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ENTRE TANTA PAIXÃO UMA HERANÇA DE ÓDIO

ERNEST BARBOUR

O implacável rei das munições. Na vida ele só queria duas


coisas: controlar o seu próprio destino e possuir a linda
mulher do irmão.

MARTIN BARBOUR

O simpático irmão mais moço de Ernest, que vivia à sua


sombra—até que conquistou Amy Sessions e se tornou o
maior inimigo do irmão.

AMY SESSIONS

Aristocrata, linda, ela era cobiçada como um tesouro raro


demais para ser tocado.

Mas Amy sonhava com um homem de beijos de fogo... um


homem que negou a paixão que tinha por ela... um homem
chamado Ernest Barbour.

DE SEUS DESEJOS RECALCADOS NASCEU UMA DINASTIA.

UMA DINASTIA DE SANGUE E PODER.

A DINASTIA DA MORTE
Título original norte-americano DYNASTY OF DEATH
Copyright © 1938 by Charles Scribner’s Sons
Copyright © 1965 by Reback and Reback
O contrato celebrado com a autora proíbe a exportação deste
livro para Portugal e outros países de língua portuguesa.

NOTA DA AUTORA

Os números obviamente históricos que figuram neste


romance são reais, o que não acontece com personagens,
incidentes, situações, firmas de armamentos e outras
companhias industriais, bem como localidades mencionadas
no texto, que são fictícias e não têm qualquer relação com
pessoas vivas ou mortas, e quaisquer possíveis coincidências
terão sido acidentais e sem intenção da autora.

Direitos de publicação exclusiva em língua portuguesa no


Brasil adquiridos pela

DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.


Rua Argentina 171 — 2O921 Rio de Janeiro, RJ — Tel.: 58O-
3668 que se reserva a propriedade literária desta tradução.

Impresso no Brasil

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL


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Impresso na

ERCA Editora e Gráfica Ltda. Rua Silva Vale, 87O —


Cavalcante Rio de Janeiro – RJ

Este e-book: Digitalização, ocerização e revisão inicial:The


Flash
Revisão final: JaciLu
LIVRO UM PARCEIROS DA MORTE

“Vocês são Parceiros da Morte.


Não quero tomar parte nisso.”
CAPÍTULO I
O crepúsculo era como água profunda e clara, pairando
imóvel sobre os campos e as colinas baixas e compridas.
Mantinha a tudo imóvel e paralisado. Não chegava a ser uma
imobilidade rígida, sendo mais um repouso sonolento. Ou
como se todas as coisas tivessem perdido o vigor que o dia
lhes proporcionara e se transformassem em sonhos
impalpáveis, que acabariam, caso o crepúsculo impedisse
que fossem perturbadas sequer por uma lufada de ar, se
fundindo, se dissolvendo, se dissipando em círculos de água
silenciosos, a se espalharem cada vez mais.

Não havia cor definida nessa paisagem de primavera


prolongada e silenciosa. Tudo era um púrpura difuso, cinzas
se fundindo com pretos, brancos espectrais e indefinidos. As
campinas, cobertas por acres e mais acres de pequenas
margaridas, abraçando o solo, estavam esbranquiçadas e
ilusivas, como neblina a se adensar. As colinas púrpuras
eram envolvidas na base por essa neblina, de tal forma que
pareciam longa extensão de nuvens mais escuras isoladas da
terra, contra o céu de oeste, que exibia um verde-claro de
sonho, frio e inalterável. Aqui e ali, uma árvore parecia
flutuar num campo solitário, curvando o fardo novo de
folhas, como se comprimida por um vento pesado demais
para se mover. Por cima de tudo, pairava uma melancolia
profunda, embora impalpável, impregnada de umidade.

O mugido profundo do gado ressoava pelas campinas,


não de um jeito súbito e isolado, como poderia acontecer
num ar mais diáfano, mas antes como se fosse uma trovoada
começando quase inaudivelmente à distância e aumentando
imperceptivelmente para um som abrangente e iminente.
Através das campinas, podia-se avistar o borrão indefinível
de seus vultos que avançavam, brancos e pintados,
obstinados e dóceis. Por trás deles vinha uma rechonchuda
ordenhadora, o capote grosso flutuando ao seu redor, a
cabeça descoberta para o frio úmido do crepúsculo. Em
torno, corria um cão pastor desgrenhado, cujos latidos
ocasionais pareciam débeis e irreais. Como se a aproximação
deles fosse um sinal, clarões amarelos brilharam de repente
na semiescuridão, oferecendo indícios da presença de
habitações humanas, mas sem definir os seus contornos.

O gado alcançou um portão fechado e ali se concentrou,


pacientemente, os mugidos tornando-se mais profundos. A
ordenhadora abriu o portão. Começara a assoviar entre os
dentes, sem qualquer entonação. O cachorro latiu, furioso,
disparou pelo portão, assim que começou a ser aberto. Um
garotinho parou na estrada além. A ordenhadora fitou-o e
gritou:

— É você, Martin Barbour?

O garotinho tirou polidamente o chapéu preto e redondo


e balbuciou uma resposta. Veio até a cerca, como se fosse
numa determinação firme, mas temerosa, ficou olhando para
o gado que passava pelo portão.

— Ainda tem medo dos pobres bichos, Martin? —


perguntou a ordenhadora, em tom zombeteiro, mas gentil.

Era uma moça analfabeta e gorducha, mas inteligente e


observadora. Todas as noites, ela contava às companheiras
de trabalho:

— Ele aparece todos os dias, ao voltar da escola,


assustado até o fundo do coração. Mas finca pé como um
soldado e fica vendo os bichos passarem, com alguma coisa
de raiva nos olhos grandes. Parece até que está brigando
consigo mesmo por dentro, pelo fato de sentir medo.

Martin ficou grudado na cerca, o corpo magro tremendo


todo. No rostinho pálido, a expressão de determinação
inabalável era de uma tensão quase ascética. Estava
terrivelmente assustado, as mãos frias suavam na madeira
úmida que seguravam. Tinha a impressão de que os sentidos
entravam em vertigem, afundavam. Mas não saiu dali
enquanto a última vaca não passou pelo portão e começou a
descer o caminho na direção dos estábulos. Depois, ele
contornou a cerca, não encabulado diante do olhar
zombeteiro da ordenhadora, mas calmamente e com
dignidade, como se ela compreendesse que acabara de
testemunhar uma cena de inegável heroísmo. O que de fato
acontecera.

Martin parou diante dela, sorrindo timidamente,


andrajoso, mas arrumado em seu casaco preto apertado,
botinas de camponês e chapéu preto redondo. As mãos
estavam sem luvas e rachadas pelo frio, segurando alguns
livros velhos. Havia nele um ar de medo e susto, assim como
um desdém altivo por esse medo e susto, uma determinação
em não se entregar. Ele sorriu para a ordenhadora com uma
dignidade suave e um orgulho gentil. “Um perfeito
cavalheiro**, pensou a moça, como sempre pensava ao se
encontrar com Martin. “Os pais dele não são aristocratas,
mas também ele não parece ser filho deles.” Ela presenteou-o
com um sorriso radiante e afetuoso, enquanto ajeitava no
lugar a barra de madeira do portão.

— Sua mãe não vai ficar preocupada por você chegar tão
tarde da escola?

— Não. A mãe sabe onde estou.

Ele falava numa voz sibilante de criança. Ajeitou o chapéu


na cabeça e começou a afastar-se, acrescentando:

— Boa-noite, Srta. Susy.

Ela ficou observando o vulto pequeno afastar-se pela


estrada, até que sumiu, envolto pela neblina que se
adensava. Susy sacudiu ligeiramente a cabeça, com uma
estranha e primitiva sensação de melancolia. Seu assovio
preocupado, enquanto começava a seguir o gado novamente,
era mais desafinado do que nunca. Era como se tivesse visto
um fantasma infantil, sem passado e sem destino, vindo do
nada para um presente indefinido e seguindo para o nada.

Martin mal podia ver a estrada â sua frente, enquanto


avançava. Mas a longa familiaridade e sua respiração um
pouco acelerada informavam-lhe que a estrada começava a
subir. Ajustou os passos para acompanhar a curva que sabia
existir ali. A estrada era sinuosa, por trás de uma colina
muito baixa, quase que uma simples elevação no terreno que
não chegava a merecer o nome de colina. Ele levantou o
rosto pequeno e frio, que estava molhado da umidade no ar.
O céu começava a limpar. Entre as nuvens densas, umas
poucas estrelas já apareciam. Os cumes de colinas surgiam a
distância. E agora um vento soprava, impregnado com um
frio salgado. A neblina turbilhonava sobre as campinas,
transformando-se em cavaleiros e exércitos em tropel de
vapor espectral, investindo com um impulso fantasmagórico,
sem som e sem fúria. Havia algo de terrível naquele
panorama de silêncio e constante movimento, algo sem
qualquer relação com a humanidade e a terra sobre a qual a
humanidade respirava e vivia. Martin observava a tudo com
medo. Acelerou um pouco os passos, involuntariamente.
Depois, percebendo sua pressa, retardou o avanço
deliberadamente, angustiado de medo e desprezo por si
mesmo.
— Covarde, covarde — disse ele, em voz alta.

O som era quase um sussurro. Se ao menos alguém vivo e


real aparecesse na estrada... Mas ninguém ia aparecer,
porque todo o gado já fora recolhido dos campos e cada
homem estava em sua casa, diante do fogo aceso. Havia
apenas silêncio e neblina, a estrada úmida e esburacada, o
céu remoto e hostil. A imaginação de Martin, fértil e
apavorada, encontrou novos terrores nos monstros
primitivos pairando pelo caminho à frente. Os pensamentos
aturdidos absorveram os monstros, povoaram-lhe a mente
de sombras vastas e terríveis. E se seu corpo começasse a se
dissolver, pensou Martin, transformando-se em neblina,
fundindo-se com a neblina? Então não haveria nem começo
nem fim dele. Perderia a individualidade de sua percepção,
ficaria reduzido a um sonho úmido, terrível e irreal? Viu a si
mesmo espiando pelas janelas das cabanas com olhos
indefinidos, flutuando pelas portas que se abriam para fogos
dourados, para sempre excluído do calor da vida.

E assim, enquanto andava, Martin não era mais um


garotinho assustado, voltando apressadamente para a
segurança de sua casa, mas uma agonia universal e difusa,
indefinida, a própria ausência de definição aumentando
ainda mais seu desespero.

O caminho subia e subia. Pouco a pouco, os fantasmas


foram ficando pata trás, o ar foi se tomando mais claro e
mais frio. Martin alcançara a crista da elevação. Teve de
parar por um momento, pois o coração estava disparado, a
respiração era curta, rápida, aterrorizada. Ele olhou para
baixo. Não havia neblina, apenas um pequeno vale, na
claridade difusa e amistosa, seguro e tranquilizador. As
luzes piscavam um pouco como sinais, um cachorro latiu
jovialmente à direita. Sobre a aldeia distante, o próprio céu
estava mais claro, repleto de estrelas, a lua se elevando. A
respiração de Martin foi se normalizando, ficou menos
dolorosa. Ele sorriu, meio hesitante. Depois, antes de iniciar
a descida, olhou para trás, contemplando o caminho por
onde subira.

Lá estavam as misteriosas campinas ocultas, com seus


fantasmas de neblina, terrores monstruosos e silenciosos.
Ele experimentou a sensação de alguém saindo da morte
para a vida, segurança e alegria.

E, no entanto, enquanto avançava confiantemente para a


aldeia de Reddish, seu lar, Martin sentia-se como haveria de
se sentir por toda a sua breve existência, como se pudesse
andar e viver num mundo aparentemente real e
tranquilizador, de contornos, ruídos e forças definidos, mas
sabendo que a indefinição, ausência de formas e caos das
Coisas além da vida eram a única realidade, o único terror, a
única eternidade.
CAPÍTULO II
Em 1837, a pequena aldeia de Reddish, perto de
Manchester, apresentava quase que exatamente a mesma
aparência de hoje. É verdade que há agora mais umas poucas
casas, as fábricas de algodão são maiores e mais
movimentadas, ouve-se de vez em quando, pelas ruas
estreitas e sinuosas, o barulho dos motores dos carros e
sente-se o cheiro de gasolina, os guinchos, gemidos e vozes
metálicas dos rádios rompem o sossego do suave crepúsculo
inglês. Há um salão de baile agora onde, em 1837, ficava a
Blue Boar Inn. Os tecelões podem levar as namoradas para lá
nas noites de sábado e dançarem até meia-noite ou mesmo
depois, por 12 pence. Mas a dança propriamente dita, no
salão ostentoso e vulgar, não é muito diferente em termos de
alegria e animação do que era quase um século antes. As
moças poderiam ser as mesmas que riam das janelas da Blue
Boar para o cocheiro e passageiros da diligência de Londres,
quando o veículo lotado entrava ruidosamente no pátio
calçado com pedras. Há muitas casas que ainda resistem, por
mais de um século, casas em que as pessoas vivem
contentes, confortavelmente. As casas novas, com exceção
de algumas villas pretensiosas além da Sandy Lane, são
construídas praticamente no mesmo estilo das casas antigas.
Os moradores plantam mudas de arbustos de lilás nos novos
quintais, mas as mudas provem de arbustos antigos e o
cheiro de lilás não mudou. A Sandy Lane quase não mudou,
saindo da aldeia e serpenteando na direção das colinas
verdes e arredondadas. Ao deixar os arredores da aldeia,
embrenha-se por campinas aprazíveis, que se estendem ao
sol ameno, recupera-se ao mergulhar para um córrego, passa
por uma antiga ponte de madeira, segue por quatro ou cinco
minutos ao lado de um bosque sonolento, perde-se no maior
encantamento entre moitas de pilriteiro, para em busca de
espaço à beira do Mill Pond, observando o gado por cima de
seu próprio reflexo, sob os salgueiros, depois vai novamente
expirar gentilmente entre as campinas, para nunca mais se
recuperar.

Naquele crepúsculo de março de 1837, o pequeno Martin


Barbour sentia que estava alcançando a segurança e
realidade, enquanto seus pés desciam apressadamente a
Sandy Lane, a caminho da aldeia. As árvores, úmidas por
cima, começando a florescer, lançavam gotas frias em sua
cabeça, agitavam-se nervosamente na esteira de um vento
noturno. Mas o ar estava frio e viçoso, não úmido e
sufocante como nas campinas. A lua aumentava de
intensidade, enquanto subia pelo verde difuso e desbotado
do céu a oeste. De repente, sem qualquer aviso, um pássaro
piou uma vez, para logo voltar a ficar em silêncio. Mas o som
era tão intensamente suave e pungente que Martin parou no
mesmo instante. Ficou esperando, as lágrimas aflorando a
seus olhos. Esperou por um longo momento, mas o grito
extasiado não se repetiu. E ele seguiu adiante.

Tudo continuava em silêncio e abafado, mas era o


silêncio familiar e seguro das proximidades de sua casa. A
Sandy Lane descrevia uma curva em torno de um muro baixo
de pedra. Além desse muro, a terra verde ia se elevando
suavemente até uma casa branca de pedra, sob imensas
árvores. O Esquire Broderick vivia ali. Martin tratou de se
apressar, pois o Esquire Broderick tinha cachorros que
estavam longe de ser amistosos e latiam aterradoramente.
Martin gostava de contemplar casas antigas e lamentava a
presença dos cachorros. Um lampião começou a brilhar por
trás das janelas antigas e ele pôde avistar o reflexo das
chamas. Alguém deve ter jogado mais carvão sobre as brasas
da lareira, pois a chaminé imensa e antiga arrotou centelhas
vermelhas e fumaça cinza para o crepúsculo. O ar ainda
estava tão parado que Martin podia ouvir os relinchos dos
cavalos do esquire, no estábulo grande e confortável, assim
como as vozes dos cavalariços. De uma janela do andar
superior, saía o choro estridente de uma criança, o filho mais
novo do esquire. A casa e tudo ao seu redor pareciam
revestidos de segurança, paz, aconchego, numa firmeza
antiga, inglesa e inabalável.

Martin passou pela igreja dos não-conformistas, quase na


beira da estrada, brilhando debilmente ao final do
crepúsculo. Por trás da igreja, estavam as fileiras irregulares
de sepulturas, as lápides imóveis e silenciosas. Martin
desatou a correr, mas logo obrigou-se a parar, tremendo por
dentro.

Os contornos baixos e escuros das casas começavam a se


delinear ao longo do caminho, as janelas pequenas e fundas
ardendo com a luz dos lampiões e dos fogos nas lareiras.
Não demorou muito para que as casas estivessem lado a
lado, por trás de jardins primorosos, com pequenas cercas
de ferro. O cheiro de fogo impregnava o ar. Podia-se ouvir o
ranger de bombas invisíveis. O céu flutuava ao luar e os
cachorros latiam. Da terra molhada erguia-se um cheiro
intenso, úmido e fértil. Martin aspirou esse cheiro e sentiu-se
extasiado.

Pouco antes de Sandy Lane terminar abruptamente no


Common (N. dos digitalizadores: termo não traduzido, deve ser algum regionalismo da época,
sendo pelo contexto entendido como habitação coletiva, cortiço)
, a Blue Boar Inn
destacava-se numa curva larga, entre velhos carvalhos. As
janelas estavam abertas para a noite de primavera. Através
delas, Martin podia avistar as vigas do teto, parecendo
tremeluzir avermelhadas à claridade do fogo, sombras
escuras e grotescas curvando-se e mexendo-se pelas paredes.
Risos, vozes ásperas, o bater de bengalas, uma tremenda
zoeira saía do bar, destacando-se as risadas estridentes das
criadas, em suas toucas e aventais brancos. Diversos cavalos
estavam amarrados diante da estalagem, as cabeças
abaixadas pacientemente, a respiração se transformando em
vapor no instante mesmo em que saiam das narinas. Do
estábulo por trás da estalagem vinham os gritos dos
cavalariços, o cheiro pungente de feno e estrume. Uma
criada fora buscar água no poço e um cavalariço a abordara.
Estavam se abraçando com uma franqueza singular à sombra
dos beirais, perto das janelas da cozinha. Alguém começou a
cantar no interior da estalagem. Era uma voz de homem,
sonora, alegre e agradável, entoando uma antiga canção de
beber. Outras vozes acompanharam, engrossaram, numa
jovialidade rude e descontraída, até que a própria noite, fria,
escura e parada, foi recuando sob as investidas do som vivo.
Martin hesitou por um momento. Como todas as pessoas
retraídas e muito contidas, ele sentia-se fascinado por cor e
movimento, vida intensa e alegria, por todas as coisas que
nada têm a ver com pensamento e intelecto, com a amargura
fria da mente. Mentalmente, ele permanecia alheio a tais
coisas, eternamente um exilado, como os fantasmas que
imaginara nas campinas, espiando pelas janelas por onde
não podia passar. E ele sofria, mentalmente. Martin acabou
seguindo adiante, um tanto relutante, o canto seguindo-o
pela escuridão.

O Common, de onde estava se aproximando, tinha um


formato oval irregular. Três quartos de seus lados estavam
ocupados por casas de trabalhadores. As luzes difusas nas
janelas eram como olhos de lobos à espreita. O último
quarto do Common era ocupado pela fábrica de algodão,
onde trabalhavam quase todos os homens, muitas mulheres
e crianças em demasia. Por cima do Common, que era um
parque malcuidado, lamacento, quase sem vegetação, com
depressões em que a água ficava estagnada na época das
chuvas, assim como também por cima das casas velhas e
miseráveis, pairava um ar sufocante, opressivo, desolado. A
lua ali não era tão brilhante, a terra não exalava a sua
fertilidade. Havia apenas o cheiro de cinzas e decadência, de
fome e fogões apagados, poeira e repolho cozido.

Martin chegou à terceira casa. Abriu o portão do quintal


pequeno e árido, passou para o outro lado, fechou-o. Havia
uma luz na janela da cozinha, o reflexo de chamas. Ele abriu
a porta da cozinha. A mãe, a saia grossa de algodão por cima
da anágua de flanela vermelha, os cabelos pretos e crespos
brilhando sob os rufos da touca de algodão, estava inclinada
para o fogo. As mangas estavam enroladas, deixando à
mostra os braços, fortes, rechonchudos e brancos. As
chamas que dançavam na lareira iluminavam um rosto
vigoroso e pragmático, mais para o bonito, com a
determinação inabalável das camponesas. Ela remexeu
alguma coisa num caldeirão de feno, depois virou-o sobre o
fogo. Havia um berço ao lado, iluminado pela luz do fogo.
Ali, um bebê levantava os dedos roliços, para contemplá-los
contra o fogo. O assoalho de madeira estava
meticulosamente lavado e despojado. O fogo dançava sobre
a guarnição de metal polido da lareira e sobre as poucas
peças do mobiliário, estritamente utilitárias. Num dos lados
do fogo estava sentado um garoto grandalhão, rosto
compenetrado, faces salientes, em torno dos 13 anos, lendo,
com uma expressão de profunda concentração. Uma menina
que devia ter seus cinco anos estava sentada no chão, perto
dele, brincando com uma boneca de pano. A mesa com uma
toalha vermelha estava posta para a refeição, com pratos
grossos e utensílios de peltre. A chaleira de ferro assoviava
no fogo, os utensílios de cobre pendurados nas paredes
faiscavam como ouro numa súbita erupção de chamas.

A Sra. Barbour acendeu diversas velas de sebo por cima


da lareira, com um pavio. Murmurava para si mesma
palavras que os outros não podiam entender. Percebeu a
presença de Martin e um brilho irado surgiu em seus olhos,
pretos, intensos, não muito amistosos.
— Ah, finalmente aparece o garoto que chega em casa na
hora que bem quer! Olhe só para você, todo encharcado do
nevoeiro! Pois não fique parado aí como um bobalhão! Vá
logo tirar essas botinas e arrume-se para o chá!

Havia vigor e vitalidade na voz incisiva, com um tom


veemente de censura. Mas Martin tinha a impressão de que
aquela reação inesperada não era por sua causa. Pressentiu
que o excitamento da mãe tinha outro motivo
completamente diferente, já que ele raramente voltava para
casa muito antes daquela hora. A reação em cima dele fora
apenas como um canal se abrindo subitamente pelo qual
podia ter vazão a força da agitação dela. Mas ele sentiu
também que a força da agitação, da mãe não era destituída
de prazer e entusiasmo. Ela tornou a pegar o caldeirão de
ferro e remexeu outra vez, vigorosamente. A sala ficou
impregnada com os odores suculentos de cebola, rins e
carne, no molho escuro. As narinas de Martin tremeram um
pouco. Ele tirou as botinas enlameadas e colocou-as perto do
fogo. Teve de se adiantar entre a mãe e o irmão, Ernest. Este
levantou os olhos tão devagar que parecia um ato repleto de
languidez, mas era na verdade a lentidão de imenso poder e
frieza extrema. Contemplou Martin por um longo momento,
a boca larga e mal-humorada, expressando determinação, a
se contrair ligeiramente, demonstrando um inconfundível
desdém indiferente.

— Quando você vai desistir dessa bobagem de escola? —


perguntou Ernest.

A voz era excepcionalmente amadurecida, a voz de


alguém que já conhecia a si mesmo e sabe do que é capaz.

— Nunca — respondeu Martin suavemente, olhando para


o fogo e esfregando as mãos.
Ele odiava Ernest e sabia que o irmão também o odiava.
Dez anos mais tarde, haveria de sentir pena de Ernest. Agora,
porém, o ódio fez com que sentisse um aperto na garganta,
os lábios delicados tremeram, assim como as mãos. Sabia
que Ernest o desprezava e também conhecia o motivo de tal
desprezo. Embora ainda muito jovem, Martin possuía
tamanha lucidez que era capaz de compreender os motivos
da hostilidade de seus inimigos.

Ernest deu de ombros, mudou a posição dos pés grandes


e continuou a contemplar o irmão mais moço. Era uma
contemplação repleta de curiosidade e calculismo,
impregnada de indiferença.

— Nunca...— repetiu ele, arremedando Martin. — Nunca...


Nunca vai prestar para coisa alguma, nunca vai fazer nada,
nunca vai chegar a parte alguma. Vai passar o resto da vida
mandriando com os livros. Por quanto tempo mais acha que
o pai vai sustentá-lo aqui, sem fazer alguma coisa para
garantir o pão que come?

A Sra. Barbour interrompeu-o:

— Pare com isso, Ernest. Deixe Martin em paz.

Mas ela falou mecanicamente. O rosto não exibia qualquer


indício de que as palavras de Ernest haviam penetrado em
sua mente; continuava com uma expressão preocupada e
pensativa. As sobrancelhas pretas estavam unidas por cima
dos olhos. Tocando distraidamente na chaleira, ela queimou
a mão, praguejou furiosamente. Mas sem mudar de
expressão. Martin olhou atentamente para a mãe e depois
para Ernest, alerta, em busca de uma explicação. Mas não
havia qualquer resposta no rosto de Ernest, cujos olhos de
um castanho muito claro luziam de hostilidade.
— Você não presta para nada, acrescentou Ernest,
lentamente, incisivamente, as palavras parecendo se formar
como gelo nos lábios grossos. -Sabe ler e escrever, sabe fazer
contas, tem uma boa caligrafia. O que mais você quer? E o
que pode se tornar, com esses seus modos delicados e
braços tão fracos? Só dá para ser um escriturário do esquire
ou do advogado. Não serve para mais nada.

Martin fitou-o em silêncio por um instante. Era uma rixa


antiga entre os dois. Geralmente ele ignorava as provocações
de Ernest, limitando-se a sorrir e dar de ombros, afastando-
se. Naquela noite, porém, um pouco de excitamento contido
da mãe transmitiu-se a ele, misteriosamente. E seu repentino
sorriso possuía uma intensidade inesperada, os olhos
grandes e azuis pareciam arder furiosamente.

— Mas não quero ser como você — disse Martin, em voz


alta e clara. — Jamais quero parecer com você, Ernest. Por
isso é que continuo a frequentar a escola... para nunca ser
como você, pensando só em dinheiro, em subir na vida,
mesmo às custas dos outros, em amealhar moedas. Não
suportaria ser assim. Prefiro morrer.

Aquela demonstração de veemência era tão sem


precedentes e tão extraordinária que a Sra. Barbour foi
bruscamente arrancada de sua abstração e virou-se para o
filho mais moço com uma expressão de espanto.

— Mas o que está acontecendo aqui? — murmurou ela,


para logo depois acrescentar, em voz mais alta e mais
áspera: — Que história é essa? Vocês dois estão brigando
outra vez? Pois vou dar um jeito nos dois!

E ela seguiu a promessa com um cascudo em Ernest,


súbito e vigoroso, quase derrubando-o do banco em que
estava sentado. E arrematou com um tapa no ouvido de
Martin, desfechado com uma falsa energia. Somente ele sabia
que o golpe fora suavizado no último instante, mas mesmo
assim procurou se esquivar, de maneira extraordinariamente
convincente. A menina no chão gritou, o bebê no berço
soltou um berro. Um gato preto até então invisível, no canto
da chaminé, começou a arquear as costas, bufando no
tumulto.

— Como se eu já não tivesse o bastante com que me


preocupar! — gritou a Sra. Barbour, ofegante, sacudindo
ameaçadoramente os braços brancos e curtos. — Outra
palavra e expulso os dois de casa sem jantar! Ernest, vá me
buscar mais carvão. E depressa! Martin, pegue o bebê e trate
de aquietá-lo. Não é mais do que sua obrigação, depois de
acordá-la deste jeito! E depressa! E você, Florabelle, pare de
choramingar ou vou lhe dar uma surra que nunca mais
esquecerá!

Ela olhou furiosa para os filhos, os dentes faiscando entre


os lábios vermelhos, o peito alvo, mais exposto do que era
comum entre as recatadas mulheres das classes
trabalhadoras, subindo e descendo rapidamente. Mais alguns
cachos pretos desprenderam-se da touca e foram emoldurar
as faces avermelhadas. Apesar de ressentidos, os dois filhos
não puderam deixar de contemplar com franca admiração
aquela beleza camponesa. Ela percebeu a admiração dos
filhos, pois era jovem e sagaz. Tentou disfarçar o prazer
familiar com novos gritos e ameaças. Depois que os dois
rapazes se afastaram cautelosamente, ela mordeu os lábios
para ocultar um sorriso. Voltou a se concentrar no que
estava cozinhando com o bom humor recuperado, até se
empertigando um pouco. Sacudiu a cabeça, murmurou algo
baixinho, bateu com uma colher de ferro nos lados do
caldeirão.

Resmungando baixinho, Ernest pegou o balde de carvão e


saiu da sala. Martin tirou Dorcas, a bebê, do berço, e foi
sentar no canto do banco, ainda quente do corpo de Ernest.
A criança era a sua paixão, o seu brinquedo; amava-a
intensamente. Empoleirou-a habilmente no joelho fino, com
toda a ternura de mãe, pôs-se a embalá-la com uma cantiga
sem palavras. Dorcas era parecida com ele, pequena e
delicada, um rostinho triangular, olhos grandes e azuis,
cabelos claros e lisos. Ela sentiu o amor do irmão e
aconchegou-se contra ele, chupando o polegar, feliz da vida.
Martin ajeitou o corpinho miúdo, sorrindo. Uma ternura
imensa envolveu as duas crianças, como aura suave.
Observando-os pelo canto do olho, o rosto largo de Hilda se
desanuviou. Mas ela experimentou também uma estranha
pontada de angústia. Martin era o seu filho predileto, embora
o negasse firmemente, se alguém lhe dissesse isso. Havia
uma paixão ardente no amor que sentia por Martin. Ela foi
até a mesa e começou a cortar o pão em fatias, com uma faca
afiada. Recomeçou os murmúrios, mais altos agora, em
benefício de Martin. Ele ouviu, mas continuou a sorrir para
Dorcas, embora prestasse atenção a cada palavra.

— Ah, esses dois! — dizia Hilda. — Não me dão um


minuto de sossego! Como se eu já não tivesse o bastante
com que me preocupar! Vivem brigando como cão e gato!
Você não tem um mínimo de bom senso, Martin! Ernest é um
lutador nato, mas o mesmo não acontece com você. Você...
sempre pensei que seria um cavalheiro. Mas acho que você
não pode se tornar um cavalheiro de verdade. Seria elevar-se
acima de sua classe. Mas podia, pelo menos, ter os modos de
um cavalheiro. Um rapaz com os modos de um cavalheiro
pode ir longe na casa dos ricos, escrevendo cartas e
cuidando dos livros. Pode até se tornar um intendente.
Sempre quis que você fosse um intendente.

Ela olhou ansiosamente para o filho, empunhando a faca,


a boca entreaberta, como uma criança. Mesmo assim, Martin
não a fitou. Estava examinando as mãos da irmãzinha, com
intensidade comovente. Beijou o rostinho pálido com infinito
amor.

— Assim é demais! — exclamou Hilda, a voz áspera,


virando-se para o armário e começando a pegar as xícaras. —
É como se eu estivesse falando com o gato!

— Desculpe, mãe — murmurou Martin, gentilmente,


virando o rosto para Hilda. — Estou prestando atenção.

Ela fez um beicinho amuado, tornou a sacudir a cabeça


vigorosamente.

— Não dá para aguentar uma coisa dessas! — disse ela, a


voz irritada, rabugenta, com uma expressão de
ressentimento infantil que até o marido achava irresistível.
— Tento falar com você e me vira a cara! E logo agora que
vamos embora para a América, antes do verão!

Tinha finalmente saído e o rosto de Hilda brilhava com


um sorriso excitado, os olhos faiscavam. O ar parecia
crepitar em torno dela. O fogo aumentou de intensidade,
fagulhas amareladas e fumaça subindo rapidamente pela
chaminé. Martin empalideceu, a expressão tornou-se vazia,
enquanto olhava fixamente para a mãe.

— América... -sussurrou ele.

Martin passou a língua pelos lábios subitamente


ressequidos. A mãe assentiu com a cabeça, deliciada, foi
sentar no banco ao lado de Martin, o rosto iluminado de
júbilo, as covinhas aparecendo. A respiração da mãe soprava
explosivamente sobre o rosto de Martin, quase com êxtase.
Ela ficou esperando pelas palavras do filho com uma
impaciência ansiosa.
Mas ele não disse nada. Por um longo momento, manteve
os olhos grandes e azuis fixados na mãe, inexpressivamente.
Ela continuou a esperar, começando a franzir o rosto,
ligeiramente, a pele alva se alteando entre as sobrancelhas
pretas. O sorriso foi se desvanecendo e os lábios se
entreabriram, deixando os dentes à mostra, duas pequenas
fileiras de dentes. Piscou os olhos rapidamente. Depois, as
faces se avermelharam, enquanto Martin desviava o rosto e
cuidadosamente empurrava para longe, sobre o banco, o
livro do irmão. Podia ler o título à luz do fogo. “Origem,
Fabricação e Uso de Armas de Fogo e Explosivos". Era um
livro antigo, as letras antiquadas, páginas amareladas, com
as beiradas já marrons. A capa, adornada com arabescos e
letras douradas já desbotadas, era grossa, meio dobrada.
Depois de afastar o livro, Martin ficou olhando para ele, sem
ver.

— E então? — gritou Hilda, empurrando o filho


vigorosamente com a mão fechada. — Não tem nada a dizer,
meu bezerrinho?

Lentamente, bem lentamente, Martin sacudiu a cabeça.


Lágrimas de angústia passaram pelas pestanas espessas e
claras. Ele continuou a sacudir a cabeça. Hilda ficou
completamente aturdida, a boca se entreabrindo outra vez.

— Ei, mas o que é isso?

Levou a mão à touca, indecisa, empurrou de volta os


cachos que haviam escapado. Depois, um brilho de raiva
surgiu-lhe nos olhos, o rosto ficou ainda mais vermelho.

— Mas que garoto tolo! — exclamou, entre ofendida e


desconcertada.

Hilda levantou-se de um pulo, com bastante agilidade


para o corpo roliço, foi remexer vigorosamente a comida no
caldeirão. A menina Florabelle, sentindo a fúria da mãe,
retirou-se cautelosamente para o canto distante da chaminé
e ficou espiando desse abrigo. As tranças louras caíam sobre
as faces rosadas, pendendo diante dela, de tal forma que
pareciam cordas as sombras projetadas na parede.

Hilda estava profundamente magoada. O marido era um


homem de ânimo sombrio e sempre sério, não era propenso
a entusiasmos intensos, excitamentos joviais. Ernest era
impassível e desdenhava as manifestações de exuberância,
classificando-as de histerias. As meninas pequenas não
contavam para a esfuziante Hilda. Restava Martin, o seu
amor, o filho que podia compreendê-la, que nunca lhe
faltava em ternura, entusiasmo e compreensão. Assim,
aquela ausência de reação à notícia sensacional não apenas
deixava-a desconcertada, mas também provocava um
ressentimento deprimido. E Hilda tratou de descarregar esse
ressentimento, enfatizando que, no final das contas, eram
mãe adulta e filho insignificante. Ordenou-lhe rispidamente
que pusesse Dorcas no berço, que atiçasse o fogo e puxasse
a cadeira do pai. Ela sentia-se magoada e traída.

Ainda calado, Martin ajeitou a irmãzinha no berço.


Dorcas, no mesmo instante, desatou a chorar, manifestando
seu desapontamento. Hilda gritou e tanto Dorcas como
Martin se encolheram, intimidados. Florabelle sorriu,
satisfeita, em seu abrigo. Ela não gostava de Martin e ficava
contente ao vê-lo cair em desgraça. Quando seus olhos azuis,
pequenos e astutos, perceberam o reflexo do fogo nas
lágrimas do rosto de Martin, experimentou um prazer quase
sensual.

Martin levantou a cabeça e fitou a mãe solenemente.


Sentia pena de Hilda, estava com remorso por não ter
reagido da maneira como a mãe esperava. Ele fez menção de
falar. Mas antes que pudesse dizer qualquer palavra, Ernest
voltou à sala, trazendo o balde de carvão, com uma
expressão irritada. O mau humor logo se desanuviou e ele
ficou prontamente alerta, enquanto avançava para o fogo.
Podia sentir a tensão no ar. Hilda virou a cabeça para trás e
fitou-o com uma expressão amuada, dizendo:

— Ernest, nós vamos para a América, até o verão.

Ernest estacou abruptamente, ficou imóvel, o balde em


sua mão. O rosto impassível assumiu uma expressão de
espanto, depois de excitamento e alegria. Aquela
expressividade inesperada surpreendeu Hilda. Ela fitou-o,
aturdida, enquanto Ernest se aproximava.

— América! — exclamou ele, sua lentidão em acreditar em


qualquer coisa fazendo com que a voz soasse áspera e dura.

— Isso mesmo — disse Hilda, relutante.

Ela estava ressentida com o excitamento óbvio de Ernest,


porque era a reação que esperava de Martin. Hilda deu de
ombros. Subitamente, a notícia parecia insípida, sem
qualquer importância. Não lhe interessava o fato de Ernest
estar excitado e interessado. A audiência na primeira fila lhe
falhara e não estava interessada na galeria. Por dentro, Hilda
estava profundamente magoada.

Ernest bateu palmas uma vez, bruscamente. Foi um gesto


convulsivo, estranho à sua natureza, por isso mesmo
extraordinário. Teve um som explosivo, decisivo, sombrio,
como se alguma coisa nele, que esperara desde o
nascimento, seguisse em sua marcha inexorável para um
lugar predestinado. Ernest virou-se para o fogo sem dizer
mais nada. Esfregou as mãos à luz das chamas vermelhas e
amarelas, outra vez um gesto convulsivo e tenso, sem a
alegria do calor físico. O rosto também estava tenso, com
uma exultação solene, os olhos luziam com um brilho quase
incandescente. Ele virou-se abruptamente para a mãe,
franzindo o rosto.

— Mãe, está tudo certo? Não é apenas uma... não é apenas


conversa? Vamos mesmo? Foi o pai quem falou?

Hilda virou-se para ele, vermelha de raiva.

— Então, meu próprio filho me chama de mentirosa?

Tinha na mão uma concha de peltre e arremessou-a


contra o filho, o ar passando por seus lábios num longo
zunido. Ernest, muito hábil naquelas coisas, tratou de se
esquivar. A concha foi cair no fogo. Com expressão
sorumbática, ela tirou a concha do fogo usando a tenaz,
largando-a na mesa. Os lábios grossos estavam espichados, a
testa franzida, os movimentos eram mecânicos. Era evidente
que seus pensamentos não se concentravam na reação
infantil de Hilda. Sua única preocupação era determinar se
podia ou não confiar na informação da mãe. Já tivera muitas
experiências com histórias nascidas das esperanças da mãe.
Recordava-se perfeitamente de seus desapontamentos e
violentos reajustamentos. Não queria que a velha história se
repetisse.

Como se a demonstração da mãe contra ele não passasse


de um ato da natureza previsível e sem maior importância,
Ernest virou-se novamente para ela, outra vez impassível,
mas concentrado, insistindo:

— Está tudo acertado? Foi o pai quem falou?

Hilda, que ficara observando-o, frustrada e furiosa, voltou


a se agitar com a maior violência. Bateu com o pé, sacudiu a
cabeça, os cachos escapando da touca.

— Está pensando que sou uma criança? — gritou ela,


estridentemente. — Acha que sou uma mentirosa, em minha
própria casa, diante de meus próprios filhos? Se fiquei, então
estou doida! Mandem-me para Bedlam (o mais antigo e conhecido
manicômio do mundo, fundado em 1247), ponham-me em correntes!

Martin, sentado no banco, empalideceu, Florabelle


choramingou, Dorcas gritou.

Mas Ernest sorriu. Contemplou a mãe em silêncio, por


longo momento, com uma expressão de divertimento irônico
e indulgente. Os outros podiam se intimidar diante dos
ataques dela, ficarem aterrorizados, paralisados, sem
saberem o que fazer. Mas isso não acontecia com Ernest. Ele
ficou esperando. Hilda interrompeu a explosão, fitou-o com
expressão furiosa, o branco dos olhos parecendo arder à luz
das chamas. Depois, baixando os olhos diante do olhar
calmo, impassível e expectante do filho mais velho, Hilda
desatou a praguejar, adiantou-se e deu um empurrão no
berço do bebê, que começou a balançar vertiginosamente. No
mesmo instante, a menina ficou muda de terror. Florabelle
levou o polegar à boca e começou a sugá-lo freneticamente,
como sempre fazia nos momentos de tensão. Martin
estendeu a mão rapidamente e segurou o berço de madeira,
reduzindo o balanço furioso a um movimento suave e
tranquilizador. Ele tremia um pouco. Ernest, dando de
ombros num gesto de resignação desdenhosa, começou a
assoviar baixinho, virando-se e passando a ignorar a mãe
enfurecida. Seu rosto estava franzido, de incerteza e
desapontamento.

Em meio a toda essa confusão, a porta externa abriu-se de


repente, deixando entrar uma lufada de ar frio da noite,
seguida por Joseph Barbour. Enquanto fechava a porta,
lentamente, ele olhou furioso para a mulher e os filhos.

— Que briga estava havendo aqui? — indagou ele,


irritado. — Pude ouvir os gritos enquanto atravessava o
Common. Será que nunca posso ter um pouco de sossego
nesta maldita casa? O que aconteceu aqui?

Hilda virou-se para ele dramaticamente, gritando com a


maior veemência:

— Sr. Barbour, seu filho Ernest acaba de me chamar de


mentirosa, a mim, sua própria mãe! E se não lhe der uma
surra, para ele nunca mais esquecer, então não é um pai de
verdade! Isto é tudo o que tenho a dizer!

Joseph olhou da mulher, parada como uma rainha de


tragédia, empunhando a concha e raios caindo ao seu redor,
para Ernest. Sua expressão furiosa se aprofundou. Avançou
para o fogo, aproximando-se de Ernest, muito quieto. Fitou o
filho furtivamente e nesse olhar familiar havia compreensão
e desculpa. Chegando ao fogo, Joseph lançou um olhar
indiferente para as duas filhas pequenas e outro para Martin.
Era um homem magro, que parecia mais baixo do que a
mulher, embora na verdade fossem da mesma altura. Tinha o
que os vizinhos chamavam de uma aparência ‘estrangeira’.
Na realidade, havia algo de latino no rosto moreno e ardente,
olhos castanhos expressivos, nariz proeminente, queixo
pontudo, cabelos pretos, abundantes e ondulados. Possuía
expressão soturna e reservada, que não era inglesa. Os
maneirismos ocasionais, a tendência à violência e acessos de
fúria, os arroubos de vingança e ciúme, as paixões e
luxúrias, tudo isso parecia confirmar a sua história de que o
bisavô por parte de pai fora um aventureiro francês que
fugira da França por motivos políticos. Andava sempre
depressa, nervosamente, o corpo podia ser esguio, mas era
vigoroso, mãos extraordinariamente delicadas e ágeis, uma
tremenda impaciência. E, certamente, não era nenhum tolo.

Demorou algum tempo para voltar a falar, esfregando as


mãos diante do fogo. Seus olhos se encontraram com os de
Martin, que balançava o berço gentilmente. Uma expressão
curiosa estampou-se no rosto de Joseph, pensativa,
respeitosa, impaciente. Depois, ele virou-se para Hilda, que
já acumulava o fôlego para outra tempestade. O olhar do
marido a deteve um instante antes da explosão.

— Tem certeza de que Ernest chamou-a de mentirosa,


mulher? — disse ele, indulgente. — Nunca o ouvi tratá-la de
maneira desrespeitosa. — Fazendo breve pausa, ele virou-se
para Ernest com o rosto subitamente franzido, antes de
arrematar: — E é melhor ele nunca se atrever.

— Não chamei a mãe de mentirosa — disse Ernest,


calmamente. — Apenas perguntei se já estava tudo realmente
acertado para irmos para a América.

— Ah, então não conseguiu ficar de boca fechada até que


eu lhe dissesse que podia contar tudo, hem, Hilda?

A voz de Joseph era incisiva, como se as palavras fossem


vergastadas desferidas na mulher. Hilda empalideceu, baixou
os olhos furiosos. Largou a colher. Parecia totalmente
dominada pela apreensão.

— Achei que não haveria mal algum em contar aos


meninos — murmurou ela, inquieta.

— Você nunca acha nada, mulher.

Ernest sorriu ligeiramente.

— A mãe não disse com certeza que íamos.


Ele virou o rosto para a mãe, com uma expressão tão
suave, que Hilda ficou branca de raiva. Esquecendo-a, Ernest
tornou a concentrar-se no pai.

— Vamos mesmo, pai? Já está tudo acertado? Tio George


nos chamou?

— Espere um pouco! — resmungou Joseph.

Mas ele não estava insatisfeito. Queria conversar tudo


com Ernest, o filho predileto, a quem compreendia. Só que,
por uma questão de dignidade, precisava simular alguma
relutância.

— Será que um homem nem ao menos pode sentar antes


de ser massacrado desse jeito? Onde está minha cadeira?

Joseph sentou com extrema precisão, pois era um homem


sempre impecável. Havia nele algo de delicado que
repudiava a vitalidade camponesa da mulher. Joseph não
usava os tamancos do inglês das classes baixas, pois era uma
espécie de empregado de categoria superior na casa do
Esquire Broderick. As roupas, embora pobres e surradas,
envolviam seu corpo com um ar de elegância. Secretamente,
Hilda sentia o maior orgulho do marido e tinha medo dele.

— Ele é um cavalheiro da cabeça aos pés — ela gostava de


dizer às amigas.

Ele tirou as botinas e Ernest prontamente pegou-as,


ajeitando-as junto do fogo, de lado, a fim de secar a
umidade. As mãos de Ernest eram grandes e hábeis e nelas
as botinas pareciam ser de criança. Cada gesto seu era terno,
pois amava o pai profundamente. Joseph observou-o, sua
expressão sombria se desanuviando. Ele olhou em seguida
para a garotinha no berço, fez-lhe alguns ruídos sem muito
entusiasmo. Mas o olhar que lançou para Florabelle, no canto
da chaminé, foi afetuoso. Depois de Ernest, Florabelle era a
sua predileta. Joseph estendeu-lhe a mão e ela saiu correndo
de seu refúgio com um grito de alegria. Joseph assentou-a
em seus joelhos e começou a mexer numa das tranças
louras, enquanto Florabelle se absorvia a mexer no rufo da
camisa branca do pai. Hilda, já abrandada, passou a terminar
de aprontar a mesa. Mas contemplou a família e algo
profundo e satisfeito insinuou-se em sua expressão. Lá
estava Martin, encolhido no banco, balançando gentilmente o
berço, a luz do fogo transformando seus cabelos numa
cascata prateada-dourada, ressaltando a beleza suave do
perfil. Lá estava Joe, seu amo, senhor e • amante, o corpo
esguio e bem feito de costas para ela, os cabelos pretos e
ondulados brilhando sob as velas, com a filha nos joelhos. E
lá estava o forte e corpulento Ernest, agachado ao lado do
pai, contemplando-o com expressão de adoração. As
lágrimas arderam nas pálpebras de Hilda.

— Vamos mesmo para a América — disse Joseph.

Ele fez uma pausa dramática. Martin, ainda sem falar,


virou o rosto para o pai e ficou esperando. Mas Ernest
ansiosamente pôs a mão no joelho de Joseph. O rosto jovem
tremeu, num pequeno espasmo. Observando-o, Joseph
sorriu, com profunda compreensão. E deixou-se contagiar
pelo excitamento do filho.

— Vamos mesmo para a América — ele repetiu, em voz


mais alta. — Devemos partir no mês de maio, assim que seu
Tio George enviar as passagens. Creio que todos sabem onde
ele está, pois já falei uma porção de vezes. Windsor, no
Estado da Pensilvânia. Recebi esta manhã uma carta dele,
dizendo que as coisas estão correndo muito bem. Há três
homens trabalhando agora em sua pequena fábrica de armas
e pólvora. Aquele francês de que lhe falei, Ernest, o tal de
Bouchard, acaba de receber seu dinheiro da França, 200
libras. E comprou uma sociedade com seu Tio George. E
agora George tem um lugar para eu trabalhar. E será um
trabalho de verdade. Acabou-se essa história de fazer
rapapés para os fidalgos e trabalhar até não poder mais por
algumas moedas, na base de “obrigado-senhor-e-pode-me-
dar-um-chute-no-rabo!” Não quero mais saber disso, nem
para mim nem para meus filhos!

Joseph olhou de um filho para outro, os olhos castanhos


brilhando intensamente.

— Isso acabou para sempre! E também vamos ter muito


dinheiro! Tem dinheiro que não acaba mais na América!
Dentro de alguns anos, teremos mais dinheiro do que jamais
sonhamos! E poderemos voltar para cá e mandar em todo
mundo! Seremos como fidalgos!

Ele soltou uma risada rouca.

— Mas, Joe... — murmurou Hilda, timidamente.

O marido lançou-lhe um olhar furioso. Compreendendo


que ainda estava em desgraça, Hilda recaiu no silêncio.

Foi então que Martin falou, pela primeira vez, em voz


suave e emocionada:

— Nunca mais voltaremos. Tenho certeza de que nunca


mais voltaremos.

Era como se ele estivesse repetindo uma litania de


desespero. Joseph fitou-o brutalmente.

— Mas que história é essa, seu idiota? Nunca mais


voltaremos? Pois estaremos aqui de volta dentro de dez
anos! Pensa que quero ser enterrado vivo entre os índios
pagãos, as florestas e os ianques? A Inglaterra é a minha
terra. Sou inglês, não é mesmo? Mas quero ganhar dinheiro,
não aguento mais viver aqui deste jeito. Voltaremos antes
mesmo que cresça uma barba na sua cara!

E Joseph virou as costas a Martin, ignorando-o


desdenhosamente.

— Ficarei contente em ver Daisy novamente — disse


Hilda, esquecendo que estava em desgraça e aproximando-se
do fogo. — Já tem mais de quatro anos...

— Quer servir logo esse chá? — gritou Joseph, furioso.

E Hilda bateu em retirada outra vez. Martin, sem ser


notado, levou um dedo fino ao rosto e furtivamente removeu
uma lágrima. Joseph virou-se novamente para ele,
perguntando, exasperado:

— Quer ser um criado como seu pai?

Martin, incapaz de falar, sacudiu a cabeça humildemente.


Mas Ernest estava impaciente pelo fato da atenção do pai se
concentrar em alguém tão insignificante quanto Martin. E
apertou o joelho de Joseph.

— Não posso acreditar... — murmurou ele, exultante, os


olhos brilhando, os lábios ressequidos. — Pois eu nunca
voltarei para cá! Não vou querer! Quero ser alguém e aqui
não tenho a menor chance. Não quero usar tamancos pelo
resto da vida. A América é um mundo novo, onde um homem
pode fazer alguma coisa importante.

Ele levantou-se. Todos o fitavam. Ernest tinha apenas 13


anos, mas havia algo de impressivo em seu corpo vigoroso,
algo de implacável e invencível em sua atitude, algo de
amargo esplendor nas feições rudes do rosto grande. Ele era
tão pouco dado a excitamentos e manifestações exteriores
que o seu comportamento agora parecia duplamente
surpreendente, um tanto assustador. Pelo menos Martin
sentiu um calafrio de medo e Hilda ficou completamente
aturdida. Mas Joseph sorriu, um tanto sombrio.

— Isso mesmo, meu rapaz! — disse ele, sacudindo a


cabeça pequena. — É assim que se fala! E, se Deus quiser,
você vai conseguir tudo o que deseja. Ah, não pode haver a
menor dúvida de que vai conseguir tudo! — Esquecendo o
mau humor, Joseph virou-se, sorriu e estendeu a mão para
Hilda. — Venha me dar um beijo, mulher.

Na maior alegria, como uma criança, Hilda adiantou-se


rapidamente, pegou a cabeça do marido entre os braços
brancos e afetuosos, beijou-o apaixonadamente na boca,
repetidamente, até que, rindo, Joseph teve de fazer um
esforço para desvencilhar-se. Ele quase caiu no fogo,
enquanto se debatia, e só foi salvo pelos braços fortes de
Hilda, segurando-o novamente. Ela estava linda, corada,
radiante, tão jovial quanto uma garotinha. As meninas
gritaram. Martin sorriu, triste e involuntariamente. Mas
Ernest estava de rosto franzido, olhando fixamente para o
fogo. Nada ouvia e nada via do tumulto. Seus pensamentos e
sua vida projetavam-se pelas cavernas avermelhadas dos
carvões em brasa, através das trilhas douradas, elevando-se
pelos cumes escuros. Não havia mais nada que importasse
para ele além de sua ambição, nunca haveria. Um grilo
atravessou aos pulos a frente da lareira, apavorado.
Mecanicamente, sem sequer pensar no que estava fazendo,
Ernest esmagou o bicho sob o pé. Martin percebeu o gesto,
mas também viu muito mais além. Percebeu que Ernest não
acalentava qualquer hostilidade consciente contra o grilo,
que o matara apenas numa reação mecânica e instintiva. E
essa ausência de hostilidade consciente pareceu a Martin ser
algo terrível.
CAPÍTULO III
Joseph Barbour era uma espécie de criado de categoria
superior na casa do Esquire Henry Broderick. Dirigia e
controlava os cavalariços no estábulo e os rapazes que
cuidavam dos cachorros. E como o esquire era também um
grande caçador e Joseph cuidava de todas as armas, que
eram muitas, pois sempre havia muitos amigos em visita e a
região até que era boa para caçar. Joseph, que fora um dos
cavalariços, substituíra o irmão, George Barbour, quando
este emigrara para a América, quatro anos antes. Rude,
independente e excêntrico, Joseph não era muito apreciado
pelo Esquire Broderick. Mas sua inteligência excepcional e
integridade absoluta eram coisas por demais valiosas. Além
disso, Joseph era profundo conhecedor de armas de fogo,
ainda melhor do que o irmão, segundo dizia o Esquire
Broderick, O esquire possuía a melhor coleção particular de
pistolas e espingardas do país e todas as armas estavam
sempre em perfeita ordem. Joseph, depois de muitas
misturas misteriosas e depois que o esquire profetizara,
temeroso, que ele e sua casa acabariam explodindo durante
as experiências, produzira uma pólvora com uma resistência
espantosa à umidade e que fazia com que as armas fossem
disparadas limpamente, com menos fumaça e menos perigo
para o atirador. Ele se recusava a revelar o segredo, embora
houvesse a promessa sedutora de compensações financeiras.
Era a sua esperança e a sua ambição. George poderia usar
aquela pólvora nova e melhor em sua pequena fábrica de
armas e munições na América, na pequena cidade de
Windsor, à margem do Rio Allegheny, no Estado da
Pensilvânia. Fora depois da carta de Joseph, falando sobre
essa nova pólvora, que George sugerira que o irmão fosse
juntar-se a ele na América. Joseph não pensara seriamente na
América até receber a carta de George. E foi nesse momento
que, como numa visão, vislumbrou coisas vastas e
espetaculares. Decidiu ir para a América.

Joseph ficou desapontado e irritado com o silêncio de


Martin em relação ao êxodo iminente para a América. E todas
as noites passou a argumentar com o filho, enaltecendo o
novo país, sobre o qual conhecia muito pouco, tomando-se
artificialmente entusiasmado, até perceber uma compaixão
lacrimosa nos olhos de Martin. Com uma eloquência
totalmente desproporcional, tentava convencer uma
audiência silenciosa e obstinada das vantagens
extraordinárias da viagem iminente. Os gestos se tornavam
extraordinariamente amplos, a eloquência aumentava, o
entusiasmo era exuberante. Ernest ficou furiosamente
impaciente depois das duas primeiras noites; queria fatos
concretos e objetivos, não econômicos. Gostava de ouvir o
pai dizer, profeticamente:

— Está chegando o momento, meu rapaz, em que as


guerras não serão travadas e vencidas pelas nações com
melhores homens, de corações mais bravos e coragem
superior. Serão vencidas pelos países que tiverem melhores
armas e munições, mesmo que tenham menos soldados.
Armas maiores, canhões grandes, balas mais rápidas e mais
explosivas. Não homens e sangue. As guerras serão vencidas
nas fábricas.

Ernest escutava atentamente, os olhos brilhando,


voltados para dentro, a boca entreaberta, sorrindo.
Observando-o nesses momentos, Joseph sentia uma pontada
de inquietação e inveja, como se compreendesse que Ernest
via coisas além de sua própria visão, embrenhava-se por
lugares a que ele próprio não podia ir. Era nessas ocasiões
que ele se virava instintivamente para Martin, que era mais
jovem e mais simples, embora ao mesmo tempo,
paradoxalmente, fosse mais sutil do que o irmão.
Mas Martin persistia em seu silêncio. Parecia se refugiar
dentro de si, de tal forma que dava a impressão de que seu
ego exterior não passava de um posto avançado deserto e
vulnerável, muito distante de uma fortaleza invencível.
Joseph, gritando, podia derrubar as frágeis muralhas
externas, com uma salva de palavras. Mas não era capaz de
sequer aproximar-se da fortaleza, cercada pelo silêncio
intransponível. Finalmente, na maior exasperação, furioso,
Joseph desistiu. E por várias semanas relegou o filho
totalmente, bradando:

— Garoto ingrato!

Mas ele encontrou algum conforto na reação satisfatória


de Hilda, deliciada com a perspectiva de rever Daisy, sua
prima em segundo grau. Ela não gostava muito de George
Barbour, um homem mal-humorado que não tinha o que
Hilda chamava de ‘sentimento de família’. (Ele não enviara
qualquer presente de batizado para as filhas de Hilda,
embora Dorcas tivesse o nome da mãe dele e de Joseph.) Mas
a personalidade de Hilda era tão exuberante que ela podia
encontrar incontáveis qualidades em George Barbour, agora
que ele prometera enviar passagens para que o irmão e toda
sua família fossem para a América. O verdadeiro êxtase de
Ernest contribuiu para aumentar a complacência de Joseph.
Pela primeira vez, ele começou a interessar-se pela pequena
Florabelle, que não tinha a menor ideia do que estava
acontecendo, mas mesmo assim participava do regozijo da
família. Somente Martin permanecia calado. E
compreendendo, desamparado, que caíra em desfavor,
procurava passar o mais despercebido possível. Ele evitava
Joseph, a quem secretamente idolatrava. Refugiava-se nos
cantos da chaminé, comia apressadamente as refeições,
permanecia fora de casa até que o crepúsculo obrigava-o a
entrar, demorava-se na volta da escola. Não sabia por que se
desesperava e sofria tanto, mas sentia-se oprimido por uma
agonia intensa e uma dor profunda, vastas demais para
caberem em palavras, até mesmo para lágrimas ou
pensamentos. Era como um Atlas infantil, carregando nos
ombros frágeis o peso tremendo de suas próprias emoções
informes. Foi ficando cada vez mais pálido e mais magro,
uma sombra de si mesmo, de olhos imensos.

Enquanto isso, os preparativos para a viagem


prosseguiam, na maior exultação. O Esquire Broderick estava
indignado com a perspectiva de perder seu melhor criado.
Depois que persuasão e promessas não conseguiram
demover Joseph, ele profetizou coisas terríveis para a
família na América. Mas Joseph não se deixou impressionar.
Permitiu que todo o seu rancor e desprezo secretos pelo
esquire se manifestassem e o resultado é que foi despedido
com raiva, quatro semanas antes da data marcada para a
viagem. Era um incidente inconveniente e alarmante, poderia
ter consequências desastrosas para a família empobrecida,
se o esquire, descobrindo que não podia passar sem Joseph,
não enviasse o filho mais velho a casa dos Barbours, com
ofertas de perdão. Isso, entre outras emoções, impediu que
os pais percebessem os progressivos sofrimentos e
emagrecimento de Martin.

O Esquire Broderick, num gesto magnânimo, propôs


enviar Ernest e Martin para a escola, pagando todas as
despesas, se Joseph permanecesse a seu serviço. Há muito
tempo que Joseph lançava olhares mortificados para um
chalé de meeiro na aldeia, que o Esquire Broderick até então
se recusara a alugar-lhe. Agora, o chalé lhe foi oferecido de
graça. Joseph, excepcionalmente solene, chegou em casa e
contou a mulher. Os dois ficaram abalados, ofuscados.
Passaram um longo tempo fitando-se, em silêncio, pálidos,
em dúvida. Os dois rapazes nada disseram. Martin estava
com o rosto pálido e brilhante. Depois, subitamente, Ernest
se levantou, as feições rígidas e angustiadas. Olhou para o
pai e para a mãe, soltou um grito, um único grito, intenso,
estridente. Tornou a sentar, as mãos grandes cerradas sobre
os joelhos, olhando fixamente para o fogo. Joseph fitou-o
com espanto, assim como Hilda. Ficaram esperando. Mas
Ernest não falou, enquanto Martin começava a chorar
baixinho, em seu canto.

Nada mais se falou do chalé e da escola. Nada mais se


disse de permanecer na Inglaterra. Ernest não fez qualquer
comentário, não discutiu coisa alguma. Simplesmente
preparou-se para a viagem.

Joseph só tinha um parente vivo, uma idosa tia-avó, que


vivia ao final da Sandy Lane, numa pequena casa, garantida
por uma pensão, pois perdera o pai, marido e filhos nas
guerras napoleônicas. A casa ficava afastada da estrada,
oculta à sombra de árvores frondosas. Tinha mais de 100
anos, com paredes grossas, janelas pequenas, de treliça,
chaminés de pedras e portas quadradas de carvalho. As
janelas dos fundos abriam-se para um jardim mais baixo,
repleto de árvores centenárias, caminhos sinuosos, relógios
de sol, caramanchões, canteiros de flores e arbustos
emaranhados. Eram uma casa e um jardim encantados, onde
as sombras pareciam mais refrescantes, a relva mais verde,
os passarinhos mais numerosos, rompendo com seus
trinados um silêncio quase palpável. A partir do momento
em que se passava pelo portão, que dava para Sandy Lane,
penetrava-se imediatamente num sossego profundo, onde o
simples barulho dos pardais, nas pequenas bacias de pedra,
tornava-se alto e clamoroso. A casa estava envolta por
arbustos, árvores e sombras. As janelas de oeste abriam
diretamente para canteiros de lilás e hera. Os próprios raios
do sol, aprisionados ali em pequenas poças distorcidas de
claridade, em triângulos e borrões difusos e instáveis, eram
diáfanos e enevoados, impregnados de irrealidade. No calor
das lajes de pedra do jardim, um gato preto ronronava e
dormia, os olhos cor de topázio faiscando preguiçosamente
para os passarinhos barulhentos. Sob um caramanchão, a
velha Sra. Barbour ficava sentada durante os dias de verão e
os prolongados crepúsculos, tricotando.

Os vizinhos, com os quais ela quase não se dava,


chamavam-na de velha feiticeira. Mas isso era injustificado,
pois não havia nada de misterioso ou maligno na velha
senhora. Ao contrário, ela era distraída e esquecida, olhos
azuis enevoados, rosto pálido e encarquilhado, cabelos
brancos, corpo atarracado, andar hesitante. Adorava
passarinhos e mantinha vários em gaiolas na cozinha
ensolarada, só tolerando o gato porque afugentava os ratos.
Nunca visitava ninguém, com exceção do sobrinho-neto
Joseph; e, mesmo assim, apenas no Natal. O Esquire
Broderick cuidava de seus negócios. Fora ele quem lhe
garantira a pensão. Ela levava uma vida meio de sonho,
semiconsciente, como a de uma criança.

Martin era o único dos Barbours que a apreciava. Passava


horas em seus jardins, como se constituíssem um refúgio de
uma realidade insuportável e insustentável. Ele ajudava-a a
arrancar as ervas daninhas dos canteiros irregulares, matava
as lesmas, prendia uma trepadeira por demais carregada de
frutos ou folhas, limpava os blocos de pedra dos caminhos
com uma vassoura feita de palha dura e dava comida aos
passarinhos. Ele ficava fascinado pela maneira como os
esquivos pardais permitiam a aproximação da velha senhora,
acomodados nas beiras das pequenas bacias de pedra,
observando-a com olhos brilhantes, os corpos tremendo.
Martin jamais se cansava de contemplar os cravos, prímulas,
centáureas, lírios, as pequenas rosas silvestres; jamais se
cansava de contemplar a luz se derramando pelo branco dos
copos-de-leite e se insinuando gentilmente até o dourado lá
no fundo.
Não havia conversas sábias entre o garoto solitário e a
velha senhora solitária. Ambos encontravam repouso na
presença um do outro. A Sra. Barbour nem sempre sabia
direito quem ele era. Chamava-o às vezes de Nicholas,
tomando-o por um dos seus filhos mortos há tempos, outras
vezes tratava-o por Joseph, julgando que fosse o pai dele.
Martin respondia gentilmente a todos os nomes, não
querendo perturbar a luz vaga, quase como um transe, que
havia nos olhos da Sra. Barbour. Não sentiam um amor
mútuo verdadeiro, no sentido comum da palavra. Não havia
sequer uma afeição ativa. Mas a presença do garoto
confortava a velha senhora e a presença da velha senhora
misteriosamente confortava o garoto. Eram como o vento
suave e a chuva amena juntos, passando às vezes horas sem
se falarem, quase que esquecendo a presença um do outro.

Antes de ir embora, ao crepúsculo, Martin seguia os


contornos indefinidos da tia-bisavó até a sala de visitas,
onde sempre havia um fogo fraco aceso. Tomava o chá da
China ralo que ela servia, em xícaras de porcelana altas e
delicadas, comia uma fatia do bolo de sementes. Pelo resto
de sua vida, Martin nunca mais tornou a provar um bolo de
sementes como aquele, com sabor estranho e difuso, rico e
suculento, que permanecia na língua e no céu da boca, por
muito tempo depois. Hilda dizia que não era simplesmente
feito de uma boa e honesta farinha de trigo, cariz, leite e
ovos, mas possuía algum ingrediente encantado. Quando as
primeiras e pálidas estrelas surgiam sobre a paisagem,
parecendo flutuar sobre uma neblina violeta, Martin partia
para casa, às vezes sem uma palavra de despedida. Ao fechar
o portão de ferro, entre os muros baixos e cinzentos, tinha a
sensação de que deixava um lugar encantado, voltando a
uma realidade inóspita, sufocante e desolada.

Como Joseph raramente via a tia-avó mais que uma ou


duas vezes por ano, não lhe contou que estava deixando a
Inglaterra. Comentou com Hilda que provavelmente a tia-avó
nem saberia do que ele estava falando e esqueceria
imediatamente. Não sentiria a falta de qualquer deles,
mesmo que nunca mais tornasse a vê-los. Continuaria a viver
como sempre, murmurando coisas ininteligíveis para
sempre, entre os canteiros de flores, sob as árvores,
alimentando os passarinhos, varrendo as pedras do caminho,
afagando o gato preto, tricotando, sonhando, esquecendo,
cochilando à luz difusa de um sol que parecia irreal naquele
jardim. Era uma velha tola e desamparada, que mesmo assim
conseguia manter impecável a sua pequena casa, repleta de
memórias esquecidas, do cheiro de ervas, odor de cariz, o
silvo aconchegante de uma chaleira de cobre polido, sobre
um fogo baixo, os cantos dos passarinhos engaiolados. Era
de admirar que ela ainda conseguisse manter os móveis
escuros sempre lustrosos, era um espanto que jamais
esquecesse as histórias a respeito, de cada peça. Num canto
da sala de visitas havia um relógio de pé, de idade imensa,
madeira preta e lustrosa, o mostrador meio apagado,
ligeiramente dourado. Não importa o que estivesse fazendo
no momento em que o relógio batia as horas, ela sempre
parava imediatamente, sorrindo e levantando um dedo. E
murmurava:

— Ah, ainda bate as horas, apesar de seu avô dizer,


depois que foi consertado pelo nosso John em 68, que nunca
mais isso aconteceria.

Dois dias antes de deixar a Inglaterra, Martin foi procurar


a tia-bisavó, a fim de despedir-se. Tinha certeza de que o seu
adeus não penetraria os silêncios dos vastos crepúsculos
rurais em que ela vivia, assim como estava também
convencido de que a velha senhora não daria por sua falta,
depois que fosse embora. Não obstante, ele foi despedir-se.
Era um adeus não apenas a ela, mas também à casa
encantada, aos silêncios primaveris, às árvores, passarinhos,
flores, à relva úmida e muito verde, ao refúgio e paz que
sempre encontrara ali.

Estava chovendo há alguns dias, mas a chuva parou


naquela tarde, deixando o ar ameno, impregnado de
tranquilidade e melancolia. Umas poucas carruagens
passavam pela Sandy Lane, repletas de mulheres e crianças,
podendo finalmente sair de suas casas, depois de uma chuva
tão prolongada. Algum calor se insinuara pelo úmido
crepúsculo inglês, impregnando-o de sons claros e suaves,
promessas, fragrâncias, árvores gotejantes, murmúrios de
passarinhos. Martin abriu o portão de ferro enferrujado, com
um rangido, passou para o outro lado e fechou-o,
encaminhando-se para a velha casa pelo caminho de pedras
cobertas de musgo. Como sempre acontecia, ele ficou
espantado pelo fato do simples ato de fechar o portão
parecer excluir completamente todos os sons do mundo
exterior. Teve novamente a sensação, pela centésima vez, de
que avançava sob água profunda e transparente, penetrando
num mundo intemporal de encantamento.

A velha Sra. Barbour não estava no jardim encharcado,


naquela tarde agonizante. Martin foi encontrá-la diante do
fogo, na sala de visitas. As sombras ali eram tão densas e
escuras que quase não dava para discerni-la. Ela limitou-se a
acenar com a cabeça para Martin, sem fitá-lo, continuando
em seu tricotar misterioso e interminável. A touca, com seus
muitos rufos, estava rosada pela luz do fogo. As meadas de
lã deslizaram pelos joelhos da Sra. Barbour e caíram, sendo
apanhadas pelo imenso gato, que começou a brincar, com a
espontaneidade de um filhote. Os olhos da Sra. Barbour
estavam mais vagos do que nunca, o rosto não tinha
qualquer expressão definida.

— Ah, é você, Nicholas. Sente-se, como um bom rapaz,


enxugue as botinas. Estão cobertas de lama. A chaleira está
no fogo e vamos tomar uma xícara de chá, antes dos outros
rapazes chegarem. Atice o fogo para mim. Está ficando
baixo.

Martin pegou o atiçador de latão e remexeu o fogo débil,


aumentando-o para um tumulto de preto e dourado. A Sra.
Barbour já esquecera o chá e murmurava sobre o tricô,
sempre se balançando. O silêncio foi se aprofundando na
pequena sala, com seus incríveis móveis pretos e lustrosos.
O odor de ervas aumentava de intensidade, a luz do fogo se
projetava pelas pedras brancas da lareira, a chaleira zunia
sonolentamente em seu gancho. O gato bocejou uma vez e
mostrou a Martin uma caverna rosada e selvagem, por trás
de dentes brancos e compridos.

A qualidade imutável do silêncio profundo era tão grande


que não foi afetada pelos movimentos de Martin, quando ele
se levantou e foi até uma das janelas de treliça. Ao contrário,
os movimentos pareciam ser um prolongamento do próprio
silêncio, acentuando-o. A velha Sra. Barbour não levantou a
cabeça, o gato não virou os olhos amarelados para
acompanhar Martin, o fogo não aumentou de intensidade, a
chaleira não sibilou mais alto. Ele abriu a janela para os
lilases lá fora.

A chuva caía novamente, uma chuva sussurrante,


prateada, contribuindo para aprofundar o silêncio. Caía de
um céu coberto por uma neblina avermelhada, caía sobre os
lilases que a pequena janela aberta comprimia. As lanças
úmidas de um púrpura suave exalavam uma fragrância
penetrante e nostálgica. Martin estendeu a mão para fora e
tocou as folhas frias, pelas quais escorria uma água
prateada. Puxou uma pequena pirâmide de flores e encostou
em seu rosto. O jardim flutuava numa neblina um pouco
mais escura que o céu avermelhado. As árvores, vigorosas e
molhadas, no jardim encharcado, pareciam se erguer sobre a
neblina como em água ligeiramente colorida. Perdiam assim
um pouco dos contornos definidos da realidade, pareciam
sonhos num mundo crepuscular de sonho, que flutuava
numa nuvem violeta.

Martin teve a sensação, parado ali, diante da pequena


janela aberta, as flores e as folhas encostadas em seu rosto
quente, de que jamais esqueceria aquele momento, aquela
fragrância, aquela chuva viçosa que lhe escorria pelos dedos
e faces, aquela débil claridade violeta, aquele silêncio. A
pungência da cena parecia mais do que podia suportar. E
quando um tordo, um único tordo, começou a cantar,
vagamente, uma derradeira canção melancólica, entre as
árvores, ele desatou a chorar. As notas suaves, tão claras e
tão tristes, emocionantes e solitárias, penetraram-no como
se ele próprio fosse a neblina, como se transmitissem dor e
angústia insidiosas.

Por trás dele estava a semiescuridão aconchegante da


sala, com o fogo baixo, a velha senhora tricotando, o gato, a
lareira de pedras brancas, o cheiro de cariz e móveis antigos,
o silvo de uma chaleira de cobre que reluzia como ouro.

Martin limpou as lágrimas, fechou a janela lenta e


gentilmente. Voltou para junto do fogo e sentou-se no banco.
Ficou olhando por um longo momento para a velha
sonolenta, antes de finalmente perguntar:

— Quer que eu acenda as velas, Tia Ellen?

Arrancada bruscamente de seus devaneios, a velha


senhora fitou-o vagamente por cima dos óculos quadrados.

— Hein? Ah, é você, Nicholas. Quero, sim, querido. Pode


acender as velas. Está escuro e eu estava quase dormindo. Ei,
a chaleira também está fervendo!
Martin encostou um pavio de cera no fogo e depois
acendeu as velas por cima da lareira. As chamas se elevaram,
douradas, na semiescuridão avermelhada do final do dia.
Umas poucas gotas de sebo derretido, claras como água,
começaram a escorrer para os castiçais de porcelana. Martin
tocou em algumas gotas, deixou que endurecessem em seus
dedos, depois uniu as massas leitosas. A Sra. Barbour,
murmurando ativamente, largou o tricô numa cesta,
empurrou o gato para o lado e tirou do fogo a chaleira que
sibilava. Tirou dos recessos do canto da chaminé uma lata de
chá e um bule azulado. Martin levou uma mesinha redonda
para perto do fogo. A mesinha era de mogno, com a beirada
levantada, avermelhada pela idade. Ele foi até o armário alto,
nas sombras, e pegou duas xícaras e pires azuis, duas
colheres de prata e dois pratinhos também azuis. A água
fervendo sibilou sobre o chá, o fogo se elevou em fagulhas
rosadas, o gato encostou-se nas pernas da velha senhora,
ronronou. Lá fora, a chuva entoava um débil som musical
sobre as folhas de lilases.

— Tia Ellen — disse Martin, em voz suave que parecia


acentuar a quietude — nós vamos partir para a América.

A velha senhora continuou a cortar o bolo,


cuidadosamente. Foi só depois que a quarta e última fatia
estava no prato azul, que ela levantou os olhos, confusa.

— Você disse América, Nicholas? América? Mas você


ainda é muito jovem e inexperiente para se afastar de sua
mãe. Talvez mais tarde, quando for um homem.

Ela sorriu-lhe ternamente, graciosamente, sacudindo a


cabeça, como que admoestando um pequeno aventureiro,
morto há 40 anos.

Martin, ansioso por simpatia e compreensão, abriu os


lábios. Mas não chegou a falar. Era Nicholas naquela noite.
Não devia confundir e assustar a velha senhora. Ele suspirou,
sentou, começou a tomar o chá fraco. Parecia escaldar sua
boca, enquanto o bolo de sementes sufocava-o.

Angustiado demais para se mexer, ele continuou


encolhido no banco por muito tempo depois, apesar de que
já deveria ter partido. O relógio bateu em sua despedida,
solenemente, como se também estivesse pesaroso porque
nunca mais Martin tornaria a sentar-se naquela sala, diante
daquele fogo. Mas o fogo estava quase apagado e as brasas
de um dourado escuro caíam sobre cinzas frias. O gato
dormia ao lado da lareira quase escura, a velha senhora
dormia na cadeira. Lá fora, a chuva era mais forte e mais
sonora, caindo em sons cavos e tristes, despejando-se pelos
beirais antigos. Um vento gemia agora pelas janelas de
treliça, descia uivando pela chaminé fria. Parecia a Martin,
enregelado e dominado pelo desespero, que ele era a única
coisa viva num universo que se transformara em sonhos
vagos e indefinidos. As águas geladas do medo e da angústia
foram subindo dentro dele. Embora desejasse, Martin
descobriu que não era capaz de se levantar.

O relógio tornou a bater e desta vez o som foi alto e


ameaçador, na escuridão quase completa. Na lareira,
restavam duas brasas vermelhas, ardendo sem irradiar calor,
A cabeça da velha senhora estava abaixada contra o peito, o
gato gemeu uma vez em seus sonhos.

Martin se levantou. Tinha a sensação de que estava


chorando há horas, embora os olhos estivessem inteiramente
secos. Na escuridão, ele beijou o rosto suave e encarquilhado
da velha senhora. Parecia papel velho em contato com seus
lábios.

Quando ele saiu, a porta fechou-se às suas costas,


silenciosamente, os dois carvões vermelhos faiscaram, a
velha senhora, o gato e o relógio ficaram a sós com eles
próprios.
CAPÍTULO IV
Como se despejada de gigantesco recipiente de latão, a
catarata avermelhada de luz insuportável caía sobre o rio, as
terras planas, as colinas distantes, o mundo inteiro.

Martin jamais vira uma claridade assim e lhe doíam os


olhos. Mais do que isso, parecia fazer com que alguma coisa
doesse terrivelmente dentro dele. Uma claridade assim, tão
diferente do suave e enevoado brilho do sol da Inglaterra,
não apenas o assustava, mas também o deixava oprimido. A
pele ardia e murchava sob aquele sol, a carne parecia se
derreter. Ele piscou repetidamente, estremeceu, procurando
se esconder sob qualquer árvore frondosa, à sombra de
qualquer cabana de madeira ou de qualquer parede. Mas não
podia escapar. A claridade ardia ao seu redor, era um
inimigo pessoal, do qual se tornava impossível escapar.
Diziam que o inverno finalmente chegaria e assumiam
expressões tenebrosas ao falarem nisso. Mas Martin não
podia acreditar que uma bênção como o inverno pudesse
chegar e libertá-lo daquele sofrimento, antes que morresse.

A pequena cidade de Windsor, à margem do Rio


Allegheny, era uma aldeia nova, grande, tumultuada, apenas
com 30 anos de existência. Trinta anos antes, havia naquela
região um punhado de fazendeiros; agora, Windsor
orgulhava-se de seus dez mil habitantes. Profetizavam que
dentro de 25 anos Windsor seria a capital estadual. Homens
menos sentimentais, que não se preocupavam com política,
mas apenas com dinheiro, declaravam que a capital que se
danasse, Windsor acabaria sendo uma cidade de meio milhão
de habitantes, maior do que Nova York, encontraria a sua
glória num vasto desenvolvimento industrial. Aquelas
estupendas minas de carvão não estavam apenas começando
a ser exploradas? E onde se encontrava carvão não surgia
também a riqueza, os negócios, atividades intensas? Não
havia fim para as possibilidades. Ir para oeste, atravessar as
pradarias, lutar contra os índios, transpor aquelas malditas
Montanhas Rochosas, vaguear por desertos, perambular por
uma estranha terra vermelha, repleta de penhascos ardentes
e rochas coloridas? Por quê? Aqueles que gostavam de
fronteiras que tratassem de empurrá-las, às custas de
energia, sangue e vida, até o Pacifico. Ali, naquele estado,
podia-se encontrar todos os atrativos, todas as esperanças e
todas as oportunidades para um homem que não fosse um
patife nem um indolente imprestável. Tudo o que ele
precisava era das mãos, um pouco de ousadia, um mínimo
de inteligência. E sua fortuna estava feita.

Windsor estendia-se ao calor do vale, desgrenhada, suja,


horrenda, barulhenta e exuberante. Quase todas as ruas não
passavam de caminhos lamacentos, de que se erguia uma
poeira dourada, sufocante no verão e em que se atolava ao
final do inverno e na primavera. Muitas vezes, a cidade
ficava inundada com as chuvas do outono e a neve
derretendo, pois, o rio transbordava. As frágeis cabanas de
madeira e as casas mais robustas ressaltavam como arcas de
estranhos formatos, na vasta extensão de água cinzenta.
Depois de chuvas prolongadas, quando o sol tomava a
surgir, o vale fumegava, os recém-chegados adoeciam e até
morriam, no ar impregnado de malária. Quase sem exceção,
todas as calçadas eram feitas de tábuas ásperas e irregulares,
exceto nos lugares mais ricos, onde blocos de pedra
impecavelmente dispostos mantinham limpos os sapatos das
mulheres. Grande parte das casas fora construída
apressadamente, de madeira, projetadas apenas para uso
temporário, conforme diziam os moradores. A maioria não
era pintada, havia bem poucos jardins e gramados. A terra
escura, socada, estendia-se das calçadas até os degraus altos
de madeira daquelas cabanas pequenas e feias, em que
poucas mulheres se davam ao trabalho de colocar cortinas
nas janelas ou um vaso de planta contra o vidro empenado.

Teria sido uma cidade de fronteira, construída para


apenas um dia, se não fosse o bairro da burguesia. O espírito
burguês, tão ciosamente trazido da Inglaterra, junto com a
prataria de família nas arcas de madeira, fazia com que os
cidadãos mais inteligentes e prósperos construíssem casas
de pedras e tijolos, horrendas mas cuidadosas, levava-os a
plantarem jardins, a erguerem cercas brancas de madeira ou
muros baixos de pedras, a comprarem cães de guarda e
monstruosos móveis de mogno, tapetes vermelhos e mesas
com tampos de mármore, a transformarem rudes
camponesas imigrantes em criadas razoáveis,
perseverantemente, pacientemente. Esta sólida minoria
mandava trazer carruagens de Nova York e cavalos vigorosos
e lustrosos para puxá-las. Aos domingos e feriados,
gostavam de desfilar pela cidade nessas carruagens, os olhos
faiscando enquanto escutavam o tilintar dos arreios, as
mulheres exibindo imensas sombrinhas por cima das toucas,
também importadas de Nova York, os babados das saias
imensas caindo ao redor. Esses atavios e tal solidez
confortavam os espíritos que ainda não se sentiam
inteiramente livres e a salvo da saudade da terra natal.
Resguardavam-se assim contra a solidão e o medo, com
paredes grossas e árvores que plantavam, imensas lareiras e
chá da melhor qualidade, carruagens e sedas importadas,
imensos aparadores de mogno carregados de prataria,
pianos trazidos de trem da Filadélfia, criadas e vinho.

A área da burguesia era mais antiga do que Newtown,


como era chamado o desconjuntado setor industrial. Retraía-
se meticulosamente, não admitia invasões. Não se
aproximava do rio, pelo qual passava um tráfego cada vez
mais intenso. Assim, entre o setor da burguesia e Newtown,
havia um espaço vazio, como se fosse uma pausa. Esse
espaço pertencia ao ‘melhor elemento’ e não se deixava que
ninguém construísse ali. Era um caminho aberto, mas bem
poucos eram os recém-chegados que se atreviam a transpô-
lo. Um ramal da ferrovia há muito que fora prometido a
Windsor e, através daquele espaço, dentro de 12 anos,
seriam instalados trilhos de aço, dividindo Oldtown e
Newtown de maneira mais sombria do que nunca.

Newtown se estendia, numa confusão de barracos e


pequenas fábricas, até o rio. Dava a impressão de estar se
contorcendo em sua agonia, um lugar devastado e saqueado.
Metade dos habitantes chegara recentemente da Europa, de
aldeias ancestrais antigas, beleza imutável e muita hera,
caminhos perfumados e flores. A outra metade estava a uma
geração distante da Europa. No sangue de todos, corria um
amor pelo lazer, por uma vida tranquila e fácil, pelo
aconchego do lar. Mas ali, naquela nova terra, eles
arruinavam e devastavam, construindo poucas casas
permanentes, despojando uma terra exuberante de sua
imensa beleza, deixando para as gerações vindouras a praga
da impermanência, indiferença, aridez e ganância. Isso não
poderia ser feito por homens que amaram a terra, que ali
desejavam viver, transformando o lugar num lar não apenas
para si mesmos, mas também para seus filhos e os filhos de
seus filhos, alimentando e mantendo viva a árvore de muitos
galhos da tradição amada. Mas eles não amavam aquela terra
que se entregava inocentemente. Não desejavam viver nela,
transformá-la em lar. Assim, deixavam murchar e morrer
todos os galhos da tradição que haviam trazido. E isso
acontecia porque desprezavam aquela terra nova, desejando
apenas as coisas que dela podiam arrancar. Seus rostos
estavam virados, inexoravelmente, esperançosamente,
ansiosamente, para as terras de onde haviam partido.

Bem poucos éramos que voltavam. Aqueles que chegavam


para um dia, acabavam vivendo e morrendo naquela nova
terra. Mas deixavam nela a praga da impermanência,
indiferença, aridez e ganância. Embora seus filhos e os filhos
de seus filhos virassem os rostos para sempre a uma Europa
que não conheciam, nem mesmo por tradição, aquela nova
terra não lhes despertava amor, idealismo verdadeiro, um
mínimo de zelo.

Alguns dos habitantes de Newtown, por pura ganância e


empenho, com a astúcia e determinação dos camponeses,
acabavam saqueando a terra o bastante para poderem
comprar casas em Oldtown, ‘no outro lado dos trilhos’.
Podiam então casar e ingressar nas famílias fechadas e
altivas, engolir em vastos goles o vinho antigo de uma
delicada tradição. Mas como sempre carregavam a praga,
transmitiam aos habitantes mais espirituais de Oldtown a má
ganância inata e a falta de imaginação, a impotência sôfrega,
as mãos sequiosas de riquezas. Tornavam-se os barões
implacáveis e corruptos das finanças, os tiranos das vastas
indústrias, os desonestos da política. As fileiras reduzidas
dos habitantes de Oldtown iam se refugiar num silêncio
amargo nas pequenas aldeias do sul, nas cidadezinhas da
Nova Inglaterra. Ali mantinham, naquela terra devastada, de
forma reduzida e precária, uma integridade imortal,
garantindo a sobrevivência de uma alma de dignidade e
honra, de uma vida mantida com sabedoria e comedimento.

Mas o pequeno Martin Barbour não sonhava com nada


disso, enquanto tremia com a depressão e doença, causadas
por aquele calor, tanta feiura, todo aquele barulho e
confusão. Ele perdera a faculdade bendita de esquecer.
Eventos de três meses antes, três semanas ou três dias, tudo
se apinhava em sua mente com uma nitidez simultânea, os
fatos mais antigos tão intensos e clamorosos quanto os mais
recentes, de tal forma que um misturava as suas cores,
calores e ruídos com as cores, calores e ruídos de outros,
provocando vasta confusão e um tumulto extenuante. Martin
era como um homem condenado a nunca dormir, condenado
a manter os olhos eternamente fixados em todas as coisas
que haviam passado por sua vida. Tudo acabava se
fundindo, o passado, o presente e o futuro. Ele sentia-se
dominado por um cansaço além da imaginação.

Lá estava o último dia em Reddish, o embarque na


diligência para Liverpool, o sol a se espalhar pela água, o
grande navio de vapor e vela como um monstro atracado no
porto, os cordames rompendo o azul ardente do céu em
retângulos, quadrados e triângulos, o barulho da multidão, a
demora, alarmes, rugido de vozes, mulheres de xale se
empurrando, os gritos dos homens misturando-se com o
canto rude dos marujos, as partidas falsas, os gritos de
despedida, as bagagens perdidas e sua recuperação, os
armazéns avermelhados e sem janelas, o cheiro da madeira
esquentada pelo sol e o odor de maresia. Finalmente, a
entrada da família Barbour nos alojamentos de terceira
classe, juntamente com dezenas de outros peregrinos a
caminho do final do arco-íris, os gritos ensurdecedores das
crianças, os rostos excitados das mães e mocinhas, a
despreocupação nervosa dos homens. O cheiro de suor,
sujeira e cerveja. E depois, através de uma portinhola, os
contornos irregulares da costa inglesa, afastando-se cada vez
mais, até que não passava de uma tênue mancha no
horizonte, com uma tonalidade azul irreal. Seis semanas de
tempestades de verão de fúria excepcional, calor, doença,
crianças, terrível desconforto, comida que rapidamente se
tomava imprópria para comer, o ar sufocante nos apinhados
alojamentos de terceira classe, o velho e as duas crianças
que morreram e tiveram de ser sepultados no mar, o vasto
oceano sempre se inclinando, às vezes parecendo uma
encosta íngreme de aço cinzento, em outras ocasiões
ondulados como uma sucessão de colinas azuis. Havia pouca
alegria ou prazer na viagem para os passageiros de terceira
classe, lá embaixo. Podiam apenas resistir enquanto fosse
possível, torcendo para não ficarem fisicamente doentes,
esverdeados pelo enjoo. Não podiam passear pelos conveses
superiores abertos, desfrutando o fresco do ar e as brisas
amenas, não puderam contemplar a beleza, quando os
motores pifaram temporariamente, das velas enfunadas
contra o céu furioso, não puderam admirar a lua e a estranha
vida marinha, não puderam se reclinar sonolentos ao sol
quente, não puderam desfrutar a música, vinhos saborosos e
pratos delicados, as valsas sob as estrelas cintilantes. A
tripulação podia observar tais coisas em intervalos roubados
ao trabalho intenso, podia pelo menos experimentar o prazer
amargo da inveja. Mas os passageiros de terceira nem
mesmo dispunham da inveja. Contavam apenas com a
esperança e até isso acabou sendo vomitado.

Essas coisas se acumulavam por trás dos olhos cansados


de Martin, que se recusavam a apagá-las, mesmo quando
fechados. E finalmente chegou um amanhecer cinzento,
quente e sufocante, em que se olhava pela pequena vigia e a
água parecia parada e viscosa, como se impregnada de
sedimentos e óleo. O navio não parecia balançar e se inclinar
tão terrivelmente naquele dia. Ao contrário, dava a
impressão de flutuar indolentemente, os cordames inertes,
os cheiros penetrantes e putrefatos, agora que o vento
amainara, invadindo as narinas com um nevoeiro denso e
inexorável. Martin jamais esqueceria o porto, cinzento e
repulsivo, no amanhecer sem sol. E depois o sol surgiu,
quente e difuso, os contornos do horizonte de Nova York
sobressaindo contra um céu pálido e trêmulo, um
movimento intenso, ruidoso, febril.

Não havia trem para Windsor, apenas uma diligência


atravancada, que transportou-os por 30 quilômetros até
outra diligência e depois outra e mais outra. A esta altura, as
recordações de Martin eram como eventos de pesadelos,
nenhum muito claro, nenhum muito definido, tudo se
misturando, como meadas lívidas de tortura e doença. Chuva
em vales planos, sol escaldante em colinas, águas
impetuosas, uma claridade intensa demais, terrivelmente
ofuscante. A pequena Dorcas doente e choramingando com
febre, Hilda angustiada, silenciosa e abatida, apertando a
menina doente contra o peito trêmulo. Os outros passageiros
há muito que haviam perdido os últimos vestígios de
cortesia, contemplando os sofrimentos dos outros com a
indiferença embotada provocada pelo sofrimento pessoal.
Cidades pequenas e sujas, onde trocavam de diligência,
cidades repulsivas de botequins, calçadas de madeira,
homens brigando, barcos desfilando pelo rio, suor, poeira e
calor. E, por toda parte, aquele sol impossível. Vozes com
estranhos sotaques, rostos, rostos ingleses, que pareciam já
ter adquirido tênue pátina estrangeira. Estranhas comidas
oferecidas pelas janelas da diligência à espera. E aquele
espectral senso de irrealidade, que domina o estranho numa
terra estranha. Depois, os povoados ‘holandeses’, mulheres
impassíveis, de rostos largos, homens atarracados, cabelos e
barbas amarelos, que pareciam mais gentis e muitas vezes
levavam leite fresco às janelas da diligência, ajudavam as
mães exaustas com filhos pequenos, conversavam em tom
animador, nas suas vozes guturais:

— Windsor? Ah, sim, fica um pouco mais longe...

E novamente a diligência, sacolejando, se inclinando,


sufocante com o calor dos passageiros atravancados entre as
bagagens, suando profusamente ao sol que parecia pairar
eternamente no céu, que, mesmo à meia-noite, dava a
impressão de estar espreitando ameaçadoramente do
horizonte.

E depois as tempestades de incrível violência, chuva,


vento, trovoadas, raios, lama que as rodas projetavam para o
alto, os relinchos dos cavalos, estranhas árvores curvando-se
até quase as raízes em meio à claridade avermelhada, os
gemidos de mulheres e crianças exaustas, a transferência da
bagagem do teto da diligência. Quilômetros intermináveis de
pesadelo, em que não havia qualquer abrigo, apenas
desertos de colinas, campos e planícies vazias.

Joseph Barbour resmungou, através dos lábios rachados


pelo calor:

— Eu gostaria que nunca tivéssemos saído de casa.

Somente Ernest não concordou. Ele suportara a tudo


estoicamente, o rosto pálido, os olhos fixados
implacavelmente no futuro. Nada o fazia gemer, nada o fazia
passar mal, nada o angustiava ou aterrorizava.

Mais e mais confusão se revolvia na mente de Martin.


Assim, enquanto ele esquecia alguns detalhes, deixava de
percebê-los, o efeito acumulado era de fúria total em sua
memória. Windsor finalmente, num crepúsculo quente e
chuvoso, impressões indefinidas de rio, fumaça, cabanas
amontoadas, às centenas, ruas lamacentas, barulho,
lampiões e velas se acendendo, o tilintar de arreios, gritos,
cumprimentos, cheiros estranhos, uma mulher mal-encarada
de touca e xale que era ‘Tia Daisy’, um homem soturno de
colete florido que era ‘Tio George’. E depois a recordação de
uma carroça sem molas, em que a bagagem, agora
arrebentando as últimas costuras, foi ajeitada sobre uma
camada de feno, descuidadamente, junto com as crianças.
Depois, a viagem interminável sob túneis de árvores que se
arqueavam, por uma estrada esburacada, cheia de poças e
lama. E o sono, impregnado de suor e sofrimento, enquanto
uma lua, incrivelmente grande, intensa e amarela, pulava de
trás de colinas baixas e distantes.

Recordações mais próximas, um pouco mais agradáveis,


ofuscadas apenas um pouco pela angústia, de uma casa
grande, de madeira e pedra, de cômodos atravancados com
móveis de mogno e crina de cavalo, quadros e tapetes,
muitas mesas, um chá quente forçado através de lábios
ressequidos, sopa quente, bife cozido e pão, bolo de
sementes e pudim frio, camas que pareciam flutuar através
de uma neblina, colchões de penas em que se tinha a
sensação de afundar como na morte. Tudo isso, ofuscado
apenas um pouco pelo tormento da carne e mente,
acompanhado a distância pelo som das vozes de crianças
estranhas, por rostos espantados, que não pareciam
pertencer a corpos.

A família Barbour levou vários dias para recuperar-se da


viagem. E foi com a timidez da exaustão impossível de
esquecer que, depois, olharam ao redor.

George Barbour, que estava rapidamente se tomando


próspero, vivia num trecho de Newtown que começava a
adquirir algumas das amenidades da vida. As casas ali eram
maiores, mais limpas e mais confortáveis. Embora não
fossem construídas para permanência, também não eram
construídas para apenas um mês ou um ano. Não havia
árvores, flores ou relva por ali, mas as calçadas de madeira
eram sempre varridas e mantidas em bom estado de
conservação, umas poucas janelas exibiam cortinas de renda.
Muitos dos homens, como George Barbour, haviam mandado
trazer os móveis de Filadélfia, ajeitando as imensas e feias
cadeiras, mesas e camas de mogno em seus cômodos tortos,
atravancando-os sem qualquer gosto ou conforto. Muitos
desses homens, como George Barbour, começavam a falar
cautelosamente em se mudarem para Oldtown ‘um dia
desses’, passando a falar cada vez menos em voltarem para
as terras de onde tinham vindo. Já começavam a falar do
‘lixo’ nas partes menos prósperas de Newtown, já
começavam a praguejar contra os trabalhadores preguiçosos,
gananciosos e incompetentes de suas oficinas e fábricas, que
prosperavam cada vez mais. Importavam de Nova York
coletes floridos, camisas de rufos, casacos de um vermelho
escuro ou verde-garrafa, relógios de ouro e bengalas de
castão de ouro, cartolas e botinas de verniz, vestidos
guarnecidos de rendas para suas mulheres, capas de veludo
e toucas floridas, vinhos baratos e iguarias diversas, anéis e
regalos. Uns poucos contratavam criadas com a maior
desfaçatez, considerando-se iguais aos ‘esnobes’ de
Oldtown, que continuavam a ignorá-los completamente.
Muitos se empenhavam ansiosamente na possibilidade de
um dia se mudarem para Oldtown, sem saberem que uma
barreira mais sutil e mais forte do que o dinheiro ou
localidade os separara.

Martin não gostou de Tia Daisy nem de Tio George. Hilda,


que tinha recordações mais gentis, mais simples e mais
cordiais de Daisy Potts, uma prima em segundo grau, não
pôde reconhecê-la naquela Daisy de rosto brutal, uma
mulher gananciosa, despótica e condescendente, com seus
vestidos de seda, molho de chaves, criada e móveis de
mogno, camas de dossel e tapetes novos. Daisy Potts
engordara e se empertigara, falava bruscamente, de rosto
franzido, preocupada, altiva, sempre se movimentando pela
casa, demonstrando, em cada palavra e em cada movimento
dos ombros sob o xale, que se ressentia com aquela intrusão
da família de seu marido. Tinha pouco a dizer a Hilda, era
ríspida com as crianças, não estimulava qualquer amizade
entre eles e sua filha pequena, Martha, uma criança frágil e
maldosa, de rosto pálido e voz esganiçada, alguns meses
mais moça do que Martin. Martin não gostava de Martha,
assim como não gostava dos pais dela. Ela era magra e
comprida, os pés grandes, calças de veludo e vestidos de
musselina, cabelos claros, olhos azuis e salientes. A
expressão era furtiva e dissimulada na presença dos mais
velhos, tornava-se maliciosa e mesquinha quando em
companhia de outras crianças. Era evidente que desprezava
os primos, pois estava sempre mostrando a língua para os
garotos, puxava os cabelos de Florabelle e a fazia chorar,
provocava Dorcas até arrancar-lhe gritos de histeria infantil,
contava histórias mentirosas à mãe, já dominada pelo
preconceito e que se ressentia da presença dos filhos de
Hilda. Embora tivesse nascido na Inglaterra, exibia o
desprezo dos nativos pelo estrangeiro e chamava seus
primos de ‘ingleses nojentos’. Ressentia-se de ser obrigada a
dormir numa enxerga no quarto dos pais, enquanto os tios e
os quatro primos estavam temporariamente apinhados em
seu quarto.

As refeições, consistindo de carnes estranhas e vegetais


ainda mais estranhos, eram servidas na atravancada sala de
jantar, cujas janelas com cortinas de rendas davam para a
pequena encosta lamacenta que descia até o rio. A nova
família, depois de um dia de tentativa de amizade e afeição,
descobriu-se a engasgar com a comida, silenciosamente,
angustiadamente, sob os olhares sugestivos dos anfitriões.
George Barbour, que planejava arrancar do irmão o segredo
da nova pólvora, ainda tentou, apreensivamente, neutralizar
a frieza da mulher. Mas sua estupidez era profunda demais
para que fosse capaz de alguma astúcia. Hilda ofereceu-se
timidamente para ‘ajudar’, mas foi bruscamente repelida,
empurrada para um segundo plano ocioso e odioso, em que
nervosamente cuidava da filha menor, tornando-se cada vez
mais magra e mais pálida. A voz tornou-se mais estridente e
histérica no trato com os filhos mais velhos. Estava
aterrorizada com a possibilidade de ofenderem a tia, o que
acontecia frequentemente, embora não fosse intencional.
Quando Daisy, depois de uma briga à noite com George, que
a censurara por sua estupidez, dispensou relutantemente
algumas palavras gentis à pobre mulher, Hilda não pôde
conter as lágrimas e disse a Joseph que Daisy possuía
realmente um coração generoso. E quase que rastejou diante
da cunhada. É que a pobre Hilda estava desesperadamente
saudosa da Inglaterra, amargamente desiludida.

Martin também sofria. A aversão pelos parentes


transformou-se em ódio. Também sofria pelo pai, que se
tomara calado, obstinado, sempre com os lábios contraídos,
cautelosamente se esquivando diante das perguntas não
muito hábeis de George. Mas Ernest não os odiava nem
mesmo antipatizava. Na verdade, praticamente não os via.
Apenas esperava, tensamente, pensando, estudando, indo
todos os dias à pequena fábrica de armas de fogo e munição
do tio, observando tudo. Em duas semanas, conquistou a
admiração e consideração relutantes de George. Não
demorou muito para que George estivesse lhe explicando
tudo, insinuando frequentemente:

— O que está havendo com o velho Joe? Por que ele não
me conta logo tudo?

Ernest escutava atentamente. Um dia, foi conversar com o


pai, com sugestões e conselhos surpreendentemente
amadurecidos.

O resultado foi que Joseph abordou o irmão um dia,


depois que as mulheres e crianças deixaram a sala de jantar.
Ambos acenderam seus cachimbos e aproximaram-se da
lareira vazia. Uma tempestade de verão se avizinhava e no
silêncio, no ar abafado e sufocante, podia-se ouvir o
murmúrio do rio. E o que Joseph disse ao irmão foi o
seguinte: ele percorrera todos aqueles milhares de
quilômetros e ali chegara por nada. Eram irmãos, não é
mesmo? Deviam trabalhar juntos. Joseph precisava saber
imediatamente o que podia esperar. Tinha uma coisa que
podia proporcionar imensas fortunas aos dois, mas não tinha
a menor intenção de deixar que George fosse o único a
enriquecer. Ao dizer isso, com calma e franqueza, ele fitou
atentamente o irmão, com seus olhos castanhos e brilhantes.
George não disse nada. O rosto flácido e avermelhado
contraiu-se um pouco, os olhos azuis protuberantes foram
cobertos pelas pálpebras rosadas. Ele tirou uma baforada do
cachimbo, impassivelmente. Ao voltar da fábrica, ele
‘vestira-se’ para o jantar, pondo uma calça bege apertada,
casaco vermelho escuro, camisa de babados, botinas de
verniz. Cruzara as pernas. E quando Joseph fez uma pausa
no que dizia, descruzou as pernas indolentemente,
parecendo absorvido na contemplação do reflexo das
chamas nas botinas. Joseph esperou. Tinha todos os trunfos
e podia se dar ao luxo de esperar. Mas enquanto esperava
que George falasse, correu os olhos pela sala horrenda, com
a maior indiferença, observando o bruxulear das chamas das
velas no teto, olhando pela janela para os raios que riscavam
o céu.

— O que mais? — perguntou George finalmente, em tom


mal-humorado.

Joseph sorriu jovialmente. Precisava ter sua própria casa,


ali por perto, é claro. George devia lhe emprestar o dinheiro
necessário para comprar móveis e os utensílios domésticos
indispensáveis. Não seria muito dinheiro. George lançou um
olhar furioso para o irmão, com um brilho intenso de
hostilidade. Mas deixou que Joseph continuasse a falar.
Acima da voz de Joseph, podia-se ouvir as vozes das
crianças no aposento ao lado, um riso tímido de Hilda, os
gritos dos vizinhos que passavam pela calçada de madeira.

E depois, acrescentou Joseph, ele devia tomar-se sócio da


fábrica. Um sócio com participação muito pequena, é claro,
mas mesmo assim um sócio. Tudo deveria ser acertado com
o tabelião. Tudo assinado e sacramentado. Uma participação
em tudo. Não foi você quem imaginou tudo isso sozinho,
pensou George, furioso. E não hesitou em dizê-lo. Joseph
ficou vermelho, mas continuou a sorrir, admitindo que quase
tudo era ideia de Ernest. George ficou aturdido, incrédulo.
Depois, lembrou-se de que Daisy classificara Ernest de
astuto e dissimulado. E também disse isso a Joseph. Mas em
seus lábios as palavras adquiriram um tom de admiração
relutante e George descobriu-se profetizando que Ernest iria
muito longe na vida. No mesmo instante, a sua raiva contra
Joseph voltou a explodir. Era inadmissível que o irmão
tivesse um filho assim e ele não tivesse nenhum.

George começou a esbravejar. Era um absurdo total.


Aquilo não era maneira de tratar um irmão que enviara as
passagens para que todos viessem para a América e agora
lhes proporcionava abrigo. Além disso, o que mais Joe podia
querer? Não estava ganhando dez dólares por semana e
dispunha de uma casa, apenas para ficar andando pela
oficina e fazendo uma ou outra coisa? O que mais estava
querendo? Havia também o problema do sócio de George, o
francês, o tal de Armand Bouchard, George duvidava que
Armand concordasse em aceitar outro sócio, que não
dispunha de dinheiro, mas apenas de uma ideia, que
provavelmente nem era muito boa. Ele fez uma pausa,
observando Joseph furtivamente.

Joseph continuava a sorrir. Disse que tinha certeza de


que Bouchard não faria qualquer objeção. Insinuara-lhe algo
a respeito da nova pólvora e Bouchard se mostrara ansioso,
até mesmo sugerira que Joseph começasse a trabalhar
naquilo imediatamente. Falando nele, Joseph lembrou-se do
pequeno francês, ávido, de uma atividade intensa, olhos
suaves, inteligentes e divertidos, um rosto encarquilhado e
impassível, os gestos largos, barba preta pontuda, uma
cordialidade permanente. Joseph compreendera quase que
imediatamente que Bouchard desprezava George, que se ria
dele por dentro, embora respeitasse a sua capacidade como
organizador e homem que sempre dava um jeito de fazer as
coisas. Bouchard chegara a comentar, dando de ombros num
gesto jovial.

— Ah, os ingleses! Vocês descobrem as nove maneiras de


esfolar um gato e depois inventam outra. Não têm
consciência, não têm escrúpulos, não têm inteligência. Mas
são bem-sucedidos. E isso é uma grande virtude!

Ele e Joseph haviam sentido uma simpatia mútua


imediatamente, desenvolvendo-a para uma profunda afeição.
Armand escutara com interesse solene e gentil a história do
ancestral francês de Joseph. Achara Joseph mais do que
apenas um pouco patético. Dissera à mulher, uma mulher
rechonchuda e gigantesca, que George não passava de um
porco, um repolho fedorento.

Frustrado na tentativa de usar Bouchard como arma para


resistir à investida do irmão, George ficou olhando para os
seus pés, com uma expressão furiosa, soprando
violentamente o cachimbo. Odiava Bouchard. Deveria ter
imaginado desde o início que aquele francês nojento
acabaria por traí-lo. Se houvesse uma oportunidade… Ele
tornou a fitar o irmão, com uma expressão intensa de fúria,
de repúdio. Como podia ter certeza de que a nova pólvora
valia alguma coisa? Podia aceitar Joseph como sócio,
oferecendo-lhe uma pequena participação, é claro. E depois
de tudo assinado e sacramentado, podia descobrir que a tal
pólvora não tinha o menor valor. Joseph sorriu amargamente
quando George lhe disse isso. Se George tinha tais dúvidas a
respeito da pólvora, por que então trouxera da Inglaterra o
irmão e a família deste? Ele conhecia George muito bem,
disse suavemente, para saber que não fora um gesto de amor
fraternal. Nada disso. George trouxera-o porque sabia que ele
tinha alguma coisa importante, algo que valia o seu peso em
ouro. Os olhos de Joseph estavam agora frios e brilhantes
como o gelo, irradiando determinação implacável.
George tornou a descruzar as pernas, o rosto subitamente
vermelho e inchado. Bateu com o pé no chão. Esbravejou
novamente, desta vez com uma raiva autêntica, impotente.
Não havia ali a menor gratidão. Era isso o que um homem
recebia por ajudar o irmão. Deveria ter ouvido as
advertências de Daisy, que era mulher inteligente e sagaz.
Agora, à guisa de gratidão, Joseph estava querendo desfrutar
os lucros de algo em que ainda não trabalhara o bastante
para fazer jus. Era uma coisa terrível. Levava um homem
para sua própria casa, dava-lhe o melhor de tudo, aturava o
barulho, a despesa e a inconveniência, dava-lhe emprego de
dez dólares por semana, praticamente sem ter o que fazer. E
o que recebia em troca? Aquela punhalada nas costas!

Joseph não disse nada. Limitou-se a continuar


observando o irmão, meio sorrindo, bastante pálido e
controlado, um pouco inclinado para frente, os cotovelos
sobre as coxas, as mãos cruzadas sobre os joelhos. Havia
algo atraente e belo naquele corpo esguio e bem
proporcionado, naquele rosto moreno. Embora as roupas
fossem surradas e puídas, Joseph conseguia fazer com que o
irmão, em comparação, parecesse um campônio rústico. E
dava a impressão de que, a qualquer momento, podia
desatar numa risada amarga e cáustica.

Subitamente, George mudou de tática. Seria generoso.


Afinal, Joe não era seu único irmão? Faria o que era certo. E
se lhe desse 15 dólares por semana e lhe construísse um
pequeno chalé naquela mesma rua, um pouco adiante? Era
uma proposta digna de um príncipe! E mesmo que a nova
pólvora não tivesse qualquer valor, Joe continuaria a receber
os 15 dólares por semana talvez até mais, com o passar do
tempo. Ele fitou Joseph com uma expressão radiante, suando
profusamente de admiração por sua própria generosidade.
Os olhos protuberantes brilhavam de lágrimas de ternura.
Joseph sacudiu a cabeça gentilmente. Uma sociedade ou
nada. Mas também tinha algo a propor. Se a pólvora não
prestasse, então George poderia afastá-lo da sociedade. E
continuaria a trabalhar por dez dólares por semana. George
sabia que ele valia dez dólares por semana, no mínimo. Era
só verificar o trabalho que já conseguia arrancar dos três
homens na oficina. Era um bom capataz.

O rosto largo e vermelho de George assumiu uma


expressão de ódio, enquanto escutava. Era o rosto de um
homem que sempre seria inimigo de Joseph, até o dia de sua
morte. Mas era também o rosto de um homem derrotado. E
consciente de sua derrota, aquele rosto jamais voltaria a se
desanuviar em cordialidade por Joseph. Gotas de suor
brilhavam na testa e no lábio superior raspado de George. Ele
deslocou a mandíbula de um lado para outro, os olhos
brutais fixados com ódio no irmão mais moço. O peito largo
arfava rapidamente. Tentou um último recurso. Vamos supor
que recusasse tudo e despedisse Joseph. O que aconteceria
então? Ele ficou observando Joseph com atenção. Mas, se
esperava vê-lo desconcertado, teve um desapontamento.

Joseph deu de ombros, numa reação de indiferença. Neste


caso, lamentava muito, mas já ouvira falar de um homem
que possuía uma fábrica em Filadélfia, muito maior que a
pequena oficina de George. Iria escrever-lhe, se George não
aceitasse a ideia. Ele, Joseph, poupara dinheiro por quatro
semanas. Dispunha agora de 40 dólares. Era mais do que
suficiente para levá-lo a Filadélfia. E, enquanto dava um jeito
em sua vida, tinha certeza de que Madame Bouchard não se
incomodaria de alojar sua família, por um breve período.

As veias saltaram bruscamente na testa de George,


enquanto ele ouvia aquela última afronta. O rosto inchou,
com uma expressão ameaçadora. Levantou-se com uma
imprecação, os punhos cerrados. Em voz baixa e violenta,
mais terrível do que se estivesse gritando, amaldiçoou o
pequeno Bouchard, blasfemou, espumou pelos cantos da
boca. O filho da mãe nojento! O francês repulsivo! George
ergueu os punhos, sacudiu-os no ar, ameaçou, quase que
vomitando as palavras na cara de Joseph. Os dentes
faiscavam e o pescoço, por cima da gravata branca, ficou
roxo de raiva. Então era assim! Joseph o traíra e ainda por
cima discutira a traição como miserável do Bouchard!
Haviam tramado juntos contra ele, a quem deviam tudo, o
pão, o teto sobre suas cabeças, o trabalho, a esperança de
sucesso! Tiveram a desfaçatez de fazer uma coisa daquelas
com ele!

— Não lhe devemos coisa alguma — disse Joseph, a voz


fria e baixa, rompendo e se sobrepondo à tempestade de
impropérios. — Armand pôs duas vezes mais dinheiro do
que você na oficina. E eu sei disso, George. E ele está pondo
também toda a sua inteligência. Você nada seria sem ele e
sabe disso. Quanto a mim… ora, você me trouxe da
Inglaterra porque sabia que possuo algo valioso. Sei agora
que você é um trapaceiro nato. Nunca mais tornarei a pensar
que é um homem honesto. Sei agora de tudo a seu respeito e
compreendo que terei de vigiá-lo permanentemente. É um
mentiroso e um ladrão. Está me ouvindo direito? Você é um
mentiroso e um ladrão. E pode sufocar com isso na sua
garganta nojenta. E agora, vamos ser bem francos. Se quer a
minha pólvora, terá de me dar sociedade. E vamos fazer tudo
no tabelião, a fim de que não haja qualquer trapaça, a fim de
que não possa encontrar depois algum meio de me enganar.
Joseph fez uma pausa e depois repetiu, lentamente,
incisivamente, a voz cansada: — Um mentiroso e um ladrão.
E agora vamos resolver logo isso. Onde tem pena e papel?

George sabia que estava vencido. Não era um tolo.


Embora nunca mais fosse perdoar o irmão, embora fosse
permanecer seu inimigo pelo resto da vida, sabia que não
havia qualquer proveito em manter a ira evidente e o
ressentimento patente. Enquanto pegava seu material de
escrever e ajeitava-o na mesa de tampo de mármore preto,
tornou-se outra vez cordial, um tanto cautelosamente.
Aquele garoto, o Ernest! Era de fato um garoto muito esperto!
Um garoto de que qualquer pai podia se orgulhar. Tinha
sangue bom. Podia-se transformá-lo em alguém. Era uma
pena que o jovem Martin fosse tão maricas. E as duas
meninas eram uma carga para qualquer homem hoje em dia.
Joe não gostaria de ir a Gamerstown uma noite dessas?
Joseph, que estava afiando a pena distraidamente, levantou
os olhos bruscamente, surpreso. Ficou ainda mais surpreso
ao contemplar George, cujo rosto rosado e sorridente estava
radiante, piscando-lhe um olho, com uma expressão
maliciosa. Gamerstown, repetiu Joseph, ainda um pouco
aturdido. Havia algumas raparigas prestimosas por lá,
explicou George, ainda sorrindo fixamente, mas obviamente
contrariado com a estupidez do irmão. Havia duas ou três
casas agradáveis, onde um homem podia tomar um bom
uísque e se divertir um pouco. Joseph sentiu alguma repulsa
contraindo-lhe as entranhas. Subitamente, sentiu a maior
aversão por George, não pela sugestão que acabara de fazer,
mas pela insidia na oferta de esquecer o que passara.
‘Apertar as mãos por cima de uma prostituta’, pensou ele,
com asco. Mas fez um esforço para sorrir, embora não
houvesse qualquer sorriso em seus olhos.

— Mais tarde — murmurou ele, calmamente.

E continuou a aprontar a pena. Hilda... Pobre Hilda,


sofrendo o suplício que lhe era imposto pela desgraçada da
Daisy, sempre a fitá-la desdenhosamente! Hilda, a quem ele
amava mais do que a si mesmo! Joseph sentiu um desejo
intenso de enfiar a pena afiada na carne balofa e rosada de
George por causa daquele insulto a Hilda. Mas, por Deus,
ainda haveria de chegar um dia...
O documento de sociedade foi rapidamente escrito, em
termos simples e objetivos. Joseph assinou-o, depois da
assinatura elaborada de George. Lá estava, a sociedade na
oficina. Não havia meio de George poder escapar depois. E,
no dia seguinte, o documento seria registrado pelo tabelião.
Poderiam então começar a fabricar a nova pólvora.

George enxugou a testa com um lenço grande de seda,


sacudiu as correntes de ouro, balançou-se para trás, sobre os
calcanhares. Não estava de todo insatisfeito. O que estava
feito, estava feito. E, de repente, ele sentia-se imensamente
confiante e exultante. Era como se alguma coisa psíquica lhe
tivesse sussurrado a respeito do futuro. George quase que
tremia com um estranho júbilo. E bradou:

— Ainda não trocamos um aperto de mão!

Relutantemente, lentamente, estendeu a mão fria para a


palma quente e maior do irmão.

E no instante preciso em que trocaram o aperto de mão,


por cima do contrato escrito e assinado, um raio iluminou o
céu, seguido por uma trovoada ensurdecedora, tão violenta
que a própria terra pareceu tremer, pareceu ficar
completamente silenciosa por um estranho momento, como
se todos os demais sons fossem abafados pelo medo. E
houve outro estrondo e mais outro, fazendo o ar vibrar,
impregnando-o com um odor que parecia de enxofre,
sacudindo as casas, destruindo árvores distantes, rolando
pelas colinas como imensas rodas. Era como uma terrível
profecia de tragédia.

Era para o mundo inteiro como o rugido de uma poderosa


artilharia, como os homens jamais haviam conhecido. Nem
sequer sonhado.
CAPÍTULO V
— Por que o francês não pode amar o maldito país? —
perguntou George desdenhosamente ao irmão, voltando para
casa juntos, depois de deixarem a oficina. — Afinal, ele tinha
de deixar a França ou perder a cabeça… que terra
desgraçada! Ele tem de gostar deste buraco ou então sufocar
sem poder fazer nada! De nada adiantaria ao nanico odiar a
América. Ele não tem um país para onde possa voltar, como
nós.

— Como nós — repetiu Joseph, mecanicamente.

Ele olhou ao redor. Além do rio, com seu movimento


crescente, havia campos verdejantes, mais vastos que os
campos da Inglaterra, tremeluzindo à claridade do final da
tarde, que ainda era intensa. Além dos campos, tão férteis e
expectantes, ficavam as colinas, uma dobra depois de outra
de veludo avermelhado. E por cima das colinas estendia-se o
céu espetacular, amplo, majestoso, parecendo se entregar à
glória do pôr do sol dourado, que vibrava de horizonte a
horizonte. Não era um pôr do sol minguado e diluído, mas
como um lago de luz, que parecia abastecido por alguma
fonte celestial. Tudo era vasto, aberto, incomensurável, mas
na própria imensidão havia tal serenidade que Joseph sentiu-
se incapaz de falar por um momento. Ali estava algo que,
embora reduzisse o homem a proporções mínimas, fazia
com que se sentisse importante e sagrado, parte da
Divindade que criara tudo aquilo e agora apreciava sua obra.
Fazia com que um homem se tomasse consciente de sua
consciência, sentindo-se grato de viver para poder apreciar.
Esse momento de compreensão valia mais do que qualquer
outra coisa no mundo. Por um solene momento, Joseph
acreditou, embora não o traduzisse em palavras, que nada
em sua vida passada e nada em sua vida futura podia ser tão
importante, tão repleto de significado quanto aquele
momento.

Não queria falar, odiava o irmão por falar. A voz de


George era como a de um galo gritando na catedral no
momento em que a hóstia é levantada.

— Quando eu tiver duas mil libras, vou deixar esta


maldita terra — disse George. — Mas também não voltarei
para Lancashire e a chuva. Irei para o sul. Ou para Londres,
com ou sem nevoeiro. Onde um homem pode viver e se
divertir. — Ele fez uma breve pausa, antes de acrescentar,
pensativo: — Talvez, seja melhor esperar até conseguir
quatro mil libras.

Joseph permaneceu calado. Estava cansado do irmão,


cansado de sua dissimulação, astúcia e estupidez. Sabia que
George, de certa forma, tinha medo dele e admitia que
muitas vezes tentava agradá-lo, como se receasse a opinião
de Joseph a seu respeito. Mas Joseph sabia também que não
havia um pesar genuíno em George pela perda do respeito e
afeição do irmão. Havia apenas uma apreensão de que
Joseph pudesse descobrir mais alguma coisa a respeito dele,
algo que poderia ser perigoso. Como a maioria dos patifes
mesquinhos, George queria o respeito dos homens honestos,
pois esse respeito significava que os homens honestos ainda
estavam iludidos, ainda estavam passíveis de serem
explorados.

— Aquele seu garoto, o Ernest — disse George, ofegando


um pouco na escalada da encosta íngreme, no fundo da qual
ficava a oficina. — Aquele Ernest é dos bons. Tem 14 anos,
não é mesmo? E já vale duas vezes a maioria dos homens,
vale três vezes mais que Tom Wilkins! Tem uma cabeça e
tanto. Compreende as coisas. E não é de ficar se lamentando,
embora trabalhe do amanhecer ao anoitecer.

George fez uma pausa, umedecendo os lábios


furtivamente, enquanto olhava rapidamente para Joseph.

— Ele me falou hoje sobre uma ideia nova para pistolas


que vocês tiveram, Joe. Uma ideia relacionada com gatilhos.

— Hum hum... — murmurou Joseph.

George espichou o lábio superior e acrescentou, com


alguma aspereza:

— E então? Não vai me dizer o que é? Não somos sócios


agora?

— Na pólvora — lembrou Joseph, saboreando a situação.


— A pistola ainda não está pronta. Talvez eu lhe fale a
respeito. E talvez não. — Ele sorriu jovialmente para o irmão.
— Uma coisa de cada vez, George. Ainda não temos nada
para provar que a pólvora é mesmo boa. Temos de esperar.

Haviam parado na bifurcação da estrada que levava às


duas partes separadas de Newtown. Um dos caminhos, com
muitos dos buracos tapados, conduzia às casas em terreno
mais alto, onde George vivia. O outro, esburacado, cheio de
pedras, com muita lama, levava à parte mais pobre, de
barracos, cabanas, casas mais humildes, onde Joseph vivia. E
onde Armand Bouchard também vivia.

Joseph queria continuar, mas George não arredou de onde


estava, meio nervoso. Joseph pôs-se a assoviar, desafinado,
olhando para o céu. George finalmente voltou a falar:

— Você e Hilda há muito que não aparecem para nos


visitar. Daisy falou nisso ontem à noite.
‘Mentiroso’, pensou Joseph. Mas ele nada disse,
continuando a assoviar. E observava George, pensativo.

— Apareçam para o chá no domingo — convidou George,


a voz cordial, mas o vermelho começando a se insinuar pelas
dobras do rosto largo.

Joseph deu de ombros.

— Vou falar com Hilda.

Ele tocou no chapéu com um gesto quase que indiferente,


ligeiramente irônico.

— Boa-noite. É melhor eu me apressar.

Ele enfiou as mãos nos bolsos e principiou a descer pelo


caminho, ainda assoviando. Enquanto ele andava, as botinas
rachadas levantavam nuvens de poeira, que ficava dourada
ao pôr do sol. Os ombros estreitos estavam um pouco
encurvados e os cabelos pretos espalhavam-se entre a gola
levantada e o chapéu surrado. O casaco era velho e puído,
mas não faltava um único botão nas mangas largas. A camisa
branca estava imaculada. A calça justa, com todos os seus
remendos, mostrava pernas esguias e graciosas. Joseph
avançava rapidamente, vigorosamente, quase correndo.
Umas poucas árvores, repletas de folhas amareladas,
curvavam-se sobre a estrada. Cada vez que emergia da
sombra de uma árvore para os raios quentes do sol, Joseph
parecia conscientemente aumentar o ritmo vigoroso e alegre
do caminhar, como se tivesse uma audiência. Mas a verdade
é que ele se sentia angustiado, solitário e deprimido.

George ficou observando-o se afastar. Fechou e abriu as


mãos nos lados do corpo, tensamente. Desprezava o irmão.
O rosto largo fez uma careta, como se descobrisse que o
gosto da língua em sua boca era repulsivo.

“Será que ele não contou a Bouchard?”, pensou George.


“Os dois passaram o dia conversando. Parece que se
transformaram em unha e carne, sempre na casa um do
outro. E os filhos de ambos vivem juntos. A única exceção é
Ernest. Talvez eu possa dar um jeito de envolver o garoto,
apesar de ele ser matreiro como uma raposa.”

Enquanto Joseph andava, sua depressão começou a


desvanecer-se. Começou até a sorrir. Podia contar com
Ernest para atormentar George. Um garoto muito esperto.
Devia aproveitar o incidente para se animar um pouco
naquela noite, aguentando, sempre a se queixar, que sentia
saudade da Inglaterra, o pequeno Martin com uma expressão
soturna durante o dia inteiro, cada vez mais magro e mais
pálido, as meninas reclamando do calor. Ninguém era capaz
de ver aquele país e todas as coisas que continha da mesma
forma que ele. Ora, até que um homem podia viver ali! Podia
prosperar, tornar-se importante. Joseph já estava cansado
daquela conversa de ‘voltar para casa’. Era tudo o que ouvia.
Houvera uma ocasião em que ele também falaria em ‘voltar
para casa’. Mas agora tudo isso estava acabado. Havia algo
ali, algo que ainda não podia definir, esperando para ser
tomado. Ninguém de sua família sabia disso por enquanto,
mas ele pedira a cidadania.

Cidadão. Não um súdito. Um cidadão. Ora, talvez tudo


não passasse de bobagem. Os ingleses eram tão livres
quanto os americanos, embora fossem ‘súditos’. Mas, por
Deus, havia alguma força na palavra. A palavra errada podia
fazer os ombros de um homem vergarem, a palavra certa
podia deixá-los empertigados. Somente as mulheres e
crianças gostavam de ser súditas, pois isso significava que
tinham alguém para tomar conta delas, protegê-las. Mas um
homem não precisava de proteção. ‘Cidadão’ podia fazer
com que um homem se sentisse exposto, sem qualquer
proteção ao seu redor; podia fazer com que se sentisse
capaz de vencer gloriosamente ou fracassar miseravelmente,
sem qualquer reação por parte do governo ou mesmo de
seus vizinhos. Mas fazia com que ele andasse empertigado,
bem firme sobre os pés. E depois do primeiro solavanco mais
forte, até que um homem passava a gostar de enfrentar as
adversidades. Assim como ele gostava daquele céu vasto e
sereno, os rios largos e frios, as colinas verdes. Todas essas
coisas eram indiferentes a ele, mas somente num cenário
assim um homem podia desfrutar seu sucesso,
compreendendo que também era poderoso, à sua maneira.
Uma terra imensa e terrível, mas também uma terra para um
homem de verdade. Os homens que tornaram a Inglaterra
grande não eram homens que se encolhiam em busca de
proteção em seus pequenos tratos de terra ou passavam a
vida sonhando em seus pequenos chalés cercados por
roseiras. Eram os homens que haviam deixado a Inglaterra
em busca de lugares maiores, lugares que conquistavam as
pedras preciosas que adornavam uma coroa, que seria
pequena e insignificante, se não fosse por isso.

E como aquela terra era formidável! Provavelmente nunca


se poderia amá-la como se amava a ‘pequena ilha’, mas esse
amor insular só servia para os fracassados, que tentavam
ocultar seu fracasso, como os mortos, sob montanhas
floridas de preconceitos, hábitos mentais, filosofias rurais,
proteção. Podia-se amar um lugar pequeno, que era familiar
e seguro, sem ameaças alarmantes. Mas ninguém podia amar
uma terra formidável como aquela. Tinha vento demais para
os pulmões tímidos, as montanhas eram excessivamente
altas para olhos gentis, as planícies assustadoras em sua
vastidão. Mas podia-se reverenciá-la, idolatrá-la, morrer por
ela, como se morria por um ideal heroico. E quando alguém
conseguia alcançar o sucesso naquela terra, como era um
sucesso espetacular, como era impessoal!
Joseph pensou todas essas coisas. Embora não as
pensasse em palavras articuladas, sentiu o impulso que lhe
incutiam, sentiu dentro de si um poder e vitalidade como
nunca conhecera antes. Os passos perderam a elasticidade,
mas adquiriram mais firmeza. O corpo esguio ficou ainda
mais ereto. Que importância tinha Newtown, George, a
ansiedade ou a incerteza? Tudo o que importava era aquela
terra heroica.

Ele pensou nos filhos. Será que Ernest, “o esperto”,


também pensava assim? Com profundo desapontamento,
Joseph subitamente duvidou. Todos os lugares eram iguais
para Ernest, contanto que não limitassem e não interferissem
com ele e suas ambições. Ernest era o supremo egocêntrico,
que puxava todo o universo para dentro de si, absorvia-o, a
tal ponto que se tornava ao mesmo tempo o indivíduo e
também o universo. Sem palavras ou frases, Joseph podia
compreender essa terrível simplicidade da mente do filho.
Subitamente, ele sentiu medo, experimentou a apreensão
pelo que poderia acontecer quando os sentimentos se
confrontassem com a determinação amarga e inexorável. De
repente, Joseph teve a sensação de que Ernest não era
inteiramente humano. O que o garoto queria? Aos 14 anos,
ele ainda não podia compreender plenamente o que o
dinheiro representava. Não tinha experiências anteriores
para saber do poder que o dinheiro proporcionava. E não
podia certamente saber o que o poder significava. Joseph
não sabia que a intuição ou imaginação podem substituir a
experiência. Não, pensou ele, sacudindo a cabeça, Ernest não
parece mesmo inteiramente humano. O garoto era o primeiro
a aparecer na oficina de manhã e o pai tinha de obrigá-lo a
voltar para casa ao final do dia.

George construíra uma pequena casa de madeira para o


irmão nos arredores da cidade. Não era pintada e a fachada
comprida e estreita, com as duas pequenas janelas
superiores e a porta larga embaixo, parecia um rosto
estúpido, com eterna expressão de espanto. A chaminé de
pedra, que subia do térreo pelo lado de fora, dava a
impressão de torta, ameaçando cair. Fora somente pelas
exigências insistentes de Joseph que uma árvore restara no
terreno. Essa árvore solitária, um olmo, estava perto da casa,
à direita, os galhos, agora dourados da geada, roçando no
telhado inclinado. O terreno afundava ali num pequeno vale,
de fundo plano. À direita, havia uma encosta íngreme que
subia, enquanto à esquerda o terreno caía abruptamente.
Apesar do olmo dourado e das pequenas cortinas brancas
nas janelas, apesar da limpeza do terreno na frente, a casa
parecia desolada e miserável. Os três degraus de madeira
diante da porta eram íngremes e estreitos. Havia uma
pequena horta nos fundos, que Hilda começara sem muito
entusiasmo, em reação à insistência de Madame Bouchard,
com a afeição tipicamente francesa às hortas domésticas. Na
horta, eram cultivadas batatas, alguns pés de ervilhas, uma
fileira de milho, um canteiro de rabanetes e outro de
cebolas, um quadrado de ervas e condimentos. Hilda nascera
e fora criada numa pequena fazenda inglesa. A partir do
momento em que iniciara a horta, o antigo instinto voltara
imediatamente e ela passara a rivalizar com Madame
Bouchard na produção. Martin ajudava-a e a pequena
Florabelle já tinha idade suficiente para aprender a arrancar
o mato. A família tinha uma cabra, pois a pequena Dorcas já
fora desmamada e era difícil garantir um suprimento
apropriado de leite de vaca para ela. Além dos limites da
pequena horta, estendia-se um emaranhado de amoreiras
silvestres, algumas árvores e mato alto. Joseph e Ernest
haviam construído uma cerca baixa, separando a horta dessa
pequena mata, na qual as abelhas zumbiam como notas de
violino durante as tardes sufocantes.

Por mais assustada e saudosa da Inglaterra que Hilda


estivesse, apesar de seus sonhos alegres de aventuras terem
dado em nada, o seu instinto doméstico, arraigado no hábito,
levara-a a tentar proporcionar à nova e miserável casa pelo
menos um arremedo de conforto. Trouxera algumas
chaleiras de cobre e as polia quase tão vigorosamente como
sempre fizera. Estavam penduradas nas tábuas ásperas de
pinho que constituíam as paredes do cômodo, o qual servia
como cozinha, ‘sala de visitas’ e quarto para marido, mulher
e a bebê. Havia uma lareira grande, maior do que a da casa
em que viviam na Inglaterra, tão alta que o próprio Martin
podia ficar de pé lá dentro, abaixando-se apenas
ligeiramente. A lareira era revestida de pedras irregulares e
ásperas, que Hilda limpava meticulosamente, até deixar
imaculadas. O chão era de pranchas de pinho, da mesma
forma que as paredes, com seus nós e anéis de resina
exalando um cheiro de terebintina. A mesa e as cadeiras, a
cama baixa de madeira, o berço do bebê, tudo era de
fabricação doméstica, sem pintar. Seria um lugar árido e
inóspito, não fosse pelo dourado avermelhado das chaleiras
de Hilda, o gato e o cachorro de porcelana, o relógio em cima
da lareira, as guarnições de latão e a grade de aço polido na
lareira, a chaleira de ferro preta, que entoava uma canção
baixa e sonolenta no fogo, durante todo o tempo. Hilda
aprendera a entrançar velhos trapos para fazer tapetes.
Agora, havia um oval comprido e colorido diante da lareira.
Joseph, com exuberância compreensiva, louvava todos os
esforços de Hilda para transformar aquele lugar triste num
lar. Ao fazê-lo, arrancava uns poucos sorrisos de um rosto
que perdera uma parcela considerável de sua cor e da
vivacidade animal inocente, pois estava mortalmente doente
naquela nova terra. Sua estranheza a deixava aturdida, o
calor a fazia definhar, os rostos frios e indiferentes
assustavam-na. A comida tinha um sabor estranho em sua
língua, a inquietação permanente da cidade deixava-a
apreensiva. Nunca se sentiria em casa ali. Mas como era uma
mulher simples, sem propensão a se queixar, suportava os
sofrimentos com fortaleza, exceto nas raras ocasiões em que
a angústia fazia com que explodisse em acessos de fúria.
Esses acessos não eram seguidos por sorrisos e risadas, por
uma afeição extra, como acontecia na Inglaterra, mas sim por
uma palidez tensa estranha em seu rosto, por silêncios
prolongados. Ela nada via do que Joseph contemplava
naquela terra imensa, que para seus ouvidos insulares
parecia estar repleta de ecos gigantescos e movimentos
colossais. Sabia apenas que ali não tinham vizinhas
amistosas e que gostavam de conversar, que apareciam para
tomar uma xícara de chá e comer um pedaço de pão com
manteiga, queixando-se de males e doenças, falando de
partos iminentes. Não havia mercados ali, com galinhas
cacarejando em cestos, maçãs expostas em pilhas, leitões
sendo esquartejados em balcões de madeira, um lugar em
que se podia encontrar todas as amigas e se queixar dos
preços. Não havia tavernas cheias de animação, recendendo
a cerveja, salsichão, o sol entrando por pequenas janelas de
treliça, iluminando as paredes escuras de madeira e os tetos
de vigas à mostra, o fogo crepitando, as canecas de peltre
faiscando no balcão polido, com um canto sossegado em que
uma mulher podia tomar um pouco de cerveja com uma
amiga. Não havia ali o sol suave varando a neblina, a relva
verde e viçosa, não havia a chuva fria e gentil, não havia paz,
conforto, tranquilidade e suavidade. A seus olhos
angustiados, tudo era brutal, violento, ganancioso,
apressado. Tudo era feito por um dia, consumido
sofregamente, destruído, abandonado. A pobre Hilda tinha a
sensação de que vivia numa estrada pela qual varas de
porcos eram conduzidas. E depois que passavam, ela ficava
com a sensação apreensiva de que tudo o que possuía fora
devorado e destruído, que a própria casa em que vivia era
tão insegura quanto um cercado temporário. Era o tipo de
pessoa que estava enraizada na terra; e quando as raízes
eram arrancadas, não havia qualquer possibilidade de
felicidade e segurança. Ela chorava no sono. Escutando-a,
Joseph sentia-se tão impotente e desamparado como se
estivesse paralítico. Ele falou ao irmão da angústia de Hilda.
Mas George, que desprezava as mulheres por causa de sua
submissão a Daisy, assegurou-lhe impacientemente que tudo
o que precisava era dar mais algum tempo a Hilda.

A única coisa que sustentava Hilda, que a fez resistir por


muito tempo com a integridade de sua esperança, era a
convicção de que voltariam para casa dentro de mais alguns
anos. Acreditava nisso firmemente, embora percebesse que
Joseph, com o passar do tempo, falava cada vez menos no
retorno à Inglaterra. Mas, finalmente, quando compreendeu
que não havia mais esperança, Hilda resvalou para uma
resignação apática, tal como uma existência drogada.

O dia de outono estava muito quente, o ar impregnado de


umidade. Quando Joseph abriu a porta de sua nova casa, o
calor que saiu lá de dentro pareceu sufocá-lo. Hilda não
acreditava em janelas abertas e o aposento recendia a massa
de pão, sopa quente e fraldas secando. Por duas janelas
estreitas no outro lado, o sol poente despejava sua claridade
dourada pelo aposento. Dorcas engatinhava pelo tapete
diante da lareira, perseguindo Martin, que imitava um
cachorro feroz. Em sua cadeira de balanço, Florabelle
entoava cantigas de ninar para uma boneca de trapos. Hilda
estava cortando pão na mesa. Ao ver Joseph, seu rosto se
animou.

— Olá — disse Joseph, sorrindo para a família e tentando


não perceber como Hilda estava ficando cada vez mais
magra.

Ele tirou o chapéu e o casaco, falou com a filha menor e


cheirou a comida, com uma ostentação de quem estava
faminto.

— Onde está Ernest?


— Ele foi até a casa de Armand para pedir uma coisa
emprestada — respondeu Hilda, na maior indiferença.

— Ah, sim, a nova furadeira.

Hilda não fez qualquer comentário, pois não se


preocupava com furadeiras. Ela falou rispidamente com
Martin, que pegou Dorcas e sentou-se, ajeitando-a no colo.
Ele se tornara mais alto e mais magro naquele verão, os
cabelos entre dourados e prateados caíam sobre o pescoço
numa juba lisa. Sob as pálpebras brancas, o azul dos olhos
era tímido e triste. Joseph sentou-se com um resmungo a
alguma distância do fogo, de rosto franzido, observando
furtivamente o segundo filho. Parecia mais uma rapariga do
que um rapaz adolescente. Martin detestava a oficina, jamais
voltara depois da primeira visita, estremecia ao ver armas de
fogo. Mas Joseph repudiava mentalmente, com extrema
fúria, o comentário desdenhoso de George de que Martin era
um maricas, não servia para nada. Martin era um conforto
para Hilda, fazendo-lhe companhia e ajudando a cuidar das
irmãs, trabalhando na horta, executando diversos serviços.
Contudo, pensou Joseph, remexendo-se impacientemente na
cadeira, ele não queria um filho que fosse apenas um
conforto para a mãe.

— Essa não! — exclamou ele subitamente. — Será que não


pode encontrar algo mais vigoroso para fazer do que ficar
balançando sua irmã, Martin? Afinal, você é homem!

Martin, como que obrigado a fazê-lo, olhou para o pai.


Tentou sorrir. Mas, antes que pudesse falar, Hilda interveio
bruscamente:

— Deixe-o em paz, Joseph. Ele é uma grande ajuda para


mim. Se não fosse por Martin, há muito que eu já teria
desmoronado.
— O problema não é esse, Hilda. Quer você esteja cansada
ou não, o fato é que Martin está se comportando como uma
menina. Ele devia aparecer na oficina de vez em quando,
embora eu não deseje que ele comece a trabalhar, por
enquanto. Por que não gosta da oficina, Martin?

Martin ficou em silêncio por um momento, fitando o pai


com expressão suplicante.

— Não gosto da oficina. — disse ele finalmente, quase


num sussurro. — Não gosto de armas de fogo e o cheiro de
pólvora me deixa enjoado. — Ele fez uma pausa antes de
acrescentar, com súbita ansiedade, sorrindo: — Não é que eu
realmente deteste pistolas e espingardas. Algumas parecem
bonitas, suaves, pretas, reluzentes. Gosto de segurá-las. Mas
não gosto de pensar que essas armas estão sendo feitas para
matar pessoas. Por que alguém tem de matar outra pessoa?

Joseph ficou completamente aturdido por um momento.


Franziu o rosto, desconcertado. Depois, com uma risada
brusca, estendeu a mão e puxou Martin para o seu lado,
afetuosamente. Segurou com firmeza o braço fino do garoto,
sacudindo-o ligeiramente, como se quisesse despertá-lo.

— Por que alguém tem de matar outra pessoa, hein? Já


ouviu falar de guerras, Martin? Já deve ter tomado
conhecimento das guerras, pois lê uma porção de livros. E
então? Não leu em seus livros por que os homens matam
outros homens?

Embora assustado, Martin mesmo assim fitou o pai nos


olhos, com profunda ansiedade.

— Não, pai, jamais descobri por quê. Os ingleses tinham


um motivo e os franceses tinham outro. Acho que os dois
lados estavam mentindo. E a mesma coisa aconteceu com os
romanos e os cartagineses. E com os francos e os gauleses.

Joseph franziu o rosto ainda mais, embora sentisse um


orgulho acanhado pelos conhecimentos do filho, que lhe
pareciam espantosos. E ele disse bruscamente:

— Não sei de nada dos romanos e desses outros. Imagino


que eles estão mortos há muito tempo. E quanto aos
franceses e Napoleão... ora, se não fosse pela Inglaterra, o
pequeno demônio teria conquistado toda a Europa. E onde
estaríamos agora? Pense no que teria acontecido se a
Inglaterra não tivesse fabricado pistolas, espingardas e
pólvora! Você não estaria aqui agora! Mas porque os ingleses
não são maricas, não haverá mais guerras na Europa. A
Inglaterra lutou contra Napoleão a fim de que a Europa
pudesse ter paz para sempre.

— Então, por que você e Tio George fabricam pistolas e


pólvora?

Joseph soltou uma risada.

— Ora, porque a América está querendo. Por falar nisso,


Hilda... — ele virou-se para a mulher, na maior animação
—...um general ianque de Filadélfia está querendo que lhe
enviemos a nossa nova pistola. Diz que se a pistola for boa,
vamos receber uma encomenda grande do exército. Isso
significa que teremos de contratar mais homens e construir
uma fábrica maior. Mas por que Ernest está demorando
tanto? Preciso conversar com ele a respeito da nova ideia
para um gatilho que tivemos!

Ele olhou furioso para a porta. Alguns momentos se


passaram antes que compreendesse que ainda estava
segurando o braço de Martin. Ao percebê-lo, pareceu ficar
surpreso e franziu o rosto novamente, tentando recordar as
últimas palavras do filho,

— Ah, sim, meu rapaz, a América quer o que temos para


fabricar. Tem de matar os índios — ele acrescentou,
sorrindo. — Afinal, filho, os índios são maus, um verdadeiro
estorvo, recusando-se a serem roubados pacificamente de
suas terras. Assim, é preciso matá-los. E nós fabricamos as
espingardas e a munição para ajudar a matá-los. Mas se não
fabricarmos essas coisas, então alguém mais vai fazê-lo. E
não me agrada a ideia de morrer de fome. — Ele soltou
Martin, afagou-lhe o ombro. — Você tem de mudar. Menos
livros e mais trabalho. Por falar nisso, eu soube hoje que vão
abrir uma escola aqui perto, dentro de duas semanas. Talvez
eu possa matriculá-lo. Não gostaria? Pode se tornar o
escriturário da família. E Deus sabe que vamos precisar de
alguém para cuidar dos livros, escrever cartas impecáveis.
Não gostaria de voltar à escola? Para estudar por mais alguns
anos?

— Não vamos ficar aqui por tanto tempo! — interveio


Hilda.

Ela falou com a voz alta e ameaçadora com que o terror se


manifesta, quando confrontado com uma situação
intolerável, que se recusa a aceitar e considerar. Virou-se e
olhou para o marido, com olhos angustiados, do qual
desaparecera toda a suavidade.

— Não vamos ficar aqui por tanto tempo — repetiu Hilda,


agora com profunda amargura, uma recusa angustiada em
aceitar a verdade incontestável.

Joseph não se virou para fitá-la. Ficou olhando para o


fogo. E quando falou, depois de um momento, a voz era
lenta e gentil:
— Um ano ou dois no máximo, mulher. Deve ser paciente.

Ele tinha que lhe dar tempo.

Hilda não podia falar naquele momento. Levou a mão ao


lado do rosto. Depois de algum tempo, virou as costas. Oh,
aquilo não era jeito de falar com seu homem! Os homens não
gostam de lágrimas, não gostam de ser importunados. Tinha
de ser cuidadosa. Amava aquele homem, o seu Joseph, de
costas estreitas e ombros frágeis, de rosto moreno. Morreria
se ele saísse para procurar outras mulheres, como muitos
homens faziam atualmente. Soubera-o por intermédio de
Madame Bouchard, que falava dessas coisas com a maior
indiferença. Ela contara que George costumava visitar a Sra.
Marsdon e suas garotas, na Shípman Road. Hilda não se
recuperara inteiramente do horror que a notícia lhe causara,
para espanto de Madame Bouchard. Mas ela mal podia
suportar aquela dor intensa sob o seio esquerdo, que era
como lágrimas convertidas em ferro.

As últimas palavras de Joseph pareciam ter imposto no


aposento um ar de decisão. Florabelle parou de cantar para a
boneca. Martin continuou parado ao lado do pai, embora
desviasse o rosto. Todo o seu corpo parecia tremer de
compaixão pelo desespero silencioso de Hilda.

Ernest abriu a porta subitamente e entrou. Não entrou


ruidosa e vigorosamente, fechando a porta com um
estrondo. Abriu a porta quase em silêncio, mas com um
movimento rápido e decidido, que usava energia suficiente,
mas não em excesso. Fechou a porta com uma rapidez de
que se podia esperar um estrondo, mas que foi suave como
se a porta estivesse revestida de veludo.

Ele começara a perder o excesso de carne que sobrara da


infância e o rosto adquiria a rigidez e força que iriam impor
admiração e medo quando se tornasse mais velho. Os olhos
tinham uma expressão preocupada, os movimentos eram
controlados e rápidos, quando se encaminhou para o pai,
sem olhar para a mãe e os irmãos.

— Pai — disse ele, sem qualquer preâmbulo — Armand


acha que o tubo estriado interior no canhão de ferro batido
seria prático. Está convencido de que dá para fazer.

Joseph levantou os olhos brilhantes e contemplou o rosto


do filho, com uma expressão irônica. Ernest divertia-o. E o
rapaz, apesar de toda a sua astúcia, não desconfiava disso. É
verdade que ficou contrariado com a expressão irônica do
pai, como ficava contrariado com todas as coisas que julgava
irrelevantes.

— Ora, Ernest, temos uma oficina que não é maior que um


canil e você vem me falar em canhão?

A voz era irônica, mas ele sentia o maior orgulho do filho.


Ernest fez um gesto brusco e impaciente com a mão.

— Estava falando sobre isso hoje, pai.

Ernest jamais admitia que uma conversa podia ser


meramente ociosa e especulativa. Se alguém falava de uma
coisa, a conversa era simplesmente uma preliminar
necessária, um desdobrar de planos, antes da ação.

— Ora, conversa é conversa! — disse Joseph, propenso à


ironia.

Ernest subitamente comprimiu a mão contra o ombro do


pai, como se procurasse por algo firme e sério, por baixo
daquela camada de ironia e jovialidade.
— Já conversei com Armand — insistiu ele, tenso,
compenetrado. — Ele está cansado da cautela excessiva e
mesquinhez de Tio George. Está disposto a tirar seu dinheiro
da oficina e aplicá-lo em algo que valha a pena, como
canhões, e entrar em contato com pessoas que podem nos
arrumar contratos do governo. Ele diz que o governo está
procurando por alguém que possa fornecer armas e
munições a baixo custo. Armand diz que, com a sua pólvora
e alguém para ir a Washington e falar com o Secretário da
Guerra a respeito, o governo pode até nos emprestar
dinheiro...

Joseph desvencilhou-se bruscamente da mão do filho em


seu ombro, assumindo uma expressão irritada.

— Mas que conversa é essa? — disse ele, soerguendo-se


na cadeira, sob o impulso da raiva. — Não acredito que
Armand tenha lhe dito uma só palavra assim a respeito de
George! Você confundiu tudo, seu patife! Tenho certeza de
que foi tudo ideia sua! O que fiz para merecer um filho
assim? Já esqueceu que seu Tio George nos enviou as
passagens, deu-me a oportunidade de experimentar minha
pólvora, ofereceu-nos um teto e alimentou-nos por dois
meses?

Ernest franziu o rosto, contraiu os lábios. Não estava


assustado com a explosão do pai, apenas irritado porque
Joseph estava usando palavras, frases e emoções que
considerava irrelevantes e infantis. Ardia de vontade de
voltar a tratar de coisas relevantes e importantes.

— Tem toda razão, pai. Acho que é isso mesmo. Mas Tio
George ajudou-nos porque achava que você poderia dar-lhe
uma coisa lucrativa. Mas não vamos falar mais sobre isso.

Ernest tinha grande coragem, mas era uma coragem


derivada do que considerava relevante e irrefutável, não uma
coragem temerária ou consciente.

— É verdade que Armand disse mesmo que retiraria todo


o seu dinheiro e deixaria Tio George sozinho, se você assim
quiser. Mas ele não precisava dizer, pois eu já sabia disso. As
palavras nem sempre são necessárias. E depois, quando
conversei com ele a respeito da ideia do canhão que nós
tivemos...

Sentindo-se ofendido, Joseph recordou-se de sua


autoridade paterna.

— Quem lhe deu permissão para falar sobre o maldito


canhão? Imagino que você já saiu pela cidade falando sobre
isso com todo mundo, como se fosse um pregoeiro! Com
quem mais você falou, como o tagarela que é?

Ernest ficou aturdido, empalideceu. Estava desconsolado.


Quando tornou a falar, depois de um silêncio pontuado pelos
ofegos furiosos de Joseph, sua voz estava extremamente
baixa:

— Pai, você sabe que não está sendo justo. Não sou um
tagarela e só falei com Armand. E como o ouvi hoje falar
tudo para Armand sobre o novo gatilho, conclui que não se
importaria se eu falasse do canhão.

Martin afastara-se do lado esquerdo do pai, com a


aproximação de Ernest pelo lado direito. Ficou parado entre
o pai, o irmão e a mesa, numa atitude expectante. Observava
o perfil de Ernest contra a claridade avermelhada do fogo.
Algo na expressão do irmão, apesar da firmeza e
determinação das feições, provocava-lhe profunda
compaixão. Mas Hilda, o interesse despertado, não estava
insatisfeita com a cena, Era ótimo, pensou ela, que Ernest
estivesse finalmente recebendo uma lição. Era bem feito para
um rapazinho metido a besta, que nem notava a existência
da mãe, exceto quando ela irritantemente lhe exigia a
atenção, através de alguma demonstração de autoridade
materna.

Joseph examinou atentamente o rosto pálido de Ernest,


enquanto este falava. Sentiu uma pontada de vergonha e isso
deixou-o irritado. Deu de ombros e virou de lado para o
filho, dizendo em tom mal-humorado:

— Você assume coisas demais para um rapaz. Ainda não é


um homem. E, na verdade, não sabe nada sobre armas de
fogo e munição. Só sabe mesmo é falar. Às vezes fico até
sem saber quem é mesmo que manda naquela maldita
oficina, se você ou George. — Ele fez uma pausa, antes de
acrescentar, ameaçador: — E isso me faz lembrar que não
quero mais ouvi-lo falar em afastar Tio George. Entendido? É
uma ideia indigna, que só pode dar na cabeça de arrivistas e
bandidos. Outra coisa: o que eu digo a Armand não é da sua
conta. Depois disso, terei mais cuidado. Cometi o engano de
tratá-lo como um homem, ao invés do garotinho que ainda é.
Mas não tornarei a cometer esse erro. Canhão? Governo?
Secretário da Guerra? Dinheiro? Tudo não passa de palavras
sem sentido, saídas da imaginação de uma criança. É um
filhote de cachorro tentando morder como um leão.

A raiva volátil de Joseph explodira e logo se dissipou; ele


já estava cansado de manter suas manifestações. Além do
mais, estava curioso. Permitiu-se sorrir para o rosto pálido e
contraído de Ernest.

— E então, Napoleão, o que disse o nosso Armand a


respeito do canhão? Pode muito bem me contar, agora que o
dano já está feito.
Um garoto menos dedicado a uma ideia do que Ernest, um
garoto que tivesse menos consideração pelo tempo e mais
por irrelevâncias, teria ficado indignado e exibido sua
mágoa, afastando-se orgulhosamente do lado do pai. Mas
Ernest reverenciava o tempo, compreendia apenas isso,
recusava-se a desperdiçar aquele momento de sua vida com
emoções improdutivas, que poderiam levar ao orgulho, às
custas de coisas fundamentais. Assim, instantaneamente, ao
ouvir as palavras do pai, a rigidez desvaneceu-se de seu
rosto, que se tornou novamente concentrado, impregnado de
determinação. Mas Joseph não se enganou, pensando ter
obtido um perdão fácil.

— Ele disse que não via qualquer motivo para que não
possa dar certo. Diz que pode ser um canhão de carregar
pela culatra. Os velhos canhões não merecem confiança, às
vezes ficam emperrados, de vez em quando explodem em
cima dos artilheiros, matando-os. Armand disse também que
é melhor começarmos a trabalhar nisso imediatamente, pois
um dia desses haverá o diabo na América, por causa dos
escravos do Sul.

Recordando-se da sensibilidade de Armand, Joseph


apressou-se em dizer:

— Espero que lhe tenha dito que se trata apenas de uma


nova ideia minha, sobre a qual ainda não lhe havia falado
porque não estava muito definida.

— Claro que foi exatamente o que falei. Armand disse que


falaria com você amanhã e talvez possam pensar juntos. —
Ernest hesitou por um momento. — Ele disse para sugerir-lhe
que não falasse com Tio George. — Outro instante de
hesitação e Ernest acrescentou, cautelosamente: — Por
enquanto...
Joseph sorriu.

— Ele nunca disse ‘por enquanto’. E você sabe disso


perfeitamente. Para um patifezinho francês, Armand se tem
em alta conta. Onde está meu cachimbo?

No silêncio solene que se seguiu, Ernest encheu o


cachimbo do pai, com o fumo que estava em cima da lareira.
Depois, ajeitou o cachimbo na boca do pai e acendeu-o com
um pavio. Havia menos afeição naquele gesto do que um
respeito mecânico que um subordinado concede a seu
superior. Ernest ficou esperando, alerta, com o pavio aceso
na mão, até ter certeza de que o cachimbo estava ardendo.
Depois, meticulosamente, jogou o pavio no fogo e pôs outro
em seu lugar. Joseph recostou-se na cadeira, soprou a
fumaça para o ar, satisfeito, olhando para o fogo. E começou
a falar, lentamente, como se estivesse pensando em voz alta,
enquanto Ernest observava-o com atenção:

— Não, não podemos deixar George de lado, mesmo que


ele seja apenas um vigarista. E não é porque seja meu irmão.
Mas sem a ajuda dele, eu não estaria na América. Não pode
haver qualquer dúvida quanto a isso. Sei perfeitamente que
não foi por amor fraternal que ele me trouxe para cá. Mas
isso não altera o fato de que, se não tivesse me trazido, eu
ainda estaria lambendo as botas do Esquire Broderick.

— A ajuda dele... foi acidental — disse Ernest.

— Você gosta mesmo de brincar com as palavras, hein? —


resmungou Joseph. — Mas quer tenha sido acidental ou não,
a verdade é que houve. George está sempre falando de
ingratidão e não quero lhe dar um pretexto para sair
gritando por aí e fazendo todo mundo acreditar.

— E que importância tem se as pessoas acreditarem? —


perguntou Ernest, não desdenhosamente, mas no tom que se
usa para ressaltar um fato óbvio.

— Você é um jovem demônio, hein? Coração de bronze e


alma de ferro. Já ouvi falar de um pirata que era assim como
você. Não me importo com o que as pessoas digam, mas não
quero que seja verdade o que ele possa dizer. Não
suportaria, ter isso na minha consciência.

Ernest, que sempre soubera que o pai tinha arroubos


insuspeitados de honra e suavidade, continuou incrédulo
diante dessa loucura óbvia. Mal podia acreditar que alguém
pudesse perder uma oportunidade tão espetacular por
qualquer coisa tão insignificante quanto uma questão de
consciência. Parecia-lhe revoltante, desprezível. E, no
entanto, ele não era um patife, por determinação ou
temperamento. Paradoxalmente, era porque tinha uma visão
mais ampla que detalhes pequenos, como as questões de
consciência, se perdiam. Para ele, essa indulgência com a
consciência era absurda e sem sentido, que só podia ser
admitida nos que já eram vitoriosos e podiam se dar a esse
luxo. Sem perder coisa alguma. Ernest ainda não ouvira falar
da teoria da sobrevivência dos mais capazes e da luta pela
existência. Mas acreditava nisso instintivamente. Se George
fosse deixado para trás, abandonado, despojado de qualquer
oportunidade, era por ser incompetente e inferior,
prejudicado por sua dissimulação e ganância. Não havia
lugar para ele nos planos dos grandes homens, de imensas
ambições. Para Ernest, o realista, o sucesso não era
conquistado pelos que possuíam vícios ou virtudes sem
sentido.

— Ele não vai hesitar, se tiver a oportunidade de pregar-


lhe um golpe sujo, pai.

Ernest odiou a si mesmo pela insuficiência de seu


protesto. Mas sabia que jamais conseguiria fazer com que o
pai compreendesse. Ele contraiu os lábios em desespero.

Joseph bateu com a mão no braço da cadeira, com um ar


decidido, indicando que estava prestes a concluir a conversa,
antes de tomar o chá. A luz do fogo era agora a única fonte
de claridade na sala, pois era crepúsculo lá fora, um
crepúsculo que parecia impregnado de fumaça cinzenta.

— Isso não faz diferença para mim, meu rapaz. Sei que
George poderia me apunhalar pelas costas para ganhar
algum dinheiro. Mas acontece que eu não sou assim.

Ele fitou Ernest com uma complacência afável. O rapaz,


cada vez mais revoltado, compreendeu que o pai estava
admirando a própria virtude e que tal admiração o levaria a
resistir temporariamente a argumentos de lógica e razão. Ele
cerrou as mãos espasmodicamente, mas não disse nada.
Estava confiante em sua vitória final.

Talvez Joseph sentisse isso e um obscuro desalento


ofuscou de repente a autoadmiração. Ele levantou-se
abruptamente, irritado. Virou-se para Hilda, que começara a
acender as velas na mesa, franziu o rosto.

— Vamos logo, mulher. Um homem tem de esperar a noite


inteira por seu chá?

Martin, que a tudo escutara em silêncio, enquanto


passava manteiga numa fatia de pão para Dorcas, sentando
depois numa das cadeiras altas e despejando o leite em sua
caneca de peltre, empertigou-se de repente e observou a
todos atentamente, com seus olhos imensos. Olhou para o
pai, ainda jovem, bonito e nervoso, a mãe rechonchuda, de
faces lustrosas e cabelos escuros encaracolados, a irmã
pequena e a bebezinha. E finalmente olhou para Ernest.
Havia uma expressão de medo nos olhos de Martin.

Parecia-lhe, de súbito, que havia um perigo no aposento


que iria devorá-los e que esse perigo fluía de Ernest. Era uma
coisa tangivelmente pavorosa, contra a qual devia protestar.
Podia senti-la como um calafrio.

— Pare de ficar olhando ao redor como um bezerro


assustado e sente-se direito, garoto — disse Hilda. — Foi só
então que ela percebeu a expressão de Martin e apressou-se
em acrescentar: — Mas o que há com você?

— Eu... eu senti como se estivesse doente — murmurou


Martin, sem olhar para a mãe, com um vago pavor. — Acho...
acho que não vou querer tomar o chá.
CAPÍTULO VI
A família Bouchard vivia na Garrison Road, a cerca de 100
metros da família Barbour. Armand Bouchard construíra uma
casa característica para sua família, pois não queria saber de
casebres de madeira. Com o instinto do francês para a
permanência, sua casa era de pedra. Embora fosse pequena,
irregular, malfeita, sem qualquer elegância, as paredes
cinzentas eram grossas e vigorosas, as fundações estavam
afundadas na terra, a porta era capaz de resistir a qualquer
tempestade que pudesse soprar. Era baixa e um tanto
comprida, pois Armand e a família não queriam saber de
quartos num segundo andar, preferindo aproveitar o calor
do fogo na lareira para esquentar os quartos. Os aposentos
eram de teto baixo, também em função do aproveitamento
do calor. Mas embora o teto fosse baixo, os aposentos eram
quadrados e amplos, não havendo a atmosfera sufocante que
se encontrava nas outras casas, durante esse período. As
lareiras também eram largas, de pedra, nelas ardendo um
fogo intenso. A casa não era mais suntuosamente mobiliada
que a dos Barbours, mas havia ali alegria e animação, afeição
evidente, otimismo inabalável.

Era uma casa barulhenta, os moradores volúveis,


aparentemente sempre excitados e veementes. Armand era o
mais excitado de todos, com seu rosto moreno, barba preta
pontuda, olhos pequenos e brilhantes, dentes amarelados,
um sorriso meio felino entre os lábios cabeludos. Era um
homem pequeno, mas com tanta energia, rapidez e
vitalidade, que ninguém percebia a estatura ou a largura
estreita. O colarinho e a gravata estavam sempre afrouxados,
deixando exposto o pescoço moreno, fino e vigoroso, a todos
os olhos e todos os tempos. No pescoço, o pomo-de-adão
estava se mexendo continuamente, mesmo quando ele estava
calado. Às vezes, Armand dava a impressão de ser
deformado, pois se inclinava visivelmente e os ossos das
costas ressaltavam por baixo do paletó. Mas essa impressão
só havia nas raras ocasiões em que ele estava em repouso
parcial. Certa ocasião, Ernest, de 15 anos, num dos seus
poucos momentos de jovialidade espontânea, passara o
braço pela cintura do homenzinho e levantara-o com a maior
facilidade. Joseph achara a situação um tanto cômica e rira
intensamente, pois Armand simulara enorme ira e
desamparo, sacudindo os braços frágeis no ar, esperneando
sem parar. Armand era quase que perpetuamente jovial e
irônico, sempre paciente com uma ideia nova, sempre
ansioso e compreensivo. Bem poucos, além do astuto Ernest,
sabiam também que Armand era sagaz e lógico, um homem
que não se deixava enganar, oportunista e avarento. Ele
podia ser o melhor dos amigos, o mais fiel, mas podia ser
também extremamente reservado em matéria de receber e
conceder favores. Ernest admirava-o ainda mais do que ao
pai, pois observara que Armand não tinha honras e
escrúpulos inconvenientes, não ocultava estranhas e secretas
sutilezas e indecisões.

O garoto sentia que fluía de Armand uma corrente de


força e segurança, vitalidade e energia, ironia e
determinação. Disse ao pai que Armand era um gigante anão.
Era uma lógica que Ernest podia compreender.

Madame Bouchard era uma mulher cuja altura e volume


dariam para fazer pelo menos três homens com as
dimensões de seu marido. Por causa do peito vasto e dos
quadris imensos, dava a impressão de lentidão e indolência.
Mas, na realidade, era tão veloz e ágil quanto o marido. Sua
mira com uma concha ou um prato, quando estava furiosa,
quase que podia ser classificada de milagrosa. Era meio
italiana, com um rosto grande e redondo, como um prato. Os
três queixos repousavam no peito, pois ela parecia não ter
pescoço. Sentia-se excepcionalmente orgulhosa da única
coisa que tinha de bonita: os cabelos pretos lustrosos,
ondulados, que usava presos na base do que deveria ter sido
o pescoço. Armand chamava-a de pombinha branca e ela o
chamava de repolhinho, pois os dois se amavam
profundamente. Ela era mulher veemente, irritável,
desconfiada, econômica e devotada, amiga desiludida de
poucas pessoas e propensa a explosões de raiva. A
inteligência era a de um animalzinho ágil e esperto,
cauteloso e alerta. Misturava a cozinha francesa com a
exuberância da cozinha italiana. Armand costumava
declarar, com alguma razão, que a mulher era a melhor
cozinheira do mundo, até melhor que o pai dele, que em
determinada ocasião fora cozinheiro de um dos generais de
Napoleão.

Madame Bouchard era uma católica cética, mas devotada.


Por cima de cada cama, havia um crucifixo e um rosário. Aos
domingos, a família inteira, inclusive o frágil Jacques,
comparecia à missa na pequena igreja católica de madeira
em Newtown. Não se deixara passar qualquer santo do dia
sem uma lembrança. Mas a religiosidade dela era prática,
como frequentemente acontece com os italianos. Ervas
ressequidas, agulhas de tricô, cachimbos, cebolas, velas e
tabaco misturavam-se fraternalmente por cima da lareira da
cozinha com pequenos santos e Virgens de gesso. Para
Madame Bouchard, os santos e até mesmo o Salvador
estavam intimamente preocupados e ansiosos com os
acontecimentos cotidianos nas vidas dos fiéis. Ela não
hesitava em invocá-los nas ocasiões mais triviais de aflição,
como os resfriados de Armand, a tendência de Raoul a comer
demais e sofrer de indigestão, a propensão de Eugene de
implicar com os outros e as frieiras de Jacques. Para ela, os
santos, a Virgem Maria e o Menino Jesus eram como pessoas
de sua família. E quando servia um prato particularmente
saboroso, costumava comentar:
— Ah, se ao menos São Francisco ou a meiga Santa Teresa
pudessem provar dessa comida!

Quer estivesse usando vestido de algodão ordinário ou o


seu vestido preto de seda, havia sempre imensa cruz de
ouro, pendendo de uma corrente de ouro, entre as
montanhas dos seios. Mesmo quando ela se refestelava em
completo repouso, à noite, diante do fogo, as mãos fortes
estavam sempre mexendo naquela cruz, enquanto os lábios
não paravam, murmurando preces de uma maneira quase
mecânica.

Sendo meio italiana, ela não acreditava no crescente


costume francês de limitar a família. Não via qualquer
relação no fato de seus três filhos terem diferenças de
nascimentos de apenas dez meses e a perna atrofiada e
quadril torto do mais moço, Jacques. Havia ocasiões em que
ela sofria intensamente quando contemplava Jacques, seu
amado. Sua voz tornava-se frequentemente áspera e brusca,
quando a ternura natural de Jacques deixava-a comovida
demais. Ela procurava consolo no vigor e jovialidade de
Raoul, com 16 anos, no corpo robusto e capacidade de
cuidar de si mesmo de Eugene. Aos 14 anos, Jacques era
torto e magro, rosto pálido e encovado, cabelos castanhos
lisos. Ele usava uma bengala para andar, sempre devagar e
muitas vezes com dor. Mas seu rosto era tão bonito, tão
alegre e radiante, que as pessoas instintivamente sentiam
que ali não estava um sofredor suplicando silenciosamente
por compaixão, mas um rapaz que poderia ser invejado por
sua felicidade e contentamento, secretos e absorventes.

Raoul era um rapaz perfeitamente normal e por isso


mesmo um tanto estúpido. Era jovial e um pouco astuto,
tolerante e ganancioso. Se nascesse 75 anos depois, seria o
herói do futebol de alguma universidade, pois tinha ombros
largos, enorme vigor e uma personalidade, devido à sua
jovialidade e talento para fazer amizades, que lhe teria
proporcionado incontáveis fãs.

Eugene, com 15 anos, era mais baixo e mais largo que o


irmão mais velho, Raoul. Embora suas feições fossem mais
bonitas que as de Raoul, parecia menos atraente, pois carecia
do brilho radiante e da jovialidade que tornavam o irmão
mais velho tão cativante. Os olhos pareciam menores, pois
ele os estreitava continuamente, sempre desconfiado. A
boca, embora extraordinariamente bem delineada, estava
sempre espichada numa expressão de mau humor. Eugene
normalmente era retraído e falava pouco. Mas quando falava,
o tom era quase sempre belicoso e agressivo, muitas vezes
provocativo. Nessas ocasiões, o rosto se contraía e ficava
avermelhado. Eugene era lento e cuidadoso, extremamente
inteligente, com um talento para invenção e análise. Para sua
vergonha secreta, era também extremamente gentil e
generoso, deixando-se facilmente levar a uma compaixão
ressentida. Somente uns poucos apreciavam ou
desconfiavam de suas muitas virtudes reais, assim como
poucos desconfiavam da ganância egoísta de Raoul. Depois
de Armand, Eugene era o Bouchard que Ernest mais
apreciava. E, na verdade, aos olhos superficiais, havia grande
semelhança entre os dois.

Os três amores mundanos de Madame Bouchard eram o


marido, os filhos e a horta. E ressalte-se que a horta não era
absolutamente o menos amado entre os três. Ela amava a
terra com paixão intensa e quase pessoal. Quando ninguém a
estava observando, tirava as botas imensas e afundava os
pés descalços na terra quente, recentemente revolvida.
Nessas ocasiões, uma expressão de êxtase estampava-se em
seu rosto, os olhos se fechavam, num prazer quase sensual.
Gostava de escavar a terra com os dedos vigorosos. E quando
afagava alguma planta nova, os gestos eram de verdadeira
amante. Consequentemente, as plantas cresciam em suas
mãos de uma forma como não cresciam para as outras
pessoas. Adquiriam uma exuberância quase tropical. Os
repolhos eram gigantescos, as cenouras pareciam porretes,
as batatas eram como cabaças, as ervilhas imensos globos
verdes, os nabos maiores que uma cabeça de homem. O
milho crescia a uma altura espantosa, as espigas brilhavam
com saudável brancura leitosa. A cozinha estava sempre
aromatizada com ervas. E como ela amava flores quase tanto
quanto os legumes e hortaliças, sempre tinha um vidro ou
um vaso de barro com miosótis, botões de rosa brilhando
com o orvalho ou ramos de lavanda na mesa, durante o
verão. Possuía também uma cabra que respondia à sua
solicitude silenciosa com jorros de leite. Certa ocasião,
George Barbour dissera, meio desdenhosamente,
contemplando a horta e a vigorosa casa de pedra:

— Alguém pode até pensar que vocês tencionam viver


aqui pelo resto de suas vidas!

Madame Bouchard, em sua voz rouca e trovejante,


respondera prontamente:

— Um dia, um ano ou uma vida inteira, tudo é para


sempre.

George ficara totalmente confuso, acabando por se


convencer de que estava confirmada a desdenhosa opinião
britânica de que todos os estrangeiros são malucos, quando
não são ladrões. Para muitos dos habitantes de Newtown, a
família Bouchard, com a enorme Madame Bouchard e sua voz
tonitruante, Armand e sua agilidade e voz estridente,
Jacques com suas caixas de livros, perna aleijada e rosto
bonito e meigo, Eugene com seus silêncios, mau humor e
olhares desconfiados, era constituída de loucos, ou pelo
menos desequilibrados. Todos, no entanto, podiam
compreender Raoul, tratando-o com condescendência e até
mesmo sentindo uma afeição genuína por ele.

Hilda Barbour teria achado sua situação muito pior e mais


deprimente, naquela terra nova e desconcertante, se não
fosse por Madame Bouchard. Um dia, logo no início do
conhecimento, a francesa encontrara Hilda chorando, num
silêncio desesperado, diante do fogo. Adivinhara
imediatamente a causa. Ao invés de oferecer simpatia e
consolo, começara a censurar Hilda por ainda não ter
começado uma horta. Uma casa sem horta, disse ela
asperamente, era como uma lareira sem fogo, um corpo sem
alma. Hilda devia acompanhá-la imediatamente, para pegar
algumas mudas. Já era muito tarde agora para plantar
sementes. Embora protestando, com alguns soluços, Hilda
acabou indo à casa dos Bouchards, foi até a horta, ajudou
Madame Bouchard a arrancar um pouco de mato, sentiu
renascer dentro de si o amor camponês pela terra, que,
desde o seu casamento com Joseph Barbour, fora sufocado
pela vida urbana. Voltou para casa revigorada e quase feliz,
o avental cheio de mudas, com a terra úmida grudada nas
raízes. Iniciou imediatamente a sua horta. Nas semanas
seguintes, Madame Bouchard ensinou a Hilda uma porção de
recursos da cozinha continental. Em consequência, pratos
temperados com alho, ervas e cebolas começaram a aparecer
na mesa dos Barbours, para satisfação de todos, exceto
Ernest. Era a sua tragédia, embora ele não desconfiasse que
fosse uma tragédia, não ter qualquer paladar. Comer era para
ele uma necessidade sem gosto, algo que era melhor acabar
o mais depressa possível. Era algo indispensável, como
respirar, igualmente automático e casual. Comia-se para
viver e ponto final. Ernest também jamais adquiriu um gosto
por vinho, embora mais tarde, percebendo o prazer dos
outros e chegando à conclusão de que era uma arte que
ressaltava a dignidade do sucesso, tentasse
desesperadamente gostar. Mas embora não sofresse
quaisquer efeitos perniciosos, apesar de beber em grandes
quantidades no esforço de encontrar algum prazer, o álcool
apenas deixava um gosto esquisito em sua língua e nada
mais. Assim, a produção triunfante de Hilda de pratos
estranhos e exóticos no gosto, não despertou qualquer
prazer ou entusiasmo em Ernest. Ele não podia compreender
como alguma pessoa era capaz de desperdiçar um tempo
valioso com uma necessidade que não proporcionava prazer
nem lucro.

Um dia, Hilda queixou-se à sua nova amiga da


impossibilidade de criar um lar naquela terra inóspita. Ao
que Madame Bouchard prontamente respondeu:

— Que importância tem onde se vive, quando se pode


contar com um marido, filhos, Deus, um fogo, um teto, umas
poucas panelas, uma cama quente e uma horta? E paz?

E ela acrescentou paia si mesma, mentalmente: “E o mais


importante de tudo é a paz.” Mas Hilda, correndo os olhos ao
redor, tristemente, contemplando a desordem horrenda e o
tumulto de Newtown, sob aquele sol ofuscante, que
iluminava os rostos hostis e desconfiados das pessoas,
vendo a sua casa tão feia, não pôde conter um suspiro.
Madame Bouchard acrescentou, então:

— Pode-se fazer um lar em qualquer lugar.

E ela olhou complacentemente para a sua horta, para as


vigorosas paredes de pedra da casa. Mas Hilda, cuja
felicidade dependia de familiaridade antiga, de velhas
amigas, antigos gostos, antigos cheiros, antigos céus, antigas
chuvas, jamais poderia compreender tais palavras. Podia
suportar toda aquela estranheza para ganharem dinheiro,
pois pertencia a uma raça que precisava ter um lar ancestral
ou então conquistar um estranho sucesso.
Certa ocasião, Hilda disse à cunhada, que gostava dela
mais do que um pouco, embora secretamente, que estava
convencida de que Madame Bouchard, o marido e os filhos
não se importavam de permanecer na América pelo resto de
suas vidas. Ela falou com um desdém afetuoso e sacudindo a
cabeça. George riu e disse que não se podia esperar outra
coisa de franceses, que não possuíam um país decente em
que viver, tendo que deixar a terra miserável em que haviam
nascido para salvar o pescoço. Para um inglês, no entanto,
vindo de um país civilizado, em que imperava a ordem, a
inteligência e uma vida aprazível, a América era
insuportável, só podendo ser aturada pelo dinheiro que
proporcionava.

Hilda esperara por um sorriso e compreensão de Joseph.


Pareceu-lhe estranho que, ao virar-se para encontrar os olhos
do marido, descobrisse que ele não a estava fitando. Em vez
disso, Joseph olhava para George, com uma expressão das
mais desagradáveis. O pescoço de Joseph sempre ficava
vermelho quando ele estava irritado ou agitado. Embora ele
nada dissesse, Hilda percebeu, surpresa, que seu pescoço
estava vermelho naquele momento. Por alguma razão
obscura, isso deixou-a aborrecida. Por algum tempo depois,
ela tratou Madame Bouchard de maneira condescendente.
Sua única insatisfação nisso, porém, era o fato de Madame
Bouchard parecer não perceber que estava sendo tratada de
maneira condescendente.

Hilda quase não via a cunhada, Daisy, que estava


desenvolvendo o seu pequeno círculo social, do qual Hilda
estava naturalmente excluída. Daisy já estava começando a
falar em se mudar para Oldtown. Ao saber disso, Hilda
contraiu os lábios numa expressão determinada, jurando a si
mesma que nunca se mudaria para Oldtown, mesmo que
Joseph ganhasse 50 mil libras.
CAPÍTULO VII
Fora um inverno extremamente inclemente, mas a
primavera finalmente chegou, trazendo calor e
expansividade, como uma mulher que ri e sacode a cabeça
jovialmente, ao se recordar dos sofrimentos passados.

Ali, à margem do rio, estava ao mesmo tempo quente e


agradavelmente fresco, pois o sol se despejava num fluxo
amarelo como uma catarata, enquanto o ar que soprava da
água ainda continha o frio do gelo. Uma curva do rio
escondia as cicatrizes de Newtown. Não dava para se ver os
casebres e horrendos armazéns por causa do emaranhado de
salgueiros. O movimento pelo rio era pequeno naquele dia.
Assim, as águas corriam lentamente, como um fluxo
prateado deserto, sob o céu encharcado de luz. As margens
ainda eram constituídas por lençóis de lodo úmido e escuro,
em que os salgueiros encurvados, esguios e voltando a ficar
verdes, estavam fragilmente enraizados. A margem oposta
parecia mais verde e mais sólida, porque quase não
devastada, as árvores eram mais altas e mais compactas. O
mato alto ao longo das margens era velho, já escuro,
agonizante, mas resistindo tenazmente, como as mulheres
muito velhas. A água resplandecia como prata liquida,
irrequieta, sempre em movimento. Já se podia ver os juncos
novos que ali cresciam, ansiosos, exuberantes, parecendo
hastes esguias de fogo verde.

O ar e a água estavam tão brilhantes, a terra parecia tão


desperta e fecunda, que mal se podia reconhecer o silêncio
impressivo de poucos dias antes. Os pássaros haviam
voltado e se chamavam em cantos solitários e ternos de
árvore para árvore, como se tentando reconstituir antigas
recordações e velhas amizades. Ocasionalmente, com um
adejar de asas, elevavam-se pelo céu, manchas vermelhas,
azuis ou pretas. Sobrevoavam a água, subiam em espiral,
trinavam intensamente, desapareciam nas sombras verdes
das árvores. A água sugava as margens, murmurava para si
mesma, borbulhava, continuava em frente, inexoravelmente.

As margens eram inclinadas. Nas partes mais altas,


rochas se esquentavam ao sol, o terreno era mais seco. A
relva começava a surgir entre as rochas e havia no ar uma
fragrância penetrante de vida que se movimentava. Era para
aquele lugar que Martin levava a pequena Dorcas em todos
os dias da primavera. Ele gostava de sentar ali, esquentando-
se ao sol, sentado em alguma pedra, enquanto a irmã
disparava de um lado para outro pela relva, colhia flores
silvestres nos recessos mais frescos ao abrigo das árvores. O
casaco de Dorcas caía até os pés sempre em movimento, o
rostinho estava quase que totalmente oculto nas
profundezas da imensa touca. Por suas costas, desciam
tranças tênues de cabelos dourados, que atraíam
irresistivelmente o jovem Martin, sempre a vigiar
atentamente a irmã.

Quase todos os dias, sempre que a dor e o defeito físico


permitiam, Jacques Bouchard ia se encontrar com Martin na
beira do rio. Às vezes, quando Martin e a pequena Dorcas
desciam pela estrada, ouviam subitamente o chamado
estridente de Jacques. Ficavam então esperando por ele, que
se aproximava claudicando, apoiado nas muletas, o rosto
ansioso esticado à frente, como alguma coisa viva que se
empenhava inutilmente em deixar o corpo aleijado para trás.
Lá vinha ele, tropeçando pela estrada esburacada, os cabelos
castanhos flutuando sobre os ombros, os pés quase inúteis
encurvados grotescamente, a sombra dançando
violentamente ao seu redor. Mais frequentemente, Martin
chegava sozinho com Dorcas, pois nunca tinha certeza se
Jacques iria aparecer. Depois, ouvia seu nome sendo
chamado e Jacques surgia, rindo e ofegando, avançando com
dificuldade até chegar às rochas. Martin jamais cometia o
erro terrível de oferecer ajuda ao jovem aleijado, embora
Jacques Bouchard fosse tão compreensivo que se limitaria a
rir amargamente e aceitaria. Jacques não tinha melindres. Era
inteligente demais para sentir-se ofendido com alguma coisa.

Ficavam sentados nas rochas, em paz e num silêncio


quase total, depois que Jacques recuperava o fôlego. Havia
uma semelhança extraordinária entre o garoto de 14 anos e o
de dez anos. Ambos possuíam a mesma ternura na
expressão, embora a de Martin fosse impregnada com uma
tristeza confusa, enquanto a de Jacques irradiava paz e
serenidade. Ambos tinham olhos gentis e profundos, mas os
de Martin eram conturbados, enquanto os de Jacques
pareciam tranquilos e firmes. Martin se preocupava
angustiosamente com os problemas incompreensíveis da
existência, mas Jacques parecia ter-se retraído do mundo e
aceitado tal situação. Na semelhança, houve uma simpatia
mútua instintiva. Formavam uma estranha dupla, na
exuberância tumultuada de Newtown, à qual um nunca
pertencera e o outro jamais pertenceria.

Não houvera qualquer estranheza ou inibição entre os


dois. Ao se conhecerem, deram a impressão de
imediatamente transpor o espaço de chão que os separava,
na casa dos Bouchards. Depois disso, passaram várias
semanas sem se encontrarem. Mas o jovem Martin sentira-se
confortado e amparado, ao longo dos primeiros dias
angustiantes do ajustamento inicial. Tornaram a se encontrar
no Natal, na casa dos Bouchards. Ao entrar na sala grande,
com o fogo intenso ardendo na lareira, Martin quase que
imediatamente fora até o canto da chaminé em que Jacques
estava sentado. Sentara num banco perto do garoto mais
velho e não se haviam falado. Mas sorriam cada vez que seus
olhos se encontravam. Era estranho que o aleijado Jacques
parecesse ser o protetor, enquanto Martin, jovem e
empertigado, era o protegido, o que se abrigava à sombra do
que era mais forte e mais calmo. Tudo ao redor deles era a
confusão vigorosa da festa, os gritos estridentes das crianças
menores, as vozes efusivas dos homens, o tom trovejante de
Madame Bouchard, que fazia vibrar os objetos em cima da
lareira. Cadeiras foram arrastadas pelo chão, instaladas
diante do fogo, num semicírculo confortável, castanhas
foram quebradas, bebera-se vinho temperado e uísque,
comera-se bolo, as duas meninas pequenas gritando
deliciadas, vozes se misturando, risos. Mas Martin e Jacques
ficaram sentados num oásis de silêncio, sorrindo um para o
outro. Em meio ao tumulto, barulho de copos, vozes, gritos,
as achas crepitando no fogo, somente os dois ouviam a neve
caindo no peitoril das janelas, o rugido do vento descendo
pela chaminé.

Não havia escolas no trecho de Newtown em que viviam


as famílias Barbour e Bouchard, pois ficava nos arredores.
Além disso, as poucas escolas existentes dispunham de
poucos professores e cobravam aos alunos. Os habitantes
mais novos da cidade não estavam interessados em
instrução para os filhos. Embora Joseph pensasse nisso para
Martin e Florabelle, estava absorvido demais na luta
desesperada para se firmar e não chegava a considerar
seriamente o assunto. Ouvira falar de um vago projeto de
construir uma escola naquela parte de Newtown e se
contentara com isso. Afinal, pensava ele, Martin já sabia
duas vezes mais que os rapazes de sua idade. Sabia até
demais, para sua felicidade e conforto. E a menina ainda não
precisava de uma escola; quanto menos as mulheres
soubessem, melhor.

Assim, gradativamente, naquele inverno, Martin passou a


enfrentar quase que diariamente a neve, o granizo e o vento
intenso, o nevoeiro e a chuva, para ir à casa dos Bouchards,
onde Jacques estava à sua espera, com livros em inglês e
francês. Os dois sentavam ao lado do fogo, lendo em voz alta
um para o outro, muito compenetrados, discutindo os
assuntos. Duas vezes por mês, jornais de Filadélfia e Nova
York chegavam pela diligência. Juntos, os dois liam as
notícias, debatiam cada evento. O problema da escravidão
absorvia-os, incutia-lhes compaixão, terror e indignação.
Havia ocasiões em que mal conseguiam falar de tanto horror,
as lágrimas aflorando aos olhos. O Estado relutantemente
promulgara uma lei pela qual deviam ser devolvidos a seus
donos os escravos fugitivos a caminho do Canadá. Cada
episódio terrível parecia provocar uma angústia pessoal em
Martin e Jacques.

Para Madame Bouchard, que não era afetada por qualquer


coisa que acontecesse fora de seu círculo familiar, isso
parecia comoventemente divertido. Tinha um primo em
Quebec, que vivia se queixando dos invernos monstruosos e
dificuldades terríveis. Assim, não podia acreditar que fosse
um infortúnio que um escravo fugitivo fosse impedido de
alcançar uma terra desolada e inóspita. Era em vão, a não ser
por um sorriso terno pela veemência dele, que Jacques
argumentava insistentemente sobre os méritos da liberdade
e a injustiça de um homem possuir outro, independente da
cor. Madame Bouchard escutava, acenando com a cabeça
indulgentemente, enquanto o filho relatava uma história
após a outra, de morte e tortura e agonia. E ela pensava:
“Mon petit parece estar muito bem hoje. Seus olhos estão
brilhando, o rosto está vermelho de animação!" Ela não tinha
afeição de sobra para dispensar a qualquer um que não fosse
de sua carne e braços. Contudo, como Martin era um
companheiro de Jacques e parecia animá-lo tão
intensamente, sentia por ele algo que se aproximava muito
da afeição. Falava-lhe com atenção, pairava em torno dele
com algo mais que sua hospitalidade habitual, acalentava-o,
censurava-o, ajeitava-lhe o casaco na hora em que ele ia
embora. Seus olhos bonitos enterneciam-se ao contemplar
Martin, afagava-lhe o rosto com a mão imensa. Falava a Hilda
do jovem Martin e seu rosto ficava radiante de gratidão.
Hilda comentava então com Joseph que Madame Bouchard
possuía o coração mais terno e generoso do mundo para
crianças. Mas se Martin irritasse e aborrecesse Jacques,
Madame Bouchard ficaria indignada e inflamada. A afeição
que sentia por Martin teria então se transformado no ódio
mais profundo e violento. Não mais o trataria como criança.
Lembrando-se que era mulher e mãe, passaria a encará-lo
como um inimigo, que tinha de combater e destruir. Na
verdade, descobrindo rapidamente que Ernest Barbour era
repulsivo a Jacques, que o filho instintivamente sentia
aversão e desprezo por Ernest, Madame Bouchard nunca
mais dispensou-lhe qualquer palavra de cortesia, mal
conseguia suportar sua presença. Nas raras ocasiões em que
Ernest relutantemente acompanhava o pai à casa dos
Bouchards, a mulher, geralmente expansiva, mantinha-se
num silêncio veemente e ameaçador, embora estimasse e
admirasse Joseph, tanto por sua inteligência como pela
aparência. Madame Bouchard ia para o mais longe possível
do fogo, o corpo transbordando do assento. E, das sombras,
seus olhos intensos ficavam fixados em Ernest, com uma
expressão de ódio implacável. Ernest sempre ficava
constrangido, embora fingisse estar indiferente. As mãos de
Madame Bouchard ficavam se abrindo e fechando sobre as
coxas imensas, a respiração era alta e ofegante. Nunca lhe
ocorria que tudo aquilo era extremamente ridículo e
totalmente desproporcional. Em tudo o que envolvia as suas
afeições, Madame Bouchard não tinha o menor senso de
proporção, transformava-se numa verdadeira tigresa.

— Madame B. não gosta de você, meu rapaz — Joseph


comentou um dia para Ernest, achando a maior graça na
situação.
Ernest, que se sentia constrangido com a atitude da
mulher somente porque o rancor veemente e intenso dela
penetrava em sua consciência por pura eletricidade, limitou-
se a dar de ombros. Se tivesse analisado a situação com sua
inteligência, teria facilmente adivinhado a causa daquele
ódio absurdo. Mas Ernest jamais dispensava pensamentos a
especulações que nada tinham a ver com o terrível impulso
que o dominava.

Martin, com a simplicidade de uma criança, reagira com


tímida gratidão à afeição exuberante de Madame Bouchard.
Considerava-a a mais bondosa das mulheres. Até o dia em
que ocorreu algo inesperado. Nesse dia em particular,
Jacques estava com um resfriado de inverno e, ainda por
cima, a perna incomodava-o bastante. Madame Bouchard,
observando atentamente, percebeu que, naquele dia, até
mesmo Martin cansava e perturbava o torturado Jacques.
Mas, ao invés de sugerir gentilmente ao menino que fosse
embora e voltasse outro dia, quando o amigo estivesse
melhor, ela investiu contra o assustado Martin com a
selvageria de uma tigresa, enfiou-lhe os braços bruscamente
no casaco, murmurando palavras de indignação, enquanto o
abotoava. Os olhos ardentes tinham uma expressão tão
furiosa que Martin ficou paralisado de terror físico. Parecia-
lhe que o próprio ar em torno de Madame Bouchard estava
saturado com estranho odor animal, como o que é exalado
pelos animais selvagens quando estão enfurecidos e prestes
a destruírem. Ele voltou para casa. Por muitos dias, ficou
dividido entre seu anseio intenso de ver Jacques e o terror
ainda mais intenso de Madame Bouchard. Estava
absolutamente convencido de que ela iria aniquilá-lo, se
aparecesse novamente. Não tinha a menor ideia do que
precipitara aquela reação monstruosa de Madame Bouchard.
Foi só depois de Jacques ter enviado Raoul com convites
insistentes, que Martin voltou à casa dos Bouchards. E lá
chegou tremendo da cabeça aos pés. Mas Madame Bouchard
recebeu-o com júbilo e afeição, com censuras gentis por sua
negligência em visitar Jacques. Martin ficou aturdido de
espanto e quase se convenceu de que sonhara o episódio
naquela tarde escura de inverno. Contudo, nunca mais
tornou a confiar em Madame Bouchard, nunca mais se sentiu
inteiramente à vontade em sua presença. Passou a observá-la
permanentemente pelo canto dos olhos, sempre à espera de
uma explosão iminente. Assim, quando a primavera chegou e
Jacques podia ir encontrá-lo na margem do rio, Martin
sentiu-se profundamente satisfeito e aliviado.

E lá estavam os dois, sentados nas pedras, rindo


ternamente para a pequena Dorcas, a tropeçar de um lado
para outro, confortando-a quando caía e chorava, brincando
com ela como brincariam com um filhote de cachorro,
puxando hastes verdes de relva entre os dedos, conversando
de vez em quando, mergulhando em silêncios sonolentos e
impregnados de sol, contemplando o rio, suspirando,
bocejando, cantarolando. Não havia barreira de idade entre
os dois; naquele momento, estavam fora do tempo.

Jacques falou a Martin de Jean Jacques Rousseau. Para


Martin, magoado e mortificado pelo relacionamento com os
que lhe eram próximos, exigentes e impelidos pelo que
parecia ser uma força externa implacável, as filosofias
daquele francês gentil, meio doido e torturado por seus
ideais, eram tão simples como a água fresca que brota da
fonte, igualmente proporcionando vida. Ali estava o doce
fruto de uma mente simples, pura, sem qualquer exotismo,
crescendo numa árvore forte, as raízes se aprofundando pela
terra. Ele podia compreender aquele pensamento simples e
nobre, que, no entanto, era destituído de heroísmo, não-
agressivo, completamente distante, de forma paradoxal, por
sua própria natureza simples e animalismo inofensivo, da
essência da vida forte, vigorosa e vital. Martin não sabia que
se tratava de uma filosofia arcadiana e, portanto, desligada
da realidade, tão tímida e irreal que acabava adquirindo
características de absurdo. Era como um grupo de artistas se
fantasiando e dançando sob a lua cheia, numa floresta
cultivada. Martin era jovem demais para compreender isso.
Ele também era um peregrino, em fuga da realidade para a
irrealidade. Rousseau era como uma coluna de fogo suave no
deserto.

Tudo o que ele sabia era que aquela filosofia o confortava


e amparava, era uma voz que lhe falava de um jeito familiar,
numa terra estranha. Consolava-o pensar que havia pessoas
naquele mundo aterrador que não eram ambiciosas e
implacáveis, dominadoras, impelidas e impelindo,
gananciosas, vorazes. Era uma voz como a mão de Jacques,
gentil e firme, inocente e serena.

A educação religiosa de Martin fora indiferente. Assim,


ele escutava avidamente as histórias de Jacques sobre os
santos católicos. Eram também pessoas afastadas da
realidade pelo misticismo e devoção, pessoas que ele podia
compreender. Imprimiam-se em sua mente como as suaves
imagens de gesso em cima da lareira de Madame Bouchard,
adquirindo vida, em trajes rosados e dourados, fitando-o
com seus olhos enevoados e radiantes, amando-o com
sorrisos celestiais, tocando-o com mãos frias e que nada
exigiam. Martin amava todos os santos. Ouvia ansiosamente
as histórias de suas vidas, com lágrimas nos olhos, o coração
batendo depressa. Ele tinha a sensação de que estofava por
dentro, com uma emoção intensa e misteriosa, a tal ponto
que desejava imolar-se em algum altar heroico, num êxtase
de fé. O desejo possuía algo de sensual, próximo do êxtase
da cópula. Martin não estava preocupado com a essência da
fé dos santos; quase não pensava em Deus, exceto como o
foco para o qual corria a onda daquela catalepsia deliciosa.

Assim, Jacques Bouchard e Martin Barbour estavam


inteiramente distantes daquele novo mundo de calor e
ambição, expansão e poder, clamor e glória, esplendor e
vulgaridade, como se refugiados em algum vale enevoado da
lua. Aquela era a época dos McGuffey Readers, expandindo
as ferrovias, alargando as fronteiras, um tempo de riqueza e
prosperidade, ouro e indústria. Era um novo mundo que
estendia seus braços vigorosos; e se falava asperamente e
sem muito refinamento, pelo menos falava de maneira
convincente.

Novos vapores desfilavam incessantemente pelo Rio


Alleghenny, barcaças carregadas de trigo, máquinas e ferro.
A população de Windsor aumentava rapidamente e a ferrovia
estava agora prometendo um novo ramal até a primavera.
Falava-se que uma usina de aço de Pittsburgh estava prestes
a instalar uma fábrica em Windsor, por causa da
proximidade do carvão. Dez novas minas de carvão haviam
sido abertas recentemente. Estrangeiros de pele morena já
estavam aparecendo nas fábricas e minas, homens de rostos
compridos, olhos esquivos, com uma língua estranha. Não se
misturavam com os outros habitantes da cidade, mantendo-
se sempre apartados, como se fossem naturalmente
indiferentes e hostis, ou então muito assustados. Notou-se
que procuravam morar nas proximidades das fábricas e
minas, raramente se afastavam da área. Notou-se também
que as fábricas e minas trataram de abrir seus próprios
armazéns, em que os estrangeiros faziam todas as suas
compras, para irritação dos comerciantes locais. O
significado tenebroso disso ainda não penetrara na
consciência pública e tal não aconteceria por algum tempo.

Em Oldtown, a sociedade ia se tornando cada vez mais


fechada, esnobe, espojando-se no luxo. Mais e mais
carruagens apareciam nas ruas. Mais e mais camponesas e
até mesmo moças de Newtown entravam ‘no serviço’ em
casas aristocráticas, na parte da cidade que seria em breve
designada como “o outro lado dos trilhos”.

O próprio ar estava impregnado de desenvolvimento,


excitamento e exuberância. Mas Jacques e Martin
permaneciam alheios a tudo isso. O rio cintilante, as rochas
esquentadas pelo sol, Dorcas, as lareiras, Rousseau, dias
sonolentos e repletos de sonhos, sorrisos, suspiros... essa
era a vida deles e não conheciam nem se importavam com
mais nada.

E menos do que todas as outras coisas, não se


importavam com a fábrica de armas e munições Barbour &
Bouchard, embora fosse a responsável pelos destinos deles e
pelos destinos dos filhos de Martin.
CAPÍTULO VIII
A oficina era uma construção de madeira, sem pintura,
mal construída, cheia de goteiras, em situação precária,
empoleirada numa encosta íngreme de lama, perto da
margem do rio. As tábuas que constituíam a construção eram
ásperas, acinzentadas, rachando em diversos pontos, dando
a impressão de que a qualquer momento podiam
desmoronar. Consistia de uma grande sala para montagem,
polimento e acabamento de pistolas e espingardas, uma sala
menor repleta de garrafas, vidros, vasos de barro e barris,
onde Joseph Barbour experimentava, fabricava e aprontava a
pólvora para ser embarcada. Ernest escrevia num papel
branco que aquela era a Pólvora por Excelência, fabricada
por Barbour & Bouchard, Fabricantes de Explosivos e Armas
de Fogo, Windsor, E.U.A. (Pólvora garantida para resistir a
um índice de umidade considerável — quase sem fumaça,
não causa danos ao artilheiro — a Melhor Pólvora do Mundo,
sem Rival.) Outra sala continha o motor a vapor que
bombeava água e acionava um pequeno torno na sala de
montagem. A usina de aço e ferro de The Sessions Company,
em Windsor, abastecia Barbour & Bouchard com os moldes
toscos das armas. Antes da chegada de Joseph, George
Barbour comprava os moldes de um concorrente mais barato
da Sessions, a Moffatt. Mas Joseph, depois de examinar
desdenhosamente o produto, ressaltando a qualidade
inferior, a irregularidade e negligência na fabricação,
insistira em trabalhar com a Sessions. George protestara
veementemente, pois Joseph admitira que não tencionava
cobrar mais caro pelas armas feitas de aço superior, pelo
menos por algum tempo, até que pudessem contar com um
bom mercado. Joseph alegara que era prejudicial à reputação
fabricar pistolas e espingardas que podiam explodir nas
mãos do atirador, pondo em perigo seus dedos e até mesmo
sua vida, por causa de um aço frágil nas câmaras de ar, fino
como papel em alguns pontos. E quem se importa com a
reputação?, bradara George, que queria apenas ganhar dez
mil libras. Não davam conta da demanda de armas, com
metade do país indo para oeste e enfrentando os índios, sem
falar nas armas de caça para os estados sulistas. Joseph era
um idiota em passar as noites em claro, preocupado com a
possibilidade das armas que fabricavam explodir nas mãos
de algum maldito ianque, índio ou negro. Tudo o que
importava era o dinheiro que estavam ganhando.

Mas Joseph, com sua imaginação já fixada num futuro


promissor, naquela terra que passara a amar, mostrou-se
intransigentemente firme. Sabia que George não estava
absolutamente interessado em mercados permanentes e
expansão dos negócios e odiava-o por isso. Tivera muitas
conversas com Ernest e não eram poucos os seus
argumentos e resoluções que derivavam do filho. Foi Ernest
quem proporcionou o argumento final e astucioso que
demoveu George de sua posição, depois de muitas
imprecações e protestos. Melhores armas, assim como uma
pólvora melhor, disse Joseph, podiam não proporcionar
lucros imediatos, mas desenvolviam um monopólio, pois os
fabricantes menores acabavam sendo forçados a deixar o
mercado. E, a partir do momento em que monopolizassem o
setor, poderiam cobrar os preços que desejassem. Mais dois
anos e suas fortunas estariam feitas, garantiu Joseph. E,
quando disse isso, olhou para o irmão com expressão
curiosa, espantada, quase assustada. Era como se lembrasse
de alguma coisa que fora outrora dita por outro e que, na
ocasião, prontamente repudiara, descobrindo depois que
fora inconscientemente influenciado, em tudo o que fazia e
dizia.

George sorriu, relutante, embora exultasse com a


perspectiva de controlar o mercado e cobrar preços
fabulosos. E acabou concordando. Ele descobriu que Armand
estava totalmente do lado de Joseph e seu ódio contra os
dois aumentou ainda mais. Mas prometeu a si mesmo, com
alegria sombria, que ainda chegaria o dia de sua vingança.
Enquanto isso, usaria o cérebro e os músculos. Afinal, idiotas
como aqueles dois nasciam para serem enganados por
homens espertos como ele próprio.

Dois anos depois, as armas de fogo com a insígnia B & B


haviam adquirido reputação nacional. Possuir uma B & B
indicava um cavalheiro de discernimento e riqueza, um
conhecedor, um oficial ou um competente desbravador das
fronteiras. As encomendas chegavam de armazéns-gerais de
todo o país, até mesmo de grandes lojas de Nova York,
Chicago, Nova Orleans, Pittsburgh e Richmond. George
exultava, mas continuava apreensivo. Joseph e Ernest, agora
com o apoio de Armand, continuavam pensando em
contratos do exército, embora achassem que ainda estavam
despreparados para solicitá-los, em concorrência com as
firmas grandes e tradicionais do estado de Nova York.
Barbour & Bouchard, embora prosperando, ainda era uma
firma relativamente nova, com um saldo bancário ainda
insuficiente, em situação ainda precária para correr o risco
de aniquilação pelos grupos mais poderosos. Ainda não,
ainda não, eles se diziam, os olhos faiscando de
excitamento. Mas muito em breve, acrescentava Ernest.
Joseph e Armand achavam melhor ficar de boca fechada,
numa suave indulgência, diante da profecia do rapaz. Mas,
estranhamente, essa indulgência parecia imatura e infantil
diante daquele garoto de 17 anos, de lábios firmes, uma
determinação quase fanática a lhe brilhar nos olhos,
dominado pela compulsão do poder. À medida que o tempo
passava, Joseph respeitava cada vez mais a opinião,
inteligência e maturidade do filho. Armand, que possuía o
respeito francês pela inteligência, qualquer que seja a forma
e a idade com que se apresente, há muito que já chegara à
conclusão de que não se passaria muito tempo para que
Ernest assumisse o controle total da firma. Seria uma
loucura, concluíra ele, resignado, e com uma admiração
quase incrédula, opor-se a tanta astúcia, percepção, domínio
e força. Ele adivinhou, ao contrário de todos os outros, que o
sutil, inteligente e imaginativo Joseph estava se
transformando em verdadeira marionete, manobrada pelos
cordões invisíveis do silencioso Ernest. Ele usava o pai como
se poderia usar um instrumento complexo e versátil ou um
escravo brilhante. Somente Armand sabia que quase todas as
sugestões e ideias astuciosas e invencíveis de Joseph
emanavam de Ernest, que, apesar disso, era esperto o
bastante para se manter em segundo plano e bancar o filho
devotado.

Armand não invejava Joseph Barbour pelo filho que tinha.


Era lúcido demais para isso. Apesar da mediocridade
sorridente e indolente de Raoul e da obstinação soturna e
ambição menor de Eugene, ele agradecia a Deus por Ernest
não ser seu filho. Seria como guardar em casa a tempestade
e a inundação, ele disse à mulher.

Ele estava satisfeito. Raoul e Eugene trabalhavam na


pequena fábrica, Raoul de maneira indulgente e negligente,
como se achasse que tudo aquilo era apenas divertido,
enquanto Eugene exibia uma engenhosidade lenta, mas
religiosamente tenaz, seguindo o seu modelo idolatrado,
Ernest. Era verdade que Jacques jamais seria capaz de fazer
outra coisa que não polir uma arma, mas isso não tinha
qualquer importância, em comparação com seu rosto bonito
à mesa e ao lado do fogo. Era como ter um santo em casa,
diante do qual o tumulto da família saudável se aquietava
em paz e harmonia. Até mesmo o indiferente Raoul era gentil
com Jacques. Eugene, esquecendo a arrogância com que
tentava imitar a força silenciosa de Ernest, tornava-se
ansioso e humilde diante do irmão mais moço.
A American Railroad Company estendeu um ramal até
Windsor, ligando a cidade com Pittsburgh e daí com Nova
York. No mesmo mês, a firma Barbour & Bouchard mudou-se
para um prédio pequeno de tijolos vermelhos, construído
recentemente, a cerca de 500 metros da locação original. A
firma comprara o prédio por uma quantia razoável, assim
como toda a terra entre a margem do rio e a Shipton Road.
Por baixo, podia-se calcular que a área tinha 200 acres. Isso
onerou a firma Barbour & Bouchard com uma dívida de 15
mil e 500 dólares, o que provocou espanto em centenas de
pessoas em Windsor e profecias complacentes de falência
iminente. A esta altura, a cidade estava tomando
conhecimento da existência dos Barbours e Bouchards,
encarando-os com olhos espantados e especulativos. Era
como se um cogumelo grande tivesse se transformado numa
árvore gigantesca, da noite para o dia. Os habitantes da
cidade estavam antes absorvidos demais em seus próprios
planos e problemas para dedicarem qualquer atenção à
pequena companhia. Mas, agora, não podiam deixar de fazê-
lo.

Durante dois anos, Ernest Barbour acalentara em silêncio


um projeto, que fora crescendo em sua mente,
transformando-se num plano ousado e brilhante. Ou melhor,
em dois planos. E agora ele tratou de pô-los em execução,
ousadamente, irresistivelmente, como sempre fazia tudo.
CAPÍTULO IX
A Sessions Steel Company considerava-se uma empresa
antiga e histórica, pois fora fundada logo depois da
Revolução. Fora conhecida originalmente como The Sessions
Ironworks. A família Sessions jamais tivera membros entre o
proletariado e sempre mantivera um ódio intenso e
justificável contra a horda anônima que surgia como
gafanhoto, para devorar a colheita plantada pelos
competentes. A família, originalmente prolífica, acabara se
reduzindo a dois irmãos, Nicholas Sessions, o senador, e
Gregory Sessions, presidente da companhia. A irmã falecida,
Amy, casara com um idiota e perdulário e fora assim
excluída do testamento do pai. Ela deixara uma filha, sem
dinheiro, que presidia a mansão dos Sessions em Windsor.

A Sessions Steel Company perdera boa parte de sua antiga


popularidade entre os grandes fabricantes, que agora
preferiam a quantidade ao invés da qualidade. Mas as
empresas que haviam herdado um respeito pela integridade,
diligência e qualidade e que se orgulhavam de produzir
apenas o melhor, continuavam a ser os melhores e mais fiéis
clientes da Sessions. A América já estava pensando em
números vastos. Como sempre, a qualidade tombava,
derrotada, diante do deus febril da produção. Gregory
Sessions convencera a si mesmo que não tinha anseios de
grande riqueza nem ambições imperiais e que o rendimento
firme e considerável que ele e o irmão obtinham com a
companhia era mais do que suficiente para manterem sua
posição de cavalheiros. Ele dizia que era suficiente que a
marca da Sessions Steel fosse um símbolo de integridade e
honra e que os melhores fabricantes, embora comprando em
pequenas quantidades, não compravam de mais ninguém.
Gregory Sessions, elegante, cético, esguio, sorridente e
indolente era o último a desconfiar de sua amargura furiosa,
de sua ânsia de poder e riqueza. Até para si mesmo,
apresentava-se como um homem ligeiramente entediado com
os negócios, suportando-os apenas por causa dos
rendimentos necessários, ansiando em voltar à Inglaterra de
seu avô, uma terra de cavalheiros e lazer, de serenidade e
cultura. Mas sem que ele próprio soubesse, possuía um amor
intenso pela América. E porque se ressentia dos que haviam
chegado com ódio e ganância à nova terra, frequentemente
se expressava com um tédio desdenhoso, divertido e
cansado, quando falava de seu país. Dizia que detestava
cifras, calor, fornalhas, ferro, suor, braços sujos e costas
nuas. Contudo, secretamente, sentia orgulho de tudo isso,
não permitia que saísse de sua fábrica uma única peça de
aço que não correspondesse às especificações. Dizia a todos
que era apenas uma questão de orgulho pessoal, pois não se
importava absolutamente com a Sessions Steel Company. De
jeito nenhum! Desejava até se livrar de tudo aquilo. Estava
apenas esperando por um comprador que lhe oferecesse um
bom preço. Venderia imediatamente e iria para Inglaterra,
onde os verdadeiros cavalheiros não se dedicavam a
negócios. Contudo, uma pequena encomenda de aço que não
apresentasse a qualidade habitual era suficiente para
provocar-lhe angústia e raiva por semanas a fio. Era uma
agonia, ele dizia frequentemente à sobrinha, deixar aquela
casa aconchegante, confortável e espaçosa pela manhã,
trocando-a pelo seu pequeno escritório, sujo e bolorento.
Contudo, ele não podia sinceramente conceber uma vida sem
o escritório. Conhecia as cifras nos livros, conhecia todos os
motores, conhecia cada equipamento e cada fornalha como
nenhum dos seus operários. Desprezava os empregados, mas
pagava-lhes extraordinariamente bem.

Não se deve pensar que ele era um tolo e que gostava de


posar. Na verdade, era um homem astuto, esperto, cauteloso,
cético, um cavalheiro de inteligência e elegância. Estudara na
Inglaterra, França e Alemanha. Não tinha afetações, apenas
procurava se iludir, como uma autodefesa, pois estava
convencido de que ele e o irmão, por ignorância ou
indolência, podiam destruir algo que considerava
importante, meritório e digno. Assim, dizia a si mesmo que
não era um homem de negócios, embora na verdade fosse
surpreendentemente bom no ramo. Era graças a seus
esforços, subconscientes e poderosos, que The Sessions
Steel Company mantinha a reputação, em meio à confusão
crescente de produtos inferiores, fabricados às pressas,
visando apenas à quantidade. Sua única carência era a do
conhecimento da propaganda. Não fazia o menor esforço de
promoção. Acreditava que os bons produtos constituíam a
sua própria propaganda. Embora isso fosse verdade numa
sociedade homogênea e estável, em que as reputações se
gravam na rocha da memória e são transmitidas de pai para
filho, não é o que acontece numa sociedade em constante
fluxo, um movimento irrequieto, partindo rapidamente de
um ponto para outro e esquecendo prontamente o que ficava
para trás. Não sabia que a América estava ingressando numa
nova ordem, onde até o ouro tinha de ser divulgado e o
‘pregoeiro’ de circo estava prestes a ser sublimado como
redator de propaganda. Ouvia o ritmo cada vez mais
vigoroso da nova e gigantesca América e fingia desprezá-la e
depreciá-la. Parecia-lhe uma ameaça contra tudo o que
honrava e respeitava: integridade, a dignidade de uma vida
decente, paz, lazer, música, boa companhia, casas sólidas e
estadistas honrados, paz de espírito e até mesmo luxo.
Odiava a intensidade e desconfiava que só levava à
vulgaridade e pressa, corrupção e voracidade, políticos que
eram charlatões e salteadores. O novo sangue que estava se
despejando na América continha um vírus que mudaria
todas as suas características, transformaria a sua própria
alma. E assim se punha contra, sorrindo debilmente,
indolente, aparentemente indiferente, mas cheio de ódio.
Contudo, alguma coisa nele, algo primitivamente voraz e
ambicioso, ansiava em se envolver nesse tumulto
desenfreado, ser parte dele, subjugá-lo. Detestava ver os
tolos se apoderando de todos os prêmios, detestava a
própria inércia.

Tinha mais do que uma suspeita de que o irmão,


Nicholas, era um dos políticos que participavam da nova
intensidade, negligência e ganância, um dos que
desprezavam a tradição e estavam destruindo todas as
instituições antigas. Desconfiava, com muito mais base, que
Nicholas era um charlatão, um salteador, um político que
não pairava acima do suborno, corrupção e falta de
escrúpulos. Nicholas era alto, como todos os homens da
família Sessions. Mas enquanto Gregory era esguio e
elegante, ele era corpulento e impressivo. Tinha a
personalidade de um verdadeiro político, expansivo, astuto,
cordial, exuberante e democrático, o tipo que apertava a mão
de todo mundo, em que os elementos mais diferentes
podiam se dissolver sem uma explosão, misturando-se com a
facilidade de essências delicadas. Era mais astucioso do que
inteligente, ganancioso e insaciável, cruel e algumas vezes
rancoroso, oportunista e alerta. Estava acumulando vasta
fortuna pessoal sem a ajuda de The Sessions Steel Company,
que particularmente considerava um ‘negócio miserável’,
que não valia grande coisa. Não obstante, usava a companhia
como um tema favorável em seus discursos, pois podia
chamar a atenção para os bons salários que pagava aos
operários (sempre algo importante quando falava a
operários) e para a tradição aristocrática da firma, jamais
cedendo à vulgaridade e ganância, quando falava para
aristocratas apreensivos, que temiam o futuro. Achava
Gregory um idiota antiquado e incompreensível, mas usava-o
habilmente em Washington, pois sabia que o irmão era uma
presença impressiva numa reunião social, com sua elegância,
charme, cultura e desenvoltura. Havia tories (membros do partido
de tendência conservadora do Reino Unido, que reunia a aristocracia britânica)

obstinados em Washington, que ainda mantinham grande


poder, e que inevitavelmente sucumbiam ao charme de
Gregory, às suas tradições aristocráticas. Ele, Nicholas,
herdara de algum ancestral obscuro uma certa rudeza de
presença, fala e modos, uma franqueza brutal (que, no
entanto, nada tinha a ver com honestidade), elementos que
representavam uma afronta para os delicados tories. Usava
Gregory para apaziguar esses tories e exultava com seu
sucesso. Gregory lhe abria portas que, de outra maneira,
permaneceriam inexoravelmente fechadas.

Os irmãos eram solteiros, Nicholas insinuando um


romance frustrado na juventude (quando falava para
eleitores sentimentais), Gregory sem qualquer explicação.
Embora ninguém desconfiasse, eles tinham uma coisa muito
forte em comum: uma sede de dinheiro e poder. Nicholas
reconhecia esse anseio e fazia tudo o que lhe era possível
para satisfazê-lo, mas Gregory se recusava a admiti-lo.

O pai deles construíra uma casa de pedra espetacular,


com colunas quadradas, no alto de uma elevação. Embora
não ficasse perto do rio, proporcionava uma vista ampla do
mesmo, por causa de sua altura. Possuía jardins e árvores
gigantescas, estábulo e cavalos, cachorros em profusão,
empregados, criadas, cozinheiras, jardineiros. Haviam sido
acrescentadas alas sempre que se podia construí-las sem
necessidade de derrubar árvores. Assim, a casa tinha um
formato um tanto estranho, sem qualquer paralelo na
geometria. O segundo andar dos aposentos dos criados, por
exemplo, dava diretamente para o primeiro andar dos
aposentos da família, porque os aposentos originais tiveram
de ser construídos num nível mais baixo do terreno e fora
aumentado num ângulo reto, por causa da proximidade das
árvores. A hera cobria as paredes cinzentas no verão, de
maneira impressiva. As árvores se entrelaçavam por cima e
em torno da casa, envolvendo-a numa obscuridade verde,
cortada por raios de sol. Era uma casa construída para
muitas crianças, muitas festas e muita alegria, com enormes
lareiras, aposentos amplos, janelas imensas. Os jardins
podiam ser antiquados, mas eram realmente bonitos em seu
informalismo.

Gregory não precisava de uma casa tão grande e tamanho


séquito de criados, pois Nicholas raramente aparecia por lá,
Gregory tinha apenas um círculo pequeno e seleto de amigos
em Windsor, já que era intransigentemente exclusivo e
feudal. Contudo, não fechava um único aposento da vasta
casa, não dispensava uma única pessoa da horda de criados.
Seu orgulho vivia em cada aposento, passeava em cada salão.
Não podia reduzi-lo nem mesmo um cubículo. A manutenção
de uma casa assim saía caríssima. Nicholas concordava com
o irmão em manter a casa toda aberta e em pleno
funcionamento. Era uma das poucas coisas em que
concordavam. É que no verão ele gostava de levar para lá
seus amigos tories de Washington, a fim de impressioná-los
com a ordem e a vastidão, a dignidade, tradição e excelência
que eles idolatraram. Levava também seus colegas
democratas mais rudes, a fim de impressioná-los com sua
democracia, hospitalidade, ‘simplicidade à mesa e vida
rural’. (Sem qualquer afetação, cavalheiros, sem qualquer
afetação!) Quando um de seus amigos mais íntimos
profetizava jocosamente que a casa seria um dia conhecida
como uma segunda Casa Branca, Nicholas protestava, mas
secretamente ficava exultante.

Gregory desprezava Nicholas e Nicholas detestava


Gregory. Contudo, os irmãos eram invariavelmente polidos e
atenciosos um com o outro, respeitando-se as intimidades de
pensamentos e vida, escutando respeitosamente as opiniões
que o outro apresentava. Se discutiam, era sempre friamente,
sem qualquer aspereza. Mantinham uma tradição de
harmonia e dignidade fraternais, ajudavam-se mutuamente,
eram honestos um com o outro. Se necessário, morreriam
um pelo outro. É que nas coisas fundamentais tinham muito
em comum, como a ganância, desilusão, ironia e ódio pelos
inferiores.

Foi para essa família que Ernest Barbour virou seu rosto
de 19 anos, numa bela manhã. Foi como se virar para o
destino, mas somente Ernest tinha consciência disso, embora
vagamente.

George Barbour fizera pessoalmente todas as negociações


com The Sessions Steel Company e mesmo assim através de
um assistente de Gregory, um certo John Baldwin, um
obstinado e inflexível Homem Fiel. George sentia-se
intimidado diante dos Sessions, por ser a família feudal de
Windsor. É que George tinha a reverência tradicional inglesa
pela ‘aristocracia’ e posição. A fama da família, o fato de que
Nicholas era senador e já fora prefeito da cidade, a riqueza
atribuída, o isolamento e orgulho, eram conversa comum em
Windsor. O que os Sessions faziam era história, assunto para
conversas excitadas, mesmo que fosse apenas a compra de
uma nova carruagem, a morte ou contratação de um criado.
Certa ocasião, esperando humildemente na antessala do
gabinete de administração da companhia, George fora
informado por John Baldwin que Gregory era esperado a
qualquer momento. Dominado pelo pânico, George se
levantara prontamente e fugira. Posteriormente, chegara a
ver o grande homem, que lhe acenara com a cabeça,
distraidamente. Esse simples aceno fora ampliado por
George para uma conversa amável, um incontestável
interesse, até mesmo um pouco de lisonja. Somente sua
mulher, Daisy, acreditara nessa história. Por muitos meses
depois, ela ainda contava às amigas que Gregory fizera um
convite para que George e a família fossem visitar a casa dos
Sessions.
Umas poucas vezes, Joseph Barbour se oferecera para ir à
usina Sessions no lugar de George. Mas o irmão se mostrara
tão horrorizado com a ideia, que ele acabara desistindo de
falar no assunto. Se ele tivesse proposto uma visita ao Rei da
Inglaterra, George não julgaria menos blasfemo.

Mas Ernest Barbour estava determinado naquele dia a


visitar a usina Sessions.

Um jovem inferior teria se preparado meticulosamente,


usando o seu melhor casaco castanho-claro, um colete de
cetim discretamente florido, calça clara bem justa e botinas
de verniz. Teria escolhido uma bengala meticulosamente e
escovado o chapéu dos domingos. Mas Ernest, sempre
astuto, sabia que essa não era a melhor tática. Ele foi à usina
Sessions em seu casaco escuro simples, calça escura decente
e botinas comuns. Apresentou-se em sua simplicidade e
respeitabilidade, com toda dignidade e orgulho. Joseph
possuía agora uma pequena charrete e uma vigorosa égua
castanha. Mas nem isso Ernest usou. Entrou no escritório
escuro e sujo com um ar ao mesmo tempo austero e calmo,
de tal forma que John Baldwin involuntariamente se
levantou.

Fitando-o nos olhos, Ernest disse:

— Sou Ernest Barbour, de Barbour & Bouchard. Gostaria


de falar com o Sr. Gregory Sessions.

John Baldwin, como disse depois, ficou ‘aparvalhado’. O


jovem petulante, disse ele. E, no entanto, acrescentou, era
um adjetivo que certamente não condizia com o jovem
Barbour. Ele não era petulante, simplesmente enunciara seu
nome como alguém a dizer: Sou Bonaparte. Seu pedido
também não era petulante, pois parecia perfeitamente
apropriado e natural que, como tal, solicitasse uma
audiência a reis. Era verdade que tinha feições um tanto
rudes, que não chegavam a ser refinadas. Sua voz era
também por demais autocrática e áspera para um cavalheiro
nato. Mas sua atitude superava tudo isso, por um momento
subjugou até mesmo a John Baldwin. Pelo menos esse
cavalheiro, sem qualquer outra pergunta e para seu próprio
espanto, descobriu-se anunciando Ernest Barbour. Gregory
disse que o receberia dali a pouco. Assim, John, ainda sob a
compulsão da vontade de Ernest, convidou o rapaz a sentar,
até que Gregory pudesse recebê-lo.

Ernest sentou-se e correu os olhos pela sala, com perfeito


controle. A sala era escura, sem qualquer arejamento,
recendia a papéis velhos, poeira, camundongos e carvão.
John Baldwin sentava a uma mesa escalavrada perto das
janelas, que ardia com a glória dourada do sol. Através do
vidro, Ernest podia ver a encosta que descia até o rio, o
faiscar da água, o cais de madeira que corria ao seu
encontro. Uma barcaça estava atracada e diversos homens
rapidamente carregavam lingotes e outras peças de metal.
Um penacho preguiçoso de fumaça saía da chaminé. Não
havia qualquer folhagem naquela área devastada. Na margem
oposta, no entanto, o outono se incendiava em árvores
vermelhas, castanhas e douradas. Ernest não podia avistar a
fábrica através daquelas janelas, pois ficava ao lado e por
trás do escritório. Mas podia sentir e ouvir a vibração baixa e
incessante, as vozes dos homens trabalhando.

A vista através das janelas era repousante e serena,


apesar da atividade dos homens minúsculos no atracadouro.
O céu era de um azul-escuro deslumbrante, como costumava
acontecer nos dias frios de outubro, as nuvens estavam
extraordinariamente puras, brancas e próximas. O rio
possuía o mesmo azul deslumbrante do céu, transportando
barcaças vagarosas e outras pequenas embarcações. Mas não
havia descanso em Ernest Barbour, apenas o repouso
temporário de quem faz uma pausa eventual, sombriamente,
a fim de acertar seus planos e acumular forças. Ele era muito
observador e inteligente para deixar de perceber a beleza do
rio, do céu e das árvores de outono. Mas tal percepção não
lhe trouxe qualquer emoção. Apreciava-a com a mente e por
isso não se sentia comovido ou perturbado. Estava mais
interessado em cada detalhe da sala e muito mais em John
Baldwin.

Estudou o homem cuidadosa e meticulosamente. John era


esguio e murcho, moreno, vigoroso, nervosamente alerta. As
faces escuras eram encovadas, a testa saliente, os olhos
pequenos e brilhantes estavam afundados, sendo irrequietos
como os de um macaco, os lábios eram contraídos e lívidos,
o nariz constituía uma verdadeira proa. Possuía um crânio
extraordinariamente grande, escuro e calvo, contornado por
cabelos grisalhos. O efeito desse crânio e do rosto
encarquilhado, sagaz e implacável por baixo era o de uma
múmia que adquirira vida. Ele tinha apenas 45 anos, mas
dava a impressão de ser atemporal. Irradiava um ar de
devoção implacável, de uma integridade que não era
destituída de malícia e astúcia. Não podia haver qualquer
dúvida sobre sua inteligência, que transparecia em cada
detalhe do rosto pálido, manifestava-se na testa imensa. Um
solteirão como o patrão, dedicara-lhe a vida, não
conscientemente, mas porque homens assim se apegam
ávida e inexoravelmente à primeira coisa que encontram na
juventude. Já não era mais jovem, mas continuava a se
apegar e trabalhar como ninguém jamais o fizera para a
Sessions Company. Conhecia o negócio muito melhor do que
Nicholas Sessions e apenas um pouco menos do que
Gregory. Não havia horas que parecessem intermináveis, não
havia dias que fossem por demais cansativos, não havia
doença que o incapacitasse, não havia motivo para que
arrefecesse em sua devoção. Havia menos lealdade em sua
devoção do que egotismo.
Não olhava pela janela com uma atenção intensa e
percepção despertada. Se olhava, era com o rosto franzido,
irritado pela indolência que atribuía aos operários. Por uma
ou duas vezes, enquanto Ernest esperava, John Baldwin
murmurou impacientemente para si mesmo, mudou a
posição das pernas compridas e finas. O sol ardia sobre o
seu crânio, deixando-o amarelado. E, de repente, John
levantou os olhos, alerta, para descobrir que Ernest
observava-o. Teve a súbita impressão de que o rapaz
observava-o atentamente há algum tempo. Ficou aborrecido,
como se tivesse sido surpreendido parcialmente despido.

John Baldwin gabava-se frequentemente de que não havia


qualquer rosto que não pudesse interpretar. Mas não foi
capaz de interpretar aquele rosto rígido e controlado.
Parecia-lhe não haver qualquer expressão naqueles olhos
absortos, além de um interesse indiferente. Era como olhar
para o rosto de uma estátua. John disse depois que isso
provocou-lhe um ‘sobressalto’. Seu antagonismo despertou,
para se desvanecer no instante seguinte,
surpreendentemente. Para seu espanto, sentiu um repentino
impulso de interesse pelo rapaz, um súbito respeito. No final
das contas, era apenas um garoto imberbe. Mas, por algum
motivo, John não ficou convencido por seu próprio
pensamento. Ele passou a língua pelos lábios e disse:

— Está fazendo um lindo dia.

— Está, sim — respondeu Ernest. — Mas esfriando um


pouco.

— Você não é inglês?

— Sou, sim. — Ernest sorriu. — Alguma objeção a isso?

A boca ressequida de John se contraiu.


— Não. Meu avô era inglês. Veio diretamente da velha
terra. Baldwin é um nome inglês. Mas o pessoal por aqui não
gosta muito dos ingleses. E não se pode culpá-los por isso.
Os ingleses jamais fizeram coisa alguma para desenvolver
este país e agora aparecem para desfrutar de suas riquezas.

Se Ernest sentiu-se ofendido, não deixou transparecer.


Limitou-se a escutar com aquele interesse meio indiferente,
que tanto desconcertava John Baldwin.

— Ainda há muito o que fazer para desenvolver este país


— disse ele, depois de uma longa pausa. — E não se deve
esquecer que os ingleses já estavam aqui antes da Revolução
de vocês, que os ingleses fizeram a sua Constituição e que as
leis, moral e religião inglesas regem o país. — Ernest sorriu
outra vez, friamente, antes de acrescentar: — na verdade,
este é um país inglês, de língua inglesa e tudo o mais.
Deveriam sentir-se muito gratos, se apenas ingleses viessem
para cá no futuro.

John coçou o queixo, aturdido. E, depois de um momento,


exclamou, impressionado:

— Mas claro que você tem razão! Já estamos recebendo


muita gente esquisita da Europa. Mas a Sessions jamais
empregará essa gente. A América para os americanos. O Sr.
Gregory diz que esses estrangeiros constituem uma ameaça
ao país, que farão com que pareçam a Roma antiga, com
inimigos dentro de suas muralhas. O que você acha?

Ernest franziu o rosto ligeiramente. Não gostava de


qualquer conversa ociosa que não versasse sobre os seus
objetivos imediatos. A boca se entreabriu com impaciência.
Mesmo assim ele respondeu com toda cortesia:

— Não tenho certeza. Este país precisa crescer. Nenhum


de nós é capaz de perceber, por enquanto, todas as suas
possibilidades. Pense nas fronteiras a oeste. Algum dia vão
desaparecer e teremos uma única nação, ativa e
movimentada, de costa a costa. Mas não se pode ocupar todo
esse espaço com o punhado de descendentes de britânicos
que existem aqui, mesmo que cada família tivesse dez filhos.
Talvez fosse possível, em mil anos. Mas há alguma coisa no
ar deste país que não permite esperar tanto tempo. É um
clima que apressa as pessoas, faz o sangue ferver. Assim, é
necessário aceitar imigrantes, a fim de ajudarem. Há muito
trabalho para se fazer aqui, que os antigos colonos em breve
estarão muito orgulhosos para realizarem. Terão de chamar
os imigrantes, não importa de onde venham. E haverá
necessidade de milhares de imigrantes, centenas de
milhares. Para colher a água, derrubar as florestas e encher
as fábricas. E as cidades.

John sacudiu a cabeça com uma expressão pesarosa.

— Será um triste dia para a América.

Ernest tornou a sorrir. E demorou algum tempo para


responder:

— Trabalho barato. Será assim que nos tomaremos ricos.

— Hã... murmurou John, pensativo, sem desviar os olhos


dele.

Ernest mantinha o chapéu nos joelhos, muito


empertigado. Contemplava a cena através das janelas tão
atentamente que John ficou ao mesmo tempo irritado e
desconcertado. Não era um homem loquaz por natureza e
sentia a maior indiferença pelos problemas das outras
pessoas. Mas alguma coisa na atitude de Ernest espicaçava-o,
levava-o a falar.
— Então você é o filho de Joe Barbour. Nunca o encontrei
pessoalmente, mas tenho ouvido falar muito dele, por
intermédio de seu tio, George Barbour.

Os olhos de Ernest hesitaram pela primeira vez. John


Baldwin percebeu e ficou um pouco exultante, embora não
tivesse a menor ideia do que provocara a mudança na
expressão de Ernest.

— Vocês têm uma oficina muito boa, conforme diz o Sr.


Gregory. E sempre compram nosso aço. Mas todo mundo que
deseja uma reputação sempre compra nosso aço. Por que
nunca esteve aqui antes?

— Porque nunca houve necessidade — respondeu Ernest


bruscamente, o rosto ficando ligeiramente corado.

— Quer dizer então que agora há necessidade?

Ernest não respondeu. Estudara Baldwin e não o


subestimava. Podia compreendê-lo perfeitamente. Estava
contrariado por perder tempo antipatizando com ele
inutilmente.

A porta da outra sala se abriu e Gregory Sessions disse:

— Mande o rapaz entrar, John.

Ernest levantou-se, sem qualquer precipitação, mas ao


mesmo tempo com rapidez. E sem olhar para Baldwin,
entrou na outra sala.

Gregory, sentado indolentemente à sua mesa de mogno


muito larga, os cotovelos apoiados em cima, ficou um pouco
surpreso ao ver Ernest. Inclinou a cabeça comprida e fina,
sem sorrir. Tudo nele, pensou Ernest, é fino, comprido e
elegante, dos cabelos que desciam delicadamente até o
colarinho e eram ligeiramente ondulados, com alguns fios
brancos, ao rosto encovado e pálido, passando pelos olhos
estreitos e alertas, lábios contraídos, dedos esguios, botinas
brilhantes e pontudas. Vestia um traje preto lustroso, camisa
branca pregueada, gravata elegantemente dobrada e
amarrada. Mas o que Ernest mais percebeu foi que o rosto,
mesmo quando sério, exibia linhas irônicas e divertidas, ao
mesmo tempo cruéis. Os olhos, de um azul intenso, eram
desconfiados e frios.

Enquanto avançava pela sala, na direção da mesa e de


uma cadeira vazia à espera, Ernest sentiu-se imensamente
aliviado. Era como se tivesse receado alguma coisa e
descobrisse agora que tal não existia, podendo respirar mais
facilmente e com esperança. Numa questão de poucos
segundos, abrangera não apenas Gregory Sessions, seu
caráter e possibilidades, mas também o aconchego da sala, o
seu clima de segurança. Sabia que o tapete sob seus pés,
empoeirado, mas elegante, era bastante usado, que não era
substituído não por falta de dinheiro, mas sim por
indiferença. Além do mais, era o primeiro escritório
atapetado que conhecia e anotou o fato, em sua mente
mecânica, como uma inovação das mais agradáveis. Ele
sentou-se na cadeira diante de Gregory Sessions e
cuidadosamente pôs o chapéu em cima da mesa. Os dois
homens, um quase velho, o outro quase jovem demais,
fitaram-se solenemente.

— Sr. Ernest Barbour, não é mesmo? — perguntou


Gregory, finalmente.

Ele falou com uma cortesia antiquada e requintada, que


até mesmo Ernest, o exigente, achou agradável. Podia
apreciar aquele desperdício de palavras desnecessárias
porque sabia que Gregory procurava apenas ganhar tempo.
— Isso mesmo, sou Ernest Barbour — respondeu ele
calmamente, fitando Gregory com seus olhos claros e firmes.

Gregory empurrou para a frente, indolentemente, uma


caixa de marfim esculpida, estreita e comprida, dizendo, em
tom de indiferença:

— Aceita um dos meus charutos da Virgínia?

— Não, obrigado. Não fumo.

Ernest modulou sua resposta em voz um tanto alta e


áspera, para corresponder ao tom que o fascinava. Olhou
ansioso para Gregory, enquanto este acendia o charuto.

— Sr. Sessions, não gosto de desperdiçar palavras. Estou


aqui para lhe pedir um favor.

Gregory alteou uma sobrancelha polidamente, mas com


ironia. Isso não o surpreendia, ele parecia estar pensando.
Mesmo assim, observou Ernest através da fumaça, com um
interesse cortês. E disse, gentilmente:

— A Sessions Steel Company está sempre a seu serviço.


Barbour & Bouchard, não é mesmo? Uma firma pequena, mas
muito interessante. Há algum tempo que tenho a intenção de
visitá-los. Já soube que as espingardas e pistolas que
produzem têm uma qualidade excepcional. Pessoalmente,
não me interesso por armas de fogo. Mas tenho ouvido
informações excelentes. Qualquer coisa que eu possa fazer...

— Nossa pólvora é ainda melhor do que as armas de fogo


— disse Ernest, como se Gregory não tivesse falado. As faces
pálidas ficaram ligeiramente mais coradas; afora isso,
porém, ele não exibia qualquer outro indício de nervosismo.
— Ainda não a desenvolvemos plenamente porque meu Tio
George é um tanto... cauteloso, digamos assim. Ele começou
com as armas de fogo, mas agora estamos querendo
desenvolver a fabricação de pólvora e de um canhão que
carrega pela culatra. Mas eu queria lhe pedir permissão para
uma coisa. O nome Sessions é famoso em todo o mundo
civilizado pelo aço da melhor qualidade. É como a marca de
prata de lei. Acaba de dizer que nossas armas são de
qualidade excepcional. Eu gostaria de ter sua permissão para
gravar em nossas armas, em letras pequenas, a legenda:
‘Fabricada com Aço Sessions’. Estará nos prestando um favor
extraordinário, pelo qual ficaremos sempre gratos.

Houve uma pausa longa e expectante. A fábrica era como


tambores sonoros a vibrarem no ar parado. A luz do sol
entrava pela sala empoeirada, iluminava a cabeça de
Gregory, incidia sobre o rosto como uma pátina de ouro. Mas
os olhos de Ernest prenderam os olhos de Gregory por
aqueles momentos intermináveis e fatídicos, dominando-os,
compreendendo-os, aliando-se. Gregory apoiou o queixo
comprido e fino sobre os dedos entrelaçados,
negligentemente. Não se mexeu, não demonstrou qualquer
surpresa, nenhum espanto, não deixou transparecer
qualquer emoção. Pela expressão que exibia, era como se
estivesse com o olhar perdido no espaço, ao invés de fitar
um jovem rígido e corpulento, de roupas simples e decentes,
possuindo o rosto mais determinado que já vira.

O silêncio tornou-se tão prolongado que John Baldwin,


escutando no outro lado da porta com excepcional
curiosidade, arriscou-se a entreabri-la ligeiramente e dar
uma olhada. Nada viu além de seu patrão e do jovem
Barbour, sentados ali, fitando-se fixamente como serpentes,
como se tentassem forçar um ao outro a desviar os olhos.

Depois, abruptamente, Gregory tossiu com delicadeza.


Foi um som frio e divertido, como se ele tivesse finalmente
visto tudo, compreendido tudo.

— Eu é que devo agradecer por essa iniciativa — disse ele,


jovial. — Pode dizer a seu tio, Sr. George Barbour, que dou
meu consentimento pleno e completo para o uso do nome
Sessions nas armas que fabricam. Espero que isso contribua
para aumentar a reputação das duas firmas, como tenho
certeza de que devemos fazer.

E agora ele sorriu cordialmente para Ernest, que retribuiu


ao sorriso. Quando o jovem sorriu, havia uma qualidade
singularmente radiante em sua expressão, como sol sobre o
gelo.

— Contudo — acrescentou Gregory, suavemente — você


não é nenhum tolo e sabe que também não sou um velho
idiota, o que quer que tenha pensado antes de entrar aqui.
Sabe perfeitamente que qualquer firma teria a maior
satisfação em ter seu nome gravado num produto de
excelente qualidade. Sabia que eu daria a permissão, mesmo
que me escrevesse uma simples carta. — Ele fez uma pausa,
sorrindo novamente, antes de acrescentar: — E eu sei que o
estaria subestimando se julgasse que foi esse o motivo que o
trouxe aqui. Agora, importa-se de me dizer qual a verdadeira
razão de sua visita?

Ernest levou a mão à boca, escondendo-a parcialmente


por trás dos dedos. Ficou olhando para Gregory, em silêncio.

— Claro que posso perceber que é muito jovem — disse


Gregory, sorrindo mais uma vez. — Jovem na idade. Mas,
como acabei de lhe falar, não sou nenhum idiota. Não julgo
um homem por sua idade. Já vi idiotas na Casa Branca e
sábios em berços. Os anos nada significam. Assim, nada direi
a respeito de sua idade, exceto para comentar que o seu Tio
George não teria a mesma visão. Só vi esse cavalheiro uma
vez, uma única vez. Mas tenho certeza de que ele se
preocupa com a sua idade. E com o fato de que você é filho
do irmão dele. Assim, sei perfeitamente que ele jamais teria
a ousadia de sequer pensar no que acaba de me pedir. A
ideia é sua. E agora, pensando em outras coisas, posso
perceber que tem muitas ideias. Sou capaz de adivinhar
diversas delas. Só tenho uma palavra de advertência a lhe
dizer: não é do tipo que comete erros e também não vai se
precipitar..., mas não subestime ninguém. Não creio que vá
fazer isso, mas é possível que aconteça. Jamais coma as
maçãs quando ainda estiverem verdes. Mas tenho certeza de
que já sabe de tudo isso. — Gregory fez uma pausa,
pensativo. — Quero que saiba que estou interessado. Se tem
alguma coisa a me dizer, a me pedir, pode estar certo de que
vou encarar o assunto como confidencial.

As narinas de Gregory se dilataram um pouco, as


sobrancelhas se altearam sardonicamente.

Ernest continuou em silêncio por um longo momento.


Mas não era porque estivesse hesitando, conforme Gregory
podia perfeitamente perceber. Estava apenas ordenando as
palavras num padrão simples e objetivo, a fim de poder falar
sem qualquer confusão. Não estava surpreso com o que se
poderia considerar como precipitação de Gregory, a brusca
remoção da formalidade e cautela. Seu próprio caráter,
objetivo e incisivo, despertava essas características latentes
nas outras pessoas. Ernest finalmente baixou a mão e
começou a falar, calmo, com uma dignidade que impunha
respeito.

— Tem toda razão, Sr. Sessions. Vim aqui por vários


motivos e creio que posso lhe falar de todos. Em primeiro
lugar, queria vê-lo. Precisava lhe falar. Tinha de conhecer o
terreno. Claro que sei de tudo a respeito da Sessions
Company. Nem precisava dizê-lo. Mas precisava conhecê-lo
pessoalmente. E estou satisfeito.

Ao ouvir isso, Gregory levou a mão rapidamente à boca, a


fim de ocultar um sorriso deliciado e involuntário. Ernest
inclinou-se ligeiramente em sua direção, tomando a ficar um
pouco vermelho.

— Sei que pensa que o que estou dizendo é presunçoso.


Mas não é. Algum dia, senhor, vai compreender que não é. Ao
fazer um reconhecimento do terreno aqui, eu queria verificar
se seria um lugar apropriado para apresentar algumas das
minhas ideias. Se não fosse a pessoa que é, se não me
recebesse com cortesia e não compreendesse tudo, eu nada
falaria. O momento certo ainda não chegou para o que estou
pensando. Sou muito jovem. Sei disso. E está certo a respeito
da opinião de meu tio sobre a minha idade. Contudo, não é a
juventude que se interpõe em meu caminho... no caminho de
meu pai..., mas sim o fato de que dispomos de muito pouco
dinheiro. Meu pai, um grande homem, é um sócio menor de
meu tio. E meu tio é um trapaceiro. Tenho deixado que ele
continue a trapacear, porque meu pai ficaria muito magoado
se soubesse... por enquanto. Mas meu irmão mais moço,
Martin, é o nosso escriturário e mostrou-me tudo. Sempre
desconfiei.

Mas não é apenas trapacear. O problema maior é que meu


tio não está interessado no que queremos fazer. Não nos
permite explorar plenamente a nossa pólvora. E a pólvora,
como falei, é muito mais importante do que as armas. Meu
pai e eu temos ideias para explosivos como o mundo jamais
conheceu. Mas, não podem ser desenvolvidas sem dinheiro.
A pólvora não pode ser devidamente explorada sem
dinheiro. Também não pode enquanto meu tio estiver na
firma. Temos de afastá-lo. E vamos afastá-lo. Ele não sabe
que tiramos patente de nossos rifles mais novos e de nossa
pólvora. Tenho a impressão de que ele nunca ouviu falar em
patentes. Podemos afastá-lo. O problema é que ele tem 15
mil dólares na firma e a terra está em seu nome.

— Hã... — murmurou Gregory, negligente.

Ele começou a fazer anotações num papel com a pena;


queria escapar por um momento àqueles olhos resolutos.
Com todos os diabos!, pensou ele. Será que fiquei doido,
para ficar escutando essa conversa fiada de um colegial? Mas
será mesmo conversa fiada? Devo estar sonhando! O que
esse jovem demônio está querendo? Mas sei perfeitamente o
que ele está querendo! Que atrevimento! Que desfaçatez!
Tenho de expulsá-lo daqui, não posso ficar perdendo tempo
desse jeito. Ele levantou os olhos para fitar Ernest, os cantos
da boca contraídos num sorriso afável. E insistiu,
gentilmente:

— Continue.

Podia ver-se relatando à sobrinha, Amy, toda aquela


conversa, podia ver o sorriso adorável e compadecido da
moça, os olhos lindos. A pobre coitada tinha tão pouco
prazer em sua vida que ele tinha a maior satisfação em
contar-lhe histórias divertidas, como flores alegres.

— Vou lhe trazer cópias de nossas patentes —


acrescentou Ernest.

Por trás do sorriso de Gregory, ele podia discernir a


ligeira contrariedade, a incredulidade adulta, o divertimento.
Seu rosto empalideceu, tornou-se quase branco, linhas
azuladas se formaram em torno da boca.

— Poderá verificar então o valor do que temos. E trarei


meu pai. Não tenho a menor dúvida de que acha estranho
que eu não o tenha trazido agora, mas preciso prepará-lo...
— Para seu plano de afastar o Tio George — interrompeu-
o Gregory, os dentes brancos e compridos faiscando entre os
lábios entreabertos.

— Exatamente — respondeu Ernest, inclinando a cabeça,


sem um sorriso. — Ele é um peso morto em nossa
engrenagem e nossos planos. Temos de nos livrar dele. Para
isso, no entanto, precisamos de dinheiro e prestígio. — Ele
fez uma pausa, inclinando-se de novo para Gregory e
acrescentando, calmamente: — O seu dinheiro e o seu
prestígio.

Percebeu o brilho de escárnio e a raiva divertida nas


pupilas de Gregory. Cerrou as mãos suadas, embora o rosto
permanecesse calmo. Nem mesmo o astuto Gregory podia
imaginar que o coração do rapaz batia descompassadamente.

— Seu dinheiro... e seu prestígio — repetiu Ernest.

Havia agora algo em sua voz que fez Gregory sentir-se


confuso, como se a cena fosse um pesadelo. Parecia que
estavam sonhando toda aquela entrevista absurda.

— Pode me chamar de presunçoso e tolo, atrevido e


ridículo. Mas sabe que estará mentindo. Não sou nada disso.
Meu pai e eu temos dois mil dólares na firma. Armand
Bouchard tem 12 mil dólares. E a patente no canhão de
carregar pela culatra. É algo que o convenci a tirar, há apenas
seis meses. Falei a Armand sobre os meus planos. Na
verdade, ele até sugeriu algumas coisas. Mas é um francês
muito cauteloso. Não acreditou que me receberia hoje, não
imaginou que pudesse me ouvir.

Mas prometeu que, se a conversa que estamos tendo


agora transcorresse satisfatoriamente, iria deixar Tio George
e nos acompanhar. Ele tem tudo a ganhar. Assim, tudo o que
precisamos é de 20 mil dólares, 15 mil para comprar a parte
de meu tio e cinco mil para pagar a terra. Tio George pagou
três mil pela terra. Vamos lhe oferecer cinco mil.

Ele parou de falar, pois Gregory desatara numa risada alta


e brutal. Ele ria incontrolavelmente, o corpo esguio se
sacudindo na cadeira, a cabeça balançando, batendo com as
mãos nas coxas. O rosto ficou vermelho, as lágrimas
afloraram-lhe aos olhos. Em seu riso havia uma nota
desdenhosa e maligna.

— Oh, Deus! — balbuciou ele. — Oh, Deus!

Sacudiu a cabeça, enxugou os olhos com um lenço de


seda perfumado, riu novamente.

Um rapaz inferior teria se levantado com imensa


dignidade e orgulho, deixando a sala imediatamente. Mas
Ernest não fez isso. O riso de Gregory era insultuoso, mas ele
podia ignorar irrelevâncias como insulto e riso. Para ele,
eram de fato irrelevâncias. Assim, limitou-se a esperar,
muito pálido, é verdade, mas perfeitamente controlado, de
lábios contraídos.

— E isso é tudo, se me permite perguntar... 20 mil


dólares? Uma bagatela! E que garantia pode me oferecer em
troca dessa quantia insignificante?

— Trinta e três e um terço por cento de nossas ações —


respondeu Ernest, através dos lábios lívidos. — Conhece
nossos produtos. Verá nossas patentes. Estou sendo
generoso porque estou desesperado. Não posso fazer
negociações mais firmes por enquanto. É preciso dinheiro
para isso. Mas lhe garanto que nada perderá, mesmo que
fracassemos. O valor das propriedades está subindo a cada
dia. Dentro de dez anos, o terreno em que se encontra a
nossa fábrica estará valendo sozinho 20 mil dólares, se não
mesmo mais. Vai até a Shipman Road e a ferrovia terá de
atravessá-lo. Não vim procurá-lo sem qualquer preparativo.
Tenho aqui duas cartas, uma da White Gunpowder Company,
de Nova York, outra da Courtney Explosive Company, da
Virgínia. Ambas nos oferecem dez mil dólares pelas patentes
do rifle e canhão e cinco mil dólares pela patente do rifle.

Sem qualquer ostentação, Ernest colocou as duas cartas


na mesa, diante de Gregory. Todo riso se desvanecera
subitamente do rosto do homem mais velho, deixando-o
surpreso e com uma palidez um tanto esverdeada. Ele olhou
atentamente para Ernest, prendendo o lábio inferior entre os
dentes. Depois, pegou as cartas e leu. Recostou-se na
cadeira, olhando fixamente por um longo tempo para algum
ponto à esquerda da orelha de Ernest. E finalmente, ainda
olhando para esse ponto, ele perguntou, sem qualquer
inflexão na voz:

— E se seu Tio George não quiser se retirar?

Ernest sorriu, relaxou. Sentia-se exausto, mas ainda


determinado. Vencera! Podia sentir o suor escorrendo pela
espinha. Ficou surpreso ao descobrir, pela dor nos músculos
contraídos, que estivera tenso e tremendo. Sentia também
uma ligeira náusea no fundo do estômago e uma ardência
por trás dos olhos. Vencera, mas a um custo que não podia
imaginar e que não saberia por mais alguns anos.

— Ele vai se retirar — declarou Ernest, em voz baixa e


implacável. — Afinal, ele não é nada sem a nossa
participação. Se formos compelidos a sair, levaremos nossas
patentes e nossa pólvora. Ele nada terá. Assim, aceitará o
melhor que puder... o que estamos lhe oferecendo.

— Ah, que jovem patife! — exclamou Gregory.


Ele sorriu, mas ainda sem olhar diretamente para Ernest.
Parecia um pouco ofegante e umedeceu os lábios. Estava
subitamente dominado por uma avidez febril, como quem
tivera visões de coisas quase inacreditáveis e, por causa
disso, se tomava insuportavelmente agitado.

Sem ser percebido, John Baldwin entrara furtivamente na


sala. Ouvira metade daquela conversa extraordinária. Era
demais para ele. Estava agora parado ao lado de Gregory, um
gnomo comprido e escuro, olhando fixamente para Ernest.

Ernest se levantou. Sorriu outra vez, um tanto


rigidamente. Gregory fitou-o, com uma expressão aturdida,
em parte pensativa e perturbada. Somente sua boca
permanecia mecanicamente cética.

— Sr. Sessions, espero que considere cuidadosamente


tudo o que acabei de lhe falar — disse Ernest. — Vou lhe
trazer os documentos das patentes amanhã. Até lá, também
prepararei os documentos necessários e os trarei para a sua
assinatura. — Ele fez uma breve pausa, antes de arrematar:
— Há só mais uma coisa. Relaciona-se com seu irmão, o
Senador Nicholas Sessions. Ele está em posição, em
Washington, de nos garantir contratos do exército. Tenho
certeza de que nossa associação será muito lucrativa para as
duas partes. E tenho a honra, senhor, de desejar-lhe um bom
dia.

Ele fez uma mesura rígida, como um autômato, e saiu da


sala sem qualquer pressa, ainda com imensa dignidade.

Depois que ele se foi, Gregory Sessions e John Baldwin


ficaram se olhando em silêncio, por um longo momento.
CAPÍTULO X
Já era crepúsculo quando Ernest chegou à Garrison Road.
Passou a andar mais devagar deliberadamente, a fim de
chegar à casa dos Bouchards depois de Armand. Achou
difícil andar devagar, pois seus pensamentos eram como os
estalidos de uma rápida máquina. Não havia qualquer
confusão neles, uma parte se encaixando em outra, um plano
em outro. Dera um passo gigantesco, tinha um caminho
ainda maior a avançar. Formulava todos os passos
incisivamente, sem qualquer apreensão, enquanto andava.
Reconhecia muitas dificuldades, mas sentia que todas elas
deviam se dissipar diante da vontade e determinação.
Poderiam incomodar, mas jamais poderiam se constituir
num atraso mais grave.

Armand acabara de chegar em casa quando Ernest


apareceu. O pequeno francês acendeu o cachimbo
calmamente, depois de uma olhada no rosto de Ernest. Esse
único olhar apreendera tudo. Madame Bouchard,
involuntariamente, lançou um olhar furioso para o rapaz.
Mas os elogios do marido, nos últimos anos, haviam
atenuado sua atitude em relação a Ernest. Ela percebera, em
sua mente simples, que as fortunas dos Barbours e
Bouchards estavam com Ernest. Assim, ela podia se forçar a
ser amável com a pessoa que faria a sua fortuna. Por isso,
depois da reação instintiva de raiva inicial, que Ernest não
percebeu, ela mostrou-se extremamente cordial, fazendo um
convite para o jantar, que ele inesperadamente aceitou,
distraído, como se quisesse evitar alguma discussão. Raoul e
Eugene haviam voltado para casa, junto com o pai. Raoul
estava refestelado com indolência no canto da chaminé,
afetuosamente caçoando da mãe e farejando audivelmente
os caldeirões no fogo. À luz do fogo, sua cabeça morena
parecia a de um fauno, com as sobrancelhas eternamente
inclinadas, os olhos brilhantes e alegres. Parecia um
cortesão, romântico e atrevido, pensou Ernest, com aversão.
Eugene, de quem ele gostava e em quem confiava, estava
absorvido na tarefa de desmontar um novo tipo de pistola
fabricado por um concorrente. Fazia comentários à medida
em que tirava cada peça, embora ninguém prestasse atenção.
Levantou os olhos quando Ernest aproximou-se do fogo. O
rosto geralmente um pouco carrancudo, mas bonito,
iluminou-se ansioso, com uma expressão afetuosa. Jacques,
ainda com um rosto frágil e bonito aos 20 anos, estava
sentado no outro canto da chaminé, lendo. Sorriu debilmente
para Ernest, tentando ocultar a antipatia e desconfiança
involuntárias. Armand sentou diante do fogo. Tirou as
botinas e estendeu os pés para o calor, o ar se impregnando
com o odor pungente de seu suor, misturando-se com os
cheiros mais agradáveis da sopa de cebola e do guisado de
carneiro, que cozinhavam em negros caldeirões de ferro.

Madame Bouchard, maior do que nunca, embora um


pouco grisalha, trovejava sobre os caldeirões, com vontade
de bater com a concha na cabeça de Raoul. Volta e meia
olhava para Jacques, a todo instante tropeçava no enxame de
gatinhos que rolavam e se enfiavam perto da lareira quente.

Ernest não gostava da casa dos Bouchards. Achava-a


quente demais, tumultuada, de cheiros fortes, barulhenta. As
pessoas da família pareciam gostar de viver inutilmente,
caçoando um dos outros, demonstrando um interesse
exagerado por comida, vinhos e conforto irrelevante. Ernest,
que passava as noites lendo tudo o que podia a respeito de
explosivos, armas de fogo, finanças, mercado de ações, a
história dos fabricantes rivais e relatos concisos de guerras
modernas, não podia compreender como alguém era capaz
de desperdiçar horas de vida disponíveis meramente a
desfrutá-la. Parecia-lhe a suprema blasfêmia. Por isso, ficou
novamente contrariado, como já acontecera mil vezes antes,
por ser recebido displicentemente na casa dos Bouchards,
como se ali tivesse aparecido apenas pela companhia deles,
para se divertir e conversar! Somente Armand era capaz de
compreender.

— Sente-se, Ernest — disse ele, gentilmente.

Ernest hesitou, olhando ao redor. Desconfiava de Raoul e


tinha bons motivos para isso. Não podia contar coisa alguma
a Armand na presença de Raoul. Mas se excluísse Raoul, ele,
Ernest, que só era polido quando isso se tornava
indispensável, teria de excluir também a Eugene. Não queria
fazer isso, pois gostava do outro rapaz e lhe reconhecia a
inteligência. Eugene também tinha frequentemente boas
ideias. Mas não havia como evitar. Mesmo podendo ofender
Eugene, não podia se arriscar a alguma traição de Raoul.
Claro que depois que Armand se comprometesse com algum
plano, Raoul nada diria. Mas enquanto tudo ainda estivesse
no ar, indefinido, Ernest não se atrevia a confiar nele. Assim,
ele disse a Armand, em sua voz monótona e desprovida de
qualquer emoção:

— Eu gostaria de lhe falar a sós por alguns minutos,


Armand.

Raoul, que nunca perdia coisa alguma, desviou os olhos


dos caldeirões cheirosos que vinha examinando com uma
expressão maliciosa. Os olhos bonitos falsearam, o rosto se
iluminou com um sorriso irônico. E ele exclamou,
zombeteiro:

— Não estou entendendo mais nada! Por acaso existem


inimigos por aqui?

Ernest deu de ombros. Não podia enfrentar os olhos


surpresos e com certa expressão de censura de Eugene.

— Não é isso. Como se trata de um assunto pessoal, eu


preferia falar com Armand a sós.

Jacques, que ainda não dissera uma só palavra, levantou


o rosto bonito do livro que estava lendo e fitou Ernest,
serenamente. Mas Ernest não olhou para ele. Por alguma
razão obscura, ele temia Jacques, com quem não chegara a
trocar uma centena de palavras, desde que se conheciam.
Jacques o aborrecia, mas havia também algo mais.

Armand se levantou, pequeno, ombros encolhidos, rosto


moreno. Levou Ernest para o quarto frio e úmido que Raoul e
Eugene partilhavam. Ernest sentou-se na cama larga e alta,
mas Armand preferiu num banco, um tanto irrequieto. Ficou
à espera, fumando. Havia apenas um lampião abafado no
quarto. A fumaça do cachimbo circulava a luz como
fantasmas informes.

— Qual é o problema? — perguntou Armand, suavemente,


depois de um momento de espera.

— Estive com Gregory Sessions — informou Ernest,


abruptamente. — Tudo transcorreu conforme eu esperava e
planejei. Ele está disposto a colaborar.

Armand não fez qualquer gesto, mas ficou imediatamente


alerta, toda a sua atenção se concentrando em Ernest.

— Teremos notícias dele amanhã. Devo levar-lhe pela


manhã os documentos das patentes e saber de sua resposta.
É claro que o pai e você me acompanharão. Já expliquei tudo
a ele.

— E ele concordou, sem a menor sombra de dúvida?


Ernest hesitou apenas por um instante, mas Armand
percebeu-o.

— Ele ainda não concordou de maneira categórica. Mas


não pode recusar. Somente um louco ou um idiota poderia
recusar. Ele é um homem ganancioso. Pude constatá-lo
imediatamente. E percebi que está insatisfeito, pronto para
aproveitar qualquer oportunidade de melhorar a sua
situação. Tenho certeza de que ele vai concordar. Nada pode
impedi-lo de concordar. Imagino que ele vai consultar seu
banco amanhã. É um homem muito cauteloso. Todos vamos
lucrar com o acordo. Podemos considerar que é assunto
resolvido.

— Você tem muita certeza, meu jovem amigo... de tudo.

— Nunca tomo qualquer iniciativa sem ter certeza


absoluta — respondeu Ernest, calmamente.

Houve um silêncio, enquanto a fumaça subia e se


espalhava. Nenhum dos dois podia ver o rosto do outro, mas
também não precisavam. Em determinado momento, Armand
sacudiu a cabeça, no escuro, meio espantado, meio
divertido, mas também solenemente. Ele saiu do banco e
disse, com uma expressão pensativa:

— Isso mesmo, você sempre tem certeza. E ter sempre


certeza não é lá muito bom. Não há lugar para o romance,
para o prazer. Tiens! Meu comentário foi uma tolice. Mas
confio tanto em você, que disse a Martin que levasse os
livros para casa esta noite e ficasse pronto para uma visita
ao tio. Ele pareceu ficar perturbado.

— Martin é um tolo sem qualquer energia! — exclamou


Ernest, irritado, fazendo o gesto de quem estava
afugentando uma mosca.
Armand deu de ombros e abriu os braços. Estava tão
perto de Ernest que este podia perceber, mesmo ao
crepúsculo, o brilho súbito nos olhos astutos.

— É bem possível, é bem possível... Quem sabe? Mas não


se pode negar que há uma questão de escrúpulo, mesmo em
se tratando de alguém como George Barbour. Mas seu pai, o
nosso bom Joseph... será ele quem teremos de contornar. Ele
deve ser controlado com extrema habilidade. E você, meu
jovem amigo, nem sempre exibe o tato e habilidade
necessários. Prefere o método direto, o método brusco. E
também não se pode negar que tem suas vantagens. — Ele
encaminhou-se para a porta. — Quando se vai guilhotinar um
homem, a misericórdia nos impõe fazê-lo imediatamente,
rapidamente. Vamos jantar e depois seguiremos para o local
de execução.
CAPÍTULO XI
George Barbour finalmente se mudara para Oldtown. Só
que ele não conseguira comprar um terreno num ponto dos
mais desejáveis, perto dos ‘esnobes’. Sua propriedade ficava
nos arredores, na extremidade de uma das ruas principais.
Mas a carência do local era compensada pela pretensão da
casa, de tijolos vermelhos, alta e estreita, com duas janelas
salientes, uma por cima da outra. Tudo na fachada do
primeiro andar era de ferro batido e ornatos em relevo, a
porta faiscava com latão polido. Gramados compridos e
estreitos cercavam a casa, bem cuidados. Dois cervos e um
fauno, todos de ferro, estavam postados perto dos três
canteiros de flores. Havia um estábulo grande nos fundos,
com dois cavalos e um pônei para Martha, agora com 17
anos e que gostava de andar numa charrete de duas rodas.
Daisy Barbour tinha agora três criadas e um jardineiro.

Joseph Barbour e sua família ainda viviam em Newtown,


mas num trecho melhor. Os ‘bárbaros’ de Newtown haviam
decidido criar o seu próprio bairro exclusivo, depois de
chegarem à conclusão de que os moradores de Oldtown não
iriam admiti-los em seu círculo íntimo, mesmo que se
mudassem para lá. Haviam desenvolvido sua própria
sociedade, tornando-se mais ricos do que muitos habitantes
de Oldtown, para os quais passavam a torcer o nariz com
desdém. Evidentemente, a casa de Joseph não era suntuosa
nem pretensiosa como a do irmão. Era uma construção baixa,
de pedra cinzenta, com seis cômodos, com um pequeno
gramado sempre aparado e um jardim impecável. Hilda
jamais sonhara em viver numa casa tão grandiosa, mas agora
isso não lhe proporcionava qualquer prazer. Sabia que sua
vida estava se tornando agradável e segura, muito mais fácil.
Podia ver os armários repletos de roupas de cama e mesa de
linho, os guarda-roupas cheios de vestidos bem feitos,
importados de Nova York. Gostava de dizer às amigas que o
marido guiava a sua própria carruagem. Mas nenhuma
dessas coisas lhe parecia real. Eram como sonhos sem
substância, sobre os quais não podia sentir qualquer
emoção. Hilda sentava à sua própria mesa, comandava a
casa, orientava a criada, costurava, tricotava, falava e
respirava, mas sem sentir qualquer coisa profundamente.
Vivia mecanicamente, embora aos olhos de observadores
fosse uma mulher rechonchuda e bonita, de 30 e poucos
anos, ainda agradável de se contemplar e muito competente
em seus vestidos pretos de seda. Usava uma touca de renda
sobre os cabelos pretos abundantes, que ainda se
encrespavam na nuca. Os dentes eram brancos e perfeitos,
exibidos em frequentes sorrisos. Quando ela andava
vigorosamente pela casa, as saias balançavam, se enfunavam
e farfalhavam, os olhos eram firmes e vigilantes. Por dentro,
porém, ainda havia um torpor intenso, um atordoamento
completo, que só desaparecia, e mesmo assim
temporariamente, à mesa. Todo o seu amor pela vida, o
fervor, alegria e prazer estavam agora concentrados na
comida, esse refúgio e consolo da meia idade. Raramente
tinha agora acessos de fúria, como costumava acontecer na
Inglaterra. Um jantar estragado provocava-lhe dez vezes
mais angústia do que qualquer crise familiar. Tornara-se um
tanto belicosa e dogmática, uma tirana doméstica, que não
hesitava em bater nas duas filhas e no filho mais moço. De
vez em quando, um brilho intenso iluminava seus olhos,
quando contemplava Joseph; mas tais ocasiões estavam se
tornando cada vez mais raras. Consolava a saudade da
Inglaterra com gansos e patos, sopas e pudins, geleias e
doces.

Não havia qualquer amizade entre Hilda e Daisy Barbour.


Hilda não tinha malícia, dissimulação, ganância,
desconfiança ou maldade. Possuía uma integridade e
honestidade simples, uma atitude firme e constante em
relação à existência e circunstâncias. Mas isso não a iludia
quanto à astúcia, estupidez, falsidade e traição dos outros.
Também não se apressava em condenar ninguém.
Simplesmente evitava os seres humanos nos quais essas
características eram por demais óbvias, insuportáveis em
excesso. Tinha medo delas, corava em sua presença,
balbuciava, fugia. Como acontecia com seu filho Martin, tais
pessoas assustavam-na e paralisavam-na, com um medo
vago, mas intenso. Assim, desiludida com George e Daisy
Barbour, passara a evitá-los com uma espécie de terror,
estremecendo por trás das cortinas quando observava-os a
se aproximarem em suas raras visitas, sofrendo um ataque
de indigestão aguda depois que eles jantavam em sua casa.
Para ela, eles tinham um cheiro de perigo, como também
acontecia para Martin. Se eles fossem bandidos confessos,
autores de grandes crimes do conhecimento público,
dificilmente a teriam afetado tanto. As dimensões deles,
neste caso, teriam ofuscado o terror de Hilda. O que lhe
incutia uma náusea mental e física era o fato de serem
bandidos mesquinhos e furtivos, a ganância secreta, mas
implacável, os olhos dissimulados. Hilda sentia-se como uma
mulher desamparada, surpreendida na escuridão, acuada por
doninhas carnívoras, a farejarem seus calcanhares. As
risadinhas deles, a desconfiança vigilante, as vozes
insidiosas e os olhares mesquinhos deixavam-na
completamente atordoada, o coração batendo
descompassadamente, a garganta ressequida.

Como era um tanto incerta em relação a suas emoções e


julgava-se uma tola, Hilda jamais falara a ninguém a respeito
disso, embora Martin certamente fosse capaz de
compreender. Se ela falasse a Joseph, ele teria sorrido e dado
de ombros, aceitando as suspeitas dela em relação a seu
irmão e Daisy. Se falasse a Ernest, ele teria feito uma careta
desdenhosa e a consideraria uma tola. Para Ernest, George
Barbour não passava de um inseto pernicioso, com uma
picada desagradável, que precisava ser rapidamente
esmagado, eliminado. Quanto à tia, Ernest nunca a via, a não
ser para fitá-la furioso e contrariado, quando Daisy falava
com sua voz estridente e anasalada. Martha causava um
efeito extremamente desagradável em todos os seus
parentes, muito embora parecesse insignificante. Não era
muito de falar, mas tinha o hábito horrível de escutar todas
as conversas com um sorriso astuto, enquanto os olhos
azuis-claros se deslocavam lentamente entre os
interlocutores. Daisy estava determinada a fazer com que
sua filha se tomasse uma dama. Assim, Daisy ia
frequentemente visitar amigas em Filadélfia, algumas vezes
ia até Nova York, agora que Windsor contava com um ramal
da estrada de ferro. Martha sempre se vestia elegantemente,
em vestidos azuis, rosas e verdes, de tonalidades claras, por
cima de rendas e cetim branco. Os cabelos louros bem claros
caíam em cachos sobre o rosto fino, pálido, um tanto
anguloso.

É significativo que a família de George Barbour não fazia


demonstrações de amizade a qualquer pessoa da família de
Joseph Barbour, com exceção de Ernest. E mesmo nessas
demonstrações havia mais apreensão do que afeição. Não
sentiam qualquer antipatia particular por qualquer pessoa da
outra família, exceto Ernest. E odiavam-no. Assim como
também o respeitavam, abjetamente. Mas Ernest não estava
consciente do ódio ou cordialidade deles, da apreensão ou
respeito. Para Ernest, eles mal existiam, a não ser pela
irritação que lhe causavam.

É ainda mais significativo e também instintivo o fato de


que tanto George como Daisy Barbour haviam chegado à
conclusão de que Martha deveria um dia casar com Ernest.
Sentiam que, dessa maneira, o futuro da firma estaria
garantido e invulnerável, nada mais teriam a temer. Assim,
Ernest era assediado quase que diariamente com convites
sinceros e ansiosos, Martha era empurrada em seu caminho,
balbuciando infantilmente, George lhe dava tapas efusivos
nas costas e o consultava constantemente, Daisy fitava-o
com expressões radiantes e não perdia qualquer
oportunidade de lisonjeá-lo. Não se podia saber se Ernest
percebia e compreendia tais manobras. Contudo, foi sem
pensar nelas, sem sequer se lembrar, que ele acompanhou o
desconcertado pai à casa de George, naquela noite.

Ele disse tão pouco a Joseph que foi somente a crença do


pai na integridade e bom senso do filho que o convenceu a
acompanhá-lo. Mas isso não atenuou a irritação de Joseph.

— Mas com todos os diabos! Essa história está muito


esquisita, Ernest. Não entendo por que você me arranca de
casa numa noite horrível como esta, com a história
fantástica de que está acontecendo alguma coisa importante
com George.

Ele estremeceu ostensivamente no capote grande e


grosso, abaixou o chapéu pelas orelhas. Parecia mais jovem
do que Ernest, caminhando agilmente ao seu lado. Ainda era
um homem esguio e flexível, de movimentos elegantes e
graciosos. Ernest andava muito empertigado, um tanto
rígido, o que o fazia parecer mais velho do que na realidade.
A largura dos ombros proporcionava-lhe uma corpulência
que, aparentemente, reduzia a altura. Caminhava rápido,
com determinação, como um homem que sabe para onde
está indo e o que vai fazer. Enquanto assim andava, Ernest
olhava de vez em quando para o pai. Nesses momentos, a
rigidez implacável das feições se atenuava, embora apenas
um pouco.

— Confie em mim mais um pouco, pai — disse ele,


calmamente.
— Claro que confio em você, meu rapaz! — disse Joseph,
irritado. — Mas pelo menos podia me dar alguma indicação.
Que diabo está acontecendo? Por que não me conta logo?

Ernest ficou calado. Sabia perfeitamente que Joseph


protestaria violentamente, se tivesse a menor suspeita do
que estava para acontecer; protestaria mais por sentimento
do que pela razão. Por isso, ele disse, paciente:

— Já lhe falei, pai. Armand e eu queremos discutir um


problema de política da firma com você e Tio George. De
certa forma, é uma surpresa. Espere mais um pouco. Prometi
a Armand que não diria coisa alguma enquanto não
estivéssemos todos reunidos.

Ernest não teve o menor escrúpulo em dizer a mentira.


Para ele, as mentiras eram armas fortes para serem usadas
nas ocasiões necessárias.

Joseph resmungou, dominado pela impaciência e pelo


ciúme, diante da implícita confiança do filho em Bouchard.

— Mistério! — exclamou ele. — Ah, as crianças! Sou capaz


de apostar um soberano como se trata de alguma bobagem.
Por que não podia esperar até amanhã? E por que mandou o
jovem Martin para lá com aqueles livros infernais?

Sem a menor hesitação, Ernest respondeu, suavemente:

— Está tudo relacionado com essa questão de política da


firma, pai. Precisamos nos reunir e discutir determinados
assuntos. Já tentamos fazê-lo na oficina, mas há muitas
interrupções, um barulho excessivo. Assim, Armand achou
que seria uma boa ideia instituir reuniões regulares, com a
presença de todos longe da oficina. Uma coisa distinta e
tudo o mais, como fazem outras firmas. Claro que, mais
tarde, teremos uma sala de reuniões, onde poderemos sentar
para remover o lixo da outra sala.

(A ‘outra sala’ era o atual gabinete de George.)

— Essa não! — Joseph estava agora mais furioso do que


nunca pelo ciúme que sentia de Armand. — ‘Armand e eu
pensamos!’ Acho que julga que eu não tenho inteligência
suficiente para pensar com você! Acho que vai chegar um
momento em que você vai querer me afastar e ficar
pensando junto com seu Armand! Já houve filhos que
fizeram isso com seus pais!

No escuro, Ernest sorriu ligeiramente. Quase que


involuntariamente, encostou a mão no braço do pai e
apertou-o de leve. Joseph ficou ao mesmo tempo
constrangido e satisfeito. Para disfarçar, soltou um
grunhido, fez a encenação de se desvencilhar. Continuaram a
andar, em silêncio por um momento, embaraçados. Depois,
Ernest largou o braço do pai e voltou a falar, com a maior
desenvoltura:

— Talvez tudo não passe de tolice, como falou, pai. Mas é


uma boa ideia começar a nos reunirmos para discutir todos
os problemas. Essa nova política para a firma,
provavelmente, não está de acordo com as suas ideias. Posso
até dizer que tenho certeza que não está. — Ernest tornou a
sorrir ligeiramente. Agora, o sorriso era um tanto sombrio. —
Por isso é que não lhe falei nada. Queria que ouvisse também
o lado de Armand, antes de decidir-se contra.

Joseph sentiu-se apaziguado. Não havia motivo para se


preocupar. Ernest, aparentemente, ainda sentia um respeito
filial e alguma incerteza sobre suas ideias juvenis. Queria
reforçá-las com os argumentos de Armand. Joseph sentia-se
lisonjeado, paternal, indulgente.
— Mas se eu não concordar, meu rapaz, não vai adiantar
coisa alguma pôr Armand para me pressionar, como parece
ser a sua intenção. Seja como for, deveria ter-me contado
tudo.

Um ator teria admirado a franqueza ingênua na voz de


Ernest, quando ele respondeu, ansiosamente:

— Mas acho que é uma boa ideia, pai. Eu ficaria


desapontado se a rejeitasse sumariamente, sem ouvir o que
Armand tem a dizer a respeito. Caso tomasse uma decisão
inflexível, sabe muito bem que eu não levaria o assunto
adiante. E o problema ficaria sem solução por muito tempo.
Peço um favor, pai: quando falarmos na reunião, seja
paciente e escute.

Joseph riu, indulgente. Afagou o braço de Ernest, como


costumava fazer quando o filho era pequeno.

— Você ainda é um garoto, meu rapaz, apesar de suas


pretensões. Ainda tem medo de seu pai. — Ele fez uma
pausa, antes de acrescentar, satisfeito: — Só Deus sabe por
que.

Mais uma vez, Ernest sorriu debilmente para si mesmo,


no escuro. Um pensamento ocorreu subitamente a Joseph.

— Ei, acho que está esquecendo uma coisa! O que me diz


de George? Ele também tem o direito de se manifestar. Se ele
não concordar, talvez eu também não concorde, mesmo que
a ideia pareça muito boa. Foi George quem começou tudo e
ele tem o direito de dar a palavra final.

— Nós lhe daremos o direito de falar a última palavra —


disse Ernest, suavemente.
— Espero que sim — resmungou Joseph.

Como era um homem inteligente, algo na voz de Ernest


provocou-lhe uma pontada de apreensão e ele repetiu, em
voz mais alta, num tom de indagação:

— Espero que sim.

Ele tentou discernir o rosto de Ernest. Por um momento,


pareceu-lhe que o perfil do filho brilhava no escuro, muito
branco e inflexível.

— Teremos uma discussão com ele — admitiu Ernest,


numa voz franca, totalmente incompatível com o perfil que
exibia. — Mas tenho certeza de que Tio George verá a luz da
razão quando todos estivermos contra... isto é, quando todos
estivermos de acordo. Mas já chegamos.

Ninguém teria adivinhado, pela voz tranquila, o alívio


intenso que Ernest experimentou naquele momento, o
aumento de sua força para enfrentar aquela emergência
ameaçadora.

A noite de outubro era como um veludo azul-escuro, no


qual estava suspenso o imenso lampião dourado da lua,
suave e firme. O ar recendia a fumaça de madeira e maçã, a
folhas secas. No silêncio intenso, podia-se ouvir o rio,
acumulando forças para o inverno. O vento sussurrava pelas
árvores já meio desfolhadas. A área em torno da casa de
George ainda era rural, com muitas árvores, através das
quais podia-se avistar as luzes distantes. Ernest e o pai
encaminharam-se por entre fileiras de choupos novos para a
casa de aparência inóspita. Os lampiões da sala de visitas
estavam acesos, projetando uma claridade esbranquiçada e
desolada, como se repudiassem os visitantes que já estavam
ali. As cortinas pareciam uma camada de geada sobre as
janelas, os arabescos refletiam aqui e ali as chamas do fogo
incerto que ardia na lareira. Ernest levantou a aldrava. O som
resultante, embora George Barbour ainda não o soubesse, era
o som do destino.

Uma criada bem arrumada abriu a porta, de touca, avental


branco e saias pretas. Joseph experimentou novamente a
reação meio de raiva e meio opressiva que sempre sentia
quando entrava na casa do irmão. Tirou o chapéu com
relutância, foi grosseiro com a criada, quando ela informou
que os cavalheiros esperavam na sala de visitas. Joseph
seguiu o filho para a ampla sala, onde um fogo ardia de má
vontade por trás da grade polida da lareira, com seus móveis
pretos e assentos de crina de cavalo, mesas requintadas,
sobre as quais havia toalhas de renda indiana, numa
tentativa de torná-las informais, globos de vidro floridos,
papel de parede com imensas rosas vermelhas, tapete grosso
e florido, desenhos a crayon nas paredes, cortinas que
pareciam feitas do mais fino papel, o brilho ofuscante de um
piano preto, entre duas janelas. Como a sala só era usada
quando havia visitas, o ar ali dentro era frio e repulsivo,
terrivelmente limpo. Normalmente, Daisy não abria todas as
portas corrediças enfeitadas para parentes. Só o fizera
naquela noite porque estava contrariada com a presença
deles, queria aborrecê-los, mostrando que não se
enquadravam num plano de amizade. Estava sentada ao lado
da lareira de mármore, junto com a filha, muito empertigada,
o rosto gordo vermelho e belicoso, o lábio inferior saliente, o
nariz levantado, uma expressão determinada nos olhos. Ela
era baixa, corpulenta e grisalha. Usava uma touca de renda
nos cabelos e o vestido volumoso era de seda, vermelho-
escuro. Tinha nas orelhas um falsear de diamantes. Havia
também diamantes nos dedos grossos e vermelhos, uma
corrente de ouro pendia sobre o peito estofado. Martha,
esguia e apagada ao lado dela, mantinha os olhos claros
abaixados, um débil sorriso nos lábios, os cachos dourados a
lhe esconderem metade do rosto, de maneira um tanto
virginal. O vestido verde-claro, de seda, distendido pelo
forro, derramava-se sobre a anágua branca de cetim. Ela
olhava fixamente para os tornozelos, envoltos por meias
brancas, cruzadas pelas fitas pretas das sandálias. George,
vermelho, expansivo e agressivo, estava de pé, com as
pernas bem abertas, de costas para o fogo, fumando um
charuto, o traje preto, de tecido importado da Inglaterra,
impecável e lustroso. Falava para Martin e Armand, com
altivez. Martin, sentado na sombra que pudera encontrar, um
rapaz alto e esguio, com cabelos compridos, da mesma
tonalidade prateada-dourada da infância, os belos olhos
azuis de pálpebras brancas fixados no tapete, o rosto
exibindo a habitual expressão infeliz. Sobre a calça castanha-
clara estavam os livros pretos da firma. Para todas as
aparências, era como uma estátua pintada, tão distante
daquela sala e de seus habitantes como se estivesse em
transe. Armand, moreno e enrugado, usava uma roupa
castanha-escura, de fabricação doméstica, um gnomo de
boca torta, que escutava, acenava com a cabeça, fazia caretas
para si mesmo. Daisy fitava-o intensamente, com expressão
venenosa. Depois de algum tempo, desviou os olhos para as
cortinas. Ele parecia não estar percebendo coisa alguma.
Martha espirrou delicadamente. Armand escutava,
imperturbável, o que George dizia. Martha sacudiu o lenço
de cambraia e uma fragrância de rosa espalhou-se pela sala.
Quando Ernest entrou na sala, as faces de Martha ficaram
avermelhadas, ela tremeu visivelmente. Daisy sorriu,
degelou, levantou-se e se adiantou bruscamente. Ernest fez
uma mesura tensa, virou-se de lado e disse para Armand:

— Aqui estamos.

Ele sorriu. Armand alteou as sobrancelhas, tirou o


cachimbo da boca. Ernest nem mesmo olhou para a prima.
Ao entrar na sala, ele dominou-a por completo, de tal forma
que os demais ocupantes pareciam ter sido empurrados
contra a parede, deixando-o num espaço que vibrava de
força e determinação. A rudeza que demonstrou com a tia
deixou-a embaraçada. Daisy ficou parada ao lado dele,
piscando os olhos, aturdida. Joseph sentiu súbita raiva do
filho, uma compaixão por Daisy. Falou-lhe então num tom
gentil, quase afetuoso. Ela não afastou o rosto da direção de
Ernest, mas os olhos esbugalhados fixaram-se por um breve
instante em Joseph. Martin levantou os olhos languidamente.
E, com expressão aturdida, concentrou-se no irmão, como se
Ernest tivesse se transformado de repente em alguma coisa
assustadora. Todo o corpo de Martin ficou tenso de angústia.

— Aqui estamos — repetiu Joseph, soturnamente, abalado


com a indiferença da cunhada a ele, irritado novamente com
todo aquele mistério. — E agora poderiam fazer o favor de
me explicar por que estamos aqui?

— Tenho certeza de que é um segredo tão grande para


mim quanto parece ser para você — disse George,
desdenhosamente, dando de ombros.

— Tudo o que sei, Joe, é que seu rapaz aqui, Martin, bateu
na minha porta como um coelhinho assustado, quase
desfalecendo como uma rapariga, dizendo que Armand o
mandara aparecer aqui às sete e meia. Armand apareceu logo
depois. E agora chegam você e Ernest. O negócio está me
parecendo muito esquisito.

Ernest sorriu involuntariamente, diante da descrição que


o tio fizera de Martin e que lhe parecia das mais apropriadas.
No instante seguinte, porém, ele voltou a ficar impassível.

— Tem razão, o negócio está mesmo muito esquisito —


concordou Joseph, em tom áspero.
Ele sentou-se cautelosamente numa requintada cadeira
dourada, por trás de Martin. Virou a cabeça, lançando um
olhar irado para Ernest.

— Vamos, fale logo de uma vez! O que estão querendo? Já


estamos todos aqui. Abra a boca de uma vez e pare de se
comportar como se fosse um maldito carrasco!

Ernest, impassível, olhou para a tia e a prima, dizendo


calmamente:

— Creio que não precisamos da presença das damas.


Temos de conversar sobre negócios.

— Mas isso é um absurdo! — exclamou Martha, arrancada


de sua pose virginal.

— Um disparate! — acrescentou Daisy, que gostava de


usar expressões antiquadas.

George acenou com a mão bruscamente, dispensando a


mulher e a filha.

— Tratem de sair — disse ele. — As mulheres não devem


se meter em negócios.

Ele estava dominado por uma curiosidade intensa. Sabia


que era algo importante, pois não subestimava Ernest. Virou-
se para ele com uma expressão cordial, enquanto as
mulheres se levantavam num alvoroço de perfume e seda,
deixando a sala.

— Qual é o problema, rapaz? Alguma coisa importante?

— Exatamente — Ernest fitou-o com firmeza. — Muito


importante. E acho que não devemos perder tempo. — Ele
virou-se para o irmão e acrescentou: — Martin, abra o livro
nos registros de janeiro. Na conta Trenton.

George ficou aturdido. O rosto vermelho empalideceu um


pouco, os olhos se esbugalharam. Tirou o charuto da boca.
Armand, tranquilamente, tirou outra baforada, enquanto
Joseph piscava os olhos, desconcertado e aborrecido. Martin,
cujas mãos finas e brancas tremiam um pouco, abriu o livro.

— Está bem — murmurou ele, sem olhar para Ernest.

A voz de Ernest era extremamente suave:

— Diga-me, Martin: o que está registrado aí como sendo o


pagamento deles nos últimos seis meses, antes de janeiro?

— Dois mil, 476 dólares.

Mal se podia ouvir as palavras de Martin. Uma veia azul


estava saltada e latejando na testa pálida.

— Ei, espere um pouco! — interveio Joseph, furioso.

Ernest levantou a mão sem se virar para o pai, sem


desviar os olhos de Martin. Joseph calou-se imediatamente.
Virou-se em sua cadeira para fitar George e ficou espantado
com a palidez do irmão.

— Dois mil, 476 dólares — repetiu Ernest baixinho, em


tom quase sonhador. — Ele fez uma pausa. Subitamente, o
rosto se contraiu. E a voz tornou-se incisiva: — E agora,
Martin, fale-nos da carta que você encontrou outro dia do
pessoal da Trenton, datada de seis meses atrás, em que eles
mencionam um cheque de dois mil 7O6 dólares, para
pagamento de sua conta.
Martin engoliu em seco visivelmente, uma coloração
febril estampando-se em seu rosto. Ele olhava fixamente
para Ernest, como se não pudesse desviar-se, mesmo
recorrendo a toda a sua força de vontade.

— É verdade — disse ele, a voz trêmula. — Mas deve ter


sido um engano. Afinal, foi apenas uma vez. Não pode deixar
de ser um engano. Sei o que está tentando provar, Ernest,
mas tudo não passou de um engano.

Joseph olhou de George para Armand. Mas Armand não


retribuiu seu olhar. Estava concentrado em George, que
umedecia os lábios lívidos e fitava Ernest com uma
expressão assassina. Era evidente que tinha dificuldade em
respirar, o peito largo estava ofegante, cerrava as mãos
úmidas e geladas. Sua respiração, quando exalou, era quase
um gemido. Quando finalmente conseguiu falar, a voz soava
rouca:

— Seu garoto nojento! Já sei o que está querendo fazer!


Mas tudo não passou de um engano! Um engano, está me
entendendo? Já o compensei mil vezes! Já...

Joseph levantou-se, de um pulo. Estava pálido, meio


tonto. Segurou Ernest pelo braço. Mas era como se estivesse
segurando um braço de pedra.

— O que está tentando insinuar? O que representa tudo


isso? Fale logo ou vou lhe dar uma lição que nunca mais vai
esquecer, mesmo sendo meu filho! Posso lhe jurar que nunca
mais vai se recuperar da surra, apesar de todo o seu
tamanho!

Armand fumava placidamente, sem se mexer, sem falar.


Ernest esperava. Sorria um pouco, fixamente. Esperou até
que o clamor do pai se desvanecesse. Joseph ainda lhe
segurava o braço, mas ele não se virou para o pai. Ainda
fitava o tio.

— Você é quem desconta todos os cheques e ordens de


pagamento — disse Ernest, implacável. — Ao final de cada
dia, fornece a Martin as cifras dos pagamentos recebidos e
ele registra no livro. Sempre achei que era um procedimento
pouco profissional e irregular. Mas não importa.
Naturalmente, confiávamos em você. Nunca teria nos
ocorrido não confiar.

Ele enfiou a mão no bolso interno do casaco e tirou uma


carta. Involuntariamente, George estendeu a mão para
arrebatá-la. Mas Ernest habilmente protegeu a carta, levando-
a para suas costas.

— Martin encontrou esta carta do pessoal de Trenton em


sua mesa, há algum tempo, no dia em que estava doente. Ele
procurava por papel. Foi muita negligência de sua parte, Tio
George. Martin ficou um pouco desconcertado, pois a
quantia mencionada na carta não era a mesma que constava
dos livros. Ele pensou que houvera algum engano e mostrou-
me a carta. Foi inocente demais para compreender o que
significava. — Ernest fez uma pausa, antes de acrescentar,
mais suavemente do que nunca: — Mas acontece que Martin
jamais comete erros em coisas importantes. E eu sabia
exatamente o que aquilo significava.

Um silêncio opressivo seguiu-se a essas palavras. O rosto


de George estava sombriamente inchado. Deixou escapar um
som estrangulado, meteu um dedo entre o pescoço e a
gravata. Joseph, parado atrás de Ernest, levou a mão à testa
suada, com uma expressão angustiada. Armand continuava
imóvel, parecendo apenas ligeiramente interessado. O
próprio Martin descobriu-se incapaz de olhar para qualquer
deles, olhando para o chão, acabrunhado.
George finalmente voltou a falar, em voz murcha,
abafada. Os olhos estavam meio vidrados. Olhava para
Ernest com ódio e fúria, mas dirigiu-se ao irmão e Armand:

— Joe, Armand... vocês não podem acreditar que roubei a


firma, não importa o que diga esse desgraçado. Esse maldito
garoto é uma verdadeira víbora! Ora, eu é que criei a firma! É
minha! Por que haveria de roubá-la? — A raiva subitamente
dominou-o por completo, como uma inundação, em que se
debatia e se afogava. — Se acreditarem nisso, se acreditarem
nesse miserável, então é melhor saírem daqui! Saiam! Saiam!
Saiam!

A voz dele alteou-se estridentemente. Bateu no peito


várias vezes, com o punho cerrado, olhando furioso para
todos, os olhos avermelhados. A testa estava arroxeada.

Joseph e Martin olhavam assustados para essas


manifestações. Martin se levantou e foi postar-se atrás de
sua cadeira, como um abrigo, apertando-a convulsivamente.

— Santo Deus! — gritou Joseph. — Nunca imaginei que


um filho meu... Não posso acreditar! É infernal demais! Um
engano! O que está tentando fazer, seu demônio? Algo me
dizia há anos... Mas que diabo, fale logo de uma vez!

Joseph arriou numa cadeira, gemendo, esfregando a testa


suada com as costas da mão. Armand mexeu-se pela primeira
vez, olhando para Joseph com uma compaixão impessoal e
um tanto estranha. Depois, tornou a concentrar sua atenção
em Ernest, que estava imóvel, num silêncio inflexível,
esperando. Sempre esperando. E olhando exclusivamente
para o tio. O fogo aumentou de intensidade. O cachorro de
George, fora de casa, uivou na escuridão.

Depois de um longo tempo, George pareceu recuperar o


controle. Um pensamento qualquer deve ter-lhe ocorrido,
pois, de repente, a cor púrpura começou a desvanecer-se de
seu rosto, os olhos brilharam com rancor. Para espanto de
todos, ele até sorriu. Deu um passo na direção de Ernest, o
punho cerrado ameaçadoramente, a outra mão erguida e
apontando para o rapaz.

— Eu o estava testando ainda agora, seu desgraçado! Isso


mesmo, eu o estava testando! Não há problema, Joe. Deixe-
me acabar com isto. Vou pôr esse fedelho em seu lugar,
antes de dar-lhe um muno no queixo. Então encontrou a
carta, não é mesmo, seu ladrão sorrateiro? Pois vou explicá-
la! Nunca pensei que seria obrigado a fazê-lo, que pudesse
ser envergonhado e escarnecido dessa maneira! Mas vou
explicar tudo! Vou falar desse dinheiro extra que você se
atreve a dizer que roubei! Quer saber o que foi? Uma
comissão paga discretamente a um agente, um amigo do
pessoal de Trenton, que serviu como intermediário!

George fez uma pausa, deixando que a informação


penetrasse na mente da audiência, enquanto fitava-os com
uma expressão furiosa e triunfante, esperando que
rastejassem a seus pés em arrependimento, Joe olhava para
ele num silêncio satisfeito e aturdido, assim como Martin.
Ernest esperava, inabalável, inexpressivo. Armand
simplesmente esperava.

George riu, bruscamente, roucamente, acenando com a


cabeça.

