Você está na página 1de 228

Christina Skye

SERIE DELAMERE, 01

Ao c a i r d a n o i t e
Disponibilização em Esp: Ellloras Digital
Envio e Tradução: Gisa
Revisão: Adma
Formatação: Gisa

UM SEDUTOR SOMBRIO
Ele cavalga à luz da lua: um bandido mascarado com as maneiras de um cavalheiro e a fria
crueldade de um criminoso. Chamam-no Cavalheiro Negro e toda a Inglaterra treme ao ouvir suas
façanhas, já que não tem igual no que diz respeito a pilhagem e a sedução.

UMA BRUXA ATREVIDA


Silver St. Clair, com seus olhos cor esmeralda, fez o juramento de manter o que pertence a sua
família custe o que custar, mas a fórmula secreta de um estranho perfume cobiçado por toda a
nobreza inglesa se perdeu faz muito tempo, escondido em algum lugar das colinas nebulosas do
imóvel de Norfolk propriedade da família Silver.

CATIVOS DE UM DESEJO TEMERÁRIO


Unidos pelo amor, cegados pelo desejo, ambos se encontram entre as colinas com aroma a
lavanda de um imóvel na campina inglesa. Dos brilhantes salões de Norfolk até as casas de
jogos cheias de fumaça de tabaco, ambos desafiam o destino e se convertem em aliados
no campo de batalha do amor, até que um desumano inimigo envolve a ambos na espiral
definitiva da vingança...
Nota da Revisora Adma: gostei muito do livro, apesar de ser um drama tem umas
passagens bem engraçadas.
A mocinha faz de tudo pra ter uma noite de amor com o mocinho. E mesmo ele dizendo que
não serve para ela, acaba se entregando de corpo e alma a esse sentimento.
Muito lindo gostei muito, e mesmo com todas as cicatrizes o mocinho é um TDB daqueles!

Prólogo

Norfolk, Inglaterra
Agosto de 1809
William St. Clair estudou o último frasco que ficava sobre sua mesa. Franziu o cenho
enquanto olhava o pálido líquido dourado à luz de uma vela tremeluzente, examinando com seus
peritos olhos de cor cinza esverdeado sua pureza e concentração.
Sim, a colheita de lavanda tinha sido verdadeiramente esplêndida esse ano. Os ganhos de
seus óleos essenciais duplicariam suas expectativas e seriam suficientes para lhe permitir semear
duas colinas mais e provar uma nova e magnífica variedade de lavanda branca de folha prateada.
Se vivesse o suficiente, é obvio.
St. Clair suspirou e voltou a colocar o recipiente sobre a mesa. A seguir se sentou e
esfregou o dolorido pescoço com uma mão.
Minúsculas gotas de água coalhavam as paredes de cristal da estufa, distorcendo a visão
que tinha do jardim dali, embora ainda podia cheirar a brisa fresca que chegava da costa,
carregada de uma doce mescla de lavanda e rosas.
Mal tinha passado um mês desde que recebeu a primeira carta de ameaça. Desde então
sentia como se tivesse envelhecido uma década. E, à medida que seu anônimo inimigo fosse se
aproximando, as coisas iriam ficar cada vez pior.
Seu olhar recaiu na miniatura emoldurada que havia em um canto de sua mesa. A
preocupação escureceu suas belas e curtidas feições ao olhar o rosto vibrante de sua filha, com os
olhos muito abertos e a expressão resoluta.
Tinha os lábios carnudos e bem definidos, e seu cabelo, castanho avermelhado de cachos
indomáveis, mostrava a mesma vitalidade que ficava patente no ar rebelde que elevava seu
pequeno queixo. Embora só tivesse dezesseis anos já mostrava uma clara semelhança com sua
mãe.
William tocou com suavidade a pintura a óleo enquanto pensava na mulher que perdeu
quando era muito jovem e na filha que já começava a parecer muito maior.
Em algum lugar a suas costas soou o estalo de um ramo. O alto fazendeiro de Norfolk se
virou bruscamente olhando para a janela, com o coração a ponto de sair do peito.
Tinha muito claro que não ia se deixar vencer sem antes encarar o que fosse, isso era mais
que seguro. E quem quer que se escondesse nas sombras ia descobrir muito em breve. Graças a
Deus tinha enviado Susannah e o jovem Brandon ao sul, a casa de seu irmão mais velho, em Kent.
O velho Archibald estava meio surdo e louco como uma cabra, mas tinha uma pontaria letal e
odiava os estranhos. Sim, ele manteria os dois meninos seguros, acreditava William. Sua filha mais
velha, Jessica, tinha morrido já fazia um ano e possivelmente isso tinha sido o melhor. Seu marido,
Sir Charles Millbank, já mostrava todos os sinais de estar convertendo-se em um perfeito «bom
para nada» e, além disso, mostrava-se cruel. St. Clair sempre teve suas dúvidas com respeito a
Millbank, desde o começo, é obvio, mas Jessica estava convencida. Devia ter sido mais firme,
pensou amargamente o homem de cabelo cinza. Mas agora já era muito tarde para Jessica,
embora ainda não o fosse para Susannah e Brandon, disse-se, voltando a colocar a miniatura
sobre a mesa.
Depois tirou uma pistola do bolso, invocando seu inimigo em silencio para que saísse à
luz.
Mas não chegou nenhum outro som da escuridão. Nada se moveu, exceto um
camundongo que escapuliu cruzando os mornos azulejos vermelhos, movendo o nariz incansável e
com a cauda em alto.
Lentamente William deslizou de novo a pistola em seu bolso. Pelo bem das crianças tinha
que controlar-se.
Deixou-se cair de novo na gasta poltrona de vime e ordenou um monte de relatórios de
sementes para depois colocá-los em uma gaveta. Já tinha tido suficientes temperaturas de
destilação e avaliações de sementes. Agora tinha que concentrar-se em Susannah e Brandon.
Tinha que lhes deixar algo com o que pudessem rebater as mentiras que se veriam obrigados a
ouvir. A menos que planejassem as coisas com supremo cuidado, poderiam perder tudo. Seus
inimigos se ocupariam disso.
Mas possivelmente seus filhos fossem extremamente inteligentes e conseguissem
descobrir quem…
Sua mandíbula se esticou. Não, devia seguir sendo prático e manter o sangue-frio. Não
havia tempo que perder em esperanças vãs.
O atraente botânico de cabelo cinza abriu uma gaveta oculta que havia na parte traseira
de sua mesa e tirou uma caixa de ébano com incrustações de coral e madrepérola. Ficou olhando
a madeira polida durante longo momento; um presente de sua amada esposa, que tinha morrido
quatro anos antes. Depois St. Clair agarrou sua pluma e começou a escrever.
A lamparina a óleo piscou a suas costas. As sombras dançaram sobre a página enquanto o
extremo afiado da pluma roçava o grosso papel.

15 de agosto de 1809

Minha adorada Susannah:


Passarão muitas semanas antes que encontre este caderno, ou mesmo anos, mas há coisas
que deve saber, segredos que devo transmitir sem que meus inimigos descubram. Essa é a razão
pela qual estou tomando tanto cuidado em manter oculto este registro. Não se zangue por isso.
Trata-se de algo verdadeiramente essencial.
Quando ler isto, minha querida Susannah, terá ouvido muitas histórias horríveis sobre
mim. Sem dúvida as pessoas dirão que me suicidei por desespero. Isso, é claro, não será mais que
uma mentira, mas, em ocasiões, é a mentira o que mais dói. Tente evitar ao jovem Brandon o pior
de tudo isto, o fará?
Escrito neste diário está toda a verdade, querida filha. Guarda-o bem, porque haverá
homens que matariam por tê-lo em seu poder. Estuda o que lhe digo e pensa bem qual é a melhor
maneira de utilizá-lo. Se for inteligente, todas estas coisas protegerão seu irmão e a você.
Enquanto isso, conserve o ânimo. Eu vivi uma vida plena, uma vida de aventuras e riscos.
Estou orgulhoso de haver granjeado inimigos em minhas viagens. Não mudaria absolutamente
nada disso. Meu trabalho foi minha alegria e meu lucro; e seu irmão e você, minha vida.
Acredite-me quando digo que sempre é melhor seguir o que diz o coração, minha querida
filha. Corra riscos. Atreva-se a tudo. Se não chegar a recordar nada mais, ao menos recorda isto.
Muito recentemente que sou consciente do perigo que sempre me ameaçou. Brandon e
você são a razão pela qual decidi tomar o rumo que tomei.
Não estou escrevendo estas palavras superficialmente, nem sem ter em conta o profundo
amor que professo a ambos, não duvide. Mas quando ler isto, será muito tarde para que eu possa
explicar-lhes isso pessoalmente, porque, quando encontrarem este caderno, minha querida
Susannah, é quase seguro que estarei morto…

Capítulo 1
O urzal
Norfolk, Inglaterra
Maio de 1814
A lua estava cheia. O vento era forte. Em definitivo: era uma noite perfeita para a
vingança.
Ele montava seu cavalo comodamente, com as rédeas frouxas entre seus dedos
enluvados, enquanto observava a distante fita prateada que era o caminho que serpenteava para
a costa de Norfolk.
Meia-noite. Luz entre as sombras.
E medo. Também podia senti-lo.
Mas o cavaleiro vestido de negro conhecia cada rocha e cada arbusto daquele urzal
iluminado pela lua, cada curva do caminho que oferecia refúgio para esconder-se. Tinha
caminhado por eles, tinha-os estudado, até tinha sonhado com eles. E agora estava mais que
preparado para percorrer esse trajeto na escuridão.
Com expressão sombria puxou a máscara de seda negra que usava, fazendo que
deslizasse por seu rosto até cobrir suas feições cinzeladas. Chegava-lhe justo por cima de uma
pequena cicatriz que destacava-se, fria, junto a seu carnudo lábio inferior.
Não tinha tempo para sonhos nem lamentos. Aquela noite não.
Essa noite a escuridão o chamava. Os sinos da igreja tinham badalado doze vezes e o urzal
estava envolto em sombras.
Tinha chegado o momento que o bandido mais sinistro de Norfolk cavalgasse de novo.

