ainda: requeira o divórcio neste Estado, sob pretexto de adultério. — Ele a observava com
intensa avidez.
Mas Annette não estava abalada:
— Por adultério — repetiu. Seus olhos estavam estranhamente brilhantes ao pousar nele: — Citando Celeste como corresponsável?
Os olhos de Antoine se estreitaram sobre ela, fixamente. De súbito, viu o rosto de Christopher diante dele, mau, violento, implacável. Hesitou:
— Talvez não. O escândalo seria muito grande. Mas quando você lhe comunicar que vai divorciar-se, pode ameaçá-lo de trazer Celeste à baila
se ele tentar discutir o processo. Isso o deterá.
— Mas você disse que Henri e Celeste não se encontram desde janeiro. Não poderia provar nada agora, Poderia?
Ele estava espantado, mesmo em sua excitação íntima, pela nota aguda na voz dela, sua intensidade:
— Não — admitiu relutante, e com sombria inquietação. — Nisso você tem razão. Não poderíamos, agora, usar Celeste com muita facilidade.
Mas são culpados da mesma forma, e o filho é de Henri. Mas você não precisa deixá-lo saber que não pode usar Celeste. Se o ameaçar com
ela, ameaçar arrastá-la, assim como a ele, a um tribunal de divórcio, ele não lhe causará o menor transtorno. Garanto-lhe.
Ele lhe ouviu a respiração funda e lenta, viu como relaxava na poltrona. Ela começou a falar, muito firme e suave:
— Antoine, nunca pensei que fosse realmente cruel, ou desapiedado, ou malvado. Não quero pensar isto agora, apesar de você estar tentando
fazer-me crer nisso. Parece haver esquecido que os Bouchards não são parentes apenas pelo casamento, mas sim parentes de sangue.
Celeste é nossa tia, irmã de nosso pai. Henri é meu marido, seu cunhado, mas também é nosso parente pelo sangue. O pai dele era nosso tio-
avô; nosso avô, Jules, era tio de Henri. Papai é primo de Henri em primeiro grau; Henri é nosso primo em segundo grau.
“Espere — disse, quando Antoine começou a sorrir com malícia. — Você dirá que nada disso importa. Mas importa, sim. E acredito que saiba
disso. Mesmo que não o faça, eu acredito. Tenho orgulho da família. E afeição por ela. Mesmo que o que me disse fosse verdade, e não
acredito que o seja, eu primeiramente me lembraria o quão ligados somos todos à família. Acredito que você também se lembrasse... a menos
que tenha algum motivo mais importante.
Deteve-se. Subitamente Antoine estava bem junto dela, olhos alerta sobre ela:
— Que motivo poderia eu ter, minha querida, a não ser querer vê-la protegida?
“Cuidado!” — ela pensou. Obrigou-se a sorrir, a deixar a mão na dele:
— Querido, você e eu sempre fomos os maiores amigos do mundo, não? Sou muito grata, Tony. Mas pensa, honestamente, que me faria feliz
ser arrastada a um tribunal de divórcio, ver meus parentes emporcalhados, e dar aos inimigos de Henri a oportunidade de feri-lo? Mesmo se
Celeste não fosse magoada? Sabe, querido — acrescentou, e então sua voz tremeu um pouco — amo muito Henri. Não faria a menor coisa
para feri-lo.
Ele estava calado. Seu rosto moreno e fino mostrava tristeza, e havia em sua boca uma expressão malévola, como se tivesse ficado
furiosamente desapontado e frustrado.
Pôs de lado a mão dela, levantou-se, afastou-se dela, e disse com firmeza:
— Muito bem, Annette. Se não está interessada em proteger-se, terei de fazer isso sem você. Tenho algum orgulho de família, também eu, e
orgulho de você como minha irmã. Contarei a meu pai o que sei a respeito do seu Henri e da irmã dele.
Annette pulou de pé. Agarrou o irmão pelos braços e o segurou com espantosa firmeza e força. Seus olhos, mais brilhantes que nunca, o
fitaram com poder invencível:
— Antoine, se fizer isso, direi a papai que você está mentindo, que tem algum outro motivo. E sei que tem: deve ter. Não é sua irmã que o fez
querer levar isso a cabo. Direi a papai para investigar suas razões. Eu mesma as investigarei. Direi a Henri que, de algum modo até agora
desconhecido para mim, você está tentando prejudicá-lo. Sabe o que pedirei a Henri para fazer? Dir-lhe-ei que o processe por difamação, e
peça um montão de dinheiro. E lhe direi o que me falou hoje. Henri não tem o orgulho de família que temos. Ele não gosta de você, Antoine,
posso garantir-lhe. Não se deterá um só minuto em consideração por você ser meu irmão.
“E sabe que mais? Papai me ouvirá. Sempre me amou muito. Gosta de Henri e o admira. Acha que ele preferirá ficar com você, e suas
mentiras, contra minha fé em Henri e meu amor por ele? Acha que ele fará seja o que for para romper-me o coração? Só conseguirá, Antoine, é
arruinar a si mesmo. Papai o mandará embora. Henri o processará por difamação. O que fará então?
Ele a olhou com ódio sem disfarce. Empurrou as mãos dela. Agora ela via toda a sua maldade, a sua ferocidade. Mas a voz dele era calma:
— Não seja melodramática, Annette. Não irei a meu pai sem provas de que Henri e Celeste se encontraram durante meses, antes do
misterioso janeiro quando cortaram relações diplomáticas. Meu pai tem orgulho, embora você não tenha. Ele fará alguma coisa, garanto-lhe.
— Não se isso me fizer sofrer, ou romper meu coração — ela respondeu, tão calma quanto ele. — Não se eu lhe disser que sei que você está
mentindo, e Henri afirmar o mesmo. E nós o faremos. Ele antes acreditará em nós que em você. Suas provas nada significam. Mesmo que
signifiquem, de nada valerão.
O ódio dele era terrível de ver.
— Acho que você é uma prostituta tão sórdida como sua amada tia. Deve ser, para protegê-la deste jeito.
Annette não falou. Mas começou a sorrir, um corajoso sorriso imperturbável.
Então o controle dele estourou de vez!
— Por que deseja protegê-la, e a ele? Você não tem um pingo de decência, Annette. Nem respeito próprio, nem orgulho. Sabe que ele a
despreza, que ficaria contente se você estivesse morta, ou que morra assim que seu papai morrer, para não lhe atrapalhar a vida. Tem tido uma
dúzia de mulheres desde que vocês se casaram. E as tem empurrado em sua cara. Pensa que ele jamais se importou com você, pouco que
fosse? Casou com você para obter de volta o poder dos Bouchards. Já o observei olhando para você, e desejei dar-lhe um soco que o
esmagasse...
— Por que não o fez, Antoine? Porque sabe que ele é que o esmagaria se ousasse levantar a mão para ele... E deixe-me dizer-lhe algo mais:
se eu for a Henri e lhe contar o que acabou de dizer-me, essas mentiras, e o que propôs que eu fizesse, isso seria o seu fim. Não seria? Henri
não se deteria diante de coisa alguma para destruí-lo. Iria a papai comigo. E então papai também se mexeria, se Henri lhe pedisse.
Ele não podia falar! Só podia olhar para ela, com a expressão de um estranho demônio, odiento, terrível em sua raiva. Seus olhos negros
faiscavam, e sob a sua pele morena havia um baço palor doentio.
Annette esperava. Seu coração cheio de angústia transparecia em seu olhar. Um leve suor frio surgiu acima do seu lábio superior. Mas sua
resistência contra o desfalecimento do corpo continuava intacta. Entretanto sua voz estava mais fraca quando voltou a falar:
— Não sou tão cruel como você, Antoine. Sabe, eu também o amo. Não contarei a Henri o que você me falou hoje. Ambos podemos esquecer
o que foi dito. Você ainda esqueceu Christopher. Ele se juntaria a Henri e papai para destruí-lo para sempre. Tentarei esquecer tudo.
Pegou as luvas e a bolsa e se encaminhou para a porta. Ele a via ir-se. Uma figurinha tão frágil com uma cabeça tão forte e tanta coragem!
Estava louco de raiva e desapontamento. Fora destruído seu plano de meses. Apertou os punhos. Chegando à porta, Annette virou a cabeça e
lhe sorriu, gentil, comovente. Ergueu a mão num gesto suave e se foi.
Ele podia ver o brilho azul de seus olhos muito depois que ela se fora, e a mais curiosa constrição lhe apertou o peito.

Capítulo 47
No bruxuleante estágio trivial, turbulento, das preocupações e ansiedades americanas explodiu o grande e desordenado drama da queda da
França. Por toda parte se espalhavam pequenos e berradores homens e mulheres, a mobília sem valor de uma barata comédia de erros,
lâmpadas enfeitadas de fitas e vasos de flores artificiais. A orquestra, que estivera em clarinadas de jovial dissonância, guinchos e golpes
surdos, foi abafada pelo súbito estrondear da morte de uma nação, enquanto as rochas de seus imensos alicerces caíam ao mar. Então as
luzes coloridas desapareceram nos raios, e mostraram as tolas criaturas humanas empurradas contra seu pano de fundo, ostentoso e sem
consistência, bocas abertas, olhos estatelados de terror. Sentiram o tremor da terra, suas longas e trêmulas vibrações que lentamente se
afastavam. O trovão que rugira fortemente nos serenos céus de outono na Noruega, na Dinamarca, e na Holanda, chocara e amedrontara.
Passara rapidamente, deixando apenas um fraco ribombo a distância, que também logo morrera.
Porém esse trovão sacudiu as muralhas da América; essa ventania bateu contra todas as suas janelas; esses relâmpagos encheram todos os
quartos, todas as salas, mostrando os rostos covardes, os estúpidos, os ignorantes, os amedrontados, ou os traidores. Aqui e ali o lampejo
batia num rosto triste e amedrontado, num rosto austero, num rosto acautelado. Mas esses eram poucos.
“É uma boa coisa — observou Antoine Bouchard, cinicamente — que tenhamos uma Convenção Republicana surgindo para desviar da França
a atenção da populaça ou Deus sabe o que poderia acontecer. Podem até obrigar o Congresso a declarar guerra à Alemanha!
Esta circunstância fortuita e as febris e renovadas atividades das infames organizações apoiadas ou inventadas pelos Bouchards e seus
associados serviram para distrair as amedrontadas e trêmulas almas do povo americano. Apesar da heroica epopeia da evacuação de
Dunquerque, apesar da triunfante e maligna perfídia dos franceses que detinham o poder (que há muito haviam conspirado essa terrível
débâclè) — perfídia que foi às escâncaras e espantosa em seu cinismo — a despeito do último desesperado apelo aos homens de compaixão
e justiça feito por alguns nobres franceses — bem cedo as organizações Bouchard tiveram êxito, através de seus agentes, seus jornais e
locutores, em convencer o povo americano de que de alguma forma misteriosa tudo isso era “propaganda” destinada a fazer da América uma
vítima do “imperialismo” britânico, ou para enriquecer “provocadores de guerras e banqueiros internacionais”. Certos sacerdotes ignoraram
completamente a tremenda tragédia que enchia a atmosfera do mundo com seus gritos, sua dissolução, seus muros desabando; e com uma
destreza espantosa em sua audaz impudência, imputaram a morte da França ao imperialismo “britânico”, e mesmo obscuramente sugeriram
que a sorte da França fora tramada com o único propósito de “pôr os rapazes americanos nos campos de batalha estrangeiros”.
Nada era demasiado vulgar, estúpido demais, ou por demais fantástico para certos clérigos e seus irmãos conspiradores imputar ou declarar
abertamente. Nada era demasiado idiota, obsceno, degenerado, selvagem ou insano para certos jornais, locutores, congressistas,
comentaristas de rádio — para irradiar nos trêmulos ares da América. Alguns, como o Sr. Cornell Hawkins, declararam que a verdadeira
enormidade das mentiras dos traidores e dos loucos faria o povo americano estourar numa risada indignada e de purificação.
Mas o povo americano não riu. A maioria avidamente absorveu as mentiras. Mais especialmente agora, porque as organizações mantidas
pelos Bouchards audazmente desfraldaram a bandeira negra do antissemitismo. Eis uma vítima que podia ser atormentada e destruída sem
derramamento do sangue de um só “rapaz americano”. Eis um bode expiatório sobre o qual a populaça americana podia empregar seu terror,
seu medo, sua profunda agitação de espírito — desperta ante o espetáculo do colapso da Europa — e ser distraída da verdade assustadora.
Enquanto milhares de jovens bretões lutavam, afogavam-se e morriam nas praias de Dunquerque, enquanto as esteiras de ferro de milhares de
tanques germânicos rolavam sobre os cadáveres dos traídos, o nobre August Jaeckle — sua mecha de cabelos claros a cair-lhe sobre os
loucos e superficiais olhos azuis — delirava de uma plataforma pública em Chicago:
“Não podemos apagar de nossos ouvidos o trovão do futuro! A Alemanha é invencível na Europa! Muito em breve a Inglaterra cairá! Hitler não
planeja apoderar-se da América. Já afirmou isso vezes sem conta. Três mil milhas de água nos separam dos velhos campos de batalha
ensanguentados da Europa. Não permitam que nossos banqueiros internacionais, agitadores estrangeiros e provocadores de guerras nos
arrastem a uma guerra que só pode terminar num beco sem saída, em ruína e bancarrota, e custar-nos as vidas de um milhão de rapazes
americanos!”
Havia alguns homens, como o Sr. Hawkins, calados de vergonha ante o espetáculo de um vasto público americano espojando-se e
contorcendo-se num orgasmo de medo e ódio, berrando, não contra Hitler, mas contra os poucos americanos corajosos que estavam
heroicamente tentando levantar seus compatriotas para enfrentar o inimigo audaz e resolutamente. Em Nova York, e outras grandes cidades,
jovens comunistas esqueléticos desfilavam com signos onde estava impresso: “Nada de guerras estrangeiras! Os ianques não estão
chegando!”
“Os imponderáveis da consciência dos povos!” — disse Antoine Bouchard.
Sua facção, seus amigos e associados confiavam em que o “seu homem” seria designado como candidato republicano para Presidente dos
Estados Unidos. A Convenção Republicana foi realizada em Filadélfia em junho de 1940.
Alguns membros da facção de Antoine haviam inquietamente observado que muito se havia falado de “Willkie para Presidente” desde a última
parte de 1939. Inesperadamente apareceram artigos em importantes revistas nos últimos meses, nos quais o Sr. Willkie, sua carreira, sua luta
corajosa contra a sufocante TVA (Tennessee Valley Autority. N. da T.), sua inteligente defesa da propriedade privada e da empresa privada, e
sua brilhante e admirável atuação como presidente de Commonwealth & Southern, foram louvadas e discutidas. Embora o Sr. Willkie
reconhecesse que os excessos de Big Business (Grandes Negócios, N. da T.) no século dezenove- vinte não merecessem defesa, argumentou
que só a indústria privada tinha inspiração, iniciativa e invenção espontânea para superar períodos de depressão e garantir a prosperidade e a
estabilidade do futuro. Seus argumentos para o caso da empresa privada apareceram em muitas publicações — especialmente nas revistas e
periódicos comprados e lidos pelo segmento mais inteligente e solvente do público. Mas “retratos sem ornatos” apareceram nos periódicos
comprados por aqueles indiferentemente designados pelos desatentos como “trabalhistas”.
Mesmo tudo isso não teria perturbado o partido de Antoine, ou nele despertado a mais leve consciência, não fosse por outra coisa.
Willkie já fora um Democrata, e firme esteio de Roosevelt mas, como disse estranhamente, “o partido o deixara”. Era honesto demais,
demasiado honesto intelectualmente, para aguardar cegamente pelas decisões de um grupo de homens que ele julgara haver traído os
verdadeiros princípios pelos quais fora elevado ao poder. Não considerava virtuoso, ou leal, declarar: “Meu partido: possa estar sempre certo,
mas certo ou errado, meu partido!” Tal atitude, acreditava, era excessivamente perigosa, e hostil ao bem-estar da América. Sua estupidez
estava fora de dúvida.
Escritor penetrante e vigoroso, recusou que lhe escrevessem os artigos: escreveu ele mesmo uma série deles, para as principais revistas, nos
quais argumentava que um inimigo mais ameaçador que Big Business ameaçava a América, e que esse inimigo era o Big Government. Esses
artigos atraíram a atenção dos cuidadosos e dos inteligentes, os que se preocupavam com governo constitucional e a manutenção da
integridade americana e sua firmeza de caráter. Também redigiu um artigo para um importante e sólido periódico, intitulado Nós, o Povo, que
despertou tremenda discussão sobre as possibilidades de sua designação como candidato para Presidente dos Estados Unidos.
Willkie, no entanto, declarou, com algum espanto, que lhe parecia estar “frente a uma tendência”. Muito perturbado, tentou localizar os começos
e o esboço da estranha, obscura “tendência” que o ia empurrando diante de si. Lá estava, enorme, porém amorfa, aparentemente impelida por
uma força irresistível, invisível, mas inexorável. Willkie aceitara a primeira rajada da tendência como apenas o interesse que excitara ao
defender a empresa privada. Prosseguiu, levemente incrédulo e vagamente perturbado, na onda do que nem ele nem seus patrocinadores até
agora viam como uma determinação definida e gigantesca. A tendência evoluíra para uma inundação enorme, alimentada por mil riachos —
antes que os políticos republicanos se dessem conta disso, e quando o fizeram foi com espanto. O editor-gerente de um estimado e brilhante
magazine resolveu devotar todas as suas energias ao movimento Willkie. Tivesse alguém observado a coisa na ocasião, veria que longos e
entusiásticos comentários a respeito de Willkie estavam aparecendo em todo o país, em número e importância crescentes — e que parecia
haver algum plano predeterminado por trás de tudo isso, algum padrão.
Anúncios de fontes não políticas apareciam em jornais por todo o país, e circulavam petições instando por sua designação, também de fontes
não políticas.
A maioria do partido de Antoine, embora observando esse misterioso fenômeno, apenas ria dele. The Barberless Hoosier, como o chamavam,
há muito os aborrecia com sua sincera e simples honestidade e teimosa integridade. Outrora o tinha julgado vivo e poderoso, quando se
engajara na batalha David-e-Golias contra o Governo (sem, entretanto, o fim feliz da Bíblia), porém o tinham observado com cínico desinteresse
e fatalismo. Também o haviam admirado por sua capacidade em arrancar do Governo 30 milhões de dólares mais do que o preço original
oferecido pela subsidiária da Commonwealth & Southern, a Tennessee Electric Power Company. Mas como candidato à Presidência dos
Estados Unidos — em oposições ao “homem” já escolhido como candidato pelos poderosos Bouchards e seus amigos — o Sr. Willkie não era
sequer levado a sério. Antoine declarou-o um “impudente labrego, um Dom Quixote caipira, Diógenes procurando a Casa Branca com uma
lanterna a óleo, o alívio cômico”. Antoine estava aborrecido ante o súbito brotar, aparentemente sem fonte certa, do nome de Willkie em jornais
e discussões públicas, e certo instinto começou a insinuar-se em seus nervos, prevenindo-o.
O “homem” escolhido pela facção de Antoine, e que esperavam confiantemente pudesse obter a designação, era um baixote gordo com
estúpido rosto de querubim, sorriso ainda mais estúpido, e claros olhos fixos. Tivera ampla carreira política, e em cada posto se distinguira pelo
incessante antagonismo a qualquer ideia liberal, o ódio infinito pelo “elemento alienígena”, e especialmente aquelas doutrinas progressistas a
que ele acreditava estivessem ligados aqueles elementos, sua aversão pelo trabalhismo, sua adoração dos poderosos, seu culto da tradição, e
seu registro realmente notável de economia em despesas públicas. Só isso deveria fazê-lo benquisto para os Bouchards e seus amigos. Mas
quando a tudo isso se acrescentava a atração de uma antiga e firme ascendência ilustre, uma honestidade obstinada e ruidosa, maneiras
rudes e truculentas (tão ao gosto do povo), uma conexão com a Legião Americana que o adorava, ódio gritante por “ideias estrangeiras
antagônicas ao americanismo cem por cento”, aversão pelos “desperdícios do New Deal” e uma confessada paixão pelo “modo de viver
americano, cada americano sendo um lutador com os dois punhos” — sentiram os Bouchards que os céus os estavam tratando muito bem. O
homem tinha a afeição do povo; já era um títere nas mãos dos seus senhores. Nada poderia ser mais satisfatório.
Durante meses eles o haviam formado cuidadosamente. Tivera no país uma reputação de terceira classe, mas subitamente foi guindado a uma
posição de primeira classe na atenção pública. Os Bouchards e seus amigos eram bastante inteligentes para não o deixar gabar nenhum
isolacionismo ou sentimento antibritânico, pois já haviam discernido um movimento inquieto no povo americano. Permitiram-lhe falar com
gravidade em reprovação ao nazismo, em voz que expressasse mais tristeza e desdém do que raiva. Sua frase favorita era: “Entre o
bolchevismo pardo e o bolchevismo vermelho nós, na América, não vemos diferença” Isso resolvia nitidamente os temores das almas tímidas
que odiavam qualquer “bolchevismo”. Mas em um ponto era muito firme esse candidato à designação: nenhum rapaz americano jamais
morreria em solo estrangeiro!
Quando algum provocador perguntava o que diria o estimado cavalheiro no caso de um ataque à América, o candidato ria friamente:
“Realmente acredita que alguma nação, qualquer nação do mundo, teria audácia ou a loucura de atacar-nos?! Esquece, caro senhor, as três
milhas de água por um lado, e as seis mil milhas de água pelo outro! Não importa o que aconteça ao resto do mundo: ninguém ousaria atacar-
nos, pois saberia que isso significaria morte e derrota certas. Portanto, não há necessidade de treinamento militar em tempo de paz de nossos
jovens, como instado pelos elementos mais excitáveis de nosso país. Não há necessidade de formar uma grande reserva de armamentos,
como nossos provocadores de guerra e fabricantes de armamentos gostariam que fizéssemos. Temos mais que suficientes couraçados de
batalha e aviões de combate. Entretanto, insisto numa atitude de vigilante espera e preparação cuidadosa.” Isto, então, resolvia de vez os que
fossem de tendências firmemente pacifistas, e aqueles que desejassem “adequados meios de defesa.”
O candidato recebeu o apoio apaixonado do America Only Committee. Seus discursos a respeito dos “rapazes americanos” provocaram
êxtase nas mães americanas. Estavam convencidas de que ele se colocava como uma trincheira entre seus filhos e a guerra.
Nesse ínterim, como Willkie estivesse observando, com espanto considerável, a enorme e irresistível tendência que o empurrava para aquele
junho em Filadélfia, Henri Bouchard e seu partido o vigiavam, atentos. “Wendell será designado” — Regan garantira a Henri. — ”Pare de roer
as unhas. Aquele peixe balofo estofado dele não tem possibilidades.”
Mas o “peixe balofo”, agora representado como o mais vigoroso exemplo dos filhos da América, estava indo muito bem. Se suas frases
pomposas eram vazias e sem substância, o povo não sabia disso. O pequeno burguês, o modesto balconista, o contribuinte comum o olhavam
com delícia através de suas lentes de míope. “Tradições americanas de individualismo, ódio americano ao imperalismo, sanidade da política
americana, economia americana no governo, aversão americana pela burocracia, crença americana nos princípios de independência pessoal
e firmeza de caráter” lhe caíam dos lábios como pepitas de ouro. Que nada significavam de tangível — só era percebido por alguns. Se
pedissem ao cavalheiro que definisse um só termo, ficaria bem embaraçado, e se refugiaria em maior ambiguidade.
Não obstante, ganhou 310 votos no segundo escrutínio durante a Convenção Republicana. Willkie tinha poucos delegados; nenhum dos
políticos experimentados acreditou por um só instante que ele tivesse possibilidades de designação.
Willkie era um lutador. Podia ter apenas uma ideia confusa de como tudo isso começara, e nenhuma ideia das forças poderosas que estavam
realmente por trás dele; mas agora que via, incredulamente, que tinha uma possibilidade de vencer, atirou-se à batalha com gosto e alegria. Foi
a todos os lugares; meteu-se em debates em vestíbulos de hotel; trocou apertos de mão com milhares de pessoas. Certa vez, falando na
Convenção, gritou:
“A Democracia e nosso modo de vida estão enfrentado o teste mais crucial de toda a sua longa história. Espero empenhar-me numa vigorosa
e agressiva cruzada, para fazer unidade à América, trazer a unidade do trabalho e do capital, agricultura e indústria, agricultor e operário e
todas as classes para esta grande causa da preservação da liberdade!”
Seu rosto apaixonado, cabelos desordenados, olhos vivos e lutadores apareciam enormemente nos jornais nacionais.
O partido de Antoine estava apreensivo ante esta súbita e impudente invasão em seus planos.
— Isso já passa de piada! — disse Jean Bouchard. — Há alguém por trás disto: vamos desmascará-lo. Digo-lhes que não estou gostando
desta história...
Porém por mais que procurassem, nada encontraram por trás de Willkie, nenhum eco de uma voz portentosa, nenhuma sombra.
Não havia de quem suspeitar. Quanto ao seu “homem”, todos os Bouchards, de ambos os partidos, estavam aparentemente no mais cordial
dos entendimentos. Christopher relatara a Antoine que Henri ia contribuir com uma quantia enorme para a designação do candidato preferido.
Henri e sua facção financiavam os anúncios em todos os jornais do país a favor desse homem. Se, nos mesmos jornais, apareciam fotografias
ainda maiores e artigos mais inteligentes a respeito de Willkie, o fato era lamentável, mas não despertava suspeitas. Se os comentaristas de
rádio no interesse de Wilkie pareciam ter mais tempo para falar dele, seus patrocinadores não puderam ser descobertos. Se uma barulhenta
multidão na galeria da Convenção subitamente se ergueu como um só homem aos gritos de: “Queremos Wilkie!” nem mesmo o sutil Antoine
poderia haver suspeitado por um só momento do poder por trás de tudo isto. Se revistas e periódicos andavam cheios de histórias, fotografias
e elogios a Willkie, ninguém parecia ter uma explicação.
Willkie venceu firmemente em todos os escrutínios. Foi quando Antoine e seu grupo ficaram alarmados. No quinto escrutínio estavam
desesperados, raivosos e espantados. Quando foram conhecidos os resultados do sexto escrutínio, ficaram sem fala. Willkie foi designado
como candidato Republicano.
Quando Antoine e os outros Bouchards se reuniram em Windsor, ali ficaram por muitas negras horas a encarar-se, caminhar pelo salão,
praguejar, conspirar, suspeitar, odiar. Mas não havia nada que pudessem fazer. Algo mais forte que eles, ou mais sutil, ou mais determinado
vencera.
Tudo que podiam fazer agora era tentar salvar das ruínas o que pudessem.
— Pelo menos — comentou Antoine, com amargo sarcasmo — estaremos apoiando um homem honesto, para variar... Vejam o que podem
fazer com ele.
— Ele tem alguma cor e vitalidade, o que é mais do que se pode dizer desse nosso velho “garganta” — comentou Jean.
Foi aí que a incrível enormidade da coisa golpeou Antoine. Como é que isso foi acontecer, quando ele e os amigos haviam esperado em
Windsor, tão satisfeitos consigo mesmos, pelo resultado final da votação? Nem por um momento haviam duvidado do resultado final! Nada fora
omitido, mal planejado ou negligenciado.
Inútil chamar os administradores e censurá-los ou ameaçá-los, ou exigir-lhe uma explicação. Pois a explicação fugia a todos eles. Os
delegados tiveram suas instruções. Durante horas ouviram os discursos dos vários candidatos à designação. Mas no fim, uma espécie de
frenesi se apossara deles, um frenesi meio loucura, meio exaustão. E no vendaval de delírio, Wendell Willkie recebera a designação.
De súbito, fantasticamente, Antoine tornou a ver o enorme e saturnino rosto do velho Jay Regan. “Os imponderáveis da consciência dos povos!”
Absurdo, insano! Não fora o povo asinino que jogara fora o candidato-escolha dos Bouchards. Fora algum monstruoso acidente, alguma piada
acidental e louca, hipnotismo, algo que não podia ser explicado em palavras razoáveis de homens razoáveis.
Disse, com raiva fria e venenosa:
— Digo-lhes que nada podemos fazer com esse Willkie! O melhor por que podemos esperar é que derrote Roosevelt. Depois disso, só Deus
sabe! — Fixou o pessoal ali reunido, os olhos negros virulentos: — Não sei! Não sei! Mas existe algo de muito estranho em tudo isto...
— Se ele derrotar Roosevelt, realmente existe algo de muito estranho em tudo isto — confirmou Nicholas Bouchard acidamente. — Comecem
então a preocupar-se. Qualquer que concorre a um terceiro mandato apesar de estar entre a cruz e a caldeirinha não pode ser derrotado pelo
próprio Arcanjo Miguel.
Todos os Bouchards estavam nessa conferência na escura biblioteca da casa de Armand. Todos menos Armand, meio inconsciente em seu
empoeirado quarto, lá em cima. Antoine olhou lentamente um a um, o rosto moreno contraído. Finalmente olhou para Henri, com expressão
branda, mas de feições endurecidas. E Henri lhe devolveu o olhar, com aqueles olhos pálidos, descoloridos, que não traíam absolutamente
nada.
Então percorreu a espinha de Antoine uma sensação gelada de medo. Ali estava! Ali estava a resposta, pensou ele, contra toda razão, contra
toda lógica.
— Willkie vencerá — disse Henri — a menos que vocês e seus amigos lhe deem abertamente “o beijo da morte”; em outras palavras; se não
deixarem o trabalhismo compreender que vocês esperam que Willkie seja sua clava para derrubá-lo.
Capítulo 48
Christopher preparava-se para sair de Endur para uma de suas frequentes viagens de negócios a Detroit, quando anunciaram a visita de
Antoine.
Era uma quente manhã de domingo em julho; enquanto Christopher escolhia as roupas que precisava, para que o criado as arrumasse, Edith
lhe fazia companhia, divertindo-o, como sempre, com seus ditos engraçados e gracejos levemente maliciosos.
— Quando espera estar de volta, desta vez? — ela perguntou, abanando-se com uma revista, e preguiçosamente dando uma olhadela, através
das janelas sem cortinas, ao brilho do gramado e do céu.
— Oh, dentro de uma ou duas semanas. A Eagle se está pondo a caminho depressa, agora. Os britânicos, como sabe, estão financiando a
construção da nova fábrica. Estão financiando fábricas de munições e de aviões por todo o país, o que é excelente! Quando a guerra estourar
em cima de nós, se isso acontecer... estaremos em ótimas condições para fabricar armamentos, tanques e aeronaves assim que formos
notificados.
— Meu Deus! É horrível pensar nisto! — exclamou Edith amargamente. — É uma loucura, um pesadelo! — Calou-se. — A propósito: ouvi dizer
que o livro de Peter está agora em trezentos mil, e melhorando as vendas a cada dia.
Christopher riu brevemente:
— Suas duas observações não têm alguma conexão oculta, não é?
— Poderiam — respondeu Edith, tristemente. Voltou para o marido os olhos castanhos: — Sabe, acho que não gosto desta família. —
Levantou-se e pôs os braços em torno de Christopher, mergulhando o rosto em seu pescoço e apertando os braços convulsamente. — E
também não gosto de você — acrescentou, em voz abafada.
Por um momento ele ficou sem movimento, depois a apertou fortemente:
— Francamente, odeio todos os Bouchards — disse, beijando-lhe os macios cabelos escuros. Gentilmente livrou-se dela, depois hesitou: —
Você tomará conta de Celeste?
Os lábios finos e pálidos dela se apertaram de súbito:
— Não poderei beijá-lo ao menos uma vez sem que você imediatamente mencione sua irmã? — perguntou. Depois deu de ombros: — Diabos!
Isso não importa. Claro que tomarei conta de seu precioso cordeirinho. Porém ela está indo muito bem, obrigada. Perfeitamente calma e
tranquila. Fazendo um lindo enxovalzinho. Todos vocês estão enganados quanto a Celeste. Ela não é porcelana: é ferro. — Sorriu. — Tenho de
estar com ela, não por ela, mas por Henri. Espero que ele apareça qualquer dia destes, quando menos se espere. E não deve vê-la a sós.
Nesse momento é que Antoine foi anunciado. Christopher ficou silencioso por um ou dois minutos, franzindo o rosto pálido. Depois, com um
aceno de cabeça, despachou Edith, que imediatamente deslizou para um quarto pegado. Antoine, tão polido, obscuramente brilhante, e alegre
como sempre, apareceu, cumprimentando afavelmente:
— Ah! A caminho novamente! Eagle, suponho?
— Sim. A nova fábrica está em andamento, a que é financiada por capital britânico. Esperamos estar em produção em cerca de cinco
semanas mais ou menos. Cigarro?
Antoine aceitou um cigarro, depois sentou-se graciosamente no largo peitoril da janela. Com seu aspecto elegante, fumou vagarosamente,
olhando para fora, para a ampla e brilhante extensão dos relvados. Christopher continuou a separar roupas. Os primeiros gafanhotos
estridulavam violentamente no ar parado e quente.
— O que este lugar precisa — comentou Antoine — é uma estacada ao fim dos gramados.
— Não pode vê-la? Existe uma, lá embaixo — replicou Christopher, como um leve sorriso.
Antoine também sorriu, sem virar a cabeça:
— Nunca se sabe a quantas se anda com você, Chris...
— Ah! Você me conhece — falou Christopher. — Sempre a reserva bem-educada, a delicada reticência. Que é que quer fazer por mim agora?
Ou tirar de mim?
Antoine se voltou para ele, lentamente. “Uma boa posição!” — pensou Christopher. “Seu rosto está na sombra, com a janela por trás dele,
enquanto eu estou exposto à luz”. — Começou a rir:
— Tony, sente-se aqui, onde eu possa ver-lhe as feições. Sabe, para um substituto, você não é muito sutil. Além disso, está me obstruindo a luz.
Antoine riu com grande divertimento. Atirou-se numa confortável poltrona, onde se espalhou na mais preguiçosa atitude:
— Não podemos parar de esgrimir magistralmente e falar de verdade?
— Estou lhe fazendo a mesma pergunta — replicou Christopher. Esperou. Porém Antoine não falou: observava o tio, sorrindo largamente, como
se estivesse muito divertido. — Se pensa que pode pôr-me na defensiva, meu filho, devo observar que homens mais brilhantes que você já
tentaram isso. Assim, vá em frente — acrescentou Christopher.
— Realmente vim apenas em visita de cortesia — começou Antoine.
— Ora vamos! — disse Christopher, maciamente. — Bem, estou ouvindo. De que escândalo quer falar agora? Você é um fofoqueiro danado,
sabe.
Ergueu três gravatas e as estudou criticamente:
— Sirva-se de uma bebida — sugeriu.
Antoine encaminhou-se ao pequeno bar portátil ao fim do quarto e se serviu um uísque com soda. Voltou para sua poltrona, onde começou a
bebericar com satisfação.
— Que pensa das possibilidades de Willkie? — perguntou.
— Excelentes. Se você obedecer ao conselho de Henri, e não trouxer a artilharia pesada sob a forma dos Big Business Boys e começar a
bombardear o trabalhismo. Não creio que Willkie apreciasse isso, de qualquer maneira. Ele não é anti-trabalhista. Nunca foi. Você o aniquilará
se apresentar a falange dos rapazes da barra pesada. Outra coisa: interrompa essa coisa de antissemitismo que suas queridas organizações
estão começando a papaguear. É um excelente meio de assassinar Willkie. Ainda na semana passada, lembra-se, ele disse não querer o
apoio de lunáticos.
— Antissemitismo — observou Antoine — é sempre uma boa coisa para alimentar as tropas. Gostam disso. Dê ao populacho algo que odiar.
— Você encontrará o ódio onde menos gostaria de vê-lo — avisou Christopher. Sentou-se e olhou friamente o sobrinho: — Já notou, meu
Maquiavel precoce, que ambos os candidatos à Presidência se estão portando como cavalheiros decentes, civilizados, e que só os seus
adeptos é que procedem como cães e porcos? Ponha dignidade e decência em nossa própria campanha e venceremos. Ah, sim, soube que
Wendell recusou seu convite para jantar há alguns dias atrás. Isso deveria ser uma boa indicação para você.
Antoine deu de ombros. Começou a franzir a testa:
— Muito bem. Muito bem. A propósito, ainda não descobri como esse caipira de Indiana conseguiu a designação.
— Os desígnios de Deus são muito misteriosos — observou Christopher, com aspecto aborrecido. — Outra coisa: não foi uma “tacada” muito
brilhante por parte dos Guardiães da América sair-se com a luminosa ideia de que o nome de Roosevelt é realmente Rosenfeld. De todas as
malditas...
— Não seja vulgar — riu Antoine. — Eu achei isso inteligente! Você superestima a inteligência da populaça americana.
Mas Christopher não riu:
— Eu lhe farei uma profecia: se Willkie perder, será por causa de vocês, jovens brilhantes. Mas vocês nunca aprendem... — Relanceou o olhar
para o relógio: — Se tem algo a dizer, faça-o depressa. Só tenho hora e meia para pegar o meu avião.
Antoine continuou a bebericar vagarosamente. Sacudiu o líquido amarelo em seu copo.
— Na verdade, não é importante. Só queria dizer que, quando você voltar, convocarei outra reunião. Meu sogro, Boland, lá estará também.
Encontrei-me com ele há dois dias, em Nova York. Estava perguntando a respeito do meu próprio pai. Disse-lhe que esperávamos que papai
se juntasse aos demais da família nessa conspiração, momentaneamente. — Agora ele olhava para Christopher: — Você não tem a menor
pista a respeito do testamento dele?
— Nada, nada! Armand e eu nunca fomos confidentes, você sabe. Por que se preocupa?
— Por nada. Nada, mesmo. Apenas curiosidade. Entretanto, gostaria de saber se minha irmã fica adequadamente protegida.
Christopher deu de ombros, sem comentários.
Antoine o observava atentamente:
— A propósito: ainda não tomou nenhuma decisão a respeito de sua patente de chumbo tetraetílico para gasolina de alto índice de octana?
— Não — respondeu Christopher maciamente. — Pelo menos não mudei de opinião. Henri está nos vigiando estreitamente, sabe. Não
podemos deixar a Alemanha usar a patente, nas atuais circunstâncias.
— Porém a Eagle controla a Consolidated Tetra-Ethyl Corporation. Você pode tomar suas próprias decisões, Henri ou não Henri. Que é que ele
tem a ver com isso? E por que tem de impedir que você deixe nossa associação de motores na Alemanha usar a patente?
— Nossa associação de motores está fabricando motores para Hitler, caso você tenha esquecido — disse Christopher, casualmente. Acendeu
um cigarro, com aparência de aborrecimento.
— A Consolidated Tetra-Ethyl Corporation está de parceria com a I. G. Farbenindustrie, caso você haja esquecido — disse Antoine. — Que
haveria de mais natural do que passar a patente para uso de Hitler? Maldição! Ele precisa da alta octaria!
— Outra coisa que lhe saiu da mente, Tony! Henri ainda tem voto de controle na Eagle. Você sabe disso; então, por que toda essa conversa
mole?
Antoine depositou o copo, levantou-se e começou a palmilhar o quarto de um lado a outro.
— Já lhe disse: vi o pai de Mary em Nova York, há uns dois dias. Ele gostaria de possuir essa patente, ou alguma pista do processo. Hitler está
ficando impaciente conosco. O Papai Boland terá tudo arranjado para embarque de gasolina de alto índice de octana através da Argentina. Os
navios-tanque já estão organizados em fila no porto. Porém ajudaria mais a Hitler se o petróleo pudesse ser transformado lá mesmo, na
Alemanha. I. G. Farbenindustrie está preparada para iniciar o processo. Você é que está resistindo, desde que Henri anunciou que o processo
não seria dado a Hitler em hipótese alguma.
— Que posso fazer a esse respeito? — perguntou Christopher, em tom neutro.
Antoine parou abrupto diante dele. Falou, maciamente:
— Você conhece o processo. Você o desenvolveu aqui na Flórida. Ele lhe pertence. Um de seus químicos na Flórida, ainda ligado a Duval-
Bonnet, pode ir trabalhar para Papai Boland. Se você mandar.
Christopher estava silencioso. Observava a fumaça de cigarro a espiralar-se entre seus dedos.
— Podemos pagar o Exército, O.K. — continuou Antoine. — Estive com o General-Brigadeiro Henderson semana passada em Washington. O
Exército não atrapalhará quanto ao processo ser dado à Alemanha.
Christopher não demonstrou o súbito alerta que lhe percorreu os nervos. Falou, com indiferença:
— Henderson não é uma das mais brilhantes luzes por trás do America Only Committee?
Antoine sorriu:
— Sim. A propósito: nossa companhia de motores na Alemanha não perderia com a transação. E Henderson possui grande quantidade de
ações de nossa companhia de motores na Alemanha. — E riu.
— Assim — falou Christopher, reflexivamente — nosso nobre general é completamente favorável a que Hitler tenha sua patente. Conhecemos
uma razão: as ações que possui de nossa companhia germânica. Mas penso que exista outra, não?
— Que acha? — replicou Antoine, gentilmente.
Ficou de pé diante de Christopher e esperou. Houve um longo silêncio. O trilar dos gafanhotos estava mais estridente no ar quente. Antoine não
podia decifrar a expressão de Christopher.
Antoine quase sussurrou, a voz pesada de urgência:
— Hitler necessita desse processo. Imediatamente. Para bombardear a Inglaterra, que explodirá numa escala sem precedentes neste outono.
Ouvi dizer que ele vai tentar bombardeá-la fora da guerra. Assim, a questão é extremamente urgente.
Christopher recostou-se na cadeira:
— Sabe — disse, com crescente indiferença — não vejo como poderemos manter-nos fora desta guerra. Estaremos nela, eventualmente,
apesar de todos os seus esforços, Tony.
— Sim, eu sei. — Tony sorria. — Por isso é tão importante que Hitler tenha a patente imediatamente. Boland ainda pode embarcar petróleo
para Hitler através da Argentina, mesmo que estejamos em guerra. Ele tem cartéis na América do Sul, como sabe, e Hitler terá o petróleo
mesmo que o suprimento esteja encerrado aqui na América. Roosevelt não conseguirá nada na Argentina com sua política de Boa Vizinhança,
embora ele possa ser capaz de arrastar os outros países sul-americanos a um acordo com ele. Lembre-se, os agentes e padres de Franco têm
realizado bom trabalho na Argentina; eles têm homens no Gabinete, lá. A Argentina fará negócios com Hitler, por nós e por ela mesma, quer
sejamos empurrados para a guerra ou não. Nossos agentes estão trabalhando juntamente com os agentes de Franco. Temos a Igreja conosco.
Aconteça o que acontecer, a Argentina não declarará guerra a Hitler, mesmo que o façamos, e que o façam as demais nações sul-americanas.
Assim, teremos lá nossos postos de escuta, e nossas saídas, nossas estações de propaganda, e nossos refúgios para agentes germânicos.
Houve, novamente, um silêncio profundo. O cigarro de Christopher ardeu até o fim entre seus dedos descarnados. Seu rosto era uma máscara
de pergaminho. Depois disse, pensativamente:
— Muito bem. Deixarei que Boland tenha um dos meus homens, o mais familiarizado com o processo.
Levantou-se e foi ao telefone, onde fez uma chamada para a Flórida. Antoine esperou, exultantes os olhos negros. Christopher acrescentou:
— Uma pequena mudança no processo, bem pequena, e não haverá pretextos para um processo por infração de patente.
Depois que Antoine se foi, Christopher telefonou a Henri:
— Estarei no aeroporto em quinze minutos. Isto é muito importante. Tenho de falar-lhe. Vá até lá o mais depressa que possa.

Capítulo 49
Francis Bouchard (o “gelado Frank”, como os parentes o chamavam) olhou a filha Rosemarie num silêncio terrível. Pálido, louro, frígido, parecia
eterno, tão brilhantemente azuis eram seus olhos, tão esbelta sua silhueta. Em volta da boca, fina e angular, havia dobras atenuadas de mau
humor que sempre acrescentavam uma expressão cativante a todo o rosto magro. Era um Bouchard “anglo-saxão”; e embora fosse muito mais
alto e mais atlético do que Christopher Bouchard, e notável por suas mãos estreitas e grandes e pés longos e estreitos também, tinha uma
curiosa semelhança com Christopher, e com seu próprio irmão falecido, Peter. Despertava atenção na família por sua capacidade mental, suas
exigências, e um tipo especial de integridade que nada tinha a ver com seus negócios. Sempre tivera por Peter um desdém apiedado, mas
também uma afeição impessoal. Sentiu muito a morte de Peter.
Era do partido de Henri, pois não só era sagaz como também tinha preferência por ele. Determinadamente desinteressado e afável, mantinha
relações amigáveis com toda a família — em parte por ser demasiado egoísta para se permitir ser perturbado por animosidades, e em parte
porque achava os parentes divertidos. Se não se fizesse intimidade demais com nenhum deles — ele diria. Além disso, acreditava em ter
amigos, e era muito popular.
Presidente da Kinsolving Arms Company, subsidiária de Bouchard & Sons, era enormemente rico, e pelo menos tão avarento como outros
membros de sua família. Mas nunca permitiu que essa avareza se tornasse óbvia. Parecia ser muito generoso, com uma benevolência austera
que praticamente decepcionava a todos, mesmo a sua esposa. Era amado por ambas as filhas — Rosemarie e Phyllis Morse — e pela
esposa, e amava a todas. Mas Rosemarie era a favorita.
Sentou-se só com ela em seu pequeno salão. Para ali sempre convocava as meninas quando tinha coisas de importância a discutir com elas,
tais como seus “delitos”, suas perturbações particulares, E outros problemas. Sua casa era grotescamente enorme, localizada no meio de
jardins de uma beleza incrível. Era famosa a sua biblioteca, e ele também possuía uma fina galeria de quadros originais — o que fazia a aguda
inveja de Christopher, seu amigo particular.
As filhas sempre o haviam olhado com o maior respeito; Rosemarie, exaltada como era, e cheia de violência, não podia curar-se do hábito de
toda a vida. Chegou agitada: queria gritar delirantemente. Mas o pai sentou-se em frente a ela, as longas pernas cruzadas, atitude negligente e
calma, e a fitou com os faiscantes olhos azuis que pareciam fragmentos de um espelho.
— Não! — ela disse, por fim, batendo nos joelhos com as mãos fechadas. — Não! Terá de bater em outra porta para a informação que quer!
— Vim a você, Rosy — disse Francis. — Porque você pode dar-me essa informação. Quero que pense nisto. Fui sincero com você; não pode
repetir nada do que lhe disse sem me trair. E penso que nunca fará isso, hein, Rosy?
Ele sorria de leve. Ela voltou para ele os olhos negros e vividos, entreaberta a boca vermelha. E então ficou silenciosa, respirando com
dificuldade, como se o coração lhe palpitasse forte demais. A garganta ficou apertada em turbulenta paixão. Depois disse, roucamente:
— Papai, não lhe posso contar nada. Não é que particularmente eu me importe, por razões éticas. As mulheres das organizações que ajudei a
formar são loucas e desprezíveis. Maníacas, perversas, imbecis. Sim, são tudo isso. Espero que algum dia teremos meio adequado de lidar
com elas, seja com clorofórmio ou esterilização. — Sorriu friamente. — Mas acontece que eu concordo com os princípios dessas organizações.
Precisamos de mulheres assim para promovê-las, fomentar esses princípios.
— Parece-me um fino comentário sobre os princípios de suas organizações que sejam necessárias mulheres insanas, e potenciais assassinas
e perversas, para fomentá-las — comentou Francis. — Olhe, minha querida, talvez eu não tenha tornado as coisas claras para você. Estou
nisso com Henri. Kinsolving é uma subsidiária de Bouchard & Sons. Só por essa razão eu estaria nisso com Henri. Mas também acontece que
estou com ele por muitas outras razões, algumas delas pessoais.
— Para não mencionar o fato de que a esposa de seu falecido irmão vai presentear Henri com um filho? — O sorriso de Rosemarie era
virulento. Os olhos do pai diminuíram para um pontinho brilhante.
— Talvez — concordou, calmamente. — Céus! Vocês, mulheres! Não podem afastar-se da cama, não é mesmo?
Para sua surpresa, sua exaltada filha enrijeceu subitamente:
— Não. Não podemos.
Cuidadosamente, Francis acendeu um cigarro, com gestos precisos. Girou para trás a cadeira e olhou o teto pensativo.
— Sempre me pareceu humilhante ter algo a ver com mulheres ... pelo menos nos negócios. Antigamente as mulheres não se misturavam aos
negócios. Agora, estão por toda parte, fuçando e embaralhando tudo, complicando as coisas. As filhas eram manipuladas, é verdade, para
trazer melhores relações comerciais através do casamento. Tudo muito correto. Mas agora vocês, mulheres, têm-se comportado sem controle
através dos negócios, como um bando de éguas no cio. Vocês estão em toda parte, fuçando na política, incitando trapalhadas incríveis na vida
pública, chiando a toda força dos pulmões mesmo em Wall Street. Não gosto de tê-la aí sentada recusando fazer algo por mim... e que é da
maior importância para mim como presidente da Kinsolving Arms.
Ele continuou, quando Rosemarie não respondeu, embora ela fixasse furiosamente olhos ardentes nele.
— Christopher misturou a irmã em seus negócios, com o lindo resultado que sabemos. Annette está enredada com Henri. Antoine manipula
Burglar Boland através de sua pequena Mary. E a coisa vai em frente, o tempo todo. E você, por exemplo, continua inventando as mais sujas
organizações para vingar-se de Henri, que tem outra namorada. Arre! Isso fede! Eu poderia citar dúzias de outros casos.
O rosto moreno de Rosemarie estava rubro! Os lábios mal se moviam quando disse:
— Ele sempre deu a entender que, assim que pudesse, se divorciaria de Annette e casaria comigo. Mentiu. Sempre foi um mentiroso. Eu o
amava, pai! — e então sua voz áspera tremeu.
— Sim — falou Francis, pensativamente — suponho que sim. E eu sempre esperei que você casasse com ele. Mas nunca houve ninguém para
ele, a não ser Celeste. Lembre-se disso. Minha querida — acrescentou, com afeição — tudo isto realmente não importa. O que importa é que
faço parte da facção de Henri, e se ele afundar, eu também afundo. Por isso tenho de saber, completa e acuradamente, os nomes de todos os
partidários influentes de suas organizações, quais os planos deles, a lista completa de seus membros, e se e como estão ligados às
organizações germânicas, e que dinheiro alemão ajuda a apoiá-los.
Os lábios de Rosemarie se torceram num sorriso sardônico:
— Ficaria surpreso, pai! A propósito: Henri lhe pediu para obter de mim estas informações?
— Pediu — concordou Francis, gravemente. — De fato, quando ele me disse que você era a eminência parda por trás desses nojentos, não
acreditei. Porém ele finalmente me convenceu. Contou-me, naturalmente, que Antoine é um dos anjos guardiães de duas das mais perigosas
organizações. Isto é verdade?
As negras sobrancelhas de Rosemarie se juntaram, porém, ela nada disse. Entretanto, um olhar de surpresa lhe cruzou o rosto.
— Henri parece um tanto onisciente... — ela observou, zombeteiramente, daí a um momento.
— Henri — comentou o pai — conhece muita coisa. — Deteve-se: — Rosemarie, minha querida, esqueçamos Henri. Peço-lhe que faça isso
por mim. E por si mesma. Se não o fizer, querida, eu a deserdarei. — E então, embora sorrisse para ela com a mais profunda compreensão e
afeição, ela viu a desapiedada agudeza de seus olhos penetrantes. — Você só teria a perder se eu a deserdasse — ele continuou. — Pois se
Henri afundar, e eu afundar, no desastre geral, que poderia ser deixado para você? Pense em si mesma, querida.
Ela estava profundamente perturbada. A secura e raridade das palavras do pai tiveram o maior efeito sobre ela. Sua avareza, enorme como a
avareza de todos os Bouchards, despertou fortemente. Vendo-lhe a perturbação, o pai tirou da secretária uma caixa de cigarros e a estendeu
para ela, que retirou um cigarro, com dedos que tremiam visivelmente. Ele o acendeu para ela, depois recostou-se e aguardou que ela falasse.
— Você não pode sentir lealdade para com aquela canalha — comentou Francis. — Não pode, realmente, sentir qualquer simpatia por seus
objetivos. Como poderia? Assim, está resolvido. A lista completa, Rosy. Nomes, os que os apoiam, vínculos com a Embaixada germânica, com
a Inteligência germânica, e com o Consulado germânico. Nada deve ser omitido. — E acrescentou: — Eu não mencionaria a Antoine nada
desta nossa conversa. Não seria bom para você. Nós vamos agir rapidamente e, minha querida, o fato de ser minha filha não me causaria o
mais leve e efêmero remorso.
— Pai — falou Rosemarie, voz trêmula — você é um suíno.
Porém ele replicou, calma e pesadamente:
— Sou um homem lutando por sua própria vida. Nunca lhe ocorreu, Rosy, o que suas sórdidas intrigas significariam para mim?
— Eu não sabia que você estava nisso... com ele! — gritou Rosemarie. — Tem de acreditar-me!
— Você, na realidade, nunca pensou na questão — disse o pai, duramente. — Estava tão malditamente interessada em seus próprios imundos
odiozinhos e ciúmes, e em sua maldade natural... Prejudicou-me muito, Rosy, fez-me muito mal. Tem de desfazê-lo. E antes de sair desta casa.
Indicou a escrivaninha, e um grosso maço de papel em branco em cima dela.
— Que bem isso faria a alguém, mesmo que eu lhe dê a informação? — perguntou Rosemarie. — Você não poderia deter as organizações, e
sabe disso. Mesmo revelá-las não adiantaria nada. Continuariam subterraneamente. — Sua voz estava aguda de desespero.
Francis a fitou inexpressivamente:
— O Bureau Federal de Investigações gostaria da informação — ele lhe disse, implacavelmente. — Não pule, Rosy. Sim, pretendemos
transferir as listas completas quando chegar a ocasião. E essa ocasião está chegando rápido...
O desespero dela aumentou para um medo pessoal terrível:
— Pai, não poderia manter meu nome fora disto... no fim? — e agora ela implorava, perturbada.
— Não. Talvez não. Sei disso, Rosy — falou Francis. — Mas o fato de que você nos deu esta informação abrandará as coisas em seu favor. É
tudo que lhe posso prometer. De qualquer maneira, você é uma Bouchard. Duvido que seja... molestada. Vamos, Rosy. Descobriremos sem
você. Embora leve muito tempo. E quando descobrirmos, você estará em má posição, não terá nenhuma defesa. Deste modo você pode salvar
a sua pele. Enquanto salva a minha também.
Ela torceu os dedos, em sua funda agitação e sofrimento. Depois olhou diretamente para o pai, o medo a arder-lhe nos olhos:
— Pai, Antoine está nisso, você sabe. E muito do dinheiro dele. Ele tem estado apoiando Jaeckle. E o America Only Committee. Ele, Nicholas,
Jean e Alexander. Não me importo com os outros. Mas importo-me com Antoine.
Uma sensação de total repugnância golpeou o coração de Francis. Que vileza havia agora nas mulheres! As filhas e esposas das “melhores”
pessoas tomavam amantes tão casualmente como as mais sujas prostitutas e vagabundas das ruas! Não havia decência nas mulheres, nem
honra, nem respeito por seus miseráveis corpos... Levantou-se abruptamente. Não seria aconselhável ou oportuno, justamente agora,
esbofetear a filha violentamente.
— Aí estão papel e pena, Rosy — disse, em voz cansada; e caminhou rapidamente para fora da sala.