— Pensei que pudesse perceber tudo! Foi uma comissão,


está entendendo? Sabe muito bem como há anos estamos
tentando pegar um contrato de Trenton e subitamente
conseguimos! Eu é que consegui! E fiz isso pagando a
Henderson, o agente deles, uma comissão... a diferença! E
pode estar certo de que continuarei a lhe pagar uma
comissão, se for necessário para garantir a transação! E tem
mais uma coisa: qualquer um de vocês pode escrever para
qualquer dos nossos clientes e perguntar... comparar os
pagamentos deles com os meus registros nos livros! E se
forem capazes de me mostrar uma só moeda de diferença,
juro que lhes entregarei a fábrica! Cairei fora! Entregarei
tudo a vocês!

Ele virou-se para Ernest, ameaçador. Mas a expressão de


Ernest era de indiferença cansada. Joseph tornou a se
levantar, ficou sacudindo a cabeça. Parecia ter murchado.

— Não diga mais nada, George. Não é necessário. Vou


levar os rapazes para casa agora. Eu... eu vou compensá-lo
por tudo isso... de alguma forma. Não sei como, pois, me
parece que nada poderá reparar a enormidade do que
aconteceu aqui hoje. Ernest... Não sei o que deu nele. Nunca
poderia imaginar... Meu próprio filho... Sei que ele jamais
gostou de você, apesar de toda a bondade com que sempre o
tratou. Posso perceber agora que ele estava esperando...

Ele parou de falar. Ernest virara-se para fitá-lo, calma e


firmemente. Surpreso, Armand notou que a expressão do
rapaz era quase de compaixão. Os olhos tão frios e intensos
suavizaram-se de forma inacreditável.

— Isso mesmo, pai, eu estava esperando — disse Ernest,


gentilmente. — Tenho esperado para lhe provar como seu
irmão é um ladrão e patife.

O rosto tornou-se outra vez frio e brutal. Ernest virou-se


bruscamente para George, que avançava para cima dele.
George estacou abruptamente.

— Canalha! — bradou Ernest. — Eu sabia que mentiria


para se livrar! Ou pelo menos tentaria! Mas não vai
conseguir! Eu tinha certeza de que tentaria encobrir suas
patifarias! Mas quero que explique uma coisa! Quando
descobri a carta, tive certeza de que era verdade o que
sempre pensei a seu respeito. Mas fiquei em dúvida sobre
até que ponto teria ido. Assim, escrevi discretamente para
quase todos os nossos clientes, indagando o quanto haviam
pago pelas diversas remessas.

A boca de George se entreabriu, enquanto ele permanecia


parado. De súbito, ele parecia alquebrado e doente,
terrivelmente desesperado. Um sorriso ameaçador insinuou-
se no rosto de Ernest. George apoiou-se no encosto de uma
cadeira.

— Descobri uma coisa que não esperava! — exclamou


Ernest. — Esperava encontrar uma diferença no preço, como
nesta carta. Mas não encontrei. Havia encoberto tudo
meticulosamente. Nesse aspecto, estava tudo em perfeita
ordem. — Ele fez uma pausa dramática. — Mas descobri
outra coisa! Os clientes mencionavam remessas, uma em
cada cinco, pelas quais haviam pago, mas das quais não
constava qualquer registro no escritório! E todos pagaram
em ordens emitidas expressamente em seu nome, Tio
George!

A voz de Ernest baixara, tomara-se mais suave, quase um


sussurro.

— Oh, Deus! — exclamou Joseph, bruscamente, para


depois acrescentar, a voz entrecortada: — Não posso
acreditar! Santo Deus, não posso acreditar!

Ernest virou-se para ele, gritando:

— Pergunte a ele! Vamos, pergunte! Pergunte sobre as


noites em que ele ficou trabalhando até tarde, ‘a fim de
resolver alguns problemas”! Pergunte a Gordon, o capataz,
que está metido na tramoia com ele e só me confessou
quando ameacei entregar o caso à polícia! Pergunte a
Gordon! Ele está disposto a contar tudo o que sabe! Gordon
está neste momento na casa de Armand, esperando. Eu
poderia tê-lo trazido, mas isso revelaria tudo desde o início e
eu queria que você, pai, visse por si mesmo o patife que seu
irmão é!

A emoção em Ernest era tão rara, quase tão desconhecida,


que aquela súbita explosão de raiva, a voz repentinamente
alteada, os gestos furiosos, tiveram um efeito assustador e
paralisante sobre a audiência. Todos fitavam-no aturdidos,
até mesmo George. O sangue apareceu nos lábios arroxeados
de George, quando ele mordeu a língua. Joseph engoliu em
seco, teve uma ânsia de vômito, convulsiva, tornou a engolir
em seco. Fechou os olhos. Martin virou a cabeça,
estremecendo, depois olhou fixamente para Ernest,
fascinado. A boca gentil tremia, havia uma expressão de
censura nos olhos. Somente Armand continuava sentado
calmamente, sem exibir qualquer indício de emoção.

Joseph se mexeu. Estendeu a mão para o filho e disse,


quase num tom de lamúria:

— Ernest, por que não me contou tudo isso... no começo?


Teria evitado toda esta cena. E daí que ele tenha roubado?
Homens melhores já o fizeram. E, afinal de contas, foi ele
quem começou a oficina. De certa forma, lhe pertence. Não
estou querendo justificá-lo... desculpá-lo... Mas você bem
que poderia ter me contado tudo antes. — Depois de um
momento, ele acrescentou, a voz débil e trêmula: — Eu o
conheço, filho... conheço muito bem. Tinha algo em mente.
Pois diga logo o que é. Está querendo alguma coisa. O que é?
Encenou tudo isto com algum objetivo. E não é o que está
parecendo. O que deseja, afinal?
Novamente uma expressão de compaixão insinuou-se no
rosto de Ernest. Essa compaixão quase o liquidou, quase
arruinou tudo por que trabalhara. Mas ele logo se
empertigou. Somente Armand percebeu-o mudar
furtivamente de posição, observando-o com uma admiração
profunda, mas irônica.

— Eu só queria mostrar-lhe quem ele é, pai — respondeu


Ernest, gentilmente, os olhos distraídos, enquanto
manobrava.

Conseguira! George fora compelido ao silêncio, à


imobilidade, mordendo a língua e manchando os lábios com
sangue, as veias se dilatando. Não era desejo nem plano de
Ernest que o tio permanecesse calado. Queria que ele
bradasse, esbravejasse, acabasse de consumar a desgraça
que lhe caíra sobre a cabeça. O silêncio era o refúgio de
George, mas ele não sabia. Só foi sabê-lo depois, quando já
era tarde demais. Compreendeu então, amargamente,
furiosamente, que se tivesse ficado calado, Joseph o teria
defendido, que as coisas acabariam por se ajustar, de alguma
maneira difícil e tortuosa. Compreendeu também que Ernest
o forçara a falar, obrigara-o deliberadamente a romper o
silêncio. Se ao menos tivesse ficado calado, deixando que
Joseph o ajudasse...

Ernest deu um passo na direção dele, fitou-o com


expressão agressiva e desdenhosa, provocando-o.

— Você me chamou de patife, mas não passa de um


ladrão! Roubou as ideias de seu irmão, vendeu-as em
proveito próprio! Roubou-o! Roubou a todos nós, roubou
nossas vidas, nosso tempo e nosso trabalho! E só para poder
ganhar mais dinheiro, para nos olhar desdenhosamente, para
bancar o superior, logo você, que não está à altura de lamber
as botinas de meu pai! — Ernest fez uma breve pausa,
olhando fixamente para o tio. — Mas isso não importa agora!
Já sabemos quem você é! E vamos cuidar para que toda a
cidade também saiba! Veremos então o que acontecerá!

Deu certo. Por um momento, Ernest receou que não fosse


funcionar, pois George permaneceu calado, sob o ataque
brutal. Mas ele logo entrou em ação. Desferiu um soco na
direção de Ernest, que desviou-se, rindo com desdém.
George perdeu inteiramente o controle. Ficou cego,
espumando pelos cantos da boca, balbuciando
incoerentemente, sacudindo os braços, impotente. E acabou
gritando:

— Saiam daqui! Todos vocês! Saiam da minha casa, saiam


da minha oficina! Estão liquidados! Já arranquei tudo o que
queria de vocês e agora vão embora sem nada! Se me
aparecerem de novo, vou chamar a polícia! E mandarei a
todos para a forca, que é o que merecem!

George estava exultante, brutal, implacável. A voz estava


estridente de triunfo, uma risada rancorosa lhe sacudia o
corpo. O dia da vingança finalmente chegara!

— Há muito tempo que venho esperando por este


momento, seus desgraçados! Queria pô-los em seus lugares,
com meu pé em seus pescoços! As ideias de vocês! Ora, as
ideias de vocês só existem para homens como eu se
apropriarem e aproveitarem! Venho esperando por este dia,
contando com isso, fazendo um esforço para que
acontecesse! E agora chegou o dia! Vamos, saiam todos
vocês! E levem apenas as camisas que têm no corpo! Voltem
à sarjeta, de onde saíram! Já tenho tudo! Olhem só para isso!
Tenho tudo! E o que vocês têm? Nada! Não passam de uns
mendigos miseráveis! Saiam logo da minha casa!

Ernest escutava, observando cada palavra com a maior


satisfação, sorrindo. Estava pálido de exaustão. Mas vencera.
Outra vez. Virou-se para o pai. Joseph exibia uma expressão
de incredulidade diante daquela explosão rancorosa e brutal,
diante da auto revelação do irmão. E gradativamente,
enquanto escutava, o rosto esguio e bonito foi se contraindo
e se endurecendo, tornou-se quase cruel. Os lábios pálidos
não passavam de uma fenda, sem qualquer vestígio de
compaixão. Somente Martin olhava para George com alguma
compaixão, a boca se mexendo, enquanto implorava
silenciosamente ao tio que ficasse calado. Martin também,
além de Armand, podia perceber o que estava acontecendo, o
que Ernest estava fazendo.

— Pode ver agora quem ele é, pai — disse Ernest,


suavemente, depois que George calou-se, ofegante. Ele olhou
com firmeza para o tio e acrescentou: — Já disse o que
queria. E agora quem vai falar sou eu. Acho melhor escutar
direito, prestar muita atenção. Disse-nos para sair daqui.
Pois é o que vamos fazer. Com o maior prazer. Não
poderíamos continuar a desfrutar de sua hospitalidade,
depois desta noite.

Mas não vamos sair desta casa e deixá-lo com as nossas


ideias. Não foi capaz de se apropriar delas, embora tenha
tentado. Saiba que patenteamos nossas ideias, meu caro tio!
Nunca ouviu falar de patentes? Pois eu lhe mandarei um
livrinho a respeito pela manhã. Poderá então compreender
tudo. Ah, já sabe de tudo, hem? Era o que eu imaginava. Isso
toma as coisas mais fáceis para todos nós. Pois temos as
patentes para nossa pólvora, nossas armas, nosso canhão,
nossos explosivos! Patentes de tudo! E o que você tem? Nada,
absolutamente nada, além das paredes vazias de sua fábrica!

E Armand tem 12 mil dólares na fábrica. O pai também


tem alguma coisa. Assim, em última análise, parece que você
tem muito pouco. E nós é que temos tudo. Claro que foi um
pequeno erro da sua parte. Mas posso perceber, por sua
expressão, que está agora compreendendo tudo.

Ele fez uma pausa. George olhou de um para outro,


cabeça baixa, olhos acuados e desesperados. E sussurrou,
numa voz estrangulada:

— Seus miseráveis... canalhas...

Ninguém disse nada, por algum tempo. George sentou,


lentamente, pesadamente, como se o corpo inteiro lhe
doesse, depois de golpes violentos. Sentou com os joelhos
bem abertos, a cabeça inclinada para frente, os olhos
injetados, a fúria consumida, os punhos cerrados sobre as
coxas. Não havia qualquer vergonha em sua atitude,
nenhuma tentativa de esquivar-se, defender-se, explicar-se.
Não podia mais praguejar e insultar. Irradiava maldade,
selvageria, um anseio brutal de vingança, como alguma fera
poderosa e acuada. Olhava para o irmão, os sobrinhos e
Armand Bouchard com intenso ódio, aversão, raiva
incontrolável. Martin sentiu vergonha pelo tio, uma profunda
compaixão. Estava também angustiosamente perplexo. Já
vira muitas pessoas naquela situação, acuadas em atos
vergonhosos, sem sentirem culpa ou vergonha, mas exibindo
raiva e ódio contra os acusadores. Martin queria que o tio
exibisse algum remorso. Instintivamente, sabia que, se isso
acontecesse, Joseph ainda poderia defendê-lo, talvez até
salvá-lo da ruína para a qual Ernest o compelia
inexoravelmente.

Martin olhou para o rosto desviado do pai, olhou para


Armand, ainda impassível, olhou para Ernest, controlado e
implacável. Sentiu vontade de falar alguma coisa, introduzir
algum som naquele silêncio tenebroso. Sentia que cada
momento de silêncio, cada instante a mais que ficasse sem
falar, representava mais um passo do tio na direção da
desgraça irremediável. Mas não podia falar. Alguma coisa
emanava do irmão que mantinha toda interrupção perigosa
numa espécie de encantamento compulsório, que mantinha
toda emoção concentrada em seu desígnio. Ernest mantinha
a todos inertes, imóveis, desprovidos de vontade, incapazes
de fazerem qualquer coisa irrelevante e misericordiosa.

George finalmente falou, não numa voz derrotada, mas


em tom rouco, impregnado de ódio e desdém:

— Está bem, está bem. Você me pegou de jeito. Eu poderia


dizer uma porção de coisas, mas não vou fazê-lo. Não
adianta tentar discutir com um safado como você. O que vai
fazer? O que pode fazer?

Todos relaxaram, com um ligeiro som de suspiro. Ernest


sentou, com uma expressão determinada, implacável.
Dirigiu-se ao tio friamente, calmamente, como se fosse uma
conversa inconsequente:

— Tem 15 mil dólares na oficina. Além disso, concedeu-se


um salário de quase dois mil dólares por ano. Além desse
salário, seus roubos montaram a um total entre oito e dez
mil dólares. Ainda não encerrei o levantamento, mas terei
todos os dados amanhã. Estamos dispostos a lhe devolver os
15 mil dólares, ao longo de um período de três anos, além de
dois mil dólares extras, por razões sentimentais.

Ele sorriu ligeiramente. George desmoronou. O rosto


inchou a proporções alarmantes, ficou inteiramente roxo.
Subitamente, as lágrimas transbordaram de seus olhos
avermelhados. Os lábios grossos tremiam.

— Santo Deus! — sussurrou ele, olhando de um para


outro, agora como um homem que encara seus carrascos. —
Dezessete mil dólares! Por todo meu trabalho, por todo meu
esforço, por todos os anos em que quase passei fome e
trabalhei como um escravo... Tudo o que consegui ter na
vida! Tudo o que consegui acumular em muitos anos...

A voz foi se tomando tensa, minguando. Ele soluçou


bruscamente, apenas uma vez, depois cobriu o rosto com as
mãos grossas e trêmulas.

Se ele tivesse mencionado a mulher e a filha, Ernest o


teria desprezado totalmente, poderia até retirar as ‘razões
sentimentais’. Mas George era sincero, estava mesmo
profundamente abalado. Joseph não podia suportar a cena. O
rosto pálido ficou inteiramente branco, contraindo-se em
espasmos. Não olhou para Armand ou Ernest, mas sim para
Martin. E Martin fitou-o com expressão conturbada pela
compaixão. Estimulado pela expressão do filho, Joseph
rompeu o silêncio opressivo:

— Tudo isso é terrível. Mas 17 mil dólares não são


suficientes. Vamos conceder essa quantia e mais uma
participação na firma. Uma porcentagem das ações!

Ele virou-se para Ernest, quase suplicante.

— Não — disse Ernest, firmemente.

Joseph teve um dos seus súbitos e violentos acessos de


raiva.

— Com todos os diabos! Quem é você afinal, um fedelho a


querer dar ordens? Claro que reconheço que nos prestou um
grande serviço, descobrindo esses... esses prejuízos! Mas, no
final das contas, não é Deus Todo-Poderoso! Há outros aqui
que também têm o direito de se manifestarem! Pois eu digo...

Ele parou de falar abruptamente, apesar de tenso de fúria.


Pois Armand, pequeno, moreno e vigoroso, levantara-se, com
o cachimbo na mão. Olhou para todos com seus olhos
pequenos e brilhantes, que estavam calmos, intensos e um
pouco irônicos.

— Tem toda razão, meu caro Joseph — disse ele, em sua


voz incisiva, carregada de sotaque. — Está absolutamente
correto. Há realmente outros por aqui que têm o que dizer. E
eu sou uma dessas pessoas. Ernest fez-me um pequeno
relato de todo o problema. Pode tomar conhecimento de
todos os detalhes e cifras, quando quiser. E agora, na
qualidade de quem tem diversas patentes e 12 mil dólares na
firma, digo que se deve fazer o que Ernest está sugerindo:
esse homem tem de sair.

Sem olhar para George, ele apontou-lhe a haste do


cachimbo, enquanto continuava a fitar Joseph fixamente.
Desconcertado, aturdido, Joseph começou a ficar vermelho
de impotência.

— Eu não estava a favor dos 17 mil dólares — acrescentou


Armand, suavemente. — É dinheiro demais... para um ladrão.
Ele nos traiu. E se não fosse seu irmão, meu caro Joseph,
tenho certeza de que estaria do nosso lado, disposto a
entregá-lo à polícia para ser levado ao tribunal. Pelo que ele
fez, a pena varia entre dez e 20 anos. A lei não é muito
indulgente com os ladrões. Contudo, Ernest e eu decidimos
ser indulgentes, devolvendo a esse homem, o traidor de seu
irmão, sobrinhos e um amigo, o seu investimento original,
mais dois mil dólares extras. Há uma condição que Ernest
não mencionou, mas que torno a liberdade de dizer agora.
Pela consideração que estamos lhe dispensando, inclusive
não o entregando à polícia, ele deve deixar este país. E nos
próximos 15 dias. Caso contrário, vamos retirar a oferta e
processá-lo.
— Vá para o inferno! — gritou Joseph. — Esse homem é
meu irmão!

— Não insulte a minha inteligência por mais tempo,


Joseph — disse Armand, em tom angustiado. — Não sou um
homem paciente. Detesto a coação. Deixei a minha terra
muito amada porque não quis me submeter à coação. Mas,
em nome da razão e na defesa dos seus próprios interesses,
devo coagi-lo. Se esse homem não concordar com nossos
termos, não apenas vou me retirar da firma, como também
providenciarei uma ordem para a prisão dele,
imediatamente.

Joseph ficou em silêncio por longo tempo. Ele olhou do


rosto imperturbável de Armand para o rosto frio e
implacável de Ernest. Depois, ele disse amargamente ao
filho:

— Não estou compreendendo. Você é a minha carne e


sangue.

Um brilho débil insinuou-se no rosto de Ernest. Joseph


esperou, mas Ernest não falou. O pai suspirou e continuou:

— Dizem que o sangue sempre fala mais alto. Mas não é o


que acontece em seu caso, Ernest. Parece odiar tudo o que
partilha o seu sangue. Odeia o seu irmão Martin, detesta as
suas irmãs. Talvez algum dia venha a me odiar também. —
Ele fez uma pausa. Quando tornou a falar, a voz estava
alteada, ligeiramente histérica: — Talvez algum dia faça
comigo exatamente o que está fazendo agora com seu tio.

— Você é um tolo, Joseph — disse Armand, sereno.

Joseph virou-se para o irmão, dizendo, em voz suave e


lisonjeira, como a que se usa com uma criança que se julga
ter sido punida com severidade excessiva:

— Tenho três mil dólares guardados, George. São seus.


Vinte mil dólares dão quatro mil libras, uma verdadeira
fortuna na Inglaterra. Anime-se! Volte para a Inglaterra e
divirta-se! É uma fortuna que lhe dará para viver muito bem!

— Esses três mil dólares também são meus — interveio


Ernest. — E não quero que meu dinheiro seja entregue a um
ladrão. Recuso-me a permitir.

Joseph fez-lhe uma careta, desdenhosamente.

— Nessa eu te peguei, meu rapaz! Ainda não tem 21 anos.


O que é seu, é meu! Ainda não é maior!

Ernest, apanhado de surpresa, olhou furioso para o pai.


Armand interveio outra vez, suavemente:

— Eu também me recuso a permitir. Sei que não tenho


qualquer autoridade sobre o seu filho, meu caro Joseph, mas
posso compreender o que é a justiça. Seu filho trabalhou
muito mais do que outros rapazes de sua idade teriam feito
para ganhar esse dinheiro. Não tem o direito de privá-lo
agora. E tenho certeza de que não o fará. — Ele virou-se para
Ernest, cujos lábios lívidos estavam tremendo,
surpreendentemente. -Se você for roubado, mon petit, venha
procurar o velho Armand e meteremos esse patife atrás das
grades.

Ele pegou o seu chapéu surrado e um tanto grotesco.


Aparentemente, era grande demais para o corpo murcho,
embora a cabeça o ocupasse inteiramente. Meteu-o na
cabeça, parecendo um gnomo sob um chapéu de gigante. Os
cabelos pretos caíam pelas faces morenas e enrugadas, os
olhos pequenos brilhavam intensamente. Apesar do chapéu,
apesar das roupas muito largas, apesar das botinas imensas,
ele parecia um duende lépido. Fez uma mesura requintada
para a audiência aturdida.

— Com imenso pesar, tenho de deixá-los agora. Espero


que não seja por demais precipitado ou exageradamente
sentimental, meu caro Joseph. Já falei o que tinha a dizer.
Não vou mudar de ideia. Apresente minhas desculpas a
Madame Barbour, meu bom monsieur, por eu não poder ficar
sequer para desejar-lhe boa-noite.

E ele se retirou, tranquilo, pequeno, encarquilhado. Um


momento depois, Ernest pegou seu chapéu numa mesa de
nogueira. Sem olhar para o irmão, o pai ou o tio, ele seguiu
Armand. Encontrou o pequeno francês avançando
rapidamente pelas pedras do caminho, entre os olmos
desfolhados. A lua parecia presa entre os galhos das árvores,
riscada por traços escuros, losangos e triângulos. O ar estava
muito frio e parado. Ernest foi andando em silêncio ao lado
do amigo, incapaz de falar, enquanto Armand cantarolava
baixinho.

Armand finalmente disse, de forma descontraída, como


se estivesse comentando o tempo:

— Saiu-se muito bem, meu jovem amigo. Mas tome


cuidado, que pode chegar o dia em que não se sairá tão bem.
CAPÍTULO XII
Em menos de 48 horas, toda a história, devidamente
ampliada e enfeitada, estava circulando por Newtown e pela
parte de Oldtown que se interessava. Era algo misterioso,
porque certamente nenhum dos Barbours falara coisa
alguma, muito menos George e Daisy, acabrunhados de
frustração e com a desonra familiar. Não obstante, a história
foi se espalhando rapidamente, como fogo em mato seco. De
certa forma, pouco se falava a respeito da participação de
Armand e Joseph na história. Tudo era atribuído a Ernest.
Homens como Ernest não são muito amados num mundo que
prefere a simplicidade e o comodismo, que escolhe os
caminhos conservadores, em que não há exigências,
imediatismo e ambição. Sua própria presença deixava os
indolentes inquietos, deixava os incompetentes angustiados
com a sua incompetência. Ele fazia com que a filosofia dos
simples e dos complexos constituísse mera covardia, apenas
uma desculpa para a incompetência. O pior de tudo era o
fato de fazer com que o estúpido se tomasse menos
complacente e menos orgulhoso de sua própria estupidez.
Em toda a cidade, ele tinha apenas três amigos: o pai,
Armand e Eugene Bouchard. E de Armand, o astuto, Ernest
não tinha muita certeza.

Assim, a história que circulava não lhe conferia uma


auréola de virtude. Houve até alguns homens inteligentes,
que sempre desprezaram George, que acabaram chegando à
conclusão de que Ernest na verdade roubara o tio, acuando-o
a uma falsa posição, a fim de despojar-lhe de seus bens e
seus direitos. Passaram a odiá-lo com uma força renovada,
pois temiam-no. Mas o respeito relutante e secreto que
sentiam por Ernest tornou-se ainda maior.
Ao tomar conhecimento da história, Gregory Sessions
chamou John Baldwin e contou-lhe tudo. Os dois sorriram
astutamente. Gregory sacudiu a cabeça, o sorriso tomando-se
mais amplo.

— Não nos enganamos em relação ao rapaz, hein, John?


Foi uma coisa certa? Tenho certeza de que ele irá longe. E
podemos acompanhá-lo, especialmente por que ele
convidou-nos.

Não se passou muito tempo para que outra história


sensacional se espalhasse pela cidade. The Sessions Steel
Company estava ‘ligada’ à firma Barbour & Bouchard. Os
novos rifles e pistolas, de excepcional qualidade, pretos e
polidos, a inveja daqueles que não os possuíam, tinham
agora uma inscrição em letras pequenas: “B&B. Feito com
Aço Sessions.” As palavras constituíam um verdadeiro
galardão.

Pouco depois, a fundição foi ampliada, contratando-se


mais 20 homens, além dos 15 que já trabalhavam ali. Novas
máquinas, de aparência exótica, chegaram de Pittsburgh.
Faziam um barulho prodigioso e os homens declaravam que
eram ‘melhores do que humanas’. Um novo atracadouro foi
construído perto do antigo. Havia ocasiões em que as
barcaças ficavam aguardando em filas pela carga de caixotes
e barricas que saíam da fundição. Barbour & Bouchard
possuía agora as maiores instalações industriais de Windsor.
Anúncios elaborados de seus produtos eram publicados nos
jornais das grandes cidades. Publicações que atingiam as
regiões mais remotas do país exibiam desenhos objetivos e
elogios comedidos dos novos rifles e da pólvora ‘superior’.
Ernest escrevia pessoalmente os anúncios. Era quase que um
pioneiro nessa arte. Teve uma ideia brilhante, provavelmente
a primeira de seu gênero: cada comprador pelo reembolso
postal do Rifle de Caça de Qualidade Áurea recebia
‘gratuitamente, sem qualquer custo’, um relógio de prata ou
‘um elegante relógio de mesa que bate as horas
musicalmente’. Ele negociara a compra dos relógios quando
lera por acaso, num jornal de Filadélfia, a notícia sobre a
bancarrota do fabricante. O sucesso da iniciativa foi
espetacular. Mas depois que obteve os recursos necessários
para a aquisição de máquinas adicionais, Ernest abandonou o
esquema de prêmios para os compradores. Usara meios não
muito dignos para alcançar um objetivo; mas, a partir do
momento em que estava garantido esse objetivo, ele tratou
de restaurar a dignidade.

Um dia, nesse mesmo ano, ele recebeu a visita de um


cavalheiro excepcionalmente trigueiro, mas elegante, que
tinha algo de vagamente espanhol nas feições, de uma
estranha tonalidade de mogno. Ernest ocupava agora a antiga
sala de George e recebia todos os visitantes, vendedores e
compradores de armas. Ficou imediatamente alerta quando o
cavalheiro trigueiro e elegante entrou na sala. Fechou a porta
com uma cortesia incomum, fez-lhe sinal para que sentasse,
cuidadosamente fechou a janela, embora o ar da primavera
estivesse quente. Mantinha sobre a mesa uma caixa de
estanho com charutos de boa qualidade, para visitantes de
extrema elegância e alta classe. Instintivamente, ele estendeu
a caixa por cima da mesa. O cavalheiro, depois de se
acomodar, sentando rigidamente com uma dignidade quase
militar, embora usasse uma roupa de casimira e gravata da
mais pura seda, pôs o chapéu um pouco lustroso em cima da
mesa. Um perfume delicado e sutil desprendeu-se de seu
lenço, quando assoou o nariz discretamente. Não fez isso
para ofender Ernest. As mãos douradas e esguias, quase
como as mãos de mulher, carregadas de anéis faiscantes,
também não infringiram as conveniências. Ele ficou
esperando, solenemente, que Ernest falasse, os olhos fixados
no rosto ainda jovem. Eram olhos pretos e brilhantes,
faiscando tanto quanto os dentes muito brancos.
O cavalheiro pôs seu cartão na mesa, diante de Ernest.
“Señor Emanuel Cardonova” estava escrito ali, as letras
cheias de arabescos e floreios. Ernest leu o cartão, levantou
os olhos e examinou atentamente o visitante. O homem
sorriu. Havia algo de tão cativante em seu sorriso que Ernest
prontamente retribuiu-o.

— Em que posso servi-lo, senhor? — perguntou Ernest.

Ele hesitara antes de falar “senhor”, mas acabara


chegando à conclusão de que era melhor do que tentar imitar
a pronúncia castelhana.

— Posso presumir que tudo o que lhe falarei aqui será


absolutamente confidencial? — indagou o Señor Cardonova,
em voz suave e sonora, com um forte sotaque, as palavras
parecendo envoltas por veludo.

— Posso lhe garantir que qualquer coisa que queira dizer


não passará além destas paredes — declarou Ernest, solene.

O Señor Cardonova sorriu, apenas ligeiramente. Mas havia


algo nesse sorriso que deixou Ernest um pouco corado. O
visitante inclinou-se para frente, dizendo gentilmente:

— Não tenho alternativa senão confiar em sua discrição,


Señor Barbour. Claro que poderá trair-me, agora... ou mais
tarde. Não poderei fazer nada. — Ele fez uma pausa, sorrindo
mais insinuantemente. — Talvez... — A luz em seus olhos
adquiriu uma frieza extrema. — Assim sendo, Señor, estou à
sua mercê. Vai aceitar ou rejeitar a minha proposta. Se
aceitar, terá muito o que lucrar. Se rejeitar, vamos nos
separar como homens honrados, com expressões mútuas de
consideração esquecendo que sequer nos conhecemos.

— Creio que podemos ir direto ao ponto — disse Ernest,


calmamente.

O Señor Cardonova levantou as mãos num gesto


expressivo.

— Ah, os americanos! Como são apressados! Mas tem toda


razão. Como disse, é melhor eu ir direto ao ponto. Sou do
México, Señor.

Ele fez outra pausa, esperando. Os olhos de Ernest


estreitaram-se ligeiramente, mas logo tomaram a ficar
impassíveis.

— Não está tão surpreso? Não, posso ver que não está.
Señor Barbour, há uma facção no México extremamente rica.
Mas dispõe de poucas armas, quase não tem pólvora. É uma
facção que tem sido vilmente insultada e atacada. Não
preciso dizer como ou por quem. Muito território tem sido
arrancado de meu pais, injustamente.

Houve outra pausa, mas prolongada, opressiva. A


expressão de Ernest não se alterou, exceto por uma
compressão lenta e deliberada dos lábios. Ele continuou a
olhar firmemente para o visitante. O cavalheiro mexicano
continuou:

— Não é apenas esse o problema. Meu país está


mergulhado no caos. Nossa facção deseja controlá-lo, impor
a ordem e a civilização. Nossa população é estranhamente
misturada, constituída por bárbaros, índios e espanhóis. A
população deve ser transformada numa só, o banditismo
liquidado, a lei e a dignidade restauradas. Para muitas
coisas, portanto, precisamos de armas e pólvora... e de dez
bons canhões.

Ernest virou-se na cadeira, uma das mãos cerradas por


cima da mesa, olhando pela janela, para o rio lá embaixo. O
rosto parecia uma máscara de ferro em sua determinação.
Era um rosto jovem, mas estranhamente amadurecido. Ele
sempre fora assim. E agora perguntou, em sua voz baixa,
sem qualquer inflexão definida:

— O que o leva a pensar que podemos fazer isso? O que o


leva a pensar que poderíamos querer fazer isso?

— Eu não podia saber com certeza — respondeu


Cardonova, suavemente. — E cheguei à conclusão de que só
poderia saber quando tentasse. Claro que tem concorrentes,
muito maiores. Mas o que eles produzem não é bom o
bastante para nós. Precisamos do melhor, armas que não
falhem, pólvora que funcione direito, canhões que acertem
no alvo. E pode nos dar todas essas coisas.

Ernest continuou a olhar pela janela. Estava muito pálido.

— Deixe-me ver suas credenciais — disse ele, sem olhar


para o outro homem.

— Com todo prazer.

O mexicano pegou a maleta preta que deixara no chão,


entre os pés, ao sentar. Abriu-a e tirou documentos lacrados,
que pôs em cima da mesa. E, como se fosse por casualidade,
pôs ao lado dos papéis uma pistola carregada, que Ernest
imediatamente constatou ter sido fabricada por Barbour &
Bouchard. Sua boca contraiu-se por um instante. Pegou os
documentos, leu-os cuidadosamente, observando de vez em
quando o rosto sereno e sorridente do mexicano. Por fim,
empurrou os documentos sobre a mesa e disse,
bruscamente:

— Não estou prometendo nada, mas gostaria que me


dissesse exatamente o que precisa.

— Dez mil rifles, dois mil barris de pólvora e dez canhões


— respondeu o mexicano prontamente, os dentes faiscando
no rosto moreno, enquanto falava.

Se Ernest ficou aturdido e desconcertado com o pedido,


não deixou transparecer. Os olhos claros não se desviaram
dos olhos de Cardonova.

— É uma encomenda grande... muito grande mesmo.


Levaríamos algum tempo para produzir tudo. Nossas
instalações ainda não estão preparadas para produzir uma
encomenda dessas proporções. Podemos produzir em uma
semana dois mil rifles. E levaríamos mais quatro semanas
para providenciar o restante.

O mexicano deu de ombros, sacudiu a cabeça


vigorosamente, gritando;

— Precisamos de tudo em duas semanas!

Ernest levantou-se, começou a andar de um lado para


outro da sala. E falou, sem olhar para o mexicano:

— Tenho certeza de que compreende o que isso significa.


Se formos descobertos, estaremos arruinados. E não preciso
dizer que o mesmo lhe aconteceria. Meu pai, nosso sócio,
todos os nossos esforços e nossas vidas, tudo estaria
liquidado. — Ele parou abruptamente, fitando Cardonova. E
acrescentou, com um ligeiro sorriso: — Serei honesto. Sua
oferta me tenta, embora ainda não tenhamos discutido o
preço, que naturalmente seria bastante alto. Por mais
tentado que esteja, no entanto, sei que o risco seria muito
grande. Perderíamos tudo, enquanto que o senhor...
— Perderia apenas a minha vida? — disse o mexicano,
sorrindo. — Não, não precisa ficar contrariado, porque não
estou aborrecido, nem sou um homem frívolo. Posso
perceber claramente que, para um jovem como você, a vida
não é tão valiosa quanto o sucesso. Acha que minha vida
nada representa em comparação com a sua ruína. Quem
sabe? Talvez até esteja certo.

— Seria traição — disse Ernest, pensativo, meio para si


mesmo.

Ao ouvir tal palavra, o rosto do mexicano tornou-se


inescrutável. E ele disse, quase que com indiferença:

— Isso não passa de uma palavra. E as palavras são para


crianças, não para homens. Especialmente não para homens
que fabricam os instrumentos da morte. Como é o seu caso.
Palavras são para santos, bebês, mulheres. Obscurecem as
intenções, como a respiração no vidro. Não vamos trocar
palavras que sejam destituídas de sentido objetivo.

Os dois realistas fitaram-se em silêncio por um instante,


perfeitamente controlados. Depois, Ernest perguntou:

— Qual é a sua proposta?

O mexicano sorriu suavemente.

— Exatamente o dobro dos seus preços habituais.

Ernest sacudiu a cabeça. Havia um brilho de suor se


insinuando em sua testa.

— Não é suficiente. Terá que ser três vezes mais.

— Você é um ladrão — disse o mexicano, sem qualquer


rancor, ainda sorrindo. — E um preço alto demais, mesmo
para a honra. E não estou comprando a honra.

Ele conhecia agora o homem com quem estava lidando,


profundamente. Por um instante, houve um brilho intenso
nos olhos de Ernest. O mexicano continuou, gentilmente:

— Isso mesmo, não estou comprando honra. Não sou


Satã. Sou apenas um pobre patriota mexicano que está
tentando fazer um negócio honesto. Falou em ser honesto.
Creio que deseja apenas que o seu antagonista seja honesto,
meu caro Señor Barbour, pois lhe é inteiramente impossível
ser honesto. Não que eu seja contra isso, diga-se de
passagem. Os homens honestos vivem da caridade alheia na
velhice. Os asilos de indigentes estão repletos de homens
que jamais roubaram uma única moeda. Os homens honestos
são tolos e santos, algo que nós não somos.

Ernest disse, com um sorriso impassível:

— Esquece que estou arriscando mais do que a honra.


Arriscarei o meu futuro, o futuro de meu pai, de meu irmão,
de meu sócio. Se formos apanhados, o preço que lhe exijo
nada significará. Quero três vezes mais do que nossos
preços habituais. E, mesmo assim, nada posso lhe prometer.

O mexicano estudou-o por um longo momento. A


expressão de Ernest era indecifrável. Depois, Cardonova
tornou a abrir a maleta, tirando pacotes pequenos e
compridos. Abriu os pacotes e notas de mil dólares-puro
espalharam-se sobre a mesa. Cardonova fitou o dinheiro com
uma expressão de adoração, murmurando:

— São cinco mil dólares americanos! — Ele tocou nas


notas com a ternura de um amante. — Que coisa milagrosa!
Que coisa esplêndida!
O mexicano levantou os olhos para o rosto de Ernest.
Eram olhos radiantes, dominados por uma intensa paixão.

— Isto... agora. Ao final da semana, mais dez mil. Sei que


estou sendo fraco, mas aceito o negócio nos seus termos. No
momento em que a mercadoria for despachada, mais 50 mil.
E em cinco bancos discretos de Nova York serão depositados
mais 65 mil dólares em seu nome, no dia seguinte ao
carregamento passar pela fronteira. — Ele fez uma pausa,
antes de arrematar: — Essa é a minha oferta, Señor Barbour.
A primeira e última. Agora, cabe-lhe aceitar ou rejeitar.

Ernest sentou-se, um pouco depressa demais. O brilho em


sua testa era agora intenso. Olhava para o dinheiro como se
estivesse hipnotizado. Cardonova sorria, fumava
calmamente, esperava.

Subitamente, Ernest levou a mão ao rosto, como se


quisesse ocultar a visão do dinheiro. Cardonova percebeu
que os lábios dele estavam lívidos e comprimidos.

— Há pouco risco, se é que existe mesmo algum, a não ser


para mim — disse o mexicano, com um ar de franqueza. —
Ficará com o dinheiro. Estou em suas mãos. Nós estamos em
suas mãos. Poderá trair-nos, com a maior facilidade. Mas só
de olhá-lo tenho certeza de que não irá nos trair. E não por
causa de... honra. Não vai trair-nos pela perspectiva do lucro.
E o lucro não anda de mãos dadas com a honra. Sei que não é
um homem que se contente com ninharias. Há um grande
destino à sua espera.

O mexicano ficou esperando, sugestivamente. Mas Ernest


não se mexeu. Continuava impassível e Cardonova só podia
perceber uma única coisa, os lábios se tornarem ainda mais
lívidos.
— Há pouco risco — repetiu o mexicano. — Barcos
contratados por nós atracarão aqui inocentemente, em plena
luz do dia. Serão carregados. Você não saberá qual o destino
deles. E, 30 dias depois, pode pegar seu dinheiro nos bancos.

Ernest baixou a mão que lhe cobria o rosto. Parecia


inteiramente esgotado.

— É muito dinheiro. E o México é pobre. Quem o está


ajudando?

Cardonova deu de ombros, sorriu, os olhos brilhando


como os de um animal selvagem.

— Ah, Señor Barbour, está fazendo perguntas que não


interessam! Trata-se exclusivamente de uma questão de
negócios. Vai fornecer-nos suas armas e sua pólvora. E
receberá em troca o nosso dinheiro. Isso é tudo o que pode
interessá-lo.

Ernest se levantou outra vez, foi postar-se ao lado da


janela. O sol de primavera sobre o rio era ofuscante. Havia
barcaças atracadas na margem. A fábrica zumbia, os homens
cantavam e gritavam à distância. Ele levou a mão à testa,
limpou o suor.

E disse, sem se virar:

— Tenho certeza de que sabe que a Sessions Steel


Company possui 33,3 por cento do nosso capital. Devia ter-
se informado de tudo, antes de vir procurar-me. Não posso
consultar meu pai num caso assim. Nem nosso sócio,
Armand Bouchard. Meu pai é um desses homens que
colocam a honra acima de tudo. E Armand... ele é um homem
que sabe enxergar a luz da razão, mas não concordaria com
a transação. Veio para este país em busca de refúgio. E
jamais consentiria em se expor a tal risco. Mas preciso
consultar alguém. Para ser mais especifico, preciso
conversar com o Sr. Gregory Sessions. — Ele virou-se para o
mexicano, que parecia cauteloso e surpreso, acrescentando:
— Podemos confiar no Sr. Sessions.

Havia algo em seu tom que tranquilizou Cardonova, fê-lo


sorrir outra vez, insinuantemente.

Meia hora depois, os dois haviam chegado à Sessions


Steel Company e foram introduzidos na sala de Gregory.
Ernest, de maneira surpreendentemente concisa, relatou
toda a história a Gregory, enquanto Cardonova permanecia
sentado em silêncio, apenas sorrindo, mas percebendo tudo
atentamente. Estava bastante aliviado. Estudara o rosto de
Gregory Sessions pelos últimos dez minutos, sem deixar
escapar coisa alguma. Tinha certeza de que ali estava outro
realista, para o qual as palavras não tinham maior
importância.

Gregory escutou tudo em silêncio, os lábios contraídos,


recostado na cadeira, as mãos brincando com uma pena, o
rosto ligeiramente virado. Depois, quando Ernest parou de
falar, ele levantou a cabeça e olhou para os dois homens
afavelmente, quase com indulgência. Levantou um ombro.
Estava um pouco pálido, apesar do sorriso.

— Claro que compreendo que não devemos contar coisa


alguma a Joseph ou Armand — disse ele, em sua voz
elegante.

Ele examinou com calma o rosto subitamente surpreso de


Ernest. O rapaz esperava considerações, opiniões, análises
criteriosas, argumentos. Por isso, estava surpreso com a
serenidade de Gregory, que indicava, por sua atitude, que
não tinha a menor hesitação, nem mesmo cogitara de
recusar.

— Isso mesmo, é melhor não dizer-lhes nada — continuou


Gregory. — Tudo pode ser acertado. — Ele fez uma pausa,
pensativo, antes de acrescentar, com um sorriso irônico: —
Pode contar-lhes... ou eu próprio o farei... que se trata de
uma encomenda discreta para o exército, por intermédio de
meu irmão. Uma encomenda de experiência ou qualquer
outra coisa assim. E não se pode fazer comentários a
respeito. Mais tarde, Ernest, poderemos formular uma ideia
melhor para resolver esse problema. Creio que não haverá
maiores dificuldades. Joseph é inocente demais para fazer
muitas perguntas e Armand é muito discreto. Armand é
francês. Se farejar a possibilidade de lucro, mesmo que não
cheire muito bem, vai ficar calado e seguir em frente. Basta
ninguém lhe pedir para cheirar com insistência. Ou lhe
oferecer explicações. Os franceses detestam explicações.
Aliás, diga-se de passagem, têm toda razão nisso.

Ernest olhava aturdido para aquele rosto sorridente e


cínico, com uma expressão satírica. Estremeceu
abruptamente, quando os olhos irônicos encontraram-se com
os seus. Ainda era bastante jovem para experimentar uma
pontada de repulsa, embora transitória. Mas no mesmo
instante ficou envergonhado de si mesmo, pensando que
estava se tomando ‘mole’. Mas... Gregory Sessions, o
americano tradicional, o cavalheiro de reputação ilibada!
Depois disso jamais gostou de Gregory. E, com o passar dos
anos, viria a odiá-lo. E haveria de odiá-lo, ele pensaria
desdenhosamente, porque Gregory não demonstrara
qualquer sentimentalismo com um jovem que detestava o
sentimentalismo, não deixara transparecer qualquer
escrúpulo momentâneo para um jovem que desprezava o
escrúpulo!

Num tempo espantosamente curto, todos os detalhes


foram acertados. Gregory calculou com precisão a
quantidade de aço necessária, com a ajuda de Ernest,
enquanto Cardonova continuava sentado, em silêncio,
sorrindo, examinando as unhas e brincando com a corrente
do relógio.

Quando ficou a sós com Ernest, pouco depois, Gregory


disse:

— Os fabricantes de armas e munições devem fazer


negócios com estranhos demônios. Obrigatoriamente, são as
pessoas mais neutras do mundo. As guerras nada significam
para eles, assim como nunca significaram coisa alguma para
os homens práticos. Um demônio vence, outro perde... é
tudo a mesma coisa para os fabricantes de munições.
Deixemos que os outros se odeiem. O que devemos sempre
fazer é aproveitar o lucro e permanecer neutros.

Isso deixava evidente, para um Ernest subitamente


humilhado, que Gregory Session era um homem muito astuto
e não deixava escapar coisa alguma.

— Está se saindo muito bem, meu caro Ernest —


acrescentou Gregory, sorrindo. — Mas a fortuna sempre sorri
àqueles que o destino marca para o sucesso.

Ele acompanhou Ernest até a porta, com a mão no ombro


do rapaz. O corpo esguio e elegante contrastava com o corpo
mais baixo e atarracado de Ernest.

— Sabe onde eu moro, Ernest? Falei muito a seu respeito


para minha sobrinha, Amy Drumhill. Amanhã é domingo. E
se eu dissesse a ela que você vai comer conosco, às três
horas? Esplêndido! Estarei esperando-o às três horas.
Poderemos então discutir muitos assuntos, com todo o vagar
necessário.
CAPÍTULO XIII
Haviam passado seis meses desde que George Barbour e a
família voltaram à Inglaterra.

Ninguém sabia com certeza o que Ernest pensava. Ele


dizia pensar certas coisas, concordar, admitir, usava frases
banais. Fingia acreditar em muitas coisas, usar os processos
de pensamento dos outros. Mas fazia tudo isso apenas para
alcançar determinados efeitos, certos resultados. O que
realmente pensava, quais as palavras e frases que usava para
si mesmo, isso era algo que ninguém sabia. Havia ocasiões
em que era um ator excepcional.

Fingia estar inteiramente alheio ao constrangimento que o


pai agora exibia em sua presença, um certo retraimento da
confiança antiga. Fingia não perceber os olhares de Martin,
que sempre desviava a cabeça bruscamente no momento em
que o fitava. Escutava com um sorriso suave, que já
começava a se tomar automático, a defesa que a mãe fazia
de sua participação no caso de George Barbour. Hilda
declarou um dia:

— Devo dizer, Joseph, que não está fazendo justiça ao


rapaz. George era um patife, como você próprio admite. E
um ladrão miserável. Quando eu era pequena, levavam
homens assim para a forca, acorrentados. Mas nosso filho
denuncia as patifarias de George e você o censura por isso.
Devia ficar de joelhos e agradecer-lhe por ter descoberto
aquele ladrão a tempo!

Virando-se para Ernest, com uma expressão protetora, ela


acrescentou:

— Não se preocupe, Ernest. Compreendo tudo


perfeitamente. E concordo com você. Foi tudo muito certo,
Ele era um ladrão. Estava nos roubando. E ninguém pode
querer ladrões por perto, não é mesmo? Você estava
absolutamente certo.

— Claro que eu estava certo, mãe —respondeu Ernest,


gentilmente. — Este mundo já é difícil o bastante para
homens honestos sem a presença de ladrões.

Martin raramente se preocupava em atrair a atenção de


Ernest. Quase não lhe falava. Mas, naquele momento, olhou
para Ernest com uma expressão solene, enquanto dizia a
Hilda:

— Ernest não se importa absolutamente com o fato de Tio


George ser um ladrão, mãe. Há muito tempo que ele queria
afastá-lo. E teve sorte em descobrir as manobras
fraudulentas de Tio George no momento certo. Ele finge que
concorda com você a respeito do roubo porque acha que é
isso o que pode compreender. Sabe como chamam essa
atitude, não é mesmo, Ernest? É hipocrisia.

— Você sempre foi muito bom com as palavras, não é


mesmo, Martin?

Ernest não falou com cinismo ou com agressividade


imatura, mas com o tom que se usa para se dirigir a uma
criança, quando se está entediado. E, no instante seguinte,
ele saiu da sala. ‘'Ernest é um vilão, mas não parece”, pensou
Martin, desolado. “Eu mesmo quase não consigo acreditar.
Mas tenho certeza de que ele é um vilão.”

No dia seguinte, Martin procurou o irmão no escritório.


Mas Ernest não estava lá. Fora para as oficinas. A oficina
principal era comprida, atravancada, um tanto escura, com o
cheiro forte de pólvora, graxa por toda parte, o ar
impregnado de nuvens de poeira de ferro e aço. O assoalho
de madeira e até mesmo as paredes vibravam com os
tremores dos motores na sala ao lado. As janelas pequenas e
altas estavam abertas, deixando entrar o sol quente da
primavera, que se derramava prodigamente sobre as pilhas
de armas inacabadas espalhadas pelo chão, sobre as
máquinas a zumbirem em que os homens trabalhavam,
polindo e esmerilhando. Joseph e Armand estavam juntos de
Ernest, ao lado de uma máquina parada, discutindo com o
operador o motivo pelo qual não estava funcionando. Joseph
e Armand estavam sujos de óleo, malcheirosos. Os braços
estavam escuros, os rostos pareciam máscaras de graxa.
Ernest tirara o casaco, deixando à mostra a camisa branca.
Estava inclinado sobre a máquina, examinando-a, o sol
incidindo sobre os cabelos claros, o rosto contraído em
atenção.

Martin não gostava das oficinas. Havia algo nelas que o


assustava. Uma arma pronta assustava, ao mesmo tempo que
o fascinava, por sua beleza utilitária. Ele era propenso a
passar mal com cheiros muito fortes e o odor de pólvora
provocava-lhe dor de cabeça. Tinha alguma apreensão de
máquinas. Alguma coisa na monotonia constante e impessoal
das máquinas incutia-lhe uma sensação obscura de terror.
Havia ocasiões em que pensava: um homem pode morrer
diante delas, esvair-se em sangue, contorcer-se de agonia,
que as máquinas continuarão a rodar, interminavelmente,
para todo o sempre, sem perderem um momento sequer,
sem tomarem conhecimento de coisa alguma. E ele sentia-se
apavorado de pensar que alguma coisa, até mesmo
máquinas, pudesse se mostrar indiferente à angústia e à
morte. Era como um pesadelo, uma insinuação da vasta
impessoalidade e do mecanismo implacável que esperava
além das fronteiras da realidade pelas almas dos homens. Ele
se angustiava diante do espectro de um mecanismo morto
que se movia em ritmos inexoráveis, que a tudo realizava,
criava e fazia sem qualquer vida, calor ou desejo. Estava
ficando convencido, para seu horror, de que Deus era assim,
como alguma máquina pavorosa, a se movimentar
implacavelmente.

Assim, cada vez mais, Martin permanecia afastado das


oficinas. É verdade que, durante todo o dia de trabalho, em
sua sala pequena e abafada, ficava assediado pelas vozes
malignas das máquinas, vozes monótonas, ameaçadoras,
guturais e triunfantes. Há muito tempo que não entrava nas
oficinas e naquele dia pareceram-lhe mais fétidas, mais
barulhentas e mais assustadoras do que nunca. Encaminhou-
se para o irmão, que estava concentrado demais na máquina
defeituosa para perceber sua aproximação. A cabeça de
Ernest estava quase enfiada no interior da máquina, os dedos
apertando e mexendo especulativamente em diversas molas,
parafusos e engrenagens. Joseph e Armand ficaram olhando
em silêncio para Martin, esperando que ele falasse. Mas
Martin olhava apenas para o irmão. E disse, alteando a voz
acima do barulho infernal das máquinas:

— Ernest, o Sr. Beveridge acaba de mandar um rapaz da


serraria para perguntar sua resposta a respeito da casa do
Tio George. Ele quer saber se já chegou a alguma decisão
sobre a oferta que apresentou.

Ao deixar a América, George vendera sua casa a Ernest


por seis mil dólares. Ernest pagara dois mil dólares na
ocasião, enviando os outros quatro mil depois de suas
negociações com o Señor Cardonova. Duas semanas antes,
recebera uma oferta de nove mil dólares do Sr. Edwin
Beveridge, o superintendente da Galby Lumber Mills, uma
serraria em que Gregory Sessions possuía participação
considerável. Ernest manifestara sua satisfação pela oferta e
anunciara que provavelmente a aceitaria. Mas,
aparentemente, alguma coisa o levara a protelar o
fechamento da transação.

Ele não respondeu a Martin por um longo momento. Foi


somente quando Martin, pensando que o irmão não o ouvira,
começava pacientemente a repetir as palavras, que Ernest
levantou a cabeça das entranhas da máquina, dizendo:

— Não vou aceitar. Pode mandar o mensageiro transmitir


esse recado. Obrigado, Martin.

Ele limpou as mãos sujas de graxa com um pedaço do


pano velho que o operário lhe entregara. Sacudiu a cabeça,
olhou para o pai e Armand.

— Vamos ter de devolver a máquina. Não está prestando.


É melhor remeter-lhes a nota, Martin, junto com uma carta.
Providenciaremos o embarque da máquina pela manhã, bem
cedo.

Martin estava surpreso, assim como Joseph.

— É uma excelente oferta, Ernest — disse Joseph. — sabe


muito bem que nove mil dólares não é uma quantia que se
encontra todos os dias. E é inútil tentar convencer sua mãe a
mudar-se para Oldtown. Ela é inteiramente contrária a isso. A
casa está vazia, você se recusa até mesmo a alugá-la. Por
acaso está com a esperança de que Beveridge possa
aumentar a oferta?

— Ele não conseguiria a casa, mesmo que oferecesse duas


vezes mais — respondeu Ernest.

Era raro Ernest não olhar para o pai quando lhe falava.
Agora, no entanto, ele parecia concentrado demais em limpar
a graxa dos dedos com o pedaço de pano. Havia estranha
palidez em seu rosto contraído.
— Essa não! — exclamou Joseph, sorrindo. — Por acaso
está pensando em casar e morar naquela casa, filho?

Ele esperava um sorriso de Ernest, talvez mesmo uma


risada. Não estava preparado para a expressão impassível
com que Ernest fitou-o.

— É possível — respondeu ele, calmamente. — É possível.

— Será possível que o nosso Ernest tornou-se a vítima de


uma paixão incontrolável? — indagou Armand, com um
divertimento um tanto sardônico.

— Isso jamais aconteceria com Ernest! — disse Joseph,


incisivamente. — Não o nosso rapaz! Ele tem bom senso
demais para isso!

Ele ficou esperando por alguma explicação de Ernest.


Mas, tendo acabado de limpar as mãos, Ernest vestiu
cuidadosamente o casaco, que deixara numa bancada de
trabalho. Parecia indevidamente preocupado em abotoar o
casaco. A expressão tornou-se contrariada, um tanto irritada,
o rosto cada vez mais vermelho.

Joseph estava alarmado. Afastara-se ostensivamente do


filho nos últimos meses e agora estava consternado ao
descobrir que isso o privara de alguma coisa, ao invés de
Ernest. Talvez o rapaz já tivesse escolhido alguma jovem,
certamente alguém que não estava à altura dele. A moça só
podia ser desprezível, caso contrário Ernest já teria falado a
ele ou a Hilda. Com todo o seu conhecimento do caráter do
filho, Joseph ainda podia sentir-se apreensivo com a moça
que Ernest era capaz de escolher para mulher.

— Nunca se sabe — ele dizia frequentemente, quando


alguém lhe falava da contradição humana.
Ele sabia que os conhecimentos de Ernest na cidade eram
bem poucos, que o filho não tinha qualquer amigo. Se
conhecia alguma mulher, provavelmente não passava de uma
das ‘pensionistas’ de Madame Fleury, na Chestnut Street.
Joseph não tinha ilusões a respeito dessa parte da vida do
filho. Tão certamente como se Ernest lhe dissesse, sabia para
onde o filho ia nas noites de sábado, quando vestia-se
cuidadosamente, quase com elegância, montava em seu
próprio cavalo e se afastava. Nisso, como em todas as coisas,
conforme Joseph sabia perfeitamente, Ernest seria um
realista. Não haveria muita aventura em suas incursões,
quase nenhuma alegria, riso, bebida ou mesmo êxtase. Seria
exclusivamente uma questão de necessidade. Ernest ia à casa
da Chestnut Street, a casa onde residiam lindas moças, da
mesma forma como outro homem iria à taverna. A fim de
satisfazer uma fome. Joseph sentia alguma curiosidade
masculina, sem qualquer delicadeza, sobre o que acontecia
entre Ernest e a mulher que lhe providenciava a satisfação.
Daria tudo para saber, mas jamais pensaria em perguntar. Às
vezes, pensava: o rapaz ainda é muito moço para isso. Não,
não é isso. Afinal, eu já estava casado na idade dele e Hilda
esperava um filho. Além do mais, Ernest nunca foi jovem. Eu
deveria ter-lhe falado alguma coisa. Há as doenças e tudo o
mais. Mas, por alguma razão, nunca se pode dizer qualquer
coisa a Ernest. Ele dá a impressão de que espera que os
outros cuidem de sua própria vida, mesmo obrigado.

Ele sabia que Ernest evitava cuidadosamente as casas em


que havia moças casadouras, que estavam sempre expostas,
lembrando sugestivamente uma vitrine. Assim, pensou o
alarmado pai, só podia ser uma jovem que não estava à
altura de Ernest.

— Se Armand está certo, só espero que não seja alguma


rameira da cidade — disse ele, num tom irritado de
advertência.
Joseph ficou no mesmo instante envergonhado e
revoltado consigo mesmo. Tendo exprimido as palavras,
tinha certeza de que todo o seu pensamento fora errado.
Queria pedir desculpas. Mas Ernest, sem responder,
encaminhou-se sem qualquer pressa para o escritório,
seguido pelo pai, o irmão e Armand. Se por acaso se sentia
ofendido, isso não era evidente em sua expressão, que era
um tanto pensativa e ligeiramente contrariada.

Joseph entrou na sala de Ernest, atrás do filho, e fechou a


porta. Ernest baixou os punhos, ajeitou o casaco e sentou.
Sem olhar para o pai, pegou a pena e puxou uma pilha de
contas.

Joseph apoiou as mãos na mesa e inclinou-se para frente.

— Desculpe se falei alguma coisa que o magoou, rapaz.


Sei quem você é. Não deveria ter esquecido. Deveria saber
que, se você tivesse a ideia tola de casar, certamente falaria
comigo. — Ele riu bruscamente, antes de acrescentar: — Você
tem muito bom senso para casar agora.

Ernest escreveu algumas observações numa conta.


Depois, levantou os olhos claros e suaves, sem qualquer
afeição ou bondade, fitando o pai com a maior tranquilidade.

— Mas acontece que estou planejando casar e muito em


breve — disse ele, jovial.

Os olhos não se afastaram do rosto do pai. Por um


terrível momento, Joseph teve a impressão de divisar algo
irônico e maligno naqueles olhos. Eram subitamente os olhos
de um inimigo. Joseph não podia falar. Suas mãos afastaram-
se da mesa e ele empertigou-se. Estava profundamente
magoado, dominado pelo ciúme, humilhado. Ernest voltou a
concentrar-se nas contas.
— Com a Srta. Amy Drumhill — ele acrescentou, depois
de um longo momento.

Joseph ficou atônito.

— Mas só tem duas semanas que a conheceu! — exclamou


ele, a incredulidade misturando-se com a satisfação em sua
voz. — Está querendo dizer que ela já o aceitou?

Ernest deu de ombros.

— Claro que não. Afinal, só a vi duas vezes. Mas... gosto


dela. É exatamente o que desejo numa mulher. E não há
sentido em esperar. Falarei com Gregory Sessions antes do
mês terminar. Até lá, já haverá tempo suficiente para falar
com ela.

Joseph piscou rapidamente, sacudiu a cabeça.

— Duvido que o Sr. Sessions possa considerá-lo


favoravelmente, rapaz. Afinal, ele é um aristocrata...

A convulsão brusca, que atualmente passava por um


sorriso em Ernest, voltou a se apresentar em seu rosto.

— Ele está no comércio, pai. Pensei que os aristocratas


jamais se empenhassem no comércio. Pelo menos, isso não
acontece em nossa velha terra.

Joseph perguntou-se vagamente por que nunca antes


notara realmente os olhos de Ernest. Ou teria notado? Não
podia saber com certeza. Eram olhos extremamente claros,
ofuscantes... como alguma coisa... o que seria? Estava na
ponta de sua língua: gelo, gelo num dia de inverno muito
brilhante. Implacáveis, desprovidos de qualquer emoção.
Mas não eram inteiramente destituídos de expressão: havia
zombaria, amargura, ironia e ganância naqueles olhos. Eu
não gostaria de ficar à mercê desse rapaz, pensou Joseph, na
maior confusão. Um medo vago invadiu-o. George
certamente devia ter visto aqueles olhos naquela noite
terrível e vergonhosa. Mas eu amo o rapaz, ele é minha carne
e sangue!, pensou Joseph, com uma pontada de angústia. Os
filhos não deveriam olhar para os pais daquela maneira. Mas
ele provavelmente olha para todo mundo dessa maneira. Só
que eu nunca havia notado antes. E, durante todos aqueles
meses, ele pensara que Ernest estava percebendo que o pai
se afastava, indignado! Ernest não apenas não percebera,
como também não se importara. Era Ernest quem estava se
afastando de todos que o amavam. E incutindo-lhes um
estranho medo, no processo. Subitamente, embora confuso e
perturbado, Joseph sentiu uma pontada intensa de
compaixão pelo filho. E foi uma compaixão que fez as
lágrimas aflorarem a seus olhos. Ele fitou firmemente os
olhos claros do filho, que tinham o brilho do gelo.

— De qualquer forma, duvido que ele possa considerá-lo


favoravelmente — repetiu Joseph. — Não vou dizer que você
não está à altura da moça. Mas será que o tio dela também
pensará assim? Afinal, ela é uma herdeira. — Houve um
rápido clarão nos olhos de Ernest. — É verdade que o Sr.
Gregory tem sido muito generoso conosco. Temos
progredido graças a ele. Aquele contrato do exército que ele
nos obteve, por intermédio do irmão, foi uma tremenda
sorte! — Joseph sorriu, com a maior satisfação, como sempre
fazia ao se recordar daquele golpe de sorte extraordinário. —
Mas você casar com a sobrinha dele é algo muito diferente.
Não se esqueça de que eu era um mero criado do Esquire
Broderick. E, apesar de estar no comércio, o Sr. Gregory tem
sangue bom.

Ernest inclinou a cabeça, examinando cuidadosamente


uma conta. E disse, em sua voz monótona:
— Não sou um homem doente. E estamos nos tomando
ricos. Tenho 20 mil dólares em minha conta. Nossa fábrica
está crescendo, mal conseguimos atender a todas as
encomendas. Precisamos arrumar mão-de-obra mais barata.
— Ele acrescentou a última frase, em voz mais baixa, meio
para si mesmo. Fez uma pausa, antes de continuar alteando
novamente a voz: — Estamos crescendo. Não demora muito e
seremos maiores do que a Sessions Steel. Sabe quanto nossas
ações valem atualmente? Apenas três dólares a menos do
que as da Sessions Steel. Isso é quase sem precedentes. A
Srta. Amy poderia arrumar algo bem pior.

Sua boca se contraiu num débil sorriso. Joseph ouviu-se a


perguntar, como qualquer outro pai sentimental:

— Mas não é porque a moça é uma herdeira que está


querendo casar, não é mesmo, filho? Gosta dela, não é?

Outra vez, sem levantar a cabeça, Ernest sorriu, fazendo


assim com que o pai se sentisse extremamente tolo e rude.

— As duas coisas, pai, as duas coisas — respondeu


Ernest, no tom jovial que usava com os inferiores e com
aqueles que o aborreciam. — Eu não casaria com uma moça
que não tivesse nenhum dinheiro. E também não casaria com
uma que não me agradasse. Mas Amy tem dinheiro e também
me agrada. — Ele fez uma pausa, antes de acrescentar,
distraidamente, ainda olhando para a conta: — Acho que
Amy é a moça ideal.

— Já falou com sua mãe?

Ernest fitou-o rapidamente, com uma expressão irritada.

— Não. E também não quero que ela saiba. Acho que fui
um tolo em falar alguma coisa agora.
— Por ter falado comigo? — Joseph estava indignado. —
Isso não é coisa que se diga, rapaz!

Ernest deu de ombros.

— Desculpe, pai — a voz dele era agora suave,


arrependida. — Não tive a intenção de magoá-lo. Queria
apenas dizer que ainda não há nada acertado e que foi uma
precipitação de minha parte falar a respeito.

Joseph não era tão sagaz quanto Martin. Aceitou com a


maior simplicidade as inflexões da voz do filho e foi
invadido por vasto alívio. Estava ficando imaginativo como
uma velha. Vendo coisas que não existiam. Se o rapaz
levantasse os olhos agora, com a expressão de adoração que
tinha quando era garoto, tudo estaria como antes. Mas Ernest
não levantou os olhos. Estava franzindo o rosto para as
anotações num pequeno livro preto.

— A encomenda da United Mills já está com dois meses —


disse ele, abruptamente. — Precisamos tomar alguma
providência. As pessoas não vão esperar interminavelmente,
por melhores que sejam os nossos produtos. Temos de
arrumar alguns estrangeiros. Tomarei a falar a respeito com
o Sr. Sessions e Armand. Não tem objeções, não é mesmo,
pai?

— Não tenho? — disse Joseph, irritado. — E por que pensa


assim, meu galinho de briga? Por que não pode contratar
operários americanos? Deus sabe que sempre se pode
consegui-los.

— Eles querem dinheiro demais — respondeu Ernest,


imperturbável, fingindo estar absorvido nas anotações no
livro. — Jamais poderemos progredir com o dinheiro que
eles exigem. Não podemos nos dar ao luxo de termos
trabalhadores americanos, quando nossos concorrentes
estão usando trabalhadores estrangeiros. Quando eles
tomam uma iniciativa assim, não podemos deixar de fazê-lo
também. Ou sairemos do negócio. Não estamos metidos
nisso por prazer, mas sim pelo lucro. E proponho que
conquistemos esses lucros o mais depressa possível.

— Trazer esses pobres-coitados para cá, a fim de


trabalharem por salários de fome, não é humano —
protestou o pai. — Sou contra. E sempre serei contra. Eles
estarão tirando o pão das bocas de trabalhadores
americanos. Além disso, reproduzem-se como coelhos. E não
vai passar muito tempo para que tenhamos uma nação
inteira como eles. As pessoas melhores serão acuadas contra
a parede ou simplesmente vão sumir. Sou inteiramente
contra. Temos de pensar também nos outros.

A linha do lábio superior de Ernest levantou-se apenas um


pouco, mas foi o suficiente para novamente despertar um
medo vago em Joseph.

— Está esquecendo que somos ‘estrangeiros’, pai.

— Não somos, não. Somos o mesmo povo. Não comece a


falar como um tolo, Ernest. Afinal, eles não estão 100 anos
distantes da Velha Inglaterra. Falamos a mesma língua. Pode
haver um governo em Londres e outro em Washington, mas é
tudo o mesmo povo. Mas quando você traz esses pobres-
coitados da Hungria, Prússia, Baviera e outros lugares
estranhos, não está trazendo a mesma gente. Está trazendo...
está trazendo estrangeiros. E estrangeiros muitas vezes se
tomam inimigos. É a natureza humana. E trazer estrangeiros
para o interior de suas muralhas é a melhor maneira de
cometer suicídio. Não podemos fazer isso com a América. É
o nosso país. Não podemos fazer isso com a nossa própria
gente. Temos de pensar nela também.
A mão de Ernest que segurava a pena pousou na mesa. Ele
contemplou o pai com um olhar firme, em que o desprezo se
misturava com o espanto e a surpresa.

— Pai, como sabe que esses homens não são como ‘nós’?
O que o leva a pensar que são inferiores?

Quando se sentia desconcertado e confuso, Joseph reagia


bruscamente. Foi o que aconteceu agora.

— Por acaso falei que eles eram inferiores? Disse apenas


que não são a mesma gente. Não se pode misturar óleo e
água. Nós... nós éramos livres na Inglaterra, assim como a
América é livre. Esses pobres-coitados não eram livres, não
sabem o que é ser livre. E isso é perigoso para a América. Há
patifes na América que se aproveitam desses pobres-
coitados porque eles não sabem o que significa ser livre. E
isso será terrível para os homens que sabem o que é a
liberdade. Não admitem as coisas que os estrangeiros são
capazes de suportar. Serão compelidos a passarem fome ou
renunciarem à sua liberdade. E, quando isso acontecer, este
país não mais será livre. Não se pode trazer ideias de
escravidão para um país livre, meu rapaz, e querer que este
país continue livre. Mesmo que o governo continuasse livre,
o povo não seria livre. Teria ideias de escravidão, teria a
mente de escravo. É muito perigoso.

Ernest esfregou o queixo meticulosamente, o sorriso


mecânico novamente em seu rosto. Não olhava para o pai,
mas sim para algum ponto do espaço, perto de seu braço
esquerdo.

— Acho que está se preocupando sem motivo, pai.


Precisamos de trabalho barato para as novas fábricas, para
povoar os novos territórios e construir nossas cidades. E
quando esses pobres-diabos arrumam um pouco de dinheiro,
tratam de voltar para a Europa. E mesmo quando ficam por
aqui, não chegam a ser notados. Não interferem. Tem toda
razão numa coisa: eles não sabem o que é a liberdade.
Assim, nunca vão atrapalhar ninguém, nunca vão incomodar.
Todo país precisa de uma classe trabalhadora e os
americanos são orgulhosos demais para constituírem uma
classe trabalhadora. Por isso mesmo, precisamos desses
estrangeiros. Não podemos dispensá-los. Mas ninguém se
mistura com eles, a não ser a ralé da América. Dessa forma,
teremos sempre os trabalhadores de que precisamos. E
vamos prosperar.

— Não haverá fim para a chegada deles até ser tarde


demais — advertiu Joseph, o excitamento crescendo, como
sempre acontecia durante uma discussão. — Os homens
sempre constroem diques depois que foram arruinados por
inundações. Mas nunca antes. Não, não posso concordar com
a sua ideia. Não quero ajudar a destruir o país que me
proporcionou a grande oportunidade da minha vida.

— Talvez os demônios estrangeiros também queiram ter


uma oportunidade na vida — comentou Ernest, em seu tom
mais suave e frio. — E quem é você para negar isso a eles?
Isso não seria um tremendo egoísmo?

Num súbito relance, Joseph viu o que Martin já percebera.


E disse, amargamente:

— Você não está interessado em proporcionar-lhes


‘oportunidades’. Só pensa nos lucros.

— E por que não? Claro que penso nos lucros. Para que
estamos no negócio?

— Vá para o diabo com os seus lucros! Não vou


concordar! Minha decisão está tomada!
Ernest escreveu alguma coisa no livro, em sua letra miúda
e impecável. E falou, sem olhar para o pai:

— De qualquer forma, pai, teremos uma pequena


discussão sobre o assunto. Faremos uma votação, o Sr.
Sessions, Armand, você e eu. Somos os diretores e
proprietários da firma. Compreendo perfeitamente o seu
ponto de vista e lamento muito que a situação chegue a esse
ponto, mas a decisão da maioria vai prevalecer, como
sempre.

Joseph sentiu-se sufocado pela impotência. E perguntou,


em voz rouca:

— Votaria contra mim, rapaz?

Houve um momento de silêncio.

— Lamento muito, pai, mas a companhia está em primeiro


lugar.

— Está querendo dizer que o lucro é mais importante do


que tudo! — gritou Joseph.

Ernest não respondeu. Estava com os lábios comprimidos.


Duro como pedra, pensou o pai, angustiado e temeroso. Ele
não tem coração. Pus um monstro no mundo. Onde será que
tudo isso vai terminar? Ele saiu da sala, batendo a porta
violentamente. Estava furioso, consciente de que fora
derrotado, sobrepujado por um pirralho. Não, Ernest não era
um pirralho. Nunca fora jovem, ansioso e gentil como os
outros rapazes. Joseph acelerou os passos. O rosto fino
estava vermelho-escuro, os olhos injetados, enquanto corria
para o lugar em que Armand estava. O francês ouviu os
passos apressados do sócio, mesmo com o barulho infernal
das máquinas. Virou-se imediatamente, alerta, na direção
dos passos. Os operários levantaram os rostos indiferentes
das máquinas por um momento. Ofegante, respirando com
dificuldade, Joseph puxou a manga de Armand. O francês
seguiu-o para uma parede distante, onde poderiam conversar
sem que ninguém os ouvisse. Joseph apertou-lhe o braço
freneticamente.

— Acabei de ter uma conversa com aquele meu filho,


Armand! Ele disse que vocês estão pensando em trazer
estrangeiros para substituir os nossos homens. Pagando
salários menores. Isso é verdade? Vamos, fale logo! Isso é
verdade?

Armand alteou as sobrancelhas pretas e hirsutas, sobre os


olhos pequenos e brilhantes. Observou Joseph firmemente
por longo momento, antes de dizer:

— Houve alguma conversa a respeito. Mas apenas uma


conversa trivial, meu caro Joseph. E você ouviu tudo. Está
excitado demais, meu amigo. Não é bom para os homens se
excitarem assim, depois dos 30 anos de idade. Trate de se
acalmar. Claro que já falamos sobre o assunto, mas não a
sério. Por que não espera para ver o que acontece?

— Oh, você está sempre esperando! — bradou Joseph,


com violência. — É o espírito francês em você, fazendo suas
jogadas dissimuladas, rápida e secretamente, e o tempo todo
dizendo aos outros para ‘esperar’. Esperar o que? Por
traição? Para que patifes façam o que bem entendem?

Armand sorriu. Bateu no braço de Joseph com dois dedos.

— Nunca acreditei na sua história de sangue francês, meu


bom amigo, até agora. Não há qualquer paciência em você,
não há a espreita e manobra astutas, não há diplomacia
insinuante. Em suma, há muito pouco de inglês em você. A
traição cairia muito mal em seu estômago. — Ele fez uma
pausa. — Eu lhe suplico para acalmar-se. Está vendo como
ofega? Há muito sangue escuro em seu rosto e isso não é
bom. Posso ser um francês... — outra pausa, o sorriso de
Armand se alargando — ... mas sou também um amigo. Seu
amigo de verdade. E aquele seu filho, na sala do tio, não é
seu amigo nem meu. É verdade que eu não permitiria que a
amizade destruísse uma perspectiva de lucro, mas também
não admito a traição. Confie em mim. Não haverá nada
secreto. Quando pensar mais a respeito, posso até discordar
de você, votar contra você. Mas será abertamente, sem
ressentimentos. Não vou ser falso com você. Assim, eu lhe
peço que acredite em mim, quando digo que nada ainda foi
feito ou sequer decidido. E talvez até nunca chegue o
momento em que tal providência será necessária. — Ele
encheu o cachimbo, cuidadosamente. — Agora você sabe
tanto quanto eu, não menos e nem mais.

Embora ainda desconfiado e furioso, Joseph sentiu-se um


pouco apaziguado. E disse, relutante:

— Estou contente por saber que a coisa não tenha


passado desse ponto. — Ele pensou por um momento, ainda
se sentindo bastante deprimido. — Não sei o que deu no
rapaz. Ele nada me diz. Foi apenas por acaso que me contou
que pretende pedir a Srta. Amy Drumhill em casamento. O
que é muita pretensão da parte dele. Mas ele nunca me conta
qualquer coisa.

Armand soltou um grunhido, inclinando a cabeça para o


lado e observando Joseph astutamente.

— Seu filho Ernest é um rapaz muito esperto. Nunca diz


coisa alguma. Nunca explica nada, não pede explicações.

E isso, pensou Armand, era extremamente sensato. Ele,


Armand, tinha algumas ideias a respeito daquele ‘contrato’
do exército, que um belo dia fora apresentado tão súbita,
agradável e vagamente por Gregory Sessions. Havia alguma
coisa estranha nas palavras de Gregory. Ele falara de um
contrato ‘experimental’, particular e obscuro, mas muito
lucrativo. Lucrativo até demais. Gregory acertara em cheio:
Joseph era um inocente e Armand muito esperto para fazer
perguntas. Tudo o que Armand esperava de uma situação
assim era que não houvesse a necessidade de pedir
explicações. Um homem deve resguardar sua dignidade. E as
explicações frequentemente liquidavam com a dignidade de
qualquer um. Não apenas isso, como também se
interpunham no caminho de lucros polpudos. Armand tinha
quase certeza de que, se conhecesse toda a história da
transação, seria forçado a recusar. Por muitas razões
constrangedoras. Neste caso, ninguém teria obtido coisa
alguma. Armand não tinha o hábito de examinar os dentes de
um cavalo dado e só queria que não lhe pedissem para fazê-
lo. O cavalo poderia ter muitos dentes ruins. Se não os visse,
no entanto, os dentes sempre lhe pareceriam perfeitos. Era
característico dele, ao deparar com alguma coisa que não
cheirava bem, tampar o nariz, mesmo na intimidade, mesmo
em seus próprios pensamentos. Especialmente se sua
consciência pudesse ficar perturbada com o cheiro. Assim,
Armand supervisionara tranquilamente a execução da
encomenda espetacular, o embarque em barcas inocentes,
que surgiram do nada e desapareceram no nada, tripuladas
por homens que eram tão rudes e desbocados quanto
quaisquer outros tripulantes.

De repente, ele percebeu que, enquanto pensava, a voz


irada de Joseph continuara a falar, interminavelmente:

— ... frio como um pepino! Por Deus, espero que a moça


lhe dê o fora!
Habilmente, Armand retornou a conversa:

— Mas Mademoiselle não será tola. Vai aceitar nosso


Ernest. Ou melhor, ele a conquistará. Sempre conquista tudo
o que quer. Mas talvez algum dia a vida não o aceite. E esse
dia será muito triste para o nosso jovem amigo.

— Ele pensa que vai se impor em tudo — disse Joseph,


ameaçadoramente. — Mas está enganado. Nunca permitirei
que isso aconteça, enquanto me restar algum alento!

Mas, enquanto inspecionava algumas armas já prontas,


Joseph não tinha tanta certeza assim.
CAPÍTULO XIV
Nenhuma das pessoas que conheciam Ernest, a exceção
de Armand, teria acreditado. Mas a verdade é que Ernest se
apaixonara por Amy Drumhill, tão intensamente que, por
muitos dias, teve a sensação de que um terremoto lhe abrira
a mente, deixando escapar pensamentos, desejos,
esperanças e absurdos. Mas ele mantinha o inferno interior
tão fundo, tão resolutamente oculto, que a compostura
exterior não se alterou, o clarão dos raios interiores não
chegou a aflorar à superfície dos olhos serenos e brilhantes.

Não era um incêndio violento que poderia acabar se


consumindo por sua própria voracidade. As cicatrizes do
terremoto haveriam de permanecer para sempre. A própria
geologia de sua mente estava convulsionada, mas
convulsionada pelo impacto de uma geleira e não de um
vulcão. A mente era como rocha e terra congelada, que fora
contorcida sob terrível pressão ártica e acabara rachando,
para nunca mais recuperar os contornos antigos. Um tipo de
mente mais tropical teria sido convulsionada por um vulcão,
teria se transformado em fogo líquido, teria escorrido num
fluxo incandescente. E quando o calor se desvanecesse, teria
retomado quase que inteiramente a forma anterior. Em
Ernest, a terra se convulsionou e as montanhas
desmoronaram, para nunca mais voltarem a se levantar.

Amy Drumhill era a única coisa viva no mundo que Ernest


Barbour sempre amara de verdade. Ele viveu para se tomar
um velho, mas jamais deixou de amá-la. Não era o tipo de
homem que podia ser transformado ou suavizado pelo amor.
Nele, o amor teve o estranho efeito de solidificar seu caráter,
reforçar ainda mais as partes que já eram fortes, acrescentar
o último toque rígido de maturidade, remover os atributos
que eram de menor utilidade em sua determinação.

Mas vários anos se passariam antes que Ernest


compreendesse como a amava profunda e totalmente, como
lhe era impossível racionalizar esse amor ou reprimi-lo. Ele
haveria de esquecer muitas coisas, várias da maior
importância, mas jamais esqueceria o dia em que conhecera
Amy Drumhill.

Não ficara muito excitado com o convite de Gregory


Sessions para comer em sua casa naquele domingo fatídico.
Há algum tempo que já sabia que o convite era inevitável,
seria feito mais cedo ou mais tarde. Ele e Gregory podiam se
usar mutuamente bem demais para permanecerem
estranhos. Claro que Amy Drumhill jamais estivera na usina
dos tios. Embora ainda não a conhecesse, Ernest já começara
a formular planos em relação a ela. Nada sabia a respeito
dela, sequer a idade, aparência ou caráter. Mas sabia que
seus tios eram Gregory e Nicholas Sessions e que era a única
sobrinha. Gregory não era comunicativo em termos de
relacionamentos pessoais. Embora desse a impressão de uma
franqueza elegante, na verdade nada revelava. Ernest sabia
vagamente que ele tinha outra parenta, a filha de uma prima
falecida. Tinha a impressão de que ela se chamava May
Sessions, mas não estava inteiramente certo. Gregory a
mencionara apenas uma ou duas vezes. Ernest julgava que
ela era contemporânea de Gregory. Mas quando falava de
Amy, o próprio cinismo de Gregory se desvanecia. Herdeira
de tudo o que os tios solteirões possuíam, ela seria de fato
um bom partido, pensava Ernest, friamente, sem se
considerar um presunçoso por um momento sequer. Não
tinha falsa modéstia. Conhecia todo seu valor e não nutria a
menor dúvida de que Amy poderia aceitá-lo. Estava também
consciente de que os tios dela teriam de ser cortejados e
conquistados, pois não tinha a menor intenção de casar com
uma moça que pudesse ser deserdada pelos tios irados.
Ele foi naquele dia à casa dos Sessions, com a mente
girando e estalando como uma de suas máquinas. A força
que havia nele aflorava, espalhava-se por todo o seu corpo.
Assim, sua atitude era exuberante e firme, triunfante. Ainda
por cima, era um adorável dia de primavera, quente e
agradável. E quando Ernest atravessou a linha férrea, que
separava Oldtown de Newtown, passando a andar pelas ruas
antigas, sonolentas, sob árvores frondosas, sentiu que
encontrara o seu lugar. Raramente estivera em Oldtown e
ficou agora maravilhado com as casas antigas e distintas,
bastante recuadas das calçadas, além de gramados bem
aparados, sebes de teixos e moitas de lilases. Olhou
atentamente para as varandas distantes, em que as saias
imensas das mulheres estavam enfunadas, desabrochando
em cores intensas. Podia ouvir os risos suaves e comedidos,
as vozes penetrantes. Ele olhou para os cavalheiros que
conversavam nos gramados, à sombra de imensas árvores.
Sentia-se igual a eles, se não mesmo superior. Olhou para as
carruagens suntuosas e polidas, que desfilavam com as
rodas faiscantes, os cocheiros e lacaios tão rígidos quanto
soldados, em seus uniformes brilhantes, os cavalos
lustrosos. Disse a si mesmo que algum dia, muito em breve,
teria também uma carruagem assim e criados iguais. Olhou
para os meninos bem vestidos, passeando no decoro
dominical com suas babás. Disse a si mesmo que algum dia
teria filhos assim, inteligentes, bonitos, saudáveis, a fim de
continuarem o que ele começara. A paz, suavidade e
graciosidade, as boas maneiras e a riqueza tradicional de
Oldtown, tudo o encantava, fascinava, ao mesmo tempo que
o animava, espicaçava uma ambição já intensa e voraz. A
casa que comprara do tio não seria de todo ruim, se fossem
removidas as decorações horríveis, acrescentada uma ou
duas alas para reduzir a altura angulosa, árvores frondosas
transplantadas para formar um círculo ao redor, um jardim
de verdade plantado, o estábulo ampliado. O dinheiro
poderia enriquecê-la, proporcionar uma pátina antiga e
graciosa. Ernest sabia vagamente que a tia mobiliara a casa
da pior forma possível. Ele já começara inclusive a vender os
móveis ostentosos e desconfortáveis. Serviria perfeitamente.
Compraria outro meio acre em torno da propriedade, a fim
de dar-lhe alguma dignidade. Podia se imaginar nitidamente
andando pelo caminho de pedras até a porta, que se abria
subservientemente diante dele, entrando em salões amplos e
agradáveis, suntuosamente decorados. Podia ouvir as vozes
infantis de seus filhos. Via a mulher aproximando-se para
recebê-lo, graciosa, atraente, mas com um rosto indefinido.
Mas podia ver nitidamente que era uma mulher refinada e
delicada, elegantemente vestida. Ela o tratava com toda
deferência, obedecia-lhe, servia-o como uma criada
privilegiada. Mas não se importava absolutamente em saber
se ela o amava ou não. Ela era apenas um acessório
necessário para uma perspectiva perfeita e progressivamente
ambiciosa. Ernest não imaginava a voz dela, se era bonita ou
feia. Só se importava com o fato de ela trazer-lhe o aço e as
serrarias dos Sessions, uma fortuna extraordinária.

Ele passara algumas vezes antes pela casa dos Sessions.


Mas nunca lhe parecera tão bonita, venerável e nobre como
naquele dia, cinzenta sob a folhagem de um verde intenso,
salpicada de raios de sol. Lá estava, num círculo de árvores,
firme, segura, com graciosa dignidade. Ali estavam casa e
paz, conforto e hospitalidade, urbanidade e requinte.
Alguma recordação das casas antigas na Inglaterra revolveu-
se nele, enquanto subia pela encosta suave, através dos
gramados, na direção da casa. Duas das janelas superiores,
escapando da folhagem, ardiam com o clarão amarelado do
sol. Dois imensos cachorros collies corriam e latiam entre os
canteiros de flores, através das árvores. Um cavalariço
assoviava no estábulo. Esse assovio, o suave zumbido das
abelhas e o farfalhar sonolento das folhas eram os únicos
sons que se ouvia em meio ao silêncio aprazível e
ensolarado. Enquanto Ernest aproximava-se dos degraus, os
cachorros foram atraídos, pulando e latindo. Ele estava tão
satisfeito naquele dia que podia até ser gentil com os
animais, de que normalmente não gostava. Assoviou para os
cachorros, estalou os dedos, chamou-os suavemente. Os
animais pararam abruptamente a poucos passos dele,
deixando de latir. Os rabos levantados, que se abanavam
alegremente, baixaram de repente. Os cachorros estenderam
os focinhos em sua direção, especulativamente, as cabeças
um pouco abaixadas. Ernest contemplou aqueles olhos
castanhos e brilhantes. Até mesmo ele, não acostumado a
animais, podia perceber a ansiedade e desconfiança naqueles
olhos. Isso deixou-o aborrecido e renovou a corte. Os
cachorros não se aproximaram, não recuaram, não reagiram.
Havia algo perturbador no olhar firme e inquieto dos
cachorros, no silêncio obstinado. Podia se perceber que eram
animais acostumados ao amor, gentileza e indulgência.
Estavam agora obviamente aturdidos e apreensivos, numa
situação em que cachorros mais experientes teriam rosnado
ou atacado. Ernest ainda era jovem e infantil o bastante para
ficar amuado com aquela ausência de entusiasmo por parte
de criaturas que estava preparado para gostar. Sua vaidade
estava ferida, de um jeito que nenhum ser humano poderia
ferir. Ele estendeu a mão subitamente e tocou um dos
cachorros com a bengala. O animal se encolheu, tremeu,
uivou, meteu o rabo entre as pernas e fugiu, seguido pelo
companheiro. Correram para trás da casa, desaparecendo na
direção do estábulo. Desconcertado, Ernest lembrou-se de
alguém comentando que ‘os cachorros sempre sabiam’.
Maldita superstição, pensou ele, sorrindo tristemente,
enquanto subia os degraus de pedra largos para a varanda.
Começou a franzir o rosto. Joseph, seu pai, era o mais gentil
e o mais íntegro dos homens, mas também não gostava de
cachorros, que retribuíam a antipatia. Não obstante, o
incidente contrariou Ernest. Ele perdeu o seu prazer muito
humano no traje preto novo, botinas reluzentes e chapéu
alto lustroso. Olhou irritado para a bengala nova de málaca,
com seu castão de ouro. Será que aqueles malditos cachorros
haviam mesmo estragado seu dia?

Mas no momento em que o criado abriu-lhe a porta,


admitindo-o num vestíbulo grande e quadrado, envernizado,
escuro e fresco, Ernest compreendeu que seu dia não seria
estragado. Contemplou com franco prazer e apreciação a
escada branca em espiral, subindo pela semiescuridão, o
relógio alto de nogueira preta, batendo solenemente no
silêncio aprazível, os espelhos compridos nas paredes. Foi
conduzido à sala de estar, onde o sol penetrava com um
suave clarão amarelado através das venezianas brancas,
espalhando-se pelos tapetes escuros, móveis delicados de
pau-rosa, um assoalho que brilhava como um espelho
escuro. Contemplou com profunda apreciação as mesas
ornadas e os lampiões de cristal, os candelabros de prata por
cima da lareira de mármore branco, o relógio de ouropel
batendo no silêncio, os retratos a óleo em molduras
douradas, nas paredes pintadas de marfim. Ah, ali estava o
que sempre quisera, tudo por que trabalhava e lutava! A cena
em sua mente mudou abruptamente: viu-se naquela casa,
como amo e senhor. Esqueceu inteiramente a casa do tio.
Aquele era o seu lugar, já preparado para ele! Sabia que Amy
Drumhill cuidava da casa para o tio e admirou, quase com
veemência, a perfeição do trabalho dela.

Gregory Sessions estava com a sobrinha no jardim nos


fundos da casa quando foi informado por um criado que o
Sr. Ernest Barbour chegara.

— Vamos, meu bem — disse ele à sobrinha, gentilmente.


— Nosso convidado chegou. Estude-o com todo cuidado. É
um patife, meu amor, um patife rematado e jovem. Deve
estar percebendo que não falo em tom de condenação, mas
sim de admiração. Qualquer coisa perfeita, mesmo um patife
perfeito, é admirável. Mas que inteligência, que ambição! Um
verdadeiro Napoleão. Mas peço que não me interprete
erroneamente. Não estou desdenhando nem profetizando,
mas simplesmente enunciando um fato.

— Sempre detestei Napoleão.

Amy Drumhill sorriu, pegando o braço do tio e


encaminhando-se para a casa em sua companhia.

— Não entendo como consegue suportá-lo, Tio Gregory,


sendo um homem de honra e integridade.

Gregory sorriu-lhe afetuosamente, não com uma pontada


melodramática de consciência culpada, mas apenas com um
divertimento terno pelo fato de que alguém aos 18 anos
pudesse ser tão inocente, tivesse tão pouca percepção. Ah, o
que iria acontecer com aquela moça?

Ernest estava absorvido na contemplação de um retrato


quando os anfitriões entraram na sala. Amy viu-o parado ali,
de costas para a porta, os pés bem plantados no tapete
diante da lareira, bem separados. Ela pensou, surpresa: mas
que ombros perfeitos e que cabeça grande e impecável! Mas
ele é um tanto baixo... não, ao contrário, é bem alto. Ela
notou as mãos, cruzadas nas costas. Que mãos grandes e
delicadas, morenas e fortes! Ernest virou-se lentamente ao
ouvi-los entrar. Mas que rosto heroico, que rosto sem vida!,
pensou Amy Drumhill. Não, não era tão destituído de vida,
constatou ela, mas controlado e rígido como pedra
esculpida, irradiando poder. Uma atração começou a invadi-
la lentamente e um brilho róseo insinuou-se em suas faces.

Gregory cumprimentou o jovem amigo com grande prazer


e cortesia. Apresentou-o à sobrinha. Ernest pegou a mão
pequena e suave de Amy, fitando-a solenemente. Descobriu
que tinha olhos castanhos brilhantes, do mesmo castanho,
salpicado de dourado, dos olhos dos cachorros hostis. Mas
os olhos dela eram gentis e tímidos, transbordando de
cordialidade. Estavam fixados num rosto pequeno e um tanto
pálido, de feições delicadas, a boca de um rosa-claro,
ligeiramente úmida. Tinha um nariz pequeno e reto, as
narinas delicadas. Podia não ser muito bonita, pelos padrões
convencionais, mas possuía uma meiguice e pureza de
expressão que a tornava irresistível. Os cabelos castanhos,
lisos e lustrosos, caíam sobre as faces em cachos infantis, O
pescoço era esguio e alvo, como de uma menina, descendo
para ombros pequenos e impecáveis. Era alta e esguia, o que
combinava com os seios empinados, mas ainda imaturos,
para fazê-la parecer bem mais jovem do que a realidade.
Uma renda delicada cor-de-marfim guarnecia os ombros e
braços, até os cotovelos. A saia-balão era azul-clara, de seda,
por cima de anáguas brancas de renda. Quando a saia se
inclinava um pouco, enquanto andava, revelava a calça
comprida de renda e as sandálias pretas, de fitas pretas. Ela
prendera diversos botões de rosa na renda por cima dos
seios. A fragrância que exalavam flutuava em torno dela
sedutoramente.

Ela cumprimentou Ernest com voz melodiosa,


extremamente gentil. Apenas uns poucos minutos se
passaram para que Ernest compreendesse que a amava e
sempre amaria. Não sabia que a vasta onda de exultação que
o invadiu era chamada felicidade, porque nunca antes fora
feliz. Mas compreendeu que se sentia inebriado e abalado,
que algo colossal se instalara nele e deslocara sua base. Não
era de sentir-se humilde, mas experimentou um retraimento
enorme e momentâneo, como se alguma coisa nele fosse por
demais brutal e áspera para aproximar-se dela. Não houvera
muitas ocasiões em sua vida em que Ernest perdera o
controle. Mas perdeu-o agora. Sentiu que se debatia
interiormente, numa tentativa angustiada de recuperar o
controle, que lhe escapulia perigosamente. Ele teve uma
impressão vergonhosa de que suas tentativas desajeitadas
de recuperar o equilíbrio profundamente perturbado eram
evidentes, tanto para Gregory como para Amy. Imaginou que
os dois estavam achando graça de sua reação e um rubor
angustiado insinuou-se no rosto pálido. Desviou os olhos da
serena inocência dos olhos de Amy. Descobriu-se a apertar-
lhe a mão com um desespero prolongado. Ao perceber isso,
largou a mão de Amy bruscamente.

“Os olhos dele”, pensou Amy, a garganta latejando


estranhamente, “são como vidro grosso com uma luz por
trás. Não se pode divisar qualquer indício do que ele está
pensando*’.

Gregory continuou a falar, suavemente,


descontraidamente, enquanto se encaminhavam para a sala
de jantar, na base do branco e do mogno. Mas Ernest não o
ouvia. Toda a beleza e encanto da casa, a claridade
esverdeada luminosa que se filtrava pelas venezianas da sala
de jantar, espalhando-se pelo suave avermelhado dos
móveis, o aparato de prataria faiscando no vasto aparador,
os quadros de frutos e caça nas paredes, a mesa branca, com
seus cristais, pratarias e flores, o farfalhar das árvores lá
fora... tudo lhe parecia brilhar intensamente, com uma
radiância que emanava de Amy Drumhill. Ernest estava
totalmente atordoado. Sentou à mesa redonda espetacular,
olhou sem ver direito para a prataria requintada, observou
seu copo de cristal sendo enchido com um sherry escuro,
tornou a sopa como se fosse água insípida, em tudo e por
tudo reagiu exatamente como a maioria dos jovens que se
apaixonam desesperadamente pela primeira vez. Com uma
única diferença: no caos congelado de sua mente, a geleira
de ferro da vontade estava em movimento. Queria Amy
Drumhill e a teria, nada poderia impedi-lo. Ficou tudo
definido em sua mente, entre a sopa, o presunto e o rosbife.
E depois que tudo ficou acertado, toda a incerteza, dúvida,
tremores, ansiedade e hesitação desapareceram. Ele podia
agora apreciar e se deleitar com a visão e o som daquela
moça de rosto meigo, com sua voz melodiosa, sorriso gentil.
Jamais tivera muito paladar para os requintes da mesa, mas
naquele momento seus sentidos estavam despertados e
aguçados, extremamente sensíveis. Cada porção de comida
deixava-o espantado e deliciado por seu sabor excepcional.
Quem poderia imaginar que alguém fosse capaz de cozinhar
tão bem assim! Ele não tinha o menor gosto por vinhos, nem
mesmo tinha a menor noção dos vários tipos que bebia tão
imperturbavelmente. O álcool era algo que sempre lhe
causara repugnância. Mas naquele dia os vinhos anônimos
adquiriam uma pungência e exultação em sua língua, que se
transmitiam à mente. Assim, foi invadido por uma sensação
inebriada e excitada, como nunca experimentara antes. Sua
nova sensação de poder e descontração só lhe chegou por
ocasião do presunto com batata-doce. De forma absurda,
descobriu-se a lamentar não ter-se recuperado a tempo de
saborear a sopa.

Descobriu-se também a falar quase jovialmente a


Gregory, imaginando-se muito fluente e descontraído. Mas
Amy julgou-o um tanto apático, embora formidável, por
demais reservado e enfadonho. Sabia que ele era jovem,
pouco mais que menino, mas achava difícil acreditar nisso.
Pelo que o tio lhe dissera a respeito de Ernest, esperava um
arrivista, um Napoleão matuto, um homem grosseiro, com
um comportamento agressivo e arrogante. Adivinhara sem a
menor dificuldade que Gregory não gostava de Ernest
Barbour, talvez mesmo o odiasse. Ficara aturdida com a
associação do tio com o rapaz e mais ainda com o convite
para que Ernest fosse à sua casa. Imaginara, um tanto
tristemente, que um motivo para o convite fora o de
proporcionar-lhe diversão, à custa das gafes e ignorância de
Ernest. Mas descobrira agora, com uma surpresa intensa, que
a aversão de Gregory por Ernest levava-o a acreditar que o
rapaz era de fato ignorante e rústico, porque queria acreditar
nisso. Deparava pela primeira vez com a malevolência da
natureza humana, que leva um homem a atribuir a um
inimigo todas as coisas que detesta, uma evidência visível ao
contrário. Assim, quando Gregory tentou discretamente
atrair a atenção dela, a fim de sorrir-lhe com uma malícia
sugestiva, tentar atraí-la para uma conspiração de ironia
contra Ernest, Amy pôde apenas contrair os lábios
nervosamente e piscar os olhos com suavidade. Será que ele
não pode perceber que o Sr. Barbour não é nenhuma das
coisas que me disse?, pensou ela, inocentemente,
angustiosamente. Ou será que eu é que estou enganada? Não,
não estou. O Sr. Barbour não é bonito, mas certamente é um
homem atraente. E é um cavalheiro. Jamais conheci alguém
como ele. George, Eddie, Courtney e Butte não passam de
pirralhos tolos e pretensiosos em comparação com ele. O Sr.
Barbour é um homem de verdade, muito cortês e distinto.

Ela fitou o tio com os olhos arregalados e surpresos de


uma criança confusa. Por quê? Por quê? E, de repente, ela
compreendeu, sentindo-se aflita de vergonha. Gregory tinha
inveja daquele rapaz. E por causa dessa inveja, era capaz de
destruí-lo com um sorriso nos lábios. Ele era um homem já
velho, seguro, rico, elegante, culto, viajado, acostumado a
uma vida tranquila e a todos os privilégios dessa vida.
Contudo, podia invejar e odiar um rapaz que não vinha de
qualquer família tradicional, quase sem instrução, de riqueza
ainda nova e insegura, que desconhecia os requintes da vida.
Por quê?, perguntou Amy a si mesma, interminavelmente. Ela
olhou de Gregory para Ernest com a maior intensidade. E,
subitamente, compreendeu tudo. A intuição lhe disse que era
porque Ernest era jovem e vigoroso, transbordando de uma
vitalidade assustadora. Era essa impressiva vitalidade que
Gregory invejava, pois nunca a tivera e era inteligente o
bastante para saber o que a sua posse significava. Todas as
amenidades da vida, a elegância e os gestos suaves, nada
podia compensar aquele inexorável fluxo vital, aquela força
quase monstruosa. Era algo que deixava Gregory ofuscado,
apesar de todas as coisas que ele conhecia e possuía. Fazia-o
parecer um gnomo envelhecido e murcho, dispondo apenas
do seu conhecimento amargo como compensação.

Amy escutou Gregory provocando Ernest suavemente e


compreendeu que o tio tentava atraí-lo a se manifestar, com
o objetivo de diverti-la. A vergonha que sentia pelo tio
aumentou, acompanhada de uma raiva intensa. Prestou
atenção às respostas de Ernest. Eram inteligentes, se não
mesmo brilhantes, profundas, embora não formuladas com
requinte e perfeição, extremamente distintas, imbuídas de
uma dignidade natural. Ficou atônita ao perceber que o tio
não dispensava a menor atenção às respostas de Ernest. Os
ouvidos de Gregory estavam impregnados com a ignorância,
grosseria e mediocridade que desejava ouvir nas palavras de
Ernest. Finalmente, Amy ficou tão perplexa com aquela
loucura e cegueira que não pôde mais comer, sentindo um
gosto amargo na boca. O tio dissera que, tirando as oficinas,
Ernest não passava de um ignorante e rústico. Ela não podia
acreditar que Gregory ainda pensasse assim, com todas as
evidências em contrário diante dele. Há algo de
profundamente errado aqui, pensou Amy. Pela primeira vez,
sua crença na sabedoria do tio ficou profundamente abalada.
Começou a sentir pena dele, por sua intolerância óbvia e
incapacidade de perceber as coisas. Não sentiu pena de
Ernest. Ele não precisava de compaixão, conforme Amy podia
perfeitamente compreender. Ela ficou contente pelo fato de
Ernest não estar percebendo a grosseria sorridente de seu
anfitrião.

Mas nisso ela estava enganada. Ernest estava


perfeitamente consciente de tudo o que se passava na mente
de Gregory. Mas não se incomodava com isso; na verdade,
até se divertia. Sentia a língua amarga de tanto desprezo, os
olhos se estreitando ligeiramente, ao virar-se sorridente para
o homem mais velho. Sou mais forte do que você, pensou
Ernest. Você não passa de uma pose, com mente de patife
por trás. Se não tenho escrúpulos, é porque me atrapalham.
Mas você é inescrupuloso sem qualquer sentido. Parecia-lhe
desprezível possuir algum vício sem sentido ou objetivo,
algum vício que não pudesse ser usado para alcançar algum
fim. Era um desperdício de tempo e energia e esse
desperdício parecia-lhe criminoso. Usar a malícia como
instrumento era justificado; usá-la para se divertir, com a
mesma indiferença com que se usa um anel, era repulsivo.

Quero essa moça, pensou Ernest, enquanto todos riam


jovialmente, quando Amy derrubou seu copo de vinho. Para
isso, tenho de subjugá-lo. Não posso fazer com que ele goste
de mim; se tentasse, ele me odiaria ainda mais e eu não
poderia culpá-lo por isso. Tenho de vencê-lo em seu próprio
jogo, subjugá-lo. Sou mais forte, posso facilmente fazê-lo
ficar com medo. Ele levantou a cabeça, olhando ao redor por
um momento. Os ombros estavam empinados e, por um
instante, a pose foi grandiosa. Gregory percebeu-o. Contraiu
bruscamente os lábios pálidos, quase lívidos.

O excitamento frio e objetivo de Ernest foi aumentando


cada vez mais. Derrubaria a casa do tio. Faria outra em seu
lugar, à semelhança daquela casa, pensando sempre em
Amy, uma casa ampla, de uma suntuosidade suave, serena,
graciosa. Ele contemplou Amy, olhou para os lábios rosados
e úmidos. Foi dominado por um desejo ardente de beijar
aqueles lábios, brutalmente, vorazmente, a tal ponto que
começou a suar na frescura da sala. Queria comprimir os
dedos fortes contra aqueles ombros alvos, forçar-lhe a
cabeça para trás, segurando os cabelos lustrosos, beijar a
carne macia e alva por baixo do queixo. Queria devorá-la,
absorvê-la, ouvi-la gritar, acalmar seu pavor e angústia com
uma ternura selvagem. Ele estava com as mãos cerradas
sobre a brancura engomada da toalha de mesa. Amy, virando
o rosto para fitá-lo, nesse momento, ficou aterrorizada com a
expressão nos olhos de Ernest. Contudo, um instante depois,
esse terror tornou-se impregnado de um estranho prazer e
excitamento. O corpo de Amy começou a caminhar, ficou
dormente, as pernas pareciam se derreter. Ela sentiu o
coração subindo e inchando, como se estivesse prestes a
estourar dentro do peito. Tinha vontade de gritar, rir, correr
e se esconder. Mas quando Ernest virou o rosto para o lado,
como se estivesse envergonhado do que ela podia discernir,
Amy ficou desapontada, com a sensação de que fora privada
de algo que lhe pertencia. Sentiu-se roubada, repelida. O
coração encheu-se de angústia. Queria que Ernest a
contemplasse outra vez, durante a refeição.

Quando ela se levantou, ao final da refeição, para deixá-lo


a sós com o tio, Ernest observou o corpo esguio e atraente
que se encaminhava para a porta, os cachos infantis
balançando, a saia enfunada. Depois que ela saiu, fechando a
porta suavemente, pareceu-lhe que metade da claridade se
desvanecera da sala, que imensa desolação ali se instalara,
apesar da luz dourada do sol que entrava pelas venezianas.
Ele tornou a sentar, juntamente com seu anfitrião. Sua mente
era tão disciplinada que foi capaz de afastar voluntariamente
os pensamentos de Amy, concentrando-se no problema que
desejava discutir com Gregory.

Detestava o gosto e o cheiro de tabaco, mas aceitou o


charuto que Gregory lhe ofereceu, tão impregnado estava da
exultação e consciência de sua força. O charuto era forte e
deixou-o nauseado, mas fumou sem hesitar. Fez a mesma
coisa que Gregory, molhando o charuto no porto e fumando.
Olhou para a garrafa de cristal na mesa, o vinho escuro em
seu copo, o brilho dos raios de sol nos móveis de mogno e
no tapete, os reflexos nos arabescos das molduras douradas
dos quadros. Havia algo de jovial e expansivo na própria
atmosfera da sala ampla e impressiva. Ernest relaxou, sentiu-
se mais no controle de si mesmo do que em qualquer outra
ocasião de sua vida disciplinada.

Discutiu inicialmente alguns planos de importância


menor. Gregory escutava agora atentamente, não mais com a
expressão condescendente e divertida com que ouvira as
tentativas de conversa amena e social de Ernest durante o
jantar. Estava concentrado, muito sério. Inclinou-se para
Ernest, acenando com a cabeça lentamente, a intervalos,
contraindo os lábios, alteando as sobrancelhas. Depois de
expor os outros planos, Ernest falou de sua ideia de
contratar trabalhadores estrangeiros:

— Como já disse antes, Sr. Sessions, estamos precisando.


Já conversamos antes a respeito, muitas vezes, juntamente
com Armand. Estamos obtendo bons lucros, é verdade, mas
não chegam à metade do que poderíamos conseguir. Preciso
de pelo menos mais 75 homens, poderia empregar até mais
100. Tenho 50 homens no momento e estamos lhes pagando
de oito a 15 dólares por semana. É demais. Cada um dos
nossos quatro capatazes está recebendo 17 dólares. Será
necessário manter os capatazes, já que são bastante
experientes nesse tipo de trabalho, foram cuidadosamente
preparados. Cem homens... talvez mesmo 150. Preciso deles
imediatamente. E nas suas instalações... quantos mais não
poderia usar?

Gregory olhou para o teto, pensativo.

— Tem toda razão, eu bem que posso aproveitá-los.


Vamos calcular 300 homens, no total. Dentro de um ano
poderemos usar ainda mais. Os novos trabalhadores estão
vindo dos Cárpatos. São camponeses fortes e vigorosos, que
podem suportar a fumaça e o calor durante muitas horas de
trabalho. Estão acostumados a uma comida simples, embora
farta. Stanford, de Pittsburgh, disse-me na semana passada
que os melhores homens vêm da Boêmia, Áustria e Hungria.
Eslavos e tchecos. Pois vamos descobrir. Tenho todos os
dados aqui.

Ele se levantou, abriu uma gaveta do bufê e tirou um livro


pequeno de anotações, igual ao que Ernest usava. Virou as
páginas.

— Aqui estão os custos de trazê-los para a América.


Podemos pagar um custo parcial da carga do navio. É melhor
também trazer as famílias, se puderem vir, caso contrário os
pobres-diabos podem querer voltar à velha terra, depois de
alguns meses, quando tiverem um punhado de dólares no
bolso.

Ernest estudou as cifras atentamente, franzindo o rosto.


Acompanhou o dedo comprido e elegante de Gregory, que ia
indicando as diversas quantias.

— Se comprar os 30 acres extras de que me falou na


semana passada, Ernest, isso estenderá a sua propriedade
até a Galby Mills. A Galby tem 40 acres adjacentes e creio
que poderia dispensar pelo menos dez. Poderemos então
fazer a mesma coisa que os outros, construindo barracões
para os trabalhadores e suas famílias, criando armazéns.
Podemos até mesmo instalar um banco, depois que a fábrica
crescer o suficiente para isso. Se tivermos 300 homens,
podemos calcular, a grosso modo, que haverá 900 pessoas,
com as famílias. Com o tempo, poderemos até oferecer bares
para os homens, dentro de nosso território. — Ele fez uma
pausa, antes de acrescentar, com um sorriso irônico e um
brilho súbito nos olhos frios, voltados para Ernest: — Não há
nada como tomar tudo doméstico. O que quer que eles
ganhem, acabará voltando para os nossos bolsos, em
comida, roupa, aluguel e bebida.
— Alguma coisa como a servidão russa — comentou
Ernest.

Gregory ficou surpreso. Não imaginava que Ernest


possuísse qualquer conhecimento além do seu negócio.

— Hã... — murmurou ele, pensativo, olhando para Ernest


e depois sorrindo insinuantemente. — Não será como a
Rússia, é claro, meu caro Ernest. Vivemos num país livre, a
não ser pelos escravos no sul. É uma pena que não possamos
ter a mesma coisa aqui no norte. Uns 400 ou 500 pretos
fortes nos poupariam muitas despesas, depois do
investimento inicial. De qualquer forma, não devemos jamais
usar a palavra ‘servidão’. Soa desagradavelmente aos
ouvidos americanos.

Ernest fitou-o nos olhos. Não acreditava muito no que ia


dizer, mas falou asam mesmo:

— Não apenas soa horrivelmente, mas também é horrível.


E o que estamos prestes a fazer também é horrível. É
verdade que é necessário para nós. Nossos concorrentes
estão usando esse tipo de mão-de-obra e não podemos
deixar de fazê-lo também. Mas isso não atenua a sordidez do
que estamos fazendo e o fato de altearmos as sobrancelhas
em repulsa não vai fazer com que a servidão deixe de ser
servidão.

Seus lábios se contraíram, mas os olhos permaneceram


fixados no rosto de Gregory, como se fossem os de uma
serpente.

— Claro que não passo de um ‘estrangeiro’ e assim não se


pode esperar que eu sinta a mesma coisa em relação a
transformar outros estrangeiros em servos, como acontece
em seu caso, sendo um natural da América.
O sorriso jovial de Gregory tornou-se um pouco
automático, um pouco de cor insinuando-se em seu rosto.
Ele soltou uma risada, recostou-se na cadeira. Mas o rosto
também parecia artificial.

— Está sendo sarcástico, meu caro Ernest, mas falta-lhe


um toque de sutileza. Eu poderia dizer a mesma coisa de
maneira mais hábil. Use um espadim, meu rapaz, ao invés de
um porrete. Mas talvez, com o tempo, acabe aprendendo a
ser mais sutil.

Ele ardia de raiva e ódio. Podia compreender agora que


subestimara esse lado do conhecimento e caráter de Ernest,
estava surpreso com a capacidade dele de exprimir-se assim.
Mas isso não diminuía seu ódio; ao contrário, aumentava-o.

Ernest sorriu, um tanto sombrio.

— Prefiro os porretes aos espadins. São mais honestos.


Mas estamos perdendo tempo. Falarei com o pessoal da
Galby amanhã. — Ele fez uma pausa, antes de acrescentar,
mais jovialmente, embora um tanto secamente: — Claro que
espero que o preço deles não seja alto demais. Vai
providenciar para que isso não aconteça?

O rosto de Gregory assumiu uma expressão sombria. Ele


possuía quase 40 por cento das ações da Galby e sabia que
Ernest estava a par disso. Fingiu rir com a maior
cordialidade.

— Não confia em sua própria sombra, não é mesmo,


Ernest?

— Claro que não — respondeu o rapaz, prontamente. —


Por que deveria? Não se consegue nada confiando nos
outros. Há poucos meses, quando perguntei ao pessoal da
Galby quanto queriam pelas terras, disseram-me que
venderiam por 100 dólares o acre. Se o preço for mais alto
do que isso, lamento muito, mas não comprarei. Posso
conseguir as terras a leste por 80 dólares o acre. Vou
comprá-las, se não conseguir a terra da Galby por um preço
razoável. Claro que isso seria um pouco inconveniente para
você, pois seus próprios homens ficariam um pouco
distantes do local de trabalho e teriam de pagar-me aluguel
pelos barracões que vou construir. Não seria lamentável? Sei
que você não dispõe de terra suficiente ao lado de sua
fábrica para acomodar 400 ou 500 pessoas.

Houve uma pequena pausa. Veias escuras saltaram no


pescoço fino de Gregory, por cima da elegante gravata
branca. Uma expressão furiosa sobrepôs-se a seu sorriso
determinado. Com todos os diabos!, pensou ele. Há poucos
dias, meu rapaz, há poucas semanas, não se atreveria a me
falar desse jeito. Teria esperado um chute no traseiro e com
toda razão. Mas eu convidei-o à minha mesa, meu pequeno
vagabundo, e pensa que isso significa que o encaro como
meu igual. Que atrevimento! Mas ele observou os olhos
brilhantes e o rosto pálido de Ernest e ficou chocado. Não
havia desfaçatez e presunção ali, apenas conhecimento e
desprezo. Gregory sentiu-se alarmado, quase consternado.
Mordeu o lábio, em confusão e humilhação, forçando-se a
soltar uma risada.

— Tenho certeza de que o pessoal da Galby não vai


aumentar o preço — disse ele, com um ar de franqueza
divertida. — Pensando bem, vou falar pessoalmente com
eles, amanhã. Claro que você deve entender que os preços
das terras à margem do rio aumentaram consideravelmente,
mas eles me farão esse favor. Devem-me alguma coisa...

“Em torno de 40 por cento”, pensou Ernest,


desdenhosamente. Mas ele se forçou a imitar a jovialidade
do sorriso de Gregory e disse:

— Outra coisa. Não gosto do agente que as outras


fábricas, serrarias e minas estão usando. Acho que ele é um
ladrão. Além do mais, os homens que tem trazido não
possuem o menor vigor. Ou são preguiçosos ou não valem
nada. Tenho pensado muito nesse problema. O filho de
Armand, Raoul, é um demônio preguiçoso e matreiro,
perfeitamente capaz de reconhecer outros preguiçosos por
instinto. Já notei também outra coisa nele: se não é
supervisionado ou pressionado, sempre se sai muito bem.
Gosta de ter responsabilidade. E por isso é presunçoso.
Pensa que me engana. Pensa que o considero irresponsável e
desprovido de inteligência. E se comporta de acordo com o
que julga ser minha opinião a seu respeito. O que muito me
diverte.

Ernest sorriu. Gregory franziu as sobrancelhas,


estudando-o furtivamente.

— Mas sei que ele é esperto e responsável, muito mais


inteligente do que Eugene. Assim, creio que devemos
escolher Raoul para nosso agente particular, na escolha dos
boêmios, eslavos e tchecos que vamos trazer.

— Mas o que Raoul faz na oficina? Muito pouco, pelo que


imagino. Não me disse que ele passa a maior parte do tempo
vendendo para lojas de outras cidades? É isso mesmo, estou
lembrando agora. Ele é um bom vendedor?

— O melhor que existe — respondeu Ernest prontamente.


— Devemos a ele uma boa parcela dos nossos negócios, nas
comunidades menores e mais remotas. E também nas lojas
pequenas das cidades maiores. Raoul pensa que considero o
seu sucesso nas vendas como algo fortuito, uma questão de
sorte. Mas sei que ele vende nossos produtos porque... sabe
vender a si mesmo. Ele seria capaz de vender ratoeiras para
ratos e não vai nisso nenhum exagero. — Ernest fez uma
pausa, soltando uma baforada de outro charuto. — Claro que
Raoul não sabe absolutamente nada dos detalhes de nossas
espingardas, pistolas, pólvora e canhões. Pode falar
facilmente sobre as armas, mas não seria capaz de montar
uma, mesmo que sua vida dependesse disso. Ele me disse
que o cheiro de pólvora lhe provoca indigestão, mas creio
que isso é uma decorrência do alho de Madame Bouchard.
Além do mais, é um bom pretexto para manter-se afastado
das oficinas. Ele detesta a fábrica.

— E Eugene Bouchard? Ele não está agora na supervisão


da montagem dos rifles?

— Está, sim. Eugene gosta de ferramentas. Aprecia coisas


intrincadas, que exigem paciência. É muito obstinado e
pensa que isso é determinação. Mas nunca desiste e sempre
conclui o que começa. Às vezes, ele começa coisas absurdas,
mas faz questão de terminá-las, por mais desastrosas que
sejam. Ele é um pouco parecido com as nossas máquinas: se
forem acionadas de maneira errada, elas se põem a funcionar
mesmo assim, continuando até chegarem ao fim ou alguém
as endireitar. Mas Eugene possui mãos extremamente hábeis
e lhe devemos duas de nossas invenções menores, como já
sabe.

Era raro Ernest discorrer sobre personalidades e Gregory


foi dominado por uma surpresa relutante e uma irritação
vaga. Não podia conciliar sua própria imagem de Ernest com
aquela análise objetiva, vigorosa e até mesmo sutil do
caráter e mente de outras pessoas. “Mas eu deveria ter
imaginado”, pensou ele, com algum desdém por sua própria
falha. “Será que me tomei tão velho e estúpido que não
compreendi que tamanho ímpeto, força e vigor devem ter
alguma inteligência, até mesmo sabedoria?” Mas, por algum
motivo, isso não o levou a sentir menos ódio de Ernest. Era
egocêntrico demais para gostar de descobrir que estava
errado, mesmo que ninguém mais soubesse disso.

— E seu irmão? O nome dele não é Martin? Isso mesmo,


Martin. Se bem me lembro, você disse uma vez que ele
também não gosta das oficinas.

O rosto de Ernest contraiu-se, numa expressão sombria.


Olhou fixamente para a ponta do charuto e disse, com frieza:

— Martin não gosta de praticamente nada, exceto sonhar


junto com Jacques Bouchard. Jacques é um aleijado. Já deve
tê-lo visto.

Num último esforço para subjugar Ernest, Gregory levou-


o à sua extraordinária biblioteca, cheia de livros e poltronas
escuras, cortinas e tapetes ainda mais escuros. Mas, para sua
própria surpresa, descobriu-se na defensiva. Subitamente,
sua intenção de intimidar o rapaz parecia uma atitude
infantil e absurda. Os pensamentos desconcertantes fizeram
com que procurasse imprimir uma jovialidade extra à sua
voz e comportamento. Tornou-se paternal e quase efusivo,
mantendo a mão comprida e fina no braço do rapaz,
apertando-o apreciativamente e com uma risada, em reação a
um comentário sombriamente espirituoso de Ernest. Não
ficou nada satisfeito quando Ernest pediu-lhe uns poucos
livros emprestados. Alteou as sobrancelhas, apreciando a
terrível ironia da situação, quando Ernest escolheu Les
Burgraves e Notre Dame. Pegou um volume fino, de capa
vermelha, de Voltaire, descrevendo rapidamente a carreira e
objetivos do autor. Ernest mostrou-se friamente desdenhoso,
comentando:

— Duvido muito que Voltaire estivesse bem a par do


caráter dos pobres e ‘explorados’. Se ele conhecesse, teria
desprezado. Já notei que quase todos os signatários de sua
Declaração de Independência eram homens de grande
inteligência e muitos eram cavalheiros. Se as classes
inferiores tivessem escrito a Constituição, teria sido uma
Constituição de tirania, rancor e estupidez. — Ele bateu no
livro que estava na mão de Gregory com o dedo indicador,
antes de acrescentar: -se Voltaire tivesse escrito panfletos
sobre as nobres aspirações, direitos e almas dos babuínos
das selvas africanas, um lugar em que nunca esteve, teriam
sido tão verídicos quanto todos os que produziu.

O rosto avermelhado de Gregory sacudiu-se numa risada


silenciosa. E por fim ele balbuciou, entre as convulsões de
riso:

— Você não é nada democrata, meu jovem amigo! Receio


que jamais será um bom americano!

— Quero apenas ser um americano tão... lucrativo quanto


consegue ser, Sr. Sessions.

Ernest fez uma brusca mesura. Gregory empertigou-se,


parou de rir. Olhou fixamente para Ernest com uma
expressão um tanto tola no rosto. Depois, retribuiu a
mesura. Que diabo aquele jovem arrivista estava querendo
dizer com aquilo?, pensou Gregory. Ele pegou novamente o
braço de Ernest e levou-o de uma imensa estante para outra.
Uma semana antes, Ernest teria se sentido entediado e
desdenhoso. Agora, porém, seu interesse era intenso. Aquilo
também era um meio para alcançar um fim... e esse fim era
Amy Drumhill.

Ele anunciou que teria de se retirar em breve. Gregory


abriu uma janela e contemplaram o jardim, Amy estava
parada ali perto, à sombra de uma árvore a luz do sol
incidindo em seus cabelos. Estava rindo e brincando com os
collies, que pulavam ao seu redor, latindo, as línguas
pendendo para fora das bocas, abanando os rabos. De
vestido azul e renda creme, Amy possuía a suavidade e
delicadeza de uma peça de porcelana de Dresden. Corria
alegremente pela relva, esquivando-se das línguas e patas
dos cachorros, os seios e braços alvos elevando-se
requintadamente do traje monstruoso. Ernest e Gregory
observaram-na em silêncio por vários minutos. O rosto de
Gregory assumira uma expressão de melancolia.

— Não é fácil criar uma jovem sem a mãe — comentou


ele, em voz baixa. — Tenho feito o melhor possível para
Amy. Ela é uma criança meiga e como uma filha para nós. Já
esteve em duas escolas para moças, mas não o suficiente
para estragar seu caráter.

Gregory suspirou. Sua irmã sempre lhe fora muito


chegada. Ernest percebeu a melancolia, entendeu o tom da
voz de Gregory. Cerrou os dentes em exultação. A sorte e a
vida estavam do seu lado, sempre favoráveis aos mais fortes!

Ele aceitou a oferta cortês de Gregory de uma carruagem


para levá-lo em casa. Ao passar pelas ruas ao cair da noite,
ele pediu ao cocheiro que reduzisse a velocidade dos
cavalos. Sabia perfeitamente que as carruagens dos Sessions
eram facilmente reconhecidas em Oldtown e desfrutava o
prazer de observar os ‘esnobes’ fitando-o, aturdidos. Sabia
que estava sendo reconhecido e sabia também que muito em
breve receberia convites para outras casas como a de
Gregory.

Estava a caminho! Sentiu-se invadido por uma energia


renovada e invencível. O mundo lhe pertencia e o centro
desse mundo era Amy Drumhill.
CAPÍTULO XV
Dois meses depois, Ernest decidiu não demolir a casa de
George e construir outra em seu lugar. Chegara à conclusão
de que só havia uma casa que poderia satisfazê-lo e essa
casa era a dos Sessions. Tornara-se cada vez mais
apaixonado pela casa. Fascinava-o de tal forma que sentia-se
no exílio em sua própria casa, indignado com sua feiura,
falta de gosto e ausência de requintes. Como nunca antes
tomara conhecimento do lugar ou como vivia, sentia-se
agora irritado com os cuidados despretensiosos da mãe e
sua ignorância de refinamentos. O sólido conforto da vida
doméstica britânica parecia-lhe grosseiro e destituído de
imaginação. Descobriu-se absurdamente discutindo com a
mãe sobre o gosto dela nos móveis e o caráter utilitário das
pratarias e porcelanas, sobre a qualidade durável das roupas
de cama e mesa. Hilda ficou atônita a princípio e, depois,
imensamente satisfeita.

— Nosso Ernest está apaixonado! — anunciou ela


deliciada a Joseph, que surpreendeu-a com uma carranca.

— Ele está apenas tentando imitar os que lhes são


superiores — resmungou Joseph.

Não obstante, tanto ele como a mulher ficaram satisfeitos


com aquela demonstração de fraqueza muito humana num
jovem formidável. Também não eram insensíveis ao fato de
que a aprovação dos Sessions a alguém da família elevava-os
a uma classe superior, quase à nobreza, como Joseph
comentou, tentando fazer com que seu sorriso satisfeito
parecesse amargo. É verdade que o gentil Sr. Sessions, que
frequentemente visitava a fábrica, ainda não estendera o
convite ao resto dos Barbours ou aos Bouchards para
comerem em sua mesa ou mesmo visitá-lo e à sobrinha. Mas
não podia haver a menor dúvida de que essa era a sua
intenção futura. Ele sempre indagava gentilmente como
estavam a Sra. Barbour e Madame Bouchard. Todos julgavam-
no excepcionalmente cortês, exceto Ernest e Armand.

— Jamais confio num homem que se considera um grande


senhor e mesmo assim é democrático — comentou Armand.
— Tal democracia é hipócrita. É impossível, meu jovem
amigo, alguém se julgar superior e mesmo assim manter a
pose de um homem comum, com alguma sinceridade. É uma
pose da qual um homem simples deve sempre se ressentir.

Ernest fitou-o firmemente, com seu rosto pálido e


implacável.

— O Sr. Sessions não está sendo ‘democrático’ porque é


cortês conosco. Ele pode pensar que está bancando o grande
senhor, como você disse, mas sei muito bem quem é o
melhor homem.

Ele acenou com a cabeça para Armand, bruscamente,


afastando-se em seguida. Armand, sorrindo ligeiramente,
murmurou para si mesmo:

— L 'état, c'est moi!

Mais tarde, ele pensou: “Estou me assustando com


sombras.” E franziu o rosto. Não obstante, sentiu-se contente
porque a cópia do contrato da sociedade estava guardada em
segurança no Windsor Savings Bank. Sentiu-se também
extraordinariamente satisfeito pelo fato de diversas patentes
importantes estarem em seu próprio nome, exclusivamente.
Cada vez achava Ernest menos divertido; cada vez mais a
cautela e desconfiança misturavam-se com sua admiração.
Um dia, Joseph foi procurá-lo, o rosto grotescamente
contraído por seus pensamentos conturbados e meio furioso.

— Dê uma olhada nisso, Armand — disse ele, entregando-


lhe uma folha de papel e acrescentando, em voz mais baixa:
— Sabe que dei a George dois mil dólares do meu próprio
bolso, depois que obtivemos aquele contrato do exército.
Mandei-lhe o dinheiro achando que era perfeitamente justo.
Ele escreveu-me uma carta para agradecer. Mas essa não é a
parte importante. Leia isto... o que está no fundo da página.

Armand leu: “Você sempre foi um bom irmão para mim,


Joe. Culpo-me às vezes por não ter sido também um bom
irmão para você durante todo o tempo. Espero que não
guarde qualquer ressentimento contra mim pelo que quero
dizer-lhe agora. E que é o seguinte: Tome cuidado com o seu
rapaz, Ernest. É o pai dele, Joe, mas pode estar certo de que
o rapaz não hesitará em se virar contra você, se puder. É da
natureza dele livrar-se das pessoas quando não mais pode
usá-las. Cuidado com ele. Aceite o meu conselho. Ele tem a
boca grande demais para um homem. Sempre lhe disse que
você não surrou bastante os seus filhos e gostaria de estar
enganado neste caso. Mas, infelizmente, estou certo.”

Armand leu o trecho cuidadosamente, depois devolveu a


carta a Joseph, que observava-o ansiosamente. Armand ficou
em silêncio por um longo momento, mas acabou dizendo:

— E evidente que ele não sente a menor simpatia pelo


nosso Ernest.

Joseph sacudiu a cabeça, impaciente.

— Não me preocupo com isso, Armand. Quero apenas


saber qual é a sua opinião.
Armand franziu as sobrancelhas.

— Qual é a minha opinião? Há um ano, meu amigo, teria


jogado uma carta assim no fogo e cuspido em cima. E depois
esqueceria inteiramente. Agora, mostra-me a carta e pede
minha opinião, na maior aflição. Por quê?

Joseph sentou-se pesadamente, como se estivesse muito


cansado, soprando o cachimbo com uma expressão sombria.
Falou sem olhar para o outro homem, em voz tão baixa que
Armand mal conseguia ouvi-lo:

— Não sei, não sei... Não consigo me aproximar do rapaz.


Ele é como um estranho. Tentei mostrar-me frio e indiferente
com ele depois que George foi afastado. Pensei que Ernest
tivesse percebido e se importado. Mas se ele percebeu, não
se importou. Posso acreditar agora que ele ficou realmente
contente por afastar-se de mim. Calculei que a minha atitude
fria poderia fazê-lo voltar para junto do pai, como um rapaz
decente. Mas simplesmente lhe proporcionei a oportunidade
de afastar-se ainda mais, como estava querendo.

— Está triste por causa disso... ou apenas com medo? —


perguntou Armand.

Joseph levantou a cabeça bruscamente, os olhos


brilhando com uma súbita violência.

— Com medo? Medo de quê? De um pirralho? Isso é um


insulto a mim e um insulto a Ernest!

— Dentro de duas semanas, Ernest estará com 21 anos —


disse Armand, pensativo. — Um homem completo, de acordo
com a lei e a natureza. Ele não é mais nenhum ‘rapaz’. Na
verdade, ele nunca foi um rapaz. E não o estou insultando,
meu amigo. Lamento muito por você. E me sinto contente
por não ter filhos que sejam tão ambiciosos. Olhe só para
você. Há um ano, teríamos rido juntos dessa carta. Mas hoje
não estou rindo. Por quê? Não posso lhe dizer. Talvez
porque ambos sejamos velhos tolos.

Ele sacudiu ligeiramente a cabeça, enquanto Joseph


afastava-se. “Eu não deveria ter-lhe dito isso”, pensou
Armand, um tanto tristemente. “É absurdo pretender estar
com medo de Ernest e foi uma crueldade minha sugerir tal
coisa a seu infeliz pai. Armand, você ainda não tem 5O anos,
mas já é tão maldoso quanto uma velha intrigante. E por que
tudo isso? Porque não gosta de Ernest Barbour e vai ao
extremo de partir o coração do pai dele só para aborrecê-lo!”

Ele lamentou as suas palavras ainda mais profundamente


depois, quando descobriu que o rompimento entre Joseph e
o filho Ernest era agora quase total. Por mil vezes, esteve
prestes a confessar sua maldade a Joseph. Mas alguma coisa,
não sabia direito o quê, compelia-o a manter-se calado.
Talvez fosse apenas aversão, talvez fosse algo mais
instintivo.

No 21º aniversário de Ernest, Joseph deu-lhe um relógio


de ouro requintadamente trabalhado, da melhor qualidade.
Ernest ficou surpreso e bastante satisfeito. Hilda deu-lhe um
anel de ouro, de sinete, que deixou-o deliciado. Martin, que
notara com o maior espanto e incredulidade o interesse
recente de Ernest por livros, deu-lhe um volume com obras
de Shakespeare, encadernado em couro vermelho e com uma
gravação dourada das iniciais do irmão. Florabelle, agora
uma sedutora beldade de olhos azuis claros e tranças louras,
em torno da cabeça pequena, bordara para o irmão diversos
lenços de seda. Dorcas, uma menina frágil, mas bonita de 11
anos, tricotara uma bolsa e um cachecol para Ernest.

Ernest pareceu ficar comovido com todas aquelas


demonstrações de afeição. E um tanto surpreso.
Aparentemente, ocorreu-lhe, com algum choque, que era
parte da família, no final das contas, que partilhava a carne
humana e o sangue humano com aquelas criaturas amorosas,
que haviam se empenhado em proporcionar-lhe prazer. Não
era apenas um estranho para eles, mas um filho e um irmão,
amado por todos, cada um à sua maneira. E ele também os
amava. Compreendeu que eles não eram realmente
insignificantes, meros estorvos, mas sim indivíduos.
Subitamente, ele sentiu-se humilhado e arrependido.
Contemplou o irmão e as irmãs menores com olhos meio
envergonhados, com um novo interesse. Martin não era
nenhum tolo, apesar de seus devaneios. Era inadmissível que
ele, Ernest, não fizesse qualquer esforço para conduzir
Martin ao caminho certo. Florabelle era uma jovem beldade e
competia-lhe providenciar um marido apropriado para ela
em breve, alguém que lhe servisse à perfeição e lhe
proporcionasse a respeitabilidade necessária. Dorcas seria
ainda mais bonita do que a irmã. Ernest contemplou a todos
com surpresa, confuso, perguntando-se onde estivera, por
tanto tempo. Estava mais do que na hora de fazer planos
para aqueles que um dia seriam dependentes de sua energia
e generosidade, de sua inteligência e força.

Ele beijou a mãe e as irmãs, que se retraíram,


timidamente, confusas. Apertou a mão do irmão. E, depois
de um momento de hesitação, beijou o pai no rosto, como
um menino. Joseph engoliu em seco convulsivamente, seus
olhos ficaram embaçados. “Está tudo bem agora,’1 pensou
ele, “está tudo bem. O coração do rapaz está no lugar certo.
Eu estava enganado.” Mas ele se perguntou por que não se
sentia mais feliz.
CAPÍTULO XVI
Ernest não era homem de tomar resoluções fáceis,
quando estimulado pela emoção, e depois esquecê-las.
Também não mantinha resoluções porque acreditasse que
era o seu ‘dever’. Dever era uma palavra que nunca lhe
ocorria. Jamais esquecia resoluções porque era de sua
natureza nunca fazê-lo, a menos que visse algum motivo
para isso. E, havendo um motivo, ele se dispunha
inflexivelmente a manter as resoluções.

Não demorou muito tempo para que convencesse o pai a


enviar Florabelle para a Academia Feminina da Srta.
Cuthbert, em Filadélfia, onde ela aprenderia “maneiras
apropriadas a uma jovem dama, inclusive exercícios no
quadro-negro, matemática, álgebra, pintura, dança, francês,
tocar harpa ou piano”. Hilda ficou impressionada com essa
impressionante variedade de prendas. Nada era bom demais
para a moça. Costureiras foram contratadas, encomendaram-
se metros intermináveis de cetim, veludo, merino e brocado.
Rendas em quantidade acumulavam-se sobre as cadeiras e na
cama do quarto de Florabelle. Havia capas e capotes, abrigos
para as mãos e toucas, sandálias e anáguas, meias e camisas
por toda parte. Joseph sentia-se profundamente satisfeito
com o excitamento no rosto bonito da filha. Praguejava ao
esbarrar nos enormes baús, mas sentia-se feliz por saber que
seriam bem preenchidos. Raoul Bouchard, bonito, indolente
e sorridente, sofisticado e descontraído de suas viagens à
Europa, aparecia na casa dos Barbours com uma nova
regularidade, assegurando solenemente a Florabelle que
nenhuma dama parisiense, de qualquer beleza e riqueza,
poderia desdenhar daquele guarda-roupa e certamente
invejaria aquela pele, os cabelos e os olhos azuis tão
celestiais. Florabelle, sorrindo e corando, fitava-o com
aqueles “olhos azuis celestiais” e tremia. Ernest, em segundo
plano, observava-os, pensativo. Passou a demonstrar mais
cordialidade do que o habitual com Raoul, que alteou as
sobrancelhas numa surpresa jovial. Ficou ainda mais
surpreso ao descobrir seu rendimento misteriosamente
aumentado, suas responsabilidades dobradas e a supervisão
reduzida. E um domingo, quando Ernest convidou-o a
acompanhá-lo num passeio a cavalo, Raoul ficou
completamente confuso. Mas sua desconfiança não
decresceu.

Ernest declarou ao pai que a maneira simples como


viviam era lamentável. Uma ala foi acrescentada à casa e
contratou-se uma governanta para Dorcas, que era
deploravelmente ignorante. Embora Hilda protestasse que
precisava de outra criada tanto quanto ‘precisava de voar’,
foi contratada outra criada. Ernest descobrira que era inútil
argumentar com Hilda sobre uma possível mudança para
Oldtown. Assim, ele tratou de fazer o melhor possível por
aquela casa. Comprou mais terra, contratou um jardineiro,
aumentou o estábulo, adquiriu outra carruagem, mais
cavalos e até mesmo um collie.

— Estamos ficando ricos — disse ele ao pai, sorrindo. -


não precisamos mais viver como mendigos.

— Talvez não — resmungou Joseph. — Mas a sua


insistência em comprar aquela mina de carvão, porque
achava um bom negócio, deixou-nos meio apertados.

— E foi de fato um bom negócio — garantiu Ernest,


soltando a sua risada seca, sem qualquer humor. — O Sr.
Gregory vem roendo as unhas desde que fechamos o
negócio, contrariado por não ter chegado primeiro. A mina
dele fica ao lado e não é muito boa. Não vai demorar muito
para que ele comece a comprar carvão de nós, mesmo
irritado por isso. Mas ele sabe o que é melhor e por isso vai
comprar. Não é do tipo de ignorar um bom negócio por
ressentimento.

— Ele tem sido muito cortês e generoso, com seu contrato


do exército e tudo o mais — ressaltou Joseph.

Ele ficou se perguntando, irritado, por que o filho limitou-


se a sorrir, sem responder. Joseph sentia-se apático e
cansado ultimamente, embora rejeitasse a sugestão
preocupada de Hilda para que ‘descansasse’ e parasse de se
‘incomodar’ com a fábrica. Foi nessa ocasião que Joseph
descobriu subitamente, como se um raio o atingisse, que
Ernest vinha aliviando-o cada vez mais de diversos encargos
e responsabilidades, durante o último ano. Ele ficou
fisicamente doente de medo, consternação e uma raiva
obscura. Assustado, procurou analisar toda a situação. Sabia
muito pouco atualmente sobre novas encomendas, preços,
vendedores, novos clientes e novas emissões de ações. É
claro que estava a par de tudo vagamente, pois Ernest
sempre lhe falava a respeito. Mas podia recordar agora que a
voz de Ernest sempre era suave e casual, a voz de um
subordinado que queria poupar o superior de detalhes
tediosos e sem a maior importância. Era Ernest quem
conduzia quase todas as transações, ajudado pelo dócil e
silencioso Martin. Era Ernest quem entrevistava vendedores,
comprava e administrava tudo. Joseph recordou que Armand
frequentemente aparecia no escritório, alegre e displicente,
examinando os livros, conversando jovialmente com Ernest
sobre os mais diversos assuntos. Joseph compreendia agora
que não havia nada de displicente no comportamento de
Armand. O francês não era nenhum tolo. Ele, Joseph, é que
era o tolo! Escutara indiferentemente os relatórios mensais,
quase não apresentara sugestões, enquanto eles, o próprio
Armand, Ernest, Martin, Raoul e Eugene, discutiam todos os
problemas, políticas e contas. Mostrara-se disposto a
renunciar cada vez mais a suas responsabilidades. O que não
acontecia com Armand! Mas ele, Joseph, era um preguiçoso.

Ele começou a suar, a coçar a testa. Era o final da tarde e


Ernest ainda não voltara da fábrica. Martin, no entanto, viera
com o pai. Joseph chamou-o a seu quarto. Mas Joseph
descobriu que nada podia dizer ao filho, que ficou
esperando em silêncio. Joseph contemplou os olhos azuis e
serenos de Martin, a pureza excepcional das feições pálidas.
“Ele é quase uma moça", pensou Joseph, desesperado. “Se...
se as coisas não foram como eu pensava, ele de qualquer
forma não saberia. É o tipo de rapaz que não desconfia de
ninguém ”

Nunca desconfia de ninguém! Ah, talvez fosse essa a


atitude correta! Talvez nada houvesse para se desconfiar!
Alguém podia desconfiar do próprio filho? Que pensamento
horrível! E desconfiar dele por quê? Suando frio, Joseph
chegou à conclusão de que não sabia. Mas o medo vago e a
consternação deixaram-lhe a garganta ressequida, fizeram
seu coração disparar, como se alertado por algum instinto
secreto e crescente. Ernest poderia traí-lo? Não, claro que
não! Jamais! Não Ernest, seu filho. Joseph sentiu-se invadido
por uma vergonha abjeta. George era um patife e estava
tentando jogar o pai contra o filho. O que Ernest fizera para
levar o pai a desconfiar dele? Nada. E outra vez: desconfiar
dele por quê?

Não obstante, apesar de envergonhado, Joseph entrou na


sala de Ernest no dia seguinte e declarou que havia ‘uma
pequena questão’ sobre a qual tinha algumas dúvidas e
queria esclarecer tudo. Pediu os livros. Ao pedir, de pé ao
lado da mesa de Ernest, ele sorriu. Ernest, um pouco
surpreso, fitou-o. Algo no rosto do pai atraiu-lhe a atenção.
Só então percebeu que o pai estava muito mais magro e que
sua cor era horrível, um tanto amarelada. A respiração era
um tanto entrecortada. Mais do que tudo isso, porém,
percebeu que o sorriso era por demais casual, por demais
jovial. E compreendeu tudo.

Em voz tranquila, ele chamou Martin, que guardava os


livros numa pequena sala adjacente. Pediu que o irmão
trouxesse os livros. Enquanto esperava, ficou tamborilando
com os dedos sobre a mesa, os olhos fixados distraidamente
num ponto qualquer do espaço. O silêncio na sala tornou-se
palpável. Joseph sentou-se, lentamente. Sentia-se cada vez
mais tonto e enjoado. Estou louco, pensou ele. Contemplou o
rosto calmo e pensativo de Ernest, percebeu a força dos
ombros, o poder que o suave tamborilar dos dedos irradiava.
Claro que estou inteiramente louco, pensou ele. O que Ernest
fez para merecer isso de seu pai? Mas, com todos os diabos,
tenho o direito de ver os livros! Não tem sentido ele ficar
contrariado só porque quero ver os livros!

Martin trouxe os livros pretos.

— Obrigado — disse Ernest, afável. -sente-se, Martin. Se


houve alguma coisa sobre a qual eu não tenha certeza,
gostaria que explicasse pessoalmente ao pai. — Ele olhou
para Joseph e acrescentou, ainda afável: -se está lembrado,
pai, tudo isso foi discutido em nossa última reunião.

Os dedos finos de Joseph foram virando as páginas. Não


podia impedi-los de tremer, também não podia evitar que os
olhos ficassem embaçados. Podia ouvir a voz tranquila de
Ernest, enquanto fingia que examinava atentamente os
números. Mas não via coisa alguma. Franzindo o rosto, corria
o indicador pelas colunas de cifras, os lábios contraídos,
como se conferisse os cálculos. Fez algumas perguntas
hesitantes. Estava passando tão mal agora que nem sabia
direito o que dizia. Percebeu que Martin observava-o
atentamente, com uma expressão um tanto conturbada. A
cabeça de Ernest estava ao seu lado, os cabelos claros
ressaltados pelo sol. Subitamente, Joseph sentiu vontade de
chorar. Fechou o livro.

— Gostaria de examinar também as contas passadas? —


perguntou Ernest, empurrando o livro na direção de Martin e
pegando outro. — Posso lhe informar de memória, com uma
diferença de poucas centenas, o que nos é devido. Mas aqui
está o livro, se deseja verificar pessoalmente.

Nunca a voz dele fora tão gentil.

Joseph abriu o livro, mas não percebeu uma única cifra.


Ernest continuou a falar, virando as páginas e explicando. A
porta se abriu e Armand entrou na sala, todo sujo do
trabalho na oficina. Olhou para Ernest e Joseph e pareceu
ficar profundamente surpreso. Depois, fazendo um esforço
evidente para assumir uma expressão afável, aproximou-se
da mesa.

Atraiu os olhos de Joseph e disse:

— Estou contente que tenha se lembrado de conferir


aquela conta da Macy. Disse a Ernest, na última vez, que não
estou satisfeito pela maneira como eles estão saldando seus
compromissos. — Ele sacudiu a cabeça para Ernest,
sorridente. — Acho que tem sido generoso demais com
aquela gente, meu caro Ernest. Por isso, pedi a seu pai para
verificar pessoalmente e dar sua opinião.

Ernest fitou-o pensativo e murmurou:

— Ah...

Ele sorriu de repente, virou a cabeça. Mas persistia uma


expressão sombria nos olhos.
Que loucura!, pensou Armand. Que indiscrição! Como um
homem pode ser tão tolo como Joseph? Mas também não
estou inteiramente livre de culpa.

Ele pôs a mão no ombro de Joseph.

— Preciso de você, Joseph. Se já acabou aqui, pode me


acompanhar à oficina?

Joseph se levantou. Estava com apenas 46 anos, mas


sentia-se velho e fraco. Docilmente, como se estivesse meio
drogado, deixou a sala em companhia de Armand.

A sós com o irmão, Martin levantou e empilhou os livros.


Sempre ficava desesperadamente constrangido na presença
de Ernest e evitava ficar a sós com ele. Ernest raramente o
detinha. E foi por isso mesmo que ele ficou extremamente
surpreso quando Ernest disse, suavemente:

— Sente-se, Martin. Preciso conversar com você.

Martin sentou-se e fitou-o com uma ansiedade


perturbada. Sua surpresa aumentou quando Ernest, sorrindo
com uma cordialidade excepcional, recostou-se na cadeira,
como se dispusesse de um lazer ilimitado.

— Martin, sabia que estamos ganhando muito dinheiro?


Estaremos ricos um dia desses.

— É possível.

A voz de Martin era polida, mas desinteressada. Ernest


levantou as sobrancelhas com uma tentativa de humor, mas
conseguiu apenas parecer sombrio.

— Não parece estar interessado nisso, Martin. Por quê? O


dinheiro é a coisa mais importante do mundo. É poder. E
pense só no que se pode fazer com poder!

Não estou dizendo o que pretendo, pensou Ernest. Mas


como posso conversar com meu irmão de olhos azuis de
menina, tão inocente quanto um bebê? Será que ele conhece
os fatos mais simples da vida? Ernest ficou aborrecido, não
com Martin, mas consigo mesmo, por ter negligenciado o
irmão mais moço por tanto tempo.

— Poder... — repetiu Martin, suavemente, como se


estivesse digerindo a palavra.

Um ligeiro rubor insinuou-se em suas faces. Ele olhou


para Ernest, alerta. O rosto ficou ainda mais vermelho, de
excitamento.

— Isso mesmo, pode nos proporcionar o que quisermos!


Nunca tinha pensado nisso! Algum desse dinheiro me
pertence?

Ernest mordeu o lábio para não sorrir, diante de tamanha


ingenuidade.

— Claro — disse ele, na voz atenciosa que se usa com


uma criança. — Tem uma participação nos lucros, como
sabe. Tem o seu salário semanal, que não é o mais
importante. Mas há a fábrica... todas as coisas que vamos
fazer...

Martin se levantou, como que suspenso pelo excitamento.


Acenou com a mão, como se afastasse alguma coisa.

— Não quero muito. Apenas o suficiente para...

Ele parou abruptamente. O queixo caiu contra o peito.


— Apenas o suficiente... para o quê? — perguntou Ernest,
curioso.

Martin tornou a sacudir a mão.

— Não importa — disse ele, em voz baixa. -só que posso


querer ir embora muito em breve.

Ernest ficou atônito. Inclinou-se para frente na cadeira,


que reagiu ao movimento com um sonoro rangido.

— Quer ir embora? Por quê? Para onde? O que vai fazer?

— Posso querer visitar a Inglaterra — respondeu Martin,


sem fitá-lo.

Ernest franziu o rosto, mordeu de leve a articulação do


dedo indicador, um hábito antigo.

— Inglaterra? Mas para quê? O que a Inglaterra já fez por


nós? Além do mais, você não pode lembrar muita coisa da
Inglaterra. Não deve dar ouvidos às histórias românticas da
mãe. Eu era mais velho do que você e lembro-me de muita
coisa. Não há qualquer oportunidade para ninguém na
Inglaterra. Jamais quero tornar a ver aquela terra.

Martin ficou calado.

— Ora, Martin, não fique assim. Jamais conversa comigo.


E por que não? Não sou seu irmão? Receio que esteja
convivendo demais com aquele tolo do Jacques Bouchard.
Não é bom para as pessoas saudáveis se ligarem a inválidos.
O ponto de vista do inválido é sempre doentio e distorcido. E
pode-se contrair as opiniões dele tão facilmente quanto se
pega sarampo. Tenho uma ideia. Vou até a Filadélfia na
próxima semana, para tratar de negócios relacionados com a
mina. Não gostaria de ir comigo?

Martin ficou em silêncio por tanto tempo, que Ernest


começou a sentir-se irritado. Mas, finalmente, Martin fitou-o
nos olhos e disse:

— Nunca se importou antes com o que eu pudesse fazer


ou pensar, Ernest. Por que está tão interessado agora?

Ernest contemplou-o com uma expressão hostil. Mas não


conseguiu fazer com que aqueles olhos azuis inabaláveis se
desviassem. Descobriu, com um choque, que os olhos de
Martin tinham a mesma expressão dos olhos de Amy
Drumhill. Havia a mesma inocência, a mesma franqueza, a
mesma simplicidade digna. Compreendeu que, para Martin e
Amy, a vida não era complexa, repleta de luzes e sombras,
alarmes, lugares secretos, concupiscência e ganância. Era
uma estrada aberta e em linha reta, pela qual podiam seguir
sem a menor hesitação. Ernest pensou, sem formular as
palavras: Como um homem pode ser livre numa estrada
assim? Nunca teria qualquer coisa para temer ou vigiar.
Nunca veria patifes, bandidos ou inimigos. Não haveria
necessidade de estar permanentemente de guarda. E como
seria repousante não ficar de guarda por algum tempo!

— Por que estou interessado? — repetiu ele,


distraidamente. — Por que estou interessado? Ora essa, por
que eu não deveria estar interessado? Não somos mais
crianças. Tudo isso, todo este negócio que eu... que
construímos é nosso. Estamos nisso juntos... inseparáveis. É
nosso! Temos de fazer planos. O pai não vai viver para
sempre. Nem Armand. Tudo então será nosso, seu, meu, de
Raoul e Eugene. É algo que está crescendo além do que
podemos imaginar e por isso mesmo temos de nos
compreender mutuamente.
Martin virou a cabeça abruptamente. E falou com uma voz
que tinha uma estranha violência:

— Não quero tomar parte nisso. Não quero mesmo. Não


deve planejar a minha participação. Não vou querer.

— Como?

Ernest não podia acreditar que ouvira direito. Sua boca


entreabriu-se. Martin fitou-o novamente, com intensa
veemência. O rosto estava vermelho, os olhos azuis
faiscavam. Ernest ficou completamente aturdido.

— Não vou querer! — gritou Martin. — Jamais quis ter


qualquer participação nisso! Eu... eu detesto ter qualquer
participação na fabricação de coisas para matar e destruir.
Você sempre pensou que eu era um tolo, porque nunca falei
a respeito. Mas sei de tudo! Sei que o tal contrato do exército
não passava de uma mentira! Sei para onde foram aquelas
armas, a pólvora e os canhões! Mas isso não importa agora.
Só que as coisas continuarão, haverá mais guerras, mais
armas e pólvora, mais sangue e morte! Não posso ter
qualquer participação nisso! E tenho certeza também de que
não vai parar por aí. Jacques diz que você é grande demais
para se limitar a armas e pólvora. Fará outras coisas, com
centenas e milhares de homens a trabalharem para você! E
será tudo seu! E quando tiver tudo isso... o que haverá?
Aquilo!

Martin foi até a janela que dava para o norte e apontou


para a cena lá fora.

— Olhe bem! Barracões, dezenas de barracões, povoados


por homens que trabalham para você e ganham o seu
dinheiro! Pobres infelizes, meio famintos, embrutecidos!
Prisioneiros! Em pior situação do que os negros no sul!
Suando, trabalhando, morrendo nas fundições! E na mina
que você comprou por uma ninharia! Vai enchê-la com
homens assim, sem qualquer esperança, oprimidos,
desesperados! Você é como uma aranha. Vai estender a sua
teia cada vez mais e por toda parte haverá injustiça,
desespero, ódio, ganância e morte. Você não tem coração
nem misericórdia. E não é apenas dinheiro ou poder que
você quer. É algo mais, além de você. Oh, Deus, você é uma
verdadeira pestilência! E a pestilência não vai terminar
quando morrer... irá continuar em seus filhos!

Ernest, abalado e furioso, levantou-se bruscamente. O


rosto estava vermelho de raiva.

— Cale a boca, seu idiota! Cale a boca!

E ele bateu com os punhos na mesa. Mas Martin não podia


ser detido agora.

— Não pode me calar, porque é tudo verdade, até a última


palavra! E você sabe disso. Não tem a menor ideia do que
seja o amor ou a bondade verdadeira. Parece não sentir que
aqueles homens lá embaixo também são seres humanos, com
carne como a sua, barriga como a sua, sangue como o seu.
Pensa que são apenas máquinas vivas para lhe
proporcionarem o poder que está querendo. Você não passa
de um assassino! Fabrica armas para matar homens e mata
os homens que fazem as suas armas para matar outros
homens. E para quê? Nem você próprio sabe! Simplesmente
tem de continuar a agir assim, porque está em você, não
pode evitar.

Mas não quero ter qualquer parte nisso. Vou embora em


breve e tratarei de esquecer tudo. Vou para algum lugar em
que não precise sentir o cheiro de pólvora e de armas, de
todas as coisas feitas para matar. Algum lugar em que eu não
tenha de vê-lo, em que não precise testemunhar a morte e o
sofrimento que você causa.

Martin bateu com a palma da mão violentamente nos


livros.

— Se houvesse um milagre, estes livros poderiam ser


escritos em vermelho... com sangue! Tudo em que você
tocasse ficaria com manchas de sangue! Sei muito bem que
foram Tio George, Armand e o pai quem começaram tudo,
mas não teria ido muito longe se não fosse por você. Tudo é
por sua causa! E é de você que vou me afastar!

Ernest sentou-se devagar, ainda olhando fixamente para o


irmão. Seu rosto estava lívido. E falou, bem devagar:

— Ora, seu idiota infernal! Seu maluco! Leu muitos livros


imbecis e esse é o seu problema. Leu muitas histórias de
fadas. Sangue? Essa não! Você deveria ter sido um ator.
Ficaria cantando nas esquinas. Morte... sofrimento...
ganância... assassinato... Ora, nem tenho palavras para
descrevê-lo! E está me deixando com um gosto ruim na boca.
Não esqueça, seu idiota, que estou num negócio. Faço apenas
o que é necessário. Fabrico as melhores armas e a melhor
pólvora. O mundo está querendo essas coisas. Por que devo
me preocupar com o que acontece com as armas depois que
deixam esta fábrica? Mas não adianta desperdiçar palavras
com você! Não poderia compreender a mais simples das
explicações! Não entendo como o pai gosta de escutá-lo! O
trabalho da vida dele é isto aqui, deu o melhor de si e está
orgulhoso do que criou, com toda razão! Eu deveria lhe dar
uns cascudos!

Martin levou a mão à cabeça... e a mão tremia. Dava a


impressão de não ter ouvido o que Ernest falara.
— Parceiros da morte. — murmurou ele, para si mesmo.
— Sócios na morte. Não quero tomar parte nisso.

E ele saiu da sala, apressadamente, como se estivesse


prestes a ser perseguido.

Ernest recostou-se na cadeira e disse em voz alta,


olhando sombriamente para o teto:

— Tenho uma ótima família... uma família de idiotas!


CAPÍTULO XVII
Naquela noite, como de hábito, Martin murmurou alguma
coisa sobre visitar Jacques Bouchard e saiu de casa mais
cedo do que geralmente fazia. Hilda, que não mais tinha a
confiança do filho, contraiu os lábios, enquanto bordava
uma almofada. Ernest estava sentado à mesa de mogno, ao
lado de um lampião, fazendo cálculos, franzindo o rosto,
escrevendo anotações num pequeno livro preto. Joseph
fumava, cochilava, olhava para o fogo, lia de vez em quando
os últimos jornais chegados de Filadélfia. Dorcas fora deitar
cedo. Somente Hilda, Joseph e Ernest ocupavam a ‘sala de
estar’, de teto baixo, confortável, mas atravancada.

Uma sensação de melancolia e solidão envolveu o coração


de Hilda. O rosto perdera a antiga vivacidade e brilho, não
mais era corado. Estava agora um tanto enrugado, pálido,
sombrio. No vestido preto de seda, com seus imensos
babados, a touca de renda, correntes e anéis de ouro, era
uma imagem agradável de uma matrona de meia-idade. Mas
sua impressão era insatisfeita, como se estivesse procurando
ansiosamente por alguma coisa que nunca mais tornaria a
encontrar. Ela olhou atentamente para Ernest e depois para o
marido. Joseph, pensou ela, inquieta, estava certamente mais
magro, quase ‘débil’. Bonito, esguio e nervoso como sempre,
só que parecia estar quebrado por dentro, um pouco
aturdido. A voz, embora brusca e incisiva como sempre,
tinha agora o hábito de hesitar inesperadamente, no meio de
uma frase. “Ele trabalha demais”, pensou Hilda,
ansiosamente. “E se atormenta. O que pode ser? Por que ele
não conversa com Ernest como costumava fazer antes?
Agora, eles nunca se falam, exceto para discutir. E Martin
está sempre com aquele pobre maricas aleijado do Jacques
Bouchard, quando deveria ficar com a família! Nunca uma
mulher foi tão maltratada como eu! Sinto falta das meninas.
Gostaria que Ernest não tivesse a ideia de mandar Florabelle
para a tal escola, embora ela fosse petulante, muito viva e
atrevida. Sinto saudade dela. E também quase não vejo
Dorcas, com aquela empertigada da Srta. Prescott a cercá-la
por toda parte. Gostaria que nunca tivéssemos vindo para cá,
com ou sem dinheiro. Gostaria que ainda estivéssemos na
Inglaterra, em Reddish!”

Ela piscou rapidamente, removendo algumas lágrimas.


Contraiu os lábios com mais força ainda e preencheu
intrincadamente uma folha do bordado. Viu-se andando pela
Sandy Lane, passando pela pequena ponte, entrando nos
pequenos vales, onde ela e os filhos encontravam as
primeiras violetas silvestres. Lembrou-se da taverna, com
seu cheiro de cerveja e salsicha, os painéis de nogueira
preta, as janelas de treliça, o pôr do sol prolongado, o riso e
o sossego, o grande fogo ardendo. As amigas surgiram
diante de seus olhos, donas-de-casa jovens e vigorosas,
discutindo, sorrindo, chorando. Podia ver a cozinha da velha
casa, os caldeirões brilhando como ouro nas paredes, o
berço balançando gentilmente ao lado da lareira. Ah, não
havia nada como na Inglaterra, a querida Inglaterra! Ela
soluçou alto, secamente. E, com um sentimento de culpa,
olhou rápido para Joseph e Ernest. Joseph adormecerá na
poltrona, mas Ernest a fitava atentamente.

— Qual é o problema, mãe?

Hilda levantou o bordado para mais perto dos olhos. E


respondeu, tristemente:

— Eu estava apenas pensando na Inglaterra. Acho que


teria sido melhor se tivéssemos ficado por lá.

Ernest soltou um grunhido.


— Para vivermos e morrermos como criados ou
engraxates? Seria um absurdo. Não pode imaginar o
sofrimento quando está longe dele, mãe.

— Se está querendo dizer que estamos bem porque temos


dinheiro, então eu preferia estar na Inglaterra — disse Hilda,
veemente. -Não tenho qualquer amiga aqui, com exceção de
Madame Bouchard, que está ficando mais esquisita a cada
dia que passa. Joseph está se acabando de tanto trabalhar e
Martin nunca fala, está sempre em companhia de Jacques...

Ela fez uma pausa, surpresa, pois Ernest franzira o rosto


bruscamente à menção do nome de Martin. Depois,
acrescentou, num tom resignado:

— O que está havendo novamente entre você e Martin?

— Nada, mãe. Tem certeza de que ele está sempre com


Jacques Bouchard?

— Claro que tenho. Madame Bouchard fala


frequentemente de como os dois se estimam e menciona as
visitas de Martin. O que o leva a pensar que ele poderia ir a
outro lugar?

— Não sei. Só posso dizer que o Sr. Renfield comentou


uma vez tê-lo visto vindo da direção do rio uma noite, por
volta das dez horas. Era uma noite horrível, com chuva e
granizo. E Martin, presumivelmente, fora à casa dos
Bouchards.

— Ele pode estar namorando alguma moça! — exclamou


Hilda, divertida.

— Espero que não para aquele lado — comentou Ernest,


sombriamente. — Lá só tem gente muito pobre, holandeses e
outros, alguns posseiros miseráveis.

Inquieta, Hilda olhou para a janela, em cujo preto polido


estavam refletidos os lampiões e velas da sala. Uma chuva
miúda de outono estava caindo, sussurrando contra o vidro.
As árvores lá fora farfalhavam, solitariamente. Com um
senso de refúgio, Hilda estendeu as mãos rechonchudas para
o fogo. Sentiu inesperado prazer quando um carvão caiu e
sibilou. Correu os olhos pela sala atravancada, com seu
papel de parede vermelho, tapete vermelho-escuro, móveis
pesadões e horrendos. Sentindo um frio súbito, ela ajeitou o
xale em torno dos ombros, cobertos pela seda preta do
vestido. Depois, voltou a falar, pensativa:

— Lamento que não seja uma moça. Martin não


demonstra o menor interesse pelas mulheres. O que não é
certo, na idade dele. Está sempre com Jacques.

— Ele se interessa também pelo que vai encontrar nos


brejos à margem do rio — comentou Ernest.

Subitamente alarmada, Hilda fitou-o.

— Tem certeza, Ernest? Mas deve se lembrar que os


Bouchards ainda moram perto do rio. E talvez Martin dê um
passeio depois de se encontrar com Jacques.

— Numa noite de granizo, com o rio subindo? Não pode


ser um mero passeio, mãe. Tenho certeza de que há algo
mais. Mas também é possível que o Sr. Renfield tenha se
enganado e não fosse Martin.

Ele acrescentou as últimas palavras com um sorriso, ao


perceber como a mãe estava perturbada.

— Mas claro que ele estava enganado! — exclamou Hilda,


relaxando, embora ainda estivesse um pouco inquieta. -Só
que esta noite Martin saiu em seu cavalo, embora
normalmente vá a pé até a casa dos Bouchards. Mas talvez
tenha sido porque está chovendo.

Ela suspirou, parecendo um pouco aturdida e triste.


Retornou o trabalho. Ernest estava com o olhar perdido na
distância, batendo nos lábios com a ponta da pena.

Mas Martin não fora diretamente para casa dos


Bouchards. Selara o cavalo pessoalmente, abotoara até em
cima o capote, montara com agilidade e partira pela noite
fria e chuvosa de outono. Avançou rapidamente, passando
pelas ruas secundárias de Newtown, o chapéu abaixado até
os olhos. Os cabelos compridos, entre prateados e dourados,
brilhavam com gotas de chuva. Ocasionalmente, ele
estimulava o cavalo gentilmente, com o chicote empunhado
na mão enluvada. Era alto e esguio, tinha boa postura no
cavalo, embora o caminho fosse difícil e o animal às vezes
tropeçasse, escorregando no terreno molhado. Além do mais,
estava extremamente escuro, apenas com um lampião de rua
brilhando aqui e ali, sem que a claridade conseguisse se
espalhar muito pela escuridão da noite. No silêncio, o
barulho das ferraduras ressoava interminavelmente.

Aos poucos, as ruas foram se tornando mais e mais


miseráveis. Um ar de pobreza e abandono pairava, as luzes
foram se tornando mais esparsas. Não havia ninguém pelas
ruas, embora vozes estridentes e embriagadas saíssem das
casas miseráveis. Martin seguia firmemente na direção do
rio, cuja voz já podia agora ouvir, rouca, sussurrante, mal-
humorada pela aproximação do inverno. Árvores começaram
a aparecer, enquanto as ruas desapareciam. A escuridão
tornou-se mais densa. O cavalo avançava com cautela pela
estrada irregular, cheia de buracos e pedras. Conhecia o
caminho, pois já estivera ali muitas vezes. Era um bom
animal e ressentia-se daquelas excursões. Martin lhe falava
suavemente, afrouxando as rédeas.

Agora, havia apenas uma ou outra casa no caminho. E


Martin continuou a seguir na direção do rio. Avistou a água,
opaca, na escuridão da noite. Passou pelas cabanas de
posseiros, miseráveis, chaminés quebradas, exalando fumaça
avermelhada, o terreno ao redor coalhado de refugos e
botes, redes de pesca e linhas, caixas de madeira, tudo
encharcado pela chuva. Cachorros vira-latas latiam
lugubremente à passagem de Martin. As chamas de velas
brilhavam através das janelas pequenas e sujas. A voz do rio
foi se transformando num rugido ensurdecedor.

Os buracos de posseiros finalmente desapareceram.


Agora, as margens do rio estavam silenciosas e vazias,
povoadas apenas por árvores compactas e a relva crescida.
Uma luz apareceu a distância, entre as árvores. Martin
esporeou o cavalo nessa direção. Chegou a uma pequena
clareira, em que havia uma casa pequena, mas bem
construída, com um ancoradouro estendendo-se pela água.
Havia um jardim por trás da casa, assim como outros sinais
de orgulho e decência, embora fosse evidente que as pessoas
que ali viviam eram muito pobres. Havia um vago reflexo de
luz avermelhada do fogo nas janelas pequenas e altas. Era a
única presença de vida em meio ao silêncio e escuridão da
margem do rio.

Martin desmontou, prendeu o cavalo numa árvore e


começou a subir pelo caminho de madeira, na direção da
casa. Um cachorro latiu subitamente, bem perto. Martin
chegou à porta e bateu três vezes, rapidamente, com o
chicote. Esperou um momento, bateu mais duas vezes.
Desabotoou a gola do capote e estremeceu, quando gotas
frias de chuva lhe escorreram pelo pescoço.
O cachorro parou de latir, como se advertido por um
sussurro. Depois, a porta foi relutantemente entreaberta,
apenas uma fresta. Um homem espiou.

— Sou eu, Martin Barbour.

Ele empurrou a porta, enquanto o homem recuava. Martin


entrou na casa.

Viu-se numa sala comprida e baixa, as paredes de pinho


sem pintar, os móveis simples e escassos. Duas poltronas
estavam dispostas nos dois lados da lareira imensa, onde
ardia um fogo que rugia como um touro. O chão não tinha
tapete, mas fora lixado até ficar com um branco sedoso.
Havia uma pequena mesa redonda no centro da sala, coberta
por uma toalha branca, tendo por cima um jarro de peltre
com leite, uma travessa com presunto frio, uma travessa
com fatias de pão e um pote de mel. Uma chaleira preta
sibilava no fogo, cujo clarão era a única iluminação da sala.
Apesar da pobreza evidente dos que viviam naquela casa
simples, havia na sala um ar de conforto e dignidade,
charme, paz e orgulho.

Uma mulher de meia-idade estava sentada numa das


poltronas, tricotando. Era informe, alta, de rosto sombrio,
óculos de aros de aço, por trás dos quais brilhavam olhos
azuis e alertas. Os cabelos, de um amarelo pálido, tinham
muitas listras brancas e estavam presos num coque junto à
nuca. Usava avental branco sobre o vestido azul de morim.
As feições, um tanto esqueléticas, tinham um aspecto
teutônico. A voz era gutural, quando ela disse “boa-noite” a
Martin. Largou o tricô e levantou-se. Era tão alta quanto
Martin, muito mais larga. Sorriu-lhe tensamente, mas com
evidente respeito e afeição.

O homem que abrira a porta para Martin ajudou-o a tirar o


capote molhado, estalando a língua com expressão
preocupada, enquanto o fazia. Era mais baixo do que a
mulher, gordo e rosado, uma barba amarela escondendo a
metade do rosto. Estava sem casaco, a gola da camisa branca
aberta no pescoço pequeno e grosso. Os pés, em chinelas de
feltro, arrastavam-se pelo chão enquanto levava o capote de
Martin para perto do fogo. A mulher atiçou o fogo
vigorosamente. As chamas se levantaram e envolveram a
chaleira.

— O chá será servido dentro de um momento — disse ela.

— Está muito frio lá fora — disse Martin, sorrindo,


enquanto esfregava as mãos diante do fogo. — Mas já jantei,
Sra. Heckl.

Ele correu os olhos pela sala, rapidamente, quase


furtivamente.

— Carl já foi? O rio está alto esta noite e a correnteza


parece muito rápida. Espero que ele não tenha qualquer
dificuldade.

— É o que também esperamos — disse Hans Heckl, os


olhos pequenos brilhando intensamente sob as sobrancelhas
louras hirsutas.

Ele também esfregou as mãos diante do fogo, só que


tremiam um pouco. Um cachorro, vindo de um canto escuro,
aproximou-se, imenso, peludo, de raça desconhecida.
Encostou-se na perna de Martin, que distraidamente afagou-
lhe a cabeça.

Martin tirou o relógio do bolso e franziu o rosto.

— Ele já deveria estar aqui. Vamos esperar mais um


pouco. E rezar para que não tenha sido apanhado.

— Oh, Deus, não diga isso! — exclamou Hans, a voz


trêmula.

A mulher lançou-lhe um olhar furioso, enquanto


despejava água quente num bule azul alemão. Censurou o
marido bruscamente, com sua voz gutural. Martin sorriu.
Mas estava um pouco apreensivo. Sentou-se à pequena mesa,
junto com Hans. Mas nenhum dos dois podia comer muito.
Ficaram escutando. A Sra. Heckl, que estivera falando sem
parar, finalmente calou-se. Esperaram, ao calor do fogo, na
semiescuridão da sala. A voz do rio parecia se aproximar,
ameaçadora. O vento sacudia as janelas. A Sra. Heckl
tricotava decidida, como se cada ponto pudesse manter o
medo a distância. O estalar das agulhas e o barulho dos
carvões caindo ressoavam muito alto no silêncio.

Martin olhou para Hans. O rosto do alemão suava


profusamente agora, estava extremamente pálido. Piscava os
olhos repetidamente e dava para ver o brilho de lágrimas
assustadas. Parecia muito indefeso, a barriga repousando
sobre os joelhos abertos. Rolava miolo de pão entre os
dedos, transformando-o em pequenas bolas. Não desviava os
olhos da porta, mexendo os lábios como se estivesse
rezando. A Sra. Heckl tricotava, acenando com a cabeça
como se estivesse contando cada ponto.

— Às vezes é demais — murmurou Hans, sempre olhando


para a porta. — Todas as noites fico esperando pela polícia,
mas isso não é tão ruim assim. O terrível é esperar pelo meu
Carl, lá fora no rio, sozinho, no escuro, na chuva. Esperando,
esperando sempre...

— Você não tem qualquer força, Hans — disse a Sra.


Heckl, desdenhosamente, ainda tricotando. -Não tem fé em
Deus. Nosso Carl não está sozinho no rio. O bom Deus está
com ele. Carl está fazendo o trabalho do Senhor e nada pode
acontecer-lhe.

— Nada pode acontecer-lhe — repetiu Martin, gentil.

Hans fechou os olhos com força e uma lágrima escorreu-


lhe pelo rosto. Martin observou-a embrenhar-se pela barba
loura. Cobriu a mão úmida e trêmula de Hans com seus
dedos finos e compridos, num gesto de conforto.

O silêncio aprofundou-se, embora o vento crescente


sacudisse as janelas ameaçadoramente e levasse o fogo a
roncar mais forte. A sala estava inundada por uma claridade
vermelha, que se refletia nas agulhas de tricô, dançava sobre
o assoalho esbranquiçado, brilhava nos óculos da Sra. Heckl.
O cachorro, sentindo a apreensão dos homens e da mulher,
andava irrequietamente pela sala, passando diversas vezes
diante da lareira e finalmente sentando. Pôs a cabeça de lobo
entre as patas. Mas não podia ficar quieto. Recomeçou a
andar. Parou de repente, rígido, a cabeça apontando para a
porta, alerta. Depois grunhiu, um grunhido baixo, que subiu
lentamente do fundo da garganta. Martin e Hans levantaram-
se de um pulo, enquanto a Sra. Heckl se erguia lentamente,
os lábios trêmulos. Não houve qualquer som por um longo
momento, além do barulho do vento e do rio. Depois,
ouviram uma batida no pequeno atracadouro. No mesmo
instante, o cachorro ficou frenético, pulando para a porta,
latindo, ganindo. Hans segurou o braço de Martin, as
lágrimas escorrendo-lhe pelas faces.

— Ele está aqui! -sussurrou Hans.

Ele pegou o casaco que a mulher lhe estendia. Martin


vestiu o seu capote. Sem chapéu, os dois saíram para a noite
escura, de chuva e vento, a lhe enfunar as roupas,
dificultando a respiração. Os pés correndo afundavam na
lama, a água gelada entrava pelas botinas. Escorregaram
várias vezes. Martin caiu de joelhos na lama, levantou-se
rapidamente, tremendo. Chegaram ao pequeno ancoradouro
de madeira. A água subira, passando por cima, sacudindo-o.
Não haviam trazido qualquer luz, mas podiam divisar o
brilho fraco de um lampião abafado, na extremidade do
pequeno cais.

Um barco a remo grande estava atracado ali. Cinco


homens desembarcavam, os contornos indefinidos. Estavam
em silêncio, as atitudes meio agachadas indicando seu
terror. Um rapaz afastou-se do grupo e segurou as mãos
estendidas de Hans.

— Papai! — sussurrou ele, a voz rouca, soltando uma


risada, como se estivesse dominado por um excitamento
histérico. — Consegui outra vez! Estou em casa, a salvo!

A luz abafada incidia em seu rosto, claro e corado,


iluminava os olhos azuis excitados, os dentes brancos. Ele
pegou o lampião e virou-se para os companheiros, que
estavam encolhidos juntos, como galinhas assustadas. Os
homens levantaram a cabeça, viraram os rostos apavorados
para a luz. Eram todos negros, dois deles de meia-idade, um
garoto frágil e um velho de cabelos e barba brancos. O velho
era cego de um olho e o rosto estava terrivelmente coberto
de cicatrizes, como se tivesse sido marcado por ferro em
brasa. As roupas de todos estavam esfarrapadas. Em meio às
lágrimas, as peles escuras brilhavam, frias e molhadas. Os
dentes chocalhavam audivelmente.

A débil claridade do lampião projetava-se sobre eles e um


pouco além, mostrando a água escura e turbulenta,
entremeada de espuma branca. O vento, aumentando de
intensidade, sacudia o pequeno cais. Os negros mantinham-
se juntos, sussurrando, rezando inaudivelmente. Olhavam
fixamente para os três homens brancos, os olhos brilhando
de terror.

— Vamos embora — disse-lhes Carl, sorrindo e pegando o


velho pelo braço. — Estamos a salvo agora, perfeitamente
seguros, meus pobres amigos.

Docilmente, como gado, os negros seguiram seus


salvadores até a casa. O cachorro escapara à dona e
encontrou-os no meio do caminho, com latidos e rosnados.
Os negros encolheram-se de medo. Carl assoviou e o
cachorro saltou em cima dele, contorceu-se na lama, pulou
de alegria ao seu redor. Entraram na casa e a porta foi
fechada, a tranca de ferro baixada. A Sra. Heckl,
eficientemente, tapara as janelas e estava esperando junto à
lareira, de pé. A chaleira que fora enchida de água outra vez
sibilava no fogo. Um caldeirão grande, cheio com uma sopa
grossa, balançava sobre as chamas.

O horror e o terror dos últimos dias ainda dominavam os


negros, a recordação da longa e perigosa viagem pelo rio
turbulento ainda estava estampada em seus olhos. Ficaram
tremendo, juntos, no meio da sala, olhando ansiosamente
para o fogo, sem se mexerem. A água escorria de seus trapos
para o chão esbranquiçado. Pareciam mais com animais
apavorados do que homens. O velho cego de um olho
começou a gemer, como um bezerro doente.

— Venham até aqui! — exclamou a Sra. Heckl, irritada,


sacudindo a cabeça na direção do fogo. — Não fiquem
parados aí como patetas, molhando todo o meu assoalho!

Os olhos dos negros se reviraram, fixados nela. Baixaram


as cabeças, aproximaram-se do fogo. A compaixão e o pesar
contraíram o rosto da Sra. Heckl, mas ela manteve a voz
áspera:

— Hans, leve-os daqui dentro de um minuto e lhes dê as


roupas. E depressa, pois a sopa está quente.

O velho virou o lado cego do rosto para ela, o olho bom a


fitá-la, com as lágrimas transbordando. Humildemente, ele
se abaixou, humildemente pegou a mão da Sra. Heckl,
humildemente comprimiu nela os lábios úmidos. A Sra.
Heckl não estremeceu, mas virou a cabeça, como se não
pudesse suportar a agonia daquela cena. Ela retirou a mão,
bruscamente.

— Não quero ninguém babando nas minhas mãos — disse


ela, asperamente. — Hans, você vai levá-los ou não?

Os negros seguiram Hans para outro aposento. Por trás da


porta fechada, podia-se ouvi-los vestindo roupas secas. Um
deles falou, numa voz esganiçada, prontamente respondido
por outro:

— Estamos a salvo no outro lado do Jordão, graças a


Jesus!

Carl, excitado e exuberante, deu um tapa jovial nas costas


de Martin. Era um rapaz esfuziante, sorridente, jovial e
corajoso. Era mais baixo que Martin, embora mais largo.
Beijou a mãe sonoramente, beijou com afeto o pai, andou em
torno da sala, pavoneando-se, relatou suas aventuras, riu
estrondosamente, brincou com o cachorro, falou sem parar.
Era evidente que ficara por demais abalado por algum
tempo, pois havia uma estridência em sua voz que vinha de
nervos subitamente relaxados. Disse à mãe que estava
morrendo de fome, que ele e os negros não comiam nada há
dois dias, que haviam sido perseguidos, despistado os
perseguidores, novamente perseguidos por homens ansiosos
em ganhar as recompensas oferecidas por negros fugitivos.
Ele riu outra vez, uma risada alta, estridente, desenfreada.
Martin empurrou-o levemente para uma cadeira, dizendo:

— Você está muito cansado, Carl. E as coisas ainda não


acabaram, como sabe perfeitamente. Resta a viagem até
Aubum.

Esparramando-se na cadeira, Carl estalou os dedos


impudentemente. O calor do fogo espalhava-se por seu
corpo jovem e forte. Ele bocejou, sorriu.

— Aubum não é nada! Estamos perfeitamente seguros!

Ele tornou a bocejar, arriou na cadeira e adormeceu no


instante seguinte. Martin levantou, sorrindo, estendeu seu
capote por cima dele, dizendo a Hans e à mulher:

— Deixem-no descansar.

O rapaz começou a roncar. A Sra. Heckl atiçou o fogo, pôs


quatro tigelas grandes na mesa, colheres e canecas de peltre,
serviu a sopa quente. Os negros voltaram, timidamente,
vestindo roupas velhas e sortidas, mas quentes. Cheiravam a
sopa, olharam para a mulher, tremendo. A Sra. Heckl
gesticulou-lhes, de imediato. Eles sentaram e puseram-se a
comer, ruidosamente.

Martin e Hans ficaram sentados em silêncio ao lado do


fogo. Carl continuava a roncar, mergulhado no sono
profundo da exaustão. O cachorro encostara a cabeça aos
pés do jovem dono. À luz do fogo, seus olhos selvagens
brilhavam de devoção. A Sra. Heckl continuou a servir sopa,
a cortar fatias de pão, a encher o jarro com leite e a cortar
presunto. Movia-se pesadamente, mas com agilidade,
resoluta, sem olhar para os rostos inibidos e as mãos
trêmulas dos negros fugitivos. Uma ou duas vezes, a mão de
um dos negros tocou humildemente na saia de morim, como
um cachorro a tocaria. Mas ela pareceu não perceber. Sua
expressão foi se tomando cada vez mais tensa e sombria.

Depois que os negros não podiam mais comer, Hans


trouxe uma escada, armou-a no meio da sala, subiu e abriu
um alçapão no teto. Sem dizer nada, apontou para cima.
Havia camas lá em cima, além de colchas e cobertores. Em
silêncio como o anfitrião, os negros subiram a escada
desajeitadamente. Depois que o último deles, o velho,
desapareceu lá em cima e o alçapão foi fechado, Hans levou
a escada de volta ao outro aposento. Carl ainda dormia. A
mãe dobrara o xale, improvisando-lhe um travesseiro. Os
cabelos louros de Carl brilhavam como ouro à luz do fogo.

Martin vestiu seu capote. Pôs um maço de notas na mesa,


dizendo em voz baixa à Sra. Heckl e a Hans:

— Aqui tem 1.100 dólares — ele pôs um pequeno saco de


algodão em cima das notas. — E aqui tem 500 dólares em
ouro. O ouro, como sabem, é para lhes ser entregue depois
que cruzarem a fronteira para o Canadá.

A Sra. Heckl lembrou-se subitamente do que outro


escravo fugitivo dissera a respeito de Martin:

— Ele é como um daqueles anjos de que falam no Livro


Santo.

Ela tinha de admitir, relutantemente, que era isso mesmo.


Alto e esguio, com uma beleza excepcional no rosto pálido,
olhos grandes e azuis, Martin parecia ser de outro mundo. Se
ele tinha paixões, não as deixava transparecer na pureza e
gentileza da expressão.
— Esse foi todo o dinheiro que pude tirar da minha conta
sem chamar atenção — acrescentou Martin. — Eles terão de
ficar com 450 dólares para cada um, ao invés dos 500 dólares
habituais. Hans, quando você for trabalhar amanhã, dê um
jeito de me falar a sós, a fim de informar se correu tudo
bem.

Hans acompanhou-o até a porta, sacudindo a cabeça, a


mão em seu braço.

— Aqueles pobres-diabos que trabalham na fábrica, Sr.


Martin, não estão em situação muito melhor do que esses
negros. O Sr. Eugene me disse hoje: "Hans, você é um
péssimo capataz. Encoraja os homens a se fingirem de
doentes.”

Uma ligeira altivez estampou-se no rosto de Martin.

— Raoul garantiu-me que, por pior que seja a situação


deles aqui, estão muito melhor do que na terra de onde
vieram.

Hans tornou a sacudir a cabeça, lentamente, sorrindo com


tristeza.

— Isso é mentira, Sr. Martin. No país de origem eles


podiam não ter o dinheiro, mas tinham um pouco de terra,
uma vaca, às vezes um cavalo, alguns porcos, um chalé.
Talvez o governo os obrigasse a servir no exército, talvez
houvesse fome de vez em quando. Mas não trabalhavam
tanto. E se trabalhavam, era para si mesmos, em suas
próprias terras, entre seus amigos e sua própria gente. Mas
aqui...

Ele gesticulou, com eloquência. Martin interrompeu-o


bruscamente:
— Boa-noite.

Ele ouviu o ansioso pedido de desculpas de Hans, a


súplica por perdão. Não olhou para trás. Seu cavalo estava
enregelado, de cabeça baixa, tremendo todo. Deixara-o ao
relento, já que os Heckls não tinham estábulo. Afastando-se
pela escuridão, sob a chuva, Martin sentiu-se dominado por
terrível depressão. Haviam resgatado 50 escravos durante o
último ano, ajudando-os a fugirem para o Canadá. Martin
sabia da profunda devoção que os escravos decentemente
tratados concediam a seus donos; sabia que só fugiam os
que estavam desesperados por maus tratos. Apenas 50,
pensou ele, tristemente. Uma gota d’água. Depois, ele
pensou nos boêmios, tchecos, eslavos e magiares nos
barracões perto da fábrica e da serraria. Fechou os olhos de
angústia. A lealdade com seu clã levara-o a tratar friamente o
capataz, Hans Heckl. Mas sabia que era verdade o que o
velho alemão lhe dissera.

Será que os homens não podem existir sem explorarem


ou matarem seus semelhantes?, perguntou-se Martin. Será
que não há lugar para todos nós? Qual é a doença mortal da
alma que leva um homem a se tornar um canibal? Por que ele
deve ser dominado por algo que lhe torna insuportável não
ter mais que o vizinho?

Ele lembrou-se de algo que o Padre Dominick, da Igreja da


Anunciação, dissera a ele e a Jacques, uma semana antes:

— Tudo isso acontece porque o homem odeia seu


semelhante, não pode admitir que ele desfrute as mesmas
coisas, não pode suportar seu cheiro, contato, voz ou mesmo
respiração. Ele devora porque odeia e despreza, não porque
esteja faminto ou desabrigado. Não tem asas para alçar vôo.
Assim, para alcançar um lugar mais alto, precisa primeiro
derrubar seus semelhantes e subir sobre seus corpos.
Quando os homens encontram o amor, deixam de ser
canibais e descobrem que seus irmãos não apenas são
suportáveis, mas também agradáveis e cordatos.

O padre também dissera:

— É um erro pensar que o homem é um animal gregário.


Ele é gregário apenas quando precisa da proteção de
estranhos. Por natureza, o homem é de fato um solitário... e
nenhuma criatura que seja solitária é bondosa, justa ou
compadecida. O homem também não é civilizado. Somente o
amor pode destruir o inimigo solitário que vive em cada
homem e transformar a humanidade gregária de uma
maneira realmente sagrada e nobre.

O homem, o selvagem, pensou Martin, deve caçar


sozinho, comer, matar e destruir sozinho. Mas não pode ser
salvo sozinho. Sua salvação o civiliza, torna-o realmente
humano; mas ele só pode encontrar a salvação por
intermédio de seus semelhantes.

Martin pensou em Ernest e teve certeza de que o padre


estava correto. Ernest era um solitário, selvagem, canibal,
predador. Pensando no irmão, foi irônico que algo muito
parecido com o ódio aflorasse nele. Mas Martin não percebeu
a ironia. Assim como Ernest, não tinha o menor senso de
humor.

Em meio â sua depressão, insinuou-se profunda solidão.


Ele esporeou o cavalo. Sentia necessidade de se encontrar
com Jacques o mais depressa possível.

Madame Bouchard e Armand, tendo construído a sua


horrenda e resistente casa de pedra, plantado árvores e um
jardim, comprado móveis antiquados que se ajustavam
perfeitamente aos aposentos baixos e compridos, não
podiam agora se convencer a comprar uma casa mais
suntuosa, a se mudarem para Oldtown ou para um lugar
melhor de Newtown. Aquele era o seu lar, fazia parte deles,
uma casa amada, aconchegante, familiar. As casas dos
pequenos artesãos e operários semiespecializados surgiam
ao redor, até os limites de sua propriedade ciumentamente
amada. Mas eles se recusavam a sair dali. Na verdade,
Madame Bouchard, uma camponesa, mulher sincera e
honesta, até que gostava dos vizinhos. Raoul podia
resmungar e Eugene franzir o rosto, contrariado, mas os pais
sorriam com indulgência e contemplavam afetuosamente os
aposentos horrendos, mas confortáveis.

Eram 11 horas quando Martin chegou à casa dos


Bouchards, mais tarde do que calculara. Não havia luz por
trás de janela alguma, nem mesmo nas janelas dos quartos,
apenas nas duas janelas da sala. Mas era uma luz bastante
fraca, revelando a Martin que havia apenas uma ou duas
velas acesas. O brilho nos vidros das janelas indicava
também que o fogo na lareira estava quase apagado. Os
Bouchards deitavam cedo, pois levantavam às cinco horas da
manhã. Martin sabia que apenas Jacques estava acordado, à
sua espera. Sentiu-se contente por isso. Não queria a
companhia dos outros.

Ele amarrou o cavalo, bateu de leve na porta. Houve um


barulho, o som de pés arrastando-se lentamente pelo
assoalho. A tranca foi puxada, a porta abriu-se. Martin,
alguma água escorrendo de suas roupas, entrou na sala
comprida, escura e quente.

Jacques sorriu-lhe afetuosamente, enquanto fechava a


porta.

— Você demorou muito. Eu já estava começando a ficar


preocupado.
Ele falou em voz baixa, com um gesto mecânico de
advertência na direção das portas dos quartos. Martin sorriu.
Percebeu que o rosto do amigo estava pálido da tensão. Ele
aproximou-se do fogo baixo, tirou as luvas, esquentou as
mãos. Ficou parado de costas para Jacques, as pernas
compridas bem abertas, o capote brilhando de umidade, os
cabelos prateados faiscando à luz das velas. Jacques sentou-
se, lentamente, os olhos fixados no amigo. Deixou
transparecer a tensão das últimas horas no completo
relaxamento e exaustão. Pusera uma garrafa de vinho e dois
copos numa mesinha ao seu lado. Encheu os copos e
ofereceu um a Martin. Este bebeu. O rosto estava brilhando
do exercício e ficou corado como o de uma moça. Sua beleza
quase feminina era como uma claridade intensa na sala
silenciosa. Jacques, tomando o vinho em pequenos goles,
distraidamente, contemplava-o como se estivesse fascinado,
embora inteiramente tranquilo e contente.

— Tudo correu bem — disse Martin, baixinho. Ele


levantou as abas do casaco e sentou-se diante de Jacques. —
Fiquei com medo, pois o rio subira e a polícia poderia ter
ficado mais vigilante.

Suspirando, ele virou o rosto para o fogo. Jacques


observou-lhe o perfil impecável, com uma estranha
intensidade, quase um anseio doentio. Martin acrescentou:

— Claro que Carl acabará sendo apanhado, mais cedo ou


mais tarde.

— Teremos então de arrumar outra pessoa — comentou


Jacques, sereno.

Martin fitou-o rapidamente, franzindo o rosto. Sentia-se


às vezes repelido pela lógica implacável e as palavras
objetivas do amigo francês.
— Mas não será nada bom para Carl. Gosto dele. E seus
pais ficariam desesperados. Se ao menos eu pudesse fazer
tudo pessoalmente... Mas tenho de pensar também em meus
pais. E na pequena Dorcas. Claro que encontraremos outra
pessoa, como você disse. Mas, no final das contas, não
podemos deixar de pensar em Carl.

Jacques não disse nada. Martin tornou a suspirar.

— Tudo o que fizemos até agora não passa de uma gota


d’água no oceano...

— A escravidão não pode durar para sempre, Martin. Já há


muita agitação no norte contra a escravidão, para que
persista por muito mais tempo. Você deve consolar-se com
essa perspectiva.

— Mas como é possível? Ernest... todo mundo... tem


certeza de que haverá uma guerra sangrenta antes que a
escravidão seja abolida. — Ele ficou muito nervoso. — E
nós... todos nós... estaremos fornecendo armas e pólvora
para essa guerra. É uma coisa terrível ter uma consciência!

Jacques apressou-se em dizer, consternado:

— Nós? Não teremos nada a ver com isso, Martin. Já


esqueceu que quando a guerra irrompa já teremos partido há
muito tempo, deixado o mundo exterior, estaremos
completamente esquecidos?

Houve um silêncio prolongado e tenso. Martin não falou,


continuando a olhar para o fogo. Jacques, muito pálido, fez
um esforço para ficar empertigado na cadeira. Inclinou-se
para Martin, pôs a mão trêmula no joelho do amigo.

— Olhe para mim, Martin. Qual é o problema? Por acaso já


esqueceu? Não, não pode ter esquecido. E certamente não
tenciona mudar de ideia, não está pensando em me
abandonar e abandonar Nosso Senhor, depois de todas as
suas juras e promessas.

Ele estava tão nervoso e assustado que as lágrimas


afloraram-lhe aos olhos, rolando pelas faces macilentas.

Martin pôs a mão sobre os dedos trêmulos em seu joelho.


Pensou que aqueles dedos não chegavam a ser tão firmes e
tão grandes quanto os dedos da pequena Dorcas. Tentou
sorrir para o amigo, tranquilizadoramente, ternamente.

— Jacques, você precisa me escutar, ajudar-me, ter


alguma compreensão...

Jacques gritou uma vez, com voz débil, retirando a mão


bruscamente. Levantou-a para cobrir o rosto. Através dos
dedos, Martin pôde perceber que o rosto do amigo estava
contorcido por um desespero intenso. As lágrimas
começaram a escorrer entre os dedos, mas Jacques não
emitiu qualquer outro ruído.

Martin pensou, angustiado, que poderia suportar mais


facilmente se Jacques o censurasse, argumentasse, acusasse.
Mas aquelas lágrimas silenciosas, a impressão de
desmoronamento no corpo frágil e contorcido à sua frente, a
cabeça abaixada... era algo que o atingia brutalmente. Ele
ajoelhou-se, tirou a mão de Jacques do rosto, apertou-a. E
disse, ansioso:

— Jacques, você tem de me escutar. Preciso de sua ajuda.


Você tem de me consolar.

O rosto de Jacques estava controlado agora, mas tenso,


espectral. Ele fitava Martin firmemente, com uma expressão
triste, esperando.

— Tive uma briga hoje com meu irmão, Jacques.

Martin relatou o que acontecera naquele dia, quase que


palavra por palavra, do exame dos livros por Joseph até sua
discussão com Ernest. Depois que ele acabou, uma
resignação triste estampou-se no rosto de Jacques, que
suspirou.

— Como pode compreender agora — disse Martin,


gentilmente — não posso partir por enquanto. Não dá para
descrever como me sinto desesperado por isso. Mas tenho de
ficar. Meu pai desconfia de Ernest e não resta a menor
dúvida de que ele está certo. Não sei com certeza, pois
nunca descobri nada. Mas Ernest é terrivelmente traiçoeiro e
impiedoso. E, neste momento, meu pai está muito doente,
como qualquer um pode perceber. E está muito assustado. Se
eu partir agora, só Deus sabe o que Ernest poderá fazer. Ele é
capaz de tudo. De qualquer coisa. Até de expulsar meu pai,
roubar minha mãe e minhas irmãs.

Por mais incrível que possa parecer, Martin disse isso de


boa-fé, acreditando realmente na possibilidade. É que Ernest
assumira as proporções de um monstro em sua mente
idealista, que vivia em outro mundo. Raramente Martin
encarara o mundo de maneira lógica, objetiva e
compreensiva. Possuía a mente de um recluso, uma criança e
um santo, era fanático e iludido em alto grau.

Sem ver nada de ridículo nas suspeitas simplistas de


Martin, Jacques disse:

— Mas o Padre Dominick já dispendeu muito esforço a


fim de nos levar para o mosteiro em Quebec. Está tudo
acertado, seremos aceitos dentro de dois meses. — Ele virou
o rosto para o lado, amargurado, antes de acrescentar: —
Claro que você, sendo um convertido recente, não pode
compreender como isso é terrível. Mas alguém que nasce na
Igreja pode compreender.

— Está sendo muito cruel! — gritou Martin, consternado.


— Renunciei a tudo! Algum dia terei de renunciar a meus
pais, talvez muito em breve, quando ingressar no mosteiro.
Pense um pouco no que isso significará para eles. Não são
absolutamente religiosos e nunca frequentaram a igreja
neste país, mas são protestantes rigorosos. O que chamam
de “papismo” é uma coisa terrível para eles. Vão ficar
desesperados quando souberem que o filho tornou-se um
“papista”. Mas você não compreende, Jacques. Não pode
compreender. Renunciarei a muito mais do que você, pois
sua mãe ficará orgulhosa. Mas eu, sabendo do pesar que
causarei a meus pais, tenho o dever agora de protegê-los
contra meu irmão.

— Seu dever é para com Nosso Senhor — disse Jacques,


por entre os lábios lívidos. — O Padre Dominick já lhe
explicou isso. Deve escolher entre os seus pais incrédulos e
Deus. — Ele pegou os ombros de Martin com as mãos
trêmulas. — Martin, não abandone Nosso Senhor! Não me
abandone! Eu teria de ir sozinho e, sem você, certamente
morreria! Você fala de seus pais, mas sabe muito bem que a
única salvação para eles é através de suas orações e
sacrifícios no mosteiro. Não lhes deve isso? Não é o seu
dever para com eles?

— Mas vou entrar para o mosteiro! — exclamou Martin. —


Apenas não posso ir agora, enquanto não tiver certeza de
que meu pai está novamente bem de saúde, em condições de
enfrentar Ernest. Será apenas mais um pouco. Claro que você
não pode ir sozinho e só estou lhe pedindo para ser
paciente. Será que não compreende que esse adiamento é um
desapontamento terrível para mim? Não pode entender que
odeio o mundo e quero escapar dele? Você nasceu na Igreja,
sempre teve paz e conforto. Mas eu acabei de entrar e ainda
não consegui me aprofundar o bastante para satisfazer-me. É
um refúgio para mim, a única alegria que já tive na vida.
Cada momento que passo aqui é insuportável. Para mim, o
mosteiro é como a velha casa de minha tia-avó na Inglaterra,
com lilases por toda parte, os crepúsculos chuvosos, o fogo
na lareira, as janelas de treliça, o silêncio. Paz. Você tem de
acreditar quando digo que esse adiamento é um sacrifício
maior para mim do que para você.

Jacques retorceu as mãos angustiosamente, em silêncio.


Não podia dizer a Martin que estava com medo, um temor de
que cada dia de atraso, cada hora a mais que se arrastava,
podia arrebatar-lhe Martin, devolvê-lo ao mundo, fechar para
sempre a porta da realidade entre eles. Era mais inteligente e
mais astuto do que Martin. Não tinha o encantamento
sonhador e a devoção exaltada do convertido recente. O
sangue francês que corria em suas veias era ao mesmo
tempo sutil e cínico, impregnado de lógica. Sabia
perfeitamente que havia mais do que apenas um pouco de
irrealidade e tênue misticismo nos arroubos de Martin. Vivia
sob o terror de que a cortina frágil, salpicada com seus
símbolos cintilantes, pudesse ser levantada, deixando Martin
descobrir que o mundo estava bem perto, no final das
contas. Sabia muito bem que jamais teria desejado fugir,
como decidira fazer agora, se não fosse um aleijado; a fuga
era de sua própria impotência. Mas Martin era forte e
saudável. Jacques mais do que desconfiava que havia no
amigo paixões intensas que poderiam ser despertadas pelo
toque certo. Era dessas paixões que Jacques desejava afastá-
lo; eram os inimigos que poderiam arrebatar Martin de seu
amigo. A partir do momento em que estivessem juntos no
mosteiro, as paixões nunca mais poderiam separá-los.
Jacques estaria seguro, para sempre na posse do amor de
Martin. E ele disse, obstinado:

— Terei de ir sozinho.

Mas sabia que jamais poderia fazer isso. Se Martin ficasse


privado de sua presença, poderia também perder o
encantamento. E talvez nunca mais tornasse a vê-lo. Sem
Martin, ele jamais cogitaria de ingressar num mosteiro. Para
ele, Martin era o botim amado com o qual fugiria para a
fortaleza da religião.

Assim, enquanto retorcia as mãos, os lábios se contraindo


em agonia, Jacques estava dominado pelo terror. Como
muitos de seus conterrâneos, era um excelente ator; sua
encenação foi ainda mais intensa e convincente porque ele
estava emocionalmente envolvido. Martin não podia suportar
tanto sofrimento. Com uma veemência tão inocente e infantil
que teria comovido alguém menos emocionalmente
absorvido do que Jacques Bouchard, ele reiterou sua afeição,
outras incontáveis vezes, reiterou sua fé, a impaciência por
aquele adiamento, as promessas. Quando finalmente afastou
a expressão de desespero do rosto de Jacques (na verdade,
Jacques estava começando a achar um pouco tedioso manter
aquela expressão), Martin estava totalmente exausto.
Prometeu a Jacques que voltaria a vê-lo na noite seguinte,
mais cedo. E ficou atônito, quando saiu e a porta foi fechada
às suas costas, ao sentir uma onda de alívio, uma sensação
de libertação de algo quente, exigente e sufocante, que
aderia a ele implacavelmente. Ficou chocado com a
semelhança entre essa sensação e o que sentia quando se
afastava da proximidade de Ernest. Ficou tão aturdido com
esse pensamento que parou de repente, com a mão no
pescoço do cavalo, preparando-se para montar. Ali estavam
todos os impulsos de voracidade, pensou ele, atordoado.
Canibalismo. Essa palavra em associação com Jacques
deixou-o assustado, levou-o a sacudir a cabeça, como se
estivesse tentando livrar-se de um estupor. E tudo o que
pedia aos outros era que o deixassem livre, jamais o
agarrassem e sufocassem, que não o esgotassem com
exigências! Ele montou no cavalo e afastou-se rapidamente,
esporeando o animal com violência. O cavalo ficou tão
surpreso que empinou. Martin ficou também espantado,
furioso, mais do que um pouco confuso.

Jacques fechara a porta depois que o amigo saíra e


passara a tranca. Ficou parado ali, em silêncio, com a mão na
tranca. A luz das velas incidia sobre ele, de alguma distância,
projetando sua sombra contra a porta e o teto, de tal forma
que era uma caricatura monstruosa e deformada do corpo
aleijado. Os momentos foram passando e Jacques continuou
parado ali, ainda com a mão na tranca, o rosto pálido
comprimido contra a madeira, como se tivesse fechado
inexoravelmente entre ele e algo profundamente amado. A
amargura de sua compreensão pareceu insinuar-se pelas
partes mais vitais dele, a tal ponto que sentiu-se
mortalmente doente. Estremeceu. As pernas tortas tomaram-
se fracas sob seu corpo, os joelhos foram se dobrando
lentamente, enquanto o rosto continuava encostado na
madeira. Meteu a mão no bolso, tirou um rosário, tentou
rezar. Mas os dedos estavam frios como gelo, entorpecidos.
As contas acabaram deslizando de seus dedos, sem que
pudesse evitar, caíram ruidosamente no chão sem tapete. Ele
ficou olhando para as contas, atordoado. E disse, em voz
alta, como se estivesse espantado:

— Ora, não passam de vidro e dourado!

Ele caiu no chão, contorceu-se, mordeu os dedos, gemeu.


E depois ficou imóvel, o corpo se comprimindo em agonia
contra a porta, como se quisesse arrebentar a madeira e
escapar. Ou perseguir.
CAPÍTULO XVIII
Martin chegou em casa depois de meia-noite, molhado,
exausto, o corpo todo doído, deprimido. Encontrou o pai
sozinho, dormindo ao lado de um fogo que ficara muito
baixo. A sala estava fria, tinha um cheiro de vazio, de
ausência de arejamento. As velas escorriam, projetando
sombras em constante movimento nas paredes, teto e
assoalho.

Martin ficou surpreso ao descobrir o pai ainda na sala tão


tarde. Avançou na ponta dos pés para postar-se diante dele,
observando-o ansiosamente, na débil claridade. Por menor
que fosse a claridade, no entanto, ele pôde constatar
perfeitamente que Joseph parecia muito doente e
alquebrado, A pele estava esticada, com um amarelo doentio,
sobre os malares salientes, a boca lívida. Aparentemente, ele
não fizera a barba naquele dia, pois uma sombra escura
espalhava-se pelo queixo e garganta. Enquanto dormia,
Joseph respirava com um estranho som roufenho. Os braços,
caindo pelos lados da poltrona, pendiam inertes como os de
um morto. Os cabelos estavam repletos de listras brancas.

Martin sabia que o pai devia ter sentado ali para esperá-
lo. Assim, pôs a mão no ombro de Joseph e sacudiu-o, de
modo gentil.

— Pai — disse ele, em voz alta.

Joseph teve um sobressalto, mexeu a cabeça


vigorosamente, como se estivesse sentindo alguma dor,
depois abriu os olhos. Olhou aturdido para Martin, de pé à
sua frente. Para sua visão confusa, o filho assumiu a altura e
o aspecto de um arcanjo, esperando em silêncio. Ele
empertigou-se, com evidente dificuldade.
— É muito tarde, rapaz — disse ele, em voz rouca,
esfregando os olhos com as pontas dos dedos finos e
escuros. — Eu estava mesmo esperando por você. Uma hora
inadmissível de voltar para casa. — Joseph olhou para o
relógio, com uma expressão irritada, antes de acrescentar: —
Será que não pode deixar aquele aleijado sozinho por uma
noite que seja?

Martin comprimiu os lábios, mas não disse nada.

— Uma bela dupla, você e Ernest! — continuou Joseph, na


voz tensa de um homem doente. — Não se pode contar com
nenhum dos dois! Ernest está sempre de boca fechada,
maquinando, conspirando. E você passa o tempo todo
conversando com um aleijado. É praticamente a mesma coisa
que não ter filhos!

— Pai, você está doente — disse Martin, gentilmente, na


maior preocupação. — Deixe-me ajudá-lo a se deitar. E
amanhã pedirei ao Dr. Fisher que venha vê-lo. E melhor você
ficar em casa amanhã e descansar. — Ele pegou o braço de
Joseph. — Deixe-me ajudá-lo a ir para a cama.

Soltando uma imprecação, Joseph desvencilhou o braço.

— Pare com isso! Estou tão doente quanto você! Não


quero mais saber dessas besteiras! Estou em pleno vigor da
vida! — Ele alteou a voz ameaçadoramente, como se as
palavras se destinassem também a outros ouvidos. — Com
todos os dias, ainda não tenho 50 anos! Tenho um longo
caminho a percorrer!

Martin fitou-o com uma expressão solene, pensativa.

— Quem disse que não tinha, pai?


— Ninguém! — explodiu Joseph.

Ele fez um esforço para sair da poltrona, ficou de pé,


balançou por um momento. Martin, não querendo enfurecê-
lo, não estendeu a mão para ampará-lo.

— Mas você e sua mãe, aquele maldito francês e seu


irmão intrigante... todos vocês ficam ganindo: “É melhor
você procurar um médico! Está muito doente!” — A voz dele
foi aumentando de intensidade, tomando-se estridente,
dominada por uma raiva histérica. — O que estão querendo
de mim? Será que todos vocês estão querendo ver minha
morte?

— Está sendo tolo, pai — disse Martin, calmamente. — E


está se transtornando sem necessidade. Por favor, venha
para a cama. O que queria me dizer esta noite pode esperar
até amanhã, não é mesmo?

— Não, não pode! Esse sempre foi o seu problema, Martin.


Fica vacilando, deixando tudo para amanhã, pretendendo
que tudo vai acabar bem se não se incomodar. Mas essa
atitude nunca dá certo! As coisas devem ser acertadas com
clareza...

Martin sorriu, paciente.

— Está bem. Sobre o que desejava me falar? Vamos sentar


e conversar.

Os dois se sentaram. Martin pegou o atiçador e tentou


avivar o fogo na lareira. Jogou mais um pouco de carvão e o
fogo aumentou. Joseph estremeceu, inclinou-se para frente,
tentando se esquentar um pouco. Não parava de esfregar o
queixo com a mão trêmula. Martin virou-se para ele.
— O que o está perturbando, pai? Se puder ajudar em
alguma coisa, diga-me, por favor.

A mão de Joseph baixou lentamente para o joelho, onde


ficou, inerte, como uma folha pousada numa saliência. Os
ombros frágeis vergaram. Fitou Martin com os olhos vazios.
E depois, lentamente, sacudiu a cabeça, piscando.

— Mas devia estar querendo me perguntar alguma coisa,


pai. Ou então me dizer algo. Caso contrário, não teria ficado
me esperando. O que queria me dizer?

Isso mesmo, o quê?, pensou Joseph, atordoado. Era tarde


demais. Ele não quisera perguntar ou dizer qualquer coisa.
Mas passara o dia inteiro e a noite terrivelmente assustado,
querendo que Martin voltasse logo para casa, a fim de que
pudesse ter uma ilusão de segurança. Martin sempre
compreendia coisas que o irmão empertigado era incapaz de
entender. Compreendia sem a necessidade de palavras. E, de
qualquer forma, a sua simples presença era um amparo, pois
ele tinha uma serenidade que muitas vezes confortava o pai,
embora Joseph não pudesse entender por que isso acontecia.
Se Martin tivesse voltado para casa às nove ou dez horas,
Joseph nada teria falado, limitando-se a sorrir e a fazer
alguns comentários superficiais, antes de ir deitar-se,
aliviado. Mas esperara e esperara, agora já passava de meia-
noite. E achava que era preciso dizer alguma coisa quando se
esperava até meia-noite. Mas o que ele poderia dizer?
Poderia dizer: acho que seu irmão é um patife e algum dia
roubará a todos nós e depois nos jogará na rua? Mas seriam
palavras vergonhosas e totalmente inverídicas! Poderia
dizer: acho que vou morrer em breve e estou com medo? Mas
isso também seria uma mentira. Uma irritação doentia
começou a sufocá-lo.

Mas embora os pensamentos surgissem em sua mente em


palavras rudes, endurecendo ali, como rocha que derretera,
mas estava agora esfriando, embora ele as repudiasse com
uma fúria silenciosa, algo se filtrou por todo o seu ser. E o
medo ressurgiu. Mas era um medo vago, que flutuava como
neblina sobre os pensamentos reprimidos que ele se
recusara a admitir.

— Será que temos de transformar isso numa ocasião


especial, só porque eu estava me sentindo um pouco
solitário e queria conversar com alguém que não fosse a sua
mãe? — murmurou Joseph, debilmente. — Por isso é que
fiquei à sua espera, imaginando que chegaria em casa numa
hora decente. Mas acabei pegando no sono e sua mãe foi
para a cama sozinha. E acho melhor nos deitarmos também!
Afinal, teremos de levantar dentro de apenas cinco horas.
Que diabo, um homem não consegue mais ter paz em parte
alguma!

Ele subiu a escada lentamente, com os movimentos


desamparados de uma criança doente. Martin ficou
observando-o. Depois que ouviu a porta do quarto se fechar,
espalhou os carvões pela lareira, num último alento do fogo
e do calor, apagou as velas e subiu também. A casa fora
ampliada no ano anterior e Martin agora ocupava um quarto
sozinho. Em imitação dos santos, dos quais tomara
conhecimento originalmente por intermédio de Jacques
Bouchard, mobiliara o quarto austeramente, a tal ponto que
parecia uma cela de mosteiro. Jamais tinha um fogo no
quarto, não havia tapetes no chão nem cortinas nas janelas.
A cama era estreita e dura, sem dossel, sem colcha. Havia
uma mesa, um lampião de óleo simples, sem qualquer
ornato, uma cadeira de espaldar reto. Num canto, havia uma
estante, com os muitos livros de Martin. Por cima da cama,
estava pendurada uma gravura péssima da Madona Sistina.
Martin silenciara os violentos protestos e as acusações de
“papismo” de Hilda com a história capciosa de que a gravura
era um presente de Jacques. Sorrira diante da advertência da
mãe, de que nunca deveria deixar o pai saber que havia uma
coisa como aquela na casa.

Martin sempre entrava em seu quarto com um senso de


austera satisfação. Naquela noite, porém, ocorreu-lhe que o
quarto era frio e abafado, com cheiro de mofo, como um
porão, sem a menor alegria. Estremeceu, enquanto acendia o
lúgubre lampião. Esperou, enquanto a claridade se espalhava
pelas paredes nuas, o assoalho sem tapete, a cama estreita. A
depressão fora substituída por um profundo vazio de
qualquer emoção, que era em parte uma decorrência das
exigências incessantes de suas emoções durante a noite.
Parado ali, no meio do quarto, indeciso e exausto, ele pensou
que não poderia suportar aquelas paredes vazias, a frieza e
desolação. Tirou o capote e desceu correndo. Tornou a subir,
trazendo lenha, papel e um balde de carvão. Não demorou
muito para acender um fogo intenso. A chaminé nunca fora
usada desde a sua construção e houve mau cheiro no quarto
por algum tempo. Mas Martin, sentado perto do fogo e
esfregando as mãos ressequidas e empoeiradas, sentiu-se
novamente animado e confiante. Voltou a experimentar a
mesma sensação de fuga e alívio que sentira ao deixar
Jacques. Parecia-lhe que alguma coisa dentro dele estendia
músculos com cãibras, respirava, olhava ao redor, ria um
pouco. Esqueceu inteiramente, até o dia seguinte, que
deveria entrar num mosteiro muito em breve.

Quando o quarto ficou suficientemente quente, Martin


começou a despir-se. Foi quando houve uma batida suave na
porta. Abriu-a e deparou com Dorcas, de 12 anos, parada ali,
de camisolão, com uma vela na mão.

— O que está fazendo aqui a esta hora, menina? —


perguntou Martin, baixinho.
Ele percebeu que a irmã estava tremendo na escuridão e
frio do corredor. Assim, pegou-a no colo e levou-a até o fogo.
Dorcas enlaçou-o pelo pescoço, aconchegou seu rosto contra
o dele. Uma onda de ternura e amor envolveu Martin. Ele
esfregou os pés gelados da menina, com suas mãos grandes
e quentes, enquanto ela falava aos sussurros e beijava-o no
rosto e no queixo.

Ouvi aquele barulho horrível que você fez, Martin, ao


subir com o carvão. E senti vontade de conversar com você.
Estava me sentindo muito sozinha.

Martin sorriu para a irmã. Como ela era bonita!, pensou


ele. Os olhos azuis eram escuros e brilhantes, as pestanas
bronzeadas, os cabelos dourados como ouro ondulado. A
pele não era brilhante, como a de Florabelle, mas pálida e
lustrosa, com uma covinha na face esquerda. Era uma
menina muito esguia, delicada e frágil, com uma expressão
confiante e inocente, extremamente comovente. Entre os
dois, havia uma afeição intensa, mais forte do que na ocasião
em que Martin era um garoto, com um bebê para cuidar. Ele
aconchegou Dorcas, a cabeça dela em seu peito, começando
a embalá-la, entoando murmúrios de ninar. O calor, conforto
e segurança da presença dele e de seus braços acabaram por
embalar Dorcas, que adormeceu. Martin continuou a embalá-
la. O calor do corpo de Dorcas se misturava com o calor de
seu próprio corpo. A mãozinha branca da menina deslizou
do pescoço de Martin. A respiração dela era como uma pena
roçando em seu pescoço.

Segurando-a assim, embalando-a, Martin tornou


consciência de uma alegria intensa a invadi-lo, fazendo-o
forte, expulsando para sempre todo temor, dúvida e
incerteza sobre o que tinha de fazer. A irmã precisava dele,
contava com ele para proporcionar-lhe proteção e afeto.
Além do mais, ele amava-a profundamente.
Pela primeira vez em sua vida, Martin não sentiu medo.
Era forte, vigoroso, seguro e confiante. Quando levou a
menina adormecida para a cama dela, teve a impressão de
que carregava em seus braços tudo o que era bonito, vivo e
adorável no mundo.
CAPÍTULO XIX
Num belo dia de primavera, Ernest seguiu a cavalo para a
Sessions Steel Company, a fim de ter uma reunião com
Gregory Sessions.

Ernest estava exultante. Seu júbilo, no entanto, não se


manifestava em excitamento ou mesmo num faiscar dos
olhos claros e implacáveis. Ele não apressava o cavalo nem
deixava transparecer qualquer outro indicio de impaciência.
Mas havia um ligeiro rubor em seu rosto. E quando entrou na
sala de Gregory, foi com uma atitude confiante.
Cumprimentou o homem mais velho largou as luvas em cima
da mesa com um floreio. Gregory sorriu, alteando
ligeiramente as sobrancelhas, diante daquelas
demonstrações inesperadas.

— Ah, o ar de primavera finalmente impregnou o aço,


hem? — disse Gregory, jovial. — Que maravilha ser jovem!
Por acaso é uma questão de coração?

A exultação de Ernest era tão intensa que ele não se


aborreceu com a zombaria.

— Não, é uma questão de dinheiro — respondeu ele, com


o gesto convulsivo que passava por um sorriso.

Ele levantou as abas do casaco, sentou-se e cruzou as


pernas, repetindo, com um sorriso mais amplo, enquanto o
de Gregory tornava-se débil e mordaz:

— Uma questão de dinheiro.

— Dinheiro... — murmurou Gregory, pensativo. Ele


estalou os dedos.
— Como isso.

Ernest também estalou os dedos.

— Exatamente.

— Devo presumir, Ernest, que você veio até aqui para


pedir dinheiro emprestado? Seria surpreendente. Pelo que
soube, por intermédio do banco, Barbour & Bouchard está
indo muito bem e vocês devem se tornar milionários dentro
de meia dúzia de anos.

Ao dizer isso, Gregory lembrou-se de que ainda possuía


33,3 por cento das ações de Barbour & Bouchard. A
satisfação que experimentou por isso lhe imprimiu uma
extrema cordialidade à voz quando acrescentou:

— Não posso acreditar que você tenha vindo pedir


dinheiro emprestado. Eu é que deveria estar lhe tomando
dinheiro emprestado.

— A verdade é que preciso de dinheiro emprestado —


disse Ernest. — Do banco. É um dos diretores do banco e
espero que o meu pedido seja aprovado.

— Ele inclinou-se para frente, aproximando o rosto de


Gregory. — Preciso de 75 mil dólares.

— Setenta e...! Ficou doido, meu caro rapaz,


completamente doido!

— Gregory empertigou o corpo comprido e elegante na


cadeira, parecendo irado. — Claro que isso é inteiramente
impossível, mas estou curioso. Para que está precisando de
75 mil dólares?
— Nosso saldo no banco está nesta altura — disse Ernest,
imperturbável. — Mas terei de retirar 25 mil dólares, a fim de
acrescentar aos 75 mil que tenciono tomar emprestado. Os
outros 50 mil devem permanecer no banco, para qualquer
emergência. Claro que pagarei os juros de seis por cento ao
banco.

Aturdido, Gregory fitava-o fixamente, apertando com as


mãos os braços da cadeira. Sua expressão era a de um
homem que está diante de um lunático. Ernest soltou uma
risada, acendeu um dos charutos de Gregory e fumou-o por
um momento, embora o gosto lhe fosse desagradável.

— Quero comprar a Kinsolving Ammunition Works. O


velho Sr. Kinsolving está a fim de se aposentar. Não tem
filho para entregar a companhia. Quer viajar. Ouvi um rumor
há cerca de um mês e fui conversar com ele. Ele queria 150
mil dólares pela companhia. Claro que esse preço inclui
tudo, patentes e o resto. Finalmente, depois de prolongadas
discussões, ele concordou em aceitar 100 mil dólares. À
vista.

Gregory saiu um pouco de sua estupefação.

— Devo dizer que é muita gentileza da parte de


Kinsolving — comentou ele, irônico, o rosto fino subitamente
vermelho de raiva. — Entre todos os absurdos que já ouvi,
esse é o maior! Para que está querendo essa empresa? Será
que já não tem o suficiente para fazer? Quer nos levar à
bancarrota? Que diabo, está falando como um menino! Estou
surpreso com você, Ernest. Juro que estou. A Kinsolving! Ora,
toda a cidade sabe que Kinsolving está a um passo da
falência! E você propõe... Mas que diabo, rapaz, está
desperdiçando meu tempo!

Ernest escutou calmamente, fumando. Depois, disse:


— É um dos diretores do banco. Não importa o que possa
decidir, os outros talvez decidam a meu favor. Se tal não
acontecer, irei a Pittsburgh ou Filadélfia e arrumarei o
dinheiro. Armand e meu pai estão inteiramente de acordo
comigo. Mas quero oferecer esta oportunidade ao banco.
Acredito que se deve sempre fazer negócios em nossa
cidade.

“Disse mais de uma vez que não sou um tolo. Lembre-se,


por favor, de sua incredulidade e contrariedade quando
procurei-o pela primeira vez, a fim de pedir aqueles míseros
20 mil dólares. Mas sabe agora que eu tinha toda razão, sabia
exatamente o que estava fazendo. E também sei agora o que
estou fazendo.”

“É verdade que o velho Kinsolving está à beira da


bancarrota. Se não estivesse, a empresa me custaria duas
vezes mais. Mas ele está prestes a falir porque é
incompetente e velho. Talvez não saiba que ele possui
muitas patentes valiosas. Uma delas é uma bala de canhão
explosiva, que ainda está no estágio experimental. Mas sua
melhor patente é uma cápsula de percussão para armas, um
mecanismo usando uma pólvora altamente explosiva, para
detonar a carga de uma bala. Estudei o assunto
meticulosamente e estou agora convencido de que é muito
superior à cápsula de percussão Forsyth, fabricada por
Robsons-Strong, da Inglaterra. Além disso, eles ainda usam a
pólvora preta, enquanto nós acabamos de patentear a última
invenção de meu pai, uma pólvora quase sem fumaça.”

“Claro que a empresa está numa situação lamentável. Vai


exigir muito trabalho para recuperá-la. Mas com a Barbour &
Bouchard por trás, com novas máquinas e operários, nossa
reputação e nosso dinheiro, será perfeitamente possível.
Fabricamos as armas, podemos também fabricar munições.”
Ele pôs alguns papéis diante de Gregory, depois fitou-o
nos olhos atentamente. Gregory sustentou o olhar, como um
passarinho olhando para uma cobra.

— Dê uma olhada nesses papéis, Sr. Sessions. Tenho


certeza de que, depois disso, ficará de pleno acordo comigo.

— Você está inteiramente louco — repetiu Gregory.

Sua voz era arrastada e distraída, a expressão hostil.


Ernest sorriu.

— Não acredita nisso, senhor. Tenho certeza de que não


subestima a minha... capacidade nos negócios. Quando falo,
geralmente sei do que estou falando. Sempre tenho as coisas
preparadas, acertadas e definidas em minha mente, antes de
falar a respeito. Mesmo levando-se em consideração todos os
imprevistos possíveis, não podemos deixar de lucrar com
esta transação.

Uma expressão astuciosa lhe estreitou os olhos e alargou


a boca.

— Providenciei uma opção de compra, há cerca de uma


semana. Esta manhã, o Sr. Kinsolving informou-me que
recebeu uma oferta da Burbank Summers Company, de 25
mil dólares a mais. Ele está torcendo para que eu não consiga
levantar a quantia necessária. — Ernest fez uma pausa, antes
de acrescentar: — Meu plano é dar ao banco seis
promissórias, com juros de seis por cento. Assim, teremos
seis anos para pagar os 75 mil dólares. É um prazo mais do
que suficiente. Mas espero poder pagar tudo em dois anos. E
agora, Sr. Sessions, o que tem a dizer?

Gregory estava mexendo nos papéis em cima da mesa.


Tinha emoções contraditórias. Nunca detestara Ernest tanto
quanto naquele momento. Era uma aversão que beirava o
ódio. Teria a maior satisfação em recusar taxativamente e
providenciar para que o rapaz não pudesse obter o
empréstimo em parte alguma. Daria muito para destruir
aquela expressão confiante, acabar com aquela serenidade
fria. Naquele instante, encarava Ernest como um inimigo,
cheio de rancor e ódio. Não podia explicar porque e sentia-se
mais do que um pouco desdenhoso consigo mesmo. Mas era
o que sentia. O jovem idiota deixava qualquer homem
enfurecido. Por outro lado, Gregory teve uma certeza súbita
de que o negócio da Kinsolving nas mãos da Barbour &
Bouchard seria excepcionalmente bem-sucedido. E
partilharia esse sucesso. Já estava alcançando um saldo
bancário com que nunca sonhara, mesmo em seus devaneios
mais delirantes. Se a Sessions Steel ajudara a Barbour &
Bouchard, a verdade é que a Barbour & Bouchard ajudara
muito mais a Sessions Steel. O valor da ação da Sessions
triplicara nos últimos três anos. Mas era irônico e amargo
que ele não pudesse frustrar Ernest sem frustrar a si mesmo.
Devia reprimir o ódio, a fim de encher o bolso. Tinha de
concordar, ajudar, quando daria cinco anos de sua vida para
recusar. Mas não podia renunciar ao lucro.

Fez algumas perguntas em tom irritado, ficando ao


mesmo tempo furioso e excitado com as respostas. E acabou
dizendo, relutantemente:

— Não conte muito com isso, mas posso aprovar seu


pedido, depois de estudar estes papéis. Continuo a achar, no
entanto, que é um tremendo absurdo. Um risco muito
grande. — Ele mordeu a ponta de um charuto com uma
delicada selvageria, antes de acrescentar: — Não sei porque
não o expulso daqui. Mas vou estudar os papéis e discutir o
assunto com John Baldwin. E lhe darei a resposta amanhã.

Depois de tomar essa decisão, seu ânimo mudou, ele


tornou-se cordial. A expressão de sátiro elegante e exigente
voltou a estampar-se em seu rosto. Tornou a mostrar-se
afetuosamente paternal e jovial.

— Faz quase uma semana desde que nos visitou pela


última vez, meu caro Ernest. Amy até comentou a respeito.
Por que não vai comigo até minha casa agora? Sairei daqui a
pouco.

Ernest, sem mudar de expressão, aceitou calmamente.

— E outra coisa, Ernest. Espero meu irmão Nicholas na


próxima semana. Será a primeira vez que ele volta em casa
em quase dois anos. Eu diria que ele só está voltando agora
porque deseja ser reeleito no outono. Precisa fazer alguma
campanha, tomar a ser o garoto rústico da região, a fim de
conseguir os votos necessários. Você estava em Filadélfia na
última vez em que Nicholas veio nos visitar. Ele ficou
bastante contrariado por não conhecê-lo. Mas espero que
desta vez vocês possam se encontrar. Ele está muito
satisfeito pela maneira como os nossos negócios estão indo.

— É muita gentileza do Senador Sessions — disse Ernest,


em sua voz controlada, uma voz tão destituída de emoção
que os ouvidos aguçados de Gregory não puderam perceber
se havia nela qualquer timbre satírico.

Mas ficou com a impressão apreensiva e irritada de que


havia. Sacudiu a cabeça, fingiu estar sério.

— Não sei o que Nicholas vai dizer a respeito disto.

Enquanto Gregory tomava as últimas providências no


escritório, Ernest lhe falava superficialmente. Depois, pouco
antes de deixarem o escritório, o rapaz disse:
— Meu pai o respeita, senhor. E gostaria de pedir-lhe um
favor. — Ele fez uma pausa, enquanto Gregory observava-o
ironicamente. — Gostaria que sugerisse a meu pai, senhor,
de uma maneira indireta, que ele faça um testamento. Como
é diretor do banco, ele não vai pensar que se trata de uma
interferência indevida.

Enquanto falava, Ernest olhava para a ponta de seu


charuto, perfeitamente controlado. Ao terminar, fitou
Gregory nos olhos, ainda inteiramente calmo.

— Hã... — murmurou Gregory, surpreso e curioso. — Um


testamento, hein? Tem certeza de que ele ainda não fez um
testamento? Qual é o problema? O estado dele não
melhorou?

Ernest deixou passar um longo momento, antes de


responder, incisivo:

— Ele não vai melhorar enquanto não fizer um


testamento. Depois disso, ficará mais sossegado... deixando
de absorver-se tanto no que o está perturbando.

Gregory perguntou, com um sorriso insinuante:

— Não tem qualquer sugestão sobre o que considera...


justo no testamento?

— Absolutamente nenhuma — respondeu Ernest, calmo.


— É um problema que deve ser deixado a critério de meu pai.
Mas desconfio que, no testamento, ele deixaria a sua parte
para ser dividida entre Martin e eu, com os dispositivos
necessários para amparar minha mãe e irmãs. Quero apenas
o que é certo.

— Mas você é extraordinário! — exclamou Gregory,


divertido. Mas não podia acreditar plenamente nas palavras
de Ernest. — Afinal, quase tudo o que foi realizado é obra
sua. Acha que seria justo dividir igualmente com seu irmão?

— Estou apenas fazendo conjeturas — ressaltou Ernest,


sorrindo debilmente. — Meu pai pode ter outros planos. O
melhor é deixá-lo fazer o que achar melhor, desde que sua
mente fique em paz.

— Hã... — murmurou Gregory, observando-o pensativo. —


É muita coisa para a paz de espírito de um pai. E permite-me
perguntar, se não estou sendo muito intrometido, de que
forma um testamento poderia contribuir para a paz de
espírito de seu pai?

— Ele não confia em mim. Um testamento faria com que


sentisse a mesma coisa que um domador, quando põe o
animal selvagem por trás das grades.

Ernest sorriu novamente, um sorriso de uma franqueza


profunda e triste. Mas Gregory não se deixou enganar por
aquele sorriso. Podia reconhecê-lo, pois já o exibira muitas
vezes. Ele sorriu interiormente.

— Mas Martin não se interessa muito pelos negócios, não


é mesmo?

— Não.

Ernest hesitou por um instante, mas acabou contando a


Gregory a discussão que tivera com o irmão no outono
anterior. A carruagem chegou e eles seguiram para a casa
dos Sessions, ao crepúsculo brilhante da primavera.

— Na próxima semana, enviarei Raoul à Europa — disse


Ernest. — Provavelmente, terei novas dificuldades com meu
pai. Ele ainda não aceitou a nossa importação de
trabalhadores no ano passado. Sempre me faz acusações
sobre isso. Diz que hipnotizei a todos para concordarem.

— Lembro-me perfeitamente da reação dele — disse


Gregory Sessions. Ele ficou bastante amargurado, não é
mesmo? É estranho encontrar alguém que, sendo
estrangeiro, se oponha tão vigorosamente à vinda de outros
estrangeiros. Um patriota ardoroso.

— O pai acha que está defendendo a manutenção do ideal


democrático, que os povos oprimidos não podem
compreender — disse Ernest, com ironia. — Mas o que ele
realmente teme é o próprio estrangeiro, sua estranheza e
imprevisto.

— Era de se esperar. Todos os ideais estão baseados no


medo, da religião à democracia.

Estavam subindo por uma encosta suave. Ao chegarem ao


topo, antes de descerem pelo lado oposto, tinham uma visão
vasta e ampla do rio, ao crepúsculo púrpura, as margens
escuras e indefinidas. Acima do rio, a oeste, o dia estendera
seu manto verde, que parecia explodir em ventos
impetuosos contra o céu escuro. Em algum lugar, na
escuridão que se adensava, um barco apitou, um som
interminável e terrivelmente solitário. À esquerda, Windsor
era um manto de lantejoulas, tomando-se mais brilhante a
cada dia que passava. O ar se tornara frio, o vento
aumentava de intensidade, impregnado de umidade e cheiro
da terra.

— O mundo é muito bonito — comentou Gregory,


pensativo. — E à noite pode-se observar a devastação que lhe
causamos.
Ernest permaneceu em silêncio. Tudo em torno deles
estava tão sereno que, ao se aproximarem da rua larga em
que ficava a casa dos Sessions, o barulho das rodas da
carruagem ressoava violentamente em seus ouvidos.

— Ei, eu esqueci! — exclamou Gregory, com súbita


animação. — Ainda não lhe contei que minha prima, Srta.
May Sessions, está nos visitando. Ela não suporta Windsor e
vive com uma irmã de sua mãe em Nova York, embora tenha
nascido aqui. É uma dama muito alegre. Sei que ela nos visita
porque considera isso seu dever, embora declare que gosta
de Nicholas. Confesso que nem sempre concordamos, pois
ela é teimosa e determinada, metida a sabichona. Minha
pobre Amy, que é como um passarinho inocente, acha-a por
demais opressiva.

Ernest ficou contrariado, mas não deixou transparecer.


Queria ficar a sós com Amy naquela noite. A noite não estava
fria demais para um passeio pelo jardim. Tinha muito o que
dizer-lhe. Agora, a noite seria estragada pela presença de
uma solteirona com propensões masculinas. E uma
sabichona, ainda por cima! Ele chegou a pensar em
desculpar-se e ir para casa. Mas pensou em Amy e disse a si
mesmo que a presença do carrasco não seria de todo má, se
ela estivesse ao seu lado. O simples pensamento de Amy era
como um fogo quente, uma sala tranquila e cheia de rosas,
uma escada frágil subindo em espiral para uma escuridão
repousante. Amy era todas as coisas que não cansam os
homens, que os embalam e apaziguam. Lembrou-se da
firmeza inocente dos olhos dela. Isso fez com que se
recordasse de Martin, nas coisas que pensara a respeito dos
dois, que seguiam por um caminho reto, sem qualquer
desvio, astúcia ou inimigos. Não havia nada de fraco ou
tênue em Amy, apesar de sua inocência e serenidade. Ela era
tão forte quanto um fio de seda que pode sustentar um
homem. Ernest estava convencido de que nada poderia
jamais afastá-la de sua determinação de fazer o que
considerava justo e verdadeiro. Sabia também que Amy tinha
raivas intensas, mas não era mesquinha.

Ele estava pronto a declarar-se e achava que Amy não o


rejeitaria. Mas primeiro tinha de garantir a aceitação de
Gregory. Depois que o empréstimo estivesse devidamente
aprovado, pediria permissão a Gregory para fazer a corte a
Amy. Talvez resolvesse tudo até a noite seguinte. Ernest
uniu as mãos tensamente, o coração batendo um pouco mais
depressa. Jamais conhecera outra mulher como Amy. Em
silêncio, na escuridão, seus lábios formaram o nome dela.
Quando a carruagem subiu pelo caminho da casa, Ernest
ardia de impaciência em ouvir a voz dela, em contemplar-lhe
o castanho luminoso dos olhos meigos. Nunca lhe beijara
sequer a mão, mas já beijara seus lábios mil vezes, em
sonhos irrequietos. Por causa disso, espaçara suas visitas.
Não havia sentido num homem atormentar-se antes de
alcançar a fonte que poderia saciar-lhe a sede.

Um fogo baixo ardia na sala de estar cor-de-marfim, as


velas tremeluziam em círculos amarelados, por cima da
lareira, na mesa e em castiçais. Diante do fogo, em vestidos
escuros de seda, saias imensas, estavam sentadas duas
moças, bordando, os cachos caindo sobre os rostos
compenetrados e corados, as mãos alvas faiscando de anéis.
Elas levantaram quando Gregory e Ernest entraram na sala.

— Ah, minhas caras! — exclamou Gregory, afetuosamente.


— Trouxe um convidado para o jantar. Amy, meu amor, sua
dor de cabeça já desapareceu? May, minha cara, ainda não
conhece este jovem extraordinário, mas tenho certeza de que
já ouviu falar dele por intermédio de Nicholas: Sr. Ernest
Barbour. Sr. Barbour, esta é a minha jovem prima, Srta. May
Sessions.
Ernest ficou aturdido. Esperava uma solteirona de meia-
idade, com a aparência tradicional de uma solteirona,
angulosa, amarga e rancorosa, talvez com um indício de
buço no lábio superior. Mas descobriu-se a contemplar uma
jovem muito bonita e jovial, com cachos castanho-
avermelhados, olhos faiscantes, brejeiros, com uma
insinuação de malícia. Era mais baixa do que Amy, embora
mais rechonchuda, o que lhe proporcionava um efeito de
constante animação. O corpo era sedutor, de seios
abundantes e cintura fina. Por causa da cor de sua pele,
muito mais intensa e brilhante, parecia possuir mais vida do
que Amy, que era mais retraída e quieta. Os cachos
balançavam e dançavam, os olhos balançavam e dançavam,
todo o seu lindo corpo parecia balançar e dançar. Usava um
vestido de seda, escuro, castanho-avermelhado. No pescoço
extremamente alvo e adorável havia um colar de ouro e
granadas. Quando falava, as mãos se movimentavam, abriam
e fechavam, acenavam jovialmente. Como estava rindo ou
sorrindo quase constantemente, o observador tinha a
oportunidade de admirar os dentes pequenos, perfeitos e
brilhantes, entre os lábios vermelhos. Sua atitude, rosto,
corpo e voz eram tão atraentes que se podia até ignorar a
inteligência intensa e incisiva que transparecia em sua
expressão, o olhar cauteloso e sugestivo, o jeito alerta e
ligeiramente desconfiado com que inclinava a cabeça. Não
podia ter mais do que 20 anos, mas seu ar de sofisticação e
capacidade de cuidar de si mesma faziam com que parecesse
vários anos mais velha do que Amy, ao invés de apenas dois.

Desconcertado, Ernest ficou contente em se desviar


daquela visão jovial e sedutora e concentrar-se na
compostura calma e sorridente de Amy Drumhill. Ela fitou-o
com olhos tão gentis, meigos e confiantes, quando pegou-lhe
a mão, que May Sessions tornou-se apenas uma presença
secundária, um tanto ruidosa, mas mesmo assim secundária.
Havia apenas Amy, com sua meiguice, graça e olhar tímido.
May falava animadamente com o primo, Gregory,
enquanto seguiam para a sala de jantar. Ela estava com a
mão no braço dele, virando a cabeça em sua direção, os
brincos de granadas faiscando com um brilho vermelho
contra a alvura do pescoço. Tinha um riso sonoro,
fascinante. Amy e Ernest seguiam poucos passos atrás. Para
todas as aparências, May esquecera inteiramente a existência
deles. Mas mesmo enquanto conversava com Gregory, ela
estava pensando, com uma surpresa satisfeita: Quem poderia
imaginar que um homem assim pudesse ser encontrado
nesta cidadezinha bolorenta e insípida? Que ombros, que
expressão... quase um Napoleão! E que postura, que peito,
que corpo! Que olhos dominadores e que aperto de mão
firme! Alguma coisa me diz, May, meu amor, que sua visita
será prolongada e extremamente interessante. Não há
ninguém, mesmo em Nova York, que possa se igualar a ele! E
creio que é também um jovem industrial muito rico! Como
adoro esses homens que fazem coisas, embora seja uma
conservadora empedernida, como diz Nicholas!

Ao sentarem à mesa, ela tentou atrair e prender a atenção


de Ernest, pela pura força de sua vontade, pela voz, os
movimentos dos ombros, o brilho dos olhos risonhos, os
gestos fascinantes das mãos. Ela era bastante alegre,
espirituosa, com um humor ágil e incisivo. Quando ria, todos
tinham de rir também, não importando o quão aturdidos ou
ressentidos pudessem estar, pois seu riso era compulsivo e
muito meigo, embora um tanto malicioso. Dispôs-se
deliberadamente a fascinar Ernest. Ainda não tinha planos
específicos em relação a ele, mas tencionava subjugá-lo,
como fizera com dezenas de outros homens. Os sorrisos
polidos de Ernest, enquanto a fitava, o sulco permanente
entre os olhos claros e firmes, o ar de atenção
compenetrada, tudo excitava e atraía May, quase contra a sua
vontade. Além do mais, ela estava irritada. Podia perceber
que não interessava a Ernest, que ele simplesmente a
encarava como mais uma mulher bonita, num mundo repleto
de mulheres bonitas. May estava decidida a fazer com que
ele a reconhecesse como mulher excepcional e irresistível. O
que faria quando Ernest chegasse a esse ponto desejável era
algo que ainda não decidira. Mas a ideia subitamente
emocionou-a, como nada jamais a emocionara antes.

Enquanto o jantar prosseguia, a raiva foi se acumulando


por trás dos risos e sorrisos de May. Era evidente, para sua
observação experiente, que Ernest estava apaixonado por
Amy; e que Amy, se ainda não estava apaixonada,
encontrava-se bem perto disso. Mas ela é tão boba, pensou
May Sessions, que não reconheceria uma declaração de amor,
se a ouvisse. Uma donzela tola e singela, que é tão quieta e
graciosa porque não tem nada de importante a dizer! Ela será
gorda aos 30 anos, com uma vasta papada e pelo menos oito
filhos, se tiver a sorte de arrumar um homem que a queira.
Mas provavelmente vai morrer solteirona, pois já nasceu
velha, com sua melancolia e timidez absurda, sem nada para
dizer.

May percebeu claramente que Ernest era um homem


inteligente. Assim, sendo esperta, fez-lhe perguntas
inteligentes, escutando as respostas com um ar de satisfação
atônita e humildade. Sabia que era bonita o bastante para
não precisar disfarçar sua própria inteligência. Na verdade,
sua inteligência era como o toque de soda no uísque. Seu
rosto era tão adorável, a cor tão brilhante, o sorriso tão
fascinante e a voz tão musical que sua inteligência, se usada
criteriosamente, não assustava, mas servia, ao contrário,
para aguçar-lhe a curiosidade. Uma mulher sabichona de
peito alvo e sedutor, covinhas e cachos deslumbrantes! Era
uma combinação atraente, repleta de possibilidades
surpreendentes.

Assim, ela deixou Ernest saber que era formada na


Academia Feminina Oakwood, que estudara dois anos na
França, que possuía bons conhecimentos de literatura,
música, pintura e política, que ganhara uma medalha de ouro
por poesia e um prêmio por um tratado sobre a ciência
grega. Depois, quando ele deu sinais de que se sentia um
tanto oprimido por esses feitos espetaculares, fê-lo
habilmente acreditar que os considerava muito inferiores aos
amplos conhecimentos dele, de coisas bem mais
importantes. Tudo isso May pareceu dizer com uma
frivolidade feminina, como se fossem coisas insignificantes.
Por favor, explique-me o que é realmente importante e
esplêndido. O resultado foi que Ernest, embora não
simpatizasse muito com a jovem, sentiu-se ofuscado e
lisonjeado. Ele explicou tudo solenemente, contemplando
aqueles olhos brilhantes e de pestanas compridas à sua
frente, experimentando um vago prazer na admiração
daqueles lábios vermelhos e úmidos, entreabertos.

Com um suspiro e um dar de ombros que tinha algo de


melancolia, May disse:

— Para dizer a verdade, estou me sentindo acabrunhada.


Descubro agora que não sei de nada!

E ela fitou Ernest com uma expressão pensativa que tinha


um brilho excitante.

Amy simplesmente sorria, murmurando quando alguém


lhe dirigia a palavra, presidindo discretamente o jantar, em
sua posição de anfitriã. Quando olhava para May, o sorriso
tomava-se um pouco indeciso, como se a outra a fizesse
sentir constrangida e inferior. Por sua vez, May ignorou Amy
quase completamente, como se ignora uma criada de classe
superior, que se permite sentar à mesa com a família, mas
em segundo plano, servindo e atendendo ao conforto dos
outros. Quando Amy lhe perguntou se queria outra xícara de
chá, May respondeu com uma irritação impaciente. E quando
lhe foi oferecida uma segunda fatia de bolo, ela fez um
beicinho adorável e sacudiu a cabeça com um menear
infantil dos cabelos. Gregory achou-a deliciosa e divertida.
Ernest logo descobriu-se atraído e estimulado. Ele riu uma
dúzia de vezes no transcorrer da refeição. May calculou que
conquistara uma vitória, pois o riso de Ernest tinha um tom
obviamente relutante.

Observando-a, ninguém desconfiaria de sua tristeza,


ciúme e raiva. Antes do jantar terminar, May já chegara à
conclusão de que estava loucamente apaixonada e que não
aceitaria qualquer outro homem que não Ernest. E pensar
que a tola da Amy se atrevia a interpor seu rosto sem graça
entre ela e o homem que queria, atrevia-se a inserir o som
insípido de sua voz tímida na conversa tão animada! Era
horrível, profundamente irritante. Ela, May, em breve
acabaria com isso, poria aquela gatinha pálida em seu devido
lugar. Como Amy se atrevia a olhar para uma criatura tão
esplêndida como aquele Sr. Ernest Barbour, que merecia uma
jovem animada, bonita e inteligente? E, ainda por cima, uma
jovem que lhe traria uma fortuna.

Assim, quando Amy lhe fez o sinal para levantar e sair da


sala em sua companhia, a fim de que os homens pudessem
ficar a sós com seu vinho e charutos, May fez um beicinho,
sacudiu a cabeça, assumiu uma expressão de rebeldia.

— Não! — exclamou ela, com a atitude infantil que podia


facilmente assumir quando desejava. — Quero conversar
com meu querido primo Gregory! Ah, Amy, você é muito má,
querendo afastá-lo de mim! Vá com esse altivo Sr. Barbour
para a sala de estar, enquanto Greg e eu continuamos aqui
por mais alguns minutos.

Tanto Gregory como Ernest ficaram encantados com a


bela exibição de palavras, gestos e lábios vermelhos
espichados. Além do mais, Ernest estava mesmo querendo
ficar a sós com Amy por algum tempo, mesmo que pouco.
Uma amena chuva de primavera já estava sussurrando lá
fora e assim não havia a menor possibilidade de um passeio
pelo jardim. Ele deu o braço a Amy. No instante em que
sentiu a mão suave em sua manga, May Sessions
desapareceu no limbo das coisas que não têm importância.
Ele levou-a para fora da sala com uma sensação de ternura
oculta, mas intensa. E quando os olhos se encontraram, não
conseguiram mais desviá-los, entrando assim na sala de
estar.

Gregory, a sós com a jovem prima, virou-se para ela com


um sorriso afetuoso.

— E então, menina, o que está havendo? — Ele ficou


surpreso ao descobrir que a expressão brejeira de May se
desvanecera, substituída por um desdém inequívoco. — Ei,
qual é o problema?

Ele pôs a mão sobre a de May, que a retirou bruscamente.

— Oh, Greg, será que você é tão cego que nem percebe o
que está acontecendo diante do seu nariz? Não está vendo
tudo? É mais do que evidente que Amy está ficando
apaixonada por aquele rapaz!

— Como? — berrou Gregory, o rosto vermelho, furioso. —


Você ficou doida? Ele não se atreveria!

— Não se atreveria? Mas que bobagem, Gregory. Ele é o


tipo de jovem que se atreve a qualquer coisa. Por dinheiro.
Não está percebendo que ele pensa que Amy é uma herdeira?
Deve acreditar nisso, pois esse tipo de homem não casa com
moças sem dinheiro. Sempre procuram o dinheiro, a fim de
escorar ainda mais suas ambições. Do jeito que você fala,
qualquer um pensaria que ele está sendo presunçoso. No
caso, porém, Amy é que é a presunçosa!

Gregory se levantou, o rosto ainda vermelho, as mãos


tremendo. Dava a impressão de que teria o maior prazer em
estrangular a jovem prima.

— Você está mentindo! Não acredito em nada disso! Um


homem não pode olhar para uma mulher sem que todas as
outras mulheres, num raio de dez quilômetros, pensem
imediatamente que ele está querendo casar! Isso é ridículo!
Amy e aquele inglês de origem humilde? Pois ele não passa
de um filho de criado, apesar de toda a sua ambição e
pretensão, de sua ganância e planos desonestos. Ora, eu... eu
poderia arruiná-lo! Poderia jogá-lo de volta à sarjeta!

Ele fez uma pausa, meio sufocado, impotente. May,


sorrindo, as covinhas aparecendo, estava se abanando de
leve com o lenço perfumado.

— Mas como está sendo tolo, Greg. Não pode fazer nada
contra ele. Saiba que não sou tão boba quanto a pequena
Amy. Compreendo perfeitamente tudo o que aconteceu. E era
do meu interesse compreender, já que sou sua herdeira, não
é mesmo? Não vai ficar tudo para mim, depois que você e
Nickie morrerem, nos termos do testamento do Primo Aaron?
Também gosto de dinheiro. Não seria uma Sessions se não
gostasse, apesar de nossa tradição e família, mesmo tendo
uma cama em que George Washington dormiu, quando
visitou nosso bisavô, nesta própria casa. Todos gostamos de
dinheiro. Seríamos tolos se não gostássemos. Assim, sei
exatamente o quanto devemos ao Sr. Barbour e sei também
que ele não nos deve nada. Portanto, faça o favor de não
proferir ameaças vazias. Sei também que não se importa com
qualquer outra pessoa no mundo além de Amy. Pois se a
ama, fará o que puder para salvá-la da infelicidade. Se o Sr.
Barbour casar com ela e descobrir que sou eu e não Amy a
herdeira, certamente vai odiá-la e torná-la muito infeliz.
Deve tomar alguma providência o mais depressa possível. É
perfeitamente evidente que Amy está atraída por ele, mas
tenho certeza de que ainda é uma fantasia e que há tempo
para salvá-la.

Gregory sentou-se lentamente, olhando para a porta pela


qual Ernest passara, em companhia de Amy. Estava
alarmantemente pálido, parecia de repente muito velho e
alquebrado.

— Amy... — murmurou ele, cerrando os punhos. -se ele


magoá-la, vou matá-lo!

May disse, jovialmente:

— Ora, meu caro Gregory, não seja tão dramático, como


se estivesse representando uma peça! Os homens não se
matam uns aos outros atualmente. A lei não gosta disso. Se
lhe insinuar que Amy não tem qualquer dinheiro e que vive
de caridade em nossa casa... minha casa... tenho certeza de
que ele imediatamente a largará, como um carvão em brasa.
Posso ser apenas uma mulher, mas compreendo os homens.
Eles são todos parecidos, quer vivam em Windsor ou em
Nova York.

Gregory comprimiu o punho contra os dentes, ainda


olhando para a porta. Parecia estar passando mal, dominado
pelo medo. E pelo ódio.

— Isso mesmo, vou lhe falar. Nunca pensei... A culpa é


toda minha. E acho que você está enganada, May. Se Amy o
quer e ele a quer, mesmo sabendo que ela não tem dinheiro,
não vou me opor. A felicidade de Amy é mais importante
para mim do que qualquer outra coisa no mundo. Ele vai
muito longe na vida. De certa forma, é um bom partido para
Amy. Mas é um homem inescrupuloso, um verdadeiro patife.
Quase um charlatão. Oh, Deus, não sei o que fazer!

E ele cobriu o rosto com as mãos.

— Patifes e homens que parecem charlatães sempre vão


longe. Podem até se tomarem presidentes dos Estados
Unidos. — May sorria enquanto falava. — Homens bons e
virtuosos muitas vezes têm de mendigar na velhice. Já vi
isso acontecer incontáveis vezes. Se Amy conquistar o Sr.
Barbour, será um troféu e tanto para ela. E vai tirar um peso
das suas costas, meu caro Greg.

— Eu deveria tê-la casado com algum rapaz de boa família


e dinheiro — murmurou Gregory, sem tirar as mãos do rosto.
— A culpa é toda minha. Quis mantê-la comigo por mais
algum tempo. Foi esse o meu grande erro.

— Essa não! — exclamou May jovialmente, mas com


alguma compaixão. — A maioria dos nossos amigos aqui em
Windsor está ficando cada vez mais pobre. E os jovens
cavalheiros, mesmo quando têm dinheiro, não gostam de
bancar os generosos. Teria sido muito difícil casar Amy
satisfatoriamente.

— Está me aconselhando a deixá-la casar com aquele...


aquele campônio inglês, se ele a quiser? — perguntou
Gregory, com alguma curiosidade.

May deu de ombros.

— Ele não vai querer... se souber. Tenho certeza disso.


Mas ele deve saber, para o bem de Amy.
— Ah... — murmurou Gregory, pensativo.

Ele observou-a em silêncio por um longo momento.


Quando seus olhos se encontraram com os de May,
imediatamente surgiram as covinhas nas faces dela.

— Você é terrível, May, embora eu não creia que seja


cruel. Mesmo assim, é uma mulher terrível. — Gregory se
levantou. — Acho que está enganada. Não será difícil
descobrir e é o que pretendo fazer imediatamente.

Ela se levantou, num turbilhão de anáguas de seda, e


contornou rapidamente a mesa até o lugar em que Gregory
estava. Pegou-lhe o braço, com uma expressão um tanto
ansiosa no rosto jovial.

— Quero que me faça um favor, Gregory: se ele não pedir


Amy em casamento, depois que souber que ela não é uma
herdeira, você poderia não guardar qualquer ressentimento?
Sempre o amei, Greg, muito mais do que a Nicholas. Afinal,
Nicholas ama apenas seus chavões, pois no fundo não passa
de uma besta selvagem. Mas você nunca foi assim. Sempre
foi muito justo e vai compreender que teria feito a mesma
coisa no lugar dele, não é mesmo?

A boca e as narinas de Gregory se contraíram e ele deu a


impressão de que iria afastar a mão de May de seu braço.
Mas ela postou-se diante dele, segurando-o pelas lapelas do
casaco.

— Gregory... — murmurou ela, ansiosa. — Por favor,


Gregory...

Ele deu de ombros, tentou sorrir.

— Como você é realista, May! O que é impróprio numa


mulher. Mas tem toda razão: no lugar dele, eu faria
exatamente a mesma coisa que ele vai fazer. Não guardarei
qualquer ressentimento.

Foram juntos para a sala de estar, onde Amy estava


sentada à luz do fogo e das velas, as mãos no colo, com uma
expressão radiante no rosto levantado. Ernest estava
encostado na beirada da lareira, contemplando-a, falando
suavemente. Os dois tiveram um sobressalto quando
Gregory e May entraram na sala.
CAPÍTULO XX
Ernest sentia que estava tudo a seu favor, naquela noite,
quando deixou a sala de jantar e seguiu para a sala de estar
em companhia de Amy. Ali, o ambiente era aconchegante,
meio escuro, íntimo, o fogo uma explosão vermelha e
dourada na lareira, as velas ardendo com uma auréola
dourada. Quando Amy se sentou diante do fogo, ele pensou
que nunca vira nada tão adorável e maravilhoso quanto
aquela moça, com sua profunda meiguice, uma dignidade
perfeita. Ele ficou de pé, contemplando-a.

Experimentava uma sensação de completa satisfação e


paz. Tudo era perfeito. Nunca antes vira o despertar do amor
no rosto de uma mulher, mas percebeu-o agora no de Amy e
ficou profundamente comovido. Sentia-se humilde e
compungido, mas mesmo assim invencível. Era tudo
deslumbrante: aquela moça, o amor que sentia por ela, a
paixão crescente, a perfeição aconchegante da sala, a velha
casa, tudo o que essas coisas significavam. Não podia
dissociar Amy daquela casa. De forma um tanto banal, ele
pensou: Ela é como uma pérola no engaste apropriado. Sua
paixão abrangia a casa e todas as coisas que continha. Sem
Amy, a casa não era nada; sem a casa, Amy ficava meio
perdida, deslocada em sua mente. Ernest não podia conceber
as duas coisas separadas. A casa era um corpo e Amy era um
espírito, pensou ele, um tanto extravagantemente.

Contudo, apesar de toda a extravagância, um pensamento


sóbrio e satisfatório predominava: Tudo será dela, a usina de
aço, as minas, as fundições, serrarias, a fortuna nos bancos e
as ações. É uma fortuna e tanto! Certamente os tios lhe
dariam um dote considerável, só para começar. E viveriam
todos juntos, naquela casa maravilhosa. Já vi casas maiores e
mais novas, pensou Ernest, em Filadélfia e Nova York, mas
nada eram em comparação com esta. E Gregory é um velho,
seu irmão também. No curso normal das coisas, em breve
estarei administrando tudo. E a fortuna toda me pertencerá,
quando eles morrerem!

O excitamento de seus pensamentos fazia com que o


rosto brilhasse. Ele inclinou-se na direção da moça, cujas
faces estavam ruborizadas, e disse em voz baixa:

— Srta. Amy, não pode imaginar o quanto me sinto grato


à sua pessoa e à sua gentileza! Eu era um... um bárbaro, até
conhecê-la. Introduziu-me no novo mundo, de música, livros
e bem viver. Como posso algum dia agradecer-lhe?

Amy sentiu um aperto na garganta, as lágrimas lhe


arderem nas pálpebras. Fitou-o gentilmente.

— Oh, Sr. Barbour, está muito gentil! Tenho certeza de


que não fiz nada disso! Mas os cavalheiros frequentemente
ficam tão absorvidos em seus negócios e profissões que não
lhes sobra muito tempo para cultivarem a música e a
literatura. Cabe às mulheres manter essas coisas vivas e
sempre preparadas para o momento em que os homens
puderem lhes dispensar uns poucos momentos de folga. No
final das contas, não passam de coisas graciosas, meramente
decorativas. Mas sei que está interessado em coisas muito
mais importantes.

— Eu era um bárbaro — insistiu Ernest.

Mas ele sorriu, um tanto presunçosamente. Abaixou-se e


atiçou o fogo, transformando-o num braseiro intenso. Ao se
empertigar, o rosto estava vermelho e ligeiramente agitado.

— Srta. Amy, acha que sou completamente insuportável?


A pergunta era tão abrupta e inesperada que Amy,
acostumada por toda a sua vida a diálogos graciosos, a
insinuações e sugestões polidas, ficou completamente
aturdida. O rosto tornou-se vermelho de constrangimento.
Não sabia para onde olhar. Depois, fitando Ernest nos olhos,
não conseguiu mais se desviar.

E a voz era quase um sussurro, quando respondeu:

— Tenho certeza de que ninguém poderia considerá-lo


insuportável.

— Fico contente em ouvir isso — disse Ernest, em voz


quase tão baixa quanto a dela. — Deixou-me imensamente
feliz, Srta. Amy.

Ele respirou fundo. E estava prestes a fazer sua


declaração quando se lembrou subitamente de que os
cavalheiros não abordam primeiro uma jovem dama, mas
falam antes com os pais ou o tutor, solicitando permissão
para pedi-la em casamento. Ele ficou desesperado de
mortificação. Como ela devia julgá-lo um homem grosseiro e
sem modos! Seria merecido se ela levantasse e deixasse a
sala altivamente, nunca mais tomando a lhe dirigir a palavra.
Mas não foi o que Amy fez. Em vez disso, ela fitava-o com
uma expressão radiante, os lábios rosados entreabertos,
como se esperasse ansiosamente. Fascinado, subjugado,
Ernest fitou-a nos olhos. E pensou, confuso, que nunca vira
qualquer coisa tão radiante, tão confiante. Ora, pensou ele
humildemente, ela me ama!

O pensamento foi um abalo tão grande, tão cheio de


esplendor e alegria, que ele sentiu que estava prestes a
prorromper em lágrimas. Esqueceu tudo, tudo mesmo,
exceto que amava aquela moça e que ela o amava, que
poderia tê-la assim que desejasse. Ele pegou as mãos de Amy
e beijou-as, com os lábios trêmulos. Podia sentir o tremor
dos dedos alvos entre os seus. Subitamente, ele ficou com
medo, receando que pudesse algum dia magoá-la, que
pudesse não ser o que ela queria. Soltou-lhe as mãos, com
uma relutância angustiada. Ao inferno com a etiqueta! Ia
falar com ela agora!

A porta se abriu nesse momento crítico e Gregory e May


Sessions entraram. May deslizou brejeiramente até o fogo e
parou diante dele, sacudindo o lenço perfumado diante do
rosto. Gregory foi postar-se atrás da cadeira de Amy e tocou-
lhe a cabeça com a mão, numa carícia de imensa ternura.
Mas ele olhou para Ernest, sorrindo jovialmente. E pensou:
“Queira Deus que ele tenha tido a decência e o decoro de
ainda não ter falado nada com Amy!’

Gregory disse:

— Ernest, você foi um pouco precipitado esta tarde


quando conversamos sobre aquele empréstimo. E também
não tive tempo de examinar aqueles papéis. Vou passar
quase todo o dia de amanhã no banco. Assim, se você não se
importa, podemos ir agora para a biblioteca e discutir o
assunto em todos os seus aspectos.

Ernest pensou: “A sorte está mesmo do meu lado! Vou


convencê-lo do meu valor esta noite e depois pedir-lhe a mão
de Amy!”

Os dois pediram licença formalmente às mulheres, para


se retirarem por algum tempo. A permissão foi-lhes
graciosamente concedida e deixaram a sala juntos. Gregory
estava angustiado, pois percebera a expressão radiante de
Amy, o brilho suave de seu rosto. Sabia que ela os
acompanhara com os olhos e podia adivinhar seus
pensamentos, com uma pontada de angústia. Posso quase
rezar, pensou Gregory, para que ele não aja como eu faria
em seu lugar. Há meia hora, eu estava disposto a destruí-lo
por sua presunção. Agora, recordando a expressão do rosto
da minha pobre Amy, torço para que ele seja mesmo
presunçoso!

A biblioteca estava iluminada por um fogo grande e


Gregory levou algum tempo para acender as velas. Uma
premonição terrível o dominava. Queria protelar o que devia
finalmente enfrentar. Ernest pôs um envelope com diversos
papéis em cima da imensa mesa de mogno, com seus pés em
garras. Havia nele um ar sereno e confiante, como se tivesse
conquistado tudo que sempre desejara. À luz das velas, seu
rosto parecia forte e determinado, embora jovem. E
incrivelmente bonito. Era como se um rosto talhado em
pedra tivesse subitamente adquirido vida. A premonição de
Gregory diminuiu de intensidade; se ele amava Amy com tal
intensidade, jamais renunciaria a ela, mesmo que fosse uma
moça totalmente sem dinheiro!

Sentaram-se e Gregory serviu dois copos de conhaque,


pondo também uma caixa de charutos em cima da mesa.

— E agora vamos examinar esses papéis — disse ele, em


tom jovial, quase afetuoso.

Ele olhou ironicamente para Ernest, os lábios se


contraindo num sorriso um tanto satírico.

Ernest nunca falara tão bem, objetivamente,


convincentemente. Estava lutando não apenas por suas
ambições, mas também por Amy. Sua mente era tão bem
treinada e disciplinada que podia desligar-se do rosto de
Amy e concentrar-se no assunto em discussão. Lutando por
ela, Ernest esqueceu-a na luta. Falou com o maior
desembaraço, o que era raro nele, tudo se tornando claro,
convincente, irresistível. Não há qualquer possibilidade de
fracasso nele, pensou Gregory, com amargura. Sempre vai
conseguir o que quer. Ele ficou escutando seu convidado
com uma surpresa sombria, observando a rápida sucessão de
expressões num rosto que era geralmente implacável e
inexpressivo. E enquanto observava e escutava, algo nele
tornou-se mais frio e mais duro, com o medo. Folheou os
papéis mecanicamente, acenou com a cabeça
mecanicamente, sorriu quando julgou que era a reação que
Ernest esperava dele. Mas, durante todo o tempo, nada via e
ouvia além de seus próprios pensamentos angustiados.

Ele olhou subitamente para o relógio em cima da lareira.


Estavam ali há quase uma hora e ele ainda não dissera coisa
alguma! Forçando-se um sorriso, Gregory empurrou os
papéis para o lado. Ernest, no meio de um argumento
veemente, parou de falar abruptamente, franzindo o rosto.
Gregory bocejou elaboradamente.

— Já me convenceu, Ernest. Mas convencer os demais


diretores será outra questão. Contudo, levarei esses papéis
para eles examinarem amanhã e discutiremos o assunto.
Aceita outro conhaque?

Ernest aceitou, expansivo. Embora não gostasse do sabor


do álcool, sentia que poderia suportá-lo naquela noite.
Tornou um gole do conhaque, olhou extasiado para os
papéis em cima da mesa. Não viu Gregory cruzar as mãos e
inclinar-se em sua direção. Não percebeu a contração de
angústia no rosto dele.

— Já fazia bastante tempo que não nos visitava, Ernest. —


Gregory procurou imprimir à sua voz um tom jovial e
descontraído. — Claro que esta é uma casa um tanto
insípida, habitada por um velho e uma moça. Mas agora está
tão diferente. May é animada e jovial, sempre alegra esta
casa. Amy tem vivido aqui quase como uma freira e espero
que May possa animá-la um pouco, mostrar-lhe o que é ser
jovem.

— A Srta. Sessions vai ficar aqui por muito tempo? —


perguntou Ernest, com polidez.

Gregory cortou com cuidado a ponta de outro charuto e


aproximou-o meticulosamente do fogo. E quando por fim
respondeu, não estava olhando para Ernest:

— Vai, sim. Provavelmente por muito tempo. Talvez até


permanentemente. Afinal, a casa lhe pertence. Ela nasceu
aqui, o pai dela e o meu nasceram aqui. O pai dela era 18
anos mais moço do que o meu e casou um pouco tarde.
Quando Nicholas e eu morrermos, esta casa ficará para May.
Tudo ficará para ela: nossas fundições, serrarias e minas.
Nossos pais eram muito devotados um ao outro.
Construíram a companhia juntos. O pai de May morreu dois
anos antes do meu. O testamento de meu pai deixou tudo o
que ele possuía para Nicholas e para mim, passando tudo
para May, quando morrermos. Somos os tutores dela. Além
da fortuna já considerável que seu próprio pai lhe deixou,
ela ainda ficará com a nossa.

Ele fez uma pausa. Fingiu estar profundamente


interessado no motivo pelo qual o charuto não estava
ardendo direito. Franziu o rosto, murmurou algumas
palavras, pegou o canivete, tornou a cortar o charuto. Sabia
que Ernest não mexera sequer um dedo, não virara a cabeça,
não pronunciara uma única palavra. Contudo, mesmo não
havendo qualquer movimento visível, Gregory podia sentir
que ele ficara rígido. Havia mais violência naquela rigidez
silenciosa do que num grito brusco ou uma imprecação
veemente. Gregory pôs o charuto na boca e acendeu-o.
Rezou para que o rapaz não percebesse como suas mãos
estavam tremendo. Suspirou fundo e acrescentou:

— Minha irmã, Amy, foi inteiramente excluída do


testamento de meu pai. Assim, a minha pobre sobrinha Amy
não tem absolutamente nada. Meu pai exortou a Nicholas e a
mim para que protegêssemos, velássemos e cuidássemos de
May. Não permitiu que qualquer dinheiro de sua fortuna
fosse desviado para Amy. Nós o respeitávamos muito e
jamais ficaríamos contra os seus desejos.

Houve um prolongado silêncio. Gregory finalmente


forçou-se a olhar para Ernest. O rapaz estava sentado na
cadeira como uma estátua, o rosto terrivelmente pálido, as
mãos cerradas sobre os braços da cadeira. Mas sua expressão
era perfeitamente calma, os olhos francos e penetrantes,
como sempre, fixados no homem mais velho. Uma sensação
angustiante provocou náusea no estômago de Gregory, como
se estivesse prestes a vomitar. Fez um esforço para sorrir,
pegou os papéis, como se pretendesse recomeçar a examiná-
los.

— Não sei por que estou lhe contando tudo isso, Ernest.
Sei que não pode ter o menor interesse para você.
Geralmente não transformo ninguém em meu confidente,
mas tenho me preocupado ultimamente com o que poderá
acontecer à minha pequena Amy depois que eu morrer.

Ele parou de falar. E ficou esperando. Esperou como


jamais esperara antes por qualquer outra coisa, com um
medo intenso. Não se sentira assim nem mesmo à cabeceira
do leito em que o pai agonizava. Agora, pensou Gregory, ele
vai declarar que tenciona tê-la para mulher, mesmo sem
dinheiro, que a deseja apenas por sua meiguice. Claro que
vai dizer isso. Oh, Deus, faça com que ele diga isso! Jamais
esquecerei o rosto da pobre Amy esta noite, quando
entramos naquela sala. Oh, Deus, faça com que diga que a
quer de qualquer maneira!

Mas Ernest não falou. Na verdade, dava a impressão de


que não poderia falar, mesmo que quisesse. Virara a cabeça
ligeiramente e agora estava olhando fixo para o fogo. O rosto
parecia talhado em pedra, pálido, impassível, embora o fogo
projetasse nele uma ilusão de mudança de expressões. Em
determinado momento, ele parecia estar sorrindo
ligeiramente, em outro dava a impressão de que passava
mal. Gregory pensou: Pobre diabo, parece até que a luz do
fogo lhe ilumina a alma, a mente, extraindo expressões
através da espessura da carne. Mesmo em sua angústia,
Gregory sentia uma estranha compaixão por aquele homem
muito jovem, que sempre conseguira tudo o que desejara,
menos aquilo.

Se eu não falar, disse Gregory a si mesmo, a situação vai


acabar se tornando constrangedora demais. Ambos
conhecemos os pensamentos um do outro. Ele abriu a boca
para falar e ficou horrorizado ao descobrir que sua voz
soava rouca:

— Mas claro que provavelmente Amy já estará casada


quando eu morrer.

Ele sorriu. Os lábios estavam tão ressequidos que sentiu


uma dor intensa, quando se contraíram no sorriso.

— Sei que ela já recebeu pedidos de casamentos e é


apenas uma questão de semanas antes que aceite um deles.

Ernest mexeu-se, virando o rosto. Como que informado


por algum sexto sentido, Gregory sabia quanto esforço
aqueles movimentos custavam ao rapaz. Podia sentir em
seus próprios músculos toda a tensão angustiante da luta, a
terrível batalha da vontade.
Quando Ernest falou, a voz era formal, sem qualquer
inflexão:

— Tenho certeza de que a Srta. Amy ainda não se


interessou por pretendentes. Além do mais, senhor, está no
vigor da vida e acho que se preocupa desnecessariamente.

Ele parou de falar, de repente.

Subitamente, Gregory odiou-o. A compaixão se consumiu


em cinzas na fornalha de seu ódio. Soergueu-se na cadeira,
com o impulso repentino de acertar o punho naquele rosto
jovem, de olhos impenetráveis. Mas tornou a arriar na
cadeira, ofegante. Ernest não estava olhando para ele e por
isso foi poupado dessa vergonha final. Gregory sentiu uma
gota fria pingar em seu rosto e ficou espantado ao descobrir
que a testa estava molhada de um suor gelado. Com mãos
que tremiam visivelmente, ele serviu-se de uma dose grande
de conhaque, tomou tudo. Afastou o copo da boca para
deixá-lo na mesa, mas parou no meio do gesto, aturdido.
Ernest estava olhando calmamente para o seu relógio de
ouro. Contraiu os lábios, franziu o rosto.

— Mas já são quase 11 horas! E ainda tenho algumas


contas para conferir, antes de me deitar!

Ele levantou-se, sem qualquer esforço agora. A vida e a


cor haviam se desvanecido de seu rosto, mas estava
perfeitamente controlado e inescrutável. Gregory largou o
copo em cima da mesa e se levantou também; sentia que
eternidades transcorriam entre cada um de seus
movimentos. Todo o seu corpo doía, como se tivesse sido
mantido sob tensão insuportável por muitas horas. Os dois
homens fitaram-se firmemente. Se disser o que gostaria de
falar, tornará impossível voltarmos a nos encontrar, até
mesmo fazermos negócios juntos, pareciam dizer os olhos
frios de Ernest. Algo faiscou no azul intenso dos olhos de
Gregory, algo como o bote de uma serpente. Você me
envergonhou e à minha casa, feriu o coração de uma jovem
meiga, disse Gregory silenciosamente, em resposta ao
pensamento silenciosamente projetado de Ernest. E, depois,
de súbito, o rosto dele tornou-se irônico, satiricamente
amargo: Você fez exatamente o que eu teria feito! Fez o que
eu sempre fiz! Espero que a sua porção na vida seja tão feliz
quanto a minha.

Voltaram juntos à sala de estar. Cada um tinha a sensação


de que estava a caminho de sua própria execução. Para
enorme alívio de ambos, encontraram a sala vazia. As
mulheres haviam se retirado. O relógio de ouropel em cima
da lareira bateu baixinho, 11 vezes, em meio ao silêncio
iluminado pelas velas. Ernest olhou ao redor e pareceu-lhe
que alguma coisa insuportável lhe invadia o peito. Tinha a
mesma sensação de um exilado.

Ele e Gregory despediram-se formalmente, mas sem um


aperto de mão. Um dos cavalariços trouxera o cavalo de
Ernest do escritório da Sessions Steel, quando de viera com
Gregory na carruagem. O cavalo foi levado à frente da casa.
Gregory não ofereceu sua carruagem, como geralmente fazia.

O som das patas do cavalo ainda não havia se


desvanecido quando Gregory pensou, com uma súbita
esperança: “Ele ainda não se decidiu. É algo grande demais
para que decida imediatamente. Por Deus, eu não gostaria de
estar no lugar dele esta noite.”
CAPÍTULO XXI
Hilda Barbour estava dormindo irrequietamente.

Sonhou que sentia uma dor intensa no peito e pensou,


ofegante, no sonho: “Não posso suportar isso! Por favor, meu
Deus, faça com que pare!”

Mas a dor não cessou e ela percebeu agora que vinha


ritmadamente, em batidas regulares. Como uma pulsação
violenta. Ela pensou: “A dor é como passos.” E por algum
motivo, ao compreender isso, a dor pareceu aumentar,
deixando o corpo e inundando a mente, de tal forma que não
havia libertação ou fim. Ela descobriu-se a soluçar,
suplicando ao dono daqueles passos que interrompesse sua
marcha interminável e eterna de um lado para outro, através
de seu cérebro e pensamentos. Mas ele continuou a marchar
e finalmente Hilda pensou: “É porque o conheço e não posso
ajudá-lo que dói tanto.”

Ela acordou nesse momento, como se a dor tivesse se


tornado insuportável demais. Descobriu-se a chorar em seu
travesseiro. Ainda estava escuro e pelas janelas dava para se
divisar o cinza que se insinuava no horizonte a leste. Na
semiescuridão, as cadeiras pesadas do quarto, os postes da
cama, o guarda-roupa de mogno, tudo assumia contornos
nebulosos e sinistros. Ao lado, Joseph dormia um sono leve,
revirando-se irrequieta e mecanicamente. Hilda pôs a mão na
testa dele, gentilmente. Estava quente. Ela sentiu um aperto
no coração. Agora, ele estava quase sempre com febre pela
manhã. Dominada pela ansiedade, ela esqueceu
momentaneamente o sonho. Demorou algum tempo a lhe
voltar, com terrível nitidez. Ela deixou a mão na cabeça do
marido, enquanto escutava com atenção. Débil, mas
nitidamente, podia ouvir o som de passos, marchando de um
lado para outro, sobre um chão atapetado. Nunca cessavam.
Hilda contou, dez passos para um lado, dez para outro. Ela
sentou-se na cama, concentrando-se. Os passos vinham do
quarto de Ernest.

Hilda saiu cautelosamente da cama, meteu o chambre de


lã sobre a camisola de cambraia. Pôs as chinelas, empurrou
as tranças para trás. Saiu em silêncio para o corredor, ficou
escutando. Os passos pareciam mais altos agora. Ela foi
avançando pelo corredor, até a porta do quarto de Ernest.
Bateu baixinho. Os passos cessaram. Houve um silêncio
prolongado. Lá embaixo, o relógio bateu soturnamente
quatro pancadas demoradas. No quarto que ela deixara,
Joseph gemeu, irrequieto. Mas havia apenas silêncio no
quarto de Ernest. Hilda abaixou-se e olhou pelo buraco da
fechadura. Uma vela ardia na mesa. Estava quase no fim,
indicando que ardera por muitas horas. Ela nada podia ver
de Ernest, além de uma das mãos, caídas. Pela posição da
mão, Hilda compreendeu que o filho estava de pé, de frente
para a porta. A mão não estava cerrada. Mas, por alguma
coisa na posição dos dedos, talvez a tensão das articulações,
ela compreendeu que era a mão de alguém dominado por
terrível angústia. Aquela mão eloquente e sofredora
fascinava-a. Deixava-a também desconcertada, em seu total
desamparo. Hilda sentiu-se envergonhada, como se tivesse
deparado com o filho adulto inteiramente nu. Ela tornou a
bater na porta, estremecendo, pois, o corredor estava frio,
com uma correnteza de ar. Depois de um longo momento,
ela ouviu passos aproximando-se da porta, que se
entreabriu, apenas uma fresta.

— O que é, mãe? — sussurrou Ernest, um tanto


impaciente.

A visão da mão do filho incutira coragem a Hilda. Ela não


mais tinha medo de Ernest. Era o seu filho, precisando de
conforto. Sacudindo a cabeça, ela empurrou a porta e entrou
no quarto.

— Mas que coisa! Você me acorda com os seus passos e


agora me pergunta o que estou querendo?

Ernest fechou a porta e virou-se lentamente para a mãe.


Ele ainda estava inteiramente vestido, o capote e o chapéu
jogados com negligência numa cadeira, junto com as luvas e
a bengala. Ele ainda estava de casaco. Mas a gravata estava
afrouxada, o colarinho desabotoado. Sobre o queixo,
espalhava-se um princípio de barba. Os cabelos estavam
desgrenhados. A expressão dele, mesmo àquela hora, era tão
calma e impassível quanto sempre. Mas Hilda percebeu além
da expressão, divisou as olheiras do filho, o brilho dos
olhos, os sulcos brancos em torno da boca e do nariz, as
narinas contraídas. O coração de Hilda encheu-se de ternura
pelo filho. Ora, ele ainda é meu menino!, pensou ela, quase
desatando a chorar. Por causa disso, ela não se sentia
intimidada, como sempre acontecia, diante da atitude brusca
e impaciente do filho.

— O que é, Ernest? Não pode contar a sua mãe? Ainda sou


sua mãe, menino.

Ele sorriu. Ou melhor, a boca contraiu-se


convulsivamente.

— Estou com dor de dente, mãe — respondeu Ernest, num


tom indulgente.

Ele fitou-a quase afetuosamente. Baixa e rechonchuda,


envolta pela lã escura, o rosto redondo rosado e liso, as
tranças pretas caindo sobre os ombros, ela parecia
novamente jovem.
Ernest estava obviamente esperando que a mãe se
retirasse. Mas Hilda tornou a sacudir a cabeça e sentou-se
com um ar decidido. Estudou o filho astutamente.

— Dor de dente? Não está parecendo. Se estivesse com


dor de dente, há muito tempo que estaria gritando por ajuda.
Conheço os meus homens. E você ainda nem se despiu. Dor
de dente não atinge ninguém que ainda não está na cama,
quase dormindo. E essa vela está ardendo há muitas horas.
— Hilda fez uma pausa, inclinando-se para Ernest e
acrescentando, em tom terno e suplicante: — Filho, você não
é um homem adulto para mim e nunca será. Posso perceber
em seu rosto que tem algo mais. Deixe-me ajudá-lo.

Alguma hostilidade insinuou-se no rosto de Ernest, que


ficou olhando firmemente para a mãe. Depois, ele tornou a
sorrir, quase com um desdém afetuoso. Mesmo antes que ele
falasse, Hilda sentiu que não havia qualquer esperança,
como se uma porta tivesse se fechado inexoravelmente à sua
frente.

— Pode ajudar-me, mãe, voltando para a sua cama. A dor


de dente já passou agora, vou mudar de roupa e tentar
dormir um pouco. — Ele fez uma pausa breve, antes de
acrescentar: — se me deixar...

Hilda levantou-se no mesmo instante, furiosa.

— Você é o demônio mais teimoso que já conheci! Não


vou sair daqui enquanto não tiver certeza de que você está
deitado!

Ela foi até a cama e tirou a colcha de cetim. Estendeu os


cobertores, falando sem parar para si mesma. Ernest ficou
observando-a, meio aturdido. Hilda virou-se para ele.
— E vou lhe buscar uma xícara de leite quente e um pão.
Se está com dor de dente, vou ajudá-lo.

Todos os músculos se contraíram no rosto de Ernest.


Hilda foi até a porta e ele seguiu-a. Depois que ela passou
pelo limiar, Ernest disse, em voz baixa:

— Não volte, mãe. Não quero leite, não quero pão. Tudo o
que desejo é ficar sozinho.

Ela fez menção de falar, mas Ernest interrompeu,


brutalmente:

— Tenho de ficar sozinho. Se não deixar, sairei desta


casa. Insisto no meu direito de ficar sozinho.

Hilda voltou para a sua cama e para junto do marido, que


dormia irrequietamente. Ela estava profundamente desolada.
Sentia que perdera um filho, que o homem no outro quarto
era um estranho. Aconchegou-se a Joseph, comprimiu o
rosto contra o ombro quente, segurou o camisolão dele,
como se procurasse proteção. E pensou, subitamente, com
angústia: As mulheres não podem encontrar qualquer
conforto nos homens!

Ficando sozinho, Ernest apagou a vela. A claridade


projetada pela vela, depois da invasão da mãe, parecia
insuportável. Ele encontrou um senso de solidão e
intimidade no escuro. Foi até a janela e olhou para fora.
Aquela janela, em particular, dava para as amplas campinas.
Mas aquelas campinas eram apenas uma escuridão informe,
juntando-se com a escuridão informe do céu. A claridade
cinzenta se desvanecera e a noite já não era tão escura.
Enquanto Ernest olhava, apático, uma linha de fogo
estendeu-se entre o céu e a terra, dividindo-os. Os contornos
irregulares dessa linha se elevaram ao céu, empurrados pelo
amanhecer.

Uma sensação de espanto, invadiu-o. Seria possível que a


noite interminável tivesse passado? Parecera-lhe que tudo no
universo se detivera, parara, deixara de ser, durante aquela
noite, o próprio tempo ficara suspenso e só ele existia no
caos indefinido. Mas via agora à sua frente a evidência de
que nada parara, a não ser ele próprio, que todas as coisas
haviam continuado inexoravelmente, com exceção dele.
Ernest pensou, distraidamente: Já é de manhã e daqui a
pouco estarão me chamando para o café e ainda nem me
deitei.

As árvores lá fora ainda estavam desfolhadas, mas os


passarinhos já voltavam, os seus cantos estridentemente
perto. Ele ouviu um débil resmungo no sótão por cima. As
criadas começavam a despertar. Uma trovoada distante
ressoou pelo amanhecer, um trem apitou ao longe,
afastando-se pela semiescuridão.

O conflito em sua mente se atenuara, da mesma forma


como os açoites acabam por anestesiar a came que
dilaceram. Agora, seus pensamentos, ordenados e
disciplinados, podiam desfilar pela mente endurecida sem
torturá-la.

Sua primeira sensação, quando Gregory o informara, não


muito delicadamente, da situação de Amy fora de profundo e
amargo desapontamento. Transtornara seus pensamentos,
lançara-o na mais terrível confusão. Sentira-se frustrado,
confrontado por uma coisa que ainda não podia enfrentar e
superar. Não era rápido em reajustar as ambições e a
tendência dos pensamentos.

Carecia da facilidade da emoção. Como nunca alternara


planos e baseara todas as suas esperanças e determinações
numa única premissa, carecia da flexibilidade mental dos
que preveem alternativas. Essa disposição mental era
apropriada para a conquista do sucesso, mas de nada servia
para as derrotas inevitáveis que até mesmo as naturezas
mais fortes devem às vezes admitir. Seu desapontamento
fora tão catastrófico que acabara por engolfá-lo. Mas como
só podia experimentar uma emoção de cada vez, não sentiu
uma angústia imediata pela provável perda de Amy
Drumhill. Voltara à sala de estar em companhia de Gregory e
olhara ao redor com um sentimento inequívoco de perda.
Mas deve-se dizer que só pensara ativamente em Amy
quando chegara em sua própria casa e subira para o quarto.

O desapontamento estava desvanecendo-se ligeiramente


àquela altura e suas emoções podiam concentrar-se em Amy.
Pusera-se então a andar de um lado para outro do quarto,
num lento frenesi.

Ele parou em determinado momento, dominado pelo


espanto. Repassando mentalmente a conversa com Gregory,
compreendeu que o homem mais velho insinuara claramente
que não faria qualquer objeção a que Ernest cortejasse Amy.
Lembrando isso, seu espanto aumentou. Passara a noite
inteira procurando conquistar as boas graças de Gregory,
procurando habilmente deixá-lo numa posição em que lhe
seria impossível recusar. E Gregory, ao final, tentara forçar a
questão, quisera empurrar Amy para os braços dele!
Correndo os olhos por seu quarto, Ernest coçou a cabeça,
aturdido. Por um momento, imensa satisfação invadiu-o.

Depois, ele pensou: uma jovem sem dinheiro, que nada


lhe traria! Aquela casa, a terra, serrarias, fundições, minas...
nada era dela. Se casasse com Amy, não seriam dele. Uma
jovem sem dinheiro, que tinha apenas as roupas do corpo (e
compradas com algumas moedas de caridade). Por mais
algum tempo, não ocorreu a Ernest renunciar a Amy. Seus
desejos haviam se fixado nela e embora a encarasse agora
com amargura, um pouco de raiva e desilusão, não
tencionava a princípio rejeitá-la. Se Gregory soubesse disso,
teria ficado atônito.

Não, a princípio ele não tencionava renunciar a Amy. O


pensamento não lhe ocorreu, pois ele a amava. Mesmo em
seu desapontamento desesperado, Ernest continuava a amá-
la. Mesmo enquanto pensava nela, a luz nova de sua
pobreza, algo terno e intenso brilhava dentro dele. As
lágrimas ardiam em seus olhos.

Ele sentou, acabrunhado e fraco. Cobriu o rosto com uma


das mãos, protegendo-o da luz da vela. Mas... uma jovem
sem dinheiro! Trabalhara tanto, arduamente, vigorosamente,
determinadamente... Era errado, muito errado, ter-se
apaixonado por uma moça que não podia trazer-lhe coisa
alguma, nenhum dote, nem mesmo uma carruagem ou joias.
Abriria sua casa e seus braços para uma mulher a quem teria
de sustentar. Inevitavelmente, haveria filhos, mas não
correriam pelos amplos aposentos da casa dos Sessions, não
brincariam nos gramados e jardins. Ele tentou imaginar-se
numa casa estranha, com Amy e os filhos. Mas sua visão se
fixara de tal forma em outro cenário que não pôde fazer com
que a alternativa se tornasse convincente. Era algo sem gosto
e irreal, Ernest encarou-o sem o menor apetite. Até mesmo
Amy, embora ainda a amasse, não lhe despertava o apetite.
Mesmo assim, Ernest ainda não pensava em renunciar.

Recomeçou a andar de um lado para outro do quarto,


invadido por uma náusea intensa. Parou diante da janela,
olhando para fora. Por causa de suas próprias encomendas
de aço, a usina dos Sessions vinha trabalhando à noite, há
algum tempo. Contra a cortina preta da noite, podia divisar o
clarão avermelhado pairando sobre as chaminés. O clarão
espicaçava-o, angustiava-o, provocava uma sensação de
perda irreparável. Se Amy tivesse morrido quando estivesse
prestes a conquistá-la, ele não teria sofrido tanto. Ernest
cerrou os punhos, numa angústia desesperada. Perdera
tudo... um estranho herdaria tudo o que construíra, tudo o
que confiantemente já considerara como seu.

E continuou a marchar pelo quarto, enquanto a vela ia


definhando, a cera escorrendo. O fogo há muito que morrera
e um princípio de frio impregnava o ar. Ele olhou para a
cama e pensou, tristemente, que nunca mais seria capaz de
descansar em paz. Pensou: Ah, se eu pudesse chorar como
uma mulher... Mas estava consciente, durante todo o tempo,
do movimento irrequieto de sua obstinação e ambições. Não
o deixavam, ainda procuravam por um caminho pelo qual
pudesse alcançar o que desejara.

Ernest arriou novamente numa cadeira, exausto. Levou a


mão ao bolso, distraidamente. Os dedos se encontraram com
um lenço que há algum tempo levava no bolso. Retirando-o,
contemplou-o com um sorriso amargurado. Levou-o ao nariz,
o odor de jasmim entrando por suas narinas. O odor serviu
para trazer Amy à sua presença, os olhos meigos, a boca
ansiosa entreaberta, o pescoço delicado e alvo. Ele cerrou a
mão sobre o lenço. À luz da vela, o rosto grande e rude ficou
subitamente transfigurado, atenuado por uma ternura
comovente. Os lábios se mexeram, como se estivesse
saboreando a suavidade da boca inocente de Amy.
Involuntariamente, ele levantou os braços, estendeu-os para
abraçar a visão.

— Amy... — disse ele, em voz alta.

Como se sua voz fosse um grito diabólico para romper


um encantamento adorável, a visão desvaneceu-se. Mas a
ânsia permaneceu. Ernest levantou-se de um pulo,
recomeçou a andar de um lado para outro, febrilmente. Não
podia suportar a ausência da moça, não podia suportar o seu
árido anseio. Que importância tinha, no final das contas,
Amy não ter dinheiro? Ele tinha mil vezes o suficiente! Com
Amy, todas as coisas eram possíveis. Ora, ele teria uma
dúzia de fábricas, tanto quanto os Sessions, teria minas que
ofuscariam as dos Sessions! Teria o mundo inteiro! Tudo o
que ele queria agora era Amy. Ao inferno com tudo o mais...
aquelas coisas insignificantes podiam ser conquistadas pela
força de sua vontade e pelo seu planejamento implacável.
Eram pensamentos estranhos para um jovem assim. Anos
mais tarde, recordando-os, Ernest mal poderia acreditar que
fora capaz de acalentá-los.

Toda a exaustão desvaneceu-se. Ele sentiu-se animado,


exaltado. O coração pôs-se a bater mais depressa, enquanto
continuava a andar pelo quarto, num frenesi deslumbrante.
Tudo estava resolvido, tudo estava acertado. Havia apenas
Amy. E quanto mais cedo tivesse Amy, mais cedo aquele
prazer chegaria para ficar. Sentindo-se confiante e forte,
subitamente revigorado, ele foi até a imensa escrivaninha de
mogno, pegou papel, afiou a pena, mergulhou-a no tinteiro
de latão. E escreveu:

“Tenho a honra, senhor, de pedir a mão de sua sobrinha,


Srta. Amy Drumhill, solicitando sua permissão para fazer-lhe
a corte.” Com floreios, ele assinou seu nome: Ernest Louis
Barbour. Dobrou a carta, endereçou-a a Gregory Sessions,
Esquire.

Sua mente era tão inflexível que teria ido para a cama
nesse instante, com a carta escrita, sua resolução tomada,
nada mais poderia afetar sua determinação. Anos mais tarde,
recordaria aqueles poucos minutos que se seguiram ao
momento em que escrevera a carta, aturdido e espantado.
Como sua vida poderia ter sido diferente! Como seus filhos
poderiam ter sido diferentes! A posteridade dependera
daqueles poucos minutos, toda uma dinastia pendera
naquele instante. Talvez um mundo inteiro fosse diferente
se tivesse ido então para a cama. O simples fato de tirar as
botinas, apagar a vela e deitar sob as cobertas teria mudado
dezenas de vidas, talvez muito mais.

Mas ele não queria ir para a cama por enquanto. Nunca se


sentira tão desperto, alerta e febril. Um pouco de suor
surgira em seu corpo e estava consciente de que tremia um
pouco. Parecia sentir a própria carne de Amy no quarto,
virginal e macia; a qualquer momento, esperava virar-se e
deparar com ela, esperando e sorrindo. Subitamente, ele
precisava de ar, muito ar, ar fresco e frio. Correu para a
janela.

