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ERNEST BARBOUR
MARTIN BARBOUR
AMY SESSIONS
A DINASTIA DA MORTE
Título original norte-americano DYNASTY OF DEATH
Copyright © 1938 by Charles Scribner’s Sons
Copyright © 1965 by Reback and Reback
O contrato celebrado com a autora proíbe a exportação deste
livro para Portugal e outros países de língua portuguesa.
NOTA DA AUTORA
Impresso no Brasil
Impresso na
— Sua mãe não vai ficar preocupada por você chegar tão
tarde da escola?
— Garoto ingrato!
— O que está havendo com o velho Joe? Por que ele não
me conta logo tudo?
— Tem toda razão, pai. Acho que é isso mesmo. Mas Tio
George ajudou-nos porque achava que você poderia dar-lhe
uma coisa lucrativa. Mas não vamos falar mais sobre isso.
— Pai, você sabe que não está sendo justo. Não sou um
tagarela e só falei com Armand. E como o ouvi hoje falar
tudo para Armand sobre o novo gatilho, conclui que não se
importaria se eu falasse do canhão.
— Ele disse que não via qualquer motivo para que não
possa dar certo. Diz que pode ser um canhão de carregar
pela culatra. Os velhos canhões não merecem confiança, às
vezes ficam emperrados, de vez em quando explodem em
cima dos artilheiros, matando-os. Armand disse também que
é melhor começarmos a trabalhar nisso imediatamente, pois
um dia desses haverá o diabo na América, por causa dos
escravos do Sul.
— Isso não faz diferença para mim, meu rapaz. Sei que
George poderia me apunhalar pelas costas para ganhar
algum dinheiro. Mas acontece que eu não sou assim.
Foi para essa família que Ernest Barbour virou seu rosto
de 19 anos, numa bela manhã. Foi como se virar para o
destino, mas somente Ernest tinha consciência disso, embora
vagamente.
— Continue.
— Aqui estamos.
— Tudo o que sei, Joe, é que seu rapaz aqui, Martin, bateu
na minha porta como um coelhinho assustado, quase
desfalecendo como uma rapariga, dizendo que Armand o
mandara aparecer aqui às sete e meia. Armand apareceu logo
depois. E agora chegam você e Ernest. O negócio está me
parecendo muito esquisito.
— Não está tão surpreso? Não, posso ver que não está.
Señor Barbour, há uma facção no México extremamente rica.
Mas dispõe de poucas armas, quase não tem pólvora. É uma
facção que tem sido vilmente insultada e atacada. Não
preciso dizer como ou por quem. Muito território tem sido
arrancado de meu pais, injustamente.
Era raro Ernest não olhar para o pai quando lhe falava.
Agora, no entanto, ele parecia concentrado demais em limpar
a graxa dos dedos com o pedaço de pano. Havia estranha
palidez em seu rosto contraído.
— Essa não! — exclamou Joseph, sorrindo. — Por acaso
está pensando em casar e morar naquela casa, filho?
— Não. E também não quero que ela saiba. Acho que fui
um tolo em falar alguma coisa agora.
— Por ter falado comigo? — Joseph estava indignado. —
Isso não é coisa que se diga, rapaz!
— Pai, como sabe que esses homens não são como ‘nós’?
O que o leva a pensar que são inferiores?
— E por que não? Claro que penso nos lucros. Para que
estamos no negócio?
— Ah...
— É possível.
— Como?
— Deixem-no descansar.
— Terei de ir sozinho.
Martin sabia que o pai devia ter sentado ali para esperá-
lo. Assim, pôs a mão no ombro de Joseph e sacudiu-o, de
modo gentil.
— Exatamente.
— Não.
— Oh, Greg, será que você é tão cego que nem percebe o
que está acontecendo diante do seu nariz? Não está vendo
tudo? É mais do que evidente que Amy está ficando
apaixonada por aquele rapaz!
— Mas como está sendo tolo, Greg. Não pode fazer nada
contra ele. Saiba que não sou tão boba quanto a pequena
Amy. Compreendo perfeitamente tudo o que aconteceu. E era
do meu interesse compreender, já que sou sua herdeira, não
é mesmo? Não vai ficar tudo para mim, depois que você e
Nickie morrerem, nos termos do testamento do Primo Aaron?
