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TÍTULO: O poder supremo (2 de 4).

As forças do oculto

AUTOR: BRADLEY, Marion Zimmer

TÍTULO ORIGINAL: Witchlight

LOCAL DA PUBLICAÇÃO: Algés

EDITORA: Difel, Difusão Editorial

Data da publicação: Setembro de 1998

3.ª Edição

GÉNERO: Romance

CLASSIFICAÇÃO: Estados Unidos - Século XX - Ficção

DIGITALIZADO E CORRIGIDO POR:

Aventino de Jesus Teixeira Gonçalves

Junho o de 2004

***

A série O poder supremo é constituída pelos seguintes títulos:

1. O círculo de Blackburn

2. As forças do oculto

3. A fonte da possessão

4. O coração de Avalon

Nota do digitalizador

***
BADANA DA CAPA
O passado de Winter Musgrave perdeu-se

quase por completo no desvão

da sua memória. Winter parece possessa

- os objectos estilhaçam-se à sua

passagem, na soleira da porta aparecem

cadáveres de animais. E tem a

sensação aflitiva de que o passado

esquecido encerra qualquer coisa horrível,

cujas consequências a perseguem

com fúria desenfreada.

Em busca de auxílio, Winter encontra

Truth Jourdemayne (de «O Círculo de

Blackburn») e descobre que a chave

de acesso às recordações perdidas

reside nela própria - e no círculo

mágico de amigos dos seus tempos de

estudante. Mas o círculo rompera-se

há muito tempo. Winter terá de reconstruí-lo

para salvar a vida.

«As Forças do Oculto» não é apenas a


história de uma mulher à procura do

seu passado perdido. É um romance

poderoso que deveria apelar à nova

era de leitores, aos fãs da fantasia e da

ficção contemporâneas, e aos milhares

de leitores que já descobriram a força

e beleza dos romances de Marion

Zimmer Bradley.

«Um fascinante conto de ”magia” contemporânea

e auto-descoberta que

conjuga o romanesco, a fantasia urbana

e o horror. Com uma heroína forte

e uma abordagem sofisticada da magia,

esta novela entretém inteligentemente.»

Publishers Weekly

AS FORÇAS DO OCULTO
MARION ZIMMER BRADLEY

O PODER SUPREMO

AS FORÇAS DO OCULTO

Tradução

Rui Gabriel Viana Pereira

3.a edição

DIFEL

Difusão Editorial, S. A.
Título original: Witchlight

© 1996, Marion Zimmer Bradley

Publicado de acordo com o autor, c/ o BAROR INTERNATIONAL INC.,


Armonk,

New York, U.S.A.

Todos os direitos de publicação desta obra reservados para Portugal por:

DIFEL

Difusão Editorial, S.A.

Denominação Social - DIFEL 82 - Difusão Editorial, S .A.

Sede Social - Avenida das Túlipas, n.º 40-C

- Miraflores

- 1495 Algés- Portugal

- Telefs.: 4120848-4120849

- Fax: 4120850

- E-mail: Difel.SA@mail.telepac.pt

Capital Social - 60 000 000$00 (sessenta milhões de escudos)

Contribuinte n.º - 501378537

Matrícula n.º 8680 - Conservatória do Registo Comercial de Oeiras

Capa: Clementina Cabral

Revisão tipográfica: Frederico Sequeira

Fotocomposição: Espaço 2 Gráfico


Impressão e acabamento: Tipografia Guerra. Viseu, 1998

Depósito Legal n.º 127991/98

ISBN 972-29-0365-9 / Setembro 1998

Proibida a reprodução total ou parcial sem a prévia autorização do Editor


Suspirou e pegou no café - «Meg não devia fazer estas

coisas; se os professores repararem quererão todos que ela

lhes vá buscar e levar coisas e assim não vai conseguir fazer

nada» - e só nessa altura reparou como os seus músculos

estavam tensos e doridos.

Um outro tipo de actividade de poltergeist é a manifestação

física de uma força, não em torno de uma criança

desadaptada ou histérica, mas sim de um adulto perfeitamente

adaptado. Nestes casos estamos perante uma força física não

resolvida e em acção; digamos que o Invisível vem ao

encontro do indivíduo em questão, facto que, em termos

estritos, não cabe no escopo desta obra.

Sobre as histórias descritas neste livro, consultar Carrington

e Fodore, passim, bem como a monografia de Margrave e

Anstey - 1983, in The Journal of Unexpected Phenomena,

reeditado por Silkie Press, San Francisco, sob o título The

Natural History of the Poltergeist.

The Inheritor
CAPÍTULO UM

UM CONTO DE INVERNO

A sad tale’s best for Winter.

I have one of spirits and goblins.1

WILLIAM SHAKESPEARE

Chamava-se Greyangels. Fora construída nos derradeiros

anos de vida da antiga colónia britânica e acrescentada nos

primórdios da jovem nação. Estava rodeada de pomares,

plantados no tempo em que todas aquelas terras ainda eram

amanhadas; as árvores centenares, abandonadas, já não davam

fruto, mas continuavam a cobrir-se de flores primaveris. O

reinado da casa sobre vastos acres de milho e lagares e

macieiras cercadas de arame farpado tinha cessado há muito

tempo. Apenas restava a própria casa. O chão assoalhado, o

estuque das paredes, os tectos baixos sustentados por vigas

enegrecidas de fumo, as janelas estreitas com vidros toscos e

ondulados, tudo estiolara progressivamente: o luxo inicial

fanou-se, tornou-se excentricidade, descambou em desleixo, e

por fim caiu no esquecimento, no completo abandono à mó

do tempo e das intempéries.


Passaram os anos. A casa, moribunda, voltou a ser habitada;

renovaram-na ao gosto de uma geração criada com água

corrente e aquecimento central, uma geração que passava os

Verões longe da cidade. Mas gostos e modas continuaram a

mudar e, um dia, os nova-iorquinos deixaram de sonhar com

casas de Verão nas margens do rio Hudson.

A casa passou de mão em mão, afastando-se cada vez mais

do seu propósito inicial, à medida que os carros corriam mais

rápidos e as estradas mais largas, e as urbanizações dos subúr-

Os contos tristes preferem o Inverno. / Tenho um, com duendes e demónios. (N.
do T.)

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bios galgavam cada vez mais para norte, até o concelho de

Dutchess se tornar um formigueiro de passageiros suburbanos

e o de Amsterdam começar a transformar-se num mar de casas

onde os habitantes da cidade procuravam a paz do que um dia

fora campo ameno.

Mas a casa sobrevivia, com doze acres de terreno entre o

caminho de ferro e o Hudson, tendo por vizinhos uma escola

privada de reputação sinistra e uma comunidade de artistas

que desejava acima de tudo permanecer anónima. Por mais

algum tempo repousou a casa na sua quietude campestre, sem

que nada viesse perturbar-lhe o sossego.

«Deve ser por isso que vim», matutou Winter Musgrave

consigo mesma, embora, na verdade, já nem se lembrasse dos

motivos que a tinham levado a meter-se num avião para chegar

ali, e a prudência - ou o medo - a impedisse de buscar

razões no emaranhado da memória. Melhor seria não construir

certezas sobre determinadas coisas - entre as quais a

assustadora noção de que a memória, a partir de um momento

incerto do seu passado, deixara de lhe obedecer, transformando-se


em carcereiro sádico, sempre pronta a trazer-lhe

novas e mais terríveis surpresas. Dia que não trouxesse

surpresas desagradáveis era dia de festa.

A quietude do campo, com seus ritmos lentos e o

prenúncio de Primavera, foi-lhe benéfica. Winter tinha uma

vaga noção de que não se encontrava ali há muito tempo; os

últimos vestígios de neve ainda alvejavam sombras e buracos

ao longo da estrada por onde chegara, ao volante do BMW, e

agora os primeiros rebentos verdejantes começavam a suavizar

a silhueta descarnada das árvores: vidoeiros, áceres,

cornizos... e as macieiras enfileiradas que desciam, nodosas,

até ao rio.

Winter não gostava de macieiras. Perturbavam-na, faziam-na

sentir-se vagamente envergonhada, como se algo inconfessável

e inefável tivesse acontecido um dia entre macieiras.

O pomar erguia-se como um biombo entre Winter e o rio, que

ela apenas conseguia lobrigar subindo ao quarto do andar

superior.

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Mas mesmo daí continuava a ver as macieiras, o que a levara

a instalar-se no rés-do-chão, no minúsculo quartinho anexo à

cozinha, que tinha a vantagem de ser quente e oculto do pomar.

Enquanto ninguém descobrisse onde ela se encontrava,

estaria a salvo.

Habituara-se a esta ideia; habituara-se o suficiente para se

permitir pensar nela.

«Porque não há-de alguém saber onde eu estou?»

Winter pegou no pesado pisa-papéis de vidro colorido

que estava em cima da mesa e ficou-se a olhar para a sua

superfície iridescente, como se fosse uma bola de cristal pronta

a dar-lhe respostas. Sentindo recrudescer a relutância e o

medo, repôs apressadamente o pisa-papéis sobre a mesa e

encetou nervoso vaivém.

Aquela saleta da frente tinha mobília escassa: a mesinha

onde pousara o pisa-papéis ao lado do candeeiro, uma cadeira

de balanço Windsor, de verga, e uma longa arca de espaldar

junto da pedra da lareira. Um tapete artesanal, muito puído,

escondia a usura das tábuas de carvalho do soalho e numa das


paredes pintadas de branco pendia um espelho esverdeado de

zebre e velhice, com moldura oval.

Winter parou em frente do espelho, como um autómato,

e forçou-se a observar a própria imagem. Nada a magoava mais

do que o aparecimento súbito daquele reflexo que acicatava o

confronto entre a imagem e as recordações, todas elas feitas de

pequenas humilhações e terrores diários.

Cabelo: perdido o vigor ondulado, decaído o tom acaju,

caía fino, flácido e baço. Pálida a pele, de textura débil, colada

aos ossos agudos, muito para além da fronteira entre a

elegância e o aspecto doentio. Olhos de amêndoa cavados,

pisados, baços; quem diria que em dias idos muitos

admiradores juraram ter visto cintilar no fundo desses olhos

reflexos de âmbar do Báltico? Boca crispada, pálida e envelhecida.

Nem se lembrava já da última vez que usara baton,

nem sequer da cor preferida. Teria trazido baton? Não se

lembrava - mas que importância tinha isso?

«Claro que tem... Jack passava a vida a dizer que eu devia

carregar nas pinturas de guerra; fazia-os ficar nervosos...»

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Estilhaços do passado espreitaram à flor da memória

como peixes prateados, para logo desaparecerem; nas

profundezas; sacrificados à urgência da fuga.

«De quê?» A sensação de frustração quase a convenceu a

trocar o risco da dor pela tentação de recordar. Incapaz de

sossegar, Winter pôs-se às voltas no seu pequeno mundo: a sala

de estar da frente, com lareira; a cozinha, virada para um

jardim decrépito e uma fieira de pinheiros atarracados; o

quarto do rés-do-chão, cheio de luz e acolhedor, com as

colchas de retalhos sobre a cama de ferro e a chaleira de cobre

em cima da salamandra bojuda; o átrio de entrada, com a porta

para o mundo exterior e as escadas para o andar superior aquele

lugar tão aterrador. Da entrada podia ver o telheiro

onde se amontoava a lenha de carvalho e pinho, ao lado do

carro. Teria de ir buscar mais lenha daí a pouco, pois o

aquecimento eléctrico da quinta era fraco e incerto - Winter

habituara-se a manter acesos os braseiros da salamandra, no

quarto, e da lareira, na sala da frente, para expulsar o frio dos

primeiros dias de Primavera.


Mas para ir buscar mais lenha era forçoso sair de casa;

caminhar ao ar livre.

«Há quanto tempo não saio?» Era pura teimosia continuar

a pedir respostas à memória, mas por fim surgiu-lhe uma

imagem: Winter a carregar malas...

«... malas?»

... a patinhar no carreiro coberto de gelo enlameado e

escorregadio da casa, a fugir...

Esteve a ponto de conseguir agarrar aquela imagem

fugaz; mas afastou-a, sabendo que o equilíbrio entre o medo

do conhecimento e o medo da ignorância em breve se

inverteria e, então, Winter exigiria pelo menos esse fragmento

do passado. Devia ter acontecido qualquer coisa terrível que a

obrigara a refugiar-se ali, por detrás das persianas corridas,

dos pesados reposteiros, como animal ferido no fundo da

lura.

«Não saio desta casa há ... semanas», concluiu, incerta.

Não lhe servia de muito saber que estava em Abril - de

certeza que era Abril; os rebentos de folhas e os campos de

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narcisos que avistava da janela diziam-lhe que por força seria

Abril... fosse qual fosse a data em que chegara - Março? Seria

costume a neve subsistir na berma das estradas até Março?

Talvez Fevereiro...

Fosse quando fosse, já estava há demasiado tempo portas

adentro. Mais do que suficiente. A Primavera é estação de

ressurgimento; chegava o momento de renascer.

De repente veio-lhe um sabor de cobre à boca, mas desta

vez o medo mais parecia espicaçar que refrear a determinação.

Sem pensar duas vezes, Winter precipitou-se para o hall de

entrada e abriu a porta da rua.

Inspirou o ar puro do campo, e sentiu o sol, a aragem na

pele, como se fossem mensageiros do outro mundo. A terra

revolvida ao longo das lajes do caminho era escura e exalava o

cheiro da chuva recente; finos rebentos de erva despontavam

entre os grãos de terra, destacando-se contra o fundo verde

mais denso dos narcisos e íris, tulipas e lírios. O carreiro

lajeado curvava para baixo e para a esquerda, ao encontro do

caminho de saibro que levava da garagem ao exterior.


Não se avistava ninguém. A estrada não era perceptível

daquele ponto, nem se ouviam ruídos de tráfego que viessem

perturbar a ilusão de que o tempo se detivera desde a edificação

da quinta.

«Não há problema. Não há problema nenhum. Não existe

aqui nenhum perigo, nada que possa fazer-me mal», disse

Winter consigo mesma. Com determinação e coragem,

avançou da casa para o caminho de gravilha.

Um passo, dois... À medida que emergia da sombra da

casa, sentiu uma desorientação estonteante, a mesma vertigem

de pânico impotente que sempre imaginara que sentiria se

abrisse a jaula de um tigre. Pareceu-lhe que a paisagem

bucólica, suavemente ondulada, se erguia à sua volta como um

urso em fúria, preste a abater-se sobre ela, esmagando-a.

«É só imaginação! Eles avisaram-me que seria assim...» Foi

surpreendida por este súbito rasgo de memória que surgia

assim de rompante, sem aviso prévio.

Outra recordação de paisagem, mas esta calma e serena.

O sol quente de Outono sobre o terraço onde os pacientes,

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nos seus roupões garridos e desirmanados, contemplavam os

terrenos à volta do sanatório.

«O sanatório ... Sim! Lembro-me de Fall River. Terei

escapado de...»

Mas não. A memória não registava as semanas de coragem

desesperada: primeiro a recusa de tomar os medicamentos,

depois a saída. Ela era uma mulher adulta, tinha-se internado

de sua livre vontade, não podiam impedi-la de partir.

«Aos trinta e seis anos uma pessoa tem obrigação de saber

o que lhe convém!», pensou Winter com determinação. Por

conseguinte, tinha abandonado o sanatório - porquê? teriam

eles considerado que estava curada? - não deveria

sentir-se melhor, naquele preciso momento, se a tivessem

dado por curada e de boa saúde?

«Eles estavam a falar de mim»... Outra recordação

arrancada a ferros, enquanto os passos trôpegos a levavam até

à sombra do carvalho secular, para se sentar no banco

construído à volta do tronco por um dos antigos proprietários.

Winter abateu-se no assento forrado de musgo e repousou o


olhar na casa.

Falavam dela no sanatório. Diziam que era tudo imaginação,

mas Winter sabia bem quanto as histórias que eles atribuíam à

sua fantasia perturbada e desequilibrada eram pura realidade.

«Não consegui o que queria.»

Fixou-se nessa verdade amarga, mas o esforço esgotou-a,

sorveu-lhe o ânimo de se manter fora do refúgio. Retrocedeu,

esforçando-se por retardar o passo, por não se render ao

pânico cego, mas quando finalmente atravessou a porta de

entrada e a fechou atrás de si, sentia a boca seca, o peito

esmagado por correias de aço.

Diante de Winter, as escadas convidavam ao elusivo andar

de cima. Por isso, pela recordação das malas de viagem, pela

necessidade de afirmar algum triunfo que suavizasse o fracasso

anterior, Winter agarrou o corrimão e pisou o primeiro degrau.

Quando chegou lá a cima, Winter fez troça de si mesma:

«Não é assim tão difícil!»; e arriscou uma espreitadela, pela

janela sobre o jardim. Avistavam-se dali as velhas lousas

quebradas e descompostas do alpendre.

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«Só mais três passos.»

O andar superior era mais pequeno que o rés-do-chão.

Tinha dois quartos e uma casa de banho moderna, decorada

em tons rosa e brancos, ao arrepio da simplicidade do resto da

casa. O quarto maior era o das traseiras; espreitando pela

porta, Winter viu duas malas Vuitton e um saco de coiro inglês

Coach Lexington dispersos sobre a cama.

Pronto, já podia voltar para baixo. Podia deixar aquela

marca da sua identidade para outro dia, adiar o arrasador fardo

de se identificar a si própria.

«Mas se não for eu a fazê-lo, ninguém o fará por mim.»

Não sabia donde surgira esta súbita certeza - não lhe

custava nada ignorar aquela sensação de fito determinado,

como se se tratasse de mais um dos seus enganadores sonhos

acordados. Em Fall River, quando tentara falar deles, tinham-na

mandado calar; por fim chegou a rezar para que aquele

obsessivo espírito de missão a deixasse em paz; para que o

tratamento e os remédios produzissem efeito, como acontecia

aos outros que tinham vindo...


«Àquele privilegiado refúgio de vencedores vencidos»,

troçou Winter. Mas não eram palavras suas. Quem as dissera?

«Não interessa, agora.» Era evidente que estava a tergiversar

para fugir à acção - acabara por aprender a desmascarar

esse truque. Retesando os ombros, Winter passou o

limiar do quarto.

Aí estavam as malas que ela - ou alguém por ela - tinha

feito quando partira para Fall River. Despejou sobre a colcha o

conteúdo de ambas as Vuitton; roupas de trabalho, vestidos de

noite; inexplicavelmente, também ali estava o seu passe do

Arkham Miskatonic King. Winter ficou a olhar para a fotografia

do cartão.

«Estou com ar de quem foi apanhada pelos faróis de uma

locomotiva em movimento...» Mas aquele cartão simbolizava o

seu grande orgulho pela conquista do acesso à Bolsa. Como

corretora. Em Wall Street.

Assim, com pezinhos de lã, o passado irrompia subitamente.

Ela era Winter Musgrave, corretora da Arkham

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Miskatonic King em Wall Street. Aí trabalhara durante dez

anos, desde que a tinham ido buscar à Bear Stearns ...

Lembrava-se de acordar cedo para ir trabalhar, durante a

greve do metro; lembrava-se do apartamento. Até sabia de cor

o conteúdo da malinha que estava em cima da cama: o Wall

Street Journal e um pacote de pastilhas para a garganta; um

elefante de peluche cor-de-rosa (o seu amuleto da sorte) e uma

T-shirt de muda; lápis...

«Enfim, a minha vida.»

Fora de Wall Street, não tivera qualquer espécie de vida.

Porque não quisera, aliás. Fizera orelhas moucas a todos os

conselhos para se distrair, para se descontrair, para arranjar um

passatempo, uma vida própria.

«Eu tinha a minha vida.»

Até ao hiato entre passado e presente; o acontecimento

que ainda não lhe viera à memória. Mas agora estava segura de

que, a seu tempo, a recordação viria, esclarecendo, talvez, as

razões daquela despropositada sensação de fito.

Winter abanou a cabeça e recolheu uma braçada de


roupas. Se pretendia continuar a viver no rés-do-chão, melhor

seria levar as roupas para baixo. Ao menos podia fingir que era

normal.

«Mas os loucos consideram-se sempre normais. Não é

assim que eles costumam começar?»

Não. Tudo isto começara com o esgotamento que a levara

a Fall River - e agora estava fora de Fall River, mas não por ter

melhorado...

«Encara as coisas de frente ... Encara-as»

Winter correu pelas escadas abaixo; não ia a fugir, mas

sim ao encontro da última coisa que ainda a assustava: a

origem daquele estado de fuga permanente.

As roupas que reunira caíram pelo caminho, como folhas

de Outono. Precipitou-se através da serena sala de estar em

direcção à cozinha. Lá estavam as portas para o jardim; para o

pomar; para o rio. Atravessou a porta de supetão para logo

retroceder com um grito de horror, embora já antes tivesse

visto o que ali se encontrava; aliás, ainda naquela manhã vira...

A criatura era difícil de identificar, mas pelo tamanho

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parecia ter sido um esquilo. Estava reduzida a um punhado de

pêlos cinzentos donde espreitavam pedaços de carne rasgada

e esquírolas brancas de osso despedaçado.

«Como todos os outros. Tal e qual.»

Começara com os pombos. Pombos, esquilos e ratos;

onde quer que fosse, encontrava sempre os pequenos corpos

exangues, e cada novo encontro perturbava-a para além dos

limites do suportável. Quando fora para Fall River, as pequenas

vítimas tinham andado ausentes durante algum tempo, mas

depois recomeçaram a aparecer; e quando jurou que nada

tinha a ver com as mortes o Dr. Atheling acreditou-a, mas os

outros não - afirmavam que era ela a responsável, que ela

própria apanhava os animais, os torturava e matava...

Por isso tivera de fugir, na esperança de, fugindo, fugindo

sempre, conseguir despistar tão ameaçadora sombra. E

durante algum tempo julgou ter conseguido.

Até àquele dia.

Winter permaneceu inquieta todo o dia, como se o

aparecimento do pequeno corpo esfacelado tivesse dado voz a


um apelo insistente. Passou a noite em branco, frente à lareira,

alimentando-a até ao último toro.

Quando a madrugada chegou, tinha concluído pela

impossibilidade de continuar a esconder-se naquela casa. Se

estava no seu perfeito juízo, havia que pô-lo à prova no

exterior. Se não...

«Não aguento voltar para o sanatório», ponderou Winter,

embora Fall River não fosse um lugar desagradável - ao

contrário doutros, de que ouvira falar, onde a malícia se

disfarçava de afeição e o sadismo de solicitude.

«As pessoas vão a Fall River em busca de auxílio... mas a

mim ninguém pode ajudar.»

Mesmo desconhecendo a base de tal convicção, Winter

confiou nela - apesar de já não acreditar em si própria.

«Acho que o mundo - e eu - teremos de nos entregar à

sorte.»

A manhã decorreu em tarefas e minudências. Embora

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todas elas lhe fortificassem a confiança na capacidade de

sobreviver fora do refúgio da quinta, eram também uma forma

de adiar as consequências da sua decisão. Lavou a louça, fez

uma lista de compras, trouxe o resto das roupas para o rés-do-chão,

arrumou-as no roupeiro de cedro vermelho do

quartinho anexo à cozinha, e até desfez a malinha e a sacola,

divertindo-se e surpreendendo-se com o que lá encontrou incluindo

um maço de balancetes mensais, endereçados para

Fall River pelo contabilista que lhe tratava das contas. Winter

examinou por alto um dos balancetes, mas a fieira de

números, transferências e débitos pareceu-lhe indecifrável.

Mais interessantes eram os maços de notas de 20 e 50

- suficientes para fazer face a qualquer despesa imediata

- amontoados no fundo da mala, a esmo, como se fosse

dinheiro de brincar.

«Dinheiro de brincar. É o que ele representava para nós.

Comportávamo-nos como crianças a jogarem monopólio...

não levávamos nada daquilo a sério», pensou Winter, abraçando

o pequeno elefante cor-de-rosa que encontrara no


fundo da malinha Lexington, ao lado do Wall Street Journal

com data do ano passado e de um emaranhado de objectos

que mal reconhecia. Os anos passados na Arkham Miskatonic

King eram consistentes mas curiosamente distantes, como se

tivessem sido lidos e colhidos de um livro particularmente

vívido. Tivera uma carreira fulgurante, vivera bem, comprara

os bens do costume e pagara as brincadeiras usuais, mas, fosse

por que fosse, não sentia apego a nenhuma dessas coisas. Fora

um tipo de vida comum a milhentos negociantes,

descaracterizada como a de zangão em colmeia.

«E achávamo-nos fora de série, embora não passássemos

de máquinas de fazer dinheiro. Dessem-nos um bocadinho de

corda, que nunca mais parávamos de negociar, e negociar, e

negociar, até...»

Mas Winter ainda não sabia o que a levara dos recintos do

New York Stock Exchange para Fall River e daí para

Greyangels. Talvez se tivesse pura e simplesmente... esgotado?

Podia acontecer a qualquer um. Verdade era que a maioria das

pessoas se retirava de Wall Street por esgotamento.

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Mas não fora esse o motivo de Winter. Embora não

conhecesse as razões verdadeiras, sabia que não fora essa.

Por fim deu-se conta de que estava a evitar a saída para o

mundo exterior. Trocou os jeans enxovalhados e a camisola

puída por outra roupa mais apresentável na cidade. «Embora

Glastonbury não seja grande cidade, tanto quanto me lembro.»

A mulher dispendiosa e elegantemente vestida de

camisola cinzenta de caxemira e saia escocesa que Winter via

reflectida no espelho da casa de banho tinha um aspecto

doentio e olheirento. Winter aplicou-se a pintar a ilusão de

saúde com cosméticos Chanel e Dior. Acessórios caros de

uma vida que cultivara com todo o empenho e que lhe parecia

agora mera tontaria dispendiosa. Mas o rouge, os brincos

Paloma Picasso e o subtil fulgor dos diamantes Elsa Peretti

ajudavam a disfarçar as noites de insónia e terror.

Desta vez Winter percorreu todo o caminho até ao

telheiro, embora o espaço ao ar livre fosse assustadoramente

vasto e o céu parecesse preste a cair e esmagá-la. Entrou no

telheiro com um pequeno grito de triunfo e apoiou a testa no


tejadilho branco do carro.

«Talvez Chicken Little tivesse razão. É uma hipótese.»

Sentia o coração a bater desenfreadamente e por instantes

esteve tentada a voltar para trás - já fizera muito num só dia;

ninguém lhe podia exigir mais..,

«Excepto eu. Eu posso exigir mais de mim própria...»

E o tempo urgia.

Era uma ideia estranha, inexplicável, mas que levou

Winter a abrir o carro e sentar-se ao volante. Quando meteu a

chave na ignição, sentiu uma pontada de angústia - e se o

carro não funcionasse? se acontecesse qualquer coisa terrível?

- mas fez por ignorá-la. Tinha de saber se era capaz de

sobreviver fora do refúgio. Se não conseguisse dar conta do

simples recado de ir às compras, mais valia telefonar para Fall

River e pedir que fossem buscá-la.

Tinha de aprender a viver com as mortes imprevisíveis e

terrificantes.

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Entrou na estrada e, ao acaso, virou à esquerda - se

Glastonbury não fosse naquela direcção bastava-lhe retroceder;

apontou o BMW para o topo da colina, onde as tabuletas de

sinalização do cruzamento indicavam «Amsterdam County 4» e

«Glastonbury: 6».

Enquanto guiava, avistando de quando em quando o rio,

Winter teve novos lampejos de memória. Glastonbury, estado

de Nova Iorque, cidadezinha de nome grandioso, criada no

século XIX para serventia da universidade local, à semelhança

de outras vilas do distrito de Amsterdam. Tinha supermercado,

posto de correios e até uma pequena sala de cinema, embora a

maior parte das pessoas preferisse deslocar-se aos cinemas dos

centros comerciais situados mais a sul.

Tudo isto eram informações acessíveis a qualquer pessoa,

especialmente se tivesse alugado uma quinta e aí residisse

algum tempo; a capacidade de relembrar estes pormenores

reconfortou-a. Tinha conseguido vestir-se e guiar um carro; se

realmente estivesse... doente... não seria capaz de fazer tudo

isso, pois não?


À entrada de Glastonbury, a cidade pareceu-lhe familiar,

como se já lá tivesse estado, mas as recordações eram vagas.

A estrada municipal n.º 4 desembocava na rua principal,

onde Winter, enquanto conduzia, foi lendo alguns cartazes:

LIVRE ARBÍTRIO - UMA NOITE DE SHAKESPEARE E

CANÇÕES PELO GRUPO DRAMÁTICO DE TAGHKANIC.

Nesta época do ano os estudantes da universidade

encontravam-se por todo o lado; Winter reconheceu-os

facilmente pela idade, pelas mochilas, pelos brincos nas

orelhas e pelo estilo deliberadamente grunge, embora

indiferente à moda, e não se sentiu minimamente

identificada com eles. Parada num sinal vermelho, Winter

observou com alguma nostalgia um casal que subia a rua de

mãos dadas. O rapaz usava cabelo comprido, a cair sobre os

ombros, a rapariga tinha a cabeça rapada à moicano; vestiam-se

de forma idêntica, com botas industriais e sobretudos

onze números acima da sua medida, e era óbvio que estavam

apaixonados. Winter ficou a observá-los até virarem a

esquina; depois concentrou-se no semáforo e no trânsito.

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Este passeio era um teste de sobrevivência. Não podia dar-se

ao luxo de sonhar acordada.

O supermercado ficava na rua principal; Winter estacionou

com uma sensação de alívio e triunfo. Saiu do carro

- sem se esquecer de trancá-lo - e ficou de pé, ao sol da

tarde, a consultar a lista de compras que tinha na mão.

«Primeiro as mercearias. Depois... o talho, a padaria, a

drogaria...», pensou Winter, um pouco atarantada.

Talvez fosse um pouco disparatado comprar pão

industrial no supermercado, quando tinha uma padaria de

produtos biológicos ao virar da esquina. Meia hora depois,

cumprida metade das tarefas que se impusera, Winter arrumou

as compras no porta-bagagens do carro: sopas instantâneas,

comida enlatada, fruta e sumos, e diversos produtos para

limpeza e lida da casa que foi descobrindo nos escaparates da

loja, embora não se tivesse dado conta da sua necessidade

quando elaborara o rol das compras. Sentindo-se cada vez mais

desembaraçada, fechou a mala do carro e dirigiu-se à padaria; a

loja ficava logo a seguir à esquina, conforme lhe dissera o


empregado da caixa registadora - como se fosse perfeitamente

normal pedir tais informações, como se não se

passasse nada de especial.

Num impulso, Winter deteve-se numa loja de bebidas,

hesitando entre um Bordeaux e um Nouvelle Beaujolais.

Finalmente optou por uma garrafa de Burgundy branco e

outra de Califórnia Zinfandel e seguiu rua acima com os

embrulhos debaixo do braço. Não teve dificuldade em

encontrar a padaria, onde comprou uma dúzia de scones com

corintos e um pão redondo de sete cereais com aspecto de

conter vitaminas suficientes para alimentar um batalhão de

fuzileiros. À medida que fazia as compras, as recordações da

sua antiga vida - da sua vida de mulher independente reforçavam-lhe

a vontade de cumprir os seus planos na

íntegra. Estava tudo a correr bem. Havia de fazer por se

desembaraçar bem até ao fim.

Ao sair da padaria foi atraída por um letreiro luminoso do

outro lado da rua. Na montra, três ânforas de vidro transparente

com pés metálicos, contendo líquidos de cores vivas,

21
azuis, vermelhos, verdes: era uma ervanária, com as montras

cheias de mezinhas antigas e produtos farmacêuticos.

Winter deixou-se ficar em frente das vitrinas, a observar.

Era espantoso o que as pessoas podiam comprar sem receita

médica na viragem do século: ópio, morfina, cocaína, acondicionados

em garrafinhas azuis ou ocres, ou em caixinhas com

etiquetas escritas em caligrafia arcaica. Extracto de cannabis.

Tintura de arsénico. Assa-fétida. Cianeto.

Winter desviou a atenção das mezinhas bizarras para as

prateleiras mais recuadas, repletas de derivados químicos

modernos. Dirigiu-se hesitantemente para a porta. Haveria

alguma droga que a curasse dos medos e dos pesadelos - que

lhe permitisse dormir a sono solto e regressar à sua vida

normal em Nova Iorque?

Não. Winter abanou a cabeça, desanimada. Nenhum

daqueles produtos lhe serviria de ajuda - se os comprimidos

brancos e pretos que lhe tinham receitado (e que a deixaram

desorientada e confusa dias a fio quando deixara de tomá-los)

não tinham servido de nada, para que serviriam aspirinas e


Sominex?

Mesmo o Seconal e o Thorazine não tinham impedido as

mortes...

«Não sei como é que ela faz aquilo.» Recordava a voz

irritada das duas enfermeiras metidas à conversa na sala de

estar da suite de Winter em Fall River. Talvez elas não

soubessem que ela estava no quarto, com a porta aberta. Ou

talvez soubessem e não se ralassem com isso.

- Encontraste outro? - indagou a outra voz.

- Encontro-os por tudo quanto é sítio; o Dr. Luty dá-lhe

doses cavalares de calmantes, mas mesmo assim ela consegue

levantar-se durante a noite.

- Achas que sim?

- Não vejo outra hipótese. E eu sei muito bem que ela

não foge a tomar os medicamentos. Ainda por cima somos nós

que temos de limpar a trampa, bolas, não é a Luty nem a

Atheling. A cabra devia ter mais consideração por nós.

- Pois é. Ela diverte-se à nossa custa.

22
Os lampejos de memória diluíram-se, deixando Winter a

tremer. Ainda sentia o estômago enovelado pelo desprezo das

duas mulheres - das quais nunca chegou a saber os nomes.

Não fizera nada para provocar tanto ódio.

Nada de que conseguisse lembrar-se, pelo menos.

Sempre a tremer, Winter apertou com força os sacos das

compras e percebeu que tinha sobrestimado a sua própria

resistência e estabilidade emocionais; seria melhor regressar ao

carro e fugir dali enquanto ainda estava em condições de guiar

até casa.

Olhou para o ponto donde viera, avaliando a distância.

Era muito longe, mas se descesse a rua a direito havia de ir dar

ao parque de estacionamento do supermercado.

Mas, seguindo em frente, tinha apenas meio quarteirão e

depois a rua virava em cotovelo para outra rua, deixando-a

ainda mais longe do carro. Sentiu-se doentia, enjoada, como se

tivesse estado ao sol demasiado tempo, mas o sol primaveril

não podia ter causado semelhante mal-estar. Winter olhou à

volta, procurando reconhecer alguma coisa que lhe fosse


familiar ou pelo menos encontrar um sítio onde pudesse

descansar alguns minutos.

Por fim embrenhou-se no âmago da pequena cidade

ribeirinha, afastando-se da rua principal. Encontrou ruas mais

estreitas, com pitorescas lojas antigas; as fachadas dos

armazéns alternavam com casas de habitação vitorianas

reconstruídas e transformadas em espaços comerciais. Tinham

um ar convidativo, mas tudo lhe parecia constituir um

labirinto hostil destinado a afastá-la do conforto do carro e da

casa.

Inspirou profundamente, procurando acalmar o

crescendo de agonia e pânico. A solução mais simples seria

pedir a alguém que lhe indicasse o caminho de regresso à rua

principal.

Dirigiu-se à loja mais próxima. A tabuleta pendurada na

fachada era de madeira gravada e pintada: uma lua cheia

dourada a cavalgar um torvelinho de nuvens carmesins polvilhadas

de estrelas. À esquerda da lua cheia tinham gravado,

em letra gótica, «Inquire Within». A montra também tinha

23
um crescente rodeado de estrelas douradas; por baixo, num

escaparate forrado de cetim vermelho, uma bola de cristal

sobre estante carregada de arabescos, um tubo longo cheio

de brilhantes, com uma minúscula estrela holográfica numa

das pontas, e ainda um monte de brochuras coloridas com

títulos do tipo Como Fazer Magia Branca e O Domínio da

Mente sobre a Matéria. Uma livraria das organizações Nova

Era.

Winter recuou como se tivesse visto um monstro saído do

mais negro pesadelo. A sensação de enjoo que tinha estado a

tentar abafar recrudesceu. Sentiu gotas de suor a escorrerem-lhe

pela testa e teve de engolir em seco a náusea.

A tabuleta pendurada começou a dançar como se um

vendaval a tivesse enlouquecido - e no entanto o ar primaveril

permanecia quente e quedo.

Winter, desviou-se - da tabuleta, da loja -, estarrecida e

trémula.

O anúncio de sanduíches da loja ao lado estatelou-se no

passeio, com um estampido. Winter gritou de medo, raiva e


desespero. O pão e as garrafas fugiram-lhe dos braços,

atingindo o chão com inaudita força.

As garrafas de vinho desintegraram-se em miríades de

vidrinhos que, juntamente com o vinho, esparrinharam no

passeio uma larga mancha brilhante. A vitrina da loja de

sanduíches entrou em vibração por simpatia, com um som

agudo que penetrou toda a rua.

Winter desatou a fugir.

Sem saber como, conseguiu encontrar o carro, mas

quando lá chegou estava banhada em suores frios e tremia

tanto que as chaves começaram a tilintar contra a porta do

carro. Bailavam-lhe na vista manchas vermelhas e negras, a

pele arrepiava-se em ondas de gelo e calor. O coração,

desenfreado, martelava no peito.

- A senhora precisa de ajuda?

Winter rodopiou sobre si própria, com um gritinho.

- Afaste-se de mim! - gritou ela, empunhando as chaves

como se fossem um crucifixo. O chaveiro escorregou-lhe das

24
mãos e caiu aos pés do rapaz, que vestia jeans coçados e uma

camisola da Universidade de TAGHKANIC.

«Estou a ficar doida. Ó meu Deus, estou a perder o

controlo...»

Começou a afastar-se, hesitou, e por fim pôs-se a olhar

para as chaves caídas no chão.

- Eu só queria... - começou o rapaz a dizer.

- Vá-se embora! - gritou Winter. «Antes que aconteça

alguma coisa.» Sentia-se afogar em ondas de náusea; o coração

pulsava com tanta força que lhe fazia bater os dentes; teve a

impressão de estar à beira de uma apoplexia. Agarrou-se à

maçaneta da porta do carro, esforçando-se por não desmaiar.

Tinha de sair dali antes que houvesse mais desastres, pois

mesmo que Winter Musgrave fosse vítima inocente, tudo à sua

volta era vitimado...

O rapaz retrocedeu, olhando-a com certo receio, e Winter

deu um passo em frente para colher as chaves, mas

desequilibrou-se e caiu de joelhos no asfalto; no mesmo

instante viu que os letreiros da rua principal começavam a


balouçar.

«Não... não... Não aqui; não outra vez... Eu tinha

prometido...»

Apoderou-se dela um terror maior que o medo. Agarrou

nas chaves com tanta força que as arestas de metal lhe

sangraram a palma da mão; titubeante, ergueu-se pela força do

desespero.

A chave traçou longo risco na pintura do carro antes de

encontrar a fechadura, mas ela forçou-a a entrar, a dar a volta, e

a porta - salvação e refúgio - abriu-se.

Winter atirou-se para o assento e fechou a porta do carro,

balbuciando lamúrias. «Salva... salva... salva...», gaguejava um

escaninho idiota do seu cérebro, mas era demasiado tarde, ela

fora longe de mais; no momento em que apoiou o dedo no

botão do trinco da porta, o painel dos mostradores do carro

explodiu em mil fagulhas.

Três horas mais tarde Winter encontrava-se ao lado dos

restos carbonizados do carro, olhando desafiadoramente para

25
os papalvos, enquanto o camião dos bombeiros saía do parque

de estacionamento e subia a rua. Ainda lhe doíam as mãos das

pancadas que dera contra os vidros fechados do automóvel e

tinha a garganta dorida de tanto gritar.

Alguém - provavelmente o rapaz que ela escorraçara tinha

chamado a Polícia; quando o xerife chegou, viu o fumo

a sair da capota e do painel do BMW, e Winter, histérica,

presa lá dentro. Todos os sistemas eléctricos do carro

- incluindo as trancas automáticas das portas e janelas estavam

bloqueados; Winter encontrava-se encerrada dentro

daquele compartimento estanque e progressivamente cheio

de gases venenosos. O polícia rebentou o vidro à cacetada e

puxou Winter para fora através da janela. Depois chegaram

os bombeiros, que aspergiram tudo aquilo, substituindo o

cheiro a borracha e couro queimados pelo pivete do pó

químico.

Perante os rogos insistentes do polícia para que fosse ao

hospital a fim de ser observada, Winter conseguiu recuperar

certo auto-domínio. A simples ideia de ser levada para o


hospital - e por consequência de volta para Fall River bastou

para lhe quebrar a espiral crescente de histeria e lançá-la

num estado de pasmo emocional. Winter tinha a vaga

noção de que aquele torpor era muito mais perigoso do que os

gritos e as lágrimas, mas dominou-se e despediu os polícias, os

bombeiros, os maqueiros, com os seus assustadores guarda-pós

laranja e brancos, e por fim todos se foram.

O rugido de um motor potentíssimo, acompanhado do

clangor de molinetes e correntes, despertou-a. Era um reboque

azul e branco enorme, com um anúncio pintado de lado, a

arco-íris, a dizer KELLY - GARAGEM E REBOQUE, que dava

entrada no parque de estacionamento.

- Foi a senhora que chamou o reboque? - gritou o

condutor por cima do ruído da máquina.

Winter ficou atónita a olhar para ele, depois virou-se para

os restos do BMW - e só então se lembrou que tinha o porta-bagagens

cheio de mercearias. O polícia nem se dera ao

trabalho de a consultar antes de chamar o reboque.

Sem esperar que Winter lhe respondesse, o condutor

26
manobrou o reboque para a frente do BMW, parou e saltou cá

para fora.

- Que aconteceu? - o homem vestia um fato-macaco

cinzento, com uma placa de identificação a dizer DAVE, e

tinha um ar comunicativo e amigável.

- O meu carro explodiu.

Winter estava à beira de se desfazer em lágrimas de

exaustão, mas se não se controlasse deitaria tudo a perder; ora

ela abominava o falhanço tanto quanto os teólogos abominam

a morte e o Inferno.

Dave olhou para o carro.

- Um BMW? - disse ele, perplexo. - Nem sei se existe

algum concessionário deste lado do rio... Ah, eu chamo-me

Dave Kelly, sou eu o dono da garagem - e estendeu-lhe a

mão, a cumprimentá-la.

Winter, vazia de reacção, ficou imóvel por um instante,

até despertar e lhe apertar a mão.

- Winter Musgrave. Vivo fora da cidade; as minhas

compras estão todas dentro da mala do carro...


- Já sei, é a senhora que está a viver em Greyangels, não

é? Não quer vir comigo até à garagem? Pode ser que o seu

carro não esteja em tão mau estado como parece; mas se

estiver mesmo mal, eu dou uma telefonadela ao Timmy

Sulivan; ele e a irmã têm um serviço de táxis.

- Está bem. Faça como achar melhor - respondeu

Winter.

Dave ajudou-a a subir para a cabina do tractor. Ela

afundou-se no assento e recostou a cabeça para trás, de olhos

fechados, enquanto o mecânico prendia o guincho ao carro e

o suspendia pela parte da frente. Winter estava desejosa de

recolher à segurança da quinta, de se fechar ao mundo, de

regressar ao oblívio indiferente em que vivera.

Mas não podia fazê-lo. Era uma armadilha enganadora.

«Não há tempo...» Não podia ficar indefesa contra o que quer

que fosse que andava a matar os animais.

Quer se tratasse de Winter, quer de outra coisa. Winter

fechou os olhos.

- Nunca tinha visto uma coisa assim - disse Dave, ao

27
subir para a cabina. - Até parece que o carro foi atingido por

um relâmpago: as velas fundiram-se dentro do motor; não sei

como é que vou tirá-las dali. - Olhou para Winter. - A

senhora sente-se bem?

Winter abriu os olhos a custo.

- Sim, estou bem.

«Não estou nada bem...»

A garagem de Dave Kelly ficava na periferia da cidade; era

um edifício branco, cúbico, uma espécie de combinação de

ferro-velho com bomba de gasolina. Nas traseiras tinha uma

grande área repleta de carros - uns velhos, outros novos,

além de pneus soltos, capotas, portas... Habilmente, Dave

Kelly manobrou o reboque de forma a pôr o carro onde

pretendia; depois soltou-o do guincho e desligou o motor.

- Parece-me que devíamos tirar as suas coisas do porta-bagagens

e tratarmos de telefonar ao Tim. Vou levar um dia ou

dois a avaliar os estragos do seu carro. Digo-lhe já que é

melhor contactar o seguro... mas não me pergunte o que é

que lhes há-de dizer.


Winter acordou na sua própria cama várias horas mais

tarde, faminta e estonteada. A casa estava escura; pela janela

entrava o pipilar das aves nocturnas. Winter, lamurienta, rolou

na cama e estendeu o braço para acender a luz. As reconfortantes

paredes apaineladas a carvalho revelaram a sua

presença sólida. Retraindo os músculos entorpecidos, Winter

pôs-se em pé e foi fechar a janela. Percebeu, pelo resmonear

imperativo do estômago, que voltar para a cama e dormir não

seria a melhor opção.

«Tenho de fazer qualquer coisa que se coma.»

Este pensamento despoletou outro. «As minhas compras.

Que lhes terá acontecido?» Lembrava-se de ter chegado à

garagem e da sua teimosia em não ir ao hospital, mas tudo o

mais se perdia numa névoa parda. De alguma forma teria

chegado a casa - mas com ou sem compras?

Cautelosamente, Winter vistoriou a casa, tremendo de

frio. O aquecimento eléctrico levaria uma eternidade a

28
temperar as salas; tinha de arranjar ânimo para pôr a salamandra

a funcionar e acender a lareira.

A origem do frio reinante dentro de casa revelou-se

parcialmente quando ela chegou ao átrio: a porta da frente

estava aberta, deixando entrar o luar juntamente com torvelinhos

de folhas do jardim. Winter fechou a porta e correu o

ferrolho. Por sorte não tinham aparecido intrusos - nem

ladrões nem guaxinins, que ainda são mais destrutivos.

As mercearias que Winter comprara havia uma eternidade

estavam na sala de entrada, como sentinelas adormecidas

dentro de sacos de papel esfarrados. Irreflectidamente, Winter

levantou um dos sacos; o resultado foi que o fundo do saco, já

muito empapado, deixou cair todo o conteúdo, que rebolou e

se espalhou por toda a sala. «Como conseguiram eles...?» Não

se lembrava de os ter carregado no táxi. Para dizer a verdade,

nem se lembrava do táxi.

Vasculhou os sacos até encontrar um frasco de compota.

Rodou a tampa, tirou um bocado com os dedos e provou. A

doçura da fruta despoletou-lhe um formigueiro de sofreguidão


por todo o corpo. Sem largar o frasco de compota, entrou a

correr na cozinha, agarrou numa colher, atacou desalmadamente

a compota e só começou a acalmar-se quando o frasco

já ia em meio. Depois foi à torneira passar os dedos melados

por água e voltou à sala de entrada, em busca de outro pitéu.

A maior parte da comida que comprara era enlatada; havia

alguns congelados, mas esses já se tinham estragado. Despejou

a massa empapada dos restos descongelados para dentro de um

saco do lixo e foi guardar os restantes produtos na cozinha.

Feito isto, pegou numa lata de carne guisada e pô-la ao lume.

«O pão havia de me saber bem com isto. E o vinho.»

Sobressaltou-se interiormente com a recordação da ida a

Glastonbury. Tinha esperança de que as consequências da

excursão não excedessem a perda de uns quantos sacos de

mercearias e o incêndio do carro. Imaginou uma turba de

gente a entrar pela casa dentro, exigindo-lhe que regressasse a

Fall River, se não a pior lugar, importunando-a, obrigando-a a

expulsá-los furiosamente de casa. Ela nunca regressaria ao

hospital - não, não queria! Não tinha feito nada de mal...

29
Mas que tinha ela feito? Ao certo, que acontecera? Tudo

se passara havia poucas horas, mas Winter não tinha uma ideia

clara dos acontecimentos. Tinha-se perdido e...

«Entrei em pânico», confessou Winter a si própria, sem

rodeios. «Foi o que aconteceu.»

«E o carro?»

«Foi uma coincidência», respondeu Winter a si mesma.

Mas não fora.

Winter foi ao telheiro buscar mais lenha. Uma a uma,

amontoou as achas na sala; depois acendeu a lareira. Quando

os madeiros pegaram fogo, foi ao quarto carregar e acender a

salamandra, comeu o guisado e até conseguiu descobrir um

golo de brandy para pôr no café instantâneo - uma velha

garrafa esquecida no fundo da despensa. Sentou-se em frente

da lareira, a sorver golinhos da bebida quente, e ficou a ver as

chamas bailarem, meia adormecida ... as tabuletas das lojas a

balançarem, os vidros das montras a tinirem...

«Não!» Despertou em sobressalto. Não podia dormir, não

podia correr o risco de acordar e descobrir que acontecera


qualquer coisa na quinta. Arrepiou-se com a recordação do

esquilo. Se adormecesse de novo, sabe-se lá o que encontraria

na manhã seguinte.

Porque era ela a responsável. Tinha de ter a coragem de

admiti-lo. Não havia ali mais ninguém a quem deitar as culpas.

Nenhum ser humano poderia tê-la seguido de Manhattan para

Massachusetts, para Glastonbury, sempre a matar animais e a

depositar-lhe os corpos trucidados no limiar da porta. Era ela.

Era ela a autora de tudo aquilo.

Sentiu-se submergir numa onda de depressão e alívio, ao

mesmo tempo. «Aceita a culpa», murmurava uma voz interior.

«É culpa tua, é tudo culpa tua. Não tentes encontrar

explicações. Limita-te a aceitar a culpa...»

Winter soltou um longo, tremente suspiro de amargura.

Pois muito bem. Ela aceitaria a culpa - seria esse o primeiro

passo na senda da cura, não é verdade? Mea maldita culpa!

Mas se era ela a causa, também podia ser ela a cura.

Ou não podia?

30
Na mesma busca que desvendara a garrafa, de brandy,

Winter tinha encontrado o que necessitava agora; por

qualquer razão misteriosa, alguém armazenara 10 metros de

corda de algodão na despensa da quinta, tinha sido uma ideia

abençoada. Com a corda numa das mãos e a tesoura de

cozinha na outra, Winter dirigiu-se ao quarto.

Como tinha acendido a salamandra na mesma altura em

que ateara a lareira, o quarto já estava confortavelmente

aquecido. Começou por mudar os lençóis da cama de ferro,

optando por outros de flanela; ajeitou o cobertor e cobriu-o

com a manta.

Depois virou-se para o rolo de corda.

«Não fui eu. Não fui.» Mas não havia nem outra hipótese

nem mais ninguém por perto. Cortou um troço de corda e

atou-a a um dos pilares da cama, apertando e voltando a

apertar os nós até não haver forma de os desfazer. Pousou o

resto do rolo na cadeira de balanço e enfiou cuidadosamente a

tesoura por baixo do colchão. Depois deitou-se na cama.

«Pelo menos esta noite não vai acontecer nada.»


Corando de vergonha - embora ninguém estivesse a

observá-la -, Winter pegou na outra ponta da corda e atou-a à

volta do pulso, com voltas e nós tão seguros como os que

aplicara na cama. Puxou por ela, a confirmar a solidez. Não

rompia nem desatava. Aliás, esperava-a uma esforçada sessão

de ginástica na manhã seguinte, pois para sair da cama teria de

alcançar a tesoura que estava debaixo do colchão, coisa

impossível de fazer a dormir.

Se por ventura caminhava durante o sono - e outra

possibilidade não via -, não o faria essa noite. Aliviada, Winter

apagou a luz e adormeceu.

31
CAPÍTULO DOIS

UMA ROSA DE INVERNO

It was de winter wild1

JOHN MILTON

A Universidade de TAGHKANIC foi fundada em 1714, na

colónia de Nova Iorque, em benefício da região que viria a ser

o município de Amsterdam. De início a escola sediou-se num

antigo lagar de cidra; esse edifício ainda se erguia no meio do

complexo universitário, embora já não servisse para dar aulas.

A Universidade de TAGHKANIC sobreviveu até ao século XX

quase inalterada, desde a época da sua inauguração federalista;

a construção mais recente do campus era a nova ala do

Laboratório de Investigação de Ciências Psíquicas Margaret

Beresford Bidney, inaugurada em 1941.

Margaret Beresford Bidney formou-se pela Universidade de

Taghkanic na década de 1860; depois de morrer, o seu espólio

serviu para fundar o Laboratório, comummente designado

Instituto Bidney. Os directores da Universidade tentaram, desde

o primeiro dia da fundação do Instituto, reivindicar o legado

Bidney a favor da Universidade de Taghkanic. No entanto, com


a entrada do Professor Colin MacLaren para a direcção do

Laboratório, o Instituto reviveu, pondo-se na dianteira da

investigação parapsíquica e do seu meio-irmão desprezado, o

ocultismo. No final do século XX, a Universidade de Taghkanic,

através do Instituto Bidney, era uma das raras escolas que

leccionavam cursos de parapsicologia.

Mas o objectivo prioritário do Instituto seria sempre a

investigação, não só da parapsicologia mas também das

1 Era o Inverno tempestuoso. (N. do T.)

33
ciências ocultas, que o Professor MacLaren acreditava

firmemente deverem ser estudadas em paralelo à parapsicologia,

de forma a adquirir-se conhecimento pleno de

ambas as matérias.

Naquela manhã de Primavera, a investigadora Truth

Jourdemayne, que se especializara no inglório campo da

parapsicologia estatística muito antes de descobrir que o seu

pendor natural ia para outro campo muito mais antigo e

estranho, não pensava em nada que se parecesse com ciência

- fosse ela parapsicológica ou oculta.

- Um Verão inteiro enfiada num gueto dos Apalaches...

não há dúvida que tens muito jeito para estragar uma mulher

com mimos - ironizou Truth. O seu interlocutor era o Dr.

Dylan Palmer, que acumulava os cargos de professor e investigador

do Instituto.

Dylan limitou-se a esboçar um sorriso; de olhos azuis

brandos e cabelo louro desgrenhado, arvorava um falso ar

penitente de cão pastor.

- Nunca se fez qualquer estudo aprofundado em


Morton’s Fork... ah, sim, o Nicholas Taverner faz uma breve

referência nos anos 20, mas sobretudo como folclorista, com

recolha de material relativo às influências da tradição folclórica

britânica.

- E tu o que queres são fantasmas - disse Truth.

- Bem - admitiu Dylan -, não é de estranhar que o

director do Instituto se interesse mais por fantasmas do que

por canções folclóricas; ora, parece que Morton’s Fork fica no

centro de uma área, com mais de 50 milhas de raio, onde se

verificam actividades inexplicáveis. Assinalei neste mapa...

Dylan desdobrou o mapa sobre as pilhas de papéis que

cobriam a secretária. Truth debruçou-se para ver melhor e

Dylan puxou-lhe pelo braço, de forma que ela se desequilibrou

e caiu sobre o mapa.

Se esta cena se desenrolasse poucos meses antes, Truth

ter-se-ia irritado com a brincadeira e com os sentimentos

implícitos. Mas esses tempos tinham passado e agora ela usava

no anular da mão esquerda um anel de esmeralda que

simbolizava os seus novos sentimentos.

34
- Mas talvez tenhas razão - disse Dylan sonhadoramente,

ao mesmo tempo que Truth o abraçava. - Não é

coisa que se pareça com férias, e eu tinha prometido...

- Talvez sejam umas férias perfeitas - disse Truth,

anichando-se em posição mais confortável. - Só tu e eu, além

de uma centena de milhares de dólares de instrumentos de

gravação temperamentais, três estudantes licenciados e uns

quantos fantasmas. - «Ou quaisquer outros genius loci que

infestem o lugar», pensou Truth com um angustiado sentimento

de premonição.

- Pois é, parece o metro à hora de ponta - murmurou

Dylan. - Mas como por enquanto nenhum deles está aqui...

Nesse preciso momento bateram à porta.

Dylan praguejou e pôs Truth em pé imediatamente antes

de a porta se abrir. Meg Winslow, secretária do Instituto,

espreitou para dentro da sala.

- Desculpe incomodá-lo, Dylan, mas... olá, Truth, não

tinha reparado que estava aí. Ainda bem que os encontro:

desta vez temos um caso sério.


Sendo do conhecimento público que o Instituto Bidney

se dedicava ao estudo do ocultismo, do paranormal e de

objectivos associados à New Age, era habitual a recepção de

pedidos e ofertas de informação por telefone, por carta e

até pessoalmente. As razões destes contactos iam desde

pedidos de ajuda da parte de pessoas com genuínos

problemas parapsicológicos, até pedidos de ajuda histéricos

- conquanto sinceros e desesperados - por parte de

indivíduos cujos problemas residiam inteiramente no

âmbito das suas confusões mentais e perturbações

emocionais; mas havia também tentativas, por parte de

charlatães, de intrujar o Instituto e usufruir fraudulentamente

dos seus fundos.

- Qual é o problema dele? - perguntou Truth, pondo-se

Em pé.

- Dela - corrigiu Meg. - Tentei mandá-la embora, mas

ela insiste em falar com um dos investigadores. Está lá fora à

espera; eu levei-a para a Sala de Consultas, para não assustar os

estudantes.

35
- Como se alguma coisa pudesse assustá-los murmurou

Truth.

- Ela não lhe disse qual era o problema? - perguntou

Dylan.

- A única coisa que ela me disse - respondeu Meg, com

um encolher de ombros -, foi que estava a ser perseguida; se

querem saber a minha opinião, acho que deviam ouvi-la.

Winter Musgrave não parava de cirandar nervosamente

para trás e para diante. Tinha os dedos enclavinhados, como se

tivesse capturado um pequeno demónio na concha das mãos,

mas quando reparou no que estava a fazer controlou-se apenas

durante alguns segundos, porque depois a sua atenção

desviou-se e ela voltou à mesma. Sentia os maxilares doridos

de tanto cerrar os dentes, mas mal ousava abrir a boca, por

medo que os seus lamentos fossem confundidos com

expressões de loucura.

«Eu não estou doida. Sei que não estou. O que aconteceu.

.. não posso ter sido eu. Não é possível.»

Agarrou-se a este pensamento, embora não entendesse


que outra causa pudesse haver para os acontecimentos. Talvez

nada daquilo tivesse ocorrido. Talvez ela estivesse louca. Antes

isso, porque, se não estivesse louca, não haveria psiquiatra que

a salvasse.

Precisava era de um exorcista.

Winter não tivera a mínima intenção de vir, mas quando

chamou o táxi de Sulivan estava muito confusa; o condutor

percebeu mal os seus pedidos frenéticos para que a levasse «ao

Instituto». Winter não tencionava regressar a Fall River quando

lhe indicou o destino; apenas pretendia afastar-se daquela casa

que por duas vezes a traíra.

Afinal, o motorista trouxera-a ao Instituto Bidney.

Teve de dizer-lhe três vezes onde se encontrava antes

que ela saísse do táxi - só então começou a ter uma ideia

enublada do local onde se encontrava e de que se tratava de

uma espécie de santuário. Não se lembrava de ouvir falar do

Instituto Bidney - certamente não era o tipo de laboratório

que fizesse parte dos negócios de Wall Street -, mas

36
apercebeu-se de que estava ali a sua derradeira e única

esperança.

Winter olhava sem ver a sala onde a tinham mandado

esperar. A janela larga da parede oposta dava para o antigo

lagar de cidra, e, mais além, via-se o brilho metálico do rio.

À sua frente, uma mesa de carvalho com uma colecção

incongruente de objectos: blocos, um diapasão de prata,

um baralho de cartas e um cartuxo de papel castanho. Por

trás dela, uma parede coberta de livros e revistas encadernadas.

«Eu não estou doida.» Winter voltou a enclavinhar as

mãos. O diapasão que estava em cima da mesa começou a

ressoar muito levemente.

«Oh, por favor, eu quero estar louca.»

Ao fim de dez minutos de espera começou a recear que a

recepcionista - que se esforçara muito claramente por

mandá-la embora - a tivesse pura e simplesmente fechado

naquela sala para se ver livre do problema. Mas ela não podia

permitir semelhante coisa. Tinha de falar com eles, por força,

por força, por força...


«Eu não estou doida. Não estou.»

Quando a porta se abriu Winter encontrava-se de costas.

Estava tão tensa que o chiar dos gonzos a fez saltar de susto,

com um grito. Recuou de encontro à mesa; o baralho de cartas

espalhou-se no chão, um dos cubos de Rubik rebolou por cima

das cartas. Winter, com o coração aos pulos, olhou esgazeada

para a figura que se destacava na porta.

A primeira impressão de Truth foi a de que aquela mulher

de rabo-de-cavalo estava à beira do colapso. A segunda foi de

que devia estar na cama, provavelmente numa cama de

hospital. Tinha o aspecto edemaciado e escanzelado da

histeria; olhava para Truth e Dylan como se fossem figuras

acabadas de sair de um pesadelo e não parava de dar voltas e

reviravoltas às mãos.

«Mais uma doida», pensou Truth resignadamente, embora,

no fundo, mantivesse uma atitude instintiva contra juízos à

primeira vista.

37
- Boa tarde - disse Truth em tom calmo e convidativo

-, eu chamo-me Truth Jourdemayne. Com quem tenho o

prazer?...

- Winter. - A voz da mulher parecia um coaxo rouco.

- Winter Musgrave. - Olhou para Dylan, por cima do ombro

de Truth, arregalando os olhos ambarinos.

- Eu sou Dylan Palmer - disse Dylan, ao mesmo tempo

que entrava na sala. Truth avançou até à mesa e Dylan voltou a

fechar a porta, para silenciar o ruído das pessoas que deambulavam

pelos corredores.

- Não quer sentar-se, senhora Musgrave, e contar-nos o

seu problema? - disse Truth.

Winter Musgrave riu - uma casquinada que mais soou

como queixume.

- Preciso de ajuda - disse ela. - Mas não desse tipo! Eu

estive... - interrompeu-se. - Não. Então é que nunca mais

acreditam em mim... porque haviam de acreditar? Eu própria

não acredito em mim... estão a ver? Eu não acredito em mim...

quero lá saber... o que eu quero é que isto pare!


Pôs-se a andar num vaivém contínuo diante das estantes

de livros, a falar num tom crescente, até que por fim já estava

quase aos berros.

Dylan dirigiu um olhar de interrogação a Truth. Ambos

tinham sido obrigados bastas vezes a aturar os mais diversos

lunáticos, enquanto esperavam que os seguranças da escola

viessem pô-los na rua - seria outra lunática? Truth franziu o

sobrolho e sacudiu imperceptivelmente a cabeça, ao mesmo

tempo que se sentava à mesa.

- Para começar tem de contar-nos o seu problema disse

Truth, suave mas firmemente.

Winter interrompeu o vaivém e encarou Truth. Ao fazê-lo,

dois dos blocos de revistas encadernadas tombaram da estante

por trás dela; Winter fugiu de um salto, olhando alternadamente

para as revistas e para Truth, como se receasse ser acusada

de qualquer coisa.

- Eu não estou doida. Não percebem? Eu não estou

doida... O meu problema é esse... não estar doida!

- Muito bem - disse Dylan, sem se desviar do seu posto

38
de observação ao lado da porta -, não está doida. Mas tem de

dizer-nos o que pretende.

Truth viu que a mulher fazia um esforço enorme para se

controlar.

- Quero que isto pare - disse ela, quase num sussurro.

- Quero que isto pare antes que alguém se magoe.

Não podiam ajudá-la, concluiu Winter com amargura - e

mesmo que pudessem, seria parvoíce crer que alguém estaria

disposto a escutá-la a partir do momento em que se referisse a

Fall River.

- Só quero que isto pare - era o queixume repetido de

Winter.

- Mas o que é que pretende que pare? - perguntou

aquela mulher de cabelo escuro que estava sentada à mesa e

que dissera chamar-se Truth.

Winter observou-a com ar de dúvida. Esperara ser

entrevistada por uma pessoa mais velha - e, para dizer a

verdade, do sexo masculino -, quando pedira para falar com

um dos investigadores do Instituto. Quanto a Dylan Palmer,


com a sua camisa e calças de ganga, de brinco na orelha,

também não correspondia às suas expectativas, apesar de se

ter apresentado como doutor. Winter tinha imaginado uma

pessoa enfatuada, com uma aura de autoridade.

«Uma autoridade capaz de espantar os demónios.»

- Vocês... será que podem... eu preciso de saber tinha

as palavras na ponta da língua, mas não conseguia

pronunciá-las. - Sabem dizer se uma pessoa está possessa?

Graças a Deus, nenhum deles se riu.

- Possessa do demónio? - perguntou Truth com toda

a calma, como se estivessem a discutir o preço de um novo

título do Tesouro. - Porque é que não se senta, Sr.a Musgrave?

Dylan deu a volta à mesa para vir oferecer-lhe uma

cadeira. Winter deixou-se cair no assento, exausta do esforço

que despendera para lhes fazer aquela pergunta. Afinal era

possível que não estivesse doida, apesar de tudo o que lhe

acontecera - afinal talvez estivesse possessa. E nem se dava

39
conta a que ponto devia estar desesperada, para alimentar tal

hipótese.

- Agora - disse Truth Jourdemayne - conte-nos tudo

desde o princípio.

Winter hesitou. Sempre fora muito reservada, nunca

seguira o lema americano dos anos 80 que levava toda a

gente a dizer constantemente: «Então, desabafa lá.» Winter

nunca desabafava. As confidências não eram coisa que a

seduzisse, faziam-na sentir-se vulnerável. Mesmo na presente

aflição custava-lhe falar. Apetecia-lhe, sim, que alguém

escorraçasse os seus problemas com uma varinha de condão.

Mas isso não era possível. Primeiro tinha de explicar o que se

passava.

- São coisas... que estão a acontecer - começou

Winter, mas a frase soou incongruente aos seus próprios

ouvidos. Ficou à espera, mas a mulher do outro lado da mesa

não fez qualquer observação de incitamento. - Coisas que me

acontecem... não, não é isso, são coisas que acontecem à

minha volta. As coisas... acontecem... independentemente


da minha vontade; não sou eu que as provoco - disso estava

convicta; como podia ela fazer semelhantes atrocidades a

animais indefesos, como podia alguém fazê-las? - Mas

também não consigo impedi-las de acontecer.

- Que espécie de coisas? - perguntou Truth, sempre

em tom muito calmo.

Winter rodeou a pergunta.

- Elas... Olhe, tenho de lhes dizer: eu estive numa...

numa instituição. Tive o que se costuma chamar um

esgotamento nervoso. Mas eu não estou... não estou doida. E

se estiver, agradeço que alguém me diga, sim? Não é nada que

eu não seja capaz de encarar. Antes isso do que continuar a

andar por aí, a fingir que está tudo muito bem, que tudo corre

pelo melhor, como se tudo isto não passasse de uma esfoladela

no joelho que há-de sarar por si com o correr do tempo.

Apercebeu-se de que o seu tom de voz recomeçava a

subir, num crescendo de histeria. Não conseguia evitá-lo;

sempre que punha de lado o medo, era assaltada pela raiva e

pela frustração, a ponto de perder por completo o pouco

40
auto-domínio que lhe restava, ficando à beira de gritar, gritar

sem nexo contra tudo o que a rodeava.

- Porque é que não nos explica o motivo da sua visita,

senhora Musgrave? - disse Dylan Palmer.

- Vocês são caçadores de fantasmas, não é? Pois o meu

problema tem a ver exactamente com isso: é algo que

atravessa as paredes e faz coisas que ninguém consegue fazer.

Persegue-me, e eu julgava que a culpa era minha, por isso...

Mas eu não vou assumir as culpas, senão... Por isso têm de

exorcizar-me, ou seja lá o que for que vocês fazem, para eu

poder voltar sossegada à minha vida!

Não conseguia manter-se quieta na cadeira; voltou a pôr-se

de pé e retomou o vaivém anterior, alimentando o seu

próprio medo e raiva num crescendo angustiado, até sentir o

coração sufocar-lhe a garganta.

- Geralmente os fantasmas assombram os lugares, não é

costume assombrarem as pessoas, senhora Musgrave - disse-lhe

calmamente o Dr. Palmer. - O que a leva a pensar que

está assombrada?
Winter deteve-se, na expectativa, mas a mulher de cabelo

escuro - Truth - não disse nada. Pelo menos nenhum deles

se tinha rido dela. Truth Jourdemayne irradiava uma singular

serenidade, qualquer coisa real mas intangível na qual Winter

podia buscar forças e protecção. Esforçou-se por deixar de

cirandar e assentou as palmas das mãos na mesa. Só então

conseguiu atacar a sua história.

- Estou a viver na antiga quinta que fica a poucos

quilómetros de Glastonbury. Fui para lá depois de sair do

sanatório - acrescentou, em jeito de desafio.

Nenhum dos investigadores retrucou. Winter esforçou-se

por continuar, por chegar rapidamente ao fim da sua história,

para poder tomar conhecimento do pior.

- As coisas começaram a acontecer em Fall River, no

sanatório. Ninguém me dirigiu acusações, mas também não

era preciso. Nada daquilo acontecia com mais ninguém. Havia

coisas que desapareciam (pequenas coisas, nada de valioso) e

voltavam a aparecer mais tarde em lugares estranhos. O meu

quarto tinha janelas de guilhotina que davam para um dos

41
terraços; não era possível mantê-las fechadas, de modo que

por fim resolveram selá-las, mas nada disso resultou. Os pregos

acabavam por se desprender.

Assaltaram-na imagens vívidas e confusas; um amontoado

de imagens: o pessoal de enfermagem a tirar ostensivamente

os relógios antes de entrar no quarto; acusavam-na de ter

quebrado... oh, era uma lista infindável de objectos danificados;

a máquina do café; a máquina das bebidas; gente que a

apontava acusadoramente, embora ela jamais tivesse tocado

naquelas coisas.

- Além disso havia outra coisa... - mas ainda lhe era

difícil nomeá-la. - Mas quando saí de lá tudo isso deixou de

acontecer.

- Completamente? - perguntou o Dr. Palmer.

- Sim. Para dizer a verdade, não estou certa de que

estivesse em condições de reparar nelas, se voltassem a

acontecer, sobretudo porque já não tinha ninguém a vigiar-me...

- Calou-se, ao detectar o tom de auto-comiseração na

própria voz. - Mas depois aquela coisa mais terrível


recomeçou, e cada vez pior, mas tenho a certeza que não sou

eu que a faço... não posso ser eu... não é possível...

Suspirou tremulamente. Sentiu todos os músculos e

tendões do corpo rangerem, tal era a tensão em que se

encontrava; mal conseguia impedir que os dentes batessem

como castanholas.

- Tem de nos contar o que a perturba, senhora Musgrave

- disse Truth com toda a suavidade -, doutra forma não

sabemos se podemos ajudá-la ou não.

- Se não me puderem ajudar não sei que mais hei-de fazer

- lastimou-se Winter -, a não ser meter-me no carro e atirar-me

de uma ribanceira abaixo. - O problema é que nem isso

seria capaz de fazer, depois do que acontecera no dia anterior.

Winter respirou fundo e pegou no saco de papel que

estava em cima da mesa.

- Por causa do... das coisas que me acontecem, ontem à

noite atei-me a mim mesma à cama. Esta manhã, quando me

levantei, todas as portas e janelas da casa estavam abertas de

par em par... e havia isto.

42
Suspendeu o saco de papel sobre a mesa e sacudiu-o. Lá

de dentro saíram 8 metros de corda de algodão

completamente retalhados em pedacinhos de um palmo.

Ambos os investigadores se mantiveram imóveis, como

cães de caça que acabassem de avistar a presa. Por fim, o Dr.

Palmer dirigiu-se à mesa e pegou num dos troços de corda.

- Tem marcas muito nítidas de ter sido cortado com uma

lâmina - disse ele em tom neutro.

- Não posso ter sido eu, nem com faca nem com

tesoura, nem com lâmina - disse Winter em rouco sussurro.

Truth pegou num pedaço de corda. As pontas

apresentavam-se tão comprimidas, inteiriças e cortadas a

direito como um filtro de cigarro. Só um objecto muito afiado,

aplicado com grande força, poderia produzir semelhante

corte. Puxou para si mais alguns pedaços de corda e pô-los

lado a lado. Todos os pedaços eram exactamente do mesmo

tamanho.

Truth olhou de soslaio para Dylan, que fazia por se

manter impávido, mas para ela era óbvio que ele estava
entusiasmado. Os sintomas descritos por Winter Musgrave

pareciam uma sinopse de um manual clássico de possessão

por poltergeist, portas e janelas misteriosamente trancadas ou

abertas, deslocação de pequenos objectos e actos de vandalismo

bizarro e quase impraticável.

Mas a mulher que apresentava estes sintomas era quase

duas décadas demasiado velha para ser alvo de van poltergeist,

e as típicas diabruras dos «espíritos traquinas», embora inconvenientes,

não bastavam, por si sós, para pôr uma mulher

adulta em tão febril estado de terror.

- Porque é que se atou a si própria à cama, senhora

Musgrave? - perguntou Truth novamente.

- Acham que eu estou louca? - perguntou a mulher

num tom furioso. Os olhos brilhavam-lhe de desespero, e

Truth pressentiu o torvelinho nervoso que a roía por dentro e

que era a única coisa que ainda a mantinha de pé.

- Não - disse Truth, voltando a olhar de soslaio para

Dylan. Geralmente ele era muito mais brando do que ela

43
quando se tratava de fazer juízos sobre as pessoas, mas

também era muito escrupuloso na avaliação dos fenómenos

paranormais. Se ele achasse que não havia nada de paranormal

no caso, não hesitaria em dizê-lo.

Dylan assentiu com um movimento de cabeça quase

imperceptível. Por conseguinte, concordava com o

diagnóstico preliminar de Truth.

- Nenhum de nós pensa que a senhora esteja louca;

parece-nos apenas que está assustada. Não lhe prometo nada,

mas é possível que possamos ajudá-la.

A mulher de rabo-de-cavalo voltou a sentar-se na cadeira,

com ar fatigado.

- Estou constantemente a encontrar animais - disse ela

em tom monocórdico, exausto. - Mortos. Desfeitos em

estiras. Caídos à minha porta, como se o gato os tivesse caçado

e trazido para casa... o problema é que não há gato nenhum.

Aliás, acho que mesmo um gato não era capaz de fazer

semelhante coisa... Pombos, esquilos, ratos, pássaros. E ontem

recomeçou. E esta manhã lá estava... Ó meu Deus, acho que


era um guaxinim, ou qualquer coisa parecida. Na cozinha.

Dentro da cozinha - concluiu, escondendo a cabeça entre as

mãos.

- Parece-me - disse Dylan com toda a gentileza,

tentando não sobressaltar a mulher na outra ponta da mesa que

lhe fazia bem uma bebida quente. Uma chávena de chá

vinha a calhar, acho eu, e depois pode contar-nos a história

tintim por tintim, de fio a pavio.

O Dr. Palmer saiu da sala, deixando a porta ligeiramente

entreaberta. Truth Jourdemayne olhou para Winter.

- Já leu alguma coisa acerca de fenómenos paranormais,

senhora Musgrave? - perguntou Truth.

- Trate-me por Winter, por favor - disse ela, levemente

relutante (Truth apercebeu-se de que ela não era propensa à

intimidade), mas a verdade é que aquelas pessoas não a

tinham taxado de doida varrida, portanto o mínimo que

podia fazer era convidá-las a tratarem-na pelo nome próprio.

- Não, nunca li nada disso. É o tipo de assuntos que me

44
aborrece, juntamente com Steven Spielberg e Uri Geller e

quejandos.

- Não era bem a esse tipo de coisas que me referia disse

Truth com um sorriso, para aliviar o reparo. - Bem,

simplificando, parece-nos, a mim e ao Dylan (o doutor

Palmer), que o problema que nos descreveu pertence ao

âmbito genérico dos fenómenos paranormais.

- Não tencionam fazer quaisquer testes antes de

chegarem a essa conclusão? - ripostou Winter. A mulher do

outro lado da mesa assentiu com a cabeça, parecendo

ofendida com o reparo.

- Infelizmente, um dos problemas que se levantam com

esse tipo de fenómenos parapsicológicos é que têm tendência

para aparecer e desaparecer a seu bel-prazer; além disso, são

como os gatos: não gostam de ser exibidos aos vizinhos. As

pessoas que se gabam de serem capazes de produzir

fenómenos parapsicológicos a pedido são quase sempre uma

fraude.

- Ou seja, mesmo que me testem, não vão descobrir


nada - concluiu Winter, em tom de ressentimento.

- Provavelmente não - admitiu Truth. - Mesmo assim

agradecíamos-lhe que nos deixasse proceder a alguns testes

rotineiros de triagem...

- Triagem? Porquê? Julgam que estou a inventar tudo

isto? - disse Winter, pondo-se outra vez na defensiva.

- Triagem - repetiu firmemente Truth - para

descobrir se possui outros potenciais além deste poltergeist

que parece ter. É raro que um espírita disponha apenas de uma

capacidade; os precognitivos também manifestam

clarividência; os telepatas, telecinese...

- Eu não sou uma espírita - protestou Winter. - Você

falou em poltergeist; isso não é um fantasma? Eu disse-lhe que

estava assombrada!

- Um poltergeist não é um fantasma. O termo é alemão

e significa «espírito traquinas». Hoje em dia é frequente

designá-lo «fenómeno PCER», que são as iniciais de

«PsicoCinese Espontânea Recorrente». Há um vasto leque de

fenómenos classificados como poltergeist (deslocação

45
mobílias, destruição de louça... ah, sim, e abertura de portas

e janelas, também) e esses fenómenos parecem ser obra de

entidades malévolas ou traquinas; mas, tanto quanto se sabe,

não está em causa qualquer espírito ou fantasma (ou

«consciência descarnada», como Dylan insiste em que lhes

chamemos). Geralmente a actividade dos poltergeist centra-se

numa pessoa, não num lugar, e note bem que todos os casos

de actividade de poltergeist acabam por cessar: geralmente

quando o locus amadurece, porque a maioria dos loci de

actividade de poltergeist é constituída por mulheres em plena

puberdade.

Fez-se uma pausa, durante a qual Winter digeriu o que

acabava de ouvir.

- O que não é o meu caso.

Nesse momento Dylan regressou com os apetrechos do

chá dispostos num tabuleiro e distribuiu as chávenas pela

mesa. O chá já estava quente e adoçado; era uma mistura

especiosa de ervas, mas agradável e aromática. Winter não

tinha grande apetite de chá, mas a caneca de louça branca


sempre servia para manter as mãos ocupadas. Também havia

um tabuleiro com biscoitos, e a reunião assumiu um ar cortês

que, sabe-se lá porquê, irritou Winter.

- Sem dúvida que a senhora é mais velha do que a maior

parte das vítimas; diga-me, houve algum poltergeist na família

durante a sua infância? - perguntou Truth, de chávena na

mão.

- Que ideia ridícula - ripostou Winter secamente.

- A PCER é a explicação mais óbvia - corroborou

Dylan, bebericando o chá - porque surge aleatoriamente,

é irracional e (nunca é de mais repeti-lo) escapa ao controlo

do sujeito. É um fenómeno de ocorrência estatisticamente

aleatória e manifesta-se como se fosse uma espécie de inflamação

parapsicológica; por essa razão afecta dez vezes mais

raparigas do que rapazes e geralmente ocorre na puberdade,

quando todo o organismo se encontra em sobressalto. A

tensão emocional também é um factor propiciatório, e você,

segundo nos contou, esteve sujeita a tratamento psiquiátrico

- acrescentou ele com ar casual.

46
- Vocês acham que eu estou doida! Acham que sou eu

que provoco tudo isto!

- Senhora Musgrave... Winter... por favor... começou

Truth a dizer, mas a caneca de Winter, que ela ia

pousar na mesa, começou a rodopiar, fugiu-lhe das mãos,

silvou através da sala e foi esmigalhar-se contra a parede por

detrás de Dylan.

- E, escusado será dizer, ser vítima de um poltergeist já

de si é coisa muito enervante - concluiu Dylan com toda a

calma.

- Peço... peço desculpa - tartamudeou Winter. - Não

tive intenção de lhe atirar com a caneca; escapou-me das mãos...

Olhou alternadamente para os dois rostos à sua frente e

percebeu que eles não acreditavam que ela tivesse lançado a

chávena.

- Está bem - disse Winter com brusquidão. Apareceram-lhe

lágrimas nos cantos dos olhos e ela sentiu plenamente

toda a lassidão acumulada. - Convenceram-me. Estou a

ser assombrada por um poltergeist. E agora, como é que me


vejo livre dele?

- A medida mais importante consiste em eliminar a

tensão do seu dia-a-dia, na medida possível e (por muito difícil

que possa parecer) tentar não se ralar com o que está a acontecer

- disse Truth, procurando acalmá-la. - Podemos fazer

uma série de testes aqui no Instituto, mas nada disso irá afectar

o poltergeist; de resto, como já lhe disse, não se conhecem

meios de cura. Posso indicar-lhe algumas misturas de ervas

para fazer infusões inofensivas que talvez ajudem; em Glastonbury

há uma ervanária, a Inquire Within, que vende essas

misturas prontas a usar. Não se deixe assustar pela montra da

loja: o proprietário tem mais a ver com plantas e minerais do

que com magia negra. Além disso também sugiro que faça

exercícios de meditação, caso...

- Meditação? - exclamou Winter, incrédula. - Então

eu digo-lhe que esta coisa se intrometeu na minha vida em três

diferentes estados, que andou atrás de mim a matar animais e a

plantá-los à minha volta, e o seu grande conselho é que eu me

dedique a meditar pensamentos felizes?

47
O diapasão que estava em cima da mesa começou a vibrar

levemente.

- Não me diga que prefere electrochoques - ripostou

Truth. - Prestou atenção ao que temos estado a dizer-lhe?

Tudo isto, por muito perturbador que seja, por muito

assustador que pareça, vem de si. O poltergeist é uma espécie

de achaque psíquico; é possível que os psiquiatras descubram

o meandro do seu cérebro onde ele se localiza e consigam

extrair essa parte, mas olhe que não iria sobrar grande coisa. O

que lhe convém fazer é minimizar os estragos e descobrir por

que razão tudo isto está a acontecer.

- Não me interessa saber por que é que está a acontecer!

O que eu quero é acabar com isto! - guinchou Winter,

elevando a voz acima do som que encheu a sala repentinamente:

uma cacofonia de zumbidos, tinidos e rangidos

provenientes de uma dúzia de campainhas distintas. Sentiu o

coração a palpitar com tal força que receou que a cabeça lhe

estourasse a cada batida, e recomeçou a tremer com tal

violência que se lhe ouviam os dentes a bater. Saltou da


cadeira e lançou-se em direcção à porta, obcecada por uma

ideia urgente: sair dali para fora antes que o pior acontecesse.

Dylan conseguiu agarrá-la antes que ela chegasse à porta; ela

gritou e debateu-se.

- Fugir não adianta - disse Dylan com firmeza,

continuando a segurá-la até ela deixar de se debater. Começou

então a libertá-la pouco a pouco. Winter ficou estática,

ofegante e de olhos esbugalhados.

O alarido cresceu de intensidade, as campainhas dos

sistemas de alarme e de incêndio dispararam todos ao mesmo

tempo e juntaram-se ao coro.

- Deve ser um abalo - disse Truth com toda a calma. O

doutor Martello já nos tinha avisado que devia haver hoje

uma série deles, por causa do espírita alemão que está cá, o da

telecinese; além disso as máquinas que utilizamos para medir a

psicocinese espontânea são muito sensíveis. Espero que as

desliguem depressa. - Mal acabara de pronunciar estas

palavras quando, como por sua vontade, as sirenes se calaram,

uma por uma, e o alarido cessou.

48
Qual onda encrespada que se verga na praia e desfaz em

espuma, o frenesi nervoso que trazia Winter empolgada desde

a descoberta dos pedaços de corda retalhada esvaiu-se,

deixando-a esfomeada, exausta e sonolenta. Voltou a sentar-se

e tirou um biscoito do tabuleiro; mordiscou-o, de olhos

fechados, a saborear a sua doçura.

- Diga-me uma coisa, Winter: porque é que alugou a

Greyangels Farm? O município de Amsterdam não é dos sítios

mais procurados - disse o Dr. Palmer.

- Mas é muito bonito, não é? - contrapôs Winter. Sentiu

a hesitação da sua própria voz e fez votos para que ele não lhe

fizesse perguntas que a obrigassem a admitir que não fazia a

mais pequena ideia de como fora parar àquela casa.

- Talvez a recordação da casa venha dos seus tempos de

estudante - disse o Dr. Palmer. - O senhor Zacharias estava

sempre a tentar alugá-la... diga-se de passagem que nunca

conseguiu mantê-la alugada por muito tempo - acrescentou.

- Não está assombrada, infelizmente.

- Tempos de estudante? - ecoou Winter.


- Quando esteve em Taghkanic... - começou o Dr.

Palmer a dizer, mas deteve-se quando reparou na expressão de

Winter.

- Eu frequentei esta universidade? - disse Winter em

tom inexpressivo.

Ambas as mulheres ficaram a olhar para o Dr. Palmer.

«Winter Musgrave», repetiu ele consigo mesmo, como se

invocasse memórias.

- Você foi finalista em 82. Eu também. Frequentou as

aulas de Introdução à Psicologia do Ocultismo, do Professor

MacLaren; já não me lembro porquê - disse Dylan.

Winter olhou para Dylan como se nunca na vida o tivesse

visto.

- Eu já estive aqui? - perguntou ela.

Truth sentiu os pêlos da nuca e dos braços eriçarem-se,

numa reacção animal perante o desconhecido.

- Você frequentou esta universidade - disse Dylan,

surpreendido com a resposta de Winter. Não era exactamente

isto que ele esperava quando puxara o assunto.

49
- Eu andei nesta escola - repetiu Winter, atónita e em

tom monocórdico. - Não me lembro. Porque é que eu não

me lembro?

Mas de facto lembrava-se, tinha uma vaga ideia. O

suficiente para saber que o Dr. Palmer tinha dito a verdade,

embora Winter não suspeitasse dela até esse momento. Ela

fora acolher-se ali porque já lá estivera. - Se é assim, porque é

que não me lembro? - repetiu ela a queixa.

- Eu não sou psicóloga - avançou Truth cautelosamente

-, mas às vezes o cérebro, sob o efeito de um

trauma...

- Mas eu não tive trauma nenhum - interrompeu

Winter. - Tenho tido uma vida perfeita. Tenho um trabalho

maravilhoso; gosto do que faço; e fazia-o muito bem. Não tive

quaisquer problemas. - Assustada, tentou invocar cenas do

passado para lá das imagens enevoadas do último ano. Aí

estavam retratos da sua vida, claros e evidentes; uma vida

confortável, normal, sem surpresas nem desapontamentos.