Abriu a janela, respirou fundo. A noite estava quieta e


Ernest percebeu agora um ligeiro pulsar, como asas batendo.
A usina dos Sessions... produzindo aço, para ele. Produzindo
riqueza. Para ele. Divisou o clarão de seus fogos.
Lentamente, muito lentamente, ele baixou as mãos ao
peitoril da janela. Os olhos não podiam se despregar do
clarão, não conseguiam se desviar. Um calafrio percorreu-lhe
o corpo, um gosto de sal espalhou-se por sua língua. Na
noite anterior, ficara também assim, só que olhara o clarão
dos fogos com exultação. Na noite anterior, estendera as
mãos vorazmente e as cerrara, como se pegasse tudo o que
desejava. Na noite anterior, seu coração batera com
impaciência e uma alegria expectante. Na noite anterior, ele
estava à beira de realizar todas as suas ambições.

E parado ali, sentindo mais frio a cada momento que


passava, sentindo-se mais angustiado e deprimido, a luz se
desvanecendo dele como chama febril que não tivera muito
com que se alimentar, o rosto de Amy foi perdendo o vigor,
dissolveu-se, desapareceu. E pela primeira vez outro rosto
surgiu diante de seus olhos. O rosto de May Sessions.
Lembrou-se agora, com um choque profundo, que ela o
fitara de maneira provocante, com desafio, admiração.
Fitara-o do mesmo jeito que as rameiras que frequentava.
Aquele olhar fora tão familiar que Ernest o descartara,
mecanicamente. Mas agora voltava, impregnado de
significado. Não fora o simples olhar de uma mulher bonita
que queria apenas flertar, mas estava repleto de desejo e
convite. Ela sorrira, bancara a coquete, sorrira
insinuantemente por trás do leque, rira, provocara,
espicaçara. Ao fitá-la fixamente, ficara surpreso ao descobri-
la corando como uma colegial, apesar de toda a sua
sofisticação. O rosto dela era o de uma mulher dominada
pela ânsia.

— Por Deus! — disse Ernest em voz alta, lentamente. — Eu


poderia tê-la, se quisesse.

E ele continuou parado ali, olhando sem ver para a noite,


por um longo tempo.

Quando finalmente se mexeu, teve a impressão de que a


carne se congelara, ficara rígida e velha, que algo se elevara
por dentro dele, como uma espiral de fumaça, logo
desaparecendo. Lentamente, como se impelido contra a sua
vontade, ele foi até a escrivaninha e pegou a carta que
escrevera para Gregory Sessions. Virou-a entre as mãos,
interminavelmente, apaticamente, com os olhos vazios e um
rosto subitamente encovado, repleto de rugas, de sulcos
esbranquiçados. Depois, pegou a vela com uma das mãos e
queimou a carta. Suspendeu-a e ficou olhando fixamente,
enquanto a carta era consumida pelo fogo, até que restava
apenas uma tira branca. Largou a vela, mas continuou a
segurar essa beirada branca. Acabou largando-a também,
observou-a flutuar lentamente para o chão.

Deu algumas voltas pelo quarto, inebriado, quase tonto.


Foi nessa ocasião que a mãe bateu na porta de seu quarto.
Ernest parou ao lado da mesa, ao lado da vela, escutando,
torcendo para que ela fosse embora. E ela espiara pelo
buraco da fechadura, vira sua mão, aquela mão eloquente,
que dissera tudo que a boca jamais contaria a ninguém.
CAPÍTULO XXII
No terceiro dia, Gregory Sessions disse a si mesmo: “Ele
não virá. Decidiu contra Amy.”

Ele contemplou o sorriso sereno e a expressão tranquila


de Amy e compreendeu que ela ainda não tinha a menor
suspeita. Mas uma semana se passou, depois duas e três, o
sorriso de Amy foi se tomando tênue, automático; e quando
ela pensava que ninguém a estava observando, sua
expressão era aturdida e angustiada. Ao final de um mês,
quando a primavera converteu-se em verão e a mortalha de
calor estendeu-se pelo vale, o rosto de Amy perdera a cor,
tomando-se pálido e translúcido. Ela pareceu perder a
vivacidade e espirito. Embora jamais se queixasse, Gregory
percebeu que ela se movia lentamente, pesadamente, como
se algo a oprimisse. Frequentemente postava-se diante das
janelas que davam para o caminho de acesso à casa. Mas o
sorriso era ainda mais meigo, embora agora um pouco
indeciso, a voz baixa e firme era mais gentil. Apreensiva,
May insistia para que Amy a acompanhasse em seus passeios
e pequenas visitas sociais. Com uma espécie de remorso
ansioso, ela tentou muitos expedientes para restaurar a vida
e o prazer da pobre moça tão profundamente abalada.

Ninguém mencionava o nome de Ernest. Quando Gregory


falava em Barbour & Bouchard, cuidadosamente evitava o
nome dele, às vezes sendo obrigado a dar uma volta imensa
para conseguir isso. Se Amy tivesse uma natureza
desconfiada, teria suspeitado de alguma coisa. Mas como era
inocente, não foi difícil enganá-la. May e Gregory aliaram-se
para poupar-lhe um constrangimento maior. Se May sentia
algum desdém feminino natural pelo fato de sua jovem
prima não ser capaz de seduzir um homem, a ponto de fazê-
lo esquecer que não tinha dinheiro, não o deixava
transparecer pelo menor olhar ou palavra. Sendo inteligente,
ela foi capaz de alcançar um perfeito equilíbrio entre forçar
Amy a acompanha-la em suas visitas e esconder sua real
compaixão e pesar. Censurava habilmente a Amy por seu
rosto pálido e depressão, exigia irritada que a prima lhe
explicasse o motivo, impacientava-se e reclamava com
extrema eficiência. Gregory, seguindo a indicação dela,
ameaçava chamar o médico, trouxe extrato de ferro num
vidro grande, simulou estar contrariado. E Amy, fitando-os
com seus olhos aturdidos, traídos, e desolados, sentia um
imenso alívio ao pensar que eles não desconfiavam de sua
humilhação.

Sozinho ou com May, Gregory censurava Ernest com


veemência e ódio. Jurava que nunca mais lhe permitiria
entrar em sua casa, que ele não passava de um arrivista
indigno, possuído por um demônio napoleônico, um imbecil
sem cultura, cortesia ou respeitabilidade, um mero
campônio presunçoso, impudente e grosseiro. E pensar que
um homem assim se atrevia a repudiar Amy, cujo bisavô fora
um primo dos Fairfax da Virgínia, um oficial do estado-maior
de Washington, um signatário da Declaração de
Independência, um descendente do Conde de Sussex! Era
intolerável! Ele, Gregory, não mais acreditava na democracia:
as democracias não exaltavam os homens, mas reduziam os
melhores ao nível dos inferiores.

— O denominador comum da estrebaria — dizia ele.

Nas democracias, um inferior não apenas se atrevia a


aspirar uma ascensão, mas, chegando ao topo, insultava e
cuspia na cara de seus superiores. Tal sistema de governo
era insuportável para aqueles que, por nascimento, fortuna e
cultura, tinham o direito de ocupar os mais altos postos em
paz. Ele manifestou seu anseio pela Inglaterra, onde um
ajustamento certo ocorrera alguns séculos antes e onde
ninguém tinha a audácia de contestar um regime que tinha a
própria Natureza como protagonista. Na Inglaterra, disse
Gregory, homens como Ernest Barbour não apenas não
teriam aspirado à mão de Amy, como também jamais
sonhariam com tal perspectiva. Teriam recebido uma boa
surra como punição, caso se atrevessem a sequer fitá-la ou
tocar em sua mão. Mas na América existia a igualdade das
tavernas, onde a miscelânea dos bebedores de cerveja poluía
o vinho fino dos que tinham um nascimento nobre.

May escutava a todas as tiradas, as covinhas aparecendo e


desaparecendo, numa reação de ceticismo. Ela se abanava
com o leque e pensava: “Apesar de tudo isso, meu caro
primo, vou casar com ele."

Poucos dias depois daquela noite humilhante, Gregory


quase decidira, pelo período de dois minutos, rejeitar o
pedido de empréstimo de Ernest. Com seu veto, os outros
diretores certamente teriam hesitado e acabariam por
recusar, respeitando a proverbial argúcia dos Sessions. Um
aviso discreto aos bancos de Filadélfia e Nova York e o
empréstimo seria rejeitado por todos. Gregory chegou até a
formular em sua mente a mensagem aos bancos: “Depois de
todas as considerações necessárias e de uma investigação
cuidadosa e secreta de Barbour & Bouchard, chegamos à
conclusão de que a firma, apesar de aparentemente sólida,
com um bom crédito e tudo o mais, enfrenta algumas
dificuldades, devido a determinados aspectos do caráter de
seus diretores, o espirito de dúvida em suas fileiras e
algumas hostilidades. Tendo em vista tudo isso, o
empréstimo não seria aconselhável."

O nome Sessions numa mensagem assim teria sido como


a marca de um sinete real.
Gregory exultou com essa mensagem não escrita, exultou
ao pensar no rosto de Ernest quando fosse informado da
recusa do empréstimo. Sua exultação elevou-se a um frenesi
de ódio. Chegou mesmo a pegar a pena para escrever o veto
a seu banco.

Mas logo desatou a rir, de desprezo por si mesmo, e


jogou a pena para longe, que acabou caindo da mesa.

— Sabe muito bem que não pode fazer isso! — disse ele,
em voz alta, para si mesmo. — Destruiria os seus próprios
lucros no futuro!

Ele sentiu-se doente de repulsa por si mesmo, angustiado


porque o desejo de lucros levava-o a esquecer o insulto à
única coisa que amava no mundo. Mas era também realista o
bastante para saber que a aprovação do empréstimo era o
ato de um homem sensato. Somente os idealistas e outros
idiotas podiam se dar ao luxo da indignação. Ele foi ao
banco, aprovou o empréstimo, argumentou com uns poucos
diretores cautelosos e desconfiados, sufocou toda oposição,
assinou a aprovação com largos floreios. Poucos dias depois,
recebeu um bilhete polido e frio de Ernest, escrito na letra
impecável e austera dele: “Soube que, se não fosse por sua
generosa intervenção e insistência, a sua defesa do meu
trabalho e a convicção demonstrada em meu valor, o
empréstimo teria sido recusado. Tenho a maior honra,
senhor, de apresentar-lhe meus sinceros agradecimentos e
gratidão eterna.”

A primeira reação de Gregory, ao receber esse bilhete, foi


a de que estava prestes a ter um derrame; a segunda, foi de
um riso profundo e incontrolável. Quase sufocou de tanto
rir, batendo nas coxas, sacudindo-se na cadeira. Mostrou o
bilhete à prima, pois reconhecia nela uma realista das mais
picantes. May leu o bilhete e sorriu jovialmente,
comentando:

— Mas que ironia! O rapaz não é nenhum tolo! — Quando


Gregory parou de rir abruptamente e fitou-a, aturdido, ela
acrescentou: — Imagino que essa é a primeira tentativa de
humor que ele faz.

E May juntou-se a Gregory na hilaridade.

Um mês depois, no entanto, Gregory estava bastante


apreensivo, por duas razões. Amy emagrecera bastante e
havia em seu rosto certa transparência, que denunciava uma
saúde debilitada. Ela quase não falava, exceto quando lhe
faziam uma pergunta direta. A cada dia que passava ia se
tornando mais lânguida, mais inquieta, como se o corpo
ansiasse por relaxamento, embora os nervos recusassem.
Parecia estar totalmente desolada. Mas agora foi ficando
também evidente que se sentia angustiada pela humilhação.
Tivera tempo para pensar, meditar sobre a perda de
interesse de Ernest, na deserção vergonhosa. Em
determinada ocasião, quando o nome dele foi
inadvertidamente mencionado, uma onda de vermelho
espalhou-se por seu rosto e deu a impressão de que fora
subitamente privada da capacidade de falar. Sentindo sua
vergonha e mortificação, Amy passou a andar furtivamente
pela casa, incapaz de fitar nos olhos as criadas, o tio ou a
prima. Corava, tremia, evitava todos os contatos humanos.
Seu comportamento era o de uma mulher desgraçada
publicamente por razões merecidas. Esse era o primeiro
motivo para a apreensão de Gregory, embora não fosse o
mais importante.

O segundo era o de que esperava diariamente a chegada


de seu irmão Nicholas, acompanhado por seu séquito. Os
quartos estavam prontos, criados extras contratados, havia
um clima de excitação na casa. Embora Gregory tivesse
escrito mais de uma insinuação ao irmão sobre a
possibilidade de um contrato militar para Barbour &
Bouchard, Nicholas permanecera neutro, não querendo se
comprometer. Na verdade, ele nem sequer respondeu à
primeira meia dúzia de insinuações. Mas finalmente
escrevera: “Quero verificar a situação pessoalmente, quando
voltar a Windsor. Afinal, meu caro Gregory, há mais fatores
para a concessão de um contrato militar do que a mera
predisposição de um senador.” Agora, ele estava voltando a
Windsor. E uma das coisas que decidiria, seria a
possibilidade de um contrato militar para Barbour &
Bouchard, com os lucros subsequentes para os Sessions. E
justamente nessa ocasião, a mais importante de todas as
ocasiões, Amy tinha de parecer que sofria por amor (pobre
Amy, minha cordeirinha!) e afastar a única pessoa que seria
capaz de impressionar Nicholas. Armand Bouchard era
competente, mas Nicholas desconfiava de ‘estrangeiros’.
Nicholas provavelmente acharia que Joseph Barbour era
muito excêntrico e instável. Ele não conseguiria inspirar
respeito a Nicholas. Quanto a Martin Barbour, Raoul e Eugene
Bouchard... Gregory fez uma careta. Mas como eram francos
e incoerentes! O cérebro da companhia estava em Ernest,
Joseph e Armand, mas era Ernest o único que podia obter um
contrato militar. Mas, por causa do estado lamentável de
Amy, a possibilidade do contrato militar poderia ser perdida.
Pensando nisso, Gregory foi ficando cada vez mais irritado,
passando a tratar Amy bruscamente. A expressão tímida e
humilhada da moça aprofundou-se com o acréscimo do
medo. Ela começou a evitar o tio. Gregory praguejava, sentia
que sua irritação assumia um terrível senso de erro, sabia
que estava sendo cruel e irracional com a única pessoa que
amava e que o amava. Odiava a si mesmo por isso e sentia
um renovado ressentimento contra a pobre moça, embora
mesclado de amor. As mulheres, pensou ele, furioso, não
deviam sair de seus aposentos, para não incomodar os
homens. Seria uma tragédia se Amy afastasse Ernest Barbour,
justamente no momento em que Nicholas voltava para casa!

Ele pensou interminavelmente no assunto, mordendo os


lábios. Depois, concebeu um plano astuto, baseado no seu
desejo sincero de aliviar os sofrimentos de Amy e na
vontade de promover um encontro entre Nicholas e Ernest.
Sabia perfeitamente que não podia abordar Ernest, a não ser
de modo frio e formal, enquanto não estivessem
reconciliados. Mas Nicholas tinha uma aversão intensa aos
contatos formais, a não ser quando deliberadamente os
desejava. Mas os problemas das outras pessoas,
especialmente quando colidiam desagradavelmente com os
seus, provocavam-lhe a impaciência e a ira. O problema do
contrato tinha de ser debatido jovialmente, informalmente,
na intimidade de sua casa, para que pudesse haver um
resultado satisfatório.

Assim, numa noite quente de verão, Gregory mandou


chamar a sobrinha. Ela entrou silenciosamente na biblioteca,
muito magra, um pálido fantasma, nas saias imensas, os
anéis dos cabelos caindo infantilmente pelo rosto. Fitou
Gregory com expressão assustada, sentou-se, ficou olhando
para ele em silêncio, esperando.

Gregory começou a andar de um lado para outro da


biblioteca, ao crepúsculo, simulando grande nervosismo e
aflição. Amy observava-o, os olhos a acompanhá-lo por toda
parte, sem dizer coisa alguma. Finalmente, Gregory parou
diante dela, inclinou-se, pôs as mãos nos braços da cadeira,
beijou-a na testa, gentilmente. Amy continuou imóvel por
um momento, depois encostou a cabeça no ombro do tio,
como se estivesse extremamente cansada. Ele empertigou-se,
desviou o rosto.

E começou a falar, hesitante:


— Amy, meu amor, devo lhe confessar uma coisa. E,
depois, vou pedir-lhe perdão. Deveria ter-lhe falado antes,
mas não julguei que fosse importante. Mas conversei hoje
com May e ela foi de opinião que eu deveria contar-lhe, a fim
de que possamos todos nos abster de punir demais um rapaz
cuja única culpa foi a sua presunção, muito natural. Afinal,
disse May, nenhum homem pode entrar em contato com Amy
sem amá-la, E foi realmente um exagero privar esse rapaz em
particular do prazer da companhia dela e da companhia de
seus outros amigos aqui, por causa de algo que estava além
da vontade dele.

Por um momento, uma expressão de espanto total


estampou-se no rosto de Amy. Depois, ela ficou subitamente
vermelha. A boca se entreabriu, quando ela soltou um débil
grito. Soergueu-se na cadeira, mas logo tornou a arriar.
Cruzou as mãos no colo, ficou olhando fixamente para o tio.
Ao deparar-se com aqueles olhos, Gregory experimentou
uma vergonha momentânea.

— Amy, meu amor, na última vez em que Ernest Barbour


esteve aqui, acompanhou-me à biblioteca, como deve estar
lembrada, deixando-a na sala de estar com May. Estávamos
juntos há poucos momentos quando ele, impetuosamente,
pediu-me a sua mão.

Ele parou de falar. Amy levara o lenço aos lábios, num


gesto brusco. Por cima da renda transparente, seus olhos se
alargaram, se aprofundaram, se encheram de lágrimas.

Gregory fingiu rir, meio constrangido.

— Claro que recusei, meu bem. O que mais eu poderia


fazer? Tratava-se de um homem não apenas de origem
humilde, um rústico e arrivista, mas também um patife, um
charlatão da pior espécie. Ele alcançou seu sucesso através
de trapaças, traição, ingratidão e ganância. Achei bastante
fácil silenciá-lo, pois sabia que você não tinha qualquer
consideração por ele, que uma moça de sua educação e
sangue ficaria indignada com a mera sugestão. Meu primeiro
impulso foi expulsá-lo desta casa. Mas, depois, fiquei com
pena dele. Pois era evidente que o rapaz sentia uma afeição
sincera por você.

Ele parou de falar novamente, pois Amy começara a


chorar de repente por trás do lenço, em soluços profundos,
compridos, trêmulos. Os ombros esguios tremiam, os
cabelos caíam pelo rosto. Mas havia alívio no choro, uma
libertação da humilhação intolerável.

A voz de Gregory estava impregnada com um sentimento


genuíno, quando ele continuou:

— Eu sabia que um homem assim nunca a faria feliz, que


destruiria seu coração, lhe traria vergonha, mortificação e
sofrimento. Assim, não apenas recusei, como também o
proibi de falar com você. Sendo vulgar, ele declarou
arrogantemente que falaria com você de qualquer maneira.
Respondi que minha sobrinha, minha respeitosa Amy,
certamente o recusaria, a meu pedido, sabendo que eu
jamais me recuperaria se ela fizesse um mau casamento.
Falei também que você, sabendo que sou um velho e que não
tenho qualquer outra coisa no mundo para amar e para me
amar, nunca me deixaria, enquanto eu não fosse capaz de
renunciar à sua companhia.

Gregory ajoelhou-se ao lado da moça que soluçava,


puxou-lhe a cabeça para o ombro.

— Amy, minha querida, você não deixaria seu velho e


desolado tio até que ele esteja preparado para entregá-la às
mãos de alguém que considere digno de tê-la, não é mesmo?
Sou um velho, Amy, não tenho muito tempo mais para viver.
Se casasse contra os meus desejos, se casasse com alguém
indigno, alguém detestável, eu nunca mais voltaria a ser
feliz. Prometa, meu amor, que só casará quando eu lhe der
meu consentimento.

Amy enlaçou o pescoço do tio e balbuciou:

— Oh, tio, sabe muito bem que eu nunca o deixaria!

Gregory podia sentir o tremor do corpo de Amy. Beijou-a


várias vezes, com uma paixão impregnada de remorso.

— Ah, minha querida, sei que vai me deixar algum dia


com alguém que será digno de você! E ficarei feliz por isso.
De que outra forma poderia me sentir, além de feliz?

Amy sacudiu a cabeça lentamente, com uma expressão


angustiada. Gregory acrescentou:

— É isso mesmo, meu amor.

Ele apertou-a em seus braços e deixou-a chorar,


permitindo assim que se livrasse do veneno da humilhação e
da amargura de seu amor. Pensou no que May realmente
dissera, que apenas a fantasia de Amy fora afetada, não o
seu coração. Por Deus, era o que ele esperava!

Depois de algum tempo, os soluços de Amy foram


diminuindo. Ela enxugou os olhos e fixou-os nos de Gregory,
em toda a sua inocência luminosa e compaixão.

— Tio Gregory, ele... ele não ficou muito magoado? Não


foi... não foi muito áspero? Ele não ficou aflito?

Gregory hesitou. Era o momento crucial. O que deveria


dizer? Se falasse que Ernest ficara totalmente abalado, a
compaixão de Amy poderia desabrochar para um amor
duradouro; se dissesse que Ernest não se importara muito,
ela ficaria desesperada de mortificação. Assim, ele disse,
escolhendo o caminho cuidadosamente, como um homem
que avança entre pedras pontiagudas;

— Não dá para dizer com certeza, mas tenho a impressão


de que ele tinha uma consideração sincera por você. Só que é
muito impaciente e vulgar para insistir numa coisa que sabe
que nunca terá. Apesar de tudo, May acha que estou sendo
rigoroso demais com ele. Contei a ela da admiração dele por
nossa casa e de sua satisfação em vir aqui. May acha que é
uma crueldade privá-lo do único acesso à cultura que, de
certa forma, lhe está aberto. Além disso, na opinião dela, é
muito humilhante para você permitir ao rapaz ficar com a
ideia que o bani permanentemente de nossa casa porque
você carece tanto de sensibilidade e decoro que poderia
desenvolver uma afeição por ele, contra a minha vontade. —
Ele fez uma pausa, antes de arrematar: — May aconselhou-
me a perguntar-lhe o que fazer e respeitar os seus desejos.

Amy tornou a enxugar os olhos, sorriu debilmente e ficou


um pouco ruborizada.

— Acho que tem toda razão, Tio Gregory. E a querida May


também tem. Não devemos ser cruéis. Acho que seria
delicado se o convidássemos para jantar, a fim de conhecer
Tio Nicholas.

— É o que pensa? — indagou Gregory, humildemente,


com um ar de dúvida, embora no íntimo estivesse satisfeito.

Como as mulheres podiam ser facilmente levadas através


da vaidade e do amor! Mais através do amor do que pela
vaidade. Era preciso apenas apelar para suas afeições,
ternura e compaixão, para que se derretessem em lágrimas.
Ah, as tolas e preciosas criaturas!

Ficou finalmente acertado que Gregory escreveria um


bilhete para Ernest, convidando-o a jantar na noite de 21 de
junho, com a presença do Senador Nicholas Sessions. Ao
escrever o bilhete, procurando com que fosse o mais frio e
formal possível, Gregory teve um súbito impulso e sugeriu a
Ernest que trouxesse também o irmão, Martin. Ele calculou
que esse acréscimo tornava o bilhete mais impessoal. Pensou
em Martin Barbour enquanto dobrava o bilhete e tocava para
chamar o mordomo. Encontrara-se com Martin muitas vezes,
conversara com ele brevemente, jovialmente. Podia recordar
a boa aparência extraordinária e quase feminina do rapaz, os
olhos azuis francos e diretos. (Não havia nada de sombrio e
furtivo naqueles olhos!) Os dois irmãos formavam estranha
dupla. Martin intrigava Gregory, que podia discernir nele a
voz, as feições, a dignidade, as atitudes e o comportamento
de um verdadeiro cavalheiro. Falava com orgulho e um toque
de altivez, era sempre cortês, mas sem intimidade. Havia
nele um curioso alheamento, uma qualidade sonhadora,
extremamente irritante, ainda mais para alguém tão exigente
como Ernest, pensou Gregory, divertido. Havia ocasiões em
que se mostrava impassível, com um ar de indiferença total.
Era mesmo um rapaz estranho e irritante. Amigo de um
aleijado. Provavelmente, vivia num mundo de rosas,
encantamento, um mundo impossível, de criaturas
inexistentes. Gregory deu de ombros, lacrou o bilhete.
Apreciava as pessoas estranhas, pois detestava a
humanidade e gostava de rir às suas custas.
CAPÍTULO XXIII
Ao receber o bilhete no escritório, Ernest ficou revirando-
o entre as mãos, distraidamente. Então, o velho decidira-se
por uma trégua, em seu próprio benefício, pensou ele.
Afastou o bilhete para longe, dando de ombros, com desdém.
Sentia-se muito cansado nos últimos dias, dominado por um
torpor em que não havia qualquer emoção. Ficou olhando
por muito tempo para o bilhete, no canto da mesa. Levantou
as mãos lentamente, esfregou o rosto. Lembrou-se de uma
coisa e sorriu, sombrio. Pegou o bilhete, foi até a porta da
pequena sala de Martin e abriu-a. O fim de tarde estava
quente e escuro, com o prenúncio de uma tempestade. Havia
um lampião aceso na mesa pequena em que Martin
trabalhava nos livros. A claridade amarelada derramava-se
sobre sua cabeça inclinada, o rosto grave, a mão movendo-se
rapidamente. Ele levantou a cabeça, ao perceber a presença
do irmão. Ficou esperando, sem dizer nada.

Ernest jogou-lhe o bilhete, tornando a sorrir. Martin olhou


desconfiado para o bilhete, sem pegá-lo, como se pudesse
conter alguma coisa funesta, por ter vindo pela mão do
irmão. Um brilho divertido insinuou-se no rosto impassível
de Ernest. Claro que Martin vai recusar, pensou ele. Mas qual
será a desculpa fantástica que ele vai apresentar?

Martin leu o bilhete com expressão pensativa. Depois,


olhou para Ernest, com excepcional animação estampada nas
feições.

— O Senador Sessions não é um grande abolicionista? Não


foi ele quem fez aquele discurso emocionante no Senado, na
última sessão?

— Creio que sim. — Ernest fitou-o, curioso. — É claro que


o senador não tem escravos.

— Por que tem de ser tão cínico? Por que não pode
acreditar que as pessoas sejam de vez em quando impelidas
por motivos honrados e generosos? Acha mesmo que não
existe o bem no mundo?

A voz de Martin alteou-se estridentemente, aproximando-


se da fronteira da histeria. Ele jogou a pena para longe,
imitando o gesto de Ernest. Levantou-se bruscamente, correu
para a janela, olhou para fora, como se a visão do irmão o
levasse a um frenesi intolerável. Cerrou as mãos nos lados
do corpo e começou a tremer, para espanto de Ernest.

— Você é o maior tolo que conheço — disse Ernest,


calmamente. — Claro que acredito que existem pessoas boas
e desinteressadas no mundo. Como o pai e a mãe, por
exemplo... e você... e imagino que devem existir muitas
outras assim. — Ele fez uma pausa, antes de acrescentar, um
tanto irritado: — Gostaria que você parasse de me encarar
como um vilão. Não o sou. E não tenho a menor ideia de
onde tirou esse conceito. Por Deus, você é um idiota
rematado!

Ernest encaminhou-se para a porta, concluindo:

— Vai querer que eu recuse o convite, não é mesmo?

Martin ficou calado por um momento. Parecia estar se


debatendo com os resquícios de sua histeria anterior. A
irritação de Ernest aumentou furiosamente e ele cerrou o
punho. Mas que idiota era o seu irmão! Cheio de acessos
femininos e uma porção de bobagens. Ninguém podia falar-
lhe sem que se lançasse aos excitamentos mais esquisitos.
Martin fitou-o e falou no momento em que ele já estava
prestes a sair da sala:
— Eu... eu quero ir. Quero conhecer o Senador Sessions.

Martin falou em voz baixa, quase inaudível. Depois de


olhá-lo com alguma surpresa, Ernest saiu da sala, sem fazer
qualquer comentário. Ficou espantado, já em sua própria
sala, ao descobrir-se nauseado. O cansaço dominava-o.
Olhou para sua mesa com súbita aversão e repulsa. Para
onde estava sendo levado por tudo aquilo? Para onde ia?
Havia seu pai, que vigiava cada movimento que fazia com as
suspeitas mais tenebrosas e absurdas. Havia seu irmão, que
vivia num mundo de fantasias e julgava-o algum demônio
papista. Havia o velho Armand, que aceitava e até mesmo
procurava a intimidade, mas não oferecia nenhuma em troca.
Raoul e Eugene... Raoul era um idiota astucioso, sorridente e
indolente, enquanto Eugene era por demais subserviente e
incondicional em sua admiração. Havia outros que conhecia
ligeiramente em Windsor, homens jovens e gananciosos,
como ele próprio, nos quais não podia confiar, jovens
galantes que perseguiam as mulheres e outros prazeres
tolos, imbecis insípidos e arrogantes, que o desdenhavam.
Não havia absolutamente mais ninguém. Com exceção de
Amy.

A sensação de náusea aumentou. Era como se a sua


vontade, que expulsara Amy de sua vida para sempre, fosse
um muro de pedra contra o qual batia com a cabeça,
impotente. A vontade parecia além de seu controle, algo que
não podia dominar. Podia vê-la em sua imaginação,
impenetrável e invencível. Alguém entrou na sala. Era
Eugene, trazendo uma pistola.

— Dê só uma olhada nisto, Ernest! Este pequeno gatilho...


esta trava! A pistola está carregada, mas basta puxar esta
trava... Experimente! Não vai disparar! E é muito simples,
diferente da trava de segurança do Colt e de todas as outras
que estão sendo fabricadas. Pode observar que está tão perto
do gatilho que pode ser acionada com um único movimento.

Os dois discutiram ansiosamente aquela última invenção


de Eugene. Claro que era um pouco frágil, disse Ernest, podia
facilmente quebrar. Era preciso trabalhar mais um pouco
para que a trava fosse firme e resistente, ao mesmo tempo
leve, de fácil manipulação. Tem razão, concordou Eugene, o
pai dele dissera a mesma coisa. Seria preciso estudar o
problema mais um pouco. Mas poderia ser feito assim... Ele
continuou a falar, enlevado, o dedo comprido e forte
apontando e demonstrando. Ernest descobriu-se observando-
o quase tristemente. Eugene ainda não interpretara a sua
invenção em termos de dinheiro. Sua avareza inata e
frugalidade cautelosa ainda não haviam se manifestado. Era
um cientista num laboratório. Um neófito num mosteiro. Um
dos... como fora mesmo que Martin dissera?... ah, sim um
dos Parceiros da Morte. Mas um jovem parceiro, dedicado,
sério, curiosamente inocente. Produzia invenções como
abelhas produzem mel... impessoalmente, incessantemente.
Era vigoroso, um tanto corpulento, até que bonito, talvez
muito sério e solene, mas viril. E provavelmente virgem
também, pensou Ernest. Havia alguma coisa de casto nele,
apesar de sua força e de seu comportamento ocasionalmente
agressivo com os outros. Havia também nele a simplicidade
e determinação do camponês.

— Devemos receber notícias de Raoul em breve —


comentou Ernest, quando Eugene parou de falar. — Ele vai
nos trazer 300 homens desta vez, Eugene! Temos que
acelerar o funcionamento da Kinsolving. Afinal, não
podemos esquecer aquelas promissórias que vão vencer em
prazos inevitáveis.

— Meu pai disse que esperava não termos mordido um


pedaço maior do que podemos mastigar — comentou
Eugene.
Mas sua voz não era apreensiva. Era como um menino
quando falava de tais assuntos.

— Mas não me preocupo com isso. Sei que você não pode
fracassar em nada, meu caro Ernest.

— Por que diz isso? — indagou Ernest, vagamente


contrariado. — Afinal, sou apenas humano. Por que não
deveria fracassar, da mesma forma que homens melhores
fracassam?

Eugene sorriu, com uma astúcia afetuosa. Bateu no braço


de Ernest com um dedo.

— Sabe o que há em você, meu caro Ernest? Destino. Em


você e talvez uns poucos outros, neste grande país. Isso
mesmo, você é um predestinado. Este é um país para
predestinados, como você. É por isso que não pode
fracassar.

— Ah, os franceses — resmungou Ernest, enquanto


seguiam juntos para a fábrica. — Constituem a raça mais
fantasiosa do mundo. Por isso é que puderam aturar
Napoleão por tanto tempo. Ele apelou para o ator que existe
em todos vocês. E por falar em fantasias, isso me lembra de
uma coisa: que diabo seu irmão Jacques fez com meu irmão
Martin? Ele sempre foi meio maricas, mas agora está
inteiramente doido. Jacques, por acaso, andou lhe contando
histórias de fadas papistas?

A expressão afável de Eugene desapareceu. Ele olhou para


Ernest com uma frieza furtiva.

— É claro que você, sendo um inglês, não pode


compreender Jacques. Ele é um santo. E é muito bom que seu
irmão conheça Jacques. Se há alguém que tenha em si a
influência do céu, esse alguém é Jacques. Nunca o ouvi
pronunciar uma palavra mais dura ou dizer alguma coisa
cruel. Conhecê-lo é conhecer um dos próprios anjos de Deus.
Se o espirito de Martin foi impressionado por Jacques, então
é porque Deus abençoou-o.

“Há alguma coisa neste caso que não consigo entender


muito bem", pensou Ernest. “Eles encaram com leviandade as
coisas mais sagradas e ficam solenes com coisas que não
têm a menor importância.”

Joseph, supervisionando irritado o trabalho indolente dos


operários magiares na sala de pólvora, olhou com alguma
contrariedade para o filho.

— Não consigo suportar esses homens. Eles me deixam


com a maior raiva. São estúpidos e preguiçosos. Mas a culpa
não é deles e sim nossa. Ou melhor, sua. Por trazê-los para
cá.

— Qual é o problema agora? — perguntou Ernest,


jovialmente, virando-se com a cara amarrada e um gesto
brusco para os operários, que subitamente adquiriram
velocidade. — Não é rigoroso com eles, pai. Esses homens
não compreendem a bondade. Afinal, passaram a vida inteira
apanhando. Ei, você aí, o grandalhão de cabelos vermelhos!
Vamos logo com isso! Não temos o dia inteiro!

A voz estalava como um chicote e os operários passaram


a empurrar barris ativamente, a enchê-los com a pólvora
cinzenta com o maior empenho.

— Aí está, pai. É assim que se faz.

— Eu não sou um... um Simon Legree — resmungou


Joseph.
Ernest riu.

— Quer dizer que andou lendo aquele livro de Martin,


hem? Aquilo não passa de uma maldita porcaria. Foi escrito
por uma velha tola e sentimental que provavelmente nunca
viu um negro em toda a sua vida.

— Você é um demônio implacável — disse Joseph,


lançando um olhar estranho ao filho.

Ernest seguiu em frente, à procura de Armand. O francês


parecia um pouco sombrio. Encheu o cachimbo, enquanto
Ernest discorria sobre alguns problemas. E depois disse,
olhando atentamente para Ernest:

— A menos que você obtenha aqueles contratos militares


de que falou, meu caro Ernest, estaremos inteiramente
arruinados. Não tenho mais certeza se foi uma atitude
sensata a de concordar com o seu desejo de comprar as
instalações da Kinsolving. Do jeito que a situação está agora,
é... é um elefante branco em nossas mãos. Nada está sendo
produzido ali, pois você se recusa a contratar trabalhadores
americanos. E aqueles quatro capatazes que contratou estão
na ociosidade, esperando por suprimentos e homens.

— Teremos 300 homens dentro de um mês, Armand.


Homem vigorosos e resistentes. Os capatazes podem
compreender os trabalhadores estrangeiros. Os suprimentos
já foram encomendados. Enquanto isso, a fábrica está sendo
aprontada, as máquinas reparadas. Dentro de dois meses,
estará funcionando dia e noite. Não tenho a menor dúvida
em relação a isso. E quanto aos contratos militares, posso lhe
assegurar que os teremos antes do verão terminar. Amanhã,
domingo, vou jantar com o Senador Sessions.

— Só espero que todas as suas esperanças sejam


justificadas — comentou Armand, dando de ombros. —
Apoiei-o em todas as ocasiões, meu jovem amigo, mesmo
quando meu melhor julgamento era contrário. Devo admitir
que você sempre esteve certo. Mas não pode ser
invariavelmente certo. Tudo o que tenho está aqui. Não
tenho qualquer dinheiro por fora. Se afundarmos, formos à
bancarrota, serei um homem arruinado.

— Não vamos perder — garantiu Ernest. — Ele afastou-se,


acrescentando para si mesmo: — Não perderei.

Mas não havia qualquer tranquilidade em seus


pensamentos. O pai estava obviamente doente. Um estado
febril o consumia, iluminando-lhe os olhos, fazendo os ossos
ressaltarem visivelmente sob a pele. Apesar disso, ele se
recusava a descansar. Ernest, sabendo das suspeitas do pai,
não se atrevia a sugerir que ele descansasse. E os contratos
militares... precisava obtê-los de qualquer maneira. Sem
esses contratos, sabia muito bem que, como Armand dissera,
estariam ‘inteiramente arruinados’.

Todos dependiam dele. E já estava começando a ficar


cansado disso.

Mas, no dia seguinte, iria se encontrar finalmente com o


Senador Sessions. Tinha de obter um contrato militar. Não
podia haver ‘ses’ ou ‘quandos’ a respeito: tinha de conseguir
o contrato. Não se permitiria pensar em qualquer alternativa.
Era a vitória ou a ruína.

Era característico de Ernest que, concentrando-se na


missão que teria no dia seguinte, esquecesse totalmente de
Amy e da angústia que lhe causaria vê-la novamente. Na
verdade, esqueceu Amy. Mas não esqueceu o que devia
fazer. E não esqueceu May Sessions.
CAPÍTULO XXIV
Quando Ernest e Martin chegaram à casa dos Sessions, no
dia seguinte, encontraram os jardins povoados por grupos
de estranhos, falando e sorrindo sem parar.

Fazia muito calor ultimamente, mas aquele dia fora


fragrante e ameno. O ar parecia possuir uma qualidade
material como seda, a brisa parecia atravessá-lo
visivelmente. As árvores grandes e frondosas espalhavam
gigantescas fontes verdes contra o céu intensamente azul do
fim de tarde. Sombras de nuvens deslizavam pelos gramados
amplos e ligeiramente inclinados. A brisa sacudia as flores
nos canteiros, agitava as saias coloridas das mulheres,
fazendo com que parecessem imensas piorras, inclinava os
chapéus de palha de abas largas e mostrava dezenas de
rostos bonitos. A casa de pedras cinzentas alternadamente
faiscava ao sol ou se refrescava à sombra. A relva ficava
prateada quando a brisa a dobrava, voltava a adquirir um
verde intenso quando se levantava. Tudo brilhava, dançava,
se agitava, faiscava, vibrava de cores, ria, naquele dia
aprazível, radiante.

Os dois collies aproximaram-se latindo para recebê-los.


Ernest conseguira conquistar-lhes a tolerância, de tal forma
que o recebiam pelo menos com uma reserva jovial. Virando-
se para Martin, no entanto, os cachorros pularam em cima
dele, abanando os rabos, lambendo-lhe as mãos, na maior
alegria. Ele era meio desajeitado com a maioria dos animais e
por isso falou-lhes com uma cortesia divertida, que os
cachorros adoraram. O entusiasmo dos animais deixou-o
constrangido. Martin nada sabia a respeito de cachorros.
Mas, evidentemente, os cachorros podiam reconhecê-lo
como a um amigo. Adotaram-no, disputaram sua atenção
afetuosamente, encenaram falsas batalhas para fazê-lo rir,
enquanto seguiam à sua frente pelo caminho largo.

— Os cachorros parecem gostar de você, Martin —


comentou Ernest, ironicamente,

Martin, que detestava e temia os estranhos, estava


dominado pelo terror. Marchava com os olhos fixados à
frente, sem olhar para os grupos risonhos à sombra das
árvores. Mas observava-os furtivamente, pelo canto dos
olhos. Seu rosto pálido estava corado e mantinha a cabeça
abaixada. Aquela incursão social deixava-o apavorado. Em
toda a cidade, conhecia bem apenas a família Bouchard. Em
relação aos outros, exibia uma reserva impassível e um medo
desconfiado, que lhes provocava o antagonismo.

A ilusão que tinha em relação ao irmão levou-o a ficar


espantado quando algumas pessoas cumprimentaram Ernest
com evidente prazer, gritando-lhe comentários risonhos e
prometendo lhe falar mais tarde. Ele seguia apressadamente
um pouco à frente de Ernest, com receio de que o irmão
pudesse parar, quando se seguiriam então as inevitáveis
apresentações. Era algo que só poderia suportar com
profunda agonia interior. De vez em quando, Martin virava a
cabeça para trás e olhava para Ernest, com uma expressão de
incredulidade. Imaginara mais ou menos vagamente que o
irmão era sempre sombrio, que os outros sempre o
encaravam como ele próprio o fazia. O fato de que algumas
mulheres lhe exibiam um sorriso convidativo, que um
homem acenasse com a mão e outro gritasse um
cumprimento para Ernest, parecia-lhe impossível de
compreender.

Quando eram pequenos, suas emoções em relação a


Ernest eram uma mistura de desconfiança, espanto, respeito,
temor e ligeira afeição. Sempre evitara atritos, sentindo-se ao
mesmo tempo o mais fraco e também o que estava certo.
Ernest impunha-se violentamente a ele por sua simples
presença, injuriando a sensibilidade tímida de sua
personalidade. Em anos posteriores, no entanto, sua atitude
tivera ligeira mudança. A desconfiança se aprofundara, o
espanto fora substituído por amarga expectativa do pior, o
respeito desaparecera, o temor aumentara, a afeição
morrera. Desenvolvera também uma intolerância histérica
em relação a Ernest. Tinha acessos de raiva pela menor
divergência ou atrito com Ernest. Havia ocasiões em que a
histeria e a raiva tornavam-se agressivas. Quando isso
acontecia, Ernest se calava, até mesmo batia em retirada.
Martin, o gentil e afável, era quem mais se espantava e
lamentava essas manifestações incontroláveis de seu ódio
inconsciente. O que não impedia que acontecessem.

Martin sentia-se secretamente envergonhado do medo


que experimentava ao encaminhar-se para a casa em que
nunca entrara antes. Estava tenso, desgraciosamente
empertigado, de tal forma que algumas mulheres foram
atraídas pelo vislumbre daquele rapaz extraordinariamente
bonito, comentando que era ‘um jovem incrivelmente altivo’.

Havia mesas arrumadas num pequeno e aprazível


arvoredo, à esquerda da casa. As mesas estavam cobertas
por toalhas de linho reluzentes, com vasos de flores no
centro e prataria reluzente. Criados movimentavam-se sem
cessar entre a casa e as mesas, carregando travessas
cobertas de prata, terrinas, pratos e copos. Ao lado de cada
mesa, havia armações sobre a relva, onde ficavam os baldes
com vinho. As sombras das árvores dançavam sobre as
toalhas, faziam a prataria faiscar. Risos ressoavam pelo
gramado. Moças em imensos vestidos enfunados corriam
entre as árvores, perseguidas por seus namorados. À sombra
de imenso carvalho, as matronas em vestidos de seda,
pretos, malvas e violetas, abanavam-se sem parar, sorrindo
indulgentemente da juventude e alegria em torno delas,
fazendo comentários maliciosos por trás dos leques de
renda preta. Da casa, através das portas de vidro e janelas
abertas, vinha o som de um piano e as vozes de um homem e
uma mulher, num dueto sentimental.

— Não acha que é uma casa maravilhosa? — indagou


Ernest, enquanto Martin hesitava diante dos degraus de
pedra.

Ao ouvir a pergunta, Martin levantou a cabeça


abruptamente e olhou ao redor. Seu sorriso era nervoso e
artificial.

— É, sim. Quando será que poderei ser apresentado ao


Senador Sessions?

— O Senador Sessions? Por que diabo está querendo ser-


lhe apresentado?

Ernest tocou a sineta. O som desapareceu pela porta


aberta do vestíbulo vasto e fresco. Martin não respondeu. O
mordomo adiantou-se, cumprimentou-os cerimoniosamente,
conduziu-os à segunda sala de estar. O coração de Martin
batia dolorosamente. Através da arcada da sala, divisou o
que julgou ser uma multidão de estranhos críticos, todos
aguardando com sorrisos secretos para se divertirem às suas
custas. Havia, na verdade, apenas uma dúzia de pessoas
jovens na sala, além de Gregory Sessions e do senador. Uma
jovem estava tocando piano. Era Amy. O sol que entrava
pelas janelas incidia sobre os seus cabelos castanhos; A
moça que cantava era May Sessions, num vestido verde
listrado de seda, uma coroa de flores nos cabelos
avermelhados. Ao seu lado, cantava a jovem tenor, muito
elegante e sentimental. Os outros jovens estavam sentados
em cadeiras douradas, flertando, os olhos brilhando,
abanando os leques, sussurrando bobagens extravagantes
uns para os outros, enquanto prosseguia o dueto canoro.
Sussurrando juntos, num canto discreto, estavam Gregory e
Nicholas Sessions. Percebendo os recém-chegados, Gregory
sussurrou apressadamente para o irmão. Os dois
prontamente se adiantaram, sorrindo cordialmente.

— Ora, mas eis que vocês finalmente chegaram! —


exclamou Gregory, efusivamente, como se tivessem se
separado no dia anterior como os melhores amigos. -
Nicholas, este é o Sr. Ernest Barbour. E este é o Sr. Martin
Barbour. Cavalheiros, este é o meu irmão, o Senador!

“Cada desejo do meu coração


Há de durar para sempre...”

O canto continuava. Houve palmas entusiasmadas, o


chocalhar de leques. Um burburinho de vozes. Perto da
porta, Ernest solenemente apertava as mãos do anfitrião e do
senador. Martin, vermelho de nervosismo, também lhes
apertou as mãos, murmurando algumas palavras
ininteligíveis, para depois se calar, angustiado.

Então esse, pensou Ernest, alheio naquele momento à


moça sentada ao piano, é o Senador Sessions! Esse homem
alto e corado, com as pernas compridas e finas de Gregory,
com a mesma cabeleira abundante! Mas a semelhança não
continuava pelo torso, que era um pouco mais intumescido,
sob o colete de cetim. A postura, atitude, voz e palavras de
Nicholas eram elegantes. Mas em comparação com a
elegância de Gregory, pareciam vulgares e afetadas, como se
Nicholas estivesse meramente copiando o irmão. Em
Nicholas, a cordialidade e cortesia de Gregory
transformavam-se em rudeza, uma camaradagem franca
demais, uma expansividade e condescendência
democráticas, que eram por si mesmas a própria essência da
vulgaridade. A voz ressoava de satisfação e cortesia, o
aperto de mão era firme, efusivo e afetuoso, a atitude de
franca jovialidade. Todas essas coisas enganavam a maioria
das pessoas, subjugava, encantava e fascinava, fazendo com
que todos se tornassem seus escravos dóceis e adoradores.
Mas Ernest penetrou além de tudo isso implacavelmente.
Penetrou além da pele vermelha, do sorriso radiante e das
feições bonitas. Percebeu que os olhos pequenos e azuis
podiam brilhar jovialmente, mas possuíam uma certa frieza
e extrema cautela. Estavam afundados sob as pálpebras
caídas de um homem brutal e desconfiado. Embora Nicholas
fosse evidentemente um homem que amava a vida opulenta
e luxuosa, sendo talvez o melhor dos companheiros à mesa,
não havia nele qualquer amizade autêntica ou bondade.
Havia avareza por trás do sorriso, voracidade nas dobras da
boca, egoísmo transparecendo na sua atitude. Gregory
Sessions reconhecia a própria patifaria, porque era um
homem inteligente. O irmão, sendo menos inteligente,
carecia dessa percepção de si mesmo. Havia ocasiões em que
ele até acreditava que falava a sério quando enunciava os
seus sentimentalismos exuberantes. Era o político perfeito.

— Já ouvi falar muito a seu respeito, Sr. Barbour! —


exclamou o senador. (Ele parecia falar exclusivamente com
pontos de exclamação) — Francamente, um dos motivos que
me trouxeram a Windsor foi o desejo de conhecê-lo! Ouvi
realmente falar muito a seu respeito!

Conhecendo o valor de um olhar franco e direto, ele


fitava os jovens com evidente prazer. Já não tinha mais
qualquer dúvida sobre a posição relativa de Ernest e Martin.
Depois de um rápido olhar para Martin, ele decidiu
concentrar-se em Ernest.

— É muito gentil, senador — disse Ernest, com um ar de


satisfação.
— Disponho de tão pouco tempo! Mas já ouvi falar muito
de seu... seu gênio, sua argúcia, seus... ideais! Tenho certeza
de que vamos nos dar muito bem! E poderemos ter uma
conversinha a sós, hein?

— Nada poderia me dar mais prazer — disse Ernest,


cerimoniosamente, com uma mesura rígida.

O Senador Sessions ficou sorridente, radiante. Ele pôs a


mão com a maior familiaridade no ombro de Martin. Gregory
observava, sorrindo ligeiramente. Martin, como sempre,
tentava sumir, encostando-se na parede.

— Tenho de ir a Filadélfia amanhã! — continuou o


senador. — Política, meu caro Sr. Barbour, política! Teremos
eleições neste outono! Um dos defeitos da democracia é o de
que até mesmo um político com muitos anos de serviços
fiéis precisa convencer os eleitores de seu valor! As
memórias são muito curtas, não é mesmo?

— Ou talvez sejam muito compridas — interveio Gregory,


com um irônico altear de sobrancelhas.

O senador desatou a rir sonoramente com essa tirada.


Mas interrompeu a risada abruptamente, quando Amy e May
se aproximaram.

— Ah, minhas queridas, que música maravilhosa vocês


nos proporcionaram! — exclamou Nicholas. — May, meu
amor, nunca a ouvi cantar melhor!

— É muita gentileza sua, Nicholas — disse May,


zombeteiramente, com uma elaborada mesura.

As covinhas surgiram nas faces coradas, os olhos


falsearam de vitalidade. Ela bateu no braço de Ernest com o
leque, brejeira.

— Sr. Barbour! Será possível que tenha me esquecido? Se


tal aconteceu, é o primeiro homem que consegue isso!

Ernest, surpreso e corando, descobriu-se rindo,


involuntariamente. Ninguém podia deixar de rir quando May
assim o desejava, tamanho era o seu ar de alegria e malícia.
Ernest sentiu-se grato por essa capacidade da moça naquele
momento, pois fez com que o constrangimento do
reencontro com Amy se desvanecesse numa onda de riso.
Pôde até virar-se para ela, sorrindo, pegar-lhe a mão. É
verdade que o sorriso tornou-se um pouco tenso, uma
angústia contraiu-lhe a garganta. Mas sua expressão
permaneceu jovial, um tanto automaticamente.

— É um prazer tomar a vê-lo, Sr. Barbour — murmurou


Amy.

O rosto meigo da jovem estava tranquilo. Os olhos que se


fixaram nos de Ernest estavam desconcertantemente
impregnados de compaixão, mas o olhar era direto e gentil.
Sua mão estava fria e tremendo ligeiramente. Ernest
contemplou-a por um instante e percebeu que as veias
azuladas no pulso estavam saltadas. O vestido amarelo de
musselina provocava reflexos dourados nos olhos castanhos
firmes e nos cabelos castanhos lustrosos.

Ernest murmurou-lhe alguma coisa, nunca soube


exatamente o quê. Sentiu apenas, com terror, uma crescente
vertigem e fraqueza. Não conseguia largar-lhe a mão;
segurava-a, apertava-a, sentindo uma pressão por trás dos
olhos. Aquele momento era mais terrível do que imaginara.
Ernest estava assustado com a força implacável de suas
emoções. Não pudera imaginar que amasse tanto aquela
moça. Contemplou-lhe os lábios rosados, dominado por um
desejo intenso de beijá-los. O desejo comunicou-se a Amy,
que no mesmo instante recuou, retirando a mão gentilmente.
Pequenos vergões vermelhos surgiram na alvura de sua mão,
da pressão dos dedos de Ernest. Mas ela continuou a fitá-lo
com ternura e uma dignidade compadecida.

“Devo ajudá-lo a me esquecer”, pensou ela. Havia uma


certa integridade e rigidez em sua natureza que lhe permitia
eliminar emoções que não desejava. Agora, sentia apenas
compaixão e bondade pelo infeliz jovem. Ela disse:

— Estávamos esperando que não tivesse ficado doente,


Sr. Barbour.

Por um momento, Ernest não pôde responder.


Empalidecera, as veias estavam saltadas no pescoço e na
testa. Ficou perfeitamente imóvel, enquanto a mais
encarniçada batalha de sua vida se travava por suas defesas
secretas; se pudesse ter falado, se Amy não tivesse se virado
um pouco naquele exato momento, ele poderia ter esquecido
tudo o mais e arrebatado o que queria desesperadamente.
Mas não pôde falar, pois Amy logo se afastara. Ernest
levantou os olhos para deparar com May Sessions fitando-o,
com uma estranha mistura de ironia e compaixão.

Gregory, recordando vagamente que Martin estava


presente, procurou por ele. O rapaz comprimira-se contra a
parede de tal forma que estava mais de um metro afastado
dos outros. Sua aflição era tão evidente que Gregory sentiu
vontade de desatar a rir. Já que May era a pessoa mais
próxima, Gregory disse:

— May, meu amor, esse é o Sr. Martin Barbour, o irmão do


Sr. Ernest. Sr. Barbour, essa é minha prima, Srta. May
Sessions.
May fez uma mesura ligeiramente maliciosa e
cerimoniosa, balançando-se como um boneco de mola.
Contemplou Martin brejeiramente e exclamou, ignorando
completamente o decoro:

— Santo Deus! Mas que lindos cavalheiros Windsor vêm


produzindo ultimamente!

Martin recompensou-a com o rubor mais intenso que ela


já vira, fazendo uma mesura rígida sobre sua mão; depois
olhou por cima de sua cabeça, visivelmente dominado pelo
pânico. A expressão dele era a de um animal acuado que
procurava um meio de escapar. E seus olhos, um tanto
desvairados, fixaram-se em Amy, que o contemplava com
sua meiguice e compreensão habituais.

E foi nesse exato momento que a coisa que Jacques


Bouchard tanto temera, a coisa por que ele rezara
desesperadamente para que nunca ocorresse, subitamente
aconteceu. Martin apaixonou-se por Amy Drumhill. Seu
pânico desapareceu, o rubor desvaneceu-se, o coração
surpreendentemente firmou-se, como se o tivesse segurado
com a mão. Ele largou os dedos de May e virou-se para Amy.
Gregory apresentou-o. Martin pegou a mão de Amy, apertou-
a com firmeza, como se a conhecesse muito bem. Os dois
reconheceram um no outro a sua própria gentileza e timidez,
a simplicidade da mente, os pensamentos íntegros. Tinham
apenas confiança, honestidade e fé. O pensamento de Amy
foi o de que, ao afastar-se de Ernest, deixara para trás a
violência, obscuridade e egoísmo acirrado, encontrando a
gentileza, a luz e a verdade. Era como se Martin fosse um
espelho em que todos os atributos vagamente suspeitos do
irmão aparecessem brutalmente. Uma sensação de
tranquilidade e paz envolveu Amy. Para seu espanto,
descobriu-se andando com Martin pela sala, atravessando o
corredor, saindo pela porta dos fundos, avançando pelo
jardim. Enquanto isso, Ernest e May, Gregory e Nicholas,
estavam engolfados num mar espumante de saias coloridas,
cachos e leques, presos por um círculo de casacos beges e
gravatas requintadas. Somente Ernest e May perceberam a
fuga de Martin e Amy. Fora muito fácil e natural, depois de
um murmúrio incoerente, que ninguém notou em particular.
Mas Ernest, rindo para May, estava se debatendo com uma
raiva profunda, uma terrível confusão.

Os jardins estavam sossegados, pois a maioria dos


convidados já se reunia em torno das mesas, por terem
soado as primeiras sinetas de chamada. Os jardins eram
dispostos de maneira rústica e encantadora, com caminhos
de pedra irregulares, árvores frondosas pelo auge do verão,
peônias em canteiros rosados, rosas espalhando-se pelas
treliças brancas, uma profusão de cravos, amores-perfeitos,
centáureas, dálias, floxes, tudo se misturando numa alegria
tumultuada, ignorando as formalidades dos jardins bem-
comportados. Amy ria com uma despreocupação feliz,
contemplava Martin com gentil cortesia, quando ele fez
alguns comentários. A relva era interminável, a brisa
inclinava as flores na mesma direção, fazendo com que
parecesse um exército colorido de joelhos. A brisa agitava os
cabelos de Amy e lhe enfunava as anáguas, fazia as árvores
farfalharem. A sombra e o sol se alternavam, correndo pelo
gramado. Assim, a cor dominava os olhos num momento
com um brilho insuportável, para no instante seguinte
ficarem esmaecidos. Pombos brancos flutuavam contra o
vento, enchiam o ar com seus arrulhos. Os dois collies
contornaram a casa e pularam em cima de Amy e Martin com
afeição e estardalhaço. Amy, rindo muito, defendia-se
atarantada contra as investidas da brisa e dos cachorros.
Suplicou por ajuda a Martin, virando para ele o rosto corado
e os olhos castanhos brilhantes e joviais, enquanto afastava
os cabelos das faces.
Martin, debatendo-se com os collies, incontrolavelmente
deliciados, pensou que jamais vira qualquer coisa tão
adorável e meiga quanto aquela moça. Não estava confuso
nem atordoado pelos sentimentos que acalentava por Amy.
Ao contrário, pareciam fortalecê-lo, tomando-o seguro e
forte, descontraído e sereno. Havia muita simplicidade e
franqueza em Amy, uma completa ausência de afetação. E
enquanto continuavam a passear, uma débil angústia em
Amy subitamente desapareceu. Quando ela levantou a
cabeça e olhou para Martin, deparando com o brilho firme
dos olhos azuis quase lindos de Martin, sentiu-se totalmente
em paz, estranhamente confortada. Havia uma confiança
infantil na maneira inconsciente com que ela pôs a mão no
braço de Martin. A voz dele parecia-lhe infinitamente
tranquilizante e familiar. Ao voltarem para a casa, Amy não
estava apaixonada por Martin, mas o amava, embora ainda
não soubesse disso. Apaixonara-se por Ernest e isso lhe
acarretara incerteza e angústia, excitamento e confusão, uma
alegria extrema e um anseio amargurado. Jamais
experimentaria tais coisas com Martin, mas tinha algo
infinitamente melhor e certamente mais tranquilo.

Quando voltaram à sala de estar que se esvaziava, Amy


ouviu Ernest rindo efusivamente, com a maior alegria. Ela
pensou, contente: “Nunca fui capaz de fazê-lo rir dessa
maneira, como ele ri com May.”

Amy era a primeira moça com quem Martin conversava


com familiaridade e prazer. Até então, ele sempre fugira das
mulheres, desconcertado e apavorado, embora um instinto
forte, mas irreconhecível, o compelisse a voltar. Tinha
pensamentos curiosos e, para ele, vergonhosos a respeito
das mulheres. Tentara deificá-las em sua mente,
identificando-as com as santas pálidas e assexuadas da
religião que adotara. Apesar disso, havia ocasiões em que um
intenso anseio e apetite o invadia, um desejo que tornava a
sua carne fraca. O sangue de inglês vigoroso não podia ser
reprimido; apesar de sua revolta secreta e desdenhosa, o
sangue fervilhava incontrolavelmente. Ele podia afastar os
pensamentos famintos do que considerava vergonhoso, mas
sempre acabavam voltando, como cachorros atraídos por
uma cadela no cio. Em outras ocasiões, ele olhava para as
mulheres com aversão, odiando-as pela loucura que
provocava em seu corpo. Assim, evitava as mulheres,
estimulando o terror delas. O triste e impotente Jacques
instigava-o nisso, com argumentos ansiosos e veementes.

Mas agora que conhecera Amy, Martin descobria-se cheio


de contentamento e alegria. Disse a si mesmo: “Eu a amo.'*
Ficou espantado que isso não provocasse qualquer
sentimento de vergonha ou degradação. Parecia suspenso
num encantamento maravilhoso, em que tudo era certo,
simples e bonito. Não se lembrou por um instante sequer de
Jacques Bouchard, esqueceu inteiramente o fato de que
planejava ingressar num mosteiro.

Quando se juntou aos outros, em companhia de Amy,


Martin não mais sentia medo deles. Parecia vitorioso e
confiante, a tal ponto que Ernest não pôde deixar de fitá-lo
com espanto.

Saíram para o gramado, encontraram sua mesa, que era


grande e redonda, com rosas folhagens verdes no centro.
Num caramanchão ao lado da casa diversos músicos
tocavam, uma música suave, sentimental. A brisa farfalhava
entre as árvores. Um burburinho de vozes e risos, de gritos,
fazia uma alegre confusão.

Amy observou, afetuosamente, que May estava em sua


melhor forma. Era como se ela tivesse extraído de algum
lugar toda a sua reserva de humor e graça, alegria e
impudência. Atraía a atenção de todos que a cercavam,
arrancando-lhes a admiração total. Se parecia por demais
pródiga, se se exibia com muita ansiedade, era porque
compreendia que dispunha de pouco tempo, que qualquer
pausa, alguma queda no interesse, poderia fazer com que um
olho entediado voltasse a se concentrar em Amy. May era
como uma artista de circo, que precisava prender a atenção
da plateia, mantê-la constantemente extasiada, absorvida,
encantada, fascinada, evitando assim que desviasse sua
atenção para outra pessoa. Uma pessoa observadora teria
percebido um ligeiro desespero no desempenho de May. Ela
parecia dançar freneticamente diante de Ernest, tentando
esconder a visão de Amy com o movimento das saias
enfunadas. E conseguiu tão bem que o manteve rindo, a tal
ponto que Ernest pouco pôde comer. O riso era algo novo e
estranho para Ernest, que ficou surpreso ao descobrir que
estava gostando enormemente. Ele voltava a se concentrar
constantemente em May Sessions, como um homem sedento
sempre volta à fonte. Seu rosto pálido estava animado por
uma cor inesperada e ele descobriu-se dizendo coisas
espirituosas, nas quais não havia qualquer ironia. A
espirituosidade de May aguçava a de todos os que estavam
ao seu redor. Quando todos riam de seus comentários, uma
expressão em que se misturavam cansaço e satisfação se
insinuava nos olhos e na boca sorridente de May.

Até mesmo Martin estava rindo. Mas a sua natureza era a


reservada e desconfiada do recluso, a natureza que despreza
o riso fácil e suspeita que uma alegria excessiva só pode ser
‘leviana’. Ele ria de May Sessions, mas secretamente
desprezava-a, experimentava uma sensação de superioridade
das mais agradáveis. Os outros riam com ela e fitavam-na
com uma gratidão satisfeita. Assim, o círculo se tornava mais
estreito e ansioso em torno de Amy, a distribuir alegria. Mas
Martin se retraiu, ainda sorrindo serenamente, mas
afastando-se. Ele virou-se para Amy. Ela estava sorrindo da
alegria de May. Mas quando Martin lhe falou, Amy corou um
pouco e fitou-o com uma atenção gentil. Ficaram
conversando em voz baixa. Nenhum dos dois era muito
loquaz e o que diziam era inconsequente, entremeado de
silêncios compridos e compreensivos. Martin perdeu por
algum tempo a sua intensa preocupação consigo mesmo, a
consciência angustiante de seu próprio corpo, rosto e mãos.
Quando falava, era com ansiedade, como se quisesse
tranquilizar a si mesmo de que Amy era tudo o que pensava,
que gostava dele e podia compreender o que tentava lhe
dizer. Achava tudo delicioso: o ar, o vento, o brilho da
prataria ao sol, as cores alegres das mulheres, o riso, a
comida saborosa, o olhar de olhos amistosos. Tudo o
inebriava e ele olhava ao redor, pensando: sou feliz. E sorria
como uma criança espantada.

Gregory, olhando por acaso para Martin e Amy, pensou,


atônito: Como os dois são parecidos! A mesma inocência da
expressão, a mesma gentileza, timidez e simplicidade! E
ambos impressionam aos outros como sendo fracos de
caráter e destituídos de vontade. O que provavelmente é
verdade. Mas podem ser fortes, resolutos e inabaláveis, se
estiverem fazendo o que julgam ‘certo’. Neste caso, nada
poderia demovê-los. Nem mesmo Deus e todos os seus
anjos, nem mesmo todos os demônios do inferno. Quanta
inconveniência eles podem causar aos outros! Não tenho
certeza se gosto dessas pessoas de caráter brando, que pode
de repente se tomar tão duro quanto a rocha.

Outro pensamento ocorreu a Gregory e ele fitou Amy e


Martin através da mesa, com a maior curiosidade. Percebeu o
contentamento e serenidade dos dois, os sorrisos
compreensivos que trocavam, o ar de que estavam
inteiramente a sós ali e sentiam-se satisfeitos por isso. E se...
Por Deus, Amy parecia novamente feliz, como se tivesse
chegado em casa, encontrado seu porto seguro! E o rapaz
parecia estar vivo e animado pela primeira vez em sua vida!
E se... Mas Amy não tinha dinheiro. E se as coisas não
mudassem, Martin também não teria muito dinheiro. Ernest
cuidaria disso. E foi nesse momento que um novo
pensamento ocorreu a Gregory Sessions. Foi um pensamento
tão estupendo, tão delicioso, tão repleto de ódio, prazer,
malícia e alegria, que ele desatou a rir incontrolavelmente,
jogando-se para trás na cadeira. Mas que piada seria! Os
outros fitaram-no aturdidos. A conversa tornara-se séria por
um momento e ninguém podia compreender o riso.
Percebendo as expressões espantadas, Gregory parou de rir
abruptamente e pediu desculpas, explicando:

— Foi apenas uma coisa que pensei...

Ernest voltou ao que estava dizendo e Gregory escutou


com cortesia. Mas o riso deliciado ainda estava visível em
seus olhos.

Com o café e os drinques finais, todos relaxaram. Havia


movimentação constante entre as mesas. As sombras se
alongavam pela relva. O vento amainara um pouco e somente
as copas das árvores farfalhavam, à luz dourada. As janelas
de oeste da casa já estavam avermelhadas, as paredes
cinzentas encharcadas de claridade. Alguns dos convidados
começaram a partir, indo à mesa dos anfitriões para se
despedirem, jovialmente. Carruagens apareciam no caminho,
as rodas falseando ao pôr do sol, os cavalos lustrosos, em
seus arreios polidos. Da cidade, vinha o repicar dos sinos da
Igreja da Primeira Reforma, chamando os pecadores ao culto,
em tom estridente e exigente. Depois, soaram os sinos
musicais, mais baixos, quase tímidos, da Igreja da
Anunciação. A jovem cidade espreguiçava-se, bocejava,
suspirava satisfeita, ao último calor do dia maravilhoso.

Gregory, Nicholas e Ernest estavam conversando, com


uma seriedade cada vez maior, os cotovelos sobre a mesa,
sentados de lado, a fim de se fitarem. May também escutava,
os olhos faiscantes e inteligentes deslocando-se de um para
outro. Ela não estava falando agora, apenas escutando,
compreendendo tudo. O leque mexia-se ligeira, mas
incessantemente, lançando reflexos em seu rosto bonito.
Ernest estava lutando mentalmente para conquistar uma
posição. Sabia que sua franqueza e objetividade naturais
seriam ofensivas a Nicholas. Podia comportar-se assim com
Gregory, ser abertamente implacável, pois Gregory não era
um hipócrita, embora fosse ocasionalmente um patife
sorridente. Gregory se divertia, ficava quase deliciado,
quando era astutamente surpreendido em suas manobras,
apreciava as pessoas que não podiam ser enganadas. Mas
Nicholas, embora fosse também um patife, detestava a
brutalidade que não se disfarçava com uma hipocrisia
graciosa, ficava horrorizado quando alguém tratava do
problema inevitável de maneira objetiva. Preferia os rodeios,
os olhares disfarçados para o céu, as insinuações, a
protelação em assumir uma posição, que se recusava a
admitir até que lá chegasse. Possuía a deferência e o respeito
necessário do político pela opinião pública; sabia que o
sucesso de um político não estava no apoio honesto e
inteligente de uma minoria competente, mas sim no apoio do
homem médio, com todas as suas hipocrisias, timidez, ódio
por questões definidas, amor pelas generalidades agradáveis
e chavões batidos. Assim, nas suas tentativas vitoriosas de
conquistar essa maioria, acabara absorvendo as
características dela em sua personalidade, passando a ter
aversão a decisões rápidas, conversa objetiva e realidade
implacável. Certa ocasião, Gregory dissera ao irmão que a
tragédia de ser um político era o fato de se perder a alma e
adquirir-se em seu lugar um amontoado de arremedos. Um
político tinha de ser todas as coisas para todos os homens; e
como a maioria dos homens era simiesca, um político
também acabava se tornando simiesco.
Enquanto Ernest empenhava-se em fixar uma posição,
Nicholas gravemente fingiu não estar percebendo. Gregory
observava, deliciado. May escutava, às vezes sorrindo
debilmente. Amy e Martin haviam afastado suas cadeiras da
mesa e estavam novamente absorvidos um no outro,
totalmente alheios a qualquer outra coisa ou pessoa. E
Nicholas esperava, com um ar de inocência grave.

Ernest resolveu avançar com cautela. Sabia que uma


palavra precipitada poderia fazer com que a moral tímida e
tenra do senador recuasse apressadamente. Sabia que
Nicholas esperava pelo tratamento apropriado e discreto do
assunto que o levara a voltar a Windsor. Assim, Ernest
começou por elogiar o crescimento e a intensa vitalidade da
cidade. Mais algumas indústrias, expansão, novas
construções... e a população mais do que triplicaria em dez
anos. Ele imprimiu à voz entusiasmo e ansiedade, um
patriotismo provinciano.

Nicholas suspirou gentilmente, olhou ao redor com a


atitude satisfeita de um patriarca, o proprietário de terras
que primava pela simplicidade. Sacudiu a cabeça
ligeiramente.

— Teremos então uma verdadeira metrópole, com todo o


seu turbilhão — disse ele, em tom de melancolia.

— Mas também grande prosperidade e riqueza — sugeriu


Ernest, sorrindo.

— Mas meu caro jovem — disse o senador, com uma


expressão aflita, mas suave, com um olhar para os outros,
que se mantinham em silêncio, em busca de aprovação —
estaremos então destruindo o que constitui o maior charme
desta cidadezinha; sua fé simples, inocência, o modo de
viver modesto, a nobreza extremada, a força. Ah, as coisas
simples, a vida simples! É realmente deslumbrante... o
próprio espírito de uma nação jovem e devotada!

Esse homem é de fato um patife dos mais perigosos,


pensou Ernest, com uma contração irônica dos lábios. Devo
ser cuidadoso. Ele estudou o senador cuidadosamente e
desprezou-o. O charlatão pensa mesmo que acredita nisso!,
concluiu Ernest. Será que ele ficaria desapontado se eu
fingisse aceitar a insinuação e não dissesse mais nada? Ele
olhou para Gregory, que o fitava com as sobrancelhas
alteadas, a boca contraída numa risada silenciosa e deliciada.
Havia alguma coisa de sátiro nos ângulos de seu rosto, algo
de implacável e irônico.

— Mas o espírito deste país é o desenvolvimento — disse


Ernest, respeitosamente. — Não podemos deixar de crescer.
Se tentarmos protelar o desenvolvimento, por amor ao velho
estado de coisas, estaremos sendo realmente antipatriotas.
Não pensa assim? Não podemos deixar de crescer. Temos de
ajudar a América a crescer.

— Isso também é verdade — concordou o senador, com


os gestos graciosos e benevolentes de um homem que não
tem medo de admitir que alguém apresentou um argumento
melhor.

— Assim, estamos todos dando a nossa contribuição. Eu


me orgulho de estar fazendo minha parte. É bem pouco, para
um país que nos deu refúgio, hospitalidade e bondade.

Ernest, resolutamente, manteve os olhos afastados de


Gregory. Mas sabia, mesmo sem ver, que o sorriso extasiado
de Gregory se aprofundava.

— Fala muito nobremente, meu rapaz — disse o senador,


voltando a falar com o seu jeito efusivo habitual. — Espero
que seja também circunspecto em política.

— Não sou um whig — respondeu Ernest, sorrindo.

— Mas também não é um tory não é mesmo? — O senador


sacudiu a cabeça, satisfeito. — Nem whig nem tory, apenas
americano. Um simples americano. Mas não é um inglês?

— Sou, sim. Mas somos cidadãos. Cidadãos americanos.


Já o somos há cerca de três anos. E posso lhe assegurar que
isso nos dá muito orgulho. — Ernest fez uma pausa, antes de
acrescentar: — Minha visão da América, senador, não é
provinciana. Gostaria de ver a América expandir-se, tornar-se
a maior das nações. E como isso pode acontecer? Pela
conquista? Esperamos que não, pois é um caminho
desonroso. Por seu trabalho? Isso mesmo! A conquista
pacífica dos mercados do mundo, E todos nós devemos
contribuir para que isso se tome realidade. E creio que tenho
ajudado, na medida do possível. Tenho certeza de que está a
par das minhas... de nossas atividades.

— Estou lembrado que Gregory falou-me alguma coisa —


disse o senador, com um sorriso vago e benevolente,

Ernest mal conseguiu evitar uma carranca. Fez uma


pausa. Deveria mencionar o fato de que a Sessions Steel
Company possuía 33,3 por cento das ações da Barbour &
Bouchard? Não, não diretamente. Isso ofenderia o senador.
Assim, ele falou:

— O que pude fazer até agora só se tornou possível


graças a muita ajuda. Como deve saber, senador, o Sr.
Gregory ajudou-me consideravelmente, primeiro com
dinheiro e depois com a aprovação de minhas promissórias
para a aquisição das instalações da Kinsolving.
— Você comprou a Kinsolving? Mas que precipitação, meu
rapaz! Não acha que é grande demais para você?

O senador simulava preocupação e surpresa.

— Não, senhor. Creio no futuro da América. Creio no


futuro de Windsor. Nada é grande demais para um país como
este e uma cidade como a nossa. Talvez eu esteja sendo
exageradamente esperançoso, mas não penso assim. Afinal,
o que fabricamos é o melhor do país, possivelmente o
melhor do mundo. A América tem direito a isso. A América
tem o direito de adquirir nossas armas e munições para o
exército.

Ernest fitou os olhos estreitados do senador e acenou


com a cabeça num simulado mistério. Houve um silêncio
prolongado, rompido finalmente pelo senador, com a maior
ingenuidade:

— O que está querendo dizer com isso? Não pode estar se


referindo a contratos militares!

— É exatamente a isso que estou me referindo — declarou


Ernest solenemente, batendo com o punho na mesa. —
Contratos militares!

— Mas isso é impossível, um verdadeiro absurdo, meu


jovem! Não pode estar a par da situação. A National Powder
Company vem obtendo todos os contratos militares nos
últimos 12 anos e conta com a plena confiança do
Departamento de Guerra, não apenas por sua capacidade de
produzir grandes quantidades de bons materiais, mas
também provando que é absolutamente segura, ao guardar
valiosas patentes secretas do governo. O Departamento de
Guerra certamente se oporia a trabalhar com qualquer outra
companhia. A National Powder emprega diversos ex-
militares, cuja lealdade jamais foi questionada. A sua firma é
bastante nova e quase desconhecida, embora eu deva admitir
que já ouvi mais de um comentário a respeito da
superioridade de suas armas e pólvora. Seja como for, os
dirigentes e proprietários da National Powder são homens de
grande tradição e fidelidade. Contam com o respeito e a
confiança das autoridades.

Ernest escutava com uma atenção intensa. Durante todo o


tempo em que o senador falava, ele observava-lhe o rosto,
com uma expressão de franqueza, uma aparência de
sinceridade e seriedade. Por mais que quisesse, Ernest não
podia perceber coisa alguma além dessa fachada. Seus
próprios lábios se contraíram sombriamente.

— Já me decidi a obter contratos militares — disse ele,


calmamente. — Será o fim de um sonho se não conseguir. Os
homens podem servir a seu país de muitas maneiras, na
política ou nos campos de batalha, mas também fornecendo
os suprimentos necessários, tão honestamente quanto
possível. Posso fornecer ao governo as melhores armas e a
melhor pólvora. Temos patentes que considero bem
superiores às patentes do governo. Já nos ofereceram
milhares e milhares de dólares por essas patentes. A
National Powder praticamente suplicou que lhes
vendêssemos a nossa patente da pólvora sem fumaça.

Nicholas escutava com um ar de seriedade e afeição


paternal. Depois, pareceu mergulhar em seus pensamentos.
Ficou brincando com a haste do copo. Franziu o rosto,
contraiu os lábios, suspirou. Ernest, impaciente e um pouco
assustado, olhou para Gregory. O rosto de Gregory estava
inescrutável. Ainda parecia estar se divertindo com uma
comédia da vida real.

Nicholas finalmente se mexeu e disse, bem devagar, como


se pensasse cuidadosamente cada palavra, antes de
pronunciá-la:

— E possível, embora eu não diga que é provável, que por


ocasião da próxima proposta da National Powder para os
contratos anuais, em setembro, que uma palavra no lugar
certo faça com que uma companhia nova, mas sólida,
possuindo diversas patentes valiosas e capaz de fabricar e
entregar quaisquer quantidades de armas de melhor
qualidade tenha condições de apresentar uma proposta
superior. Isso pode ter efeitos dos mais interessantes. O
rumor dessa ameaça certamente chegaria à National Powder,
que, sem dúvida, está a par de sua existência e sabe que
pode tornar-se seu concorrente mais forte. Eles mandarão
emissários procurá-lo. Depois de muitas conversas, vão
apresentar-lhe uma proposta. Não tenho a menor ideia do
que pode ser essa proposta. O que vai conseguir, meu rapaz,
dependerá de sua argúcia e julgamento. E, pelo que ouvi
dizer, são prodigiosos.

Ernest sustentou o olhar dele, com firmeza.

— A National Powder não é uma grande empresa. Possui


equipamentos antigos. Uma companhia melhor deve ser
capaz de apresentar uma proposta superior ao governo. Ou
chegar a um acordo com a National Powder para partilhar os
contratos militares. É isso o que está querendo dizer?

— Exatamente.

Nicholas sorriu, jovial.

— E esse rumor, a palavra no lugar certo que pode


provocar tudo isso?

Nicholas acenou com a mão altivamente, uma expressão


afável estampada no rosto.

— Ora, qualquer homem de posição em Washington pode


dizer essa palavra certa no lugar apropriado. Afinal, sempre
devemos procurar defender os interesses do governo.

Houve uma pausa prolongada. Martin começara a prestar


atenção à conversa, a testa larga enrugada, numa mistura de
perplexidade e desconfiança, enquanto olhava de Nicholas
para Ernest. Mas Ernest virou-se para Gregory, que acenou
com a cabeça ligeiramente e sorriu. Ernest deixou escapar
um suspiro profundo e satisfeito, recostou-se na cadeira.
Deslocou a cabeça na direção de May, que também assentiu,
as covinhas surgindo em suas faces. Para surpresa de Ernest,
ela parecia genuína e generosamente exultante com o
sucesso dele. Ela inclinou-se para ele e sussurrou alguma
coisa. Ernest foi obrigado a inclinar a cabeça para ouvi-la,
depois de um rápido olhar para Gregory e Nicholas, que
haviam começado a discutir os méritos dos respectivos
charutos. Ernest pensou, enquanto escutava May: Venci!

May sussurrou;

— Meu aniversário é na quinta-feira. Estou oferecendo


uma pequena festa, para uns poucos amigos. Posso contar
com a sua presença?

Ernest fitou-a nos olhos, gravemente.

— Claro.

Ele falou como se ela tivesse proposto algo de tremenda


importância com o qual concordava.

Martin estava dizendo a Nicholas, ansiosamente, à sua


maneira ofegante e apressada habitual, quando falava com
estranhos:

— Tenho uma cópia, senhor, do seu discurso no inverno


passado, a favor da abolição da escravidão. Gostaria de lhe
dizer, Senador Sessions, que foi o discurso mais nobre e
compreensivo que já ouvi!

Ele parou de falar abruptamente, com o rosto vermelho,


inteiramente confuso.

Nenhuma lisonja é humilde demais para um político e


Nicholas ficou bastante comovido com aquele tributo a sua
eloquência.

— Está interessado no problema da escravidão, meu caro?


Também estou. É uma coisa nefanda, meu rapaz, uma coisa
nefanda! É uma situação muito grave, que pode se deteriorar
a um ponto tal que talvez se acabe pegando em armas, numa
causa justa, contra os estados sulistas. Espero que isso não
chegue a acontecer, com toda sinceridade. Mas a menos que
os estados sulistas compreendam que a escravidão é
anticristã e uma crueldade desumana, podemos ser
obrigados a impor-lhes tal conclusão a ferro e fogo.

— Nosso bisavô Prentice era um traficante de escravos —


comentou Gregory, ironicamente.

O senador ficou vermelho e declarou, solene:

— A posteridade não é responsável pelos crimes de


gerações passadas, meu caro Gregory.

Todos, até mesmo Amy, riram um pouco. Somente Martin


não percebeu o humor. Ainda olhava fixamente para
Nicholas, o rosto dominado por uma ansiedade inocente.
— Espero que não haja guerra, senhor — disse ele. —
Seria uma coisa terrível. Quase pior do que a escravidão. Não
creio que seja aconselhável ou certo que homens matem
seus semelhantes, mesmo para salvar outros homens.

Nicholas deliciava-se com seres humanos como Martin.


Podiam ser facilmente levados por argumentos hábeis, já que
não eram capazes de perceber a falácia, a hipocrisia; se
alguém lhes fala em voz alta e vigorosa, incisivamente,
apelando para sua integridade e emoções simples, podem
acreditar em qualquer coisa. Nicholas jamais deixava de ficar
surpreso ao constatar que, por mais charlatão que um
político fosse, sempre podia convencer facilmente os puros
de coração, os que tinham almas imaculadas. As crianças,
pensava ele, são facilmente levadas a acreditar em qualquer
coisa dita pelos patifes que não têm quaisquer escrúpulos e
por isso podem falar com autoridade.

— Meu caro Sr. Barbour — disse ele, solenemente — já


esqueceu que Deus permitiu que Cristo fosse morto a fim de
salvar outros homens? Já esqueceu que a liberdade foi
conquistada com o sangue dos fiéis, que as democracias são
construídas sobre as sepulturas dos bravos? Se tivéssemos
uma guerra... e rezo para que isso não aconteça... tenho
certeza de que os jovens do norte vão compreender que se
trata de uma guerra santa, uma guerra justa, uma guerra
abençoada por Deus.

— Talvez tenha razão — disse Martin, em voz baixa,


terrivelmente angustiada.

Ernest estava contrariado. O velho patife não tinha o


direito de meter aquelas ideias na cabeça de Martin; ele era
capaz de acreditar em qualquer perversidade ou estupidez,
se lhe fosse sugerida em palavras incisivas e nobres. Ernest
falou num impulso súbito, abruptamente:
— Não existem guerras justas, senhor. Devo discordar de
sua opinião nesse caso. Talvez haja ocasiões em que as
guerras sejam necessárias para evitar invasões ou para
reprimir os inimigos internos que querem destruir uma
nação. Mas a não ser por essas situações, as guerras são
brutais e estúpidas.

No mesmo instante, ele teve vontade de morder a língua.


Passara horas apaziguando e embalando aquele velho abutre,
para estragar tudo por causa de um impulso súbito e tolo.
Gregory fitava-o com uma surpresa deliciada, os olhos de
May estavam arregalados. Amy olhava com ternura.
Enquanto isso, o rosto de Nicholas parecia ter-se
intumescido e estar a pique de estourar. Mas Martin disse,
virando-se para o irmão, com uma expressão amarga:

— Se acredita nisso, então por que fabrica os


instrumentos com que os homens vão se matar?

A pergunta pareceu tão infantil a Ernest que ele ficou


vermelho de constrangimento, sem saber para onde olhar.
Percebeu então que todos os outros, com exceção de Amy,
estavam esperando por sua resposta, maliciosamente. Assim,
ele virou as costas ao irmão e disse a Nicholas, com um
sorriso desagradável:

— Meu irmão parece pensar que fabricamos armamentos


por puro ódio contra a humanidade e depravação da alma.

May pensou: Mas que falta de gosto! E fitou Ernest com


uma admiração ainda maior. Martin ficara vermelho, Amy
olhava para Ernest com uma expressão de censura, Nicholas
continuava furioso e Gregory parecia mais deliciado do que
nunca. Ele acenou com a cabeça, quase imperceptivelmente,
para May e Amy. As moças se levantando, os homens foram
obrigados a levantar também. O crepúsculo estendia-se pela
casa e jardins, azul-escuro, aprazível. Quase todos os
convidados já haviam se retirado e o horizonte a oeste era
um tumulto de cores, ao pôr do sol. O vento cessara e as
árvores estavam quietas, a não ser por um débil e
melancólico farfalhar. O canto noturno de um papo-roxo,
uma verdadeira cascata de notas tristes, ressoou pelo
crepúsculo, como gotas de prata. Alguém começou a acender
velas e lampiões na casa, uma janela depois da outra foi se
iluminando.

— Foi um dia maravilhoso — disse Amy suavemente,


olhando para os seus parentes e convidados.— Não poderia
ter sido mais perfeito.

Todos concordaram. Ernest e o irmão foram convidados a


ficar para uma ceia mais tarde, mas recusaram. Nicholas
ainda parecia estar magoado e exibia uma expressão
contrariada e ofendida. Ernest decidiu deixá-lo aos cuidados
hábeis do irmão. Despediu-se, formalmente. Ao crepúsculo,
o rosto de Amy era como uma pérola, os olhos de May
irradiavam um calor intenso. Os vestidos delas haviam
perdido a cor e pareciam nuvens em torno de seus corpos.

Ernest e Martin desceram juntos pelo caminho, sem se


falarem. Ao final do caminho, alguma coisa irresistível
obrigou Ernest a olhar para trás.

Amy estava parada sozinha no alto da elevação,


observando-os. Era apenas uma sombra pálida, quieta e
solitária. Contemplando-a, Ernest sentiu que a angústia
antiga voltava a dominá-lo. Ele estacou abruptamente. Martin
andou mais alguns passos, depois virou-se e ficou
esperando, curioso.

Por um momento que parecia interminável, Ernest ficou


imóvel, olhando Amy, que também o contemplava. As
árvores e a relva haviam se desvanecido numa obscuridade
quase total. Amy era como um fantasma na escuridão que se
adensava. Por trás dela, no entanto, a casa adquirira vida, as
janelas brilhando, as paredes começando a tremeluzir, à lua
que subia pelo céu. E o vulto de Amy desvaneceu-se no
escuro.

Por um tremendo esforço de vontade, Ernest desviou os


olhos da sombra silenciosa sob as árvores, fixando-os na
casa. E enquanto se obrigava a contemplar a casa, a angústia
deixou-o. E sentiu-se não como um exilado, partindo para
nunca mais voltar, mas como alguém que espera retornar em
triunfo, muito em breve.
CAPÍTULO XXV
Em setembro, Ernest Barbour casou com May Sessions. Foi
um casamento extremamente ‘elegante’, por insistência de
May. Os amigos dela de Nova York e Filadélfia foram para
Windsor como um bando de pássaros ruidosos e pitorescos,
fazendo com que os habitantes mais sérios e conservadores
de Oldtown parecessem insípidos e tristes, em contraste.
Tudo foi pródigo e alegre, suntuoso e dispendioso. O mês
ainda estava quente, dourado ao início do outono, a ocasião
apropriada para festas e bailes ao ar livre, lanternas e mesas
compridas, repletas de acepipes. May, num vestido de noiva
de cetim, na cor marfim, com incontáveis metros de tecido,
estava deslumbrante, na opinião de todos. O véu, de renda
francesa feita a mão, era como imensa nuvem a envolvê-la. O
rosto redondo e jovial brilhava através do céu como uma lua
cheia. Ela usava um presente do primo, um incomparável
colar de pérolas, além de um presente do noivo, uma
pulseira que parecia um fogo gelado de diamantes. Todos
comentaram sua animação e alegria, o prazer incansável por
tudo, a felicidade e exuberância. May parecia estar
borbulhando, esfuziante, correndo e rindo constantemente.
Não podia haver qualquer dúvida sobre a sua felicidade e
alegria, até mesmo sobre o seu amor intenso pelo marido.
Quanto a Ernest, parecia ter degelado e relaxado, deixando
de ser aquela máquina sombria e formidável, para se
transformar num jovem que ria quase com descontração,
pilheriava com estranhos, exibia-se como um noivo jovial.
Contemplava May com sorrisos afetuosos e indulgentes,
parecia grato pela capacidade da moça em fazê-lo rir,
demonstrava-lhe toda consideração e gentileza. Apesar de si
mesmo, Ernest estava absorvido pela alegria da ocasião.
Além disso, tendo obtido nova vitória, exibia um ar de
conquistador. Pois não apenas casara com a herdeira dos
Sessions, mas também obtivera um importante contrato
militar do Departamento de Guerra. Somente Gregory
Sessions sabia de tudo o que Ernest fizera, de sua
determinação e empenho, ameaças e insinuações, pressões e
tenacidade, para convencer a National Powder Company,
dirigida por homens simples e honrados, já idosos, que não
tinham como se defender das armas implacáveis usadas pelo
homem mais moço. E somente Gregory sabia de toda a
participação de Nicholas Sessions nessa vitória.

Depois de cinco semanas angustiantes, fora finalmente


assinado um acordo entre a National Powder Company e a
Barbour & Bouchard, no valor de 100 mil dólares. A National
Powder Company comprometia-se a não solicitar todos os
contratos militares, enquanto a Barbour & Bouchard lhes
daria uma participação, possivelmente de 20 por cento, de
todos os contratos militares que conseguisse. Mas até
mesmo os inocentes dirigentes da National Powder sabiam
que era apenas uma questão de tempo até que a Barbour &
Bouchard os absorvesse completamente.

Amy Drumhill, num vestido turquesa de seda e renda cor


de marfim, foi a única dama de honra da prima. Gregory
notou que alguma coisa vital e ansiosa desaparecera para
sempre do rosto meigo de Amy. Mas isso fora substituído
por uma certa serenidade e perplexidade que o aturdiam. De
qualquer forma, a cor voltara ao rosto de Amy e ela até
parecia estar gostando do casamento e das festas. Martin,
depois que os pais submeteram-no a uma pressão vigorosa,
acabara concordando em ser o padrinho do irmão.

Hilda estava impressionada e oprimida por aquele


casamento espetacular. Contudo, a noiva, apesar de toda a
afeição e gentileza, não conseguiu conquistar a sua
confiança de camponesa. Ernest comprara-lhe metros
intermináveis de seda malva em Filadélfia, de uma qualidade
tão excepcional que Hilda jamais pensara que pudesse
existir. Ela mandara fazer um vestido por uma costureira
local. O resultado, embora impressivo, já estava superado
em termos de moda pelo menos em cinco anos. O corpo
robusto e de meia-idade de Hilda parecia ‘estofado’, pensou
Ernest, irritado, A cor da pele de Hilda era vermelha demais
para a cor delicada do tecido. Pela primeira vez em sua vida,
Ernest sentiu-se envergonhado da mãe, que continuava a ser
o que sempre fora, sem qualquer afetação, no meio de todas
aquelas outras mulheres elegantes, uma criatura efusiva,
mas indecisa e humilde, aterrorizada diante de outras
pessoas que lhe pareciam superiores.

Joseph, sempre febril e dominado por um orgulho


soturno, era obviamente um homem doente, quase
macilento, os olhos fundos e ardendo com alguma doença
obscura. Mas o corpo esguio e empertigado era elegante,
num traje preto, os cabelos abundantes ainda e quase que
totalmente brancos. Ele dizia com irritação que não tinha
medo daqueles ‘malditos esnobes’, mas sentia-se
profundamente apreensivo. Apesar do afastamento entre os
dois, Ernest sentia orgulho do pai e daria tudo para que
fizessem as pazes. Mas não havia como abordar Joseph.
Havia ocasiões em que ele fitava o filho mais velho com algo
que se assemelhava horrivelmente ao ódio.

A linda Dorcas, espantosamente parecida com o irmão


Martin, foi a demoiselle de May. Todos comentaram sua
beleza, as moças afetuosamente, os rapazes gracejando. Os
cabelos compridos e dourados de Dorcas caiam em ondas
sobre o vestido branco de musselina, descendo quase até aos
joelhos. A moça tinha o rosto delicado, mas um tanto
compenetrado de uma boneca de cera, com algo de
sonhador, que era infinitamente comovente. Suportou os
elogios e afagos profusos que recebeu numa agonia de
timidez, agarrando-se a Martin sempre que podia. Quando
ele não estava por perto, virava-se para Eugene Bouchard,
cuja simplicidade e gentileza, profundas e meio
desajeitadas, haviam-lhe conquistado a confiança. Ele jamais
falava com Dorcas numa voz ríspida, usando apenas a sua
voz mais suave. Raoul, elegante e feliz, inteiramente à
vontade, com a graça de um cortesão francês, encantava
todas as mulheres, que juravam que ele lhes cativava os
corações. Raoul flertava, bebia, mostrava-se indolente e
delicadamente impertinente, escoltava Florabelle Barbour
por toda parte. Havia diversos pontos de semelhança entre a
jovem empertigada, vaidosa e bonita e o noivo irônico,
egocêntrico e fascinante.

Ernest, profundamente absorvido nas complexidades de


seus novos empreendimentos, pôde dispensar apenas duas
semanas para uma lua-de-mel. Foram para Nova York. Ao
voltarem, ocuparam aposentos grandes e reformados na casa
dos Sessions. O quarto de May, com um formato quase
octogonal, com muitas janelas, tinha as paredes pintadas de
cinza, cortinas de seda numa tonalidade rosada, um tapete
também rosa. Espelhos de molduras douradas e castiçais de
ouro acrescentavam um brilho intenso ao quarto. May
providenciara um sofá de cetim cinza e diversas cadeiras
douradas, estofadas em cetim amarelo, rosa e prata. A
imensa cama tinha um dossel de renda. O quarto de Ernest
era todo em mogno escuro, vermelho e azul, as janelas em
cortinas opacas. A sala de estar comum tinha muito veludo,
poltronas grandes, os braços curvos, as pernas da frente
pintadas de preto, sobre rosetas de bronze ou ouropel. A
lareira grande, de mármore de veios pretos, coberta por
veludo vermelho. May contratou uma nova criada pessoal e
insistiu para que Ernest arrumasse um valete.

Ernest estava extremamente satisfeito com sua mulher.


May o divertia, fazia-o sentir-se indulgente e constantemente
à beira do riso. Quando ele voltava para casa, à noite, a
alegria de May, seus afagos, lisonjas, solicitudes ternas,
atenções dedicadas, sempre conseguiam diverti-lo e acalmá-
lo. May nunca era a mesma, invariavelmente. Mesmo quando
estava rabugenta e mal-humorada, como acontecia com
frequência, jamais se lamuriava ou reclamava. E podia
sempre mudar de ânimo subitamente, voltando ao riso e
ironia. Ernest descobrira que, apesar de sua inteligência e
sofisticação, May era curiosamente inocente. Gostava de
provocá-la. Ele só esperara que, ao casar com a herdeira dos
Sessions, ela não fosse entediá-lo. O fato de May diverti-lo,
fazê-lo gostar dela, era mais do que imaginara. E ele
realmente gostava dela. Gostava até de suas implicâncias
tipicamente femininas. Ernest estava preparado para sentir-
se feliz, pois não apenas o seu casamento era bem-sucedido,
mas também os negócios progrediam satisfatoriamente.

Ao chegar em casa tarde da noite, em parte


deliberadamente, a fim de evitar o constrangimento inicial
de viver na mesma casa que Gregory e Amy, Ernest sempre
jantava em sua sala de estar particular, em companhia de
May. As noites estavam se tornando cada vez mais frias e
Ernest adorava sentar-se a uma mesa elegante, com linho
branco e prataria, diante de um fogo grande, tomando vinho
e café, depois de uma refeição saborosa. May, sentada diante
dele, num penhoar rosa de veludo e renda, os olhos pretos
faiscando, os cabelos avermelhados caindo sobre as faces
rosadas, nunca lhe parecera tão convidativa, tão adorável.
Ela o divertia com histórias engraçadas, servia-o como a mãe
faz com o filho. Quando ela o fitava, seus olhos eram firmes
e radiantes. Às vezes, o amor de May o constrangia, fazia
com que se sentisse apreensivo.

Uma vez por semana, Ernest jantava com os pais, em


Newtown. Em contraste com o luxo e fausto de sua nova
casa, a antiga parecia-lhe horrenda, totalmente destituída de
bom gosto e dignidade. Ele pressionava Hilda
constantemente por causa dos móveis horríveis, o atrito de
cores, a sala atravancada, o papel de parede de mau gosto,
os tapetes de cores agressivas, as bugigangas que davam
uma impressão de desordem a todos os cantos. Mesmo
depois que Joseph, que a princípio escutara as exortações
com um sorriso hostil, teve um acesso de fúria uma noite,
Ernest não desistiu. Quanto a Hilda, alternadamente
protestava, zombava, mostrava-se sarcástica e chorava.

Ernest estava começando a levar sua família muito a


sério, pois sentia-se envergonhado da casa em que seus pais
viviam, da simplicidade de sua vida cotidiana, de sua
indiferença às amenidades elegantes, de sua falta de
afetação de classe média inferior. Dorcas, no entanto, era
uma fonte de crescente prazer para ele. Preferia Florabelle,
mais esfuziante e ativa, que gostava dele imensamente. Mas
a beleza de Dorcas afetava-o ao extremo da ternura.
Preocupava-se com a educação dela, escolhendo
pessoalmente sua governanta. Trazia-lhe metros e mais
metros de requintados veludos, rendas e sedas de Nova
York. No Natal, deu-lhe de presente uma capa de arminho,
com capuz.

— Com todos os diabos, ele se comporta como se fosse o


chefe desta família! — resmungou Joseph para a mulher,
numa noite em que não conseguiu mais se controlar.

Mas Hilda estava satisfeita e comovida com os esforços


de Ernest em moldar e orientar sua família, por mais que ele
a irritasse. Ela usava xales elegantes que Ernest escolhia,
sentia-se orgulhosa do colar de granadas que ele lhe
comprara, passava cera virgem perfumada nas mãos porque
o filho se queixara que eram muito vermelhas e ásperas,
tentava imprimir um pouco de refinamento à sua maneira
franca de falar. Mas Hilda recusava-se a mudar qualquer
coisa na casa, não renunciava à cozinha, onde
supervisionava e censurava a cozinheira com algo do seu
antigo vigor. Um dia, ela disse ao filho mais velho:

— Escute aqui, rapaz, não pode se fazer uma bolsa de


seda com um pano velho. Portanto, trate de me deixar em
paz.

Uma fonte de secreta satisfação para Ernest era a


mudança em Martin. Hilda informava que Martin já não
frequentava tanto a casa dos Bouchards; e quando o fazia,
voltava cedo, parecendo sempre nervoso e vagamente aflito.
Martin começou a interessar-se por roupas, admirava os
novos trajes de Ernest, parecia quase ansioso em agradar ao
irmão, discutia gravatas com ele muito a sério, até mesmo
acompanhou-o um dia a Filadélfia, comprando um casaco,
algumas camisas, dois ou três chapéus. Quando Ernest
comentava as últimas modas, Martin demonstrava um
interesse intenso, quase divertido. Vestindo-se melhor, ele se
tornava teatralmente bonito. A postura melhorou, a
graciosidade dos movimentos aumentou. Falava mais
cordialmente, parecia menos temeroso de tudo, até mesmo
aceitava convites para festas nas casas dos ‘esnobes’ de
Oldtown. Ernest, surpreso e satisfeito, tratava de controlar a
língua, mostrava-se tão cordial quanto possível, dizia a si
mesmo que ainda faria com que Martin fosse alguém na vida.
Ficou lisonjeado e comovido quando Martin demonstrou
prazer ao ser convidado para jantar na casa dos Sessions.
Ficou ainda mais satisfeito quando Martin adquiriu o hábito
de aparecer inesperadamente, juntando-se a Ernest, May,
Gregory e Amy na sala de estar da família.

— Ele é quase humano — comentou Ernest para May, uma


noite.

May admirava a boa aparência de Martin, não hesitava em


flertar com ele, de uma maneira fraternal e afetuosa. E
também não hesitava em caçoar dele, gentilmente. Somente
ela e Gregory desconfiavam do motivo da mudança de
Martin. E May tinha razões para não esclarecer o marido,
pelo menos por enquanto. Cultivava delicadamente o
cunhado, deixava-o à vontade, pressionava-o até que risse,
mesmo contra a vontade, tentava mostrar-lhe, sutilmente,
que a vida podia ser muito agradável. O clímax ocorreu
quando Hilda comunicou que Martin exigira móveis
confortáveis e um tapete para o seu quarto.

Ernest ficaria muito satisfeito se Gregory arrumasse outra


casa para ele e Amy, deixando-o a sós com May. Mas mesmo
ele tinha de admitir que isso seria injusto. Afinal, era ele o
estranho; contudo, dizia a si mesmo que a casa pertenceria a
May, no futuro. Seu desprezo e aversão a Gregory
aumentavam cada vez mais. Descobria que agora era
somente com um violento esforço da vontade que conseguia
controlar-se diante do riso silencioso e sardônico de
Gregory, as sobrancelhas alteadas, os sorrisos irônicos, os
olhares astutos. Ernest era sóbrio e objetivo, pouco propenso
ao humor. A sátira de Gregory, os comentários espirituosos e
maliciosos, as zombarias impiedosas, embora elegantes,
tudo lhe despertava um profundo antagonismo. Sempre
sentia-se em desvantagem diante daquele espírito fino e
implacável, as pequenas vergastadas ardentes em sua
vaidade. Ainda por cima, desconfiava que Gregory o
detestava tanto quanto ele detestava o outro. Esse
conhecimento mútuo não contribuía para a descontração da
refeição dominical, quando a família se reunia, contando
agora com Martin como presença frequente. Gregory, no
entanto, estava satisfeito com a situação e não admitia que
fosse diferente. Graças àqueles encontros, podia manter-se
informado dos últimos desenvolvimentos nos negócios de
Barbour & Bouchard. Experimentava uma emoção quase
sensual ao ouvir falar das novas encomendas, preços mais
altos, valor crescente das ações. Gregory também não
esquecia que a vida apenas em companhia de Amy era um
tanto insípida. A presença de May era uma constante delícia
e conforto. Ela trouxera vida e riso à casa, duas coisas que
Gregory adorava.

Absorvido nos muitos aspectos de sua vida, que era


repleta de movimento e excitamento, prazeres e risos,
satisfações conjugais, riqueza crescente, Ernest dispunha de
pouco tempo para pensar em Amy ou para se entregar às
pontadas de angústia, que inevitavelmente surgiriam, se
parasse para pensar. Quando sentava à mesa diante dela, aos
domingos ou ocasionalmente num jantar durante a semana,
Ernest forçava-se a contemplá-la como se estivesse muito
longe, marchando resolutamente como um sargento
implacável diante dos seus pensamentos rebeldes,
mantendo-os sempre na linha, disciplinando-os. Cada vez
que um pensamento se debatia e ameaçava aflorar, Ernest
tratava de reprimi-lo, calava-o com sua vontade férrea. Já
superara tudo aquilo. Tinha uma linda mulher, de quem
realmente gostava, ainda por cima tinha o mundo em suas
mãos. Conseguia se controlar de tal forma que, às vezes,
passavam-se semanas a fio sem que pensasse muito a
respeito, mesmo aos domingos. Até criticava Amy
sinceramente, em conversas com May, por causa da
languidez dela e da aparente falta de interesse pelas coisas
mais importantes.

— Se ela não tomar cuidado, vai acabar virando uma velha


solteirona — disse ele a May um dia. — E isso seria
lamentável para os outros, tanto quanto para ela própria.
Amy não parece absolutamente interessar-se pelos homens.

May sorriu ao ouvir esse comentário, fitando-o com uma


argúcia intensa, embora disfarçada. Ela era inteligente o
bastante para não se deixar enganar e sabia que Ernest ainda
não estava inteiramente seguro. Quando ela criticava Amy,
sempre o fazia delicadamente, com expressões de
preocupação e afeição. Declarava-se preocupada com a
ausência de pretendentes a Amy, confidenciava ao marido
seus receios de que a pobre Amy não atraía os homens. Era
algo que raramente acontecia com as moças excessivamente
refinadas e delicadas. Não eram muito femininas, dizia May,
astutamente. Uma mulher precisa ter uma pitada de
masculinidade para atrair os homens, devia enfrentá-los em
seu próprio território, antes de voltar a refugiar-se
timidamente na feminilidade. O resultado era que Ernest ia
se tornando cada vez mais entediado com a prima de sua
mulher, achando irritantes sua gentileza e silêncios, a
meiguice e voz delicada. Era uma irritação obscura, meio
vaga. Nem mesmo May era esperta o bastante para adivinhar
o motivo. Certa ocasião, quando Ernest teve uma explosão de
contrariedade frenética, dizendo que Amy devia casar logo
de uma vez, deixando de atrapalhar, May sentiu uma onda de
prazer, segurança e contentamento.

Tudo transcorria esplendidamente, com o movimento


firme e inexorável de vidas triunfantes, até um dia
extremamente gelado e coberto de neve em março.
CAPÍTULO XXVI
A manhã era excepcionalmente linda. As últimas nevascas
haviam sido intensas. Através das janelas compridas da sala
de jantar, podia-se contemplar o jardim, um encantamento
de árvores brilhando como cristal, arbustos cobertos de
neve, pardais escuros sobrevoando os bebedouros
congelados, o branco imaculado ondulando até onde a vista
podia alcançar. O céu era de um azul-escuro ofuscante, o
vento suave, o sol se despejava numa inundação radiante.

Ernest jamais se sentira tão vivo e feliz como naquela


manhã, contemplando os jardins congelados e frios da sala
quente, aconchegante, com um fogo intenso ardendo na
lareira. O linho branco, a prataria reluzente, o café
fumegante, os bolinhos de chapa com bastante caldo, as
salsichas picantes no molho forte, o creme grosso e a
manteiga amarela, os montes de biscoitos, as travessas de
fatias de presunto, tudo lhe parecia impecavelmente
perfeito. Ele sacudiu as imensas dobras de seu guardanapo,
olhou satisfeito para Gregory, jovialmente para Amy,
afetuosamente para May. Tudo parecia banhado e ressaltado
pela claridade intensa, tudo era exatamente como deveria
ser. Ernest podia se refestelar na felicidade e prazer. Chegou
mesmo a fazer um comentário jovial para o mordomo,
quando lhe serviu presunto e biscoitos, embora de um modo
geral detestasse o velho empregado, desconfiando que o
tratava com condescendência, como o filho de um ex-criado.

Ele pensou que era apenas parte da perfeição de tudo o


fato de Amy parecer tão radiante naquela manhã, rindo
descontraidamente, com uma sugestão de alegria e
excitamento. Pensou que era perfeitamente natural, em uma
manhã como aquela, que Gregory se mostrasse mais gentil e
atencioso, escutando com mais seriedade os comentários de
Ernest. Mesmo quando Amy trocou olhares de vigor
excepciona] e suave exaltação com o tio, mesmo quando ela
riu sedutoramente uma ou duas vezes, quando seus olhos
subitamente encheram-se de lágrimas, Ernest ainda pensou
que era apenas consequência daquela manhã deslumbrante.
Todos estavam afetados pela manhã, pensou ele, até mesmo
os collies, que haviam saído de casa e corriam em delírio pela
neve branca e profunda. Do estábulo, vinha o relinchar dos
cavalos, fungando o ar inebriante. May também parecia
excitada, apenas um pouco pálida, embora os olhos
faiscassem, febris. Ela ria mais do que o habitual. Mas isso
acontecia porque tinha um segredo que ainda não contara ao
marido ou a qualquer outra pessoa. Além dela, só o seu
médico sabia, May estava agora com quase quatro meses de
gravidez. Não gostava muito de crianças, mas seu estado
deixava-a exultante. Sentia que assim fechava a última porta
entre Ernest e seu antigo amor, que estava finalmente
segura. E se fosse um menino...

Estavam todos tomando a última xícara de café, num


estado de saciedade feliz, quando houve um momento de
silêncio. Ernest, absorvido em seus pensamentos agradáveis,
sentiu súbita tensão no ar. Levantou os olhos. Amy olhava
suavemente dele para May, voltava a fitá-lo. Ela estava
sorrindo, seus olhos brilhavam com lágrimas.

— O que está havendo com você, Amy? — perguntou May,


em voz sonolenta.

Gregory limpou a garganta, empertigou-se na cadeira. E


disse, com um sorriso:

— Acho que Amy tem uma coisa a comunicar a vocês


dois. Vamos, meu amor, pode contar.
Havia uma expressão profundamente comovida nos olhos
de Gregory. Ernest ficou aturdido, May também, embora um
pouco divertida. Será possível que ela ficou noiva?, pensou
May. Mas de quem? Seria possível que... Não, isso seria
incrível demais.

Amy tentou falar, não conseguiu, encostou o lenço nos


olhos, com a mão trêmula, sorriu, depois desatou a chorar.
Levantou-se bruscamente, num turbilhão de seda azul-clara,
foi postar-se de joelhos ao lado de May. Enterrou o rosto
corado no colo de May. Esta ficou contrariada, mas divertida.
Levantou gentilmente o rosto de Amy, sorriu-lhe, sentiu-se
comovida, contra vontade, com a expressão radiante da
prima.

— Ora, tenho certeza de que essa menina está


apaixonada! — exclamou ela.

Subitamente, May sentiu-se deliciada, quase tonta de


prazer. Comprimiu o rosto de Amy contra os seios, sorriu
para o marido por cima da cabeça da moça. Seria o reflexo
do sol na neve que fazia com que o rosto de Ernest parecesse
de repente pálido e frio?

— Se Amy não consegue contar, então eu mesmo vou


falar — disse Gregory, sorrindo. — Ontem à noite, Ernest,
seu irmão Martin pediu-me Amy em casamento. Depois de
consultar Amy e descobrir que ela também queria, não pude
deixar de consentir. Assim, em maio, teremos outro
casamento. E vou perder as minhas duas meninas para a
mesma família.

A primeira sensação de Ernest foi a de que a sala se


inclinava, tudo se inclinava e rodopiava, mesa, paredes,
janelas, ocupantes sorridentes. A sensação seguinte foi de
náusea, o temor de que pudesse vomitar, ali mesmo, na
presença de todos. Ficou assustado com a intensidade de
suas emoções. A impressão era de que todos os seus
sentidos haviam se transformado num turbilhão, que o
envolvia completamente, sufocava-o, deixava-o tonto.
Depois, quando o turbilhão amainou, teve a impressão de
que levara uma pancada violenta na cabeça, que o atordoara,
privara de toda e qualquer sensação. Tudo isso aconteceu no
prazo de uns poucos segundos. Ernest estava preocupado
demais com o medo terrível de que pudesse vomitar ali para
experimentar desespero. Debateu-se com a náusea intensa,
ouvindo um burburinho distante de risos e vozes. A
vertigem passou, substituída por uma angústia profunda, de
mente e corpo.

Ele sentiu um movimento em seu rosto e compreendeu


que estava sorrindo. Até mesmo julgou que apertara a mão
de alguém... provavelmente de Gregory. Seus olhos estavam
se desanuviando e o sol incidia neles implacavelmente,
ofuscantemente, obrigando-o a piscar. Alguém falou e ele
ficou atônito ao descobrir que era a sua própria voz que
estava dizendo:

— Mas isso é uma surpresa maravilhosa! Ah, como vocês


foram espertos em esconder tudo de nós!

E, durante todo o tempo, havia o caos dentro dele,


desmoronando, rasgando, dilacerando, amargura e angústia.
Durante todo o tempo, como uma flecha embebida em
veneno, somente um pensamento penetrava em seu torpor:
“Eu a amo. Oh, Deus, eu a amo. Nunca deixei de amá-la. Amy!
Amy!”

Todos riam e falavam, Ernest sorria e respondia. Foi até


capaz de controlar-se o suficiente para aceitar outra xícara
de café, acrescentar açúcar, mexer, tomar, sorrindo
benevolentemente para a mulher, Gregory e Amy. Não posso
suportar, pensou ele. Ela vai casar com Martin, aquele tolo
sem valor. Subitamente, ele não podia mesmo suportar. O
ódio mais profundo que jamais sentira contra qualquer ser
humano convulsionou-o ao pensar em Martin. Martin! Se
fosse qualquer outro, ele ainda poderia suportar. Mas, por
Deus, aquilo era demais! Como um louco, Ernest foi invadido
pela ânsia de matar. Apenas o sangue poderia acalmá-lo.
Nuvens vermelhas começaram a flutuar diante de seus olhos,
as mãos subitamente contraíram-se na beira da mesa.
Tremores visíveis percorreram-lhe o corpo, mas Gregory e
May estavam absorvidos demais em brincar e beijar Amy
para percebê-lo.

A clareza retornou aos seus olhos de repente e pôde ver


Amy. Ela estava sentada muito perto de May, que lhe
segurava a mão e ocasionalmente beijava-a no rosto. Gregory
estava com o braço no encosto da cadeira de Amy, falando
animadamente e mexendo em seus cabelos lustrosos. O rosto
meigo de Amy estava timidamente radiante. Ela olhava de
um para o outro com olhos úmidos, sorria, murmurava, ria
das zombarias de Gregory. May olhou para o marido. Como
ele parece frio, pensou ela, esquecendo o antigo ciúme de
Amy e desejando que o marido demonstrasse algum
entusiasmo e prazer genuíno. May sentiu-se ressentida.
Tinha a impressão de que a indiferença de Ernest já
afrontara Gregory, que evitava fitá-lo. Afinal, Martin era
irmão dele e não se podia negar que era um bom par. Talvez,
pensou May, com um acesso de ressentimento ainda mais
forte, Ernest já estivesse pensando que Amy era uma moça
sem dinheiro e nada poderia levar ao irmão. Nada? Isto é,
nada além de um nome tradicional, uma boa família,
dignidade, gentileza, meiguice, beleza! Subitamente, May
disse a si mesma, com sombria satisfação: ela terá o anel de
diamantes e o colar de rubi de minha mãe! Serão o meu
presente de casamento.
E Nicholas e Gregory terão que lhe providenciar um dote,
não importa o que Tio Aaron tenha decidido!

E, durante todo o tempo, o aparentemente desinteressado


e indiferente Ernest olhava para Amy com uma paixão
intensa tão contida que seus olhos doíam com a tensão, uma
agonia lhe dilacerava o peito. E ele dizia a si mesmo,
interminavelmente: “Minha querida, minha querida! Oh,
Deus, minha querida, como eu a amo! Como pude esquecê-la
ou não querê-la, mesmo que por um dia sequer?” Somente
outra suspeita horrível de que poderia desatar em lágrimas é
que permitiu-lhe controlar o impulso de chorar, gritar, bater
com os punhos na mesa, dizer coisas terríveis e
imperdoáveis. Gregory, sentindo uma compaixão e
compreensão a que não estava acostumado, pelo que
percebera por um breve instante nos olhos de Ernest, ainda
evitava fitá-lo. E enquanto falava com Amy e lhe acariciava
os cabelos, ele pensou: “É uma boa lição para ele. Fico
contente de ver alguém sofrer como eu. É bem merecido.
Espero que ele sufoque com seu desespero. Ele teve a sua
oportunidade. Os homens só têm uma oportunidade.” Não
obstante, sua compaixão persistia, apesar da aversão e vago
desejo de vingar-se.

Finalmente, Gregory disse a si mesmo que o pobre


coitado já sofrera o bastante. Levantou-se. Amy levantou-se
também, rindo, meio chorando, enxugando os olhos
apressadamente. Ernest descobriu-se de pé, os músculos do
rosto doloridos pelo esforço de sorrir. Ficou vermelho de
repente, a respiração ofegante.

Sua vontade desaparecera, perdera o controle. Agora,


queria apenas uma coisa. Contornou a mesa, pôs as mãos
nos ombros quentes e macios de Amy, virou-a em sua
direção. Ela fitou-o, numa surpresa sorridente, os lábios
rosados se entreabrindo, os dentes brancos e pequenos
brilhando. Em seus olhos castanhos, havia inocência e
confiança.

— Você vai ser minha irmã — disse Ernest, com um


sorriso ligeiramente desvairado. — Assim, nada mais
apropriado do que eu a beije.

Ele puxou-a para si, inclinou a cabeça e, apesar da débil


exclamação de espanto da moça, talvez mesmo de discórdia,
beijou-a em cheio nos lábios. Prolongou o beijo,
comprimindo a boca tão violentamente que os dentes de
Amy roçaram em seus lábios. Ela inclinou-se toda para trás,
procurando desvencilhar-se, os músculos do pescoço
saltando visivelmente. A mão subiu ao braço de Ernest, a fim
de empurrá-lo; depois, como privada subitamente de força, a
mão tornou a cair, ficou pendendo ao lado do corpo, os
cabelos derramados para trás. Parecia ter desfalecido nos
braços de Ernest.

May fitava-os, aturdida, franzindo o rosto ligeiramente,


um sorriso forçado nos lábios. Depois de toda a indiferença,
Ernest estava procurando remediar seu comportamento de
maneira exageradamente vulgar, aproveitando uma ocasião
qualquer para beijar uma jovem bonita. É estranho que May
não tenha percebido a verdade por vários minutos.

Gregory pensou: devo continuar a sorrir, devo manter a


expressão risonha por mais algum tempo. Se não o fizer,
então não haverá como reparar os danos. Assim, ele riu e
disse, jovialmente:

— Amy, se você não parar de beijar esse cavalheiro


imediatamente, juro por Deus que vou contar a Martin!

Ainda rindo, como se tudo não passasse de uma


brincadeira agradável e exuberante, ele pegou Ernest pelo
ombro. Parecia um contato casual, mas os dedos fortes
cravaram-se fundo na carne de Ernest, levando-o de volta à
sanidade, como nada mais poderia fazer. Ele soltou Amy tão
abruptamente que ela cambaleou. Toda a cor se desvanecera
do rosto da jovem; os lábios lívidos tinham manchas
vermelhas da pressão, os olhos estavam arregalados e
tensos. Foi o rosto de Amy, mais do que qualquer outra
coisa, que levou May a compreender a verdade terrível, que a
fez sentir como se sua boca se enchesse subitamente de
ácido. Por vários segundos, ela pensou que não conseguiria
suportar a angústia, que iria morrer de desespero, diante de
todos.

Ela ficou imóvel, muito pálida. A vivacidade permanente


deixara-a e simplesmente ficou parada ali, tão digna e
composta que parecia mais alta do que na realidade.
Gregory, virando-se para ela, foi dominado pela admiração e
surpresa. Mas May olhava fixamente para Ernest, que estava
com o rosto extremamente pálido, a boca se contraindo em
espasmos. E quando ele a fitou, May disse:

— Martin virá hoje à nossa casa, como sempre faz. E


como o noivado terá de ser anunciado em breve, o
casamento se realizando num prazo tão curto, podemos
muito bem convidar os nossos melhores amigos, apenas uns
poucos, para aparecerem hoje aqui, ao final da tarde.

Virando-se para a prima, com dignidade e controle


renovados, May acrescentou:

— Amy, minha querida, pode fazer o favor de preparar


uma lista imediatamente? Escreverei os convites e mandarei
um mensageiro entregá-los. Amanhã, podemos fazer planos
para um comunicado formal. Mas tenho certeza de que esta
noite vai querer que alguns dos seus amigos estejam aqui, a
fim de contar-lhes pessoalmente, na intimidade.
Mas que mulher extraordinária!, pensou Gregory. Sem
qualquer outra palavra e sem olhar para ninguém, May saiu
da sala, a touca de renda balançando sobre os cabelos. Antes
que ela alcançasse a porta, no entanto, Ernest já estava lá,
abrindo-a. E depois que May passou, sem fitá-lo, ele seguiu-a.

E seguiu-a pela escada escura, passando pelo relógio


grande que batia no escuro e silêncio do vestíbulo, passando
pelas janelas de vidro fosco, no primeiro patamar. As
anáguas volumosas e a saia de May balançavam e flutuavam
por trás dela na escada; sua mão estava firme no corrimão e
ela não olhava para trás nem falava. O farfalhar de seda era o
único som que rompia o silêncio. Quando ela chegou à porta
do quarto, Ernest abriu-a e deixou-a entrar. May avançou até
o meio do quarto, esperando que ele a seguisse. Mas Ernest
ficou parado no limiar. Sua cor era a de um homem muito
doente.

— Ernest — falou May, em voz firme e tranquila — entre,


por favor, meu amor. Tenho uma coisa a lhe dizer.

Ele entrou. O coração a traiu e May sorriu desamparada.


Ernest parecia um garotinho que acabara de cometer um
tremendo pecado. May pegou-o pelo braço, recuperando um
pouco o seu jeito persuasivo.

— Sente-se, querido.

Mas Ernest afastou-se dela e foi até a janela. Ficou parado


ali, olhando para fora. Foi então que May compreendeu que
ele era de fato um homem e que não poderia usar os
recursos que empregaria com um garotinho. Percebeu que
Ernest estava desesperado e transtornado, que chegara a um
estado de loucura em que era capaz de fazer qualquer coisa.
Jamais desconfiara que ele possuísse tal violência e sabia
agora que tinha de salvá-lo disso. Seu coração foi invadido
por uma onda de ternura. Não se aproximou dele, não deu
um único passo em sua direção. Permaneceu no meio do
quarto grande e bonito, com um fogo baixo e aconchegante
ardendo na lareira de mármore. E disse, calmamente:

— Ernest, vou ter um filho.

May não sabia direito o que esperava, mas certamente


não era que Ernest continuasse parado ao lado da janela,
inabalável. A mão dele estava na cortina e se contraiu um
pouco, tensamente. Mas essa foi a sua única reação. May
segurou-se no encosto de uma cadeira, para não cair, a fim
de se recuperar da sensação de que recebera um golpe
violento na barriga.

— Ernest — disse ela novamente, alteando a voz, mas


ainda conservando-a gentil — você me ouviu, amor? Eu disse
que vou ter um filho. — Ela engoliu em seco,
convulsivamente, antes de acrescentar: — Espero que seja
um menino.

Ernest virou-se. Aproximou-se lentamente, muito pálido.


Mas os olhos estavam firmes e calmos.

— É o que também espero.

E segurou a mão de May.


CAPÍTULO XXVII
Martin foi procurar o velho Padre Dominick. Estava
bastante transtornado. Sendo um convertido recente, não
sabia quais as penalidades, se é que haveria alguma, lhe
poderiam ser infligidas pelo ‘pecado’ de mudar de ideias e
voltar-se para as coisas seculares. Mas estava decidido numa
coisa: com ou sem pecado, com ou sem excomunhão, amava
Amy e tencionava casar com ela.

Não acreditava que qualquer outra pessoa pudesse ter


sido jamais tão feliz. Não era uma felicidade desenfreada e
clamorosa, repleta de ansiedades, dúvidas, medos e
distúrbios, como um dia tempestuoso, entremeado por
momentos de sol intenso e fatídico. Sua felicidade era serena
como um amanhecer de verão. Sua natureza tímida, altiva e
gentil, tão resoluta, bondosa e simples, tão forte quando
estimulada pelo idealismo, tão desconfiada de tudo o que
era dominador, era como uma paisagem de cores suaves,
ligeiramente melancólica, impregnada por uma luz pura e
firme. Ele tinha por Amy a paixão inocente de um homem
muito jovem e intacto. Mais do que isso, porém, tinha a
ternura e um senso protetor, a impressão convincente de
que estava a salvo do riso repulsivo daqueles que não
compreendia, de seus escárnios e sátiras, de sua astúcia e
crueldade. O amor que tinha por Amy era como um manto a
cobrir-lhe a nudez, afastando o medo. Amy era tão mais
fraca do que ele, tão dependente e confiante, tão amorosa e
terna, tão justa e sensata em sua inocência, que Martin se
tornava mais forte no processo de protegê-la, desenvolvia
músculos mentais até então flácidos, desenvolvendo uma
determinação que tinha até então o péssimo hábito de se
tornar fluida em momentos cruciais. Além disso, Amy
possuía mãos de cirurgião, removendo cataratas de seus
olhos, proporcionando-lhe a visão do que era adorável e
desejável na vida. Ainda não tinha coragem de admitir para
si mesmo que sua antiga visão fora falsa e distorcida,
mórbida e impregnada com pensamentos de morte. Mas
sentia-se finalmente libertado.

De certa forma, até mesmo as oficinas deixaram de


transtorná-lo tanto quanto antes. Tudo perdeu a sua
importância, a não ser a sua felicidade. Mas prometeu a si
mesmo que não ficaria alheio ao dever, que Amy o ajudaria a
encontrar o que precisava. Como Amy parecia não achar tão
repulsiva a fabricação de armamentos, o antagonismo de
Martin em relação a isso se modificou. Como ela via
qualidades admiráveis no implacável Ernest, Martin procurou
também por alguma coisa, sentindo-se humildemente
arrependido ao descobrir que, no final das contas, Ernest
não era um monstro fabuloso, embora ainda tivesse dúvidas
a respeito dele e não fosse capaz de conceder-lhe uma
confiança plena. Como Amy tinha prazer em danças, nas
pequenas amenidades da vida, no riso, em canções e flores,
na companhia de outras pessoas, Martin relaxou sua
austeridade e passou a gostar de tudo isso também, não com
plena aceitação, é verdade, não sem algum constrangimento,
mas pelo menos com todos os sintomas de prazer. Descobriu
que o mundo era de fato muito agradável, embora um tanto
sombrio. Ele e Amy tinham verdadeiras orgias de conversa.
Não eram tímidos entre si como eram com os outros, suas
vozes se misturavam ansiosamente. Interrompiam-se,
exclamavam, gritavam, gesticulavam, riam, com o senso
mais requintado de completa harmonia. Descobriam-se um
no outro e isso deixava-os profundamente encantados. Havia
ocasiões em que não falavam durante horas, ficando apenas
de mãos dadas, passeando em silêncio, olhando-se a
intervalos. Martin entregara-se a Amy numa rendição ardente
de tudo o que era. De vez em quando, ele sentia-se
ligeiramente perturbado ao pensar perceber em Amy alguma
coisa triste e inquieta, um pouco de insatisfação e ansiedade.
Era como se ela pensasse, nesses momentos, em alguma
coisa que nada tinha a ver com ele, cuja recordação lhe era
angustiosa.

Ernest tivera um gesto gentil e generoso. Anunciou, como


que impulsivamente, que seu presente de casamento aos
noivos seria a antiga casa de George Barbour. Hilda e Joseph,
que haviam se apaixonado perdidamente por Amy,
anunciaram que mobiliariam a casa como o jovem casal
desejasse. Antes de tomar sua decisão, Ernest visitara a casa
fechada e percorrera os aposentos vazios. Naquela noite
atormentada, mais de um ano antes, mobiliara aquela casa
mentalmente, depois de chegar à conclusão de que Amy
valia o sacrifício da casa e da fortuna dos Sessions. E agora,
no dia em que decidiu dar aquela casa a Amy, percorreu-a
lentamente. Parou junto às janelas, pensando que Amy ali
ficaria postada, imaginou o que ela pensaria das diversas
vistas. As janelas a oeste, por causa da altura do terreno,
proporcionavam uma vista de toda a encosta apinhada, até o
rio. Ali, Amy poderia contemplar o sol vermelho do inverno,
a se pôr numa coroa de fogo; ali, ela contemplaria o cintilar
eterno das estrelas. Aquelas janelas estariam escuras por
ocasião das chuvas do outono, enquanto ela sentaria ao lado
da pequena lareira de mármore preto, tricotando, os pés
pequenos apoiados numa almofada, os filhos brincando ao
redor. Amy contemplaria o rio, de um azul intenso ou
esbranquiçado com o frio; veria o rio chamejar vermelho,
correr como ouro derretido, tornar-se misterioso sob a lua.
Aquelas janelas seriam uma moldura permanente, em que
seriam apresentadas as mudanças de estação, uma a uma,
para o prazer dela. E dada imagem, tumultuada nas
tempestades, verdejantes e serenas no verão, radiantes e
exuberantes com a primavera, preto e branco com o inverno,
seria contemplada pela lente do ânimo de Amy. O que ela
sentiria quando contemplasse uma paisagem como aquela,
ao crepúsculo? O céu já mergulhara no horizonte, mas o céu
a oeste era de um azul esmaecido, como um lago imóvel e
congelado, sobre o qual desfilavam pequenas embarcações
douradas, com halos de fogo. Por cima desse lago e de suas
embarcações, havia uma faixa escura e agressiva de azul-
cobalto, fundindo-se numa tonalidade mais clara, na medida
em que o céu erguia-se para o zênite. O rio corria como ferro
líquido, indefinido e vigoroso, sob o céu do crepúsculo. A
margem daquele lado estava coberta por um nevoeiro
espectral, fazendo com que as construções se
transformassem em borrões indistintos. O terreno em torno
da casa era íngreme, não muito extenso. Estava limitado por
fileiras de olmos espetaculares, ainda desfolhados,
estendendo os galhos tortos para o alto, sob a claridade
difusa, dando a impressão de que haviam sido paralisados
no instante em que se contorciam em tormento. A cena era
tão desprovida de vida, tão fria e infinitamente triste, que
Ernest, o exigente, o realista, não conseguia se afastar da
janela. Seu sofrimento doentio e desesperado era um
encantamento que temporariamente lhe abrira os olhos.
Sentia que a cena era parte dele, que a integrava. Sua
consciência fluiu e misturou-se com a cena, trazendo-lhe de
volta a sua essência triste, fatídica e sem esperança. Essa
sensação de que sua personalidade estava se desintegrando,
fluindo misticamente, voltando com uma carga de mistério,
como a maré a trazer coisas misteriosas para a praia, era-lhe
tão singular que ele ficou assustado. Descobriu coisas em si
mesmo, abismos e correntezas, pensamentos e anseios,
desejos e amarguras, de que jamais desconfiara pudessem
existir em alguma pessoa, muito menos em si mesmo. Assim,
ficou completamente absorvido nessas novas sensações,
fascinado por sua capacidade de sentir tão intensamente, a
tal ponto que o coração parecia estar abalado pelo impacto.

Ernest finalmente virou-se, correndo os olhos pelo


aposento escuro e frio. E pensou: “Eu não faria nada
diferente do que fiz. Faria tudo de novo, da mesma forma.”
Prometeu a si mesmo, ao deixar a casa, que nunca mais
relaxaria a sua disciplina no futuro, que um homem não
podia de jeito nenhum entregar-se a tais fantasias, devaneios
e melancolias. Tinha trabalho a fazer.

Ernest apegou-se tão firmemente a essa decisão que pôde


até falar com Amy, que o evitara por algum tempo, com uma
afeição impessoal e fraternal, fitando-a com uma expressão
vaga, mas amistosa. Pôde também falar com Martin com uma
intimidade e consideração acima do habitual. E isso não era
simples afetação. Podia realmente controlar seus
pensamentos e emoções, dobrá-los à sua vontade. Mas,
mesmo enquanto o fazia, sabia que seu amor por Amy era
um violento prisioneiro, que poderia irromper da prisão a
qualquer momento, devastando e destruindo tudo o que ele
construíra ao longo da vida. Não cometeu o erro de
considerar-se um tolo sentimental: Era franco demais
consigo mesmo para isso. Reconhecendo o perigo em que se
encontrava, começou a erguer, lentamente, meticulosamente,
uma muralha de indiferença determinada e resistência fria. O
fato de que gostava sinceramente de May, que ela o divertia
e agradava, amava-o profundamente, contribuía para que se
controlasse. Não se diga que esse controle era baseado num
senso de honra ou de dever para com May. Era baseado
exclusivamente no seu forte instinto de autopreservação e
num desejo de continuar o relacionamento agradável com a
mulher. Além do mais, sentia-se excitado pela perspectiva do
primeiro filho. Viriam outros e herdariam a dinastia que ele
construiria. Viveriam naquela casa pela qual sacrificara uma
glória, esplendor e delícia. Amariam aquela casa, como ele
amava, talvez também se sacrificassem por ela, como ele o
fizera.

Talvez fosse por causa de algum desejo subconsciente de


fazer Amy feliz, talvez por algum reconhecimento do fato de
que ela o amava, a verdade é que Ernest passou a cultivar
Martin assiduamente. Estimulou o irmão a expressar suas
ideias a respeito dos operários, pretendendo considerar
seriamente a possibilidade de suspender a importação de
mão-de-obra estrangeira, fingiu sentir horror de alguns
relatos apaixonados de Martin sobre a escravidão no sul. O
próprio Martin descobriu-se, embora ainda desconfiado, a
relatar ao irmão alguma coisa que fizera para ajudar
escravos fugitivos. Observava Ernest ansiosamente,
enquanto falava. Mas o rosto de Ernest, para seu alívio,
expressava apenas uma preocupação pensativa e muito
interesse, até mesmo compaixão. Mas Ernest estava
pensando: Santo Deus, mas que absurdo, que ausência
criminosa de bom senso! Em que situação terrível todos
ficaremos, se ele for apanhado! Tenho de acabar com isso.
Ele tentou arrancar de Martin os nomes de seus cúmplices.
Mas Martin, subitamente cauteloso, inconscientemente
alertado, recusou-se a dizer. Ernest contemplou aquele rosto
bonito, resoluto e ansioso, odiando-o. E naquele remexer do
ódio amargo, o prisioneiro por trás da muralha foi
despertado e bradou em protesto.

Mas uma coisa Martin escondeu de todos: sua conversão


ao ‘romanismo’. Era algo sagrado para ele, embora usasse os
adornos mentais apreensivamente, como usaria um estranho
uniforme, a que precisava acostumar-se. E agora que ia casar
com Amy, um verdadeiro caos se instalara em sua mente, um
estado de que ninguém desconfiava, por trás do que Ernest
chamava de ‘rosto congelado’. Mas esse ‘rosto congelado’, na
descrição desdenhosa de Ernest, era apenas uma janela, por
trás da qual Martin, em seu desejo veemente de proteger-se
das exigências e situações que não podia enfrentar, tornava-
se opaco e amorfo. Era a fachada da qual podia conduzir
suas lutas, entregar-se a seus desesperos, travar seus
combates, sem medo da curiosidade ávida dos outros.
Assim, ele foi procurar o Padre Dominick, no chalé
miserável que o sacerdote ocupava, atrás da igreja pequena e
miserável. O padre, de origem francesa, era baixo, gordo e
redondo, calvo, jovial, muito gentil e bondoso,
extraordinariamente inteligente. Ao levar Martin para a sua
pequena e horrenda sala, úmida e escura, ele manifestou o
seu júbilo e gratidão pelo recente presente de Martin à
igreja, de cinco mil dólares. Tocando vigorosamente uma
sineta para chamar sua velha governanta, a fim de que
trouxesse café e bolo de fruta, ele acrescentou:

— E isso, juntamente com suas outras doações, meu caro


Martin, vai nos permitir iniciar a construção de nossa nova
igreja. Já pensou, meu filho, que você e o Sr. John Slattery,
do curtume, são os únicos homens ricos de Windsor que são
católicos? E o Sr. Slattery de vez em quando é esquecido...
Mas também ele tem uma família grande e as famílias muitas
vezes fazem com que um homem se torne ganancioso. É
ótimo que você não tenha família e nunca terá, pois, seus
presentes para os desafortunados certamente constituem um
esgotamento grande de seus recursos. Não gosto nem de
pensar no que poderia ter acontecido ao Hospital das Irmãs,
em Gamerstown, sem os seus 15 mil dólares. Existem agora
dez novos leitos e há um médico permanente.

Ele despejou açúcar generosamente em seu café,


enquanto acrescentava, animadamente:

— Mas diga-me uma coisa: como está o nosso querido


filho, Jacques Bouchard? Notei-o na missa no último
domingo e ele parecia muito doente. Uma coisa terrível! Mas
como ele suporta tudo bravamente! E que rosto... como de
um anjo, tão paciente, expurgado de toda a maldade!

Martin ficou calado. Na semiescuridão da sala, o padre


que recebia poucos visitantes e por isso mesmo falava sem
parar, na maior felicidade, não percebeu o silêncio dele. Ele
tomava café com um prazer ruidoso, enfiava imensos
pedaços de bolo na boca, sem parar de falar. O que dizia era
ingênuo e entusiástico, com uma espécie de simplicidade
infantil. Mas não havia qualquer simplicidade em seus olhos
pequenos e penetrantes. Finalmente saciado, o padre
enxugou as mãos no lenço, olhou radiante para Martin e
preparou-se para conceder-lhe toda a sua atenção.

— E agora, vamos conversar sobre coisas importantes.


Pelo que posso presumir, veio me dizer que não pode partir
imediatamente para Quebec. Ah, que privilégio deixar o
mundo, não quando se está velho, alquebrado e desiludido,
mas com a juventude, ardor e força intactos, prontos para
serem colocados a serviço de Deus!

Ele suspirou, radiante. Depois, percebendo a expressão de


Martin, observou-o atentamente, o sorriso se desvanecendo.
Martin levantou-se, deu uma volta pela sala. Começou a
falar, com o pé sobre a grade na frente do fogo à espreita, o
perfil delineado pelo clarão avermelhado:

— Padre, vim lhe dizer hoje que não vou mais para
Quebec. Vim lhe dizer que me apaixonei por uma moça e vou
casar com ela.

Ele não se virou para fitar o padre, permanecendo na


mesma posição, aguardando pela resposta. Mas não houve
resposta. A escuridão na sala parecia aumentar, o fogo
crepitava em desânimo. Martin finalmente virou-se. O rosto
do Padre Dominick estava impassível. Ele olhava
atentamente para Martin. Num súbito impulso, Martin
adiantou-se, foi postar-se diante dele, dizendo, em tom de
desespero:

— Por favor, padre, compreenda. Eu não poderia ir. Não


seria certo. Não quero ir.

O padre desviou os olhos do rosto de Martin, baixando-os


firmemente para o chão. Começou a franzir o rosto,
esfregando o tecido ordinário da calça surrada entre o
polegar e o indicador. E falou, sem olhar para Martin:

— Tem certeza de tudo isso? Está convencido de que não


se trata de uma paixão passageira, a que os jovens muitas
vezes se entregam? Não vai se arrepender mais tarde?

— Não vou me arrepender nunca! Amo a moça. Ela é a


Srta. Amy Drumhill...

Ele parou de falar, porque o padre fitava-o com espanto.


O olhar prolongou-se por longo momento, mas sofrendo
certa mudança sutil. Tornou-se especulativo, obscuramente
excitado, excessivamente pensativo. O padre começou a
falar, lentamente, cuidadosamente, ainda olhando para
Martin com estranha expressão:

— Deve estar certo, meu filho. Quando veio procurar-me


pela primeira vez, junto com Jacques Bouchard, pedindo que
os ajudasse a entrar num mosteiro, tive certeza de que
Jacques tinha uma vocação. Quanto a você, eu não tinha
certeza. Por isso é que o fiz esperar por um ano, antes de
escrever para Quebec. Mesmo então, ainda tinha algumas
dúvidas. E finalmente cheguei à conclusão de que estava
errado, que você realmente possuía uma vocação, que nunca
pertenceu a este mundo e jamais pertenceria. Mas descubro
agora que estava errado. — O Padre Dominick fez uma
pausa, antes de continuar: — não fique tão aflito, Martin.
Homens melhores do que você já se enganaram antes. E
ainda bem que você descobriu a tempo. Posso perceber que
está com receio de ter feito algo abominável. Não houve
nada disso, meu filho. Deus não quer os serviços daqueles
que não podem se dar voluntariamente. Além disso, há mais
de um meio de servir a Deus. O bom pai, o bom marido, o
chefe de família fiel e devoto também serve a Nosso Senhor.
Deus foi bom e misericordioso ao mostrar-lhe, antes que
fosse tarde demais, que não tem realmente vocação. E que
pode melhor servi-lo neste mundo,

Ele se levantou, aproximou-se de Martin, pegou-lhe o


braço.

— Vá, meu filho, case com a Srta. Amy Drumhill. Já a vi,


passando em sua carruagem, tenho ouvido falar a respeito
dela. Uma moça excelente. Vai lhe dar filhos, no temor de
Deus, proporcionar-lhe felicidade. Mas há uma coisa que não
deve esquecer. Ela provavelmente vai insistir num
casamento protestante, mas deve se lembrar de que é um
católico. E tem de haver outro casamento, perante um
sacerdote católico. Além disso, seus filhos devem ser
católicos.

Martin estava quase incrédulo, dominado pela alegria e


alívio.

— Está querendo dizer, padre, que tenho a sua bênção?

— Claro que tem. Mas diga-me uma coisa: o que nosso


querido filho Jacques Bouchard pensa de tudo isso? Ele não
está terrivelmente desapontado?

Martin virou o rosto, respondeu em voz baixa:

— Ainda não lhe contei.

— E ele não desconfiou de nada?

Martin hesitou. Sua expressão perdeu toda a animação e


alegria.

— Acho que sim. Ou melhor, tenho certeza que sim. Mas


ainda não lhe falei nada. Agora, no entanto, já posso contar-
lhe. E vou procurá-lo imediatamente.
CAPÍTULO XXVIII
A família Bouchard estava acabando de comer quando
Martin chegou. Ele foi recebido com uma afeição exuberante
por todos, com exceção de Eugene, que era sempre
reservado com Martin, por causa de Ernest. Madame
Bouchard trovejou ordens para que a criada gorda
providenciasse um prato para Martin. Ela própria foi à
cozinha verificar o que tinha na despensa para oferecer.
Armand, que apesar de sua prosperidade ainda tirava as
botinas à noite e esquentava as meias diante do fogo, estava
sentado em sua imensa poltrona, fumando, um gnomo
moreno, cujos olhos aguçados brilhavam e faiscavam mesmo
quando ficava calado. Sentindo-se à vontade naquela casa
simples e sem afetações e inibições, ao contrário do que
acontecia em sua própria casa, Martin comeu e bebeu,
escutou, sorriu e falou. Raoul ainda não voltara de sua
segunda viagem europeia em busca de novos trabalhadores
para as vorazes instalações de Barbour & Bouchard. A sua
ausência era uma lacuna palpável na casa.

Jacques, que já terminara de comer, levou o corpo


distorcido de volta à mesa, a fim de fazer companhia ao
amigo. Estimulada por isso, Madame Bouchard empilhou
bolinhos num prato e encheu outra xícara com café, pondo
diante de seu amado filho. Ela sabia que Jacques ficaria
absorto em Martin e comeria mecanicamente, desta forma se
alimentando ainda melhor.

— Há quatro dias que você não aparece — disse Jacques


suavemente, o rosto brilhando de afeição e contentamento,
sem desviar os olhos de Martin.

Apesar de ele ter falado bem baixo, a mãe ouviu, como


sempre acontecia.

— Lá isso é verdade! — exclamou Madame Bouchard, em


voz rouca. — Tem negligenciado o meu Jacques. Ele fica
olhando pela janela à sua espera, como uma moça, não quer
comer, vai definhando. Ah, seu assassino!

Ela acrescentou a última palavra jovialmente, batendo de


leve no ombro de Martin. Mas os olhos intensos não tinham
qualquer jovialidade e o sorriso era um tanto ameaçador.

Jacques sorriu com indulgência para Martin, como a lhe


suplicar paciência com a mãe. Mas Martin, dominado pela
ansiedade, percebeu que o sorriso dele era também
constrangido e significativo.

— Está esquecendo, mamãe — disse Jacques, passando-


lhe o braço parcialmente pela enorme cintura — que Martin é
um homem muito ocupado, enquanto eu não passo de um
inútil fardo de ossos, consumindo a riqueza da família.

— Tiens! Você não come mais do que um passarinho, meu


Jacques!

Madame Bouchard alteou a voz, lançando um olhar


furioso para o filho. Mas a mão que tocou na cabeça de
Jacques era trêmula e terna de angústia. Seu rosto, vasto,
moreno e soturno, com um enorme lábio inferior saliente e
um buço nos cantos do lábio superior, virou-se para Martin.

— Não acha que ele está engordando? Ele não parece


melhor?

— Ele parece mesmo estar muito bem — disse Martin,


forçando a boca ressequida a se entreabrir num sorriso.
Mas Jacques, com a sensação de alerta de quem vive com
medo, sempre à espreita do ladrão, percebeu que a testa de
Martin parecia ligeiramente úmida e que ele estava muito
pálido, como se atormentado pela ansiedade. Houve uma
contração de pavor no estômago do aleijado, os músculos
débeis ficaram tensos. Ele olhou ansiosamente para Martin,
percebeu que o amigo levava a xícara de café aos lábios, não
chegando a beber. Também não comia as porções no prato
que espetava com o garfo. Jacques sentiu um aperto na
garganta, ameaçando sufocá-lo. Passou a língua pelos lábios
quentes, numa súbita febre de terror. Ofegou um pouco,
correndo os olhos pela sala. Como poderia ficar a sós com
Martin, afastá-lo da pressão da família, forçá-lo a dissipar
seus temores? Ora, era isso mesmo! Uma nova caixa de livros
chegara naquele dia e estava esperando para ser aberta, em
seu quarto. Ele alegaria esse pretexto para levar Martin até
lá, imediatamente. Mas antes que Jacques pudesse adquirir
forças suficientes para falar, Armand estava conversando
com Martin:

— Joe tem ido ao médico ultimamente, Martin?

— Não. Ele se recusa a ir, embora a mãe lhe suplique


todos os dias. Diz que somos todos maricas, que não há
nada de errado com ele. Mas não come quase nada e o
ouvimos gemer à noite, enquanto dorme. E sua cor está cada
vez pior. Achamos que é um problema de fígado.

Armand sacudiu a cabeça lentamente, olhando para o


fogo e fumando, sem fazer qualquer comentário. Percebera a
marca da morte estampada no rosto de Joseph. Martin,
observando-o com apreensão, ficou esperando que ele
falasse de novo. Depois, percebendo que tal não aconteceria,
fingiu tomar o café. Não se atrevia a encontrar novamente os
olhos de Jacques. Cada vez que o fizera, tivera de se desviar
rapidamente, não suportando a visão do brilho de amor nos
olhos do amigo, o sorriso ansioso. Estava também
descobrindo, angustiado e surpreso, que esse brilho e o
sorriso começavam a irritá-lo, que eram como mãos
procurando segurá-lo e prendê-lo, que havia neles algo de
mórbido. Ficou chocado com tais pensamentos, tentou
sentir-se comovido com a evidente alegria e contentamento
de Jacques por sua presença. Conseguiu apenas provocar o
pensamento angustiado de que daria qualquer coisa para não
estar naquela casa. Lembrou-se que fora até ali para
desintegrar toda a vida de Jacques. Sentiu-se outra vez
dominado pela ansiedade e remorso.

Eugene, indiferente, mas cortês, perguntou-lhe alguma


coisa a respeito de novos contratos militares. Era uma
indagação polida e Eugene sabia perfeitamente que estava
muito mais a par dos negócios de Barbour & Bouchard do
que o indiferente e distante Martin. Quando Martin
respondeu, vagamente, indeciso, Eugene fitou-o com
desprezo e compaixão. Mas que criança!, pensou ele,
olhando para o corpo esguio e comprido de Martin com
algum espanto, e perplexidade. Mas logo o seu rosto moreno
e impassível animou-se e ele sorriu para Martin com
repentina afeição. Os cabelos louros e os olhos azuis de
Martin, sua postura e gestos, uma porção de coisas levava-o
a lembrar da pequena Dorcas, que era seu alvo de adoração
especial.

Jacques conseguiu finalmente afastar Martin de sua


família e levou-o para o quarto. Ali chegando, já estava
prestes a prorromper em recriminações histéricas, acusando
Martin de indiferença e negligência, quando se lembrou, com
uma contração dos lábios trêmulos, que as palavras
frequentemente faziam aflorar coisas que estariam melhor
se permanecessem inofensivas na escuridão silenciosa.
Palavras, pensou Jacques, constituíam um catalisador fatal.
Assim, ele forçou-se a sorrir, atiçou ineficazmente o fogo,
entregou o atiçador com uma débil risada às mãos mais
fortes de Martin. Ajoelhando-se ao lado da lareira de pedra,
Martin remexeu vigorosamente o fogo, consumindo achas
curtas e grossas. O fogo tornou-se amarelado, projetando um
clarão ofuscante pelo quarto, banhando Martin com uma
chama como a de um raio. Cruzando as mãos
convulsivamente, Jacques pensou que o amigo jamais tivera
tal esplendor, tamanha beleza, tanta determinação.
Involuntariamente, uma de suas mãos desprendeu-se da
outra, adiantando-se furtivamente, para tocar no ombro de
Martin. Percebendo o gesto, Jacques logo retirou a mão, o
rosto ficando vermelho. Uma onda de calor, êxtase, medo e
amor percorreu seu corpo estropiado. Seu coração começou
a bater mais forte, com estranha insistência, como se
estivesse a par de alguma coisa que ele ainda não sabia.

Martin levantou-se, depois de atiçar o fogo


satisfatoriamente. Mas não se virou para Jacques. Em vez
disso, ficou parado diante da lareira, cabeça baixa, os olhos
fixados no fogo. Os músculos em torno de sua boca
começaram a se contrair espasmodicamente.

— Sente-se, Martin — disse Jacques, inclinando-se sobre o


braço de sua cadeira, a fim de puxar outra para o seu lado, a
fim de que o amigo se acomodasse.

— Preciso lhe contar uma coisa, Jacques — disse Martin,


falando bem depressa. — E precisava lhe contar esta noite.
Seria horrível não lhe dizer nada. — Ele fez uma pausa, antes
de acrescentar, em voz tensa e desesperada; — Oh, Deus,
não sei como lhe contar!

Chegou o momento, pensou Jacques, a escuridão caindo


sobre seus olhos. Teve a sensação de que tudo parava dentro
dele, que a realidade se desvanecera, deixando apenas ele
próprio e aquela angústia que lhe dilacerava o peito. Os
músculos da garganta se contraíram, a boca se entreabriu.
Mas Martin percebia apenas que o amigo parecia calmo,
apesar da palidez. Isso proporcionou-lhe a coragem de que
precisava. Sentou-se ao lado de Jacques, inclinou-se por cima
do braço de sua cadeira, ansiosamente.

— Peço que compreenda, por favor, Jacques. Já conversei


com o Padre Dominick e lhe contei tudo. Ele disse que não há
problema e deu-me sua bênção. Declarou que não adiantava
forçar uma pessoa a seguir uma vocação que não possui.

— Não vai comigo? — sussurrou Jacques.

Ele começou a ofegar um pouco, como se o peito


estivesse sendo, lenta e inexoravelmente, apertado por
cintas de ferro.

— Não posso ir, Jacques. Não tenho vocação.

— Você tinha vocação há um ano... há seis meses...

O sussurro tornara-se quase inaudível. Martin percebeu


agora que o rosto do amigo estava coberto por uma tênue e
brilhante camada de suor, que a pele tinha uma tonalidade
azulada. Impulsivamente, ele pegou a mão de Jacques. Ficou
horrorizado com a sua frieza, umidade e rigidez.

— Por favor, Jacques, tente compreender -suplicou


Martin, odiando a si mesmo. — Eu estava enganado.

Os olhos de Jacques fixavam-se nos dele,


inabalavelmente. Havia morte naquele olhar, a expressão de
quem contempla o seu carrasco. Martin umedeceu os lábios,
forçando-se a continuar.

— Descobri agora que tudo não passava de um erro.


Ele pensara em recomendar a Jacques que fosse para
Quebec sozinho, mas por algum motivo tal sugestão parecia-
lhe agora insuportavelmente insensível.

— Perdoe-me, por favor. Mas sei que não gostaria que eu


fizesse qualquer coisa para a qual não sou talhado.

Ele queria largar a mão do amigo, mas os dedos de


Jacques, frios e trêmulos, apertavam os seus
convulsivamente. Um tênue calafrio, alguma emoção que não
podia definir, percorreu o corpo de Martin. O suor começou
a correr-lhe pelas costas.

— O que vai fazer? — perguntou Jacques, falando agora


numa voz quase normal.

Martin sentiu-se profundamente aliviado e grato. Sorriu.


Jacques estava se comportando muito melhor do que ele
esperava. Fora um tolo ao perder tempo em ansiedades e
apreensões.

— Vou casar — disse ele, enrubescendo ligeiramente. —


Com a Srta. Amy Drumhill. A sobrinha do Sr. Gregory
Sessions.

A simples menção do nome de Amy foi suficiente para


aquecer e animar Martin. Ele estava preparado para a
surpresa e indignação por parte de Jacques; estava
preparado para expressões de frieza e desdém, para
argumentos visando a levá-lo de volta à antiga determinação.
Preparara-se até mesmo para um violento acesso de raiva,
pois sabia que Jacques os tinha ocasionalmente. Mas não
estava preparado para o que aconteceu e por isso seu choque
foi ainda maior.

Pois Jacques soltou um grito breve e estridente, como se


tivesse sido esfaqueado. E depois arriou na cadeira, até que
parecia apenas uma pilha de ossos desconjuntados. Uma
espécie de desordem, desintegração, abateu-se sobre
Jacques, uma confusão total, um desmoronamento. O rosto
transformou-se em máscara espectral, sobrepondo-se aos
ossos informes e desconjuntados, máscara que fora afixada
de qualquer maneira, sem o menor cuidado. Os olhos se
dilataram, ficaram esbugalhados, concentrados em Martin
com fúria e agonia. A luz do fogo deixava-o meio envolto em
sombras e indefinição, a não ser aquela máscara, os olhos, as
mãos roxas que apertavam os braços da cadeira.

E antes que Martin, apavorado, pudesse dizer mais


alguma coisa, o corpo alquebrado de Jacques levantou-se da
cadeira com um tremendo esforço, lançando-se aos pés do
amigo. E agarrou-se aos joelhos de Martin, a máscara agora
convulsionada, as lágrimas escorrendo, erguendo-se para
Martin. Havia uma força mortal na pressão daqueles braços.
Jacques soluçava, balbuciava, batia com a cabeça nos joelhos
de Martin. Não o largava; seus braços pareciam de aço. Mas
mesmo que tivessem apenas a força de uma criança, Martin
não poderia ter-se mexido. Jacques estava dizendo coisas
estranhas e horríveis. Não, não, balbuciava ele, qualquer
coisa menos aquilo, Martin tinha de prometer-lhe, qualquer
coisa menos aquilo! Ele morreria, só de pensar em tal
perspectiva! Martin não podia casar. Tinha de ficar ali, com
Jacques, que o amava como nenhuma mulher jamais poderia
amá-lo. E ele prometeria, em nome de Deus, em nome de
Maria, que nunca o censuraria por romper sua promessa. Ele,
Jacques, seria o escravo de Martin... qualquer coisa! Oh,
Deus, qualquer coisa! Mas Martin não podia casar. Por favor,
não case. Jacques sorriu por entre as lágrimas, uma criança
suplicando por sua vida, diante do machado levantado. Não,
Martin não podia casar! Jacques prometia tudo... qualquer
coisa. Poderiam passar algum tempo longe, se Martin
quisesse, só os dois, conversando, pensando, ficando juntos,
como outrora acontecia. Ele, Jacques, não tinha muito tempo
para viver... sabia disso. Só mais um pouco e Martin estaria
livre. Misericórdia. Misericórdia. Ele suplicou, gemeu,
rastejou, num abandono de todo e qualquer orgulho
humano, algo que o inglês Martin achou vergonhoso.

E depois Jacques arriou, inerte, subitamente silencioso,


como se tivesse morrido. O fogo crepitava, rugia, gemia
inquietantemente. Através da grossa porta de carvalho, a voz
trovejante de Madame Bouchard soava apenas debilmente.

Martin não podia se mexer. Os músculos pareciam


inteiramente paralisados, estranhamente frios. Disse a si
mesmo que não podia se mexer, caso contrário começaria a
vomitar. Mas, lentamente, começou a tremer. Mal conseguia
respirar. Era inocente demais, sua vida sempre fora restrita e
apartada da turbulência das emoções humanas, para
compreender todas as implicações por trás da agonia de
Jacques. Mas os instintos de medo e fuga estavam
despertados, clamando interiormente. Foi dominado por um
súbito horror. Daria sua vida para estar longe daquele
quarto, longe daquela situação terrível. Nunca mais voltaria!
Nunca mais! Não queria tomar a ver Jacques. Calafrios de
repugnância acrescentaram-se aos tremores. Não podia
pensar em outra coisa que não sair dali, escapar daquela
loucura. Era um pesadelo. Não demoraria a acordar e estaria
a salvo, sozinho.

O pensamento era tão atraente, tão desejável, que ele


mexeu os pés, involuntariamente. Mas Jacques segurava-os,
o rosto comprimido contra eles. O movimento de seu próprio
corpo, no entanto, despertou Martin para o pensamento
coerente, para a realidade. Olhou para aquela pilha informe a
seus pés, para aquele corpo deformado, para as pernas
grotescas contorcidas no chão, para aquela cabeça
terrivelmente humilhada. Foi invadido pela compaixão,
sentiu repulsa de si mesmo. O pobre Jacques o amava, tinha
medo de que seu casamento com Amy pudesse separá-los.
Mas que bobagem, que tolice! Ah, aquela pobre criatura
deformada, que nunca amaria uma mulher, nunca teria uma
mulher para amá-lo!

Martin abaixou-se e gentilmente desvencilhou os braços


de Jacques. Não teve qualquer dificuldade agora... os braços
se afastaram de suas pernas como se estivessem mortos,
inteiramente inertes. Martin levantou-o como se fosse uma
criança, acomodou-o na cadeira. A cabeça de Jacques caiu
sobre o peito. Os olhos estavam fechados, como se ele
tivesse desfalecido. Por trás daqueles olhos, no entanto,
coisas estranhas e terríveis continuavam.

— Jacques, não vou deixá-lo nunca, mesmo depois que


casar — disse Martin, gentilmente, inclinando-se para o
amigo. — Você irá nos visitar e nós viremos até aqui. Nada
vai mudar, a não ser que seremos três amigos, ao invés de
apenas dois. Você não conhece Amy, não pode imaginar
como ela é meiga e generosa. Ela é capaz de compreender
tudo.

Jacques recomeçara a soluçar, como se não tivesse


ouvido. Eram soluços silenciosos, infinitamente patéticos e
desesperados, como se ele tivesse perdido toda e qualquer
esperança. Não olhava para Martin, seus olhos permaneciam
fechados. Timidamente, ele procurou a mão de Martin,
levou-a aos lábios e beijou-a, humildemente, largando-a em
seguida. Havia algo de renúncia no gesto.

Martin ouviu-se a prometer, consolar, exortar,


incoerentemente. A vertigem voltava a invadi-lo, mas a
compaixão impelia-o a confortar o amigo. E Jacques
continuava sentado, de olhos fechados, cabeça abaixada, em
silêncio agora, imóvel, como se tivesse adormecido, depois
de um terrível choque.

Martin suspirou e afastou-se um pouco. Jacques respirava


regularmente; gemeu uma vez e se mexeu na cadeira, como
se procurasse uma posição mais confortável para dormir.
Prendendo a respiração, Martin tornou a aproximar-se,
inclinou-se sobre Jacques, ansioso. E teve certeza, com um
imenso alívio, de que Jacques mergulhara num súbito sono
da mais completa exaustão. Pegou o cobertor que estava ao
pé da cama e ajeitou-o gentilmente sobre os joelhos e pernas
de Jacques. Depois, tornando a suspirar, saiu do quarto na
ponta dos pés.

Fechou a porta gentilmente. No instante em que isso


aconteceu, os olhos de Jacques se abriram. Ele não mexeu
sequer um dedo. Ficou olhando para o fogo por um longo
tempo, mais de uma hora, até que as achas se partiram num
último braseiro de luz e calor. E o quarto começou a esfriar.
CAPÍTULO XXIX
Durante os dias subsequentes, Martin não teve coragem
de tornar a visitar Jacques, por mais que quisesse. Acabou
indo procurar o Padre Dominick e relatou a cena com o
jovem francês. O padre escutou atentamente. Enquanto
Martin falava, os olhos dele foram se estreitando, assumindo
uma expressão pensativa, de extrema curiosidade. Quando
Martin acabou, o velho sacerdote pensou: 'Era o que eu havia
imaginado. Mas que rapaz singularmente inocente!” E ele se
tornou ainda mais curioso, quase incrédulo. Mas falou com
profunda gentileza e preocupação:

— Muitas vezes os aleijados são dominados pelo egoísmo.


Suas vidas são necessariamente restritas e limitadas e
apegam-se em demasia às pessoas que amam. Desconfio que
nosso pobre amigo é um ciumento.

E outra vez ele fitou Martin com a maior curiosidade.

O Padre Dominick aconselhou Martin a permanecer


afastado da casa dos Bouchards por algum tempo. Ele
visitaria Jacques, tentaria fazê-lo compreender, tentaria
ajudá-lo a encarar a situação de maneira menos egoísta.
Martin sentiu-se profundamente aliviado. Tinha certeza
agora de que tudo acabaria bem. Depois que ele se foi, o
padre sacudiu a cabeça, contraiu a boca amargamente e
pensou: “Uma situação terrível. Será melhor que os dois
nunca mais se encontrem, pois, algum dia o nosso pobre
Jacques talvez não consiga mais se conter e irá então
provocar o maior choque em seu amigo.”

Poucos dias depois, ele comunicou a Martin que Jacques


estava inesperadamente calmo e cordato. Escutara
atentamente a tudo o que o padre lhe dissera, sorrira um
pouco, concordara, passara a falar de outras coisas. Mas não
pedira que Martin fosse visitá-lo. Martin ficou perplexo e
magoado por isso, bastante inquieto, pelas duas semanas
seguintes. Mas encontrou-se com Armand e este mostrou-se
tão cordial como sempre. Assim, Martin chegou à conclusão
de que Jacques estava simplesmente de mau humor ou
tentando se recuperar. Disse a si mesmo que sentia saudade
de Jacques e ficou envergonhado por não conseguir acreditar
nisso. Ao mesmo tempo, sentia-se inesperadamente livre,
extraordinariamente feliz. Todas as coisas sempre lhe
haviam parecido enfadonhas, sem sentido, irreais; somente
seus sonhos tinham substância. Recordando agora tais
sonhos, Martin ficava espantado, sem entender como podiam
deixá-lo satisfeito. Chegou relutantemente à conclusão de
que vivera numa espécie de encantamento, que o privara do
prazer de viver.

Não tinha antes a menor ideia de que as coisas pudessem


ser tão agradáveis. Gregory Sessions parecia gostar
imensamente dele. Isso não era uma ilusão de Martin, pois
Gregory realmente achava algo de comovente na ansiedade e
ardor do rapaz, na simplicidade e integridade de suas
perspectivas. Gregory nunca fora assim, mesmo quando era
jovem. Em toda a sua vida, conhecera apenas três pessoas
assim: sua irmã, Amy, a filha dela e Martin. Como Ernest, ele
pensava, com alguma inveja: como deve ser tranquilo ver as
coisas sempre de forma íntegra e simples, jamais colocar
armadilhas para prender os próprios pés! Em outras
ocasiões, no entanto, ele chegava à conclusão de que tal
atitude mental era semelhante à inconsciência de uma
criança pequena. Acontecia porque Martin nunca
reconhecera e admitira a realidade, pensava Gregory. Ele
sabia que apenas duas espécies de homens possuem tal
inconsciência: os tolos e os ascetas. Perguntava-se de que
espécie Martin seria.
Gregory também achava a vida extremamente agradável
naqueles dias. Martin contribuíra para uma situação
estimulante, embora sem o saber, uma situação que
proporcionava o maior prazer a Gregory. Era o fato de Ernest
descobrir que continuava apaixonado por Amy, tão
apaixonado que a cada dia parecia se tomar mais pálido e
encovado, os olhos mais duros. Gregory sentia a maior
satisfação em observar a luta violenta que se desenvolvia
por trás daqueles olhos. O tormento de Ernest
proporcionava-lhe uma satisfação requintada, como se fosse
um Torquemada. Conhecia Ernest muito bem para temer a
possibilidade de que ele pudesse destruir tudo por mera
paixão. Assim, seu prazer e ódio podiam deleitar-se sem
qualquer apreensão. Dizia a si mesmo que era uma boa lição
para Ernest, que ele estava sofrendo tanto quanto a pobre
Amy sofrera. Mas Gregory era também suficientemente
arguto para compreender que a verdade era mais profunda.
Era característico dele o fato de divertir-se com o resultado
da sondagem de sua própria mente.

Amy escolheu os móveis que Joseph e Hilda deram de


presente. Seu gosto era simples, mas perfeito. A casa que
Ernest dera a Martin não era como a dos Sessions, com
aposentos amplos, afrescos delicados nas paredes, no ponto
em que se encontravam com o teto, lareiras grandes. Os
aposentos eram longitudinais, sem muita claridade, as
lareiras eram altas e estreitas. Amy escolheu cores vivas,
mas suaves, acrescentando um pouco de brilho aos
aposentos escuros. Substituiu o mármore preto das lareiras
por mármore branco, mandou retirar todos os horrendos
papéis das paredes, escolhendo outros, listrados, em cores
suaves, mostrando pequenos buquês de flores. Os móveis
eram simples, de mogno escuro, sem os cetins escuros,
veludos e feltros que May preferia. Os jardins foram
organizados em canteiros de estilo antiquado, para atenuar a
aparência sombria dos olmos em torno da propriedade.
Ernest declarou que a casa mudara inteiramente de caráter,
foi generoso em seus elogios. Olhava para o rosto rosado e
feliz de Amy, escutava o seu riso, sorria de sua conversa,
tudo com uma afabilidade afetuosa, que tudo escondia, a
não ser uma certa amargura nos olhos. Ajudou May a
escolher os brocados para as janelas e os tapetes, discutia
jovialmente com as duas moças, quando contestavam seu
bom gosto. Sempre que olhava para Martin, ficava
alternadamente espantado com o esplendor do rosto do
irmão e desdenhoso de sua simplicidade. Em outras
ocasiões, seu ódio era como veneno a lhe amargar a boca.

O casamento de Ernest fora uma cerimônia importante e


um tanto séria, apesar da alegria de May e dos seus amigos
elegantes e joviais que tinham vindo de Nova York e
Filadélfia. Afinal, era riqueza casando com riqueza, o que
sempre constituía uma ocasião da maior importância.
Houvera pompa e solenidade na cerimônia. No caso de
Martin e Amy, no entanto, era muito diferente. Claro que era
mais do que provável que Martin partilharia igualmente a
fortuna que Joseph Barbour deixaria, pois não havia coisa
alguma a indicar que Ernest herdaria uma parte maior.
Mesmo assim, a impressão geral era a de que Martin tinha
pouco e jamais chegaria a ter muito. E Amy era uma jovem
sem dinheiro, que não podia esperar coisa alguma dos tios
em termos de um dote substancial. Assim, haveria no
casamento deles um prazer infantil, riso descontraído e
simples, afeição sem reservas, alegria. Todos poderiam
divertir-se sem pensarem nas fortunas envolvidas na união e
sem se preocuparem com a melhor maneira de insinuar-se
nas boas graças do jovem casal. Havia uma alegria delicada e
refinada naquele casamento, alguma coisa comovente e
terna.

O casamento, a pedido de Nicholas, foi adiado por duas


semanas, já que ele estava prestes a iniciar a campanha
eleitoral. As últimas semanas que o antecederam foram um
turbilhão de alegria e protestos excitados, uma
movimentação constante de costureiras e alfaiates,
cozinheiras e decoradores.

E foi exatamente duas semanas antes da cerimônia que


Jacques Bouchard cometeu suicídio.
CAPÍTULO XXX
Era um final de tarde maravilhoso de primavera, quando
Jacques Bouchard decidiu acabar com a própria vida. Era
domingo e tudo ainda estava banhado por uma luz rosada e
violeta. Até mesmo Oldtown parecia menos austera. Os sinos
das igrejas ressoaram alegremente por toda a cidade. Sobre
as árvores que começavam a escurecer, o céu era como uma
meditação vasta e sonhadora. O ar estava impregnado com
uma suave fragrância.

Armand Bouchard acabara de comprar uma carruagem


aberta que acomodava cinco pessoas. Era um veículo sólido,
não muito dispendioso, com couro preto e branco, arreios de
prata, rodas pintadas em cores alegres. Armand contratara
um rapaz para cuidar das novas éguas malhadas. As caudas
brancas amarradas sacudiam-se sobre ancas que brilhavam e
ondulavam. As crinas, segundo Armand, eram tão suaves e
enroscadas quanto os cabelos de uma mulher.

Era um fim de tarde tão aprazível que nada poderia


satisfazer a família além de um passeio antes do escurecer.
Mas Jacques decidiu não acompanhar a família, no último
momento. A mãe protestou, suplicou, ameaçou, mas Jacques
insistiu gentilmente que estava muito cansado, preferia ficar
em casa, lendo ou dormindo. Madame Bouchard anunciou
que ficaria com ele. Mas, com rara firmeza, Jacques recusou
a companhia dela, declarou que ficaria agoniado se a
privasse do prazer do passeio, apenas para fazer-lhe
companhia. Haveria bastante espaço na carruagem,
comentou Jacques. Por que não passavam pela casa dos
Barbours e levavam um ou dois deles para passear? Jacques
fixou seus olhos gentis e penetrantes em Eugene, sorrindo.
Eugene corou imediatamente. Sentia-se contrariado, embora
vagamente satisfeito, pelo fato de Jacques ter percebido sua
adoração pela pequena Dorcas.

Assim, resmungando, de cara amarrada, Madame


Bouchard acendeu as velas e lampiões na casa. Depois, todos
saíram, deixando Jacques inteiramente sozinho na casa, pois
as duas criadas tinham ido à igreja.

Apesar do calor e da beleza do final de tarde, havia


algumas brasas na lareira. Jacques sentou-se diante dela e
ficou olhando-as fixamente por um longo tempo. O rosto
estava impassível e imóvel. Mas, subitamente, as lágrimas
afloraram aos olhos, rolaram pelas faces, caíram em seu
peito. Depois, quando um crescente prateado de luar
apareceu na janela, Jacques se levantou, pegou papel, pena e
tinta, escreveu duas cartas breves. Deixou-as na mesa. Em
seguida, pegou a muleta, subiu a escada com alguma
dificuldade, foi para seu quarto. Aproximou-se da cama,
abriu uma gaveta, tirou uma pistola comprida e preta. A
arma tinha gravado no lado: Barbour & Bouchard. Com
extrema calma, quase indiferente, Jacques examinou a
câmara, verificou que estava carregada. Foi para a sua cama
e se sentou. Olhou pela janela aberta, contemplou a lua por
um instante.

No lado oposto do quarto havia uma estante baixa,


coberta por uma toalha de linho bordada. Ali estava um
crucifixo de prata, alto e requintado. Diante do crucifixo,
havia uma vela apagada, num candelabro de vidro vermelho.

Jacques desviou os olhos da lua, contemplou o crucifixo.


O quarto estava agora quase escuro, mas a prata cintilava
debilmente. Ele se levantou e arrastou-se até o pequeno
altar, a pistola na mão. Acendeu a vela e ficou olhando a
chama dourada, espalhando alguma claridade pela
escuridão. Depois, por um longo tempo, olhou para o
crucifixo, para o semblante distorcido de prata, para os
pequenos espinhos de prata na cabeça sangrenta. E
finalmente murmurou:

— Mas Você não sabia nada de uma coisa assim.

Depois, ele encostou a pistola na cabeça. E ainda olhando


para o rosto de Jesus, puxou o gatilho. Houve uma única
explosão, o baque da queda, depois o silêncio. A vela
continuou a tremeluzir, serenamente. A agonia no rosto do
homem crucificado tornou-se mais distinta, à medida que a
luz se tornava mais forte. Um tênue filete de fumaça se
contorcia na radiância difusa. No chão, estava estendido
Jacques Bouchard, o rosto virado para baixo, em meio a uma
poça escura, a se alargar, a pistola caída de sua mão. A luz
não incidia sobre ele. Jacques Bouchard estava na sombra.
CAPÍTULO XXXI
Ernest e Gregory também saíram para um passeio naquela
noite. May, no entanto, decidiu ficar em casar, pois não
vinha se sentindo muito bem ultimamente. Andava muito
lânguida, preferia ficar descansando, lendo, costurando,
cochilando. Nunca sentira mais que uma afeição ligeira pela
casa dos Sessions. Mas desde o casamento que a casa se lhe
tornara infinitamente cara, cada aposento transbordando de
paz e contentamento, cada parede amada e apreciada. Ali era
o seu lar, pleno e completo, inexpugnável. Gostava de ficar
sozinha, como estava agora, escutando o crepitar de um fogo
recentemente aceso na lareira, imaginando o som da voz de
Ernest, encontrando no silêncio o barulho dos pés de
crianças correndo. Gostava da luz suave das velas, do lustro
dos móveis, dos rostos escuros dos retratos nas paredes cor
de marfim. Pelas janelas abertas para a noite, ela podia ouvir
o tumulto das rãs no pequeno lago ao lado dos jardins, o
farfalhar das árvores. Martin e Amy ainda estavam
passeando pelos jardins, embora já fossem quase 10 horas.
May pensou, sonolenta, se Amy lembrara de levar o xale. Mas
nem mesmo isso pôde ocupar por muito tempo a sua paz de
espírito deliciosa e sonolenta. “Sou uma péssima vigia”,
pensou ela, satisfeita.

Não demorou muito para que Martin e Amy entrassem,


rindo. Amy estava envolta por um xale azul-claro. May fitou-
os e sorriu. Amava-os, pois os rostos deles refletiam a
felicidade que ela sentia.

— É vergonhosamente tarde — comentou ela,


afetuosamente.

Ela gostaria que Martin lhe dedicasse um pouco de


afeição, mas divertia-se com a desconfiança tímida que ele
exibia. Nada, porém, pensou May, podia ser mais gentil ou
mais elegante do que a cortesia dele. May contemplou a
serenidade do rosto de Amy, ouviu-lhe o riso, disse a si
mesma, como já o fizera uma centena de vezes, que era
apenas uma fantasia tola de sua parte pensar que algo vital e
ansioso desaparecera do rosto e do riso, da prima.

Houve um som de rodas de carruagem e vozes. May ouviu


a voz de Ernest e experimentou um calor no coração, como
sempre acontecia. Sua sonolência desvaneceu-se e ela
empertigou-se. Não percebeu que Amy virara o rosto na
direção da voz de Ernest, com uma ligeira expressão de
expectativa.

Ernest e Gregory entraram na sala, falando alto. Ao vê-los,


May parou imediatamente de sorrir. É que ambos estavam
muito pálidos, pareciam um pouco ofegantes, apesar de
cumprimentarem a Martin, Amy e a ela própria
efusivamente. Alguma coisa aconteceu, pensou May,
sentindo um calafrio percorrer-lhe o corpo. Quando Ernest
inclinou-se e beijou-lhe a testa, May fitou-o atentamente. Mas
não foi capaz de perceber coisa alguma na expressão dele.
Gregory tocou a sineta e pediu vinho, pondo-se a conversar
com Martin. Ernest, ainda inclinado sobre May, sussurrou-lhe
ao ouvido:

— Por favor, meu amor, leve Amy para fora da sala.


Temos de contar uma coisa a Martin. Não precisa ficar
nervosa, porque não é nada importante. Apenas Jacques
Bouchard está passando mal e quer ver Martin. Você sabe
como Martin gosta do pobre coitado e queremos dar-lhe a
notícia suavemente.

— Pobre Jacques... — murmurou May, que só o vira uma


vez e não gostara dele. — Ela recolheu sua costura e levantou
o corpo pesado, relutantemente, dizendo: — Amy, meu bem,
estou me sentindo um pouco cansada. Não quer me
acompanhar e ajudar-me a mudar de roupa? Gladys foi
visitar a mãe doente esta noite e estou sozinha.

As duas deixaram a sala juntas. Depois que a porta se


fechou, Gregory interrompeu abruptamente a sua conversa
inconsequente. Martin ficou surpreso; virou-se para Ernest.
Notou pela primeira vez que o irmão estava pálido e
preocupado.

— Martin — perguntou ele — por acaso teve alguma


discussão recente com Jacques Bouchard? Aconteceu alguma
coisa?

A expressão de Martin era vazia. No instante seguinte,


porém, ele ficou vermelho, logo tornou a empalidecer. E
balbuciou:

— Por que pergunta?

Como Ernest não respondesse, limitando-se a fitá-lo com


uma firmeza penetrante, Martin gritou estridentemente:

— Qual é o problema? Houve alguma coisa com Jacques?


Vou procurá-lo imediatamente!

Mas Ernest bloqueou-lhe o caminho, dizendo


rispidamente:

— Não! Não vai adiantar nada agora. Eugene acaba de


aparecer na casa de papai, quando passávamos por lá. — Ele
fez uma pausa, observando atentamente o rosto pálido e os
olhos aturdidos de Martin. — Jacques matou-se, há cerca de
duas horas.
Houve um momento de silêncio opressivo. E depois
Martin exclamou, angustiado:

— Não acredito! É mais uma de suas mentiras, Ernest! Não


acredito! Por que ele haveria de se matar?

— Você é quem pode responder a isso — disse Ernest,


desdenhosamente. Mas ele parecia ofegante e um pouco
assustado. — Aqui está a carta que Jacques lhe escreveu.
Eugene encontrou duas cartas, uma para você e a outra para
a mãe dele. Teve o bom senso de pegar a sua carta e
esconder, levando-a depois para mim.

Ele jogou a carta na cadeira vazia ao lado de Martin.


Gregory, tomando seu vinho lentamente, observava os dois,
absorvido. Havia alguma coisa ali que não chegava a
compreender. Mas nada no mundo, com exceção de um
terremoto, poderia arrancá-lo daquele lugar.

— Por que não lê a carta? — perguntou Ernest, alteando a


voz, pois Martin permanecia na atitude de um sonâmbulo.

Ernest finalmente segurou o irmão pelo braço e sacudiu-o


violentamente, gritando:

— Leia a carta!

Como um homem hipnotizado, obedecendo às ordens de


quem o hipnotizava, Martin pegou a carta. Virou-a nas mãos,
apaticamente. Depois, levantou os olhos vidrados para
Ernest, murmurando:

— Você abriu a carta.

— Isso mesmo, abri — confirmou Ernest, incisivo.


Martin piscou os olhos repetidamente. A carta tremia em
suas mãos. Ele inclinou-se, a fim de que a luz da vela
incidisse sobre a carta. E leu:

“Caro Martin: Perdoe-me, por favor. E, por favor, não


assuma a responsabilidade com sua alma gentil e generosa.
Não é culpa sua que eu não possa viver por mais tempo. Mas
não pude suportar a ideia de partilhá-lo com outra pessoa.
Sou egoísta e mau. E, fazendo o que vou fazer, estarei me
colocando além da misericórdia de Deus. Mas nem isso é tão
terrível como o fato de você me deixar. Só tenho mais uma
coisa a dizer: é que gostaria que você ficasse com meu
crucifixo de prata que veio da França e o rosário de
granadas. Perdoe-me. E reze por mim, se puder. Seu amigo,
Jacques.”

A carta foi como um raio passando pelo corpo de Martin.


Ele arriou na cadeira. A carta escorregou entre seus dedos e
caiu no tapete. No silêncio que se seguiu, o relógio de
ouropel bateu as horas suavemente, o barulho ressoando
com ironia. As velas tremulavam à brisa amena que entrava
pelas janelas. De repente, Martin levou as mãos ao rosto e
começou a soluçar, secamente.

Ernest abaixou-se, pegou a carta e jogou-a no fogo, com


uma carranca de repulsa.

— Mas que confusão terrível! — exclamou ele,


sombriamente.

Por um instante, a náusea ficou evidente em suas feições.


Ele olhou para Gregory, que alteou as sobrancelhas e deu de
ombros, expressivamente.

— Vamos, Martin, seja um homem. O problema tem de ser


enfrentado. O que sabe a respeito de tudo isso? Tem de me
contar. Só Deus sabe o que o idiota escreveu na carta para a
mãe. Ele pode tê-lo acusado de qualquer coisa. E não
podemos esquecer a polícia. Oh, Deus!

Ele arrematou com uma veemência reprimida e repulsa


intensa. Cuspiu na direção do fogo, como se estivesse com
um gosto horrível na boca.

Martin baixou as mãos. O rosto estava pálido e


conturbado, a boca contraída. Começou a falar quase num
sussurro:

— É tudo culpa minha. Eu o matei. — Ele virou-se na


cadeira e olhou para Ernest, gritando estridentemente, com
um brilho intenso nos olhos azuis: — A culpa é minha! Eu o
matei! Era tudo o que ele tinha e eu ia deixá-lo! — Martin se
levantou, desvairado, trêmulo. — Vou procurar o pai e a mãe
de Jacques, dizer-lhes que eu o matei!

Ele correu os olhos ao redor, sem ver nada.

— Oh, Deus! — murmurou Ernest, entre os dentes


cerrados.

Ele pegou o irmão pelas lapelas do casaco e literalmente


arrastou-o de volta à cadeira.

— Seu idiota! — berrou Ernest, postado diante de Martin,


ofegante. -Será que não tem o menor bom senso?

Ele parou de falar, empertigou-se, tentou recuperar a


respiração normal. Mas o rosto largo e áspero estava
dominado por uma cor quase apoplética. Olhou para
Gregory, como se pedisse ajuda, como se quisesse que o
ajudasse a denunciar aquele idiota infernal e atroz. Mas
Gregory fitou-o sem qualquer expressão. Continue, seu
demônio, pensou Gregory. Continue, não pare de pensar no
perigo para suas preciosas fábricas e ambições. Tenho
certeza de que vai encontrar um meio de salvar tudo,
controlar a situação. Enquanto isso, no entanto, vai se
angustiar. E quero que se dane! Ele ficou esperando,
exultante, para descobrir de que maneira Ernest iria
contornar o problema.

Martin, aturdido e desesperado, estava inerte na cadeira.


Fora empurrado tão violentamente que uma mecha dos
cabelos louros lhe caíra sobre o rosto. O queixo estava
encostado no peito. Ele não se mexia.

Ernest respirou fundo. A cor púrpura de suas faces foi se


desvanecendo lentamente. Ele parecia estar recuperando o
aprumo, empinando os ombros largos, recorrendo a toda a
sua tremenda vontade e força. Ele pôs a mão no ombro de
Martin, apertando-o como se quisesse lhe chamar a atenção,
através do nevoeiro de dor e desespero. E começou a falar,
bem devagar, incisivamente:

— Preste atenção, Martin. Você não é responsável pela


morte de Jacques. Ele era um aleijado e os aleijados jamais
gozam de juízo perfeito. Jacques iria fazer isso de qualquer
maneira, mais cedo ou mais tarde. A culpa não é sua. Você
tinha o direito de levar a sua própria vida e foi egoísmo e
estupidez de Jacques pensar o contrário. É tarde demais para
fazer qualquer coisa por ele. Lamento muito pelo pobre
coitado! Mas é tarde demais. Você tem de pensar em sua
vida. Tem de pensar em Armand e Madame Bouchard. Não
pode fazê-los sofrer mais do que já estão sofrendo. Seria
muita crueldade.

Ele fez uma pausa. A sua voz tranquila e insistente, no


entanto, surtira efeito. Martin estava escutando. Levantara a
cabeça, fixando os olhos desolados no rosto de Ernest, como
se ali encontrasse a salvação.

— Se Jacques sabe de alguma coisa agora, tenho certeza


de que está arrependido — continuou Ernest, fitando Martin
nos olhos. — Tenho certeza que ele lamenta estar lhe
causando todo esse sofrimento e preocupação. E ele haveria
de querer que você, acima de todas as outras coisas, não
aumentasse as angústias dos pais dele. Não pode deixar de
pensar neles, Martin. Pense no que eles sentiriam, se você de
repente se jogasse em cima deles, como um lunático, como
alguém que escapou de Bedlam, acusando a si mesmo de ter-
lhes matado o filho e delirando como um desvairado! Isso
iria ajudá-los em alguma coisa? Uma mentira poderia
devolver-lhes Jacques? E como acha que o pai e a mãe iriam
se sentir, se você fosse tão estúpido assim? Você tem de
pensar nos outros, Martin.

Gregory fitou-o com uma admiração satânica. Bravo!,


pensou ele.

Ernest ficou esperando pelo que Martin diria. Pequenas


gotas de suor surgiram em sua testa, logo abaixo dos
cabelos. Ele passou a língua pelos lábios, umedecendo-os.
Martin olhava agora fixamente para as cinzas da carta de
Jacques. E depois disse, em voz rouca e apática:

— Tem toda razão, Ernest. Não posso fazê-los sofrer


ainda mais. Jacques não haveria de querer.

— É assim que se fala! — exclamou Ernest.

Ele relaxou visivelmente depois da tensão insuportável


Tirou do bolso o lenço grande de linho e enxugou a testa.
Gregory percebeu que as costas de sua mão também tinham
uma camada de suor. Ernest tornou a pôr a mão no ombro de
Martin e acrescentou:
— Falou como um homem.

Martin disse, como se não tivesse ouvido o comentário do


irmão:

— Mas há uma coisa que posso fazer. O que Jacques


gostaria que eu fizesse. Cumprirei a promessa. Não posso
mais casar com Amy. Farei o que Jacques queria e irei
sozinho para o mosteiro.

— O quê? — gritou Ernest, o rosto se contraindo, as


sobrancelhas se alteando bruscamente, como se não tivesse
ouvido direito, como se pensasse que escutara alguma coisa
inacreditável.

— O quê? — gritou Gregory, arrancado de seu papel de


mero observador e adiantando-se.

Martin acenou com a cabeça, lentamente.

— Eu deveria ter-lhe contado tudo antes, Ernest. Este é o


preço que devo pagar por não tê-lo feito. Amy já sabe. Contei
tudo a ela. Há algum tempo, converti-me à Igreja Católica
Romana. Jacques e eu tencionávamos, há um ano, partir para
Quebec e ingressar num mosteiro. Estava tudo acertado. E foi
então que...

Ele parou de falar, a voz se definhando, angustiada.


Ernest e Gregory se entreolharam, aturdidos.

— Oh, Deus! — sussurrou Ernest por fim, a boca


entreaberta.

Subitamente, Gregory foi convulsionado por um riso


silencioso, o rosto contraído, vermelho, os olhos fixados em
Ernest, num comentário mudo. Depois, ele começou a tossir
furiosamente, como se estivesse sufocando.

— Um papista? — balbuciou Ernest, atordoado, virando-se


para Martin.

— Você tornou-se um papista? Mas para quê? Não dá para


entender! Por acaso estou sonhando?

Ele esfregou a testa vigorosamente. Martin disse,


angustiado:

— Não, Ernest, você não está sonhando. — Ele fez um


gesto desesperado. — Está tudo acabado agora. E só posso
fazer uma coisa por Jacques. Não posso casar com Amy.
Você... você tem de dizer a ela, Ernest. Seria impossível.
Despeça-se dela por mim. Vou partir para Quebec amanhã.

Ele levantou-se, quatro ou cinco dedos mais alto do que


Ernest. Mas havia algo de tão patético, alquebrado e
atordoado nele que parecia ter virado novamente um
menino, oprimido pelas aflições do mundo adulto.

— Não pode fazer isso com Amy! — exclamou Gregory,


sóbrio e agora bastante alarmado. — Por Deus, juro que o
matarei antes! Não pode fazer isso com Amy! Pelo amor de
Deus, Martin, não seja idiota!

— Pensa que é fácil para mim? — gritou Martin, com a


maior veemência.

— Pode imaginar o que significa para mim renunciar a


Amy? A única paz e felicidade que já encontrei veio dela!
Pode imaginar o que significa os outros desdenharem de
você por toda a sua vida, julgarem-no um idiota, rirem de
tudo o que diz, afastarem-se com desdém? Foi isso o que
sempre recebi de todos... com exceção de Amy! — Ele virou-
se para o irmão, furiosamente.

— Nunca falei coisa alguma, jamais desejei coisa alguma,


nunca sugeri nada, mas você sempre me fez parecer um
idiota ou pior! Levou-me até a acreditar que eu não passava
de um idiota! Parecia ter a força de oprimir-me, fazer-me
calar a boca. E durante todo o tempo estava errado... era
você o estúpido, perverso e cego. As pessoas como você
sempre conseguem silenciar os que são gentis, covardes ou
corteses o bastante para não enfrentá-lo. Para dar-lhe a
consideração que você nunca dá aos outros. — Ele sacudiu as
mãos num gesto desesperado.

— Não podemos combatê-lo. Só podemos recuar, nos


afastar de você. Você tem armas que não possuímos, pois
temos alguma compaixão e bondade. Nós... nós acreditamos
em alguma coisa. Mas você não acredita em nada, exceto em
si mesmo. Desdenha tudo, nada lhe é sagrado. Para você,
aqueles que acreditam em alguma coisa são ridículos.

Ele parou de falar, incapaz de continuar, de tanta


angústia. Mas, depois de algum tempo, pôde acrescentar,
mais calmamente, embora com a voz mais embargada:

— Somente Armand compreende o que sinto. Sentia-me


feliz com Amy. Mas agora tenho de renunciar a ela. Devo isso
a Jacques.

Gregory, furioso, virou-se para Ernest com uma expressão


insistente. Ernest estava escutando e olhando atentamente
para o irmão, com uma expressão inescrutável. Pensava
apenas em uma coisa: ele não vai se atrever a fazer isso com
Amy, minha querida! Não vai se atrever. Prefiro antes que o
imbecil morra. Ele não vai fazer isso com Amy!

Ernest segurou o braço de Martin, apertando-o com força,


exigindo toda sua atenção novamente. E disse, ansiosamente:

— Preste atenção, Martin, por favor. Não vou dizer agora


que lamento muito. Por muitas coisas. Deixarei para dizer-
lhe isso em outra ocasião. Creio que simplesmente não nos
compreendíamos. Mas agora temos de conversar sobre Amy.

Ele fez uma pausa. Tornou a acumular sua força, uma


força invencível, uma força agressiva. Por Amy. Estava
desesperado. Podia agora ser astuto, insinuante, lisonjeiro,
humilde. Por Amy. Podia imaginar o rosto dela, abalado,
aturdido, agoniado, sem entender. Era como uma bandeira
branca para a sua vontade e obstinação. Estava dominado
por uma angústia insuportável.

— Será que não compreende, Martin? Será que não


percebe que é justamente isso o que Jacques queria que você
fizesse, que renunciasse a Amy? Por isso é que ele se matou
antes do casamento, ao invés de depois. Jacques queria
arruinar sua vida, destruir o coração de Amy. Queria que
você fosse infeliz. Ele odiava Amy e matou-se para que ela o
perdesse.

E ele odiava também a você, Martin. O pobre coitado tinha


a mente tão distorcida quanto o corpo. Não podia ter
qualquer afeição real por você ou não faria uma coisa dessas,
só para deixá-lo desesperado e afastá-lo de Amy. Ele calculou
tudo com exatidão, a fim de fazer você agir como queria,
sem pensar. Não queria lhe dar tempo, levando-o a destruir
tudo o que tinha na vida, a fim de que fosse tarde demais se
algum dia recuperasse o bom senso. Não deixe que a mão de
um morto também o mate, Martin. Não permita que o
egoísmo e o ódio de alguém destruam a sua vida e a de Amy.
Tem de pensar em Amy. Ela nunca se recuperaria de um
golpe assim. E era também isso o que Jacques queria. Era a
sua vingança contra a pobre moça por tirar você dele.
Ele fez outra pausa. Deveria jogar a verdade na cara de
Martin, a verdade que espreitava malevolamente por trás
daquela carta monstruosa? Conhecia a inocência austera do
irmão e algo nele, algo que não podia definir, impediu-o de
falar. Mas disse a si mesmo que falaria, se aquele argumento
falhasse.

Mas o rosto aturdido e atento de Martin proporcionou-lhe


um pouco de esperança. Martin fitava-o com intensidade
patética, como se tentasse penetrar além das palavras, para
descobrir se Ernest estava sendo mesmo sincero. Talvez
estivesse meio convencido, pois virou-se para Gregory com
uma perplexidade comovente:

— Acredita nele, Sr. Gregory? Acha que ele está dizendo a


verdade?

— Acredito, sim, Martin — respondeu Gregory, solene. —


É tudo verdade. Pode acreditar nele. Não resta a menor
dúvida de que, ao final, Jacques Bouchard odiava-o. Mas,
mesmo que isso não acontecesse, tenho certeza de que ele
não haveria de querer que você magoasse a pobre Amy.
CAPÍTULO XXXII
Para intenso alivio de Ernest, descobriu-se que Jacques
Bouchard não deixara coisa alguma em sua carta para a mãe
que pudesse levar alguém a culpar Martin pela sua morte. Ele
simplesmente suplicava por perdão, dizia que sua angústia
se tornara acima do que podia suportar, deixava algumas
instruções sobre os seus escassos bens. Há alguns anos que
Armand vinha depositando quantias vultosas em nome dele,
no banco local. Jacques pedia que a metade desse dinheiro
fosse doada à Igreja da Anunciação e a outra metade fosse
entregue ao Fundo para Abolição da Escravatura.

Madame Bouchard ficou como uma besta selvagem


privada de sua cria. Ela ‘uivava como uma loba’, dia e noite,
segundo Armand comentou, tristemente. Nada podia
confortada ou acalmá-la. Quando o padre tentou, Madame
Bouchard cuspiu na cara dele e praguejou contra Deus.
Depois, num acesso de desespero e remorso, arrojou-se aos
pés do padre, suplicando perdão, implorando que rezasse
por ela e por seu filho morto. A agonia de Madame Bouchard
era ainda maior porque Jacques não podia ser sepultado em
terreno consagrado e não recebera a extrema-unção. Mas o
Padre Dominick era o sacerdote de uma Igreja que sabia
atenuar tudo e representava todas as coisas para todos os
homens. Assim, foi capaz de proporcionar um pouco de paz
a Madame Bouchard.

Uma semana depois do enterro, Ernest Barbour visitou o


padre. Declarou-lhe quem era, formalmente, com uma
cortesia desdenhosa. Seu protestantismo rígido desconfiava
de todas as espécies de intenções sinistras e obscuridades
furtivas no “papismo”. A revelação de Martin sobre a sua
nova fé deixara-o alarmado e repugnado. Só Deus sabe como
tudo isso vai acabar, pensou ele. O romanismo era tenebroso
e insidioso, tinha um estranho jeito de reter seus fiéis.
Estava apreensivo com o fato de alguém de sua família ser
vítima do papismo e pensava vagamente que devia livrar
Martin de suas garras. Ah, aquele negócio infernal do
mosteiro! Mas que absurdo!

O Padre Dominick recebeu o jovem rígido e impassível


sem deixar transparecer qualquer surpresa que ele pudesse
perceber. Compreendeu imediatamente por que Ernest viera
e sorriu um pouco para si mesmo. Assim, ele falou
francamente, sinceramente, serviu café e petits fours
franceses, sacudiu a cabeça a propósito de Jacques,
perguntou com interesse como estava Martin. Ernest sentiu-
se tranquilizado. Não havia nada de astucioso ou sutil
naquele homenzinho gordo e simpático, com um sorriso
jovial e uma risada gentil. Além do mais, ele parecia admirar
e respeitar o visitante, pois falou com entusiasmo sobre o
fenomenal desenvolvimento de Barbour & Bouchard.
Confessou que era um excelente atirador e que possuía
pessoalmente um rifle B & B. Ernest ficou surpreso. Não
havia nada de Inquisição Espanhola ali, nada de sinistro e
insidioso. Descobriu-se contando ao padre como soubera
recentemente que Martin se tornara um católico. Depois,
cautelosamente, sorrindo, procurando dar uma impressão de
indiferença, comentou que Martin lhe dissera, na mesma
ocasião, que tencionava ingressar num mosteiro.

Sua cautela não enganou o padre, que tornou a sorrir


interiormente. E ele disse, com franqueza:

— Martin pensou, em certa ocasião, que tinha uma


vocação. Não cheguei a acreditar, mas ele parecia tão
sincero, que admiti que podia estar errado. — Ele suspirou,
observando Ernest discretamente, ao acrescentar: — Receio
que o nosso pobre amigo Jacques Bouchard possa tê-lo
persuadido de que tinha uma vocação. Mas isso agora está
acabado.

O alívio de Ernest transpareceu em seu rosto,


comicamente. Ele sabia muita coisa a respeito do
temperamento de Martin, sabia como era instável e volúvel,
como era inseguro diante de um argumento mais insistente,
como era simples, confiante e gentil. Tivera medo da pressão
do “papismo” sobre as emoções do irmão, tivera medo de
que poderia de alguma forma dominá-lo, levá-lo para trevas
ignoradas, deixando Amy desconsolada e abandonada, no
último momento.

Com aparente inocência, o padre continuou a falar,


contando que Martin lhe dissera que tencionava casar com
Amy Drumhill e que lhe dera sua bênção. O alívio de Ernest
aumentou ainda mais e ele sorriu para o Padre Dominick
quase jovialmente. Aproveitando a vantagem, o Padre
Dominick tornou-se subitamente sério e disse a Ernest que
explicara a Martin que, como católico, devia seguir qualquer
cerimônia protestante ou civil com outra católica e que todos
os filhos resultantes do casamento deveriam ser católicos. E
ele arrematou, com um ligeiro sorriso:

— Achei que deveria dizer-lhe isso, Sr. Barbour, para o


caso de poder, por uma questão de ignorância, tentar
influenciar seu irmão contra essas leis da Igreja.

Ernest, o protestante, estremeceu um pouco à menção da


“Igreja”. Mas sentia-se tão tranquilizado que limitou-se a
dizer, apenas com uma tênue indignação:

— O que o leva a pensar, senhor (ele não podia falar


“padre”), que eu tentaria em qualquer ocasião coagir ou
influenciar meu irmão contra suas convicções pessoais?
O Padre Dominick não pôde deixar de sorrir
efusivamente. Ernest, enrubescendo, teve de sorrir também.

— Descubro agora que estava completamente enganado e


que lhe fiz uma injustiça — disse o padre.

E nesse momento, inesperadamente, sem qualquer


preâmbulo, os dois desataram a rir, quase
incontrolavelmente.

Ernest preparou-se para ir embora. Tirou um cheque do


bolso, de uma quantia considerável, colocou-o na mesinha
cambaia.

— O que é isso? Um suborno? E se for, para quê? —


perguntou o padre, pegando o cheque e notando o valor,
com imensa satisfação.

— Não é um suborno — respondeu Ernest, os lábios se


contraindo numa expressão divertida, para logo acrescentar,
com a maior franqueza: — Poderia ter sido, mas agora não é.
Pode chamar de uma manifestação de alívio.

Os dois tornaram a rir jovialmente e separaram-se com


promessas de que continuariam a se encontrar.

Martin nunca soube dessa visita de Ernest. Se soubesse,


teria um acesso de indignação envergonhada e
ressentimento. Fora procurar o padre na mais profunda
angústia, acusando-se de causar a morte de Jacques. Mesmo
depois dos argumentos de Ernest, queria que o Padre
Dominick o tranquilizasse, confirmando que não precisava
renunciar a Amy como penitência. Não podia suportar uma
visita à casa dos Bouchards, onde tudo o lembrava de
Jacques. Os últimos dois anos tornaram-se indistintos em
sua mente e lembrava apenas um Jacques muito jovem, o
contentamento e afeição que sempre sentira em sua
companhia. Madame Bouchard, no entanto, chamava-o
frequentemente. Olhando para Martin, a quem Jacques
amara, a mulher tinha a impressão de que o filho ficava mais
perto. Ficava sentada em silêncio, apenas olhando para
Martin, balançando-se em sua cadeira, as mãos grandes
sobre os joelhos volumosos, as lágrimas escorrendo pelo
rosto imenso. Abraçava Martin constantemente, balbuciava
com incoerência em seu ouvido, soluçando, encharcava-o
com suas lágrimas. Quis que Martin a acompanhasse ao
cemitério, recusou as ofertas do marido e de Eugene.
Madame Bouchard sentia alívio e conforto ao vê-lo ajoelhado
ao lado da sepultura solitária, dizendo uma breve prece. Foi
essa a humilde penitência de Martin por sua participação na
morte de Jacques.
CAPÍTULO XXXIII
Ernest pôs Eugene Bouchard na direção das instalações da
Kinsolving, proporcionando-lhe um assistente esperto, que
fora o tesoureiro da antiga companhia. Raoul voltou com
uma verdadeira avalanche de magiares e alemães, eslavos e
tchecos. Havia uma tremenda atividade dentro e em torno
das fábricas, com barcas e vagões de carga trazendo as mais
novas e espetaculares máquinas. Ernest pagou a primeira
promissória do empréstimo tristemente, mas mantendo uma
confiança inabalável em si mesmo.

Sempre fora corpulento e bem proporcionado, o torso


comprido assentando solidamente sobre pernas musculosas.
Mas estava agora quase esguio, havia uma aparência ansiosa
em suas feições. Começou a parecer preocupado e exausto,
dando a impressão de que alguma coisa não o deixaria
jamais descansar. Gregory desconfiava, com extremo prazer,
do motivo para isso. Mas sabia que, embora Ernest desse a
impressão de que estava prestes a desmoronar, isso nunca
aconteceria.

Três dias antes do casamento de Martin e Amy, Ernest


anunciou abruptamente que lamentava muito, mas não
poderia estar presente, pois a Guerra da Criméia oferecia
uma oportunidade que não podia perder. Tinha de ir à
Inglaterra, encontrar-se com Strong e Robsons, convencê-los
da superioridade de seus canhões de aço e de outras
patentes.

— Está querendo dizer que vamos agora vender nossos


produtos para serem usados numa guerra? — perguntou
Martin, falando devagar, com uma estranha expressão.

— Mas é claro! — respondeu, Ernest impaciente. — Por


acaso pensava que o objetivo exclusivo da fabricação de
armamentos era a caça aos esquilos?

E ele se afastou. Martin não discutia, não falou mais nada


a respeito. Mas a expressão estranha surgia em seu rosto
sempre que o assunto era mencionado.

“Então ele vai escapar”, pensou Gregory, ao tomar


conhecimento da ausência de Ernest na cerimônia de
casamento. Ele ficou desapontado, pois prometera a si
mesmo que teria um prazer realmente requintado. Contudo,
não tentou dissuadir Ernest de seu plano. Afinal, havia muito
lucro em jogo. Ernest parecia em efervescência, muito
diferente da angústia que sentia em seus pensamentos
particulares. Precisava que uma pessoa competente o
acompanhasse à Inglaterra. Afinal, se suas propostas fossem
aceitas, precisaria de alguém para supervisionar a produção
dos armamentos e munições de Barbour & Bouchard numa
nova fábrica ali. Não podia levar Eugene, agora totalmente
absorvido com a Kinsolving e esforçando-se para dominar o
negócio. Não podia levar o pai, cada vez mais rabugento,
irritado e febril, à medida que as semanas passavam. Não
podia levar Armand, por muitas razões. “Se ao menos eu
tivesse o tipo certo de irmão”, pensou Ernest, amargurado.
“Ele e Amy poderiam ir comigo, em viagem de lua-de-mel,
ficando na Inglaterra quando eu voltasse à América.” Mas tal
possibilidade era inadmissível. O único que restava era
Raoul, o belo e indolente, sorridente e negligente. Mas ele
sabia tão pouco! Ernest resolveu aproveitá-lo de qualquer
maneira. Reforçado pelas promessas e ameaças que Armand
fez ao filho, deu um jeito de meter no cérebro perplexo e
ansioso de Raoul, no prazo de cinco dias e cinco noites, um
vasto acúmulo de conhecimentos, informações e questões
técnicas. Raoul, excitado agora, sentindo-se tremendamente
importante, empenhou-se a fundo, foi para as oficinas,
sujou-se todo de graxa, rasgou as roupas, ficou com as mãos
empoladas, forçou sua indolência a transformar-se em
concentração. E emergiu desses cinco dias movimentados
exausto, mas triunfante. Dormiu 24 horas seguidas. Ernest
não tinha muita certeza dos resultados, mas consolou-se
com a ideia de que teria três ou quatro semanas a mais para
aprofundar a educação de Raoul, durante a viagem de navio.
Raoul, que sempre detestara e odiara Ernest, à sua maneira
sorridente e indolente, desenvolveu agora um imenso
respeito e admiração por ele. Ernest sabia tanta coisa,
possuía força de vontade e determinação tão extraordinárias!
Em parte para zombar de seu inflexível condutor, em parte
para testar a reação dele, Raoul comentou, depois daqueles
cinco dias terríveis:

— Se eu fizer tudo corretamente, mon cher, se ficar


orgulhoso de minha atuação, espero que não me rejeite
como o futuro marido de sua pequena Florabelle.

E ele observou Ernest com os olhos semicerrados,


sorridente, mas alerta.

— Ora, ela não passa de uma criança! — exclamou Ernest.

Mas ele sorriu com extremo bom humor, bateu


jovialmente no ombro de Raoul e passou a falar de outra
coisa. Raoul pensou, atônito e deliciado: ‘‘Acho que era
justamente isso o que ele tencionava desde o início.” E ele
redobrou os esforços do cérebro cansado. Quando Florabelle
voltou da escola para o casamento, Raoul falou-lhe da
conversa. Florabelle, coquete e corando, mas franca,
anunciou que estava disposta a aceitar Raoul para marido.

— Você é a coisa mais bonita do mundo — acrescentou


ela, com uma sinceridade de colegial.

Gregory Sessions, privado de sua principal diversão, pois


Ernest e Raoul deveriam viajar dois dias antes do casamento,
mesmo assim não ficaria totalmente desprovido de prazer.
Ernest estava comendo o seu último jantar, antes da viagem,
em companhia da mulher e de Gregory. (Amy estava
jantando com os Barbour.) Ele estava visivelmente
preocupado. May, pálida e abatida, as covinhas
completamente ausentes, mal tocava na comida. Ernest
tranquilizara-a uma centena de vezes, dizendo que estaria de
volta em meados de julho, o mais tardar, pelo menos duas
semanas antes da data prevista para o nascimento do bebê.
Mas ela não se sentia confortada.

— Não consigo entender por que não pode adiar a viagem


por mais três dias — disse May, lamurienta — tendo em vista
que é seu irmão que vai casar com a minha prima.

— Já lhe expliquei, minha cara, que não posso esperar —


respondeu Ernest, forçando uma paciência tensa em sua voz
cansada. — O Mayflower é o navio mais rápido entre Nova
York e Liverpool; se eu perdê-lo, terei um atraso de mais de
duas semanas. E, por causa dessas duas semanas, não
poderei voltar a tempo. Cada momento é importante. — Ele
afagou a mão fria e inerte de May, sobre a mesa, ao seu lado,
acrescentando: — Anime-se, amor. Não vou ficar ausente por
muito tempo.

— Se ao menos eu pudesse ir com você... — lamentou-se


May, encostando o rosto por um momento nas costas da mão
do marido.

— Mas você é preciosa demais neste momento para


arriscar-se a tal viagem — disse Ernest, jovialmente, fitando-
a com uma expressão pensativa nos olhos exaustos.

Gregory, que aguardava com impaciência pelo momento


de se divertir, disse então:
— É realmente uma pena, mas não se pode fazer nada. —
E fitando nos olhos, firmemente, o homem mais moço, ele
acrescentou: — Ernest, eu lhe disse, certa ocasião, que Amy
era pobre, que não tinha direito a nenhum dinheiro que meu
pai deixou. As usinas, esta casa, as ações, tudo pertence à
May. Contudo, não havia no testamento qualquer cláusula
impedindo que meus recursos particulares ou os de Nicholas
fossem destinados a Amy. — Ele fez uma pausa, sorrindo
com uma afetação de generosidade e satisfação. — Você não
fez qualquer oposição a que seu irmão se casasse com uma
moça sem dote. Assim, tenho certeza de que será ainda
maior a sua satisfação por saber agora que Amy não vai
casar sem um bom dote.

Gregory fez outra pausa, observando Ernest com um


sorriso afável, como se o convidasse a uma manifestação de
surpresa e contentamento.

Conhecia Ernest muito bem para temer alguma


demonstração que pudesse derrubar a mesa ou ferir May
mortalmente. Mas esperava talvez um rápido pestanejar, um
ligeiro tremor, uma súbita palidez, uma dilatação dos olhos.
Mas nada disso aconteceu. Ernest simplesmente pareceu
interessado, satisfeito com a notícia. Se seus dedos
apertaram o garfo com mais força, se sentiu um bolo se
formar na garganta, Gregory não o percebeu.

Gregory ficou desapontado. Mas espere mais um pouco,


pensou ele, ainda não falei tudo! Ele manteve sua expressão
radiante, ao falar, com malícia:

— Isso mesmo, ela terá um dote e tanto! No dia do


casamento... — ele fez uma pausa dramática -... vou
presenteá-la com títulos de ferrovia que, dentro de dez anos,
poderão ser resgatados por 30 mil dólares. E isso não é tudo:
com nosso próprio dinheiro, deixado por nossa mãe,
compramos há dez anos 40 por cento da Galby Lumber Mills
e cinco por cento das ações da Pittsburgh Steel Company,
que era, na época, uma empresa ainda pequena. Eu diria que
essas coisas estão valendo... — ele olhou para o teto,
pensativo, como se fizesse alguns cálculos rapidamente
-...pelo menos 100 mil dólares. A Pittsburgh Steel é
atualmente uma das nossas maiores usinas. Claro que
deixaremos uma pequena parcela disso para May, como
símbolo de nossa afeição... — Gregory inclinou-se para ela,
afetuosamente — ...mas, com a nossa morte, Amy herdará a
maior parte. Assim, na verdade, Amy não é uma moça pobre,
mas sim uma herdeira.

Ele aguardara ansiosamente aquele momento de punição


ao homem que quase arruinara a vida de Amy. Previra o
tormento, ainda maior porque sabia que Ernest não se
atreveria a demonstrar abertamente seus sentimentos. Mas
sabia, com extrema precisão, que o coração de Ernest
subitamente se contraíra, que suas mãos e pés estavam
gelados. Sabia de tudo isso, embora Ernest permanecesse
impassível, a não ser por dois vincos arroxeados que
surgiram em torno dos lábios e a profunda ruga que
apareceu na testa.

Houve uma pausa prolongada e aturdida. Depois, um som


débil e rouco subiu pela garganta de May. Podia ser um grito
abafado ou uma risada baixa. Ela levara o lenço aos lábios e
estava olhando para Ernest por cima dele. Tirou o lenço de
repente. Havia nele uma pequena mancha de sangue, como
se May tivesse mordido o lábio. E May balbuciou:

— Tenho certeza de que isso é maravilhoso para Amy e


muito mais do que qualquer um podia esperar, Gregory,

Mas ela olhava para Ernest, enquanto falava.


Por um longo momento, Ernest ficou olhando fixamente
para Gregory, sem que qualquer músculo de seu rosto se
mexesse. Depois, lentamente, ele desviou os olhos para a
mulher. Percebeu a palidez terrível de seu rosto, a angústia
nos olhos, a mancha de sangue no lenço. Sua expressão
mudou ligeiramente. Pegou a mão de May e apertou-a,
ternamente, virando-se em seguida outra vez para Gregory.

— Sua generosidade, senhor — disse ele, a voz calma,


disciplinada — é extraordinária. Posso apenas agradecer-lhe,
em nome de meu irmão.

E os dois ficaram se olhando, os olhos brilhando, numa


descarga agressiva. Nunca mais vou esquecer isso, pensou
Ernest. Nunca mais vou me livrar dessa expressão de
desespero nos olhos de May. A afeição real que sentia pela
mulher foi aguçada pela compaixão e raiva, quase ao ponto
do amor. Naquele momento, se pudesse matar Gregory com
o olhar, Ernest o teria feito.

Gregory permaneceu calado. Não desejara magoar May


tão brutalmente, pois gostava dela; de alguma maneira
obscura, pensara que ela poderia também desfrutar a ironia
da situação. Mas descobria agora que o amor não admite a
ironia. Golpeara uma mulher fraca, que não podia defender-
se, sentia-se agora abalado pela repulsa a si mesmo, pelo
remorso furioso. Sua raiva maior derivava do fato de ter sido
privado da satisfação pelo pesar de magoar May. E
censurava-se por não ter esperado até ficar a sós com Ernest.

Ernest levantou-se e ofereceu o braço à mulher. Em


silêncio, os dois deixaram a sala. E logo que chegaram ao
quarto de May, Ernest abraçou-a ternamente, beijando-lhe os
cabelos, a testa e a boca lívida. Ele não disse nada, mas May
sentiu-se confortada. E encostou a cabeça no ombro do
marido, como uma criança cansada.
CAPÍTULO XXXIV
O casamento foi simples, mas encantador. Depois, em
segredo e felicidade, Martin e Amy foram procurar o Padre
Dominick e tornaram a casar, de acordo com os rituais da
Igreja Católica Romana, tendo apenas uma lamparina a
iluminar a cena e a velha governanta e o sacristão como
únicas testemunhas. Martin suplicara que a cerimônia
católica fosse secreta, por causa de Joseph e Hilda,
especialmente do pai, cujo estado subitamente se agravara,
levando-o a não comparecer à fábrica há duas semanas.
Seguiram depois para a casa tão graciosamente decorada e
mobiliada, inteiramente pronta, à espera deles. Entraram na
casa à meia-noite, de mãos dadas, como crianças.

— Estou tão feliz — murmurou Amy, nos braços do jovem


marido.

Sou tão feliz, repetiu ela, para si mesma, de madrugada, o


rosto encostado no ombro de Martin, que dormia. Ela sentia
uma profunda paz e contentamento, como se a vida tivesse
se realizado plenamente. Se não havia êxtase, ela só o
percebia subconscientemente. E no momento em que o céu
começou a clarear, Amy finalmente adormeceu, segurando a
mão do marido.

Ernest andava pelo convés do navio na noite de núpcias,


sozinho, em silêncio, contemplando a esteira de luz
brilhante que a lua deixava no mar tumultuado. Por volta da
meia-noite, quando a lua se erguia a pino por cima do navio,
ficou bastante frio. Um oficial do navio passou por ele
diversas vezes, a princípio fitando-o com curiosidade,
depois com uma expressão preocupada.

— A primeira noite de viagem e não consigo dormir —


disse-lhe Ernest.

O oficial conversou com ele por um momento, sobre


amenidades, depois foi embora.

Ernest descobriu, com alguma surpresa, que não estava


sentindo absolutamente nada. Nenhuma emoção revolvia a
apatia que assentava sobre todos os seus sentidos, como um
nevoeiro. Pouco depois de meia-noite, ele descobriu que
estava tremendo de frio e que o oceano parecia
particularmente solitário e hostil. Sou um idiota, pensou ele,
sorrindo envergonhado para si mesmo, descendo para o
camarote que partilhava com Raoul. O rapaz se embriagara
naquela primeira noite e dormia um sono profundo em seu
beliche. Ernest se deitou e adormeceu no instante seguinte.
Seu último pensamento consciente foi o de que aquela cama
estava deliciosamente quente e macia e gostaria que May
estivesse deitada a seu lado.

Nas duas semanas subsequentes, ele sentiu-se dominado


pela curiosidade do retorno ao país em que nascera. Não
pensara mais que meia dúzia de vezes na Inglaterra durante
os últimos anos. Mas agora estava cheio de histórias para
contar a Raoul. Lembrou-se do sol suave, dos dias
intermináveis, os invernos tranquilos, as vozes inglesas,
costumes, reis e aldeias. Lembrou-se das velhas histórias do
poderio e conquistas britânicas, coragem invencível e
determinação inabalável. Lembrou-se de histórias de Nelson
e Wellington que ouvira do pai e do avô, que usava calções
até os joelhos e rendas nos punhos no dia em que morrera,
que guardava rapé numa caixinha de prata, em cuja tampa
estavam gravados o leão e o unicórnio. Era estranho que não
tivesse pensado uma única vez no velho desde que deixara a
Inglaterra. Mas, subitamente, Ernest estava diante do fogo,
numa noite escura, de vento e tempestade, um garoto de
sete ou oito anos. O avô estava sentado no canto da chaminé,
vestindo as suas roupas antiquadas, as mãos e o queixo
apoiados na bengala. Falava a Ernest de sua participação na
batalha de Waterloo, do velho Boney, de Wellington, de nariz
grande e voz tonitruante. Levara um tiro na perna e
claudicava. Era quase analfabeto e um mentiroso ainda por
cima, mas falava com tanta exuberância, que Ernest podia
ver e sentir nitidamente a lama, o terror e o fogo mortífero
de Waterloo, as plumas brancas da cavalaria sob a chuva, os
tambores e trombetas, os gritos guturais dos alemães, aos
quais ele odiava por sua ajuda à Inglaterra, a bandeira
inglesa que caía, era arrancada de mãos agonizantes e outra
vez erguida, apenas para cair novamente, levantar, cair,
levantar, até que o dia terrível chegou ao fim, com a vitória
conquistada. O jovem Ernest ficara emocionado e trêmulo,
chegara a ofegar de ansiedade, radiante, mal respirando.
Ernest esquecera tudo isso. No navio que seguia para leste,
porém, tudo lhe voltou à mente. E ele disse a si mesmo,
numa bela manhã: “Sou um inglês!” Ficou atônito ao
descobrir-se a pensar assim e sentiu que o coração se
acelerava. Achou graça quando percebeu que estava
cantarolando God Save the Queen!, mas continuou a
cantarolar mesmo assim, um tanto desdenhosamente.

Raoul estava se divertindo com aquele patriotismo


atrasado. Não se podia esperar que ele partilhasse o amor
envergonhado de Ernest pela Inglaterra. E ele fez um único
comentário:

— Sua Rainha Victoria não passa de uma porca gorda,


tendo um suíno alemão por marido.

Mas Ernest estava fascinado por recordações de Sandy


Lane, de três crianças correndo atrás de uma jovem Hilda,
com um bebê nos braços, pelas campinas em que as
margaridas formavam um tapete branco em meio à terra
escura, em que o gado solto mugia contente, sob o sol
atenuado por uma neblina dourada. Não visitara a tia-avó do
pai mais que uma dúzia de vezes, mas recordou-se com
súbita intensidade do silêncio fascinante de seus jardins, do
cheiro de lilás quando chovia. O grito do cuco, o cheiro do
pilriteiro, as pequenas colinas verdejantes, com ovelhas
pastando e soltando seus balidos para o céu, os pequenos
poços, serenos, azuis, os córregos preguiçosos, os telhados
de colmo, as paredes brancas das casas, a pequena e
cinzenta igreja normanda coberta de hera, as estradas
esburacadas, os carvalhos, tudo isso lhe voltou com extrema
pungência. E ele sentiu uma terrível saudade de sua terra.
Sentiu que deixara para trás o barulho e a confusão, o calor e
a claridade ofuscante, as idas e vindas que eram como o
ressoar de tambores em sua consciência cansada. Prometeu a
si mesmo que arrumaria tempo para visitar Reddish e
passear por Sandy Lane mais uma vez, verificar se a tia-avó
do pai ainda vivia em sua casa e jardins encantados.

Mas ele nunca foi a Reddish, porque não teve tempo.


Strong e Robsons receberam-no com a típica reserva
britânica. É verdade que a atitude mudou um pouco quando
Ernest informou que era inglês, mas mesmo assim eles
continuaram reservados. Mostraram-se desconfiados e
céticos em relação às patentes, discutiram
interminavelmente, nada prometeram, resmungaram,
protelaram, murmuraram, consultaram, protestaram contra a
precipitação de Ernest, assumiram um ar de dignidade
afrontada diante das pressões. Acostumado ao ritmo dos
negócios na América, onde não havia protelações e
hesitações, Ernest transbordava de impaciência. Depois de
dizer “eles”, ao se referir aos americanos, passou a falar em
“nós”. Ao final, depois de quase três meses, de discussões e
negociações com as mentes britânicas desconfiadas e
impassíveis, chegou-se a um acordo, pelo qual Raoul deveria
supervisionar a fabricação de acordo com as patentes de
Barbour & Bouchard.
— É claro que esta guerra não vai durar muito tempo —
disse o Sr. Edwin Robson. — Mas nunca se pode prever as
guerras futuras e é melhor estarmos preparados.

— Nunca, nunca se pode mesmo prever... em se tratando


dos britânicos — disse Raoul, candidamente.

Os cavalheiros britânicos não confiavam muito em Raoul,


o francês. É verdade que não havia nenhuma querela com a
França atualmente, mas não se podia deixar de levar em
consideração o caráter francês: traiçoeiro, furtivo,
dissimulado, sorridente, ganancioso, insensível e cruel. Foi o
que o Sr. Strong insinuou a Ernest, que experimentou o maior
prazer em repetir a Raoul.

— Acho que é a parte do insensível, da falta de


sentimentalismo, que eles não podem perdoar-nos —
comentou Raoul, surpreendendo Ernest, que jamais o julgara
capaz de tanta percepção. — Pois os britânicos são tudo o
mais de que nos acusam: traiçoeiros, furtivos, dissimulados,
gananciosos e cruéis. Mas o pior de tudo é que também são
sentimentais. — Raoul fez uma pausa, antes de acrescentar,
sacudindo a cabeça, tristemente: — E isso é algo que não se
pode perdoar. Ah, a pérfida Albion!

— Eu não os classificaria de pérfidos — disse Ernest, um


tanto contrariado, para logo sorrir. — Prefiro chamá-los de
astutos. Os ingleses simplesmente pulam em cima da presa
da mesma forma que o gato. É por isso que são invencíveis.
Bradam que defendem os oprimidos, mas a olhos imparciais
dão a impressão de que estão completamente enganados e
que sempre apoiam os opressores.

Ernest nunca estivera antes em Londres e a cidade


pareceu-lhe sombria e tenebrosa, impregnada de fuligem,
espalhando-se ao longo do Tâmisa amarelado, as torres
antigas destacando-se como sombras mais escuras no
nevoeiro mais claro, o velho relógio ressoando pelos
telhados molhados, os habitantes apáticos arrastando-se sob
massas de guarda-chuvas, os cavalos cansados arrastando
charretes, carroças e carruagens. Era uma cidade
deprimente, apesar de sua vastidão, em comparação com a
primavera deslumbrante de Nova York, Filadélfia e Chicago.
Ernest estremecia ao tempo úmido e chuvoso do princípio do
outono. Refugiando-se em hotéis incrivelmente sombrios,
comia arenques pela manhã, tomava um café abominável,
ficava arrepiado ao contato com as roupas de camas úmidas,
em quartos que mais pareciam tumbas.

Contudo, à medida que as semanas foram passando, ele


percebeu que havia alguma coisa ali, algo inexpugnável e
seguro, inabalável e indômito, arraigado e forte. Ouvira em
algum lugar:

“Londres é como um homem,


Sente-se a força no ar.”

Isso mesmo, havia força ali, uma pressão vigorosa, poder,


determinação inabalável, que jamais se apressava, mas
sempre acabava alcançando o objetivo, com um vigor
inexorável. Ele sentiu subitamente, em certa manhã cinzenta,
que estava imbuído daquele espírito que impregnava
Londres. E compreendeu que era esse espírito transplantado
que tanto o encantara na casa dos Sessions, a mesma
qualidade de firmeza e solidez, a inexpugnabilidade de
fortaleza, de poderio arraigado, de segurança que não era
ameaçada pelo passar dos anos.

Passeou pelas ruas que Dickens conhecia e comprou


presentes para May: um xale da índia deslumbrante, um
colar de turquesas engastadas em prata, metros e mais
metros de musselina da índia, uma dúzia de pares de meias
de seda. Observou com isenção um desfile de cavalaria antes
da partida para a Criméia, os casacos vermelhos brilhando,
os corpos esguios e vigorosos, as plumas brancas, lanças
com bandeiras nas extremidades, os cavalos pretos. Tudo
era impressionante, acompanhado pelo estrondo das
trombetas. Ernest ficou abalado e pensou, meio
envergonhado: “Sou mesmo um sentimental, como Raoul
diz. Ele ficou um pouco surpreso ao descobrir que isso o
fazia mais do que apenas um pouco orgulhoso pelo fato de
partilhar esse sentimentalismo com aquelas milhares de
pessoas vibrantes, que partilhavam seu sangue. Era parte de
uma multidão que observou a Rainha Victoria passar em sua
carruagem, uma mulher baixa e atarracada, com um rosto
arrogante e impiedoso, queixo obstinado. Descobriu-se a
aclamá-la, junto com o resto da multidão.

O velho Sr. Robson gostou de Ernest, embora um tanto


cautelosamente.

— Há boa coisa nesse rapaz — comentou ele para seus


associados.

Convidou Ernest a visitar sua casa, velha e horrenda, com


fogos pequenos espreitando nas extremidades dos aposentos
escuros e rescendendo a mofo. Apresentou-o às três filhas
altas e magras, todas resfriadas, fungando. O velho ficou
visivelmente decepcionado quando Ernest comentou que era
casado. Mas recuperou-se prontamente e deu a Ernest uma
informação da maior importância.

Foi por causa dessa indicação que Ernest descobriu-se


atravessando o Canal da Mancha, na manhã fria de setembro,
o ar terrivelmente úmido, apenas um pouco mais seco do
que o mar encapelado sobre o qual o navio flutuava. Ao
chegar a Paris, depois de uma viagem torturante num velho
trem, ele estava com um forte resfriado. Isso não o impediu
de comparecer ao escritório de Schultz-Poiret, uma hora
depois de chegar. Era um conjunto de salas incrivelmente
sujas, numa rua incrivelmente suja, sobre a qual a chuva
despejava-se copiosamente. Ernest apresentou um envelope
lacrado de Strong e Robsons e foi imediatamente recebido.
Conversou durante quatro horas, tornando-se a cada
momento mais rouco e mais febril. Ao final dessas quatro
horas, chegou a um acordo muito melhor do que todas as
suas expectativas. O Sr. Schultz, que era o sócio que melhor
falava inglês, até mesmo mostrou-se entusiasmado com as
patentes e a pólvora, comentando:

— Algum dia teremos dificuldades com o nosso vizinho


do lado de lá.

E ele sacudiu a cabeça para o leste. Ernest olhou


desconfiado para as suas feições teutônicas, mas não disse
nada.

Schultz-Poiret ficou deliciada quando Ernest informou


que Raoul Bouchard, “um sócio francês da firma”,
supervisionaria a fabricação de munições tanto na França
como na Inglaterra. (Ernest sentiu uma profunda apreensão,
que não deixou transparecer, torcendo para que Raoul se
mostrasse à altura da situação.) A viagem de volta à
Inglaterra foi uma agonia de febre, espirros, dores e tosses,
tudo mesclado de exultação. Ao chegar, ele foi diretamente
para a cama, com um cataplasma no peito, uma pilha de
lenços ao lado do travesseiro e um tijolo quente nos pés.
Chamou Raoul e novamente deu-lhe instruções, pela
centésima vez. Ernest contemplou o rosto de Raoul, tão
alegre mesmo quando tentava ficar sério, fez uma prece
desesperada a seus deuses particulares. E depois relaxou,
inteiramente dominado pela gripe.

Certa manhã, duas semanas depois, quando ele já estava


em condições de sentar, recebeu uma pilha de
correspondência da América. Havia uma carta de Gregory,
comunicando que May o presenteara com um esplêndido
filho, no dia 3 de agosto. O menino ainda não fora batizado e
May estava passando bem. Havia um bilhete curto de Eugene,
pedindo-lhe que informasse a Raoul que a mãe morrera, a 12
de agosto, de um derrame. “Não posso contar
pessoalmente”, escreveu Eugene, com a maior simplicidade,
num papel suspeitamente manchado.

E havia também uma carta toda borrada, mal escrita, meio


incoerente, de Hilda, informando-o que levara Joseph a um
médico famoso de Nova York, que emitira uma sentença de
morte. Joseph estava com câncer no estômago e
provavelmente não viveria até o Natal.
CAPÍTULO XXXV
Se Ernest fosse mórbido ou tivesse propensões místicas,
teria percebido um significado lúgubre no cumprimento de
Gregory Sessions, quando finalmente chegou em casa, no dia
4 de outubro.

Durante a travessia do oceano, ainda fraco de sua doença


recente, Ernest se debatera sob o peso da depressão, tristeza
e ansiedade, como nunca experimentara antes. Oscilava
entre a exultação pelo que conseguira na Inglaterra e França,
muito além de suas melhores expectativas, e o desejo
intenso e excitado de rever a mulher e conhecer o filho. Sua
força física, que até então mantivera emoções e pensamentos
sob controle, estava esgotada. Assim, só podia agora
controlar parcialmente as emoções e pensamentos. A mente
foi invadida por mil sensações mórbidas, excitações febris e
melancolias que nunca antes conhecera. Detestava estar
sendo torturado por si mesmo. Seus esforços para recuperar
a estabilidade acabaram por esgotá-lo, física e mentalmente.
Tentou concentrar quase toda a sua atenção nos livros e
papéis, passava horas empenhado em pô-los em ordem,
preocupava-se deliberadamente com as falhas nos
conhecimentos de Raoul. Mas o rosto do pai sempre lhe
aparecia em sua visão interior e sentia o estômago se
contrair numa náusea amarga. Os últimos anos
desvaneceram-se de sua memória e reviu o jovem Joseph,
forte e vigoroso, cheio de vitalidade, rabugento e bem-
humorado, afetuoso e orgulhoso. A angústia de Ernest em
tais momentos era tão intensa que a pena quebrava em seus
dedos tensos, gotas de suor frio afloravam na testa. Se
possível, o anseio em ver o pai era mais forte que o
encontrar-se com May e o filho.
Durante a lenta viagem de trem de Nova York a Windsor,
Ernest esqueceu tudo o mais que não os seus problemas
pessoais. Em sua pressa, não enviara um telegrama
comunicando a chegada. Assim, não havia ninguém na
estação para recebê-lo. Alugou um carro e seguiu para casa,
pelas ruas tranquilas, ao cair da tarde. Windsor parecia ter
parado no tempo, estar sob um encantamento, à espera de
sua chegada. O ar era frio, as árvores estavam quase que
inteiramente desfolhadas, era difícil dizer se era primavera
ou outono. Quando subiu pelo caminho da casa dos
Sessions, contemplando o volume indistinto contra o céu, a
luz amarelada dos lampiões projetando-se naquela massa
irreal como retângulos de claridade, Ernest teve a sensação
de que não passara muito tempo ausente. Alguma coisa nele
se animou, sentiu um estranho conforto. Ali havia segurança,
estabilidade, monotonia que era como água fria a despejar-se
incessantemente sobre uma superfície febril. Pulou do carro
lepidamente, com a maior ansiedade. O mordomo ouvira o
barulho das rodas se aproximando e adiantou-se
rapidamente, para pegar as malas de Ernest. Gregory, que
estava lendo os jornais na biblioteca, sozinho, ouviu a
confusão e saiu para o vestíbulo, no momento em que Ernest
entrava na casa.

E foi então que ocorreu um incidente de lúgubre


significado, que Ernest teria percebido, se fosse
supersticioso ou tivesse propensões místicas. Pois Gregory
não disse qualquer palavra de saudação. Adiantou-se, alerta
e excitado, tenso e atento. Pegou a mão de Ernest, fitou-o à
luz do lampião e disse, rapidamente:

— Sucesso?

Houve uma pausa. E, depois, Ernest respondeu:

— Sucesso.
Foi como um passaporte, a senha para um desafio. O
passaporte e a senha para a vida dele, em que, apesar de si
mesmo, tudo era relativamente sem importância. Apenas
mais duas vezes, em toda a sua vida, Ernest haveria de
experimentar a mesma clareza de visão, durante a qual teria
a impressão de estar parado a distância e observando a si
mesmo, como se fosse impelido por alguma força exterior
sobre a qual não tinha o menor controle. Ora, pensou ele de
súbito, não sou absolutamente livre. Sou o mais acorrentado
dos escravos. Depois, ele disse:

— Quero ver May. E meu filho.

— Claro! Claro! — Gregory estava exultante e expansivo.


— Meu caro rapaz, como você está magro! Não nos escreveu
para contar coisa alguma! Ficamos sem saber de nada! Mas
deve primeiro descansar um pouco. Goodwin, traga café e
uma refeição leve para o Sr. Barbour. Agora sente-se, meu
rapaz, sente-se! Cinco meses! Uma vida! A comida será
levada para a biblioteca, onde teremos um bom fogo esta
noite.

Ernest ficou surpreso ao descobrir como estava exausto.


Deixou que Gregory o conduzisse, falasse, providenciasse
tudo. Era maravilhoso estar em casa!

— Onde está May? — perguntou ele.

— Lá em cima, amamentando seu filho e herdeiro.


Goodwin vai avisá-la. Ah, ela já está vindo!

Houve um barulho de pés na escada, um grito, um


farfalhar de saias, um ofego, um soluço. E May jogou-se
sobre os joelhos de Ernest, comprimindo a cabeça dele
contra os seus seios, derramando lágrimas sobre seu rosto,
beijando-o, soluçando, rindo, censurando, afagando-lhe os
cabelos com mãos suaves e trêmulas.

— Por que não nos mandou um telegrama, Ernest? Oh,


meu amor, como você parece doente! Esteve doente! E não
me contou nada!

— Calma, meu bem, calma! Murmurou Ernest, rindo. —


Deixe-me contemplá-la. Está mais linda do que nunca. Mas
não está um tanto gordinha?

May estava realmente mais gorda do que nunca e alguma


coisa em seu corpo fez com que Ernest se lembrasse da
Rainha Victoria. Tal pensamento animou-o, renovou-lhe a
sensação de estabilidade e segurança daquela casa. Os
cabelos de May estavam presos num coque no alto da cabeça
e duas madeixas avermelhadas caiam sobre os ombros alvos.
Havia nela um humor confortável, em lugar da antiga alegria
esfuziante, uma serenidade que cativou Ernest. Goodwin
trouxe a comida. May, alternadamente censurando-o e
acariciando-o, rindo e chorando, ajeitou os pratos familiares
numa pequena mesa, abriu o guardanapo. Teria cortado o
peito de galinha se Ernest não tivesse se rebelado. Ela
despejou o café forte e fumegante do velho bule de prata,
levantou as tampas de prata das travessas e examinou
atentamente o conteúdo, estimulou-o a comer, ficou de pé a
seu lado, como a mãe a velar por uma criança delicada.
Diante dos protestos de Ernest, que não comeria enquanto
não visse o filho, May respondeu que ele não o veria
enquanto não comesse. Assim, rindo e para agradá-la, Ernest
acabou comendo. Nunca se sentira tão seguro, tão amado e
querido. Tinha a sensação de que deixara a tempestade lá
fora. Sabia que estava à sua espera, mas teria forças para
tornar a combatê-la, pois encontrara um abrigo.

Depois daquela primeira pergunta, Gregory não o


interrogou mais a respeito dos negócios que fizera na
Inglaterra e França. Era-lhe suficiente saber que Ernest fora
bem-sucedido. Os detalhes poderiam ser discutidos
posteriormente. Agora, ele podia relaxar, ser cordial e
risonho, observando divertido os cuidados afetuosos de
May. Não sentia qualquer hostilidade contra Ernest naquela
noite, apenas uma consideração afetuosa e aprovadora de
parente.

Ninguém mencionara Joseph. Ernest ainda não quisera


perguntar. Sabia que iria ouvir uma notícia que acabaria com
a sua felicidade da volta ao lar. E, no entanto, quando notou
sagazmente como May e Gregory esquivavam-se habilmente
a qualquer menção à sua família, a não ser por um
comentário afetuoso sobre a felicidade de Martin e Amy,
Ernest sentiu que o coração batia mais forte, como que
oprimido por um peso terrível. Percebeu que eles trocavam
olhares rápidos. Um terror incontrolável dominou-lhe o peito
e não foi capaz de fazer qualquer pergunta. Havia tempo
suficiente para isso depois. Antes, tinha de ver o filho.

Ele subiu com May. Os passos dela eram um tanto lentos


e pesados, ela perdera os movimentos ágeis e saltitantes,
que eram tão engraçados e divertidos. Ofegava um pouco
enquanto subia a escada, segurando a saia com uma das
mãos. O sangue subiu pelo peito e pescoço alvos, espalhou-
se pelo rosto. Dentro de mais alguns anos, pensou Ernest
afetuosamente, ela será bastante gorda. Ele estendeu a mão e
pegou o braço de May, enquanto ela subia a escada à sua
frente. A antiga May, alegre, esfuziante, muito o divertia e
atraía, sempre sentira-se grato pela capacidade dela de fazê-
lo rir. Mas, de certa forma, aquela jovem matrona
rechonchuda, com seus olhos alegres, comportamento
sereno, ar de competência, agradava-o muito mais. May
sempre usara perfume ou alguma essência exótica, algo de
que Ernest não gostava, por lembrá-lo das mulheres
excessivamente pintadas e perfumadas das ruas furtivas. Ele
estava satisfeito por descobrir que May não mais usava
perfumes assim, exalando, em vez disso, um aroma suave de
lírio.

O maior quarto de hóspede fora convertido no aposento


do bebê e fora contratada uma babá gorda e jovial. Um fogo
aconchegante ardia na lareira. As cortinas brancas nas
janelas estavam fechadas, impedindo a entrada do frio da
noite. O berço do bebê estava todo envolto por renda branca,
o tapete era de um azul-claro, os móveis pintados numa
tonalidade marfim. O quarto recendia a sabonete, uma
fragrância suave. A jovem babá, de azul e branco, uma
imigrante alemã, fez uma mesura antiquada quando Ernest
entrou no quarto, retirando-se em seguida para um canto,
corada e apreensiva. May, com um dedo nos lábios, levou
Ernest até o berço. Ternamente, levantou o véu de renda. Ele
contemplou o filho, agora com dois meses de idade, viu o
que lhe pareceu um rosto redondo meio indefinido, rosado,
as mãos minúsculas cerradas. Não sabia direito o que
esperava. Vira bem poucos bebês e não prestara muita
atenção. Mas tinha vaga ideia de uma criança maior e mais
exuberante, com um sorriso, possivelmente um grito. Em
suma, uma criança em torno dos 18 meses.

— Ele não é muito pequeno? — foi a sua primeira


pergunta.

May, que esperava radiante por exclamações de alegria e


orgulho, foi dominada pela indignação.

— Pequeno? — disse ela, tão alto que o bebê se remexeu,


choramingou, enfiou o polegar na boca. — Pequeno? Pois
fique sabendo, Ernest, que o Dr. Winston declarou que ele é
excepcionalmente grande para um primeiro filho! Tinha três
quilos e meio ao nascer e agora está pesando quase sete
quilos. E só tem dois meses de idade!
Ernest riu. Sentia-se um pouco decepcionado. O bebê
carecia de caráter, pensou ele, com aquela penugem amarela
na cabeça e o rosto avermelhado. Depois, percebendo que
May fitava-o com uma expressão furiosa, ele cutucou o filho
especulativamente, arrancando um grito de protesto de May.
Mas Ernest não ouviu, pois, os dedos úmidos do filho haviam
se enroscado em torno de seu próprio dedo. Ele sentiu uma
súbita contração no peito. E sussurrou, olhando para May:

— Ele é horrível.

— Ele é lindo! — respondeu ela, mas sorriu, encostando o


rosto ao braço do marido.

Desceram juntos, enlaçados. May disse que o menino


ainda não fora batizado, ao entrarem na sala de estar, onde
Gregory os esperava, diante do fogo. Ela pensara em dar-lhe
o nome de Gregory James, em homenagem ao pai, se Ernest
concordasse. Ele ficou olhando para o fogo por um longo
tempo, pensativo. Gradativamente, seu rosto foi se tornando
pálido e angustiado. Virou-se finalmente para May e pegou-
lhe a mão, gentilmente, murmurando:

— Eu gostaria que ele se chamasse Joseph, em


homenagem a meu pai, amor.

Ninguém falou. Gregory, constrangido, fingiu estar


absorvido no ato de cortar a ponta do charuto. May fitou
Ernest nos olhos e seus próprios olhos encheram-se
lentamente de lágrimas. Ela levantou a mão de Ernest
impulsivamente e comprimiu-a contra seu rosto.

— Pode me contar agora — acrescentou Ernest. — Como


está meu pai?

Gregory tossiu gentilmente, acendendo o charuto.


Já mandei aprontar a carruagem. Acho melhor irmos à
casa de seu pai esta noite. Estávamos esperando que você
voltasse logo... a tempo.

— O que significa que ele está morrendo — disse Ernest,


em voz baixa, um músculo tremendo em seu rosto.

May levou o lenço aos olhos.

— Se demorasse mais um mês a voltar, Ernest, não teria


visto seu pai vivo — disse Gregory, gravemente. — Mas creio
que a carruagem já chegou.

No silêncio da noite de outono, podia ouvir o barulho das


rodas no cascalho.

Nem Gregory nem Ernest falaram muito durante a viagem


à casa dos Barbours. Para Ernest, encolhido no assento, o
mundo se tornara desolado, um lugar de tormento. Tudo era
vazio, do céu preto e frio ao brilho distante do rio iluminado
pelas luzes em suas margens, do cheiro das folhas
ressequidas, sobre as quais as rodas passavam, ao cricrilar
triste dos grilos, do sussurro do vento ao apito longínquo de
um trem.

Gregory tossiu, a sua tosse gentil, preliminar.

— Vai descobrir que seu pai mudou um pouco, Ernest.

— Mudou?

— Isso mesmo. Parece ter algum ressentimento contra


você. Provavelmente é algo imaginário, mas as pessoas
doentes muitas vezes são assim. Lamento dizer que ele está
sob a ilusão de que você aguarda apenas a morte dele para
roubar seus irmãos. E está lutando contra a morte, quando
estaria melhor morto, só para lutar contra você. — Ele fez
uma pausa, antes de acrescentar, com uma expressão
pensativa: — O câncer é uma doença terrível. Nada consegue
aliviar a dor. O médico já se declarou espantado por seu pai
conseguir viver de um dia para o outro, com o estômago
perfurado e hemorragias frequentes. Ele diz que seu pai está
vivendo pela pura força de vontade. A cada dia, seu pai
pergunta quando você vai voltar. Agora que você está aqui,
talvez ele finalmente... não resista mais. É o melhor que
poderia acontecer.

Ernest não disse nada. Gregory não podia ver o rosto dele
no escuro. Ficou um pouco desapontado e acrescentou,
especulativamente:

— Tenho certeza de que seu pai não precisa ter qualquer


medo de você. De onde será que ele tirou essa ideia?

— Não sei — respondeu Ernest, depois de longa pausa.

Ele levantara a gola do capote e seu rosto não apenas


estava oculto, mas a voz também estava abafada.

— Creio que ele só viu o seu filho uma vez. Disse que era
igualzinho a você quando era bebê e pareceu ficar muito
comovido. Se não me engano, comentou em deixar-lhe o
relógio do pai, que foi um presente do comandante do
regimento, depois de Waterloo, por bravura em combate. —
Ele virou a cabeça bruscamente para Ernest. — Disse alguma
coisa, Ernest?

— Não... nada.

A casa dos Barbours apareceu abruptamente, entre as


árvores. Apesar do brilho dos lampiões nas janelas do
primeiro andar, a casa tinha um aspecto estranhamente
desolado naquela noite. O vento espalhava as folhas mortas
por toda parte, gemia melancolicamente nos beirais. Um fio
de fumaça avermelhada desprendia-se de uma chaminé. Mas,
apesar dos lampiões e da fumaça, a casa parecia
abandonada, completamente deserta. Se ninguém atendesse
à batida deles na porta, Ernest não ficaria muito surpreso.

Uma nova criada, desconhecida para Ernest, conduziu-os


à sala. Ernest ficou aturdido ao descobrir que a sala estava
cheia de pessoas, algumas sentadas em silêncio diante do
fogo, outras formando pequenos grupos, aos sussurros. Lá
estava Amy, de xale, muito pálida, o rosto meigo muito grave
e triste sob a touca, as mãos enluvadas no colo. Martin
estava de pé ao seu lado, a mão em seu ombro, a cabeça
abaixada, falando-lhe inaudivelmente. Lá estava Florabelle,
de volta da escola, olhos vermelhos e inchados, os cabelos
desgrenhados, encolhida a um lado da lareira, chorando. Lá
estava Eugene, com a pequena Dorcas, de rosto pálido, no
colo. E lá estava Armand, andando lentamente de um lado
para outro, de cabeça abaixada, o rosto e a postura de um
homem que envelhecera rapidamente. Martin mandara
chamar o Padre Dominick e o sacerdote ali estava, embora
não soubesse se seria admitido à presença do homem
agonizante. Gregory descobriu, surpreso, que John Baldwin
estava também presente. Havia também um velho alemão,
evidentemente um capataz na fábrica, além de um rapaz a
quem ele chamava de Carl. Ambos eram estranhos para
Gregory, mas Ernest fitou-os com o devido reconhecimento,
indiferente e altivo. Havia diversos outros homens
presentes, limpos, mas andrajosos, obviamente operários,
com rostos morenos estrangeiros, olhos indecifráveis. Eram
homens que deviam ter estimado Joseph, para virem a uma
casa em que inevitavelmente encontrariam Ernest. Este não
conhecia nenhum daqueles operários, mas sabia que deviam
ter vindo de sua fábrica. Não se preocupou em reconhecer a
presença deles, assim como não daria atenção aos cavalos
num estábulo. Hilda não estava na sala. A porta para o
corredor alto e estreito estava aberta e de lá saiu um débil
gemido, por duas ou três vezes.

Quando Ernest e Gregory entraram, todos se viraram para


eles, perturbados e tristes. Martin, corando, incapaz de fitar
Ernest nos olhos, como sempre, apertou a mão do irmão.
Virou a cabeça para o lado quando Ernest perguntou pelo
pai. Armand apertou-lhe a mão e Eugene também, sem se
levantar da cadeira. John Baldwin aproximou-se, solene, para
expressar suas condolências. Mas Ernest encaminhou-se para
Amy, através dos operários, que se afastaram à sua
aproximação. Ele segurou a mão trêmula que Amy lhe
estendeu. Ela fitou-o, triste, compadecida. E disse, como se
tivessem se separado apenas ontem:

— Como está o bebê? Ele não é lindo?

Ernest não podia falar. Largou a mão de Amy lentamente


e virou-se para o fogo. Num mundo que se tomara
bidimensional, Amy era a única realidade para ele. Ernest
ficou perto dela por tanto tempo quanto podia. Não se
falaram, mas, imperceptivelmente, foram atraídos um para o
outro, involuntariamente. Também não se olharam, fixando
apenas o fogo. Ernest, por fim, rompeu o encantamento e
encaminhou-se para Gregory e Martin, que estavam
sussurrando perto da porta. Martin parecia estar bastante
controlado, mas de vez em quando enxugava os olhos.

— Quando posso ver o pai? — perguntou Ernest


abruptamente. — E onde está a mãe?

— A mãe está lá em cima com ele — respondeu Martin. —


O médico também está lá. O pai... o pai não vai sobreviver a
esta noite, segundo disse o médico. É ótimo que você tenha
chegado a tempo. Poderemos subir, assim que o médico
descer. Era o que estávamos esperando.

— Eu não sabia! — murmurou Ernest, em voz tensa. — Eu


não sabia!

— Ninguém sabia — disse Martin, fitando-o firmemente,


com seus olhos azuis.

Ernest fitou-o impassivelmente por um longo momento,


antes de dizer:

— Você não entende o que estou querendo dizer.

E afastou-se.

A sala estava quente e o ar abafado parecia sufocá-lo. Mas


ele não tinha para onde ir. Devia estar ali, como os outros.
Começou a andar. Os operários, constrangidos e com pavor
dele, saiam de sua frente e depois tornavam a formar o
grupo. Enxugavam os rostos suados com lenços vermelhos e
azuis, exalavam odores de suor, sabão ordinário e tabaco.
Alguns haviam se fortalecido com quantidades generosas de
cerveja. Ernest sentiu a maior repulsa. Mas controlou-se, a
fim de não olhar furioso para os homens. Armand decidiu-se
finalmente a acompanhá-lo nas andanças pela sala. Pôs a
mão no braço de Ernest. Havia alguma coisa no contato que
pareceu reprimir um desespero profundo em Ernest. Ele se
lembrou de que Armand também passara por um sofrimento
profundo, com a perda da mulher e do filho. E parou,
envergonhado.

— Armand, desculpe não ter-lhe falado antes. Foi um


choque a notícia da morte de sua mulher. Raoul ficou
bastante abalado.

— Era o que eu queria lhe perguntar — disse Armand


calmamente, fazendo com que Ernest se sentisse ainda mais
envergonhado. — Creio que Raoul era quem mais a amava,
embora ela amasse Jacques mais do que aos outros filhos.
Talvez tenha sido melhor que Raoul não estivesse aqui na
ocasião.

— Raoul está agora em Paris.

Em poucas palavras, Ernest relatou o resultado de sua


viagem. Armand escutou em silêncio, sorriu ligeiramente ao
final, como se estivesse amargamente divertido. E confessou:

— Eu não esperava qualquer sucesso. Mas deveria ter-me


lembrado que era você. — Ele suspirou, antes de acrescentar:
— Minha prima de Quebec, que enviuvou recentemente, está
cuidando da casa para mim e Ernest. — Ele tateou os bolsos à
procura do cachimbo, mas não o tirou, ao encontrá-lo. —
Lembra-se como a minha Renée era uma boa católica? Apesar
disso, ela pediu, com suas últimas palavras, que não fosse
sepultada em terreno consagrado, mas sim ao lado de
Jacques, do lado de fora do muro do cemitério. — Armand
sacudiu a cabeça, com um sorriso triste. — Vocês,
protestantes, não podem compreender o amor intenso e o
profundo sacrifício desse gesto.

O ar tornava-se cada vez mais quente e sufocante. Os


operários descobriram que seu constrangimento na presença
de Ernest era mais forte do que a preocupação por Joseph.
Assim, começaram a se retirar, gradativamente. Por volta de
meia-noite, restava apenas a família e mais Gregory, John
Baldwin, o Padre Dominick e Armand. Amy tirara a touca e o
xale, deixando à mostra os cabelos macios, penteados para
trás. Ela convencera Florabelle e Dorcas a irem se deitar.
Quando as duas deixaram a sala, Ernest pareceu ter
percebido a presença delas pela primeira vez, pois gritou-
lhes:
— Boa-noite, minhas queridas.

Mas elas estavam absorvidas demais em seu sofrimento


para responderem e saíram de cabeça baixa.

Amy foi à cozinha e convenceu as criadas a fazerem café


para as pessoas que mantinham a vigília angustiada. Havia
um silêncio total lá em cima, embora ocasionalmente se
pudesse ouvir o rangido provocado por passos. Ninguém
falava. As pessoas limitavam-se a tomar o café quente. De
vez em quando, alguém punha mais um pouco de lenha no
fogo da lareira. Os lampiões projetavam uma claridade
amarelada, tremeluzindo de vez em quando sob a aragem
que entrava por uma janela. Amy sentou-se perto do fogo, ao
lado do marido, o perfil iluminado pelas chamas. Embora seu
rosto estivesse triste, estava também sereno e
contemplativo, a boca firme, os olhos fixados no fogo, as
mãos no colo. Ernest, observando-a atentamente, pensou
com uma sensação de choque: “Mas essa não é a Amy que eu
conhecia! Ela ficou muito mais velha!” Ele continuou a
observá-la, até que toda realidade, afora ela, desvaneceu-se.
Até mesmo o pai agonizante lá em cima deixou de existir.
Havia apenas Amy, numa aura de luz. Depois de um longo
tempo, Ernest notou-lhe uma distorção no corpo. Um
estranho calafrio percorreu-lhe o corpo. Podia agora suportar
a ideia de Amy estar casada com Martin, mas não podia
admitir a perspectiva de ela ter um filho de Martin. Ele
baixou a mão com que cobria o rosto, deixando escapar um
pequeno ofego, como se não conseguisse respirar.

Houve um grito tênue lá em cima, o som de passos mais


rápidos, vozes baixas, um gemido profundo. O médico e
Hilda desceram a escada. O médico passava o braço pelos
ombros de Hilda, que soluçava numa angústia tensa e
profunda. Todos se levantaram quando eles entraram na
sala. Os cabelos grisalhos de Hilda (Ernest ficou chocado ao
descobrir que estavam agora quase totalmente brancos)
estavam presos desajeitadamente na nuca. O rosto bonito
estava inchado e molhado de lágrimas. Ela encaminhou-se
imediatamente para Ernest, abraçou-o, beijou-o, balbuciou
muitas vezes:

— Oh, Ernest, Ernest, Ernest!

— O Sr. Barbour está consciente agora — disse o médico.


— Não vai ficar assim por muito tempo. Pediu que todos os
presentes subissem para vê-lo. — Ele fez uma pausa, antes
de acrescentar: — Não aprovo isso, mas acho também que
não vai fazer muita diferença.

Subiram em silêncio, Ernest e a mãe na frente, Martin


ternamente ajudando a jovem mulher. Será que ele não tem o
mínimo bom senso?, pensou Ernest. Ela não deveria entrar
naquele quarto! Ele olhou para Amy, que levantava a saia
com uma das mãos, a outra no braço do marido. Ela fitou-o
com angústia e compaixão. Martin parecia estranhamente
controlado, embora grave.

O quarto do doente estava quente, com um fogo na


lareira, velas acesas. Havia uma impressão de confusão,
Joseph estava deitado entre um volume de travesseiros
amarrotados, a respiração era entrecortada, meio rouca.
Estava de olhos fechados, terrivelmente pálido. Ao vê-lo
assim, contemplar as mãos esqueléticas sobre a colcha,
escutar aquela respiração, Ernest experimentou um profundo
choque. Aquele homem definhado, cujos cabelos estavam
grisalhos e era um volume informe na cama, aquele homem
agonizante não podia ser o irônico e irascível Joseph, que
ficara confundido e perturbado por sua riqueza acumulada,
não encontrara a paz em parte alguma. Num relance de
pensamento, ficou subitamente evidente para Ernest que o
pai possuíra uma coerência de pensamento, uma
simplicidade de viver, como Martin. Ficou-lhe subitamente
evidente que toda a família, com exceção dele, possuía tal
simplicidade.

Ernest sabia, antes mesmo que o pai abrisse os olhos


torturados e o fitasse com a terrível apatia dos moribundos,
que aquela morte não seria fácil e que de alguma forma ele
estava envolvido nisso. Olhou para Hilda, que se aproximara
da cama e ajoelhara ao lado, chorando; olhou para os rostos
sombrios, iluminados pela luz do fogo, rostos tristes e
perturbados. Alguma coisa fez com que seu coração batesse
insuportavelmente depressa, como se confrontado com o
perigo. Sentiu vontade de ficar perto do fogo. Mal chegara lá
quando Joseph abriu os olhos e contemplou o grupo ao pé da
cama. O olhar foi deslizando pelos rostos exaustos, sem
qualquer vontade de reconhecimento. Era evidente que
estava à procura de alguém. Percebeu a sombra de Ernest
perto do fogo e sua cabeça deslocou-se lentamente nessa
direção. Ernest estava parado diante do fogo, delineado
diante dele, de tal forma que o clarão vermelho ampliava
seus contornos, emprestava ao rosto e à cabeça uma
impressão sinistra. Ernest sabia que o pai estava acordado e
fitava-o, mas não podia se mexer. Era como se sua carne
tivesse se transformado numa prisão de gelo, contra a qual
nada podia fazer.

— Então está de volta?

A voz de Joseph era rouca e entrecortada, quase um


sussurro.

— Estou, sim — respondeu Ernest por fim, calma e


firmemente.

O som da própria voz rompeu o terrível encantamento


que o dominava. Aproximou-se da cama, parou ao lado,
contemplando o pai, tentando sorrir.

— Estou de volta, pai.

O homem agonizante observou-o. Havia um brilho


estranho nos olhos dilatados. Ernest pensou: ele me odeia. E
pareceu-lhe subitamente que o ódio era uma coisa
lamentável da qual o pai tinha de ser alvo, para que pudesse
encontrar a paz. Se ao menos ele tivesse morrido antes do
retorno de Ernest, se não visse aquela ruína terrivelmente
pálida, embora com os olhos alertas, as mãos irrequietas...

— Estou de volta, pai — repetiu Ernest, forçando os lábios


a se contraírem num sorriso, sentindo um suor frio a
escorrer-lhe pelas costas.

Um estranho sorriso exultante apareceu na ruína que era


o rosto de Joseph. Ele virou-se para Martin e disse:

— Traga-me os papéis que estão naquela mesa, rapaz.

Martin atendeu, trazendo alguns papéis cobertos com a


letra de Joseph e estendendo-os para os dedos esqueléticos
do pai. Os dedos seguraram os papéis, vigorosamente.
Joseph olhou para os que estavam ao pé da cama. O brilho
tornou a surgir em seus olhos, impregnados de ódio,
triunfantes. Ele virou a cabeça na direção de Ernest, sem fitá-
lo. Sua voz estava mais forte quando falou:

— Olhem para ele! Esse é meu filho Ernest! Meu filho!


Sabem o que ele vem fazendo? Tem esperado justamente por
este momento! Há anos e anos que ele vem esperando.

Joseph tentou se sentar, tornou a cair sobre os


travesseiros. Hilda parara de soluçar e agora gritou:
— Joe! Joe!

Ela fez um esforço para se levantar. À luz do fogo, olhou


para Amy, que estava chorando; olhou para Martin, Armand e
Gregory.

— Ele não sabe do que está falando... Joe!

O medo estampou-se no rosto inchado de Hilda. Ela


implorava aos outros, uma das mãos levantada, trêmula, a
outra mão segurando os dedos frios de Joseph. Martin
deixou a mulher e foi postar-se ao lado da mãe. Ela apoiou-se
no ombro do filho e soluçou. Mas Ernest apenas esperava,
observando o pai impassivelmente.

A expressão exultante desvanecera-se do rosto de Joseph,


que estava agora sombrio, lúgubre.

— Sei muito bem o que estou fazendo, mulher — disse


ele, a voz rouca. — Foi por isso que eu queria todos aqui...
para confirmarem que eu sabia e servirem como
testemunhas. Aqui está o Sr. Gregory, que é também um
notário, pode assinar e testemunhar coisas, dizer que eu
estava em meu juízo perfeito. Assim não haverá conluios e
trapaças, não haverá traições e advogados astutos.

A voz minguou. Ele ofegou, contorceu-se sobre os


travesseiros. No canto dos lábios lívidos apareceram
pequenas gotas vermelhas.

— Pare de chorar por um momento, mulher — ele olhou


para Hilda com uma aflição extenuada. — Só me resta pouco
tempo e tenho de falar. Preciso falar, para o seu próprio
bem, de Martin e das meninas.

Ele levantou um dedo e apontou para Ernest, ainda sem


fitá-lo, mas atraindo a atenção dos outros.

— Olhem para ele. Meu filho. Que estava aguardando por


este momento. Esperando para roubar o irmão, a mãe e as
irmãs. Quando eu não estiver mais aqui para protegê-los.
Esperando para tirar o pão de suas bocas e jogá-los na rua.
Esperando para...

— Isso é mentira, pai — interveio Ernest, firmemente. — E


no fundo sabe que é mentira. Não sei por que está dizendo
isso. E creio que também não sabe. Mas certamente sabe que
está mentindo.

— Ernest! — exclamou Martin bruscamente, afrontado.

Ele deu um passo para frente, mas Ernest fitou-o nesse


momento, E havia alguma coisa no olhar do irmão que
paralisou Martin.

— Então sou um mentiroso, hein? -sussurrou Joseph,


olhando agora para Ernest, com malevolência, sorrindo de
novo. — É mesmo capaz de dizer a seu pai, no leito de
morte, que ele é um mentiroso. Mas isso só serve para
mostrar quem você é. Sabe muito bem que não estou
mentindo. Sabe que é um ladrão e um patife, sabe que estava
esperando apenas por este momento! — Houve um breve
momento de silêncio, antes que Joseph continuasse: — Fiz
um testamento há três anos. Você... e Martin seriam os
executores. Tudo... em suas mãos. — A voz dele estava
engrolada, estrangulada. — Confiava em você naquela
ocasião. Mas sei que estava enganado. Martin é um rapaz
simples. Cheguei até a pensar que ele era meio bobo, por
tudo o que sabia... das coisas. (Um brilho sombrio surgiu por
um instante nos olhos de Ernest.) Vejo que sabe o que estou
querendo dizer. Martin é um rapaz simples. Qualquer patife
esperto pode fazer o que bem quiser com ele, sem
dificuldade. Pode fazê-lo acreditar em qualquer coisa. E eu
sabia que seria apenas uma questão de tempo até que minha
pobre mulher, as meninas e esse rapaz ficassem sem nada,
inteiramente sem dinheiro, talvez despachados de volta à
Inglaterra, como o pobre George, com um punhado de
moedas. E meu bom Ernest ficaria absoluto, com todo o
dinheiro, com tudo por que sempre trabalhei e lutei. Era isso
o que ele sempre tramou...

Ernest tornou a interrompê-lo, declarando em voz alta,


incisiva:

— Isso é uma mentira.

— Ernest! — disse Gregory, chocado e firme. -lembre-se...

— Ernest... — murmurou Armand, sacudindo a cabeça.

— Ernest! — balbuciou Hilda, angustiada.

Somente Amy ficou calada, olhando firmemente para


Joseph. Ernest virou-se para os outros, com um gesto brusco
e furioso.

— Vocês sabem que ele está mentindo! E deixam-no


morrer na mentira! Deixam-no repetir a mentira, até que ele
passe a acreditar! Mas eu não estou morrendo. Tenho de
continuar a levar a minha vida. Tenho mulher e filho, todos
os anos em que me devotei à fábrica, todas as coisas que fiz.
Tenho sacrifícios por trás de mim e só Deus sabe quanto
trabalho. Tenho de continuar a viver, recordando que todos
vocês deixaram meu pai morrer na mentira. Tenho de viver
desonrado por uma mentira repulsiva. Mas quero que todos
vão para o inferno! Que importância tem o que acreditam ou
deixam de acreditar? Mas tenho um filho, terei outros, não
quero que eles sejam afetados por essa mentira!
Ele não se importa se acreditamos ou não nessa
“mentira”, pensou Gregory. O problema é outro. E ele olhou
atentamente para Ernest, curioso, em silêncio.

Ernest tornou a virar-se para o pai, quase que


selvagemente.

— Está doente demais para saber o que diz, pai. De


qualquer forma, no fundo não acredita nisso. Pelo amor de
Deus, se tem de morrer, que pelo menos morra em paz, sem
ter isso na consciência. Sei há anos que não confiava em
mim, suspeitava de meus atos. Mas pensei que tudo isso
estava na superfície de sua mente, que por baixo não
acreditava nessas coisas. Como poderia acreditar? Que
provas tinha? O que disse seu irmão George? Sabe muito
bem quem ele era. Tem outras coisas para provar minhas
‘tramas’, como chama? Tudo o que fiz foram negócios, pai,
apenas negócios. É assim que se fazem as fortunas. Ganhei
fortunas para todos nós. Não teria um décimo ou mesmo um
centésimo do que tem hoje se não fosse pelo meu trabalho.
— Ele respirou fundo, antes de acrescentar, a voz trêmula e
tensa: — Mas já sabe de tudo isso!

Joseph escutara em silêncio, o rosto macilento com uma


expressão de ironia. Ele sacudiu a cabeça debilmente na
direção de Ernest, enquanto olhava para os outros.

— Ouviram o que ele disse. Mas você, Martin, Armand, Sr.


Gregory... todos conhecem a verdade. Sabem que não estou
mentindo. Ele chama de ‘negócios’. E chamaria de negócios
roubar a mãe, as irmãs e o irmão. — Ele fez um esforço para
soerguer-se nos travesseiros, um brilho furioso e desvairado
nos olhos. — Mas para ele tudo sempre foram os ‘negócios’.
Esse rapaz não é humano!

Hilda forçou-o a recostar-se novamente nos travesseiros,


onde ele ficou, ofegando, os olhos se revirando. O médico
apareceu ao lado da cama, forçou alguma poção entre os
lábios trêmulos de Joseph. Enquanto isso acontecia, Ernest
olhava para as pessoas ao pé da cama, como um homem
diante de seus acusadores silenciosos. Lá estavam Gregory,
inescrutável como sempre, Armand, pensativo e solene,
Martin, com a convicção estampada no rosto bonito e
sensível... e Amy. Ela retribuiu-lhe o olhar, firmemente,
gentilmente. O fogo crepitava, as chamas tremeluziam.
Joseph lutou pela última vez contra a morte que investia.

E Joseph tornou a vencer, por mais alguns minutos.


Acenou com a mão para que o médico se afastasse. Levantou
os papéis na mão cerrada e disse, num sussurro rouco:

— Está tudo aqui! Tudo escrito, palavra por palavra.


Deixei tudo para Martin, sua mãe e suas irmãs. Tudo o que
tenho. Todo o meu dinheiro no banco e minhas ações, minha
parte na fábrica e minhas patentes. Tudo! E para ele... —
Joseph revirou os olhos na direção de Ernest —... nada.
Cinquenta dólares e mais nada. Fiz isso para proteger a
todos. Proteger dele!

Como se um vento enregelante tivesse passado pelo


quarto, todos se contraíram. Todos olhavam fixamente para
o homem agonizante, como se fascinados. E foi então que
Hilda gritou, na maior incredulidade:

— Não pode fazer isso, Joe, meu amor! Ele é também


nosso filho, nosso Ernest! Nosso bom menino! Joe, Joe! Deus
vai castigá-lo por isso! — Ela inclinou-se sobre a cama e
pegou a mão de Ernest, tentando puxá-lo para junto do pai.
— Você sabe que está errado, Joe. Ele não roubaria a sua
própria carne e sangue. É a doença que está metendo essas
coisas na sua mente. Martin, diga a seu pai que não é
verdade o que ele está dizendo a respeito de Ernest!
Ela virou o rosto banhado em lágrimas e todo contorcido
para o filho mais moço, suplicante.

Mas Martin não disse nada. Baixou os olhos para suas


mãos, que seguravam um dos postes da cama. As
articulações embranqueceram rapidamente. Não tornou a
levantar os olhos. Hilda desviou os olhos dele, a boca
entreaberta, profundamente abalada, com uma expressão de
horror e incredulidade.

— Armand, diga a Joe que essas coisas que ele falou sobre
Ernest não são verdadeiras. Fale também, Sr. Gregory,

Armand olhou para o amigo estendido na cama,


imensamente triste.

— Nada do que você disse é verdade, meu caro Joseph.


Ernest jamais faria uma coisa dessas com a mãe e as irmãs.

Gregory falou com uma firmeza serena:

— Deixou que a imaginação desenfreada o dominasse,


Joseph. Mas se fizer o que tenciona, vai apenas prejudicar
aqueles que está querendo proteger. Ernest deu a todos o
que possuem hoje. Se deserdado, ele pode se afastar de
tudo. E posso lhe assegurar que sua família é que sairá
prejudicada.

Ernest falou então, devagar, tensamente, como se


estivesse profundamente doente:

— Deixem-no fazer o que ele está querendo. Não me


importo. Se isso vai deixar sua consciência tranquila, não o
atormentem, por favor. Deixem-no fazer o que está
querendo.
Joseph contorceu-se convulsivamente nos travesseiros, a
fim de fitar o filho. O rosto, molhado pelo suor da morte,
contraiu-se grotescamente,

— O que está querendo dizer com isso? Pensa que vou


mudar de ideia por causa dessa hipocrisia? O que está
querendo com isso?

Ernest fitou-o impassivelmente, o rosto lívido.

— Tudo o que quero, pai, é que você compreenda que


tudo o que disse não passa de mentira. Quero que saiba que
é mentira. Mas tenho certeza de que já sabe disso.

E ele afastou-se da cama, afastou-se da luz do fogo, foi


sentar-se na sombra, a um canto distante. Cruzou as pernas,
cruzou os braços sobre o peito, o rosto grande
transformando-se em máscara branca e inexpressiva, na
semiescuridão.

Joseph lutou bravamente contra a exaustão mortal que o


acometia. E balbuciou:

— Quero uma pena! O médico, Armand, Amy! Chamem


uma das criadas na cozinha! Quatro testemunhas! É o
notário, Sr. Gregory! Pode assinar! Meu novo testamento!
Destruam o antigo! Uma pena! Uma pena! Depressa, pelo
amor de Deus!

— Tem certeza de que quer fazer mesmo isso, Joe? —


perguntou Gregory, firme.

Ele estava aguçando a pena, mas tão devagar que os


dedos mal se mexiam. O médico desceu para chamar uma
criada.
— Tenho certeza — balbuciou Joseph. — Oh, Deus! A
pena! Já está bastante afiada...

— Tinta — disse Gregory, depois de observar em silêncio


o homem agonizante, por um longo momento.

Martin foi até uma arca de gavetas e voltou com um vidro


de tinta. Não olhou para o irmão, embora passasse a um
metro dele.

— Assinem! — disse o homem agonizante,


estridentemente. – Todos vocês!

— Temos de esperar até que chegue a outra testemunha


— disse Gregory, gentil.

Sob os cabelos lisos e lustrosos, sua testa larga brilhava


de suor. Ele continuou a afiar a pena. Armand fitou-o e o que
percebeu deixou-o aturdido. Compreendeu que alguém mais
estava travando uma corrida com a morte e torcendo para
que a morte ganhasse. Hilda estava ajoelhada ao lado da
cama, a cabeça no mesmo travesseiro em que repousava a
cabeça de Joseph. Chorava incontrolavelmente. Os olhos,
dominados pela angústia, corriam pelo quarto, sem verem
coisa alguma.

O médico e a criada entraram. A moça estava encolhida


de medo, lamuriando-se. Todos postaram-se em torno da
cama. Gregory mergulhou a pena na tinta. Parecia que seus
dedos tremiam. O tinteiro acabou caindo no chão,
esvaziando-se.

— Oh, diabo! — exclamou Gregory. — Alguém pode me


fazer o favor de trazer mais tinta?

Mas o médico levantou a mão em advertência, enquanto


se inclinava sobre a cama. Pois Joseph, depois de um
momento convulsivo de agonia, afundara entre os
travesseiros. Os poços escuros e profundos dos olhos se
fecharam. Ele mal respirava, exceto por débeis ofegos. O
médico entreabriu os lábios inertes, pôs uma pelota ali,
tornou a fechar as mandíbulas com a mão, gentilmente. A
pelota rolou pela colcha branca, sujando-a, foi cair no chão.
Martin pegou-a, ficou olhando para ela, aturdido, impotente.

Ernest não podia ver o pai do lugar em que estava. Podia


apenas divisar o grupo em torno da cama, à claridade
avermelhada do fogo que minguava. Uma chama elevou-se
de repente e iluminou as quatro bolas nos postes da cama. E
depois ele avistou, através dos corpos, a mão cadavérica e
inerte do pai, à luz do fogo, mão lívida, encarquilhada. Os
dedos se entreabriram e as páginas do testamento
lentamente caíram, como imensas folhas se desprendendo
de uma árvore. Caíram uma a uma, como se Joseph, mesmo
na inconsciência, estivesse relutante em renunciar àquele
testamento. E as folhas se empilharam no tapete.

Depois, sem que ninguém reparasse, com exceção de


Ernest, Amy afastou-se do grupo em torno da cama. Abaixou-
se por trás do marido, a mão esguia e alva estendeu-se
rapidamente, pegou as folhas que Joseph escrevera. Ernest
observava-a, impassível. Ela agachou-se, recuou em silêncio,
afastando-se da cama, segurando os papéis. Continuou a
recuar, as saias balançando, os cabelos derramando-se pelo
rosto. Chegou ao fogo, virou-se bruscamente, sem fazer
qualquer barulho, enrolou os papéis num tubo fino e meteu-
o entre as achas em brasa. Os papéis pegaram fogo no
mesmo instante, as chamas se elevando por um momento,
mostrando-a agachada ali, como se sentisse frio e tentasse se
esquentar.

Depois de um longo momento, Amy virou a cabeça


lentamente e olhou para Ernest, a luz do fogo iluminando-lhe
o rosto. Através de todo o espaço do quarto, através de anos
e distâncias, através da eternidade, seus olhos se
encontraram.

Joseph viveu por quase uma semana a mais, em estado de


sofrimento e inconsciência. Durante os breves períodos de
consciência, estava tão preocupado com as nuanças de sua
morte que o pequeno mundo que estava prestes a deixar foi
consumido e esquecido, assim como seu mundo fora
consumido e esquecido.

Quando ele finalmente morreu, ninguém mais podia


lamentar. Os amigos e a família entreolharam-se numa
alegria angustiada por ele ter sido finalmente libertado. Uma
parte dessa alegria, não a menor, era o fato de não mais
serem atormentados pela visão do sofrimento de Joseph.
Mas ninguém reconheceria isso, exceto Ernest.

Por uma ou duas vezes, durante os últimos dias de


Joseph vivo, Martin e as irmãs procuraram pelo testamento
que não fora assinado. As moças finalmente desistiram da
procura. Mas Martin, obstinado e sombrio, continuou a
procurar até o dia da morte do pai.
CAPÍTULO XXXVI
O antigo testamento de Joseph foi encontrado e
homologado.

Quatro semanas depois, numa reunião de acionistas,


Ernest foi eleito presidente da Barbour & Bouchard; Armand,
vice-presidente; Gregory Sessions, presidente do conselho de
administração; e Martin, secretário. A morte de Joseph
deixara um constrangimento no ar, mas ninguém falou a
Ernest sobre os últimos dias. Ele envelhecera
consideravelmente e também engordou, apesar do trabalho
interminável. Ele assumia tudo; nada era pequeno demais
para a sua consideração. Ele e Martin haviam herdado
igualmente, mas Ernest agia como se tivesse herdado tudo.
Como chefe da família, orientava as atividades até nos
menores detalhes. May acabou se queixando, não muito
divertida, que Hilda Barbour recuperara um filho e ela
perdera o marido. Ela tinha mesmo motivo para se queixar,
pois Ernest passava metade do seu tempo livre com a mãe e
as irmãs, além de visitar Martin frequentemente. Em todos os
assuntos da família, particulares e financeiros, impunham-se
as suas decisões, os seus planos autocráticos. Martin sentia-
se impotente diante dele, tornando-se mais altivo, tímido e
desconfiado, embora também dependente. Hilda, abalada e
desesperada, deixava tudo aos cuidados do filho mais velho.
Dorcas tinha pavor dele. Somente Florabelle, impudente,
brejeira, impaciente, o riso irreverente, algumas vezes o
enfrentava. Ernest gostava daquela oposição frágil e
feminina e cedia timidamente. Florabelle era rápida em tirar
proveito, orgulhosa pelo fato de conseguir dominá-lo de vez
em quando, lisonjeada pela influência sobre o irmão em
público, umas poucas vezes. Ela detestava o estudo e a
aplicação de qualquer espécie e pensou por um momento
que poderia convencer Ernest a deixá-la permanecer em casa,
depois da morte do pai, sob a alegação de que a mãe
precisava de sua ajuda. Mas Ernest não se deixou
impressionar e Florabelle acabou voltando à escola, em
lágrimas. Algumas semanas depois, Dorcas seguiu a irmã,
ingressando na mesma escola. Ernest pôs à venda a casa da
família, que sempre detestara e detestava ainda mais agora.
Providenciou para que a mãe fosse viver com Martin e Amy.

Sua energia despejava-se como uma catarata.

— Ele se mete em tudo — comentou Gregory para os seus


sócios no banco. — Ainda vai chegar o dia em que Windsor
será famosa porque ele vive aqui.

Uma noite, Martin disse à mulher e à mãe:

— Claro que o último testamento do pai não era válido,


sem as assinaturas. Mas eu gostaria que pudéssemos saber...
os outros legados que ele tinha feito. Poderíamos ter o
prazer de fazer algumas das coisas que ele desejava, se não
mesmo tudo. É muito estranho que o testamento tenha
desaparecido completamente.

— Talvez tenha sido melhor assim — disse Amy


gentilmente, enfrentando os olhos conturbados do marido
com uma expressão de ternura. — Tenho certeza de que
muitas coisas naquele testamento fariam com que todos nos
sentíssemos muito mal. Coisas a respeito de Ernest. Não
estava assinado, como você disse. Sendo assim, é melhor
que nunca tenha sido encontrado.

Martin aproximou-se da mulher, ajoelhou-se ao lado de


sua cadeira, encostou a cabeça em seu peito. Estava
desesperadamente cansado daqueles últimos dias,
tumultuados e confusos, em que o ímpeto do irmão era
como golpes em sua mente e corpo. Estava também bastante
assustado, sofrendo mentalmente.

— Amy, querida, não posso continuar assim, com nossas


armas e munições matando homens na Criméia. Eu me sinto
como um... um assassino.

— O que deseja fazer, amor? — perguntou Amy, pondo as


mãos sobre a cabeça do marido e fitando-o com seu sorriso
gentil.

— Quero me afastar. Quero me retirar de tudo isso.


Temos o suficiente para viver. Mais do que suficiente. Não
levarei nada da... da fábrica. Não quero ter lucro de sangue e
morte. Temos esta casa e o que seu tio nos deu. Podemos
comprar uma pequena fazenda e vivermos com
simplicidade. Diga-me que isso a deixaria satisfeita, Amy.

Amy ficou calada por um momento. Lá em cima, no


quarto alto e estreito, estavam seus filhos gêmeos, Paul e
Elsa, com dois meses de idade, sete meses a menos que o
primo, Godfrey James Barbour. Amy não era nenhuma tola e,
desde que se tornara mãe, desenvolvera o latente respeito
ianque pelo dinheiro. Se Martin fizesse o que desejava,
certamente viveriam de maneira bem modesta. Parecia-lhe,
com súbita lucidez, que seria uma atitude tola e absurda do
marido. Podia compreender que uma mulher repelisse a
fabricação de armamentos, pois sempre se espera que as
mulheres fiquem horrorizadas com a guerra e suas
atrocidades. Mas não podia admitir que um homem se
sentisse assim. Violava algumas de suas convicções na
firmeza e força dos homens. Assim, embora sua expressão
permanecesse suave, ela perguntou, hesitante:

— E o que vai fazer com a parte de sua mãe, Martin?


Ele olhou apreensivo para a mãe, que estava cochilando
sobre o tricô.

— Imagino que a mãe vai querer ficar com ela —


respondeu Martin, em dúvida.

Ele suspirou, passando os dedos pelos cabelos


abundantes, levantou-se.

— E as crianças, amor? Não devemos pensar nelas


também?

Martin virou-se para ela, fitando-a com estranha


intensidade nos olhos azuis. Amy já vira aquele brilho
intenso umas poucas vezes, durante a-vida conjugal. Em
cada ocasião, tivera a impressão de que o marido fora
transplantado para outra dimensão, onde não poderia
acompanhá-lo, que era incapaz de entender e que aquilo os
separava. Eram então como estranhos, fitando-se através de
abismos. Ou através de vidros grossos, pelos quais o som
não passava, obrigando ao silêncio, embora pudessem fazer
gestos ou mexer os lábios.

— As crianças? — gritou Martin. — Será que não entende


que estou querendo fazer isso especialmente por causa das
crianças? Não posso sustentá-las com os lucros de uma
sociedade na morte. Não posso permitir que vivam às custas
das vidas de outras pessoas. Boas casas e roupas, criados e
carruagens, tudo comprado com sangue! Será que não
percebe, Amy?

Martin fitou-a suplicante, quase desesperado.

Sua emoção e as palavras pareciam absurdas para Amy.


Ela ficou angustiada com o que considerava a sua traição por
não sentir da mesma forma que o marido. Podia
compreender que Martin se sentisse assim, podia
compreender até mesmo o processo de pensamento dele.
Podia compreender que quaisquer argumentos eram inúteis
contra a convicção dele sobre o que era certo. Estava na
triste situação que aflige a maioria das pessoas tolerantes:
compreendia emoções que eram estranhas à sua natureza, ao
mesmo tempo em que sentia que eram erradas e
completamente absurdas.

— Claro que entendo o que está querendo dizer, Martin —


respondeu ela, suavemente. — Mas talvez esteja sendo um
pouco precipitado... talvez haja coisas que não tenha levado
em consideração...

— Como pode dizer tal coisa, Amy? — exclamou Martin,


desesperado. — É tão claro quanto o dia. Fabricamos
munições, armas, pólvora, canhões, explosivos... e para que
serve tudo isso? Para matar! Não há escapatória. Tudo isso é
fabricado para matar! E agora há uma guerra na Criméia,
homens se matando com nossa pólvora, nossas armas,
nossos canhões. Frases bonitas e o que Ernest chama de
‘bom senso’ não podem se sobrepor a esse simples fato. Os
fatos são puros e fundamentais, mas os homens precisam
confundi-los com frases e argumentos intermináveis, com
alegações de tolerância e paciência. Mas os fatos
permanecem imutáveis, como a terra sob a neve. Somos
atacadistas da morte e não posso ter qualquer parte nisso,
por minha paz de espirito e senso de honra. — Ele respirou
fundo, antes de acrescentar: — Há anos que venho querendo
sair. Mas o pai ficou doente e achei... achei que tinha de
proteger a mãe e as meninas de Ernest...

— Mas que tolice! — exclamou Amy, involuntariamente.

Martin fez um gesto furioso.


— Amy! Deixe-me continuar. Há anos que venho querendo
sair. Não fiquei com quase nada do dinheiro que recebi da
fábrica. Dei a maior parte... e já lhe expliquei como e por
quê. No momento, em dinheiro, tenho menos de quatro mil
dólares. Recuso-me a aceitar as ações e o dinheiro que o pai
me deixou. Já disse à mãe que será tudo dela e das meninas,
assim que puder se providenciar a transferência.

Amy estava com os lábios lívidos. Imaginou os filhos nos


berços e alguma firmeza insinuou-se em seu rosto meigo.

— Não vai fazer nada disso, Martin! Não posso permitir,


pelo bem das crianças!

Martin nunca a vira assim antes, tão pálida e firme. Havia


também ira nos olhos castanhos de Amy. Ele ficou comovido,
pegou-lhe a mão gelada e beijou-a. Mas a firmeza no rosto de
Amy não relaxou, seus olhos continuaram exigentes.

Martin suplicou:

— Amy, minha querida, tente compreender, por favor.


Não estou privando meus filhos de qualquer coisa, a não ser
da desonra. Temos o suficiente, mais do que o suficiente. Só
os seus títulos nos proporcionam uma renda de mais de dois
mil dólares por ano. É uma fortuna, amor. E uma fortuna
honrada. Somos ricos. Amy, Amy, tente compreender, por
favor! Você não me ama? Quer que eu continue infeliz, a me
odiar, a odiar a vida, a odiar tudo que está relacionado com a
fábrica? Você fala das crianças... mas não pode também
pensar em mim? Minha felicidade não vale absolutamente
nada?

Amy fitava-o fixamente, percebendo a amargura e a


angústia nos olhos dele, ouvindo seu desespero. E a
expressão dela se atenuou, entristeceu-se. Ela suspirou.
— Sua felicidade é tudo para mim, Martin. Posso
compreender perfeitamente o que você quer dizer. Mas,
pessoalmente, não consigo me sentir assim. Alguém deve
fabricar munições, pois algumas vezes as munições são
necessárias. As nações devem se defender e, de vez em
quando, também devem lutar pelo que é certo. Mas sei que
você não é capaz de encontrar qualquer justificativa. Assim,
deve fazer o que deseja, se disso depende a sua felicidade. E
eu concordarei com tudo. Tentarei até me convencer de que
você está certo.

Não obstante, ela foi discretamente procurar o tio e


contou-lhe as intenções de Martin. Gregory ficou incrédulo e
consternado. Esquecendo a sensibilidade de Amy, lançou-se
a uma tirada furiosa e desdenhosa contra Martin. Mas que
idiota! Que imbecil! Ele não passava de um pirralho
lamuriento em trajes de homem! Devia ser internado num
hospício, como uma ameaça à sociedade! Como podia
alguém ser tão monstruosa e insensatamente estúpido? Ele
tinha mulher e filhos, que deixaria na miséria por sua
loucura. Ele sufocou Amy com palavras de compaixão e
promessas de que se faria tudo para impedir que Martin
cometesse tamanha loucura.

— Estou tão confusa. . . — balbuciou Amy, em lágrimas. —


Não deve atacá-lo desse jeito, Tio Gregory. Martin acha que
está certo e que sua felicidade vai depender de fazer o que
julga correto. Só vim procurá-lo porque é mais velho e mais
sábio do que Martin, porque pensei que poderia convencê-lo
a mudar de ideia, apresentando argumentos que não me
ocorreram.

— Que vão para o inferno todos esses idiotas que querem


bancar os heróis e mártires! — esbravejou Gregory. — Amy,
minha querida, vá para casa agora. Conversarei com Martin
esta noite.
Mas ele encontrou Martin entrincheirado na obstinação
fanática do homem simples e espiritual, convencido de que
está agindo corretamente. A fúria e os argumentos de
Gregory, as súplicas e escárnios, foram apenas como uma
brisa amena a soprar contra uma árvore forte, inabalável.

— Mas como vai viver? — gritou Gregory, por fim. — Do


dinheiro de sua mulher? Do dote que lhe dei quando se
casou? Do meu dinheiro? — O rosto fino e elegante contraiu-
se desdenhosamente. — Um americano, Martin,
compreenderia que nenhum cavalheiro honrado pode viver
do dinheiro de sua mulher. Mas você, sendo um inglês, é
incapaz de compreender isso.

Ele ficou surpreso ao constatar que finalmente atingira o


calcanhar-de-Aquiles, pois Martin estremeceu, ficou
vermelho.

— Talvez os ingleses, Sr. Gregory, não façam distinção


entre o dinheiro de um homem e o dinheiro de sua mulher.
Talvez os ingleses acreditem que tudo o que é de um
também pertence ao outro. Aparentemente, não acredita
nisso. Mas tenho quatro mil dólares e usarei esse dinheiro
para comprar uma pequena fazenda. Amy poderá ficar com
todo o seu dinheiro, para si e para as crianças. Prometo que
não tocarei nele.

Gregory estava chocado.

— Quer dizer que pretende sujeitar minha sobrinha e os


filhos dela às dificuldades de uma fazenda pequena e pobre,
sem um mínimo de conforto? Minha sobrinha, que é uma
dama e sempre teve o melhor de tudo?

— Minha mulher e meus filhos vão partilhar a vida que eu


decidir levar — disse Martin, friamente. -Se Amy quiser ter
uma ou duas criadas na fazenda para ajudá-la, não farei
objeções, já que ela estará pagando com um dinheiro que
não me pertence, como fez questão de ressaltar.

Gregory virou-se para a sobrinha, que a tudo escutava


num silêncio angustiado.

— Amy, não posso permitir que você leve uma vida


assim. Deve voltar para a minha casa, levando seus filhos.
Sempre haverá um lugar para você.

Martin também virou-se para a mulher e ficou esperando.


Não disse nada, limitando-se a fitá-la firmemente,
solenemente.

Amy abaixou a cabeça e enxugou os olhos. Depois,


levantou e foi postar-se ao lado do marido, olhando para o
tio e sussurrando:

— Onde quer que Martin vá, Tio Gregory, devo ir também.


Ele pode estar errado... não sei. Mas ele acredita que está
certo e tem direito à felicidade. Assim, irei para onde ele for,

Gregory ficou amargurado.

— Está bem, Amy. Acho que você fez sua cama e agora
quer deitar nela. Mas lembre-se... — e ele sacudiu o dedo na
direção de Martin — de que você não podia ter escolhido um
meio melhor de colaborar para os planos de seu irmão! Posso
lhe garantir que ele não tentará dissuadi-lo! Não vai lhe
oferecer nenhum argumento, não fará nenhum apelo para
que use sua inteligência! Vá procurá-lo e diga-lhe o que
acabou de me falar. E deixe sua mãe e irmãs à mercê dele!
Vire as costas ao seu dinheiro em favor dele, ao dinheiro que
seu pai lhe deixou, ao dinheiro que pertence à sua mulher e
seus filhos! Quero ver se Ernest vai recusar!
Gregory não contava muito com esse apelo final ao medo
e à desconfiança, à simplicidade, inocência e falta de
compreensão. Mas percebeu, pela mudança de expressão de
Martin, que acertara no alvo. Não precisou de muito tempo
para se aproveitar dessa vantagem, apresentando os
argumentos mais veementes e absurdos, apelando
reiteradamente ao medo e desconfiança de Martin, a seu
senso de dever. Por volta de meia-noite, quando Gregory
finalmente foi para casa, deixou Martin num estado patético
de indecisão, desespero, confusão e ansiedade.

No dia seguinte, num estado emocional deplorável, o


pobre rapaz foi procurar o Padre Dominick. Durante uma
hora inteira, na pequena sala, escura e recendendo a mofo,
ele falou sem parar, argumentou, suplicou compreensão e
conselho. E o Padre Dominick escutou, meio incrédulo, meio
triste, inteiramente irônico. Percebia que Martin se
encontrava num estado lamentável, do idealista
surpreendido num mundo de realismo. Para um idealista
assim, nunca haveria paz, exceto na fuga para si mesmo,
para a fantasia, misticismo e gentileza. Para tal idealista, o
mundo estava eriçado de espadas afiadas, nas quais iria
continuamente se empalar. Ele não tinha armadura, nenhum
escudo, pois a fé que adotara era repleta de realismo
objetivo e tolerância. Nos tempos medievais, ainda poderia
encontrar seu lugar. Naquela civilização, porém, não havia
lugar para ele. Não era um construtor de utopias. Estava
simplesmente despido, numa sociedade que vivia mascarada
e armada. Sua situação era terrivelmente lamentável, se não
mesmo absurda. O Padre Dominick exaltara e rezara para os
santos, ensinara suas vidas a milhares de homens, mulheres
e crianças. Chorara muitas vezes, discorrendo sobre sua
paciência e ternura, firmeza e fé, o idealismo que não podia
ser abalado por fogo ou espada. Recomendara a seus
paroquianos que imitassem os santos. Contudo, agora que
tinha de se defrontar com um caráter assim, sentia-se
impotente e desamparado, um pouco inclinado a sorrir, não
muito tristemente. Por algum tempo, ele entregou-se a uma
ironia silenciosa, às suas próprias custas.