Capítulo 50
Relutantemente, Edith confessava a si mesma: Celeste tinha a resistência e a firmeza do ferro. Com dignidade, de cabeça erguida, com calma
e equilíbrio, enfrentara a família, a todos olhara resolutamente nos olhos, silenciara — pelo menos em sua proximidade — qualquer observação
maliciosa ou ambígua, forçara-os a tratá-la com respeito. Mesmo se o venenoso Christopher e a decidida Edith ou a doce e confiante Annette
não estivessem por trás dela ou a seu lado, sua própria atitude indomável e direta, bem como o olhar firme, obrigaria a uma forte admiração e a
constantes demonstrações de aceitação. Apesar dos seus anos de casamento, para a família sempre fora a “pequena Celeste”, e não com
carinho, mas sim com zombaria, por causa de Christopher. Também lhe faltavam muitos traços de caráter dos Bouchards, e nunca fora
conhecida por conversa interessante ou maneiras agradáveis — duas características que a maioria dos Bouchards acreditava serem atributos
de sua gente. Na infância tinha medo dos parentes, era tímida, silenciosa, e de temperamento não cativante. A família logo percebera que ela
não era verdadeiramente uma Bouchard, mas uma amedrontada estranha que instintivamente lhe tinha aversão.
Como não admirassem ou respeitassem Peter, por motivos similares, Celeste e o marido haviam recuado bem para longe na consciência da
família, que, durante as peregrinações e residências europeias deles, quase totalmente esqueceu, por anos a fio, que eles existiam. Sua volta,
a curiosidade e a risota a respeito da “obra” de Peter, e depois a súbita e enorme irrupção de Henri no que os Bouchards consideravam o
pequeno e insignificante quadro de duas criaturas insignificantes e impopulares, haviam trazido os exilados ao foco forte e brilhante da visão da
família. Haviam esquecido quase inteiramente a devoção de Christopher pela irmã, e o próprio Christopher fora virtualmente exilado para a
Flórida pelo formidável Henri. A saída de Christopher da obscuridade aumentara a vivida luz agora lançada sobre o retratinho no canto.
A família, por uma espécie de comunicação secreta, sabia de muitas, muitas coisas que Henri obtusamente acreditava não ousariam conhecer,
ou que fossem muito estúpidos para saber. A sombra imensa desse homem, assomando por trás de Celeste, é que silenciava línguas por
natureza malignas e cruéis.
Os Bouchards, então, nunca haviam admirado Celeste pelo que ela era. Haviam-na considerado desmiolada e ridiculamente ingênua. Agora,
quando chegava entre eles, orgulhosa, calada, corajosa e amargurada, cheia de dor, mas valente — olhavam-na com novo respeito e mesmo
ternura. A simpatia que lhe ofereciam, como viúva jovem, bela e rica, não era inteiramente hipócrita. Eles, especialmente as Bouchards
mulheres, começaram a falar do “pobre filho de Peter” com crescente firmeza. As que assim falavam, com olhos frios e desafiadores, eram
lideradas por Agnes Bouchard, para surpresa de quase todo mundo, pois Agnes estivera na vanguarda das que, no passado, haviam
divertidamente escarnecido de Peter e Celeste. Depois, claro, havia Annette, frágil, mas galante, e em sua doce e gentil presença nem mesmo
o mais vulgar ou brutal ousava pronunciar uma palavra maldosa.
Também a solidariedade de família (“lealdade de velhacos”, como Jules a chamara) os fazia cerrar fileiras contra possíveis murmuradores
estranhos. Podiam rir furtivamente entre si, porém nunca entre seus amigos e associados.
Last, but not least estava o medo mortal que tinham de Henri Bouchard.
De modo que, após a primeira surpresa divertida e secreta risada, quase todos os Bouchards, mesmo entre eles, só falavam do “filho de Peter
que está para chegar”. Para sua fúria, Antoine nada podia fazer. Era olhado de alto abaixo mesmo por seus conspiradores imediatos. Certa vez
o pomposo Alexander, o pio e ponderoso, lhe dissera:
— Não sei o que você está deduzindo, Antoine, mas posso dizer-lhe isto: é de um extremo mau gosto, se não calunioso.
Não fora fácil para Celeste, ante a firme incitação de Edith e Agnes, e a gentil insistência de Annette, enfrentar completamente a família, forçar-
se a andar entre eles, e a aceitar — após os primeiros sorrisos maliciosos — suas condolências e simpatia. Ficara de olhos vítreos, e corara
fortemente. Mas não se retraiu, não tentou esconder-se, após as primeiras semanas quando ficara quase fora de si de vergonha, tristeza,
remorso e desespero. Foi a jantares dados em sua homenagem, jantares calmos e cheios de afeição. Também ofereceu pequenos jantares, só
para as mulheres da família. Sua nova e forte dignidade, sua nova segurança despertavam a admiração geral. Só em certas ocasiões, quando
via Annette, é que suas pálpebras tremiam um pouco, e também a boca.
Até fora a Nova York, sozinha, para falar ao Sr. Hawkins, e combinar com ele a distribuição dos direitos autorais do The Fatefull Lighting para
vários refugiados e organizações de ajuda estrangeira em que Peter estivera tão desesperadamente interessado.
Então sua vida adotara uma pesada serenidade e calma, sem alegria ou esperanças, porém controlada e cheia de dignidade. Considerava a
criança, prestes a nascer, com sombria indiferença e aborrecimento, como teria considerado qualquer outra catástrofe na longa série de
catástrofes em sua vida. Quando os parentes falavam da criança, ela replicava com fastio e desinteresse: para ela, não tinha realidade, nem
calor. Não fazia planos para ela e, incrivelmente, jamais cogitou em seu sexo.
Pois vivia, agora, numa completa suspensão de emoções, numa espécie de inércia e apatia. Sempre fora considerada fleumática pela família,
e essa qualidade parecia intensificada nesses tempos de espera. Não que ela se movesse num entorpecido estoicismo: dava, antes, uma
impressão de controle neutro e impassível. E não se tratava apenas de manifestação externa. Seu controle se estendia aos pensamentos
disciplinados, aos movimentos, às palavras. Lia muito, observava o progresso da guerra com absorta aflição e intensidade, caminhava,
labutava, escrevia cartas para amigos distantes na Inglaterra e na França não ocupada, e evidenciava sincero interesse nas próximas eleições
presidenciais. Dormia calmamente, nunca se entregava a lágrimas ou a angústias, nunca tinha sonhos agitados. Obrigara-se além de tudo isto.
Edith tinha uma palavra para tudo isso: fortaleza. Apenas parcialmente estava certa, como Christopher suspeitava. Pois Christopher sabia que
Celeste decidira não ousar pensar, nem se permitiria sentir.
Quando Christopher se ausentava, Edith passava os dias com Celeste. Sabia ser ridícula a preocupação nervosa de Christopher pela irmã.
Celeste não ficava perturbada em absoluto em estar só. Agradava-lhe a presença de Edith, pois as duas se haviam tornado boas amigas;
porém não expressava nenhuma tristeza quando Edith voltava a Endur para estar com Christopher. Edith tinha de lutar para conter seu natural
aborrecimento e ciúme quando Christopher, imediatamente após sua volta, insistia em visitar a irmã: “Sozinha naquelas malditas montanhas, só
Deus sabe o que lhe pode acontecer!”
Era perda de tempo salientar que Celeste tinha uma casa cheia de criados, duas enfermeiras, e um médico que ia vê-la pelo menos uma vez
ao dia. Impaciente, ele não tomava conhecimento da observação de Edith de que não se passava um dia sem que todas as mulheres
Bouchards telefonassem para a grande casa solitária de Placid Heights para indagar da saúde da futura mãe, e que pelo menos três vezes por
semana uma delegação lhe fizesse breves visitas. No que se referia a Christopher, sua irmãzinha vivia num isolamento precário e selvagem no
topo de uma montanha abandonada, onde só olhos muito penetrantes no vale abaixo poderiam captar algum sinal de perigo sob a forma de um
lenço a flutuar em um alto bastião. Tentara levar Celeste a passar o tempo de espera em Endur, porém quando ela involuntariamente deu de
ombros, ele disse irritadamente, antes que ela falasse:
— Muito bem, muito bem! Sei que você jamais gostou do lugar.
Num quente domingo pela manhã, nos fins de agosto, Edith subiu ao quarto de Celeste, seguindo a bandeja matinal carregada pela risonha
enfermeira.
— Bem, queridinha, Christopher deve chegar de Nova York ao meio-dia, de avião, de modo que estou indo para casa. Há alguma coisa que
possa fazer por você antes de ir-me?
Celeste estava sentada na cama, escorada por travesseiros, e parecia emocionalmente jovem e indefesa, com os cabelos negros e lustrosos
caídos nos ombros. O rosto semelhava marfim polido, e a boca florescia de frescor. Se habitualmente era tensa, e os olhos azuis-escuros
estavam sempre fixos, só um observador perspicaz poderia descobrir. Sorriu para Edith, e olhou indiferentemente para a bandeja sendo
colocada à sua frente:
— Não, querida, e obrigada por ficar comigo. Odeio aproveitar-me da sua bondade.
— Nada disso — falou Edith, endireitando uma rosa num vaso.
Relanceou um olhar ao quente declive das colinas. Embora ainda fosse agosto, uma névoa obscurecia a distância, e o ar quente e calmo
estava pesado com odores fecundos do outono próximo. Árvores sussurravam às janelas; as folhas reluziam à deslumbrante luz do sol. Por todo
o campo o silêncio fulgurava. Edith podia ver o distante e ofuscante brilho do rio lá embaixo, no vale. Tudo estava em torpor. Embora ainda
fosse manhã cedo, os gafanhotos já lançavam estridentemente seus sons agudos e penetrantes, curiosamente enfatizando o silêncio.
Quando Edith se foi, Celeste tomou sem pressa o seu desjejum. Por vezes olhava através das janelas, sentindo a pesada e imóvel irrealidade e
inércia em que agora passava a vida. Nada tinha significado para ela. Passava os olhos pelos jornais da manhã e, ante o seu relatório de
morte, fúria e destruição na Europa, ela tremia. Atirava longe o jornal. Algo se agitava em seu coração com essas histórias, algo lancinante e
que agonizava, e que, se ela o permitisse, a despertaria para uma vida desesperada.
Permitiu que a enfermeira a banhasse e vestisse. O calor do dia subia fortemente. Mesmo as penumbrosas e frescas salas estavam
insuportáveis. Em seu vestido branco folgado Celeste saiu para os jardins, um grande chapéu branco de abas largas a proteger-lhe a cabeça.
De mãos enluvadas, cortou flores, e respondeu gentilmente aos cumprimentos dos jardineiros. Não encorajou a enfermeira a acompanhá-la,
recusando com firmeza a sugestão da moça. Caminhou vagarosamente pelo declive atrás da mansão, e penetrou na fresca sombra verde das
árvores entrelaçadas. Bancos e cadeiras brancos espalhavam-se pela grama úmida: ela sentou-se e tirou o chapéu. Pequenos lampejos de luz
solar atravessavam as frondes e dançavam em seus cabelos negros e rosto imóvel, inexpressivo.
Sentou-se e ficou imóvel, as mãos no colo, a olhar sem ver diante de si. Acima dela, via o reluzir das janelas superiores da casa que ela e Peter
haviam construído havia menos de um ano, e a cor quente dos telhados vermelhos. Ninguém estava ali, no pequeno recanto natural da mata: só
ela. Ouvia o esvoaçar de pássaros nos escuros ramos acima dela, e podia perceber retalhos do céu por entre as folhas. Aqui era muito calmo e
apaziguante, e bem fresco. Um esquilo correu perto de seus pés, e ela observou preguiçosamente suas vivas correrias. Ele virou a cabecinha e
a mirou com olhos penetrantes, sentando-se como uma criança nervosa. Ela lambeu os lábios e assobiou suavemente para o animalzinho,
depois sorriu. Subitamente um pássaro voou através da quente obscuridade verde, um súbito raio de luz em suas asas ansiosas.
Houve um movimento forte e vital em seu corpo, e Celeste lhe pôs a mão em cima, como para acalmá-lo. O movimento aumentou: agora ela
estava ansiosamente consciente de uma dor surda, porém insistente em suas costas. Apreensiva, esperou. A dor se fora tão rapidamente
como viera. Mas sua testa ficou subitamente úmida, e ela estava cônscia de uma fraqueza esquisita.
Seu período de gravidez já quase passara, mas a criança só era esperada daí a umas três semanas, segundo os cálculos do médico. Celeste
firmemente dominou as novas pulsações de seu coração, respirou fundo, recostou-se no banco.
Mas não podia controlar os pensamentos que agora saltavam insistentemente em sua mente perturbada de um modo novo. Pela primeira vez
pensou com atenção na criança que se movia com tamanha urgência em seu corpo, chamando-lhe a atenção enfaticamente para sua própria
vida. Pela primeira vez, percebeu-a como um indivíduo, uma criatura humana dotada de consciência, caráter e espírito em potencial— e não,
como de costume, como uma massa informe de carne viva sem a menor relação com ela. Ela estava enormemente abalada. Que faria com
essa criatura, como recebê-la, como considerá-la? Estaria ali, naquela casa, a casa de Peter, uma presença insistente, exigente, dia a dia
mais consciente. Quando seu corpo se aliviasse dela, sua mente e sua alma não se aliviariam. Estaria com ela sempre, até o dia de sua morte.
De súbito, sentiu-se aterrada! Havia fantasiado vagamente que a criança, uma vez separada dela, desapareceria nas névoas do passado, e
não mais seria parte dela. Em seu estado confuso, pensara poder esquecê-la quando nascesse. Mas agora sua presença se fazia sentir bem
junto dela, suas vidas bem ligadas...
Pensou, pela primeira vez: “Será menino ou menina?” Sua mente recém-despertada lhe aguçava os pensamentos, fazia-os mais nítidos e
brilhantes. Disse a si mesma: “Espero que seja uma menina ...” E ao pensamento de uma filha, uma filha que viveria com ela nesta casa, cuja
voz ouviria, que bem cedo estaria a correr nesses bosques... seu coração se moveu estranha e profundamente, e os olhos se lhe encheram de
lágrimas! E então a pesada apatia a deixou, e ela se sentiu leve, impetuosa e muito vivida com uma espécie de alegria doce e trêmula.
Não se permitira pensar em Henri durante os últimos meses. Não pensava nele agora. Só pensava em seu filho, e na forte e delirante doçura
que o pensamento dessa criança lhe trazia. Criança que era toda sua: não pertencia a ninguém mais. Não vira Henri desde o enterro de Peter,
nem, em sua profunda angústia, desejara vê-lo. (Annette, na presença de Celeste e de toda a família, certa vez observava pesarosamente:
“Henri tem-se ausentado tanto estes últimos tempos, indo a Nova York e Washington, que dificilmente posso vê-lo”.) Contudo, Annette trazia
mensagens amigas dele, esperando que Celeste estivesse bem; e ela repetira esses recados firmemente na presença das demais mulheres
Bouchards, olhando-as com aqueles adoráveis olhos azuis, de modo que não ousaram relancear para os lados.
Agora, interessada nos pensamentos de seu filho, Celeste nem pensou em Henri. Construíra um muro intransponível entre sua consciência e
qualquer lembrança dele. Henri nada tinha a ver com essa criatura que agora se movia tão forte e determinadamente sob o coração de Celeste.
Bateu as mãos sobre o corpo inchado, e um brilhante e lindo sorriso lhe veio aos lábios.
De repente, estava impaciente pelo nascimento, por ver a filha, por sentir-lhe o corpinho. Suas mãos se ergueram um pouco, como que para
segurar o bebê, tocar-lhe a pele macia, acariciar-lhe a cabecinha e a carne. Seu medo, sua aversão, seu terror e agonia, se haviam ido para
sempre.
E agora tudo que via à sua volta — a terra escura e úmida, os troncos das árvores, os reluzentes fragmentos de luz solar que se derramavam
sobre seus joelhos e mãos, a incandescência dos telhados vermelhos muito acima dela — parecia muito emocionante, demasiado belo, para
ter nascido. Ela emergira do mundo sem cor e sem forma em que vivera, e penetrara em odores penetrantes, sadios e encantadores, coração
palpitando braviamente e com profunda alegria. Estava como quem emerge das cinzentas cavernas da morte para uma vida plena e ardente!
As lágrimas lhe corriam: provou-as aos cantos da boca sorridente. Sua salinidade era aguda e forte para sua nova consciência. Os pulsos
palpitavam, como se tivessem tirado um transe de cima deles. Quando outro esquilo correu perto dela e a espiou indagadoramente, ela riu alto,
e estalou os dedos para ele, tornando a rir.
E agora todo o seu espírito estava como uma cidade que fora congelada e abafada sob um nevoeiro escuro e glacial, e por fim toma a sentir a
delícia e o sol da vida. Uma a uma, as torres proibidas em sua mente se erguiam da névoa. Percorreu todas elas, escancarando portas e
janelas, deixando entrar a luz, não mais com apreensão, medo, desesperança ou tristeza. Olhava em toda parte, destemidamente, por vezes
com uma ponta de tristeza, mas sempre com coragem.
Pensou em Peter, em sua quieta sepultura, e em todos os anos de amor e compreensão, dor e gentileza, que tivera com ele. Nestes meses,
desde que ele morrera, só pensara nele com angústia e confusão, fechando uma porta sobre o rosto que lembrava dele — quando lembrava...
Parecia-lhe que ele não havia realmente morrido, mas que a esperava, triste, solitário, na escuridão, e que ela se afastara dele em sua dor e
seu remorso. Agora ela abria a porta e o olhava em cheio, sorrindo, lágrimas a correr-lhe. E lhe parecia que ele também lhe sorria e oferecia
sua mão, sorrindo gentil e indulgentemente e com amor, como se ela se tivesse amedrontado por coisas tão pequenas e insignificantes que
nem o atingiram. Por que ele devia ter sabido, sempre — ela se dizia, maravilhada e com humildade. Lembrava-se como havia explodido com
ele no último dia, gritando histericamente contra si mesma, e como ele a silenciara, e apenas tocara a sua mecha branca em meio aos negros
cabelos. Ele compreendera muito; quisera que ela tivesse alguma felicidade, já que ele mesmo não lhe pudera proporcionar isso. “Como falar
em perdão, entre mim e você?” — ouviu-o dizer, quando tornou a olhá-lo francamente. Como falar em perdão num universo tão imenso, onde há
tanta dor e tanto que fazer? Quando o deixou para ir a outra parte nas torres proibidas, sentiu-o a olhá-la, de rosto tão radiante como o próprio
sol...
Tanto que fazer! Havia toda uma vida diante dela, talvez não uma vida de alegria delirante, mas de serenidade, força e paz. Havia uma criança
para amar e para conhecer, e um lugar a ser feito no mundo para essa criança. De repente, sentia-se cheia de pressa, de impaciência, do
desejo de voltar a viver! Nunca vivera realmente, exceto por aqueles breves dias e noites em que estivera com Henri, e depois tinham sido
desgraçados dias e noites, cerceados, não livres.
Levantou-se, respirando rápida e levemente, como respira um prisioneiro libertado. Com mãos rápidas empurrou os cabelos para trás, pegou o
chapéu, e voltou-se para o caminho que a levaria de volta para casa.
Foi quando viu Henri na arcada das árvores, a olhá-la.

Capítulo 51
Ela o viu sem choque, surpresa ou medo. Ficou de pé, na verde penumbra das árvores, imóvel, o chapéu a dançar-lhe na mão, o folgado
vestido branco a mover-se fracamente; ele a olhava calmo, a luz intensa do sol desenhando-lhe a silhueta.
Começou a andar lentamente em direção a ela, que o esperava. Ele viu a brilhante luz azul dos olhos dela, a firme delicadeza do rosto, tão
palidamente luminoso na sombra.
— Alô, Celeste! — disse, suavemente. E ergueu as mãos.
Ela não se moveu. Mas sentiu o coração a arder-lhe no peito, e um nó na garganta, e um longo tremor por todo o corpo. Ela sentiu a terra úmida
escorregar sob seus pés, e a longa expansão ascendente de alegria que lhe correu pelas veias. Ergueu os braços e esperou, murmurando
sons fracos e suaves.
Ele pôs os braços gentilmente em torno dela, que lhe apertou o ombro, os dedos contraídos no tecido do seu casaco. A paz e a felicidade que
experimentara alguns momentos antes chegaram ao arrebatamento, ao êxtase, e à ruptura de uma doce aflição. Ela não sabia que estava
chorando, ou que soluçava coisas incoerentes: agarrou-se a ele como o faria uma criança que tivesse estado perdida.
— Tolinha! — disse ele, afrouxando os braços dela; e enxugou-lhe os olhos e as faces molhadas. Mas as mãos dela continuavam a agarrá-lo
inconsciente, e ela começou a rir um pouco, meio sem fôlego, murmurante...
— Pensei que você jamais voltaria...
Ele tornou a pôr-lhe os braços em torno e sentou-se com ela, no banco branco de madeira que ela acabara de deixar. Manteve-a bem
apertada:
— Eu não fui embora: você me deixou, pequena imbecil!
Ela só podia olhá-lo devoradoramente, e então, muito devagar, a alegria começou a abandonar seus olhos, que se tornaram tensos e tristes.
— Tinha de fazê-lo — ela sussurrou. — Você não devia ter voltado. Não devia ter voltado...
Porém ele apenas sorria para ela. Disse, por fim:
— Sei. Sei tudo a esse respeito.
Ela falou, fracamente, apertando as mãos:
— Então, sabe por que não devia ter vindo.
— Você sempre foi meio boba, e muito romântica — ele replicou. — Assim que ouvi falar na criança, por Christopher, soube por que você se
havia afastado de mim. Mas agora, que as circunstâncias mudaram, já não importa, não é mesmo?
Com um triste choque, ela viu que ele ainda não havia compreendido, que estava em perigo mais grave que nunca. Gritou:
— Você não deve voltar, não sozinho, nunca outra vez! Tem de entender isto, Henri!
— Bom Deus! — disse ele, impaciente. — Você realmente pensa que pretendo proclamar que este é meu filho? Por que não pode ser sensata,
Celeste...
Porém ela o interrompeu, num medo apaixonado:
— Todos sabem, todos eles! Se você vier sozinho, se tentarmos continuar como antes, não haverá como ocultar nada, apesar do que todos
tentem fazer!
Ele franziu a testa, perplexo, tentando compreendê-la:
— Bem, então se todos sabem, na família, que importa? Eu nunca perderia tempo em cogitar se eles sabem, ou se sabem, que diabo importa
isso, de qualquer maneira. No que se refere a quem quer que seja, fora da família, isso não me incomoda em absoluto.
O medo dela tornou-se frenesi:
— Henri, você tem de dar-se conta de que, enquanto for casado com Annette, não pode vir aqui... sozinho! Não podemos ver-nos... a sós!
Ele a fitou, subitamente frio e hostil:
— Olhe aqui, tenho certeza de que Annette compreende tudo a este respeito. Assim...
Ela ficou silenciosa, muito branca, e trêmula. Sentia o férreo egotismo dele, e sua formidável cegueira. Por fim disse, fracamente:
— Não posso explicar-lhe o que desejo dizer-lhe, Henri. Ainda não. Mas deve confiar em mim. O que todos sabem, fora da família, é que se
trata do filho de Peter. — E pôs a mão no próprio corpo. — Mas se outros jamais souberam...
— Não saberão — ele afirmou. — Nunca souberam nada, antes. Além disso, não estou certo se me incomodarei com isso...
Como à luz de um relâmpago, Celeste viu a fisionomia de Antoine. Levantou-se, levada por um senso de pressa desesperada. Ele também se
ergueu, e pôs o braço firmemente em torno dela. Ela lhe viu o rosto, transtornado agora como nunca o vira antes, e muito comovido. Ele disse,
rouco:
— Que pensa que tive de sofrer, todo esse tempo, sabendo-a aqui sozinha após a morte do pobre Peter, sabendo que estava apavorada e
doente? Mantive-me afastado: sabia que não queria que eu viesse. Sabia que tudo era um absurdo, mas o fiz pensando era você, bobinha.
Suponho que não teve um simples pensamento para o que tudo isso significava para mim, teve?
Ela se arrancou de seu braço:
— Claro que tive! Por isso eu sabia que você não devia vir aqui! Pois não percebe? Se não, eu não posso dizer-lhe, Henri.
Olhou-o, em agonia. Ele lhe relanceou o olhar, os olhos descorados reluzindo:
— Não sei ao que vem tudo isto. Sei é que tinha de vê-la, apesar dos seus disparates. Fiz Edith prometer que estaria aqui com você, e eu
pretendia afastar-me, por algum tempo. Mas tive de vir hoje.
Ela implorou, com ansiedade patética:
— Você pode vir sempre, com Annette, com Edith, ou com Christopher. Mas nunca sozinho, nunca mais.
— E suponho — ele disse, rigidamente — que, quando meu filho nascer, terei de ficar a distância, e deixá-la passar por tudo isso sozinha? E
depois visitá-la, bonitinho, com minha esposa, como um parente afeiçoado? — Acrescentou, com crescente rudeza: — Já pensou no que
significará para mim ter todo mundo a falar-me do “filho do pobre Peter”? E saber que será sempre assim... o “filho do pobre Peter”?
Estava prestes a dizer muito mais coisas brutais e violentas, mas não o fez, em face do medo e do desespero dela. Mas disse:
— Mais tarde, as coisas serão diferentes. Dentro de quanto tempo, não sei. Sempre lhe disse que não poderia casar com você enquanto
Armand viver. Você já sabia disso. Mas quando ele morrer, Annette me dará o divórcio e poderemos casar-nos. Não imediatamente: seria por
demais óbvio. Porém mesmo então, durante anos, para sempre, meu filho ainda terá de ser o “filho do pobre Peter”!
“Meu Deus! — ele pensou. — Mesmo que eu adote o menino, para salvar as aparências, ele sempre pensará ser filho daquele pobre enfermo!
Hão de dizer-lhe isso... e terei de deixar de que o façam!”
Algo do que pensava se comunicou a Celeste: seu medo diminuiu ao surgir de sua compaixão. Jamais sentira compaixão por Henri, e estava
muito espantada. O rosto dele, pálido e rude, lhe flutuava diante dos olhos. Estendeu-se as mãos e, quando ele não as pegou, agarrou-lhe os
braços. O amor lhe dava uma rara agudeza.
— Pois não vê, Henri — implorou — por que não pode vir aqui, agora? Ou nunca estar só comigo, até... até que esteja em condições de casar
comigo? Temos de pensar no bebê. Não... não deve haver qualquer tipo de escândalo quanto a ela...
— Ele — corrigiu ele, automaticamente. Depois riu um pouco. Puxou-a para ele, gentilmente: — Muito bem! Percebo o que tem estado em sua
mente todo o tempo: fui um idiota em não saber disso. Era tudo pelo bem do bebê, não era?
— Sim — disse ela, em voz abafada, os lábios apertados contra o pescoço dele, cujos braços a estreitaram fortemente.
— Isto é o diabo! — ele disse, suavemente. — Pare de choramingar, agora: não é bom para você.
Então segurou-lhe o rosto com ambas as mãos e a olhou com tal paixão, tão comovida, como nunca antes lhe demonstrara:
— Minha querida, diga-me que está bem, que não se sente muito infeliz.
— Oh, não, Henri! Não me sinto infeliz! Ao contrário, estou feliz! Antes que você chegasse, eu estava justamente sentada aqui, pensando em
como sou feliz! — Ria agora, mas também chorava; virou a cabeça e beijou-lhe a mão.
— Seremos felizes novamente, minha querida. Talvez não demore muito. Não será muito ruim esperar?
— Eu poderia esperar para sempre, se você continuar a amar-me — ela respondeu com simplicidade. — Nada mais importa realmente.
Sorriu para ele, o rosto molhado brilhando de ternura e uma nova alegria. E então seu rosto se transformou, e ela gritou, agudamente. Ele
agarrou-lhe o braço:
— Mas o que é isso, Celeste?
Ela se esforçava por falar, apesar da súbita onda de dor em seu corpo. Respirou com dificuldade, enquanto ele a segurava. Ele viu o suor
surgindo em sua testa e no lábio superior. Seus olhos azuis estavam dilatados de medo e sofrimento.
Então ele a ergueu nos braços, depressa, levando-a para fora do pequeno bosque, e pelo caminho que levava à casa.
Christopher e Edith, que haviam entrado pelos jardins atrás da casa para visitar Celeste, ficaram aturdidos ao ver Henri subindo rapidamente o
declive em direção a eles, carregando-a nos braços. Christopher se recuperou primeiro: correu para Henri e sua irmã. Henri, esquecido de tudo
que não fosse Celeste e sua situação aflitiva, olhou para Christopher com alarma e raiva:
— Não fique aí parado! — gritou. — Chame alguém!
— Bem, diabos me mordam! — falou Christopher.

Capítulo 52
A criança, prematura por três semanas, nasceu duas horas depois. Era um menino, de corpo forte e comprido, mas extremamente magro,
“como uma enguia” — observou Christopher, para indignação de Edith. O bebê não era absolutamente vermelho ou enrugado. Tinha muito
cabelo claro, e mãos fortes, feições bem marcadas, e não se parecia com a mãe em absoluto.
— E se alguém achar que se parece com Peter, isso será um triunfo da imaginação — comentou Christopher. (Mais tarde Edith lhe trouxe uma
desbotada fotografia dela mesma e Henri, quando crianças. Ela, uma garotinha solene, de rosto franco e carrancudo, de pé ao lado de uma
cadeira de espaldar alto; seu vestido, com renda na bainha, chegava até o cano das botas com borlas. Na cadeira de alto espaldar sentava-se
Henri, um menino de rosto quadrado e belicoso, com um topete de cabelos fofos, pálidos olhos fixos, olhar pesado. Ao ver a fotografia,
Christopher desatou numa risada:
— Esconda essa coisa... enterre-a! —- preveniu.
Celeste esteve muito doente. Os meses de medo, sofrimento e desespero, de coragem forçada e íntima angústia, agora cobravam seu preço
de fraqueza e lassitude. Só às seis horas daquela tarde é que permitiram que Henri, o irmão dela e Edith a vissem. Dormira o dia inteiro,
respirando inquietamente, resmungando um pouco. Ao abrir os olhos, viu à luz da lâmpada o rosto de Henri inclinado sobre ela. A expressão
dele era tensa: quando tentou sorrir, só conseguiu produzir uma careta convulsiva. Ela tentou falar, porém ele pôs-lhe gentilmente a mão nos
lábios. Ele lhe sentiu a quentura e a secura da pele quando ela lhe beijou a mão fracamente: a seu toque ele estremeceu e suas narinas se
alargaram como se fosse colhido por uma dor aguda e repentina. Ela voltou a dormir, a mão quente e trêmula na dele, e ele sentou-se a seu
lado, imóvel, apenas olhando-a, curvado sobre o leito. Os médicos e enfermeiras estavam ali, porém ele não os via. Seus olhos permaneciam
fixos nela; a cada vez que Edith e Christopher espiavam no quarto, parecia-lhes que ele não movera um músculo. Uma ou duas vezes os
médicos tentaram persuadi-lo a deixá-la, porém ele não dava sinais de tê-los ouvido.
Edith estava inquieta:
— Imagino o que hão de pensar — comentou com Christopher. Estava com o marido no terraço fresco, recostada em sua cadeira, exausta: —
O Dr. Morton já está com um olhar esquisito. Todos têm um medo de morte de Henri: ele sempre atemoriza as pessoas. De qualquer jeito, já os
vi trocando olhares, olhares muito especiais.
Christopher deu de ombros:
— Pode contar em que nada dirão. As enfermeiras... aí o caso é outro.
— A família tem telefonado regularmente durante horas — informou Edith, desesperançadamente. — Sempre digo que ninguém pode ver o
bebê ou Celeste por muitos dias, mas amanhã pela manhã, ou à noite, haverá por aqui uma delegação. Temos de tirar Henri daqui.
— Então, mande chamar, um guindaste — replicou Christopher.
Sua voz estava tão grosseira que Edith o olhou bruscamente.
Aquele pálido rosto cuneiforme, com sua fina pele enrugada como um pergaminho, envelhecera, ficara encovado e sem vida. “Não adianta!” —
pensou Edith, desanimada, mas com a velha raiva a arder-lhe no coração.
— Acho — falou Christopher — que preciso de uma bebida. Muita bebida! Quer trazer-me uma, querida?
Edith entrou na casa. Voltou com o copo gelado, e Christopher bebeu rapidamente. Odiava uísque, mas mostrava uma espécie de avidez ao
beber. A noite estava muito escura e silenciosa, exceto pelo estridular de grilos nos gramados quentes e secos, e pelo espasmódico farfalhar
de árvores que se não viam. No vale abaixo, luzes piscavam como estrelas distantes, e uma ou duas vezes um avião trovejou acima de suas
cabeças, suas luzes, verdes e vermelhas de navegação a mover-se como planetas coloridos através do céu sem luta. De repente houve uma
aceleração do vento, e da terra e dos gramados calcinados pelo sol subiu um odor forte e apaixonado.
— Ele ainda não viu o bebê — falou Edith. — Pensei que estivesse mais interessado...
— Há horas... — respondeu Christopher, quase num murmúrio. — Por que não tenta tirá-lo de lá agora? Diga-lhe, se necessário, que há algo de
errado com a criança.
Edith considerou a ideia por um momento:
— Pois vou fazê-lo — disse, indiferentemente. Suspirou: — Com todas essas encrencas... eu sabia que ia ser ruim, mas não tanto. Vai ser
muito difícil para Henri. Sempre será difícil. Mesmo se ele e Celeste se casarem, o jovem sempre será conhecido como filho de Peter. Isso não
será justo para Henri. Conheço-o muito bem.
Foi uma felicidade que não pudesse ver o súbito sorriso maligno de Christopher, nem sua súbita expressão de prazer. Mas sentiu-lhe a
malignidade e disse, numa voz que se elevava:
— Você sempre o odiou, Kit. Terá satisfação em penca observando-o durante os próximos anos...
— Absurdo... — murmurou ele, languidamente. — De qualquer maneira, você não pode esperar que eu goste dele, não é? Ninguém jamais o
fez, a não ser uma porção de mulheres. Sempre fiquei cogitando qual o segredo de seu encanto com as mulheres...
— Ele é um homem, não um bárbaro polido — ela disse, com muita amargura.
— As mulheres são atávicas — observou Christopher, bocejando. — Preferem clavas a mãos beijadas.
Edith tornou a subir. Espiou no amplo e bonito quarto de Celeste, com as macias cortinas que se enfunavam gentilmente à brisa noturna. Ao
fundo ardiam luzes sombreadas; em volta do leito branco havia um largo círculo de sombra. Henri continuava sentado ali, ao lado de Celeste, a
mão descansando junto do rosto dela. Celeste dormia, e era evidente que Henri, também, caíra num cochilo. As duas enfermeiras cochichavam
ao fundo, enquanto preparavam várias coisas na mesa. Edith podia ver a negra massa lustrosa dos cabelos de Celeste no travesseiro, e seu
quieto e branco perfil. Respirava facilmente, agora, e não se mexia.
Edith hesitou. Deu uma olhada nas jovens enfermeiras: sorriam. “Absurdo!” — pensou Edith irritada. — “Provavelmente estão apenas se
divertindo com algumas das suas piadas obscenas: as enfermeiras são afamadas por isso. Não estão pensando em nós absolutamente.” Foi
em pontas de pés até o irmão. Ao leve som que fez, as enfermeiras se voltaram rapidamente, com respeito. Vieram em sua direção, e ela lhes
sorriu com certa reserva. Sob o franco olhar das moças ela se curvou sobre Henri e o sacudiu. Ele abriu os olhos e a fitou inexpressivamente.
Ela sussurrou:
— Henri, queremos que vá ver o bebê. Pode haver algo de errado...
Então os olhos dele relampejaram subitamente. Moveu-se firme em sua cadeira, depois olhou depressa para Celeste. Levantou-se e se inclinou
sobre ela: dormia pacificamente. Olhando pelo canto dos olhos, Edith viu as enfermeiras trocando olhares significativos, ou, pelo menos, assim
imaginou. Cresceram e se aceleraram sua ansiedade e sua raiva. Gostaria de agarrar Henri pelo braço para apressá-lo, porém ele
permaneceu, inclinando-se sobre Celeste, por vários momentos mais — enquanto ela forçava suas feições numa expressão de funda
indiferença.
Finalmente Henri se endireitou, e seguiu a irmã até o quieto corredor. Edith fechou a porta ao passar. Henri voltou-se para ela:
— De que se trata?
— É o bebê. Há um bebê, sabe. — respondeu a irmã, irônica.
Então a expressão de Henri mudou:
— Sim? Que há de errado? — perguntou, asperamente.
— Nada. — Edith suspirou e deu de ombros: — Porém eu tinha de tirá-lo de lá, Henri. Quero que pense um pouco, bichinho. Sabe há quanto
tempo estava aqui? Annette sabe onde você está?
Não disponho de muito tempo, meu querido, mas quero que compreenda que não deve voltar aqui sozinho. Venha com Annette...
A pele em torno dos olhos de Henri se encolheu e enrugou. Então afastou-se dela. E disse, abruptamente:
— Quero ver a criança.
Rezando para que uma das enfermeiras não os seguisse imediatamente, Edith abriu caminho pelo vestíbulo até o quarto claro e arejado que
fora preparado para berçário. Henri nada viu das paredes pintadas ou do branco mobiliário. Só viu o berço, a um canto, longe da lamparina que
ardia numa mesa distante. Foi diretamente ao berço e, em profundo silêncio, contemplou seu filho.
Edith não era dada a compaixão fácil, mas, quando viu o irmão, as grandes mãos quadradas apertando a grade do berço, cabeça e ombros
curvados sobre o bebê, ela desviou o olhar, com um aperto na garganta. Afastou-se uns dois passos, olhos nublados, ofuscados à luz fraca.
Henri ali ficou por muito tempo. O bebê acordou e mexeu os lábios. Um pequeno punho se ergueu espasmodicamente, depois tombou num
movimento inquieto. A luz ondulava suave sobre a grande cabeça redonda.
Edith ouviu Henri mover-se. Afastaram-se do berço e sorria:
— Medonho, não? E não é muito pequenino, ou coisa assim?
A irmã riu suavemente:
— Não, ele é bonito, querido. E bem grandinho, embora seja um tanto prematuro. Está magrinho agora, mas daqui a um mês você nem o
reconhecerá!
Abriu-se a porta e uma das enfermeiras entrou, os grandes olhos castanhos ávidos de curiosidade. Apressou-se até o berço e olhou bem o
bebê:
— Mas é lindo, não é, Sra. Bouchard? — arriscou, num sussurro. — Um bebê normal e sadio, embora um pouco prematuro. Diz o doutor que
ele vai indo muito bem.
Henri estava a ponto de falar, mas encontrou o olhar firme e de advertência de Edith. Acompanhou-a para fora do quarto. Só com ela, relaxou
um pouco, e passou a mão na cabeça.
— Vá para casa, Henri — falou Edith. — Tudo está bem agora. — Hesitou: — Em breve as coisas melhorarão muito, sei disso.
Porém ele se afastou dela sem uma palavra, e se dirigiu à escadaria.

Capítulo 53
Inspirados pelo mesmo sadismo que animou o populacho romano a lutar por assentos bem à frente nos circos, para observar todas as
expressões nos rostos dos atormentados nas arenas, os Bouchards afluíram em grosso ao casarão de Placid Heights para visitar Celeste.
Ficariam extremamente desapontados se Henri não estivesse lá quando chegassem. Quase como um só homem, eles o odiavam e o temiam.
Queriam observar-lhe a expressão quando falassem do bebê, ou de Celeste, ou do “pobre Peter, que jamais conheceria o filho”.
Mas Henri nunca possuíra uma compostura “vivida”. Ninguém, jamais, fora capaz de adivinhar-lhe os pensamentos. Mesmo suas raras
violências tinham sido tristes, ou atenuadas, como um pesado dia de novembro. Nunca mostrara qualquer alegria notável, entusiasmo ou prazer
ao observador casual, e se um pouco disse quebrara sua reserva, só Celeste percebera. Portanto, sua impassibilidade natural o protegia
contra a furtiva malícia da família, como o protegera em intrigas, conspirações, e múltiplas maquinações. Essa impassibilidade é que lhe
proporcionara uma espécie de terribilidade, uma violência potencial que ninguém jamais desejava evocar.
Ele veio com Annette, agora uma figura tão galante como patética para os parentes, que com frequência a fitavam com a vigilante especulação
que passava como admiração com os Bouchards. Ele veio como um parente interessado, permanecendo ao lado da esposa enquanto ela ria e
murmurava coisinhas para o bebê, tocando-o gentilmente. Mas, para sua surpresa, Edith viu que ele olhava para a mulher com uma curiosa
intensidade, mais do que para o bebê, e parecia estranhamente fascinado por sua doce e radiante expressão; e que, quando ela se voltava
para ele, sorrindo, os olhos cheios de lágrimas brilhantes, as feições dele tomavam uma expressão comovedora. Estava muito delicado com
ela, estudando-a abertamente, e, quando ela lhe relanceava o olhar, com alguma observação a respeito do bebê, ele respondia com gentileza e
lentidão. Edith observou que ele sentara ao lado dela — coisa que nunca fizera, quando não obrigado — e que frequentemente lhe buscava a
mão, para segurá-la. E Annette, sem olhá-lo, sentava-se muito direita, como uma criança em sua cadeira, olhos brilhantes de alegria e êxtase.
Sua voz, sempre tímida e suave, tinha agora um tom mais confiante e alegre, e os parentes, espantados, se admiravam ante sua inteligência
viva e sua verbosidade.
Edith, que sempre sentira alguma antipatia pela cunhada, agora estava exausta de piedade e admiração. “Ele lhe é grato” — pensou. Embora
essa gratidão parecesse um insulto à terna e valente Annette, pois sua coragem possuía uma nobre grandeza sublime demais para merecer
compaixão. Também notou que Annette nunca visitava Celeste a sós, e Edith, que passava a admirá-la, agora se sentia complemente humilde
pela compreensão dela. Porém ela estava dominada pelo espanto: como podia Annette suportar isto? Como podia contemplar sua
infelicidade, e traição que lhe faziam, sua solidão e tristeza, com olhos tão firmes, tamanha fortaleza, e sorrir com tal firmeza como o fazia?
Claro, ela amava tanto a Henri quanto a Celeste: Edith compreendia isso. Ela pretendia protegê-los, e à criança. Mas — pensou amargamente
— há alturas às quais o amor pode elevar-se e que são proibidas para olhos mais egoístas.
Comparada a tão nobre conduta, a coragem de Celeste parecia densa e até sombria, como deve ser toda coragem defensiva. Recebeu as
congratulações dos parentes com seu sorriso leve e fixo, e ouviu os elogios à criança em silêncio. Parecia interessada nos próprios
pensamentos, e Edith, perversamente, desejou-lhe boa sorte com eles. Pois Edith, nesses dias, era movida por uma dúzia de diferentes
emoções, e sentia-se exausta e irascível por esses conflitos. Por vezes ficava exasperada com o irmão, e odiava Celeste, porque ambos eram
um dreno em sua compaixão. Mas sempre olhou Annette com humildade e ternura.
Henri, que devia ter compreendido representar um perigo para o filho, nunca vinha sozinho, embora tivesse muitas oportunidades de não ser
observado. Entretanto, escrevia constantemente para Celeste. Edith sabia disso. Viu como Celeste buscava ansiosamente entre a
correspondência, e como corava à vista de certo envelope quadrado, e como queria estar só para abri-lo. À noite, sentava-se na cama,
escrevendo copiosamente, agradecendo aos amigos os presentes e as cartas. Mais tarde, Edith vinha apanhar a correspondência, para selar.
Celeste sabia, claro, que Edith veria o grosso envelope endereçado a Henri no escritório, mas, quando as duas voltavam a encontrar-se, não se
falava no assunto.
Muitas vezes Henri estava afastado de Windsor, fazendo curtas e frequentes viagens a Nova York e Washington. Parecia muito preocupado
após essas jornadas, e o sulco entre suas sobrancelhas ficava mais pronunciado, bem como mais tristes que nunca as rugas em torno de sua
boca. Christopher contou a Edith que Henri tinha outro amor em Washington, uma jovem viúva vivaz e feliz, proprietária de um dos mais
importantes jornais de Washington; mas, aparentemente, ele não tinha lá muito prazer ou descanso no convívio com a moça. Após sua volta,
visitava Placid Heights com Annette, e sentava-se em abstrato silêncio enquanto Annette conversava alegremente com Celeste, ou admirava o
bebê.
Havia muitas coisas a perturbá-lo nesses dias, e nem todas estavam relacionadas com Placid Heights, Edith sabia. A temível blitz irrompera de
súbito na Batalha da Inglaterra: os jornais traziam histórias espantosas sobre a terrível devastação das cidades inglesas.
Edith não amava a Inglaterra. Mas, como a Inglaterra permanecia só, num mundo terrífico, odioso e indiferente, de cabeça erguida, sangrando
por feridas incontáveis, de olhos abertos, forte e cheia de coragem desesperada e inabalável — despertou, em inimigos e amigos indiferentes,
a admiração que só pode ser dispensada aos nobres e heroicos. “Ela aguentará?” — perguntava o mundo. “Aguentarei!” — afirmou a Inglaterra
— “Quero aguentar! Não com a ajuda de Deus, não com a ajuda de amigos temerosos, não pela graça dos céus! Mas apenas com a ajuda e o
socorro de meu valoroso coração, meu sangue intrépido, a virtude de meu povo inabalável! Aguentarei sozinha, mas destemida, e nem a fúria
dos homens nem a deserção de Deus podem derrubar-me!”
Não se tratava da epopeia de reis, de capitães ou de gente da alta sociedade. Mas sim do zé-povinho, dos pequenos lojistas, dos lavradores
esfomeados, dos camponeses de feitorias e moinhos, da prostituta e da balconista, da velha vendedora de flores e do entregador de jornais,
da mãe modesta e desarrumada nas moradias, dos carreteiros, do mecânico esfarrapado e das crianças em suas escolas devastadas. Era a
epopeia até mesmo dos desesperados ladrões e ratos de esgoto, dos miseráveis pequenos salafrários e bêbedos, dos limpa-chaminés e dos
lavadores de vidraças. Assim, como das pessoas anônimas, traídas e confusas. Os heróis troianos, os “posudos” wagnerianos, os capitães
com suas espadas — onde estavam agora? O coro grego do povo, erguendo suas vozes sombrias em um longo crescendo de tragédia,
abafava as vozes vistosas, mas sem valor, dos inúteis e dos ricos. Era a agonia de todo um povo, e possuía uma grandeza e sublimidade além
da de qualquer rei em tormento, ou qualquer exército em retirada sem esperança, ou de qualquer Napoleão em Santa Helena. Era a agonia de
um mundo, traído, abandonado e atacado por uma centena de homens — acomodados em cada grande capital do mundo — a comungar
secretamente, em crescente consternação e espanto.
Pois lentamente se tornava evidente que o povo da Inglaterra não morreria, que a Inglaterra não cairia. Possivelmente seu rei procuraria refúgio
em outro país, seu Parlamento talvez se dispersasse em desordem, e seus navios se evaporassem na noite com seu carregamento de
traidores, apavorados e covardes. Mas a Inglaterra permaneceria. O povo não morreria.
Por algum tempo, mesmo os loucos inimigos do povo do mundo ficaram silenciosos. As irradiações traiçoeiras através do rádio americano
foram temporariamente silenciadas. Só se ouvia a voz de Winston Churchill, alta, forte voz solitária, na escuridão e na fúria, erguendo-se sobre
os telhados e torres de milhares de cidade, soando clara e firme acima do crepitar das chamas e do escarlate de cem fogos, acima do
estrondo destruidor de paredes desabando, e do pranto de um povo a sangrar. E o mundo ouviu aquela voz de resolução heroica, de fé
apaixonada e orgulho triste, mas exultante!
“Aguentaremos sozinhos” — disse ele.
“Não — pensou Edith — Vocês não estão sós. Existe um poder invisível na paixão do povo obscuro, existe um poder invisível nas preces da
multidão, fluindo de cada obscura fronteira de cada país obscuro.”
Henri voltou de Washington, e telefonou a Christopher que viesse de Detroit ao seu encontro. Estava esgotado, mas satisfeito. Disse:
— Bem, conseguimos fazê-lo aprovar, com a ajuda de nossos amigos. O Presidente assinará a Lei do Serviço Militar Obrigatório, amanhã.
Nossa próxima tarefa será conseguir ajuda maior e mais eficaz para a Inglaterra, uma espécie de empréstimo, ou leasing, de equipamento de
guerra. Sem isso ela não poderá continuar a resistir. Por isso teremos de enfrentar uma tremenda luta no Congresso, para evitar qualquer ajuda
assim. Os rapazes certamente estão decididos a que o fascismo vença, especialmente no Departamento de Estado. Porém Hugo está
trabalhando arduamente a tal respeito.
“A propósito, existe um amigo dele, o Senador Anthrusters. Lembra-se dele? Seus programas de rádio, sua reunião das Mães contra o
Recrutamento, suas denúncias contra “os banqueiros internacionais e os comunistas, os provocadores de guerra, e os judeus, e o imperialismo
britânico”, e todas as outras contrassenhas e slogans, tudo isso deverá ser lembrado mais tarde. Hugo já lhe incutiu o temor de Deus. Hugo há
muito suspeitava de suas ligações com a Inteligência germânica. De qualquer forma, ele enriqueceu subitamente, e é contra qualquer tipo de
rearmamento americano, recrutamento, apoio à Inglaterra, e assim por diante. Agora, alguma coisa o aterrorizou: acho que Hugo ajudou. Ele
vem de avião, de sua cidade natal até Washington, hoje, para uma entrevista com J. Edgar Hoover. Hugo está lhe dando quarenta e oito horas,
e depois revelação pública se ele não ceder. Hoover enviou três homens para guardá-lo durante a viagem, embora eu ache que isso
dificilmente será necessário. Bem, as coisas estão em andamento, embora eu não possa ver muita luz ou esperança, ainda.
Duas horas depois, escutando o jornal falado, Henri ouviu um noticioso que o pôs ereto em sua cadeira, com uma exclamação veemente: o
avião em que voava para Washington o pusilânime e subversivo Senador Anthrusters se espatifara misteriosamente a apenas duas horas de
voo da capital. Com ele haviam perecido vários outros passageiros, inclusive três agentes do Bureau Federal de Investigações. Não fora ainda
descoberta a causa do desastre.