- Não se lembra de nada? - perguntou o dr. Palmer.


Winter hesitou.

- Em que é que se mestrou? - perguntou Truth.

E agora Winter começou a ter medo, porque também não

se lembrava disso, e ninguém se esquece de uma coisa dessas.

Nem sequer se lembrava de ter recebido o diploma! Olhou

muda e esgazeada para Truth, em busca de auxílio.

- Winter não fez o mestrado - disse lentamente o Dr.

Palmer, rememorando acontecimentos de há mais de dez anos.

- Lembro-me que deixou a escola poucas semanas antes do

exame. Nunca ninguém percebeu porquê.

A ressonância dos seus próprios pensamentos provocou

uma gargalhada a Winter.

- Eu tinha pensado que ainda era demasiado cedo para

ter a certeza de que o seu problema seja de natureza

paranormal - disse Truth com tacto - e também não posso

garantir que este problema esteja relacionado, por isso parece-me

útil, tanto a nós como a si, que venha ao Instituto fazer

uma série completa de testes.

50
- Mas os animais - disse Winter. Era isso o pior: os

corpos dos animais mortos, caídos à entrada da casa como

oferenda macabra. - Tenho de arranjar maneira de parar com

aquilo.

- Não sabemos donde vem o poltergeist - repetiu Truth

-, e por conseguinte não sabemos o que afecta os animais. Eu

sei que acha que não vale a pena, mas peco-lhe que tente tomar

o chá que lhe indiquei. - Truth pegou num bloco de notas,

escrevinhou um nome a lápis e estendeu o bloco a Winter. - E

não se esqueça das técnicas de meditação. Mal não lhe fazem, e

é possível que a ajudem... Não desista de lutar.

- Pensei que me tinha dito que não se pode controlar

um poltergeist - duvidou Winter, enquanto arrancava a folha

escrita do bloco e a metia na malinha, sem a ler.

Truth encolheu os ombros e sorriu encorajadoramente;

Winter apercebeu-se de que Truth Jourdemayne era muito

mais nova do que aparentava.

- O que eu disse foi que (tanto quanto sabemos através

da literatura especializada) nunca ninguém conseguiu fazê-lo.


Mas isso não quer dizer que não seja possível. De resto não me

parece que você seja o tipo de mulher que se sujeita docilmente

aos caprichos do destino.

Winter esforçou-se por sorrir, sentindo, com velada

esperança, que pelo menos estava já a adoptar uma atitude

mais combativa.

- Não - disse ela -, acho que não sou pessoa para

desistir por dá cá aquela palha. - «E também não acredito em

banhas da cobra. Por outro lado...» Winter hesitou. - Como

disse que se chamava a loja?

- Inquire Within. Fica em Glastonbury. A Meg tem cartões

de visita da loja, peça-lhe um. Se quiser também pode

pedir-lhe para fazer a marcação dos testes.

«Não me parece que queira.» Winter sempre fora lutadora,

coisa que lhe trouxera bons proveitos no trabalho. O simples

facto de exprimir por palavras todos os seus medos fortalecera-a

contra eles. Ela era capaz de combater este... este

duende que queria assenhorear-se da sua vida - sim, e

também havia de recuperar o passado esquecido. E não

51
precisava de ajudas alheias. Parecia-lhe melhor pensar que

estava assombrada do que dar-se como louca, e este edifício

enorme, de aspecto muito institucional, cheio de investigadores

e máquinas e pessoas muito civilizadas que levavam

tudo muito a sério faziam-na sentir que estar assombrada era,

mais do que opção, coisa muito respeitável.

- Vou... vou pensar nisso - disse Winter hesitantemente.

- Fico muito agradecida pela vossa paciência. Imagino

que não fui uma visita muito simpática.

- Em comparação com muitas outras pessoas - disse o

Dr. Palmer num tom de ironia contida -, foi um modelo de

simpatia. Muito obrigado por ter vindo, Winter; e não hesite

em repetir a visita.

- Muito obrigada, doutor Palmer. Não esqueço o convite.

- «Da próxima vez que os diabinhos me venham morder as

canelas», pensou Winter num rasgo de humor mordaz.

Mas a boa disposição que por momentos a brindara desapareceu

assim que chegou à rua. Winter agarrou no cartão de

visita que Meg Winslow lhe dera e franziu os olhos ao brilho


do sol. À chegada não observara com atenção o que a rodeava.

Descobriu-se rodeada de macieiras em flor; o complexo universitário

tinha um ar primaveril e convidativo, como um

desenho num livro. E devia ser-lhe familiar. Era esta a escola

que ela frequentara - segundo Dylan Palmer. Se é que podia

fazer fé no que ele afirmava.

«Não!» Arredou as divagações com raiva. Se se deixasse

levar por semelhantes pensamentos acabaria louca de verdade.

O Dr. Palmer dissera a verdade - não tinha razões para lhe

mentir, tanto quanto sabia.

Mas porque é que não conseguia lembrar-se de nada?

Apesar da sensação de estranheza, Winter escolheu uma

direcção e pôs-se a passear ao acaso. Talvez a visão de lugares

que lhe deviam ser familiares chamasse a memória à ordem caso

contrário, a caminhada teria pelo menos a virtude de lhe

preparar uma noite de sono profundo.

Por muito que não quisesse, Winter sentiu-se assustada.

Muito pior que o pior dos sonhos era o despertar.

52
CAPÍTULO TRÊS

UMA SOMBRA PÁLIDA DE INVERNO

The winter I’ll not think on to spite thee,

But count it a lost season, so shall she1

JOHN DONNE

Mas uma hora de passeio pelos terrenos de Taghkanic não

logrou espicaçar memórias esconsas, apenas serviu para

relembrar a Winter do pouco tempo que decorrera desde que

deixara a cama de hospital, embora, um dia, ela tivesse...

A sombra da lembrança de uma Winter muito mais jovem,

correndo galhofeira entre macieiras, a fugir de... de quem?

Sacudiu a cabeça. O rasgo de memória fechara-se, não lhe

deixando outra alternativa que não fosse seguir os conselhos

de Truth Jourdemayne.

Winter sentiu um baque quando o táxi parou à porta da

loja. Só se apercebia da relutância com que ali vinha depois

de ter decidido ir. Era ali que tinham começado todos os

problemas.

«Não. Sê honesta. Foi aqui que os problemas ressurgiram.»

- Não se importa de esperar? - pediu Winter ao taxista.


- Por quanto tempo? - perguntou Tim Sullivan, com a

sua cara juvenil, parecendo mais receoso dela do que o

inverso; nada que se parecesse com os taxistas nova-iorquinos

a que Winter estava habituada.

- Eu pago o frete - disse Winter, ciente de que fora das

cidades os taxímetros não marcavam tempos de espera. Cinquenta

dólares.

1 Só por mortificar-te não hei-de pensar nesse Inverno, / Mas dá-o por perdido,
outrossim

ela fará. (N. do T.)

53
O condutor ficou de queixo caído, quase em choque. Cinquenta

dólares? Mas, minha senhora...

- O meu carro está na oficina e eu preciso de um meio

de transporte. Não há por aqui carros de aluguer, pois não?

- Eu... Bem... A garagem de Dave Kelly às vezes não se

importa de ceder um carro...

«Ah, as alegrias de viver numa vilória!» - Óptimo. Nesse

caso podemos lá ir de seguida. Se não se importar de esperar

aqui?

- Hum... com certeza. - Sullivan parecia hesitante mas

tentado a concordar. - Vou procurar um sítio para estacionar.

Não teve dificuldade em encontrar um lugar perto da loja

e desligou o motor. Winter saiu do carro.

«Não há que ter medo.» Winter apoiou a mão na

maçaneta.

A porta era de madeira, pintada de verde, com a parte de

cima em vitral; outra lua e outro firmamento encapelado. O

efeito, mais cómico do que assustador, e o quadro disparatado

da montra com a bola de cristal e o chapéu pontiagudo


reforçavam o tom caricatural de banda desenhada. Era uma

simples loja de ervas e bolas de cristal, nada mais.

A porta, ao abrir-se, fez soar uma campainha. Lá dentro,

numa atmosfera bafienta e adocicada, a primeira coisa que

chamou a atenção de Winter foi um gato malhado sentado no

alto de uma estante de livros com portas de vidro. O bicho

piscou-lhe os olhos verdes e espreguiçou-se desdenhosamente.

- Deseja alguma coisa? - a voz vinha das traseiras da

loja.

«Os anos 60 ainda não morreram» foi o primeiro pensamento

de Winter. Aproximou-se uma mulher baixa e esguia,

de longos cabelos louros e rosto felino. Tinha o cabelo

dividido ao meio, com um risco impecavelmente desenhado

no alto da cabeça, e preso por uma fita de couro entrançado.

Vinha de calças à boca de sino e coberta de missangas, como

as que se usavam quando Winter era pequena. «Onde será que

ela os vai desencantar, nos tempos que vão correndo?»

- Deseja alguma coisa? - repetiu a mulher, aproxi-

54
mando-se. Sorriu abertamente; Winter reparou que, apesar de

parecer jovem, a mulher andava mais perto dos quarenta do

que dos trinta. - Chamo-me Tabitha Withfield e sou a proprietária.

Vem à procura de alguma coisa em especial? Parece-me

um pouco perdida...

- Venho à procura de um chá - disse Winter. Vasculhou

a malinha à procura do papel que Truth Jourdemayne lhe dera.

- É uma coisa chamada... Ah, não consigo lembrar-me! - e o

papel não havia meio de aparecer.

- Não se preocupe, que havemos de descobrir o que é

- disse Tabitha Whitfield esperançadamente. - A senhora

vem da Universidade, não é?

- Porque é que pergunta? - Winter ficou imediatamente

alerta.

Tabitha riu-se:

- Porque quando as pessoas chegam aqui (desculpe que

lho diga!) com ar de quem está em estado de choque, como a

senhora, é quase certo que vêm da parte dos caçadores de

fantasmas. Do Laboratório? - acrescentou ela, para o caso de


Winter não ter entendido a primeira referência.

- É isso - respondeu Winter laconicamente. - Foi uma

mulher chamada Truth Jourdemayne.

- Ah, a Truth - disse Tabitha. - Sendo assim já sei o

que ela a mandou buscar. Ela é uma celebridade cá na terra,

sabia? Nunca ouviu falar no pai dela, Thorne Blackburn? acrescentou

Tabitha, como se estivesse convencida de que

Winter reconheceria o nome.

Tabitha apontou para um monte de livros na mesa com

tampo de mármore, a um canto. - Até escreveu um livro. Eu

vou buscar o chá. - A proprietária passou pela inevitável cortina

de missangas e desapareceu nas traseiras da loja.

Puxada pela curiosidade, Winter aproximou-se da mesa.

Quando passou pelo gato malhado, ele espreguiçou as garras

languidamente em direcção a ela.

Os livros tinham todos o mesmo título. Winter olhou para

a sobrecapa ilustrada com uma colagem de imagens dos anos

60: colares de missangas e pentagramas e um homem vestido

como o Feiticeiro Merlin. Agarrou num dos livros.

55
Venus Afflicted: A Vida Breve e o Percurso Rápido do

Mestre Ludens Thorne Blackburn e a Nova Era.

«Que diabo é isto?»

Abriu o livro para ler o texto da badana. Além de uma

fotografia lustrosa e pouco fiel de Truth Jourdemayne com um

penteado vaporoso, Winter descobriu que o livro tratava da

biografia de um sujeito dos anos 60 que afirmava ser feiticeiro

- e que, por acaso, era o pai de Truth.

Winter fechou o livro de um estalo, arrepanhando o lábio

num trejeito de desagrado. Não sabia bem o que é que a

irritava tanto naquilo, mas também não lhe parecia que valesse

a pena descobrir. Começou a sentir uma certa fúria: tinha ido

ao Instituto pedir ajuda - por amor de Deus, tratava-se

simplesmente de uma universidade; deveria ter um ar

minimamente respeitável - e afinal a única coisa que

acontecera fora um sujeito parecido com o John Denver dizer-lhe

que tinha andado no mesmo curso que ela e a filha do

Arquidruida de Canterbury!

Winter sentiu as pulsações acelerarem, mas tarde


reconheceu a armadilha. As emoções fortes - fossem elas

quais fossem - pareciam atrair aqueles feitiços de desastre,

tão tormentosos como as visitações da coisa que abria portas e

esfacelava animais. Mesmo naquele instante sentiu-se inclinada

a fazer distinção entre os dois, como se não se tratasse de um

problema único, mas sim dúplice. Winter segurou o livro com

força, respirou fundo uma vez, e outra, à cata daquele seu

auto-domínio férreo tão eficaz em Wall Street - e sentiu o

desvario do medo esvair-se.

- Então que tal vão as coisas por aqui? - a voz alegre de

Tabitha Whitfield veio interromper os devaneios autocongratulatórios

de Winter.

- Tal e qual as deixou - disse Winter, esforçando-se por

não soar agressiva. O sarcasmo sempre fora a sua arma

preferida na defesa contra o mundo; uma forma de flagelar

antes que fosse ferida. Ao aproximar-se da caixa registadora,

deu conta de que ainda tinha Venus Afflicted nas mãos. Também

levo isto - disse ela, à laia de desculpa tácita. Enfiou

o livro na mala pousada em cima do balcão, ao lado do

56
pacotinho que Tabitha trouxera do armazém (um pequeno

embrulho de papel pardo com uma etiqueta prateada e

branca). Numa caligrafia arrebicada, a tinta vermelha, a

etiqueta dizia Centering Tea2.

- Devia levá-lo à Faculdade para pedir um autógrafo disse

Tabitha enquanto abria o livro para aplicar o leitor de

código de barras. - Mas já estou a ver o que é que a atraiu no

livro. A senhora é um Anjo Cínzeo, tal como ela. Tem uma aura

muito forte, sabia? Sinto-a muito bem.

- O que é que se faz com o chá? - perguntou Winter

com brusquidão. Fosse ela um anjo (cinzento ou doutra cor

qualquer) ou não, não lhe apetecia ouvir falar das auras

alheias. Os anos 80 já tinham passado à história.

Felizmente, Tabitha parecia ter tendência para saltar de

assunto em assunto.

- Basta deitar uma porção num bule, como um chá

normal; além disso devia adoçá-lo com mel, que é muito

melhor do que os adoçantes artificiais, como o açúcar

refinado. Tenho aqui uma folha de instruções - procurou ao


lado da caixa registadora - e um folheto com exercícios que

devem acompanhar o chá. A conta são $37,78.

Exercícios? Fosse qual fosse a explicação para aquela

novidade, Winter não estava com disposição para ouvi-la.

Lembrando-se dos autocolantes da praxe que vira colados na

porta de entrada, Winter voltou a vasculhar a bolsa e por fim

estendeu o cartão Visa, ao qual, por acaso, vinha agarrado o

papel manuscrito por Truth. Ficou boquiaberta a olhar para

ele. Centering Tea, era o que lá estava escrito. Voltou a enfiar

o papel no fundo da bolsa.

- Na quarta-feira à noite reúne-se um grupo de

meditação - disse Tabitha enquanto passava o cartão - que

inclui pessoas da terra e estudantes da Faculdade; se quiser

aparecer, é bem-vinda.

O convite, embora tosco, era bem-intencionado. Obrigada

- disse Winter. «Talvez vá na próxima encarnação.»

2 O significado do nome deste chá, dúbio como é logo no original inglês (razão
por que

não o traduzimos), revelar-se-á pouco a pouco ao longo da história. (N. do T.)

57
Tabitha Whitfield devolveu a Winter o cartão de crédito.

Winter olhou de relance para a fotografia do cartão. Aquele

jovem predador era mesmo ela? Remeteu o cartão para dentro

da malinha e agarrou no pacote que Tabitha lhe estendia.

Parecia cheio de folhetos. Pois sim, davam jeito para acender

a lareira.

Winter ficou aliviada ao ver que Tim Sullivan continuava à

espera, a franzir os olhos ao sol primaveril, quando ela saiu da

Inquire Within. Winter atirou a malinha e o embrulho de papel

pardo para cima do banco traseiro e meteu-se dentro do carro.

- E agora quer ir à garagem? - perguntou Sullivan.

- Com certeza - disparou Winter. Quanto mais tempo

passava a navegar vitoriosamente nas águas encapeladas deste

mundo, mais arrogante se tornava. Jack sempre dissera que ela

era uma lutadora furiosa - preciosa qualidade para quem

tinha de negociar.

«Tens instintos de animal predador, minha querida, e não

tens nojo do sangue. É o que é preciso para sobreviver por aqui.»

Instinto predador. De repente Winter sentiu-se como que


abafada por um vento suão. Seria ela um animal predador? - e

que se servia de uma espécie de poder psíquico para matar?

- Ouvi uma coisa esquisita lá na loja. - Ouviu a sua

própria voz, clara e penetrante, tensa, sobrepor-se a outra

vozinha, interior. - A dona da Inquire Within falou de

qualquer coisa parecida com «Anjos Cínzeos»3. De que é que se

trata? De uma espécie de folclore local?

O vale do Hudson possui grande riqueza folclórica,

recordou Winter, incluindo histórias sobre o Headless

Horseman of Sleepy Hollow e o galeão fantasma que bordejava

a baía de Hudson em noites de luar, para grande susto do

tráfego marítimo local.

3 «Grey Angels» no original. A tradução sistemática de certas expressões, se


ganha em

facilidade de leitura em português, perde a teia original de coincidências e


conotações

entre lugares (neste caso Greyangels), pessoas, entes mágicos e elementos


narrativos. Da

mesma forma se perdem na versão portuguesa os trocadilhos sobre termos de


carácter

económico, bolsista e empresarial, aplicados fora de contexto (utilizados na

caracterização subjectiva de Winter). (N. do T.)

58
- É verdade; se reparar, a senhora até vive à beira de um

caminho chamado Greyangels Road - disse Sullivan. - Eu

dessas coisas pouco sei: são manias cá do sítio, e o meu pai só

se mudou para aqui em 87. Os velhos da terra dizem que

andam uns anjos por estas partes do vale do Hudson. Assim

uma espécie de fantasmas, está a ver, só que são fantasmas

bons... a maior parte das vezes.

«Muito conveniente», pensou Winter. - Cinzentos?

- Parece que sim. - Sullivan não parecia muito

convencido. - Eu cá nunca topei nenhum; mas às vezes

aparecem uns nevoeiros muito densos, perto das margens do

rio. Pode ser que sejam eles.

Se não houvesse carro de aluguer, restava a hipótese de

chamar outro táxi, de modo que Winter mandou Tim Sullivan

embora depois de lhe garantir que tinha falado a sério quando

prometera os 50 dólares. Pôs-se a andar à volta do edifício até

encontrar Dave Kelly nas traseiras, de cabeça enfiada no motor

de um carro que saíra das fábricas de Detroit cinco anos antes

de Winter ter nascido; ao lado estava um rapaz mais novo, uma


espécie de réplica mais magra de Dave.

- Viva - saudou Winter.

Dave tirou o nariz do motor e endireitou-se. - Ah... olá.

- Não parecia muito contente com a visita. Esfregou as mãos

num bocado de desperdício. - Continua tu a fazer isso, Paul;

tenho de falar com esta senhora por causa do carro dela.

O corpo que estava debaixo da capota do motor emitiu

um som que tanto podia ser de anuência como de recusa.

Winter seguiu Dave até à entrada da garagem; pelo caminho

começou a pensar que se não encontrasse rapidamente um

sítio para se sentar, ainda era capaz de desmaiar de cansaço.

- O que se passa é o seguinte - começou Dave com um

suspiro. - O BMW é um belo carro; é uma jóia da mecânica

alemã, e tal e coisa. Inspeccionei-o todo, mas não consigo

perceber que raio tem o carro (não leve a mal a minha

linguagem), seja como for, nem eu nem seja quem for deste

lado da Bavária sabe o que é que se há-de fazer ao diabo do

carro. A única vez em toda a minha vida que vi um sistema

55»
eléctrico em tal estado foi num carro que apanhou com um

relâmpago em The Angels, há uns anos.

- The Angels? - perguntou Winter. Qualquer coisa para

evitar discussões acerca do que destruíra o carro. Porém, ela

receava saber de que se tratava.

- É uma montanha aqui perto; a bem dizer são só uns

montes, mas bastante altos; eu e o meu filho costumamos ir lá

fazer montanhismo nos fins-de-semana. Chama-se Angels. O

primeiro colono a andar por lá era francês e o nome original

dos montes era AuxAnges.

Aux Anges - os Montes. The Angels não passava de má

tradução. Talvez a explicação dada por Tabitha Whitfield para

os Anjos Cínzeos obedecesse à mesma simplicidade.

- De modo que era isto que eu fazia, se estivesse no seu

lugar - concluiu Dave, ao que Winter se apercebeu que

enquanto divagava, perdera o fio à meada.

- Perdão? - disse ela hesitantemente.

- Eu disse: se quiser alugar um carro tem de ir até

Poughkeepsie. Não acredito que o perito dos seguros demore


menos de um mês a aparecer; e de certeza que ele lhe vai

dizer o mesmo que eu já lhe disse. A bateria babou-se e

arruinou quase tudo o que ainda não estava queimado. Pode

muito bem acontecer que o seguro não queira pagar; sabe

como são os seguros.

«E o que é que acha que queimou o meu carro, senhor

Kelly? As três fadas más?» Winter suspirou longamente,

conformada. «Por conseguinte, eles não vão pagar a

indemnização. Com isso posso eu bem.»

- Vou precisar de um meio de transporte enquanto não

for a... Poughkeepsie? - disse Winter, gaguejando o arrevesado

nome da terra. - Tim Sullivan disse que o senhor talvez

me dispensasse um carro?

- Não é carro que eu gostasse de oferecer a uma senhora

- disse Kelly. - Além de ser um bocado espalhafatoso, não se

pode dizer que seja de confiança.

- Preciso de qualquer coisa com rodas - disse Winter

em desespero. - Olhe, eu compro-lhe o carro.

- Não lho posso vender - disse Kelly, abanando a

60
cabeça negativamente. - Não ficava bem com a minha

consciência. Mas deixe estar que eu empresto-lho por um par

de semanas. Seja como for é melhor pedir ao Tim que a leve a

Poughkeepsie.

- Eu peço, esteja descansado - prometeu Winter.

- Óptimo. Nesse caso vou buscar as chaves do carro. Seguiu-se

breve hesitação; Dave olhou para Winter como se ela

tivesse esquecido qualquer coisa. - E... hum... o que quer

que eu faça ao BMW?

- Guarde-o - disse Winter. - Faça dele um canteiro de

flores, se lhe apetecer. Eu passo-lhe os documentos.

«Nem quero voltar a ver esse carro.»

Seguiu-se um tempo de espera durante o qual Dave

retirou as matrículas do BMW para as entregar a Winter;

passados três quartos de hora ei-la que saía da garagem a

conduzir um Chevy Nova amarelo, todo amolgado, com uma

porta vermelha e outra azul e sem banco de trás.

«Pronto, já não tenho que preocupar-me com aquele

monte de sucata», pensou Winter, toda satisfeita. «Não há


problema que não possa ser torneado.» Quem dissera tal?

Alguém que ela conhecia? Alguém que ela tinha conhecido um

personagem do seu passado perdido?

«Não interessa», pensou Winter com os seus botões; mas

depois pôs-se a pensar que estas tiradas eram como

espantalhos intrépidos a tentar afugentar sombras tenebrosas.

Embora tivesse saído do Instituto Bidney antes do meio-dia,

a tarde já decaía quando Winter recolheu a casa, de

bolsinha pendurada ao ombro e embrulho da Inquire Within

na mão. Apesar de ter sido palco de tanto horror, o regresso

a Greyangels foi reconfortante, como se a casa fosse um

animal de estimação que lhe desse as boas-vindas, pedindo

perdão pelas diabruras passadas e prometendo não mais

reincidir.

«Quem me dera fosse verdade», pensou Winter melancolicamente.

O dia decorrera como se ela tivesse libertado a

vontade de dentro de um rígido colete - «talvez o efeito dos

medicamentos levasse mais tempo a desaparecer do que eu

61
tinha imaginado» - e agora, finalmente, sentia claro o

pensamento.

Mesmo no que se referia ao impensável.

«Dos vampiros, dos horrores, das bestas de pés de bode

nos livrai, Senhor. Ámen.»

Fechou firmemente a porta: duas voltas na lingueta da

fechadura; tranca; corrente. Passou em revista as restantes

divisões do rés-do-chão - sala da frente, cozinha, copa e

quarto -, a confirmar que todas as janelas e respectivas

portadas estavam bem fechadas, tal como as deixara. Por esse

lado, tudo estava bem. Dirigiu-se à casa de banho, pôs a água a

correr dentro da grande banheira - uma daquelas tinas

antigas de metal esmaltado -, verteu dose generosa de um

rotundo frasco negro de sais de banho Joy of Bain, e voltou a

pô-lo no parapeito da janela. O delicioso cheiro a jasmim

seguiu-a até à cozinha.

A cozinha estava impecavelmente arrumada, tal como a

deixara de manhã, o velho linóleo mosqueado limpo e seco.

«Na. Por aqui não andam monstros. E se assim continuasse...»


Súbitas lágrimas de cansaço lhe romperam ao

canto dos olhos e Winter sentiu toda a lufa-lufa do dia cair-lhe

em cima de uma assentada.

«Vamos lá tomar o chá daquela tonta. É disso mesmo que

eu estou precisada. E talvez de um bom livro, também.»

Encheu a chaleira, pousou-a no fogão e susteve as lágrimas.

Os antigos moradores da quinta não pareciam ser grandes

amantes de leitura - a verdade, porém, é que o aluguer de

casas mobiladas não costuma incluir bibliotecas nem

respectivos direitos de autor. Por via das dúvidas, aventurou-se

outra vez ao andar superior, por onde avançou com pezinhos

de lã, como quem penetra em território inimigo - mas o mais

que encontrou foi uma revista.

Restava-lhe apenas Venus Afflicted e os folhetos que

Tabitha Whitfield lhe tinha aviado juntamente com o chá.

Winter quedou-se ao lado da banheira, sopesando as brochuras

em ambas as mãos, e perguntou a si própria como era possível

não se ter dado conta, até então, da total ausência de material

62
de leitura que reinava naquela casa. No parapeito da janela, ao

lado do frasco de sais de banho, pousou uma gorda chávena de

Centering Tea; como o fizera bem forte, acrescentou-lhe uma

generosa colherada de mel.

Ora bem, a dita biografia era longa, pelo menos. Quanto

aos panfletos, dedicar-lhes-ia uma leitura rápida mais tarde,

antes de os usar para atiçar a salamandra do quarto.

Arremessou-os para um canto, meteu-se na banheira e

começou a ler Venus Afflicted.

A autora - como era possível tratar-se da mesma jovem

morena que conhecera de manhã? -, logo no prefácio, fazia

questão de deixar bem claro que o livro trataria de nomes e

datas, factos e números, coisa muito ao gosto de Winter mas

a partir de certo ponto o prefácio começou a referir

Thorne Blackburn como destacada figura do Ocultismo do

século XX, como se aquela espécie de contos de cavaleiros e

dragões fosse coisa de levar a sério.

Pôs o livro de lado e pegou na caneca de chá, para o qual

olhou com não menor desconfiança. Era vermelho retinto,


próximo do vinho da Borgonha, e emanava um aroma

silvestre, quase maresia, que Winter achou paradoxalmente

apetitoso. Ao paladar ia bem com o mel - aliás, deu-se conta,

era o mesmo chá que o Dr. Palmer lhe servira no Instituto;

depois de sorver uns golinhos, acabou por perceber a

insistência de Tabitha para que o adoçasse com mel. Com

açúcar simples teria um gosto deplorável.

Winter recostou-se na banheira, a saborear o banho que a

aquecia por dentro e por fora, deixando as ideias vogarem

livremente. Aquela sua atitude de rejeição desdenhosa de

Thorne Blackburn, ainda há pouco, não teria o seu quê de

criança medrosa armada em valente? Já que tinha de suportar

poltergeists, melhor seria talvez que levasse mais a sério

semelhantes livros. Voltou a pegar em Venus Afflicted; por

muito que lhe desagradasse, desta vez Winter começou a

sentir-se crescentemente atraída pela biografia de Thorne

Blackburn.

Felizmente não havia muita matéria - pelo menos nos

capítulos iniciais - particularmente difícil de engolir. Algumas

63
passagens falavam da Tradição Ocidental dos Mistérios, outras

de pessoas com nomes do género Dion Fortune e Aleister

Crowley, outras ainda do início de carreira de Thorne

Blackburn como leitor de sinas em Nova Orleães; quando deu

por ela, o quarto de banho estava às escuras, o chá tinha

acabado e o banho estava frio. Sentiu-se bem como não se

sentia há muito tempo.

Saltou fora da banheira, enrolou-se num toalhão branco e

pôs-se a barafustar contra um adversário invisível.

«Ganhaste os primeiros assaltos - mas só porque me

apanhaste desprevenida. Agora que estou em guarda, sejas lá

tu o que fores, se julgas que vou baixar os braços e dar-me por

vencida, estás muito enganado. Hei-de vencer. Hei-de

sobreviver. Hei-de voltar a ser o que era... fosse o que fosse.»

Como que desprezando tão solene voto, estas horas de

acalmia estenderam-se por mansos dias, e por fim uma semana

inteira passou sem sobressaltos à vista.

A biblioteca da Faculdade de Taghkanic fora construída

numa época em que a grande moda era imitar os Ingleses, de

modo que os apontamentos e anotações de Winter se

encontravam espalhados numa sala que muito lembrava as


salas de estudo de Oxford. Light entrou de rompante na sala

de leitura principal, passando por uma parede rasgada de finos

arcos góticos; daí, uma escada de ferro em caracol dava acesso

ao piso superior da biblioteca.

Diante do lugar onde Winter se sentava, havia um enorme

quadro pardacento, a óleo, pendurado nos painéis vieux

chêne da parede; figurava um homem de aspecto severo, em

trajes vagamente puritanos. Por curiosidade, Winter tinha ido

ler a placa que identificava o retratado: um tal Jurgen

Lookerman, fundador original da Universidade.

A sua Universidade.

Perante um enigma que ela sabia como resolver - o seu

passado obliterado -, armara-se de uma teimosia determinada

que não admitia falência. Tinha de reconhecer, porém, que

progredia a passo exasperantemente passeiro. Winter

deambulara pelos terrenos da Universidade até os pés lhe

64
doerem e todos os seguranças a conhecerem pelo nome.

Bisbilhotara as salas de aula, as reuniões de estudantes, os

dormitórios, à procura da centelha que alumiasse a memória.

Na secretaria tinha confirmado a sua passagem pela

Universidade; lá estava uma pasta com os seus dados pessoais.

Encimava agora uma pilha de anuários da Universidade de

Taghkanic e uma pasta com um maço de fotocópias do The

Angulus, o jornal dos estudantes.

Ela escrevera poemas, noutros tempos. Sim, e até os

publicara naquele jornal. A maior parte deles era bastante má

- os costumeiros dramas umbilicais do final da adolescência

-, mas pelo meio encontravam-se alguns bastante aceitáveis.

Aquela rapariga poderia ter-se feita poetisa passavelmente

competente - se tivesse sobrevivido.

«Não armes em idiota», censurou-se Winter, decidida a

reprimir infantilidades. Aquela rapariga era ela própria - dera-se

ao trabalho de verificar que não tinha existido outra Winter

Musgrave inscrita na universidade em 1981 - e os poemas,

gostasse ou não deles, eram obra sua.


«E não estou morta. Pelo menos não me parece que

esteja.»

Entretanto, que acontecera àquela jovem poetisa

inflamada, que frequentara Artes e Inglês, totalmente

indiferente à necessidade de ganhar a vida depois do curso? E

que participara no Grupo Dramático para desempenhar o

papel de Julieta, e que acompanhava badaleiros errantes à

guitarra? Winter nem sequer possuía uma guitarra... até ao

momento em que se vira retratada nas páginas do The Angulus

nem sequer suspeitava ser capaz de tocar.

«Isto é um disparate. Não é normal. Há aqui qualquer

coisa que não bate certo.»

Winter tinha pesquisado afincadamente nos últimos dias.

Todos os livros consultados lhe diziam que este tipo de

amnésia não era desconhecido, todos concordavam tratar-se

de uma reacção histérica a um choque emocional.

Ora isso não fazia sentido. Tivera uma óptima vida. Se não

tivesse passado por Fall River, talvez receasse sofrer de tumor

cerebral; mas a clínica tinha-lhe feito testes sobre todas as

65
possíveis causas físicas dos seus problemas antes de admitir o

seu internamento.

Ela era - mais ou menos - jovem, saudável e rica.

Então qual era o problema?

Winter regressou aos livros, com um suspiro. Voltava à

escola em diversos sentidos. A mesa estava coberta de livros;

além das cópias dos anuários escolares, havia livros de

psicologia, parapsicologia e outras logias que poderiam ser-lhe

úteis.

Dera por si a ler outras obras acerca de Thorne Blackburn,

na tentativa de entender como podiam outras pessoas

normais crer, sem provas, em coisas que ela, mesmo perante

as provas, ainda recusava acreditar. Era verdade que

continuava a encontrar portas e janelas destrancadas na

quinta, mas a Primavera corria amena, o bom tempo e o calor

permitiam estar em casa de janelas abertas - por outro lado

ainda não confiava suficientemente na sua própria memória,

de modo que nunca sabia seguramente se fechara e trancara

uma janela ou se se esquecera pura e simplesmente. As


chávenas de Centering Tea ao deitar garantiam-lhe um sono

repousado, e como os animais mortos não tinham reaparecido,

não lhe custava viver na dúvida. Entretanto, continuava em

busca de respostas para as outras questões.

Winter descobriu que a Universidade de Taghkanic

possuía uma das maiores colecções de ocultismo e magia, e a

maior colecção blackburniana de todo o Mundo; o que era

natural, tendo em conta que a filha de Thorne Blackburn

trabalhava ali, mas...

- Olá, Winter - disse uma voz familiar.

Winter olhou para cima. Dylan Palmer tinha-se postado ao

lado da mesa com uma braçada de livros ao colo.

- O arquivista da biblioteca disse-me que um dos livros

de que eu preciso hoje está nesta mesa; afinal, é você que o

tem. Que tal correm as coisas? Sente-se melhor?

- Oh, sim, bem - disse Winter com algum acanhamento.

- Qual deles é? Qual dos livros, quero eu dizer.

- Ha’ants, Spooks and Fetchmen, de Nicholas Taverner;

é um livro sobre os poltergeist dos Apalaches. - Sem se fazer

66
rogado, o Dr. Palmer pousou os livros num canto livre da mesa

e sentou-se.

Winter vasculhou a pilha de livros até encontrar o título

que o Dr. Palmer indicara. De todos eles, o livro de Taverner

era dos mais antigos - 1924, ela recordava-se da data - e

tratava sobretudo de folclore, embora também mencionasse,

de passagem, uma família de poltergeist Ozark. Não parecia ter

grande relação com a actual situação de Winter, mas ela arrebanhava

tudo o que lhe passava ao alcance.

- Aqui está ele - disse Winter, estendendo-o ao Dr.

Palmer, desejosa de que ele desaparecesse. - Desculpe a

minha brusquidão de há dias, quando disparatei consigo. É

que tinha andado sujeita a uma grande tensão. Espero que me

perdoe.

Ele pegou no livro mas não fez qualquer movimento de

despedida. - Não fez nenhuma marcação para voltar ao

laboratório - disse ele.

Winter sentiu-se corar, como uma criança apanhada em

falta.
- Decidi não ir.

- Ah - o Dr. Palmer ficou um momento a matutar. Importa-se

de me explicar porquê?

- Não me pareceu que valesse a pena. Truth (a senhora

Jourdemayne) disse que a coisa passaria por si mesma, e tudo

o que eu tenho lido aponta no mesmo sentido, por

conseguinte não vejo qual seria o interesse de deitar o Tarot e

espreitar para dentro de bolas de cristal em nome da ciência.

- Estou a perceber. - Winter ficou aliviada ao ver que o

Dr. Palmer não parecia ofendido com a sua explicação. - E

que tal vai o outro assunto?

- Perdão?

- A investigação das suas raízes - o Dr. Palmer deu uma

palmadinha no monte de anuários.

- Ah - este novo tema, embora pesado, era mais

seguro. - Tenho encontro marcado com o professor Rhys às

duas e meia.

- Foi aluna dele?

- Era o meu orientador de curso - disse Winter. 67


Pareceu-me boa ideia encontrarmo-nos para falar dos velhos

tempos.

- Dos quais ainda não se recorda - sugeriu o Dr. Palmer

com implacável perspicácia.

- Eu lembro-me... de algumas coisas - protestou

Winter. «Como de um sonho que tenha tido há muito tempo.

Mas pelo menos nesse sonho eu via-me feliz.» - Como é

possível que uma pessoa esqueça o seu próprio passado? desabafou

ela com desalento.

- Muita gente gostaria de fazer o mesmo - disse o Dr.

Palmer. - Talvez seja uma sorte.

«Ou talvez não», pensou Winter.

- Tenho a certeza que hei-de recuperar - disse ela,

pondo na frase um inequívoco tom de despedida.

O Dr. Palmer entendeu a mensagem. - Bem, nesse caso

boa sorte. E se precisar de alguma coisa, Winter, lembre-se de

que tem aqui amigos. - Pôs-se em pé, ao mesmo tempo que

juntava o livro de Taverner à sua colecção.

- Obrigada - disse Winter com todo o formalismo. - É


muito simpático da sua parte.

Ficou a ver o Dr. Palmer afastar-se, e por um instante de

vulnerabilidade apeteceu-lhe voltar a chamar o Dr. Palmer. Ele

fora a cortesia em pessoa - talvez pudesse ajudá-la.

Não. Ela não precisava da ajuda de ninguém. Fosse o que

fosse que houvesse a fazer, podia fazê-lo sozinha. Consultou o

relógio. Reuniu as suas coisas e levantou-se.

O gabinete do Prof. Rhys situava-se num dos edifícios

mais antigos da Universidade - na verdade, porém, a

Universidade não beneficiava de novas construções desde a II

Guerra Mundial, pelo que todos os seus edifícios eram mais ou

menos antigos.

Ao atravessar o complexo universitário, Winter sentiu-se

como «em família». O último ano fora apenas um sonho mau e

o seu regresso a este lugar onde a sua pessoa desconhecida

vivera dias felizes devia obedecer a uma lógica qualquer.

A passo, pelos campos, Winter remoeu a ideia de que não

era apenas o último ano que teria de ser apagado. Tinha

68
dedicado os últimos dias à busca vã dos vestígios da mulher

que tomara o lugar daquela adolescente que escrevia poesia e

tocava madrigais, mas continuava a não ser capaz de imaginar

que caminhos tinham levado a adolescente a transformar-se na

Winter Musgrave que ela conhecia.

«Mas ela existiu. És tu. Que importa não consigas imaginá-la?

- nunca foste assim tão fantasiosa.» De repente, enervada,

afastou a ideia insolente de que a escrita de poesia e música

requeria imaginação excepcional, e subiu as escadas do

edifício do século XIX onde marcara encontro.

O sol de fim de tarde luminosa derramava-se pelas janelas

ao fundo do longo corredor e de algures vinham os familiares?

- cheiros a pó, maçãs e verniz envelhecido.

Espreitou as portas envidraçadas sucessivas e anónimas, sem

saber qual delas lhe interessava. O professor Rhys dera-lhe o

número do seu gabinete, mas não se via nenhum número nas

portas.

- Seja bem-vinda, minha cara, seja bem-vinda.

Winter, que se colara ao vidro da porta seguinte para


espiolhar melhor e acabara de descobrir os números em

bronze - enegrecidos de zebre e confundidos com o verniz

da madeira -, saltou de susto, com um grito agudo.

Da parede oposta, um homem com perfeito ar de

professor, meio debruçado para fora de uma porta, acenava-lhe.

- Professor Rhys?

Ele não estranhou a pergunta - era natural que os

reflexos do vidro não a deixassem ver bem. Mas na realidade

Winter estava a vê-lo muitíssimo bem; era a burra da sua

memória que se escusava a debitar qualquer parcela, de tal

forma que Winter ficava com o sentimento, pior que não

reconhecer um lugar ou uma coisa, de já os ter conhecido e

depois esquecido.

- Sim, sim - a voz era expansiva e vagamente inglesa.

- E a senhora deve ser a Winter; mas que prazer.

Winter aproximou-se hesitante. O professor Rhys sorriu

- um rosto bonacheirão, um querubim de cabelos

embranquecidos, poucos centímetros mais alto que ela.

69
- Mas que felicidade, ter a sorte de me encontrar com

uma antiga aluna. Ora entre, venha contar-me por que

caminhos andou. Afinal fez carreira teatral ou ficou pela

pintura?

- Afinal, nem uma nem outra - Winter teve de engolir

em seco, com a atrapalhação, mas obrigou a voz a harmonizar-se

com o tom alegre e cordial dele. - E o Professor, como tem

passado?

Seguiu o professor Rhys até ao escritório. A sala ficava na

esquina do edifício, com janelas de ambos os lados e uma

pequena lareira na parede que dava para o gabinete vizinho.

Sim, era verdade; todos os gabinetes do rés-do-chão

tinham lareira; era uma das características invulgares daqueles

edifícios.

Contente por ter obtido uma pequena parcela do seu

passado, Winter sorriu para o professor Rhys.

- Como tenho passado? Oh, sabe como é a vida

académica: momentos de puro terror entremeados com anos

de fastio. Mas faça o favor de entrar e sentar-se - retirou da


ponta do sofá de cabedal um monte periclitante de revistas e

ofereceu-lhe o lugar.

Winter instalou-se, a observar a sala inundada de luz. O

escritório correspondia fielmente à ideia fantasiosa que ela

tinha da sala de trabalho de um professor sempre distraído: as

estantes embutidas nas paredes e apinhadas de livros e papéis,

tudo rodeado por muitos objectos avulsos e troféus; o capacho

da pequena lareira com azulejos estava completamente

escondido debaixo de pilhas de livros, diplomas emoldurados

e estranhos objectos difíceis de identificar. Era um lugar

acolhedor - um lugar onde as pessoas se sentiam em casa.

- Espero que já esteja melhor - continuou o Professor

-, embora deva dizer que não percebo porque é que estou a

falar disso como se tivesse sido ontem; já lá vão uns quinze

anos, não?

- Eu saí antes do fim do último ano - disse Winter,

como se fosse responder à pergunta tácita. Apercebeu-se de

que errara em ir ali. O professor Rhys não sabia que ela não se

recordava dele nem dos anos de escola; aliás, como poderia

70
ele dar-lhe as respostas desejadas, se ela própria não tinha

coragem para fazer as perguntas?

- Mas com certeza que depois lhe mandaram o diploma

- disse o professor Rhys em tom afirmativo.

«Será que mandaram?»

- Professor, será que poderia contar-me...

- Ah, Johnnie, já chegaste - era a voz de alguém que

entrara por ali dentro sem se dar ao trabalho de bater à porta,

como se estivesse no seu próprio gabinete e não no de John

Auben Rhys.

Lion Welland era, em muitos aspectos, a antítese física do

professor Rhys. Alto e seco de carnes como uma garça-real a

cabeleira loura armada em juba, um pouco ao jeito dos

empresário de outros tempos -, a idade dera-lhe uma fronte

shakespeariana, coroada por um espaventoso tufo de cabelos.

Vestia uma camisa de colarinho aberto e punhos franceses, e

um lenço de seda enrolado no pescoço à Ia apache.

- Winter, deve lembrar-se do Lionel

Welland; é ele que


dirige o grupo de teatro, agora. Lion, apresento-lhe Winter

Musgrave, minha antiga aluna.

- Muito prazer - disse Lionel, lacónico e distraído. Johnnie,

meu querido amigo, nem vais acreditar no que os

babuínos da Administração fizeram desta vez - debruçou-se

sobre o professor Rhys, pôs-lhe a mão no ombro e baixou o

tom de voz para um murmúrio enraivecido.

Em suma, Lionel era a perfeita figura da prima-dona

teatral, sendo evidente, pela intimidade com que se debruçava

sobre o outro homem, que ele e Rhys formavam um

casal.

«Devia haver um lugar especial para esta gente, onde as

pessoas decentes não fossem obrigadas a assistir a semelhantes

cenas!» Este repente de repulsa primária, espontânea, pareceu-lhe

estranho, como se tais sentenças não pertencessem à

verdadeira Winter. O pensamento fê-la sentir-se suja e decaída

na opinião que fazia de si mesma.

Teria a jovem que ela fora pensado e sentido tais coisas?

Winter tinha quase a certeza de que não. Ao desagrado seguiu-se

a sensação de desorientação.

71
- É um prazer voltar a encontrá-lo, professor Welland disse

Winter em tom tão verrumante que Rhys deu uma

casquinada.

- Bem feito, para aprenderes a não ser malcriado disse

ele.

Lion dirigiu-se a Winter, de mãos estendidas.

- Peço-lhe perdão pela sem-cerimónia. Nós, as pessoas

do teatro, temos certa tendência para viver num mundo à

parte... se não nos chamarem à ordem - acrescentou em tom

sombrio.

- A Administração insiste em que ele cobre o Festival de

Shakespeare, em vez de pedir uma subida de orçamento esclareceu

o professor Rhys.

- O problema é que o teatro devia ser encarado como

uma actuação ... e não como uma cobrança - queixou-se

Lionel. - É uma coisa de que toda a gente gosta ... aliás, você

fez uma Portia deliciosa no seu tempo, Winter.

«A compaixão não olha a quem», citou Winter mentalmente.

- Obrigada - disse ela com sinceridade. Ultimamente


não tenho tido oportunidade de representar. «A

não ser que toda a minha vida tenha sido uma encenação. O

Mundo é um palco onde toda a gente, menos eu, tem papel

principal.»

- Bem, nem todos podem ser como Hunter Greyson confortou-a

Lion. - Como está o Grey? Continuam em

contacto, não é verdade?

«Hunter Greyson. Grey.»4 A dor de cabeça estalou como

um relâmpago de trovoada seca, e a criatura de carne e osso

que a sustentava ergueu-se do sofá.

- Então, Lion, nem dás a Winter a oportunidade de abrir

a boca. Nem toda a gente continua a vida inteira em contacto

com os colegas de faculdade.

- Vocês continuam? - as palavras saíram da boca de

4 Como todos os personagens cruciais do livro, a escolha do seu nome obedece a


regras

de paronímia e homofonia inerentes à lógica da língua inglesa. Neste caso


Hunter Greyson

conota-se com um lugar (Greyangels), um tipo de entes (Anjos Cínzeos) e um


conjunto de

acções recorrentes na narrativa (caça, perseguição e busca). (N. do T.)

72
Winter como um grasnido rouco. - Continuam a ver o Grey?

- Rasgos atormentadores do passado dançaram na ideia de

Winter; era mais uma impressão caleidoscópica do que

verdadeiras memórias.

O vaso que estava em cima do capacho da lareira

começou a balouçar.

Grey. Cabelo louro - platinado - caído, descolorido apanhado

num fino rabo-de-cavalo; a severidade do estilo dava-lhe

uma expressão de pureza de anjo do dia do juízo final até

ao momento em que se riu. E a partir de então Grey

tornava-se numa espécie de anjo completamente diferente;

ele...

Começaram a ouvir-se uns estalinhos - como o som do

vidro quando arrefece de súbito, imediatamente antes de se

partir.

Todos eles tinham continuado a seguir Grey - o alegre, o

divertido Grey - no que quer que lhe tenha despertado o

interesse. Ela tê-lo-ia seguido até ao fim do mundo; ela...

A dor de cabeça crescera até se transformar num


relâmpago cáustico que lhe queimava a cabeça por dentro.

Mas mesmo o rumor do sangue a latejar-lhe nos ouvidos não

conseguia abafar aquele som que encheu a sala - todos os

pisa-papéis e troféus das estantes vibravam e tiniam.

Ouviu-se um estalo. Era um objecto frágil que tinha

avançado até à berma da respectiva prateleira e se estatelara

no chão.

- Que raio se está a passar? - espantou-se Lion.

Ia ser um grande desastre se ela continuasse ali.

- Winter? - chamou Rhys.

- Eu... peço desculpa. Ultimamente não tenho

andado em mim. É que as coisas mudaram tanto e eu não

consigo acostumar-me a que às vezes as coisas aconteçam e

depois...

Ela bem sabia que estava a balbuciar, mas as palavras

continuavam a tropeçar umas nas outras. Tacteou com o pé

freneticamente à procura da malinha, como se o acto de a

segurar a agarrasse igualmente à realidade.

- Tenho de sair.

73
Havia uma atmosfera de tempestade na sala; ambos os

homens se tinham posto em pé.

- Tenho de sair - repetiu ela.

- Winter, posso... - disse Rhys.

- Não se aproxime! - gritou Winter, e o quadro ao lado

do capacho caiu. O mundo toldou-se de uma névoa de fogo

pálido e Winter não quis ver mais. Fugiu, sem que ninguém a

detivesse, desta vez.

74
CAPÍTULO QUATRO

QUEM PORFIA MATA CAÇA

I read, much of the night, and go south in the winter:

And I will show you something different from either

Your shadow at morning striding behind you,

Or your shadow at evening rising to meet you

I will show you fear in a handful of dust.1

T. S. ELLIOT

«Deste bela conta da situação», repreendeu-se Winter

amargamente, sustendo os vómitos enquanto procurava na

mala os lenços de papel. Limpou a boca, com um arrepio de

desagrado. A dor aguda amainara numa moinha, embora,

mesmo assim, ainda tivesse força suficiente para lhe provocar

lágrimas sem razão. Apoiou-se à parede do velho lagar de cidra

- agora ocupado pela associação de estudantes e quartel

general do The Angulus -, a recobrar o fôlego e tremendo da

cabeça aos pés pelo esforço inusitado.

«E eu a pensar que tinha melhorado. Quase uma semana

inteira sem ataques psicóticos. Que estupidez a minha!»

Devia ter sido por causa daquela sala, da atmosfera pesada


- a tensão de querer recordar certas coisas deve ter provocado

o ataque de pânico.

O ataque de pânico.

Tinha sido exactamente isso.

Um ataque de pânico.

Estas coisas aconteciam nos edifícios antigos - até os de

Nova Iorque abanavam -, bastava que alguém na sala ao lado

ou no andar de cima desse uma forte pancada na parede, tanto

1 Leio, noite fora, e singro a sul no Inverno. / E hei-de revelar-vos uma coisa,
seja ela / A

vossa sombra pela manhã asinha, / Ou a vossa sombra pela tarde agigantada /
Hei-de

mostrar-vos o medo num novelo de poeira. (N. do T.)

75
bastaria para mandar o quadro ao chão. O mesmo devia ter

acontecido com o vaso. O resto fora apenas histeria descontrolada

e autocompaixão.

Pura e simplesmente, mais um ataque de pânico. Fora o

que a obrigara a dar entrada em Fall River, não é verdade? Ora

os ataques de pânico não têm nada de sobrenatural.

Um ataque de pânico. Nada mais. Quanto ao resto, os

gatos passam o tempo à caça dos pombos e, sem dúvida, dos

guaxinins - aliás, parece que também havia coiotes por aquelas

bandas, parecia-lhe que lera assim no jornal da terra, e se

não lera, podia ter lido...

A lógica destas considerações amainou-lhe o torvelinho

das ideias, como sempre acontecia, e a vontade de acreditar

no impossível. Só a chama do instinto de sobrevivência continuava

a brilhar.

«Quem era Hunter Greyson?»

Outra vez aquela sensação enervante de memória amputada;

era uma coisa entre o sonho e a fantasia mas que lhe escapava

das mãos sempre que estava preste a agarrá-la.


Ela tinha conhecido Hunter Greyson - bastante bem,

como era evidente, já que o seu supervisor universitário pensava

que eles, ao fim de tantos anos, continuavam em contacto.

E ele poderia ajudá-la, sem dúvida - era uma convicção que

não necessitava sustentar-se na memória. Tinha de encontrar

Grey...

Afastou-se do edifício em passo trôpego. Doíam-lhe todos

os músculos e ossos do corpo como se tivesse rebolado pelas

escadas abaixo, a cabeça continuava a latejar dolorosamente,

provocando explosões de luz nos olhos. O parque de estacionamento

ainda ficava longe - Winter duvidava de conseguir

chegar tão longe.

Olhou desconfiada para trás. Se queria encontrar Hunter

Greyson, o mais lógico seria começar pela associação de estudantes.

Mas só amanhã. De momento apenas desejava arrastar-se

para longe dali e esconder-se.

Levou uma eternidade a chegar a casa, sempre a guiar à

velocidade de caracol, mas a simples visão da velha quinta deu-

76
-lhe novas energias. Anjos Cínzeos, Greyangels. Seria o nome

da estrada ou das criaturas que o taxista dizia existirem nos

campos? Quando Tim Sullivan falara de Anjos Cínzeos, ela imaginara

espíritos guardiães da Natureza, sem carácter gentil ou

maléfico, conformes às emoções de quem os procurava.

A contragosto pôs de parte essa noção. Não existiam

neste mundo Pais Natais omnipresentes prontos a punir e

recompensar. Apenas existiam as pessoas, e a certeza de que

até as melhores intenções acabam por se reduzir a cinzas.

Uma vez dentro de casa, à melancolia seguiu-se um estado

de abstracção crescente; ao longo da tarde Winter saía de

quando em quando das suas divagações para descobrir, sobressaltada,

que o lava-loiças estava a transbordar, ou que a água da

chaleira ao lume se evaporara por completo - embora fosse

incapaz de recordar o que estivera a pensar minutos antes. Por

fim sentou-se na cadeira de balanço junto da lareira do salão,

ficou-se pasmada a fixar a noite, sem a mínima noção das horas

ou de como fora ali parar, e desistiu. Se aquilo era uma amostra

da rebelião inconsciente à qual o Dr. Luty atribuíra a origem de


todos os seus problemas, então ela estava disposta a dar-se por

vencida. Iria deitar-se. E deixar o Dr. Luty fazer o que muito

bem entendesse!

Mas a noite foi agitada por um sono inquieto, difícil de

conciliar, cheio de confusão e medo - e da sensação de fuga

desesperada da verdade. «Mas que coisa estúpida», pensou

Winter, entre dois sonos, «o que é que levará uma pessoa a não

querer conhecer a verdade?»

Até que ponto esse conhecimento poderia ser maléfico?

Após uma sucessão infindável de falsos despertares e lutas

contra o sono, Winter abriu os olhos ébrios. O quarto era iluminado

pela luz fria da madrugada. A cama estava num torvelinho

de lençóis e cobertores retorcidos. A dor de cabeça desaparecera,

deixando um curioso vazio exausto, uma espécie de

febrão vencido.

Virou-se para acender a luz e sentiu uma pontada lancinante

na coxa. Ao buscarem suavizar a dor, os seus dedos


esbarraram num objecto fino - um lápis? Agarrou-o e inspeccionou

a ferida. Uma simples esfoladela; nada de grave, mas

não lhe pareceu que tivesse trazido o lápis para a cama.

Acendeu a luz e olhou derredor, tiritando ao frio matinal

- não conseguira acender a salamandra na noite anterior.

Descobriu que não só trouxera lápis mas também papel; reconheceu

o bloco de notas da cozinha que utilizara para fazer a

lista de compras dias antes.

Abriu-o - e pasmou ao descobrir que todas as páginas

estavam escritas de alto a baixo, em letra trémula e insegura,

garatujada, quase ilegível.

Nomes e mais nomes, fieiras de nomes, como se fossem

apontamentos de jornalista louco e desesperado. Janelle Baker,

Cassilda Chandler, Ramsey Miller, Hunter Greyson.

Conhecia-os. Eram seus amigos - foram. Tinham ido juntos

para Nuclear Lake...

Esquivas lembranças - finalmente - deixaram-se agarrar.

O cabelo ruivo de Janelle. A cabeleira loura desgrenhada

de Cassie; parecia uma Lhasa Apso demente. Ramsey tinha...


Mas a memória voltou a esvair-se; as imagens, desfocadas

em brumas, deixaram-lhe apenas a certeza de aquelas pessoas

serem reais, de conhecê-las.

«É apenas um sonho incongruente», tentou ela convencer-se.

«Síndrome de falsa memória, como é vulgar ver nos noticiários

- as mais das vezes descobre-se que as chamadas memórias

recuperadas são afinal fantasmas que a mente criou sob o

efeito do stress. Estiveste a ler os anuários da escola; mesmo

que se trate de verdadeiros nomes de alunos de Taghkanic, é

natural que os tenhas tirado da leitura dos anuários. Por muito

reais que possam parecer, não são. Não podes confiar na tua

memória, depois de tudo o que te aconteceu.»

Mas ela era a sua memória! Winter enfureceu-se contra

aquela voz interior tão bem comportada. «Quem será por mim,

se não eu própria?»

Não lhe parecia que pudesse confiar na insistente voz

interior que a conjurava a rejeitar tão evidentes provas. Aquela

vozinha não faria nada, não diria nada que a levasse a aceitar o

irracional, a normalidade do que é anormal; os vidros voadores

78
e os animais esfacelados não tinham nada a ver com ela; uma

voz feita de quietude, subterrânea, que preferia que ela fosse

um monstro e se recusava admitir a existência de coisas tão

simples como van poltergeist.

Não podia confiar nessa voz.

«Pois sim, venham cá falar-me na necessidade de encarar

as nossas paranóias mais profundas...», tartamudeou Winter,

desesperada.

De momento preferia confiar no instinto que lhe dizia

para não confiar. Acreditaria na veracidade das pessoas que

tinha visto em sonhos, bem como na sua amizade. O melhor e

o pior dos amigos - e dos amantes. Daqueles que possuíam a

chave do seu passado.

Um passado que deveria reclamar... para sobreviver.

- Alguma vez ouviste falar de um lugar chamado lago

Nuclear?

Prática por natureza, Winter iniciou o seu inquérito na

associação de estudantes, procurando nos velhos ficheiros

colegas do curso de 82 - talvez conseguisse lembrar-se de


algum.

- Lago Nuclear? Há anos que não me lembrava do lago

Nuclear.

Nina Fowler era baixota, rechonchuda e bonita, sardenta

e de olhos castanhos. Funcionária a tempo inteiro da associação

de estudantes, encarregada do secretariado e do arquivo

histórico da associação, nas últimas semanas habituara-se à

presença e aos sucessivos pedidos de Winter - e quase sempre

conseguia satisfazê-los, de uma forma ou doutra.

- Costumávamos ir para lá, quando éramos mais novos.

Nina interrompeu a busca nos arquivos e ficou a olhar

para ontem. Logo à primeira vista Winter classificara-a como

«uma dessas mulheres que caem no deixa-andar», sem se perguntar

a razão de ser do impulso natural que levava Nina a

subestimar-se. Agora, porém, o instinto de sobrevivência impelia-a

a desacreditar o imediato desdém que dedicava a todos os

seres humanos que se atravessavam no seu caminho, e a

reconsiderar julgamentos apressados.

79
Que mal tinha Nina Fowler? É verdade que não estava vestida

de Chanel nem usava maquilhagens caras, mas desde

quando é que as roupas da moda ou a falta delas modificavam

o fundo das pessoas? Quando é que Winter começara a julgar

os outros pelo custo da roupa?

- Também eu - disse Winter, a sorrir.

- Era um lugar de arrepiar - disse Nina, a rir. - Devia

ser por isso que lá íamos! E também para ver se tirávamos

nabos da púcara; é um lugar do outro mundo, não é? Costumávamos

contar histórias uns aos outros acerca das investigações

científicas que lá se fizeram nos anos 70, e das horríveis

experiências que entraram em descontrolo, até o Governo

mandar fechar aquilo.

- Experiências nucleares? É por isso que lhe chamam

lago Nuclear? - perguntou Winter.

Nina pôs-se séria.

- Não estou bem certa da razão de se chamar lago

Nuclear; mas é o que toda a gente pensa. Tentei tirar o assunto

a limpo: nos mapas chama-se lago Haelvemaen, o que foi uma


grande surpresa para mim! Nem sei se ainda é propriedade privada;

começou por ser uma pequena propriedade encaixada

nas terras do Estado; passou a propriedade privada por intermédio

de uma pessoa qualquer de Albany, provavelmente um

figurão importante.

Haelvemaen. Expressão holandesa que significa «Meia

Lua», nome do galeão em que Henrik Hudson navegara pela

primeira vez no rio que viria a ser conhecido pelo nome de

Hudson, há cerca de 400 anos.

Nina regressou às suas fichas.

- Ora bem, consegui encontrar três dos nomes que me

pediu: Baker e Miller constam; receberam as nossas cartas e

dizem que não se importam de dar as respectivas moradas.

Chandler tem uma anotação de «paradeiro desconhecido»,

com último endereço em Berkeley. Também lho posso dar, se

quiser. Quanto a Hunter Greyson, não encontro qualquer indicação.

- Obrigada, Nina, ajudou-me imenso. Mas não consegue

descobrir mesmo nada acerca de Hunter Greyson?

80
Nina acenou um pequeno molho de fichas entre os

dedos.

- Sabe como é: as pessoas mudam-se e esquecem-se de

notificar o novo endereço. - Pousou as fichas na mesa, em

frente de Winter, como se fosse ler-lhe a sina.

«O Louco. O Enforcado. A Sacerdotisa» - a voz ecoou aos

ouvidos de Winter por um breve instante; depois o momento

de desorientação passou.

Janelle e Cassilda e Ramsey. Winter tirou da bolsa o bloco

de notas e a caneta Cross dourada e curvou-se sobre o balcão

para poder escrever.

- Estava a pensar em lá ir hoje - disse Winter enquanto

escrevia. - Ao lago Nuclear, quero eu dizer. Mas depois do

que me contou, começo a duvidar que o meu carro aguente.

Foi Kelly, o dono da garagem, que me emprestou o carro

dele...

Nina ululou de riso.

- Ah, aquele calhambeque! Eu costumava chamar-lhe

«no vá», que em espanhol quer dizer «não anda». Fui eu que o
impingi ao Dave! Não, é melhor ir comigo, quanto a isso não

há dúvida. Olhe, o estudante que me substitui chega ao meio-dia;

quer lá ir a seguir ao almoço?

- Com certeza - disse Winter.

É muito mais interessante passear numa cidade desconhecida

na companhia de quem a conhece bem. Com Nina

Fowler, Winter descobriu um pequeno restaurante vegetariano

escondido por detrás de Bread Alone, a padaria onde ela tinha

ido na sua primeira visita à cidade.

A sala de jantar do Vegetable Love situava-se num pátio

aberto; só a cozinha e o bar de sumos ficavam portas adentro.

O pátio era de tijoleira e tinha mesas de esplanada. Havia ainda

umas arcadas de alumínio e um toldo enrolado que permitiam

o funcionamento em dias de chuva, mas não pareceu a Winter

que o lugar fosse muito frequentado no Inverno. Mencionou a

questão a Nina.

- Oh, não! É maravilhoso no Inverno; eles colocam aquelas

lareiras portáteis nos cantos, fica óptimo! Tem de vir cá ver.

81
- Hei-de vir. - «Se ainda estiver viva.» Donde lhe viria

esta convicção de, ao contrário das pessoas que a rodeavam,

se achar em perigo iminente? Mesmo sendo justo, este sentimento

actuava nela como algo alheio. Seguiu Nina por entre as

mesas do pátio apinhado.

Obviamente, o Vegetable Love era uma tertúlia universitária,

cheia de estudantes vestidos de flanela, ganga e licra - um

tipo de gente desmazelada, sem classe, que costumava irritá-la.

Mas desta vez, mal sentiu a sua reacção negativa despontar, forçou-se

a encará-la friamente. Não encontrava motivo plausível

para o desprezo que a roía por dentro, a não ser o distanciamento

intencional em relação a um grupo de pessoas que, de

resto, não podia ser assim tão mau.

Como sempre acontecera. O resultado era o isolamento

de tudo o que não correspondesse a um conjunto extremamente

limitativo de pressupostos. Em última instância, um dia,

acabaria por se encontrar completamente sozinha.

Sozinha. Indefesa.

Haveria qualquer coisa dentro dela própria que a forçava


a tomar esta atitude? Que a perseguia?

Nina escolheu mesa num canto mais sossegado, porque,

por muito tolerante que fosse e por muito que lhe agradasse o

lugar, não queria ser pisada pelas Doc Martens, derradeiro símbolo

da revolta juvenil, e porque as restantes mesas se acotovelavam

alegremente.

- Que multidão! - disse Nina, enquanto se sentava. Mas

eu continuo a gostar muito deste sítio. Lembra-se de quando

abriu?

Winter sentiu o medo recrudescer e depois extinguir-se,

quando Nina respondeu à sua própria pergunta:

- Oh, desculpe, é claro que não pode lembrar-se, você é

do curso de 82 e Veg só abriu o restaurante em 85 - e, com

um sorriso entusiástico, Nina dedicou-se à leitura do menu.

«Salva», pensou Winter com um mudo suspiro de alívio, e

por sua vez pegou no menu. Mas não podia continuar eternamente

a fingir - especialmente agora que estava constantemente

rodeada de situações em que toda a gente recordava a

respectiva adolescência, saltitando constantemente e sem qual-

82
quer dificuldade entre o Dantes e o Agora, graças às suas

máquinas mentais do tempo.

Talvez ela conseguisse recuperar. Naquele momento,

Winter sentia que, se lhe prestasse a máxima atenção e não a

espantasse, a memória dos tempos de escola estava ao seu

alcance.

Quase.

- Tem a certeza de que é este o caminho? - perguntou

Winter, nervosa, meia hora mais tarde. Ainda bem que tivera o

impulso de convidar Nina para aquele passeio. Sozinha dificilmente

teria dado com o desvio da estrada municipal n.º 4. A

estrada secundária - poucos quilómetros depois do desvio da

estrada de Greyangels - nem sequer estava assinalada, e, para

cúmulo, ao cabo de um quilómetro o alcatrão da estrada, já de

si muito estreita (nem dava para se cruzarem dois carros), pura

e simplesmente desaparecia.

- Não há outro caminho - disse Nina alegremente. Como

sou ervanária amadora, farto-me de percorrer os Angels

à procura de plantas. Há na cidade uma loja que vende chás de


plantas e Tabby anda sempre à procura de fornecedores; não

venho cá desde os meus tempos de estudante, mas conheço a

região bastante bem: não há outra estrada que vá dar ao rio.

Segure-se bem!

Acabado o troço alcatroado, seguiram por uma estrada de

gravilha, cada vez mais poeirenta e esburacada. Por fim Nina

carregou no travão e pôs o carro em ponto morto.

- Não quero ir mais longe com o carro; de qualquer

maneira o lago fica a menos de um quilómetro. Porque é que

não vai andando, enquanto eu tiro os meus apetrechos do

porta-bagagens, a ver se consigo colher alguma coisa por

aqui.

- Não sei quanto tempo vou demorar - disse Winter

com relutância.

- Oh, não se preocupe comigo! Quando me ponho a

passear pelo campo perco a noção do tempo. Se, quando

regressar, eu não estiver no carro, apite umas quantas vezes; se

for eu a primeira a regressar, vou eu à sua procura. Tem é de

83
prestar atenção ao sol, se não quer fazer o caminho de regresso

às escuras.

- Não devo demorar muito. Só quero dar uma espreitadela

ao lugar - disse Winter. Saiu do carro, dando graças à

ideia de trazer os Reebok, que lhe permitiam percorrer o carreiro

não só sem dificuldade, mas até com prazer. Ao fim de

poucos minutos de marcha o caminho fazia uma curva e

Winter perdeu o Honda de vista.

Era curioso, matutou Winter enquanto andava. Lembrava-se

de ver edifícios no lago Nuclear, e Nina dissera que tinha

existido ali uma espécie de laboratório. No entanto o caminho

que percorria pouco mais era do que um carreiro de cabras por

onde é que as pessoas levariam os carros quando iam ali

trabalhar? Nina dissera que não havia outra estrada para a propriedade

do lago Nuclear.

«Também disse que não vinha cá há muitos anos», lembrou-se

Winter. Tinha de haver outra estrada. Mesmo que o

acesso não fosse utilizado há muito tempo - vinte anos ou

mais? -, não era possível que uma estrada de duas faixas alcatroadas
desaparecesse pura e simplesmente em menos de um

século, sem deixar rasto.

Seria possível?

«Bem vistas as coisas, até que ponto é que posso dizer que

conheço mesmo a natureza da Realidade?», perguntou Winter

a si mesma com desconfiança.

E de repente viu o lago.

Não era muito grande. O carreiro por onde viera continuava

à volta das margens; naquela época do ano, os nenúfares

que atapetavam de verde as águas do Hudson ainda não

tinham florido. Winter conseguia ver o lago em toda a sua

extensão, rodeado de seixos redondos e algumas latas de Coca-Cola

de vez em quando os peixes saltavam na superfície

calma das águas. Reinava ali uma imensa serenidade; a água era

tentadora, embora demasiado fria.

Do outro lado do lago, um pouco mais para a esquerda,

distinguiu um edifício - o tal laboratório misterioso. Fazendo-se

forte - ainda se achava em péssima forma física, depois de

tantas semanas de cama e sem frequentar o ginásio três vezes

84
por semana, como costumava fazer dantes -, meteu pés ao

caminho.

Visto do outro lado do lago, o edifício parecera intacto;

fora construído no típico estilo do final dos anos 60, inícios de

70, sem contemplações para com a paisagem circundante,

como que suspenso no tempo, vindo de um futuro esterilizado,

integralmente composto de alumínio e fórmica. Mas quando

se aproximou, Winter notou que a perfeição do edifício era

ilusória. Por toda a parte havia garrafas vazias e embalagens de

comida, e as paredes estavam cobertas de grafitos pintados a

spray.

Sentiu-se revoltada e aliviada ao mesmo tempo. Como

ousavam as pessoas devassar terrenos que lhe eram tão caros?

Por outro lado, o facto de as pessoas frequentarem o lugar significava

que ele não estava infestado por qualquer coisa bizarra

ou perigosa.

Winter aproximou-se, revendo recordações ondulantes e

disformes, como calhaus vistos dentro de água. Estaria o edifício

mais degradado? Lembrar-se-ia mesmo de como ele era?


Observou-o com atenção. O bloco principal tinha mais dois

andares e o rés-do-chão estendia-se para a direita através de

uma galeria de ligação. A fachada principal era toda em vidro

- uma parede de janelas nuas, muitas delas cobertas de trepadeiras.

Outras estavam partidas, e Winter lobrigou um tapete

de folhas e lixo no interior.

Por um instante, lembrou-se de um sol, mais forte que o

presente, a abrasar-lhe os ombros - era Maio, quase Verão, ela

viera com alguns companheiros, como costumavam fazer

todas as semanas, para...

A memória e as suas certezas extinguiram-se, e Winter

praguejou baixinho. Se memória era personalidade, então a

dela ia e vinha como um vago sinal de rádio.

«Já chega.» O instinto dizia-lhe que já ali entrara, por conseguinte

iria entrar de novo. Talvez conseguisse desencantar

mais qualquer coisa - qualquer coisa a que pudesse agarrar-se.

85
A escadaria de cimento da entrada resistira à prova do

tempo; mesmo a porta principal, apesar de ser de vidro, permanecia

razoavelmente intacta, apenas deteriorada por uma

fresta de velhice. Quando Winter a empurrou, descobriu, surpreendida,

que rangia mas não abria.

Estava fechada.

«Isto é ridículo; nós os cinco passávamos o tempo a entrar

e a sair...»

Winter desceu a escadaria e foi rodeando o edifício a

passo lento. Noutros tempos existira uma faixa branca de seixos

quartzíticos entre a parede e o passeio. Mas o desgaste das

estações tinha estalado o cimento do chão e as tempestades

tinham carreado os seixos. Assim deverá apresentar-se o

mundo a quem um dia acorde para descobrir que o Homem

desapareceu da face da Terra. Um breve século, alguns movimentos

telúricos, tanto basta para que não reste vestígio da

espécie humana e suas apressadas construções.

Winter flanqueou todo o edifício, interrogando-se sobre a

utilidade daquela visita. Provavelmente misturara memória e


imaginário - a porta da frente estava fechada e não parecia

existir outra entrada.

Foi então que descobriu a outra porta.

Ficava nas traseiras do edifício - seria sem dúvida uma

entrada de serviço; quando Winter rodou o puxador, a porta

abriu com toda a facilidade.

Saiu lá de dentro uma baforada de ar viciado, bolorento.

Winter franziu o nariz e perscrutou a escuridão. «Devia ter trazido

uma lanterna.» Mas o dia era luminoso e o edifício possuía imensas

janelas - devia haver luz suficiente para uma rápida exploração.

Antes, porém, Winter procurou derredor até encontrar

uma grande pedra que mantivesse a porta aberta. E levou

outra, mais pequena, na mão, por via das dúvidas.

Depois embrenhou-se no interior.

Aquela parte do edifício devia ter servido de armazém ainda

havia prateleiras, agora carregadas apenas de pó, ao

longo das paredes e uns quantos bidões a um canto. O chão

era de cimento. À sua frente viu uma entrada (já sem porta)

que dava para o corpo principal do edifício.

86
Aí, a alcatifa parecia nova - aparentemente, as fibras artificiais

eram intragáveis aos microrganismos que devoram a lã e

a madeira, o couro e o linho. Mas as paredes estavam impregnadas

de humidade e nalguns sítios os painéis de revestimento

pendiam do tecto. Winter espirrou e voltou a espirrar - havia

por ali pó e mofo suficientes para esgotarem uma bateria de

testes de alergia.

Partindo da entrada de serviço, Winter conseguiu chegar

à entrada principal, onde se pôs a inspeccionar a porta de

vidro. Continuava a ser impossível abri-la; a porta tinha um

trinco que, mesmo do lado de dentro, só podia ser destrancado

com chave. Inspeccionou os cacifos no balcão da recepção,

na esperança de encontrar a chave, e surpreendeu-se ao topar

com canetas, clips, borrachas e blocos de papel, todos cobertos

de pó cinzento - não restavam dúvidas de que o edifício

fora simplesmente fechado e abandonado.

Mas não encontrou as chaves.

«Porquê? Porquê deixar todo o material nos cacifos como

se tivessem saído apenas de fim-de-semana? Talvez a Nina


tenha razão. Talvez se tenha dado aqui um acidente.» Winter

perscrutou derredor e por fim decidiu seguir para a esquerda,

ao longo do extenso corredor com paredes de vidro. «Curioso

laboratório; parece mais um edifício de escritórios do que um

lugar dedicado à investigação.»

«Mas que espécie de escritórios poderia haver num lugar

do fim do mundo? Isto é o município de Amsterdam, valha-nos

Deus!»

Winter experimentou todas as portas do corredor.

Algumas estavam fechadas. Outras davam para pequenos gabinetes

vazios com janelas altas e estreitas na parede oposta.

Uma delas não tinha janelas.

A porta era semelhante às outras, mas não podia servir de

escritório; era uma sala grande, com uma escada em caracol,

ao centro, aberta no chão, que desaparecia algures no piso

inferior.

«Que curioso, disse Alice», citou Winter para si mesma. O

pé da escada mergulhava em escuridão total; a obscuridade da

noite, em baixo, por oposição a luminosidade da tarde, em

87
cima. Mas ela pensou que os olhos se acostumariam à escuridão

quando lá chegasse; de qualquer modo, não se afastaria

das escadas.

«Só um idiota se lembraria de ir direitinho lá abaixo», disse

Winter para si mesma, sardonicamente. Agarrou o corrimão e

sacudiu-o, avaliando a sua solidez. Depois, sem pensar claramente

no que fazia, começou a descer.

«Afinal sempre era um laboratório.» Winter achava-se na

cave, numa sala iluminada por estreitas janelas que corriam

junto ao tecto. As janelas situavam-se ao nível do solo, onde as

ervas daninhas, juntamente com o pó, haviam reduzido ao

mínimo a entrada de luz. O ar cheirava a putrefacção e a míldio;

a ruína geral era ainda maior do que no andar superior, e a

tudo o mais juntava-se o cheiro de minerais húmidos ou barro

ou cimento molhado; frio e desagradável.

Ao contrário do que acontecia no balcão da recepcionista,

lá em baixo tudo o que era transportável fora retirado há

muito tempo - por iniciativa dos utentes originais ou de

ladrões -, mas as bancadas ao longo da parede com janelas e


as complicadas tubagens que davam para os contentores situados

por cima das bancadas eram prova bastante de que ali existira

um laboratório. Avançou um passo, afastando-se da escada,

e à medida que os seus olhos se adaptavam à penumbra a sala

revelou-se-lhe de forma mais clara e definida.

Os Reebok de Winter rangeram na areia. Olhou para baixo

e descobriu, meio delido, uma espécie de desenho pintado no

chão. Ao fim de tantos anos, as cores ainda tinham vida.

«O quê?...»

Um círculo. Alguém tinha pintado um círculo no chão não,

não era exactamente um círculo; era uma espécie de...

Havia um círculo dentro do círculo e uns quantos sinais entre

ambos, e dentro de tudo isso...

Sem pensar duas vezes no que fazia, Winter avançou para

o centro da sala. O círculo pintado estava rodeado de pontos

negros e Winter pôs-se a contá-los: três, cinco, sete, nove...

Não se tratava de marcas pintadas - eram marcas cáusticas,

parecia que alguma coisa estivera ali a arder.

88
«Velas.»

De repente veio-lhe um gosto metálico à boca e sentiu-se

presa de terror, como se um deus maligno tivesse instantaneamente

ligado um interruptor cósmico que mergulhasse o

mundo em horror. Deu meia volta; só conseguia pensar em

fugir dali.

Havia uma pintura na parede por detrás da escada. Não a

tinha visto - estivera sempre de costas para essa parede -,

mas os sinais aí inscritos destacavam-se muito bem contra o

cinzento da parede, e a súbita visão daquela pintura bizarra

abalou Winter como uma rabanada de vento.

«Vá lá, Cassie, dá-me isso, sim?», disse Ramsey. Mantinha o

castiçal erguido no ar e aproximou a luz. O resto dos utensílios

rituais já tinha sido disposto na mesa que estava por trás dele

e, claro está, cada um deles tinha trazido o seu próprio bastão

e punhal.

Cassilda estreitou-o ao peito, a rir-se e a fazer que não

com a cabeça. À luz mortiça da lanterna, o movimento fez

flutuar as mangas largas do seu vestido.


«Só quando o Grey chegar, Ramsey... por enquanto não

podes acender.»

«E quando é que ele vem? Ele disse que ia fazer-nos

uma surpresa. Oh, bolas... alguém se lembrou de trazer um

saca-rolhas?», perguntou Janelle, subitamente alarmada.

«É o que acontece a quem compra vinhos caros», disse

Winter, vasculhando na sua malinha Danish Bookbag. «O

Grey disse-me... ah, aqui está ele.» Meteu o saca-rolhas na

mão do amigo.

«Não foi caro, estava em saldo!», protestou Janelle.

«Tem rolha, não tem?», rematou Ramsey. «É sinal de que

é caro.» O pingente que usava ao pescoço brilhou à luz da

lanterna. «Sabes quais eram os planos do Grey, Winter?»

«Devia saber... passou a noite com ele», disse Cassilda

em tom de intriga.

«No QUARTO DELE?», perguntou Janelle, admirada.

«CASSIE!», lamuriou Winter, imitando o tom de voz das

amigas. «Será que uma pessoa já não pode ter segredos?»

89
«Só o maior dos segredos: o da Própria Vida!» A voz bem

colocada de Grey encheu a sala de ecos fantasmagóricos, intercalados

pelo ritmo das suas botas de pele de cobra a descerem

as escadas. «Companheiros e acólitos do Círculo Nuclear...»

No último degrau da escada tropeçou e caiu; viu a perna

sangrar, um lenho aberto na aresta de ferro da escada. As mãos

de Winter escorregaram nos ladrilhos do chão quando tentava

pôr-se de novo em pé, a fugir não sabia de quê.

«Como pude eu esquecer... como pode ela ter cometido

a estupidez de se esquecer? E agora talvez já fosse muito

tarde... era perigoso, terrivelmente perigoso, tinha de CORRER...»

«Não!» Winter voou para o átrio de entrada. Todo o seu

corpo tremia na luta por se manter calma, por se deixar ficar

onde estava enquanto podia distinguir a fronteira vermelha da

loucura agigantar-se no seu caminho.

Calma. Era preciso ter calma.

Respirou bem fundo, até sentir os pulmões a estalar, susteve

o ar até o mundo à sua volta adquirir uma luminosidade

crescente, e depois deixou-o sair muito lentamente. Isto sempre


a ajudava, por pouco que fosse.

«Okay, agora toca a sair daqui.»

Winter afastou da ideia o flashback - a visão que lhe

trouxera mais um pedaço do passado. De todas as coisas estúpidas,

infantis, juvenis em que se envolvera... se tinha sido

uma adolescente satanista, não era de admirar a repulsa instintiva

que sentira contra Tabitha Whitfield e respectiva loja.

Winter fungou de ironia; todo o seu medo se consumia

agora em desprezo e fúria. Se era aquilo que o seu outro ego

tinha desejado na sua juventude, merecia estar morto e enterrado!

Winter concentrou-se na sua própria fúria, dela extraindo

calma e alento, erguendo uma barricada suficientemente forte

para selar as memórias despertas. Quando voltou a encontrar a

porta de saída descobriu que o vento se levantara; o tempo

alterara-se, à maneira típica e imprevisível do vale do Hudson,

e o dia carregara-se de nuvens pesadas, arrepiadas de uma

90
brisa fresca. Quando Winter retirou a pedra que travava a

porta, o vento atirou com a pesada chapa de ferro contra os

batentes, que estalaram como um tiro de pistola. Winter olhou

à volta. Não se via ninguém.

- Nina! - gritou ela, sem pensar que Nina Fowler não

poderia ouvi-la por estar demasiado longe. Apressou-se a dar a

volta ao edifício; quando chegou à esquina apanhou uma bátega

de chuva. Uma testa de nuvens negras corria de sul e a

superfície do lago Nuclear já se enrugava, vergastada pela

força do vento.

- Nina! - Onde estava ela? Ter-lhe-ia acontecido alguma

coisa? Winter começou a afastar-se do lago. Nada daquilo lhe

parecia natural: as águas do lago borbulhavam como se uma

criatura inimaginável tentasse furar o lodo do fundo. Vir à

superfície. Vir buscá-la.

Winter olhou à sua volta, em busca de um meio de fuga.

Mas não havia para onde escapar: ou o lago ou o edifício, e

dentro do edifício estava o passado à espera dela. Winter

começou a correr pelo carreiro, de regresso ao ponto de partida,


na esperança desesperada de alcançar o carro antes que o

que quer que fosse que se erguia do lago a alcançasse a ela.

A tempestade suspensa desabou em chuva, encharcando-lhe

a cara, cegando-a, transformando o piso incerto numa

superfície escorregadia e traiçoeira. Já não sentia raiva, agora

era outra vez o medo, e dentro dela crescia uma tensão que

lhe retesava os nervos. A chuva caía com força redobrada e o

rugir da tempestade abafava-lhe os sentidos - cega, dormente

e surda, Winter correu em busca de abrigo, sentindo-se avançar

com uma desesperante lentidão de sonho.

Aquilo estava quase a apanhá-la.

Ela sentia que aquilo estava lá, como se uma parte dela

tivesse ficado a observar o lago. O que saiu do lago era terror

cego e apetite eterno, e se a tivesse alcançado ter-lhe-ia deixado

o corpo mutilado e esfolado como testemunho dessa fome.

Passado um longo momento de pesadelo, Winter chegou

ao extremo mais afastado do lago; sentia-se a garganta e os pulmões

como que trespassados por uma barra de metal escaldante.

Cada passo era um esforço excruciante, mas parar podia ser

91
perdição. Tomou fôlego, sabendo que tinha de avisar Nina

Fowler, sabendo que lhe faltavam forças para tanto.

A fúria da tempestade vergou-lhe os joelhos sobre a lama

gelada; num acesso de terror irresistível, Winter olhou para

trás, e viu as águas ferventes do lago abaularem para cima

como uma lente gigante, a superfície preste a fender-se para

revelar...

Erguendo-se de novo, Winter lançou-se para a frente, ao

mesmo tempo que sentia a pressão e a dor por detrás dos

olhos a aumentar.

O Honda de Nina estava exactamente onde Winter o deixara,

com as luzes ligadas e os limpa-pára-brisas a funcionar. A

promessa de segurança que o carro representava trouxe-lhe

lágrimas aos olhos. A porta do lado do condutor estava aberta

e por essa abertura Winter viu um pé calçado e enlameado;

Nina já se abrigara da tempestade e aguardava-a.

Winter sentiu a tensão interior multiplicar-se e alastrar,

espalhando-se por todo o corpo como descarga eléctrica. Um

espasmo instintivo esticou-lhe o braço para cima e para fora,


como num gesto de sacerdotisa mística saída de um jornal sensacionalista,

e, pasmada de terror impotente, viu a faísca concentrar-se

nos seus dedos, como em câmara lenta, e saltar dela

para o carro.

«Não!»

Viu-se um relâmpago azul e as luzes do carro apagaram-se,

os limpa-pára-brisas pararam - Winter sentia que, lá para trás,

o ser maléfico espadanava fora de água em busca da sua presa.

- Raios; parece que parou - disse Nina inocentemente,

olhando para cima. - Santo Deus, Winter...

- Não há tempo - arquejou Winter, agarrando o braço

de Nina com dedos trémulos. - Vamos. Temos de fugir daqui.

- Mas eu só queria... - começou Nina, mas Winter,

num derradeiro esforço, sacou Nina para fora do carro. - Por

favor - insistiu, mal conseguindo respirar e falar ao mesmo

tempo -, despache-se!

O ar carregou-se de um odor penetrante, que se sobrepôs

ao cheiro da chuva e da terra molhada. Era um odor intenso a

ozono, como se um relâmpago estivesse a ponto de deflagrar

92
- outra vez. O desespero crescente de Winter pareceu transmitir-se

a Nina, a julgar pelos seus olhos esbulhados e pela

forma como as sardas se lhe destacavam na pele, como gotas

de chuva. Sem dizer palavra, agarrou a mão de Winter e as

duas mulheres desataram a correr pelo caminho acima, em

direcção à estrada.

Ouviu-se um estouro, vindo lá de trás - um brilho demasiado

intenso para ser um relâmpago -, e um uivo que se

sobrepôs à fúria do vento.

Correram, correram, até Winter, exausta, já não conseguir

dar mais um passo - rastejou até à orla da estrada alcatroada,

com Nina aos trambolhões por cima dela. Ambas as mulheres

estavam ensopadas até aos ossos, arranhadas e cobertas de

lama.

- Vai... Não pares - arfou Winter, acenando em direcção

à estrada.

- Não - Nina estava quase tão cansada como ela. Espera.

Não estás a ouvir?