A pequena sala da estalagem estava lotada, carregada pela fumaça acumulada e o aroma
penetrante do álcool barato.
—Que preço ouvi pela moça?
Só murmúrios de homens meio bêbados responderam a essa oferta.
—Vamos, amigos. São homens ou jovens imberbes que recusam uma oportunidade como
esta para provar a beleza feminina? Olhem o que lhes digo: a moça é perfeita. Tem a pele tão
suave como a seda.
Cinco homens que formavam um circulo ao redor de uma desmantelada mesa se
inclinaram para diante em seus assentos. Entrecerraram seus olhos injetados em sangue para
tentar vislumbrar à mulher que se entrevia em uma curva da parede mais afastada. A cortina que
a velava era muito fina, mas não deixava ver muito mais que uma sedutora silhueta.
—E quem nos assegura que ela é tudo o que afirma, Millbank? Já nos depenou bem a
última vez, isso é o que fez. Paguei-lhes trezentas libras por uma virgem intacta e em vez disso
obtive uma puta com sífilis recém trazida de Falmouth!
—Cavalheiros, cavalheiros. —O homem que presidia a mesa agitou uma mão peluda. Suas
coradas feições formaram um sorriso com facilidade, fruto sem dúvida da intensa prática—. Um
pequeno engano de cálculo, asseguro-lhes isso. Meu, digamos, fornecedor não compreendeu que
os requisitos de nosso clube deviam cumprir-se escrupulosamente. Como acordamos, nós só
teremos mulheres impecáveis. Só virgens intactas e imaculadas. Esse é nosso lema, depois de
tudo. —E, com um dramático floreio, Sir Charles Millbank correu a cortina de seda que velava o
espaço da parede—. E isso é exatamente o que podem ver seus olhos neste momento.
A mulher seguiu penteando seu comprido cabelo escuro, seus ombros só cobertos pela
mais fina das camisolas.
—Mostrará-se submissa? —Um fazendeiro que já mostrava sinais de calvície incipiente e
que tinha o colete manchado de uísque estudou Sir Charles Millbank com desconfiança—. Não
seria agradável ter que agüentar seus gritos por toda a casa quando descobrir o que vai lhe
acontecer.
—Estará preparada, não temam.
—Espero que não muito preparada… - disse um homem de cara larga, feições duras e
olhos frios—. Uma moça que não brigue não está acostumado a ser muito divertida.
O fazendeiro soltou uma gargalhada.
—Como se vocês tivessem alguma oportunidade de ganhar a luta, Renwick. Perderam
muito nas mesas este mês passado e algo mais depois, isso ouvi.
—Tenho suficiente para superar qualquer miserável luta que venha de você, não
duvidem!
Millbank interveio porque parecia que ambos estavam a ponto de empreendê-la a golpes.
—Cavalheiros, um pouco de decoro, os rogo. As regras desta casa exigem uma ordem
estrita em nossas reuniões. Agora, voltemos para o nosso… que preço acabo de ouvir na sala para
esta extraordinária representação da feminilidade? Trezentas libras? Quatrocentas?
—E o que aconteceu com Silver St. Clair? —O fazendeiro se inclinou para diante, a luxúria
brilhando em seus olhos turvos—. Essa é a que eu quero.
Outros começaram a emitir comentários em voz baixa. O nome «Silver» passou
rapidamente de um homem a outro.
—Isso, o que aconteceu a Silver? —O fazendeiro golpeou sua jarra contra a mesa—. Por
prová-la eu pagaria o dobro desses quatrocentos. E até mais.
Millbank franziu o cenho ante a menção de sua bela cunhada. Tinha tentado quebrar sua
vontade uma e outra vez, mas em todas as ocasiões o tinha desafiado. Maldita fosse por sua
insolência. E por sua beleza, que supunha uma tortura contínua para ele.
Mas havia muito dinheiro em jogo para que ele se arriscasse a ter um arrebatamento.
Além disso, sua teimosa cunhada logo aprenderia quem era seu senhor. E quando estivesse o
suficientemente desesperada teria que claudicar ante suas demandas, pensou Sir Charles com
petulância.
—Quando chegar o momento oportuno, oferecerei-lhes Silver St. Clair para a luta, como
prometi. —Sir Charles fechou a cortina e se voltou para olhar os homens ali congregados—. E, até
que esse momento chegue, o leilão continua. É obvio, se não se incomodarem em participar
agora, não os informarei quando minha pequena e doce cunhada saia a leilão. E os asseguro,
cavalheiros, que isso é algo do que se arrependerão profundamente.
Um ensurdecedor silêncio se apoderou da sala. Todos os homens ficaram sem fôlego ao
imaginar a beleza aveludada de Silver St. Clair, o grave timbre de sua voz e a riqueza gloriosa de
seu cabelo da cor do brandy interrompido só por uma mecha prateada que saía de uma de suas
têmporas.
—Por Deus, eu começo com duzentas. —O fazendeiro ficou em pé de um salto e colocou
sobre a mesa um maço de notas.
—Trezentas - seguiu lorde Renwick, que não queria ficar atrás.
Enquanto o leilão alcançava tinturas furiosas, Sir Charles se acomodou em seu assento,
Sorrindo ligeiramente e tamborilando seus grossos dedos.
Essa noite o atrativo de sua bela e insolente cunhada ia-lhe reportar uma boa quantidade
de dinheiro. E ela logo veria como suas esperanças se evaporavam e como a propriedade que
adorava e onde cultivava sua lavanda era lhe arrebatado. Então suporia algo mais que dinheiro…
Através do urzal, onde os tejos se entrelaçavam até formar um matagal espesso e as
rochas bramavam de forma estridente pelo vento que aumentava, um cavaleiro solitário se
inundava pouco a pouco na noite. Começavam a formar-se e a deixar-se ver farrapos de névoa
que se pulverizavam em estranhos adornos em forma de espiral. Pálidos e frios grudavam a
cavaleiro e cavalgadura, mas o viajante solitário seguia esporeando seu cavalo desesperadamente
para que seguisse adiante.
Silver St. Clair estava fora de casa aquela noite, tarde, muito tarde para que fosse seguro
ou para poder manter a tranqüilidade mental. Ela sabia que tinha que recuperar um pouco de
tempo pegando o atalho que cruzava o bosque de Worrington.
Ou o bosque do Diabo, como o conhecia naquela parte de Norfolk.
Seus dedos tremiam um pouco quando tocou o camafeu de marfim que levava preso à
fita que rodeava seu pescoço.
Não importava que se dissesse que o bosque estava encantado.
Tampouco que se dissesse que uma carruagem tinha desaparecido em suas tenebrosas
profundidades justo uma semana antes.
Nem que seu coração soasse em seu peito como os sinos da igreja de Norwich na manhã
de Natal. O tesouro que levava ainda necessitava que ela demonstrasse toda sua valentia.
Mas o que aconteceria se encontrasse Lorde Blackwood? Afinal, esses eram seus
domínios.
A insidiosa pergunta seguiu ricocheteando dentro de sua cabeça. Como resposta, Silver
extraiu um pouco mais sua pistola de ouro gravada do interior de sua manga, onde a guardava.
—Blackwood? Se aparecer, simplesmente despacharei o famoso bandido com uma de
minhas balas, como alguém deveria ter feito há muito tempo!
Mas o vento apanhou suas palavras e as arrojou de novo no rosto, agudas e frias.
Silver teve um calafrio e se embrulhou mais em sua capa, ajustando-a sobre os ombros.
Era uma noite fresca para tratar-se de maio; o frescor do verão de Norfolk. Começou a perguntar-
se se deveria proteger os arbustos de lavanda recém semeados com pedaços de fina musselina.
Tinha investido muitos dias de trabalho extenuante para perder agora sua preciosa colheita de
lavanda pelos caprichos de vento frio que chegava do Canal… Acabava de começar a considerar
qual seria a melhor maneira de envolver as plantas com o tecido quando escutou um som de
cascos que provinha da escuridão a suas costas. Não teve tempo para preparar-se, nem tampouco
a ocasião de chegar a virar-se.
E não tinha nenhuma possibilidade de escapar.
Porque só um homem se atreveria a cavalgar por essa paragem maldita cheia de urzes na
noite. Só um homem cujos olhos brilhavam como o mesmo enxofre do inferno.
O Cavalheiro Negro. Um bandido com rendas nos punhos que falava com a elegância de
um verdadeiro cavalheiro… e que matava com a fria precisão de um assassino implacável.
E era ele quem pairava sobre Silver naquele momento. Esporeou sua égua com fúria
tentando chegar ao mais profundo do bosque que ficava a sua esquerda enquanto tirava a pistola
do bolso onde a guardava, dentro do punho de sua manga.
Atrás dela, os cascos soavam como se metal golpeasse contra metal. Cavalo negro e
cavaleiro negro que se aproximavam cada vez mais à velocidade do raio na negra noite.
Tragando os soluços, Silver se inclinou para diante, pressionando mais sua égua.
Mas nenhum cavalo podia superar o corcel negro que a perseguia, um cavalo que se dizia
que tinha sido gerado nas entranhas do inferno.
Apenas dez metros até a primeira linha de árvores. Se ao menos pudesse…
Mas suas esperanças ficaram truncadas no instante seguinte. O enorme cavalo apareceu
a seu lado, com os olhos fora das órbitas e faíscas saindo lançadas de seus enormes cascos, como
se realmente procedessem do fogo do inferno.
E depois Silver se sentiu elevada no ar, agarrada por dedos de aço, enquanto sua
aterrorizada montaria se perdia a toda velocidade no interior do bosque. Um segundo depois seu
corpo se chocou contra um peito coberto de veludo. Arranhando furiosamente lutou contra as
mãos que a sujeitavam na parte dianteira da sela.
—me solte, porco! Deixe-me ir, cão!
—Alto, Diabo. —Uma voz masculina freou seus protestos. Profunda e grave, com um leve
acento estrangeiro—. Agora temos companhia, assim cuidado com suas maneiras.
Não sabia como, mas de repente Silver sentiu suas pernas apanhadas sob uma coxa
masculina e suas mãos seguras por uma mão grande e poderosa. Sua cabeça estava cheia das
advertências de sua babá, repetidas até não poder mais:
Não o olhe nos olhos! Um só olhar ao interior desses olhos endemoninhados e estará
perdida, minha menina. Sim, porque é tão formoso quanto malvado, esse filho do inferno!
Mas tudo isso eram fofocas supersticiosas. Era uma pessoa de carne e osso a que a tinha
presa nesse momento. E a carne e o osso podiam domesticar-se… ou ao menos podiam produzir-
se feridas.
Ela introduziu os dedos em seu punho, liberou a pistola de sua bolsa e apontou à máscara
de cor negra.
—me desça, desgraçado, ou saboreará a pólvora de minha pistola entre seus de… dentes!
Os lábios do bandido relaxaram para formar um lento sorriso.
—Então apanhei uma bomba a ponto de explodir, não é assim? —A voz grave acariciou
Silver como o calor das fumegantes fogueiras de turfa que ali queimavam nas frias noites de
outono.
Áspera e suave ao mesmo tempo, assim era.
Escura, como o uísque de boa qualidade.
Não pôde evitar estremecer.
—Quem se atreve a entrar em meus domínios a meia-noite?
Silver franziu o cenho.
—Não falarei. E muito menos com você!
—Não? Nem sequer para me dizer qual é o nome que adorna tal beleza?
—Nenhum nome que você tenha direito a saber, criminoso!
O cavaleiro jogou a cabeça atrás e riu.
—Então a reputação do Cavalheiro Negro o precede, não é assim? —Sua risada lúgubre
pareceu abrir passagem através do tecido do manto de Silver acariciou sua pele tremula.
—claro que sim. Sua reputação é mais que conhecida, desgraçado. Agora me solte ou
dispararei uma bala diretamente nessa cara sorridente que têm!
O bandido puxou as rédeas para refrear seu cavalo a um trote ligeiro. Ainda Sorrindo,
acomodou-se em sua sela até que Silver se viu empurrada sobre ele e ficou em uma postura
bastante indecorosa.
—me solte! Juro-o que se não me soltar dispararei.
—E aonde planeja apontar primeiro, preciosa? Sobre meu nariz? Entre as sobrancelhas?
Ou diretamente no olho? Disseram-me que essa forma é a mais eficaz, embora talvez resulte um
pouco desagradável com toda essa renda que leva. As manchas de sangue são muito difíceis de
tirar, ou ao menos isso entendi.
O vilão estava rindo dela!
Todos riram dela quando insistiu em encarregar-se da propriedade de seu pai quando ele
morreu dois anos atrás. A princípio, seu avaro cunhado, Sir Charles Millbank, tinha tentado lhe
arrebatar o controle da terra, mas os termos do testamento de William St. Clair estavam claros:
Silver administraria Lavender Close até que seu irmão, Brandon, alcançasse a maioridade.
E Silver tinha demonstrado a todos do que era capaz. E também demonstraria a este
homem!
O sangue queimava enquanto o olhar dele deslizava por seu peito palpitante. Apertando
os dedos ao redor do punho colocou a pistola junto a seu pescoço.
—Suponho que aqui seria um bom lugar.
—Bem, vamos, aperte o gatilho, carinho. Como já provei todas as delícias da vida
dissipada, pode ser o momento de experimentar as novidades que tem a me oferecer a morte.
A frieza e a completa indiferença que destilava sua voz provocaram um estremecimento
em Silver.
—Mas seguro que não, quero dizer, não pode desejar a morte.
Blackwood deu de ombros.
—Ficam tão poucos estímulos, querida… A vida se volta bastante tediosa quando já se
saboreou todos os vícios e provou todos os pecados. Não pode imaginar isso.
—Nisso têm toda a razão - disse Silver com frieza.
Mas como seu peito ficava apertado sob o braço do homem enquanto falava, sua
afirmação de desaprovação perdeu algo de sua mordacidade. Ruborizando-se tentou escapulir, só
para sentir que seu quadril estava preso firmemente entre as coxas dele.
Nada do que escapou ao atento olhar do famoso bandido.
Ele se moveu sob ela, empurrando-a ainda mais para baixo, até que ela entrou em quente
e completo contato com sua extremamente excitada anatomia masculina.
Silver emitiu um grito abafado. Suas faces avermelharam e lutou para mudar de postura,
mas era como lutar contra o vento que vinha do Canal. Ela sentiu a repentina urgência de gritar
pedindo ajuda, mas quem ia passar por ali, no meio do urzal, aquela hora?
—Deixe-me ir… bruto!
—Acredito que não, preciosa. —Os olhos cor âmbar resplandeceram pelas frestas da
máscara de seda—. Não até que me diga seu nome. E possivelmente não até que tenha algo mais
que isso…
—Não obterá nada de mim esta noite! —Silver baixou o canhão da pistola até algum lugar
perto do ombro—. Sei como disparar esta arma e a usarei se for necessário.
—Precisaria mais - foi a resposta aborrecida que recebeu—. Dispare.
Toda a raiva de Silver se concentrou em seus olhos, verdadeira fúria verde e dourada.
—Criatura imunda! Dispararei, advirto-o disso!
—É claro que o fará - apontou o bandido com calma—. Assim que deixe de lhe tremer as
mãos. Acertará de primeira, não é? Não seria apropriado me deixar aqui, sangrando e meio morto.
—É impossível que falhe a esta distância.
—Você acha? Acredito que sua pontaria fica bastante em dúvida. Nunca fez isto antes,
não é? —Seu tom soava realmente pormenorizado.
Silver baixou o olhar, furiosa ao comprovar que sua mão estava tremendo, como ele dizia,
é claro.
—OH, demônios do inferno!
Mas o ousado bandido que acabava de enfrentar à possibilidade de sua morte com
verdadeira equanimidade ficou gelado de repente. Seus dedos se apertaram sobre a cintura de
Silver.
—Guarde silêncio.
—por que razão deveria nem sequer considerar…?
—Silêncio eu disse! —Desta vez a urgência de sua voz a obrigou a guardar silêncio.
O homem conhecido como Lorde Blackwood se embrenhou entre as sombras. Fazendo
girar sua montaria estudou a parte do caminho que brilhava a tênue luz da lua em direção norte.
E então Silver também o ouviu; o rápido tamborilar de uns cascos de cavalo que se
aproximavam a certa velocidade.
Em um abrir e fechar de olhos, lhe arrebatou a pistola da mão. Raivosa, tentou recuperá-
la só para acabar sentindo que uma de suas fortes mãos lhe cobria a boca.
—Caladinha agora, carinho. Parece que esta noite alguém mais vai irromper em meus
domínios. Aconselho-a que não se mova. É encantadora e pode não lhe agradar as conseqüências
do que fizer.
Silver abafou um grito quando sentiu que a coxa dele empurrava contra seu quadril.
—Exatamente - disse seu captor, divertido.
Não o escute, disse-se Silver cheia de raiva. E, sobre tudo, não o olhe nos olhos!
Mas já era muito tarde. Ela se virou e se encontrou perdida.
Esses olhos tão estranhos, tão penetrantes…
Silver notou um martelar no peito enquanto se sentia empurrada para as profundidades
em sombra. Eram da cor do âmbar mais puro, salpicados de cálidas gotas douradas.
Luz entre as sombras. Não era absolutamente o que esperava.
O calor alagou suas faces. A noite se converteu em um lugar envolto em mistério, cheio
de tormenta e de fúria.
Os carnudos lábios do bandido se curvaram em um sorriso consciente.
—Um grande engano, pequena. Olhou-me nos olhos e isso faz que agora seja minha.
Porque tudo é certo, preciosa, cada história acidentada e cada ato desumano que as lendas me
atribuem. Lorde Blackwood os cometeu todos, asseguro-lhe isso, assim não pretenda brincar
comigo. —E deslizou os dedos ao redor de sua cintura, como se com isso reforçasse sua
advertência.
Um momento depois três cavaleiros surgiram do vale boscoso. Seus rostos estavam
cobertos por pedaços de lã escura e cada um levava uma pistola.
—Maldição, onde foi à mulher? Juraria…
—Seu cavalo! Está ali!
—Não quero seu cavalo, quero à maldita mulher! Tem que estar aqui, em alguma parte.
Ele nos jurou que tomaria este caminho esta noite.
O medo apertou a garganta de Silver. Observou com horror que os cavaleiros obrigavam
sua égua a deter-se e saltavam ao chão para rebuscar em seus alforjes. O que estavam fazendo?
Não levava nada de valor com ela. Nada exceto…
Seu rosto empalideceu quando um dos homens rasgou sua bolsa de couro com uma faca.
Tentou mover-se, mas os dedos do bandido apertaram ainda mais sua cintura a modo de
advertência.
—Sim, é uma fêmea dura, a cadela de St. Clair. Mas nem sequer ela se atreveria a
aventurar-se neste urzal diabólico a estas horas. Deve estar na parte baixa da colina.
Possivelmente o cavalo a tenha derrubado.
Seu companheiro riu estrepitosamente.
—E estará por aí com as saias levantadas por cima do traseiro? Isso vale a pena ver,
meninos. Vamos ver se a encontramos e desfrutamos da vista.
Enquanto o trio se afastava galopando, o horror de Silver cresceu. Conheciam seu nome.
Tinham-na seguido até ali! Mas, por quê?
—Seus amigos?
Ela agitou a cabeça tentando evitar o olhar daqueles olhos atentos.
—Não te… tenho nem idéia de quem são.
—Desgraçadamente. Parece que eles sabiam exatamente o que estavam procurando.
Leva algum tesouro que me tenha escapado?
Com um movimento rápido passou a perna por cima da cadeira e deslizou até o chão com
Silver ainda firmemente agarrada contra seu peito.
Aterrissaram sobre alguns arbustos de urze com um golpe seco. Ela já estava de pé e
lutando inclusive antes que tivesse tempo para recuperar o fôlego. Afastando os cachos
avermelhados do rosto se precipitou para o caminho.
Então foi quando sentiu uma espetada, a mais leve das espetadas, justo à altura de seu
ombro.
Virou-se com lentidão e ficou olhando fixamente toda a reluzente extensão da polida
lâmina prateada.
O florete se elevou, levantou com cuidado uma mecha de seu cabelo e o separou de seu
ombro. Silver estremeceu. Deu-se conta do perfeito controle que tinha esse homem sobre sua
arma, que agora deslizava pela fita de seu pescoço sem mal roçar o camafeu preso a ela.
—Uma bagatela muito bonita, mas seguro que não despertaria o interesse desses rufiões.
Vejamos, conheço todos os homens que trabalham por estes caminhos. Esse trio em particular
faria qualquer coisa por uma quantidade de dinheiro, mas são especialmente caros. O que significa
que alguém com consideráveis meios pensou que valia a pena fazer o trabalho e que estes o
fariam bem.
E dizendo isto a lâmina deslizou mais abaixo, seguindo a fita que se internava no corpete
de Silver.
No segundo seguinte o aço fatiou dois botões e sua jaqueta de montar e sua roupa intima
se abriram, deixando ao ar sua pele cremosa.
—Detenha-se! Não pode…
Ele a ignorou e seguiu movendo-se com uma habilidade e uma graça tão impressionantes
que deixaram Silver sem fôlego e sentindo somente o fresco beijo do ar sobre sua pele.
Agora estava abrindo sua blusa. E depois tirou a fita de veludo que levava debaixo.
Com um rapidíssimo giro de punho encontrou a bolsa de linho que levava por baixo e se
apoderou dela com a ponta do florete.
—Nãoooo! Devolva-me isso Não pode levar isso!
Os olhos do bandido se entrecerraram.
—Continue, querida. Esta despertando meu interesse. O que há nesta bolsa que é tão
tremendamente valioso?
—Na… nada. —Silver apertou os lábios—. Nada absolutamente, maldição.
Blackwood franziu o cenho medindo com os dedos aquele pequeno e pouco interessante
pedaço de linho. Seu nariz se dilatou quando aproximou a bolsa do rosto e a cheirou.
—Lavanda? Uma fragrância elegante, mas certamente não vale a pena…
—devolva-me isso - Silver se jogou para frente, tentando agarrar com os dedos a cara
mascarada—. É minha!
Em seu arrebatamento Silver golpeou a bolsa, que caiu das mãos do homem. Ela viu com
horror e o rosto mudado que suas preciosas sementes, o resultado de anos de cuidadosa
plantação e seleção, derramavam-se na terra escura.
—OH, não! Não podem perder-se. Não devem!
O agricultor de Virginia com o qual se entrevistou aquela noite em King's Lynn tinha
ficado tão impressionado com as sementes que tinham acordado que iria a Lavender Close para
lhe fazer uma oferta. Esse dinheiro poderia haver lhe comprado vários meses de liberdade dos
credores que tinham estado rondando-a como abelhas desde a morte de seu pai. Silver tinha
arrumado para ir pagando-os um a um, mas cada mês a pressão era maior.
E agora era muito tarde. As sementes se perderam.
Uma só lágrima se derramou de seus olhos verdes e dourados.
—Tinham tanto valor? —Seu captor voltou a franzir o cenho—. Uma lembrança de um
amante, possivelmente? Alguma herança familiar?
Silver o enfrentou, furiosa.
—É obvio que tinham valor! Mas o que ia saber um vilão como você do trabalho duro, dos
dias que passei sob o sol abrasador ou envolta pelo vento gélido de Norfolk?
Um brilho brilhou nos olhos do bandido.
—Surpreenderiam-na, querida.
—Bem, pois agora se perderam, ouviu-me? Todas se perderam. Sem essas sementes já
não fica esperança de... - Silver tirou o chapéu soluçando e virou a cabeça bruscamente para fugir
daqueles olhos penetrantes.
—Vamos, seguro que não é para tanto.
OH, mas sim que o é. É para tanto e para mais, pensou Silver furiosa. Agora teria que
pedir mais prazo a seus credores. Teria que fazer que seus próprios trabalhadores esperassem
para cobrar seus salários. Teria que negar a seu irmão as ferramentas que necessitava para seus
experimentos.
Claro que sempre podia pedir ajuda a seu cunhado, Sir Charles Millbank. Ele tinha deixado
claro em todas suas visitas a Lavender Close. Também tinha posto seu preço: a posse de seu
corpo.
Não, nunca pediria a ajuda desse desalmado. Nem tampouco a de um bandido!
Silver escapou de seu captor e enxugou as lágrimas das faces. Bruscamente uns dedos
fortes a agarraram pelo queixo e a obrigaram a levantar o rosto. Ela fechou os olhos tentando
manter-se afastada daquele olhar estranho e penetrante.
Depois abafou uma exclamação quando Blackwood agarrou suas mãos e estudou suas
palmas fortes e endurecidas pelo duro trabalho no campo.
—De novo me surpreende, pequena - sussurrou seu captor—. Assim é certo que têm feito
todas essas coisas das quais fala. —Seus lábios roçaram a palma dela. Tocasse-a onde a tocasse, o
calor parecia fluir a partir de seu contato—. Trabalha para os St. Clair, não é assim? Devem exigir
muito para que tenha estas mãos. Tomastes emprestada a roupa de montaria de sua senhora esta
noite? Por isso se apressava em chegar a casa, para devolvê-la antes que descubra o roubo de sua
roupa e das sementes também?
—Não foi um roubo.
—Claro que não. —Os lábios carnudos se curvaram levemente—. Simplesmente um
empréstimo. —Sua boca tocou a sensível pele da base de um de seus dedos.
Silver estremeceu. O que lhe estava acontecendo? Por que lhe tremiam os joelhos
daquela forma tão estranha?
Seu captor se aproximou ainda mais. Uma de suas mãos se enterrou em seu selvagem
cabelo castanho.
Tinha que afastar-se! Tinha que chegar a casa antes que…
—me digam seu nome - exigiu o bandido com voz rouca—. Tenho que saber quem é a
mulher pela qual perdi meu coração.
Tinha falado muito brandamente, mas seguia havendo em sua voz um toque de escuridão
e de avidez que provocou que o coração de Silver se acelerasse estranhamente em seu peito.
—Silver.
—Pardon?
Os olhos dela se abriram exageradamente ao ouvir essa pergunta sussurrada.
—É francês?
A cicatriz que havia junto a seu lábio brilhou.
—Sou… muitas coisas, pequena. Mas, por que disse isso: Silver?
—Esse é meu nome. —E se obrigou a não dizer nada mais. Era muito mais seguro que
acreditasse que não era mais que uma humilde criada.
—Silver - repetiu ele lentamente, como o sopesando—. Não podia ter esperado nada
menos. Um nome excepcional para uma criatura excepcional. Algo me diz que seus olhos estão à
altura de seu nome.
Durante um momento Susannah St. Clair esqueceu seu vicioso cunhado e a pobreza que a
tinha açoitado desde a morte de seu pai. Inclusive esqueceu as preciosas sementes de lavanda que
jaziam dispersadas sobre a terra escura.
Tal era o poder do encanto daquele homem. Agora compreendia claramente como o
mascarado Lorde Blackwood tinha adquirido sua legendária reputação de sedutor. Embora
soubesse que deveria estar lutando por escapar, Silver não podia se separar do contato quente de
seus lábios em sua mão.
Tampouco é que tivesse podido escapar embora o tentasse. Nesse momento sentia suas
pernas como se fossem feitas de gelatina de laranja. E, diga-se de passagem, gelatina que se
fundia por momentos.
—O que aconteceria eu pudesse lhe devolver essas sementes de lavanda que para você
têm tanto valor?
A esperança voltou a surgir nela.
—Poderia? OH, de verdade o faria?
—Poderia me persuadir. Em troca de uma pequena compensação, está claro.
—Que tipo de compensação? —A voz da garota, que normalmente já era grave, nesta
ocasião soou ainda mais grave. Conhecia os riscos de entrar em qualquer tipo de negociação com
um criminoso com tanta experiência como este. Mas estava desesperada.
O tom de sua voz fez que os olhos de seu captor cintilassem perigosamente. Seu corpo se
esticou e seus dedos se apertaram, afundaram-se mais profundamente em seu cabelo quente da
cor do brandy. Desejava lhe arrancar esse estúpido chapéu de montar que levava e deitá-la sob
seu corpo no urzal escuro enquanto despia seu corpo sedoso sob seu olhar ardente.
Mas não o fez. Apesar de todo o fogo que havia em seu interior, ela era claramente
donzela. O mais famoso dos bandidos de Norfolk disse a si mesmo que ainda não tinha caído tão
baixo para chegar a isso.
—Compensação? Seu pendente não, está claro. Não poderia se permitir perdê-lo, já que
seguro que também pertence a sua senhora. —Seus lábios se curvaram—. Embora o certo é que
não tenha nenhum valor; é uma cópia barata.
—Como sabe isso?
—Ah, minha tontinha inocente… Em meu negócio é necessário que eu saiba esse tipo de
coisas.
Estava certo, claro. Todas as boas jóias tinham sido empenhadas tempos atrás. Mas,
embora assim fosse, Silver não gostava que aquele estranho a recordasse. E, além disso,
significava que, como não tinha nada mais com o que negociar a troca, suas sementes se foram
para sempre.
Embora, claro, não lhe importavam as sementes.
—O que quer de mim? —Sua voz soou abafada, o que provocou que ele enrugasse a
testa.
—Não quero suas jóias. Nem sua virtude tampouco, pequena tola. Libere-me da ofensa
de violar virgens.
Os olhos dela se abriram de par em par.
—Mas todo mundo diz…
—Meus crimes são inumeráveis, carinho, mas ainda não chegaram a isso. Nem tampouco
tenho a mínima necessidade. Muitas mulheres atordoadas se arrojaram a meus pés até o
momento. Estão desejando me oferecer seus corpos e tudo o que eu quero é liberá-las de suas
jóias.
—OH. —Silver inclinou a cabeça—. Mas como sabem que o sou? Quero dizer…
—Virgem? —O florete de Blackwood afastou um cacho que tinha junto à bochecha—.
Pelo pulso que vejo pulsar aqui, em seu pescoço. Pelo rubor que se mostra em suas faces de seda.
São sinais inequívocos, pequena. Para olhos experimentados como os meus, o são.
Havia amargura e algo mais em sua voz. Algo que soava quase como arrependimento.
Silver franziu o cenho.
—Deve supor um grande padecimento para você levar este tipo de vida, se escondendo
sempre no urzal, tentando à morte, abordado em todas as partes por mulheres desejosas que só
esperam ser seduzidas. Não pode ser muito… muito… bom, cômodo.
—Cômodo? —O bandido soltou uma gargalhada de surpresa—. Sim, têm razão nisso.
Além disso, há tanta escória nos arredores da estrada principal estes dias dizendo que suas
maldades são obra minha… —Bruscamente Blackwood embainhou seu florete para depois ficar
olhando fixamente o rosto em sombras de Silver—. Mas, o que ia saber uma moça como você de
sedução ou de mulheres que suspiram de desejo?
Silver deu de ombros.
—OH, não muito. Como criada dos St. Clair eu vivo uma vida bastante tranqüila aqui no
campo. —A tristeza embargou sua voz por um momento. Em um tempo esteve diferente, claro.
Uma vez teve vestidos, dança e risadas. Uma vez teve uma mãe para guiá-la e um pai para
protegê-la.
Mas isso não seria assim nunca mais…
De repente Silver se ergueu quão alta era, mais que a maioria das garotas.
—Ao menos vivíamos tranqüilamente até que chegaram vocês a nos perseguir. Como vê,
não estou totalmente isolada do mundo, asseguro-lhe isso.
Os olhos ambarinos brilharam preguiçosamente.
—Me alegro de ouvi-lo, meu raio de sol. Este seria um lugar muito estranho se uma
mulher com seu fogo e beleza vivesse ignorada por todos.
Silver piscou ao notar a doçura de sua voz. De repente se sentiu enjoada. Seu sangue
pareceu acelerar-se em suas veias, quente primeiro e depois frio. Esse sentimento não era
precisamente cômodo, mas tampouco resultava de tudo desagradável.
Embora lhe parecesse incomum. Silver não nunca havia se sentido assim antes em
presença de um homem. A impressão a fez ficar imóvel.
—por que me chamou «meu raio de sol»?
Blackwood a estudou.
—Porque há um resplendor em torno de você, uma honestidade que não se está
acostumado a ver freqüentemente.
A mandíbula dele se endureceu. De alguma forma Silver se deu conta de suas intenções
incluso antes que a cabeça dele começasse a aproximar-se. Mas nem se moveu nem gritou, como
deveria ter feito.
—Você… não pode… - sussurrou—. Eu nem sequer deveria…
Os olhos dele emitiram um brilho.
—Muito certo, pequena. Não deveria. Mas já é muito tarde para sair correndo. Muito,
muito tarde. E embora muitos caminhos entrem em meus escuros domínios, nenhum sai deles.
Seus lábios se curvaram. O movimento fez que a cicatriz que tinha justo sob sua máscara
brilhasse à luz da lua. Por alguma razão Silver não podia afastar seus olhos daquela curva pálida e
reluzente.
—Além disso, preciosa, olhou em meus olhos. Agora é minha para sempre…
E então sua boca desceu, cálida e forte, até cobrir a dela, que fechou os olhos, tremendo
e sabendo que o que ele acabava de dizer era certo.
Estava perdida, total e irremediavelmente perdida, exatamente como sua antiga babá a
tinha advertido.
Os lábios dele se abriram sobre os seus e Silver decidiu que nem sequer se importava…
Seu tato era leve, só uma suave pressão.
Mas ao mesmo tempo era terrivelmente enganoso.
Depois de tudo, que perigo podia haver em só um beijo?
Ela notou como os lábios dele aumentavam a pressão e deslizavam, quentes e seguros,
sobre os seus.
Um grave perigo, pensou Silver fracamente. OH, era bom este senhor da meia-noite.
Mas ela era muito inocente para compreender verdadeiramente a tremenda habilidade
que demonstrava seu tato, ainda que seu instinto a fizesse suspirar e apertar-se contra ele. Ainda
que sua boca se abrisse para ele.
De repente o bandido se separou dela e seus lábios só foram uma pincelada escura na
noite tenebrosa.
—Acredito que é mais que suficiente, mignonne1.
Por que soava como se tivesse estado correndo? - perguntou-se Silver.
—Deve ser muito bom neste tipo de coisas.
Para sua vergonha, ela se deu conta de que soava exatamente igual a ele.
Uma sobrancelha escura se arqueou contrastando com a escuridão reinante.
—O que quer dizer com «este tipo de coisas»?
—Bom, seduzir mulheres inocentes, é claro. Todo mundo em Kingston Cross fala de suas
façanhas.
—Ah, sim? —Os carnudos lábios voltaram a curvar-se—. Não sabia que eu supunha tal
fonte de entretenimento.
Silver ficou olhando fixamente o mascarado enquanto ele jogava com um de seus lábios
entre os dentes.
—Desaprovação, preciosa? Sou completamente indiferente a seu efeito, asseguro-lhe
isso.
—Não acredito. Não importa quanta crueldade demonstre.
Durante um momento houve dor nos olhos cor âmbar que a estudavam. Dor e algo mais,
algo muito mais tenebroso. Antes que Silver pudesse identificar o que era, foi-se.
Com frieza, o bandido sacudiu a renda de uma de suas mangas, colocou-a em seu lugar e
se afastou dela para recolher seu florete.
—Deveria me acreditar. Confiar em mim é algo que fica a sua conveniência. Mas não, não
acredite nem sonhe me mudando. Muitas mulheres tentaram antes e fracassaram. Assim, advirto-
lhe isso: protejo minha identidade de todos e ninguém nunca verá o que há sob minha máscara.
Deixar me entrar em seu coração seria mais perigoso do que pode imaginar.
Um calafrio percorreu o pescoço de Silver.
—Eu? Tentar mudar você? —Emitiu uma risada tremula—. Eu, que não posso controlar
nem minha própria mente… por que ia tentar controlar a de outra pessoa?
—Vontades mais fortes tentaram - disse ele—. E todas fracassaram.
—Não serei eu quem seguirá seu caminho. Eu nem sequer voltarei a vê-lo, milorde.
Blackwood assentiu com gravidade.
—Isso será muito inteligente por sua parte. Mas por que me honra com esse título?
—o de «milorde»? —Silver inclinou a cabeça para um lado enquanto o estudava—. Há
algo em você… algum poder ou inclinação para o comando que faz impossível qualquer outra
forma de dirigir-se a você.
O bandido lhe obsequiou com uma deliciosa reverência.
—Um elogio que fica grande a minha humilde pessoa, meu raio de sol. O único reino de
Blackwood é a noite e seu único poder é a folha de seu aço. Mas lhe agradeço sinceramente o
1
Palavra francesa usada carinhosamente entre amantes que quer dizer ‘pequena preciosa’.
cumprimento. É agradável, muito agradável.
—De nada - disse Silver com suavidade. Agarrou as bordas cortadas de seu traje de
montar, sentindo-se muito cerimoniosa para aquela paragem de urzes que estava a mais de
quinze quilômetros de qualquer lugar habitado.
—Será melhor que vá agora. Esses rufiões já teriam descoberto que não está caída como
eles esperavam. —Blackwood emitiu um breve assobio e seu veloz cavalo castrado trotou até
situar-se a seu lado, com a égua de Silver o seguindo docilmente.
—Alto, Diabo. Fez uma conquista esta noite, não é? —O enorme cavalo negro soprou e
golpeou o chão com um casco.
Silver se aproximou de sua montaria, sentindo de repente a urgência de ir-se, de estar
segura em sua cama antes que esse sonho acabasse de dissipar-se.
—me deixe ajudá-la, mignonne. —Os dedos frios dele rodearam sua cintura e a elevaram
até a sela. Silver sabia que deveria temê-lo. Que deveria o odiar e repudiar seu contato.
Mas não era assim.
Os dedos dele eram fortes e ela acreditou seguir notando seu contato muito depois
daquela noite.
—Então… isto é uma despedida.
Ele se ergueu, uma sombra negra com a mão sobre o pescoço do cavalo dela.
—Talvez, pequena. Ou talvez simplesmente deveríamos nos desejar boa sorte.
Silver piscou. Aí estava de novo esse leve acento estrangeiro em sua voz. Onde teria
aprendido a pronunciar assim as vogais? Quantos caminhos escuros teria tido que percorrer para
que essa dureza se apoderasse de sua testa e de sua mandíbula?
—Boa sorte, então. E… obrigado - acrescentou atropeladamente.
—Obrigado? Por um beijo?
As faces de Silver avermelharam.
—Referia-me ao resto. A me salvar desses homens.
—Tenha mais cuidado no futuro. Não se deve brincar com homens como esses.
Silver sentiu um nó na garganta ao notar a preocupação na voz de Blackwood. Tentou não
pensar em quanto tempo tinha passado desde que alguém que não fosse de sua família se
preocupou por sua segurança. Era uma sensação agradável.
Perigosamente agradável.
Agitou a cabeça afastando esses pensamentos irrefreáveis.
—Devo ir —espetou fazendo girar rapidamente sua montaria.
Sim, tinha que ir-se. Antes que pudesse lhe fazer uma dúzia de perguntas ansiosas.
Porque Silver sabia claramente que não devia vê-lo de novo. Que seria extremamente
perigoso. Já tinha caído nas redes do encanto de Blackwood até um limite muito profundo.
Não, não podia permitir-se provar de novo essa escura variedade de magia.
O bandido saltou sobre seu cavalo com ágil graça.
—Irei primeiro para comprovar o caminho. Esperem até que ouça minha chamada. —E
imitou o agudo som do cernícalo2, muito baixinho—. Isso significará que tudo está bem.
—por que? — a pergunta chegou a seus lábios antes que se desse conta.
Instantaneamente seus dedos se apertaram sobre as rédeas, fazendo que a pequena égua
chutasse nervosa.
—Não importa. Não importa por que tenha decidido me ajudar.
Seu olhar se dirigiu a seu rosto e ela sentiu como se queimasse.
—Por quê? Porque me agrada, mignonne. Aqui, em meio desta desolada paragem de
urzes, agrada-me extraordinariamente ser cavalheiresco e generoso com uma jovem em apuros.
2
Cernícalo: tipo de falcão
—Depois se ouviu uma sonora gargalhada—. Mas não acredito que dure. Não conte com minha
generosidade quando chegar o novo dia, porque eu sou desumano e implacável. Qualquer
viajante que cruze Norfolk lhe dirá isso.
—Não acredito. —Na voz de Silver havia ferocidade—. Não sei por que, mas essas
histórias não são certas. Você não é assim.
—Pode ignorar minhas advertências, mas isso será por sua conta e risco, pequena
inocente.
Silver inclinou a cabeça.
—Tolices!
O bandido se virou de forma que seu rosto ficava nas sombras enquanto guiava com as
rédeas a sua inquieta montaria.
—Ah, pequena, é muito jovem. E faz me sentir muito mais velho. —Sua voz se
endureceu—. Espere aqui e não faça ruído. Não demorarei.
Colocou sua longa capa sobre um ombro enquanto seu enorme cavalo chutava
impaciente. Um momento depois homem e montaria tinham desaparecido.
Silver sentiu como se a tivessem catapultado de cabeça para o interior de um sonho
enquanto via como cavaleiro e cavalo desapareciam silenciosamente na noite.
Mas a escuridão não chegava a ser tão negra como as perguntas que a assaltaram
momentos depois, quando ouviu o agudo grasnido do cernícalo que lhe comunicava que estava
segura. Saiu depressa de seu esconderijo, correndo atrás dele.
Mas quando Silver chegou ao caminho que havia na parte alta da colina, o bandido havia
desvanecido.