Também gosto de dinheiro. Não seria uma Sessions se não
gostasse, apesar de nossa tradição e família, mesmo tendo
uma cama em que George Washington dormiu, quando
visitou nosso bisavô, nesta própria casa. Todos gostamos de
dinheiro. Seríamos tolos se não gostássemos. Assim, sei
exatamente o quanto devemos ao Sr. Barbour e sei também
que ele não nos deve nada. Portanto, faça o favor de não
proferir ameaças vazias. Sei também que não se importa com
qualquer outra pessoa no mundo além de Amy. Pois se a
ama, fará o que puder para salvá-la da infelicidade. Se o Sr.
Barbour casar com ela e descobrir que sou eu e não Amy a
herdeira, certamente vai odiá-la e torná-la muito infeliz.
Deve tomar alguma providência o mais depressa possível. É
perfeitamente evidente que Amy está atraída por ele, mas
tenho certeza de que ainda é uma fantasia e que há tempo
para salvá-la.
Gregory disse:
— Não sei por que estou lhe contando tudo isso, Ernest.
Sei que não pode ter o menor interesse para você.
Geralmente não transformo ninguém em meu confidente,
mas tenho me preocupado ultimamente com o que poderá
acontecer à minha pequena Amy depois que eu morrer.
— Não volte, mãe. Não quero leite, não quero pão. Tudo o
que desejo é ficar sozinho.
Sua mente era tão inflexível que teria ido para a cama
nesse instante, com a carta escrita, sua resolução tomada,
nada mais poderia afetar sua determinação. Anos mais tarde,
recordaria aqueles poucos minutos que se seguiram ao
momento em que escrevera a carta, aturdido e espantado.
Como sua vida poderia ter sido diferente! Como seus filhos
poderiam ter sido diferentes! A posteridade dependera
daqueles poucos minutos, toda uma dinastia pendera
naquele instante. Talvez um mundo inteiro fosse diferente
se tivesse ido então para a cama. O simples fato de tirar as
botinas, apagar a vela e deitar sob as cobertas teria mudado
dezenas de vidas, talvez muito mais.
— Sabe muito bem que não pode fazer isso! — disse ele,
em voz alta, para si mesmo. — Destruiria os seus próprios
lucros no futuro!
— Por que tem de ser tão cínico? Por que não pode
acreditar que as pessoas sejam de vez em quando impelidas
por motivos honrados e generosos? Acha mesmo que não
existe o bem no mundo?
— Mas não me preocupo com isso. Sei que você não pode
fracassar em nada, meu caro Ernest.
— Exatamente.
May sussurrou;
— Claro.
— Sente-se, querido.
— Padre, vim lhe dizer hoje que não vou mais para
Quebec. Vim lhe dizer que me apaixonei por uma moça e vou
casar com ela.
— Leia a carta!
— Sucesso?
— Sucesso.
Foi como um passaporte, a senha para um desafio. O
passaporte e a senha para a vida dele, em que, apesar de si
mesmo, tudo era relativamente sem importância. Apenas
mais duas vezes, em toda a sua vida, Ernest haveria de
experimentar a mesma clareza de visão, durante a qual teria
a impressão de estar parado a distância e observando a si
mesmo, como se fosse impelido por alguma força exterior
sobre a qual não tinha o menor controle. Ora, pensou ele de
súbito, não sou absolutamente livre. Sou o mais acorrentado
dos escravos. Depois, ele disse:
— Ele é horrível.
— Mudou?
Ernest não disse nada. Gregory não podia ver o rosto dele
no escuro. Ficou um pouco desapontado e acrescentou,
especulativamente:
— Creio que ele só viu o seu filho uma vez. Disse que era
igualzinho a você quando era bebê e pareceu ficar muito
comovido. Se não me engano, comentou em deixar-lhe o
relógio do pai, que foi um presente do comandante do
regimento, depois de Waterloo, por bravura em combate. —
Ele virou a cabeça bruscamente para Ernest. — Disse alguma
coisa, Ernest?
— Não... nada.
E afastou-se.
— Armand, diga a Joe que essas coisas que ele falou sobre
Ernest não são verdadeiras. Fale também, Sr. Gregory,
Martin suplicou:
— Está bem, Amy. Acho que você fez sua cama e agora
quer deitar nela. Mas lembre-se... — e ele sacudiu o dedo na
direção de Martin — de que você não podia ter escolhido um
meio melhor de colaborar para os planos de seu irmão! Posso
lhe garantir que ele não tentará dissuadi-lo! Não vai lhe
oferecer nenhum argumento, não fará nenhum apelo para
que use sua inteligência! Vá procurá-lo e diga-lhe o que
acabou de me falar. E deixe sua mãe e irmãs à mercê dele!