Winter ergueu a cabeça. «Ouvir» não seria a palavra mais


correcta, mas ela compreendeu o que Nina queria dizer. Tudo

se acalmara; embora continuasse a chover, a fúria da tempestade

e a medonha espiral de angústia tinham desaparecido,

como se jamais tivessem existido. E agora, depois de extintas,

custava a crer que alguma vez tivessem existido.

Winter voltou a erguer a cabeça e olhou para Nina. A

mulher mais nova estava corada do esforço, o cabelo encaracolado

colado à cabeça. Continuava de olhos esbugalhados de

espanto, como se tivesse acabado de sair de um sono profundo.

- Grande tempestade, ha? - disse ela, num tom alegre,

em total contraste com a aflição em que se encontrara pouco

antes. - Ainda bem que me puxou para fora do carro... eu sei

que é boa ideia ficar dentro do carro durante uma tempestade

com relâmpagos, mas não é lá muito boa ideia continuar dentro

do carro quando lhe cai uma árvore em cima, pois não?

«É isso que pensas que aconteceu, Nina?» Winter teve de

morder o lábio para se impedir de pronunciar alto estas palavras,

sentindo uma nova preocupação, desta feita puramente

93
mundana, sobrepor-se à cavalgada do seu coração. A reacção

de Nina era semelhante à que ela própria tivera em ocasiões

anteriores - negação dos factos a favor de outra visão mais

reconfortante e plausível. Mesmo naquele instante, os acontecimentos

das últimas horas pareciam querer diluir-se, como se

mão maligna quisesse apagar a ardósia da memória.

«Não!» Winter concentrou-se na imagem daquela forma

fetal e profana que rasgava o negrume das águas do lago vergastadas

pela tempestade e sentiu o coração a falhar.

- Talvez agora o carro volte a funcionar - disse Nina,

em tom de dúvida.

- Não - passado o perigo, com esforço dorido, Winter

pôs-se em pé, obrigando as pernas a sustentá-la. - Não volta a

trabalhar. Tem o sistema eléctrico todo queimado. - «E fui eu

que provoquei isso - eu - e não aquela coisa do lago.» - É

melhor tentarmos pedir ajuda a alguém na estrada principal.

- Pois sim - Nina endireitou-se e espreguiçou-se, olhando

para Winter com calma confiança. - Não fica muito longe;

podemos voltar a pé para a cidade, se for preciso.


Felizmente não tiveram de fazer a caminhada, embora

para Winter a parte mais custosa fosse a que se seguiu, quando

chegaram à estrada municipal e pediram boleia, com Nina

Fowler plenamente convencida de que tudo se resumira a uma

breve mas intensa trovoada.

«É como se fosse mais seguro pensar que as coisas se passaram

assim», pensou Winter, sentada a trouxe-mouxe quase

em cima de Nina na cabina da carrinha, «tal como eu ficaria

muito mais feliz se pensasse que o que aconteceu foi mais um

dos meus ataques de pânico e excesso de imaginação. Mas não

me parece que tenha sido nada disso.

E não me parece que seja seguro fingir que foi isso.»

- Vou telefonar ao Dave. Ele amanhã pode levar-me lá no

reboque e trazer o jipe - disse Nina alegremente. A pessoa

que lhes dera boleia (um morador da vila) desviara caminho

para as levar à Universidade.

- Fique com o meu carro, entretanto - disse Winter,

94
enquanto procurava as chaves nos bolsos das calças de ganga.

Estendeu-as a Nina. - Sinto-me demasiado abalada para conduzir;

vou apanhar um táxi para casa.

- Oh, não posso aceitar uma coisa dessas - protestou

Nina, mas Winter bem via que ela estava tentada a aceitar.

- Claro que pode; não foi o seu carro que se avariou?

Aliás, foi por minha causa que você lá foi e que o seu carro

foi... atingido por um relâmpago. - «E já é uma sorte ter conseguido

que não morresse», pensou Winter sombriamente. «E

não por causa do relâmpago.»

- Bem, se tem a certeza que não se importa - disse

Nina, pegando nas chaves. - Posso levá-la a casa, ao menos?

Vejo-a com um ar muito cansado.

- Quando eu quiser ir chamo o Tim Sullivan. Primeiro

tenho de tratar de um assunto. - «E se queres viver, Nina, não

te chegues perto, mantém-te longe de mim.»

95
CAPÍTULO CINCO

A CAÇADA REAL DO SOL

When the hounds of spring are on winter’s traces,’

ALGERON CHARLES SWINBURNE

Winter tinha imaginado que lhe seria penoso voltar ali

com mais uma história de pôr os cabelos em pé, mas a ideia de

quase ter sido morta pela Criatura do Id deu-lhe alento. Se o

que Winter pensava ter acontecido no lago Nuclear correspondia

à realidade - se não estivesse louca -, então precisava de

auxílio. Se estivesse louca...

Nesse caso preferia que lhe dessem remédios, electrochoques

- todas as coisas que Truth Jourdemayne dissera que

podiam reduzir a cinzas a fracção do cérebro que produzia

aquelas quimeras. «O sono da razão gera monstros...» Não

suportava continuar a viver com aquilo.

E se, como começava a crer, não se tratasse de ilusões, talvez

não tivesse outra opção.

Winter meteu-se pelo caminho que levava ao Margaret

Bidney Beresford Memorial Psychic Science Research

Laboratory. A fachada neoclássica de mármore tinha um ar


sereno, como sempre, e as imponentes portas de carvalho,

bronze e vidro davam-lhe um ar de templo grego antigo.

Empurrou a porta de entrada. Não estava ninguém na

recepção; Winter consultou o seu Cartier e descobriu que o

relógio parara por volta das duas. Segundo o relógio de parede,

pouco passava das quatro; onde andaria a recepcionista?

Winter passou pela secretária de Meg Winslow e meteu

pelo corredor que já conhecia; mas, em vez de entrar na sala

’ Quando os perdigueiros da Primavera vão no rasto do Inverno. (N. do T.)

97
de reuniões onde já estivera, a intuição levou-a a ultrapassar as

portas fechadas dos gabinetes até encontrar uma grande sala

aberta nas traseiras do edifício, obviamente de construção

mais recente que a fachada principal do Instituto.

A sala parecia uma versão hollywoodesca do laboratório

de um cientista louco, desde as bancadas de monitores e aparelhos

de gravação até aos cadeirões acolchoados, de aspecto

um pouco sinistro. No tecto corriam grossos cabos de alimentação

e comunicação; para onde quer que Winter olhasse só

encontrava um emaranhado denso de aparato técnico. Ficou a

olhar aquela babilónia inextricável. O laboratório parecia completamente

deserto.

- Procura alguma coisa? - disse uma voz que lhe era

familiar, vinda de cima. Winter ergueu os olhos e viu uma coisa

que lhe escapara: um passadiço suspenso por cima da sala,

com acesso por uma porta do piso superior.

- Truth? - a voz de Winter ecoou na vasta sala, soando

infantil aos seus próprios ouvidos.

- Quem... Ah, Winter. Finalmente decidiu... Oh, espere


um momento que eu já desço - Truth percorreu o passadiço

até ao fim e desceu por uma das escadas de metal, singelamente

pintadas de branco, que corriam junto à parede. Quando

chegou ao piso térreo dirigiu-se para Winter, com ar preocupado.

- Ia perguntar-lhe se já tinha decidido fazer os testes,

mas passa-se mais qualquer coisa, não é? Aconteceu qualquer

coisa... morreu alguém?

Winter voltou a sentir a mesma tensão interior por que

passara imediatamente antes de lançar o raio contra o carro de

Nina. Mas desta vez era curiosamente débil, como uma força

vital temporariamente esgotada.

- Estou a perder o juízo - disse Winter. A voz tremia-lhe

de cansaço e medo. - Não sei a quem mais recorrer. Eu sei

que já uma vez disse que estava a perder o juízo... mas desta

vez estou mesmo... a não ser que haja um monstro nas águas

do lago Nuclear! - concluiu Winter desanimadamente.

- Venha sentar-se e conte-me o que se passou - disse

Truth calmamente. Levou Winter para um canto onde dois

98
sofás com uma mesinha no meio formavam um oásis inesperadamente

acolhedor no meio da parafernália tecnológica do

laboratório. Winter afundou-se num dos sofás, consciente de

que só à custa de muito nervo e força de vontade conseguira

chegar até ali.

De resto, sentia-se suficientemente desesperada para,

finalmente, confiar em alguém. Respirou fundo.

- Lembrei-me... que costumava ir para o lago Nuclear

com os meus amigos, quando frequentei esta escola. Então

decidi lá voltar, para ver se espicaçava a memória; mas não me

apetecia ir sozinha, de modo que levei a Nina Fowler comigo

(a da associação de estudantes, sabe?).

- Eu conheço a Nina - disse Truth. - Ela está bem?

- Está óptima. Ela pensa... - Winter engoliu em seco e

deu-se conta, horrorizada, que estava à beira de desatar aos gritos.

- Ela pensa que o carro foi atingido por um raio. Isto

aconteceu tudo durante uma tempestade. - Winter deu um

suspiro trémulo.

- Não sou psicóloga - disse Truth -, mas isso não me


impede de saber que a negação é a primeira linha de defesa

mental contra qualquer coisa que não se coadune com os nossos

preconceitos. E sei quão assustador é outras pessoas dizerem-nos

que não vimos o que sabemos que vimos.

Winter observou atentamente o rosto da outra mulher, à

procura de sinais de ironia. Fechou os olhos com força, tentando

reprimir as lágrimas.

- Eu sei o que vi; e o que senti. Era real. Mas... imagino

que os loucos pensam exactamente o mesmo. Preciso que me

diga se estou doida. Preferia que não se pusesse com delicadezas.

O olhar das duas mulheres encontrou-se, e nesse encontro

Winter sentiu-se como se o seu âmago estivesse a ser medido

e pesado.

- Não é forçoso ser louco, para ver o que as outras pessoas

não vêem - disse Truth. - São muitas as situações

(desde as alucinações provocadas por stress até às visões do

passado provocadas por drogas, passando pelos velhos ataques

psicóticos), são muitas as situações que podem provocar esses

99
estados; mas todas elas são temporárias e nenhuma delas constitui

motivo de vergonha, nos tempos que vão correndo. Tem

a certeza de que quer continuar?

- Tenho de saber - insistiu Winter teimosamente. Se

isto constituía um desafio, então Winter estava disposta a

enfrentá-lo até ao fim, até ao limite das suas forças.

- Mesmo que o facto de saber não lhe traga paz nem felicidade?

- insistiu Truth. - Mesmo que o que venha a saber

altere definitivamente toda a sua vida?

Winter percebeu que estava a ser posta perante um dilema:

escolher entre a verdade e o conformismo.

- Quero saber - repetiu Winter. - Preciso de saber.

- Muito bem, nesse caso vamos voltar ao lago Nuclear.

Foram no carro de Truth, um último modelo Saturn.

Felizmente Truth conhecia o caminho, pois Winter não se sentia

em condições de o reconstituir. Durante o percurso, Winter

narrou a Truth todos os pormenores de que se lembrava: a súbita

tempestade, a sensação de que a tempestade tinha a ver com


ela, embora resistisse a todas as suas tentativas de controlo.

- Mas não parecia uma coisa que eu estivesse a criar.

Houve ocasiões em que senti isso, como se controlasse acontecimentos

exteriores à minha pessoa; desta vez não era nada

disso. E o Dr. Luty e o Dr. Mahar disseram ambos que a sensação

de dissociação é um sintoma vulgar de depressão profunda

- concluiu Winter com tristeza.

Truth resmungou, sem tirar os olhos da estrada:

- Psicoterapia! A dita ciência que procura adequar a

máquina humana à máquina social, mesmo que para isso seja

preciso dar cabo do mecanismo individual, transformá-lo num

relógio parado; mas lá que fica a indicar a hora certa duas

vezes por dia, disso não restam dúvidas!

Winter deu por si às gargalhadas. Tinha de deixar de julgar

as pessoas pelas aparências, como se fossem capas de

livros. Quem esperaria de Truth Jourdemayne, sempre tão

aprumada, uma tirada daquelas?

- Quer dizer que não... - vacilou nas palavras. «...Acredita

neles? Mas então, se eles estão errados, onde está a verdade?»

100
- Dylan diz que eu devia ser mais tolerante, mas não sou.

A minha irmã passou anos num hospital psiquiátrico; foi torturada

por pessoas demasiado estúpidas ou preguiçosas para

demonstrarem uma migalha de caridade ou de imaginação! disse

Truth, furiosa.

- O que é que lhe aconteceu? - perguntou Winter, passado

um bocado.

- Agora vive com um homem que a ama e a ajuda a

adaptar-se ao mundo em que vivemos. E embora eu seja a última

pessoa a afirmar que não existem doenças mentais, também

não tenho dúvidas em afirmar que boa parte das pessoas

que são internadas apenas tem dificuldade em adaptar-se ao

mundo que as outras pessoas construíram para elas próprias.

- Às vezes é um mundo bastante trapalhão - admitiu

Winter.

- Às vezes - concordou Truth. - Mas há sempre

maneira de o fazer melhor.

Quando entraram na estrada do lago, Winter ficou surpreendida

ao verificar que o carro de Nina continuava atravessado


no caminho. A porta pendia meia aberta e as chaves permaneciam

na ignição. Truth estacionou o Saturn atrás do outro e

saiu do carro. Avançou para o carro de Nina, deslizou para o

banco do condutor, totalmente encharcado, e rodou a chave

na ignição.

Nada. Nem sequer se ouviu uma tossidela do motor de

arranque.

- Acho que o matei - disse Winter, tentando manter a

boa disposição. «O que irá Dave Kelly pensar... Dois numa

semana!»

Truth não parecia grandemente surpreendida.

- Alguns poltergeist têm certa atracção por sistemas

eléctricos, especialmente os que são alimentados a baterias.

Aconteciam-lhe muitas coisas destas quando era miúda? perguntou

Truth.

A questão apanhou Winter de surpresa; automaticamente

tentou responder-lhe...

... e esbarrou numa negação tão peremptória que se

101

sobressaltou. Tentou forçar as palavras a romperem a barreira


- quaisquer palavras - e descobriu-se impossibilitada de articular

uma única frase. Ficou a abanar a cabeça, impotente, e

tossiu.

- Bem, não interessa, por agora - disse Truth no tom

mais natural deste mundo. Saiu do carro, fechou a porta e trancou-o

cuidadosamente. - Não é que receie qualquer tipo de

vandalismo por estes lados - disse ela em resposta à muda

interrogação de Winter -, mas quando se deixa um carro

aberto os guaxinins dão cabo de tudo. Agora gostava que me

mostrasse o cenário dos acontecimentos.

«O cenário dos acontecimentos. Que maneira admirável

de pôr a questão», pensou Winter. Mas, como era evidente,

Truth Jourdemayne estava muito acostumada àquelas coisas.

- Tem uma lanterna? - perguntou Winter. - Há outra

coisa que eu gostava que visse.

- Fantástico - disse Truth, apontando a lanterna sobre

os desenhos da parede da cave. Fosse pela companhia ou pelo

facto de já não constituir surpresa, desta vez Winter não se

sentiu chocada com os desenhos. É claro que também era possível

que o cansaço extremo em que se achava produzisse

certa apatia.
Vista à luz da lanterna, a cave bolorenta não passava disso

mesmo - um laboratório instalado na cave, abandonado por

razões desconhecidas e aproveitado anos mais tarde por estudantes

e esquilos. Inofensivo.

Truth apontou a luz para o chão. O ténue desenho, já

muito delido, mostrou afinal as suas cores primárias, outrora

ácidas - amarelo, vermelho, azul.

- Foi você que pintou isto? - perguntou Truth.

- Fomos nós - disse Winter lentamente, rebuscando as

suas memórias recém-recuperadas. - Quem o executou foi

Janelle, que era a artista do grupo, mas baseou-se no desenho

de um livro que alguém tinha. Não me lembro quem.

- E quando foi isso? - insistiu Truth, presa de renovado

interesse.

Winter encolheu os ombros, sem resposta.

102
- Estava ligada ao Círculo? Até que ponto percorreu o

Caminho? Quem era o vosso Guardião da Porta?

- Caminho? Guardião da Porta? - algo proveniente das

suas recentes leituras veio misturar-se com as memórias recém-iluminadas.

- Mas isso é...

- O Trabalho de Blackburn - concluiu Truth, com um

tom de preocupação lúgubre. - Se é verdade que você e os

seus amigos foram os responsáveis pelo que aqui vemos, então

vocês os cinco tinham a ver com as manigâncias do meu pai. E

não é coisa para amadores.

- Não me diga que acredita nessas tretas - perguntou

Winter hesitantemente, quando saíram para a rua. O Sol, preste

a refugiar-se no horizonte, filtrava-se pelas árvores e dourava

a paisagem.

«Um lugar primitivo, santificado e encantado como...

Oh, bolas, não consigo lembrar-me do resto.» Mas Winter sabia

que era um esquecimento normal, daqueles que acontece a

toda a gente.

- Depende - disse Truth - de como se definir crença.


Você acredita em cadeiras?

- Claro que acredito! - disse Winter, espantada. Vejo-as

todos os dias.

- Os semanticistas argumentariam que não acredita em

cadeiras. Afinal de contas, a crença implica a noção de fé; ora

não é necessário ter fé quando o objecto em questão está ao

nosso alcance a qualquer momento, não é verdade?

«Porque estamos nós a ter esta conversa?», interrogou-se

Winter, o que não a impediu de perguntar, como era de esperar:

- Então e as pessoas que acreditam em Deus?

- Por cada pessoa que diz acreditar em Deus, posso

apontar-lhe outra que afirma conhecer o Deus, ou a Deusa, se

preferir; quanto a mim, eu cá sei onde prefiro aplicar a minha

fé. E agora - disse Truth, mudando inesperadamente de

assunto - importa-se de me dizer onde estava quando pela

primeira vez viu o lago a fervilhar?

Para grande alívio de Winter, a conversa sobre Thorne

Blackburn e a sua lógica vudu tinha acabado. Não estava com

103
disposição para suportar semelhante discussão, tanto mais que

começava a suspeitar que Truth também acreditava naquelas

tretas. «O que é a verdade, zombou Pilatos.»

- Foi aqui - Winter avançou pelo carreiro até ao lugar

onde se detivera para olhar para trás, para o lago; apesar de ter

os nervos em franja, já não sentia qualquer ameaça.

Ficou a ver Truth abrir a malinha - uma Coach ainda

maior que a de Winter - e tirar de lá uma coisa que, à primeira

vista, parecia um colar.

Era uma corrente prateada com cerca de um metro de

comprimento. Uma das pontas da corrente rematava numa

argola; a outra tinha um contrapeso cónico de quartzo ou

vidro, suficientemente pesado para manter a corrente esticada

e a prumo. Winter lembrava-se de ter visto réplicas mais

pequenas nos escaparates da loja de Tabitha Whitfield.

- O que é que vai fazer?

- Pouca bulha, agora - disse Truth. - Isto é um pêndulo

e eu preciso de um minuto ou dois de concentração.

Winter ficou quieta, enquanto Truth suspendia o pêndulo


na ponta do braço esticado. A corrente balançou suavemente,

com o contrapeso de quartzo a reflectir a luz do Sol, dispersando-a

em finíssimos raios dourados. Winter, fascinada pelo

movimento do pêndulo, viu-o aquietar-se pouco a pouco, até

ficar completamente imóvel.

Fitou Truth. Truth estava de olhos fechados, respirando

lenta e profundamente, o rosto calmo.

O pêndulo recomeçou a mover-se - primeiro lentamente,

depois em ritmo cada vez mais rápido, até descrever uma

perfeita órbita elíptica. Era como se Truth o balançasse com

um movimento do pulso, mas Winter bem via que ela se mantinha

estática.

«O poder do pêndulo. Estarei condenada a acreditar nisto?»

Mas os vedores também utilizavam pêndulos destes, ou,

mais frequentemente, varinhas de cobre, e não erravam.

Winter lembrava-se de ter lido algures que mesmo as grandes

companhias petrolíferas confiavam neles, assim poupando inúteis

despesas de perfuração. Era um método legítimo - embora

inexplicável - de obter informações.

104
O pêndulo voltou a quietar-se gradualmente. Truth reabriu

os olhos.

- O que quer que fosse que aqui esteve (e depois de ter

visto a cave estou inclinada a acreditar que houve qualquer

coisa), já não está.

- Mas acredita que já esteve? - perguntou Winter.

«Disse que eu não estava louca - ainda pensa assim?» A verdade

é que não se sentia louca; nem sequer assustada. O que sentia

era uma subtil urgência, como se tivesse uma missão a cumprir

e o prazo para a concluir ou corrigir estivesse a acabar.

Truth fitou-a, hesitante:

- Como já lhe disse, os seus sintomas correspondem em

grande parte à presença de um poltergeist adulto; por isso

estou tentada a acreditar que os fenómenos que descreveu

residem em si, e não tanto num lugar específico.

- O que é que quer dizer? Que aquela coisa não estava

aqui? Eu vi-a, Truth - disse Winter, esforçando-se por banir da

voz o tom lamuriento.

- Mas pode tê-la trazido consigo - disse Truth compassivamente


-, mesmo que não corresponda à descrição do que

viu anteriormente. Mas se de facto não for, como afirma, coisa

vinda de si, resta-nos (se me permite a especulação) a possibilidade

de o seu locus psíquico (à falta de melhor termo) estar a

«carregar» um acto potencial, preste a realizar-se. Por conseguinte,

tanto pode ser como não ser responsável pelo que

aconteceu, ao mesmo tempo.

- Como quando se põe uma bateria a carregar - disse

Winter lentamente. - Quer dizer que o monstro do lago não

poderia ter existido sem a minha presença?

- É mais ou menos isso. - Truth mordeu o lábio inferior,

pensativa. - Mas... - interrompeu-se, como se estivesse

à beira de dizer mais. - Primeiro vamos tentar estabelecer terminantemente

o que é que a assola, antes de tomarmos qualquer

iniciativa; seja como for, penso que podemos eliminar a

hipótese de insanidade mental. E agora vamos para casa. Já

fizemos o que tínhamos a fazer aqui.

Para grande surpresa de Winter, «casa» era literalmente o

105
que Truth tinha querido dizer. Apesar dos débeis protestos de

Winter, seguiram para casa de Truth - um bangaló de duas

divisões às portas de Glastonbury; aí chegadas, Truth pôs-se a

lavar e cortar legumes para fazer uma salada, enquanto Dylan

Palmer metia uns pães caseiros no forno e cozinhava «um

molho de esparguete de tarar».

Ao entrar no lar de Truth, Winter sentiu-se num santuário;

agora, sentada na alegre cozinha vermelha e branca, com o

alguidar de legumes diante de si, mal conseguia manter os

olhos abertos.

- Será da hora ou da companhia? - ironizou o Dr.

Palmer.

Sobressaltada, Winter percebeu que tinha dormitado, de

queixo assente no peito, e esbugalhou os olhos.

- Ah, não a chateies, Dyl, ela teve um dia terrível.

Winter, não quer deitar-se uma meia hora antes do jantar? Se

não, o mais certo é acabar o jantar a dormir com a cara dentro

do prato.

A oportunidade de se deitar, de dormir, era docemente


tentadora - Winter não se imaginava a ter pesadelos naquela

casa.

- A salada... - protestou ela automaticamente.

- Já está lavada e quase toda amanhada. Eu posso acabar

de fazer o que falta; sempre contribuo mais para fazer o jantar

na minha própria casa do que se me limitar a pôr a água ao

lume para cozer os vermicelli - disse Truth.

- Bem, se acha que...

- Claro que acho. Venha daí. - Truth pegou no cotovelo

de Winter, que se deixou levar até ao quarto sem dizer palavra.

O quarto era de uma simplicidade espartana, com uma

única cama coberta de colcha de lã e duas mesinhas de cabeceira.

A austeridade do quarto era suavizada pelas carpetes do

chão e pela profusão de fotografias emolduradas nas paredes.

- Ponha-se à vontade - incitou Truth. - Aqui ao lado

há uma casa de banho que deve ter tudo o que necessita por

agora.

106
Mas, depois de Truth sair do quarto, foram as fotografias,

e não a cama, que atraíram Winter.

Reconheceu alguns retratos que já vira em Vénus

Afflicted. Ali estava Thorne Blackburn, aperaltado para um

encontro qualquer tipo Acólitos da Nova Era. Mais adiante,

uma fotografia do mesmo homem (trinta anos antes, como se

deduzia das roupas que vestia) com uma criança às cavalitas.

Havia mais fotografias - uma mulher de cabelo escuro e longas

tranças; outra mulher, mais velha, de cabelo curto grisalho.

E também Dylan, postado em frente de um cartaz de «Caça-Fantasmas»,

com um tubo de aspirador na mão e uma expressão

endiabrada na cara.

Amigos. Família. O amor e carinho postos naquelas imagens

estáticas teve o curioso efeito de pôr Winter pouco à vontade,

como se representassem uma ameaça - ou uma chave

mestra para a resolução de qualquer enigma que ela tivesse de

resolver.

Virou-lhes as costas e estendeu-se na cama.

- Ela faz-me lembrar a Light - disse Truth, quando


regressou à cozinha.

- Não se parece nada com ela - corrigiu Dylan.

- Ela é uma parapsíquica em perigo - contrapôs Truth

peremptoriamente - e, se se tratar de actividade de poltergeist,

posso garantir que não é um caso atípico. Quase preferia

vê-la lançar bolas de fogo; e tu bem sabes como é difícil controlar

a pirocinese. Mas isso ainda não é o pior: sabias que ela

fazia parte de um Círculo quando andava na faculdade?

Dylan interrompeu o que estava a fazer, dedicando toda a

sua atenção a Truth e lançando um assobio mudo.

- Um Círculo Blackburn? Tens a certeza?

- Reuniam-se na cave do edifício abandonado do lago;

um sítio sem vigilantes nem visitantes. Fui lá e vi a senha da

Porta Setentrional inscrita na parede; além disso alguém fez

um belo trabalho de pintura com as marcas para Assentamento

do Chão do Templo. Provavelmente fartaram-se da brincadeira

e puseram-se a andar. O melhor é eu ir lá assim que puder e

fechar completamente tudo aquilo. Estúpidos miúdos! - desa-

107
bafou Truth. - Como puderam eles fazer semelhante coisa?

Andarem a brincar com forças das quais nada entendem... e

depois ficam muito espantados quando o Desconhecido lhes

dá um grande pontapé no...

- Então, então... não és tu a tal que há menos de um ano

me dizia que as minhas actividades de caça-fantasmas não passavam

de desculpa para alimentar ilusões megalómanas?

Truth corou.

- Ainda bem que te deste ao trabalho de me baixar do

pedestal - disse ela humildemente. - Mas porque é que tudo

isto tinha de acontecer em Taghkanic?

- Tinha de ser - concordou Dylan. - Hunter Greyson

andava metido no parapsiquismo; tinha obrigação de saber

que não devia brincar com o assunto. Lembras-te das experiências

«Philip», em Toronto, nos anos 70? Do grupo de geração

de fenómenos psi, incluindo PCER? O Colin havia de arrebitar

as orelhas, se soubesse do que se estava a passar... Grey participou

no seminário de Psicologia Oculta que ele deu no último

ano de curso. E, repara bem, Winter também lá esteve. Andei a


fazer umas investigações - esclareceu ele.

- Hunter Greyson? Winter não se referiu a ele - disse

Truth a pestanejar.

- Ela é muito reservada, não gosta muito de revelar as

recordações que perdeu e as que recuperou; não deste por

isso? Não é normal ter lapsos de memória desses, nos casos em

que não houve trauma físico ou pelo menos abuso de drogas

- disse Dylan.

- Ou violência física - acrescentou Truth. - A memória

reprimida...

- ... escamoteia incidentes isolados para os quais não

haja reforço corroborativo, o que não acontece quando uma

pessoa é violentada e esquece quatro anos da sua vida. Além

disso ela vivia no complexo universitário; bem sabes que a

Faculdade, os preceptores e a associação de estudantes

vigiam de perto os miúdos. Se ela desse mostras de ter sido

violentada, eles teriam dado por isso - afirmou Dylan com

convicção.

Truth estendeu o braço para pegar na garrafa, mas Dylan,

108
antecipando-se, serviu-lhe o vinho. Truth ergueu o copo e sorriu-lhe.

- Não há dúvida que andaste a investigar Winter

Musgrave - comentou ela. - Será caso para ter ciúmes?

Ainda por cima nunca me disseste quem é Hunter Greyson.

- A ficha de Hunter Greyson desapareceu dos arquivos

da secretaria, mas a maior parte das pessoas da Faculdade

ainda se lembra dele; o professor Rhys até levantou a hipótese

de ter sido Hunter Greyson quem roubou a sua própria

pasta; parece que ele tinha fama de fazer esse tipo de diabruras.

Winter Musgrave e Hunter Greyson eram unha com

carne no último ano do curso e faziam pandilha com mais

três estudantes. Tiveram uma pontuação de trinta por cento

acima da média nas experiências de telepatia de grupo; os

relatórios dessas experiências ainda constam dos arquivos do

Instituto.

- Gostava de os ler - disse Truth com ar sério. - E

aposto que Winter também gostaria de os ler.

- Acho melhor pensar duas vezes antes de lhos mostrar;

pelo menos enquanto eu não conseguir descobrir de que é


que ela se lembra... e porque é que não consegue lembrar-se

do resto - disse Dylan.

- Talvez tenhas razão - admitiu Truth, embora pouco

convencida. - Tenho o pressentimento... - emudeceu por

momentos, mas depois prosseguiu. - ... de que ela tem de

fazer qualquer coisa e o prazo está a acabar.

Winter estava convencida de que não adormeceria, mas

para sua grande surpresa Truth teve de abaná-la repetidamente

para acordá-la; quando despertou, deu-se conta de que dormira

mais de duas horas.

- Não se aflija - sossegou-a Truth. - Dylan diz que este

tempo de espera só fez bem ao molho e eu costumo ficar no

Laboratório até altas horas da noite, por isso estou habituada a

jantares tardios, e o mesmo se passa com Dylan.

Winter, mal convencida, ficou a remoer um sentimento

de culpa.

Mas porquê? Pestanejou. Era como se vivessem duas pés-

109
soas diferentes dentro dela - uma com respostas racionais

para cada acontecimento, outra empenhada em assumir as culpas

a propósito de tudo, incluindo ela própria.

- Está bem - esforçou-se ela por dizer. «Se há que assacar

culpas a alguém, será a Truth e não a mim. Ela é que sabe

das horas a que deve jantar.» - Vou só lavar a cara antes de me

sentar à mesa convosco. - «Ao fim e ao cabo não posso ser

responsável pelo mundo inteiro.»

Esta sentença pareceu exercer um certo efeito; o sentimento

sombrio de culpa desapareceu e Winter descobriu que

pondo de parte essa ideia incomodativa, as recordações

recém-adquiridas se consolidavam - vagas e imprecisas ainda,

como imagens vislumbradas entre névoas, mas persistentes

mesmo contra a vontade da vozinha interior malsim.

Aquelas pessoas eram reais. O seu passado era real - e se

o passado, como sói dizer-se, é terra estranha, então ela acabara

de recuperar o seu passaporte.

Restava-lhe fazer uso dele.

Winter comeu com grande apetite - aliás, o jantar, disse


ela ao seu censor íntimo, não ficou arruinado pela demora. A

pasta estava no ponto, o molho saboroso e cheio de carne, e o

pão ainda estava quente, com crosta estaladiça e miolo branco

e macio.

Não falaram do lago Nuclear nem do monstro durante a

maior parte da refeição, mas quando já estavam a acabar,

depois de retirada a massa e a taça de salada da mesa, Winter

chamou o assunto à baila.

- Quando estávamos no lago disse-me que há uma

maneira de descobrir o que está a provocar tudo isto - disse

ela a Truth.

Truth hesitou:

- Posso tentar algumas coisas que ainda não tinha mencionado

- disse ela, parecendo ligeiramente relutante. Uma

vez que já sei que esteve empenhada no Trabalho de

Blackburn... o assunto muda de aspecto.

O Trabalho de Blackburn. Tudo o que Winter sabia a esse

respeito colhera-o no livro acerca do pai de Truth - isso e

110
uma recordação confusa de sombras à luz das velas, música e

incenso...

E Hunter Greyson.

- Então Grey é... era... um satanista? - perguntou

Winter hesitantemente. - Aqueles desenhos...

- O Trabalho de Blackburn não é Satanismo - corrigiu

Truth firmemente -, é tão satânico como a astronomia.

Thorne (o meu pai) criou-o, a partir de fontes antigas, como

meato de sabedoria; era uma forma de recolher informações

acerca do universo. É claro que acarreta os seus riscos, mas a

verdade é que tudo implica risco, quer se trate de escalar o

Evereste ou simplesmente atravessar a rua.

- Entre a aquisição de sabedoria e a aquisição de poder a

distância nem sempre é muito grande - disse Dylan, fitando

significativamente Truth. - Como muito bem deve saber.

- E é claro que, se fosse esse o caso, eu teria dado por

isso, apesar de terem passado tantos anos - ripostou Truth. Onde

quer que exista fé, há sempre o perigo da sua perversão.

- O que me está a dizer é que é parapsíquica - disse


Winter em voz trémula do esforço de não soar desaprovadora.

- Seria igual patetice dizer que não sou, quando de facto

o sou - disse Truth, pragmática. - Não tem já provas suficientes

de que o parapsiquismo é uma realidade?

Winter vacilou intimamente.

- Eu só sou... maluca - disse ela num desafio. - Tudo

isto... são coincidências, nada mais. Não há dúvida.

- Você não é maluca - contradisse Truth terminantemente.

- Nem o quer ser, pois não? Não anda por aí a fazer

disparates só para atrair as atenções, como acontece com tantos

falsos parapsíquicos. Mas é exactamente isso que você tem:

uma grande sensibilidade parapsíquica. A sua vida foi invadida

por uma alteração para a qual não estava preparada: uma alteração

parapsíquica; e tal como o súbito crescimento físico provoca

mal-estar e dores e torna a pessoa desajeitada enquanto

não se adapta ao novo estado, assim também você tem enfrentado

diversos problemas.

- Problemas! - explodiu Winter, lembrando-se dos corpos

patéticos dos pássaros e esquilos que encontrara na soleira

111
da porta. Seria preferível pensar que eram culpa sua - ou que

não eram?

- Problemas - repetiu Truth firmemente. - Alguns

parecem-lhe assustadores... e admito que também a mim me

preocupam, na medida em que não seguem o padrão normal

aos poltergeist. Não se conhece tratamento para o poltergeist,

como já lhe disse. Mas no seu caso, tendo em consideração

que foi aderente do Círculo, estou disposta a tentar uma série

de soluções diferentes, se estiver de acordo.

Winter pôs-se a debicar os restos empapados da salada. A

ideia de loucura talvez fosse mais simples - tanto mais que os

loucos não são considerados responsáveis pelas suas acções. A

insistência com que Truth reiterava a sua sanidade mental era

quase tão assustadora como a sua inclinação para se render à

insanidade em vez de enfrentar a realidade.

Era isso que a voz interior censória e desmancha-prazeres

pretendia? Rendição desmiolada?

- Não me importo de experimentar seja o que for disse

Winter alto e bom som. - Faça o que entender. - A voz


de Winter colorira-se de um tom duro e firme como o gelo.

Truth recusou-se a adiantar mais o assunto por essa noite,

argumentando que lhe parecia perigoso fazê-lo no estado de

exaustão em que Winter se encontrava. Ela e o Dr. Palmer levaram

Winter a casa no carro do Dr. Palmer.

- Este lugar é amorável - disse Truth, no salão de entrada

de Greyangels. - Mas está aberto de par em par.

- Não consigo manter as portas e janelas fechadas disse

Winter, embora pressentindo que não entendera devidamente

as palavras de Truth. - Passo a vida a fechar as janelas,

na esperança de que não voltem a abrir-se.

- Não é isso que... - começou Truth, mas deteve-se. Peço

desculpa. Veio ter comigo em busca de ajuda e eu

ponho-me para aqui com proselitismos, armada em pateta. Ora

deixe-me dar uma volta pela casa, para ver se está tudo em

ordem, antes de me ir embora. - Sem esperar resposta, Truth

dirigiu-se escadas acima, enquanto Winter ficava aparvalhada a

olhar para o Dr. Palmer.

112
«Desculpe que lhe diga, mas a sua namorada é completamente

alucinada», sugeriu a sarcástica voz interior de Winter.

No entanto, em voz alta, ela limitou-se a dizer:

- Tenho a impressão de que metade da conversa me

escapa.

- O sujeito ausente - disse o Dr. Palmer, a sorrir. Estive

aqui algumas vezes, quando o professor MacLaren cá

viveu. Imagino que gostava de ter a lareira acesa, esta noite.

- Conheceu os antigos donos? - perguntou Winter,

seguindo o Dr. Palmer até ao salão. A lareira estava preparada;

tentou recordar se a teria preparado de manhã, mas a memória

não lhe deu troco.

- Colin MacLaren viveu aqui enquanto foi director do

Instituto - disse o Dr. Palmer, ajoelhando junto à lareira. Sei

que depois disso a vendeu, mas não sei a quem. É uma bela

casa, não é?

- Às vezes - acautelou Winter. Apercebeu-se dos movimentos

de Truth no andar superior, e interrogou-se sobre o

que procuraria ela tão afanosamente.


Ouviu-se o som de qualquer coisa a raspar e depois um

silvo, quando o Dr. Palmer acendeu um fósforo de lareira, para

o enfiar entre os papéis e restolho que estavam debaixo das

achas. Daí a pouco as chamas alaranjadas começaram a lamber

os madeiros.

- Acho que já está - disse o Dr. Palmer, todo satisfeito.

- Posso oferecer-lhe um café? Um chá? - perguntou

Winter, na dúvida, apesar de sentir chumbo nos ossos e todo o

seu corpo gritar por um sono descansado.

- Você é que precisa deles - disse o Dr. Palmer, sem

cerimónia -, e apesar de a minha especialidade serem os fantasmas,

já vi suficientes médiuns para saber que o que eles

fazem implica uma grande carga nervosa. Os parapsíquicos

têm de cuidar melhor da sua saúde do que as outras pessoas,

se não quiserem sofrer as consequências.

- A Truth é parapsíquica, não é? - perguntou Winter.

Ouviu-se um rumor de passos a descer as escadas.

O Dr. Palmer hesitou, tal como Truth o fizera anteriormente.

113
- Não é bem assim - disse ele -, mas deixo essa explicação

a cargo dela, amanhã.

Truth entrou no salão e lançou um olhar aprovador à lareira.

Trazia o pêndulo de prata e cristal enrolado à volta da mão

esquerda.

- Não encontrei nada - disse ela. - Nenhuma manifestação

que resida na casa. É possível que haja vestígios residuais

no velho pomar, mas não é coisa que interfira com a casa, e de

todas as formas não é maligna.

- O que é que há no pomar? - perguntou Winter. Ela

evitava o primeiro andar porque aí se avistavam o pomar e o

rio de quase todas as janelas; perguntou a si própria que terríveis

associações de ideias lhe despertava aquele lugar.

- Oh, o Colin às vezes deixava alguns dos estudantes reunirem-se

aqui - disse Truth. - Feiticeiros, e coisas assim.

Nada de grave.

- Feiticeiros? - disse Winter; e logo: - Bruxos?

- Inofensivos - garantiu Truth. - Nada que se possa

detectar, a não ser que se vá lá e se saiba de que se trata. Voltou


a meter o pêndulo na bolsa. - E como encontrá-lo acrescentou,

à laia de conclusão. - Durma bem, Winter.

Telefono-lhe amanhã. - Pegou no casaco e dirigiu-se para a

porta, juntamente com o Dr. Palmer.

«Diga-me uma coisa, Sr.a Jourdemayne, como é possível

que eu seja capaz de ver coisas que não estão lá... e ignorar

coisas que lá estão?», sussurrou a vozinha interior de Winter.

Mais uma vez, porém, nada disse, limitando-se a seguir os

investigadores do Instituto até ao átrio e a fechar a porta

depois de eles saírem.

Começava a aperceber-se de que havia imensas respostas

que preferia desconhecer.

Winter fechou a porta e colocou a tranca que - teoricamente

- deveria impedir a entrada de intrusos. Na prática, era

quase certo que pela manhãzinha a porta se encontraria escancarada

e a tranca escondida algures pela casa.

Duas semanas atrás, esta perspectiva tê-la-ia deixado

louca; agora, porém, Winter limitava-se a aceitar enfastiada-

114
mente a verdade. Eram traquinices de poltergeist, e Truth

Jourdemayne tinha-lhe dito que o fenómeno passaria por si.

É claro que Truth também afirmara não se tratar de um

poltergeist normal...

A lareira que o Dr. Palmer acendera crepitava convidativamente,

recordando-lhe que se não acendesse a salamandra do

quarto se arriscava a passar uma noite desconfortável e gelada.

Com movimentos lentos, Winter pôs a chaleira ao lume e foi

alimentar a salamandra, juntando pedaços de carvão às achas

para que o calor perdurasse. A ida ao lago Nuclear parecia já

pertencer a outro mundo.

Quando acabou de acender a salamandra, a chaleira

começou a assobiar; Winter despejou a água a ferver sobre a

última dose de chá de Tabitha Whitfield. Não podia esquecer-se

de lá voltar amanhã, para se reabastecer; mesmo que não

possuísse todas as virtudes que o proprietário lhe atribuía, chamava

o sono; além disso Winter acostumara-se ao gosto da mistura,

A lembrança da Inquire Within trouxe-lhe à memória o

panfleto com exercícios de «concentração e fundamentação»


que Tabitha Whitfield juntara ao chá. Com um estranho sentimento

de culpa, Winter pôs-se à procura do papel; foi descobri-lo

meio escondido atrás do armário da casa de banho.

Regressou à cozinha com o panfleto na mão. O texto fora

escrito com bastante crueza - talvez «simplicidade» fosse o

epíteto mais simpático - em meia dúzia de fotocópias A4 dentro

de capa bege. Princípios de Fundamentação e Concentração

era o título da capa, caligrafado acima de um pentagrama

cheio de floreados.

Parecia inofensivo.

O chá estava pronto; Winter despejou-o numa das chávenas

de porcelana que faziam parte do mobiliário da casa quando

a alugara e juntou-lhe uma generosa dose de mel.

Acrescentou o mel à lista de compras, para quando fosse à cidade.

Não dissera o Dr. Palmer que os parapsíquicos precisavam

de se manter em forma?

Mas Winter disse firmemente a si mesma que não era

parapsíquica.

115
Com o panfleto numa das mãos e a chávena na outra,

Winter retrocedeu ao salão. As achas da lareira estralejavam,

incandescentes, com uma aura dourada, e o monte de carvões

espalhara pela sala um calor acolhedor. Winter instalou-se na

cadeira de balanço e cobriu as pernas com uma colorida manta

de lã afegã. Deixar-se-ia repousar ali apenas por uns instantes...

Era de noite e ela corria, afastando-se cada vez mais do

lugar onde deveria estar. Os meses correram, fizeram-se

anos - como pudera ela furtar-se às suas responsabilidades

durante tanto tempo? Era como se não fosse livre de o fazer;

ela escolhera o Caminho; dedicara as suas vidas a essa tarefa.

Não podia ignorar essa tarefa só porque o fardo se tornara

demasiado pesado! Ela era NECESSÁRIA; ele pedira-lhe

ajuda...

Pedira-lhe ajuda?

QUEM é que lhe pedira ajuda?

O quê?...

O espanto despertou-a do sonho; desnorteada, Winter

caiu da cadeira de balanço, que para ali ficou a balançar, e foi


aterrar no chão duro e frio.

«Serve-me com rectidão», pensou Winter estonteada,

erguendo-se sobre as mãos e joelhos doridos. Um papel amarrotado

rebolou no soalho - o panfleto.

A lareira estava reduzida às brasas. O salão voltara a gelar.

Winter gatinhou até à lareira, puxou um toro do monte e

assentou-o nas brasas, esperando que ele tivesse a gentileza de

se incendiar; sentia-se demasiado atordoada para reacender

devidamente a lareira.

Levantou a manta do chão, puxou-a para os ombros e pôs

de pé o corpo dorido. Pelas janelas da sala entrava débil luminosidade,

mas não devia passar das cinco da manhã, no máximo.

Não seria má ideia concluir a noite na cama - pelo

menos seria mais difícil cair ao chão, estando deitada.

Que estivera ela a sonhar? Winter tentou recordar as imagens

do sonho; retivera apenas uma espécie de espírito de missão,

de tarefas inacabadas - o mesmo tipo de sensação que

por vezes a despertava, nos seus tempos da Arkham Miskatonic

116
King, uma espécie de aviso que a alertava para negócios suspensos

e acordos esquecidos.

Mas desta vez havia mais qualquer coisa em jogo. Um chamamento

a que devia responder.

«Não», disse Winter consigo mesma firmemente. «Tens os

nervos arrasados, as emoções à flor da pele. Não podes confiar

neles. Posso acreditar em poltergeist, mas não nesta... ilusão

de finalidade.

«Vai deitar-te.»

Quando Winter passou pela cozinha, a caminho do quarto,

descobriu que ambas as portadas estavam abertas - não

admirava que a casa tivesse arrefecido. Suspirando, voltou a

fechar as portadas e trancou-as; de seguida fez o mesmo à janela

da cozinha. O quarto também estava gelado; as janelas, que

abriam para fora, encontravam-se escancaradas, deixando

entrar o leve cheiro, característico do rio e o odor mais forte

das ervas e folhas impregnadas de rocio. A salamandra - e ela

tinha a certeza quase absoluta de que a acendera - estava fria

como pedra.
Resmungando com os seus botões, Winter voltou a fechar

as janelas e aferrolhou-as - nessa altura já estava suficientemente

desperta para pensar que melhor seria dar uma volta

pela casa e fechar tudo, pois o mais certo seria encontrar todas

as janelas e portas abertas. O facto de ter tido sorte até esse

momento não excluía o perigo da criminalidade urbana no concelho

de Amsterdam - e não lhe parecia que os Anjos Cínzeos

de Tim lhe valessem de muito, se por ali andasse ladrão.

O céu já estava mais luminoso do que quando acordara.

Winter estreitou a manta de lã à volta dos ombros e foi fazer a

sua ronda à porta principal.

Estava aberta, como era de prever, e a tranca desaparecera.

Winter suspirou, procurando desanimadamente derredor.

Talvez a tranca estivesse lá fora, desta vez. Mais valeria deixar o

objecto entregue às brincadeiras do malfadado poltergeist, mas

o seu irritante sentido das responsabilidades obrigou-a a

empreender uma busca. Abriu a porta de par em par, com a

intenção de passar uma vistoria rápida ao quintal, voltar a

fechar a porta e ir meter-se na cama.

117
E então descobriu o cadáver.

A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi a vermelhidão

do vulto e a ausência de sangue. O facto de não haver sangue

era ainda mais assustador, pois não parecia possível matar

um animal de tal arcaboiço sem lhe deixar mossa nem rasto de

sangue; parecia uma carcaça exangue, retirada do frigorífico

de um açougueiro tresloucado.

Era do tamanho de uma criança.

O terror provocado por este pensamento impeliu-a para

diante, pois mesmo não sendo culpa sua, directa, não suportava

a ideia de se achar co-responsável por um crime.

Mas os membros esquartejados terminavam em cascos,

não em dedos e pés. O que ali estava era um veado, esfolado e

estracinhado, deposto diante dos degraus de entrada.

«Parece que estou a subir na vida», pensou Winter com

desesperado humor negro - se não fosse capaz de encarar

estas coisas a rir, sem dúvida choraria sem parar.

Subir na vida.

Primeiro pássaros, depois pequenos roedores, agora um


veado.

«E o que é que se seguirá ao veado, Winter?»

Preferia não pensar nisso.

Não pensar.

118
CAPÍTULO SEIS

O CORAÇÃO É CAÇADOR SOLITÁRIO

Fall, winter, fall; for he,

Prompt hand and headpiece clever,

Has woven a winter robe,

And made of earth and sea

His overcoat for ever.’

A. E. HOUSMAN

Anoitecia já quando Winter chegou ao Instituto Bidney.

Truth telefonara de manhã, e depois disso Winter entregara-se

afincadamente a tarefas corriqueiras - como levar o carro de

Sullivan para Poughkeepsie e combinar o aluguer de outro

carro mais seguro. Agora que o perigo estava tão próximo e

evidente, quase deixara de receá-lo. Tinha sentido mais medo,

bem se lembrava, dos semi-reais fantasmas da sua imaginação

- e no entanto eles eram muito menos poderosos de feri-la.

Mas aquela coisa - criatura, poltergeist, fosse qual fosse o

nome que os caça-fantasmas de serviço quisessem chamar-lhe

- não obedecia à sua vontade. Aquela coisa, esfomeada do

sofrimento e do sangue dos animais vivos e que se fortalecia


com cada nova vítima, era tão clara, tão obviamente um perigo

real e iminente, que pouco espaço sobrava para o medo,

nenhum para a histeria.

Winter estacionou o carro novo - um Saturn como o

que Winter já guiara, e muito seguro, segundo afirmara o vendedor

- no parque de estacionamento público da

Universidade e subiu as escadas. Truth dissera-lhe para se dirigir

directamente à ala do Laboratório, de modo que ela deu a

1 Corre, Inverno, corre; pois ele, / De mão segura e espírito iluminado, / Teceu
uma

camisa de Inverno, / E fez da terra e do mar / O seu manto eterno. (N. do T.)

119
volta pelas traseiras do Instituto, onde os tijolos federalistas da

fachada davam lugar ao pragmático cimento armado do único

edifício do complexo universitário de Taghkanic construído

nos últimos 75 anos.

Como lhe tinham prometido, a porta assinalada PRIVADO

- ENTRADA PROIBIDA A ESTUDANTES estava destrancada.

Passada a porta, viu-se no vasto edifício parecido com um

armazém que já visitara no dia anterior, e ouviu vozes.

Truth e o Dr. Palmer.

Embora não lhe agradasse escutar às portas, Winter deixou-se

ficar onde estava e pôs-se à escuta, porque lhe agradava

ainda menos perder o proveito do que assim pudesse colher.

- Achas que é a própria Winter quem está a provocar o

fenómeno? - perguntou o Dr. Palmer.

- Não penso que ela o faça de forma consciente, Dyl,

nem que provoque o fenómeno na sua totalidade. Mas a verdade

é que a parte de responsabilidade num fenómeno destes

que pode ser apontada a um adulto preocupa-me tanto como a

parte que não lhe diz respeito - respondeu Truth.


- Há um tipo de actividade poltergeistiana que pode

resultar da tensão de forças psíquicas contrárias, não se manifestando

em função da histeria ou desadaptação infantis, mas

em torno de um adulto relativamente bem adaptado. Quando

assim acontece, é porque existe uma força psíquica activa e

por resolver; digamos que o Invisível vem à procura da pessoa

em questão...

- Muito obrigada, mas eu também me dei ao trabalho de

estudar Margrave e Anstey, meu querido. E já que a nossa

menina parece ter um índice psiónico bastante elevado (sim,

podes rir-te à vontade, mas eu também não tiro daí grandes

certezas, por causa da série de testes que fez aqui quando era

estudante), é provável que ela tenha apanhado um pouco dos

Elementos e o tenha mantido consigo.

Winter achou que já tinha escutado o suficiente - quem

escuta às portas nunca pilha observações elogiosas a seu respeito,

mas isso também não significa que ouça coisas boas a

favor de outrem. - Olá? - disse ela, entrando na sala.

120
Todo o espaço no centro do laboratório fora desocupado,

as máquinas e os sofás tinham sido arredados dali, e alguém

traçara no chão um círculo com um metro de diâmetro.

Quatro grandes velas - ainda apagadas - rodeavam o círculo,

e no centro repousava uma prosaica cadeira de madeira.

Uma faca de cabo negro assentava na cadeira.

Winter retrocedeu em sobressalto. Isto mais parecia coisa

de bruxedo que de ciência. No que se estava ela a meter?

O mais estranho, porém, não residia no círculo. Suspenso

por cima dele, como uma grande tampa prestes a baixar sobre

a forma, estava uma enorme gaiola quadrada de fio de cobre

- e ao olhar para baixo, Winter descobriu um quadrado de

metal reluzente assente no chão, com encaixes próprios para

receberem as cavilhas da gaiola.

- É uma gaiola de Faraday - sossegou-a Truth, que

seguira o olhar de Winter. - É perfeitamente inofensiva;

depois de ligada gera um campo magnético que isola o interior

de qualquer influência externa, ou pelo menos as que pertençam

ao espectro electromagnético.
- Para que é que isso serve? - perguntou Winter, de pé

atrás.

- Alguns dos parapsíquicos com quem trabalhamos

acham que a gaiola de Faraday melhora as suas capacidades disse

Truth; Winter reparou que ela escolhia as palavras com

cuidado. - Mas o aspecto mais interessante é a possibilidade

que nos dá de isolarmos o que estiver lá dentro, das influências

exteriores à gaiola (por exemplo, a psicocinese não actua

para além do escudo) e é isto que vamos usar esta noite.

Winter olhou para o Dr. Palmer. Ele estava ao lado de um

conjunto assustador de máquinas, todas elas com uma quantidade

de alavancas, botões e luzinhas suficiente para encenar

três séries seguidas do Star Trek original.

- Esta noite sou mero observador - disse o Dr. Palmer.

- O polibarómetro vai registar e medir as alterações do ambiente,

desde as variações de pressão e temperatura até qualquer

abalo de terra que ocorra. Além disso vou usar um gravador de

bobinas e duas câmaras... isto, claro está, se me autorizar. Se

estiver de acordo, tenho aqui uma declaração já pronta que

121
pode assinar. - O Dr. Palmer, com um sorriso, segurava à sua

frente um clipboard.

Winter avançou até junto dele e procurou a caneta. Com

certeza. - Naquele momento, tanto se lhe dava fosse o

que fosse. - Também conseguem convencer os seus fantasmas

a assinarem isto?

- Tentamos - disse o Dr. Palmer com novo sorriso.

Winter assinou por baixo do texto que a avisava dos perigos

advenientes da experiência e autorizava a abertura de um dossier

sobre o seu caso, incluindo imagens fotográficas e tudo o

que fosse descoberto pelo Instituto; o seu nome jamais seria

usado, etc.

- O que é que eu tenho de fazer? - perguntou Winter

depois de assinar. Na véspera, quando Truth lhe dissera que ia

tentar libertá-la de pelo menos parte do fenómeno que perseguia

Winter - incluindo a parte que matava animais de maneira

tão horripilante -, esta partiu do princípio que a coisa implicaria

injecções ou outro tipo de tratamento, mas não lhe

passou pela cabeça o uso de pentagramas e castiçais.


- Para começar, tem de tirar tudo o que tenha metal disse

Truth, com vivacidade. - Tem algum dente chumbado?

Winter olhou para Truth. Truth tinha calçado um par de

luvas verdes e outro de sapatos assépticos. O seu cabelo escuro

caía livremente sobre os ombros e não trazia consigo

nenhuma peça de joalharia, tanto quanto Winter visse.

- Nenhum chumbo. - Winter pousou a bolsa na mesa

mais próxima e tirou os brincos, o anel e a bracelete. Só não

tinha de tirar o relógio, pois ainda não arranjara substituto para o

antigo - os malditos aparelhos estavam sempre a parar e de

resto já não se lembrava de nenhuma boa razão para usar relógio.

- Os sapatos - disse Truth, e Winter descalçou os sapatos.

Sentiu debaixo dos pés o frio tapete de borracha do laboratório.

Bem-disse o impulso que a levara a escolher um soutien

de ginástica sem presilhas nem colchetes; reparou que

Truth não tinha vestido soutien e não duvidou de que Truth

lhe teria pedido para tirar o seu sem rodeios.

- E pronto, já posso enfrentar qualquer detector de

metais - disse Winter, tentando manter o bom humor.

122
- Okay - disse Truth, com um sorriso que a fazia parecer

muito mais nova. - Vou tentar fazer com que nada disto

pareça assustador. Avance para dentro do círculo (não pise as

marcas a giz) e sente-se nesta bela cadeira, e depois eu tentarei

responder às suas perguntas. - Truth pegou na faca que estava

em cima da cadeira e pousou-a no chão, ao lado de uma das

velas.

Com um ar um pouco desconfiado, Winter passou cuidadosamente

pelas marcas de giz sem as pisar e foi sentar-se na

cadeira. Não lhe parecia que uma marca de giz servisse de

grande protecção contra o que quer que fosse. Winter sentou-se

na cadeira de madeira e adoptou uma pose estudada.

Inspirava-lhe mais confiança a gaiola suspensa sobre a sua

cabeça, apesar de também ela parecer defesa demasiado frágil.

- O que é que vai acontecer, agora? - perguntou ela.

Truth apontou para o Dr. Palmer, que se dirigiu à parede e

aí começou a baixar a gaiola de cobre sobre as duas mulheres.

- Como boa seguidora do método científico que sou começou

Truth -, tenho uma teoria e vou testá-la. O poltergeist


(as portas e as janelas e os objectos desaparecidos) não a

incomodam tanto como os animais esfacelados, não é verdade?

Winter concordou. - As portas que se abrem e os objectos

que desaparecem podem ser muito irritantes, mas ... esta

manhã matou um veado - concluiu ela, num tom de voz lúgubre.

- O pobre do animal parecia que tinha passado por uma

trituradora.

Truth concordou mudamente, com uma expressão absorta.

- A minha aposta é que, já que as suas aparições estão

sempre ligadas à morte e ao sangue, se trata de qualquer coisa

mais complexa do que um simples fenómeno de psicocinese

espontânea recorrente; o mais provável é tratar-se de um

Elemento atraído por si. As emoções muito fortes, especialmente

a raiva e os desgostos, às vezes atraem-nos; não sei bem

porquê. Se as perturbações, como você crê, tiverem origem no

lago Nuclear, pode ser que estejamos perante um Elemento

aquático; são altamente destrutivos e as mais das vezes demasiado

preguiçosos para regressarem ao seu próprio Plano de

Manifestação...

123
Quando a gaiola de cobre arranhou o chão, o Dr. Palmer

desligou o guincho. Consultou o relógio e tomou notas no

bloco que trazia consigo.

- E então? - perguntou Winter. Truth punha um ar tão

terra-a-terra em tudo aquilo, que não era difícil a Winter ignorar

o facto de as suas palavras parecerem saídas de um episódio

do Mistery Science Theatre 3000.

- Você tem uma grande calma - disse Truth com admiração.

- Para começar, vou chamar o seu Elemento à nossa

presença, para poder identificá-lo; a seguir emprego a fórmula

adequada para o fazer regressar ao seu Plano Elementar. Se não

conseguir fazer nada disso (estas coisas às vezes são incrivelmente

tenazes), pelo menos espero conseguir desalojá-lo de si

transferindo-o para mim, e depois dar-lhe uma corrida em

osso.

Winter olhou através das grades da gaiola para o Dr.

Palmer, mas ele não parecia grandemente abalado com a tirada

de Truth. Ela não sabia ao certo o que seria um «Elemento»,

mas Venus Afflicted também os mencionava, e mais tarde poderia


perguntar de que é que se tratava.

- Está tudo ligado? - perguntou o Dr. Palmer.

Truth olhou à sua volta e foi encaixar as cavilhas nos

receptáculos do chão. - Pronto - disse ela.

- Está a carregar - ripostou o Dr. Palmer. E ligou o interruptor.

As luzes baixaram, depois foram aumentando até à intensidade

normal. Winter sentiu uma vibração ligeira, nada desagradável,

que parecia entrar-lhe pela planta dos pés e sair pelo

alto da cabeça, e subitamente tudo na sala se aquietou.

Truth virou-se para ela, sorridente, e Winter reparou que

ela passara a usar um magnífico colar de âmbar com uma argola

de ouro; uma sumptuosa peça de joalharia que chocava com

as verdes protecções cirúrgicas. «Donde terá isto surgido?»,

pensou Winter.

- Às vezes, quando o Instituto está num pandemónio,

gostava de poder vir para aqui e ligar esta coisa. É muito sossegado,

não é? - disse Truth.

- É verdade - concordou Winter, surpreendida.

124
- E se tirássemos a limpo se um campo magnético empola

o psi ou se o amortece e porquê, tínhamos o dia ganho queixou-se

Truth serenamente.

Dirigiu-se para uma das velas e apanhou um objecto que

estava pousado ao lado da vela. Quando o agarrou, Winter viu

que se tratava da pequena adaga.

- Disse-lhe que vou chamar o Elemento que está agarrado

a si. Para isso, tenho de me servir de um símbolo a que ele

esteja acostumado. Não se preocupe - acalmou-a Truth. Enquanto

o Elemento possui o que se pode chamar uma realidade

objectiva, estas coisas são apenas símbolos: as velas, as

marcas de giz, tudo isto são símbolos do que pretendo fazer

com a minha vontade. São coisas que dependem da força que

lhes confiro. O pensamento inconsciente comunica por meio

de símbolos; tente encará-lo como se fosse um computador

muito potente mas com software muito estúpido. Agora peço-lhe

que se sente aqui e fique muito quietinha durante um

bocado, por mais estranho que aconteça. Eu sei que Tabby lhe

aconselhou um conjunto de exercícios de concentração juntamente


com o chá: tem praticado?

- Mais ou menos - disse Winter. Pelo menos tinha essa

intenção desde a véspera.

- Bem, pelo menos esforce-se por manter a respiração

lenta e profunda; e não saia da cadeira, por favor, até eu lhe

pedir para se levantar. Seja o que for que ouça ou veja, você

não corre qualquer perigo: é para isso que serve o círculo.

Para a proteger.

- Okay - disse Winter, respirando fundo.

Dito isto, Truth passou a ignorá-la por completo. Descalçou-se,

avançou para uma das velas com a faca de cabo negro erguida

ao alto, como uma enfurecida personagem de opereta.

«Devo estar mais cansada do que imaginava», pensou

Winter. Não lhe doía a cabeça, mas via tudo rodeado de halos

multicores: o fio de cobre da gaiola de Faraday parecia pintado

de fogo violeta; o Dr. Palmer, postado na obscuridade para lá

dos fios, tinha uma auréola azul. Dentro da gaiola, Truth

Jourdemayne deixava um rasto de fogo azul; e a faca cintilava

vacilava à vista de Winter.

125
Winter tentou afastar estas ilusões e ver o mundo tal

como ele era, mas, por mais que se esforçasse, a teia de luz

polícroma não desarmava.

«Deve ser o prenúncio de uma enxaqueca» - naquele

momento preferia a expectativa da dor à rendição perante

aquele novo fluxo de irracionalidade. Mas o vilão, neste caso,

era a falsa razão, pensou Winter, furiosa. O que estava em jogo

era demasiado importante - não podia dar-se ao luxo de se iludir

a si própria. Conscientemente, começou a inspirar fundo,

como Truth lhe aconselhara, e fez por não se preocupar com o

que via, por mais estranho que parecesse.

Truth Conjurara o Chão do Templo e saudara o primeiro

Guardião. Winter assistia a tudo isto sem perguntar donde lhe

vinha o conhecimento. A primeira vela formava um esteio de

fogo escarlate que inexplicavelmente tomava a forma de um

veado; a segunda, quando Truth se aproximou, assumiu a

forma de um ferrolho feito de pura luz prateada.

Vermelhos espíritos e brancos; negros espíritos e Cínzeos

Vem, cavalo, vem, perdigueiro, venham, veado e lobo,


tomar posse da minha alma...

Sul, depois, e um esteio de ébano ardente, mais brilhante

que todas as cores, fez-se Cão Trigueiro. Oeste, e labareda

branca; a Égua Branca. Depois, regresso a Norte, e Winter julgou

distinguir uma estrela na mão de Truth, em vez da faca

que antes lhe vira - uma estrela que pulsava ao ritmo do seu

coração. Truth apresentou a estrela ao esteio Norte e ao Lobo

Cínzeo, e Winter teve uma sensação de realização, como se

uma enorme máquina tivesse acordado, palpitante de vida.

Truth pôs-se a caminhar à roda da cadeira em que Winter

se sentava; por fim, postou-se diante dela. Desenhou no ar,

entre ambas, uma silhueta: fogo branco que se esbateu em

prata, de formas tão reais como os pratos dispostos no armário

da cozinha em casa de Winter. Quase podia tocar-lhe, mas

Truth antecipando-se-lhe, agarrou a forma e levou-a para o

esteio escarlate. Winter viu a chama branca submergir na vermelha;

depois Truth voltou a encará-la, desenhou novo símbolo

no éter e atirou-o para o esteio branco do Sul.

«Adormeci», pensou Winter. «Que coisa embaraçante.»

126
Mas Truth repetiu todo o acto, num silêncio que parecia ainda

mais irreal que a luz polícroma; Winter compreendeu que estava

a assistir ao chamamento da criatura que Truth prometera

apanhar.

«Isto não vai resultar.» A voz era-lhe exterior, mas pertencia-lhe;

era a voz em que Winter aprendera a confiar, mesmo

quando lhe impunha a dúvida. Pela primeira vez nessa noite

sentiu medo - não da magia de Truth, nem da magia em si

mesma, mas sim do inimaginável e duramente real perigo que

Truth conjurava com toda a naturalidade.

«Tenho de pôr fim a isto», pensou Winter em pânico

tardo, soerguendo-se da cadeira.

Mas era demasiado tarde.

Sentiu um arrepio, como se alguém tivesse aberto a porta

de um frigorífico gigante. O fogo violeta da malha de cobre

faiscou na escuridão quando a gaiola foi desligada da corrente.

As luzes do laboratório reacenderam-se por um instante, ofuscando

a luz dos esteios, fazendo deles ilusões imprecisas, e

depois tudo voltou à escuridão.


Ouviram-se estalidos, acompanhados de cascata de faíscas.

Winter ouviu o Dr. Palmer praguejar e dizer qualquer

coisa acerca da instalação eléctrica e dos disjuntores. Percebeu

que ele avançava aos tropeções no escuro, mas logo de seguida

o ruído das suas solas a arrastarem no chão foi abafado pelo

primeiro ribombar de trovão.

- Aí vem ele - murmurou ela, a voz tremente.

- Eu sei. Despacha-te - disse Truth.

No lago surgira na plenitude da sua potência, disposto a

aterrorizar por simples exibição de força. Desta vez surgia à

sorrelfa, primeiro como uma presença quase imperceptível,

em resposta à guarda de Truth, depois - como gato celeste

irritado com um rato terrestre - cada vez mais palpável; fortalecia-se

com o crescendo da tempestade, com o recrudescer

dos trovões e com o abatimento progressivo das velas, que

acabaram por morrer.

- Oh, bolas - disse Truth em tom calmo.

Winter só se deu conta de quanto confiara no círculo

quando a sua protecção a abandonou. Os relâmpagos ilumina-

127
ram as janelas superiores do laboratório de uma claridade azul

intermitente, fazendo com que o breu que se lhes seguia parecesse

ainda mais denso. Winter sentiu-se subitamente desnuda

e, quando todos os vidros do laboratório se estilhaçaram, ela

gritou em uníssono com o som do vidro. Toda esta confusão

reforçou a sua vulnerabilidade, e Winter sentiu a garganta apertada

e um gosto metálico na boca.

Teria fugido se conseguisse ver o caminho; mas a gaiola,

que até então lhe parecera tão frágil, continuava firme no seu

posto, e o inerte fio de cobre, apesar da sua debilidade aparente,

continuava a constituir uma armadilha sólida. Delimitava

um circuito de morte, dentro do qual Winter Musgrave se preparava

para morrer.

- Exorto-te... - a voz de Truth erguia-se diamantina e

dura, desafiadora apesar da queda de todas as suas defesas.

Colocou-se entre Winter e o que fora invocado - Winter sentia-o,

mesmo na escuridão imperscrutável -, e parecia colher

nas mãos a escuridão para com ela tecer uma rede na qual

enredasse o invocado.
Mas o que viera não se deixava vergar. Varreu Truth a uma

banda, e depois, em vez de atacar Winter, rodopiou à volta de

Truth, esquecido, por pura fúria, da sua legítima presa.

Winter pressentiu a luta de Truth; por um instante perdeu

a noção do local em que se encontrava; o seu passado desbobinou-se

como onda encrespada, imergindo-a na lufa-lufa do

mercado de valores, onde os negócios que firmavam a natureza

económica da realidade se colavam ao coração, à mente e à

vontade do débil receptáculo humano.

E ali estava ela, no meio da vozearia das procuras e ofertas,

a sentir o frenesi palpitante do caçador - da vitória que

significava a derrota de outrem. A sua vitória seria coroada de

louros, de triunfo e de pilhagem - não havia lugar para segundos

vencedores na Wall Street e ela era a melhor; derrotá-los-ia

a todos...

No meio de toda esta excitação, a vozinha que ousava

questioná-la nos seus preconceitos não desarmava...

«Como chegou até ti com tanta facilidade? Como chegou

aqui?»

128
... mas o terceiro eu de Winter, o seu verdadeiro eu,

aquele que se encontrava encurralado e arrastado entre duas

forças opostas, ouviu, e disse:

«Mas quem diabo pensa este mostrengo que é? Se pensa

que me leva a passear, é melhor que mude de ideias...»

O Elemento não precisou de baixar as barreiras que Truth

erguera, pois possuía um aliado que já se encontrava dentro da

praça-forte: a serpente do ódio de Winter; a rejeição de tudo

quanto pudesse desafiá-lo - a intolerância cega, o preconceito

automático, um ódio que envolvia Winter num círculo,

seguro mas redutor, de coisas que não lhe desafiariam os preconceitos.

Winter quase podia ver a pardacenta luz umbilical

que se projectava do seu corpo, projectando-se e geminando-se

na forma serpentina do Elemento, erguendo-se, glaciar e

malévola, para dizimar tudo o que se lhe opusesse.

A ele. Opusesse a ele. Não a ela.

Agarrou-se a esse pensamento como tábua de salvação.

Ele. Ele, serpente-ódio, era uma coisa; ela, outra. Ela não era

ódio - mas algo se abrigara dentro de si, perseguindo fitos


próprios, usando-a.

«Ela não será usada!»

Uma raiva humana fervorosa - uma determinação cega

de ser livre a todo o custo - levou Winter até ao lugar onde

Truth jazia, procurando um alvo a quem pudesse castigar.

- Não! - gritou Truth. - Não faça isso, que é pior! Não

lhe alimente as forças!

O grito de Truth actuou como um balde de água fria, varrendo

a fúria e a dúvida, deixando apenas o medo. Por instinto

natural, espontâneo, Winter tentou dirigir a sua fúria contra si

mesma, procurando derrotar por essa via a serpente, criando

um lugar de quietude em que pudesse abrigar-se.

Mas todo o esforço convocado era parco. A criatura alimentava-se

nela, colava-se a ela, mas não era dela. Fugia-lhe ao

controlo.

Lá fora, a tempestade relampejou, proporcionando a Winter

uma imagem instantânea de Truth rastejando pelo chão, sobre os

restos do que fora uma das velas e sua base de prata. Ouviu o

grito de Truth, exclamação enrouquecida de dor e rejeição.

129
- Truth! - era a voz do Dr. Palmer. Soou um zumbido

grave de máquinas; as luzes do laboratório clarearam, alimentadas

pelos geradores de emergência, e Winter ouviu os estampidos

das lâmpadas e fusíveis a rebentarem. Mas a corrente eléctrica

crepitou nos fios de cobre, completando o circuito, e o

campo magnético restabeleceu-se com estrondo em torno de

Truth e Winter.

«Agora!» Winter ouviu o mudo rogo de Truth dentro da

sua cabeça. Seria demasiado tarde? Num derradeiro esforço,

Winter debateu-se contra o fantasma, apartando-o da aliança

com o Elemento que Truth convocara.

Recusando o ódio.

«Reconheço-te. Distingo-te por aquilo que és», disse ela

mudamente. «Não hei-de seguir o teu rumo.»

Sem a sua cooperação, a coisa perderia o poder. Sem o

seu consentimento, não poderia actuar.

Pela face de Winter deslizaram lentas lágrimas; deixou-se

estar rígida, de olhos fechados e punhos cerrados, exortando

toda a sua vontade a não actuar, a não permitir qualquer acção.


Através das pálpebras fechadas, viu Truth libertar-se o suficiente

para conseguir desenhar no ar uma imagem de fogo alvo.

Winter sentiu claramente o momento em que o Elemento

decidiu não prolongar a batalha. A tremenda força de Truth

abalara-o; retirou-se, e quando o glifo que Truth desenhara estiolou

e desapareceu, foi irremediavelmente varrido num vórtice

de medo, raiva e dor.

Tinha desaparecido. O Elemento tinha desaparecido.

Winter caiu de joelhos. Sentiu que o Dr. Palmer cortava a corrente

da gaiola, pondo termo à estranha titilação magnética

que percorria a pele de Winter.

E foi o silêncio.

Lentamente, Winter reabriu os olhos. A tempestade passara,

as luzes do laboratório regressaram, embora fracas. Ouviu o

rangido do guincho a erguer a gaiola de Faraday, libertando-as...

Virou-se para Truth.

Tal como na visão de pesadelo, a vela - cera e base de

metal - formara uma poça informe; Truth jazia a monte ao

130
lado dessa escória. Enquanto Winter olhava pasmada para ela,

o Dr. Palmer correu para Truth, saltou por cima da barreira circular

de giz e tomou-a nos braços.

- Truth! Estás...?

- Estou bem - rouquejou Truth em tom pouco convincente.

Agarrou-se a ele, tentando endireitar-se, e as suas mãos

ensanguentaram a camisa de Dylan Palmer. Truth abanou a

cabeça, como se assim a esclarecesse, e Winter, horrorizada,

viu caírem-lhe da boca pequenas gotas de sangue. - Estou

óptima - insistiu ela, enquanto o Dr. Palmer a erguia cuidadosamente.

- Não estás nada bem! - resmungou ele, furioso. - Por

amor de Deus...

- Mas não esse deus - corrigiu Truth roucamente. Winter?

- Eu estou bem - disse Winter, embora se sentisse gelada

e esvaída de energias. - Em muito melhor estado do que

você - acrescentou secamente. Truth apresentava uma palidez

esverdeada; tinha as mãos e a boca tão ensanguentadas

como se tivesse amarinhado e comido um monte de cacos de

vidro.
Truth voltou a abanar a cabeça, ao mesmo tempo que tossia.

- Eu não... - começou ela, mas logo: - Dylan, agarra-me...

- Está descansada - sussurrou o Dr. Palmer. - Está sossegada,

querida. Não te preocupes.

Levou Truth para a cadeira onde Winter estivera sentada

no dia anterior e agarrou no termo que estava na mesa ao lado.

Winter seguiu-o, preocupada com Truth, e viu o Dr. Palmer

verter numa chávena um líquido purpúreo espesso cujo cheiro

adocicado se sentia à distância.

- Acho que também devia beber, Winter - disse-lhe o

Dr. Palmer, enquanto pegava nas mãos de Truth para as fechar

à volta da chávena. Truth sorveu a bebida e voltou a tossir, mas

o seu rosto já recomeçava a tomar cor. Pegou na toalha que o

Dr. Palmer trouxera para limpar as mãos e a cara, deixando

manchas de sangue no tecido aveludado.

131
- Bem-vinda ao maravilhoso mundo da parapsicologia

estatística - disse Truth secamente. O Dr. Palmer estendeu

segunda chávena de chá a Winter.

- O que é isto? - perguntou Winter.

- Primeiros socorros para parapsíquicos: meia porção de

vinho doce com meia porção de mel selvagem - esclareceu o

Dr. Palmer. - O álcool abafa os centros parapsíquicos e o açúcar

repõe energias.

- É horrível - acrescentou Truth lamuriosamente;

Winter, muito reticente, provou a bebida e teve de concordar:

a mistura era insuportavelmente melada e o vinho era, por

certo, a martelo. Mas depois de a beber sentiu-se melhor; reparou

que o mesmo se passava com Truth, que já estava a beber

pausadamente a segunda taça. Sentiu diluir-se a sensação de

nervos arrasados e em franja.

- Okay - disse Truth daí a uns minutos. - O que é que

se passou aqui esta noite, Dylan? - Parecia ter parado de sangrar;

olhando-a mais de perto, Winter nem sequer conseguia

perceber donde proviera o sangue, embora ainda tivesse manchas


de sangue seco na boca e nas mãos. Embora fosse de

esperar que a visão a horrorizasse, ou pelo menos a agoniasse,

Winter mantinha-se curiosamente impassível, tão desapaixonada

como se fosse um médico assistindo à demonstração de

novo método cirúrgico.

Teria ela sido assim, nos seus tempos de estudante?

Parecida com Truth?

- Baixei a gaiola e voltei a subi-la - disse o Dr. Palmer,

em resposta à pergunta de Truth. - Winter estava sentada na

cadeira, tu andavas no sentido dos ponteiros do relógio dentro

do vosso círculo. - Deteve-se, a pestanejar, reflectindo. Deste

mais uma volta... bem, os gestos do costume, e etc. e tal

- acrescentou, e Truth suspirou afectuosamente -, e de

repente todos os fusíveis rebentaram e tu mandaste-me ligar o

circuito de emergência.

Winter ia a protestar, mas Truth travou-a com um gesto.

- E depois? - disse Truth.

- Devo ter estado lá em baixo uns cinco minutos; voltei

a ligar os disjuntores mas não valeu de nada, e só ao fim de

132
duas tentativas consegui pôr o gerador a funcionar. Quando

voltei cá a cima, estavas tu no chão e Winter de pé; e a cadeira

de pantanas.

Winter, surpreendida, voltou-se para o círculo. De facto,

a cadeira caíra de costas, embora ela não se lembrasse desse

episódio. Arrepiou-se; de repente, o laboratório pareceu-lhe

gelado.

- Então e o equipamento? - perguntou Truth, voltando

a limpar a boca antes de dar nova golada da bebida.

Dylan encolheu os ombros e deu uma curta gargalhada.

- Vamos lá ver o que é que se salva. O polibarómetro

nem sequer deu conta da tempestade que houve lá fora, portanto

o mais certo é ficarmos de mãos a abanar.

- E tu não viste nada? - insistiu Truth. Winter admirou a

calma da outra mulher.

- Além da cave? - perguntou o Dr. Palmer, divertido. Não

tenho a certeza. Fenómenos do tipo caçada Classe Dois:

sons de comboio, frio, vertigens, desorientação. Além disso?

Nem sei dizer o que penso que vi - e voltou a encolher os


ombros.

- E você, Winter? - perguntou Truth.

Winter fez-se forte. Haveria mais ocasiões, mais lugares e

mais maneiras de enfrentar aquilo que a serpente representava,

agora que já vira claramente quem era o seu inimigo.

- Não sei bem como descrever este tipo de coisas.

Lembro-me de o Dr. Palmer ligar a gaiola, mas não me lembro

de a ouvir dizer-lhe que ligasse o gerador de emergência. Mas

vi-a fazer o que fez com as velas e os animais... - só então se

apercebeu de que não podia ter visto tudo o que pensava ter

observado. O esteio vermelho estava rigorosamente atrás dela;

aliás, como podia ela saber que era vermelho? As quatro velas

eram brancas, de início.

- E depois? - insistiu Truth. - Não se preocupe em

saber se o que pensa que viu é plausível...

- Aconteceu mesmo - teimou Winter. - Mas soa tão

estúpido... Vi-a desenhar figuras no ar e atirá-las aos esteios...

havia esteios... e eu... Foi uma coisa... eu sabia que você não

devia chamá-la, mas era demasiado tarde, e veio tudo por aí fora.

133
- Lá isso foi - disse Dylan. Foi até ao círculo, parou, baixou-se

e agarrou num borrão de cera e prata do tamanho de

um prato de sopa. - Parece-me que vais ter de mandar fundir

isto outra vez, minha querida.

- Mais tarde, Dylan - cortou Truth. - Lembra-se de

alguma coisa depois disso, Winter?

- Você disse-me para não tentar ajudar - disse Winter

pausadamente - e eu apercebi-me que parte da força daquilo

vinha de mim... que você não podia mantê-lo afastado enquanto

eu estivesse dentro do círculo.

- Coisa que eu devia ter imaginado por mim mesma disse

Truth pesarosamente. - E depois acrescentei que estava

tudo bem.

Winter concordou com um aceno de cabeça; o perigo

não fora criado por Truth mas sim por ela própria - mas fora

Truth quem pagara pelas suas promessas.

- Eu odiei... era ódio. - Inconscientemente, Winter pôs

a mão sobre o coração, como que recusando a expressão de

algo que permanecesse dentro dela. - Mas não acho que quisesse
matar-me. - Não, matá-la não, mas sim algo muito pior,

pois quando a mente, o próprio ego, desapareceu, que importa

se o corpo permanece em vida?

- Não - disse Truth -, ele não veio para matar. Era

outra coisa que ele pretendia de si. - Respirou fundo. - Não

posso cumprir o que prometi, Winter; peço desculpa. Podia

tentar chamá-lo outra vez...

- Não - disseram Winter e Dylan em uníssono.

- ... mas desconfio que teria pior sorte que desta vez,

mesmo estando preparada. Eu estava à espera de um doppelgãnger

ou de um dos Elementos Menores... - a voz de Truth

suspendeu-se; parecia estar a olhar para dentro. - O que eu

não consigo entender é como; aquele Círculo foi rompido há

quinze anos...

- Minha querida, não se percebe nada do que estás para

aí a dizer - disse Dylan.

Truth passou a mão pelo cabelo curto e trigueiro e

retraiu-se, talvez porque as mãos ainda lhe doessem, embora

não apresentassem marcas.

134
- Todos os acontecimentos mágicos têm uma assinatura,

uma espécie de estilo artístico: wiccano, cristão, rosacruz,

aurora dourada; cada um deles imprime uma marca característica.

Quem está habituado a determinada escola de magia até é

capaz de identificar o grupo ou escola donde provêm os acontecimentos

mágicos; é um processo semelhante à identificação

dos diferentes períodos correspondentes a cada quadro de

Picasso: o azul, etc.

- Ora, não é segredo para ninguém - concluiu Truth que

eu sei bastante acerca do Trabalho de Blackburn, e esta

maldita coisa... - faltou-lhe a voz, voltou, mas logo se encheu

de ânimo, esforçando-se por explicar as coisas de forma compreensível:

- O que veio ter comigo esta noite não era um

Elemento, de forma alguma. Foi um Elemento artificial, aquilo

que certas escolas chamam criança mágica: uma coisa criada

a partir da força viva de um mágico, e que é encarregada de

desempenhar certa tarefa em lugar inacessível ao seu criador.

São bastante fáceis de criar; este foi criado por uma pessoa

industriada no Trabalho de Blackburn e enviada a Winter. Uma


vez que ela fez parte de um Círculo de Blackburn, é possível

que seja capaz de identificar quem...

- Um mágico! - exclamou Winter, incrédula. - Não

conheço nenhum mágico... nem quero conhecer!

- Pois sim, mas há um mágico que a conhece a si - cortou

Truth - e se eu estivesse no seu lugar havia de descobrir

quem é e o que pretende.

- Não é possível... bem... pura e simplesmente mandá-lo

embora? - suplicou Winter; mas logo se envergonhou da

pergunta, lembrando-se que a primeira tentativa quase matara

Truth.

Truth abanou a cabeça e Dylan pôs-lhe o braço à volta dos

ombros, tentando reconfortá-la.

- Há-de voltar sempre. Qualquer tentativa de levantar

barreiras suficientemente fortes para o manter afastado acabaria

provavelmente por matá-la a si, e sem dúvida me mataria a

mim; a magia de Blackburn está de tal forma ligada ao mundo

dos vivos, que necessita de uma pessoa viva para dela extrair

energias. Energias vivas. E por vezes sangue.

135
- Por isso continua a matar os animais - concluiu

Winter desesperadamente. Por isso as mãos e a boca de Truth

tinham sangrado.

- Está a recorrer à energia gerada por essas mortes para

se manter na esfera da manifestação, no plano terrestre, no

mundo - disse Truth. - O facto de tomar formas de vida

cada vez maiores a intervalos de tempo cada vez mais apertados

preocupa-me; essa força de que necessita tem um objectivo

qualquer... mas qual? Até agora só atacou animais, mas se

passar aos seres humanos, às crianças... ou animais domésticos,

que estão mais próximos da espécie humana... - a voz

de Truth já se reduzia a um débil murmúrio, mal conseguindo

manter os olhos abertos, a grande custo, como Winter bem se

apercebia.

- Tens de descansar - sentenciou o Dr. Palmer. - Vou

levá-las às duas para minha casa e depois volto aqui para arrumar

isto tudo.

Só então Winter olhou com atenção para o laboratório.

Todas as superfícies expostas estavam cobertas de estilhaços


de vidro provenientes das janelas, dando ao conjunto um ar

grotesco de postal natalício. Se as cadeiras em que Truth e

Winter se sentavam se situassem perto das janelas, também

estariam cobertas de pó de vidro.

- Winter, não se importa de ficar com ela? - Truth tentou

emitir um protesto mas Dylan continuou. - Tenho um quarto

de hóspedes e não me apetece deixá-las sozinhas esta noite.

O Dr. Palmer vivia numa velha casa pintada de branco,

com traves de madeira à vista, num dos bairros residenciais de

Glastonbury. Era evidente que aquele bairro fora conquistado

aos baldios nos últimos anos - a velha casa rural do Dr.

Palmer parecia deslocada no meio dos edifícios modernos.

Winter acompanhava-os a rogo do Dr. Palmer - era sobretudo

Truth quem necessitava de apoio -, mas depois de instalarem

Truth e o Dr. Palmer regressar ao Instituto, Winter foi para o

pátio e sentou-se na vedação a ver as estrelas.

«Que significou tudo isto?» A vacuidade irrespondível da

pergunta fê-la sorrir pesarosamente. Por onde começar? Pelo

136
momento em que a sua vida sofrera um colapso? Ou depois

disso? Quando decidira esclarecer as suas convicções? Ou

quando descobrira a natureza dessas convicções?

«Está dentro de mim.» Não o poder que quase matara a ela

e a Truth nessa noite - e que a mataria se ela não conseguisse

aceitar a sua incrível realidade - mas o outro. A força que

parava os relógios e descarregava baterias e fazia cair as molduras

da prateleira da lareira. Isso fazia parte dela - a parte

que invocara... que nome lhe chamara Truth?... que invocara

a criança mágica.

Winter estendeu a mão de palma virada para cima e

observou-a, dubitativa. Tentara não se preocupar com o facto

de se estar a tornar um bicho raro de feira dos horrores. Não

valia a pena iludir-se; bem tentara ignorar todas essas questões,

mas elas tinham subitamente tomado conta da sua vida,

tinham-na empurrado para um mundo em que esse tipo de

contos da carochinha fazia parte da realidade. Em que a telepatia

coexistia a par da magia, em que havia seres invisíveis capazes

de atravessarem as paredes, em que os ténues impulsos


eléctricos do sistema nervoso humano podiam tornar-se suficientemente

potentes para...