Sobre uma colina e meio vale mais à frente três pares de olhos esquadrinhavam a
escuridão. Zangados e ressentidos esperavam ouvir o repico de uns cascos e ver o rosto branco e
assustado de uma mulher.
Não encontraram nenhuma das duas coisas.
Seu aborrecimento cresceu quando o vento jogou contra eles tojo e areia, e quando a
genebra barata que tinham estado bebendo provocou uma dor aguda em suas cabeças.
Assim que a pequena cadela os tinha evitado de algum jeito. Maldita fosse… e isso teria
nefastas conseqüências para eles no dia seguinte…
—Não importa - exclamou o homem que ia sobre o cavalo castanho de lombo fundo—.
Terá que tomar este caminho de novo logo, e, quando o fizer, não nos escapará. Então juro Por
Deus que obteremos dela absolutamente tudo o que queremos.

Quando os cavaleiros viraram suas montarias para o leste, Silver St. Clair já estava metida
em sua cama. Uma planta de lavanda aromatizava o ar e a luz da lua se refletia sobre o chão
polido que havia junto à janela.
Tinha plantas que podar e plantas que plantar na terra no dia seguinte. Também óleos
essenciais que comprovar e pedidos que servir. E o pior de tudo, tinha que encontrar de alguma
forma mais sementes para substituir as que tinha perdido no urzal.
Mas Silver não pensava em nenhuma dessas coisas.
Em vez disso o que ocupava sua mente era um homem de brilhantes olhos cor âmbar.
Um homem com lábios tão suaves como a seda e mãos que a faziam sentir calor,
confusão e uma doce temeridade.
Seus sonhos, tal como temia, foram ardentes e temerários. Com a constante presença de
um estranho vestido de negro, com olhos jovens que encerravam um velho e que não deixavam
de rir dela.

Capítulo 2
—Senhorita Silver, de verdade que não quero incomodá-la, mas…
—Agora não, Tinker.
Silver St. Clair se erguia, pequena e magra, com umas gastas calças de homem e uma
volumosa camisa de cambraia branca. O vento açoitava seu cabelo avermelhado e fazia que os
cachos escapassem de seu estragado chapéu de palha. Fazia doze horas que havia retornado do
urzal. Depois de uma noite de sono agitado, uma manhã de trabalho duro a tinha ajudado a sentir-
se muito mais tranqüila.
Mas não tinha apagado a lembrança de um par de brilhantes olhos cor âmbar.
—Sabe que tenho que plantar estes galhos antes que se sequem e não valham para nada.
De fato, deveria haver-se feito ontem. —E, franzindo o cenho, Silver desapareceu atrás um grupo
de folhas de lavanda.
O criado de cara curtida enrugou a testa.
—Mas senhorita Silver…
—Sinto muitíssimo, Tinker. —Sua voz soou enfastiada apesar de seus esforços por ocultar.
Tinker era praticamente da família, depois de tudo, e levava muitos anos a serviço dos St. Clair—.
Se for o conde de Claydon de novo diga-lhe que sigo sem estar interessada em vender Lavender
Close. Seja qual for o preço. E se tratar-se desse avaro do Samuel Collins pedindo seu dinheiro,
diga-lhe que o terá no final de mês, como prometemos, e nem um segundo antes.
Uma planta de lavanda saiu voando sobre sua cabeça para aterrissar em um monte que
havia a suas costas.
—Duzentas libras de galhos franceses e a metade deles mortos. Uma desgraça, isso é o
que é! —Silver se internou ainda mais na folhagem—. Seja quem for terá que esperar, Tinker. —
ouviu-se um suspirou amortecido que chegou debaixo dos casulos violeta—. Quando acabar com
isto tenho que tentar encontrar uma forma de substituir as sementes perdidas.

Franzindo o cenho o velho criado se virou e começou a subir inclinação que levava a
preciosa casa parcialmente construída em madeira e coberta de glicínias que servia, ao mesmo
tempo de casa familiar, de oficina da propriedade Lavender Close. Era o vil Sir Charles Millbank
quem vinha em busca da senhorita Silver, de novo. Tinker decidiu que tinha sido uma sorte que
esse idiota pomposo se negou a ir procurá-la nos campos por si mesmo, porque ultimamente
estava incomodando à senhorita Silver muito freqüentemente.
E ainda que tivesse sido o Demônio em pessoa, o que importava? Quando a senhorita
Silver se mostrava assim cortante, Tinker sabia que nada do que lhe dissesse serviria para nada.

Duas horas mais tarde Silver terminou sua cota de uma dúzia de arbustos. Doía-lhe as
costas e tinha as faces avermelhadas. Quando saiu cambaleando detrás das plantas, seu cabelo
estava salpicado de pequenos brotos roxos.
Duas semanas e estariam em plena floração.
Seis semanas mais e chegaria o momento da colheita e de destilar seus óleos essenciais.
Só então a filha de William St. Clair saberia se seus ambiciosos planos para a propriedade Lavender
Close tinham tido êxito ou se tinha fracassado.
Deixou-se cair de joelhos e estudou a terra bem arada, afastando distraidamente uma
mecha avermelhada da testa. Amanhã teria o nariz queimado pelo sol e as mãos cobertas de
bolhas.
Mas a lavanda já estaria profundamente arraigada e Lavender Close estaria um passo
mais perto dos sonhos de seu pai de ver aqueles cem acres em flor. Desde a morte de seu pai,
ocorrida dois anos atrás, a salvação de Lavender Close tinha sido praticamente o único que
importava a Silver.
Suspirou, recolheu o cabelo e desapareceu na seguinte fileira. Quando ouviu a terra
deslizando sob uns pés no montículo que havia a suas costas nem sequer levantou o olhar.
—Sinto muito Tinker, mas tenho que acabar duas fileiras mais. Se quando o fizer ainda
quiser me dizer algo, estarei encantada de…
—Sil? —A voz que ouviu soou baixa e dúbia e provinha de seu ombro—. Não quero te
incomodar. —Uma ligeira tosse—. Mas verdadeiramente acredito que tenho algo que poderia
servir de ajuda.
—Bram? —Silver surgiu de repente, com a camisa torcida e as faces sujas de terra.
Quando viu seu irmão de doze anos, seu rosto se iluminou com um sorriso—. Seguro que ainda
não é hora de comer…
—Não só já é, mas também já passou faz mais de uma hora, Sil. —Brandon Nathaniel St.
Clair estava de pé, nervoso, entre duas fileiras de lavanda. Tinha as calças poeirentas e uma manga
da jaqueta descosturada, mas seu rosto mostrava uma felicidade maravilhosa—. Estava tão
ocupada que não quis que Tinker a incomodasse. Mas, Sil, olhe isto. —Ele tirou um punhado de
plantas amassadas de seu bolso—. Estive toda a manhã estudando isto e acredito que ao fim sei o
que acontece
Silver estudou seu irmão com carinho.
—E o que é, pequeno gênio?
As bochechas sujas de seu irmão ficaram escarlate.
—Preferiria que não me dissesse essas coisas, Sil. Falta-me muito para ser um gênio.
Simplesmente parece que tenho certa mão para as plantas.
—Certa mão, dizes? —burlou Silver, sem má intenção—. É assim como chama o que faz
uma pessoa que consegue que caules marrons revivam da noite para o dia ou que adianta duas
semanas a saída dos brotos? A isso não chamo «mão», eu o denomino milagre.
—Nada que ver com isso - corrigiu seu irmão com gravidade. Entrecerrou os olhos e
acomodou seus óculos metálicos sobre a ponte do nariz—. Atrás há umas diretrizes muito claras
que têm a ver com os ciclos de crescimento e com a densidade do solo. Ao menos isso acredito.
Acabo de descobrir algumas das razões. —E agitou o monte de ramalhetes de lavanda—. Como
estes. Pertencem a um dos novos grupos de galhos franceses que trouxe na semana passada.
—Não me recorde isso. A metade deles estão mortos.
Bram empurrou seus óculos de aros dourado um pouco mais acima sobre a ponte de seu
nariz.
—Não, isso é o que queria dizer, Sil - disse, ansioso—. Acredito que a falha está no
substrato. Vêem e olhe.
Silver analisou o rosto de seu irmão, notando sua palidez. Ainda estava muito magro, mas
felizmente não mostrava sinais de fadiga ou enfermidade. Tendo em conta que tinha estado a
beira da morte fazia só seis meses por culpa de uma infecção dos pulmões que o teve lutando por
cada fôlego, sua melhoria era assombrosa.
Embora Silver soubesse que não estava, de jeito nenhum, completamente recuperado. De
fato, o médico de Kingsdon Cross havia dito a Silver que possivelmente tivesse dificuldades para
respirar durante toda sua vida.
A umidade e o frio eram um problema para ele, ou o que é o mesmo, o clima inglês
normal era o que pior podia lhe assentar.
Mas como Bram odiava que se falasse de sua debilidade, Silver decidiu ignorar o rápido
fôlego que ele emitia enquanto caminhavam para o «campo de provas».
Em vez disso fixou seu olhar cauteloso no rosto concentrado do menino e em seus vivos
olhos de cor cinza esverdeada. Tinha herdado de seu pai sua habilidade para a botânica e tinha
muito mais disciplina da qual este nunca teve. Com apenas doze anos era capaz de resolver grande
quantidade dos problemas que a propriedade enfrentava, lugar que adorava profundamente.
Talvez essa fosse a razão pela qual Silver tinha tal determinação de que Lavender Close seguisse
sendo um negócio próspero.
Era a única herança que tinha o jovem. A prematura morte de seu pai o tinha deixado sem
nada mais.
—Aqui, Sil. —Bram assinalou uma estreita fileira de terra recém arada—. Olhe como
estão melhorando essas plantas.
Tinha razão. Os galhos de lavanda que cresciam no substrato fértil estavam cheios de
pontas e suas folhas se viam verdes e reluzentes. Junto a elas as que cresciam em uma terra mais
densa não eram mais que uma fila de caules caídos com muito poucos brotos.
—Meu querido Bram, é uma maravilha! —Silver deu a seu irmão um forte abraço—.
Temos que pôr Tinker a trabalhar nisto agora mesmo. Talvez até possamos salvar o resto desses
galhos se trabalharmos rápido!
Levantou seu irmão no ar e dançou com ele junto às fileiras de plantas fazendo voar terra
por toda parte.
—Tenho-o feito bem, Sil? De verdade?
—Bem? Se o tivesse feito melhor eu teria que me retirar e deixar você no comando de
todas as terras desta propriedade!
Os olhos do menino se abriram de par em par e logo enrugou o nariz quando se deu conta
de que sua irmã simplesmente estava pegando no pé dele.
—E o que faria quando se retirasse, Sil? Andar por aí recitando poesia? Desenhando?
—E por que não, rapazola? Faz muitas semanas que quero voltar a pegar meu caderno de
desenho. Mas com todos meus pretendentes andando por aí…
—Que pretendentes?
Ela elevou as sobrancelhas até um ponto exagerado.
—Seguro que os viu rondando pelas proximidades.
Bram não pôde evitar uma risada nervosa.
—É estranho, mas não me fixei neles. E diz que são muitos?
—OH, dúzias. Centenas, mas bem - disse Silver com um gesto displicente da mão.
—Possivelmente a viram com esse traje… inqualificável e isso os têm feito sair correndo.
Silver ficou olhando suas calças sujas.
—E o que tem de mau esta roupa, girino? Minhas amigas me asseguraram que é a última
moda agora em Londres.
—Amigas? Que amigas? —De repente, Bram ficou sério e começou a brincar com seus
óculos como fazia sempre que se concentrava muito em algo—. E que pretendentes? Aqui, em
Kingsdon Cross, nenhum. Se estivesse em Londres teria centenas de pretendentes e muitos mais
convites dos que pudesse responder.
—Que Deus o abençoe por sua lealdade, Bram, mas duvido. É juventude, maleabilidade e
atordoamento o que querem os homens. —Durante um breve momento Silver pensou no
bandido. Seriam essas as coisas que gostava ele?
—É jovem - disse seu irmão com convicção, saindo em sua defesa—. E é muito bela… De
uma maneira especial, é claro.
Silver alvoroçou o cabelo escuro de seu irmão.
—Meu leal e valente Bram. Seus elogios são doces, embora ponham em dúvida a
qualidade de seu sentido da vista.
—Absolutamente. Mamãe sempre dizia que quando crescesse, você seria a beleza da
família, e não Jessica. —colocou os óculos e suspirou—. Se papai não tivesse morrido tão
repentinamente… Deixou todos os assuntos uma confusão, não é? E além disso escondeu a
fórmula de Millefleurs… —Sua voz se apagou e seguidamente deu um chute no chão.
Millefleurs.
Só o nome fez que a mente de Silver se alagasse de preciosas lembranças. Recordou as
noites cálidas cheias de risadas com sua mãe e seu pai, nervosos e cheios de excitação enquanto
provavam as primeiras essências da temporada. Pensou no rosto de seu pai, tenso pela
concentração, enquanto mesclava, agitava e media.
Depois, o ansioso silêncio, seguido do suspiro de deleite de sua mãe.
—Maravilhoso, William. Como sempre, superou a si mesmo.
Silver estremeceu ao ver-se naqueles dias cheios de alegria e de risadas.
Foram-se para sempre agora, igual ao precioso perfume.
A metade das mulheres nobres da Europa havia possuído ao menos um frasco de cristal
do Millefleurs. Sua sutil fragrância prometia juventude, vitalidade e beleza a toda a que o usava. A
fragrância tinha feito seu pai rico e o Millefleurs um imprescindível entre a elite da Inglaterra e
França.
Mas William St. Clair levou seus segredos à tumba, aparentemente. Apesar de seus
esforços, Silver e Bram nunca puderam recuperar a fórmula correta. Todos seus experimentos
tinham falhado de forma deprimente. Além dos elementos dominantes, que eram a lavanda e as
rosas, a mescla devia incluir vários ingredientes ocultos como narciso, canela ou gengibre… ou
talvez até mesmo alguma estranha resina trazida da Arábia. William St. Clair tinha varrido o
mundo inteiro em busca de produtos e certamente em alguma parte tinha encontrado coisas das
quais Silver e Bram não tinham nem idéia.
Qualquer desses elementos exóticos podia haver dado ao Millefleurs sua persistência e
sua extraordinária complexidade. Sem a fórmula exata quão resultados obtinham não eram mais
que ligeiramente agradáveis.
Silver suspirou.
—Encontraremos a fórmula, Bram. Temos que fazê-lo. —Lutou contra a onda de
pessimismo que os embargava e deu a seu irmão um breve abraço—. Bom, já basta de bate-papo
triste, fantasia de diabrete.
Seu irmão não pareceu muito convencido.
—Não se sente triste aqui algumas vezes, Sil? Não quer ter uma casa e uma família
própria algum dia?
Silver inclinou a cabeça.
—Você e Tinker são minha família, Bram. Que mais poderia querer?
Os dedos poeirentos de Bram deslizaram entre os de sua irmã.
—Só é que… bom, eu gostaria que tivesse coisas bonitas. E que houvesse mais lugares
onde pudesse as exibir - disse seu irmão com sinceridade—. Tanto Tinker como eu quereríamos
isso.
—Bom, pois eu não. Embora os tivesse, não saberia como ter vestidos elegantes e
espartilhos. —Silver lhe despenteou o cabelo ainda mais—. Estou muito mais contente levando
minha camisa e minhas calças.
—Está? De verdade?
—É claro que estou. Agora, por que não se adianta e conta a Tinker seu descobrimento?
Tenho que terminar umas coisas aqui.
Silver viu como Bram trotava até a casa coberta de glicínias que havia ao final do caminho
sem deixar de sorrir, feliz ao pensar em seu descobrimento, esquecidas completamente suas
preocupações de momentos antes. Silver sabia que Tinker, Deus o abençoe, encontraria a maneira
de fazer que o menino descansasse antes de abordar um novo projeto.
Suspirou enquanto o vento alvoroçava seu cabelo. Durante um segundo ficou apanhada
por umas lembranças inquietantemente doces que encheram sua mente, lembranças de como
estavam acostumados a ser as coisas quando Lavender Close era um lugar alegre e cheio de
risadas.
Antes da morte de seus pais.
Antes que Jessica falecesse. Antes que Sir Charles Millbank começasse a misturar-se e a
incomodá-la.
Recordou uma gargantilha de pérolas que seu pai deu a sua mãe e um leque de marfim
esculpido e pintado à mão que ele dizia que tinha sido trazido da China.
Tudo isso já tinha desaparecido.
E nem sequer todas as lembranças do mundo poderiam devolvê-los.
Silver afastou as lembranças dolorosas até encerrá-los no mais profundo de sua mente, o
lugar a que pertenciam. De todas as formas não tinha tempo para gargantilhas de pérolas nem
leques de marfim. Havia fileiras de lavanda que limpar de erva daninha e dúzias de rosas que
podar antes que chegasse a noite.

Capítulo 3
A névoa enchia o vale quando eles saíram do espesso olmedal que beirava as roseiras
baixas. Eram quatro e todos levavam o poeirento traje de algodão cru dos criados de dia.
Silver entrecerrou os olhos para poder vê-los claramente do lugar onde se encontrava,
junto a uma roseira meio podada.
O homem que ia a frente media mais de um e oitenta e tinha a cabeça envolta em lã
marrom. Ela se virou para ir-se, mas os outros três já a estavam esperando, sombras escuras e
imprecisas em uma neblina de brotos roxos.
—O que querem? —Voltou a virar-se para enfrentar o homem mais alto, lutando por
manter sua voz firme.
—Querer? —Uma gargalhada estridente lhe chegou por detrás da máscara improvisada—
. Bom, não muito. Só você, senhorita.
Silver pensou em sair correndo, mas eram muitos e estavam muito perto. Podia gritar,
mas Tinker não a ouviria. Maldição, por que não os tinha visto antes? Seria tudo isto coisa de Sir
Charles?
Agora mesmo isso não importava. Teria que sair daquela situação de algum jeito.
—Sigam com seus assuntos e me deixem trabalhar!
—É uma ferazinha descarada, não é? —o de capuz marrom se aproximou mais—. Mas
bonita, depois de tudo. —E seguiu aproximando-se; agora já estava suficientemente perto para
que Silver visse seus punhos puídos e as manchas à altura dos joelhos—. Mas acredito que será
melhor que seja eu o que fale. O que significa que você irá escutar. —Seus sujos dedos agarraram
uma mecha do cabelo dela. E depois o apertaram lentamente.
Silver tragou saliva. Deslizou a mão a suas costas até que sentiu o tranqüilizador fio da
pequena pá de jardinagem que tinha guardada no bolso traseiro. A aquela distância tão curta
daria uma boa espetada naquele porco.
—OH, escuto-o - disse com frieza—. Só espero que se trate de algo que valha a pena
ouvir.
Os dedos manchados se apertaram um pouco mais.
—E será melhor que siga escutando. Só vou dizê-lo uma vez. —O homem puxou-lhe pelo
cabelo para aproximá-la aonde ele estava, seus olhos, do marrom da argila, sem expressão—. Vai
abandonar Lavender Close, entendeu, senhorita St. Clair? Todos: você, o menino e toda a gente
que tenham trabalhando aqui. Junto com as caixas, os barris e a carruagem. Qualquer um que
fique pode resultar ferido. —Aqueles olhos brilhantes se endureceram—. Gravemente ferido.
Silver rechaçou todo o medo que sentia.
—por quê? Por que quer nos fazer algo como isso? O que espera ganhar fazendo…?
—Nenhuma maldita pergunta! —Os dedos calejados voltaram a apertar—. Se não me
escutar, começará a ocorrer acidentes. Todo tipo de acidentes. Acidente como este.
Assombrada, Silver viu como o homem fazia um sinal com a cabeça a um de seus
corpulentos companheiros, que levantou um barril do chão e pulverizou seu conteúdo sobre
algumas plantas de lavanda. O homem fez algo no chão e no instante seguinte as frágeis folhas
arderam em chamas.
Silver começou a lutar com fúria.
—detenha-os! Não podem…
Os duros dedos lhe puxaram o cabelo, fazendo que ficasse quieta.
—cale-se e escute. Em três dias começarão a ocorrer graves acidentes, entendeu? E
passados quatro dias mais, começará a desaparecer coisas. Ferramentas. Equipamento. —Os olhos
escuros se enrugaram, rindo de alguma piada particular—. Isso é, uma semana é o que têm.
Silver se sacudiu violentamente e deu um chute na tíbia do homem, sem se importar que
suas mãos tinham firmemente agarrado seu cabelo à altura das têmporas.
—Não se atreverão!
—Ah, não? —Seus frios olhos zombaram de Silver—. Quer descobrir do que somos
capazes?
—Mas por quê? Quem são e o que…?
—cale-se ou serei eu quem a faça calar!
Silver sentiu como seus joelhos começavam a tremer. Só por pura força de vontade se
manteve em pé, evitando cair ao chão.
—Se forem as sementes o que procuram, darei-lhes isso. Levarei-os aonde estão agora
mesmo. Se for lavanda ou algum outro óleo…
O do capuz marrom simplesmente riu.
—Sementes, senhor Harper. A ferinha descarada acredita que queremos sementes! —O
enorme corpo do homem se agitou por uma risada repentina e explosiva—. Deus Santo, essa sim
que é boa. Isto é o que pensamos de suas malditas flores, senhorita!
A seu sinal, outro arbusto foi consumido pelo fogo ao aproximar uma tocha.
Silver viu com horror que outra nuvem de flores roxas ardia com chamas laranja e
vermelhas e se convertia em cinzas. Quem eram? Por que estavam fazendo essas coisas tão
horríveis?
Levada por uma onda de fúria, lançou-se contra seu atacante, lhe arranhando o pescoço e
os ombros. Durante um momento conseguiu que a máscara deslizasse e suas unhas encontraram
a pele.
Amaldiçoando grosseiramente, o homem do capuz a jogou contra uma fileira de roseiras
de rosas brancas. Os espinhos arranharam os braços e as pernas de Silver, mas ela ficou
rapidamente em pé de novo e correu para o cúmplice que estava começando a acender outro
arbusto.
Seu captor agarrou seu braço e a arrojou para trás com surpreendente facilidade, como se
tratasse de um simples galho de dente de leão.
—Melhor que se mantenha afastada, senhorita. Não queremos que esse seu bonito rosto
acabe queimado, não é?
Os olhos de Silver se encheram de lágrimas. O forte aroma da lavanda se mesclava com o
aroma acre da fumaça e as cinzas. Doía-lhe o peito e sentia suas pernas como se fossem de
algodão.
Seu captor simplesmente riu.
—Sete dias, senhorita St. Clair. Só têm que recordar isso. Se não, a próxima vez não ficará
nenhuma flor. Todas ficarão como esta. —E aproximou a tocha a outra planta. Logo fez um gesto a
seus companheiros e todos se dirigiram para o bosque.
Silver mal os ouviu. A cabeça lhe pulsava enquanto ficava em pé e corria para o arroio,
rezando para poder salvar sua adorada lavanda.