Capítulo 54
Em fins de setembro o livro de Peter conseguira vender perto de quatrocentos mil exemplares, vendagem que ia aumentando rapidamente.
Enquanto todos os críticos tinham sido unânimes em que era um trabalho “surpreendente e sensacional”, a maioria estava incrédula; alguns
foram vulgares e cheios de ridículo em seus comentários.
Crítica típica da última espécie:
“Na Terceira Parte o escritor ultrapassa os limites da credulidade pública. A essa parte denomina Conspiração Contra a América. Deveria tê-la
chamado Conspiração Contra o Bom Senso. Quem são esses Brouelles, esses Maynards, esses Uptons e esses Crawfords, supostamente
envolvidos numa conspiração internacional com outros iguais a eles, em Paris, Londres, Roma, Berlim, Budapeste, Varsóvia, Viena, e Nova
York, para garantir o êxito de Adolf Hitler em seu alegado sonho de conquista mundial? Quem são esses financistas fantásticos, esses grandes
industriais, esses banqueiros empolados, esse clero dourado-e-escarlate, esses loucos congressistas e políticos, mentirosos e conspiradores,
esses aludidos membros de nosso próprio Departamento de Estado e de nosso Congresso? Diz o autor que todos esses nomes são fictícios,
mas que os fatos são verdadeiros e espantosos. Só se tem de observar a decidida e apaixonada resistência do povo britânico, dirigido pelas
chamadas classes superiores, para sentir apenas descrença nas alegações deste livro: que a Inglaterra é parte de um imenso conluio
internacional para fazer de Hitler o supremo ditador do mundo inteiro. Tem-se apenas de olhar a furiosa resistência dos conquistados, mas
inconquistáveis camponeses e operários e pequenos lojistas e fazendeiros franceses — que não querem aceitar as amedrontadas imposições
do Marechal Pétain — para saber que a França nunca esteve em conspiração para tornar-se vassala de Hitler. Embora Mussolini haja
apunhalado pelas costas a França caída, pode-se ter certeza de que o povo italiano não tomou parte nisso.
“Depois o ataque do autor ao clero é covarde, injusto e escandaloso. A Igreja sempre se opôs a Mussolini e Hitler, a despeito da Concordata.
Milhares de padres já pereceram às mãos dos loucos de Hitler, milhares de humildes padres tentando proteger e salvar seus rebanhos, na
Polônia, na Noruega, na Bélgica ou na França. Estes ataques maldosos sobre um obscuro, mas valoroso grupo de homens dedicados é uma
das coisas mais horríveis que este crítico encontrou em vinte anos.
“Afirma o autor que a conspiração continua na América do Sul, onde muitos falangistas vivem agora, e para onde Franco, confessadamente,
enviou muitos padres espanhóis. Exatamente no momento em que nosso Presidente tenta consolidar a América do Sul em um bloco Pan-
americano, este livro ataca o povo capaz de realizar esse bloco. É atacada particularmente a Argentina. É uma infelicidade que o autor haja
cometido erro tão clamoroso. Pois as últimas notícias declaram, bem definidamente, que a Argentina liderará todas as demais nações sul-
americanas em um acordo com os Estados Unidos, e que, no caso de um inacreditável ataque contra nós, a Argentina será a primeira das
nações nossas irmãs a declarar guerra à nosso atacante.
“Continua o autor, dizendo que em breve a Rússia se alinhará com a Inglaterra e alguns outros aliados democráticos contra os assassinos
nazistas. Seria interessante, a esta altura, saber o quão embaraçado ele se sente agora em face do Pacto de Não-Agressão Germano-Russo
de agosto.
“Os nomes dos grandes industriais, banqueiros, proprietários de jornais, fabricantes e políticos americanos são confessadamente fictícios,
afirma ele. Mas será que ele realmente acredita que qualquer americano são de espírito pode suspeitar que a famosa família Bouchard, Sr.
Hiram Mitchell de Mitchell Motors, Sr. Morse do Morse National Bank, Sr. Jay Regan de Walt Street, e todos os outros homens famosos e
vigorosos que fizeram avançar o progresso americano, estão realmente numa conspiração para entregar-nos a Hitler, por seus próprios
objetivos? Os Bouchards estão agora produzindo enormes quantidades de armamentos, produtos químicos, motores e outros equipamentos de
guerra para uso da Inglaterra e nosso. Isso dá a impressão de estarem conspirando com Hitler para a conquista da América?
“Gostaria de examinar as ‘fontes de fatos’ do autor, que ele menciona tão apaixonadamente. Não acredito que existam. E não acredito,
também, que qualquer americano inteligente lhe dê crédito.”
Era raro que um crítico respondesse ou atacasse um crítico. Mas um homem corajoso escreveu em réplica:
“O famoso crítico de The New York Times destacou a heroica resistência dos britânicos, franceses, poloneses, belgas, holandeses e
noruegueses como definitiva negação dos fatos em The Fateful Lightning. Elogia, e muito corretamente, os atos dedicados, humildes, mas
intrépidos, do obscuro clero nas metrópoles, aldeias e cidades. Mas omitiu o fato óbvio e insistente de que essa epopeia da selvagem
resistência está sendo escrita pelo povo anônimo, obscuro, desamparado — não por seus líderes, não pelos poderosos, os senhores. O
pequeno camponês lutando até à morte com seu forcado, o sabotador esfomeado abatendo soldados nazistas nas escuras ruas de Paris,
Bruxelas, Copenhagen ou Varsóvia, o humilde padre faminto, de pé tão valorosamente no altar nu de sua miserável igrejinha e sem medo
denunciando o invasor sanguinário: essas são as pessoas desarticuladas e sem voz ativa, tão vilmente traídas pelos poderosos de suas
próprias nações. Quando expulsarem os assassinos, e os destruírem, então será a sua epopeia. Seus traidores terão morrido, ou fugido para o
exílio...”
Outro dizia:
“Desaponta ver uma firma antiga e respeitável como Thomas Ingham’s Sons publicar fantasias inacreditáveis como The Fateful Lightning, e
outros mistérios de morte. De uma editora assim só poderíamos esperar o mais fino em literatura contemporânea. É uma desilusão para este
crítico vê-la descer a farolagens e a espetaculares mentiras baratas apenas pelo amor do sensacionalismo. Por amor ao dinheiro não pode ser.
Acho que The Fateful Lightning será o pior fracasso do ano.”
Hawkins leu essas críticas com um sorriso de esguelha. Suas consultas com o gerente de vendas da companhia eram confortadoras. Críticos
ou não, os pedidos chegavam por carta, telefone e telégrafo para The Fateful Lightning. Viu o rosto de Peter e, involuntariamente, sorriu seu
encorajamento à visão, como se tivesse ouvido uma pergunta.
— Não se pode processar um morto por difamação — disse Antoine, indulgente.
Mas Robert Bouchard, seu primo (filho de Emile e Agnes), replicou histericamente:
— Mas podemos processar Ingham’s! Santo Deus! A família vai ficar parada e deixá-los publicar toda essa coisa a nosso respeito?
— Se processarmos, estaremos a identificar-nos com os “Bròuelles”, Bob.
— Mas todo mundo sabe a quem se referia o miserável! — gritou Robert.
Antoine deu de ombros, acendeu um cigarro, olhando-o com interesse:
— Lembre-se: “Se a carapuça lhe serve, use-a”? Nossa única atitude deve ser a de ignorar a coisa. Um silêncio digno, e tudo mais. Ficar
acima dos assobios da macacada. Os jornais não ousarão identificar-nos como os “Bròuelles”. Teriam de sujeitar-se a um processo, e sabem
disso. Quanto ao povo: quem se importa? De qualquer maneira, quem lê livros? Algumas centenas de milhares de simplórios impotentes, de
óculos e caspa nos ombros. Mas o povo americano nada lê além da página de esportes e das notícias financeiras, crimes e histórias em
quadrinhos. O único modo de focalizar sobre nós o interesse desta nação de retardados mentais seria processarmos alguém, de modo a que
houvesse grandes manchetes nos jornais. Se ficarmos calados, os simplórios podem ler, respirar fundo de medo, reverência e indignação, mas
a massa do povo permanecerá brilhantemente inocente e ignorante de tudo.
Sorriu:
— Tremo só ao pensar o que aconteceria a todos nós se o povo americano jamais adquirisse a inteligência de um cão superior! Mas,
felizmente, não há este perigo...
Mas Robert o olhou, com aqueles pequenos e inquietos olhos de porco.
— Bem, diz aqui no Times que o livro foi comprado por um editor inglês, um editor sueco, e um editor de Buenos Aires. E toda •essa gente lê,
mesmo que os americanos não o façam.
Antoine tornou a dar de ombros:
— Não precisamos preocupar-nos com os ingleses... tão cedo! Nem com os suecos. Quanto aos sul-americanos: os padres cuidarão de que o
livro não tenha muita receptividade. Que há com você,
Bob? Está sempre espiando embaixo das camas e nos armários, procurando fantasmas...
— Oh, diabo! — exclamou Robert, lamuriento. — E não acho que a Inglaterra esteja acabada. Estão se aguentando danadamente bem! E
agora temos esse maldito Empréstimo e Arrendamento com que nos preocupar. Por que vocês não dão um paradeiro nisso?
— Tentamos — a voz de Antoine ainda estava macia, mas havia em seus olhos um fulgor venenoso. — Gastamos meio milhão de dólares em
propaganda combatendo isso. Temos três centenas de gorduchos de meia-idade em desfile em frente à Casa Branca, carregando cartazes
contra isso. “Mães da América” estão contra o Empréstimo e Arrendamento. Costumava ser: Mães da América” contra o Recrutamento,
querendo manter em casa os filhos rapazes. Só ao Jaeckle demos dez mil dólares e o incitamos a um verdadeiro frenesi. Distribuímos
trezentos mil dólares a vários cavalheiros em Washington, onde seria mais lucrativo para nós. Colocamos anúncios de página inteira em todo
jornal importante do país. Subornamos colunistas de jornais e comentaristas de rádio. Temos centenas de milhares de homens e mulheres
escrevendo a seus congressistas. Temos patriotas profissionais berrando a ponto de estourarem os pulmões. Temos padres e ministros
falando contra isso como instrumento para arrastar-nos a “uma guerra estrangeira”. — E acrescentou: — Nada foi omitido em matéria de
coerção, suborno, inclusive de políticos para derrotar a medida. Que eu seja maldito se sei como passou...
— Existe algo de encoberto que não consigo compreender — falou o obtuso e moroso Robert, com energia incomum.
Antoine já não sorria. Esfregou o queixo, pensativamente, dizendo:
— Sim, está-se passando algo... Desconfio que vem diretamente do âmago, mesmo, desta família. Acho que sinto um mau cheiro vindo das
bandas de Robin’s Nest. Sim, é isso mesmo...
Robert o fitou, aterrorizado:
— Você quer dizer: Henri? — e sua voz era quase um soluço de medo. O rosto largo enrubesceu com sangue entorpecido e medo, e virou-se
para Antoine com aguda apreensão. E então, quando viu o sorriso fixo de Antoine, tão sinistro, tão cheio de repulsa e de ódio por sua
pusilanimidade, seu medo chegou às culminâncias do terror. Ergueu as mãozinhas gorduchas, cobertas de pelos pretos, como para defender-
se daquele olhar letal.
Desde a mais tenra infância Antoine o fascinara, conduzira-o, subjugara-o com brutalidade refinada e graciosa, dissera-lhe o que pensar e o
que fazer, e até escolhera, por sugestão, a esposa para ele. Por Antoine ele sempre nutrira a mais espessa adoração, uma espécie de paixão
muda, e aquela impassível e um tanto histérica lealdade só encontrada no homem estúpido. Não importava o quanto Antoine maldosamente o
tomasse a risota dos outros quando eram crianças, não importava o quanto Antoine o ridicularizasse, negligenciasse, ou o insultasse levemente
— Robert continuava em seus calcanhares como um gordo cachorrinho, considerando o cúmulo da alegria se Antoine condescendesse em se
dar conta da sua presença ou falar-lhe. A graça de Antoine, inteligência viva, brilhante sorriso, e ar de segurança e de savoir-faire encantavam
Robert, que não tinha graça, que fora amaldiçoado por uma estatura anormalmente baixa e uma largura anormalmente ampla, e que já nascera
com um medo natural — uma de suas principais características.
Eram primos: seus pais, Armand e Emile, eram irmãos. Frequentaram as mesmas escolas e universidades, onde Antoine sempre fora o alegre
líder e malicioso planejador de escapadas. Lembrara-se, por vezes, de incluir Robert em algumas das escapadas e acontecimentos menos
dúbios. Não fora isso e Robert, tão parado, tão impassível, tão fleumático e obtuso teria sido objeto de zombaria de toda a escola, se não
completamente deixado de lado. Pois não possuía a menor imaginação, originalidade ou colorido. Arrastava-se penosamente pelas classes, e
só sua própria tenaz persistência, sua própria obstinada insipidez que nunca podia imaginar uma derrota, e o irritado treinamento de Antoine, o
preservaram de um fracasso total. Diplomou-se com notas sofríveis; mesmo isso espantou seus pais: Emile, que o detestava, e Agnes, que
sentia por ele apenas uma piedade indulgente e desdenhosa.
Seu raciocínio lento se refletia nos pequenos olhos castanhos rajados de vermelho, afundados em anéis de carne frouxa, no pequeno nariz
gorduroso achatado contra o rosto, e na boca bamba e mal-humorada. Emile às vezes declarava que seu filho se parecia com Armand, seu tio;
porém Robert não tinha o olhar de Armand de cautelosa astúcia, e o ocasional lampejo esperto e atento de seus olhos, nem a mente vivaz e
astuciosa que fora parte da juventude de Armand. Assim como não possuía aquela terrível intuição, aquela percepção dolorosa e consciência
inquieta que tanto atormentara o jovem Armand. Além disso, Armand fora ruivo. Robert tinha cabelos de um castanho turvo. Verdade que tinha
as pernas curtas e tortas de Armand e também pés pequenos, mas o corpo que esses suportavam era enormemente amplo e pesado, sólido
como pedra mais do que gordo, com ombros fantasticamente largos. Oscilava fortemente ao andar. Mesmo na infância não fora ligeiro nem
resistente. Seu cabelo acastanhado era áspero, caindo à frente como uma prateleira sobre as sobrancelhas baixas, o que de certa forma lhe
dava uma aparência simiesca, enfatizada por par de orelhas grandes e salientes.
O caráter de Robert, embora confiante em Antoine e escravizado ao cintilante primo, era furtivamente virulento e secretamente vingativo. Sabia
não possuir qualidades físicas atraentes. Sabia ser uma figura vagamente ridícula, com seu corpo grande e largo e pernas curtas, sua falta de
pescoço, o que fazia com a cabeça grande como uma bola pousasse diretamente nos ombros. Devido a esses traços físicos, que ele por
vezes julgava verdadeiras deformidades, odiava todos os bem-formados, graciosos e adoráveis do mundo, à exceção de Antoine. Finalmente,
por volta dos trinta, seu ódio se estendera a todos e a tudo, outra vez com exceção de Antoine e, às vezes, de sua pequena e estúpida esposa.
Porém o ódio nunca foi violento ou explosivo, ou mesmo ocasionalmente articulado. Jazia nele como um espesso, negro e viscoso poço, um
poço de piche quente.
Tristemente, ele deve ter sabido que era um louco e um pateta, desprezado por todos. Em consequência, tornou-se arrogante e vão,
dogmático, cruel e com tendência a resistir a tudo. Sua obstinação tornou-se proverbial na família. Só Antoine, e nem sempre, podia influenciá-
lo e afastá-lo de noções ou planos preconcebidos. Todos os seus atributos eram animalescos e obtusos. Deliciava-se na brutalidade,
especialmente naqueles seus aspectos mais grosseiros e óbvios. Finalmente convenceu-se de que era muito esperto, um sujeito profundo com
pensamentos profundos, e extremamente sutil e consciente. “Jamais conseguirão enganar-me” — era seu pensamento constante. — “Não falo
muito... mas cuidado!” Via a si mesmo como um daqueles homens silenciosos da História, incompreendido pelos contemporâneos, mas
reverenciado pela posteridade! Além dessas encantadoras qualidades, ele também possuía a avareza e a voracidade dos Bouchards. Era
obstinadamente violento, sua expressão era quase constantemente carrancuda, e tinha um coração covarde, medrosamente bajulando aqueles
a quem suspeitava poder feri-lo, e arrogante para com os inferiores e os que ficavam à sua mercê.
Era patético. Tinha a capacidade para uma adoração escrava — atributo comum aos estúpidos e secretamente histéricos. Nunca ninguém
descobrira isso, a não ser Antoine. Embora tivesse desposado Elsie Mitchell, neta do maligno e pio velho magnata dos motores, Hiram Mitchell,
nunca sentira por ela mais que uma vaga afeição. Recentemente Elsie o presenteara com uma filhinha com olhos feito botões de sapato, mas
com os mais lindos cachinhos ruivos, e Robert, muito furtivamente, estava começando a mostrar à criança os primeiros sinais de uma inquieta
adoração.
Robert era secretário do pai e, para surpresa de Emile, exibira uma tenacidade, uma devoção a detalhes, uma falta de imaginação que o
garantiam contra dúvidas e hesitações, certa incômoda integridade e persistência, que o tornavam completamente inestimável para o pai, que
era vice-presidente de Bouchard & Sons. Sentava-se em seu escritório como um sapo gordo e sorumbático, pondo em ordem diária a
montanhosa massa de detalhes tediosos, ditando incansavelmente a batalhões de estenógrafos, atendendo a uma rotina sem fim de chamados
e encomendas telefônicos, jamais dando indicações de fadiga ou exaustão. Era como uma toupeira, a escavar incansavelmente. Emile estava,
de fato, felizmente surpreso e, embora não desprezasse menos o filho, apreciava-lhe os peculiares talentos. Mais ainda: podia-se confiar nele,
característica absolutamente invulgar entre os Bouchards. Porém mesmo Emile não sabia que Robert só era digno de confiança quando não
adorava. E ele adorava Antoine.
Robert odiava praticamente todo mundo, porém mais que a ninguém na família odiava Henri Bouchard. Como todos os rejeitados, Robert tinha
um egotismo quase insano, a crença apaixonada de que era rejeitado por ser superior e incompreendido. Acolhia bem mesmo a antipatia
aberta. Mas nunca pôde aturar a omissão completa. Henri não o omitia: simplesmente esquecia a existência do jovem. Nunca viu Robert sem
fitá-lo vagamente, antes de reconhecê-lo. Parecia ter dificuldades em localizá-lo. Isso não era de todo sincero: em parte era desprezo
deliberado. Robert poderia deixar passar o último, mas nunca o primeiro e súbito franzir de sobrancelhas de Henri, antes de reconhecê-lo.
Robert temia Henri mais do que jamais temera outro ser humano. Nunca tivera com Henri qualquer encontro tingido ao menos de leve com
violência, mas bastava Henri entrar no escritório, relancear os olhos em sua direção, passar por ele — para encher o jovem de um terror
irracional. Na presença de Henri ficava completamente tolhido.
Antoine, então, achou em Robert um servidor ansioso e dedicado no trabalho de destruir Henri. O só pensamento disto enchia Robert do mais
selvagem terror e da mais exaltada alegria misturada ao sentimento de vingança.
Devido a seus muitos atributos perigosos, era Robert o grande favorito do avô de sua esposa. Sua natural inclinação para o ódio maldoso, sua
esperteza, seu espírito vingativo, sua obstinada tenacidade e brutalidade inata e profunda o tornavam benquisto ao cantor de salmos, o piedoso
e profundamente religioso velho magnata dos motores. A inclinação para a crueldade sádica e inclemente, e a temível maldade que parecem
parte do caráter dos fanáticos eram muito fortes no Sr. Mitchell, que obrigava os seus milhares de empregados a assinar um compromisso de
frequentar a igreja pelo menos uma vez por semana, a jurar que nunca haviam cometido adultério ou fornicação, e a prometer que nunca
beberiam, fumariam em excesso, praguejariam ou praticariam controle de natalidade. Segue-se, naturalmente, que o Sr. Mitchell odiava a
humanidade. Gostava de ter homens religiosos — especialmente sacerdotes — perto dele. Tentara obter a amizade do bispo católico de sua
diocese, mas esse bispo, infortunadamente para o Sr. Mitchell, era um homem honesto e brilhante. Rejeitou as tentativas de Mitchell com tal
firmeza que este mais tarde importou dois sacerdotes Ku Klux Klan do extremo sul para dirigir as duas mais importantes e fanáticas igrejas
metodistas e batistas em sua cidade. Em consequência, o Sr. Mitchell tornou-se um violento anticatólico reacionário; e mesmo a assistência de
certo sacerdote católico venal no próprio trabalho de Mitchell de destruir a democracia americana pouco adiantou para aliviar seu ódio à Igreja
Católica. Usaria esses homens violentos e extraviados, sim; mas conspirava para destruir a organização a que pertenciam, quando chegasse o
momento conveniente. Quando o bispo, suspeitando das maquinações de Mitchell, removeu um dos padres para uma paróquia menos
vulnerável (repreendendo-o duramente, em particular), o ódio de Mitchell pela Igreja Católica chegou ao clímax. Particularmente ele financiava
duas das mais fantásticas, das mais sádicas e odiosas publicações anticatólicas da América.
O Sr. Mitchell era também um dos mais generosos partidários do America Only Committee. Através de Robert, conheceu Antoine.

Capítulo 55
Havia momentos em que Antoine, espantado, se encontrava à beira da fantasia. Apesar dos esforços prodigiosos de seu partido, e das
enormes quantias gastas com senadores traidores e outros da vida pública — inclusive August Jaeckler, o Bispo Halliday e muitas
organizações subversivas — a despeito dos jornais venais assim como revistas importantes, apesar dos preeminentes locutores anti-
britânicos, que em número crescente circulavam pela América, e dos colunistas do rádio e dos jornais que denunciavam os “provocadores de
guerra”, o “imperialismo britânico”, e os “banqueiros judeus internacionais”, a despeito dos muitos membros do Departamento de Estado que
adoravam Pétain e o Vaticano e que incapacitavam todos os esforços da Administração para levar Pétain a uma compreensão decente do que
poderia significar sua covarde perfídia para a França — o povo americano mostrava os mais alarmantes sintomas de começar a pensar por si
mesmo.
Certa votação pública revelou o fato de que setenta e cinco por cento do povo americano ajudariam a Inglaterra a derrotar Hitler. Considerável
porção dessa porcentagem era de católicos romanos, fato que desconcertou os conspiradores contra a América, que haviam acreditado
piamente que, no cômputo final, a Igreja Romana estaria ao lado dos destruidores da democracia americana. Na verdade, muitos preeminentes
membros da Igreja Católica denunciaram Hitler e Mussolini com amargura e ódio apaixonados, e vários conhecidos leigos católicos publicaram
livros e panfletos instando com a América não só para ajudar totalmente a sitiada Inglaterra, como para declarar guerra à Alemanha. A:
desunião da América, cuidadosamente planejada, traía os mais angustiosos sinais de não atingir uma situação crítica. Mesmo o
antissemitismo, tão meticulosamente organizado, nada fizera a não ser provocar mau cheiro na política. Parecia que o povo americano não
queria saber disso, e que pequenos bandos fanáticos de agitadores, apenas despertaram aversão e desagrado — mesmo nos que se
inclinavam ao antissemitismo. Só os lunáticos subscreveram a doutrina suicida e suscitaram risos.
O “problema do negro”, laboriosamente agitado no Sul pelos inimigos da América, encontrou poucos deles para ouvir. Nos Estados do Norte é
que o problema perigoso foi mais debatido. Inimigos agitadores tiveram êxito, até certo ponto, no criar ressentimentos nos Estados sulinos
contra a presença de tropas negras em certos, departamentos.
Mas, de modo geral, para completo espanto de Antoine, o povo americano permaneceu em ótima saúde mental. Mais: não houve o
ressentimento universal e a raiva que se esperava contra a Lei do Serviço Militar Obrigatório. Centenas de milhares de jovens americanos
entraram para o Exército e a Marinha com singular calma e interesse, e até boa vontade. As grandes fábricas de armamentos — parcialmente
financiadas por dinheiro britânico — obtiveram o melhor em matéria de operários mecânicos.
Por toda a América houve uma estranha, mas determinada expectativa, austeridade e sadia prontidão para o pior.
“Os imponderáveis da consciência dos povos.” A frase voltou a incomodar Antoine e seu partido com crescente ameaça. Havia claros sinais de
advertência de que católicos, protestantes e judeus já não se consideravam como campos separados, mas como americanos, confrontados
com a hora final e desesperada da escolha entre as coisas pelas quais os homens morrem e as coisas pelas quais vivem.
Imprevisivelmente, a “macacada” começava a agir como seres humanos inteligentes, incomodados por mentirosos, ladrões e embusteiros, por
malfeitores e charlatães por todos os lados, apenas ocasionalmente confusos e aborrecidos, mas sempre firmes. Era de enfurecer. Certos
padres venais, certos loucos ministros protestantes podiam arengar a seus fiéis com histeria e ódio crescente. Certos escritores e jornalistas
podiam guinchar bem alto contra a Inglaterra, contra os “provocadores de guerra”, e chorar copiosamente pelas “mães da América”. Mas o
povo permanecia calmo e expectante, e diariamente se tornava mais austero. Mais e mais diatribes apareceram em determinados jornais
contra “os comunistas que diligenciavam forçar-nos a entrar na guerra, e agentes estrangeiros que desejavam levar-nos a um conflito que só
ruína traria à América”. Porém suas palavras só chegavam aos olhos dos insanos e dos rancorosos, e pouco dano produziam.
Como um sonho aterrorizador, isso começou a infiltrar-se na consciência de Antoine Bouchard. Pela primeira vez, começou a duvidar.
“Os imponderáveis da consciência dos povos!” Seria realmente possível que houvesse tais coisas, que realmente houvesse marés de
sentimento intenso e apaixonado entre os povos da Terra, que poderiam levá-los a levantar-se como um só homem e destruir o inimigo
universal? Seria instintivo tal sentimento, ou eram as forças da contrapropaganda mais poderosa do que a propaganda espalhada por Antoine
e os da sua laia?
Antoine preferia acreditar que fosse a última. Era contra todos os seus aristocráticos instintos crer que o povo tinha, realmente, coração e alma,
que poderia inspirar-se por justa raiva e nobre indignação contra os assassinos. Tinha alguma prova para sua crença determinada, embora não
pudesse ver a face do inimigo na sombra que se lhe opunha. Os contrapropagandistas estavam fazendo excelente trabalho em Washington e
no país inteiro. Fácil de constatar isso. Mas, poderiam ter feito tão bom trabalho se o povo não tivesse sido preparado, e não estivesse ansioso
por ouvi-los e acompanhá-los?
Havia organização entre os adversários que se opunham a Antoine, e dinheiro, e poder. Ele via isso. Porém, novamente, tudo isso teria dado
em nada não fossem os “imponderáveis da consciência dos povos”!
Aparentemente, o povo estava obscura, mas fortemente começando a discernir e a sentir a presença daqueles que queriam escravizá-lo,
assassiná-lo e explorá-lo. Em sua simplicidade, não podia citar nomes, ou perceber os rostos dos que o odiavam, mas sentia-lhes a presença,
ouvia o murmúrio secreto de suas vozes, via-lhes a sombra fugaz nos muros do mundo.
Antoine começou a duvidar dos próprios colegas. Nunca estivera inteiramente certo sobre Christopher Bouchard, seu tio. Nunca estivera
inteiramente seguro a respeito de Hugo Bouchard. De sua família, só estava certo de Jean Bouchard, irmão de Hugo, Alexander Bouchard,
Robert e Nicholas. Jay Regan, com todas as suas amáveis promessas, e interesse profundamente amigável no crescente movimento dos
planos, ainda não fizera nada de importante. Só Hiram Mitchell, o Sr. Morse, o Sr. Boland, e Joseph Stoessel da Schmidt Steel Company, e
alguns outros poderosos eram dignos de confiança. Havia, claro, Joseph Bryan, Junior — o mais forte rival de Regan — e certos senadores e
membros do Departamento do Estado. Mas na própria família de Antoine, só Jean, Alexander, Nicholas e Robert estavam fora de questão.
Emile e Francis eram, definitivamente, do partido de Henri. Seria possível que Christopher andasse fazendo jogo duplo, e que Hugo trabalhasse
em segredo entre seus colegas do Departamento de Estado?
Se assim fosse, a que risco horrível o próprio Antoine expusera o seu partido!
Esses os pensamentos que tanto o atormentavam. Ele mesmo era impotente até que o pai morresse, e conhecia o conteúdo de seu
testamento. Pouco receava que Armand o abandonasse. Pois não fora o próprio Armand quem metera o filho em Bouchard & Sons, e
literalmente obrigara Henri a aceitá-lo? Afinal de contas, Armand era seu pai. Nada dissera que levasse alguém a crer que trairia seu filho.
Antoine nunca fora como Henri, acreditando em sua boa estrela, em seu próprio poder. Pois Antoine era demasiado sutil, por demais
intelectual, para não saber que existem certos imponderáveis que trabalham pró ou contra um homem. Nem sentia aquela enorme ânsia de
poder que gira tão gigantescamente nas vidas de Ernest Barbour e de seu bisneto, Henri Bouchard. Havia ocasião em que Antoine
simplesmente cogitava por que importar-se com as coisas... Sempre ficara intrigado com a lenda do avô, Jules, e tinha, conscientemente, sido
um verdadeiro “substituto”. Porém havia vezes em que se sentia enfarado por completo pelos esforços que estava fazendo para tornar-se o
“poder” dos Bouchards.
Apenas tinha um leve e divertido amor pela intriga para mantê-lo ativo em suas conspirações. A intriga era o seu forte. Mesmo isso por vezes o
aborrecia. Possuía a alma de um “galante” do século dezessete, e achava os enfadonhos e nada atraentes conspiradores do século vinte
demasiado desagradáveis e desinteressantes de suportar. Não tinham coração, nem alegria, nem toque leve e delicado. Acima de tudo, não
tinham humor nem sabor. Só queriam dinheiro.
Dinheiro, em si mesmo, não possuía encanto peculiar para Antoine. Verdade que era dotado da avareza dos Bouchards mas, na melhor das
hipóteses, apenas artificial. Ele o queria por ser o sinal visível de poder, porque aparentemente parecia valioso para outros. Sua fortuna pessoal
era tão grande que ele não precisava de mais.
Por vezes ele suspeitava ser um romântico.
Gostava do espetáculo da humanidade por si mesma. Era o eterno diletante. Era o irrequieto manipulador. Sabia que outros, mesmo os
estúpidos, suspeitavam disto, e não tinham confiança nele. Henri o chamara “ator de araque” e, embora outros rissem ante a observação,
Antoine não rira. Na verdade, com surpresa olhara para Henri com mais respeito do que em qualquer outra vez. Quem teria suspeitado que o
Homem de Ferro possuía tal sutileza?
Em resumo: Antoine era um conspirador por amor à conspiração em si mesma. Estava começando a perder todo o prazer em uma
conspiração cujos protagonistas eram tão estúpidos e insípidos. Não havia um só com vitalidade e poder, exceto Henri, e mesmo esse não
tinha paixão. Era uma geleira, e as geleiras eram, notoriamente, sem cores brilhantes.
Antoine sempre se sentira um simples forasteiro no mundo. Sentia isso mais que nunca nesse ano de 1941. Tinha apenas seu infinito interesse
pela humanidade, em suas emoções menos desejáveis, e seu ódio natural a Henri — para evitar que se tornasse um vasto bocejo.
E então, quase de repente, Armand morreu.

Capítulo 56
“Quando os Bouchards morrem, levam anos a decidir-se” — alguém disse um dia.
No caso de Armand isso fora particularmente verdade. Sofrera de diabete por mais de dez anos. A insulina lhe salvara a vida, preservara-o da
morte rápida que de outra maneira o teria colhido. Mais: possuía a pesada constituição camponesa, que pode sobreviver a inacreditáveis
investidas, e a obstinação rústica que frequentemente subtrai à morte uma presa imediata. Também o terror da morte o mantivera vivo em meio
a comas crescentes (das quais enormes doses de insulina podiam salvá-lo), de cujos escuros portões um terror teimoso e resoluto o arrancara,
erguera-o novamente acima das sombras e o deixara, soluçante, sobre o fino recife da vida. Agarrava-se desesperadamente à existência. Nos
confusos recessos de sua mente chegara a acreditar que a resolução de não morrer derrotaria a morte indefinidamente. No seu caso,
estranhamente, demonstrara isso durante anos e anos.
Soubera que só a mais cuidadosa dieta e constantes injeções de insulina poderiam mantê-lo vivo. Mas não tivera coragem de resistir à boa
mesa e, frequentemente, esquecia a insulina. Quando lhe acontecia isso, era presa do terror. Nunca soube o que o fazia esquecer. Tristemente,
lembrava-se de que um homem esquece coisas que deseja esquecer. Por que queria esquecer de empregar a insulina, o medicamento que o
capacitava a esquivar-se à fatal inimiga do homem? Finalmente, com espanto e medo, chegou a pensar em si mesmo como seu próprio
inimigo e, por fim, a acreditar que ele era duas pessoas: uma com inclinações para a morte, outra com inclinações para a vida.
Por vezes a batalha o deixava exausto, enchia-lhe a mente com vagas formas de pesadelo. Descobriu-se pensando as coisas mais terríveis e
estranhas. Por vezes sentia-se de uma clara transparência, era consciência pousada sobre escuros abismos, sobre caos turbilhonantes.
Nessas ocasiões saía da cama, cambaleava até o banheiro, e engolia um brometo com pressa desesperada.
Então voltava ao lugar onde não ousava mais pensar. Sofria enorme, mas também obscuramente. Esquecia por completo a insulina. Fazia
copiosas refeições, depois ia para cama, ofegante, rosto arroxeado, coração trabalhando penosamente, e sua mente nada mais era uma
confusão amorfa, na qual estava vagamente cônscio de um sofrimento que era mais do que o sofrimento de um corpo a morrer.
E então, em meio à sua agonia, abria os olhos enevoados e ficava espantado ao descobrir que era dia, que a luz do sol chegava até seu leito.
Como! Acabara de ir para a cama... não dormira um só momento!... Num piscar de olhos, o tempo passara de meia-noite a meio-dia. Via o
rosto de sua enfermeira, e às vezes o do seu médico, ficando imensamente surpreso. Tentava falar, expressar sua incredulidade. E então,
subitamente, via Annette sentada a seu lado, muito branca, mas sorrindo, sua mão na dele, ou por vezes era o filho, Antoine. Só podia
maravilhar-se.
Meditava durante horas em todas essas estranhezas. Realmente existiria o tempo? Realmente haveria a realidade? A sagaz e exigente mente
do camponês se retraía intimidada ante essa charada. Mas agora já não estava muito apavorado. Sentia-se satisfeito consigo mesmo a tal
respeito. “O medo — pensou — só vem com a consciência de que a morte está por perto.” Seu medo tendo ido embora, ele derrotara a morte
mais uma vez. Se estava agora fraco demais para deixar o leito, se estava demasiado fraco para protestar contra os alimentos leves que lhe
trazia a enfermeira, pelo menos não estava preocupado. Certamente estava melhorando.
Sentia-se absolutamente certo disso. Ouvia quando a enfermeira lia as manchetes para ele, manchetes que dia a dia iam ficando mais
assustadoras. Tentava acenar gravemente, meio deliciado de que as notícias já não o enchessem de misterioso terror. E então, enquanto
contemplava este feliz pensamento, olhava em volta e descobria que estava escuro, as lâmpadas apagadas, a enfermeira se fora. Muito
estranho! Havia apenas um momento eram as quatro da tarde, e a enfermeira lia o jornal para ele. Podia até ouvir-lhe as últimas palavras.
Enquanto, novamente assustado, estudava tal fenômeno, sentia luz em seus olhos, e a enfermeira lá estava de novo, em plena luz do dia, de
bacia e toalha nas mãos...
Nessa determinada manhã seu medo voltou, e com ele suas forças. Disse à enfermeira:
— Senhorita Concord, para onde foi a noite? — Ouviu a própria voz, frágil como vidro.
— Dormiu esplendidamente, Sr. Bouchard — ela replicou, em voz cordial, enquanto se preparava para barbeá-lo.
Ele estava animado. Sorriu para ela, fechou os olhos cansados. Sentiu-a a barbeá-lo. Então, abrindo os olhos para agradecer-lhe, viu que o
quarto estava escuro, uma simples lâmpada acesa em mesa distante.
Agora, a medonha e opressiva lembrança de um sonho lhe voltou. Não havia recordado esse sonho por muitos anos. Voltou-lhe com todo o seu
horror. Mas não fora um sonho mau, somente estranho, e ele sabia, de modo confuso, que lhe trouxera conforto.
Era muito jovem quando tivera tal sonho. Não tinha havido nenhum acontecimento perturbador para encorajá-lo, ou explicá-lo. Acabara de voltar
de Harvard para os feriados natalinos. Podia sentir o perfume da árvore resinosa no imenso salão antigo, e entre as portas dobradiças podia
ver os ornamentos nela, dourados, azuis, prateados, carmesins. Fora um Natal totalmente satisfatório. Jules, seu pai, estivera em uma de suas
mais benevolentes disposições, não levemente zombeteiro como de hábito. Adelaide, sua mãe, com seus gentis olhos castanhos, parecia mais
feliz. Isso foi muito antes da Primeira Guerra Mundial. Era ainda naqueles primeiros anos calmos do século vinte, quando se sentia o grande e
forte crescimento da América, e a esperança estava no ar. Ele se sentia feliz por estar em casa. Nunca fora feliz na escola, pois sua obesidade,
sua reserva e suspeita rústicas, sua cautela inábil e oculta vulnerabilidade o tornaram impopular entre os companheiros. Sentia-se feliz até por
ver o gordo, jovial e grande Emile, vindo de Groton, e o pequeno e argênteo Christopher com aqueles venenosos olhos “egípcios”. Celeste era
pouco mais que um bebê, então, com lustrosos cachinhos negros e enormes olhos azuis, sempre tímida embora resoluta. Fora um período
desagradável em Harvard, e o lar lhe parecia muito agradável e seguro. Havia indícios de que o novo automóvel por que ele tanto ansiava seria
o presente de Natal do pai para ele. De qualquer maneira, não lhe fora permitido entrar nas enormes cocheiras atrás da casa, só recentemente
convertidas em garagem. Podia ver o automóvel com os olhos da mente: seria muito vermelho e brilhante, com assentos de couro carmesim.
Ele tremia de alegria. Seria praticamente o único estudante em Harvard a possuir tamanha magnificência.
Foi na primeira noite que ele teve aquele sonho espantoso. Sonhou que adormecera, não por muito tempo: na verdade, apenas por momentos.
Mas quando acordou não estava em sua cama: jazia num comprido e branco vestíbulo, como um corredor, cujas longínquas extremidades se
perdiam numa vaga névoa azulada. Em ambos os lados desse corredor havia largas prateleiras de mármore que iam do chão de mármore ao
teto de mármore, que se perdia em um nevoeiro flutuante. E em cada prateleira de mármore havia uma forma adormecida, enrolada no que
parecia uma branca mortalha. Ele não podia ver os rostos dessas formas, embora vagamente soubesse que algumas eram de homens, outras
de mulheres, e algumas de crianças. Dormiam como se estivessem mortos. A claridade que atravessava o corredor não era constante. Era
muito fraca, e por vezes Armand nada enxergava em volta dele. E então houve uma aceleração da claridade — como o luar visto sob as águas
— e houve um fluxo de iluminação nebulosa em todo o comprimento do corredor, uma claridade crepuscular que lhe permitiu ver, por breves
momentos, os calmos rostos adormecidos de seus companheiros. Era o calor luminoso de um sonho. Então ele pôde calcular que os
adormecidos eram incontáveis, estendendo-se até o infinito.
Não ficou apavorado: apenas cheio de espanto. Mas havia uma estranha familiaridade na cena, como se ele tivesse estado ali muitas vezes
antes, tivesse dormido, tivesse acordado. Lembrou-se, vagamente, que alguma vez, em algum lugar, estivera muito cansado, tão exausto que
não podia aguentar, e que adormecera, para despertar pouco depois, descansado, alerta, e muito calmo, nesse lugar misterioso embora
familiar.
Então sentiu, mais do que ouviu, que alguém se aproximava por trás dele pelo corredor. Viu a forma leve de uma jovem mulher, em flutuantes
roupas brancas, o cabelo louro enrolado no alto da cabecinha. Trazia na mão uma vela dourada acesa. Toda a névoa que flutuava em torno dela
transformou-se numa aura de luz dourada. Parou ao lado dele. Seu rosto mostrava uma calma indiferença, estava imóvel, embora não
insensível. A vela tremeu um pouco em sua mão tão branca e sem vida como mármore. Ele lhe ouviu a voz, sem eco e indiferente:
“Está acordado? Então, é tempo de levantar e recomeçar. Você dormiu demais, desta vez.”
“Mas adormeci há apenas um momento...” — ele murmurou.
Viu o sorriso dela, irreal, sereno e retraído, e, ao vê-lo, ficou cheio de um terror esmagador. Sentiu a palpitação de vida renovada em todo o
corpo, mas aquele sorriso pétreo e impessoal o repudiava, desprezava seu medo. Sentiu nela algo de hostil, embora não fosse uma hostilidade
pessoal, porém antes a inimizade de um universo sem vida. Ela repetiu:
“Você dormiu demais, desta vez. Vá, é esperado.”
Ele não sabia onde estava, quem o esperava, ou para onde iria. Mas não queria ir. Com toda a sua consciência, sabia que dor e sofrimento
esperavam por ele em algum lugar nos confins de um espaço enorme; que calor, tormento e morte o espreitavam lá, bem como exaustiva
confusão. Tornou a protestar. E a jovem mulher apenas aguardava, agora uma estática forma de mármore, imóvel como uma estátua, a vela
dourada na mão. Ele pôde ver-lhe os olhos, descoloridos e fixos, brilhando como uma gema branca, implacáveis, e seu sorriso imóvel e gelado,
e a infinidade de prateleiras em torno dele, com seus adormecidos.
Despertou desse sonho, encharcado com o suor do mais completo terror. Literalmente caiu da cama, soluçante. Viu o frio luar no chão do seu
quarto, e vislumbrou a neve no peitoril da janela. Tateou por uma cadeira, deixou-se cair nela, ainda soluçante. Disse a si mesmo: “Que significa
isto?” Mas sua alma trêmula sabia, e sabia bem demais...
Não esqueceu logo este sonho. Lembrou-se dele durante anos. Não ficou mais embaçado com o passar do tempo. Por vezes, em plena classe,
ou entre amigos até, via a branca fixidez dos olhos brilhantes daquela mulher, iluminada pela vela dourada. Começou a odiá-la, selvagemente,
desesperadamente. Considerava-a um horror, que o despertara da paz e do nada. Era sua inimiga.
Depois, com o tempo, o sonho se apagou, quase subitamente, e se foi. Não se lembrara dele novamente até esta noite.
E então, enquanto o recordava, ele lhe voltou com toda a força. O calmo quarto penumbroso com sua única lâmpada acesa se encolheu,
embora ainda estivesse em torno dele. Porém mais perto do que o quarto estava o corredor com suas prateleiras infindáveis, e a mulher que
esperava, e a presciência da dor, do tormento, e da exaustão que o aguardavam.
“Desta vez — ele pensou, em seu terror insondável — adormecerei e não despertarei. Fecharei os olhos, ela não saberá que estou acordado.”
Então lhe veio o mais estranho pensamento, como uma voz calma:
“Mas nada fiz para merecer paz. Certamente eu recomeçarei, e recomeçarei, e recomeçarei até já não estar apavorado e doente, e coberto de
sujeira.”
Ele considerou seu julgamento, e uma estranha resolução, calma e resignação lhe vieram. Sentiu-se humilde e cheio de tristeza. Suspirou do
mais profundo do seu coração.
Quando tornou a abrir os olhos o quarto continuava escuro, a lamparina ainda ardia. Porém a enfermeira estava a seu lado, com a mão em seu
pulso, a fitá-lo ansiosamente. Ele conseguiu mover os lábios frios e murmurou:
— Quero meu filho. Por favor, chame meu filho.
Ela era uma mancha branca ao sair do quarto. Ele a viu ir. Estava certo de não haver tirado os olhos da porta, mas, estranhamente, a próxima
coisa que viu foi o médico a seu lado, e Antoine.
— Muito estranho!... — ele murmurou, e sorriu. Seus músculos faciais estavam rijos e frios também, o que o espantou. Sentia o lento movimento
deles.
E depois o doutor desapareceu completamente ou, pelo menos, Armand não mais o viu. Antoine estava sentado ao lado da sua cama, o rosto
moreno e inescrutável brilhando à luz da lâmpada. Armand nada mais viu no quarto. Ele e o filho estavam num círculo indistinto à meia-luz, e
nada mais existia. A chuva de abril murmurava nas janelas. Houve um súbito hausto de ar fresco e suave, e úmido, através da penumbrosa
quietude.
Armand só podia fitar seu filho. Sua última ânsia de vida residia em seus olhos enfraquecidos. Por sua vez, Antoine viu a expressão moribunda
do pai. Bem poucas coisas jamais o perturbaram, ou desconcertaram; mas, por alguma razão, a expressão de Armand, seu olhar longo e firme,
o puseram pouco à vontade. Jamais vira tal olhar em Armand — sombrio, pensativo, completamente consciente, e muito triste. Era um olhar
amadurecido, limpo de toda dúvida, todo medo, todo alarma inútil.
Então Armand falou, a voz laboriosa e sibilante, muito meditativa:
— Foi há muito tempo... Meu pai mandou-me chamar. Esta era a sua cama. Tinha muito orgulho dela. Diziam que outrora fora a cama de
Robespierre. — Moveu a mão fracamente sobre o cobertor a seu lado.
Antoine inclinou a cabeça gentilmente. Armand podia ver o brilho negro e pensativo de seus olhos enviesados. O jovem aguardava.
— Agora, eu vou morrer nela — continuou Armand, a voz tão baixa que Antoine teve de inclinar-se para ouvi-la. — Na cama de Robespierre.
Nunca pensei o quão apropriado era, meu pai morrendo nela. Ele também, como Robespierre, foi guilhotinado. Ele soube disso, no fim.
E agora seu olhar era grave e pesaroso. “Que estará ele tentando dizer-me?” — pensou Antoine. Estivesse o pai sendo sentimental, ou
aterrorizado nessa hora suprema de sua morte, Antoine se sentiria muito mais à vontade e bastante cínico. Sabia que homens venais
frequentemente experimentavam pontadas de agudo terror em face da morte. Julgara que o pai demonstrasse isso, e que seria muito
interessante observá-lo, o que teria uma qualidade divertida e macabra. Mas o rosto nos travesseiros, embora informe e relaxado com a
aproximação da morte, possuía olhos mais vivos, mais potentes, mais pungentes e obstinados do que jamais o tinham sido no apogeu da vida.
Mais: neles não havia medo, só uma profunda compreensão e pesada tristeza. Neles não havia sinal daquele almejado arrependimento,
daquele remorso envergonhado, que tão frequentemente assalta os moribundos. Também, nessa hora, Armand possuía uma estranha
dignidade, uma coerência de personalidade que nunca revelara antes.
Agora um brilho pálido lhe passava pelas feições. Moveu um pouco a cabeça. Não havia afastado de Antoine seu olhar fixo.
— Meu pai mandou chamar-me antes de morrer. Tal como agora: jazia nesta cama, e sentei-me a seu lado, como você está fazendo, Antoine.
Disse-me algumas coisas. Não creio que fossem as que queria dizer. Não eram importantes. O que não disse é que tinha importância. —
Deteve-se: — Um homem estranho, meu pai! Foi um homem mau. Porém muito divertido. E superior. Nenhum dos filhos pôde igualar-se a ele.
Era o homem mais sensato que já conheci. — E então a voz de Armand assumiu uma qualidade mais forte e mais firme, e havia nele uma
renovada vitalidade.
“Não tinha medo de morrer. Na verdade, nunca teve medo de nada. Por isso era tão fascinante. Jamais confiou em alguém, exceto, talvez, em
minha mãe. Nos filhos, nunca. Tinha razão para isso. Acho que nos odiava. Sim, estou certo disso. Exatamente antes de morrer, mandou
buscar-me, e me sentei junto dele. Falou-me a respeito do seu testamento, e se divertia. Isso porque sabia que o odiávamos. Ou ele assim
pensava. Talvez tivesse razão. Acho que ele estava pensando no que faríamos com o que nos deixara, e isso o divertia.
E então Armand começou a falar no patoá francês de sua primeira juventude, a linguagem que o pai usara com tanta elegância, tanta graça que
o dialeto fora pura música. Entretanto, nos lábios de Armand, lábios de camponês, as palavras eram rudes e desgraciosas, porém,
estranhamente, muito mais sinceras.
Antoine, cujo francês era fluente, rico e aristocrático, sentiu um obscuro desagrado por essa pronúncia bravia, mas reconheceu que tinha certa
dignidade rude, e até grandeza, nesses lábios de camponês, bem como certa propriedade. E chegou a haver uma sutil transformação no rosto
de Armand. Nunca fora de perfil delicado, ou de expressão refinada. Mas agora assumiu força e vulgaridade, resolução rústica e nobreza
simples.
— E enquanto meu pai me falava, divertindo-se ao dar-me pistas sobre seu testamento, havia em mim uma estranha emoção. Eu sempre o
temera, pois tinha a mente arguta e um cruel espírito inventivo de epigrama. Eu sempre fora um jovem e pesado varão, e muito frequentemente
devo tê-lo divertido, embora, sem dúvida, me desprezasse. Entretanto, quem lhe restava, a não ser eu? Desconfiava dos outros filhos. Eu, pelo
menos, não tinha a necessária esperteza, é o que ele julgava, para ser malévolo ou conspirador.
E Armand sorriu pesarosamente. Suas mãos, curtas e gordas, cobertas de pelos ruivos, ergueram-se um pouquinho, depois caíram na cama.
— Sim — disse, reflexivamente — havia a mais estranha emoção em mim enquanto me falava de seu testamento. Fitei-o. Esqueci o que ele
estava dizendo. Subitamente, pareceu-me horrível que ele estivesse morrendo. Não sei por quê. Nunca o amara. Sempre o temera e o evitara.
Mesmo assim, era horrível que estivesse morrendo. Jamais compreendi. De repente gritei-lhe: “Mas eu não quero que você morra!”
Antoine estava silencioso. Novamente Armand virou a cabeça para ele e nele fixou aqueles olhos singularmente firmes e calmos.
— Meu pai ficou muito surpreso. Jamais esquecerei o olhar que lhe iluminou as feições, como se estivesse enormemente perplexo e admirado.
Até se ergueu em seus travesseiros, para fitar-me mais de perto. Acho que morreu ainda espantado. Nunca lhe ocorrera que alguém pudesse
querer que vivesse. Amor... ele não esperava. Confiança... era demasiado inteligente para acreditar que pudesse existir. Mas soube que eu era
sincero. Soube que eu estava muito triste. Isso foi o que tanto o surpreendeu.
Armand se deteve. Seu olhar era mais penetrante, e completamente humilde:
— Gostaria, meu filho, que você ficasse triste. Não sei por que o deveria, assim como não estou certo por que me entristeci quando meu pai
morreu. No entanto, gostaria que fosse assim.
Antoine sorriu intimamente. Pensou, com cinismo: “Mas você conhecia o testamento de seu pai!” Entretanto, a despeito de si mesmo, sua voz
tinha uma gentileza peculiar quando disse:
— Mas eu estou triste! Creia-me, eu estou triste!
Armand sorriu. Um sombrio e triste sorriso. Falou:
— Não sei por que, mas acredito em você. Neste momento, você está triste. Não sabe por que; eu não sei por quê. É porque você está triste
que eu devo enfrentar a morte, ou é triste que eu não vá viver? É muito confuso. Penso que, talvez, você esteja triste porque eu tenha sofrido e
ainda sofra. Preferiria acreditar nisso, de preferência a acreditar que sente a mesma tristeza que teria se lhe morresse um cão, ou quem lhe
fosse indiferente. Sim, gostaria de acreditar nisso. Acho que acredito. Pois só acreditando nisso posso dizer-lhe o que devo.
Subitamente, ficou sufocado. Gemeu:
— Levante-me!
Mãos invisíveis o ergueram e o puseram mais alto em seus travesseiros. Ele nem cogitou de quem seriam as mãos, embora Antoine não se
tivesse movido na cadeira. Todas as íntimas energias de Armand, sua insistência desesperada, se concentravam no filho. Antoine, por sua vez,
estava sinceramente satisfeito de que o pai estivesse falando no seu dialeto francês, pois desejava que ninguém entendesse o que dizia o
moribundo.
Então Armand se esticou, e sua mão pegajosa, com a textura e a umidade do barro, agarrou a mão de Antoine. O jovem sentiu-lhe a força
premente. De sua posição mais alta, Armand estava também mais perto do filho.
— Que houve entre nós? — perguntou. —- Menos, talvez, do que houve entre mim e meu pai. E talvez a mesma coisa, ainda que de maneira
diferente. Então, eu fui filho de um homem igual a você; um igual a você era meu pai. Entretanto, embora com frequência veja meu pai em seu
rosto, e ouça a voz dele na sua, e observe os próprios gestos dele nos seus... falta-lhe alguma coisa, meu filho, que havia em meu pai, Jules
Bouchard. Você sempre me julgou estúpido e sem discernimento. Mas eu sempre soube o que lhe faltava, embora não tivesse, então, palavras
para isso. Talvez eu não tenha palavras agora embora lute por elas.
Antoine estava chocado. Franziu as sobrancelhas, delicadamente. Alguma obscura vaidade, nele, estava molestada. No entanto, ouviu mais
atentamente quando o pai prosseguiu:
— O que devo dizer-lhe agora nunca poderia ser dito a meu pai, nunca, em toda a sua vida. Pois para ele teria sido falso. Você tem sua
capacidade e sua graça, seu gênio para a intriga, sua inexaurível conspiração. Mas aqui termina a semelhança. — Deteve-se, depois
acrescentou em voz mais forte, surpreendente: — Eu sabia disso com meu instinto, mas não com minha mente, até agora! — Em seu rosto
relampejou um raro e brilhante sorriso, como se tivesse ouvido notícias alegres: — Dá-me muita felicidade, meu filho, saber tudo isso com meu
coração e minha mente!
“Que estará o pobre coitado tentando dizer-me?” — pensou Antoine. Mas fez uma expressão atenta. Novamente, a seu pesar, havia um peso
estranho em seu peito. A espantosa força de Armand, sua resolução de falar, sua determinação de resistir à morte enchiam Antoine de um
espanto vagamente supersticioso.
— Todos os atributos de meu pai inclinavam-se para um único objetivo: poder — continuou Armand, e agora sua voz estava perfeitamente
normal, não mais ofegante, mas cheia de energia. — Ele devia ter poder. Tinha de tomar esse poder de Paul Barbour, o genro de Ernest
Barbour, meu tio-avô. É muito estranho para mim lembrar isto: que, indiretamente, o sangue de Ernest Barbour corre em mim, e em você. Mal
sangue, esse, o sangue de Ernest Barbour. Era forte, em meu pai. Pensei que fosse forte em mim. Fiquei satisfeito ao saber, por fim, que não o
era. Fiquei ainda mais feliz ao saber que aquele sangue não é forte em você, meu filho, embora eu outrora acreditasse que era. Havia ânsia de
poder naquele sangue, uma ânsia perigosa.
“Meu pai tinha essa ânsia. Você não. Tem agido como se a possuísse, mas tem fingido. Era, talvez, tradição de família desejar poder: isto é o
que você tem acreditado. Era-lhe intolerável, você pensou, não ter essa ânsia. Sempre admirou seu avô; lisonjeava-o o fato de parecer-se com
ele, e eu o vi contemplando o retrato dele quando se julgava sozinho. Apavorava-me essa parecença. Mas já não fiquei tão apavorado quando
me dei conta de que havia nele um ultimato final que você não possui.
Voltou os olhos para o retrato acima da lamparina distante, e instintivamente Antoine também olhou. Todo o retrato estava mergulhado numa
sombra difusa, exceto os alegres e satânicos olhos negros que fitavam tão decididamente da moldura. Armand acenou com a cabeça, e sorriu:
— Falta em você o que ele possuía. Por isso é que, agora, estou tão satisfeito. Por isso é que lhe estou falando assim.
Antoine franziu os sobrolhos levemente. Olhou o pai com certa surpresa inquieta.
Armand continuou a falar. Sua voz estava agora muito mais fraca, mas tinha nitidez e penetração:
— Apesar de todos os atributos de meu pai, e graças, vivacidade e intelecto, ele era um plebeu. Tinha a brutal ânsia de posse do plebeu. Ele
pegava e agarrava. Essa era a sua natureza. Devia triunfar, na variedade e riqueza de suas posses, sobre aqueles a quem odiava. E odiava
todo mundo. Esta a marca do plebeu: sua avareza e seu ódio. No fim, talvez sejam a mesma coisa.
“Dá-me muita alegria, meu filho, o saber que nunca foi avarento. Fingiu ser. Tem fingido, até para si mesmo, que a ânsia pelo poder, atributo
plebeu, e o desejo de posses viviam em você. Porém tais marcas do homem estúpido e brutal não estão em você. Você é um aristocrata. Pode
até ser um grande homem, se puder livrar-se de suas pretensões, e da fealdade, da morte e da fadiga que inevitavelmente as acompanham.
Como me acompanharam.
Antoine não falou. Recuou sua cadeira, só um pouquinho. Mas o gesto era significativo. Era o desejo instintivo de afastar-se do fraco círculo de
claridade que encerrava seu pai e a si mesmo; era o desejo instintivo de recuar, fugir aos olhos sutis e misteriosos do pai, que, nessa hora da
sua morte, tudo viam. O jovem sentia-se desnudo, e se enchia de uma raiva embaraçada.
— A tantos da família você odiou! — gritou Armand, e apertou as mãos, sacudindo-as com uma última veemência. — Você realmente não
sabia por que odiava. Mas eu sabia. Você os odiava porque eram parvenus e plebeus. Você negará isto, mesmo a si próprio. Mas algum dia o
reconhecerá. Quero que o reconheça logo, pois, de outra maneira, você pode ser destruído. Como eu fui destruído.
Pressionou as mãos apertadas, cobertas agora de suor frio, sobre o peito, e os olhos ardentes imploravam desesperadamente ao filho.
Antoine descansava o cotovelo no joelho; ergueu a estreita mão morena e com ela cobriu a boca. Por cima dessa mão os olhos escuros
vigiavam o pai atentamente.
Armand tornou a falar, e em sua voz havia amarga súplica e humildade:
— Estou rezando para que não seja tarde demais. Tivesse eu sabido mais cedo, quando você era uma criança, um adolescente, que você não
possui aqueles atributos de meu pai, e eu poderia ter feito muito! Mas sua fisionomia, sua voz, seus gestos me enganaram que você era outro
idêntico a ele. Só há bem pouco tempo comecei a duvidar. Não acreditei. Havia muitas provas em contrário. Agora sei que a minha dúvida
representava a verdade.
“Eu podia tê-lo poupado tanto, se fosse capaz de falar com franqueza... Eu devia ter sido capaz de falar-lhe de meu asco por mim mesmo e
outros, minha exaustão, minha aversão pelo que eu era e pelo que tinha feito. Todos vocês devem ter pensado que eu era um covarde. É
verdade. Mas você não sabe o que me fazia temer. Você pensou que eu era fraco, mas não sabe por que eu era fraco. Você pensou que isso
talvez fosse algum delicado sentimento de culpa que me atormentasse em meio ao que eu estivesse fazendo. Talvez, de certa forma, isso fosse
ligeiramente verdadeiro. Porém, meu filho, sabe, era porque eu sabia o que era certo e o que era errado, e mesmo assim não tivera coragem
de resistir ao que era errado. Porque eu, também, era um plebeu, e tinha ânsia de posses, e avareza, e desejo de poder. E quando, ao ficar
velho e doente, essas ânsias desapareceram, descobri que eu era impotente. Outros me haviam arrebatado o poder, o poder para desfazer o
mal que eu fizera, e que agora eles é que faziam. Isto foi o que realmente me matou — acrescentou, com profunda e comovedora simplicidade.
Antoine não falou. Os olhos cobertos acima da proteção da mão ficaram um pouco mais brilhantes, e um pouco mais estreitos. Armand os fitou
com desesperada esperança, perscrutando, ansioso: não conseguiu decifrá-los.
— Não queira as coisas que o matarão, meu filho — murmurou, roucamente. — Nada são. Apenas pedras cobertas de poeira. Você tem
bastante. Vá embora.
E então os dois homens se olharam no mais profundo silêncio. Antoine não se moveu; só um dedo se ergueu um pouco, como se para
esconder os olhos. À luz da lamparina Armand podia ver claramente o filho, sua cabeça pequena e estreita, os ombros elegantes, as linhas do
seu corpo sólido e gracioso. E podia ver seus olhos fixos e indecifráveis.
E então o moribundo gritou, frenético:
— Você deve dizer-me que é verdade o que acreditei em você! Deve dizer-me! Não posso morrer em paz a menos que me diga que é
verdade!
A boca mole ficou aberta enquanto ele ofegava... Uma sombra acinzentada escorreu feito água sobre seu rosto molhado. Seus olhos se
dilataram, flamejaram e se imobilizaram. Ergueu as mãos num gesto abrupto — o gesto de um homem sendo arrastado e afundando sob ondas
asfixiantes.
Antoine agitou-se. Olhou para o lado. Disse:
— É verdade.
Levantou-se. A enfermeira e o médico, que tinham estado ali todo esse tempo, sem compreender, curvaram-se sobre Armand. Ele não lhes
sentiu a ajuda. Ainda fitava o filho, toda a última ansiedade de sua vida nos seus olhos, implorante, desesperado.
— É verdade — repetiu Antoine.
Afastou-se lentamente da cama. Ficou de pé sob o retrato do avô, cujos olhos o contemplavam, seus próprios olhos, cínicos, brilhantes, cheios
de riso e com um alegre e infinito desdém. Por muito tempo Antoine ficou ali, contemplando Jules — e era como se se mirasse num espelho.
Quando tornou a voltar-se, a enfermeira, suspirando pesadamente, estava puxando o lençol sobre os olhos fechados de Armand, seu sorriso
estranho e solitário, de indecifrável tristeza, resignação, e sabedoria amarga.