«... queimar o circuito eléctrico de um carro, pelo menos.

Pobre Nina; a culpa foi MINHA. Tenho de convencê-la a deixar-me

pagar os estragos...»

Que ideia tão estúpida, sussurrou-lhe sub-repticiamente

uma voz interior - megalomania, ilusões dissociativas características

de um estado à beira da esquizofrenia. Não é normal

acreditar em coisas intangíveis. Não é saudável. Não é mentalmente

são.

«Quer dizer que não estou sã», concluiu Winter com

desesperante lucidez. «Não dar-me a esse luxo. O preço é

demasiado elevado.»

O apego à segurança das suas firmes crenças forçosamente

alimentaria os ódios entranhados, dando-lhes livre rédea. Se

queria exterminá-los, teria de acreditar na serpente; e se acreditasse

nela, teria de admitir a existência de tudo o que ela

implicava: a par do mundo corrente existia um mundo invisível,

um mundo em que os Anjos Cínzeos se passeavam pelas

137
colinas de Taconic e os navios fantasmas singravam o rio

Hudson. Nesse mundo, a telepatia e os poltergeist eram coisas

reais.

«Escolhe - disse Winter a si mesma. - Mas depois não

desdenhes. E não olhes para trás.

Acredita.»

Acreditar, como outrora, quando era uma rapariga no limiar

da vida e nada parecia possível. Antes de saber que todas

as brilhantes perspectivas com que lhe acenavam implicavam

irremediável desgosto e desapontamento.

Winter suspirou, espreguiçou-se e pôs-se em pé. Voltou

para dentro de casa e foi direita ao quarto, onde Truth dormia

a sono solto na cama de Dylan, com grandes olheiras de cansaço.

«Não posso descrer. Se isto é loucura, ilusão, conformismo

hipócrita, pois então que seja. A racionalidade já não me

serve de guia.

E eu acho que sei que caminho tenho de seguir a partir de

agora.»

Aliviada por ver Truth dormir a sono solto, Winter chamou


um táxi para regressar ao seu carro; antes, porém, escreveu um

recado ao Dr. Palmer. Sabia que ele não queria que ela ficasse

sozinha durante a noite, mas duvidava de ter realmente compreendido

o verdadeiro sentido das palavras de Truth, quando

esta lhe dissera que a criança mágica a perseguia a ela.

«Porquê?»

Essa devia ser a questão que toda a gente se punha,

enquanto esperava à porta da rua pelo táxi. Admite a magia,

admite os mágicos - seria essa a designação correcta? Mas

que razões levariam um mágico a enviar monstros em sua perseguição?

«Se ele pretendia enviar uma mensagem, bem podia ter

recorrido simplesmente aos correios.» Nesse momento o táxi

parou à porta.

Winter pagou a bandeirada e saiu do táxi no parque de

estacionamento da Faculdade - o seu Saturn novo estava no

138
parque de estacionamento dos visitantes, ao passo que o Dr.

Palmer deveria ter usado o dos funcionários da Faculdade, por

conseguinte seria pouco provável que se cruzassem. Winter

não sabia quanto tempo ele levaria a arrumar o laboratório dada

a barafunda que lá reinava, até custava a crer que ele

fosse capaz de dar conta do recado sozinho - mas calculava

que o trabalho de limpeza o mantivesse ocupado por algumas

horas; quando ele se apercebesse da sua saída, já ela estaria em

Greyangels. Mas, depois de o táxi desaparecer, Winter deixou-se

ficar no parque de estacionamento vazio, sem fazer qualquer

movimento para destrancar a porta do carro e partir.

Era quase meia-noite; a noite de Primavera estava muito

fresca, mas felizmente ela trouxera um impermeável Burberry

bastante quente, forrado a lã. Apenas se ouvia a sibilância do

vento nos pinheiros e, lá muito longe, do outro lado do rio, o

apito dos comboios. Há quanto tempo não lhe acontecia deixar-se

estar assim, descontraída e disponível ao mundo que a

rodeava? Tanto quanto se lembrava, sempre passara a vida a

correr - a correr para chegar asinha a qualquer lado, a correr


para ficar no mesmo lugar. Mesmo nos seus divertimentos

havia frenesi - encontros de fim-de-semana em Londres, em

Los Angeles, onde quer que houvesse gente e barulho e festas

que eram, em si mesmas, outra forma de guerra.

Há quanto tempo não se questionava sobre o fim de tanta

correria?

E lá voltava ela aos porquês.

Porque a perseguia a criança mágica?

... não, não, mais para trás ...

Porque deixara Fall River?

... mais para trás ...

Antes do mais: o que a levara a Fall River?

... ainda mais para trás ...

Porque escolhera a sua profissão?

Quente, quente, mas ainda não ...

O que a levara a isso? O que fizera da rapariga a mulher

que Winter Musgrave era hoje? Algo mais além do passar e o

crescer do tempo; passara-se qualquer coisa... não exactamente

aqui.

139
Winter queria respostas. Queria razões. Queria recuperar

os seus amigos, o seu passado, a sua vida. A sua verdadeira

vida.

E havia de recuperá-los.

Uma sensação de alívio, de triunfo - de adivinhar a resposta

da adivinha que não podia ser desvendada -, tão forte

que foi como uma nova pele que aconchegou o corpo.

Estreitou mais o casaco e meteu a chave na fechadura do

carro. Entrou e sobressaltou-se por instantes ao ligar a ignição;

mas, fosse qual fosse a força vingativa que a perseguia, encontrava-se

agora em repouso, e o motor do Saturn arrancou suavemente.

Winter guiou-o para fora do parque de estacionamento

em direcção à estrada de Leyden, caminho de Glastonbury,

direita a casa.

A casa de campo nunca lhe parecera tão acolhedora poderia

ser ilusório, mas era ilusão benigna. Apesar de todos

os horrores por que passara nessa noite, Winter abriu a porta

da frente sem medo. Pela primeira vez desde há mais tempo

do que ela gostaria de recordar, Winter não se sentia frustrada


a cada passo e a cada tarefa, por mais simples que fosse. Pôs

água ao lume para fazer chá - ainda não fora ao Inquire

Within, por isso teria de ser camomila -, carregou a salamandra

do quarto e acendeu a lareira do salão, sempre a meditar

no que deveria fazer daí em diante.

Truth parecia crer que o Trabalho de Blackburn tinha algo

a ver com a existência da criança mágica, e o facto de Winter

ter - como lhe mostravam os factos, se não a sua própria

memória - andado a brincar com o Trabalho quando era estudante

também parecia ter grande significado para Truth.

Dissera ela que a criatura que perseguia Winter era criação

de um mágico e, para mais, de um mágico industriado no

Trabalho de Blackburn. Mas Hunter Greyson - Winter cedia

esse ponto de barato - era o único mágico que ela jamais

conhecera. Porque faria Grey semelhante coisa?

E, sendo assim, onde se encontrava Grey, que fazia ele?

Nina descobrira o paradeiro de todos os antigos colegas de

faculdade excepto o dele - era muito estranho ter perdido o

140
contacto com ele, tanto mais que, segundo as suas próprias

recordações e as do professor Rhys, tinham sido muito chegados.

«Que terá acontecido?»

Voltava sempre às mesmas perguntas: que acontecera e

quando acontecera? Por outro lado, como compreendera

nessa mesma noite, as paradas em jogo eram demasiado elevadas

para perder tempo com perguntas de lana-caprina. Tinha

de encontrar Grey, encontrar os outros, encontrar-se a si própria,

encontrar respostas para o terrível enigma da tenebrosa e

sangrenta criatura que a perseguia.

Antes que fosse demasiado tarde.

«Está a acabar o prazo - pensou Winter, desesperada. Porque

é que ninguém me diz o que se está a passar antes que

seja demasiado tarde?»

141
CAPÍTULO SETE

O CARNAVAL DE INVERNO

In spite of all their friends could say,

On a winter’s morn, on a storm day,

In a Sieve they went to sea!1

EDWARD LEAR

Findava a tarde quando Winter meteu o seu novo Saturn

por uma rua sem saída nos subúrbios de New Jersey, onde

vivia Janelle Baker. «Porque será que as casas deste bairro têm

de parecer todas iguais? E se tem mesmo de ser assim, porque

não farão eles os números de porta maiores?» Também seria

preferível que não houvesse uma Madmenham Drive e uma

Madmenham Lane. Winter consultou as suas anotações pela

vigésima vez desde que saíra da estrada principal.

Largara de Glastonbury pela manhãzinha, com o nascer

do Sol, e o esforço de chegar até ali incutira-lhe uma sensação

puramente física de triunfo pessoal, reforçava-lhe o bom

humor e a determinação em ir por diante. Ainda não tinha

recuperado a boa forma física e o vigor doutros tempos, mas

dava-lhe prazer o facto de conhecer os seus limites e ser capaz


de os fazer render ao máximo.

«Como se renascesse.»

Sentira-se tentada a sair de Glastonbury sem avisar ninguém,

mas o sentido de responsabilidade - pelo sofrimento de Truth e

pelo carro de Nina - obrigou-a a telefonar a Dylan Palmer na

véspera, depois de feitos todos os preparativos da viagem. Passou-se

isto na manhã seguinte ao desastroso confronto com o Elemento,

ainda ela se encontrava abalada pelos acontecimentos. A

conversa não foi agradável, mas outra coisa não seria de esperar.

1 Contra o conselho de todos os amigos, / Numa manhã de Inverno, num dia


tempestuoso,

/ Fizeram-se ao mar numa casca de noz! (N. do T.)

143
- Não pode sair daqui para fora a correr! - vociferou

o Dr. Palmer ao telefone.

- Nesse caso diga-me como quer que saia - ripostou

Winter, num tom de contenção que os seus antigos colegas da

Arkham Miskatonic King bem conheciam e temiam. - Além

disso não me parece que precise da sua autorização. Estou a

informá-lo por pura delicadeza, nada mais. Como está Truth?

- acrescentou Winter, mudando bruscamente de assunto.

- Está... está bem - admitiu o Dr. Palmer, contrariado.

- Mas espero que reconsidere essa viagem, Winter.

Lembre-se que não está sozinha nesta história... pense.

Lembre-se que tem amigos e aliados...

- Aprecio muito a sua preocupação - disse Winter, em

tom mais conciliatório. - Mas convém-me investigar certos

aspectos antes de aceitar a sua oferta - sorriu-se desta

frase, que surgiu como um eco dos tempos de Wall Street. Parece-me

que sou capaz de descobrir quem é este «mágico»

que, segundo vocês dizem, anda atrás de mim.

- Acha que é Hunter Greyson? - perguntou o Dr.


Palmer, com argúcia.

NÃO! Um pressentimento imperioso dizia-lhe que Grey

não podia ser responsável por tanto ódio e sofrimento.

- O Grey é o único mágico que eu jamais conheci, Dr.

Palmer. Talvez ele saiba onde devo procurar o vosso.

«Se porventura conseguir encontrá-lo...»

Hunter Greyson andava irritantemente desaparecido, mas

os restantes companheiros de curso não eram tão difíceis de

encontrar. Winter chegou a Rappahoag por volta do meio-dia,

inscreveu-se no primeiro hotel que encontrou e ligou o número

de Janelle Baker que Nina Fowler lhe dera.

«Não me posso esquecer que ela agora se chama Janelle

Raymond», pensou Winter enquanto parqueava o carro frente

ao número 167 da Grammercy Park Road. Janelle casara-se e,

tal como os outros, seguira o seu rumo; mas mostrou-se encantada

por ouvir a voz de Winter, quando esta lhe telefonou do

Hotel Marriott.

144
Deveria dizer a Janelle que não se lembrava dela? Winter

inquietou-se. Talvez não fosse preciso dizer nada - tinha esperança

que a presença da mulher, que um dia fora uma das suas

amigas mais íntimas, lhe despertasse a memória reprimida.

«Reprimida? Que estranha ideia! Que diabo poderia reprimir

a recordação de quatro anos de faculdade?»

- Winter!

Winter despertou das suas congeminações, à vista da

ruiva reboluda que lhe acenava, em bicos dos pés, do alpendre

da pequena vivenda. Janelle vestia um fato de treino verde-bandeira

com aplicações de tecido escocês no peito e uma bandelete

também forrada de escocês a prender-lhe os cabelos fulvos.

«Parece uma boneca de trapos sem nenhum sentido da

moda», pensou Winter com rudeza automática, mas logo se

penitenciou. Depois notou que algo no aspecto da amiga despertava

um subtil alarme, embora Janelle tivesse um aspecto

limpo e saudável - e indubitavelmente bem alimentado.

«Oh, pára com isso!», censurou-se Winter, saindo do carro.

Respondendo ao aceno de Janelle, atravessou a rua.


O interior da casa era tão implacavelmente vulgar como a

fachada exterior; Janelle levou-a para a sala de estar, que parecia

decorada por um catálogo de correio. No meio da sala atafulhada

destacava-se um sofá cinzento aveludado ainda com a

etiqueta da loja, duas mesinhas de acrílico ladeavam um maple

com ramagens em tons de pêssego, e o candeeiro de pé alto

combinava com dois abat-jours também cor de pêssego sobre

as mesinhas. A carpete acrílica, em tom neutro, estendia-se de

ponta a ponta da sala, para ir morrer debaixo dos pés dos

armários e do móvel das aparelhagens. As prateleiras da estante

estavam carregadas de vídeos e objectos bibelots indubitavelmente

provenientes do mesmo fornecedor da mobília. O

conjunto era intransitável e impessoal.

Winter sentiu engulhos de repugnância, não lhe passando

pela cabeça que houvesse algum obscuro motivo por trás de

toda aquela decoração pretensiosa. A sala parecia saída de um

catálogo da Moviflor, mas não era isso que criava o ambíguo

145
ambiente despersonalizado. Winter despediu estes pensamentos,

incapaz de extrair deles a conclusão lógica.

A única coisa que não condizia com o resto da decoração

era o quadro pendurado por cima do sofá.

Tratava-se de uma paisagem, pintada com as quentes

cores estivais da Nova Inglaterra: um bosque, à volta de uma

clareira de papoilas; no centro, chamariz do olhar, o reflexo

argentino da Lua numa lagoa, em plena luz do dia, e, ao lado,

um unicórnio expectante.

- Continuas a pintar? - foi a pergunta espontânea de

Winter, exultante da lembrança. Janelle tinha sido pintora. Não

restavam dúvidas de que a recordação era genuína.

Mas...

- Quem me dera ter tempo para essas coisas - disse

Janelle. - Se soubesses... Desculpa, estou para aqui a dizer

baboseiras e tu especada à porta. Dá cá o casaco... hum, Burberry,

bem bonito... Ficas para jantar, não ficas? Claro que

ficas; e vais conhecer o Denny; falei-lhe tanto de ti, que ele

anda morto de curiosidade. Deixa-me pendurar o teu casaco


no quarto dos hóspedes; anda, é por aqui. Onde é que estás

hospedada?

Seguindo Janelle pela casa, Winter suspirou de alívio por

já se ter instalado no Marriott. Aquela vivenda suburbana era a

antítese da de Greyangels; não se achava capaz de suportar o

sacrifício de pernoitar em casa de Janelle.

- Oh, que pena - lastimou Janelle. - Temos um quarto

de hóspedes delicioso, já vais ver; em tempos foi o meu estúdio,

mas agora ninguém se serve dele; a não ser a mãe do

Denny, quando cá vem. Que pena não teres ligado mais cedo,

podias ter ficado cá em casa.

«Ah, não, não podia.»

O quarto dos hóspedes era semelhante ao da sala de estar.

A escolha do mobiliário fora feita menos em função do gosto

pessoal do que dos padrões standard. Uma cama de ferro forjado

e arrebicado, uma cómoda, uma parelha anódina de

estampas com motivos florais penduradas nas paredes.

- Dantes tinha aqui os meus quadros, mas a mamã

Raymond queixou-se de que lhe fazia dores de cabeça olhar

146
para eles, de modo que nos ofereceu estes - esclareceu

Janelle, enquanto abria o roupeiro para pendurar o casaco de

Winter. - Pousa a mala em qualquer lado; como é que consegues

carregar um malão desse tamanho, parece que andaste a

raptar bebés!

Winter riu-se, sentindo um baque de ternura pela amiga.

Janelle sempre fora apalhaçada - era a sua forma de encapotar

a timidez. Winter atirou a mala para cima da cama.

- Então como tens passado? - disparou Winter, desajeitadamente.

- Não nos vemos há tanto tempo!

- Tu nunca telefonas, nunca escreves... - cortou Janelle

impetuosamente. - Mas também a verdade é que nunca cheguei

a agradecer-te o presente de casamento, e já lá vão... ora

deixa ver... oito anos?

Winter ficou a matutar no que lhe teria oferecido.

- Que bom que é voltar a ver-te; estás com óptimo

aspecto - Janelle encostou-se ao armário, a olhar para Winter

com verdadeira inveja.

- Obrigada, tu também.
- Ha! - riu Janelle, desenganada. - Nem toda a gente

consegue manter a linha. Anda daí, vou fazer-te um café.

A cozinha, que também servia de casa de jantar, estava

decorada em estilo rústico, azul e bege, com gansos de laçarote

ao pescoço por toda a parte. Janelle sempre tivera gosto por

coisas que os outros membros do grupo consideravam insuportavelmente

pirosas, pensou Winter, mais por intuição que

por lembrança segura.

- Continuas a coleccionar ursinhos de peluche?

Os olhos de Janelle enrugaram-se num sorriso:

- Sim, às vezes. Lembras-te dos Ursos Perdidos?

- E tu eras a Wendy - disse Winter, deitando-se a adivinhar.

- E havia o Tiger-Lily Bear, e o Cub-tain Hook. Tenho saudades

deles - suspirou Janelle. - Vá lá, senta-te - ordenou,

mudando rapidamente de assunto. - Vou fazer o café.

Janelle continuou a tagarelar ao mesmo tempo que cirandava

pela cozinha, servia bolinhos, filtrava o café, e desfiava a

147
história dos últimos anos, sem que Winter precisasse de fazer

uma única pergunta.

- Vê lá tu que conheci o Denny numa loja de computadores:

íamos lá buscar uma ou duas encomendas de material

por dia e era ele quem nos atendia. Tanto nos vimos todos os

dias, que acabámos por... - Janelle sacudiu os ombros e cortou

a torrente do discurso com uma trincadela num biscoito.

Não era este o destino que Winter tinha vaticinado a

Janelle, anos antes.

- Loja de computadores? - perguntou ela, entre dois

golos de café. Janelle adoçara-o em demasia.

- Pois é - respondeu-lhe a amiga evasivamente. Apesar

da sua insistência em cavaquear, nunca deixava de cirandar de

um lado para o outro, não parava um minuto na cadeira, corria

por todos os cantos da cozinha como se tanto quisesse confessar-se

como fintar confidências.

- Mas então a tua carreira de belas-artes? - a súbita lembrança

do assunto levou Winter a pôr a questão sem mais

rodeios, com a mesma espontaneidade clarividente que lhe


trouxera a imagem à mente: Janelle aplicada sobre os esquiços,

Janelle a sobraçar a pasta dos desenhos... - Lembro-me muito

bem que conseguiste vender algumas pinturas a uma editora

e...

- Não tinha futuro - interrompeu Janelle bruscamente.

- De resto ninguém consegue viver à custa de trabalhos de

ilustração, a não ser que seja um Michael Whelan ou coisa que

o valha. E tu, que tens feito?

«Bem, acabo de sair de uma clínica para doentes mentais

e estou a ser perseguida por um monstro invisível...»

- Ando a tirar umas férias bem merecidas - disse

Winter diplomaticamente. - Sinto-me um bocado embaraçada

por te ter telefonado assim de repente...

- Ora, para que servem os amigos? - disse Janelle, sentando-se

finalmente na cadeira, com um suspiro. - Não ligues

ao meu ar: levantei-me às cinco da manhã para tratar do quintal...

mais uma vez.

- Que aconteceu? - perguntou Winter, distraidamente.

Olhou lá para fora, através da janela por cima do lava-loiça. As

148
cortinas de cozinha, também elas com padrão de gansos de

laçarote, balouçando ao vento, desvendaram de repente uma

extensa racha no vidro da janela.

- São os malditos miúdos. Denny chama-lhes seita satânica,

diz ele a brincar, acho eu. Andam pelo bairro inteiro a despejar

caixotes do lixo para o meio da rua, a virar de pantanas

os vidrões, e coisas assim. Mas o que eu acho mais doentio é a

mania que eles têm de andar à cata dos animais atropelados

na estrada para os porem à nossa porta. Se uma pessoa não toma

atenção quando vai a sair de casa, tropeça neles logo pela

manhãzinha - concluiu ela com uma careta.

- Mais alguma coisa? - perguntou Winter, com súbita

secura na garganta.

- Alguma coisa como? - perguntou Janelle, baralhada.

- Alguma coisa estranha: como portas que se abrem sozinhas

e tempestades inexplicáveis. Ou avarias esquisitas no

carro. Ou objectos que se partem. - Estava demasiado paranóica

para acreditar em coincidências, e a descrição de Janelle

assemelhava-se tanto à sua própria litania de queixas... às diabruras


do seu poltergeist e a outros acontecimentos ainda mais

tenebrosos...

Janelle riu-se:

- Não são precisas explicações rebuscadas para as coisas

partidas, quando eu ando por perto! O Denny costuma dizer

que mais valia comprarmos a louça por atacado! Francamente,

Winter, achas que New Jersey foi invadida pelos fantasmas, ou

quê?

- Não. - «Sim, mas como hei-de eu explicar-te semelhante

coisa?» - Oh, claro que não, Jannie. Mas por que é que

não te sentas e tomas o teu café? Tens tido notícias dos outros?

A mudança de assunto era desajeitada, mas Winter tinha a

sensação crescente de que a conversa tropeçava em pequenos

silêncios embaraçados, como se houvesse um grande segredo

que ambas partilhavam mas que não podiam trair. «O problema

é que não sei do que se trata... ou sei?»

Fosse por que razão fosse, Janelle aproveitou logo a deixa:

- Oh, sabes como é: não há grande motivo para manter

relações com toda a gente, não é? O único que dá notícias é o

149
Ramsey, e mesmo esse limita-se a enviar postais no Natal.

Ainda pensei em ir à reunião do décimo aniversário de curso,

mas o Denny não estava disposto a aturar durante um dia inteiro

um magote de pessoas que nunca tinha visto mais gordas, e

ainda por cima era muito longe...

«Mas eu fiz a viagem num só dia...», contrapôs Winter

mentalmente; Janelle, como se lhe tivesse lido os pensamentos,

respondeu:

- Às vezes as distâncias variam consoante a pessoa que

as percorre.

Quando Denny chegou do trabalho, Winter já previra que

não ia gostar dele; e de facto o que viu logo nos primeiros

cinco minutos não a fez mudar de opinião.

Dennis Raymond andava na casa dos quarenta, mas envelhecia-o

aquele seu ar invariavelmente contrariado. Quando

entrou trazia um fato um pouco reles, de corte desconchavado,

e sobraçava uma pasta abarrotada. Winter classificou-o

imediatamente dentro do estilo «vendedor ambulante», equivalente

masculino da secretária sem futuro. De cabelo oleoso e


enfraquecido, tudo nele cheirava a derrota de braços caídos;

era o tempo, e não ele, quem seguia em frente.

«Mas é isto a vida; não se trata de uma passagem de modelos»,

pensou Winter, sopeando o aperto que lhe crescia no

peito.

Dennis entrou na cozinha, atirou casaco e pasta para cima

de uma cadeira e lançou-lhe um olhar de porfia, analisando-a

como se estivesse a avaliar o preçário de tudo o que ela trazia,

desde os sapatinhos Aigner até à camisola de caxemira, passando

pelas pedras dos brincos. Avaliando... com ressentimento.

- Então esta é que é a tua amiga, ha, Jeenie? - disse

ele. A voz correspondia à pessoa: agressiva e tosca; Winter,

que passara dias inteiros de trabalho a gritar a plenos pulmões

e depois tinha de recuperar do estrago, sobressaltou-se aos

rouquejos de Dennis Raymond.

- Apresento-te Winter; lembras-te de te ter dito...

- O que é o jantar? - atalhou Denny. Sondou toda a

cozinha, farejando e fungando como um perdigueiro.

150
Nas últimas horas o cheirinho da carne assada com vinha

de alhos fora tomando posse da cozinha. Janelle era cozinheira

excelente mas muito ansiosa, sempre preocupada com os

ingredientes, com a andadura dos cozinhados...

- Carne assada em vinha de alhos; pensei que... - recomeçou

Janelle.

- Bem, despacha-te lá, se fazes favor. Estou esfomeado.

Quando um homem se esfalfa a trabalhar para ganhar a vida disse

ele, lançando um olhar rancoroso a Winter -, tem o

direito de ser devidamente recebido quando chega a casa...

faço-me entender?

«Sim; mas não tens o direito de fazer dos outros teus

escravos, sem uma palavra de agradecimento.» Ela própria trabalhara

arduamente (mais do que Dennis jamais sonhara ser

possível) durante longos anos; levantava-se em plena madrugada

para recolher notícias de Tóquio e da bolsa de Londres,

engolia a trouxe-mouxe o desjejum da manhã enquanto lia

atenta as tabelas de Wall Street e esperava que Chicago acordasse

para, finalmente, dar início ao período mais frenético do


seu dia de trabalho. Era obrigada a ter quem lhe fizesse as compras,

quem lhe preparasse as refeições - mas nunca partira

do princípio que tudo isso lhe fosse devido por direito natural.

Eram coisas que ela tinha de pagar e sentia-se grata por poder

dar-se ao luxo.

- Pois claro, meu querido - disse Janelle, apreensiva,

vigiando Winter de quando em quando, com ar preocupado.

Sem que lhe pedissem, tirou um copo do aparador, encheu-o

de gelo, foi buscar uma garrafa ao armário debaixo do lava-loiças

e serviu uma generosa dose de bourbon.

- Queres um copo, Winter? - perguntou ela, tentando

tornar o ambiente mais sociável.

- As mulheres não deviam beber - disse Denny, pegando

no copo.

Winter reprimiu a tentação de pedir um bourbon duplo a

Janelle e ver se conseguia bater Denny aos pontos.

- E o que é que acha que as mulheres deviam fazer, Sr.

Raymond? - perguntou Winter em tom melífluo. Cruzou as pernas

e recostou-se na cadeira, com uma leve sensação de triunfo

151
ao sentir a saia cinzenta de flanela subir-lhe pelas pernas, deixando

a descoberto as meias Evan Picone, e o olhar de Denny a

seguir o movimento. O sexo é uma arma, como Jack gostava de

repisar, e competia-lhe a ela utilizar todas as armas que o bom

Deus lhe tinha fornido, para alcançar o que pretendia.

Ó céus, que saudades de Jack! Fora ele o seu mentor; para

ele trabalhara desde o primeiro dia da sua chegada a Wall

Street; nele e em Lorna tivera os seus melhores amigos. No ano

anterior, quando ele morreu...

- Acho que não se deviam armar em homens - disse

Denny, despachando a segunda metade da bebida. Começava a

ficar congestionado pelo álcool; à medida que o tempo passava

e o bourbon minguava, ia-se-lhe a boca afilando num traço.

«Ataque de coração daqui a um ano», profetizou Winter,

enquanto se preparava para disparar nova réplica (desde os

vinte e cinco anos que estava acostumada a aniquilar palermas

destes); mas a tempo reparou na expressão de pânico de

Janelle, com os olhos a saltarem de dor e súplica.

Winter respirou fundo, refreou-se - quase esquecera as


possíveis consequências dos seus estados de irritação. Se o poltergeist

regressasse ao ataque naquele momento... Voltou a

respirar fundo, mantendo em mente os músculos do peito e

do estômago (onde, segundo o panfleto do Inquire Within, se

concentrava a raiva) e procurou descontrair-se.

- Tem toda a razão - disse Winter. - Jannie, posso ajudar-te

a pôr a mesa?

Embora a cozinha da vivenda tivesse uma mesa própria

para refeições, também havia uma pequena sala de jantar respeitosamente

apetrechada com um serviço americano de oito

peças da Sears. Denny Raymond - que nessa altura já ia no

terceiro bourbon - devorou a carne, engoliu as cenouras e

despachou as batatas num silêncio apenas interrompido por

pedidos monossilábicos de mais comida. Winter deu por si a

lançar espreitadelas sub-reptícias ao relógio, numa contagem

decrescente para o fim do jantar, momento em que poderia

despedir-se airosamente.

«Mas ainda tenho de perguntar a Jannie se sabe do Grey.»

152
A verdade é que Janelle não se referira a ele durante a

conversa da tarde, mas mesmo que nunca mais o tivesse visto

era possível que fizesse alguma ideia do seu paradeiro ou de

pistas para o encontrar. O problema, porém, seria descobrir

forma de abordar a questão, sobretudo com Dennis Raymond

ali presente, a olhar para ela como para o pior dos inimigos.

«Que de facto sou: uma mulher que ele não consegue

assustar nem vencer. Pela medida-padrão de Denny (o dinheiro)

sou eu que o bato aos pontos, coisa que ele não pode perdoar.»

Olhou de soslaio para Janelle, que, em contraste com toda

a sua anterior tagarelice, mantinha estrito silêncio desde que

se sentara à mesa e nem sequer olhava para eles. Tendo em

conta os modos de Denny (ou a falta deles), Winter estranhou

o pedido de Janelle para que os acompanhasse ao jantar. Teria

sido mais avisado sair antes de Denny chegar.

«Ou não?» Súbita dúvida arrepiou-a. Como seriam os serões

do 167 da Grammercy Park Road, no isolamento daquela

casita suburbana, com um homem que abominava o mais ligeiro

laivo de suficiência feminina?


«Não admira que Janelle tenha abandonado a pintura»,

ponderou Winter, comovida até à beira das lágrimas.

- Então diga lá: o que é que fez na vida? - satisfeitos os

apetites primeiros, Dennis Raymond dispunha-se a fazer sala.

Mas, de sentidos apurados pela crescente tensão e contrariedade,

Winter percebeu que o que para outras pessoas seria conversa

de salão, era para Dennis simples meio de preparar novo ataque.

Desgraçadamente, se Winter retaliasse quem pagava as

favas não era ela, mas sim Janelle. Exorbitante preço.

- Tenho lugar cativo na Bolsa de Nova Iorque - disse

Winter, embora não fosse rigorosamente assim; era a Arkham

Miskatonic King que desembolsava elevada quantia pelo lugar

na Bolsa, e não ela; aliás, não duvidava de que o seu passe já

devia ter ido parar a outras mãos, por esta altura.

O resultado da resposta foi impressionante.

- Eh lá! - Dennis, meio sufocado, abanou a mão. Já não

estava lá muito sóbrio. - Então você deve ser daquelas que

acham que podem passar muito bem sem nenhum homem.

153
Misteriosamente, esta tirada fê-la pensar outra vez em

Grey; se se concentrasse, era capaz de imaginar-lhe a presença,

ali mesmo, de sobrolho circunflexo, sorriso trocista a brincar-lhe

no rosto.

- Denny... - disse Janelle.

- Cala boca, Neenie! Estou a falar com a tua convidada. É

ou não é verdade, s’ora Musgrave, que é uma daquelas mulheres

que pensa que vale tanto como um homem?

«Valho tanto como alguns e mais do que outros. E tu nem

chegas a ser um homem, Dennis Raymond: não passas de um

casmurro, de um fedelho mimado, e estás a pedir um par de

estalos. Bem dados.»

Ouviu-se, vindo da cozinha, um estilhaçar de vidros que

pôs Winter em sobressalto. Teria sido ela a causadora?

Dennis arredou a cadeira, a praguejar.

- Malditos miúdos - disse ele, com a voz cada vez mais

entaramelada. Lá conseguiu pôr-se em pé e cambalear em

direcção à cozinha.

- São os tais miúdos - disse Janelle. - Atiram pedras à


casa. A semana passada partiram o vidro da janela da cozinha,

de alto a baixo.

«Oh, não, não foram eles», pensou Winter com desesperante

certeza. Ouviu mais um estalido vindo da cozinha, seguido

do horrível vozear de Dennis. Depois, o som da porta da

cozinha a abrir, logo fechada com estrondo.

- Foi lá fora. Mas nunca consegue apanhá-los - disse

Janelle, com abatimento.

«É a minha grande oportunidade.»

Com fria determinação, Winter pôs de parte as emoções e

sobressaltos da noite, enchendo-se de genica, como se tivesse inalado

uma golfada de oxigénio puro. Se não indagasse agora acerca

de Hunter Greyson, talvez não houvesse nova oportunidade.

- Jannie, lembras-te de Hunter Greyson? Lembras-te do

lago Nuclear e das coisas que costumávamos lá fazer?

O rosto de Janelle iluminou-se; animada sim, mas melancólica:

- Ó meu Deus, Grey! Há anos que não pensava nele!

Vocês os dois separaram-se, não foi?

154
«Ou... coisa parecida.»

- Quer dizer que nunca mais soubeste dele? - insistiu

Winter, por via das dúvidas. Só mais tarde deu conta de que

Janelle rodeara completamente a questão do lago Nuclear.

- Não. - Janelle perdeu o entusiasmo, regressando à sua

abstracção defensiva. - Talvez o Ramsey saiba qualquer coisa,

mas a verdade é que nunca o mencionou.

Nesse instante Denny Raymond irrompeu de novo sala

adentro. Trazia o rosto escarlate e aproveitara a passagem pela

cozinha para recarregar o copo, desta feita meio cheio de

bourbon - sem gelo.

- Mais uma vez, os teus amiguinhos conseguiram pôr-se

a salvo - disse ele a Janelle. E depois, dirigindo-se a Winter:

- É ela que os encoraja. Andam sempre a fazer-lhe tagatés, a

flanar por aí, e ela dá-lhes de comer, é o que é, em vez de ir

cada um chatear em casa própria, não é assim?

- A maior parte das mulheres das redondezas trabalha desculpou-se

Janelle. - Eu limito-me a...

- Tu limitas-te a permitir que abusem de ti, Neenie, e não


te esqueças do que eu te disse: tu não trabalhas; eu avisei-te,

quando casei contigo, que tratava de ti, não foi? Quanto a essa

gente que não se importa que as respectivas mulheres trabalhem...

resumindo e concluindo, não hás-de ser tu a tomar

conta dos filhos delas... ou seja do que for que lhes pertença...

e se ponho as mãos nesses badamecos... - a voz foi-se-lhe

sumindo vergonhosamente, e ele ficou a olhar com ar acusador

para as duas mulheres, como se elas o tivessem contradito.

Estranha maneira de tomar conta da mulher, pensou

Winter. Era isto que Janelle sonhara ao casar? - ficar à mercê

doutra pessoa que tomava todas as decisões, todas as liberdades,

de forma a não ter de encarar o seu próprio êxito ou

falhanço?

Certamente não. Ela era oito anos mais nova quando casara

com ele; além disso vivia o auge do amor romântico.

Certamente não sabia quem Dennis Raymond era - ou no

que se tornaria.

Mas agora sabia. E continuava ali.

155
O resto do jantar continuou acompanhado por ruídos

inexplicáveis vindos da cozinha, mas Denny não tornou a

levantar-se para investigar. Em vez disso queixou-se da qualidade

da refeição, criticou o estado da casa (apesar de esta se

encontrar imaculada) e refilou contra o aspecto de Janelle; até

que Winter já não conseguia dominar-se, arredar a ideia traiçoeiramente

perigosa de que se a criatura que a perseguia e

que, desafiando as leis do espaço e do tempo, parecia estar ali

presente, ao mesmo tempo que assombrava Glastonbury, se

essa criatura gostava tanto de ferir e matar, ali tinha excelente

candidato a não perder. Rezou para que não pudesse exercer

tal influência, pois era certo que se Denny aparecesse morto,

ela dificilmente se perdoaria a si própria, por muito agradável

que parecesse a perspectiva naquele momento.

Por fim, o jantar terminou, a sobremesa consumiu-se, e

Winter, pondo-se prontamente em pé, agradeceu a Janelle o

delicioso jantar e garantiu que tinha de partir.

- Amanhã de manhã cedinho tenho de fazer-me à estrada,

convém que esteja fresca. Gostei imenso de voltar a ver-te,


Jannie; e tive muito prazer em conhecê-lo, Sr. Raymond.

Winter aprendera em Wall Street a mentir apaixonada e

convictamente nestes pequenos nadas, e foi isso mesmo que

ela fez naquele instante.

- Passe por cá quando quiser - convidou Denny mas

num tom que o desmentia claramente. Nem sequer se levantou,

deixando-se ficar a olhar para o copo vazio.

Janelle acompanhou Winter ao quarto de hóspedes para

buscarem o casaco e a malinha. Por mero acaso, quando Janelle

estendeu o braço para soltar o cabide, Winter estava a observá-la

- e viu-lhe as equimoses à volta do pulso, como braceletes

verde-amarelas. Assim se confirmavam as mais tristes suspeitas.

- Sabes que podias abandoná-lo, não sabes?

- Sim - Janelle virou-se para ela, com o casaco na mão.

- Mas para onde havia eu de ir? De resto, que importância

tem? Eu não valho nada.

- Vales, sim, Jannie - retorquiu Winter, furiosa.

Mas Winter sabia que não havia palavras capazes de rom-

156
perem o espinheiro psicológico que Janelle semeara à sua

volta. Denny, por muito monstruoso que fosse, era simples instrumento

de que Janelle Baker - a esperta, a talentosa Janelle

- se servia para anular o seu próprio êxito, para rasteirar qualquer

hipótese de sucesso. Por esse tipo de liberdade Janelle

estava disposta a pagar qualquer preço.

Mesmo que fosse este.

Janelle, seguindo o olhar de Winter, puxou para baixo a

manga da camisola.

- É... é só às vezes. Mas não é por maldade - disse

Janelle, teimosamente. - Aliás, foi um acidente.

Quantas marcas esconderia o fato de treino verde que a

cobria do pescoço aos pés, pensou Winter. Sem dúvida, na

ausência sistemática de testemunhas, Denny Raymond iria

num crescendo, de «às vezes» chegaria a «todos os dias» (se é

que não chegara já); um dia, os seus punhos dariam a Janelle o

olvido por que ela tanto ansiava.

- Como pôde acontecer semelhante coisa? - perguntou

Winter, mas já não se referia aos espancamentos. Janelle encolheu


os ombros; as lágrimas começaram a correr-lhe lentamente

pela face.

- Não sei, Winter. A gente faz opções; e quando um dia

descobrimos que a primeira foi errada, que devia ser emendada,

já a agravámos com outras cinco em cima dessa, e depois

mais dez... e já não é possível voltar atrás. Pura e simplesmente

é mais fácil deixar andar. Porque nessa altura já estamos

completamente enredados, e mesmo que fosse possível voltar

atrás, recomeçar tudo desde o princípio, as hipóteses que pensávamos

ter aos vinte anos já se desfizeram em fumo... E de

resto sabe-se lá no que é que teriam dado, se as coisas tivessem

corrido doutra maneira. Nem eu tenho coragem para tanto.

Winter assentiu com gesto mudo, mordendo o lábio para

suster o choro. Por fim, conseguiu articular:

- Se eu puder...

Janelle pousou-lhe a mão no braço:

- É demasiado tarde, Winter. Demasiado tarde para todos

nós. Mesmo para Grey, onde quer que ele esteja. Demasiado

tarde.

157
CAPÍTULO oito

WINTER E O MAU TEMPO

Blow, blow, thou winter wind,

Thou art not so unkind

As man’s ingratitude. 1

WILLIAM SHAKESPEARE

De volta ao limpo, asséptico quarto de hotel tão anódino e

desalentado como a casa de Janelle, mas com maior razão de o

ser - Winter entregou-se a um atormentado vaivém. Não recuperara

ainda a boa forma; deveria, portanto, acusar o cansaço

da longa viagem e dos acontecimentos do dia; mas a frustração

dera-lhe tal energia que corpo e alma se lhe agitavam num frenesi.

Como podia ela deixar Janelle em tão horrível situação,

casada com um homem que a espancava e desprezava?

«E que um dia há-de matá-la. Um dia destes.» Truth

Jourdemayne teria chamado a esta visão «flash psíquico»;

Winter Musgrave sabia apenas que se tratava de uma intuição

desagradável e impossível de provar mas da qual não duvidava.

E a suspeição amarga, terrível de que Janelle daria por bem

vinda essa libertação não lhe servia de alívio.


Toda a vida Winter fora realista - aceitava de bom grado,

ou pelo menos cordatamente, todas as coisas que não podia

alterar, por muito que as detestasse. «E eu detestava-as - pelo

menos detestava muitas delas.» Mas o dia-a-dia de Janelle

encheu-a de um enorme sentido de injustiça: Janelle podia ter

medo do seu talento artístico, mas isso não implicava que

tivesse de ser tão castigada por não usar os seus dons.

«Que homem tão convencido, arrogante, malévolo, hipócrita

e cobarde!» Winter cravou as unhas nas palmas das mãos

1 Sopra, sopra, vento de Inverno, / Tu, que não és tão cruel / Quanto a humana
ingratidão.

(N. do T.)

159
até a carne sangrar. O rosto de Dennis Raymond não lhe saía

da cabeça. Ele não era o diabo - Winter tivera um encontro

com a besta, brevíssimo mas suficiente para saber quem era

não era -, mas sim o tipo de pessoa que se deixava habitar

pelo diabo e depois se lastimava e choramingava, na ânsia de

escapar às consequências dos seus actos.

Winter encheu-se de um fervor, de um afã que, curiosamente,

a deixava entorpecida, ao mesmo tempo que se sentia

dolorosamente desperta. Os inofensivos tons neutros da carpete,

das paredes e da colcha daquele quarto do Marriott pareciam

tornar-se mais ácidos, como se tingidos de luz, e o cru

fulgor amarelo da lâmpada da cómoda parecia ter-se enchido

de iridiscências coruscantes. Sentiu o peito incendiar-se junto

ao coração; uma certeza rapace...

Os frascos de cosméticos alinhados na cómoda começaram

a bailar sobre o tampo do móvel, como se agitados por

um tremor de terra. Winter, com horrorizada intuição, percebeu

que a serpente-ódio que vivia dentro dela estava a despertar,

a abrir caminho para fora da sua pele; olhou para baixo e


viu a sua própria pele a emitir uma mescla brilhante de cores

tremeluzentes, à medida que o intolerante guardião monstruoso

que a habitava crescia em busca da presa.

«Não!»

Winter abateu-se lentamente sobre os joelhos, enquanto o

fraco tinido dos objectos da cómoda crescia até lhe soar aos

ouvidos com a potência de uma avalanche. Não permitiria que

isto acontecesse ali - a criatura que a perseguia, a criança

mágica, a criatura que ela não conseguia controlar -, o poltergeist,

nascido do seu âmago, deveria sujeitar-se ao seu

comando. Estava na sua mão controlar aquela vergonhosa sombra

gémea; chegara a essa conclusão na noite fatídica do

Instituto. Mas a tensão que lhe avassalava o corpo era quase

sexual na intensidade, ambiguamente imperativa de liberdade.

Winter quase se rendeu ao pânico e à exigência da besta mas

entrar em pânico equivalia a tudo perder.

Ceder ao pânico significava falhar.

Winter viu o falhanço como um manto de gelo, como a estação

que lhe dava o nome. Tentou concentrar-se, mas não era

160
capaz de se lembrar do freio que podia travar aquela coisa que

dela se alimentava, que a seduzira ao ponto de a deixar bloqueada,

incapaz de controlar a energia e a tensão que a dominavam.

Respirou fundo, forçou os pulmões a expandirem-se contra

o peso que lhe esmagava o peito. E nada mais lhe restando

com que lutar, assestou a atenção e a vontade inerme contra a

força em que ainda apenas mal acreditava.

«Não. Não te permito. Eles não são teus, não podes brincar

com eles. Nem são meus, não posso apropriar-me deles.

São gente, pertencem a si próprios, escolhem seus próprios

caminhos, mesmo que as suas escolhas me façam entristecer.

Deixa-os em paz. Não te permito que actues em meu nome!»

A força assolou-a por todo o corpo; toda ela era fogo, por

dentro e por fora, devassada até no nome. A única coisa a que

podia ainda agarrar-se era a vontade de manter seu rumo próprio

- o que ela queria havia de acontecer, tudo o que vivesse

dentro dela, ou através dela agisse, teria de aprender a aceitar

esse facto.
Mas era uma árdua e longa luta.

Winter acordou quando a alvorada rompia através das cortinas.

Jazia no chão do quarto de hotel. A saia de flanela cinzenta

estava toda amarrotada e as cuecas tinham-se rompido;

sentia-se enjoada, com todos os músculos do corpo doridos,

como se tivesse sido engolida por uma trituradora. Quando se

pôs em pé, uma dor aguda dentro da cabeça arrancou-lhe um

grito de protesto.

«O que é que eu terei bebido? Aguarrás?»

Conseguiu chegar à casa de banho antes de vomitar o que

restava do jantar da noite anterior, aos arrancos, com tal violência,

que lhe ficaram a doer o tronco, dos espasmos, e a garganta,

de arranhada e seca. Tinha os antebraços cobertos de nódoas

negras, como se tivesse andado engalfinhada - ou, mais

provavelmente, aos encontrões à mobília do hotel. As marcas

estavam negras, roxas no centro; algumas doíam. Escoriações

que levariam muito tempo a sarar.

Nódoas negras como as de Janelle.

Winter reprimiu um imediato baque de ódio contra

161
Denny, deixando-se submergir no lento recordar do que lhe

acontecera. Conseguira levar a sua por diante. Vencera, embora

quase perdendo a vida durante a luta. A serpente não conseguira

atacar - assim lhe dizia o instinto.

Dantes - em Glastonbury e no Instituto Bidney - entrava

em pânico e deixava-se vencer. O seu inconsciente tinha

dominado a situação, projectando acessos de fúria raivosa,

agindo com uma violência cuja origem Winter não conseguia

detectar. Mas depois fortaleceu-se - estava preparada para a

próxima vez que a coisa metesse a cabeça fora da lura.

«Um poltergeist, ha? Muito bem, vamos lá ver quem é que

dá caça a quem!»

Tentou pôr-se em pé e descobriu que não era capaz, por

muito grande que fosse a vitória alcançada na noite anterior.

Regressou ao quarto de gatas - esfarrapando ainda mais a

roupa - e puxou a bolsa de cima da cama, para onde a tinha

atirado à toa. Vasculhou o inumerável conteúdo com obstinado

desespero até encontrar o panfleto de Tabitha Whitfield,

todo amarrotado e entalado entre dois pacotes de Centering


Tea. Estendida no chão, firmando a vista a grande custo,

Winter começou finalmente a ler.

Meia hora depois, a fúria raivosa que lhe percorria o

corpo era tão grande que Winter compreendeu que tinha de

amainá-la se quisesse concentrar-se na leitura. Depois de sacudir

a memória à procura do que Truth e Dylan tinham dito

acerca dos primeiros socorros a parapsíquicos, arrastou-se tropegamente

até ao bar do quarto. Sem se ralar com os extras

que lhe haviam de ir parar à conta, abriu o pequeno frigorífico

e encheu a boca de chocolate; depois abriu uma lata de Coke

Classic. A dose maciça de açúcar limpou-lhe o cérebro; pôs-se

a beber segunda Coca-Cola com mais vagar, chamou o serviço

de quartos...

«Traga-me waffles ou panquecas ou coisa parecida, o que

for mais rápido. Água quente para fazer chá. E montes e montes

e montes de mel.»

... e voltou à casa de banho para acabar de se limpar.

Duas latas de Coca-Cola e um par de caramelos mais tarde

162
- o açúcar parecia evaporar-se mal lhe entrava na corrente

sanguínea - chegou o pequeno-almoço. Winter despejou o

Centering Tea na cafeteira de água quente a atacou os ovos

mexidos e as tostas com um apetite matinal de que não havia

memória.

Enquanto comia, Winter releu o panfleto pela segunda

vez. Os exercícios para «centrar» (centrar o quê?, perguntou

Winter) começavam de maneira muito simples - contenção e

contagem das respirações - e depois passavam ao que

Tabitha Whitfield chamava «visualização directa». Primeiro,

Winter tinha de imaginar um quadrado branco; quando conseguisse

fixá-lo, passava a imaginar um círculo azul. Por fim,

quando conseguisse ter imaginado também um triângulo vermelho

sem o perder de vista, devia tentar juntar as três formas,

sobrepostas umas às outras, mantendo sempre a respiração

regular e pausada e sentindo a energia correr-lhe sincopadamente

no corpo, desde o alto da cabeça até às solas dos pés, e

de novo para o alto da cabeça.

«Parece bastante disparatado - sentenciou Winter -,


mas não perco nada em experimentar.»

Esteve tentada a telefonar para o Instituto e perguntar a

opinião de Truth - ficara muito fortemente ligada à jovem

investigadora, embora ainda não o admitisse -, mas depois

pensou que isso implicaria um maior envolvimento com Truth

Jourdemayne e Dylan Palmer. Preferia desenvencilhar-se sozinha

desta tarefa.

«Mas na verdade, se o que está em causa é correr com a

coisa que tentou matar Truth e que parece ter-se fixado em

mim, não estou a dar muito boa conta do recado. Parece estar

mesmo à minha frente, em casa de Janelle.»

Tudo o que Janelle mencionara - o vandalismo, os animais

mortos - apontava mais para o Elemento artificial do

que para o poltergeist, e tinha todo o aspecto de ser um ardil.

Como se a criatura que a perseguia estivesse a atormentar

Janelle apenas para a forçar a ela, Winter, a dar-se por vencida.

«Pois não me dou por vencida - declarou Winter. - E

agora, quem se segue na lista?»

O nome seguinte da lista que Nina Fowler lhe dera era

163
Ramsey Miller, com quem Janelle afirmava ter tido contacto

recente. Winter pegou na cópia do livro de curso de 1982 de

Taghkanic que trouxera de Glastonbury e observou o retrato

de um jovem Ramsey Miller de longas patilhas e bigode farfalhudo.

O cabelo encaracolado escondia-lhe o pescoço, num

estilo fora de moda. Que aspecto teria agora?

«Então o seguinte é Ramsey, mas será que eu quero

mesmo ir para a frente com isto? Ramsey pode ser... oh, seja o

que for. Podia telefonar-lhe... devia telefonar-lhe hoje... mas

isso não me ajuda a saber em que estado ele está. Janelle pareceu-me

estar muito bem quando falei com ela ao telefone, e

depois vejam lá o que aconteceu. E se venho a descobrir que

Cassie, ou mesmo Grey foram pelo mesmo caminho? Todos...

mudados?»

Teria de fazer dois ou três dias de viagem para chegar a

casa de Ramsey em Dayton, Ohio - perto de quatro, confessou

Winter a si mesma com rude franqueza, tendo em conta o

estado de cansaço em que se achava e as paragens que teria de

fazer pelo caminho. Por outro lado, podia seguir dali para o
aeroporto de Newark - de avião chegaria a Ohio num par de

horas.

«E se o sistema eléctrico do avião estoira em pleno voo?»

Não seria coisa provável - a serpente alimentava-se das suas

emoções, até à data nunca surgira quando ela estava perfeitamente

calma. Mas embora fosse imperativo encontrar Ramsey,

depois de ter visitado Janelle, Winter sentia-se estranhamente

relutante em ver que cruéis partidas o Tempo pregara aos restantes

companheiros de curso. Os dias gastos na viagem de

carro podiam ser-lhe preciosos, ponderou Winter, e assim continuava

a dispor do carro quando chegasse a Dayton, não precisava

de alugar outro.

Como Janelle dissera: as distâncias variam consoante

quem as percorre. Winter pensou que para ela a distância

entre Rappahoag, em New Jersey, e Dayton, no Ohio, era suficientemente

curta para que pudesse percorrê-la.

Mas seria um erro meter-se imediatamente à estrada.

Winter passou a manhã metida num banho quente - para

164
grande irritação das criadas de quarto, que queriam fazer a

muda - e de tarde voltou a ligar para Janelle. Tinha de ter a

certeza que nada de terrível lhe acontecera a ela ou a Denny

na noite anterior.

- Está lá? - a voz de Janelle soou-lhe entaramelada e

lenta, embora já passasse da uma da tarde.

- Janelle? - Winter sentiu um súbito arrepio gelado de

terror. - O Denny está bem?

- Foi trabalhar - respondeu Janelle. -- Está óptimo leve

tom de ressentimento ensombrava a voz de Janelle; não

era difícil imaginar porquê. Súbita prece arrebatada encheu o

coração de Winter.

«Anjos Cínzeos, sejam vocês quem forem, vinde do

Hudson olhar pelo coração de Denny. E pelo de Janelle também.

Mas fazei com que qualquer coisa de bom aconteça na

vida dela...»

- Daqui fala Winter, Jannie. Como te sentes?

- Oh... Winter. Eu não... pensei que tinhas partido

muito cedo? - o tom de Janelle era neutro, forçado.


- Mudei de planos. Escuta, não tivemos oportunidade de

conversar muito ontem, podias vir ter comigo...

- Estou ocupada - disse Janelle em tom mais animado

(animado e temeroso). - Tenho de fazer imensas coisas hoje,

e...

- Jannie! - gritou Winter.

- Vai-te embora - ciciou Janelle. - Fazes favor... desaparece

- e desligou o telefone.

Winter ficou embasbacada a olhar para o telefone, até que

o apito estridente da linha desimpedida a trouxe à realidade.

Lentamente, pousou o telefone.

Podia informar as instituições apropriadas acerca do que

se estava a passar com Janelle. Podia até informar a Polícia.

Mas se Janelle recusasse confessar o que se estava a passar, se

recusasse admitir aquilo por que estava a passar, ninguém lhe

poderia valer. A transformação teria de proceder de dentro.

Winter não podia substituir-se a ela.

Deitada na cama, ficou a olhar para o livro de curso de

165
Taghkanic. Estava aberto na página referente a Janelle. Ainda

reconhecia a sombra daquela rapariga na mulher que visitara

no dia anterior, mas a rapariga fora temerária.

Ou parecera ser...

Winter virou a página do livro e observou o jovem sorridente,

de cabelos morenos, de cachecol e casaco escuro. O

tempo ainda não preenchera as páginas daquele rosto; era um

rosto inocente, carente, em 1981, quando a fotografia fora tirada,

de uma personalidade arreigada. As suas memórias vacilantes

de Ramsey eram radiantes, sem nuvens a ensombrá-las.

Mas quanto não teria mudado em catorze anos?

«Não desistas agora.»

As palavras e o tom em que eram pronunciadas pertenciam

a Grey, dragadas do lodaçal esquivo da memória. Se virasse

outra página do livro de curso, Winter poderia ver a sua

própria imagem, estática - mas se fechasse os olhos, era capaz

de vê-lo diante da parede do quarto de hotel, com as botas

de cowboy e os blue jeans mais justos que o pecado, de braços

cruzados sobre a T-shirt de Taghkanic, observando-a com


ar trocista, por cima dos óculos.

«Não desistas agora. Esforça-te por alcançar o sucesso e

desiste depois. Sê um grande falhanço.»

Abriu os olhos, mas é claro que não estava ali ninguém.

Nunca tinha estado. O sopro de memória, porém, persistia:

Hunter Greyson, o empreendedor. Abriu a página do livro de

curso que lhe dizia respeito e contemplou o retrato. O rosto

que a observava estava inacabado. Tão... jovem. Irradiava inocência,

embora, claro está, eles se julgassem naquela época o

supra-sumo da sofisticação.

Winter sentiu os cantos dos lábios erguerem-se num suave

sorriso. Sentia todos os movimentos e músculos do corpo com

invulgar acuidade; há muito tempo que não encontrava razões

para sorrir. Mas Grey sempre tivera o condão de virar as desgraças

do avesso; continuavam a ter a mesma importância, mas

deixavam de magoar tanto.

Quem lhe dera ser capaz de recorrer a esse condão,

agora.

Onde andaria Grey, seria capaz de desencantá-lo? À custa

166
de dinheiro e detectives particulares era possível descobrir o

que quer que fosse, desde Elvis até à parteira que nos trouxe à

luz, mas os detectives privados levam seu tempo - às vezes

anos - a encontrar as pessoas; apesar de Winter possuir bastante

dinheiro e uma carteira de investimentos que rendia

modesta soma anual, se desatasse a gastar como Ivana Trump,

mais cedo ou mais tarde iria à falência. Fechou o livro de curso

e voltou a metê-lo na bolsa. A melhor solução parecia ser a de

continuar pelo mesmo caminho - pelo menos enquanto não

se registassem alterações de maior.

Ou até que a criatura que a perseguia perdesse a paciência.

Winter levou a tarde inteira a ganhar coragem para telefonar

a Ramsey. Marcou várias vezes o número, desligando sempre

antes do quarto toque, e entre duas tentativas também

ligou para Cassie, em Berkeley, mas o telefone de Cassie tocou,

tocou, até Winter desistir. Como era possível Cassie não estar

lá, agora que Winter se sentia com coragem para lhe falar?

Às oito da tarde - sete em Ohio - Ramsey finalmente

atendeu o telefone.
- Está lá?

Por instantes Winter ficou paralisada à beira da cama de

hotel, à escuta da voz meio esquecida, a quilómetros de distância.

- Está? - insistiu Ramsey.

- Ramsey Miller? - a voz de Winter parecia um crocitar

seco.

- Quem fala? - A agradável voz de tenor começou a

soar toldada pela desconfiança, como se ele estivesse quase a

desligar; se ele desligasse, Winter talvez não voltasse a ter coragem

para repetir a chamada.

- Já não deves lembrar-te de mim; chamo-me Winter

Musgrave; andámos juntos na faculdade...

- Winter! - o calor da voz fê-la sentir tonturas de alívio.

- Claro que me lembro de ti; onde estás? Aqui na cidade?

- Estou em New Jersey, Ramsey, mas estava a pensar ir

até Dayton e visitar-te, se estivesses de acordo.

167
Apercebeu-se de repente que ela e Janelle quase não

tinham conversado, na véspera, acerca do passado comum e

dos dias do tempo de universidade - como era de esperar de

antigos colegas e amigos que se encontram ao fim de muitos

anos. O encontro do dia anterior não desafiara nenhum dos

vazios da memória de Winter. Era preciso que as coisas se passassem

doutra forma com Ramsey.

- Se estou de acordo? É formidável! Telefonaste em boa

altura, as coisas por aqui estão a ficar muito enfadonhas...

Com o coração a desfalecer, ela notou a mudança de tom

de voz; aquela tensão que velava qualquer coisa de que ele não

queria falar - qualquer coisa má. Ainda assim, Winter decidiu ir.

«Pelo menos não vou vê-lo espancado pelo marido. Espero eu.»

- ... de modo que posso ir esperar-te ao aeroporto.

Quando é que chegas? - concluiu Ramsey; Winter percebeu

que tinha perdido umas quantas frases da conversa.

- Eu vou de carro, Ramsey; tenho um carro novo e estou

morta por conduzi-lo - disse Winter com simulada alegria. Há

por aí um bom hotel?


«Em Ohio?», riu-se uma parte do seu cérebro.

- Quais hotéis, qual quê. Vais ficar em minha casa, e não

quero ouvir desculpas. Olha, vou dar-te a morada...

Não havia nada a fazer senão aceitar agradecidamente,

embora Winter não duvidasse de que seria bem capaz de

encontrar sozinha um hotel e instalar-se antes do encontro

com Ramsey. Embora não soubesse dizer porquê Winter preferia

ter um lugar de recurso e refúgio, como se Ramsey Miller

alguma vez tivesse sido capaz de ferir alguém.

Mas será que ela se lembrava de como era Ramsey, ou tratava-se

de mais um número de ilusionismo?

Conversaram mais algum tempo, com Ramsey a dar-lhe

instruções do percurso desde a 1-80, a estrada interestadual

que substituíra a antiga 66 na preferência dos condutores que

viajavam de costa a costa. Winter prometeu telefonar-lhe daí a

dois dias para dizer a que distância estava e, após alguma conversa

fiada, desligou.

Ficou-se a admirar pensativamente o telefone. Reencontrar

Ramsey adiantaria alguma coisa depois do encontro com

168
Janelle? Porque, se assim não fosse, não havia razão para visitar

Ramsey.

«Então não vás - segredou a voz viperina interior. - O

Ramsey é um falhado; tu é que foste a mais esperta, tu é que

levaste a tua avante. E ganhaste a valer, não te esqueças disso.

Provavelmente, mal olhe para mim, o Ramsey pede-me um

empréstimo. O mais certo é só te quer ver para pedir dinheiro.

Dispenso a chatice. Não vou.»

Winter pôs-se de pé e atravessou a carpete. Tinha fechado

as cortinas anteriormente, mas nesse momento abriu de par

em par reposteiro e cortinas, e olhou lá para fora.

Não havia muito que ver; apenas New Jersey e um traço

de Nova Iorque, com silhuetas que pareciam as torres de

Camelot. Winter espalmou os dedos no vidro da janela, apoiando

suavemente as palmas contra a lisura fria. As pontes entre

os dois estados, acesas de noite, pareciam dispendiosos colares

de diamantes, tão finas que Winter se imaginou a apertá-los à

volta do pescoço, para se transformar numa estrela cativa.

Podia regressar a casa em meia hora. Que fosse tudo à


fava, para ela poder voltar à sua vida - talvez duas semanas

em Saint Barts soubessem bem, para começar, e depois regresso

à Arkham Miskatonic King, onde deviam esperá-la. Bastava

já de... encosto à bananeira.

Os anéis da víbora cresceram sob a sua pele - teria

ganho?

Não. Mesmo que se rendesse à serpente, deixando-a mais

uma vez assenhorear-se da sua vida, continuava a existir a

outra coisa: a criatura que Truth convocara ao seu círculo

mágico no Instituto Bidney, a coisa que matava esquilos e

ratos-do-campo e veados, deixando-lhe os corpos ensanguentados

à porta. A coisa que Truth dissera ser serva de mago,

Elemento artificial enviado em perseguição de Winter.

Porquê?

Voltava sempre ao «porquê», e a resposta escondia-se

onde Winter não a podia alcançar - o passado. Por isso não

devia desistir. Tinha de ir por diante. Se Ramsey continuava a

dar-se com Janelle, talvez também soubesse do paradeiro de

Cassie... e de Grey.

169
Winter não sabia em que baseara a convicção de que

Grey a poderia ajudar. O Dr. Luty teria classificado a ideia de

voluntarista, por aligeirar as responsabilidades pessoais; por

fazer de outrem um talismã e dispensar a iniciativa pessoal. Na

cosmologia do Dr. Luty, toda a gente era inteira e pessoalmente

responsável por tudo o que acontecia a essa mesma gente.

«Reconfortante ideia, mas então e se estiver errada?»

Winter via as pessoas arrastarem-se lá em baixo, pelas ruas,

como insectos brilhantes. «Então e todas as vezes que ESTÁ

errada?»

No entanto, a ideia de se manter expectante, até vir

alguém em seu socorro, ofendia-lhe a noção de integridade.

Não era isso que estava a fazer - ou era? O problema dela era

o poltergeist, e estava a tratar dele sozinha, como devia ser.

Mas o outro... ter a presunção de querer enfrentar sozinha

o outro problema era pura loucura.

Ou as portas e janelas do Hotel Marriott eram à prova de

poltergeist, ou, das várias criaturas que a habitavam, a responsável

pela abertura de portas e janelas tinha feito folga nessa


noite. Winter acordou num quarto de hotel que não estava em

maior desordem do que quando se deitara a dormir. Fez as

malas, pagou a despesa e às nove da manhã já ia a caminho.

Ao meio-dia já estava em Delaware Water Gap, depois na

auto-estrada para oeste e agora na auto-estrada para a Pensilvânia.

Apesar da praga de urbanizações - e era mesmo uma

praga, pensou Winter, a propósito das oito faixas de rodagem

entaipadas entre muralhas de centros comerciais em expansão

-, a região era genuinamente bonita; muitos locais ao longo

da estrada mantinham o aspecto de há trinta ou mesmo

quarenta anos, quando os EUA eram um monstro entorpecido

ao qual seriam necessárias duas guerras mundiais para despertar.

Winter parou para almoçar num restaurante que parecia

ter sido despejado à beira da estrada, acabadinho de sair de

uma máquina do tempo; aí decidiu que, por muito cedo que

fosse, tinha de encontrar hotel. A Pensilvânia eram mil quilómetros

de sinais a dizerem LOMBAS GELADAS, e ela teria de

passar por todas para chegar a Dayton, Ohio.

170
- Conhece algum sítio aqui perto onde eu possa dormir

esta noite? - perguntou Winter à criada de aspecto juvenil,

fardada de jeans e pólo, que lhe tinha servido a empada e o

café. Winter nunca fora gulosa, mas agora parecia que o seu

metabolismo funcionava à base de açúcar - rápido consumo

de energia e igualmente rápida lassidão provocada pela insulina.

Qualquer destes dois estados era preferível ao pânico

extremo que precedia os ataques de poltergeist, se bem que

Winter já não se preocupasse tanto com eles, desde que provara

que podia controlá-los.

- Um sítio para passar a noite? Bem, há um Hilton nesta

estrada, lá mais para trás - disse a criada.

Winter passara por ele, mas com um arrepio de aversão

pelas centenas de quartos esterilmente idênticos.

- Eu preferia uma coisa mais simpática - disse ela esperançosamente.

- Quer dizer do tipo dormida e pequeno-almoço? Bem,

temos o poiso da Lily Douglas. Está um cartão dela pregado ali

na parede; se quiser pode telefonar-lhe a perguntar se tem

algum quarto livre esta noite - disse a criada, com ar de dúvida.


Evidentemente não concebia que alguém desperdiçasse a

oportunidade de passar uma noite luxuosa no Hilton.

«Ah, mas existem coisas melhores que a perfeição...»

A perfeição é tão aborrecida. Não admira que Eva tenha

despachado a serpente para fora do Paraíso, disse Grey.

A voz parecia tão real, que Winter, ao levantar-se do balcão

para indagar o número de telefone de Lily Douglas, olhou

derredor. Mas era mesmo Grey, saído mais uma vez da sua

memória e imaginação, que lhe oferecia conselho.

Desta vez a memória trouxe-lho tal como era no segundo

ano de Taghkanic. Tinham encenado Camelot e ele fizera de

Mordred. Está a vê-lo, de fato justo de malha e sapatos de ballet

pretos, com uma andrajosa casaca verde esburacada pelas traças

que teria sido gloriosa à contraluz dos projectores, carregada de

magia teatral. Viu Grey atirar a capa por cima do ombro e pousar

os dedos enluvados de negro no punho da adaga.

Como diz Mordred, a eficiência pode ser mortal. E,

como ensina Blackburn, todas as virtudes levadas ao extre-

171
mo se tornam vícios - geralmente começam por ditar comportamentos

a outrem.

A memória diluiu-se. Seriam palavras de Grey, ou o seu

pensamento impulsivo manipulava a imagem de Grey em

busca de conselho? Tanto fazia; viessem as palavras de Grey ou

da sua própria ideia, valia a pena prestar-lhes atenção.

«Só que não me parecem especialmente adequadas à ocasião

- pensou Winter, enquanto consultava o quadro de mensagens.

- Porque me havia eu de preocupar com a virtude ou

a perfeição?»

O Water Gap Diner era o tipo de restaurante que tinha um

quadro de cortiça onde os moradores da região deixavam recados

e anúncios. A maior parte era para esquiar, caçar ou «taxidermar»;

por fim Winter encontrou o cartão que procurava.

Era um cartão adamantino cor-de-rosa, impresso a letras em

relevo cor de alfazema, e dizia Justamere Bed-and-Breakfast,

seguido do nome (Lily Douglas), número de telefone e uma

morada que não fazia qualquer sentido para Winter. Pegou

nele e dirigiu-se ao telefone público.


«Há duas semanas preferias que te cortassem a cabeça a

teres de telefonar a um desconhecido e ir para uma casa desconhecida.»

Verdade, mas isso não tinham sido acções de si em si

mesma, mas de uma Winter Musgrave doente, assustada mas

não vencida. «E há dois anos preferias que te cortassem a

cabeça para não teres de entrar num tasco como este, completamente

insosso», acrescentou a sua faceta maliciosa.

Mas essa mulher (que cilindrou a matilha de Wall Street)

também não era a verdadeira Winter, pois não? Winter não era

capaz de voltar a viver, entre rapaces estranhos, uma vida desequilibrada

- mas se não voltasse a essa vida, para onde havia

de ir?

Atenderam a chamada ao terceiro sinal.

- Está lá? - uma voz amável, longe da juventude mas

sem a frágil respiração da verdadeira velhice. - Justamere

Bed-and-Breakfast. Lily Douglas.

Só então Winter entendeu o jogo de palavras - Just a

mere Bed-and-Breakfast -, e quando respondeu ainda se lhe

sentia na voz o sorriso divertido.

172
- Preciso de um quarto para hoje; eu sei que é muito em

cima da hora, mas a menina do Water Gap Diner disse-me que

o seu hotel ficava aqui perto e talvez tivesse vagas.

- Deus abençoe o coração dessa menina! Diga à Amy

que deve ter um bom espírito santo de orelha: acabo de receber

uma desistência, quero dizer, um adiamento, esta manhã.

O problema é que é uma suite - acrescentou Lily Douglas

muito conscienciosamente - e naturalmente a senhora não

quer um quarto tão grande; mas é o meu melhor quarto, com

casa de banho e tudo...

- O melhor é eu ir aí ver - disse Winter. Se não lhe agradasse,

voltava para trás e metia-se no Hilton.

O Justamere Bed-and-Breakfast ficava apenas a oito quilómetros

do restaurante. Aquele sítio fronteiriço entre o

Delaware e New Jersey era uma região agrícola; de ambos os

lados da estrada as árvores estavam engalanadas de folhas

novas e nos campos despontavam minúsculos rebentos verdes.

Winter começava a convencer-se de que já andara de mais

quando, à saída de uma curva da estrada, o viu.


«Como diabo veio parar semelhante coisa a este cabo do

mundo?»

A vetusta casa vitoriana tinha sido construída no chamado

gótico Queen Anne, com torres amealhadas, janelas convexas,

e mil laços, laçarotes e rendilhados, como um bolo.

Tinham-na pintado de amarelo-mostarda, com a ornamentação

sublinhada a branco, e até dava vontade de comê-la.

O parque de cascalho tinha lugar para meia dúzia de carros

e Winter não teve pruridos em pôr o Saturn ao lado de uma

velha camioneta agrícola.

Veio à porta uma simpática senhora na casa dos 50,

matrona já rechonchuda. Vestia um casaco curto de lã por

cima do vestido de algodão às flores, de trazer por casa, e profusão

de maquilhagens. Winter ficou à espera de ouvir as perorações

condenatórias interiores, mas desta vez nada disseram,

embora a Sociedade não hesitasse em considerar Winter a

«melhor» das duas mulheres.

«Okay, talvez ela fosse um falhanço em Wall Street. Mas se

173
virmos bem as coisas eu também não sei gerir uma pensão,

pois não?», disse Winter consigo própria.

- Senhora Douglas - disse Winter abertamente -,

chamo-me Winter Musgrave e acabei há pouco de falar consigo

ao telefone, lembra-se? Vim por causa do quarto.

- Pois fez muito bem em vir - disse Lily Douglas. Entre

e veja... Trouxe bagagem? Eu vou já pedir ao Gary que a

vá buscar. Gary! Gareth! - subiu o tom de voz: - Vem imediatamente

cá abaixo!

Quase de seguida Winter ouviu passos escada abaixo e

em menos de nada apareceu Gary-ou-Gareth.

- É o Gareth; Gareth Crowther. É ele que trata do que é

preciso... e não é pouco, numa casa deste tamanho e neste

sítio.

Gareth era um cãozinho de peluche brincalhão transformado

em homem, com cabelos louros lisos, brandos olhos

azuis e músculos de lenhador vestido de camisa de flanela vermelha

e preta.

- Olá - disse ele, estendendo a mão sofrivelmente


limpa e cheia de calos. - Estou a ficar zonzo de estar metido

na torre, senhora Douglas, o melhor é abrir as janelas para

poder pintar o segundo andar.

- Lindo menino - disse a Sr.a Douglas, como se Gareth

fosse efectivamente o paciente animal caseiro com que se

parecia. - Mas não te vás embora agora; esta senhora é aquela

pessoa que eu te disse que devia estar a chegar e que ia ficar

na Suite Lilás, portanto deixa-te ficar por aqui e vê lá se a

senhora precisa de alguma coisa.

Gareth, muito sério, acenou que sim.

- Tenho a certeza que vou gostar muito do quarto disse

Winter, contemplando o salão de entrada. Os seus receios

de desmazelo miserável eram infundados. A sala principal, imaculadamente

limpa, fora decorada ao gosto do vitoriano tardio

correspondente à época em que a casa fora construída. A lareira,

de mármore branco, sustentava-se em esfinges alongadas nas

ombreiras, e na parede de fundo tinha símbolos egípcios, com

lótus e escaravelhos, embutidos nos azulejos azuis-celestes.

Havia um canapé talhado em pau-rosa, flanqueado, entre meia

174
dúzia de mesinhas, pelas respectivas cadeiras e seus naperons

de renda a cobrirem-lhe os braços e as costas. Toda a sala tinha

o ar ligeiramente desarrumado dos lugares intensamente vividos,

como se incontáveis gerações tivessem habitado e brincado

ali, com grande estima mútua e pela casa.

- Quatro gerações viveram juntas nesta casa - disse a

senhora Douglas. - É o que se chama assentar raízes; mas

sendo as coisas o que são hoje em dia, quem há-de querer ficar

com a casa quando eu morrer? Não tenho a quem a deixar, a

não ser que uma das minhas filhas se encha de juízo, mas a verdade

é que ninguém gosta de viver no fim do mundo.

Conforme ia falando, a Sr.a Douglas conduzia Winter pelas

escadas acima, depois por uma sala esfuziantemente iluminada.

Cada uma das portas brancas, todas elas fechadas, tinha

uma placa de metal atarraxada à madeira.

- O seu quarto é o Lilás; todos os quartos têm nomes de

flores. Ao fundo do hall ficam o Rosa e o Violeta, o Margarida

logo a seguir (é o outro quarto duplo).

Destrancou a porta - a fechadura numa porta interior foi


o primeiro indício, para Winter, de que não estava numa casa

particular - e convidou Winter a entrar.

Winter examinou o vasto quarto com um tapete oriental a

cobrir o chão e papel de parede pintado de raminhos de lilás.

No toucador, um vaso com ramo de lilases (de seda, por ser a

estação própria, mas muito bonitos); pela porta entreaberta ao

fundo do quarto vislumbrava-se a prometida casa de banho.

Dominava o conjunto uma cama de dossel com colcha branca

de rendas encaracoladas e montes de almofadas estampadas de

lilases, espalhadas pela cama.

- Fico com ele - disse Winter imediatamente.

A Sr.a Douglas explicou que o quarto dava direito a pequeno-almoço

e que só estava disponível por duas noites, no máximo,

até chegar o casal que o reservara. Claro que o preço era

superior ao que Winter teria pago no Hilton, mas valia a pena

ficar num sítio onde não se sentia o frio institucional das cadeias

hoteleiras.

- Eles não confirmaram a reserva, mas é provável que

venham e eu prometi que lhes guardava o quarto - disse a

175
Sr.a Douglas. - E eu gosto de manter-me fiel à palavra dada,

senão mais vale estar calado.

- Não se preocupe por minha causa, Sr.a Douglas.

Tenciono partir amanhã de manhã - disse-lhe Winter.

A virtude que defende o extremismo não é vício, disse

Grey, fazendo trocadilho, lá do fundo das memórias de

Winter.

Mais enigmas.

Winter abriu a mala do carro e Gary levou as malas para

dentro antes de regressar ao que deviam ser obras de restauro

no Justamere. Gary carregou as duas grandes malas de viagem

e outra malinha com tal descontracção, que Winter pensou

que também a podia carregar a ela sem grande esforço. Levou

a bagagem escada acima até ao quarto - pousou duas no

chão, outra numas cruzetas cheia de decorações, próprias para

apoiar as malas - e foi retomar as suas pinturas do segundo

andar.

- Se precisar de alguma coisa, é só pedir à Sr.a Douglas,

que costuma estar ao fundo das escadas, na sala de entrada.


- Obrigada, Gary. - Não se davam gorjetas em sítios

como aquele, mas Winter tomou mentalmente nota de que

Gary Crowder merecia receber uma lembrança generosa quando

ela se fosse embora. As malas não eram leves - e além

disso ele não embasbacara nas pernas dela uma única vez.

Gary fechou a porta ao sair, deixando Winter sozinha no

quarto. Ainda não entardecera, e Winter sentiu-se um pouco

culpada por não ter aproveitado para fazer mais quatro ou

cinco horas de viagem, antes de escurecer.

«Mas também não quero ficar cansada a ponto de não

conseguir ter mão no poltergeist - e se a criança mágica

descobre para onde fui?», perguntou Winter aos seus botões.

Abriu a mala mas não lhe estava a apetecer desfazê-la - para

mais seguiria viagem no dia seguinte de manhã.

Se não acontecesse mais nenhuma desgraça.

Winter sentou-se na berma da cama e tirou da bolsa o

panfleto de Tabitha Whitfield. «Assim aproveito para fazer duas

horas de aeróbica psíquica antes de me deitar.»

176
Graças às indicações da Sr.a Douglas, Winter foi jantar a

um restaurante das redondezas onde, se bem que a comida

não estivesse à altura dos padrões de Manhattan, conseguiu

uma refeição tolerável. Depois, de volta a Justamere, deixou-se

ficar a observar a fachada luminosa, o sol a brilhar nas janelas

amplas. «Não me importava de ter uma casa como esta»,

pensou ela automaticamente. Mas não para viver sozinha,

nem para fazer dela hospedaria. Aquela casa tinha sido feita

para ter crianças, família; era lugar para ser partilhado com o

homem certo.

O rumo dos pensamentos fê-la recobrar ânimo, enquanto

estacionava o carro. Marido? Família? Winter sempre pusera de

lado a ideia de casamento, e agora, aos trinta, desconfiava que,

demasiado instalada na sua própria maneira de ser, dificilmente

seria capaz de estabelecer compromissos estáveis, mesmo

por amor, e formar um lar com outra pessoa. De resto, nunca

se lhe tinha apresentado nenhum «homem certo».

«Talvez estejas a procurar no lugar errado.» A imagem de

Hunter Greyson passou-lhe fugidiamente pela cabeça, outra


vez, e Winter suspirou. Se - e quando - encontrasse Grey, o

mais certo seria ele apresentá-la à mulher e às duas adoráveis

criancinhas. Afinal de contas tinham a mesma idade, tinham

andado juntos na universidade. A maior parte das pessoas

chega aos trinta ciente do rumo que quer levar, já arrumou a

vida; já alcançou o que ambicionava ser.

«Como aconteceu com a Janelle?»

Winter rejeitou automaticamente a ideia. Janelle não

se tornara no que queria ser; preferira optar pelo seguro;

e mesmo sendo essa segurança, como era, uma espécie de

refúgio inquinado, pelo menos Janelle sabia do que estava

a fugir.

Só Winter não sabia de que fugia... ou para onde.

Saiu lentamente do carro, trancou-o, depois caminhou

para as escadas. Alguma coisa estava a resultar desta caçada ao

Grey: ia-se adiando o momento de retomar o curso normal da

sua vida e mais uma vez fazer dela um sucesso.

Fosse de que maneira fosse.

Partindo do princípio que conseguia sobreviver até lá.

177
Nessa noite, deitada na cama de dossel do Quarto Lilás,

Winter sonhou com Grey.

Estava no mundo dos sonhos, sabendo que os esqueceria

ao acordar. Era um lugar onde já tinha estado muitas vezes,

embora também soubesse que nem disso se lembraria ao acordar.

O lugar estava na penumbra; Winter encontrava-se no

meio de uma planície tão vasta que não lhe via o fim, lugar

sem horizonte onde céu e terra se encontravam sem linha que

os distinguisse. Ao longe, as ruínas de uma torre de vigia, abandonada

na imensidão de coisa nenhuma; sem outro objectivo

de seu, Winter encaminhou-se para a torre.

Um vento espectral agitava-lhe as roupas, com uma toada

grave que lhe irritava os ouvidos. Onde estava Grey? Já devia

ter chegado, estar à espera dela.

Como se este pensamento o tivesse invocado, a cena

mudou: sonho dentro do sonho. Estava sentada à sua secretária

no dormitório de Taghkanic, a estudar uma pauta para as

aulas de música, quando Grey veio deitar-se na cama, com a

guitarra dela em cima da barriga, dedilhando indolentemente


as cordas.

Winter olhou para ele, para o lugar onde o seu cabelo

louro se derramava sobre a almofada, de olhos a piscar contra

a luz da lâmpada. Tinha os olhos semicerrados e madeixas cor

de mel-escuro a taparem-lhe as bochechas.

- O que é que vais fazer quando acabares o curso? - perguntou

ela, percebendo que se tratava de uma recordação, e

não de um sonho. Tudo isto tinha acontecido em tempos idos.

- Vou fazer-me rico, vou fazer-me famoso, vou fazer o

que me apetecer - a resposta de Grey parecia disparatada. Vou

ser vocalista de uma banda de rock’n’roll. E tu?

«Eu quero ficar contigo», pensou Winter sem nada dizer,

e Grey como se lhe lesse os pensamentos, pôs a guitarra de

lado e abraçou-a, com um sorriso a um só tempo trocista e

acolhedor.

- O excesso de estudo faz-te cega - disse ele roucamente.

Winter chegou-se a ele, mas em vez de pele ou mãos

178
encontrou pedra rugosa. Estava de novo na planície, e chorou

a inclemência de ser arrancada de tão belo sonho, de ao pé de

Grey.

Ajuda-me, Winter. Ajuda-me, meu amor.

Tinha nas mãos uma pedra da torre arruinada, donde saía

meio corpo de Grey, de mãos e rosto virados para a luz, como

se tivessem estado presos dentro da pedra, como um insecto

em âmbar, preso para sempre...

Deixa-me em paz!

E de repente era Primavera; as macieiras estavam em flor,

por toda a parte caía uma chuva de pétalas...

Winter sentou-se na cama em sobressalto, o coração descompassado.

Eram quase duas da manhã, a hora dos lobos, dos

suicídios e dos assassínios premeditados. O quarto estava escuro,

apenas a claridade indecisa dos lampiões da rua penetrava

as cortinas translúcidas.

As imagens do sonho esboroaram-se, até nada mais restar

senão a recordação de Grey e o sentimento de pânico - e o

perfume pesado das flores de macieira fora de época. Winter


respirou fundo. Não se lembrava de alguma vez ter tido pesadelos,

mesmo em Fall River; apenas sonhos confusos, sem

nexo, que a deixavam mais cansada ao acordar do que quando

adormecera. O Dr. Luty incitara-a a falar desses sonhos, como

se o conhecimento do lixo que o seu subconsciente despejava

nas praias do sono lhe permitisse conhecê-la.

Mas este sonho tinha sido diferente - a um tempo pesadelo

verdadeiro e algo ainda pior. Winter recompôs-se o suficiente

para conseguir acender a luz de cabeceira e a claridade

filtrada pelo vidro fosco do quebra-luz deu claridade e definição

à beleza vitoriana do quarto. As sombras que persistiam

deviam ser mero truque das luzes, e não mensageiros do

mundo invisível.

Afagou a nuca. Como fora o sonho? Passava-se qualquer

coisa com Grey, ele estava em apuros. Mas não eram perigos que

pudessem ser evitados. Eram problemas que já tinham acontecido.

«Mas se é já demasiado tarde, por que me hei-de ralar...?»

«Que grande disparate.» Esta ideia animou-a. «Prova-

179
velmente os poltergeists são reais, o mesmo acontecendo com

a coisa que me expulsou de Glastonbury», disse-lhe o vigilante

censor íntimo. «Mas lá porque essas duas coisas aconteceram,

não és obrigada a adoptar todas as ideias bacocas, desde o

Espiritualismo até aos ovnis! Os sonhos proféticos não costumam

emparelhar com poltergeists. Tem de haver limites. Estás

perturbada, preocupada, queres encontrar Hunter Greyson não

é preciso chamar um cientista da NASA para perceber que

tudo isso te leva muito naturalmente a sonhares com ele. Tal

como já Freud dizia, às vezes os pesadelos não querem dizer

nada.»

Winter encheu o peito de ar, sem saber se estes pensamentos

eram ajuizados ou repúdio histérico. «Os sonhos não

passam de sonhos», repetiu ela, sentindo o corpo descontrair.

Não é obrigatório que cada sonho desagradável traga uma

mensagem - se começasse a pensar assim, acabaria a ler

bolas de cristal e presságios nas borras do chá.»

«É isso mesmo. Um simples sonho. Não um presságio.»

O sonho deixara-a demasiado desperta para voltar a adormecer,


mas também não tinha coragem para tomar um banho

àquela hora, por medo de incomodar os restantes hóspedes da

Sr.a Douglas. Com um suspiro, Winter pôs os pés no chão e foi

à procura do panfleto da Inquire Within. Pelo andar da carruagem,

não conseguiria adormecer nas próximas duas horas,

pelo menos. Graças a Deus conseguira encarar gtudo aquilo de

forma sensata, senão, a esta hora, já se encontraria em plena

crise de histeria. E tudo por causa de um pesadelo, imagine-se!

Só ao cabo de muitos dias reconheceria a ratoeira que

estas considerações escondiam.

180
CAPÍTULO NOVE

NO INVERNO CADA MILHA VALE

POR DUAS

Just the worst time of the year

For a journey, and such a journey:

The ways deep and the weather sharp,

The very dead of winter.1

T. S. ELIOT

Para quem estava habituado a viver em Manhattan, Dayton

era uma pequena cidade muito calma, com arranha-céus aqui e

ali, de atmosfera límpida. Winter levou três dias de escalas pausadas

a atravessar a Pensilvânia; por fim fartou-se daquela paisagem

plana, dos campos infindáveis plantados sabe-se lá de que

cereais. Ver-se no engarrafamento dos acessos a Dayton foi

quase um alívio das longas horas de via rápida.

Não tinha havido mais sonhos ou incidentes estranhos de

qualquer tipo, e se continuava a fazer os exercícios psíquicos

do panfleto e a beber Centering Tea, era mais pela facilidade

com que adormecia do que pelos arcanos benefícios. Estava a

recuperar rapidamente o vigor físico, o espelho dizia-lhe que o


peso perdido voltava ao lugar e os ângulos ossudos se arredondavam,

de modo que começou a duvidar se o «Elemento artificial»

que Truth lhe tinha apresentado não seria apenas uma

complicada malha de coincidências. Os pequenos animais que

encontrara talvez não passassem de presas dos gatos, trazidas

para tão longe do local onde tinham sido filadas que chegavam

exangues. O veado podia ter sido esquartejado por caçadores

furtivos. Até a noite do Laboratório do Instituto provavelmente

1 Logo o pior tempo do ano / Numa jornada, e que longa jornada: / O caminho é
difícil, o

tempo agreste, / O Inverno pleno. (N. do T.)