Sua bota direita tinha um buraco.


Silver só recordava isso. Enquanto arrojava o último balde de água, sentindo como a
fumaça lhe queimava os olhos, parecia não poder esquecer essa abertura suja e irregular.
Se tinha um buraco, não podia ser um homem muito cuidadoso. Possivelmente só estava
fanfarronando. Talvez fosse pouco cuidadoso também naquele assunto, como na hora de arrumar
suas botas. Possivelmente se esquecesse de tudo.
Ela reprimiu um soluço. Tratava-se esperanças de vãs. Tinham ido até ali com um
propósito e não iria se conformar com menos.
Mas, por que?
E de repente o buraco e a bota ficaram esquecidos. Os campos violáceos começaram a
mover-se e a girar a seu redor.
Bruscamente as lavandas e as rosas se diluíram em correntes de negro brilhante.

—Sil, acorda!
Mãos. Sacudindo-a. Forte.
Terra fria e uma pedra cravando-a nas costelas.
—OH, Deus, Sil, o que aconteceu?
Os olhos de Silver se abriram lentamente. Notou o sabor do sangue em seu lábio e sentiu
a cabeça como se um tonel de tijolos acabasse de passar sobre ela.
Sete dias, senhorita St. Clair. Só tem que recordar isso.
Sua cara estava pálida de medo.
—Bram, é você? Está bem? —Silver alargou a mão desesperadamente, medindo a face do
jovem em busca de feridas.
Não tinha nenhuma, mas estava claramente assustado.
—Claro que estou bem. Mas alguém queimou a metade destas lavandas e destroçou duas
roseiras. —Enquanto Silver trocava penosamente de postura até ficar sentada, Bram se ajoelhou
junto a ela com os olhos muito abertos—. Meu Deus, Sil, o que aconteceu a sua cabeça? —O
tremor em sua voz a fez saber que tinha péssima aparência.
O que certamente era certo, porque se sentia verdadeiramente mal.
Doía-lhe todo o corpo. Abraçou-se o peito com dedos tensos, procurando alguma razão
ou explicação para uma crueldade a sangue frio como aquela.
Se não, a próxima vez não ficará nenhuma flor. Todas ficarão como esta.
Meu deus, por quê?
Bram lhe tocou a face dolorida.
—Quem demônios fez isto, Sil? —Sua voz seguia tremendo; o som de um menino
tentando crescer da noite para o dia e converter-se em um homem.
Como ela não respondeu, suas mãos a apertaram.
—Estava desenhando alguns espécimes ali em cima, junto a Waldon Hall, quando vi a
fumaça. Isso é o que me fez vir buscá-la.
—Sabe que não deve subir ali, Bram. Já lhe dissemos que já não é nossa terra. Expliquei-
lhe que as coisas são diferentes agora. Você… não pode ir acampando por todos os lugares como
estávamos acostumados a fazer. —A voz de Silver soava mecânica—. Embora o dono pareça não
estar nunca na casa, isso não significa que possa…
Bram a olhou como se acabassem de lhe sair manchas verdes na pele e tivesse começado
a falar em russo.
—Sil, o que aconteceu aqui? Não se ponha a dizer tolices sobre Waldon Hall ou seu
proprietário secreto!
Silver duvidou. Tinha que ter muito cuidado com o que contava ao menino.
—Não… não foi nada. —Lentamente ficou em pé—. Um engano, isso foi tudo.
—Um engano? —Os dedos do menino se converteram em poeirentos punhos—. Não me
minta, Sil!
Silver conseguiu esboçar a sombra de um sorriso.
—É verdade, Bram. Só queria queimar alguns dos novos galhos. Os que estavam mortos,
recorda? Pedi a uns homens do povo que subissem a me ajudar. —Seus olhos se endureceram um
momento—. Parece que queimaram as plantas erradas.
—E a atiraram no chão e feriram na testa por acaso enquanto estavam nisso? Claro, soa
completamente lógico. —Os punhos de Bram se apertaram até que os nódulos ficaram brancos—.
Tão lógico que não sei como não me ocorreu.
—Bram, por favor. Não entende…
Ficou em pé de um salto, um metro cinqüenta de moço ofendido e acalorado, justo a
borda de uma adolescência tumultuosa.
—Tem razão, não entendo! Não sei o que aconteceu aqui. Não sei do que está falando. E
seguro que não sei por que está aí, me mentindo!
Silver o olhou, ali de pé, com as magras mãos na cintura e o cabelo marrom emaranhado.
Estava pálido. Estava magro, sim. Mas tinha fogo nos olhos e a coragem dos St. Clair na postura
furiosa de sua mandíbula.
Então se deu conta de que tinha que dizer-lhe. Tinha direito de saber. Depois de tudo, a
propriedade Lavender Close pertencia mais a seu irmão que a ela. Ela só estava guardando-lhe até
que alcançasse a maioridade. Suspirou e deixou cair as mãos aos lados.
—Eram quatro. Eu… eu não sei se eram os mesmos homens que me seguiram ontem à
noite no urzal, quando voltava de Kingsdon Cross.
Bram franziu o cenho.
—Sabia que tinha acontecido algo, mas então tampouco me contou isso.
—Não queria preocupá-lo. Nunca pensei que viriam aqui. E estes homens de hoje…
Disseram-me que temos que ir. Todos nós, ou começarão a ocorrer acidentes. —Silver deu um
chute com sua bota poeirenta em uma massa de ramos carbonizados, tudo o que ficava da
anterior preciosa planta de lavanda—. Acidente como este.
Os olhos de Bram brilharam enquanto olhava Silver e depois à planta destroçada.
—O que podem querer?
E seguidamente disse uma palavra malsoante. Uma palavra que Silver nem sequer
pensava que ele soubesse. Depois sorriu, como um infantil modo de desculpa e uma amostra de
orgulho ao mesmo tempo.
—Não importa! Demonstraremos que não podem conosco! Tinker e eu poremos
Cromwell atrás de sua pista. —agachou-se e acariciou o enorme e babento Mastim dos Pireneus
que brincava a seu lado—. Depois poremos armadilhas que façam que esses porcos lamentem
profundamente ter vindo até aqui. — E seus olhos brilharam de antecipação.
E, só com isso, voltou a ser um menino de novo. Somente um menino. Com centenas de
idéias desatinadas e um milhar de radiantes esperanças.
Silver suspirou e tirou um broto de lavanda amassado do cabelo. Abafou uma exclamação
quando uma onda de dor lhe subiu da perna e o braço. Se fosse tão simples, pensou
amargamente.
Junto a Bram o enorme cão amarelo ladrou, espectador. Sua espessa cauda golpeou a
terra com força. Tuc tuc. Tuc tuc.
Soava como seu coração, pensou Silver.
Um momento depois, a silhueta desajeitada de Tinker apareceu no topo da colina,
flanqueada de forma incongruente por lavandas e rosas de uma cor vermelha fogo. Cromwell
começou a ladrar como um louco.
—Que demônios estão fazendo aqui vocês dois? Vi a fumaça que chegava do vale e eu… -
O velho criado ficou muito quieto quando se fixou em uma lágrima que havia na camisa de Silver e
na terra de sua manga.
O sangue estava secando sobre a têmpora direita.
—Por Deus Santo, matarei-o. Caçarei esse homem e lhe abrirei a garganta de um lado ao
outro. Já verão como sim. Atarei-lhe as mãos à costas, elevarei-lhe com uma corda e…
—Está se equivocando, Tinker - disse Silver atropeladamente. Havia coisas que seu irmão
era ainda muito jovem para entender e a luxúria que sentia Sir Charles Millbank por sua cunhada
era uma delas—. Foram quatro homens. Quatro estranhos. —Olhou fixamente Tinker e esperou a
que encaixasse a informação—. Era uma advertência para que abandonemos Lavender Close.
Tinker abriu a boca e a fechou de novo. Olhou o caos carbonizado que os rodeava e a
fumaça que ainda se elevava sobre a colina.
—Homens grandes e valentes que tomam com uma dúzia de ásperas plantas de lavanda e
uma mulher desarmada. —Chutou um arbusto de lavanda que ainda fumegava—. O que eu
gostaria de saber é por que.
Silver rodeou os ombros de Bram com o braço.
—esta ainda pode ser nossa melhor colheita, Tinker. Talvez simplesmente queiram ter o
controle sobre a lavanda e o dinheiro que gera.
—Talvez. —O ancião enrugou a testa—. Ou talvez não.
Silver estudou a curtida face do ancião que tinha sido seu criado, companheiro e
confidente desde a morte de seu pai. Tentou adivinhar que especulações estavam tomando forma
em seu agudo cérebro.
Mas Tinker não disse nada e ela sentia a cabeça aturdida pela dor. Resultava-lhe difícil até
mesmo permanecer de pé. Cambaleou e Tinker se aproximou para segurá-la pelo braço e lhe pôr
uma mão no ombro.
Silver respirou fundo.
—Não importa o que tentem, não vamos embora —disse com firmeza - Isto é tudo o que
fica de nossos pais e ninguém vai nos afastar disso. Nunca.
Bram assentiu, tentando parecer adulto. Tentando manter os olhos afastados do sangue
da face de sua irmã. Tentando parecer crédulo, mas só conseguiu mostrar-se inseguro e algo mais
que assustado.
Silver lhe deu uns tapinhas no ombro.
—É uma promessa, carinho. Agora vamos para casa e decidamos como vamos levar este
assunto.
Junto a Bram, o enorme Mastim dos Pireneus amarelo inclinou a cabeça e ladrou
contente. Começaram a caminhar agarrados pelos braços enquanto o sol, de um vermelho
sangue, ia afundando além do topo da colina.
A noite, vasta, inquietante e impenetrável começou a arrastar-se sobre os ondulantes
campos floridos.

Capítulo 4
A lua fulgurava entre farrapos de nuvens. Na parte mais alta do urzal, um cavaleiro
solitário ajudava sua montaria a cruzar por um denso matagal de tojos em uma paragem da qual
se divisava a estrada a Norwich. Inclinou a cabeça e escutou em busca do estalo continuado das
rodas de uma carruagem.
Mas não percebeu nenhum.
Deslizando-se na terra, a figura vestida de negro pressionou sua orelha contra a terra
arenosa. Um sorriso cruzou seus lábios quando ouviu o ruído distante.
—Nossa pequena pomba voa com asas velozes esta noite, Diabo. A menos de sete
quilômetros, acredito. Devemos nos apressar. —O bandido enroscou as rédeas de Diabo ao redor
de um denso arbusto de tojo e depois estudou a vegetação baixa.
O tronco caído estava justo onde o tinha deixado.
Tinha arrastado o tronco quebrado de madeira até o caminho e o tinha colocado no lugar
onde era mais claramente visível. Tomou cuidado de que o tronco ficasse exatamente em seu
caminho para ocultá-lo à vista enquanto descesse rapidamente a colina.
Com um sorriso mal intencionado nos lábios, o açoite de Norfolk voltou a montar.
Inspecionou suas pistolas e assegurou os alforjes que levava a suas costas. Depois comprovou o
rifle que pendurava do pomo da sela em sua capa de couro.
Quando estava terminando, seu cúmplice grisalho apareceu, fantasmal, do lugar mais
afastado da inclinação com um lenço negro ocultando suas feições.
—Encantado de que me acompanhe, amigo.
—Ah! Eu não compartilho essa sua alegria. Eu estaria encantado de dirigir uma bala
diretamente a sua cara sorridente, moço. Necessita que lhe dêem uma lição ou duas.
O bandido riu brandamente.
Seus olhos ambarinos brilharam quando deslizou a máscara sobre seu rosto e se
acomodou a esperar.
Apenas oito minutos depois, uma carruagem virou a curva da estrada poeirenta e cruzou
a toda velocidade em direção norte, para King's Lynn. Um guarda armado cavalgava atrás e um
rifle pendurava de uma correia junto ao cocheiro.
—Não querem correr nenhum risco, não é assim?
Blackwood passou uma mão enluvada pelo pescoço de Diabo.
Enquanto calculava a melhor maneira de aproximar-se, duas cabeças apareceram dos
bolsos de sua capa.
—Ainda não, belezas - sussurrou voltando a introduzir os dois furões em seu seguro
refúgio.
Quando o cocheiro viu o tronco que cruzava a estrada e puxou o freio, o bandido estava
preparado. Quando os freios da carruagem chiaram contra as armações das rodas e o guarda
desmontou, Blackwood fez um gesto brusco a Jonas e esporeou Diabo para descer do topo da
colina.
Seu rifle brilhou à luz da lua.
—Uma noite desagradável para viajar, cavalheiros. Possivelmente possa lhes resultar de
ajuda.
—Santo Deus nos Céus… É Blackwood! —O cocheiro ficou gelado em seu assento. O
guarda, entretanto, deu um salto e apontou seu rifle.
Com um golpe seco o bandido mandou o rifle voando longe.
—Isso, amigo, não é absolutamente aconselhável. Sugiro que escute com atenção ou meu
seguinte projétil de chumbo irá diretamente entre seus olhos. Ambos deixarão cair seus rifles.
Depois, cocheiro, abaixará os degraus da carruagem e a seguir os dois se atirarão ao chão, de
barriga para baixo. Se não cumprir minhas ordens ao pé da letra, lamentarão.
Jonas apareceu no extremo mais afastado da carruagem com a arma apontando ao
guarda, que deixou cair a sua e se deitou no chão de barriga para baixo. O cocheiro o imitou, rígido
pelo medo. Jonas agarrou as rédeas e saltou junto às cabeças dos cavalos para que se
tranqüilizassem e ficassem quietos. Todo o tempo o rifle descansava sobre seu braço, se por acaso
alguém realizava alguma artimanha.
—Muito bem, amigos. Agora acredito que é o momento de apresentar meus respeitos a
seus passageiros. —O bandido abriu seu bolso. Os dois furões escorregaram pela cadeira e
saltaram ao chão. Sorrindo viu como seus ágeis corpinhos corriam pelo chão e desapareciam nas
sombras sob a carruagem.
Só então Blackwood dirigiu Diabo para a carruagem em sombras. Sua pistola apontou o
painel de cristal. Dentro a cortina se agitava e golpeava contra o guichê.
—Abram a porta!
Não houve resposta. A cortina ficou quieta.
—Querem mostrar-se difíceis? —Blackwood fez retroceder Diabo e apontou ao cocheiro
com a pistola—. Quantos viajantes leva, cocheiro?
—Tre… três.
—Homens ou mulheres?
—Um ho… homem. As outras são mulheres, senhor.
De repente gritos agudos saíram da carruagem. A portinhola se abriu de repente uma
senhora gorda e corada saiu dele com uma mão agarrando seu decote agitado.
—Uma besta! Um rato de dentes afiados, como digo isso! Não dispare, senhor. Darei-lhe
tudo o que deseje, mas me salve dessa besta monstruosa!
Sorrindo um pouco, Blackwood assinalou à mulher o chão junto ao cocheiro.
Na soleira da portinhola aberta apareceu outra mulher, com a cabeça coroada de plumas
e seus rígidos ombros cobertos por um fino xale de seda de Norwich.
—Vou desarmada, senhor. Rogo-vos que não dispare.
—Não disparo em mulheres inocentes.
A mulher franziu o cenho e o olhou com suspicacia enquanto agarrava seu porta-níqueis
diante dela.
—E como sei que posso confiar em você?
—Não sabe. Agora, ao chão, ali, justo ao lado de sua amiga.
A mulher com as plumas levantou o nariz.
—Ela? Ela não é minha amiga, posso assegurar isso.
Por sorte para ela, pensou o bandido.
—Além disso, não quero encher o vestido de terra. Prefiro seguir de pé.
—Suas preferências não me interessam absolutamente.
—Como se atreve! De todos os horríveis e insolentes…
Sem prévio aviso, uma sombra negra emergiu por cima de seu ombro. Um momento
depois uns pequenos dentes afiados partiram a fina correia de seu porta-níqueis que caiu
diretamente ao chão. Então o furão se lançou atrás e o recolheu.
—Bem feito, bichinho. Volta aqui.
Chiando com força, o animal, perfeitamente treinado, correu pelo chão, rápido como um
raio, ricocheteou sobre o lombo de Diabo e desapareceu dentro do bolso de seu amo.
—Maldito ladrão estúpido! Porei à lei atrás de sua pista, isso é o que farei. —As palavras
da mulher tinham eco e soavam agudas de fúria—. E quando o pendurarem, eu estarei ali, rindo,
ouviu-me?
Blackwood estalou a língua.
—Essa linguagem não é própria de uma dama de boa criação. —Sua voz se endureceu—.
Agora ao chão. A menos que queira ver uma bala entre esses ombros brancos.
A mulher abafou um grito. Depois de um olhar rápido e inseguro ao interior da
carruagem, voltou-se. De repente toda sua pessoa mudou. Sua mão deslizou até seu pescoço
afastando as dobras de seda de seu xale para mostrar uma descarada extensão de seu decote.
—Pensando melhor, talvez possamos chegar a algum tipo de acordo, senhor. Não tenho
nenhum inconveniente em discutir a forma de unir nossos interesses para benefício de ambos. —
Uma de suas mãos brancas posou sobre uns de seus abundantes seios, claramente perfilado sob a
fina musselina do vestido.
—Ah, sim? E o que é exatamente o que me oferece em troca, senhora?
Um brilho cruzou os olhos da mulher. Sob suas pálpebras entreabertas estudou o bandido
lentamente, do rosto mascarado até seus pés cobertos de negro.
—Talvez devesse deixar isso em suas mãos, milorde. Blackwood sentiu uma onda de
aversão.
—Mil desculpas, mas temo que me veja obrigado a repelir uma oferta tão suculenta como
essa. —Fez um gesto com a arma—. Agora, ao chão, antes que acabe de perder a paciência com
você.
O rosto da mulher se encheu de escuras rugas de fúria. Agarrando as saias, desceu os
degraus da carruagem e se atirou ao chão junto aos outros, sem deixar de resmungar.
—Muito bem. Dou-lhe meus parabéns aos que lhe ensinaram boas maneiras.
A resposta zangada da mulher o informou com descarada exatidão do que podia fazer
com seus parabéns. Blackwood riu baixo. Depois a expressão de sua boca se endureceu.
—Agora vejamos quem é nosso último viajante. —Sua pistola apareceu pela abertura em
sombras da portinhola—. Fora! Já me aborreci com esta pequena comédia.
A cabeça do homem apareceu pela portinhola. Sua casaca clamava que era da exclusiva e
muito cara loja Weston, e suas botas novas brilhavam e cheiravam a champanha que utilizou para
lustrá-las. Seu rosto era fino e altivo e de uma magreza que ficava acentuada por seu alongado
nariz.
Farejou o ar enquanto agitava languidamente um pedaço de renda belga, como se assim
pudesse proteger-se dos aromas tóxicos ali reinantes. Mas não havia nada de lânguido nos olhos
escuros que submeteram Blackwood e às quatro pessoas que havia no chão a um escrutínio
desumano.
—Bem, finalmente conheço o famoso bandido.
Blackwood fez uma reverência irônica por cima da cabeça de Diabo.
—E a quem tenho a honra de me dirigir, senhor?
—Não acredito que meu nome resulte de interesse - foi a gélida resposta.
O metal brilhou à luz da lua. —Nisso diferimos. Repito, a quem me dirijo?
—Renwick, maldito seja. Lorde Renwick.
A boca do Blackwood esboçou a sombra de um sorriso.
—Percebo que se supõe que deveria estar impressionado. —inclinou-se um pouco para
trás na sela cheio de insolência—. Muito bem. Agora se unirá a seus companheiros no chão, lorde
Renwick.
O homem fez um gesto de horror. Sua mão direita se aproximou de seu bolso.
Uma bala de chumbo fumegante passou através da portinhola da carruagem e junto à
cabeça de Renwick.
—Uma decisão muito pouco afortunada, milorde. Se voltar a repeti-la, minha próxima
bala encontrará seu branco em um lugar fartamente doloroso e você não poderá se mover de
novo. Agora desça.
Com gelado desdém, o aristocrático viajante se deitou no chão como lhe tinha ordenado.
Sob o olhar atento de seu companheiro, Blackwood desmontou e se introduziu na carruagem.
Deslizou os dedos pelos assentos de veludo, mas não encontrou nenhum esconderijo. Então, das
sombras chegou um chiado agudo e excitado.
—O que ocorre, pequeno amigo?
Uma cabeça pequena e peluda se esfregou contra sua mão e voltou a arranhar o chão.
Blackwood seguiu lentamente o suporte do assento com os dedos e descobriu a borda de um
painel incrustado.
—Muito bem! Pode abri-lo?
Por toda resposta o furão arranhou uma parte de metal que sobressaía do chão. Com um
leve som de rolamento, o painel se retirou, deixando descoberto uma curva escondida muito
profundamente sob o assento. Dentro Blackwood encontrou duas pistolas carregadas, uma bolsa
de pele e um moedeiro que tilintou com o som dos soberanos de ouro.
A bolsa foi o que mais interessou a Blackwood. Renwick tinha conexões com o
Almirantado e acesso a informação militar. Se alguma vez Blackwood tivesse que negociar por sua
vida, essa informação lhe resultaria muito útil.
Mas não havia tempo para examinar o conteúdo da bolsa naquele momento. O bandido
guardou tudo em seu bolso com um sorriso e acariciou a suave pelagem do furão.
—Vamos, dentro você também, vagabundo. Não queremos aterrorizar mais a nossas
hóspedes, não é? —O bandido empurrou o furão negro para dentro no bolso oposto ao de seu
companheiro. Só então Blackwood decidiu sair da carruagem.
Renwick o olhou com toda a frieza do mundo.
—Não tenho nada que mereça a pena suas moléstias, criminoso. Não sou tão estúpido
para levar minhas riquezas comigo.
—Têm razão - disse Blackwood dando de ombros—. Posso ver exatamente quão
preparado são, milorde. Sim, enganou-me amplamente. Vejo que terei que ser mais preparado se
espero superá-lo.
Iniciou uma profunda reverência e acabava de virar-se para voltar a montar quando lhe
chegou um grito de advertência de seu companheiro.
Afastou-se e ouviu o uivo de um disparo que passou sobre seu ombro. Instantaneamente
outro saiu vaiando do segundo canhão da minúscula pistola que Renwick tinha estado escondendo
de seus captores.
Algo queimou Blackwood à altura das costelas. Amaldiçoando disparou uma de suas
balas, que mandou a pistola do Renwick girando para a escuridão.
—Muito desacertado, milorde.
—O único desacertado que há aqui é meu alvo, escória! Se tivesse outra pistola, provaria
mais do mesmo!
Os lábios de Blackwood se curvaram. Sem pronunciar palavra, sustentou em alto o
moedeiro que tinha tirado da carruagem. O metal golpeou sonoramente contra o metal.
—Maldição, como o encontrou?
—Não posso me apropriar do mérito. —Duas cabeças bicudas apareceram nas aberturas
dos bolsos de Blackwood, agitando os bigodes e com os olhos brilhantes.
—Façam uma reverência, belezas.
—Que demônios…?
—Apresento-lhes lorde Renwick, pequenos. E você, milorde, conheçam Mãos e Acima,
dois dos melhores criminosos de Norfolk. —A cicatriz da boca de Blackwood brilhou friamente
durante um segundo—. Junto comigo, está claro. E agora acredito que terei que solicitar o uso de
sua carruagem. —Blackwood olhou seu companheiro—. Ata seu cavalo atrás e toma as rédeas.
—P…mas, não podem! —Espetou a mulher das plumas vermelhas—. Ficaremos aqui
abandonados durante horas… Possivelmente toda a noite!
—Acredito que é mais que provável, senhora - foi sua fria resposta—. Muito pouca gente
se aventura através do urzal de Blackwood depois que anoiteça. Muito pouca gente honesta, ao
menos.
O sangue surgia de suas costelas e a dor de seu flanco o estava matando. Uma onda de
cansaço o embargou. Tinha que ir-se dali, rápido.
—Encontrarei-os, porco! Não pararei até que o faça. Desta vez foi muito longe assaltando
um oficial da Coroa. Mas viverão o suficiente para se arrependerem, Por Deus que o farão!
—Confio que esteja equivocado, milorde - disse Blackwood—. Enquanto isso, espero que
o frio que surge deste chão não piore sua gota.
—Piore min… - Renwick aspirou sonoramente—. O que é o que vocês sabe de minha gota,
porco?
—Tudo o que se pode saber, suponho. E muitas outras coisas que preferirá seguir
guardando em segredo. Mas está saindo a lua. É o momento das despedidas para mim. —O porta-
níqueis da senhora saiu voando pelo ar para aterrissar aos pés de Diabo—. Não me rebaixo a
roubar bagatelas de mulheres. Especialmente se as jóias só são imitações sem valor, senhora.
Renwick dirigiu a sua companheira um olhar furioso. A mulher avermelhou.
—E o que sabe ele? Estão todas aí, milorde, exatamente como quando as me deu.
Comprove você mesmo.
—OH, isso é o que pretendo fazer, querida. Esteja bem segura disso - disse Renwick com
frieza.
Enquanto tudo isto acontecia, o ajudante de Blackwood já tinha escalado até o assento do
cocheiro e posto os cavalos em movimento.
—Senhoras. Milorde. —O salteador se inclinou com exagerada cortesia—. Desfrutem da
beleza da noite de Norfolk. Diz-se que o céu daqui parece não acabar nunca. Confio em que
poderão descobri-lo, pelo menos até chegar ao seguinte povoado.
Blackwood sorria quando esporeou Diabo até pô-lo a galope.