Mas ele tinha pouco a oferecer a Martin, além de simpatia,


bondade e paciência. Disse que Martin devia tomar cuidado
para ter certeza de fazer o que era certo. Acrescentou, com
tristeza, que um homem nem sempre deve seguir os ditames
da consciência, pois isso era algo que ficava entre ele
próprio e Deus. O dinheiro representava todas as coisas para
todos os homens. Para o tolo era um carrasco, para o homem
bom a capacidade de aliviar o sofrimento, para o tirano uma
espada, para o avarento uma prisão, para um rei era um
exército, para um sábio era poder, para o escravo era a
liberdade, para o ganancioso era o céu, a terra e o inferno. O
dinheiro não devia ser desprezado. Era preciso ser muito
cuidadoso. Assim, o Padre Dominick deixou a decisão à
consciência de Martin. E o rapaz deixou a casa do padre
numa confusão ainda maior. Os fatos, que lhe pareciam tão
simples e inabaláveis, tornavam-se de repente tênues e
indefinidos.

Não tinha para onde recorrer, qualquer mão firme que


pudesse segurar, nenhuma voz compreensiva para ouvir. As
duas fortalezas naturais do homem, a mulher e o sacerdote,
não podiam ajudá-lo. Uma lhe dera simpatia e ternura, o
outro lhe aconselhara paciência. Mas não se postavam ao
lado dele na luta. Deixavam-no sozinho para travar a batalha.
Martin nunca se sentira tão solitário. Até mesmo tentou, em
seu desespero, fazer a mãe compreender. Mas ficou ainda
mais desesperado ao deparar com o horror de Hilda, seu
espanto, a incapacidade em entender o que ele estava
querendo dizer. Certa ocasião, quando estava sozinho ao
lado dos berços dos filhos, Martin sussurrou-lhes:

— Se eu tomasse a decisão, vocês me culpariam algum dia


por tê-los privado da fortuna a que tinham direito?

Ele mal podia acreditar que eram seus filhos, pois sentia-
se tão desamparado e inseguro quanto as crianças.

As antigas suspeitas e desconfianças de Ernest


retornaram, com um vigor redobrado. Chegou à conclusão de
que Gregory estava certo. Ernest aproveitaria, aquela
oportunidade para enriquecer ainda mais. Descobriu-se
vigiando Ernest, pois os dois agora trabalhavam juntos, em
escritórios novos e mais amplos, juntamente com quatro
escriturários. Começou a perguntar-se se Ernest sabia de
alguma coisa. E mais e mais foi-se convencendo de que, sem
a sua presença na fábrica, a mãe e as irmãs seriam realmente
roubadas de sua herança. O rosto bonito ficou encovado, os
olhos azuis foram perdendo o brilho, parecendo cada vez
mais angustiados e desesperados. Não mais conversava com
Amy sobre o assunto. Entre marido e mulher, sempre
houvera uma profunda gentileza, amor e compreensão.
Martin ainda sentia tais coisas em relação à Amy, mas sentia
também que ela estava desamparada e impotente, capaz
apenas de esperar em silêncio pela decisão que competia a
ele.

Num fim de tarde de verão, Martin desceu até o rio.


Sentou-se numa das pedras que havia na margem, no mesmo
lugar em que outrora ficara tantas vezes em companhia de
Jacques Bouchard. Estava tudo muito quieto ali, com o
crepúsculo que se avizinhava, os salgueiros parecendo
sombras misteriosas por trás e em torno dele, o rio largo
correndo à sua frente, em rápidos reflexos como mercúrio, a
outra margem indistinta, o céu numa tonalidade malva,
vasto, meio rosado no horizonte a oeste. Umas poucas luzes
douradas começaram a brilhar na outra margem. O rio foi
escurecendo, sua voz se avolumando. Duas barcas escuras
flutuaram preguiçosamente pela correnteza. Havia poucas
casas naquela área e Martin sentia-se isolado, inteiramente
sozinho.

As pedras permaneciam quentes do sol e o ar estava


parado e claro. Martin fora até ali a fim de pensar, mas
descobrira agora que não era capaz de pensar. Sua mente se
aquietou, quase entorpecida. O céu colorido, o canto
solitário de um papo-roxo nas árvores por trás dele, o
silêncio e a paz, tudo contribuía para que a nostalgia o
invadisse e dominasse. De súbito, ele estava de volta ao
jardim encantado da tia-avó, entre os canteiros de lilases, a
neblina fragrante, o canto do tordo. A recordação provocou-
lhe a maior angústia. Ele pensou: ora, nunca deixei realmente
aquele jardim! Ainda estou lá. É por isso que não consigo
compreender as intenções e motivos de todos por aqui. É por
isso que tudo está tão confuso, que encontro inimigos por
toda parte. Se ao menos eu pudesse passar novamente por
aquele portão... Até mesmo o som era atenuado ali. Fica no
outro lado do oceano e provavelmente nunca mais tornarei a
vê-lo. Mas minha mente ainda está lá e a alma também.
Nunca fui capaz de enfrentar o que eles chamam de ‘vida’ e
provavelmente a culpa é toda minha. Mas o que eles chamam
de realidade parece-me estúpido e brutal, sem razão nem
misericórdia.

Ele olhou para o céu silencioso e rezou com a maior


simplicidade: “Pai, ajude-me. Não sei para onde recorrer ou o
que fazer. Pensei que sabia o que era certo, mas fui
ensurdecido pelos argumentos que me apresentaram. Talvez
eu seja mesmo um tolo, como eles dizem. Talvez eu sempre
tenha sido um tolo e não um homem. Se fui, peço que me
diga. Se o que desejei era bom, peço que me ajude a realizá-
lo.”

Quando Martin voltou para casa, ainda não estava


exatamente confortado, mas pelo menos o auge da confusão
em sua mente arrefecera.
CAPÍTULO XXXVII
Martin enviou um cheque substancial à Sociedade para a
Abolição da Escravatura.

“Por favor, apliquem esse dinheiro na luta pela liberdade


do negro”, escreveu ele. “Deus os abençoe em sua grande
obra, especialmente no esforço para manter os territórios
livres, especialmente o Kansas.”

Ele era um admirador fanático de John Brown, a quem


Gregory chamava de ‘maldito vilão’. E, um dia, ele disse
sarcasticamente para Martin:

— Pensei que você acreditasse que todo e qualquer


derramamento de sangue era uma coisa vil e que os meios de
provocá-lo eram ainda mais vis. Contudo, está louvando um
homem que atira em homens desarmados, sem qualquer
outro motivo que não o de divergirem de suas opiniões. Mas
talvez ache que as ações dele são desculpáveis, só porque
reza antes e depois de matar.

— Ele age assim a fim de manter os novos territórios


livres da escravidão — respondeu Martin.

Mas ele estava agora mais confuso do que nunca. O


assassinato poderia de alguma forma ser algo sagrado?
Poderia ser justo? E se o assassinato podia ser sagrado e as
guerras justas, então as armas com as quais o primeiro era
cometido e as guerras travadas não podiam ser vis. E fabricá-
las nada tinha de indigno. Sua confusão ia aumentando
inexoravelmente e ele nada podia fazer para evitar.

Um dia, quando estava mais confuso do que nunca, mal


conseguindo concentrar-se no trabalho de supervisionar os
dois empregados sob suas ordens, recebeu um visitante.

Sua sala ficava depois da sala de Ernest. Para alcançá-la,


era preciso passar pela de Ernest, bem maior. Um dos
amanuenses foi até a mesa de Ernest e avisou que um dos
operários estava querendo falar com o Sr. Martin. O operário
foi admitido. Encaminhava-se timidamente para a porta da
sala de Martin, quando Ernest o deteve.

— Espere um instante. Você não é o filho do velho Hans


Heckl?

O rapaz parou no mesmo instante, o rosto inteiramente


vermelho, bastante assustado.

— Sim, senhor — balbuciou Carl, retorcendo entre as


mãos sujas de graxa um pedaço solto da roupa e ficando
ainda mais ruborizado.

Ernest fitou-o com a maior curiosidade.

— Há algum problema na oficina? Você não está


encarregado do carregamento dos barris? É realmente
necessário incomodar o Sr. Martin?

O rapaz era simplório demais para ser cauteloso.

— Não... não é nenhum problema na oficina, senhor. É... é


outra coisa...

— O Sr. Martin está muito ocupado para ser incomodado


com pequenos problemas pessoais — declarou Ernest. —
Além do mais, sou eu quem cuida de tudo o que se relaciona
com os homens. Assim, é melhor você me dizer logo do que
se trata.
— É um assunto pessoal, senhor.

O nervosismo de Carl se transformara numa angústia de


terror. Ele chegou a dar um ou dois passos para trás.

—Se o Sr. Martin está muito ocupado, deixarei para falar


em outra ocasião.

Ele virou-se e fugiu pela porta. Ernest estava sorrindo e


alteou a voz:

— Não fuja.

Carl parou no limiar, indeciso, como um jovem touro


detido no meio da fuga.

— Quero lhe falar. Você e seu pai não moram na margem


do rio? E não têm alguns barcos para alugar aos domingos e
feriados?

— Sim, senhor.

O sorriso de Ernest tranquilizara Carl, pois parecia


divertido e jovial. Ernest era o terror para as centenas de
homens que trabalhavam para ele; mesmo que fosse o
demônio em pessoa, sua aparição não poderia deixá-los mais
apavorados. Mas Carl sentiu que a coragem lhe voltava,
diante daquele sorriso, que fazia com que o rosto do patrão
assumisse um certo charme e infantilidade. Tentou retribuir
o sorriso. Ao fazê-lo, fitou os olhos claros e implacáveis de
Ernest, que não exibiam qualquer indicio de sorriso. Carl
sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha.

— Você não é o rapaz que está sempre se ausentando por


duas ou três semanas, a cada dois meses? — perguntou
Ernest, com uma expressão bem-humorada. — Lembro agora
que seu pai está sempre me procurando e pedindo para
contratá-lo de volta, Claro que isso é contra os meus
princípios, mas você tem uma boa ficha e por isso sempre
acabo atendendo.

Ele ficou esperando. Mas Carl não disse nada, a cor


desvanecendo-se de seu rosto. Ernest observava-o
atentamente. A palidez súbita e estranha do rapaz
interessava-o. Percebeu também que as mãos de Carl
estavam tremendo. E constatou que os olhos dele estavam
dominados pelo terror e suspeita.

— O Sr. Armand Bouchard é quem está agora encarregado


das oficinas. Por que não o procura? Não. Espere um
instante. Acho que pode falar com o Sr. Martin. Mas não deve
esquecer que todos os problemas relacionados com as
oficinas devem ser levados ao Sr. Bouchard ou a mim.

Ele acenou com a mão, dispensando-o. Carl passou


rapidamente pela mesa e entrou na sala de Martin. Depois
que a porta se fechou, Ernest ficou imóvel na cadeira por um
longo momento, o olhar perdido no espaço, o rosto franzido,
pensativo.

Um dos amanuenses, que tinha uma mesa pequena perto


da porta, limpou a garganta timidamente, até que Ernest
fitou-o, contrariado.

— Se me permite, senhor — balbuciou o amanuense — eu


gostaria de falar alguma coisa a respeito daquele homem e
do pai dele. Há algumas histórias sobre os dois...

— Que histórias? — disse Ernest rispidamente, numa


impaciência simulada.

— Esse rapaz, senhor, faz longas viagens pelo rio abaixo,


num bote. Meu irmão tem uma casa perto do rio. Uma noite,
já bem tarde, ele ouviu o barulho de remos. Era uma noite
clara e por isso ele saiu de casa, curioso...

— Hum, curioso... — murmurou Ernest, com desdém,


embora escutasse com estranha atenção.

— Isso mesmo, senhor. Era noite de luar sobre o rio, mas


não havia qualquer sinal de um barco na parte iluminada.
Meu irmão desceu até a margem, escondendo-se atrás das
árvores, observando. E um bote grande apareceu finalmente,
com três pares de remos, perto da margem, deslizando
contra a correnteza, bem devagar, pois dava a impressão de
que os homens tinham medo de fazer muito barulho com os
remos. Meu irmão percebeu que havia seis homens no barco,
abaixados, como se tentassem se esconder. Foi seguindo o
barco pela margem, até que finalmente parou no atracadouro
diante da casa dos Heckls. Os homens saltaram correndo do
barco e foram o mais depressa possível para a casa. Um
homem ficou no atracadouro, prendendo o barco. A lua cheia
saiu de trás de uma nuvem, mais clara do que nunca. Meu
irmão pôde verificar que era o jovem Carl quem estava ali.
Não conseguiu ver os rostos dos outros homens, pois
corriam muito depressa, procurando se esconder atrás de
moitas e árvores. Mas viu Carl perfeitamente.

Quando o homem parou de falar, Ernest disse,


impaciente:

— Isso é tudo? Seu irmão não investigou mais?

— Não, senhor. Ele ficou com medo. Havia muitos


salteadores do rio por estas bandas e de vez em quando eles
ainda aparecem em casas solitárias. Meu irmão achou a coisa
muito esquisita e tratou de ir embora, contente por estar
vivo e não ter sido visto.
Ernest sorriu.

— Carl não me parece particularmente violento. Ele é


alemão e os alemães são geralmente pessoas dóceis e
tímidas. E não posso acreditar que o velho Hans e seu filho
andem fazendo qualquer coisa terrível. Receio que seu irmão
deu rédeas soltas à imaginação. — Ele pegou alguns papéis e
acrescentou: — Confira isso imediatamente, por favor.

Mas enquanto o amanuense baixava os olhos para os


papéis, diligentemente, Ernest permanecia imóvel, de rosto
franzido, mordendo o lábio.

Martin ficou aturdido ao deparar com Carl. Gesticulou


para seus dois amanuenses, que partilhavam uma pequena
sala, além de seu escritório.

— O que aconteceu, Carl? Não sabe que não deve me


procurar abertamente?

Martin falou com voz áspera, mas sua expressão era


gentil. Assim, Carl não ficou muito apreensivo.

— Desculpe, Sr. Martin. Mas estava tentando lhe falar há


bastante tempo, sem conseguir. Não tem nos visitado
ultimamente. Tinha de procurá-lo agora de qualquer
maneira, pois a situação está cada vez pior...

Ele aproximou-se de Martin e baixou a voz. O rosto estava


corado e os olhos azuis faiscavam.

— Muito ruim mesmo, Sr. Martin. Eu tinha de lhe falar.

— Qual é o problema? — Martin estava alarmado e olhou


apreensivo para a porta da sala de Ernest. — O último grupo
não chegou direito?
— Correu tudo bem, senhor. Eles estão agora no Canadá.
Mas não é sobre eles que preciso lhe falar. O senhor já esteve
no lugar em que vivem os homens que trabalham na
Kinsolving? Construíram uma porção de barracões e fizeram
uma grande cerca ao redor. Os homens e suas famílias nunca
saem de lá. Compram tudo dos armazéns da companhia e
nunca recebem dinheiro. É uma coisa nova, muito pior do
que a situação que existe aqui. Eles recebem pedaços de
papel como pagamento e gastam nos armazéns da
companhia, como se fosse dinheiro. Mas isso ainda não é o
pior...

Martin estava extremamente pálido e balbuciou:

— Eu não sabia de nada disso... — Os olhos horrorizados


estavam fixados em Carl Heckl. — Tem certeza? Ah, como
tenho sido um tolo egocêntrico! Mas tem certeza? Nunca
estive por lá. Sei que Raoul Bouchard trouxe uma leva de
homens, junto com as famílias. Mas pensei que a situação
por lá fosse como aqui. Bastante ruim, Deus sabe disso, mas
pelo menos os homens são livres. Sabe o que significa isso
que está me dizendo, Carl? Está dizendo que existem
escravos aqui... escravos brancos! Isso é inadmissível. Não
posso acreditar. Nem mesmo Ernest... isto é, ninguém faria
uma coisa dessas com homens e mulheres desamparados! O
governo jamais permitiria.

— Pois o governo está permitindo, Sr. Barbour, embora


possa não saber. Mas ainda não contei o pior. Se alguém fica
doente, eles não podem chamar um médico. Se o estado do
doente piora de verdade, o capataz é quem chama o médico.
E fica ao lado do médico durante todo o tempo. E quando
eles morrem, nem mesmo podem ter um sacerdote. Morrem
como cães, senhor.

Os olhos de Carl encheram-se de lágrimas, o nariz ficou


avermelhado.

— E saem de lá como cachorros, dentro de caixas. É a


única maneira de saírem, quando morrem. Trabalham 12, 14
e mais horas por dia. Só podem se divertir no bar da
companhia. Isso mesmo, senhor, existe um bar da
companhia, onde eles gastam os papeizinhos que recebem
como se fosse dinheiro. Bebem até cair, ficam
completamente embriagados. E as mulheres e os filhos estão
sempre passando fome.

— Mas, por Deus, são centenas de pessoas! — balbuciou


Martin. — Poderiam muito bem sair de lá, se quisessem.
Ninguém pode forçá-los a permanecer por trás daquelas
cercas, se não quiserem. — Ele fez uma pausa, sacudindo a
cabeça. — Não posso acreditar. Centenas de homens! Ora,
eles poderiam subjugar meia dúzia de capatazes em poucos
minutos...

— Não poderiam, não, Sr. Barbour — respondeu Carl,


sombriamente. — Os capatazes estão sempre armados. E,
pior do que isso, há dez homens armados patrulhando a
cerca durante todo o tempo...

Martin levantou-se abruptamente. Estava consternado, o


rosto lívido, contraído.

— Como soube de tudo isso?

— Um dos homens conseguiu escapar, senhor, no escuro,


pulando uma cerca. Foi um verdadeiro milagre, Ele correu
para o rio, pensando que poderia pegar um barco e fugir.
Mas estava doente, as mãos cortadas na cerca. Entrou num
de nossos barcos e não conseguiu seguir adiante. Meu pai
encontrou-o ali, pela manhã, levou-o para casa, com a minha
ajuda. E o homem nos contou tudo. Ele está lá em casa agora
e pode falar-lhe pessoalmente, se quiser. Eles não poderão
fazer nada contra o senhor.

Os dois ficaram se olhando em silêncio por algum tempo,


angustiados, trêmulos. Depois, Martin foi até a janela e olhou
para fora. Além das árvores quase que inteiramente
desfolhadas do outono avançado, podia avistar as chaminés
da fábrica da Kinsolving, expelindo fumaça contra o céu frio
e descolorido. Ele virou-se abruptamente. Parecia mudado,
firme e decidido, os olhos com um brilho determinado,
inflexíveis como aço. Abriu a porta do guarda-roupa, tirou o
casaco e o chapéu. Carl observava-o em silêncio.

— Volte ao seu trabalho, Carl. E não diga nada a ninguém.


Vou até lá agora. Tenho de ver pessoalmente.

Martin esperou por quase cinco minutos, depois da saída


de Carl; a seguir chamou seus amanuenses, deu-lhes
instruções, abriu a porta da sala do irmão.

— Vai sair? — perguntou Ernest, em tom de indiferença,


alteando as sobrancelhas.

— Vou, sim.

Martin não olhou para Ernest, continuando a se


encaminhar para a porta.

— E vai voltar? — gritou Ernest, depois que ele já havia


passado por sua mesa.

Martin parou bruscamente na porta. E, depois de um


longo momento, virou-se e fitou o irmão, com uma estranha
expressão.

— Não sei... ainda não sei...


Ele saíra há poucos minutos, quando Ernest escreveu um
curto bilhete, chamou um amanuense e mandou que fosse
entregá-lo ao xerife. Meia hora depois, dois guardas
corpulentos apareceram no escritório. Ernest mandou
chamar Carl Heckl e seu pai, Hans.
CAPÍTULO XXXVIII
Desde o reinicio das atividades que Martin não visitava a
fábrica da Kinsolving, que ainda funcionava com o seu
antigo nome. Assim, ele olhou ao redor atentamente,
enquanto avançava pela calçada de madeira em torno do
prédio.

Ernest falara em patentes secretas e ladrões industriais.


Por isso, Martin não se preocupara com a cerca de madeira
alta, com ripas pontudas em cima. Formava uma verdadeira
parede, com as junções calafetadas. Examinando agora a
cerca, Martin calculou que devia ter em torno de três metros
de altura. Além disso, inclinava-se para dentro. Assim, seria
extremamente difícil escalá-la pelo lado de dentro.
Subitamente, aquela cerca tornou-se sinistra para Martin. Sua
imaginação, já estimulada, tornou-se desenfreada. O coração
batia forte quando ele chegou a um portão de ferro e
madeira, no meio da cerca. Não havia qualquer maçaneta
pelo lado de fora. Martin empurrou vigorosamente, mas o
portão resistiu a seus esforços com a maior facilidade, como
se ele fosse uma mosca. Ele avistou o cordão de uma sineta e
puxou-o com violência. A sineta ressoou furiosamente por
trás do portão. Ele ficou esperando que o portão fosse aberto
um momento depois, mas nada aconteceu. Martin percebeu
então que havia ali perto uma pequena construção de
madeira, com um telhado pontudo. Um homem saiu lá de
dentro, um homem baixo, atarracado, de barba preta, as
roupas ordinárias de um operário, olhos beligerantes e
desconfiados. Martin constatou que o homem empunhava
um pesado porrete.

— O que você está querendo aqui? — perguntou ele,


numa voz ameaçadora, tipicamente irlandesa, aproximando-
se e olhando Martin de alto a baixo, desdenhosamente.

Uma raiva impotente, quase de histeria, invadiu Martin.

— Quero entrar! — disse ele, autoritário.

Sob pressão, ele perdia a timidez habitual e o medo do


contato com outras pessoas.

O homem fitou-o agressivamente. Era evidente que não


tinha a menor ideia de quem era Martin. Mas era também
evidente que a aparência e as roupas de Martin começavam a
impressionar e intimidar o vigia, pois ele se tornou menos
beligerante e mais respeitoso.

— Não posso deixá-lo entrar, senhor, a menos que saiba


quem é, São ordens que recebi diretamente do chefe.

— E quem é o ‘chefe’? — gritou Martin, com uma fúria


tensa.

Os olhos do vigia tornaram a se estreitar de desconfiança.


Ele perdeu um pouco do respeito e a voz rouca estava outra
vez desdenhosa quando respondeu:

— Ora, quem poderia ser o chefe, a não ser o Sr. Barbour?


Não é aqui da cidade ou saberia disso, sem que eu precisasse
lhe dizer.

— Por que o portão está trancado? Por que ninguém pode


passar à vontade, como nas outras fábricas? — perguntou
Martin, depois de breve pausa.

Ocorrera-lhe que poderia obter mais informações se


escondesse sua identidade por mais um momento.
O vigia riu abruptamente.

— Para sermos roubados pelos ladrões? Há contratos do


governo sendo executados aí dentro, meu rapaz, e temos de
tomar cuidado. Ninguém entra, se não tiver negócios para
tratar lá dentro.

— Mas como os operários podem ir e vir para suas casas?

O vigia tornou a rir, agora brutalmente.

— Eles entram, senhor, mas não saem... a menos que seja


num caixão, de pés juntos. — O divertimento desapareceu do
rosto rude. — Mas por que está me fazendo essas perguntas?
Tem alguma coisa a tratar lá dentro? Se tem, qual é o seu
nome?

Uma impaciência súbita e frenética espalhou-se por todos


os músculos de Martin, uma ansiedade febril em descobrir o
que havia além daquela cerca. As suas piores suspeitas
pareciam a pique de serem confirmadas. Seu rosto ficou
vermelho, ele cerrou as mãos tensamente.

— Sou o Sr. Martin Barbour e devo entrar imediatamente.


Abra esse portão!

Ele tinha o pressentimento confuso e angustiado de que,


por trás daquela cerca havia homens desesperados,
esperando pela libertação que iria levar-lhes.

O vigia ficou boquiaberto. Mas logo recuperou-se e sorriu


maliciosamente, sacudindo a cabeça.

— Não vai me enganar com essa história, meu rapaz. Se


fosse mesmo o Sr. Martin Barbour, eu o conheceria, pois já
teria aparecido por aqui. Precisa arrumar uma história
melhor.

Martin tentou controlar seu tremor.

— O Sr. Bouchard não está lá dentro? Vá dizer-lhe que


Martin Barbour quer entrar.

O desdém desvaneceu-se do rosto do vigia. Ele olhou para


Martin indeciso, um tanto apreensivo. Limpou a garganta,
enquanto contornava Martin, encaminhando-se para o
portão.

— Deve compreender, Sr. Barbour... se é mesmo o Sr.


Barbour..., que estou cumprindo meu dever. Sem ofensa,
entende? Ordens são ordens.

Enquanto ajustava uma enorme chave de ferro na


fechadura, ele virou a cabeça para fitar Martin, com
ansiedade, as suspeitas ainda não inteiramente dissipadas.

Martin ficou atônito ao constatar que, depois de virar a


chave, o vigia não abriu e empurrou o portão. Em vez disso,
ele tocou a sineta bruscamente, três vezes. Um momento
depois, houve o som de uma pesada tranca de ferro sendo
removida, no outro lado do portão, o ranger de uma
corrente. O portão entreabriu-se lentamente, menos de um
palmo, outro rosto apareceu, olhando para fora,
desconfiado. Em outras circunstâncias, Martin teria rido.
Agora, porém, seu alarme aumentou. Ele compreendeu que a
situação era realmente grave. O vigia sacudiu o polegar para
trás, na direção de Martin. Um olhar atento fixou-se em
Martin, do outro lado do portão.

— Tem um cavalheiro aí anunciando que é o Sr. Martin


Barbour — disse o vigia. — E pediu que avisasse ao Sr.
Bouchard que está querendo entrar.
Os olhos continuaram a examinar Martin. Depois,
abruptamente, afastaram-se. O portão foi novamente
fechado, a tranca posta no lugar.

— Essa não! — exclamou Martin, tornando-se ainda mais


impaciente.

O vigia, virado para o portão, deu de ombros.

— Terá de esperar, senhor. São ordens.

Martin estava furioso. O vermelho desvanecera-se de seu


rosto, embora deixasse algumas manchas. Ele começou a
andar de um lado para outro, mal conseguindo se controlar.
O vigia observava-o furtivamente. A inquietação de Martin
aumentava.

Um longo tempo se passou. Uma carruagem aproximou-se


e dois homens desembarcaram, de trajes pretos, chapéus
pretos altos, carregando valises de couro. O vigia adiantou-
se para ajuda-los, subservientemente. Os rostos barbados
eram finos, impacientes, cruéis,

— Sr. Judson, Sr. Stanton! Ponha seu pé aqui, senhor,


onde não há tanta lama!

Os dois estranhos olharam para Martin, alertas, os olhos


se estreitando. O vigia, radiante, percebeu a oportunidade de
recuperar as boas graças, se aquele desconhecido era mesmo
o Sr. Martin Barbour.

— Conhecem o Sr. Ernest Barbour, Sr. Judson... Sr.


Stanton?

— Claro que conhecemos — respondeu o Sr. Judson,


impaciente.
— Já o encontramos uma dúzia de vezes em Washington e
três vezes nesta fábrica — acrescentou o Sr. Stanton, que era
evidentemente meticuloso.

— Então devem conhecer o Sr. Martin Barbour de vista,


pelo menos, não é mesmo?

O Sr. Judson franziu o rosto, pensativo; olhou para o Sr.


Stanton, que sacudiu a cabeça.

— Não, nunca nos encontramos com esse cavalheiro —


respondeu o Sr. Judson.

— Eu sou Martin Barbour.

Martin aproximara-se dos dois homens. Eles fitaram-no,


num espanto incrédulo. O rosto de Martin estava vermelho,
os olhos eram uma fornalha azul de vergonha e raiva.

— Não houve intenção de qualquer desconsideração,


senhor — balbuciou o Sr. Stanton finalmente, enrubescendo
de embaraço. Ele estendeu a mão. — É um prazer conhecê-lo,
senhor.

O Sr. Judson demorou mais a recuperar o controle. Mas


foi meticuloso em sua tentativa de consertar a situação.

— Isso mesmo, é um prazer e tanto! — exclamou ele,


efusivamente.

Ele também estendeu a mão. Mas Martin virou-se


abruptamente, afastando-se para alguma distância, sem
dizer nada.

Aturdidos, os dois homens se entreolharam, deram de


ombros, indecisos. O vigia aproximou-se deles, sussurrando
em voz rouca:

— Ele diz que é o Sr. Martin, mas nunca o vi antes. Está


querendo entrar, mas achei melhor chamar o Sr. Bouchard.
Não posso deixá-lo entrar enquanto não tiver certeza de
quem ele é.

— Tem toda razão, meu bom homem — murmurou o Sr.


Judson.

— Agiu muito bem — acrescentou o Sr. Stanton.

O vigia abriu o portão, tocou a sineta, a tranca foi


retirada. Depois de uma inspeção preliminar, os dois homens
entraram. O portão foi novamente fechado. O vigia, com um
ar contrito, trancou-o pelo lado de fora.

Outro intervalo irritante transcorreu. Martin ficou


andando de um lado para outro. Uma chuva fria e fina
começara a cair, misturando-se com a fumaça da fábrica e
formando um nevoeiro desagradável, ao início do
crepúsculo. Além da cerca, vinha um rumor intenso e
prolongado. Estremecendo, Martin levantou a gola do capote.
O vigia ofereceu-lhe o abrigo de seu pequeno barracão, mas
Martin friamente recusou. Finalmente, a tranca interior
voltou a ser removida, O vigia adiantou-se rapidamente para
destrancar o seu lado. O portão foi entreaberto, com
relutância. Eugene estava parado ali, de cara amarrada. Na
semiescuridão do crepúsculo, ele parecia com Ernest, como
se sua afeição e admiração contribuíssem para moldar-lhe o
corpo nos contornos do amigo.

— Martin! Mas que diabo está fazendo aqui? Eu não o


esperava! Por que não fui informado? Vamos, entre logo que
está chovendo! Se eu soubesse que você viria...
Ele pegou o braço de Martin, procurando mostrar-se
cordial, passando pelo vigia subserviente e pela abertura no
portão.

— Ernest esteve aqui esta manhã e não disse nada. Mas


que coisa extraordinária! Nunca esteve aqui antes? Não, não
esteve. E é uma pena que tenha resolvido aparecer logo num
dia como este! E ainda por cima ter um problema com os
guardas! É profundamente lamentável!

Sua voz áspera expressava pesar, impaciência,


aborrecimento e simpatia.

— Vamos nos apressar, pois tenho visitantes de negócios,


o Sr. Judson e o Sr. Stanton. Deve conhecê-los.

Ele olhou para Martin curioso, com crescente impaciência.


Nunca se podia saber o que esperar de Martin, que era muito
esquisito. E agora estava sendo ainda mais esquisito, pois
retirava bruscamente o braço da mão de Eugene.

Martin disse calmamente:

— Eugene, não vim aqui para visitá-lo, ser apresentado a


estranhos ou conhecer as instalações. Ouvi algumas histórias
sobre os seus... os seus operários. E queria verificar
pessoalmente.

Eugene parou no mesmo instante, fitando-o com uma


expressão de incredulidade, piscando na semiescuridão. A
chuva escorria por seu rosto, que era largo e moreno e se
contraia, enquanto tentava compreender o que estava
acontecendo.

— O que foi mesmo que disse? Histórias? Que histórias?


Verificar pessoalmente? Mas verificar o quê? — Eugene fez
um gesto de espanto. — Está querendo dizer, Martin, que
pretende ver os homens trabalhando?

— Não. Quero ver como e onde eles moram.

Isso parecia uma loucura rematada para Eugene. Não


sabia como lidar com aquela situação absurda. Assim, não
foi capaz de falar, o rosto todo contraído em perplexidade.

— Bem... — murmurou ele finalmente, enxugando a chuva


que lhe escorria pelos olhos.

— Você não compreenderia, Eugene — disse Martin,


tristemente. — Mas fui informado de que os homens eram
prisioneiros, juntamente com suas famílias, que não podiam
sair, não recebiam quaisquer cuidados ao ficarem doentes,
não podiam ter um sacerdote quando agonizantes, não
recebiam dinheiro, apenas pedaços de papel. Disseram-me
que eram escravos, escravos brancos, como os negros no sul.

Depois de um longo momento de estupefação, Eugene


balbuciou:

— Você é que não compreende, Martin. Deve se lembrar


que estamos trabalhando aqui em contratos do governo,
usando patentes secretas. Temos de nos proteger de espiões,
de vandalismo, sabotagem. Muitas pessoas gostariam de
conhecer nossas patentes. São excepcionalmente valiosas.
Assim, mantemos os homens e suas famílias incomunicáveis,
para nos protegermos...

— Nem sempre está cumprindo contratos do governo,


Eugene — disse Martin, com uma tristeza crescente. — E
mesmo que assim fosse, não haveria necessidade de manter
os trabalhadores como prisioneiros. Não me lembro de
jamais ter ouvido dizer que a National Powder Company
escravizasse ou isolasse seus trabalhadores... e eles também
tinham contratos do governo. Também jamais ouvi falar de
alguma outra companhia que desse a seus trabalhadores
pedaços de papel sem valor, negando cuidados médicos,
aprisionando mulheres e crianças. É horrível demais. Jamais
ouvi falar de algo tão horrível! Deve ser contra a lei. Se é,
quero saber.

Eugene fez um esforço para controlar sua crescente


impaciência, o impulso intenso de prorromper em
imprecações de contrariedade. Tentou sorrir.

— Claro que não é contra a lei, Martin. Você certamente


andou ouvindo contos da carochinha. Damos aos homens o
que chamamos de “vales”. Afinal, eles não passam de
pobres-diabos ignorantes, eslavos, polacos e alemães. São
tão inocentes quanto crianças e não saberiam como usar
dinheiro de verdade. Assim, nós lhes fornecemos vales no
valor de seus salários e providenciamos para que possam
usá-los a fim de comprar o que precisam em armazéns no
acampamento. Nós lhes proporcionamos casas muito
melhores do que tinham em suas terras. Como são pessoas
provincianas, preferem os amigos familiares. Assim, não
sentem a menor falta da associação com estranhos de fora.
Quando ficam doentes, providenciamos médicos, às nossas
custas. E providenciamos o enterro quando morrem. —
Eugene fez uma pausa, sorrindo, antes de acrescentar: —
Portanto, não somos escravistas. Ao contrário, somos
excessivamente generosos com nossos operários e suas
famílias. Mas você já deve saber disso há muito tempo. Não é
novidade. E, afinal, você tem uma participação na companhia
igual à de Ernest.

— Eu não sabia! — exclamou Martin, com a maior


veemência. — A culpa não é minha! Seus argumentos são
iguaizinhos aos de Ernest: parecem objetivos, justos e
válidos. Mas não posso ser enganado desta vez, Eugene!
Apesar dos seus argumentos, sei que há alguma coisa errada
aqui! O que me diz das crianças? Elas frequentam alguma
escola? Não?

— Elas são apenas camponesas — disse Eugene,


friamente. -Não são capazes de aprender. E de nada lhes
serviria aprender alguma coisa. Não passam de bestas de
carga.

— Isso é uma mentira, Eugene! São criaturas humanas,


com almas e mentes. Não são bestas de cargas. E você não
tem o direito de aprisioná-las. Seus argumentos são falsos.
Há alguma coisa terrivelmente errada aqui e vou verificar
pessoalmente!

Eugene deu de ombros, a boca contraída numa expressão


irritada e desdenhosa.

— Não vemos as coisas da mesma maneira, Martin. Posso


lhe garantir que não sou um monstro. A ideia original, é
claro, foi de Ernest. Creio que ele estudou as usinas de
Pittsburgh e chegou à conclusão de que os mesmos
processos dariam ótimos resultados aqui. Mas,
pessoalmente, estou convencido de que é muito bom para os
homens o fato de serem protegidos. E não deve se esquecer
da origem dos homens, de sua estupidez e ignorância. Eles
precisam ser protegidos como crianças e nós devemos nos
proteger.

A chuva lhe escorria agora pelo pescoço, da cabeça


descoberta. Ele praguejou contra Martin silenciosamente.

— Dá para perceber que só podia ser uma ideia de Ernest


— comentou Martin, amargurado. -Não podia ser de outra
pessoa. Mas esses homens têm filhos e seus filhos também
terão filhos. Não existe servidão na América. Não se pode
confinar essas pessoas para sempre. Isso é escravidão.
Nenhum governo, mesmo para segurança de patentes
secretas, faria uma coisa dessas. E você nem mesmo lhes dá
dinheiro. Isso mesmo, posso encontrar mil falhas em seus
argumentos. Você recupera os vales que distribui como
salários através dos armazéns. Não permite que os homens
economizem qualquer coisa, que gastem nas pequenas
amenidades da vida. Posso muito bem imaginar qual é a
extensão e a espécie de tratamento médico que proporciona.
Eles podem querer sair para procurar trabalho em outra
parte, encontrar melhores condições de vida, mas você os
mantém aqui, como animais acorrentados...

— Por que diz ‘você’? — perguntou Eugene, com desdém.


-Seus lucros também saem disso, meu caro Martin, tanto
quanto os nossos. Sua família é bem alimentada e tem todo o
conforto por causa do que fazemos aqui, sua carruagem
anda, sua conta no banco está sempre crescendo. E a herança
de seus filhos sai desta fábrica, do trabalho destes homens.
— Ele bateu no ombro de Martin com uma familiaridade
insultuosa. — Pense bem nisso, meu caro Martin.

A chuva se tornara mais forte e mais fria, um vento


violento começava a soprar. Naquele lado da cerca, havia
guardas em patrulha, armados com rifles, Martin podia vê-
los, homens imensos, rudes, com rostos brutais, deslocando-
se obstinadamente de um lado para outro, parando de vez
em quando para cuspir o suco de tabaco ou olhar ao redor.
Usavam uma espécie de uniforme militar. A água escorria
pelos capotes, derramava-se pelos visores dos quepes.
Estavam se divertindo imensamente com a visão do patrão
parado na chuva, discutindo com aquele rapaz estranho e
veemente. Como o crepúsculo se adensava, começaram a
acender lanternas, levando-as na patrulha, as botas
espirrando água em poças que aumentavam sem cessar.
A fábrica estava a alguma distância, uma silhueta escura,
com imensas chaminés, lançando manchas de preto e
vermelho contra o céu que escurecia. Luzes começaram a
surgir pelas paredes escuras da fábrica. O barulho das
máquinas foi se acelerando, transformando-se numa
trovoada gutural, como se tudo se apressasse numa corrida
contra a noite. Entre a fábrica e a cerca, havia um espaço
desolado, plano, de lama e cascalho, havia aqui e ali uma
pilha de escória, fragmentos de ferro enferrujado, outros
refugos. O terreno plano estava agora repleto de poças,
formadas pela chuva. Havia apenas feiura e desolação por
ali, da fábrica sombria sob o céu cinzento à cortina de chuva.
Ao longe, à esquerda, havia outra cerca, mais baixa do que a
principal. Martin divisou os telhados de casebres por cima.

Martin estava alheio à chuva e ao frio, ao fato de que a


água se derramava copiosamente da aba de seu chapéu.
Esquecera de si mesmo e de suas sensações. Quando
estimulado pela injustiça, crueldade ou exploração, ele
perdia inteiramente o medo, tornava-se determinado e
audaz, implacável e inexorável. E essa determinação
implacável parecia-se um pouco com a de Ernest. Mas Eugene
Bouchard estava intensamente consciente de seu próprio
constrangimento e foi ficando cada vez mais furioso. Martin
não respondera a seu último argumento, limitando-se a fitá-
lo em silêncio, o rosto pálido na crescente escuridão.

— Vamos entrar logo, Martin. Estou completamente


encharcado. Meus visitantes vão pensar que fiquei louco. Se
quer conversar, entre comigo e enxugue-se. E, depois que eu
despachar o Sr. Judson e o Sr. Stanton, poderemos continuar
a nossa discussão em paz e conforto.

Ele começou a afastar-se na direção da fábrica. Mas


Martin permaneceu obstinadamente no mesmo lugar.
— Não, Eugene, não vou entrar com você. Não vim fazer
uma visita nem discutir. Vim apenas conferir as coisas
pessoalmente. Deixe-me em paz. Darei uma volta por aí,
observando as coisas.

— Vai acabar pegando uma pneumonia — protestou


Eugene, embora sua expressão indicasse que considerava tal
resultado altamente desejável. — Seja como for, o problema
é seu. Eu não quero pegar uma pneumonia. Estarei em meu
escritório por mais uma hora, se quiser alguma coisa.

Ele afastou-se, avançando em linha reta pela lama e


poças, as mãos nos bolsos do casaco, a cabeça abaixada
entre os ombros. Martin ficou observando-o por um
momento. Não chegava a ter uma aversão intensa contra
Eugene Bouchard. Sabia que Eugene imitava Ernest
inconscientemente e que sua frieza e insensibilidade,
brutalidade e indiferença, algumas vezes deixavam-no
contrafeito. Percebera nitidamente algum constrangimento
no rosto grande e moreno de Eugene, durante a discussão.
Martin lera muita coisa a respeito da crueldade e sadismo
inatos dos latinos. Mas subitamente duvidou que até mesmo
um latino pudesse ser tão cruel, implacável e brutal como a
sua própria raça, que derivava dos teutônicos. Lembrou que
os latinos riam, mas nunca tentavam justificar-se; lembrou
que os teutônicos e seus descendentes nunca riem, mas
estão sempre tentando justificar-se. Estava convencido de
que a segunda atitude era a mais imoral. Martin tornou-se
um pouco mais velho e amadurecido enquanto ficava parado
ali, na escuridão e na chuva. Sentiu-se consideravelmente
mais humilde. Um pouco de seu fanatismo determinado
esvaiu-se naquele breve período, os olhos pareceram tornar-
se maiores e mais tristes.

“Ernest é como uma praga na vida de todos”, pensou ele.


“Estiolou Eugene. Estiolou o pai, embora eu tenha a
impressão de que não era essa a sua intenção. Estiolou a
mim e vai estiolar sua mulher e filhos. E não posso acreditar
que tenha tal intenção conscientemente. Ele simplesmente
não pode evitar. É como um ciclone. Mas não posso permitir
que ele continue a destruir as vidas de centenas de pessoas
sem tentar tomar alguma providência para impedi-lo.”

Martin virou-se abruptamente e encaminhou-se para a


cerca mais baixa. Os guardas observavam-no, curiosos. Era
um comportamento muito estranho para um Barbour e um
cavalheiro! Martin chegou à cerca e descobriu-se diante de
outro portão. Mas este foi prontamente aberto por outro
vigia, que ofereceu-se para acompanhá-lo. Martin recusou o
oferecimento.

Descobriu-se na extremidade de um arremedo de rua,


enlameada, um verdadeiro pesadelo, com refugos de
madeira espalhados por toda parte, calçadas de madeira
irregulares e com incontáveis falhas, imensos buracos. Aqui
e ali, entre os casebres miseráveis, uma luz amarelada ardia
desoladamente. Tênues nuvens de fumaça saíam de
chaminés baixas e misturavam-se com a neblina da chuva,
tomando o ar quase irrespirável. Havia algum barulho ali,
naquela rua, além do ruído da-chuva e do rumor distante da
fábrica. Por trás de alguns casebres havia pequenos
galinheiros. Enquanto avançava pela rua, lentamente, Martin
podia ouvir agora os gritos ásperos das galinhas e os
gemidos desesperados de crianças. Por uma ou duas vezes,
uma voz estridente de mulher alteou-se, histérica e violenta.
E a chuva caía incessantemente, enchendo os buracos com
poças escorregadias e traiçoeiras. O ar enfumaçado ardia em
seus pulmões. Martin tropeçava de vez em quando, pois já
estava bastante escuro para ver direito e não havia lampiões.
Ele notou que não havia relva em parte alguma, nenhum
jardim ou horta, uma única moita ou árvore. Ali vivia e sofria
uma verdadeira abominação de miséria, desesperança,
sujeira e angústia. O peso de sua depressão, pesar e raiva era
grande demais para que pudesse exprimir, até mesmo para
transformar em pensamento consciente. Martin tinha a
sensação de que carregava um fardo pesado demais para lhe
permitir respirar, para que seu coração suportasse. Temera
demais, mas não chegara àquele ponto. Os pés pareciam
pesar como chumbo enquanto ele avançava. Teve um
horrível pressentimento de que iria cair em alguma poça de
lama bem funda e se afogar, no meio daquela confusão de
casebres, lama, chuva escuridão e desolação.

Já tinha agora avançado bastante para perceber que havia


outra rua, em ângulo reto com aquela em que estava, uma
rua igualmente repulsiva e sufocada pela cerca de madeira.
Já estava quase alcançando a outra rua quando saiu de uma
casa um grito lancinante de agonia, estridente e penetrante.
Foi tão alto e áspero que quase não parecia humano. Mas
logo repetiu-se, outra vez e mais outra, com força e
intensidade crescente. Martin conseguiu controlar o coração
disparado o suficiente, para reconhecer que os gritos
partiam de uma criança em sofrimento. Entremeada com os
gritos de angústia e desespero, Martin pôde ouvir a voz de
uma mulher, rouca, aflita, aparentemente tentando
proporcionar conforto e ajuda, além de um coro de gritos
assustados de outras crianças.

Martin descobriu-se diante de um casebre de tábuas


irregulares e sem pintura, sujas, água escorrendo. Um
lampião ardia além da única janela que dava para a rua, uma
janela tosca, sem cortina. Passou por um buraco de água e
lama, foi até essa janela. Podia ver nitidamente o que havia
lá dentro. Divisou um cômodo cujas paredes e assoalho eram
de pinho, sem pintura. Não era um cômodo grande e estava
atravancado. Duas camas toscas enchiam-no quase que
completamente, havia diversas cadeiras. Havia dois ou três
cestos grandes de vime nos cantos, repletos de trapos e
outros objetos impossíveis de identificar. Uma pequena
estufa de ferro exalava fumaça no centro do cômodo. Havia
pelo menos cinco crianças pequenas apinhadas em torno da
estufa. Numa das camas, havia outra criança, remexendo-se e
gritando, erguendo as mãos e as pernas nos gestos de um
afogado, enquanto uma mulher desmazelada, informe,
conturbada, tentava controlá-la pela força e pela voz. Todas
as crianças gritavam e choravam em solidariedade,
estremecendo de frio em seus trapos inadequados. O
lampião iluminava rostos encovados e pálidos, da mulher
debruçada sobre a cama, da criança torturada debatendo-se
para escapar de sua agonia.

Nunca em toda a sua vida, na Inglaterra ou na América,


Martin testemunhara uma cena tão terrível de miséria e
desespero. Ele correu para a porta desconjuntada, bateu
vigorosamente. As crianças em torno da estufa pararam de
gemer, mas os gritos da outra, na cama, continuaram. Houve
um movimento lá dentro e a porta foi aberta, revelando a
mulher desgrenhada, soluçante, por trás dela os rostos das
crianças, bocas entreabertas, olhos ansiosos. O ar
ligeiramente mais quente do interior do casebre escapou
pela porta, fétido e sufocante. Martin ofegou.

— Deixe-me entrar! — exclamou ele.

A mulher obstruía-lhe a passagem. Ele podia divisar-lhe o


rosto moreno, nitidamente estrangeiro, os olhos pretos, os
cabelos desgrenhados. Ela o fitava com uma perplexidade
aturdida. Martin segurou a porta, empurrou-a, entrou no
cômodo. A mulher prorrompeu em exclamações,
gesticulando excitadamente, retorcendo as mãos, fitando-o
com raiva. Martin contemplou-lhe, com profunda compaixão,
o rosto aterrorizado, as faces encovadas, os lábios roxos e
rachados, as pálpebras inchadas pelas lágrimas. Olhou para
as crianças, que haviam corrido para trás da estufa,
apavoradas com o aparecimento do estranho. Até mesmo a
criança na cama interrompera seus gritos e fitava-o, o rosto
encarquilhado, contorcido, com sangue na boca.

Martin tentou sorrir, mas sentia os lábios grossos e tinha


medo de desatar a chorar. Bateu no próprio peito e disse:

— Barbour... Sr. Barbour...

Agora ele podia sorrir, encorajadoramente. Sabia que


devia ser uma estranha aparição, encharcado, todo sujo de
lama, a água escorrendo copiosamente do chapéu e dos
cabelos, o rosto pálido, desvairado. Não era de admirar que a
mulher continuasse a fitá-lo com evidente terror, recuando
na direção das crianças, que correram da estufa para se
abrigarem por trás de sua saia de morim.

— Barbour — repetiu Martin, estendendo a mão.

A mulher piscou, como um animal estúpido. O nome, é


claro, significava alguma coisa para ela, mas o mesmo não
acontecia com a aparência. Assim, Martin desviou-se dela em
desespero e aproximou-se da cama. A mulher soltou um
grito estridente, pulou para a frente, alcançou a cama no
mesmo instante que Martin. Mas ele inclinou-se sobre a
cama, a luz do lampião incidindo sobre seu rosto. Foi então
que alguma coisa no rosto dele, firme e sereno, bonito e
gentil, pareceu tranquilizar a mulher, pois ela prorrompeu
novamente numa torrente de sons guturais, recomeçando a
chorar. Apontou para a criança na cama, que retomara os
gritos de angústia. A criança segurou as mãos de Martin, com
dedos que pareciam garras, olhos desvairados, a boca
entreaberta, tremendo toda. Martin sentiu o calor intenso
que se desprendia das mãos da criança. Começou a examiná-
la, gentilmente. Mas não podia fazer perguntas e olhou para
a mãe, desolado. A mulher compreendeu, virou a criança de
lado, tocou-lhe no ouvido, Martin viu agora que a orelha
estava inchada, avermelhada, úmida e quente. Compreendeu
qual era o problema. A menos que se providenciasse socorro
médico imediatamente, aquela criança estava perdida.

— Santo Deus! — exclamou ele. -Será que ninguém aqui


sabe falar inglês?

Ele olhou para as crianças; a mais velha, um menino em


torno dos dez anos, olhou para Martin, hesitante,
murmurando em seguida, assustado:

— Eu sei... um pouco...

Graças a Deus! Corra até o vigia, menino, traga-o para


falar comigo. Diga-lhe que o Sr. Barbour quer vê-lo
imediatamente.

O menino, depois de um olhar aturdido e prolongado


para Martin, saiu correndo para a. chuva e a escuridão.
Voltou poucos minutos depois, com o vigia irlandês do
portão. O homem ofegava, aturdido e contrariado, mas sua
voz e atitude eram subservientes. Afastou a mulher com o
ombro para um lado, ao entrar no cômodo, molhado e
enlameado, postou-se diante de Martin, chapéu nas mãos, o
porrete debaixo do braço.

Foi então que Martin compreendeu pela primeira vez


como era bendito o poder do dinheiro, como podia ordenar e
salvar, atenuar a agonia e destruir o medo, recatar e
recuperar. Sempre pensara no dinheiro como algo
intrinsecamente diabólico e sinistro, mas agora o descobria
como um anjo de misericórdia, num manto de luz! O poder
do dinheiro fluía por seu corpo, fazendo-o sentir-se mais
forte do que em qualquer outra ocasião de sua vida.
Compreendeu; imediatamente o que devia fazer. Toda
confusão desvaneceu-se, ele sentiu-se livre.

— Quero um médico — disse ele ao vigia, bruscamente. E


imediatamente. Diga-lhe que há uma criança aqui com o
ouvido em péssimo estado, sofrendo muito. Diga-lhe que o
Sr. Barbour quer que ele venha imediatamente, E agora trate
de correr.

O vigia hesitou, embora se mantivesse respeitoso.

— Sr. Barbour, as ordens são que o superintendente deve


sempre dar o aviso.

— Mas que diabo! — gritou Martin, para seu próprio


espanto. — Quem se chama Barbour, o superintendente ou
eu? Esta fábrica é minha e não do superintendente! E eu
quero o médico aqui ou vou despedi-lo amanhã!

O homem saiu apressadamente. Martin voltou para junto


da cama. Fez a mulher compreender que queria água quente.
Quando lhe foi trazida, ele limpou o rosto e as mãos sujas da
criança, deu-lhe uma caneca de água fria. Foi tão gentil e
terno, que os gritos da criança definharam para lamúrias. Em
determinado momento, a criança conseguiu até mesmo
exibir-lhe um sorriso, tão triste e angustiado, que Martin não
foi capaz de suportar. A mulher estava agachada no outro
lado da cama, com as demais crianças por trás dela, Todos
olhavam para Martin como se fosse um libertador ou um
deus. Ele continuou a falar para a criança na cama,
suavemente, até que ela acabou adormecendo, como rosto
encostado em sua mão.

Mas não demorou muito para que a criança despertasse,


soluçando, recomeçando a gritar. Foi nesse momento que o
vigia voltou, com um médico jovem e de roupas surradas,
com uma expressão aturdida, olhos incrédulos. Embora
Martin nunca o tivesse visto antes, ele já vira Martin passar
de carruagem muitas vezes. Reconheceu-o imediatamente,
foi dominado pela apreensão, um nervosismo evidente.
Examinou a criança com as mãos delicadas, depois deu-lhe
um tablete dissolvido em água. Levantando em seguida,
virou-se para Martin e sacudiu a cabeça, dizendo:

— Essa criança já devia ter sido levada a um médico


muito antes. Lamento muito, senhor, mas está com infecção
no ouvido. Já estão fazendo operações atualmente para
resolver esse problema. Mas é uma operação muito perigosa,
quase sempre fatal. De qualquer forma, creio que já é tarde
demais até mesmo para isso, Sr. Barbour.

Martin fitou-o com firmeza.

— Nada deve ser poupado para salvar esta criança. Ela


deve receber todos os cuidados possíveis. Quer levá-la para
um hospital? Enfermeiras? Devemos chamar um médico de
Filadélfia ou Nova York?

O jovem médico sacudiu a cabeça ligeiramente.

— Nossos hospitais não são... não são muito bons,


senhor. São verdadeiros viveiros de pestilência. É o crime do
século XIX que ninguém tome qualquer providência para
melhorar os hospitais. São piores do que as prisões e não
muito mais limpos. Não pode compreender o que acontece
por este mundo, Sr. Barbour. Somente um médico sabe. E
nada podemos fazer. Nossos hospitais não são apropriados
nem mesmo para cachorros e ninguém tenta remediar essa
situação. Não temos enfermeiras apropriadas, apenas umas
poucas mulheres que não são melhores do que párias, pouco
mais que criadas e bêbadas desmazeladas. Cada médico sabe
o que é necessário, mas os pobres são impotentes e os ricos
são indiferentes. Os ricos podem ter o melhor em suas
próprias casas... — Ele gesticulou, desolado. — Aos pobres,
resta apenas contar com a ajuda eventual da natureza. Ou
morrer. Algumas vezes a morte é até melhor. Em muitas
ocasiões, os hospitais só servem para prolongar-lhes o
sofrimento. Ou matá-los mais depressa.

O rosto jovem estava contraído de amargura.

A criança mergulhara num sono drogado, gemendo,


irrequieta. Por cima da cama, os dois homens fitavam-se
tristemente. Depois de uma longa pausa, Martin disse:

— Não pode imaginar o que fez por mim, doutor. Talvez


algum dia eu possa dizer-lhe. Enquanto isso, deve fazer tudo
o que for possível para salvar esta criança. Nada deve ser
poupado. Talvez, no final das contas, alguns de nós possam
tornar este mundo um pouco melhor para ela viver do que
tem sido até agora.

— Deus sabe que o mundo já é um lugar horrível — disse


o jovem médico, suspirando. — Mas vou lhe dizer o que se
pode fazer: se conseguirmos tirar esta criança daqui, minha
irmã, que vive comigo, pode cuidar dela em nossa casa. A
criança não tem muita chance de sobreviver, mas talvez
possamos torná-la um pouco mais confortável. Podemos
chamar o Dr. Montrose, se quiser. Ele já fez algumas
operações em casos de infecção do ouvido e tem apenas 50
por cento de mortalidade. Até gente de Nova York costuma
chamá-lo. Vai gostar do Dr. Montrose.

Naquele momento, Ernest estava lendo um bilhete de


Eugene, que lhe fora entregue por um mensageiro. Eugene
informava que Martin resolvera visitar as instalações da
Kinsolving e que não estava gostando da situação.
CAPÍTULO XXXIX
Naquela noite, Ernest disse à mulher:

— Lamento muito, meu amor, mas infelizmente terá de ir


sozinha ao jantar dos Culverts esta noite. Irei levá-la e buscá-
la, é claro. Mas tenho de me encontrar com um visitante
importante e inesperado esta noite. Não sabia até esta tarde
que ele viria e é necessário recebê-lo imediatamente.

May ficou desapontada. Deixara de amamentar o filho há


poucos meses e já estava no terceiro mês de gravidez de
outro filho. Cobiçava e apreciava cada momento de liberdade
que tinha agora e por isso protestou de indignação. Gregory,
que anteriormente recusara o convite, ofereceu-se para
acompanhá-la, no lugar de Ernest. A oferta acabou sendo
aceita, depois de muitos protestos, recriminações e lágrimas.
Depois que finalmente vestiu-se e estava pronta para partir,
May bateu no ombro do marido com o leque.

— Lamento a chegada desse visitante inesperado, meu


querido — disse ela, as covinhas surgindo maliciosamente.
— Mas saiba que você não é nenhuma esfinge para mim,
Ernest, apesar de sua dissimulação.

E ela saiu, rindo.

Ernest sentou-se diante do fogo, na biblioteca. Acendeu


um charuto, ficou fumando, pensativo, olhando para os
carvões em brasa. O relógio batia nove horas quando o
mordomo entrou para anunciar a presença do Sr. Martin
Barbour. Ernest limitou-se a acenar com a cabeça, sem dizer
nada ao mordomo. Quando Martin entrou, Ernest não se
levantou efusivamente, como sempre fazia. Continuou
sentado na poltrona, olhando para o irmão em silêncio, com
seus olhos claros e implacáveis. E Martin, fitando-o, sentiu
uma onda de alerta e advertência percorrer-lhe o corpo.

— Estou vendo que já sabe — disse ele, calmamente.

Houve uma pausa. Depois, Ernest indicou-lhe com o


charuto uma poltrona no outro lado do fogo.

— Sente-se. — Martin sentou-se e Ernest acrescentou,


suavemente. — Não poderia esperar até amanhã, para
conversarmos no escritório?

— Não. Na verdade, tenho certeza de que, quando eu


acabar, você estará contente por eu não ter esperado até
chegarmos ao escritório amanhã. Como você já sabe, vou lhe
dizer logo o que pretendo fazer. Já faz algum tempo, Ernest,
desde a Criméia, que estou pensando em me afastar deste
negócio.

Ele fez uma pausa. Um brilho sombrio insinuou-se nos


olhos de Ernest, mas ele não deixou transparecer qualquer
outro sinal de emoção. Observava Martin atentamente,
constatando sua palidez, a expressão exausta e nervosa.
Martin, por sua vez, também o examinava, ansioso.

— Não podia suportar este negócio por mais tempo, a


fabricação de armas e explosivos para matar outros homens.
Não podia suportar o pensamento de meus filhos lucrando
com a morte. Falei a respeito com o Sr. Gregory. Conversei
com Amy, com a mãe e com o Padre Dominick. O Sr. Gregory
protestou veementemente. Amy queria que eu fizesse o que
achasse melhor, a mãe não compreendeu absolutamente. E o
Padre Dominick aconselhou paciência.

Novamente o brilho sombrio e sutil insinuou-se nos olhos


de Ernest.
— Pensei, Ernest, que o Padre Dominick estava errado.
Depois de algum tempo, fiquei bastante confuso. Não sabia o
que fazer. Todos pareciam contra mim. Cheguei a desconfiar
algumas vezes que era um tolo. Em outras ocasiões, o
mundo inteiro parecia incoerente, faminto como uma besta
selvagem.

A recordação daqueles meses de tormento e indecisão


transtornaram Martin, ainda agora. Ele levantou-se,
irrequieto. Ernest estava atentamente absorvido na ponta do
charuto. Era como se estivesse sozinho, se o critério fosse
alguma indicação de que ouvira as palavras de Martin.

— E depois, Ernest, compreendi o que o Padre Dominick


quisera dizer ao me aconselhar paciência. Havia tantas
coisas... Mas hoje descobri o que eu queria fazer, o que devo
fazer. Fui às instalações da Kinsolving, como Eugene já lhe
informou. E fui porque me informaram da situação que havia
lá.

Uma espécie de horror dominou-o, ao recordar aquela


hora na lama e escuridão, sob a chuva, a angústia da criança
agonizante.

— As condições são muito piores do que eu podia


imaginar. Mas você sabe disso também.

Martin tornou a se sentar, inclinou-se na direção do


irmão, como se estivesse prestes a fazer uma última e
desesperada súplica.

— Ernest, você conhece todas as condições que existem


por lá. E, no entanto, pode ficar sentado aqui, diante do seu
fogo, no maior conforto, abrigado da chuva, depois de comer
um bom jantar, com dinheiro no banco, sem se sentir
absolutamente envergonhado. Pode até mesmo desfrutar as
coisas que a miséria e a escravização dos outros lhe
proporcionam. Pode ficar sentado aqui como uma estátua! —
A voz de Martin alteou-se quase a um grito. — Como uma
estátua! Você não tem coração. Nunca teve. Posso lembrar
que você pisava em grilos, distraidamente, como se fosse
parte de sua natureza esmagar e destruir coisas impotentes.
E não podia evitar. Às vezes, pela maneira como você me
olhava ou tratava os outros, eu não podia deixar de pensar
naqueles grilos que apareciam na lareira em nossa casa. E
aquelas pessoas na Kinsolving, morrendo, aprisionadas,
doentes, desamparadas, são como grilos para você. Mas não
consigo acreditar nisso! Não quero acreditar! Quero acreditar
que, em algum lugar de você, existe algo mortal, algo que
pode sangrar e sofrer. Quero acreditar que tomará alguma
providência...

Ernest perguntou de modo suave, olhando para o fogo,


placidamente:

— E o que você gostaria que eu fizesse?

Martin sentia-se angustiado e desesperado, mas


continuou mesmo assim:

— Liberte esses homens e suas famílias. Não os escravize.


Dê-lhes dinheiro e não pedaços de papel. Não os deixe
morrer como cães acorrentados, ao frio e à chuva. Dê-lhes o
suficiente para viverem. Deixe-os saírem.

Ernest riu um pouco, suavemente, como se dominado por


um divertimento gentil. Ele olhou agora diretamente para
Martin. As pupilas pareciam dilatadas, extraordinariamente
brilhantes.

— Você nunca vai crescer, Martin. Será que nunca vai


amadurecer e deixar de assumir o papel de Eva? Esquece que
somos homens e estamos empenhados num grande
empreendimento? Não se constroem fortunas com base no
amor fraternal e na caridade. Não se fazem fortunas com
base na justiça. Nada jamais se cria a não ser pelo trabalho
árduo, ferro e fogo. Não se ganham corridas mantendo
cavalos gordos nas baias, não se pode arar campos deixando
o lavrador descansando preguiçosamente. As estradas não
são abertas, os túneis perfurados em montanhas e as
fronteiras dilatadas por pessoas que ficam cochilando em
cadeiras de balanço. Todas essas coisas foram feitas e
continuam a ser feitas através do sofrimento.

“Mas já lhe disse todas essas coisas centenas de vezes.


Estou cansado agora. Estamos construindo uma grande
indústria, outros homens estão fazendo a mesma coisa. Todo
esse país vai crescer, tornar-se forte e poderoso, através da
indústria. Alguém tem de sofrer para isso. Até mesmo
morrer, se for necessário. Mas a indústria possui uma grande
virtude, que você está esquecendo: destrói apenas os que
não têm valor, os que são supérfluos. Não consome os
melhores, como acontece com outras coisas. É uma vaca
imensa que não precisa de feno, capim e bom milho. Pode se
aguentar muito bem com serragem e farelo. — Ernest fez
uma pausa, antes de acrescentar, desdenhosamente: — E os
nossos operários são justamente isso: serragem e farelo.
Nunca serão qualquer outra coisa, seus pais nunca o foram.
Guerras, fomes e pragas costumavam destrui-los. Mas
descobrimos algo melhor do que isso para eles: a Indústria.
Pelo menos eles vivem e comem. Mas já lhe disse tudo isso
antes. O mais importante, pelo que posso perceber, é a ideia
de ‘prisão’. Receio que você não esteja compreendendo. Não
sabe que qualquer um daqueles homens pode sair no
momento em que o desejar, bastando dizer que quer ir
embora?

Enquanto o irmão falava, Martin fora empalidecendo cada


vez mais, tornando-se irremediavelmente desesperançado.
Suspirou agora, cobriu o rosto com a mão, parcialmente.

— Creio que não há nada que eu possa falar que seja


capaz de persuadi-lo. — Ele falou meio para si mesmo.
Depois, baixou a mão e acrescentou:

— Tem razão, já me disse tudo isso antes. Pode fazer com


que pareça plausível. Isso pode acontecer com mentiras e
crueldade e foi o que me confundiu inicialmente. Mas já não
podem mais me confundir. Imagino, se eles assim o
quisessem. Mas para onde eles poderiam ir? Não têm
qualquer dinheiro. Você cuidou disso, com seus pedaços de
papel e os armazéns da companhia. Eles morreriam de fome.
Você construiu em torno deles uma muralha mais alta e mais
forte do que aquela cerca de madeira.

“Pois vou lhe dizer agora o que quero fazer, o que devo
fazer. Não vou retirar-me da firma. Tenho uma quantidade
de ações igual à sua. Mas você pode sobrepujar-me em
qualquer votação, pois conta invariavelmente com o apoio de
Armand, Eugene, Raoul e o Sr. Gregory. Ou os hipnotiza ou
eles são como você. Não sei dizer. Assim, minha intenção é
permanecer na firma, devolver àqueles pobres coitados uma
parte do que ganharam. Vou depositar dois terços ou a
metade dos meus dividendos no banco, para aqueles
homens. E quando eles quiserem ir embora, poderão retirar
uma parte desse dinheiro, na proporção do tempo em que
trabalharam para nós. Isso será considerado como as
economias deles. E quando algum homem quiser partir,
poderá fazê-lo com dinheiro no bolso.

Vou também providenciar médicos suficientes para


todos. E mandarei construir um pequeno hospital no
acampamento. O Padre Dominick vai ajudar-me. Quase todas
aquelas pessoas são católicas. Será um hospital católico, com
doações minhas e de outras pessoas que eu possa interessar.
Arrumaremos irmãos para cuidar dos homens, freiras para
tratarem das mulheres e crianças. Sei muito bem que isso vai
absorver até o último cent dos meus dividendos e lucros.
Mas não me importo. Não quero nada para mim mesmo ou
para meus filhos. Para cada homem que você liquidar, criarei
outro homem. Salvarei cada criança que você deixar morrer.
Alimentarei cada coitado que você deixar passar fome.
Libertarei cada operário que você puser atrás de muralhas.”

Ele tornou a se levantar, invadido por um esplendor que


impressionou até mesmo a Ernest. O rosto resplandecia, os
olhos tinham novamente um brilho intenso. Parecia
invencível, até mesmo triunfante, destemido, controlado,
poderoso. Não era mais um sonhador irresoluto, silencioso,
retraído, que Ernest sempre desdenhara. Pois só era um
sonhador assim quando estava preocupado consigo mesmo.
Em meio à efervescência de ódio de Ernest, houve uma
admiração súbita e relutante por aquela loucura heroica,
aquela imbecilidade sublime. Parecia-lhe inacreditável; em
outra pessoa, teria duvidado da sinceridade. Mas não
duvidava da sinceridade de Martin. Era apenas uma das
coisas de que Martin era perfeitamente capaz; toda a sua
vida e natureza apontavam para o sacrifício e heroísmo,
idealismo e idiotice sublime. Para fantasias como justiça e
amor, integridade e simplicidade, honra e gentileza,
compaixão e paz. Pessoas assim, pensou Ernest, num relance
luminoso a se sobrepor às trevas de seu ódio intenso, são
perigosas. Devem ser destruídas, para que o mundo possa
sobreviver.

Mas nada do que pensava transparecia na placidez de


Ernest, que continuava a fumar o charuto tranquilamente. E
ele continuou a fumar enquanto Martin ficava de pé à sua
frente, continuou a fumar até que o brilho desvaneceu-se do
rosto do irmão, substituído por uma pálida determinação.
Depois, Ernest também se levantou, pondo as mãos sob as
abas do casaco e olhando para o fogo. Era como se estivesse
conversando sobre o mais insignificante dos assuntos. Até
mesmo sua voz estava serena e indiferente. Mas ele não
olhou para o irmão enquanto falava:

— Hoje, nossa ação ordinária fechou com uma cotação


dois pontos mais alta do que ontem. Comprarei todas as
suas ações, ao preço do mercado de hoje, embora possa abrir
amanhã com uma cotação mais baixa. Mas comprarei tudo ao
preço de hoje. Pagarei ao longo de um período de três anos,
duas vezes por ano. E ficarei esperando que apresente
imediatamente o seu pedido de demissão do cargo de
secretário de Barbour & Bouchard.

Depois disso, houve um longo silêncio, um silêncio


terrível para Martin.

Sua mente, incrédula, recusava-se a acreditar no que


acabara de ouvir. Sentia dentro de si uma escuridão
tumultuada e angustiante, uma sensação de que fora
violentamente arremessado de terreno sólido para o espaço
traiçoeiro. Os olhos dele, fixados em Ernest, tornaram-se
protuberantes e vidrados, a boca se entreabriu. Mas ele
estava mais atônito e horrorizado do que assustado. Havia
um turbilhão em sua cabeça. Fragmentos do que ouvira o pai
dizer, do que ele próprio pensara a respeito do irmão,
desfilaram sem coerência por sua mente, como centelhas na
escuridão: “...tente controlar-se”; “...e roubar”; “...trapacear a
mãe e as irmãs”; “...ficar com tudo e não deixar nada para
vocês”. Mas ele ainda não podia acreditar, ainda estava
incrédulo. Podia apenas ficar olhando para Ernest, atônito,
incapaz de falar. E, agora, Ernest também olhava para ele,
afável, mas implacavelmente.

Martin fez um esforço para falar. E quando finalmente


conseguiu, pôde apenas sussurrar:

— Então era isso o que você estava esperando e


planejando durante todo o tempo! Queria forçar-me a sair,
exatamente como o pai disse que aconteceria. Estou lhe
atrapalhando e agora quer me obrigar a sair. — Ele fez um
esforço para tornar a voz mais forte, mas saiu rouca e
trêmula: — Mas não pode me obrigar a sair. Vou continuar
sócio da firma. E tentarei anular tudo o que você fizer. Não
pode me impedir. E tenho de ficar também para proteger os
interesses da mãe e das meninas. Não pode me obrigar a
sair. Tenho uma participação igual à sua na companhia.

Pela primeira vez em sua vida, Martin estava exultando


em triunfo. Riu na cara do irmão. Alguma coisa da expressão
de Ernest, agressiva e exultante, insinuou-se em seus olhos.
O ódio mútuo, por tanto tempo escondido, agora se
interpunha entre eles, podiam percebê-lo e reconhecê-lo,
abertamente.

Ernest sorriu então, como se estivesse profundamente


divertido. Acenou com a cabeça e disse, suavemente:

— Acho que você vai mesmo sair. Pois, se não o fizer,


Hans e Carl Heckl irão para a cadeia por ajudarem escravos a
fugirem para o Canadá. Eles parecem gostar muito de você.
Não quiseram contar sua participação na história. Mas se eu
não tiver sua renúncia imediata e a promessa de que me
venderá suas ações, eles irão para a prisão por muito tempo.
Providenciarei para que sejam condenados a penas bem
longas.

Martin, subitamente consternado, sentou-se. Ernest, ainda


sorrindo, sentou-se também.

— Eles são homens bons e simples — disse ele. — Não


sabem mentir. Na verdade, estavam tão orgulhosos de si
mesmos que confessaram tudo. Carl assumiu uma atitude de
desafio, mas o velho ficou profundamente abalado, quando
tudo acabou. Conversei com eles em particular, antes dos
guardas chegarem. Recusaram-se a falar de você, a dizer
qualquer coisa a seu respeito...

Os olhos de Martin estavam angustiados, a respiração era


ruidosa. Ele lembrou-se, com ódio e desespero, do que
confidenciara a Ernest cerca de dois anos antes, em sua
inocência e confiança impulsiva. Deveria ter imaginado que
o irmão seria traiçoeiro! Ah, que loucura ter confiado nele!
Era melhor confiar numa cobra venenosa, no próprio
demônio. Ter traído a si mesmo já era bastante terrível; ter
traído aos Heckls, que confiavam nele cegamente, era muito
pior. O suor brilhou em seu rosto pálido, os lábios estavam
lívidos. Que Deus me perdoe por ter sido tão tolo!, pensou
Martin, desesperado.

Ele olhou para Ernest. Não havia qualquer suavidade ali,


nada a que um homem pudesse apelar ou comover. Qualquer
ideia que pudesse ter de apelar por misericórdia morreu no
nascedouro. Martin tinha a sensação de que chegara à beira
de um abismo. Podia ver o rosto de Hans, velho,
aterrorizado, as mãos trêmulas; viu Carl, jovem e destemido;
viu a velha Sra. Heckl. E estremeceu. Entregara-os à mercê de
uma hiena, de um leão. Que Deus me perdoe!, pensou Martin
novamente, não sabendo que falava em voz alta. Estava
desesperado. Tudo o que fizera estava em ruínas; a cada
passo, ele e somente ele cometera loucuras irremediáveis. E
arrastara outros em suas loucuras. Ele ficou tonto de tanta
aversão que sentia por si mesmo.

Depois de um longo tempo, ele disse, bem devagar,


hesitante:
— Está tentando fazer chantagem comigo para me obrigar
a sair. Pensa que vou desistir de tudo o que planejei, se me
ameaçar com a prisão daqueles dois homens. Mas não pode
me forçar a sair, não pode me ameaçar. Não vou desistir do
que planejei. Conversarei com Hans e Carl assim que puder.
Sei que eles vão concordar comigo que é melhor que dois
homens fiquem na cadeia, a fim de salvar centenas de
homens desesperados que estão numa prisão.

Ernest ainda estava sorrindo e seu divertimento parecia


aumentar.

— Infelizmente, se insistir nisso, haverá três homens na


cadeia, ao invés de apenas dois. Não seria justo que aqueles
dois assumissem toda a culpa sozinhos, não é mesmo? O
cúmplice deles também deve ir para a prisão. E
providenciarei para que você também seja preso.

— Seria capaz de mandar-me para a prisão?

— Claro. Sempre viveu falando bobagens sobre justiça,


meu caro Martin. Contudo, está querendo que eu faça uma
coisa extremamente injusta. Mandar dois homens para a
cadeia e permitir que seu cúmplice continue livre seria uma
tremenda injustiça. Você não pode deixar de concordar.

Para surpresa dele, no entanto, Martin começara a sorrir.


Era um sorriso débil, sombrio, as rugas em torno da boca
estavam azuladas.

— Se eu lhe pedisse, Ernest, para pensar na mãe e em


nossas irmãs, certamente riria de mim. Se eu lhe pedisse
para lembrar que sou seu irmão, que tivemos o mesmo pai e
a mesma mãe, haveria de rir ainda mais alto. Mesmo assim,
não creio que me mande para a prisão. Não pode ser
alcançado pelos apelos humanos comuns, como acontece
com outros homens. Mas pode ser atingido por outro meio.
Não creio que mande para a cadeia o marido da prima de sua
mulher. Não creio que o Sr. Gregory vá admitir que você
mande para a cadeia o marido de sua sobrinha. May e o Sr.
Gregory são argumentos que você não pode contornar,
embora, evidentemente, não vá pensar na pobre Amy.

Uma mudança extraordinária ocorreu no rosto de Ernest à


menção do nome de Amy. A princípio, houve estupefação,
seguindo-se ao choque de algo lembrado; era quase como se
ele estivesse falando consigo mesmo, em incredulidade e
espanto diante de sua implacabilidade: Eu tinha me
esquecido disso! Na minha determinação de conseguir o que
queria, na incapacidade de perceber qualquer outra coisa
que não o objetivo a ser atingido, esqueci-me disso! Tinha
esquecido de Amy! Minha mãe, minhas irmãs, minha mulher
e meus filhos, Gregory Sessions... todos enfim, não hesitaria
por causa deles. Mas esqueci-me de Amy!

Em sua agitação e choque, Ernest levantou-se,


abruptamente. Martin sorriu de modo sombrio para si
mesmo. Acertara Ernest em cheio, ao falar em May e Gregory!
Sentiu que o poder lhe voltava. Mas não podia controlar seu
tremor. Olhou para Ernest, parado diante do fogo, as mãos
cerradas nos lados do corpo. Havia nele um quê de tumulto e
distúrbio, como se tivesse sido vitalmente atingido.
Consegui sobrepujá-lo, pensou Martin, espantado. Pela
primeira vez na vida, consegui sobrepujá-lo!

Ele começou a falar, lentamente, cuidadosamente, para o


homem silencioso diante da lareira:

— Nunca poderá haver paz entre nós depois disso. Nunca


mais poderemos nos encontrar como amigos. Não creio que
poderia suportar tornar a vê-lo ou falar-lhe. Está tudo
acabado entre nós. Por toda a minha vida, sempre soube
quem você realmente era, mas jamais acreditei, até esta
noite. Agora, não posso suportar ficar na mesma sala que
você, não consigo sequer fitá-lo. Vou embora.

Martin se levantou também, abotoou o casaco. Ernest não


dava o menor sinal de que o ouvira ou de que estava
consciente de sua presença. Estava extraordinariamente
pálido, como se tivesse sofrido algum choque profundo.

— Vou pedir demissão da Barbour & Bouchard, se é isso o


que você deseja. Mas não vou lhe vender minhas ações. E só
pedirei demissão com a sua promessa de que Hans e Carl
serão libertados imediatamente. E manterei meus planos,
com exceção do hospital. Vou construí-lo perto dos portões
da Kinsolving. E algo me diz que você deixará os doentes
saírem de trás daquela cerca de madeira. Gastarei até o
último cent dos meus dividendos para ajudar aquelas
pessoas que você está oprimindo, E não poderá me impedir.
E também falarei com o prefeito e até mesmo o governador
sobre algumas providências necessárias. — Ele fez uma
pausa, antes de arrematar: — Vou apresentar meu pedido de
demissão amanhã. Só mais uma coisa: direi à mãe que
continuarei por trás dela e das meninas, cuidando para que
você não as roube.

Ernest finalmente mexeu-se. Virou-se para Martin, muito


calmo.

— Estarei esperando por seu pedido de demissão amanhã


de manhã. Providenciarei para que Hans e Carl sejam
libertados ainda esta noite.

A voz era apática, como se ele tivesse perdido


inteiramente o interesse pelo assunto. Martin encaminhou-se
para a porta. Parou no limiar e virou-se.
— Nunca mais terei qualquer coisa a lhe dizer. Mas quero
falar uma última coisa. Não pode fechar as suas portas de
maneira bastante hermética para impedir a entrada das
doenças que está fomentando entre os seus operários. Não
pode fechar as janelas o suficiente para impedir a entrada da
malária que está cultivando em seus pântanos. Não há
trancas fortes o bastante para protegê-lo e a seus filhos dos
cães raivosos que está deixando à solta. Cada criança que
morre por lá, de fome e negligência, ameaça a vida de seus
filhos. Cada mulher que deixa sem marido e sem casa faz
com que a cama de sua própria mulher se torne mais dura.
Você envenena a água deles e essa mesma água vai se filtrar
por baixo da terra até seus poços. Não pode se esquivar ao
sofrimento e ruína que está provocando.

A voz dele tornou-se eloquente na profecia, o brilho


intenso voltava a se estampar em seu rosto.

— Está provocando a morte para os outros, mas vai


acabar atraindo-a para si mesmo. Mental e fisicamente, está
atraindo a morte para si mesmo e para seus filhos, para os
filhos de seus filhos. Está destruindo represas, mas algum
dia a água irá afogá-lo também. E a seus filhos. Não pode
semear tempestades e depois construir uma casa que seja
forte o bastante para resistir. Ernest limitou-se a dizer:

— A porta fica à sua direita.


CAPÍTULO XL
Martin contou a Amy o que acontecera com tanta
simplicidade, determinação e tristeza que ela ficou comovida
e abalada. Estremeceu, quando Martin lhe falou na criança
que salvara, soltou uma débil exclamação consternada
quando ele descreveu a rua limitada pelo muro de madeira. E
quando Martin terminou, Amy desatou a chorar, foi para os
seus braços e beijou-o.

— Fez a única coisa que era possível para você fazer —


disse ela.

Até mesmo Martin deixou de perceber o significado na


ênfase do pronome pessoal. Mais tarde, Amy disse:

— Não importa o que os outros possam dizer a seu


respeito, Martin. Não deve deixar que o confundam ou
desviem de seu caminho. Segundo sua visão, está certo. Não
se deixe ser traído. O que quer que faça, sou sua mulher;
qualquer que seja a sua decisão, é minha também.

Amy ficava observando-o, às vezes, enquanto Martin


cobria folhas de papel com cifras, suspirando e passando os
dedos pelos cabelos abundantes. Nessas ocasiões, os olhos
dela enchiam-se de ternura e humildade. Nunca o amara
tanto, não o valorizara e apreciara tanto pelo que era.
Parecia-lhe um privilégio ser mulher de Martin. Quando ele
lhe disse que gostaria que nunca mais voltasse à casa dos
Sessions, Amy sentiu-se angustiada, mas sua voz era firme
ao declarar que respeitaria sua vontade. Martin disse
gentilmente que nada tinha contra May e seu filho, que ela
poderia vir à casa deles tanto quanto quisesse e Amy
desejasse, mas não queria que a mulher tivesse qualquer
contato, mesmo que superficial, com ‘aquele homem’.
Quando ele falou do irmão com repulsa e severidade, Amy
ficou calada. Era lúcida demais para culpar-se por qualquer
emoção por Ernest. Era algo inevitável, pensava Amy, algo a
ser suportado, como o vento ou a chuva, a escuridão ou o
frio. Não tinha qualquer controle. Teria julgado um estúpido
exercício de consciência, como o bater de tambores, a fim de
chamar atenção para a própria emboscada.

Martin estava determinado a vender a casa em que vivia.


Era-lhe impossível suportá-la por mais tempo. Seu primeiro
impulso foi devolvê-la a Ernest, mas teve uma ideia melhor.
Seria o seu planejado hospital. E ele começou a procurar por
outra casa.

Gregory Sessions, ultrajado e injurioso, foi procurá-lo.


Mas Martin deteve-o antes que pudesse dizer mais que umas
poucas palavras. Ele fitou o homem mais velho com tanta
firmeza e determinação que Gregory ficou impressionado e
calou-se.

— Não quero mais discutir com ninguém a respeito disso


— declarou Martin. — Minha vida me pertence e devo levá-la
de acordo com as regras que considero certas. Também
tenho o direito à felicidade e à paz, Sr. Gregory.

Martin estava agora alerta, com extrema vitalidade. Tinha


muito o que fazer. Sua força parecia-lhe prodigiosa. A vida
fluía e transbordava em seu corpo, jamais sentia-se cansado.
Estava exaltado, não febrilmente, mas com um crescente
poder. Uma noite, quando sabia que Armand e os filhos
estariam juntos em casa, foi procurá-los. A prima de
Armand, vinda do Canadá, transformara a casa horrenda, de
tal forma que tinha agora uma aparência alegre e elegante de
conforto moderno. Armand, no entanto, parecia menos à
vontade naquele ambiente do que se sentia na desordem
jovial anterior. Parecia com uma noz que ficara ressequida
com o tempo, o grão perdendo todo sumo e sabor. Estava
mais moreno e mais encarquilhado do que nunca, também
mais calado, mais contraído, sentado diante do fogo, de
botinas, ao invés de descalço como antes. Fumava charutos
agora, pois a elegante prima opunha-se a cachimbos. Mas
Eugene e Raoul estavam mais satisfeitos na nova limpeza e
arrumação. Podiam levar os amigos para a casa sem
recearem que pudessem depois fazer comentários
desfavoráveis.

Todos receberam Martin com alguma surpresa, reserva e


constrangimento. Entreolharam-se furtivamente, sorriram
apreensivos para o visitante. Armand recuperou-se quase
que de imediato, ofereceu uma cadeira a Martin, com solene
cortesia, indagou sobre a saúde da família. Sabia que Amy
estava esperando outro filho e sempre a admirara, atraído
por sua gentileza e maneiras suaves. Raoul mostrou-se
polido, mas havia sulcos desdenhosos em torno dos olhos
faiscantes e da boca sorridente. Eugene estava propenso a
mostrar-se mal-humorado e apreensivo na presença de
Martin. Tentou sair, murmurando alguma coisa sobre
problemas lá fora que exigiam sua atenção.

— Fique, por favor, Eugene — pediu Martin, com tanta


tristeza e ansiedade que o outro ficou aturdido e tornou a se
sentar.

Até mesmo Raoul ficou sério. Armand tirou da boca o


detestado charuto e ficou esperando.

Martin olhou de um para outro por vários momentos,


antes de falar. Todos perceberam como ele estava pálido,
muito mais magro. Perceberam que seus olhos ardiam de
cansaço, mas estavam dominados por uma coragem
inabalável.
— Antes de eu vir para cá — começou Martin — já estava
convencido de que não havia a menor esperança, de que
seria pura perda de tempo, de vocês e meu. Mas achei que
não devia deixar nada por fazer, não podia negligenciar coisa
alguma.

“Sabem o que aconteceu. A não ser porque continuo como


um dos principais acionistas, não estou mais ligado à
companhia. Mas porque outrora fui um diretor e ainda sou
um acionista, queria fazer um último apelo a vocês. Sabem
porque deixei a companhia, conhecem as condições
intoleráveis que me levaram a isso. Sabem o que estou
fazendo agora. Não posso acreditar que sejam feitos de
pedra, sem qualquer sentimento ou misericórdia. Não posso
acreditar que os lucros sejam mais importantes para vocês
do que as vidas e os direitos de outros seres humanos. Não
posso acreditar que queiram ficar com o dinheiro que custou
a vida de uma criança. Não posso acreditar que sejam
capazes de desfrutar alguma coisa que foi comprada com o
sofrimento alheio. Vocês são três, contra um homem. Talvez
dois homens, se contarem com Gregory Sessions. Mas ele
não tem muito o que dizer. Vocês três podem fazer alguma
coisa.”

“Assim, estou lhes pedindo, embora não tenha muita


esperança, para mudarem as coisas. Para terem um pouco de
misericórdia. Vocês, Raoul e Eugene, cada um tem um
cachorro de que gosta e cuida. Vocês os abrigam, alimentam
e protegem. Os homens valem menos do que cachorros?”

Houve um silêncio prolongado. Ninguém olhava para


Martin. Armand fixava o fogo e Raoul e Eugene olhavam para
o chão. Depois, ainda sem olhar para Martin, Eugene fez um
gesto irritado.

— E o que vamos fazer? — indagou ele, ríspido. —


Estamos num negócio difícil. Temos concorrentes.
Obtivemos grandes contratos do governo porque
conseguimos apresentar ofertas melhores. Se não
continuarmos a fazer o que estamos fazendo, não mais
poderemos existir como uma companhia. Ficaríamos
arruinados se contratássemos operários americanos ou
mesmo se tratarmos os estrangeiros como trataríamos os
americanos. Não somos responsáveis por essa situação
industrial. As bases disso são mais profundas que as de
nossa casa. As raízes estão em todo o sistema. Devemos agir
como nossos concorrentes ou estaremos perdidos.

“Isso mesmo, as raízes estão mais profundas do que você


pode imaginar, Martin. A única cura é a proibição da
importação para a América desses trabalhadores
estrangeiros. Se não vierem mais, poderemos absorver os
que já estão aqui. As coisas tendem geralmente a melhorar. E
se as condições melhorarem para esses homens, eles estarão
em breve exigindo salários iguais aos dos operários
americanos. Mas enquanto não houver restrições à
importação de mão-de-obra estrangeira, e nossos
concorrentes puderem trazer tantos quantos desejarem, não
podemos fazer coisa alguma para melhorar a situação.
Temos de correr com os lobos, se quisermos sobreviver.
Temos de usar trabalhadores estrangeiros, não importa
quanto sofrimento isso custe ou quantos americanos não
consigam ganhar a vida.

Armand comentou, pensativo:

— Eugene explicou a situação com perfeição. E não posso


entender por que você não levou esse ponto de vista em
consideração, meu caro Martin.

Martin fitou-os em silêncio por um longo tempo. E depois


disse, quase espantado:
— Vocês têm razão. Esqueci de uma coisa. A cura está em
impedir a importação de trabalhadores estrangeiros. Vocês
me deram algo para pensar, para tentar a cura. Portanto, no
final das contas, não perdi meu tempo ao vir aqui. — Ele
levantou-se. — Mesmo assim, nenhum de vocês deixa de ter
culpa. Barbour & Bouchard tem muita influência na América.
Poderiam começar o movimento contra o trabalho
estrangeiro, se quisessem. Mas não vão fazê-lo. Contudo, sou
grato pela ajuda que já me prestaram. E creio que não devo
pedir por mais favores.

Armand acompanhou-o até a porta. Pôs a mão no braço


do rapaz e disse, gentilmente:

— Martin, eu gostaria que você avançasse mais devagar.


Gostaria que levasse diversos fatores em consideração. Os
jornais já estão comentando o que você fez. Tenho certeza
de que você compreende agora que não somos os únicos
culpados, que no fundo também somos vítimas. Você tem a
propensão de olhar apenas para o lado tenebroso das coisas.
A miséria humana não é coisa nova. A exploração do homem
pelo homem é uma história antiga. Não pode reformar o
mundo. — Ele afagou o braço de Martin, riu um tanto
sombriamente. — Lembre-se do que o mundo costuma fazer
com seus reformadores. E com seus santos. Apesar de tudo,
eu o admiro. Você acredita em alguma coisa e isso é
invejável.

— Acredito que cada homem tem o direito de viver —


disse Martin, amargamente.

Armand sacudiu a cabeça.

— Está enganado, Martin. Ele deve conquistar o direito de


viver. Nenhum homem tem direito a coisa alguma, nem
respirar ou comer, a menos que o conquiste. O mundo não
deve nada a ninguém. Mas devemos muita coisa ao mundo.
— Ele espetou o peito de Martin com um dedo moreno,
parecendo um graveto. — Continue, meu caro Martin. Você
tem uma visão. Talvez esteja certo, talvez esteja errado. Mas,
pelo menos, tem uma visão. De certa forma, também tenho
uma visão. Ganharei dinheiro bastante para que meus caros
semelhantes nunca mais me tenham à sua mercê.

A prima de Amy, May Barbour, ficou profundamente


transtornada com toda a situação. Mas não pôde obter
qualquer satisfação de Ernest. Ele proibiu-a de tornar a
entrar na casa de Martin. Mas Martin, provavelmente,
proibira Amy de entrar na casa dos Sessions!, exclamou May,
consternada. Ela contraiu os lábios vermelhos, num gesto de
rebeldia. Os tolos dos homens, declarou ela, podiam ter suas
brigas, mas isso não a obrigaria a abandonar Amy.

Insistiu em dizer que Amy certamente precisava agora de


todas as amigas com que pudesse contar. Ernest podia
amarrar a cara, protestar e praguejar, mas ela continuaria a
se encontrar com Amy, em sua casa ou na casa de Amy. Não
abandonaria Amy em hipótese alguma, por mais que os
respectivos maridos brigassem. Para surpresa dela, Ernest
recuou de súbito, tornou-se mais suave e, com relutância,
admitiu que talvez ela estivesse certa.

Assim, May foi visitar a prima. Não ficou absolutamente


desconcertada ao encontrar-se com Martin, que tratou-a com
toda cortesia. Teve o bom senso de não discutir a situação
com Amy ou com Martin. Sua jovialidade, a conversa
incessante sobre o seu próximo filho e o de Amy, o riso,
gentileza, descontração, animação, a sua mera presença fez
muito bem a Amy. Esta censurou-a por não ter trazido o
pequeno Godfrey James. May deu de ombros, dizendo com
espantosa franqueza:
— Detesto crianças e estou contrariada porque vou ter
outro filho. Mas o que se há de fazer? É uma grande sorte
que eu tenha conseguido uma excelente babá para Godfrey
James. Assim, não preciso vê-lo mais do que uma vez por
dia.

Ela observou Amy com simpatia e compreensão. Amy


parecia cansada, pálida e triste, os olhos castanhos estavam
enormes no rosto sereno. Mas Amy possuía também uma
aparência de firmeza e força de reserva que May não podia
deixar de respeitar. Ela pediu para ver os gêmeos. A babá
desceu com eles, crianças bonitas e exuberantes, olhos azuis
intensos e faces coradas. May sentiu uma pontada de inveja.
O pequeno Godfrey James era frágil, calado, tímido, às vezes
tremia sem qualquer motivo. Ela pensou como o filho
gostava de ficar sentado numa poltrona imensa, escutando-a
tocar piano. Nessas ocasiões, Godfrey sorria com tanta
ternura e radiância infantil, que ela muitas vezes desatava a
chorar, sem razão. Pensando no filho, May deixou de invejar
as crianças turbulentas de Amy.

— Eles têm olhos iguais aos do pai — comentou ela,


sabendo que isso era apenas parcialmente verdadeiro.

Martin amava os filhos profundamente, mas sentia-se


constrangido em companhia deles. Ficava aturdido com o
vigor de suas vozes e de seus corpos. As crianças montavam
em cima dele com espantosa vitalidade e despreocupação,
espetando-lhe os ouvidos e olhos com dedos duros. Ele era
um cervo que gerara um casal de filhotes de leão. Não se
podia distinguir uma criança da outra, pois eram
praticamente idênticas. Amy, no entanto, afirmava que Paul
estava ficando maior do que Elsa a cada dia que passava,
começando a exibir uma nova tendência para oprimir a irmã.

Um dia, Armand disse a Ernest:


— Martin está transformando sua casa num hospital. O
que vai fazer? Também está havendo muitas conversas e
rumores sobre a decisão dele de depositar seus dividendos
no banco para os nossos operários. Está pensando em tentar
impedir que isso continue, de algum jeito?

Ernest riu bruscamente.

— Impedir? Meu caro Armand, não seja absurdo. Claro


que não vou tentar impedir. Por que deveria fazê-lo? É uma
grande ajuda para mim. Podemos reduzir o valor dos vales
que damos aos homens e ninguém vai se queixar. E ninguém
vai querer nos deixar. Na verdade, vão querer sair ainda
menos do que antes. Está esquecendo de que meu caro irmão
decidiu que os homens receberão mais dinheiro na medida
em que mais trabalharem para nós. Acho que é um excelente
arranjo. — Ele fez uma pausa, antes de acrescentar: —
Quanto ao caso do hospital, vou dar um jeito. Qualquer
homem que o usar será prontamente despedido. E já dei
ordens para que nenhum médico seja admitido em nossas
instalações, a não ser o Dr. Whithers. Com isso, o problema
estará praticamente resolvido.

Ernest ficou esperando pelo habitual comentário irônico


de Armand. Ficou surpreso, quando Armand simplesmente
se afastou sem dizer nada.

Martin foi procurar o governador. O governador era um


homem gentil, mas entediado e indiferente. Tomara
conhecimento do problema pelos jornais e em princípio não
gostava de reformadores. Mesmo assim, recebeu Martin
cortesmente, com demonstrações de amizade. Escutou
atentamente o que o visitante tinha a dizer, com uma
expressão pensativa. Ao final, declarou:

— Admito tudo o que falou, Sr. Barbour. A situação é


abominável. Mas o que podemos fazer? Afinal, como
reconheceu, os homens podem ir embora no momento em
que desejarem. Generosamente, proporcionou-lhes recursos
para quando forem embora. Não há qualquer lei que
possamos usar para impedir que essas pessoas sejam
trazidas para o nosso país como virtuais escravas, aos
grupos. Há algum tempo que vem havendo muita agitação
em Washington por causa disso, mas até agora ainda não se
tornou qualquer providência. No momento, a escravidão nos
estados sulistas parece estar absorvendo as atenções de
todos. É possível que, depois que esse problema estiver
resolvido, o Congresso possa cuidar do caso do trabalho
estrangeiro. Já existe um pequeno grupo de pressão em
Washington que poderia investigar. Tais grupos estão
sempre precisando de recursos. Quanto ao problema do
médico e do hospital: Barbour & Bouchard é uma companhia
particular, tem contratos com o governo, a terra lhe
pertence. Este é um país livre, por mais paradoxal que isso
possa lhe parecer. Ninguém tem o direito de exigir acesso
aos terrenos da Barbour & Bouchard, assim como não tem o
direito de invadir a propriedade, mesmo que o objetivo seja
humanitário. Vai depender do consentimento de seu irmão
ou de outros diretores da firma para proporcionar ajuda e
conforto aos pobres coitados que estão além das cercas. Pelo
que me disse e pelo que li a respeito, duvido muito que
obtenha tal consentimento. Não resta a menor dúvida de que
os homens podem sair de lá e solicitarem a ajuda médica e
tratamento no hospital que lhes está oferecendo. Mas quem
irá dizer-lhes que têm tais coisas à disposição lá fora? Eles
são tão ignorantes, estúpidos e sufocados, que jamais
saberiam. E mesmo que soubessem, poderiam nunca aceitar,
se fossem ameaçados.

Ele se levantou e Martin teve de erguer-se também.

— Se deseja fazer alguma coisa, meu caro Sr. Barbour,


terá de ser mais suave. Exortações, por mais justas e
eloquentes que sejam, tentativas de uso de força, mesmo
que justificadas, sempre provocam a hostilidade do
oponente, a um ponto tal em que a voz da razão deixa de ter
qualquer possibilidade. Eu o aconselho a usar outros
métodos. Seja mais suave.

E ele continuou a falar por mais algum tempo, com essa


mesma tônica.

Para Martin, parecia que a justiça e a misericórdia


estavam sempre condenadas a ser frustradas e destruídas
por algo eufemisticamente chamado de razão. Parecia-lhe
estranho que sempre que havia algo tão obviamente
ultrajante, a tal ponto que o mais estúpido dos homens não
podia deixar de admitir que exigia correção, falava-se muito
em lei e violação, em processo legal e respeito aos direitos
dos mais fortes. Estava começando a acreditar que a lei e a
razão eram continuamente invocadas para proteger os
opressores contra os oprimidos, os ladrões contra suas
vítimas. Ele voltou a Windsor num estado de absoluta
confusão e ira impotente.

Foi procurar o Padre Dominick, menos para pedir


conselho e mais para encontrar conforto. Não sabia que o
padre conhecia seu irmão e por isso não atribuiu muita
importância ao comentário enigmático dele de que ‘talvez se
possa fazer alguma coisa’. Foi para Washington, na última e
desesperada tentativa de que o tio de sua mulher talvez
pudesse ajudá-lo, encorajá-lo de alguma forma.

Enquanto isso, o Padre Dominick fez uma visita a Ernest,


na fábrica. Ernest recebeu-o com grande cordialidade,
embora um tanto cauteloso. Ofereceu-lhe charutos, indagou
de sua saúde, riu e gracejou, tratando-o sob todos os
aspectos como um visitante bem-vindo. Nada podia ser mais
afável do que a expressão do padre. Mas ele não perdia coisa
alguma da palidez de Ernest, dos olhos implacáveis, a boca
larga e sombria, o nariz curto e forte, a determinação e
brutalidade por trás da cordialidade. ‘Há um ardor inquieto
nesse homem’, pensou o padre.

Aproximou-se lentamente de seu objetivo. Não queria que


o Sr. Barbour pensasse que estava se intrometendo, mas
Martin Barbour fora procurá-lo num estado de profunda
aflição. Claro que ele estava a par dos acontecimentos e
lamentava profundamente. As incompreensões e
hostilidades entre pessoas do mesmo sangue eram coisas
abomináveis aos olhos do Senhor. E procurava o Sr. Barbour
naquele dia mais como um intermediário desejando
promover a paz, do que como alguém oferecendo
impudentemente conselhos ou sugestões. Afinal, Martin era
um membro da Igreja e como tal tinha direito a proteção e
assistência. O que o padre tinha em mente era um pouco...
apenas um pouco... de paciência e indulgência. Não tentaria
questionar a justiça ou injustiça da desavença. Estava
interessado apenas na paz, num acordo amigável que
pudesse proporcionar satisfação a ambos os lados. Martin
dissera-lhe que Barbour & Bouchard recusara permissão para
que enviasse um médico além dos portões da Kinsolving,
que recusara permissão para que os doentes fossem
transferidos para o hospital. O que era uma situação aflitiva.

Houve uma pausa. Ernest não disse nada. Simplesmente


fixava os olhos no padre, aguardando, sem qualquer
expressão facial. O Padre Dominick limpou a garganta. E
agora, ele suplicou com um sorriso, devia ser perdoado por
apresentar uma sugestão. Martin tinha a determinação
inexorável de um homem virtuoso e simples. Jamais
desistiria, jamais renunciaria ao que tinha em mente. Como
todos os seus protótipos, acabaria por mover montanhas. E o
movimento das montanhas, ressaltou o padre
delicadamente, jamais se realizava sem que houvesse muitas
baixas no processo e outras consequências desagradáveis.
Não havia nada que pudesse deter o homem justo em sua
busca do que considerava justiça. A carnificina não passava
para ele de um detalhe. As erupções de vulcões eram meros
jatos de fumaça. O céu e a terra podiam sofrer convulsões e
ele não perceberia. Veria apenas o seu objetivo, a sua
simplicidade de propósito. Tal simplicidade de propósito,
ressaltou novamente o Padre Dominick, era uma coisa
terrível. Era como a força de exércitos fundindo-se numa
única espada, que se tomava irresistível. Nada podia, se lhe
opor. O fim era inevitável: Martin conseguiria pelo menos
uma parte do que desejava. Assim, era melhor, mais fácil,
mais tranquilo, Ernest fazer umas pequenas concessões.
Afinal, comentou o padre, os despojos lhe pertenceriam. Se
Ernest permitisse que o irmão cuidasse dos doentes e feridos
da Kinsolving e de outras fábricas, estaria não apenas
conquistando a estima dos demais cidadãos, mas também
prestando um benefício a si mesmo. Trabalhadores doentes
e feridos eram notórios esbanjadores de tempo e dinheiro.

Ernest continuou calado, mas havia um tênue sorriso


satírico em sua boca.

O Padre Dominick ficou momentaneamente interessado


numa espiga de unha. Havia mais pessoas a se levar em
consideração do que apenas Ernest e seu irmão, continuou
ele. Um aumento da hostilidade, mais tumulto, mais ameaças
e brigas, tudo isso seria angustiante para muitas outras
pessoas. As mulheres de ambos não eram primas? Ele e
Martin não tinham a mesma mãe, as mesmas irmãs? As
mulheres, especialmente, essas criaturas delicadas e
sensíveis, deviam ser tratadas gentilmente. E como as
mulheres deploravam as brigas entre seus homens! Seus
corações ficavam confrangidos. E agora o padre olhou
afavelmente para Ernest, esperando.
O rosto de Ernest ficou sombrio, contrariado, irritado.
Ficou mexendo na corrente de ouro do relógio, olhando pela
janela. E finalmente disse, falando bem devagar:

— Há muito fundamento no que disse. É verdade que a


hostilidade entre meu irmão e eu é uma história antiga. Não
me importaria com o que possa acontecer entre nós. Mas,
como disse, há... outras pessoas. — Ele riu bruscamente. —
Tem razão em muitas das coisas que falou. Pode comunicar a
meu irmão, se desejar, que não mais impedirei que meus
operários sejam tratados por seus médicos, quer em suas
casas ou no hospital dele. E, uma vez por semana, qualquer
médico indicado por ele poderá entrar em nossas
instalações.

Os dois homens se olharam gentilmente. Mas o padre


percebeu a indagação nos olhos de Ernest: ‘Até que ponto
conhece a história, seu padre astucioso?’ O clérigo sorriu
para si mesmo, com alguma ironia.

O Padre Dominick foi procurar Martin Barbour e ficou


desapontado quando Amy informou-o que o marido fora a
Washington. Mas ele estava triunfante e satisfeito demais
para guardar suas notícias. Contou tudo a Amy. Estava
sentado diante do fogo na agradável sala de estar, o sol
entrando pelas janelas altas, um bebê em cada joelho,
olhando para Amy radiante, com uma expressão paternal.
Amy desenvolvera profunda afeição pelo padre. As crianças
se agitaram, puxando-lhe o colarinho, enfiando os dedos em
seus olhos e nariz, puxando-lhe os cabelos, explorando os
bolsos. Entre as pernas e braços roliços e em constante
movimento o rosto do Padre Dominick espiava jovialmente
para Amy, uma lua cheia avermelhada brilhando de riso.

Amy ficou deliciada. Seus olhos faiscaram, através das


lágrimas. Como Martin ficaria satisfeito! Ela confessou que
não partilhava a paixão do marido pela justiça social e todas
as outras coisas pelas quais Martin se empenhava com tanto
ardor. Mas podia compreender as intenções dele, sabia como
ele se sentia. Martin era um homem bom, realmente nobre. O
amor dela pelo marido tornou seu rosto meigo luminoso, um
rubor insinuou-se em seus lábios.

O Padre Dominick começou a falar de Ernest. À menção


daquele nome, uma mudança débil e sutil ocorreu na
expressão de Amy.

— Em toda a minha vida — disse o padre jovialmente —


jamais conheci antes um homem realmente ímpio. Sempre
havia alguma centelha... Mas o Sr. Barbour é uma revelação
para mim, embora eu já tenha lido sobre gente de sua
espécie. Um homem realmente ímpio. Um homem totalmente
sem Deus. — Ele fez uma pausa, pegando um gêmeo que
estava prestes a cair no chão, antes de acrescentar: — Apesar
disso, gosto dele. Não consigo entender o motivo, mas a
verdade é que gosto dele.
CAPÍTULO XLI
Martin chegou a Washington ao final da tarde. O trem,
bastante sujo, estava atrasado. Assim, ele estava exausto e
coberto de poeira e fuligem. Estava também faminto. Não
tencionava procurar inesperadamente o Senador Sessions e
exigir um jantar e acomodações para dormir, pois tinha a
reserva apreensiva do homem tímido, que tem medo de
pedir favores para si mesmo. Encontrou um hotel pequeno e
ordinário perto da estação, alugou um quarto empoeirado,
lavou-se da melhor forma possível e pediu que lhe servissem
um jantar. Descobriu que o presunto defumado frio estava
surpreendentemente bom, as geleias deliciosas, a galinha
quente, frita e saborosa, o café excepcional. Não estivera
muito esperançoso durante a viagem de trem, mas a comida
fortaleceu-o. Sentiu que sua nova sensação de poder lhe
voltava.

Não tinha muita curiosidade sobre Washington. Sabia que


era uma cidade pequena, não muito maior do que Windsor,
muito bonita. Mas talvez fosse a claridade débil do princípio
de inverno, pensou ele, que parecia desmentir o rumor de
beleza. Até aquele momento, vira apenas marasmo e sujeira,
poucas pessoas, ruas sem qualquer atrativo. Mas estava
surpreso com a quantidade de negros. Sabia que eram negros
livres, mas não eram absolutamente parecidos com os
coitados humildes, subservientes, infantis e agradecidos que
salvara e despachara para o Canadá. Aqueles negros eram
impudentes e desmazelados. O próprio garçom que o serviu
fungou desdenhosa e audivelmente para a gorjeta que
ofereceu, embora Martin a considerasse excepcionalmente
generosa. Pediu ao garçom que lhe chamasse um carro de
aluguel; como o homem demorasse interminavelmente, ele
foi obrigado a pôr o casaco e o chapéu e descer para
procurar pessoalmente. Encontrou o garçom no saguão,
conversando amorosamente com uma criada mulata. Ao
olhar furioso de Martin, ele retribuiu com uma expressão de
insolência, terminou a frase que começara e depois arrastou-
se relutantemente para a porta externa. Entreabriu-a e
anunciou indiferentemente que parecia não haver carros por
ali naquela noite. Martin resolveu sair. Uma chuva fina
estava caindo e a claridade que ainda incidia sobre os
prédios miseráveis da rua proporcionava à cena um ar de
desolação. Um carro aproximou-se lentamente de Martin,
puxado por um cavalo desconsolado. Martin fez sinal.
Enquanto a porta do hotel fechava-se atrás dele, Martin
ouviu o negro fazer algum comentário sobre o ‘maldito
ianque’.

O incidente deixou Martin bastante nervoso e irritado,


muito mais do que a sua importância merecia. Estava
enervado, quase magoado. Ao ouvir a própria respiração,
acelerada e curta, não pôde deixar de sorrir, embora um
tanto tristemente.

O carro foi avançando lentamente pela Pennsylvania


Avenue. Martin ficou interessado na largura da rua, no brilho
vago de prédios brancos, iluminados por bruxuleantes
lampiões, nas ruas compridas e largas que saíam daquela
avenida. A chuva transformara-se numa garoa, como uma
mortalha pairando sobre tudo. Uns poucos raios
avermelhados do sol poente conseguiram atravessar o céu
escuro, espalhando-se pelos telhados molhados das casas,
que pareceram pegar fogo. Não se via ninguém em parte
alguma, exceto um ou outro negro passando
preguiçosamente, carregando cestos. Não demorou muito
para que a chuva voltasse a desabar com mais força, agora
mais fria também. Filetes cinzentos escorriam pelas janelas
do carro. A umidade penetrou no veículo, fazendo com que
calafrios percorressem as pernas de Martin. O cavalo
avançava lentamente pelas ruas desertas, espadanando água
enlameada para todos os lados.

O carro parou-diante de uma casa de tijolos alta e


estreita, com sacadas de ferro batido, janelas baixas e
degraus de pedra à entrada, altos e estreitos. Havia uma
indicação de luz de fogo por trás da cortina branca na janela
saliente. O clarão de um solitário lampião na rua reluzia na
aldrava de latão polido na porta. Martin bateu na porta. Pela
rua quieta e castigada pela chuva, o barulho ressoou, um
som débil e seco.

O criado que abriu a porta e pegou o cartão de Martin


informou que o Senador Sessions estava jantando com dois
convidados. Martin disse que não interromperia e foi
conduzido à biblioteca, uma sala estreita e alta, escura e fria,
um débil fogo vermelho brilhando por trás da grade polida.
Martin sentou-se numa poltrona de couro preto perto do
fogo, olhando ao redor, timidamente. Era uma sala típica de
um homem solteiro, sem imaginação ou beleza, em nogueira
preta e couro, livros em estantes sombrias, tapetes escuros e
janelas estreitas, mesas pesadas, lampiões de latão e globos
de porcelana pintados em enfeites púrpuras. Um presságio
de derrota invadiu Martin e ele suspirou, desconsolado.
Pensou: ‘Encontro a frustração em toda parte. Todos me
consideram um tolo ou coisa pior. Na melhor das hipóteses,
obtenho apenas promessas vagas. Homens estão morrendo,
sofrendo e sendo roubados, mas aconselham-me a ter
paciência, ir mais devagar. Dizem-me que Roma não se fez
num dia. Mas, às vezes, é preciso menos de uma hora para
um homem morrer.’

De algum lugar, além do vestíbulo úmido e frio, veio o


som distante de risos e vozes de homens, o retinir de
talheres de prata em porcelana, o latido de um cachorro.
Martin foi ficando cada vez mais apreensivo. Atiçou o fogo
vigorosamente, mas os carvões luziram, sem proporcionar
muito mais calor. Ele examinou o resultado com terrível
desânimo.

Podia compreender agora, com amarga lucidez, como a


sua expedição pareceria tola e absurda ao senador. Nicholas
Sessions podia gostar vagamente de Amy, mas gostava dela
menos do que de sua prima May. Ele convivera muito mais
com May do que com Amy. Além do mais, a sobrinha não era
do tipo que pudesse agradar-lhe. Martin era a espécie de
homem que se podia facilmente deixar enganar, mas o
mesmo não acontecia com Amy. May também conhecia o
senador sem quaisquer ilusões, mas encarava-o de maneira
tão indiligente e caprichosa que ele não se sentia ofendido,
até gostava de sua perspicácia maliciosa. Mas Amy tinha um
jeito de fitá-lo, com olhos firmes e claros, que o deixava
ressentidamente constrangido. May fora também a anfitriã
dele durante dois anos, em Washington. Nicholas sempre se
sentira grato pelos comentários que os amigos e colegas
faziam sobre ela. Sentia-se embaraçado na presença de Amy,
embora sempre a tratasse com uma afeição paternal, fosse
generoso em seu dote, respondesse a suas cartas mais ou
menos com presteza e presenteasse cada um de seus filhos
com uma taça de ouro no batizado. Mas não se sentia
propenso a interessar-se pelos problemas de Amy. Recordava
Martin em raras ocasiões, com algum prazer, relacionado
com a aparente aceitação do rapaz de sua imagem de
cruzado pelos direitos dos oprimidos. Martin estava
consciente da indiferença de Nicholas em relação a ele e
Amy. Não contava absolutamente com o relacionamento para
obter qualquer ajuda do senador. Na verdade, pensou ele,
desconsolado, seria tudo mais fácil se o Senador Sessions
fosse um simples conhecido.

Uma porta se abriu no outro lado do vestíbulo, pela qual


despejou-se luz, calor e fumaça de charutos. Vozes e risos
ressoaram como uma explosão pelo frio úmido. Três homens
atravessaram o vestíbulo e entraram na biblioteca. O
mordomo também entrou na sala, acendeu dois ou três
lampiões, ajeitou uma bandeja com uma garrafa de
conhaque e quatro copos.

— Meu caro Martin! — exclamou o Senador Sessions,


afetuosamente, encaminhando-se para Martin com a mão
estendida. — Mas que agradável surpresa! Por que não me
informou de sua chegada? Quanto tempo vai ficar em nossa
bela cidade? Amy veio com você? Não? Mas está com ótima
aparência!

Ele apertou a mão de Martin vigorosamente, bateu


cordialmente em seu ombro, assumiu uma expressão
efusiva, quase paternal. Passou o braço pelos ombros do
constrangido Martin e virou-se para os outros dois homens.
O rubor afluiu subitamente ao rosto de Martin. Um dos
homens era o Sr. Stanton, a quem ele conhecera nos portões
da Kinsolving. O outro era um homem desgracioso, de
aspecto miserável, idade indeterminada, com um rosto
barbado feio, mas impressivo, olhos extraordinariamente
penetrantes. Ele fitou Martin atentamente, enquanto Nicholas
fazia as apresentações:

— O Sr. Lincoln quase que certamente será o nosso


próximo presidente, Martin. — Ele acrescentou para o Sr.
Lincoln: — Martin também está muito interessado no
problema da escravidão. Faz generosas contribuições a uma
sociedade abolicionista. E esse é o melhor e único teste
verdadeiro da sinceridade de um homem.

Ele sorriu ao dizer a última frase. O Sr. Lincoln comentou,


jovialmente:

— Neste caso, meu caro senador, tenho certeza de que


sua sinceridade tem sido confirmada.

Nicholas soltou uma risada estrondosa, mas o rosto


sorridente estava um tanto vermelho.

— Sentem-se, cavalheiros, sentem-se! Vão querer um


conhaque, não é mesmo? Um cavalheiro, como sabem
perfeitamente, gaba-se de apenas duas coisas: suas bebidas e
seus cavalos. Assim, quando lhes digo que este conhaque
não tem igual no mundo, não podem me acusar de
vulgaridade.

— Nem contestar a sua sempre irrepreensível sinceridade


— acrescentou o Sr. Lincoln.

Novamente Nicholas riu, o rosto ainda mais vermelho. Foi


então que Martin notou pela primeira vez os olhos dele e
ficou espantado com a expressão rancorosa. Era mais do que
evidente que Nicholas odiava o Sr. Lincoln. Quanto ao Sr.
Stanton, limitava-se a escutar, os dentes brancos e pequenos
brilhando no meio da barba num sorriso, murmurando
inaudibilidades polidas, observando a tudo atentamente.
Seus olhos deslocavam-se entre Nicholas e o Sr. Lincoln
durante todo o tempo, como se fosse um treinador
calculando qual de dois cavalos vigorosos ganharia a corrida,
tentando definir em qual apostar.

O Sr. Lincoln, que era excepcionalmente alto e magro,


acomodou o corpo comprido numa cadeira em frente ao
fogo. Falava descontraidamente, a voz exibindo um timbre
agradável, apesar do sotaque do interior. As roupas eram
mal cortadas e precisavam urgentemente de ser escovadas e
passadas. Enquanto falava, ele tinha o hábito camponês de
coçar a orelha direita. Martin chegou à conclusão de que sua
feiura era quase grotesca, mas às vezes havia um brilho
súbito, um sorriso inesperado, algo que o tornava atraente,
de uma maneira quase irresistível. Não sentira muita
simpatia pelo Sr. Lincoln, por julgá-lo mordaz demais, apesar
de seus sorrisos. Martin temia as pessoas que eram capazes
de sorrir e ao mesmo tempo emitir comentários sarcásticos.
Descobria agora, no entanto, com surpresa e confusão, que
os olhos do Sr. Lincoln eram ao mesmo tempo tristes e
imensamente gentis. E quando ele virou-se para Martin, a fim
de ouvir os comentários dele sobre uma observação de
Nicholas, escutou atentamente, com toda cortesia e
gentileza. Martin compreendeu subitamente que aqueles
olhos pertenciam a um homem que nunca seria cruel ou
brutal, exigente ou violento. Quase que decidira, num súbito
impulso, mencionar ao Sr. Lincoln o motivo de sua visita,
quando o Sr. Stanton abruptamente recordou que tinham um
encontro com outro senador dentro de 20 minutos.

Depois que os visitantes se retiraram, Nicholas disse,


enquanto servia-se de mais conhaque:

— O que achou do Sr. Abraham Lincoln, Martin? Como eu


falei, é quase certo que ele será o nosso próximo presidente.
Posso sempre sentir para que lado o vento está soprando.

Martin, que ouvira May afirmar com confiança, dezenas


de vezes, que Nicholas seria o próximo presidente,
perguntou ingenuamente:

— Pensei que seria o escolhido, senhor.

Nicholas riu, o rosto largo tornando a enrubescer.

— Às vezes é melhor não ser presidente, Martin. Eu não


aceitaria o cargo, mesmo que me oferecessem. Pelo menos,
não nos próximos dez anos. Como falei, posso sentir para
que lado o vento está soprando e as perspectivas
absolutamente não me agradam. Deixemos que o Sr. Lincoln
ou algum outro enfrente a situação crítica que temos pela
frente. Não quero saber disso.

Ele sorriu para Martin por cima do copo de conhaque. Era


um sorriso artificial e Martin percebeu imediatamente que
era astuto e hostil. Pior do que isso, sentiu abruptamente
que a hostilidade era dirigida contra ele. Ficou alarmado.
Nicholas acrescentou, com súbita animação:

— Mas qual o motivo de sua visita inesperada? Por que


não me avisou antes? Vai passar alguns dias em Washington,
não é mesmo? E hospedado em minha casa?

— Não, senhor. Voltarei para Windsor no trem que parte à


meia-noite. Creio que deveria tê-lo avisado com
antecedência, mas tudo aconteceu tão depressa...

A cordialidade desapareceu do rosto do senador, que se


tornou vago e suave. E ele murmurou:

— Ah, sim, creio que me lembro de alguma coisa...

Nicholas pôs o copo na mesinha ao seu lado e ficou


observando-o. Ligeiramente assustado, Martin inclinou-se
para frente, ansioso:

— Sr. Nicholas, posso ver que já soube... de tudo! E eu


sabia... sei com certeza... que compreenderia por que agi
daquela maneira. E aprovaria. O que mais eu poderia fazer,
nas circunstâncias? O senhor pode compreender, mais do
que as outras pessoas, porque sempre se interessou pelo
problema da escravidão, sempre a condenou
veementemente, ao ponto de declarar que o Norte não
hesitaria em entrar em guerra para libertar os escravos.
Pensei, sem a menor dúvida: entre todas as pessoas do
mundo, o Sr. Nicholas é capaz de compreender e aprovar.
Nicholas limpou a garganta. Sabia o que deveria dizer,
mas ainda não podia fazê-lo. Era muito bom nesse tipo de
coisa, conhecia diversas frases sonoras, sabia como exprimir
sentimentos altaneiros. Conhecia a pressão exata a usar
naquele caso, o momento certo de abrir um olho, cada
expressão e postura convenientes. Mas não podia esquecer
que aquele rapaz era casado com sua sobrinha, a quem
Gregory o convencera a conceder um dote relutante, que os
dividendos que estavam sendo ‘jogados fora’ equivaliam a
uma quantia terrivelmente grande. Se ele não fosse da
família, as frases sonoras sairiam com a maior facilidade,
enfeitadas com os sentimentos piedosos apropriados. Mas
era tanto dinheiro... Nicholas não estava incrédulo, como a
maioria das pessoas, em relação à sinceridade ou sanidade
de Martin. Já conhecera muitos fanáticos, embora nenhum
deles tivesse um fanatismo tão dispendioso. Nicholas
refletiu fugazmente que poucos fanáticos tinham muito
dinheiro e perguntou-se se não haveria nisso uma relação de
causa e efeito. Até que gostava dos fanáticos. Afinal, o que
seria dos políticos se não fosse por eles? Sua afeição normal
por aquele fanático em particular era atenuada pelo
pensamento de que se tratava de um membro da família e
que estava desperdiçando em seu fanatismo um dinheiro
vultoso, que deveria permanecer com a família. Mas depois
recordou abruptamente que a renúncia de Martin a esse
dinheiro tivera uma repercussão extraordinária nos jornais e
que de não causara qualquer prejuízo. Lembrou-se de que
um jornal, radical, mas poderoso, chamara a atenção de seus
muitos leitores para o fato de que Martin Barbour era o
sobrinho do intrépido defensor da liberdade e dos direitos
humanos, Senador Nicholas Sessions!

Mesmo assim, foi difícil encontrar o tom apropriado,


quando ele respondeu a Martin:

— Hã... creio que compreendo, Martin. Claro que


compreendo porque você agiu daquela forma. E imagino que
devo dizer que aprovo.

Ele fez um gesto vago, sorriu, passou a língua pelos


lábios. Apesar de todos os seus esforços, o tom era apático,
o sorriso desagradável. Martin recostou-se, angustiado.
Encostou as costas da mão na testa. E permaneceu calado.

Nicholas estava irritado. Aquilo não serviria


absolutamente. Podia exprimir sentimentos elevados sobre
qualquer assunto com a maior facilidade, a não ser sobre
dinheiro... seu e de sua família. Sabia que Martin fora
repelido em toda parte e queria mantê-lo do seu lado. Um
fanático, até mesmo um fanático da família que jogava fora
um bom dinheiro, era sempre valioso para um político.
Imaginou-se apresentando Martin no dia seguinte a seus
colegas, mais radicais, que ainda não convencera de sua
sinceridade. Assim, sua influência no Senado teria
possibilidades imprevisíveis. Poderia controlar Lincoln, se
ele fosse eleito, poderia até mesmo arruiná-lo. Poderia ser o
poder por trás do trono! Pensando nisso, ele incutiu à sua
atitude muita afeição e cordialidade, agora sem qualquer
esforço. Afagou o joelho de Martin, acrescentando:

— Já conheci muitos homens, Martin. Mas apenas dois


eram absolutamente sinceros em suas atitudes. Você é um
deles. Quando li sobre o que você fez, mal pude acreditar.
Até esta noite, eu ainda não podia acreditar que algum
homem tivesse fé suficiente em seus ideais para renunciar a
seu dinheiro por causa deles. Parecia-me simplesmente
impossível. Por isso mesmo, o que você fez foi sublime. Algo
glorioso, além da compreensão e da convicção! — A voz de
Nicholas tornou-se solene, eloquentemente trêmula: — Posso
lhe assegurar, Martin, que a sua atitude vai despertar a nação
para uma nova consciência do dever para com seus
semelhantes. Você deu a todos nós um conceito novo e
sublime da vida justa. Deu-nos um ideal! Algo que está
fadado a despertar a consciência universal, tornar o mundo
um lugar melhor e mais agradável para se viver!

A voz baixou, trêmula, como se dominada pela humildade


e lágrimas reprimidas. Nicholas se levantou, aparentemente
comovido. Ficou de costas para Martin, um homem forte
levado à emoção, tentando se controlar. O rosto bonito de
Martin estava radiante.

— Eu sabia que compreenderia, Sr. Nicholas! Mas receio


que esteja exagerando o que fiz. É muito pouco. Há muito
mais para fazer e parece quase irrealizável. Eu próprio não
tinha qualquer esperança quando vim aqui esta noite. Mas
vim porque pensei... tinha certeza... que me ajudaria. De
certa forma, esta situação no Norte é tão terrível quanto a
situação no Sul. Representa um perigo maior para a
liberdade e o progresso, para o respeito aos direitos dos
homens. A escravidão francamente admitida é perigosa, mas
a sua própria franqueza a limita. Mas a escravidão furtiva e
não admitida, praticada em segredo, não pode ser
controlada. É como negar uma pestilência. Assim, nada pode
impedi-la, até que a própria vida seja destruída. E é por isso
que somente o senhor pode ajudar agora.

Com todos os diabos!, pensou Nicholas, ainda tentando


controlar a emoção de um homem forte, de costas para
Martin. Sentia-se alarmado com a possibilidade de Martin
estar tramando novas e ainda mais perigosas idiotices. Mas
conteve o impulso de virar-se para o rapaz por demais
abruptamente. Arriou na cadeira, cobrindo o rosto com a
mão. Por trás desse refúgio, não precisava ser
hipocritamente rigoroso com os músculos faciais.

— Fale-me tudo — murmurou Nicholas.


Com a mão livre, ele pegou o seu lenço e assoou o nariz.

— Sr. Nicholas, a coisa é errada, imoral e ameaçadora. É


inadmissível trazer para cá esses trabalhadores estrangeiros
ignorantes, em grandes lotes, explorando-os para conseguir
lucros maiores. É intolerável para a justiça e os ideais
americanos, sem mencionar o lado desumano. É preciso
acabar com isso. Tem influência no Senado. Soube que há
um grupo de pressão em Washington trabalhando contra
isso, só que é muito pequeno e quase desconhecido. No
fundo, tudo se resume a uma coisa: a importação de mão-de-
obra estrangeira deve ser proibida por lei. Os apelos à
decência humana não resolverão coisa alguma. Somente a lei
pode remediar a situação. E é por isso que vim procurá-lo.
Pode formular um projeto de lei, apresentá-lo, forçar sua
aprovação, se não imediatamente, pelo menos em futuro
próximo. Pode levar adiante o projeto de lei, com sua
eloquência e prestígio. E acabar conseguindo a aprovação.

Nicholas ficou tão atônito que tirou a mão do rosto.


Olhou aturdido para Martin, os olhos esbugalhados e
arregalados, a boca entreaberta num espanto total. Sua
expressão era de completa imbecilidade, de total
incapacidade de acreditar no que ouvira. Os olhos
começaram a piscar rapidamente.

Depois, ao compreender finalmente que Martin não estava


brincando, mas falando sério, ansioso, seu rosto ficou
vermelho, a fúria insinuou-se em seus olhos. O rosto era
como a fachada impassível de uma casa secreta, cujas
janelas e portas abriram-se súbita e violentamente, para
despejar semblantes maléficos e vozes obscenas, que não
mais podiam ser contidos. Havia um grito de raiva a aflorar
dentro dele, misturado com exclamações de incredulidade.
Aquele homem era um imbecil? Estava realmente pedindo
aquela ajuda absurda de um homem cuja principal fonte de
renda derivava da própria situação contra a qual queria
medidas restritivas e punitivas? Seria ele realmente tão cego,
tão estúpido, tão desprovido de inteligência e bom senso?
Era ótimo que ele aumentasse o prestígio de Nicholas, com a
sua própria renúncia ao dinheiro. Mas pedir que Nicholas
partilhasse daquela imbecilidade era insultuoso, além de
inacreditável. Era como pedir a um lobo, cujas presas já
estavam pingando sangue de ovelha, que ajudasse a proteger
e a salvar as próprias criaturas que o sustentavam. Aquela
inocência espantava e irritava Nicholas. Havia algo de
assustador, quase indecente, numa inocência assim, algo
desprezível. Por um momento febril, Nicholas chegou a
pensar que Martin estava maliciosamente lançando-lhe uma
isca, que era insidioso e perigoso, talvez a soldo de inimigos.

Depois, apesar de tudo, apesar da incredulidade, ele


compreendeu com um choque que Martin era de fato
inocente e simples, sincero e fiel. Sua razão repudiava tal
possibilidade, mas a prova estava à sua frente. Contemplou
Martin como o habitante de um mundo estranho e exótico,
desgarrado num planeta em que a crueldade era respeitável
e a brutalidade consagrada. Sacudiu a cabeça repetidamente,
como um homem que foi atingido por um instrumento
pesado. Tal inocência e alienação, tamanha falta de
percepção, era algo que o desconcertava, arrancava-lhe a
máscara, deixava-o consternado.

Finalmente, diante da expressão perplexa e inquisitiva de


Martin, ele percebeu o perigo de se desmascarar e tratou
bruscamente de se controlar. Os esforços foram visíveis. Era
como o monstro de Frankenstein, diligentemente
coordenando seus movimentos. Forçou-se a sorrir, embora
os músculos do rosto doessem. Martin percebeu apenas que
ele se tornara lívido e um pouco de suor surgia no rosto.

— O que o leva a pensar, Martin, que eu faria... que eu


poderia fazer uma coisa dessas? — perguntou ele, em voz
que tremia com uma intenção consciente.

A perplexidade de Martin aumentou. A resposta parecia-


lhe óbvia e ele sorriu, constrangido.

— Ora, senhor, é mais do que evidente. Sempre se


declarou contra qualquer tipo de operação, sempre foi
contra a escravidão. Tem defendido a Constituição,
comandando os debates no Senado contra a injustiça e a
ganância. Quem pode ser mais capaz de liderar a cruzada
contra a importação opressiva de trabalhadores
estrangeiros?

Nicholas serviu-se de outra dose de conhaque, com a mão


trêmula, tomando de um só gole. E despejou mais outra dose
no copo. Começou a suar, sentindo que o colarinho estava
apertado demais. E depois disse, meio atordoado:

— Está exagerando... hã... meus talentos e minha


influência, Martin. Posso compreender a sua intenção.
Acredito em você. Mas deve compreender como são as
coisas, pelo menos um pouco. As leis não são aprovadas às
pressas, depois de serem abruptamente apresentadas. É
preciso preparar o terreno, aprontar o caminho. É verdade
que existe aqui um grupo de pressão, mas pequeno e sem
muita força, clamando contra a importação irrestrita de
trabalhadores estrangeiros. Mas as pessoas ainda não foram
despertadas para o problema. Há muito trabalho preliminar a
fazer... Jornais, artigos, panfletos, discursos... Não se
esqueça, Martin, que nenhuma situação se converte num
projeto de lei enquanto o público em geral não tiver se
manifestado a respeito, enquanto não houver uma
consciência da necessidade de tal lei. Os legisladores não
podem apresentar um projeto de lei que não seja uma
reivindicação pública. O público é como um jumento,
desconfiado e facilmente perplexo. O legislador é como um
instrumento musical, no qual os eleitores devem tocar uma
determinada nota, antes que ele próprio possa tocá-la. Até
agora, como eu falei, o público está indiferente, não sente a
necessidade do que você está propondo.

“Claro que há outro caminho. E esse caminho é


deliberadamente educar as pessoas a perceberem uma
necessidade de cuja existência nunca desconfiaram antes.
Pode ser feito e já foi feito. Exige muito dinheiro, comitês
pagos, um trabalho constante junto aos editores de jornais,
comícios e manifestações públicas, uma pressão incessante
sobre a consciência do povo. Não resta a menor dúvida de
que se trata de um empreendimento prodigioso, maior do
que um homem sozinho pode assumir, dispendioso demais
até mesmo para um milionário. E receio que não conseguiria
convencer milionários a apoiá-lo.

“A verdade é que o único caminho viável é o mais lento, o


mais profundo, o mais natural: o auto despertar da
consciência pública, a pressão e exigência espontâneas do
público. É com isso que deve contar, é a sua esperança. Deve
ter fé.”

Nicholas levantou-se. Não queria mais que Martin


permanecesse em Washington para exibi-lo aos colegas. O
rapaz poderia dizer algo que seria impossível ao senador
admitir. A ironia e o escárnio já haviam liquidado homens
mais fortes do que ele. Além do mais, a simples visão de
Martin era suficiente para enfurecê-lo e assustá-lo. Queria
livrar-se dele o mais depressa possível. Era como ter um
explosivo perigoso em casa.

Martin ficou atônito ao descobrir-se num cabriolé, sob a


chuva, voltando a seu sórdido hotel. Estava completamente
atordoado. Lembrou que o senador ao final se mostrara
apressado, embora efusivo, cheio de protestos contra uma
partida que parecia perfeitamente natural, com muitos
recados para Amy, Gregory e May, manifestações de afeição
pelas crianças, promessas e confortos exuberantes, mas sem
sentido, comentários de que devia mesmo haver muitas
coisas em Windsor que precisavam de atenção. Sorrisos
radiantes, apertos de mão, riso afetuoso, recomendações
para que Martin se cuidasse e mantivesse o tio informado... E
depois a chuva e o carro, o silêncio quebrado apenas pelas
rodas e as patas dos cavalos, através de ruas escuras e
desertas. Foi o silêncio que arrancou Martin de seu torpor,
levou-o a recuperar o controle, com um sobressalto.

— Mas ele me expulsou! — exclamou Martin, em voz alta.

E, subitamente, ele desatou numa risada estrondosa e


terrível. O cocheiro ouviu, pensou filosoficamente que seu
passageiro estava embriagado. Desconfiaria disso pela
maneira como o homem maior levara seu companheiro mais
jovem e mais magro até o carro, falando sem parar, em tom
de quem consolava. O homem mais jovem parecia
completamente atordoado e fora largado no assento como se
fosse uma mala.

— Fui jogado na rua! — gritou Martin dentro do carro.

E ele riu e riu, até que não mais conseguia rir. Toda a
diversão desapareceu de sua voz e permaneceu apenas a
tristeza, como um sussurro desolado.
CAPÍTULO XLII
Quando Martin relatou a Amy o resultado da entrevista
com o senador, ficou surpreso com sua explosão de raiva
contra Nicholas. Ela tremeu de angústia íntima pela
humilhação de Martin. A indignação levou-a a ignorar o
sentimento de família e ficou surpresa por ter usado, sem
suspeitar, o que Martin classificou, sorrindo tristemente, de
‘linguagem forte’.

— Mas Tio Nicholas sempre foi um patife!

— Sabia disso? — perguntou Martin, incrédulo.

— Claro que sabia, querido. Todos nós sabíamos. Tio


Gregory sabe, May sabe. Ora, May até se divertia às custas
dele, sempre que tinha uma oportunidade! Ela sabe imitar
com perfeição as hipocrisias dele, seus discursos
bombásticos e gestos ridículos. No fundo, porém, Tio
Nicholas é hipócrita demais para ser realmente um grande
canalha.

Amy comprimiu a mão do marido contra o seu peito, num


gesto de proteção, ciumento e maternal. Beijou-lhe o rosto e
os lábios incontáveis vezes, como se fosse a mãe enxugando-
lhe as lágrimas. Ela sabia instintivamente que as lágrimas
estavam ali, embora não fossem visíveis. Mas quem poderia
magoá-lo?, pensou Amy. Quem poderia ter a coragem de
magoá-lo tanto?

Depois de um momento, Amy acrescentou:

— Tio Nicholas nunca se importou realmente com a


escravidão, Martin. Isso sempre foi apenas uma pose dele.
Todos aqueles pobres negros do Sul podem ser açoitados e
fuzilados que ele não se incomodaria. Senti vontade de
dizer-lhe isso, mas achei que era necessário que você
acreditasse em alguém. A verdade é que Tio Nicholas só se
importa com a escravidão na medida em que pode ameaçar
seus lucros algum dia, pois um industrial nortista não teria
condições de competir com um industrial sulista que
empregasse trabalho escravo, sem salários. Além disso, ele
tem um ressentimento pessoal contra um senador sulista
que impediu a sua designação para o Supremo Tribunal.
Como pode perceber agora, os motivos de Tio Nicholas
jamais são altruístas.

— Mas que idiota sonhador você deve me julgar! —


murmurou Martin, amargurado.

— Não deve dizer uma coisa dessas, querido. Acho que é


o melhor dos homens, o mais generoso e o mais sincero. Não
é por sua culpa que seja como Daniel na cova dos leões. Não
é por sua culpa que o mundo é um lugar tão perverso e
estúpido, que não pode compreender um homem honesto.

Depois, Amy transmitiu-lhe, triunfante, o recado do Padre


Dominick. Martin ficou imediatamente exultante, mas
também sentiu-se perplexo. E comentou, pensativo:

— Eu não sabia que Ernest o conhecia. É maravilhoso que


ele tenha feito isso por mim. Lembro que comentou que eu
não deveria perder a esperança, mas pensei que fosse apenas
a sua maneira de falar.

Martin esqueceu temporariamente a recente humilhação e


desapontamento. Estava bastante ocupado. Em primeiro
lugar, comprou uma fazenda a cerca de seis quilômetros de
Windsor, uma pequena fazenda, entre colinas ondulantes,
não muito fértil, mas com sólidas construções. A casa, de
pedra, era ampla e confortável, bem construída e vigorosa,
grande o bastante para uma família de oito ou mais pessoas.
Havia uma horta por trás, um pomar com macieiras e
cerejeiras, todo um acre com pessegueiros e outro com
pereiras. No verão, as colinas eram cobertas por um verde
suave, entremeado de córregos, em que surgiam diversas
ilhotas. A fazenda era bem suprida e havia um bando de
galinhas-d’angola, que divertiam as crianças com seus gritos
estridentes. Martin fez um levantamento dos animais com a
maior satisfação: três vacas, dez porcos e mais os filhotes,
seis cavalos, uma centena de galinhas. Amy declarou-se
deliciada, comentou que nada podia ser mais perfeito. Ela
podia levantar as saias muito alto e avançar cuidadosamente
na ponta dos pés, a fim de não se sujar, mas mantinha um
sorriso jovial e satisfeito. Podia mostrar-se ansiosa porque
estava próxima do parto e não sabia se poderia contar com
os cuidados médicos apropriados naquele lugar isolado, mas
não importunava Martin com tais preocupações. Amy se
designara para o papel de guardiã do bom ânimo do marido
e por muito tempo jamais relaxou em seu dever.

Martin ficou profundamente magoado porque Hilda


recusou-se a acompanhá-lo e a Amy ‘para o mato’. Desde a
morte de Joseph que ela se tornara nervosa e rabugenta,
esquecida e irritadiça, mantendo-se quase que o tempo todo
em seus aposentos na casa de Martin, acalentando algum
ressentimento contra Amy. Esta desconhecia o motivo,
embora percebesse o antagonismo da sogra. Hilda também
desenvolvera uma afeição exagerada pelo pequeno Godfrey
James, o filho de Ernest. Gostava de relatar em voz alta, em
todas as ocasiões, especialmente depois que os filhos de
Amy haviam-se mostrado excessivamente turbulentos,
histórias sobre sua docilidade, meiguice e educação. Claro
que estava a par da briga de Martin com o irmão e de seu
afastamento da companhia. Foi brutalmente franca e sem
tato na questão. Foi nessa ocasião que surgiu o
ressentimento contra Amy, que um dia disse a Hilda, na
ausência de Martin:

— Mãe, esta é a minha casa e de Martin. É nossa hóspede


aqui e nós a amamos. Mas uma hóspede não deve falar
contra seu anfitrião, magoar tanto sua anfitriã.

Hilda jamais perdoou-a por lhe espicaçar a consciência


desse jeito. Considerava-se numa idade em que sua
consciência deveria ser poupada, todos lembrando-se apenas
das muitas aflições e sofrimentos por que passara. Assim,
tratou de descarregar sua inquietação, sentimento de culpa e
contrariedade por meios sutis e irritantes. Queixava-se de
que as crianças incomodavam-na, tratava-as com indiferença
diante dos pais, censurava-as sempre que calculava que
Martin ou Amy estavam perto o bastante para ouvir. Era
lamentável que Martin e Amy não tomassem conhecimento
da sua devoção às crianças quando estava sozinha com elas,
não soubessem como as beijava e chorava de prazer ao
contemplá-las.

A verdade era que a pobre Hilda sentia-se usurpada e


inútil, doente do corpo, mente e coração, angustiada por
uma saudade interminável de Joseph, não encontrando
qualquer interesse ou prazer na vida, nem mesmo em sua
comida. Sempre fora ativa e vigorosa, senhora de sua casa,
mãe e mulher jovial e competente. Agora, pensava, fora
relegada ao canto da chaminé, ninguém a queria ou
precisava dela. Noite após noite, ela se lamuriava como uma
criança em seus travesseiros, estendia os braços vazios e
trêmulos para um corpo que não estava ali. Noite após noite,
ela reconstituía a cena em torno da cama do agonizante
Joseph, amargamente culpava Martin pela recusa em
defender Ernest das acusações do pai. Julgava que, com isso,
Martin tornara mais terrível a morte do pai, alienara Ernest
muito antes da briga. Era o tipo de mulher vigorosa, mulher
e amante em primeiro lugar, mãe apenas como
consequência. Privada do amante, só encontrava irritação
nos filhos. Se não tivesse filhos, seria mais feliz.

As meninas” não sabiam com certeza qual era o seu lar.


Florabelle finalmente decidiu que o seu lar era a casa do
irmão predileto, Ernest, pois May gostava dela e ficava
satisfeita quando ocupava o melhor quarto de hóspedes,
sempre que desejava, durante os feriados escolares. Mas os
vários anos de Florabelle na escola já eram suficientes, mais
do que suficientes, havia agora o problema de determinar
seu lar permanente. Havia também Dorcas, que dizia que seu
lar era com Martin. Mas era uma moça frágil e tivera
escarlatina no último inverno. Amy achava que ela não
deveria ficar longe de seu médico.

Acatou-se finalmente que Hilda e as ‘meninas’ viveriam


numa casa pequena, mas confortável, perto de Ernest.
Chegou-se a considerar, vagamente, a possibilidade das três
mulheres viverem na casa dos Sessions, mas May exclamou,
com uma franqueza surpreendente:

— Deus me livre!

Florabelle era um amor e claro que a adorava, disse May.


Mas Florabelle era também extremamente teimosa e
propensa a passar dias a fio amuada. Dorcas era calada e
reservada demais, muito séria, orgulhosa e desconfiada.

— Ela me deixa nervosa — disse a franca May, que


invejava a beleza da moça.

Quanto a Hilda... May levantou os olhos e as mãos para o


teto. E declarou ao sorridente marido que haveria uma briga
de gato e rato depois de outra.

Martin, consultado formalmente através de um advogado,


concordou em pagar um terço do preço da casa e um terço
da manutenção de suas ocupantes. Tais despesas
representavam um golpe fundo em seus recursos, conforme
ele comentou, ansiosamente. Amy disse-lhe; procurando
consolá-lo:

— As meninas são tão adoráveis que inevitavelmente não


demorarão a casar.

Particularmente, Amy cancelou a metade de sua


encomenda de roupas novas. Gostava de lindos vestidos,
rendas e peles. Assim, o cancelamento era um verdadeiro
sacrifício. Chegou à conclusão de que o novo bebê não
definharia porque não podia ter metros e mais metros de
rendas francesas em suas roupas, que uma renda mais
simples serviria perfeitamente. E passou a arrumar
pessoalmente essa renda. Ela disse a Martin que não
receberia tanto no campo e assim não precisava de três
criadas. Uma cozinheira e uma arrumadeira eram suficientes.
E também bastava apenas uma carruagem.

Poucos meses antes, Martin não teria notado ou dado


importância a tais privações; e, se percebesse, teria julgado
que era apenas a coisa certa, o que se devia esperar que Amy
fizesse. Agora, no entanto, ele comentou, um tanto
tristemente:

— Estou privando-a de muitas coisas, minha querida.

Ao que Amy perguntou:

— Acha que todas essas coisas juntas valem a sua


felicidade?

Três dias antes da mudança para a fazenda, Gregory foi


visitar a sobrinha, na maior apreensão. Descobria novamente
o quanto era afeiçoado a Amy, o quanto a amava e a seus
filhos. Foi procurá-la sem ironia ou sarcasmo, apenas com
sincera perturbação e ansiedade.

— Será possível que ele conseguiu convertê-la a essa


loucura, Amy? — perguntou Gregory, andando rapidamente
de um lado para outro, na sala de visitas já desarrumada,
com pedaços de papel espalhados pelo chão.

— Por favor, Tio Gregory, não diga que é uma loucura.


Está me magoando ao falar assim. E não fui convertida.
Como já lhe disse antes, posso compreender o ponto de vista
de Martin, embora não seja capaz de sentir-me da mesma
forma. Confesso que não faria a mesma coisa, se a decisão
me coubesse. Talvez eu seja estúpida por acreditar que um
homem não pode se virar contra o mundo e querer avançar
sozinho. Ele precisa de ajuda. Martin está convencido de que
ninguém vai ajudá-lo e por isso está dedicando toda a força
de que dispõe no que considera sua missão. Não pode agir
de outra forma, pois é compelido por sua natureza. — Amy
fez uma pausa, pensativa, antes de acrescentar, em voz mais
baixa: — E é bem possível que nós é que estejamos cegos,
loucos e obstinados, não Martin, como todos parecem
pensar. Talvez nós é que não tenhamos a compreensão
necessária.

Com um gesto irritado, Gregory ignorou as últimas


palavras de Amy.

— Mesmo não acreditando, você permite que Martin lhe


imponha privações e a seus filhos, sem uma palavra de
protesto, chegando mesmo a encorajá-lo?

— Tio Gregory, o dever de uma mulher ou de um marido


é fazer tudo o que estiver ao seu alcance para tomar o outro
feliz. Filhos, dinheiro, posição, o respeito dos amigos, as
próprias amizades... tudo isso não representa absolutamente
nada em comparação com a felicidade da pessoa com quem
se casou. Tais coisas não devem ser levadas em consideração
por um momento sequer. Se Martin se sente feliz por
renunciar a tudo, em levar-nos para uma cabana de troncos,
cercar-nos de pobreza, então é meu dever e minha felicidade
deixá-lo fazer o que considera melhor, sem qualquer
protesto.

Gregory ficou comovido.

— Sei que está falando sério, meu amor. Parece incrível...


— Mas a violência dele logo retornou e tratou de acrescentar:
— Mas está elevando um idiota reformador a uma dignidade
que ele não merece! Não há coisa alguma a se ganhar com
tudo isso, a não ser escárnios, privações, solidão e
ansiedades! Martin não é nenhum grande herói, nenhum
Savonarola, Martinho Lutero, Moisés, Voltaire ou Joana d’Arc
do sexo masculino, embora possa se considerar assim. Ele
não passa de um cavaleiro investindo contra moinhos de
vento.

Amy forçou um sorriso a seu rosto cansado. Levantou-se


e pôs a mão no braço do tio.

— Se ele não passa de um cavaleiro, posso carregar sua


espada e impedir que fique enferrujada. Mas há duas
semanas que não vê as crianças...

Gregory suspirou, depois obrigou-se a sorrir também.

— E onde estão os pequenos patifes? São as coisas mais


lindas que já vi, Amy, duas vezes maiores que o pequeno
Godfrey James. Ele é bem pequeno e frágil, que Deus o ajude!
Não tem muita vitalidade. Quer saber de uma coisa? Estou
começando a pensar que ele se parece estranhamente com o
seu precioso marido, meu amor. Muito mais do que parecem
os próprios filhos dele. Peço a Deus que não tenhamos outro
reformador na família! Deus sabe que um só já é mais do que
suficiente! — Ele fez uma pausa, soltando um grunhido de
contrariedade. — Toda essa conversa de ‘felicidade’... Fico
imaginando se esses Messias autodesignados sabem de toda
a infelicidade que causam às pessoas que, por algum azar,
estão relacionados com eles!

Quando as crianças lhe foram trazidas, Gregory ajeitou


uma em cada joelho e lutou para mantê-las em ordem.
Estavam começando a andar e insistiam em se deslocar pelo
chão, sobre as pernas, braços, joelhos e barriga. Eram como
polvos de oito tentáculos, irrequietos, vigorosos,
transbordando de força, pulmões de grande capacidade,
difíceis de controlar. Gregory exultou com as crianças,
salvou seu relógio às pressas pelo menos uma dúzia de
vezes, ficou sufocado quando lhe puxaram a gravata, teve os
olhos espetados, riu para a mãe sorridente. Depois que as
crianças foram levadas pela babá, protestando furiosamente,
Gregory disse, a voz um pouco rouca:

— Não as tire de mim, Amy. Com todos os diabos, eu não


pretendia dizer isso, mas a verdade é que minha própria
casa está se tomando insuportável! Não tenho do que me
queixar de May, a não ser que ela está se tomando um tanto
tirânica. Mas não sei se conseguirei aguentar Ernest Barbour
por muito mais tempo, sem entrar furtivamente em seu
quarto uma noite dessas e assassiná-lo. — Ele riu,
jovialmente, antes de arrematar: — A verdade, Amy, é que
sou um homem de poucas afeições e você e seus filhos são
as únicas coisas com que me importo em todo este mundo!

Gregory contemplou-a, com a impressão de que ela era a


mãe, a irmã que tanto amara. Lembrou também o quanto
odiara o homem que a irmã amara, que era um patife e
charlatão. Mas ela o amara. Podia recordar nitidamente a
noite em que chegara a mensagem revelando o casamento. O
pai ficara furioso e jurara que a filha não receberia jamais
um vintém dele, mesmo que estivesse passando fome. Ele
poderia ter feito alguma coisa naquele momento, pensou
Gregory; poderia ter atenuado a ira terrível do velho,
levando-o de volta à filha, pois o pai sempre respeitara sua
opinião. Mas não o fizera; ao contrário, sentira-se ultrajado e
revoltado contra a irmã. E acabou sendo tarde demais: Amy
morreu, o pai morreu, ficaram o testamento e a menina,
Gregory pensou subitamente: se eu tivesse falado com meu
pai, se o tivesse apaziguado em relação a minha irmã, Amy
teria casado com Ernest Barbour e as crianças seriam dele. A
ideia era tão repleta de possibilidade que ele não pôde deixar
de perguntar a Amy:

— Lamenta, meu amor, que Ernest... que eu não tenha


desejado que você casasse com Ernest Barbour?

Amy ficou surpresa. Fitou-o nos olhos. Não sabia por que
ele estava perguntando isso, mas teve a súbita intuição de
que se hesitasse, se demonstrasse um mínimo de tristeza ou
algum vestígio de pesar, estaria magoando-o
irreparavelmente. E por isso ela apressou-se em dizer,
sorridente:

— Mas claro que não, Tio Gregory! Tudo isso ficou para
trás, já foi esquecido. Eu era apenas uma criança naquela
ocasião, não sabia direito o que pensava. E amo Martin.
Somente eu posso saber o quanto o amo!

Mas Gregory continuou inquieto, corroído por uma


obscura apreensão, que não podia definir.

Era um dia feio, de muito vento, quando Martin e sua


família mudaram-se para o campo. As árvores ainda estavam
desfolhadas, o chão estava escuro e com poças de água fria,
o pátio e a horta com um aspecto desolado, as galinhas meio
afogadas, a casa ainda recendendo ao mofo da desocupação,
apesar do fogo intenso que a criada já acendera na lareira.
Contra um céu vespertino pálido e sem qualquer animação,
as colinas estavam escuras, pareciam irregulares, inóspitas.
As campinas e campos subiam e desciam ao encontro das
colinas, as cercas pareciam afundar na terra lamacenta,
ainda sem uma cor definida, povoada por lagos e rios em
miniatura. No instante mesmo em que a família chegou,
deprimida e com frio, uma vaca mugiu tristemente no
estábulo. O mugido, combinando-se com o vento forte e frio,
o silêncio solitário, as campinas desoladas e as colinas
escuras, contra o céu descolorido, provocaram um calafrio
de melancolia em Amy. A saia balançava cautelosamente
sobre o chão enlameado; ela carregava uma criança e a
cozinheira levava a outra. O jardineiro fechava a marcha com
diversas malas e sacolas. Amy já estava exausta e o peso da
criança em seu braço e corpo era perigoso. Contemplou a
casa ao se aproximar. Disse a si mesma, firmemente, que
seria bastante confortável e aconchegante depois de algum
tempo. Naquele momento, porém, tinha uma aparência
sombria, contra o céu lívido. As cortinas ainda não estavam
penduradas e as janelas fitavam-na desoladamente. O
coração de Amy foi se confrangendo cada vez mais,
enquanto avançava pelo caminho enlameado. Largara as
saias pesadas, que agora se arrastavam pela lama. Martin não
pudera acompanhá-la, pois havia alguns últimos detalhes a
cuidar na casa da cidade. As camas para o hospital já
estavam sendo trazidas.

A criada abriu a porta. Amy pôde avistar o brilho


animador do fogo mais além. Largou a criança nos braços da
criada com um suspiro de alívio. A moça prorrompeu
imediatamente em exclamações de indignação:
— Venha imediatamente para o fogo, madame! Vou fazer-
lhe um chá agora mesmo! E enquanto a cozinheira apronta o
jantar, cuidarei das crianças! Mas que ideia, uma dama em
seu estado carregando uma criança desse tamanho! Isso é
inadmissível!

A cozinheira e a arrumadeira trocaram olhares


significativos de condenação por cima dos ombros
encurvados e trêmulos de Amy. Não gostavam muito de
Martin e, com outras pessoas de sua classe, haviam discutido
livremente o que ele fizera. O consenso geral era o de que
Martin era um maníaco, para dizer o mínimo, um tolo ainda
por cima. Respeitavam e admiravam Amy, porque ela não
tinha qualquer interesse ativo por eles, não se preocupava
com sua classe, ao contrário de Martin. A atitude dela era
sempre impessoal e indiferentemente gentil, enquanto
Martin era sempre atencioso e cortes. Consideravam que
Amy tinha o comportamento de uma grande dama, enquanto
o de Martin, tão consciente dos problemas deles, tão
preocupado por seu bem-estar, denunciava as suas origens
mais plebeias.

Ainda faltava muita coisa para arrumar na casa. As


crianças foram levadas para o segundo andar, aos brados de
protesto, enquanto Amy arriava numa cadeira diante do
fogo. Ela esfregou as mãos para esquentá-las, exausta, olhou
ao redor, tremendo. As mesas ainda estavam empilhadas,
almofadas se acumulavam nas cadeiras, quadros estavam
encostados nas paredes escuras, as janelas eram retângulos
lívidos e desolados na semiescuridão. Um relógio de mogno
que estava no chão, no canto mais próximo, bateu a hora
vigorosamente, na sala silenciosa e inóspita. Amy riu
debilmente, olhou para as mãos ressequidas e empoeiradas,
escutou ansiosa o retinido de porcelana e o silvo animador
da água quente no chá. Mas a cozinha continuava silenciosa.
Ela podia ouvir a cozinheira e a arrumadeira falando em voz
alta lá em cima; uma das crianças começara a chorar. Amy se
lembrou de que as camas ainda estavam desarrumadas,
ocupadas por pilhas de lençóis, colchas e cobertores. Pensou
em sua cama, ainda por fazer, as molas à mostra, o colchão
no canto, ainda envolto em papel. Sentiu-se desolada. As
lágrimas afloraram a seus olhos, começou a choramingar
como criança cansada, infantilmente limpou os olhos com a
ponta do xale que ainda não tirara.

— Estou tão cansada... — murmurou ela, olhando para os


móveis na maior confusão, o tapete florido ainda sujo de
serragem, as pequenas caixas fechadas.

Subitamente, foi dominada por intensa saudade de sua


casa, por um desespero impotente. Só que a saudade não era
pela casa que deixara, nem mesmo por Martin, mas sim pela
casa dos Sessions, com seus fogos imensos e lareiras de
mármore, os vastos aposentos e relógios de carrilhão, os
tapetes macios e estantes, velas acesas em candelabros, os
movimentos discretos das criadas, o cheiro distante de um
jantar delicioso, o aconchego e conforto convidativo dos
quartos. As lágrimas de Amy caíram mais depressa, vieram
soluços, gritinhos. Se ao menos estivesse em sua antiga
cama, sem alarmes e preocupações, sem o fardo de filhos
pequenos, sem medo e ansiedades, a vida simples e serena,
agradavelmente distinta, todas as coisas e sonhos à sua
frente, alguém que ela amava vindo naquela noite...

Mas Amy tratou de controlar-se, bruscamente. E disse em


voz alta, limpando o rosto manchado de lágrimas e poeira:

— É um absurdo ficar sentindo pena de mim desse jeito!


Estou apenas cansada e não me sentindo muito bem, tudo
aqui é silencioso, solitário e confuso. Mas estarei
inteiramente recuperada amanhã, depois de uma boa noite
de sono.
Ela se levantou e foi até uma janela. Proporcionava uma
vista ampla do vale e das colinas. Mas seu coração
novamente se confrangeu. Tudo era desolação, o céu cor de
chumbo, as colinas escuras, a terra úmida. Não havia
qualquer pessoa à vista, não se ouvia qualquer barulho, a
não ser o cacarejar das galinhas, o coaxar melancólico das
rãs no pequeno lago ali perto.

Amy encostou-se no vidro frio e fez um esforço para


controlar-se. O conflito mental parecia prolongar-se para seu
corpo. De repente, ficou alarmada, uma dor intensa lhe
percorrendo o corpo. “Não é possível!”, pensou ela. “A
criança não deve nascer pelo menos por mais um mês!” O
terror invadiu-a, dominou-a por completo, fez com que seus
joelhos tremessem, o rosto ficasse coberto de suor.
Cambaleou de volta à cadeira, arriou nela. A dor era mais
intensa agora, como se facas estivessem se cravando em sua
carne. Ela gritou, várias vezes. Os passos e vozes soavam
vagamente lá em cima. Ninguém a ouvia. Um medo grotesco
instalou-se em sua mente, de que ninguém jamais a ouviria,
que morreria sozinha ali, longe de seus amigos e daqueles
que a amavam. Levantou-se cambaleante, segurando o corpo
torturado com as mãos suadas. Começou a gritar
desesperadamente, em terror e agonia. Uma névoa abateu-se
sobre seus olhos, tudo dançava diante dela, o fogo vermelho,
os móveis empilhados, os débeis retângulos das janelas.
Ouviu alguém gritando, num túnel escuro e interminável.
Tinha a sensação de estar sendo arrastada através do túnel
pela força daquele grito.

Havia uma confusão aturdida lá em cima. Ela podia ouvir


isso. Mas ouviu também a porta exterior se abrir. Três
pessoas entraram na sala, totalmente estranhas, uma velha
alta e magra, de xale cinza e touca preta, um velho baixo e
corpulento, de barba loura, e um rapaz alto, forte e louro.
Amy parou de gritar, mas seus olhos e boca permaneceram
bem abertos, vibrando.

— Mein Gott — exclamou a velha. Ela adiantou-se


rapidamente, espiando atentamente na semiescuridão. — É a
Sra. Barbour, não é mesmo?

Ela contemplou Amy por um instante. No momento


seguinte, tornou-se competente e compreensiva. Amy teve
uma última impressão, antes que o nevoeiro e a escuridão a
envolvessem por completo, de ser levantada, de uma voz
suave em seu ouvido, de confusão, vozes, uma dor
lancinante, um colchão delicioso sob o seu corpo, gritos
prolongados. E depois o silêncio e a escuridão totais.

À meia-noite, nasceu sua segunda filha, Lucy. Amy


acordou de madrugada para descobrir Martin, angustiado e
exausto, sentado ao lado da cama, junto com a velha, no
quarto da frente apressadamente arrumado. Através de sua
sonolência serena, Amy sentiu os beijos de Martin, suas
súplicas de perdão; ouviu-o dizer que os velhos eram o Sr.
Heckl e a mulher, que o jovem era o filho deles, Carl; que
eles ocupariam o chalé de inquilinos no outro lado da
estrada e cuidariam da fazenda. Amy teve um vago momento
divertido. Era típico de Martin não ter se lembrado de dizer-
lhe isso antes. Ela sentia-se grata pela ajuda, conforto e
competência da velha, que certamente salvara a vida de sua
filha, se não mesmo a dela. Ao adormecer novamente, Amy
tinha a sensação de que estava em segurança com aquela
mulher por perto, mais segura do que jamais estivera em
companhia de Martin, a quem tinha de proteger e sempre
teria de proteger, contra as ameaças da vida.
CAPÍTULO XLIII
Um mês depois, nasceu a filha de May, uma criatura
pequena, de olhos escuros, rosto triangular, que recebeu o
nome de Gertrude.

Ernest manifestara o seu desejo de que fosse outro


menino, mas imediatamente concebeu uma súbita e, para
May, absurda paixão pela menina. Esqueceu totalmente
Godfrey James por algum tempo. Nada era bom demais para
sua filha. Um grito de Gertrude fazia-o subir correndo, com
mais nervosismo do que qualquer mãe poderia exibir. Ele
despediu uma babá, com extrema violência, porque
desconfiou que ela fora culpada de alguma negligência sem
maior importância. Quando a menina teve uma pequena
indisposição, com um mês de idade, Ernest voltava do
escritório ao meio-dia, incapaz de concentrar-se no trabalho,
tamanha era a sua ansiedade. Aos visitantes, ele dizia ‘Minha
filha!’ como se não existisse qualquer outra criança no
mundo, Quando Gertrude estava com três meses, ele
comprou-lhe um pequeno pônei e uma charrete, que May era
obrigada a usar, constrangida e sem jeito, carregando a filha.
Ernest abriu uma conta bancária para Gertrude, com um
depósito inicial vultoso, algo que não fizera pelo filho. Não
demorou muito para que toda Windsor comentasse divertida
a sua paixão pela filha, repetindo histórias que não eram
muito gentis nem simpáticas. Ernest jamais se importou com
isso, provavelmente nunca soube. Estava agora imune aos
perigos do ridículo.

No início do ano, Florabelle Barbour casou com Raoul


Bouchard, com grande pompa e cerimônia. Seis semanas
depois, apesar dos protestos da mãe, mas com a aprovação
de Ernest, Dorcas casou com Eugene Bouchard, com menos
pompa e cerimônia. Florabelle gostava de Raoul, sentia-se
fascinada por sua beleza e jovialidade. Por outro lado, estava
cansada da disciplina rabugenta da mãe, de suas noções
antiquadas. Florabelle era insolente na linguagem e
irreverente em suas atitudes, duas coisas que levavam Hilda
a fazer profecias funestas sobre o seu destino final. Foi para
escapar às constantes censuras, reprimendas e disciplinas de
sua casa que Florabelle casou com Raoul de maneira tão
precipitada.

Armand deu a Raoul uma casa muito boa, grande e nova,


num dos melhores quarteirões de Oldtown. Ali, Florabelle
tratou de se tornar uma dona-de-casa em grande estilo. Não
demorou muito para que seus saraus e jantares fossem
famosos pela comida, conversa, alegria, música e o brilho
dos convidados. Tendo casado com um francês, ela mobiliou
a sua casa nova com móveis requintados e frívolos, ao estilo
da França, tudo com borlas e brocados, paredes pintadas
com um cinza-claro, sancas nos tetos, tapetes azuis, quadros
mostrando mulheres joviais vestidas à moda do Império,
espelhos de molduras douradas estendendo do chão ao teto,
mesas de pernas finas bastante enfeitadas, um piano cor-de-
marfim e pequenas cadeiras douradas. Florabelle sempre
comentava, para cada novo convidado que aparecia:

— O querido Raoul é francês e minha casa deve estar de


acordo com a natureza dele!

Raoul sorria, fazia uma mesura, exibia os dentes brancos


e brilhantes, praguejava interiormente contra a linda mulher.
Era por demais indolente ou jovial para dizer a Florabelle o
que realmente pensava dos móveis que ela escolhera, como
os detestava, como abominava tanto dourado e enfeites,
como os chutava furiosamente, em particular. A ideia de
Raoul de uma casa boa e confortável era a ideia de um
camponês: grandes lareiras de pedra, dentro das quais um
homem podia ficar de pé, caldeirões de ferro com uma
comida cheirosa borbulhando e fumegando no fogo,
colchões de penas, assoalhos lixados, cadeiras de balanço
baixas e confortáveis, bem estofadas, mesas simples e
vigorosas, com toalhas brancas e quadriculadas, prataria
simples, canecas de peltre, muito vinho em bilhas de barro,
proteção de latão na lareira, um berço perto do fogo. Mas ele
gostava realmente de Florabelle para consterná-la com tais
coisas. Ela era uma coisinha linda, com seus cabelos louros e
olhos azuis faiscantes, covinhas e dedos brancos e elegantes,
o peito alvo empinado como de uma pomba branca, uma
atitude ao mesmo tempo autoritária e sedutora. Se lhe
dissesse que tipo de casa gostaria, Florabelle ficaria
horrorizada e desiludida, quase desolada. Afinal, pensava
Raoul, ela era uma jovem dama requintada, saída de uma
academia feminina, em que as coisas vulgares, como os
desejos dele, jamais eram sequer mencionadas, tudo era
graça, polidez, o tocar de pianos e o abanar de leques, o
levantar de saias, o cantar em voz de soprano, a pintura em
porcelana.

Houve um momento de constrangimento quando foi


ansiosamente discutido como Martin e Ernest seriam
mantidos separados no casamento de Florabelle. Ela não
sentia qualquer amor por Martin, ficava impaciente e
contrariada sempre que falavam nele, considerava-o um
chato. Chegou a sugerir francamente que ele não fosse
convidado, mas tal proposta despertou tamanho horror, até
mesmo no indolente Raoul, que ela prontamente abandonou
o assunto. Também não gostava de Amy e julgava ainda mais
maçante que a cunhada devesse comparecer ao casamento.
Havia algo na serenidade de Amy, em seus olhos francos e
decididos, em sua meiguice, integridade e falta de afetação,
que despertava uma profunda antipatia na jovem Florabelle.
Não podia compreender por que todos consideravam Amy
uma grande dama e falavam dela com o maior respeito.
Julgava Amy bastante feia e insípida, sem a menor
vivacidade, inteiramente destituída das amenidades sociais
que aprendera na academia feminina e que lhe haviam
assegurado ser irresistíveis para os homens. Comentou o
assunto com May e com o irmão mais velho, sempre
indulgente. Teve a impressão de discernir alguma simpatia e
compreensão no sorriso débil de May e na cabeça desviada.
Mas não estava absolutamente preparada para a expressão
de raiva que estampou-se no rosto de Ernest. Ele proibiu-a
firmemente de criticar as pessoas mais velhas e saiu da sala
na maior irritação. Em lágrimas, Florabelle virou-se para May,
em busca de consolo. Mas a expressão de May tornara-se
rígida, fria como a neve.

De qualquer forma, lamuriou-se Florabelle, ninguém


jamais via Martin e Amy ultimamente. Martin ainda aparecia
na cidade, mas passava o tempo todo em seu hospital. Amy,
no entanto, estava sempre enterrada no campo, com os
filhos, galinhas e vacas. Ora, só vira a sua nova sobrinha,
Lucy, uma única vez, em todas aquelas semanas!

Mas Martin e Amy acabaram sendo convidados ao


casamento, como não podia deixar de acontecer. Aceitaram,
como era de se esperar. Mas os acontecimentos ajudaram os
que estavam com medo do que poderia ocorrer num
encontro dos irmãos, poupando-lhes muito constrangimento.
Pois Martin caiu doente, com uma espécie de cólera, uma
semana antes do casamento, doente o bastante para que
Amy ficasse a seu lado. Mas o presente de casamento deles
chegou, um relógio pequeno e modesto, em prata antiga,
com cupidos, rosas e folhas, o mostrador com uma moldura
dourada. Florabelle, a filha de Joseph, ‘lacaio do Esquire
Broderick’, torceu o narizinho bonito para o presente,
tratando de escondê-lo. Quando May, com franca
desaprovação, chamou-a de arrivista, ressaltando que Martin
e Amy eram agora relativamente pobres e que o presente era
de excelente gosto, embora não muito dispendioso,
Florabelle limitou-se a sacudir a cabeça, fez beicinho e
chorou, porque a cunhada a estava tratando rudemente.

Com Dorcas, foi inteiramente diferente. A jovem tinha


uma paixão pelo irmão Martin, profunda, silenciosa, quase
ardente. Às vezes, quando lhe contemplava o rosto fino, tão
preocupado e cansado, tão gentil e invariavelmente afável,
apesar de suas ansiedades e constante confusão, Dorcas era
invadida pela compaixão e amor. Ela amava Amy
profundamente, em parte por si mesma, em parte porque a
cunhada era tão obviamente devotada ao marido. A
princípio, ela se mostrara propensa a sentir um ciúme
amargurado de Amy. Mas nenhuma pessoa que tivesse
alguma percepção poderia ficar ressentida com Amy por
muito tempo. Agora, a devoção de Dorcas por Amy só perdia
para sua devoção por Martin. Os filhos de Martin também
partilhavam de sua paixão e praticamente ela não ficava
mais de três dias sem pegar a sua pequena charrete e seguir
para a isolada fazenda, a apenas meia hora de viagem da
cidade.

Dorcas tornara-se bastante alta, mais alta do que a irmã,


tão alta quanto Ernest, não muito mais baixa do que Martin.
Enquanto Florabelle era do tipo mignon, ativa e elegante,
cheia de rendas, babados, lenços perfumados e anéis de
cabelos, Dorcas era comprida, calada, distinta, quase muito
séria, movendo-se com uma graça lenta e serena, vestindo
trajes sóbrios e peles escuras, chapéus sem quaisquer
enfeites. Sua beleza tornara-se ainda mais extraordinária do
que se esperava. Os estranhos contemplavam incrédulos
aquele rosto oval, a pele alva, a boca vermelha, impecável.
Os olhos azuis-escuros, com pestanas avermelhadas, os
cabelos prateados-dourados, presos no pescoço comprido e
alvo, o corpo atraente, as mãos compridas, tudo era
simplesmente inacreditável em seu esplendor.
Quase todos gostavam de Florabelle, mas poucas pessoas
estimavam Dorcas, que tinha muito pouco a dizer, era fria e
reservada, alheia às artes sociais, obviamente indiferente à
necessidade de agradar. Era tímida, não com a timidez
amedrontada e inquieta de Martin, mas com uma timidez
decorrente de sua real intrínseca aversão às pessoas. Não
tinha qualquer propensão para a amizade e na verdade não
possuía amigas. Muitos diziam com desdém que ela era
moldada à imagem do irmão Martin, mas a semelhança de
caráter era de certa forma superficial. Pois enquanto Martin
era calado por uma agonia de constrangimento, Dorcas se
introvertia porque não sentia o menor desejo de conversar
com aqueles que não estavam em harmonia com ela. Martin
era gentil, Dorcas apenas polida; enquanto ele era simples e
íntegro porque inteiramente destituído de astúcia e
percepção, ela desprezava os outros profundamente demais,
para perder tempo em ser complexa e ilusória. Enquanto
Martin era apreensivo e fraco, Dorcas mostrava-se forte,
porque tinha a coragem do desdém silencioso. Dorcas
também tinha paixão pela justiça, ódio contra as opressões
abstratas, desprezo pela ganância, indiferença ao dinheiro.
Martin podia ser enganado por palavras sonoras, mas
ninguém enganava Dorcas. Ela não possuía a mesma
misericórdia e compaixão do irmão, a sua simpatia intensa
pelos sofrimentos e infortúnios. Mas nem mesmo Martin
desconfiava disso, pois Dorcas estava sempre em seu
hospital, ajudando-o com os doentes, incansável, forte,
ativa, invariavelmente atenta e eficiente. (Havia alguma coisa
do irmão Ernest nesse aspecto de seu caráter.) Dorcas via o
sofrimento no hospital e friamente aceitava que era seu
dever ajudar a aliviá-lo. Mas uma grande parcela do seu
senso de dever derivava do desejo de agradar Martin, a fim
de vê-lo sorrir de gratidão, conquistar sua confiança. Como
Amy, tinha um intenso desejo de protegê-lo e resguardá-lo,
interpor-se entre Martin e uma realidade que ele às vezes
vislumbrava, angustiado, e achava insuportável.
Foi um tremendo choque para Martin quando Dorcas
anunciou-lhe calmamente, num fim de tarde ao final do
verão, que ia casar com Eugene Bouchard. Ele ficou
profundamente perturbado e fitou-a com apreensão e
espanto.

— Sei que não pode compreender, Martin, porque sempre


disse que Eugene era muito parecido com Ernest — disse
Dorcas em sua voz serena. — Mas não é bem assim. Eugene é
muito bom e gentil comigo, honrado e sincero. E eu o amo
demais. Creio que o amei por toda a minha vida.

Amy passou o braço pelos ombros da cunhada, numa


compreensão silenciosa. Mas Martin coçou a cabeça, na
maior confusão. E depois disse, a voz cansada:

— Jamais antipatizei com Eugene, apesar de tudo. Tenho


certeza de que até gostaria muito dele, se não fosse por sua
imitação de Ernest, por sua atitude de que Ernest não pode
fazer nada errado, é onisciente e onipotente. Ele... ele é
obcecado em relação a Ernest. Não sabe que Ernest o está
estiolando, destruindo, corroendo-o e devorando-o, como
tenta fazer com todas as pessoas. Mas já notei que ele pode
citar Ernest inconscientemente, porém sua natureza está
realmente contra o que diz. Talvez, Dorcas, você possa
salvá-lo de tornar-se uma imitação menor e irremediável de
Ernest.

— Ernest não irá destrui-lo, se eu puder impedir —


declarou Dorcas, com seu sorriso adorável e frio.

Ernest sentia-se orgulhoso de Dorcas, gostava muito da


irmã. Ainda por cima respeitava-a, ao contrário do que
acontecia com Florabelle. Mas também julgava-a um tanto
repulsiva e patética. Queria que ela casasse na casa dos
Sessions, como fizera Florabelle. Mas Dorcas recusou,
declarando que partiria para o casamento da casa da mãe.
Tornou a surgir, cansativamente, o impasse em relação a
Ernest e Martin. À medida que o dia se aproximava, Ernest
compreendeu que nenhum ato da natureza iria aliviá-lo do
constrangimento desta vez. Segundo todas as informações,
Martin permanecia saudável. Ernest finalmente confessou a
Dorcas e a May que não podia suportar um encontro com
Martin, não aguentaria a farsa de um relacionamento cordial.
Disse que seria uma tensão excessiva, não teria como se
controlar. Dorcas seria conduzida por Martin e assim não
havia realmente a menor necessidade da presença dele,
Ernest. Ficaria em segundo plano, assistiria à cerimônia sem
ser observado, depois sumiria até que o casal fosse embora,
juntamente com os hóspedes. Embora Dorcas protestasse,
todos acabaram concordando que essa decisão era a mais
sensata, embora sua necessidade fosse profundamente
desagradável.

Martin deu de presente à irmã uma pulseira de ouro,


cravejada com opalas, a sua pedra da sorte. Amy é que
escolhera o presente. Examinando-o, May declarou, com toda
sinceridade, que era a coisa mais bonita que já vira. E
acrescentou, com algum ciúme:

— Mas o bom gosto de Amy sempre foi irrepreensível.

Ela e Ernest deram à noiva um magnífico colar de pérolas


rosas, ‘uma boa parte dos dividendos’, comentou Ernest,
mais do que um pouco pesaroso.

Eugene sempre fora mais parcimonioso do que o irmão


Raoul. Esperou até o último momento que Ernest ou Armand
o presenteassem com uma casa. Mas Armand permaneceu
indiferente e Ernest não se manifestou. Ambos sabiam que
ele economizara muito dinheiro ao longo dos anos e tinha
pelo menos três vezes mais do que Raoul, o perdulário.
Eugene possuía pessoalmente, em seu nome, dez por cento
das ações da Kinsolving. Finalmente, quando a situação já
era bastante embaraçosa, Armand convidou o jovem casal a
morar em sua casa. Disse que a prima canadense poderia
continuar a cuidar da casa. Dorcas e Eugene poderiam
redecorá-la à vontade. O custo, acrescentou Armand
maliciosamente, observando o rosto cauteloso do filho, seria
totalmente de Eugene. Depois de consultar Ernest, que lhe
assegurou, sorridente, que o acerto seria econômico, Eugene
aceitou com uma gratidão mal-humorada, dominado pelo
desapontamento de não lhe terem oferecido uma casa.

Depois do casamento de Dorcas, surgiu o problema do


que fazer com a velha Hilda. Ela estava amargurada, não
queria morar com Martin ‘no mato’. May, por sua vez,
continuava franca em sua recusa de ter a sogra sob seu teto.
Assim, a situação de Hilda era patética, para dizer o mínimo.
Ela se fechava obstinadamente na casa, enquanto o debate
prosseguia violentamente lá fora. Claro que todos
concordavam que Hilda não podia viver sozinha. Os filhos e
noras iam visitá-la constantemente, discutiam com ela,
sacudiam as mãos, impotentes. A discussão prolongou-se
por quase três meses, com Hilda por trás das cortinas,
desfrutando sombriamente aquele novo tumulto ao seu
redor, o excitamento indesejável.

Depois, quando a situação estava se tornando realmente


desesperadora, Florabelle descobriu que estava grávida.
Mergulhou imediatamente num estado desamparado e
infantil, gemendo pela mãe, ansiosa em ser menina outra
vez, sem a responsabilidade de comandar uma casa. Raoul,
jovial e entediado como sempre, sugeriu que Hilda fosse
morar com eles. Estava particularmente satisfeito com a
própria sugestão, pois julgava que assim teria, pela primeira
vez desde o casamento, uma refeição decente e substancial à
mesa. Raoul ansiava secretamente para que um modo de
viver mais austero e simples fosse restaurado em sua
existência. Hilda sentiu-se necessária novamente. Em triunfo,
fez as malas e foi morar com Florabelle. Ali, censurava e
cuidava de tudo, dava ordens e cozinhava, providenciava
tudo, brigava diariamente com as empregadas em seus
aventais engomados. E por trás dos dourados, damascos e
sancas, Hilda lançou sólidas fundações de pedras e tijolos.
CAPÍTULO XLIV
O filho de Florabelle e Raoul, Philip ou Philippe, nasceu
em meio a grande excitamento, com muita água-de-colônia e
sais de cheiro, muitos gritos, lágrimas, travesseiros de
rendas, criadas e enfermeiras suadas, dois médicos
eminentes. Era Natal e a casa estava decorada com azevinho
e flores da estufa dos Sessions. Havia também muitos
papéis, caixas e fitas quando o jovem Philip Bouchard
decidiu ingressar no mundo.

Quatro meses depois, Dorcas presenteou o marido com


um filho, um garoto bonito a quem deram o nome de
Etienne, em homenagem ao avô de Eugene.

Gregory comentou grosseiramente com sua prima May:

— Parece que a família se transformou num viveiro de


procriação.

May riu alegremente, pois sempre gostara de um


comentário um pouco indelicado. Além disso, para seu
ressentimento, estava grávida do terceiro filho. Quando
nasceu, deram-lhe o nome de Reginald. Cinco meses depois,
Amy teve o seu quarto e último filho, John Charles Barbour.
Ele nasceu em setembro de 1860. Três meses depois, com
mais fortaleza do que antes, Florabelle teve outro filho,
Jules. E seis meses depois Dorcas teve uma filha, Renée.
Havia agora 11 crianças nas famílias Barbour e Bouchard.

Depois do nascimento de Gertrude, May acusou Ernest de


perder o interesse pelo querido dela, Godfrey James... ou
simplesmente Frey, como ela o chamava. Ernest negou
convencionalmente, mas estava de fato quase indiferente ao
primeiro filho. De maneira vaga e constrangedora, o menino
lembrava-o de Martin. Ele sentiu-se profundamente atraído
por Reginald, que era robusto e gorducho, todo rosado. Mas
Gertrude continuou a ser seu amor e paixão. A menina
retribuía esse amor plenamente. May, sutilmente posta de
lado, ficou atormentada por um ciúme de que se sentia
envergonhada.

As jovens matronas viviam tão atarefadas, seus maridos


tão ocupados com os negócios que cresciam
espetacularmente, que Martin e Amy raramente eram
visitados em sua fazenda isolada, a não ser por Dorcas. E
agora ela também estava tendo filhos. Assim, às vezes
passavam-se meses sem que alguém visitasse Amy, sozinha
com sua saudade de casa e com as crianças, sem ter
qualquer companhia além da velha Sra. Heckl, sem ver
qualquer amiga.

Martin, com a determinação do reformador e altruísta,


vivia apenas para o hospital. O Padre Dominick dirigia
muitas de suas atividades. Os doze leitos estavam quase
sempre ocupados, os dois médicos tendo outros pacientes,
além dos trabalhadores da Kinsolving e de Barbour &
Bouchard. O Padre Dominick conseguira interessar alguns
dos membros mais prósperos de sua paróquia. Através de
uma pressão grande e permanente, convencera-os a financiar
parcialmente o hospital.

Para a época, era um hospital-modelo. Estava aos


cuidados de duas Irmãs de Caridade, mulheres inteligentes,
de meia-idade, vindas do Canadá. As outras pessoas que ali
trabalhavam eram mulheres mais jovens e austeras, limpas e
competentes, que suportavam com silêncio e indiferença as
censuras e escárnios dos habitantes da cidade. Muitas eram
alemãs. Os médicos eram jovens, um deles o que salvara a
criança doente que Martin encontrara na sua primeira visita
às instalações da Kinsolving. Embora a teoria da assepsia
fosse ainda desconhecida, o hospital tinha um índice de
casos fatais extraordinariamente baixos, mesmo depois de
operações graves. Havia poucos casos de gangrena, quase
nenhuma infecção. O hospital era amplamente suprido de
roupas de cama e cobertores, os equipamentos cirúrgicos
mais modernos, os mais novos medicamentos, as últimas
teorias. Uma mulher que visitou o hospital chegou a
comentar:

— Mas é tão limpo quanto a minha cozinha!

Martin chamava-o de Hospital das Irmãs. Estava


orgulhoso de seu hospital, sentia-se satisfeito e contente.
Mas as despesas consumiam quase três quartos de seus
dividendos. Como era um hospital praticamente gratuito, ele
era obrigado a solicitar os recursos extras necessários, com
sombria ansiedade e determinação, entre os católicos de
Windsor, até mesmo entre os protestantes mais ricos. Entre
os últimos, quase não tinha sucesso, primeiro porque
consideravam os hospitais como viveiros de pestilência e
degeneração (“Quem tem uma decente e respeitável casa não
precisa de um hospital'”), depois porque eram
intransigentemente desconfiados de qualquer coisa que
cheirasse a ‘papismo’.

A intenção de Martin era não restringir o hospital aos


operários da companhia e suas famílias, mas aceitar
qualquer pessoa de Windsor que precisasse de
hospitalização. Ao discutir o assunto com o Padre Dominick,
Martin comentou:

— É claro que deve-se cobrar alguma coisa àqueles que


estiverem em condições de pagar, de acordo com seus
recursos. Mas os que nada possuem devem receber um
tratamento igualmente bom, inteiramente de graça.
Mas, em dois anos, apenas oito pacientes de ‘fora’ foram
internados e tratados; entre esses, apenas três puderam
pagar alguma coisa.

Diga-se de passagem, que Martin foi a causa de aumentos


de salários entre os operários da Kinsolving, além de outros
aumentos em fábricas de toda a cidade. Barbour & Bouchard
foi obrigada a aumentar os salários como um meio de
estimular os seus melhores operários. Durante anos haviam
mantido esses homens sem qualquer aumento, pois poucos
conseguiam acumular recursos suficientes para irem
embora, procurar emprego em outro lugar. Mas agora Martin
criara um fundo para operários despedidos e que queriam ir
embora. Assim, para evitar um êxodo, houve necessidade de
aumentar os salários dos melhores operários.

Martin dedicava-se a seu trabalho, compenetrado e


absorto. Voltava para a fazenda à noite, tão cansado que mal
podia sorrir para a mulher e os filhos. Mal conhecia os dois
filhos menores. Estava alheio ou indiferente ao fato de que
se tornara o centro de uma tempestade, que ocorriam em
Windsor discussões a seu respeito, debates, até mesmo lutas
corporais. Era um tolo ou um maníaco, um herói e um anjo,
de acordo com as convicções de amigo ou antagonista.
Martin não prestava atenção às explosões de riso,
exclamações de desprezo, palavras de amizade e admiração
que causava por toda parte. Só tinha olhos para o seu
trabalho. Proporcionava-lhe uma alegria, além de qualquer
coisa que já experimentara antes, ver a vida de um homem
ser salva, uma criança recuperada, a agonia de uma mulher
atenuada.

A fazenda, dirigida pelos Heckls, produzia o bastante


para o sustento, o que era uma grande ajuda, pois Martin
estava consumindo a renda da mulher, avançando até
mesmo na principal. Isso deixou Gregory tão apreensivo, tão
consternado com as possibilidades, que ele foi
imediatamente procurar Amy, ameaçando, num acesso de
raiva, que ela não receberia mais nada dele ou de Nicholas,
se não acabasse com aquela pilhagem de sua fortuna. Ele
ficou profundamente assustado ao deparar com Amy e seus
filhos, que tanto amava, reduzidos a uma situação
deplorável, vivendo como meros camponeses, atolados na
lama da monotonia, pobreza e dificuldades. Descobriu que
Amy estava muito pálida e magra, que sorria com
dificuldade, sobrecarregada com os cuidados de quatro
filhos, numa casa em que havia apenas duas mulheres para
ajudá-la, uma delas já bastante idosa. Recordando a infância
e adolescência tão resguardadas de Amy, o dinheiro, escolas,
joias e roupas que lhe dera, Gregory ficou furioso ao
descobrir como ela estava atormentada agora, com calos nas
mãos frágeis, cansada e desanimada. Mas a seus gritos,
imprecações, acusações e epítetos, Amy declarou, com a
maior dignidade:

— Pode deixar seu dinheiro para qualquer outra pessoa,


por favor, Tio Gregory. Isso não me interessa absolutamente.
Mas se Martin precisa do meu próprio dinheiro, eu lhe darei
tanto quanto ele desejar, mesmo até o último vintém.

— E o que me diz de seus filhos, minha cara? A sua


devoção conjugal será suficiente para deixá-la contente
quando eles estiverem passando fome?

Apesar de seus esforços para falar, Amy ficou calada,


invadida por um medo súbito. Olhou para as crianças,
brincando diante da lareira, o bebê no berço.
Involuntariamente, cruzou as mãos tensas no colo, sobre o
avental de algodão ordinário. Era evidente que ela pensava
em tal possibilidade com bastante frequência, concluiu
Gregory, com uma sombria satisfação. Com mais angústia do
que estava disposto a admitir sequer para si mesmo, ele
estudou o perfil da sobrinha contra o fogo, percebeu como o
rosto dela estava contraído e tenso, como a boca assumia
uma expressão paciente e extenuada, como os olhos haviam
perdido o lustro. E, no entanto, de certa forma, ela exibia
agora uma beleza madura extraordinária. Embora parecesse
mais velha que os seus 27 ou 28 anos, muito mais velha do
que May, que tinha na realidade dois anos a mais, Amy
apresentava agora uma extrema dignidade, uma qualidade
refinada e apurada, algo que a tornava infinitamente
comovente e adorável. Gregory recordou um comentário
desdenhoso que May fizera um dia a respeito da prima, de
que Amy seria velha e gorda aos 30 anos. Ele sorriu
amargamente para si mesmo. May é que estava ficando cada
vez mais gorda, se não mesmo uma velha precoce, enquanto
Amy se tornava mais serena e linda, mais refinada e sublime,
à medida que os anos passavam. Ela é uma grande dama,
como foram sua mãe e a minha mãe, pensou Gregory.

— Amy, meu amor, pegue as crianças e vá para minha


casa, apenas por uns poucos dias — disse ele,
impulsivamente.

Ela sorriu, suspirou, beijou-o, sacudiu a cabeça.

Naquela noite, Amy disse a Martin, calmamente:

— Tio Gregory esteve aqui hoje. Ameaçou cortar-me


inteiramente de seu testamento, se mais algum dinheiro for
tirado do meu principal para o hospital. Deixe-me acabar,
por favor, Martin. Eu sabia que você diria que isso não tem
qualquer importância. Mas acontece que tem. Afinal, se Tio
Gregory deixar-me bastante dinheiro, você também terá mais
para continuar em sua obra.

O resultado foi que a renda de Amy passou a ser tragada


pela voracidade do hospital, assim como os recursos no
banco, mas o principal dela permaneceu intacto. A pequena
família, a fim de preservar o principal, foi obrigada a reduzir
as despesas ainda mais, a tal ponto que a cozinheira foi
despedida, deixando Amy com os cuidados da casa e das
crianças inteiramente em suas mãos. A Sra. Heckl, embora
forte e ativa, tinha o seu próprio trabalho a fazer,
preparando manteiga, ordenhando as vacas, cuidando da
horta e das galinhas, costurando e cozinhando em sua
própria casa. Assim, não podia dar mais que uma ou duas
horas de ajuda por dia a Amy. Gregory, visitando a sobrinha
dois meses depois, ficou assustado com a visão dela. Amy
parecia extremamente doente e exausta, as crianças estavam
descuidadamente vestidas e não muito limpas, havia uma
camada de poeira por toda casa. Amy estava com os braços
mergulhados numa tina cheia de espuma de sabão quando o
tio chegou. O rosto fino ficou inteiramente vermelho ao vê-
lo.

Aquilo era demais para Gregory. Em voz fria e sombria,


ele ofereceu duas opções a Amy: ou ela seguia para a casa
dele com os filhos, até que Martin estivesse disposto a tratar
a família de maneira decente, ou ele, Gregory, lavaria as
mãos, nunca mais tomaria a visitá-la, não se importaria com
o que pudesse lhe acontecer e aos filhos, não daria a menor
atenção mesmo que estivesse passando fome. A voz dele era
áspera, quase brutal. Por dentro, no entanto, Gregory estava
consternado, cheio de raiva e ódio de Martin, enquanto
contemplava as saias amarfanhadas, os cabelos
desgrenhados, as faces encovadas, os olhos castanhos
angustiados, nos lábios um débil contorno arroxeado, no
rosto pálido e contraído. Mas embora chorasse interiormente
pelo ultimato do tio, Amy declarou, com serena majestade:

— Lamento muito, Tio Gregory, mas não posso fazer o


que está querendo. Não posso deixar Martin. Como seria
possível? Eu o amo. Não posso tirar as crianças dele. Não
posso destruir a sua convicção em si mesmo. Martin pensa
que sou melhor do que na realidade, que estou disposta a me
sacrificar por um princípio e um ideal. Como posso dizer-lhe
que sua mulher não passa de uma gananciosa, que quer
apenas confortos e luxos, sedas e joias? Mais do que
qualquer outra coisa no mundo, quero o amor e o respeito de
Martin, quero que ele sinta que pode contar pelo menos com
uma pessoa a apoiá-lo.

— Santo Deus, Amy! Nunca pensei que chegaria o dia de


ouvi-la dizer tais bobagens! Nunca pensei que fosse tão tola!
Não se lembra como costumávamos rir de Nicholas, como
desprezávamos suas hipocrisias e as frases eloquentes que
não queriam dizer absolutamente nada? Por acaso perdeu o
seu senso de humor? Ou está convencida de que deve
insistir num mau negócio por uma questão de orgulho?

Amy ficou calada por longo momento e depois, disse, em


voz baixa:

— Tio Gregory, as pessoas hipócritas e insidiosas


desacreditaram os chamados chavões e lugares-comuns. Mas
a culpa não é dos chavões. Eles continuam a ser verdadeiros.
As pessoas falsas fazem com que a virtude pareça repulsiva
e desprezível para os homens inteligentes. Mas não
prestamos, se não podemos afastar as pessoas falsas das
virtudes, assim como arrancamos os insetos das plantas. —
Ela fez uma pausa, sorrindo tristemente. -Não sou afeiçoada
aos chavões, Tio Gregory. E não estou querendo insistir num
mau negócio por uma questão de orgulho. A vida é muito
curta para isso. A única coisa que tem importância é o fato
de eu amar Martin.

Gregory contraiu os lábios desdenhosamente.

— Não acha que está protestando com uma veemência um


tanto exagerada, Amy? Se tivesse dito isso uma vez, nos
últimos cinco minutos seria perfeitamente normal, mas
acontece que falou pelo menos três vezes. — E ele
acrescentou, friamente: — Você é uma hipócrita, Amy.

Mas escárnios e argumentos não conseguiram demover


Amy. Gregory foi embora, jurando que nunca mais tomaria a
vê-la; se Amy quisesse encontrá-lo, que fosse visitá-lo em
sua antiga casa. Amy ficou observando-o afastar-se com as
lágrimas lhe escorrendo pelo rosto impassível. Estava
cansada demais para retomar o trabalho. As crianças
gritavam no quintal imundo, o bebê berrava lá em cima. Mas
Amy não podia deixar a cadeira por enquanto. Ficou com o
olhar perdido no espaço à frente, tristemente, pensando na
ordem, luxo, tranquilidade, paz e amplitude da casa dos
Sessions, recordando seus lindos vestidos, os cabelos
sempre impecavelmente arrumados, a alvura e maciez de
suas mãos. Mas, por fim, a boca contraiu-se com rigidez,
como tinha o hábito de fazer ultimamente. Amy levantou e
voltou ao trabalho.

Até então, Gregory falara muito pouco da situação de


Amy a Ernest e May. Naquela noite, porém, ele não pôde
mais se conter. Estava transbordando de ódio, angústia e
medo. May escutou, horrorizada, olhando várias vezes para
o marido. Ernest não disse nada, mas vincos azulados
apareceram em torno dos lábios. Ao final, no entanto, ele
disse calmamente:

— O problema é de Amy. Aparentemente, ela sabe o que


está fazendo. No final das contas, é uma mulher adulta.

Mas May foi discretamente visitar a prima, levando uma


de suas criadas. As condições eram piores do que imaginara.
Mas sendo uma jovem matrona atilada, pouco afeiçoada a
exclamações inúteis, levantou a saia-balão, enrolou uma
toalha nos cabelos, arregaçou as mangas e começou a
trabalhar com a criada, em meio aos débeis protestos
risonhos de Amy. Poucas horas depois, a casa estava
brilhando, embora um tanto surrada, as crianças estavam
lavadas, alimentadas e dormindo, Amy descansava no velho
sofá na sala de visitas, May e a criada consertavam roupas
ativamente, enquanto a Sra. Heckl trabalhava na cozinha.

May não censurou a prima. Falou placidamente de seus


filhos, das últimas modas, da ameaça de guerra iminente. Ao
falar dos respectivos maridos, fê-lo com descontração e
indiferença, apenas de passagem.

— Quando o tempo estiver melhor, Amy, trarei meus


filhos para visitarem os primos. Tenho certeza de que este ar
puro do campo vai fazer bem a Gertrude. Ela não é uma
menina forte, mas irrequieta, morena e magra, como uma
cigana. — May suspirou um pouco. — Como os seus filhos
são fortes, corados e vigorosos, Amy! Eu bem que gostaria
que os meus fossem assim também. Muitas vezes penso que
meus filhos não são normais. Godfrey James é extremamente
frágil e tímido, fica doente sempre que Ernest ralha, tem um
estômago delicado demais. Ele chega a ter medo do pai.
Houve um dia em que fui encontrá-lo escondido debaixo da
cama. Quanto a Reggie, não passa de um bebê, mas tem
acessos de raiva violentos. Chego até a pensar que vai
sufocar! — Ela fez uma breve pausa, antes de acrescentar,
com algum orgulho: — Ainda não lhe falei? Godfrey James é
um músico de verdade, embora tenha apenas seis anos. Não
quer sair de casa para brincar enquanto não o obrigo. Gosta
de ficar na sala de estar, batendo no piano. Já consegue tocar
pequenas melodias. Ernest despreza isso, amarra a cara, diz
que o garoto é um maricas e que deveria estar brigando com
outros da sua idade. Infelizmente, Ernest não dá a menor
importância à música ou a qualquer outra das artes. Mas ele
não vai conseguir intimidar Frey e fazê-lo afastar-se da
música.

May fitou Amy com uma expressão subitamente


compenetrada e determinada e repetiu, como se estivesse
fazendo uma promessa a si mesma:

— Ele não vai conseguir intimidar Frey e fazê-lo afastar-se


da música!
CAPÍTULO XLV
Como um abscesso começando a ‘supurar’, tudo estava
levando para um foco, conforme era admitido até mesmo
pelos mais comedidos, em que o conflito armado entre os
estados dificilmente poderia ser evitado por mais tempo.

O pânico financeiro de 1857 não foi capaz de apagar a


lembrança da ‘guerra’ entre os colonos pró-escravidão e
abolicionistas do Kansas. Até mesmo o massacre de
Mountain Meadow, em Utah, provocou apenas um breve
horror, se bem que intenso, logo se desvanecendo diante da
apreensiva contemplação da tempestade tenebrosa que se
estendia pelo céu nacional. Quando foi publicada A Crise
Iminente, de Hinton Rowan Helper, uma espécie de frenesi
abateu-se sobre Washington, com todos os problemas de
menor importância sendo relegados ao esquecimento.

Em 1859, John Brown atacou Harpers Ferry, na Virgínia


Ocidental, capturou o Arsenal dos Estados Unidos e matou
cinco homens. O efeito sobre o país foi como se duas facções
opostas tivessem se concentrado numa imensa arena,
observando um conflito entre gladiadores. Todos estavam
tensos, de rostos contraídos, prendendo a respiração,
embora o conflito parecesse mais ou menos formal e
insípido. Depois, subitamente, um gladiador fez uma
investida, uma investida letal. A confusão dominou os
gladiadores oponentes, que recuaram. Os espectadores, já no
auge da excitação, levantaram-se no maior clamor, ficaram
de pé, consternados, mas prontos para a violência. Emanava
deles distúrbio, medo, espanto, ódio e confusão. Olharam ao
redor com olhos injetados, esperando um sinal para
atacarem os vizinhos. Mas o momento ainda não chegara e
os espectadores tornaram a sentar, trêmulos, na beira dos
assentos, observando novamente os gladiadores retomarem
suas manobras formais e triviais.

Ernest Barbour e os outros diretores da firma sabiam que


a guerra era inevitável. Pensavam nos contratos militares.
Podiam sacudir a cabeça, aparentemente consternados pelo
conflito iminente, mas estavam secretamente exultantes.
Ernest não estava absolutamente interessado nas causas da
guerra iminente e o mesmo acontecia com Eugene e Raoul.
Mas Armand, recordando os dias sangrentos na França,
estava apreensivo. Disse aos filhos, em tom de lamento, que
já vira homens mortos em demasia, o suficiente para o resto
de sua vida. Era contra a escravidão, mas dizia que não
acreditava que todos os pretos do país valessem uma gota de
sangue de um americano branco. Quando a Carolina do Sul
separou-se da União, pouco depois que Abraham Lincoln foi
eleito Presidente dos Estados Unidos, Armand declarou que
esse estado estava simplesmente agindo de acordo com seus
direitos constitucionais, se considerava a União prejudicial a
seus interesses. Por causa dessa opinião, ele foi afastado da
companhia de seus amigos, tanto em Oldtown como em
Newtown, uma situação que lhe recordou a juventude na
França. Ernest, que considerava as opiniões expressas de
Armand prejudiciais à perspectiva de novos contratos
militares, tratou de censurá-lo, impaciente e furiosamente.
Mas, para espanto dele, Armand reagiu com violência,
clamando que já estava velho o bastante para pensar menos
em dinheiro e mais na verdade e justiça.

— Quando eu sair deste mundo — disse Armand, com


desdém — quero ter um gosto bom na boca, ao invés de um
gosto amargo. Deixe-me ser virtuoso de novo, meu caro
Ernest, pela última vez.

E ele sorriu com mais amargura do que Ernest julgava


condizente com as palavras.
— Não creio que uma questão tão discutida, sobre a qual
os homens de bem estão divididos, tenha alguma coisa a ver
com a virtude, Armand.

— Mas se fosse uma questão de dinheiro, você perceberia


imediatamente de que lado está a virtude, não é mesmo? —
perguntou Armand, com um sorriso malicioso, que deixou à
mostra os dentes amarelados, através da barba.

Ernest não ficou perturbado, limitando-se a sorrir.

— Isso não é difícil de perceber, mesmo agora. Se houver


guerra, teremos polpudos contratos militares. Estamos no
negócio e as questões éticas não nos interessam.

Ernest estava satisfeito com muitas coisas. O primeiro


poço de petróleo tinha sido aberto em Titusville e ele fora
um dos primeiros homens de negócios a obter opção para a
exploração de uma propriedade próxima. Já havia homens
efetuando perfurações em sua propriedade, lentamente, é
verdade, pois o solo da Pennsilvânia era rochoso e difícil.
Mas Ernest tinha certeza de que encontrariam muito
petróleo. Passara vários dias na área, observando os
trabalhos de perfuração, ouvindo o barulho dos motores. Sua
fábrica já estava desenvolvendo um explosivo para ‘disparar’
o poço, quando estivesse pronto.

Agora que o rumor do conflito iminente pairava no ar,


Ernest foi procurar o Senador Nicholas Sessions, em
Washington. Nicholas mostrou-se mais cordial e efusivo do
que nunca. Admirava o homem mais moço, muitas vezes lhe
dissera que era uma pena que tivesse nascido na Inglaterra,
pois era um político nato e poderia algum dia tomar-se
Presidente dos Estados Unidos. Ele possuía a gratidão
mecânica do político, não esquecia que Ernest fora
extremamente generoso em suas contribuições para os
fundos do partido e de sua campanha eleitoral pessoal, que
arrancara a Sessions Steel do marasmo e decadência,
escorando as suas vigas frágeis e apodrecidas com o aço de
seu gênio. Não esquecia também que Ernest era o
responsável pela expansão de seu poder e luxo, por sua
vasta fortuna pessoal. Além do mais, Nicholas gostava da sua
prima May, apreciava-lhe o realismo franco e a sinceridade
espirituosa. Também adquirira um pouco da paixão de
Ernest pela pequena Gertrude e secretamente lhe legara uma
boa parte de sua fortuna.

Ernest foi breve e objetivo na visita. Uma nova companhia


de material bélico se expandira durante os últimos cinco
anos. Ainda não ameaçava seriamente a força de Barbour &
Bouchard, mas dizia-se que possuía patentes excepcionais. O
presidente dessa companhia era um certo Angus Macllvain,
um escocês que tinha patentes britânicas, uma das quais,
segundo os rumores, para um rifle de repetição de sete
câmaras. Ele estava tentando patentear esse rifle nos Estados
Unidos. Se conseguisse, Barbour & Bouchard teria muito com
que se preocupar, especialmente se eclodisse mesmo uma
guerra.

— Está querendo que eu impeça The Macllvain Arms de


entrar numa concorrência, não é mesmo? — perguntou
Nicholas. — E como eu poderia conseguir isso?

— Muito fácil — respondeu Ernest, suavemente. — O filho


do velho Macllvain, Robert, está concorrendo a senador
estadual pela chapa dos democratas. É o único filho do velho
Angus, a paixão do pai. Como é também democrata, Senador
Sessions, mas apesar disso apoia Lincoln, segundo os
jornais, possui bastante força e influência nos dois partidos.
Assim, eu estava pensando...

— Está querendo que eu garanta a eleição do filho do


velho Angus, graças a meu apoio num estado que virou
republicano, em troca da patente do rifle de repetição? — O
sorriso de Nicholas era amargo, mas cheio de admiração. —
O que o leva a pensar que o velho Angus concordaria com
uma proposta dessas?

— Só há uma coisa que um escocês gosta mais do que


dinheiro: a honra pública. Tenho a impressão de que ele vai
concordar, sem a menor hesitação.

— E você começará imediatamente a fabricar os rifles de


repetição, não é mesmo?

— Claro que não. Teríamos de trocar as nossas atuais


máquinas e elas ainda não pagaram o investimento. Eu
simplesmente guardaria a patente por mais dois anos, antes
de encomendar novas máquinas, se julgar então que isso se
justifica. Além do mais, a situação não tem sido das
melhores ultimamente e tenho milhares de rifles estocados.
Preciso livrar-me deles antes.

Nicholas estava em dúvida.

— O resultado da guerra pode depender do rifle de


repetição. Não sei se seria ou não traição escondê-lo do
governo.

Ernest sorriu, levantou-se, pôs a mão no ombro de


Nicholas.

— Deixe que eu me preocupe com a traição, senador.

— Eu diria que já teve essa preocupação mais de uma vez,


meu caro Ernest — resmungou Nicholas. — Está certo, vou
pensar no assunto. Talvez chame o jovem Macllvain dentro
de um ou dois meses, para termos uma conversa.
— Nesse caso, seria tarde demais — disse Ernest, incisivo.
— Deve cuidar disso imediatamente. Está esquecendo que os
britânicos, especialmente da classe média, sentem uma
profunda simpatia pelo Sul. A partir do momento em que a
guerra for declarada ou estiver se ensaiando, nada poderá
arrancar a patente do velho Angus, a não ser o assassinato.
Tenho informações de que ele está prestes a obter uma
confirmação do Departamento de Patentes.

Nicholas detestava ser pressionado e explodiu, em fúria:

— Está certo, mas cuide de tudo pessoalmente! Pode usar


meu nome, se quiser, mas faça sozinho o seu trabalho sujo!
Afinal, você é inglês e pode negociar com o velho Macllvain
muito melhor do que eu!

Ernest soltou uma risada.

— Tem razão, senador, sou mesmo inglês. E Angus é


escocês. Os escoceses gostam de nós só um pouco mais do
que gostam dos irlandeses. Infelizmente, senador, é o único
que pode cuidar do problema. Poderia me dar uma resposta
nas próximas duas semanas?

Um mês depois, Ernest guardou os planos para o rifle de


repetição em seu cofre, trancou a porta e limpou a poeira
das mãos.

A 12 de abril de 1861, o Forte Sumter foi atacado por


tropas confederadas e a Guerra Civil Americana irrompeu
com extrema violência, acabando com a paz por longos e
tormentosos anos.
CAPÍTULO XLVI
A Guerra Civil começou como uma agonia pessoal para
Martin Barbour.

— Não é necessário matar homens para salvar homens! —


gritou ele repetidamente, para Amy e Gregory, que esquecera
sua promessa de nunca mais tornar a visitar a casa.

— Não sei se esta é uma guerra para salvar homens, até


mesmo os pretos — comentou Gregory, ceticamente. — Claro
que leio apenas 75 por cento do que Lincoln diz e por isso
posso ter perdido alguma coisa. Talvez possa me informar se
ele declarou que se trata de uma guerra santa, com o
propósito expresso de invadir o Sul para libertar os pretos
selvagens e conceder-lhes o status de homens civilizados.

— Claro que ele não disse nada assim! — exclamou


Martin, muito excitado. — Mas esse é o verdadeiro propósito
da guerra, apagar essa mancha de nossa civilização, eliminar
essa monstruosa degradação de homens por homens.

— Pensei... mas, por favor, corrija-me se estou


enganado... que a luta visasse apenas a preservar a União.
Mas talvez você esteja a par de deliberações secretas. Neste
caso, peço desculpas por minha ignorância.

Amy ficou mortificada com essa provocação ao marido e


disse-lhe, um tanto rispidamente:

— Nada jamais é tão simples como você acredita, Martin.


Está vendo apenas uma das questões, mas há várias outras
nesta guerra, assim como em todas as coisas. O problema é
mais profundo do que a escravidão, mais profundo até do
que os direitos dos Estados de se separarem da União. É
composto por toda a ignorância, inveja, ódio, ganância e
estupidez que existem atualmente em nosso país. É agravado
pelo patriotismo faccioso e pela insensatez provinciana. Os
idealistas também não estão isentos de culpa, porque
fomentaram os ressentimentos entre o Norte e o Sul,
esbravejaram a propósito de problemas sobre os quais nada
sabem. É muito fácil ser virtuoso com os defeitos do vizinho,
quando não se tem a menor ideia dos motivos que levaram a
esses supostos defeitos.

— Amy!

Martin estava consternado, profundamente magoado.


Gregory riu e comentou:

— Martin é um estilista e os estilistas não sabem direito


do que acontece pelo mundo. Desça de sua coluna, Martin,
olhe ao redor para conhecer o mundo.

Mas Martin andava ocupado demais para se deixar


perturbar por escárnios, embora a deserção de Amy o
deprimisse e desconcertasse. Era o tipo de espírito que podia
suportar qualquer coisa de um estranho ou um inimigo, mas
não podia suportar a menor oposição ou aspereza de uma
pessoa a quem ama.

Ele estava rapidamente se tornando muito pobre. Toda a


sua renda e quase toda a de Amy estavam sendo absorvidas
pelo hospital e pelo fundo depositado no banco para os
operários. Além disso, ele estendera suas operações para um
enxame de caridades menores. Missionários, escolas
gratuitas, asilos de órfãos e prisões absorviam as migalhas
que restavam. A fazenda era pobre, Hans e Carl podiam usar
os conhecimentos de gerações de camponeses de terras
pobres, explorando cada metro de terra além da imaginação,
mas as colheitas mal davam para sustentar a família, pagar
os impostos e comprar sementes. Mas eles apoiavam Martin
como monges por trás de um abade angelical. E sentiam-se
ofendidos quando a Sra. Heckl resmungava ou Amy
suspirava audivelmente. Teriam passado fome para agradar
a Martin, para ajudá-lo. Não podiam compreender a natureza
feminina egoísta que era incapaz de encontrar prazer nas
dificuldades e pobreza pelo bem de Martin. Quando a Sra.
Heckl protestou contra a venda das duas últimas postas de
toucinho, alegando que seriam necessários para Amy e as
crianças, eles ficaram horrorizados, recusando-se a atendê-
la. Mas a Sra. Heckl foi contar a Amy, que podia suportar
qualquer coisa, menos privar os filhos de comida. Ela
prontamente atravessou os campos até o defumadouro,
confiscou a carne e levou-a pessoalmente para casa. Havia
nela uma raiva serena, uma fúria intensa, um silêncio
amargo, a tal ponto que os devotos não disseram uma única
palavra e, com todo o tato, abstiveram-se de contar a Martin.

Amy não era uma santa. Estava se aproximando do ponto


em que haveria um rompimento até mesmo de sua firme
afeição, de seu desejo pela felicidade dele. Olhava para os
filhos em roupas remendadas e sapatos ordinários e contraía
o rosto em revolta. Paul e Elsa estavam com sete anos, quase
oito, ainda não haviam ido à escola. Não havia escolas
naquela área isolada, nem mesmo num raio de seis
quilômetros. Amy também não podia contratar uma tutora
para os filhos. Ela própria lhes dava aulas. Mas estava tão
cheia de trabalho, tão extenuada depois de seus esforços
vigorosos para manter tudo em funcionamento, tão cansada
de amamentar o bebê, que podia dispensar aos gêmeos no
máximo uma ou duas horas por dia e mesmo assim apenas
quando tinha de se sentar para costurar ou tricotar. Não lhe
importava que estivesse envelhecendo prematuramente, que
seus sapatos se rompessem nas costuras, que não tivesse um
vestido decente para usar, que as unhas estivessem
enegrecidas e quebradas, que o corpo doesse
constantemente. Mas estava chegando ao ponto em que não
mais poderia admitir que os filhos continuassem a sofrer.
Havia ocasiões em que não se atrevia a falar com Martin,
temendo que a raiva pudesse manifestar-se
inadvertidamente. Muitas vezes tinha de se retirar da sala,
trêmula, alegando cansaço. Frequentemente chegava até a
odiar Martin. Não queria que May ou suas cunhadas
tomassem conhecimento de sua situação e por isso
desencorajava as visitas. Achava insuportável a expressão
chocada de May e as sobrancelhas alteadas de Florabelle, era
quase impossível aguentar em silêncio o sorriso irônico da
segunda. Certa ocasião, ela percebeu Florabelle franzir o
rosto para os tapetes puídos e levantar as saias, a fim de
evitar qualquer contato. Algo próximo de um impulso
homicida aflorou na meiga Amy. O pior de tudo era suportar
Dorcas, que a tudo observava, não admitia nada, mas exibia
uma expressão presunçosa de que estava convencida de que
Amy não fazia mais nada do que a sua obrigação.

Por muitas semanas depois que a guerra começou, Martin


permaneceu num estado de torpor, doentio e distraído, sem
conversar com ninguém nem mesmo com Amy. Finalmente
ele escreveu para Nicholas e ofereceu seu hospital para os
feridos. Para seu prazer aturdido e quase incrédulo, o
Presidente Lincoln escreveu-lhe pessoalmente, agradecendo
a oferta e prometendo que a aproveitaria. Menos de um mês
depois, o hospital estava apinhado de soldados feridos e
agonizantes. Martin tornou a esquecer seus problemas
pessoais, sentia-se feliz. Tirava comida de sua própria
despensa para os soldados, iguarias como geleias feitas pela
própria Amy. Assim, ela passou a esconder tudo, como se
fosse contrabando.

Amy nunca teve certeza de quando ocorreu a mudança de


atitude de Martin em relação à guerra. Mas acabou
percebendo que o marido falava cada vez menos da
iniquidade e futilidade da guerra e cada vez mais
confiantemente do grande bem que poderia resultar do
conflito. Ele começou a falar do Sacrifício em frases
empoladas. Amy, que sentia nojo dessa palavra, em sua
opinião a mais feia da língua, foi invadida por profunda
apreensão. Martin finalmente sugeriu que ela poderia ocupar
seu tempo vago enrolando ataduras e tricotando meias de lã
para os soldados.

— Tempo vago!

Martin achou que Amy nunca parecera tão estranha, tão


pálida, os olhos ardendo com tanta intensidade. Mas, depois
da exclamação inicial, Amy não disse mais nada, limitando-
se a levantar e sair da sala. E recusou-se a preparar ataduras.
A Sra. Heckl, no entanto, foi convencida a fazê-lo.

Um dia, Martin chegou em casa e anunciou à mulher que


Carl se alistara. Ele deu a notícia com calma, mas seu rosto
estava iluminado de satisfação. Amy, sentindo-se de repente
muito fraca, sentou-se abruptamente.

— Mas o velho Hans não pode cuidar sozinho da fazenda,


Martin! E isso é tudo com que contamos para viver!

— Amy... — Martin pegou-lhe a mão solenemente, fitando-


a nos olhos. — Minha querida, você deve tentar fazer a
mesma coisa que outras corajosas mulheres estão fazendo:
empenhar-se ao máximo. Os maridos e filhos de outras
mulheres deixaram suas fazendas e foram para a guerra. As
mulheres trataram de substituí-los nos trabalhos da fazenda
da melhor forma possível...

Amy teve um acesso de histeria.

— Nos campos? Está querendo que eu trabalhe nos


campos, Martin? Está querendo que eu ordenhe as vacas,
limpe o mato, pegue na enxada, faça o plantio? É isso mesmo
o que você quer?

— Amy! Eu disse isso? Vou arrumar um rapaz, abaixo da


idade militar, para ajudá-la, o mais depressa possível. Mas
você deve tentar fazer o melhor que puder...

Martin descobriu que estava falando para o ar, pois Amy


se retirara bruscamente. Ele lembrou-se, perturbado, que
cada vez mais Amy se retirava de sua presença daquele jeito,
como se estivesse levando para fora uma bomba perigosa,
antes que explodisse.

Uma profunda solidão e intensa melancolia oprimiam


Martin ultimamente. Amy jamais o censurava, nunca se
queixava, mas ele sentia que um abismo se abrira
silenciosamente entre os dois. Não podia compreender, era-
lhe impossível entender o que estava acontecendo. Quando
ele falava do hospital, Amy mantinha-se calada, quando
antes sorria. Quando contava exultante a história de algum
ferido que estava tendo uma recuperação quase impossível,
Amy comprimia os lábios lívidos e continuava a costurar,
enquanto outrora partilhava esse júbilo, ou pelo menos dava
essa impressão. Martin foi invadido pela suspeita terrível de
que talvez Amy jamais tivesse sentido as coisas da mesma
forma que ele. Neste caso, ele perguntou a si mesmo, por
que ela consentira em todos os seus desejos? Não lhe
ocorreu, em sua simplicidade, que uma pessoa podia fazer
algumas coisas contra a sua vontade, contra os seus
impulsos mais profundos, apenas por amor. Não podia se
imaginar agindo contra suas convicções, mesmo por amor.
Isso lhe parecia uma hipocrisia e uma traição a si mesmo.
Amava Amy de todo coração, sentira outrora que nada existia
de dissimulado ou secreto entre os dois. Não podia acreditar
que Amy fosse hipócrita ou traísse a si mesma, por qualquer
coisa ou qualquer pessoa.

Ela e Martin haviam chegado a uma situação, pensava


Amy em desespero e angústia, em que não mais poderiam
continuar sem uma explosão que seria irreparável. Dominada
pelo terror, ela compreendeu que não poderia permanecer
em silêncio por muito mais tempo, que paixões, iras e
indignações, talvez mesmo brutalidades e ganâncias, que
jamais desconfiara que existissem em si mesma, deveriam
irromper dela, como feras selvagens escapando das jaulas.
Não podia contê-las por muito mais tempo. Não sou uma
santa nem uma heroína, pensava ela, desesperada. Sou uma
mulher, com direito ao conforto e felicidade, à segurança
para os meus filhos. Ele não tem o direito de sujeitar-me a
isso! Mas sou muito pior, pois não deveria ter consentido
desde o início. Pensei que estava agindo assim para a
felicidade dele, mas certamente não ficará feliz ao saber que
menti durante todo o tempo, que sempre detestei e odiei
tudo isso. Ele não ficará feliz quando eu lhe gritar que tenho
de voltar para minha antiga casa, em busca de conforto, paz
e dignidade, a fim de não enlouquecer. Tenho sido muito
errada, que Deus me perdoe!

Uma noite, Amy chegou ao ponto de colapso. O rapaz


abaixo da idade militar era um preguiçoso e inútil. A caixa de
lenha estava vazia, o tempo ainda estava frio e úmido, no
início da primavera. O bebê estava com tosse e febre. Amy se
lembrou de que havia muita roupa para lavar, que a Sra.
Heckl não tivera tempo de cuidar disso. Ela própria estava se
sentindo mal e de repente desatou a chorar e gritar, fazendo
com que a Sra. Heckl viesse correndo, pálida como um
fantasma.

Ao voltar para casa, Martin encontrou a mulher na cama,


agora quieta, com os olhos resolutamente fechados, a boca
comprimida. A Sra. Heckl estava preparando o jantar, as
crianças por uma vez estavam quietas. Martin foi
diretamente para Amy, pegou-lhe a mão, murmurou palavras
de compaixão, beijou-lhe o rosto, perguntou-se angustiado
por que ela se recusava a fitá-lo. Tinha muita coisa a dizer-
lhe e por fim explodiu, impulsivamente:

— Amy, querida, olhe para mim — ele riu, um pouco


angustiado. -Não terá muitas chances a mais para isso. Por
favor, Amy, meu amor, diga-me que está tudo bem. Alistei-
me hoje. Sou agora capitão de intendência, na Terceira
Divisão. Partirei amanhã. Não vou lutar, apenas ajudar com
os suprimentos e outras coisas, preparando tudo na
retaguarda...

Ele parou de falar sem concluir a frase, pois Amy sentara-


se abruptamente na cama, com manchas vermelhas no rosto
pálido, os olhos desvairados, a boca entreaberta, ofegante.
Martin ficou assustado com a expressão dela, tentou passar o
braço por seus ombros. Mas Amy recuou.

— Amy! Por favor, amor! Não correrei perigo algum. Você


sabe que eu nunca empunharia armas, jamais mataria. Mas o
que vou fazer é diferente. Estarei encarregado dos
suprimentos, como alimentos, mantas, medicamentos,
ferramentas e cavalos. Eu... eu tinha de fazer isso, querida.
Todos estão se alistando. Era meu dever...

Mas Amy desatara a rir, muito alto, estridentemente, um


riso terrível e frenético, que não podia ser controlado.
CAPÍTULO XLVII
A família de Martin ficou espantada com o seu
alistamento. Assim que souberam, May, Florabelle, Dorcas e
Hilda pediram suas carruagens e seguiram prontamente para
a pequena e isolada fazenda. Encontraram Amy sozinha, com
as crianças, trabalhando na horta, ao sol pálido da
primavera. Ela ergueu-se ao ouvir o barulho de vozes e o
farfalhar de seda aproximando-se pelo caminho. As parentas
tiveram um vislumbre horrorizado de Amy, alta, magra, suja
de lama, a saia andrajosa, os cabelos presos numa trança
desalinhada a cair pelas costas, as mãos pretas de terra, o
rosto pálido, contraído e exausto.

“Ora, ela tornou-se uma desmazelada!”, pensou


Florabelle, com desaprovação, esquecendo suas origens
humildes e sentindo-se extremamente superior àquela filha
da ‘aristocracia’ orgulhosa. Dorcas sentiu uma dúvida súbita
e apreensiva em relação à sabedoria do seu adorado irmão,
ao ver Amy naquele estado. Pela primeira vez, experimentou
uma compaixão real por Amy e indignação contra Martin,
fazendo com que o rubor se insinuasse em suas faces
pálidas. May soltou uma exclamação compadecida e correu
para a prima, com os braços perfumados estendidos,
dominada pela raiva, a saia-balão rodopiando, os cachos
avermelhados caindo da touca azul-celeste que combinava
com o vestido azul de seda e o xale azul-escuro. Quanto a
Hilda, gorda, grisalha, belicosamente vermelha, estacou
abruptamente, cruzou os braços envoltos por seda preta
sobre o peito e disse, em voz bem alta:

— Ora, essa é muito boa! A caridade começa em casa.


Parece-me que Martin perdeu inteiramente o bom senso, se é
que alguma vez teve um pouco!
E ela ajeitou o xale preto nos ombros, furiosa.

Mas as crianças, correndo ao encontro da avó, eram


robustas e morenas, as faces coradas, olhos que brilhavam
intensamente. As roupas eram surradas, até mesmo
esfarrapadas, os gêmeos estavam descalços na terra quente
da primavera. Saltaram em torno dela como cachorrinhos
exuberantes, Elsa e Paul bastante altos para a idade, Lucy
pequena e gorda, os dedos sujos de terra puxando sequiosa
a bolsa de Hilda, à procura dos doces que ela sempre lhes
levava. Hilda inclinou-se sobre as crianças, resmungando e
censurando, beijou-as bruscamente, sonoramente.

— Isso é uma vergonha e uma desgraça! — gritou Hilda. —


Martin vai ter de ouvir umas coisinhas!

Elas não viam Amy desde o Natal. Naquela ocasião, a


terra, a horta e o telhado da casa estavam cobertos de neve,
fogos ardiam alto nas lareiras, havia velas acesas na mesa, o
céu estava baixo e cinzento sobre as chaminés que expeliam
fumaça. Mas o sol da primavera revelava claramente toda a
miséria da casa e do terreno ao redor, toda a terrível
desolação, cercas arrebentadas, janelas empoeiradas, as
cinzas nas lareiras, os tapetes sujos, os móveis velhos e
escalavrados. As quatro mulheres visitantes ficaram de pé na
sala de visitas, entreolhando-se consternadas, uma ilha de
saias, xales, toucas e bolsas de veludo, exalando perfume, as
pulseiras retinindo. Florabelle encolhia-se para não ser
tocada pelas mãos sujas das crianças, Hilda renovava suas
censuras e tentava limpá-las com um lenço, Dorcas beijava-
lhes os rostos sujos. Mas May segurava a mão áspera da
prima, incapaz de falar, as lágrimas lhe aflorando aos olhos,
um aperto na garganta, os lábios trêmulos.

Todas as mulheres haviam ido até ali para censurarem


Amy por sua débil aquiescência com a última loucura de
Martin. Somente Hilda e Dorcas estavam alarmadas por ele
pessoalmente. Florabelle achava que o irmão estava sendo
‘ridículo’, enquanto May sentia-se ultrajada pelo tratamento
que ele dispensava a sua prima. Mas contemplando agora a
sombria tensão na boca outrora suave de Amy, vendo a
amargura nos olhos que já haviam sido meigos, nenhuma
delas foi capaz de falar de Martin, pelo menos no momento.
Podiam apenas olhar para Amy com compaixão e
preocupação. Até mesmo Dorcas considerava Amy
excessivamente tola, por permitir que Martin gastasse quase
toda a receita de seu considerável dote.

Amy explicou que nada podia oferecer-lhes além de chá,


pois a Sra. Heckl estava com reumatismo e há vários dias que
nada cozinhava. Mas disse que tinha um bom vinho, trazido
por Gregory, que serviu em quatro copos lascados. As
mulheres se sentaram cautelosamente nos móveis
empoeirados e tomaram o vinho, que estava muito além de
suas expectativas. Depois, incapaz de conter-se por mais
tempo, May disse, num impulso:

— Amy, não posso perdoar Gregory por saber que você


estava nessa situação e não me dizer nada!

— Eu não sabia de nada! — disse Hilda, asperamente. —


Parece-me que a culpa é de Amy tanto quanto de Martin.
Nunca vi coisa tão absurda, tanto dinheiro desperdiçado!

Amy protestou, sorridente:

— Acho melhor não conversarmos sobre isso.

Mas sua expressão nada tinha de sorridente, era uma


advertência terrível. Depois de breve pausa, ela acrescentou:

— Sei que vieram me censurar por deixar Martin se


alistar. Mas se pensarem por um momento, tenho certeza de
que vão se lembrar que ninguém ‘deixa’ Martin fazer coisa
alguma. Ele faz o que julga certo e ninguém pode impedi-lo.

A contração de seus lábios, ao dizer isso, era


indescritivelmente amarga.

— Raoul acha que é um absurdo! — exclamou Florabelle.

Dorcas comentou, hesitante:

— Eugene acha que você poderia ter feito alguma coisa,


Amy. Mas imagino que você compreende Martin melhor do
que qualquer outra pessoa. Só espero que nada lhe aconteça!

— Não me importo com o que possa acontecer-lhe! —


gritou May, os músculos ressaltando na garganta alva, as
mãos retorcendo o lenço violentamente. — Mas acho que é
uma indignidade que ele tenha reduzido minha prima a esse
estado! Talvez seja melhor mesmo que ele vá embora,
permitindo que Amy tenha finalmente um pouco de decência
e conforto em sua vida! — Ela virou-se para as outras
bruscamente, acrescentando: — Ele é seu filho e o irmão de
vocês, mas...

Amy interveio, a voz fria e incisiva:

— E é também meu marido, May.

Depois de algum tempo, elas foram embora, insatisfeitas


e descontentes. Quando partiram, as crianças estavam
novamente no quintal, brigando por causa dos doces que a
avó trouxera. Amy suspirou. Não contara que Martin já
partira, que a deixara encarregada desse último dever.

— Não suportaria ver minha mãe e Dorcas chorarem —


dissera ele, com a maior simplicidade. — Eugene, Raoul e
Armand não são mais meus amigos. Afinal, não se pode
correr com a lebre e caçar com os cães. Sendo amigos de
Ernest, eles não podem mais ser meus amigos. Assim, não
preciso despedir-me deles.

Mas Amy não tivera força suficiente para contar às


mulheres naquele dia.

Sentada ali, as mãos cansadas pousadas sobre os joelhos


sujos de terra, inertes, ela recordou a última manhã em
companhia de Martin. Quase não dormira na noite anterior.
O bebê, John Charles, também passara a noite irrequieto.
Amy ficara observando as janelas se tomarem cinzentas e
finalmente azuis, com o céu do amanhecer. Levantara-se
para ajudar a Sra. Heckl a acender o fogo e aprontar a
primeira refeição.

Um terrível constrangimento se desenvolvera entre ela e


Martin, desde a noite em que ele revelara seu alistamento.
Nenhum dos dois podia transpor o abismo cuja ponte Amy
destruíra com o seu riso frenético e incontrolável. Amy
sentia-se congelada por dentro. E por baixo da camada de
gelo, havia coisas em ebulição que ela não se atrevia a
permitir que aflorassem. Martin ficara assustado com a
explosão da voz controlada e geralmente suave de Amy. Vira
algo no rosto e nos olhos dela, por uns poucos segundos,
que lhe era totalmente estranho, selvagem e intenso, como
uma coisa primitiva lutando pela sobrevivência, dominada
pelo terror. A Amy que sempre conhecera havia desaparecido
e quem o fitara era uma estranha cheia de ódio. Martin ainda
estava aturdido, quase sentia medo de falar com aquela
sombra de Amy, receando deparar novamente com o rosto
daquela estranha. Ele lera certa ocasião sobre a existência de
um demônio, na mitologia católica, que expulsava a alma de
uma mulher e tomava o seu lugar no corpo dela. Embora
sorrisse tristemente ao pensar nisso, ele julgava que a
imagem era apropriada.

A manhã de sua partida finalmente chegara e o abismo


entre os dois se tornara insondável. Nos últimos dias quase
não se haviam falado, como se tivessem medo de revolver
alguma coisa que era melhor ficar enterrada. Martin falara
apenas de questões de negócios. Deixara os problemas do
hospital, os recursos no banco e suas demais caridades aos
cuidados conjuntos de Amy e do Padre Dominick. Ele não
acrescentara que deixara também seu testamento com o
padre.

Em sua derradeira manhã em casa, Martin estava


dominado pela angústia. Observara Amy timidamente,
enquanto ela se deslocava em torno da mesa sem fitá-lo.
Estava com medo do rosto pálido e sombrio de Amy, podia
ver a mandíbulas cerradas numa expressão desesperada.
Além disso, ele despertara recentemente para a sua
paternidade e não se cansava dos filhos. John Charles estava
acomodado num dos seus joelhos, com Lucy refestelada no
outro. Os gêmeos estavam à sua frente, falando sem parar,
querendo saber exatamente o que ele ia fazer na guerra. Iria
matar muitos dos perversos Rebeldes? Poderia lhes trazer
uma pistola Rebelde quando voltasse? Se a guerra durasse
bastante tempo, deixaria Paul acompanhá-lo com um
tambor? E Elsa poderia ser enfermeira num hospital? Os
gêmeos, que sempre haviam sido um tanto reservados com
Martin, adivinhando instintivamente que ele carecia de sua
robusta vitalidade, fitavam-no agora com os olhos azuis
brilhando de adoração. Martin se justificara aos olhos deles.
Lucy puxava os botões de latão de seu novo uniforme azul-
escuro, o bebê comprimia o rosto redondo contra o peito de
Martin, a fim de morder uma daquelas coisas brilhantes. Ele
beijava-os repetidamente, apertando-os a todo instante. A
Sra. Heckl, andando de um lado para outro, preparando e
servindo a comida, achou a cena linda e comovente. Para ela,
Martin parecia um anjo louro de uniforme, cercado pelos
filhos.

Chegara finalmente o momento da despedida. Martin e


Amy fitaram-se em silêncio por longo momento. Depois,
soltando um grito, Amy lançara-se nos braços dele,
apertando-o com força, chorando desesperadamente, embora
sem lágrimas. Martin desvencilhara-se depois de algum
tempo. Saíra correndo de casa e montara em seu cavalo. Amy
fora atrás, descera correndo pelo caminho, segurara as
rédeas, fitando-o com o rosto contorcido.

— Não vá embora, Martin! Não vá embora! — gritara ela,


repetidamente.

Martin levara essa recordação dela como uma espécie de


conforto e alegria renovada, para o exército, para o perigo e,
finalmente, para a morte. Amy ainda o amava e, no final das
contas, isso era tudo o que importava.

Pensando em tudo isso, sentada diante da lareira apagada


e cheia de cinzas naquele dia de primavera, Amy começou a
chorar, silenciosamente, enxugando os olhos com a ponta do
avental. Alguma coisa crepitou em seu peito e ela retirou a
carta de Martin que recebera naquela manhã, procedente de
Washington. Releu-a, manchando-a com as suas lágrimas.

Martin escrevera: “Não estou tentando ser um herói ou


um reformador, Amy querida. Mas creio que é o dever de
todos salvar e não destruir, conservar e não consumir, falar
gentilmente e não brutalmente, ser misericordioso ao invés
de cruel. Devemos ser contra a maldade e a traição, sempre
que as encontrarmos, lutar contra a injustiça e o ódio,
porque tais coisas são inimigas da humanidade. Você não
pensaria que eu estava fazendo apenas um gesto, se pulasse
num rio para salvar uma vida ou entrasse num prédio em
chamas para tirar uma vítima. Contudo, um homem que se
manifesta contra a injustiça e a crueldade, contra a ganância
e o ódio, é ridicularizado e escarnecido, embora esteja
realmente tentando salvar homens, mulheres e crianças de
perigos mais mortais que a água e mais terríveis que o fogo.
Ernest sempre me chamou de ‘fraco’, mas lhe asseguro que é
necessário mais do que uma coragem comum para aceitar tal
epíteto em silêncio e continuar a fazer a própria coisa que
foi responsável pela classificação. É preciso muita coragem
para ser si mesmo, embora Ernest pense que se precise
apenas de dinheiro. Fazendo o que estou fazendo agora,
sinto que fiz o que devia. Nem mesmo tenho certeza se é
algo certo, mas pelo menos não tenho a menor dúvida de
que não se trata de uma coisa cruel ou feita em proveito
próprio.”
CAPÍTULO XLVIII
A terra devastada afetava Martin mais pungentemente do
que o sofrimento, até mesmo do que a morte. Homens
morriam e eram enterrados, seus sofrimentos acabados. Mas
a terra permanecia muda ao sol quente de outono, devastada
e desolada. Para Martin, havia algo de infinitamente patético
e terrível naquela imolação da terra ao ódio do homem. Era
uma acusação contra ele, silenciosa e assustadora; era a
prova que denunciava a sua eterna selvageria, a sua
incapacidade de viver em paz, com seus semelhantes ou com
a terra de onde viera. Provava mais uma vez que o homem
era o pária da Natureza, um animal branco e bípede que
deixava uma trilha de devastação e destruição por onde quer
que passasse, uma criatura da qual todas as outras criaturas
fugiam, dóceis ou selvagens, sanguinárias ou rapaces. O
homem era a abominação da Natureza, o canibal, para o qual
todas as coisas eram uma presa, inclusive seus irmãos. Era o
monstro que matava por prazer, assim como por fome,
destruía brutalmente por causa de sua perversidade inata,
uma besta enlouquecida contra a qual os inocentemente
selvagens, os humildes e inocentes não tinham qualquer
defesa.

Cuidando dos suprimentos na retaguarda, Martin


cavalgou por muitos dias ao sol do outono, o cavalo suando
profusamente, o suor escorrendo por seu próprio rosto, sob
o chapéu de aba larga. Olhava tristemente para os campos
queimados que se estendiam nos dois lados da estrada
poeirenta e esburacada. As colheitas haviam sido destruídas
por um destacamento avançado da divisão a que pertencia.
Passava por casas em ruínas, enegrecidas do fogo, apenas as
chaminés ainda de pé. As colheitas inadvertidamente
poupadas, estavam apodrecendo ao sol quente ou sendo
pisoteadas pelos exércitos em marcha. Os pomares
destacavam-se silenciosamente nas encostas das colinas
baixas, as folhas avermelhadas, os frutos muito maduros e
apodrecendo, caindo um a um, na poeira esbranquiçada que
cobria o solo. As portas de estábulos enegrecidos estavam
escancaradas, mostrando o interior vazio. Não havia uma
vaca ou um cavalo nas campinas crestadas. Certa ocasião,
passaram por uma casa de fazenda recentemente
abandonada. A horta por trás da casa resplandecia de cores,
um balanço de criança ainda oscilava ligeiramente sob uma
árvore antiga e frondosa. Um balde ainda estava equilibrado
na beira de um poço cheio de musgo, os passarinhos voavam
ao redor, sedentos. Colinas azuladas fumegavam a distância;
lá em cima, estendia-se o vasto céu, azul e quente. Mas na
terra havia desolação e destruição, um silêncio sufocante, o
vazio. A cavalaria proporcionava o único som, escoltando os
suprimentos. O tilintar dos arreios e esporas, o canto rouco
dos homens, as patas dos cavalos em meio às nuvens de
poeira dourada, os gritos e imprecações, o barulho das
rodas, essas eram as únicas coisas que rompiam o silêncio
opressivo e abandonado. De vez em quando, corvos ruidosos
alçavam vôo, manchas pretas contra o azul do céu; de vez
em quando, abutres voavam baixo e silenciosamente, como
se soubessem que a morte cavalgava lá embaixo. E por toda
parte, interminavelmente, estendia-se a terra definhada e
devastada; por toda parte, a terra se revoltava, passiva e
silenciosamente, em seca e calor, em árvores enegrecidas e
campinas crestadas, em córregos quase secos e colinas
queimadas, em erosões e ravinas poeirentas.

Passaram algumas vezes por velhas cabanas de troncos


em áreas devastadas. Martin ficou impressionado com os
rostos conturbados das mulheres de toucas e das crianças.
Ele era capitão de seu destacamento. Apesar das caras
amarradas e dos murmúrios de protesto dos homens, Martin
parava a tropa e dava pão e carne às pobres criaturas, que só
aceitavam com prolongada insistência e depois não faziam
quaisquer agradecimentos. Ficavam olhando para a tropa
que se afastava com expressões de espanto e perplexidade.
Conquistadores que eram gentis e misericordiosos, que
sorriam suavemente, constituíam uma novidade. Algumas
crianças mais velhas ainda ensaiavam gritos de ‘ianques
malditos’ para a tropa, mas eram gritos sem muita convicção
ou animação.

Martin não era popular entre seus homens. Eles tinham


um nome vil para classificar os que odiavam derramamento
de sangue e matanças, que demonstravam aversão por todo
e qualquer tipo de obscenidade. Teriam-no aplicado a Martin
se não fosse pela agressividade que se podia discernir
através de sua brandura, sua força e altura óbvia, a firmeza e
autoridade que incutia à voz. Mas porque ele era também
bondoso e atencioso, indulgente e gentil, os homens
desprezavam-no. Martin tinha assim dificuldades em manter
a disciplina. Não sendo da espécie deles, dava ordens que
eram recebidas com um ressentimento apenas ligeiramente
disfarçado. Isso deixava-o surpreso, porque ouvia outros
oficiais emitindo ordens ríspidas, que eram prontamente
cumpridas, com jovialidade e aceitação automáticas. Sabia
que suas próprias ordens eram gentis e só as dava quando se
tornava necessário. Assim, não podia compreender a
evidente má vontade e ressentimento de seus homens. Isso
fazia com que se sentisse deprimido, levava-o a afastar-se
mais e mais de qualquer comunicação cordial com os que
estavam sob seu comando. Martin ainda não aprendera que o
açoite e a espada são as únicas línguas que a maioria dos
homens compreende, que a justiça e a paixão são
incompreensíveis.

Acompanhando o exército devastador que seguia na


frente, a tristeza de Martin aumentava, assim como sua
raiva. Claro que não era necessário, pensava ele, semear a
devastação e o sofrimento entre mulheres e crianças, a fim
de libertar escravos e preservar a União. Era roubar de Peter
para pagar a Paul. Houve um dia em que outra companhia
passou por eles, em sentido contrário, levando um
destacamento de prisioneiros. A má vontade que seus
homens acalentavam contra ele não diminuiu quando Martin
proibiu-os de maltratar ou escarnecer dos prisioneiros.

Dias quentes e intermináveis, sufocantes, sobre a terra


devastada. Sem amigos e evitado até mesmo pelos outros
oficiais, Martin cada vez mais se refugiava dentro de si
mesmo. Sua timidez fazia-o parecer altivo e dissimulado.
Finalmente ficou inteiramente sozinho e as únicas palavras
que saíam de seus lábios eram ordens. Olhava tristemente
para as costas azuis à sua frente, escutava as conversas
joviais e obscenas dos homens, sentia-se completamente um
pária.

Estavam agora em território inimigo e tinham de manter


uma vigia. O riso começou a deixar as vozes dos homens, os
rostos se tornaram tensos e sombrios. O que ainda não
sabiam era que a retaguarda estava sendo cortada, fechava-
se o cerco. Mas uma manhã, pouco antes de amanhecer,
tomaram conhecimento de tais fatos, de maneira sangrenta.

Martin, dormindo irrequieto na terra quente, sob uma


árvore, foi despertado por uma rajada de tiros, gritos,
tumulto, uma correria desenfreada de um lado para outro, os
relinchos estridentes de cavalos feridos, explosões na
semiescuridão. Levantou-se cambaleante, aturdido, tentou
gritar através dos lábios ressequidos. Foi um dos primeiros a
ser derrubado. Sentiu uma dor lancinante no peito, outra no
braço, estava inconsciente antes de bater no chão.

Foi despertado por sua própria tortura, depois do que


pareceram séculos de vazio negro angustiante, em que
rastejava, morrendo de sede. Algo brilhante ardia contra
suas pálpebras. Ao abri-las, dolorosamente, Martin descobriu
que era o sol, despejando-se do vazio avermelhado. Ao seu
redor, reinava o mais profundo silêncio que já conhecera.
Através da névoa quente de agonia, ele descobriu que estava
estendido sob uma carroça parcialmente destruída, a cabeça
exposta ao sol e a incontáveis insetos. Não se ouvia qualquer
som humano, não havia qualquer coisa se movendo, além
dos abutres, voando cada vez mais baixo. As árvores ao
redor estavam encharcadas de luz, as folhas muito verdes e
definidas. Os olhos aguçados de Martin podiam divisar cada
lâmina de relva pisoteada e manchada.

Sabia que fora deixado para trás como morto. Sabia que
não havia esperança para ele. Sabia que estava prestes a
morrer. E não pensava em outra coisa que não em sua sede e
na agonia no peito. Escutava o silêncio sufocante ao redor.
Em determinado momento, gritou debilmente.

Depois de um novo período de escuridão, Martin tornou a


despertar e pensou em Amy. E a recordação dela foi como
mão fresca a tocá-lo, um copo de água fresca em seus lábios.
Amy estava zangada com ele por algum motivo, mas o
perdoara e o amava. Satisfeito, Martin pensou: isso é tudo o
que importa.

Ele estava prestes a morrer, mas não pensava em Deus.


Pensava como era maravilhoso que o crepúsculo estivesse
chegando, como era bom sentir-se refrescado e sem dor. Ele
fechou os olhos e suspirou.

Ficou surpreso ao descobrir-se de repente num mundo


esmaecido, de muitas cores indefinidas, recendendo a chuva,
árvores e terra. Descobriu-se diante de um portão branco
baixo, numa cerca branca baixa. Sentiu-se intensamente
excitado e cheio de alegria. Abriu o portão, começou a subir
por um caminho sinuoso de pedras, coberto por musgo
verde. Nos dois lados havia árvores vergando, repletas de
umidade. Entre as árvores, Martin podia divisar canteiros de
flores, com muito orvalho, podia sentir a fragrância
penetrante. Tudo era crepúsculo, serenidade e paz. Passou
pelo velho relógio de sol familiar e disse a si mesmo que no
dia seguinte estaria parado diante dele, verificando a hora
pelo sol. E agora, à pouca distância, avistou a velha casa,
branca e baixa, com sua chaminé, as janelas de treliça
abertas para o crepúsculo. Avistou as árvores agrupadas por
cima, viu os gatinhos pretos brincando no degrau.
Contemplou o céu, malva e enevoado, aqui e ali uma estrela
começando a cintilar debilmente. E, de repente, com uma
sensação que era ao mesmo tempo de angústia e êxtase,
pôde sentir o cheiro de lilás.

“Houve uma tempestade e agora é o crepúsculo, a


tempestade já passou”, pensou Martin. Ele apressou-se na
direção da casa. A porta se abriu, como se ele fosse
esperado. A sua velha tia-bisavó apareceu no limiar, envolta
num xale branco, acenando com a cabeça e sorrindo-lhe.

— Está atrasado, Martin — gritou ela, em sua voz


sibilante. — Mas não tem importância, meu querido. Antes
tarde do que nunca.
CAPÍTULO XLIX
“Se a guerra durar mais dois ou três anos, estarei valendo
três milhões de dólares”, pensou Ernest. Ele olhou pela
janela do escritório, complacente. “E o que vou fazer? Viajar?
Hum... Não sei. Não estou interessado em conhecer lugares
estranhos, pois as pessoas nunca mudam, a não ser nas
vestimentas. A estupidez humana jamais varia, a
incompetência nunca se transforma em competência. Por
toda parte, encontraria os mesmos olhos embaçados, as
mesmas bocas inertes, as mesmas vozes insípidas e palavras
tolas. Devo construir uma casa maior e mais espetacular?
Não estou interessado. Tenho a melhor casa do mundo! Não
receio mais a pobreza. Tenho um muro de ouro que nada
poderá jamais destruir. Mas não me importo com as coisas
que interessam aos outros homens, como mulheres variadas,
bons vinhos e cavalos, os meios mais estranhos de bancarem
os idiotas. Também não estou interessado em colecionar
quadros, joias ou estátuas. Não sei nada a respeito dessas
coisas e também não estou interessado em conhecer. Tenho
dinheiro mais do que suficiente para meus filhos, até mesmo
para Gertrude. Para que então vou querer mais dinheiro?”

Ele sorriu para si mesmo, um tanto constrangido, pois


conhecia a resposta. Por cima desse sorriso acanhado, os
olhos brilhavam intensamente, com algo que se assemelhava
a ódio e triunfo. Poder. Não havia nada como poder. Um
homem jamais podia alcançar poder demais, se compreendia
o que estava obtendo. Poder para oprimir um mundo que se
abominava, por causa de sua estupidez, brutalidade e
traição, sua alma furtiva, seus vícios e virtudes mesquinhas.
Mas o melhor de tudo, disse Ernest a si mesmo, é que o
poder proporcionava ao homem o direito de ser ele próprio,
de ser o que era, sem ter de pedir desculpas a ninguém, sem
hipocrisia.

Era estranho que se precisasse de poder, de dinheiro,


para alguém ser ele próprio! Era como se a personalidade
fosse uma prisioneira, que tinha de ser libertada de seus
grilhões. Parecia que se tinha de pagar um fabuloso resgate
para ter o simples direito de fazer o que bem aprouvesse,
dizer o que quisesse, comer, rir, dormir e pensar da forma
como desejasse. Havia algumas pessoas, pensou Ernest, que
declaravam que alguém só podia ser livre quando possuía
uma fortuna gigantesca ou não tinha absolutamente
qualquer dinheiro. Em qualquer dos casos, um homem podia
ser livre. Mas se não era indigente nem imensamente rico,
estava escravizado a seus semelhantes. Tinha de viver ou
fingir viver (o que era muito pior) de acordo com as regras
que a estupidez alheia ditava. Tinha de aprender a dizer as
palavras certas, a engolir o que os outros não queriam ouvir.
(Algo como comer o próprio vômito, pensou Ernest,
enojado.) Tinha de aparar sua alma para se ajustar às
medidas, o que equivalia a esperar que alguém cortasse a
própria carne a fim de agradar a seu alfaiate. Tinha de fingir
aceitar o deus dos outros, caso contrário corria um perigo
maior do que o fogo do inferno que lhe prometiam: o ódio e
o medo dos outros, sua desconfiança, a capacidade de
infligir mil pequenos ferimentos infecciosos. Não ser rico
nem indigente era estar acorrentado numa vasta jaula de
macacos, impotente contra dedos implacáveis, línguas
afiadas, indignidades e desonra.

Mas agora ele tinha poder!, pensou Ernest, exultante. Se


matasse, ficaria impune! Podia roubar, trapacear, destruir,
bancar o idiota ou traidor, dizer o que bem desejasse, fazer
o que lhe aprouvesse... e o pior que o mundo faria
certamente seria sorrir indulgentemente, julgá-lo um tanto
excêntrico. Se por acaso chegasse a censurá-lo, seria à
maneira da mãe afetuosa, que suplica indulgência para o
filho precoce. Não era preciso ser um recluso, fugindo do
mundo, para ser livre: bastava apenas ser muito rico. A
riqueza era uma porta forte e resistente, que mantinha tudo
do lado de fora.

A esta altura de seus pensamentos, uma recordação


desagradável surgiu em sua mente. “Porta forte... Você não
pode fechar sua porta com força suficiente. Quem lhe
dissera isso? Martin. Ernest remexeu-se na cadeira, irritado.
Martin, aquele idiota fraco, cujo idealismo absurdo levara-o
ao poço da morte, destruíra a felicidade de sua mulher e a
segurança de seus filhos... Martin, cuja vida era como uma
casa sem portas e sem trancas, exposta a todos os males e a
todas as pestilências mentais que pairavam sobre o mundo.

O pensamento de Ernest tornou-se de repente tão intenso,


tão compulsivo, que ele virou-se bruscamente na cadeira e
olhou para a porta. Se Martin entrasse naquele momento, ele
não ficaria absolutamente surpreso. Parecia-lhe que a
personalidade de Martin impregnava todo o ar, o próprio ar
que respirava, de tal forma que a essência de seu corpo e
alma foram invadidos pela substância do corpo e mente de
Martin. Era como se duas correntes de água se fundissem e
perdessem a sua integridade individual, pensou Ernest. Ou
como duas células dissolvendo-se em uma.

Ele levantou-se de um pulo, com um sobressalto, pois a


porta estava de fato se abrindo. Teve um choque ao
descobrir que não era Martin quem estava entrando, mas
Gregory Sessions. Riu bruscamente. Gregory fitou-o com uma
expressão de surpresa.

— Eu estava pensando em meu precioso irmão Martin —


explicou Ernest, à guisa de desculpas. — E tive o
pressentimento de que ele iria entrar aqui. Era como se
estivesse esperando na outra sala... uma sensação das mais
estranhas...

Ele parou de falar, notando pela primeira vez que Gregory


estava extremamente pálido e perturbado, que de alguma
forma envelhecera perceptivelmente. O rosto parecia ter
murchado e encolhido.

— Algo errado? — indagou Ernest, apreensivo.

Gregory arriou lentamente numa cadeira. Ernest,


espantado, descobriu que as mãos dele estavam tremendo,
enquanto tirava um lenço do bolso e o levava à testa. Depois,
ele ergueu o rosto e fitou Ernest com estranha expressão.

— Se eu fosse supersticioso, diria que é provável que


Martin tenha mesmo entrado — murmurou Gregory, a voz
rouca, engolindo em seco com dificuldade. — Acabam de
afixar na parede do tribunal a última lista dos mortos,
desaparecidos e feridos. Eu estava passando por lá...

Ernest começou a se levantar da cadeira, como se


impulsionado por alguma força exterior, os lábios
contraídos, o rosto lívido e conturbado. Gregory acenou com
a cabeça, olhou para o lado, o rosto ainda mais murcho.

— Isso mesmo, Martin está morto — acrescentou ele, a


voz angustiada. -sua brigada sofreu uma emboscada,
centenas de homens foram massacrados, levaram todos os
suprimentos.

Ernest estava agora de pé, os braços balançando, inertes.


Gregory também levantou, como se o assento se tornasse
insuportável. Começou a andar de um lado para outro; as
mãos nas costas, a cabeça abaixada.

— Amy provavelmente já sabe. Deve ter recebido um


telegrama de Washington. Amy, minha pobre e querida Amy!
Santo Deus, o que podemos fazer por ela agora?

Depois, sem qualquer constrangimento ou vergonha, sem


o menor esforço de tentar disfarçar, ele começou a chorar.
Eram lágrimas de um velho, lentas, angustiadas.

— Ele sempre foi um tolo — murmurou Ernest,


impassível.

— Você ainda é capaz de dizer uma coisa dessas mesmo


agora, quando ele está morto? — indagou Gregory, a voz se
estrangulando na garganta.

Ernest fez um gesto brusco.

— Claro que posso! Mesmo agora! Ele sempre foi um tolo!


Não havia qualquer motivo para que ele partisse para a
guerra, não havia razão para isso ou para qualquer das
outras coisas idiotas que fez! Não havia razão para que ele
morresse, abandonasse a mulher e os filhos! Mas ele tinha de
se mostrar, tinha de partir numa cruzada, tinha de proclamar
ao mundo que era um pequeno Jesus e um herói, melhor que
os outros homens, sufocado em seus ideais e em sua santa
estupidez!

Ele parou de falar, pois tinha a sensação de que o coração


subira pela garganta, sufocando-o com sua batida estrondosa
e terrível. Tateou às cegas à procura da cadeira, arriou nela.
Os braços caíram como chumbo sobre a mesa e ali ficaram,
estendidos, as palmas viradas para cima. Ficou olhando para
frente, engolindo em seco convulsivamente, deslocando a
cabeça devagar, de um lado para outro, como se dominado
por uma agonia insuportável. E murmurou, apaticamente:

— Isso vai matar minha mãe...


— Sua mãe? — gritou Gregory, levantando-se
abruptamente como um velho tigre e inclinando-se para o
homem mais moço. — E o que acontecerá com Amy? Isso vai
matá-la! Com todos os diabos, será que não é capaz de
pensar em Amy?

Os dentes amarelados de Gregory ficaram à mostra,


brilhando através dos lábios arroxeados, numa expressão de
ódio.

Ernest não respondeu por um momento, como se não


tivesse ouvido. Depois, sem olhar para Gregory, ele disse,
em voz baixa:

— Mas Amy me ama.

Houve um silêncio longo e terrível, até que Gregory


finalmente sussurrou, a voz trêmula:

— Você está louco? — E depois ele ficou repetindo,


interminavelmente, a voz quase inaudível: — Você está
louco? Você está louco?

Ernest levou a mão aos olhos e disse, a voz débil e sem


qualquer inflexão:

— Não, não estou louco. E você sabe que não estou.


Sempre soube que ela me ama. E que eu a amo. É tarde
demais para farsas, Gregory Sessions, para que se mostre um
hipócrita maior do que já é. Mas não tem importância agora.
Isso não vai matar Amy. Vai deixá-la terrivelmente chocada,
talvez profundamente abalada por algum tempo. Ela gostava
de Martin, amava-o de certa forma, como a mãe que ama o
filho. Mas somente você e eu sabemos o que ela tinha de
suportar. Há também as crianças. Podemos agora salvar
alguma coisa dos destroços. Podemos fazer alguma coisa por
Amy e as crianças...

Ele baixou a mão e contemplou o velho trêmulo à sua


frente, sem qualquer expressão. E ficou esperando.

— Se você magoar Amy, depois de tudo isso, eu... eu vou


matá-lo — disse Gregory.

Ernest sacudiu a cabeça, com visível repulsa.

— Não seja tolo, senhor. Jamais tornarei a magoar Amy.


Não creio que alguém possa magoá-la. Nem mesmo isso vai
magoá-la, pelo menos não muito profundamente. Amy está
acima de qualquer de nós. Mas agora encontra-se numa
situação em que podemos ajudá-la.

Ele se levantou, tocou a campainha em sua mesa. O chefe


do escritório entrou imediatamente, alerta. Ernest disse-lhe,
em tom brusco:

— Traga-me o casaco e chapéu, por favor.

Depois que o homem se retirou, Gregory gritou;

— Para onde vai? O que pretende fazer?

— Vou procurar Amy. Agora.

— Não!

Gregory contornou a mesa, correndo como uma criança,


agarrou Ernest pelas lapelas. Sacudiu-o com uma selvageria
que ele próprio compreendeu ser impotente e frágil.

— Não pode ir procurá-la! Será que já não a magoou o


suficiente? Sabe que deixou-a de coração partido quando
casou com May? Pensava que eu não sabia, que não podia
perceber cada pensamento por trás do rosto da pobre Amy?
Você matou-a naquele momento! Mas não está satisfeito,
quer agora espezinhá-la! Não vai até lá! Não vou deixar!

O empregado voltou com o casaco e o chapéu. O rosto


pálido estava impassível, não havia como saber o quanto ele
ouvira. Se teve alguma surpresa ao deparar com o patrão
agarrado pelo Sr. Sessions, não deixou transparecer. Limitou-
se a levantar o casaco para que Ernest pudesse enfiar os
braços. Ernest arrebatou-lhe o casaco bruscamente, fez-lhe
um sinal com a cabeça para que se retirasse. Quando ficaram
novamente a sós, ele disse a Gregory:

— Por favor, não me segure assim, senhor. E pare de


ameaçar-me. Parece absurdo, como teatro de décima
categoria. Acha mesmo que pode impedir-me? Pensa que
qualquer coisa que tenha a dizer poderá impedir-me ou
fazer-me mudar de ideia? Não seja idiota!

Mas Gregory agarrava-o mais desesperadamente do que


nunca.

— O que vai fazer? O que pode dizer a Amy? Não lhe


compete procurá-la. Quer arruiná-la outra vez, criar um
escândalo? Quer que as línguas pérfidas comecem a falar
dela? Será que já não causou mal suficiente a Amy e agora
quer expô-la ao mundo?

Ernest desvencilhou-se, tão violentamente que Gregory


quase caiu. Os olhos de Ernest ardiam de fúria, o rosto
estava tão rígido quanto granito.

— Você é um idiota maior do que eu pensava! Saia da


minha frente!

— May! Os seus próprios filhos! Será que não vai pensar


neles? Não tem o direito de fazer isso! Eu é que devo ir... irei
com você!

Ernest pegou o chapéu e disse, lentamente, a voz


controlada:

— Ora, vá para o inferno! Você é um patife, além de


idiota! O que pensa que vou fazer? — Ele fez uma pausa,
antes de acrescentar, desdenhosamente: — saia da minha
frente! Vou procurá-la porque sou a única coisa que Amy
realmente ama, porque sou o único que pode ajudá-la neste
momento. Não se preocupe que não falaremos de amor. Vou
procurá-la e levá-la e às crianças para casa. Ao lugar a que
ela pertence.

Gregory segurara novamente o braço dele, mas Ernest


desvencilhou-se, contornou a mesa e saiu da sala.

Gregory ficou parado no lugar para o qual Ernest o


empurrara. A boca estava entreaberta, ele ofegava, o rosto
arroxeado.

— Há coisas que um homem não pode ignorar. Com toda


decência, há coisas que não pode ignorar. Percorri um longo
caminho com ele. Ele sempre foi respeitoso, cheio de
deferência, o demônio insidioso! Porque podíamos nos usar.
Mas ele podia usar-me mais do que jamais pude usá-lo.
Ninguém pode jamais usá-lo. Mas há coisas que um homem
não pode ignorar, se quer continuar a considerar-se um
homem. Isto é o fim...

Mas ele sabia que estava mentindo. E esse conhecimento,


o conhecimento de si mesmo, provocou-lhe ânsias de
vômito. Sua sensação de desamparo diante de Ernest era
total.
Gregory finalmente foi para casa, pensando em como
poderia contar a May. Ao chegar, ela estava nos aposentos
das crianças, Gregory mandou-lhe um recado para que
descesse. Quando viu o rosto dele, May ficou horrorizada.
Mas Gregory apressou-se em dizer, a voz controlada:

— May, meu amor, acabamos de saber que Martin foi


morto...

— Oh! — exclamou May, debilmente, sentando, a cor se


desvanecendo de seu rosto.

Gregory pegou as mãos dela, apertou-as com firmeza. Era-


lhe terrivelmente necessário que May acreditasse no que
estava prestes a dizer.

— Ernest e eu... estávamos juntos... perto do tribunal,


quando soubemos. Estava afixado na parede. Como era de se
esperar, Ernest disse que ia procurar a mãe imediatamente.
— Ele engoliu em seco, tensamente. — A casa de Florabelle,
como sabe, fica no caminho... no caminho da fazenda.
Assim, sugeri que, depois de falar com a mãe, ele também
procurasse Amy, que a trouxesse para cá, junto com as
crianças. Não tenho a menor dúvida de que Florabelle irá
acompanhá-lo na ida à fazenda.

May desatou a chorar, levou o lencinho de renda aos


olhos, balançando-se na cadeira, dominada pelo desespero.

— Oh, pobre Amy! Minha pobre querida! E como você foi


compreensivo, Gregory querido, lembrando-se de trazê-la
para cá! Minha pobre querida! Isso vai deixá-la desesperada!
Depois de tudo o que ela já sofreu! Mas talvez Ernest devesse
ter vindo falar-me primeiro, eu poderia acompanhá-lo... Um
homem nunca sabe o que dizer a uma mulher, nessas
circunstâncias.
— Não, meu amor, ele não podia vir em casa primeiro.
Lembre-se que ele tinha de falar com a mãe. Era o seu
primeiro dever. Afinal, Martin era filho dela. E foi por
sugestão minha que Ernest seguiu depois para falar com
Amy e trazê-la para casa. Confesso que não tive coragem de
cuidar disso pessoalmente. Assim, vim lhe dizer, a fim de
que tenha tempo de se preparar. Afinal, terá de receber em
casa quatro crianças pequenas.

May levantou-se de um pulo, a necessidade de ação


praticamente abafando sua aflição pela prima.

— Mas é claro! Tenho de arejar os quartos imediatamente.


Deixe-me pensar... Amy pode ficar com o quarto rosa, em
frente ao meu. É grande o bastante para ela e o bebê. Lucy e
Elsa podem partilhar o quarto de Gertrude, que é espaçoso e
ensolarado. Três camas pequenas, lado a lado... — Ela
enxugou a última lágrima dos olhos, antes de acrescentar: —
Mas corno a casa ficará barulhenta com tantas crianças! Terei
de providenciar mais duas babás e só Deus sabe onde elas
poderão dormir! — May suspirou, sorrindo tristemente. —
Receio que nenhum de nós terá muito sossego com todas
essas crianças aqui. Mas não se pode evitar e sabe
perfeitamente, Gregory, que terei o maior prazer na
companhia de Amy.

Ela subiu a escada apressadamente. Gregory ficou imóvel


por um momento, depois saiu correndo de casa, pedindo sua
carruagem.
CAPÍTULO L
Chegando à rua, Ernest diminuiu o passo. Subiu a rua
estreita e íngreme para a Endicott Road, seguiu até o
Endicott Hotel, onde havia um ponto de cabriolés de aluguel.
Alugou o maior e pouco depois seguia pela estrada rural que
era chamada de Quaker Highway. Ainda não deixara os
limites da cidade, no entanto, e as casas já eram bastante
recuadas, grandes e requintadas, amplas propriedades,
árvores recentemente plantadas, jardins e estábulos. Aquela
área era chamada de Quaker Terrace e rapidamente estava se
tornando o bairro mais exclusivo da cidade, pois quase não
havia movimento por ali, proporcionando todas as vantagens
da vida na cidade, além do sossego e da dignidade da vida
no campo. Mais tarde, depois que a cidade alcançou o bairro,
engoliu-o, digeriu-o e expeliu-o sob a forma de cortiços, iria
chamar-se de Quakertown, embora somente uma família
quacre, os Benshaws, tivesse ali vivido.

O carro parou diante do portão de ferro de uma casa alta


de tijolos, de fachada estreita, com varandas brancas,
cúpulas e torres inúteis, janelas estreitas, que tinham apenas
dois e meio metros de altura, parecendo fendas nas
muralhas de uma fortaleza, uma porta alta e larga, com uma
bandeira por cima. O sol de outono era quente e uma babá
de capa e capuz estava sentada no banco redondo em torno
de uma árvore, observando dois bebês brincando sobre uma
coberta estendida na relva crestada.

Ernest saltou do carro, inclinou-se sobre o portão de ferro


e assoviou baixinho. A babá levantou-se com um grito
sobressaltado. Reconhecendo o visitante, suas sobrancelhas
se altearam de surpresa. Ela aproximou-se correndo,
respeitosamente.
— Onde está a Sra. Barbour? — perguntou Ernest.

A moça balbuciou:

— A Sra. Barbour, senhor? Acho que está na sala de estar.


Ela estava lá há cerca de meia hora.

— Oh, diabo! — murmurou Ernest. Ele olhou firme para a


moça e acrescentou: — Tenho que dizer uma coisa à Sra.
Bouchard e não quero que a Sra. Barbour saiba, pelo menos
por enquanto. Pode procurar a Sra. Bouchard e avisar que
estou esperando-a aqui fora? Mas depressa, pois só tenho
um momento para dar o recado!

A babá saiu correndo. Ernest abriu o portão e foi para o


lado da casa, onde não podia ser visto pelas janelas que
davam para o sul. Não teve de esperar muito tempo.
Florabelle saiu por uma porta lateral, usando capa azul. À
luz do sol, seus cabelos dourados pareciam fios de fogo. Ela
olhou ao redor, ansiosa. Avistou Ernest a chamá-la do lado
da casa e correu em sua direção. Era uma mulher pequena e
graciosa, a cabeça mal chegava ao ombro de Ernest.

— Ernest! O que aconteceu? May está doente? As crianças


estão bem?

Ele beijou-a na testa, gentilmente.

— Não, querida, não há ninguém doente. É muito pior. —


Ele fez uma pausa. — Martin morreu. Acabamos de ser
informados,

Florabelle gritou debilmente, empalidecendo. A capa se


entreabriu, deixando à mostra o pescoço alvo, latejando. Mas
ela não chorou, como se podia esperar. Simplesmente
parecia chocada.
— Pobre Amy! — exclamou ela, atordoada.

— Isso mesmo, pobre Amy — murmurou Ernest, em voz


grave. — Vou até a fazenda agora, leva-la para minha casa,
junto com as crianças.

As lágrimas afloraram afinal aos lindos olhos azuis de


Florabelle, uma delas escorreu lentamente pela face. E ela
disse:

— May está com você?

— Não. — Ernest falou com todo cuidado. — May tinha


muito o que fazer, preparando a casa para Amy e as crianças.
Por isso, mandou-me buscar Amy sozinho.

— Deixe-me ir com você, Ernest. Espere um instante que


só vou pôr uma touca.

— Não, Florrie. Terá de ficar aqui para cuidar da mãe. Vá


contar a ela, o mais gentilmente que puder. Será terrível
neste momento, ainda mais agora, quando está se
recuperando da gripe.

— Mas...

Florabelle fez uma pausa, indecisa. Parecia-lhe um tanto


estranho que Ernest, que fora o mais encarniçado inimigo de
Martin, devesse confortar-lhe a viúva, levá-la para sua casa. E
ainda mais sozinho. Quanto mais pensava a respeito, mais o
fato parecia-lhe estranho. A testa alva franziu-se um pouco,
enquanto ela procurava uma resposta para o enigma.

Ernest afagou-lhe o ombro.

— E agora trate de ir contar à mãe. Não tenho coragem de


dizer a ela pessoalmente. E amanhã, depois que Amy estiver
acomodada, May gostaria que fosse visitá-la.

O rosto ingênuo de Florabelle desanuviou-se. Ficando na


ponta dos pés, ela beijou o rosto do irmão. Assustou-se ao
descobrir como o rosto dele estava gelado em contato com
seus lábios. Fitou-o atentamente. Florabelle não era muito
observadora, mas não pôde deixar de perceber que o rosto
de Ernest estava espectral, que havia vincos em torno dos
olhos e da boca, o que lhe emprestava uma expressão
angustiada, desesperada. Ela ficou profundamente
comovida. Parecia evidente que a morte de Martin afetara
Ernest mais profundamente do que qualquer um poderia
imaginar. Florabelle desatou a chorar em compaixão.

Ernest não ficou de todo insatisfeito. Percebera que


Florabelle pressentira alguma coisa estranha e ficou aliviado
ao compreender que a atenção dela fora desviada. Ele voltou
ao carro e afastou-se rapidamente. Sozinho, deixou que sua
boca se entreabrisse um pouco, como se houvesse uma dor
intensa em seu peito. Começou a suspirar, a intervalos,
audivelmente. Por uma ou duas vezes, um tremor percorreu-
lhe o corpo, como se estivesse com frio. Mas não estava
pensando no irmão morto, nem mesmo na possibilidade,
muito provável, de que Martin fora morto por uma bala
fabricada por Barbour & Bouchard, disparada por um rifle
fabricado por Barbour & Bouchard. Se tal lhe ocorresse, teria
simplesmente dado de ombros, pois não era homem de se
entregar a especulações filosóficas caprichosas e
sentimentais.

Ao longo dos últimos anos, ele não vira Amy mais do que
cinco vezes. E durante todos esses anos ela jamais entrara na
casa dos Sessions. Encontrara-a sozinha na casa de Dorcas e
na casa de Florabelle. Aparentemente, Martin estava
absorvido demais em seu trabalho para acompanhá-la. Ernest
não conhecia as crianças, mas pensava muito nelas. Como
haviam saído do corpo de Amy, pensava algumas vezes nas
crianças como sendo dele. E sentia-se furioso, dominado por
uma raiva impotente, pela miséria em que o pai forçava-as a
viver.

Ernest ficara consternado com a aparência de Amy nas


duas últimas vezes em que a encontrara. Parecera-lhe que ela
estava excessivamente descarnada e macilenta. Quase que se
podia ver os ossos do rosto, através da pele alva e da carne
delicada. O corpo também se tornara magro e frágil, embora
conservasse as mesmas curvas graciosas e atraentes. Ernest
fitara-a nos olhos, brilhando intensamente, límpidos, firmes,
percebera que havia olheiras fundas. Mas Amy sorrira como
se o tivesse visto pela última vez no dia anterior. Sua
expressão de coragem e fortaleza o desafiara a ter
compaixão dela. Quando lhe pegara a mão esguia, Ernest
pudera sentir os calos na palma, a pele áspera. Notara que o
vestido de Amy era antiquado e não tinha a armação que
todas as mulheres usavam atualmente. Era um vestido de lã,
marrom, obviamente feito em casa. Lembrara-se de que May
comentara que a prima era insípida e que tentara acreditar
nisso, pensando no retraimento e gentileza de Amy, na
ausência de qualidades agressivas. Mas percebera naquele
momento que May estava enganada e que ele estivera
desdenhando uvas verdes, como um tolo. Pois sabia que
Amy era uma grande dama, serena e firme, em meio a
terríveis dificuldades. Lembrando a inteligência e percepção
de Amy, ele compreendera que ela nunca fora hipnotizada
pelas convicções de Martin, jamais chegara a acreditar nelas.
Amy o acompanhara, amparando-o, sabendo que a felicidade
dele dependia de sua aquiescência. Amara-o o bastante para
permitir-lhe que encontrasse a paz em sua loucura.

Ernest pensou agora em todas essas coisas a respeito de


Amy e suspirou interminavelmente, até que ele próprio
ouviu os suspiros e sorriu amargamente. Cruzou as mãos
com firmeza sobre o castão da bengala e disse, em voz alta:

— Mas eu faria tudo de novo. Não agiria de maneira


diferente se me fosse dada a oportunidade de voltar atrás e
optar.

Depois de alguns momentos, ele levantou a bengala e


contemplou o castão, que era uma peça redonda de ouro,
imitando um rosto malicioso. Dirigiu-se ironicamente a esse
rosto:

— Por acaso sou um mentiroso? Por uma vez, não sei


responder.

Quando o carro avançou mais devagar por uma estrada


estreita, sinuosa e esburacada, sacudindo e balançando
como um navio no mar, a desolação da paisagem
melancólica pareceu penetrar bem fundo na consciência de
Ernest. Aquela era uma das áreas mais pobres do mundo,
com casebres agrupados à beira da estrada, galinheiros e
chiqueiros, cercas tortas e em estado precário, varais de
roupa, crianças gritando, cachorros latindo. Mulheres
desmazeladas apareciam nas portas, enquanto o carro
passava ruidosamente. Uma mula de espirito irônico zurrou
para seu meio-irmão, o cavalo. O sol de outono escondera-se
por trás de uma nuvem, uma neblina meio acinzentada
espalhava-se pelo céu. As árvores estavam desfolhadas,
contorcendo-se ao vento súbito. Umas poucas folhas
avermelhadas elevaram-se da estrada poeirenta e
esvoaçaram contra as janelas do cano. Já era quase o
crepúsculo e a oeste surgia toda uma glória escarlate. A
distância, as colinas baixas e ondulantes pareciam elevações
mais escuras do nevoeiro, os topos tomando-se lentamente
avermelhados, no sol poente. As colheitas haviam
terminado, os campos estavam vazios, escuros.
"Mas que lugar esquecido de Deus!", pensou Ernest Ele
olhou ao redor, para os casebres, para uma ou outra criança
ou mulher, com profunda aversão, esquecendo que tal
desolação se devia em parte ao fato de que a maioria dos
homens fora para a guerra e os poucos que ficaram estavam
apáticos, dominados pelo medo. “Como Amy foi capaz de
suportar tudo isso por tanto tempo?”

Chegaram a uma estrada ainda mais estreita e o cocheiro


seguiu-a, relutante. Os casebres desapareceram. Nos dois
lados da estrada, estendia-se a desolação dos campos vazios
e mortos, indo se encontrar no horizonte com um céu sem
vida. Não havia cerca por ali e tinha-se a impressão de se
estar nas pradarias intermináveis. O barulho das rodas do
carro ressoava pelo silêncio. A distância, Ernest avistou um
grupo de construções. Havia um prédio maior que ele
calculou ser a casa, com estábulo e celeiro por trás. A cerca
de meio quilômetro de distância, havia outro grupo de
construções menores.

O carro tanto sacolejava agora que Ernest acabou


sofrendo algumas pequenas contusões. Agora que via o lugar
em que Amy e os filhos viviam, ele começou a suar de
angústia e nervosismo, batendo com a bengala no chão do
carro. Bateu no vidro uma vez, para atrair a atenção do
cocheiro, gritando:

— Mais depressa! Mais depressa!

Uma cerca de madeira baixa, quebrada em diversos


pontos, contornava a casa. O portão abriu-se em dobradiças
enferrujadas. Preparado para algo terrível, Ernest ficou
apavorado com a situação verdadeira. Seus olhos
absorveram rapidamente a horta desleixada, a relva crescida
e descuidada, a sujeira nas janelas, o silêncio e desolação em
torno da casa. Como através de abismos de espaço, o gado
solitário mugia tristemente. Um bezerro gritou no estábulo.
"Será possível que ela já tenha ido embora?”, pensou Ernest.
Ele saltou, mandou o cocheiro esperar e correu pelo caminho
empoeirado até a porta. Tropeçou num balde e pá de
crianças, viu uma boneca sem cabeça no caminho, ouviu o
latido de um cachorro no interior da casa. O crepúsculo se
adensara e o mundo inteiro parecia mergulhado num silêncio
acinzentado, lúgubre, desprovido de toda e qualquer
esperança. Ernest bateu furiosamente na porta, como se o
ato pudesse incutir alguma vida à cena desolada. A força do
vento aumentou de repente sacudindo as janelas e a porta,
levantando a poeira e arremessando-a contra o nariz e os
olhos de Ernest, atravessando as árvores desfolhadas,
investindo contra a casa.

Um longo momento se passou. Depois, no interior da


casa, soou o grito exuberante de uma criança e a voz abafada
de uma mulher, seguida de passos vagarosos. A porta se
entreabriu. Ernest encostou-lhe a mão e empurrou
inexoravelmente. A mulher cambaleou para trás, com uma
exclamação rouca e alarmada. Ernest descobriu que era uma
velha, alta, encovada, encurvada, olhos azuis muito claros,
por trás de óculos de aros de aço. Era evidente que acabara
de acender uma lamparina na sala, por trás dela, projetando
uma débil claridade sobre os móveis escalavrados, o tapete
puído.

Ernest olhou rapidamente ao redor, sem deixar de


perceber coisa alguma. E depois disse à velha, que piscava os
olhos repetidamente, com uma expressão apreensiva e
perplexa:

— Quero falar imediatamente com a Sra. Barbour!

A velha cruzou as mãos à sua frente e começou a chorar,


silenciosamente, baixando a cabeça. Depois, fechou a porta
por trás de Ernest, foi até a lareira em que uns poucos
carvões ardiam, remexeu-os. Ernest seguiu-a, batendo nas
pernas com a bengala, impaciente. Ela fitou-o através das
lágrimas, quando ele parou a seu lado. Ajoelhou-se diante da
lareira, numa atitude de total abandono à dor e ao
desespero.

— Não sabia, senhor, que o Sr. Martin morreu na guerra?


— ela perguntou, em voz gutural. — Recebemos um
telegrama com a notícia esta manhã.

A velha cobriu o rosto com as mãos encarquilhadas,


soluçando convulsivamente.

— Eu já sabia disso — murmurou Ernest, fazendo um


esforço para mostrar-se paciente e gentil. — Foi por isso que
vim até aqui. Amy... a Sra. Barbour está em condições de
receber-me? Pode fazer o favor de avisar a ela que vim
buscá-la?

A mulher enxugou os olhos com a ponta do avental e


começou a levantar-se, com a maior dificuldade. Ernest, para
seu próprio espanto, descobriu-se ajudando-a, pondo a mão
sob o cotovelo da velha. Ela murmurou um agradecimento
em voz rouca, os músculos do rosto se contraindo, enquanto
se empenhava para recuperar o controle. Lembrou-se das
amenidades sociais e, polidamente, ofereceu uma cadeira a
Ernest.

— Não costumo me comportar assim, como uma criança


— balbuciou ela, à guisa de desculpa, retorcendo a franja do
xale entre os dedos trêmulos e olhando para Ernest com
expressão suplicante. — Mas o Sr. Martin era como um anjo,
tão bom e gentil... É mais do que podemos suportar. Meu
Carl também se foi... meu filho querido... e agora só
restamos eu e meu marido. Pensávamos que nada poderia
acontecer-lhe, se o Sr. Martin estivesse por perto. Deus não
deixaria que alguma coisa ruim acontecesse a nosso Martin.
E agora resta apenas aquela pobre moça lá em cima,
estendida na cama, tão branca, fria e imóvel, como se
estivesse morta, e as pobres crianças... — Ela soluçou sem
derramar lágrimas, comprimiu os lábios, pediu desculpas
novamente. — Acho que ela não vai querer recebê-lo, senhor.
Mas falarei de qualquer maneira. Qual é o seu nome, por
favor?

Ernest abriu a boca para responder, mas logo tornou a


fechá-la. Tinha a estranha convicção de que Amy não o
receberia, se anunciasse seu nome. Não podia compreender
como sabia disso, mas tinha certeza absoluta. Contemplou
curioso a velha Sra. Heckl, pois agora sabia que era ela. E era
evidente que ela não o conhecia. Ernest limpou a garganta e
disse:

— Meu nome não é importante. Por favor, diga à Sra.


Barbour que o tio dela mandou um amigo buscá-la e às
crianças. Isso será suficiente.

O rosto da Sra. Heckl iluminou-se de alegria.

— Mas isso será maravilhoso, senhor! Era lá que ela


deveria estar há muito tempo, com seus amigos e sua gente,
não aqui, tendo apenas uma velha a cuidar dela! — Depois,
ela fez uma pausa, sacudindo a cabeça, indecisa. — Mas não
é naquela casa que aquele homem está?

— Que homem?

Ernest alteou as sobrancelhas para a velha, os cantos dos


lábios se contraindo, involuntariamente. O rosto da velha
estava agora vermelho, os olhos faiscavam. Ela cerrara as
mãos no avental, o pano estava todo retorcido.
— Aquele homem! Aquele homem mau que foi tão cruel
com o Sr. Martin, com o meu Hans e o meu Carl, com todos
os pobres que trabalham nas fábricas! Aquele homem rico e
perverso que Deus certamente vai castigar algum dia!

A expressão de Ernest tornara-se suave, os olhos


brilhavam, como sempre acontecia quando ele sentia ódio,
desdém ou desprezo.

— Ora, minha boa mulher, tenho certeza de que a Sra.


Barbour não gostaria que manifestasse a estranhos as suas
opiniões a respeito dos parentes dela. E agora, por gentileza,
eu gostaria que fosse transmitir meu recado à Sra. Barbour.

A Sra. Heckl ficou ainda mais vermelha, mas ela fez uma
mesura em silêncio e depois saiu da sala. Ernest ouviu-a
subindo a escada dos fundos. O relógio bateu as horas em
cima da lareira, um carvão caiu da grade.

Depois, outra porta abriu-se, soou um burburinho de


vozes infantis. Três crianças entraram na sala, um garoto
alto, em torno dos sete anos, uma menina da mesma idade,
com outra menina entre os dois, provavelmente com não
mais que três anos. As duas crianças mais velhas puxavam a
outra pelos braços roliços. A menina menor dobrava os
joelhos, deixando-se arrastar pelo chão. A menina maior
censurava o garoto, profetizando resultados terríveis para o
que chamava de ‘encaixes’ da criança menor. Mas o garoto
desdenhava as advertências, sacudindo a criança pequena
pelo braço e fazendo-a levantar do chão, com gritos de
alegria.

Não viram Ernest sentado ao lado do fogo até chegarem à


lareira. Ficaram tão aturdidos que soltaram a menina
pequena, que caiu no chão com estrondo, soltando um grito
de dor e raiva. Automaticamente, sem desviar os olhos de
Ernest, a menina levantou a outra, limpou-lhe o traseiro,
comprimiu o rosto choroso contra o seu peito infantil. O
garoto ficou parado diante da lareira, as pernas abertas, as
mãos nos quadris, olhando para Ernest com mais
imprudência e surpresa do que com medo.

— Quem é você? — perguntou ele, numa voz infantil alta


e vigorosa.

Muito divertido e interessado, Ernest contemplou-os


atentamente, dizendo:

— Não tão depressa. Em primeiro lugar, vocês devem me


dizer quem são.

— Acho que é isso o que manda a educação — admitiu a


menina, quando o garoto fitou-a, pedindo sua opinião.

Separando ainda mais as pernas morenas e fortes,


erguendo a cabeça e inclinando-a ligeiramente, num gesto de
desafio, o garoto disse:

— Sou Paul Barbour e essa é minha irmã gêmea, Elsa. Esta


aqui é nossa irmãzinha Lucy. E lá em cima, no quarto de
mamãe e papai, está nosso irmãozinho John Charles. Ele
ainda não sabe andar sozinho. E agora pode nos dizer quem
é?

Ernest sorriu.

— Sou o tio de vocês. O Tio Ernest. Já ouviram falar de


mim?

Paul franziu o rosto, tornou a olhar para a irmã, sacudiu a


cabeça, depois que ela o fizera.
— Não, senhor. Nunca ouvimos falar de nenhum Tio
Ernest. Temos um Tio Raoul e um Tio Eugene, o Tio Gregory
e o Tio Nicholas, além do Tio Armand. Ele não é realmente
nosso tio... o Tio Armand... mas nós o chamamos assim.
Nunca ouvimos falar de nenhum Tio Ernest.

Ernest ainda sorria, embora estivesse tenso.

— Neste caso — disse ele jovialmente — podem me


considerar como uma descoberta. Sou o irmão do pai de
vocês.

— O papai não tinha irmão — respondeu o garoto,


bruscamente.

Mas a menina estendeu a mão e puxou-o pela manga. Sem


desviar os olhos de Ernest, o garoto recuou, enquanto a irmã
lhe sussurrava ao ouvido. Ele tornou a franzir o rosto.

— Você é aquele homem? — perguntou Paul.

Então é assim que eles me chamam, pensou Ernest,


amargamente, Ele disse em voz alta:

— Tenho certeza de que não sei, Paul. Afinal, estávamos


afastados e por isso imagino que seus pais não falaram a
meu respeito. — Ele fez uma pausa. — Mas não sou tão mau
assim. Tenho três filhos, primos de vocês. Nunca ouviram
falar de Godfrey e de Reginald, da pequena Gertrude?

O espanto surgiu no rosto das crianças, que


prorromperam num coro excitado de exclamações. Ele era o
pai de Frey, Reggie e Gertrude? Era o marido de Tia May? As
crianças avançaram para Ernest, incrédulas, mas com uma
efusão de súbita amizade. Lucy encostou-se no joelho dele,
os gêmeos postaram-se lado a lado, ofegantes e ansiosos,
observando-o atentamente.

Como eles são fortes, morenos e bonitos!, pensou Ernest,


invejoso, quase angustiosamente. Ninguém poderia
desconfiar que eram filhos de Martin. Todos os três tinham
olhos ardentes, coléricos e intransigentes, narizes curtos e
beligerantes, as bocas grandes, um tanto amuadas, cabelos
abundantes, crespos, de um castanho claro. Eram
corpulentos, como Ernest, as pernas fortes, como as dele,
dando a impressão de que eram donos do mundo e não
admitiam contestação. Os ombros eram quadrados e
empinados, atitude orgulhosa, se bem que um pouco
insolente, transbordando de orgulho, independência e
coragem. Contemplando-os, Ernest sentiu súbita
identificação com aquelas crianças, uma intimidade maior
que a de um tio, quase como se fossem de sua própria carne
e sangue. Nunca se sentira assim em relação a qualquer de
seus filhos. Até mesmo sua paixão por Gertrude não tinha
aquele vínculo forte de sentimento de sangue, aquela
compreensão física total. Era estranho que seus próprios
filhos parecessem mais com Martin, enquanto os filhos de
Martin pareciam com ele! Ernest ficou profundamente
abalado ao compreender isso. Ficou olhando para os
sobrinhos com expressão de intensa concentração.

De repente, em meio àquele fluxo entre o homem e as


crianças, que as próprias crianças inconscientemente
reconheciam, ocorreu a Ernest que eles não davam a
impressão de que haviam acabado de tomar conhecimento
da morte do pai. Assim, enquanto punha a pequena Lucy no
colo e lhe afagava os cabelos, ele perguntou cautelosamente:

— Onde está seu pai, Paul?

O garoto sorriu, olhou para a irmã sorridente, acenou com


a cabeça.
— Papai está na guerra. Ele está lutando contra os
terríveis Rebeldes e vai me trazer uma arma. Por que não
está na guerra também, Tio Ernest?

Ernest mordeu o lábio para esconder seu divertimento.

— O problema, Paul, é que alguns de nós devem ficar em


casa, a fim de fazer as armas, canhões e pólvora que nossos
soldados usam. É o que eu faço: fabrico armas, canhões e
pólvora.

A menina tornou a puxar o irmão pela manga. Paul


inclinou-se para trás, a fim de ouvir-lhe o sussurro. Sua
expressão mudou, tornou-se desconfiada. E ele disse:

— Papai sempre disse que não é certo fazer coisas para


matar outras pessoas. Papai diz que os soldados são homens
maus, assassinos. Ele foi para a guerra, mas não vai lutar.

Ele pronunciou a última frase com um pesar infantil tão


franco, que Ernest teve de fazer o maior esforço para não
sorrir.

— Ele vai apenas ajudar as pessoas a terem o que comer,


porque essa guerra é boa, pois vai libertar os escravos e tudo
o mais.

A voz de Paul estava cada vez mais indecisa, mais


pesarosa. O rosto da menina também expressava pesar.

O que significa, pensou Ernest, com uma satisfação


obscura e exultante, que o idealismo de Martin não
contaminou as mentes saudáveis de seus filhos, apesar da
aparente intensidade dos esforços dele. Talvez tenha sido
melhor que Martin morresse agora. Para o próprio bem dele.
Martin não teria qualquer paz quando os filhos crescessem,
pois estariam sempre em conflito. Ele tentaria dobrar os
filhos, fazer com que as mãos deles, que foram feitas para
agarrar e manter, empunhassem ramos de oliveira com fitas
azuis. Tentaria fazer com que pés feitos para marchar
andassem suavemente, tentaria reduzir à gentileza vozes
rudes e exuberantes. Isso mesmo, foi melhor que Martin
tenha morrido agora. E melhor também para seus filhos.

Ele ouviu passos na escada, o murmúrio da velha Sra.


Heckl. Era evidente que ela estava descendo com Amy.
Ouvindo a voz, as crianças correram para a porta, gritando a
plenos pulmões:

— Mamãe! É Tio Ernest que veio visitá-la! Ele é o pai de


Frey e de Reggie e faz armas! Mamãe, podemos ter uma
arma, se Tio Ernest nos trouxer?

Ernest ouviu um grito alto e angustiado da Sra. Heckl,


ouviu um débil grito de Amy. Levantou-se rapidamente, foi
até a porta com a velocidade e silêncio de um gato, passou
para o corredor. Teve novamente a estranha convicção de
que Amy poderia fugir dele mesmo agora, esconder-se. No
instante em que ele passou para o corredor, a porta externa
abriu-se e Gregory entrou na sala, ofegando da pressa. E
ficou parado nas sombras.

O corredor estava mergulhado na semiescuridão. Na


claridade débil e incerta, Ernest viu Amy parar no meio da
escada, apoiada no corrimão. Ela usava um roupão branco
solto, os cabelos castanhos caiam pelos ombros e pelas
costas, na desordem do sofrimento. Ele contemplou o rosto
de Amy, tão pálido que parecia espectral, olheiras escuras,
agonia na expressão, os lábios lívidos. Logo abaixo estava a
velha Sra. Heckl, fitando-o fixamente com uma máscara
quase ridícula de ódio e terror, os lábios entreabertos, os
olhos arregalados. As crianças, aturdidas e ainda trêmulas de
excitamento e vitalidade, olhavam para a mãe, no súbito
silêncio.

Ernest chegou ao pé da escada. Ignorando a velha e as


crianças, estendeu a mão para a cunhada. Amy fitou-o numa
terrível fascinação, viu o rosto pálido de Ernest, percebeu o
que ele não se atrevia a dizer.

— Amy... — murmurou Ernest, gentilmente.

E ele subiu os degraus, segurou-lhe a mão. Estava fria e


rígida como pedra, mas Amy não retirou-a. Ele desceu, ainda
segurando-lhe a mão, Amy acompanhou-o, como sonâmbula,
ainda fitando-o com uma expressão vazia e agoniada. O
roupão branco arrastava-se por trás dela, os cabelos
balançavam sobre os ombros.

A velha Sra. Heckl subitamente afastou as crianças da


proximidade de Ernest, como se fosse a trilha de uma besta
feroz e brutal. Envolveu-as quase que inteiramente nas
dobras de seu vestido e avental, afastando-as de Ernest,
como uma galinha protegendo seus pintinhos da sombra do
gavião. E, por cima das cabeças das três crianças, ela olhava
furiosa para Ernest.