Vire as costas ao seu dinheiro em favor dele, ao dinheiro que
seu pai lhe deixou, ao dinheiro que pertence à sua mulher e
seus filhos! Quero ver se Ernest vai recusar!
Gregory não contava muito com esse apelo final ao medo
e à desconfiança, à simplicidade, inocência e falta de
compreensão. Mas percebeu, pela mudança de expressão de
Martin, que acertara no alvo. Não precisou de muito tempo
para se aproveitar dessa vantagem, apresentando os
argumentos mais veementes e absurdos, apelando
reiteradamente ao medo e desconfiança de Martin, a seu
senso de dever. Por volta de meia-noite, quando Gregory
finalmente foi para casa, deixou Martin num estado patético
de indecisão, desespero, confusão e ansiedade.
Ele mal podia acreditar que eram seus filhos, pois sentia-
se tão desamparado e inseguro quanto as crianças.
— Não fuja.
— Sim, senhor.
— Vou, sim.
— Eu sei... um pouco...
“Pois vou lhe dizer agora o que quero fazer, o que devo
fazer. Não vou retirar-me da firma. Tenho uma quantidade
de ações igual à sua. Mas você pode sobrepujar-me em
qualquer votação, pois conta invariavelmente com o apoio de
Armand, Eugene, Raoul e o Sr. Gregory. Ou os hipnotiza ou
eles são como você. Não sei dizer. Assim, minha intenção é
permanecer na firma, devolver àqueles pobres coitados uma
parte do que ganharam. Vou depositar dois terços ou a
metade dos meus dividendos no banco, para aqueles
homens. E quando eles quiserem ir embora, poderão retirar
uma parte desse dinheiro, na proporção do tempo em que
trabalharam para nós. Isso será considerado como as
economias deles. E quando algum homem quiser partir,
poderá fazê-lo com dinheiro no bolso.
E ele riu e riu, até que não mais conseguia rir. Toda a
diversão desapareceu de sua voz e permaneceu apenas a
tristeza, como um sussurro desolado.
CAPÍTULO XLII
Quando Martin relatou a Amy o resultado da entrevista
com o senador, ficou surpreso com sua explosão de raiva
contra Nicholas. Ela tremeu de angústia íntima pela
humilhação de Martin. A indignação levou-a a ignorar o
sentimento de família e ficou surpresa por ter usado, sem
suspeitar, o que Martin classificou, sorrindo tristemente, de
‘linguagem forte’.
— Deus me livre!
Amy ficou surpresa. Fitou-o nos olhos. Não sabia por que
ele estava perguntando isso, mas teve a súbita intuição de
que se hesitasse, se demonstrasse um mínimo de tristeza ou
algum vestígio de pesar, estaria magoando-o
irreparavelmente. E por isso ela apressou-se em dizer,
sorridente:
— Mas claro que não, Tio Gregory! Tudo isso ficou para
trás, já foi esquecido. Eu era apenas uma criança naquela
ocasião, não sabia direito o que pensava. E amo Martin.
Somente eu posso saber o quanto o amo!
— Amy!
— Tempo vago!
Sabia que fora deixado para trás como morto. Sabia que
não havia esperança para ele. Sabia que estava prestes a
morrer. E não pensava em outra coisa que não em sua sede e
na agonia no peito. Escutava o silêncio sufocante ao redor.
Em determinado momento, gritou debilmente.
— Não!
A moça balbuciou:
— Mas...
Ao longo dos últimos anos, ele não vira Amy mais do que
cinco vezes. E durante todos esses anos ela jamais entrara na
casa dos Sessions. Encontrara-a sozinha na casa de Dorcas e
na casa de Florabelle. Aparentemente, Martin estava
absorvido demais em seu trabalho para acompanhá-la. Ernest
não conhecia as crianças, mas pensava muito nelas. Como
haviam saído do corpo de Amy, pensava algumas vezes nas
crianças como sendo dele. E sentia-se furioso, dominado por
uma raiva impotente, pela miséria em que o pai forçava-as a
viver.
— Que homem?