Capítulo 5
Silver suspirou e afastou uma mecha rebelde de cabelo avermelhado. Diante dela se
alinhavam duas dúzias de frascos de óleo de lavanda. Brilhavam à luz da lanterna com um dourado
pálido que demonstrava sua excelente qualidade. E alcançariam um bom preço nas dúzias de
exclusivos estabelecimentos de Londres dos quais Lavender Close era fornecedor de produtos
como sais reconstituintes, tônicos, maquiagem em pó e perfumes.
No exterior das paredes de cristal abrilhantado da estufa, a maré púrpura do crepúsculo
alagava o vale.
Silver ficou observando a escuridão e as luzes que dançavam com o passar do caminho
principal. Uma carruagem, talvez, ou um cavaleiro que precisava iluminar seu caminho.
Com um suspiro voltou para mesa lotada que tinha a frente dela.
Tinker e ela já tinham começado a tomar precauções se por acaso os quatro homens que
tinham estado por ali no outro dia fanfarronando decidissem voltar. A próxima vez não
encontrariam Lavender Close indefeso.
Mas agora Silver estava mais preocupada com a sensação de ter deixado algo incompleto
em Lavender Close. Algo que tinha passado por cima. Algo que era tremendamente importante.
Enrugou a testa e estudou a preciosa oficina onde seu pai tinha levado a cabo todas suas
provas e destilado seus primeiros baldes de óleos essenciais. Ali também William e Sarah St. Clair
tinham misturado as primeiras amostras do evocador perfume que depois foi conhecido como
Millefleurs.
Por que um homem tão meticuloso não deixaria registro de nenhum tipo para seus filhos?
Silver deslizou a mão sobre a mesa de carvalho laqueado de seu pai, igual tinha feita
centenas de vezes antes. Tinha rebuscado em todas as gavetas mas não tinha encontrado nada
além de um fino pó. Onde estavam as meticulosas notas? Onde as listas de óleos essenciais e de
estranhas resinas com as quais tinha experimentado para criar o Millefleurs?
O juiz tinha dado uma resposta simples; sacudiu a cabeça e disse que St. Clair tinha sido
um homem muito hermético que não confiou a ninguém seus descobrimentos. Mas Silver não
podia acreditar. Tinha que haver alguma explicação, mas, embora tivesse tentado com todas suas
forças, não tinha sido capaz de descobri-la.
Por um momento a ira a embargou. Inclusive com o bom rendimento daquele ano, a
balança podia inclinar-se para qualquer dos dois lados de um momento a outro. O custo do
combustível tinha subido e era difícil encontrar trabalhadores com experiência. E agora com essas
ameaças…
Silver olhou fixamente as pétalas cremosas de uma camélia tentando afastar aquela fúria.
Não importava o que ocorresse, ela não permitiria que Sir Charles Millbank interviesse. Essa víbora
nunca teria Lavender Close! Morreria antes de permitir que isso ocorresse.
Um juramento entre dentes escapou dos lábios de Silver de uma vez que dava a antiga
mesa um chute muito pouco próprio de uma dama.
Então seus olhos se abriram de par em par. Tinha sido sua imaginação a mesa
cambaleou? Com o cenho franzido se agachou para ver melhor.
Certo, a perna traseira esquerda estava bamba.
Afastando um pulverizador de jasmim, Silver passou sua mão pela parte traseira da mesa,
mas não encontrou nada mais que madeira polida. Só então a realidade a golpeou no rosto. Não
era a mesa que estava desigualada. Era o chão.
O chute furioso tinha movido um dos ladrilhos do chão.
Sem fôlego, Silver afastou a mesa para a parede e puxou da parte solta de ardósia de
Norfolk que havia sob ela.
Um momento depois estava olhando o interior de um buraco de uns quinze centímetros.
Um arrepio cobriu o pescoço de Silver. Ia obter respostas às mil perguntas que a tinham
assaltado desde a morte de seu pai?
O primeiro que encontrou foi uma bolsa de couro. Depois uma caixa de ébano com
incrustações de marfim. Tinha sido introduzida até o fundo do buraco e estava coberta de uma
capa de pó. Com dedos trêmulos, Silver abriu a bolsa de couro.
Informe de sementes e registros de plantação, tudo com a cuidadosa escrita de seu pai,
escondidos em um buraco no chão, papéis que eram mais preciosos para ela que qualquer das
jóias que tivesse tido. Ali tinha que estar o trabalho de dez anos! Mas não a fórmula do Millefleurs,
pensou angustiada.
E então o olhar do Silver recaiu na caixa. O pó embaçava a preciosa madeira e a imundície
obscurecia o metal das dobradiças.
Conteve a respiração e abriu o passador. Dentro, sobre uma almofada de veludo, havia
um pequeno livro. As capas de couro estavam estragadas pelo tempo e as páginas se tornaram da
cor do chá aguado. O diário de seu pai!
Quantas vezes Silver o tinha visto inclinado sobre alguma de suas páginas com a pluma
entre os dentes…
Seu pulso se acelerou. Abriu a pesada e lavrada capa, passou a primeira página e
começou a ler…

Meia-noite.
Fora a lua está minguando.
Estou em meu escritório de onde posso ouvir o suspiro do vento que brinca entre as
lavandas. Tenho aberto as portas da oficina para poder cheirar a aveludada e exuberante
fragrância da noite. Antes de morrer, a minha amada Sarah gostava de sentar-se aqui. Podia
nomear todas as plantas que havia em flor, minha Sarah.
Agora eu o tento também. Há um forte e doce aroma de lavanda que se une à clara beleza
das violetas. Também noto jasmim e madressilva, e até o penetrante aroma do musgo dos
carvalhos que há junto ao arroio.
Mas eu não sou bom neste jogo. Ah, minha Sarah poderia dizer que variedade de semente
e até em que semana estavam os casulos e os brotos. Podia diferenciar a stoechas, da angustifólia
ou a dentata e se a lavanda vinha de Hitcham, de Provenza ou das longínquas colinas da Grécia.
Deus amado, quanta saudade sinto dela com este aroma do verão que me rodeia. O aroma
doce da flor-de-laranja, o jasmim e o romeiro me recordam o que perdi.
Eles a mataram, isso. Dou-me conta de tudo tão claramente agora que já é muito tarde…
Mataram minha amada Sarah porque eu não fiz o que eles queriam que fizesse. Fui um parvo,
tinha perdido a cabeça por amor e estava convencido de que era invencível. OH, e disse que podia
protegê-la…
Mas não pude.
E agora, Meu Deus, vieram atrás de mim de novo. A semana passada encontrei outra
carta…

A caligrafia acabava em um agressivo risco de tinta negra. Não levava data.


Silver ficou olhando com a cabeça inclinada, gelada, as letras borrando-se ante seus olhos.
Assim que seu pai tinha estado em perigo. Por isso tinha sido tão fechado aqueles últimos meses,
sempre andando pela borda do abismo, tentando evitar preocupação a Bram e a ela.
E depois tinha feito sua última viagem ao estrangeiro em busca de lavanda. Quando
retornou parecia muito mais tranqüilo, da mesma forma em que estava acostumado a estar
quando sua mãe estava viva.
Mas não estava. Realmente não. Tinham encontrado seu corpo na despensa, apenas duas
semanas depois de sua volta. Seus dedos rígidos sujeitavam uma lacônica nota de desculpa para
seus filhos. Aos olhos do juiz tratava-se de um claro caso de suicídio.
Silver não acreditou nessa versão nem por um segundo. Como sentia sua falta, com suas
tolices e suas excentricidades. Conhecia cada planta e cada ramo que crescia nas colinas, e amava
todas e cada uma delas.
Agora ela sabia a amarga verdade: seus pais tinham sido assassinados por criminosos que
necessitavam a ajuda de William St. Clair em algum tipo de assunto ilícito.
A idéia era mais do que Silver podia suportar. Afastou uma lágrima que lhe caía pelo
rosto. Mas possivelmente agora teria uma oportunidade para provar suas suspeitas. Talvez agora
Bram e ela pudessem encontrar a fórmula do Millefleurs, encontrar os assassinos de seus pais e…
Ouviu-se um rangido que vinha da parede mais afastada da oficina. Rapidamente voltou a
colocar a caixa em seu esconderijo, colocou de novo a peça de ardósia e deslizou a mesa a sua
posição original, sobre ele.
Então Silver gritou.
Algo passou voando perto dela, fazendo migalhas a parede de cristal. Era um tijolo
envolto em um pedaço de papel.
A mensagem era curta e inquietante.
O menino é o próximo.
Blackwood fez seu cavalo avançar lentamente pelo penhasco escuro do qual podia ver-se
todo o urzal. Parou ao chegar ao topo e abriu a bolsa de pele que pendurava de sua sela.
À luz da lua o bandido examinou o despacho naval que tinha roubado da carruagem de
Lorde Renwick.
Franzindo o cenho estudou as claras fileiras de números que indicavam as latitudes e
longitudes dos diferentes navios e navios de passageiros ativos no Canal e mais ao sul, em águas
da França e Espanha. Não havia nada surpreendente na informação ali incluída. Ao menos na
aparência não era mais que uma lista rotineira de movimentos marítimos.
Mas havia algo nesses números que era estranho. Conhecia bem essas águas, é claro.
Cinco anos antes tinha saboreado seu salitre e tremido em suas gélidas profundidades. A maioria
dos números marcavam localizações longe das costas da Espanha e Portugal e algumas perto da
boca do Mediterrâneo.
Sim, havia algo ali, algo que lhe trazia para a memória escuras lembranças, mas, por
muito que tentasse, Blackwood não podia estabelecer do que se tratava exatamente.
Resignado, voltou a colocar os papéis na bolsa e acariciou o brilhante pescoço de Diabo
com a mão enluvada.
A dor em seu peito ficou em um batimento constante do coração. Tinha estancado a
hemorragia com um lenço e enviado Jonas a deixar a carruagem de Renwick na rua principal de
Kingsdon Cross. Mandariam alguém em busca dos viajantes quando encontrassem o veículo. E, até
então, o senhor e suas damas podiam divertir-se como melhor lhes parecesse.
Diabo elevou a cabeça. O cavalo emitiu um relincho inquieto.
Amaldiçoando entre dentes, o bandido tirou a máscara e deixou que o vento frio
golpeasse suas faces. Para o oeste, na lonjura, o céu estava se tingindo de cinza e sobre ele as
estrelas começavam a desvanecer-se. Em uma hora mais ou menos chegaria a alvorada.

A alvorada. Um dia mais de amargura e arrependimento. Um dia mais sem esperança. Um


dia mais que não o levava mais perto de seu objetivo de vingança porque só a noite podia
trabalhar em liberdade. A alta figura amaldiçoou e esporeou seu cavalo para diante.
Sabia que devia ir para casa.
Sabia que devia abandonar sua perigosa farsa e correr como um demônio para Waldon
Hall e para a segurança que as salas do palácio ofereciam.
Mas não o fez. Em vez disso o bandido girou para o sul. Estudou as escuras colinas
pensando na inocência, na juventude, pensando em uma mulher de olhos verdes e dourados e
lábios como a seda carmesim.
Uma mulher que estava condenada a não lhe trazer nada mais que problemas. Sim, tinha
que esquecê-la.
Com uma forte maldição, Blackwood dirigiu Diabo para Kingsdon Cross. Havia outros tipos
de mulheres, depois de tudo; mulheres que entendiam de prazeres mais frios e mais escuros. Isso
era tudo o que o bandido merecia.
Separaria-a de sua mente pelas más. Da forma mais fria.
Da única maneira que sabia.

The Green Man estava igual a sempre: cheio de fumaça pestilenta e barata.
No passado Blackwood sempre tinha gostado assim. Ninguém fazia pergunta, as caras se
mantinham ocultas e o tinido dos guinéus de ouro era o único som que importava. Em suas
incomuns visitas se fez passar por um soldado com meio soldo e de capa caída e, até o momento,
ninguém tinha questionado sua história.
Mas essa noite se sentiu inquieto quando sentou atrás da desagradável mesa que havia
em uma esquina pouco iluminada.
—O que vai ser, homem? —O proprietário tinha a aparência ossuda de um pugilista
experiente e, de fato, tinha sido famoso em sua categoria durante várias temporadas em Londres.
—Uma garrafa e um copo - disse o bandido, lacônico, cobrindo a cara ainda mais com o
chapéu.
Enquanto esperava, Blackwood se acomodou na cadeira e examinou a sala. Albergava a
comum mescla de criados de dia, viajantes e mulheres que proporcionavam seus serviços à
clientela não muito fastidiosa do local.
Era um lugar onde tomar um copo e trocar um pouco de fofoca local, o que não tinha sido
um problema até então para Blackwood.
Mas, por alguma razão, o era aquela noite, inclusive embora tivesse vindo expressamente
para ouvir esses rumores. Queria descobrir quem podia ter contratado os serviços daquele trio
que tinha estado andando pelo urzal a noite anterior.
E mais, queria descobrir por que estavam perseguindo à mulher.
Abaixou os ombros quando o proprietário voltou com a garrafa. Encheu o copo até a
borda, levanto-o em um brinde silencioso para um par de olhos verdes e dourados inesquecíveis e
bebeu. O brandy lhe deixou uma agradável sensação de queimação enquanto descia. Isso fez que
Blackwood quase acreditasse que poderia esquecê-la.
Acomodou-se no assento e esvaziou outro copo.
Uma mulher com muito perfume e pouco corpete caminhou com afetação para ele e
colocou um cotovelo na mesa, lhe oferecendo uma visão aberta de um decote que ameaçava sair
de sua roupa em qualquer momento.
—Não recordo o haver visto antes, carinho, mas bom, sou muito nova aqui. Estou
procurando companhia, e você?
O ar estava cheio de fumaça e Blackwood começava a sentir um calor agradável que lhe
proporcionava o brandy que tinha consumido. Voltou a impregnar-se mais o chapéu, sentindo
curiosidade pela informação que podia obter de sua ansiosa companhia.
O sorriso que dedicou a ela não chegou até seus olhos, mas duvidava de que lhe
importasse.
—Sim - disse simplesmente—. Por que não?

Capítulo 6
Silver ficou olhando as palavras ameaçadoras que tinham rabiscado no papel enrugado
enquanto as letras desfocavam por momentos.
O menino é o próximo.
Deus Santo, vão fazer mal a Bram! A propriedade estava ameaçada, também ela estava…
E agora o faziam com um menino inocente de doze anos.
Silver mordeu o lábio. Tinha estado perto de morrer seis meses atrás e ainda não estava
forte. Se o capturassem, isso o mataria.
Não podia permitir que nada pusesse Bram em perigo.
Mas, como podia abandonar agora, quando estava tão perto de resolver o mistério da
morte de seu pai?
Deu um chute no tijolo com força. Este escorregou sobre os cacos de vidro como se fosse
do gelo de um lago congelado. Então lhe ocorreu a resposta.
Era arriscado.
Era desesperado.
Era uma loucura em si mesmo.
Mas não tinha escolha. Era a única maneira de manter seguros Bram e a propriedade.
Depois de um último olhar ao chão para assegurar-se de que a laje e o esconderijo
estavam ocultos, recolheu seu xale e saiu correndo em direção à casa.

—O que disse que vai fazer?


Tinker esfregou as calejadas mãos nos quadris e olhou de acima a abaixo aquela moça
que considerava mais como uma filha que como sua patroa.
—Está louca, moça! Isso é o que está! Não quero nem ouvir falar disso!
Silver não levantou o olhar do velho baú no qual estava rebuscando.
—Ao contrário, é uma idéia perfeita, Tinker. Dei muitas voltas e seria uma boa solução a
nossos problemas.
—Sim, seria uma boa solução para que isto acabasse sendo um pandemônio isso é o que
é!
—Nada disso. —A cabeça de Silver reapareceu. Levava na mão um velho vestido negro e
um grosso véu—. Ele é o homem perfeito para este trabalho. Seria capaz de dizer que não o é?
—Absolutamente - disse Tinker com amargura—. É muito perfeito, e esse é o maldito
problema.
—Simplesmente está ciumento porque não ocorreu a você primeiro.
Tinker bufou e com esse som disse a ela exatamente o que pensava dessa acusação.
—E como acha que vai encontrá-lo? Depois de tudo, não é provável que esse homem
tenha posto um pôster mostrando seu lugar de residência.
—Já pensei nisso também - disse Silver com calma—. Tenho feito uma lista.
—Uma lista? E que tipo de maldita lista?
—De todos os lugares depreciáveis de Kingsdon Cross. Tenho intenção de visitá-los um
por um até que o encontre. Mas primeiro vou ver no urzal.
—Sobre meu cadáver!
Silver não lhe deu nenhuma atenção. Ocultou-se atrás de um biombo, onde tirou sua
camisa de cambraia e colocou o escuro vestido pela cabeça. Estava um pouco apertado, mas não
estava mau. Teve que engolir uma onda de tristeza que lhe sobreveio ao recordar a última vez que
tinha usado aquele vestido. No funeral de seu pai.
Bom, não choraria, agora não. Nem tampouco ia voltar atrás. Lavender Close era tudo o
que tinham e ninguém ia expulsá-la dali. Tocou o vulto que sobressaía sobre seu olho. Ao menos o
véu tamparia isso.
Quando saiu um momento depois já tinha o véu jogado sobre o rosto.
—Como estou?
Tinker franziu o cenho.
—Como uma matrona que tivesse pouco com o que impressionar e que está passando um
período de má sorte.
—Tão mal? Perfeito. Servirá perfeitamente para enganá-lo.
—Sim, quando os malditos burros voarem!
—Deveria tentar evitar esse tipo de linguagem, Tinker. É um sinal inequívoco de que está
zangado.
—Bom, não importa, porque estou zangado, maldição! Esta dizendo tolices, menina, e
não vou deixá-la seguir com isto. Encontraremos outra forma. Deixe isso. Depois de tudo nos
deram três dias…
Silver franziu o cenho pensando no tijolo que tinha cruzado a janela da estufa. Não tinha
contado isso a Tinker; tinha medo de que insistisse em encarregasse do assunto. Era duro e
preparado, mas Silver duvidava de que fosse adequado que começasse a lutar a soco limpamente
com homens que lhe dobravam em tamanho e que ele os dobrava em idade.
Não, essa era a única maneira. Já tinha tomado uma decisão. Só tinha que ser um pouco
inteligente ao levá-la a cabo.
—Não vai, moça, e não há mais que falar.
Com um suspiro, Silver se deixou cair em uma cadeira de vime em que estava acostumada
a sentar quando estava em seu estúdio de desenho.
Quando tinham um estúdio. Quando tinham uma grande casa. Quando tinham dinheiro e
segurança.
—OH, muito bem, homem enfurecido. Mas então temos que pensar em algo agora. Não
temos muito tempo.
— Encontraremos algo - disse Tinker, tranqüilizador, e coçou a mandíbula—. Estive
pensando em alguns planos. Podemos falar deles pela manhã.
—Mas está seguro de que não quer considerar…?
—Não, nem tampouco você, senhorita! Não quero voltar a ouvir falar de nada disso. Seu
irmão e você estão ao meu encargo agora que faltam seus pais e que seu tio morreu, e me
ocuparei de cuidar de vocês. —Tinker lhe dedicou um olhar cheio de força—. O queiram vocês
dois ou não!
Silver deu uns tapinhas sobre o robusto braço do homem e riu.
—É um tigre muito feroz, Tinker. —Seus olhos se obscureceram até voltar ao sombrio
verde dos lagos montanhosos—. Que sorte temos Bram e eu de ter você.
—Vamos! Sempre foi uma pessoa com uma língua lisonjeadora, Susannah St. Clair. —O
ancião suspirou—. Encontraremos a maneira de sair deste buraco que tanto a preocupa. Mas não
vai a nenhuma parte sem mim de noite, entendido, querida?
Silver fez uma sucinta reverência.
—Entendido, meu exaltado protetor. —O que é claro não queria dizer de acordo.
—Passe já, senhorita.
De repente Silver saltou da cadeira.
—ouviu isso?
—Ouvir o que?
—Soava como se Cromwell estivesse ladrando. E uma voz, abaixo no armazém, acredito.
Sem esperar nenhuma outra palavra, Tinker se lançou escada abaixo, sonhando por suas
próprias mãos ao redor da garganta dos assaltantes.
Tinha sido muito fácil, pensou Silver. Sentiu uma pontada de culpa, mas a repeliu
rapidamente. Não havia tempo para culpas, ao menos não aquela noite.
Tinha trabalho para fazer.

O vento sopra do mar esta noite e traz o aroma da lenha queimada e o aviso da tormenta
que se avezinha. Mas não devo divagar. Ainda fica muito por dizer e no fundo de meu coração sei
que fica pouco tempo. Encontraram-me cedo. Muito cedo.
Minha querida Susannah, pensa bem no que aqui tenho escrito. Há segredos nestas
páginas, segredos que não me atrevo a contar, nem sequer agora, pensando que este livro pode
cair nas mãos de meus inimigos.
Lê estas páginas com atenção e reflete sobre todas as coisas que lhe ensinei. Criva minhas
palavras como aprendeu sobre meus joelhos a crivar a terra de Lavender Close. As respostas estão
aqui, prometo-lhe isso.
As guarde bem. Há segredos pelos quais os homens são capazes de matar. Se encontrar
este livro, isso quererá dizer que os homens já mataram por eles.