181
não tinha acontecido da forma como a recordava agora - e o

resto? Coincidência, histeria, azar - nem eram coisas que

tivesse muita importância, a partir do momento em que tinham

desaparecido. Não dissera Truth que o poltergeist acabaria por

desistir e ir-se embora? Pois muito bem, talvez já tivesse debandado.

Ainda bem que não andava por ali a preparar um dos

seus truques com o carro novo.

Há muitas semanas que Winter não se sentia tão optimista.

Afinal o problema não tinha sido tão grave como ela chegara

a pensar. E, para todos os efeitos, já tinha passado.

Winter tomou a saída que Ramsey indicara nas suas instruções,

chegando pouco depois ao centro da cidade, onde se perdeu

numa confusão de ruas e quarteirões. Onde era a tal rua?...

Ah, lá estava ela. Com mais nervo que prudência, Winter virou

subitamente à esquerda e foi dar a uma avenida: quatro faixas,

mais as faixas de saída, separadas por um fio de relva, bordejadas

por restaurantes fast-food e pensões.

«Isto não me parece nada uma zona residencial. Nem de

escritórios.»
Seguindo as indicações de Ramsey, os edifícios grandes

deram lugar a outros mais pequenos e a armazéns, uma zona

onde o valor dos imóveis devia ser baixo. Estava a perder a

esperança de encontrar a morada, quando...

«Oh valha-me Deus! Porque é que ele não me explicou

isto muito simplesmente?», perguntou Winter a si mesma,

embora soubesse muito bem quanto Ramsey gostava de pregar

partidas, sempre convencido de que eram inofensivas.

Winter fez pisca-pisca e virou à esquerda, mesmo por

baixo ao placard que dizia MILLER - CARROS USADOS.

Mal tinha acabado de parar o carro quando Ramsey saiu

dos escritórios prefabricados, direita a ela. Ficou satisfeita por

reconhecê-lo, mesmo sem o bigode. Ramsey era mediano de

altura, cabelo e olhos castanhos, e os anos não o tinham marcado

muito; o cabelo continuava igual ao que ele tinha na

escola, mas desistira do rabicho ondulante que tantos homens

da sua idade pareciam não conseguir evitar.

Winter saiu do carro e aí se deixou ficar à espera dele.

182
- Então em que é que posso ser-lhe útil? - perguntou

ele no seu tom mais profissional. Trazia o mais espampanante

fato desportivo que Winter alguma vez vira - um horror de

poliéster verde, amarelo e laranja, com umas quantas fitas

encarnadas e azuis para alegrar.

- Podes deitar fora esse casaco folclórico; é a coisa mais

horrível que vi em toda a minha vida - disse Winter com um

sorriso.

Ramsey desarmou a expressão de delicadeza formal e fez

um genuíno sorriso de reconhecimento.

- Winter! Eu tinha-te dito para telefonares na véspera,

antes de vires! - disse ele com um abraço.

- Esqueci-me - desculpou-se ela, retribuindo o abraço

-, até porque Dayton fica mais perto do que eu pensava.

Mas deixa-me olhar para ti!

- Prefiro olhar para ti - Ramsey mirou-a de lado, com

um trejeito cómico. - Estás com óptimo aspecto! Que andaste

tu a fazer? O que é que te traz à minha humilde cidade?

- Ando a visitar os antigos colegas de curso... lembras-te


do nosso grupo? - O grupo Blackburn, queria ela dizer, mas

Ramsey não ligou à deixa.

- Então, quando encontrares o Grey, dá-lhe saudades

minhas; e diz-lhe que eu não me esqueci dos vinte contos que

ele me deve. Vamos para dentro... ah, não te preocupes em

arrumar o carro; o Mike toma conta dele. Dá um toque de classe

ao sítio. E se o venderes eu encarrego-me de o fazer valer.

- Que gentileza - troçou Winter. - Ainda por cima não

é meu.

- Não me digas que andas a roubar carros? - ripostou

Ramsey, sempre pronto na resposta.

O escritório de Ramsey tinha afinidades com o de Poughkeepsie

onde Winter alugara o carro: calendários automobilísticos

nas paredes e molhos de chaves etiquetadas por todo o

lado. Ramsey indicou-lhe com um gesto que se sentasse em

qualquer lado e Winter preteriu o sofá instalado perto da janela,

em favor de uma das cadeiras antigas que desafiavam a secretária

metálica já um pouco amolgada.

183
- Um refresco? - perguntou Ramsey. Winter aquiesceu

e ele dirigiu-se ao pequeno frigorífico. - Serve Coca-Cola?

- Perfeitamente. - Winter nunca tinha gostado de

doces (e refrescos, nem vê-los), mas desde que aquelas coisas

tinham começado a acontecer, passara a ser consumidora

incansável. Tornara-se fã, especialmente, da Coke Classic.

«Glucose carbonatada dentro de uma lata. Nem quero

saber a composição, já me basta saber que os canalizadores a

usam para tirar a ferrugem das peças metálicas.» Apesar destes

pensamentos mordentes, Winter puxou a argola da lata e

encheu um copo de papel. Bebeu e esperou que o açúcar lhe

varresse o cansaço do corpo.

Enquanto Ramsey tratava da sua própria bebida, Winter

avaliou sub-repticiamente o sítio. O sol primaveril brilhava nos

carros arrumados no respectivo parque. À chegada, prestara

atenção sobretudo à manobra (tinha atravessado quatro faixas

de rodagem), por isso não vira o aspecto do lugar, mas agora

reparava que nenhum dos carros ali parqueados - excepção

feita ao seu próprio Saturn - tinha menos de cinco ou seis


anos; eram quase obsoletos, pelos padrões actuais de mercado,

e sem dúvida não se tratava de boa mercadoria em segunda

mão.

Verdade seja dita, o parque automóvel estava limpo e bem

cuidado - tal como os próprios carros - e as bandeiras e o

cartaz berrante davam certa animação ao sítio, mas o apurado

instinto predador de Winter dizia-lhe que os Carros Usados

Miller não iam de vento em popa.

Um stand de carros usados. Quem se lembraria de semelhante

coisa?

- Então - disse Ramsey, sentando-se na quina da secretária,

de copo na mão -, como tens passado? Quanto a mim,

acho que está à vista.

- Bastante bem, ao fim e ao cabo - disse Winter, optando

pela prudência. Mais tarde talvez lhe falasse dos seus lapsos

de memória, mas de momento preferia dar outro rumo à conversa.

.. e descobrir por que se mostrara Ramsey tão reservado

ao telefone.

- Trabalhei na Wall Street - confessou Winter, desenro-

184
lando a sua história. - Fiz a minha fogueira das vaidades.

Venci os anos 80. E agora... ando de férias - concluiu ela

desajeitadamente.

- Não te preocupes, logo arranjas outro emprego disse

Ramsey. - Com o aspecto que tens, não há-de ser difícil.

Não envelheceste nem um bocadinho, sabias?

- Nem tu. - Seria um pouco de exagero, mas não

muito. E de resto ela gostava de Ramsey. Sempre tinha gostado.

Apesar de ele partir do princípio que ela fora despedida.

- E tu, que tens feito? - perguntou. A conversa ia bastante

morna, mas de momento Winter estava mais interessada na

normalidade do que em dramas.

Ramsey começou a debitar trivialidades e Winter deixou

que a voz, o aspecto, os gestos dele acordassem recordações

dos tempos comuns em Taghkanic. A teia de recordações era

ainda demasiado frágil para suportar grandes pesos, mas,

mesmo não se lembrando de alguns pormenores, Winter era

capaz de recordar o bom tempo que tinham passado juntos: a

afeição que todos eles, os cinco, sentiam uns pelos outros.


«Mas se era assim, porque não se mantiveram unidos, apesar

de eu ter partido? Que lhes terá acontecido?»

Mais mistério.

- ... quando Ellie se foi embora eu tomei conta deste

negócio e parece-me que valeu bem a pena - estava Ramsey a

dizer. - Vá lá uma pessoa imaginar o que irão fazer da vida,

quando ainda têm dezoito ou vinte anos?

- Ellie? - Winter lembrou-se de repente que também

era interlocutora naquela conversa. - Eu nem sequer perguntei...

se há uma senhora Miller. Não quero irromper na tua

vida como um antiga namorada - que nunca fora; ela e

Ramsey tinham formado uma parelha raríssima: eram amigos e

nada mais.

Ramsey riu-se lamentosamente:

- Senhoras Miller? Houve várias, mas nenhuma delas

quer voltar a ver-me. Estou divorciado, Winter; parti do princípio

que sabias, mas é claro que não podias adivinhar. A Número

Três foi-se embora há perto de um mês: era a Laura. Ellie foi

a Número Dois, e Marina a primeira, em 1983.

185
- Logo a seguir ao curso - disse Winter. Todos eles

eram finalistas em 1982; Ramsey concluíra o mestrado, muito

embora ela não o tivesse feito. Que fora ele fazer? Tinha uma

vaga ideia...

- Eu nessa altura estava a trabalhar no Chicago Daily

Sentinel e ainda sonhava com a conquista do Pulitzer. Mas não

vale a pena estar a moer-te o juízo com essas histórias passadas

- disse ele em tom terminante, e então Winter lembrou-se de

repente, com toda a clareza: Ramsey fora um grande jornalista,

decidido a expor as verdades e mudar o mundo. - Quanto

tempo vais ficar? - rematou ele.

- Como? - a pergunta despertou Winter dos seus

sonhos; de repente o mundo que a rodeava tornou-se hiper-real;

desde as barras de sol oblíquas no tapete até às amolgadelas

e riscos da velha secretária de metal. O escritório de

Ramsey. O escritório de um vendedor de carros em segunda

mão, cenário da horrível realidade alternativa ao futuro que ele

deveria ter seguido.

- Até quando é que ficas - repetiu Ramsey pacientemente


- em Dayton. Admito que não seja o lugar mais interessante

do universo, mas é uma cidadezinha simpática; podia

ser pior. Escuta, não se passa nada aqui na loja; geralmente fico

até às nove, mas a verdade é que ninguém quer comprar carros

usados na Primavera, e se alguém resolver contrariar as

estatísticas, o Mike encarrega-se de fazer a venda e ganhar a

comissão. Não queres vir até minha casa? Podes escolher um

quarto à tua vontade, embora deva dizer que nem todos têm

cama.

Quando Winter chegou a casa de Ramsey, sempre atrás

do Subaru pelos subúrbios de Dayton, viu que ele dissera a

verdade.

Ramsey vivia numa daquelas urbanizações que os vendedores

imobiliários gostam de propagandear como «bairro residencial

de luxo». Casas muito espaçosas, desenhadas com alguma

preocupação urbanística, tentando dar personalidade a

cada uma. Ramsey fez pisca-pisca e entrou pelo portão do jardim;

a porta automática da garagem abriu-se, revelando espaço

186
suficiente para dois carros. Estacionou do lado esquerdo com

habilidade acostumada. Winter parou ao lado dele.

- Viva o conforto dos tristes subúrbios - disse Ramsey

com forçada animação. À entrada, espetada no relvado, havia

uma placa a dizer «vende-se»; imperava o ambiente de derrota,

de abandono.

- Ramsey, se não for boa altura... - disse Winter hesitantemente.

Ele encarou-a com a honestidade que sempre o definira

como bom amigo:

- É tão boa altura como outra qualquer, Winter. Acredita.

Não foi um divórcio litigioso, e de qualquer maneira já passou.

A Laura arrecadou os miúdos e as contas bancárias e foi morar

provisoriamente com a família, em Cleveland. Eu fiquei com a

casa, pelo menos até a vender, coisa que infelizmente não deve

estar para breve. És muito bem-vinda.

Apontou o controlo portátil para a porta da garagem,

que baixou até os deixar completamente às escuras. Atravessando

a escuridão com o à-vontade do hábito, Ramsey alcançou

a parede e ligou o interruptor da luz. As luzes do tecto


acenderam-se, expondo as paredes e a sombra dos objectos

domésticos que lá tinham vivido. Winter reparou nas marcas

que as bicicletas tinham deixado, onde costumavam ser penduradas.

Ramsey abriu a porta de ligação com a cozinha.

- Entra. Vamos lá fazer uma visita guiada chez Miller.

Da garagem passava-se para uma cozinha branca e amarela

vários degraus acima da escala social de Janelle. Dava uma

estranha sensação de vazio, mas passado um bocado Winter

percebeu porquê: toda a bateria de cozinha, desde as latas de

biscoitos até ao microondas, tinha desaparecido.

- Isto - explicou desnecessariamente Ramsey - é a

cozinha. Vou mostrar-te o resto da casa e depois logo decidimos

que fazer em relação ao jantar.

Passados uns minutos, Winter estava ciente de que Laura

Miller partira para Cleveland com os miúdos e praticamente

tudo o que não estivesse atarraxado à própria casa. Os quatro

187
quartos apresentavam-se praticamente vazios, a sala de jantar

nua, a sala de estar com pouca mobília e dos antigos quartos (a

julgar pelo papel de parede) das crianças restavam as paredes.

Winter ficou surpreendida por a mulher não ter levado também

o papel de parede.

- Parece que ela não se esqueceu de nada - comentou

Winter, esforçando-se por adoptar um tom neutro.

- A Laura sempre foi muito eficiente - disse Ramsey

com uma ponta de orgulho. - Um dia cheguei a casa e encontrei-a

assim; ela mandou vir os carregadores enquanto eu estava

no trabalho. Depois telefonou de Cleveland a informar que

tinha ido embora.

- Ficaste chateado? - perguntou Winter, convencida do

contrário. Se alguém lhe tivesse feito coisa parecida, ela teria

respondido à catanada; mas era incapaz de relatar tamanha

exploração com tanta calma.

- Acho que não fiquei surpreendido; há muito tempo

que ela andava a prometer isto. Além disso não é a primeira

vez que sou abandonado. Ela foi bastante honesta: deixou-me a


mobília de quarto e parte do recheio da sala, além de uma

cama de desarmar que está no quarto dos hóspedes e que tu

podes usar. Era o escritório dela: a Laura é CPA e manteve o

negócio depois de nos termos casado.

O antigo escritório situava-se numa pequena sala de três

metros por três e meio que ficava em frente da casa do vizinho.

Não sobrava outra mobília além do sofá-cama - porque

teria aquela peça sido poupada?, interrogou-se Winter. Havia

outro sofá na sala de estar. Talvez a senhora Miller não gostasse

de sofás?

Mas servia muito bem para passar a noite. E ela queria

passar mais tempo com Ramsey, sem ser num local público,

com dois bitoques pelo meio.

- Serve muito bem. Se não te estou a incomodar...

- Tu nunca me incomodas - disse Ramsey em tom

muito amável. - Um por todos e todos por um, lembras-te?

Quem for meu irmão ou minha irmã na Arte, meu

irmão ou minha irmã será em todas as coisas. Winter sacudiu

a cabeça, tentando expulsar a voz importuna. Esteve

188
Ligada ao Círculo?, perguntara Truth. Winter e Ramsey

tinham partilhado noutros tempos laços mais fortes que os do

sangue ou do amor, segundo constava.

- Okay - disse Winter, aceitando de bom grado o convite.

- Convenceste-me. E quanto a jantar?

Ou Laura Miller tinha levado toda a comida (ideia que

Winter já não estranhava) ou Ramsey não diferia muito dos

outros celibatários. A despensa e o frigorífico estavam praticamente

vazios. Ramsey ofereceu-se para ir ao supermercado

mais próximo e Winter sugeriu que fossem os dois. Como

todas as pessoas com grande actividade profissional (homens

ou mulheres, casadas ou solteiras), ela não era grande cozinheira,

mas pelo menos sabia fazer uma omeleta com salada,

desde que dispusesse dos ingredientes necessários.

O supermercado pareceu-lhe enorme, pelos padrões da

Costa Leste - vasto, reluzente e carregado de todos os produtos

conhecidos do homem moderno, desde plantas em vasos

até lubrificantes de automóvel. Em conformidade com os usos


de Ohio, as bebidas alcoólicas vendiam-se em loja anexa, onde

Winter comprou várias garrafas de vinho. Branco para essa

noite, tinto para uma futura refeição. Talvez esparguete; não

era difícil de fazer e talvez Ramsey fosse melhor cozinheiro.

Winter encheu o carro com tudo o que lhe passou pela cabeça

enquanto ia falando com Ramsey, mas no fundo sabia que a

verdadeira conversa ficaria para mais tarde.

O Trabalho Blackburn. Ainda tinha dentro da mala Vénus

Afflicted, a tal biografia do mago cujo «trabalho», segundo

Truth, eles os cinco tinham reconstituído no lago Nuclear. Que

relação poderia haver entre aquele passatempo adolescente e

a actual situação dos membros do grupo? Tinha de falar do

assunto a Ramsey... disso e de muitas outras coisas.

Quando regressaram a casa e descarregaram as compras,

o céu já escurecera e a rua enchera-se de carros estacionados.

Winter abriu uma das garrafas de vinho enquanto Ramsey lavava

e amanhava os ingredientes para a omeleta.

- Então e tu? - disse Ramsey passado um bocado. - Já

189
te contei a minha vida toda, incluindo mulheres, filhos e dívidas

de jogo, mas tu continuas calada...

- Dívidas de jogo! - Winter não conteve a expressão

chocada. «Mas haverá alguma coisa no Ohio em que se possa

apostar?»

- Pois é - confirmou Ramsey com ar muito pouco compungido.

- Andei a fazer disparates. Aliás, quando vender a

casa o dinheiro vai todo para a Household Finance e para a

Laura; depois de satisfazer as minhas dívidas não sobra grande

coisa. Não, obrigado - disse ele em resposta ao copo de vinho

branco que Winter lhe oferecia. - Ando de castigo - e suspirou.

- Depois de me separar da Marina e de perder o emprego

(não necessariamente por esta ordem) fiquei estupidificado.

Nessa altura as apostas foram um expediente para voltar a espevitar

emoções fortes, que eu justificava dizendo a mim próprio

que apostar sempre era menos mau do que snifar coca. O problema

é que era obrigatório fazer grandes apostas, de modo que

não deves ter dificuldade em imaginar a continuação desta história.

E pronto, aí tens o meu tenebroso segredo; qual é o teu?


- Tive um colapso nervoso - disse Winter num ímpeto,

antes que cedesse à tentação de dourar a pílula. - Mas não

me parece que tenha sido esse o verdadeiro problema. E...

ando a ver se descubro. É isso - concluiu, bebericando o

vinho.

- É a versão resumida, pelo menos - disse Ramsey. Mas,

à parte isso, sentes-te bem? Como estás de finanças? Se

precisares, eu não tenho muito, mas no ponto em que as coisas

estão, uns milhares a mais ou a menos não fazem diferença.

- Não, por esse lado não há problema - apressou-se

Winter a dizer. «E eu a pensar que ele me ia cravar a mim.» Tenho

o suficiente. - «Por agora.»

Ramsey riu-se:

- Razoavelmente bem, diz a antiga corretora. Ainda bem.

Mas deixemo-nos disso e passemos às grandes questões da

vida: ainda gostas de cebola?

Uma vez desvendado o grande segredo, Winter começou

a sentir-se mais à vontade. Ramsey entusiasmou-se a falar dos

190
tempos idos - era ele o companheiro de quarto de Grey em

Taghkanic, coisa de que Winter já não se lembrava.

- Toda a gente era excêntrica naquela faculdade, mas

nunca conheci ninguém como o Grey, nem nessa época nem

depois - disse Ramsey, agitando no ar uma garfada de omeleta.

O recanto da cozinha destinado aos pequenos-almoços era

uma das poucas coisas que tinham escapado ao saque; ali se

instalaram Winter e Ramsey para acabar a refeição e o vinho.

- Não se ralava nada com o que as outras pessoas pensassem

dele, desde que se tivesse a si próprio em boa conta. Não

que fosse arrogante, não era bem isso... - recordava Ramsey

sonhadoramente.

«Mas não se coibia de fazer reparos demolidores e nunca

conheci ninguém tão intolerante para com a estupidez humana»,

pensou Winter para consigo. Grey nunca fora capaz de

entender que as outras pessoas não faziam coisas estúpidas de

propósito - pensava que, se tivessem bons motivos para isso,

se modificariam. E Deus era testemunha de que ele bem se

esforçara por lhes dar bons motivos.


- Nunca conheci ninguém como o Grey - concordou

Winter em voz alta.

- O que é muito bom, se pensarmos bem no assunto disse

Ramsey solenemente -, porque Grey não se deixava

cair na rotina. Mas disso sabes tu mais do que eu.

«Quem me dera que assim fosse.»

- Tens sabido dele? - perguntou Winter com renovada

esperança.

- Tu não sabes? - admirou-se Ramsey.

Ela abanou a cabeça, surpreendida pela força do desapontamento:

- Tinha esperança de que soubesses alguma coisa.

Ramsey abanou negativamente a cabeça: - Durante dois

ou três anos, sim, mas sabes como era o Grey: não é pessoa

nada previsível. Admira-me que vocês não tenham...

- As coisas nunca correm como nós as imaginamos cortou

Winter. Porque seria que todas as pessoas que se recordavam

de Grey estranhavam o facto de eles os dois não terem

continuado juntos? - Quem diria que eu havia de ir parar a

Wall Street?

191
- Tendo em conta a história da tua família e tudo o mais,

confesso que é uma grande surpresa - disse Ramsey. Acabou

de beber o refresco que tinha no copo e depois encheu-o de

vinho; a garrafa já ia em meio. Winter nada disse. - Mas quando

a gente decide o que quer fazer na vida, geralmente arranja

maneira de não conseguir lá chegar.

A ideia era tão semelhante ao que Janelle dissera que

Winter se sobressaltou, como se tivesse ouvido um eco.

Observou Ramsey atentamente: - Queres tu dizer que estamos

todos condenados ao falhanço? - perguntou ela pausadamente.

Ramsey olhou-a de relance e acenou veementemente:

- Uma ideia reconfortante, não te parece? Mas, na verdade,

não é isso que eu penso. - Ergueu o copo de vinho à luz,

estudando-o atentamente, enquanto as linhas do rosto se lhe

iam ensombrando.

- O que me parece - disse Ramsey -, depois de muitas

horas de ponderação filosófica enquanto os Steelers e os

Buckeyes fugiam com o meu dinheiro, é que mais tarde ou

mais cedo acabamos por nos tornar iguais aos nossos pais. A
questão é esta: quem passámos nós o tempo a observar quando

éramos miúdos? Nós imitamos a vida dos nossos pais; pelo

menos é o que se passa comigo.

- Mas não nos tornamos todos nos nossos pais? Dizes

isso de uma maneira amarga. Como se fosse uma espécie de

ratoeira. - Qualquer coisa bulia lá no fundo da sua memória.

Winter pô-la de parte.

- E é - confirmou Ramsey, muito sério. - Porque não

apanhamos o melhor dos nossos pais. Tornamo-nos iguais a

eles no que têm de pior, e se existe algum meio de fugir a isso,

não passa de uma nesga. Tudo o que faças nessa idade de ouro

consolida os padrões com que hás-de viver o resto da tua vida.

Toda a gente tem essa oportunidade, numa altura em que

ainda é demasiado jovem para lhe dar o devido apreço; mas de

todos nós, a Jannie, a Cassilda, eu, sempre me pareceu que tu

e o Grey eram os únicos capazes de conseguirem aproveitar

essa nesga. Enfim, como dizia o Morrison: No one here gets

out alive, ninguém escapa daqui em vida.

192
«Mas eu não escapei, Ramsey, e o Jim Morrison morreu. E

eu continuo encurralada, sem saber por onde fugir.»

Havia outras perguntas a fazer, mas nessa noite Winter

não se sentia com coragem para tanto. Ajudou Ramsey a arrumar

a louça, mas a seguir desculpou-se com o cansaço provocado

pela longa viagem.

Daí a pouco fechava-se sozinha no quarto de hóspedes,

com o último copo de vinho na mão, parada a olhar a capa de

Venus Afflicted. Ouvia o som indistinto da televisão da sala, filtrado

através da porta.

«Toda a gente cresce», admoestou-se Winter a si mesma.

«Não é tragédia amadurecer.»

Mas era tragédia desperdiçar a vida - e a vida de Ramsey

era um desperdício, ponderou Winter com frieza clínica.

Perdera-se numa espiral económica descendente. O negócio

de carros usados não chegava para pagar aquela casa; independentemente

das dívidas de jogo, deve ter havido uma época

em que Ramsey ganhou muito mais dinheiro - o suficiente

para comprar tudo o que Laura Miller tinha pilhado, mais a


casa.

«... E respectivo recheio», pensou Winter, erguendo o copo

numa saúde breve. Laura, a esposa, e as crianças, agora em

Cleveland. Não parecia que Ramsey estivesse na disposição de

reivindicar sequer visitas periódicas ou direitos paternais. Que

dissera ele ao jantar? Qualquer coisa acerca da idade de ouro, de

uma nesga de oportunidades quando se tem ocasião de estabelecer

padrões de vida, e que falhar nessa altura era como ter

uma má mão num jogo que se prolongaria por toda a vida.

Seria verdade?

Winter abanou a cabeça, recusando-se pensar mais no

assunto. Tinha outras coisas a fazer: uma lista de perguntas

para Ramsey, indagar de que se lembrava ele quanto ao trabalho

do Círculo Nuclear. Descobrir se ele tinha traumas quanto

a esse assunto - se a coisa tinha visitado Janelle, então era

provável que também o perseguisse a ele.

Se é que o Elemento existia de facto. Se é que andava a

visitar todos os membros do Círculo Nuclear. E se assim era,

porquê?

193
- Abro de par em par as portas de Dayton, Ohio, e faculto-te

todos os seus bens - disse Ramsey, atirando um molho

de chaves para cima do cobertor, ainda Winter mal despertara.

- Calculei que não te apetecia ficar fechada em casa todo o

dia. Há um centro comercial no fim da rua, caso queiras ir às

compras; em cima da mesa da cozinha tens um mapa da cidade,

com os lugares úteis devidamente assinalados por mim.

Até logo.

Winter sentou-se, moída de dormir numa cama desconhecida.

- Até logo, Ramsey. Diverte-te - disse ela ainda ensonada.

«E não vendas Corvettes ao Arnold Schwarzenegger.»

Depois de ele sair, Winter levantou-se e deambulou pela

casa vazia. Paradoxalmente, não parecia tão vazia na ausência

de Ramsey. Sem a sua presença a recordar o que fora, não passava

de uma casa vazia.

«Sem mobília, é certo, e com estranhas manchas, mas...»

O quarto de Ramsey mantinha-se mais ou menos intacto

- pelo menos não se viam na alcatifa marcas de mobília retirada.

Estava decorado naquele estilo escuro de inspiração mediterrânica


que estivera na moda poucos anos antes e dava a

impressão que a única forma de o eliminar era pegando fogo à

casa. Winter fechou a porta do quarto e pôs-se a esquadrinhar o

resto da casa, à procura da cozinha, de café ou chá. Lembrava-se

vagamente de ter comprado ambos na noite anterior; ela e

Ramsey, dois velhos amigos - agora apenas conhecidos.

Por breves instantes, Winter teve a estranha sensação de

que podiam ser aquelas a sua casa e a sua vida - uma mulher

acabada de chegar à cidade, com a mobília ainda a caminho

vinda de outro estado, mas decidida a assentar vida doméstica

e familiar. Um tipo de vida que ela tinha ... evitado? fintado?

tentado e achado desinteressante?

Seria demasiado tarde para voltar atrás e recolher os pedaços

de vida rejeitados?

Uma vez na cozinha, Winter descobriu a chaleira, decidiu-se

pelo chá e pôs água ao lume. Apeteceu-lhe fazer torradas,

mas, não conseguindo encontrar uma torradeira - mais uma

esperteza de Laura, calculou Winter -, decidiu-se por um

194
prato de cereais secos. Encontrou a caixa no armário de cozinha

e levou-a para a mesa.

Em que havia de ocupar o dia? Pegou no mapa da cidade,

mas depois pô-lo de parte. Se quisesse fazer compras, encontraria

melhores lojas em Nova Iorque. Na verdade, era tudo

melhor em Nova Iorque - que diabo andava ela a fazer neste

fim do mundo?

«Estou aqui por causa do Ramsey», recordou. Queria saber

de que se lembrava Ramsey acerca do curso de 1982 e do

Círculo Nuclear. Partindo do princípio que as actividades ocultistas

dos tempos de adolescente eram mais do que simples

coincidência, nada tendo a ver com o que se passava no presente.

Os acontecimentos ocorridos no Laboratório do Instituto

Bidney, havia quase duas semanas, diluíam-se-lhe pouco a

pouco na memória - eram já imagem da imagem, breve se

dissolveriam por completo na recusa impensada das coisas, tal

como elas se tinham passado. A ideia de que acontecimentos

tão marcantes se esvaíssem da memória perturbava-a; quantos

pensamentos, experiências, sentimentos, memórias perdia ela


todos os dias?

«Não mais do que as outras pessoas - disse Winter a si

própria chãmente. - O presente é tudo o que temos. O presente

é o que interessa.»

Mas o perigo que a perseguia - e a suspeita crescente de

que tinha uma tarefa urgente a desempenhar - também interessava.

- Ramsey, lembras-te daquela coisa do Thorne Blackburn

em que andávamos metidos no colégio?

As bancadas da cozinha estavam repletas de cartuchos de

comida chinesa. Ramsey não era melhor cozinheiro que

Winter, e nessa noite optara pela solução mais fácil.

- Thorne quê? - perguntou ele, suspendendo os pauzinhos

com massa chinesa a meio caminho da boca.

- Thorne Blackburn, sabes, o... ocultista? - a língua tropeçou-lhe

naquele termo tão desprezado. - Tu, eu, o Grey, a

Jannie e a Cassie, na escola.

195
Ramsey olhou para ela atentamente, mas sem dar mostras

de compreender do que se tratava.

- Costumávamos ir para o lago Nuclear. - «E fazer qualquer

coisa que não consigo recordar, e o livro de Truth também

não me ajuda muito.» - Só nós os cinco. Lembras-te? «Eu

lembro-me; e tu, não?»

- Acho que não - respondeu Ramsey, com ar muito sincero.

- Não devo ter ido convosco.

«Mas foste! Estivemos todos lá!, eu vi-te!»

- Fomos lá imensas vezes - recomeçou Winter cautelosamente.

- Durante anos. Quem teve a ideia foi o Grey, julgo

eu, mas acabámos todos nós por alinhar. Ele andava metido

numa coisa chamada Trabalho Blackburn e arregimentou-nos.

- Eu não - disse Ramsey em tom ligeiramente mais

peremptório do que seria de esperar de quem recorda histórias

de há mais de uma década.

«Como se não quisesse recordar; e Janelle também não

quis falar do assunto. E eu quero lembrar-me, mas não consigo»,

pensou Winter com grande frustração.


- Voltei a visitar a universidade, sabes? - recomeçou

Winter, procurando outra forma de abordar o assunto.

Mas embora Ramsey estivesse disposto a discutir a universidade

e os professores que tinham tido em comum, e até o

Instituto Bidney, Winter não encontrava maneira de trazer o

lago Nuclear à baila.

Mas o lago Nuclear existe. Nina Fowler não tivera qualquer

dificuldade em lembrar-se dele e redescobrira facilmente

o caminho de acesso. O mesmo se passara com Truth

Jourdemayne - de facto, Truth vira a cave em que eles os

cinco tinham efectuado o que Truth designava Trabalho

Blackburn.

Mais uma memória esquiva como asa de borboleta: o

laboratório da cave do lago Nuclear, iluminada pelas lanternas

de propano; Janelle de joelhos, pintando metodicamente uma

linha branca no chão, enquanto Ramsey segurava a lata de

tinta...

- Ramsey, não te lembras mesmo nada do lago Nuclear?

- perguntou Winter, no auge da frustração.

196
- Pensei que não era eu quem tinha problemas de

memória - retorquiu Ramsey num tom áspero que não lhe

era habitual.

- Touché, you little yellow devil - disse Winter, citando

Doonesbury com um sorriso. - Tens razão: eu própria não

me lembro muito bem do que lá se passou. Há montes de coisas

em que a minha memória se... baralhou.

Num gesto de simpatia, Ramsey agarrou-lhe a mão e disse

suavemente: - Às vezes é melhor não recordar.

«E normalmente eu estaria de acordo contigo, meu amigo,

mas neste caso a parada é muito alta», pensou Winter com desgosto.

- Lembras-te das razões por que abandonei Taghkanic?

Só sei que saí antes do fim do curso e não me lembro de ter

voltado a estar convosco. A Janelle diz que lhe enviei um presente

de casamento, mas...

- A Janelle é capaz de estar enganada - disse Ramsey.

- Suspeito que a vida não lhe corre muito bem.

- Eu sei. Estive em casa dela antes de vir para aqui. Ela

deixou de pintar. Ramsey, todos nós... - abalada por súbita


onda de amargura, pousou os pauzinhos chineses.

«Todos nós íamos ser famosos: Janelle ia ser pintora e tu

ias ser um grande jornalista. E eu ia ser o quê? Já nem sei, mas

não era com certeza aquilo que me tornei.»

- ... íamos ser reis e rainhas em Narnia; eu sei, Winter.

Mas toda a gente acaba um dia por crescer e amadurecer, e no

mundo das realidades nem todos podem ser belos, famosos e

ricos. Éramos uns miúdos, com sonhos de miúdos, e depois

descobrimos que os sonhos não fazem parte da realidade.

Ramsey voltou a encher ambos os copos. Winter avisou-se

a si própria de que provavelmente estava a beber demasiado,

mas uma vez não são vezes. Quanto a Ramsey, apesar das suas

declarações de abstinência, não bebeu menos. Mas não era

ocasião de lhe fazer pregações acerca dos maus hábitos nem

de gabar os seus. Além disso o álcool dava-lhe coragem para

fazer as perguntas necessárias.

- Afinal porque é que eu abandonei o curso, Ramsey?

Gostava de saber.

197

Ele sorriu-lhe, com uma expressão juvenil:


- Suspeito que se trata de um mistério tão grande como

o das pirâmides. Todos nós, menos o Grey, fomos para fora

durante as férias da Páscoa; e tu nunca mais regressaste.

Winter tinha metido na boca uma grande colherada de

torta, de modo que ficou a adejar as mãos, numa interrogação

muda: «Desapareci, assim sem mais nem menos? Não foram à

minha procura? Deixaram-se ficar sentadinhos? Então e se eu

tivesse ido desta para melhor?»

Ramsey riu-se da mímica: - O pessoal da secretaria informou-nos

que tinhas desistido. Parece-me que a Cassie te telefonou

umas quantas vezes, não sei bem, já foi há muito tempo.

Ficámos um bocado tristes por nos teres abandonado - acrescentou

ele, passado um bocado.

Winter sentiu um lampejo de culpa. Nunca tinha pensado

a questão pelo ponto de vista dos outros e Janelle não trouxera

à baila o facto de se ter sentido desprezada pela atitude de

Winter nessa época.

- Ramsey, juro que não me lembro do que fiz nessa altura;

nem de ter desaparecido nem... porquê. Peço... peço desculpa.

Não sei porque é que fiz aquilo - a voz embargou-se-lhe.

- Continuo sem saber por que fiz semelhante coisa. «E


que terá Grey pensado quando eu desapareci sem dizer

água vai?» Pestanejou, a suster as lágrimas.

- A vida continua - disse Ramsey, mas Winter detectou

uma réstia de amargura na sua voz. - Seja como for, seis semanas

depois todos nós tínhamos o curso acabado e fizemo-nos à

vida.

- Os outros continuam a dar notícias? - perguntou

Winter, na mira de reconduzir a conversa ao tema do lago

Nuclear.

- De tempos a tempos mando um postal à Jannie disse

Ramsey evasivamente. Dou-lhe notícias dos meus divórcios

e ela responde a dizer que quarto está a redecorar. A propósito,

tu viste...

A conversa desviou-se do tema pessoal para acontecimentos

correntes, de modo que Winter conformou-se em

abrir mão das suas investigações. O que Ramsey lhe contara

198
perturbava-a profundamente e fazia-a sentir-se envergonhada.

Pura e simplesmente tinha-os abandonado. Ela, Winter

Musgrave, que se orgulhava de honrar todos os seus pactos, de

cumprir cada promessa, tinha virado costas aos seus quatro

queridos amigos sem dar qualquer explicação.

Mas ela não o teria feito - tampouco o teria feito a

Winter Musgrave dos tempos de faculdade.

Que se teria passado? Ó Deus, que se teria passado catorze

anos antes?

Se ao princípio do dia Winter sonhara fantasias de vida

doméstica suburbana, à noite pôde dar-lhes vazão: Ramsey

montou uma mesinha de jogo na sala de estar e deu-lhe um

capote de scrabble. Soube-lhe bem o serão; nunca imaginara

que lhe pudesse agradar (ou desejar) tanto. Foi passatempo

plácido, inofensivo e convencional.

«E económico, ainda por cima.» Ainda não há muito

tempo tinha o hábito de medir o prazer das coisas pelo seu

custo. Agora via-se a participar em jogos de família numa sala

de estar suburbana com um antigo colega de curso, e dava por


si a pensar que bom seria passar mais momentos assim; que

bom seria prolongar os bons momentos para sempre.

«Mas não com Ramsey.» A correcção foi automática e

espontânea. Ramsey Miller demonstrara por diversas vezes e

de múltiplas formas ser um falhado no jogo do casamento, de

modo que Winter não acreditava que ele pudesse ter emenda.

«Que aconteceu?», voltou Winter a interrogar-se, enquanto

dava volta às pedras do jogo, tentando construir palavras.

Os métodos a que Janelle recorrera para fugir ao sucesso

eram evidentes - mas que se passara com Ramsey? Chegara

a trabalhar num jornal, em tempos, lançara-se no bom caminho

para consolidar a carreira almejada - e agora ali estava

ele. E embora algumas pessoas tenham dificuldade em ver

nisto um falhanço, ela, que bem conhecera Ramsey, não o

imaginava a optar de sua livre vontade pela vida de vendedor

de carros usados em detrimento dos gloriosos sonhos de

juventude.

199
Que opções o teriam trazido àquela situação? Erradas

foram, sem dúvida, mas seriam opções conscientes? Ou ter-se-ia

tratado de expedientes que ele julgou poder ultrapassar,

sem se dar conta de que também já tinha passado a época dourada

que lhe traçaria o rumo até ao fim da vida?

Conforme cismava, a teoria de Ramsey acerca da época

de ouro misturou-se-lhe na ideia com os Anjos Cínzeos do vale

do Hudson, a ponto de se convencer, por breves instantes, que

os Anjos Cínzeos controlavam a idade de ouro, que de sob as

suas asas emanavam a luz que conferia a capacidade de ser

diferente, verdadeiramente diferente, de quebrar as cadeias do

karma e...

- Qwozle não é uma palavra, Winter; e eu a pensar que

tinhas um montão de pontos na manga - disse Ramsey secamente.

Winter olhou para o jogo e sentiu-se corar.

- Acho que estava na lua - disse ela.

Se vires por lá o meu espírito, não te esqueças de o trazer

de volta, declarou subitamente a voz de Hunter Greyson dentro

da sua cabeça. Winter ponderou, com perspicácia maior,


se ele a bombardearia com aquelas palavras para se armar em

esperto ou para mascarar uma compaixão que sabia inútil. Se

ele ali estivesse naquele instante, se pudesse ver o que acontecera

a Ramsey, não seria menos verrinoso, pois de nada serviria

a sua ajuda. Ninguém podia fazer nada por Ramsey, tal

como ninguém podia valer a Janelle. Ambos tinham desistido,

cada um à sua maneira.

- Peço-te desculpa, Ramsey. Parece-me que estou mais

cansada do que pensava - disse Winter em tom neutro. «Será

que todos os meus amigos são emocionalmente surdos? São

eles os MEUS amigos; e EU, sou o quê?»

- Bem, como se costuma dizer, mais vale desistires

enquanto é tempo. Vai deitar-te, Winter, dorme bem. Vemo-nos

amanhã de manhã.

Sentada no sofá-cama, diante da sua magra biblioteca

(Venus Afflicted e o manual de higiene psíquica de Tabitha

Whitfield), Winter estava longe de ter vontade de dormir.

200
Abriu as mãos à sua frente e observou as pontas dos dedos.

Sentia necessidade de fazer qualquer coisa, mas naquele

momento as opções eram limitadas. Claro que, se se preocupasse

bastante com o assunto, acabaria por se provocar uma

sessão de poltergeist; isso é que seria dar animação à casa...

Winter ficou a olhar o vazio, enquanto crescia nela nova

inspiração. Tinha quase a certeza de ser capaz de invocar uma

tempestade psíquica - bastava uma emoção intensa e a perda

de controlo; experiência não lhe faltara nos últimos tempos.

Haveria algum meio termo possível? Se era capaz de dar

início e pôr fim a essas crises, não quereria isso dizer que era

capaz de muito mais?

«De quê, por exemplo?», cismou Winter. Não estava bem

certa do que fazia o poltergeist: abrir portas e janelas, projectar

objectos...

«Porque é que não experimentas ver se és capaz de deslocar

qualquer coisa apenas com o poder do espírito, como nos

livros aos quadradinhos? Ora põe lá os teus demónios íntimos

ao teu serviço.» Winter não estava segura de preferir acreditar


em controlo psíquico em vez de acreditar na magia, mas pelo

menos sabia ter perdido o direito de rejeitar automaticamente

tudo quanto fosse estranho e misterioso. Olhou à sua volta.

O quarto tinha o sofá-cama em que ela estava sentada, um

candeeiro de pé e uma mesinha de apoio, com abas, onde

pousara o copo de vinho e um montão de tralha miúda. As

chaves do carro. Um baton. Vasculhou nas malas até ter cinco

objectos alinhados no tabuleiro: o elefantezinho de peluche

que era um amuleto da sorte, a escova do cabelo, um pacote

de Life Savers, as chaves do carro e o baton. Engoliu o resto

do vinho e pousou o copo vazio no chão, fora de alcance. Não

queria nada quebrável por perto.

«E agora?» Sentiu-se insuportavelmente pateta, a olhar para

as cobaias improvisadas. «Lindo. Descobri o equivalente psíquico

de fazer bonequinhos de papel.»

No entanto recusava-se a desistir da ideia. O seu sentido de

rigor exigia-lhe que fizesse pelo menos um teste objectivo.

Sentou-se de perna cruzada aos pés da cama e olhou fixamente

a colecção de objectos.

201
Nada aconteceu.

«Quanto tempo tenho de esperar?», perguntou-se; aliás, do

que estava ela à espera? Se fosse um personagem livresco, teria

certezas absolutas, uma convicção recta, um assomo instantâneo

de poder, e...

Mas de facto ela sentira um assomo de poder - no instante

em que o relâmpago atingira o carro de Nina Fowler. Estava

meio fora de si por causa do medo, mas mesmo assim a sensação

fora clara e inesquecível. Seria capaz de a recriar agora de

forma menos desastrosa?

Por força do hábito adquirido, a respiração de Winter

entrou no ritmo pausado que aprendera nos exercícios nocturnos;

os do panfleto de Tabitha Whitfield. A cada inspiração

fazia o corpo absorver uma força invisível, sentindo-se encher

de energia e descontracção. Desta vez, como estava a pé, não

adormeceu; em vez disso, ao fixar o olhar no tabuleiro cheio

de objectos, sentiu a clareza ilógica do sonho - para o qual

não existem limites e tudo é possível.

As mãos são uma extensão do espírito; agora faz com


que o espírito se torne uma extensão das mãos...

Era quase como se tivesse a seu lado uma presença familiar,

guiando-a. Winter tomou consciência de um formigueiro

no peito, quase uma opressão, como se tivesse subitamente

descoberto a existência de um novo órgão interno cuja presença

nunca suspeitara. Aí estava a fonte do estranho fio condutor

indolor que dava o sinal somático do início de uma das suas

tempestades psíquicas.

«Aí está. É isso mesmo. É aí o teu centro.»

A descoberta agradou-lhe - toda a gente sabe quão

importante é conhecer o próprio centro; ela acabara de descobrir

o seu. Sem desviar a atenção dessa sensação, como costumava

fazer com as imagens geométricas dos exercícios que se

habituara a praticar todos os dias, Winter concentrou-se nos

objectos poisados no tabuleiro. Ia mover o chaveiro...

«Agora!»

O molho de chaves, preso por uma argola ao medalhão

Tiffany, saltou como se tivesse caído para cima e foi a rodopiar

até à beira da mesa. Caiu no soalho de madeira nua com um

202
estalo que fez Winter pular de susto e a tirou do estado de

sonho acordado.

Mas, contrariamente ao sonho, a sensação não desapareceu

com o despertar. A sensação de triunfo que Winter começara

a sentir foi submersa pela suspeita crescente de que era

muito mais fácil desrolhar o génio do que voltar a metê-lo dentro

da lâmpada. Arrepiou-se-lhe a pele e eriçaram-se-lhe os

cabelos da nuca; sentia distintamente o potencial a intensificar-se

e a abrir caminho para fora da sua própria pele, buscando

alívio na violência.

«Tenho de ver-me livre disto, seja como for... ligar à

terra...»

Mas era demasiado tarde. Sentiu a força condensar-se;

libertar-se do seu controlo. Sentiu qualquer coisa dentro de si

flectir...

A lâmpada do candeeiro, mais do que estilhaçar, dissolveu-se,

implodiu, emitindo um estalido e uma faísca azul que

deixou no quarto escuro um cheiro a ozono.

Winter sentiu o resto da força esvair-se-lhe do corpo,


levando consigo a energia - como se o esforço que acabara

de fazer não fosse meramente psíquico mas também físico.

Doíam-lhe todos os músculos do corpo - sensação familiar,

embora mal-vinda. Era como das outras vezes em Fall River e

noutras ocasiões anteriores.

E agora, já estás contente? disse Grey dentro do seu espírito.

Ou apenas assustada? A partir do momento em que te

tornas responsável pelas coisas, elas pertencem-te... e tu passas

a pertencer-lhes.

Mas a exaustão corria nas veias de Winter como uma

droga, e era muito mais fácil deixar-se levar pelo sono do que

responder.

203
CAPÍTULO DEZ

A CAÇADA À CARRIÇA

Summers pleasures they are gone like to visions every one

And the cloudy days of autumn and of winter cometh on1

JOHN CLARE

Despertou a friagem na pele arrepiada. Era ainda de

manhãzinha, mas levantou-se com a mesma sensação de bem-estar

que lhe costumavam dar as boas sessões do ginásio. No

primeiro instante desorientou-a a presença daquele quarto desconhecido.

Depois, com a recordação dos acontecimentos da

véspera, veio-lhe um sentimento de culpa e insegurança, uma

perturbadora sensação de vergonha.

«Mas porquê?» Winter não conseguia lembrar-se de nada

- a não ser a partida súbita de Fall River - de que devesse

desculpas. Tiritando ao frio, aconchegou o cobertor à sua

volta. Para dizer a verdade, havia no passado uns quantos pecados

que não era capaz de recordar nesse momento, mas a sensação

de omissão parecia-lhe demasiado forte para o que quer

que tivesse acontecido.

Estava, porém, demasiado inquieta para se preocupar longamente


com a questão. Pôs os pés no chão, retraiu-se ao frio

e quase pisou o molho das chaves. Estavam caídas no meio do

chão.

«Afinal consegui!» A descoberta fê-la erguer-se, enrolada

no cobertor, para ir verificar também a lâmpada. Confirmava-se;

o quebra-luz estava intacto, mas a ampola da lâmpada fundira

pela base. Não havia rastos do vidro.

«Mais um quarto a precisar de reparações», pensou

1 Foram-se como visões os prazeres estivais para toda a gente / E acometeram


nublados os

dias de Outono e Inverno. (N. do T.)

205
Winter. Passou cautelosamente o dedo na borda do vidro fundido.

«Fico a dever uma lâmpada ao Ramsey.»

Um movimento das cortinas atraiu-lhe a atenção. Não

admirava que o quarto estivesse tão frio - a janela estava aberta.

Foi até lá e, lentamente, fechou-a.

«Mas abria-a eu ontem à noite, antes de me deitar?»

Era urgente saber ao certo se assim fora. Com uma pressa

que não lhe deu tempo de procurar sapatos, Winter enfiou as

calças e a camisa e precipitou-se para fora do quarto.

- Ramsey?

Chamou-o em voz tão sumida, que ele dificilmente poderia

ouvi-la. Winter engoliu em seco e fechou a porta da frente,

deu volta ao trinco e pôs a corrente de segurança.

Todas as janelas da sala de estar estavam abertas. Os

reposteiros pesados tinham sido arredados para os lados e as

cortinas baloiçavam à brisa fresca da manhã. Winter fechou as

janelas, correu os cortinados e pôs-se a percorrer a casa.

Todas as janelas, portas e portadas estavam escancaradas.

Winter percebeu, com fúria amargurada, que não havia fuga


possível.

«Está aqui.»

Deixou a cozinha para o fim, na expectativa de que aí

encontraria a mais grave demonstração do erro que a perseguia.

Mas quando lá chegou apenas encontrou Ramsey, de

T-shirt e jeans, a lavar as mãos no lava-loiças.

A lavar os braços até aos cotovelos.

A esfregá-los com força.

- O que é que se passa? - perguntou Winter. Tencionava

fazer a pergunta em tom claro e neutro, mas o que lhe

saiu foi a expressão do medo.

- Levantaste-te cedo - a voz de Ramsey soou tão estranhamente

falsa como a dela.

Winter consultou o relógio: 6:30.

- Cuidado, vê lá onde pões os pés, isto está... - Ramsey

interrompeu-se.

«Molhado», completou Winter mudamente. Olhou para os

206
seus próprios pés descalços, no chão brilhante, acabado de

lavar, recentemente enxaguado.

Não era normal uma pessoa pôr-se a esfregar o chão da

cozinha às seis da manhã.

- Ramsey, que aconteceu aqui? - perguntou-lhe Winter,

em tom contido.

- Nada - respondeu ele com galante desonestidade.

Mas sem olhar para ela.

Lavagens e mais lavagens ... seria imaginação sua, ou pairava

ali um leve fedor a podre bafiento e fermentado de pântano

em manhã de calor, ou de comida estragada...

- Tenho de ir embora - disse Winter Musgrave.

Ele nem argumentou. A maldição de Ramsey era não ser

capaz de arquitectar mentiras reconfortantes nem para si

mesmo nem para os outros, por muito problemática que

fosse a verdade. Pela última vez, com ar desolado, tomaram

juntos o pequeno-almoço na mesa de cozinha, com Winter a

perguntar a si própria se alguma vez voltaria a vê-lo. Em frente

dela, na bancada da cozinha, arrefecia uma chávena de chá


e secavam os ovos mexidos, que nenhum deles tinha apetite

para comer.

- Ficas bem, não ficas? Suponho que voltas para Nova

Iorque? - perguntou Ramsey esperançadamente. Detectava-se

no seu tom um subtexto que Winter não estava certa de compreender.

- Tenho de encontrar o Grey - insistiu Winter teimosamente.

Ultimamente parecia que tudo o que ela queria agarrar

lhe escapava das mãos como mancheia de areia, deixando-a

absolutamente sozinha, impedindo-a de se encontrar com os

outros ou de lhes tocar. Não tinha tempo a perder com as evasivas

de Ramsey.

- Sabes onde é que ele pára? Tiveste notícias dele?

Ramsey abanou a cabeça, mas isso não era resposta.

- Ele já não era o mesmo, depois de tu desapareceres de

Taghkanic. - Também isto não satisfazia como resposta.

- Onde está ele? - insistiu Winter.

- Eu... não sei. Talvez a Cassie saiba - retorquiu Ramsey,

207
nitidamente aliviado por lhe dar ao menos esta resposta. - A

Cassie continuou a ter notícias dele. Tenho a certeza.

- Tenho a morada dela em Berkeley... - disse Winter

em tom de dúvida.

- Não, essa morada está desactualizada; ela mudou-se

para San Francisco há uns quatro anos, quando foi gerir a livraria

- Ramsey disse-o assim, sem mais, como se Winter soubesse

de que livraria se tratava e por que razões Cassie a geria. Vou

já procurar o endereço - e saiu prontamente da cozinha.

Winter arredou para o lado o pequeno-almoço quase intocado.

Ramsey revelava-se tão imprestável quanto ansioso por

que ela desaparecesse dali, o que não era de estranhar depois

do que, como ela imaginava, se passara naquela madrugada.

«Mas não se comportou como se estivesse ofendido ou espantado

com o facto, ou como se tentasse atirar com as culpas

para cima de alguém. Como se outra coisa não esperasse... ou

como se já tivesse acontecido.»

- Ramsey? - chamou ela, subitamente apreensiva.

- Aqui está - disse ele, de regresso à cozinha. Poisou na


mesa um cartão com a morada de Cassie manuscrita.

Lá dizia: Ancient Mysteries Bookstore2, seguido de um

endereço na Haight Street, em San Francisco. Winter sentiu-se

subitamente incomodada; com um nome daqueles, devia tratar-se

de uma loja muito semelhante à Inquire Within: mais uma

coincidência irracional. Como podia Cassie fazer-lhe tal coisa?

De todo o grupo, Cassie sempre fora a mais simples, com os

pés bem assentes na realidade.

Numa realidade, em todo o caso.

- Vais ter com a Cassie? - perguntou Ramsey.

- Se puder. - Winter não sabia o que a levava a fazer

esta promessa. - Ramsey, esta manhã... não foste tu; foi...

Ele foi sentar-se na cadeira em frente dela. A luz crua da

cozinha fazia-o parecer mais velho, de repente, com linhas

duras a traçarem-lhe no rosto a fria máscara da idade. - Se

vais, tens de compreender que eu... Quando me perguntaste

acerca do lago Nuclear... - a voz embargou-se-lhe. - Durante

2 «Livraria dos Antigos Mistérios».

208
toda a minha vida nunca levei a sério nada que não pudesse ver

ou tocar. Carros usados; é do mais baixo que há, não achas?

Não quis que as coisas que não consigo dominar me baralhassem.

Tu conheces-me, Winter; sempre gostei de dar luta, desde

que fosse uma luta honesta. Quando foi a história do lago

Nuclear... - a voz voltou a sumir-se-lhe num soluço.

«Afinal ele lembra-se!» Winter sentiu-se impar de triunfo.

- Não me agradou, mas o que nós lá fizemos, o que

aconteceu, se não provinha de fora, da realidade objectiva,

então vinha de mim, compreendes? Eu tinha duas hipóteses à

escolha e nenhuma delas me agradava. A Jannie, pelo contrário,

adorou; parece-me que quando deixou de ter a magia ao

seu alcance houve qualquer coisa dentro dela que ... que se

quebrou. Muito antes de se casar com o Denny. - Pôs-se a

brincar com a caneca do chá, sem olhar para Winter. Resumindo,

nunca me conformei com o facto de a realidade

ser diferente do que eu esperava. E ultimamente...

Winter sentia que ele estava a tentar arranjar coragem

para prosseguir, para dizer o que obviamente lhe custava tanto


declarar.

- A Cassie quis dizer-me qualquer coisa, Winter.

Qualquer coisa que a trazia preocupada. De modo que me

escreveu uma carta cheia de histórias. Nem sequer a li.

Chegou mesmo a telefonar, mas, como sabes, nunca fomos

muito íntimos. Mas apesar disso telefonou-me, mas eu nem

sequer a deixei falar do assunto. Ela queria pedir ajuda, parece-me,

mas eu nem lhe dei oportunidade. Porque eu sabia que

ela não tinha virado costas; agarrou-se àquelas histórias, percebes...

«E depois ficou aflita... ou tu pensaste que ela estava aflita...

e tu nem querias pensar no assunto, porque já calculavas

que não te agradava.»

- Oh, Ramsey - disse Winter, compadecida. Pegou-lhe

na mão.

- Portanto, quando vires a Cassie, ajuda-a, sim? Vê lá o

que podes fazer por ela - disse Ramsey.

- Está descansado - prometeu Winter.

Meia hora depois estava na estrada.

209
Ao sair da garagem, Winter notou que Ramsey a observava

da janela da sala de estar, solitário como náufrago em ilha

deserta. Mesmo ali, a poucos metros de distância, Winter teve

a sensação de que não podia regressar, como se houvesse uma

força a separá-los. Tentou não se preocupar, pensar no que

estava para vir. Não havia caminhos de regresso.

Meteu o carro na rua, afastou-se, e quando chegou à primeira

esquina a casa já desaparecera de vista.

Depois, embalada na torrente de carros e no burburinho

do trânsito, Winter pôs-se a matutar. Ramsey acabara por ser

totalmente honesto com ela. Levado pelo medo... ou porque

desistira de tentar protegê-la? Winter passou os dedos pela

mala poisada no banco do lado. Ali guardara o endereço de

Cassie. Ou o que Ramsey dizia ser o endereço de Cassie.

Uma vez na estrada, a caminho do acesso à 1-80, Winter

pôs-se a pensar que a sua partida intempestiva ficara a dever-se,

em grande parte, ao pânico e ao sentimento de culpa. Saíra

da casa sem plano definido; mas a viagem de carro para a

Califórnia era muito longa. Uma vez que havia voos directos
em Chicago e em St. Louis, talvez fosse mais sensato ir de

carro até um desses dois aeroportos e a partir daí seguir de

avião.

Por outro lado, desagradava-lhe a ideia de ficar sem carro à

chegada - a não ser que alugasse outro; e por fim concluiu

que todas estas reticências e hesitações resultavam da sua relutância

em encarar Cassilda Chandler. Teria Cassie mudado? «Foi

ela a única, de todo o grupo, que manteve a fé», pensou Winter

com estranho aperto. As observações de Ramsey davam a

entender que Cassie continuava envolvida em... no que quer

que fosse que eles os cinco tinham praticado. Magia. Ocultismo.

«O gémeo obscuro da ciência», nas palavras de Thorne

Blackburn citadas na sua biografia. Praticado durante os tempos

de universidade, tanto quanto Winter era capaz de reconstituir,

e nunca totalmente abandonado.

Não completamente.

Não por todos eles.

Tomou uma das seis faixas de rodagem que levavam à estrada

interestadual, conduzindo suave e automaticamente no meio

210
do trânsito intenso. Teria sido Cassie quem enviara a criança

mágica! A ideia enfermava de uma certa lógica repugnante.

Afinal de contas, se não podemos suspeitar dos nossos

amigos, de quem havemos de suspeitar?, ecoou Grey na sua

memória.

- Quem me dera que estivesses aqui para me aconselhares

- murmurou Winter ao ausente Hunter Greyson.

Fosse como fosse, Winter tinha uma vaga ideia do que se

estava a passar; Grey sempre tivera, ou parecia ter, resposta

para tudo - pelo menos tanto quanto seria de esperar de um

aluno universitário. Já era difícil imaginar quão jovens eles

tinham sido nessa época. Sentiam-se como adultos, mas de

facto eram jovens. E agora, passados tantos anos, até que

ponto poderia Winter dizer que os conhecia? Janelle, enterrada

no seu casamento; Ramsey, aceitando complacentemente a

sua miríade de falhanços - talvez Cassie tivesse passado pelo

mesmo tipo de obscura alquimia, para se transformar em...

O desvio para a 1-80 apresentava-se-lhe pela frente, assinalado

por sinais azuis e brancos. Habituada a tomar decisões instantâneas,


Winter apontou ao desvio, misturando-se no tráfego

denso; era uma forma de ganhar tempo para pensar melhor.

De qualquer maneira teria de seguir para oeste - a caminho

de Chicago, se decidisse apanhar o avião; a caminho da 1-90 e

da Califórnia, se desistisse do avião. Uma vez lançada no curso

hipnótico da via rápida, os seus pensamentos regressaram fatalmente

ao problema original. O Elemento artificial - a criança

mágica.

Uma força criada e enviada por um mágico perseguia-a. À

margem da razão e da lógica, aqui, no declinar do século XX, o

problema dela era um ataque mágico levado a cabo por pessoa

ou pessoas desconhecidas. O perigo desses ataques aumentava

de dia para dia, sem que ela tivesse ideia de como enfrentá-lo.

Andava em busca de Grey porque era ele o único mago

que jamais conhecera. Não acreditava que ele pudesse ter

regressado sabe-se lá donde de propósito para lhe fazer mal;

mas como poderia ela ter a certeza de que não voltara a vê-lo

desde que saíra da universidade? Estaria ele a cumprir algum

plano que ela tinha esquecido?

211
Winter pestanejou. Lembrava-se do solar da quinta às portas

de Glastonbury e, antes disso, do sanatório de Fall River.

Lembrava-se da Arkham Miskatonic King, do dia em que aí

começara a trabalhar, era uma memória tão brilhantemente

viva como moeda acabada de cunhar.

Mais para trás, as memórias dos tempos de faculdade

constituíam um emaranhado indistinto, como cardume de peixes

em águas turvas. Dificilmente se lembrava de Grey, mas

não acreditava que pudesse ter feito qualquer coisa capaz de

despoletar tão grande ódio em alguém mentalmente são. Ora

Grey, independentemente de tudo o que ela pudesse ter

esquecido acerca dele, sempre fora radiosamente são.

Mas, agora que Winter pensava melhor no assunto, não

era ele o único mago seu conhecido. A crer no que Ramsey

lhe dissera, Cassilda também não desistira do Trabalho

Blackburn, por conseguinte talvez Cassie pudesse ser-lhe tão

útil como Grey.

«Ou tão perigosa. Tens de admitir, Winter, quanto mais os

ataques de feitiçaria reforçam a sua credibilidade, mais óbvio


se torna que a vítima não foi escolhida ao acaso. Têm de provir

de alguém que te conheça, que tu conheces.»

«Mas não Cassie. Nem Grey.» Com obstinação de criança

abandonada no escuro, Winter agarrou-se a essa convicção.

Eles tinham sido seus amigos. Nunca lhe fariam mal. Até

Ramsey e Janelle, por muito estranhos que se tivessem tornado,

por muito que tivessem mudado, não lhe desejavam mal

algum.

«Preciso de ganhar tempo.»

Tempo para analisar os acontecimentos, numa situação

que se esquivava a toda a lógica. Tempo para pensar. Tempo

para planear.

Tempo para aprender. Acerca de si própria, quanto mais

não fosse.

Mas Ramsey tinha dito que o problema de Cassie podia

ser urgente, de modo que, duas horas mais tarde, quando

parou para encher o depósito do carro e esticar as pernas,

Winter entrou na cabina telefónica e ligou para Cassie.

212
Encontrava-se numa daquelas estações de serviço e repouso

que pareciam determinadas a desafiar todos os princípios

da campanha lançada trinta anos antes por Lady Bird Johnson,

quando esta exortou os Americanos com a palavra de ordem

«Keep America Beautiful». Os telefones públicos situavam-se

num recanto pouco sossegado, onde crianças enervadas, caixas

registadoras tagarelas e pessoas em trânsito faziam um

bruá ensurdecedor. Winter colou o auscultador à orelha e deu

graças por o seu cartão de crédito dos telefones ainda funcionar

- detestava a ideia de ter de meter uma pilha de moedinhas

enquanto falava. Felizmente, o contabilista que lhe gerira

as finanças durante a estada em Fall River tivera o cuidado de

zelar pela boa ordem das suas contas, pelo pagamento dos cartões

de crédito e pela cobertura da conta-corrente no banco.

Uma vez que já sabia a que distrito devia dirigir o pedido

de informações telefónicas, não foi difícil obter o número de

chamada de Cassie através da morada. Cuidadosamente,

Winter riscou da agenda o antigo número e escreveu o novo.

Havia apenas uma Cassilda Chandler na lista telefónica de


San Francisco, mas quando ligou não obteve resposta. Depois

de breve hesitação, Winter voltou a ligar para as informações e

pediu o número da Ancient Mysteries Bookstore da Haight

Street; depois de a voz sintética de robô lho fornecer, apressou-se

a marcá-lo, antes que se arrependesse.

O telefone tocou durante imenso tempo; ao cabo de uma

dúzia de toques, Winter deixou de contá-los, fixando-se no voltear

contínuo do ponteiro dos segundos no relógio pendurado

por cima da porta de entrada. Conforme o ponteiro saltava de

segundo em segundo, Winter ia perdendo a paciência.

Certamente qualquer livraria, por muito new age e retrógrada

que fosse, atenderia um telefone que tocava há mais de um

minuto, ou não?

Por fim desligou e afastou-se lentamente das cabinas telefónicas,

sentindo-se dividida entre a preocupação e o alívio.

Como podia ela perguntar a Cassie qual era o problema, se a

mulher nem sequer atendia o telefone?

Teria de insistir na chamada, mais tarde.

273

Quando Winter parou para almoçar, continuou a não obter


resposta. Passado pouco tempo atravessou a fronteira de Indiana;

era tempo de decidir-se: seguir para Chicago, ou apanhar

um avião para fazer o resto do caminho, ou continuar de carro,

o que não era coisa para menos de dois ou três dias - partindo

do princípio que continuava a guiar sem grandes pressas.

A condução tinha um encanto perverso. Enquanto estava

ao volante podia dizer a si própria que nada a impedia de voltar

para trás; que estava em viagem de férias; que o destino

não era fixo e irrevogável como as estrelas no firmamento. Ao

volante do carro, Winter sentia-se segura.

E a segurança - real ou ilusória - não era coisa que lhe

tivesse sobejado nos últimos tempos.

«Está decidido. Continuo de carro - pelo menos enquanto

não conseguir contactar a Cassie e saber notícias dela. Onde

quer que me encontre, estou sempre a poucas horas da Costa

Oeste, se houver uma emergência.»

À noite Winter atravessou a fronteira entre Indiana e

Illinois. A cada paragem ligava para Cassie, continuando a não

obter resposta de nenhum dos números. Embora Cassie pudesse

encontrar-se ausente da cidade, era lógico que a livraria se

mantivesse aberta.
«Talvez tenham desistido do negócio. Não admira, atendendo

ao negócio de que se trata. Ramsey não especificou há quanto

tempo tinha falado com ela - e eu esqueci-me de perguntar.»

Poucas horas depois do anoitecer, Winter parou para pernoitar

num pequeno hotel miserável onde a dormida custava

tanto como um almoço na Wall Street. O quarto onde a instalaram

revelou-se decadente e deprimente - era surpreendente

que, apesar de tão decadente, as pessoas continuassem a pagar

o aluguer dos quartos -, mas tinha telefone.

O restaurante mais próximo ficava na cidade seguinte.

Winter, renitente em experimentar as refeições do hotel, foi à

máquina automática buscar uma Coca-Cola. Em todo o caso,

não devia desistir de telefonar. Pegou no telefone, marcou o

indicativo e depois o número de Ramsey. Pouco depois ouviu-o

responder.

214
- Ramsey?

O alívio de ouvir a voz de Ramsey até lhe fez tonturas;

apercebeu-se de que, inconscientemente, temera vê-lo desaparecer.

Desaparecer sem deixar rasto, como o seu próprio passado.

- Winter! - respondeu ele em tom polidamente alegre.

.. e ligeiramente entaramelado.

«Está bêbado», pensou Winter, surpreendida.

- Olá, estou em Illinois. Apeteceu-me telefonar para

saber como estás.

- Que prazer em ver-te. Temos de fazer isto mais vezes.

Winter reconheceu-lhe o tom de voz. Era o tom de quem

anda às voltas com a memória, pouco seguro do contexto.

- Talvez não fosse má ideia se nós cinco fizéssemos uma

reunião privada - disse ela. - Aliás, é por isso que estou a

telefonar. Passei o dia todo a tentar contactar a Cassie pelo telefone,

tanto para casa dela como para a livraria, mas não consegui.

Espero que não se tenha mudado; quando foi a última vez

que falaste com ela?

O súbito silêncio do outro lado da linha levou Winter a


pensar que teria dito qualquer coisa errada - mas o quê?

- Ramsey, tu disseste que tinhas falado com ela - rogou

Winter. - Quando?

- Há umas duas semanas. Talvez um mês. Ou dois. Não é

coisa que eu registe no meu diário - retorquiu ele, num tom

rezingão que Winter lhe desconhecia.

«E aposto que te esqueceste do assunto... até hoje de

manhã. E que uma certa cena de animais mortos no meio da

cozinha to trouxe novamente à memória», pensou Winter

amargamente. A criatura que a perseguia - que parecia persegui-los

a todos eles - andava a brincar com a memória do

grupo, retendo lembranças a seu bel-prazer.

Mas não lera ela algures que o cérebro gera uma corrente

eléctrica própria? Winter recordou a bola de fogo que destruíra

o carro de Nina; a centelha que derretera a lâmpada do

quarto de hóspedes de Ramsey. Talvez fosse ela quem despoletara

as recordações de Ramsey. Sendo assim, conseguiria voltar

a fazê-lo agora, a tão grande distância?

215
- Pois claro que não. Como havias tu de conseguir fazer

tal coisa? - murmurou Winter consigo própria. E depois, para

o bocal: - Mas eu não consigo contactá-la em casa e da livraria

ninguém responde; começo a ficar preocupada. Ela telefonou-te

antes ou depois do Natal? - Ele dissera que tinham trocado

postais de Natal. Era lógico que, a ter existido uma carta,

ela tivesse sido enviada nessa época. A não ser que se tratasse

de uma situação de emergência.

Não veio resposta do outro lado da linha.

- Tu disseste que era importante, Ramsey, que Cassie

estava numa aflição. Pediste-me para olhar por ela.

- Foste tu que me disseste que ias vê-la - respondeu

Ramsey num tom quase hostil que Winter lhe desconhecia por

completo. Talvez tivesse sido ela a força que lhe despoletara a

memória, mas não parecia que conseguisse fazê-lo à distância.

- Claro que disse. O problema é que não consigo encontrá-la...

- Winter esforçou-se por descobrir que palavras seriam

capazes de levantar o velo de esquecimento que o seu

adversário etéreo lançara sobre Ramsey.


- Olha, Winter, fico muito contente por teres telefonado,

mas de momento estou muito ocupado. Voltamos a falar noutra

altura, está bem? - e desligou o telefone.

Winter voltou imediatamente a marcar o número de

Ramsey, mas a linha estava interrompida; ao cabo de meia hora

teve de admitir que o mais provável era Ramsey ter posto o

auscultador fora do descanso.

Restava Janelle.

Winter ficou a olhar para o telefone, na dúvida. Ramsey

tinha dito que a memória de Janelle não era de fiar, mas isso

era apenas a opinião de Ramsey. Por outro lado, Janelle não

confirmou qualquer contacto com Cassie, quando Winter lho

perguntou. Provavelmente era escusado telefonar-lhe.

«Desde quando é que te fizeste cobarde?», acusou-se

Winter desdenhosamente. Equilibrando a agenda nos joelhos,

fez rapidamente a ligação.

Desta feita entraria no assunto gradualmente. Podia dizer

a Jannie que tinha visitado Ramsey; era uma boa razão para

renovar o contacto e...

216
- Alô? Desejo falar com...

- Ela não está - respondeu Denny, desligando violentamente

o telefone logo de seguida.

«Às nove da noite?» Winter poisou lentamente o telefone

no descanso. Quer Janelle estivesse em casa, quer tivesse saído

- ou morrido, acrescentou uma arrepiante voz interior -,

Winter não poderia contactá-la. Pelo menos nessa noite não

seria possível.

Voltou a marcar ambos os números de Cassie - não passaria

das seis da tarde na Costa Oeste - e, como já esperava,

não obteve resposta.

De parte alguma vinham respostas.

Estavam no pomar anexo a Greyangels - ela sabia

que aí estavam, embora não tivesse lembrança consciente

do lugar. As fileiras ininterruptas de árvores cobriam-se de

flores rosadas, tão jovens que as pétalas, muito juntinhas,

ainda não tinham começado a cobrir o solo.

De casaco de cabedal branco com franjas e as jeans desbotadas,

Grey entrou no pomar; como leopardo da neve em


campo de gelo. Tinha os olhos tão claros como a própria

indumentária - espelhos de mercúrio, vidro e luz.

- Fica comigo - disse Grey. - Fica comigo, Winter e

chegou-se a ela.

Não havia motivo para que aquelas palavras, aqueles

gestos, a assustassem tanto, mas o terror gelou-lhe subitamente

o coração. Começou a recuar, a pôr-se fora de alcance,

mas foi demasiado lenta. Grey agarrou-lhe o braço, e ela

sentiu os dedos dele enterrarem-se-lhe na carne como aço

incandescente a mergulhar na neve.

- Fica comigo. Fica comigo, Winter. Pica comigo fica

comigo fica comigo...

Sentiu os dedos dele romperem a pele, percebeu que

pouco faltava para que o sangue jorrasse - e que depois

Grey afaria em farrapos. Tinha de fugir. Se não fugisse, ele

acabaria por destruí-la.

Debateu-se mais uma vez, freneticamente, mas era

demasiado tarde. O sangue começou a correr molemente

217
sobre a pele, como ácido gelado; acto contínuo, Hunter

Greyson começou a transformar-se.

O seu rosto alongou-se, até a boca se transformar num

focinho, os dentes cresceram e aguçaram-se. Indefesa, ela

começou a gritar, com lágrimas ardentes que lhe fundiam as

feições e a carne.

- Fica comigo... - Inclinou-se para ela, ao mesmo

tempo que erguia a outra mão, para começar a esquartejá-la,

mas ela não era capaz de suportar, outra vez, tudo aquilo...

Gritou, com um derradeiro sacão soltou-se dele, o sangue

espalhava-se por toda a parte e não parava. Grey rosnou,

e o cheiro dos botões de macieira cresceu intensamente,

fez-se odor de podridão e ruína. Ela fugiu a correr, mas as

flores de macieira tinham começado a cair, cobrindo o chão

de alvo manto branco escorregadio, e ela caiu, indefesa...

Winter acordou ao som do seu próprio grito imediatamente

antes de se estatelar no chão. Por instantes lutou freneticamente

contra o emaranhado de lençóis, até que, reconhecendo

a inutilidade do esforço, despertou por completo.


«Um sonho. Não passou de um sonho.»

Durante algum tempo ficou Winter a arquejar, quase chorando

de alívio. Estava encharcada em suores frios, peganhentos,

o coração batia-lhe como se tivesse, de facto, vindo a correr.

Ele desejava-a. Queria que ela ficasse com ele para sempre.

Queria que ela ficasse, e estava tudo coberto de flores.

Desde então nunca mais lhe saiu dos cabelos a fragância

dos botões de macieira...

Com as mãos a tremer descontroladamente, libertou-se

dos lençóis.

Grey tinha-a desejado.

A recordação aflitiva do pesadelo provocou-lhe arrepios.

A imagem mantinha-se tão vívida como no sonho, era como se

continuasse a sentir o cheiro das flores de macieira. Não admirava

que nem quisesse ver o pomar que ficava por trás da casa,

se fora aí que as coisas se tinham passado...

Mas como era possível?

Winter pestanejou, confusa, sentindo confundirem-se

218
dentro da sua cabeça os limites entre a sanidade e o absurdo.

O sonho talvez não correspondesse à realidade. O corpo das

pessoas não se deforma como se fosse feito de mercúrio e ninguém

mata ninguém à dentada e à unhada. Ela não estava

morta. Tinha sonhado. Só isso.

Apenas um sonho...

Pontapeou os lençóis para libertar os pés e acendeu a luz.

A iluminação cálida afastou as últimas sombras e iluminou-lhe

as ideias. Ficou ali a tremer, os músculos retesados, como uma

tábua, até decidir levantar-se da cama. Mas o pesadelo não era

mais do que a expressão da sua ansiedade - reflectia o seu

medo relativamente às outras pessoas. Da mesma forma podia

ter sonhado com Cassie. Grey não se transformara num monstro

pronto a devorá-la viva.

Julgava ela.

Confusa, passou a mão pelo cabelo. Já não era possível

destrinçar onde começava e acabava a realidade. Já no lago

Nuclear e no Laboratório do Instituto Bidney vira e sentira coisas

que, à luz dos padrões modernos, eram inacreditáveis - e


Winter era suficientemente avisada e honesta para admitir que

se tais coisas lhe tinham acontecido a ela, era provável que vitimassem

outros igualmente. O mundo era mais estranho e

assustador do que as pessoas estavam dispostas a admitir; era

lugar sem limites, onde mistérios e horrores ocorriam dia a dia

e os milagres faziam regra.

«Belo. Toda uma cultura posta em causa. E já agora porque

não um programa de recuperação para quem se recuse a

ver fantasmas?»

Winter espreguiçou-se. Já que não conseguia ver-se livre

da tensão muscular, era preferível ficar a descansar mais um

dia - caso contrário podia tornar-se um perigo para si mesma

e para os outros na estrada.

O pesadelo ainda estava demasiado presente para que se

deitasse a dormir, mas talvez um duche...? Além disso talvez

fosse melhor compor a cama, mesmo que não voltasse a deitar-se

nela tão cedo. Aproximou-se da cama e estacou.

O colchão e o chão derredor da cama estavam cobertos

de flores de macieira.

219
Winter saiu do hotel quinze minutos depois, na noite fora,

rumo a oeste.

Ao erguer do Sol, Winter - inspirada no mesmo instinto

que leva a presa a despistar o caçador - já tinha abandonado

a suave artificialidade da estrada interestadual para se meter

numa das vias rápidas, fina linha azul pintada no mapa das

estradas e que passava pela verdadeira vida: vilas e cidades. À

tardinha, convencida da impossibilidade de obter resposta dos

números de telefone de Cassie Chandler, confirmou definitivamente

a necessidade intrínseca de progredir lentamente para

oeste.

Durante toda a semana seguinte foi avançando lentamente

para poente, passando por Fayetteville, Fuller’s Point, Antigua,

Grimsby, Lemuria, Broken Choke... jornadas que não correspondiam

propriamente às passeatas dos folhetos turísticos

pela América do Norte, mas que revelavam a verdadeira

América e a fizeram ver até que ponto a sua própria vida se

mantivera afastada daquela realidade.

Fayetteville. A criada do restaurante da cidade encaminhou-a


ao juiz de paz da localidade, e Winter dormiu

num espaçoso quarto de primeiro andar cuja janela dava

para a rua principal e para o preguiçoso rio que corria

mais além.

Nem era que a sua vida tivesse diferido muito do que seria

de esperar da jovem universitária que ela fora e cuja vida investigara

tão afanosamente. A questão era que, em última análise,

até a vida que tinha escolhido - a de Winter Musgrave, analista

e corretora de Wall Street - permanecia inacabada, incompleta.

Tal como a de Janelle e a de Ramsey. Nunca construíra

nada que pudesse medrar.

Fuller’s Point. Um velho lar às portas da cidade, os lençóis

frios, longamente engavetados, a cheirarem vagamente

a lavanda e a pinho; Winter continuou a praticar os dons

que pareciam tornar-se cada vez mais usuais. Era capaz de

concitar o fogo com um toque, fazer a porta bater do outro

lado da sala, sabendo sempre que tudo isso não passava de

pequenos feitos de somenos importância.

220
Porque, tal como os outros, percorrera tropegamente

uma senda espiritual cega, algures no passado, de que já não

se recordava.

Por causa de Grey? Por razões imprecisas, parecia ser

esta a verdade. Grande parte das questões que deixara em

aberto tinham a ver com ele. Ramsey dissera que todos eles

tinham ficado muito surpreendidos por ela ter abandonado a

universidade sem lhes dar uma palavra.

Antigua, com um motel brilhantemente impessoal, concebido

para servir a base aérea das proximidades. Todas as

noites, ao adormecer, Winter sentia que Grey a esperava no

limbo do sono, ao ponto de já não saber que mais temer: os

maus ou os bons sonhos.

Teria ela virado costas, abandonando-o pura e simplesmente?

Que terá ele pensado - quanto tempo terá esperado

até se convencer que ela jamais regressaria? Se fora isso que ela

fizera, não era de admirar que os sonhos começassem com ele

a suplicar-lhe que ficasse, para acabarem em sangue e terror.

Lemuria. Nem merece o epíteto de cidade, não passa de


um amontoado de casebres de madeira decrépita; mas Winter

estava demasiado cansada para prosseguir ou recuar. Levou

o carro até aporta de um celeiro desconjuntado e adormeceu

desconfortavelmente cheia de cãibras no banco de trás do

carro, embalada pelo uivo dos coiotes. De manhã guiou

durante quatro horas pela infindável estrada recta e deserta,

até finalmente encontrar um café à beira do caminho.

Ela tinha-o enganado. Devia, a ambos, reparação por esse

erro do passado, uma conclusão que reparasse a crueldade

adolescente desmiolada. E talvez essa reparação pusesse fim à

desumanidade que os perseguia a todos. Truth Jourdemayne

tinha-lhe dito que seria necessário reconduzir a criança mágica

de regresso a si própria para a destruir, mas nessa altura

Winter nem sabia por onde começar. Agora sentia-se mais

forte. Talvez fosse possível, pensou Winter com renovada esperança.

Havia de perguntar a Cassie.

Cassie saberia dizer-lho.

221
Existem duas cidades norte-americanas para onde a

Automobile Association of America aconselha os seus sócios a,

sejam quais forem as circunstâncias, jamais levarem os respectivos

carros.

A outra é Boston.

Na manhã anterior Winter tinha atravessado a fronteira

perto de Needles, nas imediações da área metropolitana de Los

Angeles, e metera pela Califórnia 1, que é a auto-estrada da

Costa do Pacífico. A beleza espampanante da região costeira

da Califórnia cativou-a, como acontece a todos os turistas: as

encostas ainda verdejantes no final da estação das chuvas, as

árvores de pau-brasil enfileiradas a caminho do mar.

Nessa noite parou num hotel de dormida e pequeno-almoço

mesmo ao sul de San José, onde marcou reserva para a

noite seguinte, em San Francisco, num hotel do mesmo tipo

situado algures num bairro chamado Russian Hill.

O resto não devia constituir problema. E assim foi, até ao

momento em que atravessou a ponte de Oakland Bay.

San Francisco, à semelhança de Roma, ergue-se sobre sete


colinas - e, tal como a Cidade Eterna, Winter descobriu que

perto da baía a cidade se enovelava num labirinto mágico

cheio de becos sem saída e ruas de sentido único: ruas que

desaparecem a meio do caminho, ruas que apenas existem no

mapa. Foi desembocar quase imediatamente no Fisherman’s

Wharf, descobrindo de caminho que os carros eléctricos têm

sempre prioridade; ao cabo de três frustrantes horas, lá foi dar

de novo ao mesmo sítio, continuando tão ignorante da localização

da Haight Street e da livraria de Cassie como no início.

Estacionou num parque automóvel e desceu o vidro da

janela. O cheiro a maresia, forte e fresco, chegava ali Winter,

habituada a viver noutra grande cidade portuária, não

se lembrava de alguma vez ter sentido tão nitidamente o cheiro

a maresia.

Por toda a parte havia turistas sobraçando cartuchos de

compras cheios de pãezinhos e flâmulas com a frase Ripley’s

Believe It or Not Museum. As crianças, com balões oferecidos

222
pelos vendedores ambulantes, davam a Wharf um ar carnavalesco

que mitigou o mau humor rezingão de Winter. Ainda

pensou em desistir da busca, pelo menos nesse dia. Ou então

interromper para almoçar - a barra de chocolate que tinha

comido em vez de um pequeno-almoço decente não era substituto

adequado para duas refeições em falta, assim lhe dizia o

corpo.

- Posso ajudá-la?

Winter olhou para cima. A voz pertencia a um jovem de longos

cabelos castanhos com aspecto de fazer parte do décor da

paisagem, tal como os barcos de pesca que balouçavam na baía.

- Tem ar de quem se perdeu - continuou ele, a sorrir.

Winter observou-o com a suspeição habitual, refreando o

impulso de lhe fechar o vidro da janela à frente do nariz. Mas,

vendo melhor, ele não era tão jovem como parecia à primeira

vista; qualquer coisa nas suas feições abertas, amistosas, fazia

lembrar a maturidade amena de High Elves.

- Na verdade ando à procura da ... hum... Haight-Ashbury

- disse ela.
- Está mesmo perdida - confirmou ele. - Além disso

essa zona não é muito aconselhável para...

«Para turistas», concluiu Winter mentalmente.

- Vive lá uma amiga minha - esclareceu ela, abrindo

ligeiramente o jogo. - Pode ajudar-me a encontrar o sítio? O

meu mapa diz que daqui é possível chegar lá, mas...

- Há umas quantas ruas que estão fechadas por causa das

obras. Posso ver o seu mapa?

Winter passou-lho; depois de lhe pedir autorização, o

homem tirou da algibeira uma caneta de feltro e assinalou o

caminho.

- É a melhor maneira de lá chegar. Que número procura?

Winter, não vendo mal em dar-lhe a informação - ao fim

e ao cabo, a livraria era um estabelecimento aberto ao público

-, rabiscou o endereço da Ancient Mysteries Bookstore.

O homem pareceu sobressaltar-se, como se aquela informação

tivesse alterado radicalmente a situação.

- Oh - sumiu-se-lhe da voz a vivacidade anterior. - Oh

- voltou ele a dizer. - Peço desculpa.

223
- Passa-se alguma coisa de errado? - perguntou Winter,

num fio de voz.

Seguiu-se um silêncio, suficientemente longo para Winter

recear ter encontrado um dos famosos lunáticos que pululam

por San Francisco.

- Permita que lhe ofereça o meu cartão-de-visita - disse

ele por fim. - Tenho uma loja nessa rua. No verso do cartão

tem um mapa que pode ajudá-la a chegar... onde quer ir. Passe

por lá quando quiser. Temos muito gosto em recebê-la. Palavra

de honra.

«Só quando o Inferno gelar», pensou Winter severamente,

aceitando embora o cartão. Tal como ele dissera, no verso

havia um mapa com indicações bastante claras. Winter virou o

cartão.

Handmade Music, Luthiers. E por baixo, em tipo mais

miudinho: Antiques restored. Afinações - Harpas e Pianos.

Paul Frederick.

Winter sentiu-se mais à vontade. Como pequeno comerciante

o homem adquiria um estatuto mais respeitável do que


no papel de vagabundo ou lunático que ela lhe atribuíra.

- Bem, senhor Frederick, muito obrigada pela sua ajuda

- disse Winter terminantemente. - Acho que assim consigo

lá chegar.

- Boa sorte - disse Paul Frederick sombriamente, afastando-se

do carro.

«Ele sabia. Ele sabia, enquanto estava a falar comigo!»

Mas a fúria por ter sido gozada desvanecia-se perante as

restantes implicações.

Winter estacionou o carro num lugar vago, na esquina em

frente da Ancient Mysteries Bookstore. Estava a bloquear a

boca de incêndio, mas de momento era coisa que não a ralava.

Saiu do carro e caminhou lentamente até ficar defronte da loja.

Janelas e portas estavam cobertas de taipais, mas as manchas

de fuligem visíveis na fachada ainda denunciavam a fúria

das chamas, que tudo tinham devorado de caminho. Os taipais

davam certa discrição ao conjunto, escamoteando as marcas

de destruição.