Capítulo 57
Ninguém chorou no enterro de Armand, exceto a pequena Mary, esposa de Antoine, que, a seu modo infantil, gostara muito dele. Chorava nos
braços de Antoine:
— Se ao menos eu o tivesse obrigado a obedecer à sua Lista! Mas não o fiz! Deixei-o comer o que queria, e realmente fui eu que o matei!
— Não, querida! — disse Antoine, com gentileza fora do comum. — Ele mesmo se matou.
Ela o fitou, olhos úmidos, enquanto os outros da família os olhavam silenciosamente.
— Você quer dizer que ele se matou porque desejava comer as coisas que não deveria desejar?
Antoine hesitou. Depois disse:
— Sim, sim, é verdade.
Annette não chorou. Estava muito quieta, e seu rostinho definhado mostrava um olhar profundamente meditativo. Ela, só ela, amara o pai.
Contemplava-o deitado em seu ataúde de bronze, e sentia-se feliz porque estava morto. Embora Henri fizesse um gesto como para impedi-la,
ela se curvou sobre Armand e docemente beijou-lhe a face pétrea. Sussurrou-lhe:
— Adeus, querido! Não se esqueça de mim!
Celeste olhou o irmão, majestoso na morte, e pensou:
“Mas... eu jamais o conheci! ”
Emile, grandão, corpulento, disforme e de olhos negros, fitou Armand: não sabia que Armand, morto, se parecia demais com ele. Christopher
também olhava o irmão. Pensou:
“Ele nunca pôde suportar-nos!”
Henri nada disse. Ficou de pé junto do ataúde e pensou:
“Não pelas razões que você queria, mas pelas minhas razões, foi melhor que você morresse. Farei como queria que eu fizesse, mas não pelas
suas razões. Só pelas minhas. No fim, dá tudo na mesma.”
Os outros parentes estavam profundamente curiosos a respeito do testamento de Armand. Sempre o haviam desprezado, sentiam apenas um
divertido desdém por ele. Recordavam sua covardia. Sentiam sua morte, claro. Porém eles também julgavam melhor que tivesse morrido.
Olhavam com curiosidade para Annette e Antoine. A maior das fortunas Bouchards passara agora às mãos deles.
Armand foi enterrado junto à sua família no cemitério particular originalmente adquirido por Ernest Barbour. Ele ficou perto de seu pai e de sua
mãe. Todos em volta deles, Bouchards e Barbours, dormiam sob grandes salgueiros curvados e coníferas. O cemitério era como um parque
imenso e bem-cuidado, com canteiros e sinuosas veredas de cascalho. A família jamais gostara de mausoléus. Todos preferiam a terra, a terra
forte, de onde tinham vindo seus corpos de camponeses, e que instintivamente amavam. Aqui, num canto calmo e adorável, dormia Gertrude
Barbour, amada filha de Ernest, avó de Henri e Edith, que morrera em sua patética juventude. A seu lado jazia o marido, Paul, e à sua
esquerda, a filha, Alice Bouchard. Não longe dormiam os irmãos: Godfrey Sessions Barbour, trazido de sua amada França (Godfrey, o grande
compositor americano, e sua esposa, Renée Bouchard), e Reginald, arrancado da posse dos Menonitas em sua morte, e Guy, assassinado
nas colinas da Pensilvânia, e Charles, o estúpido e obscuro, que morrera de febre tifóide havia tanto tempo. Perto deles, num lugar alto,
dominando todo o cemitério como um rei domina o seu reinado, mesmo na morte, jazia Ernest Barbour, tendo a cada lado uma de suas
esposas — May Sessions e Amy Drumhill. Os filhos de Amy jaziam abaixo dela, à esquerda da linda e solitária eminência: Elsa Barbour e Lucy
Van Eyck, e John Charles. (O filho dela, Paul, é que jazia junto de Gertrude, sua esposa.)
Espalhados em redor, em todo o cemitério, estavam inúmeros outros, parte desse império de família e poder que Ernest fundara. Seus nomes
estavam esculpidos em simples lápides de mármore ou de granito. Jules Bouchard, em um círculo de veredas de cascalho, flores e árvores,
jazia ao lado da esposa, Adelaide, no túmulo dela que ainda não fora cavado, e do pobre Peter. Também seus irmãos lá estavam, François e
Leon, e a esposa de Leon. E muitos, muitos outros.
Poucos jamais visitaram aqueles túmulos quietos e mais humildes perto dos altos muros de pedra: os de Armand Bouchard, e sua esposa
Antoinette (avôs de Jules), e seu amado filho, Jacques, o aleijado, que se matara. (Jacques fora removido do lado externo dos muros do
cemitério católico, e Armand e Antoinette tinham sido retirados do lado interno daqueles muros, e todos enterrados aqui por ordem de Ernest
Barbour.) Aqui, neste local distante, também jaziam os pais de Ernest, Joseph e Hilda — que nunca voltaram à sua amada Inglaterra — e suas
filhas, Dorcas e Florabelle. Havia colunas, também, em memória de Martin Barbour, que morrera na Guerra Civil, e de Honoré Barbour, muito
amado primo de Jules. Porém Martin estava enterrado em algum túmulo perdido no Sul, e Honoré ficara no mar.
Maridos jaziam ao lado de esposas e pais, e os filhos também estavam lá. Nos portões de bronze do cemitério estava soldada a placa:
Barbour-Bouchard. Havia jardineiros, constantemente cuidando, regando, podando, plantando. Acima dos altos muros apareciam os topos de
grandes árvores, onde pássaros cantavam no ensolarado silêncio do verão. Não muito longe ficava a pequena, mas linda capela que Ernest
Barbour construíra.
A nova terra em estado natural perto de Jules e Adelaide foi novamente perturbada por Armand. Puseram-no ali, e os torrões vermelhos caíram
sobre seu ataúde. Seus muitos parentes e inúmeros conhecidos o deixaram a seu sono, e as portas de bronze se fecharam após sua
passagem. A chuva de abril caiu em seu túmulo. Um ou dois pássaros escolhiam minhocas expulsas da terra, acima do lugar onde jazia seu
silencioso coração. Sua cabeça estava junto às raízes de uma enorme conífera — que um dia penetraria em seu corpo e seu crânio, e os
reivindicaria.
Os parentes voltaram para a mansão que ele construíra, para ouvir a leitura do testamento. Mas ficaram abalados de surpresa e confusão. Pois
os advogados comunicaram, gravemente, haver uma exigência em relação ao testamento: não seria aberto por um ano, ou até que a América
tivesse declarado guerra à Alemanha, ou até que Henri Bouchard desse a ordem. Se a América não fosse envolvida pela guerra, ou Henri não
desse a ordem, então, ao fim de um ano após a morte de Armand, o testamento seria aberto.

Capítulo 58
Celeste dera ao filho o nome de Land Burgeon Bouchard. Land Burgeon fora o pai de sua mãe, velho durão e obsceno de grande integridade e
de boca bem suja. Mas valentão e, como a maioria dos homens de seu temperamento, bondoso, justo e compassivo. Morrera muito antes do
nascimento de Celeste, porém ela possuía, como legado de sua mãe, um escuro retrato dele.
Era um retrato feio, mas cheio de vida e vitalidade. O velho baixo e rijo foi retratado em uma enorme poltrona lavrada, com a grande e
arredondada cabeça calva inclinada para o peito, como se fosse deformada, as mãos nodosas agarradas ao castão de sua bengala, o queixo
agressivamente empurrado para fora. Tinha um rosto enrugado e irascível, muito feio, grande nariz romano, boca fina e larga, toda tensão,
austeridade e cinismo, e olhinhos coléricos e desdenhosos. Porém sua ampla fronte calva tinha uma fria nobreza; e sua expressão, embora
amarga e maliciosa, não tinha astúcia nem crueldade. Os largos pontos brancos de sua gola surgiam em volta das bochechas amareladas; o
grande plastrão era atado abaixo delas como a laçada de um carrasco. Era o retrato de um grande cavalheiro, obsceno, feroz, mas todo honra.
“Gostaria de tê-lo conhecido!” — pensou Celeste, de pé abaixo do retrato, com o filho nos braços. Ele não era um mentiroso, dissera-lhe a mãe.
Também jamais gostara dos Bouchards, acrescentara Adelaide, com um sorriso triste. Denominara Jules “aquele francês arrogante com cara
de padre”. Nunca chamara os Bouchards por esse nome; ele usava a tradução inglesa: Butcher! (Butcher — açougueiro. (N. da T.)) Celeste
sorriu, lembrando as histórias que a mãe lhe contava a respeito dele, como usava a bengala prodigamente quando enfurecido, como sua língua
fora famosa pela linguagem obscena, epigramas cáusticos e insolência. Mas fora íntegro — e nunca pudera suportar os Bouchards. Nenhum
dos netos herdara qualquer das suas características faciais, embora Adelaide frequentemente declarasse que os olhos de Celeste, diretos e
firmes, tinham algo da expressão do avô. “Sim — pensou Celeste — gostaria de tê-lo conhecido!”
Ela vivia muito quietamente com seu garotinho em Placid Heights. Ele estava agora com oito meses e, pelo menos para sua mãe, era muito
precoce. Possuía uma quantidade de cabelos claros e viris, olhos acinzentados de olhar destemido, nariz curto e grosso, e queixo forte. Mas a
boca era terna, embora firme, e quando sorria fazia covinhas. Ao sorrir assim, sua espantosa semelhança com o pai desaparecia numa
expressão de grande doçura. Era um bebê quieto, bom, silencioso, muito apegado à sua mãe. Raramente chorava, e brincava sozinho durante
horas com uma multidão de brinquedos. Quando Celeste o estreitava junto ao peito, ele mergulhava as mãozinhas em seus cabelos, porém
gentilmente, e os olhos acinzentados ficavam luminosos. Celeste sentia o peso das lágrimas por trás das pálpebras, e um nó de sofrimento e
de amor na garganta.
Ela o guardava zelosamente, com uma espécie de ferocidade. Ele tinha, já, vários dentes, e podia pôr-se de pé em seu berço. Ela estava certa
de que ele podia pronunciar algumas palavras, embora as enfermeiras não concordassem. Celeste o levava para os jardins e o deixava rolar no
quente gramado de maio, rindo e gritando de alegria. Expunha-o ao sol, regozijando-se com a fortaleza de seu pequeno corpo. Bouchard:
Butcher! Não, esse pequenino não seria um açougueiro. Sua mãe cuidaria disso, até o fim de sua vida. Algum dia o levaria para longe, para
que não fosse corrompido.
Agora, toda a sua vida estava nessa criança. Falava com ele, cantava para ele, brincava com ele. E enquanto assim fazia, a rigidez de suas
feições começava a relaxar, bem como a amaciar a dureza de sua boca, e a abrandar a sua dura expressão de dor.
Quando os parentes a visitavam, relutava em deixá-los ver o menino. Dissimuladamente, pensavam que era por ser tão notável sua semelhança
com Henri. Mas não era essa a razão: ela temia o contágio deles. Dava desculpas: ele estava dormindo, ou sendo alimentado, ou saíra com
uma das babás. Quando a guerra acabasse, ela disse, achava que levaria o menino para a Inglaterra, ou talvez para a França, depois que as
pegadas do javali tivessem sido eliminadas pelo seu próprio sangue.
Por vezes os parentes cochichavam entre si:
“Ela parece haver esquecido Henri inteiramente. Ótimo para ele!”
Nunca podiam saber o que Henri estava pensando. Aparentemente, não vira o menino desde o dia em que nascera. Annette ia muitas vezes a
Placid Heights, sozinha. Só ela via o menino com frequência. Celeste a deixava brincar com ele no gramado: ela ria alegremente quando ele lhe
puxava os cachos macios e lustrosos. Beijava-o apaixonadamente, meio rindo meio chorando, apertando-o de encontro ao peito. Depois
olhava para Celeste, que a observava meditativamente, e seus imensos olhos azuis-claros se enchiam de lágrimas radiantes.
Foram uma delicada agonia para Celeste as primeiras vezes em que Annette a visitara e vira o pequeno Land. Porém mesmo isso acabara.
Ela parecia grata à gentil companhia de Annette; contudo, quando Annette quis acarinhar e beijar o bebê, algo de áspero, duro e sombrio
apertou o coração de Celeste. Dificilmente pôde evitar arrancá-lo dos braços de Annette numa espécie de ciúme cego — inexplicável até para
ela. Mais tarde, sentiu a maior compaixão por Annette, e uma tristeza imensa. Não queria pensar se Annette conhecia ou não a verdade, e, com
o tempo, chegou a acreditar que não suspeitava de nada.
De fato, à medida que aumentava sua feroz proteção, ela se persuadia de que a família de nada suspeitava, ou, se o fazia, havia começado a
esquecer.
Em 10 de abril de 1941, o Sr. Hull declarou que fora assinado um acordo com o ministro dinamarquês para uso da Groenlândia como base
americana.
Em 27 de maio de 1941, o Presidente, num discurso pelo rádio, declarou uma emergência nacional ilimitada. Anunciou que a Batalha do
Atlântico agora se estendia das águas geladas do Polo Norte ao gelado continente antártico.
As organizações subversivas da América entraram num frenesi, em renovada e febril atividade. O Presidente “provocador de guerra” estava
apressando a América para entrar nessa “terrível guerra estrangeira”. Jornais subversivos, locutores, senadores, deputados, políticos, líderes
trabalhistas, figuras preeminentes e públicas, e muitos outros, guinchavam que “em breve os rapazes americanos estariam morrendo em solo
estrangeiro”.
Porém o povo estava calmo, expectante e austero. O povo é que estava silencioso em meio ao enorme e frenético tumulto. Os “imponderáveis
da consciência dos povos” eram sentidos por toda a América, vigilante, desiludida, não ludibriada, e atenta. A alma da América foi
reconhecida, ficando mais forte a cada hora, a alma simples e ainda não corrompida de um povo esclarecido.
Quando a Alemanha invadiu a Rússia, em 22 de junho, houve um murmúrio em toda a América como um profundo, mas resoluto suspiro de
alívio, e um som como se um exército gigantesco se pusesse de pé e apertasse o cinturão.
“Ainda não perdemos” — disse Antoine a seus partidários.
Esses partidários, essa facção, através de seus jornais, sabia que o Presidente seria acusado. A facção também sentiu grande alívio com a
invasão da Rússia pela Alemanha. Seus jornais subornados tomaram fôlego, depois exultantemente gritaram que Hitler agora destruiria o
“bolchevismo” na Europa, como há muito havia prometido. Os jornais também festejaram a consternação e confusão dos comunistas
americanos, agora que Hitler rompera o Pacto entre a Alemanha e a Rússia. Não apenas os jornais estavam alegres: o povo americano,
mesmo nessa hora terrível, pôde rir sinceramente ante esse dilema dos tímidos e pálidos comunistas americanos, que haviam arengado tão
gravemente sobre o “imperialismo britânico” e “guerras estrangeiras nas quais não temos interesse”, e “fazedores de guerra que querem
precipitar-nos num conflito que não nos diz respeito”. O American Only Committee tivera seus membros infiltrados no Partido Comunista
Americano, e sua retirada em confusão e completo pânico aumentou enormemente a hilaridade americana. Só mais tarde a hilaridade se
tornou apenas raiva. Era aparente — disse o povo americano — que os comunistas não sabiam o que era lealdade à América, mas apenas à
linha do partido na Rússia. Não eram melhores que os fascistas, afinal de contas. Durante os últimos dois anos, os comunistas americanos
haviam atacado o Presidente tão maldosamente como os fascistas nativos o fizeram, e houvera uma similaridade suspeita entre a propaganda
deles e o veneno nazista. Com a estupidez de sua espécie, a sua obtusidade, os comunistas logo atrevidamente pediram a intervenção da
América na guerra, ignorando a raiva e a risada ultrajada do povo.
— No fim das contas, provavelmente foi uma boa coisa que a Alemanha atacasse a Rússia — comentou Antoine. — Receava que isso
consolidasse a opinião americana contra Hitler. Mas as excentricidades dos comunistas americanos enraiveceram o país, e estou deliciado por
ver que a opinião pública se recolheu à sua precaução original de 1939.
Porém ele falou sem sua original vivacidade e alegria. Falou com melancolia e opressão, estranhas manifestações para o elegante e
despreocupado Antoine.
“É o danado e misterioso testamento de Armand que o está aborrecendo” — comentou a família, alegremente vendo seu rosto moreno, pálido,
e a expressão sorumbática e encoberta de seus olhos.
O prazo da Rússia — anunciara Hitler — era de seis semanas. Fantasticamente, o mundo acreditou nele! Os alemães arremeteram através da
Ucrânia, uma horda sangrenta. Cidades fumegavam nos trigais! Os rios vomitavam corpos nas praias dilaceradas. As aldeias se
desagregavam e dissolviam sob os trovões e relâmpagos de aço e explosivos. Das grandes superfícies planas da Ucrânia sangrando veio um
longo gemido de agonia e morte.
Contudo, passaram-se as seis semanas, e embora os alemães estivessem às portas de Moscou, Stalingrado e Leningrado, e o sangue russo
se derramasse sobre a terra sedenta, a Rússia não desmoronou, não se rendeu! O mundo observava, espantado e incrédulo. Os russos
retrocediam, morriam. O céu da Rússia se tornou vermelho com o fogo de incontáveis aldeias e cidades. Mas a Rússia não caiu.

Capítulo 59
— Em breve poderemos golpear — disse Henri a Christopher, em agosto de 1941.
— Quando? — perguntou Christopher. — Está esperando guerra?
Estava muito curioso a respeito de Henri. Será que o suíno conhecia o conteúdo do testamento de Armand? Se conhecia, nada disse que
pudesse fornecer a mais leve pista. Nunca se sabia nada dele, seus pensamentos ou seus planos. Mesmo assim, Christopher começou a
acreditar que Henri sabia o que continha o testamento.
Como se adivinhasse os pensamentos de Christopher, um lívido relâmpago passou pelos descoloridos olhos de Henri. Ele sorriu um pouco:
— Se você quer dizer: estou esperando até que o testamento de Armand possa ser aberto?, a resposta é não. Deixe o resto por minha conta.
Christopher inclinou a cabeça ironicamente. Mas não se sentia irônico. Sua vaidade foi novamente ferida, humilhada. Se Henri conhecia o
conteúdo do testamento, por que, então, não se mexia em consideração a Celeste? A menos — e agora Christopher sentia uma pontada
dolorosa — que o testamento proibisse Henri expressamente de casar com Celeste, ou divorciar-se de Annette. Se assim fosse, então o que
seria de Celeste e seu filho? Seria possível que o obtuso e estúpido Armand soubesse do caso, e tivesse providenciado contra ele? Seria
possível que Antoine tivesse contado ao pai? Se isso houvesse acontecido, então tudo estaria perdido...
Tornou a erguer os olhos e viu Henri a observá-lo com frio cinismo. E foi quando o ódio acumulado de anos rebentou em Christopher. Apertou
as mãos. Henri se levantou e caminhou até a janela do seu escritório: não desejava que Christopher visse o seu sorriso agora. “Que se
preocupe!” pensou.
— Em breve poderemos golpear — disse, de costas para Christopher.
Nunca falavam em Celeste nesses dias, embora seu nome estivesse sempre entre eles, ameaçadoramente.
Nessa noite de agosto, quando Land Burgeon Bouchard estava com exatamente um ano de idade, Henri voltou a casa para jantar, e foi
recebido gentil e docemente, como sempre, pela esposa, Annette. Estava tão preocupado por seus próprios pensamentos que não dava para
ver que ela estava ainda mais pálida que habitualmente, e que seus olhos tinham um brilho estranho. Fizeram em silêncio a refeição, silêncio
quebrado apenas por um ocasional comentário de Anette sobre o calor úmido do dia, e suas sugestões de que estava iminente uma
tempestade.
Henri olhou ociosamente pelas janelas francesas, abertas. O oeste era uma opressiva chama carmesim. No alto, amontoavam-se nuvens
tempestuosas em massas purpúreas. Fazia muito calor. Até gafanhotos e grilos estavam silenciosos. As árvores se inclinavam pesadamente,
os topos tingidos de escarlate. No ar brilhantemente claro, embora espectral, do ocaso a grama tinha um verde peculiarmente vívido. Enquanto
Henri observava, finas lanças de fogo pálido trespassaram as nuvens tempestuosas, e foram seguidas por um estrondo distante. De repente as
árvores imóveis se mexeram inquietas, e um hálito frio e sulfuroso passou pela sala calma. A atmosfera estava opressiva com a tempestade se
aproximando.
— Sim — disse Henri — estamos numa pior. Bem, precisamos disso.
Concluída a refeição, e Henri a ponto de levantar-se da mesa, Annette falou. Tinha havido silêncio por algum tempo. Ela falou bem calmamente,
o olhar fixo em Henri, as mãozinhas juntas e apertadas em cima da mesa.
— Henri, gostaria de falar-lhe, se não se importa.
Havia algo em sua doce voz que impediu que se impacientasse. Olhou-a penetrantemente. Ela estava tão imóvel... Até sorria, embora ele
pudesse ver gotinhas de suor em seu lábio superior. Mas seus olhos azuis estavam hesitantes e muito brilhantes. Ele tornou a puxar sua cadeira
para a mesa, e esperou:
— E então? — falou, em sua voz monótona.
O instinto, nele, que sempre despertava a qualquer sinal de perigo, ergueu-se agora. Até sua pele estava desperta, formigando estranhamente.
Porém ele não dava sinais disso. Sentou-se e esperou.
Viu o movimento de sua garganta branca e frágil, enquanto ela engolia com dificuldade. E viu que ela tremia levemente. Ainda o olhou de frente,
e sorriu. Mas o sorriso era dolorido.
— Por favor, não se zangue comigo, querido — disse. (Quão clara e firme a sua voz, mas como estava tensa!) — Mas pensei nisso por muito
tempo.
— Quê? — ele falou, pesadamente.
Viu os pálidos dedinhos dela contraírem-se. Ela ergueu o queixo um pouco mais e o mirou valentemente:
— Primeiro, quero fazer-lhe uma pergunta, Henri. Por favor, seja honesto comigo. Por favor me responda, se sabe. Conhece o testamento de
papai... o que contém?
Ele ficou silencioso. Fitou-a sombriamente. Depois, de repente, apertou as mãos na mesa, empurrou a cadeira e levantou-se. Foi até as janelas
e ficou de pé diante delas, olhando para fora vagamente, para as nuvens tempestuosas contra o ocaso carmesim. Ouviu um movimento macio a
seu lado: Annette lá estava, encarando-o. E pôs a mão em seu braço. Porém ele não quis olhá-la, embora seus músculos se contraíssem a seu
toque.
— Henri — ela murmurou, com insistência — devo saber!
— Por quê? — Ele resmungou, sem olhá-la. Porém ela lhe via o perfil sombrio, perturbado.
Ela suspirou fundo:
— Por favor, acredite-me: eu tenho de saber. É importantíssimo para mim. Henri, se você sabe, deve dizer-me. — E sua voz falhou: — Henri,
tenho de saber! Não me pergunte por quê. Só lhe posso dizer isto: não posso suportar não saber.
Por um momento ele não falou. Agora o seu rude perfil estava obstinado e rígido. Disse:
— Sim, eu sei.
Ela deixou cair a mão. Ficou de pé ao lado dele, esperando, nos olhos toda a sua súplica apaixonada. Lentamente, ele a olhou, e depois
subitamente tornou a afastar-se.
— Por favor, diga-me — ela instou.
Ele ficou silencioso uma vez mais. Porém ele a sentia esperando, gentilmente obstinada, fortemente determinada. Então ele falou:
— Você conhece a cláusula: guerra, ou dentro de um ano, ou quando eu der a ordem. Condições expressas de seu pai.
Ela disse, sem fôlego, implorando:
— Diga-me, Henri.
Ele se virou de novo para ela, já abrindo a boca para palavras impacientes. E então lhe viu o rosto. Sentiu uma rara compaixão por ela. Ficou
quase gentil:
— Apesar de seu pai não querer isso, Annette?
Porém ela disse, olhando-o nos olhos:
— Diga-me, Henri.
Ele hesitou. Depois lhe contou. Ele a observava atentamente enquanto o fazia. Ela não se movia. Mas seus olhos se tornaram vívidos, de um
azul brilhante. Quando ele terminou, ela sorriu um pouco, e suspirou, repetidas vezes.
— Caro papai... — murmurou. Afastou-se um ou dois passos. Depois seu rosto entristeceu: — Mas pobre Antoine! Será terrível para ele! Só
posso esperar que papai soubesse bem o que fazia.
De repente ela parecia exausta, quebrada. Afastou-se, às cegas, tateando em busca da cadeira, onde se deixou cair. A cabeça lhe descaiu
para o peito. As mãos lhe penderam frouxamente. A claridade da tempestade, caindo em feixes de luz através das janelas, aureolava seus
cabelos claros. Henri não lhe podia ver o rosto. Ele se voltara para vê-la afastar-se, mas não se movera de sua posição.
— Acredite-me: seu pai sabia o que fazia — disse ele, com gentileza fora do comum.
Porém ela não falou.
— Naturalmente, você não contará isto a ninguém? — acrescentou ele.
Contudo, ela não parecia ter ouvido. Ele franziu a testa. Começou a mover-se em direção a ela quando a moça falou, e o som da voz dela,
estranhamente forte e sem emoção, o fez parar abruptamente. Era ainda mais estranho ouvir essa voz porquanto ela não se mexera na cadeira
nem erguera a cabeça. Era como se a voz viesse de perto dela, e não de seus lábios. O coração de Henri começou a palpitar pesadamente,
ante as palavras dela:
— Estou satisfeita porque me disse. Isso resolve muitas coisas. Sabe, Henri, quero o divórcio. Não podia pedir-lhe até que soubesse.
E agora só havia silêncio na sala, quebrado pelo ronco do trovão e o movimento das árvores agitadas. Henri estava de pé junto à janela, as
mãos apertando os pulsos. Seu rosto permanecia na sombra.
— Por quê? — perguntou afinal.
A silhueta da moça era agora apenas uma mancha, na luz espectral, os cabelos um brilho difuso. Sua cabeça descaíra um pouco mais, porém
isso era tudo.
— Não podia pedir-lhe antes — disse ela, e sua voz era um sussurro sibilante — mas agora posso. Esperei o divórcio por muito tempo. Eu...
tenho querido ficar só. Nunca fui feliz.
E então sentiu o marido a seu lado: pusera a mão no ombro dela. Ao seu toque, ela suspirou, suspirou muito, e tremeu um pouco. Ele sentiu o
seu longo tremor.
— Não — ele falou, gentilmente — você nunca foi feliz. Sei disso. Eu nunca a fiz feliz, nunca tentei. Sinto muito, querida. Sinto de verdade. Mas...
foi o que aconteceu. Não creio que jamais pudesse fazer a felicidade de alguém.
Ela não ergueu a cabeça. Mas sua mão segurou os dedos dele, que ainda estavam em seu ombro. Ele lhe sentiu o toque trêmulo e gelado, e
algo se contraiu dolorosamente em seu peito.
— Não foi culpa sua — ela continuou, fracamente. — Não devíamos ter-nos casado, para começo de conversa. Na verdade, a culpa foi minha.
Eu... não pude ser coisa alguma para você, meu querido. Não pude dar-lhe filhos. Quando... soube... foi quando devia tê-lo deixado ir-se. Mas
fui egoísta...
Ele disse, numa estranha voz, alta, estranha mesma para seus próprios ouvidos:
— Você nunca foi egoísta, Annette! Não estava na sua natureza o ser egoísta. — Acrescentou, e sua voz vacilou: — Eu não combinava com
você, não era digno de você. Ninguém era. Sempre foi tudo que há de bom, gentil, doce e leal. Nunca a esquecerei, Annette! Nunca!
Ela respirou fundo. Então, muito gentilmente, afastou-lhe a mão. Pôs-se de pé e o encarou, frágil e pequena, mas corajosa. Até sorria, embora
sua cor, na escuridão que aumentava, fosse tão espectral que era o rosto de um fantasma que o encarava.
— Mas quero que esqueça, querido! — disse ela, suavemente. — Olhe, vou para longe. Talvez nunca mais volte. Não quero que se lembre de
mim, absolutamente. Exceto, talvez, se algum dia gostou de mim, só um pouquinho.
Ele respondeu, voz trêmula:
— Gostei muito, muito, de você, Annette. Creio que só eu realmente sabia quem você é.
Ela ergueu as mãos involuntariamente e ele as pegou depressa, segurando-as com força. Estavam tão frias, tão sem vida... Disse, sem pensar:
— Annette, não quer mudar de opinião?
Sentiu que os dedinhos dela endureciam. Ela recuou a cabeça e seus claros olhos azuis se fixaram nele, firmemente:
— Não, Henri. Pensei nisto por muito tempo. Realmente, quero o divórcio. Isso me faria mais... mais satisfeita. Mas estou tão contente porque
me pediu! Nem lhe sei dizer o quão contente! Não sei, mesmo, dizer como isso me faz feliz!
Ele deixou cair as mãos dela, que continuou, com firmeza:
— Eu queria saber, antes de qualquer outra pessoa, a respeito do testamento de papai. Era melhor, não era?
E então, com profunda gratidão e humildade, ele compreendeu. Ficou tão atordoado que sua visão rodopiou diante dele com faíscas e clarões
de luz.
— Era melhor para você... — ela murmurou.
Ele a tomou nos braços e lhe apertou a cabecinha em seu ombro. Não podia falar. Podia apenas segurá-la, os dedos metidos em seus macios
cabelos. Ela podia sentir o palpitar do coração dele, sua respiração profunda. Ela abraçou-se a ele, não fortemente, mas com doçura. Quando
ele lhe voltou o rosto para cima, e lhe beijou os lábios, ela ficou sem fôlego, seus olhos se fecharam.

Capítulo 60
Uma tarde Annette telefonou ao irmão, Antoine, e lhe pediu que viesse a Robin’s Nest, sozinho. Henri estava em Washington outra vez, ela
disse, e havia algo que desejava comunicar a Antoine.
Seu tom de voz e suas palavras, embora calmos, até indiferentes, causaram uma íntima excitação ao sutil Antoine. Foi imediatamente. A irmã,
de luto, pareceu-lhe mais frágil que nunca, embora perfeitamente tranquila. Notou que cia o olhava atenta e tristemente, e que havia algo de
pessoal em seu olhar. Beijou-a com verdadeiro carinho e sentou perto dela, segurando-lhe a mão:
— Bem, minha bichinha, o que a aborrece agora — perguntou.
Adiantou a mão para arranjar um dos macios cachinhos atrás da orelha. Seu toque, sua voz, seus modos afetuosos, quase lhe romperam o
coração. Pela primeira vez sentiu uma amargura absurda contra o pai. Mordeu o lábio para evitar um tremor traiçoeiro. Talvez papai e Henri
estivessem errados... Olhou o estreito rosto moreno e os cintilantes olhos negros do irmão, e novamente a amargura lhe trouxe à boca um gosto
de fel.
Retirou sua mão da dele, mas sua expressão era toda amor. Hesitou, afastou dele o olhar. Murmurou:
— Quero dizer-lhe, antes de mais nada... Você é meu irmão, e assim pensei melhor. Sabe, está tudo tão confuso... mas sei que compreenderá,
Tony querido.
— Bem, Nita — disse ele, vendo-a hesitar. — De que se trata? É realmente tão importante? — Porém ele pressentia ser importante, e se
dirigiu para ela, alerta.
Ela respirou fundo, depois disse, firmemente:
— Dentro de uma ou duas semanas estarei indo para Reno, querido. Vou divorciar-me de Henri.
Ele a fitou inexpressivamente. Havia-se afastado dela um pouco. Suas mãos se agarravam aos braços da poltrona. Começou a sorrir: havia um
brilho a dançar-lhe nos olhos:
— É mesmo? E por quê?
Quando ela não respondeu, ele disse:
— Agora? Lembre-se: eu a avisei para fazer isso há mais de um ano. Por que agora? Por que a súbita mudança de opinião?
Ela o olhou resolutamente:
— Pensei melhor — respondeu, com calma.
Ele se levantou, incapaz de permanecer sentado. Caminhou rapidamente pela sala, de mãos nos bolsos. Sua expressão era inescrutável,
porém exaltada. Depois virou-se para ela:
— Reno? Por que Reno? Por que não aqui, na Pensilvânia? E sob que pretexto?
Antes que ela pudesse responder, ele continuou, rapidamente:
— Adultério?
— Adultério? — ela murmurou, franzindo as sobrancelhas e olhando o irmão com uma mistura de censura e afronta. — Isso é um absurdo, Tony!
Sabe disso. Pedirei o divórcio sob alegação de incompatibilidade, naturalmente.
Então a expressão dele se transformou. Ficou de pé ao lado dela, examinando-a quase selvagemente. Seus olhos se estreitaram, tornaram-se
malignos. Disse, maciamente:
— Então, ele por fim a está jogando fora, hein? Para que possa desposar aquela cadela?
Ela se pôs de pé rápida, tremendo violentamente, com chispas nos olhos:
— Tony! Mas que coisa horrível está dizendo!
Porém, arrastado por seus próprios pensamentos tumultuosos, ele exclamou:
— Ele não podia fazer isso enquanto nosso pai estava vivo, não! Como pode agora? Que sabe ele do testamento de nosso pai? Deus!
Gostaria de saber disso!
Recomeçou a caminhar de um lado para outro, com crescente rapidez. Passava e repassava pela irmã, parada em desesperado silêncio, a
observá-lo. Ele parou diante dela, olhando-a fixamente. Porém ela sabia que ele não a via.
— Ele deve saber a respeito do testamento, ou não ousaria pedir o divórcio! Deve saber que está garantido! Meu Deus! Por que está ele
garantido? Que haverá nesse maldito testamento?
garantido? Que haverá nesse maldito testamento?
Ela se adiantou e pegou-o pelo braço. Sacudiu-o um pouco:
— Tony, você não compreende! Ele não me pediu o divórcio. Eu é que pedi. — Deteve-se. Sua voz tremeu, e ela engoliu em seco. — Por favor,
acredite em mim. Estou-lhe dizendo a verdade. Nunca lhe menti, não é, Tony? Quando lhe pedi o divórcio, ele me pediu para mudar de ideia.
Antoine parou, rigidamente, no exato momento em que ia arrancar-se dela. Agora estava sorrindo de novo, maldosamente:
— Então — falou, suave — ele lhe pediu que mudasse de ideia, não? Imagino por quê! Realmente fico imaginando por que...
Jogou a cabeça para trás e riu, silenciosamente. Depois empurrou a irmã de volta à sua cadeira e sentou-se a seu lado:
— Conte-me mais alguma coisa.
Ela não pôde aguentar ver a satisfação maligna dele, seu sorriso sombrio e a risada: baixou as pálpebras convulsivamente. Quando ele tentou
tomar-lhe a mão de novo, ela a retirou com um estremecimento. “Papai tinha razão” — pensou. Porém o amor pelo irmão era como uma dor
terrível em seu coração.
Falava tão baixo que ele mal podia ouvi-la: inclinou a cabeça para ela.
— Está enganado, Tony. Ele me pediu que mudasse de ideia porque estava com pena de mim. — Agora ele via as lágrimas prateadas a
correr-lhe sob as pestanas. — Ele estava triste por minha causa. Mas também estava satisfeito, satisfeito por livrar-se de mim. Não posso
censurá-lo. Eu nunca devia ter casado com ele. Ele nunca me quis.
Desapareceu a exaltação dele. Olhou zangado aquele rosto tão branco. Depois tomou-lhe de novo a mão, e a esfregou entre as suas: estava
gelada. Agora ele era todo aflição e presságio.
— Está me dizendo a verdade, Nita? — perguntou, insistente. — Pediu o divórcio? Você se importaria de me dizer por quê?
Ela não abriu os olhos. Respondeu, debilmente:
— Porque posso ver, por fim, como foi errado casar-me com ele. Faz quase dezesseis anos. Todo esse tempo... eu o tenho segurado. Isso foi
iníquo. Sim, agora percebo isso. Só espero que não seja demasiado tarde para ele.
Suas palavras, baixas e vacilantes, o golpearam como pedradas. Ele já não estava exultante. Henri não teria concordado com o divórcio se não
fosse seguro, se não tivesse alguma garantia de estar a salvo. Então, não havia nada no testamento que destruísse Henri se se divorciasse de
Annette. Antoine umedeceu os lábios ressecados. Mas não pôde deixar de insistir em perguntar:
— Mas não compreendo! Ele concordou com o divórcio?
— Sim — ela sussurrou. — Está tudo combinado. Os advogados dele estão redigindo os documentos de pensão e doações. Mas vou recusar...
tudo. Tenho mais do que preciso. Não... não sei o que está no testamento de papai, mas sei que não me esqueceria. Além disso, tenho parte
do dinheiro da mamãe também.
Ele viu que ela estava sofrendo terrivelmente, e sem forças, apesar de sua coragem. Olhou-a atento, e pela primeira vez pensou no sofrimento
da irmã. Baixou uma sombra escura em suas feições.
— Annette — disse, asperamente — você é uma tola. Você o está liberando para que ele possa desposar aquela... aquela vagabunda. Não
sabe disso?
Ela se voltou para ele rapidamente, e ele lhe viu nos olhos um brilhante fogo azul. Porém seu tom de voz era calmo:
— Não sei do que está falando, Tony. Não sei se Henri pretende tornar a casar. Espero que sim. Espero que ainda haja tempo suficiente para...
para endireitar as coisas. Para ele. Não me importa com quem ele case, contanto que seja feliz. Isso é tudo que importa.
Ele a fitou, triste:
— Annette, sabe que pode arruiná-lo mesmo agora, não sabe? Não acha que deve alguma coisa a si mesma? Não acha que devia haver
justiça para você? Você sabe que todos esses anos ele lhe tem sido infiel, que as coisas que tem feito com outras mulheres têm sido um
escândalo. Não tem um pingo de orgulho? Não há nada que eu possa dizer para fazê-la mudar de ideia a desistir desse divórcio?
Ele pensava: “Se casar com Celeste, ele terá Christopher e outros.”
Ela disse, claramente:
— Não creio que Henri tenha sido infiel. Se isso aconteceu, então ainda foi minha a culpa. Que tinha eu para dar-lhe? Eu nada era para ele.
Poderia ter-se divorciado de mim muitas vezes, mas não o fez. Tem sido... bom... para mim.
— Bom! — Ele estourou numa risada velhaca. — Só por causa de nosso pai! Nem mesmo disso você sabe?
Porém ela respondeu com grave firmeza:
— Sim.
Ele ia falar, mas ficou silencioso. Estudou-a num exame penetrante: ela não se desviou dele. Depois, dando de ombros levemente, ele foi até
as janelas e ali ficou, de costas para ela. Brincou com uma borla das cortinas. Ela viu a mão morena e fina a mover-se impaciente e com
pequenos puxões distraídos. De repente ela ficou vagamente surpresa. Percebeu haver algo de muito estranho com o irmão. Olhou séria para
ele, para sua magra e elegante figura, e a silhueta de sua cabeça pequena. Que é que estava tão mudado em Antoine? Não saberia dizer. Mas
involuntariamente deu um passo em direção a ele e falou, suave:
— Tony?
Por alguns momentos ele não se virou; fê-lo depois, relutante. Porém ela não lhe podia ver o rosto, que ele havia desviado a um lado. Porém ela
teve a impressão de introspecção e melancolia.
Ela fez um pequeno e esvoaçante gesto com as mãos:
— Tony? Algo errado? Você não parece o mesmo, querido.
Ele ergueu a cabeça e a olhou.
“Ele está cansado, exausto!” — ela pensou, todo o seu amor por ele invadindo seu coração. Existe algo de errado! Falou, impulsivamente:
— Tony, é algo em que eu possa ajudar?
— Não — ele respondeu, com indiferença. Depois voltou-se e ficou de pé diante dela, e de novo Annette teve a impressão de estranheza, de
fatigada imobilidade. Porém quando ele tornou a falar, foi com gentileza: — Nita, o que vai fazer?
Ela apertou as mãos, palma contra palma, e embora o ar da tarde estivesse quente, ele percebeu que ela tremia um pouco. Mas sorria:
— Você quer dizer: depois do divórcio? Não sei, querido. Que fazer? Não posso ficar aqui. Só sei isso.
— Então?... — ele disse, experimentalmente, quando ela hesitou.
Ela caminhou pelo quarto, e agora era ela que lhe voltava as costas. Ficou de pé, segurando-se a uma cadeira. Começou a falar, como para si
mesma:
— Que poderei fazer? Toda a minha vida tem sido vivida inutilmente, devorando os proventos que poderiam ter sido usados com mais
benefício por outros. Comi alimentos que jamais ganhei, e usei roupas compradas com dinheiro de outros. Está começando exatamente a
ocorrer-me que sou uma parasita, que não tenho razão para viver. Se eu tivesse tido filhos, poderia ter havido alguma desculpa para a minha
existência.
A voz da moça era macia e firme. Mas, de alguma forma, Antoine sentiu uma aguda contração no peito.
— Sim, havia uma razão — ele disse — nosso pai a amava. Você lhe proporcionou toda a felicidade que ele jamais teve. Que teria ele feito
sem você, Nita? E penso que eu também tenho amado você.
Porém ela continuou, como se ele não tivesse falado:
— Uma vida inútil, idiota. Pior que tudo: ainda não acabou. Deve haver algo que eu possa fazer — ela continuou, com doce veemência, e ele viu
que ela havia apertado as brancas mãozinhas, e com elas socava silenciosamente as costas da cadeira. — Uma vez cheguei a pensar que
poderia fazer alguma coisa com minha música. Mas parecia não haver razão. Talvez eu não tivesse bastante ambição, ou talento bastante. Se
fôssemos pobres, talvez algo pudesse ter sido feito. Nunca tive suficiente energia física, e ninguém jamais me disse que isso não importava. Fui
mimada e afagada toda a minha vida, até chegar a crer que era realmente algo de precioso!
E então ela riu, suave e tristemente. Curvou a cabeça mais e mais, como se dominada por sua lamentável jovialidade.
— Ninguém é superior ao seu semelhante — ela continuou, enquanto ele a observava, cheio de dor. — Ninguém merece nada que não tenha
ganho. Jamais ganhei alguma coisa. Jamais dei alguma coisa. Estou começando a ver... Ora, eu sou uma fracassada. E a culpa é inteiramente
minha.
— Não, querida, não é sua culpa. — Ele se dirigiu até ela, mas não a tocou. — Você teve a saúde delicada toda a sua vida. Depois casou
com.... ele... que nada fez para torná-la feliz.
— Feliz? — voltou-se para ele com tal rapidez que o deixou tonto. — Por que deveria alguém fazer outro “feliz”? Como se a felicidade fosse
algo a ser dado, como uma joia ou um presente de Natal! Ninguém pode dar felicidade a outro. É algo que se adquire por si só, com sua
própria energia e seu próprio desejo. Como ousamos dizer a alguém: “Por favor, por favor! Faça-me feliz! Sou fraca e estúpida, não tenho
recursos em mim mesma, nem valor, bondade ou abnegação, que possam fazer-me feliz!” Que presunção! Quão revoltante! Quão egoísta!
Ela estava inflamada de paixão e raiva, e tremia violentamente. Ele a olhou, espantado.
Ela continuou, quase incoerente:
— Censuramos outros por nossa infelicidade, desespero e impotência. Se somos desgraçados, jamais confessamos a nós mesmos que
fomos fracos, cruéis ou desprezíveis. Se fracassamos, nunca é por nossa culpa, não! Talvez não possamos aguentar contemplar nossa própria
mediocridade e esterilidade, ou indagar a nós mesmos se jamais, sem qualquer tempo, tivemos algo para dar. É muito mais fácil, e muito,
muito mais confortável, lançar a culpa nos pais, maridos, esposas, circunstâncias, ou falta de oportunidades. Então nosso ego não ficará ferido.
Podemos pensar em nós como mártires insultados, a quem ninguém jamais amou, ou socorreu, mas apenas negligenciou.
Ele disse, raivosamente:
— Você acha que mereceu o tratamento que recebeu dele?
— Sim! — ela gritou. — Eu não tinha o direito de casar com ele! Sabia que se casava comigo porque papai o subornara, e que, de certa forma,
ele também era fraco, pondo o poder acima da felicidade. Eu sabia estar favorecendo a fraqueza dele. Sabia que estava sendo comprado por
papai, para mim. Ainda assim, fui imoral o bastante para aceitar o ajuste. Mas não tive a coragem, ou o orgulho, de aceitar todas as condições
do ajuste, e contentar-me em, por fim, ter casado com ele. Não! Quis que ele me amasse, também! Tinha de começar a esperar que ele podia
achar-me suportável, podia até chegar a querer-me por mim mesma! — Novamente explodiu numa risada amarga: — Não fui iludida por Henri:
eu mesma me iludi.
Afastou-se dele, distraidamente:
— Nunca me fale do que ele “me deve”, ou de como “me traiu”! Ele nada me deve. Nunca me traiu, porque nunca me quis, nunca me prometeu
coisa alguma. Nunca fingiu. Pelo menos, foi honesto.
Ficou de pé junto da janela já escura. Pôs as mãos no rosto e assim ficou, em silêncio, sem chorar.
Lentamente, Antoine sentou-se. Descansou o cotovelo no braço de poltrona e com a mão cobriu a boca. Contemplou a irmã. As palavras se
repetiam e repetiam em sua mente, como ecos doentios. Sentiu uma tremenda esterilidade e desintegração, que nada tinham a ver com ela, e
nada absolutamente a ver com piedade. De repente, sentia-se enormemente cansado, e havia uma chocante secura em sua boca.
Ele disse, mecanicamente:
— Ainda penso que você não deveria divorciar-se. Acho que a parte dele nisso deveria ser tornada pública.
Ela se voltou para ele, inflamada, apaixonada:
— Tornar pública? Que quer dizer, Tony?
Quando ele não respondeu, ela veio até ele rapidamente e ficou de pé diante dele, as mãozinhas apertadas, os olhos azuis altivos:
— Tony, que quer dizer? Tony, pensei que se importasse um pouco comigo! Mas você faria isso comigo? Com sua irmã?
— Não fale como uma idiota, Annette. Que tem você a ver com isso?
Porém ela falou, em tom ainda mais selvagem:
— Eu quero paz! Quero esquecer tudo! Mas, se você algum dia tentar feri-lo, tentar molestá-lo, Tony, terei de defendê-lo, de negar tudo que
você diga! Pensa que não o farei? Farei sim, Tony. Esteja eu onde estiver, voltarei para ajudá-lo. Não acha que devo isso a ele?
Agora sua raiva profunda e volátil subiu à superfície:
— “Deve a ele”? Que é que você lhe deve? Você conhece o testamento de nosso pai? Nunca imaginou o quanto ele deve ter influenciado nosso
pai? Nunca suspeitou que ele pode estar nos roubando?
— Roubando-nos? — Ela parou e sorriu palidamente. — Estamos sem recursos? Há apenas uma semana Henri me disse que, só pela minha
parte, sou uma das mulheres mais ricas da América. E sei que mamãe lhe deixou dois terços de seus bens, para chegar-lhe às mãos após a
morte de papai. Que mais podemos querer, Tony? Que é que você quer mais? Você é casado com uma mulher muito rica, Tony. Quer mais?
Ele ficou silencioso. Porém muito lentamente, as negras e faiscantes brasas da raiva morreram em seus olhos. Disse, pesadamente:
— Inútil explicar-lhe, Annette. Nunca entenderia.
Levantou-se. Olharam-se mudos.
Então, com um gemido surdo, ela se encaminhou para ele, e descansou a cabeça em seu peito.
— Tony — sussurrou — seja bom para mim... Ame-me um pouco... Sempre o amei tanto... Não esqueça que sou sua irmã. Ajude-me, Tony,
você é tudo que eu tenho!
Instintivamente ele a rodeou com os braços, e a aconchegou ao peito, sua compaixão parecendo um punhal quente em seu coração.