Mas ele via apenas a Amy, cuja mão segurava, que o


seguia enquanto recuava para a sala. Também não percebeu
Gregory, parado perto da porta. Ernest fechou a porta e
levou Amy para junto do fogo. Ela ficou parada ali,
obedientemente, como se estivesse drogada. Ernest enlaçou-
a, lenta e gentilmente. Amy encostou a cabeça no ombro
dele, como se encontrasse seu verdadeiro lugar. Ernest
manteve-a assim por um longo momento, não se atrevendo a
respirar, a fim de não incomodá-la. Depois, ele inclinou a
cabeça e roçou-lhe os cabelos com os lábios.
Ernest já experimentara na vida e ainda iria experimentar
triunfo, alegria, exultação, paixão e satisfação. Mas, mesmo
nas circunstâncias trágicas que haviam-no levado àquela
casa, experimentou naquele momento o que nunca sentira
antes: uma vasta explosão de alegria, uma entrega total ao
que era ao mesmo tempo terrível demais e suave demais.
Sentiu o sangue ferver, arder nas veias, a garganta se
contrair e latejar dolorosamente. Jamais sentira tanta
ternura, devoção e amor. Sempre fora capaz de controlar-se,
mas agora não o desejava. Queria que as ondas nele o
levassem para onde quisessem, rompessem a sua disciplina,
cegassem-no para tudo o que não fosse o presente imediato
e seu êxtase. Parecia-lhe que toda a sua vida, toda a sua
percepção e experiências haviam sido criadas apenas para
desaguar naquele momento. Ou haviam sido cortadas como
pedras de construção e empilhadas exclusivamente para
chegar àquele ápice. Sem aquele momento, sem aquele ápice,
tudo o mais perdia o sentido; por causa deles, adquiriam um
significado e um propósito.

Contudo, seu hábito de controle era tão grande, possuía


tal poder automático, que, no instante em que Amy se
mexeu, os braços prontamente caíram, afastando-se do
corpo da mulher. Mas a respiração de Ernest era irregular, o
rosto estava sombrio. Levou Amy a uma cadeira. Ela
começou a soluçar, secamente, encolhendo-se na cadeira,
tremendo toda, à débil claridade do fogo. Ernest puxou uma
cadeira sentou-se, inclinou-se para Amy.

— Amy...

Ele não conseguiu dizer mais nada. Só depois de algum


tempo é que conseguiu voltar a falar;

— Amy, meu amor, minha pobre querida...


Ela fitou-o, interrompendo os soluços de repente. Era
como se o estivesse vendo pela primeira vez. Pareceu
compreender muitas coisas, coisas que exigiriam anos para
ser recordadas e reconstituídas. Ela afastou-se um pouco de
Ernest, recordando tais fatos.

— Ele era tão bom, mas tão bom... — balbuciou ela, numa
lamúria em que se insinuava um tom débil e amargo de
acusação.

Ele era muito bom e você odiava-o por isso, dizia a


acusação, por isso tratou de afastá-lo. Fez chantagem com
ele, ameaçou-o, riu dele, não apenas para si mesmo, mas
também na presença de todos os seus amigos a fim de que
se tomasse o palhaço universal, deixando-o sozinho, sem
amigos. Durante toda a vida, você foi inimigo dele, diziam os
olhos angustiados de Amy, pressionando-o e repelindo-o. E
ele nunca fez mal, era incapaz de fazer-lhe mal.

— Amy, não me olhe assim! — exclamou Ernest em tom


brusco, involuntariamente. — O que quer que tenha
acontecido entre meu irmão e eu, nunca neguei que ele era
sincero, bom e gentil, que lhe era impossível ser desonesto
ou rancoroso. Jamais neguei que ele era ‘bom’. Vai acreditar
em mim se lhe disser que lamento muito, lamento
profundamente, que ele tenha morrido? Juro, Amy, que eu
daria dez anos de minha vida para trazê-lo de volta para
você!

Naquele momento, Ernest acreditou no que dizia. Sua voz


era forte, transbordava de sinceridade. A angústia e a
acusação começaram a desvanecer-se dos olhos de Amy.
Seus olhos encheram-se de lágrimas. Ela virou a cabeça,
começou a chorar como uma criança.

— Ele era bom demais para mim! -soluçou ela. — Era bom
demais para todos nós! Ninguém o compreendia, a não ser
eu. Mas nem mesmo eu podia aceitar de verdade o que ele
tentava fazer. Eu era por demais gananciosa, terrivelmente
indiferente. Tentei fingir ser o que não era e acho que não
consegui. Às vezes ele me olhava com tanta tristeza! Mas
juro por Deus que tentei! Tentei ao máximo ser o que ele
queria que eu fosse! E agora é tarde demais! Sempre será
tarde demais!

Ernest ficou calado, sentindo-se impotente pela primeira


vez em sua vida. Pegou outra vez a mão de Amy, apertou-a
gentilmente. Viu as unhas quebradas, os calos na palma, as
veias azuladas latejando no pulso delicado. Mal conseguiu
controlar-se, resistindo à vontade de comprimir os lábios
contra aquelas veias, apertar a palma contra seu rosto. Olhou
para o rosto de Amy. Ela parara de soluçar, fitava-o com um
terror intenso que deixou-o emocionado.

Um tremor percorreu todo o corpo de Ernest, o sangue


zumbiu em seus ouvidos. Seu olhar baixou do rosto de Amy
para o pescoço alvo e esguio, para o roupão frouxo,
deixando à mostra a elevação dos seios. Subitamente, ele
sentiu que Amy tremia com violência, que sua mão ficara
tensa e começara a se retirar, depois relaxara, os dedos se
fechando em torno dos dedos dele. Ernest contemplou-os à
luz incerta do fogo, em meio ao silêncio. Depois, devagar,
levou-os aos lábios e beijou-os.

Por um momento, Amy não se mexeu. Ernest até imaginou


que os dedos dela reagiram, comprimindo-se contra sua
boca, como se estivessem sequiosos pelo contato. Mas
depois ela retirou a mão bruscamente, soltando um grito,
levantando-se com tanta pressa que a cadeira caiu. Ernest
também se levantou, tremendo. Amy virou-se para ele, com
um estranho excitamento, o rosto conturbado, os gestos
desordenados.
— Por favor, Ernest, vá embora. Não pode ajudar-me.
Ninguém pode ajudar-me. Não sei por que você veio! Por que
veio? Não é porque lamenta o que aconteceu. Veio até aqui
para atormentar-me? Vá embora, por favor! E não volte
nunca mais! Nunca mais! Nunca mais quero tornar a vê-lo!

— Perdoe-me, Amy -suplicou Ernest. — Eu esqueci. Mas


prometo que nunca mais tornarei a esquecer. Perdoe-me,
Amy. Oh, Deus, isso é impossível! Nunca deveria ter
acontecido! Nunca aconteceu, Amy! Vim aqui para ajudá-la,
levá-la e às crianças para casa comigo, levá-la de volta ao
lugar a que pertence. Tem um dever para com seus filhos.
Agora que os conheci, quero ajudá-los também. Sinto que
são da minha carne e sangue, mais próximos de mim do que
meus próprios filhos. Deixe-me ajudá-los. Deixe-me ajudá-la.
May está à sua espera... os aposentos já estão arrumados.
Ela... ela mandou-me aqui para buscá-la, Amy. Venha para
casa com seus filhos.

Amy fitou-o com uma incredulidade quase aparvalhada.

— Mas não posso viver na mesma casa que você, Ernest!


Não posso fazer isso com Martin. Nem com meus filhos. Ou
com May. Devo a Martin recordar a promessa que lhe fiz.
Você era inimigo dele, o único verdadeiro inimigo que ele
teve no mundo... logo você, seu irmão! Acha que posso ser
amiga do inimigo de Martin?

Era evidente que Amy estava se aproximando de um


colapso, pois começara a ofegar, levando as mãos ao peito.

— Não parece você quem está falando assim, Amy —


murmurou Ernest, angustiado. — sempre disse as coisas
objetivamente, sem falsos sentimentos. Se eu quisesse ser
um inimigo de verdade de Martin, teria sido muito fácil.
Poderia forçá-lo a abrir mão de suas ações, ao preço que eu
quisesse pagar. Poderia tê-lo mandado para a prisão, junto
com seus cúmplices. Mas não o fiz. Creia em mim quando
lhe digo que Martin me detestava mais do que eu a ele.
Quando éramos mais jovens, ele recusou-se
terminantemente a ser meu amigo, embora eu o tentasse,
várias vezes. Não estou pedindo desculpas por qualquer
coisa ou tentando me explicar. Tenho certeza de que você
sabe de tudo isso perfeitamente. Mas está tentando me
magoar, a fim de poder magoar a si mesma. É a sua
consciência, Amy? Está tentando se magoar por causa de
alguma coisa que não pode evitar... e que eu também não
posso evitar? Isso é uma estupidez. Deve a seus filhos tirá-
los deste lugar. Está com medo de mim, Amy? Pois eu lhe
prometo, minha querida, juro...

— Jura sobre o quê? — perguntou Gregory, suavemente,


friamente, emergindo das sombras.

Amy soltou um grito débil de medo e Ernest recuou


bruscamente.

Os dois homens ficaram se olhando, deixando que as


respectivas máscaras caíssem. Anos de ódio manifestaram-se
naquele momento. Através do fluxo de aversão mútua,
liberada agora, podiam ver-se como realmente eram,
destituídos da hipocrisia e da polidez social. O que Ernest
viu apenas aumentou seu desprezo, mas o que Gregory viu
deixou-o apavorado, pois compreendeu que jamais avaliara
plenamente como era seu inimigo, implacável e rancoroso
até as últimas consequências.

Depois, Ernest deu de ombros, virou as costas, ficou


olhando para o fogo.

— Imagino que um apelo à honra de nada adiantaria com


você, não é mesmo? — disse Gregory.
— Absolutamente nenhum — concordou Ernest,
indiferente. — Além do mais, quem é você para falar de
honra?

Ele olhou para trás, fitando o velho com tanto desdém e


conhecimento que Gregory estremeceu de raiva.

— E por que essa conversa de honra? Não fiz nada demais


além de oferecer um lar decente a Amy. Ela sabe muito bem,
em seu coração, que nada tem a temer de mim.

Ernest tirou o pé da grade da lareira e começou a abotoar


o casaco. Não podia ver o rosto de Amy, pois ela estava
aconchegada contra o peito do tio, as mãos segurando-lhe o
casaco.

— Isso tudo é ridículo! — exclamou Ernest, ficando


vermelho de repulsa e mortificação.

Gregory ignorou-o. Estava falando a Amy:

— Minha querida, eu... eu mandei-o até aqui a fim de levá-


la para casa. Depois, fui falar com May, a fim de transmitir-
lhe a triste notícia, pedir que preparasse tudo para sua
chegada e das crianças. Resolvi segui-lo até aqui... para
ajudá-lo a levá-la. No caminho, comecei a pensar. Pareceu-me
impossível continuar a viver sob o mesmo teto que ele. A
situação... tornou-se insuportável. Pensei em todas as
crianças na mesma casa, lembrei-me que já sou um velho. E
cheguei a uma conclusão. Os Henthorns estão se mudando
para Filadélfia e querem vender sua casa aqui. Tenciono
comprá-la e você poderá viver lá em minha companhia,
tomando conta da casa para mim. E haverá espaço suficiente
para as crianças. — Ele apertou-a firmemente, pois sentia
que os joelhos de Amy começavam a vergar. E acrescentou:
— Enquanto isso, até que a casa esteja pronta, ficarei aqui
com você. — Gregory virou o rosto para Ernest. — A menos,
é claro, que você prefira sair da velha casa com sua mulher e
filhos, deixando-me morar lá com Amy e os filhos dela.
Ainda é minha propriedade e continuará a ser, até o dia da
minha morte. Mas May nasceu lá, assim como seus filhos. E
ela ama aquela casa. Eu não poderia obrigá-la a sair. Assim,
você é quem deve decidir o que vai fazer. Quer deixar a casa
ou eu é que devo ir embora?

Ernest pegou o chapéu, examinou-o meticulosamente,


depois ajeitou na cabeça. Olhou para Gregory, depois para
Amy, que ainda não se virara em sua direção. Sacudiu a
cabeça lentamente, em negativa. E disse, com brusquidão:

— Eu ficarei. Renunciei a muita coisa por aquela casa. Não


vou deixá-la agora.
CAPÍTULO LI
A nova casa em Quaker Terrace era como o Paraíso para
Amy, depois de um longo e tenebroso período no Purgatório.
O simples fato de estar perto da cidade, ver carruagens
passarem puxadas por vigorosos cavalos, ouvir vozes e
divisar rostos de mulheres rechonchudas e prósperas, sair
em sapatos impecáveis e não afundar na lama, deixar a casa
numa saia-balão sem correr o risco de enlameá-la, tudo isso
era o próprio paraíso. Mas outra vez ter uma carruagem à
disposição, tão elegante quanto qualquer outra, poder ir à
cidade e visitar as lojas, apalpar veludos, rendas e sedas,
experimentar as toucas mais modernas, sentar nas casas de
amigas a tomar um bom chá, comendo bolo de sementes e
frutas cristalizadas, saber que os filhos estavam confortáveis
em seus aposentos, aos cuidados de babás competentes,
saber que uma cozinheira eficiente estava cuidando das
panelas e caldeirões na cozinha e que o jantar seria servido
na melhor louça, copos de cristal, prataria, um guardanapo
branco engomado, tudo isso era êxtase em cima de êxtase.

Amy chegara na nova casa em tal estado de apatia e


angústia que Gregory pensara que nunca mais se
recuperaria. Gregory não podia imaginar — talvez Ernest
fosse o único que desconfiasse — que a apatia e pesar de
Amy eram pontadas de sua consciência. A perda não seria
tão terrível se ela não recordasse os últimos dias que
antecederam a partida de Martin. Ela lhe falhara, pensava,
desesperada. Mandei-o embora triste e angustiado, sentindo
que não tinha um único amigo no mundo inteiro. Amy
pensava nisso interminavelmente, por muitas noites insones.
Se no último ano eu tivesse a mesma coragem, fortaleza e
lealdade com que comecei! Oh, Deus, como comecei
bravamente! Nunca disse uma só palavra contra o que Martin
queria fazer, até quase ao final, quando deveria ter
continuado como começara! Mas tornei-me mesquinha e
cruel. Aceitara os sacrifícios com promessas de suportá-los
alegremente. Mas depois, quando se tomaram opressivos
demais, fiquei amargurada e envenenei toda a vida de
Martin! Ah, se eu pudesse trazer você de volta, Martin,
apenas por uma semana, um dia que fosse! Até mesmo por
uma hora! Um minuto!

O pior de tudo era o pensamento de que Martin


sacrificara toda a sua vida, toda alegria e tranquilidade que
poderia ter, a fim de proporcionar conforto, misericórdia e
justiça aos oprimidos, mas acabara fracassando ao final. Pois
o governo estava ocupando o hospital com os feridos e não
havia mais lugar para os operários. Por causa de algum
problema burocrático, relacionado com os fundos no banco,
os pagamentos haviam sido temporariamente suspensos. O
Padre Dominick fora transferido para outra cidade e deixara
a administração dos recursos nas mãos de seu sucessor, que
deveria cooperar com Amy no assunto. Mas Amy ainda
estava incapaz de cumprir a sua parte e o novo padre era
exigente e meticuloso, declarando que tinha de ‘estudar’
todo o problema cuidadosamente, antes de executar os
termos do testamento. O que Amy ainda não sabia era que
Gregory suspendera discretamente a execução do testamento
e interrompera os pagamentos. Ele estava procurando um
meio de devolver a Amy a renda resultante das ações de
Barbour & Bouchard. Já assumira o controle do dote de Amy
e o rendimento estava sendo novamente depositado na conta
bancária da sobrinha.

Desde que rompera com Ernest, certa mudança se


processara em Gregory. Por um lado, ele estava rapidamente
envelhecendo. Apoiava-se cada vez mais em John Baldwin e
nos assistentes dele. Às vezes, não aparecia no escritório
antes de meio-dia. A cada duas semanas, passava um dia
inteiro em casa, brincando com os filhos de Amy, passeando,
descansando, lendo ou simplesmente conversando com a
sobrinha. Chegara subitamente à conclusão de que não
precisava de mais dinheiro e perdera o gosto por ganhá-lo.
Sua ganância estava embotada e cansada. Era como se
tivesse sentado à mesa com um amigo, comendo demais uma
comida que era ao mesmo tempo indigesta e impura.
Descobrira que o amigo era na verdade um inimigo
encarniçado e implacável, a comida deixara-o terrivelmente
doente. Sabia que nunca mais seria voraz e que teria uma
dieta simples pelo resto da vida. Outra mudança ocorreu
nele: sua cruel ironia atenuou-se para um pessimismo suave
e triste, o antigo riso malevolente, silencioso, de rosto
vermelho, tornou-se mais gentil. Raramente mencionava
Ernest para Amy; quando o fazia, seu rosto assumia uma
expressão sombria, pensativa. Mas seus comentários eram
sempre indiferentes e casuais. Somente uma vez ele falou de
Ernest com sentimento e disse, então:

— Ele prestou-me o maior serviço que alguém poderia


fazer: mostrou-me o que eu era. E isso me assustou.

Gregory disse a si mesmo que não odiava Ernest, mas o


abominava. E isso estava bem perto da verdade, só que ele
não acrescentou que também sentia terror de Ernest, não
pelo que poderia fazer-lhe, mas pelo que era capaz de fazer
a Amy. Ele é como um tigre furioso sentindo a fêmea no cio e
não vai descansar enquanto não a conquistar, pensava
Gregory. Mas o pior de tudo era que Amy não estava
realmente fugindo. Ela é impotente contra ele. Pode estar se
apressando agora, mas continua olhando para trás, mesmo
contra sua vontade. Toda a vida de Gregory parecia agora
estar de guarda, insone e vigilante, em torno da casa que
enchera com os filhos de Amy. Ele não vai magoá-la, Gregory
dizia a si mesmo, interminavelmente. Não vai destruí-la. Não
vai levar sua mulher e os próprios filhos ao desespero. Mas,
ao olhar de sua torre de vigia para o ‘tigre furioso’ rondando
impotente lá embaixo, Gregory sentia uma exultação que
nada tinha a ver com a emoção paternal de proteção.

Amy tentou finalmente executar os termos do testamento


de Martin. Mas a cada passo deparava com estranhas
protelações e misteriosos obstáculos. Gregory e os outros
diretores do banco asseguraram-lhe que estava tudo certo,
mas precisavam primeiro acertar alguns ‘pequenos
problemas’. Isso deixava Amy perplexa e frustrada. Gregory
disse-lhe, afetuosamente, que tais assuntos eram demais
para a delicada mente feminina, ao que Amy respondeu com
um olhar sorridente e irônico, que arrancou uma risada dele.
Quando ela insistiu que tinha de começar imediatamente, os
diretores do banco pesarosamente exibiram-lhe pilhas de
livros e papéis, documentos de aspecto tenebroso, fazendo-a
sentir-se impotente e desconsolada. Amy acabou por
concordar que Gregory cuidasse de todos os seus problemas
financeiros e posteriormente administrasse seus recursos.
Com o estranho pressentimento de que fazia algo errado,
que Martin estava a seu lado com uma expressão triste, ela
concedeu o poder de procuração a Gregory. Não pôde
explicar esse pressentimento nem mesmo a si própria. Teria
ficado indignada se lhe ocorresse o pensamento de
desconfiar do tio.

Durante os seus piores meses de angústia, Amy não


conseguiu livrar-se do pensamento de que a vida e os
sacrifícios de Martin, todos os seus ideais e esperanças,
haviam sido como água despejada na areia. O pensamento
tornou-se um espectro, uma obsessão que a atormentava,
por mais que tentasse abrir as janelas da razão. De nada
adiantou dizer a si mesma, tristemente, que todo mundo
vive em vão, que não se encontra o sucesso verdadeiro em
parte alguma. Ela estava tão dominada por pesar e angústia,
que Nicholas, ao voltar a Windsor para uma visita, ficou
aturdido a ponto de esquecer sua pomposidade, diante do
desespero intenso da sobrinha viúva. Quando ela terminou
de relatar-lhe, em lágrimas, a sua angústia por Martin e pelos
sacrifícios que ele fizera, Nicholas ficou calado por um longo
momento, pensando. E depois disse, com uma gentileza
sincera:

— Está completamente enganada, minha querida. Há


muito tempo, Martin foi procurar-me e falou dos sacrifícios
que estava prestes a fazer. Pediu-me... hã... naquela ocasião
que lhe sugerisse algum meio pelo qual se pudesse obter a
aprovação de uma lei proibindo a importação de
trabalhadores estrangeiros para a América. Pediu-me ajuda.
Naquele momento, eu nada podia fazer e foi o que lhe disse.
Mas falei de um pequeno grupo de pressão que já começara a
atuar em Washington, com esse objetivo. Como você sabe,
Martin contribuiu com bastante dinheiro para esse grupo.
Pois o grupo está se tomando cada vez mais forte, começa a
atrair a atenção pública para essa... para essa indignidade. Já
existem muitos protestos entre os operários nascidos na
América. Pode demorar dez, 20 ou mesmo 30 anos para que o
movimento se tome bastante poderoso para conseguir a
aprovação de uma lei rigorosa contra a importação de mão-
de-obra estrangeira. Mas tal lei acabará sendo aprovada,
Amy. Não há como impedi-la. Quando Martin entrou em
contato com o grupo de pressão, este estava prestes a
morrer de anemia. Os esforços dele, ao longo de vários anos,
assim como seu dinheiro, as entrevistas constantes com
congressistas e outros políticos, tudo isso contribuiu
decisivamente para reviver o movimento, fortalecê-lo, atrair
a atenção daqueles que serão beneficiados. Assim, minha
querida, embora Martin tenha falecido, no cumprimento do
dever... o que deve lhe servir de algum conforto... ele é o
homem que lançou uma pequena bola de neve no alto da
montanha. Embora ele não tenha vivido para testemunhá-lo,
essa bola de neve vai se transformar numa geleira,
gigantesca demais para ser detida.

“E também em outras coisas pode-se sentir a influência


de Martin. Hospitais limpos, hospitais gratuitos, assim como
assistência médica gratuita, bom serviço de enfermagem,
misericórdia, consciência social, consideração pelos
semelhantes, condições de vida e salários decentes, proteção
para os operários... tudo isso deve muito a Martin e a outros
poucos como ele. Nada que é forte, fervoroso e bom jamais é
desperdiçado, por menor que seja. É como a bola de neve,
tornando-se cada vez maior e mais pesada, movendo
geleiras. As florestas começam com sementes, minha
querida. As sementes que Martin plantou podem levar muito
tempo para se transformarem em árvores, mas não tenha a
menor dúvida de que isso acabará acontecendo.

Nicholas ficou bastante espantado e satisfeito com esse


raio fervor, realmente sincero, com seu surpreendente
altruísmo. Ele sentiu-se extraordinariamente virtuoso, pois
pensava que perdera inteiramente, há muito tempo, a
capacidade de sentir qualquer coisa sincera. Disse a si
mesmo que fizera o melhor discurso de toda a sua carreira.
Passou muitos dias subsequentes tentando recordá-lo e
escrevê-lo. Mas transcrito friamente, visando ao efeito,
perdeu o brilho esplêndido, a simplicidade magnífica.

Contudo, o discurso de Nicholas conseguiu pelo menos


uma coisa: atenuou a angústia no coração de Amy. Pois ela
sabia que tudo aquilo era verdade. Examinou
cuidadosamente a escrivaninha de Martin, lendo todos os
papéis que encontrou. Ficou espantada com a quantidade de
cartas recebidas por Martin, escritas por aqueles a quem
ajudara através de suas dezenas de atividades na política e
propaganda, sobre as quais ela nunca ouvira falar. Sentiu-se
humilhada e envergonhada por isso, como se tais cartas
fossem censuras mudas, acusações silenciosas de que o
marido lhe escondera muitas coisas, temendo a sua falta de
compreensão e confiança. Amy fez então promessas e juras
de que seria uma timoneira de tudo o que Martin deixara em
suas mãos.

Fortalecida por esse juramento, livre de boa parte de seu


pesar e angústia, o remorso diluído, Amy encontrou tempo
para desfrutar seu novo lazer, paz e conforto. É claro que os
sinais da guerra estavam por toda parte. Os maridos de
muitas de suas amigas haviam aparecido rapidamente na
glória dos uniformes azuis e botões dourados, com bigodes
agressivos, para desaparecerem em seguida. Ela conversara
com rapazes que duas semanas depois tinham seus nomes
incluídos na relação dos mortos. Sorrira e flertara, de um
jeito matronal, com outros rapazes que mais tarde voltaram
a Windsor cegos e aleijados, horrivelmente mutilados,
irremediavelmente velhos, sua juventude inteiramente
destruída em poucas semanas. Amy até se deixara dominar
também, embora apenas por pouco tempo, pelo ódio
universal contra os ‘Rebeldes’, que haviam-na deixado viúva
e seus filhos órfãos. Mas, no todo, a guerra não afetou-a
muito profundamente. Ela estava distante demais do
turbilhão inferior da humanidade de onde saía o soldado
comum para sentir realmente o que era a agonia e a fome, o
desespero e o terror. Além disso, a prosperidade do Norte
não estava decrescendo. Barbour & Bouchard, transbordando
de contratos militares, tornava-se cada vez mais rica e
poderosa. Era agora uma moda preparar ataduras e tricotar
para os soldados, um prazer importante encontrar-se nas
casas de amigas a fim de fazer tais coisas para ‘nossos
rapazes’. Não era de todo ruim até mesmo visitar o hospital
limpo que Martin construíra, olhando para os rapazes
limpos, em suas roupas limpas, deitados nas camas limpas.
No Sul, as mulheres sofriam tão intensamente quanto seus
homens, privadas do pouco que lhes restava, resistindo
heroicamente aos ventos tenebrosos do ódio, medo e
amargura. Mas as mulheres como Amy, filhas, mulheres e
irmãs de industriais nortistas, podiam conhecer o
sofrimento, mas era sempre atenuado pela segurança e
tranquilidade, embotado pelo luxo. Choravam em casas que
não estavam ameaçadas, confortadas pelo maior de todos os
amigos, O Dinheiro. As casas aconchegantes envolviam-na,
antes mesmo o sofrimento precisava estar revestido de
veludo, para ter acesso aos quartos suntuosos. Podiam ficar
viúvas, mas tinham joias em casa e muito dinheiro no banco.
Suas portas eram pesadas demais e cuidadosamente
guardadas para permitir a entrada de um único grito de
desespero, uma única mão faminta, um único rosto
agonizante.

A vida de Martin fora como uma luz breve e evanescente


sobre Amy, não muito intensa e penetrante, mais como o
luar. Seu pensamento não a deixava fria e perdida, como
teria acontecido se ficasse privada da luz do sol. Começou a
deixar na memória de Amy uma suave melancolia, um pesar
não de todo desagradável, uma felicidade tranquila. Ela o
amara, ainda o amava, como se poderia amar um sonho
luminoso de um homem-anjo. Gradativamente, à medida que
o tempo foi passando, a humanidade de Martin foi se
desvanecendo, sua estatura enevoada aumentou. Amy o
recordava e amava como teria amado uma criatura fabulosa e
extraterrena, vislumbrada por um breve e maravilhoso
momento. Isso talvez se devesse em parte ao fato de que a
personalidade de Martin não se gravara nela com força
suficiente. Algumas vezes, em horas de autoanálise e
censura, Amy compreendia que, ao final, Martin se afastara
dela na mais completa solidão. Sentia instintivamente que
ele perdera a compreensão e confiança dela. Às vezes,
pensando na solidão dele, Amy suportava alguns momentos
terríveis de sofrimento intenso e ódio amargo contra si
mesma. E, por muitos dias, nada podia aliviá-la de sua
angústia.
CAPÍTULO LII
O sofrimento de Hilda pela perda do filho transformou-se
em intenso torpor por muito tempo. Até mesmo as
repreensões aos filhos e netos tornaram-se apáticas e
distraídas. A cor desvaneceu-se de seu rosto, a palidez foi
acentuada pelas pequenas veias saltadas, que pareciam
cabelos vermelhos. Ela andava pelos aposentos grandes e
enfeitados da casa de Florabelle, supervisionando a tudo
eficientemente, censurando, administrando, mas isso lhe
custava um esforço evidente. O lábio inferior, sempre
ligeiramente protuberante, mas na juventude vermelho,
úmido e sedutor, estava agora meio arroxeado, pulando para
fora, como a expressão de uma criança amuada. Os olhos
outrora brilhantes e alertas estavam agora opacos e apáticos.
Ela passava horas a fio em silêncio, trancada em seu quarto.
Mal dava atenção aos netos e algumas vezes recusava-se a
descer quando os filhos a chamavam. Sempre fora muito
ativa e emotiva para desenvolver a resistência que suporta
os choques do pesar. Ferida, ela ficava completamente
abalada, retraindo-se, a vitalidade se esvaindo como de um
copo quebrado. Os cabelos, ainda abundantes, ficaram
inteiramente brancos, sem qualquer lustro.

Dorcas ficou completamente desolada. A morte de Martin


não poderia causar-lhe maior desespero. Por muito tempo,
ela ficava horas intermináveis no cemitério em que o corpo
de Martin estava sepultado, sob frondosos olmos. Quando
Amy aproximava-se da sepultura, Dorcas fugia, chorando
incontrolavelmente. A família ficou bastante preocupada,
pois ela estava grávida do terceiro filho, que recebeu o nome
de Honore, quando nasceu. Dorcas sempre tivera a reputação
de ser impassível e ocultar seus sentimentos. Assim, o seu
sofrimento franco, a ausência de qualquer tentativa de
esconder seu terrível pesar, impressionou profundamente a
família, como não teria acontecido se fosse o sofrimento de
uma natureza mais frívola. Ela deixou o quarto que
partilhava com Eugene e, por muitos meses, dormiu sozinha
no pequeno quarto em frente. Eugene podia ouvir-lhe os
soluços, noite após noite. Mas quando batia gentilmente na
porta do quarto, Dorcas imediatamente ficava num silêncio
tenso, fingindo que dormia. Um dia, ela gritou para o
marido, freneticamente:

— Perdi o único amigo que já tive!

Ela olhou para o rosto subitamente pálido e os olhos


tristes do marido com o pesar amargo e meio arrependido de
uma sádica. Depois, jogou-se nos braços de Eugene e chorou
por muitas horas. Mas nunca mais tornou a repetir o que
dissera. E, depois daquela noite, seu pesar pareceu atenuar-
se, o bastante para que conseguisse suportá-lo.

Quando seu sobrinho, o pequeno Honore, estava com


quatro meses de idade, May deu à luz seu quinto filho, um
menino, que recebeu o nome de Guy. E Florabelle Bouchard,
dois dias antes de Raoul tomar-se um alegre e jovial major
do Terceiro de Infantaria, deu a luz a Leon. Havia agora 14
crianças nas famílias Barbour e Bouchard, todas bonitas e
bem-criadas, mais ou menos encantadoras.

O alistamento de Raoul foi até certo ponto encarado como


uma pilhéria. Ernest acusou-o abertamente, divertido, de
estar entediado com a vida doméstica e com as funções de
embaixador itinerante de Barbour & Bouchard. Todos riram.
Mas Raoul sabia, assim como Ernest também sabia, que havia
muito de verdade nessa versão. Raoul era o aventureiro nato,
não do tipo rude e ousado, mas da espécie insinuante,
galante, lasciva. Tomava um cuidado extremo em não se
expor em demasia ao perigo ou às árduas exigências da vida
militar. Passava a maior parte de suas licenças em Nova York
ou Washington, onde havia abundância de mulheres bonitas
e muito o que se beber, as festas mais animadas a se
comparecer. Era o tipo de francês constitucionalmente infiel,
mesmo quando o seu verdadeiro amor concentrava-se na
mulher e na família. Somente Ernest não censurava Raoul. E
isso acontecia, pensava Gregory, com desdém, porque ele
próprio estava provavelmente envolvido com uma certa Sra.
Lydia Tumbull, mulher de um capitão de artilharia. Como
Ernest não fazia o menor esforço para ocultar a ligação, a
família empenhava-se em ‘proteger’ May, que sabia de tudo e
por sua vez empenhava-se em esconder tal conhecimento
dos parentes. Continuava a sorrir plácida e alegremente,
mantendo a fachada de felicidade na vida doméstica. Na
verdade, ela não estava muito perturbada, porque sabia que
as afeições de Ernest não estavam envolvidas na ligação. Seu
medo real estava em outro lugar, na casa nova elegante de
Quaker Terrace. Nada ocorrera que pudesse justificar seu
terror sempre vigilante; nada jamais fora dito ou
transparecera por um altear de sobrancelhas. Mas o medo
persistia.

Ela sabia que Ernest raramente encontrava-se com Amy,


se é que isso acontecia. Amy nunca visitava a casa dos
Sessions. Quando May a visitava, ela jamais mencionava
Ernest. May sabia muito bem que, desde a morte de Martin,
18 ou mais meses antes, Amy só vira o cunhado uma única
vez. Mesmo assim, o medo não a abandonava.

Ernest era tudo o que May desejava num marido:


atencioso, cortês, afetuoso e interessado. Era carinhoso com
ela, ficava absorvido pelas crianças quando estava em casa,
especialmente pela pequena Gertrude. Quando falava de
Amy, era apenas de passagem, demonstrando uma afeição
fraternal. Sua atitude em relação à mulher não mudara
absolutamente desde o casamento, a não ser pelo fato de que
se tornara mais jovial e íntimo, confiante na sua
compreensão e riso. Mas May fitava-o tristemente e pensava:
Ele é um estranho. Sempre foi um estranho. Gregory e eu
agimos muito mal. Ele sempre amou Amy e provavelmente
sempre amará. Mas ela tratava de absorvê-lo ciumentamente
o mais que podia, prezava cada palavra que Ernest dizia,
sentia-se secretamente exultante quando o fazia rir. Ele era
seu marido, uma tranca forte o bastante para que pudesse
descansar em paz sob seu abrigo, mesmo que fosse uma paz
apreensiva. Adorava-o mais do que nunca. Cada palavra e
olhar de Ernest, cada contato de sua mão, tinha o poder de
excitá-la como na primeira vez. Havia ocasiões em que May
pensava que seu amor pelo marido era uma força tangível,
que nada poderia destruir. Não confessava, nem mesmo para
si, o quanto a sua segurança estava nas mãos de Amy.

E foi então que, apesar de todos os seus cuidados para


evitar o perigo, uma bala extraviada finalmente encontrou o
jovial e indolente Raoul. E, no dia 3 de fevereiro de 1863, ele
morreu num hospital militar de Washington, ainda sorrindo,
um pouco pesaroso por ter de deixar tão cedo um mundo
extremamente alegre. Seu quarto filho, François, nasceu num
quarto do segundo andar no momento em que a campainha
da porta soava lá embaixo, acionada pelo mensageiro que
trazia a comunicação de sua morte. Esconderam a notícia de
Florabelle por quase um mês. Mesmo assim, a pequena e
graciosa Florabelle quase morreu de desespero. Raoul lhe
proporcionara amor e proteção, amabilidade e ardor, ternura
e alegria. As carências do caráter do marido foram
inteiramente esquecidas pela inconsolável viúva. Quanto a
Armand, ele contraiu os lábios escuros e murchos ao tomar
conhecimento da morte do filho, assim ficando até o final de
sua vida. Como Raoul morrera sem testamento, o tribunal
designou Ernest Barbour para administrador de seus bens.

Em janeiro de 1865, Dorcas teve seus últimos filhos,


gêmeos, aos quais deu os nomes de André e Antoinette. Em
julho do mesmo ano, May teve também seu último filho: o
pequeno Joseph ou Joey. A família estava agora completa.

Mas, em agosto de 1867, com a aprovação de Ernest,


Florabelle tornou a casar, com um certo Major Edward
Norwood, um solteiro de meia-idade, mas galante, que
diziam possuir ‘a metade de Windsor’, além de vasta fortuna
em minas de prata no oeste. Depois desse casamento,
Florabelle teve mais dois filhos, com um ano de intervalo,
Chandler e Betsy Norwood.
CAPÍTULO LIII
Amy estava impaciente há algum tempo por causa do
lento progresso... ou melhor, da ausência de progresso na
solução do espólio de Martin. Já era julho de 1863 e o
hospital ainda vivia precariamente das pequenas quantias
dadas pelo governo para o tratamento de seus feridos. É
claro que os recursos que vinham do banco há muito que
tinham sido suspensos. Mas o que acontecia por trás dos
muros altos da Kinsolving e dos novos muros que agora
cercavam todas as demais instalações ainda não
preocupavam Amy. Imaginava que os homens estavam
cuidando desses problemas. E quando por acaso pensava a
respeito, era dominada por vaga confusão, pois nunca
aceitara realmente a ideia do marido e ainda se ressentia,
subconscientemente, da miséria que lhe fora imposta e a
seus filhos.

Um dia, Amy recebeu a visita da Madre Superiora


encarregada do hospital. Tornou conhecimento, por
intermédio dela, da situação no hospital de Windsor e no
hospital de Garnerstown. A freira também lhe disse que não
fora efetuado mais nenhum pagamento ao asilo de órfãos do
condado, nos termos do testamento de Martin. Diversas
outras caridades permanentes não recebiam donativos há
dois anos. Amy escutou a tudo atentamente, estremecendo
em autocensura. Ali estava ela se deleitando luxuosamente
em sua nova casa, pensando sentimentalmente em Martin e
ignorando totalmente os últimos desejos dele! Foi dominada
por uma raiva intensa ao pensar no que sabia agora ser a
procrastinação deliberada de Gregory. A raiva não diminuiu
quando ela compreendeu que Gregory assim agira em seu
próprio benefício.
Era um dia quente e sufocante, mas ela pediu a
carruagem, pôs o chapéu, abriu a sombrinha branca e seguiu
para o banco. Sabia que o tio lá estaria, pois era o seu ‘dia’
de trabalhar no banco. Mas quando lá chegou, foi
respeitosamente informada que o “Sr. Gregory” saíra, a fim
de examinar algumas propriedades hipotecadas que o banco
adquirira recentemente. E não voltaria.

Amy estava explodindo de impaciência e raiva impotente.


Deixou o gabinete do presidente do banco numa agitação de
saia e movimentos de cabeça, ignorando o convite dele para
descansar um pouco na frescura da sala. Encaminhava-se
para a saída do banco, quando a porta se abriu e Ernest
entrou.

Ele ainda estava ofuscado pelo calor e a claridade intensa


do dia de verão lá fora. Assim, não a viu a princípio. Mas
Amy viu-o imediatamente. Teve a sensação de que todo o
sangue do corpo afluía ao coração, numa onda quente e
sufocante. Os joelhos tremeram. Vira-o três vezes durante o
último ano, quatro vezes no total, desde a morte de Martin.
Duas vezes haviam sido na casa de Florabelle, no Natal,
numa sala repleta de pessoas, apenas por um momento
formal e cordial. Encontrara-o outra vez num baile
promovido em benefício dos soldados. Amy estava
encarregada de uma barraca e Ernest comprara uma gravata
em suas mãos. May o acompanhava na ocasião e os três
haviam rido um pouco, gracejado um pouco,
indiferentemente, por três minutos exatamente. Depois,
Ernest pedira licença e se afastara, deixando May
conversando com a prima. May visitara algumas vezes a
elegante casa de colunas brancas em Quaker Terrace, mas
sempre fora sozinha ou com os filhos. Todos na família, até
mesmo entre os amigos mais íntimos, sabiam que houvera
‘alguma coisa’ entre Gregory e Ernest. Todos aceitavam
tacitamente que não se devia fazer perguntas a respeito.
Gregory e Ernest encontravam-se apenas com o maior
formalismo e frieza, em seus respectivos escritórios e no
banco. Evitaram-se socialmente. May muitas vezes pegava os
filhos de Amy, dos quais muito gostava, empilhando-os na
carruagem e levando-os para passar um dia na casa dos
Sessions. Mas Ernest nunca entrara na casa de Amy e
ninguém indagava o motivo.

Era a primeira vez, desde a morte de Martin, que Amy se


encontrava sozinha com o cunhado. Por um momento
tumultuado, ela pensou em virar-se e correr. Mas Ernest já a
vira. Estacara por um instante, fitando-a através do chão de
mármore branco. Amy percebeu que Ernest hesitava por um
instante. E depois, sorridente, friamente, ele adiantou-se,
estendendo a mão. Amy contemplou-lhe o rosto e pôde
apenas pensar que estava muito mudado, mais grave, mais
fino, vincado. Os cabelos, embora ainda abundantes,
estavam visivelmente grisalhos nas têmporas. Durante o
último encontro entre os dois, Amy estivera muito confusa e
apressada para perceber muita coisa. Agora, no entanto, via
tudo, clara e nitidamente. Ernest estava com 37 anos e
parecia muito mais velho, pois seu corpo se tornara esguio e
socado, um tanto rígido, as feições arrogantes estavam mais
rudes e agressivas. Ela percebeu que os olhos claros e
implacáveis haviam se estreitado e que a tudo observavam
entre as pálpebras, friamente, vigilantemente. A aura de
poder em torno dele aumentara de maneira extraordinária.
Sempre intimidante, Ernest adquirira agora uma presença
que incutia medo, desconfiança e respeito. Os ombros
largos, e postura da cabeça excepcionalmente grande, as
narinas dilatadas no nariz curto e poderoso, a segurança dos
passos, tudo causou uma profunda impressão em Amy. O
aperto de mão de Ernest foi vigoroso e possessivo. Amy teve
a sensação de que choques elétricos, ardentes e debilitantes,
fluíam da mão por todo o seu corpo. Ernest estava agora lhe
sorrindo de maneira jovial. Em seus olhos implacáveis surgiu
algo quente e ardente, embora cauteloso.

— Olá, Amy — disse ele, ainda segurando-lhe a mão,


ainda sorrindo.

— Olá... Ernest — respondeu Amy, com a voz ligeiramente


trêmula.

Ela ficou parada ali, diante dele, o rubor espalhando-se


rapidamente por seu rosto e depois se desvanecendo com a
mesma presteza. A vermelhidão em sua boca suave era tão
viçosa quanto os lábios de uma mocinha. Os olhos de Amy,
ligeiramente castanhos, brilhavam com uma luz própria, à
sombra do chapéu de palha branco, cheio de fitas
esvoaçando. O vestido, metros e mais metros de musselina
na saia-balão, era preso na cintura esguia com uma fita azul,
Amy tinha nas mãos enluvadas a sombrinha fechada. Apesar
da tristeza de sua expressão em repouso, do ar de
maturidade nas lindas feições, de uma certa nobreza na
franqueza dos olhos, ela não parecia a mãe de quatro filhos e
uma viúva. Sua integridade e franqueza proporcionavam-lhe
uma aparência de juventude intacta. Contudo, Ernest, o
observador, teve a impressão que, de certa forma, ela
parecia muito mais velha do que a mulher que ele fora
confortar naquele trágico dia de outono, há tanto tempo.

Depois das primeiras palavras fúteis, os dois ficaram em


silêncio por um momento, sorrindo tolamente. Por trás
daqueles sorrisos tolos, o caos assentava, como nuvens
carregadas de tempestade. Ernest esperara pacientemente.
Vira Amy muitas vezes, a distância. Planejara aquele
encontro, e aguardara, sabendo que aquele momento teria de
ocorrer algum dia, mais cedo ou mais tarde. Assim, o
constrangimento dele não era tão grande quanto o de Amy. É
verdade que agora que segurava a mão dela, ficava tão perto,
observava a respiração e consternação dela, Ernest sentia
sua fome aumentar, envolvê-lo, dominá-lo, como uma besta
voraz. E havia também o sentimento estranho e antigo,
desvairado e incrédulo, absurdo e inacreditável, que era
inadmissível que Amy não lhe pertencesse. O senso de
indignação furiosa, de privação monstruosa, tornou a invadi-
lo completamente.

Mas Ernest largou-lhe a mão sem maior dificuldade e


levou-a a sentar, junto a uma parede lateral de mármore. O
banco estava com poucos clientes, pois era meio-dia, fazia
muito calor. Os caixas bocejavam por trás das grades. A
atenção deles foi apaticamente atraída para a visão de Ernest
Barbour conversando ansiosa e inaudivelmente com a Sra.
Martin Barbour, perto da parede. E como estavam
entediados, tentaram ouvir a conversa.

Mas o que Ernest dizia era inconsequente. Falava de um


dia em que os filhos de Amy haviam passado na casa dos
Sessions, ‘minha casa’, como ele dizia. Relatou uma
travessura de Paul, que levou Amy a corar e pedir desculpas,
risonha. Ela levou o lenço de renda aos lábios e fitou-o por
cima, risonha, os lábios tremendo na vontade de rir. Alguma
coisa vibrava por todo o corpo de Amy, uma espécie de
êxtase etéreo, uma comichão nos nervos, algo que nada tinha
a ver com a história tola que Ernest contara. Fazia muito
tempo que Amy não sentia tal excitamento, aquele impulso
misterioso e vergonhoso. Ela estava sentada, com Ernest de
pé à sua frente, inclinando-se em sua direção, a mão
encostada na parede, ao lado de sua cabeça. Pelo canto dos
olhos, Amy podia vislumbrar essa mão, em rápidos
momentos, contemplando seu tamanho incrível, a largura
das articulações, a rudeza dos dedos, todas as coisas de que
se recordava tão nitidamente. Mas nunca antes ela desejara
tão intensamente beijar aquela mão, apertá-la contra seu
rosto, humildemente, num gesto de rendição. Teve de cerrar
as mãos para controlar-se, enquanto se vergastava com o
desdém por si mesma. Amy pensou, com verdadeiro horror:
“Não sei o que faria se estivéssemos a sós agora. Não sei o
que faria!” Quando tornou a olhar para a mão de Ernest, teve
uma percepção assustadora de perigo intenso e iminente,
sentindo um calafrio percorrer-lhe o corpo.

Ela levantou os olhos, estremecendo. Ocorria-lhe


subitamente que não ouvia a voz de Ernest há algum tempo.
A postura dele, sua proximidade, tudo incutia em Amy uma
sensação de acuada e conquistada, ao mesmo tempo
desamparada e inebriante. Mas foram os olhos de Ernest que
finalmente despertaram para a compreensão. Fitavam-na
fixamente, brilhando, devorando-a. Os lábios dele estavam
entreabertos e Amy pôde ver o brilho úmido dos dentes
brancos e fortes. Seu instinto reconheceu o olhar de desejo
masculino e ela levantou-se abruptamente.

— Tenho de ir — disse, com a impressão de que estava


balbuciando insanamente. — Vim procurar Tio Gregory e não
o encontrei. Agora, tenho de voltar para casa, pois as
crianças ficam impossíveis e incontroláveis até a hora do
almoço. O bebê estava com um pouco de febre esta manhã e
prometi a Elsa.

E Amy continuou a falar assim interminavelmente, a


conversa fútil provocada pelo medo e confusão.

Ernest ainda fitava-a com aquela expressão que


alternadamente aterrorizava-a e proporcionava-lhe um
langor extasiado. Ele não dizia nada, não se mexia. Depois de
algum tempo, retirou a mão da parede, empertigou-se. Virou-
se parcialmente, olhou para a distante porta de bronze. O
perfil rude estava delineado na semiescuridão. E Ernest
disse, em tom de indiferença, sem olhar para Amy:

— Sou agora diretor do banco e talvez possa ajudá-la.


Num momento mais são, Ernest teria sido a última pessoa
do mundo a quem Amy contaria o motivo de sua visita ao
banco naquele dia. Mas ela não estava inteiramente sã
naquele momento. Para seu profundo horror, ouviu a própria
voz continuar a balbuciar interminavelmente, contando
tudo, dos termos do testamento de Martin à proteção
deliberada de sua execução, da procrastinação do tio à sua
própria raiva e determinação de que o testamento fosse
cumprido.

Ernest escutou em silêncio, ainda sem fitá-la, o rosto


ligeiramente virado. A expressão dele era a mesma que seria
exibida por qualquer diretor de banco cortês e
mecanicamente interessado, ao ouvir a queixa de uma
cliente. Quando Amy terminou, angustiada, ele continuou
calado por mais algum tempo e depois disse, pensativo:

— Se você quiser, posso cuidar disso. Mas tenho certeza


de que seu tio está agindo com toda discrição e competência
possível...

— Claro, claro! — exclamou Amy, o rosto ardendo, em


confusão e mortificação. — Por favor, esqueça que falei a
respeito. Não é justo com Tio Gregory. Tenho certeza que ele
pode explicar.

Amy estava quase chorando, em seu embaraço nervoso e


agitação terrível.

— Não sei o que me deu...

Ernest sorriu, quase imperceptivelmente, secretamente. E


concordou, em voz suave:

— Claro. — Ofereceu o braço a Amy. — Posso acompanhá-


la até a carruagem?
Depois que ela se foi, Ernest foi para o seu gabinete e
pediu os documentos relativos ao espólio de Martin. Ainda
estava examinando-os, às cinco horas da tarde, quando
Gregory voltou inesperadamente ao banco.

Ele parou ao entrar na sala e deparar com Ernest, dizendo


formalmente:

— Desculpe.

Já ia sair quando Ernest levantou a mão.

— Um momento, por favor, Sr. Gregory. Há um problema


sobre o qual gostaria de falar-lhe. Trata-se de algo que está
sendo protelado há muito tempo e deve ser resolvido
imediatamente, levando-se em consideração que o banco é o
coadministrador. Quer fazer o favor de entrar e sentar?

Uma hora depois, de rosto lívido e lábios contraídos,


Gregory disse:

— Não está realmente interessado em que se faça justiça,


quer a seu falecido irmão, a quem perseguiu
vergonhosamente, quer para aqueles a quem ele ajudou.
Qual é então o seu interesse?

Ernest juntou os documentos e meteu-os no envelope.


Sorriu ligeiramente e disse, sem olhar para Gregory:

— Digamos que estou interessado na justiça por si


mesma. Ou digamos que, como diretor do banco, estou
interessado em que todos os negócios sejam prontamente
resolvidos.

Gregory levantou-se, com visível dificuldade. Todos os


músculos de seu rosto estavam tremendo e a voz soou um
tanto estrangulada:

— Digamos, em vez disso, que você está interessado em


Amy.

— Amy? — Ernest alteou as sobrancelhas, como numa


reação de surpresa. — O que Amy tem a ver com as
operações deste banco, exceto como cliente? Afinal, embora
seja o tio dela, não creio que Amy o perdoaria por interferir
indevidamente nos negócios dela, ao ponto de desviar
recursos, mesmo que possa alegar que assim agiu em defesa
dos interesses dela. Não gosto de desvios de recursos. É algo
sempre repulsivo. As autoridades também não gostam. Mas
espero que tudo seja agora acertado satisfatoriamente, que
sua sobrinha não tenha mais qualquer motivo para queixar-
se.

Gregory foi para casa. A contração dos músculos do rosto


estendeu-se para as pernas. Mal conseguiu saltar da
carruagem quando chegou em casa. Amy ficou bastante
alarmada ao vê-lo. Conduziu-o à biblioteca, serviu-lhe um
conhaque. Gregory ficou observando-a. Pensou que Amy
podia estar na casa dos 30 anos, mas estava mais linda do
que nunca, com uma suavidade e compostura maduras,
infinitamente atraentes. Ele não a subestimava. Sabia que
Amy era bastante objetiva, lógica e realista para ser
insultada com insinuações e sugestões. Assim, depois de
descansar um pouco, de calçar as chinelas que Amy lhe
trouxera e relaxar ao contato refrescante das mãos dela em
sua testa, Gregory disse, tentando imprimir alguma firmeza
à voz:

— Amy, meu amor, você esteve no banco hoje?

As mãos que massageavam a testa dele pararam por um


momento e Amy disse, calmamente:
— Estive, sim, Tio Gregory. Fui procurá-lo, mas tinha
saído.

Ela pôs os dedos nas pálpebras dele. Gregory perguntou-


se se era sua impressão apenas ou se aqueles dedos estavam
mesmo tremendo ligeiramente.

— Mas não é importante agora. Descanse, por favor.

— Acontece que é muito importante, Amy. Encontrou-se


com Ernest quando esteve no banco?

Ele afastou gentilmente as mãos de Amy. Fitou-lhe o rosto


com atenção. Um débil rubor insinuou-se no rosto de Amy,
mas ela não o desviou.

— Encontrei, sim. — A ansiedade vincou a testa de Amy.


— Mas por que pergunta, Tio Gregory? Ele... ele lhe falou
alguma coisa?

— Falou. Ernest havia pedido os documentos relativos ao


espólio de Martin. Passei pelo banco por alguns minutos e
ele insistiu que eu ficasse, a fim de conversarmos a respeito.
Pediu-lhe para fazer isso, minha querida?

Amy ficou excessivamente pálida. Mas respondeu, com


voz firme:

— É tudo minha culpa. Sou uma tola. Mas não lhe pedi
para tomar qualquer providência, Tio Gregory. Estaria
insultando-o se fizesse isso. Mas eu não o via há muito
tempo, fazia calor, sentia-me desapontada. E como não podia
pensar em qualquer outra coisa para dizer-lhe... comecei a
falar...

— Estou entendendo.
A voz de Gregory era calma e pensativa. Ele ficou olhando
fixamente para frente por um longo tempo. Parecia que
estava reconstituindo a cena. Amy teve a impressão de que o
tio a repudiava e um soluço seco subiu-lhe pela garganta. Ela
comprimiu as palmas das mãos e fitou-o, angustiada, como
se estivesse suplicando perdão.

— Sente-se, Amy — disse Gregory, com firmeza, embora


em voz fraca. — Preciso conversar com você.

Amy puxou uma cadeira baixa e sentou-se perto dele,


ainda fitando-o com expressão suplicante. Gregory começou
a falar, determinado, sem fitá-la, pois, tinha receio de que
isso poderia fazê-lo fraquejar e poupar a angústia que
deveria causar-lhe, para o próprio bem de Amy.

— Tenho de dizer-lhe uma coisa. Talvez devesse ter


falado antes. Ou melhor, tenho certeza agora de que já
deveria ter-lhe contado. Teria poupado coisas bastante
desagradáveis. Mas é melhor que você saiba agora, do que
ficar para sempre na ignorância. — Ele fez uma pausa. —
Amy, tenho certeza de que se lembra da noite em que
apresentamos Ernest Barbour a May. Já faz muito tempo, mas
tenho certeza de que recorda.

— Lembro, sim -sussurrou ela.

Gregory continuou, procurando desesperadamente pelas


palavras certas:

— Ernest Barbour sempre sentiu por você, desde o


primeiro momento em que a conheceu, alguma coisa que ele
certamente chama de amor. Se alguma vez ele gostou e se
importou com alguém, em toda a sua vida traiçoeira, essa
pessoa foi você. E ainda gosta. Sabia disso, Amy?
— Sabia, Tio Gregory.

O rubor tornou a afluir ao rosto de Amy. Para seu


desespero e autocensura, Gregory percebeu que os olhos
dela brilhavam subitamente, que seu rosto adquiria uma
animação sutil.

— Mas o que você não sabe, minha querida — disse ele,


amargamente — é que Ernest recusou-se a tê-la. Naquela
noite, há tanto tempo, ofereci-a em casamento a Ernest. Mas
ele se recusou a aceitá-la.

Amy gritou debilmente e levantou-se, o rosto vermelho de


vergonha.

Gregory assentiu. E depois enfiou a faca bem fundo, como


um cirurgião poderia fazê-lo, a fim de alcançar um abscesso.

— O problema, Amy, é que ele estava convencido de que


você era a nossa herdeira. E quando eu disse a verdade,
Ernest ficou profundamente abalado. Ficou chocado porque
realmente a amava, se é que se pode chamar a isso de amor.
Ele estava prestes a pedi-la em casamento. Mas desistiu de
fazê-lo, quando lhe contei a verdade. Eu sabia que você
gostava dele e por isso ofereci-a em casamento, francamente.
O resto você já sabe. Menos de um ano depois, Ernest casou
com May, que era a verdadeira herdeira. Menti para você,
meu amor, se está lembrada. É que você parecia estar
suspeitando da verdade e eu não podia suportar que se
sentisse magoada e humilhada. — Gregory fez outra pausa,
pensativo. — É verdade, Amy, ele a amava. Mas amava-a
menos do que amava ao dinheiro. E até hoje ele continua a
amá-la menos do que ama ao dinheiro e poder. Se ele tivesse
que decidir-se novamente, teria feito exatamente a mesma
coisa, mesmo sabendo que sempre a amaria.
Amy tornara-se mais quieta e mais pálida, enquanto ele
falava. Quando Gregory terminou, ela tornou a sentar-se,
fitando-o. Sua expressão era perfeitamente calma, apenas o
brilho dos olhos contraídos deixava transparecer alguma
coisa do que sentia.

— Ele é um interesseiro, um covarde, Amy. — Gregory


sentia os lábios dormentes, uma pressão terrível no peito. -
Se ele fosse um homem de verdade, teria respeitado sua
decisão. Fez uma opção, mas agora está querendo ter tudo.

Amy umedeceu os lábios. Só depois de um momento é


que foi capaz de perguntar, em voz baixa:

— Por que está me contando tudo isso agora?

Gregory manteve-se calado por tanto tempo que Amy


começou a pensar que ele não a ouvira. Mas finalmente ele
respondeu:

— Tenho certeza de que você sabe por que lhe contei,


Amy.

— Tem razão.

Ela levantou-se, tremendo um pouco, encaminhou-se para


a porta, antes de acrescentar:

— Paul e Elsa estão esperando para vê-lo, Tio Gregory.


Creio que querem conversar sobre um barco para o
aniversário de Paul. Vou mandá-los entrar, enquanto verifico
como está o jantar.

Ela saiu, fechando a porta sem fazer barulho.

Gregory suspirou, relaxou na cadeira. Um débil sorriso,


amargurado, meio arrependido, profundamente triste,
insinuou-se em seus lábios. E ele sussurrou:

— Está liquidado agora, Sr. Ernest Barbour.

Gregory sabia que fizera o que era certo. Sabia


perfeitamente que Amy tinha uma visão muito objetiva e
lúcida para ser sentimental, que ela acabaria renunciando.
Amy amava Ernest Barbour intensamente demais para ter-lhe
resistido por muito tempo, agora que ele estava
decididamente atrás dela e não admitiria uma rejeição. Ela
estaria desamparada e impotente, compelida por seu próprio
consentimento.

O próprio Gregory vivera por tempo demais, sempre


alheio aos problemas retóricos da vida, para considerar tal
rendição como vergonhosa ou repreensível. Se não fosse
Ernest Barbour, ele teria dito à sobrinha francamente para
não resistir à única coisa na vida que tinha uma real
validade, esplendor e satisfação. Mas... era Ernest Barbour. E
ele, Gregory, esperara por muitos e muitos anos por aquele
momento.

Ele se levantou, dolorosamente, com bastante dificuldade.


E disse, em voz alta:

— Nada poderia tê-la contido, agora que ele partiu para o


ataque. Nada além da vergonha. E foi isso o que incuti na
pobre criança. É algo que ele jamais conseguirá superar. Eu
lhe fiz isso, Sr. Ernest Barbour. No final das contas, a última
palavra foi minha!

Gregory começou a tossir. E pensou, em confusão: Não


vou adiar por mais tempo a consulta ao médico. Deveria ter
ido há muito tempo. Esta dor... mas é claro que é apenas por
causa da minha idade... apenas um problema de estômago.
Uma ligeira indigestão. Ele tornou a tossir.

No dia seguinte, não estava em condições de ir ao


escritório. E também não sentia a menor vontade. Hora após
hora, ficou sentado na biblioteca, passeando pelos jardins
com as crianças ou conversando com a sobrinha. Todo
desejo se desvanecera, por qualquer coisa. Não podia sentir-
se triste nem mesmo pelo fato de não lamentar a perda de
seu desejo. Era como um homem entorpecido, a se afogar,
que lentamente, indiferentemente, solta uma verga, dedo a
dedo, enquanto as ondas vão se tornando maiores, mais
escuras e ameaçadoras. Como esse homem se afogando,
Gregory sentia que a luta para viver, respirar e lutar se
tornara insuportável.

Uma noite, enquanto dormia, ele soltou o último vínculo


que o prendia à vida e as ondas engolfaram-no.
CAPÍTULO LIV
May insistiu que seu primo, Gregory Sessions, fosse
velado em sua antiga casa, onde nascera e onde vivera pela
maior parte de sua vida. Amy consentiu, pois somente ela
sabia o quanto Gregory sentira saudade da casa da família,
como se empenhara em vão em acostumar-se com a casa
nova em Quaker Terrace. Parecia-lhe o mínimo que podia
fazer por Gregory, deixá-lo deitar mais uma vez em sua
antiga casa, deixar que a claridade esverdeada das árvores
incidisse sobre seu rosto morto. Além do mais, Amy estava
desesperada demais para apresentar alguma objeção a
qualquer coisa.

Assim, nesta emergência, a antiga promessa a Martin foi


esquecida. Amy entrou na casa da família Sessions pela
primeira vez em muitos anos. Mesmo em seu desespero, era
um alívio entrar na casa, onde tudo parecia lembrá-la, onde
ela se lembrava de tudo. Amy evitou os grupos que
conversavam aos sussurros nas salas, percorreu a casa
inteira, com exceção dos quartos. Mas descobriu que seu
antigo quarto não estava sendo usado no momento e entrou,
fechando a porta. Continuava exatamente como antes, até
mesmo a colcha na cama grande, o dossel por cima. É
verdade que a colcha era nova, assim como as cortinas, mas
alguém decidira manter o quarto como antes. A luz do sol
despejava-se pela janela aberta, espalhando-se pelo tapete
vermelho-escuro, pela cama branca e virginal, paredes cor de
marfim, a penteadeira de mogno envernizada, a cadeira de
encosto alto. Os castiçais de cristal, refletindo as cores do
arco-íris, ainda estavam em cima da lareira. Claro que era
tudo um tanto afetado e antiquado. A Bisavó Pierce trouxera
a maior parte dos móveis da Inglaterra, 125 anos antes. Mas
era tudo simples e estimulante, tinha para Amy uma paz
inocente. Ela sentou-se na cama, depois encostou a cabeça
nos travesseiros. Quase não dormira nas duas últimas noites
e suas pálpebras estavam pesadas, ardendo das lágrimas.
Estava tudo tão quieto ali, tão confortador, como se o quarto
possuísse braços que enlaçavam-na, uma consciência que se
recordava dela. E Amy caiu subitamente num sono profundo.

Quando ela despertou, as janelas eram retângulos de um


céu azul brilhante, mas o sol já desaparecera. O ar que corria
pelo quarto era fresco e fragrante, mas excepcionalmente
frio. Por um longo momento, Amy sentiu-se totalmente
desorientada. Estava de volta à sua antiga casa, era outra vez
uma menina. O tempo voltara, devolvendo-a ilesa e intacta à
sua cama macia, como uma onda que traz de volta tudo o
que levara. Amy sentou-se na cama, empurrando para trás os
cabelos desgrenhados, lutando contra o estranho
encantamento que parecia dominá-la. Dormira ali pela última
vez um dia antes de partir para sempre, a fim de casar.
Muitos anos haviam-se passado desde então, com o marido e
filhos, morte e desespero, desesperança e angústia. Haviam
transcorrido como água em turbilhão entre ela e aquele
quarto, espumante, trovejante. Mas a água se fora e ela
transpusera o espaço estreito de Tempo, voltando à sua
antiga cama, sentindo a paz antiga. Ah, se pudesse ser
verdade!, pensou Amy, recostando-se nos travesseiros,
comprimindo o rosto. Se eu pudesse ser como antes, com
Tio Gregory esperando-me lá embaixo para o jantar, os
collies correndo pelo gramado, meus vestidos novos no
armário, sem complicações, sem tristezas, sem cansaços e
angústias esperando-me lá fora... Mas as coisas não eram tão
simples assim. Podia-se voltar aos antigos lugares, mas já
não se era a mesma pessoa. Estranhos com memórias
emprestadas é que voltavam, estranhos que não tinham
direitos aos antigos lugares, sempre aguardando as pessoas
que lhes eram familiares. Ela própria, com todos os fardos da
vida em seus ombros, o rosto mudado, experiências
gravadas em sua mente, era uma intrusa naquele quarto, em
que uma menina dormira e sonhara.

Amy tornou a se sentar, suspirando. Uma colcha de lã


fora estendida sobre suas pernas. Alguém entrara ali e a
cobrira, protegendo-a contra a brisa fria, pensou Amy,
surpresa. Sentiu-se um pouco contrariada, não gostando da
ideia de ter mergulhado num sono indefeso, enquanto
alguém contemplava-a à vontade. Era quase como ser
surpreendida nua. Era indecoroso, se não mesmo
humilhante.

Amy arrumou os cabelos no velho espelho, ligeiramente


turvo, que outrora refletira o rosto viçoso e sorridente de
uma menina. Agora, refletia o rosto de uma mulher cansada
na casa dos 30 anos, cujos olhos estavam avermelhados de
tanto chorar e do pouco sono, cujas faces eram pálidas e
encovadas. Não era certamente o rosto de uma menina! Até
mesmo os olhos não eram iguais. Subitamente, ela pensou:
nunca fui feliz, por um momento sequer, desde que saí
daqui!

— Não! Não! — exclamou ela, em voz alta, dominada pelo


pânico, baixando as mãos dos cabelos.

Mas claro que ela fora feliz no casamento! Durante um ou


dois anos houvera uma compreensão suave, contentamento,
companheirismo... nada poderia jamais mudar isso ou
estragar sua recordação. Amy recordou a gentileza e ternura
invariáveis de Martin, sua consideração e fidelidade em
todas as coisas, seu amor simples, que ela não chegara a
apreciar plenamente.

— Ele foi muito bom para mim — disse ela, em voz


apática.
Mas claro que ela fora feliz no casamento. Se os últimos
anos haviam sido sombrios e desolados, de um
ressentimento tenso, solitário e desesperado, a culpa era
dela e não de Martin.

Amy foi até a porta e abriu-a. O quarto ainda estava


iluminado pelas luzes refletidas do céu e das árvores
frondosas. A cama branca e macia esperava, sob a colcha e o
dossel. Uma suave claridade envolvia a penteadeira e as
cadeiras. Na lareira, a lenha esperava em seu cesto, a tenaz e
o atiçador estavam prontos. Mas o corredor lá fora estava
escuro, frio e silencioso. Dos aposentos lá embaixo subia o
murmúrio de vozes respeitosas, o soluço súbito de May. Amy
tornou a contemplar o quarto de sua infância e adolescência,
parada no limiar, prestes para sair para o corredor escuro e
sua vida presente. Quando finalmente fechou a porta, teve a
impressão de que estava deixando para trás uma parte de
sua vida que se acabara para sempre, uma parte de si mesma
que nunca mais tornaria a conhecer.

Gregory foi enterrado no jazigo da família, onde já


estavam sepultados sua irmã Amy, seus pais e o tio, pai de
May. Martin estava sepultado a alguma distância, ao lado do
pai. Era um dia ainda quente quando Gregory foi enterrado,
as árvores exuberantes no auge do verão, sombras escuras e
bem definidas na relva verdejante. Amy ficou observando o
caixão ser baixado para a sepultura, ouviu as palavras
solenes:

— Quem crê em mim jamais morrerá.

Ela compreendeu subitamente, sem a menor dúvida, que


Gregory não estava naquele caixão que descia para a terra
úmida e escura. Não sabia onde ele estava, mas tinha certeza
de que não era ali, nunca estaria. Ela voltou para casa com
esse conforto, um estranho conforto, que amparou-a por
muitos dias, até que se acostumasse ao sofrimento.
CAPÍTULO LV
Quando se abriu o testamento de Gregory, descobriu-se
que fora escrito recentemente. May Sessions Barbour, como
não podia deixar de ser, herdava a parte dele nos bens da
família, inclusive as ações. A fortuna de Gregory era muito
maior do que se calculara. Ernest, fazendo rapidamente
algumas contas mentais, ficou agradavelmente surpreso ao
descobrir que os bens de Gregory estavam algumas centenas
de milhares de dólares acima de suas estimativas. Há algum
tempo que Ernest sabia que Gregory era o acionista
majoritário. Agora, ele controlava tudo, através de May. Era
tudo dele, aquela parte maior nas fábricas, minas, poços,
serrarias, fundições, a frota de barcaças que operava no rio,
o controle do banco, que garantia a presidência. E o banco à
sua maneira, controlava o destino financeiro da cidade.
Ernest muitas vezes imaginara aquele momento, quando se
tornaria o homem mais poderoso de Windsor, talvez do
Estado. Mas o sabor daquele momento foi muito maior do
que as suas expectativas. É verdade que o Senador Nicholas
Sessions era sócio de todos os empreendimentos, embora
um sócio de participação menor. Mas ele jamais participava
ativamente da administração. E como May também acabaria
herdando a parte dele, Nicholas deixava tudo sob o controle
de Ernest. Assim, Ernest tinha poder absoluto em tudo.

Ele conheceu alguns momentos de exultação inebriante.


Ainda não tinha 40 anos e já era o homem mais rico do
Estado, certamente o mais poderoso! Sempre desejara ter
uma influência sutil na política estadual, até mesmo na
política nacional. Agora, senadores seriam moleques de
recados para ele! Poucas semanas depois que o testamento
de Gregory foi homologado, Ernest convidou o governador e
a mulher para uma visita de uma semana, um convite
prontamente aceito, com a maior satisfação. E isso apesar de
Ernest ter comunicado ao governador que a visita seria
informal e discreta, por causa da morte recente de Gregory.
Em determinado momento, Ernest teve um ataque de
grandiloquência e disse a si mesmo, em voz alta e exultante:

— Eugene disse um dia que eu era um homem marcado


pelo destino. E, por Deus, ele estava certo!

Ele sentiu-se imediatamente constrangido por sua


infantilidade, mas a impressão persistiu, um segredo
inebriante.

Gregory deixara 75 mil dólares de seus bens particulares


para a sobrinha, Amy Drumhill Barbour, além de legados
menores, entre os quais 50 mil dólares para John Baldwin.
Nenhum dos filhos de Amy ou May foi especificamente
mencionado, com exceção do pequeno Godfrey, o filho de
Ernest, por quem Gregory adquirira recentemente uma
afeição secreta. Ele deixou para o menino cinco mil dólares,
a fim de que comprasse ‘o melhor violino possível’. May, em
lágrimas, achou a lembrança extremamente comovente. Mas
Ernest, olhando para o filho mais velho, contraiu os lábios
sombriamente. Não tinha certeza da pureza dos motivos de
Gregory, pois conhecia muito bem as sutilezas do velho. E
continuava a odiá-lo, apesar de morto, apesar da vasta
fortuna que deixara para May.

Gregory não deixou um só vintém para qualquer obra de


caridade.

Nicholas Sessions concedeu procuração a Ernest, a quem


admirava cada vez mais. Nicholas e o banco tomaram-se
coexecutores do testamento. Assim, Ernest podia manipular
também o legado de Amy, além do resto.
Amy foi a única pessoa que lamentou sinceramente a
morte de Gregory Sessions. May gostava dele, como um
primo com quem não tinha muita afinidade, mas sua
verdadeira afeição era por Nicholas. Houvera ocasiões em
que ela julgara Gregory excessivamente injusto com seu
marido. Ernest era astuto demais e indiferente o bastante
para depreciá-lo na frente de May, mas ela calculara que
Gregory fora mais que um pouco preconceituoso. Depois que
o torpor inicial desvaneceu-se e Amy descobriu-se sozinha e
desolada, numa casa repleta de criados e crianças, mal
conseguiu suportar. Seus parentes sugeriram que levasse
Paul e Elsa, agora com dez anos de idade, para uma viagem
marítima. Armand e Eugene, que sempre haviam gostado
dela e a considerado uma grande dama, visitavam-na
frequentemente, juntamente com Dorcas. Todos lhe
recomendaram uma ‘mudança de paisagem’. Mas, dois meses
depois da morte de Gregory, Amy caiu doente, de
preocupação e angústia, com uma febre baixa. Foi obrigada a
ficar de cama por cinco semanas, sob os cuidados alternados
de May, Dorcas e Florabelle. Todos foram visitá-la, inclusive
Hilda. Ernest foi o único que não apareceu. Perguntava
polidamente pela saúde da cunhada, mas não parecia muito
interessado. Esperara por muito tempo, podia esperar mais
um pouco. Mas não demais. May disse-lhe que Amy estava
bastante mudada, sob todos os aspectos, sacudindo a cabeça
enquanto falava. Mas Ernest, que amava Amy, sabia que ela
nunca mudaria para ele, nem mesmo na velhice, nem mesmo
na morte.
CAPÍTULO LVI
Amy recuperou-se. Ficara tão magra que sua altura
parecia ter aumentado. Movia-se mais lentamente e de
maneira mais imponente, embora sua compostura sempre
tivesse sido extraordinária. Sentia-se terrivelmente solitária,
pois era inteligente demais para não sentir-se entediada e
aborrecida com os filhos, por mais que os amasse. Apesar
disso, evitava os visitantes, jamais visitava os outros, exceto
por uma ou duas breves visitas a Florabelle e a Dorcas. A
primeira neve caíra, estendendo-se fragilmente pelos jardins.
Amy ficava sentada perto das portas de vidro da sala,
esquentando os pés no fogo, olhando para o silêncio branco
da terra. Raramente lia, quase não costurava. Parecia
meditar, absorvida em seus pensamentos tristes e apáticos.
Quando as crianças corriam em sua direção, Amy as recebia
com sorrisos gentis, beijos e abraços, mas parecia contente
quando as crianças se retiravam. A vida parecia suspensa
nela. A doença da mente sucedera à doença do corpo.

Foi logo depois do Dia de Ação de Graças, quando o céu


estava cinzento e parado, a neve era profunda e se
empilhava por toda parte, arrastada por um vento recente,
que Ernest foi visitá-la, levando documentos do banco
relativos a seu legado, que precisavam da assinatura dela.

Ele pediu à criada impecável que lhe abriu a porta para


que não o anunciasse. A criada conduziu-o à porta da sala
em que Amy passava a maior parte dos dias, em profunda
apatia. Ele bateu gentilmente. À ordem débil de Amy, abriu a
porta e entrou na sala.

Amy estava pensando nele, como sempre fazia, noite e


dia. Ela estava imóvel, os pés na grade da lareira, o roupão
branco de lã solto em torno do corpo. Por dentro, Amy
estava chorando, angustiada, desesperada, como sempre
acontecia. Por algum estranho poder de comunicação
telepática, a recordação de Ernest, a própria força de sua
personalidade, envolvera-a intensamente naquele momento.
Assim, quando ele entrou na sala, parando por um momento
ao lado da porta, depois de fechá-la, Amy não ficou surpresa,
apenas atordoada.

— Eu estava pensando em você.

A voz dela dava a impressão de que vinha de muito longe.


No momento seguinte, a compreensão invadiu-a. Levantou
abruptamente, envolvendo-se no roupão.

A sala agradável e informal estava quente e meio escura,


exceto pela parede ocupada pelas portas de vidro, que
davam para os jardins cobertos de neve. Um fogo ardia na
lareira, um canário cantava numa gaiola dourada, perto da
janela.

Ernest ficou olhando atentamente para Amy, enquanto


avançava em sua direção, bem devagar, através do tapete
amarelo muito macio. Isso mesmo, pensou ele de repente,
ela mudou bastante, minha pobre Amy, minha querida. Ele
não percebeu a princípio a expressão de Amy, de repulsa e
raiva, até mesmo de medo. Parou a pouca distância dela. E
então, quando o fogo avivou-se um pouco, divisou-lhe a
expressão. Um calafrio de advertência percorreu-lhe o corpo.

— Como vai, Amy?

Ele pôs a pasta de couro em cima da mesa, continuando a


segurá-la.

— Não deveria ter vindo aqui! — gritou ela subitamente,


em voz estridente e tensa.

Amy deu um passo para trás. Ernest disse, a voz um tanto


áspera:

— Por que não? Não está sendo muito hospitaleira ou


mesmo cortês, Amy. Seu Tio Nicholas deu-me uma
procuração. Assim, sou praticamente o administrador de seu
legado. Esteve doente, não pôde tratar de negócios. Por isso,
eu lhe trouxe hoje alguns documentos que precisam de sua
assinatura. Lamento dizer que isso não podia esperar. Caso
contrário, posso lhe assegurar que não teria vindo aqui hoje.

Ele percebeu que Amy engolia em seco convulsivamente,


enquanto escutava. Ela levou a mão à garganta, como se
sentisse uma dor intensa. Ernest aproximou uma cadeira da
mesa e disse, mais gentilmente:

— Sente-se aqui, por favor, Amy, e assine estes


documentos. E depois irei embora imediatamente, se isso lhe
der prazer.

Ela abaixou a cabeça. Lentamente, como se estivesse


debilitada, aproximou-se da cadeira e sentou-se. Ernest
mergulhou sua própria pena no tinteiro para ela, entregou-
lhe. Foi virando os papéis, enquanto Amy assinava, com a
mão trêmula. Ao final, ele dobrou os documentos e começou
a guardá-los de volta na pasta. Não haviam trocado uma
única palavra durante aquele intervalo, embora as mãos se
tocassem uma vez e os cabelos de Amy roçassem no braço
dele. Depois, ela disse, ainda mantendo a cabeça abaixada,
recusando-se a fitá-lo:

— Poderia ter mandado alguém. Ou poderia ter trazido


alguém com você.
Ernest terminou de guardar os documentos assinados,
metodicamente, antes de responder. Carvões caíram na
lareira, no silêncio da sala. Uma brisa passou pelas janelas e
uma árvore estalou lá fora, ao frio. Ernest fechou a pasta,
prendendo as tiras de couro. E depois perguntou,
suavemente:

— Por que me odeia, Amy? Por ter-me atrevido a amá-la?

Ela se levantou, apoiando-se com a mão na mesa. Fitou-o


diretamente. Na semiescuridão, seus olhos brilhavam como
fogo.

— Não! — gritou Amy. — Porque você não teve coragem


de me amar!

Ernest levantou a cabeça bruscamente. Deu um passo na


direção dela, fitando-a nos olhos. Houve outro silêncio
prolongado entre os dois, só que agora parecia vibrar.
Depois, lentamente, Ernest virou-se, olhou para o fogo,
murmurando:

— Então, ele acabou lhe contando...

Amy soltou um grito débil e abafado, retorceu as mãos,


num súbito frenesi. Perdera inteiramente a compostura, não
tinha mais qualquer controle.

— Por que fez isso comigo? Por que me magoou tanto,


durante todos esses anos? Eu... você... nós dois arruinamos a
felicidade de Martin. Não fui a mulher que deveria ter sido.
Por sua causa. Porque o dinheiro significava mais para você
do que amar-me. Quando você me deixou e casei com Martin,
pensei que poderia ser feliz. E por algum tempo, acho que
fui realmente feliz. Mas não pude esquecer. Não sabia... ou
poderia esquecer, obrigar-me a esquecer. É o que não posso
perdoar a meu tio... não ter me contado antes. Não por mim,
mas por Martin. — Ela levou as mãos ao rosto, encolheu-se
um pouco, soluçou alto. — Todos esses anos... os meus anos
e os anos de Martin... desperdiçados, arruinados. Porque
você foi um covarde e ganancioso. Porque nada tinha
importância para você além de dinheiro e poder. E você
ainda é um covarde e ganancioso. Tem tudo aquilo por que
me vendeu, mas é um interesseiro, quer tudo, como Tio
Gregory disse. É insaciável e não vai me deixar em paz. Não
vai me permitir o mínimo de paz de espírito que eu poderia
algum dia encontrar.

Todos os sofrimentos de muitos anos, toda a humilhação,


a plena compreensão do que estava dizendo e sua verdade
absoluta, tudo se revelava agora na voz angustiada e
sufocada de Amy. Quando acabou de falar, ela levou a mão à
cabeça, chorou desesperadamente, sem qualquer
constrangimento ou controle, uma mulher inteiramente
transtornada. A angústia dissipara os escrúpulos, as
máscaras e conveniências. Amy não teria se importado que o
mundo inteiro ouvisse o que acabara de dizer. Estava além
de todo e qualquer amor-próprio, indiferente ao orgulho.

Ernest ficou observando-a sem se mexer. Muitas coisas já


haviam-no abalado, mas nunca com tal intensidade. Todo o
sangue parecia concentrado nas veias do rosto, as mãos
estavam tensamente cerradas nos lados do corpo. Ele mexeu
a cabeça, como se o que via e ouvia tivesse se tomado
completamente insuportável.

Pôs a mão em cima da lareira, desviando os olhos de Amy


e murmurando, tensamente:

— Não tenho nada a dizer. O que eu poderia dizer?

Amy parara de chorar, estava enxugando os olhos.


— Nada, absolutamente nada — sussurrou ela,
finalmente. Amy fez uma pausa, antes de acrescentar,
ansiosamente, quase impetuosamente, em voz mais alta: —
Exceto a resposta a uma pergunta: sabendo de tudo, faria a
mesma coisa outra vez?

Ernest baixou a mão, virou-se para ela, aturdido. Amy


fitava-o intensamente, invadida pela esperança. Suplicava-
lhe que salvasse seu orgulho, que a resgatasse da
humilhação, que lhe desse o conforto do amor-próprio.
Estava pedindo que lhe desse força e coragem, fortaleza e
resistência, que lhe devolvesse tudo o, que perdera. Por um
momento, o amor de Ernest foi forte e altruísta o bastante
para proporcionar-lhe a vontade de querer tudo isso, mesmo
a um custo terrível. Por um momento, ele quis conceder todo
conforto a Amy, devolver-lhe a força para poder resistir à
pressão dele. E desejou fazer isso terrivelmente,
desesperadamente, contemplando o rosto suplicante e os
olhos brilhantes de Amy, tão perto dele, as mãos estendidas
em sua última esperança.

Mas Ernest, o jogador, acabou fazendo o que sentia ser a


maior aposta de sua vida.

— Quer que eu minta para você, Amy? Quer que eu lhe


diga que agiria de maneira diferente, se tivesse a
oportunidade de voltar atrás no tempo?

Ele falou calmamente, fitando-a nos olhos, com extrema


firmeza.

Por um longo momento, o rosto de Amy ficou atônito,


como se ele a tivesse golpeado violentamente,
inesperadamente. Os olhos dela piscaram atordoados, as
mãos baixaram. Depois, antes que ela compreendesse
plenamente o que Ernest dissera e o que significava, antes de
poder sequer recuperar-se um pouco, ele a abraçara e estava
beijando-a vorazmente, nos lábios, pescoço, cabelos, como
se a fome de muitos anos não pudesse mais ser controlada.
Ernest dizia coisas ardentes e incoerentes no ouvido dela,
seus braços esmagavam-na. A sensação de que estava se
afogando invadiu o corpo entorpecido de Amy. Ela debateu-
se debilmente, as mãos agarrando os braços dele, a cabeça
pendendo para trás.

As mãos de Amy acabaram baixando, lentamente, ela


parou de se debater. E houve um silêncio profundo na sala.
CAPÍTULO LVII
Abraham Lincoln há muito que fora assassinado. A guerra
acabara e a Reconstrução começara. Ernest comprara cinco
grandes cotonifícios em dois estados sulistas e estava
adquirindo as máquinas mais modernas para equipá-los.
Também comprara vasta propriedade no Tennessee. Armand
e Eugene há muito que haviam chegado à conclusão de que
Ernest sempre sabia o que fazia. Assim, limitaram-se a
franzir as sobrancelhas e dar de ombros, sem fazerem
comentários. Mas May ficou aturdida.

— O que vai fazer com essas porcarias, Ernest? Tem


certeza de que não está acrescentando um lixo velho à sua
lista de empreendimentos?

— Eu bem que poderia — respondeu ele, sorrindo e


puxando os cabelos cacheados dela, ainda bonitos. — Faz
perguntas demais, menina.

— Tem toda razão. Afinal, eu lhe dei apenas meia dúzia


de fábricas e fundições, apenas 50 por cento das ações de
Barbour & Bouchard e a propriedade da Sessions Steel ainda
por cima. E isso sem falar em outras coisas como esta casa,
as serrarias e 20 por cento das ações da Kinsolving, que
Gregory possuía em seu próprio nome. Mas tais coisas são
provavelmente tão insignificantes, que não me dão o direito
de interessar-me por suas manipulações.

Ernest riu.

— Acontece que sou um homem extraordinário. Todas


essas coisas com que você me comprou estão abaixo do meu
verdadeiro preço. Mas você, como mulher, é tão sedutora,
meiga e atraente por si mesma que deixei-me comprar bem
barato.

May riu também, mas jamais esqueceu aquelas palavras:


“Todas essas coisas com que você me comprou. Isso mesmo,
ela comprara Ernest. Jamais se arrependera da transação.
Mas o amor, pensava ela, com profunda amargura, era uma
verdadeira praga. Levava a pessoa a fazer coisas insensatas,
que podiam ser intrinsecamente insignificantes, mas eram
necessárias à própria vida. Ela não tinha descanso desde o
casamento. Dera cinco filhos a Ernest, conquistara-lhe a
confiança e a afeição, amava-o devotadamente, vivia apenas
para o conforto e prazer dele. Sabia que não era uma mulher
insípida. Sabia que somente ela possuía a capacidade de
fazê-lo rir e relaxar, encarar os problemas com um humor
que de outra forma ele não teria. Jamais o entediava.
Contudo, sabia também que Ernest não a amava, que mesmo
em seus momentos de paixão ela era apenas uma substituta.

May era uma mulher bastante inteligente e sensata para


ser tola ou ciumenta. Gostara demais de Amy para que
pudesse agora cultivar um ódio contra ela. Talvez, pensava
May, amargamente, isso acontecesse porque ela nunca
perdera a esperança de que Ernest pudesse algum dia amá-la,
como queria que a amasse. Agora, porém, ela estava
perdendo a esperança. E, à medida que a esperança se
desvanecia, a estrela vermelha do ódio começava a elevar-se
pela escuridão que ficava. May disse mil vezes a si mesma
que Amy nada fizera de errado, não levantara a mão ou o
olhar para atrair Ernest, não lhe indicara por qualquer gesto
que gostava dele. Tentou acreditar que o senso de dever e
afeição de Amy impediria qualquer flerte, por mais inocente
que fosse, com o homem que a amava. Claro que Amy teria
honra! Honra... pensava May, tristemente. No lugar dela, se o
amasse, eu teria honra?

Amy jamais fora mulher de fazer visitas constantes e


desde a morte de Gregory que suas incursões pelo mundo
exterior haviam se tomado mais escassas. May raramente a
via, a não ser quando ela própria visitava a casa em Quaker
Terrace. E agora que sua esperança estava se desvanecendo,
tornando-se mais fria e mais triste, ela quase não visitava
Amy, raramente mandava a carruagem buscar as crianças.
Por ocasião de sua última visita, tivera a impressão de que
Amy estava com excelente aspecto, subitamente
desabrochando aos 30 e poucos anos, como acontece com
algumas mulheres. Mas Amy parecera-lhe também um tanto
distraída e preocupada. Dera a impressão de estar aliviada
quando May se preparara para ir embora. E May achara que
ela estremecera ligeiramente quando lhe dera um beijo de
despedida. Ela ficara ao lado da carruagem, enquanto May se
acomodava, falando jovialmente, como sempre. E quando
May a fitara, com um último sorriso de despedida, ficara
surpresa ao descobrir que os olhos de Amy estavam cheios
de lágrimas. Na viagem de volta, May ficara aturdida com o
ímpeto de ódio instintivo que subitamente a dominara, uma
emoção de que se sentiu prontamente envergonhada.

May sabia que a ligação de Ernest com a viçosa viúva do


oficial estava acabada. Pensava que saberia, se ele começasse
outra ligação. Mas o que ela não sabia era que, quando Ernest
queria que uma coisa ficasse em segredo, tornava-se
impossível a qualquer pessoa descobrir. Assim, May
começou a sentir algum contentamento e esperança de que o
marido tivesse encerrado para sempre as aventuras
extraconjugais.

Dois meses depois que Florabelle Bouchard casou com


seu galante major, Nicholas Sessions morreu de uma
hemorragia cerebral. O restante da vasta fortuna dos
Sessions ficou em poder de May e, por intermédio dela, de
Ernest.
CAPÍTULO LVIII
Godfrey James Barbour, embora já estivesse com 14 anos,
ainda era conhecido como o “pequeno Godfrey” ou
simplesmente “Frey”.

Não era pelo fato de ser de baixa estatura, pois tinha


apenas um ou dois dedos a menos na altura que seu robusto
primo Paul Barbour, que era um ano mais moço. Mas ele era
excessivamente esguio, embora não esquelético, de uma
constituição tão delicada que parecia mais baixo do que na
realidade. E mais frágil. Mas era bem atraente e gracioso. Os
cabelos eram bastante claros, encaracolados, os olhos
brilhantes de um castanho suave. Tinha o nariz dos
Barbours, curto, quase quadrado, embora não tivesse
herdado as narinas beligerantemente dilatadas do pai. A
boca, flexível e vermelha, era a sua característica mais
atraente. Na verdade, como Ernest às vezes dizia com um
desdém evidente, ele era um garoto bonito. A beleza não
estava tanto nos contornos e tonalidade do rosto, mas sim
numa certa expressão altiva e nobre, na profundidade dos
olhos castanhos, numa pose indefinida da cabeça comprida e
esguia. Havia ocasiões em que o pai, mortificado, comentava
com a mãe que ele estava ficando excepcionalmente
parecido com Martin e que pedia a Deus que a família não
fosse afligida pela existência de outro mártir e idealista. Mas
a verdade é que Godfrey só parecia exteriormente com o tio
falecido. E, mesmo assim, não tinha os olhos azuis de
Martin.

Godfrey ou Frey, como o chamavam, era o predileto de


May. Quando estava em casa, ele nunca ficava muito longe
da mãe. May muitas vezes ria dele, caçoava, ralhava,
divertia-se com sua seriedade, embora sem muito humor e
compreendendo-o muito pouco. Havia ocasiões em que ela o
censurava como ‘uma peixeira de Billingsgate’, para usar a
expressão de Ernest. Acima de tudo, porém, ela o amava. Sua
expressão podia ser divertida quando lhe falava, mas a mão
era sempre gentil e terna, refletindo um intenso instinto
protetor. May raramente se mostrava impaciente com ele,
embora instintivamente não gostasse de crianças (na
verdade, ela sentia aversão aos próprios filhos). Mas sua
paciência com Godfrey era extraordinária. Nunca estava
cansada demais, com pressa ou irritada para escutá-lo.
Sentava e puxava-o para perto, acariciando-lhe o rosto ou
segurando-lhe a mão, enquanto ele balbuciava o problema
que o atormentava. Enquanto escutava, o rosto de May se
desanuviava, brilhava, inclinava-se para Godfrey, muito
atento. Havia ocasiões em que o filho deixava-a perplexa,
contrafeita e preocupada, pois mantinha-se calado e retraído,
inexplicável, propenso a pequenos acessos de raiva que
encenavam algum desespero. Ele jamais brincava como as
outras crianças. Aparentemente, tinha medo de seus
contemporâneos, parecia sofrer quando era obrigado a fazer-
lhes companhia. Embora o compreendesse apenas um pouco,
May sabia quando ele estava angustiado, mesmo sem
entender a causa; adivinhava a sua desorientação,
desconhecendo o motivo, percebia suas obscuras aflições,
sem imaginar a fonte. Se algumas vezes, mesmo em sua
companhia, Godfrey sentia-se irremediavelmente sozinho,
era confortado pelo sorriso e a voz da mãe, suas carícias e
amor.

May sabia que o garoto não gostava e tinha medo do pai.


Quando era bem pequeno, Godfrey muitas vezes fugira de
Ernest, chegando mesmo a esconder-se debaixo das camas.
Quando Ernest, numa afeição impaciente, sentava-o em seu
colo, tentando entabular uma conversa, o menino ficava
paralisado, num silêncio aterrorizado, como um passarinho
capturado, tremendo sob a mão que procura ser gentil.
Como o passarinho, Godfrey era incapaz de mexer-se, em
seu terror, simplesmente fixava os olhos arregalados no
rosto do pai, numa espécie de fascinação fatal. Ernest ficaria
espantado se soubesse que, aos olhos de seu filho pequeno,
ele parecia quase monstruoso, como um animal estranho e
perigoso, que seus olhos pareciam brilhar de ferocidade, que
sua respiração parecia um bafo quente insuportável, que
seus dentes faiscavam selvagemente, que sua voz era rude,
apesar do esforço de torná-la gentil. Ficaria atônito e
desconcertado se soubesse que o pequeno Godfrey sonhava
com ele à noite, ampliado e assustador, como algo saído dos
sonhos dos pagãos teutônicos: gigantesco, entre nuvens e
relâmpagos, cavalgando os ventos, sobrepondo-se a
montanhas, empunhando raios.

As primeiras recordações conscientes da infância de


Godfrey não estavam relacionadas com a visão, paladar ou
tato, nem mesmo com fome, prazer ou cobiça. Estavam
relacionadas com o som. Para ele, os sons possuíam
personalidades, mesmo que fossem apenas o ranger de uma
janela, o farfalhar de árvores à meia-noite, o estalar de
madeira ao frio intenso, o barulho metálico da chuva de
verão caindo no pequeno lago ao final dos jardins. A canção
do papo-roxo ao cair da tarde parecia-lhe mais real do que o
próprio passarinho. As notas arrancadas das teclas do piano
eram mais vivas do que as mãos que tocavam. Godfrey logo
descobriu que todas as coisas possuíam um ritmo
característico, que não pertencia a mais nada. Às vezes,
tarde da noite, acordado em sua cama, ele batia na parede os
ritmos do vento suave, do grilo, do ranger de uma janela.
Ficava exultante quando um som com um ritmo firme ou
uma estranha cadência atraía-lhe a atenção. Procurava repeti-
lo em seu tamborilar, o que lhe proporcionava uma
satisfação sensual, quase voluptuosa. Aprendeu a amar
determinados ritmos, odiar outros, ficar irritado com uns
poucos, irrequieto com muitos. Às vezes, deitada insone ao
lado do marido, May ouvia o tamborilar do filho na parede,
pois ele dormia no quarto ao lado. Ela passou muitos anos
perplexa, sem saber o que provocava aquele estranho ruído.
Quando Godfrey finalmente contou-lhe, ela não chegou a
compreender, mas achou que era comovente. Comprou um
tambor para o menino, algo com que Ernest não se
importava, conforme lhe assegurara. Godfrey pegou o
tambor com gritos de alegria, para surpresa e prazer de
Ernest. Depois disso, os ritmos passaram a ressoar pela casa
e jardins, ritmos rápidos e estranhos, ritmos lentos e
sofridos, ritmos que pareciam dançar como bailarinos
antigos, ritmos que pareciam cruzar as mãos numa prece,
elevando-se em triunfante êxtase e vitória.

Um dia, May e Godfrey estavam sentados sozinhos num


pequeno caramanchão, ela bordando, o filho batendo no
tambor. Há algum tempo que nenhum dos dois falava. May
largou a agulha e olhou para o garoto a seus pés. A cabeça de
Godfrey estava inclinada e uma haste de luz, entrando pelas
aberturas em formato de losangos do caramanchão, dourava-
lhe a cabeça, que parecia arder num estranho clarão. May
contemplou-lhe o delicado perfil, as longas pestanas louras,
as faces coradas, a boca linda e sonhadora. E, de repente, ela
sentiu medo. Godfrey parecia estar muito longe dela, num
lugar em que não poderia alcançá-lo. Era apenas um
garotinho de sete anos na ocasião, mas May sentiu que ele se
fora para longe, não voltaria se ela não falasse e rompesse o
encantamento. Ela sabia que isso era um absurdo, mas pôs a
mão ternamente na cabeça do filho e disse:

— Meu querido, por que fica sentado aqui, sonhando


tanto, apenas batendo em seu tambor? Em que está
pensando?

Godfrey tinha o hábito de ficar subitamente vermelho, de


nervosismo e inibição, quando alguém lhe falava. Olhou
constrangido para a mãe. Embora pequeno, sabia que a
simpatia da mãe estava relacionada apenas com o amor, não
com a compreensão.

— Ora, estou apenas fazendo sons — respondeu Godfrey.


— Os sons que escuto. Tento apenas repeti-los. — Ele
contemplou a mãe solenemente e acrescentou: — Tudo tem
um som, mamãe. Até mesmo você.

May ficou aturdida.

— Eu tenho um som? Pois então mostre-me que som é


esse.

Ele continuou a fitá-la com crescente seriedade, enquanto


May esforçava-se para não rir. Depois, sem desviar os olhos
dela, Godfrey começou a bater um ritmo no tambor. Era
como se estivesse acompanhando uma partitura. Batia um
ritmo rápido e jovial, às vezes um tanto irregular, brejeiro e
rápido, mais lento e mais suave, seguindo-se batidas
velozes, como uma fala apressada e risonha. Mas por baixo
de tudo havia um ritmo firme e sóbrio, inalterável e
constante, um tanto monótono.

May muitas vezes confessara que não tinha o menor


ouvido para música. Podia usar um piano de maneira
passável, tocando baladas, sonatinas, melodias simples, mas
sempre quase com um ar de brincadeira, como quem pedia
desculpas. Comparecera a dezenas de concertos em Boston e
Nova York, como um polimento necessário à sua educação.
Mas jamais gostara realmente de música e raramente podia
distinguir uma sinfonia de outra. Assim, os ritmos batidos
por Godfrey no tambor pareciam-lhe apenas um amontoado
mecânico de sons, sem qualquer significado individual. Ela
franziu a testa quando Godfrey terminou e ficou esperando
pelo seu comentário. May fez um esforço para parecer
intelectual e finalmente disse, inclinando-se para beijá-lo:

— Foi lindo, meu amor. Você é mesmo muito esperto.

No dia seguinte, ela levou-o à sala de estar, sentou-o ao


seu lado no piano, começou a ensinar-lhe o que sabia de
música. Godfrey vinha dedilhando aquele instrumento por
uma boa parte de sua curta vida e May ficou atônita ao
constatar que ele podia tocar bastante bem, embora sem
qualquer técnica ou definição. Evidentemente, ele tocava de
ouvido. A princípio, foi extremamente difícil para May fazê-
lo relacionar as notas escritas no papel com os sons que suas
mãos produziam. “Santo Deus, como sou tola!”, pensava ela,
irritada. “Deveria ter dispensado alguma atenção a isso há
muito tempo. Agora, terei de corrigir todas as coisas nocivas
que ele aprendeu sozinho.”

Mas ela gostava de ensinar. E só depois que Godfrey


absorveu tudo que ela sabia é que May pensou em contratar
professores profissionais.

No início, May ensinou ao filho apenas porque desejava


proporcionar-lhe algum prazer, sem estar imbuída de
qualquer sonho ou pensamento do futuro. Mas um dia,
enquanto contemplava as mãos pequenas e delicadamente
torneadas do filho voando sobre o teclado, tocando uma
linda melodia improvisada, observando a concentração
extasiada do rosto de Godfrey, May pensou humildemente,
com súbita lucidez: ele terá sua música. Ele terá sua vida.

Godfrey nunca ouvira uma orquestra. Na verdade, era


duvidoso que ele até soubesse que existia tal coisa, algo
inteiramente dedicado à música. Três ou quatro vezes por
ano ele ouviu os concertos da banda no Parque Sessions, no
Quatro de Julho, no Dia de Ação de Graças e mais uma ou
duas vezes, no verão. Os músicos não eram dos melhores,
apoiavam-se em demasia nos metais e nos tambores, o que
era muito bom em termos de barulho, mas inteiramente
desprovido de refinamento. Contudo, para Godfrey James
Barbour, faminto de música, as marchas estrondosas, as
melodias sentimentais e os noturnos melancólicos pareciam
excepcionalmente requintados. Ele se esgueirava até o mais
perto possível do coreto, ficava parado ali, segurando a
grade da plataforma, contemplando o maestro ou fechando
os olhos em êxtase. Às vezes, quando um trecho
particularmente pungente sobressaía entre a confusão dos
tambores, ele comprimia o peito magro contra as mãos,
como se a dor assim provocada aliviasse os arroubos que o
dominavam.

Mas isso foi antes de May lhe ensinar tudo o que sabia de
música. Apresentado a Bach e Beethoven, a Mozart e Gounod,
escutando a descrição de May daquelas músicas tocadas por
uma orquestra, evocando-as com a ajuda de sua imaginação
exacerbada, Godfrey não demorou a descobrir que sua
adorada banda de metais era intolerável. May recordou todas
as suas horas meio esquecidas em salas de música. Tocava
os primeiros acordes de uma abertura para Godfrey, depois
explicava-lhe, com excepcional intensidade e precisão, como
as trompas entravam aqui, como a flauta entrava ali, como a
melodia sussurrava num determinado trecho, como subia
triunfalmente mais adiante. Havia aqui o murmúrio abafado
de tambores, como vozes pensativas ouvidas à distância, ali
uma harpa cantava debilmente, como ondulações ao luar,
aqui um violoncelo acrescentava profundidade e pungência
quase insuportáveis, aqui os violinos emergiam, como ágeis
dançarinos com vozes fortes e suaves, um tema se delineava
claramente, como velas acesas. May tocava trechos de
sinfonias e abismos se abriam aos olhos aturdidos e
radiantes do garoto, abismos cruzados por arco-íris. Ou
então era o caos que se instalava diante dele, ofuscando-o
com a escuridão ou a luz.
May descobriu uma súbita, intensa e emocionante
felicidade nos ensinamentos ao filho pequeno. Descobriu
que sua vida se tornara por demais regular e sossegada,
plácida quando não ansiosa por causa do marido, um tanto
insípida e limitada. Ensinando Godfrey, observando o rosto
dele iluminar-se, os lábios tremerem, ela recuperava antigos
sonhos e alegrias, antigas glórias sublimes, sentimentos que
se projetavam além de uma vida limitada, esplendores que
eram velados, mas iminentes, coisas que julgara ter
esquecido para sempre ao abrigo de uma vida confortável.
Por algum tempo, ela sentiu a antiga e deliciosa inquietação,
o antigo e misterioso ímpeto do espírito, a antiga sensação
de expectativa extasiada de uma visão. Disse a si mesma
tristemente que tudo isso não passava de mentira e ilusão,
devaneios de uma adolescência que despertava. Não
obstante, sentia que nada no mundo era tão sublime, tão
satisfatório, tão perto de Deus. Todas as coisas que ela
passara a aceitar como verdadeiras, comprovadas acima e
além de qualquer dúvida, pareciam-lhe insípidas e estúpidas,
como pradarias vazias, sem colmas nem vales. “Que
importância tem se você sabe finalmente que dois mais dois
é igual a quatro?”, pensava ela. “Isso torna a vida mais
agradável ou mais bonita? Fica mais fácil suportar os
sofrimentos quando se conhece uma fórmula inexorável?
Dois mais dois é igual a quatro. Mas isso não é um axioma
que possa resistir na presença de Deus.”

Um dia, num súbito impulso, sentada ao piano ao lado de


Godfrey, May levantou quatro dedos e fitou-o
inquisitivamente.

— Quantos dedos levantei, Frey? Quatro. Pois não


acredite nisso! Não há fim para meus dedos, não há fim para
o que posso fazer com eles! Posso salvar com meus dedos,
posso matar, ser gentil, roubar, criar música, destruir ou
amar. Esses são os verdadeiros dedos, as milhares de coisas
que eles podem fazer. Não dá para contá-las, meu amor.
Assim, está mentindo quando diz que aqui há quatro dedos
levantados. Algum dia, o mundo tentará lhe ensinar que
existem apenas quatro dedos, no final das contas. Mas você
perderá sua alma, se acreditar nisso.

Godfrey escutou solenemente. Ao final, limitou-se a


acenar com a cabeça.

— Você entendeu? — gritou May, irritada, sem


compreender o motivo de tal irritação.

— Entendi, sim, mamãe.

May ficou sem saber se o filho realmente entendera, por


muito tempo. Mas um dia, vários meses depois do episódio,
Godfrey lhe disse, inesperadamente:

— Mamãe, papai pensa que existem apenas quatro dedos


levantados, não é mesmo?

May ficou aturdida. Olhou para Godfrey em silêncio por


um momento, depois abraçou-o, beijou-o efusivamente, com
lágrimas nos olhos.

— Isso mesmo, meu querido. Papai sempre acreditou que


existem apenas quatro dedos.

— Então ele perdeu a alma, não é mesmo, mamãe?

May afastou-o um pouco e fitou-o atentamente. E depois


disse, sorrindo:

— É possível, meu querido, é possível... Mas não deve


levar as metáforas até o amargo fim. — Ela fez uma pausa. -
Na verdade, nunca deve levar coisa alguma até o amargo fim.
May comprou-lhe um grosso volume relatando as vidas de
compositores famosos, tudo escrito numa linguagem simples
e clara. O livro era abundantemente ilustrado com gravuras,
tanto dos compositores como de cenas de diversas óperas.
Para Godfrey, foi como se tivesse entrado numa sala escura e
indefinida, abrindo de repente vastas janelas para o céu e a
terra, as montanhas e os mares. Ele sentava-se ao piano,
tocando alguns temas, selecionando árias, fugas e concertos.
Tinha a sensação de estar sentado no meio de vultos
heroicos e formidáveis, entre confusões e coisas sublimes,
num mundo povoado por anjos e deuses, monstros e
demônios, fadas e gigantes, ouvia ventos de terror e raiva,
gritos de agonia, vozes alteadas na fé e na oração.
CAPÍTULO LIX
May ficou pensando como poderia introduzir o problema
dos professores profissionais na conversa com Ernest sem
provocar muito clamor. Mas o próprio Ernest não demorou a
oferecer-lhe uma oportunidade.

Godfrey estava cursando a mais nova e mais exclusiva


escola para rapazes de Windsor. (“Uns poucos Discípulos
serão Instruídos por um Cavalheiro Inglês, Antigo Professor
da Escola para Rapazes de Gloucester, em Londres, sob o
Patrocínio de Sua Alteza o Duque de York.”) O Cavalheiro
Inglês, diga-se de passagem, estava a caminho de Chicago,
mas lamentavelmente calculara mal as vastas distâncias
daquele país novo e acabara se descobrindo em Pittsburgh
numa situação aflitiva. Encontrara amigos naquela cidade e
na casa de um deles travara conhecimento com uma mulher
de Windsor. Ela lhe profetizara um futuro extraordinário, se
concordasse em considerar a possibilidade de fixar-se em
Windsor, prometendo-lhe toda ajuda. Ele não tinha
alternativa. Seus novos amigos foram bastante generosos e
pouco depois ele alugara em Windsor uma casa alta e
estreita, de tijolos vermelhos, um tanto sombria, amplos
aposentos, lareiras de mármore preto, mobiliada de acordo.
Ali ele abriu sua escola para uns poucos discípulos
‘selecionados, filhos de cavalheiros’.

Ernest, que não era esnobe desprezava os ‘cavalheiros’,


se fossem tolos, encarando os pobres da mesma forma, a
princípio foi contra a ideia de mandar Godfrey para a escola
do Sr. Glendenning. Ele visitou a escola, por insistência de
May, conversou com o diretor. Ao voltar, disse a May que o
homem não passava de um ‘plebeu refinado’ e que não
ficaria surpreso, caso se descobrisse que era apenas um
antigo barbeiro, lacaio, mordomo ou valete.

— O sotaque de Oxford dele não soa verdadeiro aos meus


ouvidos ingleses — comentou Ernest.

Mas May insistiu, alegando que a única outra escola


particular de Windsor estava repleta de garotos vulgares.
Ernest, que particularmente pensava em enviar Godfrey para
uma academia militar em Washington, acabou concordando,
pelo menos temporariamente, a fim de não criar um atrito
com May. Mas ele não se sentia satisfeito e esperava apenas
que o garoto completasse 12 anos para separá-lo de May.

Uma noite, quando conferia algumas contas na biblioteca,


ele pensou sobre isso. May fazia-lhe companhia, lendo ao
lado da lareira acesa. Ernest fitou-a, franzindo o rosto, e
perguntou:

— Frey precisa mesmo aprender grego, meu amor?

— Mas é claro, Ernest! Todos os cavalheiros aprendem


grego. Pensei que soubesse disso.

— Quem disse que eu queria um ‘cavalheiro’ para ocupar


o meu lugar quando a morte chegar? Não vejo como o grego
vai ajudar Frey a expandir nossos negócios. Quando ele
estiver com 21 anos, espero termos negócios espalhados por
todo o país. E como o grego vai ajudar Frey a levar vantagem
sobre os concorrentes?

“Não creio que ele jamais queira levar vantagens sobre


quem quer que seja, meu querido”, pensou May, tristemente.
Ela respondeu ao marido, evasivamente:

— O conhecimento nunca faz mal a ninguém, Ernest. O


saber nunca é demais. Além disso, como falei, todos os
cavalheiros sabem grego.

— Não vou ficar todo eriçado e jurar que não quero saber
de nenhum ‘cavalheiro’ ao meu lado, May. Afinal, não sou
tão idiota assim. Nunca pretendi ser um cavalheiro e juro
por Deus que darei uma surra em qualquer homem que me
chamar disso. E não fique pensando que isso é mera atitude
de quem quer passar por democrático. Seja como for, não
tenho qualquer objeção a que Frey se tome um cavalheiro, se
ele optar também por coisas mais práticas e sólidas. O
problema é que Glendenning está informando que Frey é um
imbecil em matéria de cálculos, não é capaz de aprender o
problema matemático mais simples. E algum dia ele vai
manipular milhões! — Ele fez uma pausa, mordendo o lábio.
— May, você está transformando seu filho num maricas.

— Isso não é justo, Ernest. Alguma vez já levou em


consideração que alguns homens simplesmente não são
feitos para entender problemas de negócios? Assim como
outros homens nunca serão músicos ou artistas de qualquer
espécie.

Em sua agitação, May largou o livro e aproximou-se do


marido, encostando-se na mesa.

— Eu precisava mesmo lhe falar, Ernest. Temos mais três


filhos. Ao que tudo indica, pelo menos Reggie vai ser o que
você deseja. Guy provavelmente também o será... que
diabinho terrível, embora ainda esteja apenas com quatro
anos! E o pequeno Joey parece um pequeno homem de
negócios, mesmo no berço! Por que não pode poupar
Godfrey, Ernest? Por que não pode deixá-lo fazer o que ele
quer?

O rosto de Ernest ficou sombrio.


— O que o rapaz está querendo ser, minha cara?

— Por favor, Ernest, não assuma esse tom tão sarcástico.


Escute com atenção o que tenho a dizer.

Ela puxou uma cadeira, sentou-se ao lado de Ernest, pôs a


mão no joelho dele, fitou-o suplicante.

— Sabe que ensinei à Frey todos os conhecimentos


musicais que possuo. Mas agora ele precisa de mestres
profissionais. Espere um instante, por favor, Ernest! Ele
precisa de mestres profissionais, os melhores que pudermos
conseguir, as melhores escolas de música. Nosso filho é um
gênio, Ernest. Um compositor. Outro dia, ele tocou uma
pequena composição de sua lavra. E juro que pensei que
fosse alguma coisa de Beethoven. Ele é um gênio, Ernest.
Deve ter uma oportunidade...

Ernest empurrou a mão dela de seu joelho, com uma


violência mal reprimida.

— Mas que absurdo! Gênio? Os gênios não caem do céu,


minha cara! Jamais ouvi coisa alguma dele além de um
martelar idiota do piano e algumas bobagens iguais. Não vou
dizer que conheço música ou me interesso por isso. Mas
creio que eu saberia, se Frey tivesse de fato algum valor. Mas
não vai conseguir me convencer de que um garoto maricas
como ele, sem o menor senso prático, é um gênio!

— Mas como pode saber se nunca lhe dispensa qualquer


atenção? Mas eu sei...

— O que você conhece exatamente de música?

— Reconheço que não sei muita coisa, Ernest. Jamais


gostei tanto assim de música. Mas tenho ouvido o bastante,
ao contrário de você, para distinguir boa música da ruim.
Conheço as melhores óperas, já ouvi a maioria das sinfonias.
Não preciso lembrar-lhe que sei tocar piano e harpa, posso
cantar razoavelmente. E também conheci muitos músicos...

— E quantos compositores de verdade você conheceu,


minha cara?

May sorriu, triunfante.

— Conheci Richard Wagner em Munique, meu querido. Já


ouviu falar de Richard Wagner? Eu já imaginava que não. Ele
compôs algumas das melhores óperas do mundo, pelo
menos na opinião de pessoas que entendem do assunto. E
conheci também alguns outros compositores em Paris. Mas
não vou constrangê-lo, mencionando os nomes deles.

Ernest sorriu desagradavelmente por um momento. May


continuou:

— Por tudo isso, creio que tenho um mínimo de condição


para reconhecer os méritos de um músico. Neste momento,
Frey toca piano muito melhor do que jamais consegui. Ele
ama a música profundamente. E agora está compondo.
Portanto...

— Estou entendendo. Você espera agora que eu banque o


ignorante e estúpido, bradando que a música não vale,
tentando ridicularizá-la. Não é isso mesmo? Sou o novo-rico
e por isso não se pode esperar que conheça algo das
melhores coisas da vida. O homem de negócios rude, que
esmaga as coisas delicadas com suas patas imensas. Não
pode me impingir essa caricatura, minha cara. Não cabe.
Admito que há muitas coisas que não compreendo. Não vou
bancar o tolo afirmando que não valem coisa alguma, caso
contrário eu as conheceria. Também não vou dizer que não
devem ter qualquer valor porque não rendem muito
dinheiro. Darei um passo à frente, reconhecendo que há
provavelmente muitas coisas que são mais valiosas, a longo
prazo, do que o comércio e os negócios, a indústria e o
governo. Imagino que um grande quadro, um livro, um
poema ou uma ópera viverão por mais tempo e serão
lembrados com mais prazer do que os homens da minha
espécie e as coisas que construímos. Mas, no final das
contas, este é um mundo prático. Se um homem não pode
viver apenas de pão, também não pode viver sem pão. Pode-
se viver sem quadros, livros, poemas ou óperas. São
apenas... apenas decorações numa casa próspera. Num
aperto, pode-se passar sem as decorações, contanto que se
tenha a casa.

“No meu caso, construí algo de que me orgulho, por mais


vulgar e materialista que possa parecer aos seus ouvidos
delicados, minha cara. Tripliquei e quadrupliquei sua
fortuna original, talvez a tenha aumentado ainda mais. Ainda
não tenho 40 anos e comecei do nada, mas sou agora várias
vezes milionário e também fiz outros milionários. Criei
indústrias, tripliquei a população desta cidade. Sou amigo de
governadores e senadores. Construí imensas fábricas,
proporcionei emprego a milhares de homens. Desenvolvi
invenções e explorei-as. Sou parte de uma América mais
forte, que ainda não tem tempo para os adornos. A América
seria mais pobre sem a minha atuação.

“Está se aproximando o momento em que terei de


entregar tudo isso nas mãos de outros. De meus filhos. E
você quer pegar meu filho mais velho e transformá-lo num
maldito cabeludo, um músico delicado e refinado!’'

— Não diga bobagem, Ernest. Aceito tudo o que disse.


Tenho orgulho de você e o amo. Mas já lhe disse tudo isso
antes. Agora, no entanto, estamos falando de Frey. Estou
disposta a fazer um acordo com você. Levarei Frey à Escola
de Música Bouillon, em Nova York. Monsieur Bouillon é um
grande compositor, vive exclusivamente para a música.
Detesta principiantes, farsantes, mediocridades. Frey tocará
a sua pequena composição e respeitarei a decisão de
Monsieur Bouillon. Se ele disser que Frey é medíocre,
voltaremos para casa e nunca mais se falará no assunto.
Esqueceremos tudo. E tratarei de convencer Frey a estudar
coisas mais práticas. Mas se Monsieur Bouillon disser que
Frey é um gênio, que algum dia poderá se tornar um grande
compositor, caso receba a instrução apropriada, então vou
deixá-lo na escola.

Ernest fitou-a com uma expressão profundamente


irritada, a cabeça grande inclinada para frente, como um
touro.

— Isso é um absurdo — disse ele, depois de um momento,


voltando à mesa. — Não quero mais ouvir falar nesse
assunto, minha cara. E agora gostaria que me fizesse o favor
de explicar esta conta...

May empalideceu, mas os lábios se contraíram, numa


determinação desesperada. E ela disse, em voz baixa e
trêmula:

— Sei que está agindo assim porque odeia Frey, Ernest.


Não quer ajudá-lo, estimulá-lo a desenvolver toda sua
potencialidade. E não é porque você está interessado em
prepará-lo para os negócios. Afinal, sabe que Frey acabará
por desprezá-los, pois se trata de algo para o qual é
absolutamente impróprio, por natureza. Quer apenas frustrá-
lo, fazê-lo sofrer.

— Mas como você é tola, May! — Ernest ficou vermelho,


fitando-a com terrível hostilidade. — Admito que o fato de
você mimá-lo tanto, virá-lo contra mim, deixa-me às vezes
um tanto frio e irritado com o garoto. Um tanto antipático,
como você poderia dizer. Mas odiá-lo? Minha própria carne e
sangue? Não sou sentimental nessas coisas, como você sabe
muito bem. Mas ele é meu filho, o primogênito. E se não
fosse tão idiota, sentiria o maior orgulho dele. Mas tenho de
agradecer a você por transformá-lo num idiota. Agora, deixe-
me em paz. Tenho muito trabalho a fazer e não quero mais
ouvir suas besteiras. — Ele pegou a pena e pôs-se a escrever
furiosamente. — Oh, Deus, por que não pude ter filhos como
os de Amy?

May ficou ainda mais pálida à menção do nome da prima.


Um brilho amargurado insinuou-se em seus olhos sombrios e
ela repetiu, pensativa:

— Como os de Amy... Posso compreender por que e como


você preferia ter filhos como os dela. Não tenho nada contra
Paul e Elsa, a não ser que eles são pequenos selvagens
brutais. E também não são muito intelectuais. Posso
entender também por que você gosta de Lucy, que se
desmancha toda, abraça-o e beija-o, com sua astúcia
infantil... pela moeda de prata que lhe dá! E John Charles
também pode atraí-lo. Ele ainda é um bebê, mas vi outro dia
como ele gostou de desmembrar uma borboleta. Só que você
não vai desmembrar minha borboleta, Ernest.

Ele empurrou a cadeira para trás bruscamente e levantou-


se, vermelho de raiva.

— Quer calar essa boca? Nunca ouvi tanta bobagem em


toda a minha vida! Não quero mais discutir por causa de um
pirralho maricas, que nem mesmo tem a coragem de cerrar
os punhos. Estou cansado de tudo isso. Vista-lhe uma saia e
que os dois vão para o inferno!
Ernest nunca lhe falara assim antes e alguma coisa parou
e esfriou no coração de May. Nunca mais sentirei a mesma
coisa que antes em relação a ele, pensou ela. Mas ela fitou-o
em silêncio, esperando que acabasse. Ernest pegou a pena
em seu acesso de raiva e partiu-a, como se sentisse a
vontade de fazer a mesma coisa com a mulher.

— Você transformou-o num maricas, May, um garoto que


se esconde por trás de saias. E juro por Deus que não vou
mais admitir que isso continue! Na próxima semana, ele vai
para a Academia Militar do General Smith, em Washington.
Vamos ver se eles conseguem incutir um pouco de virilidade
e coragem em Frey, transformá-lo num homem. Ou matá-lo,
na tentativa.

Ele parou de falar, ofegante, todas as veias do rosto


saltadas. Mas apesar de sua raiva e ressentimento, Ernest
sentiu-se um pouco contido pelo silêncio expectante de May,
por seu rosto pálido e olhos firmes. Alguma coisa naqueles
olhos, intrépidos, não se deixando intimidar, faziam-no
lembrar inevitavelmente dos olhos de Amy, recordavam o
parentesco entre as duas mulheres. Ele jamais percebera
antes qualquer semelhança entre as duas, sentindo-se agora
abalado ao descobri-la. May não deixava transparecer o
choque e desespero que experimentara à menção da
academia militar, a não ser pelo contorcer das mãos,
convulsivo e involuntário.

— Você não vai enviá-lo para essa academia — disse ela


calmamente, sentindo vagamente uma dor no peito. — Não
vou permitir. Nem mesmo que seja necessário tirá-lo daqui,
abandoná-lo. Eles iriam realmente matá-lo... matá-lo por
dentro. Não vou permitir. Não deixarei que você assassine
seu próprio filho. Nunca lhe pedi muita coisa, Ernest,
enquanto lhe dava muito, todo o meu amor, devoção e
fidelidade. Mas cheguei à conclusão de que você me deve
alguma coisa.

May deu um passo para frente, obrigando-o a fitá-la, por


causa do estranho significado de sua atitude.

— Isso mesmo, você me deve alguma coisa. E por causa


disso, vou insistir para que Godfrey tenha a sua
oportunidade de viver, sem que você fique em cima dele,
oprimindo-o e sufocando-o. Isso mesmo, estou insistindo.
Porque você me deve muito...

Ernest, aturdido e perturbado, tentou reagir:

— O que eu...

Ele não continuou. O que ela está querendo dizer com


isso? O quanto será que sabe?, pensou ele, rapidamente.
Olhou atentamente para o rosto de May, tão pálido, tão perto
do seu, tão inflexível, tão estranhamente triste. E então, por
uma das poucas vezes em sua vida, sentiu compaixão. Teve
pena da mulher, sentiu um misterioso pesar por ela, um
remorso angustiante. Dominou-o por completo, parecendo
enfraquecer e dissolver toda a sua carne, descontraindo a
sua expressão agressiva, fazendo-o finalmente virar-se,
como se não mais pudesse continuar a fitá-la. Ficou mexendo
nas coisas que estavam na mesa por um longo tempo,
levantando e largando o tinteiro de latão, passando o polegar
pela lâmina da espátula de papel, cuidadosa e
mecanicamente juntando os fragmentos da pena destruída.

Alguns minutos se passaram, antes que falasse. E quando


o fez, seu tom era mais suave, tentando ser indulgente:

— Tem razão, May, talvez eu lhe deva alguma coisa. Você


tem sido uma boa mulher, não uma mulher preguiçosa,
tagarela e tola, como a maioria das mulheres. Talvez eu
tenha sido um pouco precipitado. E estou disposto a fazer-
lhe uma concessão em relação ao garoto.

May suspirou, tão alto, tão fundo, que era quase um


soluço. Ernest ouviu e novamente a pontada de compaixão
invadiu-o. Mas ainda não podia fitá-la.

— Está certo, May. Leve-o para esse tal francês, descubra


o que ele diz. Mas não se esqueça de uma coisa: se ele disser
que a música é pura perda de tempo para Frey, não
falaremos mais sobre essa bobagem.

Ele se sentou, puxou os papéis, começou a escrever


rapidamente. Ficou esperando pelo riso exuberante de May,
o riso com que ela sempre encenava as pequenas discussões
entre os dois. Esperou pelo calor dos braços de May
enlaçando-o pelo pescoço, a pressão do rosto dela contra o
seu. Por mais estranho que pudesse parecer, subitamente
queria isso com mais intensidade do que desejara qualquer
outra coisa, em muito tempo. Mas nada ouviu, nada sentiu.
Depois de algum tempo, ouviu o relógio de carrilhão no
vestíbulo bater dez horas, ouviu o coaxar distante das rãs.
Embora tentasse evitá-lo, virou-se quase involuntariamente,
sorrindo.

Mas May não estava ali. O lugar em que ela estivera


parada estava agora vazio.
CAPÍTULO LX
A inabalável convicção de May no idealismo de Monsieur
Henri Bouillon, de sua indiferença ao dinheiro, quando
acompanhado pela estupidez e mediocridade, era um tanto
ingênua. Em sua escola realmente muito boa, com cerca de
200 alunos, havia um padrão elevado e rígido de excelência,
exigência incessante e disciplina inflexível para os
estudantes talentosos. Mas havia também relativo ócio,
lisonja e indulgência com os medíocres, que constituíam
apenas um terço do corpo estudantil. Levando-se em
consideração que Monsieur Henri Bouillon possuía a ausência
de aversão tipicamente francesa por dinheiro, isso
representava um elemento surpreendentemente favorável a
seus ideais e reverência pela música. Descobrira que 75 por
cento dos medíocres eram extraordinariamente ricos,
enquanto 50 por cento dos estudantes talentosos eram
extraordinariamente pobres. O que também depunha a seu
favor era o fato de que metade dos alunos pobres recebiam
instrução de graça e ainda tinham casa e comida na escola
sem pagar nada, algo que ele apresentava como oferenda a
uma arte que idolatrava profundamente. Sua mulher, que
também era uma idealista, muitas vezes protestava contra a
aceitação de jovens tolos, que queriam a adulação, além do
dinheiro do pai, para inflar-lhes a vaidade. Mas Monsieur
Henri comentava, amargamente, que se não aceitasse os
tolos ricos, também não poderia admitir os gênios pobres.

— A arte é uma amante gloriosa — dizia esse francês


pragmático, artista e compositor. — Mas como todas as
amantes, exige que a sustentem.

Quando a mulher ressaltava que gênios haviam morrido


em sótãos, assim glorificando eternamente esses fétidos
buracos, ele respondia:

— Mas como é desconfortável! Não vale a pena morrer por


coisa alguma, nem mesmo pela arte. E não posso admitir que
uma cama confortável e um guisado delicioso, temperado
com bastante alho e acompanhado por um bom vinho tinto,
sejam prejudiciais à inspiração. Para mim, há algo esquisito
e afetado no auto sacrifício por qualquer coisa.

May levou-lhe o pequeno Godfrey, foi admitida no estúdio


desarrumado do grande homem. Recebeu ordem de retirar-se
logo depois e saiu com grande apreensão, deixando o filho
com Monsieur Henri e um vasto e empoeirado piano. Ela
sentou-se na antessala desleixada e recendendo a mofo,
escutando as débeis notas que Godfrey produzia. Ele estava
tocando a sua própria composição. Ouvindo agora, May
chegou subitamente à conclusão, com uma terrível
humilhação, de que se enganara, que Ernest estava certo. Já
estava prestes a entrar no estúdio para resgatar o filho
quando Monsieur Henri saiu e bateu a porta, confrontando
May. Ela ficou imóvel, as mãos enluvadas cruzadas, uma
expressão aturdida. Era uma mulher rechonchuda e bonita,
em veludo vermelho-escuro e plumas.

— Senhora — declarou Monsieur Henri — seu filho é


quase um gênio.

E ele levou o lenço aos olhos, num gesto elaborado. Por


um momento, o ceticismo dominou May.

— É mesmo, Monsieur Bouillon? Somos muito ricos, como


provavelmente sabe. Poderíamos pagar um capricho, mesmo
que Godfrey tivesse apenas um pouco de talento. Mas não é
isso o que queremos. Fiz um acordo com meu marido: se o
garoto não tiver realmente talento, eu o levarei de volta para
casa.
Monsieur Henri, um homem imenso e disforme, barbudo,
lançou-lhe um olhar furioso.

— Se ele fosse um moleque de rua, eu o traria para cá de


qualquer maneira e lhe ensinaria pessoalmente! — gritou ele,
com uma raiva quase incontrolável. — A senhora é uma tola!

Ele lançou-se de repente numa cadeira, com tanta


violência, que a madeira rangeu em protesto, balançou
precariamente.

— Não digo isso pelo que ele tocou, quer tenha ou não
composto, nem mesmo por sua técnica, que é indigna. Ah,
como eu gostaria de pôr as mãos no vilão do professor que
lhe ensinou a tocar assim! É um crime submeter uma criança
como ele a monstros femininos que possuem apenas um
débil conhecimento da diferença entre bemóis e sustenidos!
Não, senhora, não foi nada disso que me revelou a verdade.
Descobri-a em seu próprio filho, no rosto dele, os olhos, a
alma!

Assim, Godfrey James Barbour ficou na escola, depois que


Madame Bouillon assegurou a May que cuidaria do garoto
como se fosse seu próprio filho, velaria por sua saúde, não
permitiria que negligenciasse os demais estudos. Se May não
se incomodasse, sugeriu ela com uma modéstia gentil, havia
uma escola para rapazes logo depois da esquina, uma escola
pequena, semiparticular, dirigida pelos bons Irmãos de São
José. Não usariam quaisquer meios subversivos para
converter o garoto ao catolicismo. Havia muitos garotos
protestantes naquela escola, até mesmo judeus. E os
professores eram excelentes, dedicados.

— E que coro! — exclamou Madame Bouillon. — Uma


verdadeira inspiração, numa capela pequena e linda. Mas
Godfrey não precisa participar do coro, embora seja algo que
Henri sempre aprova, como parte da educação musical.
CAPÍTULO LXI
Godfrey ficou quase cinco anos na escola.

E pela primeira vez na vida, o pequeno Godfrey sentiu-se


feliz. Antes disso, vivera num mundo incoerente e
desordenado, que o confrontava como um porco-espinho.
Vivera entre estranhos, cujas vozes eram ásperas e altas
demais, cujos olhos eram por demais ávidos de curiosidade,
cujo contato era um choque e uma afronta. Amara apenas
duas pessoas, a mãe e a irmã Gertrude. E apenas May lhe
dera absoluta ternura e compreensão.

Mas, tirando a mãe e a irmã, a vida era quase insuportável


para Godfrey. Ele jamais contestava a angústia de sua
existência, jamais se perguntava por que tinha de ser assim.
Simplesmente aceitava, como se aceita uma perna torta de
nascença. Às vezes, observando a felicidade e alegria de
outras crianças, ficava aturdido por constatar que podiam
ser descontraídas, livres da tristeza e angústia que o.
dominavam. Às vezes, pensava que era puro fingimento,
incapaz de acreditar em tanta jovialidade, em tão completo
ajustamento à realidade. Mesmo aos oito ou dez anos, ele
não era um garoto inocente, no sentido mais sutil e mais
amplo da palavra. Seu retraimento encobria uma vaidade
intensa, embora tímida, uma insociabilidade, uma aversão
por intimidade excessiva, uma altivez diante das tentativas
de amizade, uma tristeza um tanto cética, embora assustada.

Na Escola Bouillon, entre outros alunos talentosos,


Godfrey conheceu garotos exatamente como ele. E, como era
de se esperar, aderiu prontamente à confraria reservada,
altiva, sem qualquer intimidade. Seu rosto, quando ficou
mais velho, assumiu aquela indiferença clássica que
distinguia os discípulos talentosos dos outros, os medíocres.
Contudo, mesmo naquela confraria de amigos que não eram
amigos, Godfrey não chegou a ter amizades mais profundas.
Aqueles garotos eram como asteroides, pertencendo a uma
constelação, girando bem próximos, os caminhos se
cruzando, projetando suas luzes mutuamente, mas cada um
mantendo a própria órbita, silenciosa e solitária.

Godfrey sabia que o pai era rico, sabia praticamente de


tudo a respeito dele. Mas a percepção no caso dele, por mais
aguda e dolorosamente intensa que pudesse ser, derivava do
medo, aversão e terror de Ernest. Era a uma luz implacável
que via o pai... inteiramente nu. Se o amasse, poderia ter
sido cego. Mas a extensão da fortuna do pai, a imensidade de
seus bens e empreendimentos, não existiam como realidade
para Godfrey.

Até mesmo a paixão do garoto era intelectual. A adoração


que sentia por Monsieur Bouillon estava baseada na completa
aceitação do gênio do mestre. Havia 12 outros professores
na escola, cada um sendo mestre de um instrumento
específico, um artista e compositor de renome. Mas Monsieur
Bouillon selecionara uma pequena turma para si, em que
figuravam todos os que considerava excepcionais. Godfrey
pertencia a essa turma.

Ao ir para casa, em raras visitas, Godfrey sentia-se


angustiado. Sentia os olhos do pai constantemente, sentia a
personalidade dele, mesmo quando não estava em casa. Às
vezes, tinha a sensação de que Ernest era como um gás que
se espalhava pela atmosfera, do qual não podia escapar, que
tinha de respirar eternamente. Quando Ernest tentava
aproximar-se dele, encontrar algum ponto de contato, a
aversão era como uma doença e uma vertigem invadindo
Godfrey. Jamais tentava explicar essa aversão, pois era por
demais profunda e instintiva. Não podia sequer sentir pena
do pai, porque o terror destruía qualquer compaixão que
pudesse surgir nele. Ao perceber a mágoa de Ernest, seu
pavor aumentava, imaginando retaliações como vingança.

A casa estava sempre repleta de primos, pensava Godfrey,


angustiado. Não podia suportar Paul e Elsa particularmente.
Sabia que Paul desprezava-o e desprezava Paul em troca.
Sabia que Elsa era ‘caída por ele’ e isso o ofendia, constituía
uma verdadeira afronta. As faces coradas de Elsa, o olhar
agressivo, a beleza robusta e exuberante, a voz arrogante,
sua atitude prática e objetiva, a aceitação total das
realidades, tudo nela o revoltava e repelia. Pensava em Elsa
como uma novilha, recendendo a feno. O que era um tanto
injusto, pois Elsa não era absolutamente tola ou desprovida
de sutileza. Não gostava de Lucy, com seu comportamento
insinuante e astuto, rechonchuda e corada, olhos vorazes.
Detestava um pouco menos os filhos exuberantes e ruidosos
de sua Tia Dorcas. Os filhos de Florabelle, calados e frágeis,
despertavam-lhe um vago sentimento de compaixão e
suavidade. Pareciam indefesos e aturdidos num mundo
opressivo demais para suas fraquezas, para suas mãos
débeis e indecisas. Eram como as crianças pálidas e
desnutridas dos cortiços de Londres.

A essa altura, ele estava com 16 anos, compusera um


concerto, umas poucas sonatas simples, um ou dois
noturnos. O concerto não tivera a aprovação de Monsieur
Bouillon, que achava que a juventude deveria limitar-se a
coisas mais simples, que não exigiam a cooperação
orquestral.

— Há tempo suficiente para sinfonias, óperas e concertos,


mais tarde — dizia ele, furioso. — Os garotos tolos estão
sempre querendo compor epopeias ou óperas, antes de
saberem o que é um triolé ou uma canção de ninar.
Desdenham a simplicidade, a beleza pura e suave de uma
frase refinada ou um tema sem maiores complicações, coisas
que Shakespeare e Beethoven não desdenharam de usar. Os
bebês querem escalar as montanhas, enquanto os sábios
conhecem as colinas.

Mais tarde, ele escreveu para Ernest Barbour: “Não posso


fazer mais nada por seu filho. Meu amigo, Monsieur Georges
Lorenz, de Paris, que tem reputação internacional e de quem
certamente já ouviu falar, vai recebê-lo, por insistência
minha. Das mãos dele, o jovem Godfrey emergirá pronto
para ocupar o lugar que lhe cabe no mundo da música.”

Ernest leu a carta desdenhoso e sombrio. Se o filho fosse


para Paris, ele o perderia para sempre. Godfrey não mais
existiria para Barbour & Bouchard, assim como Barbour &
Bouchard não existiria para ele. A família saberia tanto dele
como se tivesse sido depositado num cemitério. Quase tão
terrível quanto um mosteiro, pensou Ernest, amargamente,
sentindo uma raiva intensa, como sempre acontecia quando
pensava em Martin em relação com o filho e lembrava a
semelhança física. Ele bateu com a mão na mesa,
violentamente, mandando o mordomo chamar May. Desta
vez, disse a si mesmo, faria o que estava querendo.

May entrou na sala. Com quase 40 anos, ela se tornara


atraentemente rechonchuda, uma touca de renda sobre os
cabelos vermelhos-escuros, com muitos fios brancos. Os
cachos não mais caíam sobre o rosto. Os cabelos estavam
agora lisos, penteados para trás e presos num coque, coberto
pela touca. A pele ainda era bonita, os olhos cintilantes como
na juventude, o pescoço alvo. Ela se tomara filosófica com o
passar dos anos e chegara à conclusão de que a sabedoria
começava e terminava com a aceitação do meio termo.

— Estou aqui, amor — disse ela jovialmente, alisando a


frente do vestido preto de seda e ajeitando o pufe. — Puxa,
como isso fica amarrotado! O que é, Ernest?

Ele jogou-lhe a carta. Hipocritamente, May fingiu lê-la até


o final, embora já soubesse do que tratava. Largou a carta e
fitou o marido com uma expressão radiante.

— Mas isso é maravilhoso! No final das contas, eu estava


certa em relação a Frey. Acha que ele ainda é jovem demais
para ir a Paris? Talvez, quando ele completar 17 anos, na
próxima primavera...

— Ele não vai para Paris de jeito nenhum, minha cara!

May fingiu estar espantada, embora sentisse um aperto


no coração.

— Mas ele está precisando, Ernest. Necessita dessa ajuda


final. Monsieur Bouillon insinuou essa necessidade há cerca
de um ano. Quando Frey deixar Paris, será um compositor de
verdade...

— Não quero um maldito compositor na família! — gritou


Ernest. — Quero um filho que possa ocupar seu lugar nos
negócios do pai! E você fique sabendo de uma coisa: não
quero ouvir os velhos argumentos de que ele não é
capacitado. Um homem precisa apenas passar fome para
estar capacitado a qualquer trabalho. Eu o quero. Tenho
muita coisa a lhe ensinar. E enquanto estiver aprendendo a
viver, ele pode continuar a tocar sua música, se assim
quiser. Pode compor suas baladas e sonatas, para se divertir.
Mas o mundo real está lá fora e ele tem de virar um homem e
enfrentá-lo. Já fui paciente demais. Deixei-o fazer como
queria por cinco anos. Agora, é minha vez.

May sentou-se, olhou firmemente para o marido.


— Não, Ernest, ainda é a vez de Frey. Ele tem a sua
própria vida, fora do seu alcance, não vai voltar a se colocar
sob o seu controle. Ele tem o direito à sua própria vida,
assim como você tinha direito à sua. Você fez o que queria,
embora se alienasse. E poderia ter-me afastado também, se
eu não o amasse tanto. Mas não permitiu que ninguém se
intrometesse em sua vida. Era mais forte do que Frey e tinha
resistência. Ele quase não a tem. Se você pressioná-lo o
suficiente, ele vai acabar por romper e ceder. Se impuser sua
vontade a Frey, ele vai morrer...

— Uma porção de besteiras, mulher... um monte de


absurdos! Fala como se o garoto fosse frágil, um mero lírio
num vale. Ele não vai morrer aprendendo como dirigir
milhões em dinheiro e milhares de homens. Ora, ele tem de
aprender! Caso contrário, o dinheiro vai escorrer de suas
mãos como água. Você sabe perfeitamente que ele não tem a
menor noção de dinheiro. Ah, quando penso o que eu daria...
Escute aqui, minha cara, fui mais do que justo. Pediu-me
quatro anos. Já dei cinco anos, sem me queixar. Agora, está
acabado. Cumpri minha parte. Atendi a vocês dois por tempo
suficiente.

— Ernest, Frey é um gênio e não um diletante. A música é


sua vida e alma.

— Estou cansado dessa conversa de almas! Vamos acabar


logo com isso. Fui bastante razoável. Agora é minha vez.

May falou calmamente, com uma espécie de tenacidade


desesperada:

— Você ainda tem Reggie, Guy e Joey. Não precisa de


Frey. E não vai tê-lo.

Ernest fitou-a, aturdido, furioso, incrédulo.


— Está me desafiando, May?

Ela se levantou, as mãos cruzadas na frente, os dedos se


comprimindo, numa profunda agitação interior. Mas sua
expressão permanecia calma, inabalável.

— Pode falar assim, se quiser. Frey não é mais uma


criança. Tem o direito de escolher. E estou do lado dele. Frey
irá a Paris...

— Contra a minha ordem? Contra as minhas ordens


expressas?

Ernest não podia acreditar que estava realmente ouvindo


aquilo. O rosto ficou vermelho, os olhos brilharam de fúria.

— Ernest, você está sendo tedioso e desagradável,


gritando desse jeito. Nunca lhe desobedeci antes. Sempre
argumentei com você. E quando seus argumentos eram
melhores do que os meus, invariavelmente cedi. Mas desta
vez não vou ceder. Com ou sem seu consentimento, Frey vai
para Paris. Não sou uma indigente. Se você continuar a
bancar o dramático, ameaçando deserdá-lo, ele não vai se
importar. E eu também não vou me importar. Frey jamais se
preocuparia com dinheiro. De qualquer forma, como eu disse
antes, não sou propriamente uma indigente.

A eterna inflexibilidade da natureza feminina espantava


Ernest. Atônito, ele ficou olhando para a mulher, até então
complacente e jovialmente dócil, sempre querendo apaziguá-
lo. De repente, ela se tomara inflexível como pedra, não
podia ser movida, não podia ser quebrada. Ernest não podia
acreditar. O medo de impotência fervilhou em suas veias.
Não podia ser impotente! Também não podia ceder diante da
atitude implacável de May. Não podia de jeito nenhum ceder
a uma mulher! Frey, como um indivíduo, estava esquecido.
Transformara-se numa questão abstrata, a ser usada como
um malho de ferro para destruir aquela inflexibilidade de
pedra.

Ernest forçou-se a relaxar, a abrir as mãos, baixar a voz. E


disse, quase calmamente:

— Está esquecendo, minha cara, que ele é menor de idade


e que sou o pai. Leve-o para Paris... mande-o para Paris. Eu o
trarei de volta. Amparado na lei.

Ele pegou a carta de Monsieur Bouillon e deliberadamente


rasgou-a em pedacinhos, diante da mulher, como se fosse
uma coisa viva, como se fosse carne, como se cada ruído do
ato a ferisse e gostasse imensamente de feri-la.

May estava terrivelmente pálida. Ela tremia, a carne em


torno dos lábios se arroxeara. Os olhos estavam brilhantes e
dilatados, como se uma luz incidisse sobre eles.

— Para salvar a vida de Frey, Ernest, eu seria capaz de


destruir a minha felicidade e a sua. Não apenas a minha e a
sua, mas também a de Amy.

Um silêncio opressivo abateu-se sobre marido e mulher, à


menção desse nome. O último fragmento da carta rasgada
caiu dos dedos de Ernest, que pareciam estar inteiramente
paralisados. O rosto dele tornou-se subitamente lívido.

May suspirou. Parecia ter envelhecido abruptamente,


estar passando mal. Mas continuou, resoluta, virando um
pouco a cabeça, não querendo fitar o marido, como se não
pudesse suportar a visão do que provocara.

— Forçou-me a dizer isso, Ernest. Não me deu alternativa.


Deus sabe que eu não gostaria de dizer isso. Agora, as coisas
entre nós nunca mais voltarão a ser como antes. O
fingimento de que tudo está bem algumas vezes ajuda-nos a
manter a animação, a tomar a vida suportável. O que está
acontecendo agora tornará impossível que continuemos
felizes e amigos. Lamento profundamente... lamento por
você. Mas também lamento profundamente por mim mesma!
Queria continuar a fingir. Agora, você privou-me dessa
possibilidade, da coisa que tornava minha vida confortável.
Mas sinto-me contente em renunciar a tudo por Frey.

— May...

A palavra parecia sair de Ernest com a maior dificuldade,


como se extraída numa tortura.

— Não me importo mais, Ernest. Não estou lhe pedindo


para renunciar a qualquer coisa, não vou vigiá-lo, condená-lo
ou atormentá-lo. Também tenho meu orgulho. E, por favor,
não peça desculpas, não faça promessas. Não tenha pena de
mim... pois eu não poderia suportá-lo! Se o fizer, jamais o
perdoarei. Eu... eu deixarei esta casa para sempre! Tudo o
que quero é que você compreenda que pedirei divórcio se
tentar impedir a ida de Frey para Paris. A fim de ficar com as
crianças, a fim de ficar com Frey, provarei que você é um pai
indigno. E pode estar certo de que envolverei Amy, prima ou
não, com filhos ou não.

— May... — A voz de Ernest era trêmula e rouca, o rosto


parecia completamente abalado e encarquilhado, ao dar um
passo na direção dela. — May, meu amor, você não faria isso
comigo, essa coisa horrível, essa chantagem... não estou
pensando no que ameaçou... um divórcio ou qualquer outro
absurdo assim... estou pensando como é terrível que você
tenha me dito tal coisa. À minha maneira, sempre a amei. E
ainda a amo. Mas— como você pôde me magoar tanto?
Chegando a esse ponto...
— Farei qualquer coisa, Ernest. — May recuou alguns
passos, o rosto brilhando, pálido, exaltado. — Qualquer
coisa! Não hesitarei para salvar a vida de Frey. Não pode
impedir-me, Ernest. Se tentar, será o seu desastre. E o de
Amy. Tudo no mundo está agora perdido para mim, com
exceção de Frey. E não vou mudar de ideia.

Ela virou-se e saiu da sala, andando firme, sem qualquer


pressa. Foi para os aposentos das crianças, onde os dois
garotos menores, Guy e Joey, dormiam profundamente. Pôs a
mão na cabeça de Joey e perguntou-se, com uma inquietação
automática, se era apenas a sua imaginação ou a cabeça dele
estava mesmo quente. Havia uma epidemia entre as famílias
dos trabalhadores que moravam nos casebres ao longo do
rio, em Newtown, e estava se espalhando rapidamente. Até
agora, ainda não atingira Oldtown, embora cada mãe
estivesse na maior apreensão.

Ainda se movendo automaticamente, May cobriu os pés


do filho, abaixou a luz, fechou as janelas. Saiu do quarto,
fechando a porta sem fazer barulho.

Foi para o seu quarto, quase correndo agora. Fechou a


porta, como se estivesse sendo perseguida. Virou a chave,
trancando a porta, pela primeira vez em sua vida conjugal.
Depois, encostou-se na porta, ofegando, desesperada.

Arrastou-se até a cama, deitou inteiramente vestida, ficou


olhando para a parede, que tremeluzia com os reflexos
avermelhados do fogo. Os olhos atormentados
acompanhavam apaticamente os desenhos no papel, que
apareciam e desapareciam na claridade avermelhada. Tinha a
sensação de que devia seguir os padrões do papel
eternamente, inexoravelmente, através do terror e da morte,
avançando por caminhos sinuosos, a fim de deixar para trás
uma agonia monstruosa, a destruição implacável.
Ela ouviu um débil ruído. A luz do fogo aumentou de
intensidade. May viu a maçaneta da porta girando. Ficou
olhando, prendendo a respiração. A maçaneta voltou ao
lugar, não mais se virou.

Depois, ela ouviu a porta do quarto de Ernest fechar. Por


algum estranho motivo, esse último som reforçou a agonia
que a invadia, agredindo-a vingativamente. Ela comprimiu o
rosto contra os travesseiros.
LIVRO DOIS

EU E LÁZARO

“O Governo de seu País?


Eu sou o Governo de seu País.
Eu e Lázaro.
Pensa mesmo que você e meia dúzia de
amadores iguais, sentados em fila
naquela oficina de boatos,
governam a Profundidade e Lázaro?
Não, meu amigo,
vocês fazem o que nos apraz.
Farão a guerra quando nos for
conveniente,
manterão a paz quando assim for
de nosso interesse.
Quando eu quero alguma coisa
para elevar meus dividendos,
descobrirá que minha vontade
se transforma em necessidade nacional.
Quando outras pessoas querem alguma
coisa
para baixar meus dividendos,
você chamará a polícia e o exército.
Em troca,
contará com o apoio dos meus jornais
e a satisfação de imaginar-se
um grande estadista

MAJOR BARBARA — George Bernard Shaw.


CAPÍTULO LXII
Gertrude estava lendo em voz alta no caramanchão:

— Nosso nascimento é apenas um sono e um


esquecimento;
A Alma que se eleva conosco, Estrela da nossa vida,
Teve o seu poente em outro lugar
E veio de muito longe;
Não em esquecimento total
E não em extrema nudez,
Mas trazendo nuvens de glória é que viemos
De Deus, que é o nosso lar;
O Paraíso nos envolve na infância!

— Mas que besteira! — exclamou Elsa Barbour, agitando-


se bruscamente no assento, até que seu vestido de seda azul
farfalhasse satisfatoriamente. — Parece coisa de Philippe.
Ah, deve ter sido mesmo com ele que você arrumou essa
coisa, Trudie!

Ela se inclinou rapidamente e arrancou o livro das mãos


de Gertrude, embora a prima tentasse em vão impedi-la. Elsa
abriu o livro no início e riu, com um triunfo malicioso.

— Aqui está! “À querida Gertrude, no seu 17º aniversário!”


Mas ele esqueceu de acrescentar “com amor e beijos do seu
Philippe”!

— Não seja irritante e me devolva o livro, Elsa. — O rosto


pálido de Gertrude estava subitamente vermelho de
embaraço e contrariedade. — Se você não gosta de
Wordsworth, há outros que gostam. Nem todos são bárbaros.

— Não gosto mesmo, pois me parece coisa de maricas —


disse Lucy, sorrindo, no viço dos seus 16 anos.

Era uma moça pequena e rechonchuda, com a pele


rosada, olhos um tanto pequenos e faiscantes, escuros, a
boca grande e vermelha, deixando à mostra dentes brancos e
pequenos, bem separados nas gengivas rosadas, cabelos
cacheados castanho-escuros, presos com uma fita vermelha,
que combinava com o vestido.

— Pois eu acho bonito — protestou a pequena Renée


Bouchard, de 10 anos, que adorava a prima Gertrude.

Mesmo na infância, o rosto de Renée não era jovem. Era


muito estreito, rígido, descarnado, pálido, destituído de toda
e qualquer inocência. Tinha um nariz proeminente,
agressivo, a boca larga e pálida, os lábios sempre
comprimidos. Os olhos, compridos e estreitos, jamais se
abriam muito, quer em alegria ou no riso. As pupilas tinham
o hábito desagradável de se deslocarem rapidamente de um
lado para outro. A bela e loura Dorcas, sua mãe, não se
consolava com a ausência de beleza de Renée, não podia
aceitar os cabelos lisos e pretos, como de uma índia, que
sempre davam um jeito de escapar às fitas, sem falar no
corpo esguio e vigoroso, que estava fadado a jamais ser
gracioso. Assim, Dorcas tinha de se contentar com o seu
lindo Etienne, o distinto Honore e seus queridos, os gêmeos,
André e Antoinette, rosados e louros, exuberantes e
afetuosos.

Aos 18 anos, Elsa era uma coquete, mas astuta e ansiosa.


Não a cortejavam por si mesma, por sua beleza, embora
fosse moça atraente, grande e vigorosa, repleta de vitalidade,
olhos azuis-escuros esfuziantes e ardentes, a boca vermelha
e cheia, o nariz curto, reto e bem delineado, os cabelos
escuros, ondulados, lustrosos. O corpo era ‘puxado para o
lado da deusa’, como dizia Tia May, mas ainda permanecia
juvenil e simétrico. Tinha comportamento franco e jovial.
Contudo, ela não era popular entre os homens de que
gostava, apesar de ter muitos pretendentes, atraídos pelo
fulgor da fortuna dos Barbours. É verdade que sua mãe viúva
não era tão rica quanto o marido de Tia May, Tio Eugene e
Tia Florabelle. Mesmo assim, dispunha de bastante dinheiro
e corria o rumor de que Elsa e Lucy teriam dotes
consideráveis. Elsa, no entanto, embora não fosse
intelectual, era astuta e sagaz, não estava disposta a permitir
que a amassem somente por seu dinheiro, pelo menos por
enquanto. Queria romance, secretamente desejava-o, apesar
de sua personalidade prática, repleta de bom senso.

Elsa não tinha a menor sutileza e não escondia que


desejava ardentemente a atenção do seu primo Godfrey.
Também não hesitava em expressar à prima Gertrude a
preferência que seu irmão Paul tinha por ela. Acalentava a
esperança, mais ou menos evidente, de algum dia tomar-se a
mulher de Godfrey, enquanto Paul se tornaria o marido de
Gertrude. Dessa maneira, pensava ela, comentando com a
mãe e a irmã Lucy, todos ficariam felizes e o dinheiro dos
Barbours continuaria na família. Ficava consternada pelo fato
de que a irmã Lucy já estava noiva de um cavalheiro de Nova
York, com 24 anos, bonito, galante, rico, com um bigodinho
preto dos mais atraentes. (Ele era oito anos mais velho que
Lucy, não agradava muito a Amy, mas era de uma família
proeminente.)

As quatro garotas (inclusive Renée, a quem Lucy


impertinentemente referia-se como “aquela menina
abelhuda, sempre se intrometendo com as pessoas adultas”),
estavam sentadas num caramanchão branco, coberto de
hera, situado numa encosta na propriedade dos Sessions.
Elsa trabalhava desajeitadamente em renda para ser usada
em almofadas, Lucy bordava guardanapos para seu enxoval,
Gertrude lia em voz alta e Renée, a seus pés, tentava
entrelaçar uma cesta de ráfia.

Uma claridade verde translúcida espalhava-se pelo


caramanchão, salpicada de losangos dourados do sol poente,
penetrando pelas treliças, incidindo sobre os rostos das
moças, vestidos de seda, agulhas faiscantes. Gertrude estava
sentada empertigada, um pouco afetadamente, as costas
apoiadas na parede. Muitos diziam que não era uma jovem
bonita. Alta e esguia, sem nada de graciosa, tinha, porém,
uma angulosidade atraente e juvenil, pois os ombros eram
finos e largos, os quadris deselegantemente estreitos, os
movimentos rápidos e um pouco bruscos. Estranhamente, já
que ela era de fato muito reprimida, sempre controlada,
frequentemente dava a impressão de confusão e turbulência,
perplexidade intensa. Os cabelos eram lisos e sem lustro,
emoldurando o rosto pequeno e pálido como uma nuvem de
fumaça opaca. Mas possuía os ossos do rosto delicados e
refinados, os contornos dos malares, especialmente,
apareciam através da pele morena, como marfim. May dizia
que a filha tinha os olhos da avó Beveridge, largos, um
pouco arregalados, irrequietos, com uma expressão aturdida.
Eram excepcionalmente bonitos para as pessoas perspicazes,
com uma tonalidade avelã que parecia ser um preto intenso,
quando os olhos se moviam ou estavam intensamente
excitados. A boca, embora quase sem cor, também tinha um
formato adorável. Quando ela sorria, era como se o rosto
pequeno explodisse em radiância, exuberante, inteligente.

Ela não gostava muito das primas e julgava-as estúpidas.


Mas May a criara muito bem e ela sabia esconder sua
impaciência e irritação com perfeição. Renée a comovia.
Achava que a menina feia era patética, podia perceber que
Renée, aos 10 anos, superava Lucy e Elsa em espírito e
sutileza. Às vezes, quando conversava com Renée, sua voz
um tanto fria se animando, Gertrude sentia que a menina
compreendia tudo perfeitamente, até as menores nuances.
Às vezes, a moça de 17 anos e a menina de 10 anos trocavam
olhares involuntários de desdenhoso divertimento, quando
Elsa e Lucy estavam presentes. A exuberância intensa,
curiosidade clamorosa e ausência de compostura das duas
irmãs representavam um tormento para os nervos de
Gertrude e Renée. Havia ocasiões em que Gertrude tinha a
sensação de que as mãos fortes e indelicadas das irmãs
seguravam-na rudemente, apalpavam-na, examinavam-na,
viravam-na, como se não passasse de um objeto de
curiosidade infantil.

— Eu me sinto como Gulliver sendo manuseado pelo bebê


Brobbingnagian — disse ela um dia à mãe.

Gertrude não ignorava que Elsa e Lucy consideravam-na


particularmente uma ‘pobre coitada’, não muito inteligente.
Achavam que sua boa educação era um sinal de falta de
caráter, que sua reserva indicava covardia. Quando ela
deixava de reagir a uma franqueza vulgar, as duas irmãs
consideravam-na terrivelmente insípida, afetada ou
condescendente. Elsa, que adorava o irmão gêmeo Paul, não
podia compreender a paixão servil por Gertrude. Mas como
Paul parecia absolutamente decidido, Elsa estava empenhada
até o fim em ajudá-lo a alcançar o objetivo. Além disso, a
gananciosa Elsa não suportava a perspectiva de que Paul,
cuja parte na fortuna da mãe seria inevitavelmente modesta,
pudesse ser ‘privado’ da vasta herança que Gertrude um dia
haveria de possuir. Ela própria tinha uma paixão intensa por
Godfrey, decidindo afetuosamente que, quando casassem,
haveria de curá-lo de sua ‘bobagem de música’, assegurando
assim a sua própria felicidade e a satisfação de seu adorado
Tio Ernest. Por causa de todas essas vantagens atraentes,
Elsa cultivava Gertrude, a quem no fundo desprezava. E
visitava quase constantemente a casa da família Sessions.

Porque Wordsworth foi recebido antipaticamente por Elsa


e Lucy, Gertrude fechou o livro gentilmente, pondo-o a seu
lado, no banco com almofada que se estendia por todo o
interior do caramanchão de formato octogonal. Ela cruzou as
mãos pequenas e morenas no colo e sorriu para Renée.

— Mas que confusão você fez com essa cesta, menina!


Deixe-me cuidar disso. Não sou muito melhor do que você,
mas acho que pelo menos posso encontrar a ponta que está
procurando.

— Não sei por que ela se incomoda — disse Lucy,


balançando-se maliciosamente e lançando um olhar
desagradável para a pequena prima, com os olhos brilhando.
— Tenho certeza de que ninguém vai mesmo querer essa
coisa horrível.

— Mamãe vai querer — disse Renée, olhando para Lucy


com suave hostilidade. — Ela não tem cesta de costura e
disse-me que gostaria de ter uma de ráfia.

Elsa declarou, com um ar adulto, categórico:

— Sua mãe estava apenas querendo ser gentil com você. E


que cores horrendas você escolheu, roxo e verde! Não podia
haver uma combinação pior!

Gertrude contraiu os lábios por um momento e depois


disse, friamente, a voz controlada:

— Pois eu acho muito bonita. É bem grande, diferente


daquelas coisinhas douradas sem gosto que as mulheres
costumam usar como cestas de costura. Você tem
irmãozinhos fortes, Renée, sempre furando as meias. Tenho
certeza de que sua mãe vai gostar desta cesta, que é grande
o bastante para caber todos os carreteis dela. Se tiver tempo,
querida, gostaria que fizesse uma igual para o meu
aniversário.

Renée presenteou-a com um sorriso triste, mas não disse


nada. Gertrude pôs a mão impulsivamente na cabeça preta e
desgrenhada, num gesto de proteção.

— Aqui está a ponta, querida — disse ela. -Não acha que


um pouco de amarelo ficaria bonito entre o roxo e o verde?
Acho que esta seria a tonalidade certa.

Gertrude comparou a ráfia, com uma expressão crítica.

— Oh, céus! — Lucy inclinou-se para a frente, olhando


para o contraste e depois desatando a rir. — Mas que coisa
horrível! Pensei que tivesse um mínimo de bom gosto,
Gertrude! Elsa, dê só uma olhada no amarelo-mostarda que a
pirralha vai pôr ao lado do roxo!

— Horrível! — foi o veredicto de Elsa.

Renée fitou-as com profundo desdém e aversão, dizendo:

— Vocês duas é que são horríveis. Mamãe diz que vocês


não têm a menor educação e acho que ela está certa.

— Oh, Renée! — exclamou Gertrude, em voz chocada.

Mas ela não pôde deixar de sorrir, incontrolavelmente. As


expressões hilariantes de Lucy e Elsa se desvaneceram,
substituídas por sorrisos hostis.

— Sua mãe não é uma dama, enquanto a minha é — disse


Lucy bruscamente. — Minha avó era uma Sessions e meu avô
era um cavalheiro. Mas seu pai é um camponês francês, que
teve de fugir da França porque iam prendê-lo só Deus sabe
por quê. E sua mãe...
— É a irmã de meu pai! — interveio Gertrude,
rispidamente, a voz tremendo de raiva. — E irmã de seu pai!
Estou envergonhada de vocês duas, Elsa e Lucy. Se não
podem ser delicadas com a pobre Renée, se não sabem ser
damas, tenho certeza de que prefiro que não me visitem
mais com tanta frequência...

— Isso é demais! — gritou Lucy, levantando-se tão


bruscamente que a costura caiu no chão, onde Renée
furtivamente a esfregou com a botina preta. — Pode estar
certa, minha cara dama Gertrude, que não tenho a menor
vontade de visitá-la! Só venho porque Elsa me pede e porque
ela está caída por Godfrey e quer que você case com Paul!
Mas juro que não entendo por que alguém pode querer casar
com Frey... ou com você, com esse seu jeito metido a besta...

Os olhinhos pretos faiscavam de raiva, a respiração saía


entrecortada da boca furiosamente vermelha.

Calmamente, sem a menor pressa, Elsa desferiu um chute


na canela da irmã. O uivo enfurecido de Lucy encheu de
clamor o caramanchão, seus pulos de dor sacudiram o frágil
assoalho de madeira. Ela desferiu um chute de retaliação,
depois de um momento, num turbilhão de saias. Mas Elsa
desviou as pernas com agilidade no assento e gritou
jovialmente para a irmã. Gertrude prorrompeu numa histeria
de riso. Renée, rindo sem controle, rolou para o lado,
desviando-se das botinas de Lucy, que furiosamente ainda
procuravam Elsa. Para facilitar seus esforços, Lucy levantara
as saias e as incontáveis anáguas brancas, deixando à mostra
uma boa parte das meias brancas, envolvendo as pernas
roliças.

— Vou matá-la! — gritou ela.

Ela ofegava, respirando fogo. Acabou largando as saias.


As mãos, encurvadas como garras, avançaram para a irmã,
puxando-lhe os cabelos pelos ombros, abrindo as tiras azuis
que lhe cobriam o peito. Elsa, extenuada, fraca de tanto rir,
rolou no assento, procurando esquivar-se da melhor forma
que podia. Mas quando uma das unhas de Lucy roçou por
seu rosto, deixando uma estria vermelha, o riso de Elsa
cessou abruptamente. O rosto grande e rosado ficou
horrendo e contorcido por uma raiva súbita. Ela era muito
maior do que Lucy. Com um movimento brusco da mão
vigorosa, derrubou a irmã no chão, numa confusão de saias,
pernas a se agitarem, cabelos desgrenhados. Gertrude
levantara as pernas para o assento e Renée estava de pé,
pulando sem parar, gritando no maior excitamento,
incitando as irmãs a continuarem a briga.

— Meninas! — gritou uma voz chocada e meio risonha lá


fora, enquanto uma sombra se projetava pelo caramanchão.
— O que é isso, meninas?

O tumulto subitamente cessou. Lucy, no chão,


prorrompeu em soluços furiosos, enquanto Elsa enxugava o
rosto que sangrava.

— Mas que gata terrível! — disse ela, enquanto May


entrava no caramanchão. — Desculpe, Tia May, mas alguém
devia torcer o pescoço de Lucy.

— Mas que coisa horrível! — exclamou May, divertida,


mas procurando exibir uma expressão rigorosa. — Vocês não
são mais crianças para brigarem desse jeito, Elsa e Lucy. E
você, Lucy, uma moça que já está noiva...

— Tem razão, Tia May — murmurou Lucy.

Ela se levantou, começando a enxugar os olhos úmidos.


Depois, seu rosto tornou a ficar vermelho de raiva e ela
bateu o pé.

— Mas o que se pode fazer com uma solteirona ciumenta,


que nem mesmo consegue arrumar um namorado, e que fica
dando chutes nas outras pessoas por pura mesquinharia? Ela
está apenas com ciúme de mim, porque vou casar em breve.
Enquanto isso, eia não passa de uma megera de 18 anos, que
já ficou para titia!

— Eu não haveria de querer o seu Oswald de cara de


menina, nem que ele fosse o último homem do mundo! —
respondeu Elsa, apalpando o rosto delicadamente. — Há anos
que ele vem cultivando um bigode e não consegue fazer com
que seja maior que um buço!

Lucy bateu com os pés freneticamente.

— O nome dele não é Oswald, mas Percival! E é um


homem, mais do que você pode conseguir, com todos os
seus olhos grandes e os flertes desavergonhados!

Ela sacudiu os punhos cerrados diante do nariz de Elsa,


que involuntariamente recuou.

— Não o chame outra vez de Oswald ou eu... eu...

May escutava e observava com um débil sorriso, em que


havia uma insinuação sutil de crueldade. Ah, as filhas de
Amy! Ela olhou para Gertrude, que se levantara formalmente
à entrada da mãe e estava em silêncio, a cabeça um pouco
abaixada, uma expressão indiferente e distraída. Ela parece
uma bétula nova, pensou May. O vestido de Gertrude, cinza-
pérola, com listras de uma seda cinzenta mais escura,
envolvia-a como uma segunda pele, do pescoço aos quadris,
estendendo-se a partir daí sobre um pufe nas costas, para
depois cair livremente numa cascata, como estava em moda.
O vestido exibia todas as linhas e curvas delicadas do busto,
da cintura fina e dos quadris esguios. Por cima da gola
simples, os cabelos cacheados emolduravam o pequeno oval
do rosto. Ela não é uma moça bonita, pensou a mãe, pela
milésima vez, mas é fascinante, o que é muito melhor. E é
também uma dama, fazendo com que Elsa e Lucy pareçam
simples camponesas.

May sentou-se, ainda sorrindo, abanou-se com um lenço


de cambraia, que exalava uma névoa invisível, recendendo a
rosa. Seu rosto rechonchudo e ainda liso estava vermelho, os
cabelos avermelhados, com fios brancos, caíam em espirais
pelas faces suadas.

— Deus do céu, mas que dia quente! Quente demais,


tenho certeza, para moças brigarem. Sente-se, Lucy. E você,
Elsa, trate de baixar as pernas. Está nua até os joelhos.
Renée, querida, pare de pular com este calor. Vai acabar
passando mal. Deixe-me prender sua fita direito. Está caída.

Ela restaurou a ordem com sua voz agradável e bem-


humorada, com seu tom afetuoso e divertido. Lucy sentou-se
deliberadamente à maior distância possível da irmã, fitando-
a com uma expressão ainda furiosa. Renée, docilmente,
permitiu que a tia ajeitasse e prendesse a fita, devolvendo-
lhe um mínimo de ordem. Seus olhos estreitos
contemplavam May com profunda adoração. Gertrude tornou
a se sentar, cruzando as mãos no colo. Com a chegada de
May, ela se calara, um pouco rígida e tensa, como se não se
sentisse à vontade.

Prendendo a fita nos cabelos de Renée, May olhou para a


filha, com uma reprovação maternal. O olhar era bastante
afetuoso, mas como sempre exibia ligeira irritação e
antagonismo.
— Tenho certeza, Trudie, de que se você tivesse
cumprido seu dever de anfitriã, as garotas jamais teriam se
empenhado numa briga assim — disse ela, tentando
imprimir à voz um tom jovial, mas conseguindo apenas
torná-la um pouco maliciosa.

Gertrude ficou um pouco vermelha e comprimiu os


lábios, mas não disse nada. Mamãe sabe que está sendo
injusta, pensou ela, com amargura. E isso a torna ainda mais
injusta. Ela ficou olhando soturnamente para um losango de
sol no chão.

— Não foi... não foi culpa de Gertrude — disse Renée,


resolutamente, tirando os cabelos das mãos da tia e virando-
se para fitar May. — Ela apenas estava lendo uma poesia
linda, Elsa disse que não prestava e implicou com Gertrude.
Depois, ela e Lucy caçoaram da cesta que estou fazendo e
Gertrude disse...

— Fique quieta, Renée! Como posso prender seus cabelos


se você fica sacudindo a cabeça desse jeito? Além disso,
você fala demais para uma garota da sua idade. E tenho
certeza que você não fez nada para ajudar, pulando sem
parar, batendo palmas e gritando como uma índia!

Uma expressão de prazer estampou-se no rostinho


moreno e estreito de Renée.

— André e Antoinette gostam quando eu e Honore


brincamos de índios para ele, fingimos que estamos
escalpelando os dois. E Antoinette, a bobinha, desata a
gritar!

May deu-lhe um pequeno empurrão jovial.

— Vamos, trate de se sentar, como uma criança civilizada!


Tenho uma coisa para dizer às meninas. Se você for
boazinha e escutar em silêncio, poderemos depois ir para
casa, tomar ponche e sorvete.

Ela olhou radiante para as meninas mais velhas e depois


tirou uma carta das dobras do vestido malva de seda. O
rosto rechonchudo parecia por demais vermelho e de meia-
idade. O pescoço, no entanto, ainda era roliço e alvo, o peito
cheio e bem torneado. Os olhos redondos continuavam a
possuir o brilho infantil e brejeiro, a boca pequena ainda
tinha o riso fácil e as covinhas. Quando seu rosto, na
presença de outras pessoas, ficava contraído e triste, como
se esquecesse momentaneamente um papel que se
determinara, ela tratava imediatamente de compensar,
recuperando a jovialidade e bom humor. Somente Ernest e a
filha Gertrude percebiam a tensão por trás dessa atitude. Por
causa disso, sentiam-se constrangidos, Ernest com bons
motivos e compreensão.

— Acabo de receber outra carta de Frey — anunciou ela,


efusivamente.

May correu os olhos pelo pequeno círculo e ficou


satisfeita ao constatar a reação feliz que provocara. Gertrude
levantara a cabeça bruscamente, naquele seu gesto estranho
e suavemente frenético. Elsa estava radiante, Lucy sorria
polidamente. Frey nunca tivera as boas graças de Lucy.
Renée pulou no assento e cruzou as mãos, deliciada, não
porque Godfrey lhe dispensasse uma atenção particular ou
porque gostasse muito dele, mas porque sabia da alegria que
Gertrude estava sentindo. May desdobrou a carta
solenemente, tirou uma folha menor do meio, lacrada.

— Isto aqui, Trudie, é o bilhete habitual de Frey para


você. Ainda não entendi por que ele sempre manda lacrado.
Parece até que receia que eu possa ler... E agora vou ler a
minha carta em voz alta para vocês.

“Frey diz o seguinte: ‘Paris se torna mais maravilhosa a


cada dia que passa, especialmente agora que é primavera, as
árvores desabrochadas, um céu muito azul. É muito fácil
viver aqui, uma cidade descontraída, cordial e risonha. Todo
mundo come, dorme e bebe quando bem quer, não há tensão
ou rispidez em parte alguma.

“Passeio pelo Bois e contemplo as castanheiras. Penso em


casa, como as folhas devem estar nascendo, extremamente
verdes, espalhando-se por toda parte, como as sombras e o
sol estendem-se pelos gramados, parecem dançar no lago e
no jardim. Penso também no velho muro cinzento nos
fundos, coberto de musgo e hera, nas rãs coaxando à noite
ao luar, em meu próprio quarto, com as janelas abertas e a
brisa entrando. E sinto também um pouco de saudade de
todos vocês.

“Mas sei que não está interessada em meus tolos


pensamentos e quer saber como estou me saindo, mamãe.
Vamos ter um concerto amanhã de noite na Academia de
Música. A orquestra da ópera vai tocar. Três composições de
estudantes deverão ser apresentadas e uma delas é minha!
Meu prelúdio em dó maior! É uma grande honra e meu
mestre acha que posso ganhar o Grand Prix. Não pode
imaginar o que isso significa para mim e para o meu futuro!
É o começo de todas as suas esperanças para mim, de tudo o
que quero ser, tudo o que posso ser! Monsieur Edmund
Brisson, o maestro, afirma que é igual a qualquer obra
similar de Mozart. E como ele é o mais brusco e indelicado
dos homens, isso constitui um elogio incomparável!

“Mamãe querida, como posso algum dia retribuir-lhe...

May parou de ler abruptamente. Sua voz estava


embargada, tremia. Ela limpou a garganta, piscou várias
vezes.

Uma expressão tensa e radiante estampara-se nos bonitos


olhos escuros de Gertrude. Elsa sorria polidamente, mas com
as sobrancelhas alteadas, numa expressão de superioridade.
(Pobre Frey, com sua música tola e frívola! Quando casarmos,
ele vai esquecer essas bobagens!) Lucy estava entediada. Ela
podia estar sorrindo, mas seus olhos fixavam-se em Elsa com
um brilho maléfico. Considerava Godfrey o mais estúpido
dos rapazes que conhecia, o mais tedioso. Nem sempre tinha
tato suficiente para esconder suas opiniões da mãe e irmã.
(O querido Tio Ernest deveria ter metido um pouco de juízo
naquela cabeça oca à custa de surras, quando ele era
pirralho! Paris é mesmo para gente como ele! Mas aposto que
Frey está mais interessado nas garotas francesas do que
nessa besteira de tocar piano!) O sorriso dela tornou-se um
tanto desdenhoso.

— Tenho certeza de que vocês não estão interessadas nas


opiniões de Frey a respeito de sua mãe — disse May, agora
enxugando os olhos abertamente. — Assim, vou ler o resto
da carta: "Agradeça a papai por seu último cheque. Foi mais
do que generoso. Estou mandando uma caixa para Reggie e
Guy e há também uma coisa para Joey. Diga às meninas que
rosa e azul parecem ser as cores da moda em Paris este ano;
pelo menos é o que todas as mulheres que encontro nas ruas
parecem estar usando. Também está em moda imensas
sombrinhas e muitos babados.” (Godfrey se dera ao trabalho
de observar conscientemente esses fenômenos, a fim de
transmiti-los à irmã e primas.)

— Mas que absurdo! — exclamou Elsa, em voz alta, um


tanto estridente. — O último exemplar de Les Modes de
mamãe diz claramente que o azul e o rosa estão fora de
moda e que o amarelo é a grande cor deste ano!
— E as sombrinhas são tão grandes porque os chapéus
são muito pequenos, apesar de todas as suas plumas —
acrescentou Lucy, espichando os lábios desdenhosamente. —
Ele não diz coisa alguma sobre os corpetes? Não informa se
estão altos ou baixos neste verão, se são simples ou
franzidos?

May comentou:

— Acho que o pobre Frey está apenas dizendo bobagens.


É a sua maneira de tentar ser normal, fazendo um esforço
para dizer o que mulheres tolas esperam dele.

— Por que ele tem de fazer o que se espera dele? —


perguntou Renée, estridentemente.

May fitou-a com ironia e murmurou:

— É da boca das crianças... Renée, meu amor, pode estar


certa de que não tenho a menor ideia. Se adivinhar a
resposta, será mais sábia do que qualquer outra pessoa no
mundo.

— Oh, mamãe, continue a ler!

Gertrude falou impacientemente. Queria que a mãe


terminasse a leitura, a fim de poder escapar sozinha com o
seu bilhete.

May contraiu os lábios e esquadrinhou rapidamente as


folhas em sua mão. Ainda era uma mulher bondosa e
lamentava profundamente a visão da expressão ansiosa e
sôfrega de Elsa, os lábios vermelhos entreabertos. Ela está
parecendo quase bonita agora, pensou May, tentando sufocar
sua simpatia e compaixão. Creio que ela realmente ama Frey.
Como se o meu querido pudesse algum dia sequer olhar para
essa criatura imensa e espalhafatosa... Pobre coitada! Assim,
May fingiu ler:

— Transmita o meu amor a Elsa e diga-lhe que em breve


responderei à sua carta. Pode garantir-lhe que não me
esqueci dela, mas sou um péssimo correspondente. Assim,
ela deve perdoar-me e não se esquecer de mim, até a visita
que farei no próximo Natal.

As lágrimas afloraram aos olhos azuis de Elsa, atenuando


o seu ardor, quase lhes proporcionando uma suavidade
comovente.

— Como se eu pudesse algum dia esquecer dele! — gritou


ela, fervorosamente. — Oh, Tia May, não podia rasgar só
essas linhas e me dar?

Gertrude sorriu ligeiramente, com um toque de malícia.


Olhou revoltada para a mãe encabulada. Mamãe tem de
aprender a não mentir assim, nem mesmo a Elsa, nem
mesmo para proporcionar-lhe um prazer tolo. Era errado, um
insulto a Frey. Ela sentiu uma pontada de raiva.

— Lamento muito, querida — balbuciou May — mas tem


uma coisa no outro lado que é muito particular. Você pode
compreender, não é mesmo?

Elsa ficou profundamente desapontada. Mas a atitude de


May era tão gentil, tão estranhamente suave, quase
suplicante, que a exigente moça ficou comovida.

— Claro que compreendo, Tia May. Acho até que nem


deveria ter pedido...

May não podia suportar a visão daqueles olhos marejados


de lágrimas, dos lábios trêmulos. Baixou novamente os olhos
para a carta.

— Frey diz também que Paris está muito quieta e triste


desde a guerra. Afinal, não faz tanto tempo assim que
terminou. Eles envolveram em preto a estátua de Alsácia-
Lorena. Há tanta pobreza. Foi terrível para Frey ter de voltar
quando a guerra começou e assim perder quase dois anos.

— Como os alemães são descorteses! — exclamou Lucy,


ironicamente. — Afinal, deveriam ter-se lembrado de Frey e
sua música.

— Como pode dizer uma coisa dessas? — bradou May,


indignada.

Ela não tinha o menor senso de humor quando o caso


envolvia o filho querido.

— Papai disse que Barbour & Bouchard ganhou milhões só


com essa guerra! — gritou Renée, muito excitada, começando
a pular novamente no assento.

Lucy levantou a cabeça, alerta. O sol incidia em cheio em


seus olhos, que apareciam como realmente eram, não pretos,
mas de um azul muito escuro.

— Isso não é coisa de que deva se gabar, Renée — disse


ela, a voz mudada, estranhamente áspera.

Fitando-a, surpresa, May ficou aturdida. Nunca antes


notara qualquer semelhança entre o falecido Martin e suas
filhas. Mas a semelhança surgia agora, tênue, quase
imperceptível, no rosto subitamente solene de Lucy.

— Não há motivo para se orgulhar do fato de saber que


seu dinheiro vem de coisas que explodem, em pedacinhos,
homens contra os quais você nada tem, menina. Não há
prazer em enriquecer às custas das vidas e do sangue... dos
outros.

— Essa não, Lucy!

May estava atônita, sentia uma profunda apreensão. Mas


era evidente que não devia ter entendido direito o que Lucy
dissera. Afinal, Lucy não passava de uma menina turbulenta
e atrevida.

— Você não precisa se preocupar com isso — disse


Gertrude, num tom de profundo desprezo. — Os lucros que
sua mãe recebe das ações vão para o Hospital Memorial
Martin Barbour. Assim, não há qualquer opróbrio sobre você.

— Lucy está apenas com inveja — declarou Elsa, em voz


entediada. — Ela não está absolutamente interessada por
‘vidas e sangue’. Pensa apenas no que poderia fazer com o
dinheiro.

May prendeu a respiração, esperando outra explosão


furiosa de Lucy. Mas, para seu crescente espanto, a moça
ficou calada. A semelhança com Martin estava se
desvanecendo de seu rosto, mas ainda se podia perceber.
Havia alguma dignidade em seu silêncio, como se ela não
tivesse ouvido o que a irmã dissera.

May se levantou.

— Muito bem, queridas, o calor está cada vez pior. E está


quase na hora do jantar. Renée, tenho a impressão de que vi
seu pai chegar com Tio Ernest, para levá-la para casa. Vamos
logo para casa, a fim de fazermos nosso lanche?
CAPÍTULO LXIII
May e as quatro meninas subiram pela encosta gramada,
na direção da casa, levantando cuidadosamente as saias e
evitando os aros de críquete.

As janelas superiores da vasta casa pareciam arder em


chamas. Os raios do sol transformavam a hera em bronze,
tornavam a chaminé avermelhada. As venezianas brancas
ardiam. Os cavalos relinchavam no estábulo. Pombos voavam
sobre os telhados avermelhados da casa e das construções
secundárias, as asas parecendo faiscar. Os tordos
sobrevoavam a relva. As sombras das árvores dispersas
estendiam-se pela distância. O horizonte a oeste era uma
verdadeira explosão de tonalidades avermelhadas.

Enquanto subia, um pouco ofegante pela crescente


corpulência, May contemplava a casa, experimentando como
sempre uma sensação de bênção, paz e conforto. A angústia
podia jamais ter deixado inteiramente o seu coração, desde
aquela noite da discussão com Ernest. Mas pelo menos se
atenuara um pouco, tornava-se suportável diante da
segurança, beleza e solidez de sua casa.

Gertrude contemplava a casa em que nascera,


idolatrando-a em silêncio. Havia ocasiões em que ela
pensava que a casa era um imenso coração, contendo todas
as coisas maiores, as coisas mais profundas e mais reais que
o seu coração era pequeno demais para abrigar. Era o cofre
que continha suas recordações, uma galeria repleta de
retratos, um álbum contendo rostos e costumes, cores e
impressões de toda a sua vida, algumas ainda vividas, mal
secando do “banho” de emoção, outras meio desbotadas, a
pungência vaga. Algumas eram confusas, luzes e sombras
indefinidas, outras eram extremamente nítidas pela
amargura, os contornos bem delineados pelas lágrimas. Mas
aquele álbum de uma casa recebia dela uma paixão ardente
que era como a do pai. Gertrude sentia que a casa possuía
uma personalidade, vigorosa e definida, impregnando cada
aposento, cada corredor, cada assoalho, como o sangue
impregna cada célula. Quando os pais falavam jovialmente
de seu casamento, Gertrude era dominada por um protesto
silencioso e furioso, até mesmo pelo terror. Deixar sua casa?
Oh, não, nunca!

Ela sabia que havia alguma coisa errada entre os pais. Não
que eles brigassem, fossem descorteses um com outro, se
tratassem friamente ou mesmo formalmente. Como também
não pareciam entediados pela companhia um do outro. Os
dois eram extraordinariamente gentis e atenciosos,
escutando com atenção e aparente prazer quando o outro
falava, sempre polidos até mesmo nas menores coisas,
fitando-se com o interesse afetuoso que se conferia aos
parentes próximos e apreciados. Mas Gertrude podia se
lembrar de como era há muitos anos, antes da partida de
Frey para Paris. Os pais frequentemente discutiam com fúria
intensa, a mãe chorava desesperadamente, o pai tinha
acessos de raiva, batia portas e janelas. Depois, vinha o riso
e a afeição, mãe e pai reaparecendo de braços dados. A
tensão desvanecia-se do ar, que parecia mais quente, mais
agradável, mais fragrante. Agora, eles jamais discutiam. Mas
apesar de toda gentileza e cortesia, Gertrude sentia uma
estranha frieza entre os dois, como se tivessem descoberto
que na verdade não eram marido e mulher, mas irmão e
irmã. Ela sabia que o pai jamais entrava no quarto da mãe e
que a mãe só entrava no quarto do pai na ausência dele, a
fim de cuidar de alguma coisa lá dentro, na esfera de suas
obrigações. Os conhecimentos de Gertrude sobre o estado
conjugal ainda eram um tanto vagos, um limiar de que não
podia se aproximar sem um calafrio de medo. Mas tinha
certeza de que alguma coisa estava errada. Vira os quartos
comuns nas casas de suas amigas, vira o relacionamento
íntimo entre maridos e mulheres, recordava-se de uma
situação assim, que existira outrora entre seus pais. Mas isso
desaparecera, juntamente com as brigas e tempestades, as
lágrimas e o riso. May sorria, algumas vezes chegara a rir,
gracejava bastante. Mas Gertrude, recordando as antigas
explosões turbulentas de riso, compreendia que isso acabara
para sempre. Apreensiva, egoisticamente, ela desejava que
tudo estivesse novamente ‘bem’. Detestava coisas
inexplicáveis, que desconcertavam os que não estavam a par
do segredo. Certa ocasião confidenciara isso a Frey, quando
ele deixara Paris e voltara para casa, por causa da guerra.
Frey limitara-se a fitá-la com a maior indiferença, declarando
que ela se deixava dominar pela fantasia. Gertrude,
obstinadamente convencida de que não estava enganada,
começara a observar os pais, notando cuidadosamente a
coisa inexplicável entre os dois, até que se tornara uma
obsessão, uma compulsão para a apreensão e irritação.
Ressentia-se dessa pequena contrariedade e falha no
aconchego de sua casa. Sentia também que o pai era
igualmente inquieto e angustiado e culpava a mãe por isso.

Gertrude estava pensando em tudo isso quando entraram


no vestíbulo amplo, fresco e escuro. Com um cansaço tenso,
ela pensou: “Papai está em casa e agora terei de observá-lo e
a mamãe, tentar descobrir o que há de errado entre os dois.
Não será nada. E será tudo. É estranho como uma palavra ou
um gesto, a mínima coisa acima ou abaixo do habitual,
podem adquirir tanto significado, serem tão compulsivos e
estranhos, a ponto de provocar uma felicidade irracional ou
uma tristeza igualmente irracional. Mamãe vai dizer: ‘Veio
para casa mais cedo, amor? Vou pedir o chá imediatamente.
Papai vai beijá-la na testa e perguntar se ela achou o dia
tedioso. Ele vai contar alguma novidade do seu trabalho, os
dois rirão um pouco. O chá vai chegar, mamãe servirá, todos
estarão joviais e afetuosos. Mas a Coisa estará presente,
destruindo tudo, corroendo tudo, como um... como um olhar
lúbrico num rosto repulsivo, numa sala cheia de pessoas
normais.”

— Chegou em casa mais cedo, amor? Vou pedir o chá


imediatamente — disse May, jovial, ao entrar na biblioteca,
onde Ernest estava sentado, em companhia de Eugene.

As venezianas impediam a entrada do clarão do sol que


havia nos gramados lá fora. Apenas uma tênue claridade
esverdeada espalhava-se pela sala tranquila. Gertrude e as
outras meninas foram atrás, Gertrude observando a cena
atentamente com uma compulsão abominável, Renée
empenhando-se ansiosamente em passar por ela e correr
para o pai. A menina finalmente conseguiu, quase
derrubando a prima no processo, e correu para Eugene.
Jogou-se nos braços dele, enlaçando-o pelo pescoço,
beijando o rosto moreno do pai, gritando em seu ouvido,
puxando-lhe a gravata para o lado, com seus abraços
efusivos.

— Mon Dieul — exclamou Eugene, rindo e desvencilhando


os braços da filha. — Seus braços parecem navalhas, ma
petite. E olhe só para o seu vestido! Sua mãe vai ficar
zangada com você. E olhe para as suas mãos!

Ele puxou-a para si e beijou-a ternamente. Era a sua filha


predileta; que Dorcas amasse os dois filhos mais velhos e os
gêmeos que pareciam anjos louros, pois aquela menina era a
que estava instalada em seu coração. Ele deu um puxão de
leve na orelha de Renée, continuou a ralhar, alisou os
cabelos grisalhos. Os anos não o haviam alargado e estofado,
como acontecera com Ernest. Ao contrário, emagrecera,
definhando lentamente, para se tornar a imagem do pai.
Armand estava agora enterrado ao lado de sua mulher no
cemitério. Ernest, inconscientemente impressionado com a
semelhança entre o pai falecido e o filho vivo, algumas vezes
chamava o amigo de “Armand”.

Gertrude correu em silêncio para a poltrona em que


estava o pai e sentou no braço, sem dizer nada. Fitou-o e
depois olhou para a mãe. A Coisa, como um véu diáfano
quase imperceptível, pairava entre os dois.

— Não precisa pedir chá para mim, May — disse Eugene,


fazendo um esforço para levantar, com Renée pendurada em
seu pescoço. — Você sabe que detesto essa beberagem. Além
do mais, já está quase na hora do jantar. Minha carruagem
deve chegar a qualquer momento e levarei esta pequena
selvagem para casa. Não, May, não podemos ficar para
jantar. Dorcas ficaria aborrecida. Ela detesta qualquer
mudança súbita de planos.

— Dorcas é muito rígida e inflexível — disse o irmão dela,


contrafeito. — É uma escrava das regras e não dá qualquer
desconto à falibilidade humana.

Eugene riu, mas alguma irritação insinuou-se em seus


olhos castanhos. Ele ajeitou desajeitadamente as fitas de
Renée que estavam caindo, sem dizer nada.

— E como estão minhas queridas? — disse Ernest,


sorrindo para as outras duas sobrinhas.

Lucy, depois de beijá-lo num turbilhão de saias, sentara


num banco ao lado dele. Elsa beijara-o efusivamente e
sentara no outro braço da poltrona. Lucy contemplava-o com
uma expressão de adoração. Elsa também fitava-o, ajeitando-
lhe distraidamente a gravata, igualmente com adoração.
Gertrude estava em silêncio, sem se mexer, a mão sobre a do
pai. Sua fragilidade e delicadeza faziam-na parecer uma
nuvem suavemente pálida, que temporariamente adquirira
forma humana. May, sentada a alguma distância, pensava
com irritação que Gertrude não tinha absolutamente
qualquer expressão. Às vezes, a menina era tão impassível
quanto uma pedra.

— Seu rosto está arranhado, Elsa — comentou Ernest.

— Foi uma gata que me arranhou — respondeu ela,


serena.

Lucy levantou a cabeça bruscamente, corando e


mordendo o lábio. A mão de Gertrude apertou ainda mais a
mão do pai.

— Recebi hoje uma carta de Frey, Ernest — disse May,


radiante. (Como se houvesse alguma coisa
determinadamente afável por trás de seu rosto, pensou
Gertrude, cansada.)

— É mesmo? E o que ele conta?

Ernest soprou a fumaça do charuto que Gertrude acabara


de acender para ele. O véu estava em seu rosto agora, como
uma tênue teia.

May estava bastante animada.

Ele virá nos visitar no Natal. Uma composição dele vai ser
tocada num concerto.

Ela tirou a carta do bolso e leu o trecho.

— Mas isso é maravilhoso! — exclamou Eugene. — (Renée,


minha querida, você está me sufocando.) Você está de
parabéns, May, por dar ao mundo um gênio aparente.
Ele parecia genuinamente interessado e compreensivo.
Gertrude divisou um brilho luminoso no rosto da mãe, que
presenteou o cunhado com um sorriso patético.

— Espero que todos gostem — comentou Ernest.

As palavras dele pareciam forçadas, como se tivesse


pensado bastante e escolhido cuidadosamente a frase certa,
imaginando agora se parecia tão impassível quanto se sentia.

— Tenho certeza de que isso vai acontecer. O mestre não


teria permitido que fosse tocada, se tivesse alguma dúvida —
disse May, com um aumento na afabilidade e animação.

Elsa atraiu os olhos de Ernest e piscou abruptamente. Ela


ficou um tanto constrangida, quando o gesto não foi
retribuído, e um pouco assustada, quando a expressão do tio
tornou-se tensa e hostil. Sentiu-se também afrontada. Sabia
perfeitamente que o Tio Ernest não aprovava aquela tolice da
música de Frey, que ele estava amargamente desapontado
com o filho mais velho. Não havia necessidade de fazer-lhe
carrancas daquele jeito, como se ela tivesse cometido algum
crime, pensou Elsa, ressentida. (Elsa é repulsiva, pensou
Gertrude, com a maior aversão. Como papai consegue
suportá-la?)

Lucy foi mais astuta e gentil. Detestava Frey


intensamente, mas adorava o tio. E o jeito que encontrou
para agradar ao tio foi muito menos hipócrita que o de Elsa.

— Frey vai fazer com que todos nós nos sintamos uns
matutos um dia desses — comentou ela.

May, surpresa com aquela apreciação inesperada sobre


seu filho querido, fitou-a aturdida. Baixou a guarda e o
sorriso desvaneceu-se, ficando em seu rosto rechonchudo
apenas as rugas amargas da tristeza.

— Obrigada, querida — disse ela, gentilmente.

Ernest sorriu, puxou um dos cachos de Lucy.


Recuperando o bom humor, ele olhou para Elsa.

— Paul pediu para avisar a sua mãe que ele vai chegar um
pouco tarde esta noite, Elsa. Ele vai conferir alguns livros.
Ainda não temos certeza se o jovem Reynolds é mesmo
honesto. — Ele estava de repente bastante animado. — E
podem também dizer a sua mãe, minhas queridas, que Paul
está indo muito bem no banco. Se ele continuar assim, o que
tenho certeza que vai acontecer, não há como prever até
onde poderá chegar. O presidente me disse esta manhã que
Paul é um dos rapazes mais eficientes e competentes que já
conheceu. Um banqueiro nato.

A teia pálida estava agora sobre o rosto de May.

— Isso é ótimo — murmurou ela, apalpando, de modo


sub-reptício, a carta em seu bolso.

Ernest virou-se para a filha.

— Paul pediu para lhe perguntar que flores você prefere


para a festa dos Stantons, Trudie.

A boca de Gertrude contraiu-se numa expressão


ligeiramente contrariada.

— Não me importo — respondeu ela, indiferente.

(Como ela detestava a perspectiva de ir a outra festa com


Paul! Durante os últimos seis meses, parecia estar em
execução algum plano diabólico para levá-la a fazer par com
o primo. Todos os seus outros pretendentes haviam-se
afastado. Às vezes, um pensamento terrível dominava-a, de
que o pai espalhara um rumor sutil sobre uma suposta
“combinação” entre a filha e seu sobrinho. Gertrude
idolatrava o pai, mas estava perfeitamente consciente de seu
poder implacável. Oh, Deus, por favor, não deixe que ele faça
uma coisa dessas comigo! Não vou casar com Paul, mesmo
que papai me empurre para os braços dele. Darei um jeito de
escapar! Mamãe me ajudará! Mamãe também o odeia!)
Pensando nisso, ela virou os olhos arregalados e assustados
para a mãe. E May fitou-a com um olhar brusco e firme.

— Como se mostra tão indiferente? — perguntou Elsa,


incrédula. — A festa ao ar livre dos Stantons vai ser o grande
acontecimento da temporada de verão! Penso às vezes que
você é fria demais, Gertrude. Lucy e eu quase que passamos
as noites acordadas, tentando decidir o que vamos usar! Por
falar nisso, Trudie, o que você vai usar?

— Espero que seja o vestido novo de cetim branco de


Nova York — disse Ernest, os olhos expressivos fixados na
filha. — Confesso que não sei muita coisa sobre vestidos
femininos, mas este é algo especial. Não pude deixar de
notá-lo, especialmente quando ela o vestiu. E pode usar
também as pérolas que sua mãe e eu lhe demos no
aniversário, querida. Tenho certeza de que será a beldade do
baile.

— Gertrude! — As vozes de Elsa e Lucy se fundiram num


débil grito de indignação. — Nunca nos falou desse vestido
branco de cetim! Tem de nos mostrar imediatamente!

— Não gosto dele — disse Gertrude, forçando um sorriso


contrafeito.

(Como poderia gostar, depois que o pai dissera, poucos


dias antes, que Paul ficaria completamente fascinado quando
a visse naquele vestido? Ah, como o detesto! Como gostaria
que ele morresse!) A sensação terrível e angustiante de que
estava acuada tornou a dominá-la, como se tivesse a boca
tampada.

— Acho que é um pouco maduro demais para Gertrude —


comentou May. — Preferia que ela não o usasse por
enquanto. Talvez o vestido rosa de musselina...

— Daria um excelente vestido de noiva — disse Ernest,


casualmente.

Elsa bateu palmas, deliciada.

— Neste caso, é claro que Paul ainda não pode vê-lo —


disse ela, com um olhar brejeiro e provocante para a prima.

Gertrude se levantou. Tinha a sensação de que uma fina


camada de gelo envolvia todo o seu corpo esguio.

— Não tem importância que Paul o veja ou não —


murmurou ela, em tom preocupado. — Mamãe, quer que eu
veja se Reggie e Guy estão se aprontando para o jantar? E
que dê uma olhada para ver se está tudo bem com Joey?

May fitou-a gravemente.

— Quero sim, meu amor — respondeu ela, a voz suave e


triste.

Escapei de Ernest, pensou ela, angustiada. Será que


Gertrude também conseguirá escapar?

Ela se julga boa demais para Paul, pensou Elsa, com um


ódio intenso. Mas como é metida a besta! Como se não
tivesse uma cara de defunta, cabelos sem qualquer brilho!
Como Paul tem coragem de olhar para alguém assim? Não é
uma questão do dinheiro que ela vai herdar. A verdade é que
Paul realmente a quer por si mesma. E sempre a quis, desde
que éramos crianças. Não dá para entender o meu querido
Paul.

Gertrude encaminhou-se para a porta. Ouviu o barulho de


cascos de cavalos no caminho lá fora. Estacou abruptamente,
antes de chegar à porta. A luz do sol espalhava-se pelo
vestíbulo, ofuscando-a. Mas ela ficou imóvel, mal respirando,
o coração batendo forte, angustiosamente, ameaçando subir
pela garganta. Ela levou a mão ao peito.

— O que houve, querida? — perguntou May.

Gertrude virou-se lentamente, uma expressão radiante, os


olhos arregalados, os lábios entreabertos.

— Eu... eu acho que é Philippe — murmurou ela, a voz


estrangulada.

Gertrude olhou ao redor, atordoada, depois saiu para o


vestíbulo, com o veloz movimento de um passarinho. Um
rapaz ainda muito jovem estava entrando no vestíbulo. Era
alto, extremamente magro, moreno, cabelos pretos
compridos e abundantes, olhos pretos que pareceram arder
intensamente quando depararam com a prima. Todos os seus
movimentos eram rápidos e bruscos, repletos de nervosismo
e extrema vitalidade. O rosto, magro até quase parecer
esquelético, era moreno, lembrando um índio.

— Trudie! — gritou ele, segurando as mãos dela.

Ele contemplou-a, sorrindo um tanto incontrolavelmente,


respirando como se tivesse corrido.
May apareceu no vestíbulo, saindo da biblioteca.

— Philippe! Mas que prazer tomar a vê-lo! Chegou bem a


tempo para o jantar. Como está sua mãe?

Ela adiantou-se, sorrindo cordialmente. Havia ocasiões


em que ela quase amava Philippe. Sob muitos aspectos, o
filho de Florabelle a fazia lembrar-se de Godfrey. Philippe
emergira de uma infância pálida e apagada para aquela
súbita exuberância e inquietação, que começava a perturbar
a família Barbour.

— Mamãe está muito bem, obrigado, Tia May —


respondeu o rapaz, esforçando-se para ser formal, mas
conseguindo apenas parecer tão radiantemente aturdido
quanto Gertrude. — Ela pediu que a convidasse e a Tio Ernest
para almoçarem conosco no domingo. Mamãe diz que vovó
está se tornando impossível. — Ele sorriu, exibindo os
dentes brancos e brilhantes, antes de acrescentar: — Mamãe
acha que Tio Ernest pode conseguir controlá-la.

— Posso imaginar tudo... — murmurou May, sorrindo.

A velha Hilda estava se tornando cada vez mais difícil,


com a idade. Seu novo genro, o Major Norwood, tinha a falta
de imaginação do soldado e a típica impassibilidade
obstinada, que eram como uma muralha inabalável diante
dos frequentes acessos de fúria e da crescente petulância de
Hilda. Deparando com essa muralha, esbarrando nela
violentamente, os acessos se intensificavam e espumavam,
tornavam-se incontroláveis, Ernest era frequentemente
convocado a restaurar a paz numa casa conturbada.

Philippe, percebendo que ainda segurava a mão de


Gertrude, largou-a abruptamente, como se começasse a
queimá-lo. Uma veia pulsava visivelmente na garganta esguia
de Gertrude. A beleza ainda estava estampada em seu rosto,
como uma manhã de primavera. Foram todos para a
biblioteca. Eugene, que vira sua carruagem aproximando-se
pelo caminho, estava de pé, despedindo-se. Renée pulava em
torno dele, os cabelos esvoaçando. Parecia muito com o
primo Philippe Bouchard e talvez fosse por isso que
Gertrude gostava tanto dela. O rapaz cumprimentou os
parentes com um formalismo nervoso.

Eugene sorriu para o filho de Raoul.

— Bonjour, Philippe — disse ele, apertando a mão do


sobrinho, de quem muito gostava.

Ernest sorriu também, mas com alguma frieza.

— Como está sua mãe, Philippe?

Mais nervoso do que nunca, ele balbuciou o recado da


mãe. Ernest riu bruscamente, dizendo:

— Estaremos lá. — Ele olhou para May, sacudiu a cabeça


com uma expressão divertida. — A mãe ainda tem muita luta
dentro dela. E torna aflitiva a vida de Florrie.

Elsa olhava para o primo com franco desdém e antipatia.


Como pode Trudie gostar daquele garoto de pele morena,
esquelético, insignificante, mais moço do que ela? Um
boneco de engonço, como não existia igual, sempre lendo e
escrevendo poesia, sempre correndo para aquela sua
repulsiva Igreja Católica! Não se falara uma vez que ele se
tornaria padre ou qualquer coisa parecida, igualmente
horrível? Então por que ele não some logo de uma vez? É
verdade que o pai dela também fora católico, mas só que ele
fora um convertido e ninguém levara isso realmente a sério.
Ela, Paul e os outros haviam sido batizados na Igreja
Católica, mas a mãe nunca os obrigara a assistir à missa ou
qualquer outra coisa. O padre tinha medo dela e deixava-os
em paz. Não, ninguém em sua casa levava aquela coisa a
sério. Mas os franceses eram muito esquisitos, sempre
fervorosos em tudo. Ela detestava os franceses. Lucy, que
achava Philippe um pirralho horrível, não respondeu ao
cumprimento dele. Eram praticamente da mesma idade, mas
ela já estava noiva e, por esse direito, o direito da
maturidade feminina, era na verdade mais velha, segundo
pensava.

— Mamãe Barbour já está bastante velha, Ernest — disse


May, distraidamente, arrumando Renée outra vez. — Precisa
mesmo ir embora, Eugene? Renée, minha querida, dê um
beijo na sua Tia May. E diga à sua mãe que você tem de ficar
para jantar na próxima vez em que vier nos visitar. Amanhã
de noite? Combinado!

Elsa e Lucy trocaram uma carranca ao ouvirem isso.


Depois que Eugene e a filha foram embora, Elsa ficou
completamente atordoada. Numa confusão de movimentos,
saias e anáguas farfalhando, rosto corando, despedidas
gritadas, Elsa e Lucy também se retiraram. O convite de May
para que ficassem para o jantar foi polido, embora não
insistente. (Ela ainda lembrava a reação de Elsa ao ouvir o
suposto recado de Godfrey.) Mas Elsa, com um pesar
evidente, disse que a mãe recomendara expressamente que
as meninas fossem jantar em casa naquela noite.

Uma calmaria, como a que se segue às tempestades,


abateu-se sobre a casa depois que elas partiram. May soltou
uma risada e comentou suavemente:

— Mas que exuberância!

— Gosto de um pouco de vitalidade nos jovens —


respondeu Ernest, um tanto irritado.

May continuou a sorrir com determinação, mas não disse


nada. Ernest acrescentou, asperamente:

— Gertrude estaria bem melhor se tivesse um pouco da


vitalidade delas.

Ele virou-se para a filha, que estava parada bem perto de


Philippe. Os dois não falavam, mas se fitavam fixamente.
Ernest chamou-a, alteando a voz:

— Trudie!

Ela teve um sobressalto, virando-se para Ernest com


expressão desconcertada:

— Pois não, papai?

Como ela parece linda subitamente!, pensou Ernest,


furioso, lançando um olhar de esguelha para o sobrinho.

— Sua mãe não lhe pediu que fosse ver os garotos e Joey?

Gertrude saiu correndo, quase fugindo da sala, como se


tivesse levado uma surra. Philippe acompanhou-a com os
olhos. O corpo alto e anguloso dava a impressão de que se
transformara em pedra, no meio de uma intensa animação.

— Vamos para a sala de jantar — disse Ernest


abruptamente.

E ele se afastou, furioso, deixando à mulher a decisão de


segui-lo, se quisesse.
CAPÍTULO LXIV
“Há alguma brutalidade em nós, algum atavismo, que nos
leva a odiar os velhos e doentes”, pensou Ernest, enquanto
seguia sozinho para a casa da irmã, a fim de visitar a mãe.
“Esquecemos que já os amamos, que são a nossa própria
carne, que muitas das nossas alegrias e pesares são deles
também. Tudo o que vemos e lembramos é o rosto doente
que se ressente de nossa saúde, as pernas que tropeçam
constantemente, a pressão terrível sobre uma simpatia que
azedou, como um vinho que fermentou demais. Às vezes, os
velhos recebem toda a carga do nosso ódio e estremecemos
só de ouvir suas vozes incômodas, só de vermos os olhos
injetados, pela persistência de sua turbulência infantil. E
quando estão mortos, nós os odiamos mais do que nunca,
umas criaturas horríveis, sem nada de sublime, sem nada de
nobre, mas apenas argila fétida, ameaçando-nos, tripudiando
sobre nós.”

Subitamente, ele recordou que sua velha mãe não era


nenhuma tola. Será que ela sabia como os filhos
consideravam-na: um fardo incômodo, um estorvo, uma
velha repulsiva, uma responsabilidade cansativa, que fora
outrora útil, mas agora perdera inteiramente a utilidade?
Ernest tinha dúvidas. Talvez fosse por isso que a mãe se
mostrasse tão turbulenta atualmente, como uma reação pelo
conhecimento de que os filhos que gerara, amamentara,
amara, cuidara e educara, agora odiavam-na, pelo único
crime de não estar morta. Subitamente, ele viu a mãe como
uma velha assustada e acuada, indesejável, repulsiva, de voz
estridente e perplexidade rabugenta. Não quero morrer
ainda, ela parecia gritar-lhe, dominada pelo terror. Por que
tentam me empurrar para a morte com suas vontades e seus
olhos?
— Pobre mãe — disse Ernest em voz alta, com um sorriso
triste, fazendo com que o cocheiro se virasse, inquisitivo.

Mas a simpatia de Ernest já se desviara mais uma vez


para sua irmã predileta, Florabelle, quando ele chegou à casa
grande e intensamente iluminada em Quaker Terrace.
(Através das árvores, através de gramados e caminhos
iluminados, ele podia divisar as luzes distantes da casa de
Amy.) A casa de Florabelle estava sempre quente demais,
iluminada demais, decorada e mobiliada exageradamente,
com pesadas cortinas de veludo, cantos atravancados,
candelabros de cristal, lampiões ornados e quadros com
molduras douradas. Ao casar com o Major Norwood, um
homem sólido e destituído de imaginação, a própria essência
do gosto conservador e austero, Florabelle desfizera-se de
todos os seus espalhafatosos móveis “franceses”, trocando-
os por móveis vitorianos. Ainda bonita, rechonchuda agora,
as faces ainda exibindo covinhas, Florabelle vivia, como a
mãe astutamente descrevia, “afogueada e inebriada”. Até
suas roupas refletiam a confusão em que vivia, os véus
sempre adejando em torno dos chapéus, pulseiras e
correntes tilintando, os cabelos escapando das toucas, as
anáguas aparecendo, as luvas folgadas, as bolsas
escapulindo das mãos, as peles escorregando, brincos
caindo. Florabelle estava sempre com pressa, as faces
coradas, a voz estridente de tensão e excitamento. É verdade
que tinha agora seis filhos, os mais moços praticamente
bebês, Philippe com 17 anos, o mais velho. Tinha um enxame
de criados, mas todos contraíam seu comportamento
irrequieto e agitado, sua confusão, tendência para deixar as
frases excitadamente inacabadas, o hábito de começar uma
dúzia de coisas ao mesmo tempo e não concluir nenhuma.
Assim, a casa parecia com a dona, a confusão dominava nos
aposentos muito quentes e muito iluminados, um ambiente
por demais enfeitado e sufocante. Parecia haver sempre uma
criança chorando nas regiões superiores da casa ou uma
briga entre criadas nas áreas inferiores. Ernest muitas vezes
se perguntava como o Major Norwood conseguia aguentar
tudo aquilo. Mas o major parecia totalmente imperturbável,
sentando-se impassivelmente com seus jornais e fumando,
em meio ao maior tumulto, ao barulho, pessoas correndo de
um lado para outro, gritos, exclamações, a jovem mulher
frenética e crianças turbulentas.

Ou ele gostava daquilo ou então era surdo, pensava


Ernest. Nada jamais o excitava. Amava sua bela Florrie,
gostava dos filhos de Raoul, tratava-os com todo respeito,
adorava seus próprios filhos. Ele achava que tinha muito
mais do que um velho solteirão merecia. Na verdade, gostava
de ouvir as vozes excitadas de crianças, cansado do silêncio
opressivo de aposentos de solteiro e hotéis solitários.
Aquelas vozes altas e tumultuadas, a vitalidade, animação,
riso, discussões, brigas, tudo servia para afastar dele os
temores que haviam assediado a sua meia-idade, com
ameaças de solidão, carência de amor e morte. Tornara-se
quase jovem outra vez e sentia-se profundamente grato
tanto a Florrie como aos filhos dela.

Florabelle ficou surpresa ao ver o irmão. E, antes que


pudesse recuperar-se, exclamou irritada:

— Mas eu disse a noite de quinta-feira! Ah, essas crianças


são impossíveis! Mas entre logo, Ernest! Vamos, dê-me um
beijo. Estou contente em vê-lo. Major! Major! Ernest está
aqui! Oh, Ernest, não sei o que vou fazer com mamãe!

— Como vai, senhor? — disse o major, levantando-se e


deixando que uma confusão de jornais e cinzas de charuto
caísse no chão.

Era um homem alto e corado, olhos azuis bem claros e


francos, corte de cabelos militar, bigode aparado. Apesar de
uma barriga ligeiramente protuberante, ainda era
empertigado, com um porte marcial. Dava sempre a
impressão de que acabara de se lavar, em parte por causa do
rosto liso, com uma expressão de afabilidade ingênua, em
parte porque as roupas estavam invariavelmente impecáveis.
Ernest há muito que o descartara como não muito
inteligente, embora fosse ‘inofensivo’. Gostava dele, como
gostava de todas as pessoas simples que jamais interferiam
com suas atividades.

O major já estava prestes a sentar novamente na sua


poltrona de couro quando a mulher afastou-o apressada,
empurrando o irmão para lá, enquanto se queixava
incessantemente, em sua voz alta e suave. O major olhou ao
redor, aturdido e desamparado, como se estivesse numa casa
estranha, sem saber se deveria ou não sentar. Mas acabou
chegando à conclusão de que poderia fazê-lo, acomodando-
se numa cadeira de balanço de mogno, estofada com crina de
cavalo. Não gostava dos assentos de crina de cavalo, pois lhe
espetavam a carne, através das pernas da calça. Começou a
coçar-se sub-repticiamente, enquanto olhava radiante para o
cunhado.

Ernest recusou firmemente chá, vinho, charutos e bolo.


Florabelle disse, irritada:

— Mas você nunca quer coisa alguma quando vem aqui!

— Se quiser servir alguma coisa, pode mandar levar para


a mãe e eu daqui a pouco — respondeu Ernest, pegando a
mão da irmã e afagando-a. — Sente-se um pouco, minha
querida. Está com o rosto muito quente.

Florabelle arriou numa cadeira com gestos de desespero,


sacudindo o lenço e levantando os olhos azuis para o teto,
como se não aguentasse mais.
— Não tem a menor ideia do que estou sofrendo com
mamãe! — exclamou ela. — O major diz que sou um anjo de
paciência!

— Onde ela está agora?

— Trancada em seu quarto, tensa como um tambor. Diggs


deixa a bandeja com a comida no chão, ao lado da porta.
Depois que ele se afasta, mamãe se digna a abrir a porta.
Come tudo, depois torna a pôr a bandeja no lado de fora da
porta. Fico batendo na porta, mando as crianças, grito e
suplico. Mas de nada adianta. Ela fica sentada atrás da porta
como... como um ídolo, sem jamais responder. Já faz quase
três dias que isso está acontecendo. Ela nem mesmo deixa as
criadas arrumarem a cama ou limparem o quarto. Com este
calor que está fazendo e tudo o mais, é preciso tomar
cuidado com coisas... coisas desagradáveis... coisas que
proliferam na sujeira. E você sabe muito bem que mamãe
não tem sido muito limpa e arrumada nos últimos anos...

Florabelle parou de falar abruptamente, por ter perdido o


fôlego. Mas logo recomeçou, numa explosão de emoção:

— Não sei o que fazer. Não consigo mais aguentar a


tensão, com toda esta casa, as crianças e os criados. Afinal,
estou com mamãe há 17 anos e acho que devo ter uma folga
de vez em quando. Tem Dorcas, tão egoísta e retraída,
permanecendo afastada da gente, com receio de que
possamos lhe pedir algum favor. E tem Amy também, viúva,
sem ninguém. E Martin era o predileto de mamãe. E tem May
também... — Ela fez outra pausa, respirando fundo, antes de
acrescentar, desdenhosamente: — Estou espantada com May!
Mas ela me parece ultimamente muito fria, quando outrora
gostávamos tanto uma da outra. Não posso entender por que
May...
Ernest contemplou suas unhas.

— O que é desta vez?

— Como vou saber? Há uma semana foi a insolência de


Jules, depois a dissimulação de Leon, em seguida os gritos
de François. Na semana anterior ela sentiu-se ofendida
porque discordei a respeito da disciplina com Chandler e
Betsy. Mamãe é muito indulgente com as crianças, embora eu
não possa lembrar de uma só vez em que ela tenha sido
igualmente indulgente conosco. Penso, às vezes, que ela
odeia todas as crianças, com exceção de Philippe. E só gosta
dele porque ajudou a criá-lo, quando fiquei tão doente
depois que ele nasceu. E também porque ela diz que Philippe
parece com papai. O que é um absurdo, porque Philippe
parece exatamente com a família do pai...

Três garotos, de 12, dez e oito anos, respectivamente,


entraram na sala, para desejarem boa-noite à mãe. Eram
todos muito morenos e esguios, rostos compridos e finos,
olhos pretos, bocas franzidas. Ernest sempre pensava em
Armand ao ver aquelas crianças. Achava-as excessivamente
feias. Os garotos sentiam pavor dele. Ficavam sempre
quietos e reprimidos quando ele estava presente, até mesmo
baixando as vozes estridentes e exigentes para sussurros,
como se estivessem na presença de um perigo.

Ele apertou as mãos dos garotos, Leon, o ‘profundo’,


Jules, o insolente, François, que era propenso a histerias
silenciosas e violentas (ele costumava ter ‘ataques’ quando
era bebê). A semelhança entre os dois jamais deixava de
diverti-lo. Ele poderia ser amigo de Leon, se o garoto o
encorajasse, pois percebia uma inteligência sombria nos
olhos escuros e um tanto soturnos, uma ironia
transparecendo nas linhas flexíveis dos lábios franzidos. Mas
Leon jamais o encorajara, mantendo uma reserva
precocemente madura.

Como se novamente sentisse, subconscientemente, a


feiura dos filhos, Florabelle disse, distraída:

— Betsy está parecendo mais e mais com um querubim, a


cada dia que passa. E Chandler é o garotinho mais bonito de
Quaker Terrace. Pronto, meus queridos, beijem mamãe,
papai e Tio Ernest e depois vão se deitar. Onde está a babá?
Lá em cima? Pois então tratem de subir imediatamente!

Jules beijou a mãe, esquivou-se a beijar o major e o tio e


depois saiu da sala, liderando a procissão. As crianças
saíram da sala em fila indiana, o que divertiu Ernest
imensamente. Ele não pôde conter a risada. Os garotos não
deram atenção à risada, embora as orelhas de Jules ficassem
vermelhas.

— Você está sempre rindo deles, Ernest — comentou


Florabelle, aborrecida.

O Major Norwood tinha um profundo temor de Ernest e


tratava-o com a maior reverência. Ele tinha uma vaga noção
de que Ernest considerava-o desprezível, embora afável.
Estava sempre tentando provar ao cunhado que se enganava.
Ele perguntou, solenemente:

— Como vão os negócios, senhor? Soube pelos jornais


que seus contratos militares foram renovados, apesar... hã...
apesar daquele problema com as patentes na França durante
a guerra... hã... entre a França e a Prússia... os carregamentos
de explosivos...

— Isso mesmo, os contratos foram renovados —


respondeu Ernest, jovial.
O major suava profusamente, da tensão de seus esforços
e de prazer pela cordialidade de Ernest. Uma ligeira umidade
insinuou-se nos olhos azuis e ele inclinou-se para o homem
mais moço.

— E o governo francês não mais suspeita de seu


envolvimento no acordo de Monsieur Schultz com o governo
prussiano, senhor?

— Claro que não. Embora Schultz tenha perdido a cabeça,


creio que ele é inocente.

Nada poderia ser mais afável e inocente do que a


expressão no rosto de Ernest. O major estalou a língua
pesarosamente e sacudiu a cabeça.

— As histórias que os jornais inventam! Calúnias! Senhor,


a lei não é forte o bastante nos casos de calúnia. Alguma
providência deveria ser tomada...

— Somente as pessoas insignificantes estão preocupadas


com as calúnias — comentou Ernest, sorrindo.

O major ficou bastante excitado, os olhos azuis faiscavam


num protesto sincero.

— Mas eles disseram que foi por sua sugestão que Schultz
negociou com os malditos prussianos a venda e remessa de
munições da França para território inimigo! Isso é uma
indignidade! Como pode ignorar uma coisa dessas, senhor?
Um cavalheiro em sua posição?

— Os cães ladram e a caravana passa — disse Ernest.

Ele reprimiu um bocejo e olhou para o relógio. O major


arriou na cadeira, o rosto largo ainda corado, os olhos ainda
faiscando. Mordeu a ponta de um charuto com grande vigor,
sacudiu a cabeça e murmurou:

— Malditos jornais mentirosos!

Mas a verdade é que seu coração simples estava magoado.


Desconfiava que Ernest o esnobara e ressentia-se com isso.

Ernest se levantou.

— Acho que vou subir agora e falar com mamãe.

Philippe entrou na sala neste momento, carregando um


livro e uma cesta de pêssegos. Teve um sobressalto ao
deparar com o odiado tio, que sabia também odiá-lo. Mas
havia uma cortesia francesa em seu cumprimento sereno.
Ernest murmurou uma resposta. A jovialidade desaparecera
de seu rosto. Philippe beijou a mãe.

— Boa-noite, mamãe. Vou para o meu quarto agora.

Florabelle fitou-o afetuosamente. Em várias coisas,


Philippe fazia-a lembrar-se intensamente do pai, a quem
amara mais do que qualquer outra pessoa, em toda a sua
vida.

— Não jogue os caroços de pêssegos pelo chão, como


sempre faz — advertiu ela, afagando-lhe o rosto.

O rapaz apertou a mão do major, fez uma mesura formal


para Ernest e saiu da sala.

— Ele é um estudante e tanto — comentou Florabelle,


afetuosamente. — Estava lendo há horas na biblioteca e
agora vai ler por mais uma ou duas horas na cama, antes de
dormir.
— Aposto que não tem nada de prático nas coisas que ele
lê — disse Ernest, asperamente. — Já lhe disse uma porção
de vezes, Florrie, que há um lugar para ele no banco ou em
qualquer das minhas fábricas, no momento em que desejar.
Se você tivesse um mínimo de juízo, insistiria para que ele
começasse a trabalhar imediatamente, ao invés de terminar
alguma escola tola. Afinal, ele terá de cuidar dos seus
negócios um dia. E quanto mais cedo começar, melhor será
para todos.

— Ainda não vi você obrigar Frey a entrar nos negócios —


respondeu Florabelle, maliciosamente, com uma expressão
furiosa. Ela ficou satisfeita ao ver o irmão corar. — Ora,
Ernest, Philippe não é como Godfrey e conhece o seu dever.
Está disposto a trabalhar no banco ou nas fábricas quando
tiver 18 anos. Mas quer terminar primeiro o curso na St.
Therese. E faltam apenas dois anos.

— Eu bem que gostaria que a família tivesse mais rapazes


como Paul — murmurou Ernest.

Ele saiu da sala sem dizer mais nada e subiu para o


segundo andar.

— Paul! — murmurou Florabelle para o marido, furiosa. —


Tudo é Paul! Ele está tentando impô-lo a Trudie. Ela o
despreza, o que não é de admirar. Não gosto dela, mas
apesar disso simpatizo com a sua posição. Mas Ernest
sempre teve uma queda por aquele ramo da família...

Ela acenou com a cabeça, sombriamente.

— Cuidado! -sussurrou o major, consternado, olhando


para a porta vazia. — Ele pode ouvi-la! Afinal, não passa de
boato...
Ernest bateu na porta do quarto da mãe. Não houve
resposta. Ele torceu a maçaneta.

— Mãe! — disse ele, impaciente.

Houve um débil ranger no interior do quarto, depois


passos lentos e pesados. A porta foi aberta.

— Entre — disse Hilda, sombriamente. — Então você está


aqui, seu patife. Eu sabia que mandariam chamá-lo quando
não aguentassem mais.

Ernest correu os olhos pelo quarto com evidente repulsa,


as narinas tremendo.

— Com todos os diabos, mãe, por que não abre uma


janela?

Ele próprio abriu as janelas, os braços se emaranhando


nas cortinas empoeiradas. O quarto cheirava mal, mas o ar
quente entrando pelas janelas não demorou a purificá-lo.

Hilda trouxera os seus próprios móveis para a casa de


Florabelle. A velha e horrenda cama de mogno, a arca de
gavetas, cadeiras de balanço, cântaro de porcelana com rosas
pintadas, tudo atravancava o quarto pequeno de maneira
opressiva. O tapete vermelho-escuro de Hilda cobria o chão;
quadros velhos e amados, de molduras douradas antiquadas,
cobriam as paredes. Embora não houvesse fogo, Hilda estava
evidentemente sentada diante da lareira, pois ali estava uma
cadeira. Um cheiro de hortelã pairava no ar. A velha Hilda
sempre gostara de pastilhas de hortelã. Acabara de comer
um lanche antes de dormir, pois havia uma bandeja com
restos de comida sobre uma mesa empoeirada, ao lado da
cama desarrumada. Ela acendera apenas uma veta (não
gostava de lampiões), a chama débil ardia em cima da
lareira.

Hilda sentou-se na cadeira perto da lareira, empertigada,


apesar de sua corpulência, cruzou as mãos sobre o colo. O
rosto outrora bonito, uma ruína gorda agora, fixara-se numa
expressão de beligerância, o lábio inferior esticado, como
uma prateleira. Os cabelos brancos desgrenhados estavam
ajeitados de qualquer maneira sob uma touca de renda.

— Será que você não pode sentar? — perguntou ela a


Ernest, alteando a voz.

Ernest encostou-se na lareira, depois de franzir o rosto


para a poeira. Sorriu para Hilda.

— Que bobagem é essa de ficar trancada neste quarto


como criança, mãe? Será que não compreende como essa
atitude é desagradável para Florabelle? Afinal, ela tem uma
porção de criados e crianças para cuidar, não pode gastar
seu tempo...

— Cuidando de uma velha tola! — resmungou Hilda. —


Pode dizer, que não me incomodo. Já me disseram coisas
bem piores. Não estou aos cuidados de Florabelle como uma
indigente. Tenho meu próprio dinheiro. Ela recebe uma parte
desse dinheiro, assim como os pirralhos, no Natal,
aniversários e outras ocasiões. Assim, como não devo
favores a ela, acho que também tenho direito a meus
achaques. E Deus sabe que ela também tem. Nunca vi
tamanha agitação em toda a minha vida. E ela está ficando
pior à medida que envelhece. É mais do que suficiente para
levar aquele pobre homem lá embaixo à loucura.

Ela olhou furiosa para o filho, transbordando de uma


beligerância patética. Não sou mais necessária, mas não se
atreva a me dizer isso!, ela parecia gritar, no íntimo. Ernest
sentia-se terrivelmente constrangido. Examinou
meticulosamente a unha do dedo indicador e depois mordeu-
a.

— Não está contribuindo para que ele não enlouqueça,


mãe. O Major Norwood é um inocente e acho que está
tornando a vida dele ainda mais desagradável. Não resta a
menor dúvida de que Florrie tem seus defeitos, mas
esquivar-se às suas obrigações não é um deles. Ela teria a
maior satisfação em deixar que você a ajude e aconselhe, se
não for como imposição.

— Mas ela deixa esta casa virar um verdadeiro hospício!


— gritou Hilda, desesperada. — Deixa...

Ela parou de falar abruptamente, pois Ernest estava


correndo os olhos pelo quarto, com uma expressão
significativa.

— Se isto aqui não é um absurdo, mãe, eu gostaria de


saber o que é. Tudo sujo. Um cheiro horrível. Antes de
começar a fazer sermões a Florrie sobre a ordem doméstica,
poderia tentar manter o seu próprio quarto mais limpo e
arrumado. Ou pelo menos deixar as criadas entrarem aqui
para cuidar disso.

Hilda prorrompeu em lágrimas. Balançava na velha


cadeira de balanço, como se estivesse se movendo ao ritmo
de sua angústia. Cobriu o rosto com lenço.

— Não é nada disso! — soluçou ela. — É muito mais


profundo! Estou me sentindo solitária, desesperada e...

— Solitária numa casa cheia de crianças e com a sua


própria filha? — interrompeu-a Ernest. — E na mesma cidade
que seu filho e a outra filha, com todos os filhos deles? Deus
sabe que sempre tivemos o maior prazer em recebê-la...

Hilda baixou as mãos bruscamente. Seu rosto estava


agora contorcido, arroxeado. Os olhos afundados sob as
rugas de gordura ardiam com intensidade.

— Prazer em me receber? Pensa que é isso o que quero?


Se está pensando mesmo assim, então é um idiota muito
maior do que eu imaginava, Ernest Barbour! As mães que têm
filhos de verdade nunca são recebidas com prazer, assim
como não recebem os filhos assim! Como... como hóspedes
ou parentes de quem não se gosta! Não sou parente e não
sou uma hóspede! Sou sua mãe! Mas pareço até que não
passo de um cachorro sem dono, uma pobre coitada sem
dinheiro, que não tem onde cair morta...

— Não fique repisando essa história do dinheiro que


papai lhe deixou, mãe — disse Ernest, irritado. — Todos
sabemos disso. Temos certeza de que não é uma indigente.

Mas Hilda, desolada, recomeçara a chorar.

— Ninguém me quer! Ninguém se importa que eu viva ou


morra! Tenho certeza de que todos ficariam contentes se eu
morresse! Sou um estorvo, uma velha incômoda que já devia
saber que é melhor não continuar a viver! Se eu digo a Florrie
que ela está mimando os garotos, ela fica furiosa e diz que
não tenho de me meter! Se digo que ela está sendo muito
dura com o velho major, Florrie responde que eu tratava o
meu Joe de maneira muito pior!

As lágrimas escorriam pelo rosto de Hilda, cobrindo as


rugas, derramando-se pelos lábios. Como criança, ela provou
o gosto salgado das lágrimas, com a ponta da língua.

Ernest olhava por cima da cabeça dela, de rosto franzido,


tamborilando com os dedos na comida por cima da lareira.

— Está sempre sentindo pena de si mesma, mãe.


Queremos que seja feliz! O que você quer? Dentro de limites
razoáveis, nós lhe daremos tudo o que quiser.

Hilda ficou calada. Enfiou a mão num bolso do vestido e


tirou um lenço todo amarrotado, que aplicou aos olhos e ao
nariz. O espírito de luta se desvanecera dela, as mãos
encarquilhadas tremiam, ela parecia doente e derrotada.
Ernest contraiu os lábios enquanto a fitava. Quando Hilda
finalmente levantou os olhos e percebeu a expressão dele,
foi dominada por um terror frenético. Sacudiu as mãos na
maior agitação, como se quisesse afugentar alguma coisa.

— Eu gostaria que nunca tivéssemos saído de casa! —


gritou ela subitamente.

Ernest não pôde deixar de sorrir, embora um tanto


secamente.

— Pense bem no que acabou de dizer, mãe. Não acha que


está bancando a tola? Gostaria que ficássemos na Inglaterra,
como criados, lacaios, cavalariços? Somos pessoas
importantes agora, a família mais rica de Windsor, uma das
mais ricas do estado e do país. E tudo em 30 e poucos anos.

A voz de Ernest tornava-se cada vez mais a voz de alguém


a falar impacientemente com uma criança. Mas os olhos de
Hilda começaram a faiscar, a respiração se acelerava,
tornava-se ruidosa.

— Não sinto orgulho disso — declarou Hilda, no tom alto


e solene de uma mulher que fala corajosamente e com
sinceridade. — Não sinto orgulho disso, Ernest Barbour.
Esperei muito tempo para falar e ficou me corroendo, até
que não pude mais aguentar. Tenho de falar agora de
qualquer maneira.

“O que todo esse dinheiro nos proporcionou? Olhe para o


seu próprio rosto naquele espelho ali, por cima da lareira.
Veja por si mesmo! É o tipo de rosto que gostaria que o
marido de sua filha tivesse, um rosto para mostrar a ela na
noite de núpcias? Pergunte a si mesmo! Nem mesmo é o
rosto de meu filho. É o rosto de um patife, um salteador. E é
justamente isso o que você é... um salteador. Levou seu pai à
morte, tornou os últimos anos dele miseráveis, com suas
tramoias e traições. Ele nem mesmo pôde morrer em paz...
por sua causa. Noite após noite.

Nesse ponto, a voz de Hilda passou a ser entrecortada por


soluços.

— ... eu o ouvia chorando no sono, gritando angustiado. E


era sempre Ernest está fazendo isso, Ernest está fazendo
aquilo, onde tudo ia acabar, ganhando dinheiro à custa de
ingleses morrendo na Criméia, provavelmente mortos por
armas fabricadas por nós e vendidas em segredo aos russos.
Seu pai nunca foi muito favorável ao negócio de munições,
pelo menos em tempo de guerra. Falava calmamente a
respeito, sobre as mortes e tudo mais. Mas, tinha pesadelos.
Procurava ser frio, bravo, indiferente. Mas isso matava-o um
pouco a cada dia. Não, não se atreva a me interromper! Ainda
não acabei!

“Ele tinha medo de você. Isso mesmo, tinha medo de


você. E sentia medo porque sabia que você era cruel e não
tinha coração. Não concordei com ele a respeito de George...
Achei que você fez o que era certo. A princípio. Mas depois
compreendi que você realmente não se incomodou com o
fato de George ser um ladrão. Afinal, você também foi
sempre um ladrão. Tudo o que queria era afastar George do
negócio, a fim de poder dirigi-lo pessoalmente. George
estava em seu caminho, ele tinha algo de valor que você
queria. O pobre Joe sabia disso. Era mais esperto do que eu.
Nunca fui muito esperta para conhecer as mentes dos
patifes. O que matou meu pobre Joe foi saber de tudo, sentir
medo de você e tentar odiá-lo. Você me fez viúva, Ernest
Barbour. E vai pagar por isso, perante Deus!”

Ela se levantou subitamente, de tal forma que a cadeira


virou. Fitou o filho, tremendo violentamente, o rosto lívido
marejado de lágrimas, os olhos brilhando de desprezo e
acusação.

— Não seja tola, mãe — disse Ernest, ríspido. Ele afastou-


se um pouco da lareira, aumentando a distância que o
separava da mãe. — Se insistir em continuar a falar como
uma idiota, vou embora agora mesmo. Vim até aqui para ver
o que poderia fazer por você...

— Fazer por mim? — Hilda quase que gritou, numa


indignação atônita. — Fazer por mim? O que já fez algumas
vez pelos outros, seu patife? A quem você serviu, além de si
mesmo? A quem você amou, além de si mesmo? Este não é o
momento para palavras bonitas, rapaz. Com quem você se
importou além de si mesmo? Amy? Amy, a mulher de seu
falecido irmão? Ah, sei de tudo a respeito, meu bom canalha!
Graças a todo dinheiro que você tem, não pode ir a parte
alguma sem ser visto!

A voz de Hilda terminou num gargarejo sufocado, pois


Ernest pusera a mão em sua boca brutalmente e apertava-a,
implacável.

— Cale-se! — sussurrou ele, enquanto a mãe se debatia


em vão. — Cale-se!
Hilda fitava-o por cima da mão dele, com ódio e
repugnância. Nem mesmo o brilho maléfico dos olhos
dilatados de Ernest, a violência assassina e silenciosa de sua
expressão, podia atemorizar a velha desesperada. Ela puxou
a mão do filho, cravou-lhe as unhas, arrancou-a de seu rosto.
Todos os músculos faciais de Hilda tremiam de impotência,
por baixo da pele lívida. Num silêncio profundo e opressivo,
mãe e filho ficaram se olhando com ódio.

Hilda ofegava violentamente, o barulho ressoando pelo


quarto. E ela finalmente sussurrou:

— Nunca o perdoarei por isso...

Ela levou o lenço aos lábios. Ao fazê-lo, uma expressão


vidrada assentou sobre seus olhos. E repetiu, em voz mais
alta:

— Nunca o perdoarei por isso...

Ela baixou o lenço, fez um esforço para recuperar o


controle. Pôs a mão na cabeça. Recomeçou a falar a Ernest,
que fora se postar ao lado de uma janela e olhava para a
noite lá fora.

— Eu o vi como você é — disse ela, em voz baixa, quase


pensativa. — Agradeço a Deus por isso. Posso continuar o
que tenho a dizer-lhe. Você não é mais meu filho. É um
demônio que meteu-se no corpo do meu garoto. Ajudou-nos
a ter todo esse dinheiro. Mas não porque se importasse que
tivéssemos ou não dinheiro. Estava puxando uma rede e
fomos levados de roldão. Mas o que o dinheiro realmente
proporcionou a qualquer um de nós? Matou meu pobre
Martin, que nunca fez mal a uma mosca e que era um anjo
como jamais existiu outro igual. E você também levou-o à
morte, assim como tinha feito com seu pai. Matou Martin.
Não sente orgulho disso? Tornou um tormento toda a pobre
vida dele e acabou matando-o. E foi como se você tivesse
puxado o gatilho pessoalmente. Tentou roubá-lo. E como não
conseguiu, tratou de matá-lo. Penso às vezes que você
também matou o velho Sr. Gregory,

— Ficou doida — disse Ernest baixinho, sem se virar. —


Devia estar internada num hospício.

Hilda sacudiu a cabeça, sorrindo.

— É possível. Mas não existe hospício nem grades que


possam segurá-lo. A lei não pode atingi-lo. Jamais pode fazer
alguma coisa contra os assassinos e ladrões que são tão
grandes quanto você. Seria como tentar acorrentar a Peste
Negra. Você é uma peste, uma terrível praga. Mas Deus
lembra, Deus vai alcançá-lo algum dia. Não pode evitá-lo,
Ernest Barbour. Terá um encontro com Deus, por todas as
vidas que arruinou, por todas as vidas que ainda está
tentando arruinar, a vida de sua pobre filha, a vida de sua
pobre mulher, de Frey, Amy... Não pode evitar Deus. Por
mais fortes que sejam as suas portas, jamais conseguirá
manter Deus do lado de fora!

Ernest virou-se para ela.

— É uma velha muito tola — disse ele, aparentemente sem


rancor e sem muito interesse. — Como todos os velhos, você
fala demais. É desaforada e tola. Porque virou rabugenta,
ninguém mais quer saber de você. Eu a aconselho a mudar.
Nenhum de nós vai aturá-la por muito mais tempo.

Ele deixou o quarto, andando firmemente.

Hilda ficou parada onde estava por um momento, depois


tateou às cegas à procura de uma cadeira. Calafrios
percorriam-lhe o corpo volumoso. Sentou na beira da
cadeira, as mãos nos joelhos, as palmas viradas para cima.
Eram mãos curtas e gordas, vigorosas, mãos que haviam
conhecido o trabalho árduo para quatro filhos. Eram mãos
que haviam surrado, mãos que haviam cuidado no tempo de
bebê e nas doenças, mãos que haviam amado os filhos. Mas
Hilda não olhava para as mãos, que pateticamente
exprimiam mais do que quaisquer palavras poderiam fazer.
Ela ergueu os olhos, novamente transbordando com lágrimas
ardentes, como sangue, fixou-os no velho daguerreótipo do
jovem Joseph Barbour, em cima da lareira. Começou a gemer
e lamuriar-se incoerentemente, como uma criança surrada e
perdida.

— Joe, meu amor, aquele era nosso filho Ernest, falando


com sua mãe com aquela cara e aquela voz! Aquele era o
garoto de que sentíamos tanto orgulho, passeando com ele
por Sandy Lane, segurando suas mãos para que não caísse.
Está lembrado, Joe, como colhíamos margaridas para ele? Já
então ele gostava de destruir as coisas. Mas ele era muito
bonito, um garotinho de faces coradas. E você dizia que não
havia nada que não faria por ele!

Ela soluçou alto, desesperadamente. Alguma coisa parecia


dissolver-se em seu peito, arrebentar-se.

— Aquele era o nosso garoto, Joe, falando com sua mãe


daquele jeito, como um demônio! Lembra quando eu o
carregava no ventre? Já então ele era vigoroso. Ficávamos
sentados no jardim de sua velha tia, cercados pelas árvores,
fazendo planos para quando ele nascesse. Está lembrado? E
eu me sentia tão contente porque ia ter o seu filho, Joe... Oh,
Deus, por que tivemos filhos? Joe, por que tivemos filhos...
filhos para acabarem nos odiando? Nós os trouxemos para cá
e os amamos, demos nossas vidas por eles. E tudo o que
podemos esperar é que não nos odeiem antes de morrermos.
Mas isso sempre acontece... eles sempre acabam nos
odiando!

Hilda uniu as palmas em silêncio, freneticamente, com a


força de seu desespero. Virou-se e olhou para a porta,
através das lágrimas. E balbuciou:

— Ernest, meu filho, volte para sua mãe... Eu o amo, meu


menino, mesmo agora eu continuo a amá-lo...

Ernest estava falando com a irmã e o cunhado no


vestíbulo, enquanto punha as luvas e esperava pela
carruagem.

— Ela não é mais responsável por seus atos. Pedirei ao Dr.


Benjamin que passe aqui amanhã para vê-la. Há algumas
instituições particulares muito boas...

Um baque surdo lá em cima fez o teto romper por um


instante. Todos se entreolharam, empalidecendo. Depois,
soltando um grito débil, Florabelle pegou as saias e subiu a
escada correndo. O marido e o irmão correram atrás dela.
Um zumbido alto começou a penetrar subitamente no
cérebro de Ernest, como uma corda repuxada. Ele estava
todo molhado de suor quando chegou à porta do quarto da
mãe, um passo atrás de Florabelle.

Hilda estava caída no chão, o rosto virado para o teto, os


olhos abertos e vidrados. Ernest olhou para a mãe por cima
do ombro de Florabelle, depois agarrou-a pelos ombros e
empurrou-a para os braços do marido. Florabelle
desmoronou nos braços do major sem dizer uma só palavra.
As crianças, despertadas pelos barulhos estranhos,
começavam a espiar através de portas abertas, os camisolões
brancos compridos caindo até os pés, as bocas franzidas
entreabertas. Os bebês, incomodados pelo tumulto,
desataram a chorar. A vela solitária no quarto de Hilda
tremeluzia com uma terrível claridade amarelada, a chama
agitada pela brisa que entrava pela janela.

Ernest ajoelhou-se ao lado da mãe. Olhou para a boca


inerte entreaberta, com as borbulhas de sangue nos cantos,
olhou para os olhos vidrados, mortos. Depois, pegou seu
próprio lenço, abriu-o, estendeu-o gentilmente sobre o rosto
de Hilda. Levantou-se. O Major Norwood começara a chorar
silenciosamente, pois era um bom homem, não tendo
quaisquer ressentimentos contra a sogra, e estava
contagiado pelo desespero da mulher.

— Minha mãe está morta — disse Ernest, em voz sombria,


impassível.

Ele levou a mão aos olhos, como se uma claridade intensa


os ofuscasse.

François, que tinha ataques quando era bebê, começou a


gritar.
CAPÍTULO LXV
Depois de uma reunião com Marlowe, o presidente do
banco, Ernest passou pela pequena sala particular de Paul.
Havia um letreiro em preto na porta de vidro: Gerente do
Escritório. Ernest sorriu. O rapaz estava indo muito bem. No
próximo ano, seria um vice-presidente. Paul possuía uma
aptidão instintiva para as finanças, o olhar incisivo nato de
um banqueiro, frieza absoluta, uma descrença total na
integridade dos seres humanos. Ainda o faremos presidente,
pensou o tio, batendo na porta e entrando.

Paul estava sentado a uma escrivaninha preta


escalavrada, conferindo os livros com um nervoso caixa,
velho o bastante para ser seu avô. O rosto do rapaz estava
contraído desagradavelmente, enquanto o velho encolhia-se
na cadeira, umedecendo os lábios, tremendo. Mas a
expressão de Paul se desanuviou e iluminou quando o tio
entrou na sala. Ele dispensou o caixa com um aceno da mão.
O velho fez um esforço para se levantar, pálido como um
fantasma. Fez uma mesura para Paul, depois outra para
Ernest, ainda mais profunda e aterrorizada, fugiu da sala
como um coelho assustado.

— Ele tem de sair, Tio Ernest — disse Paul, levantando e


sorrindo para Ernest, estendendo-lhe a mão.

Ernest apertou a mão estendida, dizendo:

— O velho Sedley está no banco há séculos. Qual é o


problema desta vez?

— Negligência. Velhice. É a terceira vez que acontece. A


quantia não é grande coisa, mas exige muito esforço para
endireitar tudo. Ele tem de sair. Em todos esses anos de
trabalho, deve ter economizado o bastante para poder viver
pelos poucos anos de vida que lhe restam.

Ernest sentou-se. Pôs a bengala, o chapéu e as luvas na


escrivaninha de Paul. Notou que a escrivaninha, como
sempre, estava impecável e meticulosamente arrumada.
Ernest amava a ordem e essa prova adicional da semelhança
entre ele e o sobrinho deixou-o profundamente satisfeito.
Paul sentou. Era mais alto do que o tio, um corpo bem
proporcionado, parecendo bem mais velho do que os seus 22
anos. Era mais bonito do que Ernest fora na idade dele. Tinha
o nariz curto e beligerante dos Barbours, as narinas
dilatadas, a pele clara, olhos azuis-escuros, cabelos
castanho-claros. Mantinha o rosto raspado. A atitude era
alerta, fria, cheia de vitalidade. Era sentimental às vezes, o
que não chegava a desagradar a Ernest, que sabia que as
pessoas sentimentais são geralmente desprovidas de
misericórdia ou gentileza.

Não havia nada do pai nele, pensou Ernest. E também não


havia qualquer coisa de Amy, exceto a pele alva e lisa, uma
certa graciosidade que, de vez em quando, se impunha ao
corpo grande e forte. Ele disse em voz alta:

— Não podemos despedir o velho Sedley, Paul, embora eu


tenha a impressão de que poucas pessoas se importariam.
Mas há alguma coisa tola pairando no ar atualmente, algo
que começam a chamar de ‘consciência social’. O velho
Sedley foi bom para mim quando eu era um garoto
inexperiente. Não podemos despedi-lo sem mais aquela.
Sugiro um mês de aviso prévio e um cheque de 200 dólares.
Isso deve contentar a velha e também satisfazer Sedley.

Paul anotou rapidamente a sugestão, acenando com a


cabeça respeitosamente enquanto o fazia.
— É muita bondade sua, Tio Ernest. Não são muitas as
pessoas que pensariam nisso. Creio que seria mesmo terrível
jogar o velho Sedley e a mulher no asilo de indigentes, sem
um aviso e algum dinheiro para ajudar a pagar os funerais.
Afinal, não somos bárbaros. E, às vezes, compensa ter algum
sentimento pelos infelizes.

Ernest mordeu o canto do lábio, antes de falar:

— Tem razão, creio na generosidade. Não devemos coisa


alguma a Sedley. Afinal, o que são 40 anos ou mais de
serviços prestados? Ele foi pago por todos esses anos,
recebeu seu salário regularmente, o suficiente para sustentá-
lo a pão, presunto e chá, para permitir-lhe comprar de vez
em quando um xale para a mulher.

Paul levantou os olhos bruscamente, mas o rosto de


Ernest estava afável e indiferente. Paul sentiu-se
constrangido e indefeso por um momento. Havia ocasiões
em que o Tio Ernest fazia comentários que eram bastante
ambíguos. Ele, Paul, nem sempre podia dizer se o tio estava
rindo dele ou não.

O rapaz acendeu um cilindro fino e comprido de papel,


com tabaco dentro, uma coisa nova e que estava na moda, a
que chamavam de cigarro. Ofereceu um a Ernest, que
recusou. Paul olhou para seu cigarro, indeciso, perguntando-
se se o tio o aprovaria ainda mais se largasse o hábito.
Sempre quisera agradá-lo. Não se tratava de hipocrisia. Ele
realmente idolatrava Ernest, considerava-o o mais sábio, mas
arguto e mais maravilhoso dos homens. Nada o agradava
mais do que ouvir alguém comentar a semelhança entre os
dois. Ernest leu os pensamentos dele e sorriu
indulgentemente, com profunda afeição.

— Mas não deixe que minhas simpatias e antipatias o


afetem, Paul. Não seja um imitador de ninguém. Você tem
direito a seus próprios gostos.

Depois de um momento, contraindo os olhos através da


fumaça agradável, Paul disse:

— Tio Ernest, estive pensando sobre todo o dinheiro de


Barbour & Bouchard que está indo para aquele hospital. Será
que não podíamos dar um jeito de contornar o testamento de
meu pai? Andei estudando o testamento por muitas horas,
cuidadosamente, e cheguei à conclusão de que pode haver
uma saída...

A expressão agradável de Ernest desvaneceu-se e ele fitou


o sobrinho com alguma aspereza.

— Já estava esperando que pensasse nisso, Paul. Tem


razão. Eu próprio conheço algumas saídas. Imaginei que você
iria descobri-las. É inteligente e isso era inevitável. Claro que
não o culpo absolutamente por estar ressentido contra todos
aqueles milhares e milhares de dólares em dividendos que
são despejados no hospital. Sei que isso absorve até o último
vintém da renda das ações. Isso acontece porque seu pai
estabeleceu a política de oferecer aos que não podem pagar
o mesmo tratamento dispensado aos pacientes pagantes. E
até mesmo os pacientes pagantes têm um mínimo de
despesa. Seu pai era um homem muito bom e caridoso.

Ernest acrescentou as últimas palavras em tom irônico.

— Acho uma loucura! — gritou Paul, corando até as raízes


dos cabelos, de raiva e ressentimento, até então reprimidos.
— A caridade tem de começar em casa. Se temos mesmo de
aplicar todo o dinheiro naquele maldito hospital, devemos
pelo menos ter alguma renda em troca. Sugiro elevar o custo
do tratamento e não tratar mais ninguém gratuitamente. Há
falhas...

Ernest levantou a mão abruptamente e Paul se calou no


mesmo instante, a respiração entrecortada.

— Como já falei, Paul, sei perfeitamente que existem


falhas nos termos do testamento. Pensei nisso muito antes
de você. E sua mãe também. Ela poderia ter mudado tudo há
muito tempo. Mas não o fez. Ela acredita que deve a seu pai
cumprir os desejos dele. — Ele fez uma pausa, antes de
acrescentar, com uma firmeza que surpreendeu Paul: -nada
deve jamais ser feito contra os desejos de sua mãe, contra a
convicção dela de que está cumprindo a vontade de seu pai.
É um grande conforto para ela.

Ao final, a voz de Ernest estava preocupada.

— Não sei por que... — murmurou Paul, irritado.

Ernest pegou a bengala e bateu com ela na escrivaninha,


violentamente.

— Há muitas coisas que você ainda não compreende, meu


caro rapaz. Se tentar qualquer coisa contra os desejos de sua
mãe, durante a vida dela, não quero mais saber de você. Fico
contrariado até mesmo de falar a respeito.

Paul ficou com o rosto vermelho, mas não se apressou a


apresentar o pedido de desculpas e a garantia que Ernest
esperava. Quando se tratava de dinheiro, até mesmo a
afeição e o respeito arrefeciam em Paul. Ernest sentia a
maior simpatia por isso, ficou satisfeito com o que percebeu
no rosto do rapaz. Mas não se abrandou.

— Não se esqueça do que lhe falei — disse ele


asperamente, levantando-se.
Paul tinha de se levantar também. Foi o que fez. Mas ficou
parado, inabalável como um rochedo, a expressão soturna.

— Afinal, você não está passando fome, Paul.

O mau humor de Ernest estava se desvanecendo. Ele


sorriu, cutucou o sobrinho com a bengala, jovialmente.

— Sua mãe tem mais de meio milhão de dólares no nome


dela. Quase três quartos de milhão. As ações de ferrovias
que o tio dela deixou quadruplicaram de valor e vão subir
ainda mais. Ações de ferrovias equivalem a ouro atualmente.
Você não está passando fome.

— Mas somos quatro filhos! — disse Paul


involuntariamente, ficando no mesmo instante constrangido
por seu deslize.

Ernest soltou uma risada.

— Quando sua mãe morrer de velhice, as ações e os


outros bens dela estarão valendo mais de um milhão de
dólares, talvez até dois milhões. — Ele piscou
maliciosamente para Paul e acrescentou: — Além disso,
quando você casar, darei a Trudie dez mil ações da Barbour
& Bouchard, como dote. E algum dia você será o presidente
deste banco, se minha influência valer de alguma coisa. —
Ele percebeu que a expressão de Paul se tornava sombria e
perguntou: — Mas qual é o problema agora?

— Tio Ernest, nem mesmo consigo me aproximar de


Trudie. Ela me mantém a distância. Nem me deixa falar-lhe.
Afinal, ela já está com 20 anos, idade mais do que suficiente
para casar. Mas nem me deixa falar-lhe. Bem que me esforço,
mas há mais de um mês não consigo falar a sós com ela.
O rosto dele estava vermelho de raiva e frustração, os
olhos tinham uma expressão aturdida.

— Eu a amo, Tio Ernest! Tenho de casar com Trudie de


qualquer maneira! Nunca haveria outra mulher para mim,
mesmo que ela morresse, casasse com outro ou me
recusasse. Eu a amo desde que éramos crianças. Mataria
qualquer um que se interpusesse entre nós...

Ele parou de falar, sufocado. Virou-se bruscamente, num


gesto furioso, como se tentasse ocultar a emoção
incontrolável que o dominava.

— Ficaria com Trudie e nenhuma outra, mesmo que ela


não tivesse um vintém — balbuciou ele, com profunda
amargura, a voz entrecortada.

Ele a ama como eu amava a mãe dele, como ainda a amo,


pensou Ernest, compadecido. Ele cerrou as mãos sobre a
bengala, recordando o jovem Ernest que perdera seu amor e
que nunca se recuperara disso. Sentia que, defendendo Paul,
decidindo que Paul deveria ter seu amor, estava oferecendo
uma compensação ao jovem Ernest. Paul não teria aqueles
anos estéreis de angústia terrível, de sofreguidão
interminável.

— Lembre-se de que um coração fraco jamais conquista a


bela dama — disse ele, pegando o braço do rapaz
afetuosamente.

Mas Paul não reagiu, não se virou. Enfiara as mãos nos


bolsos e estava de cabeça abaixada. Ernest podia ver os
contornos firmes do queixo, os lábios lívidos.

— Trudie não passa de uma criança com muita


imaginação, Paul. Todas as garotas são tolas. Você é sólido
demais para ser o cavaleiro delicado dos sonhos dela. E
todas as garotas sonham com cavaleiros graciosos, em
cavalos brancos. Talvez você esteja sendo um pouco
precipitado. Carece de sutileza.

Os músculos de Paul contraíram-se sob a mão dele.

— Ao diabo com a sutileza! — exclamou o rapaz. — Sou


um homem, não gosto de brincadeiras. Não vou ficar me
exibindo com canções em torno de Trudie. Eu a quero como
um homem quer uma mulher. Está tentando me dizer que
talvez eu a assuste. Ninguém pode jamais assustar Trudie.
Ela pode ser frágil e dar a impressão de que se romperia em
minhas mãos, mas não é o caso. Ela não tem medo de mim.
Só receia que não consiga escapar de mim. Não há qualquer
bobagem nela. Minha pressa, minha precipitação, como diz,
não fere os sentimentos virginais de Trudie. Ela não está
sendo recatada comigo. Simplesmente não me quer. Ela me
odeia.

Ernest franziu o rosto, forçou Paul a fitá-lo.

— O que está querendo dizer com isso? A garota não o


odeia. Já disse a ela uma dúzia de vezes que quero que se
case com você. Mas achei melhor não apressá-la. É a minha
única filha e a prefiro a todos os garotos juntos. Vou sentir
mais saudade de Gertrude do que você pode imaginar. É por
isso que não a pressionei. Mas vou fazê-lo agora. Está
satisfeito?

Mas a expressão amargurada de Paul não se atenuou. Os


olhos fixavam-se em Ernest ceticamente, quase com desdém.

— Não, Tio Ernest, não estou satisfeito. Está esquecendo


Philippe Bouchard, meu caro primo.
Ernest largou o braço de Paul, o rosto assumindo uma
expressão sombria.

— Philippe? Aquele maricas francês? Mas como você é


tolo! Tinha uma opinião melhor a seu respeito, Paul. Minha
Trudie jamais olharia duas vezes para ele. Está insultando-a
ao insinuar tal coisa. Ele é mais moço do que Trudie e a
diverte. E está por toda parte, como se tivesse a dança de São
Vito. Mas posso lhe assegurar que Trudie não lhe dá a menor
importância. Mas que besteira é essa que você meteu nessa
cabeça dura?

A voz de Ernest se alteara e ele estava agora gritando. Mas


por trás dos gritos, por trás da fúria, havia uma terrível
náusea. Mas como fora idiota! Deveria ter ficado atento,
vigilante. Eu não sabia, pensou ele.

Paul virou-se para fitá-lo novamente, com alguma


ansiedade.

— Sei que Trudie é a sua predileta, Tio Ernest. Por causa


disso, pensei que talvez ela e Philippe pudessem dobrá-lo,
afastar-me. Mas se fincasse pé... Eu a terei nem que tenha de
conquistá-la à força, Tio Ernest.

Ele sorriu, como se quisesse depreciar o próprio exagero.


Mas os olhos não estavam sorrindo.

Ernest pôs o chapéu e as luvas. Uma tonalidade arroxeada


espalhara-se por seu rosto. Não retribuiu ao sorriso de Paul.
Encaminhou-se para a porta e o sobrinho acompanhou-o.

— Não pressione demais, Tio Ernest. Basta fixar as coisas


para Trudie. Esta noite, eu a verei, se me ajudar. Podemos
acertar tudo esta noite.
Ernest fitou-o sombriamente, em silêncio. Não precisa de
ajuda com sua mãe, pensou ele, quase com desprezo pelo
rapaz. Mas também Amy me amava, ele acrescentou para si
mesmo. A cor normal começou a voltar a seu rosto. Ele pôs a
mão no ombro do sobrinho, apertou.

— Vou ajudá-lo, Paul. Venha jantar conosco, se quiser.


Pegue seu chapéu. Minha carruagem está lá fora.

Seguiram para a casa da família Sessions através de um


crepúsculo violeta. Não se falaram por algum tempo. Ernest
deslocava a cabeça grande de um lado para outro,
lentamente, sombrio com seus pensamentos furiosos. As
ruas estavam quietas e o barulho das patas dos cavalos
ressoava alto. Todos estavam jantando. As casas se
encontravam envoltas pelo mistério do crepúsculo, as
árvores pairavam imóveis, os galhos superiores ainda
avermelhados de um sol que caíra além do rio. Foram pela
estrada à beira do rio, passando por fábricas e atracadouros,
passando pelas cabanas dos posseiros. O rio estava da cor de
cobre e o céu era cobalto por cima. O outono já esfriava o ar.
A estrada à beira do rio, larga e plana, tornara-se um lugar
preferido para as casas dos novos ricos, pessoas que ainda
eram repelidas por uma sociedade de Oldtown que se
tornava cada vez mais miserável, com o passar dos anos, em
decorrência da integridade e orgulho. As últimas cabanas de
posseiros desapareceram e agora imensas casas surgiam
entre as árvores novas, à beira da estrada. Lampiões estavam
acesos em janelas largas e salientes, havia reflexos brilhando
nas colunas e varandas brancas. Gramados impecáveis, com
veados e cachorros de ferro, estendiam-se até os degraus
brancos. Cada casa possuía o seu pequeno atracadouro
particular, com um ou dois barcos atracados. A prosperidade
chegara a um trecho do rio que tinha outrora margens baixas
e lamacentas, pedras largas esquentadas pelo sol. Alguma
coisa deve ter avivado isso nitidamente na mente de Ernest
naquela noite, porque ele viu as faias brancas e os salgueiros
à beira do rio, as pedras entre as árvores, o sol cintilando na
água. Viu um garoto louro e uma menina pequena brincando
nas pedras, um garoto aleijado rindo perto deles. Vira-os
assim mais de mil vezes, das janelas empoeiradas da
pequena fábrica de tijolos vermelhos, que agora se
transformara em diversas oficinas gigantescas, berrando
furiosamente para a noite.

— Lembro quando tudo isto não passava de uma terra


abandonada — disse ele em voz alta, subitamente, para o
rapaz silencioso ao seu lado.

Paul ficou escutando polidamente. Olhou sem interesse


para as casas novas e grandes, olhou para o rio domado,
muito pálido à luz do final de tarde. Uma terra abandonada,
pensou ele. Provavelmente comprada por uma ninharia. Os
velhos espertos haviam ficado ricos sem muito trabalho. Por
sorte e por contarem com uma nova terra para explorar. Mas
ele e os outros de sua geração tinham de suar sangue para
ganharem cada vintém.

— Seu pai costumava brincar aqui, com sua Tia Dorcas —


continuou Ernest, num tom estranho. — Seu Tio Eugene tinha
um irmão, um aleijado. Jacques Bouchard. Seu pai e ele eram
muito amigos. Eles viviam num pequeno mundo particular.
Jacques morreu nele. Penso às vezes que a mesma coisa
aconteceu com seu pai.

Os lábios de Paul se contraíram. Quando tudo aquilo


acontecera? Mil anos antes! Era uma história antiga e sem o
menor interesse, liquidada e cediça. Ele gostaria que o tio
parasse com as reminiscências. O problema de Gertrude era
muito próximo, intenso e perturbador. Ernest fitou-o de lado
e sorriu para si mesmo, ironicamente. (Ele acha que estou me
tornando um velho maçante, falando sobre o passado. Não
sabe que na verdade não existe qualquer passado, ele está
sempre se intrometendo no presente, com todas as suas
antigas angústias e emoções. É mais importante do que o
presente.) Ele não pensava muito em Martin há vários anos.
Mas subitamente Martin estava por toda parte, mais real e
vital do que seu filho, sentado impassivelmente na
carruagem. Pobre coitado!, pensou Ernest de repente, com
tamanha intensidade, com tanto sentimento, que ficou
atônito e divertido consigo mesmo. Pobre coitado!, repetiu
ele, mentalmente. E como se a aceitação do irmão fosse um
encantamento secreto, toda a sua personalidade foi
subitamente invadida pela essência do falecido, a tal ponto
que sentiu a mente debilitada, assim como o corpo. A isso se
seguiu a mais colossal sensação de perda, de vazio extremo,
como se tivesse sido esvaziado de tudo, de integridade,
personalidade, realidade, substância. Foi uma sensação das
mais estranhas e bastante terrível.

Estou ficando velho, pensou Ernest. Ele virou-se para Paul


e disse:

— Possuímos metade das minas da Pensilvânia.

Paul respondeu alguma coisa, algo alto, veemente e


satisfeito. Não sei, pensou Ernest, simplesmente não sei.

A carruagem afastara-se do rio, estava agora rodando


outra vez por ruas sossegadas, a caminho de Oldtown.
Atravessaram os trilhos. A noite baixara. O ar recendia a
fumaça, ressoava com o barulho dos grilos. Ele, Ernest,
pisara num grilo um dia, esmagando-o, na lareira da casa em
que viviam na Inglaterra. O rosto de Martin surgira diante
dele, com a luz do fogo a iluminá-lo. Ele vira o grilo ser
esmagado e o rosto estava dominado pelo terror. Como se eu
tivesse pisado nele, pensou Ernest. Que coisa mais estranha!
Por que nunca pensei nisso antes?
Paul estava lhe perguntando alguma coisa.

— Godfrey? Ele não virá antes do próximo verão. Está


concluindo sua sinfonia em Paris. Tem a esperança de que
possa ser apresentada em Nova York no inverno seguinte.

A voz de Ernest era neutra, na conversa polida.

— Reggie está indo muito bem em Harvard. Tenho as


melhores notícias a respeito dele. Um dos alunos mais
novos. Espero que ele esqueça as suas bobagens religiosas
em Harvard. Foi tudo culpa daquela maldita babá menonista.
Uma missionária!

Paul se lembrava daquele seu absurdo de não querer


botões nas roupas? Isso acontecera há oito ou dez anos.
Ainda era um gracejo na família. “Onde estão seus botões?”
Isso significa, é claro, que a pessoa perdera o juízo. Guy?
Ernest franziu o rosto. Não estava indo tão bem quanto se
poderia desejar na escola em Filadélfia. Era animado demais,
estava sempre querendo brincar. Aos 14 anos, ainda gostava
de brincadeiras. Mas o ‘pequeno’ Joey... Era um garoto que
fazia bem ao coração de um pai. Tinha apenas dez anos e já
era um verdadeiro homem de negócios, cuidando
meticulosamente de cada moeda. (Maldito avarento
mesquinho!, pensou Paul, rancorosamente.) Ele sentia-se
imensamente feliz quando estava na fábrica, disse o pai do
‘avarento mesquinho’, sorrindo ligeiramente.

Subiram pelo caminho. Através das árvores, as luzes da


casa brilhavam intensamente. Podiam ver os novos lampiões
de gás na vasta sala de estar. Projetavam uma claridade fria e
desolada que Ernest não apreciava muito. Para ele,
estragavam a casa.

As lareiras já estavam acesas e puderam sentir um calor


agradável quando entraram no vestíbulo. Como a casa estava
sossegada ultimamente, pensou Ernest, com apenas Gertrude
e Joey, os outros três garotos longe! Os aposentos estavam
impregnados da atividade intensa que precedia o jantar. May
lia junto ao fogo, na segunda sala de estar. Usava óculos
agora. Tirou-os quando o marido e o sobrinho entraram na
sala, colocou-os cuidadosamente entre as páginas do livro.
Sorriu para Ernest quando ele beijou-lhe a testa. Sorriu para
Paul, ao estender-lhe a mão. Não gostava absolutamente
dele, mas sorriu-lhe mesmo assim.

— É uma pena que não soubéssemos que vinha jantar,


Paul ~ disse ela, com um faiscar nos olhos redondos e
divertidos. — Trudie vai jantar com sua Tia Dorcas esta
noite. É o aniversário de Etienne e creio que haverá uma
festinha depois...

E ela sorriu novamente, enquanto punha o livro de lado e


olhava para o fogo.
CAPÍTULO LXVI
Era o aniversário de Etienne Bouchard e os pais estavam
oferecendo uma pequena festa. Ele completava 15 anos
naquele dia e sentia-se um homem adulto. Sabia que era
excepcionalmente bonito e gracioso, muito parecido com o
Tio Raoul, que morrera na Guerra Civil. Na palidez morena
da face direita havia uma covinha extraordinariamente
bonita, fascinante. Etienne tinha olhos escuros e bonitos,
como os de uma menina. Tudo parecia muito definido nele,
das sobrancelhas retas à linha dos cabelos pretos cacheados,
da boca fina e sorridente ao nariz saliente. Nada era
indefinido ou distorcido em seu rosto, nada era irregular.
Nada de sua mãe inglesa atenuara ou tornara fleumática a
vivacidade de sua expressão. Era todo francês, com a
jovialidade exuberante das províncias meridionais se
manifestando em seu sangue de ator. Pois Etienne era um
ator nato e um patife calculista ainda por cima, apesar de
todo o seu charme. Podia ser esguio e não muito alto, mas o
temperamento exuberante compensava a carência de carne e
estatura.

Ele gostava de implicar com a irmã de 14 anos, Renée,


que o adorava. Censurava-a violentamente num momento,
era profusamente afetuoso no instante seguinte. Assim, a
pobre garota vivia num estado permanente de apreensão ou
delícia. Mas ele não implicava com Honore, o irmão de 13
anos, largo, meio baixo, com um rosto irregular e indefinido,
quieto e compenetrado, com olhares pensativos. Etienne
admitia francamente que Honore era o ‘gênio’ da família.
Com essa admissão, geralmente cativava a audiência, como
se de alguma forma acrescentasse lustro a si mesmo e
tornasse Honore ligeiramente ridículo. E de alguma maneira
misteriosa, quando os irmãos estavam juntos, Honore
parecia uma distorção da beleza de Etienne, o nariz perfeito
um pouco comprido demais em seu caso, a boca sorridente
tornando-se torta, a testa ridiculamente grande, de tal forma
que a linha dos cabelos parecia recuar precipitadamente, os
olhos escuros e bonitos meio esbugalhados. Contudo, apesar
de tudo isso, depois que o ridículo se desvanecia, Honore
parecia ganhar em distinção, enquanto Etienne tornava-se
por demais óbvio e aparatoso, um pouco espalhafatoso.
Lembrava um bailarino, com gestos calculados e poses
artificiais.

Eugene e Dorcas deram um lindo relógio de ouro ao filho,


como presente de aniversário. Dorcas acrescentara a cautela
inglesa à parcimônia francesa de Eugene; assim, um relógio
de ouro era um grande acontecimento na família. Ainda
viviam na antiga e horrenda casa de pedra de Armand, em
Newtown, usando os mesmos móveis horrendos, até mesmo
o velho fogão holandês na cozinha calçada em pedra, as
altas camas francesas, que exigiam que se subisse num
banquinho para alcançá-las. Dorcas, que estava se tornando
avarenta à medida que envelhecia, poderia ter levado sua
parcimônia à cozinha e à sala de jantar. Mas Eugene tinha a
paixão francesa pela boa comida e não permitiu. Não se
contentava com nada menos que os melhores molhos, os
melhores vinhos, as peças de carne e os presuntos mais
suculentos, a melhor prataria, os pratos mais bonitos, o café
mais seleto e a manteiga mais suave. ‘A prima de Quebec’
ainda presidia a cozinha. Apesar das insinuações
apreensivas de Dorcas, ela não poupava creme nem ervas,
vinho nem ovos. Eugene também não admitia lençóis
ordinários em sua cama, não queria saber de toalhas e
cobertores de qualidade inferior. Estava mais do que
disposto a abrir mão de requintes e elegâncias, mas exigia o
melhor em suas necessidades. Assim, as crianças podiam
não estar elegantemente vestidas, mas usavam as roupas
simples e confortáveis mais dispendiosas, comiam muito
bem, dormiam em camas aconchegantes. A educação deles
também não foi negligenciada. Eugene contratou um tutor
muito bem recomendado para os dois filhos mais velhos,
uma governanta e uma babá para Renée e os gêmeos. Se não
havia quadros nas desoladas paredes escuras, ornamentos
agora em cima da lareira, cortinas rendadas nas janelas,
colchas suntuosas nas camas ou garrafas de cristal nas
cômodas, havia estantes repletas de livros, havia o melhor
piano na sala de estar. Eugene jamais estava cansado demais
ou ocupado demais para conversar com os filhos, instruí-los,
escutá-los, responder a suas perguntas intermináveis com a
mesma seriedade que concederia a um adulto. Os filhos
retribuíam-lhe com profunda devoção e imenso amor.
Eugene não acreditava na ociosidade. Os garotos faziam a
maior parte dos próprios brinquedos, cada um tinha seu
trecho do jardim para cuidar, o próprio cavalo para escovar e
alimentar. Etienne e Honore acompanhavam o pai
frequentemente às instalações da Kinsolving (cinco prédios
imensos), vibrando incessantemente. Aos 15 e 13 anos,
possuíam conhecimentos realmente formidáveis da
fabricação de munições, assim como compreendiam os
problemas do trabalho. Renée também tinha suas
responsabilidades, arrumando seu próprio quarto e
ajudando a cuidar dos gêmeos, fazendo suas roupas e
aprendendo a cozinhar, como faziam, dizia Eugene, “todas
as moças francesas de boa família e bem-educadas”.

Etienne, o elegante, já estava, aos 15 anos, envergonhado


de sua casa feia e despretensiosa. Não lhe importava que o
pai fosse um milionário; queria evidências desse feliz
estado, em beleza e indolência, prazer e dinheiro no bolso. O
dinheiro que o pai lhe dava, um dólar por semana, deixava-o
furioso. Outros garotos, com pais menos prósperos,
ganhavam de cinco a 15 dólares por semana. No seu
aniversário, esperava sombriamente ganhar um dólar. O
relógio de ouro, refinadamente gravado, que assinalava as
horas, meias horas e quartos de horas com uma fascinante
música de carrilhão, com seu nome gravado por baixo da
tampa, contando com uma grossa corrente de ouro e um
berloque de granada, deixou-o inteiramente aturdido. Não
podia acreditar. Seu primeiro pensamento foi de que “o
velho ficou mole de repente”. A reação seguinte foi de
gratidão emocional. Tirou o relógio do bolso uma dúzia de
vezes, durante a pequena festa que lhe foi oferecida.
Balançou-o diante do invejoso, mas impassível Honore, cujas
mãos ansiavam em pegá-lo. Abriu a tampa e deixou que
Renée e os gêmeos, André e Antoinette, encostassem os
ouvidos, a fim de ouvirem o suave carrilhão. (Os gêmeos
eram crianças bonitas aos 10 anos, rechonchudos, louros,
joviais, com covinhas... os ‘anjos’ de Dorcas.)

Etienne sentou-se entre os seus presentes, diante do bolo


de aniversário aceso. Soprou as velas ansiosamente,
tentando apagar todas as 15 de uma só vez. Conseguiu e
olhou ao redor orgulhosamente, esperando os aplausos. Um
fogo intenso ardia na imensa e antiquada lareira.
Candelabros acesos em cima da lareira e nas mesas perto das
janelas enchiam com uma claridade dourada a sala grande e
atravancada, com seu chão de pedra. Etienne, seus primos,
Gertrude Barbour, Philippe, Jules e Leon Bouchard, seus
irmãos Honore e André, suas irmãs Renée e Antoinette e os
pais, além de seus amigos David Benshaw e Harold Lansbury,
estavam todos sentados em torno da imensa mesa de jantar
redonda, coberta por uma toalha branca de linho, pela qual
se espalhavam as travessas fumegantes do jantar de
aniversário. Nenhum dos outros primos fora convidado, pois
François estava doente e Etienne não gostava de Paul, Elsa,
Lucy e John Charles Barbour, nem de Joey, o irmão de
Gertrude.

Etienne adorava ser o centro de admiração e importância.


Tinha uma paixão de ator pelo excitamento e drama. Os pais,
Philippe, Leon e Gertrude ficaram impressionados com o ar
misterioso com que ele examinou os presentes ainda
fechados, para depois abri-los em gestos lentos e calculistas,
enquanto as crianças menores remexiam-se de impaciência
em suas cadeiras e suplicavam-lhe que se apressasse.

Jules, que aos 16 anos era um gnomo prematuramente


envelhecido, dera ao primo uma sela nova para seu cavalo,
em couro claro, arreios de prata. Leon, com 14 anos, ‘o
profundo’, há muito que adivinhara a paixão de Etienne pela
elegância, levando-lhe meia dúzia de gravatas aparatosas,
um tanto exageradas numa década sóbria, que tendia
fortemente a um retorno à simplicidade. Philippe deu-lhe um
anel de sinete, de ouro e granada, com suas iniciais
gravadas. Gertrude presenteou-o com uma valise de viagem,
adornada em prata, pois Etienne seguiria dentro de poucos
meses para uma escola preparatória de Boston. Honore deu-
lhe uma coleção de obras de Shakespeare e Milton, além de
um livro de orações, tudo encadernado em papel velino
impresso em dourado. Os gêmeos deram um par de escovas
de ébano e os dois amigos colaboraram jocosamente para
presenteá-lo com as melhores navalhas suecas, para o dia em
que começasse a fazer a barba. Etienne ficou atarantado com
tudo aquilo. Jamais recebera presentes tão suntuosos antes.
O que mais gostou foi o relógio de ouro, seguindo-se o anel
de sinete dado por Philippe e as gravatas. Contudo, ele tinha
suficiente imaginação (a imaginação de ator) e uma meiga
disposição natural para ficar profundamente comovido com
o presente da ‘prima de Quebec’, que era um rosário de
ébano e prata. Não era novo, há gerações que estava na
família dela, pertencera à mãe e à avó. O presente constituía
um sacrifício pessoal. Etienne beijou-a ternamente,
demoradamente, embora ela fosse uma velha, com a pele
flácida e ressequida demais para lábios jovens, que já
gostavam de sentir o calor de carne firme. Apesar de todos
os artifícios e manobras inconscientes para causar efeito de
Etienne, não havia qualquer hipocrisia naquele beijo.

Depois da cerimônia dos presentes, Etienne correu os


olhos pela mesa, radiante, o rosto bonito iluminando-se de
prazer e afeição. Estava sentado como um sultão entre
oferendas. Dorcas, sorrindo-lhe de seu lugar, julgou-o tão
bonito quanto um anjo moreno, ainda mais bonito que os
gêmeos, seus queridos. Eugene, comovido, apertou
rapidamente a mão do filho, com uma exibição excepcional
de afeição gaulesa. Sob o resguardado da toalha de mesa, a
mão de Gertrude estava na de Philippe; seus olhos ardentes
eram uma consequência de algo mais que o vinho e a alegria
de Etienne. Ela olhava ao redor vagamente, dominada por um
êxtase sonhador. Nunca pensara naquela sala grande e
atravancada como sendo agradável e aconchegante, mas
naquela noite parecia ter uma pátina de radiância que a
fascinava. Ela amava a todos. Seu coração batia como
címbalos, um calafrio de prazer estendia-se por seus nervos.
Daqui a pouco ela voltaria para casa em companhia de
Philippe, a pé, desdenhando as carruagens. Ele diria mais
uma vez que a amava e fariam planos para o dia em que
pudessem casar. (Embora tivesse apenas 19 anos, Philippe já
se formara na universidade em Filadélfia e estava
trabalhando com o Tio Eugene na Kinsolving.)

Renée ganhava apenas meio dólar por semana e não tinha


nada da parcimônia do pai. Todas as sextas-feiras, ela
descobria que não apenas não tinha mais nada, como
também geralmente estava devendo ao astuto e plácido
André. (O primo predileto de André era John Charles
Barbour. Os dois garotos de dez anos tinham uma conta
comum no banco, emprestando dinheiro a juros aos
conhecidos e aos primos menos previdentes.) Assim, quando
chegara o momento de comprar um presente de aniversário
para Etienne, Renée não tinha dinheiro. Sua agonia foi
profunda. Mas Dorcas acreditava que se devia deixar uma
criança sofrer por sua irresponsabilidade e mostrou-se
intransigente diante das súplicas frenéticas e chorosas da
filha. Também advertiu aos outros filhos que não
emprestassem dinheiro à impetuosa e descontrolada Renée.
Assim, em desespero, Renée foi obrigada a dar ao irmão seu
tesouro, uma medalha religiosa de ouro, que viera de Roma
com a garantia de ter sido abençoada pelo Papa. Com
exceção de Etienne, ninguém compreendia o sacrifício que
isso custara à menina. Assim, ele teve a delicadeza de aceitar
o presente em particular das mãos trêmulas e sujas de
Renée, beijando-a ternamente. A medalha nada significava
para Etienne, que não era absolutamente religioso, embora
adorasse a pompa e cerimônia dos rituais de sua Igreja. Sua
admiração secreta era por Voltaire, não porque
compreendesse perfeitamente a sutileza e ironia profunda
do grande homem, mas porque adorava sua ousadia
dramática e coragem jovial.

Animada pela recordação do beijo de Etienne, Renée


contemplava-o, exultante. Depois, ela olhou para Dorcas.
Jamais cansava de admirar a mãe, que considerava a mulher
mais linda e mais sábia do mundo. Respeitava Dorcas mais
do que a qualquer outra pessoa no mundo, inclusive o padre.
A menor ordem da mãe, um simples olhar firme, era
suficiente para fazê-la entrar em ação imediatamente. Mas
Renée não amava a mãe, embora fosse capaz de morrer por
ela, Todo o seu amor era para Eugene, toda a sua idolatria. E
depois de Eugene, vinha Etienne. Honore era muito parecido
com a mãe para despertar afeição na irmã mais velha.
Excepcionalmente, Renée estava comovida demais para falar
incessantemente, como sempre fazia.

O jantar terminado, todos se aproximaram do fogo. As


crianças menores sentaram-se na beira da lareira. Havia
castanhas e deliciosos pastéis franceses, frutos cristalizados
e doces, café puro. Gengibre em conserva, coberto de açúcar
cristalizado, foi passado de mão em mão, numa velha
compota de prata que pertencera a Madame Bouchard.
Eugene estava sentado com a loura e gorducha filha
Antoinette no colo. Renée dera um jeito de se sentar no
braço da poltrona dele e de vez em quando roçava o rosto
moreno por seus cabelos grisalhos. André quebrava
incessantemente as castanhas, que se espalhavam ao redor,
todos se apressando em pegá-las, rindo alegremente. Jules
estava concentrado em ler um dos novos livros de Etienne, à
luz do fogo. Philippe e Gertrude estavam sentados no
pequeno e antiquado sofá, no canto da chaminé,
conversando aos sussurros. Dorcas estava sentada ereta,
sorrindo, como uma deusa serena, em seu vestido azul-
escuro, observando os dois apreensivamente. Estava a par
dos planos de Ernest para a filha e se perguntava o que ele
diria daquilo. Mas estava também muito indiferente para se
preocupar demais com o problema. Desviou os olhos dos
jovens enamorados no canto e concentrou-os serenamente
em sua família. Eugene, mais apaixonado do que nunca por
sua linda mulher, não podia afastar os olhos dela. Como ela
era elegante! Que dama extraordinária! E como era parecida
com o pauvre Martin, exceto pela ligeira dureza (ele chamava
de determinação) do queixo, as narinas um pouco
contraídas, uma tênue frieza nos olhos. Mas Dorcas possuía
a dignidade natural do irmão, o comportamento gentil, o
sorriso terno e radiante. Ela era delicadamente forte,
concluiu Eugene pela centésima vez, enquanto Martin
sempre fora fraco. Ele ficou imaginando, suspirando um
pouco, se era mesmo verdade que Dorcas se tornara de fato
um pouco fria e insensível desde a morte do irmão. Ele
sentia falta de uma certa reação na mulher, uma tímida
submissão. Era como se alguma coisa a deixasse atordoada,
desde a tragédia, como se alguma coisa no fundo de seu
coração ficasse paralisada.

A atenção de Eugene foi subitamente desviada para


Gertrude e Philippe. Ele ficou alarmado e contrafeito. Sentiu
que estava traindo Ernest ao permitir aquilo em sua casa.
Gostava de Gertrude e amava Philippe quase tanto como a
um filho. Mas possuía o ceticismo natural dos franceses em
relação aos casamentos por amor. Além disso, achava que
Philippe era jovem demais para Gertrude, embora o rapaz
fosse certamente amadurecido e, de certa forma, bem mais
velho do que o primo Paul Barbour. E certamente era mais
sutil, com uma compreensão melhor e mais rápida das
coisas. Mas isso acontecia por causa de seu sangue francês,
concluiu Eugene. Mas nada disso tinha importância. A
lealdade a Ernest era a primeira e única consideração. Se
Ernest queria casar a filha com aquele jovem e brutal
britânico, ele, Eugene, não permitiria em sua casa qualquer
coisa que pudesse pôr em risco tal plano. Ao contrário, tinha
de ajudar para a consumação de tais planos, por mais que
pessoalmente os abominasse.

— Philippe! — chamou ele. — Por que está se


escondendo? Venha para cá. Quero conversar com você.

— O Roland de papai está chamando-o, Philippe -


sussurrou Gertrude, com um sorriso irônico.

Philippe apertou-lhe a mão e os dois fitaram-se nos olhos.


Depois, o rapaz levantou e aproximou-se do tio. Sentou ao
lado dele. Renée olhou rapidamente para Gertrude. Tinha
apenas 14 anos, mas já sentia uma profunda compaixão pela
prima. Afastou-se do pai e foi se sentar ao lado da prima
mais velha. Pôs a mão sobre a de Gertrude, apertou-a.
Gertrude, a altiva e reservada, não sentiu qualquer
ressentimento por essa intromissão silenciosa em seus
pensamentos, essa compreensão não solicitada. Ao
contrário, as lágrimas afloraram a seus olhos, embora ela
sorrisse. As crianças menores gritavam, riam, discutiam,
diante da lareira. Dorcas, fria e indiferente, observava a
tudo, mas só se preocupava com sua própria família.

Eugene ofereceu solenemente ao sobrinho um charuto


fino e depois acendeu-o. Percebendo isso, Etienne, Honore,
Jules e Leon perderam subitamente as aparências infantis,
tratando de se aproximarem discretamente, os rostos alertas
e interessados. Sabiam que os Negócios da Família estavam
prestes a ser discutidos e estavam intensamente
interessados, até mesmo Etienne, que representava Hamlet,
Otelo, Romeu e Júlio César diante do espelho de seu quarto,
até mesmo Leon, que odiava todo mundo e não podia
suportar a proximidade de qualquer pessoa, com exceção de
Jules.

Satisfeito com todo aquele interesse dos rapazes da


família, Eugene disse:

— Não tive a oportunidade de dizer-lhe hoje, Philippe,


mas sua mãe é agora possuidora, juntamente com nós
outros, de milhares de ações da nova United Utah Railroad.
Graças a seu Tio Ernest. Não custaram muito, pois ninguém
acredita que a Califórnia possa ser unida ao leste por
ferrovia. Mas sempre se pode confiar no julgamento de seu
Tio Ernest. Esperamos que essas ações estejam valendo 50
dólares ou mais, dentro de dez anos. No momento, está se
planejando estender a ferrovia de São Francisco a Ogden, em
Utah.

Philippe pensou por um longo tempo e depois disse,


indeciso:

— Mas o custo da mão-de-obra será enorme! Não se pode


levar os homens do leste para as Montanhas Rochosas e
além. Ora, praticamente não passam de meros territórios!

Eugene sorriu, o rosto moreno se encolhendo em rugas.


Bateu de leve no joelho de Philippe.

— Mas temos uma solução! Vamos trazer milhares de


chineses e irlandeses para construírem nossa ferrovia! Seu
Tio Ernest vai viajar amanhã para conferenciar com o
presidente da United Utah. Vai relatar-lhe o que nós e nossos
amigos de Pittsburgh fizemos com trabalhadores
importados.

— Chineses? — Philippe parecia perturbado. — E o que


farão com eles depois? Mandarão de volta?

— Não sei. Talvez sim, talvez não. Eles podem nos


proporcionar mão-de-obra barata. De qualquer forma, será
um trabalho terrível lá nas montanhas. Muitos morrerão. Mas
são apenas amarelos e estarão mais felizes aqui, não importa
como vivam, do que em sua própria terra, onde existem
inundações, fome, epidemias.

— Mas os irlandeses não são amarelos. Eles são brancos.

Philippe ainda estava perturbado, olhando solenemente


para o tio.

— Os irlandeses? Não sei de nada sobre os irlandeses.


Não conheço mais nenhum além dos nossos três vigias. Mas
eles estão suplicando para vir e vamos lhes dar a
oportunidade.

— Não gosto de chineses em meu país — disse Philippe,


em tom preocupado, olhando para o fogo, de rosto franzido.

— Em seu país? Ah, sim, eu estava esquecendo... Você


nasceu aqui. É um americano. — Eugene sorriu. — Não se
preocupe. Essa sua América é grande o bastante para todos
os homens.
— Não vai ser por muito mais tempo, com todo mundo
sendo trazido para cá — insistiu Philippe, sombriamente. —
Deve convencer Tio Ernest a não fazer isso. Estou
pressentindo que os resultados serão péssimos.

— Como assim?

Philippe hesitou por um instante.

— Tio Eugene, não se pode fazer com que uma nação


dividida seja bem-sucedida. E quando falo em dividida, estou
me referindo a tradição, raça, filosofia e modo de viver. — O
rapaz avivou subitamente o fogo. — Trazer esses chineses,
Tio Eugene, é um ato de traição contra o povo da América,
contra o meu povo. E é preciso fazer com que Tio Eugene
compreenda isso. Ele não tem o direito de arruinar meu país.

Eugene olhava fixamente para a ponta do pé, que


aproximara do fogo. O rosto adquiriu a dureza de Ernest, em
imitação. Philippe sorriu ligeiramente ao percebê-lo. Tio
Eugene sabe que estou certo, tem a mesma opinião, pensou
ele, mas sua lealdade impede a manifestação do bom senso,
decência e razão. Ele não sabe que está sendo leal a um lobo
implacável.

— Você é jovem demais para perceber todos os aspectos


da questão — disse Eugene, finalmente.

De súbito, ele parecia cansado. Correu os olhos pela sala


grande e aconchegante, povoada por crianças e risos. Seus
filhos jamais esqueceriam aquelas noites, aquela casa,
pensou ele. Ali havia tradição, arraigada na simplicidade e
força, nas coisas fundamentais, orgulho, segurança,
inteligência e paz. E lar. O lar na América. Seu sangue ferveu
em irritação.
— Arruinar seu país? Acha mesmo que eu permitiria isso?
Esses chineses serão despachados de volta assim que o
trabalho terminar. Você não passa de uma criança, Philippe!

Não obstante, ele sentia-se angustiado e deprimido. Tirou


um cachimbo do bolso, o cachimbo do pai, acendeu-o.
Sentado ali, fumando irritado, parecia com Armand, um
Armand mais jovem, que ressuscitara diante da velha lareira.

Philippe abriu os braços num eloquente gesto francês,


deu de ombros e disse, depois de um momento:

— Temos inimigos dentro dos nossos portões. Homens


como Ernest Barbour. São os destruidores. Talvez eu esteja
enganado. Os pobres chineses não podem nos causar muito
mal. Mas homens como Ernest Barbour sempre podem nos
fazer mal. Ele é um pirata. Um industrial pirata. Imagino que
algumas pessoas consideram ótimo ter imensas indústrias.
Mas qualquer coisa imensa acaba por ofuscar as coisas
menores. Se ele e os outros iguais não forem detidos, vamos
ter mentalidade industrial e uma civilização industrial. Não
posso pensar em qualquer outra coisa menos imaginosa e
mais inóspita. Ou qualquer coisa mais perigosa para o
desenvolvimento da vida individual.

Dorcas, que aparentemente estava imersa em seus


pensamentos serenos, olhou para o marido e o sobrinho com
um brilho repentino no rosto.

— Já ouvi isso antes! Parece muito com o que Martin


dizia, Philippe! Seu Tio Martin!

Ela não amava ninguém além dos filhos e do marido, mas


aquela semelhança de Philippe com Martin atraiu-a, levando-
a a olhar atentamente para o sobrinho, a expressão se
atenuando. E ela acrescentou gentilmente, sentindo as
lágrimas por trás das pálpebras:

— Ele odiava Ernest.

— Ora, Martin era um tolo! — exclamou Eugene, olhando


irritado para a mulher.

— Ele era mesmo um tolo, Tio Eugene?

Eugene puxou a fumaça do cachimbo, tirou-o da boca,


fitou-o com uma expressão furiosa, murmurando:

— Quem pode saber? Oh, diable! Este não é um mundo


para santos.

Dorcas pôs a mão no joelho do marido. O gesto era


bastante eloquente. Mas ela olhou para Philippe com uma
expressão estranha, especulativa. Era como se o estivesse
fitando pela primeira vez. Mas Philippe não percebeu.

— Tio Eugene, o que você... o que nós vamos fazer se as


greves dos mineiros de carvão atingirem nossas minas?

— Nossas minas? Imagino que Ernest... nós... vamos fazer


a mesma coisa que os outros proprietários. Contrataremos
agências de detetives particulares.

— Já houve um excessivo derramamento de sangue


naquelas minas — advertiu Philippe. — Estão disparando
contra os mineiros, até mesmo contra mulheres e crianças.
Não se pode encostar homens na parede, sem escapatória.
Eles acabam se virando e atacando. O sangue vai correr nos
dois lados.

— Canaille! — murmurou Eugene, impacientemente.


Mas ele estava apreensivo. Canaille! Foi assim que haviam
chamado seu pai e os amigos quando desesperada e
inutilmente se opuseram à tirania e ganância. A guilhotina
fizera um bom trabalho naqueles dias e o pai tivera de fugir
para não morrer.

— Canaille, Tio Eugene? Palavras nunca derrotaram a


justiça por muito tempo. Não é de admirar que Tio Ernest
esteja querendo trazer os chineses!

Eugene tornou a resmungar, observando o sobrinho pelo


canto dos olhos. O que Ernest tinha contra aquele rapaz,
aquele garoto moreno, nervoso, irrequieto? Seria porque
havia alguma coisa nele que lembrava Martin? Não, Martin
nunca tivera tamanho fogo e energia. Eugene pensou em Paul
Barbour com aversão. Ernest tinha imaginação. Era estranho
que preferisse Paul a Philippe. Era muito cruel com a
pequena Gertrude, sentada ali no canto da chaminé, tão
tensa e silenciosa, jamais afastando os olhos do seu jovem
apaixonado. Aquele canto era assombreado e o rosto e o
corpo de Gertrude estavam meio indistintos. Mas a luz do
fogo refletia em seus olhos, que brilhavam intensamente,
com uma beleza excepcional.

A carruagem para buscar os dois amigos de Etienne


estava chegando, assim como a carruagem de Norwood, para
levar Philippe, Jules e Leon. Eugene ficou surpreso quando
Philippe despachou os dois irmãos para a carruagem e
imediatamente compreendeu o motivo pelo qual o rapaz
decidira não acompanhá-los. Quando Philippe tornou a
entrar na casa, Eugene disse, em tom casual:

— Já pedi a carruagem e vou levar Gertrude para casa.


Quer nos acompanhar, Philippe?

Havia quatro pessoas de pé no vestíbulo, depois das


últimas despedidas: Dorcas e Eugene, Philippe e Gertrude.
Gertrude estava com um manto sobre os ombros esguios. Os
cabelos dela estavam cobertos por um lenço vermelho de
seda. Exibia a atitude misteriosa, entre suave e rebelde, que
lhe era característica. O rosto brilhava intensamente.