Capítulo 7
Ele não estava no urzal, nem tampouco na estrada principal. Ela repetiu todos os passos
da noite anterior, mas duas horas mais tarde não tinha encontrado ninguém exceto um nervoso
clérigo que voltava para sua casa de King's Lynn.
Isso só deixava a cidade de Kingsdon Cross.
A primeira parada de Silver foi uma plaina extensão de terra ao largo do rio. Fez frear seu
pequeno calesín3, colocou cuidadosamente o véu, endireitou as saias e se assegurou de que sua
pistola estava segura dentro da bota.
Satisfeita, saltou ao chão e lançou suas rédeas sobre uma cerca próxima.
3
Calesín: tipo de charrete
Sempre se tinha perguntado como seria uma briga de galos. Algo lhe dizia que ia desfrutar
da experiência.
Quando se encontrou em meio da multidão se disse que se equivocou com essa sensação.
Abriu caminho lentamente, empurrando homens com olhadas duras e a mulheres que era
mais que óbvio que não eram damas. Do fosso cheio de fumaça que tinha diante chegavam
aclamações e juramentos. O ar levava até ela o aroma de pó e sangue e Silver sentiu que lhe
revolvia o estômago.
—Posso lhe ajudar, senhorita? —Um homem alto com uma manga vazia estava de pé
junto a uma árvore, olhando-a.
—Espero que possa. —Do fosso escuro chegaram rugidos e Silver empalideceu.
—O que? Será nunca esteve em uma briga de galos?
—Sinceramente, tenho que dizer que não tive esse prazer. —Silver dirigiu um olhar rápido
à multidão que tinha diante dela. Abaixo, no fosso, uma feroz criatura concentrava sua atenção
em seu oponente. As plumas voaram e gritos eletrizantes encheram o ar.
Silver tragou bílis com dificuldade.
—Veja, sou a senhora Brown, a viúva de Archibald Brown do Brown, Brown e Green, de
Londres. Meu amado esposo falecido tinha uma herança para um homem que me disseram
freqüenta este… estabelecimento.
—Claro. —Os olhos marrons do homem se entrecerraram, cheios de suspeitas.
—Temo que meu marido morreu antes de poder encontrar o beneficiário dessa herança.
—E qual é o nome do agraciado, senhorita?
—Blackwood.
A cara do homem se voltou de pedra.
—Não acredito recordar esse nome. De fato, estou seguro de não conhecê-lo.
—Bom - disse Silver com ingenuidade—, entendo que sintam a necessidade de ser
cuidadoso, já que falamos de um bandido. Mas meu marido, o senhor Brown, morreu pouco
depois de que recaísse sobre ele a responsabilidade de encarregar-se da herança, e como se trata
de uma soma considerável… Uma soma muito considerável, senhor, estou segura de que o senhor
Blackwood estará encantado de saber que está ao seu dispor. Espero que possam lhe passar a
mensagem. Se o virem, claro está.
Os ardilosos olhos marrons não disseram nem sim nem não.
Mas Silver não ia abandonar tão facilmente.
—Suponho que estaria agradecido por lhe fazer chegar à mensagem. E certamente
quererá recompensar seus serviços…
Um brilho brilhou nos olhos escuros.
—É possível. Se eu o conhecesse, é claro. Coisa que não estou nem afirmando nem
negando.
Silver agarrou com força seu porta-níqueis. Tentou não pensar na carnificina que se
estava produzindo naquele mesmo momento.
—Por favor, lhe transmita a mensagem se vier por aqui esta noite, está bem? Alojarei-me
no Cross & Arms até manhã.
De repente se ouviram agudos gritos que indicavam que uma das criaturas plumíferas
tinha saído vitoriosa.
—O do velho Sawtooth ganhou de novo - disse o homem laconicamente—. Tenho que ir.
Com isso era suficiente para Silver. Tragou saliva e abriu passagem de novo até sair na
noite.
Não sabia se tinha tido êxito ou não; o que sabia com segurança era que não queria voltar
a ver uma briga de galos nunca.
Quando ao fim conseguiu que sua cabeça se limpasse, Silver começou a perguntar-se se
Tinker teria razão. Talvez não fosse tão fácil encontrar o bandido.
Afastou essa onda de pessimismo, tão pouco própria dela, fora de sua mente. Essa tinha
sido a melhor idéia que tinha tido e ia seguir com ela até o final!
Conduziu o calesín através da cidade até chegar a uma casa elegante em uma praça frente
à igreja. As outras casas estavam às escuras a essa hora tão tardia, mas a casa a que se dirigia
estava iluminada por um par de lanternas ornamentais douradas.
Havia pouca gente na rua. Na dançarina luz, Silver pôde distinguir um indivíduo
musculoso com um nariz em forma de couve-flor e decidiu não tentar entrar pela porta dianteira.
Nesse mesmo instante um carroção que transportava barris avançava pesadamente para a parte
de atrás.
Silver sorriu; problema solucionado.
Logo estaria dentro. Sempre tinha querido ver o interior de um verdadeiro tugúrio de
jogo.
Seguiu o carroção enquanto girava para a parte de atrás e desceu de seu calesín. Como
esperava, só necessitava uns minutos de explicações para meter-se dentro. Tinha acudido, disse a
um criado com aparência tensa, em resposta a uma oferta de emprego como cozinheira. O certo
era que Silver as via e as desejava para ferver água sem queimar a chaleira, mas a mentira lhe
proporcionou o acesso através da porta traseira com bastante facilidade. Já no interior, uma
mulher de aspecto bastante descuidado a guiou até um escritório justo atrás das cozinhas.
Silver estava estudando as paredes cobertas de opulenta seda e os pesados móveis
estofados em veludo quando a porta se abriu.
O proprietário era um homem que ela conhecia por sua reputação, mas que nunca tinha
visto antes. Era bom com as cartas e com o dinheiro, mas tinha mal habito de beber e gostava
muito do uísque; ao menos isso lhe havia dito Tinker uma vez.
Inspecionou-a de perto, tentando ver através do denso véu.
—Me disseram que veio perguntando por um emprego como cozinheira. Sinto muito,
mas não tenho nenhuma vaga aqui. —Entreabriu seus olhos negros—. Deve haver-se produzido
uma confusão.
—Isso acredito, porque parece que transmitiram mal minha mensagem. Vim por um
assunto que concernia a meu querido marido falecido, Archibald Brown, do Brown, Brown e
Green.
—Nunca ouvi esse nome - foi a cortante resposta—. E o que tem que ver esse assunto
comigo?
Silver o olhou com desaprovação, agradecida de levar o véu que ocultava sua expressão.
— Encarregaram meu marido que fizesse chegar uma herança a um cliente. Infelizmente,
meu amado Archibald faleceu antes de poder completar a tarefa e eu vim até aqui para cumprir
com seu encargo. É o mínimo que posso fazer pelo pobre Archibald - acrescentou com tristeza.
Seu anfitrião começou a mostrar um crescente interesse.
—Uma herança, né? Uma herança importante?
—Bastante considerável.
—E a quem devem entregar. Não será para mim, por algum azar do destino?
—Temo que não. Não a menos que seu nome seja Blackwood.
—Blackwood? —O homem franziu o cenho—. O que a faz pensar que eu receberia um
criminoso tão notório como esse aqui? Este é um estabelecimento respeitável!
Silver fingiu inocência.
—Um criminoso? Ninguém havia me dito nada disso. OH, não, estou segura de que se
equivoca, senhor. Meu marido falava deste Blackwood em termos muito elogiosos.
—Então era ele quem estava equivocado - disse o proprietário com rotundidade—. E eu
não tenho entendimentos com criminosos em meu estabelecimento. Assim será melhor que vá,
senhora.
Nesse preciso momento bateram na porta. Uma mulher com um vestido de musselina
molhada quase até resultar transparente apareceu na soleira—.
— O requerem no piso de cima, senhor Fielding.
—Sim, sim, vou. Acompanha esta mulher à saída.
Isso era tudo o que ia conseguir em seu segundo intento, pensou Silver com tristeza. Ao
Kingsdon Cross noturno só ficava outro cenário de vício e perversão.
Sua última parada ia ser um pouco delicada, teve que admitir Silver. Quando viu as
carruagens que entupiam a entrada principal decidiu que delicada não era a palavra adequada
para o que se apresentava.
Seu destino era uma casa extremamente encantada situada junto a um belo arroio que
serpenteava até além dos subúrbios de Kingsdon Cross. Faróis brilhavam em todas as janelas e nos
degraus de entrada, que ficavam praticamente ocultos atrás das carruagens. Sim, era, com
diferença, o lugar mais concorrido da cidade aquela noite.
E Silver sempre tinha querido bisbilhotar no interior de uma casa de má reputação.
Seu véu negro provocou alguns comentários enquanto subia as escadas da entrada, mas a
maioria dos paroquianos do lugar estava em um estado de embriaguez muito avançado para
dedicar algo mais que um olhar rápido a essa viúva vestida de negro, de idade indeterminável e de
fortuna incerta.
Silver deslizou por detrás de dois cavalheiros que riam e entrou em uma das salas mais
elegantes do Kingsdon Cross. Seus olhos se abriram de par em par quando viu centenas de velas e
comida suficiente para alimentar um regimento.
Se má reputação (significasse isso o que significava) certamente parecia ser um negócio
florescente.
Abrindo passagem, Silver se encontrou em um encantador salão coberto com grande
quantidade de espelhos e dúzias de poltronas de veludo. Durante um momento ficou olhando ao
redor, confusa. Seguro que tinha cometido um engano. Isso não podia ser uma casa de
prostituição. As mulheres que via eram das mais elegantes e os homens eram tão bem vestidos
como qualquer um que ela tivesse visto em suas escassas visitas a Londres sem seu pai.
Entretanto, pouco a pouco, Silver foi notando outros detalhes. Os vestidos das mulheres
tinham um decote muito mais que pronunciado e os homens que se sentavam junto a elas
tomavam muitas liberdades na hora de colocar suas mãos.
Silver afastou o olhar precipitadamente e começou a olhar ao redor, procurando alguém
que estivesse a cargo de tudo aquilo. Uma chamativa mulher loira entrou no salão naquele
momento, dando ordens a um homem com um tapa olho que caminhava atrás dela. É agora ou
nunca, disse-se Silver.
Abriu caminho pela sala abarrotada para a proprietária.
—me perdoe, senhora. Posso falar com você?
A escultural loira se virou e dedicou a Silver um olhar avaliador.
—Procura trabalho, não é? Passando maus momentos, já vejo. Bom, terá que fazer a
entrevista, como todas as demais. Suba a ver Marie; o último quarto do segundo piso. Ela lhe dará
uma olhada. Antes de decidir teremos que ver seu rosto… e outras coisas também.
Silver tragou saliva.
—Temo que a confunda. Estou aqui por meu marido, o senhor Brown. Do Brown, Brown e
Green.
A mulher ficou rígida.
—Temos todo tipo de homens aqui. Não espere que recorde seus nomes… - Franzindo o
cenho fez um gesto ao homem tapa olho negro—. Se seu marido se desencaminhou, isso não é
meu assunto. Agora acredito que será melhor que vá.
Silver a interrompeu precipitadamente.
—Não, acredito que não me compreendeu. Meu marido, meu querido Archibald, morreu
antes de poder concluir a transmissão de uma herança a um de seus clientes. Encarregou-me que
terminasse o trabalho por ele, entende?
A mulher loira colocou as mãos nos quadris.
—Uma herança, diz? Duvido que seja para mim. Minha sorte me abandonou estes últimos
seis meses. Mas, me diga, quem é o afortunado?
—Um homem chamado Blackwood.
A mulher loira entreabriu os olhos.
—Blackwood? O que a faz pensar que eu tenho algo que ver com esse sujeito?
—Bom, não sei com exatidão. Mas me disseram… quero dizer… as pessoas da cidade diz
que…
—OH, sim, as pessoas de Kingsdon Cross diz todo tipo de coisas sobre meu
estabelecimento, mas aqui estou eu para desmenti-las, porque a maioria não é mais que mentiras.
Mentem as minhas costas, mas se apressam a agarrar meu dinheiro. Bem, em resposta a sua
pergunta direi que não vi Blackwood. Ao menos não durante semanas, o que é uma pena, porque
o homem paga bem. Assim, já vê, não posso ajudar.
—Se ele se deixasse cair por aqui, fará-me o favor de lhe fazer chegar a mensagem?
Falamos de uma soma considerável, assim estou segura de que estará muito… agradecido.
A mulher olhou fixamente Silver.
—Suponho que poderia arrumar-se. Onde pode a encontrar… se desse a casualidade de
que aparecesse por aqui?
—Estarei no Cross & Arms, mas só esta noite. Há muito pouco tempo antes que a herança
fique invalidada.
Os olhos da mulher voltaram a entreabrir-se.
—Já vejo. Se passar por aqui direi. —E com essas palavras se virou e fez um gesto ao
homem com o tapa olho.
A entrevista tinha terminado.
Com um suspiro, Silver se voltou para ir-se. Pensava que ia ser muito mais fácil. Depois de
tudo, um homem tão famoso como Blackwood devia estar por aí assaltando carruagens ou
fazendo honra a sua sórdida reputação em um dos três centros de vício de Kingsdon Cross.
Nesse momento, Silver sentiu que um homem com um colete carmesim a estudava do
outro lado da sala. Não lhe dizia nada o brilho de seus olhos, nem a expressão dura de sua boca.
Virou-se e se moveu com rapidez para a porta. Não era questão de tentar o destino,
depois de tudo.

Maldito sátiro, quem seria a pobre presa atrás da qual andava Sherringvale essa noite?,
pensou Blackwood enquanto observava um homem com um colete carmesim que se lançou
através do salão do bordel mais elegante de Kingsdon Cross.
A mulher não parecia muito agradada com seus avanços. Lógico, pensou Blackwood, já
que o homem tinha uma reputação tão negra como uma noite sem lua.
O bandido se confundiu entre as sombras e observou a sala. Só ia por ali de vez em
quando, movido mais pelo anseio de informação sobre os ricos visitantes que pela companhia
feminina. Quando decidia aparecer, entrava pela porta traseira e se assegurava de que não o
espiassem.
Pela extremidade do olho Blackwood viu Sherringvale cair sobre sua nova vítima, nesta
ocasião uma chamativa mulher coberta por um véu e um traje negros. Uma viúva ainda de luto?
Deus, não tinham fim os vícios antinaturais de Sherringvale?
Então Blackwood entreabriu os olhos.
Uma viúva? A que tinha ouvido que o estava procurando por toda a cidade?
E havia algo na forma em que as mãos da mulher agarravam seu porta-níqueis, algo na
forma em que se virava e enfrentava seu perseguidor sem arredar-se…
Não! Era impossível! Mas enquanto se dizia isto, Blackwood viu que Sherringvale agarrava
o ombro de sua cativa e a puxava para as escadas traseiras.
As escadas que levavam para os quartos privados.
Por Deus, a mulher estava resistindo.
Ela o atacou com sua bota. Blackwood sabia como eram os golpes desse feroz e pequeno
pé; conhecia-os intimamente.
Era ela, a mulher que tinha resgatado a noite anterior no urzal.
A mulher que não podia separar de seus pensamentos.
Que demônios ela estava fazendo ali?
Franzindo o cenho colocou a máscara e caminhou até as escadas traseiras. Pareceu-lhe
notar o evocador perfume dela, uma mescla de lavanda e rosas.
Um gancho de esquerda e um bom golpe na mandíbula com a direita seriam suficientes,
decidiu Blackwood com seriedade enquanto subia as escadas de dois em dois. Deu-se conta de
que desfrutava da idéia de ter uma boa briga. Proteger a honra de uma dama lhe parecia bem
nesse momento.
Mas ao chegar ao final da escada Blackwood parou em seco. Ficou ali, sem palavras,
olhando Sherringvale atirado ao chão, retorcendo-se de dor.
A mulher de negro estava colocando as dobras da saia.
—Mas o que fez, lhe deu um tiro? —Era uma brincadeira, é claro. Não dizia a sério.
Mas a mulher o olhou e teve um sobressalto.
—Até que enfim! Estive procurando-o por toda parte.
Blackwood agitou a cabeça.
—Não deveria estar aqui. Não é lugar para alguém como você. —Olhou para baixo, a
Sherringvale—. O que aconteceu? É que tropeçou e caiu?
Silver deu de ombros.
—Ele não estava sendo muito… amável, assim que lhe dei um chute. Em uma área um
pouco, e... bem, delicada.
Blackwood fazia uma idéia da área em questão. Estava-lhe atormentando bastante
naquele preciso momento.
—Deu-lhe um chute? —Ainda não podia acreditar.
A mulher de negro brincou com seu porta-níqueis e começou a parecer um tanto culpada.
—Meu tio me disse que possivelmente precisaria saber algumas coisas. Mas não era
consciente de que ia fazer tanto dano ao pobre homem. E sobre o lhe dar um tiro, nem teria me
ocorrido. A pistola segue na bota, claro.
—Ah, sim? —Blackwood desejou ferventemente não ter bebido tanto. O que dizia a
mulher não tinha nenhum sentido.
—Claro. Não queria ferir o pobre homem permanentemente. Além disso, atacar um
homem desarmado seria decididamente anti-esportivo.
O pobre homem? Sherringvale, que tinha arrastado a sua cama mais mulheres indefesas
das que Blackwood podia calcular?
—Não queria?
—É claro que não. O pobre homem não pode evitar ser vítima de suas incontroláveis
paixões masculinas.
—Já vejo. —Mas Blackwood não via. Absolutamente. Tinha que ser porque seu cérebro
estava embaciado pelo brandy. Sacudiu a cabeça e tentou de novo—. Incontroláveis o que? —
Demônios, nem sequer era capaz de repeti-lo.
—Paixões. Os homens não estão feitos para controlar-se, sabem? É tarefa das mulheres
preocupar-se de que os homens não se façam mal nem façam mal a outros como resultado de
seus rebeldes apetites.
Ela pareceu muito satisfeita consigo mesma. Tão satisfeita que Blackwood não se via
capaz de contradizer essa ridícula opinião.
—Suponho que neste caso não estamos falando do apetite para a comida.
—A comida também conta, suponho. Mas há outras coisas… - acrescentou vagamente.
—E quem lhe ensinou esse fascinante conceito sobre os homens? —Blackwood pensou
que gostaria de apertar o pescoço dessa pessoa.
—OH, ninguém me ensinou isso. Tenho-o descoberto por mim mesma.
Isso pensava.
—Já vejo. —Estava repetindo suas próprias palavras, mas não parecia poder parar.
Maldita fosse; toda a «lógica» dessa mulher estava fazendo que lhe desse voltas a cabeça. Tinha
havido alguma vez uma mulher nascida sobre a verde terra que Deus criou mais equivocada e mais
cabeça dura que esta?
Sherringvale, enquanto, estava começando a mostrar sinais de recuperação. Blackwood o
olhou e soltou um juramento.
—OH, Meu Deus, o machuquei?
—Muito bem, suponho. E duvido que o «pobre homem» esteja encantado quando se
recuperar - disse o bandido com brutalidade.
Silver mordeu o lábio.
—Não, suponho que não.
—Assim, querida, me conte a razão pela qual queria me ver. Ouvi por toda a cidade que
uma viúva estava perguntando por mim, mas nunca pensei que poderia ser você. E não acreditei
em toda essa história da herança nem por um momento!
De repente a mulher que tinha a frente dele ficou muito quieta. Depois farejou o ar.
Blackwood quase podia sentir seu olhar através do véu negro.
—esteve bebendo, senhor.
—Não o suficiente para que me afete, asseguro-lhe isso. Só o justo para ser perigoso.
Atrás dele chegaram risadas que provinham da escada. Blackwood franziu o cenho,
agarrou-a pelo ombro e a arrastou pelo corredor justo antes que uma mulher escassamente
vestida surgisse da escada agarrada no braço de um baronete calvo que lhe triplicava a idade.
—É claro que esteve bebendo - disse Silver entre dentes—. Posso cheirá-lo. E está
arrastando as palavras.
—Sempre arrasto as palavras - foi sua seca resposta—. É a máscara, entende?
—me faça o favor de tirar as mãos de cima de mim.
—É uma ameaça, querida? E se não o faço o que fará? Pretende me deixar fora de
combate da mesma maneira que fez com o «pobre» Sherringvale?
—Duvido que tenha êxito - disse Silver com franqueza.
—Ao menos têm razão nisso. —Blackwood afrouxou a pressão mas tomou cuidado de
não liberá-la de todo—. O que é isso tão importante que faz que tenha que me perseguir por toda
Kingsdon Cross? —disse com tom irritado.
—Necessito um lugar privado onde possamos discutir com calma.
—Talvez não deseje discuti-lo. Possivelmente não vim aqui para falar. —Nesse momento
Blackwood recordou exatamente por que tinha vindo. Maldita fosse, tinha estado tentando
esquecê-la. Seu fogo. Seu evocador aroma. Sua estranha e obstinada inocência.
Deus, ali estava tudo de novo!
Mais passos subiam pela escada traseira. Sir Charles Millbank apareceu com uma mulher
pelo braço.
Murmurando grosseiramente, o bandido agarrou sua cativa e a puxou para o corredor.
—Aonde me…?
—Silêncio.
—me solte! —vaiou Silver—. Se não, eu…
—Você, o que? Atirará-se aos braços desse porco do Millbank lhe suplicando piedade?
Arrependeria-se, porque se trata de um sujeito bastante desagradável. Ou pensa em lhe dar
chutes até que consiga submetê-lo também?
Isso era um golpe baixo e sabia. Mas, maldita fosse, aquela mulher era muito mais do que
qualquer um podia suportar. Nem sequer tinha suficiente bom senso para saber quando devia
sentir medo!
Silver simplesmente murmurou algo e tentou lhe chutar a perna com fúria.
Ao fim, ao chegar ao extremo do corredor, Blackwood encontrou uma porta aberta.
Empurrou à raivosa «viúva» dentro e deu um chute à porta para fechá-la.
—O que é o que pensa que está fazendo?
—Tentava encontrar um lugar seguro para falar. Porque viestes para falar, não é assim,
querida? —Blackwood estava realmente zangado agora. Acabava-lhe de arruinar uma noite
perfeitamente agradável. Já ia por bom caminho em sua tarefa de esquecê-la, mas agora isso era
impossível. Como podia algum homem esquecer uns olhos tão mutáveis como aqueles, que um
minuto eram verdes e ao seguinte, dourados? Essa pequena tola nem sequer deveria estar em um
lugar como aquele!
Blackwood decidiu lhe mostrar quão perigoso podia ser um lugar como esse.
Suas mãos se elevaram lentamente até seu lenço.
—Pensando melhor, possivelmente não seja falar o que deseja. Disseram-me que têm
uma proposta comercial para mim. —Ele a olhou, lentamente—. E se não desejar falar, sempre
podemos…
Silver esclareceu garganta.
—Falar será muito mais que suficiente, obrigado.
Blackwood estudou seu rosto.
—Me ocorre melhor forma de passar a noite.
—Sem dúvida lhe ocorre. Por desgraça não levo comigo nenhuma carruagem que possa
assaltar.
Isso freou os avanços do bandido radicalmente.
—Esteve mais que contente de encontrar comigo a noite passada.
—Ah, mas não estava bêbado então.
—E como sabe?
—Está tentando ser desagradável, senhor Blackwood?
—Será Lorde Blackwood para você. Tome cuidado de não confundir nunca o título de um
criminoso. Pode ser que com isso a faça zangar-se. E a resposta é sim, estou tentando
definitivamente ser desagradável.
Silver soprou.
—Pois esta conseguindo.
—Então, por que não vai? —Ele rezava para que o fizesse. Possivelmente assim se
separaria de sua mente. Entretanto, naquele momento lhe resultava difícil afastar os olhos da
apertado tecido que se esticava sobre seus seios. Deus Santo, o brandy devia estar lhe fazendo
delirar porque lhe parecia poder ver as pequenas e tensas protuberâncias de seus mamilos. E seu
aroma.
Recordava os suaves verões de sua juventude, as preguiçosas tardes de crepúsculos
aveludados. Às rosas que sua mãe estava acostumada cortar e colocar no salão de Swallow Hill.
Maldita seja, basta! Como conseguia essa mulher penetrar sob sua pele daquela maneira?
—Sim, por que não vai simplesmente? —repetiu com a voz rouca pelo crescente desejo.
—Não posso. Ainda não. —Elevou o queixo em um gesto desafiante—. Não até que tenha
acabado com os assuntos que me trouxeram até aqui.
—Assuntos? Que assuntos?
Silver não o ouviu. Estava ocupada examinando uma escultura de um homem e uma
mulher de pé, juntos, peito contra peito. Seus olhos se abriram muito ao descobrir que ambos
estavam completamente nus.
Com um juramento murmurado, Blackwood arrancou a escultura dos dedos dela e voltou
a colocá-la com um golpe sobre o suporte.
—me diga o que faz aqui. Se não vou fazer lamentar profundamente ter posto um pé
neste lugar!
—Acredita que poderia? —perguntou Silver interessada.
—Pode estar segura de que poderia!
Em sua abstração nenhum dos dois notou que um homem abria a porta.
—Está ocupado este quarto? —Sir Charles Millbank cambaleou na soleira, uma garrafa
em uma mão e uma mulher na outra.
Amaldiçoando entre dentes, Blackwood apagou de um sopro as velas do candelabro e
aferrou Silver contra seu peito.
A escuridão deveria ocultar sua máscara e lhes proporcionar um pouco de amparo frente
à curiosidade de Millbank.
Ela estava tremendo. Ele podia senti-lo com claridade. Ao fim a obstinada mulher se
sentia em perigo.
Mas esse pensamento não proporcionou a Blackwood nenhum prazer. Em vez disso, pôs-
lhe furioso.
—É claro que está ocupado. Fechem a porta, maldição . Há muitos outros quartos mais à
frente.
Millbank riu, bêbado.
—Não querem público? Um engano. —Emitiu um arroto etílico—. Os espectadores
podem ser muito excitantes, sabem?
Blackwood sentiu que Silver estremecia contra seu peito. Soltou uma sonora maldição.
—Acenderei as velas. E depois, o que lhe pareceria se você, nossa pequena amiga e eu…?
Não acabou a frase. Blackwood tirou uma pistola de seu bolso e apontou.
—Saiam daqui antes que dispare.
O homem pestanejou e começou a andar de costas para a saída do quarto que seguia às
escuras.
—Só era uma sugestão. Não precisa se por tão suscetível. Não queria… - De repente
parou em seco e entreabriu os olhos—. Que morra aqui mesmo se esse aroma não me for familiar.
Não pode ser, é claro, mas… - E ficou olhando fixamente as costas de Silver.
Blackwood colocou Silver atrás dele.
—Saia daqui, Millbank. Bebestes muito mais da conta. Seguro que não sabe nem onde
têm o nariz.
—É possível que tenha bebido muito, mas ela me resulta familiar. Poderia jurar que é…
—Minha acompanhante não lhe interessa absolutamente. —Blackwood engatilhou a
pistola—. Compreendeu-me agora?
—São muito pouco amistosos - disse o baronete franzindo o cenho. A mulher que ia ao
seu braço fez uma careta de decepção. Ambos se foram um momento depois.
Blackwood empurrou a porta para fechá-la e correu o fecho. Quando acendeu de novo as
velas, virou-se para Silver com uma expressão dura em sua face.
—E agora, senhorita, quero respostas. O que é exatamente o que esta fazendo aqui?
—Não há necessidade de gritar - disse Silver, ofendida.
—E quem está gritando? Simplesmente estou tentando obter algumas respostas. E se não
me der isso em dez segundos, tirarei-a daqui pela força!
Silver mordeu o lábio. Depois quadrou os ombros e finalmente disse:
—Eu… Eu necessito um homem.
Blackwood sacudiu a cabeça. Agora estava seguro de que tinha alucinações. Ela não podia
haver dito o que ele acreditava que acabava de dizer.
Mas estava equivocado.
—Um homem - repetiu ela despreocupadamente—. Desejo contratar os serviços de um
homem. Só por umas noites, é claro.
Contratar os serviços de um homem? Essa mulher estava completamente louca ou era ele
o que estava?
—Sim, quero um homem importante. Um criminoso duro e famoso. —Ela ficou olhando
Blackwood. Ele teria jurado que seus olhos se entreabriam especulativamente.
Ele sentiu que sua anatomia masculina se esticava dolorosamente. A forma de falar dessa
mulher o estava deixando louco.
—E para que necessita desse homem exatamente? —disse ele com um grunhido,
desejando que ela confessasse que tudo aquilo se tratava somente de uma brincadeira. Ou
possivelmente que ela se desvanecesse em uma espiral de fumaça e que ele se desse conta de que
tudo aquilo não tinha sido mais que um mau sonho.
Mas ela não se confessou nem tampouco desapareceu. Simplesmente o estudou, seus
ombros altos e orgulhosos.
—Necessito um homem para me destruir, claro. E por isso vim em sua busca, Lorde
Blackwood, porque você parece ser o melhor candidato para essa tarefa.