224
Havia grinaldas e coroas pregadas aos taipais da porta

principal, já muito sujas e murchas umas, como se ali estivessem

há semanas, outras ainda com frescura. Não restavam

dúvidas quanto ao seu significado.

«Alguém morreu aqui.»

Winter sentiu uma onda de pânico violento embotar-lhe

todos os sentidos. Nem era preciso perguntar quem morrera parecia-lhe

que sempre soubera. Assim morria a única esperança

que lhe restava. No momento em que partira de Glastonbury

já era demasiado tarde para marcar este encontro que, agora,

nunca teria lugar.

«Oh, Cassie. Nem sequer tive ocasião de me despedir.»

Pesada amargura lhe veio carregar ainda mais o aperto

que já trazia no coração, como se toda a esperança de recuperar

o passado tivesse sido irrevogavelmente varrido de vez.

Aproximou-se da loja, passou os dedos pelas folhas de louro de

uma das coroas mortuárias. Louro, a coroar o triunfo dos atletas

e dos generais. Louro, na vitória e na morte.

O cartão preso à coroa estava metido numa capinha de


plástico, para proteger da chuva. A água entranhara-se, apagara

parte das datas, mas o resto era legível: Mary Cassilda Chandler

- Que Regressou à Deusa.

Cassie tinha gostado dela, tinha-a compreendido, tinha-a

estimado. Cassie tê-la-ia ajudado - ter-se-ia dedicado de sua

livre vontade, sem atirar juízos sobre a carga de más fortunas

que pesavam na vida de Winter. A sua morte estilhaçava para

sempre o espelho em que Winter tivera esperança de se rever

a si mesma.

Todo o cenário à sua frente se cobriu de névoas; Winter

pestanejou, tentando reter as lágrimas. Era tão crua a dor provocada

pela perda, tão intensa, tão avassaladora, que reconhecê-la

equivalia a admitir a sua própria desgraça. Desesperadamente,

Winter buscou refúgio numa doce inconsciência. E pronto. A

pista acabava ali. Cassie estava morta.

Assassinada.

225
CAPÍTULO ONZE

O SENHOR DA CAÇA SELVAGEM

See, Winter comes to rule the varied year,

Sullen and sad.1

JAMES THOMSON

Longamente ficou Winter ali, esquecida do tempo, embrenhada

no seu desolado ermo outonal. Cassie tinha morrido;

Winter carpia-a como se tivessem sido irmãs inseparáveis até à

morte.

Abruptamente, Winter percebeu que estava a ser observada.

Sobressaltou-se, como se fosse acossada, mas apenas avistou

uma pessoa na rua: uma mulher de aspecto vulgar, com

calças de ganga, T-shirt e colete verde. A única faceta invulgar

dessa figura era o cabelo volumosamente frisado que lhe

enquadrava o rosto, à maneira das madonas pré-rafaelitas. Por

breve instante, fê-la pensar em Janelle. Como havia ela de dar a

Janelle a notícia da morte de Cassie?

- Olá... - disse a mulher. - Você é a Winter? Winter

Musgrave?

«Não!», negou Winter mentalmente. Recuou um passo.


- Não fuja! - disse a outra mulher. - Chamo-me

Rhiannon; eu era amiga de Cassie. Ela pediu-me que esperasse

por si, disse-me que você havia de vir.

- Quando? - a voz de Winter soou hostil e contrariada

aos seus próprios ouvidos. Cassie tinha morrido e ela não estava

na disposição de partilhar a intimidade das suas recordações.

- Por favor - disse Rhiannon. - Por favor, não fuja. Eu

só quero falar consigo. Não lhe roubo muito tempo.

Hesitante, Winter voltou a recuar, pensando que, se esta

1 Vede, o Inverno vem governar o ano vário, / Taciturno e triste. (N. do T.)

227
mulher se preparava para fazer uma cena desagradável, não

teria tempo para se refugiar no carro.

- Há um restaurante ali à esquina - disse Rhiannon. Podíamos

lá ir. Temos de conversar.

Winter ainda não tinha reparado que já passava muito da

hora do almoço. O seu organismo continuava a reclamar alimento,

apesar de o coração se enojar da ideia. Por outro lado,

aquela mulher parecia determinada a falar-lhe. Não lhe podia

acontecer grande mal num lugar público - e em não lhe agradando

o que ela tinha a dizer, estaria sempre a tempo de lhe

virar as costas. Ao mesmo tempo que ponderava se estaria a

dar ouvidos aos seus próprios instintos ou a desafiá-los, Winter,

com um contrariado gesto de anuência, seguiu Rhiannon.

O Green Man era um oásis, mais alegre do que arcaico, no

meio da moderna decadência urbana. O bairro de Haight-Ashbury,

apesar de ter aspirado a algum requinte trinta anos

antes, sempre fora uma zona degradada e mal cuidada de San

Francisco. Precisamente pelo facto de não interessar a ninguém,

tornara-se refúgio de inúmeros hippies; apesar da intenção


expressa de criarem um novo mundo, quase todos eles

tinham estabelecido lar nas ruínas daquele velho mundo. Mas

o Green Man apresentava-se impecável e desafiadoramente

acolhedor, com mesas de madeira envernizada (era madeira

aproveitada das abas das gigantescas bobinas de cabos eléctricos),

cadeiras com assento de palhinha e janelas com vitrais

apanhados no ferro-velho. Por toda a parte havia plantas a

reforçarem o aspecto de oásis verdejante no meio do cimento

e aço citadinos.

A empregada saudou Rhiannon pelo nome e encaminhou-as

para um compartimento nas traseiras.

- Então - disse Winter friamente, depois de a empregada

tomar nota do pedido de chá e sair -, em que posso ser-lhe

útil?

«Não vejo em quê», concluía o tom da sua voz.

Rhiannon vacilou perante tanta frieza; Winter olhou-a de

esguelha, com a mágoa a ceder lugar à irritação. Conhecia o

género de Rhiannon - gente intrometida, e ainda por cima

incompetente, que se autoproclama agente secreto da Nova

228
Era, distribuindo sabedoria oculta (isto é, ocultista) e pronto-socorro

psíquico a quem conseguissem deitar a garra.

Gelou-se-lhe o coração, mas o gelo sempre era melhor

que o fogo insuportável da dor e da culpa. «Cassilda, ó minha

irmã...»

- Bem, eu pensei... - à vista do ar evidentemente desaprovador

de Winter, Rhiannon engasgou-se a meio da frase. Sabe,

é que Cassie e eu éramos muito amigas...

«Não tanto como eu!»

Os olhos de Rhiannon começaram a ficar vermelhos e alagados.

Sob o olhar impassível de Winter, procurou nos bolsos

do colete um maço de lenços de papel.

«Tiveste muito mais tempo do que eu para te acostumares

à morte dela, e eu não estou a fungar! Estás a pedir compaixão?

Daqui não levas nada: eu própria já sofri mais do que

alguma vez possas imaginar.»

- Sim - disse Winter com arrastada ironia -, estou a

ver.

Rhiannon corou e ficou a olhar para ela. Abriu a boca

para falar, esforçando-se por se dominar.

- A questão - disse Rhiannon, respirando fundo - é


que fomos amigas durante longos anos. Conhecemo-nos no

Círculo de Fogo (é um grupo de Trabalho de Blackburn que se

reúne na East Bay), mas Cassie achou que era mais importante

assumir a responsabilidade pela própria vida, em vez de ficar à

espera que um novo grupo de deuses venha em nosso socorro

(que é o que a Nova Era2 devia ser, na verdade). Por isso decidiu

criar uma irmandade Wiccan baseada no Trabalho de

Blackburn, mas de facto mais orientada no sentido da Deusa...

Felizmente nesse momento chegou o chá, senão o mais

certo teria sido Winter levantar-se, virar costas e sair dali imediatamente.

Cassie tinha morrido, e perante esse desastre Winter

não estava com veia para aturar baboseiras da Nova Era.3

2 No original: «New Aeon», ou seja, «Novo Eon». O termo «Eon» usa-se em


português para

designar rigorosamente extensas eras geológicas. (N. do T.)

5 No original: «New Age». Quando se referirem ao mesmo conceito específico,


a tradução

portuguesa não fará destrinça entre «New Age» e «New Aeon», optando sempre
por «Nova

Era». (N. do T.)

229
- O nosso trabalho consiste numa espécie de policiamento,

semelhante ao dos Anjos Cínzeos - com esta frase

Rhiannon conseguiu finalmente captar a atenção de Winter.

Que sabia Rhiannon acerca dos Anjos Cínzeos? - Por isso

sabíamos que estava para vir.

- Desculpe a pergunta - cortou Winter -, mas a que

propósito vem tudo isso? - Afastou da ideia a dor amargurada

pela morte de Cassie, socorrendo-se do abençoado torpor que

pairava sobre o seu estado de espírito. Era esse o único recurso,

a renúncia: para pôr fim ao medo, à dor, ao cansaço e às

lágrimas. Não valia a pena consultar oráculos para obter respostas

a questões que nunca se haviam de pôr: ela era capaz

de se tornar invernosa de facto, como de nome, e se não podia

cicatrizar, pelo menos evitaria ser ferida de novo.

Só a renúncia, a renúncia, entoava a sedutora voz da serpente...

- Cassie sabia que o Elemento estava para vir - disse

Rhiannon, e agora os olhos cintilavam-lhe não só de lágrimas,

mas também de raiva. - Ela sabia que ia morrer. Tentámos evitar

o desastre, tentámos domá-lo, mas Cassie dizia que o facto


de a tarefa para que o Elemento foi criado não estar cumprida

lhe dava ainda mais força. Erguemos as protecções mais fortes

de que fomos capazes... Cassie pensou que você talvez fosse

capaz de o controlar, tentou localizá-la, mas você nunca atendeu

o telefone; chamou todos os vossos antigos amigos, mas

nenhum deles pôde ajudar...

A fúria recrudesceu em Winter até ela se sentir vestida de

luz invisível, como a personagem de um livro que tinha lido

um dia, cuja simples acumulação da raiva tinha efeitos mortais.

A energia ao poltergeist lutou por se soltar, mas jamais voltaria

a libertar-se, ela acorrentara-a definitivamente ao seu serviço.

- Já ouvi o suficiente - disse Winter. Como ousava

aquela... pessoa arrastá-la para ali, simplesmente para lastimar

o facto de Winter não ter estado presente à morte de Cassie?

- Obrigada pelo chá. - Levantou-se.

- Não! Não se vá embora... peço-lhe desculpa! Mas já há

muitas semanas ela sabia que aquilo viria buscá-la e não podia

fazer nada contra isso; tentou, esforçou-se, sabia que aquilo ia

230
matá-la, e eu gostava tanto dela... - Rhiannon desatou num

pranto aberto, as lágrimas a traçarem-lhe feias manchas na

pele. - Ela disse que a culpa era sua, que sabia que você havia

de vir, mas que seria demasiado tarde; ela sabia do que você

precisava: pediu-me para lhe entregar uma mensagem...

- Você? - perguntou Winter com vivo desprezo. Toda a

gente no café olhava espantada para ambas, o que ainda mais a

irritou. Tirou dinheiro da mala e atirou-o para cima da mesa. Eu

não confiava em si nem para entregar uma pizza. Deixe-me

em paz! - «E deixe em paz a memória de Cassie!»

Winter virou costas e desandou do restaurante como um

furacão. Atrás de si, ouviu o ruído de Rhiannon a arrastar-se

para fora do reservado e estugou o passo, com os saltos a

matraquearem o chão.

Rhiannon seguiu-a pela rua.

- Ela sabia que você havia de vir! - gritou ela. Deixou-lhe

uma carta, a explicar, eu tenho-a em casa... é perto

daqui. Eu vou buscá-la, se esperar por mim. Ao menos dê-me a

sua morada para eu a enviar pelo correio!


Winter manteve-se sempre uns passos à frente de

Rhiannon, mas quando chegou ao carro teve de parar para destrancar

a porta. Só à terceira tentativa conseguiu meter a chave

na fechadura - tanto bastou para que a outra a apanhasse.

- Nem ao menos a quer ler? - disse Rhiannon, atrás

dela. - Por favor... - e poisou a mão no braço de Winter.

Winter soltou o braço com um gesto que foi quase um

soco. Rhiannon recuou, incrédula.

- Tire as mãos de cima de mim, sua imunda... cobarde]

- apostrofou Winter. Cobardes, todos eles, a fugirem das

duras realidades, montados nos seus contos de fadas!

Perante a expressão de Winter, pálida de fúria, Rhiannon

recuou mais um passo, mas ainda assim teimava em não retirar.

- Não sou eu quem está a fugir - disse ela em voz trémula,

enquanto Winter se metia no carro, batendo a porta na

cara de Rhiannon.

Winter enfiou na mala a senha de estacionamento prolongado

e dirigiu-se ao terminal do aeroporto. Por mais que tem-

231
tasse acalmar, sempre que pensava em Rhiannon, vampirescamente

parada no passeio do outro lado da rua, em frente da

livraria ardida, à espera dela, tremiam-lhe as mãos e dançavam-lhe

relâmpagos invisíveis por detrás dos olhos...

Winter susteve uma inspiração profunda. Já tinha passado.

Acabara-se, passara, não valia a pena repisar no assunto. O

problema remanescente era já não haver esperança de encontrar

Hunter Greyson, a não ser que contratasse um detective

particular.

«E a criança mágica, o Elemento? Que se passaria com

ela? Tinha matado Cassie.»

Não. A negação foi automática. O que acontecera, isso

sim, era que tinha havido um incêndio, a livraria tinha ardido e

Cassie tinha ficado presa lá dentro. O resto eram tretas. Não

existia nenhum fantasma vingativo em perseguição dos cinco

amigos - agora quatro.

Tomada de tonturas, Winter teve de amparar-se ao carro

mais próximo. Fechou os olhos, forçando-se a permanecer de

pé. Passado um momento, as tonturas diminuíram, mas sempre


que tentava analisar os acontecimentos, pioravam.

«Tem de haver uma explicação razoável, que obedeça a

alguma lógica. Os incêndios não deflagram por vontade própria,

nem os objectos se movem... nem existem monstros invisíveis

prontos a perseguirem os seres vivos...»

Sentiu o coração acelerar, premido e assustado pelas suas

próprias ideias; procurou uma saída.

Respira, ordenou calmamente a voz de Grey dentro do

seu cérebro. Inspira... expira... há anos que fazes isso, lembras-te?

Respira.

Winter encheu os pulmões, tentando não entrar em

apneia de puro terror. A sensação de perigo minguou, mas não

a intuição de que havia alguma coisa urgente a fazer, de que o

prazo estava a acabar.

«Oh, Grey, ajuda-me!» Mas desta vez não obteve resposta

nem a certeza da presença de Grey, a que tanto se acostumara

- fosse ela voluntariosa ilusão ou não.

Teria de se desenvencilhar sozinha.

- Eu... acredito - disse Winter. Disse-o num sussurro

232
rouco. Estendeu a mão diante de si, de dedos afastados, e viu,

satisfeita, que pouco tremia.

«Creio no Mundo Oculto. Creio no poder da mente para

vencer tempo e distância, para saber o incognoscível e fazer o

impossível. No lago Nuclear e no Laboratório do Instituto

Bidney esteve presente uma criatura. Eu vi-a, e vi o que ela

podia fazer. Esteve lá, e depois esteve aqui.»

E venceu. Matou Cassie.

Tensão e raiva esvaíram-se de dentro dela, deixando apenas

fadiga e desgosto. Tentou não pensar em Cassie, morta e

mutilada como os cadáveres animais que assombravam todos

os sobreviventes do lago Nuclear. Se o fogo tivesse matado

Cassie antes de a criatura a alcançar, a morte teria sido mais

misericordiosa. Teria Cassie despoletado o fogo como único

meio de fuga possível?

Seria a morte de Cassie o único objectivo da criatura

desde o início?

«Se assim for, então estou livre», pensou Winter. Mal acabara

de formular este pensamento e já sentia uma torrente de

culpa inundá-la. Como podia ela comprar a sua segurança a

troco da morte de Cassie?


«Não me competia a mim escolher», disse Winter a si própria,

em desespero. Ah, mas, um dia, ela tivera a Vida nas suas

mãos, cabendo-lhe a escolha, e já então...

Winter interrompeu-se e engoliu em seco, tentando vencer

a secura da garganta. Fechou os olhos com força; não

compreendia donde lhe vinha a certeza da sua culpa íntima,

mas o excruciante peso da culpa bastava para a enlouquecer.

..

«Louca. Que simples. Que conveniente. Ai, pára com isso

- PÁRA - PÁRA! COMO POSSO EU EMENDAR SEJA O QUE

FOR, SE NÃO SEI O QUE FIZ?»

- Minha senhora, sente-se bem?

Winter abriu os olhos e viu um homem de casaco dobrado

por cima do braço, com as chaves do carro na mão e o perfeito

ar de homem de negócios acabado de regressar de viagem,

à procura do respectivo carro.

- Senhora? Está bem? - repetiu ele.

233
«Porque é que as pessoas passam a vida a perguntar-me se

estou bem precisamente quando não estou?» Winter sacudiu a

cabeça e começou a rir descontroladamente, um riso ululante

que ecoou na tarde como longos harpejos trinados.

- Estás com um aspecto medonho. Quando telefonaste

do avião ficámos admiradíssimos. Claro que o pai e eu sabíamos

que já não estavas na clínica, mas San Francisco!

- Não é propriamente por trás do sol posto, mãe.

- Não sejas tonta, filha. Ora bem, onde está a tua bagagem?

«Tenho a impressão que a deixei no parque de estacionamento

do aeroporto.»

- Não trouxe a bagagem, mãe.

- Não tem importância, agora que estás mais magra eu

posso emprestar-te algumas roupas. Nunca quis dizer nada,

sabes bem que não gosto de meter-me na vida dos meus filhos,

mas a verdade é que estavas a ficar um bocado gordinha.

«Peso 50 quilos, mãe.»

O Mercedes estava estacionado à espera, com os quatro

pisca-piscas a funcionar, na zona de paragem proibida junto à


entrada do aeroporto de La Guardia. Já tinha uma multa enfiada

debaixo do limpa-pára-brisas. A Sr.a Musgrave arrancou-a de

supetão e meteu-a no bolso do casaco de baseball.

- Mãe... - disse Winter, exasperada.

- Ah, eles não levam isto muito a sério - disse-lhe a

mãe, vasculhando os bolsos à procura das chaves. - E o que é

que eles queriam, que eu fosse estacionar por trás do sol

posto? Ou que o meu chauffeur se pusesse às voltas à praceta

até eu chegar?

- Deixe-me guiar - pediu Winter.

As sobrancelhas da mãe ergueram-se de polido espanto.

- Ah, não me digas que ainda tens carta? Pensei que

depois do acidente... - a Sr.a Musgrave deixou a frase delicadamente

em suspenso e sentou-se ao volante.

Winter fez beicinho, mais por hábito do que por amuo

verdadeiro. Quando a mãe destrancou a porta do lado direito,

234
Winter entrou e deitou a mão ao cinto de segurança. A Sr.a

Musgrave arrancou sem lhe dar tempo para colocar o cinto,

metendo o carro pelo meio do tráfego com a serena segurança

de quem sabe que todo o trânsito vai parar em sua intenção.

Winter recostou-se no banco e observou a mãe. Sapatos

Cole Haan e calças Pendleton, o casaco idiota de baseball por

cima de uma camisola de gola alta em caxemira e brincos

Mikamoto; não mudara um milímetro. Talvez os cabelos louros

carregassem mais umas quantas brancas, mas graças às visitas

semanais ao cabeleireiro de Manhattan - boa desculpa para

almoçar «com as raparigas» e ir às compras, ou mesmo a um

espectáculo -, ninguém, incluindo a Sr.a Musgrave, dava por

isso.

- Tens de cuidar melhor de ti, minha querida. Estou a

achar-te muito desleixada. - A Sr.a Musgrave pousou no volante

os dedos bem manicurados, observando o trânsito com o ar

de quem desconfia que está a ser intrujada.

«Nesse caso, pergunto a mim própria onde fui. E se lá me

diverti.» - Como tens passado, mãe? - perguntou Winter em


voz alta.

- Oh, vai-se andando. O Kenneth anda muito contente

com não-sei-quê lá no emprego (já sabes que não tenho paciência

para essas histórias de negócios). Tivemos de cancelar

a viagem às Bermudas no Inverno passado porque ele não queria

perder mão do andamento dos negócios, e como não nos

quiseram devolver o dinheiro das passagens à última hora

(outra coisa não seria de esperar), que havíamos nós de fazer?

Mandámos o Kenny Jr. e a Patricia em nosso lugar; resultado:

tive de aturar o mano Wycherly com as suas acusações de

«filhos e enteados»...

Winter sorriu com alguma amargura ao ouvir mencionar

os irmãos. Os nomes trouxeram-lhe à memória, com dolorosa

clareza, os respectivos proprietários. Kenny era Kenneth

Júnior, o primogénito, cuja mulher, Patricia, trabalhava como

vendedora de bens imobiliários para uma agência de Long

Island. Wycherly era o irmão mais novo, cujo nome, tal como

o de Winter, resultava de uma investigação sobre a formidável

linhagem dos Musgrave.

235
- Tu estragas o Kenny com mimos, mãe. - Claro que

Wycherly se ressentia do favoritismo dado ao irmão mais

velho. - E bem sabes que o Wych...

- Achas que eu devia ter mandado o Wycherly com a

Patricia? - ripostou a mãe, com uma gargalhada argentina. Bem,

não interessa. Eu sei que estás cansada e em baixo de

forma; não tarda nada chegamos a casa e já podes descansar.

Espero que fiques uma temporada; tens andado muito desaparecida

nos últimos anos, e embora o pai nunca fale nisso, eu

bem sei que ele se ressente muito. Acho que devias pensar

mais nos outros, minha querida Winter; mas a verdade é que

nunca foste capaz de pensar em ninguém senão em ti mesma

- e pronto, aliviada por ter cravado esta última farpa, a Sr.a

Musgrave mudou de assunto.

«Porque vim eu aqui parar?», matutou Winter, já à beira do

desespero. A voz da mãe continuou a rumorejar, como ribeirinho

calmo, embora suficientemente fundo para nele afogar

um gigante, mas Winter desligou, pôs-se a contemplar o trânsito

da Brooklyn-Queens Expressway.
Tinha decidido ir para casa porque não tinha mais para

onde ir, porque devia esta visita desde que saíra de Fall River,

porque afinal de contas eles eram seus pais e mereciam saber

o que se estava a passar com ela.

Mas nada tinha mudado. Kenneth continuava a ser o centro

das atenções e alvo preferido dos favores paternais - e a

beber demasiado, tanto quanto Winter se recordava, embora a

família preferisse não falar do assunto. Wycherly continuava

sem rumo, à procura de colocação onde pudesse aplicar os

seus talentos, acabando sistematicamente por passar mais

tempo em casa do que fora - aos trinta anos de idade, o mais

novo dos manos Musgrave era inequivocamente o que a velha

geração costumava chamar «um madraço».

A mãe ocupava-se da casa, do guarda-roupa e das amizades;

além disso participava de quando em quando em diversas

organizações que só se distinguiam umas das outras pelos

nomes das entidades beneficiandas da respectiva caridade, ou

então pelos nomes dos comissários com quem ela andava à

bulha.

236
O pai trabalhava oitenta horas por semana numa empresa

imobiliária de Wall Street; como quase nunca estava em casa,

pouco interferia na vida familiar.

Nada tinha mudado.

- Estás a ouvir o que eu te digo?

- Diz, mamã - respondeu Winter obedientemente.

- Digo-te que, já que cá estás, devias consultar o meu

médico. É um óptimo médico, como tu sabes; mantém-se a

par das últimas novidades sobre depressão e nervos. Acho que

não devias pensar em voltar ao trabalho durante um ano, pelo

menos. A tua saúde nunca foi de ferro, sabes muito bem, e de

resto há mais coisas a fazer neste mundo, além do trabalho.

«Que alternativa me ofereces tu?», interrogou-se Winter,

sabendo de antemão que nenhuma seria. Apelou à reconfortante

ilusão da presença de Grey, mas ela não veio. À única

coisa que sentia era a aproximação de uma grande dor de

cabeça que nada tinha a ver com poltergeist ou fenómenos

paranormais, antes se devendo ao regresso ao lar familiar.

Aquando da sua construção, em 1916, toda a gente considerou


Wychwood uma casinha de bonecas (apenas tinha 26

salas); foi dada, como prenda de casamento, pelo bisavô

Wycherly à filha e ao genro.4

Mais tarde, a Grande Depressão fez decair a fortuna da

família a tal ponto que, quando um incêndio destruiu as cavalariças

e uma das alas da mansão, não foi possível reconstruí-las;

o tempo se encarregaria de arruinar os courts de ténis, o labirinto

de buxo e os jardins, que Winter apenas conhecia do

álbum de fotografias da família. Mas o que tinha restado de

Wychwood bastava, pela bitola actual, para fazer da casa uma

mansão imponente, de forma que, quando o Mercedes atravessou

os portões de ferro da entrada - hoje permanentemente

semiabertos pela ferrugem - e percorreu a longa alameda de

gravilha, Winter sentiu-se envolvida em mantos de privilégio e

presunção tão definitivos como o jazigo da família.

4 Outra conotação intraduzível: «Wychwood» remete para a ideia de «casa de


madeira de olmo-escocês»

e é homófono de «madeira de bruxa»; a mesma ressonância ocorre em


«Wycherty»,

que além disso é parónimo de Wycherley, dramaturgo inglês do século XVII. (N.
do T.)

237
«E agora, quem é cobarde?»

Winter perfilava-se ao cimo das escadas, a olhar, lá em

baixo, a arcada de acesso à sala de jantar. O encontro com

Rhiannon em San Francisco não passava já de uma mescla

difusa de recordações, mas o sarcasmo daquela pergunta não

desarmava: há muito tempo que Winter não era assim cauterizada.

A ameaça de enxaqueca ainda não se tinha concretizado

- a força plena da dor reservava-se para o futuro e o seu

potencial fez com que tudo na casa se passasse como dentro

de água. Com as mãos húmidas Winter alisou o fino vestido

de voile Hannae Mori (emprestado pela mãe) que se lhe

colava às coxas e a fazia pensar no que a esperava ao fundo

das escadas - não podia ser tão mau como ela o pintava: ao

fim e ao cabo tratava-se simplesmente da sua família, ninguém

ali lhe queria mal.

«Cobarde. Cobarde, cobarde, cobarde. Se querias fugir,

devias ter fugido por teus próprios meios.»

Recordações em que não tinha pulso afloraram a superfície

da consciência indolente, perturbando-a mas não esclarecendo-a.


Mas se havia, nesta casa em que fora criada, coisa de

que já não se lembrasse, provavelmente seria coisa de pouca

monta - para ela ou para Grey.

A este pensamento, começou a sentir uma ferroada insistente,

monotonamente cíclica, na vista direita. Tinha mesmo

de descer. De nada servia adiar, a não ser para dar mais argumentos

à mãe, que andava em campanha para fazer dela inválida

de internamento caseiro.

«E porque não? Não tem ela razão? A minha saída de Fall

River só veio provar que não sou capaz de me desenvencilhar

no mundo real. Pus-me a tentar recordar o passado e afinal

ainda me confundi mais. Já nem sequer sei distinguir a realidade.

Perdi Grey para sempre e agora sinto-me culpada por isso.

Quanto àquela coisa que me persegue...»

Não havia de segui-la até ali, em Wychwood. Não podia.

Havia qualquer coisa tão perturbadora nessa certeza, que,

por contraste, o jantar lhe pareceu inócuo. Winter alisou mais

uma vez o vestido e apressou-se a descer as escadas.

238
Apesar da sua tendência para redecorar constantemente a

casa, a mãe não tinha alterado a sala de jantar, que permanecia

tal como Winter a recordava: em tons creme e azul

Wedgewood, recorrentes na carpete Aubusson e nos pesados

reposteiros cor de alperce, invariavelmente corridos a qualquer

hora do dia e em todas as estações do ano. O primeiro prato já

estava servido e havia cinco lugares postos na mesa. Winter

interrogou-se sobre quem seria o quinto conviva: o pai ou

Patricia? A mãe e os dois irmãos já estavam sentados à mesa.

- Winter! Sejas bem aparecida! - Kenny deu a volta

à mesa, abafado dentro de um fato cinzentão-banqueiro.

Abraçou-a com formalidade fora de moda, entre eflúvios de

rum da baía e bourbon dispendioso. Kenny era o mais velho;

andava na casa dos quarenta. Mais whiskey, menos cabelo,

mas de resto pouco diferia da imagem que Winter recordava...

de há quantos anos?

- Kenny - disse ela -, estás com bom aspecto. A Patsy

vem jantar connosco? - Eram coisas assim que as pessoas normais

diziam, não era? As pessoas normais e as que passavam


por normais.

As pratas dispostas na mesa e os espelhos das paredes

reflectiam a luz derramada pelo elaborado lustre Waterford;

um cenário tão pristino e desumanizado como a face da Lua.

- A Patricia teve de ir mostrar uma casa em Long Island.

O pai só vem jantar mais tarde, quando puder largar o trabalho

- disse a Sr.a Musgrave, da cabeceira da mesa. Também ela

tinha mudado de roupa para vir jantar, optando por um vestido

vaporoso e formal, na cor da cinza de rosas. Brilhavam-lhe nas

orelhas diamantes Heirloom. - Se ao menos nos tivesses avisado

que vinhas...

- ... Ele tinha arranjado maneira de mudar a agenda de

trabalhos, para vir jantar connosco... tanto mais que sempre

foste a favorita dele, Winty - disse o último dos convivas.

O diminutivo infantil trouxe à memória de Winter a sua

festa do 6.º aniversário - e o bebé palrador que, ainda mal se

sustendo de pé, enfiou deliciado a cara e ambas as mãos no

bolo de aniversário, para grande desespero de Winter, que

235»
desatou aos berros, furiosa.

- Olá, Wych - disse Winter. - Mas olha que o favorito

era o Kenny, e não eu.

Esta afirmação suscitou um murmúrio geral de espanto;

Kenny tossicou, Wych sorriu ironicamente e Miranda Musgrave

empertigou-se na cadeira, compondo no rosto um claro aviso

de desaprovação.

- Senta-te, Winter. O pai pediu que não esperássemos

por ele. E tu tens de retemperar as forças.

- Sim, mãe - disse Winter, submissa, esgotado já o

ânimo provocatório. Sentou-se à mesa, em frente dos irmãos.

Os fantasmas dos jantares de outrora pululavam à sua volta;

pegou na colher de sopa e fez por se tornar invisível.

- Que tal correm as coisas no banco, meu querido

Kenneth? - perguntou a Sr.a Musgrave, tomando sub-repticiamente

o leme da conversa.

Kenny deu início à resposta, que, como sempre, prometia

ser exaustiva, embora diplomática; a coberto da ostensiva atenção

da mãe ao diálogo com o primogénito, Winter pôs-se a


estudar o irmão mais novo. Todos os outros estavam na mesma

- e ele?

Wych estava vestido demasiado à vontade para um jantar

em Wychwood, com um casaco desportivo amarrotado por

cima de uma camisa de colarinho aberto. O cabelo pedia corte

há várias semanas. Tal como Winter, tinha o cabelo castanho e

os olhos cor de amêndoa herdados da avó Wycherly, mas em

lugar da teimosia patente no rosto e na boca de Winter, as feições

de Wycherly pareciam ter sido moldadas em cobardia

cruel.

«Porque será que me deu para pensar nestas coisas?»

Desviou a atenção para Kenny. Apesar de ser pouco mais

velho que ela, tinha o cabelo esmorecido em tons de metal

cediço; o rosto, em vez da crueldade, exprimia uma indiferença

bovina por tudo o que o rodeava.

- Então, não comes, querida? - disse a mãe. - Queres

que peça à Martha para te fazer outra coisa?

«Tão depressa dizes que estou a ganhar peso a mais como

me queres alimentar à força.»

240
- Não, mãe, obrigada - disse Winter laconicamente.

- Wycherly, fazes favor sentas-te direito? Tenho a certeza

que a Winter gostava de te ouvir contar o que tens andado a

fazer.

Wycherly olhou para Winter com taciturno ressentimento:

- Hum, não me parece - começou Wycherly, com nítida

má vontade, mas interrompeu-se ao reparar no olhar fuzilante

da mãe. Rendido, despachou umas quantas frases mal

amanhadas acerca da constituição de uma sociedade, até que

Kenny o interrompeu para contar a história de um barco que

ele e Patrícia tencionavam comprar.

- ... constou-me que Stevenson, da Term Mortgages,

andava à procura de uma do género, mas não conseguiu arranjar

capital, de modo que aproveitei a oportunidade para lhe

perguntar a opinião...

«De maneira a garantir que ele saiba que tu vais comprar o

barco que ele quer mas que não tem posses para adquirir»,

completou Winter mudamente. A atmosfera da sala de jantar

corria como água; água para apagar o fogo...


Passava-se ali qualquer coisa errada - para além do conflito

entre caracteres fracos e rancorosos -, qualquer coisa

que Winter não conseguia definir. Claro que a família era um

horror, com a mãe a querer impor-se contra tudo e contra

todos, Kenny armado em déspota snobe, e Wych tão rufia

quanto lho permitissem, mas por mais que quisesse Winter

não os recordava tão ostensivamente empenhados em exibirem-se

como tal.

E se eles eram todas essas coisas, que dizer dela própria?

O jantar parecia arrastar-se eternamente.

Kenneth Musgrave, Sénior, chegou, como previsto, quando

o jantar estava a acabar e a eternamente fiel Martha já retirava

as sobremesas. Sempre tinha havido criados naquela casa;

se Winter alguma vez tivesse pensado no assunto, teria sido

obrigada a reconhecer os sinais de privilégio aí implícitos mas,

de facto, que privilégio era esse que os obrigava a ficar à

espera, a depender de terceiros para conseguirem coisas que

qualquer mortal podia fazer por suas próprias mãos?

241
Winter saudou a chegada do pai com grande alívio. Tivera

de recorrer a todo o seu engenho para disfarçar os lapsos de

memória; e mesmo assim só o conseguira graças à vontade

geral de evitar a mais leve referência à estada de Winter em Fall

River. Nem queria imaginar o que eles diriam, se lhes contasse

que lhe tinham diagnosticado um poltergeist em vez de um

colapso nervoso!

- Paizinho! - gritou Winter, atirando-se para os braços

dele, dando vazão sincera aos seus sentimentos pela primeira

vez em todo o dia.

- Como tem passado a minha pequerrucha? - saudou

Kenneth Musgrave.

Aos sessenta anos, o pai de Winter apresentava-se bronzeado,

de cabelo argentino, aspecto geral vigoroso; encarnava

com tal perfeição a figura do financeiro próspero da Wall

Street, que mais parecia um símbolo de classe do que uma personagem

de carne e osso. Abraçou a filha com força, examinando-a

depois com aqueles seus olhos cinzento-aço.

- Então que te traz ao teu humilde berço? - disse ele a


sorrir. - Pensei que tinhas assentado arraiais naquela quinta

que compraste não sei onde. Randa, faz-me o favor, traz-me

uma bebida.

Winter iludiu a pergunta, enquanto a mãe corria a ir buscar

a bebida. Assim tinha sido a vida familiar desde sempre, tanto

quanto Winter se lembrava. Kenneth Musgrave a entrar em casa

como leão conquistador, a mulher a desfazer-se em tagatés.

E os outros homens da família... ?

Afastou-se do pai para relancear os irmãos, príncipes pretendentes

ao trono, e encontrou-os a espiar o pai com comum

expressão de inveja ressentida.

- Espero que regresses rapidamente ao trabalho - disse

o Sr. Musgrave. - Não podes permitir que um falhanço determine

o resto da tua vida.

Winter apercebeu-se de que a chegada do pai representava

a entrada em cena do último personagem daquela tragédia

familiar, reconduzindo o desenrolar dos acontecimentos ao

ramerrão costumeiro, como se repetissem, ano após ano até à

242
eternidade, a mesma encenação.

- Oh, Kenneth - alvoroçou-se a mãe -, não achas que

ainda é muito cedo? Bem sabes que a Winter é muito frágil...

- Frágil é sinónimo de fracassada - disse o pai, sem

rodeios. - O Ken Júnior pode não ser tão brilhante como a

irmã, mas isso não o impediu de subir bem alto. O que conta é

ser persistente. Não me vais desiludir segunda vez, pois não,

Winter?

Fixou nela os olhos pálidos, com aquela intensidade que

não admitia evasivas; Winter só conseguia pensar nas vezes em

que falhara, nas ocasiões em que iludira as esperanças daquele

homem.

- Esteja descansado, pai - respondeu ela em voz baixa.

O pai sorriu, e Winter apenas conseguia ver nesse sorriso

qualquer coisa malévola, como a afirmação de uma vitória cujo

alcance ia muito além da obediência.

Relanceou toda a mesa e teve a súbita sensação de que

todos eles eram sombras dúplices de outras figuras suas conhecidas:

Kenny era como Janelle, capaz de desistir de todas as coisas


boas de que era capaz, em troca de segurança e paz, acabando

afinal por tudo perder; Wycherly era Ramsey, com medo de

arriscar, embora sabendo que o fracasso seria a sua perdição...

Ambos os irmãos tinham perdido a época de ouro de que

Ramsey falava, e tinham-se condenado a perpetuar os falhanços

paternos até ao fim dos tempos.

E os pais? Que fracassos estavam Kenneth e Miranda

Musgrave condenados a recriar? Ramsey tinha dito que ela

havia de escapar - ela e Grey -, mas teria ele ideia de como

é fácil recair na falta de êxito? Independentemente do que ela

fizesse agora - falhar ou vencer -, Winter teria de desapontar

o pai ou a mãe; qualquer acto exerceria uma pressão insuportável,

inelutável.

- Eu... desculpem; não estou a sentir-me muito bem Winter

atirou com o guardanapo e debandou da sala.

A mãe instalou-a no seu antigo quarto, mas Winter não

reconheceu nem um vestígio da criança que o ocupara. Há

muito tempo que aquela divisão fora transformada no perfeito

243
quarto de hóspedes, a começar pelo papel de parede Laura

Ashley Ribbons & Roses e a acabar na mobília, género rústico

pintado à mão, passando pela colcha da cama em patchwork.

O quarto estava a anos-luz da cozinha de Janelle, com seu

mobiliário da Sears e da Roebuck, mas, apesar de sufocante, a

casa de Janelle era mais... humana.

O mal-estar que Winter simulara tornou-se real; precipitou-se

para a casa de banho a tempo de vomitar o pouco que

conseguira engolir durante o jantar.

Depois, tremente e dorida, Winter abriu o armário dos

remédios à procura da pasta de dentes; em vez disso descobriu

várias garrafinhas de amostras de bebidas.

«Parece que o Wycherly segue pelo menos uma das tradições

da família.»

A única coisa que a surpreendeu foi a tristeza que o facto

lhe produziu. Mas sabia que tinham de ser dele; Kenny não

vivia lá em casa; quanto aos pais, não teriam necessidade de

esconder as respectivas bebidas alcoólicas.

Winter rodou a tampa de uma das garrafinhas, bochechou


com vodka e cuspiu; depois abriu outra e bebeu-a. Aqueles

40° de fogo assaltaram-lhe o estômago dorido, escamoteando a

dor. Todos os seus instintos lhe diziam que devia partir imediatamente,

apanhar um avião, mas isso era um disparate. Aquilo

era o seu lar, a sua família.

«Todas as famílias têm seus altos e baixos», pensou Winter,

citando James Goldman enquanto deitava a mão a outra

garrafinha. «Estou a ter uma recaída. Uma caída. Uma coisa

dessas.»

Fosse o que fosse, não era coisa que ela pudesse suportar.

Porque voltara ela ali, se o regresso lhe causava tamanha dor?

Que espécie de cobarde era ela?

«Uma espécie bastante estúpida.»

Ela era mais esperta, antes de ter ido para Fall River. A última

vez que ali tinha estado fora no Verão em que abandonara

o curso. Desde então nunca mais lá voltara. Nem sequer pelo

Natal; nem no Thanksgiving5. Nem uma vez, em catorze anos.

5 Dia de acção de graças, última quinta-feira de Novembro, nos EUA. (N. do T.)

244
Como era de esperar, ninguém na família trouxe a questão

à baila.

De repente sentiu-se gelar até à ponta dos dedos. Todos os

segredos que ela tentara gentilmente enterrar não estavam ordeiramente

depositados alhures. Alguns ãospuzzles resolviam-se ali.

«E dizia eu que queria saber a verdade. Como pude ser tão

estúpida? Oh, Grey, meu querido, ajuda-me!»

Winter regressou ao quarto, levando consigo terceira garrafinha.

A enxaqueca voltava a atacar em vagas sucessivas de

arrepios e náuseas; lá fora, tinha começado a chover. A tempestade

que ameaçara toda a tarde e toda a noite rebentava

finalmente. Winter espreitou pelas janelas: viam-se as linhas

brancas da chuva, iluminadas pelos candeeiros de rua.

Tinha chovido durante toda essa noite.

«Não!» Começava a sentir o efeito de ter andado a esgaravatar

o verniz da memória, mas aguentou. O medo acelerou-lhe

o coração, cada vez mais depressa; a exaustão lançou-a

num estado de confusão e inércia. Deixou-se cair na cadeira,

onde ficou embasbacada a olhar para a janela.


Memórias à chuva:

- Winter Musgrave! Isso era um prato Limoges!

- Mas eu nem lhe toquei, mamã! Não lhe toquei!

Mas a mãe não acreditou nela. Nunca acreditava. Espera,

que quando o pai chegar a casa logo vês... E Winter não era

capaz de racionalizar coisas que nunca tinha feito, que não se

lembrava de jamais ter feito.

- Se andas a tentar ser diferente, depois não te venhas

queixar de que as pessoas te põem à margem.

- Mas, papá, eu só queria...

- Se gastasses menos tempo a tentar dar nas vistas e te

aplicasses mais nos trabalhos da escola, minha menina,

não havias de ter razões para te queixar de que ninguém te

leva a passear.

«Não era nada disso, papá!», protestou Winter, com anos

de atraso. «Eu só queria que alguém gostasse de MIM, e não da

filha de Kenneth Musgrave...»

A chuva saraivou na janela. Também naquela noite tinha

chovido.

245
«Não. Isso não, por favor. Aqui não.» A dor por detrás dos

olhos golpeou-a, desfocando e abaulando tudo à sua volta.

Ao entrar na adolescência, Winter esqueceu a menina traquinas

que fazia saltar os quadros da parede e partia pratos

com um pestanejar de olhos; não que as terríficas enxaquecas

que passou a ter coincidissem com os cortes de corrente eléctrica

nas máquinas circundantes; apenas se apercebeu que

devia haver mais coisas no mundo além do jardim infantil e do

quarto dos brinquedos - coisas maravilhosas, concebidas em

sua intenção. Quis ir para a UCLA ou para Berkeley, mas os

pais fizeram questão que se inscrevesse numa faculdade da

Costa Leste. Winter preferiu Taghkanic a Albany: embora

Taghkanic ficasse mais perto, tinha cadeiras nas áreas de belas-artes

e, além disso, albergava o Instituto Bidney, coisa que horrorizava

a mãe.

Nem penses que vou permitir que metas nesta casa um

bando de estudantes maltrapilhos, depois de todo o trabalho

que me deu arranjá-la, minha menina. Se pensas que trazes

para aqui alguém dessa gente, tira os cavalinhos da chuva...


- Não me passa pela cabeça trazer para cá ninguém

de quem EU GOSTE, mãe!

E foi então que conheceu Grey. E que ele fez com que

todos os seus sonhos se tornassem realidade.

«Não!...Não!...Não!» Winter bateu com o punho no parapeito

da janela, sabendo que em grande parte ela mesma tinha

planeado a sua própria agonia. Senão não teria regressado,

depois de um dia ter jurado que nunca havia de voltar, após...

Nunca havia de voltar àquela casa...

Chovia, e...

Nunca voltar. Nunca...

Chovia nessa noite, há catorze anos. Não os tinha avisado

de que ia a casa: tinha apanhado o comboio para

Nova Iorque, depois o autocarro até à estação de metro

mais próxima, depois um táxi ...

Winter gemeu bem alto. Estava à beira de recordar; sentia

as cicatrizes psíquicas rasgarem-se, expondo as feridas abertas

e sangrentas, como no passado.

246
Saiu do táxi e começou a caminhar, a ganhar tempo

para se preparar para o que tinha a dizer-lhes... A chuva

ensopava-a até aos ossos, até a fazer gelar, e, depois, até a

deixar dormente. Quem lhe dera ficar dormente por dentro;

preferia não sentir nada, em vez da dor...

Preferia não sentir nada, em vez da dor...

Ainda estava a tempo de recusar recordar. Estar ali sentada

a olhar para dentro exigia mais coragem do que a necessária

para pegar numa pistola carregada; Winter sempre se considerara

corajosa, mas via agora que tudo isso não passava de uma

grande mentira. Toda a sua vida tinha sido uma mentira cuidadosamente

montada.

A rapariga ergueu a mão para a aldrava da porta, tentando

não pensar. Acerca do que estava para vir e do que já

tinha acontecido.

247
CAPÍTULO DOZE

PRETÉRITA RAZÃO CAÇADA

The night is freezing fast,

Tomorrow comes December;

And winter/alls of old

Are with me from the past1

A. E. HOUSMAN

No pomar das traseiras de Greyangels, as madeiras

estavam em plena floração. Ao voltar do médico, nesse dia,

ela apenas pensava em descobrir maneira de lhe contar em

privado o que se estava a passar - mas num complexo universitário

onde ambos eram tão conhecidos, a privacidade

mantinha-se esquiva. Como o professor MacLaren não se

importava que os estudantes devassassem o seu pomar, ela

pediu a Grey que a levasse ao local.

Mas quando se viu a sós com ele, Winter Musgrave, de

22 anos de idade e finalista da Universidade de Taghkanic,

não sabia por onde começar.

- Tenho de contar-te uma coisa - disse ela, mas

depois pôs-se a falar de insignificâncias: as férias da


Primavera, as cerimónias de fim de curso que se realizavam

daí a uns meses, e até os planos de férias para o Verão,

embora ela os soubesse fictícios.

- Anda lá - disse Grey. Inclinou-se para ela, com as

franjas do blusão de pele branca a balouçarem. Um fugidio

raio de sol brilhou nas contas de vidro embutidas nos

ombros do blusão, com reflexos de azul mais brilhante que

o do céu. - Tens estado a ganhar balanço para dizer qualquer

coisa, mas nunca mais lá chegas. O que é? - perguntou

ele. - Constou-te alguma coisa acerca das admissões

1 A noite gela rápida, / Amanhã chega Dezembro; / E os Invernos de antanho /

Acompanham-me do passado, (N. do T.)

249
para o grupo de teatro? Parece que o «Dandy» Lion vai tratar

disso esta semana...

Ambos tinham concorrido para a American Shakespeare

Company e o professor Welland cria que pelo menos Grey

tinha boas hipóteses de entrar. Winter pôs a ideia de parte.

Tal como todos os outros planos de futuro que arquitectara,

já nada disso importava.

- Vou ter um bebé - disparou ela.

Grey ficou mudo, de olhos esbugalhados. Apesar da situação

em que estavam, apesar de saber que ele iria rejeitá-la,

Winter não conseguia deixar de amá-lo com o mesmo enlevo

com que amava a beleza selvagem dos falcões ou as colinas

de Taconic. A brisa primaveril vinda do rio agitava-lhe os

cabelos claros e as franjas do blusão; era como se o mundo

tivesse suspendido a respiração.

- Um bebé - Grey respirou fundo, longamente, e sorriu.

- Um bebé! O nosso bebé! Porque é que não me querias

dizer? Há quanto tempo... Como é que sabes? - chegou-se

a ela, mas Winter, com um gesto de irritação, deteve-o.


- Fui ao médico - disse ela num fio de voz enervada.

- Raios partam isto, não percebo como é possível que a

pílula não tenha funcionado.

Grey riu-se:

- As coisas funcionam sempre pelo melhor - tentou

abraçá-la, mas Winter esquivou-se, pondo-se a admirar a inofensiva

macieira que estava à sua frente, tentando reter as

lágrimas. À volta deles, por toda a parte, as pétalas das flores

cobriam a relva, formando um manto de neve primaveril.

Sacudiu-as tristemente dos ombros do blusão de pele sintética.

- Pelo melhor! Grey, o que é que eu hei-de fazer? lamentou-se

ela, amparando-se subitamente à árvore. De

certo modo, era pior o facto de ele ter aceitado. A ausência de

resistência activa sempre a tinha deixado sem saber que fazer.

- Não queres ter a criança? - perguntou ele então,

num tom de seriedade que afez voltar-se para o encarar. Preferes

fazer um... - a voz sumiu-se-lhe num rouquejo.

Não sei, não sei...

- Não sei! - lamuriou Winter. - Não és... não

250
somos... - gesticulou desamparadamente, incapaz de exprimir

o que pensava, consciente apenas de se sentir encurralada.

- Que hei-de eu fazer? A Mãe disse que no Verão, depois

do fim do curso, iam mandar-me para a Europa (sobretudo

para me afastarem de ti) e o Pai quer que eu vá trabalhar

com um amigo dele, na Wall Street, ou casar, e eu nem sei o

que hei-de dizer-lhe, e...

- Casa comigo - disse Grey. - Havemos de ter a criança;

se a minha candidatura for rejeitada, posso entrar na

digressão Renfaire na Califórnia, a tempo inteiro. Temos o

Trabalho Blackburn e conheço gente na região da Baía que

nos pode ajudar. Verás que tudo se resolve.

No Verão anterior Winter tinha participado com ele

numa digressão pela Costa Oeste que levava à cena uma

pseudo-versão das Elizabethan Renaissance Pleasure Paires.

Ela tocava guitarra e Grey fazia um número de ilusionismo.

Passaram o Verão a dormir nos sofás dos amigos ou na parte

de trás da carrinha de Grey; até tinha graça, por umas semanas;

mas não era vida, em definitivo, e menos ainda havendo


uma criança.

- Não sei - começou Winter, hesitante. Percebeu, pela

expressão de Grey, que também ele começava a ficar baralhado;

por uma questão de orgulho, custava-lhe perguntar:

«Mas tu amas-me, Winter?»

Amo, Grey, amo! Mas tenho tanto medo...

- Fica comigo, Winter - disse ele, estendendo-lhe a

mão pela última vez. - Fica comigo.

Ela escondeu as mãos atrás das costas, receosa de que,

se ele as agarrasse, perderia de vez o bom senso, deixando-se

guiar pelo coração.

- Eu... tenho de pensar melhor, Grey. Vamos embora.

Não era verdade: com tantas incertezas a rodopiarem à

sua volta, ela não era capaz de pensar.

- A criança também é minha; não achas que tenho o

direito de participar nas decisões? - Grey parecia ofendido,

coisa que ela não era capaz de suportar.

- NÃO! - explodiu Winter - Não acho! Trata-se do meu

corpo, da minha vida, e eu não posso pura e simplesmente...

251
Então ele encostou-se a ela, abraçou-a pelos ombros, e

ela agarrou-se a ele como se estivesse a afogar-se e chorou

como se tudo o que amava tivesse já desaparecido. Ele amparou-a

até as lágrimas se esgotarem, fez de conta que a arreliava

até a ver sorrir, prometeu-lhe o Sol, a Lua e as estrelas.

E pensou, com a cega confiança de quem nunca foi

vencido, que a questão estava arrumada. Mas ela não tinha

fé no futuro que ele traçava.

De noite, sem dar palavra a ninguém, nem mesmo a

Cassilda, ela apanhou o comboio para sul.

Para casa.

Winter reabriu os olhos. A tempestade amainada tamborilava

agora mansamente num ritmo que prometia arrastar-se

horas a fio; pela janela aberta entrava o cheiro a chuva e terra

molhada. A custo, Winter levantou-se do chão do quarto. Ao

primeiro movimento descobriu o corpo dorido do frio e da

tensão, mas a enxaqueca fora-se, deixando em seu lugar uma

letárgica leveza de ideias. Desamparadamente, olhou derredor.

Por breve instante pensou que ia encontrar os restos de animais

sufocados, mas isso era já coisa do passado; desistira

deles para sempre.


Os olhos de Winter alagaram-se de lágrimas antigas longamente

sustidas. Construíra de si mesma uma imagem feita de

coragem afoita, mas afinal era tudo mentira. Não encontrava

dentro de si bravura alguma. Tinha traído tudo e todos os que

amava deveras. Imperdoavelmente. Irrevogavelmente.

Winter pôs-se de pé, a tremer; quanto tempo tinha jazido

no chão? Nem pôs a questão de saber por que motivo ninguém

vinha saber se ela estava bem - agora já conhecia todos

os segredos de Wychwood. Olhou automaticamente para a

janela, mas sem ver que tempo fazia. Sabia apenas que era

muito tarde. A chuva caía dos beirais em cascatas de prata, à

luz dos lampiões da casa, onde toda gente estaria certamente a

dormir há muito tempo.

A sala estava arrumada como se nunca tivesse sido usada;

nova toalha cobria a mesa, o centro de prata legítima da avó de

252
Winter reposta no lugar costumado. Winter entrou na sala de

jantar. Tudo estava onde lhe competia. Nada fora do seu lugar

- nem móveis nem crianças. As excepções tinham sido discretamente

escamoteadas.

«E tomaram conta de mim, e partia-se do princípio (eles

são os meus pais) que tratariam de mim o melhor possível, e

não apenas segundo as conveniências!»

Mas não tinha sido assim. Nessa Primavera em que regressava

a Wychwood, Winter já não era nenhuma criança. Não

devia ter permitido que a conduzissem como se fosse ainda

uma criança.

Mas o facto é que permitiu. Entregou-lhes o poder, por

medo e cobardia, senão mesmo por estupidez. Ela devia saber

que queria uma vida diferente da dos pais, mas afinal não teve

suficiente confiança em si mesma para arcar com a responsabilidade

do seu próprio futuro.

Teve de pagar por isso.

Mas não fora ela a única.

Foi ela, foi Grey, foi a criança que nunca nasceu - todos
tiveram de pagar. Depois, como princesa amaldiçoada, viu-se

condenada a abafar os sonhos dentro de uma armadura árctica

que ela, Winter, forjou para si própria, para se defender contra

a dor da escolha desastrosa.

Até que...

Winter sentiu a incipiente tentativa do anjo para despertar

sob a sua pele. Ignorou-o, remeteu-o para o mundo dos

sonhos. Fez dos seus poderes sonho - um mau sonho - e

continuou sempre a sonhar, insensível, até que algo veio em

sua busca.

Algo que cobrava o dízimo em sangue. Algo de que

Winter quis livrar-se através da loucura, por desconhecer que

assim libertava essa parte de si mesma longamente negada,

longamente traída - ou que, liberta, abriria caminho até passar

o limiar do seu inconsciente.

Num derradeiro esforço, Winter sentiu as espirais da

parte obscura do seu ser, nascida do ódio, libertarem-se para

sempre. Restava apenas Winter Musgrave.

«Que é louca.»

253
Por instantes permitiu que o seu eu odiado brotasse, para

depois o deitar fora, também. Mesmo depois de a mãe ter ditado

a sua sentença quanto ao bebé, Winter ainda poderia ter

dado novo rumo à sua vida; mas o desgosto e o ódio contra si

mesma paralisaram-na, e assim permitiu que outros lhe ditassem

as opções do seu futuro - opções que não eram feitas de

amor mas sim de cólera. Wychwood abrigava pouco amor

entre muros.

Winter riu-se descompassadamente e acendeu as luzes da

sala de jantar. «Ora bem, vamos lá soltar os demónios de uma

vez por todas.» Atravessou a sala, entrou na cozinha e começou

a abrir os armários, obedecendo aos imperativos do seu

organismo. Encontrou uma lata de passas e engoliu-as às mãos

cheias, quase sem as mastigar.

Mas mesmo enquanto o corpo se concentrava na comida,

o cérebro continuava às voltas. Qualquer coisa dentro dela

queria fazê-la entender tudo o que recusara encarar nos últimos

anos.

Os pais têm por obrigação amar os filhos. Mas o amor não


implica necessariamente sabedoria. «Deus sabe que eu sou

prova disso...» E a raiva contra as suas más opções transformara-se

em fúria em seu próprio prejuízo, uma fúria que, tal

como a serpente, se virava contra todo e qualquer alvo.

Mesmo que se tratasse dos próprios filhos.

«Assim ninguém fica a salvo. Porque se alguém conseguir

libertar-se, isso significa que existe outro caminho, outra vida

possível, e portanto todos os sacrifícios e sofrimentos terão

sido vãos...»

Ouviu um som atrás de si. Virou-se mesmo a tempo de ver

Wycherly atravessar a sala de jantar, direito à cozinha.

Vinha desmazelado e em desalinho, de cabelo encharcado

como se tivesse andado à chuva. Tinha perdido o casaco e

estava descalço; embora sem prestar grande atenção ao facto,

Winter interrogou-se sobre o que teria ele andado a fazer.

Wycherly olhou-a beligerantemente antes de reconhecer que

se tratava da irmã e que não havia especial razão de inimizade

entre eles.

- Que fazes tu aqui? - perguntou ele, de mau modo.

254
Sem esperar resposta, avançou para o frigorífico e abriu uma

das portas.

- Estou de partida - disse Winter, e, ao dizê-lo, era verdade.

O erro que acarretara tudo o que se seguira tinha sido a

falta de boa-fé. Não voltaria a repeti-lo. Ainda estava a tempo;

ainda podia modificar-se, recuperar a vida que pusera de parte.

E mesmo que não fosse capaz, ao menos evitaria ferir os

outros. Ela era capaz de pôr fim à cólera...

- Duvido - disse Wycherly, com um brilho de malícia

nos olhos: a única expressão honesta dos seus sentimentos

que lhe tinha visto desde que regressara. Mas, sem o dom do

poltergeist, a expressão raivosa de Wycherly tinha de ser controlada

pelo seu consciente. Com a garrafa de sumo de laranja

nas mãos, ele brindou e bebeu.

- Podes crer. Já tenho o que vim procurar - disse

Winter. «Apesar de não o ter desejado.» - Não tenho mais

nada a dizer a... nenhum deles - hesitou no fim da frase, acabando

por absolver mentalmente Wycherly dos acontecimentos

ocorridos naquele horrível Verão. Nessa época tinha ele


dezoito anos, mal começava a vida.

E, catorze anos depois, continuava no limiar da vida.

- Wych, foge daqui - disse Winter impulsivamente. Eu

sei que ficar parece a única solução possível, mas não é.

Se tu...

- Bela tirada, vinda de quem vem, querida maninha. Faz-me

lembrar os cucos, que empurram os pintainhos dos outros

do ninho abaixo. Mas tu és uma verdadeira Musgrave, não restam

dúvidas: o nosso lema é «Oportunidade Über Alles» - atirou

com a porta do frigorífico e avançou para ela a passos largos.

De perto, viam-se-lhe os restos de sumo no queixo.

- Não nos ligaste nenhuma enquanto andavas a construir

o teu ninho na Wall Street, mas agora deves pensar que está na

altura de emendar a mão e dar uma ajudinha à Grande

Vontade. Pois bem, vai em frente! Deixa que a mãe te escolha

um marido, que há-de ser com certeza um autêntico troféu,

uma coisa chique em pele de tubarão, e que a Pats te venda

um palacete em feitio de lata de bombons, aqui ao virar da

esquina, que é para a Querida Mamã poder zelar pelo teu lar...

255
Wycherly interrompeu-se, mais por falta de ar do que de

argumentos.

Winter abanou a cabeça, levantando a mão como quem

pede tréguas. A virulência das palavras de Wycherly ainda mais

vinha fortalecer a fé nas suas opções. Não havia ofensa nelas

- era como se fossem dirigidas a outra pessoa.

- Não. - «Tive uma paixão, um dia, e deitei-a fora.» Wych,

eu acho que devias ir-te embora, mas não tenho a mínima

intenção de governar a tua vida. Mas vou-me embora.

Aconteceram aqui coisas... - «E eu não sou capaz de perdoar

os meus pais por as terem feito, mesmo que parte da culpa me

caiba a mim.» Encolheu os ombros. - Vou-me embora amanhã

de manhãzinha e nunca mais volto a pôr aqui os pés. E pronto.

- Não acredito - disse Wycherly.

Winter riu-se, sentindo-se pela primeira vez aliviada do

aperto que trazia no coração.

- Oh, Wych! Como se costuma dizer acerca da vida

depois da morte: mais tarde ou mais cedo hás-de saber; portanto

não te rales. Acredites ou não, tanto se me dá.

Viu o rosto de Wycherly passar da dúvida à raiva taciturna,

indeciso, até se tornar inexpressivo.


- A mãe vai ter um ataque - articulou ele com leve

satisfação.

- Pois que tenha - disse Winter. «Ao menos assim não

perde a prática.»

Quando Winter regressou finalmente ao quarto, caiu num

sono pesado, sem sonhos; o coma pesado que se segue às

depurações emocionais. O despertador acordou-a às cinco da

manhã, conforme previsto; movimentando-se com precisão

mecânica, Winter vestiu as roupas que tinha usado na viagem

de avião, na véspera, fez uma chamada telefónica rápida e

depois precipitou-se escadas abaixo.

Tal como tinha previsto, os pais tomavam o pequeno-almoço

juntos, antes de o carro vir buscar Kenneth Musgrave

para o levar à Baixa. Ao aproximar-se da mesa de pequenos-almoços,

Winter viu que nessa manhã eles não estavam sozinhos;

Wycherly fazia-lhes companhia.

256
«De que é que estavas à espera?», censurou-se ela, com um

suspiro. Aquela família não era dada a lealdades; Wycherly

tinha razão, «Oportunidade Über Alles» era o lema mais apropriado

para eles.

- Winter! Anda cá, minha querida - disse Miranda

Musgrave.

Qualquer outra pessoa menos suspeita do que Winter

teria notado a tensão contida na voz da Sr.a Musgrave. Os anéis

da mãe faiscavam, conforme ela torcia nervosamente as mãos.

Winter respirou fundo.

- Mãe, pai, tenho uma coisa a dizer a ambos. Não demora

muito, mas preferia fazê-lo em privado. Wych, não tenho

dúvidas de que devias fazer uma escolha e manter-te fiel a ela.

E agora desanda.

- Acho que ele devia ficar - disse a mãe firmemente.

Winter olhou para o pai. Os olhos de Kenneth Musgrave,

de semblante carregado, fuzilavam, sinistros.

- Não me parece que o que tenhas para dizer não possa


ser dito em frente do teu irmão - disse ele em voz tonitruante.

Ainda na noite anterior a sua cólera tê-la-ia deixado aterrorizada,

mas agora já não. Nunca mais.

- Está bem - agora que estava determinada, sentia-se

imersa numa curiosa calma, idêntica à que costumava sentir na

Wall Street, quando negociava. Era quase como se lhe lembrassem

que por vezes se consegue tirar partido dos piores erros.

Voltou a respirar fundo, pausadamente.

- Há catorze anos vim pedir-vos conselho. Estava grávida,

como devem lembrar-se. Não me interessa agora especular

sobre as razões que vos levaram a tomar as decisões que escolheram;

limito-me apenas a dizer agora, como disse nessa altura,

que Grey estava na disposição de casar comigo e ajudar-me

a criar a criança. Eu amava-o, e continuo-o a amá-lo. Se voltar a

encontrá-lo, vou pedir-lhe que me perdoe pelo que fiz.

«Cabe-me a mim a culpa de ter cedido à vossa vontade;

quanto a isso assumo a minha responsabilidade. Mas eu confiei

em vocês, e vocês traíram-me. Não tenciono voltar a ceder-vos

qualquer espécie de poderes sobre mim ou sobre a minha

vida. Por conseguinte, adeus.»

257
Wycherly olhava para ela boquiaberto, aturdido. Quem o

visse não diria que ele já sabia. Relanceou os pais. O pai mantinha-se

sereno, mas a mãe tinha uma expressão de fúria alarmantemente

intensa.

- Tu ousas vir a minha casa falar-me dessa maneira? sibilou.

- Então, Randa. - A voz do pai mantinha-se calma, controlada.

- Winter, senta-te, querida filha. Ninguém te quer

fazer mal. Eu chamo um amigo que não se importa de te levar

outra vez para Fall River ainda esta tarde. Estás de acordo, não

estás?

Disse-o numa voz suave mas firme, com uma ameaça subjacente:

Agrade-te ou não, voltas para lá até aprenderes a

comportar-te como deve ser.

- Não - disse Winter simplesmente. - Não estou

doida, nem estou a ter um ataque de nervos. Estou apenas zangada.

E se a tua ideia de como se deve lidar com os problemas

familiares se resume ao internamento...

Ao olhar para Wycherly deteve-se, intuindo subitamente,

muito para além do que jamais desejara saber, a forma como a


família resolvia os problemas familiares.

- Vou-me embora já. Boa sorte, Wych. Adeus, Pai. Adeus,

Mãe.

Virou-se e saiu.

- Winter! - gritou o pai nas suas costas, extravasando

finalmente a fúria. Mas nenhum dos dois a seguiu; toda aquela

cólera e ameaças veladas não passavam de fanfarronadas: faltava-lhes

a vontade de agir.

«Os monstros só têm o poder que nós lhes atribuímos.»

Assim tinham dito Dylan e Truth, e com razão.

Ela tinha-se libertado.

Winter pegou na mala que deixara pousada em cima da

mesa do hall de entrada e começou a percorrer a rua, à procura

de um táxi. Tal como a percorrera catorze anos antes.

Ao cabo de uns bons vinte minutos de trabalhos, as três

trancas do apartamento da Upper East Side cederam ao manejo

das chaves de Winter. Tinha desaparecido o chaveiro que

258
ela julgava ter guardado na mala, o que a obrigou a ir buscar a

casa do seu advogado um jogo sobressalente de chaves.

Mentalmente, tomou nota de que também precisava de visitar

o contabilista - o estado das suas finanças, ao fim de ano e

meio, necessitava de inspecção urgente. Mesmo nos momentos

de maior penúria, nunca quisera que os pais lhe controlassem

o dinheiro; abençoava agora essa teimosia paranóica.

Suspeitava que só graças a ela conseguira sair de Fall River.

Winter empurrou com força a porta do apartamento parecia

encravada - e entrou, voltando-se para observar a

porta. A prolongada ausência tornara-lhe estranha a casa: lugar

estéril, com carpetes cinzentas, paredes brancas e sofá de

cabedal branco. As persianas brancas escondiam a paisagem

da West Seventy-first Street. Nas paredes, frias peças de arte

contemporânea.

Só que os quadros não se encontravam nas paredes, nem

o sofá de pé. Winter entrou cautelosamente na sala de estar. As

solas dos sapatos rangiam sobre estilhaços de vidro. Carregou

no interruptor da luz, mas a sala continuou às escuras.


O sofá - ou o que restava dele - estava caído de costas

no meio da sala. Os braços tinham sido arrancados da armação,

as molas estavam à mostra, o couro esfarrapado. O estofo

andava espalhado por toda a parte e os coxins desaparecidos.

Porque seria que ninguém se tinha queixado quando tudo

aquilo acontecera? Claro que ela não estava lá para receber a

mensagem, caso houvesse queixas, lembrou-se Winter. Aliás,

não acreditava que o atendedor de chamadas tivesse sobrevivido.

Havia estilhaços por todo o lado - os pratos partidos, a

televisão escaqueirada, os vidros dos quadros. A mesa da casa

de jantar fora, em tempos, uma placa de vidro assente sobre

pedestal de granito. Apenas restava o pedestal, rodeado do que

parecia, à primeira vista, um mar de diamantes por lapidar.

«Que fúria...», pensou Winter, intrigada. Seria sua ou da

criatura que a perseguia? Pouco interessava, agora. Quem quer

que tivesse feito aquele trabalho, pouco deixara intacto em

toda a sala.

O quarto não estava melhor. Colchão e respectivo estrado

259
apresentavam-se esventrados e partidos, os candeeiros e mesas

reduzidos a estilhas, lençóis e cobertores totalmente rasgados,

papéis espalhados por todo o lado, reduzidos a confetti.

Winter suspirou de alívio ao pensar que os papéis realmente

importantes para o bom andamento da sua vida continuavam

divididos entre um cofre bancário e as pastas de arquivo do

seu advogado.

Esperava ela que continuassem a salvo.

Com expectativa e angústia, Winter abriu o guarda-roupa.

Mais valia não o tivesse feito: os cabides de madeira de cedro

estavam amontoados num massa inextricável e os casacos jaziam

ao lado, em farrapos.

«Estão em muito bom estado para encher almofadas. Será

que o meu seguro cobre ataques de raiva de Poltergeist

Até os sapatos - uma vasta colecção de artigos de primeira

qualidade, em toda a gama de tons neutros - tinham

sido mutilados, sabe-se lá como: quebrados, torcidos, as fivelas

arrancadas, o cabedal cortado.

Nada se salvava.
«Ainda bem que tudo isto já não corresponde a mim»,

reconfortou-se Winter. Na verdade, se o seu guarda-roupa de

trabalho - aquelas vestimentas rígidas, incolores - continuasse

intacto, o mais certo seria ela doá-los a uma instituição

de caridade. Ungaro e Calvin Klein não iam bem com o seu

novo figurino.

Fosse ele qual fosse.

«Provavelmente nem as cores se aproveitavam», pensou

Winter sarcasticamente. «Quando eu for velha, hei-de vestir-me

de púrpura...»

Torvamente, levou por diante o inventário do desastre. Na

cozinha a destruição era semelhante - embora mais enjavardada

- e nenhuma das luzes funcionava. Facas e garfos estavam

dobrados e torcidos, chegando alguns deles a ter nós. O

microondas parecia ter... derretido.

«É o Efeito de Geller. Que pena não ser capaz de repetir a

façanha de propósito, para ganhar um milhão de dólares.»

A única sorte, no meio daquilo tudo, foi que ela, ou

alguém por ela, tinha limpo o frigorífico e os armários antes de

260
partir para Fall River. Já na casa de banho não teve tanta sorte:

todo o quarto de banho estava forrado de gel seco e outros

produtos de limpeza. Os frascos de vidro estavam - como era

de prever - estilhaçados, mas o mais curioso era o facto de os

recipientes de plástico terem sido misteriosamente virados do

avesso, coisa que Winter nunca imaginara possível.

Pegou um frasco de champô, todo coberto com a película

seca do seu anterior conteúdo, e atirou-o para o lixo. Não

havia nada que se aproveitasse, nem valia a pena vasculhar no

meio dos detritos. A força que destruíra o apartamento tinha-se

esmerado no trabalho. Poupara-lhe o tempo e a canseira de

fazer as malas. A única atitude viável, agora, era chamar

alguém que despejasse a casa até ficarem só as paredes e

depois pintá-las.

E depois viver ali?

«Não.» Winter sabia que não queria reconstituir a sua antiga

vida, da qual já nada parecia suscitar-lhe qualquer interesse.

Interessava-lhe, isso sim, oferecer reparação pelos estragos de

que era responsável nas vidas alheias. Winter suspirou, olhando


pela última vez o apartamento destruído. Se precisasse

ainda de prova que a convencesse do perigo que a perseguira,

ali estava ela, naquela destruição desenfreada. A coisa que

Truth Jourdemayne chamava «Elemento» tinha morto Cassie.

Tinha invadido a vida de todas as pessoas que Winter conhecera

- e, pelos vistos, só ela poderia deter essa força.

Mas para isso tinha de defrontá-la - como Truth fizera,

como Cassie também tinha feito.

Não lhe parecia que fosse capaz de sobreviver ao confronto.

Grey podia ajudá-la, mas Winter não estava certa de que o

fizesse. Até podia já ter morrido - talvez fosse essa a mensagem

que Cassie tinha deixado: que a criatura tinha matado e

voltaria a atacar?

Não adiantava deitar-se a adivinhar - ainda menos quando

podia sabê-lo ao certo.

Winter corou de vergonha lembrando-se do encontro

com Rhiannon. «Nem sequer me dá a sua morada para eu lho

enviar?», tinha gritado a rapariga. E agora que Winter estava,

261
finalmente, na disposição de aceitar a mensagem, não sabia

como contactar Rhiannon.

«O cartão-de-visita que Paul Frederick me deu. Se ele era

amigo de Cassie, também deve conhecer Rhiannon.»

Winter abanou a cabeça, pesarosa. Tinha um longo caminho

a percorrer até alcançar metade que fosse do brilho que sempre

julgara possuir. Encontrar Rhiannon não havia de ser assim tão

difícil, e a mensagem era a sua única hipótese de chegar a Grey.

E, a não ser que Grey tivesse morrido, tinha de vê-lo uma

última vez.

«Ele não morreu. Se ele tivesse morrido eu sabia.» Esta convicção

íntima, por muito irrealista que fosse, reconfortava-a. Ela

e Grey tinham estado unidos pelo amor e pela magia, outrora.

«Então porque não veio ele buscar-me?», lastimou o seu

jovem eu, lá no fundo, ao mesmo tempo que a Winter mais

madura encontrava a triste e simples resposta: Talvez o tenha

feito. Naquele Verão horrendo ela foi para a Suíça, com a mãe,

para «tratar das coisas»; qualquer clínica de Nova Iorque teria

feito o mesmo serviço, mas sem a tirar do país. Caso Grey a


tenha procurado enquanto ela estava fora, sabe-se lá o que o

pai lhe teria dito - e que teria Grey acreditado?

Nesse mesmo Setembro Winter começou a trabalhar na

Bolsa, servindo-se do trabalho como droga anestésica e de olvido,

até que o trabalho se apoderou da sua vida e preencheu o

seu mundo.

Até onde pôde.

Tinha de encontrar Grey.

Antes que o Elemento a encontrasse a ela.

Como se o simples pensamento bastasse a convocá-lo,

Winter sentiu um súbito vento gelado varrer o apartamento.

Os estores verticais abanaram, expondo as janelas hermeticamente

fechadas.

Alguma coisa andava por ali.

Winter sentiu eriçarem-se os pêlos, numa reacção puramente

animal à presença. Arrepiou-se-lhe a pele, a fazer-se impermeável

aos lampejos que atravessavam a atmosfera do apartamento.

«Tal como no lago Nuclear.»

262
Mas desta vez não reagiu guiada pelo terror cego. O pânico

que então tinha sentido provinha da negação; desta vez,

finalmente, Winter tinha clara consciência de tudo o que tão

arduamente tentara esconder de si mesma. O medo que sentia

agora resultava, simplesmente, de se ver forçada a enfrentar a

tempestade do Elemento dentro de um quarto cheio de vidros

partidos. Arriscava-se a ser cortada em tiras...

«Tenho de sair daqui.» Talvez a criatura não a seguisse para

fora do apartamento. Em poucos passos alcançou a porta da

frente; destrancou-a e puxou a lingueta.

Nada.

Rodou o fecho, puxou por ele - a fechadura rodava, mas

a porta não se abria. Esmurrou-a, frustrada - era uma robusta,

dispendiosa porta nova-iorquina, forrada a aço, com trancas de

8 cm, totalmente inamovível.

Estava encurralada. Não havia telefone que pudesse usar

para pedir ajuda, e mesmo que alguém acorresse a ajudá-la

havia de chegar demasiado tarde. Winter ouviu os estores tilintarem

ao vento fantasma.
«Tenho de travá-lo. Tenho de mandá-lo embora.»

Mas como? Seria capaz de o controlar com os seus dons

psicocinéticos? O Elemento não era ela, mas Truth Jourdemayne

tinha dito que, de alguma maneira, estava ligado a ela.

Poderia essa ligação funcionar em dois sentidos?

«Tem de funcionar», pensou Winter sombriamente; senão

morria e acabavam-se ali as hipóteses de lhe pôr fim. A atmosfera

do apartamento apresentava-se agora como se Winter estivesse

exposta diante de uma máquina de ar condicionado - uma

corrente de ar gélido a incidir-lhe directamente na pele.

Independentemente de lá fora haver um belo sol primaveril a

pino - dentro daquela casa o tempo não contava.

A força do vento fantasmagórico aumentou: os papéis e

destroços espalhados pelo chão começaram a mover-se lentamente.

Daí a pouco voariam também os objectos mais pesados.

A pressão do que vinha ao seu encontro fez-lhe doer a pele.

Winter pensou na pressão que se criava dentro do quarto, nas janelas

a abaularem-se para fora, a estilhaçarem-se sobre os transeuntes,

lá em baixo.

263
«Não! Leva-me, se for preciso, mas não aqui! Não onde

haja outras pessoas indefesas!»

A pressão aumentou, pronta a esmagá-la, e Winter ripostou.

Era mil vezes mais difícil do que deslocar um livro ou um

molho de chaves - era como se tentasse erguer a própria

Terra. O confronto fê-la perder o controlo do seu próprio corpo;

Winter caiu de mãos e joelhos sobre os destroços do apartamento,

mal sentindo as esquírolas rasgarem-lhe a pele.

Não podia dar-se por vencida. O suor escorria-lhe da testa,

caía-lhe sobre as mãos. Enclavinhou os dedos na carpete, resistindo

ao Elemento com a mesma vontade furiosa com que

antes tinha renegado a verdade. Ouviu os cacos a estalarem, a

cravarem-se na carpete à sua volta, ouviu os vidros e plásticos

a estilhaçarem-se, ouviu as paredes a rangerem sob a pressão a

que estavam sujeitas...

E transformou-se, como Hunter Greyson lhe tinha ensinado

um dia, em vontade pura.

O apartamento já não existia. Era ela quem decidia o que

era real. Escolheu apenas as partes da realidade que podiam


ser úteis. Winter julgou ouvir o rugido do recinto da Bolsa à

sua volta: a informação a correr, mais veloz que o pensamento,

mais veloz que a razão, moldada e controlada pela vontade

humana. Podia fazer e desfazer o Mundo com um pensamento,

com uma opção, com a vontade de o transformar...

Enclavinhou as mãos na carpete, espetando na pele os

vidros, sem sentir a dor, e, armada da força de vontade com

que sempre tinha triunfado em todas as circunstâncias da vida,

Winter ripostou.

Houve qualquer coisa que deu de si, que foi dilacerada;

Winter foi lançada no aqui-e-agora, consciente de um mundo

que parecia impante de pulsações vermelhas e enxameado de

manchas negras vertiginosas. Doíam-lhe os pulmões da respiração

longamente sustida; arfou, sufocada, e à medida que o oxigénio

voltava a encher-lhe os pulmões começou a sentir as

mãos doridas.

Winter soergueu-se e tirou da carpete as palmas das mãos,

donde caiu uma chuva de esquírolas de vidro, finas como açúcar.

Na palma da mão direita tinha um corte a todo o compri-

264
mento que sangrava abundantemente; a outra mão tinha vários

estilhaços cravados. Winter praguejou, erguendo-se com dificuldade;

só então reparou que uma das pernas das calças de

caqui estava rasgada de alto abaixo. Tinha a pele coberta de

sangue e as roupas estavam também empapadas em sangue.

Apesar disso tinha sido uma sorte não se cortar mais gravemente.

«Aliás, é uma sorte não estar morta.» Veio então a reacção

plena: a náusea e a adrenalina em débito quase a atiraram de

novo ao chão. O Elemento fora-se embora. Ela tinha vencido.

Winter encostou-se à parede e começou a extrair os

vidros da mão esquerda, dando-se então conta de que a outra

mão não parava de sangrar. O sangue escorria pelo pulso,

ensopando a camisola de algodão.

«Devo parecer os seis Pesadelos em Elm Street condensados

num só episódio.»

Winter cambaleou para a casa de banho e estacou, subitamente

espantada com o que se lhe deparava. A porta da frente

estava aberta - agora, quando já não lhe servia de nada.

Sacudiu a cabeça e continuou em direcção à casa de banho. O


Elemento não voltaria duas vezes no mesmo dia, e se não se

limpasse antes de sair para a rua, o mais certo era ser presa.

Felizmente a água ainda corria, embora, por outro lado,

nenhuma das luzes funcionasse. Winter mergulhou as mãos

feridas em água fria até abrandar a corrida do sangue, depois

retirou as esquírolas da palma das mãos, gemendo de dor. Com

os farrapos de uma toalha limpou cuidadosamente o golpe na

perna. Era uma ferida limpa, livre de estilhaços de vidro, mas

quanto ao sangue que ensopava a roupa não havia nada a fazer.

E a toalha ensanguentada não podia servir de ligadura.

«Paciência. Estamos em Nova Iorque. Provavelmente ninguém

vai reparar.» Pelo menos assim esperava.

Tudo lhe doía. Custava a crer que ainda naquele mesmo

dia tinha estado na cozinha da mãe, a dizer aos pais de sua justiça.

O que mais queria de imediato era um banho quente, um

estojo de primeiros socorros e um belo serviço de quartos.

Com cuidadoso esforço, deslocou-se ao quarto, à procura

de algo que pudesse servir de ligadura.

265
A primeira coisa que lhe chamou a atenção, no limiar da

porta, foi o cheiro. Winter estacou, vacilante, antes mesmo de

compreender de que se tratava. Claro, inconfundível...

A cama, o chão, todas as superfícies estavam cobertas de

pétalas de flores de macieira. Pareciam as ruínas de uma cidade

bombardeada no Inverno.

O choque foi como um estalo na cara; só a exaustão a

impediu de gritar. Vieram-lhe lágrimas aos olhos. Caminhou

vagarosamente até à cama destruída e agarrou um punhado de

pétalas. Colaram-se ao sangue das mãos, tingindo-se de cor-de-rosa.

«Flores de macieira. Não as posso ver que não me lembre

de quando contei ao Grey. E do que se passou a seguir.» Cerrou

a mão, dolorosamente, sobre as pétalas.

Havia mais qualquer coisa na cama.

Winter tocou-lhe cautelosamente, temendo que fosse horrível.

Reconheceu o lenço cheio de nós como seu; costumava

comprá-los à dúzia; eram muito mais úteis do que os Kleenex.

Mas não se lembrava de o ver em cima da cama da última

vez que ali tinha entrado.


Desatou o lenço e despejou o conteúdo sobre o manto de

pétalas. Mesmo antes de olhar com atenção já sabia do que se

tratava.

A porcelana tinha sido esmagada com um objecto bastante

pesado, mas os pedaços eram suficientemente grandes para

reconhecer que se tratava de uma caixa de Limoges, divertida

e delicada, com novelos de nuvens pintadas de azul e rosa. No

topo, uma figura cómica de feiticeiro de barbas brancas, chapéu

pontiagudo, varinha de condão com estrelinhas na ponta

e robe azul.

Grey tinha-lhe enviado aquilo.

Aconchegou os restos na palma das mãos, tentando

reconstituir a caixa, com anos de atraso, e, por fim, as lágrimas

romperam e transbordaram. Demasiado tarde. Ele tinha-lhe

enviado aquele presente de amor - ao tocá-lo, sentia

ainda o eco longínquo da fúria gelada que o quebrara, que

selara a sua dor por detrás de uma parede de gelo, ferindo

para não ser ferido.

Porque ela tinha tido medo. Porque tinha fugido.

266
Winter olhou derredor o quarto devastado. Tinha acreditado

tanto poder pedir auxílio a Grey. Tinha tido a certeza de

que Grey não tinha razões para lhe dedicar tamanho ódio.

Enganara-se.

Em Nova Iorque o dinheiro compra quase tudo. Nas 48

horas seguintes, proporcionou a Winter um quarto de hotel,

roupas novas e uma mala para as transportar, uma empreitada

de limpeza e pintura do apartamento e um agente imobiliário

para o vender depois de arranjado. Foi também o dinheiro

que lhe permitiu contratar um detective privado para seguir o

rasto de Hunter Greyson; Winter suportou com razoável paciência

uma longa exposição destinada a esclarecê-la de que

não podiam garantir o sucesso da busca e que a investigação

talvez se arrastasse semanas ou mesmo meses, até se obterem

resultados.

«Não tenho semanas ou mesmo meses! Nem sequer sei se

tenho dias!»

Winter não contou nada ao enfastiado homem sentado do


outro lado da secretária. A agência de detectives não constituía

a sua única esperança; por outro lado, convinha-lhe aproveitar

todos os meios à sua disposição para encontrar Grey, por

muito pouco prometedores que fossem. Enquanto eles trabalhavam,

ela regressaria a San Francisco para tentar encontrar

Rhiannon de novo. Talvez o estranho músico que a ajudara a

encontrar a livraria e que parecia ter conhecido Cassie pudesse

ajudá-la. Não podia continuar a dar-se o luxo de ser orgulhosa.

Tinha de encontrar Grey.

Havia ainda outra coisa que valia a pena tentar.

Finalmente, e antes de sair de Nova Iorque, o dinheiro

proporcionou a Winter um novo carro de aluguer. Foi na tarde

de um dia de semana de finais de Maio que ela rumou a norte,

a caminho do rio Hudson, para o único sítio a que ainda podia

chamar casa.

267
CAPÍTULO TREZE

OS SOLDADOS DE INVERNO

E OS FALSOS PATRIOTAS

A little rule, a little sway,

A sunbeam in a winter’s day,

Is all the proud and mighty have

Between the cradle and the grave.1

JOHN DYER

Truth Jourdemayne não era, como todos os colegas sabiam,

pessoa para pôr paninhos quentes nos problemas ou comer,

calar e desandar. Dylan Palmer, que a conhecia melhor, muitas

vezes dissera que ela, apesar de possuir tantos cursos e diplomas,

tinha um nível de compreensão do inglês espantosamente

baixo - particularmente no que dizia respeito a frases como

«para o seu próprio bem» ou «meta-se na sua vida».

Como ele a conhecia bem, Truth não teve pejo em dizer-lhe

sem rodeios, da última vez que Dylan chamou o assunto à

baila, que era escusado insistir para que ela esquecesse a investigação

de Winter Musgrave, ainda que - ou talvez porque essa

investigação quase a tivesse matado.


- De mais a mais ela foi-se embora... - disse Dylan,

acrescentando o que ambos já sabiam: - Tentei demovê-la,

mas ela foi à procura de...

- De quê? - perguntou Truth.

- Não sei - admitiu Dylan - Da verdade...

- A verdade - disse Truth - depende da perspectiva

de cada um. Desta vez não me peças para desistir, Dylan.

- Porquê? - perguntou ele, desconfiado.

- Porque não vou desistir - disse ela simplesmente. Além

disso odiava ter de discutir contigo.

1 Um pequeno preceito, uma pequena influência, / Um raio de sol num dia de


Inverno, /

... tudo o que os grandes e poderosos têm / Entre o berço e o túmulo. (N. do T.)

269
- Seria a primeira vez que desistias a meio de uma luta resmungou

Dylan; no entanto, não voltou a insistir no assunto.

Assim, enquanto Winter viajava em direcção a New Jersey,

Truth meteu-se a desenovelar o passado de Winter.