Philippe ficou impassível por um momento, depois virou-


se para Gertrude. A luz se desvanecera do rosto dela.
Gertrude levava a mão ao rosto, indecisa, num gesto
familiar, que nunca deixava de despertar ternura e ardor em
Philippe. Era um gesto ao mesmo tempo adorável e patético,
Philippe pensou rapidamente. O criado já estava ajudando
Eugene a vestir o capote e Dorcas segurava o chapéu dele. As
rodas da carruagem soavam lá fora. Philippe virou-se para o
tio, segurando a mão de Gertrude. E disse, suavemente:

— Tio Eugene, não queremos que leve Gertrude para casa.


Queremos ir sozinhos, a pé.

Os dois estavam parados lado a lado, jovens e resolutos,


fitando o tio firmemente.

— Isso é um absurdo! — Eugene fingiu irritação, mas sua


gentileza natural o atormentava. — Já é muito tarde e está
bastante frio. Um nevoeiro forte está vindo do rio. Não fará
bem a Gertrude sair a pé com tanta umidade. E sua casa fica
muito longe.

— Mesmo assim, queremos voltar a pé para casa juntos. E


a sós. — Philippe empalidecera. Tanto ele como Gertrude
pareciam angustiados, mas firmes.

Eugene, com o chapéu, lançou-lhes um olhar furioso,


numa crescente irritação. Estavam tornando a coisa muito
difícil para ele. Dorcas, retirando-se novamente para sua
serena indiferença, fitava-os calmamente. O lampião no
vestíbulo iluminava os rostos jovens e pálidos, os olhos
firmes.

— Não está sendo muito polido, Philippe — murmurou


Dorcas.

Philippe virou-se para a tia, com um gesto impetuoso.


Não esperava muita coisa daquela mulher insensível e
egoísta, que sempre se protegia, a qualquer custo, das
ansiedades e problemas dos outros.

— Polido? Como posso ser polido quando sei de toda a


trama? De toda a conspiração para me separar de Trudie? Só
temos inimigos. Tio Eugene também é nosso inimigo.
Querem nos matar!

Gertrude finalmente falou, em voz clara, incisiva:

— Philippe e eu vamos voltar a pé para casa, sozinhos.


Não nos interessa o que considera ser a sua lealdade para
com papai, Tio Eugene.

— Não vamos mais fingir! — gritou Philippe, desesperado.


— Já chega de conspiração! Sabemos de tudo! O problema é
Paul Barbour. Mas ele não terá Trudie. Vamos casar assim
que pudermos e que se dane o que Tio Ernest quer ou o que
qualquer outra pessoa possa querer!

Uma débil expressão de desagrado insinuou-se no rosto


de Dorcas. Ela pareceu refugiar-se em sua reserva inglesa,
mas na verdade não arredou pé. Eugene parecia furioso e
grave ao mesmo tempo. Estava realmente assustado.

— O que você e Trudie querem fazer não é da minha


conta, Philippe. E não me interessa. Deve discutir o problema
com o pai dela. Estou simplesmente me oferecendo para
levar Trudie em casa, porque está muito frio e úmido, daqui
a pouco estará chovendo. Toda essa conversa furiosa de
casamento e desafio não passa de tolice. Dentro de poucos
anos, vocês poderão discutir o assunto calmamente, com as
pessoas envolvidas no problema. — Ele virou-se para
Gertrude e estendeu-lhe a mão, num gesto autoritário. —
Vamos embora, menina. Está ficando tarde.

Gertrude não se mexeu. Seus olhos estavam dilatados,


pareciam uma criatura aterrorizada, acuada por cachorros.
Philippe sentiu que a mão dela ficava gelada.

— Gertrude vai comigo — disse ele, a voz controlada e


calma. — Não pode impedir-nos, Tio Eugene. E não quer
realmente nos impedir.

— Esta é a minha casa! — gritou Eugene, embora


estremecesse por dentro. — Não quero loucuras começando
aqui dentro! O que o pai dela quer é o que ela deve fazer,
sem levar em consideração os garotos tolos. Se ela for
embora sozinha com você esta noite, o pai dela certamente
vai me censurar amanhã por não ter cumprido o meu dever.
O problema é muito mais profundo do que você pode
imaginar, seu garoto tolo!

Dorcas interveio, dizendo friamente ao marido.

— Acho que isso não é da sua conta, Eugene. Não consigo


entender por que está tão nervoso com uma coisa que não é
da sua conta. Ernest é perfeitamente capaz de cuidar da
própria filha. Gertrude não é mais uma criança. Se ela deseja
voltar a pé para casa com Philippe, tem esse direito. Já fez
tudo o que se podia esperar de você e foi repelido. Não pode
fazer mais nada.

Ela virou-se para Philippe e Gertrude. Parecia totalmente


alheia e indiferente aos problemas e angústias deles. Mas
sentia alguma compaixão pelos dois.

— Por que não é uma moça sensata e passa a noite aqui,


Gertrude, como já fez tantas vezes? Afinal, está mesmo
muito frio e úmido e você nunca foi muito forte.

A coragem de Gertrude voltara.

— Obrigada, Tia Dorcas, mas vou embora com Philippe.


Temos algumas coisas a conversar. Lamento tê-lo magoado,
Tio Eugene, mas vou embora com Philippe de qualquer
maneira.

Os dois saíram, passando por Eugene, que estava


completamente aturdido, passando por Dorcas, dominada
por sensações contraditórias de aborrecimento e
divertimento. A porta fechou-se por trás deles. Eugene virou-
se para a mulher, com um gesto silencioso. Ela começara a
rir, baixinho. Os olhos dela faiscavam. Por um instante,
Eugene teve a impressão de que a mulher estava exultante.

— Como você odeia Ernest, Dorcas! — exclamou ele,


involuntariamente.

Ela ajudou a tirar o capote, ainda rindo. Eugene podia ver


o reflexo dela no espelho escuro do vestíbulo. Dorcas jamais
frisara os cabelos em cachos caindo pela testa, como estava
em moda. As ondas douradas dos cabelos emolduravam-lhe
as faces e delineavam a cabeça, com uma beleza quase
artificial.

— Tem razão, eu o odeio — disse ela, serenamente. —


Sempre amei muito a Martin.
CAPÍTULO LXVII
Estava realmente muito úmido lá fora. Mas não estava
chovendo. Uma lua avermelhada, que não derramava
qualquer luz sobre a terra, pairando ameaçadoramente no
céu escuro. Uma neblina espectral, turbilhonando, vinha do
rio, que estava escondido. Todas as árvores estavam
desfolhadas, assumindo atitudes misteriosas e contorcidas,
gotas de água escorrendo pelos troncos frios. Tudo era
solitário, silencioso e triste. Gertrude e Philippe subiram
lentamente pelo caminho da casa de Eugene, a caminho da
estrada. Havia umas poucas casas miseráveis espalhadas por
ali e as luzes fracas brilhavam. Um cachorro latiu
sombriamente. Chegaram à rua no alto da elevação e
olharam para trás. A neblina estava se entreabrindo um
pouco e puderam avistar o rio, escuro e rápido. A lua pairava
por cima e ondulações alaranjadas espalhavam-se pela água.
Soou o apito de um vapor, um som melancólico que se
sobrepôs à noite, sem perturbá-la.

A rua estava deserta, as pedras do calçamento brilhando à


luz débil e bruxuleante dos lampiões. Casas pequenas e
pobres apareciam nos dois lados, as janelas fechadas. A
fumaça pairava no ar e a calçada estava cheia de terra.

Gertrude tossiu, aconchegando-se melhor no capote.


Philippe disse, alarmado:

— Está mesmo muito úmido. Talvez não devêssemos ter


insistido.

Gertrude apertou o braço dele contra o lado do seu corpo.


Roçou em seu seio. Ela não se importou. Os ombros roçaram,
ficaram colados. Foram andando pela rua, alheios a tudo, os
rostos virados um para o outro. A luz de um lampião incidiu
sobre o rosto de Gertrude. Os olhos dela estavam profundos
e brilhantes.

— Dezoito meses! — gritou Philippe. — Não é tanto tempo


assim!

Pararam ao lado de um grupo de árvores desfolhadas e os


lábios se encontraram, os corpos jovens se unindo num
abraço.

— É tempo demais... — murmurou Gertrude finalmente.

Seguiram em frente. O calor latejava em suas cabeças,


mãos e corações. Os corpos inteiros pareciam estar pegando
fogo. Philippe ouviu um som débil e olhou para Gertrude. Ela
estava chorando.

— Acho que nunca seremos felizes, Philippe. Alguma


coisa vai nos acontecer. Tenho certeza.

— Está se referindo a seu pai? Isso é bobagem, Trudie.


Dentro de 18 meses estarei com 21 anos e assumirei o
controle dos negócios de meu pai. Tio Ernest não vai poder
me expulsar. Terei a parte de meu pai no negócio. E
poderemos casar então. Seu pai não poderá fazer coisa
alguma.

Gertrude suspirou.

— Papai sempre pode fazer qualquer coisa que desejar.


Mas eu não deveria estar falando dele. Sempre o amei muito
e sou a sua predileta. É terrível magoar uma pessoa a quem
se ama!

— Mas o que ele tem contra mim? — indagou Philippe,


pela centésima vez e com crescente perplexidade. — Já disse
que não sou um tolo e que os negócios de meu pai estarão
seguros em minhas mãos. Ele próprio ensinou-me tudo, no
banco. Tem elogiado os meus progressos para Tio Eugene.
Está falando em me enviar para as minas, a fim de adquirir
alguma experiência por lá. E pensa também em me fazer
passar um período em Titusville. Mamãe é a sua irmã
predileta, consulta-o em tudo. Então o que ele tem contra
mim? Por que prefere Paul Barbour, aquele touro brutal?

Ele não gosta de você, meu querido — respondeu


Gertrude, gentilmente. -Seu... seu caráter o irrita. Não pode
conciliar a sua capacidade real com o fato de poder rir com a
maior facilidade. Simplesmente não gosta de você. Todos
nós antipatizamos com outras pessoas sem razões definidas.
Papai não é exceção. Assim como o francês odeia o alemão, o
cristão odeia o judeu e o turco odeia o armênio. E alguma
coisa enraizada no caráter, misteriosa e sem qualquer
explicação. Além disso, ele quer que eu case com Paul. Acha
que Paul é igual a ele. O que papai não sabe é que eu sou
como você e você é como eu.

Gertrude tornou a aconchegar-se no capote e recomeçou a


chorar. Philippe disse, desesperado, enquanto enxugava as
lágrimas dela com seu próprio lenço:

— Farei com que ele acabe gostando de mim, Trudie. Sei


que ele desconfia de mim. Encaramos as coisas de maneira
diferente. Talvez eu discuta demais com seu pai, talvez o
contradiga demais. Mas ele sempre me disse que gosta que
os jovens sejam independentes. Ele... ele é tão nojento
comigo, Trudie!

A voz dele terminou num tremor infantil.

— Mas Frey conseguiu o que queria — lembrou Gertrude


ansiosamente, tornando-se mais forte, enquanto Philippe
ficava mais angustiado. — E Frey não tem nem a metade de
sua disposição, querido. E muito menos do que a minha. E
papai acabou cedendo. Ele só vê a luz da razão depois de
algum tempo, mas leva muito mais tempo para superar o que
estava querendo antes.

-Tem razão — disse Philippe, pensativo. — Todo mundo


na família apostava que ele não deixaria Frey partir. Mas ele
acabou deixando. Devemos nos lembrar disso. Tentarei,
Trudie, juro que tentarei. Se ele gosta do tipo de Paul, vou
ser como Paul. E vou ser mais Paul do que o próprio Paul.

Os dois riram, apreensivamente.

— Se fizer isso, nunca me casarei com você nem em mil


anos! — gritou Gertrude. — Um Paul de verdade já é terrível,
uma imitação seria insuportável! — Ela fez uma pausa.
Estava visivelmente interessada. — O problema é justamente
esse, Philippe. Não gosto de Paul. Por quê? Ele sempre foi
gentil comigo, ansioso em agradar-me. Paul é bonito,
trabalhador e inteligente. Dezenas de moças estão sempre
cercando-o em todas as festas. Mas ele é devotado a mim.
Trabalhou arduamente e subiu por seus próprios méritos.
Tenho certeza de que ele dará um excelente marido. Então
por que não gosto dele? O problema é esse. A coisa está
arraigada em nosso caráter.

Gertrude fitou-o, radiante, com um orgulho ingênuo por


ter decifrado o problema, a tal ponto que ele teve de parar e
beijá-la novamente.

Continuaram a andar, os corpos parecendo grudar através


das roupas, os olhos brilhando com uma alegria inebriada.
Havia ocasiões em que passeavam assim por horas a fio, sem
falar. As ruas iam ficando para trás, lentamente, vazias,
como cavernas cinzentas, mal iluminadas, escavadas na
noite. Eles nem percebiam. Uma carruagem tardia passou,
espadanando a água de uma poça. Mas eles também não
perceberam. Gotas de umidade acumulavam-se na cabeça de
Gertrude, rolavam pelas dobras do lenço vermelho. O capote
ficou úmido. Mas Gertrude não estava mais com frio nem
assustada. Contemplava o rosto sorridente de Philippe, não
desviava os olhos, até que todos os seus sentidos pareciam
flutuar na luz da alegria. Largara as saias, que se arrastavam
pelo chão molhado, pela sujeira e lama. Era um dos seus
vestidos prediletos, mas já não se importava com mais nada.

— E pensar que um dia planejei tornar-me um monge


trapista! — disse Philippe, em voz alta.

Gertrude teve um sobressalto com o som repentino da


voz dele. No instante seguinte, o que Philippe dissera
impressionou a ambos como extremamente ridículo, naquele
exato momento. Desataram em risadas estridentes. Gertrude
sufocou o riso nas dobras do manto e os dois ficaram se
sacudindo incontrolavelmente, nos braços um do outro.
Conseguiram por fim recuperar o controle, as lágrimas do
riso escorriam-lhes pelas faces. Alguém abrira uma janela,
furioso, gritando para a escuridão.

— Vão chamar o guarda — balbuciou Gertrude, antes de


recuperar o fôlego.

Philippe pegou-lhe a mão e saíram correndo em disparada


pelas ruas silenciosas. Os pés ressoavam debilmente no
calçamento irregular, molhado e escorregadio. As sombras
perseguiam-nos, girando sob os lampiões, contornando-os,
como faixas de escuridão. Em algum lugar, cachorros
despertados puseram-se a latir, excitados. Os dois pararam,
ofegantes. Podiam ouvir as rodas de uma carruagem numa
rua distante. As casas estavam agora completamente
envolvidas pela escuridão. A água escorria lentamente dos
beirais, suas respirações se convertiam em vapor no ar
úmido. O sino de uma igreja distante começou a bater as
horas, ressoando pela noite escura.

— Onze horas — disse Philippe em voz alta, com desdém.


— E Windsor está profundamente adormecida. Iremos para
Nova York em nossa lua-de-mel, Trudie. Talvez possamos
viver lá algum dia. Você não faz ideia de como Nova York é
uma cidade espetacular, simplesmente inacreditável! Nunca
dorme! Estamos enterrados vivos aqui!

— Tem razão, não há qualquer excitamento em Windsor


— admitiu Gertrude, enquanto andavam mais calmamente
agora. — Só temos algumas escaramuças com alguns dos
moradores mais renitentes de Oldtown que ainda se recusam
a aceitar nossa família. Mas até isso está acabando. Só
restam três famílias em Oldtown que não reconhecem nossa
existência e mesmo essas estão começando a vacilar. Soube
que Jules tem sido convidado às festas oferecidas pela
garota Endicott. E nós recebemos ontem um convite da
família Sandringham.

— Eles não podem resistir ao nosso dinheiro — comentou


Philippe, com desdém.

Gertrude alteou os ombros ligeiramente.

— O dinheiro é uma coisa maravilhosa — disse a filha de


Ernest Barbour. — É o que papai sempre diz e acredito nele.
Mamãe sempre foi próspera e por isso subestima o valor do
dinheiro. O que não importa agora, meu querido. Todos nós
dispomos de dinheiro suficiente para desprezá-lo.

Mas Philippe não percebeu o sarcasmo dela e disse,


obstinado:
— Sinto medo quando vejo que o dinheiro pode comprar
tudo. Ou praticamente tudo que tem algum valor. Eu gostaria
que houvesse algumas coisas que o dinheiro não pudesse
comprar. Gostaria de acreditar que existem algumas coisas
invioláveis.

Gertrude comprimiu o braço dele contra o seio e


murmurou, suavemente:

— O dinheiro não pode comprar-me, Philippe.

Ele contemplou-a quase com aflição.

— Mas pode sufocá-la, Trudie.

Começaram a andar mais depressa, como se estivessem


fugindo de alguma coisa.

— Ah, como eu gostaria que existissem coisas que o


dinheiro não pudesse comprar! — repetiu Philippe, com a
maior veemência. — Coisas que fossem acessíveis apenas
através da honra, amor, integridade e capacidade. Tornaria a
vida um pouco mais pura. Não pode imaginar como me sinto
sujo durante a maior parte do tempo. Quando estive na
escola em Nova York, os outros viviam me adulando por
causa do dinheiro de meu pai. Na universidade, os
estudantes mais ricos tentavam me atrair para suas tolas
confiarias e clubes atléticos. Diziam-me que, evidentemente,
eu não ia querer me associar com a ‘gentinha’. Fitei-os nos
olhos e disse: “Estão muito enganados!” E por isso fui
colocado na lista negra deles. Era tudo repulsivo. E absurdo.
Incrivelmente tolo. Sinto-me enojado, sabendo que as coisas
que quero, e pelas quais estou disposto a trabalhar com todo
o empenho do meu coração e alma, podem ser compradas
sem qualquer esforço da minha parte.
— Não gostaria de ser pobre, não é mesmo, Philippe? —
indagou Gertrude, sorrindo indulgentemente.

— Claro que não, minha tolinha. Quem poderia gostar?


Mas gostaria de sentir que teria de comprar muitas das
coisas que quero com outra coisa que não dinheiro.

— Mas há muitas coisas assim — disse Gertrude


suavemente, fitando-o com uma expressão radiante. ~ Como
saúde e amor, e paz. Tais coisas precisam ser compradas
também, mas não com o que se leva na bolsa. Vovô Barbour
morreu de câncer e seu dinheiro não pôde salvá-lo. Vovó
Barbour não era muito feliz quando ficou velha, apesar de
ser muita rica. É verdade que a pobreza não os teria salvado,
mas a riqueza também não salvou. E, como eu disse antes, o
dinheiro não pode comprar. Mas o que você é, Philippe,
pode.

Pararam outra vez, para um último beijo, um último


abraço apaixonado. Estavam se aproximando da casa da
família Sessions. Já podiam divisar as luzes a distância.
Começaram a subir pela encosta.

— Eu gostaria de saber alguma coisa — disse Philippe,


pensativo. — Alguma coisa fora dos negócios da família.
Algo diferente, como o que Frey está fazendo. Mas não tenho
qualquer talento especial. Costumava pensar, antes de amá-
la, que poderia ingressar num mosteiro. Ou tornar-me um
padre. Acho que teria me tornado um padre se mamãe não
tivesse casado outra vez. O Major Norwood é protestante e
todos os resquícios de catolicismo desapareceram de nossa
casa. Sou o único da família que ainda vai à missa, assim
mesmo uma vez por ano. E até mamãe sorri um pouco
quando me vê agora indo à missa. Ela chegou mesmo a dizer
um dia: “Mas isso não é uma bobagem, querido?” Como se
Deus pudesse ser uma bobagem! — Philippe fez uma pausa,
antes de acrescentar, amargo: — Às vezes chego a pensar, do
jeito como são as coisas, que é mesmo!

Gertrude permaneceu calada. Estavam perigosamente


perto de um lugar escuro, do qual haviam combinado que
nunca mais tornariam a se aproximar. Philippe olhou,
angustiado, depois ficou calado também.

Havia luzes acesas na biblioteca. Podiam divisá-las


através das venezianas. Avançaram silenciosamente até uma
das janelas altas e espiaram por uma fresta. Embora já
passasse de 11 horas, Paul Barbour estava sentado diante do
fogo, junto com o tio. Era evidente que estavam esperando.
Por Gertrude. Philippe não percebeu o significado, mas
subitamente isto ocorreu a Gertrude, que ficou tonta de
medo. Ela afastou-se precipitadamente, puxando Philippe.

— Paul e papai estão à minha espera -sussurrou ela. A luz


de uma janela do segundo andar incidia sobre seu rosto,
extremamente pálido. — Não posso ver Paul esta noite. Não
quero.

Philippe ficou surpreso ao descobrir como ela estava


tremendo. Os cachorros haviam começado a latir. Pelas
sombras nas venezianas, Gertrude percebeu que o pai e o
primo tinham-se levantado e estavam esperando. Ela pegou
as saias e correu para os fundos da casa, descendo pela
encosta íngreme na direção da porta. Philippe seguiu-a.
Gertrude experimentou a porta da cozinha. Estava aberta. Ela
não esperava por isso e deixou escapar um suspiro de alívio.
Avançaram em silêncio pelo pequeno corredor e abriram a
porta, sem fazer qualquer barulho. A cozinha estava
iluminada, aconchegante. O fogão luzia avermelhado e três
criadas, a cozinheira e duas arrumadeiras, estavam sentadas
à mesa da cozinha, tomando café, comendo bolos e
conversando. Elas soltaram gritos de surpresa quando
Gertrude e Philippe entraram, depois se levantaram,
vermelhas de constrangimento.

— Boa-noite, Sra. Battle — disse Gertrude, sorrindo para a


cozinheira. — Boa-noite, Jane e Edith. Meu pai está com
visita e estou tão amarfanhada, suja e cansada que não quero
aparecer por lá nem ser vista...

— Mas seu pai deu ordens expressas para que fosse


imediatamente para a biblioteca assim que voltasse, Srta.
Gertrude — disse Edith, timidamente. — Ela alisou o avental
e olhou ansiosamente para Gertrude, acrescentando: — Eu
perderia o emprego, Srta. Gertrude, se não o avisasse que já
chegou em casa.

Gertrude olhou para a moça por um momento, os olhos


muito escuros e arregalados, no rosto pálido. Depois, ela
virou-se em silêncio para Philippe. Ele tirou alguma coisa do
bolso: três moedas de ouro de cinco dólares. Colocou-as em
cima da mesa. As três criadas prenderam a respiração.

— Ninguém viu a Srta. Gertrude entrar — disse ele,


calmamente.

Philippe sorriu para as criadas, os dentes brancos


faiscando no rosto moreno. Subitamente, ele era o pai,
irresistível, encantador, fascinante. A cozinheira e as
arrumadeiras poderiam ter resistido ao dinheiro, depois de
uma luta titânica. Mas não podiam resistir ao brilho sedutor
dos olhos de Philippe, ao sorriso insinuante. Fitaram-no com
adoração. A cozinheira empurrou o dinheiro na direção de
Philippe.

— Pode ficar com isso, Sr. Philippe — disse ela, sorrindo.


— Não diríamos nada, se a Srta. Gertrude não quisesse. Não é
mesmo?
Ela fez a pergunta olhando para Edith, com o rosto
franzido ameaçadoramente.

— Claro que não — balbuciou a moça.

E Edith e Jane ficaram olhando ansiosamente para o


dinheiro. Philippe tornou a empurrá-lo para a frente.

— É apenas um presente que lhe estou dando e às moças,


Sra. Battle. Não se trata de um suborno. Sei perfeitamente
que está acima de subornos. Mas não esqueci os bolinhos
que fazia para mim e a maneira como Trudie e eu
costumávamos caçoar das meninas. Comprem alguma coisa
com o dinheiro.

As criadas logo arrebataram as moedas de ouro, com a


Sra. Battle habilmente enfiando a sua no bolso do avental. E,
murmurando alguma coisa sobre a necessidade de manteiga,
ela foi para a copa. Gertrude e Philippe beijaram-se
rapidamente, diversas vezes. Depois, Philippe saiu para o
pequeno corredor. Gertrude ouviu a porta se fechar, depois
da passagem dele.

Ela correu os olhos pela cozinha vazia. O fogão exalava


ondas de um calor agradável, os lampiões na mesa e perto da
entrada da copa projetavam uma claridade intensa. Os
objetos de cobre nas paredes brilhavam como ouro. Gertrude
sentiu que estava extenuada, as pernas trêmulas. Ela tirou o
lenço vermelho da cabeça. A umidade passara pelo tecido e
os cabelos estavam encharcados, os anéis grudados nas
faces. As saias estavam sujas, as bainhas escuras de lama e
água. Ela largou-as e as saias caíram pelo chão. Tirou o
capote e um pouco de água foi cair no fogão, sibilando.
Depois, tornando a pegar as saias, Gertrude abriu a porta
para a copa. Estava tudo escuro e quieto ali, recendendo a
sabão e ervas. A casa inteira estava quieta. Em algum lugar,
uma porta se abriu. Gertrude pôde ouvir a voz alta e
impaciente do pai. A porta tornou a ser fechada e a voz se
perdeu.

Ela atravessou a sala de jantar e saiu para o grande


vestíbulo, para o qual se abriam a biblioteca e as salas de
visitas. A escada subia pela escuridão, espectral, o relógio de
pé bateu a meia hora. O lampião brilhava na base da escada
com uma luz débil e incerta. O coração de Gertrude começou
a bater muito depressa. A porta da biblioteca estava fechada,
mas poderia abrir-se a qualquer momento e ela seria
descoberta. Levantou as saias acima dos tornozelos e já
estava prestes a correr para a escada quando ouviu passos
descendo pelos degraus atapetados. Ela encolheu-se por
baixo da escada. Era o mordomo. Ele abriu a porta da
biblioteca e a luz derramou-se para o vestíbulo,
acompanhada por nuvens tênues de fumaça.

— Lamento, senhor — disse o mordomo — mas a Srta.


Gertrude ainda não voltou.

Ernest soltou uma imprecação.

— Essa é muito boa, uma moça passar metade da noite


fora de casa!

— Talvez ela tenha decidido passar a noite na casa de Tio


Eugene — sugeriu Paul, com uma voz desapontada.

— É possível. Mas espere até meia-noite, Paul. Se ela não


chegar até lá, saberemos com certeza que passará a noite na
casa de Eugene. Trudie frequentemente faz isso,
especialmente nas noites frias e de chuva. Se Eugene não a
trouxer para casa até meia-noite, então é melhor você ir
embora.
O mordomo fechou a porta discretamente. Encaminhou-se
para a cozinha. Gertrude comprimiu-se contra a parede por
baixo da escada, prendendo a respiração. Estava tremendo
com um terror absurdo. Mas o mordomo passou a três
metros dela e não a viu. A porta da sala de jantar fechou-se
silenciosamente, depois da passagem dele. Gertrude não se
atreveu a esperar por mais tempo. Levantou as saias, abaixou
a cabeça e seguiu para a escada. Nunca subira tão depressa,
nem mesmo na infância. Parecia interminável, como uma
escada num pesadelo. Ao chegar ao topo, ela sentia-se fraca,
doente, trêmula. Seguiu até a porta de seu quarto, mas parou
de súbito, antes de entrar. Tinha o pressentimento de que
não estaria segura ali, que o pai faria uma pequena
investigação antes de deitar. Havia uma luz por baixo da
porta do quarto da mãe. Gertrude bateu de leve, girou a
maçaneta, abriu a porta e entrou.

May, pronta para deitar, estava sentada diante do fogo, na


camisola de babado e chambre marrom. Os cabelos
avermelhados pendiam em duas tranças sobre os ombros
roliços. Ela tirou os óculos, embaraçada, pôs o livro de lado e
olhou surpresa para Gertrude.

— Meu amor! Sabia que seu pai está esperando por você lá
embaixo, junto com Paul?

Depois, ela percebeu que Gertrude fechara a porta


silenciosamente e estava encostada nela, ofegante, com as
roupas e os cabelos inteiramente desgrenhados. A surpresa e
apreensão de May acelerou-se ao observar o rosto da filha, à
luz do fogo e do lampião. Estava pálido e contraído,
dominado pelo terror.

— Mas o que aconteceu? — indagou May, levantando e


adiantando-se com rapidez.
Gertrude olhou apavorada para a porta, levou um dedo
aos lábios e depois virou-se para a mãe. May pegou as mãos
da filha. Estavam geladas e trêmulas.

— Mamãe, posso passar a noite aqui com você?

Ela não pedia isso desde que era pequena, quando era
dominada por misteriosos temores noturnos. May
contemplou-a atentamente, olhou para a porta e
compreendeu. Levou a filha para junto do fogo, fê-la sentar-
se. Pegou uma beira do vestido molhado e sacudiu a cabeça,
com uma expressão de reprovação.

— O vestido mais bonito que você já teve — murmurou


May.

Gertrude estava sentada na beira da cadeira, rígida, o


corpo tremendo.

May acrescentou:

— Você pode ficar doente desse jeito. Por sorte, ainda


resta um pouco de chocolate quente.

Ela foi até a mesinha-de-cabeceira, onde havia uma


bandeja de prata, com um jarro de prata e uma xícara. Serviu
o chocolate fumegante e levou para Gertrude. A moça
sacudiu debilmente a cabeça, recusando. Mas, por insistência
de May, acabou bebendo. Logo sentiu-se melhor. May tornou
a sentar-se.

— Seu nervosismo está muito além da causa, Gertrude —


disse ela, em voz baixa. — Na verdade, não passa de uma
tolice. Seu pai não é um dragão e Paul não está esperando lá
embaixo para devorá-la. Você é moça, tem mente própria,
vontade própria. Dá para perceber facilmente que você não
quer casar com Paul. Basta dizer isso. Ninguém no mundo
pode obrigá-la a casar com Paul, se não quiser.

— Papai pode — balbuciou Gertrude. — E sabe que ele


pode, mamãe.

Ela retorceu as mãos no colo. As sobrancelhas de May se


uniram, os lábios se contraíram. Ela virou-se e olhou para o
fogo.

— Eu pensava que você sempre faria o que seu pai


quisesse, Gertrude. Ele sempre gostou de você mais do que
qualquer outro filho. E você sempre foi devotada a ele.

May sentiu-se arrependida no instante mesmo em que


disse isso. Era como agredir uma criança aterrorizada que
clamava por socorro. Estava envergonhada da pontada de
malícia que a levara a dizer isso à pobre moça; Gertrude
sabia o que levara a mãe a dizer isso, sabia que ela estava
arrependida. Sorriu tristemente.

— Papai mudou muito em relação a mim durante o último


ano. E tudo por causa de Paul. Papai está começando a me
tratar com a maior hostilidade. Quase não fala mais comigo
gentilmente. Sei que não é porque ele passou a me amar
menos. Mas estou me opondo à sua vontade e por isso ele
vai se tornar cada vez mais duro e inflexível, até eu ceder. E
isso me deixa angustiada. Tenho medo de ceder, apenas para
ter novamente o amor dele. Apenas para que ele deixe de me
olhar firmemente e me responda quando falo. Não consigo
mais suportar!

Ela começou a chorar. May virou-se e observou-a, com


uma expressão inescrutável. Mas estava dominada pela
compaixão, mesclada de alguma ironia.
— Você não é uma pateta, Gertrude. Não é mole e
desfibrada. Não precisa ceder. O problema é Philippe, não é
mesmo?

Um rubor insinuou-se pelo rosto de Gertrude, que


assentiu. O rosto de May tornou-se sombrio e grave.

— Ele ainda é apenas um garoto, Gertrude. E mais moço


do que você. Claro que é apenas um pouco mais moço... e
Philippe é bastante amadurecido...

Ela fez uma pausa. Sua voz estava bastante preocupada.

— Mas alguns anos ainda vão passar até que ele possa
casar com você, minha querida. Gosto de Philippe e gosto da
mãe dele. E antes de viajar para Paris, Frey era bastante
afeiçoado a ele. Creio que eles mantêm uma
correspondência. Jamais pude compreender o que Ernest
tem contra Philippe. Não a estou aconselhando, é claro.

May fez outra pausa, o tom de voz endureceu


involuntariamente, quando ela recordou:

— Sempre levou todos os seus problemas e dificuldades a


seu pai. Assim, não vou agora aconselhá-la a virar-se contra
ele e desafiá-lo. Deve usar o seu próprio julgamento. É a sua
própria vida. Você é agora uma mulher. Deve tomar suas
próprias decisões sobre o que constitui sua felicidade. E
espero que tenha a coragem de lutar por sua decisão.

Gertrude ficou calada. Pensou nos longos anos de sua


infância e adolescência, quando se ressentia de todos os
sinais de afeição que o pai dispensava à mãe. Infantilmente,
ela de fato excluíra May de sua vida, sempre virando-se para
o pai em todas as coisas. Pôde perceber agora a angústia que
causara à mãe e sentiu-se amargamente arrependida. Ela
finalmente falou, a voz trêmula:

— Lamento profundamente, mamãe. Você tem toda razão.


Sempre fui egoísta demais. — Ela estendeu as mãos, as
lágrimas escorrendo pelas faces pálidas. — Mas estou vindo
procurá-la agora! Por favor, ajude-me! Não tenho mais
ninguém!

May segurou as mãos da filha, apertou-as, sorriu. Puxou-a


para perto de si e beijou-lhe o rosto. Mas os anos haviam
aberto um abismo entre as duas. Instintivamente, ela
ajudaria Gertrude, mas haveria nisso mais dever do que
amor.

— Claro que a ajudarei, menina — disse ela jovialmente,


afastando as mãos com um gesto gentil. — Mas devemos
analisar o problema por todos os ângulos. Paul é filho de seu
Tio Martin, a quem seu pai odiava profundamente. Muitas
vezes ouviu-o falar de Martin. Talvez o que ele tenha dito
acabou afetando inconscientemente a maneira como você
encara o filho de Martin.

— Não é isso, mamãe. É verdade que ouvi papai falar


muitas vezes desdenhosamente de Tio Martin. Quase como
se o odiasse, como você disse. Quando éramos pequenos,
você costumava levar-nos à fazenda horrível em que ele
vivia. Ele sempre nos tratou com gentileza e bondade. Nunca
o ouvi dizer alguma coisa mais áspera. E ele era lindo, como
um dos anjos daqueles livros católicos de Renée. Ou do
Paradiso, de Dante, que papai tem. Todos o amávamos
imensamente. Até mesmo Frey não sentia medo dele.
Portanto, não foi o que papai disse a respeito de Tio Martin
que me impediu de gostar de Paul. É algo mais.

May escutava pensativa, com alguma curiosidade. Os


caprichos da atração sexual jamais deixavam de diverti-la e
espantá-la.

— Mas por que, Trudie? Ele é muito mais viril do que


Philippe, parece bem mais velho. É muito bonito... pelo que
dizem. Não há nada de negativo nele, ninguém pode chamá-
lo de tolo. Paul está indo muito bem no banco e ninguém tem
a menor dúvida de que ele não vai demorar a ganhar sua
própria fortuna. Na verdade, muitas pessoas dizem que ele é
igualzinho a seu pai.

— Oh, não, mamãe! Ele não é como papai, a não ser... a


não ser que se tem a impressão de que é capaz de impor sua
vontade a qualquer pessoa, exatamente como acontece com
papai. Que não se pode resistir a ele. Seria a mesma coisa
que tentar resistir a uma onda de lava. Quando estou perto
de Paul, sinto-me fraca, como se toda resistência e força
tivessem se esvaído. Tenho medo por isso. E receio às vezes
que não serei forte o bastante para resistir a Paul e a papai
juntos. Se fosse apenas um deles...

May tornou a sorrir, o mesmo sorriso irônico, como se


estivesse pensando que os pratos da balança começavam
finalmente a se equilibrar.

— Você tem muita imaginação, Trudie. Tenho certeza de


que Paul não é tão formidável assim. Ele não pode sequestrá-
la. E tenho certeza de que seu pai não vai expulsá-la de casa,
se continuar a resistir a Paul. Ele pode amarrar-lhe a cara e
recusar-se a falar-lhe. Mas continua a amá-la mais do que a
qualquer outra pessoa. Acabará superando o problema. É o
que penso. E vou lhe dizer outra coisa, Trudie: Philippe é
católico e dos mais fervorosos, pelo que eu soube. Sei que
ele estava sempre na igreja quando era garoto... o que se
tornou uma piada na família, junto com os botões de Reggie.
Ele não disse sempre que ia se tomar padre? Como então ele
vai casar com você, sua prima? A Igreja Católica não permite
casamentos entre primos.

O rosto pálido de Gertrude tornou-se anguloso, sob a


pressão emocional. Ela parecia extremamente angustiada,
como se fosse obrigada a enfrentar novamente uma coisa
terrivelmente perigosa.

— Philippe e eu conversamos sobre isso, mamãe. Há


muito tempo. E Philippe decidiu abandonar a Igreja Católica.

A recordação das lutas prolongadas, tristes e angustiadas,


era forte demais para que Gertrude pudesse reavivá-la sem
nervosismo. Ela levantou-se, exibindo novamente uma
atitude frágil e desvairada.

— Deixar a Igreja? — As sobrancelhas de May se altearam,


a testa ficou franzida. — Philippe? Ele deve amá-la de
verdade, Trudie, se é capaz de renunciar à sua Igreja por
você. Sei que é uma coisa terrível para um católico. Ele está
se sentindo feliz com isso?

— Não sei... — sussurrou Gertrude. — Mas a decisão foi


dele. Eu lhe disse que não tentaria influenciá-lo. Depois de
um mês, Philippe veio dizer que me amava mais do que à sua
Igreja.

May levantou a cabeça subitamente, alerta.

— Psiu! Alguém está se aproximando!

Passos soavam no corredor lá fora, aproximando-se da


porta. Gertrude reconheceu os passos do pai. Olhou ao
redor, desesperada, levantou as saias e correu para a cama,
agachando-se ao lado, de tal forma que não podia ser vista
da porta. Ernest bateu.
— Quem é? — perguntou May, levantando e
encaminhando-se para a porta.

Ela abriu a porta. Ernest estava parado ali, de rosto


franzido, visivelmente aborrecido. Olhou além da mulher e
avistou apenas o fogo aceso na lareira, o quarto vazio.

— Pensei ter ouvido a voz de Gertrude, meu amor.

May manteve-se na porta. Há anos que Ernest não entrava


no quarto da mulher. Ele hesitou, olhou para o braço alvo
que lhe barrava a passagem. Irrelevantemente, apesar de sua
irritação, sentiu vontade de entrar outra vez naquele quarto,
sentar-se diante do fogo, como fizera tantas vezes no
passado. Mas May fitava-o com um sorriso jovial, o braço
ainda lhe barrando a entrada.

— Está enganado, Ernest — disse ela, como se estivesse


surpresa. — Não ouvi Gertrude passar para o quarto. Além
do mais, ela sempre vem me dizer boa-noite antes de dormir.
Mas não se lembra que ela ficou de passar esta noite na casa
de Dorcas?

— É mesmo? — Ernest estava aturdido e furioso. — Tinha


esquecido. E estava esperando com Paul lá embaixo.

Ele tornou a correr os olhos pelo quarto, através da porta


entreaberta. Tinha vontade de sugerir que gostaria de entrar
e discutir o problema de Gertrude com May. Mas não teve
coragem. Sentia-se tolo, parado ali, como um estranho no
lado de fora da porta do quarto da própria mulher, impedido
de entrar, como um importuno. A raiva invadiu-o, mas não
sabia dizer se era contra May ou contra a situação. Sua voz
estava ríspida quando tornou a falar:

— Vou para Nova York amanhã, May. E partirei antes de


Gertrude voltar para casa. Por favor, diga a ela por mim que
terá uma semana, enquanto estou ausente, para tomar a
decisão de obedecer-me. Estou cansado dessa bobagem. Paul
também está cansado. Gertrude tem idade suficiente para
casar e espero que ela comece a fazer planos para um
casamento no Natal.

— Ela ainda é muito moça — murmurou May.

May pensou subitamente numa jovem e lamentável


Julieta, que alegara sua juventude. A recordação do pesar
que sentira pela trágica heroína durante a peça foi
absurdamente intensa.

— Não diga bobagem, May. Todas as amigas da idade dela


há muito que já estão casadas. Ela é quase uma solteirona.
Não vou admitir isso por mais tempo. Não quero mais saber
dessa brincadeira tola com Philippe. Por favor, transmita a
Gertrude tudo o que falei.

— Está certo — disse May, sorrindo suavemente. — Boa-


noite, Ernest.

Ele já estava se afastando, mas tornou a virar-se. Marido e


mulher ficaram se olhando firmemente através da porta
entreaberta. A claridade do quarto incidia sobre o rosto e os
cabelos grisalhos de Ernest. Ele parecia pálido e extenuado,
mas tão inflexível como sempre. Parecia também solitário e
os olhos implacáveis estavam quase suplicantes.

— Boa-noite — repetiu May, fechando a porta suavemente


em sua cara.

Esquecendo a filha por um momento, May comprimiu o


rosto contra a madeira da porta fechada, ficando assim,
imóvel, por algum tempo. Quando se virou, a madeira estava
molhada.

Gertrude estava parada diante do fogo, mordendo os


lábios, as mãos cruzadas rigidamente. May pôs a mão
gentilmente no ombro da filha e sussurrou:

— Não podemos falar em voz alta. E já é muito tarde. Tire


essa roupa o mais depressa possível e vamos para a cama.
Não, Trudie, já chega de conversa esta noite! Tire logo esse
vestido arruinado e meta-se debaixo das cobertas!
CAPÍTULO LXVIII
Amy pensava muitas vezes que gerara quatro estranhos
totais, uma espécie inteiramente diferente. Certa ocasião,
sua gata encontrara quatro filhotes abandonados e os
adotara. Amy observava a família incongruente e dizia a si
mesma que ela e os filhos apresentavam uma visão
igualmente estranha.

Os três filhos mais velhos eram mais altos do que ela e


John Charles, com 15 anos, estava a caminho de passá-la
também. Eram todos corpulentos, grandalhões, vozes
exuberantes, comportamento rude, exigentes, egoístas,
cínicos e estourados. Houvera umas poucas ocasiões, bem
nítidas em sua memória, em que parecera capaz de manter
contato com Lucy numa base de igualdade e compreensão.
Mas Elsa, Paul e John Charles eram-lhe totalmente estranhos.
Não podia perceber qualquer semelhança com Martin, exceto
em Lucy. E mesmo nela, tal semelhança era débil e nebulosa.

Amy encontrava nos filhos de sua prima May as mesmas


características que a formavam, a mesma delicadeza de
percepção, o mesmo padrão mental. Sentia um verdadeiro
amor maternal por Godfrey James e Gertrude. O afastamento
que se desenvolvera silenciosamente entre ela e a prima
causava-lhe profunda angústia, porque a afastava dos
sobrinhos. No fanatismo de Reginald encontrava um pouco
de Martin, em Guy descobria a sua antiga alegria juvenil e o
prazer de viver. Mas Joey provocava-lhe alguma repulsa,
embora divertida. Ele era como o seu John Charles, como o
primo André Bouchard. Amy costumava chamá-los de Os
Três Banqueiros, com apreensão tanto quanto riso.

O afastamento entre May e Amy era total há quase dois


anos. May suspendera inteiramente as visitas à casa da
prima. Gertrude, embora amasse a tia, também suspendera
suas visitas, por causa de Paul. Quando Lucy casara, quase
três anos antes, as famílias haviam-se reunido na casa em
Quaker Terrace. Mas nem mesmo o casamento atenuara a
tensão. Amy, solitária entre os seus jovens selvagens e
estranhos, Paul, Elsa e John Charles, passava horas sentada
em sua pequena sala de estar íntima, trabalhando no jardim,
lendo ou passeando. Sua única alegria derivava das visitas de
Ernest. Toda a sua vida se revolvia agora em torno daquelas
horas em companhia de Ernest. Tudo o mais se tornara
irreal, como um cenário de papelão ao fundo, que não
chegava a ter existência própria. Ninguém compreendia a
insegurança, o perigo e a insatisfação psíquica de sua vida, a
terrível irrealidade, tanto quanto a própria Amy. Mas ela
parecia irremediavelmente emaranhada, impotente, sem ter a
vontade para livrar-se daquela situação angustiante. Vivia
por seu amor como um viciado em drogas vive por sua
morfina. Consumia-se em duas dimensões desse amor,
tentando não pensar muito a respeito. Sabia que havia
muitos comentários, amigas antigas visitavam-na cada vez
mais raramente.

Não podia aceitar a impaciência indiferente de Ernest e as


declarações de que, quando alguém se recusava a discutir
um determinado problema com os outros ou parecia alheio,
a coisa ficava abaixo da superfície, não podia ser
comprovada. Mas o perigo e os boatos, o ostracismo que
atingia apenas a ela, os escárnios e sussurros, insegurança e
solidão ainda pareciam um pequeno preço a pagar para a
única coisa que tinha importância para Amy. Nem mesmo o
medo vago de que os filhos viessem um dia a desconfiar, se
é que já não o faziam, podia assustá-la mais do que por uns
poucos momentos.

Amy estava se sentindo excepcionalmente solitária e


deprimida naquele dia úmido de outono, sentada em sua sala
de jantar, olhando para o jardim. A relva e as árvores
desfolhadas, a terra e o muro distante, tudo parecia assumir
uma tonalidade marrom uniforme. Umas poucas folhas
vermelhas encharcadas espalhavam-se pelo caminho do
jardim, as pontas enroscadas, os recipientes assim formados
cheios de água. O céu parecia gasoso, tudo gotejava, embora
não estivesse chovendo. Longos filetes de água escorriam
pelos troncos das árvores. A água caía dos beirais,
concentrava-se em pequenas poças por toda parte. Até
mesmo os canários na sala aquecida estavam silenciosos. Os
únicos sons eram o gotejar melancólico da água lá fora e a
queda dos carvões na lareira.

Amy estava inteiramente sozinha, tentando ler. Elsa


estava em algum outro lugar da casa, apática, como sempre
acontecia nos dias inclementes. Ela está com 22 anos,
pensou Amy, tristemente, e ainda não é capaz de encontrar
qualquer outro interesse na vida além de Godfrey Barbour,
embora ele nunca lhe escrevesse e ela não o visse há dois
anos. Amy, que amara em silêncio e desesperadamente por
tantos anos, podia compreender aquela agonia muda que
esperava e observava, que podia alimentar-se de migalhas de
mensagens de segunda mão e os relatos de histórias. E
metade das mensagens não passa de mentira, pensou Amy,
tristemente, porque May é bondosa demais para magoar a
pobre Elsa. Mas Amy se perguntava às vezes se não seria
mais bondoso acabar logo com aquela paixão sem esperança
e tão angustiada que a moça grandalhona, de faces coradas,
sentia pelo rapaz pálido e delicado.

— Mas é uma tremenda incongruência! — exclamou Amy,


em voz alta.

Ela sentiu súbita pontada de ressentimento contra Ernest,


que encorajava Elsa a acalentar esperanças. Ele não fazia
segredos que queria que Elsa casasse com seu filho.

— Para acabar com todas as besteiras dele — comentara


Ernest um dia.

Mas Amy não era capaz de encontrar qualquer coisa que


não fosse grotesca na perspectiva de tal união.

Ela já estava quase decidida a chamar Elsa (pois nenhum


dos filhos tinha permissão para entrar na sala de estar
íntima da mãe sem um convite especial) e tentava imaginar
alguns assuntos sobre os quais poderia conversar
jovialmente com a filha, quando ouviu a campainha da porta
da frente. Ficou imaginando, sem muito interesse, quem
poderia aparecer num dia assim. Pouco depois, a criada
bateu discretamente na porta e anunciou a Srta. Gertrude
Barbour. Amy empalideceu, de surpresa e prazer.

Gertrude entrou, envolta por uma capa preta de tecido


impermeável, com um capuz na cabeça. Amy se levantou e
adiantou-se, sorrindo, as mãos estendidas.

— Minha querida Trudie! Mas que prazer! Venha sentar ao


lado do fogo, menina. Bertha, leve a capa e o guarda-chuva
da Srta. Gertrude e enxugue-os na cozinha. Não sabe o
prazer que sinto em tornar a vê-la, Trudie!

Ela beijou o rosto da moça, úmido e frio sob os seus


lábios. Depois, com as mãos nos ombros de Gertrude,
manteve-a a um metro de distância, contemplando-a,
radiante. Gertrude forçou um sorriso. Estava um tanto pálida
e nervosa, com um vestido de lã, um casaco todo abotoado.
Os cabelos escuros sem qualquer lustro escorriam
suavemente pelos lados das faces pálidas. Amy percebeu
imediatamente que a sobrinha estava com olheiras, que os
lábios pareciam contraídos e frios.
— Estou muito satisfeita e feliz por tomar a vê-la, Tia
Amy querida — murmurou Gertrude, à sua maneira nervosa.

Ela examinou Amy atentamente. A tia nunca parecia


envelhecer, pensou Gertrude. Os olhos castanhos
continuavam brilhantes, a pele lisa e viçosa, os cabelos
castanho-claros ainda eram lustrosos, ondulados,
empilhados no alto da cabeça. O vestido de lã azul-escuro,
com renda no pescoço, fazia-a parecer ainda mais jovem. Ela
dá a impressão de ser bem mais jovem que mamãe, pensou
Gertrude. Ela tornou a beijar Amy. Adorava a sua fragrância
de rosa que exalava da carne e roupas de Amy. Parecia mais
uma parte da própria personalidade da tia do que uma
fragrância externa.

Gertrude sentou-se numa cadeira que Amy puxou para o


lado do fogo. Ficou esperando, as mãos delicadas no colo,
enquanto Amy pedia o chá. Olhava para o fogo com tanto
desespero sereno que Amy ficou alarmada e comovida.
Fingindo não perceber que havia alguma coisa errada, Amy
assumiu um tom jovial e perguntou por May e as crianças.
Atiçou o fogo, fez um gracejo, riu. Gertrude sorriu,
angustiada, os lábios trêmulos.

— Mas quanta gentileza sua visitar uma velha senhora


insípida! — disse Amy, pegando a mão da moça e sentindo a
sua frieza entre as palmas quentes. — Elsa e eu quase não
nos falamos em dias assim. Creio que ela está lá em cima,
em seu quarto, remoendo a sua melancolia. Devo chamá-la
para nos fazer companhia?

— Oh, não, por favor, Tia Amy! — Gertrude animou-se de


repente, nervosamente. — Vim apenas para visitá-la!

Ela começou a retorcer as mãos desesperadamente, sobre


os joelhos. Olhou para Amy, que estava com uma expressão
grave. Sua angústia era tão acentuada e patética que a
mulher mais velha sentiu-se novamente alarmada.

— Mas o que está havendo, minha querida? — perguntou


Amy, suavemente. — Algum problema? Posso ajudá-la? Se eu
puder fazer alguma coisa, diga-me, por favor. Pode contar
comigo.

— Sei que posso. Oh, Tia Amy, tenho certeza de que


posso!

Gertrude desatou a chorar. As lágrimas brotavam de seus


olhos, escorriam pelas faces. Ela não enxugou-as.
Simplesmente fitava a tia, com mãos e olhos suplicantes. O
alarme de Amy aumentou ainda mais.

— Conte-me tudo, Gertrude.

Ela assumiu uma voz firme e serena, pegando novamente


as mãos de Gertrude, que tremiam incontrolavelmente,
estavam cada vez mais frias e suadas.

Gertrude desviou o rosto.

— Mas como posso contar? Não sei por onde começar, o


que dizer...

— Seria melhor não ‘começar’, Trudie. Conte logo qual é o


problema. Não precisa de explicações preliminares.

— Mas é tão horrível insultá-la desse jeito! — gritou a


moça, a mão se retorcendo nas de Amy, que segurava-a com
firmeza. — Devia estar louca quando pensei que poderia
querer ajudar-me, que me escutaria insultá-la...

Houve um momento de silêncio, depois de um único e


brusco soluço de Gertrude. Ela baixou a cabeça, os cabelos se
desprenderam, cobriram parcialmente o rosto angustiado.
Amy ainda lhe segurava a mão, agora com uma expressão
ainda mais solene, mais triste.

— Queria me falar sobre Paul, não é mesmo, querida? — A


voz de Amy era suave e terna. — Sei de tudo. E veio me dizer
hoje que não quer casar com ele, mas seu pai está insistindo
e você... Trudie, como imaginou que eu poderia ajudá-la?

— Não sei! — Gertrude virou-se para ela, freneticamente.


— Não sei! Mas imaginei que poderia compreender. Achei
que poderia encontrar algum meio de ajudar-me. Não
compreendi como a estaria insultando...

Amy baixou um pouco a cabeça e contemplou a mão que


segurava a sua, em desespero.

— Não está me insultando, meu amor. Compreendo bem


como se sente. Sempre achei que tal casamento seria...
inteiramente errado. Mas seu pai garantiu-me que você
estava disposta a casar, que gostava muito de Paul. Eu não
sabia.

— Ele mentiu! Ele mentiu, Tia Amy! Eu... eu jamais gostei


de Paul. Perdoe-me por dizer isso, já que ele é seu filho. Mas
jamais gostei de Paul. Não estou querendo dizer que ele não
é... excelente e tudo o mais, que não é um rapaz
extraordinário. Mas não o quero. Ele não serve para mim.
Eu... eu amo Philippe e queremos nos casar. E meu pai está
me forçando a aceitar Paul.

— Forçando? Mas que coisa horrível!

Amy se levantou, agora também nervosa. Estava bastante


pálida, o rosto contraído e tenso.
Gertrude agarrou-lhe o vestido. Amy contemplou-a,
compadecida, respirando fundo em sua indignação e horror.

— Isso mesmo, Tia Amy, ele está me obrigando. Claro que


sei que ele não pode arrastar-me ao altar e forçar-me a casar
com Paul. Mas... há outros meios. Não conhece papai...

Gertrude fez uma breve pausa. Por um instante, um débil


sorriso estampou-se nos olhos de Amy.

— Não pode imaginar do que papai é capaz. Não se pode


resistir à sua vontade. É como lutar contra uma montanha de
ferro, que permanece indiferente a toda oposição e acaba
esmagando a tudo e a todos que se atrevem a resistir.

— Paul sabe como você se sente em relação a ele, Trudie?

— Sabe, sim. Já lhe falei. E dezenas de vezes. Ele ri ou fica


zangado. Não acredita. Diz que me ama e que não pode
compreender que diferença faz se o amo ou não.

Amy escutou com uma expressão pensativa.

— Posso compreender Paul dizendo uma coisa dessas. Ele


é um pouco parecido com seu pai... quando quer alguma
coisa, fica ofendido ou desdenhoso quando alguém se opõe.
Meus filhos nunca tiveram muito senso de humor. E admito
que Paul é também muito egocêntrico. Acredita que os seus
próprios desejos são mais importantes que os de qualquer
outra pessoa. Seu pai acredita que, por ser mais forte, os
mais fracos devem ceder sem qualquer resistência.

— Como geralmente acontece — murmurou Gertrude, o


desespero impregnando-lhe a voz. — Não posso resistir a
papai por muito mais tempo, apesar de preferir morrer a não
casar com Philippe. É por isso que vim procurá-la, Tia Amy.
Achei que talvez pudesse conversar com Paul.

— Conversar com Paul? — Amy sorriu amargamente. —


Paul e eu nunca fomos... compatíveis. Não adiantaria coisa
alguma. Tenho a impressão de que ele me considera uma
fraca. Jamais conseguimos conversar, mesmo à mesa, sem
um atrito. Além do mais, ele ficaria indignado se eu tentasse
interferir com algo que considera exclusivamente da sua
conta. De qualquer forma, falarei com ele. Mas tenho um
plano melhor, com maiores possibilidades de ser bem-
sucedido.

Animada pela esperança, Gertrude levantou-se


abruptamente. Segurou o braço de Amy, perguntando com
ansiedade:

— E que plano é esse? Acha que adiantaria alguma coisa?


Diga-me por favor!

Amy passou o braço pela sobrinha, sentindo um aperto de


compaixão na garganta.

— Não posso prometer muita coisa, querida. Mas estou


realmente convencida de que pode dar certo. Confie em
mim. Farei tudo o que for possível.

Gertrude, rindo e sorrindo agora, enxugou as lágrimas.


Uma tênue cor insinuava-se em seu rosto.

— Mas claro que confiarei! Confio plenamente! É... é como


uma nova vida que está me proporcionando!

Amy sentou-se.

— Sua mãe sabe que você veio me pedir ajuda?


— Não. Não lhe contei nada. Mamãe acha que devo ser
forte o bastante para enfrentar papai e continuar
enfrentando. — A expressão de Gertrude tornou-se triste. —
Tenho às vezes a impressão de que mamãe está
simplesmente de braços cruzados observando a mim e a
papai, como alguém que assiste a uma peça. Às vezes, penso
que ela não se importaria se papai me impusesse a sua
vontade.

— Está sendo muito injusta, Trudie. Sua mãe não é


absolutamente assim.

— Não sabe das coisas, Tia Amy. Uma noite, pedi a


mamãe que me deixasse dormir em seu quarto, porque papai
e Paul estavam à minha espera e eu queria esconder-me. Ela
acabou deixando e disse a papai que eu estava passando a
noite com Tia Dorcas. Mas falou também que eu sempre
procurara papai com todos os meus problemas e que agora
era um pouco tarde...

— Entendo... — murmurou Amy, solenemente.

E ela pensou, angustiada: então May está fazendo com


que até essa pobre moça pague pelo meu relacionamento
com Ernest. Não pensei que ela fosse capaz disso. Mas, no
fundo, não posso deixar de reconhecer que é uma reação
perfeitamente humana.

— Sua mãe tem sofrido uma pressão muito grande,


Trudie. Creio que você magoou os sentimentos dela por
muitos anos. Tente compreender isso. Mas tenho certeza de
que ela não faria qualquer coisa para mantê-la infeliz.

Gertrude estremeceu, apavorada, pois a porta estava se


abrindo. Depois de uma batida apressada, Elsa apareceu,
com uma expressão descontente.
— Posso entrar por um momento, mamãe? Ah, é você que
está aqui, Trudie!

Ela sorriu, sua expressão se animando,

— Entre, meu amor — disse Amy, puxando outra cadeira


para perto do fogo.

Sem olhar para a mãe, Elsa entrou na sala, radiante. O


vestido cinza de lã estava amarfanhado e não muito limpo,
os cabelos lindos e lustrosos estavam desarrumados,
despenteados. Havia uma mancha no nariz grande e bem-
feito, as mãos estavam sujas. Era evidente que ela estivera
trabalhando na estufa. Elsa tornara-se bastante rechonchuda.
A exuberância de carne e a altura excepcional faziam-na
parecer muito mais velha e mais amadurecida do que os seus
22 anos. Além disso, a pele lisa e viçosa, os dentes grandes e
brancos e a aparência geral de simplicidade vigorosa faziam-
na parecer uma camponesa saudável, de pés grandes. Ela se
sentou entre a mãe e Gertrude, fazendo com que a prima
parecesse frágil, lívida e delicada demais, em comparação.

— Há séculos que não a vejo, Trudie! — exclamou ela, em


voz muito alta. — Mas também o tempo tem andado tão
horrível que não sinto vontade de visitar ninguém. Mas como
estão todos em sua casa? — Um vermelho mais forte
insinuou-se em seu rosto, quando ela acrescentou: —
Receberam notícias de Frey ultimamente?

Gertrude sorriu, o seu sorriso satírico.

— Estamos todos bem, como sempre. Já sabia que, no


final das contas, Frey deverá mesmo vir para o Natal? Mamãe
recebeu uma carta dele ontem. Já estava preocupada, sem
saber se Frey estava bem. A carta era um tanto incoerente e
excitada. Achamos que ele pode ter uma boa notícia a dar. É
claro que papai disse que Frey provavelmente estava
embriagado.

Gertrude riu, um tanto histericamente, como se estivesse


aliviada de enorme tensão.

— Mas isso é um absurdo! — disse Elsa, indignada. — Frey


praticamente não bebe!

O rosto dela estava agora inteiramente vermelho, as mãos


fortes, dobrando e desdobrando uma prega do vestido,
tremiam um pouco. Ela sorriu, efusiva.

— Quer dizer que ele vem no Natal? Mas isso é


maravilhoso para... para todos vocês!

Observando-a, Amy sentiu uma compaixão profunda.


Soltou um suspiro. Era muita ironia, pensou ela, que seus
filhos se apaixonassem pelos filhos de Ernest, que não os
aceitavam. Se ao menos Elsa não fosse tão grandalhona, tão
exuberante, tão impermeável à delicadeza, carecendo tanto
de sutileza... Pobre coitada! Era provavelmente a fragilidade
de Frey e Gertrude que atraía tanto vigor, tanta rudeza
arrogante, tanta voracidade. Ora, pensou Amy, com alguma
tristeza, Frey e Gertrude seriam esmagados como percevejos
sob o peso de Paul e Elsa, certamente se perderiam, como
Gullivers, nas mãos de seus jovens gigantes.

Gertrude, o terror aliviado, estava mais do que disposta a


ser jovial com a prima. Conversou sobre Frey, as
perspectivas dele, os elogios dos mestres, repetiu pequenas
histórias das cartas. Elsa escutava atentamente, deliciando-
se com tudo, os ombros maciços inclinados para frente, o
rosto grande iluminado.

E ela disse, com uma indiferença artificial:


— Não tenho escrito a Frey ultimamente. Ele deve estar
zangado comigo. Ele... ele falou a meu respeito em sua
última carta?

Gertrude hesitou por um momento. Amy virou o rosto


sereno na direção dela.

— Hã... acho que sim — mentiu ela, embaraçada. —


Disse... que tinha muitas coisas a lhe falar. Sobre Paris.

Elsa tornou a sorrir. E era um sorriso como o sol,


exuberante, satisfeito. Será que ela pode realmente ser tão
cega assim?, pensou Amy, compadecida, sentindo um aperto
no coração pela filha. Ou será que, como todos nós, ela
acredita no que deseja acreditar? As mentiras são mais do
que óbvias. Somente a estupidez ou o amor podem levar
alguém a deixar de percebê-las. Creio que, no caso de Elsa,
são as duas coisas.

— Ah, Paris... — murmurou Elsa. — Eu adoraria conhecer


Paris. — Amy fitou-a com surpresa, enquanto Elsa continuava
a falar: — Windsor é um lugar tão maçante e insípido que
também nos tornamos assim. É estranho como formamos o
nosso ambiente daquilo que somos, mas ao mesmo tempo
ele nos sufoca às vezes, como se fosse um elemento
estranho que não pudéssemos respirar. Como se... — ela fez
uma pausa, à procura das palavras certas — ... como se o
nosso ambiente fosse igual ao ar que expelimos, uma espécie
de exalação que não é saudável usar novamente.

(Não, pensou Amy, com renovada surpresa, ela não é


estúpida. Mas por que será que jamais conversa comigo
assim? Por acaso a oprimo, como Ernest oprime seus filhos?)
Encenando o seu pequeno discurso, Elsa franziu o rosto.
Nunca conseguia encontrar as palavras certas e isso a
enfurecia.
— Acha que entenderam o que eu quis dizer —
acrescentou ela, com um aceno desolado das mãos. — É
como... como se o nosso ambiente, a nossa civilização, não
passasse de bosta.

Gertrude ficou vermelha, Amy soltou uma risada, diante


daquela descrição tão objetiva.

— Tem razão, Windsor é mesmo uma cidade insípida —


concordou Amy. — Mas não imaginei que pensasse assim.

— O que existe aqui para mim ou para qualquer outra


pessoa? — indagou Elsa, sombriamente. — Todas vamos
acabar como velhas solteironas, Trudie e eu, Annabelle
Shirley, Mary Anne Stimson, Adeline Liggett... todas nós. E
isso porque aqueles que poderiam ser nossos pretendentes
estão procurando por mulheres em Nova York, Baltimore,
Filadélfia e Pittsburgh. Foi só por acaso que Lucy conheceu
Oswald. E teve de fazer isso em Nova York.

Ela se levantou, bocejou, espreguiçou-se, o vestido cinza


subindo acima das anáguas, com os babados sujos. Parecia
uma criança grande e rosada a bocejar. Baixou os braços e
acrescentou:

— Ficarei contente de rever Frey. E gostaria de poder


acompanhá-lo de volta a Paris.

Ela olhava para Gertrude enquanto falava. Um brilho


súbito surgiu no fundo de seus olhos azuis e foi
aumentando. Gertrude, sentindo-se envergonhada de suas
mentiras piedosas, desviou os olhos.

Foi servido o chá e bolinhos. Elas comeram e beberam, ao


calor aconchegante da lareira, o dia de outono tornando-se
ainda mais inóspito lá fora. Estava chovendo intensamente
agora e a água escorria pelos vidros das janelas. As árvores
desfolhadas eram como espectros, contorcendo-se e
afogando-se sob o dilúvio.

Ao se levantar para ir embora, Gertrude experimentou a


sensação de que estava prestes a deixar um porto seguro, a
fim de navegar outra vez para tempestades e aflições.
CAPÍTULO LXIX
Depois de um agradável jantar a sós com Amy, na sala de
estar íntima, Ernest olhou ao redor, satisfeito. Sorriu, tornou
um copo pequeno de sherry. Ele ainda detestava o gosto de
álcool e somente o estímulo que o sherry lhe proporcionava
é que o levava a beber até mesmo aquela quantidade
mínima.

Paul estava retido no banco, já que era o primeiro dia do


mês e precisava conferir os livros. John Charles passaria a
noite fora, na casa de um amigo, o mesmo acontecendo com
Elsa. Por ocasião das visitas de Ernest, tudo era arrumado
assim, impecavelmente, sem discussões, aparentemente com
a maior naturalidade. Se Ernest adivinhava as maquinações
angustiantes, a humilhação e a aversão por si mesma com
que Amy providenciava tudo de modo satisfatório, simulava
uma afável ignorância. Ao chegar, não podia deixar de
perceber o rubor no rosto de Amy, seu silêncio e
constrangimento. Depois, no entanto, Amy voltava a ser ela
mesma, gentil, risonha, compreensiva e tolerante, ansiosa
em agradá-lo, cortejando seu bom humor e afeição.

Amy providenciara um jantar excepcionalmente saboroso


para aquela noite, o que tentou até mesmo o apetite
indiferente de Ernest, levando-o a manifestar um elogio
excepcional. Ela também parecia extremamente encantadora
e juvenil, num vestido verde de veludo, com botões
faiscantes de cristal. Brincos de diamantes pendiam das
orelhas, havia anéis e pulseiras nos braços. Ernest notou
novamente que não havia um único fio branco nos cabelos
lustrosos de Amy, nem mesmo nas têmporas. O amor dele a
fizera desabrochar, regenerando todo o seu corpo,
Ele principiou falando de sua recente visita a Nova York e
Washington. Almoçara com o Presidente.

— O Sr. Grant... ou melhor, o General Grant... é um


homem cordial e simples, inflexível, destituído de
imaginação, como todos os soldados. Considera-se muito
sutil, mas é muito fácil enganá-lo. Os soldados são sempre
conservadores, pois têm uma fé profunda na autoridade e
disciplina. Na minha opinião, ele é um presidente
excepcional,

— Mas dizem que ele é muito estúpido, uma nulidade


total — comentou Amy.

Ela dominara a arte suprema da conversa, sendo capaz de


ter pensamentos próprios e, ao mesmo tempo, fazer
comentários inteligentes.

— E é justamente por isso que o considero um presidente


tão extraordinário. Para que haveríamos de querer um
Presidente com ideias próprias e uma vontade resoluta? Só
Deus sabe as loucuras que ele poderia cometer, a presunção
que demonstraria. Poderia até acalentar a ideia de tomar-se
um líder ou um reformador, levando a nação a coisas
‘superiores e melhores’. Acabaria entrando em atrito com o
Congresso, assim levando o país à divisão e um período
conturbado, O que precisamos num presidente é um homem
simples para assinar papéis e que acrescente dignidade aos
negócios públicos, um cavalheiro conservador que não tenha
sonhos de reformas sociais e esteja satisfeito com as coisas
como elas são. Deve ser alguém que ame seu jardim e goste
de crianças, que saiba montar a cavalo elegantemente e deixe
crescer a barba, a fim de ter uma aparência simpática,
presidindo o Congresso como uma divindade benevolente e
cordial.
— O que aconteceria a este país se acidentalmente
elegêssemos outra vez alguém como Lincoln? — disse Amy,
pensativa. — E Deus sabe que estamos precisando
novamente de um líder de verdade como Lincoln.

— Não diga bobagem. O Congresso é capaz de controlar


tudo passível de ser controlado... por aqueles que realmente
detém o poder. — Ernest sorriu ligeiramente. — Se
tivéssemos um presidente com ideias, em setembro de 1869,
estaríamos completamente arruinados. Tem havido muita
‘agitação trabalhista’ nos últimos dois anos. Um presidente
com ilusões sociais poderia encorajar os miseráveis nas
minas e fábricas, aproveitando o pânico financeiro de que
estamos saindo como pretexto para uma lamentável
legislação ‘trabalhista’ e ‘proteção’. Não queremos homens
fracos na Casa Branca, imbuídos de amor fraternal e
indignação. Este é um mundo prático, não há lugar para
axiomas bonitos, não se pode estabelecer o Reino dos Céus
aqui embaixo. Há homens inteligentes e objetivos por trás do
Congresso, capazes de cuidarem das coisas sem bobagens.

— E sem misericórdia — murmurou Amy.

Mas o ouvido aguçado de Ernest apreendeu o comentário.

— Sem misericórdia? O que significa a misericórdia? Um


sentimentalismo piegas? Ideias impraticáveis, que se
desfazem ao primeiro contato com a realidade? A
misericórdia, minha cara, é sempre inimiga do progresso,
pois o progresso exige força, coragem e uma determinação
intransigentes. As virtudes são ótimas para as salas de
visitas, mas não se pode fazer grandes coisas com elas.

— E o que você está querendo dizer com progresso? O


maior bem para o maior número de pessoas? Ou os maiores
lucros para uns poucos, às custas da maior miséria para
muitos? Não chamo a isso de progresso, Ernest. Dou o nome
de exploração.

Mas Ernest limitou-se a sorrir.

— Estou vendo que você tem lido os jornais mais


sórdidos. O que me surpreende, Amy. Por que não lê um
pouco sobre biologia, em vez disso? É um assunto realmente
fascinante. Acabei de descobri-lo recentemente e acho que a
Natureza expressa perfeitamente as minhas ideias. Não
pense que sou um cruzado, até mesmo pelos métodos
excelentes da Natureza. Nada disso. Quero apenas cuidar da
minha própria vida, sem a intromissão de ninguém.

Amy serviu mais chá.

— Essas histórias sobre os Cavaleiros do Trabalho são


verdadeiras? Ouvi dizer que eles estão se gabando de
contarem com 50 mil associados.

Ernest soltou um resmungo irritado.

— Não passa de gado descontente, a segunda geração de


magiares, prussianos, irlandeses, tchecos e boêmios, cujos
pais tiveram o maior prazer em vir para este país em navios
de gado, trabalhando 14 horas por dia em minas e fábricas,
por mais comida do que jamais haviam tido antes, em toda a
vida. Mas basta alimentar um cão e ele começa a pensar que
é lobo. Uma ralé atrevida! Estavam passando fome em seus
países, sem qualquer esperança. Nós os trouxemos para cá,
demos trabalho, providenciamos tetos sobre suas cabeças,
pagando o que valem. E assim que saciaram a fome e
limparam a boca de comida, começaram a bradar por mais.
Mesmo que não possam comer mais.

— Oliver Twist também não pediu por mais?


O sorriso de Amy era ligeiramente irônico.

— Oliver Twist? E quem diabo é Oliver Twist?

— Você não saberia, Ernest. Ele é apenas personagem de


um romance.

— Um romance, hem? Pois deixo esse negócio de ler


romances para as mulheres.

Amy se levantou e foi até uma pequena estante de pau-


rosa, voltando com um livro grosso. Colocou-o perto da
xícara de Ernest, com uma expressão jovial.

— Aí está o livro. É de um conterrâneo seu, Dickens.


Tenho certeza de que vai lhe trazer recordações do lugar que
sua mãe costumava chamar de ‘a velha e querida Inglaterra’.
Oliver Twist está lá. Tenho a impressão de que vai lhe fazer
algum bem ler a história do pequeno Oliver.

— Ora, Dickens não passa de mais um dos seus


reformadores sociais, cheio de protestos e indignação. —
Ernest folheou as páginas, sem o menor interesse. — Fico
surpreso dos livros dele serem publicados na Inglaterra. Mas
é verdade que promulgaram recentemente umas leis
trabalhistas absurdas na Inglaterra. Um sentimentalismo
repulsivo!

— Tem razão, Ernest.

Ernest estava contrariado.

— Alguns idiotas chegam a profetizar que pode chegar o


dia em que os trabalhadores terão uma voz ativa no governo.
Espero que isso jamais aconteça. Tenho até certeza de que
não vai acontecer. Seria uma calamidade. — Ele fez uma
pausa, franzindo o rosto. — Quer saber por que fui a
Washington, Amy? Tem havido muita agitação sórdida
ultimamente contra a importação de mão-de-obra
estrangeira. Sempre houve alguns protestos, mas ninguém
jamais deu muita importância. Agora, no entanto, a coisa
agravou-se, por causa daqueles chineses que trouxemos para
construir as ferrovias no oeste. Há até um grupo de pressão
bastante ativo em Washington. Fui a Washington para
conversar com alguns dos meus amigos por lá, senadores e
ministros do Supremo Tribunal. Todos verdadeiros
cavalheiros. Garantiram-me que eu não precisava me
preocupar. — Ernest soltou uma risada brusca e arrematou:
— Amy, todas as coisas estão à venda nas democracias.

— Inclusive a honra.

— Inclusive a honra. — Ele tornou o último gole do


sherry. — Mas a honra sempre foi um artigo dos mais
baratos.

Num homem inferior, pensou Amy, o que ele acabara de


dizer soaria como uma bravata. Mas não havia sequer
cinismo nas declarações tranquilas de Ernest.

— E, ainda por cima, estão começando toda essa agitação


absurda a respeito dos trustes. Estorvando a indústria. A
saúde de uma nação depende do vigor e saúde da indústria.
Quanto maior a indústria, maior a nação, maior o progresso,
há mais empregos, mais dinheiro, mais poder. Quando
gigantes constroem cidades, sempre há lugar para os anões.
Mas aleijar e restringir os movimentos dos gigantes nunca
aumentou a estatura dos homens inferiores. É tão absurdo
quanto dizer a um fazendeiro que tem mil acres que não
pode plantar mais do que o seu vizinho, que tem apenas dez
acres, para que não venda mais nem tenha lucros maiores.
Ou negar ao primeiro a utilização das ferrovias, porque o
inferior não pode fazê-lo. Não se constrói civilizações com
pedras menores, não se ergue fortes com seixos. Deve-se
permitir que os negócios se expandam sempre, nas
proporções a que puderem. Quando as mesas estão fartas
para os gigantes, sempre sobra muitas migalhas para os
pigmeus. Mas você não concorda comigo, não é mesmo?

Ele sorriu, pondo a mão sobre a de Amy, que estava sobre


a toalha, a seu lado. Ela riu jovialmente.

— Meu caro, jamais concordei com você em toda a minha


vida!

Amy tocou a campainha, chamando a criada para tirar a


mesa. Ernest atiçou o fogo, relaxou na cadeira confortável
que Amy empurrara para ele. Ela percebeu com satisfação
que Ernest estava de excelente humor.

— Preciso ter uma conversa séria com você, Ernest... a


respeito de Paul e Trudie.

— Como? — Ele virou-se para Amy, alerta, a suspeita


insinuando-se em seu rosto. — O que há com eles? Paul já
lhe contou que eles devem casar no dia anterior ao Natal,
não é mesmo?

— Já, sim. — Amy olhou para o fogo. — Mas não estou


satisfeita. Por várias coisas pequenas que tenho ouvido,
acabei somando dois mais dois. Estou convencida de que
Gertrude não quer casar com meu filho.

Ernest ficou vermelho de raiva.

— Como assim? O que você ouviu? É tudo bobagem. Claro


que ela quer casar com Paul. As mulheres sempre têm
algumas ideias tolas, mas o casamento acaba com tudo.
Gertrude sabe há muitos anos que eu queria esse casamento.

— Mas ela não ama Paul, Ernest. — Amy virou-se para fitá-
lo, calmamente, embora estivesse tensa interiormente. —
Tenho certeza.

— Como pode saber?

Ernest alteou um ombro desdenhosamente e Amy corou


de humilhação. Ele tornou a ficar desconfiado.

— May por acaso esteve aqui, conversando com você?

— Não.

— E Gertrude?

— Não.

Ele fez uma pausa.

— Você sempre foi uma péssima mentirosa, Amy. Então,


Gertrude veio se lamuriar.

O rosto dele tornou-se sombrio, irritado.

— Vamos supor que a pobre menina tenha pedido a


minha ajuda, Ernest. Isso não é suficiente para mostrar-lhe
que ela não quer casar com Paul?

— Ela não sabe o que quer — respondeu ele, veemente. —


Gertrude pensa que quer aquele idiota do Philippe, mas sei o
que é melhor para ela. Paul é exatamente o que ela quer. Ele
vai ser o melhor marido que Gertrude poderia ter. O que uma
garota conhece dos homens? Não seja uma tola romântica,
Amy!
— Não estou sendo romântica, Ernest. Mas Paul é meu
filho, como você sabe muito bem. E quero que ele seja feliz.
Não seria, se casasse com uma moça que o odeia. O amor
não surge com o casamento. O amor é uma coisa muito
difícil. A menos que o amor seja bastante vigoroso e
determinado, o casamento fracassa. Se Gertrude e Paul
casarem, a possibilidade de encontrarem a felicidade será
inexistente. Estou pensando em Paul também. Fico surpresa
de que ele queira Gertrude, mesmo sabendo como ela se
sente. Pensei que ele tivesse algum orgulho...

— Tudo isso não passa de bobagem. Paul quer casar com


Trudie e isso é tudo o que importa. Dentro de um ou dois
anos, ela já estará gostando dele. Paul é o homem ideal para
ela.

Ele virou-se para Amy e riu, o que deixou-a inteiramente


surpresa.

— Por acaso pensa que estou forçando Gertrude e Paul a


subirem ao altar? Pois não seja tola. Ela já tem idade
suficiente para saber o que quer. Se realmente quisesse
Philippe, lutaria por ele, opondo-se a mim resolutamente.

— Está esquecendo que a pobre Gertrude ama você


profundamente, Ernest. Está dilacerando o coração da moça.

Por um instante, ele pareceu comovido, ficando um pouco


mais gentil.

— Tem razão. Trudie sempre foi a minha predileta. Em


toda a vida, jamais discordamos, até agora. Espero que ela
compreenda que desejo este casamento porque a amo muito.
Gostaria que ela confiasse em mim. Afinal, sei o que é
melhor para ela.
Ernest se levantou, caminhou de um lado para outro da
sala, as mãos por baixo das abas do casaco. Amy observava-o
atentamente. Ele estava bastante grisalho agora, mais
corpulento do que nunca, tinha até a insinuação de uma
pança. Mas o poder o fortalecera e o rosto pálido estava
implacável e rude como pedra.

— Eu gostaria que fizesse uma coisa por mim, Ernest —


disse Amy, suavemente. — Por Gertrude e Paul. Gostaria que
parasse de oprimi-los, pelos muitos meios de que dispõe
para oprimir as pessoas. Dê algum tempo a Gertrude. Diga a
ela que terá dois ou três meses para tomar uma decisão.
Depois disso, se ela continuar determinada a não casar com
Paul, então você estudará a sugestão de um casamento com
Philippe. Afinal, Ernest, ele é de fato um bom rapaz. Não
posso compreender o que você tem contra Philippe, que é o
filho de sua irmã predileta. Mas deve dizer à pobre Gertrude
que, para fazer justiça, ela deve dar uma chance a Paul, que
deve atenuar sua repulsa a ele, considerá-lo sem
preconceitos, cultivar o relacionamento entre os dois,
procurar encontrar em meu filho qualidades que possam
agradá-la. Diga que você confia no senso de justiça dela e
que pelos próximos dois ou três meses não voltará a falar do
casamento com Paul.

Ernest parou, virou-se bruscamente e fitou-a com uma


expressão furiosa, do outro lado da sala. Seus olhos
implacáveis faiscaram, baixaram para o tapete, tornaram a
concentrar-se nela. Amy desejou poder ler o que se passava
por trás daqueles olhos. Mas estavam tão fechados quanto
sempre a qualquer tentativa de penetração. O rosto de Ernest
transformou-se em máscara suave. Mas ela não deixou-se
enganar. Sabia que ele estava pensando a sério na sugestão
dela, mas desconfiava das outras restrições que se formavam
na mente de Ernest. Quando ele se aproximou,
aparentemente tendo chegado a uma solução satisfatória,
sorridente, a desconfiança de Amy aumentou. Ernest,
fazendo uma concessão, Ernest, sorrindo, era um homem a
ser vigiado, suspeitado.

Ele sentou-se, parecendo extremamente expansivo.

— A sua ideia tem alguns méritos, Amy. Vamos supor que


eu lhe prometa que falarei com Gertrude exatamente como
sugeriu. Vamos supor que eu faça o que está aconselhando. E
vamos supor que, daqui a dois ou três meses, ela se decida
casar com Paul. Isso a deixaria satisfeita?

A desconfiança de Amy tornou-se mais intensa do que


nunca. Mas não podia perceber a emboscada, por mais que
procurasse. Sentia que estava ali. Mas tinha de estar
contente. Talvez estivesse enganada, neste caso. Ela sorriu,
estendeu a mão.

— Claro que sim. Se Gertrude concordar, se ela escolher


assim, ficarei plenamente satisfeita.
CAPÍTULO LXX
O Padre Aloysius Dominick era agora o Bispo Dominick,
da diocese de Filadélfia, ocupando uma linda casa, por trás
da catedral da cidade. Tornara-se extremamente gordo,
rubicundo e jovial, profundamente preocupado com a
comida e o espiritual, para não falar no progresso material
da Igreja. Sua refeição predileta era o desjejum. Depois das
horas esfaimadas que passava na missa, era de fato uma
refeição abundante. Naquele dia, como sempre fazia, ele
sentou-se diante de imensa travessa de ovos com bacon,
tomando incontáveis xícaras de café, torradas com geleia,
potes de creme batido. Saciada a fome brutal, ficou
contemplando o gramado, agora amarelado com o outono,
observando a rua distante.

Ficou ligeiramente interessado quando um carro de


aluguel parou diante da propriedade e dele desembarcou um
corpulento homem de meia-idade. Teve a impressão de
reconhecer algo de familiar no vulto, enquanto o homem
atravessava o gramado, na direção da casa. Devia ter visto
aquele homem nos jornais. Era isso mesmo. Mas a fotografia
de quem? Depois de um momento de perplexidade, o bispo
se levantou com uma exclamação de surpresa, tocou
freneticamente a campainha, enxugou o rosto com um
guardanapo.

Cinco minutos depois, Ernest Barbour estava sentado à


frente do bispo, à mesa repleta, com uma nova travessa de
ovos com bacon, mais café e mais creme batido.

— Eu deveria ter sido padre — comentou Ernest, comendo


um ovo com um garfo de prata.

Era um desjejum farto e saboroso. O bispo estava


bastante jovial, com um riso fácil, gracejos maliciosos. Tinha
o hábito de cutucar o companheiro com o cabo da faca ou do
garfo, enquanto falava, a fim de acentuar algum gracejo. Por
uma dúzia de vezes, manifestou o seu prazer pela visita
inesperada.

— Já se passaram anos! — exclamou ele, em tom de


censura.

Que diabo ele está querendo agora?, perguntou-se o


bispo. Aposto que é alguma coisa terrível. Quando Satã visita
um padre, não é como um penitente. Mas Ernest não disse
nada, limitando-se a comentar a aparência inalterada do
bispo, a mesa farta, o ambiente agradável. E sou capaz de
apostar também, acrescentou o bispo para si mesmo, que a
visita dele não pressagia nada de bom para algum pobre
coitado.

Foram para o gabinete depois que acabaram de comer.


Ernest juntou-se a seu anfitrião num copo de vinho e num
excelente charuto.

— Uma das coisas que eu gosto nos papistas é que não


têm hipocrisias — comentou Ernest, francamente. —
Reconhecem a verdade da natureza humana e permitem
alguns pecados menores, pelo bem da alma imortal.

E por isso que a nossa Igreja ainda existirá, depois que as


suas pequenas igrejas protestantes tiverem se destruído
mutuamente. O protestantismo esquece que os homens são
homens e que alguns apetites devem ser satisfeitos,
contanto que determinados deveres sejam respeitados. Não
engasgamos com uma pulga e engolimos um camelo, não
nadamos no oceano e nos afogamos numa poça.

Fumaram em silêncio por um momento. Depois,


observando atentamente a cinza na ponta de seu charuto, o
bispo disse:

— É claro que não me procurou hoje para uma simples


visita social, Sr. Barbour. Não o subestimo tanto assim.
Espero passar umas poucas horas em sua companhia, com a
maior satisfação e cordialidade. Assim, não seria melhor que
tratássemos logo de negócios e me dissesse de uma vez o
motivo que o trouxe aqui? Resolvido esse problema,
poderemos voltar a conversar tranquilamente.

Ernest riu tão efusivamente, que exibiu quase todos os


seus dentes brancos ainda bem conservados. Continuava a
gostar tanto quanto antes dos homens práticos e objetivos.
Sem qualquer preliminar, ele perguntou:

— Tem mantido contato com todos os Bouchards da


nossa família?

— Tenho, sim. — O bispo parecia ligeiramente surpreso.


— O Sr. Eugene Bouchard é bastante caridoso... ultimamente.
No passado, ele sempre foi um tanto parcimonioso. Mas
agora ele tem sido mais generoso. Deixe-me pensar... Ele
esteve aqui há seis meses e tivemos uma conversa das mais
agradáveis. Ele trouxe três de seus filhos. Etienne? Honore?
Renée? Isso mesmo. Pelas informações que recebo do Padre
Regan, de Windsor, eu gostaria que houvesse um pouco mais
de devoção do ramo da família de Raoul Bouchard.

Mas é claro que se deve levar as circunstâncias em


consideração. É verdade que cheguei a acalentar algumas
esperanças pelo jovem Philippe Bouchard. Ele veio me
procurar há alguns anos, sabendo que eu era um velho
amigo da família. Disse que tinha a intenção de estudar para
o sacerdócio. Interroguei-o e tive a impressão de que ele
possuía alguma vocação. É claro que ele era muito jovem na
ocasião, pouco mais que um menino. Não deve ter mais do
que 20 anos agora, não é mesmo? Ele escreveu-me
regularmente por anos a fio e recebi as melhores
informações a seu respeito do Padre Regan. Afinal, a família
Bouchard é bastante proeminente. — O bispo fez uma pausa,
antes de continuar falando com toda sinceridade: — Assim,
tenho acompanhado com interesse as suas atividades. Mas
há cerca de um ano que o jovem Bouchard interrompeu
nossa correspondência. O Padre Regan diz que ele também
não tem aparecido na missa há algum tempo. Ele foi procurá-
lo, deixou recados, mas parece que o rapaz o está evitando.

Um interesse intenso estampou-se no rosto do bispo e ele


perguntou:

— Não poderia explicar-me o motivo para esse


comportamento inesperado?

Ernest encostou as pontas dos dedos, com todo cuidado.

— Não, não posso. Mas gostaria de saber uma coisa. Não


existe um regulamento na sua Igreja de que os primos não
podem casar... os primos-irmãos?

— Há, sim. — Houve um momento de silêncio, enquanto a


compreensão fazia os olhos do bispo brilharem. — Tem uma
filha, Sr. Barbour. Nosso jovem Philippe deseja casar com
ela?

— Exatamente. E eu não quero que ele case com minha


filha.

O bispo manteve-se calado.

— Não tenho nada contra o rapaz pessoalmente —


acrescentou Ernest. — Afinal, ele é meu sobrinho. Mas tenho
outros planos para Gertrude. Também não aprovo
casamentos entre primos...

O bispo fitou-o nos olhos. Não havia agora nada de


divertido em sua expressão.

— Não correu um rumor de que sua filha estava para


casar com o filho de seu falecido irmão, Sr. Barbour?

Houve uma ligeira pausa e depois Ernest confirmou,


afavelmente:

— É verdade.

Os dois ficaram se fitando por um longo momento, até


que o bispo desviou os olhos.

— Entendo... — murmurou ele, tamborilando com os


dedos sobre a mesa, pensativo. — Estou desapontado com a
família de seu irmão. Ele era um católico devoto e os filhos
foram batizados na Igreja. Mas acabaram se afastando. Sei
que as leis da Igreja jamais os afetariam. O que é lamentável.
— A cabeça grande e vermelha abaixou-se um pouco. — O
que espera de mim, Sr. Barbour?

Ernest respondeu prontamente, com profunda frieza:

— Creio que seria ótimo recordar ao jovem Philippe o seu


dever. Como disse, ele foi outrora um católico fervoroso. E
provavelmente ainda é, lá no fundo. Se ele casar com
Gertrude, acabará se sentindo infeliz, depois do primeiro
excitamento, lembrando que cometeu um ‘pecado’. E fará
com que Gertrude também se sinta infeliz. Mas vou ser
franco. Esse não é o verdadeiro motivo pelo qual desejo
impedir esse casamento. A verdade é que tenho outros
planos para minha filha.
— Ou seja, está querendo a ajuda da religião, não é
mesmo? Não acha que é um aliado um tanto estranho, Sr.
Barbour?

Ernest sorriu e respondeu evasivamente:

— Já ouvi falar de aliados piores.

O bispo fitou-o fixamente por um longo momento, sem


qualquer disfarce. O que pensam os homens como ele?,
perguntou-se o bispo. Espero que os pensamentos deles
possam constituir uma leitura excepcional na literatura do
Inferno. Ele sentia-se um pouco acabrunhado. Acabou se
levantando, corpulento e impressivo em seu traje clerical
preto. O rosto não estava mais cordial, mas sim distante e
triste. Ernest também se levantou, irritado, consciente de
que alguma coisa no sacerdote o repudiava, reduzindo-o a
uma estatura insignificante.

— Escreverei ao jovem Philippe e pedirei que venha me


visitar — disse o bispo. — Tenho certeza que ele virá. E farei
o que for possível para atraí-lo de volta à Santa Madre Igreja,
mostrando-lhe o seu dever. Mas não por sua causa, Sr.
Barbour! Não para atendê-lo! Este é um problema entre
Philippe e seu Deus. Não tem nada a ver com isso, Sr.
Barbour.

Uma fúria amarga brilhava nos olhos do velho e gordo


sacerdote, cujos lábios polpudos tremiam ligeiramente, com
alguma obscura paixão. Ernest imaginou que tal paixão era
mais humana do que divina. Houve uma pausa constrangida.
Ernest tinha a intenção de convidar o bispo para um almoço
excepcionalmente suntuoso em seu hotel, passando algumas
horas agradáveis na companhia dele. Mas nem mesmo ele
teve a desfaçatez de apresentar o convite agora.
Os dois separaram-se friamente, com uma cerimônia
embaraçosa. Três dias depois, Ernest remeteu um cheque
excepcionalmente vultoso para o bispo, “minha contribuição
atrasada para suas muitas obras de caridade de grande
valor”.

E três dias depois Ernest recebeu uma carta formal do


bispo, agradecendo o cheque e informando: “Sei que ficará
satisfeito em saber que seu dinheiro será aproveitado em
nossa Missão para os leprosos”.
CAPÍTULO LXXI
Florabelle estava no meio de uma tentativa frenética de
resolver um atrito entre um frenético François e a
governanta quando Gertrude Barbour foi anunciada.

— Oh, Deus! — exclamou a desesperada e transtornada


Florabelle, dando um empurrão brusco em François e
lançando-o a um novo acesso de gritos e bater de pés.

A governanta, uma irlandesa empertigada que “servira à


aristocracia na Inglaterra”, franziu as sobrancelhas, cruzou
as mãos sobre o colo e assumiu uma expressão sofredora.
Gertrude, rosada, envolta em pele para proteger-se do vento
frio do outono, entrou na pequena sala de estar como num
cenário de explosões, confusões e desastre. François gritava
estridentemente e Florabelle alternadamente batia nele e
tentava acalmá-lo. Embora tivesse 11 anos de idade, François
parecia bem mais moço, por causa do corpo franzino e da
pequena estatura. Mas o rostinho moreno murcho não era
absolutamente infantil, apesar das lágrimas e dos gritos. A
pequena sala de estar ainda não fora arrumada, embora já
fosse quase meio-dia de uma manhã de domingo. As cortinas
também não haviam sido abertas para permitir a entrada do
sol. Velas ardiam nas mesas em desalinho e em cima da
lareira, havia livros, jornais e bugigangas espalhadas por
toda parte, na mais absoluta confusão. Um fogo intenso
ardia por trás da grade polida da lareira, tornando a sala
escura inconfortavelmente quente.

— Ah, é você, Gertrude! — exclamou a mortificada


Florabelle, virando a cabeça para trás e olhando para a
sobrinha. — Pelo amor de Deus, arrume alguma cadeira para
sentar! Mas que hora para aparecer! Se tivesse avisado!
Houve algum problema? Peço que perdoe a confusão, com
François e tudo o mais. Ele se recusa a comer com os
pequenos porque acha que já está muito crescido agora. E
começou a chutar as canelas da Srta. Callahan! Sente-se logo,
Gertrude, e não fique com essa cara de desorientada. Esse
casaco de pele de foca que está usando é novo? Fica muito
bem nele. Quer tomar um café? O major e eu íamos tomar
um café, mas ele saiu para verificar como está a nova égua...
François! Quer parar de puxar as minhas fitas?

E Florabelle arrematou com uma sonora bofetada no filho.


François reagiu prontamente com um pontapé e um grito
estridente. A mãe exausta desatou a chorar. Florabelle
parecia extremamente jovem em seu penhoar rosa, os
cabelos louros cacheados caindo sobre os ombros roliços. O
rosto, embora irritado naquele momento, era corado e
viçoso, os olhos azuis tão puros quanto os de uma criança.

— Oh, Deus, tire-o daqui e dê-lhe uma lição! — gritou


Florabelle, totalmente desesperada.

A Srta. Callahan, recebendo assim a autoridade para fazer


o que bem quisesse com François, golpeou-lhe as orelhas
com o maior ardor, dando a impressão de que isso fazia um
grande bem à sua alma. Depois, ela agarrou o braço
esquelético do garoto e arrastou-o para fora da sala, a
espernear e gritar. Os gritos continuaram ressoando, cada
vez mais fracos, enquanto François era arrastado escada
acima, desaparecendo quase que inteiramente, com o
fechamento de uma porta.

— Oh, Deus, já conheceu algum dia uma criança tão


terrível? — gritou Florabelle, enxugando os olhos e
sacudindo a cabeça. — Não posso fazer nada com ele.
Ninguém pode fazer nada com ele, com exceção de Philippe.
O major é um tremendo covarde, sempre encontra um jeito
de escapar quando a confusão começa. Mas ainda não me
disse se o casaco é novo. Não posso dizer que o preto fica
muito bem em você, Trudie, com sua pele pálida e os cabelos
claros. Por que diabo sua mãe não a leva ao Dr. Brewster? Ele
está fazendo milagres em desenvolver mocinhas que são
magras demais, usando ferro e outras coisas. Você dá a
impressão de que está definhando. Aceita um café?

— Não, obrigada, Tia Florrie — respondeu Gertrude, com


sua voz suave. — Onde está Philippe?

— Philippe? Ele está no estábulo com o major. A nova


égua não está passando muito bem. Ela está prestes a parir
— arrematou a franca Florabelle, que achava inadmissível a
reticência na presença de moças solteiras.

O sol desaparecera, levando junto todas as tonalidades


marrons, douradas e vermelhas, deixando para trás uma
terra desolada e desprovida de cor. Um silêncio opressivo
pairava por toda parte; quando um cavalo relinchava ou um
cachorro latia, os sons assumiam uma qualidade irreal, como
se fosse um sonho. A casa e o estábulo pareciam cinzentos e
insubstanciais, o terreno exibia uma camada branca e
rachada de geada, estalando sob os pés. Casas e árvores a
distância eram como sombras mais escuras pairando numa
vaga neblina. As árvores mais próximas mostravam galhos
desfolhados e retorcidos, pintados com o brilho da geada. O
ar estava frio e também úmido, a respiração flutuava diante
da pessoa como uma pequena nuvem.

Gertrude correu sobre a terra congelada, as botinas


pretas, pequenas e estreitas, deixando uma trilha branca. Ela
suspendia a saia vermelha enquanto corria, o casaco
enfunado, os cabelos soltos esvoaçando em torno do rosto
ardente. Deu uma olhada no galpão em que ficava a
carruagem, mas não havia ninguém ali. Ouviu a voz de
Philippe numa discussão amigável com um cavalariço e foi
para o estábulo. Encontrou-o ali, mostrando a um cavalariço
recentemente contratado a maneira certa de limpar um
cavalo. Ele estava sem casaco e sem chapéu, as mangas da
camisa branca enroladas, rascando o cavalo com vigor. O
empregado estava parado ao lado, sem fazer nada.
Observando com um interesse divertido.

— Philippe! — gritou Gertrude, entrando no estábulo.

O rapaz virou-se rapidamente. Ao avistar Gertrude, o


rosto fino animou-se, com a maior alegria.

— Trudie!

Ele largou a rascadeira, pegou as mãos de Gertrude e


contemplou-a com delícia e espanto. O cavalariço, muito
interessado agora, ficou observando a cena, boquiaberto.

Os dois saíram, foram para trás do estábulo, onde podiam


ficar a sós, cercados apenas pelo desolado jardim de outono.
Abraçaram-se imediatamente. Philippe comprimiu as palmas
quentes contra as faces de Gertrude, contemplou-a com uma
expressão apaixonada, beijou-lhe ternamente os lábios
entreabertos. Não puderam falar por algum tempo; podiam
apenas se abraçar, sorrir, apertar. Um grande contentamento
e felicidade se concentrava neles, envolvia-os. Os olhos de
Philippe, geralmente muito escuros, eram agora de um
castanho profundo e brilhante, transbordando de ternura.
Ele apertava Gertrude quase violentamente.

— Meu amor, meu amor... — sussurrou Philippe,


levantando o queixo de Gertrude a fim de poder beijá-la,
interminavelmente.

— Oh, Philippe, querido, tenho uma notícia tão boa! —


Gertrude conseguiu finalmente balbuciar, depois de alguns
minutos, começando a chorar e rindo através das lágrimas.
— Papai chamou-me à biblioteca ontem à noite. E quer saber
o que ele disse? Falou que se você e eu chegarmos à
conclusão de que ainda nos amamos, daqui a três meses,
poderemos casar com o consentimento dele! Não é
maravilhoso? Ah, nunca me senti tão feliz em toda a minha
vida!

Philippe ficou atônito, transbordando de alegria. Afastou


Gertrude um pouco, a fim de poder fitá-la, a expressão ainda
um pouco incrédula.

— É mesmo possível? Ele falou sério? Oh, Gertrude,


graças a Deus! Eu... eu mal posso acreditar! Tudo está se
resolvendo, depois de todas as nossas preocupações. Não me
parece certo que as coisas aconteçam com tanta facilidade.
Pode compreender como seremos felizes, Trudie, planejando
abertamente o nosso casamento, esperando só mais um
pouco, depois de tantos anos...

Ele parou de falar abruptamente. Pensou por um


momento e depois acrescentou, a voz um pouco tensa:

— Parece fácil demais. De repente, parece... tenebroso. As


coisas não podem acontecer assim. Não quando estão
relacionadas com seu pai. — O medo e a apreensão
estampou-se no rosto de Gertrude, enquanto Philippe
arrematava: — Perdoe, meu amor, mas isso não é típico de
seu pai. Ele estava mais do que determinado a casá-la com
Paul. Não desistiria tão facilmente. Pode compreender isso,
não é mesmo?

-Claro que posso, Philippe! E ele disse isso. Oh, agora


você me assustou!
Já nervosa demais, Gertrude recomeçou a chorar. Os
ombros frágeis se convulsionaram, ela fitava o namorado
angustiada, aterrorizada. Philippe ficou imediatamente
transtornado, invadido pelo remorso,

— Trudie, querida, perdoe-me. Como pude dizer uma


coisa assim? Foi... horrível da minha parte. Mas aconteceu
tão de repente. Na noite de segunda-feira, quando seu pai e
sua mãe nos visitaram, ele lançou-me um olhar que gelou
meu sangue. E tudo o que disse naquela noite parecia
dirigido a mim, com uma tremenda carga de ódio. Ele pode
ser o mais sórdido dos homens. Passou a noite a falar
constantemente da superioridade de Paul sobre todos os
outros rapazes de Windsor, insinuou o que faria por ele,
desdenhou indiretamente de mim, a tal ponto que a pobre
mamãe desconfiou que havia alguma coisa por trás de suas
palavras. Fui ficando cada vez mais angustiado, Trudie, por
sua causa. Vendo a maneira como ele me odiava, lembrei do
que uma velha freira me disse quando eu era garoto... que o
ódio é um veneno que pode fazer mal à pessoa odiada, é
uma espécie de raio que pode queimar o sangue. Fiquei
realmente amedrontado, dominado por um desespero total.
Percebi que ele julgava que eu estava me interpondo no
caminho de Paul e que faria qualquer coisa para ajudar seu
predileto. E agora, inesperadamente, você me diz que ele
mudou de ideia, está disposto a permitir nosso casamento...

— Mas ele está mesmo, Philippe!

O grito veemente de Gertrude visava tranquilizar tanto a


si mesma como a Philippe, pois uma cinta gelada parecia
apertar seu coração, estrangulando-o.

— Foi o que ele falou. E não se pode enganar sobre o que


papai diz. Ele nunca é ambíguo. Sempre tenciona fazer o que
diz. Além do mais, papai jamais me magoaria com uma
mentira. Ele... ele foi gentil quando me falou, beijou-me.
Parecia um pouco triste, quando chorei e ri ao mesmo
tempo. E depois fiquei tão emocionada e agradecida a papai
que beijei-lhe a mão... que me enlaçava o pescoço... ele teve
um sobressalto. Papai beijou-me em retribuição e disse: “Não
se esqueça de que eu sempre quis a sua verdadeira
felicidade, Trudie, minha querida. Não se esqueça disso, o
que quer que possa acontecer. Não importa o que você possa
pensar, a sua felicidade é a coisa mais importante para
mim.”

— Simplesmente não parece possível... — murmurou


Philippe, aturdido.

Ele contemplou o rosto pálido e angustiado de Gertrude, a


boca ansiosa, sentiu-se invadido pela ternura e remorso.

— Estou sempre dizendo a coisa errada, não é mesmo,


meu amor? Sempre hesito em aceitar as coisas depressa
demais. É o francês que existe em mim. Mas acredito agora,
tenho certeza de que tudo vai dar certo.

Philippe levantou as mãos de Gertrude (Mas como estão


geladas!, pensou ele) e beijou-as. Ela comprimiu as mãos
contra os lábios dele, como se quisesse assim extrair um
pouco de calor para o seu corpo trêmulo. E sorriu
debilmente.

— Está tudo bem, Philippe. Por favor, acredite nisso! — Os


olhos dela se arregalaram, tornaram-se subitamente tensos. -
Se não fosse verdade, eu morreria! Simplesmente morreria!

Na biblioteca de sua casa, Ernest andava de um lado para


outro, inquieto, sombrio. Não conseguia descansar. Parou
por um instante, mas logo recomeçou a andar. A porta
grande abriu-se silenciosamente e May entrou na sala. Ernest
fitou-a com uma expressão soturna, sem dizer nada. May
ficou observando-o em silêncio por um longo momento. E
quando finalmente falou, foi numa voz calma, mas incisiva:

— Estou casada com você há 23 anos, Ernest, e nada sei a


seu respeito. Nunca adivinhei o que você estava pensando,
nem mesmo um único e solitário pensamento. Trudie foi
procurar-me ontem à noite e contou o que você lhe disse. A
pobre coitada estava quase louca de alegria.

Ernest virou as costas à mulher, olhando pela janela. May


deu um passo para frente, as mãos cerradas. Havia uma
estranha expressão em seu rosto de meia-idade, que ainda
conservava as covinhas da mocidade.

— Ernest, pensei que tivesse feito tudo o que podia


quando tranquei a porta do meu quarto para você. Mas sei
agora que posso fazer algo mais. — A voz dela alteou-se,
ficou ameaçadora. — Se magoar Gertrude, Ernest, se fizer
com que ela sofra, eu vou deixá-lo. O mesmo teto jamais
voltará a nos abrigar. Ou você deixa essa casa, que me
pertence, ou eu deixarei.

Quando ele finalmente virou-se, May já tinha


desaparecido.

Ernest tornou a pegar o jornal que estivera lendo. Havia


uma pequena notícia importante na primeira página: ‘Temos
o prazer de comunicar a nossos leitores que o Bispo Aloysius
Dominick, da diocese de Filadélfia da Igreja Católica
Romana, deverá visitar nossa cidade nos próximos dias. Ele é
bem lembrado e amado por nossos leitores católicos, assim
como pelos leitores protestantes, que devem recordá-lo
como o Padre Dominick, pastor da Igreja da Anunciação,
nesta cidade.”
CAPÍTULO LXII
Florabelle Norwood ficou extremamente indignada
quando Ernest tentou convencê-la com a maior veemência de
que não havia realmente um noivado formal entre Gertrude e
o filho dela. Haveria um período experimental de três meses,
em que os jovens deveriam analisar todos os aspectos da
situação, manter um amplo relacionamento com outras
moças e rapazes que conhecessem, julgarem as respectivas
qualidades objetivamente. Não deveriam se monopolizar
com exclusividade, mas comparecer a todas as festas a que
fossem convidados, onde se encontrariam com pessoas de
sua idade. Também deveriam manter, pelo menos em
público, um comportamento apenas de primos.

Florabelle declarou-se insultada. Foi somente depois de


uma argumentação prolongada, gentil e tolerante do Major
Norwood que ela finalmente reconheceu que Ernest podia
estar demonstrando bom senso ao insistir em tal esquema.

— No final das contas, é possível que Ernest esteja certo


ao dizer que Philippe talvez seja jovem demais para saber
direito o que pensa — admitiu Florabelle. — Os rapazes são
sempre mais imaturos do que as moças. É verdade que
passei a amar Trudie como filha e não posso imaginar
qualquer outra moça para o meu Philippe. Trudie até que é
passável. Mais um pouco de carne aqui e ali, roupas mais
alegres (a mãe a veste como se fosse uma solteirona), bastará
isso para torná-la mais atraente. É claro que ela nunca será
linda, com aquela pele e os cabelos sem qualquer lustro, os
ombros magros e aqueles seus gestos bruscos. Mas, com o
tempo, ela pode se tornar fascinante, como acontece com
muitas mulheres feias.
Ernest exigiu que a filha cumprisse rigorosamente a sua
parte no acordo. Ele se sentiria menos inquieto se Gertrude
demonstrasse alguma resistência. Mas ela obedeceu-lhe com
tanta animação e alegria que ele passou a evitá-la, exibindo
uma expressão contrariada. Gertrude mostrava-se amistosa e
alegre com Paul, a quem Ernest pusera a par de seu plano.
Acompanhava-o a muitas das festas de início de inverno,
oferecidas pelos amigos. Paul fora advertido pelo tio a não
falar de casamento ou sequer de afeição a Gertrude, mas
mostrar-se sempre encantador e gentil, sem nada exigir, mas
estando sempre por perto.

— Em outras palavras, palavras um tanto antiquadas,


trate de cortejar a menina — disse Ernest.

Paul, que tinha a astúcia do verdadeiro amor, seguiu as


instruções. Gertrude descobriu, espantada, que Paul não era
de todo ruim, sendo até muitas vezes um companheiro
agradável e interessante. Ele mostrava-se sempre simpático,
sem nada exigir, ao mesmo tempo em que mantinha uma
independência viril, que o impedia de ser subserviente e
fazia com que Gertrude o respeitasse. Até então, Paul
impusera ou tentara impor a Gertrude todas as suas opiniões
e convicções. Agora, no entanto, ele escutava, descobrindo
como era maravilhoso e esclarecedor ouvir a mulher amada
falar livremente, sem qualquer reticência ou temor. A
gentileza artificial de Paul tornou-se sincera, ele tratou de
desenvolver seu pequeno senso de humor, chegou mesmo a
fazer alguns comentários espirituosos, que Gertrude achou
divertidos. Como Ernest limitara seus encontros com
Philippe a dois ou três por semana, ela passaria horas vazias
e solitárias, pensando nele, se não fosse pelas visitas
aparentemente casuais de Paul. Depois de um dia comprido,
insatisfeito e solitário, Gertrude sentia-se surpresa e feliz
com o prazer que experimentava quando Paul a visitava
‘inesperadamente’, ao cair da tarde, com sugestões
excitantes sobre teatros, passeios, reuniões informais. As
sugestões eram sempre espontâneas, pois Paul abandonara a
sua antiga atitude possessiva e exigente. Quando
compareciam juntos a bailes nas casas de amigos, Paul
tomava a precaução de não convidá-la para dançar mais que
umas poucas vezes, deixando Gertrude fazer o que achasse
melhor no resto do tempo. Havia ocasiões em que ela só o
vislumbrava a distância, flertando com outras moças,
durante a noite inteira.

Por uma ou duas vezes, meio maliciosamente, meio a


pedir desculpas, Gertrude referiu-se de passagem a seu amor
por Philippe. Paul parecia compreensivo, fazendo um
comentário jovial e tratando de mudar de assunto. Dava a
impressão de estar inteiramente indiferente. Gertrude
chegou a comentar com os pais:

— É mais do que evidente que Paul está apaixonado por


Belinda Lansbury. Fica dançando o tempo todo com ela, em
todas as festas.

— Ele podia arrumar coisa pior do que a Srta. Belinda —


disse Ernest.

Mas May não falou nada. Limitava-se a observar. E


enquanto observava, uma suspeita terrível começou a se
avolumar: a de que o marido estava planejando alguma
coisa, em conluio com Paul. Não tinha a menor ideia da
trama, mas estava alerta, apreensiva, ativa. Mas dizia a si
mesma que era como observar uma floresta escura, sem
saber por trás de que árvore o inimigo estava escondido.

Enquanto isso, ela própria tinha outras preocupações. As


cartas que Godfrey remetia de Paris estavam se tomando
cada vez mais escassas e as poucas que chegavam eram
constrangidas e incoerentes. Às vezes, ele preenchia páginas
inteiras com garantias veementes de seu amor pela mãe,
promessas ardentes de que não a desapontaria e afirmações
de que tinha certeza de que ela sempre o ‘compreenderia’. A
carta seguinte era curta e seca, apenas agradecendo um
cheque, comentando o tempo ou repetindo que ele tentaria
aparecer em casa no Natal. May sentia novamente que estava
cercada por uma selva escura, totalmente confusa, mas
consciente de ameaças que pairavam no ar. Felizmente
Reginald mandava boas notícias para casa, embora
reservadas. Suas cartas eram sempre formais e corretas, mas
destituídas de qualquer animação. Ele jamais mencionava
amigos e era evidente que não tinha nenhum, mesmo
naquela alegre e sociável universidade. Jamais esquecia de
expressar seu amor por cada pessoa da família,
individualmente.

— Um sentimentalismo barato — comentava Ernest,


desdenhosamente.

Guy escrevia cartas alegres e exuberantes, quase sempre


convencendo a mãe a enviar-lhe pequenas quantias extras.
Ele era espirituoso e jovial. May, que ainda tinha a maior
consideração pelo riso e todas as virtudes inerentes, julgava-
o o mais inteligente de seus filhos. Tinha a firme convicção,
talvez com razão, de que nenhuma pessoa dotada de senso
de humor pode ser uma tola, enquanto a maioria das pessoas
que não o possuíam eram tolas e perigosas para a sociedade.
Contudo, ela gostaria de ter alguns relatórios favoráveis
sobre os estudos de Guy, ao invés dos bilhetes formais do
diretor da escola, quando menos não fosse para apaziguar
Ernest, que considerava Guy “um vadio imprestável”. Ela
também estava preocupada com Joey, que era um garoto
reservado, embora não fosse dissimulado. Era evidente que o
amor dele pela mãe era indiferente e que idolatrava o pai.
Joey olhava para a mãe, quando ela falava sobre os assuntos
mais inconsequentes, com uma expressão maliciosa e um
ligeiro sorriso desdenhoso. Nada tinha a dizer a May,
procurava evitá-la. Grande e corpulento, de olhos pequenos e
irrequietos, obstinado e implacável, mal-humorado e
sombrio, ele causava muitas horas de angústia à mãe. Era
evidente que julgava a mãe trivial e sem qualquer
importância, achava pueris as preleções de May a respeito do
dinheiro, que era uma coisa boa, mas não o supremo bem do
mundo. Joey ignorava deliberadamente as pessoas da
família, jamais indagando sobre os ausentes nem
procurando se mostrar amável com a irmã. Só se animava
quando o pai estava presente. Era cada vez mais óbvio que
ele realmente odiava Gertrude, por causa da afeição de
Gertrude por ela. Havia ocasiões em que ficava muitos dias
sem falar com a irmã, embora cruzassem nos corredores e se
encontrassem à mesa.

Algumas vezes, suspirando, May pensava: “Ah, como eu


ficaria feliz se ao menos Godfrey estivesse aqui! Ou Godfrey
e Guy. Mas certamente me sentiria ainda mais feliz se jamais
tivesse tido qualquer filho! Nenhuma de nós, Amy,
Florabelle, Dorcas e eu, encontramos qualquer alegria em
nossos filhos. Apesar do que dizem os sentimentalistas, as
crianças não são qualquer conforto no sofrimento,
companhia na solidão ou esperança para o futuro. Carne de
nossa carne, os filhos são quase sempre mais estranhos para
nós do que qualquer estranho de verdade. E acabam
tornando-se nossos inimigos.”

Mas, sabendo disso, ela não podia libertar-se de suas


ansiedades, amor, preocupação e profunda apreensão por
todos os seus filhos.
CAPÍTULO LXXIII
Faltavam dois dias para o Dia de Ação de Graças. O tempo
estava inclemente, nevando um dia, caindo granizo no
seguinte, chovendo no outro. Parecia que o sol não brilhava
há semanas. Todos estavam deprimidos pelo tempo horrível,
mostrando-se sombrios e apáticos.

May, que esperava uma visita de Florabelle, vestira um


vestido preto de lã, guarnecido com veludo preto. Os cabelos
grisalhos, com algumas mechas ainda avermelhadas,
estavam empilhados no alto da cabeça e frisados na testa, de
acordo com a última moda. Usava as granadas da avó
engastadas em ouro velho, a luz do fogo faiscando em suas
orelhas e garganta. O rosto rechonchudo exibia uma
expressão jovial, de serena cordialidade, a carne um tanto
flácida no queixo e nas bochechas. Ela considerara seu dever
para com a família vestir-se da melhor maneira possível, com
joias e levemente perfumada, por causa do tempo inóspito.

— Vocês todos estão horríveis — queixava-se ao marido


sombrio, à filha apática e ao filho soturno. — E deixam-me o
encargo de impedir que esta casa fique parecendo um
necrotério.

Joey estava trabalhando em alguma coisa num sótão


distante e Gertrude comentou, um tanto desdenhosamente:

— Provavelmente está contando as suas economias de


avarento.

Gertrude, num vestido verde-escuro de veludo, que não


chegava a animar seu rosto lívido, estava sentada perto da
janela, de onde podia avistar o caminho encharcado,
apinhado de folhas mortas. Tudo parecia chorar, o céu, a
terra encharcada, as árvores desfolhadas.

— Deus do céu, Trudie, como você está desagradável hoje


— disse May, empenhada em seu crochê. — Afaste-se dessa
janela fria e venha sentar ao lado deste fogo delicioso. Está
parecendo muito deprimida e trágica.

— Pois eu me sinto trágica — disse Gertrude, angustiada.

May sorriu. Gertrude não viu o sorriso, caso contrário


ficaria surpresa com sua ironia, tristeza e amargura.

— As tragédias não são coisas externas e apartadas da


vida, Trudie. Fazem parte da vida, assim como os prazeres.
E, na maioria das vezes, nem mesmo desarticulam a vida por
muito tempo. Acabamos aprendendo a aceitar a tragédia
como uma hóspede inevitável e permanente, concedendo-lhe
um lugar em nossa vida, ajustando-nos, fazendo concessões.
E depois seguimos em frente, calmamente, acostumados ao
que outrora nos parecia impossível de suportar.

— Está me deixando desesperada com essa conversa


resignada! — gritou Gertrude, com a maior veemência. — É
tão... tão apática... tão terrivelmente velha! Como se a pessoa
não quisesse mais lutar, por ser covarde ou velha demais. Eu
jamais aceitarei a tragédia. Prefiro morrer lutando. Não vou
conceder-lhe um lugar ou sequer admitir que possa existir
em minha vida...

Ela parou de falar abruptamente, o rosto dominado pelo


desespero e medo.

— Mas como você está desnecessariamente veemente,


Trudie! — May olhou com suavidade para a filha tão nervosa.
— E absolutamente ignorante. Imagino que está assim só
porque Philippe não a visitou ontem à noite. Apenas porque
ele deixou de aparecer numa noite de quarta-feira,
certamente por causa da terrível tempestade de granizo que
tivemos, muito perigosa para carruagens e cavalos, até
mesmo para uma pessoa andando a pé, você começa a se
comportar como uma rainha de tragédia. Mais alguns
minutos e sua Tia Florabelle estará aqui, com uma explicação
perfeitamente aceitável, se é que ela se lembrará disso.
Afinal, você deve lembrar-se como estava ontem à noite.
Tenho certeza de que não haveria de querer que seu pior
inimigo saísse com um tempo daqueles.

Como que impelida a procurar algum conforto, Gertrude


aproximou-se do fogo. Parecia bastante abalada e havia
lágrimas humilhadas em seus olhos, ao fitar a mãe, ansiosa.

— Talvez eu seja mesmo uma tola, mamãe. Talvez tenha


toda razão. Claro que o tempo estava tão horrível que
Philippe decidiu ficar em casa, por ter mais bom senso do
que eu. — Ela retorceu as mãos nervosamente. — Mas como
tenho sentido medo ultimamente! É como se uma nuvem
escura pairasse sobre mim. Como se esperasse que alguma
coisa terrível aconteça, algo que matará por dentro, mesmo
que eu não morra por fora.

May levantou a cabeça abruptamente e contemplou a


filha. Depois de um momento, ela disse, gentil, embora
sentisse a garganta ressequida:

— Não deve dar rédea solta à imaginação, querida. O


tempo tem andado tão ruim que todos nos sentimos
deprimidos. Cada vez que ouço a campainha da porta, fico
convencida que é a notícia de algum desastre. Mas, procuro
me animar. — Ela sorriu um tanto artificialmente, antes de
acrescentar: — É nosso dever não nos deixarmos deprimir
pelo tempo. Um dever que temos para com aqueles que não
têm qualquer consideração pelos bons modos.
Gertrude acomodou o corpo franzino numa cadeira
grande, perto do fogo. Estremeceu visivelmente, empurrou
os cabelos para trás. E murmurou, com um débil sorriso:

— Mamãe querida, acredita que os bons modos superam


todos os problemas do mundo, não é mesmo?

— Tenho certeza de que tomam os males um pouco mais


suportáveis — respondeu May, rindo. — Mas esse barulho lá
fora não é de rodas de carruagem?

Pouco depois, Florabelle entrou na sala, acompanhada


pelo encarquilhado François, que mais parecia um gnomo.
Ela era uma verdadeira explosão de fitas e peles, pulseiras,
correntes e cachos, as mãos enluvadas se agitando
nervosamente, exclamações ruidosas, exalando perfume.

— Mas que tempo horrível! Oh, Trudie querida, dê um


beijo em sua tia! May, você parece uma dama antiga com
esse vestido preto... tão distinta! Eu trouxe François... você
se importa? Espero que não, pois eu não poderia sair de casa
sem ele. Ele é terrível, chorando e gritando, fingindo uma
súbita afeição por mim, quando no fundo apenas não queria
ficar com Chandler e Betsy. Mas não posso fazer nada com
ele!

Florabelle ajeitou o garoto silencioso, pondo as roupas no


lugar, enquanto acrescentava:

— Fique arrumado e suba para fazer companhia a seu


primo Joey. Onde está Joey, May?

— No sótão. Mas ele está de mau hoje, Florabelle. Não sei


se o pequeno Frank será bem recebido. Mas suba de qualquer
maneira, meu querido, e descubra pessoalmente. E se por
acaso o seu primo mostrar-se grosseiro, desça e venha ficar
conosco.

Ela pôs a mão no ombro do garoto por um momento,


gentilmente. Ele sorriu, o seu sorriso estranho e torto.
Gostava muito de May, que sentia a maior compaixão por ele.

Gemendo um pouco, Florabelle deixou que a criada


pegasse seu casaco de astracã, o regalo para as mãos e o
chapéu. Usava um vestido azul-claro muito alegre, cheio de
babados, com rendas nos punhos e no decote profundo. Os
cachos caíam em torno das faces, bastante coradas. Ao se
mexer, tilintava debilmente, as pulseiras chocalhavam. Agora
que o casaco não mais a cobria, exalava um perfume quase
em ondas visíveis. Parou diante do fogo, sorrindo e
esfregando as mãos.

— Está usando um vestido muito bonito — comentou


May. — Não o conhecia. É novo? E combina perfeitamente
com os seus cabelos, olhos e pele.

— Gosto de cores alegres — disse Florabelle,


complacente, sacudindo um babado. — Sempre animam a
gente. Não posso compreender por que Trudie usa essas
roupas insípidas de solteirona.

— Talvez seja porque me sinto uma velha solteirona


insípida — disse Gertrude, com débil sorriso.

— Sempre achei que você era uma solteirona nata — disse


Florabelle, francamente. — Nunca teve tantos pretendentes
quanto eu na sua idade. A casa parecia enxamear de rapazes
sempre que eu chegava da escola. Papai costumava dizer que
invariavelmente tropeçava em algum rapaz quando se virava
bruscamente. Não parava de dançar nos bailes, a ponto de
me sentir sufocada. Não podia usar um vestido de baile mais
que uma ou duas vezes. Ficava completamente estragado
depois disso. E os irmãos das minhas colegas de escola eram
igualmente impossíveis. A diretora vivia dizendo que, por
causa das visitas dos irmãos, a escola mais parecia para
rapazes do que para moças!

Ela riu jovialmente e sentou-se. E prontamente voltou a


falar com a maior animação:

— Conhece aqueles horríveis Grimshaws, May? Aqueles


de Pittsburgh... os novos-ricos? Pois eles são positivamente
insuportáveis! Arrivistas. Pessoas horríveis, sempre
querendo se meter em tudo. Acham que, só porque
ganharam alguns milhões de dólares naquela horrível
Pittsburgh, podem vir para a nossa pequena Windsor e se
imporem à nossa sociedade exclusiva. Recebi três convites
deles no último mês, mas é claro que ignorei-os. Ninguém
quer manter qualquer relacionamento com essa gente.
Construíram aquela casa horrível em Mayfair, pensando que
poderiam entrar na sociedade, caso se instalassem num
subúrbio elegante. Mas ninguém os recebe nem visita!

— Os pobres coitados devem estar se sentindo muito


solitários — murmurou May.

Ela olhou para a cunhada com uma ironia evidente nos


olhos, que ainda eram capazes de brilhar maliciosamente.

— Solitários? Mas eles merecem, May! Como você ficou


aborrecida! Quem se importa se eles se sentem ou não
solitários? Eles deviam ficar em sua própria classe. Esse é o
problema da América...

— Tem razão — comentou May, serenamente. — Há


mesmo muitas famílias estranhas entrando na sociedade
atualmente. Lembro como a nossa sociedade era fechada
quando eu era pequena. Não permitíamos que famílias
enriquecidas recentemente entrassem em nossa casa. Nem
gente do comércio. O que era uma tolice. E uma ignorância.
Devíamos ser um tanto cômicos, com nossos ares de
importância e exclusivismo.

— Como você fala, May! — disse Florabelle, impaciente. —


Mas a verdade é que não podemos de jeito nenhum permitir
que gente sem classe entre na sociedade!

Ela continuou a falar com a maior animação, finalmente


reduzindo a audiência ao silêncio completo. May trabalhava
no crochê placidamente, absorvida em seus pensamentos,
retornando ocasionalmente à superfície para sorrir divertida
para Florabelle e murmurar alguma coisa ininteligível.
Gertrude simplesmente esperava, as mãos cruzadas sobre os
joelhos, as veias pulsando na garganta. Sentia-se mais
tranquila agora. Se houvesse alguma coisa errada com
Philippe, a informação há muito que já teria aflorado, em
meio àquela torrente de palavras. Ela ficou olhando
fixamente para o fogo, pensativa.

De repente, o som de um nome a fez empertigar-se


abruptamente na cadeira.

— François é um garoto muito esquisito — Florabelle


estava suspirando. — Penso às vezes que ele jamais será
capaz de fazer coisas, como Philippe e Leon. Mas nenhum
dos meus filhos é muito forte, com exceção de Chandler e
Betsy. Tenho às vezes a impressão de que o meu querido
Raoul não viveria por muito tempo, mesmo que não tivesse
ido para a guerra. O tempo ruim jamais me incomoda, mas
Philippe estava se sentindo tão mal hoje que nem mesmo
desceu para o desjejum ou para o almoço.

— Philippe está doente?


A voz de Gertrude soava como se tivesse sido espremida
da garganta, com o maior sofrimento. May abaixou o
trabalho de crochê, com uma expressão preocupada.

Florabelle revirou os olhos, numa expressão de


desespero.

— Doente? Acho que sim. Um pequeno resfriado, mas


parece que o deixa doente por muitos dias, invariavelmente.
Mas bem que o avisei ontem à noite, sabendo que ele não é
muito forte, para não sair de casa com aquela tempestade de
granizo.

Gertrude não podia falar, limitando-se a olhar aturdida


para a tia.

May inclinou-se sobre a agulha, como se estivesse


concentrada no trabalho, enquanto dizia:

— Estávamos esperando a visita de Philippe ontem à


noite, mas chegamos à conclusão de que ele não veio por
causa do tempo. Foi uma tolice dele sair de casa. A menos
que se tratasse de alguma coisa muito importante.

As últimas palavras dela soaram como uma pergunta.


Florabelle respondeu prontamente, a voz um pouco
estridente de desdém:

— Importante? Pois não consideramos absolutamente


importante! É uma pena que eu tenha cedido ao querido
Raoul e deixado que as crianças fossem batizadas como
papistas. Mas eu era muito jovem na ocasião e estava
apaixonada demais. Ninguém jamais poderá imaginar o
quanto amei Raoul. Ele era a minha vida! Quando recebi
aquele telegrama horrível, pensei que também morreria.
Tudo ficou preto e disse a mim mesma: “Estou morrendo.
Raoul está morto e eu também estou morrendo.” E senti-me
contente por isso. Mas dizem que o tempo cura todas as
coisas e não sou infeliz agora. O major é um cavalheiro
extraordinário. Nenhuma mulher poderia ter um marido
melhor, May. Ele é sempre atencioso, gentil, protetor. E me
trata como uma filha! Claro que isso é uma tolice, mas não
posso deixar de reconhecer...

May interrompeu-a, com uma voz gentil, mas incisiva:

— O que o fato das crianças terem sido batizadas como


católicas tem a ver com a saída de Philippe, ontem à noite,
sob a tempestade de granizo, o que fez com que pegasse um
resfriado?

Florabelle deu a impressão de que sofrera um choque.


Piscou aturdida para May, a boca se entreabrindo, em seu
jeito infantil e um tanto estúpido.

— Como? Sair sob a tempestade de granizo? Santo Deus,


May, como você pula bruscamente de um assunto para outro!
É muito desconcertante. Sempre achei que se deve levar uma
conversa até o fim, antes de passar para outro assunto. Sair
sob a tempestade de granizo? Ah, sim... Eu gostaria que me
deixasse acabar o que estava dizendo a respeito de Philippe.
Como você provavelmente sabe, aquele horrível padre ou
bispo que vivia antigamente em Windsor, mas agora vive em
Filadélfia... e só Deus sabe por que ele tinha de voltar para
cá, mesmo que apenas para uma visita, depois de viver em
Filadélfia... está hospedado com o atual padre, na Igreja da
Anunciação. Ele era um grande amigo da família. O nome
dele não era Dominick? Foi ele quem me casou com Raoul e
batizou as crianças. Achei tudo uma tolice, mas estava
apaixonada demais! Pois ele está aqui e escreveu-me um
bilhete muito polido... um bilhete realmente cortês e
elegante... Nunca pensei que os padres aprendessem a
linguagem dos cavalheiros, mas este deve ser excepcional.
Ele também mencionou que há muitos anos interessara-se
por Philippe e que gostaria de tomar a vê-lo, o mais breve
possível. Sugeriu que Philippe fosse visita-lo ontem à noite,
dizendo que era muito importante. Mas o que ele poderia
dizer a Philippe que fosse importante? Philippe era muito
devoto, sempre correndo para a igreja aos domingos... para a
missa ou qualquer outra coisa horrível no gênero, embora eu
não saiba exatamente o que são as missas. Ele também fazia
uma coisa a que chamava de novenas... uma tolice rematada!
Certa ocasião, ele chegou mesmo a dizer que queria tornar-
se padre. É uma pena que papai não tenha vivido para ouvir
um absurdo desses! E é de admirar que não tenha se revirado
na sepultura. Papai odiava profundamente os papistas. Mas
Philippe acabou superando essa tolice.

Ela fez uma pausa, olhando maliciosamente para


Gertrude.

— Acho que devemos agradecer à querida Trudie por isso!


Mas como você está pálida, menina! Não aprovo esse ruge
imoral que tantas mulheres estão usando atualmente, mas
acho que apenas um pouco... Espero que tenha bastante
saúde, Trudie. Não gostaria que Philippe tivesse de aguentar
uma mulher doente.

— Quer dizer que Philippe foi procurar o Bispo Dominick


ontem à noite, sob uma tempestade de granizo ~ disse May,
a voz ainda clara e incisiva.

Para si mesma, ela acrescentou: Ah, que Deus nunca o


perdoe por isso, Ernest Barbour! Que Deus nunca o perdoe!

— Isso mesmo. Por favor, não me interrompa mais, May


querida. É muito aborrecido. Philippe saiu de casa, apesar do
major e eu termos rido dele, advertido para que ficasse em
casa com aquele tempo. Mas ele estava decidido. E já parecia
estar se sentindo mal desde então, muito pálido, meio
transtornado. Comentei sua aparência e disse que ele não
devia sair com um tempo assim. Mas ele não me deu
ouvidos. Passou muito tempo fora de casa. Fiquei esperando
acordada. E quando ele finalmente voltou, estava pior do que
antes. Completamente ofegante, bastante perturbado.
Percebi imediatamente que pegara um resfriado. Mal
conseguia respirar. E quando cheguei perto, acenou com a
mão para que eu me afastasse, incapaz de falar, depois subiu
correndo e trancou-se no quarto. Bati uma porção de vezes
na porta, até que ele finalmente resmungou: “Mamãe, quer
fazer o favor de me deixar em paz por esta noite?” E tive
ainda mais certeza, por sua rouquidão, que ele pegara um
resfriado horrível. O bispo foi mesmo horrível, induzindo o
pobre rapaz a sair de casa com aquela tempestade. Estou
com vontade de enviar-lhe um bilhete, bem delicado, é claro,
mas dizendo o que penso...

Gertrude se levantou. Olhou ao redor, desorientada e


frenética, como se estivesse desesperada.

— Acho que vou subir e verificar como estão Joey e


François, mamãe.

May começou a se levantar, o trabalho de crochê


deslizando do colo para o chão.

— Querida... — disse ela, a palavra soando como um


grito, repleto de compaixão e sofrimento.

Gertrude tornou a olhar ao redor, como se tentasse se


orientar. Levou a mão ao rosto, em seu gesto antigo,
vacilante e patético. Depois, virou-se rapidamente e saiu
correndo da sala. May tornou a sentar-se, a náusea lhe
subindo pela garganta.
Florabelle estava bastante preocupada.

— Trudie está doente, May? Ela não parece muito forte.


Dá a impressão de ser muito frágil e anêmica. Por que não a
leva ao Dr. Brewster? Ou então lhe dá as Pílulas de Blaud?
Dizem que são excelentes... criam um bom sangue vermelho.
É muito necessário para a felicidade conjugal que a mulher
tenha boa saúde. Eu não gostaria que Philippe... Mas você
também parece não estar se sentindo bem, May. Acho que
não tem respirado ar fresco suficiente. O major acredita em
exercícios, mesmo para as mulheres. Ele despreza a ideia de
que não é muito aristocrata ter faces coradas como as
minhas. Costumamos passear durante horas, todos os dias.
Por que você e Trudie também não fazem isso? Ajudaria a
pobre coitada a ter mais resistência e saúde.

E ela continuou a falar interminavelmente. May não


estava mais concentrada no crochê. Estava completamente
imóvel, impassível, olhando para o fogo. A conversa era
como um muro conveniente entre ela e Florabelle,
permitindo-lhe a intimidade que tanto desejava naquele
momento. Por uma ou duas vezes, seus lábios lívidos se
mexeram, como numa imprecação ou num murmúrio
angustiado. Não tinha a menor consciência da hora ou da
presença de qualquer outra pessoa.

Florabelle levantou-se de repente, sempre muito animada.

— Oh, Deus, já são quase cinco horas! Não, May, não se


preocupe com o chá, embora eu deva dizer que você nunca
foi tão esquecida assim antes. Sempre comentei que você
não esqueceria do decoro mesmo no leito de morte. Oh,
Deus, como está ficando escuro! E onde está Trudie? Ela já
saiu da sala há quase uma hora!

O relógio bateu melodiosamente as cinco horas. May


fitou-o, aturdida. Depois levantou-se, com a agilidade de
uma jovem. E sem dizer uma palavra para a espantada
Florabelle, saiu correndo para o vestíbulo, depois de tocar a
campainha para chamar a criada. Encontrou-se com a moça
no vestíbulo.

— Srta. Trudie? — murmurou May, a voz engrolada,


saindo com dificuldade pela garganta fechada.

— Ela saiu, madame — disse a empregada, muito


assustada com a expressão de May. — Mas disse que estava
tudo bem. Pediu para avisar a madame que iria visitar uma
amiga doente. Falou para dizer que madame não precisava se
preocupar.

May agarrou o braço da criada.

— Ela pediu uma carruagem?

— Não, madame. Disse que não era muito longe e não


queria incomodar ninguém.

May baixou a mão bruscamente. Florabelle, curiosa,


estava observando da porta da sala.

— O que aconteceu, May? Você parece tão estranha...

May virou-se e forçou um sorriso aos lábios lívidos.


Dispensou a criada com um aceno de mão.

— Acabei de lembrar de uma coisa — disse ela


calmamente, levando Florabelle de volta ao interior da sala.
— Mas parece que Trudie lembrou antes e foi cuidar do
assunto pessoalmente. — Ela fez uma pausa, franzindo as
sobrancelhas, antes de acrescentar: — É uma surpresa. Ando
tão esquecida ultimamente! É uma sorte ter Trudie por perto
para se lembrar das coisas por mim!

— Uma surpresa? — repetiu Florabelle, jovialmente. —


Uma festa?

— Não exatamente. Acho que você vai saber muito em


breve. Se tudo correr bem. E espero que corra. Trudie não
quis incomodar-nos, pois estávamos conversando tão
animadamente. Trudie tem bons modos. — May sorriu,
olhando afetuosamente para a cunhada. — Mas esse seu
vestido é realmente bonito, Florabelle! Onde foi que o
comprou? Eu deveria ter imaginado que não era um produto
de Windsor. Só pode ser de Paris!

— Custou 75 dólares — disse Florabelle, orgulhosa,


virando-se bem devagar para que May pudesse admirar o
vestido sob todos os ângulos. — Eu sempre digo que
compensa comprar as coisas de boa qualidade.

May mandou chamar François. Ajudou Florabelle, que


continuava a falar sem parar, a vestir o casaco, louvando a
sua excelência. Será que ela nunca mais vai embora?,
pensava May, desesperada, durante todo o tempo. Mas
Florabelle finalmente se foi, num turbilhão de palavras, fitas
e saias, ralhando insistentemente com François, enquanto
deixavam a casa e encaminhavam-se para a carruagem. A
porta fechou-se atrás dela, em meio a uma última confusão
de recados e acenos de mão. May voltou para a sala de estar.
A casa estava mergulhada no silêncio que antecedia o jantar,
embora se pudesse ouvir a distância o barulho da prataria
sendo aprontada. May ouviu também a voz de Joey lá em
cima.

Ela ficou parada ao lado da lareira por um longo tempo,


olhando para o fogo. Levou a mão à testa. Estava fria e
suada. Os músculos do rosto se contraíram convulsivamente.
Em determinado momento, levou a mão ao peito, ofegou
alto. O relógio bateu a meia hora. May continuava no mesmo
lugar. O fogo foi se consumindo, a escuridão na sala
aumentou. Ela não acendeu as velas. O relógio bateu seis
horas. Foi nesse instante que a porta externa se abriu e
Ernest entrou, o capote e o chapéu cobertos de gotas de
cristal.

May saiu para o vestíbulo, a fim de encontrá-lo. Sentia as


pernas rígidas, e geladas. Ernest já ia cumprimentá-la
quando alguma coisa na atitude dela, algo em seu rosto,
revelado à luz fraca do lampião no vestíbulo, fê-lo parar
abruptamente, muito pálido.

Em voz baixa e terrível, entrecortada, May disse:

— Ernest, Florabelle esteve aqui. Contou-nos que Philippe


foi chamado por aquele bispo que está visitando Windsor.

Ela fez uma pausa. Seu esforço para recuperar o fôlego


terminou num gemido. Aproximou-se um passo de Ernest e
ficou imóvel. Ele a fitava como um carrasco.

— Ernest! — A voz de May era um grito, horrível de ouvir.


— O que você fez com a nossa filha? Ela saiu de casa há
horas, depois de ouvir o que Florabelle disse! O que você fez
com a nossa filha, Ernest Barbour?

— Trudie saiu? — balbuciou Ernest, angustiado.

Ele tirou o chapéu. Os cabelos brilharam à luz do


lampião, quase que inteiramente brancos.

— Isso mesmo, ela foi embora! — May segurou-o pelo


capote úmido. — Onde ela está?
Ernest passou o braço em torno dela, convulsivamente.

— Trudie! — murmurou ele, olhando por cima da cabeça


dela. — Oh, Deus, Deus!

May começara a soluçar alto, na maior agonia. Empurrou


o braço de Ernest para o lado e afastou-se dele.

— Não invoque o nome de Deus! — gritou ela. — Não se


atreva a invocar o nome de Deus! Logo você! Vai atrair a
maldição sobre nós se continuar a invocar o nome de Deus!
Logo você... seu monstro!

Ernest ficou imóvel, fitando-a. O rosto dele estava


parcialmente na sombra, mas os olhos se incendiaram. Ele
passou a língua pelos lábios, estendeu as mãos. Depois,
virou-se bruscamente, sem dizer mais nada, abriu a porta da
frente e saiu para a escuridão da noite, a fim de procurar a
filha.
CAPÍTULO LXXIV
A tarde estava escura e nevoenta, o ar terrivelmente
úmido, a chuva fina caía incessantemente. Gertrude, envolta
por um velho pelerine cinzento, grande e surrado, com o
capuz levantado, saiu de casa pela porta dos fundos.
Atravessou o jardim correndo, as botas afundando na lama
amarelada. Roçou nas sebes desfolhadas e a água despejou-
se em cima dela. O pé afundou na lama perto da banheira
dos passarinhos e ela teve de parar por um momento, a fim
de desprendê-lo do atoleiro. Apoiou a mão no mármore frio e
molhado e puxou o pé com toda força. Somente então
percebeu que estava ofegando, que o peito doía a cada
respiração. Apoiou-se na banheira, a cabeça abaixada, como
se estivesse tonta. Os olhos acompanharam a rachadura
irregular no mármore.

— Oh, Deus — disse ela em voz alta, sem qualquer paixão


ou veemência.

Ela deu a volta pelo jardim, desceu a encosta, abriu o


portão de ferro, avermelhado de ferrugem, que dava para a
estrada semi particular que passava abaixo da propriedade.
A casa desaparecera por trás de uma elevação, não havia
mais qualquer perigo de que a percebessem. O vulto envolto
em cinza era agora mais como um fantasma do que como
uma pessoa de carne e osso, enquanto descia
apressadamente para uma das ruas principais de Windsor.
Um carro de aluguel de aparência escabrosa, com um cavalo
desconsolado, estava parado na esquina, o cocheiro
soturnamente encolhido em seu assento, a chuva a despejar-
se sobre ele, escorrendo dos bigodes caídos. Mexeu-se com
uma animação incrédula quando Gertrude aproximou-se
correndo e abriu a porta. Ela entrou e o cocheiro no mesmo
instante sacudiu as rédeas. O cavalo começou a andar,
enquanto o cocheiro gritava:

— Para onde vamos, moça?

— Quaker Terrace, 10 — respondeu Gertrude, inclinando-


se para frente.

Mesmo através do vidro por onde a água escorria


intensamente, o cocheiro podia divisar os olhos dela,
enormes, dilatados. O carro foi avançando aos solavancos
pelas ruas desertas, passando por gramados encharcados,
cobertos de folhas vermelhas e marrons, por casas a
distância, parecendo expostas e ameaçadas. Mal se via
qualquer pessoa e apenas de vez em quando surgia um
guarda-chuva, brilhando na chuva a balançar pela calçada.
Passavam ocasionalmente por uma carruagem, os cavalos
ensopados.

Gertrude estava imóvel no assento, as mãos cruzadas


sobre os joelhos. Olhava fixamente para frente, sem sequer
piscar. A boca era uma linha violeta no rosto extremamente
pálido. O interior do carro recendia a couro velho, poeira e
umidade. Ela jamais esqueceu aquele cheiro fétido.
Preencheu o vazio de sua mente, onde deveria existir
pensamento. Mas não havia absolutamente qualquer
pensamento, mas apenas o vazio que zumbia e o cheiro
horrível do veículo. Umas poucas vezes, ela olhou pela
janela, observando a rua encharcada. Umas poucas vezes,
aspirou o ar bem fundo e prendeu a respiração. Fechou os
olhos e caiu numa espécie de sonho angustiante.

O carro finalmente parou, com um último solavanco.


Estavam diante da casa de Florabelle. Gertrude ajeitou-se no
pelerine, saltou e pagou o cocheiro. Subiu correndo pelo
caminho escorregadio até a casa, bateu na porta. O barulho
ressoou pelo silêncio. Uma criada abriu a porta.

— O Sr. Philippe está em casa? — perguntou Gertrude, em


voz baixa e ofegante.

Ela baixou o capuz para os ombros, a água escorrendo.

— Está, sim, Srta. Gertrude — respondeu a criada,


aturdida. — Mas está doente, em seu quarto. Não quer ser
incomodado. Devo ir avisá-lo de que está aqui?

Gertrude ficou calada por um instante. Depois, sacudiu a


cabeça e disse:

— Pode deixar que eu mesma irei avisá-lo. Não vou


incomodá-lo. Só quero saber como ele está. A mãe dele está
visitando minha mãe e disse que ele está passando bem. Foi
por isso que decidi vir até aqui. Se ele estiver dormindo, não
vou incomodá-lo.

Ela virou-se, levantou a saia encharcada e subiu correndo


a escada para o segundo andar. Um violento tremor
dominou-a quando chegou lá em cima. Sentia-se
terrivelmente gelada. Sem fazer barulho, avançou pelo
corredor escuro até o quarto de Philippe. A porta estava
fechada e reinava um silêncio absoluto no outro lado.

Gertrude pôs a mão na maçaneta e ficou parada assim por


um momento, no escuro, olhando para a porta. Muito tempo
transcorreu. Ela pôde ouvir nitidamente o carrilhão musical
do relógio francês lá embaixo, numa das salas desertas.
Ouviu o barulho de carvão sendo despejado numa lareira por
uma das criadas. Ouviu uma pequena discussão nos
aposentos das crianças, no terceiro andar. Mas não podia
ouvir qualquer barulho por trás da porta do quarto de
Philippe.
Quase sem vontade, ela empurrou a maçaneta,
lentamente. Podia ouvir a batida descompassada do próprio
coração, a pulsação em sua garganta. A porta abriu-se
silenciosamente.

O quarto, onde Gertrude brincara tantas vezes com


Philippe quando ambos eram crianças, estava invadido pelo
crepúsculo. As janelas eram pálidos retângulos na
semiescuridão e ela podia divisar os galhos desfolhados do
olmo lá fora. O quarto inteiro estava imerso nas sombras,
exceto por uma mesinha perto da cama branca. Sobre ela
havia um crucifixo de prata, diante do qual ardia uma vela
pequena, numa xícara vermelha. A luz subia e descia,
iluminando um braço de cadeira, o dourado de um quadro, o
brilho da grade da lareira, diante do fogo baixo.

Mas Gertrude divisou essas coisas apenas como


complementos numa agonia. Pois seus olhos estavam
concentrados em Philippe, ajoelhado diante do altar
improvisado.

Ele estava inteiramente imóvel, o corpo rígido, cabeça


abaixada. Gertrude fechou a porta silenciosamente, depois
de entrar. Correu para Philippe, ajoelhou-se ao lado dele,
segurou-lhe a cabeça nos braços, comprimiu-a contra o seio.
E ali ficou ajoelhada, segurando-o assim, os lábios
encostados na testa de Philippe, os olhos secos. Os dois
jovens abraçavam-se desesperadamente, como se a morte os
ameaçasse.

Philippe finalmente mexeu-se. Gertrude apertou-o com


mais força.

— Não importa, querido, não importa... — sussurrou ela.

Mas ele levantou a cabeça e os dois se fitaram. O rosto de


Philippe parecia ter envelhecido abruptamente, estava agora
murcho, da cor do céu lá fora. A boca estava contraída, havia
manchas vermelhas nos cantos. Uma angústia profunda
emanava de seus olhos, enquanto contemplava a prima.

— Trudie, Trudie, querida...

Ele falava com intenso desespero, a voz arrastada e


rouca, de exaustão e sofrimento.

— Já sei, Philippe, já sei...

— Tenho rezado, Trudie. E rezado muito. Pedindo a Deus


para perdoar-me. Mas não recebo qualquer resposta. O Padre
Dominick... ele disse que era um pecado contra a Igreja, que
nosso casamento não seria um casamento aos olhos da
Igreja. Eu nunca mais poderia tornar a entrar na Igreja.
Perdido. Pecando contra Deus e contra o Espírito Santo. Um
pecado mortal. E arrastando você comigo, Trudie. Cada vez
mais para o fundo. Arruinando-a... quando a amo tanto!

Gertrude estava agora com a cabeça apoiada no ombro


dele, segurando-lhe a mão, fria, sem vida, encostada em seu
peito, como se assim quisesse esquentá-la. E ela olhava
fixamente para o crucifixo e a vela à sua frente. Era jovem e
inexperiente, mas sabia, profundamente e sem necessidade
de palavras, que diante do poder misterioso dos deuses a
fala humana era apenas uma voz perdida no vento, a razão
não passava de um lampião destruído. A humanidade era
impotente contra esse poder, os braços agressivos sacudiam-
se no ar, os olhos nada podiam enxergar. Mas o poder
persistia e o sangue transformava-se em água diante dele. O
amor, triunfante sobre a vida, até mesmo triunfante sobre a
morte, era uma simples tocha apagada.

Mas o que eu sou?, pensou ela. O que eu sou em


comparação com essa tortura que ele está sofrendo?
Enquanto eu estiver aqui, enquanto permanecer em seu
caminho, ele jamais conseguirá superá-la. Se casarmos, ele
nunca será feliz. Poderíamos ser, se aquele padre não o
tivesse chamado, se não tivesse lhe trazido tudo de volta. Ele
poderia até esquecer, depois de algum tempo. Com o tempo,
os homens acabam esquecendo seus deuses. Mas, agora,
Philippe jamais esquecerá.

Ela encostou os lábios gentilmente no rosto gelado e


encovado de Philippe.

— Está muito cansado, querido. Deite-se e ficarei a seu


lado. Segurarei sua mão. E não vamos conversar. Pelo menos
por enquanto. Apenas ficaremos juntos.

Obedientemente, Philippe fez um esforço para se


levantar. Apoiou-se em Gertrude, as pernas vergando,
enquanto encaminhavam-se para a cama. Ele arriou na cama.
Gertrude tirou-lhe as botinas, estendeu uma manta sobre ele,
levantou-lhe a cabeça e ajeitou um travesseiro por baixo. O
quarto foi ficando cada vez mais escuro, a chama da vela
tremulava com uma aragem. Gertrude continuou sentada ao
lado do primo, segurando-lhe a mão, sorrindo. E lentamente
a mão foi esquentando, os olhos que a fitavam fixamente,
terrivelmente, começaram a se atenuar, ficando mais suaves,
começaram a piscar. E finalmente fecharam. Philippe
suspirou, virou a cabeça para ela, como uma criança a virar-
se para a mãe. E dormiu. O rosto atormentado estava em paz.

Gertrude inclinou-se, beijou-lhe a testa, os lábios. Beijou-


lhe a mão, antes de largá-la. Depois levantou-se. Philippe
remexeu-se um pouco, abriu a boca. Ela inclinou-se,
esperando ouvir seu nome. Mas ele limitou-se a sussurrar:

— Deus... Jesus... Maria... perdão...


O quarto estava agora bastante escuro. Gertrude levantou
o capuz sobre a cabeça. O rapaz adormecido suspirou,
tornou a suspirar, mergulhando cada vez mais num sono
profundo. A vela, como que triunfante, tornou-se mais
brilhante e mais forte, o crucifixo parecia estar vivo.

Gertrude virou-se para o pequeno altar e ficou


observando-o, por um período que lhe pareceu interminável.
Depois, ela inclinou-se e apagou a vela com um sopro.
Philippe parou de suspirar e um silêncio profundo abateu-se
sobre o quarto.

Ela saiu e fechou a porta.


CAPÍTULO LXXV
Paul Barbour estava se preparando para deixar a vastidão
solitária e iluminada do banco quando a porta do escritório
abriu-se e Gertrude entrou. Ele ficou atônito, fitando-a com
uma expressão de total incredulidade, incapaz de dizer
qualquer coisa. Ela parou diante dele, sorrindo, no pelerine
cinzento, pelo qual escorriam filetes de água. O rosto era
espectral, sob a sombra do capuz.

-Parece surpreso por me ver, Paul. Está querendo saber


como entrei, não é mesmo? Conversei muito com o vigia na
porta, mas finalmente consegui convencê-lo de que
precisava falar com você de qualquer maneira.

Paul finalmente recuperou o uso da voz e exclamou:

— Trudie! O que está fazendo aqui? Aconteceu alguma


coisa em sua casa?

— Não.

Ela empurrou o capuz para trás e Paul descobriu que os


cabelos estavam completamente desgrenhados por baixo.
Podia divisar todos os ossos delicados por baixo da carne,
como se ela tivesse se tornado subitamente encovada.

— Sente-se, Trudie. Parece não estar se sentindo bem,


minha cara. E ainda por cima saiu de casa com um tempo
assim. Há alguma coisa que eu possa fazer? Não posso deixar
de perceber que está bastante transtornada. Vai me deixar
ajudá-la?

Gertrude sentou-se. O sorriso persistia em seus lábios


como se fosse esculpido. Paul achou a expressão dela um
tanto estranha, meio desvairada. A compaixão não lhe
ocorria facilmente, quer fosse por natureza ou por uma
disciplina deliberada. Mas, naquele momento, não pôde
deixar de sentir uma profunda compaixão por Gertrude.
Ficou de pé ao lado dela, encostado na mesa, mas sem tocá-
la. Ela levantou o rosto para fitá-lo, respirando muito
depressa, a expressão desvairada tomando-se cada vez mais
intensa. Paul fitava-a também, atentamente, preocupado,
quase gentil.

Ela começou a falar, em tom jovial, ofegante como se


estivesse tentando injetar-lhe um pouco de humor. Paul
tinha pouca sutileza de imaginação, mas enquanto escutava
a voz de Gertrude, observava-lhe o rosto, sentiu que aquela
combinação era angustiante.

— Gosta de mim, não é mesmo, Paul? E queria casar


comigo, não é mesmo? Talvez ainda queira. Papai ficaria
muito contente com esse casamento. Ele gosta de você, acha
que é um rapaz extraordinário. Paul... quer casar comigo?
Agora?

Ele estava emocionado. Levantou abruptamente, os olhos


azuis ardendo com intensidade.

— Casar com você, Trudie? Tem certeza de que sabe do


que está falando? Se quero casar com você? Oh, Deus,
sempre quis casar com você, desde que soube o que era
casamento! Mas não posso acreditar! Parece impossível!

Paul continuou sem tocá-la, embora as mãos tensas


tremessem, fazendo gestos nervosos.

— Pode beijar-me, Paul — murmurou Gertrude,


debilmente.
E ela fechou os olhos, enquanto levantava o rosto
angustiado. Mas Paul não a beijou. Depois de um longo
momento, Gertrude abriu os olhos e fitou-o, aturdida. Ele
fitava-a atentamente, as feições rudes carregadas de emoção
e compreensão.

— Conte-me tudo, por favor, Trudie querida — disse ele,


gentilmente.

Paul inclinou-se, pegou-lhe a mão gelada, apertou-a entre


suas palmas grandes e quentes.

Gertrude recomeçou a sorrir. Mas, por cima do sorriso, os


olhos ficaram marejados de lágrimas de angústia. Ela
começou a falar, com extrema dificuldade:

— Talvez você já saiba, Paul. Philippe e eu íamos casar.


Não posso mentir-lhe. Mas agora, ele... ele prefere não casar
comigo. Acho que ambos descobrimos ao mesmo tempo que
seria um erro, um erro terrível. Eu...

— Por que seria um erro, Trudie? — perguntou Paul,


suavemente, enquanto apertava a mão dela com mais
firmeza.

Ela mexeu a cabeça ligeiramente, como se estivesse


torturada, desesperada.

— O problema, Paul, está na religião dele. Primos não


podem casar. Philippe decidiu que me queria de qualquer
maneira e conversamos a respeito, há muitos anos. Estava
tudo acertado. E de repente... aquele padre apareceu de
novo. O Padre Dominick... está lembrado dele? Visitava sua
casa quando éramos crianças e antes do Tio Martin morrer
na guerra. E tudo voltou a Philippe, a lembrança de que,
segundo sua religião, é um pecado o casamento entre
primos...

A cor desaparecera das faces de Paul. Ele olhava


atentamente para Gertrude, a expressão ao mesmo tempo
solene e sombria.

— E Philippe decidiu então não mais casar com você?

— Não foi assim, Paul! Mas eu decidi não casar com ele.
Não poderia fazê-lo infeliz. Achei que era melhor me afastar,
tomar eu mesma a decisão. E depois ele voltaria a ter alguma
paz, acabaria esquecendo...

Paul largou a mão dela abruptamente, virou-se e foi até a


janela. Ficou parado ali, de costas para Gertrude. A luz da
sala projetava-se pela escuridão lá fora, mostrando a chuva
que caia, num círculo desolado de claridade. Paul estava
profundamente chocado. Ernest não lhe contara essa parte
do segredo mútuo. Limitara-se a insinuar que tinha em
mente uma estratégia que afastaria Gertrude de Philippe,
aconselhando Paul sobre o comportamento que deveria
adotar, até que a separação se consumasse. Mas isso é
monstruoso!, pensou o rapaz, profundamente abalado, como
nunca lhe acontecera antes. Podia perceber tudo claramente
e estava apavorado. Não lhe parecia possível que algum
homem pudesse ser assim. Pela primeira vez, sentiu uma
violenta repulsa contra o tio. Santo Deus, pensou Paul, como
ele pôde ser capaz de magoar tanto a própria filha? É
desumano... bestial!

Ele teve um súbito impulso, impelido pela compaixão e


indignação, de virar-se para Gertrude e revelar toda a trama,
dizer-lhe que não renunciasse a Philippe, que lutasse pelo
homem que amava, contra a Igreja dele, contra ele próprio,
contra todas as coisas misteriosas e tenebrosas que lhe
dominavam a mente. Pela primeira vez em sua vida, Paul
experimentou o fulgor intenso e ofuscante do altruísmo, da
verdadeira ternura, misericórdia e amor. Pela primeira vez, o
seu ego foi sufocado por esse fulgor, desvanecendo-se como
uma sombra.

Chegou a virar-se para Gertrude, chegou a abrir a boca


para falar. E depois tornou a fechá-la. O fulgor dissipou-se.
Ele estava pensando rapidamente, outra vez com uma
lucidez implacável. Seria melhor para Trudie, mesmo que ela
saísse vitoriosa? Seria bom para Trudie casar com um
homem que fora capaz de hesitar, mesmo que por apenas
um momento, entre ela e a ‘superstição’? Isso não provava
que Philippe era um fraco e um tolo? Paul, que jamais tivera
qualquer fé, encarava aquela manifestação de fé com a maior
incredulidade. Parecia-lhe uma loucura grotesca, algo saído
da Idade Média, algo que cheirava a masmorras, mártires,
fogueiras, feiticeiros e encantamentos. Um resquício de uma
era fantástica, quando os homens viam demônios e anjos por
toda parte, partiam em Cruzadas sangrentas. Ele não podia
situar tais sentimentos no século XIX, com suas máquinas e
bancos, indústria e governo democrático, Darwin e ferrovias,
eletricidade e telégrafo, fatos científicos, títulos de
rentabilidade, explosivos, vapores. Encolhia-se mentalmente
diante de um poder que lhe parecia profano e repulsivo... um
poder emanando de recônditos ocultos dos homens, como
um eflúvio pestilento, uma doença psíquica que podia
destruir e devorar aquele que lhe dava guarida. Horrível!,
pensou Paul, cada vez mais apavorado. Tenho de reconhecer
que Philippe não é um estúpido. Se essa Coisa pode atacar
pessoas como Philippe, pessoas de instrução e inteligência, o
que não pode fazer com os ignorantes e as crianças? Não é
de admirar que Tio Ernest diga que a religião deve ser
abolida para que os homens possam se tomar livres! Paul
sentia-se um pouco tonto. Sua mente fria e objetiva era
atacada por todos os lados por uma sensação de fantasia
distorcida, de terríveis coisas sobrenaturais em emboscada.
Gertrude continuava sentada no mesmo lugar. A cabeça
lhe caíra sobre o peito, toda a sua atitude era de exaustão e
desamparo. Por espanto e repulsa, Paul disse, em voz alta:

— Mas parece impossível, Trudie! Tem certeza de que


entendeu Philippe direito?

— Tenho, sim.

Ela levantou a cabeça, fitou-o firmemente, com uma


expressão de quem não acalentava mais qualquer esperança.

Paul ficou novamente em silêncio. Mastigou o canto do


lábio, olhando para o chão, de rosto franzido. Não mais
culpava o tio. Não podia negar que Tio Ernest estava certo.
Aquele garoto fantástico não era realmente um marido à
altura de Gertrude. Tio Ernest estava sempre certo, mesmo
naquele caso! E agora nada podia se interpor entre ele e
Gertrude. Podia casar com ela, levá-la de volta a uma vida
normal, a um amor normal.

Sentiu um contato no braço. Gertrude estava de pé ao seu


lado, a mão em sua manga.

— Paul, quer me levar a algum lugar e casar comigo? Esta


noite? O mais depressa possível?

Ele pôs a mão sobre a dela, apertou-a firmemente.

— Esta noite, Trudie? Não acha que é uma tolice? Não


precisamos fugir de casa para casarmos. — Ele sorriu. — Vou
levá-la agora para sua casa, entregá-la à sua mãe. E amanhã
poderemos começar a tomar as providências...

— Não! Ou casa comigo esta noite ou não casa nunca


mais, Paul! Nunca mais! E pode ter certeza de que estou
falando sério. Se não casar comigo imediatamente, irei
embora, sairei de Windsor. Ainda esta noite.

Ele tentou sorrir, mas desistiu quando fitou-a nos olhos.


Gertrude acrescentou:

— Será que não percebe que estou fazendo isso por


Philippe, Paul? A fim de que ele possa ter um pouco de paz?
Para que assim ele não precise mais passar por tanta
angústia? — Ela estava ofegando terrivelmente. — Ou será
que mudou de ideia a meu respeito? Disse-me certa vez que
não se importava que eu o amasse ou não. Não o amo, Paul.
Mas se casar comigo agora, tentarei... tentarei com o máximo
empenho...

— Mas o que seu pai vai dizer, Trudie?

— Ele sempre quis que eu casasse com você, Paul. Não vai
se importar. Tenho certeza de que ficará contente.

— Mas as pessoas como nós não fazem essas coisas,


Trudie!

— O que me importa o que possamos ou não fazer? — A


voz dela, os gestos, a atitude eram frenéticos e
desesperados, impregnados com a mais profunda agonia. —
Estou pensando em Philippe! Estou pensando no amanhã!
Não seria capaz de enfrentar o amanhã, esperando que
houvesse alguma chance, quando sei que jamais haverá. E
mesmo que houvesse, isso só faria Philippe sofrer! —
Gertrude segurou-lhe o braço, ansiosa. — Está hesitando por
sentir-se ofendido porque falei dele? Isso feriu seu orgulho?
Mas sempre disse que me queria, não importava como. E
estou prometendo que tentarei amá-lo. Não vai se
arrepender. Tentarei esquecer Philippe. Serei uma boa
mulher.
Ela começou a lamuriar-se, como uma criança desolada.

— Case comigo agora, Paul.

— Está certo, Trudie. Mas vamos pelo menos chamar seus


pais para assistirem a cerimônia, se temos mesmo de casar
esta noite.

— Não! Não quero saber deles! Não suporto mais


quaisquer palavras, não suporto rostos e vozes!

— Mas é uma loucura fazer isso, Trudie! Vamos casar


como um operário braçal e uma criadinha! Um casamento
furtivo, em segredo! — Paul ficou calado por um longo
momento, pensativo. — Mas se é isso o que quer, Trudie,
então será assim. O Juiz Bainbridge poderá casar-nos. Oh,
Deus, o que ele vai pensar quando aparecermos em sua casa
desse jeito, na hora do jantar? — Ele pegou o capote e o
chapéu que estavam em cima da mesa e arrematou: — Os
jornais vão se deliciar com a história...
CAPÍTULO LXXVI
O casamento teve de fato a maior repercussão nos jornais
e entre os amigos da família Barbour. May emitiu um
comunicado formal: “O Sr. e Sra. Ernest Barbour comunicam
o casamento de sua filha Gertrude com o Sr. Paul Barbour,
desta cidade, seu primo.” Quando o excitamento estava no
auge, com a presença inclusive de repórteres de Nova York,
Boston, Filadélfia e Washington, explodiu a notícia de que o
Sr. Philippe Barbour, da rica família Bouchard, partira para
Montreal, no Canadá, a fim de ingressar num seminário e
estudar para o sacerdócio.

Espalhou-se o rumor de que os dois eventos eram causa e


efeito. Gertrude, a namoradeira desalmada, abandonara um
primo para casar com outro.

— Quem poderia imaginar tal coisa! — exclamaram


incontáveis amigos da família. — Logo aquela moça tão feia e
anêmica, pálida e sem qualquer animação! Todos
pensávamos que ela era uma solteirona nata!

Mas May, pensando na desolada Florabelle, declarou que


a filha jamais estivera noiva de Philippe Bouchard, que era
um católico praticante e por isso mesmo jamais poderia
casar com a prima. May detestava a necessidade de
satisfazer as pessoas famintas de escândalo. Mas tratou de
fazê-lo vigorosamente, quando chegou à conclusão de que
não havia outro jeito. Chegou mesmo a convidar os
repórteres a visitarem sua casa, serviu-lhes café, sanduíches
e bolo, assim espantando-os e seduzindo-os. Contou-lhes
uma história em que verdade e ficção misturavam-se
habilmente. Disse que Gertrude estava particularmente
comprometida com o primo Paul há algum tempo e que um
casamento formal estava marcado para o dia anterior ao
Natal. Mas o jovem casal frequentemente exprimira sua
aversão a um casamento pomposo e suntuoso. E, ‘mais como
uma brincadeira’, disse May, sorrindo indulgentemente, ‘os
dois fugiram de casa num súbito impulso e casaram antes da
data marcada, sem avisarem a ninguém’. E May acrescentou:

— O Sr. Barbour ficou bastante aborrecido com a


irresponsabilidade das duas crianças tolas e ainda os trata
friamente. Mas, todos esperamos que ele aceite em breve o
informalismo do casamento.

Depois, recordando as intermináveis colunas que lera em


livros e revistas para mulheres, censurando a pomposidade
extenuante dos casamentos elegantes, com a exaustão da
noiva e a irritação e confusão do noivo, a rivalidade que
levava os pais das noivas a ‘gastarem dinheiro como água’,
May simplesmente fechou os olhos e discorreu longamente a
respeito. Todos ficaram tão impressionados que passaram a
pensar com mais respeito no jovem casal irresponsável. Os
jornais assumiram uma posição solene e indagaram a seus
leitores se aquele evento não estaria abrindo o caminho para
casamentos na sociedade mais simples e mais distintos, ‘em
que não haja tanta confusão e exibição, tantas penas e joias
vulgares, tanta comida suntuosa’. Pregavam um retorno aos
‘dias de nossos pais, que eram rudes, simples e fortes, sem
qualquer afetação, como não acontece agora com seus
descendentes elegantes e perdulários’. Gertrude e Paul foram
elogiados pela imprensa como jovens heróis, que
recordavam as histórias dos pioneiros. Como eram simples e
modestos, apesar de toda a riqueza da família, resolveram
dar um exemplo, que os outros poderiam perfeitamente
seguir.

Depois, determinada e bastante cansada, May concentrou


sua atenção na histérica e indignada Florabelle. Por muitos
dias, ela recusara-se a receber quem quer que fosse, pois
estava profundamente consternada. Mas recuperando um
pouco de sua força, permitiu que May a visitasse em seu
quarto. E assim que May entrou, ela prorrompeu em gritos,
soluços e censuras:

— Aquela horrível Gertrude! Deu o fora no meu Philippe e


levou-o a deixar sua mãe e ir se meter num horrível lugar
cheio de padres! Deixando-me para sempre!

— Sabe que isso é uma mentira, Florabelle — disse May,


calmamente. Philippe lhe contou a verdade. Você não quis
acreditar. Pois vou lhe dizer outra coisa agora. Lembra-se
daquele dia em que nos falou do recado do Bispo Dominick
para Philippe? Está lembrada de que Gertrude nos deixou?
Ela veio diretamente para sua casa, onde encontrou-se com
Philippe. Os dois conversaram. Ele disse que não poderia
casar com Gertrude, porque ela era sua prima. A pobre
coitada bem que suplicou, desolada, mas ele mostrou-se
intransigente. Não culpo o rapaz, pois ele acredita
firmemente em sua religião. E quem somos nós para nos
opormos à fé em qualquer pessoa? Gertrude saiu daqui
desesperada e foi para o banco, a fim de encontrar o pai.
Sabe perfeitamente que ela sempre foi a predileta de Ernest.
Disseram a ela que o pai fora para o banco. Mas quando
Gertrude lá chegou, Ernest já fora para casa. Mas Paul estava
lá. E Paul, que é realmente um excelente rapaz, condoeu-se
dela, consolou-a, pediu-a em casamento. Num súbito
impulso, porque estava tão magoada, Gertrude decidiu casar
com ele. Imediatamente.

(E depois de dizer isso, May fechou os olhos e disse a si


mesma: Que Deus me perdoe!)

Mas Florabelle sentiu-se consolada. May sabia que o


orgulho e o dinheiro eram os melhores consolos de qualquer
aflição. Por isso mesmo, ela tratara de incutir algum orgulho
em Florabelle. Recuperando-se tanto quanto era possível
depois da perda do filho para a religião, Florabelle sussurrou
misteriosamente para as amigas que ‘nem tudo foi contado’,
mas seu Philippe fora bastante cruel com a prima Gertrude e
no último momento a preterira, preferindo ficar com a sua
Igreja. Logo depois da visita de May, ela vestiu-se toda de
preto, como alguém de luto fechado. Mandou aprontar a sua
carruagem nova e foi visitar Gertrude. Sentada na sala de
estar, com a moça pálida e silenciosa, Florabelle chorou
copiosamente, compadecendo-se dela, sacudiu a cabeça,
sentiu-se tonta, pediu que Gertrude saísse correndo para
buscar sais de cheiro. Gertrude aproximou os sais do nariz
da tia, ajoelhada ao lado dela. Florabelle, recuperando-se. um
pouco, olhou para a mãozinha que segurava o vidro. Como
ela disse depois, era ‘como um pé de passarinho, muito fina,
ossuda e trêmula’.

Paul e Gertrude ficaram temporariamente na casa da


família Sessions, até que ele decidisse onde queria comprar
sua casa. Paul estava propenso a comprar uma casa num
bairro que se abria, com o nome provisório de Roseville, bem
perto do rio, mas numa elevação. Diversas casas esplêndidas
estavam sendo construídas ali, algumas já vendidas, outras à
venda. Gertrude e Paul foram visitar uma das casas,
sentimentalmente chamada de Ninho do Papo-roxo. Era uma
estrutura austera, de pedras cinzentas, aposentos amplos,
cercada por árvores centenárias. A casa, quando comprada,
seria o presente de casamento de Ernest ao jovem casal. O
dote de Gertrude seria uma renda de cem dólares por
semana, até a morte do pai. Ernest acrescentou, com um
sorriso malicioso, que haveria um aumento de 50 dólares por
semana para cada filho que nascesse. May prometeu fornecer
todos os móveis e roupas de cama e mesa, além de
providenciar a criadagem.
Nada faltaria a Gertrude, pensou o satisfeito Paul. Ele
sentia-se profundamente contente com sua mulher,
extremamente meiga e dócil. É claro que ela carecia um
pouco de vigor, pensava ele. Gertrude tinha o hábito de ficar
sentada por horas a fio, imóvel, não com uma serenidade
satisfeita, mas numa espécie de transe expectante, como
uma estátua. As mãos dela ficavam vazias, as palmas viradas
para cima, sobre os joelhos, numa atitude curiosamente
desamparada e indefesa, a cabeça um pouco inclinada, uma
mecha dos cabelos escuros sem qualquer lustro caindo sobre
o rosto lívido, os olhos parcialmente fechados, como se
esperasse por alguma coisa, num sonho. Gertrude sempre
fora conhecida entre os amigos menos cordiais como ‘uma
língua ferina’. Agora, no entanto, quando ela falava, era
sempre com uma voz suave e distante, gentil e apática.
Todos comentaram com May que o casamento certamente
melhorara Gertrude. Ela não era mais tão nervosa e
irrequieta, não era mais tão sarcástica. É claro que sempre
fora uma dama perfeita, mas parecia ainda mais distinta
agora, na opinião de todos, retraída, comedida, conhecendo
o seu lugar na companhia das matronas mais velhas e mais
sábias. Escutando tudo, May sorria polidamente, embora a
angústia lhe apertasse o coração.

Alguns dias depois do repentino casamento, Amy


apareceu na casa da família Sessions, pela primeira vez
desde a morte de Gregory. As primas não se encontravam há
quase dois anos. Os caminhos sociais das duas não se
cruzavam, pois Amy praticamente se afastara do convívio
social; e se May avistava Amy a distância, tomava o cuidado
de evitá-la. Entre as duas, havia uma área interminável de
silêncio.

May estava sentada sozinha numa sala, bastante triste,


conferindo as contas domésticas, quando Amy foi anunciada.
Gertrude estava lá em cima, no quarto que partilhava com
Paul. O sol da manhã entrava pela sala, a claridade
aumentada pela neve que cobria o chão e as árvores lá fora.

A primeira reação de May, quando a prima foi anunciada,


foi uma fúria trêmula, um sentimento de indignação, um
aperto na garganta. A pena caiu de sua mão e rolou pelo livro
de contas, deixou uma esteira de tinta. Depois de um
momento, ela murmurou:

— Pode trazer a Sra. Barbour, por favor.

Enquanto esperava, May cerrou as mãos e rilhou os


dentes, olhando para o jardim coberto pela neve.

Amy entrou na sala, sorrindo, parecendo muito elegante


no casaco de pele de foca. A pele lisa estava corada de frio e
os olhos castanhos faiscavam do exercício, pois viera a pé
desde a sua casa. Ela parece com minha filha, pensou May,
com amargura e ódio. Mas seu próprio rosto estava calmo e
sorridente, embora um tanto frio de reserva.

Ela se levantou, murmurando:

— É um prazer, Amy...

O coração dela batia com uma força incontrolável, a


garganta ameaçava fechar-se a qualquer instante.

Amy sorriu, hesitou por um instante. Será que ela pensa


que posso beijá-la?, perguntou-se May, com indignação e
repulsa. Mas o que vou fazer se ela estender-me a mão? Devo
recusar-me a apertá-la? Devo reconhecer abertamente que
tenho motivo para recusar? Devo humilhar-me a esse ponto?

Mas Amy não estendeu a mão. O sorriso dela tornou-se


um pouco constrangido, enquanto tirava o casaco.
— Tinha de vê-la, May — disse ela, um pouco ofegante.

— Sente-se, Amy.

As duas sentaram-se de frente uma para outra. Mas


embora estivessem na mesma sala, separadas por menos de
dois metros, a área interminável de silêncio ainda estendia-
se entre elas, desolada, ocultando coisas que ambas sabiam
existir, mas não se atreviam a reconhecer abertamente.

Amy ficou em silêncio, olhando firme para a prima. Não


demorou muito para que o desamparo e a angústia se
insinuassem em sua expressão. As mãos esguias tremiam
ligeiramente. Mas Amy jamais carecia de coragem. A cor de
seu rosto não aumentou de intensidade nem se desvaneceu,
ela não titubeou. E a voz não tremia nem vacilava quando ela
falou:

— Eu precisava falar-lhe, May. A sós. Queria lhe dizer que


esse casamento foi um choque para mim tanto quanto para
você. Nunca imaginei que pudesse ocorrer. Afinal, eu sabia
que Gertrude gostava de Philippe Bouchard. Pensei que
estivesse tudo acertado entre os dois. Fiquei completamente
aturdida quando soube que ela casara com Paul.

Ela fez uma pausa, os olhos suplicando a May que


compreendesse. Em voz fria e incisiva, May perguntou:

— O que exatamente está querendo me dizer, Amy?

Amy baixou a cabeça e, com uma das mãos, alisou o


vestido, interminavelmente.

— Lamento que Gertrude tenha casado com Paul — disse


ela, tristemente. — Nunca lamentei tanto uma coisa, em toda
a minha vida. Há coisas que não compreendo neste
casamento. Mas o que quer que sejam, tenho certeza de que
são muito erradas. Mas eu tinha de vir até aqui para
descobrir se Gertrude não estava se sentindo muito infeliz.
Não podia descansar enquanto não soubesse que ela
escolhera pessoalmente e que foi o melhor que poderia lhe
acontecer.

May não respondeu. Depois de um longo momento, Amy


levantou o rosto. Havia lágrimas nos olhos de May. Só que
não estavam suavizando sua expressão.

— Oh, Deus, então ela é infeliz! Pobre menina!

Amy falou estridentemente, o rosto contraído. Em seu


nervosismo, levantou-se.

— Não consigo suportar! Alguma coisa horrível aconteceu!


Por favor, deixe-me falar com Gertrude!

O desprezo estampou-se no rosto de May.

— O que poderia ter acontecido? O que a leva a pensar


que Gertrude é infeliz? É verdade que Gertrude preferia
Philippe, mas ele decidiu que não poderia casar com ela,
porque são primos. Gertrude sempre soube que poderia um
dia casar com Paul. E acabou casando com ele.

As duas se fitaram por algum tempo através do silêncio


amargurado. Depois, Amy tornou a sentar-se. Virou o perfil
para May, que pôde divisar os músculos tensos em seu
pescoço, as pestanas úmidas de lágrimas. Mas nada podia
suavizar May. A rigidez irradiava-se do coração para todo o
corpo, de tal forma que ela parecia finalmente não sentir
coisa alguma.

— Paul é meu filho — disse Amy finalmente, em voz


baixa, como se estivesse pensando alto. — Mas jamais senti
que houvesse qualquer coisa entre nós além do acidente do
nascimento. Meus filhos não são como o pai, meu pobre e
gentil Martin. E também não são como eu. Tenho certeza de
que não me amam. Há muito tempo, quando Paul começou a
falar em casar com Gertrude... — ela fez uma pausa, antes de
continuar, ainda sem olhar para a prima: — Amo Gertrude.
Amo Godfrey também. Até mesmo Reggie e Guy sempre me
pareceram mais chegados do que meus próprios filhos. Isso
mesmo, sempre fui contra esse casamento, por mais incrível
que possa parecer. Achava que seria péssimo para Gertrude.
Se soubesse antes, teria feito todo o possível para impedir.

Houve uma pausa estranha e vazia. E depois May disse,


com um sorriso irônico:

— Isso é muito estranho, partindo da mãe de Paul. As


mães geralmente não falam assim dos próprios filhos. Mas
tenho certeza de que você subestima Paul e lhe faz uma
vergonhosa injustiça. Ele é realmente um rapaz excelente. A
longo prazo, será um marido melhor para Trudie do que
Philippe jamais poderia ser. Eu lhe asseguro que estou
bastante satisfeita com o casamento. Assim, não precisa
mais ficar preocupada.

Amy virou novamente a cabeça e as duas ficaram se


olhando. Amy finalmente perguntou, sem qualquer emoção:

— Posso falar com Gertrude, apenas por um momento?

— Claro que sim. — May estava outra vez fria e cortês. —


Ela está lá em cima, no quarto grande. O mesmo quarto que
era usado por Gregory.

Amy se levantou. É claro que jamais poderemos ser


amigas, pensou ela, tristemente. O que era terrível. Não sabia
o que fazer. Um ódio intenso interpunha-se agora entre as
duas e tinha o rosto de Ernest. Podiam reconhecê-lo. Não
eram hipócritas o bastante para fingirem que não o viam.
Amy saiu da sala sem olhar para trás.

Ela subiu a escada larga, em curva. E enquanto o fazia, a


mão roçando pelo corrimão, Amy pensava: esta é uma escada
de angústia. Quantas e quantas vezes eu a subi dessa
maneira, sentindo-me como agora, que a vida era um
desespero tão grande que não dava para suportar? E quando
a luz púrpura incidia sobre a minha mão, através daquela
janela, como está acontecendo agora, sentia também que era
a luz da morte, como agora, desejava dissolver-me nela.

May continuou sentada à mesa, muito rígida, depois que


Amy retirou-se. Ela escutava, atenta, tudo ao seu redor
parecia na expectativa. Ouviu a porta do quarto de Gertrude
se abrir, ouviu o grito trêmulo e alegre de Gertrude:

— Tia Amy!

E depois a porta foi fechada.

May continuou sentada. E de repente baixou a cabeça


sobre a mesa. Depois de algum tempo, começou a chorar,
lágrimas lentas e angustiantes, que lhe escaldavam os olhos
e as faces. Mas não estava chorando por Gertrude.
CAPÍTULO LXXVII
Uma semana antes do Natal, Ernest convocou Paul para
uma reunião. Como haviam se separado tranquilamente pela
manhã, Paul sabia que não estava sendo convocado aos
escritórios de Barbour & Bouchard para uma troca de
amenidades. Ernest cumprimentou-o cordialmente. Sua
expressão quase sempre tornava-se amistosa ao encontrar-se
com o sobrinho.

— Sente-se, Paul. Preciso lhe falar. Aqui está o seu tabaco


predileto. Sirva-se.

Ele sorriu para o rapaz. Como alguém pode deixar de


gostar dele, de querer fazer alguma coisa para ajudá-lo?,
pensou Paul, encantado com aquele sorriso raro e amistoso.
Ele achava o tio um tanto pálido e reservado desde o
casamento, embora soubesse perfeitamente que Ernest não
ficara insatisfeito com a cerimônia precipitada. Também não
podia ser porque ele estivesse preocupado com Gertrude,
pois ela podia estar um pouco mais distante e arredia, mas
adquirira uma certa suavidade, perdera o comportamento
brusco anterior, parecia depender cada vez mais da afeição
do pai. Mas ninguém, pensou Paul, com algum
ressentimento, jamais sabia com certeza o que Ernest estava
pensando.

Com uma brusquidão que fez Paul recordar a brusquidão


perdida de Gertrude, Ernest acrescentou:

— Quero que peça demissão do banco, Paul. Quero você


trabalhando aqui, a partir do dia 19 de janeiro. Como meu
assistente. Afinal, você terá de administrar um dia a parte de
Gertrude nos meus negócios. — Ele fez uma pausa, a boca
grande se contraindo numa expressão de crueldade. — E
provavelmente terá de administrar também a parte de
Godfrey. Assim como a de Reginald e a de Guy. Nunca lhe
escondi como esses três são fracos e tolos. Joey é o único
que me dá alguma esperança. Já perdi as esperanças de que
os outros possam valer alguma coisa. — Ele mexeu numa
espátula de papel, olhando-a atentamente. — Você acabará
me substituindo aqui. E quero prepará-lo para o dia em que
isso acontecer.

Paul não respondeu. Ernest levantou os olhos para fitá-lo.


O rapaz estava pálido, os contornos do queixo sobressaiam
sob a pele. Mas algo na expressão dele fez Ernest sorrir e
comentar, divertido:

— É possível que isso não o tenha surpreendido? Por


acaso já estava esperando?

— Estava, sim. — Paul acendeu o cigarro. — Esperava por


este momento. E torcia para que acontecesse logo. Ou
prefere que eu minta a respeito?

Ernest estava mais divertido do que nunca.

— E então, não vai me dizer mais nada? Não vai me falar


de privar meus filhos do seu direito por nascimento e outras
bobagens do mesmo gênero?

— Não. Sei que eles não serão privados de coisa alguma.


Continuarão a ter as respectivas parcelas de seus bens,
mesmo que não sejam ativos nos negócios. Receberiam os
rendimentos das ações que lhes deixaria. Serão os chamados
cavalheiros do lazer. Frey viveria na Europa, que é o lugar
que parece gostar. Guy jogaria. Reggie... ele ainda é uma
qualidade desconhecida, embora não tenha demonstrado
qualquer interesse pelos negócios. E Joey... Ora, Joey é
obstinado e persistente, muito esperto em questões de
dinheiro. Mas ele dará um melhor banqueiro do que homem
de negócios. Tenho a impressão de que já pensou nele para o
banco. Joey tem uma boa cabeça para finanças. Como John
Charles, o Shylock! Mas sem qualquer imaginação, sem
ousadia. Sei que não é um homem para se ofender com a
verdade, Tio Ernest. — Paul fez uma breve pausa. — Mas o
que exatamente devo esperar? Falou em substituí-lo aqui.
Tornar-me seu ‘assistente’. O que isso significa, num inglês
claro e objetivo?

Como já fizera centenas de vezes antes, Ernest estudou-o


atentamente. Avaliou a audácia, a ganância e a
inflexibilidade no rosto à sua frente. Imaginação! Fora o que
Paul dissera. Isso mesmo, imaginação prática, do tipo que
constrói pontes e suborna políticos, duvida da honestidade
de presidentes e desenvolve imensas indústrias, espalha
rumores de guerras e faz as chaminés das fábricas
fumegarem dia e noite, leva a civilização aos bárbaros e
institui dinastias que estão acima da Lei, mais poderosas do
que a honra tola dos fracos ou os tronos enfeitados de reis.
Mas falta-lhe uma astúcia real, pensou Ernest. O que
conseguir, será pela força bruta e a insistência implacável, se
as negociações fracassarem. Ainda tem uma certa hesitação
antes da implacabilidade final. Mas isso vai passar, mais
depressa do que passara em Ernest, que tinha uma certa
propensão para a ironia. Paul não tinha ironia. Os homens
que conservam a ironia não merecem confiança, pensou
Ernest. Nem sempre podem resistir ao impulso de se
divertirem. Ele próprio nem sempre fora hábil, mas isso
acontecera porque desprezava a habilidade como uma
sutileza inútil, que só servia para consumir um tempo
precioso. Evitara-a conscientemente. Mas Paul não sabia que
a habilidade pudesse existir. Faltava-lhe paciência. Mas era
forte o bastante para não precisar. Ainda tinha um resquício
de consciência, mas não demoraria a perder. Ernest estava
firmemente convencido de que os homens destituídos de
senso de humor jamais mantinham suas consciências.

Paul era um oportunista, pensou ele. Não o oportunista


aventureiro e pitoresco, mas o oportunista do tipo brutal e
selvagem. Com o tempo, seria voraz, insaciável. Carecia do
ímpeto que Ernest francamente reconhecia em si mesmo. A
ganância dele era consciente. O que lhe serviria igualmente
bem, pensou Ernest. Paul também não exultaria com o poder,
como acontecia com Ernest, uma exultação que era como a
alegria do elefante ao descobrir que podia arrancar árvores
pela raiz. Mas isso exigia uma imaginação mais sutil, que até
mesmo um elefante possuía, mas Paul nunca teria. Paul era
como uma barriga que nunca poderia ser saciada, mas ele
tentaria enchê-la por toda a vida. Mas é menos inteligente do
que eu e por isso nunca vai se perturbar com a indigestão,
pensou Ernest. Ei, estou ficando sutil na velhice! Certamente
andei desenvolvendo um senso de humor, algo tão
destrutivo quanto o câncer.

— O que estou querendo dizer? — indagou Ernest em voz


alta. — Apenas o que falei. Tenciono deixar para Gertrude
mais da metade da minha fortuna particular e metade das
minhas ações na Barbour & Bouchard, na Kinsolving,
serrarias, minas, poços de petróleo e ferrovias. Posso até
fazer mais do que isso. É claro que você poderá um dia
tornar-se presidente de tudo. Joey, como você disse tão bem,
vai naturalmente se encaminhar para o banco. — Ele fez uma
pausa. — Provavelmente May não será tão generosa com a
sua própria fortuna particular. Se ela morrer antes de mim,
esse problema será resolvido facilmente. Se me sobreviver,
poderá deixar tudo que tem para quem quiser. E tenho a
impressão de que ela não vai deixar-lhe muita coisa.

— Não estou preocupado com o dinheiro de Tia May —


disse Paul.
— Você é um jovem demônio bastante perigoso. Mas acho
que também é um mentiroso. Tenho certeza de que ficaria
furioso se May o excluísse e a Gertrude de seu testamento.
Mesmo que tivesse praticamente tudo o mais.

Subitamente, as proporções do que estava recebendo


deixaram Paul abalado. O mais pobre da família estava se
tomando o mais importante de todos!

— Santo Deus! — exclamou ele, o rosto vermelho. — Não


sei o que dizer, Tio Ernest! Só posso falar que não vai se
arrepender.

— E é melhor mesmo não deixar que eu me arrependa —


disse Ernest, jovial.

Mas Paul estava profundamente sério. Começou a andar


de um lado para outro da sala, pensando. Ernest ficou
observando-o. Ele não é tão inteligente quanto o jovem Jules,
pensou Ernest, nem um décimo tão esperto quanto o jovem
Honore. Terá algum dia de se confrontar com os Bouchards.
Jules acabará se tornando tão sutil e implacável quanto um
jesuíta espanhol, Honore poderá farejar uma oportunidade
antes mesmo de virar a esquina. Esses franceses têm
espírito, inteligência e astúcia; nós, britânicos, não podemos
competir com eles nessas coisas. O que conseguimos, é pela
pura força da vontade. Vou contar com a determinação de
Paul. Assim como contei com a minha. O macaco é mais
inteligente do que o elefante, mas o elefante é que pode
enfrentar os tigres e arrancar as árvores pela raiz.

— Sente-se, Paul. Você terá de voltar ao banco daqui a


pouco. Mas eu queria ter essa conversa com você num lugar
em que ninguém mais pudesse escutar. A propósito, quero
que visite as minas de carvão logo depois do Natal. Tem
havido muitos distúrbios por lá ultimamente. Quero que
examine a situação. Os distúrbios trabalhistas são como
varíola, espalham-se rapidamente. Eugene me disse que os
operários da Kinsolving estão começando a murmurar
protestos. Alguns dos meus associados dizem-me que estão
com medo de um agravamento da situação. Mas isso
acontece porque são covardes. Não é preciso ter medo. Tudo
o que se precisa é de mão forte. O problema na América é
que não existem amos por aqui. Quero instituir a moda da
indústria. É por isso que o estou despachando para as minas
de carvão. Já tenho uma dúzia de detetives de William P.
Scott por lá e eles não admitirão qualquer bobagem.
Verifique a situação, contrate mais detetives, se for
necessário. Deixarei tudo a seu critério.

“É estranho que não haja greves durante as depressões e


pânicos financeiros. Os miseráveis sentem-se contentes
simplesmente por terem empregos que lhes permita comer.
Mas basta satisfazerem um pouco o apetite e começam a se
assanhar. Acho que a melhor coisa é não permitir que
satisfaçam os apetites básicos. Estou estudando a
possibilidade de reduzir os salários nas minas. Pode usar
isso como ameaça. Isso pode fazer com que eles pensem
direito no que estão fazendo. Mas faça o que achar melhor.
Muita coisa depende da maneira como você resolverá a
crise.”

— É muita responsabilidade, Tio Ernest. Não sei


praticamente nada sobre a situação. Mas pode estar certo de
que não tomarei qualquer decisão precipitada. Às vezes,
quando se fica sentado como um rochedo, sem dizer nem
fazer nada, as coisas acabam passando, sem que se torne
necessário tomar qualquer providência.

— Está falando como um britânico. Mas acontece que não


estamos na Inglaterra, Paul. As pessoas costumam fazer
coisas por aqui. Se ficar sentado, esperando, pode acabar
descobrindo que tem por baixo um caixote de dinamite e o
pavio está prestes a alcançá-la. Por falar nisso, vou levá-lo à
Áustria no próximo verão. Há uma empresa de lá, a Skeda,
que pode estar precisando de algumas sugestões para a
moderna fabricação de armamentos. Pelos próximos 50 anos,
no mínimo, a Europa será um ótimo campo para a indústria
de munições. Especialmente a França, a Alemanha e os
Bálcãs. Bismarck deu à Alemanha um sentimento nacional,
além de unidade. Nada poderá conter os alemães agora. Eles
provaram o gosto de sangue. É preciso muito pouco para
deixar um alemão embriagado e o sangue é o inebriante mais
rápido. — Ernest sorriu, antes de acrescentar: — E há
também a América do Sul. Creio que todos temos esquecido
a América do Sul. É nosso vizinho mais próximo, mas parece
até que fica na lua, pelo que nós preocupamos. Nós dois
iremos até lá no próximo ano, a fim de persuadir aqueles
espanhóis saudosos de sua terra que têm o dever para com
seus novos países de comprar e fabricar munições.

— Em outras palavras — disse Paul -se não há mercados,


tratamos de inventá-los,

— Exatamente. Os negócios andam meio difíceis


atualmente. E temos uma desvantagem: não podemos fazer
propaganda. Não podemos sugerir uma boa guerrinha e
depois oferecer nossas patentes ou nossos armamentos.
Apesar disso, temos de fazer negócios. E o Medo é o nosso
melhor vendedor.

“Seu Tio Raoul foi um dos melhores vendedores que já


usei. Mas isso acontecia nos velhos tempos, quando nos
concentrávamos em armas de caça. Tínhamos então
instalações bem pequenas. Mas temos agora uma fábrica
monstruosa e não podemos fazê-la funcionar com a
fabricação de espingardas para crianças. Na semana passada,
como você sabe, dispensamos a metade dos nossos homens
em duas fundições. A América é o pior lugar do mundo para
se fabricar munições. Não há um único forte ao longo de
milhares de quilômetros de fronteiras. O Canadá está do
outro lado, mas não se pode sequer insinuar que se trata de
um vizinho perigoso. Sugeriu-se recentemente no Canadá
que a América formulava planos para anexar seu território. E
sabe o que aconteceu? O Canadá fechou a sua única fábrica
de munições e virou-se para nós desdenhosamente! Pior do
que isso: decidiu importar da Inglaterra a sua próxima
compra de rifles. Não foi nada agradável!

Ernest soltou uma risada, mas Paul pareceu não perceber


qualquer motivo para o riso. Parecia contrariado.

— Por acaso foi sugerido vigorosamente aqui que o


Canadá daria uma boa refeição? E a Doutrina Monroe? Não se
poderia usá-la para despertar algum interesse? O povo
americano tem se mostrado bastante patriota desde a Guerra
Civil.

— Isso é uma história antiga. Espanam o pó de vez em


quando e tiram a coisa do armário. Reconheço que o povo
está começando a demonstrar algum interesse. Mas ainda é
muito pouco. Contudo, estão se espalhando alguns rumores
antibritânicos que parecem merecer a melhor credibilidade.
Estão sendo acolhidos com um interesse dos mais
animadores, especialmente nas cidades grandes com uma
grande parcela de alemães. Mas é um processo muito lento.
No final das contas, o sangue é mais grosso do que a água, o
que representa um transtorno para nós. É verdade que há
cada vez mais pessoas falando da Doutrina Monroe, mas são
principalmente os que nada sabem a respeito. Não faz muito
tempo, um jornal de Nova York publicou a Doutrina e
explicou-a, ridicularizando sua aplicação ao Canadá.
Contudo, há um consolo: as pessoas que espalham rumores,
as pessoas com que se pode contar para disseminar o medo,
as pessoas que são facilmente incitadas ao ódio e à guerra,
jamais leem jornais.

“Há bastante tempo que não se fala muita coisa a respeito


da velha Revolução Americana. Mas ultimamente vem se
fazendo um bom trabalho para reviver o assunto. Já viu os
últimos livros escolares? Tenho um exemplar na minha
mesa. Uma leitura das mais inspiradoras. Tenho alguns
amigos em Washington e não há nada tão útil quanto um
político com um cheque novo no bolso. Dê-me meia dúzia de
políticos de bolsos furados e não me importo com quem
possa dirigir as suas igrejas. Seja como for, esses livros
escolares são muito bons. Dentro de 20 anos haverá na
América um intenso sentimento antibritânico. Tudo o que as
escolas precisam fazer é ressoar os tambores, falar de
George Washington, Valley Forge, Paul Revere e o cruel Rei
George. Com isso, você não precisará falar da Doutrina
Monroe. Na verdade, talvez seja até melhor enterrá-la!”

— Mas o que dizer dos Hessianos? Afinal, eles eram


alemães.

— Esse problema está muito bem resolvido. Não


passavam de pobres mercenários, impressionados com a
selvageria e ganância dos britânicos, numa guerra de que
nada sabiam. A participação deles não é muito destacada.
Todo o destaque vai para Cornwallis e os índios, Boston e o
incêndio da Casa Branca em 1812. Claro que os franceses
também entram na história e essa parte é tratada com todo
cuidado. Afinal, não se pode ofender os franceses.

Paul estava bastante interessado e agora perguntou:

— Enquanto espera, ainda tem os contratos militares, não


é mesmo, Tio Ernest?
— Claro. Mas as encomendas de armas para este ano
foram quase insignificantes. Por outro lado, temos
encomendas maiores para explosivos, pois as ferrovias estão
avançando num ritmo vertiginoso. É uma sorte que as
munições sejam agora apenas uma de nossas atividades. Mas
sempre a considerei como a minha predileta. A fabricação de
munições pode se tomar um empreendimento
excepcionalmente lucrativo, se for bem administrada. E eu e
meus concorrentes tencionamos cuidar com perfeição dos
nossos interesses, em futuro próximo. Enquanto isso, vamos
vivendo confortavelmente.

Paul ficou calado. De repente, uma coisa estranha


aconteceu-lhe. Viu um dia claro e ofuscante de inverno, com
neve por toda parte, o céu muito azul. Ele e Elsa estavam
parados na porta da casa da fazenda, envoltos por grossos
casacos. O pai deles, Martin, estava parado na varanda de
madeira, dizendo a um velho, o Tio Gregory:

— Não pode me fazer mudar de ideia. É dinheiro de


sangue e vai todo para o hospital, como sempre, a fim de
salvar algum sangue. Não tocaria num só centavo desse
dinheiro. — Ele alteou a voz, quase gritando: — Aquele
homem é um patife! Uma besta selvagem!

Paul, com sete anos, ficou curioso e perguntou:

— Quem é um patife, papai?

Martin virou-se, o rosto corado, os olhos azuis com um


brilho intenso. Mas sorriu para o filho, ao responder:

— Seu Tio Ernest, meu amor.

Paul esquecera inteiramente a cena. Mas recordou-a


nitidamente naquele momento. E a recordação do rosto do
pai foi ainda mais nítida. Flutuou diante dele, iluminada pelo
sol de inverno. Podia ver o brilho intenso e a paixão nos
olhos de Martin. Sentiu-se ofuscado, mesmo ao recordar.
Lembrou de todas as histórias sobre a hostilidade entre seu
pai e o tio. E ficou profundamente abalado.

Teve um sobressalto quando ouviu uma cadeira ser


arrastada no chão. Ernest estava se levantando e olhando
para o relógio, com o rosto franzido. Paul percebeu que
estava sendo dispensado. Levantou-se também.

— Como John Charles está indo no banco, Paul?

— Muito bem, Tio Ernest. — O rosto de Martin começou a


desvanecer, a voz foi sumindo. — Claro que ainda não se
pode dizer com certeza. Afinal, ele está trabalhando lá há
apenas três semanas. Mas embora tenha feito apenas coisas
de rotina, vem demonstrando uma grande aptidão. Temos
muitas esperanças.

— É uma pena que ele não tenha desejado terminar os


estudos. Mas é um bom rapaz e tem a cabeça no lugar. Acha
que ele poderia se encarregar de um dos guichês, dentro de
um ano?

— Não tenho a menor dúvida quanto a isso. Ele é


obstinado, um tanto impetuoso, mas é também esperto e
equilibrado. E pensa, fala, come, dorme, faz tudo em termos
do banco. Tirou do sótão todos os meus antigos livros.

— Ele e Joey provavelmente acabarão dirigindo o banco,


juntos. — Ernest sorriu. -Sua Tia Florabelle já me falou em
pôr Jules para trabalhar no banco, assim que ele terminar a
escola. Um bom rapaz, silencioso como um túmulo, sabendo
direitinho o que quer. Seu Tio Eugene acha que Leon se sairá
melhor com ele. — Ernest soltou uma risada, antes de
acrescentar: — Sabia que Etienne quer ser um ator?

Encaminharam-se juntos para a porta. A mão de Ernest


estava pousada afetuosamente no ombro do sobrinho. Ao
chegarem à porta, a expressão de Ernest tornou-se sombria,
apreensiva.

— Paul... — Ele hesitou, mas acabou falando, com alguma


dificuldade: — Como está Gertrude? Qual é o comportamento
dela quando vocês estão a sós? Confesso que a aparência
dela ultimamente não me agrada. Ela está cada vez mais
magra e já notei que come muito pouco. E evita a mãe e a
mim, como se não quisesse ficar a sós conosco.

Paul virou-se lentamente, fitando Ernest nos olhos. Um


tênue cinismo, uma insinuação de crueldade, espalhou-se
pelas feições rudes. Mas ele disse apenas:

— Trudie? Ela está muito bem. Acho que todo o


excitamento deixou-a um pouco cansada. Além disso, ela
está decepcionada porque ainda não tivemos uma lua-de-
mel. Mas prometi que a teríamos na primavera.

Ele pôs as luvas.

— Por favor, avise a Tia May que chegarei um pouco


atrasado para o jantar esta noite. Estamos quase no fim do
ano, Tio Ernest, temos de cuidar do balanço.

Depois que ele se retirou, Ernest fechou a porta


lentamente, uma aversão intensa insinuava-se na profunda
afeição que sentia pelo sobrinho. Por que ele não me conta
tudo?, pensou Ernest. O que significa aquela expressão em
seu rosto? Será que o jovem patife estava se atrevendo a
escarnecer de mim?
Ernest voltou a sentar-se atrás de sua mesa, assediado
pela inquietação e por uma aflição indefinida. Viu a mão da
filha como a vira pela manhã, segurando um garfo, sobre o
prato de ovos com bacon. Lembrou que o garfo lhe parecera
pesado demais para aqueles dedos finos, quase
transparentes. Recordou que os dedos da filha tremiam. E,
por algum motivo, ele não quisera olhar para o rosto da
filha.

Ernest tocou a campainha em sua mesa, furiosamente.


Seu secretário entrou correndo, dominado pela apreensão,
diante do chamado veemente.

— Garfinkel já deu alguma notícia sobre o recebimento


daquele colar de pérolas da Tiffany’s? — gritou Ernest,
furioso. — Faltam apenas cinco dias para o Natal e a
Tiffany’s prometeu enviar o colar para Garfinkel há uma
semana!

— Não, Sr. Barbour, o colar ainda não chegou —


respondeu o assustado funcionário. — Mas, se quiser, irei
procurar Garfinkel imediatamente e direi que envie outro
telegrama para a Tiffany’s, em Nova York. Tenho certeza de
que o colar deve estar chegando. Eles sabem que é o
presente de Natal da Srta. Gertrude.

— Eu deveria ter ido pessoalmente a Nova York, ao invés


de confiar naquele idiota do Garfinkel. Mas queria que o
fecho fosse trocado e por isso mandei-o de volta, por
intermédio dele. Está certo, vá falar com Garfinkel e veja o
que pode fazer.

Ernest pegou a pena com um gesto irritado e puxou uma


pilha de cartas, enquanto o homem se retirava. Mas ele ainda
não se sentia em condições de trabalhar.
Podia apenas ver aquela mão trêmula segurando o garfo.
E ao lado, despercebido, o colar de pérolas.
CAPÍTULO LXXIII
Há dias que May tentava encontrar-se a sós com Paul,
num lugar em que pudessem conversar sem que Ernest
desconfiasse ou Gertrude soubesse. Encontrou a
oportunidade naquela noite. Depois do jantar, Paul foi para a
pequena sala em que Gregory costumava guardar as caixas
de livros de contas antigos. Paul trouxera alguns livros de
contas do banco e levou-os para aquela sala, que quase
nunca era usada. Por algum motivo, Paul sentia-se oprimido
na biblioteca e seu quarto não lhe parecia o lugar apropriado
para trabalhar.

May seguiu-o até a sala. Ele acabara de sentar, abrindo os


livros sobre uma velha mesa de nogueira, toda escalavrada,
acendendo um lampião e aprontando a pena, quando a sogra
entrou na sala, fechando a porta. Paul franziu o rosto,
apreensivo. Não gostava de May e sabia que ela também
sentia alguma aversão por ele. Mas levantou-se cortesmente
e ofereceu uma cadeira. Antes mesmo que May estivesse
sentada, ele já voltara a arriar em sua cadeira. Tornou a
pegar a pena, franziu o rosto, indicando por todos os meios
possíveis que estava extremamente ocupado. Mas estava
também curioso, querendo saber o que a tia e sogra desejava
falar-lhe.

May sorriu afavelmente, estudando-o furtivamente por


um momento, avaliando o que podia daquele rosto atraente,
com o lábio inferior espichado, o nariz quadrado, os olhos
desconfiados.

— Paul — disse ela por fim, tentando imprimir um tom


afetuoso à voz — queria conversar um pouco com você, a
sós. E esta é a primeira oportunidade que encontrei. — May
riu gentilmente. — Afinal, somos mais do que sogra e genro.
Somos parentes sanguíneos. Minha prima era sua avó.

— Tem razão. — Paul estava mais cordial agora,


retribuindo o sorriso.

— O que somos afinal, Tia May? Primos em terceiro grau?


Mas que família mais complicada!

— Sua avó era maravilhosa, Paul. Lembro-me nitidamente


dela, embora já fosse uma mulher adulta, enquanto eu não
passava de uma garotinha. Achava que ela era a coisa mais
linda do mundo. Os olhos tinham uma tonalidade entre
violeta e azul, os cabelos em cachos caíam pelos ombros, o
nariz era pequeno e arrebitado. Sempre achei que você
parecia com ela.

— Minha mãe já tinha me dito isso — comentou Paul


satisfeito.

Ele largou a pena e olhou para May com mais


cordialidade. A expressão mudando, ela inclinou-se um
pouco para frente.

— Quero que me diga uma coisa, Paul. Por favor, não me


esconda nada. É muito importante. Ultimamente, você tem
parecido deprimido e irritado. E tenho a impressão de que
não é apenas por causa dos negócios. Não quer me contar
qual é o problema?

Paul desviou os olhos, furioso. Sua cautela nata colocou-o


prontamente em estado de alerta. Durante toda a vida,
jamais tivera um confidente, com exceção da irmã gêmea,
Elsa. E mesmo com ela fora vigilante e reservado. Não podia
romper tão facilmente o hábito de uma vida inteira. Não
estava em sua natureza confiar em outra pessoa, acreditar
que alguém pudesse ser altruísta. Assim, ele perguntou-se,
em seu silêncio obstinado diante de May, o que ela poderia
estar querendo, o que esperava descobrir ou ganhar.

Apesar disso, para sua própria surpresa, ele sentia


vontade de falar. May levantara-se no maior nervosismo,
estava agora de pé ao lado dele. Paul fitou-a sombriamente,
os lábios se entreabrindo. May cruzou as mãos tensamente,
inclinando-se para ele.

— Sou a mãe de Trudie, Paul. Não se esqueça disso. Ela é


minha filha. O que há de errado com Trudie? Sei que você
também pode percebê-lo. E como é o marido dela, talvez
possa me dizer. Não suporto mais vê-la assim, Paul, sempre
silenciosa, com uma cor horrível, dócil, apática. Como se...
como se uma parte dela... tivesse morrido...

Paul moveu ligeiramente a cabeça, o gesto indicando uma


angústia profunda e impaciente. Ele levantou a mão, mas
logo tornou a baixá-la, desolado.

— Ela chora durante o sono — disse ele, ficando alarmado


com as próprias palavras.

O rubor espalhou-se por seu rosto e ele olhou furioso


para May.

— Oh!

O som, saindo dos lábios de May, era como o som emitido


por uma pessoa que sofre um golpe violento no peito. Ela
voltou à cadeira, quase se arrastando, como uma velha,
tornou a sentar-se, angustiada e pálida. Paul levantou
abruptamente, cerrando as mãos nas costas, pondo-se a
andar de um lado para outro da sala. Não podia conter-se
agora, não podia se impedir de falar. Parou abruptamente
diante de May e ela percebeu que os músculos em torno de
sua boca contraíam-se espasmodicamente.

— Há outros meios de fazer as coisas! — exclamou ele,


como se as palavras fossem expelidas do seu íntimo por uma
força incontrolável. — Não é preciso se intrometer... em
coisas pessoais. Os negócios são diferentes. Mas não se deve
agir assim quando se trata... quando se trata de moças como
Trudie...

Houve um momento de silêncio. E depois May disse,


suavemente:

— Quer dizer que você sabe, Paul?

— Sei, sim. Mas não sabia até o momento em que casei


com Trudie. Até uma hora antes.

— Paul! — O grito de May estava impregnado de horror. —


Trudie sabe?

— Não.

May ficou calada por um instante.

— Paul, eu disse ao pai de Gertrude que, se ele a


magoasse, eu o deixaria, sairia desta casa para sempre...

A repulsa provocou um sobressalto em Paul e sua


expressão tornou-se novamente fria.

— Deixar Tio Ernest?

Aquilo era uma blasfêmia. Paul sentia-se degradado ao


pensar que uma mulher de sua família pudesse se tornar vil
o bastante para considerar a possibilidade de abandonar o
marido. Havia algumas mulheres que faziam coisas
abomináveis desse gênero, mas não se falava delas na
presença das mulheres da família. Ele estava espantado pelo
fato de May não perceber a enormidade da vergonha das
palavras que dissera, atônito porque o rosto dela permanecia
sereno e firme. Será que ela mudara de repente? As mulheres
frequentemente se transformavam, quando menos se
esperava.

— Exatamente. Era essa a minha intenção. Depois, quando


Trudie casou com você e descobri, de maneira indireta, que
ela não sabia que o pai era responsável por tudo,
compreendi que não poderia deixá-lo. Se o fizesse, Trudie
compreenderia tudo imediatamente, sua reação poderia ser
imprevisível. Por isso, vou continuar nesta casa. Pelo bem de
Trudie.

Paul pegou a pena e começou a bater com ela na mesa,


sombriamente. Não disse nada. Ainda parecia indignado com
aquela posição inadmissível de May. Depois de um momento
de silêncio, May voltou a falar, sempre gentil:

— Talvez tudo possa acabar dando certo. Seja bom com a


minha pobre filha. Nós, os pais dela, nada podemos fazer
por Trudie agora. Está tudo em suas mãos.

Paul sentia-se involuntariamente comovido, como sempre


acontecia ao ouvir falar de Gertrude. Uma súbita animação
insinuou-se em sua expressão indignada.

— Ser bom com Trudie? Por Deus, eu a amo!

Envergonhado outra vez de sua emoção, ele fechou a


boca bruscamente.

Eu estava enganada, pensou May. Ele não é absolutamente


como Ernest. Mas Ernest vai acabar por corrompê-lo, como
sempre corrompeu todas as pessoas. É como se estivesse
atormentado por uma doença terrível, que involuntariamente
transmite aos outros. Ela suspirou. Paul cobrira com a mão a
parte do rosto que estava virada para ela, como se quisesse
assim evitar os olhos de May. Ela pôs a mão no ombro dele,
aproximando-se outra vez. Apertou-lhe o ombro, forçando à
sua voz um tom jovial e afetuoso:

— Tenho certeza de que Trudie acabará por amá-lo, Paul.


As fantasias... mudam. Ela sempre foi retraída e jamais teve
flertes, como as outras moças. Philippe foi... a primeira
fantasia dela.

May parou de falar. Paul não teve qualquer reação,


mantendo o ombro imóvel, sob a mão dela. May
encaminhou-se para a porta.

— É uma pena que não vá conosco a Nova York, para


ouvir a sinfonia de Frey. Vamos sentir sua falta.

Paul baixou a mão. Já estava contrariado e apreensivo por


causa de sua explosão incontrolável. Franziu o rosto,
enquanto May virava-se novamente para a porta, e
comentou:

— Acho meio esquisito que ele não venha passar o Natal


em casa.

— Se está lembrado da carta de Frey, meu caro, deveria


saber que ele diz que há alguns problemas e detalhes finais a
serem acertados em Nova York. Afinal, ele só chegou esta
manhã. Isso mesmo, esta manhã! E o concerto será a 28 de
dezembro. Frey é, às vezes, um tanto difícil, mas deve ter
seus motivos para pedir-nos que não apareçamos em Nova
York antes do dia do concerto. — May exibiu um sorriso
cordial e apaziguador, acrescentando: — Afinal, talvez seja
uma manifestação do chamado temperamento artístico.

— Temperamento artístico? Isso não passa de uma


atitude egocêntrica! — Toda a aversão que Paul sentia pelo
primo transparecia em sua voz. — Pode estar certa que Frey
está fazendo mais uma das suas.

A ideia do frio, distante e indiferente Frey estar ‘fazendo


uma das suas’ divertiu May. Ela ria quase jovialmente ao sair
da sala. Antes de fechar a porta, no entanto, ambos ouviram
uma voz alta e autoritária.

— Elsa! — exclamou Paul, com a maior satisfação.

Ele fechou o livro prontamente, levantou e seguiu May


para a sala de estar.

Encontraram Elsa parada sobre o tapete diante da lareira.


Ela se recusara a tirar o pelerine de pele, que estava
salpicado de neve. O chapéu de pele, fixado reto na cabeça
(nada de inclinações coquetes para Elsa!), estava guarnecido
por neve que se derretia. As mãos ainda estavam dentro do
regalo. Ela recusara uma cadeira. Estava parada ali, diante do
fogo, exuberante, corada, dominadora, ombros largos,
vigorosos, parecendo uma amazona. Inclinou-se e beijou o
rosto de May, depois deu um beijo sonoro no irmão adorado,
na boca. Depois recuou e contemplou-o. O rosto dela era
mais suave que o de Paul e um pouco menor. Afora isso, no
entanto, eram idênticos, com os mesmos olhos azuis
inflamados, os mesmos queixos determinados.

— Sente-se, Elsa — disse Paul.

— Não. Só passei aqui por um momento.


— Está sozinha, minha querida? — perguntou May,
sentando ao lado de Gertrude, silenciosa e sorridente.

— Sozinha? Mas claro! Adoro passear pelo ar frio e à


noite, pela neve e o vento. Fica todo mundo trancado em
casa, sem saber como é agradável passear pelas ruas
desertas. É uma coisa que adoro.

— É por isso que você tem as faces tão coradas —


comentou Ernest, sorrindo.

Ele largara o jornal e parecia satisfeito pela visita de Elsa.

— Pelo menos uma coisa é certa: nunca terei de pintar o


rosto — respondeu Elsa, complacente. — Não, Tia May, não
quero me sentar. Tenho de voltar logo. Mamãe está
inteiramente sozinha, pois John Charles também saiu esta
noite. — Ela fez uma pausa, hesitante. — Vim apenas dizer
que gostaria de acompanhá-la, a Tio Ernest e a Trudie a Nova
York, a fim de ouvir a música de Frey. Afinal, há séculos que
não vejo Lucy. Ela quase não nos visita desde que o pequeno
Thomas nasceu. Escrevi-lhe hoje e disse que nos esperasse a
todos no dia 27 de dezembro.

May corou ligeiramente, mas sua voz continuava


perfeitamente controlada quando respondeu:

— Mas já reservamos acomodações no Astor Hotel...

— Isso é uma bobagem! Afinal, Tia May, ela é sua


sobrinha. E Trudie é cunhada. Acho que seria um insulto.
Tenho certeza de que Lucy ficaria indignada. Afinal, ela tem
uma casa de 18 aposentos e uma legião de criados. E seu
querido Percy Van Eyck tem uma fortuna que faz a nossa
parecer insignificante. Por favor, não seja teimosa, Tia May.
Sabe muito bem que Lucy já convidou-nos dezenas de vezes
e Tio Ernest é o único que até agora aproveitou a
hospitalidade dela. — Ela virou-se abruptamente para Ernest,
indagando: -Lucy tem ou não a casa mais deslumbrante do
mundo, Tio Ernest?

Ele sorriu, alteando as sobrancelhas, respondendo em


tom indiferente, para caçoar dela:

— É uma casa das mais razoáveis...

— Essa não! Sempre gostou de implicar comigo, Tio


Ernest! —Elsa jogou o regalo das mãos em cima dele,
jovialmente. Ernest desviou-se. — Sabe muito bem que a casa
é espetacular. Não acreditei a princípio, mas os Van Eycks
são de fato a nata da elite de Nova York. Quando lá estive,
senti-me como a realeza, por ser irmã de Lucy. A Sra. Van
Eyck, a mãe de Percy, é uma verdadeira matrona à antiga.
Não conhece o irmão dela, Tio Ernest? É Jay Regan, o
financista.

— Eu o conheço ligeiramente — disse Ernest, piscando um


olho para Paul.

— Pare de caçoar de mim! Lembro agora que ele falou a


seu respeito. Muito cortesmente...

— Pelo que me sinto grato — disse Ernest.

— Todo mundo neste país e provavelmente em outros


também o conhece, Tio Ernest. A casa de Lucy na Quinta
Avenida é simplesmente um palácio. Até mamãe ficou
impressionada. E vocês sabem como mamãe é inteiramente
sem imaginação. Nada jamais consegue impressioná-la.
Tenho a impressão de que ela nem notaria se nossa casa se
transformasse numa cabana de troncos da noite para o dia!
— Eu não gostaria de incomodar Lucy — disse May. — E
ainda por cima avisando com tão pouca antecedência. Não
apenas seria uma grosseria, mas também...

— Ora, Tia May, não seja tão formal. Além do mais, já


escrevi para Lucy.

— Foi muito errado da sua parte não me consultar antes.

May parecia realmente contrariada. Ernest remexeu-se em


sua cadeira, irritado.

— Tudo isso é bobagem. Uma tempestade em copo


d’água. Talvez Elsa tenha sido um pouco precipitada, mas foi
muita consideração da parte dela. A hospitalidade de Lucy
será muito melhor do que um hotel. Estou satisfeito com o
acerto. Lucy sempre foi muito hospitaleira.

Toda a cor desvaneceu-se do rosto de May. Os lábios


estavam tão comprimidos que mal eram visíveis, como uma
linha reta e lívida. Ela olhou de Ernest para a sobrinha e
pensou: então Frey será também sacrificado a esses canibais!
Não, não vou deixar que isso aconteça com meu filho! Não
com Frey, meu querido!

Ernest começara a caçoar de Elsa a propósito de Godfrey:

— Não seja hipócrita, menina. Não está absolutamente


interessada pelo bebê de Lucy. É de Frey que está atrás! Pois
ele terá muita carne para abraçar. Você come demais.

Elsa estava com o rosto inteiramente vermelho, mas os


olhos faiscavam.

— Não como, não! Além do mais, as mulheres cheias de


corpo estão em moda atualmente. E é claro que eu quero ver
Frey. Tenho sido horrível ultimamente, não lhe escrevendo
tanto quanto deveria. Espero que ele me perdoe. Seja como
for, Nova York está maravilhosa nesta época do ano. Adoro
as lojas. Lucy disse que o centro de compras está se
afastando da Rua 14, Tia May.

— Eu não sabia... — murmurou May.

Durante todo esse tempo, Gertrude não dissera uma única


palavra, nem mesmo ao jovem marido, que sentará ao seu
lado e passara o braço pelo encosto da cadeira. Gertrude
olhava para o fogo, a claridade avermelhada espalhando-se
por seu rosto triangular, iluminando os contornos cansados
da boca lívida, o nariz murcho, as sobrancelhas compridas
que escondiam os olhos apáticos. Os cabelos escuros
estavam soltos infantilmente sobre a testa e as faces. As
mãos estavam caídas no colo, as palmas viradas para cima,
numa atitude de desamparo e abandono.

Quando Elsa lhe dirigiu a palavra, Gertrude teve um


sobressalto e virou os olhos aturdidos e assustados para a
prima.

— Santo Deus, Trudie, com o que está sonhando agora?

Gertrude sorriu. Para Ernest, aquele sorriso pareceu


profundamente patético.

— Desculpe, Elsa. Sei que fui muito grosseira. Para dizer a


verdade, estava procurando decidir que presente dar a
mamãe no Natal. Até agora ainda não decidi.

Elsa despediu-se. Estava muito excitada, na maior


animação. May acompanhou-a ao vestíbulo.

— O que há com Trudie? — perguntou Elsa, num sussurro


teatral, ouvido facilmente pelos que estavam na sala. — É
possível que ela já esteja grávida?

Ernest olhou furtivamente para a filha. O rosto dela


estava pálido, com uma expressão de profunda repugnância.

CAPÍTULO LXXIX
Reginald e Guy Barbour chegaram em casa, vindos das
respectivas escolas, um dia antes do Natal. Guy estava na
maior alegria por sua libertação e até mesmo o sisudo
Reginald, ou Reggie, condescendeu em relaxar. Reginald,
sendo meticuloso e arrumado, praticamente não perturbava
a rotina da casa. Mas era de se pensar que todo um bando de
rapazes estava à solta pela casa, a julgar pelo barulho e
confusão que Guy criava.

— Quem poderia imaginar


que você casaria com aquele bobalhão do Paul! — disse
ele para a irmã, com uma sinceridade cativante. — Sempre
pensei que estivesse apaixonada por Philippe. Sabia que
Philippe era um dos camaradas mais respeitados na escola? E
agora ele virou padre! Confesso que não consigo
compreender. Por acaso você não o abandonou
desdenhosamente? Essas garotas muito quietinhas como
você são capazes de tudo!

Reginald, o sisudo e reservado, exprimiu-se de forma


comedida, numa voz e atitude que eram dignas de um
clérigo de meia-idade:

— Paul Barbour não é certamente o homem que eu


escolheria para você, Gertrude. Ele não tem o menor
resquício de devoção. Mas esta época se volta para as coisas
materiais e por isso acho que ele tem um lugar nela.

Ao ouvir isso, Gertrude exibiu o seu primeiro sorriso


espontâneo, desde o casamento.

— Estão cometendo uma injustiça com Paul — disse ela.


— Devem lembrar que ele não apenas é o primo de vocês,
mas agora tornou-se também cunhado,

— Só que isso não vai fazê-lo mudar — disse Guy, sempre


sincero. -no Natal passado, ele deu-me um par de escovas
que começaram a perder os fios quase que imediatamente,
como um cão sarnento. Agora, estão tão carecas quanto um
ovo. É bem possível que ele me dê este ano uma corrente de
relógio folheada a ouro que começará a ficar esverdeada 24
horas depois. Onde está aquela corrente verde que ele lhe
deu no Natal passado, Reg?

Reginald sorriu, involuntariamente. Sorria tão raramente


que parecia um estranho quando isso acontecia.

— Dei-a ao nosso engraxate. Mas acho que ele achou-a


muito ordinária, pois encontrei-a na cesta de lixo na manhã
seguinte.

Enquanto o irmão falava, Guy examinava com atenção o


rosto pálido de Gertrude. E perguntou, abruptamente:

— Ei, Trudie, você já está esperando um filho?

Foi Reginald e não Gertrude quem corou intensamente.


Gertrude riu ao ver a cor e a expressão de Reginald.

— Mas que ideias você já tem para um garoto, Guy! —


exclamou ela.

— Que coisa mais indecorosa para se perguntar a uma


dama! — disse Reginald, com um furioso olhar de censura
para o irmão mais moço.

— O que há de indecoroso num bebê? Você não passa de


uma velha de calça, Reg. Ei, Trudie, sabe como chamam o
velho Reg na escola? Quem me contou foi Chetlow, cujo
irmão é colega de Reg. O apelido dele é Chuvarada.

— Chuvarada? — Gertrude estava divertida. — Mas por


quê?

O rosto de Reginald estava agora roxo e o brilho em seus


olhos era ameaçador e perigoso. Por um momento, ele estava
surpreendentemente parecido com o pai. Avançou agilmente
para Guy, que conseguiu desviar-se, enquanto gritava para
Gertrude:

— É o popular Chuvarada-na-calça! E desafio Reg a lhe


explicar o motivo!

Gertrude corou, soltou uma risada indecisa. Reginald


finalmente conseguiu, com um movimento hábil, capturar o
irmão, pondo-se a surrá-lo com um entusiasmo que não
estava absolutamente de acordo com o seu controle e
dignidade habituais. Guy retribuiu a investida com o maior
vigor. Os dois caíram no chão estrepitosamente e começaram
a rolar, num emaranhado de braços e pernas. Gertrude
levantou as pernas esguias e as saias para cima do assento
ao lado da janela e ficou observando a briga ruidosa com
algum prazer. Sentada daquele jeito, os braços finos
envolvendo as canelas, o queixo apoiado num dos joelhos,
ela parecia novamente jovem e quase feliz, pois os olhos
fundos faiscavam divertidos e sorria alegremente.

Os rapazes foram chocar-se contra uma parede,


provocando a queda de um quadro. Levantaram-se, limpando
a poeira das roupas, gritando ameaças mútuas. Reginald
estava mais desgrenhado do que Guy. Sua dignidade sofrera
muito mais, assim como o casaco. Embora risse junto com
Guy, seu rosto assumiu uma expressão soturna depois que
parou.

Os três jovens estavam no quarto de Guy e Reginald, um


quarto grande e antiquado, com sólidos móveis de nogueira
e uma imensa lareira, em que ardia um fogo forte. Lá fora, o
dia de dezembro era cinzento, as sombras se projetando
interminavelmente, através da nevasca.

Os dois rapazes gostavam muito da irmã, cujo casamento


deixara-os secretamente chocados. Guy tinha alguma
consideração pelo irmão Godfrey; Reginald sentia desprezo
por ele. Guy detestava o jovem Joey; Reginald ignorava-o.
Ambos mantinham-se permanentemente surpresos e
indignados com o amor de Gertrude por Godfrey. Era o
grande ciúme que sentiam.

Era um hábito antigo de Gertrude passar horas em


companhia dos irmãos, no quarto deles, escutando as
histórias divertidas e maliciosas de Guy, condoendo-se da
melancolia angustiada de Reginald. Havia ocasiões em que
tomavam o chá ali, sentados diante do fogo, Guy jogando
migalhas no tapete resistente, mas surrado.

A cada ano, o jovial Guy tinha uma nova e entusiástica


ambição. Naquele ano ele decidira partir para o oeste. Estava
convencido de que o leste se tornara combalido e decadente.
Resumia-se a roupas elegantes, convenções, canções
sentimentais, carruagens rolando suavemente por ruas bem
pavimentadas, velhos passeando com bengalas de castão de
ouro. O leste estava insípido e morto, a vida se esvaíra dele.
A segurança o consumira e estava agora insuportável.

O chá foi trazido e Guy gesticulou vigorosamente, com


um pedaço de bolo na mão. Ia para o oeste, onde poderia
conhecer os vaqueiros que levavam uma vida simples,
contemplar as estrelas à noite, cavalgar por pradarias
intermináveis, regalar os olhos com o Deserto Pintado,
conviver com a Natureza, tornar a conhecer a vida,
exuberante, um lugar em que...

— Os homens são homens de verdade — interrompeu-o


Reginald, com uma risada brusca, que tinha alguma coisa de
bufido.

— Papai não consentiria, Guy — disse Gertrudes, depois


da rápida briga provocada pelas palavras de Reginald.

— Darei um jeito nele — disse Guy, altivamente. — Vou


lhe dizer que não aguento mais esta vida do leste, entre
industriais implacáveis e vorazes...
— São palavras perfeitamente justas. — Gertrude deu de
ombros, tomando um gole do chá, com uma satisfação como
há semanas não sentia. — Basta me dar o nome de um desses
industriais implacáveis e vorazes...

— O próprio velho — respondeu Guy, afável. — Não sabia


que ele não passa de um velho pirata? É verdade que ele não
é pior do que os outros, mas nem por isso se torna um
inocente.

Reginald ficou calado. Sem saber se devia achar graça ou


ficar aborrecida, Gertrude fitou-o especulativamente. Guy
tinha um rosto comprido e moreno, que mais tarde se
tornaria cadavérico. O lábio superior caía do nariz curto para
a boca reta. Os olhos escuros, propensos ao mau humor,
moviam-se irrequietos sob pálpebras empapuçadas. Os
cabelos eram pretos e lisos, um tanto compridos. Ernest
comentara, certa ocasião, que seu segundo filho era tão
animado quanto um cadáver. O que não chegava a ser um
grande exagero, diga-se de passagem. Reginald detestava
roupas vistosas e alegres. No prazer ou no estudo, na igreja,
escola, casas de amigos, no verão ou inverno, usava sempre
roupas pretas austeras, gravatas pretas simples. O corpo era
comprido e esguio, as botinas sempre bem engraxadas. O
comportamento era invariavelmente decoroso e distinto, frio
e reservado, às vezes repreensivo.

Guy era surpreendentemente diferente de seu irmão


predileto. A cor era a mesma de Godfrey, mas ele não tinha a
beleza clássica das feições nem a austeridade de expressão.
‘Brejeiro’ era o adjetivo que melhor descrevia Guy, com o
rosto sempre corado, cabelos louros, as covinhas nos dois
lados da boca sorridentes. Mesmo nos raros momentos de
repouso, no sono ou quando estava com raiva, as covinhas
sobressaíam em suas faces. Os olhos azuis irrequietos
perdiam muito de sua sedução porque eram um tanto
estreitos, enviesando para cima nos cantos, marcados pelas
rugas do riso. Isso lhe proporcionava uma aparência oriental
e aumentava consideravelmente o impacto de uma expressão
astuta. Os cabelos louros cacheados estendiam-se pela
cabeça em ondulações, algo que dava muita vaidade. A boa
aparência, somando-se a uma disposição exuberante,
efusiva, generosa e aparentemente franca, proporcionava-lhe
legiões de amigos. Incorrigível e indiferente na escola,
conseguindo ser aprovado sem aprender coisa alguma, ele
era ainda mais inteligente do que Reginald, que era a alegria
dos professores.

Antes que Gertrude pudesse protestar contra a descrição


que Guy fizera do pai, Joey entrou no quarto (“Ele sempre
cheira a comida”, dizia Reginald, repugnado). Ao ver o irmão
caçula, Guy tornou-se de repente ainda mais jovial e
amistoso.

— Chegou bem a tempo para o último pedaço de bolo! —


exclamou ele. — Puxa, esse garoto está ficando maior e mais
forte a cada dia que passa! Aposto que ele já pesa tanto
quanto eu!

Guy, embora pudesse desejar mais alguns centímetros na


altura, tinha um grande orgulho de seu corpo esguio e ágil
de dançarino.

Joey contemplou o que sobrara do bolo com uma


expressão soturna e astuta. Pegou uma fatia e começou a
mastigá-la, sem fazer qualquer comentário. Embora sorrisse
afetuosamente, Guy achava que o irmão caçula era
extremamente repulsivo. Sabia que Reginald sentia às vezes
o maior antagonismo pelo garoto de dez anos e que esse
antagonismo assumia a forma de indiferença. Seu próprio
antagonismo era aparentemente mais cordial, embora na
verdade fosse impregnado de malícia e aversão sorridente.
Ele ficou observando o garoto comer, a boca firme movendo-
se lentamente, quase sensualmente, enquanto rolava cada
pedaço de bolo pela língua, comprimindo-o contra o céu da
boca, a saboreá-lo. O prazer na expressão dele era quase
obsceno, pensou Guy, por trás de seu sorriso indulgente.
Havia também crueldade na expressão, como se o bolo fosse
uma coisa viva, que ele estava esmagando entre os dentes.
Enquanto comia, os olhos de Joey, pequenos, astutos e
brilhantes, estudavam os irmãos, lentamente,
individualmente. O último pedaço de sua fatia desceu pela
garganta. Ele olhou para a fatia que ainda sobrava. Gertrude
pôs a mão por cima.

— Não, Joey. Você sabe o que mamãe disse. Não deve


comer nada tão perto do jantar.

Ele empurrou a mão da irmã, beliscando-a enquanto o


fazia, com uma brutalidade distraída.

— E por que não?

Ele meteu a última fatia na boca. Mas antes que pudesse


engolir, Reginald acertou-lhe um golpe na parte de trás da
cabeça, arremessando-o para frente. Joey teria caído de cara
no chão, se Gertrude não o segurasse pelo braço.

— Reggie! — gritou ela, em protesto.

— Isso vai ensinar o pequeno patife a não beliscá-la! —


disse Reginald, furioso, esfregando a mão que ardia. — É
uma cabeça dura como pedra!

Joey, salvo de um mergulho na lareira, soltou um grito de


raiva, empurrando a irmã para trás.

— Vou contar a papai! — gritou ele. — Vão ver só! Você


não passa de um idiota devoto, de coração mole e sem
nenhuma coragem, Reg! — Ele desferiu um pontapé contra a
perna fina e comprida do irmão, acrescentando: — Você já é
um cadáver, mas ainda não sabe disso e por isso não deita!

Gertrude olhou para Reginald, indignada. O rapaz ficou


vermelho, desferiu um golpe contra Joey, que esquivou-se
habilmente. Mas Guy ria deliciado, batendo com as mãos nas
coxas.

— Ah, o eco de papai, Reg! Ele deve ter escutado o velho


por trás das cortinas! Ouvi o velho dizer isso a seu respeito
pelo menos meia dúzia de vezes!

Ele estava exultante de regozijo, até mesmo um pouco de


perversidade. Mas havia alguma coisa nessa perversidade
que não provocava antagonismo e raiva.

— Pare de gritar, Joey, senão, daqui a pouco, todas as


criadas estarão entrando aqui. Tenho um presente de Natal
para você que é sensacional.

Joey cessou de esbravejar abruptamente, como um fluxo


de água interrompido de repente. Olhou imediatamente para
o irmão, os olhos se estreitando e brilhando, impregnados de
astúcia e com um desdém que nada tinha de infantil.

— Espetacular? — repetiu ele, afastando-se da


proximidade de Reginald, que estava vermelho de raiva. —
Aposto que não custou mais de 25 cents. Você nunca tem
dinheiro. Desperdiça tudo em besteira. Não serve para nada
e vai acabar na sarjeta. É um moleque, um imprestável.

— O eco de papai, Guy! — lembrou Reginald, com uma


risada curta e desagradável.
Guy riu também, um tanto contrafeito. Mas parecia
determinado a não sentir-se ofendido naquele dia.

— Joey, você não tem o direito de repetir as coisas que


ouve. — disse Gertrude. -Nem sempre papai pensa realmente
o que diz. Os pais sempre têm muitas preocupações e de vez
em quando podem falar sem pensar no que estão dizendo...

O garoto fitou-a com uma expressão irritada. Terminou de


mastigar o bolo que provocara todo o tumulto e engoliu-o
audivelmente.

— Pois saiba que o pai também não a tem em alta conta,


Srta. Gertie! Ouvi-o dizer a mamãe que uma mulher tem o
dever de não parecer uma gata doente durante quase todo o
tempo e que você não estava acrescentando coisa alguma à
alegria de Paul na vida. Não que eu goste muito daquele
idiota, mas...

Guy e Reginald olharam rapidamente para Gertrude. Por


um momento, ao crepúsculo, perceberam a expressão dela. E
o que Reginald viu fê-lo levantar-se com uma agilidade
sinistra, determinado a acabar com Joey. Mas Guy, com sua
agilidade de dançarino, tratou de empurrar o irmão caçula
para fora do quarto, saindo atrás dele, gritando:

— Pode deixar que cuidarei dele.

A porta foi batida estrepitosamente. Reginald, de rosto


vermelho, expressão sombria, respiração ofegante, estava
parado ao lado da lareira, fazendo um esforço a fim de não
olhar para a irmã.

— Um garoto horrível! — murmurou ele, endireitando a


gravata. — Acho que eu não deveria tratá-lo assim. Ninguém
tem o direito de insultar qualquer outra pessoa. Mas às vezes
ele me faz perder o controle...

Reginald sentou-se, espiando furtivamente para Gertrude.


Ela estava sentada num silêncio tenso, as mãos cruzadas no
colo, a cabeça ligeiramente abaixada. Algo na atitude dela
provocou uma angústia insuportável no irmão, levando-o a
dizer, com uma impulsividade que não lhe era natural:

— Trudie... o pai... alguma pessoa obrigou-a a casar com


Paul?

Gertrude levantou a cabeça, devagar. Reginald pôde sentir


mais que ver o vazio e desespero nos olhos dela.

— Obrigar-me, Reggie? — repetiu ela, gentilmente. — Mas


que ideia mais estranha!

Ela inclinou-se e pôs a mão por um instante no joelho do


irmão. A expressão soturna de Reginald era agora de
profunda aflição.

— Meu caro Reggie, pode ter certeza de que aconteceu


tudo o que eu queria. Reconheço que as coisas têm sido um
tanto... confusas e que me sinto solitária. Fico contente por
você e Guy estarem em casa. Talvez Frey volte também e
então estaremos todos juntos novamente.

Reginald ficou calado. A suavidade apática da irmã


assustava-o. Aquela não era a mesma moça irrequieta e um
tanto frenética do último verão, com seus movimentos e
gestos bruscos, as sobrancelhas se alteando subitamente
para revelar olhos extremamente brilhantes e divertidos,
facilmente irritável, de língua ferina e impaciência nervosa.
Reginald pôs a mão sobre os dedos frios em seu joelho,
incapaz de falar qualquer coisa, por um momento. Quando
ele finalmente falou, a voz estava apreensiva e sombria.
Embora não falasse expressamente de Gertrude, ela
compreendeu que as palavras dele derivavam de seus
temores pela situação.

— Jamais contei isso a ninguém, Trudie, mas agora vou


lhe revelar. Como você sabe, o pai quer que Guy e eu
entremos nos negócios, assim que deixarmos a universidade.
Mas não vou fazê-lo. Não quero o dinheiro dele. Não quero
nada que ele tenha para dar. Ouvi rumores na família de que
Tio Martin não queria ter qualquer participação nos
negócios, porque achava que a fabricação de munições era
uma coisa inadmissível. Posso compreender como ele se
sentia, embora pessoalmente não me sinta assim. Acontece
apenas que não estou interessado no dinheiro. Não o quero.
Muito dinheiro, milhões de dólares, qualquer que seja a
origem, parece-me algo completamente errado. Não posso
acreditar que Deus tivesse a intenção de conceder a qualquer
homem tanto dinheiro quanto papai tem. Não se pode ganhar
tanto dinheiro assim honestamente. Mas nem mesmo isso é a
coisa importante. Acredito que fomos criados para levarmos
uma vida simples e frugal, serena e nobre, não em grandes
cidades apinhadas, mas em áreas rurais, em contato com a
terra, meditando e trabalhando, ganhando o pão de cada dia
com o suor do rosto, literalmente.

Ele observou a irmã atentamente, constrangido,


desconfiado, com medo do ridículo. Mas os dedos em seus
joelhos estavam firmes, transmitindo apenas amor e
compreensão.

— Quero voltar... para os menonitas, Trudie.

Reginald quase que sussurrou, olhando para trás, o que


denunciava seu medo instintivo do pai, o que caracterizava
todos os filhos de Ernest.
Gertrude não disse nada por um longo momento. Seus
pensamentos concentravam-se involuntariamente no pai.
Automaticamente, como na infância, a lealdade e adoração
pelo pai afastaram-na de Reginald.

— Os menonitas, Reggie? Mas eles são pessoas


extraordinárias! São simplesmente inaceitáveis! Eles não são
parecidos com aqueles horríveis quacres? Tudo isso vem
daquela mulher insuportável, que lhe ensinava orações e
apavorava-o com histórias sobre o inferno.

Involuntariamente, Gertrude recordou os comentários


sarcásticos do pai depois que a babá menonita fora
dispensada, a pergunta torturante que ele sempre fazia:

— Onde estão seus botões, Reggie?

Detestou-se por sorrir no escuro. Mas o pobre Reggie era


mesmo absurdo, pensou Gertrude, a lealdade ao pai
predominando.

— O dinheiro, meu querido, não pode ser desprezado.


Você nunca viveu sem dinheiro. Ainda é muito jovem e não
pode compreender o que o dinheiro significa. Sempre teve
tudo o que queria. E posso lhe assegurar que não gostaria de
trabalhar a terra, como está dizendo que deseja fazer. Tia
Amy contou-me o quanto sofreu quando Tio Martin levou-a
para a fazenda, como era tudo terrível e solitário.

Reginald estava amargurado de desapontamento.

— Solitário? E o que sou agora?

Ele parou de falar abruptamente. Não tinha palavras para


continuar. Sentia a língua grossa dentro da boca, sua
vontade era chorar. Gertrude fixou os olhos inquisitivamente
no rosto dele. O fogo aumentara um pouco de intensidade e
a claridade avermelhada espalhava-se pelo rosto
atormentado de Reginald. Estava desolado como os rostos
impassíveis dos fazendeiros das montanhas da Pensilvânia,
com algo de esquelético, uma fome que era mais espiritual
do que física. Gertrude compreendeu de repente que
Reginald era da mesma espécie que aqueles fazendeiros
rudes. Era frugal como os menonitas, para os quais o
dinheiro não significava absolutamente nada, nem um
instrumento de poder nem um meio de aquisição de luxo e
segurança. Pois eles eram incapazes de compreender o que o
poder, o luxo e a segurança podiam significar. Estava além
da compreensão deles. Encontravam em outras coisas a
felicidade, realização na vida e paz de espírito. Gertrude
sentiu tais coisas vagamente, com algum desagrado, aversão
e repulsa. Não obstante, ela compreendeu que Reginald não
era impelido por um ideal, mas pelas características de seu
temperamento. E ela compreendeu também que um homem
podia mudar seu ideal, mas jamais trocava de personalidade.
Assim, Gertrude acabou dizendo, não com simpatia, mas
pelo menos com compreensão:

— Mas a verdade é que sabe melhor o que deseja, meu


querido. É claro que papai ficará desapontado. Frey já foi um
golpe e tanto. Ele esperava que você e Guy pudessem
compensá-lo. Mas se você não pode, então não pode. Mas
será muito difícil convencer papai de que lhe seria
impossível, não por causa de algum ideal absurdo, mas
apenas porque você é naturalmente incapaz de fazer o que
ele deseja. Tentarei ajudá-lo, Reggie, se quiser.

O rosto dele, ainda jovem e não inteiramente rígido,


exibiu um sorriso aliviado e agradecido.

— Pode compreender, não é mesmo, Trudie? E quer


realmente me ajudar? Pois então me ajude a convencer o pai.
Não quero ir com todo mundo para Nova York desta vez.
Preciso me encontrar com uma pessoa no interior do estado.
Praticamente prometi...

Enquanto isso, Guy afastara-se com Joey e conseguira


acalmá-lo um pouco, com lisonjas e gracejos. Insinuou, sem
chegar a dizê-lo expressamente, que Reginald era de fato um
idiota. Ninguém, com exceção de Ernest, sentia-se afrontado
com as hipocrisias joviais de Guy. Ele falava para ser levado
a sério, com resquícios de maldade e egoísmo. Contudo, Joey
não se deixou levar pelo espalhafato do irmão mais velho e
retornou sua expressão soturna.

— Sei o que está querendo, Guy! — disse ele,


desdenhosamente. — Quer que eu lhe empreste algum
dinheiro.

— Exatamente! — concordou Guy, com uma desfaçatez


jovial, capaz de desarmar qualquer um. — Você é um garoto
esperto, Joey.

— Não venha com essa para cima de mim — respondeu


Joey, prematuramente adulto. — Não pode me enrolar com a
sua conversa mole. Pode enrolar mamãe e Gertie, mas não a
mim. Não vou lhe emprestar mais dinheiro. Emprestei dois
dólares no último Dia de Ação de Graças, para o presente de
aniversário de Gertie. Ainda não me pagou nem os juros,
embora prometesse que o faria até 1º de dezembro, quando
recebesse a sua mesada.

— Juro por minha honra que esqueci, Joey...

— Sua honra? Você não tem nenhuma. Além do mais, não


estou interessado em honra, na sua ou de qualquer outra
pessoa. A única coisa que me interessa é o dinheiro que
economizo da minha mesada e dos presentes de aniversário
e Natal. Dinheiro é a única coisa que importa. E você tem
dois dólares do meu dinheiro.

— Não pago tudo sempre, Joey? — Guy ainda sorria, mas


sua raiva aumentava, subindo pela garganta. As mãos
ficaram cerradas, negligentemente encostadas nos quadris.
— É a primeira vez que esqueci.

— Quero meus dois dólares — insistiu Joey, ainda


desdenhosamente. — Se não pagar até 1º de janeiro, vou
pedir a papai para cobrar por mim.

— Não faria isso.

— Acha mesmo? Pois isso é tudo o que tenho a dizer.


Pode tomar dinheiro emprestado de qualquer outra pessoa
para os presentes de Natal, menos de mim. E não quero
nenhum dos seus presentes ordinários. Quero apenas que
me dê os meus dois dólares e mais 50 cents de juros e multa
por não ter pagado no prazo. Já sei agora que não posso
emprestar dinheiro a patifes e perdulários como você...

Reginald estava no meio de sua argumentação para


justificar sua vida entre os menonitas quando soou um berro
angustiado no corredor. Gertrude teve um sobressalto,
começou a levantar. Mas Reginald riu e comentou:

— Parece que Guy não conseguiu arrancar um novo


empréstimo de Joey. De certa forma, Guy bem que merece
isso. Ele vem gastando praticamente toda a minha mesada,
além da sua. Para o próprio bem dele, não vou lhe dar mais
dinheiro. Isso só serve para encorajá-lo a ser ainda mais
pródigo...

A porta se abriu e Guy apareceu, um pouco pálido, mas


ainda jovial. Os gritos foram se afastando pelo corredor,
descendo a escada. Aproximando-se do fogo, Guy estendeu
as mãos e examinou-as.

— Olhe só para os meus dedos! O garoto tem uma


queixada que parece a de um burro. Mas valeu a pena!

— Oh, Guy! — exclamou Gertrude, aflita. — Você sabe que


Joey vai contar a papai e que terá a maior encrenca. Por que
não me pediu, se precisava de dinheiro?

— E como poderia fazê-lo? Já tenho os presentes de


todos, menos o seu. Meu dinheiro acabou. Queria apenas
cinco dólares daquele pequeno animal.

— Mas você sabe que papai advertiu-nos expressamente,


dezenas de vezes, que não deveríamos tomar dinheiro
emprestado um do outro. Deve estar lembrado que ele soube
um dia que você tomara dinheiro emprestado de Reggie e
passou três meses sem lhe dar um só vintém. Além do mais,
sou agora uma mulher casada e poderia emprestar-lhe todo o
dinheiro que precisasse.

— Você é maravilhosa, Trudie, mas...

— Meu presente de Natal para você, Guy, será uma moeda


de ouro de 20 dólares. O que diria se eu lhe desse o presente
agora, sem esperar pelo Natal?

— E o meu é uma moeda de ouro de cinco dólares — disse


Reginald, relutante. — Isso dá 25 dólares. Sei que não
deveria deixá-lo pegar o dinheiro antes do tempo, mas sou
fraco como Trudie. Tente se arrumar com esse dinheiro até
receber sua próxima mesada. E se deve alguma coisa a Joey,
pague logo de uma vez, antes que papai volte para casa esta
noite.
Guy, recuperando o bom humor, mostrou-se ainda mais
exuberante e jovial, depois do breve acesso de raiva. Relatou
sua conversa com Joey, exagerando em alguns pontos, com
tanta graça que Gertrude e até mesmo Reginald riram até as
lágrimas rolarem. Mas Gertrude ainda estava preocupada
com a ira do pai quando Joey tivesse uma oportunidade de
vingar-se do irmão mais velho, denunciando-o a Ernest.

— Não se preocupe com o velho — disse Guy,


alegremente. — Já imaginei um meio de envolvê-lo. Ele está
sempre esbravejando que não temos o menor interesse pelos
negócios e não prestamos para nada. Pois vou lhe dizer que
não tenho o menor interesse em ir para Nova York a fim de
escutar a linda música de Frey. Prefiro ir com Paul para as
minas de carvão e observar como se fazem as coisas. Isso
deve ser suficiente para abrandá-lo.

— Não acha que é um tanto forçado, querido? —


perguntou Gertrude, sorrindo.

Mas Reginald, que a princípio escutara com indiferença,


teve a sua atenção aguçada ao final. Observou o irmão
inquisitivamente, as sobrancelhas franzidas por cima dos
olhos fundos e sem qualquer brilho.

— Forçado? Acho que não. Eu gostaria de conhecer as


minas. Estão ocorrendo greves por lá. Eu gostaria de
observá-las também. Na escola, tenho lido muito a respeito,
nos jornais.

Guy examinou as unhas distraidamente, bocejou. A


atenção de Reginald tornou-se mais intensa.

— As greves o interessam? — perguntou ele, lentamente.

— Talvez.
Nada poderia ser mais indiferente do que o tom de voz de
Guy.

— Mas que coisa estranha! — exclamou Gertrude,


divertida. — Para quê? Os homens não costumam brigar
horrivelmente? Tenho ouvido papai falar a respeito. Acho
que é preciso tomar alguma providência para pôr esses
mineiros em seus lugares.

— Talvez — concordou Guy, ainda indiferente.

Ele olhou para a irmã com a mais afável das expressões.

Reginald não disse nada. Mas pensou: no final das contas,


o pai vai ter apenas um de nós, Joey. Ele observou o irmão.
Mas Guy é tão elegante, quase uma moça. É estranho que eu
nunca tenha percebido antes que ele tem um queixo forte, de
alguém decidido e determinado. Mas isso acontece porque
ele está sempre sorrindo, provavelmente para esconder o
que realmente é. Mas Reginald não conseguia convencer-se
disso. Era jovem demais para conciliar a jovialidade e
despreocupação de Guy, a sua frivolidade, com qualquer
profundidade ou determinação. Finalmente desistiu,
desconcertado. Como ele próprio era retraído, jamais
sondava as mentes dos outros. E chegou agora à conclusão
de que talvez nunca soubesse a solução para o mistério.

Continuaram a conversar até que o crepúsculo de inverno


converteu-se em noite fechada, até que o barulho das rodas
de carruagem na neve lá embaixo avisaram que o pai e Paul
estavam chegando. Não haviam se dado ao trabalho de
acender lampiões ou ligar o gás. O brilho avermelhado do
fogo agonizante contribuía para que minasse um clima de
intimidade no quarto às escuras. Um a um, os carvões
haviam caído da grade. Agora, já não mais podiam se ver e
apenas ocasionalmente divisavam os contornos vagos de um
gesto, um movimento, um rosto. Depois, a sineta ressoou
muito forte pelo silêncio anterior ao jantar. Guy saiu do
quarto, alerta, antecipando o jantar, seguido por Reginald,
que não tinha o menor desejo de encontrar o pai sozinho nos
corredores. Reginald não fechou a porta depois de sair.
Gertrude ficou para trás, relutante em deixar a escuridão
tranquila do quarto dos irmãos. Sabia que tinha de ir para os
seus aposentos, em parte para encontrar Paul quando ele
subisse, em parte porque estava na hora de mudar de roupa
para o jantar. Mas não podia se mexer. Um torpor lhe
dominava o corpo, as pernas pareciam pesadas como
chumbo. Ela começou a tremer.

Ouviu os passos de Paul, abafados pelo tapete, subindo a


escada. Encolheu-se ao lado da lareira, prendendo a
respiração. Não sabia por quê. A mãe saiu do quarto e
encontrou Paul no corredor. Ele cumprimentou-a
cortesmente e perguntou por Gertrude.

— Ela deve estar em seu quarto — respondeu May. —


Passou a tarde no quarto dos garotos, mas agora eles estão
no banheiro, aprontando-se para o jantar.

Paul estava mais cordial do que de hábito com a tia.


Deteve-a no corredor, perto da porta do quarto em que
Gertrude estava, encolhida, em silêncio.

— Acabei de decidir hoje comprar a casa em Greenville,


Tia May. Deve ficar pronta no início do verão.

A voz dele estava exultante e juvenil, apesar de toda a


sua inflexibilidade.

— Isso é ótimo — disse May, efusivamente. — Trudie


ficará muito satisfeita. É verdade que fica um pouco longe,
mas também Windsor vai crescer para aquelas bandas.
— Espero que não. Gosto de privacidade. Já disse a Tio
Ernest mais de uma dúzia de vezes que toda esta área por
aqui está rapidamente se desvalorizando. Mas ele se recusa a
acreditar. Mas a verdade é que já existe um açougueiro
atacadista vivendo praticamente na casa ao lado. Dentro de
15 anos, esta casa será o centro de uma área de cortiços.

— O que é uma perspectiva das mais desagradáveis. — A


voz de May ainda estava deliberadamente jovial. — Eu não
gostaria de pensar que a minha velha casa está em
decadência. Mas as coisas mudam, não é mesmo?

Ela afastou-se, desceu a escada. Gertrude podia ouvir


nitidamente o farfalhar do vestido da mãe, o ruído suave dos
pés iguais no tapete.

Havia uma luz fraca iluminando o corredor comprido.


Paul, obviamente, prendeu o pé num pedaço esfiapado do
tapete do corredor, pois parou diretamente em frente à porta
do quarto em que Gertrude se escondia. Ele murmurou
alguma coisa. Eu deveria falar agora, pensou Gertrude. Mas
sentia a boca paralisada. Isso é um absurdo!, disse ela a si
mesma. Mas o corpo encolheu-se ainda mais, na escuridão ao
lado da lareira. Podia divisar os contornos indefinidos do
corpo de Paul no retângulo de débil claridade da porta. Sabia
que ele estava espiando para dentro do quarto,
distraidamente. Ela prendeu a respiração, sentindo um
aperto no coração, invadida por uma vertigem, com a
sensação de que tudo girava e o vulto de Paul era a única
coisa fixa. E, durante todo o tempo, seus pensamentos
insistiam: isso é uma tremenda estupidez da minha parte.

Paul seguiu para seus próprios aposentos. Gertrude


ouviu-o chamar seu nome e depois a porta se fechar. Ela
relaxou, as pernas ficaram bambas, o suor aflorou em sua
testa. O coração pareceu mergulhar para um poço sem
fundo.

Ela recomeçou a tremer.


CAPÍTULO LXXX
Ernest ficou imensamente satisfeito e não se deu ao
trabalho de esconder quando soube que seu filho Guy,
frívolo e leviano, aparentemente começava a interessar-se
pelos vastos empreendimentos do pai. Mas conhecendo o
filho, ainda estava um tanto cético. Só que Ernest não era de
sondar muito profundamente os motivos intrínsecos. Achava
que às vezes era melhor não sondar demais. E ele disse ao
contrafeito Paul, que não tinha muita paciência com o jovem
cunhado e sentia o maior ciúme de todos os filhos de Ernest,
como herdeiros em potencial ao que julgava lhe pertencer
por direito:

— Claro que sei que provavelmente não passa de um


capricho da parte dele, Paul. Guy está sempre procurando
alguma coisa nova e excitante. Ele pensa que as minas de
carvão devem ser lugares muito românticos, agora que
existem greves por lá. Não vai lhe fazer mal algum ver as
coisas pessoalmente. Pode até torna-lo um pouco mais sério.

— Duvido muito — disse Paul, sombrio.

Assim, somente Ernest, May, Gertrude e Elsa viajaram


para Nova York. May não tinha a menor ilusão de que Ernest
abrandara sua posição em relação ao filho mais velho e que
estava indo a Nova York exclusivamente para sua estreia na
Academia de Música, na Rua 14. Há anos que Ernest
mantinha-se desdenhosamente silencioso diante das leituras
que May fazia das cartas de Godfrey, com comentários
entusiasmados sobre os mestres. Ele remetia os cheques,
pagava as contas, sempre sem falar nada. Era como se
tivesse renunciado a Godfrey e pagasse as contas como
alguém a saldar uma dívida. May podia perceber, angustiada
e amargurada, que Godfrey deixara de existir para Ernest,
como um indivíduo importante e um filho. Ela não precisou
fazer muitas insinuações para descobrir o verdadeiro motivo
da ida de Ernest a Nova York. Era para se encontrar com seu
velho amigo, Jay Regan, Sênior, o grande financista. Queria
discutir com ele a possibilidade de vender ao mais novo
tubarão das finanças americanas, James Bellowes, seus
interesses nos poços de petróleo na Pensilvânia, na área de
Titusville. May sabia, de ouvir as conversas entre o marido e
Paul, que Bellowes estava pressionando Ernest a vender-lhe
os poços ou associar-se na mais infame exploração que já
desgraçara a história dos negócios na América. Ernest, como
diretor da ferrovia que se encarregava da maior parte do
transporte encontrava-se numa situação peculiar. Estava na
posição anômala e perigosa de ser um concorrente em
potencial de seu maior cliente na ferrovia. Os outros
diretores estavam ficando inquietos e apreensivos. Ernest
chegara ao ponto em que deveria decidir se queria continuar
um concorrente e entrar na guerra dos titãs pelo controle do
petróleo, em que suas chances não eram muitas, mas em que
lucros além de tudo o que já imaginara constituíam a
recompensa da vitória, ou vender tudo ou associar-se a
Bellowes. A última opção iria enriquecê-lo também, mas seria
a sua primeira concessão, a primeira vez em que cedia.
Contudo, nem mesmo o seu egotismo era suficiente para
permitir-lhe uma batalha pelo prazer da batalha e uma
perspectiva adolescente de jamais se render. Ele estava
perfeitamente disposto a ceder, se lhe fosse garantida uma
participação nos despojos da vitória.

Era melhor ceder graciosamente, com um grande lucro,


conquistando a amizade daquela criatura quase inumana,
que estava à frente da indústria petrolífera. Ernest não era
orgulhoso nem vaidoso. Não via nada de ignominioso em
tornar-se o vassalo de um rei tão poderoso e implacável,
especialmente quando um juramento de fidelidade poderia
ser tão agradavelmente lucrativo. Assim, sua viagem a Nova
York tinha o propósito de ceder, depois de se deixar
persuadir, levando de volta, como recompensa, a amizade de
Regan e um lucro dos mais atraentes.

Ele era indiferente demais aos sentimentos de May, ou


pelo menos fingia sê-lo, para deixá-la acreditar que estava
indo a Nova York com o objetivo de ouvir a execução da
sinfonia de Frey. Havia algo de brutal em sua franqueza a
respeito do assunto; bocejava ostensivamente quando o
nome de Godfrey era mencionado. Era provável que
experimentasse um prazer sádico com a angústia e tristeza
óbvias de May. Ele sentia-se quase exultante com a aflição
evidente por trás da serenidade e compostura da mulher.
Quando falava de Godfrey, era sempre com ironia e
indulgência. May pensou: ele tornou-se o inimigo do meu
pobre filho. Ficaria satisfeito em ver Godfrey arruinado. Uma
grande parcela de sua angústia decorria do fato de que,
mesmo assim, não podia odiar Ernest. Estava também
extremamente alarmada com a indiferença de Ernest ao
pedido hesitante de Reginald para que o dispensassem da
viagem à Nova York. Ernest não prestara a menor atenção à
explicação balbuciada do filho de que ‘precisava se
encontrar com alguém e era muito importante’. Um criado,
explicando alguma pequena ausência futura, receberia mais
atenção de Ernest do que Reginald obteve. Ele dera a
impressão de estar atento, mas sua atitude brutalmente
indiferente, o tédio aparente e o desinteresse haviam
perturbado May profundamente. Será que outro de seus
filhos estava prestes a deixar de existir para Ernest?, pensava
ela, aterrorizada, acorrendo mentalmente em proteção do
segundo filho. Era tudo por causa de Paul!, diziam seus
pensamentos, freneticamente. E era com ódio que May
olhava para Paul, lendo o jornal. Em voz mais alta que o
habitual, impregnada de medo, ela tentou atrair a atenção de
Ernest, discutindo com Reginald a respeito da decisão de não
ir a Nova York. Mas não foi possível atrair a atenção de
Ernest.

Assim, quando Guy pediu permissão para ir às minas de


carvão em companhia de Paul, May não protestou muito. Foi
um grande alívio descobrir que Ernest demonstrava algum
interesse pelo terceiro filho, sorrindo-lhe com prazer, pela
primeira vez em muitos anos. A complacência de May
aumentou ao perceber o evidente constrangimento e
contrariedade de Paul. Joey, ligeiramente resfriado, não iria a
Nova York. Parecia resignado com isso.

Era uma manhã escura e com muita neve quando Paul e


Guy partiram para as minas de carvão. Paul, mais aborrecido
do que nunca, estava calado. As acomodações deles no trem,
embora de primeira classe, nada tinham de confortáveis. Os
vagões recendiam a querosene e fumaça de madeira. Os
lampiões a óleo estavam acesos, projetando uma claridade
amarela na semiescuridão, balançando lá no alto com o
movimento do trem. Os assentos estofados estavam sujos, as
janelas embaçadas, pequenos filetes de água escorrendo
para poças escuras nos peitoris. Cada vez que a porta era
aberta pelo condutor, uma lufada de vento frio e neve
entrava pelo vagão.

Paul, aconchegado num casaco forrado de pele, trouxera


livros e papéis do escritório. Baixando o chapéu sobre os
olhos, ele pôs-se a trabalhar. Guy, esguio e jovem, estava
sentado ao lado dele. Paul dissera a si mesmo, que o rapaz
seria provavelmente um tremendo estorvo e que aquele não
era o momento de levar pirralhos para a violência e tumulto
das minas de carvão. Não podia compreender Ernest. Que
diabo dera nele para permitir que um idiota como Guy o
acompanhasse, como se ele, Paul, estivesse saindo de férias?
Era impossível entender. Aquele negócio não seria fácil. Ele
era o representante de Ernest num dos mais sérios distúrbios
já ocorridos nas minas de carvão. Era literalmente o
mensageiro de vida ou morte. Suas decisões teriam um efeito
profundo na atitude do capital diante do trabalho, por
muitos e muitos anos. O que quer que ele fizesse, teria uma
tremenda repercussão. E tudo isso adquiria agora uma
característica ridícula, pelo fato de ser obrigado a levar um
fedelho que mal saíra das fraldas. A coisa assumia um ar de
passeio, o irmão mais velho levando o caçula para a feira.
Era intolerável. Intolerável e ridículo. A raiva subindo pela
garganta a um ponto insuportável, Paul olhou de lado para o
seu companheiro, toda a enormidade de sua situação
ocorrendo-lhe pela primeira vez.

Ele ficou um pouco desconcertado com a visão do perfil


de Guy. Era um perfil jovem e bonito, bem definido, quase
gracioso. Guy tirara o chapéu e os cabelos louros, cacheados
e ondulados, rebrilhavam à claridade amarelada do lampião.
Mas foi a expressão dele o que atraiu subitamente a atenção
de Paul. Estava tensa, quase rígida, ao mesmo tempo
controlada, como se estivesse absorvido em pensamentos
que nenhum ‘pirralho’ tinha a inteligência ou o direito de
acalentar. Especialmente alguém como Guy, perdulário e
frívolo, risonho e brincalhão, estouvado e barulhento. As
covinhas eram profundas nas faces, mas estranhamente não
reduziam a rigidez da expressão. Paul experimentou um
tremendo choque. Não gostou da expressão do rapaz. Um
ciúme amargo invadiu-o silenciosamente. Era como se, por
instinto, sentisse a presença de um inimigo sorridente, que
se tornara subitamente formidável.

— Qual é o problema? — perguntou Paul, imprimindo à


voz um tom de mofa irritada. — Está com dor de barriga?

Guy sorriu, continuando a olhar fixamente para frente.

— Não.
Paul puxou o chapéu para o lado, num gesto irritado.

— Não consigo entender por que você insistiu em me


acompanhar — gritou ele, acima do barulho do trem. — O
que há por trás de tudo isso?

— Já me perguntou isso antes.

Paul ficou vermelho de raiva com a desfaçatez de Guy.


Detestava Guy mais do que todos os outros primos e teria o
maior prazer em dar-lhe uma surra.

— Tem razão. Só que você não me deu uma resposta


satisfatória. Disse que tinha lido a respeito nos jornais e
queria ver pessoalmente o que estava acontecendo. Não seria
mais fácil continuar a ler os jornais, sem se dar ao trabalho
de ir até lá?

Os lábios grossos se contraíram e Paul tentou sorrir,


como se pode sorrir para um garoto precoce, mas
secretamente odiado.

— Não — respondeu Guy, ainda olhando fixamente para


frente.

Paul mordeu o lábio.

— Isso é um tremendo absurdo — disse ele, furioso com a


inutilidade de suas palavras.

Guy não disse nada. As covinhas davam a impressão de


que ele estava sorrindo. Mas não era isso o que acontecia.

— Talvez você ainda não saiba que não ficaremos


hospedados num hotel de luxo — acrescentou Paul. —
Pittsville não passa de uma miserável cidade mineira, com
uma pensão para caixeiros-viajantes, uns poucos armazéns,
um salão de danças e os casebres dos mineiros. Não vai
encontrar coisas muito agradáveis por lá, especialmente
agora. Se pensa que vai ser como um feriado, com muito
romance e emoção, está redondamente enganado.

— Por acaso falei que esperava que as coisas fossem


agradáveis? — Guy finalmente virou-se para Paul, o rosto
exibindo agora a mesma impassibilidade que o pai assumia,
quando se sentia particularmente hostil e brutal. — Não me
importo onde vamos ficar hospedados. Afinal, não sou uma
moça. — Ele fez uma pausa, pensativo. — Por que não me
deixa em paz? Pensa que há algum mistério na minha
decisão de ir a Pittsville. Talvez haja, talvez não. Mas sou um
ser humano e tenho direito a meus pensamentos e motivos,
E não é você quem está pagando minha passagem. Ao que
creio, papai encarregou-se disso. — Guy sorriu. -Não é
dinheiro que esteja saindo de seu bolso, embora eu tenha a
impressão de que você se sente como se fosse.

Os olhos dele pareciam penetrar fundo no cunhado. Paul


ficou pálido de ódio, o rosto contraiu-se de raiva. Por um
momento terrível, ele esteve prestes a agredir o rapaz ao seu
lado. Compreendeu que subestimara Guy e seu ódio tornou-
se ainda mais intenso, estimulado pela apreensão. Ernest
precisava que apenas um filho demonstrasse interesse,
inteligência e vigor, a sua vaidade paterna natural
encarregando-se do resto. E o que aconteceria com ele, Paul?
Vinha trabalhando há meses na suposição, na crescente
esperança de que seria o herdeiro do que estava qualificado
pela natureza a herdar. Estava dando a isso todo o seu
tempo, sua vida, ambições, suor, a própria carne.

Tudo isso deveria perigar por causa de um garoto tolo?


Especialmente um garoto que adivinhava tudo o que ele
pensava e planejava e que ria dele, tranquilo e seguro na
posição de filho de Ernest Barbour. Um medo concreto e um
sofrimento intenso misturaram-se com a raiva de Paul.
Tornou-se indispensável descobrir o motivo da determinação
daquele garoto de visitar as minas de carvão. Assim, Paul
tratou de controlar-se, cerrou os dentes, reprimindo a raiva.
Voltou a se ocupar com seus papéis, esperando para
descobrir o que sabia que precisava conhecer, se desejava
ter alguma paz de espírito. Paul tinha mente obstinada e os
livros que trouxera eram absorventes e familiares. Foi capaz
de afastar de sua mente aquela nova apreensão. Mas a
apreensão continuou a espreitar a distância e toda a sua
consciência começou a ficar impregnada com um mal-estar
singular, tão perturbador quanto novo.

Ele não falou com Guy por algum tempo. O rapaz nada
trouxera para distrair-se durante as horas tediosas da
viagem. Estava sentado ao lado da janela e ficou olhando
para fora por muito tempo. Comparado com o alto e
corpulento Paul, era como uma criança, imaturo no rosto e
no desenvolvimento.

Enquanto o trem corria para os contrafortes distantes, a


neve foi se transformando em chuva. Pequenas aldeias e
casas de fazendas solitárias espalhavam-se lugubremente
sob o céu cor de chumbo. Chegaram aos contrafortes por
volta de meio-dia, a chuva continuando a cair, o nevoeiro
aumentando de intensidade. A locomotiva começou a subir,
resfolegando ruidosamente com o esforço. A planície ficou
para trás. Estavam agora num oceano de colinas, escuro,
salpicado de neve, frio, inóspito. Aqui e ali, podia-se divisar
um amontoado de pinheiros. As manchas de neve foram se
tornando cada vez mais frequentes. A chuva caía sem cessar,
ruidosamente, escorrendo pelas janelas.

Ao cair da tarde, as colinas foram-se tornando mais


inóspitas, mais escuras, mais cobertas de neve, pois haviam
deixado a chuva para trás. A locomotiva tinha uma
dificuldade cada vez maior em seguir adiante. Florestas de
pinheiros espalhavam-se pelos topos das colinas, a água
corria turbulenta pelos vales. A neve recomeçara a cair,
silenciosamente. E através da cortina de neve, o topo de uma
colina foi contornado e logo desapareceu. O trem passou por
uma ponte e Guy vislumbrou a água escura e gelada lá
embaixo, entre as massas de gelo flutuantes. O ar, mesmo no
interior do trem, estava se tomando cada vez mais frio.

As horas foram passando, interminavelmente, sem que


nada acontecesse entre Paul e Guy, embora tivessem comido
juntos. Guy tornara-se excessivamente inquieto, o
temperamento estouvado provocando-lhe comichões nos
músculos e dores nas costas pela inatividade forçada. Era
por demais jovem e exuberante para manter a mente
concentrada inexoravelmente numa única coisa, por mais
importante que fosse para ele. Havia algo do caráter do pai
na maneira como podia decidir sobre uma questão,
analisando todos os detalhes mentalmente e depois
deixando-a de lado, completa, exceto pela mera mecânica da
ação. Há cerca de uma hora que ele observava Paul
furtivamente, alternadamente admirando e desprezando
aquela concentração furiosa. Sentiu afinal que qualquer
conversa com Paul era preferível ao silêncio opressivo entre
os dois. Mas Paul não demonstrava a menor disposição de
falar-lhe. Dei-lhe algo com que se atormentar, pensou Guy,
com alguma satisfação. Ele farejou alguma coisa e ficará
remoendo interminavelmente. O que teria levado Trudie a
casar com ele? A mente fatigada de Guy tornou-se de repente
aguçada ao pensar no primo Philippe, de quem muito
gostava. Guy recordou que Gertrude lhe escrevera para
comunicar que o pai praticamente consentira em seu
casamento com Philippe. E surgira então o mistério.
Inesperadamente, da noite para o dia, ela casara com Paul, o
predileto de Ernest. Aposto qualquer coisa que o querido
papai teve alguma participação nesse mistério, pensou Guy,
com uma amargura excepcional. Pensando nisso, ele olhou
novamente para Paul. E teve a impressão de que todo o seu
corpo esguio e gracioso se expandia num ímpeto de raiva.
Trudie, casada com aquele desprezível ladrão em potencial
dos filhos de Ernest Barbour, que nem ao menos tinha a
decência de ser sutil em suas intenções!

Já era quase o pôr do sol e as colinas haviam cedido lugar


às montanhas. A distância, através da neve rala, Guy
vislumbrava pontos imponentes, terríveis e escuros,
solitários e imensos. As montanhas eram cada vez mais
altas, a neve se contorcendo em torno delas. O trem corria
como um animalzinho furtivo, através de vales desertos,
sobre torrentes amareladas.

O céu a oeste, sombrio e púrpura, transformou-se


subitamente cortado por uma mancha vermelha. O sol, uma
bola redonda e escarlate, insinuou-se por essa abertura. No
mesmo instante, a paisagem tornou-se uma cena de terror e
esplendor. As montanhas se projetavam, escuras e
salpicadas de neve, contra aquele lago de fogo frio. O sol
despejava-se contra aquele caos nublado como uma catarata
vermelha. Florestas de pinheiros amontoavam-se lá embaixo,
as copas avermelhadas, os vales afundavam sob o nevoeiro.
O lago de fogo foi se tornando cada vez mais luminoso.
Contra esse fundo avermelhado, as montanhas estendiam-se
em ondas intermináveis, pretas e vermelhas, ameaçadoras,
desaparecendo nas muralhas de nevoeiro em movimento.

Começou a escurecer. Agora, as montanhas eram apenas


sombras mais escuras, contra um céu sombrio e gasoso. Um
débil rugido entrou pelas janelas, enquanto o vento
aumentava. A locomotiva subia penosamente. Podia-se
divisar o rolo de vapor e fumaça que deixava em sua esteira,
quando o trem fazia uma curva. A luz amarelada e
tremeluzente dos lampiões fazia com que o interior do vagão
bolorento se tornasse ainda mais inóspito. Quase todos os
demais passageiros haviam desembarcado do trem em
estações anteriores. Apenas mais uns dois ou três homens,
além de Paul e Guy, ainda se encontravam no vagão.

A fadiga envolveu Guy inteiramente e ele adormeceu,


num cochilo irrequieto, em que estava consciente do barulho
monótono das rodas do trem e da claridade amarelada dos
lampiões de querosene. A cabeça bateu contra a janela e ele
acordou com um sobressalto, faminto, o corpo rígido e
dolorido. O trem estava diminuindo a velocidade. Ele nada
podia ver através da janela. Apenas o seu reflexo e os
reflexos dos lampiões brilhavam na escuridão. Paul estava
ajeitando sua bagagem, depois de guardar os livros e os
papéis que haviam-no absorvido durante o dia inteiro. Seu
perfil parecia estofado de hostilidade vingativa e desprezo.
Ele continuava a não olhar para Guy.

O condutor apareceu na porta, segurando uma lanterna e


balançando-a.

— Pittsville! — gritou ele.

Guy espreguiçou-se e bocejou, dominado pela depressão.


Ainda era apenas um garoto; o que viera ver, com tanta
determinação, parecia-lhe tolo e ao mesmo tempo opressivo,
como se não tivesse qualquer participação naquilo e
possivelmente nunca poderia ter. Enquanto estremecia, na
umidade e frio penetrante do vagão, desejou ansiosamente
estar em casa naquele momento, a reação natural de um
garoto. Que diabo estava fazendo ali, em companhia de Paul,
aquele intrometido, na região erma e desolada das minas de
carvão? Podia imaginar o riso do pai e por um momento
desculpou o primo.
Resfolegando, o trem parou, com um último solavanco.
Pela janela, Guy pôde divisar a lúgubre estação, com uma
lanterna balançando ao vento e à neve. Havia alguns homens
agrupados na plataforma, com casacos de pele de carneiro.
No silêncio surpreendente que se seguiu à parada do trem,
Guy pôde ouvir o uivo do vento. À luz da lanterna, dava para
avistar os pingentes de gelo pendentes do teto da estação,
rebrilhando e pingando. Desembarcaram e o vento envolveu-
os no mesmo instante. Enquanto lutavam para avançar, o
trem partiu, sem eles, sempre rangendo e resfolegando, as
luzes logo se perdendo na noite escura. A neve fustigava os
rostos de Paul e Guy.

Estonteado e entorpecido de cansaço e depressão, Guy


percebeu que os homens os cercavam. Era evidente que já
conheciam Paul, que estivera ali antes. Falaram rapidamente
com Paul, as vozes roucas e tensas. Um deles era o
superintendente, Sr. Wilkes, outro era um engenheiro, Sr.
Bronston, os demais eram capatazes, detetives e o chefe dos
detetives. O vento fustigava os rostos rudes e vermelhos,
que pareciam faiscar à luz da lanterna, as vozes soavam
difusas ao vento. Guy pôde ouvir algumas palavras:

— Milícia estadual... situação cada vez pior... os cães...


tivemos de atirar em dois miseráveis hoje. O governador não
vai gostar! Anarquia. O que o Sr. Barbour acha? As Minas
Crowder cederam às exigências e isso torna as coisas muito
difíceis para os outros. O que o Sr. Barbour acha? Sr.
Barbour... Sr. Barbour... Sr. Barbour...

E depois uma exclamação em voz áspera:

— Enforcaram ontem quatro homens da sociedade secreta


dos mineiros! É isso mesmo o que se deve fazer com os
desgraçados!
Paul escutava em silêncio, segurando o casaco em torno
do pescoço.

Guy percebeu que havia um silêncio súbito. Os homens


fitavam-no, incrédulos, finalmente conscientes de sua
presença. Eram homens imensos, corpulentos, contemplando
o rapaz esguio e trêmulo. Depois, todos olharam para Paul,
inquisitivos.

— Esse garoto está em sua companhia, Sr. Barbour? —


perguntou o xerife, atônito.

Paul olhou para o primo com uma expressão devastadora.

— Está sim. Ele queria vir. Senhores, esse é Guy Barbour,


o filho do Sr. Ernest Barbour.

Os homens ficaram paralisados. Depois de um longo


momento, dois ou três empurraram chapéus e gorros,
indecisos.

— Olá — disse Guy, em voz alta e estridente.

Ele sentia-se ridículo e indefeso naquele momento.

— Prazer em conhecê-lo — murmuraram umas poucas


vozes, intimidadas.

A presença dele parecia oprimir e aturdir os homens. Eles


se entreolharam, cada vez mais atônitos. Depois, seguiram
todos para diversos carros que estavam à espera no final da
plataforma. Andavam lentamente, parecendo
desconcertados. O chefe dos detetives disse a Paul, em tom
desolado:

— O único lugar em que podem ficar, Sr. Barbour, é a


pensão de Miz McCloskey, que não é lá grande coisa. O
senhor e o jovem Sr. Barbour...

Paul interrompeu-o, bruscamente:

— Não se preocupe. Servirá perfeitamente. Afinal, não


estamos aqui em férias.

Subiram nos carros e afastaram-se aos solavancos, por


uma estrada invisível, mas rochosa, em meio à escuridão
gelada, ao vento uivante. Para Guy, entorpecido, dolorido e
exausto, a impressão foi de que tinham viajado, sacudidos
incessantemente de um lado para outro, por horas a fio. Ele
seguia com Paul, o xerife, o Sr. Wilkes e o Sr. Bronston. O
vento frio e sufocante logo ficou impregnado com o cheiro
de corpos e de uísque, o cheiro de serragem, estrume e
roupas sujas. Ele nada podia ver, nem mesmo os rostos de
seus companheiros. Seus pés estavam pousados em cima de
objetos duros, que sabia serem armas. Os homens gritavam
acima do uivo do vento interminável, do chocalhar e rangido
do carro, das imprecações do cocheiro.

Pelas posições dos corpos ao seu redor, Guy calculou que


estavam subindo.

Ele espiou para fora. A neve cessara de cair. Entre as


nuvens, que pareciam trapos pretos voadores, a lua
despejava-se sobre a paisagem, glacial, inóspita. Massas
escuras indefinidas assomavam contra o céu, os picos
irregulares das montanhas. Passaram por imensas pilhas de
escória, as rodas do carro rangendo sobre camadas de
escória, com um som desolador. Passaram por casebres, com
uma luz fraca acesa aqui e ali. De vez em quando, um
cachorro faminto uivava. Passaram por guindastes de carvão,
parecendo enormes patíbulos contra a lua. Guy,
contemplando tudo aquilo, sentiu um calafrio percorrer-lhe
o corpo, um horror mortal no peito, um aperto nauseante no
estômago. As minas de carvão. Homens viviam ali e estavam
morrendo ali, naquele momento, porque haviam
enlouquecido de fome e frio, desolação e desespero. Além do
vento, um ou outro cachorro e o ranger das rodas, não havia
qualquer outro som, embora nas aberturas nas montanhas
aparecesse ocasionalmente uma lanterna a balançar e se
mover, como uma débil vela num inferno escuro, congelado
e informe.

Paul escutava atentamente tudo o que os companheiros


lhe diziam. A milícia fora convocada naquele dia. O
governador fora forçado a concordar, embora deixasse bem
claro que o fazia contra a sua vontade. Mas o que se podia
esperar de um homem cujo avô fora um mineiro? Era esse o
problema com o país! O homem que falava tinha um sotaque
irlandês e suas roupas fediam a tabaco e cerveja. Mas agora
que a milícia entraria em ação e que já houvera alguns
enforcamentos e tiros, os cachorros em breve estariam
fugindo com os rabos entre as pernas. De qualquer forma,
estavam mesmo morrendo como moscas... de fome. As
mulheres eram tão ruins quanto os homens. Uma delas
agredira um detetive com um porrete. Mas os companheiros
dele haviam castigado a sem-vergonha. Precisaram também
dar umas pancadas nos garotos por perto, que estavam
jogando pedras e pedaços de carvão, açulando os cachorros
contra os detetives. O Sr. Wilkes, o Sr. Bronston e o xerife
riram de satisfação.

Paul não disse nada. Um suor escaldante escorria pelas


costas de Guy. Vou desmaiar, pensou ele. Mas tal não
aconteceu. Em vez disso, ele começou a ofegar um pouco,
silenciosamente, tensamente, no escuro. E, de repente, teve a
sensação de que um intenso clarão vermelho fluía do céu e
da terra para ele, fluía das montanhas negras e das pilhas de
escória. E quando se concentrou nele, transformou-se numa
brilhante e ardente incandescência de ódio. Eu o odeio!,
pensou ele, um sentimento puro, sem nada de infantil,
vendo o rosto do pai à sua frente.

Foi então que ele percebeu que havia um certo


constrangimento nas vozes dos homens. Ocorreu-lhe, com
uma ironia quase histérica, que isso acontecia por causa de
sua presença. Cada homem começara a gabar-se de seus
feitos no trabalho de subjugar os mineiros desesperados.
Não podia ver-lhes os rostos, mas sentia que estavam
virados em sua direção. O superintendente perguntou-lhe,
preocupado, se tinha cobertores em quantidade suficiente.
Pediu desculpas por não poder hospedar Paul e o
Patrãozinho Barbour em sua casa no vale mais abaixo,
explicando com a maior fúria:

— Os desgraçados queimaram-na há dois dias.

O carro em que estavam subia sempre. Outro carro seguia


na frente e o terceiro estava na retaguarda. A lua se elevava
pelo céu, despejando uma catarata de aço polido sobre as
elevações arredondadas e as fendas estreitas, que eram
pequenos vales. Mesmo no verão, aquele lugar deveria ser
terrivelmente desolado, pensou Guy. Não havia qualquer
árvore por ali. Havia ali um amontoado de casebres, com
chaminés baixas e janelas que mais pareciam buracos. Não
havia luz em nenhuma delas. Mas Guy sabia que homens,
mulheres e crianças dormiam por trás daquelas portas
bambas. Passaram por um bar, miserável e mal iluminado.
Não havia ninguém lá dentro, a não ser o bartender, que
colocara uma arma em cima do balcão. Estavam agora
deixando para trás o pequeno povoado e contornando a base
de uma elevação. O barulho de escória rangendo sobre as
rodas penetrava fundo nos nervos. O ar que entrava no carro
era terrivelmente frio. A luz iluminava crostas de neve aqui e
ali.
Contornaram outra elevação. Na metade da encosta, havia
outro casebre, um pouco maior e um pouco melhor
construído que os demais. Uma luz forte e quase alegre ardia
na escuridão informe da elevação. Avistando o casebre, o
xerife prorrompeu em palavrões e pegou uma arma que
estava sob os pés de Guy. Todos no cano ficaram
subitamente tensos.

— É ali que vive o maldito traidor Buzak! Um dos nossos


próprios capatazes! Ele não liquidou ontem um dos nossos
detetives, Bill? Tenho procurado o maldito Buzak por toda
parte. A mulher e os filhos dele ainda devem estar lá por
cima.

A arma estava nas mãos do xerife. Ele afastou as cortinas


do carro e um momento depois o silêncio da noite foi
rompido por uma explosão. A luz no casebre apagou-se
imediatamente. Houve um silêncio total e prolongado depois
do tiro, como se todas as montanhas prendessem a
respiração em horror. Depois, enquanto o carro seguia
adiante, o grito desesperado de uma mulher perseguiu-os, o
som horrível de angústia. O xerife relaxou, soltou uma
risada, largou a arma. Os homens emitiram sons
apreensivos. Paul, empertigando-se ao lado de Guy, disse
com fúria:

— Não queremos essas coisas, a menos que sejam


absolutamente necessárias!

Os gritos da mulher se prolongavam, estridentes,


enlouquecidos. Eles contornaram inteiramente a elevação e o
casebre ficou para trás. Havia agora apenas a noite e os
gritos, cada vez mais fracos, embora mais terríveis.

Foi então que Guy falou pela primeira vez, desde que
entrara no carro, em sua voz clara e incisiva de rapaz:
— É um bom atirador, xerife. E a arma também é muito
boa...

O xerife, apreensivo pelo silêncio furioso de Paul, reagiu


ansiosamente.

— É muita gentileza sua, Sr. Barbour. — Ele riu,


insinuantemente. — E é claro que a arma tinha de ser boa! É
uma das 45 de seu pai! — Ele passou a mão pela arma, com
uma afeição exultante, antes de acrescentar: — Chegaram 25
iguais ontem. É a melhor do país. A velha Macllvain era
considerada muito boa, mas não pode ser comparada com as
45 de Barbour & Bouchard.

Os carros pararam e Guy viu que haviam chegado a uma


casa grande e horrível, de madeira. As janelas estavam
vazias e pretas ao luar. Uma mancha de fumaça avermelhada
saía preguiçosamente por uma chaminé. Dois milicianos
andavam de um lado para outro, em torno da casa, as armas
nos ombros. A neve era mais densa ali e havia uma trilha de
gelo socado, dos pés dos soldados. Todos saltaram dos
carros. O xerife saudou os guardas efusivamente, que se
aproximaram do grupo, sorrindo. Eram homens de aparência
brutal, os rostos vazios.

O xerife abriu a porta da casa e todos entraram.

— Miz McCloskey! — berrou o xerife.

Alguém acendeu um lampião. Estavam parados num


pequeno vestíbulo, incrivelmente sujo, o chão de tábuas
todo escalavrado e manchado de tabaco. O lampião de
querosene que acabara de ser aceso pendia do teto. Uma
escada subia para a escuridão fétida. Uma mulher apareceu
no alto da escada, com uma touca antiquada e suja, um
chambre horrendo e puído.
— Estou aqui! — gritou a mulher, em voz-mal-humorada.
— Pensei que não vinha mais, xerife, e resolvi ir para a cama!
Mas entrem logo de uma vez!

Ela desceu, a luz do lampião incidindo sobre seu rosto.


Era velho e esquelético, murcho e astuto. O jeito de falar, os
gestos e a expressão dos olhos brilhantes eram ao mesmo
tempo impertinentes, aduladores e subservientes. Neta, filha
e viúva de mineiros; toda a sua simpatia devia ser para com
a sua gente. Mas não era o que acontecia. Não por causa de
uma ilusão de superioridade, mas simplesmente por
ganância. E deve-se também ressaltar que ela não era
hipócrita. A ganância lhe incutira, como acontece
frequentemente com gente de sua espécie, uma lealdade
para com os seus amos e um ódio profundo contra os
membros de sua classe. Teria traído os últimos com a maior
alegria, sem uma expectativa consciente de recompensa e
sem qualquer sensação de traição.

Ela sorriu para os homens, parando no último degrau. Os


dentes amarelados eram como uma cerca quebrada entre os
lábios murchos, o queixo projetado para frente era como
uma pá estreita. Ela segurou o chambre em torno do corpo
com as garras nas extremidades dos braços.

— Madame — disse o xerife — esse aqui é o Sr... Sr.


Brundage, que veio até aqui da parte do Sr. Barbour, como
lhe falei. E este rapaz aqui — acrescentou o xerife, indicando
Guy — é uma espécie de... uma espécie de secretário do Sr.
Brundage. O nome dele é Miller. — Ele virou-se para Paul e
Guy. — Tenho certeza de que receberão os melhores
cuidados da Sra. McCloskey. Ficarão no quarto grande ao
lado do meu. Tem duas camas, não é mesmo, madame?
Ótimo! Eu o chamarei pela manhã, senhor, e iremos para as
minas. E o Sr. ... Miller também. — Ele fez uma pausa, antes
de arrematar, efusivamente, com um olhar radiante para a
megera: — A Sra. McCloskey é a melhor cozinheira destas
bandas e vão descobrir isso pela manhã!

— Ora, xerife, deixe disso! — exclamou a mulher, com um


sorriso afetado e satisfeito. — Mas vamos subindo,
cavalheiros. Está muito frio aqui embaixo e há um bom fogo
aceso nas estufas dos quartos.

Subiram atrás dela, os degraus rachados e sujos rangendo


sob seus pés. O frio persistia, seguindo-os como um vento.
Ela abriu uma porta torta, mostrando um cubículo de
madeira, mal iluminado e aquecido por uma pequena estufa
bojuda de ferro. O frio ali era quase tão intenso quanto no
vestíbulo lá embaixo. No meio do quarto, havia duas camas
de ferro, com colchas imundas. O resto do mobiliário era
constituído por uma arca de gavetas, velha e quebrada, duas
cadeiras de balanço, uma mesa e um lampião a óleo. Por
cima de tudo, havia a pátina preta da poeira de carvão, que
nada podia erradicar.

Quando Paul e Guy ficaram a sós, Paul começou a tirar


algumas coisas da mala, colocando-as em cima da arca. As
escovas de cabo de prata brilhavam na luz difusa, enquanto
a estufa estalava. Guy sentou-se na beira de seu catre
precário, olhando indeciso para sua própria bagagem. Ele
estremeceu. Havia tirado o chapéu e os cabelos louros
cacheados brilhavam como ouro. Parecia pateticamente
jovem e frágil, uma pluma que fora cair num monte de
sujeira.

Paul disse, sombriamente, sem se virar para fitá-lo:

— Espero que esteja se divertindo. E presumo que não


está desapontado.

— Não estou. — Os olhos de Guy eram suaves, a voz alta


e calma. — Mas não resta a menor dúvida de que é tudo
horrível.

Ele tirou o casaco e abriu a bolsa. O silêncio voltou a


pairar entre os dois, enquanto se preparavam para deitar. O
meticuloso Guy examinou o colchão de palha, o lençol e as
cobertas. Colocou tudo de volta no lugar, tornou a calçar os
sapatos que já tirara. Era evidente que não tencionava
dormir sob as cobertas, mas por cima. Pegou a manta de lã
que May insistira para que trouxesse. E disse, sem olhar para
Paul e com aparente indiferença:

— Acho que sei qual é o seu jogo.

Paul ficou tão atônito com o comentário que, por um


momento, ficou completamente imóvel, paralisado. E depois
virou-se bruscamente para o primo e cunhado, dominado
pela raiva:

— Que diabo está querendo dizer com isso? Meu jogo?


Que jogo?

E, no instante seguinte, ele parou abruptamente. Pois do


rosto de covinhas de Guy, eram os olhos de Ernest que o
fitavam, maliciosos, opacos, implacáveis. Aqueles olhos
eram como um punho poderoso golpeando-lhe o peito.

— Meu pai é um homem extraordinário — disse Guy. —


Também sei disso. Mas até um homem extraordinário pode
cometer erros. Ele pensa que você é o melhor que pode
conseguir. Não sabe como você é estúpido. Meu pai pensa
que está fundando uma espécie de dinastia. É o inglês nele...
família, dinheiro, tradição, os negócios passando de pai para
filho. Mas ele escolheu o homem errado para continuar a
dinastia. Cometeu o seu primeiro erro... ao escolher você.
Você não é nenhum construtor de impérios, não é um Atlas.
Sei que é determinado e vigoroso. Mas meu pai não chegou
onde está apenas por ser determinado e vigoroso. Ele tem
algo mais. Para um homem inteligente, o pai está começando
a exibir sinais de velhice. Você não tem imaginação. Não tem
visão. Já ouviu falar de visão, Paul?

Paul, cada vez mais atônito, cada vez mais enfurecido,


sentiu o sangue quente passar pela garganta e afluir às veias
da cabeça. Ficou parado onde estava, o corpo grande
tremendo na repressão da explosão, o rosto inchado e roxo.
Abriu a boca, mas não saiu qualquer som.