A Sra. Heckl ficou ainda mais vermelha, mas ela fez uma
mesura em silêncio e depois saiu da sala. Ernest ouviu-a
subindo a escada dos fundos. O relógio bateu as horas em
cima da lareira, um carvão caiu da grade.
Ernest sorriu.
— Amy...
— Ele era tão bom, mas tão bom... — balbuciou ela, numa
lamúria em que se insinuava um tom débil e amargo de
acusação.
— Ele era bom demais para mim! -soluçou ela. — Era bom
demais para todos nós! Ninguém o compreendia, a não ser
eu. Mas nem mesmo eu podia aceitar de verdade o que ele
tentava fazer. Eu era por demais gananciosa, terrivelmente
indiferente. Tentei fingir ser o que não era e acho que não
consegui. Às vezes ele me olhava com tanta tristeza! Mas
juro por Deus que tentei! Tentei ao máximo ser o que ele
queria que eu fosse! E agora é tarde demais! Sempre será
tarde demais!
— Desculpe.
— É tudo minha culpa. Sou uma tola. Mas não lhe pedi
para tomar qualquer providência, Tio Gregory. Estaria
insultando-o se fizesse isso. Mas eu não o via há muito
tempo, fazia calor, sentia-me desapontada. E como não podia
pensar em qualquer outra coisa para dizer-lhe... comecei a
falar...
— Estou entendendo.
A voz de Gregory era calma e pensativa. Ele ficou olhando
fixamente para frente por um longo tempo. Parecia que
estava reconstituindo a cena. Amy teve a impressão de que o
tio a repudiava e um soluço seco subiu-lhe pela garganta. Ela
comprimiu as palmas das mãos e fitou-o, angustiada, como
se estivesse suplicando perdão.
— Tem razão.
Ernest riu.
Mas isso foi antes de May lhe ensinar tudo o que sabia de
música. Apresentado a Bach e Beethoven, a Mozart e Gounod,
escutando a descrição de May daquelas músicas tocadas por
uma orquestra, evocando-as com a ajuda de sua imaginação
exacerbada, Godfrey não demorou a descobrir que sua
adorada banda de metais era intolerável. May recordou todas
as suas horas meio esquecidas em salas de música. Tocava
os primeiros acordes de uma abertura para Godfrey, depois
explicava-lhe, com excepcional intensidade e precisão, como
as trompas entravam aqui, como a flauta entrava ali, como a
melodia sussurrava num determinado trecho, como subia
triunfalmente mais adiante. Havia aqui o murmúrio abafado
de tambores, como vozes pensativas ouvidas à distância, ali
uma harpa cantava debilmente, como ondulações ao luar,
aqui um violoncelo acrescentava profundidade e pungência
quase insuportáveis, aqui os violinos emergiam, como ágeis
dançarinos com vozes fortes e suaves, um tema se delineava
claramente, como velas acesas. May tocava trechos de
sinfonias e abismos se abriam aos olhos aturdidos e
radiantes do garoto, abismos cruzados por arco-íris. Ou
então era o caos que se instalava diante dele, ofuscando-o
com a escuridão ou a luz.
May descobriu uma súbita, intensa e emocionante
felicidade nos ensinamentos ao filho pequeno. Descobriu
que sua vida se tornara por demais regular e sossegada,
plácida quando não ansiosa por causa do marido, um tanto
insípida e limitada. Ensinando Godfrey, observando o rosto
dele iluminar-se, os lábios tremerem, ela recuperava antigos
sonhos e alegrias, antigas glórias sublimes, sentimentos que
se projetavam além de uma vida limitada, esplendores que
eram velados, mas iminentes, coisas que julgara ter
esquecido para sempre ao abrigo de uma vida confortável.
Por algum tempo, ela sentiu a antiga e deliciosa inquietação,
o antigo e misterioso ímpeto do espírito, a antiga sensação
de expectativa extasiada de uma visão. Disse a si mesma
tristemente que tudo isso não passava de mentira e ilusão,
devaneios de uma adolescência que despertava. Não
obstante, sentia que nada no mundo era tão sublime, tão
satisfatório, tão perto de Deus. Todas as coisas que ela
passara a aceitar como verdadeiras, comprovadas acima e
além de qualquer dúvida, pareciam-lhe insípidas e estúpidas,
como pradarias vazias, sem colmas nem vales. “Que
importância tem se você sabe finalmente que dois mais dois
é igual a quatro?”, pensava ela. “Isso torna a vida mais
agradável ou mais bonita? Fica mais fácil suportar os
sofrimentos quando se conhece uma fórmula inexorável?