Capítulo 8
Blackwood soltou uma maldição. Muito sonora.
E logo amaldiçoou um pouco mais.
Pulsava-lhe a cabeça e se sentia muito pouco firme sobre seus pés. O agradável
atordoamento que tinha estado cultivando toda a noite se desvaneceu.
—A destruir? Mulher, está louca! —disse, e se separou dela. Sacudindo a cabeça se
concentrou em reacender todas as velas. Uma vez feito isto deu de ombros—. Agora, se me
perdoar, acredito que devo ir. Seguro que deve haver alguma carruagem que roubar em algum
lugar desta cidade - concluiu divertido.
—Não, não pode ir - disse Silver desesperadamente, bloqueando a saída.
—Não posso? Parece que nossos papéis se confundiram em algum momento, querida. Eu
sou o que deveria dizer isso, enquanto você grita e luta.
—Bom, eu não estou gritando nem lutando, como podem ver perfeitamente -
acrescentou ofendida.
—Sim que o vejo. Mas insisto em ir. Agora mesmo. Que tenha uma noite agradável.
Ela alargou a mão então. Ele sentiu um tremor que percorria seus dedos. Esse leve
movimento o fez amaldiçoar. E esse maldito véu negro que levava ela…
Não podia suportar vê-lo durante um segundo mais. O levantou, ansioso por ver seu
rosto. Só assim poderia assegurar-se de que o estava escutando, tentou convencer-se Blackwood.
—Agora me escute, mulher. Isso que acaba de dizer é possivelmente o mais extravagante,
o mais ridículo…
Ele se deteve. A fúria começou a pulsar em seu interior quando viu o hematoma negro
que ela tinha na têmpora.
—Quem lhe fez isso, meu raio de sol? Já lhe disse que os lugares como este são perigosos.
Por Deus, se tiver sido esse animal do Sherringvale, eu…
Silver sacudiu a cabeça.
—Não, não foi Sherringvale. Foi outra pessoa. —Ela fechou os punhos—. Tudo é bastante
complicado.
A expressão da boca de Blackwood se endureceu.
—Não é nada complicado. Diga-me seu nome e eu o matarei.
—Aí está a complicação; é que não conheço seu nome. Nem tampouco sei por que o fez.
—Silver se separou dele e se deixou cair na grossa cama de plumas. Deitou-se devagar, primeiro
provando sua resistência com cuidado.
Blackwood podia ver como trabalhava seu fértil e pequeno cérebro. Fazendo-se
perguntas. Imaginando-se. Ele cruzou o aposento, agarrou sua mão e a obrigou a ficar em pé de
novo.
—Não. Aí não. Pode descansar ali, nessa poltrona. —E a empurrou para que se sentasse
nela, franzindo o cenho. Tudo aquilo estava fazendo migalhas a seu autocontrole.
Silver o olhou com curiosidade.
—Nem sequer agora pode tirar a máscara? Ninguém pode vê-lo aqui.
—Você pode.
—OH, é obvio. Tinha esquecido de seu desfiguramento.
Blackwood emitiu uma risada abafada.
—Meu o que?
—Não precisa me ocultar isso. Contaram-me a história sobre como ocorreu. Posso
entender que algo assim o faça se sentir incômodo.
Definitivamente tinha tomado muito brandy, pensou Blackwood airadamente.
—E exatamente onde se supõe que tenho essa desfiguração?
Silver lhe dedicou um olhar pormenorizado.
—Ainda não pode pensar nisso, não é? Nem sequer passados todos estes anos. Bom, todo
mundo sabe. Seu mosquete lhe explodiu no rosto a noite que parou sua primeira carruagem, lhe
produzindo terríveis queimaduras. —Ela mordeu o lábio—. Deve ter sido horrível. Entendo por
que têm medo de mostrar seu rosto às pessoas depois daquilo. Mas devo lhe dizer que não sou
facilmente impressionável, asseguro-lhe isso. Não deve temer que desmaie - disse endireitando os
ombros.
Blackwood viu que ela estava se preparando para o pior.
Desfiguramento? Mas do que estava falando aquela tola mulher agora?
—E suponho que não me poderá dizer como ocorreu aquilo, não é?
—A bala de sua arma ficou engasgada - explicou Silver pacientemente—. Mas
possivelmente o ajudasse contá-lo. Falar sobre isso possivelmente alivie as dolorosas lembranças.
Seu interesse por seu estado estava fazendo que Blackwood se zangasse cada vez mais.
Tinha um rosto em perfeitas condições sob a máscara, mas não tinha intenção de corrigir à
mulher. Podia ser que essa fosse uma boa forma de mantê-la a distância.
Mas Silver St. Clair não estava de acordo. Levantou-se e tentou lhe tirar a máscara.
—Estou segura de que não pode ser para tanto. Talvez se eu…
Blackwood afastou violentamente seus dedos. A proximidade da mulher estava fazendo
que lhe pulsasse a cabeça de novo. Ali estava ela, de pé em meio de uma casa de prostituição,
pelo amor de Deus. Podia ouvir risadas etílicas do outro lado do corredor. No quarto do lado
rangiam as molas de uma cama. Só pensar no que estava passando ali fazia que seu pulso se
acelerasse de forma incômoda.
—Não, obrigado - grunhiu.
Silver parecia decepcionada. Logo inclinou a cabeça, escutando.
—O que é esse estranho ruído?
—Que ruído? —A voz do Blackwood soou estrangulada. No quarto do lado se ouviu
madeira chocando violentamente contra madeira e viu como a parede começava a agitar-se.
—Esse ruído. Nunca ouvi que se produziu um terremoto aqui em Norfolk.
—Serão ratos - murmurou Blackwood.
—Ratos? Mas certamente…
—Mas nada! —O suor começava a perlar sua testa. —Você irá sair daqui. Agora mesmo.
Silver suspirou. Afastou o cabelo que tinha caído sobre os ombros.
Era espesso e brilhante. Blackwood se perguntou o que sentiria ao levar uma mecha de
seu cabelo aos lábios. Já sabia exatamente como cheiraria: lavanda e violetas da primavera. Sua
boca teria o tato da seda e o sabor de…
Agora estava seguro de que estava perdendo a cabeça!
Silver olhou para cima para estudar o espelho que pendurava sobre a cama. Sua
expressão era de confusão.
—Que lugar mais curioso para colocar um espelho. —tirou as luvas e o manto, olhando
com curiosidade a seu redor—. Assim que este é o aspecto que tem uma casa de má reputação…
Deus Santo.
Blackwood ficou olhando, incapaz de acreditar que ela realmente tivesse ido até ali em
sua busca!
—Em nome de Deus, o que é o que está fazendo alguém como você em um lugar como
este, mulher?
—Quão mesmo fazem vocês nestes lugares, suponho.
Blackwood afogou uma gargalhada.
As sobrancelhas de Silver se elevaram.
—Encontra-se bem?
—Não, o certo é que não. —E não estava. E não o tinha estado do mesmo momento em
que a conheceu!
—Que demônios se supõe que significa isso?
—Que estou aqui para fazer negócios, da mesma forma que você.
—Em um lugar como este? Maldição, está arriscando sua vida, sua posição e inclusive sua
honra, mulher!
—Arrumei isso perfeitamente até agora.
Sim, essa era a parte irritante, teve que admitir Blackwood. As tinha estado arrumando
bastante bem. Inclusive tinha conseguido tirar Sherringvale de cima dela. Esse homem necessitava
um castigo. Só de pensar em como tinha agarrado Silver e a puxado escada acima fazia que
Blackwood tivesse ganas de dar-lhe ele mesmo.
Mas primeiro tinha que tirá-la dali!
Silver, enquanto isso, afastou-se dele, tinha pego uma garrafa de cristal de um suporte,
vertido sua líquida cor âmbar em um copo e bebido com desespero. O licor fez que sua cabeça
girasse durante um momento, mas o calor que proporcionava era bastante agradável. Depois do
segundo gole sentiu que uma sensação agradável a embargava. Depois do terceiro gole voltou a
enfrentar Blackwood.
—O assunto é muito simples. Necessito que me destruam.
—Isso é completamente ridículo.
O bandido começou a caminhar sem deixar de pensar freneticamente na maneira de tirá-
la daquela casa de má reputação sem que a descobrissem.
Nem a ele com ela.
Silver ficou olhando o copo vazio e voltou para o suporte para enchê-lo. Ela não estava
segura do que era esse líquido, mas cada vez lhe parecia melhor.
—É perfeitamente lógico. Recebi ameaças de gente que insiste em que abandone minha
propriedade, onde cultivo lavanda. Mas eu não posso ir, agora não.
—Diria que se internastes no lado equivocado da lei para resolver um problema como
esse, pequena. Tentem com os juízes. Esse é seu trabalho.
—Não posso. Lorde Carlisle foi a Londres e estará ali por três semanas.
—Então espere que volte.
—Não tenho tanto tempo! —Silver rebuscou em seu porta-níqueis e tirou a nota que
tinha chegado envolvendo o tijolo.
—Olhe. —Seus dedos tremiam quando a estendeu. Blackwood jogou uma olhada à nota e
se sentou bruscamente.
Silver se deixou cair junto a ele, o que afastou qualquer possibilidade de que ele pudesse
esclarecer sua cabeça apesar dos eflúvios do brandy. Maldita fosse, como podia um homem
pensar com uma mulher como ela a só uns centímetros, com o rosto avermelhado e o cabelo
como uma selvagem nuvem avermelhada ao redor de seus ombros?
Isso não era correto, Por Deus! Parecia um anjo. Demônios, inclusive cheirava como um
anjo. Mas Blackwood sabia que ela era um demônio de posse de armas.
—Vê? —disse Silver ansiosa.
Ele via o suficiente para saber que isso significava problemas.
—Quem é o menino?
—Meu irmão mais novo, Brandon. Vão machucá-lo se não formos.
Os olhos de Blackwood se entreabriram.
—Assim que você é Silver St. Clair, não a criada com muito trabalho com quem a
confundi.
—Sou. —Na face de Silver apareceu uma pequena covinha—. Mas eu também tenho
muito trabalho e muitos dias me sinto como uma criada.
—Bom… acredito que só há uma coisa que podem fazer. Abandonar a propriedade,
maldição.
—Não posso! —disse Silver dando uma patada no chão—. Não o farei. Agora não.
—me escute, senhorita St. Clair. Não posso lhe ajudar. —Blackwood tocou com um dedo
a borda da máscara—. Não, não vou ajudá-la. Nem sequer o pense. Acredite-me, agradecerá-me
isso pela manhã, quando recuperar o bom senso. Agradecerá-me isso profundamente.
—É obvio que pode me ajudar, cavalheiro insofrível. Pensei nisso atentamente. Esses
vilões não vão retroceder em seu empenho. Por alguma razão parecem determinados a ficar com
minha propriedade. Assim que quão único posso fazer é superar jogando seu próprio jogo.
Blackwood nem sequer queria ouvir isso.
Mas Silver seguiu implacavelmente.
—Querem me assustar? Bem, então tenho que encontrar alguém que ponha mãos à
obras primeiro. Alguém com uma reputação criminosa pior que a deles. Alguém vil, traidor, com
sangue-frio…
A imagem estava clara.
—Obrigado pelo cumprimento - disse ele, muito sério.
—Não era um cumprimento, senhor. Simplesmente é o indivíduo perfeito para os
assustar, não o vê? Não se atreverão a pôr um pé em meus campos se o famoso Lorde Blackwood
já pôs seus olhos neles. Depois, uma vez que tudo isto passe, eu contarei que você me obrigou a
estabelecer uma conexão ilícita. Dessa forma, uma vez que possa prescindir de seus serviços,
ninguém poderá usar tudo isto contra mim. Direi que me era impossível o deter. —Seus olhos
brilharam triunfantes pela perfeição de seu plano.
De que cor eram exatamente?, perguntou-se Blackwood distraidamente. E que perfume
levava?
—Bem - disse Silver impacientemente—, o que pensa?
—Pensar? É perfeitamente lógico, certo, exceto por um pequeno problema. Se a vêem
comigo, você ficará destruída para sempre e sem nenhuma esperança de redenção. Não importará
quantas historias inteligente invente, nunca terá a possibilidade de voltar atrás. Isso ficará para
sempre contra você.
—Sim? —disse com os olhos muito abertos—. Não tinha nem idéia de que tinha tão má
reputação.
—Bom, agora sabe - disse o bandido com um sorriso—. Assim não falemos mais desse
despropósito.
—Mas isso é perfeito! Sua reputação é tão escura que servirá perfeitamente para
espantar completamente esses criminosos.
Definitivamente a aquela mulher faltavam um par de parafusos, decidiu Blackwood. Esse
disparatado plano que acabava de contar começava a lhe parecer cada vez mais lógico. E isso o
assustou mais que nenhuma outra coisa que tivesse acontecido aquela noite.
Ficou em pé franzindo o cenho. Algo para ficar a salvo daquelas faces brilhantes e esses
olhos variáveis. Longe desse muito claro e doce aroma de lavanda e esses lábios carnudos que lhe
provocavam o desejo de aproximá-la dele e…
—tive suficiente!
—Está de acordo então?
—É claro que não! A idéia é descabelada. E eu devo estar louco por a escutar.
Silver o olhou fixamente durante um momento e depois juntou suas mãos.
—Vá. Agora está preocupado por mim. Acha que não serei capaz de me cuidar por mim
mesma. Bom, está equivocado. Tenho muita experiência com os homens, asseguro-lhe isso.
Arrastava um pouco as palavras, notou ele. O que é que tinha estado bebendo daquele
maldito copo?
—Ah! Vejo. E assim é como aprendeu tudo o que sabe sobre essas… paixões masculinas
das que falava antes.
—Certo.
—Essas urgências das que falava, têm-nas todos os homens?
—Acredito que sim.
—Eu incluído?
Ela se ruborizou.
—Não vejo por que você não.
—Nesse caso - disse Blackwood Sorrindo maliciosamente ao vê-la entrar por seu próprio
pé na armadilha que acabava de lhe estender—, como sabe que eu não vou me deixar levar por
essas escuras inclinações e a destruir de verdade?
Durante um breve instante a tristeza e a angústia cruzaram seus olhos.
—Não sei. Ao menos não estou segura. Ontem, no urzal, podia haver me ferido ou
roubado, mas não o fez.
Blackwood fez um nó na garganta. Ela não tinha nem idéia do que tinha entre as mãos.
Ele era frio e desumano, e quanto mais depressa soubesse melhor.
—E você acredita que isso indica que sou amável ou que se pode confiar em mim? —A
expressão de Blackwood era dura e lúgubre à luz de uma só vela tremula—. Conhecestes muitos
homens, não é assim?
—OH, centenas deles - disse Silver sem lhe dar importância.
—E suponho que lhes deu carta branca. —Sua expressão se endurecia por momentos—.
Para beijá-la… e tomar outras liberdades…
—Só aquelas que eu desejava - disse ela escrupulosamente.
—E o que há em mim?
—OH, não gosto de você - disse Silver com franqueza—. Simplesmente o necessito.
—Isso é o que se chama falar claro. —O bandido se aproximou com a boca tensa—. Mas
me pediu que a destrua. Para conseguir isso um homem necessita…
Aqueles olhos terrivelmente luminosos se abriram muito.
—Um homem necessita o que?
Isso era muito.
No momento seguinte ela se encontrou apertada contra ele e com as mãos masculinas
enterradas em seu cabelo brilhante. Blackwood pensou que ela resistiria, gritaria ou tentaria
escapar. Demônios, estava rezando para que o fizesse.
Mas não o fez. Simplesmente ficou olhando-o com uma pergunta nos olhos e os lábios
abertos. Suave e cheia de perguntas.
—Não me olhe dessa maneira - resmungou ele.
—Mas lhe devo a vida. Acredito que devo lhe dar qualquer coisa que me peça - disse
brandamente a mulher que tinha em seus braços.
Havia uma sinceridade nela que o deixou sem fôlego. Deus Santo, dizia de verdade. A
porta estava fechada com chave. Estavam em um lugar no qual ninguém ia fazer perguntas sobre
seus gritos. Em poucas palavras, podia fazer qualquer coisa que quisesse com ela.
E ali estava ela, oferecendo-se dessa maneira. A Blackwood ocorriam uns cem lugares por
onde começar.
Primeiro lhe tiraria esse horrível vestido negro para poder ver sua pele, que sabia que
seria tão suave como seu perfume. Depois saborearia o rubor de suas faces. E por fim deslizaria
pouco a pouco para baixo, percorrendo com sua língua esses redondos seios que empurravam o
tecido negro e que o estavam excitando tanto que…
Separou-se dela com a mandíbula tensa.
—É impossível. Esqueça.
—Sinto lhe haver dado um chute. É meu maldito caráter. Herdei-o de meu pai - sussurrou
Silver.
—Acredito que sobreviverei.
Ela cambaleou levemente e lhe escapou um soluço.
—Também sinto seu acidente com o mosquete. Deve ter sido terrível. Entendo que tenha
podido fazer que perdesse a confiança nas pessoas.
Dizia-o de verdade, Por Deus.
Blackwood a olhou fixamente, seu pulso martelando sob sua mandíbula. Ela estava no
prostíbulo mais famoso de Kingsdon Cross, cativa nos braços do criminoso mais nefasto do
condado, e estava se preocupando com ele! Tinha aquela mulher alguma idéia dos riscos que
estava correndo?
Ela pestanejou.
—Sinto-me… estranha.
Antes que Blackwood pudesse tentar colocar um pouco de bom senso naquela cabeça
preciosa e obstinada, Silver emitiu um breve suspiro e desmaiou. Justo em seus braços. O brandy
que tinha bebido tinha feito efeito.
Amaldiçoando, Blackwood a levantou em seus braços e a levou para a porta. Ao menos
agora sabia o que é o que havia naquele copo!
Cruzou o corredor, que por sorte estava vazio. Não tinha mais remédio que levá-la de
volta a sua casa; obviamente não podia deixá-la ali. Ela seria a presa perfeita para qualquer
bêbado que rondasse por ali procurando uma noite de prazer.
Alguém como você?, sussurrou-lhe uma vozinha em sua cabeça.
—Demônios, eu não - murmurou Blackwood, sentindo-se culpado.
Esse era o final, o final definitivo de sua relação com aquela mulher. Deixaria-a ao pé do
caminho que levava a sua casa e lavaria as mãos no que se referia a ela. E depois disso ia tirar
Silver St. Clair de sua cabeça para sempre!

Capítulo 9
Silver despertou sobressaltada.
O ar frio banhou sua face e fez que lhe desse voltas a cabeça. Levantou-se sonolenta,
perguntando-se por que sentia a garganta como se a tivesse cheia de pelos de Cromwell.
Fazendo o esforço de abrir um olho pôde ver a silhueta de uma carruagem. A terra escura
se via passar rapidamente sob as rodas.
Com um grunhido voltou a fechar os olhos. Se sentir-se assim era parte de ter má fama,
não queria saber nada disso!
Então começou a pensar no homem que segurava as rédeas. Devia tê-la tirado daquele
lugar nos braços. Silver sabia que devia agradecer-lhe mas se negava a fazê-lo. Não queria estar
em dívida nem com ele nem com ninguém mais!
—Parem neste mesmo momento! Aonde me leva?
—A casa - resmungou Blackwood—. Aonde você pertence. Possivelmente alguém tenha
suficiente bom senso para ocupar-se de que fique ali.
—Não posso ir para casa. Ainda não. —Silver fez uma careta de dor porque o som de sua
voz fez pulsar sua cabeça—. Oooooh…
—recoste no assento - disse Blackwood com aspereza—. bebeu quase a metade da
garrafa de brandy. Vai-lhe doer muitíssimo a cabeça pela manhã.
—Já me dói - disse Silver irritada.
—Castigo bem merecido, bruxa - disse Blackwood enquanto se virava no assento
dianteiro. Seus olhos a analisaram enquanto lhe afastava uma mecha de cabelo do rosto.
Um estranho calor invadiu o peito de Silver. Quando a olhava daquela maneira, quando a
tocava com essa suavidade…
Ela franziu o cenho, entendendo com atraso o que ele acabava de dizer.
—Brandy? É brandy o que bebi? —Entreabriu os olhos—. E quanto tempo estive
inconsciente, me diga, criminoso? E o que fez comigo enquanto dormia?
—Não recorda? —Blackwood emitiu uma risada pícara—. Acreditei que estivesse
procurando um homem para destruí-la, meu raio de sol… Não era esse o trabalho que me estava
oferecendo?
Silver sentiu que o rosto ficava carmesim.
—claro que sim. Mas se supõe que só devia ser uma farsa!
—Uma farsa? Perigosa, muito perigosa. Não há muitos homens que ouçam uma oferta
como essa e não a tome ao pé da letra. Sim, eu diria que uma oferta como essa tem que ser real
ou não teria nenhuma validez.
Havia dureza em sua voz. E também se notava a mesma avidez que Silver tinha ouvido a
noite anterior no urzal. Quão mesma a tinha deixado sem fôlego e insegura então.
E que provocou as mesmas sensações nela agora.
Maldito fosse aquele homem! Ela não tinha intenção de cair em suas armadilhas ou
deixar-se apanhar por seu maldito encanto. Não é que tivesse muito encanto, pelo menos pelo
que ela podia ver. A noite anterior lhe tinha parecido descarado, frio e… bom, maravilhoso.
Mas nada mais.
Esta noite tinha visto sua arrogância e sua prepotência. E ela não estava pelo trabalho de
acovardar-se e começar a receber ordens só porque ele fosse um homem e pensasse que sabia
melhor que ela o que lhe convinha.
Não, ele simplesmente era o meio para chegar a um fim. Tratava-se de um negócio e não
havia nada mais entre eles. Mas antes que pudesse falar, o bandido se virou e riu com dureza.
—Vou dar um conselho, pequena. Tenham mais cuidado com o que deseja, porque pode
ser que o consiga.
Insolente! Silver se retorceu tentando alcançar a pistola de sua bota. Desejou lhe disparar
uma bala nas costas naquele mesmo momento.
Mas não podia, é claro. Seu tio Archibald a tinha ensinado a ter uma adequada conduta
esportiva. Simplesmente não podia atirar num homem desarmado e muito menos pelas costas.
Nem mesmo que se tratasse de um famoso bandido.
Silver teve que contentar-se mantendo um imperioso silêncio. Blackwood não se
mostrava visivelmente irritado por seu comportamento. De fato, nem sequer pareceu notá-lo.
Coisa que só conseguiu fazer que ela ficasse ainda mais furiosa.
Puxou a saia que tinha enredada sob seu corpo. Voltou a perguntar-se o que lhe teria
feito ele durante o tempo que tinha estado inconsciente. Franziu o cenho e comprovou os botões
de seu vestido.
Todos intactos, graças a Deus. Ele estava brincando com tudo aquilo de destruí-la, é claro.
Seguro que estava brincando?
O que estava claro era que não ia proporcionar-lhe o prazer de perguntar-lhe.
Finalmente chegaram ao estreito caminho que subia pela colina e chegava a Lavender
Close. Silver não ia permitir que a levasse mesmo até a porta da casa.
—Bem, foi uma noite maravilhosa - disse ela cortesmente—. Uma verdadeira delícia.
Agora pode me deixar aqui mesmo.
Ela saltou da parte traseira do veículo e caminhou decididamente para a parte alta da
colina, ainda tentando arrumar suas desordenadas saias.
A risada baixa de Blackwood provocou que se voltasse.
—O que lhe parece tão gracioso, delinqüente?
Ele negou com a cabeça, incapaz de falar. Quando o fez, o tom de sua voz era todo rum e
açúcar.
—Não esqueceu de algo, meu raio de sol?
Podia ser que o odiasse, mas Silver tinha que admitir que o homem tinha uma voz que
podia fazer cantar às pedras. O som desta fazia que lhe arrepiasse a pele em todo o corpo.
—Se está esperando um beijo de boa noite, temo que irá estar aí, esperando, até que o
inferno gele!
Sua risada abafada freou sua atitude.
Enrugando a testa, Silver olhou para baixo.
E teve que soltar um grito abafado.
Sua pesada saia negra estava completamente inclinada e enganchada ao redor de sua
cintura, mostrando as gastas calças de montar que levava sob o vestido. Só que agora uma das
pernas das calças estava aberta e deixava ver sua pele de marfim da cintura até bastante mais
abaixo da curva de seu quadril nu.
A cara começou a lhe arder. Suas mãos tremiam enquanto tentava juntar as bordas do
tecido rasgado.
—me deixe ajudar - disse ele saltando ao chão.
—Não! —Ele estava pondo tudo muito fácil para que baixasse a guarda, para que
esquecesse que quão único havia entre eles era um acordo de negócios—. Não necessito sua
ajuda. Não posso permitir-me precisar de ninguém. E tampouco tenho intenção de começar por
um bandido arrogante e odioso que está mais louco que uma cabra!
Sua voz se quebrou.
Blackwood franziu o cenho com expressão concentrada. Não tentou detê-la. Só ficou ali,
vendo-a perder-se na noite.
Deveria ter feito um milhão de coisas.
O grande tanque destilador de cobre necessitava uma limpeza e teria que preparar os
óleos para as provas do dia seguinte. Tinha que enquadrar nas contas da semana e tinha pedidos
de fragrâncias que teria que refletir nos registros.
Mas não tinha feito nada disso.
Deixou-se cair na cômoda poltrona velha de seu pai e escondeu o rosto entre as mãos.
Odiava Blackwood. Desejava que estivesse morto. Queria…
Mas não queria. Não queria absolutamente.
Odiava a si mesma porque ele a fazia sentir tão temerária, tão curiosa, tão ansiosa por ter
todas as coisas que nunca poderia ter… Sua responsabilidade era com Bram e com Lavender Close
e isso nunca devia esquecer.
É claro, dizia-se Silver, a atração que lhe produzia só respondia que ela conhecia pouca
gente ali, encerrada nessa área separada de Norfolk… Só se devia a que lhe tinha mostrado uma
amabilidade inesperada em um momento de terror.
E quanto se esforçou por acreditar isso!
Mas ali, sentada na escuridão, rompendo uma folha de lavanda em pequenos e fragrantes
pedaços, Silver começou a compreender a grande mentira que era tudo aquilo.
E também soube que sua vida nunca voltaria a ser fácil.