O Círculo Blackburn, no lago Nuclear, era o ponto de partida

mais óbvio. Ali tinham decorrido os atabalhoados rituais

de Hunter Greyson e seus correligionários. «Sem que - reflectiu

Truth - ela tivesse a mínima ideia do que estavam a fazer.»

Em condições normais, esse facto não a teria aborrecido

tanto. Os rituais Blackburn que Truth lera eram perfeitamente

inofensivos; apenas o último (a Abertura do Caminho) poderia

representar algum perigo nas mãos erradas. No entanto, não

havia de momento qualquer cópia editada desse ritual.

Não, o problema não estava tanto no exercício dos rituais,

mas sim no facto de o Círculo Nuclear ter acidentalmente integrado

um parapsíquico que deu aos seus «actores» indisciplinados

a força psíquica que de outro modo eles apenas alcançariam

após anos de dedicado estudo e prática.

Truth gostaria que Winter recordasse mais acerca do que


ali tinha feito com os amigos, ou que ela, Truth, tivesse tido

mais sorte nas suas tentativas de entrar em contacto com esses

amigos. Não sabendo quão fielmente eles tinham seguido os

preceitos do Trabalho Blackburn, difícil seria prever a rigor

com que tipo de resíduos psíquicos ia lidar. Fosse como fosse,

um simples ritual de «proscrição e desligadura» devia dar conta

do recado.

A não ser que, como Winter insistia, o problema fosse o

próprio lago Nuclear. Nesse caso Truth talvez se visse a braços

com um problema que não sabia resolver.

Truth ia matutando em tudo isto, enquanto conduzia lentamente

o seu Saturn por cima das pedras e raízes da escalavrada

estrada, a caminho do lago Nuclear. Levava as ferramentas

de trabalho dentro da mochila, a seu lado. Na realidade não

precisava delas, todo o seu poder residia em si própria e não

naqueles artefactos; no entanto eles ajudavam-na a concentrar

a sua força, tal como um pêndulo concentra toda a percepção

da mente inconsciente.

«Alguém (não eu!) devia varrer toda esta área com uma

270
espécie de contador de Geiger capaz de detectar forças psíquicas,

para localizar as Portas e fechá-las. A maior parte das pessoas

passa muito bem sem estas Portas escancaradas à beira de

casa...»

Mas a maioria das pessoas nunca há-de chegar a saber da

sua existência.

O Mundo Oculto não existe na realidade, a não ser para

quem possui a capacidade de o apreender. Alguns afortunados

têm ainda o poder de decidir se querem ou não aperceber-se

das suas manifestações.

Truth não era um deles: tinha escolhido um campo neutro,

entre a ciência e a bruxaria - um caminho nem preto

nem branco, cinzento como as brumas: o caminho de Thorne

Blackburn, agora também seu. Ela jurou percorrê-lo cada dia

da sua vida, esforçando-se por atingir o equilíbrio entre a Luz e

as Trevas. Ao fazê-lo, perdeu a hipótese de permanecer na

ignorância - disso mesmo a tinha avisado o Arcanjo Michael.

Estacionou e saiu do carro, seguindo depois a vereda que levava

ao edifício abandonado. Questionava-se sobre o que haveria


ali nos idos anos de 70, antes de o terreno passar a fazer parte

do Parque Haevelmaen. Mas a história do lago Nuclear não

interessava tanto como o conteúdo da cave do edifício.

Abriu a porta das traseiras, com a mochila numa das mãos

e a lanterna na outra. Convinha que o xerife pusesse um cadeado

naquela porta, para impedir a entrada dos curiosos. Os edifícios

abandonados são sítios ideais para deflagrar incêndios;

se naquela Primavera não chovesse, como tinha acontecido

frequentemente nos últimos anos no vale do Hudson, e a partir

dali alastrasse um incêndio, ficavam em perigo centenas de

acres de bosque e talvez mesmo Glastonbury.

Os passos de Truth ecoaram pelas escadas de ferro, quando

desceu para a cave com o saco das ferramentas a chocalhar

contra a anca. A lanterna lançava um estreito feixe de luz nas

paredes e no tecto. A humidade ali entranhada, longe do sol

purificador, arrepiou-a.

Quando chegou ao fim da escada, pousou a lanterna num

dos bancos que ainda restavam à volta da divisão e colocou o

saco ao lado. Abriu-o - era um saco de lona escolhido pela

271
sua resistência e capacidade -, retirou uma vela de cera de

abelha, um prato raso de prata e carvão para o encher; finalmente,

retirou um frasco que continha um líquido cintilante.

Truth tinha feito por suas mãos o Condensado Universal, recolhendo

ervas e orvalho durante várias semanas, segundo uma

receita elaborada e levemente idiota descrita nas notas de

Thorne. Tal como em tantos outros apêndices do Trabalho

Blackburn, Thorne tentava apenas transmitir a dita sabedoria

de outros ocultistas e Truth havia descoberto que muito do

conhecimento do Oculto consistia em coincidências fossilizadas,

simples símbolos exteriores de uma verdade mais vasta como

a sua professora, Irene Avalon, lhe garantira com a sua

serena e envolvente abertura, que Truth achava tão difícil de

igualar. Na opinião de Truth, apesar de a magia acontecer, ela

não resultava das razões aduzidas pelos mágicos.

«Alguém tem de testar toda esta sabedoria do Oculto

para separar o trigo do joio», pensou Truth indolentemente,

enquanto acendia a vela e depois o carvão. Quando a vela

começou a produzir uma chama firme, Truth apagou a lanterna;


quando o carvão alcançou um brilho estável, procurou de

novo no saco e retirou uma mancheia de incenso. Os pedaços

de resina brilharam, à luz da vela, como âmbar baço.

Lançou-os sobre as brasas, onde crepitaram e borbulharam,

começando a destilar-se numa coluna de fumo branco e pungente.

Retirou então do saco uma segunda taça de cristal-de-rocha

- cujas manchas e bolhas, sob a superfície polida,

atestavam a sua origem muito abaixo da crusta terrestre -,

colocou-a ao lado da primeira e encheu-a com o Condensador

Universal. O líquido cintilava num ténue fogo violeta à visão

além-terrena de Truth. Logicamente ela não saberia dizer se

isso resultava do poder intrínseco do artefacto, se do esforço

que ela tinha dedicado à sua elaboração. É esta uma das características

da magia: tudo tem no mínimo duas explicações, às

vezes mais.

Ar e fogo; a terra viva e a não-viva; água e vontade - os

símbolos das três dualidades que o sidhe deve invocar para

aceder aos seus poderes. Todo o Trabalho Blackburn se construía

a partir de um mistério central: o dos Senhores da Luz, a

272
cujos domínios este tipo de acontecimentos pertenceu outrora.

Truth sentia o seu sangue sidhe - dádiva recebida do pai,

pois o controlo das Portas tinha-lhe sido transmitido pela mãe

- despertar em resposta a esta convocação.

Truth transferiu facilmente a sua consciência para esta

realidade mais abrangente. A escuridão desaparecera da cave,

revelando-se as cores e as transitórias auras do mundo real - o

mundo da rocha, do vento e do céu.

Truth olhou derredor, tentando descortinar o trânsito de

presenças e indícios de uso, até que descobriu a imagem vermelha

e prateada da magia ali invocada há muito tempo. As

imagens das horas que o círculo de Hunter Greyson passara ali

adejavam pelos seus sentidos com um ruge-ruge de sedas

sobrepostas.

Sim, havia ali sido invocado o poder. Agora dormente, o

seu eco podia ser activado por qualquer força psíquica incontida

- ou por um acto deliberado. Truth isolou facilmente os

resíduos da energia masculina de Grey - juvenil, em bruto,

mas contendo a promessa de uma força madura e plena.


Continuou a procurar e encontrou, para sua surpresa, duas ressonâncias

femininas complementares - uma poderosa mas

indisciplinada, outra revelando os primeiros sinais do Treino

dos Adeptos. Questionou-se sobre qual das duas seria Winter.

Ao fim de tantos anos já não era possível identificá-las.

Depois de localizados os resquícios psíquicos, vasculhou,

pela última vez, o interior do saco, donde retirou um delicado

bastão de cerca de 50 cm. Metade era de ferro, com a superfície

escura e polida oleada, para que não enferrujasse. A outra

metade era de vidro, claro como água e capaz de focar a luz,

como uma lente. Um grosso anel de ouro puro unia as duas

metades.

Truth manuseou-o ponderadamente, de modo a não tocar

no ferro, para não desfazer a linguagem simbólica que estava a

construir. Muitas vezes pensara que a magia terrena da mãe e o

sangue sidhe do pai eram uma combinação ainda pior que a da

lógica com a magia.

Em rápida cadência Truth passou o bastão pela chama da

vela, pelo fumo do incenso e sobre a superfície do líquido na

273
taça de cristal-de-rocha, recordando o significado simbólico

desses elementos e reunindo os seus atributos no bastão por

meio da Lei do Contágio. Depois tocou com a ponta de ferro

do bastão no matiz vermelho mais próximo, entre todas as

auras presentes na sala.

Ela era o ferro e o ferro a sua força. O bastão estremeceu

entre os dedos de Truth, tentando libertar-se.

Um membro do Concílio Astral teria invocado a Luz Branca

e a Palavra; um Mago Negro teria preferido os poderes da

Morte e do Inferno. Truth não era nenhum dos dois.

- Em nome do Tempo e das Estações, pelo poder da

Roda e do Caminho - pronunciou em voz baixa -, refaçam

este local à sua própria imagem: tudo aquilo que foi desde o

início do Tempo, Fora!

Libertou os últimos ecos de energia, movendo circularmente

o bastão à sua frente, andando em espiral, empurrando

o vazio diante de si como se o bastão mágico fosse uma vassoura.

Quando chegou às paredes passou o bastão ao longo

delas, escoando o poder aí absorvido, até estarem tão neutras


e vazias como no dia em que tinham sido erguidas.

Quando acabou, reinava a calma.

Para um parapsíquico inato ou outro espírito sensível treinado,

o presente estado da sala seria mais invulgar que o anterior,

pois nenhum lugar da Terra está isento do contágio da

vida que o habita. Também este lugar começaria a recolher

impressões quase imediatamente - o poder de Truth não era

suficientemente radical para selar completamente a sala, nem

era esse o seu desejo -, mas os vestígios deixados pelo

Trabalho Blackburn já não existiam; tinham sido definitivamente

varridos.

- O meu trabalho aqui terminou - disse Truth em voz

alta, sorrindo. Ao contrário do seu encontro com a criança

mágica que se tinha unido a Winter Musgrave, este exercício

das suas capacidades deixou-a vibrante, plena de energia.

Interrogou-se - não pela primeira vez - sobre quem

teria enviado o falso Elemento e porquê. Parecia mortalmente

furioso, indomável, mas, apesar de tudo, era trabalho de um

Adepto poderoso; por outro lado, era difícil imaginar Winter

274
ligada ao mundo obscuro dos magos e da magia.

Cuidadosamente, Truth enfiou o bastão dentro do saco.

Depois, lembrou-se do esforço que lhe havia de custar

a renovação do líquido; pegou na taça do Condensador

Universal e aspergiu com ele a divisão antes de limpar a taça

para a guardar no saco. Apagou a vela de cera de abelha com

um sopro e encheu a taça de prata com areia, para abafar o

carvão em brasa; depois esvaziou a taça e esmagou no chão os

últimos pedaços de carvão, reduzindo-os a pó. Daí a pouco o

único vestígio de que ali se passara algo de anormal seria uma

mancha de pó e a figura pintada no chão, agora destituída de

qualquer significado.

Truth subiu então as escadas.

Quando regressou ao exterior, o céu estava encoberto e o

vento húmido prometia chuva para breve. Suspirou.

Infelizmente a magia do pai tendia a trazer mau tempo, na

mesma medida em que ele costumava extrair das tempestades

mais violentas o auge do seu poder. Enquanto se dirigia ao

Saturn, continuou a dar voltas ao peculiar puzzle de Winter


Musgrave e da criança mágica.

Deu como assente que Winter era parapsíquica, e das

mais fortes; como poltergeist adulto teria de o ser, quer os

seus poderes incluíssem a capacidade do fogo quer não incluíssem;

mas isso não tinha nada a ver com o facto de ser

ocultista, e se havia coisa sobre a qual Truth não tinha dúvidas,

era que Winter não estava treinada. No entanto, ela devia

ter conhecido alguém, alguma vez na vida, que era Adepto

treinado.

Seria Hunter Greyson, o rapaz de ouro de Colin Mac-Laren?

Truth já interrogara Lion Welland e alguns outros

universitários que tinham estado em Taghkanic na mesma

época que o professor MacLaren e Grey. Todos quantos se

lembravam deles diziam o mesmo: Grey planeava fazer o trabalho

de pós-graduação no Instituto em contacto directo com

o professor MacLaren. E, apesar de a coisa não ser do conhecimento

geral em Taghkanic, Irene Avalon, professora de

Truth, tinha-lhe dito que MacLaren não fazia segredo do facto

de ser iniciado do Caminho da Mão Direita. Seria possível que

275
Hunter Greyson tencionasse seguir MacLaren em mais do que

uma coisa?

«Mas depois Winter foi-se embora, Greyson partiu, o professor

MacLaren partiu, e ninguém sabe porquê.» Truth carregou

o sobrolho. Winter andava à procura de Grey; seria ela,

Truth, capaz de encontrá-lo primeiro?

O vento zurzia os juncos nas margens do lago e encrespava

a superfície da água, fazendo-a semelhar prata martelada.

Truth suspirou, cerrando o punho na pega do saco. A atmosfera

sobrecarregada de rituais, na cave onde tinha estado há

pouco, parecia-lhe agora a anos-luz de distância.

Encontrar Hunter Greyson? Talvez. Se ele ainda estivesse

vivo ou de algum modo ligado a este mundo. Se ele continuasse

a fazer as suas incursões no Outro Mundo. Se ele estivesse

disposto a ser encontrado.

Se.

Uma vez posta a hipótese, Truth não era capaz de ignorá-la;

assim, à meia-noite, a filha de Thorne Blackburn voltou a

embrenhar-se na sua peculiar mistura de magia e ciência.


Desta vez acendeu uma vela por razões puramente pragmáticas:

a chama fornecia-lhe um ponto de concentração

visual.

Truth sentou-se de pernas cruzadas no chão da sala de

estar, em frente da mesinha de café, com um espelho oval de

âmbar-cinzento polido em cada palma das mãos. Nessas superfícies

espelhadas negras se reflectia a luz da vela.

As teorias e técnicas divinatórias estão amplamente documentadas;

quer o objecto que foca a concentração seja uma

bola de cristal, um simples espelho, uma taça de água ou um

espelho de âmbar-cinzento polido como o que Truth estava a

usar, o objectivo do exercício é sempre ver imagens de pessoas

distantes e acontecimentos desconhecidos; é uma forma

clarividente de projecção externa. Como acontece na maior

parte dos sistemas divinatórios, o instrumento - seja ele espelho,

vela, pêndulo ou cartas - é apenas um meio de concentração,

não tendo qualquer poder intrínseco. O Instituto usava

frequentemente um variadíssimo leque dessas ferramentas nos

276
seus testes, tentando escolher a mais adequada a cada potencial

parapsíquico.

A sala estava escura e silenciosa; a única luz exterior vinha

da cozinha. Truth escolheu deliberadamente a «hora das bruxas»,

pois o habitual ruído psíquico de fundo é muito reduzido

a essa hora em que a maioria das pessoas dorme - essa uma

das razões por que a maioria das assombrações e manifestações

parapsíquicas ocorre à noite.

Truth instalou-se mais comodamente enquanto o âmbar-cinzento

- um material orgânico, tal como o âmbar - aquecia

nas suas mãos. Não tinha a certeza de como tudo aquilo

iria resultar; a clarividência não era o seu forte, apesar de tanto

a mãe como a tia terem sido parapsíquicas. O pai disse-lhe um

dia que a técnica de magia que usava consistia em forçar os

Poderes a condescenderem, gritando-lhes até eles cooperarem,

em autodefesa.

Esta recordação fê-la sorrir, enquanto procurava relaxar

até que a sua consciência flutuasse livremente. Esperava ela

que Thorne tivesse razão: se era necessário gritar para encontrar


Hunter Greyson, assim faria. Winter estava fora de jogo

mas Truth tinha alguns trunfos - algures, havia de existir um

aliado contra o Elemento e a sua monstruosa e destrutiva

fome; e se ele existia, Truth achava que não podia armar em

esquisita e prescindir dele.

Por fim, o mundo material começou a desvanecer-se; a

persistência da Realidade em ser a única verdade esmoreceu e

Truth conseguiu reconstruir o mundo forjado no fogo das suas

próprias convicções e crenças. Com a facilidade da prática,

colocou Guardiães à sua volta, de modo a que o seu espírito

tivesse pontos de referência para o regresso. Depois, usando a

magia do pai, Truth chamou os seus servos e Guardiães deste

plano: o Veado Vermelho e a Égua Branca, o Cão Trigueiro e o

Lobo Cinzento. Estas criaturas eram a forma do poder, os servos

astrais que lhe fariam convite a esta esfera; criações da

magia terrena e da magia sidhe.

Montou a égua e cavalgou-a, com o lobo e o cão à ilharga,

seguindo-os o veado, cuja pelagem vermelha se vislumbrava

através das brumas.

277
Aqui viam-se as marcas dos templos astrais que os outros

Círculos Blackburn tinham erigido; ali, menos visíveis aos sentidos

parapsíquicos de Truth, as marcas de outros que tinham

atravessado aquelas regiões; Adeptos, wicce e outros. Mais

além, tudo era mutável: o Outro Mundo - chamado Plano

Interno ou Esferas Astrais nos livros que Irene lhe impusera é,

em grande parte, criação do observador, assume a forma

que cada visitante espera ver nele.

«Será por isso que me parece uma planície enevoada e

informe: porque não tenho quaisquer expectativas quanto ao

que ele deveria ser.»

Mas mesmo quando Truth, finalmente, conseguiu o acesso

ao Outro Mundo, não teve sucesso na sua busca. Vagueou

durante horas subjectivas na semiobscuridade incaracterística

daquela esfera, sem encontrar qualquer rasto de Hunter

Greyson.

A chamada para regressar ao seu corpo foi crescendo,

crescendo, até se tornar impossível resistir-lhe. Ela sabia que

- pelo menos nessa noite - tinha falhado a busca de Hunter


Greyson. Ocorreu-lhe, demasiado tarde, que talvez se tivesse

precipitado ao eliminar todos os vestígios do Círculo de Grey

no lago Nuclear; podia tê-los utilizado como ponto de partida

para a sua demanda. Por agora, e apesar de passar horas a invocar

(tanto quanto se atrevia) os poderes a ela obrigados, Truth

não tinha conseguido descortinar nem sombra do paradeiro

do Mestre do Círculo Nuclear.

Por fim, permitiu que a necessidade animal do seu corpo

a subtraísse do Outro Mundo e abriu os olhos; estava de novo

na sua tão familiar sala.

Era quase madrugada. Sentia-se enregelada e hirta, devido

à prolongada imobilidade. A vela há muito se afogara na sua

própria cera. Mas Truth estava longe de se dar por vencida.

- Tens a certeza que ficas bem? - disse Dylan, já à porta

do carro.

- Por favor, Dyl! Vou guiar até Massachusetts, não me

vou lançar a um precipício no fim do Mundo - disse Truth,

bem-humorada.

278
Apesar de a maioria do pessoal do Instituto Bidney fazer

parte do corpo docente da Faculdade - como Dylan -, Truth

não pertencia a esse grupo. Como não tinha de dar aulas, era-lhe

comparativamente fácil arranjar tempos livres.

- Só passaram dois dias desde que te encontrei desmaiada

no laboratório - relembrou Dylan teimosamente. - Onde,

em Massachusetts? - insistiu, desconfiado.

Truth suspirou, capitulando:

- Fall River. Eu só ia...

- Intrometer-te - rematou Dylan, sem rodeios.

Truth premiou-o com um sorriso radiante que não decepcionou

nenhum dos dois:

- Exactamente. Francamente, Dylan! É só uma pequena

intromissão!

- E de qualquer maneira não te consigo demover! concluiu

Dylan.

Truth tentou parecer arrependida mas não conseguiu.

- Volto daqui a um dia ou dois.

Dylan afastou-se do carro quando Truth acelerou o motor.


Ela acenou-lhe enquanto se afastava, olhando-o de vez em

quando pelo retrovisor, até ele desaparecer de vista.

Quanto mais perto do Sanatório de Fall River Truth estava,

mais aterradora lhe parecia. Corria por uma estrada ladeada de

árvores, cortada por discretos acessos privados, e tentava não

pensar no que ia encontrar mais à frente. Dinheiro é poder, e

Fall River parecia lugar de grande riqueza - pelo menos a avaliar

pelas propriedades vizinhas.

O Sanatório de Fall River erguia-se numa colina; era um

edifício impecavelmente branco, rodeado de relvados tão

incrivelmente verdes como um campo de golfe. À medida que

Truth se aproximava, ia vislumbrando caminhos de tijolo, artisticamente

estendidos entre jardins ornamentais; ao longe, uma

solitária figura com roupas de enfermeira.

Não tinha telefonado, preferindo não dar ao pessoal do

sanatório a oportunidade de lhe recusar a visita. Os ricos são

notavelmente eficientes na protecção da privacidade; agora

que Truth tinha uma ideia mais aproximada do tipo de sanató-

279
rio que Fall River era, começava a parecer-lhe mais que provável

que o médico de Winter Musgrave se recusasse terminantemente

a recebê-la.

No entanto, se Winter fora paciente de Fall River durante

algum tempo, o pessoal devia ter-se apercebido do fenómeno

poltergeist que a assombrava. Além disso, o Instituto Margaret

Beresford Bidney era quase tão reconhecido nos círculos de

psiquiatria como nos de parapsicologia. Talvez tivesse sorte.

O cartaz no portão principal dizia CAMINHO PRIVADO e

Truth passou ainda dois outros cartazes que diziam essencialmente

o mesmo que o anterior antes de chegar ao edifício.

Estacionou mesmo por baixo de outro, localizado, desta vez,

no parque de estacionamento dos visitantes. O seu pequeno

Saturn parecia um verdadeiro chaço ao lado dos Mercedes e

Lincolns; Truth tentou não invejar aqueles esplendorosos e

caríssimos veículos. O BMW branco em que Winter dissera ter

viajado até lá devia encaixar-se ali perfeitamente.

«E o mesmo aconteceu com Winter. Ou não?»

Truth trancou o carro e caminhou energicamente em


direcção à entrada principal, abençoando o impulso que a

levara a vestir-se como se fosse a uma reunião de trabalho particularmente

conservadora. O fato escuro de lã acetinada e a

austera camisa de linho davam um certo ar de respeitabilidade

àquilo que Truth, agora mais que nunca, encarava como uma

aventura desmiolada.

Ninguém no seu perfeito juízo teria vindo de tão longe

em tão diminuta esperança de obter informações; ali chegada,

o entusiasmo inicial de Truth começou a esvair-se. Truth interpretou

o seu impulso pelo que ele era: uma mensagem do

mundo supra-racional, para lá do instinto, para lá da intuição...

No entanto, depois de a trazer tão longe, abandonava-a.

E agora, que fazer?

Truth olhou para a entrada: um imponente aparato de

portas duplas e vitrais abrigados sob largo pórtico. Truth pousou

a mão na brilhante aldrava de bronze e entrou no Sanatório

de Fall River.

Lançou uma olhadela rápida ao átrio, avaliando os tapetes

280
orientais, o lustre e o mobiliário, que lhe pareciam dispendiosas

antiguidades (provavelmente eram). A esperança de êxito

apresentava-se-lhe cada vez mais esquiva e minguada. Tudo à

sua volta fora desenhado de modo a dar ao observador a

impressão de ter sido convidado para uma requintada casa privada

- ilusão que se desfazia na secretária com o livro de

registo, mesmo à direita da entrada.

- Posso ajudá-la?

A mulher em pé ao lado da secretária tinha vinte e tal

anos impecavelmente arranjados, uma beleza quase austera e

um ar de guardião tão feroz como o das portas do Inferno.

Outra barreira de protecção - ou clausura - dos que ali eram

tratados. Truth compôs uma expressão formal e profissional e

sorriu friamente.

- Gostava de falar com o director de admissões, por

favor - disse

- Tem entrevista marcada? - respondeu a mulher prontamente.

- Faço parte do Instituto Bidney em Glastonbury disse

Truth, sugerindo pelo tom de voz que era um local semelhante


a este.

Apresentou o cartão-de-visita e ficou a observar a mulher

enquanto esta o lia. O Instituto Memorial Margaret Beresford

Bidney de Investigação para Ciências Parapsicológicas tinha

fama quase universal; além disso a maioria das pessoas reparava

apenas no «Psicológicas», pelo menos à primeira vista.

- A pessoa com quem devo falar é...? - urgiu Truth.

- O doutor Mahar, o director - informou a mulher.

Truth sentiu uma pequena esperança de vitória.

- Acompanhe-me, por favor, doutora Jourdemayne.

Truth viu necessidade de corrigi-la. Afinal, ela era doutorada.

.. em matemática.

A funcionária conduziu Truth a uma área de recepção tão

luxuosa e tranquilizante que ela teve a certeza de ser ali que os

pacientes ansiosos aguardavam a sua primeira entrevista com o

Dr. Mahar. Tudo o que Truth tinha visto dentro do sanatório

naqueles breves minutos lhe anunciava o carácter da institui-

281
ção: uma espécie de fábrica psicológica onde o mais provável

era os problemas humanos serem etiquetados e metidos em

caixinhas estanques, em vez de serem efectivamente tratados.

Nova sentinela, desta vez uma mulher mais velha num fato formal,

com uma espécie de boina ligeiramente arcaica, levantou-se

de trás da secretária quando Truth e a sua escolta entraram

na sala.

- A doutora Jourdemayne para o doutor Mahar - disse a

primeira mulher, entregando o cartão de Truth à segunda

recepcionista e retirando-se na direcção do seu posto exterior.

Truth avançou para o novo obstáculo.

- Chamo-me Truth Jourdemayne - disse. - Gostava de

falar com o doutor Mahar acerca de Winter Musgrave.

«Winter Musgrave!» A máscara de desinteresse profissional

da enfermeira desfez-se; Truth conseguiu ouvir o resto da frase

tão distintamente como se a enfermeira a tivesse proferido em

voz alta: «Ela não vai voltar, pois não?»

Truth fez um pequeno sorriso, não dizendo nada, como

se não tivesse ouvido nada fora do normal.


«Winter deve ter marcado bem a sua presença, enquanto

cá esteve.»

A enfermeira ficou a observá-la, insegura, durante um

bom bocado, mas depois virou-se e atravessou a porta por

detrás da secretária.

Truth aproveitou a espera para observar a sala. Quanto

mais observava aquele local menos sentia que o tipo de verdades

incómodas que ela estava disposta a trazer à luz fosse ali

bem-vindo. Tal como no átrio anterior, a presença da secretária

era a única pista reveladora de que aquele local não seria uma

casa de habitação privada. Truth sentou-se no sofá de couro

em frente da lareira e pegou num livro espaventosamente

encadernado a couro que estava pousado na mesa de apoio.

A Experiência Fall River, dizia o título. Truth folheou-o

rapidamente, passando por fotografias de paisagens luxuriantes

e pensionistas um tanto lunáticos mas corajosos - modelos

profissionais, calculou, visto não ser crível que os distintos

convidados de instalações tão discretas apreciassem o facto de

a sua estada ser publicamente documentada. O texto que

282
acompanhava as fotografias não sugeria que Fall River fosse

algo mais que um retiro especialmente requintado, subsidiariamente

equipado de modo a repor discretamente a normalidade

dos seus hóspedes. A instituição fora arquitectada de forma

a que os habitantes esquecessem - tal como na Ilha do

Olvido, as pessoas que ali entravam esqueciam o seu desagradável

passado. Só Winter não esquecera. Winter lembrara-se e

só agora Truth reconhecia a coragem necessária para o fazer.

Truth pensou, mais animada, que o simples facto de ter

chegado a esta conclusão já justificava a viagem. Mesmo que

não adiantasse mais nada, Truth sentia que ficava a conhecer

melhor Winter pelo simples facto de ter visto Fall River. Para

uma mulher empenhada num combate corpo a corpo contra

demónios interiores, desesperada por destrinçar a realidade da

ilusão, Fall River devia ter sido uma prisão particularmente

excruciante.

Truth sabia que não tinha qualquer autoridade para andar

por ali a fazer perguntas acerca do passado de Winter

Musgrave como uma personagem das historietas de detectives.


Tinha chegado ali à custa de pequenas simulações e não podia

esperar que o Dr. Mahar, ao descobrir o logro, encarasse displicentemente

as suas acções. Quando lhe descobrissem o

embuste ela teria muita sorte se lhe permitissem bater honrosamente

em retirada, em vez de a porem na rua pelas orelhas;

isto era bisbilhotice, pura e simples, de sua alta recriação, e

Winter nem sequer estava, actualmente, a trabalhar com o

Instituto - nem essa justificação lhe restava.

Mas algo mais além da simples curiosidade a trazia ali...

O som da porta interior a abrir chamou Truth à terra. A

enfermeira vestida de branco estava à entrada, e um pouco

atrás dela um homem careca com um ar irritante que só podia

ser o Dr. Mahar. Aproveitando a oportunidade, Truth atravessou

rapidamente a sala, de mão estendida.

- Doutor Mahar, que bom conhecê-lo! Sou Truth

Jourdemayne. Pode dispensar-me uns minutos?

Tudo na voz e linguagem corporal de Truth manifestava o

seu inteiro direito de ali estar - a capacidade de projectar um

outro «eu» que não o verdadeiro é o dom que liga o actor e o

283
mágico e faz com que, ainda actualmente, os actores sejam vistos

com desconfiança, como pessoas um tanto loucas e misteriosas.

A enfermeira regressou à sua secretária, embora hesitante.

O Dr. Mahar desviou-se para deixar entrar Truth no escritório.

Truth olhou derredor e identificou rapidamente o Dr.

Mahar como um acólito do culto «o doutor é que sabe». Tudo

no gabinete escuro e apainelado era confidencioso e solene

como uma igreja, e os troféus profissionais do Dr. Mahar distribuíam-se

judiciosamente pelos lugares de destaque.

Truth franziu o sobrolho em desaprovação. Mesmo nos

seus tempos de racionalista convicta nunca ajoelhara diante do

altar da crença cega na infalibilidade da comunidade médica.

- É sempre um prazer - disse o Dr. Mahar sem qualquer

convicção. - Então, em que posso ajudá-la?

Sentou-se atrás da sua secretária, propositadamente intimidante.

Se a sala anterior tinha sido concebida para acalmar e

pôr à vontade, esta pretendia inspirar uma fé inquestionável.

- Tanto quanto sei, Winter Musgrave foi vossa paciente

até há muito pouco tempo. Parto do princípio que a ficha dela


esteja selada, mas pensei que talvez pudesse falar com o médico

que tratou do seu caso. - «E descobrir o que achava ele

que se passava com ela.»

A expressão do Dr. Mahar transformou-se, numa reacção

de severo desagrado à palavra «paciente».

- Não falamos acerca dos nossos hóspedes - disse bruscamente.

Apesar de ser a resposta que esperava depois de ver aquele

sítio, a arrogância do homem foi de tal ordem que Truth não

resistiu a espicaçá-lo:

- A senhora Musgrave pediu ajuda ao Instituto. Tenho a

certeza que ela agradeceria a vossa cooperação.

- O Instituto... - disse o Dr. Mahar, desconfiado.

Olhou para o cartão depositado no tampo da secretária o

mesmo que ela tinha entregue à recepcionista da entrada.

- Instituto de Investigação Parapsicológica - leu ele

lentamente.

«Apanhada», pensou Truth resignadamente.

284
À medida que se apercebia do significado das próprias

palavras, o Dr. Mahar levantou os olhos e encarou-a firmemente,

com o rosto a congestionar-se de raiva.

- Não sei que jogada é a sua, minha senhora, mas tem

uma grande lata em vir aqui! - disse ele, levantando-se.

Truth também se levantou, determinada a desconcertá-lo,

nem que fosse por amor à camisola.

- Houve alguns incêndios inexplicáveis enquanto Winter

Musgrave esteve aqui? Mais falsos alarmes do que o normal?

Curto-circuitos no sistema eléctrico? O pessoal e outros residentes

queixaram-se da falta de pequenos objectos, muitos dos

quais vieram depois a aparecer em sítios inacessíveis tanto a

eles como a ela? Não houve dificuldade em manter as portadas

do quarto dela fechadas? E em fazer com que os trincos funcionassem?

Não me admirava que tivessem sido obrigados a pregar

as portadas, não é verdade? E resultou? Ou será que apareciam

misteriosamente arrancadas e reabertas todas as manhãs?

- Chega! - explodiu o Dr. Mahar, com o rosto alarmantemente

escarlate.
- Não, não chega! - o tom gélido de Truth igualava o

dele. - O Instituto Bidney é uma organização internacionalmente

reconhecida, e faz parte de uma universidade. O respectivo

pessoal não é composto por fraudes nem impostores,

como parece estar a insinuar. Se decide não cooperar com a

minha investigação, a escolha é sua; mas não admito ser tratada

como uma simplória «aprendiz de feiticeira».

Seguiu-se um silêncio durante o qual o Dr. Mahar tentava

digerir o choque, de boca aberta. Truth chegou a duvidar que

alguma vez na vida uma mulher lhe tivesse falado assim - ou

mesmo qualquer outra pessoa, desde que ele recebera o seu

sagrado diploma. Mas, contrariando as suas expectativas, o Dr.

Mahar fez um esforço honesto para ouvi-la. Surpreendida,

Truth apercebeu-se que o homem lutava contra o peso de anos

e anos de presunção, contra a promessa tácita de nunca questionar

os limites da realidade impostos pelos seus pares igualmente

inquestionáveis, contra a cegueira voluntária.

E voltou a cair, inerte, naquela cegueira que era de longe

mais confortável que o conhecimento.

285
- Não tenho mais nada a dizer-lhe - respondeu ele pesadamente.

- Peço-lhe que saia, agora. Por cortesia profissional

não vou dar ordem para que a expulsem da propriedade.

Truth saiu - antes que partisse qualquer coisa, por meios

muito mais mundanos do que os de um poltergeist.

«Ora, que perda de tempo», pensou Truth ao sair de novo

para o sol quente de Primavera. Se se voltasse para o edifício

donde acabava de sair, sem dúvida teria visto batas brancas a

espreitar das janelas, desejosas de saberem se afinal era preciso

chamar os seguranças para a expulsarem. Truth sentiu-se

angustiada e culpada. Porque fora ali?

- Senhora Jourdemayne? - a voz vinha de trás dela.

Truth voltou-se, à procura dela, semicerrando os olhos contra

o brilho do sol. Apenas conseguia distinguir uma figura alta.

«Parece que afinal sempre chamaram o segurança.»

- Não é preciso ser desagradável, já me ia embora disse

ela impertinentemente.

- Não está a perceber. Winter Musgrave... ela está bem?

A pessoa avançou um passo de modo a tapar a luz do sol


com o corpo; Truth viu um quarentão magro, com algumas

mechas já grisalhas a espreitarem por entre o cabelo escuro e

bigode e barbicha quase estereótipos da figura ascética. Os

olhos eram de um castanho-claro luminoso, quase ambarino.

Uma bata de laboratório e calças escuras. A única coisa fora do

normal no seu aspecto era o escaravelho egípcio de porcelana

azul que, suspenso ao pescoço com corrente de prata, pousava

sobre uma gravata sóbria e regulamentar.

«À vista da engrenagem de coscuvilhice deste lugar,

Taghkanic até parece um paraíso.»

- Ela está bem - disse Truth. - «Pelo menos estava, da

última vez que a vi, mas talvez não esteja durante muito

tempo, se aquela criatura a apanhar.» - E o senhor, quem é?

- Chamo-me doutor Atheling; sou conselheiro aqui em

Fall River. Winter Musgrave não era minha paciente, mas...

Pode dispensar-me uns minutos do seu tempo?

Truth olhou para além dele, para a casa.

- Não sei - disse secamente. - Acabei de estar com o

286
doutor Mahar e parece-me que devo estar quase a ser corrida

daqui para fora.

- Ah - sorriu o Dr. Atheling -, mas eu tenho alguma

influência junto do doutor Mahar, devido à minha bem-sucedida

intervenção ocasional nalguns casos de dificuldade extrema.

Permita-me que tome a responsabilidade pela sua

presença nos terrenos.

- Claro! E talvez você possa responder a algumas das

minhas perguntas.

Truth apercebeu-se de que também lhe sorria, em resposta.

Já não se questionava sobre o fim com que fora a Fall River, já sabia.

- Eu conheci Winter algumas semanas depois de ela ter

aqui chegado. Era paciente do doutor Luty, colega do doutor

Mahar, e figura muito respeitada no seu campo - disse o Dr.

Atheling.

- Que é...? - perguntou Truth.

Truth e o seu interlocutor caminhavam por uma das muitas

veredas que atravessavam os terrenos de Fall River. Tudo à

sua volta parecia demasiado perfeito para ser real: até o tempo
cooperava na ilusão: limpo e quente, apenas com as nuvens

suficientes no céu para dar um pequeno toque decorativo.

Apesar de a sua própria irmã ter sido tratada muito mais brutalmente

e em ambiente muito menos luxuoso, Truth não conseguia

tirar da cabeça a ideia de quanto este ambiente artificial

devia ser de arrasar os nervos e sentia crescente simpatia por

Winter, pelo que ela passara.

«Deve haver uma maneira melhor, uma maneira de ajudar as

pessoas que não estão doentes e são simplesmente diferentes...»

- A especialidade do doutor Luty é a psicofarmacologia

ligada a perturbações relacionadas com o stress pós-traumático

- disse o Dr. Atheling. - Ele concebeu algumas terapias

medicamentosas bastante bem sucedidas. Os seus pacientes

têm... disfunções mínimas.

«Stress pós-traumático. As sequelas de violação, rapto ou

outro tipo de violência.»

- Mas não era esse o problema de Winter - disse Truth.

- Como é que ele podia estar a tratá-la?

287
- Acho que foi a família que assim dispôs - disse ele

maliciosamente.

Lançou um olhar de soslaio a Truth e os seus olhos ambarinos

brilharam à luz do sol.

- E não há dúvida de que o tratamento do doutor Luty

pode ter... um efeito calmante em certas formas de stress.

«O que o senhor quer dizer é que o Dr. Luty a drogou

quase até um... estado vegetativo», reflectiu Truth, furiosa.

- Agora deixe-me fazer-lhe uma pergunta - continuou o

Dr. Atheling. - Porque é que Winter procurou o Instituto

Bidney depois de deixar Fall River?

Truth hesitou, interrogando-se sobre quanto poderia contar

a este homem que parecia encaixar de uma maneira tão

estranha no que ela vira em Fall River.

- Poltergeist - disse finalmente.

Mais valia dizer a verdade, no fim de contas era difícil

arruinar mais a sua reputação - ou a de Winter -, pelo menos

aos olhos de Fall River.

- Um clássico, não acha? - disse o Dr. Atheling.


Truth olhou-o atentamente. O seu olhar foi uma vez mais

atraído pelo brilho azul-celeste do escaravelho que o Dr.

Atheling usava pendurado ao pescoço. Quase instintivamente

fez viajar a sua vista para o ver, não como ele era visto por este

mundo, mas da maneira como aparecia no Outro Mundo.

«Uma luz branca, que cega; uma disciplina rigorosa refinada

através de séculos, de vida após vida dedicada ao Grande

Trabalho...»

Truth recuou, erguendo involuntariamente a mão para se

proteger; estava perante um seguidor do Caminho da Mão

Direita, mas diferente dos Adeptos que ela tinha conhecido até

então. No mesmo instante viu-o traçar no ar um símbolo, tido

como de defesa contra a Escuridão e a Grande Aniquilação,

que mal a tocou.

- Então - disse o Dr. Atheling - é verdade, existem...

outros.

Ele estudou-a atentamente, como se tentasse resolver um

enigma que Truth sabia ser insolúvel. Nem Preto nem Branco,

mas... Cinzento.

288
- Qual é o seu interesse neste assunto - perguntou o

Dr. Atheling sem mais rodeios.

A atitude dele não era mais hostil do que fora momentos

antes, mas passou a exercer uma vigilância implacável, como a de

um guerreiro que aguarda a convocação para mais um combate.

- Winter Musgrave veio ao Instituto pedir ajuda - respondeu

Truth honestamente, desprendendo-se, por momentos,

da sua curiosidade pessoal. - Se já ouviu falar de nós sabe

com certeza que recebemos todos os anos muitos pedidos de

ajuda de pessoas que estão certas de estar assombradas... ou

possuídas.

O Dr. Atheling voltou a observá-la atentamente por um

instante de silêncio; depois pareceu tomar uma decisão.

Relaxou-se e sorriu-lhe de novo, com genuína cordialidade.

- E qual dos dois casos lhe pareceu ser o de Winter?

- Nenhum - disse Truth, aceitando a tácita desculpa. Como

o senhor disse há pouco, o que a nossa conversa inicial

revelou foi a apresentação quase clássica de um fenómeno poltergeist

adulto.
- Coisa que o doutor Luty, aliás, não conseguiu aceitar

- admitiu o Dr. Atheling. - Achou que a medicamentação

e conversa terapêutica resolviam o problema; é claro que não

resolveram nada.

«Conversa terapêutica» - estranha e ultrapassada expressão,

cunhada pelo pai da psiquiatria, para descrever a ciência

que ele tinha inventado. Mas há muito que caída em desuso;

hoje em dia já não está viva nenhuma pessoa que tivesse estudado

com Sigmund Freud na Viena de 1880.

Ou estará?

- A Winter sentia-se bem aqui? - perguntou Truth,

mudando de campo e tentando obter mais informações.

- Durante uns tempos, pelo menos, tanto quanto possível

para quem estava tão medicado; temo que os meus colegas

me considerem um bocado naturopata, mas eu não concordo

com o uso de drogas a não ser in extremis. Mas imagino que

não deve ter feito este caminho todo para ouvir os meus pontos

de vista acerca dos tratamentos mais indicados para os

pacientes e sim para ouvir acerca de Winter.

289
Calou-se por momentos, a pôr as ideias em ordem, e

depois recomeçou num tom mais formal, como se debitasse

um relatório cuidadosamente elaborado.

- Ao todo, Winter passou aqui quase dezasseis meses.

Quando ela chegou eu estava fora, a tratar de um assunto particular,

mas logo que cheguei fiz algumas perguntas acerca do

seu caso e apercebi-me de que... enquanto eu estava fora tinha

dado entrada um caso que pertencia ao meu foro. Com muita

pena minha, por várias razões não me foi possível obter supervisão

directa do seu tratamento; no entanto, o doutor Luty foi

razoavelmente prestável. Deu-me a entender que Winter estava

muito agitada quando chegou; aliás, estava em delírio. Ele

disse-me que de início ela insistia em que tinha estado envolvida

num acidente de moto. Mas a verdade é que Winter nunca

teve, sequer, uma moto.

- Tem a certeza? - não se conteve Truth de perguntar.

O Dr. Atheling sorriu e desta vez havia no seu sorriso uma

certa amargura.

- Há-de compreender que o doutor Luty foi muito cuidadoso


na sua própria confirmação dos factos. Nem sempre

é aconselhável fazer fé na interpretação que a família fornece

acerca da vida dos pacientes.

Fall River subiu ligeiramente na consideração de Truth.

Não era o tipo de sítio caracteristicamente vocacionado para

«depósito» dos filhos problemáticos dos ricos - ou, pelo

menos, não o era exclusivamente.

- Foi a família que a internou?

Truth tentou recordar alguma referência de Winter acerca

da família, mas não, Winter tinha falado apenas do seu passado

recente.

- Ela internou-se a si própria, a conselho da família. Se

não fosse assim não lhe teria sido possível ir-se embora da

maneira que foi.

O tom de voz neutro do Dr. Atheling não desvendava nada

da luta que a saída pouco ortodoxa de Winter devia ter implicado.

«Dezasseis meses...»

- Então a Winter foi internada devido a stress... E depois

foi-se embora outra vez - disse Truth, recapitulando.

290
- Sim, no momento em que se apercebeu que os seus

problemas tinham origem na realidade objectiva externa e

logo que foi capaz. Mesmo assim, estava longe de estar bem;

noutras circunstâncias, eu nunca seria favorável à sua partida.

Mas, como já disse, Winter não era minha paciente, de forma

que eu podia aconselhar mas não interferir directamente

no modo como o doutor Luty tratava do caso - disse o

Dr. Atheling sorumbaticamente.

Chegaram ao pé de um banco de jardim ligeiramente desgastado

pelo tempo, ao lado de um caminho de tijolos, e o Dr.

Atheling, com um gesto, convidou-a a sentar-se. Intrigada,

Truth acedeu ao convite, alisando a saia estreita por cima dos

joelhos. A apreensão desvaneceu-se, acalmada pela beleza do

sítio.

- Mas também tem de me dizer o que descobriu - disse

o Dr. Atheling, enquanto se sentava na outra ponta do banco.

Mesmo observando-o de perto e à luz do sol, Truth teve

dificuldade em avaliar-lhe a idade ou etnia. Era, no entanto,

impossível confundi-lo com qualquer outra coisa que não fosse


um adepto treinado, a partir do momento em que os seus sentidos

tinham sido despertados para o poder que ele detinha.

Truth fez votos para que os seus caminhos não os levassem a

confrontar-se: o Dr. Atheling seria um adversário temível.

- Há cerca de um mês, Winter Musgrave veio ao

Instituto Bidney à procura de... ajuda - disse Truth, escolhendo

cuidadosamente as palavras. - O doutor Palmer e eu estávamos

disponíveis e portanto fomos nós que a recebemos em

consulta. Devo dizer que o Instituto todos os anos recebe muitos

pedidos de consulta que... a que não pode dar resposta.

- Que maneira tão diplomática de pôr a questão - disse

o Dr. Atheling, em tom irónico. - E o que é que o Instituto

descobriu?

- Apesar de a senhora Musgrave nunca se ter submetido

a uma avaliação formal, o doutor Palmer e eu concluímos

que a explicação mais plausível para a maioria dos fenómenos

relatados (incluindo um que ambos presenciámos) é um

fenómeno de poltergeist adulto que despoletou reacções

imprevistas.

291
- Para a maioria dos fenómenos - parafraseou o Dr.

Atheling -, mas não para todos?

Apesar de o dia estar quente, Truth encolheu involuntariamente

os ombros, arrepiada pela lembrança do ataque mágico

lançado contra ela e Winter, quando tinha invocado o

Elemento.

- Mas nem todos - concordou.

- Deixemo-nos de rodeios - disse o Dr. Atheling abruptamente.

- Você tem noção de quem eu sou e eu sei perfeitamente

aquilo que você é. O que é que sabe do envio do

Elemento que se colou a Winter?

Truth tentou esconder a sua surpresa, apesar de um

Adepto como o Dr. Atheling ser capaz de ler muito melhor a

aura do que a expressão do rosto.

- Que existe - disse, meia encolhida, meia envergonhada

pela sua ignorância -, que quer... alguma coisa que ainda

não fomos capazes de perceber. Que alimenta a sua força do

sangue de animais que mata, sendo os animais cada vez maiores

à medida que o seu poder aumenta. E que foi enviado por


alguém a quem Winter está emocionalmente ligada.

Truth observou atentamente o Dr. Atheling.

- Sabe quem o enviou? - perguntou ele no seu tom

suave.

- E você, sabia?

- Não - disse ele. - E se você soubesse não estava

aqui.

Era rigorosamente verdade, admitiu Truth.

- Eu preciso de saber - disse ela lentamente, escolhendo

as palavras. - Porque é perigoso e porque parece tornar-se

progressivamente mais perigoso a cada morte, capaz de impor

sacrifícios cada vez maiores. E porque não me parece que

Winter tenha qualquer domínio sobre ele.

Uma hora depois Truth conduzia o carro na direcção de

casa, meditativa. Apesar de ter ficado a saber bastante, desgraçadamente

o que soubera pouco tinha a ver com o problema

de Winter. O Dr. Atheling também identificara a criança mágica

durante a estada de Winter em Fall River, apesar de ignorar,

292
tal como Winter, a sua origem. Duplamente preso aos votos

que fizera como Adepto e como médico, não tinha defrontado

a criatura directamente, embora fizesse tudo o que estava ao

seu alcance para ajudar Winter a suportar os seus efeitos;

Truth estava convencida de que o poder e o apetite do

Elemento tinham crescido rapidamente a partir do momento

em que Winter deixara a esfera de influência do médico.

«Voltamos à estaca zero», pensou Truth. Continuava a não

haver respostas quanto ao que perseguia Winter e ao porquê

da perseguição.

Mas alguma coisa aprendera, apesar de tudo. Havia agora

a considerar o puzzle do Dr. Atheling. O caminho de Truth e o

de outras pessoas que estudavam o Mundo Oculto cruzar-se-iam

inevitavelmente, caso a sua vida continuasse a seguir o

rumo actual. E mesmo passado mais de um ano, Truth continuava

a não saber o que sentia a esse respeito.

Apesar de Truth ser apenas principiante no estudo do

Oculto - os seus dons eram sobretudo uma herança, e não

tanto resultado de treino -, os meses dedicados à pesquisa da


vida do pai e respectiva magia tinham-lhe dado algum entendimento

acerca dos diversos conventículos que estudavam aquele

tipo de artes e filosofia invariavelmente abarcados sob a

designação de «O Oculto». O encontro com o Dr. Atheling alertou

Truth, mais do que nunca, para o facto de que, apesar de

ter a ilusão de percorrer sozinha um labirinto de investigação e

fenómenos, ela era apenas um investigador entre muitos.

Muito mais antigo que o Trabalho Blackburn e respectivas fontes

era o Caminho da Mão Direita do Dr. Atheling, a Tradição

do Mistério Ocidental representada pelas Lojas Brancas2.

Apesar de, formalmente, cada loja ser diferente, todas faziam

remontar as suas origens aos ensinamentos do Antigo Egipto e,

para além deste, à famosa Atlântida.

Instruída, como fora, no Trabalho Blackburn, Truth tivera

pouco contacto com outras tradições. Thorne Blackburn tinha

2 Em inglês: White Lodges. Lodge teve de ser traduzido por analogia a «loja
maçónica»

(Masonic lodge); quanto à escolha do termo «Branca», resulta da oposição


anglófona

corrente, maniqueísta, entre «branco» (bem) e «negro» (mal), «magia branca» e


«magia

negra». (N. do T.)


293
sido uma ovelha negra rebelde ao manancial tradicional, pois

acreditava que a humanidade deve procurar a perfeição no

mundo que lhe foi dado, em vez de buscar uma perfeição alheia

pertencente a domínios a que só uns quantos eleitos podem

aspirar (e mesmo assim só à custa de se transformarem ao longo

de uma vida inteira de treino rigoroso). A Loja Branca da qual ele

tinha recebido os primeiros ensinamentos baniu-o por tais ideias;

mas, apesar do anátema, Thorne não caíra, como muitos

criam, na Escuridão. O Caminho da Mão Esquerda, quaisquer

que fossem os seus disfarces e variantes, interessava tão pouco à

filosofia de Blackburn como o da Mão Direita.

No Mundo Oculto, como aliás em qualquer outro, Truth

Jourdemayne caminhava sozinha.

Como por volição própria, o Saturn desviou-se da auto-estrada

em direcção a uma saída que não levava a Glastonbury

mas sim a Nova Iorque.

Ainda havia outro sítio onde ela podia procurar respostas.

Os cadeados e correntes tinham regressado aos portões

de ferro e o caminho de gravilha dava sinais de ter sido negligenciado


durante várias estações; Truth conduziu o carro até

Shadow’s Gate e estacionou em frente do portão. As propriedades

de Thorne Blackburn encontravam-se novamente num

limbo legal: a posse desta herança por parte dos filhos dependia

de um ror de formalidades legais que se arrastariam durante

anos. Por enquanto, a parcela de 100 acres permanecia

intacta, um monumento em memória do lendário Blackburn.

Truth saiu do carro convencida de que o seu fatinho elegante

dificilmente sobreviveria àquela expedição. Mas quando

uma pessoa faz o que quer, marimbando-se na indumentária, é

sempre recompensada com uma certa sensação de liberdade.

A questão, como Humpty Dumpty disse um dia à Alice, está

sempre em saber quem manda, e Truth sentia-se na disposição

de fazer os desejos (ou mesmo os seus caprichos) prevalecerem

sobre um conjunto de roupas.

Foi bastante fácil rodear o portão, com suas firmes barras

de ferro, e percorrer a vedação até ao ponto em que os espigões

de ferro davam lugar a um muro de pedra fácil de saltar,

294
mesmo de saia justa. Na propriedade vivia um quinteiro que

cortava a relva, de modo que não foi complicado atravessar os

relvados. Truth subiu a colina em direcção à casa.

O contraste entre Fall River e Shadow’s Gate era abissal.

Fall River era amaneirado, engomado e domesticado ao ponto

de perder o carácter. Shadow’s Gate pertencia a si próprio

mais que à força humana: Desde que os primeiros europeus

tinham chegado ao vale do Hudson e caído sob o feitiço destas

terras, tal como os seus irmãos nativos, que Shadow’s Gate

comandava as vidas e o destino de todos quantos estavam ao

seu alcance.

Truth voltou ao caminho quanto se viu bem longe do portão

e subiu uma suave colina por entre árvores engalanadas em

toda a sua pujança primaveril. Meia hora depois chegava ao

topo da pequena encosta da qual, menos de três anos antes,

tinha visto Shadow’s Gate pela primeira vez.

A velha casa mantinha-se ainda numa depressão do terreno

rodeada de pequenas colinas e arvoredo irregular. À direita

Truth distinguia os arbustos igualmente desordenados que acobertavam


as passagens secretas de acesso à casa. Era bastante

óbvio que a vegetação crescera demasiado, apesar de terem

tentado mantê-la podada. Truth abanou a cabeça tristemente.

Alguém tinha de tomar uma atitude em relação a Shadow’s

Gate, sem demora. Mas de momento o seu objectivo não era a

casa nem nada próximo dela. Levou quase uma hora a atingir o

seu verdadeiro fito.

Nos bosques por detrás da casa ficava o henge que

Thorne Blackburn e seus correligionários tinham construído:

pilares de granito do tamanho de um homem, distribuídos em

ferradura numa clareira do bosque. No ápice do círculo, no

lugar onde deveria estar o 13.º pilar, erguia-se um enorme carvalho

de casca grossa e retorcida pela idade. Cravado na

madeira, à altura do seu próprio coração, Truth viu o símbolo

do Círculo da Verdade, parecido e no entanto diferente dos

símbolos que tinham sido pintados no lago Nuclear. Com alguma

dificuldade, Truth trepou para o Círculo e apoiou a mão no

símbolo. Sob a sua mão a madeira estava quente e viva. Ela acariciou-a

pensativamente.

295
Que fazer? Devia invocar aqui a criança mágica? Era

aqui que Truth usufruía o auge do poder, aqui se combinavam

a herança do pai e da mãe - se houvesse alguma hipótese

de conter ou dominar a criatura, seria aqui e não no

Instituto.

No entanto, a esperança de triunfo era diminuta, mesmo

ali. O Elemento fora enviado contra Winter e extraía o seu

poder da própria existência de Winter, de tal forma que Truth

duvidava que alguém que não Winter pudesse destruí-lo. Se ao

menos Winter estivesse disposta a aceitar a sua ligação àquele

enviado infernal e a usá-lo...

Truth recordou a jovem aterrorizada que se tinha apresentado

no Instituto em busca de auxílio. Mesmo quando maximamente

vulnerável, Winter não parecia o tipo de mulher a quem

agradasse transigir, nem bem nem malgrado. Sem dúvida o

Elemento a destruiria antes que ela chegasse ao ponto de aceitá-lo.

Truth encostou-se à árvore e fechou os olhos.

... Espera ...

Até podia ter sido o vento nas folhas a trazer consigo


aquela sensação de calma expectativa. Truth inclinou a cabeça,

à escuta, mas não ouviu mais nada. No entanto já tinha a resposta

que instintivamente procurara. Esta luta não era sua.

Ainda não. Talvez nunca o fosse.

Truth abraçou o tronco, apoiando a face contra a casca da

árvore. Ficou assim imóvel durante muito tempo, com o sol a

derramar-se sobre ela e o grande carvalho. A sensação de paz

que a envolvia manava das raízes, da terra, trazendo consigo a

promessa de que haveria tempo para todas as coisas. Tempo,

até, para descobrir o seu propósito no Mundo.

Por fim Truth arrancou-se ao transe e afastou-se da árvore.

Sentia-se repousada, refrescada - e segura, finalmente, do seu

caminho. Virou-se para partir, mas antes de deixar o círculo

encantado falou em voz alta pela primeira vez:

- Obrigada, pai.

296
CAPÍTULO CATORZE

TODO O MUNDO É INVERNO

He disappeared in the dead of winter1

W. H. AUDEN

Pelas ruas de Glastonbury, a caminho da Faculdade,

Winter ia ponderando se o regresso seria um erro. Era muito

semelhante a uma despedida.

Ela nunca tinha dito adeus a Grey.

Cerrou os dentes e concentrou-se na condução, no meio

do trânsito pouco denso da estrada para Glastonbury. As mãos

cheias de ligaduras escorregavam-lhe no volante, que ela agarrava

com todo o cuidado. Tinha saído dali havia semanas; a

Primavera ia já adiantada, a menos de dois meses do final do

ano escolar. Havia certa justiça sinistra neste regresso: era

como um regresso depois das férias de Primavera, mas com

um hiato de catorze anos, durante os quais permanecera inacabada

a parte da sua vida que Taghkanic representava.

E agora, compelida pelo desespero a regressar e enfrentar

as sombras do passado, descobria que a recordação dos inocentes

dias de faculdade se tinha tornado mais... negra. Este


regresso soava a despedida porque de facto o era. Depois de se

encontrar com Truth, teria de voltar a San Francisco, descobrir

Rhiannon, receber a mensagem de Cassie e ...

Grey. O Elemento. As imagens enovelaram-se na cabeça

de Winter, emaranhadas numa teia de culpas e responsabilidades

que parecia crescer imparavelmente, cada vez mais apertada.

Que deveria ela mudar no passado para tornar o presente

diferente?

1 Mono o Inverno, ele desapareceu. (N. do T.)

297
Não havia resposta para esta pergunta; nunca existiu resposta,

desde a primeira vez que alguém pôs tal questão. Mas se

Winter não encontrasse maneira de alterar o presente, não

haveria qualquer espécie de futuro.

Para ninguém.

Winter parou o novo carro alugado no parque de estacionamento

para visitantes em frente do Instituto, o que lhe trouxe

à memória as visitas anteriores. Apesar da persistente sensação

opressiva de inaptidão, no plano racional Winter tinha

consciência do longo percurso que fizera em poucas semanas

- de paciente psiquiátrica até adulta responsável pelo seu

próprio passado.

Restava-lhe apenas despedir-se.

Winter apelou a toda a sua compostura e autodomínio

para subir a escadaria de acesso ao edifício.

A escola fervilhava de azáfama, com magotes de estudantes

apinhados ao balcão da secretaria do Instituto Bidney,

todos eles com assuntos urgentes a tratar. À entrada, Winter

reparou numa rapariga ruiva que usava um colar com uma


pedra azul. CZ, pensou Winter automaticamente - a pedra

era demasiado azul para ser topázio. A custo, abriu caminho na

multidão até chegar à fila da frente e conseguir chamar a atenção

da recepcionista.

- A Truth Jourdemayne está cá?

Meg Winslow olhou-a com grande espanto, confirmando

assim quanto Winter tinha mudado - ou talvez apenas devido

ao seu novo vestido: Ralph Lauren em vez de Calvin Klein,

um conjunto suave de peças em alegres cores delidas, como

flores a desabrocharem na Primavera. Winter sorriu interiormente.

Ainda que o resto da sua vida viesse a ser uma batalha

perdida, ao menos que fizesse boa figura. Jack sempre lhe

tinha dito que uma boa imagem era já meia vitória garantida.

Onde andaria agora Jack Thoroughgood, seu primeiro

mentor? Jack reformou-se de Wall Street, após uma carreira de

muitos anos, poucos meses antes de ela dar entrada em Fall

River. Tinha permanecido tempo suficiente na Arkham

Miskatonic King para se tornar uma lenda; a luta pelos escas-

298
sos postos de trabalho na Wall Street era tão dramática como

na Polícia e no controlo de tráfego aéreo, de modo que sobreviver

sem ser corrido representava, só por si, uma façanha.

Winter voltou a sua atenção para o presente. Não era altura

de se deixar levar por tergiversações.

- Um momento, por favor - disse Meg, começando a

afastar-se para atender outra pessoa.

Não era racional, depois de tanto penar para ali chegar,

que uma simples recepcionista atarefada e indiferente tivesse o

condão de a irritar, mas o facto é que a mulher estava a irritá-la.

Quando Meg começou a afastar-se, Winter sentiu um arrepio

de poder percorrer-lhe a espinha. «Ignora-me, que já vais

ver», pensou ela, ansiando por um ataque de fúria, uma tempestade

psíquica capaz de escaqueirar o telefone de Meg, de

lhe explodir o computador e todas as demais maravilhas do

século XX.

Subitamente, Winter compreendeu que seria muito fácil

provocar tudo isso: o seu dom psicocinético tornara-se uma

extensão do seu próprio pensamento. Era o poder da mente,


, finalmente sujeito ao domínio da consciência: a capacidade de

punir, de se vingar...

Muito lentamente, Winter pousou a mão cheia de ligadu-

ras no balcão que as separava, dando por bem-vinda a dor das

feridas. Sim, ela tinha a capacidade de ferir Meg e todas as

outras pessoas reunidas naquela sala. Bastava-lhe estalar os

dedos para convocar uma tempestade de relâmpagos e afogar

a sala numa fúria de poltergeist ainda mais devastadora do que

a que destruíra o seu próprio apartamento. Mas se o fizesse,

pela primeira vez seria ela, Winter Musgrave, conscientemente

responsável - e já não a serpente-ódio cujos acessos espasmódicos

de fúria psicocinética a tinham tiranizado aleatoriamente

desde a juventude. A ela.

Winter deu um suspiro trémulo. Era como se recuasse um

passo no derradeiro instante, à beira de um abismo inimaginável

súbito aberto a seus pés. Tinha afirmado o seu poder e

reconhecido a sua cólera. Sabia agora que essa cólera podia ser

mortal, mas decidia agrilhoá-la para sempre. Qualquer outra

opção faria dela um ser semelhante ao monstro que tinha envia-

299
do o Elemento artificial. A custo, afastou-se de Meg e respirou

fundo.

- Winter! Ainda bem que voltaste! - exclamou Truth

calorosamente. Atravessou a mole de estudantes, de mão

estendida.

- Isto hoje parece o jardim zoológico. O doutor Roantree

está a aceitar inscrições para fazer uma série de testes e

toda a gente quer armar-se em parapsíquico - declarou Truth

com um suspiro.

- Porque é que ele faz isso? - perguntou Winter.

- Porque é a melhor maneira de obter termos de comparação;

se não partirmos de uma base estatística, nunca havemos

de saber o que são os desvios - explicou Truth obliquamente.

- Vamos mas é para o meu gabinete, tomar um café.

Truth deixou Winter no gabinete e foi à máquina de bebidas

buscar café. A verdade é que tinha estado a observar

Winter enquanto esta lutava consigo própria. Se necessário,

teria intervindo - nos últimos meses Truth tinha-se entretido

a instalar por todo o Instituto protecções contra ataques parapsíquicos


-, mas concluiu, com grande alegria, que não era

necessário. O autodomínio é o primeiro passo no Caminho;

verificar que Winter fez esse longo percurso por sua conta e

risco proporcionou-lhe maior alívio do que imaginara.

- Estou tão feliz por teres voltado - disse Truth quando

regressou ao escritório, pouco depois, com os copos e um

prato de biscoitos em equilíbrio periclitante. - Agrada-me a

tua nova imagem - acrescentou.

- A minha antiga imagem (ou o que resta dela) deve

estar fechada no porta-bagagens de um carro, algures em San

Francisco - disse Winter.

- San Francisco? Foi lá que estiveste? Fiquei sem saber

que pensar, quando te foste embora de repente...

Winter fez um gesto vago, a sossegar Truth:

- Eu tinha de encontrar os outros - disse ela, colocando

os copos cuidadosamente em cima da secretária de Truth. As

ligaduras faziam-na um pouco desajeitada de mãos, mas ela

300
sabia que tinha sido uma sorte escapar com ferimentos leves.

Os vidros espalhados pelo chão do apartamento podiam ter-lhe

cortado tendões com a mesma facilidade com que lhe rasgaram

a carne. - Encontrá-los, falar com eles. Encontrar-me a

mim própria... parece uma daquelas frases das nossas mães; se

bem que a minha nunca diria tal coisa - concluiu Winter,

com certa amargura.

- Estou a ver que andaste muito ocupada - disse Truth

em tom neutro.

Winter desviou o olhar, tomando de repente uma atitude

mais rígida:

- Não suficientemente ocupada - disse ela, em voz

rouca. - Cassie (nós conhecemo-nos na faculdade) morreu.

Truth já sabia quase tanto da vida de Winter em

Taghkanic como a própria Winter.

- Cassilda Chandler? - perguntou ela, cautelosamente.

Winter anuiu. Mas Cassie, tal como Winter, andaria na casa dos

trinta...

- Aquilo matou-a - disse Winter; desnecessário seria


explicar o que era «aquilo». - Incendiou a livraria onde Cassie

trabalhava, em San Francisco, com ela fechada lá dentro.

Dizem que a Cassie sabia que eu estava para chegar... - interrompeu-se,

cobrindo o rosto com as mãos, a chorar; chorava a

dor intensa de quem sente cada perda como um fracasso pessoal.

Passado um bocado recompôs-se, respirou fundo e limpou

as lágrimas. Truth estendeu por cima da secretária a caixa

de Kleenex, donde Winter retirou uma mancheia de lenços

para limpar a cara. - Peço perdão. Mas eu é que tenho a

culpa de ela ter morrido.

; - Duvido muito - Truth escolhia as palavras com cuida-

dosa honestidade -, porque sei que não escolheste delibera-

damente a morte dela. Talvez não seja a melhor altura, mas

gostava que me contasses essa história.

- Não sei - Winter voltou a dar um suspiro profundo.

- Não sei se sou capaz. Cassie era uma... - agitou as mãos, à

falta de palavras. - Não sei o que lhe hei-de chamar sem ser

inconveniente. Uma amiga dela, chamada Rhiannon, diz que

ela era bruxa.

301
Truth sorriu, vaga:

- E assim que elas se denominam. Mas a Cassie não fazia

parte do Trabalho Blackburn quando cá esteve?

- Ela e o Grey - confirmou Winter, hesitando quase

imperceptivelmente ao pronunciar o nome. - Rhiannon disse

que Cassie (não estou certa de ser capaz de citar exactamente

o que ela disse) tinha chegado à conclusão de que mais vale

dependermos de nós mesmos do que dos deuses; a partir daí

passou a fazer uma espécie de adaptação do Trabalho de

Blackburn. Espero que esta maneira de dizer as coisas não te

ofenda - acrescentou Winter, aflita.

Truth sorriu-se consigo mesma e retorquiu-lhe:

- Foi mais ou menos o mesmo que Thorne fez com a tradição

mágica em que ele próprio foi educado. A mudança,

geralmente, é boa coisa, se servir para as pessoas e as organizações

se adaptarem às novas realidades. Mas conta-me mais coisas

acerca de Cassie, se souberes. Dizes tu que ela continuava

empenhada no Trabalho. Sabes se tentou dominar ou travar o

Elemento?
Winter tentou recordar as palavras de Rhiannon. Na ocasião

estava demasiado absorvida nas suas próprias emoções

para prestar a devida atenção.

- Tenho a impressão que a coisa andou à procura dela.

Aliás parece-me que anda à cata deles todos - Winter deu

outro suspiro trémulo. - Oh, Truth, correu tudo tão mal.

Winter levou quase uma hora a fazer a resenha dos acontecimentos

ocorridos no último mês - a visita a Janelle, que

por medo do êxito se encurralara num casamento cheio de

violência, e a Ramsey, que chegara ao fracasso por caminhos

diversos. À medida que Winter narrava a história, os ataques

do Elemento e as vidas dos antigos amigos de curso pareciam

entretecer-se para formar um vasto padrão onde os acontecimentos

naturais e os sobrenaturais se fundiam para formar

uma extensa tragédia.

- Quando descobri que Cassie tinha morrido, perdi a

cabeça; Rhiannon, a amiga dela, disse-me que Cassie tinha deixado

uma carta para mim, mas eu nem quis saber se era verdade.

Voltei para Leste, fui visitar a minha família e depois o meu

302
apartamento - Winter soluçou uma gargalhada. - Parecia

que tinha sido bombardeado, e enquanto eu lá estava a coisa

voltou a fazer-me uma visita, tal qual como no lago Nuclear.

- Não me parece que estejas muito transtornada, bem

vistas as coisas - disse Truth, olhando de relance para as ligaduras

nas mãos de Winter.

- Não é possível passar a vida aterrorizada - disse

Winter com uma nota de temeridade na voz. - E de resto...

não foi a primeira vez que a coisa voltou. Mandei-a dar uma

curva. Mas sabes, Truth, não me parece que seja capaz de

repetir a façanha; e mesmo que seja, estou a dar-lhe oportunidade

de ir atacar outra pessoa.

Truth suspirou. Winter tinha razão.

- Acho que realmente és tu a única pessoa capaz de o

fazer parar - articulou Truth pausadamente.

- Mas também achas muito duvidoso que consiga fazê-lo

- acrescentou Winter, mais para aliviar a tensão do que por

sincero desejo de concluir a conversa. - Não faz mal.

Ninguém é eterno. Uf. Estou tensa de ter guiado tanto tempo.


Não queres ir dar uma volta?

- Acho que passei os meus dias mais felizes aqui - disse

Winter. A pedido de Winter, atravessaram os terrenos do complexo

universitário, passando por vários edifícios, até chegarem

a uma zona onde os relvados bem cuidados da

Universidade de Taghkanic davam lugar a um bosque de velhas

macieiras nodosas que se estendia até às margens do rio. Não

me refiro a nenhum sítio em especial, mas sim à

Universidade.

À beira-rio, a água chapinhava nas placas de xisto com

sornice mansa. Corria Maio; as árvores carregavam-se de

folhas, com os ramos pontilhados de bolinhas verdes que haviam

de crescer até se transformarem em maçãs, daí a uns

meses. O rio era largo, naquele ponto; do outro lado, a margem

erguia-se abrupta, com o arvoredo a rimar com o da margem

de cá, mas com clareiras que denunciavam a presença das

vivendas do vale do Hudson.

- Muita gente diz o mesmo do seu tempo de estudante

303
- Truth estudara em Harvard, onde andara seis anos viciada

no estudo das ciências puras. Não tinha uma recordação particularmente

feliz dos seus tempos de estudante. Os melhores

anos da sua vida eram os presentes.

- Acontece que depois as coisas não correram lá muito

bem. Quando somos estudantes fazemos opções para as quais

não estamos preparados e sobre as quais ninguém nos aconselha.

A partir daí, cada opção se perfilha na anterior, e pouco a

pouco perde-se o controlo da situação... - Winter deteve-se,

introspectiva.

Truth esperou pacientemente que Winter revelasse as verdadeiras

razões do seu regresso. O resto, por muito assustador

que fosse, podia ter sido resolvido com um simples telefonema.

Por fim, ela abriu-se.

- Diz-me o que devo fazer quanto ao Elemento. Tenho a

impressão de que só vou ter uma oportunidade.

A súbita mudança de assunto não confundiu Truth; era

uma forma de trazer à baila um assunto que, por natureza, era

quase impossível de abordar. Sacrifício. Auto-sacrifício.


- Disseste-me que tinhas ido à procura dos outros membros

do vosso Círculo - disse Truth. - Falaste dos outros.

Encontraste Grey?

Winter inclinou-se para apanhar um punhado de pedrinhas,

sem se preocupar com as ligaduras das mãos. Depois

concentrou-se em atirá-las à água, uma a uma.

- Nunca mais voltei a vê-lo, desde essa Primavera em

que deixei a faculdade e voltei para casa - disse Winter em

voz tensa. - Acho que não fui muito atenciosa com ele, a partir

daí. Julgo que ele também é da mesma opinião. A não ser

que já tenha morrido.

«Não!», gritou a voz da sua consciência, pesando-lhe

opressivamente no peito. Nunca mais poder vê-lo, falar-lhe,

tocar-lhe, beijá-lo...

- Achas que?... - começou Truth a dizer.

- Não! - a negação de Winter foi firme e imediata. Ele...

Não sei - balbuciou ela, por fim, destroçada. Cerrou a

mão sobre a última das pedras, e passado um bocado Truth viu

as ligaduras carregarem-se de vermelho.

304
- Winter! - A exclamação despertou a companheira,

que atirou a pedra com um silvo de dor e estendeu as mãos.

Violáceas flores de sangue brotaram das ligaduras.

- Que estupidez - disse ela com ligeira tremura na voz.

Truth viu-a morder o lábio, mas sem mover as mãos. - Como

eu estava a dizer - prosseguiu Winter em tom mais firme -,

não sei onde pára Grey nem o que anda a fazer. Espero que

Rhiannon, a amiga de Cassie, saiba dizer-me alguma coisa; é o

meu passo seguinte. Depois disso, imagino que terei de aceitar

o frente-a-frente com o coiso. - A última frase disse-a já em

tom inexpressivo. - Tinhas dito que me podias dar alguns

conselhos.

- Sim. - Truth não completou a frase com falsas palavras

de encorajamento. Possuía informação demasiado escassa;

mesmo o aviso de que esta luta não lhe dizia respeito não significava

que Winter pudesse sobreviver. - Mas primeiro

vamos pedir a alguém que trate dessa mão; desconfio que reabriste

um golpe fundo.

- É possível - disse Winter em tom de alheamento. Mas


os golpes mais fundos não sangram, Truth. Não sangram

mesmo nada.

Uma breve passagem pelo posto de enfermagem valeu a

Winter pensos novos e uma severa admoestação da enfermeira

de serviço. Depois Truth levou Winter até ao refeitório.

- Estás com ar de quem precisa de um bom almoço;

enquanto comes quero contar-te o que descobri durante a tua

ausência.

Como quase todos os edifícios da Universidade, a sala do

refeitório fora construída ao estilo gótico das grandes universidades

europeias; o ambiente tinha o seu quê de eclesiástico, com

tectos altíssimos. A zona reservada ao corpo docente ficava no

segundo piso da cafetaria e incluía uma área de tempos livres. As

encomendas seguiam para o piso inferior e as refeições eram

enviadas para cima por um elevador de copa que tinha sido uma

novidade aquando da construção da Universidade.

Truth, mais habituada aos usos da casa, encarregou-se dos

pedidos de Winter, aos quais acrescentou uma garrafa de

305
vinho - privilégio apenas concedido aos docentes mais antigos

e respectivos convidados. Depois de entregue a lista de

pedidos, conduziu Winter para uma das mesas.

- Vais sentir-te melhor depois de comeres qualquer coisa

- disse Truth.

- Não posso demorar-me - acautelou Winter; mas logo

corrigiu: - ... muito. A cada minuto pode estar para acontecer

qualquer coisa...

- Eu levo-te ao aeroporto... amanhã - disse Truth firmemente.

- Por agora... Lembras-te do doutor Atheling, de Fall

River?

Winter puxou pela memória:

- Era um dos médicos; mas não foi meu médico.

Pareceu-me... muito amável - abanou a cabeça. - Tenho

uma grande salgalhada dentro da cabeça; não estou bem certa

de que todas as minhas recordações correspondam à realidade,

por causa da quantidade de drogas que me impingiram.

Sabes, só começamos a ter uma noção aproximada do ponto a

que nos afastámos da normalidade quando tentamos voltar


atrás - Winter suspirou e ficou a olhar para Truth, à espera

que ela prosseguisse.

- Fui a Fall River e falei com ele - Truth passou em

claro alguns aspectos da história. Winter ainda não estava preparada

para aceitar todas as realidades do Mundo Oculto; confrontá-la

com coisas que ela podia achar duvidosas seria crueldade

desnecessária. - Ele perguntou por ti; parece que já

quando lá estavas ele sabia que estavas assombrada por um

Elemento.

- Mas não sabe quem o enviou nem como travá-lo, tal

como tu - disse Winter com brutal perspicácia. Nessa altura a

campainha do elevador anunciou a chegada da comida; interrompeu-se

a conversa para ir buscar os pratos e servir o vinho.

Winter bebeu-o, sequiosa, como se fosse água - ou como se

quisesse embebedar-se. - Então e agora? - disse ela, em tom

combativo.

- Agora tens de enfrentá-lo, com a ajuda de Hunter

Greyson ou sem ela - disse Truth. - Não vejo outra solução.

Existe uma ligação qualquer entre ti e o Elemento; é a ti que

306
ele quer chegar. Os magos não têm o hábito de se inscreverem

nas Páginas Amarelas, como deves imaginar; a minha magia

não é muito grande, mas tenho a impressão de que o doutor

Atheling é um grande mago; ora mesmo ele diz que não foi

capaz de controlar a coisa.

«Mas teria ele tentado?», pensou Truth. Ou ter-se-á limitado

a dizer que não era capaz?

- Disseste há pouco que foste capaz de vencê-lo uma

vez; já é qualquer coisa - concluiu Truth.

Winter olhou para as mãos recém-pensadas com ar pesaroso.

- O facto de estar numa sala cheia de vidros foi um grande

incentivo. Mas só consegui mandá-lo embora; e mesmo

assim foi a coisa mais difícil que fiz em toda a minha vida. Voltou

a beber e estendeu o copo vazio, a pedir nova dose. Não

o escorracei de vez. E ele vai voltar.

«Se eu me visse na situação dela, também havia de beber

uns bons copos.» Truth encheu-lhe o copo, sem fazer comentários.

É bem conhecido o efeito depressivo do álcool sobre os

centros psíquicos; as percepções que Winter tinha do Mundo


Oculto deviam estar a conquistar terreno em todas as facetas

do seu dia-a-dia, e ela estava a fazer a derradeira tentativa de

lhes pôr cobro.

- Não me parece que tenhas grandes alternativas disse-lhe

Truth, depois de uma pausa. - Já chegaste à conclusão

de que não adianta fugir. Talvez tenhas mais hipóteses de

vencer a criatura do que imaginas: os Elementos são surpreendentemente

vulneráveis em certas circunstâncias. O que tens a

fazer é escolher judiciosamente o teu terreno.

- Nada de objectos volantes - comentou Winter, com

ironia.

- Nada de objectos volantes - concordou Truth. - E,

no teu lugar, evitava a proximidade de quaisquer fontes de alimentação

eléctrica. Mas o Elemento deve responder prontamente

à tua chamada; lembra-te que ele pretende qualquer

coisa de ti.

- E se ele apenas pretende matar-me? - perguntou

Winter.

307
Truth encarou-a sem pestanejar. Seguiu-se longo silêncio.

- Nesse caso, depois de te matar ele desaparece - disse

ela por fim.

- Parece-me justo - retorquiu Winter, e voltou a beber

uma golada.

- Quando o chamares, não sei quanto tempo ele leva a

aparecer, mas nesse entreacto podes contar com o mesmo

tipo de perturbações que já experimentaste. Provavelmente

vais sentir frio e fraqueza; está ligado a ti, é a ti que ele vai buscar

energia, pelo menos parte dela.

- O que é que isso significa exactamente? - perguntou

Winter. Agitou-se, irritada, no banco do carro, enquanto percorriam

a paisagem de Taconic Parkway. Era um dia nublado,

plúmbeo, soturno e desagradável, apesar da folhagem primaveril

que cobria os campos ao longo daquela estrada, uma das

mais belas dos Estados Unidos.

Fiel à sua palavra, depois de uma longa noite de conselhos

e troca de impressões Truth levava Winter ao aeroporto

Kennedy, onde esta tomaria o avião para San Francisco.


- Okay. Vou tentar simplificar as coisas. Os ocultistas

acreditam na existência do chamado corpo subtil; significa

isto, essencialmente, que toda a gente tem o equivalente a dois

corpos; um aqui, no Plano das Manifestações, outro no Plano

Astral.

- Parece ficção científica - disse Winter. Truth suspirou.

- Garanto-te que é completamente real. Não estou a

dizer que tens de acreditar, mas já que me perguntaste, a resposta

é esta. Acresce a tudo isto que, no teu caso, houve um

mago que arranjou maneira de ligar este Elemento (cuja existência

pertence sobretudo ao Astral) ao teu corpo subtil. Está

tão ligado a ti como se tu estivesses em ambas as pontas de

uma corda.

- Então e a minha alma? - disse Winter, ao calhas. Não

é disso que me estás a falar?

Truth fez uma careta. Sabia que Winter estava apenas a

tentar mudar de assunto. Truth tinha passado horas, na noite

308
anterior, a tentar convencer Winter de que seria muito melhor

fazer frente à ameaça do Elemento artificial, mas uma noite de

aulas não podia substituir anos de estudo.

- Não; a alma é... Os ocultistas pensam que a alma é

uma coisa completamente diferente. Olha: não temos tempo

para explicações tão complicadas - disse Truth, tentando aliviar

o tom da conversa - e se começamos a falar da alma

nunca mais chegamos a conclusão nenhuma. Voltemos ao que

interessa. Tens alguma pergunta acerca do que deves fazer

depois de o dominar?

Winter torceu o sobrolho:

- Parece-me bastante básico; basta dizer «senta, monstrinho,

senta» e ver o que acontece. E depois... - calou-se, a

remoer ideias. - Tudo isto me parece bastante ridículo,

excepto quando essa coisa me aparece mesmo pela frente.

- Eu sei - disse Truth suavemente. - Mas tens de te

concentrar na questão, Winter.

- Na comunicação com ele - disse Winter. - Na

maneira de lhe perguntar o que quer. Em atraí-lo através desse


tubo de mangueira astral que faz de ligação entre os dois mundos.

Francamente, preferia beber resíduo industrial.

- A escolha é tua - disse Truth, e Winter fungou. Preferia

que não fizesses esta viagem à Califórnia: ficas mais

vulnerável. Há aqui perto um local onde podias chamá-lo; eu

ficava ao pé de ti - acrescentou Truth.

- Não. Vou fazer isto sozinha. Não é justo obrigar-te a

enfrentá-lo outra vez.

Truth coibiu-se de chamar a atenção para o facto de que,

se Winter morresse e a criatura continuasse à solta, ela ver-se-ia

na obrigação de enfrentá-lo outra vez. Mas suspeitava que

Winter bem o sabia.

- Aliás, não dá jeito nenhum sentar-me no teu escritório

a telefonar para toda a gente em San Francisco, a perguntar se

se chama Rhiannon e se conhecia uma amiga minha, e se a

carta que diz ter para mim é verdadeira ou falsificada ou pura e

simplesmente inventada - ironizou Winter, na defensiva. Se

eu voltar ao sítio onde a encontrei, pode ser que ela ainda

ande a cirandar à volta da livraria de Cassie.

309
Com tardio sentimento de culpa, Winter lembrou-se que

ainda tinha o carro no parque de estacionamento do aeroporto

de San Francisco... pelo menos assim esperava. O seu segundo

carro alugado estava em segurança, estacionado à porta de

Truth; ficava a cargo de Truth a sua devolução.

- E se a encontrares mas a mensagem se tiver perdido?

Ou se não tiver nada a ver com Grey? - perguntou Truth serenamente.

- Nesse caso volto para cá - disse Winter, num tom

muito pouco convincente.

E embora Truth soubesse que ela estava a mentir, não

havia nada a fazer. Porque encontrar Grey continuava a ser a

sua derradeira, melhor, única esperança.

Winter concluiu que a presença de Truth a reconfortava

mais do que imaginara. A partir do momento em que se afastou

do carro para entrar na zona de embarque do aeroporto,

sentiu-se perdida e abandonada. É mais fácil armar em valente

quando existem espectadores para enganar. Agora só existia

Winter, sozinha, com menos fé do que Truth na sua capacidade

para fazer qualquer coisa que não fosse morrer às mãos de


sabe-se lá que criatura do Outro Mundo. Uma criatura cuja

natureza e intenções ela desconhecia, enviada com propósitos

incompreensíveis.

Winter confirmou o voo e encaminhou-se para o acesso

de primeira classe. Só ao fim da tarde chegaria a San Francisco,

embora a diferença de três fusos horários significasse que chegava

lá três horas depois da partida, em vez das seis horas de

viagem. Rebuscou a bolsa e sacou lá de dentro o cartão-de-visita

que Paul Frederick lhe tinha dado durante a anterior visita

desvairada. Handmade Music. Era essa a ponta da meada por

onde devia puxar.

Começou a cair uma chuva miudinha que tamborilava nas

janelas da sala de embarque, obscurecendo a visão da pista de

aterragem e dos aviões aí parados. Essa visão inóspita era o

perfeito pano de fundo do seu estado de espírito.

Parecia que a chuva estava à espera dela; Winter saiu do

310
terminal de desembarque para a obscuridade, saudada por um

chuvisco varrido a vento que tanto podia ser chuva leve como

nevoeiro cerrado. Em qualquer dos casos, era tempo frio,

húmido e desconfortável. Começou a tiritar dentro do camisolão

de caxemira. Também não era bom tempo para conduzir.

Ainda no aeroporto, telefonou para o Handmade Music,

mas ninguém atendeu. Tentou não perder a coragem; era um

revés, não uma derrota. Podia muito bem ir de carro até lá e

ver o que conseguia descobrir por conta própria. Não teve dificuldade

em localizar o carro, depois de pagar sem refilar, como

se o dinheiro já não fizesse diferença, a exorbitante multa por

ter perdido a senha de estacionamento. Morbidamente, Winter

pensou na morte como uma libertação maravilhosa. Seria o fim

da necessidade de manter as aparências.

Como se o período de vida que lhe restava estivesse verdadeiramente

encantado, conseguiu chegar à Haight Street e

Ashbury Place tão rápida e facilmente como se fosse residente

de longa data. Até havia lugar para estacionar; Winter encaixou

o carro nesse lugar e desligou as luzes e o motor antes de lhe


ocorrer que talvez não devesse estar ali. A iluminação de rua

; reflectia-se nas miríades de gotículas que cobriram o pára-brisas

logo que os limpa-pára-brisas entraram em repouso, e no

céu não havia luz.

Winter olhou derredor. A rua, já de si miserável e decadente

durante o dia, tinha agora um aspecto positivamente

sinistro. No seu próprio bairro não teria hesitado em atravessar

! ruas de aspecto bem mais terrível, mas ali encontrava-se fora

do seu território, disso estava ciente. Centenas de turistas

eram mortos todos os anos, simplesmente por não saberem

;; interpretar os indícios de violência urbana em cidades que des-

conheciam. O mais sensato teria sido conduzir o carro dali para fora, procurar
um hotel e esperar pela manhã para voltar

; a ligar o número de Paul Frederick.