Dois mais dois é igual a quatro. Mas isso não é um axioma
que possa resistir na presença de Deus.”
— Não vou ficar todo eriçado e jurar que não quero saber
de nenhum ‘cavalheiro’ ao meu lado, May. Afinal, não sou
tão idiota assim. Nunca pretendi ser um cavalheiro e juro
por Deus que darei uma surra em qualquer homem que me
chamar disso. E não fique pensando que isso é mera atitude
de quem quer passar por democrático. Seja como for, não
tenho qualquer objeção a que Frey se tome um cavalheiro, se
ele optar também por coisas mais práticas e sólidas. O
problema é que Glendenning está informando que Frey é um
imbecil em matéria de cálculos, não é capaz de aprender o
problema matemático mais simples. E algum dia ele vai
manipular milhões! — Ele fez uma pausa, mordendo o lábio.
— May, você está transformando seu filho num maricas.
— O que eu...
— Não digo isso pelo que ele tocou, quer tenha ou não
composto, nem mesmo por sua técnica, que é indigna. Ah,
como eu gostaria de pôr as mãos no vilão do professor que
lhe ensinou a tocar assim! É um crime submeter uma criança
como ele a monstros femininos que possuem apenas um
débil conhecimento da diferença entre bemóis e sustenidos!
Não, senhora, não foi nada disso que me revelou a verdade.
Descobri-a em seu próprio filho, no rosto dele, os olhos, a
alma!
— May...
EU E LÁZARO
May comentou:
May se levantou.
Ela sabia que havia alguma coisa errada entre os pais. Não
que eles brigassem, fossem descorteses um com outro, se
tratassem friamente ou mesmo formalmente. Como também
não pareciam entediados pela companhia um do outro. Os
dois eram extraordinariamente gentis e atenciosos,
escutando com atenção e aparente prazer quando o outro
falava, sempre polidos até mesmo nas menores coisas,
fitando-se com o interesse afetuoso que se conferia aos
parentes próximos e apreciados. Mas Gertrude podia se
lembrar de como era há muitos anos, antes da partida de
Frey para Paris. Os pais frequentemente discutiam com fúria
intensa, a mãe chorava desesperadamente, o pai tinha
acessos de raiva, batia portas e janelas. Depois, vinha o riso
e a afeição, mãe e pai reaparecendo de braços dados. A
tensão desvanecia-se do ar, que parecia mais quente, mais
agradável, mais fragrante. Agora, eles jamais discutiam. Mas
apesar de toda gentileza e cortesia, Gertrude sentia uma
estranha frieza entre os dois, como se tivessem descoberto
que na verdade não eram marido e mulher, mas irmão e
irmã. Ela sabia que o pai jamais entrava no quarto da mãe e
que a mãe só entrava no quarto do pai na ausência dele, a
fim de cuidar de alguma coisa lá dentro, na esfera de suas
obrigações. Os conhecimentos de Gertrude sobre o estado
conjugal ainda eram um tanto vagos, um limiar de que não
podia se aproximar sem um calafrio de medo. Mas tinha
certeza de que alguma coisa estava errada. Vira os quartos
comuns nas casas de suas amigas, vira o relacionamento
íntimo entre maridos e mulheres, recordava-se de uma
situação assim, que existira outrora entre seus pais. Mas isso
desaparecera, juntamente com as brigas e tempestades, as
lágrimas e o riso. May sorria, algumas vezes chegara a rir,
gracejava bastante. Mas Gertrude, recordando as antigas
explosões turbulentas de riso, compreendia que isso acabara
para sempre. Apreensiva, egoisticamente, ela desejava que
tudo estivesse novamente ‘bem’. Detestava coisas
inexplicáveis, que desconcertavam os que não estavam a par
do segredo. Certa ocasião confidenciara isso a Frey, quando
ele deixara Paris e voltara para casa, por causa da guerra.
Frey limitara-se a fitá-la com a maior indiferença, declarando
que ela se deixava dominar pela fantasia. Gertrude,
obstinadamente convencida de que não estava enganada,
começara a observar os pais, notando cuidadosamente a
coisa inexplicável entre os dois, até que se tornara uma
obsessão, uma compulsão para a apreensão e irritação.