Capítulo 61
Jay Regan disse a Henri Bouchard num dos primeiros dias de setembro:
— Não mais de três meses, eu diria. E não diretamente de Hitler. Estou considerando o Japão.
Henri abanou a cabeça, tristemente:
— Sim. Mas quem, além de nós, sabe disso, ou enxergará isso?
O velho sorriu delicadamente:
— Meu caro Henri, você quer dizer: quem acreditaria em nós?
Henri riu brevemente:
— Bem, apresente as coisas desse modo, se quer: “Quem acreditaria em nós?”
— Francamente, não os censuro. Se eu fosse a Washington, à Casa Branca, e dissesse: “Sr. Presidente, pare de olhar para o Leste. O perigo
está lá, sim, esperando. Mas o primeiro golpe virá do Oeste”. Qual seria o resultado? O Sr. Roosevelt me olharia longa e fixamente, daquela
maneira desconcertante que ele tem, e depois sorriria um pouco. Seria tudo. Dobraria sua atenção sobre o Leste, mais firmemente convencido
que nunca de que o perigo reside ali. Não, meu caro Henri, um ladrão regenerado está sempre sob a suspeita de não estar realmente
regenerado, ou de que a qualquer tempo poderá ter um motivo oculto.
— Temos — observou Henri, rigidamente. — Mas também acontece que nosso próprio motivo oculto está coincidentemente ligado à
segurança e à sobrevivência da América. Não poderia convencer disso o Presidente?
Regan sacudiu a cabeça, e agora seu sorriso era cáustico:
— Quando me viu, acidentalmente, em Washington há cerca de um ano, disse: “Bem, Jay, como vão os seus golpes?” Eu diria que sua
expressão não era exatamente amável, embora a observação fosse bastante ambígua. O Sr. Roosevelt é homem muito sutil, Henri. Ele também
me perguntou por você.
Riram juntos por um momento. Depois Regan disse:
— Além de nós, os únicos que sabem são os nossos inimigos. E pode estar certo de que não estão falando demais. Muito pouco podemos
fazer, a não ser preparar nossos planos para o dia inevitável em que a América será apanhada desprevenida. Sabe, Henri, nunca fui de
consultar militares. Agora eu gostaria de conhecer alguns almirantes: Poderia persuadi-los a vigiar as Filipinas e o Havaí.
Henri ficou pensando na questão, enquanto Regan o observava atentamente. Depois o velho falou:
— Meu rapaz, você trabalhou bem. Tem os explosivos prontos, e o arsenal bem provido. Quando pretende mexer-se?
— Não até que a guerra seja declarada. Ou haja passado um ano da morte de Armand. Não sei por que ele acrescentou isto. A menos — e seu
sorriso era triste — que não tivesse confiança em mim. Embora tenha dito que eu podia dar a ordem.
Ele traiu um pensamento inquieto pelo tremor dos lábios grossos e pesados. “Assim — pensou Regan — você está cogitando que reflexões
tardias, astuciosas e humilhantes, estão também incluídas no testamento, e a respeito das quais você não foi informado... Defuntos
frequentemente tornam as vinganças mais cruéis e traiçoeiras... que foram impotentes para tomar em vida.”
— Não sei por que ele não confiaria em você, em tudo, como você parece implicar — disse Regan.
Esperou, mas Henri não fez comentários. Sua mão forte e quadrada tamborilava com apenas uma leve inquietação na secretária do outro.
Então Regan falou:
— Ouvi um boato, Henri. Que a Sra. Henri vai divorciar-se de você.
Henri ergueu o olhar, alerta, franzindo a testa:
— Onde ouviu isto?
Regan deu de ombros:
— Francamente, não me lembro. Era um boato superficial. Alguma verdade nisso?
Henri hesitou. Depois replicou, os olhos descoloridos totalmente inexpressivos:
— Sim. Vejo que já não é segredo. Não foi dito a ninguém: ficou inteiramente entre mim e minha esposa. E estou certo de que ela ainda não
falou disso a ninguém. — Acrescentou: — Se já é sabido, qual a reação geral?
Regan tornou a dar de ombros:
— Uma pequena incerteza, entre os grandes acionistas. Sabe o quão temperamental é a Bolsa. Naturalmente, se o testamento de Armand
fosse conhecido, poderia influenciar muito; particularmente, posso acrescentar, se o conteúdo fosse favorável a você.
Quando Henri não falou, e apenas fitou de modo penetrante o velho amigo, Regan continuou:
— Se, por exemplo, a presidência de Bouchard & Sons passasse para Antoine, com os cinquenta e um por cento de ações de Armand, e sua
esposa recebesse vários grandes blocos de ações das subsidiárias, somando seu peso ao do irmão, isso teria, pelo menos, um efeito
perturbador na Bolsa, e particularmente em nossos amigos, que conhecem as... simpatias de Antoine.
Henri não falou, embora seus olhos faiscassem. Disse Regan:
— Tem certeza de que o que me disse a respeito do testamento está correto?
— Sim — respondeu Henri, com impaciência que traía sua inquietação. — Eu estava lá, quando ele foi redigido. Sei de tudo a respeito dos
fundos de fideicomisso. Conheço as testemunhas. Os advogados são meus amigos. Garantiram-me que, da redação original, nada foi
mudado. Porém — disse, após um momento de sombria reflexão — não me disseram se algo foi acrescentado...
— Bom. Em geral, tudo está como você disse. Passarei isto adiante, com cautela. Qualquer coisa que possa ter sido acrescentada será,
naturalmente, sem importância?
— Não sei — replicou Henri, com aborrecimento. — Poderia apenas ser de importância pessoal.
— Mas, por Deus!, homem, por que não manda que o abram então? E vê?
Henri mordeu o lábio. Replicou:
— Não sei. Penso que, por nossa própria segurança, abri-lo agora seria prematuro. Estou esperando pela guerra. Armand era de opinião que,
se passasse um ano após sua morte, e não estivéssemos metidos na confusão, então haveria probabilidades de que nunca o estaríamos. Daí
aquela outra condição. Assim, estou dividido entre esperar para ver o que o infernal testamento teve acrescentado, se é que teve alguma coisa,
e a necessidade de esperar.
Regan esfregou o queixo:
— Suponha que haja algum codicilo a respeito de divórcio, liem? Como ficaria então, se sua esposa já se tivesse divorciado de você?
Henri voltou-se para ele diretamente:
— Convenci-a a esperar, até que fosse aberto o testamento. Persuadi-a de que devia isso à memória do pai. — E ele sorriu, um sorriso
odioso.
Após um momento Regan falou, vagaroso:
— Pode haver alguma disposição a respeito de que você não torne a casar, na hipótese de um divórcio ou da morte de sua esposa.
— Então — disse Henri, calmo — não haverá divórcio, nem haverá novo casamento.
Regan ficou a fitá-lo por muito tempo.
— Sabe — disse, finalmente — você é realmente maravilhoso! Realmente maravilhoso, Henri.
Pensou na filha de Jules Bouchard, esperando em solidão, obscuridade e vergonha em Placid Heights, e sorriu intimamente. A amada filha de
Jules, que deve esperar a vontade de um homem morto, que deve esperar a palavra de um homem vivo que a amava muito menos do que ao
poder.
“Espero — pensou Regan — que Jules esteja apreciando isto...” Ele odiara Jules demais.

Capítulo 62
Em agosto é que Agnes Bouchard informara a Celeste de que Annette pretendia divorciar-se de Henri. Celeste não fizera observações.
Apenas olhara Agnes, em silêncio; depois disse, após alguns momentos:
— Mal posso acreditar nisso... Por quê? Não parece haver razão...
Mas quando Agnes ia cinicamente entrar em pormenores, Celeste mudou de assunto. Perguntou a Agnes se gostaria de ver o pequeno Land,
que já dava alguns passos por si mesmo. Agnes a acompanhou ao berçário onde o bebê, forte e sério, estava no berço, e chamando a mãe
impaciente. Fitou Agnes com aqueles olhos brilhantes, e sorriu um pouco. Agnes não se importava particularmente com crianças; no entanto,
gostou de Land como uma pessoa, não como uma criança. Dizia que seus próprios netos não passavam de uns “bolhas”, “protoplasma”. Mas
essa criança, com sua gravidade, a determinada inclinação do queixo, e o olhar firme, a enchia de respeito. Disse:
— Alô! — como se falasse a um seu igual, e ele sorriu logo em resposta.
Celeste o olhou terna. Ergueu-o nos braços e o beijou com súbita paixão. Enterrou o rosto em seu pescoço quentinho, de modo que Agnes não
pudesse ver as lágrimas que não pôde evitar. Porém Agnes, que era astuta e sutil, estava perfeitamente cônscia delas.
Celeste sofrera na vida; mas nada fora muito pior que o longo período morto de espera que agora se seguiria para ela. Não permitia a si
mesma reconhecer por que esperava, ou por que vigiava todos os caminhos que levavam a Placid Heights. Quando seu coração pulava ao som
de um carro galgando os caminhos de cascalho, quando uma porta se abria e ela ouvia uma voz masculina — tentava controlar-se com rigor
desesperado. Quando os parentes a visitavam, tentava ver através do véu de amizade que os mascarava. Ninguém falava de um divórcio
pendente. Ela não ousava perguntar. Apenas podia esperar e observar. Se fosse verdade, pensou, ele teria vindo. Teria sido o primeiro a
comunicar-lhe. E então, com súbita frieza, pensava: “Se é verdade, por que ele não vem? Será que nunca mais virá?”
Não vira Annette desde que Agnes lhe falara do boato. Annette lhe telefonava com frequência, mas Celeste, por mais que tentasse, nada podia
adivinhar por sua voz. Como de costume, Annette era sempre adorável e serena, perguntando pelo bebê, repetindo seus infindáveis convites,
que Celeste nunca aceitava, e prometendo visitá-la em breve. Mas, por alguma razão, quando Celeste depositava o fone, descobria que sua
mão estava fria, úmida e trêmula.
Dentro de muito pouco tempo, suas novas cores, sua nova vitalidade, sua nova silhueta roliça, começaram a desaparecer. Aprofundava-se em
seus olhos uma expressão tensa e confusa; os lábios empalideciam. Gostava muito de dirigir pelo campo nesse começo de outono, em
passeios com o pequeno Land. Agora, mandava-o com uma das babás e ficava sentada sob as árvores perto da casa, de modo a poder vigiar
as estradas que subiam a colina. Quando via a poeira de um carro que se aproximava, seu coração inchava ao ponto de sufocação. Porém
quando podia identificá-lo, ficava de boca seca, e ardendo com o ácido amargo do desapontamento.
Lentamente, à medida que o tempo passava, um pesado e abrasador núcleo de sofrimento se estabeleceu em seu peito, núcleo também da
raiva mais profunda e selvagem, e de vergonha. Tentou raciocinar consigo mesma que o boato provavelmente era falso, que não havia nenhum
divórcio à vista — pelo menos não até que fosse aberto o testamento de Armand. Mas Agnes, ela sabia, não era dada a esse tipo de
comentários: nunca repetia nada que fosse inteiramente sem base. Agora Celeste censurava amarga sua “maldita” reserva. Por que não
permitira que Agnes entrasse em maiores detalhes sobre o assunto? Por que se levantara tão precipitadamente e a fizera subir logo as
escadas até o berçário? Lembrava o súbito rugido e a tontura de seus sentidos após ter ouvido o boato. Sentira o aperto de todas as suas
veias, o tremor de seu corpo. O fato de levantar-se fora, na verdade, uma fuga. Mas por quê? Odiava-se pelo instinto que a fizera fugir da sala,
com Agnes a segui-la de perto.
“Sempre fui covarde, realmente! — ela pensou, com ódio e desdém por si mesma. — Sim, Agnes tinha razão, naquele dia. Disse que eu era
covarde. Sou mesmo. Sempre fui. Se eu tivesse tido alguma coragem, a qualquer tempo, muito do que aconteceu jamais teria acontecido, e
assim muito sofrimento teria sido poupado a mim e a outros...”
Novamente, como um vivido pesadelo, lembrou aquele dia, há tanto tempo, quando vira Henri deixá-la pela última vez, antes de seu casamento
com Peter. Podia ver-se, novamente, à sua janela, e o modo por que a sua sombra o seguia sob os álamos. E então, sentindo seus tristes olhos
de criança a acompanhá-lo, ele se voltara e erguera a mão numa saudação final, a sorrir-lhe. Foi então que o mais bravio da paixão a
dominara. Quisera, com todas as pulsações de seu coração, todos os seus instintos, escancarar a grande janela francesa, correr para ele
através do gramado, gritando-lhe que esperasse, que não a deixasse. Mas permanecera ali enraizada, dura e gelada, como uma pedra,
enquanto seu espírito o seguia, chamando-o desesperadamente.
“Porém — pensou — não tive a coragem de declarar abertamente que cometera um erro. Tive medo do ridículo. Tive medo dos jornais, que
fariam um escândalo do meu rompimento com Henri e noivado com Peter. Tinha medo de coisas tão inconsequentes, tão sem importância!
Assim, deixei que minha vida se arruinasse, e as vidas de outros também, porque tinha medo de um ridículo passageiro, e uma humilhação
passageira...”
Ao lembrar tudo isso ela pensou:
“Talvez ele tenha razão em não voltar. Como confiaria em mim novamente? Sabe que sou covarde, que eu corro quando desejaria ficar, e fico
quando gostaria de fugir. Se ele jamais voltar, eu mereço isso.”
Porém houve outras ocasiões em que sua vergonha lhe parecia demais para suportar, quando tinha os sonhos mais loucos de abordá-lo
publicamente e criticá-lo. Ficava aterrorizada nessas ocasiões, e queria correr para o seu quarto e trancar-se a chave, assustada.
Sentia-se completamente desamparada. O irmão ficava ausente de Windsor cada vez mais. A princípio pensara em perguntar-lhe, em seu
crescente desespero e suspense, mas nas poucas ocasiões em que o via, sua língua paralisava.
Entretanto, chegou uma noite em que ela não pôde aguentar mais sua agonia. Telefonou para Christopher, em Endur. Edith informou que era
esperado às oito da noite. Agora eram nove. Christopher ficou alarmado com a voz dela, tão rouca e baixa, e repetidas vezes perguntou se
estava bem. Ele não havia entrado em casa quando lhe chegou o chamado de Celeste, e Edith, em tom acerbo, expressou sua opinião a
respeito dessa saída.
Christopher achou a irmã à sua espera. Esperava encontrá-la histérica, abatida por alguma calamidade ainda não explicada. A criança, talvez.
Mas ficou zangadíssimo ao vê-la completamente calma, embora um tanto pálida e tensa, e, ao cumprimentá-lo, fez-lhe alguma pergunta ridícula
a respeito da sua recente viagem.
— Olhe aqui, minha querida, que vem a ser isto? Acabei de chegar de Los Angeles, e antes disso estive em constante movimento. Já não sou
muito jovem. Estou cansadíssimo. Você me chama como se sua casa estivesse incendiada, ou seu bebê tivesse sido raptado, ou a casa cheia
de ladrões. Isso não poderia ter esperado até amanhã?
Ela o olhou, sem falar. E então ele viu que ela estava com um olhar vítreo, como se tivesse sofrido uma dor longa e chocante, e que estava
calma só por não ousar estar de outro jeito. Pegou-lhe a mão e a estreitou fortemente:
— Muito bem, querida — falou, calma — que se passa?
Pô-la numa cadeira e sentou-se perto dela. Ela apertou as mãos rigidamente nos braços da poltrona e se voltou para ele:
— Christopher, tenho de saber! Henri está realmente se divorciando de Annette?
— Divorciando? — ele exclamou, espantado. — O que lhe deu esta ideia? Quem lhe contou?
— Agnes — ela disse, com simplicidade. — Há mais de um mês. E Agnes nunca repete boatos sem base.
Olhava implorante para o irmão. Ficou espantada ao ver quão pálido ele ficou, e quão imóvel. Seus olhos claros faiscaram malévolos. Falou,
como para si mesmo:
— E ele nunca me contou...
Voltou-se para a irmã, porém ela sabia que ele não a via. Estava realmente vendo o homem a quem odiava mais do que jamais odiara alguém.
— Por que ele não me disse? — perguntou.
— Não sei! — sussurrou Celeste — Não sei! — E depois, em tom mais forte: — Mas isso pode não ser verdade. O testamento de Armand
ainda não foi aberto. Talvez não haja nada definitivo até...
A expressão de Christopher mudou:
— Sim. Naturalmente. Mas por que ele não me disse? Ou a você? — Ele sentiu sua mortificação como uma doença. — Ele não esteve aqui?
— Não. Nunca vem. Pedi-lhe que não o fizesse. Porém ele poderia ter vindo, apesar disso.
Christopher começou a rir. Levantou-se: c
— Maldito dissimulador. Bem, por fim está demonstrando discrição. — Acrescentou, examinando a irmã: — Você poderia, claro, pedir-lhe que
viesse.
— Não. Nunca! Se ele nunca vier, eu nunca mandarei chamá-lo, Kit.
Sua voz era apaixonada, veemente. Ele se afastou:
— Então, só podemos esperar. Até que o testamento de Armand seja aberto. Embora, francamente, fosse mais decente, e menos sujeito a
falatórios, se ele permitisse que Annette se divorciasse dele antes que ele conhecesse o conteúdo do testamento.
Ele teve um pensamento que o fez franzir a testa, mas não o comunicou à irmã.
— Não posso suportar a espera! — ela disse, de súbito. — Kit, tenho de ir-me daqui!
— Você não fará nada disso! As fofocas pararam. Sua fuga apenas as estimulará.
— Então, devo esperar, apenas esperar? Não suporto isso!
Ele a olhou tristemente:
— Você deve. Não há outra coisa a fazer. Quer que mande Edith para que lhe faça companhia durante algum tempo?
— Não.
Ele a sentiu distraída, quando a deixou. Uma ou duas vezes chegou a pensar em ir a Henri, mas a lembrança daquele homem rude e implacável
o fez desanimar.
Foi na noite seguinte — uma noite de chuva pesada e céu plúmbeo — que Annette veio visitar Celeste e o bebê. Como sempre, estava
calorosa e terna, porém Celeste, nunca à vontade com a sobrinha, estava muito calada. Em seus últimos limites, perdera todo o senso de
qualquer culpa em relação a Annette. Havia até vezes em que a olhava com amargura e ressentimento. Sabia ser isto cruel, mas o sentimento
voltava com maior força a cada vez.
Annette brincou com o menino no berçário. Só depois de algum tempo Celeste notou certa mudança em Annette. Não que parecesse mais
frágil, ou mais fatigada, ou mais docemente triste. Antes havia nela um senso de delicada força, contentamento, e serena quietude. Celeste
esqueceu seu gelado ressentimento, em sua inquieta curiosidade.
Foram para o pequeno salão de Celeste, para o chá. Foi então, enquanto mexia o chá e se servia de um bolinho, que Annette falou, no tom
mais casual e pensativo:
—- Celeste, será que a chocaria terrivelmente se lhe dissesse que me estou divorciando de Henri? Divórcios, eu sei, não são comuns em
nossa família. Talvez pela herança católica.
Continuou a mexer seu chá. Por alguns momentos não olhou para Celeste. Quando o fez, erguendo lentamente os olhos, viu que a cabeça de
Celeste estava abaixada. Mas não havia nela qualquer outra manifestação.
Os olhos de Annette se encheram de lágrimas apiedadas. Bebericou um pouco do chá. A xícara tiniu no pires:
— Você não acha que é horrível de minha parte, acha, querida?
Celeste ergueu a cabeça. Mesmo na penumbra da sala, Annette pôde ver que ela estava pálida e rígida.
— Annette — e sua voz estava tensa — que fará, depois?
Annette deu de ombros, suspirou e sorriu:
— Só recentemente me acudiu que sou muito inútil, Celeste. Passei por um exame físico completo. É verdade que não sou exatamente uma
atleta, nem tenho músculos. — Riu maciamente. — Porém os meus médicos me garantem, como sempre o fizeram, que tenho ótima
constituição. Algumas cicatrizes nos pulmões, mas tudo isso é passado. Não tenho muito corpo, mas um excelente sistema nervoso. Preciso de
um interesse na vida, disseram-me. De modo que pensei em realizar algum trabalho de assistência. Lembra-se de Lucille Wanamaker? Está
organizando um serviço de assistência britânico, para operar na Inglaterra. Já recolheu uma quantia enorme, para ser empregada em roupas e
alimentos; e, em cooperação com a Cruz Vermelha, pretende distribuir essas coisas com os refugiados, vítimas de bombardeios. Precisa de
voluntários. Posso dirigir uma ambulância e ajudar na distribuição.
Celeste, esquecendo-se de si mesma em sua súbita preocupação por Annette, exclamou:
— Mas você não pode! Nunca foi forte! Isso a matará!
Cuidadosamente Annette depositou xícara e pires antes de responder. E então bateu as mãos nos joelhos e ficou a olhá-las por algum tempo.
Começou a falar, em tom muito baixo:
— Acho que a maioria das doenças das mulheres americanas e suas duradouras neuroses provêm de nunca ter nada de significativo ou de
importante para fazer. Você não pode adoecer, não pode imaginar coisas horrorosas e incoerentes, se alguém precisa de você. Eu, eu
mesma, nunca fiz nada em minha vida a não ser aceitar afeição e cuidados, e pensar na obtenção de meus próprios desejos.
Deteve-se. Celeste olhou para ela, olhos nublados de lágrimas. Esquecendo tudo, dirigiu-se à outra mulher e pôs a mão em seus joelhos:
— Não, querida, está enganada. Você nunca pensou em si mesma. Sempre ajudou outros, e tem sido tão compreensiva. Nenhum de nós
jamais a mereceu...
Annette sorriu. Pôs a mãozinha sobre a de Celeste:
— Que bondade a sua, querida, dizer isto! Mas não é verdade. Que foi que eu já fiz? Dei dinheiro para caridades. Mas nunca vi aqueles que se
beneficiavam desse dinheiro. Francamente, penso que nunca me importei em vê-los. Eram algo de nebuloso, e irreal. Gostaria de ver aqueles a
quem ajudo, a quem posso ajudar. Gostaria de falar-lhes, e ajudá-los em seus problemas. Em algum lugar sei que há miséria e sofrimento que
podem ser aliviados, não apenas por dinheiro, mas por simpatia e bondade. Sinto que devo fazer isso. Pela minha própria alma talvez. — E ela
riu um tanto trêmula.
— Um mundo inteiro agonizando, Celeste, e milhões de mulheres idiotas bebericando chá e jogando cartas, e choramingando de medo de que
sejamos envolvidos pela guerra... E, naturalmente, seremos. É inevitável. Não quero ser uma das choramingas, Celeste.
Celeste empurrou os cabelos para trás, num gesto incerto. Fitou Annette, com um olhar comovido e triste:
— Antigamente, quando Peter estava vivo, eu realmente vivia, Annette. Agora, não. Nada me importa muito. Tornei-me egoísta e mesquinha.
Tudo é irreal, além de mim. — Parou abruptamente, pois sua voz foi interrompida pelas lágrimas.
— Você tem um filho, Celeste — falou Annette, docemente, e com dor. — Você realizou alguma coisa.
Mas Celeste levantou-se, em grande inquietação. Começou a falar, depois parou. Após alguns momentos pungentes, perguntou:
— Annette, por que está se divorciando de Henri?
Annette também se levantou. Obrigou-se a olhar para Celeste diretamente, mas com desinteresse. Sentiu a acelerada e dolorosa palpitação de
seu próprio coração, embora o dissimulasse com um sorriso:
— Porque a coisa já foi longe demais, Celeste. Ele nunca se importou comigo, embora por vezes eu tenha tido a ideia de que me tinha alguma
afeição. Tem demorado terrivelmente. Não é muito agradável saber que o marido de alguém casou... por alguma vantagem. Porém eu mesma
me enganei todos estes anos. Agora sei que não adianta. Piora, à medida que o tempo passa. Não é justo... para nenhum de nós. Não sou
uma criança, Celeste, embora tivesse continuado a pensar que era, por tempo demasiado. Vejo agora que tenho minha própria vida para viver,
e que posso vivê-la, se tiver coragem. É agora ou nunca!
Celeste a fitou num silêncio em que havia uma espécie de severidade. Afastou-se um pouco, e começou a arrumar um jarro de flores na mesa
do chá. Disse, de modo quase inaudível:
— Ele é que estava errado. Não tinha direito de tratá-la como o tem feito, Annette. Ele é um homem cruel.
— Não! — gritou Annette. Caminhou até Celeste e pegou-a pelo braço. — Eu é que fui cruel. Creia-me. Casei com ele, sabendo que não me
queria a não ser por uma vantagem pessoal. Eu deveria ter tido mais orgulho.
— Ele foi cruel — repetiu Celeste, e agora estava sem fôlego, numa súbita paixão. — Se ele não fosse cruel e maldoso não se teria casado
com você, sabendo que nada lhe poderia dar. Nunca tentou fazê-la feliz, Annette! Era o mínimo que poderia ter feito. Seria apenas honrado.
Porém ele nunca tentou; nunca lhe dispensou senão indiferença. Pior que tudo: humilhou-a constantemente!
Seus olhos de um azul-escuro brilharam na obscuridade. Recuou, afastando-se da sobrinha. Respirava com grande dificuldade.
Annette estava alarmada. Sua cor delicada desapareceu:
— Está enganada, Celeste! Frequentemente ele era muito bondoso para mim. Você não sabe! Como poderia? Quando lhe pedi o divórcio, ele
me pediu que mudasse de ideia...
— Ele... — começou Celeste; depois ficou de boca seca, e petrificada.
— Sim, querida. Ele me pediu que mudasse de ideia. Finalmente, convenceu-me a esperar até que as coisas estejam esclarecidas, e seja
aberto o testamento de papai.
Ficou a cogitar, em sua imensa aflição e espanto, por que Celeste subitamente parecia tão sombria, tão desfigurada, e por que seus olhos
brilhavam tão selvagemente. “Que foi que eu disse que a transtornou assim?” — ela pensou, confusa.
— Por que ele lhe teria pedido para esperar? — perguntou Celeste: falava como se sua língua tivesse inchado enormemente.
Annette começou a tremer. Algo tinha dado horrivelmente errado. Tateou em busca de palavras:
— Eu... eu não sei, Celeste! Eu, pessoalmente, achava melhor não esperar. Estava certa de que papai fizera tudo correto para Henri, no
testamento, e que um divórcio não importaria.
Celeste começara a sorrir, sombria, e com crescente violência:
— Então não compreende, Annette? Ele receia que haja mais alguma coisa no testamento. Receia que, se houver um codicilo que o proíba de
divorciar-se de você, ele perca tudo pelo que cometeu perjúrio. Não percebe?
— Não! — exclamou Annette.
Retirou a mão da de Celeste e então, pela primeira vez, Celeste viu a raiva e a indignação de Annette dirigidas para ela. Porém estava, muito
desatenta para importar-se.
— E, Annette — ela continuou, em voz muito alta — se houver tal condicilo, que fará você? Irá divorciar-se dele, mesmo assim?
Annette ficou silenciosa. Afastou-se de Celeste a passos trôpegos, tão aflita e atordoada que receou desmaiar.
A voz veemente de Celeste a perseguiu:
— Por que ele não abre agora o testamento, Annette, e se assegura? Ele pode dar a ordem.
Annette virou-se para ela, rapidamente, o rostinho branco em fogo:
— Já lhe ocorreu, Celeste, que é demasiado cedo para abri-lo, que Henri tem trabalho que deve fazer antes que ele seja aberto? Que abri-lo
prematuramente pode estragar todos os planos dele? Não sabe em absoluto que tem algo mais importante em que pensar do que apenas em
mulheres? — Ela perdeu o controle de si mesma em tais extremos: — Não sabe que mesmo você não é tão importante para ele como o
trabalho que tem de fazer?
E agora as palavras que dissera impensadamente, em sua veemência, jaziam entre elas como uma espada que jamais poderia tomar a ser
embainhada. Fitaram-se por sobre ela, mal respirando, olhos secos. Uma súbita frieza envolvia todo o corpo de Annette; sua garganta estava
cerrada de angústia e desespero. Ela tornou a falar, enquanto Celeste, pálida e gelada, aguardava:
— Celeste, eu não devia ter falado. Esperei nunca precisar falar. Não pedirei desculpas: é tarde demais! Mas posso dizer-lhe isto: se. houver
tal codicilo no testamento, não me divorciarei de Henri. Ele ainda é mais importante para mim que qualquer pessoa no mundo, inclusive eu
mesma.
Celeste nunca vira sua sobrinha assim. Embora a sala obscura ondulasse e girasse em torno dela, apesar de seu coração estar flamejante de
vergonha e agonia, embora tivesse experimentado a mais terrível desolação, náusea e horror de sua vida — ainda estava cônscia dos enormes
olhos azuis de Annette, firmes, destemidos, e claros como água transparente.
Por momentos mudos e terríveis elas se enfrentaram. Então Annette começou a suspirar. Baixou a cabeça e se afastou. Saiu da sala. Celeste a
viu ir-se. Incapaz de mover-se, ouvia agudamente. Ouviu o som do carro de Annette descendo o caminho. Correu à janela e a escancarou. O
carro chegara à primeira curva.
Então Celeste gritou, embora soubesse que Annette não podia ouvir:
— Adeus, Annette! Adeus, minha querida! Adeus, adeus!
Caiu de joelhos diante da janela. Apertou o rosto distraidamente contra sua fria escuridão. As mãos lhe caíram aos lados do corpo. Começou a
chorar, mas sem lágrimas.
Capítulo 63
Embora Henri tivesse visto Celeste uma dúzia de vezes no último ano, seus encontros haviam sido casuais e muito de longe em longe, em casa
de parentes. Entretanto, ficara agradavelmente surpreendido ante a melhora de sua aparência, seu olhar de serenidade e de saúde, e suas
boas cores. Ela sempre o cumprimentava com indiferença cortês e logo dirigia suas atenções para Annette e os outros.
A primeira impressão de Henri, ao entrar no salão de Celeste naquela noite de princípios de outubro e vê-la levantar-se de diante do fogo para
encará-lo em silêncio austero, foi que ela havia perdido toda a frescura e toda a cor adquiridas no ano que passara, e que era uma mulher
amargurada e endurecida que o encarava. Não fez nenhuma observação banal como: “Por que veio?” Apenas disse, por fim:
— Por favor, sente-se, sim?
Ele o fez. Ela sentou-se a alguma distância dele, e aguardou, toda frieza e retraimento. Depois de um silêncio difícil, ele disse:
— Parece doente, Celeste. Que há de errado com você? — Sua voz estava impaciente.
— Pareço? — ela perguntou, e se moveu um pouco, de modo a ficar ligeiramente desviada dele. — É o tempo, suponho. Odeio o inverno. Por
isso é que estou indo passar algum tempo na Califórnia.
— Sim. Ouvi falar nisso. Foi por este motivo que vim hoje.
Ela se virou para ele, rapidamente, e sorriu de modo desagradável:
— Então arriscou-se, sendo indiscreto, suponho. Mas o que tem você com isto, de qualquer maneira?
O som que ele fez era ainda mais impaciente e rude:
— Quanto mais vivo, mais cogito por que tratamos as mulheres como se elas importassem. Os orientais são muito mais sensatos do que os
babosos ocidentais, ou melhor: americanos. Não gosto de mulheres. Jamais gostei. São um maldito aborrecimento necessário. — Depois
começou a sorrir: — Muito necessário, por vezes.
Ela corou, zangada, mas nada disse.
— Acontece que eu a acho necessária, Celeste — Ele continuou. — Por alguma razão, você sempre me foi necessária. Jamais gostei muito de
você, como pessoa. Pensei que, à medida que ficasse mais velho, diminuiria minha necessidade por você. Isso não aconteceu, para minha
grande surpresa.
Ele esperou algum comentário dela, porém ela erguera a cabeça e agora o olhava com flamejante desprezo, mesclado de humilhação.
— Por vezes — ele continuou — pensei que você possuía mais que um cérebro de passarinho, como a maioria das mulheres. Você voltou da
Europa uma verdadeira mulher. Eu tivera um forte sentimento por você quando mocinha; tive muito mais forte, quando mulher. Não que eu
jamais tenha esperado que qualquer mulher pudesse ser uma “companheira” para mim, por Deus!
Ele riu desdenhosamente:
— Entretanto, sempre pude conversar com você com algum estímulo, entre seus ataques de amuo e de virtuosa indignação, e suas atitudes.
Embora, a cada vez que eu voltasse para você, você estivesse com os olhos em brasa e cheia de observações desagradáveis. Certa vez
Agnes comentou que você era uma vitoriana. Estou começando a acreditar nisso.
Celeste nada disse. Ele viu que sua garganta pulsava com considerável violência, e que os lábios estavam separados como se ela estivesse
encontrando dificuldade em respirar. Tinha os olhos vítreos numa fúria extrema.
Henri levantou-se, foi até à lareira e ficou olhando o fogo, com agrado:
— Naturalmente, você não irá para a Califórnia — disse.
A raiva reprimida de Celeste era tão grande que ela sentiu uma impotência voluptuosa. Enquanto o olhava, convenceu-se de que o odiava
como jamais odiara em sua vida.
— Está enganado — disse, intensamente. — Vou sim.
Ele virou para ela aquela grande cabeça e perguntou casualmente:
— Por quê?
Mas sua raiva era demasiada: nem podia falar.
Ele foi adiante, perfeitamente à vontade, sempre falando casualmente:
— Nunca lhe fiz quaisquer promessas. Isso ficou entendido desde o início. — Ele se deteve para observar, com curiosidade, o fluxo de
vermelhidão em seu rosto e sua testa. — Disse que, quando certas circunstâncias o permitissem, pensaríamos em casamento. Ou melhor:
quando eu achasse conveniente. Você era muito agradável, lembro-me bem.
Ela se pôs de pé, sufocada de vergonha, algo agonizando em seu peito.
— Vá embora! — gritou-lhe.
Subitamente ele mudou, tornando-se implacável e grosseiro. Fitou-a, e ela viu-lhe os olhos implacáveis.
— Não gosto de dramas — ele disse, glacialmente, olhando-a como se ela fosse uma criatura asquerosa. — São sempre falsos, ou histéricos,
ou armados para determinados efeitos. Comporte-se, Celeste.
Ela gritou, incoerente, perdida para tudo que não fosse seu vergonhoso sofrimento:
— Você disse que, quando Armand... morresse...
A impassibilidade dele aumentava à medida que ela perdia o domínio sobre si mesma. Viu-a deitar a cabeça nos braços, que apoiara na
cornija da ladeira. Ouviu-a chorar. Os dois sulcos fundos entre seus olhos mais se aprofundaram.
— Sim, lembro-me disso — falou ele. Deu um passo para ela, e então parou. — É perfeitamente verdadeira. Mas aconteceu algo. Não posso
abrir o testamento de Armand... não posso divorciar-me de Annette... até que os acontecimentos provem ser seguro fazê-lo. Não demorará
muito. Talvez um mês... dois meses...
Ela ergueu a cabeça, e se virou para ele braviamente:
— Você é um mentiroso, Henri! Sabe que Annette esteve aqui, e que me disse que pretende divorciar-se de você?
Ele ficou chocado. Sua expressão foi a princípio ameaçadora; depois mudou, tornou-se pensativa:
— Sim? E então?
Celeste apertou as mãos de encontro ao peito, como para controlar a dor que lhe palpitava no coração. Ela o olhou nos olhos:
— Ela disse, no entanto, que se o testamento especificar que você... perderá se houver um divórcio, então nada a fará deixá-lo ir-se.
As grossas sobrancelhas de Henri se juntaram de forma que os olhos eram apenas pontinhos sob tal saliência. Ele observava Celeste
curiosamente, enquanto ela esperava, e ele ouvia o rouco arquejar da sua voz.
Ele falou, calmo:
— Disse-lhe, certa vez, que não poderia desposá-la até que Armand morresse, que eu não ousava arriscar um divórcio. Pensei que você
compreendesse que as coisas que eu estava tentando realizar eram mais importantes que nós mesmos. Após a morte de Armand, eu disse, e
que tivesse passado o perigo para o meu trabalho, então consideraríamos a questão. Lembra-se?
— Sim, sim! — ela exclamou, com impaciência férvida e incontrolável. — Lembro-me de tudo isso! Mas você poderia abrir o testamento agora,
se quisesse!
Ele sacudiu a cabeça com impassibilidade granítica:
— Não. É cedo demais. Eu lhe disse: dentro de um mês, dois meses...
Subitamente ela recuperou o controle sobre si mesma, porém seu rosto continuou muito branco. Pôde dizer, calma:
— E depois que o testamento for aberto, e que você tenha realizado o que é necessário, o que eu sei que é necessário, e que haja ainda algum
codicilo que possa ocasionar sua perda pessoal se se divorciar de Annette... — Ela engoliu convulsivamente: — ...uma perda que nada tenha a
ver com o trabalho que você já terá concluído, porém é pessoal...
Ele deixou cair a mão que se apoiava na cornija da lareira e a encarou em cheio. Disse, vagarosamente e com ênfase:
— Então, não me divorciarei de Annette.
O choque que ela teve foi tão grande que ela pareceu diminuir, encolher, desintegrar-se. Olhou-o com olhos arregalados;
— Pensei — murmurou, debilmente — que tudo era adiado apenas por causa das coisas que você estava fazendo, pelo bem da América, e
por si mesmo, e que quando tudo isso estivesse seguro você... você... — A voz lhe faltou.
— Eu abandonaria tudo, hein — ele terminou, com um sorriso tão medonho que ela se sentiu mal. — Eu abandonaria toda uma vida de
esforços, de esquematizar, planejar, lutar, toda ambição... por você? Por uma mulher? — Começou a sacudir a cabeça, seu sorriso se ampliou
e se tornou ainda mais feio: — Por que pensa que voltei à América? Que sabe a meu respeito? Realmente pensa, mesmo após todos estes
anos, que sou o tipo de homem que desistiria de tudo por uma mulher? Pensa que sou um dos seus heróis cinematográficos? — E agora ele
parecia possuído por uma raiva fria e violenta: — Vocês, mulheres americanas, não podem compreender que para os homens vocês não
passam de meras cópias masculinas, que uma mulher é sempre secundária, apenas secundária? E que o tipo de homem que teriam,
servilmente atrás de vocês, abandonando toda ambição, orgulho e realizações só para poderem dormir com vocês, seria apenas uma
caricatura, nojenta, desprezível e repugnante? Mesmo assim, como vocês, malditas mulheres, os amam!
Nas profundezas de seu terrível sofrimento e vergonha, Celeste só podia murmurar: “Oh! Deus! Oh! Deus!” Já não enxergava Henri: ele era
apenas uma forma esbranquiçada em meio a um nevoeiro. Em algum lugar, tinha consciência de um núcleo ardente a queimá-la.
Seus lábios, que sentia enormes e inchados, moveram-se a custo e ela falou, roucamente:
— E o bebê? E quanto ao bebê?
Pôde ouvir-lhe a voz, que lhe chegava de alguma distância imensa, porém muito nítida e fria:
— Desde o início você compreendeu que as coisas seriam sob as minhas condições e não sob as suas. Não lhe fiz promessas, mas pensei
que compreendesse que estaríamos sempre juntos, casados ou não casados. Armand está morto. O trabalho que eu devia realizar estará
terminado em breve. Se for possível divorciar-me de Annette sem danos para mim, eu me divorciarei. Poderemos casar-nos então. Se não
puder divorciar-me dela sem prejuízo para mim, então não poderemos casar-nos. Entretanto, dentro de dois meses, talvez menos, será seguro
para você e para mim estarmos juntos novamente. Será seguro para mim visitá-la quando eu queira, e ver meu filho a qualquer tempo.
Seus sentidos lhe voltaram numa vívida investida ante as palavras dele: pareceram-lhe tão infames, tão terríveis, que ela ficou chocada em sua
plena consciência. Mal podia acreditar no que ouvia! Começou a tremer, encolhendo-se como se tocada por gelo. Não podia falar: sua
garganta estava fechada.
Ele a observava com aquela curiosidade indiferente e cruel que era uma de suas mais fortes características. Observou:
— Você está pensando no menino. Não sabe que somos bastante ricos de modo que nada mais importa? Além disso, quem ousaria dizer
alguma coisa a ele? Quem ousaria caluniar todo esse dinheiro? — E ele riu um pouco.
Ela o olhou do abismo de seu indescritível sofrimento e disse, simplesmente:
—Não o compreendo. Jamais compreendi. Você é um mentiroso. Pensei que você... se importasse com o que acontecesse ao... ao bebê, se
não a mim. Mas não. Você só se preocupa consigo mesmo. — Tomou uma respiração profunda, depois a exalou, num longo e quebrado
suspiro de dor externa e exausta. — Você nem o viu desde o dia em que nasceu. Nunca procurou vê-lo.
Ele sorriu, estranhamente:
— Está novamente enganada, minha querida. Eu o vejo com frequência. Tenho feito questão disso. Não nesta casa, naturalmente. E agora
suponho — acrescentou, com desdenhosa impaciência — que ficará muito enraivecida com a pobre Edith, com quem você tem deixado o
bebê frequentemente, a pedido dela. Gritará com ela, suponho. Isso seria muito seu, Celeste. E, sem dúvida, porá um paradeiro a isto...
Porém, para sua grande surpresa, ela não estava raivosa. Em vez disso, o rosto dela mudou. De súbito, vieram-lhe lágrimas aos olhos, que lhe
inundaram as faces. Virou a cabeça:
— Não — falou, suavemente — não farei isso. Surpreende-se, não, Henri? — Depois de um momento, acrescentou: — Posso aceitar não ser o
que haja de mais importante para você, mas não posso aceitar que o bebê não o seja.
Ele chegou bem perto dela então, e disse, olhando-a com indulgência:
— Talvez, de certa forma, ele o seja. Não lhe faria mal nenhum se outro sobrenome Bouchard não fosse acrescentado ao que ele já tem, mas
lhe fará um bem enorme se eu lhe puder deixar uma das maiores fortunas do mundo, e uma posição de poder.
Ela se levantou, sua emotividade se fora, e podia olhá-lo agora diretamente, com sombria calma:
— Acho que agora compreendo tudo, Henri. Não afastarei o bebê. Poderá vê-lo com maior frequência ainda, se quiser. Arranjarei isso com
Edith, que o ama imensamente. Porém eu não quero tornar a vê-lo. Você pensará que sou uma egotista, e talvez seja mesmo. Mas sei disto:
não importa o que aconteça, não importa se não houver nada no testamento de Armand que proíba o divórcio para você e um posterior
casamento comigo: não quero que você volte. Não o quero seja em que termos for, seus ou meus. De alguma forma, nada mais existe em mim
agora.
Ele ficou a falar, impaciente, e então parou. Nunca vira Celeste assim, tão forte, contida e resoluta. A mecha branca em meio a seus cabelos
negros não era mais branca que seu rosto.
Os olhos estavam intensamente azuis, e severos. Viu que ela o olhava sem paixão, sem raiva, sem ultraje, sem dor.
— Quer dizer — ele falou calmamente — que não pode suportar a verdade?
Ela deu de ombros; estava muito cansada:
— Talvez. Posso até admitir isso. Mas não, acho que é porque você é cruel. Eu sempre soube que você era cruel e brutal. Mas sabia disso em
minha mente. Não o sabia com meu coração. Agora sei disso de todas as maneiras, e não posso suportar tê-lo perto de mim novamente.
Enquanto ele a observava com grande intensidade, ela continuou, muito calma:
— Quando jovem, estava sempre com medo das pessoas cruéis. Ultimamente venho tentando descobrir por que fugi de você e casei com
Peter, embora amasse você todo o tempo. Sei agora. Era porque eu, instintivamente, sentia que você era cruel, e não apenas cruel de um
modo inflexível e impessoal, um modo ambicioso, mas de modo pessoal, também. Isso é algo que não posso perdoar. Acreditei, todos esses
anos, que sua crueldade era coisa essencial, necessária, para o domínio de um mundo tão desonesto e violento. Mas não pensei que ela
poderia estender-se àqueles que se poderia pensar que você amava, que você poderia golpear, por pura perversidade, aqueles sem defesa
contra você. Isso é covardia, Henri. Não é covardia golpear inimigos que querem destruí-lo. Mas é terrível abater aqueles que o amam, ou são
mais fracos do que você, sem outra razão que um profundo sadismo. Você é um sádico, Henri.
Ele estava silencioso. Com o cotovelo apoiado na cornija da lareira, gentilmente mordia o dedo índice enquanto a observava, pensativamente.
Ela suspirou, ergueu as mãos, e as deixou cair:
— É tudo, Henri.
Voltou-se e se afastou dele. Ele lhe viu as costas eretas, as linhas finas e delicadas de seu vulto esguio. Ela não hesitou: num momento
atravessara o umbral, e ele pôde ouvir-lhe os passos macios e sem pressa a subir a escadaria.
Já em seu quarto, sentou-se na borda da cama na escuridão, fitando cegamente diante de si, lábios e olhos secos como poeira. Não sentia
dor; só uma desolação profunda do espírito, além de tudo que já experimentara na vida — e era como a morte, para ela.

Capítulo 64
Annette escreveu a Celeste:
“Poderá algum dia perdoar minha rudeza, grosseria e mau gênio, querida? Sei que lhe disse coisas realmente imperdoáveis, mas tenho a
esperança de que você as deixará passar e recordará o quanto sempre nos amamos, e como éramos amigas. Poderá chegar a esquecer
aquela infeliz tarde, e continuar como se nada tivesse sido dito?”
Celeste respondeu imediatamente:
“Já esqueci. Nada foi dito, realmente. Mesmo que tivesse sido, como poderia eu contrapor isso a toda a nossa vida? Há limites para
desacordos e desentendimentos em todo relacionamento humano, mas estes não tiveram a menor importância, querida.”
Contudo, ela sabia que nada voltaria, jamais, a ser o mesmo entre ela e Annette, e, a seu modo, isto era para ela uma circunstância tão terrível
como sua ruptura final com Henri. De fato, como Celeste deixava implícito em sua carta, nada havia mudado. Fundamentalmente, era verdade.
Porém Annette quebrara a frágil simulação entre elas de que o caso de Celeste com Henri era ignorado por ela. No fundo do seu coração,
Celeste acreditava que Annette sempre soubera, porém se recusara a pensar nisto. Henri, desde o começo, quisera que sua mulher não fosse
iludida. Porém o silêncio de Annette fora como uma peça de roupa a ocultar uma nudez de que todos tinham conhecimento. Ela havia rasgado
essa roupa e revelara a nudez. Nem ela nem Celeste jamais esqueceriam o terrível momento da revelação.
A seu modo, Annette era tão sem amigos quanto Celeste. Porém o desamparo de Annette era-lhe ainda mais doloroso, pois havia nela uma
profunda e vulnerável necessidade de amor. Sua vida não a havia curado disso. Seu apego a Celeste era muito mais forte que o de Celeste a
ela, pois Celeste possuía um núcleo de dureza que resistia ao choque final. Assim que se via privada da presença de Henri, mesmo ocasional,
sentia-se arrasada, agora que havia destruído o relacionamento dolorosamente envenenado entre ela e Celeste. Só tinha o irmão, mas não
confiava nele.
Nos longos dias e noites de seu crescente sofrimento, ela confessou a si mesma a angustiosa verdade, repetidas vezes: que ninguém está a
salvo dos assaltos da vida já que não é, por si mesmo, uma fortaleza, enquanto tiver de confiar em outra criatura para amor, compreensão ou
mesmo companheirismo. Se sua própria companhia não é a mais desejável, se a dor de outrem deve também ser a sua própria dor, então ela
abriu alguns dos portões de sua fortaleza, e tornou-se vulnerável a ataques. A si mesma privou daquela inexpugnabilidade necessária à paz.
“Ai! todos os meus portões estão abertos! ” — disse a si mesma, com tristeza. Mas, revoltada, também pensou: — “Mas se alguém se retrai
completamente, é como um caracol, um caracol hermafrodita, procriando nos estreitos limites de uma concha e produzindo apenas sua própria
imagem, fugindo sempre, sempre emboscado, e nunca admitindo que exista algo além dele mesmo.”
Como sempre, suas tristes reflexões chegavam a uma só conclusão: deveria tornar-se necessária, em algum lugar, de alguma forma; deveria
tomar-se útil. Os hábitos de uma vida inteira retrocediam diante disso. “Porém — ela pensou, com desacostumada severidade — tenho uma
alma a salvar: a minha.”
Recusou ouvir as queixas de seu corpo frágil quando começou a tomar parte ativa na Organização de Assistência local. Aprendeu a tricotar;
aprendeu a enrolar ataduras. Foi a organizadora do banco de sangue local associado à Cruz Vermelha. Remendava roupas, e aprendeu a fazer
roupinhas simples. Contribuiu com grandes quantias para a American Freedom Association, e para ajudar sociedades que enviavam grandes
quantidades de roupas e suprimentos médicos para a Inglaterra e para a Rússia. Mais tarde, após o divórcio, pretendia tomar parte nos
serviços assistenciais na Inglaterra. Se à noite estava exausta, também experimentava o analgésico da fadiga. “Estou mesmo trabalhando!” —
dizia a si mesma, com irônica surpresa, enquanto a camareira a preparava para dormir.
A família a observava com espanto, e com uma compaixão relutante. O irmão protestou. Contudo, ela apenas sorriu e declarou sentir-se
muitíssimo bem. E, estranho: sua frágil saúde não declinou. De fato, sua fragilidade se tornou essa apaixonada resistência tão frequentemente
encontrada em pessoas pequenas e ativas. Não fosse aquela dor terrível em seu coração e ela estaria mais feliz que em qualquer outro tempo
em sua vida.
Aproximava-se o Dia de Ação de Graças de 1941. Havia muitas semanas que Annette e Celeste não se encontravam. Porém toda a família em
Windsor e alguns dos Chandlers de Nova York foram convidados a jantar na mansão de Emile Bouchard. O primeiro impulso de Celeste foi
recusar. Depois, viu o ridículo da situação. Só ela estaria ausente. Haveria muitos comentários maliciosos. Pior: Annette acreditaria que
Celeste não lhe havia “perdoado”.
Fora bem difícil para Celeste, nos últimos dois anos, encontrar Henri e Annette em público, casual e equilibradamente, sempre cônscia de olhos
hostis e curiosos. Agora seria muito mais terrível. Informada, naturalmente, por seus próprios e peculiares boatos, a família devia com certeza
saber de seu rompimento com Henri, e sua disputa com Annette. Irracionalmente ela acreditava nisso. Ela agora estaria só, exposta ao desdém
e à risota. Entretanto, devia ir àquele jantar. Cada membro da família tinha a sua vez de receber o resto da família nos feriados, e isso se
tornara tradição — embora nunca tivesse acontecido que qualquer membro estivesse em bons termos de amizade com todos ao mesmo
tempo. Esta senhora e aquela vinham-se evitando há muitas semanas; este cavalheiro e aquele se odiavam e não se encontravam desde o
último Dia de Graças. Inimizade, intriga e conspiração ferviam entre partidos e subpartidos. Apesar disso, no Dia de Graças, ou no Natal,
encontravam-se com franca jovialidade, apertavam-se as mãos, bebiam juntos, trocavam piadas e fofocas, e riam cordialmente.
Peter e Armand estavam mortos. Estariam mais presentes, em sua ausência, do que o estariam realmente em vida. Peter quase sempre
sentava junto de Annette: Jean estaria ali agora. Armand, que se empanturrava junto à cunhada, Agnes, teria seu lugar ocupado por Henri. “De
certo modo” — pensou Agnes, colocando os cartões para marcar os lugares — “havia muita ironia nesta situação.”
Agnes, mulher sutil, sentia uma espécie de fatalidade no ar, neste Dia de Graças. Como quase todos, ela acreditava que a América estaria em
breve envolvida na trovejante conflagração que enviava suas longas labaredas através do Atlântico. Quanto tempo se passaria antes que as
mesas carregadas do Dia de Graças ficassem mais leves, e certas cadeiras ficassem vazias? Enquanto enchia os vasos de flores por toda a
rica mansão que ela e Emile haviam construído juntos (roubando à Europa muitos de seus tesouros), sentia um mal-estar profundo. Sentia
também não estar sozinha nisto. Milhões de mulheres americanas olhavam suas mesas, pensando, com tristeza, o mesmo que ela pensava
agora. Os centros de flores ou frutos estremeciam continuamente aos frios temporais que varriam os oceanos, e nem paredes espessas nem
portas aferrolhadas poderiam manter a distância seu hálito mortal. As janelas, tão pesadamente cobertas com ricas cortinas, estremeciam com
as reverberações sem precedentes que chegavam à América providas dos grandes canhões na Rússia.
Pela primeira vez Agnes sentiu uma tristeza lutuosa pelos Bouchards. Alguma simpatia por sua condição de membros da humanidade. Alguma
afeição mesmo pelo pior deles. Examinou sua mesa superabundante com mais ansiedade e rigor que o habitual.
Porém ela também sabia que terríveis coisas não terminariam quando a guerra acabasse. O mal fora profundamente entranhado na terra viva
do mundo inteiro. Crueldades e abominações se haviam tornado um hábito para milhões de homens. Obsessões e tristezas tinham invadido
muitos, muitos cérebros, ferido e aleijado muitas almas. O que principiara em uma só década continuaria por muitas décadas, talvez por
séculos. Não se poderia dizer, quando a guerra acabasse: “Está terminada, e acabada. Esqueçamos. Aconteceu ontem. Existe um amanhã
diante de nós.”
Nunca terminaria, nunca estaria acabada de vez. Não podia ser esquecido. Aconteceria hoje, e amanhã, e depois de amanhã, enquanto o
homem recordasse sua história. O mal fora profundamente entranhado. O sangue fluíra com demasiada abundância para que a terra pudesse
absorvê-lo rapidamente. O ódio tivera uma floração demasiado forte para que suas sementes morressem. Essa coisa horrível seria
contemporânea quando as mesas onde a paz era negociada fossem já poeira, e se tivessem dissolvido na terra os diplomatas que tivessem
assinado a paz... E permaneceria, como uma montanha pestilenta, entre os eventos do homem, por tempos imemoriais.
Celeste acabara de pôr o filho na cama e de apagar a luz, quando foi chamada ao telefone: chamado de Nova York.
— Alô! — disse uma animada voz masculina. — Celeste, aqui é Godfrey.
— Godfrey? — repetiu Celeste, rapidamente buscando na mente.
— Godfrey Barbour. Lembra-se de mim? Em Paris, e Cannes, e meia dúzia de outros lugares.
— Ora, certamente, Godfrey! — exclamou Celeste, um tanto perturbada. — Onde está você? Pensei que estivesse em Londres. Que está
fazendo aqui?
O jovem riu. Tinha uma voz muito agradável, levemente britânica.
— Complicações! Complicações — disse. — Mas lhe contarei depois. — A voz mudou: — Estou muito sentido a respeito de Peter, Celeste.
Não tinha ouvido falar nisso até ontem, em Nova York. Que estou fazendo aqui? Ora, menina, no momento estou morando com um amigo, Alfred
Milch, o produtor cinematográfico. Nunca ouviu falar nele? Somos velhos amigos. Costuma voar da Inglaterra para produzir filmes em Paris e na
Alemanha... mas não desde Hitler. Ótimo rapaz judeu. Estamos discutindo minha ida para Hollywood, onde ele vai produzir três thrillers, e está
tentando me convencer a ir junto. Minha “arte” Poderia ser apreciada lá.
Celeste ainda estava perturbada, mas também divertida e animada. Godfrey Barbour — o próprio cavalheiro a esclareceu — chegara a Nova
York havia menos de uma semana. Sim, disse, poderia ser persuadido, sem grandes esforços, a ir a Windsor nessa mesma noite, de avião, e
reunir-se aos parentes no dia seguinte.
— Da família você é a única a quem realmente conheço — disse. — São realmente tão amedrontadores como dizem?
— Na verdade, não! — riu Celeste. Começara a deliciar-se, lembrando Godfrey. — Telefonarei a Agnes imediatamente, depois que
desligarmos. Agnes? É a esposa de meu irmão Emile. Você ficará completamente tonto para distinguir os parentescos. Terei um carro
esperando por você no aeroporto. Naturalmente, ficará em minha casa. É uma casa enorme. E — hesitou um pouco — também tenho um bebê.
Pouco mais de um ano de idade: quinze meses, na verdade.
Sentiu-se reanimada e esperançosa ao concluir sua conversa. Sentou-se perto do telefone, sorrindo para si mesma. Como se aparentava
Godfrey com a família? Tentou desemaranhar os parentescos. Godfrey era neto de Godfrey Sessions Barbour, filho mais velho de Ernest
Barbour. Também ele podia reivindicar o lendário Ernest como seu bisavô, como Henri. A avó de Henri fora Gertrude Barbour, irmã de Godfrey.
Esse Godfrey, em seu ódio pelo pai, Ernest, adotara o nome de solteira da mãe, Sessions; mas depois do nascimento do filho, Aristide, voltara
ao verdadeiro nome. Esse filho, Aristide (cuja mãe fora Renée Bouchard), é que fora o pai do atual Godfrey, jovem mais ou menos da idade de
Celeste. A mãe de Godfrey era inglesa. Seus pais haviam morrido.
Os Bouchards não demonstraram qualquer interesse pelo falecido Aristide ou por seu filho Godfrey. Na verdade, não haviam esquecido que
Ernest Barbour fora o pai do grande compositor americano Godfrey Sessions. Mas o filho de Godfrey, Aristide, não lhes despertara curiosidade
ou interesse familiar. Alguns dos Bouchards mais velhos lembravam-se dele como um homenzinho gordo, “escuro e gordurento” como dissera
Armand, não se parecendo absolutamente com o magro e louro Godfrey. Sua aparência e seu temperamento vinham dos primeiros Bouchards.
(Era neto do Armand Bouchard original.) Ouviram o boato de que vivera a maior parte da sua vida na Inglaterra, onde desposara uma obscura
moça inglesa, que ninguém jamais conheceu. O jovem Godfrey nascera na Inglaterra, mas vivera a maior parte de sua vida em Paris.
Após sua morte, descobriu-se que Ernest Barbour provera generosamente em favor do filho, o primeiro Godfrey, mas de maneira cautelosa:
não confiando em sua natureza artística, criara um fundo financeiro francês para Godfrey. Eugene Bouchard, grande amigo e cunhado de Ernest
(desposara Dorcas, irmã de Ernest), fora o pai de Renée, esposa de Godfrey, e ele também, por sugestão de Ernest, estabeleceu um fundo
financeiro francês para a filha. Durante muitos anos esses fundos proporcionaram subsistência muito confortável para o primeiro Godfrey e
esposa; contudo, em subsequentes décadas, várias circunstâncias reduziram consideravelmente a renda. Após a morte da mãe do primeiro
Godfrey — May Sessions Barbour, esposa de Ernest — descobriu-se que deixara para seu filho predileto mais de setecentos mil dólares.
Godfrey, mostrando uma perspicácia completamente discordante com seu caráter geral, havia fundado um fundo financeiro britânico para o
filho Aristide, por fora da herança, fundo de proporções respeitáveis. Usou o saldo para aumentar sua própria renda diminuída.
O primeiro Godfrey fora compositor de quatro excelentes sinfonias, mas somente uma delas era ainda executada com certa regularidade.
Também compusera inúmeras sonatas, serenatas e concertos. Apenas uns poucos desses foram bem conhecidos. Seu filho, Aristide, após a
morte de Godfrey (a quem havia adorado, naquele seu modo taciturno), tentara reviver as composições do pai em todas as capitais européias.
Financiara várias orquestras. Em consequência, sua renda, já diminuída através das vicissitudes dos anos, foi quase completamente devorada.
Após sua morte, verificou-se que deixara ao filho, o jovem Godfrey, menos de vinte mil dólares.
O jovem Godfrey, um pouco à maneira de Antoine Bouchard, fora um diletante. Mostrou facilidade para o piano, possuía excelente voz de
barítono, podia pintar muito bem, e escreveu dois pequenos volumes de poesia. Porém nenhum de seus talentos era notável. Tendo muita
inteligência e perspicácia, cedo viu que devia ganhar a vida. Investira metade de sua herança num negócio de filmes franceses, de que mais
tarde teve de assumir o comando. Podia obter os serviços de atrizes francesas de terceira categoria, apenas, e dos que contracenavam com
elas; mas como ele mesmo redigia os scripts, e mostrava muita capacidade na direção e na produção, começara a adquirir fama considerável
como produtor de filmes pequenos, mas de boa qualidade, quando estourou a guerra.
Peter e Celeste cruzaram com ele acidentalmente. A primeira vez em que moraram em Cannes, compareceram a uma festa dada por uma
vizinha, bonita senhora que era uma atriz famosa e aposentada. A esse tempo, Peter reagia maravilhosamente aos ares de Cannes, e
frequentemente aceitava convites antes que sua doença voltasse a tornar-se incômoda. Havia lá muitos convidados, e Peter e Celeste se
moviam, sorridentes, de um grupo a outro, quando foram abordados por um jovem muito agradável.
— Olhem — dissera, com um sorriso — acho que somos parentes. São aparentados com os afamados, ou mal-afamados, Bouchards, da
América, os grandes fabricantes de armas?
Peter rira. Gostara de Godfrey à primeira vista. Confessou que era realmente um dos “grandes fabricantes de armas”. Então Godfrey fora em
frente, para explicar o parentesco. Tinha a mais espirituosa maneira de falar, e livres gestos expressivos herdados da avó francesa, e ele era
tão afável, tão alegre, tão gentilmente inteligente, que Peter e Celeste ficaram encantados. Viram não haver malícia nele, apenas humor
brilhante, e que suas piadas eram sobre ele mesmo, nunca sobre outros. Falava com volubilidade, mas de modo tão fascinante que o ouvinte
nunca se impacientava. Era evidente que tinha enorme prazer na vida, e que achava quase tudo divertido, delicioso e cheio de interesse. Não
se poderia imaginá-lo sendo aborrecido, cruel, zangado ou vingativo. Na ocasião, vivia com a neta da atriz. Ambas as mulheres — avó e neta
— o adoravam. Ele e a amante eram hóspedes permanentes na villa.
Nessa noite ele falara quase que exclusivamente com Celeste e Peter, enquanto sua linda amantezinha ficava amuada a um canto. Confessou
sua condição de falta de recursos, mas com tal jovialidade que fazia isso parecer uma das mais deliciosas condições do mundo, e para ser
invejada. Mas quando Peter inevitavelmente falou de Hitler e nazismo, a fisionomia do jovem mudou, tornou-se estranhamente sombria, firme e
preocupada. Mais ainda: ele pareceu singularmente angustiado. Mais tarde, Peter soube que a mulher mais velha, a rica atriz, era uma das
grandes admiradoras de Hitler, e que ela e seus amigos estavam a servi-lo como uma espécie de serviço aristocrático de espionagem entre os
decadentes e depravados membros dos salões internacionais. Quando Peter soube disso, já não se surpreendeu pelo súbito desaparecimento
de Godfrey umas seis semanas antes. Ouviu dizer que Godfrey fora para a Inglaterra e lá sumiu, deixando a amante e sua avó espantadas e
desoladas. Peter e Celeste não mais o viram.
Ao recordar todas essas coisas, Celeste se lembrava de Godfrey claramente. Antes do desaparecimento, muitas vezes ele viera à villa que
ocupavam, e Peter apreciara sua companhia com bastante prazer. Como se estivesse agora diante dela, Celeste podia ver a silhueta leve e
ativa de Godfrey, cheia de forte resistência e vivida saúde. Recordava seu extraordinário cabelo louro, tão pálido que era quase branco, e os
olhos castanho-escuros sempre cintilantes e alegres. Tinha pele morena, o que punha seu cabelo em notável contraste. Tinha o nariz curto e
largo dos Barbours, de contorno forte e narinas amplas; e o queixo quadrado dos Barbours, de covinha funda. Porém a boca, embora firme e
de nítido contorno, era também bondosa, e muitas vezes, gentil. Cinco anos não haviam toldado a lembrança dele em Celeste. Ela o via com os
olhos da mente, não turbadas as suas feições.
Telefonou a Agnes e explicou a situação. Agnes divertiu-se com o caso:
— Um Barbour de verdade? Esquecemos, parece, que o patriarca era um Barbour. Alguma parecença com o resto da família?
Celeste hesitou:
— Bem, não. Ele é moreno e claro. E muito espirituoso e muito encantador. Peter e eu éramos loucos por ele.
— E ele vai ficar com você, minha querida?
— Sim — falou Celeste. — Estou ficando uma viúva idosa. Acha que pode haver escândalo?
— Acho que não — respondeu Agnes.
Perguntou, pouco depois:
— Ele é rico? O avô era Godfrey Barbour, filho do velho Ernest. Deve haver dinheiro ali.
Celeste respondeu, com considerável frieza:
— Se sua fortuna não melhorou nos últimos cinco anos, e tenho a impressão que não, então está praticamente sem vintém. Falou algo a
respeito de ir para Hollywood com um produtor seu amigo. Godfrey está interessado em cinema, sabe?
— Oh, meu Deus! Então ele é desse tipo, hein?
Por alguma razão, Celeste estava aborrecida. Mas sabia que qualquer coisa que dissesse em defesa de Godfrey apenas distorceria a imagem
dele.
Esperou sua chegada com prazer e animação. Godfrey fora seu amigo. Deu-se conta do quão falida em amigos estava, para esperar com tal
ansiedade a chegada de uma simples criatura.