Guy estalou os dedos e sorriu. O olhar rancoroso em seus


olhos assumiu um brilho de desdém. E ele acrescentou,
jovialmente:

— Mas talvez o pai espere que a visão e a astúcia


provenham dos Bouchards. Não posso crer que ele pense
realmente que você as possua. Ele não pode ignorar que
existe um ponto fraco em você. Como acontecia com seu pai.
— Guy fez uma pausa. — O problema é que o pai pensa que
você é como ele, em muitas coisas. Olha para mim e julga
que vê o que chama de peralvilho. Mas na verdade sou muito
mais parecido com ele. Muito mais do que qualquer outra
pessoa no mundo. Só que tudo aquilo que ele quer e o que
eu quero são coisas inteiramente diferentes. Vejo o mundo
por uma janela diferente. E posso vê-lo, olhando por essa
janela. Sei o que você é e o que está querendo.

Diante do olhar aturdido do primo, ele deitou e


espreguiçou-se, virando-lhe as costas.

— Não vou deixar que você consiga o que está querendo.


Afinal, sou o filho de meu pai.

Não era apenas a raiva o que estava agora paralisando


Paul. Era também o medo, plenamente despertado, a certeza
terrível de que todas as suas suspeitas eram justificadas.
Aquele cão malicioso e traiçoeiro... Paul experimentara
muitas vezes antes uma raiva cega, mas nunca antes sentira
vontade de matar. O desejo foi se transformando numa
espécie de êxtase, um anseio intenso, inebriante. Chegou
mesmo a impeli-lo a se adiantar, na direção do primo
deitado, as mãos estendidas, dominado pelo instinto mais
compulsivo de sua espécie. Quando percebeu subitamente o
que estava fazendo, os joelhos começaram a tremer
incontrolavelmente. Por um momento, todos os seus demais
pensamentos e ódios se perderam no poço negro do horror.
Ficou parado ali, tremendo, ofegando.

Depois virou-se, sentou-se na cama, olhou sombriamente


para frente. E começou a falar, em voz tensa:

— Você não passa de um idiota, Guy. É apenas um garoto


irresponsável. Não tenho plano nenhum, não estou
empenhado em qualquer jogo. Está esquecendo que sou
agora parte de Barbour & Bouchard. Vou fazer o melhor
possível para ajudar seu pai a realizar o que está querendo.
Se você vai mesmo demonstrar finalmente algum interesse,
pode estar certo de que o ajudarei. Sou o marido de sua irmã
e tenho de tomar conta da parte dela. Meu pai também
ajudou a construir tudo o que hoje existe. — Ele respirou
fundo. -Não quero roubá-lo.

E, por causa de seu horror, Paul acreditou nisso. Guy


virou-se lentamente, a luz do lampião refletindo-se em seus
dentes bonitos, enquanto sorria.

— Quem falou alguma coisa em ‘roubar’?

E através do pequeno espaço entre os dois, os primos


ficaram se olhando, enquanto o vento frio das montanhas
sacudia as janelas. Estavam a sós nas circunstâncias mais
fantásticas, um homem ainda jovem e poderoso, um rapaz
que era quase um garoto. Depois, subitamente, exultante,
Guy percebeu o grotesco da situação e desatou a rir,
sacudindo-se incontrolavelmente na cama. E ele gritou:

— Meu pai teria matado, caso se sentisse assim!


CAPÍTULO LXXXI
Ao acordar, na manhã seguinte, Guy descobriu que Paul já
saíra. Achou graça nisso, mas ficou satisfeito. Não tinha o
menor desejo de acompanhar o primo a parte alguma.
Constatou que caíra muita neve durante a noite e se estendia
agora em longas dobras aveludadas sobre as encostas
escuras. Um céu claro brilhava lá em cima. Não havia
qualquer ruído, além do bater de uma porta distante e a voz
estridente de uma mulher. O quarto estava extremamente
frio e Guy aconchegou-se sob os agasalhos. Ficou olhando
longamente para o teto. As covinhas nas faces davam a
impressão de que tinha no rosto um sorriso infantil. Mas ele
não estava sorrindo. Os olhos exibiam um brilho intenso nas
pupilas, o que lhe emprestava uma expressão furiosa e
agressiva. Depois de algum tempo, começou a assoviar
baixinho e saltou da cama. O assovio transformou-se num
canto alto:

— Depois que a festa acabar, ta-ta-ta-tatata...

Ele saiu dançando pelo quarto, enquanto vestia a calça.


Tornou a dançar depois que calçou as botinas pequenas e
elegantes, dando voltas e fazendo piruetas, com movimentos
rápidos, graciosos e exuberantes. Os cabelos louros e
brilhantes esvoaçavam suavemente em torno do rosto, as
feições pareciam aguçadas, quase inumanas. Quando ele era
pequeno a velha Hilda chamara-o de ‘diabrete’. Ela percebera
no neto um riso selvagem, uma crueldade na alegria, uma
inteligência amarga que a carne humana não podia abrandar.
Somente Hilda soubera que, apesar da alegria e exuberância,
do comportamento aparentemente leviano, Guy era mais
parecido com o pai do que qualquer outro jamais seria. As
pessoas diziam a respeito dele a mesma coisa que falavam
de Ernest:

— Nunca se sabe o que ele está pensando.

Guy desceu a escada precária de três em três degraus,


pulando para o chão lá embaixo com a agilidade de um gato.
Uma porta se abriu com o estrondo e a Sra. McCloskey
apareceu, ainda de chambre e touca, uma expressão irritada
no rosto esquelético e astuto.

— Santo Deus! Está querendo derrubar a casa?

Como o jovem Sr. Miller, secretário de um homem mais


importante, ela o desdenhava.

— Entre logo na cozinha e trate de comer. Não tenho o dia


inteiro a perder. O café está frio, mas acho que não vai se
importar.

Guy seguiu-a para uma cozinha de madeira antiga e suja,


onde havia um fogão de carvão aceso. Poeira de carvão e
sujeira acumulavam-se na única janela, estreita e sem
cortinas. A Sra. McCloskey pôs a comida de Guy num canto
da mesa de madeira, escalavrada e com muitas crostas de
sujeira. A louça branca não estava muito limpa e os talheres
de peltre eram tortos. Ela serviu-lhe um café morno, que
deixou Guy ligeiramente nauseado ao cheirá-lo. O açúcar
estava num saco de papel. A Sra. McCloskey pôs duas fatias
de carne de porco fritas no prato de Guy, assim como um
pedaço de pão escuro. Depois disso, ela retirou-se para junto
do fogão, cruzou os braços e ficou observando com uma
expressão hostil.

— Acho que não estou com fome — disse Guy, virando o


rosto liso para a Sra. McCloskey.
— Ah! — Ela contraiu o rosto furiosa, sacudindo a cabeça
vigorosamente. -Não gosta da minha comida! -

— Não é isso.

Guy sorriu para a mulher, os olhos azuis assumindo uma


expressão inocente, as covinhas fazendo-o parecer como
uma mocinha fascinante.

— O problema é que tivemos uma longa viagem ontem e


meu estômago ficou um tanto embrulhado.

Nem mesmo a Sra. McCloskey podia resistir àquele lindo


sorriso e à voz insinuante. Ela encolheu os ombros,
resmungou baixinho e depois disse que achava que poderia
servir-lhe um ovo, se ele quisesse. E tinha também um par de
biscoitos no forno, ainda quentes. Enquanto ela preparava a
comida especial com um entusiasmo excepcional; Guy
começou a falar-lhe jovialmente.

A Sra. McCloskey não foi capaz de conter o riso. Ele


estava contando uma história engraçada e inteiramente
fictícia a respeito de Paul e ela estava ainda bem próxima de
seus ancestrais para divertir-se com uma história às custas
de seus ‘superiores’. A expressão de malícia em seu rosto
tornou-a ainda mais repulsiva. Ao agachar-se diante do fogão
para pegar os biscoitos, ela meneou os quadris, num êxtase
de satisfação. Serviu o ovo e os biscoitos, ‘descobrindo’
também um pouco de manteiga. Depois, olhando para Guy
com um sorriso lúbrico, de dentes podres, ela disse:

— Você é o garoto mais lindo que já vi por aqui em muito


tempo!

Um cheiro rançoso emanava do corpo metido no chambre


velho. Guy podia discernir um esboço de cavanhaque no
queixo pontudo da mulher. Mas contemplou-a como se ela
fosse um objeto que lhe merecesse a maior admiração. Ela
estendeu a mão para os cabelos louros cacheados de Guy, os
dedos mais parecendo apenas ossos.

Passando manteiga nos biscoitos e servindo-se da geleia


de maçã que a Sra. McGoskey também ‘descobrira’ na
despensa, Guy perguntou:

— É verdade que os mineiros estão mesmo passando


fome?

— Se estão passando fome? — A voz áspera da mulher


transformou-se num grunhido desdenhoso, embora ela
continuasse a acariciar os cabelos de Guy. — Estão morrendo
de fome! E os desgraçados bem que merecem. Ontem me
apareceu uma mulher na porta dos fundos, com um fedelho
nos braços, suplicando por comida. E eu lhe joguei na cara a
água suja com que havia lavado a louça.

— Por quê? — indagou Guy, inocentemente. — Ela não


tinha lhe feito mal algum.

— Por quê? — Os dedos da mulher seguravam uma mecha


dos cabelos de Guy. Pararam por um instante e depois deram
um puxão brusco, num rancor inconsciente. — Ora essa,
porque eles não passam de uma gentalha ordinária! Como se
atrevem a fazer greve? A lutar por pão e manteiga? A
destruir a lei e a ordem? É justamente isso o que eles estão
fazendo... destruindo a lei e a ordem! Precisamos ter lei e
ordem. É a lei.

— Acho que tem razão. E querer o suficiente para comer é


desafiar a lei e a ordem, não é mesmo?

— Hem? — A Sra. McCloskey olhou atentamente para Guy,


com uma expressão desconfiada. -Não está querendo caçoar
de mim, não é mesmo, meu rapaz?

— Claro que não. Estou apenas concordando com sua


opinião. Afinal, tendo um pai como o meu, não posso deixar
de sentir a maior admiração pela lei. É... muito conveniente.
Não pensa assim também?

Ela franziu o rosto, confusa e desconfiada.

— Seu pai era um mineiro?

— Não. Mas tinha algo a ver com as minas.

— Um ferroviário?

— Creio que se pode dizer que é um homem ligado às


ferrovias. Mas como passou a odiar tanto os mineiros, Sra.
McCloskey? Afinal, parece a mulher de um mineiro.

— Já lhe disse que eles não passam de uma gentalha


ordinária. Isso não é suficiente? Vivem brigando por pão e
manteiga. Tentam mandar nas minas, dizendo aos patrões o
que eles vão fazer. Não é certo nem decente. Não passa de
um atrevimento que não tem mais tamanho. Se eles não
querem trabalhar, então não precisam fazê-lo. Mas não têm o
direito de impedir outras pessoas de trabalhar.

— Quer dizer que também andou lendo a Constituição,


hein, Sra. McCloskey?

— Constituição? O que é isso?

— Não importa. Já a conhece, sem lê-la. É o que se chama


de intuição. É uma mulher muito esperta, Sra. McCloskey.
Ela sorriu horrendamente, embora ainda desconfiada.

— Ah, mas nenhum rapaz sabe dizer coisas tão bonitas!


Quer mais um pouco de café?

A neve já estava salpicada de poeira preta, que parecia


pairar perpetuamente no ar, quando Guy saiu da pensão. Os
milicianos de serviço ficaram observando o vulto franzino
subir rapidamente pela encosta a oeste, com a gola do
casaco levantada, o chapéu quase cobrindo os olhos. Era um
vulto de menino, pequeno e ágil. Os milicianos sorriram,
aturdidos.

Guy chegou ao topo da colina e parou ao sol ofuscante.


Olhou ao redor. A elevação descia no outro lado para um
vale estreito e irregular, branqueado pela neve e cortado ao
meio pelas águas escuras de um córrego estreito. Nos dois
lados desse córrego haviam casebres de madeira, as
chaminés finas lançando tênues nuvens de fumaça
alaranjada contra o céu claro e ofuscante e a encosta do
outro lado. Aqui e ali, ainda podia-se divisar de pé os
resquícios de cercas de madeira, contornando parcialmente
alguns casebres. Por trás de alguns casebres, havia uma
cabra amarrada, balindo. A neve recente ainda não fora
quase poluída pela poeira negra ou por passos, embora Guy
pudesse divisar os vultos de mulheres envoltas em xales,
trabalhando nos fundos de alguns casebres. Mas não havia
crianças nem homens à vista. As encostas de outras
elevações interrompiam a paisagem além do vale, cortadas
irregularmente pelos poços das minas.

Guy nunca estivera antes numa região mineira, mas sabia


instintivamente que tais lugares eram movimentados e
ruidosos. Mas embora houvesse vagões em desvios e os
guindastes se erguessem contra o céu pálido de inverno, não
havia qualquer ruído. Não havia sequer um miliciano ou um
detetive a rondar pelas proximidades. Guy ficou
desapontado. Fora levado a acreditar que as greves naquelas
regiões eram particularmente desesperadas e violentas.

Ouviu um tiro, súbito e assustador, ressoando pelo


silêncio branco. Partiu imediatamente na direção do
estampido, as pernas e os pés logo ficando encharcados. Não
demorou muito para que começasse a suar, enquanto
avançava penosamente pela neve. Chegou a outro vale
estreito e a outra fileira dupla de casebres silenciosos, a
fumaça saindo pelas chaminés. Seguiu em frente. Finalmente
alcançou a encosta íngreme da última elevação e foi com a
maior dificuldade que chegou lá em cima. Olhou para baixo.

As bases das elevações formavam a extremidade menor e


tosca de um imenso funil. Naquele círculo irregular, estavam
concentrados cerca de cem homens. Outros 200 homens
espalhavam-se pelas encostas, as roupas esfarrapadas
parecendo manchas negras na brancura da neve. Pareciam
mais com enormes e patéticas formigas do que com homens,
mexendo-se numa inquietação contínua, os corpos
inclinados, as cabeças sacudindo-se de um lado para outro.
No centro dos cem homens lá no fundo, em cima de um
caixote ou de uma pedra, estava o homem cuja voz Guy
podia ouvir. Ele arengava para os homens com gestos
veementes, uma intensidade que parecia sacudir-lhe o corpo
comprido e esfarrapado, a voz num crescendo de
agressividade. Contudo, parecia não estar alcançando muito
sucesso, pois os mineiros permaneciam apáticos. Nada
diziam, não faziam qualquer ruído. Contudo, suas atitudes, o
próprio aspecto das sombras irregulares na neve, tudo
indicava desespero, indecisão e derrota. Não faziam
quaisquer movimentos individuais, a não ser para soprar as
mãos entorpecidas e bater no chão com os pés enregelados.
Não havia violência, fúria e ódio, apenas homens que
estavam famintos e aturdidos. Não havia nenhum miliciano
ou outro estranho à vista. Ninguém levantou os olhos para
observar o pequeno vulto no topo da elevação.

Houve uma súbita pausa. O orador chegara ao final de seu


discurso. Nenhum homem falou, não houve qualquer
murmúrio de aplauso ou discórdia. Depois, houve um rápido
e violento distúrbio entre os homens na encosta a leste. No
instante seguinte, um homem desceu correndo até o fundo.
Seus movimentos eram como um torpedo cortando águas
serenas e provocou um excitamento entre os companheiros.
Ele chegou ao fundo, empurrou o outro orador para o lado e
subiu no caixote. Um murmúrio elevou-se dos mineiros,
excitado e expectante. Outros homens desceram a encosta,
agrupando-se em torno do companheiro que ia falar. O
murmúrio da multidão foi se tomando mais intenso, um
tanto gutural, em parte de esperança, em parte de prazer.

O homem no caixote levantou os braços num gesto


dramático e novamente houve silêncio. O ar estava tão claro
e transparente que Guy podia vê-lo nitidamente. Era um
homem alto e corpulento, em torno dos 40 anos, a cabeça
descoberta, os cabelos avermelhados expostos ao sol. Tinha
um rosto largo e também avermelhado, irascível, agressivo.
Era John Glenwyn, um galês, mineiro de nascimento, herança
e instinto, que deixara Gales durante os últimos distúrbios
nas minas de lá. Solteiro, violento, idealista e lutador,
possuía a eloquência rude e catastrófica dos homens de sua
espécie. Chamavam-no de espalha-brasa, tanto pela cor dos
cabelos como pela língua incendiária. Naquele momento, era
ao mesmo tempo odiado e caçado pelos donos das minas,
sendo obrigado a viver cautelosa e furtivamente. Mas sempre
aparecia misteriosamente onde quer que uma greve estivesse
prestes a desmoronar sem obter resultados, jamais deixando
de fustigar os grevistas a entrarem novamente em ação. E era
geralmente uma ação louca e violenta, os homens parecendo
narcotizados, perdendo o instinto de autopreservação.
Glenwyn não costumava desaparecer quando a fúria se
abatia sobre a região em greve. Possuía grande coragem
pessoal e um apetite natural pela luta e o combate, podendo
ser invariavelmente encontrado onde os golpes eram mais
violentos. O ódio era sua natureza, uma força vigorosa que
seria impessoal e perigosa num homem destituído de visão.
Mas ele tinha uma visão, a da justiça social. Assim, o ódio
transformava-se num instrumento a que nada podia resistir.
Ele costumava comentar, sorrindo, exibindo os dentes
brancos que lembravam um lobo:

— A única diferença entre os patrões e eu é que eles têm


dinheiro e eu não. Isso é tudo.

Era verdade, apesar da aparente obscuridade. John


Glenwyn não tinha um só vintém, embora pudesse tornar-se
um homem rico, se assim quisesse.

Guy já ouvira falar de John Glenwyn. Recordando as


descrições dele, soube quem era aquele homem que estava
prestes a falar. Agachou-se na neve, perto do topo da
elevação, a fim de não atrair muita atenção.

John começou a falar em sua voz firme e retumbante. Era


uma voz tipicamente galesa, que parecia natural àquelas
montanhas nuas e céus cinzentos. Ele parecia estar falando
com a maior naturalidade, sem muita veemência ou drama.
Mas cada palavra calava fundo e nenhum homem se mexia.
Todos observavam os menores gestos de John, balançando
de um lado para outro ao compasso de sua voz.

— Eles trouxeram agora a milícia para cima de nós.


Enforcaram alguns dos nossos. Chamaram os soldados para
nos liquidar. E tudo isso só porque estamos morrendo de
fome. É o maior crime em todo este mundo: sentir fome. É o
pecado de que os vigários falam, o pecado que Deus não
perdoa. Isso dá à Lei o direito de atirar ou enforcar qualquer
um de nós, espancar nossas mulheres até a morte e deixar
nossos filhos à míngua. Não temos o direito de viver.

“Talvez eles estejam certos. Mas nós não acreditamos


nisso! Sabemos que estamos com fome porque eles estão nos
mentindo e nos roubando. Todo este maldito mundo com a
maior fartura e eles não nos deixam ficar com uma parte
sequer, por menor que seja. Chamam a polícia e os soldados
para nos impedir de ter aquele mínimo pelo qual tanto
trabalhamos. Há o suficiente para cada homem, sua mulher e
seus filhos. Deus não tem prediletos. Mas nós não temos a
lei do nosso lado... porque não temos dinheiro. É apenas
uma questão de algumas moedas, meus amigos, não tem
nada a ver com a vontade de Deus, apesar do que dizem os
párocos”.

Ele estava falando com um humor amargo e um rugido


gutural elevou-se das gargantas dos homens. Não estavam
mais apáticos, perdidos e aturdidos, como se estivessem
desorientados, como se estivessem indagando o que lhes
acontecera e o que estava fazendo, ali nas encostas, em
pleno meio-dia. John puxara as cordas frouxas de suas velas,
tratara de hasteá-las ao vento. Os homens sabiam novamente
para onde estavam indo, descobriam outra vez que estavam
vivos, imbuídos do pensamento de seu destino. Ele ressoara
os tambores em suas madrugadas cinzentas e sem propósito.
Estava lhes proporcionando as alegrias da raiva e da
coragem. Despertados e animados, os homens concentraram-
se em torno dele, gritando, estendendo as mãos em sua
direção, rindo, sacudindo a cabeça vigorosamente, sorrindo.
John sorria-lhes, com uma satisfação sombria.

— Às vezes, rapazes, achamos que a lei está


completamente errada, a lei é inteiramente idiota. Não
acreditamos que o bom Deus no paraíso tenha nos criado
para passar fome, apesar do que possam dizer os malditos
párocos. Estamos dispostos a trabalhar. Olhem só para as
nossas mãos! Somos pacientes e não queremos brigas com a
lei. Mas chega um momento em que temos de perguntar:
viver é apenas isso? Viver é apenas as minas, suor, sangue,
escuridão, sem nunca ter o suficiente para comer, as
doenças da poeira que se insinuam em nossos pulmões, sem
nunca ver o sol, sem saber, a cada vez que descemos, se
voltaremos a subir? E jamais conseguimos escapar, a não ser
quando nos embriagamos... nos bares deles!

“No livro Santo está escrito que não se deve tapar a boca
do boi que trabalha na plantação de milho. Mas é justamente
o que os patrões fazem com a gente! Trabalhamos na
colheita do milho do amanhecer ao anoitecer, mas nossas
bocas estão fechadas e nem um só grão de milho desce para
as nossas barrigas!’

“Talvez nós é que estejamos malucos, rapazes! Isso


mesmo, talvez a culpa seja toda nossa! Como o boi. Estamos
afundados no milho pronto para comer e passamos fome!
Porque deixamos que um punhado de homens gananciosos
nos ponha uma focinheira e nos impeça de comer! Somos
fortes, somos poderosos, poderemos acabar com eles, se
quisermos! Qual é o problema com um boi que deixa que lhe
ponham uma focinheira, quando poderia ter sua parte do
milho que está ajudando a produzir, se assim quisesse”?

— Ele está certo, rapazes! — gritou um mineiro grisalho,


de voz rouca, com uma horrível cicatriz de queimadura na
face direita.

Os homens tornaram a rugir e agora havia algo de


ameaçador e soturno nesse rugido.

O humor amargo desvaneceu-se do rosto de John. Havia


agora selvageria, uma fúria intensa, uma paixão brutal.

— Há dois dias, Tim Murphy mandou chamar-me nas


Minas Trudell, pedindo que viesse falar com vocês, rapazes,
“Ajude-nos, John”, disse ele. “Os rapazes estão perdendo o
ânimo, não vão mais querer continuar. Estão deixando que
umas poucas armas Barbour incutam o medo em seus
corações. Se não nos ajudar, mais um pouco eles estarão
correndo de volta às minas, levando pontapés no traseiro e
dando graças a cada pontapé.” E por isso eu vim para cá. Vim
e vi tudo. E disse a mim mesmo: ‘Eles não podem parar
agora. Não vão se atrever a parar.’

“Rapazes, vocês não podem parar! Não apenas por vocês,


mas por seus filhos. Querem que eles vivam como vocês?
Querem que eles morram como vocês? Será que seus filhos
não valem um pouco de coragem, umas poucas balas, uma
barriga vazia? Vocês são homens ou não passam de porcos?”

“Podem perder esta luta. E daí"? O importante é que


nossos filhos se lembrarão! E porque lutamos, eles
continuarão a luta. E não vão perder! Por nossa causa, eles
saberão que têm o direito de viver, que têm o direito a uma
parte do que extraímos da terra. Vamos dizer a nossos
filhos: ‘Nossas mãos sangram nas picaretas, nossos pés se
cortam nas rochas, nunca vemos o sol. Mas lutamos por
vocês, para lhes darmos o direito de viverem como homens,
de partilharem tudo o que arrancaram das entranhas da
terra.’

“E devemos também lembrar que esse direito é


igualmente nosso. Estamos lutando por nossa parte. Não
podemos parar a luta, porque é uma luta justa. Escavamos o
carvão e o carregamos. É a nossa força que põe o carvão nos
vagões em que é transportado para longe, a fim de ser
queimado em casas, fábricas e palácios. É o nosso trabalho
que faz tudo funcionar, os trens correrem. Nós, os
trabalhadores, fizemos a terra e todas as coisas boas que
nela existem. Mas herdamos esta terra que fizemos? Não! Por
Deus, não! E por quê? Porque temos sido estúpidos demais
para compreender que esta terra pertence a nós e não a eles,
que devemos reclamá-la e eles acabarão cedendo, sob a força
dos nossos punhos!”

“Lembrem-se disso quando sentirem vontade de correr de


volta, choramingando, para se esconderem atrás das saias de
suas mulheres, depois de levarem um chute no traseiro.
Lembrem-se disso e chegarão ao dia em que os patrões terão
de nos escutar, porque nossas vozes se tornaram bastante
altas ou então...”

John fez uma pausa dramática, correndo os olhos pelos


homens de respiração suspensa, com os olhos faiscando.

— ... ou então porque temos armas nas mãos!

Um silêncio profundo seguiu-se às últimas palavras.


Depois, das gargantas de todos os homens, brotou um único
grito, violento e enfurecido. Foi um grito breve, como uma
explosão. Mas depois que cessou, as colinas ecoaram-no,
como se acampamentos armados, em vales ocultos,
aclamassem e saudassem.

Guy ficara agachado na neve durante todo o discurso de


John, os braços cruzados sobre os joelhos. Escutara
atentamente, imóvel. Em determinado momento, pensara,
sorrindo ironicamente: aí está um homem que somente o pai
poderia apreciar! Quando soou o grito, ele parou de sorrir, o
brilho selvagem voltou a se insinuar em seus olhos. Foi
então que ele ouviu um barulho no outro lado da colina, de
passos subindo pela encosta, patas de cavalos, o retinido de
armas. Tornou a subir até o topo, rapidamente, embora
cautelosamente, deitou-se e deu uma olhada. Pelo menos 50
homens corpulentos, a pé e a cavalo, armados com porretes
e armas de fogo, subiam rapidamente pela encosta,
determinados, implacáveis. Um dos homens, a cavalo, era
Paul Barbour, empunhando uma pistola de aspecto
ameaçador.

Guy percebeu tudo num relance. Rolou por alguns


metros, levantou-se, erguendo os braços e começando a
gritar advertências para os mineiros lá embaixo, enquanto
corria na direção deles. Sabia que não havia qualquer
esperança e tal certeza deixava-o angustiado. Mas pelo
menos os mineiros receberiam um aviso, alguns poderiam
escapar ou se aprontarem para a luta.

Aturdidos e subitamente assustados, os mineiros olharam


para o vulto esguio que descia a encosta, gritando e
apontando para trás freneticamente. Ficaram paralisados,
rostos apavorados, olhos levantados, bocas entreabertas. A
aparição era súbita demais e o barulho muito inesperado
para que suas mentes lerdas apreendessem rapidamente o
que estava acontecendo. Entraram em pânico, um som
aterrorizado espalhando-se por toda parte.

Mas John Glenwyn percebeu imediatamente o que estava


acontecendo. Começou a gritar, atraindo a atenção dos
homens apavorados, que começavam a se concentrar em
torno dele.

— Corram todos! Corram! Se ficarem juntos, eles vão


massacrá-los! Ficará mais fácil para eles nos massacrarem
como ovelhas! Espalhem-se! Cada homem por si! Corram!
Com todos os diabos, corram!

A voz dele, incisiva e fustigante, espalhou-se pelos


mineiros como uma corrente elétrica. Pareciam pular pelo ar,
disparando em todas as direções, esbarrando uns nos outros,
tropeçando, caindo, subindo por encostas distantes,
debatendo-se como besouros pretos contra a brancura da
neve. John Glenwyn não tentou salvar-se. Continuou a gritar
e sacudir os braços, em cima do caixote, a cabeça vermelha
parecendo uma tocha ao sol. Gritava sem parar, instando os
mineiros a uma nova e desesperada velocidade, a voz
poderosa ressoando de uma colina para outra. Estava quase
isolado agora, o espaço ao seu redor inteiramente limpo.
Mais da metade dos mineiros aproximava-se do alto das
encostas, deslocando-se com tal velocidade que seria difícil
acertá-los com um tiro. Guy, exausto e dolorido no fundo da
encosta, compreendeu subitamente o que John estava
querendo. Seu vulto se sacudindo, a altura, veemência,
gritos, cabelos vermelhos, tudo isso se juntaria para atrair a
atenção dos atacantes por mais alguns preciosos segundos,
proporcionando uma chance de sobrevivência a alguns
homens, mais lentos que os demais. Além disso, o tumulto
que fazia advertiria os atacantes de que a presença deles era
conhecida, fazendo com que hesitassem, se concentrassem,
apressadamente se reorganizassem e alterassem o plano
anterior de atacar rápida e subitamente, sem que ninguém
esperasse. Isso também representaria mais uns poucos
minutos preciosos. Àquela altura, os atacantes já haviam
tido tempo de alcançar o topo da colina. Mas tal não
acontecera. Ainda estavam na encosta do outro lado,
completamente silenciosos.

Muitos dos mineiros, avançando em diagonal, já haviam


desaparecido na curva da colina, à direita. Alguns, tendo
subido com incrível velocidade, estavam quase no topo da
colina. John, gritando lá embaixo, advertiu-os para se
jogarem por cima do topo e rolarem pela encosta no outro
lado. Guy, levantando-se lentamente, não podia olhar para
qualquer outra coisa que não John Glenwyn. Fascinado,
como que dominado por um terror sobrenatural, não podia
ver coisa alguma além daquele homem a gritar, os cabelos
vermelhos esvoaçando, os braços se sacudindo
freneticamente. E depois ele percebeu também que John
estava rindo, que em seu rosto vermelho havia uma
ferocidade louca e exultante, a ferocidade de um Titã que
podia enfrentar a morte com júbilo e desdém.

Os atacantes, agora concentrados e cautelosos,


apareceram finalmente no topo da colina. Guy, apavorado,
olhou para eles. Era apenas um garoto e estava com medo.
Compreendeu subitamente que não seria reconhecido, que
ele e John, como os únicos alvos parados, seriam os
primeiros a morrer. Começou a gritar, levantou um braço,
num gesto desesperado e inútil. Depois, como se sentisse a
força de John Glenwyn, virou-se para ele, correu em sua
direção, através da neve. Menos da metade dos mineiros
ainda estava à vista, na encosta do outro lado.

Guy não queria morrer. Não era do estofo com que se


fazem os heróis. Qualquer que fosse o motivo misterioso,
qualquer que fosse o ódio, desprezo ou raiva contra o pai ou
senso furioso de justiça que o levara àquele lugar, agora não
mais era lembrado nem ele se importava. Estava apavorado,
queria escapar. Começou a correr e deslizar pela encosta,
com uma velocidade crescente e temerária, gritando,
olhando para trás a todo instante.

Dois tiros soaram, quase que simultaneamente. No


mesmo instante, Guy saltou pelo ar, braços e pernas
estendidos, grotescamente, como um dançarino pulando. E
quando tornou a pousar em terra, as pernas cederam e
vergaram, ele caiu de joelhos, depois arriou abruptamente,
com a cara na neve. O corpo contorceu-se uma vez,
violentamente, depois ficou imóvel.

John Glenwyn também não tornou a se mexer. Estava


igualmente caído com a cara na neve, que lentamente ia
ficando vermelha.
CAPÍTULO LXXXII
Parecia impossível a May, no trem a caminho de Nova
York, escapar das atenções absorventes de Elsa e do som de
sua voz alta e confiante. Ela estava começando a esquecer
sua habitual compaixão e tolerância pela moça,
desenvolvendo uma intensa antipatia. Descobriu que os
músculos faciais doíam dos sorrisos forçados e que mal
conseguia evitar que a impaciência e irritação
transparecessem em sua voz. Finalmente, sentindo-se uma
covarde, ela sugeriu a Elsa que Gertrude parecia muito pálida
e cansada, desviando a avalanche de solicitude afetuosa para
sua aflita filha. A verdade, pensou May, é que surgem
emergências em que até mesmo a afeição materna soçobra.
Agora, ela podia conversar com Ernest em paz. Ele estava
sentado imperturbável, lendo os jornais, indiferente ao
tumulto e confusão das mulheres ao redor. Quando May, um
tanto bruscamente, mas sorridente, exigiu-lhe a atenção, ele
largou o que estava lendo e fitou-a com uma expressão
afável e cordial.

— Gostaria que me escutasse por um momento, Ernest.


Claro que sei que sua viagem a Nova York nada tem a ver
com o fato de que seu filho mais velho vai estrear na
Academia de Música. Claro que você é um homem muito
importante para se preocupar com essas insignificâncias...

Ernest sorriu.

— Ora, minha cara, por que está tão excitada? Lembre-se


do que o médico lhe disse a respeito de seus nervos. Está
com o rosto todo vermelho. Mas o que queria me dizer?

May ainda sorria, mas sua respiração era irregular,


convulsiva. Encostou um lenço nos lábios e na testa, ajeitou
a estola em torno do pescoço.

— Eu queria lhe falar a respeito de outro de seus filhos.


Lembra-se dele, Guy, o seu terceiro filho? Talvez tenha
esquecido.

As lágrimas ardiam nos olhos de May.

— O que há com Guy?

— Não me agrada a ideia de ele ir para a região das minas.


Quanto mais penso a respeito, menos gosto. Sei que agora já
é tarde demais para falar sobre isso. Não sei por que
consenti nesse absurdo. Guy não passa de um garoto, ainda
nem completou 16 anos. Não sei onde ele foi arrumar essa
ideia...

— Pode estar certa de que não fui eu quem a incutiu.

— Mas é uma tolice tão grande! Não concorda?

— Tolice? Não. Guy não me enganou absolutamente com


aquela história de estar interessado. Claro que ele tem uma
ideia, mas é um pequeno demônio furtivo. E duro como
pedra. Isso mesmo, ele tem uma ideia. De certa forma, está
interessado em alguma coisa. Só que o seu interesse não é o
que quis me fazer acreditar. Não vou pretender que sei do
que se trata. Mas confesso que estou curioso em descobrir. E
é o que vou fazer, assim que ele voltar. Guy não é nenhum
tolo. E você tem toda razão. Ele é bem melhor do que eu
imaginava. Acho que ainda conseguiremos fazer alguma
coisa dele.

— Que importância isso tem? — A voz de May tornara-se


veemente. — Tudo o que me preocupa é a segurança dele.
Não confio em Paul. Ele não gosta de Guy e vai deixá-lo se
meter nos maiores perigos.

— Acha que ele pode levar um tiro acidentalmente? —


Ernest soltou uma risada. — Concordo que existe o perigo e
que as coisas não serão fáceis. Guy não encontrará camas
macias, conversas agradáveis e bons jantares. Vai aprender o
que é a vida, encontrará algumas das coisas com que seu pai
se deparou. Brutalidade. Ele vai descobrir por lá que existem
coisas mais terríveis no mundo do que não ter trocados
suficientes no bolso. Descobrirá que os homens podem ficar
tão famintos e desesperados que são capazes de morrer
lutando por um pouco de comida. Não vai lhe fazer mal
algum. E talvez meta um pouco de seriedade em sua cabeça.
— Ernest fez uma pausa, antes de acrescentar, com
expressão pensativa: — Talvez ajude a ideia de Guy a se
desenvolver. Com todos os diabos, quase que não me
importo com o que possa ser a ideia, contanto que seja
objetiva e ele tenha coragem de lutar para realizá-la. E, às
vezes, tenho a impressão de que uma ideia de Guy pode ser
bastante objetiva e que ele terá a coragem de lutar por ela.

Ernest recostou-se no assento, sorrindo com uma


satisfação excepcional. May disse, involuntariamente:

— E eu penso que Guy é muito parecido com você. Ele


tem os seus olhos.

— É possível.

A satisfação de Ernest aumentou ainda mais, tornou-se


amável. May, ainda ansiosa e inexplicavelmente deprimida,
correu os olhos pelos ornamentos dourados e a pelúcia
vermelha do vagão particular. Recordou vagamente que
detestava pelúcia, pois nunca lhe parecia perfeitamente
limpa. Sua ansiedade tornou-se ainda mais intensa, enquanto
contemplava os enfeites dourados. Não se impressionava,
como acontecia com os Barbours, com vagões particulares,
criadas pessoais, valetes, pelúcia, enfeites elaborados, o luxo
opressivo. Pensava que os vagões particulares em que
ocasionalmente viajava com Ernest pareciam apenas com
carros de circos. A angústia dos pensamentos e a ansiedade
fizeram com que uma teia de rugas se espalhasse pelo rosto
de May. Ao sol claro do inverno, ela parecia conturbada e
cansada, as pálpebras outrora alvas e cheias eram agora
como bolsas flácidas e amareladas sobre o brilho extenuado
dos olhos. Os cabelos sob a touca elegante estavam
grisalhos. Ela piscava a todo instante, ocasionalmente
umedecia a secura contraída do lábio inferior. Ernest
observou-a furtivamente, sob a mão que levantara para se
proteger do sol que entrava pelas janelas pequenas. Quando
ela tornou a falar, olhando para frente, distraidamente,
Ernest baixou a mão. A expressão em seu rosto era muito
estranha para ele, ao mesmo tempo compadecida e gentil.

— Claro que não significa nada para você, Ernest, o fato


de que Frey está prestes a justificar tudo o que sempre
acreditei nele. Você não se importa com isso. Preferia que ele
fosse como Paul. — May fez uma pausa, passou a fitá-lo
diretamente. — Nunca fingiu o contrário. Jamais mentiu a
respeito. Mas isso não me serve de conforto. Às vezes, penso
que seria melhor que tivesse mentido.

— May, quero que saiba que, se tudo acontecer como você


espera e isso deixá-la feliz, então também me sentirei feliz.
Pode acreditar nisso?

Os olhos de May, fixados nele, dilataram-se de repente,


ficaram sombrios de amargura.

— Claro que posso acreditar. Seria um grande alívio para


você!
E ela virou a cabeça, bruscamente.

O secretário de Ernest, que os acompanhava na viagem,


bateu discretamente na porta. Trazia um maço de papéis
para o exame de Ernest. Ele estendeu a mão para os papéis
calmamente, contente com a interrupção. A criada de May
apareceu atrás do secretário, a fim de lembrar à patroa que
eram três horas da tarde, o momento para o descanso
vespertino. Elsa, percebendo a comoção, levantou-se do
lugar em que estava sentada, ao lado de Gertrude, no final
do vagão, adiantando-se rapidamente, balançando de um
lado para outro, com o movimento do trem. May, que estava
prestes a recusar o descanso, mudou prontamente de ideia e
apressou-se em dizer à sobrinha:

— Peço que me dê licença, querida. Estou muito cansada.

— Eu compreendo — disse Elsa. — Vou ajudá-la. Posso


fazê-lo melhor do que aquela criada.

Impotente, May praguejou em silêncio, revoltada com sua


boa educação, que não lhe permitia insultar Elsa, como
desejava tão ardentemente. São os meus nervos, pensou ela,
severamente. Pensei ontem que ela era uma ótima moça,
patética e afetuosa, realmente inteligente. E hoje sinto
vontade de esganá-la. Estou me tornando terrivelmente
abominável.

Elsa já estava ajudando a criada e o cabineiro a


aprontarem o sofá de May. Resignada, May já estava prestes
a afastar-se de Ernest quando ele disse, olhando pela janela
com uma expressão pensativa:

— Cada vez que faço esta viagem, lembro que percorri


esse mesmo caminho de diligência, há mil anos. De
diligência! Não pode imaginar como foi horrível. Dias e dias
de tortura, imensos buracos, solavancos incessantes, sol e
chuva, sede e poeira, as costas doendo, pernas dormentes,
uma crosta de suor.

May, já de pé, virou a cabeça para trás, a fim de fitá-lo.

— Meu trisavô Sessions fez a mesma viagem em sua


própria carruagem.

Enquanto se deitava no sofá e Elsa e a criada brigavam


para ajeitá-la da maneira mais confortável possível, May
pensou: Isso foi mesquinho. É engraçado e embaraçoso que
seja justamente o tipo de coisa que pode impressioná-lo. Mas
foi mesquinho. É verdade, estou mesmo me tomando
abominável. Ela fechou os olhos, mas as pestanas não se
encontraram. Entre elas, por muito tempo, ficou observando
Ernest. O travesseiro sob sua face exibia um círculo escuro
de umidade.

Elsa sentou-se perto de May, lendo e bocejando. As


pernas compridas estavam estendidas. May achava que os
pés dela eram imensos. A luz do sol despejava-se sobre os
cabelos abundantes, o rosto grande e forte era o de uma
Brunhilde. Ela fazia uma pausa entre os capítulos, olhava
para o espaço vazio além das janelas. E de repente as feições
grandes se iluminaram, numa expressão de êxtase, ela
tremeu ligeiramente.

Gertrude, sozinha agora, olhava tristemente para o pai,


do fundo do vagão. Sabia que haviam desaparecido a antiga
confiança que depositava no pai, a fé e a confiança, a
descontração. Desde o casamento com Paul que não era
capaz de se aproximar de Ernest com um mínimo de
naturalidade. A situação lhe era quase angustiante, mas
algum instinto oculto a impedia de tentar mudá-la. Ela
recostou-se no assento. A janela estava empoeirada. O dedo
indicador de Gertrude traçou uma letra na poeira, sem
qualquer participação consciente de sua vontade. Ela olhou
em seguida. Era a letra P. Ficou olhando fixamente por um
longo tempo, com os olhos secos.

Chegaram a Nova York 24 horas depois. A carruagem de


Lucy Van Eyck, esplendorosa, com dois cocheiros
uniformizados, estava esperando. Seguiram pelo brilho
branco e azul das ruas de Nova York no inverno. O ar frio da
manhã era penetrante. Ainda era muito cedo, havia apenas
algumas carroças esmagando a neve. Ocasionalmente, podia-
se ouvir os sinos de algum trenó, ressoando festivamente
pelas sossegadas ruas residenciais. O intenso azul-escuro do
céu e as nuvens brancas refletiam-se em cada janela, as lojas
faiscavam, pingentes de gelo pendiam dos beirais, como
lanças de cristal, ônibus passavam lentamente, apinhados
com trabalhadores madrugadores. A parte inferior da Quinta
Avenida, cravejada de pequenas lojas, como uma dama
cintilando de pulseiras, broches e brincos, parecia alegre e
animada, pois as calçadas já estavam repletas de pessoas,
que entravam pela Rua 14 como rios turbulentos. Aquele era
o próprio coração do centro comercial, as vendas
aumentando por causa do Natal, incontáveis mulheres
comprando febrilmente... e tardiamente... presentes para
amigos e parentes esquecidos, trocando presentes
considerados indesejáveis. Já havia carruagens encostadas
em filas ao longo dos meios-fios da Rua 14, Quinta Avenida e
Broadway. Os arreios ofuscavam os olhos ao refletirem a luz
do sol, os cavalos sacudiam as cabeças e exalavam nuvens
de vapor branco, batendo com os cascos. May percebeu um
requintado vestido de veludo preto na vitrine grande de
Arnold Constable. Decidiu visitar a loja mais tarde, naquele
mesmo dia. Subindo a Quinta Avenida, deixaram o distrito
comercial para trás. As ruas foram se tornando mais
sossegadas, as lojas rareando. Residências magníficas
surgiam nos dois lados da avenida. As janelas superiores
ainda estavam amortalhadas por cortinas de seda de cores
suaves, mas já havia a maior atividade por baixo. Criadas
entravam e saíam com cestos, havia discussões entre
cozinheiras e vendedoras de legumes e carnes. O sol,
subindo pelo céu e esquentando, começava a derreter a
neve, formando manchas pelas ruas, entre as quais escorria
uma água escura.

Gertrude, parecendo excepcionalmente pequena, pálida e


frágil sob as mantas que a envolviam, observava vagamente
as ruas por que passavam. Apesar de sua ansiedade e
excitamento, May podia sentir prazer no fluxo rápido da
cidade grande e na expectativa de uma verdadeira orgia de
compras. Elsa, vigorosa e exuberante, sacudia-se
continuamente, puxava as mantas dos joelhos de Gertrude,
pedia desculpas, tornava a arrumar, exclamava, ria, batia
com as mãos enluvadas, ajeitava a touca que sempre ficava
torta, exibia seu prazer, excitamento e delícia febril, com a
falta de contenção de uma criança exuberante e saudável. Em
determinado momento, Gertrude fitou-a lentamente. May
ficou impressionada com a expressão no rosto da filha: tão
cansada, desdenhosa e languidamente brutal. Santo Deus!,
pensou May, perturbada, é verdade que Elsa é bastante
cansativa, mas não é certo odiar alguém sem que haja
alguma provocação concreta. Ernest, no entanto, parecia
satisfeito e divertido com o prazer da sobrinha na cidade
grande. Beliscou-a suavemente na face corada.

— Você é uma coisa muito bonita, Elsa — disse ele,


satisfeito com a semelhança entre os dois.

Ela riu jovialmente, exclamando:

— Só espero que Frey pense a mesma coisa!

May olhou involuntariamente para Gertrude. Os olhos de


Gertrude brilhavam intensamente de ódio e rancor, fixados
na prima.

— Se ele não o fizer, então é um idiota — declarou Ernest.

Seria ótimo ter aquela moça como nora, pensou ele. Ela
incutiria algum vigor no vinagre do sangue do filho. Ela lhe
daria filhos, Barbours vitais, fortes e poderosos, como a mãe.

Chegaram à casa de Lucy Van Eyck, uma residência


distinta de quatro andares, na esquina da Quinta Avenida
com a Rua 23. Era branca, com varandas estreitas, enormes
janelas em arcada, com toldos cinzentos. Ernest já estivera
ali antes, ao contrário de May e Gertrude. Enquanto ajudava
May a descer da carruagem, ele comentou:

— Lucy está muito bem.

O mordomo e dois outros criados saíram apressadamente


da casa para ajudar.

Entraram num vestíbulo grande e quadrado, revestido de


mogno, do qual se elevava uma escada cor de marfim.
Subiram para o segundo andar. Lucy, rechonchuda, afetuosa,
olhos brilhantes e sorridentes, cumprimentou-os com
efusão, num chambre rosa. O marido, Percival, um rapaz alto
e esguio, louro, um tanto insípido, mas gentil, “não muito
inteligente” (na opinião de Ernest), estava ao lado dela. O
bigode louro ocultava a boca fraca e bonita. Mas ele era a
própria essência da elegância, voz suave, sinceridade e
hospitalidade. Ao lado dele, Lucy parecia um tanto vulgar,
com sua expressão franca, olhos penetrantes e faiscantes,
voz alta e autoritária, rechonchuda, corada, atitude
arrogante. Ela amava Percival, mas considerava-o “um pobre
cordeiro desamparado, que tenho de cuidar como uma
criança, orientar e censurar”.
Ela beijou Ernest com sonora efusão, investiu contra o
rosto de May num estilo verdadeiramente matronal,
cumprimentou Gertrude com súbita reserva. Sacudiu os
cachos pretos para Elsa, com um sorriso malicioso. Em meio
às exclamações e conversas, disse com franqueza à irmã que
ela precisava de roupas decentes, que estava positivamente
um horror, Gertrude sorriu pela primeira vez em dois dias.

Antes de poderem comer o desjejum tardio que os


aguardava, os hóspedes tiveram de inspecionar toda a
imensa casa, da cozinha à despensa, demorando-se
especialmente nos aposentos do bebê, onde o jovem Thomas
estava em seu berço, brincando com os dedos do pé. Ele
parecia muito com a mãe. Percival protestou gentilmente
contra a imposição aos hóspedes de visitarem a casa, mas
Lucy silenciou-o com um aceno brusco da mão. O rapaz foi
seguindo o grupo com expressão desconsolada, murmurando
algumas palavras de vez em quando. Finalmente, Ernest, que
preferia as pessoas simples e não muito inteligentes aos
homens inteligentes e agressivos, que poderiam interferir
em seu caminho, entabulou uma conversa agradável e
interessada com Percival, enquanto tomavam a descer.

Lucy manifestou a sua indignação pelo fato do ‘‘pequeno


Godfrey” não ter se hospedado em sua casa e nem mesmo a
visitasse, desde que chegara a Nova York.

— Mas que coisa! — exclamou ela, quando May


mencionou o endereço do filho. — Na Sétima Avenida, entre
as Ruas 13 e 12! É o bairro dos artistas! Uma gente horrível!
Muitos são tão pobres que vivem, tanto homens como
mulheres, aos quatro ou seis num único quarto!

— Tenho certeza de que Frey jamais se ligaria a pessoas


horríveis assim — disse May, suavemente, sentindo raiva da
sobrinha.
— Como pode ter certeza disso? — indagou Ernest,
bruscamente. — Ele nunca teve o menor senso de
discriminação, em toda a sua vida.

May ficou vermelha, embora o seu sorriso fosse


determinado. Ernest resolveu ampliar o tema:

— Não sei por que todos presumem que os “artistas”


devem necessariamente ser tolos. Parece-me que um homem
com inteligência e sagacidade suficientes para dar forma e
substância ao que percebeu em outras pessoas ou coisas,
suas faculdades de discernimento e competência se
desenvolvem em proporção. Um homem incompetente é um
“artista” incompetente, não importa o quanto as mulheres
tolas se derramem em cima dele e o declarem um gênio.

May deu de ombros.

— É claro que isso não passa da sua opinião, meu caro.


Afinal, não conhece quaisquer artistas.

Elsa passou manteiga profusamente numa fatia de pão e


disse, numa voz confiante, que decidia todas as coisas:

— Frey não é um artista. Apenas pensa que é. Esse é o


jeito dele. Mas tenho certeza de que ele está compreendendo
agora que o tempo de brincar já passou.

Ernest riu.

— Vou lhe dar o maior diamante da América como


presente de casamento, Elsa!

May se levantou. Ainda estava com o rosto vermelho e


tremia ligeiramente.
— Peço que me deem licença, meus caros, mas estou
sentindo um pouco de dor de cabeça. Se você já acabou,
Gertrude, posso lhe falar por um momento, antes de me
deitar?

E May, controlada como sempre, saiu da sala, seguida por


Gertrude, que deixara sua comida praticamente intacta.

Lucy comentou:

— Tia May é um bom exemplo do epigrama de mamãe, de


que uma verdadeira dama é a mulher que sabe como insultá-
la, mas sem ofensa.

— Ela não me insultou — disse Elsa. — Sei que não lhe


agrada a ideia de meu casamento com Frey. Mas isso é uma
fraqueza das mulheres com filhos.

Depois do desjejum, Ernest também pediu licença para se


retirar, alegando que tinha um encontro com o Sr. Jay Regan
e já estava um pouco atrasado.
CAPÍTULO LXXXIII
Jay Regan, um extraordinário barão das finanças, tinha
um suntuoso escritório em Wall Street, se bem que um tanto
antiquado. Ele se refugiava por trás de um batalhão de
assistentes e secretários, através dos quais o visitante devia
passar, como se estivesse entrando num acampamento em
pé de guerra. Todos se mostravam bastante polidos, mas
francamente desconfiados. Contudo, quando Ernest Barbour
apareceu, houve uma grande apresentação de armas e
saudações. Os pretorianos formaram uma escolta para
conduzi-lo ao ajudante-de-campo, que levou-o então à tenda
do general. Depois de introduzir o visitante, o ajudante-de-
campo bateu continência, juntou os calcanhares
sonoramente e retirou-se em seguida.

— De que tem medo? Assassinato? — perguntou Ernest,


rindo. — Cada vez que venho aqui, descubro que
acrescentou mais uma dupla de coronéis, alguns capitães e
todo um destacamento de tenentes.

Jay Regan sorriu.

— Claro que tenho medo de assassinato. Não houve um


idiota, alegando que eu o arruinara, que investiu contra os
meus homens lá fora, brandindo uma arma? Uma de suas
armas, diga-se de passagem, conforme descobrimos depois.
Um pouco fora de alinhamento ou não estaria falando
comigo agora. Há um buraco de bala apenas dois palmos
acima da minha cabeça. Dê uma olhada.

Ele apontou para uma mancha preta no mogno vermelho


por trás dele.

— Foi bom me avisar, pois terei de tomar providências


para corrigir o alinhamento — disse Ernest.

Jay Regan era um homem imenso, com mais de l,90m de


altura, largo e tremendamente barrigudo, em proporção, a
cabeça redonda gigantesca assentada em ombros que
pareciam vigas. Era inteiramente calvo, as sobrancelhas cor
de areia extremamente hirsutas, para compensar. Por baixo
dessas sobrancelhas, havia olhos quase invisíveis,
emboscados. Um bigode também cor de areia, quase branco,
escondia parcialmente a boca larga, que era brutal em
repouso. O nariz era do mesmo tipo que o nariz de Ernest,
curto, largo, beligerante, as narinas dilatadas. Tinha braços
como Golias, coxas como pequenos barris. Não se podia
deixar de experimentar um choque ao se contemplar suas
mãos, compridas, finas, alvas e delicadas, como as mãos de
uma mulher, as unhas claras e lisas, como madrepérola.
Mãos cruéis.

— Mãos de punguista — dizia o próprio Regan, com um


sorriso jovial.

Quadros originais dos mestres antigos eram o seu hobby.


Por cima de sua cabeça, logo depois do buraco de bala, havia
um excelente Rembrandt, em ocre e pontos brilhantes,
curvas douradas, sombras escuras. Por cima da lareira, na
qual ardia um fogo intenso, havia um Rubens. O palácio de
Regan na Quinta Avenida era uma verdadeira galeria de arte.
O filho, o jovem Jay Junior, uma réplica do pai, partilhava a
obsessão pela beleza. Uma boa parte de suas viagens de
negócios à Europa era gasta em procurar, roubar, subornar,
adular e intrigar, a fim de ampliar a galeria particular do pai.

Regan estava realmente satisfeito por ver Ernest Barbour.


Julgava-o um dos grandes homens da América. Admirava-o
profundamente e costumava dizer, efusivo:
— Claro que não se trata de um cavalheiro e não é um
homem com quem eu gostaria de ver minha filha casada.
Apesar disso, no entanto, é um grande homem.

Ele serviu conhaque a Ernest e depois indagou,


gentilmente:

— Do que veio se apropriar desta vez em Nova York?


Ferrovias? Terá de lutar com os Vanderbilts desta vez... e
não terá a menor chance. Até mesmo os Goulds vão cair fora.
Estão agora mais interessados em cobre.

— Também estou interessado em cobre. Tenho algumas


opções em Montana. Consegui-as praticamente de graça. Vou
precisar de cobre para as nossas novas granadas. E não estou
negociando com os Goulds porque não preciso. Minha
necessidade maior é de manganês. Não estou querendo fazer
muitos negócios com os alemães e neste momento os russos
não estão muito satisfeitos comigo. Mas tenho opções na
América do Sul. O problema é que o manganês é quase
inacessível por lá. Assim, estou ajudando a financiar uma
ferrovia na região. E depois que ficar pronta, poderei mandar
os alemães para o inferno. Jamais gostei mesmo daqueles
idiotas.

— Mas pode estar certo de que gostará muito dos alemães


mais tarde. Eles estão de olho em toda a Europa, desde
Bismarck. Talvez não seja para amanhã, mas tenho certeza
de que a Europa acabará se tornando um excelente mercado
para munições. Assim sendo, não os insulte demais.
Desculpe se estou sendo muito curioso, mas o que tem feito
ultimamente? Se bem me lembro, vi seu nome mencionado
de maneira desagradável algumas vezes nos jornais, tanto
americanos como europeus. Segundo as notícias, você
transformou-se num verdadeiro Maquiavel... fomentando
guerras a fim de que haja mercado para suas munições.
Ernest sorriu.

— Um fabricante de munições não pode chamar muita


atenção, quer defendendo-se ou anunciando. A fabricação de
munições é uma indústria em que a publicidade, voluntária
ou involuntária, seria fatal. Estou condenado a uma vida
estritamente particular. Mas perguntou o que tenho feito.
Pois lhe vou contar. Pelo menos uma parte.

Ernest tomou um gole de conhaque. Considerava-o uma


‘bebida de cavalheiros’ e sua ostentação de apreciá-lo já se
transformara agora numa segunda natureza.

— Deve estar lembrado que por muitos anos tentei fazer


negócios com o Japão. Mas eles preferiam comprar de
fabricantes de outros países ou fazerem suas próprias
munições. Os japoneses possuem grande capacidade
inventiva e paciência. Pode rir, se quiser, mas tenho certeza
de que acabarão se tomando concorrentes formidáveis das
nações ocidentais. Não está rindo? É um homem sensato.
Temos de vigiar os japoneses. Há uma grande fermentação
por lá. A intromissão de homens brancos, em nome da
civilização, vai acabar provocando uma ira amarela na Ásia.
Não se pode ensinar a seu vizinho coisas como comércio,
cristianismo e relações amistosas sem infeccioná-lo no
processo com ideias. Quando se começa a ensiná-lo a jogar,
ele não demora a imaginar que talvez possa vencê-lo no
jogo. Quando o homem branco “civiliza” o que considera as
raças inferiores, trata de aniquilá-las no processo ou então as
transforma em inimigas irreconciliáveis. Assim, embora seja
uma pena que o japonês não seja um bom rapaz e se
contente com as nossas virtudes, mas vá aprender também
nossos vícios e como superá-los, ainda podemos arrancar-lhe
um bom lucro, antes que compreenda o que estamos lhe
fazendo.
— Detesto os filósofos, como regra — declarou Jay Regan.
— Mas um patife como você pode extrair alguma coisa de
valor da filosofia. Continue, por favor.

— Deve estar lembrado que o sistema feudal foi


praticamente abolido no Japão em passado relativamente
recente. Admito que Sakuma Shozan, Yokoi Heishiro e Omura
Masujiro eram todos homens de bem. Sob a orientação deles,
os japoneses poderiam se tornar realmente civilizados, pelos
padrões ocidentais. Poderiam aprender a se tornarem
grandes, ao invés de se transformarem na ira amarela que
acabarão virando nos próximos 50 anos. Eram verdadeiros
patriotas (para quem gosta de patriotas), liberais, tolerantes,
inteligentes. Odiavam tudo o que faz as grandes civilizações:
crueldade, guerra e exploração. Para mim, no entanto, eram
péssimos como homens. Como se pode civilizar uma nação
sem ensinar-lhe o quanto precisa de munições? De proteção
contra outras raças, que podem se tornar famintas ou
ambiciosas.

“Havia Kumoi Tatsuo, que não tinha ilusões a respeito da


‘liberdade’ dos homens brancos para as massas da
população. Kumoi Tatsuo era um bom e sólido conservador.
Não pensava em bobagens. Um samurai tradicional, sem
nada de democrata. Possuía o primeiro requisito essencial
para a verdadeira liderança: desprezava o povo. Assim,
conspirou com os outros samurais e os três liberais foram
assassinados. Um homem muito simpático, Kumoi Tatsuo...
Por causa dele, poderemos fazer muitos negócios com o
Japão, no futuro.”

— Por acaso não teve qualquer participação no levante


vitorioso comandado por Kumoi Tatsuo?

Ernest sorriu.
— Está me creditando a onipresença. O Japão ainda é
praticamente um país fechado. Mas fui informado pela
Skeda, da Áustria, que os armamentos que remeteram,
através da Rússia, chegaram ao Japão sem maiores
dificuldades. Mais algumas remessas e o Japão estará em
condições de atacar a Coréia.

— E a Rússia, como era de se esperar, está sendo bastante


prestativa, permitindo o transporte dos armamentos através
de seu território?

— Todo mundo é prestativo, se conversado devidamente.


Claro que houve alguns protestos e ameaças na Rússia,
quando se descobriu que os armamentos eram remetidos
para o Japão. Não acusaram a Skeda, mas sim a mim. Um
absurdo total, é claro. É verdade que a Skeda tem muitas
patentes minhas. Trocamos ideias e sugestões, possuo uma
parcela considerável das ações da Skeda..., mas é uma tolice
dizer que estou por trás da revolta feudal e incitando a
conquista da Coréia.

— Ora, podemos compreender isso perfeitamente. Seus


sentimentos estão melindrados.

— Exatamente. Como falei antes, os russos não estão


gostando muito de mim neste momento. Mas também não
gosto deles. Roubaram uma remessa de armamentos
destinados ao Japão e não se propuseram pagar. Era uma
remessa do nosso mais novo modelo de rifle. Depois que o
Japão cansar dos velhos samurais ou ficar convencido de
que o domínio deles é nocivo, já tenho um homem em vista
para entrar em cena. Chama-se Saigo, de Satsuma. Não há
nada como a controvérsia para ajudar a civilização. Afinal,
também estou interessado em civilizar o Japão. A paz não
civiliza. Tenho muitas esperanças em Saigo. E há também a
Rússia, o único vizinho branco importante do Japão. Os
russos são bárbaros. A Skeda informa que eles resistiram a
todas as tentativas de abordá-los. Poderíamos prestar-lhes
uma grande ajuda. Mas não se pode ensinar coisa alguma à
estupidez, nem mesmo a consciência do perigo.

Ernest sorriu.

— De um lado, temos o Japão, começando a aprender que


cuidar da defesa é a primeira lei da conquista; no outro lado,
temos a Rússia, pensando que suas proporções gigantescas
constituem uma proteção adequada. Prefiro a raça branca,
mas um fabricante de munições não pode deixar de ser
tolerante.

— Entendo — murmurou Regan, pensativo, observando-o


com seus olhos penetrantes.

Ernest continuou, calmamente:

— Contudo, ainda não perdi inteiramente a esperança


pela Rússia. Dentro de algum tempo, a Rússia vai
inevitavelmente declarar guerra à Turquia. Os sérvios
odeiam a Turquia. Os eslavos de Herzegovina também vão se
levantar numa insurreição contra a Turquia. A Áustria está
empenhada num jogo dúbio com os turcos. Em determinadas
ocasiões, mostra-se indulgente, mesmo quando violam seu
território e as fronteiras da Croácia. Em outras ocasiões,
torna-se firme e intransigente, recusando, por exemplo,
permissão aos turcos para desembarcarem armamentos em
seu próprio território, em Klek. Trata-se de um velho jogo
conciliatório, conhecido nos círculos vulgares como agora-
você-vê-agora-não-vê. Mas a Áustria não é muito hábil nesse
jogo. Devia aprender com a Inglaterra, que sempre foi mestre
em tais manobras. Somente a Inglaterra parece saber quando
é seguro olhar e quando é melhor fingir que não vê. Seja
como for, os Bálcãs proporcionam aos fabricantes de
munições um laboratório e campo experimental de primeira
classe. Há sempre amplas oportunidades para experimentar
nossas inovações em canhões, fuzis e pólvora. A Skeda
informa que vendeu um grande carregamento de pólvora à
Turquia e atendeu a uma enorme encomenda de canhões da
Áustria. Muçulmanos e cristãos... um excelente caldeirão,
que manterá as chamas acesas nos Bálcãs por muitos anos.
Entre os dois lados, é difícil determinar qual o pior patife.
Creio que prefiro os turcos, pois eles, pelo menos, não
tentam justificar seus crimes. Enquanto os húngaros
continuarem a odiar os sérvios e amarem os turcos,
enquanto houver Klapkas, Contes Andress e Abdul-Kerins
nos Bálcãs, a causa da paz agressiva não estará perdida.

Regan comentou:

— Tenho a impressão de que você também está


empenhado num pequeno jogo conhecido como jogar as
duas extremidades contra o meio.

— Com licença, mas gostaria de fazer uma correção: a


favor do meio. — Ele fez uma pausa, pensativo, antes de
acrescentar: — Não sou um vilão, mas apenas um homem de
negócios. O mundo precisa de armamentos e eu os forneço.
E, como todos os homens de negócios, tenho de estimular o
mercado. É um direito legítimo. Não estou violando qualquer
lei. Os homens estarão sempre lutando. É uma lei da
natureza. Eu me limito a fornecer-lhes os meios para
lutarem. Mas não preciso de um defensor, nem de mim
mesmo. O problema deste mundo é que está povoado demais
por tolos e sentimentais, que vivem pelo coração e não pelo
cérebro. Não sou pior do que um maldito usurário como
você.

Regan desatou a rir.


— Um usurário? Essa é boa, muito boa! Mas estamos aqui
sentados como uma dupla de idiotas, a nos dar parabéns
mutuamente por nossas vilanias, como vilões de teatro. A
verdade é que você é um demônio audacioso, Barbour. E é
justamente por isso que gosto de você imensamente.

— Isso é ótimo. Mas detesto ser chamado de vilão. Não


me importaria tanto, se de fato o fosse. Como disse antes,
sou apenas um homem de negócios. — Ele fez uma pausa.
Parecia bastante aborrecido. — Detesto o sentimentalismo.
Poderia enunciar os nomes de um punhado de vilões, a
começar por você mesmo, que é capaz de me dar lições
sobre tudo, inclusive sobre agressão física.

— Ora, não vamos ficar amuados como uma dupla de


mocinhas. Tome mais um pouco de conhaque. Como eu já
desconfiava, você não gosta realmente de conhaque, não é
mesmo? Sendo assim, não se force a tomá-lo. É um conhaque
de 75 anos, destinado a homens de paladar apurado. Vilões?
Um vilão, meu caro Barbour, é um homem que fracassa.
Assim, devo-lhe um pedido de desculpas. Na última vez em
que nos encontramos, perguntou-me se eu iria conceder
aquele empréstimo à França. Minha resposta agora é que não
vou. A França se encontra numa situação muito precária, está
fraca demais da guerra. O que é uma pena, pois gosto dos
franceses.

— Eu não gosto.

— Metade de sua família é francesa.

— Mesmo assim, não gosto dos franceses. Talvez seja


pelo inglês que existe em mim. Chamou-me certa vez de
provinciano. Talvez eu seja mesmo. Mas não gosto dos
franceses.
— Como todos os britânicos, gosta apenas de você
mesmo. Não gosta dos franceses porque você próprio não
sabe viver. Ao contrário dos franceses. Eles possuem mil
maneiras de encontrarem satisfação e prazer de viver. O que
não acontece com você. Só tem apenas um meio. Ganhar
dinheiro.

— Poder — murmurou Ernest.

Ele inclinou-se para frente, pôs a mão cerrada sobre a


mesa de Regan. O outro homem recostou-se na cadeira,
sorrindo indulgentemente, com um toque de compreensão
desdenhosa.

— Sempre quis ter poder — acrescentou Ernest. —


Quando era garoto, numa escola na Inglaterra, os colegas me
odiavam. Nunca entendi por quê. Era um garoto quieto,
jamais corria de uma briga, procurava me comportar direito.
Não era torto, aleijado ou defeituoso, não tinha qualquer
problema de fala. Não mentia nem trapaceava. Nunca
implicava com ninguém. Mesmo assim, os outros garotos me
odiavam. Por quê? Jamais soube. E continuo a não saber
agora. Viemos para a América e passei a evitar os garotos da
minha idade. Não ia à escola. O que não impedia que todos
me odiassem, de estranhos a meu próprio irmão. E eu jamais
soube a causa. Não demorei a descobrir que, se não tivesse a
proteção das leis, aqueles que me odiavam não hesitariam
em liquidar-me. Não vou dizer que não me importava como
isso. A verdade é que me importava e muito. Ninguém gosta
de sentir-se como um leproso. Assim, como uma defesa,
odiei em retribuição. E fiz um bom trabalho. Consegui a
coisa que impõe respeito a todo mundo: poder.

Regan não estava mais sorrindo.

— Há poucos dias, ouvi um judeu dizer exatamente a


mesma coisa.

— Neste caso, os judeus e eu temos muito em comum. A


resposta ao ódio é poder. Não é a gentileza, a rendição ou o
apaziguamento. Poder. É a única coisa que os desgraçados
compreendem.

Regan ficou calado. Os olhos pequenos tornaram-se mais


penetrantes, mais incisivos. E mais curiosos. Ele não gostava
de Ernest Barbour. Compreendendo-o agora, gostava dele
ainda menos. Regan acendeu um charuto, gastando muito
tempo na operação. E depois disse, sem olhar para o homem
mais jovem:

— Não, Barbour, você realmente não tem nada em comum


com os judeus. — Ele soprou a fumaça do charuto,
pensativo. — O problema com os americanos é que detestam
a implacabilidade, embora a admirem e invejem. Mesmo
quando são implacáveis, eles têm o cuidado de explicar que
se trata de alguma outra coisa.

As feições de Ernest contraíram-se na convulsão que


passava por um sorriso. Depois de um momento, ele
levantou-se.

— Espere um pouco, Barbour! Não seja tão grosseiro. Vai


se encontrar com Bellowes? Soube que ele mandou chamá-lo.
Gostaria de acompanhá-lo, se não se importa.

— Mandou chamar-me? Não acha que é uma colocação um


tanto exagerada? Não, não me importo que me acompanhe.
Mas lhe asseguro que posso controlar Bellowes
perfeitamente, com ou sem petróleo, insinuante ou não.

Regan soltou uma risadinha.


— Eu não diria que Bellowes é apenas insinuante. Eis um
homem que está à sua altura, Ernest Barbour. E ele também
serve como exemplo sobre o que acabei de falar-lhe a
respeito da implacabilidade dos americanos. Ele ainda não
tem tempo suficiente para justificar-se. Mas quando tiver
dinheiro suficiente... ou poder... e depois que tiver ajustado
o seu ressentimento particular contra o mundo, esgotando-
se no processo, vai começar a se empenhar em contestar sua
implacabilidade. Neste momento, ele é o cão mais raivoso
que já despejou sua saliva venenosa sobre a carne de outro
cão, deixando-a em tal estado que é o único que pode comê-
la. Mas anote as minhas palavras: antes de morrer, ele será
um dos santos da América. Então, ele o convocou para uma
reunião. Como amigo ou inimigo? Importa-se de me dizer
qual dos dois?

— Tudo vai depender do preço que ele me oferecer.

— Com todos os diabos, nem mesmo está sendo cínico?


De qualquer forma, detesto os cínicos. Peço desculpas. Pois
eu gostaria de acompanhá-lo. — Regan tocou a campainha,
chamando seu secretário. — Ei, não saiu nos jornais a notícia
de que seu filho Godfrey é músico e que vai ter alguma coisa
apresentada na Academia?

— Isso mesmo. — A voz e o rosto de Ernest tornaram-se


extremamente afáveis. — Esta noite, na Academia. Creio que
é a primeira sinfonia de Godfrey. Na verdade, é esse o
motivo que me trouxe a Nova York neste momento.

Mentiroso, pensou Regan, sem qualquer desdém.

— Mas isso é extraordinário, meu caro Barbour! Claro que


ficará em meu camarote. A Sra. Regan e eu íamos jantar com
amigos, mas isso é muito mais importante. Temos de ouvir
essa sinfonia. A Sra. Regan é uma das patrocinadoras da
Academia. E vai jantar conosco em minha casa esta noite?

— Não estou sozinho. Vim com a Sra. Barbour, minha


filha e minha sobrinha.

— Esplêndido! Posso lhe assegurar que teremos o maior


prazer. A Sra. Barbour é uma grande dama. Todos os
Sessions sempre foram encantadores. Posso contar também
com a presença de seu filho?

— Não. Ele está muito ocupado, tomando as últimas


providências. Afinal, é uma ocasião extraordinária para ele.

— Eu compreendo.

Regan ficou novamente pensativo. Pôs o chapéu e o


casaco revestido de pele. Pegou a bengala e as luvas.
Deixaram o escritório juntos.

— Por que diabo não se muda para Nova York, Barbour?

Ernest sorriu.

— Já deu a resposta, meu caro. Sou um provinciano.


CAPÍTULO LXXXIV
Jay Regan achava divertido o hábito frio e impassível de
Ernest de falar pomposamente. Ele também se divertia com
os amigos, repetindo os gracejos enfadonhos de Ernest. Mas
o prazer maior que Regan e os amigos tiravam de Ernest
Barbour era a completa e ostensiva implacabilidade, sua
ausência brutal de reticências em relação aos objetivos e
progressos de seu tráfico de armamentos. Era como se Ernest
proclamasse a todos:

— É isso o que vou fazer, é o meu plano. Podem chamar


alguns homens de indiscretos, se lhes falassem tanto quanto
eu, mas não podem chamar-me de indiscreto. É que não
tenho medo de ninguém.

Assim, embora rissem dele, ninguém o fazia em sua


presença, nem de alguém que pudesse mais tarde contar-lhe.
Havia ódio irremediavelmente misturado com o desdém.
Havia também inveja, embora as fortunas de muitos deles
fossem bem maiores que a de Ernest.

Os barões dos negócios americanos, os magnatas


salteadores, já estavam começando a se envergonhar de sua
própria ganância feroz, de seu vigor brutal. Olhavam
constrangidos para os dedos sujos das negociatas e já
admiravam a elegância apática dos europeus de mãos puras.
Já estavam começando a afastar de seu meio os homens que
não achavam nada de vergonhoso em sua titãnica falta de
refinamento. Os mais antigos e consolidados já estavam
falando de suas casas em Londres, encarando os
conterrâneos americanos com a maior condescendência. Em
vozes indecisas, que gradativamente iam se tornando mais
firmes e fortes, eles se juntavam a seus amigos europeus na
condenação da implacabilidade, ganância e brutalidade dos
americanos, recusando-se a aceitar os ‘novos-ricos’ que deles
se aproximavam. Um lento mas firme sentimento pró-
britânicos começava a se desenvolver entre aqueles barões
ladrões saciados. Eles começavam a falar desdenhosamente
de todas as coisas americanas, ao ponto mesmo de se
juntarem à risada de desprezo de seus amigos europeus.

Eram essas as pessoas que achavam Ernest Barbour


desconcertante. Apesar de inglês, ele era ainda mais
ganancioso e implacável que os americanos. Não tinha
qualquer afetação de elegância, não era um cavalheiro e não
fazia questão de ser. não perdia tempo com qualquer
refinamento. Pior do que tudo isso, ele não tinha qualquer
lealdade patriótica, quer com a Inglaterra ou com a América.
Era o verdadeiro cosmopolita, o homem sem pátria, o
verdadeiro proscrito. Se sentisse saudade da Inglaterra ou se
por acaso se mostrasse ostensivamente leal à América, os
outros ainda poderiam perdoá-lo. Mas a total indiferença a
determinados sentimentalismos, que se esperava dele, valera
a hostilidade de tais homens. Havia alguma coisa em Ernest
que os assustava. Desconfiavam que ele possuía uma força
superior, acima da intimidação da vergonha, acima das
opiniões alheias. Ernest era suficiente para si mesmo, não
dava qualquer sinal de precisar de alguém ou desejar
alguém. Isso fazia com que os outros o invejassem, embora
não fosse tão rico quanto a maioria.

Quando lhe falavam da Inglaterra, Ernest sorria


desdenhosamente e dizia:

— Não há nada ali para ninguém. A América é o melhor


dos países.

E, no entanto, quando os homens tornavam-se líricos a


respeito de seu próprio país, Ernest permanecia calado. Não
podiam compreendê-lo. Finalmente, disseram-se uns aos
outros que só o aceitavam por causa da mulher, “aquela
encantadora May Sessions”.

Se Ernest estava curioso sobre o motivo pelo qual Jay


Regan queria acompanhá-lo aos escritórios da Apex Oil
Company, onde James Bellowes reinava absoluto, não deixou
transparecer. Tinha a teoria de que a aparente indiferença
era a resposta insuportável para um antagonista e que os
homens mais astutos acabavam se traindo sob essa
influência. Sabia que Jay Regan queria que ele manifestasse
curiosidade e que tal curiosidade reforçaria a reticência de
Regan. Porque se recusava a manifestar curiosidade, ele
irritou Regan, que não demorou a esclarecer tudo,
indiretamente.

— Sabia que Vanderbilt é um dos novos acionistas da


Middle Oil Company?

Sem demonstrar muito interesse, Ernest respondeu:

— Você também é?

Regan soltou uma risada.

— Por acaso falei que era? Mas gostaria que soubesse que
a Middle vai devorar todos os pequenos. E até mesmo alguns
dos grandes. Até mesmo Charles Brett já se rendeu à Middle.
O que tem a dizer a isso?

— Apenas uma coisa: não posso ser ameaçado. Ainda


possuo um terço das ações da Crusade Oil Company, de Jack
Bellowes. — Ernest fez uma pausa. — Jack Bellowes ficaria
arruinado se eu lançasse minhas ações no mercado. Sempre
o apoiei. E não gostaria de vê-lo arruinado. Além do mais,
não gosto do irmão mais velho dele, James. Não gosto dos
tubarões que frequentam a igreja aos domingos e rezam
como as pessoas mais inocentes do mundo. Sempre tive a
teoria de que a concorrência é necessária na indústria.

— Quanto custará a James Bellowes mudar sua teoria? —


Indagou Regan, sorrindo.

Ernest sorriu também.

— Mais do que ele espera. — A resposta desagradou a Jay


Regan, que teria preferido um certo cinismo. Ernest
acrescentou: — E gosto de Charles Pitts, que é o presidente
da National Transportation Company. Afinal, como você
sabe, ele sempre foi um aliado da Pensilvânia.

— Hum, hum... pois saiba que encontrou um adversário à


altura em James Bellowes. Algum dia, Rockefeller ainda terá
de tomar conhecimento da existência dele. James Bellowes
conseguiu praticamente todas as refinarias vendidas ou
arrendadas à Middle Oil. Faltam as suas. E as do irmão Jack.
Não se engane pensando que poderá resistir, com a sua
lealdade heroica à National e a Jack.

— Por acaso falei em lealdade heroica? Tenho meu preço.


Compete a James Bellowes cobri-lo. Se ele não o fizer, então
teremos um baile. E não tenho certeza se ele vai gostar da
música.

Sentindo-se um pouco tolo, mas também vagamente


indignado, Regan perguntou:

— Já ouviu falar em ética?

Ernest virou o rosto pálido e impassível para ele,


respondendo calmamente:
— Não. E você?

Maldito inglês!, pensou Jay Regan. Ele sorriu


serenamente.

— Você não é fácil, Barbour. Disse que tinha um preço.


Consideraria impertinência da minha parte perguntar quanto
é aproximadamente esse preço?

— Consideraria, sim. Além do mais, por que eu deveria


dizer-lhe? Afinal, é um dos acionistas da Middle. Tudo o que
posso dizer é que possuo muitos poços em torno de
Titusville, que Bellowes precisa da ferrovia de que sou
diretor e da qual recebeu muitos privilégios, que sou um dos
acionistas da Crusade Oil Company e que acredito que a
concorrência pode encher muitos bolsos. Certamente trocará
algumas palavras com James Bellowes antes da reunião
começar e poderá transmitir-lhe o que acabei de falar.

Assim, sorridente e furioso, Jay Regan compreendeu que


se traíra e censurou-se veementemente. Olhou para Ernest
com olhos que pareciam estar pegando fogo, a fim de
verificar se ele estava sorrindo em triunfo. Mas o rosto de
Ernest continuava sereno, pálido e afável.

— Em outras palavras, está querendo dizer que


abandonará Jack Bellowes e sua Crusade Oil Company, assim
como Charles Pitts, da National Transportation Company...
se o seu preço for alcançado?

— Exatamente.

— Se pedir demais, a Middle vai recusar. Sabe disso, não é


mesmo?

— Claro que sei. Mas não gostaria que a Middle recusasse.


Acredito em acordos amigáveis entre homens de negócios.
Não me agradaria ver o governo se intrometendo em nossas
operações. Os governos sempre fazem a maior confusão em
tudo em que se metem. Concedemos 500 descontos à Apex
Oil Company... ou Middle Oil Company, escolha o nome que
preferir. Graças a isso, Bellowes foi capaz de liquidar seus
concorrentes diretos. Conheço dois ou três senadores que
poriam a boca no mundo se soubessem da verdade.

— Acha que pode intimidar Bellowes? — perguntou


Regan, incrédulo.

— Acha que Bellowes pode intimidar-me?

As palavras eram egocêntricas, mas a voz e o rosto não


eram. Regan ficou ainda mais furioso. Espetou com a bengala
uma pilha de neve, enquanto avançavam pela estreita e
apinhada Wall Street.

— Não passa de um patife e chantagista! — resmungou


Regan.

Ernest respondeu com a maior tranquilidade.

— Mesmo assim, continuo a ter um terço da Crusade Oil


Company e a conhecer alguns políticos.

O pleno impacto do que estava ouvindo atingiu Regan e


ele estacou abruptamente na rua movimentada, olhando
aturdido para Ernest.

— Está realmente querendo dizer que vai forçar Bellowes


a comprá-lo? Mas ele o chamou para tentar persuadi-lo a
vender!

— Neste caso, vai ser uma surpresa e tanto para ele


descobrir que estou mais do que disposto a vender, não é
mesmo? — disse Ernest, jovialmente.

Regan não pôde se abster de dizer, atordoado como


estava:

— Está realmente querendo vender! Será possível que não


percebe o que tem nas mãos neste momento?

— Claro que sei de tudo. Mas não estou atrás de dinheiro


desta vez.

— Está querendo fazer algum acordo?

— Isso mesmo.

Jay Regan não demonstrou qualquer delicadeza,


abandonando ostensivamente seu companheiro nos
escritórios da Apex Oil Company e indo para o gabinete de
Bellowes, para uma conversa tumultuada, antes da reunião
com Ernest Barbour. Sentando-se calmamente, Ernest ficou
esperando. Cruzou as mãos sobre o castão de ouro da
bengala e sorriu para si mesmo. Gostava dos escritórios da
Apex e sentia-se à vontade ali.

Há anos que não aparecia. Os escritórios não haviam


mudado, a não ser pela aquisição de uma pátina rica, que se
espalhava pelo mogno antigo. Era como se o Tempo fosse
uma eficiente dona-de-casa, armada de flanela e óleo. Até
mesmo a impressão surrada que provém do uso era
suntuosa, com uma extrema dignidade. Havia um retrato de
James Bellowes... James Duggan Bellowes, para ser mais
exato... pendurado por cima da lareira. O rosto era pálido e
sombrio, austero e amargo, a boca uma fenda estreita que
indicava uma obstinação inflexível e mais do que apenas um
pouco de brutalidade. Ernest pensou que para um homem
tão sombrio, a brutalidade era uma espécie de sensualidade,
um êxtase selvagem da mente. Havia uma impressão de
múmia nos olhos pequenos e estreitos, intensos e frios. O
homem tinha uma família grande. Contudo, naquele retrato
havia um ar profundo de esterilidade, de frieza polar, a tal
ponto que era quase impossível imaginá-lo participando do
processo de procriação.

A neve caía além das janelas altas, havia uma linha branca
nos peitoris. Alguém ligara o gás e os candelabros ardiam
com uma claridade suave. Um velho funcionário aproximou-
se de Ernest e sussurrou-lhe que o Sr. Bellowes o receberia
naquele momento. Ele levou Ernest até uma porta de
carvalho toda esculpida, por trás da qual o velho James
estava sentado, num silêncio inabalável, tão inumano e
implacável quanto a morte.

Ernest teve a impressão de que havia pelo menos meio


acre de assoalho brilhante até a antiga e gigantesca
escrivaninha de mogno. A claridade na sala era suave e
difusa, o relógio grande batia com uma delicadeza altiva. Por
trás da grade polida, o fogo ardia intensamente, subindo e
refletindo-se nos móveis, para depois tomar a cair.

Jay Regan estava sentado ao lado, com um sorriso


ligeiramente cínico sob o bigode. James Bellowes não
cumprimentou Ernest. Ficou observando-o se aproximar no
mais absoluto silêncio, não falou nem mesmo quando o
visitante se sentou. Continuou imóvel por trás da
escrivaninha, vigilante, empertigado, rígido. Apesar da
aparência frágil e tensa, ele era uma força viva e imortal.

Os dois homens fitaram-se atentamente, olhos nos olhos,


implacabilidade diante de implacabilidade. O olhar
prolongou-se por um longo momento. Depois, um brilho
súbito insinuou-se nos olhos de Bellowes e ele disse, em sua
voz seca e áspera:

— Fico contente em tornar a vê-lo, Sr. Barbour. E estou


satisfeito por saber, através do Sr. Regan, que está disposto a
acertar tudo comigo.

— Sou um homem razoável — respondeu Ernest. — E meu


tempo também é valioso. Fico contente em saber que o Sr.
Regan já falou por mim. O que tem a oferecer?

O rosto comprido de Bellowes tornou-se sombrio e mal-


humorado.

— Sou cliente de sua ferrovia. Fazemos negócios juntos.


Mas, apesar de nossas relações comerciais, está operando
sua própria refinaria, vendendo petróleo, transportando-o
por sua ferrovia. Uma situação ambígua, Sr. Barbour, uma
situação muito ambígua. Fazemos negócios numa base
amistosa e apesar disso está me atacando, competindo
comigo. Acha que isso é justo?

Ernest não respondeu por um momento. E depois disse,


cuidadosamente:

— O Sr. Regan já lhe falou o que tenho a dizer. Não


estamos discutindo justiça, apenas negócios. Assim, tenho
de lhe perguntar novamente: o que tem a oferecer?

Bellowes não respondeu. Pegou um papel e estudou-o


atentamente. Tinha mãos pálidas e calosas, grossas nos
pulsos. As mãos de um carrasco, pensou Ernest.

Ele tornou a falar, lentamente, incisivamente:

— Precisa da nossa ferrovia. Não pode fazer negócios com


Charles Pitts. Ele é um obstinado. Como falei antes, sou um
homem razoável. Posso abandoná-lo, dar-lhe todas as
condições para destruí-lo. Posso lançar no mercado as
minhas ações da companhia de seu irmão. Precisa de mim,
eu preciso de você.

À menção do irmão, uma espécie de espasmo passou pelo


rosto cadavérico de Bellowes. Mas logo tornou a relaxar,
numa imobilidade rígida. Levantou os olhos com um brilho
feroz, fixando-os em Ernest.

— Eu lhe darei 50 mil ações de Middle Oil Company e 40


mil da Apex Oil Company, por suas refinarias e poços.

Houve um longo momento de silêncio. Jay Regan contraiu


a boca, num assovio silencioso. Ernest levantou a ponta do
dedo indicador da mão direita à boca e mordeu de leve, com
uma expressão pensativa. Bellowes acreditou:

— E você cumprirá seu acordo com relação a Pitts... e a


meu irmão. — Ele suspirou. — Pobre Jack... eu costumava
ficar balançando o berço dele.

Por algum estranho motivo, Ernest pensou subitamente


em Martin, cujo berço ele também balançara. Examinou
Bellowes ostensivamente e pensou: Ele é torpe. E disse:

— Essa parte é satisfatória. Agora, preciso lhe pedir uma


coisa. O seu Senador Ford é um intrometido. Está insistindo
numa lei sobre o contrato de trabalho dos estrangeiros. Isso
seria péssimo para mim. E para dezenas de outros como eu.
Há também o Senador Winslow, um intrometido ainda pior,
porque é um fanático. Ele apresentou um projeto de lei que
se aprovado, impediria a América de fazer qualquer acordo
militar com uma nação estrangeira, proibiria para sempre as
alianças para mútua... proteção. Ele está fazendo muito
estardalhaço com a Doutrina Monroe. As nações estão
atualmente se tornando mais próximas. Temos navios a
vapor que encurtam as distâncias. E temos o telégrafo. As
nações não estão mais isoladas e não podem manter uma
política de isolamento. Uma nação que persistir no
isolamento vai acabar ficando numa situação perigosa.
Winslow levaria a América a esse perigo. Possui alguma
influência. Quero que tanto Ford como Winslow sejam
contidos. Quero que suas bocas sejam fechadas.

Bellowes uniu as pontas dos dedos compridos e olhou


Ernest por baixo, sem qualquer mudança de expressão.

— É um prazer lhe prestar esse favor, Sr. Barbour. Já


escrevi ao Senador Ford sobre o problema do contrato de
trabalho de estrangeiros. E amanhã escreverei ao Senador
Winslow sobre o projeto dele. Considero-o antipatriótico.

Depois de um momento prolongado, Ernest se levantou,


pegou o chapéu, a bengala e as luvas. Virou-se para Jay
Regan, que observava-o afavelmente. E disse:

— Devo pedir que reconsidere a sua recusa do


empréstimo à França. Schultz e Poiret acabaram de receber
uma grande encomenda de armamentos do governo francês.

Regan não disse nada. Bellowes olhou de um para outro,


um débil sorriso insinuando-se nos cantos de seus lábios. O
rosto de Regan ficou vermelho e depois ele sorriu. Levantou-
se também.

Quando já estavam outra vez na rua estreita, enxameando


de corretores e mensageiros apressados, iluminado pelo sol
de inverno, Regan disse:

— Deve agradecer-me pelo excelente negócio que fez com


o Sr. Bellowes.
A boca de Ernest contraiu-se,

— Obrigado.

Não havia qualquer ironia perceptível na voz dele. Regan


soltou uma risada e comentou:

— Ele não gostou de sua referência ao fanatismo de


Winslow. Os dois pertencem à mesma igreja. E Bellowes é
muito devoto, como sabe.

— Era a única coisa que lhe faltava — respondeu Ernest.


CAPÍTULO LXXXV
Quando a família Barbour chegou à Academia de Música,
acompanhando seus anfitriões, o casal Jay Regan,
juntamente com a filha, Srta. Alice Regan, o auditório já
estava lotado. Os grandes candelabros de cristal faiscavam
como incontáveis diamantes. As grandes cortinas vermelhas
erguiam-se acima dos camarotes dourados e estendiam-se
diante do palco. Os enfeites dourados do teto alto
rebrilhavam. Uma tremenda multidão ocupava tanto a plateia
como o balcão, todos os camarotes estavam repletos. Os
músicos já estavam em seus lugares e os gemidos
estridentes de afinação, o remexer de seus instrumentos e as
notas débeis e insinuantes da harpa misturavam-se com o
tumulto festivo da multidão. Por toda parte havia
movimento, cores, animação. Aqui e ali, havia o brilho de um
braço ou ombro alvo, o cintilar vermelho, azul ou verde de
um vestido, o sacudir de uma cabeça emplumada, o abanar
de leques, o faiscar de olhos e joias, os movimentos de
cavalheiros de fraque preto e gravata branca, alguém
mexendo um programa, espuma de rendas, sorrisos. Tudo
parecia em ebulição. Todos estavam excitados, dominados
pelo riso e pela expectativa alegre. As vozes passavam de
uma fila para outra, acompanhadas por acenos de cabeças e
mãos. Costas nuas, alvas e bonitas, inclinavam-se para
frente, vigorosamente, balançavam, voltavam ao lugar. O
mundo da elegância e riqueza de Nova York estava na plateia
e camarotes, muitas pessoas deslocando-se de fila para fila,
trocando risos e gracejos. Fazia muito calor e não demorou
muito para que a audiência ficasse envolta por uma neblina
de perfume.

May usava uma criação de Worthm comprada naquela


mesma tarde, um vestido vermelho de veludo,
requintadamente guarnecido de pele de foca preta. Era
bastante decotado na frente, deixando à mostra a garganta, o
colo dos seios e os braços alvos e roliços. Ela pusera as
granadas antigas, usava também brincos de granadas. As
mãos pequenas, rechonchudas e pálidas, faiscavam de
diamantes e rubis. Nos cabelos, em que se misturavam fios
vermelhos e brancos, havia uma tiara resplandecente de
diamantes azulados. No pulso direito havia uma pulseira
larga de diamantes da mesma tonalidade. Graciosa, sorrindo,
com um ruge discreto nas faces, perfumada, abanando um
leque de renda preta, guarnecido com pequenas granadas e
diamantes, ela estava sentada no camarote dos Regans,
respondendo aos acenos surpresos e sorrisos de antigos
amigos lá embaixo. Ernest achava que ela estava com uma
aparência excepcional, sentia-se orgulhoso dela e orgulhoso
do fato de que era cumprimentada com verdadeiro prazer e
sem condescendência por pessoas das famílias mais
proeminentes. Não o perturbava o fato de perceber como as
expressões mudavam um pouco quando os olhos fixavam-se
nele, como todos se mostravam desconfiados e cautelosos
nas tentativas renovadas de tratá-lo com cordialidade. Na
verdade, isso o divertia. Era-lhe suficiente que
cumprimentassem May, por quem jamais sentira uma afeição
tão forte. No camarote dos Regans, ele pensou,
sentimentalmente: há quase 40 anos, eu era um garoto
imigrante sem dinheiro. Seu sucesso era algo esperado e
inevitável. Não podia ficar admirado com o esperado e
inevitável.

Gertrude também lhe agradava naquela noite. Usava um


vestido de mangas compridas e gola alta, de veludo, verde-
garrafa, com uma faixa de veludo preto. Não usava joias,
com exceção do diamante que Paul lhe dera. O corpo esguio
estava empertigado na cadeira dourada. Os cabelos pretos e
o rosto lívido podiam não ser bonitos, mas tinham distinção.
Fazia com que até mesmo a mãe, que não possuía ancestrais
plebeus, parecesse quase vulgar e desalinhada. Ernest, o
inglês, pensou que a filha parecia a rematada aristocrata. O
inglês nele era inabalavelmente forte. Poderia negar com a
maior veemência, mas a verdade é que possuía a reverência
do inglês pela aristocracia e nascimento. Assim,
contemplando agora a filha, com o rosto pálido e expressão
imóvel, mãos pálidas e esguias, pescoço gracioso, ele sentiu-
se profundamente grato. Há muito tempo que não havia
intercâmbios de afeição ou confidências entre os dois.
Naquela noite, porém, Ernest rompeu a muralha que
Gertrude erguera ao seu redor. Inclinou-se para frente e
tocou-lhe a mão. Gertrude virou-se para fitá-lo e ele teve um
pequeno choque. Julgara que a expressão da filha estava
serena. Descobriu agora que estava apenas rigidamente em
transe e que o fitava com olhos que pareciam refletir um
terrível clamor interior. Mesmo quando ela sorriu-lhe e
depois virou o rosto, Ernest ainda sentiu o choque. Sua
cabeça pendeu um pouco para frente, sobre o pescoço
grosso. Estou imaginando coisas, pensou ele, sacudindo a
cabeça debilmente, interminavelmente. Mas ele não tornou a
tocar em Gertrude.

A Sra. Regan, baixa, gorda e jovial, de renda preta, estava


muito animada, acenando constantemente com a cabeça
grisalha cacheada, cumprimentando os conhecidos lá
embaixo. A Srta. Alice Regan, talvez consciente das origens
do pai, estava sentada com um ar muito refinado, inclinando
a cabeça loura solenemente. Jay Regan, que jantara e bebera
muito bem, lutava contra a tendência para cochilar. Por isso
mesmo, ele falava em voz alta.

Elsa, de cetim rosa e brilhantes, uma pena rosa comprida


nos cabelos empilhados no alto da cabeça, estava
excessivamente corada. Se vestisse veludo preto e arminho
branco, usando aqui e ali uma pérola ou um diamante,
estaria magnífica. Mas Elsa não se distinguia pelo bom gosto
no vestir e julgava que o seu cetim rosa era deslumbrante.
Como estava, parecia mais com um imenso repolho rosa do
que qualquer outra coisa. A pele corada, que May julgava
vulgar, não acrescentava qualquer refinamento à sua
aparência. A voz de Elsa, alta e bastante rouca, atraía a
atenção das pessoas lá embaixo.

May estava graciosa e sorridente, empenhando-se em


tratar os Regans com extrema simpatia, interesse e atenção
gentil. Mas tremia por dentro. Tinha a sensação de que todos
os ossos do corpo se sacudiam, sob o invólucro de came.
Sentia um aperto na garganta, as mãos estavam geladas e
suadas. Entre sorrisos e comentários, ela estudava o
programa. O número inicial era a Primeira Sinfonia de
Beethoven, seguindo-se um concerto de Mozart. No fundo,
estava impresso: “A Academia de Música tem o prazer de
apresentar um eminente jovem compositor americano, ainda
desconhecido do público americano, embora recentemente
aclamado em Paris: Sr. Godfrey Barbour. Sua primeira
sinfonia, intitulada 4A Sinfonia da Montanha', será tocada
esta noite.” Depois, seguiam-se trechos de opiniões de
críticos franceses, todas elogiosas, algumas exageradas, além
de um breve resumo da vida do Sr. Godfrey Barbour e uma
indicação das escolas de música em que estudara.

May leu o programa interminavelmente. Havia momentos


em que seu coração estufava e as lágrimas afloravam-lhe aos
olhos. Piscava repetidamente para reprimi-las. Quando
tornava a sorrir, o sorriso era radiante e trêmulo. Ela
entregou o programa a Ernest, que leu-o impassivelmente e
devolveu, sem qualquer comentário. Por um momento, May
chegou à conclusão de que o odiava. Ela olhou para a filha e
verificou que Gertrude sorria debilmente. May percebeu
também que as mãos dela tremiam. Mãe e filha estavam mais
unidas naquele momento do que em qualquer outra ocasião
anterior, por seu nervosismo mútuo e terrível excitamento.
Houve um movimento na cortina de veludo por trás do
camarote e apareceu um homem alto e largo, ainda jovem,
de imenso bigode preto, acompanhado por uma mulher de
expressão arrogante, no início da meia-idade, com um gosto
abominável para vestir-se. Os homens no camarote se
levantaram. Os recém-chegados eram o Sr. Vanderbilt e a Sra.
Urlich. Ela possuía uma voz rouca e desdenhosa, usava
imensos diamantes, exibia braços e mãos que pareciam de
um açougueiro. O vestido malva de cetim e renda, os cabelos
emplumados, tudo contribuía para ressaltar o rosto
vermelho-escuro e os olhinhos pretos e irrequietos. Ernest,
que respeitava o nascimento e não o dinheiro, não se
mostrou muito cordial com os recém-chegados. Não gostava
de Vanderbilt, que o sobrepujara num pequeno negócio
ferroviário. E detestava particularmente as mulheres
arrogantes que não tinham grande beleza para oferecer.
Assim, antes mesmo que os convidados se acomodassem, ele
já estava novamente sentado.

A Sra. Urlich gostava de Ernest Barbour. Ficou


observando-o com seus olhinhos pretos e brilhantes,
enquanto falava com sua voz rouca e sussurrante. Ernest
exibia-lhe apenas três-quartos de seu rosto e estava
impassível, totalmente sem expressão. Particularmente, ela o
julgava fascinante e considerava a mulher dele como uma
idiota sorridente, que nada tinha a recomendá-la além do
nascimento. Assim, ela se desmanchou em torno de Ernest.
Como ele permanecesse impassível, sentiu vontade de
cortar-lhe a garganta. Abanou-se vigorosamente, exalando no
processo um intenso eflúvio de perfume. Jay Regan inclinou-
se respeitosamente sobre o encosto da cadeira dela. As
imensas coxas da Sra. Urlich eram arredondadas, delineando-
se sob o cetim malva.

— A princípio, recusei-me a acreditar que aquele belo


rapaz fosse de fato seu filho, Sr. Barbour! Afinal, era de se
esperar que ele se tomasse um excelente homem de
negócios! Mas quando finalmente fiquei convencida, decidi
que não podia deixar de vir até aqui para dar-lhe os
parabéns! O nome dele está sendo comentado por toda Nova
York! A América possui tão poucos artistas de verdade que
não podemos deixar de nos sentirmos gratos!

May olhou em triunfo para Ernest, que continuava


impassível, sorrindo ligeiramente. O braço dele estava
passado pelo encosto de sua cadeira e sacudia-se um pouco.

— Vamos primeiro ouvir a música dele, antes de fazermos


qualquer julgamento — comentou Ernest.

Aturdida, a Sra. Urlich olhou para May, cujo sorriso


tornara-se forçado. Abanando-se nervosamente, ela disse:

— Ernest não é capaz de acreditar que um filho nosso


possa ser qualquer outra coisa que não um industrial.

— Desculpe, May... qualquer coisa que não um tolo —


disse Ernest, em sua voz monótona.

Enquanto falava, ele olhava afavelmente para a mulher.


Um silêncio constrangedor instalou-se no camarote, contra o
qual o barulho lá embaixo parecia um estrondo. Depois, a
Sra. Urlich prorrompeu num riso intenso e incontrolável.

— Mas como é uma criatura deliciosa, Sr. Barbour! Tão


espirituoso! Tenho certeza absoluta de que é um conviva
maravilhoso num jantar!

Mas era evidente que nem May nem Gertrude


consideravam Ernest um homem espirituoso. May
empalidecera profundamente, enquanto linhas azuladas
apareciam nos dois lados do sorriso de Gertrude. O faiscar
dos diamantes em seus dedos fragmentou-se, por causa de
sua tremedeira. Os Regans também sorriram, mas
constrangidos. A jovial Sra. Regan estava a pique de chorar,
em compaixão por May.

A Sra. Urlich levantou o rosto. Os olhinhos pretos quase


desapareciam sob a carne vermelha ao redor. Olhou de
esguelha para o Sr. Vanderbilt, que cofiava o bigode. Ela
levantou-se, o perfume exalando do farfalhante vestido.

— Lamento que estejam pensando em regressar amanhã


— disse ela, cordialmente. — Gostaria de convidá-los para
jantar amanhã à noite.

May murmurou algumas palavras de pesar por não


poderem aceitar o convite, o rosto angustiado parcialmente
escondido pelo leque. Gertrude também murmurou algumas
palavras corteses. Elsa manifestou efusivamente o seu
desapontamento. Ernest não disse nada, limitando-se a
sorrir. Depois que os dois se retiraram, May umedeceu os
lábios ressequidos por trás do lenço de renda, sem olhar
para o marido.

O auditório começou a escurecer. Houve silêncio,


rompido apenas por sussurros breves e um ou outro
farfalhar de programas. O burburinho da audiência
desvaneceu-se num mar difuso e irrequieto. O maestro bateu
com a batuta na estante. A Primeira Sinfonia de Beethoven
espalhou-se pelo ar quente e perfumado, como a voz de um
anfitrião celestial. As trompas da orquestra eram como
discos de ouro na escuridão.

Ernest logo percebeu que May fora sincera ao dizer que


pouco conhecia de música. Parte da desatenção dela era
decorrente de sua incapacidade de apreciar a música, parte
do nervosismo que a dominava. A todo instante, ela tocava
os lábios com o leque, depois abanava-se vigorosamente,
seus diamantes faiscando na semiescuridão do camarote. Ela
remexia-se na cadeira como se a estivesse queimando.
Suspirava ocasionalmente, um suspiro longo e trêmulo,
Gertrude não fazia qualquer movimento, as mãos compridas
e pálidas cruzadas sobre o colo, o perfil puro, sem qualquer
expressão. Elsa mexia as pulseiras e correntes, ajeitando a
todo instante a cabeça grande e bonita.

Ernest não era o tipo de novo-rico que afetasse desprezar


a música, porque não a compreendia. Também não se sentia
superior. Simplesmente a música não o atingia. Não sentia
uma grande serenidade, não experimentava qualquer êxtase,
ímpetos majestosos. E admitia isso com toda lucidez. Era
necessário, dizia a si mesmo, sentir-se como um músico a
fim de compreender a música. Não obstante, embora suas
emoções permanecessem imperturbáveis (o que ele sabia ser
errado, se desejava apreciar a música), sentia alguma
admiração pela perfeição extrema, por aquele fluxo
incessante de som. Se houvesse uma falha, um defeito,
alguma incerteza, seus ouvidos, treinados para ouvir falhas,
defeitos e incertezas nas falas dos outros homens, logo os
teriam percebido naquela sinfonia. Sentia-se profundamente
satisfeito pelo fato de não perceber qualquer falha. Admirava
Beethoven por sua habilidade impecável, percepção, precisão
magistral. Era agradável ouvir tais coisas por si mesmas.
Como ele próprio era um mestre de técnica, experimentava
um prazer quase sensual em descobrir a técnica em outro
homem, não importando qual fosse o meio de comunicação
dele.

Ernest ficou surpreso ao descobrir que Jay Regan estava


completamente absorvido na música. O rosto cruel e satírico,
com a cabeça calva lustrosa, estava extasiado. Por trás da
reserva dele, algo inteiramente estranho ao conhecimento de
Ernest sobressaia, sem qualquer defesa. As mãos esguias e
compridas de Regan, as mãos de punguistas, estavam
cruzadas sobre a grade, numa atitude ao mesmo tempo
suave e fascinante. Enquanto a música prosseguia, o queixo
agressivo de Regan foi se abrandando, os olhos
empapuçados piscaram, a boca se contraiu. Existe pelo
menos isso por trás da máscara dele, pensou Ernest. É menos
invulnerável do que eu pensava. E a ansiedade de Ernest em
relação ao empréstimo para a França se atenuou. Sentia-se
triunfante, um tanto desdenhoso.

A sinfonia continuou, infinitamente comovente, quase


terrível em sua beleza. Sentindo calor, Ernest enxugou o
rosto e mexeu o pescoço, incomodado, dentro do colarinho.

Começou a pensar no que realizara naquele dia. Soltou


uma risadinha. Não percebeu que Regan fitava-o com a fúria
de um lobo perturbado. A Sra. Regan olhou-o com uma
surpresa angustiada. May, quase chorando, mordeu o lábio.

Finalmente, depois de um tempo que pareceu


interminável, a sinfonia acabou. Houve aplausos frenéticos e
prolongados. Possivelmente uma dúzia de pessoas na
audiência compreendera a música.

As luzes estavam se acendendo e a orquestra permaneceu


no poço, agradecendo aos aplausos, que se tornavam
dispersos, enquanto o público corria para o saguão, a fim de
aproveitar o intervalo. Os corredores estavam apinhados, os
fundos da plateia regurgitavam no maior barulho. Diante de
filas e filas de assentos vazios, para as costas que se
afastavam, os músicos continuavam a fazer mesuras de
agradecimento.

Ernest deixou o camarote com Regan, durante o intervalo.


Regan estava mal-humorado, sem a menor vontade de
conversar. Parados no saguão, escondidos no canto, Regan
ficou olhando para Ernest com uma expressão quase
ameaçadora. Só voltaram quando a orquestra começava
novamente a afinar os instrumentos.

Ernest constatou que Mozart não tinha a mesma perfeição


de Beethoven e não gostou de sua música. Além do mais,
embora não o admitisse sequer para si mesmo, estava
ficando contagiado pelo excitamento dos outros no
camarote. Seu desconforto foi aumentando. Roeu a unha do
indicador da mão direita. Os olhos claros moviam-se
inquietos de um lado para outro.

As luzes tornaram a se acender. May, subitamente pálida


demais, de repente rígida como gelo, deixou o leque cair e
inclinou-se para frente. As mãos apertavam o veludo
vermelho da grade, as veias saltaram no pescoço. Num gesto
de simpatia, a Sra. Regan pôs a mão no braço dela. Mas May
não sentiu. Estava olhando fixamente para o gerente, que
emergira dos bastidores.

— Senhoras e senhores — disse o homem, em sua voz


melodiosa — a orquestra vai tocar em seguida “A Sinfonia da
Montanha”, do Sr. Godfrey Barbour. — Ele fez uma pausa,
enquanto soavam aplausos polidos. — Não vou ocupar o
tempo dos presentes a falar sobre essa sinfonia. Vocês
constituem a audiência, são os juízes. De vocês depende a
fama e fortuna desse jovem compositor americano.

Uma mulher logo abaixo do camarote dos Regans


comentou, em voz clara e incisiva:

— Nenhum americano jamais compôs qualquer coisa que


se pudesse ouvir. Talvez a única exceção tenha sido Stephen
Foster.

— Oh, Deus! — sussurrou May.


Ela tremia visivelmente. Gertrude inclinou-se para a mãe,
passou o braço esguio pelos ombros dela. May desvencilhou-
se do braço numa profunda agonia, murmurando
insistentemente:

— Onde está Frey? Onde está meu garoto?

As luzes foram diminuindo, o maestro levantou a batuta.


A sinfonia começou.

O primeiro movimento, o alegro, foi desapontador. Era


um movimento perfeito, a técnica impecável. Era tão
brilhante quanto uma estrela cadente numa meia-noite de
inverno, mas completamente sem paixão nem significado.
Um movimento puramente intelectual, a delícia de um
matemático. O melhor e o pior da música de Godfrey
Barbour estava nisso; era boa e má simultaneamente, pelo
mesmo motivo. Era tão bela e morta quanto uma imagem de
cristal, intelectualidade sem esplendor, perfeição sem glória.
A própria intelectualidade denunciava a falta de substância.
Era uma mecânica abstrata, sem qualquer sentido.

May escutava sem ouvir, as costas nuas molhadas de suor


frio, um tremor constante agitava os diamantes. Regan
apoiava o cotovelo na grade, a mão grande cobrindo a boca.
Escutava com uma atenção polida. Podia perceber a
pirotécnica fria do movimento e estava aturdido com a
minúcia dos detalhes.

Mas Ernest estava confuso e atônito. O técnico se


espantava com aquela técnica. Não ouvia o vazio da música,
percebia apenas a sua precisão. Mas que mente para os
detalhes, pensou ele. Ernest experimentou um excitamento
excepcional, um intenso prazer. No final das contas, o filho
não era tolo. Mas que mecânica delicada! Que inventor
requintado! Ele chegou o mais perto que já estivera de ser
feliz ao compreender isso.

O primeiro movimento terminou. Regan virou-se para


Ernest e comentou:

— É a perfeição, mas não é música.

Sua mulher ficou perplexa, mas Ernest compreendeu.

— É perfeito — ecoou Gertrude, virando-se para May.

Mas os olhos de May estavam fechados, havia lágrimas


em suas faces, os lábios estavam lívidos. Elsa, que se sentira
entediada ao ponto de cochilar, soltou uma risadinha.

— Mas não é música — repetiu Jay Regan.

— O que é então, papai? — perguntou a Srta. Regan,


achando o pai extremamente grosseiro.

Regan virou a cabeça para trás, a fim de fitá-la.

— É um problema de matemática abstrata, resolvido de


maneira brilhante.

Mas o largo estava começando. A audiência escutara o


allegro em silêncio indiferente, como poderia escutar a um
sermão que não a afetasse. Mas depois de alguns minutos do
largo, todos se mostraram interessados, entreolhando-se
surpresos, empertigando-se. Até mesmo os que não
entendiam música e nem se interessavam, foram afetados e
envolvidos.

Não havia técnica agora, não havia aprumo impecável,


brilho mecânico, esplendor sem calor. Não havia perfeição. O
movimento allegro, o primeiro da Sinfonia da Montanha, não
evocara coisa alguma relacionada com montanhas, com
exceção talvez de pingentes de gelo reluzindo ao sol e neve
acumulada. Só que isso não era o que Godfrey procurara
transmitir. Mas do caos de sua incerteza, assustada falta de
disciplina e gigantesca perda de controle (como se ele
tentasse manipular forças grandes demais para sua
fraqueza), emergira uma forma colossal. Ele se tornara um
cavaleiro involuntário dos cavalos de Titã, um dançarino
elegante e preciso, cuja plataforma cintilante se
transformara num terremoto. Por todo aquele caos de luz e
trevas, as bases se revolvendo tumultuadamente, trovoadas
e oceanos de fogo, abismos abertos com o martelo de Thor, o
rosto pálido e apavorado de Godfrey Barbour parecia brilhar.
Era uma criança que involuntariamente evocava mina.

Quando o movimento chegou ao fim, a audiência estava


um pouco aturdida. Aceitavam o esplendor de Beethoven de
maneira indiferente, como se aceita um pôr-do-sol ou uma
paisagem imponente, a que se acaba ficando apático, em
decorrência da familiaridade. Aceitavam Beethoven como um
fato consumado, mesmo sua glória. Mas ali havia algo novo,
algo mais perto deles, de alguém vivo, não de uma época
lendária. Nada do que um homem pode fazer surpreende,
mas um homem que se aproxima dos deuses é um alvo de
espanto e adoração. A orquestra já estava começando o
scherzo quando a audiência prorrompeu em aplausos
delirantes, batendo com os pés, gritando, acenando os
leques. Muitos ficaram de pé, batendo palmas
freneticamente, rindo com um excitamento febril.

May, no camarote dos Regans, chorava histericamente.


Gertrude e Elsa enlaçaram-na. A Sra. Regan falava
incoerentemente com a filha. Jay Regan não disse nada, a
mão agora cobrindo totalmente a boca, enquanto olhava para
a orquestra.
— Meu filho! Meu filho! — balbuciava May, sem cessar.

Mas Ernest permaneceu em silêncio, impassível como


sempre, os dedos mexendo lentamente na corrente do
relógio. Sabia agora que nunca mais teria o filho. Não com
aquela coisa nele! Ah, o jovem demônio!, pensou Ernest,
escutando desdenhosamente o tumulto da audiência.

A audiência ficou quieta o bastante para escutar


ansiosamente o scherzo. Não ficou muito desapontada. Uma
dúzia de elegantes dançarinas moviam-se suavemente sobre
espelhos, inclinando-se para as próprias imagens. Não havia
qualquer imprevisto animado. As bailarinas formavam
ângulos, retângulos, triângulos e círculos precisos, tudo
dentro de um esquema perfeitamente intelectualizado. Se
havia algum levantar de saias, era para formar um
paralelogramo. Era uma equação em lantejoulas. A
jovialidade estava ausente daquela beleza estudada e
meticulosa.

— Mas que coisa delicada... como renda! — exclamou a


Sra. Regan, sempre gentil.

Elsa, que não sentia a menor atração por coisas assim, fez
uma careta. Grata e recordando emocionalmente o largo, a
audiência aplaudiu, entusiasmada.

Quando o gerente finalmente apareceu no palco, não


pôde se fazer ouvir por causa do tumulto. Ele suplicou,
gesticulou. Finalmente, rindo e sacudindo os braços, voltou
aos bastidores. Apareceu logo depois em companhia de um
rapaz esguio e louro, de rosto apavorado, confuso e
vermelho.

— Maestro! — gritaram alguns rapazes no balcão.


May se levantou, apesar das mãos que tentavam contê-la.
Inclinou-se para frente, gritando:

— Frey! Meu querido, meu querido! Sou eu, mamãe, Frey!


Oh, meu querido! Frey! Frey!

Mas Godfrey, angustiado, fazendo mesuras, o rosto


bonito contorcido num sorriso aterrorizado, não a ouviu.
May batia com as mãos na grade, ria, soluçava, gritava.
Muitas pessoas fitavam-na e sorriam, gritando palavras de
simpatia. Subitamente, o calor no vasto auditório tornou-se
intenso e agitado, como se estivesse varrido por ventos
escaldantes.

Foi uma tremenda ovação. A audiência ficou


completamente frenética. Os músicos da orquestra subiram
para o palco e postaram-se em torno do jovem compositor,
como sacerdotes cercando o seu líder. Muitos deles,
verdadeiros artistas, haviam julgado a sinfonia bem ruim,
mas estavam contagiados pelo tumulto e insanidade geral. E
aderiram aos aplausos. Ninguém soube exatamente o
momento em que Godfrey desapareceu. Mas quando os
músicos deixaram o palco, Godfrey já não mais estava lá.
CAPÍTULO LXXXVI
Quando os Barbours conseguiram finalmente atravessar a
multidão e chegar aos bastidores, foram recebidos pelo
gerente, que cumprimentou-os com uma mistura de
profundo excitamento, subserviência, raiva e histeria.
Começou a gritar, meio incoerente, que Godfrey Barbour fora
embora sem avisar, simplesmente desaparecera, enquanto
mil pessoas se mostravam ansiosas em conhecê-lo, pessoas
realmente importantes, entre as quais doadores e patronos,
que isso era inadmissível e não havia desculpa, era um
insulto aos doadores e patronos, o déficit do ano anterior
fora enorme, não se podia compreender que um artista, por
mais aclamado que fosse, deixasse de ser polido e simpático
com os doadores...

Ernest permaneceu a dois ou três passos do homem


excitado, enfurecido e desesperado. Mas quando seus olhos
finalmente se encontraram, o tumulto cessou de imediato. O
gerente ficou de repente num estado de animação suspensa,
a boca entreaberta, uma fotografia batida em meio a uma
atividade frenética.

— Meu filho deixou algum recado para a mãe ou para


mim? — perguntou Ernest, calmo.

A fotografia recuperou a vida, mas de maneira menos


excitada.

— Não! Sim! Não sei! Ah, isso não pode ser explicado nem
perdoado! Programamos uma festa para ele, com cem
convidados eminentes, que podem levar a Academia a
alturas magníficas ou deixá-la na bancarrota. E o Sr. Godfrey
Barbour, um novato, um estranho, um desconhecido, tem a
desfaçatez de insultar esses convidados, que tanto poderiam
ajudá-lo e à Academia! Agora está tudo arruinado, tudo
perdido...

Ele soluçou sonoramente. May observava-o como num


sonho, os lábios ressequidos entreabertos.

— Tem algum recado? — insistiu Ernest, em voz alta e


incisiva.

O clamor cessou. Os quatro Barbours e o gerente estavam


no camarim frio e miserável, a porta fechada. Lá fora, podia-
se ouvir o rugido da multidão impaciente. O gerente levou a
mão à cabeça, murmurando:

— Um recado! — Ele olhou para Ernest com uma


expressão desvairada. — Isso mesmo, ele deixou um bilhete
comigo! Antes da apresentação! Talvez seja para vocês. Oh,
Deus, como ele pôde fazer uma coisa dessas comigo, com
todos nós, que o tiramos do anonimato, o apresentamos...

Ele meteu a mão no bolso e tirou um envelope todo


amassado, que meteu furiosamente na mão de Ernest.

As três mulheres agruparam-se em torno de Ernest,


enquanto ele abria o envelope. May debruçou-se sobre o
braço dele, ansiosamente. Havia apenas umas poucas linhas,
endereçadas a May. Godfrey escrevera: “Mamãe querida, não
quero vê-la na Academia, depois da apresentação, quer seja
boa ou ruim. Haverá muitas pessoas presentes, uma
verdadeira multidão. Mas quero que todos que
compareceram à apresentação venham imediatamente
depois aos meus aposentos, na Sétima Avenida. Vão
compreender o motivo quando lá chegarem.”

— O jovem idiota — murmurou Ernest, irritado. Ele


guardou o bilhete no bolso e acrescentou: — Acho que a
única coisa que podemos fazer agora é chamar a carruagem
e ir para os aposentos dele.

— Oh, Deus! — balbuciou May, debilmente.

Ela estava muito pálida. Elsa amparava-a com seu braço


forte. Gertrude permanecia em silêncio, o abrigo de arminho
caindo sobre o vestido verde-escuro de veludo, sem qualquer
expressão definida no rosto pálido.

A porta se abriu, mostrando uma porção de cabeças em


movimento e rostos excitados e curiosos. Lucy apareceu,
resoluta e eficiente, escoltada pelo desgrenhado Percival. A
pressão lá fora despejou-se pelo camarim.

— Meus queridos! — exclamou Lucy, com o maior vigor.


— Mas que dificuldade tivemos para atravessar a multidão!
Onde está Frey?

Gertrude respondeu em voz baixa:

— Frey convidou-nos para ir a seus aposentos, na Sétima


Avenida. Queria evitar a multidão, o que não é de admirar.
Você vai conosco?

Lucy fitou-a, aturdida, os olhos pretos brilhando


intensamente.

— Mas que coisa mais esquisita! Claro que Percival e eu


iremos também! Ah, mas como os artistas são modestos! Ele
vai fazer uma fortuna com essa sinfonia! Ou será que os
artistas jamais conseguem ganhar uma fortuna?

— É claro que tem de perguntar a um artista — disse


Ernest. -Se já estão prontas, minhas caras, podemos ir
embora.
A neve estava caindo, suave como flocos de algodão
quando saíram da Academia. A maioria das pessoas ainda se
encontrava no interior da Academia e a rua estava quase
deserta. A carruagem dos Van Eycks foi chamada e a família
embarcou. Lucy e o marido seguiram na carruagem dos
Regans, que fora colocada à disposição deles. Seguiram até a
Sétima Avenida em silêncio, pelo tapete da neve recente. As
ruas estavam quietas e vazias, quase todas as janelas às
escuras, refletindo desoladamente os lampiões de rua.
Ninguém falava. May estava recostada no assento, sob a
manta de pele, os olhos fechados. Até mesmo Elsa estava em
silêncio.

May pensava, com um medo amargo: Não é coisa de Frey,


o meu pequeno Godfrey, querer a família ao seu redor,
quando eu estou presente. Deve ser porque ele sabe que
Ernest inevitavelmente também estará presente e quer
mostrar-nos ou dizer-nos alguma coisa, achando que estará
mais seguro se todos estiverem lá, ao invés de apenas o pai e
eu. É de Ernest que ele está com medo. Deve tê-lo visto no
camarote.

Quando a carruagem chegou à zona pobre da Sétima


Avenida com a Rua 12, May estava passando mal
fisicamente, de apreensão e ansiedade. Quando a carruagem
parou diante de um prédio sombrio e estreito, de quatro
andares, com janelas que mais pareciam fendas nas paredes
de tijolos vermelhos, May mal conseguiu desembarcar. A
neve ainda caía, com uma indiferença implacável. No último
andar, havia algumas luzes acesas, expectantes. Ernest
empurrou a porta de carvalho, com um painel de vidro
comum, sem cortina, no qual havia pedaços de vidro fosco.
Entraram num saguão sujo, sem tapete no assoalho, a escada
estreita subindo pela semiescuridão silenciosa. Também não
havia tapete na escada e os passos ressoavam na madeira. As
mulheres levantavam as saias de veludo e subiam
cuidadosamente. A pena de Elsa ficara coberta de neve e
curvada para trás da cabeça grande, de maneira ridícula.
Ernest subia por último, num silêncio sombrio, o lábio
inferior espichado, a bengala metida debaixo do braço, como
uma bainha de espada.

Pareciam estar subindo interminavelmente por aquele


silêncio inóspito e mal iluminado. May começou a ofegar.
Ernest ofereceu-lhe o braço, mas ela recusou, com um
movimento exausto da cabeça. Uma porta se abriu quando
chegaram ao quarto andar, projetando um facho de luz pelo
corredor estreito. Godfrey apareceu, ainda de capote, mas
sem chapéu sobre a cabeça loura e bonita. Cumprimentou-os
com um sorriso. Parecia incapaz de falar. O sorriso no rosto
comprido e estreito era forçado, impregnado de medo. May
percebeu imediatamente, esquecendo tudo o mais. Seu filho
querido estava apavorado!

— Frey! — gritou ela, a voz trêmula, aproximando-se da


porta. Ela enlaçou-o pelo pescoço, puxou seu rosto para
baixo, desatou a balbuciar: — Frey! Como você nos assustou!
Por que deixou a Academia daquele jeito, meu querido?
Estava tudo tão bonito, todos estavam tão contentes! Deixe-
me vê-lo direito, Frey querido! Deixe sua mamãe contemplá-
lo, depois de tanto tempo!

— Vamos entrar primeiro — disse Ernest, ironicamente.

— Mamãe! — gritou Godfrey, a voz impregnada tanto de


medo como de afeição.

Ele abraçou-se à mãe, enquanto todos entravam no


apartamento frio e miserável.

Era um lugar miserável, num prédio miserável, numa


vizinhança miserável, habitada quase que exclusivamente
por jovens artistas que ainda não haviam alcançado o
sucesso e aqueles que jamais o conheceriam. O papel de
parede de um vermelho desbotado, o madeiramento de
carvalho escalavrado, o tapete de rosas e folhas de cores
indefinidas, a pequena estufa de carvão acesa no meio do
aposento, as cortinas remendadas, os móveis antigos
estofados com crina de cavalo, a mesa com o lampião de luz
fraca e globo de porcelana, os livros empilhados de qualquer
maneira no chão, por baixo das janelas, o piano empoeirado
e precário, com papéis e pastas empilhadas por cima, tudo
estava coberto pela pátina desolada da pobreza e
desesperança, de dezenas de outras pessoas que haviam
vivido ali antes de Godfrey.

Ninguém foi capaz de falar por um momento, com


exceção de Elsa, que não se conteve e exclamou:

— Mas que lugar horrível, Frey!

Ela virou-se para o primo, que ainda estava se encolhendo


por trás da mãe. O rosto grande e bonito de Elsa se iluminou,
ficou radiante.

— Mas o que deu em você para vir morar neste lugar? Que
coisa mais esquisita!

— Horrível! — murmurou Lucy, desdenhosamente,


tornando a levantar a saia e olhando ao redor.

Percival, constrangido, tossiu delicadamente, a fim de


fazê-la lembrar-se das boas maneiras. Mas Lucy ignorou-o.

— Querido — sussurrou May, mais pálida do que nunca —


por que veio para cá? Não pode continuar num lugar como
este!
— Tem razão, mamãe.

A voz de Godfrey tremia. Ele olhou furtivamente para o


pai, que estava parado no meio da sala, examinando calma e
meticulosamente tudo o que continha.

— Eu... eu não sei como explicar.... É tão difícil...

Gertrude adiantou-se, beijou-o no rosto, sentindo-o frio e


úmido. Ela disse gentilmente:

— Que importância isso tem, Frey? Se você trabalha aqui,


se está feliz aqui, então que importância tem? Tenho certeza
de que é um ótimo lugar. Mas você não devia ter fugido, com
todos aplaudindo em delírio, esperando o momento de
conhecê-lo e tudo mais. A sua sinfonia é tão bonita! Que
importância pode ter qualquer outra coisa em comparação
com isso?

— Fale com seu pai, meu amor — balbuciou May,


desvencilhando-se dos braços rígidos do filho.

Ernest virou o rosto impassível para o filho, enquanto


este se aproximava, hesitante. Ele e Godfrey eram quase da
mesma altura, mas o rapaz parecia bem mais baixo, por ser
esguio, com um rosto estreito, um jeito de garota, a atitude
altiva e ao mesmo tempo acanhada. Não fitou o pai nos
olhos, enquanto lhe estendia a mão visivelmente trêmula,
pálida e delicada como a de uma moça.

— Papai.

Ele não pôde continuar. Ernest apertou-lhe a mão,


sorrindo efusivamente.

— Mas que diabo, rapaz, por que você escapou da


Academia? Por que está aqui? Fez muito sucesso, um sucesso
esplêndido! E você fugiu de tudo. Não é assim que se deve
agir, meu rapaz. — Ernest contemplou o filho de alto a baixo.
-Não está com muita carne cobrindo os ossos, não é mesmo?
Pensei que a França fosse engordá-lo. Levante os olhos,
rapaz, levante os olhos! Ninguém vai mordê-lo. Não gosto
dessa história de fugir das pessoas que querem homenageá-
lo. Nunca chegará a parte alguma desse jeito. Mas já conhece
Percival Van Eyck, o marido de Lucy? Vamos, fale logo com
todo mundo, sua mãe, Trudie, Elsa, Lucy e Percival. O que
deu em você?

A voz trovejava jovialmente na sala suja e desolada. Os


outros, contagiados pelo tremor e pavor evidente de
Godfrey, entreolharam-se, apreensivos. May fitou o filho com
uma expressão suplicante e angustiada, levando a mão ao
coração.

Godfrey, despertado pelo pai para a percepção dos


outros, fez-lhes uma mesura formal, sorriu um pouco. Os
lábios tremiam continuamente. Ele era como um passarinho
frágil, apanhado entre mãos arrasadoras. As mãos de Elsa,
pensou Gertrude, quando Godfrey virou-se para a prima. Elsa
era um pouco mais alta. Sua cor exuberante, a imensa
vitalidade e a jovialidade transbordante pareceram envolver
Godfrey por completo. Sem um sorriso, sem dizer nada, Elsa
inclinou-se e beijou-o em cheio na boca. Os braços dela
enlaçaram Godfrey, como num gesto de proteção.

— Frey... — disse ela, estendendo a mão e afagando-lhe o


rosto. — Frey...

Quando ela soltou-o, havia lágrimas em seus olhos.

— Sentem-se, por favor — disse Frey, depois dos


cumprimentos.
Ele falou debilmente. Todos se acomodaram. As mulheres
em joias, peles, veludos e plumas pareciam incongruentes
naquela sala miserável e desolada. Frey continuou fazendo
um esforço para sorrir:

— Só tenho um pouco de vinho para oferecer-lhes. Mudei-


me ontem para cá e tenho estado muito ocupado.

— Não há problema, querido — disse May, gritando, como


se assim quisesse incutir no filho um pouco de sua força.

Godfrey olhou de um para outro, umedeceu os lábios com


a ponta da língua. O terror se insinuava por trás do rosto
bonito, pálido e delicado. Ele cerrava e descerrava as mãos
sobre os joelhos. Ernest, dobrando suas mãos sobre a
bengala, observava-o. Subitamente, seu rosto estava
dominado pela brutalidade e rancor. Esperando, Gertrude
sentiu que seu coração começava a bater mais depressa, num
presságio de mau agouro. Como é ridículo, ela forçou-se a
pensar, estarmos todos sentados aqui desse jeito, olhando
para o pobre Frey, que está morrendo de angústia! Eu
gostaria de poder dizer alguma coisa, mas sinto uma bola na
garganta. Claro que tudo não passa de um sonho, um sonho
tolo e absurdo, todos nós sentados aqui, nesta sala horrível,
olhando fixamente para Frey...

Ernest disse, subitamente:

— Não acha que tudo isso é um tanto estranho, rapaz?


Estamos há muito tempo sem vê-lo e vamos nos encontrar
nesta toca miserável, com você parecendo apavorado? Não
acha que nos deve uma explicação?

Godfrey ficou calado. As mãos nos joelhos abriram-se de


repente, como se algo vital houvesse se espatifado dentro
dele.
— Não precisa perder tempo com explicações, Frey! —
exclamou Elsa, com um riso trêmulo. — Basta dizer que irá
para casa conosco amanhã e todos ficaremos satisfeitos!

No silêncio que se seguiu às palavras dela, a respiração


de Godfrey tornou-se entrecortada e audível. Ele fez um
esforço para manter-se empertigado. Estava lutando para
evocar uma coragem que jamais possuíra e conseguiu apenas
tornar-se desesperado. Ele olhou para a mãe e sentiu-se
enervado com a expressão de sofrimento no rosto de May, a
compreensão evidente de que algo estava errado. Olhou para
o pai e estremeceu, tão abertamente que o gesto involuntário
teria sido divertido, em qualquer outra ocasião. Olhou para
Elsa e o intenso vigor dela pareceu deixá-lo nauseado. Seus
olhos deslocaram-se apaticamente para Lucy e Percival. Mas
quando se fixaram em Gertrude, ele firmou-se subitamente,
como se a irmã lhe tivesse dito algumas palavras de
encorajamento. Godfrey dirigiu-se a todos, em voz quase
inaudível, embora olhasse apenas para a irmã, cujo sorriso
era firme e gentil.

— Quero dar uma explicação. Foi por isso que lhes pedi
para virem até aqui. Mas parece terrivelmente difícil. Terei
de pular muita coisa. Cheguei a Nova York há poucos dias e
tenho estado muito ocupado...

Ele respirou fundo e seguiu adiante, seu terror


aumentando rapidamente, como se estivesse correndo de
alguma coisa que tentava alcançá-lo.

— Não tem problema, querido! — gritou May.

Ernest fitou-a rapidamente, os lábios ficando lívidos, as


narinas se dilatando. Godfrey continuava a olhar para a irmã.

— Não vou... voltar para casa! — balbuciou ele. — Não


posso ir para casa! E por mais de um motivo. Vou ficar em
Nova York, a fim de trabalhar. Tenho... tenho outra sinfonia
pela metade. Não há nada para mim em Windsor. Isto é, não
há nada que possa ajudar-me em meu trabalho. A sinfonia
foi um sucesso esta noite, mas é a primeira obra minha
apresentada aqui. Eu... eu não gosto do largo.

Godfrey fez uma pausa. Cada vez balbuciava mais, os


olhos castanhos deslocando-se agora freneticamente de um
rosto para outro.

— O largo não é bom. Quero suprimi-lo. Não me importa o


que digam os críticos.... Quero suprimi-lo, porque não
presta. Tenho um largo muito melhor parcialmente
composto e vou...

Ninguém falava, mesmo quando sua voz estrangulada se


calava e ele tinha de fazer um tremendo esforço para
continuar. Todos limitavam-se a fitá-lo, fascinados,
contagiados por seu terror. Carvões caíram na pequena
estufa, as cortinas remendadas balançaram com uma
aragem. Gertrude, aturdida e angustiada, pensou num
passarinho a esvoaçar contra uma janela fechada, morrendo.
Frey!, gritou-lhe ela, silenciosamente. Não tenha medo, Frey!

Ernest remexeu-se. Sua expressão tornava-se cada vez


mais brutal, os olhos transbordavam de desprezo.

— Tem alguma coisa a nos dizer, não é mesmo? —


indagou ele, em tom incisivo. — Pois seja um homem e diga
logo de uma vez! Ninguém vai matá-lo por isso! Vamos, seja
homem!

Godfrey virou-se para o pai, com um olhar furioso, o


terror sem máscara estampando-se plenamente em seu rosto.
A garganta se contraía, as mãos se contraíam. Subitamente,
ele levantou-se de um pulo e correu para o fundo da sala,
gritando:

— Simone!

Ele ficou de lado. Uma mulher em torno dos 30 anos


apareceu na porta. Era bem mais alta do que Godfrey e muito
mais gorda. Era exuberante, de seios imensos, quadris
largos. O vestido preto barato, de seda, mal feito, não podia
esconder a abundância de sua carne. Os cabelos
avermelhados estavam elaboradamente cacheados, falsos
brilhantes faiscavam neles. Por baixo dos cabelos, havia um
rosto corado e beligerante, os olhos de um castanho-
amarelado, o nariz curvo, um sorriso de lábios pintados. Nas
mãos gordas, não muito limpas, havia outros brilhantes
falsos. Toda ela era vulgar, agressiva, ousada. E estava
assustada. O medo fazia com que olhasse beligerantemente
para os visitantes. O sorriso que entreabria os lábios
vermelhos deixava à mostra dentes brancos realmente
excelentes.

Godfrey ficou à espreita por trás dela. Um observador


impessoal poderia julgá-la extremamente engraçada. Mas
ninguém na sala achou-a engraçada. Todos se limitaram a
olhar impassíveis para Simone, piscando um pouco.

— Minha mulher, Simone Renard — balbuciou Godfrey,


parecendo dissolver-se por trás dela.

Houve um silêncio absoluto por um longo tempo. Depois,


May se levantou devagar, com uma expressão consternada,
olhando ao redor cegamente. Gertrude também se levantou e
passou o braço pelos ombros da mãe. Elsa continuou
sentada, a cor se desvanecendo inteiramente de seu rosto.
Lucy e Percival entreolharam-se sem qualquer expressão
definida. Mas Ernest se ergueu lentamente, impassível,
apenas a boca ligeiramente contraída, indicando que ouvira
o que Godfrey dissera.

— Sua mulher? — repetiu ele, quase polidamente, como


alguém que repete uma frase que não lhe pareceu muito
clara.

— Isso mesmo — respondeu Godfrey, a voz mais débil do


que nunca, escondendo-se por trás da mulher grande e
silenciosa.

Ernest olhou para May, o ódio brilhando intensamente em


seus olhos. Lucy disse, atarantada:

— Percy, meu amor, creio que a nossa presença aqui não


é desejada. Importa-se de levar-me para casa?

Ninguém notou a fuga dos Van Eycks. May tornara a


sentar-se. De alguma forma, Godfrey fora induzido a postar-
se ao lado da mulher, que pegou-lhe a mão. Os olhos dela
brilhavam. Embora apertasse gentilmente os dedos do
marido, o olhar que lançou-lhe era amargo e ameaçador.
Depois, ela virou-se para Ernest e disse, em voz rouca,
sotaque forte:

— Não sou tão ruim assim, Monsieur Barbour. Seu filho


morou na pensão de meu pai. Sentia-se muito solitário.
Ensinei-o a falar francês e ele ensinou-me inglês. Era um
rapaz muito solitário, muito infeliz. Meus pais são
respeitáveis e assim não precisa se preocupar com isso.
Ajudei-o com a sua música. Tenho uma voz muito boa.
Queria vir para a América, a fim de cantar aqui. Em
concertos. Meu pequeno Godfrey prometeu que me ajudaria.
Gostaria de me ouvir cantar, monsieur? — ela arrematou
ironicamente.
Ernest não disse nada. Apoiava-se na bengala, o torso
ligeiramente inclinado para frente. Ainda olhava para o filho.
Mas logo desviou os olhos, com um gesto de repulsa.

May levantou a cabeça, olhou ao redor, aturdida. Depois,


os olhos dela fixaram-se em Simone, dilatados, marejados de
lágrimas. Uma expressão de súplica quase desesperada
estampou-se em seu rosto, como se pedisse a alguém que lhe
assegurasse que não era real a experiência por que estava
passando. Umedeceu os lábios, os músculos da garganta
distendendo-se visivelmente quando falou, como se cada
palavra lhe custasse uma terrível angústia física:

— Não, não, não... minha cara, você não pode


absolutamente ser ruim. Se ama o meu Godfrey... — ela
olhou para a filha na maior agonia, depois para o filho,
voltou a fixar-se em Simone. — Tenho certeza... não pode
deixar de ser assim... que tudo está certo.... Talvez se nós...

A voz minguou para um sussurro, deixou de ser audível.


Retorceu as mãos desesperadamente. Gertrude, incapaz de
suportar por mais tempo a visão de tanto desespero, fechou
os olhos, com um espasmo interior. Simone não deixava
transparecer qualquer emoção.

Olhando para Godfrey, estudando-lhe o rosto suplicante,


o terror e a incredulidade, tudo se refletiu no rosto de
Simone. Ernest percebeu-o. Contraiu os lábios, inclinou a
cabeça, como se visse alguma coisa que pudesse respeitar.
Ele quase sorriu.

— Meu pobre querido... — disse Simone por fim,


suspirando e tornando a pegar a mão do marido. — Como
podemos viver sem dinheiro? Eis uma coisa que a sua
pequena Simone não vai aceitar. Fico angustiada por
confessar, mas é a verdade. E é mais do que evidente que o
seu pai não vai nos dar qualquer dinheiro. Como então
poderemos viver?

— Simone! -suplicou ele, consternado. — Não falou nada


sobre dinheiro antes. Se é dinheiro o que você quer, vou
ganhá-lo...

— Como? — perguntou ela, gentilmente. — Você não


passa de uma criança.

Ele fitava-a completamente aturdido. Parecia ter muito


menos que os seus 24 anos. A boca se mexia nervosamente.
Simone deu de ombros, suspirou novamente, desviou os
olhos dele com a maior compaixão e tornou a fixar-se em
Ernest, repetindo:

— Ele não passa de uma criança.

— Mas é claro! — assentiu Ernest, ironicamente, com uma


insinuação significativa.

Mas Simone não parecia constrangida. Limitou-se a sorrir.


E ficou esperando.

Godfrey correu os olhos pela sala, desesperado. O olhar


fixou-se na mãe. Ele deixou escapar um murmúrio débil, de
quem estava choramingando. Gertrude fitava-o firmemente.
Ele nem percebia que Elsa estava presente. Quando ela
surgiu ao lado dele, Godfrey limitou-se a piscar
apaticamente, ao encará-la.

Elsa, alta e corpulenta como Brunhilde, disse ao primo:

— Venha para casa, Frey. Venha para casa conosco.

A voz dela tremia de compaixão, indignação e amor.


Ernest disse:

— Era justamente isso o que eu estava prestes a sugerir.


Quando essa dama... — ele indicou Simone com um aceno de
mão — ... estiver pronta para deixar... este lugar, acertarei
com ela a sua pequena... recompensa. É claro que ela nada
receberá enquanto não entrar com o pedido de divórcio. Até
lá, com a promessa de Godfrey de que vai esquecer toda essa
bobagem de música, voltar para casa conosco e tentar se
transformar num homem, vamos levá-lo para a casa de
Lucy...

Godfrey escutara tudo isso apaticamente. Via sua vida ser


assumida eficazmente pela prima wagneriana e pelo pai,
percebeu o rápido olhar que os dois trocaram, o ligeiro
sorriso, o ar de indulgência de Elsa. Ele era por demais
austero, frio e egoísta de temperamento para ter qualquer
emoção ou paixão, muito tímido e egocêntrico para conhecer
os processos de outros seres humanos. Assim, quando olhou
para o pai e Elsa com uma nova lucidez, foi invadido pelo
horror, dominado por um intenso frenesi. Eram-lhe
subitamente estranhos e incompreensíveis, criaturas
perigosas de um mundo do qual jamais se aproximara. E o
perigo que representavam estava voltado para ele. Foi
dominado pela aversão e raiva, algo tão novo para o seu
caráter que se cravaram como lâminas aguçadas em pontos
virgens de sua alma. E acabaram por inflamá-lo, deixaram-no
furioso, arrancaram suas raízes do sol frio e estéril em que
haviam permanecido por toda a sua vida, expondo-as ao sol
da realidade. Ele esqueceu a deserção de sua astuta mulher,
esqueceu que era ridículo e abandonado, esqueceu a mãe.
Pensou apenas no perigo, desespero, na necessidade
frenética de escapar. Esqueceu até mesmo o terror que
sempre sentira do pai, o ódio antigo.

— Não! — gritou ele. — Não voltarei para casa com vocês!


Nunca mais voltarei para casa! Não pode me comprar! Pode
assustar aos outros, mas não consegue mais meter-me medo!
Isso acabou para sempre!

Ele parou de falar abruptamente, ofegante. Uma


expressão rancorosa e brutal contraía o rosto de Ernest. E ele
disse, com algum espanto:

— Ora, seu miserável desprezível!

E deu uma bofetada no rosto do filho. May e Gertrude


levantaram-se de um pulo.

— Ernest! — gritou May. — Frey!

Ernest fitou-a, dizendo em voz baixa:

— Saia daqui! Saia imediatamente!

Ele virou-se para Elsa.

— Tome conta delas. Tire-as daqui. Vou cuidar disso


pessoalmente.

Elsa hesitou por um instante. Mas quando viu melhor a


expressão de Ernest tratou de pegar o braço da tia e dizer:

— Vamos embora, Tia May. Tio Ernest pode cuidar de


tudo sozinho, sem necessidade de continuarmos aqui...

— Frey! — gritou May novamente, tentando desvencilhar-


se, tentando aproximar-se do filho, que estava imóvel, com a
mão no rosto, no lugar em que fora esbofeteado.

— Saia! — disse Ernest outra vez, cerrando o punho


involuntariamente, enquanto olhava para a mulher com
expressão furiosa.
— Vamos embora, mamãe — balbuciou Gertrude, entre os
lábios lívidos e ressequidos. — Podemos falar com Frey
amanhã. Amanhã, Frey... — Ela fez uma pausa, olhando para
o irmão com uma expressão suplicante e repetindo:

— Amanhã, Frey...

Godfrey ficara completamente desmoralizado ao ser


esbofeteado pelo pai. Mas agora, ao ouvir a voz da mãe, a
coragem dispersa voltou. Numa das poucas vezes em sua
vida, sentiu compaixão de outra pessoa que não ele próprio,
experimentou a emoção nova de querer ajudar alguém, dar
proteção a outra pessoa, que precisava desesperadamente. A
compaixão e o amor tornaram-no forte, devolveram-lhe a
coragem, fizeram com que uma exultação lhe percorresse os
nervos. Ele olhou para a mãe, gentilmente, compadecido. E
disse, calmo:

— Pode ir para casa, mamãe. Eu a verei... amanhã. Vá para


casa, por favor.

Mesmo angustiada como estava, May foi capaz de


perceber a insistência na voz do filho, uma súbita
determinação.

— Amanhã, querido — balbuciou ela, tentando sorrir, dar-


lhe a garantia de seu apoio, não importando o que
acontecesse.

Depois, Gertrude pegou-lhe um dos braços e Elsa o outro;


as três se retiraram.

Ernest ficou observando-as se afastarem. Depois que a


porta foi fechada, ele continuou a fitá-la por um longo
tempo. Finalmente, virou-se para o filho, que não se mexera.
Na face pálida de Godfrey estava a marca da mão do pai, em
vergões vermelhos. Mas o rapaz permaneceu onde estava,
frágil e pálido, completamente resoluto, como se o
desespero lhe tivesse proporcionado uma coragem
inabalável. Simone, sempre sorrindo ligeiramente, sentou-se
negligentemente numa cadeira, começou a brincar com sua
corrente. Seu olhar, indolente e divertido, deslocava-se entre
pai e filho. O espetáculo parecia diverti-la, com um interesse
desligado e impessoal.

— E agora vamos resolver tudo — disse Ernest.

Godfrey contraiu os músculos em torno da boca, que


ameaçava tremer. Mas não disse nada. Ernest acrescentou,
tentando manter a voz calma:

— Pela última vez, estou lhe dizendo que toda essa


bobagem vai acabar. Voltará para casa conosco amanhã ou
pode tomar a decisão de nunca mais tornar a ver qualquer
um de nós. Está bem claro?

— Está, sim.

Os olhos dos dois se encontraram. Subitamente, ocorreu a


Ernest que nunca antes, em toda a vida de Godfrey, fitara o
filho nos olhos. Em todas as ocasiões anteriores, os olhos de
Godfrey desviavam-se e ele apenas os vislumbrara, como
alguém vislumbra a sombra de um cervo numa moita. Podia
vê-los agora, castanhos, com um brilho de terror, mas
também brilhando com a coragem que o terror pode
finalmente proporcionar. Mas ele também viu o filho
realmente pela primeira vez. Alguma coisa parecia dizer-lhe
que nunca chegara a ter qualquer contato com Godfrey, que
jamais teria. Martin fitara-o assim algumas vezes, mesmo no
maior horror. Lembrou-se da última noite em que falara com
Martin. O irmão exibia uma expressão como a de Godfrey.
Martin sempre se esquivara a Ernest. E depois, quando fora
obrigado a encarar o irmão, acuado, Martin fitara-o
diretamente, aterrorizado, mas sabendo que Ernest jamais
poderia alcançá-lo, nunca poderia penetrar na dimensão que
o protegia.

Ernest sentiu-se invadido por estranha sensação de


impotência. Sabia agora que, apesar de tudo, jamais
conquistara Martin. E sabia também que jamais conquistaria
Godfrey, nunca o dominaria. Poderia golpeá-lo fundo,
poderia até matá-lo. Mas jamais o dominaria. Lutara e
dominara muitas vezes os mais fortes, mas sabia agora que
jamais dominaria os fracos.

Ouviu-se a dizer, com uma voz sem qualquer inflexão,


derivada de sua impotência:

— Por acaso sua mãe nada significa paia você? Não se


importa em tornar a vê-la ou não?

Ainda fitando-o nos olhos, Godfrey disse:

— Não me importa o que possa acontecer. Não voltarei


para casa. Não precisa levantar sua bengala para agredir-me.
Não pode mudar minha decisão. Não importa o que faça
comigo, não poderá alterar coisa nenhuma. — Ele fez uma
pausa. — Jamais tornará a me ver. Esperava mesmo nunca
mais tornar a vê-lo. Não teria voltado à América, se não fosse
por minha mãe. Por toda a minha vida, sempre quis escapar
de você.... É uma pessoa que me dá nojo.

Novamente, os olhos deles se encontraram. E desta vez


foi Ernest quem acabou se desviando.

Subitamente, ele não estava mais furioso. Estava apenas


cansado, ao ponto de colapso. A sensação mais estranha o
dominava, como se tivesse perdido alguma coisa, como se
tal perda lhe causasse profunda dor e angústia. Tinha um
gosto amargo na boca, a mente e o espirito exaustos, a um
grau insuportável.

— Vou embora agora — ele ouviu a voz de Godfrey dizer,


tendo a impressão de que por toda a sua vida sempre ouvira
o filho falar nisso. — Algum dia voltarei a encontrar minha
mãe. Não pode impedir isso, mesmo que tente. Não lamento
que tudo isso tenha acontecido. É muito bom afastar-me de
você finalmente, para sempre!

O rapaz foi ao quarto e voltou com o chapéu e o casaco. E


depois ele saiu do apartamento, sem olhar para o pai ou para
a mulher.

Ernest ficou escutando o barulho dos passos do filho,


descendo a escada. Fez um esforço para ouvir o último eco.
E depois, por algum tempo, não houve qualquer ruído.

Simone se levantou, sacudiu o vestido ordinário.


Continuava a sorrir ligeiramente.

— Então está tudo resolvido, monsieur. — Ernest fitou-a,


parecendo não vê-la. — Não vai esquecer a promessa que me
fez?

Ernest finalmente mexeu-se. Suspirou, pegou o chapéu,


ajeitou-o na cabeça.

— Não, não esquecerei.


CAPÍTULO LXXXVII
A própria Lucy abriu a porta para Ernest, quando ele
chegou em casa. Ernest não percebeu que o rosto da
sobrinha estava extremamente pálido, com vestígios de
lágrimas. Ela disse que Gertrude e Elsa haviam levado May
para a cama e que gostaria de falar-lhe por um momento. Ele
fez um gesto vago e contrafeito, mas seguiu-a. Foram para
uma sala de estar. O fogo estava aceso, os carvões exibiam
um brilho dourado e vermelho, por trás da grade. Um único
lampião brilhava numa mesa de teca, espalhando uma
claridade suave por toda a confusão vitoriana da sala
atravancada. Ernest ficou parado diante do fogo, as mãos na
cornija da lareira, cabeça abaixada. Respirava fundo,
audivelmente.

Lucy usava um chambre creme, rendado, os cabelos


caindo pelos ombros. Estava agora chorando
incontrolavelmente. Ernest levantou a mão.

— Não estou interessado em saber de mais nada, Lucy. Já


tenho muito com que me preocupar.

Mas ela falou assim mesmo, a voz entrecortada:

— Precisa escutar, Tio Ernest. Aconteceu uma coisa


terrível. Quando cheguei em casa, encontrei um telegrama de
Paul...

— Paul? — Ernest virou-se rapidamente para fitar a


sobrinha. — Paul?

Se ele estava pálido antes, parecia agora branco que nem


um fantasma.
— Isso mesmo, Tio Ernest. Ele queria lhe dar a notícia
antes que os outros soubessem. Antes que os jornais
soubessem e que alguém mais falasse com Tia May.... Por
isso, ele enviou-me este telegrama.

Lucy entregou-lhe um papel amarelo, cobrindo o rosto


com o lenço e sentando-se.

Ernest alisou lentamente o papel e leu o telegrama:

“Lucy, estou lhe enviando este telegrama para que possa


contar a Tio Ernest, antes que outros saibam. Guy foi
alvejado e morto esta manhã, pelos mineiros, durante um
distúrbio. Estou levando o corpo para casa.”

O telegrama não tinha assinatura. Ernest tornou a dobrar


o papel, cuidadosamente, abaixou-se e jogou-o no fogo. Lucy
tirou o lenço do rosto. Levantou-se e aproximou-se do tio. -
Mas Ernest olhava fixamente para o fogo, que aumentou um
pouco de intensidade, iluminando seu rosto, que parecia
estar encarquilhado.

— Tio Ernest... — balbuciou Lucy, tocando-lhe o braço.

Ernest pôs os dedos sobre a mão dela.

— Obrigado, minha querida. Fez o que era melhor, não


alarmando sua tia. Ela teve uma noite... muito difícil. Claro
que teremos agora de voltar para casa o mais depressa
possível. Precisarei de sua ajuda. Pode contar à sua tia, se
quiser, que recebeu um telegrama informando que Guy teve
de voltar a Windsor, com uma doença súbita.

— Não vai contar a ela, Tio Ernest?

— Não. Infelizmente, não posso. Tudo isso... é um pouco


demais para mim.

— Mas ela não vai estranhar que o telegrama me tenha


sido enviado e não para você?

— Tem razão. Acho que não estou conseguindo pensar


direito, Lucy. Tem toda razão. Mas, infelizmente, não
consigo pensar numa solução apropriada. Nunca pensei que
um dia poderia me comportar como um covarde.

— Acho melhor sentar um pouco, Tio Ernest — murmurou


Lucy, alarmada. — Deixe-me servir-lhe um conhaque.

Lucy começou a chorar novamente.

— Oh, que coisa horrível! Pobre Guy! Como uma coisa


dessas pôde acontecer? É como um sonho, não pode ser
verdade...

Ernest se sentou, estendendo os braços sobre os braços


da cadeira. A cabeça pendeu.

— Se tenciona voltar a Windsor, Lucy, preferia que


esperasse que partíssemos antes. Não gostaria que May
soubesse imediatamente. E se você nos acompanhar, ela
certamente vai desconfiar que aconteceu alguma coisa pior.

— Está certo, tio querido.

Lucy estava espantada com a voz serena e a expressão


pensativa de Ernest. Seria possível que ele não estivesse
muito transtornado?, pensou Lucy, ressentida, todos os seus
instintos indignados.

— E receber uma notícia dessas, essa tragédia acontecer,


logo no momento em que Frey faz tanto sucesso, quando
tudo está tão maravilhoso...

Carvões caíram ruidosamente na lareira. Ernest não se


mexeu, os braços ainda estendidos. Lucy podia ver o faiscar
do anel de sinete no dedo mínimo do tio. Ela soluçou alto.

— Pobre Guy! E pobre Frey também, casado com aquela


mulher horrível! Como é difícil ter filhos! Oh, Deus, como
vou contar a Tia May? Não vou conseguir... vai partir o
coração dela...

Em resposta a seu chamado, uma criada sonolenta e


ressentida trouxe uma bandeja de prata, com uma garrafa de
conhaque e um copo. Lucy encheu o copo e estendeu para o
tio.

— Beba isso, por favor, Tio Ernest. Vai lhe fazer bem.

Ernest olhou para o copo e afastou-o com um aceno.

— Não, obrigado, Lucy. Sempre detestei conhaque. E esta


é uma ocasião em que não preciso ser polido e bebê-lo.

Percival Van Eyck, que estava à espreita no vestíbulo


superior, gentil demais para estar presente quando a mulher
transmitia uma notícia tão terrível ao tio, desceu agora a
escada, timidamente, a fim de apresentar suas condolências.
Lucy fitou-o com uma impaciência chorosa. Tio Ernest não
era o tipo de homem de aceitar condolências de tolos gentis
e bem-educados, pensou ela. Para surpresa dela, no entanto,
Ernest pareceu ficar comovido quando Percival balbuciou
suas palavras pesarosas de condolências. Talvez fosse
porque aquele rapaz, que jamais conhecera o primo de sua
mulher, podia ficar profundamente afetado pelos
sofrimentos e calamidades dos outros. A reação de Percival
não era mero sentimentalismo. Ele se afligia genuinamente
com os pesares de estranhos totais. Lucy dizia muitas vezes
que era uma boa coisa ele ter casado com uma mulher de
bom senso, caso contrário teria esbanjado sua herança em
mil obras de caridade.

Os três ficaram sentados em silêncio, na sala um tanto


fria e escura, até que o amanhecer prateou o céu por cima
dos telhados das casas no outro lado. Há mais de uma hora
que Ernest não falava, tendo escondido parcialmente o rosto
com a mão. Lucy, embora não fosse sua mulher nem filha,
estava sentada em silêncio ao lado dele. Percival, triste,
sonolento e desgrenhado, de roupão, despejava carvões no
fogo.

Já estava claro quando Ernest disse calmamente à


sobrinha:

— Gostaria de enviar um telegrama, Lucy.

Um criado foi acordado e desceu rapidamente com um


lampião. Ernest sentou à escrivaninha e escreveu, sem
qualquer pressa, um telegrama para Paul, em Windsor.

“Dê ordens para todos os mineiros serem expulsos das


casas da companhia e da região. Contrate todos os detetives
necessários. Estou partindo hoje para Windsor.”

Lucy e Percival ficaram observando-o escrever, a mão


firme, os ombros empinados. O rosto impassível continuava
tão sereno quanto antes.

O criado estava deixando a casa com o telegrama, quando


a voz de um pequeno jornaleiro ressoou pela rua quieta e
coberta de neve:

— Líderes trabalhistas mortos em distúrbio nas minas de


carvão da Pensilvânia! Filho de rei das munições assassinado
por mineiros em greve!

Outras vozes de jornaleiros repetiram a notícia. Pareciam


as vozes de vingadores, altas e ameaçadoras, na manhã
deserta e sossegada. Os gritos ressoavam por todas as casas
e janelas começaram a se abrir, vozes gritando em resposta.
Os lampiões das ruas estavam esmaecidos contra a claridade
da manhã.

Ernest foi até uma janela. Entreabrindo as cortinas, olhou


para fora. Um jornaleiro, passando lentamente e gritando,
sacudindo os jornais que haviam acabado de sair do prelo,
viu o rosto pálido e impassível no outro lado do vidro. O
garoto parou, esperançoso, fez um gesto. Não houve
qualquer resposta. Os olhos do homem continuavam fixados
nele, mas não o viam.

O garoto seguiu adiante, gritando.


LIVRO TRÊS O PRIMEIRO LACAIO

“Nosso primeiro lacaio é a Estupidez, no


jogo terrível que travamos contra a
humanidade
CAPÍTULO LXXXVIII
Entre as muitas coisas — e eram de fato muitas — que
Jules Bouchard (“O Jesuíta”) detestava estava o primo, Paul
Barbour.

Estava pensando em Paul certa manhã, sentado em seu


pequeno gabinete no banco. Podia se dar ao luxo de tirar
tempo para pensar, pois trabalhava depressa,
eficientemente, sem qualquer esforço. Assim, tinha muitas
oportunidades de pensar tranquilamente.

Os pensamentos a respeito de Paul não eram agradáveis,


mas o rosto moreno e estreito do rapaz de 21 anos estava
inescrutável. Ele tinha uma cabeça pequena e estreita, sob os
cabelos pretos lustrosos, a testa alta. As faces, boca, nariz
proeminente e queixo pontudo, tudo lhe dava uma aparência
franzida e encarquilhada, que lembrava o velho Armand
Bouchard. As orelhas grandes projetavam-se para fora dos
dois lados da cabeça. Os olhos estavam geralmente
contraídos, estreitos, brilhando. Mas quando ele os
arregalava, o que raramente acontecia, podia-se ver que eram
pretos e faiscantes. Não devia ter mais de l,7Om de altura,
mas o corpo esguio, ágil e vigoroso fazia com que parecesse
mais alto. Embora não fosse vaidoso com sua aparência,
vestia-se invariavelmente com maior aprumo, num estilo
basicamente conservador, as roupas sempre bem passadas, a
gravata impecável. Tinha os pés quase tão pequenos quanto
os da mãe e as botinas brilhavam como espelhos. Ernest,
com afeição, desconfiança e apreciação, referia-se a ele, com
algum desdém, como “aquele francês empertigado e
encarquilhado, aquele jesuíta!”

Jules era um completo estranho para todos na família,


com exceção de Ernest e de seu irmão Leon. Somente esses
dois podiam vislumbrar alguma coisa por trás do rosto
encarquilhado, os olhos esquivos, a frieza polida, a fala
suave e rara, o sorriso ainda mais raro, o retraimento cortês.
Jules desprezava a maioria das pessoas, era indiferente às
demais, odiava apenas umas poucas, entre as quais a
principal era seu Tio Ernest; respeitava apenas uma, que era
também Ernest, amava no mundo inteiro apenas a seu irmão
Leon. Se Jules, o furtivo, flexível e sutil, tinha algum
confidente, esse era justamente Leon. E nem mesmo Leon
passava além da antessala que se erguia diante da verdadeira
personalidade de Jules.

Jules era agora um dos vice-presidentes do banco. Era


respeitado por sua capacidade, por suas decisões sensatas e
sempre rápidas. Era-lhe impossível realizar mal qualquer
coisa. Embora já tivesse chegado à conclusão de que a
atividade bancária não era o que desejava, empenhava-se em
dar o melhor que podia, o que era algo considerável.

Seus pensamentos tendo chegado a um impasse, ele


tocou a campainha existente na pequena escrivaninha
envernizada. Quando um funcionário apareceu, ele pediu
que chamasse seu irmão, Sr. Leon Bouchard. Ficou esperando
por Leon, rolando interminavelmente uma pena entre os
dedos compridos.

Leon, “o profundo”, entrou na sala. Era muito parecido


com Jules, só que tinha o rosto e os ombros mais largos,
sendo um pouco mais baixo. Tinha propensão à gordura e
mais tarde ficaria barrigudo. Além disso, sua pele era um
pouco mais clara e mais rosada. O rosto exibia às vezes uma
superfície divertida, que nada tinha a ver com a brutalidade
objetiva de sua mente. Quando necessário, Jules podia usar a
hipocrisia tão delicadamente quanto um tempero suave.
Leon, no entanto, considerava a hipocrisia uma perda de
tempo e preferia uma estocada de punhal.

— Bom-dia, Leon — disse Jules, tão polidamente como se


não se vissem pelo menos há 24 horas, embora tivessem
comido o desjejum juntos, vindo em seguida para o banco.
— Sente-se. Preciso lhe falar. A porta está fechada?

Leon verificou a porta, sacudiu-a e sentou-se.

— Qual é o problema? O que o Jesuíta tem em mente esta


manhã?

— Pode estar certo de que não se trata de nada de


sagrado. E não me chame de Jesuíta, que logo me lembro do
pobre Philippe. E ele está bem presente em meus
pensamentos esta manhã.

— Philippe? Mas ele está muito bem. Você sabe


perfeitamente que mamãe recebeu uma carta dele ontem,
informando que tudo corria bem. Santo Deus, uma ilha de
leprosos! Deve haver algum toque de insanidade na família.
Mas por que está pensando em Philippe?

— Não sei direito. Por algum motivo, sempre que penso


em nosso simpático Tio Ernest imediatamente me lembro de
Philippe. Não consigo entender por quê. Talvez seja porque
Philippe teve outrora uma paixão por Gertrude. Tenho
pensado muito em Gertrude. A pobre coitada está agora
visivelmente grávida. E, por alguma estranha razão, pensar
em Philippe levou-me a pensar em Tio Ernest, depois em
Gertrude e finalmente naquele idiota do Paul. Tenho pensado
muito em Paul ultimamente.

— Pois isso é mais do que ele... pensa.

— Não tenha tanta certeza assim, meu caro Leon, não


tenha tanta certeza assim... Esses arianos podem ser
obtusos, meio retardados, querendo fazer tudo à força,
raramente pensando. Mas quando eles pensam... Que Deus
nos ajude! É uma convulsão da natureza. Enquanto os nossos
pensamentos nada significam. Já nos consumimos pensando,
demos uma volta completa ao mundo e não deixamos uma
impressão mais profunda que o movimento de uma pluma.
Pensar, Leon, pode certamente refinar a mente, mas também
a reduz a uma carapaça que pode ser brilhante, mas é
também frágil. Como a prata antiga, que foi polida por
muitas e muitas gerações.

— Pediu-me para vir até aqui a fim de escutar suas


dissertações filosóficas? Lembro-me que amanhã é o
primeiro dia do mês e tenho de conferir os malditos livros...

— O seu problema, Leon, é ser meticuloso demais. Muito


exigente. Precisa de cérebro para poder ser assim ou então
não vai passar de um mero estorvo ruidoso. Penso às vezes
que você não é dotado de muita inteligência. Tio Ernest é o
exemplo perfeito do homem meticuloso e exigente, mas
também dotado de inteligência. Só que não deve tentar ser
ariano como ele. Há muito de latino em você. O que me leva
outra vez a Paul Barbour.

— Muito bem, você está de volta a Paul. Já estou cansado


de acompanhá-lo. O que há com Paul?

— Vou lhe dizer. Tio Ernest é o tipo de homem capaz de


lograr e roubar o próprio irmão, sem qualquer escrúpulo,
com base na teoria de que o melhor sempre vence. Não teria
ilusões de estar fazendo algo correto, cavalheiresco e
inocente. Mas não se importaria com essas coisas. A ética da
coisa pode lhe ser bastante clara, mas creio que ele
apreciaria fazê-lo justamente por isso. O vilão consciente e
satisfeito por causa disso. Ganancioso e voraz, mas sem se
preocupar. Já Paul é diferente. Ele nem sequer perceberia a
ética. Nem mesmo saberia que você tinha algum direito a
viver e que lhe pertencia tudo o que tinha. Tio Ernest
reconheceria tais coisas e teria o maior prazer em arrancá-
las... a típica imagem do lobo que come lobo. Mas Paul não
reconheceria que você tinha algum direito a viver ou
qualquer direito ao que possuía. Na verdade, ele ficaria
ressentido se você se atrevesse a tentar conservar sua
propriedade, caso ele a desejasse. Paul se tomaria seu
inimigo, se permanecesse obstinado. Ele descobre o que você
possui, passa a sentir um apetite voraz e trata de obter o que
deseja, destruindo-o no processo, se for impolido e tolo a
ponto de se interpor no caminho dele. É um touro furioso
arremetendo.

— É muito agradável ouvir histórias da família de manhã


tão cedo. Mas o que tudo isso tem a ver com os livros que
estão à minha espera?

— Mais do que você imagina. Porque, se não tomarmos


cuidado, não haverá mais livros em que constem nossos
nomes.

— Entendo agora de onde vem a sua reputação de


silêncio: fala interminavelmente, mas, no fundo, não diz
nada. Vamos supor que sou muito estúpido. Importa-se de
explicar-me tudo direito?

— Estou desapontado com você, Leon. Não tem estudado


Paul?

— Se o tenho estudado? Claro que sim. Quer saber se o


considero um ladrão, não é mesmo? Pois é o que penso. Mas
como ele pode roubar-nos?

— Paul encontrará um meio. Sempre teve algum


ressentimento dos Bouchards. Percebe o que temos e está
indignado por termos alguma coisa. Não vai demorar muito
para que esse urso que anda como um homem chegue à
conclusão de que deve possuir o que temos e então nada irá
detê-lo, a menos que...

— A menos o quê?

O rosto de Leon perdera a expressão divertida e se


tornara ameaçador. Jules recostou-se graciosamente na
cadeira e delicadamente tocou os dedos da mão esquerda
com a pena. Ficou olhando pensativo para o irmão por algum
tempo, antes de voltar a falar:

— Já leu alguma coisa sobre os combates de gladiadores,


promovidos pelos antigos romanos, Leon? Armavam um
gladiador com peitorais, capacete, proteções para as pernas
e um escudo, davam-lhe uma espada curta e pesada. Era
geralmente o homem mais forte e corpulento. Davam ao
outro gladiador, o mais leve, mais rápido e mais inteligente,
apenas uma rede e uma lança. Não tinha qualquer proteção,
apenas a rede e a lança. Os dois travavam um combate
mortal. E quem ganhava era geralmente o homem com a
rede, mais ágil e mais inteligente.

Leon empinou os ombros e afundou o pescoço neles.


Olhou para o chão, mordeu o canto do lábio.

— Metáforas são muito agradáveis e bonitas, mas


acontece que não são práticas. Não nos dizem como seguir
em frente. Admito que tenho observado Paul, mas o
pensamento de perigo não me ocorreu, até agora. Mas já
posso percebê-lo nitidamente. Como nós estamos... apenas
com a rede e a espada, do nosso relacionamento com Tio
Ernest, para enfrentar o brutamontes do Paul?
— É necessário numa campanha reconstituir o passado e
estudar todas as circunstâncias. Vamos começar pelos filhos
de Tio Ernest, que seriam os herdeiros naturais dele. Há
Frey, que renunciou a tudo do pai, inclusive adotando o
nome de Godfrey Sessions. Vive na França e sustenta-se do
que obtém com suas composições e do que Tia May lhe
manda, dos próprios recursos particulares dela. Ouvi dizer
que ele tem declarado que jamais voltará à América
enquanto o pai estiver vivo. E pode estar certo de que ele
não está recebendo nenhum dinheiro de Tio Ernest, não vai
herdar coisa alguma.

“Há Reggie, que casou com aquela fanática religiosa, foi


viver numa fazenda e afirmou que não quer nada do
dinheiro do pai. Sei que existem pessoas assim. Ele só
aparece em Windsor raramente e quando tem certeza de que
Tio Ernest não está em casa. Havia também Guy, mas era um
garoto e já está morto há alguns anos. Assim, não
precisamos pensar nele. Mas confesso que eu me sentiria
mais tranquilo em relação a Paul se Guy estivesse vivo. (De
passagem, acabei de saber que o incidente de Snedlow
custou 500 mil dólares a Tio Ernest, para calar a boca dos
mineiros e evitar a prisão. Foi uma coisa terrível. Depois de
expulsar os mineiros de seus casebres e para o condado
vizinho, onde se abrigaram com amigos ou em tendas, a fim
de escapar da neve, ele ainda mandou incendiar as tendas,
matando 14 mulheres e crianças. É levar uma vingança um
pouco longe demais.)

— Não há qualquer prova de que não tenha sido um


acidente.

— Talvez não, mas a coisa cheira muito mal. Além disso,


não há também qualquer prova de que Guy tenha sido morto
pelos mineiros. Afinal, eles não tinham nenhuma arma.
— O que está querendo insinuar? — indagou Leon,
apreensivo, sem querer uma resposta.

— Nada. Estávamos falando de Paul. Pois isso deixa


apenas Gertrude, que é a mulher de Paul. A pobre coitada
está grávida, provavelmente vai gerar algum monstrinho, se
sair ao pai. E há também Joey, o macaco. Podemos excluir
Trudie. Joey, evidentemente, será algum dia o presidente do
banco, agora que Paul tornou-se praticamente o Príncipe de
Gales de Tio Ernest. Joey é um banqueiro nato e
provavelmente este banco dará origem a uma dúzia de
outros menores. Assim, por um lado, podemos excluir Joey.

“O problema todo é o seguinte: Paul, evidentemente,


excluiu os Bouchards. Não me tem em alta conta nem a você,
François, Etienne e Honore. Obviamente, ele acha que nada
tem a temer de Philippe. Renée é mulher e André e
Antoinette são apenas pirralhos ainda. Não há qualquer
perigo a temer de nossos meio-irmãos Chandler e Betsy.
Etienne está obcecado pelo teatro, desde que empunhou uma
lança em Cleópatra, no inverno passado, em Nova York. Se
bem me lembro, ele disse que lhe haviam prometido um
papel em Ben-Hur, dentro de alguns meses. Provavelmente
como um dos cavalos. Mas ele não é nenhum tolo, possui a
paixão francesa pelo dinheiro e creio que Paul o subestima.
Contudo, um homem não pode se preocupar com togas,
Hamlets e balcões em Nova York, ao mesmo tempo em que
pensa em negócios em outra cidade. Honore, provavelmente,
terá de cuidar da parte de Etienne. O que me leva a Honore,
que provavelmente também gostaria de meter uma faca nas
costas de Paul. Quanto ao nosso querido irmãozinho,
François, ele jamais prestará para coisa alguma, enquanto se
julgar um poeta. Por falar nisso, já leu o último soneto dele?

— Já, sim! — respondeu Leon, fervorosamente. — Mas não


deve se preocupar com François.
— Portanto, em última análise, tudo depende de você, de
mim e de Honore. Conversei com Honore ontem à noite, da
mesma forma que estou lhe falando agora.

Houve um momento de silêncio. Leon voltou a olhar


fixamente para o chão, enquanto Jules limpava as unhas,
distraidamente. De repente, ele empertigou-se, largando o
pequeno canivete de ouro.

— Não gostaria de ocupar o meu lugar no banco, Leon?

Atônito, Leon levantou os olhos pretos, pequenos e frios.

— Ocupar o seu lugar? Seria maravilhoso, é claro. Acho


que tenho melhor cabeça do que você para atividade
bancária. Mas o que você faria?

Jules se levantou, baixou as mangas imaculadas. ;

— Vou conversar com Tio Ernest imediatamente. E esta


noite nós dois iremos à casa de Tio Eugene e teremos uma
conversa com Honore.

— Entendo... — murmurou Leon, lentamente, levantando-


se também, olhando para a porta fechada. — Por falar nisso,
temos um inimigo dentro de nosso campo. John Charles.

— Tem razão. Ele presta bons serviços ao irmão, não é


mesmo? E nos odeia. Já o surpreendi a observar-nos. Temos
de ser cautelosos, pois ele informará Paul de qualquer
manobra que surpreender. Ah, mas que demônio furtivo e
soturno! Nem mesmo pense no que acabei de falar, Leon, se
estiver a menos de meia dúzia de passos dele. O demônio é
capaz de ler pensamentos.

— Se não estou enganado, é a sombra dele que está


passando pela porta, de um lado para outro, desde que
entrei aqui. Olhe pelo vidro agora! Dá para divisar os
contornos da cabeça, parecendo uma bala...

Jules avançou até a porta, depressa, sem fazer qualquer


barulho, abriu-a abruptamente. Um rapaz um tanto baixo,
mas corpulento, mais ou menos da idade dele, estava parado
ali, desconcertado, o rosto ficando vermelho. Tinha cabelos
um tanto rígidos, como seu Tio Ernest, os mesmos olhos
claros rancorosos, as feições rudes. Era uma caricatura do
que Ernest fora na idade dele, sem a inteligência e
determinação implacável de Ernest. Em vez de implacável e
determinado, ela era apenas brutal, inexoravelmente, sem
qualquer originalidade.

— Olá... — disse ele, finalmente se controlando a ponto


de falar. — Estava à sua procura, Leon. Alguém está pedindo
aquele registro de Truesdale.

— É mesmo?

A voz de Leon era fria e impessoal como veludo. Jules


contemplou o primo de alto a baixo, com uma mistura de
desprezo e polidez.

— Não sabia que você estava encarregado das contas da


letra “T” — comentou Jules.

John Charles lançou-lhe um olhar de ódio.

— E não estou. Mas o Sr. Knight perguntou-me se sabia


onde Leon estava. E como eu o vira afastando-se nesta
direção, resolvi procurá-lo pessoalmente, a fim de informá-lo
que sua presença é necessária.

Ele se afastou, tensamente, as orelhas vermelhas, os


ombros parecendo muito quadrados e grandes para as
pernas curtas.

— Está vendo? — disse Leon ao irmão.

— Estou, sim. Ao que tudo indica, quanto mais depressa


eu agir, mais estaremos seguros. E não se esqueça: não pense
quando estiver perto do velho Johnny. Ele é capaz de ler
pensamentos.
CAPÍTULO LXXXIX
Ao chegar à fábrica de Barbour & Bouchard, Jules foi
saudado por Paul com a maior cordialidade. Paul tinha uma
sala nova, que constituía uma barreira entre o tio e os
visitantes. Cercara-se também de funcionários que
mantinham-no permanentemente informado dos menores
detalhes dos negócios.

Ele apertou efusivamente a mão de Jules e exibiu os


dentes grandes e brancos, num sorriso cordial.

— O que posso fazer por você, Jules? Algum problema no


banco?

— Que problema poderia haver? Vim apenas falar com Tio


Ernest.

Houve uma pequena pausa. Paul era mais alto e mais


corpulento do que o primo. Enfiou as mãos nos bolsos
negligentemente, embora nada houvesse de negligente no
olhar que lançou a Jules.

— Tio Ernest? — O tom dele tornou-se pesaroso. — Sinto


muito, mas ele está em reunião com um cliente muito
importante. Talvez passe horas sem poder recebê-lo.

— Ficarei esperando — disse Jules, correndo os olhos pela


sala de Paul. — Tem cadeiras muito confortáveis aqui.
Importa-se que eu ocupe uma delas?

— Claro que não! Mas devo lhe avisar que a reunião será
mesmo demorada. Talvez seja melhor eu dizer depois a Tio
Ernest que você esteve aqui e marcar uma hora na agenda
dele. Posso marcar uma reunião dentro de poucos dias.
— Obrigado, mas prefiro esperar. Leon está ocupando
meu lugar no banco, até eu voltar. Além do mais, não
estamos muito ocupados no momento.

Ele sentou-se, sem que fosse convidado. Paul ficou


parado, indeciso, franzindo o rosto ligeiramente. Quando
tornou a virar-se para o primo, constatou que o rosto
moreno de Jules estava impassível, completamente
inescrutável.

— Está certo, Jules, se é isso o que você quer. Mas receio


que terá de ficar esperando por muito tempo.

Ele tocou uma campainha, chamando um funcionário.

— Sr. Johnson, quer fazer o favor de avisar ao Sr. Barbour


que o Sr. Jules Bouchard... — ele fez uma pausa, um tênue
desdém insinuando-se em sua expressão — ...Sr. Jules
Bouchard desejava falar-lhe, assim que tiver tempo?

Ele olhou abruptamente para Jules.

— Espere um instante, Sr. Johnson. Jules, tem certeza de


que não se trata de algum problema que eu possa resolver,
em lugar de Tio Ernest? Não quer me dizer do que se trata?

— Não.

Houve um pequeno momento de silêncio. Depois, Paul


acenou com a cabeça para o funcionário.

— Por favor, Sr. Johnson, avise que o Sr. Jules Bouchard


deseja falar com o Sr. Barbour, assim que ele não estiver
mais ocupado.

— O Sr. Jules Bouchard pede para informar ao Sr. Barbour


que se trata de um assunto da maior importância —
acrescentou Jules, solenemente.

O funcionário estava edificado com a cena, parecia


extremamente divertido.

— Pois não, Sr. Bouchard — disse ele, fazendo uma


mesura e retirando-se apressadamente.

As feições grandes de Paul estavam contraídas,


avermelhadas. Ele fazia obviamente o maior esforço para
controlar-se. Os olhos de Jules estavam agora bem abertos,
inocentes, muito pretos, brilhando. ‘Jesuíta!’, pensou Paul,
furioso. “Gostaria de saber o que ele está tramando.
Perguntarei a John Charles esta noite.”

E ele disse em voz alta, tentando recuperar a jovialidade:

— Soube que o Major Norwood quase não tinha seguro


dos armazéns que pegaram fogo ontem à noite. Soube
também; que ele perdeu muito dinheiro com a falência da
Union Atlantic Railroad. Fico pensando que talvez Tia Florrie
esteja numa situação difícil. Se for o caso, terei a maior
satisfação em comprar quantas ações de Barbour & Bouchard
que ela possua. Aos preços de hoje.

A boca de Jules contraiu-se ligeiramente, mas, afora isso,


a expressão permaneceu inocente.

— É muita gentileza sua, Paul. Contudo, devo informá-lo


que minha mãe não se encontra absolutamente numa
situação difícil.

Ele acrescentou para si mesmo: mas que imbecil!

Paul já havia recuperado o controle.


— Isso é ótimo. — Ele fez uma pausa. — Como Leon está
indo no banco?

— Muito bem.

— John Charles sempre fala dele com o maior


entusiasmo.

Jules não fez qualquer comentário.

— E como está Philippe? Gertrude falou dele ainda esta


manhã, querendo saber como tem passado.

Jules fitou-o nos olhos.

— Isso é muito estranho. Gertrude visitou minha mãe


ontem e ela leu-lhe a carta que recebeu de Philippe.

Paul ficou intensamente vermelho.

— Provavelmente ela esqueceu — disse ele, num tom


forçado de indiferença.

A porta se abriu e um homem saiu, carregando uma pasta


de couro. Paul levantou e cumprimentou-o com o maior
respeito. Enquanto o fazia, Ernest apareceu na porta e
acenou com a cabeça para Jules.

— Muito bem, Jules, podemos conversar agora.

Imperturbável como sempre, Jules levantou e entrou na


sala. Fechou a porta cuidadosamente. Ernest já se sentara.
Olhou para o sobrinho com uma expressão divertida.

— Qual é o problema? O que tem a me falar é tão


importante que está com medo de espiões?
— Isso mesmo, estou com medo de espiões — respondeu
Jules, calmamente. — Ou melhor, de um espião.

— Ora, não diga bobagem. Sente-se logo. Como está sua


mãe? E como estão os outros?

— Estamos muito bem. — Jules fez uma pausa. — Mas


Paul acha que estamos em dificuldades financeiras. Propôs
comprar as ações de mamãe em Barbour & Bouchard.

Ernest alteou as sobrancelhas.

— É mesmo?

Ele estudou o sobrinho por um momento. Tinha o maior


respeito por Jules, embora o rapaz jamais deixasse de
diverti-lo. A diversão derivava de uma espécie de
conhecimento de sua sutileza, de seus processos e silêncios
insidiosos, que Ernest podia interpretar sem muita
dificuldade. Pensara muitas vezes, pesaroso, que Paul bem
que poderia contar com um pouco daquela imaginação e
flexibilidade mental. Não obstante, provavelmente por causa
de sua compreensão, Ernest não confiava em Jules.

Os acontecimentos dos últimos quatro anos haviam


mudado Ernest consideravelmente, branqueando os cabelos,
abrindo sulcos profundos no rosto, deixando-o mais esguio e
mais compacto. Mas não alterara a expressão, que
continuava impassível, inescrutável. Através da mesa
envernizada, ele estudou o sobrinho por mais um momento
e depois disse, falando bem devagar:

— Espero que sua mãe me consulte antes de vender


qualquer ação.

— Ela não vai vender. — Jules removeu um fio branco do


joelho da calça. — Não vou tomar muito do seu tempo, Tio
Ernest. O problema é o seguinte: quero que me tire do banco.
Quero trabalhar com você.

— Comigo? Mas isso é extraordinário! Pensei que


estivesse indo muito bem no banco.

— Mesmo assim, quero trabalhar diretamente com você.

Ernest mastigou a unha, pensativo.

— Isso é muito inesperado. Mas onde eu poderia colocá-


lo, Jules? Achei que já estava cansado de fábricas e
fundições, depois de passar aquele ano com Seu Tio Eugene
na Kinsolving.

— Não, não fiquei cansado. E pude desenvolver uma ideia.

— Bom... importa-se de me dizer o que há por trás de


tudo isso?

— Nada... a não ser que me sinto melhor trabalhando nas


fábricas.

Houve um momento de silêncio. Sem tentar disfarçar,


Ernest estudou meticulosamente cada feição do sobrinho. Ele
parece mais e mais com o velho Armand, a cada dia que
passa, pensou Ernest. Só que é mais fechado do que Armand
e não possui a mesma gentileza e amabilidade. Ao final do
longo exame, Ernest sabia exatamente por que Jules fora
procurá-lo. E não estava absolutamente insatisfeito, mas
apenas divertido. Não seria má ideia, pensou ele. Paul
possuía a força e a obstinação, Jules possuía a imaginação,
inteligência e habilidade. Os dois haveriam de se compensar,
iriam se vigiar mutuamente. Paul frequentemente o aborrecia
e irritava. Ernest experimentou um prazer malicioso na
expectativa do efeito do ingresso de Jules em Barbour &
Bouchard. A inteligência latina e a força teutônica... seria
edificante observar o encontro das duas coisas,
especialmente temperada pelo ódio.

— Mas o que acha que pode trazer para o negócio, Jules?

— Vou explicar. Estudei tudo durante o ano em que


trabalhei com Tio Eugene. O canhão que fabricamos seria
muito melhor com um aço superior. O que usamos
atualmente cristaliza-se com a maior facilidade, torna-se
frágil e quebradiço. E termina se fragmentando, depois de
uso considerável. Além do mais, o aço vai passar a ter uma
grande demanda, para uso nos trilhos dos bondes, ferrovias,
pontes, construções...

Ernest interrompeu-o, repetindo:

— Construções?

— Isso mesmo. Creio que está chegando o momento em


que o aço será usado em quantidades gigantescas,
especialmente para edifícios altos. O ferro não atende aos
requisitos necessários. Mas o aço que temos agora não é
bastante bom e sua fabricação é dispendiosa.

— Continue.

Ernest jamais imaginara que o retraído e furtivo Jules


fosse capaz de fazer um discurso tão longo e tão objetivo.

— Desenvolvi um novo método de fabricação de aço. Não


falei nada antes por vários motivos. Existe algo parecido na
Inglaterra e admito que foi dessa fonte que extraí a ideia.
Mas o que tenho em mente é um pouco diferente. É diferente
o bastante para...
— Para passar pelas leis que regem as patentes?

A careta soturna que contraiu os lábios de Jules era o que


costumava passar por um sorriso, no caso dele.

— Isso mesmo, diferente o suficiente para ser aprovada a


patente. A Inglaterra já patenteou o seu novo aço. Mas, para
ser franco, acho que a minha ideia é melhor, embora esteja
parcialmente baseada na patente inglesa.

— Muito interessante... — Nada poderia ser mais paciente


do que a voz de Ernest. Mas o charuto que ele fumava estava
agora apagado no cinzeiro. — Importa-se de me dar uma
ideia de como é esse seu novo aço?

— Claro que não. — Jules já havia baixado a voz. — Mas


tudo fica no terreno do confidencial, não é mesmo, Tio
Ernest?

Ernest sorriu.

— Acha que eu poderia roubá-lo?

Mas Jules não ficou embaraçado. Seguiu em frente, como


se Ernest não tivesse falado:

— Meu plano é produzir aço pela descarbonização do


ferro cinzento derretido, através de jatos de ar, que vão
oxidar e remover o carbono, outras impurezas e o silício.
Depois, o aço poderá ser moldado em lingotes.

Ernest baixou os olhos para a mesa. Houve um longo


silêncio. Ansioso agora, Jules observava atentamente o rosto
do tio. Nada podia depreender daquela força suave, daquela
impassibilidade total.
— Tem a fórmula? — perguntou Ernest, distraidamente.

— Tenho, sim.

— O que o leva a pensar que é viável?

— Tenho certeza absoluta. Estudei cuidadosamente a


fórmula inglesa e o aço já está sendo produzido por lá.

Ambos sorriram ao mesmo tempo.

— Já ouvi falar do aço inglês — comentou Ernest. — Sua


fórmula terá de ser muito... hã... hábil, se quisermos escapar
aos direitos de patente e também conservar a qualidade do
aço inglês. Posso ver a fórmula?

— Claro, Tio Ernest. Terei o maior prazer em fazer uma


demonstração na Usina Sessions... quando estiver
trabalhando lá.

Ele fitou o tio friamente, o rosto moreno e estreito muito


calmo, os raios do sol brilhando nos cabelos lustrosos que
cobriam o crânio pequeno e bem modelado.

Ernest desatou a rir, com reconhecimento e aprovação.

— Não confia nem em Deus nem no diabo, não é mesmo,


Jules? Mas está absolutamente certo. Admiro-o por isso. —
Ele pôs um novo charuto na boca e Jules acendeu-o. —
Obrigado, rapaz.

Ele fumou o charuto por um momento, observando Jules


através da fumaça. Depois acrescentou, cordialmente:

— Compreendo perfeitamente por que deseja trabalhar


aqui. Não vou culpá-lo por nada, Jules. Na verdade, admiro-o
por isso. Um homem tem o direito a tudo o que puder obter.
Você já demonstrou que vai conseguir o que quer. Mas não é
do tipo que segue em frente destruindo tudo o que se
interpõe em seu caminho. Alguns homens são assim.
Contudo, a astúcia é muitas vezes mais importante do que
isso. Não se importa de eu chamá-lo de astuto, não é mesmo?

— Claro que não — respondeu Jules, cortesmente.

— Algumas vezes, a astúcia é chamada de habilidade e


sagacidade. Mas eu sabia que você haveria de preferir uma
definição mais simples, embora menos polida. Você é um
demônio astuto, Jules. E gosto dos demônios astutos.

Sorrindo ligeiramente, Jules comentou:

— Paul é forte e competente.

Ao que Ernest acrescentou:

— Mas Brutus é um homem honrado.

Ele se levantou e começou a andar de um lado para outro


da sala, as mãos nas costas. Sem olhar para Jules, falou bem
devagar:

— Paul é o marido de minha filha, o pai de meu neto.


Claro que ele vai herdar a maior parte do que tenho. Quero
que você compreenda isso bem claramente. Às vezes, é
melhor deixar as coisas bem claras, a fim de que não haja
incompreensões posteriores, mal-entendidos, manobras
escusas. Meu filho Joey ficará com a maior parte das ações
do banco. Bem, essa parte está resolvida. — Ernest parou e
virou-se para Jules, que escutava em silêncio. — O que
espera conseguir com tudo isso, Jules?
Jules examinou meticulosamente as suas unhas estreitas
e ovais.

— Já enviei minha fórmula para o escritório de patentes.


Há poucos dias.

Ele levantou os olhos brilhantes, fixando-os em Ernest.

— Hã... — murmurou Ernest, pensativo. Ele sentou-se e


acrescentou: — Jules, pode entrar na Usina Sessions amanhã,
se assim quiser.
CAPÍTULO XC
Naquela noite, Jules e Leon foram conversar com o primo,
Honore Bouchard.

Os três rapazes sentiam entre si uma confiança e


camaradagem que nada poderia jamais destruir. Tinham
outros irmãos, aos quais mal notavam, tinham outros
primos, a que davam ainda menor atenção. Compreendiam-
se, respeitavam-se, tinham objetivos comuns, opiniões
comuns e uma afeição profunda. E, estranhamente, gostavam
das mães uns dos outros. Honore era o sobrinho predileto de
sua Tia Florabelle. Embora ele fosse um tanto desajeitado no
comportamento e no falar, um tanto austero, Florabelle
encontrava algo tristemente reminiscente de Raoul na
cortesia imperturbável do sobrinho, na sua desenfreada
alegria ocasional, que contrastava grotescamente com a
habitual solenidade que nada tinha de juvenil, além de uma
certa galanteria, que Honore exibia permanentemente. Ela
dizia frequentemente que sentia que podia ‘confiar’ em
Honore, esquecendo completamente que nunca fora capaz
de confiar em Raoul. Jules, por sua vez, era o sobrinho
predileto de Dorcas. Ela gostava muito do rapaz, o único que
podia suportar entre os seus numerosos sobrinhos. Sabia
que Jules admirava-a, pois ainda era, na meia-idade, bonita e
tranquila, com uma serenidade fria, tão diferente da mãe
dele, eternamente afogueada e excitada, os cabelos grisalhos
sempre desgrenhados, as fitas soltas, as anáguas
aparecendo.

Tanto Leon como Jules gostavam e respeitavam seu Tio


Eugene. Sentiam que havia bondade e gentileza por trás do
seu comportamento brusco. Às vezes, Eugene contemplava-
os com seus olhos castanhos cansados, a expressão triste e
gentil. Conheciam a integridade dele. Embora não
possuíssem tal atributo, não podiam deixar de admirá-lo no
tio. Acreditavam nele, respeitavam seu julgamento,
invariavelmente acatavam-lhe os conselhos. Quando
pediam...

Naquela noite, porém, não tencionavam pedir o conselho


de Eugene. Naquele caso específico, desconfiavam da
integridade dele: O que estavam tramando juntos não
poderia ser confiado a um homem que os denunciaria,
indignado. Além disso, embora cada um soubesse
exatamente o que estavam conspirando, ainda não haviam
manifestado francamente. A sutileza francesa preenchia os
silêncios deles.

Jules, geralmente sisudo e silencioso, estava quase alegre


naquela noite. Caçoou de sua Tia Dorcas, sabendo que ela
adorava os gracejos. Leon forçou-se a ser polido e cortês.
Dorcas achou-o menos desagradável do que de hábito. Jules
podia ser espirituoso e irônico quando queria. Eugene riu
efusivamente por diversas vezes, durante o jantar. Depois,
Jules e Leon foram para o quarto de Honore, no segundo
andar da casa antiga e ainda feia.

— Não quero vocês três conspirando demais — disse-lhes


Eugene, sorrindo, mas um pouco inquieto.

Ele gostava dos sobrinhos, mas não confiava no astuto


Jules. Ele comentou com a mulher:

— Jules é um intrigante e os outros vão acompanhá-lo. É


um conspirador nato e Richelieu o teria achado
extremamente valioso.

Quando os três ficaram a sós, Jules relatou a Honore sua


entrevista com o tio naquela tarde. Honore escutou
atentamente, muito sério, mas com os olhos faiscando.

— Ótimo! — exclamou ele. Era um rapaz corpulento,


bonito, rosto sereno, os olhos intensamente brilhantes. — E
hoje enviei secretamente a minha fórmula para o novo
explosivo.

— Tem certeza de que seu pai não sabe de nada?

— Claro que tenho!

— Isso é ótimo. As coisas estão correndo bem. O velho


demônio fareja que estamos tramando alguma coisa e isso
parece diverti-lo. Se conseguirmos o que queremos e
lograrmos o idiota do Paul, o velho Ernest não vai levantar
um dedo para ajudá-lo. Ah, que homem que ele é! Não
podemos deixar de dar-lhe o crédito merecido.

— Ainda não acredito que ele vá nos permitir esmagar


Paul, tirando-lhe tudo.

— Claro que não. Ele protegeria seus interesses. Mas


também não evitaria que ele perdesse o excesso. O velho
demônio chegou onde está tirando os excessos dos outros.
Ele admira os bandidos. Acredita em deixar que o melhor
homem vença. Aquela história dos despojos para o vitorioso.
Ele adora os vitoriosos. A verdade é que não podemos deixar
de conceder-lhe algum crédito.

— Mas ele continua a ser Ernest Barbour. Devem se


lembrar disso. Duvido que até mesmo nós três juntos
possamos lográ-lo, mesmo que uma única vez.

— Quem falou alguma coisa em lográ-lo? Estamos


querendo conquistar sua aceitação, tolerância e
divertimento. Ele gosta de se divertir com essas coisas. E a
única maneira de diverti-lo é deixá-lo ver alguém lograr outra
pessoa. Mesmo que essa outra pessoa seja Paul. O velho
demônio gosta dessas brincadeiras.

— Espero que você esteja certo, Jules — disse Honore,


ainda em dúvida, parecendo inquieto. — Posso lhe assegurar
que não é fácil para mim enganar meu próprio pai.

— Não é fácil?

— Detesto fazê-lo. Ele vai ter um choque terrível quando


descobrir que patenteei meu novo explosivo por cima de sua
cabeça e sob um nome falso.

Leon lançou um sorriso ligeiramente desdenhoso para o


irmão e comentou:

— Seu pai admira Tio Ernest, Honore. E quando o querido


Tio Ernest manifestar seu divertimento e admiração pelo que
você fez, pode estar certo de que seu pai ficará
imediatamente convencido de que tem um filho muito
inteligente e esperto.

— Isso mesmo — arrematou Jules.

Honore deu de ombros, num gesto resignado e triste,


murmurando:

— Você é que é muito esperto. Jules.

— Pois vamos precisar de toda esperteza que tivermos —


disse Jules, suavemente.

Honore levara para o quarto uma garrafa de vinho e três


copos. Encheu-os cuidadosamente, contraindo os lábios
enquanto o fazia. Os três rapazes levantaram os copos. O
lampião iluminava seus rostos, todos morenos,
compenetrados, matreiros, o de Jules astuto e dissimulado, o
de Leon rude e irônico, o de Honore sisudo.

— Um brinde! — disse Jules. — A Bouchard & Filhos!

— A Bouchard & Filhos! — repetiu Leon, sorrindo.

Honore bebeu em silêncio.


CAPÍTULO XCI
Depois dos vários desastres na família de seu Tio Ernest,
Paul sentira-se seguro e complacente. As pequenas irritações
raramente afetavam-no, pois tratava de ignorá-las. Assim,
depois que Guy fora afastado como uma tremenda ameaça às
suas perspectivas, com Frey banido e Reginald repudiando
toda a riqueza do pai, com ele próprio casado com Gertrude
Barbour e Joseph Barbour ainda um garoto de 15 anos, bem
longe, na escola, Paul considerava-se seguro. Não sentia falta
das pequenas coisas que constituem a felicidade, embora
não em sua vida. Todos os seus pensamentos e desejos
concentravam-se na aquisição de dinheiro e na exultação do
sucesso. Dispondo disso, ele não sentia falta de coisas
menos concretas e mais tênues.

Gertrude não o ‘incomodava’, como as mulheres


geralmente incomodavam os maridos. Paul sentia-se grato
por isso. Ela nunca tinha acessos, caprichos ou melancolias
visíveis. Nunca era temperamental ou exigente, mesquinha
ou imprevisível. A casa nova em Roseville, a que Paul dera o
nome de Ninho do Papo-roxo, era impecavelmente
administrada, mobiliada com bom gosto, distinta, serena e
formal, aposentos amplos, lareiras de mármore, espelhos,
chão de parquete, muito mogno, jardins aprazíveis. Fora
construída com tanto esmero, um projeto tão meticuloso,
com tal bom gosto em todos os cômodos, que mais de 50
anos depois ainda era o orgulho de seus proprietários.
Gertrude, calada, sorrindo debilmente, pálida e aristocrata,
jamais demonstrando pressa, jamais transtornada ou
irritada, jamais tumultuada ou contrariada, era a perfeita
dona para aquela casa. Nunca havia qualquer afobação ali;
dois convidados ou mais de 20, era tudo a mesma coisa, os
criados movimentando-se com precisão e sem tumulto, as
refeições excelentes, o serviço impecável. Nunca ocorreu a
Paul que um homem podia pedir mais de sua mulher, em
termos de ternura, paixão, riso, tempestades, suave
reconciliação. Ele amava Gertrude como sempre a amara, não
se dava ao trabalho de indagar se ela o amava. Encarava isso
como um fato consumado. Afinal, ela parecia contente e
serena, não mais vivia nervosa e tensa, como fora antes do
casamento. A princípio, Gertrude parecera quase em transe,
completamente aturdida, chorando no sono, muitas vezes
afastando-se dele bruscamente, como se sentisse alguma
repulsa. Mas isso passara. Tudo estava agora como deveria
ser. Ela estava esperando uma criança e Paul torcia
desesperadamente para que fosse um menino. Paul não tinha
muita esperança de ter outros filhos, pois Gertrude
aparentemente não era muito fértil, sendo aquela a primeira
vez que ficava grávida, depois de quase cinco anos de
casamento. Se precisava de mais alguma coisa para
consolidar sua posição, Paul a teria no filho. Sabia que Ernest
já instituíra um fundo de investimento substancial para o
neto. Paul já decidira dar ao filho o nome de Ernest. E
comentara com Gertrude, num triunfo desdenhoso:

— Depois disso, os Bouchards podem tentar tudo o que


quiserem que será em vão!

Assim, tudo transcorria satisfatoriamente, até a chegada


de Jules Bouchard na Sessions Steel. A primeira reação de
Paul, depois do medo e incerteza, foi de indignação. Como
aquele francês insidioso se atrevia a meter-se em alguma
coisa que não apenas estava além de sua competência, mas
também não era de sua conta? A mãe dele era uma acionista
de Barbour & Bouchard, mas sempre fora inativa. Paul sentiu
não apenas raiva, mas também indignação. Exigiu que o tio
lhe desse uma explicação. Ernest, fitando-o com olhos
impassíveis, respondeu friamente que Jules o convencera de
sua sinceridade e capacidade. Os olhos assustaram Paul mais
do que as palavras, mais do que qualquer outra coisa que já
o assustara antes. Voltou para casa sentindo-se mal, abalado,
aturdido.

— Estou convencido de que seu pai é traiçoeiro, além de


cruel e rancoroso! — exclamou ele para a mulher. — Já
tinham me falado isso antes, mas nunca acreditei. Mas agora
tenho certeza! É como estar à mercê de... de um Nero ou algo
assim. Ele estava ateando minhas expectativas, com
promessas concretas, cumulando-me de favores,
consultando-me, aconselhando-me, passando o braço por
meus ombros. E agora faz uma dessas! Acho que não sou um
verdadeiro cortesão.

Ele estava tão amargurado, agoniado e patético que


Gertrude sentiu alguma compaixão e uma súbita afeição.
Beijou-lhe o rosto afogueado por sua própria vontade, algo
que nunca fizera antes. Paul ficou surpreso e subitamente
compreendeu que talvez tivesse perdido alguma coisa na
vida conjugal. Abraçou a mulher, com um ímpeto de
esperança e alivio, ficou escutando ansiosamente a
insistência de Gertrude de que estava imaginando coisas,
que era perfeitamente justo que o pai desse uma
oportunidade a Jules. Afinal, a mãe de Jules era a irmã dele,
ainda por cima a irmã predileta. Gertrude encarou sua
mentira, ao mesmo tempo negando e admitindo-a, enquanto
dizia:

— Papai nunca foi traiçoeiro com ninguém. Se ele


prometeu-lhe alguma coisa, pode estar certo de que
cumprirá a promessa.

Paul, querendo acreditar, ficou parcialmente convencido.


Lançou-se com ardor ao trabalho, entregando-se totalmente.
As horas jamais eram compridas demais para ele, nunca
havia detalhes insignificantes demais que não merecessem a
sua atenção, não havia tarefa que fosse muito tediosa. Ernest
observava a atividade frenética dele com um sorriso irônico.
Não havia nada como a ganância para espicaçar um homem
ao céu ou ao inferno, pensava ele. Nada fez para tranquilizar
Paul, que tornou-se hesitante e desconfiado, em sua
presença. Podia facilmente transformar em paz a angústia e
desespero de Paul, mas o sadismo nele precisava ser
satisfeito, mesmo às custas daqueles de quem gostava e para
os quais planejava grandes coisas.

A morte trágica de Guy afetara-o muito mais do que até


Amy desconfiava. Não deixara transparecer quase nada, a
não ser no tratamento brutal dos mineiros em greve. Quando
os ferroviários entraram em greve na Virgínia Ocidental, em
1877, fora por ordem de Ernest que a milícia disparara
contra os grevistas, matando uma dúzia de homens. Fora o
responsável pelos distúrbios que ocorreram posteriormente,
a luta desesperada e sanguinária entre soldados e grevistas.
Quando lhe deram a notícia do massacre, Ernest disse uma
única palavra:

— Ótimo!

Contudo, ele não acreditava absolutamente na história


que Paul lhe contara. Sabia perfeitamente que Paul
demonstrara excepcional astúcia ao transmitir aquela
história para os jornais. Seria muito irônico se o mundo
soubesse que os pistoleiros contratados por Ernest Barbour
para massacrar os mineiros haviam assassinado seu próprio
filho. Mas Ernest não tinha certeza de que não fora o próprio
Paul o autor do disparo que matara Guy. A aflição de Paul,
sua profunda angústia, indicava essa possibilidade para o
pai de Guy. Mas Ernest sabia que havia coisas que era melhor
não esmiuçar. Sabia também que, se arrancasse uma
confissão de Paul, não mais poderia tê-lo ao seu lado. Além
do mais, Paul salvara-o do escárnio universal e dos risos
zombeteiros. Por isso, sentia-se mais grato do que o
apreensivo Paul desconfiava.

Ernest muitas vezes pensava, soturnamente, que parecia


quase não haver mais qualquer satisfação nas coisas
atualmente. O filho mais velho, Godfrey, repudiara-o e fora
também repudiado, chegando a cometer o crime
imperdoável de abandonar o sobrenome do pai e adotar o da
mãe. Mesmo que Ernest pudesse algum dia perdoá-lo pelas
outras coisas, tal decisão tornara o perdão inteiramente
impossível. Guy estava morto. Reginald, que de qualquer
forma jamais dera a impressão de pertencer à família,
tornara-se um estranho, amargo, formal, apartado. Assim,
restavam apenas Gertrude e Joey, que estava na escola.

Sua casa tornara-se silenciosa e deserta. Lá estavam os


mesmos aposentos, os mesmos cuidados meticulosos, a
mesma beleza e dignidade. Contudo, de alguma forma, a
casa adquirira um ar triste, de deserção, perdendo
inteiramente o seu brilho alegre, confortador. A casa tornara-
se estranha para Ernest, algo hostil, como um inimigo, como
se alguma ameaça o espreitasse de cada aposento. Ele não
mais encontrava conforto em qualquer parte da casa. Sentia-
se um intruso, cada objeto parecia inamistoso quando se
aproximava ou sequer olhava. Além do mais, a aparência
suntuosa se desvanecera e cada aposento parecia miserável.

Talvez isso acontecesse por causa da atitude de May,


pensava Ernest. Tirando os criados, os dois viviam sozinhos
na casa. Nunca antes haviam ficado a sós. Houvera Gregory e
Amy no começo e depois as crianças. Mas agora havia apenas
os dois. E entre eles havia apenas silêncio e vazio. May não
mais aparecia para a primeira refeição. Ernest comia sozinho
na imensa sala de jantar, na cabeceira da mesa de mogno. Os
criados moviam-se silenciosamente e ele podia ouvi-los
sussurrando por trás das portas fechadas. O barulho da
louça e dos talheres em que comia ressoava pelo vazio da
sala. Até mesmo o fogo no inverno parecia espreitar por trás
da grade da lareira. May aparecia para o jantar,
impecavelmente vestida, usando joias discretamente,
presidindo a mesa. Ela envelhecera consideravelmente nos
últimos quatro anos, o rosto estava encovado. Mas o sorriso
era gracioso, a voz controlada, o olhar calmo e firme. À mesa
do jantar, os dois conversavam dos assuntos mais triviais,
como se fossem meros conhecidos. Ernest observava a
mulher furtivamente durante essas conversas amenas.
Lembrava-se dos acessos de fúria prolongados da mãe, de
seus silêncios ameaçadores, de seus ressentimentos e
hostilidades. Ainda não estava acostumado ao
comportamento das grandes damas, jamais deixava de
admirar a mulher. Por cima da agonia que ele sabia dominar
May constantemente, ela podia sorrir jovialmente, conversar
agradavelmente, escutar com interesse, até mesmo à pessoa
que era a principal responsável por seus sofrimentos. Mas
Ernest não se atrevia a abordá-la com qualquer palavra de
intimidade, qualquer olhar além da simples cordialidade.
Sabia que nunca poderia fazê-lo.

Sabia também que May passava a maior parte do tempo


escrevendo para os três filhos, especialmente para Godfrey,
em Paris. Mas ela nunca falava de Godfrey ao marido. A
princípio, Ernest pensou que ela assim o fazia por uma
questão de delicadeza para com ele. Mas depois descobriu
que a mulher ficaria indignada se ele falasse sobre Godfrey.
Não podia também falar de Reginald, a quem ele literalmente
expulsara de casa a pontapés. E não podia falar de Guy. Não,
jamais poderia falar de Guy. Às vezes, ao jantar, quando
pensava involuntariamente no filho assassinado, Ernest não
conseguia mais comer. Empurrava o prato para o lado e
depois ficava com o olhar perdido no espaço. Nunca soube
se May adivinhava o que ele estava pensando e se o
sofrimento dela aumentava por isso.
Achava cada vez mais difícil visitar Amy. Mais e mais,
chegava em casa de Amy apenas para encontrar Elsa, pálida e
calada, postada na sala. Tinha pouco a dizer-lhe, embora sua
voz continuasse afetuosa como antes, ao falar. Havia
ocasiões em que Elsa ficava olhando para a mãe fixamente,
com uma expressão próxima da repulsa nos olhos. Aos 27
anos, Elsa considerava-se irremediavelmente uma velha
solteirona. Pela manhã, seus olhos estavam frequentemente
injetados. Amara e ainda amava o primo Godfrey, com toda a
força de sua natureza ardente e exuberante.

Como sempre, Amy compreendia tudo sem palavras. Sem


ela, Ernest dificilmente poderia suportar impassivelmente o
que tinha de aguentar. Quando a fitava e Amy sorria
gentilmente, tocava-o ou dizia alguma coisa, ele sentia-se
profundamente confortado. Costumava dizer-lhe:

— Jamais compreendi o que era uma grande dama até


conhecê-la... e a May.

Amy sorria, um tanto amargurada. E comentava,


jovialmente:

— Ser uma ‘grande dama’, meu caro Ernest, tem suas


vantagens. Ajuda muito comportar-se como se as coisas
desagradáveis não existissem, como se os acontecimentos
insuportáveis jamais tivessem ocorrido. — E ela
acrescentava: — Há ocasiões em que é possível admitir até
para si mesma que tudo é como deveria. É uma maneira
inofensiva e necessária de tornar a vida suportável.

Certa ocasião, Amy comentou:

— É maravilhoso que você não seja um cavalheiro, Ernest.


Não tem a menor ideia de como você é realmente honesto e
franco.
E Ernest não sabia se devia sentir-se satisfeito ou
ofendido.
CAPÍTULO XCII
Uma noite, quando estava no oitavo mês de gravidez,
Gertrude teve um pesadelo terrível.

Sonhou que estava deitada em sua cama à noite, como


realmente acontecia na ocasião. Havia luar lá fora, uma
catarata branca de claridade, que despejava-se pelas árvores
na primavera e parecia insinuar-se pelas venezianas das
janelas do quarto às escuras, prateando todos os objetos.
Podia divisar claramente as sombras das árvores nas janelas,
podia ouvir nitidamente o barulho das pererecas, no silêncio
da noite. Sonhou que Paul estava deitado ao seu lado, como
realmente acontecia na ocasião, podia ouvir sua respiração
baixa e ritmada.

Percebeu depois que havia alguém mais no quarto, entre


ela e as janelas, um vulto alto e escuro, com a cabeça
abaixada. Sentou na cama abruptamente, sentindo o coração
bater forte, descompassado, num presságio agourento. Tinha
a sensação de que uma cinta de ferro em brasa apertava-lhe
a garganta. Um horror profundo dominou-a, a sensação de
que algo terrível acontecera em algum lugar, de alguma
forma relacionado com o vulto entre ela e as janelas.

Gertrude gritou;

— Quem é você? Fale comigo! Oh, Deus, não pode falar


comigo?

O vulto mexeu-se, aproximou-se dela, sem qualquer


movimento visível. Gertrude percebeu então que uma luz
débil iluminava o rosto do vulto e pôde divisar-lhe as
feições. Era Philippe. Nunca vira antes um rosto assim, tão
atormentado, com a sombra da morte pairando. Mas pior do
que tudo era a súbita agonia no peito, a angústia
insuportável. Começou a gritar, freneticamente,
interminavelmente, batendo com as mãos:

— Philippe! Philippe! Philippe!

A cegueira dominou-lhe os olhos. Na escuridão, sentiu


que a sacudiam, ouviu alguém chamá-la. A cegueira passou e
descobriu-se estendida sobre os travesseiros. Paul estava
inclinado sobre ela, sacudindo-a gentilmente, chamando-a.
Ele estava apavorado. Seu único pensamento era o de que
chegara o momento do parto, prematuramente. Só alguns
momentos depois é que lembrou-se que ela estivera gritando
o nome de Philippe.

— O que foi, minha querida? Está sentindo dores?

Gertrude fitou-o com expressão aturdida. Paul pôde ver


os olhos dela, brilhantes e arregalados, na semiescuridão. Ela
virou-se lentamente, correndo os olhos pelo quarto. Uma
convulsão percorreu-lhe o corpo e agarrou-se freneticamente
a Paul. Desatou a chorar, convulsivamente.

— Philippe! Alguma coisa aconteceu com Philippe! Tenho


certeza! Ele esteve aqui há um momento!

Ela agarrava-o desesperadamente, rasgando o camisolão,


apertando-lhe os braços, os cabelos, os ombros. Mas quando
Paul tentou enlaçá-la gentilmente, ela repeliu-o. E durante
todo o tempo chorava e gemia, corria os olhos pelo quarto. O
rosto estava horrível, os cabelos pretos desgrenhados,
espalhados pelos travesseiros.

Paul ficou calado por um momento, ainda segurando-a


gentilmente. Por fim ele disse, com alguma dificuldade;
— Não há ninguém aqui, minha querida. Você estava
sonhando.

Os gritos e soluços de Gertrude foram se tornando cada


vez mais angustiados. Os criados, acordados, murmuravam
apreensivamente, em seus aposentos por cima. Paul estava
terrivelmente alarmado. Gertrude ainda debatia-se em seus
braços. Mas a resistência dela cessou subitamente e
desmoronou contra o peito do marido. Paul ficou abraçando-
a com uma firmeza tema, afagando-lhe os cabelos,
comprimindo-lhe o rosto contra seu corpo. Os gemidos de
Gertrude foram se tomando mais baixos, embora mais
angustiados. Paul não disse nada, esquadrinhando o quarto
por cima da cabeça da mulher, amargurado, desolado.
Começou a suspirar fundo. A mão continuava a afagar os
cabelos de Gertrude, ele ainda murmurava suavemente para
acalmá-la.

Gertrude finalmente aquietou-se, os soluços tornaram-se


mais espaçados. Acabou dormindo nos braços do marido, o
rosto encostado no peito dele. Mesmo dormindo, porém, ela
continuou a choramingar um pouco. Paul não voltou a
dormir. Ficou olhando para o teto escuro até o amanhecer.

Quando chegou o momento de Paul levantar, Gertrude


ainda dormia, o rosto contraído e pálido, os cabelos
tragicamente espalhados sobre os travesseiros. Paul saiu do
quarto na ponta dos pés e comeu o desjejum sozinho lá
embaixo, inteiramente atordoado por dentro.

Saíra de casa há uma hora quando Gertrude acordou. Ela


vestiu-se sem pressa, desceu para o desjejum, depois pediu
que lhe aprontassem a carruagem. Envolveu-se num manto
grande e grosso que lhe cobria quase todo o corpo, pôs um
chapéu emplumado de veludo preto. Sua criada pessoal, uma
jovem alemã, protestou afetuosamente, dizendo que a patroa
não parecia estar muito bem e que era melhor permanecer
em casa. Mas Gertrude saiu, com um sorriso tenso.

Foi à casa do pai. Ernest recuperava-se de forte gripe e


ainda estava em casa. Tanto ele quanto May ficaram
alarmados com aquela visita matutina de Gertrude. Mas ela
disse-lhes que precisava comprar algumas coisas na cidade e
aproveitaria para visitar Tia Florabelle. Apreensiva, May
estudou com atenção o rosto pálido da filha, a boca lívida e
trêmula.

— Ora, minha querida, você deveria ir ao médico! —


exclamou ela por fim. — E se insiste em visitar Florabelle
primeiro, então vou acompanhá-la!

As duas partiram na carruagem de Gertrude. Nunca


houvera muita espontaneidade entre mãe e filha, quase
nenhuma confidência. Só porque estava profundamente
agoniada é que Gertrude contou o sonho à mãe. Preocupada
e alarmada, May escutou atentamente, vendo apenas o rosto
torturado da filha, os lábios roxos e mordidos, percebendo o
terror e sofrimento por trás das palavras lentas. Ao final, ela
contemplou o corpo disforme de Gertrude, apenas
parcialmente escondido pelo manto. A expressão da própria
May estava impregnada de desespero e apreensão.

— Não se esqueça, Trudie querida, que não passou de um


sonho. É uma tolice visitar Florabelle para perguntar se tem
notícias de Philippe.

— Sei que era Philippe. Tenho certeza. — A voz de


Gertrude era suave, mas tinha um tom de determinação
inabalável. — Tenho de saber se aconteceu alguma coisa. Ou
ficarei louca.

May ficou calada, retorcendo as mãos enluvadas por


baixo da manta, em determinado momento, os lábios
entreabriram-se subitamente, como se tivesse dificuldade em
respirar.

No instante mesmo em que a carruagem entrou no


caminho da casa em Quaker Terraces, May compreendeu que
havia alguma coisa terrivelmente errada. A casa parecia
bastante tranquila ao sol da manhã de primavera, o gramado
viçoso. Contudo, através de uma névoa de horror de um
súbito pesadelo, May teve certeza de que algo estava errado.
Era tudo irreal, ofuscante, espectral. Ela sentiu que precisava
impedir a entrada de Gertrude naquela casa, a qualquer
custo. Gritou alguma coisa rispidamente e o cocheiro,
surpreso, puxou as rédeas, parando os cavalos. May virou-se
para a filha e disse, a voz trêmula:

— Ainda não tem ninguém acordado, minha querida, além


dos criados. Toda a família ainda está dormindo. Pode ver
pelas janelas fechadas. Seria uma indelicadeza incomodar
sua tia a esta hora. — Gertrude contemplou a casa. As janelas
estavam de fato fechadas, dando a impressão de que a casa
ainda não despertara. Mas a impressão era de que um grito
silencioso e desesperado emanava da casa. Não havia
ninguém à vista e a porta da frente estava entreaberta, A
casa e os jardins ao redor pareciam estar imersos num transe
de pesadelo.

“É muita estupidez da minha parte”, pensou May,


enquanto o coração batia, descompassado. “Estou me
deixando levar pela imaginação.”

Gertrude disse, incisiva:

— Por favor, Michael, continue até a casa,

No final das contas, foi Gertrude quem teve a força para


saltar primeiro da carruagem. May seguiu-a, levantando a
saia, pois sentia-se meio tonta, propensa a tropeçar.
Gertrude não se deu ao trabalho de apertar a campainha,
entrando direto no vestíbulo. Tudo estava quieto lá dentro, o
sol espalhando-se pelo mogno envernizado e o tapete
vermelho. Raios de sol refletiam-se nos dourados de um
quadro na parede avermelhada. Mas não se ouvia qualquer
som.

Naquele silêncio, o ruído feito pelas mulheres ao


entrarem na casa pareceu estrondoso. A porta da biblioteca
abriu-se e o Major Norwood saiu para o vestíbulo, a cabeça
branca desgrenhada, o rosto manchado de lágrimas.

— São vocês, Jules e Leon? — indagou ele, debilmente. —


Demoraram muito a voltar. É melhor subirem para falar com
sua mãe.

Ele parou de falar abruptamente ao divisar as visitantes.


May e Gertrude ficaram olhando fixamente para o major,
incapazes de fazerem qualquer movimento. Depois, ele
soltou um soluço, empurrou a porta da biblioteca e
convidou-as a entrar, com um gesto patético. Gertrude não
fez perguntas, não hesitou. Entrou resoluta na biblioteca,
seguida pela mãe. O major fechou a porta. Depois, parado
junto à porta, desatou a chorar, sem qualquer
constrangimento ou afetação.

"Claro que tudo isso não passa de um pesadelo ridículo”,


pensou May, atordoada. “Essas coisas não podem ocorrer no
curso natural dos acontecimentos. Ou será que podem?” Ela
parecia mais transtornada do que Gertrude, que se
aproximara de uma mesa e estava parada tranquilamente ao
lado, envolta pelo manto. Nada poderia ser mais sereno do
que o rosto da filha, embora parecesse de um mármore
opaco, na semiescuridão da biblioteca. Nada poderia ser
mais firme do que os seus olhos dilatados.

— O que aconteceu, meu caro major? — murmurou May.


— Florabelle está doente?

— Como posso dizer? — balbuciou o major, enxugando o


rosto com um lenço de seda e sacudindo a cabeça. — É
terrível demais. Mandamos chamar os rapazes. Eles devem
chegar a qualquer momento. A pobre Florrie está
desesperada. Seu pobre coração está em frangalhos! Ela
nunca vai conseguir se recuperar dessa, minha cara May!
Jamais! Perdeu o seu amor, o seu predileto!

Gertrude pôs as luvas em cima da mesa, cuidadosamente,


desprendeu o laço que segurava o manto no pescoço. May
aproximou-se dela rapidamente. Mas Gertrude não olhou
para ela.

— É Philippe, não é mesmo, major? — indagou ela, em


voz clara, incisiva.

— É, sim...— murmurou ele, assoando o nariz e piscando


várias vezes, a fim de reprimir as lágrimas.

Gertrude deixou escapar um ofego, mas sua expressão


não se alterou.

— Ele está morto, não é mesmo?

— Está, minha querida. Não sei... juro que não sei... o que
vamos fazer.

Gertrude sentou-se, um tanto rapidamente. Cruzou as


mãos no colo. Ficou olhando para o chão. Havia algo de
assustador em sua calma, na ausência exterior de emoção.
Mas May começou a chorar, de pé ao lado da filha, a mão no
ombro dela. É claro que a dor era menor do que sentira por
ocasião da morte do filho e por isso mesmo chorou como
não chorara naquela ocasião. Mas seu pesar era pela filha e
não pelo morto. Finalmente ela disse, entre as lágrimas:

— Isso é terrível, querida. Mas deve se lembrar...

A voz de May definhou vagamente. O major sentou-se,


cobrindo o rosto com o lenço, os ombros largos se
sacudindo.

— Posso subir para falar com a pobre Florrie? —


perguntou May, enxugando os olhos.

— Oh, não, minha cara May! Ela não está em condições de


receber ninguém. A criada pessoal está com ela, assim como
o médico. Mandamos chamar Jules e Leon. Enviei um
telegrama para a escola de Chandler e estamos esperando-o
ao cair da tarde. A pobre Betsy está em seu quarto, chorando
desesperadamente. Florrie não vai receber nem a mim, seu
marido. Creio que estão fazendo-a dormir.

— Mas o que aconteceu? Como foi? — indagou May


debilmente, cada vez mais alarmada com a longa
imobilidade de Gertrude, o ombro sob sua mão mal se
mexendo com a respiração.

— É tudo tão horrível... — balbuciou o major, fitando-a


pateticamente, com seus olhos azuis. Ele próprio parecia
uma criança, apesar da corpulência e dos cabelos brancos. —
A carta do Bispo Dominick chegou esta manhã. Muito gentil,
apesar de ser um católico romano e padre, ainda por cima.
Escreveu-nos pessoalmente, dizendo que virá visitar
Florabelle em breve, enviando-nos a sua bênção e falando de
seu pesar. Disse que rezará por todos nós e pelo pobre
Philippe. Parece que o pobre rapaz morreu na ilha dos
leprosos, para onde pediu que o enviassem. Creio que foi
cólera ou alguma outra coisa igualmente horrível.

May virou a cabeça. Gertrude ainda não se mexia. As


mãos dela estavam relaxadas, no colo, inertes, como mãos de
morta. May não teve coragem de contemplar-lhe o rosto.

— Vão trazer o corpo dele para cá? — sussurrou May.

— Não. O bispo disse que ele já foi sepultado. Aconteceu


há quase um mês. A ilha fica muito longe e os navios só
atracam uma vez por mês. A notícia veio no último que
passou por lá.

Alguma coisa pareceu ocorrer ao pobre coitado, pois ele


parou de chorar e fitou Gertrude e May com olhos
arregalados.

— É muito estranho, mas acabo de lembrar-me. O bispo


disse que estava certo de que o Sr. Ernest Barbour ficaria
particularmente afetado ao saber da morte do sobrinho,
porque demonstrou um profundo interesse por Philippe, ao
se encontrarem um dia em Filadélfia, pouco antes do pobre
rapaz partir para Montreal...

— Não! Não! — gritou May, estridentemente, antes de ter


tempo para controlar-se.

E depois ela parou, levando a mão aos lábios. Envolveu a


cabeça de Gertrude em seus braços, apertou-a
convulsivamente contra o peito, como se quisesse impedi-la
de ver alguma coisa horrenda demais para se suportar.

O Major Norwood estava inteiramente confuso e por um


longo momento ficou olhando para May, a expressão
aturdida.
— O que eu falei? Que era estranho que o bispo dissesse
que o Sr. Ernest ficaria afetado? Mas isso é mesmo muito
estranho, não é? Eu não sabia ... o Sr. Ernest parecia não
gostar de Philippe... E Philippe.... Mas perdoe-me, por favor
— acrescentou ele, com uma cortesia patética — eu não
deveria falar sobre isso...

Gertrude empurrou a mãe, com firmeza, mas também


gentilmente. Seu rosto ainda não se alterara, embora
houvesse sulcos profundos nos cantos dos lábios, manchas
roxas por baixo dos olhos.

— Acho... que compreendo tudo agora — murmurou ela.

— Não sei como conseguiremos suportar tudo isso! —


disse o major, chorando novamente. — Morrer sozinho
naquela ilha horrível, sem a presença de nenhum amigo...

— Vamos para casa, minha querida — balbuciou May,


consternada, pegando uma das mãos da filha. — Não pense,
meu amor. Não é o que está pensando... O que posso fazer?
Não fique assim, minha querida! É a sua mãe que está aqui,
sua mãe que a ama. -. Deve se lembrar de seu filho, minha
querida. Não deve ficar transtornada. Vamos voltar para
casa.

— Ele era um ótimo rapaz — disse o major, a voz rouca.


— Muito inteligente, gentil, devotado à mãe.... Quem poderia
imaginar, quando ele era garoto, correndo de um lado para
outro, rindo, que algum dia, numa ilha distante, entre
leprosos, a cólera haveria de matá-lo...

— Não! — exclamou Gertrude, a voz alta, retumbante. —


Não foi a cólera que o matou. Foi meu pai que o matou!

— Querida! — disse May. — Não deve dizer uma coisa


dessas! Não deve! Não fique assim, Gertrude! Sou eu, sua
mãe! Olhe, sua mãe está ajoelhada aqui, ao seu lado,
chorando por você! Sua mãe! Olhe para sua mãe, ajoelhada
aqui!

A pobre May de fato se ajoelhara, numa confusão de saias


e anáguas, ao lado da cadeira de Gertrude, tentando puxar a
cabeça rígida para seu ombro.

— Trudie, querida, você está me matando.... Não posso


suportar...

— Madame! — exclamou o major, dominado pelo remorso.

Ele esqueceu seu desespero e tentou induzir May a se


levantar. Mas ela se agarrava obstinadamente a Gertrude,
que não se mexia.

— Sou um miserável, madame, um miserável! Um canalha,


um verdadeiro canalha! Deveria ter-me lembrado de
Gertrude.... Ah, eu merecia ser fuzilado!

May encostou a cabeça grisalha nos joelhos de Gertrude e


chorou inconsolavelmente. Por uma ou duas vezes, virou a
cabeça e beijou os joelhos da filha. Seus braços envolviam as
pernas rígidas de Gertrude. Todos os seus outros pesares,
todas as demais angústias, nada eram em comparação com
aquilo, com aquela tortura que a filha sofria. May seria capaz
de morrer para salvar Gertrude daquilo, renunciaria por isso
a qualquer coisa de sua vida, com a maior alegria. Aquilo era
pior, pensou ela desesperadamente, muito pior, do que ter
um filho, muito pior do que ver o cadáver do filho. Nada era
pior em todo o mundo do que ver a filha desmoronando
diante de seus olhos, observando-a morrer gradativamente,
num êxtase de tormento, grande demais para produzir
qualquer som. Se ao menos Gertrude tivesse morrido ao
nascer, no dia anterior, uma hora antes...

— Oh, Deus! — balbuciou May, como se ela própria


estivesse também morrendo. — Oh, Deus!

Ela ouviu um suspiro débil e distante. Gertrude estava se


mexendo.

— Não chore assim, mamãe — disse Gertrude, muito


calma. — Nada pode ajudar-me agora... nem a Philippe. Por
favor, leve-me para casa. Preciso falar com meu pai. — Ela
fez uma pausa e depois repetiu, numa voz estranha: —
Preciso falar com meu pai.

Houve um som de passos apressados e vozes nervosas no


vestíbulo. Um momento depois, Jules e Leon entraram na
biblioteca, com muitas perguntas e ansiedades. Mas quando
viram Gertrude, com uma expressão tão terrível, não
puderam falar nem se mexer por um longo momento.
CAPÍTULO XCIII
Ernest estava descendo a escada quando Gertrude e May
entraram no vestíbulo.

O instinto, que sempre o advertia do perigo, fê-lo parar


no meio da escada, segurando no corrimão. Os cabelos na
nuca ficaram arrepiados e sentiu um calafrio percorrer-lhe a
espinha. Gertrude parou no pé da escada, fitando-o
fixamente. Ernest fitou-a também, num silêncio tenso. May
postou-se ligeiramente atrás da filha, sem dizer nada, sem
fazer qualquer gesto. Sua atitude era resignada, esperando.

Através do alerta do instinto despertado, através da


apreensão, através da percepção de um perigo, através da
consciência de algum horror inesperado, Ernest
compreendeu que a mulher à sua espera ao pé da escada não
era mais sua filha. Não era o rosto de Gertrude que estava
erguido em sua direção, não eram os olhos de Gertrude que
o fitavam. Somente o reconhecimento dele estava ali;
Gertrude desaparecera.

— Trudie! — exclamou ele, a voz passando com


dificuldade pela garganta.

Mas Ernest não desceu um degrau sequer para aproximar-


se da filha.

— Você matou Philippe — disse ela, em voz alta e


incisiva.

— Matei... O que está querendo dizer com isso?

Ernest teve dúvida se fora mesmo a sua voz que ouvira.


Tudo ao redor subia e descia, em ondas que lhe provocavam
vertigens. Podia ver a claridade púrpura e alaranjada que
entrava pelas janelas, iluminando sua mão, ainda no
corrimão.

— Sei de tudo agora — disse Gertrude, em sua estranha


voz mecânica, desprovida de qualquer inflexão. — Mandou-o
para longe. Para morrer. Pois ele está morto agora. — Ela
estendeu os braços, num gesto de rendição, um gesto
convulsivo. — E eu estou morta também. Você matou-me,
assim como matou Philippe.

A ponta da língua de Ernest umedeceu furtivamente os


lábios ressequidos. Ele virou-se para May, que mexeu-se
apenas ligeiramente e disse, em voz baixa, quase indiferente:

— Quando chegamos na casa de Florabelle, soubemos que


Philippe morrera naquela ilha dos leprosos. — Ela fez uma
pausa. Ernest percebeu os olhos de May, fixados nele,
círculos escuros brilhantes no rosto pálido, sem misericórdia
ou qualquer outra emoção. — E havia uma carta do bispo...

May levantou um pouco a mão, logo tornou a deixá-la


cair, apaticamente.

Ernest levou a mão à cabeça, devagar. Foi apenas por um


momento. Depois, pareceu abrir as pernas fortes, como se
estivesse se preparando um golpe terrível. Desceu três
degraus da escada e estendeu a mão para Gertrude.

— Não fale assim, Trudie — disse ele, gentil. — Lamento


muito... por Philippe. Mas não se esqueça de que sou seu pai.
Você está transtornada. Eu jamais poderia magoá-la ou a
Philippe... — Ele desceu mais dois degraus. — Minha
querida...

Mas Gertrude recuou bruscamente, uma expressão


terrível no rosto.

— Não me toque! Você matou Philippe! É um mentiroso!


Um mentiroso rancoroso! Tentou matar todos, Frey, Guy e
eu! Matou Philippe! — Subitamente, Gertrude desatou em
soluços, sem lágrimas, novamente abrindo os braços, num
gesto convulsivo. — Matou-o e matou-me. Por todos esses
anos, desde que ele foi embora, não tenho vivido. Não tenho
me lembrado de um dia depois de outro, não tenho vivido
desde que Philippe foi embora. E ele foi embora porque você
tornou-lhe impossível ficar. Mentindo e enganando. Queria
uma coisa e não lhe importava que Philippe morresse para
isso. Ou que eu própria morresse...

— Faça ela parar, May! — gritou Ernest.

Pela primeira vez na vida conjugal, May viu o marido


transtornado e consternado, tremendo sem controle.

— Faça Gertrude se calar, May! Será que não pode


entender que ela... Não pode fazer alguma coisa que não
ficar parada aí? Ela não quer me deixar tocá-la! Não fique
parada aí como uma idiota! Faça alguma coisa!

— Por que eu deveria fazer? — indagou May, fria e


amarga. — Por que eu deveria salvá-lo do que você merece?

Houve um silêncio abrupto. Depois, calmamente, sem


qualquer paixão, Ernest disse à mulher:

— Vá para o diabo!

Depois, descendo com rapidez os últimos degraus, ele


pegou o braço de Gertrude firmemente, os dedos
comprimindo-lhe a carne. Para acalmar a filha, para
hipnotizá-la, ele empenhou em sua voz atitude e aperto, toda
a força e poder de que dispunha. Gertrude fitava-o com
olhos tensos, transtornados, tentando desvencilhar-se.

— Trudie, meu amor — disse Ernest, com gentileza,


insistentemente, como se falasse com alguém sob o efeito de
anestesia — preste atenção, apenas por um momento. Faça
um esforço para me ouvir. Se eu soubesse que isso iria
acontecer, minha querida, daria minha vida para evitá-lo.
Está me ouvindo, Trudie? Não mandei Philippe embora. Não
tive nada a ver com isso. Falou muitas bobagens, Trudie. Isso
acontece porque... não está muito bem. Mas quando tudo
isso tiver passado, vai sentir-se envergonhada. Saberá então,
como sempre soube, que seu pai a ama mais do que a
qualquer outra pessoa no mundo, que daria a sua mão
direita para salvá-la desse desespero.... Está me ouvindo,
Trudie querida?

Havia uma angústia quase mortal no peito de Ernest, um


suor frio porejava do corpo. Mas a mão que segurava o braço
fino de Gertrude não relaxou, enquanto Gertrude continuava
tentando desvencilhar-se.

Por um momento, depois que ele parou de falar, Gertrude


continuou a fitá-lo sem qualquer expressão definida. E
depois, subitamente, um sorriso quase infantil estampou-se
em seu rosto. E ela disse, aturdida:

— Você é tão mentiroso...

Houve outro momento de silêncio. Depois, Ernest


suspirou. May nunca ouvira um suspiro assim em toda a sua
vida. Contra a sua vontade, alguma coisa contraiu-se em seu
peito. A mão de Ernest largou o braço de Gertrude, baixou
lentamente. Mas ele continuou a fitá-la nos olhos, triste,
gentil, suplicante. E os olhos dela repudiavam-no,
desafiavam-no a alcançá-la novamente.
— Deixe-me levá-la lá para cima, meu amor — Ernest
quase que sussurrou, pois vira um espasmo nos músculos do
rosto de Gertrude e um alarme mortal espalhou-se por seus
nervos. — Deixe-me ajudá-la a subir. Deve se deitar. Deve
pensar em seu filho...

Foi então que Gertrude desatou a rir, um riso estridente,


terrível, batendo as palmas.

— Meu filho? Pensa que me importo com meu filho? Pensa


que me importo com qualquer outra coisa além de Philippe?

Ela parou de falar, o rosto se transformando outra vez,


como se tivesse escutado alguma coisa de repente e
começasse a compreender o que fora.

— Philippe! Philippe! — gritou ela de súbito, num tom de


choque mortal.

Um espasmo de rigidez fê-la se empertigar, ao que


parecia ser uma altura excepcional.

Ela virou-se e correu para a porta, os braços estendidos à


sua frente. Ao chegar à porta, abriu-a pela metade e depois
caiu subitamente, como se tivesse levado um tiro. Quando
Ernest alcançou-a, um instante depois, percebeu que ela
desmaiara.

Ele pegou-a nos braços e correu para a escada. Parou por


um instante. A cabeça de Gertrude estava caída para trás,
uma linha de espuma formava-se em seus lábios
entreabertos. Mas Ernest não a olhava. Por cima do corpo da
filha, olhava para a mulher.

Por um longo momento, os olhos dos dois se fixaram.


Depois, May recuou, abruptamente. Ernest subiu a escada
com a filha. May ouviu os passos avançando pelo corredor,
ouviu-o levar Gertrude para o quarto em que ela nascera.
CAPÍTULO XCIV
O médico, sacudindo a cabeça, murmurou alguma coisa a
respeito da ‘constituição muito frágil’ e depois voltou ao
quarto. Duas enfermeiras foram chamadas do hospital, o
mesmo hospital que Martin construíra e financiara. Não
permitiram que nem mesmo May entrasse no quarto, do qual
saia um gemido monótono e interminável. Ela ficou sentada
ao lado da porta, muito quieta, imóvel. As enfermeiras
acharam algo insuportavelmente patético na visão daquela
mulher corpulenta, de meia-idade, silenciosa, sentada ali,
como se estivesse cega, apenas semiconsciente. Lá embaixo,
Ernest estava sentado com Paul, seu genro.

Dorcas chegou de tarde, depois de visitar Florabelle, a


irmã desesperada. A simpatia dela pelo irmão não aumentara
com o passar dos anos. Mas quando o viu, sua frieza
abrandou. Sentou-se ao lado dele, segurando-lhe a mão.
Disse-lhe palavras de conforto e Ernest aparentemente
escutou. Mas Dorcas compreendeu, suspirando, que ele
realmente não a ouvira. Paul andava de um lado para outro,
passando as mãos pelos cabelos, desconsolado. A cada som
que vinha lá de cima, ele corria para a escada, espiando,
tenso, atento. Voltava em seguida à sala e recomeçava a
andar. Podiam ouvir os passos das enfermeiras lá em cima, a
voz baixa do médico. De vez em quando, ouviam um berro
estridente, gritos convulsivos de agonia. Nessas ocasiões,
Ernest segurava a cabeça, como se quisesse arrancá-la do
pescoço.

Isso prolongou-se pelo dia inteiro e entrou pelo


crepúsculo. Ninguém pensou em comer. Os criados andavam
na ponta dos pés, sussurrando. Alguns haviam ouvido a
discussão entre Ernest e a filha e repetiam o relato a todo
instante, exultantes. Nenhum deles gostava do patrão, mas
muitos manifestavam compaixão por May e pela moça
sofredora, agonizando na cama em que nascera.

Ao crepúsculo, ouviram uma porta se abrir. O médico


desceu a escada, pálido e angustiado, quase chorando.
Ernest levantou e correu para ele, incapaz de falar. O médico
sacudiu a cabeça.

— Ela está consciente agora. Pediu para falar com a mãe.


— Ele fez uma pausa, para depois acrescentar, gentilmente:
— O bebê provavelmente viverá. É uma menina.

Dorcas, chorando, foi postar-se ao lado do irmão. Pegou-


lhe o braço e balbuciou:

— E Trudie?

O médico abriu os braços, expressivamente. Paul se


aproximara e ele pôs a mão no ombro do rapaz,
murmurando:

— Pode subir, Paul...

Ernest mexeu-se um pouco.

— Ela... não pediu para me ver?

— Não, senhor. Sinto muito. As mulheres... numa situação


assim... querem ver apenas a mãe e o marido. Sinto muito. E
agora, meu caro senhor, é melhor sentar imediatamente e
descansar um pouco!

Gertrude Barbour morreu às oito horas daquela noite, sem


lutar, sem qualquer murmúrio a emergir das profundezas de
sua apatia e angústia. Mas Ernest, sentado na sala de estar
em companhia de Eugene e Dorcas, só foi informado uma
hora depois. Só soube quando estava no quarto em que seus
filhos haviam brincado, com a neta no colo.

A notícia foi transmitida à família Norwood e foi Jules


quem a recebeu. Ele subiu imediatamente para o quarto do
irmão. A casa estava também de luto, com Florabelle
prostrada em seu quarto, ao lado do marido.

Jules abriu a porta do quarto de Leon. O rapaz estava


deitado, os braços cruzados por baixo da cabeça, olhando
sombrio para o teto. Quando Jules entrou, rápida e
silenciosamente, como era seu costume, Leon sentou na
cama. Algo na atitude de Jules deixou-o imediatamente
alerta.

Jules sentou, cruzando as pernas meticulosamente.


Retribuiu com firmeza o olhar do irmão. E depois disse:

— Gertrude morreu esta noite. — Ele fez uma pausa,


removendo cuidadosamente um fio imaginário do joelho. —
E o bebê é uma menina.

Houve um momento de silêncio.

— Hã... — murmurou Leon em seguida,

E os irmãos continuaram a se olhar.


CAPÍTULO XCV
Uma semana depois do funeral de Gertrude, Amy mandou
chamar Paul, que não visitava a mãe desde a morte da
mulher. Ele chegou em silêncio, desesperado, frio, sentando
diante da mãe, na sala de estar. Amy sentia a maior
compaixão pelo filho e finalmente pôs a mão no joelho dele.
Paul não disse nada, mas depois de um momento afastou o
joelho. Amy suspirou.

-Paul — disse ela, gentilmente -se você quiser, terei o


maior prazer em mudar-me para o Ninho do Papo-roxo e
tomar conta da casa para você.

Ele não respondeu por um momento, E não olhava para a


mãe, quando falou:

— Obrigado, mas já pedi a Elsa. Ela vai morar comigo.

Ele fez uma pausa. Depois, levantou os olhos e fitou Amy,


com tanto ódio e amargura, que ela sentiu um choque de
angústia e espanto.

— Você tornou impossível para Elsa continuar a morar


aqui. E quanto a mim, não gostaria de tê-la em minha casa.

Amy, incapaz de falar por um longo momento,


permaneceu rígida na cadeira. Estava agora com quase 50
anos, mas parecia bem mais jovem, apesar do rosto triste. As
mãos estavam no colo e contraíram-se visivelmente com as
palavras do filho.

— Por que, Paul?

Ele se levantou, deu de ombros, foi até a janela. Depois


virou-se e disse, com desdém:

— Acho que você sabe o motivo.

Amy pegou o lenço e levou-o aos lábios.

— Estou entendendo. Você sabe de tudo.

Paul fez um gesto irritado.

— Sempre soube. Há muitos anos. E tenho ouvido


sussurros e risos pelas costas. Sempre soube. E sempre a
detestei por isso. — Ele fez uma pausa, respirando de
maneira desordenada. E depois continuou, a voz carregada
de fúria: — Perguntou-me antes se podia fazer alguma coisa
por mim. Pode, sim. Pode nunca deixar que Tio Ernest saiba
que eu sei. Porque... porque se ele souber que eu sei, seria
impossível para Tio Ernest continuar comigo por mais
tempo.

— E sabendo disso há anos, Paul, você nunca teve


vontade antes de me falar a respeito?

— Não. Por que deveria? Tinha outros problemas com que


me preocupar e não queria que coisa alguma impedisse Tio
Ernest de escolher-me para seu sucessor.

— E o que o leva a falar-me agora?

— Não posso evitar. Talvez fosse melhor permanecer de


boca fechada, mas... as coisas têm sido muito difíceis
ultimamente. E pensar que minha mãe é uma mulher
leviana...

Amy fitou-o gentilmente.


— Entendo. -Sua voz era de profunda compaixão. — Pobre
Paul...

Ele ficou aturdido. Observou a mãe com uma expressão


desconfiada. Jamais a compreendera e continuava a não
compreendê-la.

— E tem certeza de que isso não fará qualquer diferença


em seu relacionamento com Ernest, Paul?

— Nenhuma. Por que deveria? A não ser que você lhe


conte que eu sei.

— Não vou contar. — Amy hesitou por um instante e


depois repetiu: — Pobre Paul...

Alguns dias depois, Elsa deixou a casa da mãe e foi para


Roseville, a fim de instalar-se na casa do irmão. E quando
John Charles falou-lhe que lhe seria conveniente viver na
casa de Paul, a fim de mantê-lo melhor informado sobre os
acontecimentos no banco, Amy disse, como sempre fazia
diante do que era incompreensível, insuportável e triste:

— Entendo.

Assim, Amy ficou sozinha na casa em Quaker Terraces.


Nunca imaginara que lhe seria possível sentir-se tão solitária
e desolada. Ernest não a visitava desde a morte de Gertrude
e tinha a impressão de que ele não apareceria por algum
tempo. Suspirando, Amy pensou que nunca ficara assim,
nem mesmo quando vivia na fazenda, séculos atrás.
Recordando a fazenda, ela pensou em Martin. E suspirou
novamente. A vida era trágica e inútil, pensou ela,

Duas semanas depois da morte de Gertrude, May falou


com o marido, pela primeira vez desde então. Informou-o
calmamente que o estava deixando. Passaria algum tempo
com Reginald e a mulher na fazenda, uns poucos meses;
depois, iria encontrar-se com Godfrey em Paris. Disse que
Joey era tão afeiçoado ao pai que achava injusto levá-lo em
sua companhia. Falou tudo sem qualquer emoção, quase com
indiferença. Emagrecera consideravelmente e a pele flácida
fazia com que parecesse muito velha. Os cabelos haviam
embranquecido perceptivelmente e somente por baixo é que
ainda restava um resquício do brilho vermelho-escuro de sua
juventude.

Ernest recebeu a notícia impassivelmente, sem fazer


qualquer comentário. Uma noite, ao chegar em casa, foi
informado pelo excitado mordomo que a Sra. Barbour fora
embora. Ernest subiu a escada e entrou no quarto da mulher,
pela primeira vez em muitos anos. Ela não estava mais ali
para proibir-lhe a entrada. Ele sentou-se na cadeira de May,
diante da lareira vazia, ficou olhando para a cama macia.
Não havia nada para informar que ela vivera e dormira
naquele quarto. Tudo estava bem limpo, as superfícies
brilhantes repulsivas, como se ninguém jamais as tivesse
tocado. Todos os vestígios de May haviam desaparecido. As
portas do guarda-roupa de mogno estavam abertas,
mostrando o interior vazio. Ao levantar-se para sair, Ernest
olhou para o espelho da penteadeira. E pensou: esse é o
rosto de um velho. Ele desceu e percorreu a casa inteira, a
casa dos Sessions. Enquanto andava, disse a si mesmo: esta é
a casa dos Sessions. Não é absolutamente minha. Esta casa
apenas me tolerou, esta casa por que tanto lutei. E agora não
me tolera mais. É como uma casa vazia, com todos os móveis
retirados. Até mesmo as paredes me odeiam.

Foi um dos poucos momentos de sentimentalismo de sua


vida. Afinal, pensou Ernest, ironicamente, um homem tem o
direito de ser sentimental de vez em quando. Contudo, ele
não podia livrar-se da estranha sensação de que a casa, que
fora dele, era novamente a casa dos Sessions. Até mesmo o
fato de ele viver ali sozinho não podia alterar isso. Ele olhou
para os retratos escuros nas paredes cor de marfim da sala
de estar. Os rostos, todos rostos de Sessions, fitavam-no com
sombria indignação. Em determinado momento, teve a
sensação absurda de que Gregory Sessions aproximava-se
dele pelas costas, sorrindo.

Ernest passou a visitar com frequência cada vez maior a


casa de Paul, onde era recebido com afeição pródiga e prazer
sincero, como jamais tivera em sua própria casa, com os
próprios filhos. Paul batizara a filha, que tivera de muito
lutar para sobreviver: Alice Sessions Barbour. Ela passava o
tempo todo em seu quarto, aos cuidados da mais eficiente
enfermeira que fora possível encontrar, uma coisinha de
olhos azuis e cabelos avermelhados. Fazia o avô lembrar-se
de Guy. Quando foi batizada, Ernest deu-lhe uma caneca de
ouro, com o nome dela gravado.

Elsa idolatrava a sobrinha. Chegou a chorar quando Paul


recusou-lhe permissão para ensinar a menina a chamá-la de
mãe. Mas Elsa sentia-se muito feliz agora. Toda a antiga
afeição e naturalidade que sempre sentira com Ernest
voltavam, agora que ele estava afastado da mãe. Elsa
também recuperou a antiga exuberância, para consternação
da enfermeira, que acabou proibindo-a de sacudir a sobrinha
com tanta violência. Elsa sabia que jamais casaria, que nunca
deixaria de amar Godfrey, de quem não tivera mais qualquer
notícia.

Quando Paul e Elsa sugeriram ao tio que fosse morar no


Ninho do Papa-roxo, ele não recusou tão prontamente como
os dois receavam. Na verdade, ele pareceu pensar seriamente
no convite. Certamente não sentia mais prazer algum em
viver na casa dos Sessions, com Joey na escola e só lhe
fazendo companhia durante o verão. (Agora, Ernest quase
sempre pensava na casa como ‘a casa dos Sessions’.) Além
disso, como Paul ressaltou, o bairro estava se tomando
‘decrépito’. A casa, embora impecavelmente conservada, os
gramados sempre viçosos e aparados, parecia estar
adquirindo um ar de desolação e ruína. Mas embora as
esperanças de Paul fossem muito fortes, a verdade é que
Ernest não tinha a menor intenção de deixar a casa dos
Sessions.

Há quatro meses que ele não via Amy e não lhe escrevia,
assim como ela também não lhe escrevera. Agora, Ernest
começava a agir de maneira um tanto estranha, quando
estava em casa. Sentava-se na extremidade da grande mesa
de mogno e olhava ao redor. Anos antes, toda a família
sentava ali, Godfrey e Gertrude, Guy e Reginald, May e ele
próprio, o pequeno Joey. Agora, apenas ele sentava-se àquela
mesa, na sala vazia, as velas ardendo nos candelabros sobre
o aparador e nas paredes, o mordomo sendo o único outro
ser humano presente. Mas enquanto olhava fixamente
através da mesa, pouco a pouco um sorriso foi se insinuando
no rosto de Ernest. Era como se outra pessoa estivesse
sentada ali e lhe falasse.

Cinco meses após May deixá-lo, Ernest fez a coisa mais


ousada de sua vida: pediu o divórcio.
CAPÍTULO XCVI
Na superfície, não parecia tão ousado assim, mesmo em
1882, quando os divórcios eram raros e severamente
criticados. A mulher de Ernest Barbour obviamente o
abandonara, recusava-se a voltar para casa. Assim, ele estava
pedindo o divórcio, como um homem profundamente
consternado e triste. Na realidade, porém, o pedido de
divórcio de May Sessions era uma iniciativa perigosa, ousada
ao ponto da temeridade. Ernest estava jogando tudo na
esperança de que May ficaria de boca fechada em relação a
Amy, que não contestaria o divórcio. Se May resolvesse
brigar, Ernest sabia que suas perdas seriam imensas,
terríveis. Em primeiro lugar, os jornais e políticos hostis
jamais haviam-no deixado esquecer que era um inglês de
origem humilde, que seu ingresso na sociedade fora
conseguido e facilitado pelo casamento com aquela grande
dama, May Sessions. Ele conseguira muitas coisas através
dos amigos dos Sessions. Até mesmo o Presidente fora um
amigo mais jovem de Gregory. Ernest precisava dos políticos
que aceitavam-no por causa dos Sessions, especialmente
depois dos últimos distúrbios trabalhistas, a crescente
tendência contra a importação de mão-de-obra estrangeira e
a crescente desconfiança do povo contra os industriais
poderosos. Depois do choque inicial, eles perdoariam o
divórcio. Contudo, se May falasse, eles ficariam convencidos
da insídia de Ernest e não descansariam enquanto não o
destruíssem. Em segundo lugar, havia o problema de Amy,
que ficaria tão envergonhada pelo escândalo que teria de
deixar o país. Suas relações com Paul chegariam a um fim
abrupto, embora Ernest não tivesse ilusões de que isso
aconteceria, porque Paul se veria forçado a mostrar-se
indignado com as revelações. Ernest tinha a vaga impressão
de que Paul sabia de tudo sobre o seu relacionamento com
Amy. Um outro problema em que ele tinha de pensar era a
neta.

Ernest arriscou tudo isso quando pediu o divórcio,


apostando na possibilidade de May não querer brigar, não
denunciar Amy. Conhecia May muito bem e, às vezes,
durante as semanas que se seguiram à notícia espantosa,
sentia-se absolutamente seguro. Em outras ocasiões, no
entanto, recordando a ira de May, que podia ser
extremamente violenta, recordando a integridade e coragem
dela, o desprezo por manobras escusas, sua ausência de
medo quando a honra e o nome estavam envolvidos, ele não
sentia tanta certeza quanto gostaria de ter. Além disso,
sentiu-se perplexo por não experimentar um alívio maior
depois de entrar com o pedido de divórcio. Em vez disso, foi
invadido por vaga inquietação, que não conseguia definir.

Quando May recebeu a citação, na fazenda remota e


austera em que vivia com o filho Reginald e a mulher dele,
sua primeira reação foi de incredulidade. Em seguida, ficou
completamente aturdida. E depois ficou abalada. Foi deitar-
se no quarto estreito e desconfortável, mas imaculado, ali
ficando durante quase dois dias. Não chorou nem se
queixou, não fez qualquer outra coisa que não olhar para as
paredes de tábuas de pinho e para a colcha de retalhos que a
cobria. Depois levantou, vestiu-se, seguiu para a casa de
Paul. Reginald, silencioso e taciturno como sempre, com
roupas impecáveis sem botões e uma pequena barba preta,
levou-a à estação. A viagem de trem durou cerca de duas
horas. May chegou à casa de Paul ao cair da noite, pouco
depois do jantar. Paul e Elsa ficaram surpresos ao vê-la e
deram-lhe as boas-vindas com algum constrangimento.
Ainda não sabiam do processo de divórcio. Elsa obrigou-a a
jantar, depois levou-a para ver a neta. Em seguida,
triunfantemente, conduziu-a ao melhor quarto de hóspedes.
Tanto ela como o irmão estavam na maior curiosidade,
querendo saber dos motivos da visita de May, altamente
excitados pelo seu rosto pálido e tenso e pelos olhos
avermelhados. Mas Elsa, sozinha com a tia no quarto de
hóspedes, nada conseguiu arrancar-lhe, a não ser os
comentários de praxe e os elogios pelos cuidados com a
neta. Foram juntas para a sala de estar, onde Paul esperava,
muito nervoso.

May sentou-se e disse, calmamente:

— Seu Tio Ernest acaba de entrar com uma ação de


divórcio contra mim, Paul, sob alegação de abandono... e
crueldade.

— Divórcio? — balbuciou Paul, subitamente pálido. —


Divórcio?

— Isso mesmo.

Paul e Elsa se entreolharam, ambos com os mesmos


pensamentos aterrorizados.

— Estou pensando em lutar — disse May. — Ou melhor,


certamente vou lutar. A menos, é claro, que ele concorde em
retirar a ação de divórcio.

Chocado, dominado pelo medo, transtornado, Paul se


levantou e ficou andando de um lado para outro, diante da
lareira. Ele pensou: será o fim para mim. Pois certamente ela
vai envolver mamãe no processo. E então.... É claro que ela
vai envolver mamãe! De que outra forma poderia lutar contra
a ação de divórcio? Elsa, pensando a mesma coisa,
permaneceu sentada, num silêncio angustiado, observando o
irmão.

— Importa-se de me dizer como... como pretende lutar,


Tia May? — perguntou Paul finalmente, parando diante da tia
e fitando-a com uma expressão angustiada.

May sorriu consternada, retorcendo o lenço entre os


dedos. E disse, gentilmente:

— Não precisa ficar preocupado, Paul. Evitarei um


escândalo de família.

Paul ficou vermelho, Elsa também.

— Escute aqui, Tia May... — começou Paul, balbuciando,


invadido por uma extrema fraqueza e profundo alívio.

Ele parou abruptamente, pois May desatara a chorar. Os


dois confortaram-na, mas se entreolharam, por cima da
cabeça abaixada da tia, com uma exultação triunfante. O
prazer deles aumentou quando May disse que passaria
apenas aquela noite ali, voltando para a fazenda de Reginald
no dia seguinte. Só depois que ela foi embora os dois
começaram a especular sobre o motivo da visita de May.

Sozinha em sua casa, Amy leu a notícia sobre o processo


de divórcio nos jornais, alguns dias depois. Profundamente
comovida, ela escreveu para Ernest, suplicando-lhe que
retirasse a ação. Nunca lhe ocorreu que May poderia lutar e
envolver seu nome no caso. Recordando a prima e o amor
dela pelo marido, sua devoção e bondade, Amy ficou
angustiada de compaixão e indignação. Esperou muito tempo
por uma resposta de Ernest, mas nada recebeu.

E depois, para surpresa de todos, May viajou para a


França, dois dias antes do julgamento da ação. Seu advogado
compareceu ao tribunal e bruscamente anunciou que sua
cliente decidira não aparecer nem contestar a ação. Dentro
de uma hora, Ernest Barbour teve atendido o seu pedido de
divórcio de May e os acertos necessários foram assinados e
sacramentados.

Ele saiu do tribunal através de uma multidão de


repórteres inquisitivos e foi para casa, a casa dos Sessions.
Por algum motivo, no entanto, não conseguiu suportar a
permanência na casa. Via o rosto de Gertrude no vestíbulo,
ao pé da escada; via o filho Guy correndo alegremente pelo
corredor; via Godfrey ao piano fechado e silencioso; ouvia os
murmúrios tristes de Reginald por trás da porta do quarto
que ele costumava ocupar. Na sala de estar, sentada diante
do fogo com seu bordado, via a mulher, não como era agora,
mas uma jovem e alegre May, os cachos avermelhados,
sacudindo a cabeça brejeiramente, a saia-balão, de cetim e
renda. Ele subiu novamente para o antigo quarto de May e
sentou-se na cadeira dela, de cabeça baixa. A casa inteira
estava vazia, ressoando com os ecos do passado. A hera do
princípio de inverno, desprovida de folhas, batia na janela.
Fazia muito frio, pois não havia fogo no quarto e ele não
acendera um lampião. O vidro da janela chocalhou e ele
ouviu o farfalhar das folhas secas espalhadas pelo caminho
lá embaixo. A desolação da tarde parecia impregná-lo e
desintegrá-lo.

Ele pensou: expulsei todos os Sessions da casa. Sou um


estranho aqui, mas estou na posse. Depois, sem qualquer
motivo, ele lembrou-se de May na noite em que voltara da
Inglaterra, quando Godfrey estava em seu berço, no quarto
agora vazio. Lembrou-se dela, de seu riso, beijos, o cheiro de
sua carne quente e jovem, a sensação em seu rosto ao
contato com os cachos dela. Ernest se levantou subitamente
e tornou a descer.

Três meses depois, ele levou Amy para a casa dos


Sessions, como sua mulher.
CAPÍTULO XCVI
Honore Bouchard obteve a patente de sua pólvora
prismática e da máquina que inventara para comprimi-la.
Entregou-a a Ernest Barbour, em troca de 15 mil ações de
Barbour & Bouchard e 10 mil ações da Kinsolving Arms
Company. Jules Bouchard vendeu sua patente de aço à
Sessions Steel Company por 18 mil ações, sendo nomeado
gerente-geral da empresa. Não demorou muito para que
Honore fosse enviado ao exterior pelo tio, a fim de comparar
a pólvora americana com a nova pólvora marrom e sem
fumaça que os belgas e alemães estavam fabricando. Honore
aprendeu os métodos de fabricação, alterou ligeiramente sua
fórmula, voltou à América e patenteou o novo explosivo. A
Inglaterra tornou conhecimento da nova pólvora e comprou
cem mil barris.

Honore teve subitamente uma ideia brilhante. Por que não


fabricar revólveres e outras armas com tanta precisão e
uniformidade que as diversas peças pudessem ser
substituídas? Dentro de alguns meses, a Kinsolving estava
vendendo miras, canos, molas e gatilhos para todos os
usuários de armas do país que desejavam consertá-las. Por
essa ideia, ele obteve cinco mil ações da companhia. Quando
aperfeiçoou as novas máquinas, que aumentavam a
produção, foi promovido a assistente do pai, Eugene
Bouchard.

Poucos meses depois, a Sessions Steel Company enviou


Jules à Europa, a fim de conhecer as fábricas de chapas
blindadas, pois a América estava agora pensando em
construir navios de guerra blindados. Ele voltou com ideias
tão espetaculares e revolucionárias que o tio ficou
tremendamente excitado. Não foi apenas isso, mas também
Robsons & Strong e Schultz-Poiret concederam autorização à
Sessions Steel Company para usar os seus processos na
fabricação das chapas blindadas. Acompanhado por Jules,
Ernest visitou a Gonegan Steel Company, em Pittsburgh, e a
Middleon Ordenance Company, que se juntaram à Sessions
Steel Company na fabricação das chapas blindadas. A
Sessions Steel Company conseguiu encomendas do governo
para o novo produto. Não havia se passado um ano quando
Jules inventou um novo aço, baseado numa nova patente
alemã.

As ideias de Jules não eram menos brilhantes que as do


primo Honore. Por que não fazer catálogo, em diversas
línguas, anunciando pólvora, chapas blindadas e munições?
Não demorou muito para que a Compagnie des Aciéries de
Windsor e a Compania de Acero de Windsor estivessem
realizando negócios espetaculares. Somente os russos
fizeram encomendas gigantescas. Schultz-Poiret informou
que as vendas ultrapassavam todas as expectativas.

Honore provou, para satisfação do tio e do pai, que os


rifles e pistolas feitos artesanalmente, pelos melhores
armeiros, eram consideravelmente inferiores às armas
produzidas por sua mais nova invenção, uma máquina
espantosa. Até então, as armas fabricadas artesanalmente
eram consideradas superiores às armas produzidas por
máquinas. Ernest ressaltou que, além disso, ainda saiam
mais baratas do que as armas produzidas por máquinas.
Honore dedicou-se a trabalhar em melhorias e não demorou
muito para conseguir que as armas produzidas por máquinas
ficassem mais baratas. Sugeriu também a Ernest que
aconselhasse os governos ricos a venderem suas armas
obsoletas a nações mais pobres, comprando modelos mais
novos, à medida que fossem fabricados. Honore visitou a
Turquia e vendeu ao exército 600 mil rifles. Teve alguma
dificuldade, pois era inevitável uma certa etiqueta,
conquistar a boa vontade de autoridades, que não eram
avessas a ganharem pequenos presentes. Honore usou o
suborno com bons resultados, obtendo os pedidos.

No passado, houvera um rival formidável e cada vez mais


poderoso para Barbour & Bouchard: Robsons & Strong e
Schuitz-Poiret, três bons amigos, em Essen, na Alemanha. Era
uma firma conhecida simplesmente como Kronk. A
Alemanha, que Ernest chamava de ‘porco furioso da Europa’,
tornara-se bastante arrogante desde a Guerra Franco-
Prussiana, extremamente orgulhosa da Kronk, que se dizia
fabricar o melhor canhão da Europa. Os russos compravam-
nos em quantidades prodigiosas, assim como outras nações.
Barbour & Bouchard e seus amigos sentiam-se
profundamente consternados. A Kronk era ainda mais
inescrupulosa do que eles. Seus agentes enxameavam por
toda parte, subornando embaixadores e outras autoridades.
A empresa era toda-poderosa nas cortes europeias, reunindo
representantes de todas as nações, a fim de garantirem
encomendas para o canhão que usariam para se
massacrarem mutuamente. A Kronk, autossuficiente,
recusava-se até mesmo a receber Ernest Barbour para
negociações. Isso só aconteceu depois que lhe acenaram com
a mais nova patente de aço de Jules. Chegou-se então a um
acordo. Os três bons amigos tornaram-se quatro e a paz do
mundo foi entregue às suas mãos gananciosas e implacáveis.
Com a maior indiferença e rapidez, vendiam seus produtos
aos dois lados de qualquer contenda internacional, o lado
mais rico obtendo as armas melhores e mais modernas,
entregando suas armas mais antigas e obsoletas aos
fabricantes, que vendiam-nas ao antagonista mais pobre,
com lucros escorchantes. Através de uma dúzia de jornais
estrangeiros, Ernest declarou:

— Não nos envolvemos em qualquer controvérsia, não


apoiamos nenhum lado. Somos apenas homens de negócios,
atendendo a uma demanda da melhor forma possível.

Quando um grande jornal inglês iniciou uma campanha


contra “esses negociantes da morte”, Ernest emitiu uma
declaração: “Somos neutros; não apoiamos qualquer lado.
Emoções e princípios particulares, nacionalismo e
patriotismo, ganâncias e injustiças, não são da nossa conta.
A abolição dos armamentos não vai abolir a guerra, que é
mais antiga do que o canhão e está enraizada na ganância. Se
os homens não tiverem o canhão, usarão rifles; se não
tiverem rifles, usarão arco e flecha; se não tiverem arco e
flecha, usarão os punhos. A primeira providência para
abolição do negociante de armamentos é abolir a guerra, o
que todos os meus inimigos patrióticos hão de concordar
que se trata de uma coisa absurda.” Em outra declaração, ele
disse:

— A paz é um sonho absurdo. Enquanto um homem tiver


algo mais que o seu vizinho, haverá ódio e guerra. Tudo se
resume à cobiça e as frases bonitas, ideologia nobre,
fervores patrióticos, indignações sublimes, nada poderá
alterar esse fato. Culpar o negociante de armamentos pelas
guerras é pôr o carro adiante dos bois.

E Ernest, que era particularmente um dos maiores


financiadores de duas influentes sociedades patrióticas da
América, declarou a outra publicação:

— O tolo patriota é o bufão do estadista ambicioso. É


geralmente eloquente, tem na ponta da língua todos os
clichês e chavões. O povo adora as frases sonoras, que o
alivia da necessidade de pensar. Se você está realmente
procurando por inimigos, olhe para os seus patriotas e, além
das frases bonitas e gestos eloquentes desses charlatães
inocentes, descubra o estadista que vai aumentando seu
capital sob a batida dos tambores.
O grande jornal inglês admitiu que boa parte disso era
verdade, com uma honestidade relutante. Só que ressalvou:
“Mas isso não isenta de culpa o negociante de armamentos,
que fornece as armas para a estupidez cometer
assassinatos.” Ao que Ernest respondeu, desdenhosamente:

— Não temos o que dizer diante do sentimentalismo.

Na mesma ocasião, ele declarou:

— Os lucros nada têm a ver com as emoções, que são um


luxo dos incompetentes.

Em outra ocasião, ele disse:

— O ódio não pode ser desprezado. Nada se desenvolve


nos atoleiros da paz. O conflito é e sempre foi o grande fator
de promoção de civilizações e destruição de barbarismos.

Mais tarde, ele lamentou tal declaração, que foi


amplamente usada por seus inimigos como prova de que
usava “as frases sonoras que declara desprezar para o seu
proveito particular”.

Enquanto isso, Jules e Honore Bouchard estavam


ameaçando a paz de espírito e a felicidade de Paul Barbour.
À sua maneira, através da aplicação da força inata e da
incapacidade de perceber obstáculos, Paul realizara tanto
quanto Jules e Honore. Só que os seus feitos eram menos
espetaculares. Nunca lhe ocorreu que Ernest poderia apreciar
seus esforços e sucessos tanto quanto as realizações mais
espetaculares dos primos. Assim, sentia-se atormentado pela
ansiedade. Queria desesperadamente que houvesse algum
esplendor no que realizava, mas tinha um caráter muito
meticuloso e diligente para acrescentar o brilho necessário.
Acreditava ingenuamente que o tio não percebia o seu
trabalho, porque carecia de drama, excitamento e
exuberância. Roía as unhas literalmente, numa febre de
apreensão. O ódio e a inveja de Jules, especialmente, faziam-
no passar as noites em claro, esquecendo até a dor intensa
pela perda de Gertrude. (Sendo o tipo de homem que só pode
pensar intensamente em uma coisa de cada vez, a pressão do
seu pesar foi atenuada pela irritação profunda e ativa do
medo e preocupação.) Jules tinha uma aparência mais
sinistra e sutil do que seu primo Honore, mais impassível.
Também não possuía a impressão de integridade absoluta de
Honore. Seus olhos eram mais rápidos e furtivos, ‘como a
língua de uma cobra’, pensava Paul, com profunda aversão. E
todo o corpo de Jules parecia rápido, ágil e flexível, como o
de uma cobra. Sua atitude silenciosa, o rosto sempre
vigilante, o sorriso insidioso, tudo alarmava e enfurecia Paul.
Parecia estar sempre absorvido em alguma trama sutil e
traiçoeira. Quando falava, suas palavras, embora inocentes e
corteses, davam à audiência uma ligeira sensação de choque,
de tão incongruentes que eram com o semblante sombrio e
os olhos ‘insidiosos’. A antiga desconfiança que Paul sempre
sentira do ‘Jesuíta’ transformou-se numa espécie de ódio
obsessivo, uma insanidade de suspeita e aversão, um desejo
quase incontrolável de cometer homicídio. Diante de tudo
isso, nunca lhe ocorreu humilhar-se numa tentativa de
apaziguar Honore. Sempre desdenhara os Bouchards e a
própria ideia de que poderia um dia tentar conquistar a
amizade de um membro inferior daquela família teria feito
com que risse.

Mesmo assim, tentou apaziguar e conquistar a amizade


de Honore Bouchard. Embora sua imaginação não fosse
intensa, os instintos eram muito fortes. Pressentia um perigo
imenso, embora oculto. Sentia que Jules era o perigoso, a
grande ameaça a suas ambições e desejos. Mas também
sentia que a força e a proteção estavam em Honore. Assim,
pela primeira vez em muitos anos, ele visitou a casa de seu
Tio Eugene, exibindo a sua atitude mais franca e amistosa,
assumindo uma cordialidade que inconscientemente
apreendera de Ernest, num esforço para conquistar Honore.
Este não ficou muito surpreso, pois fora alertado por Jules
de que isso poderia acontecer. Jules rira sarcasticamente ao
fazer a profecia. Com Paul sentado à sua frente, exibindo
uma expressão ingenuamente cativante, Honore sentiu pena
dele, recordando o riso e a expressão cruel de Jules. Ficou
também constrangido por Paul. Sua consciência, que herdara
do pai, agitou-se inquieta. Jules, pensou ele, sorrindo
contrafeito de um comentário ameno de Paul, era realmente
um demônio insidioso, frio e corrosivo como algum ácido
letal. Se estivesse ali naquela noite, Jules certamente teria
exultado, por trás da máscara que usava por cima de seu
verdadeiro rosto. E certamente riria muito no dia seguinte,
quando Honore lhe contasse a tentativa de apaziguamento
de Paul. Foi então que, subitamente, Honore decidiu não
contar a Jules, com pena de Paul, por sua atitude e palavras
humildes. Sua resolução não foi seriamente afetada, sua
determinação não se abalou. Mas estava genuinamente com
pena de Paul e lamentava que algum dia teria de atingi-lo
mortalmente. Sentado ali, com o sorriso forçado começando
a provocar alguma dor nos músculos faciais, ele pensou de
repente que estava traindo Jules. Entre o seu alarme por essa
traição e a compaixão por Paul, ficou profundamente
constrangido. E ficou consternado ao descobrir-se
prometendo que jantaria com Paul em alguma noite da
semana seguinte. Teria agora de contar a Jules e ouvir-lhe a
risada implacável, para em seguida passar uma noite terrível
em companhia de Paul, perguntando-se com quem estaria
sendo traiçoeiro. Acabaria se sentindo profundamente
deprimido e angustiado. Antes que Paul fosse embora, ele
estava censurando violentamente sua ‘moleza’. Assim, ao se
despedirem, sua atitude tornou-se subitamente tão brusca,
que Paul partiu na maior perturbação. Honore percebeu-o e
ficou ainda mais angustiado. Uma dúzia de vezes ou mais,
durante aquela noite inquieta, Honore disse a si mesmo que
Paul tentava conquistá-lo porque tinha medo de Jules,
porque sabia que ele era o herdeiro de Eugene, o sócio de
Ernest, porque infantilmente esperava poder romper a
associação de Jules, Honore e Leon, para depois retornar a
sua antiga atitude condescendente e superior. Mas a
compreensão de tudo isso não teve grande efeito na
inquietação de Honore e em sua compaixão por Paul.

E Paul, sempre oportunista e agora desesperado,


empenhou-se em apaziguar a mãe. Nunca lhe ocorreu que
não precisava apaziguá-la. Ele sabia que a insultara
grosseiramente, literalmente lhe fechara a porta de casa.
Raciocinando a partir desse ponto de vista, pensou que Amy
estava ressentida com ele, desejaria magoá-lo e humilhá-lo,
como ele magoaria e humilharia qualquer pessoa que o
insultasse de maneira tão indigna.

O casamento inesperado de Amy com Ernest abalou tão


profundamente os filhos dela que algumas semanas se
passaram antes que suas mentes lerdas e convicções
preconceituosas pudessem absorver o que acontecera e
aceitar o fato. Sempre haviam tido uma opinião desfavorável
da mãe, cujo divertimento imprevisível sempre despertara
apenas o desprezo de suas mentes tenazes e sisudas, a
desconfiança de sua obstinação simplista. Além do mais,
como Paul dissera uma centena de vezes à irmã Elsa, “os
homens não casam com suas amantes”. Aceitavam a frase
com sua simplicidade presunçosa, a convicção ingênua na
autenticidade de suas conclusões. Quando os
acontecimentos tranquilamente se recusaram a corresponder
a tais conclusões, ficaram tão transtornados que até parecia
que um furacão passara por suas mentes complacentes.
Muito tempo se passou antes que pudessem se ajustar. Nesse
intervalo, eles sentiram indignação, ultraje, espanto e
incredulidade. Por fim, Elsa assumiu uma aceitação
amargurada, John Charles riu bruscamente, Lucy achou graça
e manifestou uma admiração meio indiferente pela mãe, Paul
experimentou uma terrível apreensão, sem saber qual
poderia ser agora a atitude da mãe em relação a ele. Assim,
para a angústia, mortificação, compaixão e aversão da mãe,
Paul tentou conquistar-lhe a boa vontade.

Ele ficou exultante e aliviado quando Amy recebeu-o com


sua antiga afeição e interesse, a mesma preocupação pelo
bem-estar do filho, a gentileza permanente. Ela conduziu o
encontro como se nada tivesse jamais acontecido entre os
dois. Paul não viu uma grande dama que estava sofrendo por
causa dele, julgando-a apenas uma mulher simples, que não
tinha fibra para ficar ofendida ou ressentida, contente
apenas em ser aceita novamente pelo filho, capaz de sentir-
se outra vez respeitável, graças à condescendência dele.

John Charles, demonstrando sinais evidentes do


oportunismo dos Barbours, anunciou afavelmente a Paul que
tencionava morar com a mãe, na casa dos Sessions. Sorriu ao
ver o rosto subitamente vermelho de Paul, fez as malas sem
qualquer indício de constrangimento e mudou-se. Com
intenso choque e raiva, Paul descobriu que o irmão caçula
tornara-se seu inimigo, não por qualquer mudança na atitude
dele, mas por alguma coisa meio indefinida, que sentia ser
mais ameaçadora e perturbadora,

Depois de três anos, Paul ainda lamentava profundamente


a perda de Gertrude, sentia um medo constante da crescente
influência e poder de Jules, Honore e Leon, estava cada vez
mais consciente da hostilidade impessoal do irmão e de sua
importância cada vez maior. Ainda por cima fracassara,
embora não por culpa sua, numa missão em Washington que
Ernest lhe confiara, sem muita esperança: a de exercer
suficiente influência, suborno e coação para impedir a
aprovação da Lei de Importação de Mão-de-Obra Estrangeira.
Fora a Washington armado com o prestígio, poder, influência
política e capacidade de subornar dos Barbours, mas acabara
fracassando. Embora Ernest lhe assegurasse jovialmente que
não fora culpa dele, que a aprovação da lei era inevitável
porque o povo a estava exigindo com veemência, que havia
influência demais por trás do projeto para garantir sua
aceitação, Paul outra vez raciocinou com base em seu
próprio caráter e ficou convencido de que o tio começava a
desprezá-lo e nunca o perdoaria.

E foi então que; desmoralizando-o completamente, se


bem que temporariamente, Eugene Bouchard morreu de
repente. Honore Bouchard, como um dos executores do
testamento do pai e um dos herdeiros da dinastia, assumiu
subitamente a estatura de um inimigo que parecera
ilusoriamente pequeno a distância, mas que agora se
adiantava e ficava a poucos passos da posição de Paul.
CAPÍTULO XCVIII
Somente Honore Bouchard sabia por que o pai morrera e
jamais contou a ninguém, nem mesmo à mãe, nem mesmo à
mulher com quem ia casar, nem mesmo ao padre que
visitava a longos intervalos.

Certa manhã, quando Honore estava fazendo experiências


na fábrica com um novo explosivo, que em sua opinião seria
dez vezes mais poderoso do que o fabricado até então por
Barbour & Bouchard, um funcionário aproximou-se e
comunicou que o pai desejava falar-lhe. Os britânicos
vinham recentemente experimentando ‘cordite’, que
pensavam ser um segredo absoluto. A fórmula era guardada
com o maior empenho. Apesar disso, por um meio que
somente Ernest Barbour e o sobrinho Jules conheciam, a
fórmula chegara ao conhecimento de Barbour & Bouchard. O
‘mistério’ custara a Ernest mais de meio milhão de dólares,
um investimento de que ele não estava arrependido. A
fórmula fora entregue a Honore, que estava agora
experimentando o novo explosivo. Barbour & Bouchard já
insinuara discretamente à Rússia que estava de posse do
segredo da cordite britânica, recebendo assim uma vultosa
encomenda antecipada. Honore estava testando um processo
pelo qual a força da cordite poderia ser aumentada. Dentro
de mais alguns dias, Barbour & Bouchard poderia começar a
fabricar aquela ‘peste negra’.

Honore sentiu alguma irritação por ser desviado de seu


trabalho. Limitou-se a limpar as roupas e as mãos
rapidamente e foi ao gabinete do pai. Caminhava com sua
peculiar ginga, porque as pernas curtas e fortes eram
ligeiramente tortas. Tinha um jeito de espichar para frente,
enquanto andava, o rosto quadrado, bonito e reservado.
Quando ele entrou no gabinete do pai, Eugene fungou
audivelmente, diante do cheiro intenso que o filho exalava.

— Isso me dá uma dor de cabeça terrível, Honore — disse


ele, sorrindo. E quando Honore franziu o rosto, em
ansiedade, o pai acrescentou: — Não deve se preocupar com
isso. Estou sempre tendo dores de cabeça. Penso às vezes
que estou com o petit mal.

Eugene falou em francês, a língua que sempre falava com


a família e na qual todos lhe respondiam.

Honore sentou e estudou o pai ansiosamente. Sua


irritação por ter sido arrancado do trabalho desapareceu
inteiramente. Podia constatar agora que não era a sua
imaginação que lhe dizia que o pai estava se consumindo.
Eugene emagrecera consideravelmente e o rosto, sempre
moreno, parecia estar desmoronando por trás da pele pálida
e enrugada. O alarme crescendo, Honore percebeu como a
testa do pai se tornara ossuda, brilhando com um suave
lustro amarelado, como um crânio. Os lábios estavam
arroxeados e lívidos em torno das beiradas, o nariz parecia
excepcionalmente proeminente. Os cabelos, outrora pretos e
lisos, estavam agora ásperos e quase inteiramente brancos.
Há muito tempo que a família, inquieta, vinha notando essas
coisas, mas Eugene sempre repelia os comentários, primeiro
divertido e depois irritado, insistindo que sua saúde era
excelente. Agora, porém, com uma terrível e agoniada
pontada no peito, Honore disse a si mesmo que a morte
estava indelevelmente estampada no rosto do pai.

Esquecendo tudo o mais, ele exclamou:

— Está doente, meu pai! Precisa descansar de qualquer


maneira, se tratar direito! Tem de pensar em mamãe e todos
nós!
À menção de Dorcas, a expressão de Eugene mudou por
um instante. Depois ele sorriu, o seu típico sorriso
reservado, sacudiu a cabeça.

— Estou ficando velho, meu filho. Isso é tudo. A velhice é


uma doença para a qual não existe cura. É verdade que no
espírito não me sinto velho, mas não posso convencer minha
carne de que ainda sou jovem. — A expressão dele tornou a
mudar, ficou sombria, mais firme. — Mas não o chamei aqui
para discutir o meu estado, Honore. Chamei-o para exigir-lhe
uma explicação.

— Uma explicação? Sobre o quê?

Honore ainda estava esquadrinhando o rosto do pai com a


maior ansiedade, quando ele falou, distraidamente.

— Sobre essa estranha aliança entre você, Jules e Leon.

Honore teve um sobressalto e ficou prontamente alerta e


atento, observando o pai com grande cautela.

— Aliança? — repetiu ele, parecendo aturdido. — Que


aliança? Quem andou lhe contando essa história?

— Que história? — Os olhos de Eugene se estreitaram,


com um brilho súbito. — O que o leva a pensar que alguém
me contou alguma história? Ah, meu querido Honore, você
não é tão sutil assim. É franco demais, apesar da
implacabilidade que tenta cultivar, algo que observo com
pesar. — Ele fez uma pausa, pensativo. — E agora fale-me
tudo a respeito dessa aliança. Estou muito interessado.

— Não tenho a menor ideia do que está falando! —


exclamou Honore, ficando vermelho.
— Sabe exatamente do que estou falando! — respondeu
Eugene, irritado.

A respiração dele tornou-se entrecortada, a lividez em


torno da boca aumentou. Pai e filho ficaram se olhando
furiosos, como dois antagonistas se enfrentando. Depois de
um momento, Honore deu de ombros, tornou-se mal-
humorado.

— Não consigo entender isso — disse ele. — Jules e Leon


são meus amigos, além de primos. Nossas personalidades se
combinam. Sempre fui mais chegado aos dois do que a
quaisquer outras pessoas da família, com exceção de você e
minha mãe. Tenho certeza de que não vai objetar quanto à
minha amizade com meus primos. Não está fazendo
objeções a Jules e Leon, não é mesmo?

Eugene, um pouco aturdido, contraiu os lábios.

— Mas claro que não! Não sei se está sendo sutil, Honore,
ou simplesmente infantil. Gosto muito de Leon,
especialmente, embora admita com toda franqueza que não
confio nele nem em Jules. Poucas pessoas confiam e tenho
certeza de que o próprio Jules seria o último a ficar surpreso
com tal reação. Seu Tio Ernest sempre chamou-o de Jesuíta.
Mas mesmo Ernest, que escolheu um apelido tão apropriado,
jamais conheceu mais que um ou dois Jesuítas, em toda a
sua vida. Pois eu conheci muitos. E posso constatar como o
apelido cabe como uma luva a Jules, Ele é sutil, oportunista,
astucioso, implacável. O verdadeiro jesuíta usa esses
atributos para servir à sua Igreja e assim se sente justificado.
Provavelmente está mesmo. Mas Jules não serve a ninguém
ou a qualquer coisa além de si mesmo. Sei que ele ama o
irmão e também a você. Mas não tenho a menor dúvida de
que, se a ocasião surgir, se a pressão da ganância for grande
o bastante, ele trairia aos dois, com a maior frieza e
eficiência.

— Aparentemente, não tem a menor admiração por Jules,


meu pai — comentou Honore, com a secura irônica que o
caracterizava.

Eugene fez um gesto irado.

— Meu sentimento por Jules não tem nada a ver com isso.
Está me obrigando a dizer o que ouvi, como um garoto a
quem não se pode confiar coisa alguma. Paul Barbour esteve
aqui esta manhã.

— Ah, estou entendendo...

— Não admiro Paul Barbour. Jules, o mestre das frases,


chama-o de rochedo sobre rodas de canhão. O que é uma
descrição apropriada, incomodamente apropriada. Ele imita
seu Tio Ernest, talvez inconscientemente. Só que a força de
Ernest é sempre consciente e orientada, mas a de Paul é
inconsciente e voltada apenas para os seus desejos. Escutei
Paul não por gostar dele ou estar predisposto em seu favor,
mas porque, conhecendo Jules, compreendi que havia muita
verdade no que ele dizia. Paul contou que você, Jules e Leon
estão unidos com a maior eficiência, numa aliança cujo
único objetivo é conquistar o controle de Barbour &
Bouchard e afastá-lo e arruiná-lo. Ele apresentou-me provas.
Claro que fiquei horrorizado. Detesto a traição mais do que
qualquer outra coisa no mundo. Toda a coisa era não apenas
perigosa e inadmissível, mas também repulsiva. Talvez eu
esteja sentimental na velhice, mas estou profundamente
preocupado com a traição. O sucesso e todas as coisas na
vida que valem a pena não são nunca conquistados através
da traição e de táticas escusas...

Houve um momento de silêncio e depois Honore


perguntou, calmamente, levantando os olhos firmes e
esquadrinhando o rosto do pai:

— Não são?

A boca de Eugene se entreabriu, o rosto ficou vermelho.


Uma expressão de intensa angústia mental e física contraiu-
lhe as feições. Levantou-se subitamente, apoiou-se na
escrivaninha. A respiração era entrecortada. Alarmado,
Honore também levantou.

Mas Eugene não estava zangado. E disse, angustiado:

— Está muito certo, Honore. Absolutamente certo. Estou


me tornando sentimental por estar velho e doente. E estou
assustado. Uma grande parte... disso... do que todos nos
tornamos... jamais consegui aceitar inteiramente. Fui levado,
não pela inescrupulosidade de... algum líder..., mas porque
devia ser realmente fraco. Sofro de inércia. Até mesmo
minha ambição não passava de uma piorra em movimento,
acionada por outra pessoa. Sofri muito e pensei erradamente
que meu sofrimento era fraqueza. Compreendo agora que
minha aquiescência era a verdadeira fraqueza. Não culpo a
ninguém, nem a mim mesmo. Eu era assim. Em determinado
momento da vida, um homem deixa de culpar a si mesmo ou
a qualquer outra pessoa. É a vida, simplesmente. Mas eu
gostaria de poupar tal sofrimento a meus filhos. Vocês...
nenhum de vocês é da mesma substância com que são feitos
os anglo-saxões, uma combinação de brutalidade e rancor,
justificativa e moralidade. Não quero uma ‘aliança’ que
possa levar qualquer um de vocês a experimentar a minha
angústia, ignomínia, tolo pesar. Nenhum homem honrado
pode suportar o pensamento de tal traição...

Embora sentisse uma profunda compaixão pelo pai,


Honore não pôde deixar de perguntar:
— Tio Ernest é capaz de suportar?

A cor desvaneceu-se lentamente do rosto de Eugene e ele


sentou-se, como se todos os ossos do corpo doessem. Baixou
um pouco a cabeça e murmurou:

— Tem razão, Ernest é capaz de suportar. Posso


compreender você, Honore. Ernest acharia graça, sentiria
admiração. E certamente diria: “Ah, os jovens demônios
astutos! Vamos ver até onde eles vão!” E se ele achasse que
vocês são inescrupulosos o bastante, implacáveis o
suficiente, sua admiração aumentaria ainda mais,
especialmente se demonstrassem, o que certamente
acontecerá. Ele chegaria até a ajudá-los. Mas, por Deus, o que
estou dizendo

Eugene parou de falar de repente, levando a mão fina e


morena à testa.

Honore sentou-se, comovido, pois amava o pai


profundamente. E ele disse, com gentileza, depois de uma
longa pausa:

— Não vou tentar me esquivar habilmente, meu pai. Serei


franco. Jules, Leon e eu discutimos tudo isso, já faz algum
tempo. Jules possui muitas ações agora, da companhia e de
suas subsidiárias. A família dele, através da mãe, também
possui muitas ações. Algum dia, ele terá também a sua cota
dessas ações. Leon também tem ações. Eu e meus irmãos
somos os seus herdeiros. Seus bens são enormes. Já
conversamos sobre tudo isso. E chegamos à conclusão, com
plena justificativa, de que Paul Barbour, insinuando-se nas
boas graças de Tio Ernest, como vem fazendo, estará
controlando Barbour & Bouchard, depois da morte de Tio
Ernest. Ele é obstinado. Não chega a ter ímpeto e veemência,
mas possui o impacto e a força dos rochedos. Não é muito
astuto e já percebemos que está a fim de tirar o que nos
pertence, destruir nossas oportunidades, transformar-nos
em meros figurantes na companhia. Nossa ‘aliança’ é apenas
uma espécie de defesa. — Honore fez uma breve pausa,
antes de arrematar: — E no curso natural dos
acontecimentos, nossa defesa converteu-se numa ofensiva
letal e irresistível. Como você diria, meu pai, ‘é a vida’.

Eugene esfregou a testa, ainda escondendo os olhos.

— Posso compreender o seu ponto de vista, Honore. E não


vou contestá-lo, no que é básico, pois sei que é verdade. Mas
sei realmente que Jules não está realmente preocupado com
a mera ‘justiça’. Ele está obviamente usando-o, pois sabe que
tal apelo não poderia deixar de atraí-lo. Mas pode estar certo
de que Jules não se interessa absolutamente por justiça. Ele
é cruel e ganancioso.

— Teria menos objeções ao nosso plano se Jules fosse


motivado apenas pela ‘justiça’? — indagou Honore, com uma
impaciência involuntária.

Eugene baixou a mão.

— Teria, sim. — E ele acrescentou, com um sorriso


forçado, angustiado. — Pode perceber agora como me tornei
um velho!

Honore se levantou e caminhou de um lado para outro, as


mãos cruzadas nas costas.

— É muito estranho pensar em justiça ou qualquer outra


virtude em ligação com a fabricação de armamentos! —
comentou ele, com algum desdém.

Uma estranha expressão, sutil e sombria, estampou-se


nos olhos de Eugene.

— Ah, então você também sente isso! — murmurou ele,


baixo demais para que Honore pudesse ouvir.

Em voz alta, ele disse:

— Não deve falar infantilmente, meu filho. Não se pode


pensar em virtudes nos negócios. É apenas uma questão de
compra e venda, oferta e procura, um bom produto por um
preço justo. — Ele fez uma pausa, amargamente consciente
de que citava algumas declarações recentes de Ernest aos
jornais. — Seu Tio Ernest tem oferecido o melhor produto e
por isso tornou-se um homem mais rico e poderoso. A
virtude não entra nisso.

Honore retrucou bruscamente, com uma veemência


súbita para alguém de seu caráter sisudo:

— Não entra mesmo! E quero que saiba que não estou


culpando Tio Ernest. Admiro-o, como um homem de força e
gênio. Mas não tem sido um negócio justo, por um preço
justo. E sabe disso perfeitamente, meu pai. Os armamentos
estão acima da mecânica inócua dos negócios.
Objetivamente, compreendo que se trata de uma indústria
nefanda. Mas não me importo com isso. Nossos negócios,
riqueza e lucros vicejam à custa da morte. Uma ideia das
mais repulsivas, para qualquer pessoa de estômago fraco.
Nós engordamos com sangue. Estou disposto a prosperar
dessa maneira, obter meus lucros assim. Mas isso não chega
a me cegar, assim como também não cega a Tio Ernest,
apesar das declarações racionais e lógicas que ele faz aos
jornais. Apenas você, meu pobre pai, tem sido cego. Talvez
por querer assim, por não ter coragem de olhar as coisas de
frente. Perdoe-me, mas tenho de falar tudo e deve me ouvir.
“Está a par do trabalho de nossos agentes e de Jules na
Europa, do ‘pavor da guerra’ que eles vêm estimulando, os
jornais que subornam e enchem com mentiras, jogando uma
nação contra outra, tudo para estimular a compra de
armamentos. Sabe como nós e outros iguais temos servido a
dois senhores, obtendo bons lucros nos dois lados. Sabe que
fomos os responsáveis por guerras na Europa e sabe que
nossa principal atividade é disseminar o ódio, ganância,
medo e preconceito. No jogo terrível que travamos contra a
humanidade, nosso primeiro lacaio é a Estupidez. Tio Ernest
sabe de tudo isso e costuma dizer, jovialmente: ‘E daí?
Nossos lucros são imensos. Todas as coisas se justificam,
pelo bem dos lucros.’ Ele é justamente o que os franceses
estão querendo dizer quando chamam um homem cínico...

Eugene bateu com a mão na mesa, violentamente, lívido


com alguma outra coisa além de raiva. E disse, numa voz tão
tensa que quase zumbia, como uma corda de violino esticada
ao máximo:

— Sei de tudo isso! Você é um jovem tolo se pensa que


não sei! Não sou o sócio de Ernest, por acaso não sei ler? Mas
deve compreender que a Europa sempre há de lutar. Os
povos são muito diferentes, inimigos naturais e hereditários.
Sempre será assim, como foi no passado. Não é preciso
muito estímulo na Europa para levar uma raça a odiar outra.
Não se esqueça de que já vivi lá. Assim, não podemos
condenar... a nós mesmos por isso. Podemos aproveitar, sem
muita pressão em nossas consciências, os lucros que
inevitavelmente terão de ficar com alguém. Contudo, penso
às vezes que Ernest talvez esteja sendo um pouco astucioso
demais...