Ressentia-se dessa pequena contrariedade e falha no
aconchego de sua casa. Sentia também que o pai era
igualmente inquieto e angustiado e culpava a mãe por isso.
Ele virá nos visitar no Natal. Uma composição dele vai ser
tocada num concerto.
— Frey vai fazer com que todos nós nos sintamos uns
matutos um dia desses — comentou ela.
— Paul pediu para avisar a sua mãe que ele vai chegar um
pouco tarde esta noite, Elsa. Ele vai conferir alguns livros.
Ainda não temos certeza se o jovem Reynolds é mesmo
honesto. — Ele estava de repente bastante animado. — E
podem também dizer a sua mãe, minhas queridas, que Paul
está indo muito bem no banco. Se ele continuar assim, o que
tenho certeza que vai acontecer, não há como prever até
onde poderá chegar. O presidente me disse esta manhã que
Paul é um dos rapazes mais eficientes e competentes que já
conheceu. Um banqueiro nato.
— Trudie!
— Sua mãe não lhe pediu que fosse ver os garotos e Joey?
— Mas eles disseram que foi por sua sugestão que Schultz
negociou com os malditos prussianos a venda e remessa de
munições da França para território inimigo! Isso é uma
indignidade! Como pode ignorar uma coisa dessas, senhor?
Um cavalheiro em sua posição?
Ernest se levantou.
— Como assim?
Gertrude suspirou.
— Meu amor! Sabia que seu pai está esperando por você lá
embaixo, junto com Paul?
Ela não pedia isso desde que era pequena, quando era
dominada por misteriosos temores noturnos. May
contemplou-a atentamente, olhou para a porta e
compreendeu. Levou a filha para junto do fogo, fê-la sentar-
se. Pegou uma beira do vestido molhado e sacudiu a cabeça,
com uma expressão de reprovação.
May acrescentou:
— Mas alguns anos ainda vão passar até que ele possa
casar com você, minha querida. Gosto de Philippe e gosto da
mãe dele. E antes de viajar para Paris, Frey era bastante
afeiçoado a ele. Creio que eles mantêm uma
correspondência. Jamais pude compreender o que Ernest
tem contra Philippe. Não a estou aconselhando, é claro.
Amy sentou-se.
— Inclusive a honra.
— Mas ela não ama Paul, Ernest. — Amy virou-se para fitá-
lo, calmamente, embora estivesse tensa interiormente. —
Tenho certeza.
— Não.
— E Gertrude?
— Não.
— É verdade.
— Trudie!
— Não.
— Não foi assim, Paul! Mas eu decidi não casar com ele.
Não poderia fazê-lo infeliz. Achei que era melhor me afastar,
tomar eu mesma a decisão. E depois ele voltaria a ter alguma
paz, acabaria esquecendo...
— Tenho, sim.
— Ele sempre quis que eu casasse com você, Paul. Não vai
se importar. Tenho certeza de que ficará contente.
— É um prazer, Amy...
— Sente-se, Amy.
— Tia Amy!
— Oh!
— Não.
CAPÍTULO LXXIX
Reginald e Guy Barbour chegaram em casa, vindos das
respectivas escolas, um dia antes do Natal. Guy estava na
maior alegria por sua libertação e até mesmo o sisudo
Reginald, ou Reggie, condescendeu em relaxar. Reginald,
sendo meticuloso e arrumado, praticamente não perturbava
a rotina da casa. Mas era de se pensar que todo um bando de
rapazes estava à solta pela casa, a julgar pelo barulho e
confusão que Guy criava.
— Talvez.
Nada poderia ser mais indiferente do que o tom de voz de
Guy.
— Não.
Paul puxou o chapéu para o lado, num gesto irritado.
Ele não falou com Guy por algum tempo. O rapaz nada
trouxera para distrair-se durante as horas tediosas da
viagem. Estava sentado ao lado da janela e ficou olhando
para fora por muito tempo. Comparado com o alto e
corpulento Paul, era como uma criança, imaturo no rosto e
no desenvolvimento.
Foi então que Guy falou pela primeira vez, desde que
entrara no carro, em sua voz clara e incisiva de rapaz:
— É um bom atirador, xerife. E a arma também é muito
boa...
— Não é isso.
— Um ferroviário?