Capítulo 65
A neve, fina e leve, começou a cair ao entardecer, de modo que a terra escura cintilava como se salpicada de sequins. Estava um frio agudo, e
pela primeira vez em muitos anos Celeste sentiu-se festiva de repente. A dor fixa e ardente em seu coração parecia menos intolerável esta
noite. Vestiu-se cuidadosamente, num vestido branco e preto, e depois, hesitando e sorrindo, colocou uma rosa branca nos cabelos. O rosto
que viu no espelho podia ser duro e pálido, com a boca vermelha cujos contornos podiam ser nitidamente recortados e firmes, porém era
também um rosto bonito.
Quando ouviu o som do carro que voltava, correu escadas abaixo, e estava esperando no vestíbulo, ao pé da escadaria, quando Godfrey
Barbour entrou. Celeste viu a porta aberta; do escuro de fora a neve entrou turbilhonando, e ela ouviu a voz do motorista, a falar
encorajadoramente:
— Agora cuidado, senhor, outro degrau, cuidado. Aqui estamos.
A mão de Celeste se estendeu tateante e agarrou o corrimão, enquanto ela permanecia de pé, esperando, figura esbelta, de linhas adoráveis
em seu vestido preto enfeitado de branco. Porém suas novas cores subitamente desapareceram, e havia uma estranha e dolorosa palpitação
em seu peito. Pois ouviu passos hesitantes e incertos, umas duras batidas, e depois a voz alegre e bem lembrada de Godfrey:
— Não posso me acostumar com essas malditas coisas!
Agora a nuvem de partículas de neve fora aspirada de volta à noite, e Godfrey ia entrando, o motorista compadecido a apoiá-lo. Celeste ficou
de olhos arregalados. Ergueu a mão e a comprimiu de encontro ao coração. Pois o jovem que ela via agora usava o uniforme de capitão da
Real Força Aérea, e se balançava desajeitadamente num par de muletas. Sua perna direita fora amputada acima do joelho.
Porém nada da alegria, da vida e do prazer e do brilhante humor havia desaparecido do rosto moreno, agora tão emaciado e crestado pelo
sofrimento. Os olhos castanho-escuros faiscaram ao dar com Celeste. O garboso casquete empoleirava-se em ângulo jovial e precário sobre
os cabelos extraordinariamente louros. Ondulando perigosamente nas muletas, ergueu a mão e cumprimentou Celeste, rindo com prazer ao vê-
la. Ignorou totalmente o motorista, que literalmente o tomou nos braços fortes e lhe garantia o equilíbrio enquanto ele completava a saudação.
— Celeste! — gritou o jovem, alegremente. — Mas é mesmo a querida menina, em pessoa!
Mas a visão de Celeste havia escurecido, de modo que ela nada via senão turbilhonantes arco-íris. Estirou os braços, correu para Godfrey e
pôs esses braços bem apertados em torno dele, estreitando-o numa espécie de frenético desespero e tristeza. Apertou a cabeça no ombro
dele, e depois beijou-lhe a face, soluçando a mais não poder.
— Ei! O que é isto? — gritou o jovem, afinal, gentilmente segurando-lhe o queixo e buscando-lhe a face. — Esta é uma recepção apropriada,
pergunto-lhe? Por que as lágrimas, minha bichinha? Deixe-me olhá-la...
Mas Celeste agarrou-se a ele, soluçando:
— Oh! Godfrey, que terrível, que terrível! Você não me disse!
E Godfrey disse:
— Que há de errado, querida? — Seus bondosos olhos castanhos, habitualmente tão alegres, estavam agora cheios de sutil piedade e
preocupação: — Você mudou, Celeste.
Ela ficou ofendida porque ele pensou nela. Segurou um dos braços dele com ambas as mãos. Estremeceu à vista das muletas:
— Venha para a sala... onde possa sentar e descansar.
Contudo, ele resistiu gentilmente. Agora ele já não sorria, embora sua expressão ainda fosse bondosa:
— Celeste, meu amor, eu não sou um aleijado, realmente. Posso arranjar-me muito bem com estas malditas coisas: é só questão de aprender
um novo equilíbrio. E daqui a alguns meses terei uma ótima perna de madeira, e apenas coxearei um pouco. Você não saberia a diferença. E
agora, seja uma boa menina e observe como manipulo isto com a costumada destreza.
Ela deixou cair as mãos. Observou-o afastar-se dela a oscilar desajeitadamente, balançando. Viu seu costado forte torcendo o uniforme em
patéticas rugas, e a dolorosa inclinação de seus ombros. A parte de trás da cabeça loura parecia valente, intrépida e determinada, inclinando-
se para trás enquanto ele impulsionava o corpo para a frente com as muletas. Pescoço e orelhas avermelharam, com o esforço e a tensão. De
súbito Celeste fechou os olhos, num espasmo de piedade e dor. Seguiu-o. Não o ajudou, embora quisesse fazê-lo. Sentou-se quietamente,
observando-o enquanto ele manobrava para sentar-se também. Depois, com um suspiro e uma pequena risada, ele colocou as muletas
cuidadosamente lado a lado apoiadas a uma mesinha, e voltou sua atenção para Celeste. Seu rosto estava úmido e brilhoso, o sorriso um
pouco fixo:
— Bem, agora diga-me tudo. — Serviu-se de um cigarro, da mesa, e acendeu-o. Ela viu que suas mãos tremiam.
Disse, em voz muito baixa:
— Godfrey, por quê?
O fogo com que acendia o cigarro a deixou ver um momento o rosto dele, duro, feroz e cheio de frio ódio. Logo essa expressão se foi e ele
pareceu pensativamente indiferente:
— Por quê? Acontece, doçura, que odeio alemães. Não apenas nazis; não hitleristas; não junkers, soldados ou estudantes duelistas. Apenas
alemães. Os adoráveis, pequeno-burgueses alemães enganando uns aos outros nas lojas, nos escritórios e nos modestos negócios; a doce
mädchen alemã que é traiçoeira, sórdida e gananciosa; o belo jovem de faces frescas que ainda não é sequer um bárbaro, apenas um covarde
assassino; o homem alemão na rua, a mulher alemã nos mercados, o fazendeiro alemão e a alemã hausfrau. Odeio a todos, Celeste. Quisera
vê-los morrer.
Falou com tal desinteresse, até indiferença, que suas palavras eram aumentadas em sua ferocidade, em vez de diminuídas. Ele pusera o
cigarro nos lábios; ela viu o súbito queimar forte de sua ponta como se ele tivesse sugado num fôlego selvagem: estavam olhando sem ver,
diante de si.
— Não foi amor pela Inglaterra, doçurinha, que me pôs na Força Aérea. Não foi ternura pela velha França depravada, mentirosa, velhaca e
gananciosa. Foi unicamente ódio. Sabe, conheço muito a respeito de alemães. Vivi na Alemanha vários anos.
Ela nunca vira Godfrey assim, e mesmo quando deu de ombros, tornou a sorrir, os olhos dançando como outrora — ela ainda estava
horrorizada ante o olhar frio e mortal que lhe vira por um ou dois minutos e pelo som retumbante de sua voz calma. Pensou: “Que coisa terrível
para os alemães ter isso em sua consciência: que tenham feito com que os odeiem tanto que homens possam esquecer todos os instintos
civilizados de gentileza e compaixão, e odeiem com ferocidade ainda maior!”
— Não é Hitler. Nunca foi Hitler — disse Godfrey. — Foi, e é, sempre o povo germânico. Hitler apenas polarizou seus instintos, e teve
capacidade de obter a ajuda de seus simpatizantes na Europa. E na América, provavelmente.
— Uma bebida? — perguntou Celeste, após um momento de silêncio.
— Sim — respondeu ele, a sorrir-lhe carinhosamente. Ficou a observá-la: — Ora vamos! Um pouco mais desse uísque, bichinha. Muito mais. E
bem pouca soda.
Sentaram-se diante do fogo, copos e gelo cintilando numa mesinha perto deles. Celeste entregou um copo a Godfrey. Olhava-o enquanto ele o
virava de um trago, como se estivesse sedento.
— Mais? — perguntou, quando ele afastou o copo dos lábios.
Não ficou surpresa, apenas triste, quando ele acenou afirmativamente. Ele a viu tornar a servir o líquido dourado, adicionando soda, que chiou
no quente silêncio. Desta vez ele não emborcou o copo. Bebericou, com o cotovelo apoiado no joelho esquerdo. Ela tentou não olhar para o
coto, embrulhado na calça azul. Fixou a atenção em Godfrey, e lhe parecia que, à medida que passavam os momentos, a dor comprimida em
seu coração se tornava insuportável.
A máscara de Godfrey Barbour lá estava, sorridente e atenta como sempre, até mesmo alegre, leve e agradável. Contudo, havia momentos —
ela percebia — em que a velha máscara escorregava e revelava o novo rosto, real e terrível.
— Quer falar-me a esse respeito, Frey?
Ele ainda sorriu, embora desse a impressão de também estar carrancudo. Sacudiu a cabeça:
— Não, Celeste, não quero. Mas lhe contarei a este respeito — e bateu no coto. — Aconteceu sobre Berlim. Antes de partirmos nos foram
determinados alvos industriais. Sempre alvos industriais! São provavelmente mais necessários, admito. Mas eu queria algo mais! Eu mais
queria matar alemães do que explodir fábricas de aviões ou de tanques. Só queria matar alemães, machos ou fêmeas, grandes ou pequenos.
Sabe, queria evitar que procriassem mais alemães para atormentar o mundo daqui a uns vinte e cinco anos. Desviei-me do plano de voo. Levei
o avião por sobre os distritos residenciais por alguns segundos. — Deteve-se. Bebericou novamente, tirou o copo dos lábios, e olhou para o
fogo. Havia um brilho vermelho refletido nas órbitas de seus olhos, o que lhe dava um olhar terrível. — Todas as bombas chegaram lá, do meu
Thunderbolt. Todas elas. Direto sobre as casas, as ruas, os abrigos. Eu estava matando alemães. Não pode saber que alegria isso traz a um
homem realista, Celeste.
Olhou o seu coto, longa e fixamente:
— Foi quando isto aconteceu. Mas a troca foi mais que justa. Eu provavelmente matei grande número de alemães. Paguei por isso com meia
perna. Foi bem pouco.
Automaticamente ergueu o copo para ela, que tornou a enchê-lo.
— E agora — disse ele, em seu antigo tom de voz, leve e caloroso com afeição — que tem feito você, Celeste? Sabe, ouvi falar a respeito de
Peter. Sofreu muito, pobre rapaz! E o bebê? Suponho que posso vê-lo?
Celeste relanceou de soslaio, e ele cogitou, fugazmente, sobre a expressão fechada e inquieta de sua boca. Ela respondeu:
— Oh, claro! Mas amanhã, Frey. Jantaremos cedo, quando você quiser. Seu quarto está pronto. — Parou, depois disse, em voz mais rápida e
animada: — Você nem sabe o quanto é bom revê-lo! Peter e eu gostávamos tanto de você, Frey... Frequentemente falávamos em você, depois
que voltamos para casa.
— Bom amigo Peter! — ele murmurou, e havia genuína tristeza em sua voz. — Suponho que eu deveria ter escrito, depois que fui para a
Inglaterra. Mas não podia pensar em ninguém lá, em Cannes, na Riviera, sem me sentir mal. É verdade que vocês estavam lá... Eu queria
decepar-me, simplesmente.
— Compreendo — falou Celeste, suavemente.
Olhou para ele com ternura. Uma velha rigidez dolorosa, nela, estava relaxando uma antiga prudência e aflição.
Conversavam agora sobre a guerra, a probabilidade do envolvimento da América, a família que ele nunca vira. Estava particularmente
interessado na última. Mas riu em protesto enquanto Celeste tentava desemaranhar as complexidades do parentesco:
— Chega! Você faz isso parecer incesto!
Celeste ficou subitamente pálida e rígida outra vez:
— E é! — murmurou. — Incesto espiritual. Você não conhece os Bouchards, Godfrey.
— Aposto que os acharei interessantes!
Celeste perguntou se se havia casado, o que ele negou, rindo:
— Não. Nunca me apaixonei. Não mesmo. Exceto, talvez, uma vez.
— E não pôde desposá-la, Frey?
Ele se inclinou para a frente para colocar o copo vazio cuidadosamente na mesa. Todos os seus movimentos eram lentos e precisos. Ela lhe
via o perfil, e já não era aberto e descuidado, como o relembrava, mas secreto e controlado. Embora sua boca sorrisse.
— Não — disse, com indiferença. — Ela já era casada. Uma infelicidade. Não havia nada a fazer. O marido era meu amigo.
Voltou-se então para ela, e em seu olhar havia uma branda suavidade, opaca e indecifrável, que dolorosamente lhe lembrava Henri. Ela o fitou,
e a seus sentidos entorpecidos pareceu que havia algo nele que sugeria poderosamente o homem ausente. Empurrou sua cadeira um pouco
mais para trás.
Ele viu isso e se aborreceu consigo mesmo. Ele a teria assustado, ou lhe teria despertado suspeitas? “Minha querida! — pensou — por que
diabos acha que estou aqui?”
Foram jantar. O salão de jantar já não estava frio e vazio para Celeste, nem cheio de sombras lúgubres. As velas ardiam calorosamente,
lançando-lhe ao rosto macia luz bruxuleante. Godfrey ficou deliciado e exuberante quando viu o jantar:
— Você não sabe o que isto significa depois do racionamento! — gritou. — Todo o rosbife que eu queria, por Deus! E manteiga! E açúcar! É
um milagre!
Comeu com apetite. Estava alegre, agradável e simplesmente feliz. Seus agudos epigramas e observações mantiveram Celeste sem forças de
tanto rir. Havia muito tempo que esta sala lhe ouvira o riso, ou sua voz viva e animada como agora. Esqueceu a mutilação dele. Seu rosto
resplandecia... os olhos eram luzes azuis dançantes... Ele não observou sua faixa de cabelos brancos, nem lhe lançou sequer um olhar. Mas
sabia que estava ali: estava completamente cônscio dela. Por vezes, nos intervalos de seu riso, ele via as marcas da dor em volta de sua boca,
e as sombras escuras sob seus olhos.
Ficaram à mesa durante horas. Quando finalmente voltaram à lareira para o café, Celeste se sentia novamente jovem e livre, leve e atordoada.
E ficaram ao pé do fogo até os últimos carvões se transformarem em cinzas, e a meia-noite ter passado há muito...
Pela primeira vez em muitas semanas, Celeste caiu no sono assim que sua cabeça tocou no travesseiro, e sorria um pouco, ao dormir. A casa,
antes tão deserta e desolada para ela, tão pobre de vida humana e de alegria, se fechava em torno dela cordialmente como as paredes
amigas de um lar.

Capítulo 66
Sempre parecera a Celeste que a dor lhe era familiar desde o mais longe que se lembrava. Acostumara-se tanto a ela que nas poucas e
dispersas ocasiões em que tivera felicidade tinha havido uma espécie de histeria em sua alegria, uma desorientação, como se estivesse
bêbada. Por vezes pensara: “Acho que posso suportar qualquer coisa tranquilamente, exceto a felicidade.” Pois a felicidade sempre criara nela
uma tensão selvagem, um espasmo emocionante que lhe fazia o coração palpitar rápido demais.
Porém a dor que sua separação final de Henri produzira fora demasiada mesmo para alguém tão habituada a sofrer. Em seu sofrimento,
abandonara toda a ideia de viver normalmente, de revelar ao mundo exterior mesmo a sombra de uma existência tranquila. Mesmo seu filho
não fora capaz de aliviar-lhe a mente da esmagadora negrura e desolação, da longa e fria miséria da desesperança e da tristeza. Começara a
vagar, como o fizera Armand, através das salas vazias de sua enorme casa, a olhar cegamente pelas janelas a paisagem outonal, sem sentir
reação a nenhum estímulo, nem preocupação nem desejos. Milhares de vezes disse a si mesma: “Mas eu sempre soube o que ele era!”
Sem embargo, a razão era impotente contra essa fria bola de ferro a pesar-lhe na garganta e no peito. Jamais gritou de desespero, pois o
desespero é irmão da esperança. Não tinha esperanças! Houve ocasiões em que se perguntou: “Que será de mim?” Porém mesmo o silêncio
que respondia à sua pergunta não tinha força para agitá-la e torturá-la. Espessa estagnação começara a estabelecer-se em seu rosto, a ecoar
em sua voz, a tornar todos os seus gestos lânguidos e pesados. Não se importava que outros soubessem. Quando Christopher a visitava e
conversava com ela, quando outros parentes literalmente a obrigavam a frequentar-lhes as casas, ela lhes respondia, olhava para eles, com
infinito cansaço e vacuidade. Ouvia-os como se de longa distância, e haviam começado a perder dimensões para ela, de modo que lhe
pareciam tediosas e irritantes sombras das quais devia tratar de livrar-se logo.
Suas manhãs eram o que havia de pior, pois durante o sono esquecia sua desolação. Por alguns segundos ficava pacificamente nos
travesseiros, vagamente fitando as janelas e pensando no filho. Depois a dor inicial, por apenas alguns instantes, voltava como agonia mortal, e
ela enterrava o rosto nos travesseiros como se para afastar sua lembrança num convulsivo ato de sufocação.
Não pensava em Henri com sofrimento. Ele era apenas o símbolo de sua dor. Não ansiava por ele, sequer desejava que ele voltasse para ela.
Seu sofrimento era como uma moléstia, que só entorpecida ela podia aturar. Houve uma ocasião em que ela descobriu já não poder respirar
com conforto, e que o mais leve esforço lhe provocara falta de ar e dor aguda. Então ficou assustada. Se morresse, que seria de seu filho? Fora
ao médico, e ele, após algumas perguntas inteligentes, e um bom exame, deu de ombros e lhe receitou sedativos. Os sedativos embotaram a
violência de sua angústia, e a deixaram sem as palpitações. Também lhe embotaram os pensamentos. Certo dia ficou espantada ao descobrir
que estava em meados de novembro. O tempo paralisara para ela.
Não era, pois, de espantar que ao acordar na manhã seguinte à chegada de Godfrey Barbour, e não sentir o odioso mergulho na agonia,
ficasse admirada. Sentou na cama e esperou. Mas nada sentiu, a não ser um curioso senso de consolo e tranquilidade. Tudo adquirira
claridade e já não era delineado pelo nevoeiro opaco da letargia causada pelas drogas. Viu uma orla de neve brilhante nos peitoris das janelas,
e os ramos de cristal da árvore que dava pancadinhas na vidraça brilhante. Viu o pálido azul do céu de novembro, riscado aqui e ali por véus
brancos. Ela pulou da cama e olhou as montanhas escuras, resplandecendo com a geada, e a vitalidade das coníferas que rodeavam a casa. O
quarto estava cheio de ar frio, porém ela continuava de camisola, as mãos e o rosto apertados contra a vidraça, a luz clara e brilhante em seu
rosto pálido e olhos fixos.
A camareira, entrando discretamente, surpreendeu-se ao ver a patroa de pé, e mais surpresa quando Celeste se voltou, sorridente. O Sr.
Barbour já se havia levantado?, ela perguntou, e quando ouviu que sim, apressou-se com o banho, e depois estudou o vestido que desejava
usar. Finalmente escolheu um de lã carmesim. Descobriu que suas mãos tremiam, e que havia uma pulsação excitada em sua garganta. Ao
sair do quarto, passou por um jarrão cheio de rosas vermelhas. Sorrindo, pegou uma flor e a colocou nos cabelos.
Desceu as escadas a correr para a sala de almoço, cuja parede sul de janelas estava cheia de plantas floridas. Godfrey lá estava em suas
muletas, olhando as colinas e a planura de neve brilhante entre elas e a casa. Voltou-se quando ela entrou, e estendeu a mão, rindo:
— Alô! Lindo lugar, minha querida! E como está bonita esta manhã!
Ela lhe segurou a mão impulsivamente entre as suas, e exclamou:
— Oh! Frey, não imagina como estou contente por estar aqui!
Ele a olhou e ficou silencioso, embora seu sorriso fosse amplo.
Mas seus olhos se estreitaram um pouquinho, indagadoramente:
— Tem certeza, Celeste? Está realmente contente?
— Oh, claro! Muito contente. Tenho estado tão só, Frey!
Suas palavras, sua voz, seu olhar eram simples e comovedores como os de uma criança; e porque ele era sutil e intuitivo, adivinhou que ela
havia estado sofrendo durante muito tempo por alguma razão que ele desconhecia. Seria pelo pobre Peter? Certamente: era isso. Lembrou do
devotamento dela a Peter, e uma pontada de algo agudo como ciúme o trespassou. Na verdade, como devia ter estado solitária em sua dor! A
família, então, não era consolo para ela, nem alegria. Nem a criança, evidentemente... De repente seu coração se ergueu irrefletido ao ver quão
fresca ela aparecia esta manhã, e como o azul profundo de seus olhos estava vivo e cintilante. Possuía uma simplicidade tão pura, essa pobre
e querida criaturinha, tal candor e sinceridade... Baixou os olhos para as mãos dela que seguravam a dele, e impulsivamente ergueu uma delas
e a beijou.
Cogitou como aceitaria ela esse gesto. Mas ao erguer os olhos viu-a sorrindo, e suas faces brilhavam. Puxou uma cadeira para ela, que o
deixou fazer — para sua gratidão — e pareceu não notar como ele oscilava em suas muletas. Sentou-se perto dela, e observou a linda mesa,
com suas pratas e cristais, com franca admiração:
— Eu havia realmente esquecido como a paz é agradável! E como é lindo a neve, e o país, e as casas iluminadas! Acho que vou gostar da
América. Quando se pensa na coisa, afinal de contas eu sou americano! Não sou? — parou, com o copo de suco de laranja junto aos lábios.
Ela fingiu levar a pergunta a sério: era toda leveza e alegria infantil. Abanou a cabeça:
— Receio que não. Você nasceu na Inglaterra, não? Seu pai nasceu na França. Que diz seu passaporte?
— Tenho um passaporte britânico. Mas, na verdade, sou americano. A propósito: em Manchester descobri uma família de Barbours que
acredito nos pertença. Lojistas. Havia um camarada que era um de nossos mecânicos. Um jovem e vigoroso bruto, de pálidos olhos cinzentos
como pedra. Notável semelhança com um parente nosso, Henri Bouchard. — Parou, surpreendido, pois de repente desvaneceu-se toda a cor
de Celeste, e seus lábios mudaram. Ela baixara os olhos; sua mão ficou parada na prataria da mesa. — Eu disse algo de errado? —
perguntou.
Ela ergueu os olhos rapidamente. Sua expressão estava completamente morta:
— Não, absolutamente. Mas é muito interessante a respeito desses Barbours. Conte-me mais, Frey.
— Não há muito que contar — disse ele, observando-a com furtiva perspicácia — conheci a família. Classe operária, porém boa e saudável.
Sim, eram nossos Barbours. O bisavô daquele jovem camarada fora um George Barbour, que tivera seus começos na América e depois fora
roubado pelo filho de seu irmão, nosso bom velho Ernest Barbour. George voltou para a Inglaterra e abriu uma loja de cortinas e panos em
geral. Esse jovem camarada, Edward, entretanto, era um bom mecânico. Disse que ia patentear uma invenção sua. Algo a respeito de um
radiodetector, ou qualquer coisa igualmente misteriosa. Disse que tinha alguns sujeitos muito interessados. Há alguma coisa nele... Quando eu
lhe disse que estava acabado, e me mandando para a América, quis saber se eu poderia interessar algumas pessoas aqui. Tenho um projeto
em minha bagagem, e talvez, se tiver tempo, eu o tirarei de lá e o farei circular entre os rapazes, para saber a opinião deles.
Celeste ouvia com interesse. Suas cores iam voltando, mas lentamente. Quando falou, foi com esforço:
— Isso seria bom para... como disse que era o nome dele?
— Edward. Edward Barbour.
Depois do café da manhã, mandou que trouxessem o bebê. Godfrey insistiu em pô-lo no joelho e balançá-lo. O garotinho brincou com seus
botões, e apalpou a fita e a medalha em seu peito. Olhou para Godfrey sem timidez, e até com um sorriso.
— Lindo diabinho! — comentou Godfrey. — E acredite ou não, tem os olhos de Ed Barbour. Essa curiosa cor cinza-pálido. Deve ser de família.
Surge aqui e ali nas gerações.
Celeste mandou vir um carro, e saíram a passeio à luz brilhante de novembro. A animação de Celeste voltara. Risonhamente fez a vontade a
Godfrey quando ele insistiu em sair do carro e permanecer na fina camada de neve.
— Vou gostar da América! — exclamou ele.
O carro havia parado perto de um bosque denso, e Godfrey via com prazer a altura das árvores. Um faisão sussurrou perto deles. A distância, a
chaminé de uma casa de fazenda fumegou contra o pálido e puro azul do céu gelado. Um cão ladrou, e o eco do seu latido chegava de trás do
bosque nitidamente. Setas de radiante luz solar e sombras de nuvens tocadas pelo vento corriam sobre o vale ondulante. Godfrey tirou o
casquete azul da RAF, e o vento fresco soprou através de seus louros cabelos. Um pouco de cor apareceu em seu rosto magro. Quando
estavam de volta ao carro, a caminho de casa, ele começou a cantar. Segurou a mão de Celeste, e o calor da sua mão penetrou através de sua
luva. Logo ela estava rindo com ele, e cantando canções populares. Seu rosto estava rosado, lindamente enquadrado pela orla de peles que lhe
guarnecia o capuz de lã. Esquecera a perna perdida de Godfrey, e quando suas muletas lhe caíram aos pés, isso aumentou a sua alegria
ruidosa, e ela fingiu ficar chocada com tal irreverência. Seus corpos estavam quentes e bem próximos sob o manto de peles.
Ela nem tentou analisar o leve delírio de seus sentidos quando se preparou para ir ao jantar da família. Não era exatamente alegria ou delícia,
ela sabia. Era, antes, a liberação de uma tensão insuportável. Usou um vestido branco e prateado, e flores prateadas nos cabelos. Nunca usara
esse vestido. Observou-se ao espelho com prazer, boca sorridente e macia.
Foi Godfrey quem pôs a capa branca de peles em seus ombros nus. Ela estava muito estonteada para notar como as mãos dele se
demoraram um ou dois minutos, ou como seus dedos lhe roçaram a carne macia. Contudo, ao voltar a cabeça e olhá-lo, o coração dela parou
estranhamente, por um momento: pois ele estava muito pálido, boca seca, e com os olhos cheios de uma luz peculiar.
Ela sabia que Henri e Annette estariam no jantar de Agnes. Mas nem uma só vez, durante a ida para a casa de Emile, pensou em Henri. Era
como se sua consciência tivesse encerrado o pensamento dele numa cápsula espessa que não podia ser penetrada. Entretanto, na ocasião
em que o carro fazia a curva na comprida avenida que levava à casa, ela estava cônscia de uma vaga insensibilidade, e uma obscuridade em
sua mente.

Capítulo 67
Mesmo a cruel expectativa da família de observar o encontro de Henri e Celeste passara a segundo plano ante sua curiosidade quanto a
Godfrey Barbour. Há tanto tempo não havia um Barbour ativo na família! Especularam sobre sua pobre condição financeira, suas razões para
vir para a América, e sua aparência. Seria um musicista como o avô, o primeiro Godfrey? Talvez até escrevesse livros, Deus não permita!
Estaria em busca da caridade da família? Se assim fosse, tinha vindo ao lugar errado. Estavam aborrecidos por Celeste ter dado tão poucas
informações a Agnes, e Agnes ficava exasperada quando lhe faziam as mesmas perguntas repetidamente.
— Já lhes disse, não sei! Ele chegou noite passada. É tudo que sei. Mas Celeste parecia animada e contente. Ela e Peter foram grandes
amigos de Godfrey, na França.
— Oh, provavelmente é um desses malditos refugiados... — comentou a vitriólica Rosemarie com sua morena e afetada irmã Phyllis. — Ou em
busca de dinheiro para uma porção de piolhentos franceses livres, ou poloneses, ou Deus sabe o quê.
— O país está assolado com essas criaturas — disse Phyllis. — Viveremos o bastante para lamentar isso: é influência comunista, claro. Todos
são comunistas.
Celeste e Godfrey chegaram um pouco atrasados. Quando foram anunciados, correu um sussurro pela família, reunida em torno do fogo em um
dos enormes salões de Emile. Mal enxergaram Celeste em seu radioso vestido prateado. Pois, quando viram Godfrey em seu uniforme,
oscilando em suas muletas, um sorriso divertido e observador, toda a família tomou um longo fôlego e o prendeu. Caiu sobre eles um estranho
e pesado silêncio; ficaram todos parados, como que paralisados. As luzes da lareira relampejavam nas joias e brilhantes longos das senhoras,
mas era como se esses vestidos tivessem sido modelados sobre bonecas imóveis, e os rostos voltados para Celeste e Godfrey pareciam
máscaras.
Por timidez, Celeste não era pessoa que tivesse muita presença, mas esta súbita confusão de seus parentes lhe deu vantagem. Com grande
serenidade, e sorrindo um pouco, apresentou seu hóspede. Levou-o de um grupo a outro, e ele os olhava com atento interesse, olhar brilhando
agudamente sobre cada rosto. À medida que se ia adiantando no salão, os já apresentados ficavam a fitá-lo sem expressão.
Conheceu o pequeno e moreno Jean, que não aparentava idade em sua modesta obesidade e grande afabilidade, e sua esposa, a grande,
loura e estúpida Alexa. Deduziu que Jean era irmão de Peter, falecido marido de Celeste, e presidente da Sessions Steel Company,
subsidiária de Bouchard & Sons. Ele viu o encanto real desse homenzinho vivaz, que para ele — que não era um ingênuo — compensava muito
da natural vilania que cintilava em seus olhinhos dançantes. Seus filhos olharam Godfrey com a curiosidade permitida pela moderna falta de
maneiras.
Depois foi a vez do bacharel Nicholas Bouchard, de cinquenta e três anos, filho de Leon Bouchard, irmão de Jules, presidente do Windsor
National Bank, e diretor tanto da Manhattan Merchants Trust Company quanto do internacionalmente poderoso Morse National Bank, controlado
por Jay Regan. Godfrey não foi atraído por Nicholas, “aquele sujo”, pois Nicholas era curto e tosco, obstinado e avarento até ante o olhar mais
casual, de expressão tenaz e truculenta e habilmente astuta. Sua tez era esverdeada; e seu cabelo curto e eriçado, outrora de um matiz
esverdeado também, compunha-se agora de desordenadas manchas de um grisalho desalinhado. Resistira com êxito às tentativas das
cunhadas para casá-lo, e agora, que tinham falhado, elas o contemplavam e diziam, abertamente: “Ora, foi uma bênção para alguma mulher
que ele nunca se casasse.” Ele não era apenas malvestido, mas dava a impressão de roupas de baixo sujas e roupas sem passar a ferro.
Rosnou quando Godfrey lhe foi apresentado, não lhe estendeu a mão, e fitou o jovem com aqueles apertados olhinhos verdes cruéis e sórdidos.
Alexander, o “Diácono”, de compleição avermelhada, barriga enorme, pernas compridas, grande rosto liso, e cabelo grisalho encaracolado,
inspirou aversão a Godfrey, assim como sua mulher, pequena, de sorriso afetado. Ele era vice-presidente da Sessions. Cumprimentou Godfrey
em voz estrondosa, inserindo um chavão como “o sangue é mais espesso que água”, afinal de contas, e Godfrey sentiu que pouco seria preciso
para que se lançasse a um sonoro sermão. Era evidente que se julgava o pilar virtuoso da família.
Havia o fulvo Hugo, e sua gentil e bonita Christine, e uma de suas filhas. Hugo, o político, nunca esquecia que todo homem era um votante em
potencial e, embora soubesse que Godfrey era súdito britânico, não pôde deixar de fazer um discurso brilhante. Apertou-lhe a mão
calorosamente.
E havia Christopher, suave e crestado, com seus prateados olhos “egípcios”, que recebeu a apresentação com polida cordialidade. “Perigo!”
— pensou Godfrey. Gostou da morena Edith, simples e inteligente, que o olhava diretamente com lindos olhos castanhos, e cogitou como podia
aturar o marido. Francis lá estava, com sua graciosa Estelle, e embora Godfrey reconhecesse o velhaco, também confessou a si mesmo que
de muitas maneiras Francis podia ser considerado um “bom” homem. Sobre o baixo, moreno e gordo Robert ele passou com indiferença, com
repulsa por suas feições grosseiras e estúpidas, mas sorriu simpaticamente para sua linda esposa.
Emile, o anfitrião, grande, moreno, muito amável, lhe causou uma aversão instantânea, e ele tivera consciência de uma retraída repulsão por
ele, não obstante grande compreensão. Agnes, ele admirou como uma mulher honesta.
Olhou para Rosemarie, filha de Francis, e admirou-lhe a ardente e perigosa perfeição: instantaneamente pensou que ali estava uma libertina
natural e uma mulher fatal. Ficou aborrecido com o modo satírico de observá-lo e a argúcia de seus lábios pintados. Ele estava apenas
interessado nas evidências de sua crueldade, ganância e oportunismo. Phyllis Morse, irmã dela, ele considerou uma tola, com seus modos
piegas e os mesquinhos e acanhados olhos escuros. Era vulgar — ele decidiu. Seu marido, filho do poderoso Richard Morse do Morse National
Bank, ele descartou como um robô, medroso, intolerante e estúpido. A mais velha de suas filhas estava lá, Bernardette, e ele ficou admirado
ante a beleza loura da menina de dezesseis anos de radiantes olhos azuis. A sensibilidade dele não fora realmente afetada por ninguém,
porém ele demorou-se analisando essa criança, cônscio de um sentimento de estranha tristeza nele mesmo. Mais tarde, ao saber que Phyllis a
destinava a um convento de freiras, sentiu-se tão chocado como se tivesse sido informado de que ela iria ser sacrificada a Moloch num altar
fumegante. De algum modo — decidiu — essa criança deveria ser salva dos planos da mãe monstruosa, e ficou a imaginar se a própria beleza
dela não teria inspirado a pouco atraente Phyllis em sua determinação de enclausurá-la.
A esse tempo Godfrey estava um pouco estonteado com o número de seus parentes, e seu parentesco mútuo e com ele mesmo. Celeste, muito
divertida, tentava esclarecê-lo após cada apresentação, mas depois de algum tempo, ele começou a sacudir a cabeça enfadonhamente, e a
cumprimentar cada novo estranho com uma risada.
Estavam lá alguns dos grandes, louros e silenciosos Norwoods: compreendeu vagamente que eram um ramo colateral da família devido ao
casamento da mãe de Jules, Florabelle, com um Major Norwood há muito tempo, antes da Guerra Civil. Ele não tentou memorizar-lhes os
nomes. Viu que, a despeito da fortuna e da posição, eram pessoas sem importância. Concluiu que certo vigoroso rapagão se chamava Ernest
Barbour Norwood, e quando viu o grande rosto rubicundo e os olhos azuis vazios, mal pôde conter uma risada meio debochada. Esse rapaz era
um pouco menos silencioso que os parentes imediatos, e de repente perguntou a Godfrey se estava muito interessado no próximo jogo entre
Notre Dame e Yale.
Enquanto aconteciam essas apresentações, chegaram Antoine e Mary. Henri e Annette ainda estavam ausentes. Ao ver Antoine, o interesse de
Godfrey reviveu e se sentiu estimulado. Reconheceu nele um camarada, um europeu de bom gosto, polidez e intelecto, um homem de classe,
graça e educação. “Decadente como o diabo, como todos nós!”, pensou Godfrey, apertando as mãos de Antoine com real cordialidade e
prazer. E Antoine, olhando atentamente para o outro, sentiu o mesmo instantâneo magnetismo de reconhecimento e, embora tivesse planejado
divertir-se, sentiu, antes, amizade e camaradagem.
— Vi-o uma vez em Paris! — exclamou Godfrey com entusiasmo — embora nunca nos tenhamos encontrado. Foi no salão da Marquesa de
Durand. Você estava combinando muito bem com a pequena protegida dela, Eloise, e apesar de que eu tivesse suspeitado de que éramos
parentes, achei que não seria delicado interromper.
— Ah, a Marquesa! — exclamou Antoine, em francês, com aquele sorriso cintilante, e acrescentando algo altamente impróprio, porém muito
mordaz.
— Ah! Eloise! — disse Godfrey, também acrescentando uma observação no mesmo idioma. Riram juntos. Se Antoine ficara curioso à vista
desse jovem com suas muletas e seu uniforme, e se preparara para ser humorístico a tal respeito, esqueceu isso instantaneamente. Disse:
— Vejamos se temos uma oportunidade de ir para um canto e conversar...
A pequena Mary ficou a olhar, sem jeito, de um para outro, as bonitas sobrancelhas juntas como se ela ruminasse a respeito dessas mútuas
observações e tentasse entendê-las com seu limitado francês. Achou a alegria deles muito esquisita, na verdade. Havia muito tempo não via
Antoine tão contente.
Justo nesse momento Henri e Annette foram anunciados, e embora Godfrey estivesse deliciosamente absorto em sua diversão com Antoine,
não pôde deixar de dar-se conta de que se seguira um silêncio estranho, como à chegada de alguma alta personalidade temida e odiada.
Pensou:
“Ora, é como se tivesse soado uma fanfarra, e as fileiras se abrissem para dar-lhe passagem!”
Celeste estava de pé ao seu lado, suave e bela em seu vestido prateado — e novamente a aguda sensibilidade de Godfrey o tornou cônscio de
uma súbita rigidez nela, uma palidez e frieza. Olhou para a arcada, com a mais intensa curiosidade.
Quando Henri entrou, com Annette, ele compreendeu imediatamente. Ali estava a imagem de Ernest Barbour, dos pés a cabeça! Eram os
olhos pálidos de Ernest Barbour, e os lábios grossos e pesados. Godfrey olhou o parente, e soube que era a antítese de tudo que ele e Antoine
representavam, tudo que era alegre, caloroso, vital e suave, e tudo que era decadente. Antoine lhe murmurava ao ouvido:
— Aí está o Poder dos Bouchards. O Velho Cara de Pedra. O Homem de Ferro. E isso não é pose: ele é tão repulsivo como parece. A dama
com ele é minha irmã. — E a voz de Antoine se suavizou. Godfrey o olhou, surpreso. Antoine fitava Annette com carinho e uma tristeza peculiar.
Por alguma razão, Celeste parecia não poder mexer-se. Godfrey lhe deu uma olhadela surpresa e deixou-se guiar por Antoine até aos recém-
chegados. Antoine não tentou ajudar Godfrey, a oscilar desajeitadamente em suas muletas, mas diminuiu os passos, e uma vez, numa rápida
olhada ao outro homem, seu rosto moreno se contraiu de pena e simpatia.
Godfrey emocionou-se com Annette, e sentiu imediata afeição pela adorável criaturinha de imensos olhos azuis. Nela só via bondade, doçura e
compreensão. Viu também, quando ela o observava a aproximar-se, que aqueles olhos se enchiam de lágrimas. De certa forma, isso não o
aborreceu, como aborrecera em Celeste. Com sua sutileza, discerniu que não era piedade que a inspirava, mas tristeza e pesar. Pegou sua
mãozinha e a beijou.
E, ao fazê-lo, sentiu na própria carne a força impassível e o poder do homem que esperava ao lado dela. Trocou um aperto de mãos com Henri.
A mão de Henri era seca, rija e larga, e sem a menor pressão na palma. A vivacidade natural e a alegria de Godfrey foram momentaneamente
dominadas. Porém ele olhou para Henri e os olhos de ambos de prenderam em instantânea e devastadora antipatia e repulsa.
— Acho — disse Godfrey com reservas — que temos o mesmo bisavô. Meu avô e sua avó eram irmão e irmã. Que é que isso faz de nós?
— Uma espécie de primos distantes, creio — disse Henri, com a mais completa indiferença. Acrescentou: — Estranho que eu nunca tenha
ouvido falar de você...
— Oh! Eu ouvi a seu respeito! — replicou Godfrey. Agora o brilho voltara a seus olhos castanhos.
Os largos ombros de Henri se mexeram numa dúvida. Com franqueza brutal olhou o coto de Godfrey e seu uniforme, dizendo:
— Onde arranjou isso?
Godfrey olhou para o coto, e cuidadosa e lentamente deixou que seus olhos percorressem o uniforme. Assumiu uma expressão de grande
surpresa. Vendo isso, Antoine sorriu deliciado, recuou um pouco e aguardou.
— Oh, isto! — exclamou Godfrey, numa voz fresca e ingênua. — Realmente eu nunca havia notado isto antes! Engraçado, não? Podem
acontecer coisas à gente e nunca as notamos. Nunca se deu isso com você, Henri?
O rosto pálido de Henri se transformou: manchas de vermelhidão lhe apareceram nas faces. Olhou hostil para o outro. Alguns dos parentes que
estavam mais perto, sentindo que ia acontecer algo de interessante, se aproximaram deles lentamente. Incerta e confusa, Annette olhava
humildemente de um para o outro.
Godfrey firmou-se nas muletas. O rosto moreno e cheio de mobilidade brilhava com entusiasmo juvenil:
— Olhe, consegui uma comissão na Real Força Aérea. Acidentalmente, sabe. Na verdade, eu mesmo fiquei surpreso ao ver-me de uniforme.
Uma completa reação “Alice-no-País-das-Maravilhas”. Foi como um sonho. E depois aconteceu uma coisa engraçada: eu não parecia
absolutamente grotesco, mas sim muito natural.
— Natural? — repetiu Henri. Sua voz era surda, mas Antoine sabia que ele estava irritado com esse engodo. Apareceram sorrisos nos rostos
dos parentes reunidos.
— Bem, sim — disse Godfrey, baixando a voz confidencialmente. — Não a princípio. É como se eu me tivesse metido na toca do coelho, como
Alice, e topasse com todo tipo de lugares esquisitos. Como sabe, sou cidadão britânico, mas, como vários de minha classe, não me preocupo
particularmente com a Inglaterra. Você ficaria realmente surpreso se descobrisse quantos como eu não se importam com a velha Inglaterra.
Aborrecido, sabe. Lá só tem frio e pudim de ameixa. Toda esta espécie de coisas. E então, lá estava eu de uniforme. Deve ter sido trabalho de
minha mente subconsciente. “Mente subconsciente”, disse eu, quando me vi nessa situação, “que diabo veio fazer aqui?” E então me ocorreu,
nitidamente. Eu odiava alemães. Todos os alemães. E tudo que fosse alemão. Todo e qualquer varrão, porca e leitão. “Então, disse eu, é muito
simples: entrei nesta pantomima, assim terei oportunidade de matar porcos humanos. Montões de porcos. Simples!”
Henri estava silencioso. Godfrey o olhou com seus olhos risonhos. E então, com uma inclinação de cabeça, voltou-se para Antoine, que se
afastou. Godfrey foi com ele. Antoine enfiou a mão no braço de Godfrey, não como ajuda, mas como camaradagem.
— Sabe — disse Antoine — gosto muito de você. Realmente, gosto demais!
Godfrey viu Celeste, isolada. Em seu fulgurante vestido prateado era como um esbelto pilar de gelo.
Godfrey, de olhos contemplativos em Celeste, disse a Antoine:
— Todos vocês se odeiam radicalmente, não? Por quê?
— Tradição de família — explicou Antoine, sorrindo. — Construímos isso cuidadosamente, através dos tempos. Se começássemos a amar-nos
mutuamente, isso daria cabo da lenda. E onde estaríamos nós?