Estava Winter a tentar convencer-se a si mesma deste

arrazoado de razões, quando um clarão, reflectindo-se no

retrovisor, lhe atraiu a atenção. Voltou-se no banco, viu o calo-

roso resplendor amarelo de uma vitrina iluminada e, sem pen-

sar duas vezes, saiu do carro. Trancou-o lestamente, e lesta-

311
mente trotou pelo passeio em direcção à luz, debaixo da

chuva molha-tolos.

O Green Man continuava a ser um oásis acolhedor; ao galgar

os degraus de entrada e empurrar a porta, Winter nem se

lembrou da desastrosa entrevista que ali tivera com Rhiannon.

Lá dentro a atmosfera era quente e seca, em vivo contraste

com o exterior, e impregnada do cheiro a pão fresco. Os vitrais

das janelas estavam agora escuros, mas as mesas de madeira

polida e os balcões de carvalho brilhavam intensamente, e as

plantas espalhadas por toda a parte davam imensa vida ao lugar.

Winter deteve-se, piscando os olhos à luminosidade. Afastou o

cabelo da cara e sentiu as gotas de chuva entre os dedos.

«Faz qualquer coisa. Não fiques aí especada, feita parva.»

Apesar da localização, o café estava bastante composto de

clientela; a maior parte das mesas estava ocupada e o murmúrio

das conversas mais o tilintar da louça amalgamavam-se num

bruá acolhedor. Winter relanceou a sala. Rhiannon parecia

conhecer bem o café, quando a tinha levado ali; talvez eles a

conhecessem a ela?
Havia um lugar livre; Winter foi para lá e sentou-se, desejosa

de não dar nas vistas. Ninguém reparou nela, ninguém se

ralou com ela.

Enganava-se, porém.

Mal a criada - uma jovem de cabelo louro escorrido com

gravata às riscas e uma túnica de malha com mais cores que o

arco-íris - tinha acabado de trazer-lhe o café, quando um homem

se aproximou da mesa.

- Olá - disse ele. - Lembra-se de mim? Sou Paul Frederick;

conhecemo-nos da última vez que passou por aqui.

A coincidência não a surpreendeu; era se como uma parte

secreta de Winter estivesse à espera de encontrá-lo ali. Sorriu

acolhedoramente e com um gesto convidou-o a sentar-se.

- Sim, lembro-me de si. Não sei é se me apresentei como

deve ser. Sou Winter Musgrave. Não quer sentar-se?

Frederick sorriu.

- Por acaso estou ali sentado com a minha mulher. Não

quer vir para a nossa mesa?

312
Quando Winter, de chávena de café na mão, se sentou à

mesa de Frederick, teve nova surpresa. A pequena morena que

estava com ele não lhe era desconhecida.

- Você é a Emily Barnes, não é? A pianista?

Marido e mulher trocaram olhares e desataram a rir.

- Acho que tens razão, Frodo, tenho de perder a mania

de que ninguém me conhece - levantou-se alegremente e

estendeu a mão a Winter. - Sim, sou eu. Já que ouviu falar de

mim, espero que aprecie o meu trabalho.

Winter pegou-lhe na mão e apertou-a gentilmente, pelo

respeito que tinha àqueles dedos fortes.

- Aprecio imenso. Vi-a há uns anos, no Japão, quando

andou em digressão com a orquestra sinfónica. Lembro-me

que abriu o concerto com as Variações sobre Um Tema para

Cravo de Anstey.

Emily sorriu, desvanecida:

- Querido Simon! Toda a vida adorei essa obra, apesar de

me parecer que ele escreveu algumas das variações só para me

atormentar. Foi ele o meu professor.


Winter sorriu e sentaram-se os três. Não há amante de

música, seja ela clássica ou contemporânea, que não conheça

a história de Simon Anstey e Emily Barnes. Começando por ser

sua protegida, Emily acabaria por consagrar-se como a melhor

intérprete das suas obras. A bela simetria deste conto de fadas

apenas descarrila no facto de o músico-compositor não ter

casado com Emily mas sim com Leslie, a irmã mais velha dela,

anos antes de a própria Emily se ter casado. Ora Paul

Frederick, com o seu arzinho maroto, estava muito longe da

figura do marido de Emily que Winter tinha imaginado, e que

mais seria a de um homem aprumado e emproado.

- Ela chama-se Winter Musgrave, Em. Era amiga de

Cassie - disse Paul Frederick.

- Oh, lastimo imenso - disse Emily Barnes com genuína

simpatia. - Eu bem sei que é um lugar-comum dizer que foi

uma horrível tragédia, mas a verdade é que a morte de Cassie

foi uma grande perda para muita gente. Todos a adoravam.

«E a culpa é minha. Minha!» Winter sentiu o desgosto como

se fosse ainda recente. - Sim - disse ela, de cabeça baixa.

313
- Talvez seja uma tragédia maior do que imagina - disse

Paul Frederick em tom muito sério. Winter cortou-lhe a tirada

com um movimento brusco de cabeça, olhando-o firmemente

nos olhos, desafiadora.

- Não - disse ela pausadamente -, não me parece - o

aviso implícito na sua voz era bastante claro.

- Paul! - a voz de Emily veio desfazer aquele confronto

de vontades. - Se se trata de um assunto vosso, particular,

não poderá ao menos esperar para depois do jantar?

Paul Frederick pareceu envergonhado e sorriu, a desfazer-se

em desculpas, para Winter:

- Peço desculpa pela impertinência. Já jantou? O Green

Man serve jantares, a não ser que preferia serviço de snack,

mas olhe que a comida aqui é muito boa.

- Obrigada - disse Winter. - Acabo de chegar do aeroporto,

e a verdade é que a comida no avião era intragável.

Enquanto esperavam pela comida, Emily esforçou-se por

manter o assunto da conversa no domínio das generalidades.

Winter ficou a saber que ela era demasiado impaciente para


ser capaz de ensinar, embora Paul dissesse que um dia ela

havia de ultrapassar esse senão.

- Diz ele que se conseguiu ser professor, então ninguém

deve desesperar! - disse Emily, divertindo-se tanto com esta

piada familiar que Winter não conseguiu evitar um sorriso.

Naquele momento os seus próprios problemas estavam a

milhas de distância.

Emily não demonstrava qualquer curiosidade acerca dos

motivos que traziam Winter a San Francisco, mas parecia a

Winter que ela não partilhava todos os interesses do marido,

mantendo-se judiciosamente à margem desse campo. Chegou

a comida, um pescado à linha cozinhado com cogumelos em

marinada de vinho, tão inesperado naquele ambiente como o

casamento da elegante e disciplinada Emily Barnes com o exótico

e anacrónico Frodo.

Acabada a refeição, enquanto bebiam o café, Emily pôs-se

de pé.

- Vou empoeirar o nariz durante dez minutos - disse

314
ela com determinação. Desandou em direcção às traseiras do

café com o mesmo porte imperial que Winter lhe vira no

palco.

- Que história vem a ser esta? - perguntou Winter.

- Oh, acontece que a Emily não quer saber do que ela

chama «a minha outra vida». A ela interessam-lhe os grandes

festivais e sobretudo a música, e ambos respeitamos isso disse

Frodo.

Winter pensou que gostaria que Grey fosse - ou tivesse

sido - um marido tão inteligente e atencioso como Frodo

obviamente era. Não tivera ninguém, em toda a sua vida, com

quem sentisse tão grande nível de intimidade, independentemente

das razões que assistissem a cada um.

- E qual é essa outra vida? - perguntou Winter sem

rodeios.

Frodo olhou-a nos olhos:

- Eu fazia parte do grupo de trabalho de Cassie. Era correligionário

dela - disse ele, com toda a calma.

Winter levou alguns segundos a absorver todas as implicações


daquela simples declaração; quando se apercebeu do que

estava em jogo, corou de vergonha. Se Frodo falasse acerca das

circunstâncias que rodearam a morte de Cassie, Winter ficaria

desde já a saber se era capaz de suportar o assunto. Tinha passado

a vida como se toda a gente tivesse sido posta neste

mundo para desempenhar um papel que lhe era subordinado;

só agora compreendia como fora egoísta.

- Nesse caso deve conhecer Rhiannon - disse ela pausadamente.

- Sim - anuiu Frodo. - Devo dizer que a descompus

pela maneira como a abordou: caiu-lhe em cima com uma conversa

que deve ter soado como um arrazoado de mensagens

do mundo dos espíritos em que a portadora era uma espécie

de cigana de buena dicha, sem lhe dar tempo para se recompor

da morte de Cassie.

- Oh, não! - corrigiu Winter automaticamente. - A

verdade é que não me custava nada ter feito um esforço para

lhe dar ouvidos - acrescentou, passado um momento.

Winter inspeccionou Frodo prudentemente. O distancia-

315
mento defensivo que ela sempre cultivara fazia-lhe repugnar a

ideia de aquele estranho saber algo acerca da sua vida íntima.

- Às vezes é muito difícil decidir o que se há-de fazer disse

Frodo diplomaticamente.

Winter cerrou os maxilares, ferrando os dentes nas palavras

de autojustificação antes que as pronunciasse. Já era suficientemente

difícil viver com o que Truth Jourdemayne designava

Mundo Oculto, quanto mais ter de falar com uma pessoa

que ela mal conhecia acerca de coisas que, no plano racional,

ela continuava a rejeitar, mesmo quando articulava palavras

conformes...

Para seu grande alívio, notou que Frodo estava disposto a

deixá-la conduzir a conversa; ora só havia uma coisa de que

Winter queria falar:

- Preciso da carta que a Cassie deixou para mim. A não

ser que conheça o conteúdo da dita carta?

Frodo fez um sinal negativo com a cabeça.

- Não. Mas a Rhiannon pode vir ter connosco em quinze

minutos e de caminho traz a carta. Se estiver de acordo.


- Sim - disse Winter, não confiando em si mesma para

adiantar mais conversa. «Vai ter de ser, não é verdade?»

Frodo levantou-se para ir telefonar.

Emily regressou à mesa; quando os três acabaram de

tomar a sobremesa, chegou Rhiannon. Winter não fazia a mínima

ideia do que Frodo lhe tinha dito ao telefone, mas Rhiannon

parecia quase confrangedoramente submissa. Vestia uma

gabardina leve por cima de uma camisola de algodão cor-de-rosa,

calças de bombazina castanha e mitenes sangue-de-boi.

O emaranhado caótico do cabelo cor de cobre vinha arrepanhado

numa fita que mal o dominava num ninho de ratos.

Trazia um envelope debaixo do braço, sob a gabardina.

- Olá - disse ela muito séria, a olhar para Winter.

«Oh, limita-te a dar-me a malfadada carta!», era o que

Winter lhe apetecia gritar. Em vez disso pôs-se de pé e estendeu-lhe

a mão.

- Olá, Rhiannon, ainda bem que voltámos a encontrar-nos.

316
A outra mulher fez um esgar de quem se prepara para dar

uma resposta sarcástica, mas ao topar o olhar de Frodo conteve-se.

Aceitou a mão de Winter e deu-lhe um aperto de toca-e-foge,

e Winter sentiu-se muito feliz por as suas excentricidades

parapsíquicas consistirem na psicocinese e não na clarividência.

Já era suficientemente desagradável suspeitar dos verdadeiros

sentimentos das pessoas, quanto mais sabê-los ao certo.

Com a determinação adquirida durante anos de prática e

pondo as emoções de parte, Winter sorriu e fez as honras da

conversa.

- Fico-lhe muito agradecida por ter vindo. Ainda não

tinha tido ocasião de vos dar os meus pêsames pela perda que

sofreram; imagino que Cassie deve ter sido muito importante

para vocês - as frases saíram artificiais e forçadas, mas tinham

o seu quê de verdadeiras: se Winter tivesse sido melhor pessoa,

sabia que se teria condoído da perda de Rhiannon, em

vez de se preocupar exclusivamente com a sua.

Surpreendentemente, Rhiannon aceitou as palavras de

Winter pelo que tinham de sincero e não pelo que levavam de


calculismo.

- Ela era sua amiga há mais anos - disse Rhiannon simplesmente.

- Peço desculpa de a ter perturbado da outra vez.

Ainda bem que voltou.

- É muito raro termos direito a segundas oportunidades

na vida - disse Winter. - Não quer sentar-se?

- Não - disse Rhiannon. - Quero dizer, tenho de

seguir caminho para o trabalho. Agora estou a trabalhar no

Capwell, Frodo; é um trabalho temporário, mas sempre é

melhor que nada - disse ela num aparte. - A carta da Cassie

está dentro do envelope; também lá pus o meu endereço. Se

precisar de ajuda nossa, seja o que for, devemos-lhe essa ajuda,

pela Cassie.

«Bela tirada: honesta e habilidosa», pensou Winter.

Rhiannon estendeu o envelope e Winter pegou nele.

Permaneceu de pé enquanto Rhiannon atravessava a sala de

jantar, abria a porta e saía para a chuva.

Winter voltou a sentar-se. O empregado tinha arrumado a

mesa durante a conversa com Rhiannon, de forma que Winter

317
pousou o envelope diante de si. Quando se tornou evidente

que Winter não iria abri-lo ali, Frodo aclarou a garganta.

- Espero que me telefone depois de ler a carta - disse

ele. - Gostava de saber se posso ser útil. Tem onde ficar?

No que ela agora encarava como a sua outra vida, Winter

sempre se hospedara no St. Mark Hotel. Como não tinha feito

reserva, não sabia se a admitiriam.

- Hei-de encontrar qualquer coisa.

- Telefona-me? - perguntou Frodo.

«Provavelmente tem medo que eu me limite a queimar a

carta de Cassie.»

- Não se preocupe - foi a resposta indirecta. - Penei

muito para deitar a mão a esta carta. - Fez um esforço para

despejar o resto: - Eu telefono-lhe. - Chegava o criado com

a conta; Winter arrebatou-a automaticamente. - E, por favor,

deixem-me oferecer-lhes o jantar. Devo-lhes imenso - acrescentou

ela, embora relutante. Era tempo de aprender a mostrar

reconhecimento para com as outras pessoas, por mais que

o seu orgulho se revoltasse.


- Bem... está bem - disse Frodo com um largo sorriso.

Pôs-se de pé. - Vamos, Em. Winter, venha visitar-nos quando

puder, sim?

- Com certeza. - «Se puder.» - Boa noite, Frodo, boa

noite, Emily. Tive muito prazer.

Depois de eles saírem, Winter pegou no cartão American

Express, assinou o talão e deixou uma generosa gorjeta. Mas só

passado muito tempo se convenceu a enfiar o envelope dentro

da bolsa e sair.

O St. Mark Hotel, essa bela relíquia da «época dourada de

San Francisco», como dizia o cronista Herb Caen, do San

Francisco Chronicle, lá ia sobrevivendo contra ventos e correntes.

Apesar da hora tardia a que Winter lá chegou e da falta

de aviso prévio, o gerente arranjou-lhe um quarto. Daí a pouco

Winter encontrava-se à varanda da sua suite, a olhar para a baía

enevoada. Por trás dela, uma mesinha com uma garrafa de

vinho, com a mala pousada ao lado, no chão. O canto do envelope

ainda por abrir espreitava pela boca da mala.

318
«Mais tarde ou mais cedo tens de fazê-lo», disse Winter a si

mesma, tentando ignorar o bloco de gelo que lhe moía o estômago.

Deu um passo em frente, mas em vez de pegar na carta

sacou a rolha da garrafa de vinho e verteu o líquido escarlate

no copo. «Estás a beber de mais», admoestou-se, o que não a

impediu de beber o vinho sofregamente. Que importância

tinha? Que importância tinha fosse o que fosse? Não viveria o

suficiente para se tornar alcoólica!

Voltou a trás e pôs-se a olhar pachorrentamente pela janela,

enquanto o álcool lhe percorria as veias. A consciência pôs-se

a atormentá-la. Por maior dor que a carta de Cassie lhe provocasse,

ela merecia-a.

Winter encheu outra taça de vinho e agarrou o envelope.

As mãos tremiam-lhe ligeiramente ao abri-lo; de lá de dentro

caíram duas coisas. Uma era um envelope mais pequeno, de

formato normalizado, endereçado em seu nome na caligrafia

irregular de Cassie; a outra era a informação que Rhiannon dissera

que lhe deixava. Meticulosamente, Winter leu o nome e

endereço e enfiou a tira de papel no compartimento respectivo


da agenda, antes de voltar a guardá-la na mala.

Restava apenas a carta de Cassie. Winter apertou o envelope

entre os dedos, a tomar-lhe a espessura. Fosse qual fosse a

informação que lá estava, devia ser muito breve.

De dentes a ranger e olhos fechados, Winter rasgou a fímbria

do envelope.

O banco de nevoeiro avançou sobre a superfície da água,

diluindo os limites entre o oceano e a terra. Já não chovia, mas

o ar continuava carregado de humidade e a neblina assenhoreou-se

da cidade, resvalando ao longo das paredes dos edifícios

de escritórios novos e emproados, dos harmoniosos hotéis

antigos e até dos oblíquos flancos da Transamerica Pyramid. Na

Baixa, junto à baía, a noite deslizava a caminho da madrugada.

Na sala da suite do St. Mark Hotel, o tempo perdera todo

o significado. Winter olhou estarrecida para o breve parágrafo

escrito na folha de papel. Permaneceu sentada, fria e silenciosa,

imóvel, enquanto, dentro da sua cabeça, começava a formar-se

o grito.

319
CAPÍTULO QUINZE

O CORAÇÃO DO INVERNO

Rise up, my love, my fair one, and come away.

For, lo, the winter is past, the rain is over and gone:

The flowers appear on the earth; the time of the

singing of birds is come, and the voice of the

turtle is heard in our land1

KING JAMES BIBLE

A norte de San Francisco desdobra-se a costa em pequenas

praias abrigadas cobertas de areão prateado, e os restos

da portentosa floresta de sequoias perfilam-se frente ao mar

como sentinelas silenciosas. Ao longo deste promontório

apontado sobre o Pacífico encontramos umas quantas vilórias

pacificamente inalteradas desde os tempos em que o ouro, a

madeira e o vinho - mas não os computadores - constituíam

a principal fonte de rendimentos da população local.

Aí se encontram casas ao gosto exuberante do século passado

e elegantes edifícios em estilo Mission, cujos habitantes

rezam para que lhes passe de largo o mamarracho da via rápida

que ameaça fazer de Sacramento mero subúrbio de San


Francisco.

Não tinha dormido.

Mal amanhecia, Winter pagou a conta do hotel e saiu. O

porteiro do Mark, muito simpático, explicou-lhe o caminho

tintim por tintim, apontando-o no mapa. Assim, Winter conseguiu

chegar a San Gabriel pouco antes do meio-dia.

San Gabriel é uma cidade de tamanho considerável (maior

que Glastonbury), embora esmagada pelas metrópoles que a

rodeiam. Quando lá entrou, a névoa matinal tinha sido varrida

1 Ergue-te, meu amor, minha alegria, e vem daí. / Pois, vê, o Inverno é passado,
a chuva,

por fim, acabou: / As flores aparecem sobre a terra; o tempo do / canto das aves
é

chegado, e a voz da / rola ressoa na nossa terra. (N. do T.)

321
por uma tépida brisa marítima; o dia tornava-se claro, de céu

aberto e limpo de nuvens.

Winter não lhe prestou atenção.

Encostou o carro na bomba de gasolina para perguntar o

caminho, em voz áspera, crocitante, agravada pela máscara

insone e exausta. Agradeceu ao empregado como se tais cortesias

de verbosidade formal ainda pudessem interessar-lhe;

depois seguiu vagarosamente para o seu destino final.

Por cruel incongruência, o sítio que ela procurava erguia-se

à beira da água, como se a beleza ainda pudesse comover os ocupantes

do lugar. O Pacífico reflectia o sol e o céu como bandeja

de esmalte azul; as gaivotas revoluteavam, aos gritos, por cima da

angra. Winter meteu o carro no parque de estacionamento.

- Preciso de falar com Hunter Greyson - disse Winter à

mulher sentada por detrás da secretária. Dentro do edifício, o

magnífico dia postalício que fazia lá fora parecia não existir.

Caixas de luz fluorescente iluminavam as manchas das paredes,

pintadas de verde-veneno ia para trinta anos; o linóleo, de

tão puído, parecia irremediavelmente enfarruscado.


- Ele é nosso paciente? - perguntou a enfermeira.

Winter leu a placa de identificação que ela trazia ao peito:

CAROL TAYLOR.

«Achas que eu estaria aqui se assim não fosse?» - Sim confirmou

Winter. O contraste entre aquele lugar e Fall River

incomodou-a. Se Fall River já lhe tinha parecido horrível, então

como havia de classificar aquele sítio?

- É parente? - perguntou a enfermeira.

Winter descaiu a cabeça. «Sim. Sou a mulher que devia ter

casado com ele.»

- Sou Winter Musgrave.

Winter tinha aprendido há muitos anos um truque extremamente

simples: qualquer resposta, por mais insignificante,

resulta sempre bem se for pronunciada com confiança.

Embora ela não tenha acrescentado mais explicações nem provas,

a enfermeira carregou num botão de chamada que fez sair de

uma das salas ao fundo do átrio uma auxiliar enfiada num

guarda-pó às florzinhas.

322
- Ashley, leve esta senhora ao quarto do senhor Hunter

Greyson - disse a enfermeira.

- Então que tal vai isso hoje, Hunter? - cantarolou

Ashley. Passou pela cama, abriu os cortinados, verificou se o

ar condicionado estava a funcionar e regressou ao ponto de

partida.

Winter ficou a olhar para a cama junto à janela.

- Olá, Grey - disse ela; ou melhor, mexeu os lábios,

mas não emitiu nenhum som.

O homem deitado na cama estava magro e debilitado.

Tinha os longos cabelos louros apanhados numa trança mal

amanhada e os olhos fechados como se estivesse a dormir.

Mas não estava.

Entre as duas camas, o ventilador respiratório emitia um

som macaqueado de respiração humana. Um tubo de borracha

azulada partia da máquina respiratória, passando por um humidificador

borbulhante, para ir dar a um buraco na garganta de

Hunter Greyson. Através do plástico translúcido, Winter, com

uma náusea de negação reprimida nos dentes cerrados, vislumbrou


o brilho dos apetrechos traqueostómicos.

- É a primeira vez que vem visitá-lo? - perguntou

Ashley, compadecida, em tom profissional contido. Aproximou-se

do leito, pegou na mão inerte de Grey e tomou-lhe o

pulso, com eficiência costumeira. - Vamos lá, Hunter.

Acorda, rapaz. Tens visitas.

- Deixe estar - pediu Winter. «Grey. O nome dele é

Grey.»

Ashley olhou para ela, apiedada:

- Convém falar com eles, quando estão neste estado disse

a enfermeira, continuando a segurar a mão de Grey. Às

vezes eles apercebem-se da nossa presença, apesar de estarem

ligados à máquina, e até há casos em que conseguem

acordar.

Winter fixou-a, atónita. Não se sentia capaz de articular

palavra, nem que disso dependesse a sua vida. Passado um

bocado Ashley sacudiu os ombros quase imperceptivelmente e

foi para junto da outra cama.

323
- Viva, Bobby. Que tal vai isso hoje? Vamos a um joguinho

de softball na praia? - disse ela com alegre entusiasmo.

- O que é que lhe aconteceu? - perguntou Winter.

Ashley aconchegou os cobertores de Bobby e virou-se para ela.

- Hunter? Acidente de moto, segundo consta na ficha de

internamento. Foi transferido para aqui depois de ter estado

seis semanas no hospital de Sacto, porque não havia vagas

noutros hospitais. Ele ia a conduzir à chuva... encontraram a

mota caída no fundo de uma falésia perto de Antonia Beach e

foi uma sorte terem-no encontrado a ele. Deve ter sido atropelamento

e fuga. Se ele acordar, talvez seja capaz de dizer-nos o

que se passou. Não é assim, Hunter?

«A escuridão, a chuva ... não parecia chuva, quando saí de

casa; tenho de pôr a mota a coberto ... faróis em contra-mão, a

derraparem na curva ... condutor bêbado; para que lado irá

ele guinar? ... não! Oh meu Deus, que frio ...»

Winter regressou à realidade, sentindo as mãos de Ashley

agarrarem-lhe os braços.

- Venha para aqui; vamos sentar-nos um bocadinho.


Winter sentiu a borda de uma cadeira tocar-lhe nas pernas

e sentou-se agradecida, a suar, enjoada pelas súbitas imagens

do pesadelo que a perseguira durante semanas, antes de dar

entrada em Fall River. Afinal não era um simples pesadelo. Era

verdade.

Winter esforçou-se por conter as lágrimas; quem lhe dera

poder assim suster a recordação do sofrimento e das fracturas,

da prostração à chuva sem conhecer a extensão dos ferimentos

embora sabendo-os graves, enquanto sentia a vida e a consciência

fluírem e refluírem, como o oceano contra as rochas

ali mesmo por baixo, e rezava para que viesse alguém acudir.

Winter respirou profundamente.

- Sente-se bem? Quer que chame a enfermeira? - perguntou

Ashley.

- Não. Sim. Quero dizer... foi só o choque de o ver. Já

me sinto melhor - mentiu Winter.

- Quando é que soube - perguntou Ashley - do que

lhe tinha acontecido?

Winter olhou para ela, surpreendida.

324
- Você não é parente dele, pois não? - disse Ashley. É

amiga?

Não valia a pena negar. Que podiam eles fazer, a não ser

expulsá-la?

- Sim - disse Winter.

Ashley suspirou; por breves instantes toda a sua energia

pareceu esvair-se.

- É pena. Tinha esperança que pudesse assinar os papéis

- disse ela suavemente. - Ainda não conseguimos descobrir

ninguém da família. Sabe onde eles vivem?

Grey nunca tinha mencionado a família, tanto quanto

Winter recordava.

- Não. Que papéis são esses?

- Para tirar... para desligar a máquina. Ele chegou ligado

a uma vinda de Sacramento; neste Estado, a lei não permite

desligar a máquina sem consentimento da família. Mas como

ele já está aqui há um ano, não me parece que volte a acordar

- disse Ashley tristemente. - Só tem trinta e cinco anos.

Pode ficar assim mais trinta anos. Às vezes, quando faço o


turno da noite, venho sentar-me aqui ao pé dele. Eu acho que

ele quer que o deixemos morrer... mas nós não podemos

fazer isso - Ashley hesitou. - Quer ficar um bocado sozinha

com ele?

- Obrigada - disse Winter.

- Se precisar de mim estou ao fundo do átrio - disse

Ashley. - Hoje só cá estamos eu e a senhora Taylor, a enfermeira

que estava à porta. A Mareie telefonou a dar parte de

doente. Se precisar de alguma coisa carregue no botão de chamada.

- Os seus sapatos brancos ortopédicos sussurraram

sorrateiramente no surrado linóleo e ela desapareceu da sala,

fechando a porta atrás de si.

Winter voltou para o pé da cama. O som resfolegado do

pulmão mecânico enchia o quarto; o dia solarengo, lá fora,

parecia um quadro de escárnio pintado no vidro da janela.

- Olá, Grey - voltou ela a dizer. Chegou-se a ele e

pegou-lhe na mão.

E desapareceu.

325
Ou melhor, o mundo que a rodeava desapareceu, tão subitamente

como se alguém lhe tivesse enfiado um capuz na

cabeça. Seguiu-se um confuso turbilhão de imagens: as gaivotas

a gritarem, a chuva; o rugido de uma máquina potente a

trabalhar em esforço; e o gosto a cobre. Era como se um deus

brincalhão se divertisse a chocalhar o cofre dos sentidos.

Depois, tão subitamente que Winter, a bem da sua sanidade,

quis acreditar que tudo era alucinação, achou-se de novo

sentada no pomar primaveril da quinta de Greyangels. Mal se

apercebera do lugar onde estava quando as pétalas das flores

de macieira começaram a derramar-se das árvores e a relva a

transformar-se em pó. Logo os ramos do pomar brilharam, prateados

e nus, não tardando a desfazer-se em cinzas que um

vento frio, gélido, varreu para longe. «Vou gritar, não me contenho

que não grite», pensou Winter, sabendo embora que se

começasse a gritar não mais pararia.

- Olá, Winter.

«O Dr. Luty tinha razão. Todos eles tinham razão, tenho

andado enlouquecida o tempo todo.»


Winter Musgrave virou-se e encontrou os olhos de Hunter

Greyson.

Ele estava vestido com as mesmas roupas que lhe tinha visto

em sonhos: o casaco de pele de gamo e os jeans que trazia no

pomar primaveril, há muitos anos. Viu o casaco escurecer, transformar-se

num blusão de cabedal para andar de moto, e os traços

da idade atravessarem-lhe o rosto como relâmpagos secos.

Winter percebeu, horrorizada, que não estava a ver Grey.

Via, sim, a sua ideia de Grey - ao cabo de tantos anos de

separação, a imagem mental que dele tinha apenas contribuía

para confundir tudo.

Sentia-se aterrorizada, exausta e doente de desgosto. Mas

acima de tudo Winter era uma mulher que sempre recusara a

derrota. Deliberadamente, fez por descontrair-se.

A imagem difusa de Grey começou a fixar-se; um homem

vigoroso, da mesma idade que ela, e não o farrapo ali deitado

na cama de hospital. O cabelo louro platinado, ainda forte,

326
apanhado num rabo-de-cavalo. Em vez das roupas de sair à rua,

envergava uma dalmática branca e por cima desta uma túnica

vermelha. A dalmática era cintada por qualquer coisa parecida

com uma serpente feita de jóias, e nos cabelos assentava uma

coroa de louros feita de ouro. No pulso direito tinha uma pulseira

de aço com pedras vermelhas e num dos dedos um anel

de sinete. Parecia...

«Faz lembrar o retrato de Thorne Blackburn na capa do

livro de Truth.»

- Grey - disse Winter sonhadoramente; e logo, com

uma inanidade que era a única defesa possível da sanidade: O

que é que tu fazes na vida?

Grey - ou a sua imagem - riu-se:

- Sou actor desempregado, de que é que estavas à espera?

- Ele aproximou-se, tomou-lhe as mãos entre as suas e,

choque maior desde que o vira chegar, as mãos dele estavam

quentes e vivas.

- Vieste. Pensei que te tinhas esquecido de mim - disse

Hunter Greyson.
«E esqueci, por algum tempo. Mas já lá vai.»

- Grey, que lugar é este? Onde estou eu? Como é que

vim aqui parar? - balbuciou Winter.

- Tu não estás aqui, na realidade. O teu corpo continua

onde o deixaste. Isto não passa de um sonho. Lembras-te,

Winter? Construímos aqui o nosso reduto, há muito tempo.

Winter olhou por cima do ombro. Vinda de nenhures e de

toda a parte, uma luz incolor e crua iluminava um universo tão

desnatural como se fosse uma cena de palco por detrás de uma

tela. A meia distância lobrigou doze marcos de pedra meio derruídos

e de aspecto muito antigo, dispostos em círculo.

- Sim, Grey, já me lembro - e, ao dizê-lo, as palavras

fizeram-se verdade.

- Ajuda-me, Winter. Tu és a minha derradeira esperança

- disse Grey. - Mais ninguém acode.

De novo aquela palpitação doentia: a noite, a estrada, o

clarão dos faróis a virem de frente, e o frio... Ela estremeceu,

chegou-se mais a ele, e Grey abraçou-a como se a sua presença

pudesse aquecê-lo.

327
- Levei muito tempo a perceber que não estava morto

- disse Grey, com a boca encostada à cara dela. - Se tivesse

morrido, ao menos saberia que fazer; afinal de contas, para

isso me preparei toda a vida. A morte não é o fim. É apenas

mais uma jornada na viagem.

- Tu estás em coma - disse Winter, afastando-se um

pouco para melhor o ver -, ligado a um pulmão mecânico. Sentiu-se

como Alice a conversar com a Rainha Vermelha;

fosse o que fosse que dissesse, soava sempre surreal. Desde

que não pensasse no sítio onde estava ou com quem falava,

sentia-se bem, mas mesmo as maiores bizarrias dos últimos

meses não a tinham preparado para o que estava a acontecer.

- Em coma - ecoou Grey. - Bem me pareceu que

devia ser uma coisa assim. Não posso ir para diante nem recuar.

Limito-me a... estar aqui. Sou menos real que um fantasma.

Tentei entrar em contacto com algumas das pessoas

minhas conhecidas, mas estou num tal estado que nada resulta.

A única maneira de entrar em contacto com o mundo real

foi chamar a criança mágica que o Círculo Nuclear criou, e...

- Foste tu que o enviaste? Afinal eras tu? Tu mataste

Cassie? - Winter soltou-se dele num recuo sobressaltado, afastando-se


tanto quanto podia. Começou a sentir subir a raiva;

uma fúria que, neste mundo, podia tornar-se tão tangível como

os corpos de ambos. Cassie estava morta e era Grey quem a

tinha morto. Era ele quem tinha enviado a criança mágica

que deflagrara o fogo. Ele próprio o confessara.

Tamanha traição encheu-a de fúria - só agora Winter se

dava conta de quanto confiara em Grey para cumprir os seus

sonhos.

- Morta? - Grey empalideceu com o choque. Agitou as

mãos no ar, a traçar um desenho no éter...

... e Winter, com o coração a martelar de fúria e chocada,

viu-se de novo no quarto do hospital, olhando pasmada para o

corpo de Grey, para as mãos unidas de ambos.

- Grey! - gritou ela. O corpo estendido na maca nem

buliu - Grey, responde-me! - agarrou-lhe nos ombros, abanou-o.

A cabeça dele abanava frouxamente na almofada.

- Está tudo bem por aqui? - era a Sr.a Taylor que entrava

328
no quarto, engomada e eficiente na sua bata de enfermeira, a

olhar para Winter com ar de dúvida: - Precisa de alguma

coisa?

«Deixe o meu doente em paz.» Winter ouviu a reprimenda

tácita tão claramente como se ela a tivesse gritado.

- Não - disse ela, com um sorriso forçado. - Está tudo

bem. Posso ficar sozinha com o meu... com o Grey, por favor?.

Não ousou declarar uma relação que não podia comprovar,

por muito que quisesse. No momento em que o fizesse,

havia de aparecer um monte de papéis para assinar e perguntas

para responder, coisas que não se atrevia a enfrentar... não

fosse a sua recente estada no sanatório vir a lume. Tinha de

manter a calma, senão nunca conseguiria ajudar ninguém.

- Sempre lhe chamámos Hunter - disse a Sr.a Taylor,

parecendo aceitar a explicação que não explicava nada.

Afastou o cabelo da testa de Grey. Winter sentiu uma pontada

de ciúmes, mas depois pensou que aquela mulher tinha tanto

direito como ela de lhe tocar - ou talvez mais.

- A família sempre lhe chamou Grey - disse Winter, resvalando


perigosamente para a mentira. - Ele detestava...

detesta que lhe chamem Hunter. - O pragmatismo natural de

Winter fê-la matutar: quem pagaria a conta do hospital, já que

não tinha aparecido ninguém da família?

- Nesse caso vou avisar as minhas colegas. Tentamos

chamá-lo pelo nome sempre que possível. Já vi muitas pessoas

saírem de comas mais longos, senhora Greyson, não perca a

esperança. Deixe-se ficar o tempo que quiser. Ah, e se não se

importa, gostava que passasse pela secretaria da administração

antes de se ir embora. O senhor Peters precisa de falar com

alguém da família acerca do que se há-de fazer às contas

depois de esgotados os fundos do Medicaid. - A Sr.a Taylor

voltou a compor o cabelo de Grey e saiu.

Novamente a sós, Winter ficou pasmada a olhar para Grey.

Se lhe tocasse outra vez, voltaria a ver-se metida na Twilight

Zone, a falar com um fantasma?

Que crédito devia dar a tudo o que julgava ter ouvido da

boca de Grey? Não seria tudo aquilo uma espécie de ilusão

329
inventada pelas recordações? Por muito boas razões que

pudesse aduzir, não havia dúvida que tinha sofrido um colapso

nervoso - ou qualquer coisa muito parecida com isso.

- Ora bem - disse Winter em voz alta -, ou sim ou

sopas. - Ou o que se passara era alucinação (e nesse caso não

havia razões para crer que Grey tivesse matado Cassie, se até aí

não as tivera) ou não era.

E Grey tinha matado a amiga.

«Não», pensou Winter. «Pensa bem. Ele disse que tinha

enviado a criança mágica. Não me pareceu que ele tivesse

conhecimento da morte de Cassie; aliás até pareceu bastante

abalado quando falei disso.»

Em que havia ela de acreditar? Em quem havia ela de acreditar?

Para quê confiar seja em quem for, Winter? Era a memória

da voz de Grey que a interpelava. Estamos num país livre.

Põe tudo em dúvida. Contesta a autoridade.

- Okay - disse Winter. - És tu a autoridade, vou contestar-te

a ti.

Arrastou a cadeira para junto da cama de Grey e passou os


braços através das grades da cama para poder segurar as mãos

de Grey. «Preciso de saber. Se me odeias a ponto de me quereres

ver morta, preciso de saber.»

Era como dar um passo em frente no terceiro patamar da

prancha de mergulho. Deixou-se ir e mergulhou de novo na

estranha desorientação caleidoscópica; cenas e sensações

bizarramente fora do contexto normal.

E logo, ainda mais velozmente que da vez anterior, tremeluziu

o pomar («passa-se aqui qualquer coisa que eu tenho de

perceber») e Grey, a planície, a cidadela arruinada, ao longe.

Ele estava vestido como da outra vez, mas a cor escarlate

da túnica escurecera, tingira-se de ferrugem, e tudo nele parecia

menos brilhante. Por instantes os seus sentidos rebelaram-se

contra a realidade impositiva deste... deste mundo fantasioso,

à Stephan King, que lhe parecia tão concretamente próximo

como uma rua de Nova Iorque.

Conforme o combatia, o mundo que a rodeava vacilou e

desapareceu; os sons e cheiros do hospital restabeleceram-se à

330
sua volta outra vez. Ouviu Grey gritar - neste mundo ou no

outro? - e só então compreendeu que o Outro Mundo não

era coisa que lhe fosse imposta, mas sim algo que ela própria

ajudava a criar.

«Como pode isto ser?», exclamou uma parte de si mesma,

terrificada. Mas era uma parte da realidade que Truth e outras

pessoas que Winter tinha conhecido aceitavam com a mesma

simplicidade com que aceitavam o mundo que as rodeava, e

por outro lado Winter já não sabia que mais pensar. Mais valia

aceitá-lo e servir-se dele sem o contestar, antes que morressem

mais pessoas.

Descontraiu-se e logo o único mundo que Grey lhe deixara

se fez de novo real.

Sentiu o frio enterrar-se-lhe nos ossos; desejou, num breve

rasgo ridículo, ter trazido melhor abafo. Mas não havia trajos

terrenos que lhe valessem ali.

- Dá-me a tua mão - os dedos de Grey fecharam-se

sobre os dela e então o mundo aquietou-se à sua volta. Winter

ergueu os olhos para o rosto dele.


Não era assim que o recordava. Tinham passado demasiados

anos. Tinha o homem, porém, vestígios do jovem que ela

conhecera; por pouco, a recordação do muito que o amara

ameaçou esmagar tudo o mais.

Por pouco.

- Mataste a Cassie - disse Winter, crispando a mão

sobre a dele. Resolutamente, fez do coração fria arma. A resposta

estava ali a um passo.

- Não - a negação de Grey era lenta, insegura. - Eu...

Mas... tu estás aqui, Winter. Porquê tu? Tu já não te interessas

pelo Trabalho - dizia-o em tom amargo -, ao contrário de

Cassie; ela interessava-se, pelo menos em parte, o suficiente

para eu acreditar que pudesse receber uma mensagem vinda

do astral. Como morreu ela?

- Queimada - disse Winter cruamente. - Queimada

até à morte dentro da livraria... a tentar comunicar com a

coisa que tu mandaste à cata dela.

- Mas não era assim que as coisas deviam ter acontecido

- protestou Grey. A sua tristeza e confusão contagiaram

331
Winter, impregnando os seus próprios sentimentos. - Estou

entalado entre a vida e a morte; não possuo nem a energia animal

do corpo físico nem a força espiritual incorpórea que me

permitam seguir em frente.

- As tuas forças fraquejam, ancião - citou Winter, ao

que Grey sorriu sofridamente.

- É mais ou menos isso. O que eu enviei foi o Elemento

com que o Círculo Nuclear andou a brincar nos nossos tempos

de faculdade; não sabíamos muito bem no que andávamos

metidos, mas no plano astral todos os actos deixam um rasto.

A ideia da coisa continuou a existir, e eu consegui emprestar-lhe

alento suficiente para de novo lhe dar coerência; mas essa

criatura não devia ter afectado o plano físico, de maneira

nenhuma.

Winter observou-o atentamente:

- Não foi nada disso que aconteceu.

Grey passou a mão livre pelo cabelo, mantendo a outra

mão firmemente agarrada à de Winter.

- Não foi intenção minha: percorri o Caminho demasiado


tempo para poder dizer semelhante coisa, mas, mesmo que

seja verdade, não consigo entender. Onde foi ele buscar a força

necessária para se tornar real? Mesmo que visitasse o resto do

grupo (criámo-lo todos juntos, portanto é natural que os laços

se mantenham), nunca devia passar de um pesadelo.

- Mas matou-a - disse Winter, aguerrida. - Assolou-me,

perseguiu-nos a todos, Grey: a mim, a Janelle, a Ramsey, a

Cassie. Porque fizeste tu isso, Grey?

- Porque eu não queria continuar assim até o meu corpo

definhar! O cordão de prata quebrou-se; não consigo encontrar

o caminho de regresso, mas o meu corpo continua vivo! A

coisa devia ter funcionado...

- Pois não funcionou! O teu mensageiro continua muito

satisfeito da vida, a passear pelo mundo real; começou por

matar uns esquilos, foi-se tornando cada vez mais comilão e de

cada vez que mata faz-se mais forte e não presta contas a ninguém.

Julgas tu que a Cassie não tentou saber o que ele queria?

Ou Truth? Eu estava presente quando ele caiu em cima de

Truth; quase a matou, e ela diz que agora anda à cata de mim.

332
- Truth... Jourdemayne? - disse Grey, cada vez mais

horrorizado. - Atacou a filha de Thorne Blackburn?

Winter não saberia dizer porquê, mas o facto de Grey

conhecer Truth fazia-o parecer mais real; começou a acreditar

tanto na realidade de Grey como na sua inocência. Além disso

a desorientação dele era suficientemente genuína para lhe abalar

as ideias.

- Nunca foi intenção minha... E nunca me passou pela

cabeça que quisesses ajudar-me, mesmo que soubesses rematou

ele, calmamente.

- Eu... - começou Winter, mas não lhe vinha à ideia

nenhuma palavra que não fosse de justificação, só que não era

altura para justificações, não havia tempo a perder. Uma só

coisa importava.

- Foste tu que o criaste. Consegues pará-lo? - perguntou

Winter.

Ao olhar para o rosto de Grey, viu que ele hesitava; as

suas túnicas - as vestes de Adepto do Trabalho Blackburn

- continuavam a escurecer: a cor de marfim e o vermelho


retinto tinham passado a cinzento e castanho-borra. Lá longe,

sobre o horizonte, relâmpagos de trovoada cruzavam os

céus.

- Talvez - disse Grey passado um bocado. - Posso tentar

fazer uma coisa. Se confiares em mim.

- Confiar em ti? - disse Winter, com suspeita. Porque

havia eu de confiar em ti?

- Porque para isto resultar - disse Grey - tens de

matar-me.

Que bom seria mandar tudo às urtigas, partir do princípio

que estava mesmo louca, pensou Winter horas mais tarde. E

então tudo isto não teria passado de um espasmo mental, uma

sequela do seu problemático colapso nervoso. Mas a pura verdade

é que ela já não queria saber da definição que as outras

pessoas atribuíssem à sanidade.

Naquela tarde assinou os papéis que a tornavam responsável

pelo tratamento de Grey. Assinaturas sem significado, fraudulentamente

apostas, mas que lhe davam tempo para fazer o

333
que tinha de ser feito. No dia seguinte - uma nova semana -,

quando eles dessem pelo logro, já nada haveria a fazer.

Noutras circunstâncias, seria uma bela noite primaveril.

Passava da meia-noite; a Lua, em quarto minguante, elevava-se

no céu e o som das ondas a rebentarem na praia a tudo se

sobrepunha. Ela tinha estacionado o carro numa rua sossegada,

uns quarteirões adiante, a poucos quilómetros do motel

onde passara o dia e a noite. Não era normal que aparecesse

um carro por ali, àquela hora da noite; até um transeunte desacompanhado

seria suspeito, mas quanto a isso não havia nada

a fazer. A coisa tinha de ser feita de noite.

Os acontecimentos da tarde pareciam indecisivos e irreais,

mas Winter ateve-se ao que ele lhe tinha dito. O que interessava

era deter o Elemento, e Grey, dependente como estava

de um corpo que não queria despertar, via quase aniquilado

todo o seu potencial mágico. Depois de morto - ou, como

Grey insistia em dizer, incorpóreo - ficaria livre de se movimentar

no Plano Astral com redobrado poder.

Mas depois de morto já não estaria ligado ao que ele chamava


Plano da Manifestação, o mundo real - a não ser que

alguém o prendesse aqui. Alguém que pudesse ser a sua âncora,

cedendo-lhe a força animal do corpo físico e do Plano da

Manifestação que se iria fundir com a força dos Planos Mental

e Espiritual a que Grey passaria a pertencer.

«Preferia ser louca. É muito mais cómodo.»

Ela não sabia se o plano de Grey pareceria razoável a

outro mago; para ela tudo aquilo era vudu puro e simples.

Pondo de parte o que ia acontecer, se o que Grey lhe tinha dito

era verdade, o que Winter se preparava para fazer nessa noite

era, no mínimo e por definição legal, um assassínio - e um

hospital cheio de aparelhos para salvar vidas não era o lugar

que Winter teria preferido para a tarefa de dominar a tempestade

psicocinética do Elemento, se lhe fosse dado a escolher.

Mas o lote das escolhas possíveis fora-se reduzindo sucessivamente

até restar uma única opção:

Vencer ou morrer.

Winter deu a volta pela parte de trás do edifício e riu-se

entre dentes quando chegou à porta das traseiras. Estava à

334
espera de a ver trancada, e de facto assim era, mas ela aprendera

muito nos últimos meses: se era capaz de mover chaves,

também não lhe custava nada fazer as cravelhas girarem dentro

do canhão da fechadura. Quanto a isso, tinha plena confiança

nas suas capacidades.

A pesada porta estremeceu por momentos ao toque dos

seus dedos, e depois, quando Winter voltou a rodar a maçaneta,

abriu-se. Entrou numa espécie de vestíbulo, passou por

uma série de frascos de soro e pelo relógio de ponto, com o

respectivo painel de cartões. Consultando o painel, concluiu

que apenas havia duas pessoas de vela. Fez votos para não dar

de caras com nenhuma delas, pois mesmo estando vestida de

guarda-pó de linho branco por cima de umas calças de homem

de flanela cinzenta e camisa bege de seda, poucas hipóteses

tinha de convencer quem quer que fosse de que era uma médica

em tardia visita nocturna aos seus pacientes.

Avançou para a porta interior e empurrou-a.

Durante a noite as luzes do edifício mantinham-se reduzidas

ao mínimo. Contra a parede alinhavam-se cadeiras de rodas


e outros equipamentos. Winter inspeccionou derredor, na

dúvida. Onde ficava o quarto de Grey? Tinha decorado o

número do quarto, mas no escuro, vinda de uma direcção que

desconhecia, tudo lhe parecia diferente; triste seria se acabasse

por ir dar ao posto da enfermeira.

Por fim lá descobriu o quarto de Grey e esgueirou-se para

dentro, com um suspiro de alívio. Não podia arriscar-se a acender

a luz, que podia ser vista do átrio, mas felizmente alguém

se esquecera de fechar os cortinados da janela, por onde se filtrava

um luar pálido mas que sempre permitia ver qualquer

coisa. Winter atravessou o quarto e correu o reposteiro que

rodeava a cama para melhor se esconder.

- Grey? - sussurrou.

O corpo deitado na cama não respondeu; ao olhar para

Grey, ali deitado, Winter sentiu-se confusa. O corpo que jazia

naquela cama de hospital não era o Hunter Greyson que ela

conhecia e com quem falara nessa mesma tarde.

Mas o Grey com quem tinha falado era um fantasma, uma

espécie de eco psíquico do homem que estava na cama,

335
menos tangível, na realidade, que uma imagem de ecrã. Ficou

especada a olhar para ele, hesitante. Bastava desligar a máquina

e ele morria - tão simples como apagar uma vela.

De facto, nem era bem assim: Ele já tinha partido. Tinha

partido desde aquela noite chuvosa na estrada ao longo da

costa, quando um condutor bêbado o atropelou e fugiu, subtraindo-lhe

todas as hipóteses. Restava apenas fazer com que o

corpo aceitasse esse facto.

Winter travou nos olhos as lágrimas escaldantes que queriam

romper, pois sabia-se mais bafejada pela sorte do que

merecia. Tivera ao menos a oportunidade de se despedir.

E, com sorte, talvez conseguisse sobreviver ao sofrimento

da perda.

Deitou a mão ao tubo que lhe penetrava a garganta.

Bastaria retirá-lo - era a máquina que respirava por ele; sem

ela, sufocava logo. Apertou os dedos à volta do tubo para o soltar

e logo se deteve.

Alarmes. Devia haver um sistema qualquer de segurança

que certamente dispararia, e se a descobrissem, o desastre era


completo, não havia justificação possível para o que se estava

a passar. Seria possível desligar a máquina? Winter deu a volta à

cama e postou-se diante do ventilador. Era tão alto como ela,

cúbico, escuro e ameaçador. Tinha luzes a piscar ao mesmo

ritmo dos ruídos que produzia; parecia um fole automático;

tinha também uma espécie de disco rotativo com a legenda

PRESSÃO NEGATIVA e um ponteiro fremente mesmo no centro

da zona branca. Prosseguiu o exame da máquina. O ventilador

tinha uma caixa ligada à ilharga com uma luz vermelha e

outra verde e uma grelha de altifalante. A luz verde estava

acesa. Devia ser aquilo o alarme, mas não havia maneira de

descobrir como desligá-lo.

Winter continuou a estudar a máquina, desejando tê-la

examinado melhor durante o dia. Um grosso cabo cinzento

ligava-a à tomada eléctrica da parede, onde um elaborado sistema

de travagem impedia que se desligasse acidentalmente da

alimentação eléctrica. Um outro cabo, mais fino, ligava à parede,

mais acima; tinha escrita por cima a palavra AR. As fichas

sem ligação diziam OXIGÉNIO e SUCÇÃO. Winter recuou ligei-

336
ramente. O quarto e tudo o que ele representava eram mais

assustadores que todos os horrores sobrenaturais.

E pronto, ali estava ela a perder tempo, quando a cada

minuto de espera a criança mágica de Grey podia estar a

matar outra pessoa, algures. Inspeccionando cuidadosamente

o ventilador, Winter viu que não existia nenhuma ligação entre

ele e o homem - Bobby? - da outra cama. O que fizesse

àquela máquina apenas afectava Grey.

E agora? Não podia desligá-la, não lhe parecia que fosse

possível, pura e simplesmente, desligá-la...

Mas podia atalhar por outro caminho. Algures, dentro da

máquina, devia haver um motor eléctrico, e Winter sabia

muito bem como dar cabo dos motores eléctricos. Apontou

um dedo para a máquina.

- Bang. Estás morto.

A gorda faísca azul que estralejou para fora da blindagem

do ventilador fê-la dar um salto e soltar um gritinho de susto.

Bufou de indignação pelo seu próprio medo, mas, para seu

grande alívio, ninguém veio espreitar o que se estava a passar e


não houve mais reacções. O ventilador manteve-se imóvel, às

escuras e silencioso, o mesmo acontecendo à caixa de alarme.

Voltou para junto da cama e olhou para Grey. Pronto, já estava.

- Adeus, Grey - disse Winter. Engoliu em seco. Podia

ter-te amado... se não te tivesses acobardado. Estendeu

a mão e puxou o tubo. Depois segurou-lhe a mão. O

quarto estava completamente silencioso.

- Muito bem, de que é que estás à espera? - disse ela

em voz alta. «Anda lá, pesadelo, aqui estou eu.»

Quando a vertigem a atingiu, ela percebeu que uma parte

do seu cérebro ainda esperava ouvir a campainha que assinalava

a abertura da sala dos corretores no Stock Exchange.

Estava no Plano Astral e era tudo escuridão. Mas o Outro

Mundo, como Truth Jourdemayne havia dito, resulta tanto das

nossas expectativas como de forças externas.

«Faça-se luz.» O desejo de luz de Winter derramou à sua

volta uma luz fantasmagórica azul-acinzentada que deu ao

lugar um aspecto de Twilight Zone.

337
- Winter! - era um apelo que ela desconhecia; agudo e

imperativo como a súbita lembrança de algo esquecido. Virou-se

para a origem da voz e viu Grey, mais afastado do que lhe

aparecera das outras vezes, ondulando como uma imagem

vista através da água. Correu para ele, estendendo a mão para

o agarrar, mas ele afastava-se cada vez mais.

Finalmente tocou-lhe; roçou os seus dedos pelos dele,

agarrou-os com força. Com um suspiro de alívio, Winter arrastou-o

de novo para a realidade.

- Grey! - disse ela desajeitadamente. Ele parecera-lhe

quase insubstancial quando lhe tocou, mas pouco a pouco tornava-se

mais sólido ao seu toque.

Ele soltou uma das mãos para afastar o cabelo da cara.

Sorriu, e o coração de Winter apertou-se à ideia do desgosto

futuro.

- Não me largues, seja o que for que faças - disse Grey.

- Sem ti estou condenado a desaparecer - disse-o com uma

expressão altaneira que ironizava a certeza das suas próprias

palavras.
- Está bem. - Winter agarrou-lhe a mão como se fossem

órfãos num conto de fadas, a passearem na mais escura floresta.

«Que tal a sensação de estar morto, Grey?» - Que mais

queres que faça?

- É muito simples, à primeira vista. Tens de vir até aqui

(estás a ver as pedras?), onde costumava estar o templo astral

do Círculo Nuclear. É mais difícil do que parece, mas depois

vem a parte mais fácil. Reconstruímos o templo astral do

Círculo Nuclear, e depois...

Winter quase se soltou dele.

- Valha-me Deus, Grey! Foi para isso que me fizeste vir

aqui? Eu faço as lâmpadas explodirem... não consigo fazer coisas

que... que...

Grey abanou a cabeça, frustrado... pelo menos assim

pareceu a Winter.

- Tem de ser. Basta que o imagines tal como ele era; isto

é o Plano Astral: aqui os desejos são a nossa montada, e os pensamentos

são reais. Lembras-te da imagem que todos nós trabalhámos?

Fixa-te nela.

338
Sim, os pensamentos são reais, pensou Winter, à beira do

pânico. E como havia ela de contar a Grey que algures, num

passado próximo embebido em trauma e medicamentos, tinha

perdido a recordação do templo astral do Círculo Nuclear?

- Despacha-te! - intimou Grey, impaciente.

Desamparada, ela deixou que ele a conduzisse até ao círculo

de pedras.

Era como caminhar dentro de água. Cada passo representava

um grande esforço - Winter compreendeu então porque

dizia Grey que era tão difícil alcançar o templo: se não concentrasse

toda a sua intenção no amontoado de pedras, dava por si

esquecida do destino a que seguia; desviava-se noutra direcção

ou pura e simplesmente detinha-se.

Foi a raiva que a salvou. Não a raiva mortífera que, descontrolada,

chamava as tempestades psicocinéticas que por

muito tempo atribuíra a um agente exterior, mas sim uma

determinação calma e fria de fazer o que se tinha proposto

fazer, por mais que a má sorte a contrariasse.

Até que, por fim, Winter conseguiu pousar a mão livre em


cima do montículo de pedras mais próximo. Logo cessaram a

tensão e a desorientação, e ela e Grey, de mãos dadas, caminharam

rápida e facilmente para o centro do círculo.

Grey olhou derredor. Lia-se-lhe no rosto que ele via coisas

diferentes do que Winter estava a ver - ou a recordar.

- Ora bem, cá estamos nós, nos confins da esperança disse

Grey. A voz dele era cortante, de tal modo que Winter se

retraiu interiormente. - Sabes, durante anos ansiei o teu

regresso.

- Eu esqueci-me - declarou ela; assim dita, a verdade

nua e crua soava pior do que ela previra.

- Eu sei - disse Grey, desta vez num tom de voz que

apenas exprimia cansaço. - Procurei-te em sonhos, no

astral... raios, até na Internet te procurei.

- E em Nova Iorque, não procuraste? - ripostou Winter.

Porque estavam eles para ali a discutir? Não tinham já passado

demasiados anos?

- Cansei-me de ser expulso da propriedade da tua família

e fiz-me vagabundo - disse Grey. Ela encolheu os ombros e

339
tentou sorrir, mas em vão. - Mas olha que um cadastro com

detenções constitui uma recordação dandy muito engraçada

para procurar emprego.

Eram os pais dela que tinham feito aquilo. Com toda a

naturalidade e eficiência. Malditos sejam. No mundo incorpóreo,

a espiral do ultraje tinha a força atractiva da aceleração

contínua.

- Eu não fui para aí chamada - disse ela serenamente.

- Nem sequer sabia.

- Eu sei - o sorriso de Grey suavizou-se. - Mas levei

anos a chegar a essa conclusão. Peço desculpa. Mas agora

temos de nos despachar. Temos de reconstruir este templo;

não tarda a vir, e se não conseguirmos refreá-lo quando aqui

chegar...

«Mata-nos», concluiu Winter tacitamente.

E a criatura vinha a caminho. Formou-se uma escuridão

no horizonte, uma pesada hostilidade imponderada que

Winter já por duas vezes tinha sentido. Grey gritou numa linguagem

que Winter, de forma confusa, julgou reconhecer, e,


no lugar onde se erguia o círculo de pedras derruídas sob a luz

argentina omnipresente, as paredes do templo começaram a

erguer-se, enigmáticas, no ar ondulante. Winter sentiu que

Grey drenava a força do seu corpo vivo, mas não era o bastante:

precisava do seu espírito, da sua vontade, do seu ânimo.

Ela tentou fornecer-lhe o que ele precisava - e compreendeu,

com desespero crescente, que não era capaz. Faltava-lhe

alguma qualidade fundamental - se é que alguma vez a tivera.

- Winter - queixou-se Grey. Ela apertou-lhe a mão com

mais força e abanou a cabeça, incapaz de pronunciar palavra.

Ele queria que ela voasse, mas as asas tinham-se derretido há

muito tempo.

A criatura estava quase a chegar, e eles ali indefesos. Grey

tinha dito que o Elemento era mais real naquele lugar; naquele

mundo Winter sentia o chão tremer à sua aproximação, e a

tempestade que anunciava a sua chegada recrudescia. A seu

lado, Grey lutava por erguer sozinho as paredes do templo,

mas Winter sabia que ele não seria capaz.

Era impensável que Grey fosse capaz de criar sozinho o

340
que fora feito à custa do esforço de cinco pessoas.

Então, a coisa atingiu-os. A tempestade desabou sobre

Winter como as águas de um maremoto: um vórtice gelado

que a arrepiou e ensurdeceu, sugando-lhe do corpo a força, a

ponto de deixar de sentir a mão de Grey na sua. «Isto não é

assim tão mau», foi a primeira reacção, falsa, de Winter. Ela

esperava um monstro, uma espécie de Alien, e não a escuridão,

a pressão esmagadora.

Mas a sensação de alívio desapareceu antes mesmo de ter

tempo para se afirmar, foi-se com a noção da verdadeira natureza

do monstro que Hunter Greyson tinha criado.

Primeiro veio a dor. Era pior que a pior das enxaquecas

que a deixavam doente e aturdida dias a fio, pior que a pior

das dores jamais imaginadas. Mas mesmo isso era suportável,

era até bem-vindo em comparação com as agulhas de gelo que

lhe perfuraram os olhos, o cérebro, espetando ali a ideia de

desumana fome e perda. Dor - e a alma que Winter não estava

certa de possuir, gemeu desesperada. O Elemento vinha ter

com ela, trazia-lhe uma mensagem de aflição e dor, cólera e


traição, roubava-lhe a sanidade e o ego com a mesma facilidade

com que ela desmembrava um frango, destruindo tudo o que

Winter era, mas deixando a centelha gritante da consciência,

do sofrimento e do arrependimento.

Para sempre.

Ela não percebeu quando é que a coisa parou, apenas

sabia que corria. Grey arrastava-a para longe do templo, segurava-lhe

a mão com a sua mão, tão quente e sólida que

Winter sabia que mesmo naquele lugar irreal estava à beira

da morte.

- Grey, pára, Grey - arquejou Winter. Queria gritar, queria

morrer, tudo faria para impedir que a criatura voltasse a

tocar-lhe, tudo...

Grey parou e abraçou-a, apertou-a contra si. Winter imaginou

sentir na pele o coração palpitante de Grey. Apetecia-lhe

chorar, mas o terror secava todas as lágrimas.

- Estamos tramados - disse Grey, regressando à sua jovialidade

irónica.

- Grey! - protestou Winter, como se a brincadeira

341
implicasse maior castigo.

- Não. - Winter pressentiu que ele negava falsas esperanças.

- É demasiado forte. Prefiro fugir, por agora; e não me

admirava se voltasse a fazê-lo. Senão, ele dá cabo de nós.

- Não - gemeu Winter. Não havia por onde fugir: aqui

ou no mundo real, a criatura não deixaria de persegui-la.

Era isto que Cassie tinha sentido antes de morrer?

Seria isto?

Bem no âmago de Winter atearam-se fogachos de fúria e

culpa. Ela atiçou-os. Qualquer coisa era preferível ao terror:

raiva, culpa, orgulho - qualquer coisa que lhe servisse para se

defender seria bem-vinda.

- Disseste-me que podíamos matá-lo - disse Winter,

numa voz que ela própria dificilmente reconhecia. Mentiste.

- Frio. Frio como a serpente-ódio; frio como gelo;

um escudo que fora forjado apenas para esta circunstância

extrema. Inútil no mundo real, constituía aqui a sua única

esperança.

Grey olhou para trás. No horizonte, a tempestade concentrava-se


de novo.

- Não se trata de matá-lo mas sim de desfazê-lo - disse

Grey serenamente. - Vê se entendes: é preciso desligá-lo da

tarefa para que foi criado. Pronuncia, ordena, liberta. Como

pude eu... até me parece que podia obedecer-me se pudéssemos

empatá-la o tempo necessário... couraçar-nos contra ele

seja como for... mas não podemos. Senhor da Roda - desta

vez, Winter detectou verdadeira angústia na voz dele -, eu

abro mão de tudo o que sou, de tudo o que podia vir a ser, de

todo o meu progresso no Caminho, se puseres termo a tudo o

que eu pus em marcha!

- Precisamos dos outros.

Donde surgia esta súbita certeza, esta noção de que ela

era algo para além dela própria?

- A Cassie morreu - disse Grey, hesitante.

- Eu sou capaz de chamá-la. - Donde quer que viesse

esta certeza, ela tinha de acreditar na sua justeza. «Ajuda-me,

ajuda-me; ajuda-nos!», rezou Winter. Vieram-lhe à ideia fragmentos

de memórias: «Senhores da Roda, Senhores da Nova

342
Era, nós, vossos filhos, suplicamos...»

- Se és capaz de os convocar e trazê-los aqui, tem de ser

já - disse Grey em voz monocórdica. - Porque ele aí vem

outra vez.

Foi como se, no auge do desespero, ela deixasse de ser

cuidadosamente lógica para se tornar puramente instintiva. A

força que existia dentro dela acenou-lhe - e logo ela a agarrou,

e foi como se tivesse mergulhado as mãos no coração do

sol.

Cassilda, Ramsey, Janelle...

Cassilda perfilou-se às portas da morte, demorando à beira

da fronteira, detendo-se valentemente à espera da convocação

seguinte. Winter esticou-se na sua direcção e tomou-lhe a mão,

que estava fria, tão fria...

No castelo dos sonhos, perfilaram-se Ramsey Miller e

Janelle Baker.

Ela viu-os.

«Um sonho, Winter - qualquer coisa que todos possamos

partilhar!», urgiu Grey. «Depressa!»


E ela refez o mundo à sua própria imagem.

O estádio estava à pinha, um milhão de corpos sem rosto

a urrarem no escuro, a projectarem paixão e energia para o

palco. Winter ergueu-se sozinha na plataforma vazia e, armada

de forças superiores a si própria, intimou o Círculo Nuclear à

existência.

«Um sonho que todos possamos partilhar.» Juntá-los, uni-los,

voltar a fazer deles um só todo.

A música arrancou, e Winter deixou-a prosseguir.

Primeiro veio Grey, iniciando a melodia com uma dança

de cordas electrificadas, abrindo caminho aos outros, mortos

ou vivos, para que pudessem juntar-se em coro...

Ramsey, logo atrás, com ritmo forte e seguro, pronto a

segui-los onde quer que fossem...

Cassilda, cujo trabalho no mundo fora interrompido, incitava-os

ao som das batidas infrenes dos tambores, exortando-os

a avançar...

E, a fechar, Janelle dançava contrapondo o seu violino às

343
duas guitarras. Winter encheu o peito de ar e lançou-se na teia

de sons com o trinado argentino da sua flauta a rematar o conjunto,

a selar o círculo, enformando o poder. Grey encabeçava

o grupo, mas era Winter quem desbravava o caminho.

«Música, Winter. Som e ritmo, a primeira percepção, o

ponto de partida...»

Ela via-os sem precisar de olhar; via-os a todos - e via,

também que nenhum deles era completo. Cada um tinha falhado,

algures, no mundo, depois de deixar a época áurea.

A Janelle faltara nervo, a Ramsey ânimo, a Cassie vontade;

mas ela, Winter, fora o pior dos casos: por cobardia perdera fé

e a confiança não só no futuro mas sobretudo num bem constante

e essencial.

A música vacilou.

Mas não tinha importância, disse Winter a si mesma com

bravura. Juntos eram capazes de superar as falhas mútuas, de se

fortalecerem mutuamente contra o mundo, contra o passado.

Winter sentiu que o Elemento os alcançava: carência e

desespero, amargura e cólera - mas agora, contra tudo isso,


Winter opunha o melhor do grupo: a coragem de Janelle, o

amor de Ramsey, a ternura de Grey e a segura ousadia de

Cassilda. Mortos e vivos, todos juntos, unidos num pacto que

transcendia berços, que garantia a força da música. Ali, no

tempo fora do tempo, se situava a época áurea em que todos

tinham sido deuses, e nada os excedia em poder.

Winter concentrou-se no Elemento...

E a metáfora de novo se transformou, e agora Winter dançava,

de pés descalços e túnica breve, no topo de uma colina.

A melodia que entoavam era antiga, rica, profunda: tambores

e gaitas, a cujo som ela rodopiou nos braços de Grey ao sabor

da música, a matilha e a lebre, mas desta vez era a matilha

que conduzia a lebre, tecendo uma teia de som e magia que

acabaria por tolhê-la.

- Apanhado! - exultou Grey, mas não bastava apanhá-lo;

Grey tinha de destecê-lo, tinha de reconduzir o filho das suas

intenções à poeira primordial que deu origem ao universo.

Havia ali qualquer coisa errada, qualquer coisa que ela

tinha descurado, mas não havia tempo para sondar dúvidas;

344
Winter voltou a encabeçar o círculo, enquanto a definição do

mundo deslizava da ideia de Grey para a de Winter, transferindo-se

pela derradeira vez.

E ela socorreu-se dos circuitos impressos, dos discos magnéticos,

dos arquivos digitais, chamou aplicação após aplicação,

a definição da criança da Idade do Computador...

Ao toque da campainha, a sala de corretagem da Bolsa

ergueu-se num rugido unânime saído de um sem-número de

gargantas; aí estava Chicago, uma hora depois de Nova Iorque;

era quase meio-dia em Londres e o padrão-ouro era já velho há

horas; o Japão dormia ainda quando era já amanhã no Extremo

Oriente e os dados brotaram em meia dúzia de ecrãs de computador

e eram a coisa mais veloz, mais certa, mais capaz de

integrar a torrente de dados e construir um mundo a partir

deles; um mundo em que tempo era dinheiro e dinheiro era a

fantástica dança dos EFT através de milhares de mercados

mundiais...

E este reino de vontade e domínio tornou-se vivo a seu

mando, submeteu-se à sua vontade, à sua ideia. Blindada de


aplicações, de programas, de sub-rotinas, Winter avançou para

o mercado:

demónio

vírus

má arte

Deixou que Grey falasse através dela ...

O que eu ordenei cumpriu-se e é chegado o termo do

teu prazo. Pelo fogo e pela água, pela palavra e pela vontade,

pelo que é morto e vivo na terra, eu te recordo a forma

como foste feito e neste instante te desfaço...

... estendendo as nobres mãos implacáveis sobre o que

não pertencia ao perfeito padrão que constitui o projecto de

toda a criação ...

E a Caçada se deu por concluída ...

E a música rodopiou num crescendo ...

E o sistema se carregou e começou a correr...

E toda a metáfora se consumiu.

Winter sentiu que Cassie foi a primeira a partir, com suave

345
gargalhada e derradeira carícia, pelo Caminho Espiral do início

da criação.

«Renascida para a Deusa. Adeus, Cassie.»

Depois Ramsey e Janelle recaíram no sono, talvez para

buscarem dentro dele a coragem de acordarem ao mundo.

«Durmam bem, meus amores. Sonhos certeiros.»

Foram-se todos, deixando-os a sós, ela e Grey, de mãos

dadas, na desolação em que apenas restava uma coisa.

Ela fazia treze anos, a idade que teria se tivesse vivido. No

seu rosto fundiam-se os traços de Grey e de Winter.

Mamã... A criança-fantasma vacilou; esfomeada, carente...

Winter deu um passo em frente.

- Não vás - disse Grey asperamente. Fechou a mão

sobre a de Winter, impedindo-a de avançar. - Ela não está

viva. Se deres um só passo fora do círculo permanecerás errante

para todo o sempre. Nunca mais consegues encontrar o

caminho de regresso ao teu corpo, da mesma forma que eu

não pude encontrar o meu, a partir do momento em que se

rompeu o cordão de prata.


Surpreendida, Winter olhou para baixo. A seus pés estendia-se

uma linha de seixos de quartzo, dispostos numa linha

curva que era o círculo mencionado por Grey.

- Não me interessa! Ela é...

«Minha filha.»

Winter tentou soltar a mão, mas Grey não a largou.

Apertou-a com tamanha força que fazia doer; de tal maneira

que ela olhou espantada para ele, confundida e furiosa.

- Mamã - gemeu o fantasma novamente, e o som

daquela voz despedaçava o coração de Winter.

- Eu desobriguei-a - disse Grey em voz rouca. - Tudo

o que o Círculo Nuclear criou desapareceu. Mas ela permanece

- torceu a cara num esgar de irritação... e medo. - Criei

uma coisa que não fui capaz de controlar, mas não sou um

mago negro; nunca seria capaz de obrigar uma alma humana a

qualquer coisa que eu tivesse criado. Ela era a minha... ela era

a nossa... Eu não a obriguei a este lugar!

Ele deu um sacão, para se soltar, mas desta vez foi Winter

quem o segurou firmemente. Depois de tudo o que se tinha

346
passado, pensava ela que já nada seria capaz de refrescar as

suas emoções tão causticadas, mas afinal...

- Não - disse Winter. - Fui eu. - Ódios, carências,

imposições e entraves... «Foi o ódio. O poder do ódio.»

Grey dizia que tinham sido eles cinco os criadores do

Elemento na sua forma original. Se assim era, então alguma

coisa de Winter permanecera no Elemento durante todos

aqueles anos, alguma coisa suficiente para que a criança mágica

de Grey, escapando-se ao seu fraco controlo, fosse em

busca de...

Da filha deles.

- Tudo isto é culpa minha. É por minha causa que ela

está aqui. Grey deixa-me ir. Tenho de ir ter com ela.

- Não - disse Grey, com voz fatigada. - Temos de

chamá-la. - Olhou-a nos olhos. - És capaz de fazer isso?

- Claro que... - começou Winter, mas deteve-se a

meio. Seria realmente capaz? Seria capaz de aceitar o facto de

ter posto aquela vida à margem por medo egoísta e desorientação?

Seria capaz de admitir que a sua presença ali era testemunho


não de uma nobre emoção, mas sim do seu ódio obsessivo?

Seria capaz de suportar ver-se tão claramente? Estaria

sequer disposta a tentar?

E qual era o preço da derrota?

- Sim - disse Winter numa voz estrangulada.

Sem deixar de lhe segurar a mão - mas agora gentilmente

-, Grey inclinou-se e retirou uma das pedras do círculo. Chama-a.

Que nome, que nome dar à filha que nunca foi? Incapaz

de pronunciar palavra, Winter estendeu a mão. A criança uma

menina à beira de ser mulher, sendo que tudo nela era ilusão

- atravessou o hiato do círculo, e então Winter largou a

mão de Grey para a segurar nos braços.

«Frio, tanto frio... Cometi um erro. Nem sempre é assim,

nem sempre acontece a todas as mulheres. Se tivesse reflectido,

talvez acabasse por chegar à mesma solução. Mas pelo

menos teria reflectido antes de fazer isto!»

Grey abraçou-as ambas, e Winter sentiu também os pensamentos

dele: pesar e autodesprezo; culpa colérica de não se

347
ter esforçado mais por mitigar os medos dela, há muitos anos,

por não ter tentado ser o homem que ela desejava.

«Mas não se pode viver apenas para os outros, Grey», pensou

Winter tristemente. «Temos de viver por nós mesmos, também.

Tem de haver um meio termo.»

O frio parecia mergulhar nos seus próprios ossos, à medida

que a criança-espírito deslizava para a liberdade, desobrigada

por fim.

«Qualquer dia, mamã. Um dia...»

Veio-lhe à ideia uma frase do Trabalho Blackburn, e

Winter disse em voz alta:

- Eis a Terceira Porta, a Porta da Feitura e Desfeitura,

onde a Vida se faz Morte, e a Morte, Vida.

E já nada havia entre os braços de Winter.

- Agora é a minha vez.

Winter olhou para Grey. Ele afastou-se, vestido como ela

melhor o recordava, com colares e casaco de cabedal e calças

de ganga desbotadas. Por trás dele, uma estrada que ela ainda

não tinha visto estendia-se até ao infinito; uma longa estrada a


direito, pavimentada, não de tijoleira amarela, mas de prata

reluzente.

- Obrigado por teres vindo - disse Grey, gesticulando

para completar a tibieza das palavras. - Obrigado por me

teres libertado... por nos teres libertado a ambos. Espero

que... espero que possas ser feliz. - Virou-se para partir, em

direcção à estrada que o aguardava.

«Desde que ele a alcance, será demasiado tarde.»

- Não, espera! - disse Winter, deitando-lhe a mão, mas

a bainha do casaco dele escorregou-lhe entre os dedos.

- Então desistes assim, e pronto? - gritou ela.

Grey virou-se para trás, olhando-a sem compreender:

- Desistir? Eu estou morto, Winter.

- Não, não estás; ainda não. Tu mesmo disseste que o

tempo aqui não existe. Ainda não estás morto. - Já não havia

outra forma de agarrá-lo que não fosse por palavras. - Volta

comigo; volta para mim. Nós podemos... Deve haver uma

maneira de voltarmos a tentar.

- Não posso fazer isso - sentia-se o medo na voz dele.

348
- Não sou capaz. É demasiado... não percebes. O cordão rompeu-se.

Não encontro o meu caminho. Deixa-me ir embora.

- Não, não deixo! - disse Winter, forçando-o a olhar

para ela, a ver. - Disseste que me amavas; pois prova-o! Senão

tudo isto terá sido em vão; não adianta esforçarmo-nos, se os

erros que cometemos permanecerem eternamente. Prova que

não é assim; prova que, qualquer que for o erro que tenhamos

cometido, é sempre possível arrepiar caminho, recomeçar de

novo, de modo que nenhum erro seja eterno... - rompeu-se-lhe

a voz.

Grey deu um passo em direcção a ela, virou costas ao

apelo da estrada. Ouviu-se então um som vindo de longe, um

ténue zumbido de vento distante.

- Está bem - disse ele, em voz tão baixa que ela mal a

ouvia. - Vou tentar.

- Tentar! - gritou Winter. - Tentar não basta! Eu não

me limitei a «tentar», ainda há pouco... Eu fi-lo! Agora é a tua

vez.

Grey hesitou, mas Winter foi até ele e afastou-o do caminho


reluzente. Sentiu nas mãos o corpo dele, frio e irreal. Ele

tombou contra ela, arquejando e rindo ao mesmo tempo.

- Muito bem - disse ele. - Eu mereço-o. Senhores da

Roda - entoou Grey, e Winter compreendeu que não era a ela

que ele se dirigia -, retomo as cadeias da substância de boa vontade,

em expiação do meu orgulho, segundo a vossa vontade.

O rosto dele transformou-se; parecia mais velho, mais

esquálido, como se enfrentasse agora uma provação que ela

não entendia.

- Ajuda-me, Winter. Sozinho não sou capaz de encontrar

o caminho. Leva-me contigo.

O som longínquo crescia ininterruptamente, era agora o

som do mar a bater nas rochas lá em baixo. Enquanto Winter

observava fixamente o rosto de Grey, a luz astral sumiu-se e

começou a chover.

Fazia frio e vento; cheirava a maresia e a terra. O rosto de

Grey contorceu-se de dor e ele caiu de joelhos, e libertando

uma das mãos apoiou-a contra as costelas. Winter, em pânico,

viu-lhe as roupas delirem-se e fluírem, transformarem-se de

345»
novo em negros cabedais de motard e em calças esfarrapadas

e ensanguentadas. Ajoelhando-se, abrigou-o dentro do seu

abraço, a protegê-lo.

«Os faróis. Oh, meu Deus, o frio. Não virá ninguém acudir-me?»

Os ecos do medo horrorizado de Grey encheram-lhe

o cérebro. Mas isso tinha sido há mais de um ano... e isto passava-se

agora. Num lugar onde o tempo não tinha significado,

Hunter Greyson atravessava a mais dura das jornadas - para a

vida.

- Não me abandones - arfou Grey. - Fica comigo.

Winter apertou-o contra si, face contra face. A pele dele

estava fria como chuva, cada inspiração parecia um esforço

impossível.

- Não - disse ela, e as suas lágrimas misturaram-se com

a chuva e os salpicos salgados que vinham das rochas. Nunca

mais te abandono, Grey.

350
EPÍLOGO

O REGRESSO DO CAÇADOR

For winter’s rains and ruins are over;

And all the seasons of snows and sins;

The days dividing lover and lover,

The light that loses, the night that wins;1

ALGERON CHARLES SWINBURNE

Dezembro em San Francisco é estação de ventos uivantes

e chuvas pesadas; a humidade penetrante trespassa os mais

grossos casacos de Inverno com enervante persistência e as

iluminações de Natal parecem incoerentes numa cidade onde

a temperatura ronda os 10°C e não existe a mais remota hipótese

de neve.

Winter conduzia o grande Mercedes prateado com o à-vontade

de quem está acostumado àquela estrada, grata pelo

peso do carro, que o tornava estável mesmo debaixo de chuva

e vento fortes. Frodo e Emily embirraram com ela, quando

decidiu comprar aquele carro de luxo, mas Winter argumentou,

com toda a razão, que precisava de um carro espaçoso

para transportar todo o equipamento de terapia e fazer duas


viagens por semana até à clínica de fisioterapia, coisas que

constituiriam o seu dia-a-dia no futuro próximo.

Felizmente descobriu um fisioterapeuta bem perto de

casa, de modo que esta era a última viagem que fazia pela

ponte de Berkeley até ao Hospital Ortopédico de San Francisco

- ou, como lhe chamavam os respectivos utentes, Cidade

da Ressurreição.

- Estou tão entusiasmada. Nem sei como hei-de agradecer-te

- disse Janelle, instalada no banco da frente.

1 Acabaram as invernais chuvas e ruínas; / E todas as sazões de neves e pecados;


/ Os dias

que apartam amante e amante, / A luz que extravia, a noite que vence. (N. do T.)

351
- Jannie, ainda não paraste de dizer a mesma coisa desde

que cá chegaste, já lá vão seis semanas! - disse Winter indulgentemente.

- Para que haviam de servir os amigos, se não

fosse assim? - concluiu, destacando as sílabas ao ritmo monótono

dos limpa-pára-brisas.

- Mas tu foste tão prestável - disse Janelle.

- Eu não te arranjei um trabalho no... Como se chama

esse sítio em Seattle?

- Wizards of the Coast - disse Janelle, corando de orgulho.

Janelle Baker tinha abandonado Denny Raymond havia

quatro meses para ir pedir abrigo no Bergen County Women’s

Services. Tinha falado com Winter pouco depois, e as duas

mulheres mantiveram-se em contacto, cada uma empenhada

na reconstrução da sua vida.

- E o Ramsey vem cá ter no Natal - acrescentou Janelle.

- Imagina... Vamos estar todos juntos.

- Todos os que sobram - disse Winter, sombria. Faltava

Cassie. Enfiou o Mercedes no parque de estacionamento do

hospital e descobriu lugar perto da porta. - Não me demoro


- disse ela. - Não te importas de esperar aqui, Jannie?

O cheiro familiar dos desinfectantes colheu-a em cheio ao

abrir-se a porta do elevador. Depois de tantas visitas, podia ter

passado pela recepção sem pedir licença, mas aquele dia era

especial.

- Ele está quase a sair, Winter - disse a enfermeira de

serviço. - Feliz Natal.

- Obrigada, Rachel. Feliz solstício para ti - Winter sorriu,

respirando pesadamente para disfarçar o nervosismo.

Tinha ansiado tanto por aquele momento! E queria que tudo

corresse na perfeição.

Hunter Greyson atravessou lentamente o átrio, direito a

ela, seguido de perto pelo terapeuta. As roupas que ela lhe

trouxera especialmente para a ocasião tinham um aspecto aflitivamente

novo.

- Olá, querida - disse ele, com o seu largo sorriso de

banda. - Vamos dar um pé de dança?

352
Winter foi ter com ele e abraçou-o com cautela. Não se

dominou que não lançasse um olhar à garganta de Grey. Da traqueostomia

que um dia permitira que uma máquina respirasse

por ele, apenas restava uma pequena cicatriz branca.

Os efeitos de um ano em estado de coma não podiam ser

minorados instantaneamente, mas Grey progredia rapidamente

em saúde e mobilidade desde o dia, em San Gabriel, em que

Winter o viu abrir os olhos, deitado na cama do hospital. Tinha

sido difícil justificar a sua presença dentro do edifício àquela

hora - já para não falar no ventilador destruído -, mas o

facto de Grey estar vivo e consciente acabou por abafar tudo o

mais. Uma vez que ele estava em condições de tomar as suas

próprias decisões, Winter pôde transferi-lo para a Cidade da

Ressurreição, onde começou a longa saga da reabilitação.

- Pronto para a viagem? A Jannie está lá em baixo à espera

dentro do carro e Ramsey chega amanhã - disse Winter.

- Hurra, hurra, viva a pandilha - Grey passou-lhe o

braço à roda da cintura.

- Já aí vem a cadeira de rodas - disse Rachel.


- O diabo que a carregue - retorquiu Grey, com o seu

sorriso de esguelha. - Vou sair daqui pelos meus próprios

meios.

O pessoal auxiliar e as enfermeiras aplaudiram quando ele

atravessou o corredor e entrou no elevador. Ele curvou-se cautelosamente

quando as portas se fecharam, e Winter amparou-o

quando tentou endireitar-se.

- Um pé de dança, hein? Não me parece que seja coisa

para as próximas semanas.

- Talvez no Ano Novo - alvitrou Grey irreprimivelmente.

Sorriu, orgulhoso, para Winter. - Agora que voltei a ser

senhor da minha vida (ou quase), que havemos de fazer pelo

resto dos tempos?

- Eu sei o que gostava de fazer - disse Winter.

Tencionava dizer aquilo mais tarde, mas pareceu-lhe que o

momento era oportuno. - Gostava de me casar. Aliás tu pediste-me,

não sei se te lembras... há catorze anos.

A alegria que transpareceu no rosto de Grey assegurou a

Winter que tinha escolhido o momento exacto.

353
- Já não era sem tempo - disse ele, tomando-lhe a mão.

- Demoraste muito a dizer o sim.

- Mas nunca é demasiado tarde - respondeu Winter,

com os olhos marejados de lágrimas - para recomeçar.

E tempo relembrado é sofrimento esquecido,

E friúras são mortas e flores brotadas,

E em verde acobertada

Pétala a pétala nasce a Primavera.2

ALGERON CHARLES SWINBURNE

2 And time remembered is grief forgotten,

And frosts are slain and flowers begotten,

And in green underwood and cover

Blossom by blossom the spring begins.

354

BADANA DA CONTRA-CAPA

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A Casa dos Espíritos

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I - O Círculo de Blackburn

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Outside

O Vice-Cônsul

Olhos Azuis Cabelo Preto

A Vida Material

Dez Horas e Meia numa Noite de Verão

Uma Barragem Contra o Pacífico


A Ausência de Lol. V. Stein

Vida Tranquila

Escrever

Yourcenar, Marguerite

Conto a Água que Corre

O Tempo, Esse Grande Escultor

Alexis, ou o Tratado do Vão Combate

A Benefício de Inventário

O Labirinto do Mundo

Memórias (Souvenirs Pieux)

Arquivos do Norte

O Quê? A Eternidade

Fogos

Eco, Umberto

O Nome da Rosa

O Pêndulo de Foucault

A ilha do Dia Antes

Handke, Peter

Uma Breve Carta para Um

Longo Adeus

A Hora da Sensação Verdadeira


Joyce, James

Ulisses

Retrato do Artista Quando Jovem

McCullough, Colleen

Uma Obsessão Indecente

Tim

Pássaros Feridos

O terceiro milénio

O primeiro homem de Roma I, II, III, IV

\
Outside
Contra-capa

Nasceu em Albany,

Estados Unidos da América, em Junho

de 1930. Começou a escrever

ainda adolescente e, até agora, escreveu

mais de cinquenta livros, um

terço dos quais constitui as Darkover

novels.

é uma das

escritoras mais famosas da nossa

época. O seu bestselling «As Brumas

de Avalon», também editado pela

Difel com grande sucesso, manteve-se

durante mais de três anos na lista

de preferências do New York Times

e vendeu mais de um milhão

de exemplares.

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