“No livro Santo está escrito que não se deve tapar a boca
do boi que trabalha na plantação de milho. Mas é justamente
o que os patrões fazem com a gente! Trabalhamos na
colheita do milho do amanhecer ao anoitecer, mas nossas
bocas estão fechadas e nem um só grão de milho desce para
as nossas barrigas!’
Ernest sorriu.
— É possível.
Seria ótimo ter aquela moça como nora, pensou ele. Ela
incutiria algum vigor no vinagre do sangue do filho. Ela lhe
daria filhos, Barbours vitais, fortes e poderosos, como a mãe.
Ernest riu.
Lucy comentou:
Ernest sorriu.
— Está me creditando a onipresença. O Japão ainda é
praticamente um país fechado. Mas fui informado pela
Skeda, da Áustria, que os armamentos que remeteram,
através da Rússia, chegaram ao Japão sem maiores
dificuldades. Mais algumas remessas e o Japão estará em
condições de atacar a Coréia.
Ernest sorriu.
Regan comentou:
— Eu não gosto.
— Eu compreendo.
Ernest sorriu.
— Você também é?
— Por acaso falei que era? Mas gostaria que soubesse que
a Middle vai devorar todos os pequenos. E até mesmo alguns
dos grandes. Até mesmo Charles Brett já se rendeu à Middle.
O que tem a dizer a isso?
— Exatamente.
— Isso mesmo.
A neve caía além das janelas altas, havia uma linha branca
nos peitoris. Alguém ligara o gás e os candelabros ardiam
com uma claridade suave. Um velho funcionário aproximou-
se de Ernest e sussurrou-lhe que o Sr. Bellowes o receberia
naquele momento. Ele levou Ernest até uma porta de
carvalho toda esculpida, por trás da qual o velho James
estava sentado, num silêncio inabalável, tão inumano e
implacável quanto a morte.
— Obrigado.
Elsa, que não sentia a menor atração por coisas assim, fez
uma careta. Grata e recordando emocionalmente o largo, a
audiência aplaudiu, entusiasmada.
— Não! Sim! Não sei! Ah, isso não pode ser explicado nem
perdoado! Programamos uma festa para ele, com cem
convidados eminentes, que podem levar a Academia a
alturas magníficas ou deixá-la na bancarrota. E o Sr. Godfrey
Barbour, um novato, um estranho, um desconhecido, tem a
desfaçatez de insultar esses convidados, que tanto poderiam
ajudá-lo e à Academia! Agora está tudo arruinado, tudo
perdido...
— Mas o que deu em você para vir morar neste lugar? Que
coisa mais esquisita!
— Papai.
— Quero dar uma explicação. Foi por isso que lhes pedi
para virem até aqui. Mas parece terrivelmente difícil. Terei
de pular muita coisa. Cheguei a Nova York há poucos dias e
tenho estado muito ocupado...
— Simone!
— Amanhã, Frey...
— Está, sim.
— Beba isso, por favor, Tio Ernest. Vai lhe fazer bem.
— A menos o quê?
— É mesmo?
— Claro que não! Mas devo lhe avisar que a reunião será
mesmo demorada. Talvez seja melhor eu dizer depois a Tio
Ernest que você esteve aqui e marcar uma hora na agenda
dele. Posso marcar uma reunião dentro de poucos dias.
— Obrigado, mas prefiro esperar. Leon está ocupando
meu lugar no banco, até eu voltar. Além do mais, não
estamos muito ocupados no momento.
— Não.
— Muito bem.
— É mesmo?
— Construções?
— Continue.
Ernest sorriu.
— Tenho, sim.
— Não é fácil?
— Ótimo!
Gertrude gritou;
— Está, minha querida. Não sei... juro que não sei... o que
vamos fazer.
— Vá para o diabo!
— E Trudie?
— Entendo.
Há quatro meses que ele não via Amy e não lhe escrevia,
assim como ela também não lhe escrevera. Agora, Ernest
começava a agir de maneira um tanto estranha, quando
estava em casa. Sentava-se na extremidade da grande mesa
de mogno e olhava ao redor. Anos antes, toda a família
sentava ali, Godfrey e Gertrude, Guy e Reginald, May e ele
próprio, o pequeno Joey. Agora, apenas ele sentava-se àquela
mesa, na sala vazia, as velas ardendo nos candelabros sobre
o aparador e nas paredes, o mordomo sendo o único outro
ser humano presente. Mas enquanto olhava fixamente
através da mesa, pouco a pouco um sorriso foi se insinuando
no rosto de Ernest. Era como se outra pessoa estivesse
sentada ali e lhe falasse.