Capítulo 68
Foram todos para o imenso salão de jantar. “Galeria de horrores” — pensou Godfrey. Há muito se acostumara à melancolia e decadência dos
salões de jantar europeus, mas neles não havia pretensão, nem artificialidade. Mas aqui havia pretensão, afetação autoconsciente e
determinada a ser natural.
O pretensioso castelo de Emile, com seus terraços bem arranjados, tinha um ar falso e desorientado nas melhores ocasiões. O salão de jantar
enfatizava esse ar. Era cheio de uma luz incerta e cambiante, provinda de um gigantesco candelabro que, embora resplandecente com enorme
quantidade de velas altas e finas, era incapaz de iluminar a atmosfera espectral. As paredes eram distantes, sombrias e frias, encobertas por
tapeçarias e estandartes conquistados com o tempo. Por toda parte, Godfrey tinha consciência do crepúsculo frio, e de lanças distantes e
armaduras manchadas. Os da família tomaram seus lugares em volta da imensa mesa do refeitório, coberta de renda e sobrecarregada de
cristais e prataria brilhando delicadamente sob as pálidas luzes das velas. Esta sala medieval era grotesca na robusta e fulgurante América, e
Godfrey lhe lançou um olhar cínico polidamente dissimulado. Seu olhar disfarçado abarcou os graves retratos sombrios entre os estandartes, e
cogitou onde Emile os teria conseguido. Sorriu à complacente sugestão de que esses longínquos rostos pintados seriam de ilustres ancestrais.
Era um insulto a esses rostos e sua antiga tradição. Chegou a uma conclusão cruel a respeito de seus parentes: “Bastardos vulgares com
ilusões de grandeza” — pensou. Não se pode apagar inteiramente a marca do camponês — a marca do animal, assim a denominava Godfrey,
felizmente observando para si mesmo que também ele provavelmente portava essa marca.
Divertindo-se com esses pensamentos secretos, olhou em torno da mesa. Antoine ali, tão moreno e tão elegantemente sofisticado, não possuía
marcas visíveis do animal. Os olhos de Godfrey foram de rosto em rosto, rubicundo ou fino, grave ou insípido, selvagem ou rabugento, vigilante
ou estúpido — e sua delícia aumentou. Por fim seu olhar tocou em Celeste, e parou abruptamente. Sentava-se do lado oposto ao seu,
silenciosa e imóvel, sua linda mão apenas tocando um copo de vinho. A essa luz incerta e crepuscular, ele absorveu inteiramente o firme e
delicado desenho de seu rosto alvo, seu vigor de raça. A mecha cor de neve de seus cabelos estava alisada para trás. A boca, de brilhante
colorido, era rigidamente esculpida, e os olhos azuis, raramente erguidos, traíam uma perturbada e inerte abstração que assegurava a Godfrey
que sua mente voara para bem longe do corpo. Não olhava para ninguém. À sua direita sentava-se o avermelhado Alexander, e à sua esquerda
estava o cunhado, o pequeno e efervescente Jean. Não falava a ninguém. E eles, por sua vez, a ignoravam como se não estivesse ali. Por que
isto? — ruminou Godfrey, zangado. Teria ela caído em desgraça diante da Família? Se assim era, ela parecia não ligar.
À direita dele sentava-se Annette, e a cada vez que se virava para ela, ela o olhava com um rápido e brilhante sorriso, tímido e caloroso.
Coisinha adorável! Sentia ímpetos de beijá-la ternamente. À sua esquerda ficava a grande e estúpida Alexa que, embora cinquentona, era loura
como manteiga!
“Belo pessoal!” — pensou Godfrey. Já não se sentia relacionado com nenhum deles, exceto Antoine, sentado a pequena distância. Ao
encontrar o alegre e significativo olhar de Antoine soube que seus pensamentos tinham sido lidos. Sorriu em resposta. Antoine estava
demasiado longe para uma conversa sussurrada. Mais tarde, talvez.
Estudou-os a todos, refletindo acerca deles, cinicamente. Não eram sequer decadentes, à exceção de Antoine. A decadência tinha um perfume
— mesmo que fosse o perfume da morte. Havia graça na decadência, um esmalte maduro, uma consciência adulta. Tinha a beleza de algo
delicado que já morrera. Mesmo na morte, era muito mais pungente, muito mais nobre e sublime que a vida aqui: sórdida, avarenta e brutal. Os
bárbaros haviam assumido o comando — ele observou intimamente. Vive le barbare!
Emile — observou ele gratamente — tinha um chef francês. Não esperara por isso. Comeu com satisfação. Os vinhos estavam uma perfeição!
Notou que os Bouchards, aparentemente, não davam importância a vinhos. Antes do jantar se haviam enchido de horríveis coquetéis e uísque
acre. Sabiam que se esperava deles que fossem juízes de vinhos, e o divertia enormemente vê-los provar, bebericar, olhos semicerrados,
lábios franzidos, como se estivessem examinando rigorosamente. Porém, após o primeiro golinho ostentoso, os copos permaneciam quase
cheios.
Godfrey se sentiu flutuante. Também ele se havia “enchido” antes do jantar. Precisa-se de uma anestesia, diria, para poder aturar um universo
onde não havia o menor indício de importância. Aristóteles estava enganado: nada leva a lugar nenhum.
Polidamente Jean indagou quais os planos de Godfrey. Quando ele os informou francamente de seu trabalho em Hollywood, viu o divertido e
superior esgar de suas bocas. Mas Alexander franziu a testa:
— Coisa ordinária! — observou, ficando mais avermelhado que nunca. — Coisa depravada. Imoral. Temos o Hays Office, e a Legião da
Decência, mas a imundície se insinua em tudo. Além disso, ações de cinema não têm pago dividendos ultimamente.
— Al Milch — disse Godfrey — vai fazer curtas-metragens para o Governo dos Estados Unidos. Talvez vocês chamassem a isso propaganda.
Mas o grande louro Norwood interrompeu:
— Você precisará de muito dinheiro para esse tipo de coisa...
Godfrey viu a súbita e intensa curiosidade nos rostos que o rodeavam. Riu intimamente. Sabia que estavam morrendo por saber se ele tinha
dinheiro. Sacudiu a mão alegremente:
— Dinheiro! — disse, com sublime desdém. Os rostos ficaram descontentes, e inseguros. Ele não os esclarecera.
Continuou:
— Esperamos fazer também alguns filmes de guerra. Tentar mostrar os suínos alemães em perspectiva. Adorarei fazer isso.
— Propaganda! — explodiu Alexander, mexendo-se pesadamente em sua cadeira, como se o seu traseiro tivesse sido espetado. — Então é a
isso que Hollywood está disposta! Montes de judeus determinados a meter-nos na guerra! Mas não queremos. Por Deus, não queremos! — E
socou a mesa tão pesadamente que a prataria dançou. — Não conseguirão meter-nos nesta guerra!
O sorriso de Godfrey permaneceu. Mas agora era perigoso, e fixo. Olhou atentamente para Alexander, como se o estudasse:
— Não? — falou, maciamente. — Receio que esteja enganado. A América estará nesta guerra em breve. Um par de anos atrasada, como de
costume. Você não poderá fazer nada a este respeito. Será feita por vocês.
Esperara muxoxos divertidos e indiferença, e ficou surpreso ao ver o quão subitamente atento e preocupado parecia cada rosto, menos o de
Celeste, que permanecera pétreo e branco como o de uma imagem. Henri até se inclinou um pouco para a frente, os olhos descorados sem
piscar. Nicholas resmungou desagradavelmente. Francis ergueu a mão e ocultou a boca com os longos dedos ossudos. As negras
sobrancelhas de Emile se franziram. Christopher virou-se em sua cadeira para encarar Godfrey. Todos os demais fitaram Godfrey como se ele
fosse uma criatura bizarra.
Ele olhou-os a todos, e uma enorme repulsa e aversão por eles lhe encheram o espírito.
— Vocês não poderão fazer nada a este respeito — repetiu, na mesma voz macia. — Serão atacados. E em breve. Oh, sei tudo a respeito de
suas seis mil milhas de água a oeste, e três mil milhas de água a leste. Ouvimos tudo sobre isso na Europa. Porém eu dificilmente julguei
possível que os americanos fossem tão estúpidos. Fazia mais alta opinião de vocês. Sinto que não seja justificada.
Nicholas se recostou na cadeira, e meteu os polegares no colete. Olhou furioso para Godfrey:
— Então entraremos na guerra, hein? Maldito absurdo! Não ousariam atacar-nos. Isso é propaganda! Não podem amedrontar-nos! E quem nos
atacaria? Hein? Hein?
— O Japão — disse Godfrey.
Um silêncio estupefato encheu o salão. Até os muitos criados pararam no ato de retirar os pratos. Os candelabros bruxuleavam sobre aquelas
estátuas. Mas Henri começara a sorrir inescrutavelmente. Esfregou o lábio com o indicador.
Então Hugo gritou, atirando para trás a massa de cabelos nevados:
— Japão! Droga! Ora, justamente agora temos a Missão Japonesa em Washington, e, como membro do Departamento de Estado, posso
garantir-lhe, jovem, que quaisquer leves diferenças que tenhamos tido com o Japão no passado estão agora sendo resolvidas amigável e
satisfatoriamente.
— Não obstante — disse Godfrey, amável — será o Japão. Amanhã? Na próxima semana? No próximo mês? Não sei. Mas será o Japão.
Vocês verão. É realmente possível que você, especialmente, seja tão obtuso? Ou é do seu interesse fingir que é?
Então Phyllis disse, em voz alta e ácida:
— Oh! Você é mesmo um inglês! Gostaria de meter-nos nesta guerra comunista! Tudo é apenas imperialismo britânico, e propaganda russa.
Nosso sacerdote, o Padre O’Connell, nos disse isso, e ele é uma autoridade em casos internacionais.
Sua observação banal atraiu sobre ela olhares zangados do resto da família, que nunca aceitara o seu catolicismo.
— Guarde esse refugo romano para si mesma — disse-lhe a amável irmã, Rosemarie.
Porém a família, embora olhasse carrancuda automaticamente para ela, ouvira claramente as últimas observações de Godfrey.
— Nosso interesse? — repetiu Jean, erguendo as sobrancelhas. Ele sorriu, aparecendo-lhe todas as covinhas. — Segundo a lenda, nós, os
Bouchards, a Dinastia da Morte, devemos oferecer sacrifícios aos Quatro Cavaleiros do Apocalipse, ou algo assim, ante a probabilidade da
guerra. Temos tido lucros com guerras: logo, guerra, de todo jeito. Apesar disso, não queremos guerra; não a teremos.
Godfrey apoiou os cotovelos na mesa e inclinou-se para Jean. Estudou-o atentamente:
— Sim, compreendo. Isso é o que me preocupa. Por quê?
Jean sorriu radiante. Mas os seus buliçosos olhos negros estavam ameaçadores. Não respondeu.
Godfrey balançou a cabeça reflexivo:
— Aqui há coisa! — observou. — Definitivamente, isto me cheira mal. Sim, definitivamente.
Nicholas e Alexander trocaram rápidos olhares. Nicholas tossiu, fazendo ruídos grosseiros. Disse:
— Absurdo! Não fique procurando fantasmas. Ridículo! Você é débil mental? Viveu na Europa muito tempo! Aqui temos um ponto de vista mais
limpo e mais claro. Japão! Inferno! Por que o Japão nos atacaria? Por quê?, pergunto-lhe.
— E eu — disse Godfrey — estou perguntando a vocês. Sabem a resposta, não sabem?
Quando Nicholas, furioso, não respondeu, Godfrey se voltou com amplo e relaxante sorriso para os demais. Inclinou a cabeça ante Agnes, que
estivera ouvindo com tenso interesse:
— Estou estragando o seu jantar, querida?
— Não, meu bem — ela replicou, rindo. — Você o está tornando interessante. Não faz ideia de quão estúpidos são esses Bouchards em
jantares... Comem, deixam a mesa, e logo vão dormir de olhos abertos. Vá em frente.
— Então — falou Godfrey, expansivo — começarei imediatamente a fazer-me ainda mais desagradável, no interesse do estímulo! Minha
querida família, não gosto de vocês. Mesmo quando não os conhecia não gostava de vocês. Ouvi de tudo a respeito de vocês. Acompanhei
suas carreiras com o mais lisonjeiro interesse.
Robert, o grosseiro, interrompeu rudemente, com um brilho naqueles olhos de peixe:
— Falemos a seu respeito, está bem? Talvez você seja mais interessante.
— Oh! Eu sou, sou mesmo! — gritou Godfrey — Vocês não fazem ideia de como sou absorvente! Poderiam ler a meu respeito durante
semanas com paixão inquebrantável. Vivi em toda a Europa. Vi as marionetes e aqueles que as manipulavam. Muito divertido. Para algumas
pessoas. De certo modo, isso não era divertido para mim. Talvez eu seja, por natureza, mais asseado.
Olhou novamente para Celeste. Sentiu-se gratificado ao ver que sua insensibilidade se havia abrandado. Seus olhos azuis se haviam voltado
para ele firmemente. Havia uma linha trêmula em torno de sua boca. “Minha muito querida! — ele pensou — aqui existe algo ou alguém que a
atormenta. Não sei quem é ele, mas o estrangularia. Continue apenas a olhar-me assim e ficará surpresa com os dragões que posso
enfrentar!”
— Viajar tanto não custa dinheiro, muito dinheiro? — continuou Robert.
A família parecia contente por deixar esse boi desse rapaz molestar o recém-chegado, pois todos sorriam. Menos Henri. Dobrara os braços
solidamente apoiando-os à mesa, e sua grande cabeça taurina se curvava para Godfrey com um interesse que o rapaz preferiu considerar
lisonjeiro.
— Dinheiro! — gritou Godfrey. — Tive dinheiro, meu filho! Não demais. Papai foi infeliz em seus investimentos. Foi envolvido no escândalo da
corretagem de penhores, e creio que perdeu muito dinheiro com isso. O nome dos dois velhacos me escapa justamente agora. Mas não
importa. Eu sou mais cuidadoso. Consigo manter-me à tona. Com a ajuda de amigos.
Encontrou os olhos de Antoine, que o ouvia deliciado. Antoine o saudou quando o olhar de Godfrey tocou o dele. Estimulado, o jovem se
preparou para lanços mais arrojados, ante a saudação de um amigo.
—- Provavelmente você obteve uma pensão do Governo britânico — sugeriu Robert.
— Sim — admitiu Godfrey. — Porém muito pequena. Na verdade, eu não queria pensão em absoluto, só por ter perdido uma perna na alegria
de matar alemães.
Phyllis interrompeu, com um gritinho:
— Como pode ser tão sanguinário! Nunca ouvi nada parecido! Acho que os alemães são muito caluniados. O Padre O’Connell...
— Que se dane o Padre O’Connell, que provavelmente esconde literatura nazista sob o hábito negro! — disse Godfrey, alegremente.
Foi uma risada geral em torno da mesa. Godfrey estava lisonjeado. Aparentemente pouca agudeza era preciso para despertar a hilaridade de
estábulo de seus parentes. Phyllis o olhou com ódio. Ele se afastou dela, com momentâneo endurecimento da boca.
Francis falou, com seriedade:
— Agora, falando sério. Estou realmente interessado nesse seu negócio de filmagens. Suponho que se precisa de muito dinheiro para produzir
filmes. Como pretende arranjar-se?
— Bem, você tem uma boa história, então vai ao banco, ou a outros interessados, e diz: “Olha aqui, meu camarada, tenho aqui algo de valor.
Você gostará disto. Já tenho as estrelas escolhidas. Que me diz?” Então aqueles mascam um pouco, franzem a testa, cospem, vão ao
barbeiro, tiram uma ou duas horas de folga para visitar uma amiguinha particular, e voltam todos refrescados e cheios de energia. Então
estudam os fatos, e tentam roubá-lo. Se você é esperto, é você que os rouba. Ou, pelo menos, você transige. Eu não sou muito disso. Deixo
tudo com Al Milch, que há anos vem lutando com essa gentalha. Quando o dinheiro está garantido, ponho-me ao trabalho. Acho que teremos
êxito em Hollywood. Al já tem boa reputação, e eu estou modestamente navegando nas suas águas.
Então Henri falou:
— Você disse algo a respeito de filmes de guerra e filmes de propaganda para o Governo. Gostaria de saber mais a respeito.
Godfrey o olhou bem nos olhos, em dúvida. Depois começou a explicar. A família, não muito interessada, começou a bocejar, a olhar com fastio
para seus pratos. Mas Celeste, que voltara à vida como uma estátua transformada em carne, ouvia com a maior atenção.
Bem no meio de sua exposição Godfrey se deu conta de algo: enquanto Henri parecia olhar só para ele, frequentemente olhava para Celeste,
sem a menor mudança de expressão, entretanto. Era um duro olhar masculino. A boca de Godfrey continuou a mover-se, porém, sua mente
rápida se retraíra. Não gostou daquele olhar, dirigido tão penetrantemente e com tanta frequência, para Celeste. Indicava posse arrogante e
desdenhosa. Encontrou oportunidade de relancear-lhe os olhos. Porém ela olhava só para ele, e quando seus olhos se encontraram, ela sorriu
rápida, os olhos brilhando.
“Haverá algo por aqui?” — pensou Godfrey, com zangada inquietação, e alguma coisa que muito se parecia com alarma e apreensão. Mas
quando tornou a ver Celeste, ela ainda olhava somente para ele.
Henri se mexeu, moveu um pouquinho os braços dobrados, depois que Godfrey concluiu, e disse de modo distraído:
— Muito interessante. Vou pensar a respeito.
Alexander, vendo o interesse de Henri, também se interessou:
— Tenho um lote de ações de Cordon-Imson-Blaine — disse. — Conhece algo a respeito? Não pegaram um dividendo decente desde o Crash
(Crash = Colapso financeiro de 1929. (N. da T.)). Godfrey respondeu com a maior gravidade:
— Pode ficar tranquilo. — Cuidarei pessoalmente do seu caso com o Sr. Cordon quando chegar lá.
— Hum! — resmungou Alexander. — Muita gentileza sua.
A família tornou a cair na gargalhada. Alexander, confuso e indignado, tirou o charuto da boca e os olhou furioso. Até Celeste riu. Para um
homem, pelo menos, o som daquele riso foi surpreendente. Foi o som que ouviu acima da hilaridade geral, e era claro, límpido e fresco como o
de um regato liberto do gelo hibernal. Voltou para ela os lentos olhos implacáveis e estudou suas novas cores, e a gentil jovialidade de seu
rosto corado. E depois de lhe ver o rosto, voltou-se novamente para Godfrey e o contemplou em silêncio, imóvel.
— Eu, também, tenho um bloco de ações de Cordon-Imson-Blaine — disse Christopher. — Filmes de guerra, foi o que disse? Pelo que sei, o
povo anda farto deles, e só quer algo mais apropriado à sua mente ignorante. Tal como pernas de prostitutas louras em atitudes provocantes, e
belos traseiros redondos.
Godfrey passou a dar atenção a Christopher, examinando-o com a maior candura:
— Então pensa que isso é o que todos querem, não? — perguntou, pensativo. — Acha que é o nosso moderno substituto para pão e circo?
Bem, não concordo com você. Naturalmente, existe uma boa quantidade de imbecis entre a massa do povo, admito. Mas realmente acho que
também há uma boa quantidade de imbecis na nossa classe. Ou, perdão — e inclinou a cabeça, com ironia — deveria dizer: sua classe. Ainda
não alcancei o nível de vocês. De toda maneira, talvez nenhum de vocês precise procurar muito longe para encontrar débeis mentais entre seus
conhecidos. Ou mesmo entre a família. Ao que sei, ainda não conheço a todos.
Christopher sorriu. Tirou o cigarro da boca e observou Godfrey com interesse:
— Pelo que deve dar graças a Deus...
Porém agora Godfrey estava grave e sério de verdade. Vagarosamente, deixou seu olhar ir de um a outro rosto: a cada um deles se detinha,
como se em exame concentrado. Depois começou a falar, com muita calma:
— Sabem, refleti acerca de todos vocês. Se eram o que eu havia ouvido. Ouvi em Paris, em Moscou, em Berlim, em Roma e em Londres. Por
vezes, a distância, eu dava umas olhadas em alguns de vocês. Quando reuni tudo, a coisa era terrível.
— Verdade? — perguntou Rosemarie, com faceira inclinação de cabeça e um exagerado sorriso afetado. — Você nos lisonjeia.
Mas Godfrey disse, com tal indiferença por ela no rosto subitamente pálido que a deixou furiosa:
— Sim, é terrível que tão poderoso grupo e família de homens, de influência internacional, pudesse ser tão estúpido, tão obtuso, tão grosseiro,
ganancioso e animalesco, e tão completamente inconsciente do mundo de homens que o rodeia. Se, por exemplo, vocês fossem elegantes
cavalheiros, como nosso querido Antoine — e seu rigor relaxou um momento enquanto ele e Antoine faziam mútua reverência cerimoniosa —
não seria tão repreensível. Aristocratas são realmente muito inocentes: são completamente inconscientes seja do que for. Mas vocês são
camponeses; são na verdade animais vulgares, e sabem disso. E tão óbvios como sujos. Vocês são tão vulgares como o povo, as pessoas
comuns. Isto é o que me surpreende: que sejam tão totalmente inconscientes dos da sua própria espécie, e do que eles pensam. E que não
sintam com eles.
Phyllis bateu palmas:
— Eu sabia que ele era comunista, sabia todo o tempo! Ou pelo menos, um radical! — guinchou.
Mas todos a ignoraram. Todos, todos mesmo, olhavam Godfrey fixamente, e só no rosto de Antoine não havia aquela expressão odienta,
selvagem. Alguns haviam corado ante seus honestos insultos. Outros apenas franziram as sobrancelhas sobre os olhos à espreita, e esperaram
que ele acabasse. Agnes, no entanto, formou um silencioso “bravo!” com os lábios carmesins, e recostou-se para apreciar o espetáculo.
— Talvez — disse Jean, gentilmente — você pudesse esclarecer-nos quanto ao que nossa... espécie... está pensando? E onde conseguiu toda
essa intrigante informação?
Mas Godfrey disse, como se o outro não tivesse falado:
— Descobri esta estranha forma nova de pensar, não nas capitais da Europa, mas nas aldeias espalhadas da Rússia, nos distritos operários
britânicos, entre operários, mecânicos e carreteiros, nas cidades subjugadas e desesperadas da França. Parecia-me que antigamente eu não
podia respirar numa pequena aldeia ou vila sem que os alemães explodissem por ali, e lá estava eu fugindo às pressas, lembrando que sou um
inglês. Mas isso não vem ao caso. Falei ao povo, ou melhor: com o povo durante anos. Por natureza, não sou amante da populaça. Mas você
encontrará a plebe em toda parte, não apenas na choupana do operário, mas na classe média, nos salões internacionais, e entre os grandes
de toda a Europa. Assim, quando digo “o povo”, quero significar aqueles seres humanos que ainda têm mentes não corrompidas, e corações
que sentem e compreendem.
Deteve-se. Era intenso o silêncio no salão de jantar. Num impulso inexplicável, Godfrey olhou para Celeste: havia em seu rosto um cego e
deslumbrado fervor, uma espécie de luminosidade emocionante, que impressionava. Outro homem olhou para ela e sentiu um ímpeto de fúria a
apertar-lhe o peito. Lembrou-se de um dia, havia muito tempo, em que Celeste se sentara a esta mesma mesa, em frente a Peter Bouchard que
acabava de chegar da Europa, e que ela ouvira assim, com o mesmo olhar pleno e radiante, os mesmos lábios separados. Embora seus
braços ainda estivessem dobrados na mesa, seus punhos se apertaram.
Disse Godfrey, com penetrante calma que voltava, como eco, das paredes de pedra:
— Se tivesse encontrado esse modo de pensar apenas em poucos casos, eu teria admirado, lamentado que não fosse mais comum, e o teria
esquecido. Porém era universal! Universalmente, entre as mais diferentes espécies de pessoas, existe uma crescente e realmente séria
preocupação com o bem-estar humano e com o progresso humano... não apenas em coisas materiais, mas também no campo ético. Essa
profunda e hesitante preocupação é por vezes inarticulada, mas sempre apaixonada e dinâmica. Se eu fosse um místico — e ele sorriu
brevemente — diria que o povo fora penetrado por alguma imensa e desconhecida força cósmica. Não tem nada a ver com religião. Na
verdade, o clero, como classe, tem estado totalmente inconsciente disso, e não tenho dúvidas de que, quando o descobrirem, invocarão o fogo
do inferno sobre ela. É algo de mais profundo. É parte do fluxo e refluxo universais do despertar do espírito humano.
Ninguém se moveu ou falou. Sua voz tinha sido tão penetrante, tão calma e ainda assim tão sinceramente enfática, que lançara sobre eles uma
espécie de encantamento, mesmo sobre os mais grosseiros e mais cínicos e depravados. Estavam hipnotizados pela pálida firmeza de suas
feições, pelo brilho dos olhos escuros. O olhar velado de Antoine não se afastara dele, e um cigarro ardeu em sua mão sem que o percebesse.
Godfrey respirou profundamente:
— Herbert Spencer acreditava, não apenas na evolução física, mas na evolução do espírito humano. Se ainda fosse vivo, sentiria justificada sua
crença. A evolução está trabalhando nas mentes dos homens, há tanto submersos no pântano da ganância e da irresponsabilidade, do ódio e
da lascívia.
Deteve-se. Agora todos podiam perceber o esforço e a exaustão que temporariamente haviam estado ocultos sob sua exuberância e
jovialidade. Era um homem doente, lembrando sofrimentos. Porém, a seu modo, era tão indomável quanto Henri. Sua testa estava úmida de
suor: ele simplesmente pegou o lenço e a enxugou.
Celeste ainda o contemplava, com aquela luminosidade a brilhar em seu rosto. Seus lábios tremiam. Era como se estivesse ouvindo palavras
de vida após longo sepultamento.
— Bonito, bonito! — disse a impudente Rosemarie, em voz lírica. — Mas ainda soa como o palavrório dos caixeiros-viajantes.
Godfrey a olhou com um brilho amargo nos olhos:
— Acho que anda lisonjeando demais o comunismo. Parece que toda a alusão de que o povo está despertando para a ideia da
responsabilidade moral de uns para com os outros é chamada comunismo. — Balançou a cabeça: — Acontece que conheço o comunismo,
minha cara.
— Confesso que tudo isso está além dos meus conhecimentos — disse Hugo, com condescendência. — Mas eu sou apenas um membro do
Departamento de Estado... O Departamento ainda não ouviu nada a respeito desse “novo espírito”. Não chegou em mala postal nenhuma.
— Sei disso — falou Godfrey, lentamente. — E nunca chegará.
— Dirigiu a atenção para Agnes: — Minha querida, perdoe-me! Tenho monopolizado a conversa em sua mesa, e isso não é muito polido, não é
mesmo?
Agnes disse, rindo:
— Peço-lhe que não pare. É a primeira conversa inteligente que já ouvi nesta mesa em muitos anos.
Godfrey pegou um cigarro de uma cigarreira de prata. Um criado, que ouvia ao fundo da sala, correu a acendê-lo para ele. Godfrey ergueu o
olhar; o homem, de libré, tinha uma expressão estranha no rosto triste: resplandecia! Por um momento os olhos deles se encontraram em
profunda compreensão.
Godfrey tornou a falar, como se pensando alto:
— Sei que a Bíblia fala de certo homem como sendo “o flagelo de Deus”. Talvez Hitler seja esse flagelo, hoje. Pois se não fosse por Hitler e sua
sanguinária violência, duvido que tivéssemos despertado desta vez para o conhecimento de nossa apatia moral e indiferença. Foi preciso Hitler
para fazer-nos compreender o que o homem pode suportar com dignidade e coragem, compaixão e abnegação em face da morte e da
destruição. E acredito, sei que as pessoas veem agora a que apavorantes níveis podemos descer quando a responsabilidade moral está
perdida, e quando cada homem apenas se preocupa com sua própria barriga. Os alemães permanecerão, espero, um eterno lembrete para
todos nós da capacidade do homem para a degradação; eles nos deram um panorama completo da outra face de todos nós... a face que
habitualmente mantemos voltada para a escuridão. Se os alemães apenas permanecerem como símbolo da completa desgraça e infâmia do
homem terão servido a seu espantoso propósito.
Esperou que alguém falasse. Mas ninguém o fez. Antoine brincou com a piteira; Christopher sorriu de leve, por trás dos dedos magros com que
cobria a boca; Henri apoiou-se solidamente à mesa e fitou um ponto perto da cabeça de Godfrey; Annette olhava para Godfrey com uma gentil
e radiante humildade; Celeste parecia trêmula de vida e avidez; Agnes sorria aprovadoramente para seu estranho hóspede; Francis estava
grave e pensativo; e Edith, também pensativa. Porém os outros apenas olhavam seus pratos, carrancudos, desviando dele os olhos.
Godfrey suspirou. Estava exausto. Pôs na mesa as mãos magras como se para empurrar-se dali:
— Vocês têm de aprender, todos vocês, que há uma coisa que, daqui em diante, devem levar em consideração sempre: a consciência do
povo. Se não o fizerem... — e ele espalhou as mãos significativamente — estarão acabados. Completamente.
Antoine caminhou ao lado dele quando todos saíram do salão de jantar:
— A propósito: conhece Jay Regan... sabe, o financista de Wall Street?
— Não — respondeu Godfrey, rindo. — Por quê?
— Estava só imaginando... — murmurou Antoine.
— Não me importaria em conhecê-lo — disse Godfrey, com uma careta.
Antoine lançou-lhe um curioso olhar. Mas nada disse.

Capítulo 69
O fogo rugia alegremente no living-room abobadado quando voltaram para ali. Agnes chegou até Godfrey e falou, com um sorriso afetuoso:
— Sabe, você é realmente um membro da família; é tão rude como o resto deles. Fui criada para ter boas maneiras. Os Bouchards nunca as
adquiriram. Não são cavalheiros. Nem você, querido.
— Mas sou um homem honesto! — protestou Godfrey, rindo. — Pelo menos, comparativamente honesto. Pode dizer o mesmo do resto deles?
— Alguns são, à sua própria e misteriosa maneira. — Agnes olhou para Henri, de pé a distância falando a Francis. — E um ou dois são
cavalheiros. Antoine, por exemplo, é totalmente autêntico. Também não estou bem certa de gostar de cavalheiros. Lembram-me inquisidores.
Godfrey ficou de repente muito agitado, bem como exausto. Olhou em torno, em busca de Celeste: sentava-se a certa distância do fogo, e o
irmão estava sentado a seu lado. Christopher passara o braço no encosto da cadeira da irmã, e inclinava a cabeça em sua direção. A atitude
dela expressava cansaço, e estava novamente pálida, seus pequenos gestos sem animação. O salão se achava agora cheio de conversas
ruidosas e risadas barulhentas. Antoine ficara de pé ao lado de Godfrey, mas não se falavam.
Finalmente Godfrey, sem tirar os olhos de Celeste, disse a Antoine:
— Conheci Celeste há muito tempo, Tony. Ela parece ter sofrido demais com a morte de Peter. Eram muito chegados, sabe. Há sinais de que
se esteja recuperando?
Sentiu Antoine fazer um leve movimento a seu lado. E então a voz zombeteira de Antoine disse ligeiramente:
— Celeste já se consolou há muito tempo...
Godfrey virou-se para ele tão depressa que oscilou nas muletas. Pareceu perturbado e trêmulo:
— Sim? Espera casar-se de novo, em breve? Não me disse nada.
Antoine o estudou com cínica perspicácia. “Hum, hum!” pensou.
E disse com a voz zombeteira:
— Casar? Acho que não. Talvez não seja possível. Por vezes existem compromissos anteriores, sabe.
Godfrey o olhou em silêncio, e as linhas fluidas de seu rosto endureceram. E Antoine olhou para trás, sorrindo. Então Godfrey, sem uma palavra,
afastou-se.
Dirigiu-se por entre grupos de Bouchards, que automaticamente se afastaram para deixá-lo passar. Ele sentiu-lhes os olhos divertidos e
desdenhosos ou hostis a segui-lo. Não se importou. Eles não eram realmente sua família, sentiu. Embora em certa medida partilhasse o seu
sangue, era um estranho. Eles sabiam disso. Ele jamais seria parte deles. Subitamente sentiu-se triste por ter vindo.
Encaminhava-se para Celeste quando subitamente parou: aparentemente sem mover-se, Henri aparecera diante de Celeste e Christopher.
Olhava para ambos e sorria. Godfrey lhe ouviu a voz através de todo o ruído:
— Chris, surgiu algo importante. Vá ver-me amanhã. É realmente importante.
— Naturalmente — replicou Christopher.
Houve uma pausa. Mas Godfrey viu o rosto de Celeste, frio e tão sem expressão como se fosse de gesso. Ela baixara os olhos. As mãos,
imóveis no regaço. E Godfrey também viu o rosto de Henri quando a olhava — duro e brutal.
— Sente-se melhor, Celeste? — Henri perguntou, irritado. — Não a temos visto muito, ultimamente.
Celeste ergueu a cabeça e o olhou, lenta e deliberadamente:
— Eu não estava doente — disse. Sua voz era clara, sem inflexões.
Levantou-se, e o irmão com ela. Sua atitude era calma e composta, porém ao olhar em torno, Godfrey viu o relampejar azul de seus olhos. Ele
ergueu a mão e lhe fez sinal de que estava chegando. Ela sorriu, então, e novamente a imobilidade de sua expressão se rompeu em delicados
planos de luz. Ele foi até ela rapidamente.
— Estou realmente muito cansada, Godfrey — disse. Pôs a mão no braço dele. — E o bebê está com um resfriadinho. Quer levar-me para
casa?
Ele pôs a mão sobre a dela e a apertou:
— Claro, minha querida. Imediatamente. Também estou cansado.
Voltou-se para Christopher e Henri, que o olhava com aquela dureza e inflexível crueldade, agora enormemente aumentadas. Christopher sorria,
mas com um ar especulativo, nada agradável.
— Poderão desculpar-nos? — disse Godfrey, cortesmente.
Henri nada disse; Christopher inclinou a cabeça, dizendo:
— Você nos proporcionou um serão muito interessante. Obrigado.
Viu os olhos da irmã, fixos em Godfrey. Estavam radiantes e suaves, e os lábios entreabertos sorriam -— como se se preparassem para uma
boa risada. As sobrancelhas de Christopher se juntaram, numa inquietação.
— Boa-noite. Espero que nos tornemos a ver em breve — disse Godfrey.
Henri não replicou. Christopher respondeu cordialmente. Os dois homens ficaram lado a lado, observando Godfrey e Celeste que se dirigiam a
Agnes para despedir-se. Finalmente, foram-se.
“Existe realmente algo de muito agradável nisto” — pensou Christopher. Porém algo de danadamente familiar, também. Henri falava, sem a
menor ênfase:
— Ele está hospedado em casa de Celeste, não?
— Sim — respondeu Christopher. — Acho bastante apropriado. Ela já não é nenhuma jovenzinha, não é mesmo? É uma viúva. — E
acrescentou, inocentemente: — E penso que o bebê é um perfeito acompanhante. — Voltou-se para Henri e ofereceu a cigarreira de platina: —
Cigarro?
Henri olhou aborrecido a cigarreira e tirou um cigarro. Christopher o acendeu para ele. Henri o segurou, como todos os amadores, entre as
pontas do polegar e do indicador. Segurou-o também a uma boa distância como se fosse odioso.
Virou-se um pouco e contemplou o fogo. Tornou a falar, com indiferença, e com uma inflexão monótona:
— Ponha-o fora daquela casa. O mais cedo possível.
Christopher nada disse. Olhou para aquela cabeça enorme, por trás, e subitamente sentiu gosto de sal na boca, e uma fúria a expandir-se em
seu coração. Todos os anos de humilhação, de subserviência, de medo e conciliação, de esperança, auto-repugnância e ódio o dominaram.
Todos esses anos fora tão cauteloso, considerando se cada coisa grande ou pequena poderia feri-lo. Todos esses anos pensara apenas em si
mesmo. Que lhe valera isso? Traíra a irmã; observara a última traição que ela sofrera. Tornara-se um alcoviteiro, um lacaio. E no fim, vira partir-
se o coração dela, vira a desesperada angústia em seus olhos. Se agora tinha uma oportunidade de felicidade, devia aproveitá-la.
Disse, quase sussurrando:
— Não. Não.
Afastou-se de Henri. Sentia uma alegria selvagem. Sua cabeça girava. Caminhava como se o fizesse sobre nuvens. Chegou-se a Edith e
pegou-lhe o braço: ela ficou espantada com o olhar dele, animado, móvel como azougue:
— Minha querida, acho que estou bêbedo!
— Bêbedo? — repetiu Edith. Examinou-o: — Absurdo! Você não está bêbedo. Aconteceu alguma coisa.
— Oh! Aconteceu, aconteceu mesmo! — ele exclamou, e lhe beliscou o braço gentilmente. — Coisa maravilhosa é ser livre! Eu deveria haver
tentado isso antes. Não fique tão confusa, bichinha! Está tudo ótimo!

Capítulo 70
Fossem quais fossem as dolorosas suspeitas que Godfrey agora tivesse, foram lentamente dispersadas e meio esquecidas nos dias que se
seguiram. Pois Celeste, com uma sinceridade e patética ânsia de que ele não podia duvidar, instou com ele para que prolongasse sua estada.
— Você não sabe o quão solitária tenho andado — expôs, com simplicidade.
De modo que ele telefonou ao amigo, Alfred Milch, e o convenceu de que “questões importantes de família” faziam impossível sua volta a Nova
York agora, mas que se encontrariam em Hollywood em duas semanas.
Dias felizes, brilhantes de sol e de neve, se sucediam. Godfrey era convidado pelos parentes, com Celeste, que invariavelmente recusava.
Quando explicou a Godfrey, ele teve certeza de que ela não estava sendo franca: suas palavras eram evasivas. Porém instava com ele para ir:
— Não fará mal nenhum — dizia, melancólica. Por polidez, ele aceitava.
Quando voltava, fosse a que hora fosse, encontrava Celeste à sua espera, lendo ao pé do fogo; à sua entrada, levantava-se, sorrindo, de mãos
estendidas.
— Sabe, eles realmente me odeiam. Suspeitam de mim. Sou um estranho. Querem estudar-me mais de perto, para verificar se existe em mim
alguma ameaça. Creio que, agora, já consegui convencê-los que sou completamente inofensivo e paupérrimo, de modo que seu interesse está
diminuindo. Como tem podido aturá-los todos esses anos, minha querida?
— Na verdade, não tenho — ela lhe garantiu, rindo.
Sentava-se perto dela, acendia um cigarro, e punha-se a fumar pensativamente:
— As mulheres são muito melhores... digo, algumas delas. Edith, especialmente, e essa querida Annette.
Voltou-se para Celeste, em busca de concordância, porém mais uma vez aquela máscara desconcertante de espessa frieza lhe encobria as
feições, e novamente ele sentiu aquela acauteladora inquietação — tão ameaçadora para si mesmo.
Falava-lhe de suas ambições com tão prístino entusiasmo que também ela se contagiava. Quando ela disse: “Godfrey, sou tão enormemente
rica... Permita-me ter um ou dois quadros” — ele foi bastante realista, honesto e sem hipocrisia, para protestar, ou fingir recusar. Ao invés,
expressou-lhe alegremente sua gratidão, e de imediato telefonou ao amigo, Al Milch. Ao voltar do telefone, balançava-se numa das muletas e
jovialmente acenava com a outra. Celeste correu para ele, com exclamações de medo de que ele caísse, e se abraçaram deliciados, beijando-
se livremente com o maior entusiasmo.
Em Godfrey havia uma qualidade de eterna juventude que Celeste não encontrara em ninguém mais — o que despertava sua própria juventude
enterrada. Passeavam pela região. Foram à aldeia e compraram imensas quantidades de gêneros alimentícios. Godfrey gabava-se de suas
façanhas culinárias, e invadiu a cozinha; e era tão encantador, tão alegre, que o cozinheiro não pôde deixar de ficar encantado. Brincavam com
o bebê, que rolava na neve, e cambaleava nas perninhas fortes como um casulo de lã. Às vezes apareciam amigos de Celeste, e por vezes
alguns da família — e tudo era informal, bem-humorado e descuidado.
Pela primeira vez Celeste se divertia. A reserva de assuntos a serem discutidos entre ela e Godfrey era inesgotável. Conversavam durante
horas depois do jantar. Por vezes falavam quase até raiar o dia. Não importava o quão batido fosse o assunto: Godfrey dava-lhe singularidade,
frescor e vitalidade especiais. Ele agora raramente era grave: Celeste fora triste por demasiado tempo, ele observara com perspicácia.
Gostava de ver a risonha chispa em seus olhos, a vermelhidão dos lábios risonhos, e sua jovialidade era o som mais doce e embriagador do
mundo, para ele. Ela acompanhava algumas de suas mais sutis argumentações com lisonjeira atenção. Ele lhe ensinara a tomar um ou dois
coquetéis antes do jantar, e o brilhante estímulo que isso lhe dava afrouxava as algemas em sua mente, de modo que uma insuspeitada alegria
e um júbilo infantil eram liberados, graciosos e inteligentes.
Visitando-os, Christopher se deu conta disto. Edith também. Disse uma noite, bem casualmente:
— Sabe, acho que Celeste devia apaixonar-se pelo nosso galante aventureiro.
E Christopher:
— Devia. Devia mesmo. Espero que o faça.
Então Edith se voltara e o fitara, porém ele havia apanhado um livro e começara a ler. Edith franziu a testa.
Para Celeste, havia um doce delírio nos dias... Voltavam-lhe a saúde e a vitalidade. A casa, não mais vazia e triste e cheia de melancolia
reprimida, tornou-se alegre também. Havia flores por toda parte. As lareiras rugiam. A voz feliz de Celeste, a risada de Godfrey e os gritos do
pequeno Land vinham de todas as salas, de todos os quartos. Havia uma gentil despreocupação em torno deles, era como um feriado. Nesse
ínterim novembro se fora e dezembro chegara, calmo e nevoso dezembro cheio de brilhante luminosidade azul.
Godfrey começara a ter esperanças. Já agora se convencera que o que vira tão obscura e fugazmente naquele jantar no Dia de Ação de
Graças fora fruto de sua própria imaginação. Embora tivesse visitado Antoine na casa dele, Antoine nada dissera, apenas observando com
muita simpatia que era muito bom que Godfrey tivesse vindo, pois Celeste estivera “abstrata” por muito tempo.
— Ela devia tornar a casar — ele disse, casualmente. — Alguém que lhe pudesse ensinar a divertir-se e a gozar a vida. Já teve muita tristeza.
Godfrey era demasiado inteligente e muito realista para refletir que era pobre e Celeste muito rica. Teve um momento de dúvida a respeito da
perna perdida, mas novamente seu realismo fê-lo dar de ombros:
“Ainda sou um homem, com a maioria de meus membros” — pensou, sorrindo.
Amava Celeste. Amara-a quase desde o momento em que a conhecera. (Também gostava de Peter, ao ponto de uma grande afeição.) Mais
ainda: compreendia as mulheres inteiramente. Sabia o que lhes agradava, em geral, e o que lhes desagradava. Elas o interessavam muito,
como seres humanos, além de sua feminilidade. Gostava delas. Apreciava-lhes a companhia, mesmo quando eram tolas. Se fossem bonitas o
deliciavam; se inteligentes, o intrigavam. Apiedava-se de suas fraquezas, e lhes admirava a grande e insuspeita fortaleza de ânimo. Acreditava
que as gerações as haviam difamado muito. Era uma frase sua favorita: se os homens aprendessem a compreender melhor as mulheres, e a
adquirir a arte de agradar-lhes, eles próprios lucrariam, com o esforço, imensos benefícios. Godfrey acreditava firmemente que, embora muitas
coisas fossem valiosas na vida, as relações humanas e a delícia e doçura que elas podem proporcionar eram as mais valiosas.
Celeste o amaria agora? — ele se perguntava. Nunca tivera tais dúvidas a respeito de nenhuma outra mulher. Sempre soubera, e se valera do
conhecimento. Mas com Celeste não podia saber completamente. Sabia que era doida por ele, que era só vê-lo para ficar radiante, que sua
voz era uma doçura quando falava com ele. Mas quanto disso se devia a uma solidão patética que ele aliviara? Quanto era gratidão por haver
encontrado um amigo e companheiro, cheio de simpatia e afeição? Quanto era mera afinidade, gostos idênticos, e mútua compreensão? E
depois pensou, ligeiramente: afinal de contas, o que é amar? Paixão havia, naturalmente, e veemência, porém todos dois já haviam visto muito
desses dois aspectos, e agora os preferiam mais gentis e de maneira mais madura. Mesmo se, no que se referia a Celeste, eles pudessem
estar ausentes, não importava: as outras coisas eram muito mais duráveis.
Ficou preocupado com seus pensamentos, e mais grave e pensativo. Observando isso, Celeste ficou amedrontada e perplexa: teria começado
a aborrecê-lo? Estaria cansado de estar aqui em Placid Heights, com ela e seu filho? Talvez sua conversa fosse por demais leve e
inconsequente. “Mas, ó Deus!” pensava — “já tive tantos anos de ser séria e carregar o mundo nos ombros! Gostaria de um descanso, agora!
Gostaria de rir, ainda que por pouco tempo, e fingir, só um pouquinho, que nada é de trágica importância...”
Estava agora com trinta e cinco anos, já não era jovem, porém ainda tinha a ingenuidade pura e facilmente espantada de uma criança. Ficava
acordada à noite, pensando em Godfrey, com o pensamento tão ocupado com ele, tão humilde quanto a suas incapacidades, que a velha dor
monstruosa, enorme e negra, se tornava uma sinistra montanha a distância, em sua consciência. Quando o encontrava pela manhã, espiava-o
ansiosamente. E quando ele a olhava, e sorria, e sugeria um passeio, uma folia na neve com o bebê, seu rosto se erguia e os olhos dançavam
de prazer. Enquanto os arranjos finais estavam sendo feitos com seus advogados e Godfrey, no seu agradável living-room, ela ouviu com
avidez as discussões técnicas da feitura de um filme — e esta era uma brilhante qualidade sua. Quando ela declarou, rapidamente, que não
queria lucros, não notou o sorriso ácido de seus advogados, e só olhava para Godfrey, que riu e lhe deu pancadinhas na mão, garantindo-lhe
que ela não era mulher de negócios.
Portanto, tinha muitas coisas para fazê-lo esperar. E na manhã em que Milch, irritado, telefonou de Hollywood comentando que já tivera muita
folga, Godfrey decidiu descobrir que fundamento havia para essa esperança.
Tinha havido uma tempestade de gelo durante a noite. O sol da manhã, esbraseado e incandescente, brilhou sobre um mundo de cristal, onde
cada galhinho, cada tronco de árvore, cada fronde de conífera, cada beiral e cada sebe e linha de telefone estava revestido de vidro brilhante.
Godfrey e Celeste saíram para olhar isso. Viram as colinas distantes, agora arroxeadas como jacintos àquela luz pungente e purificada, e um
céu também de cristal e puro como gelo. Quando falaram, suas vozes saíram como ecos cristalinos. Tudo estava tão silente, tão luminoso, tão
lancinante que eles finalmente não mais falaram: apenas ficaram de pé, lado a lado, de mãos dadas. As casas no vale abaixo pareciam casas
de bonecas; colunas de fumaça azulada subiam em linha reta de suas chaminés. A claridade na neve reverberava o sol até que ficaram
ofuscados.
Voltaram a casa e sentaram-se ao pé do fogo. As faces de Celeste estavam muito vermelhas. Estendeu as mãos para o fogo e sorriu para
Godfrey, que fumava em silêncio. Ela descobriu que ele estivera a observá-la atentamente — e ela não se podia explicar o súbito tremor de seu
coração.
Ele atirou o cigarro ao fogo e falou com gentil brusquidão:
— Celeste, minha querida, devo ir para Hollywood não mais -tarde que depois de amanhã. Não quero ir, mas devo. Tenho de ganhar a vida.
Todo o brilho desapareceu do rosto dela; tornou-se pálido e inexpressivo. Ela voltou-se novamente para o fogo e, após um momento, falou com
dificuldade:
— Sim, claro. Compreendo. — Suspirou: — Ficarei terrivelmente triste. Nem faz ideia de quão triste...
Ele inclinou-se para ela e tomou-lhe a mão:
— Querida, olhe para mim.
Ela o fez. Sua boca tremia. Tentou sorrir. Ele beijou-lhe a mão:
— Quero perguntar-lhe algo, minha querida — disse, maciamente. — Talvez seja um pouco cedo. Mas tenho de saber. Terei alguma chance?
Sabia que ela era ingênua, que talvez conservasse essa pura virtude até uma idade avançada, até o fim da vida. Porém mal podia acreditar
quando viu seu espanto; e quando ela puxou rapidamente sua mão da dele, e depois o fitou em silêncio, ele próprio ficou espantado. Ela seria
realmente tão cega? E então sentiu uma dor peculiar no peito.
— Amo-a, Celeste querida — disse, as palavras saindo dolorosamente de uma garganta subitamente ressecada. — Pensei que soubesse.
Ela não falou. Seus olhos se encheram de lágrimas, lentamente. Ela ergueu a mão, descansou-a no braço da poltrona, e escondeu dele o rosto.
E houve silêncio na sala. O sol se derramava através das janelas em uma longa esteira de profunda radiância. O fogo crepitava na lareira. Do
lado de fora estalavam árvores. Não havia qualquer outro som. Godfrey se inclinava para Celeste, aguardando, as mãos caídas e apertadas
diante dele.
— Acho que temos sido felizes aqui, juntos — ele murmurou. — Talvez eu tenha contado demais com isso. — Olhou o fogo, reflexivamente. — E
talvez seja cedo demais...
Ela abaixou a mão, e ele lhe viu as faces tocantemente úmidas, e a boca trêmula. Tentou falar, mas teve de fazer vários esforços antes de ser
bem-sucedida:
— Sim, querido, cedo demais... — Sua voz tremia.
Imediatamente ele se tomou compassivo, a dor em seu peito diminuindo um pouco:
— Sim, naturalmente! Compreendo. Pobre Peter...
Mas viu, então, que ela ficara rigidamente grave, e friamente áspera:
— Godfrey, não se trata de Peter — disse, com firmeza.
Ele a olhou, mudamente, cabeça abaixada. E esperou.
Ela apertava as mãos, duros os dedos e as palmas: começou a tremer.
— Não posso ser hipócrita com você, Godfrey — disse, ainda a olhá-lo, corajosamente. — Amei Peter. Honestamente, amei-o. Desde que o vi
pela primeira vez. Amei-o até sua morte. Sempre o amarei. Mas não do modo que você pensa. Nunca... nunca foi assim.
Ele a fixava firmemente e estava silencioso, embora nada perdesse de sua muda angústia. Depois disse, com a maior gentileza:
— Então, é alguém mais?
Ela não replicou. Mas curvou a cabeça um pouco.
Ele olhou suas muletas, como se quisesse pegá-las e caminhar pela sala. Mas apenas ficou sentado ali, a olhá-las, como se não houvesse
mais nada em sua mente.
— Naturalmente, seria impertinência perguntar...
Ficou surpreso ante a aguda e amarga nitidez da sua voz, e sua sonoridade — como se ela falasse com repugnância de si mesma e
incontrolável auto desdém:
— Você pode muito bem saber, Frey. Todo mundo sabe. Pensei que talvez alguém da família tivesse tido a bondade de esclarecê-lo! Pensei
que você sabia e não se importava! Era-lhe grata por isso. Sabe, é Henri.
Ele ainda olhava para as muletas. Sua boca jovial agora parecia severa com o choque. “Mas acho que sempre soube” — pensou. Disse, sem
erguer os olhos para ela:
— Porém ele é casado. Com a pequena Annette. Assim...
Mas as palavras dela jorravam sobre ele, rapidamente, como bolinhas de gelo arremessadas, e ele não reconhecia essa voz, tão frágil, tão
aguda, tão amargurada e cheia de esmagadora agonia, como se todo o seu controle tivesse desabado e ela devesse falar por total
incapacidade de proceder de outro jeito. Contou-lhe sobre seu antigo compromisso com Henri, que ela havia rompido, e seu casamento com
Peter. Contou-lhe — em tom sem emoção, alto e duro — dos catorze anos de exílio quase completo. Disse-lhe que nunca esquecera Henri, que
desejara não voltar jamais por sentir que não ousaria fazê-lo, por causa de Peter. Não hesitou nem se atrapalhou ao contar-lhe tudo, sua volta, o
encontro com Henri, o caso subsequente.
E Godfrey ouvia, entorpecido, nunca afastando dela os olhos. Uma ou duas vezes ouviu a tensa angústia do seu riso breve, triste e sufocado.
— Fiz uma confusão tremenda! Eu parecia não me importar. Nada importava. Eu não tinha orgulho, nem vergonha. Ele vinha e ia quando lhe
agradava. Eu fazia fosse o que fosse que ele mandasse. — Subitamente levou as mãos à garganta, como se uma dor insuportável a tivesse
golpeado ali. — Ele me disse, repetidas vezes, que não fazia promessas. Apenas garantia que se e quando fosse seguro, e possível divorciar-
se de Annette ele o faria, e poderíamos casar-nos. Ao que parece nada poderia ser feito até que Armand morresse e seu testamento fosse
conhecido.
Ela lhe contou do testamento, e as condições. E ele ouvia, não movendo um músculo, apenas observando sua perturbada veemência, seus
gestos incertos e convulsivos. Se estava chocado e horrorizado, não havia sinais disso.
— Então — ela continuou, ainda naquela voz precipitada, alta e dura — Peter ficou muito doente. Não pensei em nada mais. Sinto certo
consolo, pensando nisso. Depois, ele morreu. — Deteve-se por um momento, e ele lhe viu a rigidez da branca garganta, e sua dificuldade em
engolir. — Também descobri que ia ter um filho, e que era tarde demais para fazer algo a tal respeito.
Então Godfrey fez um movimento incontrolável. Seus lábios pálidos se entreabriram. Suas mãos, tremendo um pouco, tatearam por um cigarro.
Acendeu-o, fitou às cegas o fósforo que ainda ardia (como se não soubesse o que era aquilo...) e depois atirou-o ao fogo. Disse, calmo:
— Filho de Henri, naturalmente?
— Oh, sim, sim! — O sorriso dela era ainda mais selvagem, mais escarnecedor. — A família sabia. Devo-lhes alguma gratidão. Nunca falaram
nisso. Sempre se referiram ao “garotinho de Peter”. Orgulho de família, suponho. Sim, eu lhes sou grata.
Godfrey fumava lentamente. Disse, em tom casual:
— E Henri não fez nada?
— Já lhe disse: é o testamento! Ele deve esperar até decidir ter chegado o momento apropriado para abrir o testamento! Tentei compreender.
Realmente, compreendi — e sua voz agora se quebrou rapidamente, numa trêmula compaixão. — Eu compreendi. Havia coisas a serem
consideradas além de mim. Eu não era irracional. Estava disposta a esperar. Não queria que ele abrisse prematuramente o testamento apenas
para satisfazer-me. Não foi isso que me fez romper com ele.
Sua voz estava rouca e ofegante, e ela esperou um pouco, respirando pesadamente, antes de poder continuar:
— Rompi com ele porque é cruel, e brutal. Porque é um sádico. Porque, embora eu saiba que ele me ama, não pode deixar de atormentar-me.
É um homem mau, Frey. Um homem muito mau. Eu sempre soube disso. Tentei fazer vista grossa. Mas chegou o dia em que não pude mais.
Godfrey atirou o cigarro ao fogo. Viu-o ser tragado pelas chamas. Disse:
— Então você rompeu com ele?
— Sim. — Ela sussurrou isto, como se já não tivesse forças para falar alto. A cabeça lhe tombou sobre o peito.
Ficaram assim sentados por muito tempo, o silêncio quebrado apenas pelo crepitar do fogo e o estalar das árvores lá fora. Parecia a Godfrey
que o salão iluminado pelo sol ficara muito frio. Olhou a cabeça caída de Celeste, e seu coração se apertou com a mais profunda compaixão e
amor que jamais sentira em toda a vida.
Então ele disse, com a maior gentileza:
— Mas não o esqueceu, não é, querida?
Ela pôs as mãos no rosto. Sua voz chegou a ele abafada, quebrada:
— Não. Não. Tentei. Mas não adiantou. Nunca adiantará. Não há nenhuma esperança. Ele acabou comigo, não importa o que o testamento
contenha. Ele jamais voltará. Esqueceu tudo. Não se importa.
Godfrey suspirou. Esfregou as mãos frias. Não havia calor para ele no fogo trovejante.
— Está enganada, minha querida, pobre criança! Ele não esqueceu. Vi isso imediatamente, naquele Dia de Ação de Graças. Vi como olhava
para você.
Ela apertou os dedos no rosto. Um murmúrio como um riso, áspero e quebrado, passou através deles:
— Não se o testamento o proibir! Não se ele perder alguma coisa, ao vir! Ele me disse isso. Francamente. — Deixou cair as mãos e se voltou
para ele, que lhe viu o rosto branco e transtornado, os olhos enxutos cheios de uma luz amarga e sardônica. Depois sua expressão mudou e ela
disse, quase incoerente: — Que quer dizer, Godfrey? A respeito dele ainda lembrar! A respeito de não haver esquecido!
E ele tornou a suspirar, sabendo finalmente não haver a mínima esperança para ele. Viu isso nos olhos dela, subitamente pungentes,
subitamente desesperados e fixos. Desviou a cabeça:
— É verdade. Ele não esqueceu. E voltará. Talvez muito breve.
— Não quero vê-lo! Não quero falar com ele! — ela gritou, selvagemente. Fechou a mão e socou o joelho com ela: — Não quero vê-lo!
Porém ele apenas a olhou e sorriu tristemente. Tateou em busca das muletas. Nada disse.
Ela viu seu gesto. De repente, rebentou em lágrimas. Levantou-se e caiu de joelhos diante dele, pôs-lhe os braços no pescoço e pousou a
cabeça no ombro dele. Agarrou-se a ele loucamente. Depois de hesitar um pouco, ele pôs os braços em torno dela e a estreitou como se ela
fosse uma criança de coração partido, e gentilmente lhe beijou as faces e o topo da cabeça. Consolou-a em silêncio.
Depois de muito tempo ela se acalmou. Ergueu a cabeça e o deixou ver o rosto úmido, agora relaxado e exausto.
— Godfrey querido — disse, humildemente — peça-me novamente. Daqui a seis meses. Daqui a um ano.
Ele lhe alisou os cabelos desordenados, e suspirou:
— Não, querida — disse, ternamente. — Não lhe pedirei novamente. Compreenda: não adiantará nada.