A voz tornou-se monótona, como se ele estivesse falando


para si mesmo:
— Através da Schultz-Poiret, vendemos armas e
explosivos tanto para a França como para a Prússia em 1870,
tanto para a Turquia como para a Rússia... — Ele fez uma
pausa, tomando a bater com a mão na mesa, violentamente.
— Mas a Europa é assim mesmo e não me importo! Ninguém
que tenha alguma inteligência pode se importar. C‘est la
guerre. Mas na América é diferente...

— É mesmo? — retrucou Honore, suavemente. -Será que é


mesmo?

O punho tenso sobre a mesa abriu-se de repente, como se


seu dono tivesse acabado de receber um golpe mortal. Os
olhos de Eugene pareceram afundar nas órbitas, como se um
vazio se abrisse por trás deles,

— O que está querendo dizer com isso? — perguntou ele,


em voz baixa e rouca.

O sincero Honore não podia agora ser contido em seu


impulso. E ele continuou, incisivo, apoiando-se na mesa com
as duas mãos:

— A Alemanha tem muito pouco níquel ou talvez


nenhum, meu pai. Sabe disso muito bem. E pouco ou
nenhum cobre. Sabe também que Barbour & Bouchard,
através de suas companhias de mineração, está despachando
esse metal para a Alemanha. Por quê? Deve se fazer e
responder a essa pergunta. Será para fabricar granadas que
vão matar franceses? Ah, mas que inimigo insignificante!
Quem é o único filé realmente suculento em toda a Europa?
A Inglaterra! O Império Britânico! Eis um inimigo à altura da
ambição e da ganância da Alemanha. Mas a Alemanha não
pode fazer isso sozinha, pois tem de se preocupar com a
Rússia, que a odeia, e com a França, que ainda está
ressentida. A Alemanha precisa da ajuda de outra nação, com
muito poder, riqueza e recursos ilimitados. E quem pode ser
essa nação? A América!

Eugene levantou uma das mãos, como se fizesse uma


débil tentativa de defesa. Um instante depois, sem emitir
qualquer som, tornou a baixar a mão.

— Oh, Deus! — exclamou o jovem Honore, com um gesto


furioso. -Será possível que você, meu pai, sócio de Barbour &
Bouchard, não sabia disso? Ah, como aquele homem tem
sido astuto e diabólico! Mas não parece possível. Como meu
pai pode ignorar uma coisa dessas? Ah, como tem sido
esplendidamente enganado! Mas não pode deixar de ter visto
nos jornais, aqueles jornais grandes controlados e possuídos
por meu jovial Tio Ernest, toda a sutil propaganda
antibritânica, os escárnios, suspeitas, ciúmes planejados, as
insinuações, as crescentes referências à Revolução
Americana e a importância que se dá agora aos relatos sobre
a simpatia e ajuda da Inglaterra ao Sul durante a Guerra
Civil. Deve ter lido os editoriais, repletos de acusações e
indignações altivas. Deve ter lido as provocações ostensivas,
a desconfiança manifestada abertamente. Mas talvez não
saiba, meu pobre pai, que Robsons & Strong, nossos
associados e amigos comerciais, estão fazendo a mesma
coisa na Inglaterra, em livros escolares, em jornais e
revistas, tudo enfim que estamos fazendo aqui. Contra a
América! Eles estão fazendo a mesma coisa que nós, usando
políticos que podem se tornar liricamente eloquentes, depois
de discretas transferências de ações. Estão fazendo a mesma
coisa que nós, subornando educadores e patriotas, incitando
as pessoas tolas e simples com mentiras, ódios e patriotismo
repulsivo. Estão fazendo a mesma coisa que nós,
disseminando o ódio e a histeria. Eles compraram o governo
deles, assim como compramos o nosso.

“E sabe para que tudo isso, não é mesmo? Certamente não


pode deixar de saber por que os americanos se tomaram tão
amigos dos alemães, por que o alemão é ensinado
atualmente nas escolas primárias, por que se fala
afetuosamente do Kaiser nos jornais, por que o comércio
com a Alemanha é encorajado e estimulado, por que em
muitas salas de aula existe um desenho do Kaiser ao lado
dos desenhos de Washington e Lincoln. Não pode ignorar por
que todas as coisas alemãs tornaram-se interessantes e
acessíveis, por que nosso povo está se tomando cada vez
mais consciente da Alemanha, de seus músicos e heróis,
cientistas e poetas. Há propagandistas deles por toda parte!
Pagos por Barbour & Bouchard, por Robsons & Strong e
provavelmente também por Schultz-Poiret...

Eugene, com uma expressão desvairada, bateu na


campainha que estava em cima da mesa.

— América! — gritou ele, numa voz estranha e abafada,


como se estivesse sufocando em seu próprio sangue. —
América, que nos ajudou e deu abrigo! O governo que
confiou em nós, encorajou-nos, apoiou-nos!

Um empregado entrou correndo na sala, o rosto pálido,


pois a voz de Eugene passara além das paredes.

— Chame minha carruagem! — gritou o pobre Eugene,


inteiramente descontrolado. — América! Você é um
mentiroso, Honore, um maldito mentiroso! Não acredito em
você! Está mentindo!

Em francês, ele chamou o filho de coisas horríveis.

— Não me toque, seu porco, seu mentiroso! Não acredito


em você! Não posso ter sido tão cego e tão tolo a ponto de
um menino, um garoto miserável como você, precisar me
esclarecer! Santa Maria Mãe de Deus, matarei aquele homem,
aquele inglês desgraçado! Onde está minha carruagem?

Ele bateu com os pés, gritando freneticamente. Honore,


apavorado pelo que fizera, tentou segurá-lo, contê-lo.

— Como ele me enganou, considerando-me o imbecil que


sou! Deveria saber que ele, enganando todo mundo, também
me enganaria! Oh, Jesus, onde está minha carruagem?

Os minutos subsequentes, para o trêmulo Honore, que se


odiava naquele momento, foram uma sucessão de
acontecimentos nebulosos, em que Eugene reagia
violentamente quando o filho e os empregados tentavam
contê-lo. Honore suplicou que o deixasse ir também na
carruagem, mas Eugene arrancou o chicote da mão do
cocheiro e açoitou selvagemente o filho. E afastou-se na
carruagem, ainda brandindo o chicote. Os empregados
reuniram-se no escritório, horrorizados, mas contentes pela
cena, sussurrando, formulando as mais incríveis teorias,
porém nenhuma delas sequer se aproximava da verdade.

Honore, agora passando mal fisicamente, além de


mentalmente, não tinha condição de voltar ao laboratório.
Sentou à mesa do pai, tentando controlar o tremor violento,
umedecendo os lábios, cobrindo o rosto com as mãos,
censurando-se com profundo fervor e sinceridade. A mãe
nunca me perdoará por isso, pensou ele. Meu pai está
doente, não sabe o que faz. Oh, Deus, o que ele dirá a Tio
Ernest, o que vai resultar de tudo isso? Que Deus me
condene pelo que fiz!

Mas quando a carruagem chegou ao prédio de Barbour &


Bouchard, Eugene foi encontrado caído sobre as almofadas,
grotescamente contorcido. Quando o pegaram, descobriram
que estava morto.
O Arcebispo Aloysius Dominick leu a notícia da morte de
Eugene nos jornais e enviou um telegrama de condolências à
viúva. E pensou, tristemente, sombriamente: “Aquele homem
não apenas distribui a morte pelo mundo, mas também a
semeia entre os que estão ao seu redor.”
CAPÍTULO XCIX
Godfrey Sessions, absorvido em si mesmo,
egocentricamente distante da realidade, não tornou
conhecimento do desespero total e da angústia profunda da
mãe quando soube, por intermédio de Florabelle e da notícia
nos jornais, do casamento de Ernest com sua prima, Amy. Ele
tinha suas aulas, seus amigos, tão egocêntricos e absorvidos
em si mesmos, seus concertos e excitamentos débeis e frios.
Suas exigências à mãe eram rigorosas, pois sentia uma
autocomiseração excepcional. May precisava constantemente
encorajá-lo, lisonjeá-lo, apaziguá-lo e condoer-se dele,
partilhar suas indignações, não importando a tristeza com
que observava como eram mesquinhas e insignificantes.
Tinha que fingir uma paixão pela música que não sentia,
suportar as visitas dos amigos de Godfrey, embora
compreendesse, mesmo em sua inexperiência, como muitos
eram medíocres e estúpidos, mal-educados, grosseiros e
gananciosos, apesar de suas conversas reverentes sobre a
‘arte’. Godfrey parecia um garoto amuado; quando a menor
coisa o desagradava ou o menor obstáculo exigia um pouco
de sua atenção imediata, ele tinha um acesso desvairado,
emitindo gemidos lancinantes e acusações contra um mundo
brutal e ganancioso. Era caprichoso e infantil, ressentido e
melancólico, taciturno e exaltado alternadamente, às vezes
passando dias a fio sem falar com a mãe, se ela o
desagradava em alguma coisa ou criticava gentilmente os
seus amigos mais abomináveis.

Mas quando o nome do filho, Godfrey Sessions, aparecia


mais e mais nos jornais franceses, quando mais e mais de
suas composições eram apresentadas pelas grandes
orquestras, então May sentia que estava sendo
recompensada por sua devoção, dispêndios financeiros e
sacrifícios, até mesmo pela terrível solidão de seus dias e as
lágrimas amarguradas que derramava à noite.

Quando ela recebeu a notícia do novo casamento de


Ernest, Godfrey comentou, com a raiva fria que era uma
parte marcante do seu caráter:

— Eu não esperava nada melhor daquele animal e daquela


mulher.

Ele descartou o assunto com essa frase e um gesto


desdenhoso. Ficou muito perturbado e indignado ao
constatar que May não podia fazer a mesma coisa. Suas
atitudes e expressões insinuavam que a mãe estava sendo
muito tediosa e irritante, com suas lágrimas, voz embargada
e mãos retorcendo. Será que ela não percebia que estava lhe
causando irritação e impaciência? Com a cara amarrada e
sacudindo a cabeça em desespero, Godfrey pôs algumas
roupas numa valise e retirou-se para um hotel próximo, com
altivez e uma atitude de ofendido, ali ficando por quase uma
semana, dando a entender a May que só voltaria quando ela
não mais o aborrecesse e irritasse. Godfrey esperava que a
mãe o procurasse no máximo em dois dias. Mas depois que
se passaram seis dias sem que recebesse qualquer notícia de
May, ele voltou para casa, disposto a perdoar, se a mãe
demonstrasse suficiente arrependimento e deixasse bem
claro que iria comportar-se direito dali por diante. Encontrou
May calada e angustiada, mas gentil e atenciosa como
sempre. Godfrey era por demais egoísta e mesquinho para
tomar conhecimento ou se importar com o tormento e
desespero da mãe. Contudo, May nunca mais tornou a sentir
a antiga devoção total pelo filho. Sentia pena dele por sua
cegueira intrínseca, mas sabia também que estava mais
sozinha agora do que em qualquer outra ocasião anterior de
sua vida.
A renda de May era grande o bastante para que pudesse
ocupar uma imensa suíte num hotel familiar em Champs-
Élysées, um hotel famoso por seu vasto saguão e colunas de
mármore preto, grossos tapetes vermelho-escuros,
candelabros de cristal, uma ampla escadaria de mármore
branco e criados eficientes. Ela tinha quatro criados
particulares, uma camareira, uma criada pessoal, um
cocheiro e um valete para Godfrey, Todos os dias, desfilava
em sua carruagem aberta pela Champs-Élysées, através dos
jardins das Tuilleries e do Bois, a sombrinha inclinada sobre
o chapéu pequeno, os olhos interessados, sorrindo
mecanicamente. Ainda amava as coisas bonitas e a suíte era
requintadamente decorada e mobiliada por ela própria. Mas
acabou descobrindo que havia um ponto de saturação até
mesmo em comprar. E quando o guarda-roupa estava
transbordando de trajes elegantes, que raramente tinha a
oportunidade de usar, quando a suíte estava perfeita em
todos os detalhes, constatou que não havia mais sentido
nem prazer em continuar a sair para fazer compras. Depois
de algum tempo, também cansou de viajar pela Europa, de
escutar música, música, música, até o cérebro flutuar num
labirinto de acordes, as sinfonias se transformando em algo
que só podia suportar às custas de profunda agonia. Tinha
poucos conhecidos, mesmo entre os residentes americanos
em Paris. Embora se entregasse às obras de caridade e
tentasse se interessar pelos miseráveis e indigentes, além de
receber os amigos ‘abomináveis’ de Godfrey, seu tédio e
solidão transformaram-se numa agonia física. Estava nesse
estado de espirito quando chegou a notícia a respeito do
casamento de Ernest. Depois disso, caiu numa espécie de
estupor atordoado, em que tudo o que fazia era automático e
a vida se tornava apenas um sonho vago de desespero e
sofrimento.

May compreendeu subitamente que, embora Ernest


tivesse se divorciado dela, com o seu consentimento
posterior, ele nem ao menos fora cavalheiresco e gentil o
bastante, depois de 34 anos de vida conjugal, para conceder-
lhe o privilégio da iniciativa. Sempre acreditara que Ernest
possuía profunda afeição e consideração por ela, mais do
que ele próprio imaginava, que a separação faria com que o
marido recuperasse o bom senso, reconhecendo que estava
velho demais para paixões intensas e precisava de sua
companhia e compreensão, mais do que necessitava de
satisfação no ‘amor’. May compreendia agora, com angústia e
um desespero mortal que somente ela conhecia, que não
dera muita importância ao amor de Ernest por Amy. Além
disso, pensou ela, até mesmo um homem na casa dos 50
anos podia recordar a paixão antiga e precisar do amor
antigo. Não posso continuar a viver, decidiu May, do fundo
de seu sofrimento; tudo está morto para mim. Mas não o
culpo por isso. Culpo a mim mesma e a Gregory. Ele devia
compreender que tipo de homem Ernest era e eu nunca
deveria ter-me casado, sabendo que ele não me amava.

As mortes trágicas de Gertrude e Guy não haviam lhe


causado tanto sofrimento. Ela compreendia muito bem que
deixar Ernest depois da morte de Gertrude fora uma atitude
pateticamente infantil de uma mulher de meia-idade que
desejava o conforto de ternura de um marido amado, que se
tomara frio e indiferente. Não havia agora a menor
possibilidade de que isso acontecesse. Com a maior
indiferença e esquecendo-a por completo, Ernest finalmente
casara com a única mulher que sempre desejara. O que farei
agora?, perguntou-se ela. E continuou a se perguntar,
interminavelmente, até que se tornou um coro de seus dias e
noites terríveis: O que farei agora?

Ela recebia notícias frequentes dos amigos e parentes na


América. Ficou profundamente desolada quando soube que
Eugene morrera de um ataque cardíaco. Sempre gostara dele,
por causa de sua gentileza e integridade, de que poucas
pessoas desconfiavam. May fora uma das duas ou três
pessoas que tinham alguma ideia da permanente aflição e
angústia em que Eugene vivera. Contudo, jamais gostara de
Dorcas, de quem costumava comentar:

— Reconheço que Dorcas parece uma dama, mas não se


pode a rigor considerá-la como tal, tendo em vista suas
origens.

May desconfiava da aristocracia genuína de mulheres


cujos pais pertenciam às classes trabalhadoras. Ela própria
uma autêntica aristocrata, sabia que os cavalos puro-sangue
não são normalmente gerados por animais que puxam o
arado. Mesmo assim, embora recordando a indiferença,
frieza e incapacidade de Dorcas de sentir qualquer simpatia,
ternura ou compaixão por alguma pessoa fora do seu círculo
familiar imediato, May ficou pesarosa por ela. Escreveu-lhe
uma carta comprida e afetuosa, esquecendo os seus próprios
sofrimentos pessoais, pois sabia que o marido de Dorcas
fora toda a vida dela. Não recebeu qualquer resposta à sua
carta generosa. Mas não ficou magoada, pois sabia o que era
o sofrimento pelo qual Dorcas estava passando. Contudo,
ficou terrivelmente chocada ao receber, alguns meses
depois, uma carta tarjada de preto enviada por Florabelle,
comunicando a morte de Dorcas.

“Acho que Dorcas morreu quando Eugene morreu”,


escreveu Florabelle. “Ela nunca mais foi a mesma. Nem os
filhos a interessavam. Claro que visitei-a muitas vezes e
procurei confortá-la, recordando-lhe meus próprios
sofrimentos, como os suportava bravamente, como disse o
major, ao ponto de esquecer os meus queridos filhos e todas
as minhas obrigações como mulher e mãe, meu dever para
com os amigos de longa data e a comunidade em geral, o que
me obrigava a assumir um rosto calmo e corajoso, em meio
ao infortúnio, lembrando que o sofrimento é o nosso destino
comum e que os problemas são nossos companheiros
cotidianos, além...” May, com lágrimas escorrendo sobre as
faces murchas, pulou vários parágrafos de tais lamentos
apressadamente e chegou à curta informação final, de que
Dorcas contraíra uma gripe no inverno, que degenerara para
pneumonia, morrendo em 24 horas.

Mais tarde, Florabelle escreveu para informar que Etienne,


“que está realmente muito bonito para se descrever com
meras palavras, minha cara May, embora seja meu sobrinho
e eu não devesse dizer isso, conseguiu um papel pequeno,
mas importante numa peça que está sendo apresentada em
Nova York, mandando para casa dezenas de comentários
favoráveis publicados pela imprensa. Corre o rumor de que
ele deverá se apresentar em Londres dentro de um ano, com
a mesma companhia. E não se deve pensar de jeito nenhum
que Etienne é um tolo, pois ele é, na verdade, muito esperto
e inteligente. Etienne e Honore quase não se falam mais, por
causa dos termos do testamento de Eugene, designando
Ernest e Honore, que é três anos mais moço do que Etienne,
como executores conjuntos. Etienne exigiu que lhe
mostrassem todos os livros e contas, conferindo tudo
meticulosamente. Foi só depois de muita persuasão e
pressão do querido Ernest que Etienne concordou, como um
dos principais acionistas, em votar em Honore para
presidente da Kinsolving Arms Company. Acredito
sinceramente que, se ele não tivesse o papel na peça, haveria
de querer ser o novo presidente da companhia. Ah, esses
homens são tão cansativos com as suas mesquinhas
ciumeiras! Quanto a Renée, devo dizer que é a mais feia,
esquelética e desajeitada solteirona que se pode imaginar!
Jamais pude sequer ver os seus olhos bonitos, que todos
comentam. Ela é tão esquisita, volúvel e descuidada com as
roupas que me faz lembrar um pouco... e peço que me
perdoe por dizer isso, minha cara May... da pobre Trudie.
Mas é claro que Trudie possuía uma elegância discreta que
Renée jamais teve. André e Antoinette estão vivendo agora
comigo e aquela horrível casa dos Bouchards está sendo
agora demolida. Estou com a impressão — e é uma coisa
deliciosa! — que o meu querido Leon e Antoinette estão
ficando apaixonados. Ela é uma menina adorável, parece até
porcelana de Dresden. André é um dos assistentes de Leon
no banco. Leon o tem em alta conta. Meu querido Chandler
está indo muito bem em Princeton, mas se declara
interessado por aquele lugar horrível, a fábrica. E minha
querida Betsy, com 19 anos (é uma beleza, posso lhe
assegurar, quase tão linda quanto eu era, segundo o
exagerado major), vai um dia desses anunciar o seu noivado
com o sobrinho do major, Henrik. Claro que Henrik não é
muito rico. Mas o pai dele, John Van Ryn, era um
descendente do primo de Rembrandt, sendo a família
impecável. O major diz que dará ao jovem casal um presente
de 70 mil dólares, quando casarem. Já lhe falei que François
acaba de ter um livro de poemas editado, a capa no couro
marrom mais elegante que se pode imaginar?

“Por acaso lhe contei em minha carta da semana passada


que estive com o seu Reggie? Ele veio a Windsor, só Deus
sabe para tratar de que negócios. Encontrei-o na Evergreen
Road, numa horrenda carroça, em companhia da mulher.
Deus do céu, mas que casal! Parecem até aqueles antigos
puritanos, que estudamos na escola. Reggie usava um
chapéu preto de aba larga, uma barba preta, calça preta,
casaco preto. E sua mulher estava de touca e xale! Estavam
com duas meninas, realmente adoráveis. É uma pena vestir
duas fadinhas daquele jeito, com toucas e vestidos imensos,
arrastando-se pelo chão. Verdadeiras caricaturas, minha cara
May. Comentou que Joey raramente escreve. Pois ele também
está no banco agora, como você provavelmente já sabe,
trabalhando lado a lado com o André, de Dorcas. John
Charles é o segundo vice-presidente do banco e se ressente
muito de estar subordinado a Leon. Sempre detestei John
Charles. Dizem que não se passarão muito anos para que
Leon seja promovido a presidente. E na próxima assembleia
dos acionistas, é certo que o meu maravilhoso Jules será
eleito presidente da Sessions Steel Company. Se o meu meigo
e santo Philippe ainda estivesse vivo..., mas não se pode
esquecer as bênçãos que temos e meus outros filhos são
tudo o que uma mãe pode desejar. O major me chama de
Cornélia e suas joias.

“Há poucos dias, vi Elsa em sua carruagem, saindo para


as compras com a sua querida netinha Alice. Pedi uma
fotografia da menina, como sugeriu que eu fizesse. Assim
que receber a fotografia, mandarei para você, embora ainda
não compreenda por que não pode pedi-la diretamente. Alice
está agora com quase seis anos, cachos avermelhados, como
os seus antigamente, embora todos pensássemos que seria
loura, corno Dorcas e eu, com lindos olhos azuis.

É lamentável que ela não conheça a avó! Elsa é muito hostil


comigo, provavelmente por causa de Jules. É que Jules e Paul
não se falam socialmente há mais de dois anos. Elsa, embora
tenha apenas 35 anos, já está com os cabelos bastante
grisalhos. É do tipo de mulher que envelhece rapidamente.

“Raramente nos encontramos com Paul, a não ser a


distância, em jantares, recepções e festas. Ele está
engordando, ficando um tanto grisalho. É muito antipático,
pelo menos comigo, sua tia. Não dá para entender como o
pobre e suave Martin pode ter sido o pai de gente como Elsa,
Paul e John Charles. Afinal, Martin era meigo, suave e
humilde!

“Lucy e o marido vieram passar o Natal em Windsor,


trazendo o filho. Thomas já é um garoto crescido, com quase
10 anos. E não tem nada de Barbour. Lucy tornou-se uma
moça muito simpática e não resta a menor dúvida de que
Nova York melhorou-a consideravelmente, pois é agora
amável e interessada pela família. Contudo, ela também
engordou e está perdendo sua boa aparência.”

Havia páginas e mais páginas assim. E depois, ao final,


uma informação, muito cautelosa para uma mulher tão
indiscreta quanto Florabelle: “Quase não vejo Amy, mas ela
está com ótima aparência, para uma mulher de sua idade.
Ernest veio jantar sozinho comigo na noite passada. Amy
não pôde vir porque John Charles e Joey não têm passado
muito bem ultimamente. É preciso tomar muito cuidado
atualmente, com o tifo grassando à solta, os jornais
bradando escandalosamente que Ernest é o grande
responsável, por não cuidar dos casebres em que vivem seus
operários e não drenar os pântanos perto do rio, onde eles
moram. Muitos estão morrendo da epidemia. O próprio
Ernest não está com bom aspecto, tendo emagrecido demais.
Todos achamos que ele está trabalhando em demasia. E seus
cabelos ficaram inteiramente brancos. Lamento dizer que ele
está afinal demonstrando a idade que tem.”

May terminou a carta com a mesma sensação com que


lera todas as outras, de que percorrera um caminho
extenuante, através de mata densa de espinheiros, longos
trechos quentes e estéreis, só para alcançar um oásis
insatisfatório, em que a água era amarga e escaldante e as
tamareiras estavam cobertas de areia.
CAPÍTULO C
May recebeu uma cópia cerimoniosamente autografada de
Poemas da Melancolia, de seu sobrinho François Bouchard, a
capa em couro vermelho, com letras douradas. Era uma
mulher muito gentil e graciosa, mesmo nos pensamentos,
para pôr o livro de lado, com um sorriso. Estava não apenas
curiosa em saber o que François escrevera, mas era também
conscienciosa. Sempre sentira um pouco de pena de
François, magro, moreno e neurótico, com seus olhos pretos
febris, abundante cabeleira preta, lábios morenos e
ressequidos, que ele estava sempre umedecendo. Ele era ‘o
Jesuíta’ esquecendo sua crueldade e tornando-se
atormentado por uma espécie de dança de São Vito interior.

Os poemas não eram de todo ruins, mas


constrangedoramente amadores, na visão de uma mente
adulta. Em determinados momentos, eram empolados
excessivamente, bombásticos, profundamente desesperados
ou banais. Mas uns poucos versos atraíram a atenção de May,
espantando-a, deixando-a admirada pelo fato de um jovem
como François, inocente e egocêntrico, pudesse ter escrito
tal coisa:

“Ah, não me diga que a memória é vida!


Não passa de morte,
Consciente de si mesma!”

Minha vida é justamente isso, “a morte consciente de si


mesma”, pensou May, com uma compreensão angustiada e
atônita. Oh, Deus, se eu não tivesse nenhuma recordação! Se
eu não me lembrasse das crianças em torno da mesa de
jantar, a mesma mesa em que meu pai também jantava, Frey
e Gertrude, Reginald, Guy e Joey! Os jantares de Natal, com o
peru e o presunto fumegantes na mesa, as tigelas de prata
com castanhas, maçãs e doces, o fogo se refletindo nas
paredes de mogno, a linha branca no peitoril das janelas, a
neve caindo e caindo, as árvores congeladas estalando! E os
sinos dos trenós no caminho, parentes e amigos chegando,
trazendo embrulhos e cestos, todos rindo e gritando,
batendo os pés para tirar a neve das botinas, beijando e
virando as faces vermelhas e geladas para serem beijadas...
todas as coisas que constituem um lar e que nada poderá
jamais substituir. E Ernest, com as pernas bem abertas, de
costas para o fogo, o Ernest jovem, o Ernest de meia-idade, o
Ernest velho, mas sempre o Ernest que amei!

A inquietação e o desespero de May estavam agora piores,


pois era Natal outra vez, Natal em Paris, com uma chuva
interminável caindo, carruagens passando de um lado para
outro, guarda-chuvas, vozes estranhas. Como sempre,
Godfrey estava ausente, pois sua Segunda Sinfonia seria
apresentada no Opera, no Dia de Natal. Ele estava ocupado
com os ensaios, alheio ao tempo, à mãe e às suas obrigações,
até mesmo à comida e ao sono. Não apareceria em casa, nem
mesmo para o jantar. May estava dando o dia de folga aos
criados, tencionando comer o seu jantar solitário na sala de
jantar grande e fria do apartamento-hotel. Depois, iria ao
teatro para ouvir a sinfonia do filho, embora sua mente
esgotada e o corpo exausto estremecessem com a
perspectiva.

Enquanto o relógio de ouropel em cima da lareira de


mármore preto da sala de estar batia uma hora, May suspirou
e começou a pensar se deveria usar o vestido preto de
veludo ou o vestido azul-escuro, se o mais apropriado
seriam pérolas ou diamantes. A chuva escorria pelas janelas
com cortinas de seda e ela podia ouvir o barulho das patas
dos cavalos avançando penosamente sob a chuva na rua lá
embaixo, o rumor surdo das rodas das carruagens. O fogo
ficara baixo e parecia espreitar soturnamente por trás das
grades. May podia ouvir o tiquetaquear do relógio, o barulho
da chuva, os carvões caindo na lareira, a própria respiração.
E nada mais.

Subitamente, ela pensou: sou uma mulher velha e


solitária, numa casa estranha, num país estranho, entre
estranhos, sendo que o mais estranho de todos é meu filho!
Nem mesmo ele me quer, não há uma única pessoa que se
importe que eu morra agora nesta sala ou não. E não fui má
mulher, não fui uma péssima mãe. Amei meu lar, meus filhos
e meu marido, proporcionei-lhes alegria e ternura,
compreensão e caridade. E na velhice, apesar de todas as
máximas e provérbios, fiquei sozinha, uma velha com
lágrimas caindo sobre o peito farto, um jantar solitário a me
esperar, numa sala de jantar solitária e vazia, preparada por
estranhos.

Ela enxugou os olhos e disse a si mesma, desesperada,


que não poderia comparecer à apresentação da sinfonia.
Godfrey não tomaria conhecimento de sua presença, nunca
lhe pedira uma opinião sobre suas composições. E, no
entanto, ela também não podia ficar ali, sozinha! Levantou-
se, dominada pelo pânico, cerrando as mãos sobre o coração,
a respiração ofegante.

E foi nesse momento que o retinido estridente da


campainha da porta rompeu bruscamente o silêncio. May
teve tamanho sobressalto que largou o lenço e seu coração
disparou. Não podia ser Frey e certamente não era nenhum
de seus conhecidos casuais, que não se lembrariam de uma
velha solitária no Dia de Natal, uma velha que aparentemente
tinha dinheiro e posição para distrair-se como quisesse. May
foi até a porta, pois todos os criados estavam de folga. Abriu
a porta, os joelhos trêmulos.
Uma moça alta, magra, encharcada de chuva, estava
parada ali, olhos pretos bem grandes num rosto fino e
pálido, os cabelos pretos escorrendo água sob as faces
ossudas, o chapéu torto por cima da testa, as plumas
ensopadas, o casaco deselegante abotoado tão
apressadamente que dois botões de madrepérola subiam
pela garganta, soltos, pois as respectivas casas estavam
ocupadas por outros botões. As botinas já estavam deixando
manchas úmidas no tapete vermelho. Por trás dela,
espreitava um pequeno carregador, entortado pelo peso de
uma valise, que parecia prestes a estourar, de tão estofada.
Toda a aparência da jovem era de negligência febril, como se
achasse que roupas não passavam de um estorvo
insuportável, mas talvez necessário. Ela estava ofegante, o
que dava para desconfiar que lhe acontecia com frequência,
sua atitude era a de uma pessoa inocente e distraída, que às
vezes julgava a vida difícil demais, muito exigente e
exasperante.

May fitou-a com profunda incredulidade, piscando


rapidamente, até que finalmente exclamou, em voz débil:

— Renée!

— Sou eu mesma. Renée. Como vai, Tia May querida? — E


ela plantou um beijo veemente e molhado no rosto de May.
— Cheguei a Paris esta manhã, a fim de passar o Natal em
sua companhia e... Ora, aqui estou! Beije-me outra vez, Tia
May querida! Não mudou nada! Ora, rapaz, deixe logo essa
mala em algum lugar. Qualquer lugar serve! Tem um franco,
Tia Mary? Vamos nos livrar logo desse pobre coitado!

Na maior confusão, May levou Renée a seu próprio


quarto, ajudou-a a desfazer a mala e vestir roupas secas
(enquanto Renée falava sem parar, aos arrancos, veemente).
E pensou: é claro que ela vai dormir comigo. O que será que
Frey vai dizer, ele que é tão sensível, enquanto Renée é tão
exasperante, ruidosa, tagarela e desalinhada? Mas ela é
também extremamente simpática!

Quando Renée, em roupas secas amarrotadas, consistindo


de um horrendo e informe vestido preto, com uma gola
branca não muito limpa, botinas pretas precisando
urgentemente de limpeza e os cabelos pretos e lisos metidos
desajeitadamente numa rede, com duas pérolas pendendo
das orelhas trigueiras, estava sentada diante do fogo,
tomando um café quente, a sala não mais parecia desolada e
abandonada, o fogo crepitava com a maior animação, até
mesmo a chuva acrescentava um toque protetor e de
aconchego à tarde de inverno.

Ela continuou a falar incessantemente, com sua voz


brusca e nervosa, parecendo correr com uma violência febril
de um assunto para outro, como se estivesse sendo
perseguida. Os olhos grandes e escuros acrescentavam
beleza ao rosto comprido, fino e pálido, com sua boca
grande e lívida. As mãos grandes e ossudas, com as
articulações proeminentes, gesticulavam continuamente,
com movimentos os mais esquisitos. Mas May, sorridente,
feliz e relaxada, pensava que era uma pena que ninguém
jamais tivesse percebido que havia inteligência, bondade e
integridade compreensiva por trás daquele rosto feio, quase
uma ‘cara de cavalo’. Pensava também que se alguém se
desse ao trabalho de vestir a pobre moça de maneira
apropriada, talvez em veludos de um vermelho-escuro,
empilhando os cabelos em espirais, Renée ficaria
indubitavelmente distinta. Depois, por trás da animação
intensa e da energia quase convulsiva no rosto e atitude de
Renée, May, tão acostumada à tristeza, percebeu a tristeza e
angústia. E lembrou que Renée idolatrava o pai. Agora que já
não tinha mais pai nem mãe, ela cuidava da casa solitária
para o irmão Honore, que vivia ocupado demais para sequer
perceber se Renée estava viva ou não.

— É uma casa pequena — Renée estava dizendo, com um


sorriso forçado, que deixou à mostra os dentes brancos e
quadrados — na Crescent Road. É uma dessas casas novas,
com água-furtada, portas altas e campanário. Só tem oito
cômodos e três criadas. Mas é grande o bastante para Honore
e para mim. Tem dois quartos extras, para as ocasiões em
que Etienne aparece, trazendo um convidado, o que não
acontece com muita frequência.

Renée viajara para a Inglaterra em companhia de uma


amiga, um tanto inesperadamente.

— Mas eu me sentia muito solitária em casa, não podia


suportar outro Natal... sem papai. E agora este Natal nem
mesmo teria mamãe... E pensei: por que não ir a Paris e
visitar a querida Tia May e Frey? E aqui estou! Anita não se
importou, é claro. Ela foi para a Escócia, onde tem uma tia-
avó e um tio. Mas eu não suportaria a Escócia, depois da
Inglaterra. A Inglaterra já foi horrível o bastante...

Ela sorriu jovialmente, mas May tornou a perceber a


solidão, o medo e a angústia por trás daquele sorriso.

— Fique aqui comigo, minha querida Renée — disse May,


impulsivamente. Ela pegou a mão da sobrinha e apertou-a
entre suas palmas trêmulas. — Sou uma tola, uma velha
sentindo pena de si mesma. Mas me sinto muito solitária e
sempre a amei, minha querida. E Frey... ele não vai sequer
perceber a sua presença, a menos que você goste de
música... Gosta, por acaso? Então ele ficará cativado e você
ouvirá música o bastante para satisfazê-la pelo resto de sua
vida.

O rosto sorridente de Renée assumiu de repente uma


expressão de horror.

— Oh, mas como sou horrível, Tia May! Não lhe contei!
Joey e John Charles estão muito doentes, com febre tifóide,
embora se achasse que Joey estava melhorando, quando
viajei, há quatro semanas, Mas John Charles estava muito
mal. E Tia Amy cuidava dos dois...

— Joey? — O rosto de May ficou pálido e contraído, ela


sentiu uma náusea subir-lhe pela garganta. — Joey? Mas ele
deve ter melhorado ou então eu já teria recebido alguma
notícia!

— Claro! Ele estava melhorando há quatro semanas. Mas


foi uma epidemia terrível e todo mundo disse que a culpa
era de Tio Ernest, o que é um absurdo, embora ele tenha se
recusado terminantemente a fazer qualquer coisa com
relação ao suprimento de água de seus operários. O lugar em
que eles vivem é pantanoso e o médico avisou várias vezes
que, se Tio Ernest não tomasse alguma providência a
epidemia poderia se espalhar e nada seria capaz de controlá-
la. Mas ele disse que tudo isso não passa de bobagem... Sabe
como é Tio Ernest.

— Tem razão, sei muito bem como é ‘Tio Ernest’ —


murmurou May, entre os lábios semicerrados e lívidos.

— Quando Joey e John Charles contraíram tifo, além de


muitas outras pessoas, Tio Ernest finalmente cuidou do
abastecimento de água. Mas já era tarde demais. Os jornais
de Filadélfia começaram a pedir o sangue dele. Tio Ernest
teve até de processar um desses jornais. E agora os jornais
de Nova York também entraram no assunto furiosamente e
está havendo uma investigação.

May, dominada subitamente por um medo terrível, tocou


a campainha de serviço. Quando um empregado do hotel
apareceu, ela escreveu um telegrama, as mãos trêmulas e
geladas. Era endereçado a Ernest e pedia informações sobre
o estado de Joey.

Isso feito, ela tentou se concentrar na conversa de Renée.


Mas um pressentimento terrível a invadira e o corpo tremia
em calafrios. Vou ficar muito doente se não me controlar,
disse ela a si mesma sem cessar, tentando prestar atenção à
conversa de Renée. Suas mãos se retorciam
convulsivamente, ela precisava engolir em seco
repetidamente para reprimir a vontade de gritar.

Naquela mesma noite, quando May acendia os lampiões e


os criados estavam voltando, chegou um telegrama de
Ernest:

“Joey morreu esta manhã, às dez horas. John Charles


morreu há três dias.”

Apenas isso, sem qualquer tentativa de atenuar o golpe,


sem a menor demonstração de preocupação pela mãe de seu
filho.

Mas May, em sua própria agonia, perdoou até a isso, pois


Ernest perdera, com a morte de Joey, a sua última esperança
nos filhos. E Joey morrera quase que por iniciativa dele,
quase que por sua mão, como acontecera com Guy e
Gertrude.
CAPÍTULO CI
Renée cuidou de May com devoção durante o mês de
doença que manteve a pobre mulher acamada. May estava
sofrendo de choque, colapso nervoso e desespero. Seu
estado era tão grave que deixou de se preocupar com os
sentimentos de Godfrey. Não pensou por um momento
sequer na reação dele à chegada e permanência de Renée no
apartamento, à inconveniência, desordem e confusão que a
doença acarretava.

Para seu espanto, no entanto, descobriu que, depois da


primeira convulsão e indignação, Godfrey acomodou-se à
nova situação. É verdade que, por várias semanas, ele
mostrou-se distante e formal com a prima, evitando sua casa
ostensivamente, não aparecendo para as refeições e
demonstrando, quando era obrigado a estar presente, apenas
a mais tênue solicitude pela mãe e bem pouca consideração
por Renée. Toda a sua atitude indicava que considerava
tudo, inclusive a morte do irmão, uma trama sinistra
destinada a acabar com sua tranquilidade e perturbar seu
conforto. Seu comportamento era indignado e o rosto exibia
sempre uma expressão altiva de ressentimento. Contudo,
controlou a histeria inicial e ficou calado e reservado, não
criando maiores problemas e mantendo os amigos a
distância.

Renée tentou a gentileza, bom humor, apaziguamento,


interesse pela música, paciência e sorrisos, sem obter
quaisquer resultados, a não ser olhares indiferentes e lábios
contraídos. E foi então que uma noite, depois de deixar a tia
dormindo em seu quarto, Renée encontrou Godfrey na sala
de estar, com uma expressão soturna, uma pauta em branco
nos joelhos, um lápis na mão. Ele fez menção de que ia se
levantar e escapar, como sempre fazia à aproximação de
Renée. Mas ela pôs as mãos fortes nos ombros delicados do
primo e forçou-o rudemente a se sentar de novo na cadeira.
E de pé diante dele, Renée disse, mantendo a voz firme e
controlada:

— Você é um porco. Apenas um porco. Não chega a ser a


sombra de um homem. Não passa de um porco.

E ela fitou-o com seus olhos bonitos subitamente ardendo


de desprezo e repulsa.

Renée afastou-se em seguida, andando firmemente. Foi


para a cozinha, a fim de supervisionar o preparo do cardápio
para o dia seguinte. Não virou a cabeça a fim de olhar para
Godfrey, que estava encolhido e atônito na cadeira.

Godfrey saiu e não voltou por três dias, período em que


Renée mentiu freneticamente a May a respeito de seu
paradeiro. Ele voltou no terceiro dia e Renée o encontrou no
vestíbulo. O rosto dela estava extremamente pálido, com
olheiras profundas, de falta de sono e ansiedade. Ao deparar
com o primo, o rosto de Renée se iluminou de alívio intenso,
a que se seguiu imediatamente uma expressão de desdém e
raiva. Renée tentou passar por ele. Contudo, para sua
surpresa, Godfrey segurou-lhe o braço. E ela descobriu, com
crescente espanto, que Godfrey estava sorrindo. Ele nunca
lhe sorrira antes. De repente, Godfrey pareceu-lhe
singularmente bonito, com um rosto meigo.

— Tem toda razão, Renée — disse ele, suavemente. — Sou


um porco. Apenas um porco. Nunca vou mudar, só que agora
compreendo o que sou. Acha que pode me aturar assim
agora?

E ele beijou o rosto pálido e encovado de Renée,


ternamente, como nunca antes beijara ninguém, nem mesmo
a mãe.

Renée prorrompeu em lágrimas de exaustão e alívio,


sentindo alguma coisa intensa e maravilhosa, que não podia
compreender. Agarrou-se a Godfrey, o rosto comprimido
contra o dele, as lágrimas escorrendo pelas faces de ambos.
Godfrey também chorava e os dois ficaram parados ali por
algum tempo, abraçados.
CAPÍTULO CII
Durante o seu período de convalescença, May pensou em
Ernest e Amy e disse a si mesma: tentei odiar a ambos, mas
não posso fazê-lo. Gostaria de poder. Mas o ódio parece
muito mesquinho diante da vida, como uma criança
investindo contra uma montanha. Ela tentou recordar algum
poema que lera em algum lugar. Não dizia o poema que não
havia necessidade de ser um vilão, que “as paixões tecem a
trama” e que “somos traídos pelo que é falso interiormente”?
Mas por que falso? Um homem certamente não chega a ser
responsável pela definição de seu caráter. Na melhor das
hipóteses, pode apenas disfarçar as suas características;
mesmo que os resultados sejam positivos, é hipocrisia.
Ernest não fora hipócrita e Amy também não. Ernest
permitira que seu padrão de caráter inato se desenvolvesse,
com grande força de destruição para tudo e todos que se
aproximavam das fronteiras de tal padrão. Mas mesmo a sua
capacidade de permitir o desenvolvimento do padrão fora
parte de sua natureza. Era tudo muito confuso.
Aparentemente, os cidadãos íntegros, probos, eram apenas
hipócritas deliberadamente, distorcendo as suas próprias
características. Assim, a civilização era apenas um
amontoado de padrões de distorcidos e torturados. Somente
quando havia guerra ou o ódio e a ganância se impunha é
que os padrões se endireitavam convulsivamente,
recuperando suas definições originais.

Deitada em sua cama, recuperando-se lentamente, as


lágrimas de May acabaram por lavar os contornos corrosivos
do ressentimento, angústia e ódio. Ao final, ela pôde até
sentir pena de Amy, que também perdera um filho. May
sabia perfeitamente que os filhos de Amy eram como
estranhos para a mãe, o que parecia um sofrimento ainda
maior do que a morte. Jamais compreendi meus próprios
filhos, pensou ela, mas sempre os amei e eles sempre me
amaram, até mesmo o pobre Joey, no final. Ele realmente
sentiu saudades minhas quando fui embora. Ernest ficaria
surpreso se lesse as cartas dele. Mas os filhos de Amy nunca
a amaram.

O que será a vida dela com Ernest?, pensou May, não sem
uma pontada da antiga angústia. O que ela pode dar-lhe que
eu não dava? Algum dia ele aprenderá que toda devoção e
amor são a mesma coisa, não importando a longo prazo
quem os dê, contanto que sejam dados. Ele está ficando
velho, vai aprender isso antes que se passe muito tempo.
Mesmo a recordação da paixão pode tornar-se um cansaço e
um tédio, uma palavra sentimental como ‘afinidade’ pode ser
algo a lembrar com uma risadinha constrangida.

May sabia que nunca mais poderia voltar a ser realmente


feliz, que tanto a sua idade como as perdas e experiências
tornavam impossível a felicidade pura. Mas ela estava
sentindo algo muito próximo da paz e contentamento
atualmente. Pois era-lhe óbvio que Renée e Godfrey estavam
apaixonados.

Renée conhecia muita coisa de música e as poucas


lacunas eram preenchidas pela paixão que tinha pela música.
Ela deu a Godfrey e à música dele toda a sua devoção
profunda e intensa. O interesse de May fora como um rosto
deliberadamente sorridente, até que os músculos faciais
doessem. Mas Renée não precisava de fingimento. Ela fluía
em torno da personalidade tortuosa de Godfrey como água,
contente em seguir os canais e as cataratas impetuosas.
Tornava-se mais quieta e inerte no processo de segui-lo,
embora conservasse a própria identidade. Em nenhuma
ocasião irritava-o ou interpunha-se no caminho dele. Mas
quando o momento parecia necessário, Godfrey não podia
virar-lhe as costas nem fazê-la fluir em outra direção. Ela
disse a May, com toda seriedade, que Godfrey lembrava-a do
pai, o que provocou uma convulsão interior em May, pois
certamente não poderia haver dois homens mais diferentes.

Naquela ocasião, a indústria de armamentos estava sendo


meticulosamente investigada pelo governo francês. Os
jornais estavam repletos de notícias. Ernest Barbour era
frequentemente mencionado. Uma antiga fotografia dele,
tirada há mais de 20 anos, apareceu nos jornais, juntamente
com fotografias de outros fabricantes de armamentos. May
recortou-a e guardou-a. Não estava muito interessada na
investigação, mas sentia uma emoção percorrer-lhe os
nervos cansados e a antiga angústia voltava sempre que lia o
nome de Ernest. Nunca lhe ocorreu que algo sério pudesse
estar acontecendo com Ernest, pois ele sempre lhe parecera
invencível. Depois de algum tempo, as investigações
começaram a definhar e o nome de Ernest não mais foi
citado.

Em março, Godfrey e Renée casaram-se na embaixada


americana, numa cerimônia discreta. Apenas uns poucos
amigos estavam presentes. Renée, com um vestido azul de
veludo, com gola branca de renda, chapéu azul com plumas
brancas, quase parecia bonita, tão exuberante e ardente
estava o seu rosto moreno, tão brilhantes estavam os olhos.
Ela engordara e não precisava de enchimento para estofar o
vestido. Os jornais levaram a notícia à América. Dois dias
depois, chegou um telegrama de Ernest, manifestando o seu
prazer pelo casamento, insinuando que gostaria que o jovem
casal fosse visitá-lo em lua-de-mel, informando que
determinara a Cartier que entregasse uma tiara de diamantes
a Renée e a seu banco de Paris para que desse um cheque
vultoso a Godfrey, como presentes de casamento. May leu o
telegrama. Mas o filho e sua jovem mulher já haviam partido
para a Riviera. Ernest não perde tempo com antigas
hostilidades e velhos fracassos, pensou May. Talvez seja
esse o segredo do poder dele. Ernest sempre parte do ponto
em que está.

Agora que estava novamente sozinha, May foi outra vez


dominada pela angústia, o antigo anseio, solidão e pesar. Era
primavera em Paris, mas não havia qualquer prazer nisso
para aquela mulher envelhecendo numa terra estranha. Vivia
ali há quase quatro anos, mas ainda era uma estranha, sem
paz e sem raízes. Pensava na América com pungência e
nostalgia, até mesmo os seus defeitos pareciam-lhe
cativantes. Como era possível a alguém esquecer o lugar em
que nascera, encontrar algum conforto profundo sob um céu
estranho, aprender todas as nuanças de línguas estranhas,
descobrir amigos entre rostos estranhos? Não era possível e
o cosmopolita total não passava de um completo estranho.
Um homem que encontrava um lar onde quer que estivesse
nunca tinha realmente um lar em parte alguma. Era como
uma daquelas plantas japonesas sem raízes, que precisava
apenas de ar e um pouco de água para crescer em qualquer
terra, mas sem ter substância por si mesma, sem força, sem
raízes para unir o solo e torná-lo firme, sem qualquer base
para construir um lar duradouro.

Todas as raízes de May estavam na casa dos Sessions e


em Windsor, onde casara e dera a luz, onde deixara seus
mortos. Toda a sua substância e carne estavam ali. Aquele
apartamento todo enfeitado, requintado, de tapete vermelho,
na Champs-Élysées, não era um lar. Aquelas ruas não
constituíam um lar. E os dias que se passavam na nostalgia
eram como uma dor crescente, como um abscesso
aumentando.

E num final de tarde ameno, dois anos depois, o céu


parecendo prata polida, May abriu seu jornal americano para
descobrir que Amy Barbour, mulher de Ernest Barbour, “o Rei
dos Armamentos”, morrera de febre tifóide, uma epidemia
que há anos assolava, a intervalos, a cidade de Windsor, na
Pensilvânia.
CAPÍTULO CIII
O velho mordomo não abriu a porta branca com a
bandeira semicircular por cima. Fora substituído por um
homem mais jovem, numa libré nova, que não reconheceu
aquela dama elegantemente vestida, um tanto gorda,
obviamente estrangeira, que estava pagando ao cocheiro do
cabriolé de aluguel que fazia ponto na estação. O mordomo
não gostava de estrangeiros, especialmente das mulheres
estrangeiras. E quando a dama de cabelos brancos e olhos
brilhantes, com fendas nas faces, nos lugares em que outrora
existiam covinhas, entrou no vestíbulo, a cortesia do
mordomo não diminuiu, mas sua frieza aumentou.

— Boa-noite, madame — disse ele de maneira fria,


inquisitiva.

— Boa-noite — respondeu ela, sorrindo ligeiramente.

O mordomo ficou aliviado. Apesar do corte estrangeiro do


casaco elegante, da pluma extra no chapéu, o perfume
nitidamente não americano, a dama, evidentemente, não era
uma estrangeira. Possivelmente era uma dama que viajava
muito.

— O Sr. Barbour, madame, não está... hã... gozando de


boa saúde ultimamente. E quando volta para casa,
invariavelmente fica descansando em seu quarto, até a hora
do jantar. Deixou ordens para não ser incomodado em
quaisquer circunstâncias, por qualquer pessoa ou qualquer
coisa... a não ser talvez por um incêndio. Foram as próprias
palavras do Sr. Barbour, madame.

— E certamente não sou um incêndio, não é mesmo? —


disse a dama, com um sorriso gentil e cativante. — Assim, se
não se importa, ficarei esperando por ele na biblioteca.

Sem a menor hesitação, como se conhecesse a casa


perfeitamente, ela atravessou o vestíbulo para a biblioteca.
Aturdido e apreensivo, o mordomo deu um jeito de chegar à
porta antes e abriu-a, com a maior cerimônia e ansiedade.
Um fogo baixo ardia na lareira naquele final de tarde de
princípio da primavera. Mas não havia qualquer outra luz.

— Por favor, não acenda os lampiões — disse a dama. —


Eu gostaria de ficar um pouco aqui, no escuro. Como já pôde
perceber, conheço esta casa... bastante bem. Ficarei
esperando. Não precisa incomodar o Sr. Barbour.

— Mas ainda não me deu o seu nome, madame! —


exclamou o mordomo, pensando em ladras, aventureiras e só
Deus sabe mais o quê.

Mas a mulher, obviamente, conhecia a casa, falava como


uma parenta. Ele ficou desconfiado. Talvez fosse uma
parenta que não mantivesse boas relações com a família,
uma parenta pobre. Mas com aquelas roupas...

— Quando o Sr. Barbour descer, pode simplesmente


encaminhá-lo para cá, ao meu encontro — disse a dama. —
Ele me conhece muito bem. Quero... fazer-lhe uma surpresa.
Basta dizer que uma dama deseja falar-lhe. Tenho certeza de
que ele não vai culpá-lo por isso.

Ela tornou a sorrir, um sorriso jovial, não a convulsão fria


dos lábios com que outras damas lhe falavam. Todas as
apreensões do mordomo desapareceram. Ela ficou sentada
ali, ao lado do fogo, tirando as luvas francesas e afrouxando
a pele. Os cabelos brancos brilhavam, os diamantes
faiscavam nos dedos encarquilhados. Um relógio estava
preso por uma borboleta de pedras preciosas na blusa de
seda preta. Não restava a menor dúvida de que se tratava de
uma dama e uma dama importante. O mordomo, sentindo-se
de alguma forma atraído para uma conspiração deliciosa, fez
uma mesura e retirou-se. Quem quer que fosse aquela dama,
o Sr. Barbour não poderia deixar de ficar satisfeito por vê-la.
Talvez uma irmã, da Inglaterra... As damas eram sempre
propensas a surpresas assim, por mais perturbadoras que
pudessem ser às mentes masculinas mais rígidas.

Ficando sozinha, a dama deixou de sorrir. Estendeu as


mãos para o fogo, num gesto nitidamente automático.
Correu os olhos lentamente pela biblioteca escura. O fogo
mostrava o braço de uma cadeira ali, a ponta de uma estante
aqui, dourava a madeira preta e envernizada, rebrilhava
numa porta de vidro, mostrava um ornamento por um
momento, para deixá-lo resvalar de volta à sombra no
instante seguinte, avançava e recuava pelo tapete vermelho-
escuro, perto da lareira. Um relógio, invisível num canto
distante e sombrio, bateu as horas sonoramente, enquanto o
fogo crepitava. A sala estava impregnada por um cheiro de
couro velho, sândalo e verniz de móveis. A não ser pelo
relógio e o fogo, tudo estava em silêncio agora, um silêncio
vazio e sombrio, mas também o silêncio expectante,
amistoso e ameno do lar pouco antes da hora do jantar.

Lar... A dama correu os olhos pela sala, como alguém a


beber depois de uma sede prolongada. Lar... Sempre seria o
lar. Tudo continuava como antes. Nenhuma coisa fora
mudada. A antiga segurança e elegância, a mesma beleza e
dignidade, tudo exatamente como lembrava. Certamente
nada poderia ser tão cruel a ponto de expulsá-la novamente
daquela casa, a sua casa, o seu lar, do qual fora exilada, mas
para onde voltava agora. Ela começou a tocar os olhos com a
ponta do lenço de renda. E agora havia outro som em seus
ouvidos, as batidas rápidas e angustiadas de seu coração, o
latejar dos pulsos.
Ela se levantou e andou pela sala, tocando a superfície
que parecia um espelho da mesa de mogno, o encosto de
uma poltrona de couro preto com as marcas dos corpos que
nela haviam se acomodado, o lado amassado de um vaso,
uma cortina. O jardim de primavera lá fora estava inundado
por uma claridade suave, na qual todas as plantas vicejavam.
Uma janela estava entreaberta e a dama pôde sentir o cheiro
penetrante da terra recentemente degelada e da relva nova.
Ela podia ver como o caminho através do jardim virava para
os fundos da casa. O relógio de sol ainda estava ali, assim
como o caramanchão. Já se podia ouvir as rãs coaxando.

Todas as vistas, cheiros, contatos e sons do lar! Ela


encostou o rosto molhado na janela, segurando a cortina
entreaberta. Se ficasse assim por um ou dois minutos,
ouviria a voz de Gertrude lá em cima, a briga entre Reginald
e Guy no quarto deles, as vozes afetuosas a discutirem.
Ouviria os resmungas irritados de Joey, o barulho da porta
de seu quarto batendo violentamente. Ouviria Godfrey
tocando piano na sala de estar. Ouviria os passos de Ernest
na escada, firmes, suaves, descendo lentamente, como se o
pé tocasse e depois empurrasse cada degrau. Mas talvez os
passos fossem um pouco mais rápidos e mais firmes do que
ela podia recordar. Um pouco mais determinados. Mas ela
não podia fazer a recordação se apressar ou tornar-se mais
firme. Mais depressa, mais depressa, pensou ela, angustiada.
Mais depressa, mais depressa. Mas os passos eram lentos,
quase como se fosse um tanto indecisos.

Um momento depois, a porta se abriu e ela divisou uma


sombra na entrada da biblioteca. Ainda na janela, ainda
segurando a cortina, ela virou-se lentamente, quase como se
todo o seu corpo estivesse entorpecido. Estava escondida
pela cortina, escondida pela escuridão crescente. A sombra
ficou parada no limiar, hesitante, finalmente entrou na sala.
— Há alguém aqui, à minha espera? — perguntou Ernest,
numa voz um pouco mais baixa, um pouco mais lenta e um
pouco mais apática do que ela podia recordar.

— Sou eu, Ernest — disse ela, em voz débil.

Ela largou a cortina e adiantou-se. Foi invadida por ondas


de vertigem. O fogo, atiçado pela aragem que entrava pela
porta aberta, elevou-se em chamas alaranjadas, iluminando a
comprida sala escura. Alcançou o rosto de Ernest, revelando-
o. Ela viu que era agora o rosto de um velho... velho e
empedernido, enrugado e pálido, mortalmente cansado. Mas
o queixo ainda era firme como pedra, os olhos que assumiam
uma expressão de incredulidade ainda possuíam o mesmo
brilho implacável.

Parado ali, contemplando-a, o rosto se contraindo, os


olhos piscando, ela viu que Ernest estava quase esquelético,
que a garganta estava murcha e caindo em dobras por cima
do colarinho duro e gravata preta, que os ombros estavam
magros e empinados na postura do velho sob o casaco preto,
que as mãos pendiam nos lados do corpo meio cerradas. Mas
mesmo enquanto ela olhava, toda a cena pareceu mudar. Ele
era novamente o jovem Ernest, que ali parara em sua
juventude, um estranho na casa dos Sessions. Por trás dele
estava Gregory Sessions, com seu sorriso voltairiano e olhos
maliciosos.

Era tudo em sonho, todos aqueles anos que haviam


transcorrido desde que o vira pela primeira vez. Estavam de
volta àquela sala, juntos, novamente jovens, com filhos,
angústia, ódio, medo e sofrimento no futuro, talvez se
podendo evitar. Era de fato tudo um sonho, até mesmo isso.

— May...
Os lábios de Ernest se mexeram lentamente e o nome
parecia um som que saía com dificuldade.

— Eu mesma, Ernest.

Ela parou diante dele, estendendo a mão. Ernest pegou-a.


May pôde sentir a secura fria da mão dele e seus dedos
quentes e firmes apertaram-na.

— Voltei para casa, Ernest. Como sua mulher. E nunca


mais irei embora. — Houve um momento de silêncio e depois
ela acrescentou: — Voltei para casa, Ernest! Diga que me
ama, apenas um pouco! Apenas um pouco servirá, pelo resto
da minha vida!
CAPÍTULO CIV
Citação de The Windsor Herald, possuído, controlado e
dirigido por Barbour & Bouchard:

“Na noite de terça-feira, 14 de fevereiro de 1898, haverá


uma recepção na residência do Sr. e Sra. Ernest Barbour, em
comemoração ao 71º aniversário do Sr. Barbour. Entre os
muitos convidados ilustres, estarão presentes o Sr. Jay
Regan, cujo falecido pai foi um amigo íntimo de Sr. Barbour,
Sr. James Bellowes, ‘o Rei do Querosene’, os Senadores
Geofrey Walters e Bumsey Seaton, Sr. William Howard Taft,
Governador Tom Rankin, ex-Governador William Trowbridge,
Comodoro George Vanderlip, de Nova York, Sr. John Jacob
Astor, Sir Oswald Temple-Temple, adido da Embaixada
Britânica, Conde Ludwig Von Holsen, da Embaixada Alemã,
Monsieur Etienne Beaugard, da Embaixada Francesa, Conde
Antony Romandi, da Embaixada Italiana, Ministro do
Supremo Tribunal James Hilton, Secretário da Guerra
Burnside e Secretário de Estado Barnett.

***

“Esta é uma ocasião importante para a cidade de Windsor


e uma ocasião importante para o Sr. Ernest Barbour, que
alcança a idade de 71 anos. É desnecessário enunciar o fato
óbvio de que Windsor pode hoje orgulhar-se do Sr. Ernest
Barbour, graças a cujo gênio, iniciativa, sacrifícios e
verdadeiro espírito americano, tornou-se famosa, alvo da
admiração do mundo inteiro. A história da vida do Sr.
Barbour é a própria história da América, colossal, corajosa,
audaciosa, determinada, forte, inabalável, enfrentando
destemidamente os obstáculos. O Sr. Barbour sobressai entre
os gigantes industriais nesta era extraordinária, um vulto
singular, uma figura para a posteridade admirar.”

“Ernest Barbour era apenas um jovem imigrante no ano


de 1837, quando chegou a estas plagas com seus pais. A
família Barbour veio para Windsor porque aqui vivia um tio
do nosso aniversariante, Sr. George Barbour, que, associado
a Armand Bouchard, iniciara a firma Barbour & Bouchard. O
Sr. Joseph Barbour, pai de Ernest, foi admitido como sócio na
pequena empresa de fabricação de pólvora, que ocupava na
ocasião um prédio mínimo, de duas salas, perto do rio. A
partir desse princípio humilde, o Sr. Ernest Barbour
construiu a grande Barbour & Bouchard atual, com suas
subsidiárias, a Kinsolving Arms Company e a Amalgamated
Chemical Company. O Sr. Barbour é também diretor de
quatro importantes ferrovias, três empresas de mineração de
carvão e três bancos.”

“Haverá também uma ‘reunião do clã’ nesta ocasião feliz.


Estarão presentes: Sr. Paul Barbour, vice-presidente de
Barbour & Bouchard, genro do Sr. Ernest Barbour; Srta. Alice
Barbour, filha do Sr. Paul Barbour e neta do Sr. Ernest
Barbour; Srta. Elsa Barbour e a Sra. Percival Van Eyck,
sobrinhas do Sr. Barbour; Sr. Percival Van Eyck, de Nova
York; Sr. Thomas Van Eyck, seu filho; Sr. Jules Bouchard,
presidente da Sessions Steel Company, e sua mulher, antes
Adelaide Burgeon, desta cidade, assim como seus três filhos,
Pierre, Emile e Christopher; Sr. François Bouchard, o famoso
poeta; Sr. Leon Bouchard, presidente do Windsor Savings
Bank, e sua mulher, antes Srta. Antoinette Bouchard,
sobrinha do Sr. Ernest Barbour, e seus filhos Irene, Bertha,
Georges e Nicholas; Sr. André Bouchard, vice-presidente do
Windsor Savings Bank, e sua mulher, antes Srta. Beatrice
Coley, desta cidade, e seus dois filhos, Alexander e Alexa,
que são gêmeos; o Major Norwood e a Sra. Norwood e seus
dois filhos, Chandler Norwood, que é gerente-geral da
Barbour & Bouchard, e a Sra. Henrik Van Ryn, de Nova York;
Sr. Henrik Van Ryn; a Sra. Chandler Norwood e a filha, Srta.
Ethel Norwood; Sr. Etienne Bouchard, o famoso ator; Sr.
Honore Bouchard, presidente da Kinsolving Arms Company e
sua mulher, antes Srta. Ann Richmond, de Nova York, filha
do Sr. Bertram Richmond, da American Utilities Company, e
seus quatro filhos, Francis, Jean, Henri e Peter.”

“Há uma possibilidade de que o General Edward Gordon


esteja presente também, embora no momento se encontre
em Washington, discutindo a situação espanhola com o
Presidente.”

“Infelizmente, o Sr. Godfrey Sessions, o famoso


compositor, não poderá comparecer à recepção em
homenagem a seu pai, Sr. Ernest Barbour. O Sr. Sessions,
como todos sabem, assumiu o sobrenome de solteira da mãe,
por razões artísticas. Ele se encontra no momento em Viena,
onde está realizando uma série de audições de suas
sinfonias e concertos para o Imperador Franz-Josef. O Sr.
Reginald Barbour não poderá comparecer por causa de
graves problemas pessoais.”

“Depois da recepção, o Sr. Barbour lançará a pedra


fundamental do novo Hospital Memorial Martin Barbour, que
será uma das maiores instituições de seu gênero no Estado,
com médicos tanto da Pensilvânia como de Nova York. É de
fato um memorial dos mais apropriados à família Barbour! O
Sr. Barbour tem se interessado por todos os ramos da
filantropia e esta cidade lhe deve sua magnífica biblioteca,
salão de música, parque, universidade, Lar para Indigentes,
estádio e orfanato. É a caridade cristã desse grande homem.
Não devemos também esquecer o Sanatório de Tuberculose,
no subúrbio de Lexington, e o Instituto de Estudo das
Doenças Degenerativas.”

“Entrevistado esta manhã por um representante deste


jornal, o Sr. Barbour disse, com seu sorriso e simpatia
inigualáveis:

Neste meu 71º aniversário, quero apresentar a todos os


meus concidadãos de Windsor minhas bênçãos e minha
esperança de que prosseguirão nas coisas que iniciei. Se eu
não puder deixar-lhes nada mais do que a minha filosofia de
Trabalho Árduo, Empenho e Visão, Sacrifício e Fé, como base
de todo sucesso e realização, então lhes deixarei tudo.”
CAPÍTULO CV
Num belo dia do início de 1898, Jules Bouchard leu e
releu um telegrama que acabara de receber de Washington:

“CINQUENTA RETRATOS QUE VOCÊ DESEJAVA SERÃO


ENTREGUES DE ACORDO COM A ENCOMENDA. JOHNSON E EU
FINALMENTE ALTERAMOS A DECISÃO DE NOSSOS
ASSOCIADOS DE QUINZE PARA CINQÜENTA, EMBORA
CONSIDERÁVEL DIFICULDADE POSSA SER ENCONTRADA NO
ÚLTIMO MOMENTO PARA IMPEDIR QUE OBTENHA AS CÓPIAS
ANTECIPADAS. SEU AGENTE TRABALHANDO COM AFINCO. SR.
DIAGO COMPRANDO PRIMEIRAS EDIÇÕES DE VELHO AMIGO,
QUE LHE AGRADECE PELO CLIENTE. MANDE-LHE PRIMEIRA
EDIÇÃO DE DICKENS IMEDIATAMENTE. CORRE O RUMOR DE
QUE A CÓPIA DELE É MUITO INFERIOR.”

Jules demonstrou um grande interesse por esse telegrama


extraordinário, que era mesmo digno de atrair a atenção de
um bibliófilo tão eminente quanto o presidente da Sessions
Steel Company. Estava assinado: “Gibbons-livros Raros e
Companhia de Miniaturas”. Jules estava também se tornando
um famoso connoisseur de arte, especialmente relacionada
com as requintadas miniaturas e retratos dos velhos
mestres. Sua biblioteca e sua pequena galeria de arte já
atraíam considerável atenção e ele tinha agentes em todas as
capitais da Europa aumentando diligentemente a sua
coleção. Assim, aquele telegrama, embora com boas notícias,
nada tinha de excepcional. Ele costumava receber muitos
telegramas assim, inclusive do exterior.

Jules ficou estudando o telegrama, com a mão fina,


comprida e morena, de unhas bem cuidadas, mexendo na
caixa de charutos de prata que mantinha sobre a
escrivaninha do escritório. Encontrando pelo tato um
charuto comprido e fino, Jules pegou-o e acendeu-o,
sentindo com prazer a fumaça fragrante. O clarão do fósforo
iluminou-lhe o rosto, aquele rosto de jesuíta, comprido e
fino, moreno e enrugado, com olhos pretos brilhantes, sob
as pálpebras empapuçadas. Havia alguns fios brancos nas
têmporas afundadas, embora o resto dos cabelos fosse tão
preto e lustroso como uma pele de foca. O nariz grande, com
sua arcada aristocrática, ressaltava para fora, sem nada de
arrogante, mas com alguma coisa de austeridade índia. Um
diamante faiscava na gravata vermelha-escura de cetim,
outro brilhava no terceiro dedo da mão esquerda. O corpo,
numa elegante casimira preta, o tecido que quase sempre
usava, era esguio e disciplinado. Aos 40 anos, Jules Bouchard
era um homem fascinante.

Quanto mais lia o telegrama, mais aumentava seu


interesse e satisfação. Pegou finalmente o telefone em cima
da mesa e ligou para o banco. Um instante depois, estava
falando com Leon.

— Tenho boas notícias a lhe dar a respeito daqueles


livros, Leon. Poderia dar um pulo até aqui, para
conversarmos sobre o assunto? Ou prefere que eu vá ao
banco? Afinal, não podemos esquecer que este é o momento
ideal.

Houve uma pausa e depois Leon disse:

— Mas o Velho ainda está no cruzeiro. Não adianta falar


dos livros enquanto ele não voltar. A menos que...

— Exatamente. Chamarei também nosso amigo. Você virá


o mais depressa possível? Ótimo. Pode chamar Honore. Ele
também está interessado em primeiras edições.
Jules ligou em seguida para o escritório de Barbour &
Bouchard. Logo estava falando com Paul. Nos últimos anos,
uma cordialidade social e profissional se desenvolvera entre
os dois homens, por uma questão de necessidade. Assim,
nada poderia ser mais afável do que a voz de Jules quando
disse:

— Paul? São quase seis horas e calculo que você deve


estar deixando o escritório. Tenho algo de interesse a dizer-
lhe. Poderia vir ao meu escritório dentro de 20 minutos?
Ótimo.

Jules chamou seu secretário, um jovem calado, mas


eficiente, que entrou na sala com a mistura apropriada de
subserviência, idolatria e alerta. Jules sorriu-lhe jovialmente.

— George, consegui aquelas miniaturas de Gainsborough!


E também aquelas primeiras edições de Dickens! Eu lhe disse
que acabaria conseguindo tudo!

O Sr. George Dickinson contraiu os lábios, com uma


dúvida respeitosa.

— Tem havido muita fraude nessas coisas recentemente,


Sr. Bouchard.

— Acha mesmo que eles podem me enganar? — indagou


Jules, com uma jovialidade que só estava faltando em seus
olhos. — Considero-me agora um perito nessas coisas,
George.

— Espero que não seja vítima de uma trapaça, Sr.


Bouchard.

Jules parecia um pouco divertido.


— Nunca fui enganado, George. Você também teve
dúvidas sobre aquele Goya, mas provei que estava errado.

— Que Goya, Sr. Bouchard? — perguntou Dickinson, com


um sorriso que pedia desculpa por uma aparente ousadia. —
O primeiro ou o segundo?

Jules riu.

— Ora, George está sendo cristão desse jeito? Está sendo


gentil? De qualquer forma, deve agradecer-me por uma cópia
muito boa de um Goya. Se continuarmos assim, saiba que
acabará tendo a melhor coleção do mundo de fraudes
esplêndidas, muitas das quais bem melhores do que os
originais dos quais foram copiadas? Posso lhe assegurar que
os velhos mestres são muitas vezes péssimos. Aquele quase-
Corot que lhe dei, por exemplo, é obra de gênio. O próprio
Corot teria se reconhecido derrotado.

Dickinson sorriu debilmente.

— A diferença, senhor, é claro, está apenas no preço.

— Preço? Ora, com todos os diabos, paguei pela fraude


quase tanto como se fosse um original. Não seja mercenário,
George. Lembre-se de apreciar a arte pela arte e não pelo
rótulo que possa ter. Mas não o chamei para uma discussão
sobre arte. Gostaria que passasse por minha casa e avisasse
à Sra. Bouchard que não poderei jantar em casa nem ir
àquela recepção que ela estava planejando levar-me. E como
ela gosta muito de você, estou enviando-o como meu
substituto, tanto para o jantar como para a recepção. Não sei
o que eu faria sem você, George.

O rapaz ficou vermelho de prazer, embora um tanto


contrafeito pela perspectiva de sentar-se à mesa outra vez
com os três filhos exuberantes de Jules: Pierre, Emile e
Christopher. Ele detestava particularmente a Christopher, de
10 anos, que tinha um rosto cruel e desdenhoso. Contudo,
amava a gentil e frágil Sra. Bouchard, que tinha compostura,
gentileza e graça suficientes para uma dúzia de mulheres.

— Tem certeza de que não vai precisar de minha presença


aqui esta noite, senhor?

— Claro que tenho. Para ser franco, estou esperando a


chegada de um agente de Nova York dentro de uma hora,
com as miniaturas. E depois comerei alguma coisa com o Sr.
Honore. Mas, por favor, não diga isso à Sra. Bouchard.

Depois que o secretário retirou-se, Jules voltou a se


concentrar no telegrama. Quando absorvido, ele tinha o
hábito de delicadamente alisar os lábios com a ponta do
dedo indicador da mão direita. Apesar da delicadeza do
gesto, havia nele algo de letal. Era um Jesuíta que adorava
sentir o contato da própria carne, enquanto cogitava de um
novo método de exterminar hereges.

Ele pensou, quase irrelevantemente: o Señor Dupuy De


Lome estava certo ao falar que se tratava de “Um político de
cervejaria e amigo da ralé.” Em matéria de procurar a
oportunidade maior e procrastinar, nosso querido Mc-Kinley
pode superar de longe os ingleses. Mas sua presunção
finalmente superara a política pseudo britânica. Um político
populista é sempre um político populista.

Jules abriu uma gaveta da mesa e tirou um frasco de


prata de Napoleon, enchendo um pequeno copo de cristal.
Bebeu lentamente, saboreando cada gota. E ficou olhando
para o telegrama, sorrindo.

O telegrama, decifrado, nada tinha a ver com retratos ou


livros. Dizia sucintamente: “50 MILHÕES DE DÓLARES SERÃO
COLOCADOS PELO CONGRESSO À DISPOSIÇÃO DO
PRESIDENTE PARA ARMAMENTOS. AUMENTAMOS A
APROPRIAÇÃO DE 15 PARA 50 MILHÕES DEPOIS DE LONGOS
DEBATES. CONTUDO, OS GRUPOS DE PRESSÃO A FAVOR DA
PAZ PODEM IMPEDIR A GUERRA NO ÚLTIMO MOMENTO.
ESTAMOS FAZENDO TUDO O QUE É POSSÍVEL PARA IMPEDIR
ISSO. A ESPANHA ENCOMENDOU HOJE ARMAMENTOS DE
ROBSONS & STRONG. A INFORMAÇÃO É DA MELHOR FONTE.
ENVIE A ROBSONS & STRONG INFORMAÇÃO SOBRE NOVA
METRALHADORA, QUE SEGUNDO SOUBEMOS É MELHOR DO
QUE A PATENTE MAXIM QUE ELES POSSUEM.”

— Ah... — murmurou Jules.

Ele enxugou os lábios com um lenço de linho com


monograma. A porta abriu-se nesse momento e Leon entrou,
forte, baixo, moreno, quase corpulento agora, ao aproximar-
se dos 40 anos. Havia uma certa rigidez nas dobras do rosto
largo, uma aparência de estátua de bronze na
impassibilidade deliberada dos olhos. Ele pôs o chapéu-coco,
a bengala e as luvas na mesa de Jules, ajeitando o capote de
gola de veludo sobre uma cadeira.

— Estava com receio de que você não chegasse antes do


aparecimento do Atlas de calça — disse Jules. — Leia isto.

Ele estendeu o telegrama por cima da mesa para o irmão.


Leon leu-o. Depois largou-o, sorrindo com prazer.

— Cinquenta milhões, hem? Nada mal. E agora, se


pudermos convencer os boêres de que os britânicos são
ladrões... o que é verdade, diga-se de passagem... Honore
virá? Não consegui falar com ele, mas deixei recado. Pensei
que ele tivesse ligado para você,
— Ainda não. Espero que o seu recado o tenha alcançado
antes de ele voltar para casa. Por falar nisso, mandei um
telegrama para o Velho.

— Paul vai lhe cortar a garganta por isso! — exclamou


Leon, com a maior alegria.

— Provavelmente... a não ser que o enforquemos antes.


Por falar nisso, como estão indo as coisas entre François e a
pequena Alice?

Leon contraiu os lábios um tanto grossos.

— Estou com pena da pobre garota. François não apenas é


17 anos mais velho, como também um idiota ainda por cima.

— A poesia dele não é de todo mim. Alguém já a


comparou favoravelmente com a de François Villon.

— A poesia dele que se dane! Ela é uma garota muito


simpática, apesar de ser filha de Paul. E não creio que Trudie
gostaria que a filha casasse com François.

Jules alisou os lábios com o dedo.

— Está esquecendo que Trudie amava Philippe, que, à sua


maneira, estava apenas um passo à frente de François. E pelo
menos não se pode imaginar François sendo nobre por sua
poesia ou qualquer outra coisa, morrendo por isso em
alguma ilha de leprosos. Tem razão, Trudie amava Philippe,
que nem mesmo era tão valoroso quanto François.

— O que o faz pensar que ela gostava de Philippe?

Jules deslocou ligeiramente a caixa de prata em que


guardava os charutos.
— Tenho certeza. Todo mundo sabia, exceto você, seu
bobalhão. E quando ela soube da morte de Philippe, morreu
também. Não estou sendo romântico. Tenho certeza. E ouvi
atentamente o que nosso pobre major tinha a dizer sobre a
última ocasião em que Trudie esteve em nossa casa e tomou
conhecimento da morte de Philippe. O pobre coitado deixou
escapar uma informação das mais interessantes, em sua
inocência, mas parece que fui o único que compreendi.

— Compreendeu o quê? — indagou Leon, irritado,


pegando o telegrama novamente e franzindo o rosto.

— Que o Velho indiretamente matou Philippe e, em


consequência, sua própria filha. Mas isso é história antiga. O
que nos interessa no momento é o relacionamento entre
François e Alice. Esse casamento tem de acontecer.

— Está esquecendo que Paul pode decidir casar outra vez,


subitamente. Terá então mais filhos, provavelmente um
herdeiro. O que acontecerá então? Qual será a nossa
situação?

— Muito boa. Os filhos de Paul não serão netos do Velho,


mas sim de Martin Barbour.

— Se pensa que o Velho não está a par de suas


maquinações...

— Mas claro que ele sabe de tudo! — Jules estava


sorrindo, os dentes brancos brilhando. — Ele adora
conspiradores. Esse era o problema de todos os filhos dele:
nenhum era conspirador ou realista. Todos eram fracos. Se
tivessem conspirado, retribuído a má fé dele com má fé
ainda pior, se tentassem lográ-lo, ele os amaria
profundamente. Eles poderiam ter tudo o que quisessem:
Trudie poderia ter seu Philippe, Frey sua música, Reggie sua
mulher menonita. Bastava que conspirassem para isso e o
Velho acabaria rindo e perdoando a tudo. Mas ele sempre
detestou os simplórios...

— E é por isso que ele vai objetar a François, que não


passa de um simplório.

— Mas não se esqueça de que estamos por trás de


François e de Alice-no-País-das-Maravilhas. Vamos consumar
o romance desses inocentes. Faremos toda as maquinações
necessárias pelos dois. Alice visitou-nos ontem à noite.
Estava querendo contar tudo a respeito de François ao pai e
ao avô. Mas consegui convencê-la a manter fechada a
boquinha bonita. François, por sua vez, não se lembra de
coisa alguma de um dia para outro. Assim, não há qualquer
perigo de uma declaração prematura por parte dele. Às
vezes, penso que François é um egocêntrico maior do que
qualquer um de nós, até mesmo superior ao Velho. Ele
jamais pensa em qualquer outra coisa que não seja em si
mesmo e seus malditos sonetos.

— Ele já leu para você o soneto intitulado O Seio de Minha


Dama?

— Já, sim. A pequena Alice, que praticamente ainda não


tem qualquer seio, ficou inteiramente confusa quando
François leu ontem à noite, depois do jantar. Mas não o
subestime. Ele é um tremendo glutão, apesar de toda a sua
poesia. E sempre há esperança para um homem que pode
acabar com um assado da maneira como ele faz. Quando sua
barriga está cheia, ele se toma quase sensato e prático. Foi
por isso que ele compreendeu meu objetivo quando sugeri
que fugisse com Alice para casar, na próxima semana. Eu
mesmo comprarei as passagens.

— Eles vão fugir para casar? -Leon ficou aturdido, o rosto


corado. — Está indo longe demais, Jules! O Velho vai ficar
tão furioso e nos chutar para tão longe que, quando
voltarmos, o “Bouchard” estará suprimido de Barbour &
Bouchard!

Jules sorriu.

— Bouchard & Filhos — disse ele, com uma expressão


pensativa. — Gosto do som.

Leon tirou um charuto da caixa, cortou a ponta com os


dentes, cuspiu furiosamente.

— O seu plano cheira mal, Cardeal Richelieu. Deixando de


lado o sacrifício humano de uma garota excepcionalmente
simpática, o que Paul vai pensar de tudo isso?

— Ele fará o que o Velho disser. Você acha que é uma


medida perigosa. É o que também penso. Aquele maldito
inglês nos odeia porque somos franceses, apesar de sermos
também os filhos de sua irmã. Mas ele ama a intriga,
maquinações e implacabilidade e, mais do que tudo, nos
odeia. Como eu disse antes, ele sabe o que estamos
querendo e provavelmente já alertou Paul. Portanto, não
deixe que sua consciência o convença de que estamos
tirando um proveito indevido de alguma coisa ou alguém.

— Não podemos esquecer Alice.

— Ela poderia casar com alguém muito pior do que


François. Alice é do tipo inocente, sonhadora e idealista,
propensa a casar com um artista, qualquer artista, mesmo
um artista que escreva uma poesia tão horrível quanto
François. Se os dois não casarem, pode estar certo de que
Alice sairá à procura de algum maldito pintor, músico ou
romancista, que o mundo não é capaz de compreender. Ela é
do tipo maternal, que também acredita em Arte e
“simplesmente a adora”, para usar as próprias palavras dela.
Assim, é muito melhor manter o dinheiro Barbour na família
do que desperdiçá-lo em galerias de arte e artistas. Não
tenha muita pena de Alice. Reconheço que é uma garota
bonita e simpática, mas também é uma tola rematada.

— Está esquecendo de Tia May. Creio que o entusiasmo


dela por François está bem controlado.

— Mas ela não esqueceu Trudie, que queria um idiota


como Philippe. Pare de se preocupar, Leon.

— Não estou preocupado com Alice. Mas também não


quero perder o que já conseguimos.

— Não vamos perder. Lembre-se de que compramos


diversos lotes de ações de Barbour & Bouchard que o Velho e
Paul tiveram a gentileza de presentear a determinados
senadores acessíveis. Nós três possuímos 35 por cento das
ações de Barbour & Bouchard e 51 por cento das ações da
Kinsolving Arms Company, além de 40 por cento da Sessions
Steel Company, sem falar nas porcentagens respeitáveis na
Galby Lumber Mills, United Utah Railroad, Pennsylvania State
Railroad, Eastern State Railroad, Pennsylvania Anthracite
Company, American Chemical Products Company e ótimos
lotes de ações da Bellowes Oil Company. Se nós três
decidíssemos, por exemplo, vender tudo, Barbour &
Bouchard poderia nunca mais se recuperar do golpe.

A porta se abriu e Honore entrou, com seu típico andar


gingado, a cabeça espichada para frente. Embora estivesse
apenas com 38 anos, ele parecia mais velho que os primos,
talvez porque os cabelos estavam prematuramente grisalhos
e sua expressão era sombria, até mesmo quando sorria.
Parecia mais com Leon do que qualquer outra pessoa da
família, mas possuía a gentileza reservada do olhar de
Eugene, a aparência de integridade e ligeira inquietação do
pai na presença dos que eram indiferentemente
inescrupulosos. Os ombros largos, sempre tão poderosos,
haviam adquirido muita came em torno, fazendo-o parecer
mais corpulento do que era na realidade.

— Finalmente você chegou — disse Jules, quando o primo


entrou na sala.

— O que vocês dois estão tramando? — perguntou


Honore, sorrindo, mas com alguma inquietação se tomando
patente em seu rosto.

— Tramando? Está cometendo uma injustiça conosco,


meu caro Honore. Nós o chamamos para uma conferência.
Estamos esperando também por Paul. Leia este telegrama.

Levantando nervosamente as abas do casaco, Honore


sentou-se para ler o telegrama, os dedos compridos e largos
enchendo o cachimbo enquanto o fazia.

— Cinquenta milhões, hem? — disse ele, pensativo,


olhando para Jules. — Mais do que esperávamos. E se a
guerra não vier?

— Não se preocupe, que haverá guerra. Acha mesmo que


deixaríamos 50 milhões nos escaparem assim? Já pode dar as
ordens para contratar imediatamente mais algumas centenas
de operários.

— Apenas para variar, eu gostaria de acreditar que as


guerras são realmente causadas pela injustiça e poderiam até
ser justificadas — comentou Honore. — Mas não se
preocupem comigo. Eu disse “apenas para variar”. De vez em
quando sou infantil assim.
— Vendo a coisa por esse ângulo, a Espanha tem sido um
tanto dura com Cuba e você sabe disso — falou Leon. — E a
Inglaterra é uma notória salteadora. Assim, não se pode
dizer que a revolta dos boêres seja injusta. E o Japão vem
provocando a Rússia a um estado desagradável e plenamente
justificado. Esses amarelos são terríveis!

— Não se esqueça de que temos contribuído para acirrar


tais sentimentos.

Leon deu de ombros e Jules sorriu para o primo através


dos olhos semicerrados.

— Anime-se, Honore.

Ele abriu uma gaveta da escrivaninha e jogou para o


primo uma folha de papel velino.

— Acabo de receber um esboço secreto da carta que o


czar deverá enviar para as potências europeias.

Ajustando os óculos, pois estava quase míope, Honore


suspirou debilmente.

O esboço era de uma carta a ser enviada pelo Conde


Muraviev aos representantes da Rússia em diversas cortes
europeias.

“Neste momento, é o dever supremo de todos os estados


determinar limites aos armamentos desnecessários e
encontrar meios de evitar as calamidades que ameaçam o
mundo inteiro. Levado por esse sentimento, Sua Majestade, o
Imperador, determinou-me que propusesse a todos os
governos representados na corte imperial a realização de
uma conferência para discutir esse grave problema. Tal
conferência, com a ajuda de Deus, seria um feliz augúrio
para o início de um novo século. Concentraria os esforços de
todos os estados que desejam sinceramente o triunfo da
ideia magnífica da paz universal sobre os elementos de
problemas e discórdia. Ao mesmo tempo, reforçaria o acordo
de respeito aos princípios da lei e equidade que sustentam a
segurança dos estados e o bem-estar dos povos.”

— Esta carta será enviada em agosto a todas as potências


— disse Jules, quando Honore largou a carta, depois de ler,
sem fazer qualquer comentário. — Estamos prevendo que os
delegados se reunirão em Haia em maio de 1899 para
debater a proposta. Três pontos serão discutidos na
conferência: desarmamento, medidas humanitárias e
arbitramento das divergências internacionais.

— E o que nossos agentes têm a dizer a respeito dessa


conferência? — indagou Honore, a boca se contraindo
ligeiramente.

Jules tocou os lábios com o lenço, delicadamente. Ele


olhou para o primo com uma expressão franca.

— Meu caro Honore, nossos agentes, como nós, seus


empregadores, são realistas e não sonhadores. Muito
diferentes do czar, por exemplo. Eles vão ressaltar que o
desarmamento é impraticável, especialmente para a Rússia,
ameaçada pelo Japão, e para a França, ameaçada pela
Alemanha. Sem falar, é claro, na nobre Inglaterra, ameaçada
por pérfidos inimigos em todos os cantos do globo. Vão
ressaltar que não há qualquer divisão satisfatória entre
armamentos com propósitos ofensivos e uma força para a
defesa nacional. Não haverá qualquer acordo, pois, a questão
da defesa nacional ainda está fora do campo das discussões
internacionais. — Contudo, nossos agentes, como homens
civilizados, vão condenar o uso de balas que "se expandem
no corpo humano”, o lançamento de projéteis ou explosivos
de balões ou outros meios análogos, por um período de
cinco anos”, além da utilização de projéteis “cujo objetivo
exclusivo é difundir gases asfixiantes ou deletérios”.

Honore ficou olhando para o espaço, um sorriso sombrio


lhe entortando os cantos da boca. E ele disse:

— O Velho enviou-me ontem um telegrama de parabéns


por minha nova invenção, o gás de mostarda venenoso. Deu
ordens para que Barbour & Bouchard lançasse o produto no
mercado imediatamente.

— O que é perfeitamente natural — comentou Jules,


afavelmente. — E por este telegrama de Washington, posso
deduzir que a sua metralhadora é muito melhor do que a
Maxim.

— De quem roubei toda a ideia — ressaltou Honore, ainda


sorrindo.

— O que também é perfeitamente natural — disse Jules,


com a mesma voz afável. — Somos todos ladrões. Todos
roubamos ideias uns dos outros. O que é perfeitamente
legítimo. Por falar nisso, Robsons & Strong está prestes a
fornecer Maxims aos boêres. Mas vamos voltar à carta do
czar, especificamente à parte sobre o arbitramento. Devo
dizer que sou inteiramente favorável ao arbitramento
internacional. Já soube que o delegado inglês, Sir Julian
Pauncefote, vai apresentar uma proposta para a instituição
de uma comissão permanente de arbitramento. E fui
informado de que tal proposta será aceita...

— E o que será então dos fabricantes de armamentos?


Devemos converter nossas espadas em pás e assim por
diante?
O sorriso de Honore tornara-se abertamente desdenhoso,
mas ele observava Jules com olhos alertas.

— Mas de jeito nenhum! — respondeu Jules, sorrindo


também. — Como eu disse antes, sou a favor do
arbitramento. Nada no mundo é tão bom para o negócio de
munições como uma comissão permanente de arbitramento.

— Chamo isso de cinismo barato — comentou Honore. —


Mas continue. Sempre se pode esperar de você alguma
manobra diabólica e divertida.

Jules prosseguiu:

— Nossos agentes serão instruídos a aprovarem a ideia do


arbitramento. E depois eles tratarão de ressaltar,
basicamente, que para manter a paz é preciso se preparar
para a guerra.

— Em outras palavras, para se evitar guerras é preciso se


preparar para guerras.

— Pôs as coisas de maneira muito hábil, Honore. A carta


do czar vai nos custar algum dinheiro. O suborno anda
muito alto. Mas creio que vamos lucrar muito com a
conferência que decorrerá da carta. Na causa sagrada da
guerra, cada nação se transformará num verdadeiro arsenal.
Estamos prestes a nos transformar em Mercadores da
Autodefesa.

— Um nome simpático — disse Leon, sorrindo.

— Quanto ao gás venenoso — continuou Jules, sem olhar


para o irmão — claro que não deverá ser usado, a não ser em
autodefesa ou no caso de uma invasão.
— Mas a autodefesa abrange uma ampla variedade de atos
— disse Honore.

— Está se tornando mais esperto a cada dia que passa,


Honore. Por falar nisso, como vai a fórmula do explosivo
incendiário alemão?

— Está indo bem. Neste momento, estou examinando a


amostra alemã com um microscópio. Mas soube que os
ingleses vão comprar a fórmula do fabricante alemão por 30
mil libras. Certamente ficariam muito contrariados se
roubássemos a fórmula pela qual estão pagando uma fortuna
a um traidor.

— Tem toda razão. Nada pode ser mais indignado e mais


irritado do que um britânico quando alguém lhe rouba
alguma coisa que ele próprio roubou. Mas o que me diz da
fórmula?

— Creio que posso alterá-la ligeiramente, mantendo as


suas qualidades explosivas e ao mesmo tempo tornando-a
um pouco diferente. Mas talvez não precisemos disso.
Robsons & Strong, provavelmente, nos fornecerão a fórmula
original. Isto é, desde que consigam arrancá-la do outro
fabricante.

— Tem razão. De passagem, acho que devemos provar a


Robsons & Strong que nossa metralhadora é superior à deles.
Assim, eles poderão vender as Maxims aos boêres antes da
guerra começar, usando depois nossa patente de
metralhadora. Estou interessado em verificar como se sai na
experiência prática. Mas teremos uma chance melhor de
observar isso mais perto de casa.

— Promover guerras no exterior pode não ter problemas,


mas Barbour & Bouchard ainda não traiu jamais seu governo
— disse Honore, obstinadamente. — Além do mais, por que
vamos nos interessar e preocupar por Cuba? — Ele estendeu
a mão para o capote e tirou do bolso o jornal vespertino,
antes de acrescentar: — Escutem esta tradução de uma carta
publicada no maior jornal espanhol: “A América, sob uma
máscara hipócrita de preocupação e solicitude por Cuba,
está preparando um programa imperialista, cujo primeiro
objetivo é conquistar as colônias espanholas. É apenas uma
primeira etapa, antes de conquistar o controle da América do
Sul e instituir uma guerra santa na Europa. E quando a
fumaça se dissipar, a América estará revelada como vitoriosa
e exploradora implacável. O evangelho de paz da América é a
emboscada por trás da qual ela se prepara para a conquista
do mundo.”

Honore largou o jornal.

— Quem é o responsável por esse artigo, Jules? Você ou


Robsons? — Ele serviu-se de um dos charutos do primo. —
Quanto pagou ao Señor Dupy De Lome, o ministro espanhol
em Washington, para escrever aquela carta desagradável a
respeito de McKinley?

— Absolutamente nada, meu caro Honore. Está


cometendo uma injustiça a De Lome com suas insinuações.

— É possível. Mas é um hábito meu cometer injustiças


com todas as pessoas que entram em contato com você,
Jules. Mas o que pretende fazer com o Sr. Bryan, que acha
que somos um monturo nas narinas dos virtuosos e está
fazendo um bom trabalho em denunciar a política
imperialista do governo? Afinal, Jules, não pode assassiná-lo.
Os assassinatos não estão sendo cometidos atualmente na
melhor sociedade.

— Ninguém dá a menor atenção a Bryan, pelo menos as


pessoas que possuem um mínimo de bom senso. — Jules
soltou uma risada. — Contudo, dei um jeito para que ele
receba o apoio de uma facção dos republicanos. O nosso
pequeno Messias rural é um homem ambicioso e isso
provavelmente desviará a atenção dele de nós. Mas nós
nunca o deixaremos chegar à presidência.

— Por que insiste tanto no ‘nós’? — indagou Leon, que


ocasionalmente gostava de espicaçar o irmão. — Afinal, o
Velho ainda está muito vivo. Ou será que já se esqueceu
disso?

— Claro que não. Jamais esqueço coisa alguma, meu caro


Leon. Não estou esquecendo, por exemplo, que o Velho não
deve ter mais do que um ano de vida. Você não sabia disso?
O coração dele está agora aguentando apenas na base da
vontade e mais nada. Tia May sabe disso. Foi por isso que ela
arrastou-o para o cruzeiro antes do Natal.

Leon não pôde deixar de trocar um rápido olhar com


Honore. Sabia que Honore o preferia a Jules e estava
francamente surpreso com isso. O que Honore esperava
dele? Mas foi nesse momento que Paul Barbour entrou na
sala, o rosto corado e parecendo irritado da pressa e do
aborrecimento.

O corpo grande de Paul engordara consideravelmente


com o passar dos anos. Sendo muito alto e pesando mais de
100 quilos, Paul quase parecia um gigante em contraste com
os primos mais baixos e mais magros. Na presença de sua
corpulência, pele alva, olhos azuis e cabelos castanho-claros
esfriados de brancos, os Bouchards ficavam parecendo
gnomos morenos, com seus rostos estrangeiros e muito
sutis, os olhares furtivos de quem não merecia qualquer
confiança. Ele era o saxão brutal e belicoso, franco em sua
vilania e selvageria, enquanto os primos eram os latinos
insidiosos, de mentes flexíveis, astutos, sorridentes, frios e
perigosos. Contudo, apesar de sua corpulência e poder
visível, a beligerância do rosto largo e corado e dos coléricos
olhos azuis, o ar de competência e força cega, Paul parecia
menos poderoso do que os Bouchards, menos formidável,
menos um homem a ser temido e desconfiado. Os
Bouchards, sentados em torno da mesa de Jules, fitaram-no
num silêncio sorridente e cortês. Alguma coisa neles fez com
que Paul parasse subitamente no ato de tirar o capote
forrado de pele. Sua expressão, preparada para ser
desdenhosa, tornou-se um tanto rígida, apreensiva. O rubor
espalhou-se pelas bochechas caídas, chegou ao pescoço. Aos
46 anos, Paul já estava exibindo os efeitos do excesso de
comida.

— E então — perguntou ele, em voz meio inquisitiva,


meio irritada — qual é o propósito desta conferência tão
importante para a qual me convidaram? E por que não pôde
ser realizada em meu próprio escritório?

Os irmãos e Honore trocaram um rápido olhar. Mas Jules


era a própria suavidade.

— Sente-se, por favor, Paul. Todos queríamos ter uma


conversa com você. E como o meu escritório é o mais
central, decidimos nos encontrar aqui. Aceita um charuto?

— Uma dessas coisas venenosas que você costuma usar,


Jules? Não, obrigado.

— É muito sensato, Paul — disse Honore, sorrindo.

Paul retribuiu o sorriso, relutante. Ele temia e odiava


Jules, apenas odiava Leon, mas às vezes quase gostava de
Honore. Dizia frequentemente a Elsa que poderia até ser
possível confiar em Honore. Contudo, ele tinha menos
respeito por Honore do que por Jules e Leon. Erroneamente,
acreditava que poderia, se surgisse a oportunidade,
intimidar e subjugar Honore. Era o motivo de sua simpatia
por ele, como também de algum desprezo.

Ele acendeu um dos seus próprios charutos, ofereceu


outro a Honore, que aceitou. Jules recostou-se na cadeira,
sorrindo cordialmente. Acendera os globos de gás no teto, a
luz se derramando sobre o seu crânio estreito e lustroso.
Leon, inclinado para frente, de tal forma que a cabeça
parecia afundada entre os ombros largos e quadrados,
olhava de um para outro homem com os olhos semicerrados,
um sorriso meio sombrio.

Cortesmente, Jules estendeu a Paul o telegrama que


recebera, explicando-o. Paul leu e escutou, uma cor
arroxeada espalhando-se por suas faces, que pareciam inchar
de raiva e indignação.

— Por que não recebi essa informação? — indagou ele, o


olhar belicoso fixando-se em Jules. — Afinal, Barbour &
Bouchard é a organização principal e as outras são
subsidiárias. Era sua obrigação determinar que todas as
informações fossem enviadas ao nosso escritório. Além do
mais, por que os meus agentes não foram informados? E
quem são os seus ‘agentes’?

Jules ficou em silêncio por um momento. Leon inclinou-se


para frente mais um pouco, a palidez morena de Honore
tornou-se um tanto vermelha, como se a raiva o invadisse. E
depois Jules começou a falar, suavemente como sempre,
inabalavelmente polido:

— Seus agentes, meu caro Paul, aparentemente estavam


cochilando. Nunca os tive em alta conta, embora você os
tenha escolhido pessoalmente. Meus agentes e amigos são os
homens que venho cultivando há alguns anos. Não é apenas
uma questão de dinheiro e lotes de ações, mas uma amizade
sincera. Meus senadores devem-me muito e, lógico,
defendem ativamente meus interesses, muitas vezes se
empenhando para me provarem sua gratidão. Quanto à
‘obrigação’ de que falou, quero lhe dizer que não temos
qualquer obrigação com ninguém. Barbour & Bouchard e
todas as suas ‘subsidiárias’ constituem uma única unidade,
como se fosse um corpo, todas as partes coordenadas pelo
bom senso. Não preciso lembrá-lo das invenções de Honore,
especialmente as pólvoras, que está agora fabricando em
suas instalações. Honore não pensou em ‘você’ ou ‘nós’
quando entregou as invenções à unidade como um todo. E eu
pensei em todos nós, quando inventei meu aço. Não me
agrada a sua atitude imperialista. — Ele fez uma pausa. E
quando continuou, a voz ainda era suave, mas estava agora
impregnada de hostilidade: — Pode ser o vice-presidente da
Barbour & Bouchard, mas eu sou o presidente da Sessions
Steel Company, Leon é o presidente do banco e Honore é o
presidente da Kinsolving Arms Company.

Houve um silêncio prolongado. Paul, virando a cabeça


grande lentamente, sobre o pescoço curto e poderoso, fitou
demoradamente cada um dos primos. Contemplou aqueles
rostos morenos e estrangeiros, os olhos implacáveis e sem
qualquer compaixão, as bocas sutis. Depois, tornou a se fixar
em Jules, com um sorriso desagradável insinuando-se em
sua boca.

— Entendo — disse ele, expressivamente. — Ameaças,


hem?

— Ameaças? — repetiu Jules, em tom magoado. — Mas


como está sendo absurdo, meu caro Paul! Não há ameaça
alguma!
Paul subitamente bateu na mesa com a mão cerrada. O
barulho ressoou pela sala.

— Ameaças! Foi exatamente isso que falei. Não tente se


esquivar com sua insídia francesa, Jules Bouchard! Está
querendo me lembrar que minha posição pode não ser tão
segura quanto a sua, que posso ser vice-presidente da
Barbour & Bouchard, mas estou em posição inferior como
acionista. Quer me lembrar que Honore e mais vocês dois
possuem 51 por cento da Kinsolving Arms Company, 35 por
cento da Barbour & Bouchard, 40 por cento da Sessions Steel
Company e porcentagens das mais elevadas em todas as
outras subsidiárias. Quer que eu não esqueça dessas coisas,
não é mesmo?

— Isso mesmo — disse Leon, brutalmente. — Queremos


que você não esqueça. Queremos que se lembre que nós três
agimos em conjunto, que todos os Bouchards estão por trás
de nós, enquanto que por trás de você...

— Está Ernest Barbour, presidente da Barbour & Bouchard


— interrompeu-o Paul, com um sorriso astuto para Leon.

— Permita-me corrigi-lo, Paul — disse Jules, sacudindo a


cabeça. — O querido Tio Ernest não está por trás de você. Ele
está por trás do vencedor. Você vence e ele o apoiará; nós
vencemos e ele nos apoiará. Você sabe disso, como dá para
perceber por seu rosto.

Jules fez uma pausa, suspirando.

— Tio Ernest é sempre o britânico típico. E um britânico


jamais apoia o fracasso. Eles sempre encontram um jeito de
descobrir nobreza e as mais elevadas motivações em quem
está por cima.
As feições de Paul estavam contraídas de raiva, os olhos
brilhavam com um ódio assassino.

— Está contando com coisas demais — disse ele, em voz


rouca, abalada. — Eu já sabia que esse momento haveria de
chegar. Vocês três não foram muito sutis em suas
conspirações. Há muito tempo que venho observando tudo
atentamente. E podem estar certos de que o mesmo acontece
com Tio Ernest.

— Claro que ele está observando tudo com o maior


interesse! — Jules riu jovialmente, lançando um olhar
radiante para o primo enfurecido. — Concordo plenamente
com você nesse ponto.

Paul teve a sensação de que o coração inchava dentro do


peito, a tal ponto que não mais conseguiria respirar. Cerrou
e descerrou as mãos, engoliu em seco. O medo e a
impotência provocavam-lhe calafrios pelo corpo.

— Perguntarei a ele — disse Paul finalmente, parecendo


fútil até para ele próprio.

— Pode fazê-lo — insistiu Jules. — E, se não estou


enganado, Tio Ernest vai rir e admitir tudo. Nosso caro Tio
Ernest sempre foi um realista.

Paul bateu novamente com o punho na mesa.

— Mas se pensa que ele vai apoiar um bando de franceses


conspiradores, repulsivos e insidiosos, está redondamente
enganado! Ele não vai apoiá-los, assim como não apoiou o
imbecil do seu irmão Philippe, quando ele quis casar com
Gertrude! Ele vai encontrar um meio de frustrá-los no último
momento, como fez com seu irmão...
Paul parou de falar abruptamente, assustado, mordendo
literalmente a língua estúpida que o traíra. Olhou furioso
para os três rostos soturnos que o fitavam, rostos vigilantes
e ameaçadores.

— Continue — disse Jules suavemente, lançando um


rápido olhar para Leon. — Continue... O que ele fez com
Philippe?

Paul teve de fazer um esforço para manter a voz sob


controle:

— Sabe muito bem que ele conseguiu finalmente fazer


Trudie recuperar o bom senso, levando-a a compreender que
seria uma tolice rematada casar com Philippe.

Paul estava desesperado e angustiado. Gertrude estava


morta há 18 anos, mas a menção do nome dela fez com que
a lembrasse nitidamente. E foi outra vez dominado pela
antiga pontada de desespero e angústia. Depois, olhando
furtivamente para os primos, compreendeu claramente que
se desvanecera qualquer misericórdia ou compaixão que
poderia esperar deles. Eram agora seus inimigos, que não se
deteriam diante de nada. Tal compreensão deixou-o
assustado, afastou a angústia, levou-o a levantar a guarda,
furioso, cheio de repulsa e aversão.

No silêncio que se seguiu, Leon ficou olhando pensativo


para o chão, Honore parecia estar profundamente deprimido
e Jules unia cuidadosamente as pontas dos dedos,
contemplando-os com um prazer irônico. Não estava
olhando para Paul, quando voltou a falar:

— Sempre o considerei um homem de bom senso e


inteligência, Paul. Fez alguns trabalhos realmente
esplêndidos no último ano. Entre outras coisas, foi você
quem pensou em enviar uma missão naval à América do Sul
e outra à China, embora o mundo inteiro risse. Talvez não
tenha ouvido o mundo rir dos ianques que se recusavam a
lembrar que esses países haviam recusado ofertas similares
das potências europeias. Sua capacidade de não ouvir o riso
sempre me impressionou. Confesso que, pessoalmente, sou
muito suscetível ao riso. Mas é isso mesmo, você saiu-se
muito bem. Não fracassou em coisa alguma que empreendeu.
É por isso que o queremos conosco, ao invés de contra nós.
Afinal, não gostaríamos de arruiná-lo... totalmente. Não
podemos esquecer que é nosso primo.

— E que diabo pensa que pode fazer comigo? — indagou


Paul, desdenhosamente, mas fitando Jules com uma
expressão cautelosa.

— Sei que é inconcebível, mas podemos liquidá-lo —


disse Jules, gentilmente. — Podemos lançar nossas ações no
mercado. Podemos constituir outra firma, que seria
concorrente. Honore ainda possui suas patentes, como sabe
perfeitamente. E eu também conservo a minha patente. Mas é
claro que Tio Ernest não haveria de querer que tomássemos
tal iniciativa. Ele faria muitas... concessões... se nos
mostrássemos determinados.

Ele ficou olhando para Paul, sorridente, afável, os olhos


brilhando por baixo das pálpebras. O medo invadiu Paul,
mas seu ódio era ainda maior.

— Minha filha Alice é a neta dele.

— Não esquecemos isso. E também não esquecemos de


que Alice é a herdeira dele. Sabemos de tudo isso. Como vê,
Paul, estamos sendo muito francos com você. Dentro de três
anos, Alice chegará à maioridade. Claro que ela vai casar e
haverá o marido dela e os filhos... Pode até nem mesmo ser o
presidente de Barbour & Bouchard, Paul, quando o Velho
finalmente seguir para o paraíso, o lugar para onde vão
todos os velhos piratas e salteadores. Mas gostaríamos que
você se tornasse o presidente. Merece o cargo. Mas se for
necessário, podemos impedi-lo, como você sabe
perfeitamente. E Tio Ernest, neste mundo ou no outro, ficará
nos observando liquidá-lo com o maior divertimento, apesar
de apreciá-lo e gostar de você. Mas as amizades e
relacionamentos pessoais sempre foram menos importantes
para ele do que a implacabilidade e astúcia. Não creio que
ele goste muito de nós, mas não levantaria um dedo para
impedir-nos de arruiná-lo. Ele nada tem de caprichoso, muito
embora seja um cão traiçoeiro. E tem outra coisa. Ele não
viverá por muito mais tempo. Todo mundo sabe disso.
Depois da morte dele, você pode ser o presidente. Isso vai
depender de nós. Assim, a indagação que agora se impõe é
muito simples: você está conosco ou contra nós?

A respiração de Paul era agora rouca e entrecortada, o


rosto estava alarmantemente congestionado. Ele ficou
olhando fixamente para Jules, com um sorriso quase
diabólico.

— Tem muita certeza de si, não é mesmo? Fala que Alice é


herdeira dele, mas não terá qualquer participação ativa em
Barbour & Bouchard, por ser mulher. Já o marido dela,
provavelmente, se envolverá na companhia. Mas Tio Ernest
pode deixar tudo para mim, se eu casar de novo e tiver
filhos...

— Que não serão os netos dele, mas sim netos do pobre


Tio Martin, de quem o Velho absolutamente não gostava —
comentou Jules suavemente, sacudindo a cabeça. — Não,
Paul, acho que não deve acalentar qualquer esperança por
esse lado. Alice será a herdeira do Velho. E sabendo disso,
tenho certeza de que ele não estará inteiramente desprovido
de complacência quando se lembrar de mim, Leon e Honore.
Honore, especialmente, é filho do único homem por quem
Tio Ernest já sentiu alguma coisa próxima da verdadeira
amizade e afeição. Além do mais, no final das contas, somos
todos filhos das irmãs dele. Você, no entanto, em última
análise, é o filho do homem que ele desprezou acima de
todos. O Velho bem que gosta de uma boa piada. E pode até
ir às últimas consequências, escolhendo-o subitamente para
seu herdeiro. Mas ele gosta mais da astúcia do que de
qualquer piada. E por mais esplêndido, competente e
poderoso que você seja, Paul Barbour, não é um adversário à
altura para nós três! — Jules fez outra pausa. — Mas nós o
apreciamos e o queremos do nosso lado, Paul. Queremos que
seja o presidente, quando o Velho morrer.

— E qual acha que será a reação dele se e quando eu lhe


repetir toda esta entrevista?

— Ele vai admirar-nos ainda mais, achará uma graça


maior e o terá menos em conta, embora nada disso seja por
culpa sua, meu amigo.

Paul ficou calado. Mastigou o lábio. Oh, Deus, como tudo


aquilo era verdade! Somente ele sabia como era verdade. De
súbito, Paul daria a metade de sua vida para desafiar aqueles
três conspiradores. Por um momento, ficou tentado a
arruinar-se, só pela alegria intensa de desafiá-los. Mas logo
compreendeu que o oportunismo e a sua própria proteção
eram-lhe mais importantes do que o desafio, mais valiosos
que o orgulho e a honra.

Ele se levantou e Jules, Leon e Honore também se


ergueram, polidamente. Paul parou no meio do ato de vestir
o capote e contemplou Jules com desprezo, ódio e ameaça.

— O presidente da Barbour & Bouchard ainda não está


morto. E, antes dele morrer, posso casar Alice com um
homem que seja capaz de superá-los em astúcia.

E ele saiu sem dizer mais nada, sem dar uma resposta ao
‘boa-noite’ cordial de Jules.

Leon estendeu a mão e pegou seu capote.

— E o que, se me permite perguntar, meu caro e sutil


irmão, conseguiu ganhar ou descobrir com essa entrevista
com nosso nobre primo?

— Ah! — exclamou Jules, alteando as sobrancelhas. —


Muitas coisas! E coisas muito importantes que nem sequer
foram mencionadas! Uma foi que o casamento de Alice com
François deve ser imediatamente consumado. E outra, muito
mais importante, foi a de que nosso Paul é um covarde. E
isso, meus caros, era o que eu queria realmente descobrir.

Honore deu de ombros, num gesto um tanto cansado.

— Estou sentindo um pouco de pena dele. Se vai enforcar


um homem, Jules, não vejo por que é necessário aplicar-lhe
alguma tortura antes. Enforque-o de uma vez e acabe logo
com isso. Mas você adora sempre praticar algumas torturas
antes.

Ele e Leon encaminharam-se juntos para a porta. No


limiar, Leon virou-se, saudou o irmão com um respeito
zombeteiro e sorriu.

— Boa-noite... padre — disse ele, saindo em seguida com


o primo.
CAPÍTULO CVI
Mas Paul não era de fato um covarde, no final das contas.
Sabia de coisas que os primos desconheciam, a respeito de si
mesmo e de Ernest Barbour. Nos últimos anos ele vinha se
sentindo inteiramente despojado, exposto a elementos
desconcertantes, espreitado em emboscada. Jules dissera
que Ernest não era caprichoso, mas Paul estava convencido
de que era. E um homem caprichoso cruel, que se divertia
friamente com a desgraça dos outros.

Ernest lhe dera todo o direito de acreditar que seria seu


principal herdeiro. Ele lembrava-se de um determinado dia,
logo depois do casamento com Gertrude, em que Ernest
convocara-o a seu escritório. Dissera-lhe que chegaria o dia
em que teria de administrar a parte de Gertrude em seus
bens, além das partes de Godfrey, Reginald e Guy.
Administrador, executivo e presidente da Barbour &
Bouchard! Ernest dissera ‘meu assistente’.

— E um dia vai tomar o meu lugar.

Paul podia compreender agora como tudo isso fora


nebuloso e cauteloso. Se Gertrude vivesse, se tivessem filhos
homens, se Godfrey e Reginald ainda estivessem ao lado do
pai, se Guy não tivesse morrido, então a posição de Paul
seria absolutamente segura. Seus filhos herdariam em linha
direta, ele estaria controlando as fortunas dos filhos de
Ernest. Teria a parte de Gertrude. Mas não tivera filhos que
fossem netos de Ernest Barbour. E como Gertrude morrera
antes do pai, não deixara qualquer fortuna para o marido e a
filha. Frey receberia apenas uma ninharia com a morte do pai
e Reginald, amargo e sombrio, afastara-se voluntariamente
da família e nada queria dela. E também nada receberia.
Poucos anos antes, com uma franqueza afável que apavorara
Paul, Ernest comunicara ao sobrinho que tencionava deixar a
maior parte de sua fortuna para Alice e que May tinha a
mesma intenção. O saldo seria distribuído em pequenos
legados para outros parentes, inclusive Paul, ficando o
restante para as diversas obras filantrópicas em que Ernest
estava interessado. (Caridade, na idade dele!, pensara Paul,
com repulsa e desapontamento, não acreditando por um
instante sequer que o caráter de Ernest tivesse mudado da
noite para o dia.)

Paul não tinha praticamente qualquer dúvida de que seria


eleito presidente da Barbour & Bouchard quando Ernest
morresse ou se aposentasse. Mas seria na verdade um título
vazio, apesar do salário magnífico. Em determinada ocasião,
ele acalentara a esperança de poder comprar as ações que
pertenciam aos Bouchards. Lembrando dessa esperança
agora, ao voltar para casa em sua carruagem, Paul riu
amargamente de sua própria ingenuidade. Era a mesma coisa
que esperar que os lobos renunciassem à ovelha que haviam
abatido, acalentar a esperança de que os Bouchards
pudessem desistir de suas ações na Barbour & Bouchard, na
Sessions Steel ou em qualquer outra subsidiária.

Paul há muito que desconfiava de Jules, Leon e Honore,


mas era um golpe violento a descoberta súbita do que ele
julgava a perfídia abominável deles. Disse a si mesmo que os
Bouchards não teriam sido tão francos se não estivessem
absolutamente seguros de sua posição. Mas era uma dedução
baseada em seu próprio caráter, pois Paul desconhecia que
havia uma coisa chamada audácia. Pensava que a ousadia
deles provinha da segurança e do conhecimento de alguma
coisa que não revelavam. Ele próprio só demonstraria tal
ousadia se tivesse absoluta segurança e algum conhecimento
assim. Não era adversário para as sutilezas dos Bouchards,
algo que Jules sabia perfeitamente. Voltando para casa, Paul
foi invadido por todos os lados pelo medo, impotência e
raiva. Subitamente, com uma sensação de mal-estar físico,
ele pensou: Ernest lhes disse alguma coisa, confidenciou
algo, encorajou-os. Ele traiu-me, entregou-me. Mas por quê?
O que eu fiz de errado? Somente dei o melhor de mim, que
foi invariavelmente muito bom, como ele próprio disse. Mas
desde a morte de Trudie que há uma diferença na maneira
como ele me trata, um toque de rancor, como se acreditasse
por algum motivo que a culpa foi minha, que eu deveria
fazê-la amar-me e esquecer Philippe. Mas como eu poderia
fazer tal coisa? Como alguém pode fazer qualquer coisa com
as mulheres? Fiz o melhor possível e creio que fui um bom
marido para Trudie. Deus sabe que a amei e continuo a amar,
nunca pude esquecê-la. Se alguma coisa — as mortes dela, de
Guy e de Joey — deveria reforçar minha posição junto a ele,
tal não aconteceu. Ele nunca mais foi como antes. Certa
ocasião, quando discordei dele, Ernest disse furiosamente
que deveria lembrar-me de meu pai. Jamais esquecerei
aquele dia e o olhar que ele lançou-me. Mas as coisas já
tinham começado a mudar antes disso.

Também não se pode dizer que ele goste mais dos


Bouchards, talvez com exceção de Honore. E mesmo assim
não passa de um sentimentalismo. Mas que Deus nos ajude
quando homens assim se tornam sentimentais! Contudo, ele
fala dos Bouchards em tom de admiração, chama-os de
grandes patifes. E, com todos os diabos nunca me chamou
de um grande patife! Qualquer sujeira que eles façam; Ernest
ri e diz que ele próprio não poderia ter feito melhor. Jules é
ardiloso e seus planos são absurdos, muitas vezes teatrais.
Mas parece que sempre dão certo. Não teriam funcionado há
20 anos, mas dão certo agora. Eis algo que não consigo
entender. As coisas mudaram muito. Não sei direito. Mas ele
parece não se importar com o fato de Jules ser presunçoso,
estar sempre se intrometendo em nossos assuntos. Posso
perfeitamente perceber o que ele está querendo com a sua
declaração de que constituímos uma só unidade e que
devemos sempre trabalhar juntos. O negócio de Jules é a
Sessions Steel Company, mas ele está por toda parte, como
uma pulga. Uma pulga jesuíta. Oh, Deus, não sei, não sei...

Jules estava certo. Não havia misericórdia, bondade ou


lealdade no homem. Se Paul demonstrasse fraqueza, se
deixasse transparecer o medo que o dominava, Ernest o
liquidaria, não com maldade ou raiva, mas apenas com um
desdém impessoal. Paul não lhe seria mais de qualquer
utilidade.

Girando a bengala entre as mãos enluvadas, Paul estava


completamente absorvido em seus pensamentos. Nunca se
sentira tão traído, numa posição tão precária, tão cercado
por inimigos, entre os quais se incluía o próprio tio.

A única esperança de Paul agora era a de que o tio


continuasse a viver e tivesse uma participação ativa na
companhia. Com isso, de alguma maneira ainda não muito
bem definida, Paul realizaria coisas espetaculares, ainda
superiores às realizações muito boas que já conseguira. Mas
a maior de todas as esperanças era um casamento de Alice,
um casamento com algum jovem cuidadosamente escolhido.
Mas que jovem? Em determinada ocasião, Alice dera a
impressão de estar enamorada de um rapaz de Nova York,
parente de Percival Van Eyck, extremamente rico. Ele não
teria objeções, provavelmente, em vender ao sogro, pelo
preço atual do mercado, as ações de Barbour & Bouchard
pertencentes à mulher. Talvez até uma pseudovenda ou algo
assim. Poderia ser tudo acertado, com um pouco de
manipulação. E foi então que Paul teve a mais brilhante de
todas as ideias: o filho de Lucy, Thomas! Um casamento
perfeito. Thomas era quatro ou cinco anos mais velho do que
Alice, milionário por si mesmo, graças à fortuna que a avó
paterna lhe deixara. Thomas parecera atraído por Alice no
Natal anterior e lhe escrevia pelo menos duas vezes por
semana, embora ela raramente respondesse a qualquer uma
das cartas. As objeções de Alice a Thomas pareciam
baseadas no fato do rapaz ser ‘gordo’ e ‘insípido’, só saber
falar de “cavalos, Lilian Russell e seu dinheiro”. No dia
anterior, ao receber uma carta dele, Alice jogara-a para o
lado desdenhosamente, comentando:

— Aquele gordo idiota pensa que lagosta à la Newburg é a


emoção mais requintada do mundo!

Pensando rapidamente, Paul recordou que Alice


sustentava a teoria de que Thomas não tinha ‘alma’, o que
quer que isso significasse, que ele era “grosseiro e
ganancioso, pensando em comida quando não estava
pensando em seus cavalos ou cachorros, sempre contando
uma história a respeito de Wilson Mizner ou Diamond Jim
Brady”.

Mas Thomas era exatamente o que Paul precisava. Rico,


fraco, indulgente consigo mesmo, fácil de enganar, fácil de
dominar, crédulo, leal, quase desesperadamente ansioso em
agradar e ajudar, cheio de admiração pelo Tio Paul, honesto
e simplório... simplesmente feito de encomenda! E era
também justamente o que Alice precisava, pensou Paul. Alice
era uma coisinha maravilhosa, mas etérea demais em
questão de gostos. Paul conhecia a filha bastante bem para
saber que isso era basicamente uma afetação infantil,
embora bastante séria e compenetrada. Alice estivera
convencida, sucessivamente, que era um gênio literário,
compositora, música, pintora e escultora. Agora, só pensava
em poesia. Quase todos os dias pegava os seus versos
horríveis e corria para a casa de Florabelle, onde geralmente
encontrava François, sempre afável e disposto a oferecer
suas críticas. François, aquele macaco francês de cara
escura, parecendo doente! Ainda era solteiro, ainda era
emaciado, ainda era histérico e efeminado, petulante e de
voz estridente, com mãos nervosas e irritadas, cada vez mais
egocêntrico e vaidoso! Um poeta, por Deus! Mas não era
companhia para uma menina tola e impressionável que era
17 anos mais moça. Mas a paixão pela poesia acabaria, da
mesma forma que chegara ao fim as paixões pela literatura,
pintura e música. Haveria um fim àquela conversa constante
e excitada de que François era um ‘gênio’, com gestos
dramáticos e olhos brilhantes. Paul não estava preocupado
com isso. Contudo, ignorava felizmente a adoração real, se
bem que temporária, de Alice por François, a conspiração
dos Bouchards contra a sua paz de espírito a afeição
paternal.

Não, pensou ele, sorrindo afetuosamente e com alívio,


Alice não tinha o direito de criticar seu primo Thomas. Ela
também não era muito inteligente, apesar de todas as suas
afetações e paixão declarada pela ‘Arte’. Paul desconfiava
com toda razão de que a filha possuía mente volúvel, com
muitas poses, afetações infantis e tolos esnobismos
intelectuais. Sabia também que Alice era egoísta, presunçosa,
deliberadamente infantil, tola, insensível, ansiosa por
sensações novas, teimosa e exigente. Mas ele não deplorava
tais coisas. Achava que eram ornamentos, numa criatura
jovem como Alice, tão adorável, exuberante e alegre, tão
delicada. Não deplorava absolutamente o fato da filha
molhar os pés no grande oceano da Arte. Era de se esperar
tais coisas das mulheres e ele preferia as sucessivas paixões
artísticas de Alice aos interesses de outras mulheres, como a
causa do sufrágio feminino, tomar chá, jogar bridge, intrigar
e flertar, em festas incessantes, na maior extravagância. As
mulheres pareciam estar em ebulição atualmente, inquietas e
vociferantes, beligerantes e imprevisíveis, correndo
febrilmente de um lado para outro como baratas tontas, os
rostos aparecendo nos jornais, os grandes chapéus
emplumados aparecendo em lugares onde 20 anos antes
seria considerado um absurdo sequer cogitar-se da presença
delas.

Era isso mesmo. Com todas as suas bobagens e


ansiedades, com todas as suas pretensões artísticas, Alice
era no fundo uma garota ‘antiquada’, inocente e afetuosa,
encantadora, para não dizer fútil e insípida. Thomas era
justamente o tipo de homem com quem ela deveria casar. E
haveria de casar com ele.

Mas Paul sabia que qualquer pressão mais brusca seria


fatal. Como todas as criaturas superficiais e insensatas, Alice
era também teimosa. Dizer-lhe que devia casar com Thomas,
a quem simulava desprezar porque ele não tinha ‘alma’ nem
‘profundidade’, seria fatal. Porque Alice era fraca, possuía a
força dos fracos e nada no céu ou na terra poderia demovê-la
quando tomava uma decisão. Paul sabia que deveria ser hábil
e cuidadoso, que deveria usar a astúcia, sem argumentos
nem exigências de obediência. Lembrou-se de Florabelle e,
involuntariamente, admitiu que havia algo da tia em sua
filha.

Quando a carruagem subia pelo longo caminho curvo que


conduzia à sua casa, os temores e apreensões de Paul já
estavam consideravelmente dissipados. No final das contas,
ele mostraria que era mais esperto do que aqueles malditos
Bouchards! Estava dominado por uma exultação deliciosa,
uma nova sensação de força, competência e poder. Poderia
agora concentrar seus pensamentos na guerra iminente e na
apropriação de 50 milhões de dólares para financiá-la. Uma
das coisas que Ernest sempre admirara em Paul era a
capacidade dele de não permitir que os problemas e
ressentimentos pessoais interferissem com as perspectivas
de lucros. Pensando na guerra naquele momento, Paul
esqueceu a arrogância e interferência de Jules, a negligência
de seus próprios agentes. Pensava apenas, em novos
contratos militares, nos novos explosivos e projéteis de
Honore.

O crepúsculo de inverno envolvia a casa quando Paul


saltou da carruagem. Como sempre fazia, ele contemplou a
casa, que particularmente julgava muito superior à casa dos
Sessions. Sorriu, como sempre fazia, enquanto o olhar
deslocava-se dos andares inferiores para os beirais largos do
telhado. Era a sua casa. Possuía a paixão dos Barbours pela
segurança e solidez, a adoração dos Barbours pela
propriedade vigorosa e visível. Ali estava uma casa que
resistiria ao tempo, coberta de hera no verão, protegida por
árvores de folhagem permanente no inverno. Um homem
podia criar os filhos ali, assim como os netos. A cada ano, a
casa se tornaria uma tradição de família maior, uma parte
integrante da vida familiar, o cenário de sua história... suas
mortes e suas vidas, suas idas e vindas, suas alegrias e
tristezas. Uma hera invisível cresceria ao redor e as árvores
da memória invisível se tornariam mais e mais altas a cada
década.

“Acima de todas as coisas, um homem precisa de uma


casa”, pensou Paul, com um dos seus eventuais relances de
percepção.

Quando Gertrude estava viva, o interior da casa possuía


uma graciosidade polida, um brilho suave nos assoalhos e
paredes, uma quietude e ar de dignidade, vislumbres de
mármore branco, uma certa austeridade, que era repousante
e rematada. Elsa mudara muito pouco na casa. Contudo, de
alguma forma misteriosa, a casa mudara. Tornara-se mais
atravancada em alguns lugares, mais sólida, mais
confortável, parecendo mais com um lar. Eram as mesmas
paredes, assoalhos, tapetes, escadas, retratos, móveis e
espelhos, mas possuía uma humanidade mais profunda,
embora menos artística. Paul sentia-se mais à vontade no
ambiente que a irmã criara; quando Gertrude estava viva, o
ambiente sempre lhe parecera um tanto frio, um pouco
quieto demais.

Ele despachou o mordomo perfeito à sala de estar


particular de Elsa, com o recado de que gostaria de falar com
a irmã imediatamente. Foi informado de que Alice saíra para
uma visita e ainda não voltara. O mordomo achava que ela
fora à casa da tia, a Sra. Norwood. Paul franziu o rosto,
entregou ao mordomo o capote, o chapéu, a bengala e as
luvas e depois foi para a biblioteca. Nunca lera qualquer dos
livros nas estantes da sala grande e silenciosa, com as
imensas janelas em arcada, a vasta lareira. Mas gostava da
biblioteca. Incutia-lhe confiança, recarregava as baterias de
segurança. Elsa, corpulenta, o rosto corado, entrou na sala.
Paul beijou-lhe o rosto firme. Os cabelos de Elsa, armados
num imenso coque no alto da cabeça, estavam grisalhos. Ela
usava uma blusa branca engomada e uma saia preta. Sobre o
seio esquerdo estava preso um relógio de ouro. Por trás dos
óculos, os olhos brilhavam intensamente, alertas.

— Oh, Deus, será possível que já seja tão tarde? — disse


ela, abrindo o relógio e consultando o mostrador branco. — E
Alice ainda não voltou?

— Já soube disso. O que ela encontra na casa dos


Norwoods?

— Só pode ser alguma coisa relacionada com a sua


‘poesia’. Ela escreveu alguma coisa a que chamou de soneto
esta manhã e leu para mim. Uma coisa realmente horrível, a
respeito da agonia do amor frustrado e de místicos quartos
de sótão, em que chorava na solidão e desespero... Pois ela
levou-o a François, a fim de corrigir e criticar.

— Aquele macaco desgraçado de pele trigueira! Não sei


muita coisa do negócio de editoração, mas tenho a
impressão que as coisas que ele escreve não são muito boas,
caso contrário não precisaria pagar para que fossem
publicadas. Não gosto de Alice passar tanto tempo com ele.
Não pode ser saudável para uma moça associar-se a um
egomaníaco com uma voz esganiçada de mulher doente e
uma disposição de coalhar leite. Estou começando a ficar
preocupado com isso.

— Santo Deus, Paul, não pode imaginar que exista alguma


coisa entre aquela criança e um homem que tem idade
suficiente para ser pai dela! Afinal, ele é pelo menos 17 anos
mais velho do que Alice! Não seja tão absurdo!

— Você é que não deve ser absurda, Elsa — respondeu


ele, irritado. — O que estou querendo dizer é que Alice
deveria estar convivendo com rapazes e moças da idade
dela. Mas que ideias você tem!

— Moças da idade dela? — Elsa riu bruscamente. -Sabe o


que Alice pensa delas. “Idiotas vazias, tolas e fúteis, que não
se preocupam com as coisas mais profundas da vida, que
não têm alma.” Mas sobre o que você queria me falar? Deve
ser importante, caso contrário não teria me pedido para
descer antes do jantar.

— É importante mesmo. Sente-se. Por que seu rosto tem


estado tão vermelho ultimamente, Elsa? Acho que não está
fazendo exercício suficiente e come demais. Por favor, não
fique zangada por isso. É apenas um conselho de quem é tão
culpado quanto você. — Ele sorriu insinuantemente e a
irritação de Elsa desvaneceu-se no mesmo instante. — O que
preciso lhe falar é muito importante, Elsa.

Paul descreveu rapidamente a conversa que tivera com os


primos. Elsa era a sua única confidente, a única criatura no
mundo em quem podia confiar.

— Como pode perceber, tenho de trabalhar depressa. Se


Tio Ernest está mesmo nas últimas, o que ainda não posso
acreditar, apesar da afirmação daquele demônio do Jules,
tenho de formular planos e pô-los em execução. Quero que
você leve Alice a Nova York na próxima semana para uma
visita prolongada. E claro que vão ficar hospedadas na casa
de Lucy. Pegue Lucy para sua confidente. Ela já comentou
que seria ótimo se Alice e Thomas casassem. Diga-lhe um
pouco do que acabei de contar. Aplique um pouco de
pressão. Reúna os dois, mantenha Alice por lá até que
aconteça algo sério. Compre uma ‘alma’ para Thomas, se isso
for necessário. E não quero saber quanto custa!

Os dois riram por um momento.

— Ele é um bom rapaz e está apaixonado por Alice. Ela


não tem muita imaginação e não haverá necessidade de
muito esforço para convencê-la de que Thomas é um filósofo
em roupagem de porco de pele rosada. E você sabe muito
bem, Elsa, que ele é mesmo um porco, sempre limpo e
afetuoso. Portanto, não fique indignada. Leve Alice a
percorrer as lojas, compre-lhe qualquer coisa. Nem mesmo
as mulheres com ‘alma’ podem resistir a meias de seda,
anáguas de babados, peles e joias, sapatos e luvas francesas.
Isso é mais do que certo. Alice gosta de proteger os
oprimidos. E depois que ela estiver meio convencida de que
Thomas possui alma, quando ele estiver afetado pela
compaixão de Alice, você poderá então avançar na manobra.
Não pode ser nada de muito grosseiro ou óbvio. Lucy
ajudará. Ela é inteligente e pode até promover discretamente
uma fuga dos dois para casarem. Tenho certeza de que tal
ideia agradará a Alice. Algo muito romântico, perigoso e
emocionante, capaz de despertar a contrariedade e
indignação de pais e tios empertigados. Vamos promover de
qualquer maneira o noivado dela, talvez mesmo o casamento
imediato. É tão importante que minha vida depende disso.

Elsa ficou pensando no plano por alguns minutos, os dois


olhando para o fogo na lareira.

— Acho que você está enganado em relação a Tio Ernest,


Paul. Afinal, nunca teve qualquer motivo para desconfiar
dele. Por que então tem de desconfiar agora? Tio Ernest
sempre foi maravilhoso para nós, como um pai, mesmo
depois que a mãe morreu. Tornou-se até mais gentil e
atencioso, apesar de ter casado de novo com a Tia May. Toda
a vida dele gira em torno de nós e de Alice. Acho que você
está se deixando dominar pela imaginação. Ora, ele não
pensaria em Jules Bouchard e seu bando de primos e irmãos
salafrários...

Paul se levantou, num súbito frenesi. O rosto carnudo


estava com uma tonalidade vermelha-escura.

— Você fala como uma tola e uma mulher, Elsa! —


exclamou ele, num acesso de raiva. — Sei o que sei! Sei o que
eles estão querendo, todos os Bouchards, de Jules a André e
Etienne, até mesmo aquele inseto do François! Até mesmo os
Norwoods, Chandler e aquele velho senil do seu pai! Todos
eles querem acabar conosco! Tenho motivos para pensar
isso. Não estou me deixando levar pela imaginação ou
suspeitas infundadas. Por favor, Elsa, conceda-me o crédito
de falar com conhecimento de causa!

O rosto rechonchudo de Elsa ficou inteiramente


vermelho.

— Como se atreve a me falar desse jeito, Paul? Tenho


certeza de que não sou nenhuma tola. Também tenho um
cérebro, embora às vezes você pareça não percebê-lo. Acho
que está cometendo uma injustiça com o pobre Tio Ernest,
que está velho e doente agora, mas sempre nos demonstrou
bondade e afeição. Mas faça como achar melhor!

Elsa ofegava um pouco, magoada e indignada. Paul


contemplou-a sombriamente. Ela levou um lenço branco de
linho aos olhos e depois recomeçou, resoluta:

— Claro que farei o que você está querendo. Sempre achei


que Alice deveria casar com Thomas, que é o rapaz mais
simpático que se pode imaginar. Ele terá algum dia dez ou
mais milhões de dólares, quando Percy morrer. Além do
mais, a primavera em Windsor é muito insípida e estou
precisando comprar algumas roupas novas. Partiremos na
próxima semana.

Elsa levantou-se e encaminhou-se para a porta, com um ar


de dignidade ofendida. Paul foi atrás dela e segurou-lhe o
braço.

— Está certo, Elsa. — Ele sorriu. — Estou um pouco


nervoso. E provavelmente estou enganado. Peço desculpas.
Não tenho a menor dúvida de que Tio Ernest é um velho
cordeiro simpático, que não está mais preocupado com os
negócios. Tenho certeza de que ele é a própria essência da
ternura e ficará devidamente indignado com as maquinações
de seus queridos parentes franceses. — Ele fez uma pausa,
sorrindo novamente. — E então, estou perdoado? Ah, você é
maravilhosa...

Paul afagou o ombro gordo da irmã, que estofava o tecido


engomado da blusa.

Elsa, apenas meio conformada, subiu a escada. Paul


voltou a postar-se diante do fogo na biblioteca. Ficou parado
ali, cabeça baixa, mastigando o lábio. Com Alice casada com
Thomas e Ernest morto, com os milhões dos Van Eycks à
disposição dele, Paul, poderia obter os créditos necessários
para a expansão, a fim de atender às demandas que Barbour
& Bouchard esperava receber do governo, em sua guerra com
a Espanha. Com isso, poderia controlar os malditos
Bouchards. Era uma manobra desesperada, arriscada e
audaciosa, mas poderia executá-la com sucesso. Paul
estremeceu um pouco com a perspectiva de ser audacioso,
como sempre acontecia. Mas agora era o momento para
arriscar. Enfrentaria aquele onisciente do Jules e o derrotaria
em seu próprio terreno. Iria se arriscar à ruína para arruinar
Jules. Oh, Deus, como odiava Jules! Mas ele, Paul, venceria.
Se ao menos pudesse consultar Ernest, que certamente
encontraria um meio infalível... Mas era um terrível paradoxo
o fato de que não podia consultá-lo.

Mas Ernest ainda estava vivo. E poderia continuar a viver


por muito tempo. Paul cerrou as mãos na cornija da lareira,
começou a bater com os punhos no mármore branco,
lentamente, pesadamente.

— Oh, Deus! — murmurou ele, com a maior intensidade.


— Faça com que ele morra! Faça com que ele morra logo de
uma vez!

Ele ficou parado ali, tremendo, por vários minutos.


Depois, relaxou subitamente, os joelhos ainda tremendo.
Abriu as mãos. O rosto estava coberto de suor. Ele enxugou-o
distraidamente, espantado por ter ficado tão abalado. As
velas estavam acesas. Levantando a cabeça, ele contemplou
seu rosto no espelho escuro por cima da lareira. Estava
conturbado, lívido, o rosto de um homem que seria capaz de
matar, se fosse necessário. Pela fração de um momento, Paul
ficou apavorado. E depois sorriu, um pouco constrangido.

O barulho do gongo ressoou pela quietude da casa.


CAPÍTULO CVII
Paul amava a filha, mas isso não o impedia de saber que
ela era uma tolinha. Quando a escutava, ouvia apenas o som
de sua vozinha ofegante, tão musical, bonita e infantil,
raramente prestando atenção às palavras. Eram geralmente
inconsequentes e pueris, repletas de vaidades e banalidades,
algumas vezes impregnadas com uma malícia encantadora e
inocente.

Naquela noite, porém, ao jantar, Paul ouviu o tagarelar da


filha com um sorriso e atenção secreta. Examinou-a com um
novo interesse calculista. Nos ombros daquela coisinha
bonita, que de nada desconfiava, repousavam todos os
planos, sonhos e esperança de sua vida. E que ombros
delicados e elegantes, com uma cabecinha tão tola por cima!

Alice era tão pequena e infantil, sentada ali, à sua frente,


a luz do candelabro elétrico incidindo sobre o seu rosto.
Brilhava sobre os cabelos vermelhos, no penteado à
pompadour, mechas envolvendo as orelhas pequenas e
rosadas. Alice tinha um rosto pequeno e oval, com uma
covinha no queixo pontudo e perfeito, um suave rosado nas
faces, um rosado mais forte nos lábios adoráveis. O nariz
parecia de alabastro, muito alvo, as narinas ligeiramente
dilatadas que caracterizavam os Barbours. Tinha olhos
grandes, de um azul-escuro, brilhantes e ansiosos,
perpetuamente excitados, as pestanas também de um
vermelho-escuro, compridas e enroscadas nas pontas, a testa
baixa e alva, estofada como a de uma criança pequena. Na
verdade, tudo em Alice, do pescoço esguio aos seios
pequenos, mas perfeitos, às mãos e pés muito pequenos, era
de uma criança linda. Nem mesmo a blusa com renda e de
gola alta, o laço de veludo preto no pescoço, o relógio
incrustrado de pedras preciosas sobre o seio esquerdo, a
saia de sarja azul-escuro, nada podia acabar com sua
aparência infantil. Parecia uma menina vestida com as
roupas da mãe. O hábito de torcer o nariz, quando ria ou
franzia o rosto, aumentava essa impressão. Suas expressões,
embora exuberantes e intensas, eram superficiais, se não
mesmo estúpidas. Exibia mil afetações e poses, entre as
quais a convicção inabalável de que era uma artista e
intelectual.

Comia graciosamente e as refeições eram geralmente


marcadas por discussões entre ela e sua Tia Elsa, a propósito
do pouco apetite que demonstrava. Elsa, que servia os
legumes, recusando categoricamente a ajuda do mordomo,
costumava encher o prato de Alice com pilhas fumegantes,
insistindo com Paul para que desse à filha uma fatia extra de
carne ou galinha. Enquanto isso, Alice mantinha um
monólogo lamuriento de protesto, chegando às vezes às
lágrimas. Frequentemente, elas terminavam apelando a Paul,
que se mostrava irascível ou divertido, conforme
transcorrera o seu dia de trabalho.

Naquela noite, no entanto, Alice estava exultante demais


para notar as pilhas formidáveis em seu prato incrustrado de
ouro. Sou voz era estridente, como costumava acontecer
quando estava excitada, os olhos brilhavam sobre as
pestanas, com um azul intenso. Aparentemente, François se
dignara a aprovar o soneto dela e profetizara que ela
finalmente encontrara o seu ‘forte’, que era a poesia. Ora,
François chegara mesmo a dizer que, em alguns versos, ela
até superava Elizabeth Browning!

— Imaginem só! — exclamou Alice. — Elizabeth Browning!

Ela sorria incontrolavelmente, os olhos extasiados


deslocando-se constantemente da tia para o pai.
— Claro que isso é um absurdo! Mas depois que François
corrigiu umas poucas coisas, fazendo-me uma ou duas
sugestões, até eu tive de admitir que ficou realmente muito
bom! Vou enviar o soneto para o Ladies’ Home Friend. Se não
aceitarem, isso só vai provar-me que François está certo ao
dizer que os editores não se interessam por boa poesia!

Paul contraiu os lábios e fingiu estar impressionado,


enquanto cortava o capão.

— Deve ler para mim, querida... depois do jantar — ele


acrescentou apressadamente, ao perceber que Alice
demonstrava sintomas de deixar a cadeira e subir correndo a
fim de buscar o soneto em seu quarto. — Já escreveu uma
porção de poemas, não é mesmo? Por que não reúne tudo e
leva para Nova York? Baxter & Company é uma editora que
sempre se interessou por boa poesia. E tenho alguma
influência por lá.

Uma curiosa mistura de expressões estampou-se no rosto


de Alice: satisfação pelo interesse excepcional do pai por sua
obra, prazer, excitamento, esperança e depois algo furtivo e
constrangido. Tudo isso foi subitamente seguido por uma
estranha inquietação e um ligeiro rubor.

— Acho que daria no mesmo se eu mandasse meus


poemas pelo correio, papai — disse Alice, em voz débil e
hesitante.

— Por que não quer ir a Nova York? — perguntou Elsa,


surpresa.

É que Alice declarara mil vezes a sua paixão ardorosa por


Nova York e sua aversão a Windsor, onde nada jamais
acontecia, onde os artistas não eram apreciados, sendo até
mesmo encarados com desconfiança. Paul largou também a
faca de trinchar e contemplou a filha inquisitivamente.

A inquietação e constrangimento de Alice aumentaram


visivelmente. Ela nunca antes praticara a fraude e por isso
agora lhe era difícil, não porque fosse naturalmente honesta
e franca, mas porque nunca tivera até então qualquer
necessidade de recorrer ao logro. Mas ela lembrou a
advertência do primo Jules de que deveria demonstrar todo
‘tato’, ocultando por mais algum tempo seu amor por
François. Assim, enquanto a mente acanhada se debatia em
pânico, ela pôde apenas olhar atarantada para o pai, o rubor
nas faces se acentuando.

Paul franziu o rosto, perplexo.

— Não quer ir para Nova York?

Alice tentou recuperar o controle. E começou a balbuciar:

— Ora, eu... eu adoraria, mas pensei... achei que não seria


necessário. Eu... a Sra. Jessup vai dar uma festa para Estelle
este mês... uma festa de primavera... e prometi... isto é, eu
gostaria de ir. E Beatrice vai fazer sua recepção de noivado...

Paul ficou satisfeito com a explicação, embora


continuasse um pouco perplexo.

— Estou contente por vê-la se interessando novamente


por festas, como uma jovem normal. Afinal, praticamente se
afastou de todas as amigas desde que começou com essa
bobagem de poesia... isto é, essa paixão pela poesia. Mas
você e sua Tia Elsa podem ir para Nova York depois que
terminarem todos esses compromissos sociais, não é
mesmo?

Alice ficou calada. Piscou os olhos infantilmente, as


pestanas de repente úmidas.

Elsa começou a comer calmamente, embora sentisse uma


estranha pressão no peito e uma terrível suspeita se
formasse em sua mente. E ela disse, suave:

— Para ser franca, minha querida, acabo de receber uma


carta de sua Tia Lucy. Ela não está passando muito bem e
pediu-me que fosse visitá-la em Nova York. Mas é claro que
eu não iria sem você...

Alice suspirou. Depois, seu rosto animou-se um pouco e


ela disse, relutante:

— Está bem, irei a Nova York. Talvez seja melhor visitar


Baxter & Company pessoalmente: Vai me dar uma carta de
apresentação, papai? — Ela fez uma pausa, antes de
acrescentar, animando-se ainda mais: — Além do mais,
preciso comprar algumas roupas decentes! Estou
praticamente andrajosa! — Ela imaginou-se em roupas novas
e elegantes, fazendo-se linda para François. — Mas ficaremos
apenas por uma semana ou pouco mais, está bem?

O jantar prosseguiu em paz até que o vinho foi trazido.


Alice soltou uma risadinha quando o Sauteme foi servido.

— Jules diz que você não sabe nada de vinhos, papai —


comentou ela, esfuziante. — Diz que nenhum maldito
britânico jamais soube qualquer coisa de comida ou bebida,
a não ser repolho cozido e cerveja.

Paul corou. E não falou até que os três copos estavam


servidos, o de Alice com muito pouco vinho. Depois, quando
o mordomo retirou-se, ele disse, em voz controlada:

— Em primeiro lugar, Jules está completamente


enganado. Sou um americano e não um britânico. Minha mãe
era de uma antiga e ilustre família americana. O próprio
Jules, no entanto, sempre será um estrangeiro, mesmo que
viva aqui por 100 anos. E em segundo lugar, tenho
conhecimentos consideráveis sobre vinhos.

Alice não se sentiu intimidada. Soltou outra risadinha e


acrescentou:

— Jules diz que o Sauteme é um vinho para principiantes


e que alguém que goste de Trockenbeerenauslee, da
Rheinpfalz, é um bárbaro. Ele diz que você não saberia
distinguir um bom Liebfraumilch de um ruim, mesmo que já
tivesse provado algum...

— Está sendo extremamente impertinente, para não dizer


mal-educada! — interveio Elsa, rispidamente. — Quase tão
mal-educada quanto Jules, que certamente não é nenhum
cavalheiro! Não dá para entender o que você vê naqueles
Bouchards!

— Acho Jules muito divertido, Tia Elsa. E muito bonito.


Ele daria um Mefístófeles e tanto, de cetim vermelho e uma
espada! Nunca está mal-humorado, o que é muito
importante. Todos os Bouchards são divertidos... e muito
animados, Tia Elsa. Não são insípidos como nós.

— Devo lhe pedir para parar de falar como uma tola —


disse Paul, com um olhar furioso para a filha. — Não sabe
absolutamente nada, apesar de toda a sua conversa fiada
sobre cultura. E devo lhe pedir também para não ter tanta
intimidade com os Bouchards. Não me importo tanto com
Honore, que é um cavalheiro. E André não é tão ruim assim.
Mas... Pelo amor de Deus, menina, não comece a chorar! Não
estou querendo magoar seus sentimentos, mas você é muito
tolinha. Quanto mais cedo viajar para Nova York, melhor
será

Alice enxugou os olhos com uma raiva infantil.

— Suponho que está pensando que aquele horrível


Thomas é melhor do que os Bouchards! Pois não é! Ele não
passa de um trapalhão e idiota, um monte de carne sem
mente... Não vou para Nova York, se ele ficar me seguindo
durante todo o tempo!

Paul perdeu o controle. Os dedos apertaram a colher de


chá e ele ficou vermelho de raiva.

— Pois saiba que irá para Nova York quando eu mandar,


minha jovem madame! E será uma dama, vai se comportar
direitinho, tratar seu primo decentemente, tentar encontrar
alguma coisa nele para admirar!

— Paul! — exclamou Elsa, lançando um olhar apavorado


de advertência.

Paul encolheu-se, respirando fundo, ainda vermelho,


ainda furioso. Tomou o chá em goles rápidos.

Como tantas pessoas de mente volúvel e superficial, Alice


possuía percepção rápida e astúcia repentina. Compreendeu
naquele instante por que tinha de ir a Nova York e o que lhe
seria feito quando lá chegasse. Ela ficou tão branca quanto a
toalha da mesa, os bonitos olhos azuis arregalando-se de
pavor e horror. Numa espécie de fascinação desesperada,
ficou olhando fixamente para o pai, até mesmo os lábios
empalidecendo. Sua vida sempre fora tão resguardada, tão
protegida e por isso mesmo despreocupada, alegre e infantil,
desprovida de qualquer preocupação ou aflição, que aquela
repentina compreensão feriu-a profundamente, deixou-lhe a
mente acabrunhada.
Ela engoliu em seco, os olhos infantis se arregalando cada
vez mais, até brilharem com intensidade. Ela tremia
visivelmente. Elsa, furiosa com Paul, amando a sobrinha com
toda a foiça de seu coração, pensou de súbito num
passarinho aleijado. E, pensando num passarinho, lembrou-
se de Godfrey, que tinha justamente aquela aparência, numa
noite terrível, a última noite em que o vira, nos aposentos
em que haviam-no encontrado com aquela horrível francesa.
Acontecera séculos antes, mas Elsa se recordava com nitidez
e as lágrimas lhe arderam nos olhos. Engolfada pela
recordação, ela pôs a mão sobre a de Alice e sorriu-lhe, com
infinito amor e ternura.

— Se não quer ir para Nova York, minha querida, então


não precisa ir. E se não gosta de Thomas, baterei na cabeça
dele com meu guarda-chuva, se tiver o atrevimento de
sequer olhar para você. E agora tome o seu chá. — Elsa fez
uma pausa, antes de acrescentar, com um sorriso ainda mais
profundo e afagando de leve o rosto da sobrinha: — E não se
esqueça de que prometeu ler para nós o seu novo soneto.

Alice recuperou a cor. Sorriu, meio indecisa. Paul,


compreendendo seu erro, exigiu mais chá, em voz irada.
Enfrentou os olhos da irmã, que estavam frios e hostis,
expressivos.

Foram para a sala de estar. Paul, ainda tentando não olhar


para a filha, atiçou o fogo com um vigor excepcional, embora
o tempo tivesse esquentado um pouco naquele princípio de
primavera. Alice pegou languidamente um livro, depois
experimentou o crochê, foi até o piano, bateu algumas notas
dissonantes, bocejou, suspirou, olhou furtivamente para o
pai e depois para o relógio em cima da lareira. Sabia que o
pai estava zangado com ela. Tinha a intenção de pedir-lhe
que a deixasse ir novamente à casa de Tia Florabelle, mas
sabia que o pai não estava agora num ânimo apropriado para
consentir. Ela ficou bocejando, até que seus olhos se
tornaram úmidos. Elsa, ajustando os óculos, estava lendo o
jornal vespertino, enquanto Paul lia algumas cartas pessoais
que haviam sido remetidas para sua casa. Ele também usava
óculos para ler, fazendo-o parecer mais velho.

“Mas que casa insípida a minha!”, pensou Alice,


fervorosamente. Depois, como sempre acontecia quando
estava sentindo pena de si mesma, ela pensou: “Ah, como eu
gostaria que a minha pobre e querida mamãe estivesse viva!
Tenho certeza de que ela não seria tão absurda quanto papai.
Compreenderia como detesto Thomas. Ela parece muito
frágil e triste na fotografia em meu quarto, mas também
compreensiva.” Ela pensou na avó, Amy, uma recordação
simpática e bonita. Amy sempre fora meiga, sorridente,
serena. Havia outra recordação que nunca deixava de intrigá-
la: a de que o avô chorara abertamente no enterro da avó,
como se não houvesse mais ninguém presente. As lágrimas
haviam escorrido pelas faces dele, pingando na gravata e no
colete. Parecera estranho ver um homem chorar,
especialmente um homem tão velho e grisalho como o avô.
Alice sentou-se distraidamente no banco do piano, pensando
e recordando, balançando o pé, a boca entreaberta. E, de
repente, sua expressão se transformou, as palavras
começaram a formar-se em sua mente:

“Ó você, tão velho e grisalho, por que chora?


Porque a carne que tanto ama em pó se converteu?
Porque o fogo solitário há de se manter
E suas esperanças são...”

A campainha da porta soou, muito distante. Alice franziu


o rosto, a pele alva e transparente se enrugando sobre o
nariz e os olhos. Só podia ser alguma das insípidas amigas
de Tia Elsa, todas perfeitamente estúpidas. O mordomo
apareceu com um telegrama numa salva de prata. Paul
pegou-o e leu.

Ele olhou rapidamente para Elsa.

— Tio Ernest e Tia May estão de volta. Desembarcaram


esta tarde e devem chegar a Windsor amanhã de noite.

Elsa baixou o jornal.

— Mas eles só deveriam voltar dentro de um mês!

— Tem razão. Mas ele está voltando antes do previsto por


causa da guerra iminente. Não há ninguém como Tio Ernest
para farejar o cheiro de pólvora, mesmo a mil quilômetros
de distância.

— Quer dizer que vai mesmo haver uma guerra? -gritou


Alice, estridente.

Paul fitou-a por cima dos óculos, com expressão irritada.

— Se vai haver, mocinha, o que isso tem a ver com você?


Claro que vai haver uma guerra. Não podemos permitir que a
Espanha continue a torturar Cuba por mais tempo.

Outro pensamento ocorreu a Alice. Ela sacudiu a cabeça e


disse:

— Mas deve ser bom para os negócios, papai.

Paul ficou completamente aturdido por um momento.

— Que diabo sabe sobre os meus ‘negócios’, Srta.


Impertinente?

— Apenas que são ne... ne... nefandos — respondeu Alice,


com uma atitude de desafio, embora estivesse interiormente
apavorada.

Incapaz de falar, de tão indignado, Paul virou-se para a


irmã, a exigir-lhe a intervenção. Elsa olhava para a sobrinha,
chocada.

— Mas do que está falando, menina?

Alice tornou a sacudir a cabeça, deixando agora que o


medo transparecesse em seu rosto.

— François disse que a fabricação de munições é uma


coisa nefanda, Tia Elsa. Ele... ele disse que os fabricantes de
munições são assassinos dos povos e que um dia todos
reconheceremos isso e os eliminaremos da face da Terra.
Como uma ameaça. Uma ameaça...

Ela repetiu a palavra derradeira com a voz já falhando,


mas ainda corajosa.

— Essa não!. — exclamou Elsa, respirando


convulsivamente. — François é... François certamente não é
muito inteligente! Talvez ele esteja se esquecendo que vive
na ociosidade às custas dos lucros das munições! Uma
ameaça! Essa é demais!

— Vá para o seu quarto — disse Paul, em voz controlada e


por isso mesmo terrível, o rosto extremamente pálido.

Alice começou a chorar.

— Mas ainda não passa de nove e meia, papai...

— Vá para o seu quarto.

Havia algo na voz e no rosto do pai que deixou Alice


apavorada. Ela levantou-se e saiu correndo da sala,
profundamente abalada.

Depois que a porta se fechou, Paul disse à irmã, num tom


de violência contida:

— Deve mantê-la afastada daquela casa, Elsa. Está me


entendendo? Vou lhe atribuir a responsabilidade por isso. E
se não puder confiar em você, terei de mandar Alice para
alguma escola, alguma instituição. Os últimos minutos foram
demais.

A própria Elsa estava abalada demais, para ficar furiosa


com as palavras e o tom do irmão. Ela engoliu em seco,
muito pálida.

— Leve-a para Nova York, Elsa, nem que precise arrastá-la.


E não a traga de volta enquanto não estiver tudo acertado.
Case-a por lá, se puder, mesmo que precise de um ano para
isso. Hoje é quarta-feira. Apronte tudo e viaje na sexta-feira.
Até lá, não a deixe ficar longe de sua vista.

Paul se levantou e caminhou pela sala, com as mãos nas


costas, os pensamentos violentos, impregnados de ódio e
medo.

Ele está voltando!, pensava Paul. Ele está voltando e


viverá mil anos!
CAPÍTULO CVIII
De um modo geral, todos reconheciam que Jules
Bouchard casara com uma ‘grande dama’, como poucas
restavam, lamentavelmente, naqueles tempos vulgares. Jules
estava com 26 anos quando desposara a Srta. Adelaide
Burgeon, que era quatro anos mais velha, estando com 30
anos na ocasião. Era filha única de um homem idoso, que
nascera em Windsor, mas mudara-se para Filadélfia quando
Adelaide era criança. A família era impecável, remontando a
um nobre cavalheiro que chegara a Maryland com uma
fortuna, no início do século XVII... um cavalheiro católico,
deixando uma hostil Inglaterra protestante. Posteriormente,
seus descendentes haviam se transferido para a Pensilvânia.
Isto é, uns poucos que eram aventureiros, ambiciosos e
irrequietos. Haviam construído uma das melhores usinas
siderúrgicas de Pittsburgh, ganhando muito dinheiro,
recuperando a fidalguia e mudando-se para Filadélfia. O pai
de Adelaide brigara com os parentes, fora para Windsor e ali
casara, já na meia-idade. Adelaide era o único resultado de
tal casamento. O pai acabara sentindo saudade de sua terra e
voltara a Filadélfia, só para retomar posteriormente a
Windsor, onde permanecera até pouco depois do casamento
da filha, quando morrera. Calculava-se que deixara uma
fortuna acima de quatro milhões de dólares. Na verdade,
porém, mal chegava a um milhão. Mas, como disse Jules
filosoficamente, “caiu muito bem”.

O velho Sr. Land Burgeon fora ‘um grande patife’. Jamais


se empenhara em qualquer tipo de negócio, mas era um
velho brutal e selvagem, ganancioso e impiedoso, a fala
ríspida, desconfiado dos motivos de todos com exceção da
filha, mal-humorado e grosseiro, irascível e às vezes
francamente perverso. Mas ninguém contestava que era um
grande cavalheiro, apesar da voz rude e dos insultos
obscenos. Fora prefeito de Windsor por dois mandatos,
mostrando-se sempre implacável quando havia greves.
Carregava sempre uma pesada bengala, que brandia e muitas
vezes usava nas costas de criados e de outras pessoas.
Odiava praticamente a tudo, especialmente a Jules Bouchard,
quando o astuto jovem começara a cortejar Adelaide.

— Ele está atrás do seu dinheiro, menina — dizia à filha,


soturnamente. — Mas também quem iria casar com uma cara
feia como a sua, se não fosse por dinheiro?

E falava isso apesar de jamais ter amado qualquer outra


pessoa que não aquela sua filha submissa, bem-educada e
delicada, com um rosto pálido, olhos castanhos e voz gentil.
O Sr. Burgeon não tinha qualquer reserva e as coisas que
dizia à filha, muitas vezes na presença dos amigos dela,
faziam com que a pobre moça sofresse uma agonia de
vergonha, o rosto vermelho, as lágrimas escorrendo pelas
faces, especialmente quando se referia à ausência de seios e
à estreiteza dos quadris. Na verdade, o Sr. Burgeon sentia-se
desapontado pela filha. Gostava de mulheres exuberantes,
cheias de vitalidade, risonhas, olhos faiscantes, com seios
em que “um homem pode apoiar a cabeça e não pensar que
está se comprimindo contra um barril” e com um “traseiro
em que um homem pode dar uma palmada de brincadeira
sem cortar a mão em ossos”. Gostava de mulheres
espalhafatosas, mulheres grandalhonas, transbordando de
entusiasmo e paixão, mulheres espirituosas, capazes de uma
piscadela de double entendre. E, estranhamente, gostava que
tais mulheres fossem também castas. Uma das suas queixas
mais constantes e veementes era a seguinte:

— Ou uma mulher é ‘boa’ e não tem qualquer sangue em


seu maldito corpo esquelético, não tem mais exuberância
que uma vitela abatida, ou então é uma rameira, possuindo
tudo o que um homem gosta e precisa pra confortá-lo no
difícil negócio de viver!

Frequentemente se lamuriava porque as mulheres não


podiam ser uma mistura de Palas Atenas, Afrodite e Diana.

Havia ocasiões em que ficava olhando para Adelaide,


enquanto ela se deslocava suave e silenciosamente pela casa.
Observava-a com as mãos cruzadas sobre o castão da
bengala, o queixo nas costas das mãos, o rosto franzido,
notando como a saia caía direto pelos quadris sem carne,
como as dobras do corpete não conseguiam esconder que ela
não possuía praticamente seios. E finalmente ele
resmungava, furioso:

— Pelo menos não vai me trazer nenhum bastardo para


casa!

Ele morava com a filha na antiga casa da família, um


tanto desmantelada e inconveniente, úmida sob as árvores
que a sufocavam no verão, num emaranhado de verde,
cobrindo-a com uma teia de galhos desfolhados no inverno.
Ele perambulava pelos jardins, gritava, resmungava,
raramente fazia visitas. Era tão carrancudo que os anfitriões
tinham medo dele e suportavam-no apenas por causa de seu
nome de família e dinheiro. Ele assustava os outros com o
ridículo, perguntas rudes, sarcasmos, grosserias. Intimidava
quaisquer pretendentes que pudessem se aproximar de
Adelaide. Mas não conseguiu afugentar Jules Bouchard.

— Não sei o que ele vem procurar! — disse o velho a


Adelaide. — Deus sabe que não está querendo seduzi-la! Não
com a coisinha bonita que ele tem na Endicott Road, que vale
pelo menos duas de você. Portanto, ele só pode estar
querendo casar com você... por seu dinheiro ou meu
dinheiro... embora um demônio como aquele possa ter uma
dúzia de mulheres bem melhores.

Ele brigava com Jules, insultava-o, discutia, brandia a


bengala, ordenando-lhe que ficasse longe de sua casa
dezenas de vezes. Mas Jules apenas ria, respondia
gentilmente, atormentava o velho com seus comentários
irônicos, geralmente acabava jogando whist com ele. Uma
noite, depois de uma partida vitoriosa, o velho disse:

— Não consegue me enganar, seu maldito francês


intrigante! Eu o odeio e sempre odiarei. E sei perfeitamente o
que está querendo.

Jules respondeu com um sorriso insinuante:

— Se sabe, meu caro senhor, qual é a sua resposta? Vai


consentir no casamento de Adelaide comigo?

O velho fitou-o com uma expressão furiosa, os olhos


avermelhados e coléricos, blasfemou, despachou sua alma
para as profundezas dos mais diversos infernos. Depois,
numa voz súbita e curiosamente afável, ele perguntou:

— Por que diabo está querendo casar com Addie? Ela


nunca lhe dará fedelhos e sabe disso. E também nunca terá
qualquer prazer em ir para a cama com ela. — Ele fez uma
pausa, observando Jules astutamente. — É por causa do
dinheiro, não é mesmo?

— Possivelmente — respondeu Jules, com a maior calma.

— Mas você não é um cavalheiro.

— E você também não é.

O Sr. Land Burgeon desatou a rir na maior alegria.


Chamou Adelaide, que estava fazendo crochê em outra sala,
sentindo um profundo prazer em ouvir a voz distante de
Jules, esperando e vivendo apenas para os momentos em
que ele lhe falava e segurava a mão. Ela entrou na sala
corando e sorrindo, tremendo um pouco quando seus olhos
se encontraram com os de Jules. Há muito que renunciara a
qualquer esperança de que o pai consentisse em seu
casamento. Ao deparar com o pai franzindo o rosto de modo
ameaçador, os lábios grossos espichados para fora, como
sempre acontecia quando estava furioso, Adelaide sentiu o
coração se encolher dolorosamente.

— Quer casar com esse francês patife e astucioso? —


gritou o velho. — Está a fim de amarrar sua vida a esse sem-
vergonha com cara de padre?

A pobre Adelaide quase desmaiou de surpresa. Começou


a chorar silenciosamente, olhando para Jules e o pai.

— Então pare de choramingar e fique logo com ele! —


rugiu o Sr. Burgeon. — Mas vocês dois tratem de anotar
minhas palavras: não vão receber um só vintém do meu
dinheiro enquanto não me derem um neto!

Ele olhou furioso para a moça paralisada e depois para


Jules. E murmurou, amargamente, com óbvio desdém:

— Bouchard, Bouchard... o açougueiro... Ora, até que o


nome é apropriado!

Assim, Jules, que tratava Adelaide com delicadeza,


galanteria e bondade, mas certamente não a amava, casou
com a filha do Sr. Land Burgeon. Apesar das declarações
frequentes e públicas do velho de que a filha não tinha
‘entranhas’ para gerar filhos, Adelaide os teve e sem
qualquer tardança. Em 1886 nasceu Armand, vindo Emile em
1887 e Christopher em 1888,

— Ele tirou os fedelhos da cartola! — bradou o velho


Land, com a sua falta de compostura característica. -Nunca
poderia tê-los tirado de Addie!

Jules construíra uma boa casa num bairro elegante de


Windsor, uma casa de torres de tijolos, sacadas, varandas.
Jules gostava de alegria ao seu redor, mulheres de olhos
faiscando, homens bem vestidos e joviais. Mas tomava o
cuidado de convidar apenas aqueles que possuíam uma
posição social impecável. Assim, seus visitantes eram quase
sempre insípidos. Quase todos eram amigos de Adelaide,
pessoas impecáveis, conservadoras, impolutas. A vida em
casa era uma sucessão de jantares familiares, jantares
corretos e decorosos, insípidos, servidos com perfeição em
travessas de prata, pratos de porcelana Haviland,
guardanapos com monograma, decantadores de sherry e
Moselle. Adelaide revelou-se esplêndida dona-de-casa, todos
os criados eram impecavelmente treinados. A voz dela era
sempre suave, conciliatória, agradável e terna, o rosto
brilhando de simpatia. A maternidade não lhe arredondara o
corpo, mas havia agora nela uma vaga e atraente maturidade.
Os cabelos castanhos eram penteados para trás. Embora a
moda em 1898 fosse o penteado à pompadour, ela usava um
volume de tranças castanhas, presas à nuca. Não havia a
menor dúvida de que Adelaide, com seus vestidos de cores
neutras, palavras gentis e mãos quietas, era uma ‘grande
dama’. Adorava Jules e os filhos, estava consciente, triste,
mas silenciosamente, de que nenhum deles a amava, com
exceção talvez de Christopher, de rosto cruel e lábios finos.

Considerava desconcertante a família do marido. Era


gentil demais para achar qualquer um atroz ou insuportável.
Uns poucos aterrorizavam-na, especialmente Ernest, que
sempre a tratava cordialmente, e Florabelle. Como não tivera
jamais qualquer contato com a vulgaridade e falta de
educação, não conhecia tais coisas em pessoas como a sogra,
julgando-as apenas incompreensíveis e um pouco esquisitas.
Fora completamente cega a tais elementos no pai, de quem
falava como sendo “apenas um pouco brusco e sincero,
pobre papai!”

Seu dia inteiro revolvia em torno da hora do jantar,


quando Jules, sempre polido, cortês e atencioso, sentava-se à
cabeceira da mesa, com ela na outra extremidade, os filhos
nos lados. Sentia-se então feliz e segura, resguardada.
Conversava sobre as cartas que recebera naquele dia, um
jantar iminente, um convite, uma história engraçada de
alguma criada. O pai estava morto há alguns anos e Adelaide
sentia muita falta dele. Não se passava uma noite sem que o
mencionasse, os olhos meigos brilhando subitamente com
ligeira umidade. À sua mesa, presidindo sobre os bules e
xícaras, quase bonita, em seu jeito anêmico, lívido e gentil,
Jules a contemplava e pensava que agira muito bem, casando
com uma ‘dama’ e seu milhão de dólares de quebra.

Adelaide falou naquela noite de ‘Tia May’, a quem ela


amava e achava familiar. Chegara uma carta de Montreal, em
que May informava que ela e Ernest deveriam voltar em
breve. Jules levantou os olhos, subitamente alerta. Mas
limitou-se a dizer, distraidamente:

— Como isso é agradável para você, minha cara! Afinal,


você e Tia May sempre se deram muito bem.

Armand era um garoto corpulento, quase gordo, com um


rosto redondo e corado, cabelos castanhos avermelhados,
olhos pretos pequenos e astutos, um sorriso agradável.
Parecia mais velho do que os seus 12 anos, pois era alto e
grandalhão, se bem que com o corpo ainda informe, com um
jeito de falar amadurecido e controlado. Emile, aos 11 anos,
era pequeno, ágil e atlético, ria com a maior facilidade.
Merecia muito menos confiança do que Armand, que pelo
menos tinha um certo código pessoal de honra. Christopher
era o mais parecido com o pai, mas sua pele era pálida, ao
invés de trigueira, quase transparente, olhos insidiosos,
castanhos e imóveis, sem qualquer paixão. Tinha apenas 10
anos, mas a boca lívida já se fixara definitivamente numa
expressão de crueldade. O nariz parecia com o de Jules,
assim como a voz baixa e persuasiva. Pequeno, propenso ao
silêncio, cabelos castanhos, delicado, tinha um ar de
fragilidade extrema, lembrando tanto o pai como a mãe.
Jules chamava-o de ‘um pequeno demônio sem sangue’ e era
o de que menos gostava entre os filhos. Ele próprio não tinha
qualquer senso de honra, mas preferia Armand, que possuía
alguma honra, sentindo alguma aversão por Christopher, o
que lhe era mais parecido.

— Jules, querido, fiquei muito triste por você ter


trabalhado até tarde da noite ontem — disse Adelaide,
depois de um gentil olhar de advertência para Emile, que
estava beliscando Armand sub-repticiamente.

— Também lamentei — disse Emile. -não suporto


Dickinson. Ele tem mãos que parecem e sentem como peixe
frio. E é empertigado como uma velha solteirona. Quando
vem jantar, fica olhando para o relógio a todo instante. E
quando faltam exatamente três minutos para 10 horas, ele
anuncia que está na hora de ir embora. Como se alguém
quisesse que ele ficasse...

— Já chega! — disse Jules rispidamente, embora sorrisse


no íntimo,

Adelaide murmurou uma censura ao filho e Jules disse-


lhe:
— Lamento muito, querida, mas tinha de resolver vários
problemas importantes. Mas não precisava ficar em casa,
deixando de comparecer à recepção da Sra. Sidway.

— Mas eu não queria ir sem você.

A voz de Adelaide era suave e clara. Ela contemplou o


marido com a adoração inocente estampada em seus olhos.
Jules retribuiu o olhar com um sorriso afetuoso. E ele
pensou: no final das contas, há muito o que se dizer em
favor da boa criação. É muito conveniente numa mulher, pois
assim Adelaide não pode tomar qualquer conhecimento da
minha ‘Viúva Alegre’. Jules disse, em voz alta:

— Desculpe, Adelaide, mas terei de sair assim que acabar


o jantar. André me disse que o velho major não está
passando muito bem. Afinal, ele já entrou na casa dos 80
anos. E mamãe se sente muito solitária. Está ficando velha e
não tem mais ninguém em casa agora, exceto François... e
você sabe como ele é. Mamãe está com 65 anos, engordou
demais para sair constantemente. E gosta de nos ver de vez
em quando.

— Eu gostaria de acompanhá-lo — disse Adelaide,


tristemente — mas estou esperando Emma e Wilson esta
noite. Eles ficarão desapontados por não encontrá-lo em
casa.

— Papai, quer me dar uma bicicleta? — disse Emile.

— Não, enquanto não aprender a tratá-la melhor do que


fez com a última — respondeu Jules. — Já teve quatro
bicicletas em dois anos e não aprovo a negligência e
desperdício.

Armand, que não era de falar muito, perguntou ao pai


sobre a guerra. Escutou a resposta com profundo interesse e
atenção respeitosa. Jules gostava de conversar com Armand,
achando-o mais inteligente do que muitos adultos. Enquanto
ele falava, Armand observava-o com seus olhos pequenos e
furtivos. Emile, que era mal-humorado quando não estava
rindo, olhava para a epergne de prata com a cara amarrada,
murmurando uma imprecação para a criada que lhe ofereceu
pudim. Christopher escutava, como sempre escutava a tudo,
sem dizer nada. Quando Jules virou o rosto em sua direção,
os olhos de pai e filho se encontraram, com um estranho
efeito, como uma colisão, seguindo-se um brusco recuo, que
abalou os dois. Era sempre assim, aquele antagonismo
mortal. Jules desviou os olhos e concentrou-se no filho mais
velho.

Ao terminar o jantar, Jules se levantou para sair, beijou a


mulher no rosto e prometeu voltar o mais depressa possível.

— Dê um beijo por mim em Mamãe Norwood — disse


Adelaide.

A caminho do vestíbulo, onde estavam o chapéu e o


casaco, Jules contemplou com satisfação os cômodos por
que passava. Numa época pomposa e atravancada de móveis
e ornamentos, Adelaide estava muito à frente de seu tempo,
pois abrira espaços em sua casa, agrupando móveis
delicadamente em determinados pontos, móveis de pau-rosa
e mogno, com amplos espaços vazios de assoalhos
encerados, paredes de cores neutras, tapetes simples, de
padrões discretos. Como ornamentação, ela recorria a flores
e um ou outro quadro, em molduras simples, sem nada de
rebuscado. O gosto de Adelaide, como ela própria, era
impecável.

Era uma noite amena e por isso Jules seguiu alegremente


para a casa da mãe. Quaker Terraces não era mais um lugar
elegante. As casas ali estavam se tornando velhas e
decrépitas, os jardins e passeios estavam em péssimas
condições. Mas a velha Florabelle não queria deixar aquela
rua. Chegara ali como mulher de Raoul, recém-casada, há
mais de 40 anos. Embora já tivesse 60 e tantos anos, casada
há muitos anos com o Major Norwood e mãe dos filhos dele,
cada porta e aposento, cada palmo do jardim, o próprio
quarto que partilhava com o atual marido, tudo a fazia
lembrar de seu jovem apaixonado e primeiro marido. Os
móveis haviam sido trocados meia dúzia de vezes desde a
morte de Raoul, as paredes pintadas interminavelmente, o
papel trocado incontáveis vezes. Mas com frequência mesmo
agora, Florabelle subitamente levantava os olhos com meio
sorriso, pois os anos voltavam e esperava deparar com
Raoul. Quando falava dele, mesmo na mais profunda
angústia, jamais falava como se ele estivesse morto, mas
como alguém vivo e amado, um pouco distante. Esse amor
firme, essa lealdade constante, surpreendia a família inteira,
pois a velha, rude, astuta e petulante Florabelle era
certamente um estranho receptáculo para o perfume da
devoção.

Jules detestava a velha casa em que nascera. Não sentia o


amor francês por raízes profundas e paredes que resistiam
por anos a fio. Achava a casa sufocante, sombria, antiquada
e decadente, como de fato era. Jules não tinha qualquer
sentimentalismo e por isso não se sentia comovido pela
visão do quarto em que nascera, o quarto em que brincara
quando era criança ou os jardins em que correra. Detestava o
mau gosto da sala de visitas de Florabelle, com o teto alto,
paredes compridas e sombrias, janelas que pareciam meras
fendas. Aquilo tudo, pensava ele, era a própria essência de
uma era agonizante, o vitorianismo combinado com um
prodigioso mau gosto. Era uma sala impecavelmente limpa,
mas atravancada. Havia cobertas para os braços e encostos
de poltronas, flores de cera, muito veludo vermelho,
cristaleiras com incontáveis coleções de bibelôs de marfim e
porcelana de Dresden, sofás de crina de cavalo e horrendas
mesas de nogueira, mesas pesadas, cortinas de veludo
vermelho, fazendo os olhos estremecerem de pavor. Sobre
um tapete branco, havia um gato amarelo, belicoso e hostil.

Florabelle estava muito gorda agora. Como era de baixa


estatura, a gordura fazia com que parecesse quase tão larga
quanto alta. Os seios e a barriga haviam-se fundido numa
única massa sólida, sob o vestido preto de seda, que tinha
um arranjo de renda branca na garganta. Os cabelos estavam
brancos, mas meticulosamente penteados num estilo que
remontava à sua juventude. Sob essa montanha de ondas e
cachos, ficava o rosto de vasta papada, rosado, nariz
pequeno, olhos azuis brilhantes, lábios ainda vermelhos. Era
um rosto gordo, velho e bonito, vulgar e petulante, astuto,
mas não inteligente, esperto e desconfiado. Diamantes
faiscavam por toda parte, nas orelhas, garganta, dedos
roliços. Uma das pernas era mais rígida atualmente e ela
usava uma bengala com castão de ouro. Lia novelas alegres
sem parar, quando não estava costurando ou conversando.
Seu interesse por moda e problemas dos parentes e amigos
não se atenuara com o passar dos anos. Assim como sua
malícia não diminuíra nem a simpatia aumentara.

O filho predileto de Florabelle era Jules, o que lhe dera


menos problemas em criança. Além do mais, Jules a fazia
lembrar Raoul. Gostava de tê-lo sentado ao seu lado e muitas
vezes ficava com a mão no ombro dele, inclinando-se em sua
direção, sorrindo e escutando, os olhos azuis faiscando de
malícia, divertimento ou interesse. Não gostava de Adelaide,
que considerava uma mulher ‘sem classe’.

Jules encontrou a mãe bocejando com a leitura de um


artigo de jornal, de autoria de Zola. Aparentemente,
Florabelle achava que naquele artigo o escritor não estava
correspondendo à sua reputação, pois parecia extremamente
entediada. Depois de beijar Jules, ela exclamou com
impaciência:

— Quem se importa atualmente com o Caso Dreyfus?


Além do mais, alguma coisa está sempre acontecendo com
os judeus. E não tenho a menor dúvida de que eles merecem.
Estão sempre metidos em encrencas, fazendo inimigos e
sendo enxotados de um lugar para outro. Não tenho a menor
paciência com judeus!

Jules examinou rapidamente o artigo, J’accuse, largando-o


em seguida e comentando:

— Está virando uma velha bárbara, mamãe. — Ele olhou


pensativo para o jornal que deixara na mesa. — E também
uma boa britânica. Sempre chutando o oprimido. Sob um
governo realista, nos termos de uma filosofia realista, o
oprimido merece mesmo ser escorraçado.

O Major Norwood, em excelente saúde, estava sentado no


lado oposto, diante da lareira, meio cochilando, meio
sorrindo. Os cabelos brancos e sedosos caíam pelos ombros,
o bigode também branco chegava quase até ao queixo. A
idade suavizara ainda mais um temperamento já jovial e
bondoso, sinceramente generoso, se bem que estúpido.
Saudava a todos com um sorriso afetuoso e profundo
interesse, embora fosse propenso a esquecer qualquer um
imediatamente depois, confundindo até mesmo os
relacionamentos de família mais íntimos. Mas quando
finalmente penetrou na consciência do velho major que era
Jules quem ali estava, ele ficou prontamente alerta, os olhos
azuis inocentes começaram a brilhar, sobre a prateleira das
sobrancelhas brancas.

— Ora, meu caro Jules, que prazer tomar a vê-lo! E como


tudo está correndo tão bem! Verifiquei que nossa ação subiu
seis pontos hoje. Rumores de guerra, hem?

— Creio que sim, papai.

— Telegrafei para o meu corretor, mandando que


comprasse três mil ações para mim amanhã, ao preço da
abertura.

Jules franziu o rosto.

— Acho que fez uma tolice, Papai Norwood. Se permite,


enviarei um telegrama de cancelamento da sua ordem.
Afinal, ainda não é certo que a guerra será mesmo declarada.
Creio que o rumor estará desmentido até amanhã de noite.
Com isso, a ação imediatamente vai baixar. Não seria melhor
mandar uma ordem para comprar oito ou dez pontos abaixo
da cotação de hoje?

O major ficou calado por um momento, os olhos


inocentes aguçando-se lentamente, fixados no rosto de Jules.
Depois, ele assentiu e murmurou:

— Ah...

Jules sorriu. Na noite seguinte, ele poderia comprar ações


da Barbour & Bouchard dez pontos abaixo da cotação de
hoje. Providenciara tudo habilmente. Dentro de uma semana,
a ação estaria um terço mais alta do que hoje e a rede dos
Bouchards puxaria um vasto cardume.

Florabelle envolveu Jules numa conversa rápida, em que a


participação dele resumia-se quase que inteiramente a
monossílabos. Entre outras coisas, Florabelle estava
aborrecida com François, como sempre.
— Não consigo entender, Jules! Um homem da idade dele,
sentado o dia inteiro, mugindo como um boi! Fico com os
nervos à flor da pele. E tão irritada que é impossível ficar na
mesma sala que ele. Jules, foi Adelaide quem lhe comprou
essa gravata? Oh, Deus! Sempre falei que a pobre coitada não
tem o menor gosto, é cega para cores ou algo parecido. Essa
gravata é horrível. Não tem o menor contraste, toda de cinza
claro e cinza mais escuro. Não tem vida! Gosto das coisas
que têm vida. Um toque de vermelho aqui, um azul forte
ali... Mas não! Adelaide tem de fazer o que bem quer e por
isso escolhe uma gravata assim. Parece um clérigo ou um
idoso cavalheiro. Tenho certeza de que ficaria muito melhor
no major. Mas o que era mesmo que eu estava dizendo de
François? Ah, sim, que ele está ficando mais horrível a cada
dia que passa. E parece que ele hoje esperava por uma visita
daquela garota ridícula, a tal Alice. Só que ela não apareceu.
É uma coisinha muito tola e frívola. Além disso, jamais
gostei de cabelos vermelhos. E Elsa também tem um gosto
atroz. Não chega a ser como Adelaide, que é inerte e morta.
Mas escolhe coisas por demais exuberantes e pesadas para
uma coisinha insignificante como Alice. Sabe o que ela
estava usando ontem, embora não pese mais de 45 quilos?
Um pelerine de marta! E tinha na cabeça um chapéu que
parecia uma roda de carroça! Aposto como você nunca viu
nada tão ridículo! A menina mal conseguia carregar tudo
aquilo, E é muito petulante. Quando sugeri que o pelerine e o
chapéu não combinavam com ela, Alice mostrou-se
impertinente. Eu levaria um tapa no ouvido, se respondesse
aos mais velhos daquele jeito, quando tinha a idade dela!
Não sei mesmo onde este mundo vai parar. Ela prometeu a
François que viria novamente hoje, mas não apareceu...

Jules pegou a mão da mãe e apertou-a firmemente, como


sempre fazia quando queria interromper-lhe o fluxo de
conversa e levá-la a concentrar-se,
— Quer dizer que Alice não apareceu hoje, depois de
prometer a François que viria?

— Hein? Mas que coisa! Por que você está tão interessado
nisso, Jules? Seus olhos estão até brilhando! Pois ela
prometeu mesmo. Disse que viria tomar o chá comigo e
François esta tarde. E sempre vem quando promete. Mas
certamente a menina pegou um resfriado ou está com dor de
cabeça e não pôde vir. Assim, não posso entender por que
François tem de se comportar como um leão enjaulado... foi
isso o que o querido major falou, não é mesmo, major? Um
leão enjaulado! Fica andando de um lado para outro,
gritando comigo. E quando falei que provavelmente estava
com um ataque, como acontecia quando era garoto, ele foi
positivamente grosseiro comigo. Não é mesmo, major?

O major teve um sobressalto, no meio de um cochilo.

— Hein? Ah, sim, meu amor... Se bem me lembro, ele


disse: “Cale essa boca!”

Florabelle lamuriou-se:

— Ele mandou sua própria mãe calar a boca! Juro que


quase desmaiei! Eu gostaria muito que você conversasse com
ele, Jules. E tudo por causa de uma menina, que podia ser
filha dele, não aparecer para ler suas poesias idiotas.

— Alice mandou algum recado para François?

— Não. Elsa apareceu esta tarde, toda gentileza, aquela


horrenda e volumosa criatura! Disse que ela e Paul achavam
que Alice estava nos incomodando demais ultimamente. Foi
muito atenciosa, riu um pouco de Alice, comentou que iria
levá-la a Nova York por algum tempo. Se não me engano, elas
vão viajar depois de amanhã. Para uma permanência
prolongada. Elsa insinuou que ela e Paul estão convencidos
de que Alice e seu primo Thomas Van Eyck sentem uma
atração mútua e por isso...

Jules se levantou abruptamente.

— Onde está François?

— Está lá em cima, no quarto dele. Quer falar com ele,


Jules? Mandarei chamá-lo.

— Não se preocupe, mamãe. Vou subir e conversarei com


ele no quarto,

Jules saiu quase correndo da sala abafada. Encontrou


François sentado à escrivaninha, olhando sorumbático para
várias folhas de papel em branco. François virou a cabeça,
quando Jules bateu de leve na porta e entrou. Largou a pena
bruscamente e disse em tom ríspido:

— O que você está querendo?

Jules sorriu cordialmente,

— Posso sentar? Obrigado.

— Não falei que podia sentar — disse François, de cara


amarrada, desconfiado. Tinha medo de Jules, além de não
gostar dele. — Mas suponho que não conseguirei expulsá-lo.

— Seria muito difícil.

Jules cruzou as pernas, acendeu um dos seus charutos


compridos e finos. François tossiu deliberadamente,
parecendo muito angustiado, em seguida levantou-se e abriu
uma janela. Tornou a sentar-se, examinou Jules atentamente,
as sobrancelhas pretas e hirsutas se unindo. Estava
visivelmente constrangido, Jules sempre fazia com que um
suor nervoso lhe porejasse nas costas. Ele tinha a sensação
de que havia alguma coisa perigosa em sua presença. Isso já
acontecia mesmo quando ainda eram crianças. Ele disfarçava
sua inquietação, nervosismo e medo desconfiado com
exagerada hostilidade e grosseria.

Jules, fumando elegantemente, observava o irmão.


François não era muito alto, mas tinha um corpo esguio que
dava tal impressão. O rosto era trigueiro e cadavérico, as
faces encovadas, olhos pretos brilhantes, mas indecisos,
nariz comprido e fino, da mesma forma que o queixo, boca
larga e histericamente tensa, uma cabeleira preta que parecia
estar permanentemente precisando de um pente. As roupas
davam a impressão de estarem prestes a se desprender do
corpo, a gravata deslizando para o lado, o paletó caindo
pelos ombros, os cordões dos sapatos perpetuamente soltos,
o colete desabotoado. Usava uma expressão de crônica
petulância, impaciência e irritação, todo o seu ar, a voz
brusca e estridente, indicava um egotismo intenso e
arrogante. François jamais conseguia ficar em repouso, as
pernas sempre se mexendo na cadeira, as mãos sempre
retorcendo a toalha da mesa, o nariz e a testa se franzindo
mecanicamente e depois se desanuviando. Havia nele algo de
febril, que logo afetava os nervos alheios.

Ele parecia ainda mais nervoso sempre que Jules estava


presente. Enquanto Jules observava-o, ele mal conseguia
controlar sua inquietação. Sacudiu a cabeça, jogou para trás
os cabelos desgrenhados, franziu a testa. Mas, durante todo
o tempo, fixava os olhos soturnos e indecisos no irmão,
ofegando um pouco. Seu antigo sentimento de perigo
aumentou ao ponto de histeria.

Jules tossiu ligeiramente e disse, suave:


— Está parecendo cansado, François. Precisa de um
descanso. Ou mudar de ares.

Era uma pontada firme em François, como Jules sabia


muito bem. François, subjugado por aquela simpatia e
gentileza inesperadas do irmão tão temido, sacudiu as mãos
furiosamente.

— E pensa que eu não sei? Tem toda razão, Jules. Nunca


pensei que fosse tão observador e simpático. Talvez eu o
tenha julgado mal. Mas é mesmo verdade que estou
precisando descansar. Sinto que estou prestes a sufocar. É
uma morte continuar em Windsor. Não seria tão ruim assim
se eu tivesse meu próprio dinheiro. Mas acontece que não
tenho. Sabe como mamãe é. Ela me dá uma miserável mesada
de 100 dólares por mês e jura que não terei mais nada, até
sua morte, quando receberei minha parte da herança de
papai. Enquanto isso, morro de fome! Como um artista pode
suportar uma situação dessas? Isso me sufoca...

Ele fez uma pausa, os olhos tensos novamente fixados em


Jules, com uma expressão patética de suspeita, súplica e
confiança. Jules contemplou a ponta em brasa do charuto,
pensativo.

— Tem razão, François. Creio que o compreendo


perfeitamente. Não vou dizer que posso sentir inteiramente
o que você declara que um artista deve sentir. Mas
certamente posso compreender o que um homem de sua
idade deve sentir, ao ser tratado como criança. E tenho
pensado muito nesse problema ultimamente.

A ansiedade estampou-se no mesmo instante no rosto


simplório de François.

— Jules! Pode ajudar-me? Vai falar com a mãe?


Jules suspirou.

— Como acabou de dizer, você conhece a mãe.


Simplesmente não sei o que você pode fazer, François. É uma
situação terrível. E foi por isso que tinha de lhe falar esta
noite. Ninguém mais fará nada. Nossa família não se destaca
pela simpatia.

— E como sei disso! — exclamou François, amargo. —


Bárbaros materialistas! Frey teve de fugir daqui. A pobre
coitada da Trudie também fugiu deles... para a morte. A mãe
está sempre me perguntando: “Por que você não faz alguma
coisa prática... ganha dinheiro?” Como se o dinheiro fosse
alguma outra coisa que não o resultado repelente dos
negócios... O mundo pensa em termos de fazer, onde tudo
está à venda e nada é sagrado, onde a beleza não tem o
menor valor, a menos que enfeite alguma coisa utilitária...
como...

— Um vaso contrário, por exemplo -sugeriu Jules.

François estremeceu, mas sorriu.

— Ora, se alguém quer ser vulgar, é isso mesmo. O


mundo tem uma mentalidade de urinol e só pode perceber a
beleza quando é óbvia e vulgar, como rosas e folhas verdes
pintadas. — Ele fez uma pausa e depois acrescentou, com
um retorno à antiga hostilidade: — Mas continuo a não
gostar daquele seu último Van Gogh, Jules. É muito...
muito...

— Realista, talvez?

— Realista? Mas que palavra horrível! Parece até que a


realidade deve ser acalentada, admirada e procurada, em
toda a sua feiura! Como se a realidade, tão sórdida, desolada,
horrenda e terrível, fosse alguma coisa de valor! É
justamente isso a maravilha, alegria e salvação da beleza, o
fato de disfarçar e encobrir a realidade, tornando-a
suportável a nossos olhos!

Jules suspirou ligeiramente e examinou as unhas.

— Há muita coisa de procedente no que você diz,


François. Mas para viver num mundo prático e realista,
devemos ceder, fazer concessões. É um paradoxo, mas se
alguém deseja conseguir o que quer, então deve fazer
concessões. Pelo menos inicialmente. Mas tudo isso nada
tem a ver com o fato básico de que você, um homem
inteligente, que poderia criar muito se tivesse paz de
espírito, está sendo tratado de maneira ignominiosa, como
uma criança imbecil.

François fitou-o com um espanto patético.

— Eu... eu não sabia que se importava tanto comigo,


Jules. Sempre pareceu um pouco duro e exigente, como
nosso horrível Tio Ernest. Descubro agora que eu estava
enganado. E lhe peço perdão.

Ele suspirou. Para qualquer outra pessoa que não Jules,


aquele suspiro soaria profundamente comovente. Ele olhou
de modo solene para François.

— Está com 35 anos, não é mesmo, François? Já pensou


alguma vez em casar?

O rosto de François alterou-se, ficou vermelho, tornou-se


por um instante quase radiante. Mas logo recuperou o mau
humor habitual. Pegou a pena que largara, espetou-a
furiosamente na escrivaninha de pau-rosa, depois jogou-a
contra a parede.
— Casar? Santo Deus, como posso casar com 100 dólares
por mês? Que espécie de moça, que meiga criatura, mesmo
que fosse um anjo e capaz de apreciar um artista, gostaria de
casar com um homem que ganha apenas 100 dólares por
mês? Seria um crime pedi-la em casamento. E mesmo que ela
aceitasse, qual o homem honrado...

Jules interrompeu-o, habilmente:

— Tem toda razão. François, tenho de lhe falar de homem


para homem. Ontem à tarde, Paul Barbour foi ao meu
escritório, quando eu estava tendo uma reunião particular
com Leon e Honore. Começou a gritar comigo, como um
touro enfurecido. Parece que ele desconfia que você e a
pequena Alice estão conspirando para casar. E ele contou o
que tenciona fazer: vai mandar a filha para Nova York e casá-
la com o primo, Thomas Van Eyck. Creio que Alice viajará
amanhã.

Enquanto ele falava, o rosto de François empalidecia, os


lábios se contraíam. Toda a sua arrogância desapareceu.
Ficou imóvel, como um homem abalado e desesperado, o que
de fato acontecia.

— Nova York! Amanhã! Alice! — Ele retorcia as mãos


nervosamente. — Mas ele não pode fazer isso com a minha
Alice! Nós nos amamos! Ela... ela me disse que não se
importava com o que eu tenho, que casaria comigo de
qualquer maneira. Disse... que os anos de diferença entre
nós não tinham a menor importância. Tudo o que ela
desejava era servir-me e à minha arte... Ah, minha querida!
Não posso acreditar no que está me dizendo, Jules!

Ele se levantou, tremendo de angústia. Olhou para o


irmão, desesperado, suplicante. Jules sacudiu a cabeça
tristemente.
— Infelizmente, é verdade. Adivinhei há algum tempo que
você gostava de Alice, François. Mas foi ela própria, a pobre
menina, quem me revelou tudo, inadvertidamente. Essa
história vai despedaçar o coração de Alice. E se você gosta
mesmo dela, dará um jeito para que possam fugir e casar,
antes que a mandem para Nova York.

François abriu os braços, em desespero.

— Mas como? Neste exato momento, tenho apenas 2O


dólares! E ainda faltam duas semanas para o primeiro dia do
mês, quando a mãe me dá o cheque de 1OO dólares. E como
poderei sustentar a minha querida? O pai dela vai deserdá-la,
não lhe dará um vintém, se ela casar comigo!

— Está esquecendo que Alice é a herdeira do avô — disse


Jules, gentilmente. — Preste atenção agora, François. Tio
Ernest não vai deserdá-la. Vai admirá-la e a você por terem
feito o que queriam. Paul não é mais o príncipe herdeiro. Não
estou falando por falar, François. Tenho certeza das coisas.
O velho demônio não vai viver para sempre. E depois que
casar com Alice e ele morrer, você será o homem mais rico
de Windsor. Sente-se, François, e escute com atenção.

François sentou-se, tremendo. Mas o rosto voltado para


Jules estava dominado pelo excitamento, esperança e uma
alegria crescente. Inclinou-se para frente, ansioso, pôs a mão
trêmula no joelho do irmão. Jules pôs sua mão fria sobre os
dedos de François, apertando afetuosamente.

— Mas, como um homem honrado, certamente se


lembrará que, antes da morte de Tio Ernest, terá uma mulher
para sustentar. Não poderá trazê-la para cá, é claro. E
concordo com você quando diz que Paul não dará um
vintém. Provavelmente, ele terá um ataque do coração com a
história, o que não seria nada ruim. Mas vamos adiante. Há
anos que todos nós temos procurado interessá-lo na
companhia, mas possivelmente você estava certo ao insistir
que não tinha aptidão para esse trabalho, que um artista
ficaria sufocado no ambiente dos negócios. Um ‘negócio
nefando’... não foi assim que você falou?

Jules sorriu, enquanto François corava.

— Mas isso não tem qualquer importância agora. Você


conhece os seus próprios sentimentos melhor do que
qualquer outra pessoa. E sou contra um homem entrar em
qualquer atividade à qual não vai se adaptar, o que
representaria uma violência contra a sua consciência e
natureza.

François ficou um pouco constrangido e balbuciou:

— Ora, não me importa que seja nefando ou não! Dinheiro


é dinheiro!

— Tem toda razão, François. — O sorriso de Jules era


cordial e indulgente. — Mesmo sendo um artista, você pode
ver as coisas direito. Essa é a diferença entre um tolo e um
homem sensato. Vamos seguir adiante. Depois que Paul foi
embora ontem, Honore, Leon e eu ficamos conversando
sobre o problema. Estávamos indignados. Procuramos uma
solução, pois todos gostamos da pequena Alice e também de
você, é claro. E acabamos chegando a uma ideia brilhante.
Honore sugeriu que você fosse designado para diretor da
Kinsolving Arms Company, com um salário de 15 mil dólares
por ano.

Embora aturdido e excitado, François empalideceu de


desespero.

— Mas não sei coisa alguma sobre a Kinsolving Arms,


Jules! Que diabo poderia fazer lá? Como poderia ganhar 15
mil dólares por ano? Sentado numa sala sufocante, cercado
por máquinas e homens em constante atividade, esmagado
sob o barulho e cheiro... Santo Deus, Jules! Como pode ser
tão cruel, oferecendo-me a esperança para depois exigir
minha vida em troca?

Jules escutou aquela explosão histérica com uma


expressão impassível, mas os olhos, semicerrados e ocultos,
brilhavam intensamente, entre as pálpebras. Um músculo
comichou em seu rosto e as mãos se contraíram lentamente,
como se estivessem esganando algo repulsivo. Mas a voz
ainda era suave e indulgente quando ele falou, assim que
François acabou:

— Claro que compreendemos tudo isso, François. Não


estamos lhe oferecendo um sacrifício ou exigindo coisa
alguma. Estamos querendo apenas, sinceramente, encontrar
uma solução para você e Alice. Queremos ajudá-los. Você
precisará apenas comparecer à reunião dos diretores, duas
vezes por ano. Por uma ou duas horas, no máximo. Um mero
cargo honorário. Está compreendendo agora? Nada mais lhe
será exigido. Pode estar certo de que estamos apenas
querendo ajudá-lo.

François estava quase fora de si de tanta alegria.


Levantou-se de repente, inclinou-se e abraçou o irmão pelo
pescoço.

— Oh, Deus, Deus! — balbuciou ele, empertigando-se,


depois de um momento convulsivo. — O que posso dizer? O
que posso fazer? Não dá nem para acreditar! É como... como
uma prece atendida essa proposta que acaba de me fazer!
Como um despertar, depois do inferno! Eu estava sentado
aqui, desesperado, morrendo aos poucos. Estava chorando,
arrancando os cabelos, até mesmo pensando em suicídio,
Jules. E de repente você me aparece como um arcanjo, um
salvador... O que posso fazer ou dizer?

— Pois sente-se e lhe direi. — Nada poderia ser mais


afável e afetuoso do que a expressão de Jules naquele
momento. — Devemos ser práticos. Amanhã, quando Paul
estiver no escritório, você deve ir à casa de Alice e não
permitir que coisa alguma o impeça de vê-la. Nem mesmo
uma dúzia de lacaios ou a elefoa gorda da Elsa. E deve tirar
Alice de lá, como ela estiver. Imediatamente. Antes que Elsa
possa telefonar para Paul. Terá uma carruagem à espera. Os
dois seguirão diretamente para um juiz de paz ou um
ministro religioso e se casarão. Providencie a licença antes
de ir buscar Alice. Depois, volte para cá e cuidaremos do
resto.

— Ajude-me, Jules! Vá comigo amanhã! Você poderá


passar por Elsa e chegar a Alice! Ou então me acompanhe só
para dar apoio moral, ficando na carruagem!

— Não posso fazer isso, François. — Jules parecia aflito. -


Não podemos jamais deixar que Paul desconfie que qualquer
outro de nós, além de você, esteve envolvido na história.
Não se esqueça de que precisamos manter os
relacionamentos profissionais e tudo o mais. Você precisa
ter coragem e fazer tudo sozinho. Não será muito difícil.

Ele se levantou e tirou a carteira do bolso.

— Tome aqui. Duas notas de 5O dólares. Será o suficiente


para providenciar tudo amanhã. Só mais uma coisa. Não se
esqueça que estamos todos interessados. Telefone-me assim
que tudo estiver resolvido, está bem?

Ele pôs a mão no ombro magro e trêmulo de François e


arrematou:
— Vamos, tenha coragem. Ah, sim... não revele coisa
alguma à nossa mãe. Sabe como mamãe é, não é mesmo?

— E como sei! — François estava rindo e chorando ao


mesmo tempo. Ele pegou a mão do irmão e apertou-a,
balbuciando: — Você é um anjo, Jules!
CAPÍTULO CIX
Ernest Barbour, aproximando-se dos 72 anos, não gostava
da última década do século XIX Parecia-lhe que as décadas de
sua juventude haviam sido mais agradáveis e amenas, mais
coordenadas e estáveis, as coisas acontecendo mais
lentamente, mas também com mais vigor e significado.
Agora, tudo era intensidade e açodamento, vozes ásperas,
barulho, confusão.

Era um período simplista, mas também horrendo,


tentando atenuar sua carência de beleza com babados e
rufos. Até mesmo a corrupção era ingênua, com uma
repulsividade desconcertante. A vida era apenas uma
questão de cercas brancas, jardins de rosas, sebes, cavalos
lustrosos, casas grandes com a madeira toda trabalhada por
máquinas, imensos chapéus de plumas, rosbifes, estações de
água, deslumbrantes carruagens abertas.

A era da propaganda começara. A Salsaparrilha de Hood,


o Composto de Aipo de Paine, o maravilhoso tônico feminino
de Lydia E. Pinkham e Pearline faziam a nação despertar para
o seu ego físico. A Goma de Mascar Yucatan de White estava
fazendo a geração mais jovem mastigar num ritmo bovino.
Chapéus de marinheiro, presos nos cabelos à pompadour por
imensos alfinetes, adornavam as cabeças das moças alegres,
em saias compridas pregueadas e blusas engomadas. (Ernest
se lembrava das saias-balão de sua juventude, das quais
emergiam as cinturas finas, os seios sedutores e os ombros
alvos e roliços, como se saíssem do cálice de uma flor.) Mas
agora as mangas estofadas afrontavam o senso masculino da
beleza, as plumas dificultavam as vistas masculinas nos
teatros. Os pés da juventude se movimentavam num ritmo
mais frenético e tudo era alegria. A América acabara de
emergir da depressão e do pânico de 1893 e estava
exultante. Todos discutiam doutamente os méritos do
socialismo e escutavam atentamente um cavalheiro chamado
Eugene Debs. Desviavam-se dele para dispensar a mesma
atenção solene a outro profeta, menos inteligente, um certo
William Jennings Bryan, que fora mais pitorescamente
contemplado pela natureza e o destino e por isso merecia
uma atenção mais compenetrada.

Nunca antes houvera tantos bigodes imensos nos rostos


dos cavalheiros elegantes, nunca antes haviam sido tão bem
cultivados e tratados. Os bares eram suntuosos, no
esplendor dos balcões de mogno e espelhos reluzentes, nas
escarradeiras de latão. Os teatros ressoavam com dramas
sentimentais, transbordando de motivos nobres e heroísmo.
As novas bicicletas estavam por toda parte e as pessoas
começavam a comentar excitadas os rumores de ‘máquinas
voadoras’. Novas expressões de gíria enriqueciam a
linguagem, como ‘Você está fora dos trilhos’. Eleonora Duse
emocionava as mulheres com seus gestos imponentes e
histrionismo apaixonado. O ideal da beleza feminina ainda
era Lillian Russell, o ideal do sucesso era Diamond Jim
Brady. As fronteiras estavam se estendendo cada vez mais
para oeste, desaparecendo rapidamente. Cavalheiros
apareciam em festas ao ar livre em calças de flanela, blazers
listrados, quepes com longos visores, acompanhando damas
de cintura de vespa, golas de renda compridas, chapéus que
pareciam aviários ou exposições florais, saias que caíam
como cascatas de traseiros proeminentes.

Era uma época exuberante, sem muito refinamento,


repleta de vitalidade, com muita estupidez, excessos e
carências, mas também com incontáveis excitamentos. A
América estava sentindo seu poder. Através da fumaça da
jactância europeia, levantava a cabeça jovem e forte,
gritando rudemente, mas também com eficácia. Subitamente
consciente de si mesma, lançava seu desafio pelos mares.
Tomava a sua cerveja sequiosamente e acreditava com
firmeza, às vezes com lágrimas de emoção, em Deus, na
Pátria, no Presidente e na Bandeira, intitulando-se o refúgio
dos oprimidos e convidando o mundo para sua mesa, em
ação de graças. O mundo vinha, para rir, escarnecer e
invejar.

Veteranos da Guerra Civil ainda marchavam em fileiras


disciplinadas. Oradores falavam da paz eterna. Um certo
governante alemão falava solenemente da Cultura Alemã, de
uma compreensão mais ampla e profunda entre as nações e
da ciência. A França envolvia as estátuas da Alsácia e Lorena
de preto e escutava apreensivamente os sussurros de um
homem chamado Sazaroff e outros agentes. Os estadistas
ingleses escutavam as hosanas que eram universalmente
entoadas à paz, civilização, fraternidade, justiça e fé,
aclamando também sua idosa Rainha, enquanto compravam
secretamente as ações emitidas por uma certa Robsons-
Strong Company.

A América da juventude Ernest Barbour fora muito


parecida com uma Inglaterra mais abundante e generosa,
uma Inglaterra mais ampla, próspera e rica. Castas haviam
florescido, o jeito de falar era similar, os maneirismos eram
cuidadosamente importados, a moral era fielmente
emprestada. Mas aquela nova América era algo que ele não
conhecia e com que não se importava. Simplesmente o
entediava e extenuava, com sua futilidade febril e constante
riso pueril. Ernest e seus colegas, por razões de interesse
comum, haviam fomentado o desprezo, desconfiança e
escárnio pela Inglaterra. Tendo conseguido, descobriam que
era extremamente desagradável o resultado que haviam
ajudado a criar.

Ernest sabia perfeitamente que estava velho e morrendo.


Sentir-se irritado, ainda por cima, parecia-lhe insuportável.
Ele também compreendia que não se podia conceber um
inferno maior do que possuir mente ainda lúcida e intacta,
uma energia ainda ansiosa, tudo se apoiando num corpo que
tremia a qualquer esforço e ficava exausto, em recordações
que pareciam se tomar mais nítidas e intensas, à medida em
que o presente ia se tornando mais desagradável e menos
significativo. Sua mente, não encontrando satisfação e valor
na realidade dos dias atuais, voltava no tempo, como se
folheasse as páginas anteriores. Seu sono era um desfilar
permanente de imagens nítidas, que pareciam extremamente
reais, ocorrendo naquele instante. Ele nunca pensava,
quando as experimentava: isto é apenas um sonho do que já
foi e está morto.

Sonhava muitas vezes com a sala de jantar da casa dos


Sessions, onde se sentava à cabeceira e cortava a carne.
Sabia vagamente que May estava presente, assim como
Godfrey e Reginald, só que eram apenas meras sombras. Mas
via nitidamente, com extrema vitalidade, os rostos jovens de
Gertrude, Guy e Joey. Via Gertrude com seus gestos bruscos
e exuberantes, o volume de cabelos pretos, o sorriso fácil e
indeciso. Guy falava, exibindo os dentes muito brancos e
brilhantes, a luz do lampião incidindo sobre os cabelos
dourados. E havia Joey, franzindo o rosto para o prato, mas
levantando a cabeça alerta quando o pai falava, observando-
o atentamente. Ninguém parecia se importar muito com
Joey, de voz ríspida, feições desagradáveis, comportamento
rude. Mas Ernest se importava e compreendia.

Os três filhos mortos, novamente jovens, novamente


vivos, sentavam-se à sua mesa e fitavam-no, sorrindo. Muitas
vezes ele acordava com um terrível sobressalto, pensando
que ouvira a voz de Gertrude... Gertrude que fora a sua
querida. Julgava às vezes ouvir os passos rápidos e ágeis de
Guy ou os passos mais lentos e pesados de Joey. Sonhava
também com Amy, sentada à sua frente, à luz das velas,
novamente em casa, na mesma mesa a que sentara como
menina e moça, antes de seu casamento com Martin. Podia
ver os movimentos das mãos alvas e esguias de Amy, o
brilho de seus próprios diamantes sobre as mãos dela, a
boca de Amy sorrindo. No sonho, ele se estendia e abraçava
May. Isso nunca deixava de provocar-lhe um choque que o
fazia despertar. Mas por alguns momentos maravilhosos, no
escuro, abraçando May, ele acreditava que era Amy quem
estava em seus braços. May também acordava e compreendia
imediatamente o que acontecera. Comprimia o rosto contra o
ombro ou o peito de Ernest e ficava lhe murmurando
palavras suaves, até que ele adormecia novamente. Mas May
não voltava a dormir.

Ernest gostava de May mais do que nunca e lhe era


profundamente grato. E muitas vezes lhe dizia:

— Não sei o que faria sem você, May. Juro por Deus que
não sei!

Ao que ela respondia, sorrindo afavelmente:

— Também não sei o que eu faria sem você, Ernest.

Nenhum dos dois jamais mencionava Gertrude, Guy ou


Joey. Mas umas poucas vezes, em angústia profunda, May
olhava para Ernest e bradava silenciosamente: você matou
meus filhos!

Finalmente, até o próprio Ernest compreendeu que era um


velho e lhe restava muito pouco tempo para viver. Permitiu
que May o levasse para um longo cruzeiro, que durou mais
de quatro meses. O passeio o fez sentir-se tão melhor que,
ao tomar conhecimento dos rumores sobre um possível
conflito entre a América e a Espanha, transferiu-se para um
navio que seguia para a Europa e passou dois meses lá,
apesar dos furiosos protestos de May. E depois voltou para
casa.

Estava extenuado quando chegou a Nova York. May,


esperando levá-lo calmamente para Windsor, não anunciara a
chegada deles, naquela manhã tempestuosa de março.
Chegando à cidade, foram direto para a casa dos Sessions e
Ernest prontamente deitou-se. Os criados estavam ocupados
lá embaixo; no segundo andar, porém, tudo era silêncio e
quietude, um fogo forte ardendo aconchegante na lareira,
enquanto a nevasca caía lá fora. Ernest, que muitas vezes
agora não conseguia ficar deitado e respirar com facilidade,
estava meio sentado na cama, escorado por vários
travesseiros. May sentava-se ao seu lado, segurando-lhe a
mão, sorrindo, conversando com seu antigo bom humor e
jovialidade.

Ela observava-o, respirando com dificuldade, recostado


nos travesseiros. Ernest encolhera consideravelmente no
decorrer do último ano, até mesmo os ombros largos haviam
afinado, pareciam agora frágeis. A garganta estava murcha e
enrugada, o rosto vincado e pálido, os olhos claros e
implacáveis parecendo muito maiores, quase esbugalhados.
Os cabelos brancos estavam impecavelmente escovados, mas
ainda se elevavam sobre uma crista por cima da testa larga e
pálida, que era singularmente lisa, sem rugas, a não ser entre
os olhos. As orelhas estavam murchas, mas o queixo
continuava firme, quase rígido. A mão que May segurava
estava úmida e fria, um pouco trêmula.

Ernest gostava de ouvir May falar-lhe. Nem mesmo Amy,


pensava ele, possuíra uma voz assim, sonora, profunda,
jovial. Ele mal prestava atenção ao que May dizia, apenas
ouvia o som de sua voz. E pensou: May está velha.
Contemplou-lhe os cabelos abundantes, que pareciam seda
branca, as faces murchas e enrugadas, ainda delicadamente
rosadas, a boca brilhando com a porcelana perfeita de dentes
postiços, o peito volumoso e caído, os braços roliços, as
coxas largas, delineadas sob a seda preta. Mas os olhos,
faiscantes de vitalidade e inteligência, ainda eram os
mesmos, apesar das olheiras por baixo, das teias de rugas ao
redor. Aos 70 anos, May era uma velha graciosa,
transbordando de vida e compreensão.

Ernest disse:

Vou morrer em breve, May.

O sorriso dela desvaneceu-se, mas a resposta foi


vigorosa:

— Não diga bobagem. Você vai viver até os 90 anos, pelo


menos.

A mão de Ernest remexeu-se, inquieta.

— Não minta, May, para si mesma ou para mim. Sei que


vou morrer em breve. E acho engraçado pensar agora que
casei duas vezes com você. E nas duas vezes porque
precisava de você.

Ele sorriu-lhe, não sem alguma ironia. May ficou


esperando, a expressão se entristecendo.

— Na primeira vez, eu precisava do seu dinheiro, do que


você tinha. Na segunda vez, eu precisava simplesmente de
você. Às vezes, penso que era só de você que eu precisava
nas duas ocasiões.

May engoliu em seco, como se uma bola lhe tivesse


subido pela garganta. Apertou tensamente a mão de Ernest e
suas pálpebras ficaram úmidas.

— Ernest, querido, estamos casados há quase 50 anos,


mas você nunca me disse antes uma coisa tão maravilhosa.
— Ela riu, um pouco trêmula. — Isso mesmo, há quase 50
anos, pois não considero que deixei de estar casada com
você... mesmo quando não estava!

Ernest fitou-a com curiosidade.

— Não fui um ‘bom’ marido, May.

— Sei disso. — Ela sorriu novamente. — Claro que sei


disso. Mas não tem importância. Sempre o amei.

Ernest suspirou e virou a cabeça. Ficou olhando para a


porta, o rosto encovado tornou-se sombrio, mais pálido
ainda. May também olhou para a porta e compreendeu, com
um aperto no coração, o que o marido estava procurando.

— Eu gostaria de conhecer o filho de Frey e Renée, May.


Estou contente que eles tenham dado ao menino o nome de
Ernest. E gostaria também de conhecer as filhas de Reginald.
Já devem estar umas moças agora.

May pensou, com uma pressão por trás dos olhos que
parecia de um ferro em brasa: Pobre Ernest, como ele
fracassou!

Mais tarde, ao cair da noite, Ernest pediu-lhe que


chamasse Paul e Jules. May ficou agoniada. Era demais,
Ernest querer conversar sobre negócios logo no primeiro dia
de volta e quando estava tão cansado! Paul ainda passava,
mas por que Jules? E logo Jules!

— Jules é o mais perigoso inimigo que um homem jamais


teve — disse Ernest, calmamente. — Não sei exatamente se
ele é meu inimigo, mas posso fitá-lo e descobrir. Certamente
não é meu amigo, apesar de eu ter feito tudo por ele. — Ele
sorriu debilmente e acrescentou: — Ah, aquele maldito
Jesuíta!

Ernest explicou a May que, ao telefonar para cada


sobrinho, não deveria informar que o outro também iria.
Esperando pelos sobrinhos, depois de um jantar frugal na
cama, o rosto de Ernest assumiu algo da antiga expectativa e
vitalidade. Sua respiração tornou-se mais fácil. Quando o
médico apareceu, ficou muito satisfeito e disse jovialmente
ao paciente que em breve estaria outra vez de pé, saudável e
vigoroso.

Paul, afetuosamente indignado por não ter sido


informado com antecedência da volta do tio, foi o primeiro a
chegar. Ernest escutou ironicamente, deixou que o sobrinho
lhe apertasse a mão, respondeu sem muito empenho às
indagações de Paul sobre o seu estado de saúde. May,
tricotando perto do fogo, olhava a todo instante para Paul.

— Onde está a pequena Alice? — perguntou ela.

Paul sentou-se e respondeu à pergunta, olhando para


Ernest como se o tio a tivesse formulado:

— Estou mandando Alice para Nova York amanhã de


noite. Gostaria de casá-la com Thomas Van Eyck. Há muito
dinheiro na família e praticamente tudo o mais, como bem
sabe, Tio Ernest.

Ernest alteou as sobrancelhas brancas.

— O filho de Lucy, hein? Um imbecil. Mas também


inofensivo. O que a menina acha da ideia de casar com ele?
Paul hesitou por um instante. Percebendo-o, May baixou o
tricô e interveio, alarmada:

— Não vai forçá-la ao casamento, não é mesmo, Paul? Ela


é tão moça e... e um pouco fraca. Não poderia suportar a
pressão. Paul, não deve...

Paul fitou-a com intensa irritação e antipatia, o rosto


grande corando, por algum motivo que não podia entender.

— Alice é uma criança e não sabe o que quer. E não deve


se preocupar com a possibilidade de eu fazer alguma coisa
contra a felicidade dela, Tia May. Não é o que está pensando,
não é mesmo?

May fitou-o em silêncio por um longo tempo, antes de


responder, lentamente:

— Não sei... simplesmente não sei.

E ela virou-se para Ernest, que olhava para as próprias


mãos, fixamente.

— Pois não vou fazer! ~ exclamou Paul, cada vez mais


irritado.

Houve um momento de silêncio. O ambiente no quarto


estava impregnado da recordação de Gertrude. Todos os três
pensavam nela. Ernest finalmente perguntou, em tom
indiferente:

— Existe algum outro... por quem ela tenha alguma


fantasia?

Paul tornou a hesitar. E depois acenou as mãos, num


gesto brusco.
— Claro que não. Mas ela está sempre na casa da Tia
Florabelle, lendo e escrevendo poesia com aquele idiota do
François. E isso está deixando-a mórbida, com ideias de que
é um gênio ou algo assim.

Ele soltou uma risada curta. Ernest franziu o rosto. Sua


atitude tornou-se alerta, quase ameaçadora.

— Mas François é pelo menos 17 anos mais velho do que


Alice! Ela não pode estar com alguma fantasia por ele, não é
mesmo?

— Claro que não! — respondeu Paul, apressadamente.

May, perturbada e apreensiva, olhou primeiro para o


marido e depois para Paul. Jules foi anunciado nesse
momento.

Ele entrou no quarto com a sua atitude exuberante,


cumprimentando o tio com um respeito suave e cativante.
Indagou solicitamente pela saúde dele, Ernest sorriu. Parecia
sempre se divertir com Jules, a quem podia compreender
plenamente, o que jamais deixava de provocar-lhe um
sorriso.

— Sabe muito bem que não se importa absolutamente de


como posso estar me sentindo, Jules. Mas não vou usar isso
contra você. Sente-se também.

O rosto de Paul assumira uma expressão sombria. Não


sabia que conclusão podia tirar. Evidentemente, Ernest
estava esperando por Jules. O coração de Paul começou a
bater dolorosamente dentro do peito. O que tudo aquilo
significava? Ele acenou com a cabeça bruscamente para o
primo e virou-lhe as costas.
Ernest desfez-se agora da atitude indiferente e da
expressão amável. Pediu à mulher que fosse lhe buscar
alguns papéis na escrivaninha. Pôs as mãos sobre os papéis,
olhando atentamente para os sobrinhos. Quando por fim
concentrou-se em Paul, sua expressão tornou-se mais e mais
intimidativa, os olhos rancorosos brilhando intensamente.

— Há algumas coisas aqui que eu gostaria que fossem


explicadas — disse ele, asperamente. — Talvez possa
explicá-las, Paul.

— Quais são?

A voz de Paul era confiante, até mesmo um pouco


belicosa, mas seu rosto contraiu-se ligeiramente. Jules,
acendendo um charuto, observava a todos, atento. Seus
olhos reluziam.

— Você foi o diretor de vendas durante a minha ausência


— disse Ernest, calmo. — Quando estive na Europa, há dois
meses, encontrei-me por acaso e conversei com Torsten
Vilhelm Nordenfeldt. Ele não era muito respeitado no
negócio de armamentos, até que contratou Sazaroff. Já ouviu
falar de Sazaroff, não é mesmo?

Ernest fez a pergunta em tom irônico. Paul mordeu o


lábio, sem dizer nada. Jules sorriu.

— Sem Sazaroff, Nordenfeldt já teria fracassado há


muitos anos. Mas Sazaroff é o melhor contato que qualquer
companhia pode ter. Não temos ninguém como ele. E como
eu gostaria de ter! Wycheiley, Hearns, Von Goebell, Pushkin...
todos não passam de idiotas, em comparação com Sazaroff.
Pois Nordenfeldt ofereceu no Mediterrâneo, por intermédio
de Sazaroff, algumas de suas novas invenções, como o
detonador de contato, o detonador de tempo, canhões de
artilharia leve e uma coisa que vai revolucionar as batalhas
marítimas. E sabe o que aconteceu? Sazaroff vendeu tudo
praticamente a todos os governos que procurou! E o que nós
fizemos, através de nossos malditos agentes? Ficamos de
braços cruzados, deixando que nos roubassem!

O rosto de Ernest ficou vermelho e May, dominada pelo


medo, levantou-se imediatamente e foi postar-se ao lado da
cama.

— Temos um novo detonador inventado por Honore que é


dez vezes melhor que o de Nordenfeldt. Temos tudo melhor.
Temos o novo processo secreto francês de melinite que
Honore conseguiu arrumar. Poderíamos vender diretamente
ou através de Robsons a qualquer desses governos, por um
preço melhor, a longo prazo. Mas não vendemos! Por quê?

Ele bateu nos papéis, violentamente. Paul umedeceu os


lábios.

— Não posso imaginar. Pusemos nossos agentes em ação.


Mas Sazaroff é um demônio insidioso e deu um jeito de
passá-los para trás. Contudo, confio em nossos agentes. Não
poderíamos arrumar homens melhores. Com ou sem
Sazaroff. Além do mais, Sazaroff mantém relações quase
íntimas com Georges Gemenceau. São ladrões juntos. Ele tem
uma porção de contatos assim. É algo que não podemos
contornar.

— Pois eu dava um jeito de contornar, quando era mais


jovem! — gritou Ernest, numa voz estrangulada. — Mas agora
que deixei idiotas cuidando dos meus negócios, somos
derrotados por toda parte!

Paul ficou calado. Apavorada, May pôs a mão na testa de


Ernest. Mas ele empurrou a mão bruscamente. Jules olhava
para a ponta de seu charuto, sorrindo.

— Robsons vai ficar numa situação terrível — retornou


Ernest, cada vez mais veemente. — Nordenfeldt está ligado
ao outro grupo inglês e estamos perdendo o controle das
coisas. Com toda aquela confusão por lá, os grupos
franceses e britânicos disputando os fornecimentos para os
estaleiros Nickolayeff e os estaleiros turcos, poderíamos
ganhar pelo menos 100 milhões. Mas não ganhamos nada! E
agora a Rússia está virando as costas a Schultz-Poiret e
negocia com Sazaroff...

Jules interrompeu-o, gentilmente:

— Seria melhor dizer ‘estava’ negociando.

Ernest virou-se para ele, aturdido, a boca entreaberta.

— Como? O que foi mesmo que disse?

Jules puxou a cadeira para mais perto. A expressão de


Paul mudou, enquanto olhava fixamente para o primo. Jules
continuou, com uma expressão pensativa:

— É lamentável que nossos... peço desculpas, Tio Ernest...


que seus agentes fossem tão imbecis. Sempre achei que
eram, mas não estava em condições de fazer qualquer
sugestão, exceto em relação à Sessions Steel Company. Mas
acabei contratando os meus próprios agentes...

— Seus próprios agentes? — explodiu Ernest, com a maior


fúria. -seus próprios agentes?

No instante seguinte, curiosamente, a fúria desvaneceu-


se, o rosto dele desanuviou-se.
— Continue, Jules — acrescentou Ernest, numa voz
estranhamente suave, virando-se de lado para Paul.

— Sei que foi muita presunção e certamente mereço a


desaprovação de Paul — continuou Jules, com um ar
ligeiramente desdenhoso, enquanto Paul cerrava as mãos. —
Mas achei que seria perdoado, se tudo desse certo. Assim,
contratei três agentes, bem mais espertos do que os seus, em
muitas coisas. E adversários à altura de Sazaroff. Um deles é
o filho mais moço de um nobre inglês um tanto avarento. Um
rapaz muito hábil. Tem excelentes ligações na Rússia e tem
feito um ótimo trabalho para mim... para nós.

Jules tirou do bolso um recorte de jornal.

— Devo explicar algumas coisas. É verdade que Sazaroff


aparentemente venceu Schultz nos contratos russos. Mas
Sazaroff é também um homem sagaz e aberto a novas ideias.
É capaz de jogar pelos dois lados, não contra o meio, mas a
favor do meio. Ou seja, de si mesmo. Quando meu agente
inglês procurou-o, há cerca de três semanas, Sazaroff teve a
gentileza de recebê-lo e escutar, já que é um cavalheiro. E
fez algumas sugestões. Já havia comprado terra na Rússia
para uma nova fábrica, da qual deveria ficar com a maior
parte dos lucros, perto da bacia do Donetz. Uma ideia
excelente, diga-se de passagem, já que a região tem
abundância de carvão e ferro. Assim, em consequência de
conversas cordiais entre meu agente e Sazaroff, a Schultz-
Poiret, que queria construir uma fábrica nos Urais, num
empreendimento exclusivamente francês, teve de retirar-se.
Foi obrigada a retirar-se.

O rosto gordo de Paul ficou vermelho, com uma


expressão assassina.

— Então foi assim que perdemos! — gritou ele,


soerguendo-se na cadeira.

Mas a expressão de Ernest permaneceu calma e atenta, os


olhos se estreitando a meras fendas. E ele disse, como se
Paul não tivesse falado:

— Continue, Jules.

Jules sorriu, como se recordasse algum episódio


divertido.

— Um espírito de cordialidade está sendo cultivado


atualmente entre a Inglaterra e a Rússia. Regozijo-me por
isso. Algum dia, como todos sabemos, a Inglaterra precisará
de um aliado poderoso contra a Alemanha. Pessoalmente,
sempre odiei a Alemanha. Deve ser o francês que existe em
mim. — Ele sorriu novamente, antes de acrescentar: — Seja
como for, a Inglaterra e a Rússia não vão permitir que uma
insignificante questão de segredos de guerra interfira com
sua amizade. Se me permitem, vou ler agora uma pequena
notícia publicada no Morning Times há duas semanas, sobre
Robsons-Strong e a Rússia: “A companhia inglesa tem
contrato para construir e equipar a fábrica de Tzaritzine,
além de cooperar por 15 anos na produção de artilharia.
Concordou também em colocar à disposição da companhia
russa todos os seus conhecimentos técnicos, patentes,
melhorias e o resto, sendo responsável pela correta
aplicação.” — Jules assumiu uma expressão divertida, antes
de arrematar: — Temos tantas ações da Robsons-Strong
quanto da Schultz-Poiret.

Houve um silêncio aturdido. Paul, os olhos esbugalhados,


fitava o primo com fúria. Ernest dava a impressão de estar
completamente paralisado. A nevasca zumbia contra as
janelas, as cortinas foram agitadas por uma aragem.
Depois, Ernest prorrompeu num acesso de riso, batendo
no joelho descarnado por baixo da colcha.

— Ah, Jules, como você é presunçoso! Mas eu o adoro! Dê-


me um desses seus charutos venenosos.

E Jules compreendeu que, além disso, Ernest não podia


prestar um elogio maior a um homem.

Paul estava sentado num silêncio rígido, o rosto tão


pálido quanto a morte, enquanto Jules delicadamente
acendia o charuto que o tio prendia nos lábios ressequidos.
May, sentada na beira da cama, suspirou, observando Ernest,
com ansiedade.

Ernest tragou e piscou rapidamente, com a fumaça que


saía do charuto. Ele tossiu uma ou duas vezes. Ignorava Paul
completamente.

— Continue — disse ele para Jules, parecendo


inescrutável como um Buda.

— Já se passaram mais de seis semanas desde que esteve


na Europa, Tio Ernest. Desde então, aconteceram coisas de
que ainda não está informado. Quando deixou Windsor,
designou Paul, Honore e eu para sermos seus substitutos. As
coisas têm acontecido muito depressa por aqui e Paul e eu
estamos dispostos a lhe apresentar uma breve sinopse esta
noite. É claro que vários contratos e outros assuntos devem
aguardar a sua assinatura.

“Gostaria de lhe falar agora a respeito de um determinado


agente particular que contratei, um agente culto e bem
relacionado de Nova York. Ele é correspondente especial do
Weekly News, de Nova York, além de meu empregado. O
nome dele é Sr. Rudolph Johnson. Diga-se de passagem, que
um dos seus parentes é um dos principais acionistas da
Nobel Dynamite Company. Enviei-o à América do Sul,
acreditando na ocasião que haveria um conflito entre Chile e
Argentina. Ao mesmo tempo em que contribuía com
esplêndidos artigos para jornais dos dois países, ele tentava
lhes vender nossos produtos. A Argentina, no entanto, não
foi muito receptiva à ideia, alegando que ainda desejava
manter a paz com o Chile... um bando indigno de estadistas
pusilânimes! Mas o Chile finalmente comprou alguns dos
nossos navios de guerra, praticamente o mesmo que estamos
preparando para vender à América ou à Espanha, no caso de
guerra... ou melhor, quando a guerra começar. E tenho
informações, de uma fonte de absoluta confiança, que isso
acontecerá nas próximas seis semanas.”

“Johnson foi em seguida ao Sião e ao Japão e tenho aqui


duas cartas que me enviou. A primeira diz o seguinte:
‘Tentarei me encontrar com o Primeiro-Ministro, para tratar
do nosso novo encouraçado, de acordo com as suas
instruções. Creio que posso oferecer o mesmo modelo do
Imperador da China. Espero me encontrar com o Imperador
antes do início das iminentes hostilidades no Oriente, que
devem ser extremamente lucrativas, já que proeminentes
potências europeias estão muito interessadas nesta parte do
mundo.1

“E a outra carta é a seguinte: Tenciono levar à atenção do


Japão, de forma bem convincente, o grande aumento da
força naval americana. Creio que seus outros agentes
negligenciaram de maneira indesculpável esse aspecto do
problema. Acho que posso concentrar a atenção do Japão nas
atividades americanas, ressaltando, é claro, que súbitos
programas armamentistas de uma nação não pressagia a paz
para outra. Apresentarei cartas secretas, escritas por alguns
dos nossos senadores, com ambições imperialistas. Os
japoneses são singularmente desconfiados, o que é natural
para um povo dotado de inteligência e com necessidade de
expansão. Estou convencido de que, depois de breve
período, os japoneses se tornarão clientes excepcionalmente
lucrativos e tratarão de acelerar seus preparativos navais e
militares.”

— Hã... — murmurou Ernest, olhando atentamente para


Jules, através da fumaça do charuto.

Paul se levantara e estava agora parado junto à janela,


olhando para fora, as mãos enfiadas nos bolsos. Ernest
virou-se para ele e perguntou, com sarcasmo:

— Não está interessado, Paul? Ou será que o estamos


entediando?

Paul voltou à sua cadeira. O rosto estava vermelho,


contraído. Recusava-se a olhar para Ernest e Jules, virando o
rosto para o fogo, fixamente. Nenhum deles percebera como
May estava calada, sentada na beira da cama, como seus
olhos estavam dominados pelo horror.

— Onde está Johnson agora, Jules? — perguntou Ernest,


depois de um breve silêncio.

— Na Espanha — Jules sorriu ligeiramente. — Mas ele


deve voltar dentro de duas semanas. E ele tem feito um
trabalho excelente, especialmente nos jornais. Parece que
existe um grupo de pacifistas no governo espanhol e o
trabalho de Johnson, expondo-os ao desdém nacional, tem
sido admirável.

Paul lançou um olhar rancoroso para o primo e comentou:

— Contudo, apesar de Honore, Robsons-Strong está


fornecendo Maxims aos boêres, ao invés do nosso produto.
Jules fez um gesto desdenhoso.

— Tem razão, Paul. Mas talvez ainda não saiba que


Robsons-Strong comprou os direitos de nossa arma, que será
usada contra os boêres, quando o povo inglês estiver
suficientemente atiçado contra eles.

Ernest riu outra vez, uma risada alta e curta, embora não
houvesse qualquer diversão em seus olhos, como geralmente
acontecia. Paul mergulhou novamente no silêncio, a
respiração irregular. Era evidente que estava travando
alguma terrível batalha interior. Depois de um olhar breve,
mas penetrante, Ernest compreendeu exatamente o que ele
estava pensando.

— Por falar nisso — disse ele — o que você acha da


designação de Alfred Bassett para Subsecretário da Guerra?
Investimos uma fortuna no homem.

— Tenho certeza de que ele será nomeado — declarou


Jules. — Recebi uma carta de Washington sobre isso há dois
dias.

— Espero que você esteja certo — resmungou Ernest. —


Se ele não for nomeado, nossos planos para a guerra
hispano-americana poderão ser frustrados. E não há
nenhuma possibilidade de Bassett mudar de ideia, depois
que for nomeado?

— Absolutamente nenhuma. Ele é o mais fervoroso


patriota da América, a mulher e a filha pertencem às Filhas
da Revolução Americana. Por falar nisso, Honore informou-
me que acaba de receber uma grande encomenda de Cuba
para cartuchos e rifles. Não acha que parece uma perspectiva
das mais interessantes?
— Não haverá guerra nenhuma com a Espanha! — gritou
Paul, com súbita intensidade. — A Espanha não tem dinheiro,
seu exército e marinha estão em condições precárias. Os
espanhóis não serão loucos o bastante para se arriscarem a
uma guerra conosco. Com ou sem Bassett!

Jules respondeu, olhando para o tio e sorrindo:

— Sazaroff acaba de receber cerca de 25 milhões de


dólares de encomendas da Espanha.

Paul fitou-o, furioso e aturdido. E depois balbuciou,


vermelho de raiva e consternação:

— Não acredito nisso! Ê uma das suas mentiras, Jules! Não


acredito! Onde a Espanha poderia arrumar 25 milhões de
dólares? A menos que tomasse emprestado no exterior. E
quem lhe emprestaria tanto dinheiro assim?

Jules estendeu as mãos, parecendo examinar as costas


morenas viradas para cima, com um prazer distraído. E
respondeu, gentilmente;

— Não tenho autorização para fornecer tal informação.

Paul pareceu arriar na cadeira, respirando ruidosamente.


Estava agora totalmente lívido.

— Quanto mais penso nisso, Jules, mais fico convencido


de que você é um desgraçado presunçoso, embora audacioso
— disse Ernest, cordialmente. — Seu negócio era cuidar
basicamente da Sessions Steel Company. Se Honore queria a
sua intromissão na Kinsolving, isso era problema dele. Mas a
Barbour & Bouchard...

Jules apressou-se em interrompê-lo, com uma impressão


de ansiedade:

— Desculpe-me, Tio Ernest, mas acredito, talvez


erroneamente, que fazemos parte de um todo, que cada um
deve se interessar não apenas por sua parte, mas também
pelas outras.

— Mas por que não falou nada sobre isso a Paul antes?

Jules olhou rapidamente para o primo, que apresentava


indícios de esperança e ódio satisfeito. Depois, tornou a
concentrar-se no tio.

— Mas Paul já sabia! — protestou ele, como se estivesse


aturdido. — Claro que ele não pode ignorar os problemas
relacionados com a companhia que está dirigindo!

O rosto encovado de Ernest assumiu uma expressão de


malícia. Touché, pensou ele, olhando para Jules, divertido,
com um respeito afável. Olhou para Paul, que tornara a
empalidecer; estava agora inteiramente confuso.

— Sabia de tudo isso, Paul?

Paul umedeceu os lábios, que estavam da cor de chumbo.

— Claro que eu sabia! — respondeu ele, a voz rouca. — E


acho muito atrevimento de Jules assumir o papel de porta-
voz por mim. Mas ele é muito volúvel, como sabe
perfeitamente, um homem que gosta de se exibir.

Ele lançou um olhar diabólico para o primo. Jules sorriu,


como se estivesse encabulado.

— Perdoe-me, Paul. É verdade que estou sempre disposto


a revisar os problemas e falar a respeito deles. Mas tenho
certeza de que ambos compreenderão que se trata apenas de
um excesso de zelo.

Ernest permitiu-se alguns momentos de puro prazer,


observando Paul e Jules. E depois disse a Paul:

— Mas o que está fazendo com os planos para o nosso


novo submarino?

May, que ficara em silêncio durante todo esse tempo,


interveio agora, fria e firmemente:

— Você parece exausto, Ernest. Devo lhe pedir que


dispense Paul e Jules, para poder descansar. Afinal, já são
quase 10 horas da noite.

Ela olhou para os sobrinhos com irritação e amargura.


Jules prontamente se levantou, com expressão de
arrependimento.

— Mas claro! Foi muita insensatez nossa, Tia May. Posso


lhe oferecer uma carona, Paul?

— Não, obrigado. Vim na minha carruagem.

— Mas é claro!

A voz de Jules era toda simpatia e cortesia. Mas um brilho


sombrio insinuou-se em seus olhos, algo que Ernest
percebeu com um sorriso interior. Depois de dizer muitas
vezes que esperava uma breve recuperação do tio, Jules fez
uma mesura para Paul e cumprimentou May galantemente,
retirando-se em seguida.

Sozinho com Paul, Ernest não falou por algum tempo.


Paul estava dominado pelo medo, sentindo um frio no
estômago. Acendeu um cigarro com mãos que tremiam
visivelmente. Mas quando olhou de soslaio para Ernest, ficou
agradavelmente surpreso ao descobrir que o tio observava-o
com aparente bondade.

— Jules é um patife francês insidioso — comentou Ernest.


— Detesto os franceses. Sempre detestei.

Paul ficou escutando com uma expressão divertida, o


coração batendo forte de esperança. Depois de uma breve
pausa, Ernest continuou, placidamente:

— Vou fazer um novo testamento amanhã. Alice


continuará como minha herdeira, é claro, mas apenas se não
casar ou se já não tiver casado com François Bouchard. Não
me importo com quem mais ela case, pois quero que seja
feliz. Mas não acredito absolutamente que aquele macaco
francês possa fazê-la feliz. Se ela casar com François ou se já
casou, então você será meu herdeiro, Paul.

A primeira expressão de Paul foi de intensa alegria,


espanto e incredulidade. Tentou falar, mas os lábios
trêmulos eram capazes apenas de se mexer. Fez um gesto
débil, atordoado. Depois, subitamente, a alegria desvaneceu-
se, sucedida por expressões de absoluto terror,
compreensão, medo, desespero e confusão. Tudo desfilou
por seu rosto como cavalos numa corrida desenfreada,
torturando-o visivelmente, desintegrando-o. Ele fitou Ernest
com olhos ardentes, sob a testa que se franzia
convulsivamente. Seu demônio!, pensou ele. Mas não disse
nada.

Paul retirou-se depois de mais alguns minutos. Suas


últimas palavras foram incoerentes. Parecia estar sob terrível
tensão e aflição.
Ernest, acomodando-se confortavelmente sob os cuidados
de May, pensou, divertido: armei-lhe um lindo dilema. Será
interessante observar o que ele vai sacrificar, a sua ambição
de ser meu herdeiro ou a felicidade da filha. A ganância ou o
amor paterno. O que irá ganhar? Paul será mole o bastante
para impedir o casamento de Alice com um homem que
destruirá a vida dela ou a oferecerá como um sacrifício no
altar de suas ambições?

Mas ele jamais viria a conhecer a decisão de Paul. Pois


antes que pudesse mudar seu testamento, antes mesmo da
manhã seguinte, Ernest Barbour sofreu um derrame que
deixou-o totalmente paralisado.
CAPÍTULO CX
Em lágrimas, Alice meteu pela cabeça as três anáguas de
cambraia, guarnecidas com um bordado feito à mão. Vestiu
por cima das anáguas a saia cinza de lã. Contemplou-se
desolada no espelho, uma coisinha esguia e pequena, a blusa
tão branca e engomada que chegava a brilhar. Ajustou a fita
de veludo no pescoço, ajeitou os cabelos no penteado à
pompadour, olhou para o relógio. As faces estavam pálidas e
molhadas. Às 10 horas, ela e Tia Elsa estariam partindo para
Nova York.

Aquele repulsivo Thomas!, pensou ela, desesperada. Mas


não podem me obrigar a casar com ele! Papai não pode me
forçar. Estou com 18 anos, quase 19. Amo François, vou
dizer isso a papai e não importa que me mandem ou não
para Nova York.

Mas, apesar dos pensamentos corajosos, Alice desceu a


escada lentamente, um degrau de cada vez. Parou diante do
espelho comprido com a moldura de mogno, no patamar,
interessando-se por seu reflexo. Não restava a menor dúvida
de que parecia trágica. Bastante animada e consolada por
isso, ela desceu os degraus restantes em ritmo mais
vigoroso, a fim de levar a aparência trágica à atenção do pai,
antes que o cheiro de um desjejum dos mais apetitosos
pudesse alterá-la. Ao chegar à porta de mogno da sala de
jantar, Alice decidiu que estava muito parecida com a jovem
Julieta.

Mas ficou surpresa ao descobrir que a mesa da sala de


jantar, embora pronta na mais perfeita ordem, com a toalha
branca engomada de linho e a prataria reluzente, estava
vazia. Olhou novamente para o relógio. Eram apenas oito
horas. Naquele momento, o relógio de pé no vestíbulo bateu
oito notas sonoras. O desjejum era invariavelmente servido
às 7:45 e ela estava 15 minutos atrasada. Por um instante,
pensou que Paul e Elsa talvez tivessem comido antes, por
causa da viagem. Mas um olhar para a mesa informou-a que
os três lugares estavam intactos.

A porta da copa abriu-se e uma criada entrou, com uma


travessa de pãezinhos quentes, cobertos por um
guardanapo. Ela tirou a louça e os talheres de dois lugares,
deixando apenas um. Alice fitou-a aturdida, a boca
entreaberta.

— O que aconteceu com todo mundo, Louise?

Foi a vez de Louise ficar surpresa.

— Então ainda não sabe, Srta. Alice? A cozinheira acaba


de me contar. Parece que o Sr. Ernest sofreu um ataque
ontem à noite. A notícia chegou por volta das seis horas e o
Sr. Paul e a Srta. Elsa foram para a casa dele às sete horas.
Antes de comerem. E ainda não voltaram.

O desespero desvaneceu-se inteiramente do rosto de


Alice, os olhos dela faiscaram.

— Então não preciso mais ir a Nova York! — exclamou ela,


deliciada.

Alice controlou-se subitamente e fechou a boca, embora


os olhos continuassem a exibir um brilho excitado e de
expectativa.

— Vovô já morreu?

— Não sei, Srta. Alice. — A expressão de Louise indicava a


desaprovação que sentia por tamanha insensibilidade. — Mas
acho que não. Se tivesse morrido, já teríamos recebido a
notícia.

Alice sentou-se, cada vez mais excitada. Não sentindo


mais a tensão, comeu vorazmente, um fato que por si só já
era excepcional. Estava bastante corada. Oh, Deus, pensou
ela, que confusão vai haver na família quando vovô morrer!
Muita emoção, solenidade, idas e vindas, carruagens
incontáveis, flores, lágrimas, lenços brancos de linho! Ela
tornou a se controlar e pensou: pobre vovô!

Depois de comer, Alice ficou extremamente irrequieta.


Ficou pensando se deveria vestir-se e ir à casa do avô. Claro
que não haveria viagem para Nova York agora, ou já teria
recebido algum recado. Mas talvez o avô estivesse apenas
um pouco indisposto e Tia Elsa voltaria em breve, agitada,
nervosa, exigindo que os baús e malas descessem
imediatamente, que a carruagem fosse aprontada. Se ela,
Alice, fosse para a casa do avô, Elsa poderia se lembrar de
tudo de repente e levá-la apressadamente para casa. Mas se
ficasse quieta, se não aparecesse, haveria uma boa
possibilidade de que Elsa esquecesse a viagem a Nova York,
especialmente se o avô continuasse doente. Alice gostava de
Ernest, mas sinceramente esperava que ele permanecesse
doente por uma ou duas semanas, a fim de protelar aquela
desagradável viagem.

Alice já estava prestes a subir novamente para o seu


quarto, quando a campainha da porta tocou. Para seus
ouvidos tensos, foi um som terrível. Ela ficou olhando
enquanto o mordomo ia atender, saindo apressadamente da
copa, abotoando o casaco. Quando a porta se abriu,
revelando François parado ali, Alice mal pôde acreditar em
seus olhos. Depois, com um grito de alegria, ela correu a
porta e jogou-se nos braços dele.
— Vovô está morto? — gritou ela, puxando-o pelo casaco
para o interior do vestíbulo.

O mordomo, austero e afetado, retirou-se para a copa,


deixando a porta entreaberta, a fim de poder escutar tudo.

François tirou as mãozinhas ansiosas do seu casaco e


apertou-as tensamente. Alice percebeu no mesmo instante
que ele estava excepcionalmente solene, muito pálido.

— Não, querida — disse François, com uma gentileza que


lhe era estranha. — Ele sofreu um ataque. Dizem que
provavelmente vai se recuperar, se não houver outro.

As feições afáveis de Alice expressaram prontamente a


sua profunda consternação. E ela lamuriou-se:

— Então, Tia Elsa voltará para casa a qualquer momento e


me levará para Nova York!

François virou o rosto, murmurando sombriamente:

— Acho que sim...

De repente, ele parecia furtivo e assustado, apertando as


mãos dela com tanta força que Alice estremeceu. As lágrimas
já se comprimiam contra as pestanas dela.

— Sabe por que estão levando-a para Nova York, Alice? —


A voz de François baixara para um sussurro quase inaudível.

— Sei, sim -sussurrou Alice, olhando para trás. Ela


começou a choramingar, baixinho, a boca se curvando para
baixo, infantilmente. — Mas não vou casar com ele, François!
Amo você e direi isso a papai, assim que ele voltar!
A perspectiva da volta do pai provocou um sobressalto
em Alice. François envolveu-a com os braços, apertando-a,
num abraço tenso e trêmulo.

— Você é uma coisinha desamparada, Alice. Eles farão o


que bem quiserem. Vão afastá-la de mim e nunca mais
tornarei a vê-la, a não ser como a mulher de Tom Van Eyck.
Farão com você o que fizeram com sua mãe, a pobre Trudie.

A atenção de Alice foi prontamente despertada.

— O que eles fizeram, François?

Ela fitava-o com os olhos azuis marejados de lágrimas,


numa profunda curiosidade.

François hesitou, a boca se mexendo, angustiosamente.

— Ela queria casar com meu irmão Philippe. Já ouviu falar


de Philippe, não é mesmo, Alice? Mas Tio Ernest, que Deus o
amaldiçoe, queria que ela casasse com seu pai. Ele conseguiu
de alguma forma separar os dois. Philippe tornou-se padre e
acabou morrendo numa ilha de leprosos. E sua mãe casou
com Paul. E morreu também quando soube que Philippe
estava morto, logo depois de você nascer. — Ele apertou
Alice desesperadamente. — Não posso deixar que isso
aconteça com você, minha querida, mesmo que precise
sequestrá-la!

— Oh... — balbuciou Alice, subitamente excitada. — Mas


que coisa horrível o que fizeram, François, que coisa...
desumana!

O terror que François conseguira reprimir pelos últimos


minutos voltou a dominá-lo. Ele olhou apavorado para a
porta da frente, às suas costas. Apertou o braço esguio e
macio de Alice, que estremeceu distraidamente.

— Farão isso com você também, Alice. Vai confiar em


mim e me acompanhar?

Ela ficou aturdida, piscando os olhos repetidamente.


François tirou um papel do bolso, com mãos que tremiam
visivelmente. Estendeu-a para Alice, que descobriu, aturdida,
que se tratava de uma licença de casamento.

— Alice -sussurrou François, em voz rouca -seu pai estará


de volta em poucos minutos. Vão levá-la embora. Confie em
mim, querida. Venha comigo agora e casaremos
imediatamente.

Ela encolheu-se, empalidecendo.

— Mas não posso fazer isso, François! Papai nunca me


perdoaria! Ele... ele ficaria tão furioso que poderia até me dar
uma surra de chicote! Estou apavorada... e não posso fazer
isso, François!

Desesperado, ele sacudiu a licença de casamento.

— Mas tem de me acompanhar, Alice! Ou vou embora,


como Philippe fez... e morrerei em algum lugar distante,
sozinho!

O terror dominava-a agora por completo e ele esqueceu


de sussurrar, passando a falar pelos lábios trêmulos, com
uma voz alta e estridente.

— Você disse que me amava, mas vai permitir que a


mandem para longe e a casem com um idiota! Disse que me
amava, mas posso ver agora que mentia...
Alice recuperara-se rapidamente. Ainda estava pálida,
mas falou com veemência e indignação:

— Não minto, François. Ou pelo menos não minto nessas


coisas. — Ela retorceu o lenço entre as mãos, novamente
assustada. — Mas o que papai vai dizer?

— Nada. O que ele pode dizer? Você será minha mulher.


— François abraçou-a novamente. — Venha comigo, querida.
Nunca mais lhe pedirei, se recusar. Não deixe que me matem
e a você!

Depois de um momento de hesitação e luta angustiada,


Alice levantou o rosto e beijou-o,

— Está bem, François querido, irei com você...

Ela subiu como uma sombra para o seu quarto, pôs um


casaco com dedos entorpecidos, ajeitou o chapéu, pegou as
luvas e a valise, tornou a descer. François já estava com a
porta aberta. Arrastou-a literalmente para fora, descendo a
escadaria de pedra, atravessando o caminho de tijolos, para
sua charrete à espera.

— Depressa! Depressa! — balbuciava François a todo


instante, olhando apavorado para um lado e outro da estrada
invernal.

As grandes propriedades esparsas estavam envoltas por


um nevoeiro cinzento, rendilhado pelos galhos desfolhados
das árvores. O som das rodas da charrete ressoava pela
quietude úmida e sombria. Alice começara a chorar, primeiro
segurando-se a François, depois se afastando bruscamente, o
rostinho vermelho e malhado.

Uma hora depois, Jules chegou apressadamente em seu


escritório, vindo da casa de Ernest. O tio estava ‘repousando’
e não se esperava qualquer alteração em seu estado pelas
próximas 24 horas, Jules deixara-o parcialmente consciente,
sobre travesseiros empilhados, respirando com um som que
parecia de fole enferrujado.

Com imensa solicitude, Jules perguntara a May quando


exatamente ocorrera o ataque. Ao ser informado de que
acontecera às três horas daquela madrugada, quando Ernest
dormia, Jules sentiu-se profundamente aliviado, a tal ponto
que o suor brotou em sua testa. Não, assegurou May,
franzindo com impaciência o rosto pálido e conturbado,
Ernest não recebera mais ninguém depois que ele e Paul
haviam se retirado. May começou a chorar e Jules, ainda com
a testa úmida de suor, conformou-a com tanta ternura e
simpatia que eia ficou comovida, apesar de seu desespero e
terrível ansiedade.

Jules, sentado à escrivaninha, pôs-se a alisar o lábio


pálido com o indicador, pensando, exultante: então não
houvera qualquer alteração no testamento. E se ele conseguir
sobreviver por mais 24 horas, então não sou capaz
absolutamente de reconhecer a presença da morte!

O telefone tocou. Quando ele atendeu, o fone escorregou


em sua mão suada. Era François, a voz alta e estridente,
tensa e histérica como de uma mulher:

— Tive um trabalho infernal para encontrar um telefone,


Jules! Já estamos casados! Alice e eu casamos há meia hora!
Estamos casados! Vamos para casa agora, a fim de esperar
pela confusão! Estamos casados, Jules! Casei com minha
querida!

Ele tossiu muito excitado, enquanto Jules umedecia os


lábios subitamente ressequidos.
— Devemos tudo a você, Jules! Que Deus o abençoe!

Paul chegou exatamente uma hora depois, empurrando a


porta bruscamente, deixando em sua esteira um vento de
caos, empurrando para o lado, com a maior fúria, o
impecável Sr. Dickinson, que protestava em voz débil. Paul
apertava a bengala tensamente, usando-a como uma arma
para fechar a porta na cara do secretário de Jules. Parou
diante da mesa, a respiração ofegante.

— Onde está minha filha? — perguntou Paul, numa voz


estranhamente controlada.

Jules alteou as sobrancelhas, desdenhosamente.

— Sua filha, Paul? Mas que coisa extraordinária você


perguntar-me isso! Como posso saber? Espero que nada de
ruim tenha acontecido com a menina.

A boca de Paul se contraiu, ele ofegou para conseguir


respirar.

— Minha filha! — gritou ele, a voz rouca. — Onde está


minha filha?

Jules se levantou e Paul fitou um rosto que nunca vira


antes. E Jules disse, suavemente:

— Sua filha é agora... Alice Bouchard.

A bengala de Paul cortou o ar como um relâmpago e um


vergão vermelho surgiu no rosto de Jules.
CAPÍTULO CXI
Mas a ‘mudança’ no estado de Ernest Barbour ocorreu
antes de 24 horas. A não ser pelas enfermeiras e criados,
May estava sozinha na casa dos Sessions quando ele morreu.

Até o último momento, ela não acreditava realmente que


Ernest morreria. Que ele pudesse morrer. Um mundo sem
Ernest Barbour era um mundo que se tornava bidimensional,
a vida sem sentido, um penhasco que explodia, ficava
reduzido a pó. Era a realidade se transformando num
pesadelo vazio. Em todos os anos que o conhecia, sempre
lhe parecera inacreditável que ele pudesse algum dia morrer.
O poder de Ernest parecia menos pessoal e limitado a si
mesmo e mais universal. Suas ideias, ambições e ímpeto
irresistível pareciam a May, como a centenas de outras
pessoas, coisas imortais, que não poderiam ser destruídas
pelo tempo ou pela morte. E, no entanto, quando ele morreu,
ficou estendido inerte na cama, os olhos abertos, a boca
frouxa, as mãos que nunca mais se moveriam, parecia no
mesmo instante, como outrora acontecera com Cesar, com o
cocheiro morto que estava a apenas quatro quarteirões dali,
um pobre coitado que morrera no mesmo momento. Gregory
Sessions dissera certa ocasião que a democracia era o
denominador comum do estábulo. Mas a morte era a cifra
final a que toda a vida se somava.

A enfermeira da noite convencera May a descansar,


repetindo o que o médico dissera. May fora para o seu
quarto e sentara-se ao lado do fogo baixo, completamente
atordoada. Estremecia a intervalos e tinha um gosto amargo
na boca. Olhava para os móveis do quarto e tudo lhe parecia
estranho e irreal. Nem mesmo a morte dos filhos lhe
provocara uma agonia tão profunda.
Ela não foi para a cama, embora por um momento tivesse
se deitado sobre a colcha, os olhos fixados no padrão do
papel de parede, que aparecia e desaparecia à luz do lampião
e do fogo. A inércia do corpo tornou a mente mais ativa,
mais conturbada pelo medo e angústia. Ela tornou a levantar-
se.

Eram duas horas da madrugada quando houve uma batida


de leve na porta, que foi aberta pela enfermeira.

— Mandamos chamar o médico novamente, Sra. Barbour.


Gostaria de ver o Sr. Barbour agora?

O rosto dela estava solene,

May correu para o quarto do marido como uma menina.


Antes de chegar à porta, já podia ouvir a respiração horrível,
que ressoava por toda a casa. Ao parar ao lado da cama e
contemplá-lo à luz do lampião na mesinha-de-cabeceira, May
compreendeu que Ernest estava morrendo. Sua primeira
reação foi de incredulidade aturdida, deixando-a tão
entorpecida que por algum tempo não pôde sentir
absolutamente nada.

Um degelo começara e os montes de neve lá fora estavam


muito brancos ao luar. Mas não estavam mais brancos que o
rosto encovado de Ernest, que parecia não ser maior que o
de um menino. A testa larga e a cabeleira branca pareciam
grotescamente imensas, fora de proporção, em contraste
com o rosto. Era um semblante de múmia, encimado pelo
crânio de um gigante. O nariz sobressaia na ruína de sua
carne, curto, forte e dilatado, como a proa virada de um
navio que afundava rapidamente. Os olhos estavam
fechados. May podia perceber como Ernest se esforçava
freneticamente para respirar, os músculos da garganta
retesados. Todo o ser dele estava absorvido na luta terrível
pelo ar que dava a vida. Nada mais lhe importava, além
daqueles arquejos desesperados. As mãos estavam cerradas
sobre a colcha e havia uma concentração intensa nas feições.
Agora, todo o poder de Ernest, toda a sua força irresistível,
concentrava-se naquela coisa pequena, mas de importância
vital.

— Ernest — gritou May, desesperada pela compreensão da


morte. Ela inclinou-se sobre a cama, alteando a voz: —
Ernest, Ernest, querido! Fale comigo!

Um ligeiro franzido de impaciência insinuou-se naquela


terrível concentração, como se May o tivesse perturbado
indesculpavelmente no meio de algo prodigioso. Mas Ernest
não abriu os olhos. A respiração continuou. A enfermeira
levantou um pouco a cabeça dele, sentiu-lhe o pulso, fixando
os olhos atentamente em seu rosto.

— O médico estará aqui dentro de um momento —


sussurrou ela.

O débil luar passava pelas cortinas. Havia silêncio lá fora


e na casa dos Sessions.

May pusera a mão sobre os dedos descarnados e gelados


de Ernest, sobre a colcha. Havia um rumor e uma confusão
em seu cérebro, não podia sentir coisa alguma. Inclinou-se
outra vez sobre Ernest e chamou-o, insistentemente, para
que saísse da escuridão e do caos, em que se debatia numa
luta colossal, para sobreviver. Talvez May o tenha alcançado,
pois ele abriu os olhos lentamente, olhos injetados,
torturados, contemplando-a. A respiração dele tornou-se
mais fácil.

— Ernest querido -sussurrou May. -Não está me


reconhecendo, querido?
Ele sorriu, pareceu reconhecê-la, por trás dos olhos
injetados de teias vermelhas.

— Amy — disse Ernest, a voz novamente forte e incisiva.

May continuou a segurar-lhe a mão, mas seu rosto


pareceu desmoronar, desintegrar-se.

— Ele a está reconhecendo, Sra. Barbour — comentou a


enfermeira, satisfeita.

Mas May olhava apenas para Ernest. A expressão dele


tomara-se inefavelmente gentil, repleta de amor e paixão
antiga. May nunca lhe vira tal expressão, em toda a vida
conjugal. Somente Amy vira. Era como se uma foice cortasse
todo o corpo de May, deixando-o aberto, expondo-o à agonia
e desespero.

Os dedos gelados moveram-se por baixo de sua mão,


apertaram-na. Ernest segurava-a agora com firmeza,
possessivo e vigoroso, como um jovem. Era assim que ele
segurava a mão de Amy. E ele estava sorrindo, um sorriso
indulgente, mas irônico.

— Eu sabia que você nunca iria realmente embora, Amy...

Um brusco espasmo contraiu o rosto de May. Ela beijou-o


na testa, encostou os lábios em seus cabelos. E murmurou:

— Você sabe que eu nunca o deixaria. Sabe que tenho


sempre de voltar para você. Não importa quem mais possa
deixá-lo, Amy sempre voltará.

— Isso mesmo... — murmurou Ernest, sorrindo.

Ele pareceu adormecer. Sua mão foi se tornando cada vez


mais fria. Lá embaixo, a porta da frente foi rapidamente
aberta e fechada, depois soaram passos na escada. O médico
chegara. Ele inclinou-se sobre Ernest, ignorando a mulher
idosa que estava meio estendida sobre a cama, ao lado dele,
os lábios em seus cabelos. O médico olhou para a
enfermeira, sacudiu a cabeça.

Ernest remexeu-se debilmente. Virou a cabeça na direção


da porta.

— Quero ver as crianças — disse ele. — Quero ver Trudie.

— Está bem, querido — disse May, abraçando-o. — Já


estão vindo.

O rosto de Ernest iluminou-se com uma expressão de


expectativa satisfeita.

Ele continuou a olhar para a porta, esperando,


observando, com uma impaciência patética. De vez em
quando, piscava lentamente, enquanto observava.

E depois, finalmente, os olhos não mais piscaram, ficaram


apenas olhando fixamente para a porta, vazios.

No outro lado do mundo, à luz do sol, naquele exato


momento, os japoneses estavam disparando uma salva para
seu imperador. Os imensos canhões cuspiam fogo pelas
águas verdes, abalando o oceano, a terra e o céu com seu
estrondo.

Eram canhões de Barbour & Bouchard.


CAPÍTULO CXII
Os canhões que trovejavam nas chegadas e partidas de
imperadores eram meros sussurros em comparação com o
terrível estrondo que se seguiu à morte de Ernest Barbour.
Os jornais britânicos dedicaram-lhe várias páginas com
fotografias e histórias, gabando-se que ele nascera na
Inglaterra, que descendentes de seu tio, George Barbour,
ainda viviam no país, em Lancashire, em fazendas da região
ou em Manchester. Havia fotografias desses descendentes e
correspondentes especiais foram entrevistá-los. Sem
qualquer exceção, os parentes expressaram suas esperanças
de que Ernest estivesse bem entre os mortos e fizeram-lhe os
maiores elogios.

Grandes homens da Europa e América foram


entrevistados a respeito dele. Os que estavam envolvidos
com a indústria de armamentos mostraram-se reservados e
cautelosos, mas políticos, financistas, senadores,
presidentes, reis e imperadores foram pródigos em suas
manifestações de pesar, reverência e elogio. Fotografias de
Ernest, da juventude à velhice, apareceram em centenas de
jornais, a história de sua vida foi publicada em uma dúzia de
línguas diferentes. Os telégrafos zumbiram com a notícia de
sua morte. Jay Regan, ‘o jovem’, estava entre os homens
ilustres que foram a Windsor para o funeral. Pêsames
assinados por nomes famosos foram entregues à viúva nos
papéis amarelos de telegrama, que nunca sequer abriu-os. Na
verdade, bem poucas pessoas leram tais telegramas, com
exceção de repórteres e visitantes curiosos. Mas Paul
verificou-os, com uma mistura de melancolia e orgulho. E
também com pesar, por mais estranho que possa parecer.
Como acontece com a maioria das pessoas implacáveis e
sentimentais, a morte encobria incontáveis defeitos e
pecados, pelo menos temporariamente. Contudo, além da
morte do tio, Paul não estava se permitindo pensar muito,
para não ficar completamente desolado e abalado.

Mas houve um homem que elevou a voz forte e furiosa


em meio ao pesar e louvores universais. Esse homem foi um
certo Lorde Kilby, um par da Inglaterra que jamais comprara
uma ação de indústria de armamentos e ocupava um posto
da maior importância no Serviço Civil. Ele disse:

— O mundo ressoa com o pesar sentimental pelo


falecimento desse homem, cujas filantropias tardias não
podem apagar a agonia e sofrimento universais que ele e
outros de sua laia infligiram a seus semelhantes. Por toda
parte, ouve-se manifestações de pesar e se depara com
rostos graves, por quê?

"Se Ernest Barbour tivesse contribuído com um soro ou


um tratamento para a cura do câncer, diabetes, sífilis ou
tuberculose, que salvasse milhões de uma morte prematura
ou de tortura indescritível, seu nome seria conhecido apenas
de uns poucos e os beneficiados ficariam até na ignorância
de sua identidade. Se ele tivesse salvado uma vida, os jornais
lhe dedicariam apenas um pequeno parágrafo, numa das
últimas páginas. Se tivesse vivido com honra, bondade e
integridade, haveria apenas um pequeno grupo em seu
sepultamento, uma lápide de um palmo em sua sepultura.”

“Mas esse homem fabricou a morte e a ruína, construiu


uma fortuna sobre os corpos que tombaram nos campos de
batalha, subornando a honra e a integridade de governos,
comprando generais, políticos, jornalistas e reis, com um
cinismo que é desumano, terrível de se contemplar. Todas as
viúvas e órfãos de guerra, todos os pais privados de seus
filhos e soldados aleijados, devem seu sofrimento a esse
homem e aos outros de sua laia. Cada guerra que está
fermentando e poderá ocorrer num futuro sombrio nasceu
de seu cérebro, com o único propósito de aumentar sua
riqueza e poder. As civilizações que morrerão, as multidões
que passarão fome, as crianças que vão perecer nas sarjetas,
os refugiados, famintos, fugitivos e perdidos, os oprimidos e
mutilados, os desesperados que fugirão em terror de uma
terra para outra, procurando abrigo, as cidades em ruínas e a
terra devastada, as pestilências que destruirão, tudo existirá
num futuro tenebroso porque ele viveu.”

“Se o mundo tolo tem uma prece a dizer sobre o


falecimento desse homem, deveria ser: ‘Livre-nos desse
Mal’.”

Lorde Kilby era conhecido como um cavalheiro honrado e


capaz e suas palavras calaram fundo. Resultaram na
formação de um comitê em Londres para ‘investigar” a
indústria de armamentos. Mas esses cavalheiros inocentes
logo entraram em colisão com a hoste formidável de seus
colegas que possuíam ações da nefanda indústria.
Depararam subitamente com os semblantes mais
implacáveis, em determinado momento chegaram a colidir
com a realeza e retiraram-se para uma consternação
decorosa. Haviam chegado precipitadamente a uma floresta
silenciosa de inimigos mudos e terríveis, a fitá-los com
expressões brutais, armados até os dentes, vigilantes,
impiedosos. O comitê de investigação, as vozes um tanto
trêmulas, anunciou que nada descobrira ‘de importância’. E
seus membros enxugaram as testas suadas de apreensão.

Ernest Barbour ficou exposto na pequena e magnífica


igreja que construíra em Windsor. O corpo inteiro, com
exceção do rosto, estava coberto por violetas e lírios, rosas e
cravos. Uma luz escarlate e azul incidia sobre seu rosto,
quieto e encarquilhado agora, entrando pelas janelas altas e
estreitas. Embora velho e morto, ele nunca parecera tão
implacável e ameaçador, apesar das mãos pálidas e
cruzadas, dos olhos fechados. Durante os três dias em que
ali permaneceu, uma fila interminável de habitantes de
Windsor desfilou junto ao caixão, sussurrando ou num
silêncio respeitoso, curiosos ou sentimentais. Mais do que
para verem o morto, ali compareciam para vislumbrarem os
homens cujos nomes apareciam frequentemente nos jornais
que liam. Quando o serviço fúnebre foi realizado, num dia
claro de março, a igreja estava completamente atulhada e
uma multidão se concentrava lá fora.

Foi um serviço breve e solene. O ministro comentou,


pesaroso:

— Em sua vida ele foi simples e despretensioso. Em sua


morte, deixemo-lo permanecer assim. Em vida, ele evitou
toda aclamação e notoriedade, apegando-se a uma maneira
de viver discreta, gentil e recatada. Acreditava que sua
memória seria seu monumento, que o mundo o julgaria por
todas as coisas extraordinárias que fizera e pensaria nele,
em sua vida particular, como um mero cavalheiro rural. E é
assim que devemos lembrá-lo, menos por suas vastas
realizações e mais pelo terno interesse por seus semelhantes
em Windsor, a sua fé, antiquada e firme, no Bem, na Verdade
e no Belo.

“Assim, meus caros amigos, vamos nos lembrar não do


Grande Homem que o mundo conheceu, mas do Bom
Vizinho, o Amigo, o simples Cidadão Local.”

Jules Bouchard, sentado entre sua família, manteve a


cabeça abaixada. Mas um tênue sorriso insinuou-se
desoladamente em seus lábios, enquanto o ministro falava.

Alice estava presente, aterrorizada, pálida, de olhos


vermelhos, junto do marido e da sogra, do velho Major
Norwood, que se arrastava com a ajuda da bengala. Através
dos bancos, através dos fachos de sol em que havia
partículas suspensas de poeira, ela olhava para o pai, que se
recusava a fitá-la. Pobre e querido papai, como ele está
triste, desesperado e pálido! Tia Elsa olhou-a umas poucas
vezes, com extrema severidade e amargura. Mas o último
olhar foi suave e triste. Alice não pôde suportar e soluçou
ruidosamente.

A viúva estava presente, envolta por véus pretos. Apoiava


a cabeça na mão e não se virou nem se mexeu durante todo o
serviço.

Levaram-no para o cemitério desolado, em que o solo


ainda estava amarelado de lama, as árvores desfolhadas.
Ajeitaram-no na terra e deixaram-no ali. O cemitério crescera
com a cidade e suas extremidades não estavam muito longe
da casa dos Sessions. Agora, através dos galhos desfolhados,
as janelas superiores da casa pareciam contemplar a
sepultura recente. A casa resistia, mas o homem que dera
tudo por ela, o homem que a tudo destruíra para conquistá-
la, nada mais era.

Em outra parte do cemitério, o cocheiro já estava


sepultado, o túmulo deserto, exceto por algumas flores
mortas e enegrecidas.
CAPÍTULO CXIII
Para surpresa de todos, Ernest Barbour deixara uma
fortuna considerável para seu filho Godfrey, dez mil dólares
para cada uma de suas netas, filhas de Reginald, 100 mil
dólares para Paul Barbour, a mesma quantia para Elsa, dez
mil dólares para Lucy Van Eyck, a mesma coisa para sua irmã
Florabelle e para May a renda de um imenso fundo de
investimentos, que reverteria ao grosso da herança, depois
que ela morresse.

Mas a principal herdeira, depois de alguns legados para


diversas filantropias, foi a neta, Alice Bouchard. Era uma
fortuna imensa. Alice era agora uma das jovens mais ricas da
América. Os executores conjuntos do espólio eram Paul
Barbour e Jules Bouchard.

Paul acalentara a esperança, até o último e amargo


momento, de que seu legado fosse bem maior. Esperara pelo
menos 500 mil dólares. Esperara que Ernest indicasse, pelo
menos como uma sugestão, que ele fosse escolhido para
presidente da Barbour & Bouchard. Mas tudo o que tinha
agora eram os 100 mil dólares, suas próprias economias e
fortuna particular, que era considerável... e possuía também
agora a sombria compreensão de que os Bouchards poderiam
afastá-lo inteiramente de Barbour & Bouchard, e
provavelmente o fariam.

Ao tomar conhecimento de que François fora designado


para a diretoria da Kinsolving Arms Company, ele
compreendeu toda a trama. Ficou espantado de não ter
percebido tudo antes da morte de Ernest. Começou a passar
mal fisicamente de ansiedade, desespero, amargura, ódio e
perda. Sua casa parecia insuportavelmente desolada sem a
presença de Alice, com sua tagarelice incessante e riso fácil.
Chegar em casa, noite após noite, depois de um dia inteiro
de apreensão e desespero, para encontrar Elsa de luto,
esperando-o com os olhos vermelhos, era mais do que Paul
podia aguentar. Nas quatro semanas que se seguiram à
morte de Ernest, os cabelos de Paul embranqueceram
perceptivelmente, as rugas se aprofundaram nos dois lados
da boca.

Esperava a cada dia receber uma carta dos Bouchards,


pedindo sua renúncia. À medida em que os dias passavam
sem que tal carta viesse, sem que fosse convidado a
comparecer a uma reunião formal, sua consternação e medo
aumentaram em proporção. Era a véspera da Guerra Hispano-
Americana e até então todas as suas reuniões com Jules e
Leon haviam sido frias e formais, relativas aos legados de
Ernest. Por três semanas, Jules exibiu no rosto a marca da
bengala de Paul, mas jamais falava do assunto, não explicava
o que acontecera.

A tensão acabou por dominar Paul completamente. Em


sua amargura desesperada, diante do que julgava ser um
jogo de gato e rato por parte de Jules, ele apresentou sua
renúncia como vice-presidente de Barbour & Bouchard. Dessa
maneira, pensava ele, angustiado, estava salvando o pouco
orgulho que ainda, lhe restava. Poderia se afastar, antes que
pedissem sua renúncia. Só recorria ao amor-próprio quando
era absolutamente necessário, quando não havia escapatória
para os lucros.

O pedido de renúncia foi levado por um mensageiro. Não


havia mais qualquer esperança. Não podia esperar que Jules
perdoasse e esquecesse o insulto à sua família e a agressão
física de que fora vítima. Um comentário significativo sobre
o caráter de Paul é o fato de que lamentava as duas coisas.
Ele fora muito ‘arrogante’ em relação a sua posição,
demonstrara um excessivo desprezo anglo-americano por
uma raça estranha. Censurara-se mil vezes por não ter sido
astuto e controlado. É verdade que Ernest fora muitas vezes
ousado, mas sempre tivera mais sorte ou então só ousara
quando estava absolutamente seguro. Ernest, no fundo, fora
por demais inglês para ser realmente audacioso; a audácia
dele não passara de uma ilusão.

Elsa estava angustiada com a precariedade da situação do


irmão. Desesperada, ofereceu-lhe seu próprio legado. Ficou
magoada com a risada brusca e violenta de Paul, ao
responder:

— Mesmo que fosse um milhão de dólares, não poderia


agora ajudar-me.

Elsa contou-lhe, na noite aflita, depois que o pedido de


renúncia fora encaminhado, que May finalmente recusara o
convite deles para deixar a casa dos Sessions e viver com os
dois.

— Dá para imaginar uma coisa dessas? — disse Elsa, com


um desdém apático. — Ela prefere viver sozinha naquela
casa velha e caindo aos pedaços, com todos aqueles móveis
antiquados e inconveniências, com a vizinhança que agora
tem, quando poderia ficar conosco, que teríamos o maior
prazer em recebê-la. E talvez ela pudesse também nos
ajudar. Afinal, Alice é sua neta e ela pode ter alguma
influência sobre aquele horrível Jules. Mas Tia May, apesar
de suas maneiras simpáticas e de seu tato, sempre foi
egoísta. Não é de admirar que Tio Ernest tenha se divorciado
dela...

A menção do nome de Ernest lançou Paul num frenesi


brutal e histérico.
— Nunca mais me fale no nome desse demônio! — gritou
ele, cerrando as mãos, o rosto todo vermelho, para espanto
de Elsa. — Eu a proíbo de mencioná-lo! Ele me arruinou,
transformou-me em alvo de escárnio, depois de todas as
suas belas promessas e insinuações, de suas simulações de
afeição! Oh, Deus, ele levou-me a acreditar que me deixaria
pelo menos um milhão de dólares, que eu seria o presidente
de Barbour & Bouchard...

A voz de Paul transformara-se quase ao final num soluço,


ele ofegava com um tom rouco. Horrorizada e angustiada,
Elsa percebeu também que os olhos do irmão estavam
marejados de lágrimas. Paul aproximou-se da lareira, apoiou
o braço na cornija, encostou a testa no braço. Elsa
observava-o fixamente, vendo o corpo grande derreado, a
cabeça grisalha, os ofegos que lhe sacudiam os ombros
largos. E Paul continuou a falar, a voz tensa, como se
estivesse prestes a chorar:

— Dei toda a minha vida por isso, vivi só para isso,


pensei, sonhei, trabalhei até não poder mais! Sacrifiquei
tudo, minha juventude, meus dias e noites. E, por tudo isso,
recebo agora uma ninharia... e a rua! — A voz dele definhara
para um sussurro, quando arrematou: — Desgraçado!

Elsa começou a chorar silenciosamente e balbuciou:

— Não fale assim de um morto, Paul. Afinal, ele fez muita


coisa por nós. Se não fosse por ele, teríamos muito menos.
Papai esbanjou grande parte da fortuna de mamãe em suas
tolas obras de caridade. Tio Ernest conseguiu salvar uma boa
parte, pagou-lhe um salário grande por anos e anos, deu-lhe
de presente a hipoteca desta casa e propriedade, deixou-nos
200 mil dólares. E embora você não sinta nisso nenhum
consolo, o fato é que deixou para sua filha muitos milhões
de dólares. Ele sempre gostou muito de Alice. Tenho a
impressão de que gostava dela mais do que jamais gostou de
Trudie.

Paul não respondeu. Continuou parado onde estava, com


a cabeça encostada no braço. Uma apatia estranha e
inesperada parecia subitamente invadir-lhe o corpo,
deixando-o inerte, flácido. Isso deixou Elsa ainda mais
assustada.

— Não sei o que vou fazer agora — murmurou Paul


desesperado. — Para onde vou? O que farei? Não posso ficar
na ociosidade. Dediquei minha vida à companhia. Sem isso,
estou cortado ao meio, minha vida está amputada.

A porta da biblioteca se abriu e Jules Bouchard entrou,


com seus passos suaves e macios. Estava sem chapéu e sem
casaco; evidentemente, dissera ao mordomo que não o
anunciasse. Absorvido em seu desespero e angústia, Paul
não ouviu a entrada quase silenciosa do primo. Mas Elsa,
com um grito de surpresa, levantou a cabeça bruscamente,
os olhos se esbugalhando, o rosto vermelho.

— Boa-noite — disse Jules, friamente, imperturbável. —


Boa-noite, Elsa. Espero não estar incomodando.

Seus olhos rápidos e ocultos apreenderam tudo num


relance. Sua expressão era inescrutável. Elsa se levantou
lentamente, murmurando:

— Jules!

Depois, ela ficou vermelha e olhou para o irmão,


desesperada, retorcendo as mãos, num gesto de medo
inconsciente e confusão. Paul, aturdido, nada podia fazer
senão olhar para Jules, o braço ainda apoiado no mármore.
Jules pôs uma pasta preta em cima da mesa.

— Posso me sentar, Elsa? — E Jules acrescentou, quando


ela já se encaminhava para a porta: — Não há necessidade de
você se retirar.

Ela voltou, tornou a arriar em sua cadeira, lentamente,


olhando fixamente para Jules, com expressão fascinada.
Jules olhou para Paul, que ainda não se mexera. Os olhos
dele se estreitaram e luziram. Na face morena ainda havia a
sugestão de um vergão.

— Recebi esta noite o seu pedido de renúncia, Paul —


disse ele, calmamente.

Paul ficou agora completamente vermelho e murmurou, a


voz rouca:

— E veio me dizer que foi aceito.

Os ombros dele se empertigaram, as mãos ficaram


cerradas. Depois de um momento de silêncio, examinando
friamente o primo, Jules disse:

— Está tirando conclusões precipitadas. E conclusões


assim são quase sempre erradas. Vim procurá-lo esta noite
porque o assunto é muito sério. Vim pedir-lhe para não
renunciar e informar que, há cerca de uma hora, decidimos
convidá-lo para ser o novo presidente da corporação.

Elsa soltou um grito de espanto, olhando de Jules para


Paul. O rosto do irmão recuperara lentamente a palidez
normal, ele piscava em incredulidade, engolia em seco
visivelmente. As mãos cerradas se abriram, relaxaram.

— Com um salário três vezes maior do que aquele que


recebe como vice-presidente — acrescentou Jules.

Ele estava agora sorrindo e não era absolutamente um


sorriso agradável. Depois, como Paul permanecesse em
silêncio, incapaz de falar, Jules continuou:

— Espero que aceite, Paul. Lamentaríamos profundamente


se recusasse. Para ser franco, precisamos de você. Trata-se
exclusivamente de uma questão de negócios e acomodações
e justiças nada têm a ver com isso.

Paul tateou à procura de uma cadeira, encontrou-a e


sentou-se. Desviou a cabeça. Elsa, retorcendo as mãos, mal
conseguindo respirar, observava-o.

Jules olhava pensativo para a ponta da botina reluzente.


Sua expressão tornou-se mais gentil.

— Não como um membro da companhia, mas como um


homem, acho que você foi miseravelmente tratado. Não
duvidamos por um instante sequer que você seria indicado
para presidente pelo falecido e lamentado Tio Ernest. Foi
uma piada sórdida. Mas também nosso caro Tio Ernest
sempre gostou dessas brincadeiras de mau gosto.

Paul virou a cabeça na direção do primo, lentamente


fitando-o com espanto e incerteza. Umedeceu os lábios.
Estava totalmente humilhado, mas a esperança começava a
insinuar-se em seus olhos. Jules sorriu.

— Vai aceitar, Paul? Honore e Leon estão aguardando


ansiosamente a resposta.

— Aceito — disse Paul, a voz rouca e trêmula.

Ele soltou a respiração sonoramente, como se uma


terrível agonia fosse removida de seu peito.

— Isso é ótimo. Tio Ernest fez a sua brincadeira de mau


gosto, mas nós rimos por último. — Nada poderia ser mais
amistoso que o tom da voz e o sorriso que o acompanhava.
— Vamos nos dar muito melhor, agora que estamos
sozinhos.

Ele estava atraindo Paul para o círculo de conspiração e


amizade da família. E Paul, como que livre do pesadelo,
tormento e morte, sorriu em retribuição, um sorriso
estranho e frenético. Elsa, sorrindo e chorando, olhava para
os dois com uma expressão radiante.

Jules retirou alguns papéis da pasta.

— Assine estes papéis, por favor, Paul. Depois de lê-los, é


claro.

Paul fez menção de que estava lendo, mas na verdade as


folhas impecavelmente datilografadas eram apenas um
borrão indistinto diante de seus olhos. Foi somente ao final
que um item significativo atraiu-lhe a atenção. Ele levantou
os olhos para fitar Jules, novamente pálido e abalado.

— Está escrito aqui “Bouchard & Filhos”.

— Isso mesmo — respondeu Jules, sem demonstrar


qualquer emoção. — Bouchard & Filhos.

E ele fixou os olhos empapuçados no primo. Paul, depois


de um olhar prolongado, voltou a concentrar-se nos papéis.
A pena pairava imóvel sobre eles. Elsa levou o lenço aos
lábios, fechando os olhos. E depois ouviu um rangido. Paul
estava assinando os papéis. A pena caiu de seus dedos. Jules
recolheu os papéis rapidamente, tornou a guardá-los na
pasta.

— E agora, Paul, vamos discutir rapidamente alguns


negócios. Estou seguramente informado que não vai demorar
muito para declararmos guerra à Espanha. Mas só depois que
entregarmos alguns navios com couraças de aço à Espanha,
assim como Robsons &Strong entregar outros armamentos. E
vamos também embarcar armas e explosivos para Cuba. Mas
isso já é história antiga. Temos de pensar agora na Rússia e
no Japão, nos eternos Bálcãs. E também de uma ideia que
surgiu recentemente entre nós, Robsons, Kronk, Schultz-
Poiret, Bedors, Skeda e Sazaroff. Provavelmente não vai se
consumar antes de dez anos, mas precisamos começar a
trabalhar imediatamente, se queremos que aconteça. Na
verdade, fui informado de que já começou, na Alemanha,
onde estão falando de Der Tag.
EPÍLOGO
— Há uma contradição peculiar nas mentes dos homens,
que admite e aprova o comportamento de um grupo,
enquanto se opõe ao mesmo comportamento por parte de
outro grupo — disse Jules a um repórter de New York Times,
durante uma intensa investigação oficial das operações de
Bouchard & Filhos, por ocasião da Guerra Hispano-
Americana. — Admite-se que o comércio internacional de
todos os tipos está acima dos preconceitos nacionais e
raciais, acima da guerra, bloqueios e conflitos particulares. É
o esperanto da moderna vida industrial. Mas há uma exceção
inexplicável e notável: a indústria de armamentos. Essa
indústria, tão internacional, tão necessariamente alheia às
divergências e conflitos particulares, é declarada
subitamente, em tempo de guerra, como uma indústria
exclusivamente nacional. Exige-se então, por mais neutra que
seja e deva ser, que tome um partido. Essa atitude estúpida e
arrogante é um atentado inadmissível à vida comercial, uma
violação do relacionamento vendedor-comprador, que é a
base do comércio internacional livre e próspero. Não apenas
é um atentado às liberdades de um grupo de homens,
liberdades garantidas pela Constituição, mas também uma
tirania de um tipo nitidamente perigoso, prenunciando um
futuro sombrio para outras liberdades do povo. Não se pode
arrombar a porta de uma casa sem expor a casa inteira ao
saque. — Ele abriu os braços e arrematou: -se isso é traição,
então que façam o que bem quiserem.

Essa entrevista foi muito admirada, particularmente entre


os fabricantes de munições e seus acionistas, no mundo
inteiro. Mas o governo e a maioria das pessoas mostraram-se
céticos, recusando-se a ficarem impressionados. Um senador
comentou:
— Eu aconselharia o Sr. Bouchard a ler a Constituição
cuidadosamente, antes de se decidir a citá-la de maneira tão
comovente, em outra ocasião. Ele está na mesma situação do
demônio a citar a Bíblia. Admitimos que é muito comovente
sua advertência contra os inimigos das liberdades
individuais e sua extrema preocupação a respeito. Mas
gostaríamos de ressaltar, com a ajuda da história, que os
povos terão bem pouca necessidade de se preocuparem com
isso no dia em que as indústrias de armamentos do mundo
inteiro forem proibidas, os verdadeiros inimigos do povo
arrancados de trás de suas máscaras altivas e sisudas, sendo
denunciados pelo que são. E tais inimigos são justamente os
fabricantes de armamentos.

Nessa ocasião, Paul Barbour foi indiscreto o bastante


para, nas palavras incisivas de Jules Bouchard, ‘bancar o
idiota rematado’. O momento específico em que ele realizou
esse feito difícil foi dos mais delicados.

Paul também deu uma entrevista, que foi divulgada no


mundo inteiro. Lembrou o fato de que Pedro, para defender-
se e aos justos, usara uma espada, ‘com bom efeito’. E
depois dessa citação devota, ele acrescentou:

— João revelou-nos uma visão da derrota de Satã e dos


mil anos de paz que se seguirão. Mas haverá guerra antes
desse momento. A guerra é uma doença das nações, a mais
fatal e a mais terrível de todas as pestilências. Ninguém
compreende isso tão plenamente quanto os fabricantes de
armamentos, que trabalham em cooperação com a ciência
para a produção de armas mais eficientes e gases da morte.
A guerra, a doença das mentes dos homens, só pode ser
curada pela guerra. E quanto mais terrível for a guerra, mais
implacável e mais disseminada, maior será a saúde das
nações depois do expurgo universal e sangrento. A guerra
deve ser erradicada pela espada, sua implacabilidade
cultivada pelas nações civilizadas contra as não-civilizadas,
a ganância pela Conquista. O fabricante de armamentos,
ajudando na eliminação dos belicosos e bárbaros, é o amigo
da paz, o destruidor dos doentes. Seus canhões e explosivos,
seus gases e balas, são os médicos que curarão os aflitos. —
E Paul acrescentou: — Pedir a nações pacíficas e civilizadas
para se defenderem com palavras amistosas e gestos
conciliatórios é pedir a um homem que se proteja de um cão
raivoso com um sorriso e a mão estendida.

Mas Jules, geralmente tão astuto, estava enganado desta


vez. Sua lógica francesa não teve qualquer influência sobre a
mente sentimental americana. Mas o discurso de Paul, tão
sentimental, apelando diretamente para a ignorância
simplória e as convicções simplistas, contribuiu mais para
apaziguar o ressentimento público do que os sofismas e
raciocínio amargo de Jules. Compreendendo isso, Jules fez
um comentário sucinto, mas impublicável, que foi citado
entre seus parentes por muitos anos, em meio a risadas. O
comentário dizia respeito a uma saudação íntima de Paul a
uma parte sempre oculta da anatomia pública. Depois disso,
Paul passou a ser tratado pelos irreverentes Bouchards como
o ‘Primo Rabo’.

Tudo isso aconteceu na ocasião em que se descobriu que


os espanhóis estavam usando “milhares de rifles,
extremamente parecidos com os rifles Kinsolving fornecidos
a nossos soldados”.

Outro ocorreu por ocasião da Guerra Russo-Japonesa,


quando se descobriu que a Kinsolving Arms Company
fornecera aos japoneses 30 milhões de cartuchos, toneladas
de explosivos, 200 mil rifles e uma centena de canhões. O
governo russo apresentou uma queixa em Washington e o
povo da Califórnia, indignado, exigiu outra investigação.
Paul, estimulado desta vez pelo próprio Jules, fez outro
discurso e tudo se desvaneceu.

Bouchard & Filhos descobriu que era extremamente


lucrativo dispensar muita atenção à recompra a bom preço
de explosivos, armas e munições vendidos no passado às
grandes potências, revendendo tais equipamentos antigos e
às vezes obsoletos às nações menores e mais pobres. Ernest
fizera alguns negócios desse tipo, mas Bouchard & Filhos
expandiu-os consideravelmente, emitindo catálogos,
oferecendo garantias e anunciando discretamente. Assim,
dessa maneira edificante, uma nação que caísse em sua
posição poderia acabar comprando o que ela própria vendera
a essa extraordinária companhia. Jules Bouchard descobrira
que os princípios do sistema circulatório humano podiam
ser perfeitamente aplicados à indústria de armamentos.
Bedors, Schultz-Poiret, Robsons-Strong, Kronk e Sazaroff
expressaram sua admiração particular e prontamente
seguiram o exemplo.

Por volta de 1905, Bouchard & Filhos era uma companhia


maior do que nunca. O próprio Ernest teria ficado admirado,
divertido e impressionado.

Houve, um intervalo de paz relativa do mundo, embora os


Balcãs estrondeassem como sempre e ocorressem alguns
conflitos de menor escala. Os Bouchards venderam grandes
quantidades de explosivos ao governo dos Estados Unidos,
para ser usado na expansão ferroviária e outros propósitos
pacíficos. Robsons-Strong bocejava, depois de contar os
lucros da Guerra dos boêres, em que demonstrara
admiravelmente seu patriotismo, fornecendo metralhadoras
Maxim e outros produtos tanto aos britânicos como aos
boêres. Bedors bocejava, Schultz-Poiret bocejava.

Mas Sazaroff não bocejava. Nem Kronk.


Depois de algum tempo, Schultz-Poiret parou de bocejar,
assim como Bouchard & Filhos, Bedors e Robsons-Strong.
Pois um sussurro de pestilência emanara da Alemanha, dos
Bálcãs e da Rússia. A fábrica Kronk, em Ersen, funcionava
ativamente. De imediato, as fábricas de Schultz-Poiret, em Le
Creusot, na Borgonha, aceleraram suas atividades. Robsons-
Strong tornou-se misteriosamente ativa, Skeda animou-se,
Bedors agitou-se e Sazaroff percorria a Europa de um lado
para outro, com uma rapidez e agilidade surpreendentes
para um homem da sua idade.

Os jornais começaram a ferver de indignação. Houve uma


notícia de que um grupo de altas autoridades navais e
militares britânicas fora recebido num grande banquete por
altas autoridades do governo alemão. Um alemão teria feito
um brinde a “Der Tag”, O Dia em que alemães e britânicos se
empenhariam em combate mortal. Artigos velados, mas
inflamados contra a Alemanha apareceram em jornais
franceses; os mesmos artigos, quase palavra por palavra,
apareceram em jornais alemães, contra a França. Eram
escritos sutilmente, expressando suspeitas vagas, mas
penetrantes, formulando indagações impessoais e retóricas,
insinuando acusações abstratas, mas tenebrosas. A imprensa
russa também publicou artigos parecidos, assim como a
britânica e a austríaca, a búlgara, a grega e a romena. Os
jornais sérvios fizeram comentários inquietos, olhando
apreensivamente para a Áustria.

O mais estranho, em tudo isso, era o fato de que os


autores de tais artigos eram pagos com a maior
imparcialidade por Kronk e Schultz-Poiret, Skeda, Bedors e
Bouchard & Filhos.

Na América, Jay Regan, o Jovem, conferenciava com seus


associados, entre os quais estavam Jules Bouchard, seu
irmão e primos, sobre as quantias que poderiam ser
emprestadas à Inglaterra e França, possivelmente à
Alemanha. Finalmente, depois de longos debates, muitos
estudos, consultas a estadistas, banqueiros e políticos,
chegou-se a uma decisão.

Uma estranha coisa aconteceu logo depois. Histórias


americanas, jornais, oradores e sociedades patrióticas,
cessaram subitamente de provocar e escarnecer da
Inglaterra. Houve muita conversa inesperada sobre Mãos
Estendidas Através do Atlântico. Foram promovidas visitas
de britânicos e americanos eminentes. O sentimento anglo-
americano tornou-se mais íntimo, profundo, compreensivo.

O vinho nos tonéis começou a fermentar.

FIM

***

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