— Isso mesmo.
— Mas claro que não! Não sei se está sendo sutil, Honore,
ou simplesmente infantil. Gosto muito de Leon,
especialmente, embora admita com toda franqueza que não
confio nele nem em Jules. Poucas pessoas confiam e tenho
certeza de que o próprio Jules seria o último a ficar surpreso
com tal reação. Seu Tio Ernest sempre chamou-o de Jesuíta.
Mas mesmo Ernest, que escolheu um apelido tão apropriado,
jamais conheceu mais que um ou dois Jesuítas, em toda a
sua vida. Pois eu conheci muitos. E posso constatar como o
apelido cabe como uma luva a Jules, Ele é sutil, oportunista,
astucioso, implacável. O verdadeiro jesuíta usa esses
atributos para servir à sua Igreja e assim se sente justificado.
Provavelmente está mesmo. Mas Jules não serve a ninguém
ou a qualquer coisa além de si mesmo. Sei que ele ama o
irmão e também a você. Mas não tenho a menor dúvida de
que, se a ocasião surgir, se a pressão da ganância for grande
o bastante, ele trairia aos dois, com a maior frieza e
eficiência.
— Meu sentimento por Jules não tem nada a ver com isso.
Está me obrigando a dizer o que ouvi, como um garoto a
quem não se pode confiar coisa alguma. Paul Barbour esteve
aqui esta manhã.
— Não são?
— Renée!
— Oh, mas como sou horrível, Tia May! Não lhe contei!
Joey e John Charles estão muito doentes, com febre tifóide,
embora se achasse que Joey estava melhorando, quando
viajei, há quatro semanas, Mas John Charles estava muito
mal. E Tia Amy cuidava dos dois...
O que será a vida dela com Ernest?, pensou May, não sem
uma pontada da antiga angústia. O que ela pode dar-lhe que
eu não dava? Algum dia ele aprenderá que toda devoção e
amor são a mesma coisa, não importando a longo prazo
quem os dê, contanto que sejam dados. Ele está ficando
velho, vai aprender isso antes que se passe muito tempo.
Mesmo a recordação da paixão pode tornar-se um cansaço e
um tédio, uma palavra sentimental como ‘afinidade’ pode ser
algo a lembrar com uma risadinha constrangida.
— May...
Os lábios de Ernest se mexeram lentamente e o nome
parecia um som que saía com dificuldade.
— Eu mesma, Ernest.
***
Jules riu.
Jules sorriu.
— Anime-se, Honore.
Jules prosseguiu:
E ele saiu sem dizer mais nada, sem dar uma resposta ao
‘boa-noite’ cordial de Jules.
— Ah...
— Hein? Mas que coisa! Por que você está tão interessado
nisso, Jules? Seus olhos estão até brilhando! Pois ela
prometeu mesmo. Disse que viria tomar o chá comigo e
François esta tarde. E sempre vem quando promete. Mas
certamente a menina pegou um resfriado ou está com dor de
cabeça e não pôde vir. Assim, não posso entender por que
François tem de se comportar como um leão enjaulado... foi
isso o que o querido major falou, não é mesmo, major? Um
leão enjaulado! Fica andando de um lado para outro,
gritando comigo. E quando falei que provavelmente estava
com um ataque, como acontecia quando era garoto, ele foi
positivamente grosseiro comigo. Não é mesmo, major?
Florabelle lamuriou-se:
— Realista, talvez?
— Não sei o que faria sem você, May. Juro por Deus que
não sei!
Ernest disse:
May pensou, com uma pressão por trás dos olhos que
parecia de um ferro em brasa: Pobre Ernest, como ele
fracassou!
— Quais são?
— Continue, Jules.
Ernest riu outra vez, uma risada alta e curta, embora não
houvesse qualquer diversão em seus olhos, como geralmente
acontecia. Paul mergulhou novamente no silêncio, a
respiração irregular. Era evidente que estava travando
alguma terrível batalha interior. Depois de um olhar breve,
mas penetrante, Ernest compreendeu exatamente o que ele
estava pensando.
— Mas por que não falou nada sobre isso a Paul antes?
— Mas é claro!
— Vovô já morreu?
— Jules!
FIM
***