Capítulo 71
Christopher acabara de chegar de Detroit, nessa manhã de um domingo terrivelmente frio de dezembro, quando foi chamado ao telefone. Era
Henri.
— Estou só aqui — disse Henri, em voz baixa e monótona.
— Annette está em Nova York. Quero falar com você. É muito importante. — Deteve-se: — Acabo de voltar de Nova York. Abri o testamento.
A pulsação de Christopher deu um salto. Mas respondeu com indiferença:
— Estarei aí dentro de uma hora.
A linha zumbia no silêncio. Christopher sabia que a comunicação ainda não fora cortada. Após um longo momento, ouviu o clique do fone
quando Henri o desligava. Christopher sorriu maliciosamente. Voltou a Edith, que o esperava impacientemente na saleta do café. Falou-lhe da
conversa.
— Ele queria que eu perguntasse, trêmulo, sem fôlego e ansioso, sobre o conteúdo do testamento — comentou, com satisfação.
— Mas não o fiz.
— Como pôde conter-se? — ela perguntou, zombeteira. Porém ele viu que ela estava alerta e preocupada.
Christopher começou a rir:
— Tenho uma ideia. Ele não teria telefonado assim se o testamento não contivesse tudo que queria. Mas há algo que deseja saber, também.
Imagino que o fato de Godfrey hospedar-se em Placid Heights lhe tenha proporcionado alguns maus momentos. Afinal de contas, ele é humano,
por Deus! Espero que tenha sofrido um bocado! — acrescentou, com prazer.
— Disse-lhe que Godfrey foi para Hollywood ontem, meu adorável querido? — Certo olhar de tensão desaparecera do rosto de Edith desde a
véspera.
— Claro que não! Se eu fosse uma pessoa realmente vulgar, podia haver sugerido que poderíamos esperar novas excitantes de Placid Heights
em breve. Bem gostaria que isso fosse verdade... — A expressão de Christopher era pensativa agora, e um pouco triste. — Realmente
gostaria que fosse verdade. Não que me importe, pessoalmente, por nosso alegre aventureiro, mas porque ele me parece a coisa adequada
para a pequena Celeste.
Edith o olhou estranhamente. Mas não fez comentários. Viu que, apesar de sua torpeza, ele estava enormemente excitado e esperançoso.
“Não conte muito em ter influência sobre Henri, depois que soarem os sinos matrimoniais... — pensou. — Ninguém jamais terá muita influência
sobre o meu querido irmão. Mas você nunca aprenderá...”
sobre o meu querido irmão. Mas você nunca aprenderá...”
Ao chegar a Robin’s Nest, Christopher viu que Henri acabara de fazer uma refeição copiosa diante do fogo no living-room. Henri nunca se
importara muito com comida, exceto como sustento. Mas Christopher notou que este havia sido um senhor café da manhã. Ainda se distraiu
mais quando Henri lhe ofereceu um excelente charuto, servindo-se também. Um criado carregava uma batelada de pratos e travessas servidos.
O largo rosto pálido de Henri estava realmente amável, relaxado. Quando sorriu para o cunhado, o sorriso lhe alcançou os olhos pela primeira
vez, na lembrança de Christopher.
— Não há nada no testamento que me impeça de divorciar-me de Annette — disse Henri, calmamente. — Tivemos uma conversa em Nova
York. Ela nem voltará aqui. Está indo diretamente para Reno. A camareira está fazendo suas malas agora.
Christopher estava surpreso. Não era do feitio de Henri ir falando assim, sem observações preliminares que nada tinham a ver com o caso.
Ficou ainda mais divertido quando Henri disse, com a mais cordial franqueza:
— Espero que aquele papagaio falador haja saído de Placid Heights.
Christopher meditou. Deveria sugerir que talvez Celeste e Godfrey tivessem chegado a algum acordo? Mas sua própria agitação íntima e
exultação eram demais, mesmo para ele. Informou:
— Saiu. Ontem. Ninguém me fez qualquer confidência, mas acho que Celeste tem algo a ver com isso.
Henri tornou a sorrir, com satisfação. Quando olhou para seu charuto fumegante, foi sem desagrado. Realmente parecia cordial e humano,
mesmo um pouco pueril. Christopher o contemplava cinicamente.
— Não é um mau sujeito — comentou Henri. — Fiz alguns arranjos diretamente com o amigo dele, Milch. Depois de cuidadosa investigação,
naturalmente. Deverão produzir algo de bom. Acho que Godfrey tem talento considerável. Estou interessado nos planos de Milch.
“Então, ele não está mostrando mesmo malícia alguma!” — pensou Christopher. E ficou espantado ante o alívio que sentia.
E depois ficou outra vez surpreso, pois Henri parecia genuinamente reflexivo e grave.
— Naquele jantar — comentou Henri, olhando atentamente o charuto — pensei que ele aparecia com vantagem. Pensei, de início que era um
idealista... como Peter. Depois vi que era um realista. Havia nele algo de bravo, também, e nenhum absurdo. — Sorriu um pouco: — Apesar da
sua aparência enganadora, pensei que parecia muito com o velho — e deu uma olhadela ao retrato de Ernest Barbour acima dele. Não afastou
o olhar por vários momentos, e se tornou ainda mais grave: — Sim, há considerável semelhança. Percebo que, eventualmente, posso vir a
gostar dele. Mais tarde, pretendo vê-lo muito, aqui e ali. Suspeito que, aparecendo a ocasião, ele pode ser mentiroso, velhaco e inescrupuloso.
Mas quando tudo isso foi defeito para nós?
Christopher riu, sem comentários. Mas observava Henri atentamente.
— Porém ele tem outras coisas também — continuou Henri, pensativamente. — Deu uma perna, não por ser um idealista, mas por desejar
matar algo que achava detestável. Para ele, foi uma troca justa. Gosto de homens que pagam o preço... e nada de heroísmos, posteriormente.
Sim, gosto dele. Falei com Milch, eu próprio, semana passada.
“Assim — pensou Christopher — foi isso que precipitou as coisas, e o motivo do apressado chamado de Milch a Godfrey...” Sorriu intimamente.
Então Henri, realmente, torcera as coisas a seu jeito... Quanto teria oferecido a Milch para tirar Godfrey de lá? Naturalmente, não manejara o
assunto assim tão cruamente! Naturalmente, tudo era negócio! Christopher estava deliciado.
— Informou a Milch sobre o tipo de filmes que prefere? — perguntou.
Henri sorriu, e novamente o sorriso lhe chegava aos olhos:
— Nunca interfiro com os negócios de outro homem, especialmente se deles nada entendo. Mas, numa oferta de apoio ilimitado, tenho
algumas sugestões.
Acrescentou:
— E, a propósito, acho que não seremos mais incomodados pelo nosso amiguinho de olhos cândidos: August Jaeckle. Foi completada a
investigação. Duas investigações, na verdade. A mais importante demonstrou que ele recebeu mais de cinquenta mil dólares durante os últimos
seis meses, diretamente de Berlim. A outra, que ele tem o que os franceses chamam de petite amie em Pitsburgo. Naturalmente, a Sra.
Jaeckle não precisa saber disso, mas uma pequena sugestão a August o convenceu de que seria melhor parar com a sua propaganda.
— Excelente! — exclamou Christopher. — E... outras questões?
Henri se recostou na cadeira:
— Vou convocar uma reunião para terça-feira, aqui mesmo. Todo o pessoal. Nosso... e de Antoine. A propósito: Antoine receberá uma cópia
do testamento de Armand esta manhã... por mensageiro especial. — Olhou a distância, murmurando gentil: — Não sou naturalmente um
homem curioso. Mas gostaria de estar lá quando ele a recebesse...
Christopher não falou de imediato. Depois disse, estranhamente:
— Sempre me considerei uma pessoa intuitiva. Não sei o que está por trás disso, mas tenho observado uma mudança em nosso vivaz
dançarino ultimamente. Uma espécie de meditação. Seja como for, não estou muito certo de que o testamento será um choque esmagador
para ele.
Henri franziu a testa, acidamente:
— Espero que esteja enganado.
Continuou:
— Há algo mais que queria comunicar-lhe. O Bispo Halliday não fará mais irradiações. Descobrimos, acidentalmente, claro, que possui um
bonito bloco de ações da pequena siderurgia do Marechal Goering, na Alemanha. Alguém lhe explicou que o Governo dos Estados Unidos
podia fazer uma pequena e impertinente investigação dos fatos se lhe fossem apresentados.
Depois, abruptamente, ergueu-se, de costas para o fogo. Disse, com súbita calma:
— Nova York está amedrontada. Washington está amedrontada. É o Japão.
— Japão — repetiu Christopher, sem ênfase.
— A Missão japonesa está em consulta com o Departamento de Estado exatamente agora. Espera-se um acordo satisfatório. Os otimistas
esperam. Mas não os outros com quem falei.
— Acha que o ataque virá do Japão?
— Não tenho a menor dúvida. Quando, não posso dizer. Não sei. Mas Hitler já deu suas ordens ao Governo japonês, que não tem escolha. A
ordem foi dada há umas duas semanas. Não creio que a Missão saiba disso. Ainda.
— Isso pode acalmar.
Henri deu de ombros:
— Talvez. Mas não acredito.
Ele disse:
— Tudo está pronto. Por isso estou convocando a reunião para terça-feira. Entre outras coisas, vou falar sobre o Japão.
Ficou de pé diante do fogo, imóvel feito uma rocha:
— Acabei de descobrir, também, que apesar das minhas ordens, um grande carregamento de platina, grãos, petróleo e maquinaria saiu da
Argentina há dois dias. Para Franco, naturalmente! Mas destinado à Alemanha. Informei o Governo britânico. Esse carregamento nunca
chegará à Espanha.
Continuou:
— O responsável por isso não vai gostar do resultado. — Sem mudança de tom, falou: — Hugo estará aqui na terça-feira. Espero que esteja
em estado de choque.
Christopher se recostou na cadeira e disse, divertido:
— Parece-me farejar muita chantagem no ar... Espero que você tenha à mão um suprimento de reconstituintes para os rapazes.
Henri sorriu brevemente, mas nada disse. No entanto, olhou atento para Christopher.
Depois sentou-se e delineou resumidamente os seus planos, e o que pretendia fazer. Christopher ouvia com a maior atenção. Ao fim, Henri
comunicou:
— Viajarei para a América do Sul daqui a cerca de oito semanas, com certa Comissão.
Um criado chegou à porta e disse que o Sr. Bouchard tinha um chamado interurbano, de Washington.
— Hoje?... — falou Henri, franzindo a testa. Desculpou-se e foi à sua cabina particular à prova de som, no segundo andar.
Christopher se sentia muito contente. Seus pensamentos lhe traziam prazer. Ocasionalmente, ao sentar-se diante do fogo, esperando, sorriu.
Fumava sem parar. De súbito, deu-se conta de que Henri se fora havia muito tempo. Por alguma razão, isso lhe causou inquietação. Levantou-
se e começou a caminhar pela sala, silenciosamente. Por vezes se detinha, para contemplar a paisagem hibernal. Não havia o menor barulho
na casa. Tudo estava quieto e brilhante.
Voltou-se da janela para ver Henri de pé no umbral, muito pálido.
— Pearl Harbor acaba de ser atacada — disse, e sua voz era calma e controlada.

Capítulo 72
Celeste estava fora, brincando na neve com o pequeno Land. Ela o observava a cambalear, gritando, pegando punhados de neve com as
mãozinhas enluvadas e atirando-os para o ar — de modo que caíam como chuva de diamantes. Colocou-o no trenó e foi puxando, ambos rindo
às gargalhadas no ar cristalino quando ele caiu deliberadamente. As peles de Celeste estavam polvilhadas de branco. O vento lhe trouxe
alguma cor ao rosto pálido e cansado. Ela tomou nos braços o garotinho e o beijou apaixonadamente. Ele lutou por um momento; depois, de
súbito ficou anormalmente grave, olhando seu rosto, onde apareciam algumas gotas prateadas. Pensativo ele limpou uma delas, com a luva:
— Mamãe chora... Dor de barriguinha?
— Sim, querido. Uma dor muito forte. Mas não no lugar habitual. Estamos em guerra, meu docinho. E você ainda não sabe o que é isso, graças
a Deus!
Tornou a sentá-lo no trenó e novamente ele saiu gingando nas perninhas fortes. Achou um raminho escuro, bifurcado e brilhante de gelo. Pô-lo
na boca. Celeste protestou. Ele a olhou com aqueles olhos cinza-claro, que se haviam tornado sem expressão. “Não!” — gritou Celeste, com
paixão. A criança, espantada, deixou cair o raminho, e franziu a testa para ela.
— Não olhe para mim assim! — gritou Celeste, ainda mais apaixonadamente. Depois, para completo espanto do garotinho, correu para ele,
ajoelhou na neve, e o apertou nos braços, beijando-lhe o pescocinho quente. — Não se importe comigo, querido — sussurrou, incoerente. —
Mas, por favor, não olhe assim para mim, nunca! Não posso suportar!
Deixou-o ir mais uma vez, e ele se mandou. Ela continuava ajoelhada na neve, a observá-lo. Não ouviu o ruído de um carro, que subia o longo
caminho, vindo do vale. Mas a criança ouviu e viu. Gritou, deliciado:
— Papai!
Correu caminho abaixo. Caiu uma ou duas vezes, levantando-se sozinho e continuando. Espantada e tonta, Celeste lentamente se pôs de pé.
Era o carro negro de Henri parando em frente à casa, e era Henri, sobretudo e chapéu cinzentos, que serenamente saía dele. Celeste ficou
gelada! Não podia mover-se, ou sequer pensar.
Henri a ignorou, de pé na subida nevada, aparecendo em silhueta com suas peles contra o ardente azul do céu. Ele bateu as mãos enluvadas
com um som alto. Curvou-se, estendendo os braços. O pequeno Land aumentou a cambaleante velocidade. E atirou-se nos braços de Henri,
que o ergueu e o beijou calorosamente: o garoto o estreitou, em êxtase.
— Muito bem, velho amigo! — gritou Henri. — Você está danadamente úmido, sabe. Tire essa pata do meu rosto!
Diante de Celeste a cena se estilhaçou em mil ofuscantes e vertiginosos fragmentos. Sua respiração estava sufocada na garganta. Começou a
ofegar ruidosamente, em soluços secos e dilacerantes. Mas ainda não podia mover-se — com toda aquela dor ardente em seu coração, e com
a cabeça rodopiando.
Como num sonho brilhante e inacreditável via Henri subindo em direção a ela, ainda carregando o rosado e feliz garotinho. Henri continuou a
lutar contra as luvas molhadas que queriam acariciar-lhe o rosto. Ria como Celeste jamais o ouvira rir. Agora estava a olhá-la, e seus olhos
realmente dançavam!
— Alô! Você não poderia manter este moleque enxuto?
Mas Celeste ouvia Land, gritando repetidas vezes: “Papai! Papai!” Ouvia isso entorpecida, atordoada.
Henri estava diante dela agora, o menino nos ombros:
— Edith e eu passamos momentos difíceis ensinando o garoto a dizer isso claramente — ele observou, em tom confidencial e caloroso. — Só
na semana passada é que pôde fazê-lo. Ora, droga! — acrescentou, empurrando a luva que novamente o acariciava. — Olhe aqui: pare de
passar-me essas mãozinhas úmidas ou você vai já para o chão.
— Bala! — pediu Land, curvando-se para apertar o rostinho rosado no de Henri. E depois, como se pensasse melhor, beijou o pai
“molhadamente”, com entusiasmo.
A neve em torno dela não era mais branca e imóvel do que Celeste. Os olhos azuis-escuros estavam esgazeados com o choque. Henri ignorou
isso.
— Espero — disse, casualmente, olhando-a bem de frente — que suas babás sejam de confiança. Estaremos nos afastando do menino em
cerca de oito semanas, e não estaremos de volta por dois meses pelo menos. Pode confiar nelas?
— Confiar nelas? — ela murmurou, estupidamente.
Henri pôs o menino no chão. Land prontamente se agarrou a suas pernas, quase o derrubando. Henri se libertou, e Celeste viu o seu perfil
risonho sob a aba do chapéu. Ele conseguiu tirar do bolso um pacote de caramelos, que pôs nas mãozinhas ávidas do garotinho.
— Vá para algum lugar e pode comê-los, quietinho — ele disse.
Celeste murmurou, debilmente:
— Ele não deve! Está quase na hora do seu jantar.
— Não se importe com a hora de jantar — disse Henri, ligeiramente. — Você não conhece nada a respeito de meninos. Podem empanturrar-se
de meia em meia hora. — Deteve-se, e lhe sorriu: — Será verão, na América do Sul, quando chegarmos lá.
Ela não falou. Seus lábios começaram a tremer. Então ele a segurou pelos braços, com firmeza, e a olhou bem. Ela também o olhou, em
silêncio, os olhos se enchendo de lágrimas.
— Ah, Celeste! — ele disse, suavemente.
Ela não podia dar uma palavra. Ele a puxou para si e lhe beijou os lábios, muitas, muitas vezes: estavam frios e rígidos como gelo. Depois,
lentamente, eles se aqueceram e amaciaram. Ela emitiu um grito abafado e agarrou-se a ele. Começou a chorar; ele a manteve bem abraçada,
gentilmente, e deixou-a chorar.
Ela estava consciente apenas de que a dor imensa e monstruosa em seu peito a deixara, que algo se derretia e lhe aquecia a carne. Ouviu a
voz dele, às vezes perto, às vezes de longe, e era grave agora, e firme:
— Não tem ouvido o noticiário, Celeste? Estamos em guerra. O Japão nos atacou. Guerra, Celeste! E tenho trabalho a fazer. Quero-a comigo.
Daqui a sete semanas podemos estar casados: Annette já foi para Reno.
Porém ela só pensava que os braços dele a rodeavam, fortes e firmes, e que sua dor se fora...
O pequeno Land se sentara em seu trenó. Retirara o celofane de todos os caramelos e, em êxtase, estava provando todos eles, pela ordem.
Capítulo 73
Lá estavam eles, sentados num grande círculo diante dele no amplo e aquecido salão de Robin’s Nest. Caía uma neve espessa de dezembro,
sinistra e silente, fundo adequado para a atmosfera do salão, também sinistra e silente, ameaçadora e vigilante, cheia de gigantesca suspeita e
animosidade. Um fogaréu ardia na lareira enorme, enchendo a obscuridade desse interior de lanças e labaredas de luz rosada e irrequieta.
Ainda era de tarde, mas o céu era todo dobras cinzentas, intumescendo com a tempestade; um vento forte batia contra as janelas com um som
de gemido. A fumaça se enroscava languidamente, fumaça de charutos e cigarros. Junto de cada cotovelo havia uma mesa com altos copos de
cristal cheios de um líquido ambarino. Aqui e ali a luz do fogo punha em destaque um polido sapato preto, o cintilar de uns óculos, o brilho de
uma cabeça calva, o vislumbre de um anel de sinete, o súbito brilho mortal do olho de um adversário.
Henri ficou de pé sob o retrato de Ernest Barbour. Fosse ele outro homem, aqueles reunidos ali o suspeitariam de teatralidade, de esforçar-se
por um efeito melodramático. Contudo, nem mesmo seus inimigos suspeitariam disso. Alguns deles, com uma inquietação ridiculamente
supersticiosa, sentiam que dois rostos idênticos os contemplavam, e que esses rostos curiosamente conferiam poder um ao outro. Então, eles
enfrentavam dois homens, à espera, dois homens frios, perigosos e implacáveis, com pálidos olhos de basilisco e grandes bocas formadas de
pedra cinzenta.
Henri olhou o círculo de rostos a sua volta — sua Família. Aí estava o poder dos Bouchards, parte do poder da América. E pensou: “Entre eles
não há um só em quem eu possa confiar. Cães, fuinhas, serpentes e lobos!” Cresceu nele um enorme desprezo, uma selvagem, porém gelada
onda de força tal como poderia saturar um homem que secretamente sabia poder destruí-los a seu bel-prazer. Não sentia pesar por não poder
confiar neles. Estava apenas satisfeito por ter poder sobre eles, poder destruí-los, e que eles devessem obedecer-lhe. Mexeu os largos ombros
dentro do casaco: sentiu a flexão dos músculos. Eles não sabiam o que pensava, mas viram o súbito brilho gelado de seus olhos descoloridos,
o súbito dilatar das narinas. Embora ele estivesse à vontade, mãos nos bolsos, sentiram tudo que ele era, e todos sentiram o ferrão do
presságio como um vento frio em sua carne.
Ele os chamara, eles tinham vindo. Nem um ousara não comparecer. Ele esperara até que todos se tivessem instalado confortavelmente com
charutos, cigarros e uísque. Olhou para um em especial: Antoine, branco como gesso, com olhos que pareciam buracos chamejantes no rosto
— Antoine, que fora tão prejudicado pelo testamento do pai. No dia anterior recebera uma cópia do testamento: fora-lhe enviada, sem
comentários, pelos advogados de Henri. Por um momento, enquanto ali de pé, Henri lhe relanceou o olhar algumas vezes com secreta
curiosidade e com secreto e duro divertimento. A César o que é de César: o frívolo Antoine, graciosamente avarento, não demonstrou sinais de
perturbação ou fúria.
Nem sequer parecia ter sido atingido. Henri esperara muito mais que essa calma, essa elegante e silenciosa compostura. Henri se permitiu um
momento de curiosa especulação e alguma surpresa. Também estava aborrecido. Gostava de pensar que compreendia completamente todos
os homens, que poderia predizer-lhes as reações. Era irritante que Antoine pudesse sentar-se ali, tão silencioso, tão imóvel, que sua mão não
tremesse, e que sua atitude fosse de atenção cortês e de interesse. Antoine podia haver sentido o mundo estremecer sob seus sapatos
polidos; podia ter visto os muros de sua cidade particular ruir com um grande trovão. Porém ele inspecionava as ruínas com calma, e com uma
espécie de civilizada grandeza de desinteresse, um cinismo de Petrônio e uma leve indiferença. Talvez, até, com certa diversão.
Henri pensou, com ódio e crescente amargura: “Ele é um cavalheiro, esse maldito dançarino e poseur.” E, com súbita nitidez: “Eu o odiava
antes, mas agora odeio mais! Nunca pretendi ser um cavalheiro. Este não é um mundo para cortesãos, para élegants, para homem civilizado.
Ainda é um mundo de dinossauros e tiranossauros.”
Deu-se conta do silêncio imenso com que o observavam. Sorriu. Sua consciência do poder dentro dele fê-lo aprumar-se. Começou a falar,
naquela sua voz monótona e penetrante:
— Não vou ficar com rodeios. Estive em Washington, como todos sabem. E voltei para explicar as coisas tão simplesmente como puder.
Antoine falou, numa voz grave:
— Seja bem simples. Nossos intelectos não são bastante sutis para compreender insinuações.
Uma excitação passou pelos outros, e sorrisos aborrecidos ou furtivos apareceram momentaneamente. Henri olhou duro para Antoine:
— Não estou lidando com sutilezas, embora suspeite que você as preferiria.
Antoine deu de ombros, indiferente. Por um instante Henri sentiu raiva, quando a vantagem momentânea passou fugazmente para Antoine.
Esperançoso suspeitara que a compostura de Antoine podia ser apenas pose. Porém essa indiferença, primorosamente apresentada, mas
primorosamente reprimida, o convenceu do contrário. Aparentemente, havia em Antoine alguma fadiga profunda, a fadiga do homem civilizado
confrontado com a força bruta que não só molestava seu enfado como o aborrecia. Henri afastou-se dele. Se devia expor seu caso,
calmamente e com brutal eficácia, não devia olhar muito para Antoine. Porém, embora não olhasse para o outro, sentia seu olhar calmo e
cínico, seu delicado exame, seu curioso interesse.
Em consequência, a voz de Henri estava mais dura e mais áspera que antes quando prosseguiu:
— Não vou dizer-lhes o nome do homem com quem estive em conferência durante dois dias em Washington. Talvez vocês logo adivinhem.
“Isto foi o que me disse: que desde o início da depressão de 1929, capital e indústria se mostraram falidos no que se refere à liderança
nacional. Entretanto, vocês podem, ou não, concordar com isso. Disse depois que tivemos oportunidade de perpetuar nossa liderança nos
Estados Unidos, mas que, ao nos tornarmos tão indiferentes, tão mergulhados em nós mesmos e em nossa ganância que permitimos que
veteranos de guerra americanos vendessem maçãs nas ruas, e outros pequenos e sórdidos acontecimentos do começo da década de trinta,
quando nada fizemos para aliviar a fome e as aflições do povo, e insistimos em que o Presidente em exercício use métodos ditatoriais para
subjugar o pânico crescente de um a outro extremo do país, a ponto de completo caos, moralmente, falimos aos olhos da nação. Perdemos a
confiança do povo, e nada despertamos nele a não ser ódio e suspeita.
Deteve-se. Christopher levou o cigarro aos lábios e aspirou, languidamente, murmurando:
— Parece que ouvi tudo isto antes, em algum lugar. Acho que a imprensa comunista tratou disso extensamente.
De novo, para sua raiva fria, Henri sentiu o leve equilíbrio do poder passar momentaneamente dele para outro. Mas não replicou. Observou
Christopher, carrancudo. “Então — pensou, selvagemente — já se sente bem a salvo, não, serpente branca?”
Esperou até diminuir o malévolo murmúrio de divertimento pelas palavras de Christopher, e haver novamente um silêncio atento. Agora sabia
que na verdade não tinha um partido absolutamente: cada homem naquela sala o odiava.
Prosseguiu, sem a menor mudança no tom de voz:
— Devemos admitir certos fatos básicos. Não é sentimentalismo de minha parte quando digo que no passado nunca assumimos qualquer
responsabilidade pelo bem-estar do povo americano. Nós, e nossos associados e irmãos de armas, formamos uma egoística organização
protetora para nossa própria vantagem. Nós nos tornamos uma hierarquia fechada e gananciosa com total desconsideração pelo povo à custa
do qual, em última análise, vivemos. Temos dependido, e devemos depender, da boa vontade do povo para nossa própria existência... embora
pareça havermos esquecido esse fato fundamental na escalada geral por lucros. Esquecemos que não podemos existir, na América, como
democracia-industrial-capitalista próspera e bem-ordenada sem essa boa vontade, sem o bem-estar e a confiança do povo.
Tornou a deter-se. Olhou a facção de Antoine: o “mortal pequeno Jean” com suas amáveis covinhas e doce atenção, e o verde e sujo Nicholas;
o calado e confuso Robert Bouchard; Alexander, de rosto purpúreo e grande ventre. Eles haviam começado a sorrir maliciosamente, erguendo
as mãos para ocultar os sorrisos: os olhos deles o vigiavam com perigoso interesse.
Jean falou, maciamente e com ar de surpresa:
— Para o bisneto de Ernest Barbour, e com a prova de seu próprio notável recorde, sua defesa da “democracia” é espantosa! Mas continue.
Eu realmente não queria interromper.
Involuntariamente Henri relanceou os olhos para sua própria facção. Christopher, “a serpente prateada”, parecia envolto em seus próprios
pensamentos agradáveis. Emile, “o inchado rato preto”, olhava Henri com opaca amabilidade. Hugo, ruivo e enorme, parecia cautelosamente
inquieto. Só Francis, de olhos azuis gelados, estudava Henri com cuidadosa simpatia e atenção.
A boca de Henri, de traços pesados, tomou uma expressão indomável. Ele repetiu, com ênfase:
— Só numa sociedade democrática, com sua religião da livre empresa e competição aberta, podemos nós, os Bouchards, e nossa classe,
sobreviver. Não necessito apelar para as memórias meio obtusas de vocês para o que aconteceu aos grandes industriais e capitalistas sob
Hitler e Mussolini, e que pagamento sangrento receberam de seus senhores quando já haviam servido aos propósitos deles. Devo enfatizar-
lhes a verdade de que nosso bem-estar e nossa existência estão ligados inextricavelmente ao bem-estar do povo americano. Quando esse
bem-estar é posto em perigo por nossa própria cegueira... estamos prontos para a destruição. Alguns de vocês aqui, aparentemente, são
demasiado cegos, estúpidos demais e gananciosos além da medida para captar tal fato.
— Não há dúvida — disse Antoine, com um gesto gracioso e uma elegante inclinação de cabeça — de que somos cegos, estúpidos e
gananciosos. Assim, concordamos com você em toda a linha.
Novamente se ergueu um murmúrio divertido, mas Henri, que agora estava de pé, dominou-o instantaneamente com um olhar ameaçador.
Cada homem sentiu esse olhar literalmente na própria carne, e então um rígido alerta era aparente entre eles, uma espécie de medo. Henri
“intuiu” esse medo. Sorriu severamente. Disse:
— Pode ser um pensamento novo para todos vocês que o Sr. Roosevelt nos salvou da destruição quando subiu ao Governo em 1933. Sua
memória será tão curta? A própria ARN que todos nós combatemos tão vigorosamente, na verdade levantou os preços e salvou nosso sistema
capitalista-industrial. Realmente esqueceram as condições do país naquela época? Se me lembro corretamente, não havia um só dentre vocês
que não tremesse e começasse a pensar em retirar ouro do país para o Canadá ou a Europa. Éramos a classe mais apavorada da América.
— Deu uma olhada em Nicholas: — Se não me falha a memória você foi tratado de uma doença embaraçosa por uma completa bateria de
médicos... até que Roosevelt decretou um feriado bancário.
Como se aliviada de uma tensão realmente insuportável, toda a sala estourou de riso à custa de Nicholas. Ele estava sentado na beira da
cadeira, e olhava de um para outro dos homens em convulsões de riso — verde de ódio e de fúria. Henri ouvia a risadaria, sorrindo
sombriamente. Deixou que se divertissem. Ergueu a mão e gentilmente mordeu o dedo indicador.
Francis exclamou:
— Fizemos uma injustiça com o Henri! Ele tem realmente senso de humor!
Agora o olhavam, se não com simpatia, pelo menos com mais cordialidade. Ele continuou:
— Sim, eu me lembro do nosso pânico. Estávamos condenados. Torcíamos as mãos. Corríamos em volta como formigas cegas,
choramingando. Roosevelt nos salvou. Nós lhe devemos pelo menos gratidão. Mas em vez disso, nós o acusamos, em nossa imprensa, de ser
um comunista, um visionário. Aparentemente não nos damos conta de que se não fosse pela lenta e dolorosa melhora da sorte do povo
americano, após 1933, poderíamos ter tido uma revolução, ou a completa anarquia.
— Poderíamos — disse Antoine, pensativamente, olhando para diante como na mais casual das conversas — ter chamado a polícia e o
exército. Vocês nunca pensaram nisso.
Henri deu uma curta risada:
— Você viveu por muito tempo na Europa, Antoine. Realmente acredita que o povo americano poderia ter sido dominado por bastões da
polícia e armas do nosso exército, que era então uma organização muito fraca? E você realmente acredita que esses mesmos policiais e
soldados teriam atirado sobre seus patrícios americanos? Lembre-se: mesmo o homem mais estúpido absorveu em nossas escolas públicas
os princípios fundamentais da democracia. Pensa que os americanos são dóceis como os alemães, ou cansados e degradados como
franceses, ou famintos como os italianos? Esqueça nossas cidades do Norte. Tente lembrar nossos Estados sulinos, e nosso Sul, onde vivem
os descendentes dos bretões que herdaram recordações de liberdade e decência. Alguns de vocês negarão que as pessoas comuns possuam
mesmo o vago cérebro de uma ameba. Já fui culpado dessa estupidez, faz tempo. Daí para cá recebi alguns esclarecimentos.
Ninguém respondeu. Ele continuou:
— Você viveu por muito tempo em seu Vaticano gigantesco, entre seus cardeais e bispos da indústria. Você tem vivido numa espécie de
crença mística em sua própria onipotência, esquecendo que não tem Fuehrer para proteger seus interesses, nem exército-robô para reforçar
seus decretos com metralhadoras. Você é vulnerável. Está coberto por dezenas de fraquezas. E não creia que o povo americano também não
saiba disto.
Depois disse:
— Jamais convencemos o povo americano do direito divino dos capitalistas. Nunca o conseguiremos.
Permitiu que o silêncio se tornasse profundo. Permitiu que todos pensassem. E os observava atentamente. Viu os odientos rostos dos
partidários de Antoine na defensiva. Viu os rostos interessados, mas cuidadosos dos seus próprios seguidores.
Então Antoine disse, macia, quase carinhosamente:
— Que o povo se dane! Seja danado para sempre!
Henri sorriu. Seu senso de poder cresceu dentro dele. Mas sentiu pequena surpresa à sugestão de impotência nas palavras de Antoine.
Estranho que esse homem elegante e perigoso sentisse impotência. Isto sugeria a mais curiosa e inexplicável exaustão, até mesmo
capitulação.
— Espera que eu defenda o povo? O que lhe disse são fatos, apenas. Sou realista. Firmo meus negócios sobre fatos. O que pessoalmente
sinto a respeito de “povo” nada tem a ver com o fato de que devo lidar com ele. Só sei que tenho de adaptar-me ao que existe, e partir daí.
Tornou a deter-se. E sua voz se tornou mais forte, mais rápida:
— Estamos em guerra. Penso que nenhum de vocês me desmentirá quando digo que fizemos tudo que pudemos: suborno, mentiras,
corrupções de funcionários públicos, compra de certos partidários no rádio, calúnias sobre o trabalhismo, subvenção de certos sacerdotes, e
de nossos jornais, poderosa propaganda subversiva, acordos secretos com certos associados da Europa Central, formação de poderosos
Comitês subversivos, intrigas na América do Sul, sujando a Rússia, avalanches de panfletos e pequenos folhetos, e só Deus sabe o que mais
para manter a América fora desta guerra. Tivemos nossos cartéis que forneceram a Hitler tudo que precisava para conquistar o mundo. Até lhe
fizemos promessas.
Parou. Agora todos estavam bem atentos. Os rostos do pessoal de Antoine estavam rígidos e sem expressão. Olhavam-no de modo tão letal e
perfurante que ele só lhes podia devolver o olhar se momentaneamente hipnotizado. Disse:
— Alguns de nós chegaram a tentar o antissemitismo para desviar a atenção do povo americano de nosso propósito real. Zombamos da
Inglaterra e a emporcalhamos. Tentamos despertar a indignação do povo contra o Empréstimo e Arrendamento. Alguns de nós trabalharam de
todos os modos, com energia incansável, para garantir a vitória de Hitler sobre o mundo todo, e a eventual escravidão de nosso próprio povo
americano. Posso apenas dizer, e com satisfação pessoal, que, até agora, os que fizeram tudo isso fracassaram. É meu propósito, e o
propósito de muitos outros homens poderosos que estão comigo, providenciar para que vocês continuem a fracassar. Vocês não podem
vencer. Não agora.
Sua voz se ergueu, tornou-se irresistível de poder, de triunfo e exultação:
— Talvez alguns de vocês acreditem ainda poder destruir a América, poder ainda garantir a conquista de Hitler. Mas, chamo-lhes a atenção
para certos fatos: vocês não podem, apesar de seus esforços, evitar o alistamento nacional, evitar o Empréstimo e Arrendamento, nem
corromper o sentimento do povo contra Hitler. Vocês não podem destruir a decente indignação de setenta e cinco por cento do povo americano
contra Hitler, e seu ódio por ele. Com todos os seus jornais, e os seus mentirosos assalariados, e seus congressistas subornados, vocês não
puderam esmagar a admiração do povo americano pelo valor da Inglaterra, nem puderam despertar suas esmagadoras suspeitas contra a
Rússia. Vocês tentaram. Tentaram esforçadamente. Mas falharam. Esqueceram uma coisa: os imponderáveis da consciência do povo.
Antoine levantou a cabeça e se endireitou na cadeira. Regan dissera isso. Dissera isso a Henri, provavelmente. “Então, estamos perdidos!”,
pensou Antoine. E não sentiu absolutamente nada.
No enorme silêncio contido da sala, Henri continuou:
— Vocês tinham seus isolacionistas no Congresso. Tinham suas promessas. Mas não puderam evitar, no fim, que eles votassem
unanimemente pela guerra contra o Japão e a Alemanha. Isto devia significar algo para vocês.
Esperou. Mas ninguém falou. Ele olhou um a um, lentamente. Eles o odiavam. Eles o temiam. Uma escura sombra de incerteza furiosa e
frustração apareceu nos olhos da facção de Antoine.
E então Henri disse:
— Alguns de vocês estão fazendo reservas mentais, mesmo agora. Vocês pensam que ainda podem arranjar um meio de garantir a conquista
de Hitler. Ou, na melhor das hipóteses, pensam poder negociar uma paz que ofereça vantagem a Hitler. Não o façam. Vocês não podem
vencer. Não estou falando só por mim. Tenho comigo outros como eu. Tenho o povo americano.
Caminhou alguns passos pela sala. Eles sentiam seu júbilo, sua enorme e desdenhosa aversão e ódio por eles. Então, voltou-se rapidamente e
disse:
— Existem mais alguns fatos que desejo trazer à sua atenção. A Legião Americana e outras poderosas organizações têm defendido, nas duas
últimas décadas, que no caso de uma emergência nacional, tal como uma guerra, quando for necessário alistar seres humanos para o serviço
da nação, capital e indústria sejam apreendidos pelo Governo, e que a indústria seja operada pelo Governo, não pelo lucro, mas pelo bem-
estar da nação como um todo.
“Esta ideia penetrou na consciência do povo americano. E assim, neste momento de crise nacional, ou vocês cooperam, com toda lealdade, e
produzem material de guerra até o máximo, sem reservas mentais, sem ambições pessoais e internacionais, esquecendo suas conspirações,
suas mentiras e seus compromissos com Hitler, ou o Presidente comparecerá ao Congresso, que está agora na disposição adequada, e esse
Congresso passará uma lei para se apoderar da indústria até o fim da guerra.
Uma onda de terror, de incredulidade, passou por todos eles. Diferenças partidárias eram agora esquecidas. Todos se olhavam profundamente
alarmados, buscando segurança em outros rostos. Mas não havia segurança ali.
Henri os observava. Esperou um pouco. Depois disse, lenta, maciamente:
— Não estou especulando. Digo-lhes que isto pode acontecer, acontecerá. A menos que vocês cooperem. Mas isto não é o fim. Se
permitirmos que o Governo recrute a indústria agora, e elimine inteiramente os lucros, o Governo e o povo podem ter a ideia de que isso não é
mau absolutamente, e esse controle poderia continuar permanentemente, mesmo depois de assinarem a paz. Assim, teremos o socialismo. E
nós, nós mesmos, seremos responsáveis por essa catástrofe.
Nicholas disse, roucamente, depois de proferir uma porção de obscenidades:
— Maldição! O Governo não ousará!
Henri replicou calmo, sacudindo a cabeça:
— Garanto-lhes que ousará. Já foi traçado um plano. O eminente cavalheiro que me falou do plano informou-me que será posto em ação no
exato momento em que vocês mostrem sinais de continuar o que vinham fazendo. Tive a mais interessante discussão com aquele cavalheiro. À
sombra da Casa Branca. Ele me convenceu, completamente, que o que temos considerado um estado molenga do povo americano é
realmente uma avalancha muito sólida, que pode rolar sobre nós e destruir-nos, sem deixar rastros sequer.
Então uma completa e súbita desordem estourou na sala. Nicholas, Jean, Alexander, e Robert Bouchard puseram-se de pé e começaram a
movimentar-se rapidamente, por ali. Mesmo Hugo e Emile foram contagiados. Também eles se puseram de pé e começaram a caminhar de
um lado para outro, em total distração. Do partido de Antoine, só ele permanecia sentado. E observava os amigos, com aquela elegante e
composta indiferença tão curiosa para Henri, que se virava quietamente em sua cadeira para seguir-lhes os movimentos frenéticos. Ele era
como um cavalheiro civilizado languidamente observando os perturbados trejeitos de animais inferiores.
E então ele virou a cabeça lustrosa e estreita para Henri, e em seu rosto moreno apareceu o mais estranho e radiante sorriso de maligna
diversão. Descansou o cotovelo no braço de sua poltrona, e pôs o queixo pontudo na palma da mão. Ficou sentado assim, sem se mover, o
sorriso se aprofundando.
Christopher e Francis por sua vez trocaram longos olhares significativos, inescrutáveis, mas satisfeitos.
Depois o pequeno Jean, desaparecida toda a sua graciosa amabilidade, virou-se virulentamente para Henri:
— Está mentindo. Sabemos o que você quer. Pensa que nos engana com palavras?
Henri encostou-se à parede. Fixou no parente os olhos descorados e disse calmamente:
— Eu ficaria triste se os visse tentar alguma coisa. Pois estive metido nisso com vocês. Espero, para meu próprio bem, que vocês vejam a luz.
Jean estava a pique de dizer algo desdenhoso. Sua pequena mão até se ergueu num gesto aborrecido e de repúdio. Mas ao olhar para Henri,
sua expressão mudou. Sua mão caiu. E então ele ficou silencioso.
Depois foi Antoine que se voltou graciosamente em sua cadeira e disse, bem no meio da barulhenta desordem da sala, olhando diretamente
para Christopher:
— Você estava nisto desde o princípio, não estava?
Christopher sorriu, e inclinou a cabeça:
— Sim. Sempre. Mas você sabia, não é verdade?
Antoine riu maciamente. Parecia deliciado:
— Sim, creio que sim. Parabéns.
Então Antoine se levantou, sem pressa, todos os seus movimentos elegantes e lânguidos. Olhou para o seu partido, os negros olhos
enviesados faiscando, sorriso brilhante. Chamou a atenção deles embora sem dizer palavra ou fazer qualquer gesto. Todos pararam em meio
ao desordenado caminhar, e o fitaram.
— Rapazes — disse ele, gentilmente — acho que estamos acabados. Sim, realmente acho que estamos acabados.
Completa desmoralização dominou a todos. Fitaram-no, pálidos, confusos, piscando e engolindo visivelmente. Depois devagar, um a um,
voltaram para suas cadeiras e deixaram-se cair nelas. A cabeça lhes descaiu para o peito. Ficaram a fitar diante deles, estupidamente.
Graciosamente Antoine virou-se para Henri, ali de pé como se fosse de pedra:
— Posso fazer-lhe uma pergunta? — perguntou, com uma ligeira inclinação que enfureceu o outro homem. Mas Henri apenas inclinou a cabeça.
— É verdade que não sou muito brilhante — disse Antoine. — E minha mente parece um pouco confusa. Com toda humildade, quero saber
disto: se cooperarmos, como você sugeriu com tanta tática, produzindo material de guerra com lucro razoável, que garantia teremos de que o
Governo relaxará seu controle após a guerra, e nos permitirá reconstruir nossos recursos para retirar um reajustamento posterior?
Henri informou, observando-o atentamente:
— Isso dependerá de sua cooperação agora e, acima de tudo, da confiança e respeito que inspirarmos ao povo. Se assumirmos nossa
posição correta e mostrarmos lealdade e desinteresse, poderemos até ganhar um lugar à mesa da paz. E isso será muito valioso na
distribuição de esferas da reconstrução industrial nos devastados países da Europa. Estou certo de que (você é imaginativo o bastante para
saber que isso contém possibilidades ilimitadas.
Ele olhou para Antoine de modo agressivo. Seu rosto ficou congestionado. Custou-lhe um profundo esforço, porém ele disse:
— Espero também que você continue com Bouchard & Sons. Tenho em mente algo de muito interessante.
Antoine o olhou com a maior amabilidade. Pareceu meditar, como se lhe acudisse algum doce pensamento. Seus olhos brilharam, mas se foi
com intenso deleite Henri não podia saber. Então Antoine se curvou profundamente, como um bailarino:
— Você despertou a minha curiosidade — ele disse. — Poderemos ter uma conversa amanhã, a sós?
Henri ficou embaraçado por alguns momentos. Fitou sombriamente o jovem. Não podia compreender essa graciosa e civilizada capitulação,
essa admiração por um adversário bem-sucedido que brilhava nos olhos de Antoine. De modo que ele apenas acedeu de cabeça, e quando
Antoine se afastou dele, ele esfregou a orelha, numa incerta especulação. De certa forma, seu triunfo foi um pouco diminuído. Em sua derrota,
Antoine ainda estava tranquilo, ainda completamente contido.
Henri esperou até que todos estivessem novamente sentados em suas cadeiras, a facção de Antoine ainda fitando estupidamente diante deles,
a facção de Henri partilhando com satisfação o próprio triunfo. E depois ele tornou a falar, mais alto, mais claramente, com muita ênfase:
— A menos que, finalmente, cheguemos ao ponto onde nos demos conta, não só os Bouchards, mas todos os poderosos da América, de que
já não somos uma dinastia governando de cima, mas que deve depender da boa vontade não só de nosso próprio povo, mas de todos os
outros povos com quem eventualmente entremos em contato numa esfera de atividade em constante ampliação... todos pereceremos. E outros
homens, mais sábios que nós, tomarão nossos lugares. Isso é inevitável. Essa a rigorosa realidade que devemos encarar.
“Essa é nossa hora final.”
E então, como se impulsionado por irresistível compulsão, virou a cabeça para olhar, lá em cima, o rosto de Ernest Barbour. O retrato o
contemplava atentamente, tão impassível, tão implacável como ele mesmo.
E então Henri se voltou para seus parentes silenciosos, cada um dos quais imerso em seus próprios e profundos pensamentos. Disse, com
leveza:
— Há apenas mais uma coisinha, e trazê-la à baila me embaraça. Estarei trabalhando o tempo todo. Vou saber de tudo. Vocês irão dizer-me
tudo. Porque, se algum de vocês se mostrar refratário a qualquer tempo, e continuar com algumas de suas atividades, digamos,
extracurriculares, como aquelas em que têm estado empenhados, e das quais estou plenamente ciente, com gravações e tudo mais... então
entregarei todo esse material a certas agências de investigação do Governo, o que pode tornar as coisas bem pouco confortáveis para vocês.
Fiz a certo cavalheiro de Washington algumas alusões sobre o que armazenei, aqui e ali. E me magoaria muito entregar-lhe essas gravações.
Porém ele me fez prometer que o faria. Em tal caso, posso garantir-lhes que lamentarão o dia em que não seguiram meus conselhos.
“Já lhes disse que não gostaria de fazer isso. Afinal de contas, isso envolveria a família. Mas não terei escolha. Pois, compreendam: será o
único meio de salvar-me de positiva vingança do Governo, medidas punitivas e completo aniquilamento.
Acrescentou, depois que deixou a facção de Antoine meditar sobre isso, com medo e fúria, silenciosos e impotentes:
— Sei que informarão seus associados a este respeito: isso pode economizar-lhes muitas coisas desagradáveis, no final das contas. E, para
alguns de vocês, na família: se as coisas piorarem muito, tenho meios de esmagá-los a todos. Há meses venho planejando esses meios.
A pequena Annette, solitária e silenciosa, olhava pelas janelinhas do avião transcontinental: seu rostinho estava calmo. Não se sentia
abandonada, ou perdida, ou mesmo de coração partido. Sua tristeza era calma, parte de sua vida, e agora por fim se dava conta de que
sempre tinha sido e provavelmente sempre o seria.
Mas nela não havia fraqueza, nem desesperança. Olhava as imensas massas de nuvens brancas, parecidas com um oceano, com escuras
torres de névoa a atravessá-las, como enormes ruínas. E então, enquanto olhava, o sol subitamente apareceu — e tudo se transformou em
ouro!
Ela sorriu. Disse em voz alta, suavemente: “Sim, existe um lugar para mim. Em alguma parte, certamente existe um lugar... ”
EPÍLOGO
Cornell Hawkins estava de pé junto à sua empoeirada janela e olhava sem ver a Quinta Avenida, girando num turbilhão de neve.
Talvez fosse sua imaginação, mas parecia-lhe haver mais pressa nos que passavam pela rua lá embaixo. O céu escuro e baixo se pendurava
ameaçadoramente sobre todos, um céu que olhava para um mundo completamente em guerra, completamente mergulhado em tragédia,
completamente face a face com sua hora final.
Ele muitas vezes cogitara como a América reagiria a seu inevitável destino de longa agonia, sofrimento, morte e tristeza. Lembrava-se da
última guerra, quando tinha havido certo júbilo, um senso de aventura, entre o povo. Tinha havido bandas, e canções, e marchas, e o alegre
esvoaçar de bandeiras. Tinha havido a alegre libertação da monotonia, germinando a crença em coisas poderosas e gloriosas que viriam após
essa guerra — que era apenas um turbulento, estrondoso limiar que se abria para o brilhante país do futuro.
Ele não acreditava que o povo americano fosse agora tão ingênuo, tão pueril. Acreditava não haver alegria ou jovialidade nele. Julgava haver
apenas tristeza e raiva, e pleno conhecimento do que estava por vir. A América havia amadurecido; em sangue, amargura e ódio ela erguera
sua espada à luz vermelha da guerra.
Ele já vivera muito, era bastante sábio para acreditar que alguma grande esperança e êxtase esperavam o mundo após sua angustiada luta
com as forças do mal que vivia em si mesmo, e seu domínio dessas forças. Dor e perdas, exaustão e desespero, é o que provavelmente lhe
viria. Ele sentiria que não podia continuar. Descansaria, arquejante, entre suas ruínas, e olharia em torno de si com olhos confusos onde não
haveria sequer um horror frenético. Ele não seria sequer sem esperança. E sim apenas muito cansado, e muito frio, e tremeria.
Quanto demoraria antes que pudesse tornar a levantar-se, e com mãos sangrando começar a construir uma vez mais? Quanto de sua
amargura, ódio e lembranças poderia apagar de si mesmo? Quanto de sua morte profunda, e sua escuridão?
O choque do conflito relembrado estaria em toda a sua carne. Por muitos anos ele ainda veria as cidades arruinadas, e a multidão de rostos
mortos e chorosos. Os túmulos não desapareceriam tão cedo: a terra saturada tão cedo não seria novamente agradável e tranquila. Onde
batesse o arado, bateria em ossos.
Muito depois que as brancas muralhas do mundo estivessem novamente intactas, e o comércio outra vez fluísse através de oceanos não
ameaçados — os ventos ainda transportariam os gritos daqueles que haviam morrido tão inocentemente, dos que haviam sido traídos, dos que
haviam sido torturados. Pois esta não fora uma guerra de governos. E sim uma guerra de povos. Fora uma guerra dos espíritos dos homens.
Cada folha de grama se lembraria de ter sido tingida de vermelho; cada raiz de cada árvore sentiria a morte entrelaçada nela.
O mal viera, e o homem se erguera para enfrentá-lo — amedrontado, sim, desesperado certamente. Ele o dominaria, como já o dominara
antes. “Devia-se acreditar nisso” — pensou Hawkins. Não se devia ousar não crer.
Suspirou. Via o rosto de Peter. Ouvia a voz de Peter uma vez mais, agora forte, clara e triunfante:
“Não importa o que venha, não importa que homens morram e sofram: a terra permanecerá. A terra continuará, para sempre. E, com ela,
continuará a esperança dos homens, agora e sempre, revivendo em seus filhos, reafirmando sua fé de que este é o seu destino, entre eles e
com Deus!”
Composto e impresso nos Estab. Gráficos Borsoi S.A. Indústria e Comércio, à Rua Francisco Manuel, 55 — ZC-15, Benfica, Rio de Janeiro, RJ
***

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