—O que eu quero saber é onde esteve e o que estiveste fazendo ali.


Com os olhos chamejantes, Tinker estava de pé no centro da estufa com o cenho franzido.
Ainda tinha as mãos cheias do pó das flores secas que tinha estado classificando no armazém que
havia na parte baixa da colina.
Silver piscou à luz da lanterna, perguntando-se quanto tempo levara ali sentada na
escuridão.
Fazendo-se perguntas.
Negando-se.
Desejando. Sim, Meu Deus, esperando com toda sua alma que…
Passou os dedos cansados por sua dolorida cabeça. Além das paredes de vidro que a
rodeavam, a lua já quase tinha desaparecido.
—Já lhe disse isso, Tinker. Fui em busca de Blackwood. Era nossa única esperança e não
me importa que você não goste. Tínhamos que fazer algo, não? Inclusive embora esse homem
arrogante e impossível acha que pode…
Um som estridente saiu da garganta de Silver.
Umas mãos nodosas e castigadas pelo trabalho agarraram seus ombros.
—Não, Silver, querida. É comigo com que está falando, com o velho Tinker, recorda?
Um momento depois ela estava em seus braços. Todo seu corpo se estremecia em
pranto. O ancião, sabiamente, deixou-a chorar sem interrompê-la.
Só quando os rasgados e profundos soluços deixaram passo a um soluço mais brando,
Tinker tirou um enrugado lenço e o pôs diante do rosto.
—Bem. Agora me conte isso tudo.
—Chegou outra nota. Eu… eu limpei a maior parte dos vidros e pus um vaso de barro para
ocultar o buraco no cristal, mas ainda se pode ver por onde entrou o tijolo.
Tinker soltou uma maldição.
—por que não me disse isso, menina?
—Porque não queria preocupá-lo. Acreditei que poderia arrumar isso por mim mesma.
Pensei que ele estaria de acordo comigo em que se tratava de uma idéia perfeita.
—Ele? Blackwood, quer dizer?
Silver assentiu rigidamente.
—Por todos os Santos do céu, não me diga que foi em busca desse bandido!
—É obvio que o fiz.
—A uma briga de galos?
Ela assentiu desafiante.
—A uma casa de jogo clandestino?
Outro assentimento.
—Deus Santo, mas não a…
—Exatamente. E o encontrei precisamente ali. Mas ele não quer me ajudar. Ele… ele riu
de minha idéia!
—Isso é o que tinha que fazer.
Silver espremeu o velho lenço furiosa.
—Esse porco do Millbank estava ali também. Quase me viu, mas Blackwood me ocultou
contra seu peito bem a tempo.
Tinker enrugou a testa.
—fez o que?
—OH, mas não da forma que imagina - disse Silver com impaciência—. De fato esse
maldito homem parecia não poder esperar para me tirar daquele lugar. Não lhe interesso o
mínimo nesse sentido. Nem sequer quando Millbank disse que queria que eu… que nós… —E se
deteve ruborizando-se.
Tinker ficou rígido de raiva.
—Matarei esse porco pervertido! Já tive suficiente de suas tendências libidinosas!
Uma risada insegura chegou da cabeça que tinha apoiada no peito.
—Essa linguagem, meu querido e velho amigo! O que diria minha mãe…?
—Nada, por desgraça, porque sua Santa mãe não está neste mundo para poder dizer
nada. E isso não é nem a metade do que tenho vontade de lhe dizer agora mesmo, pequena. No
que estava pensando para ir a um lugar como esse? E sozinha. Eu lhe disse uma e outra vez que
não deve ir a nenhuma parte sem mim. Especialmente de noite.
—Sei, sei - murmurou Silver, e lhe dedicou um sorriso inseguro—. Mas agora é muito
tarde para esses escrúpulos. Já estou muito longe da redenção.
—Não, não está, senhorita. Não quero voltar a ouvir falar disso.
Silver sorveu pelo nariz.
—Muito bem, Tinker.
—Um. Mais vale que assim seja porque se voltar a escapar dessa maneira, menina,
ocuparei-me de que não possa voltar a sentar por uma semana!
Silver lhe deu um leve beijo em sua face curtida pelos elementos.
—De verdade que sinto. Sei que Bram e eu não fomos mais que uma moléstia para você
desde que meu pai morreu.
—Uma moléstia? Fostes muito mais que isso, senhorita Silver.
Os olhos do ancião brilharam por uma lágrima repentina e ele esclareceu garganta
bruscamente.
—Mas não trocaria nada, ouviu-me? Sim que é certo que passamos por uma boa
quantidade de apuros, muitos mais dos que quisesse, e mais que teremos que passar, mas o
superaremos. Só espere e verá.
—Sempre o fazemos, não é assim? —Silver lhe dedicou um amplo sorriso que só titubeou
um pouquinho.
—É claro. E voltaremos a fazê-lo. Agora à cama, senhorita. Temos grande quantidade de
planos que fazer amanhã. Irei procurar alguns homens da cidade para que nos ajudem. Não tenho
intenção de me sentar e esperar a que esses bestas retornem.
Mas assim que Silver saiu, o homem de cabelo branco se deixou cair na única poltrona da
oficina e afundou os ombros.
Não ficava nenhum rastro de humor em sua cara curtida então.

A lua estava se pondo quando Blackwood entrou através de uma entrada secreta que
havia na sebe de tejos. Puxou brandamente Diabo para a grama que levava até Waldon Hall. Atrás
dele se elevava a elegante casa ancestral, diante de uma escura olmedal e com suas grandes
janelas só iluminadas pela lua.
As rosas e o jasmim alagavam o ar noturno com sua fragrância.
A doçura de sua fragrância o recordava uma mulher com os olhos verdes e dourados.
Franzindo o cenho, o filho mais velho do oitavo duque do Devonham abriu a porta que
levava até o tranqüilo jardim. Ardia-lhe o peito e lhe doía o ombro.
Mas já estava seguro.
Ninguém em Kingsdon Cross sabia que ele era o proprietário de Waldon Hall, é claro.
Lucien Reede Tiberius Fitzgerald Delamere, o filho mais velho do duque de Devonham, tinha posto
muito cuidado em que ninguém se inteirasse.
Inclusive o anterior dono de Waldon Hall acreditava que o comprador tinha sido um rico
comerciante da Companhia das Índias Orientais que acabava de voltar da Índia, um homem de
riqueza incalculável que desejava estar sozinho e encerrar-se em sua velhice.
Sim, isolada a propriedade era o esconderijo perfeito. Como esperava, ninguém
incomodava Luc naquele lugar. Para poder realizar suas correrias noturnas se movia com
segurança e em segredo pela dúzia de entradas e túneis ocultos do imóvel. Essa tinha sido uma
das razões pela qual Luc se decidiu ao fim por aquele lugar. Sua proximidade ao urzal e a estrada
principal foram outras.
Esta era sua casa agora, disse-se Luc tristemente, não Swallow Hill, a magnífica
propriedade de Norfolk que tinha sido a principal casa de sua família durante oito gerações. Nem a
elegante casa de Berkeley Square, em Londres. Nem a reserva de caça na Escócia.
Waldon Hall era mais que suficiente para o bandido mais famoso de Norfolk. Só Jonas,
seu fiel companheiro, conhecia o segredo do passado aristocrático de Luc.
E Luc pretendia que isso seguisse sendo assim.
Tirou a máscara. Um sorriso cruzou seu rosto de traços cinzelados ao pensar em Silver St.
Clair. Essa mulher problemática e inconfundível.
Mas Luc sempre tinha sido um homem que desfrutava com os problemas.
Colocando a capa sobre um ombro, tentou identificar o que era exatamente o que fazia
ela para conseguir sempre o levar ao limite dessa maneira.
Não podia ser sua astúcia, porque não demonstrava nenhuma. Nem suas artimanhas
femininas; não tinha nada disso e teria que dar graças a Deus por isso. Sinceramente, essa
pequena bruxa resultava tão fresca e pouco instruída como uma colegial. Inclusive tinha tido a
temeridade de fazê-lo acreditar que se tratava de uma simples criada.
Simples? Não, não havia nada de simples em Silver St. Clair, pensou o bandido.
Ela era a tormenta e o fogo. Todo calor sem freio quando um homem menos esperava. E
a combinação era imensamente perigosa!
O bombear de seu sangue se acelerou ao pensar em como ela se fundiu com ele em seu
beijo no urzal. Em como se enfrentou com o animal do Sherringvale. Coragem, pensou, com uma
mescla de inocência e paixão que resultava completamente aditiva.
Sem deixar de murmurar, o filho de um dos homens mais ricos da Inglaterra abriu a porta
que levava aos porões de Waldon Hall. Tirou o chapéu e a capa e subiu as escadas para a ala
central da casa.
Simplesmente não voltaria a vê-la. Ia ser difícil, mas seria capaz de fazê-lo. O que ele
precisava era uma mulher inteligente e em certa maneira cansada da vida que o fizesse esquecer
Silver St. Clair. Uma mulher com experiência que soubesse o suficiente para não ver-se
emocionalmente implicada.
Luc ficou olhando a fileira de homens de duras feições e mulheres de aparência
sofisticada que olhavam a escada de suas molduras. Como retratos eram de uma qualidade pouco
destacável, nada que ver com as gerações dos Delamere que olhavam com orgulho dos tecidos da
vasta galeria do Swallow Hill.
Por alguma razão, a idéia de tocar uma mulher sofisticada e aborrecida como aquelas só
fez que Luc se sentisse especialmente indiferente.
Não compreendia por que, pensou, triste. Tinha conhecido grande quantidade de
mulheres ao longo dos anos.
Mulheres belas.
Engenhosas.
Recatadas.
E algumas muito apaixonadas.
Mas nenhuma lhe tinha afetado nunca da forma como o tinha feito Silver St. Clair no
reduzido intervalo de tempo de apenas vinte e quatro horas.

Capítulo 10
O menino é o próximo.
Exausta, Silver caminhava acima e abaixo, de uma parede a outra da estufa, vendo como
o sol se punha para dar passo ao crepúsculo, e depois como o crepúsculo se convertia em noite
escura.
Durante todo esse tempo tentava não pensar no que seria daquela noite.
Não sabia como tinha passado o dia. Ela tinha feito que passasse. As longas horas de
trabalho e o esforço obstinado tinham ajudado a distraí-la a daquele último aviso.
Mas não durante muito tempo.
Quem a odiava tanto para lhe fazer uma coisa assim? Quem queria Lavender Close com
tanto desespero? E por quê? Seria alguém de Kingsdon Cross que procurava a fórmula do
Millefleurs? Algum perfumista de Londres em busca da riqueza e o êxito que William St. Clair teve
alguma vez?
Ou seria alguém mais sinistro, alguém incluído no diário de seu pai? Alguém que ela não
conhecia, ainda não. Até que estivesse segura, Silver decidiu considerar todo mundo inimigo.
Acabava de voltar para a mesa para alinhar as ampolas de perfume e ordenar os informes
de destilação, quando umas pesadas botas golpearam o chão e Sir Charles Millbank entrou
pesadamente na estufa.
Sua cara estava avermelhada e cheirava a álcool.
—Sabia que a encontraria aqui. Vergonhoso, se me perguntarem. As mulheres não estão
feitas para dirigir os negócios ou para dirigir seu próprio estabelecimento. É antinatural e
impróprio e não vou seguir permitindo, ouviu-me?
—Isso já disse antes, mas eu não tenho nenhum interesse em conhecer suas opiniões.
—Possivelmente deveria. Têm credores na porta e não encontrastes a maneira de
transportar seu seguinte envio de lavanda a Londres porque nenhum dos homens da cidade vai
trabalhar para você. Eu me encarreguei disso. —Os olhos azul pálido de Sir Charles encerravam um
grunhido—. A menos que deseje perder sua propriedade para as mãos de um estranho, sugiro-lhe
que faça um esforço por ser mais amistosa comigo. Especialmente agora que começaram essas
desafortunadas ameaças contra você.
—E o que sabe você disso?
—Só o que ouvi na cidade - disse Millbank com ar despreocupado—; é bem sabido que
esse velho do Tinker está tentando recrutar mais trabalhadores. Não encontrará nenhum, é claro.
Todos têm muito medo para vir até aqui.
—Estou segura de que isso o agrada.
—Simplesmente digamos que estou desejando que finalmente admita quão estúpido foi
por sua parte decidir se encarregar de Lavender Close sozinha. É obvio, estaria mais que
encantado de me encarregar de suas responsabilidades. —Seus pálidos olhos brilharam—. Sempre
e quando chegarmos a um acordo sobre como… retribuir meus serviços.
Silver sabia exatamente qual era o tipo de pagamento que Millbank tinha em mente.
Ficou olhando fixamente ao lascivo intruso.
—Quando as rãs criarem cabelo, talvez! Até então podem ir ao inferno!
—Seguem em sua teimosia, não é? Bem, já tive suficiente de suas formas de provocação,
demônio! Vou-lhe ensinar um pouco de respeito! —Sir Charles se arrancou a gravata de um
puxão—. A menos que a submeta para mim em tudo o que lhe ordene, perderão Lavender Close e
me ocuparei de que esse camundongo de biblioteca de seu irmão seja enviado muito longe
também.
Silver conteve a respiração enquanto observava a vermelha cara enfurecida de Millbank.
Deveria ter sabido que aquele porco apareceria por ali. Seu cunhado, como um lobo
faminto, era capaz de farejar o medo de uma criatura ferida. E já levava mais de seis meses
dirigindo olhadas famintas em sua direção.
Silver nunca tinha estado muito unida a Jessica, sua irmã mais velha. Ela tinha morrido
seis anos atrás, apenas seis meses depois de casar-se. Silver nunca lhe havia dito que Millbank
propôs a ela primeiro, mas Silver em ocasiões se perguntava se sua irmã não tinha sabido muito
mais do que deixava entrever.
Silver sempre esperou que o passar do tempo mitigasse o interesse de Millbank por ela.
Mas não tinha sido assim. Desde a morte de seu pai, Millbank vinha cada vez mais
freqüentemente de visita a Lavender Close com a desculpa de «comprovar o estado de Silver».
Seu volumoso corpo projetava uma grande sombra sobre o chão da estufa. Por cima das
fragrâncias do jasmim e as rosas de Damasco se podia distinguir claramente o aroma do uísque
que se pegava a sua roupa.
—Deveria ir agora. —Sua voz soava firme, notou com alivio—. Antes que faça o tolo ainda
mais do que o têm feito.
—Assim pensa que sou um tolo, não é? —Os olhos de Millbank flamejavam, acesos pelo
álcool e a luxúria.
—economize a comédia - disse Silver lhe dando as costas com decisão e começando a
limpar o tanque de destilação de cobre.
Todo o tempo manteve a vista em um comprido tubo de cobre que tinha apoiado na
parede. Por via das dúvidas, pensava.
—É você a que parece tola, mulher! Se submeta a mim ou verá como lhes arrebatam este
lugar. Eu mesmo o porei a leilão a quem oferecer melhor preço.
No rosto de Silver não havia outra coisa mais que desprezo quando se voltou para olhá-lo.
—me submeter? A você? Preferiria prender fogo a minhas lavandas e comer fuligem!
Seu cunhado se aproximou, seu olhar ardente não se separava dela.
—Duvido. Adora esses malditos campos muito para se separar deles. —Seus lábios roliços
se curvaram—. E isso também é uma coisa verdadeiramente antinatural para uma mulher.
Os dedos do Silver rodearam o tubo de cobre.
—Não acredito que meus negócios lhe concirnam absolutamente, Sir Charles. Teve a
possibilidade de investir e escolheu não fazê-lo. Nunca se envolveria em um negócio «levado por
uma simples mulher», acredito que foram as palavras que disse. Nesse caso, Lavender Close não é
de seu interesse.
—OH, mas sim o é, já que você é de meu interesse. E a terei, ouviu-me? E ninguém vai
interferir!
—Volte para casa - disse Silver com brutalidade—. Está se pondo em evidência. —De
repente se sentia cansada, imensamente cansada. Doíam-lhe os ombros e lhe ardiam os dedos.
Quão último precisava era Sir Charles Millbank fazendo uma cena ali, em meio de sua
oficina. Tinha coisas mais importantes no que pensar; por exemplo, por onde viria a seguinte
ameaça para a propriedade.
—Veremos quem ri por último, senhorita! —Seus dedos rechonchudos se agarraram ao
cabelo de Silver, obrigando-a a aproximar-se.
Maldito fosse aquele homem! Silver inalou furiosa e se afastou bruscamente. Ia ter que
machucá-lo. Não gostava da idéia, mas não ficava outra opção.
Seus dedos voltaram a encontrar o brilhante tubo de cobre.
—Pela última vez, irá agora?
—Porque o ordena Sua Alteza Real? —disse Millbank, rindo despreocupado—. Bom, não
vai conseguir o que quer, Silver, querida. Esta vez não - disse com desdém—. E me ocuparei de
que o jovem Brandon seja enviado a uma escola muito restrita. Um lugar onde os professores
saibam como impor disciplina aos meninos rebeldes que preferem sonhar acordados em vez de
aprender a lição.
—Não se atreverá! —resmungou Silver—. Acaba de recuperar-se de seu último ataque do
contágio pulmonar. Uma escola assim o mataria!
Seu cunhado se limitou a rir.
—Esse não é problema meu. Deveria ter sido mais complacente comigo quando teve a
oportunidade. —Seu fôlego quente lhe queimou o pescoço quando se aproximou violentamente
dela—. Por Deus, desejei-lhe durante meses e vou tê-la!
Os dedos de Silver agarraram com força o tubo. Revisou mentalmente as instruções que
lhe tinha dado seu tio sobre os lugares mais vulneráveis onde golpear um homem.
Já se estava preparando para lhe atirar um golpe atroz às partes pudendas de Millbank
quando uma voz profunda trovejou na estufa.
—Sinto seriamente o contradizer, Millbank, mas tudo o que irá fazer neste momento é
tirar as mãos de cima da mulher. —Graves e letais, as palavras saíram das sombras que havia atrás
de uma cascata de camélias rosadas.
Blackwood estava ali, imóvel, alto e tenso, vestido de negro, escuro e impenetrável, das
botas até a máscara e o inclinado chapéu.
Mas o mais escuro de tudo era a fúria que dançava em seus olhos.
Silver ficou sem fôlego ao vê-lo. Sua raiva era quase evidente. Não sabia que ela podia
cuidar perfeitamente de si mesma?
Sir Charles deu um passo atrás de forma inconsciente.
—E que…quem me ordena isso?
Uma pistola brilhou subitamente, um brilho prateado contra o fundo negro de suas luvas.
—Lorde Blackwood ordena-lhe - foi à melíflua resposta.
Millbank pareceu intimidar-se.
—Bla… Blackwood? Por Deus, têm valentia. Mas a justiça logo lhe ensinará maneiras!
A figura que se ocultava nas sombras junto à porta emitiu uma risada leve e deu um passo
para aproximar-se.
—Carlisle? Nosso abnegado juiz acaba de voltar de Londres. Parece que decidiu cortar sua
viagem e que agora mesmo está profundamente adormecido em sua sala de estar, vencido depois
de ter bebido muito brandy francês na última estalagem que visitou. Assim, vêem, Lorde Carlisle
não será de muita ajuda a você nem a nenhuma outra pessoa esta noite, Millbank. —A pistola do
bandido apontou—. Agora acredito lhe haver dito que solte à dama.
—Dama? —mofou-se Millbank—. Ela? Ela não é uma dama.
Negro sobre negro em movimento. Uns dedos fortes rodearam o pescoço de Millbank e o
frio metal tocou sua garganta.
—Retire essas palavras.
—Eu… eu…
Blackwood soltou a trava e engatilhou a pistola.
—Está bem, maldita seja. Retiro. Retiro!
—Agora se desculpe com a dama.
A cara de Sir Charles se voltou de um vermelho carmesim.
—Com ela? Nunca!
Tragou saliva quando notou que a arma carregada deslizava por sua garganta e se situava
sob seu queixo flácido.
—Bem, maldição! A mulher não vale tanto quanto minha vida. Apresento-lhes minhas
desculpas - disse com cortesia.
Os olhos do bandido estavam alagados de fogo.
—Mais alto. Não acredito que a dama tenha ouvido.
—Apresento-lhe minhas desculpas.
—Milady.
Sir Charles repetiu essa palavra friamente.
—Muito bem. Isso será suficiente por agora, acredito. Agora, se retire de minha vista.
Encontro-o intoleravelmente ofensivo.
Sir Charles ficou rígido. Seus grandes punhos se fecharam e abriram diante de sua
protuberante cintura.
—Têm algo mais que dizer? —A voz do bandido encerrava uma educada advertência.
Millbank voltou a tragar saliva e sacudiu a cabeça.
—Muito bem. Nesse caso, a porta está por ali. Não o acompanharemos até ela. Pode sair
sozinho.
Com uma maldição entre dentes, o baronete saiu dando tropeções. Maldições ressentidas
encheram o ar e foram se desvanecendo segundo ele ia encontrando seu caminho na escuridão.
Silver não se moveu. Faltavam-lhe as palavras ao olhar à figura mascarada que se apoiava
na soleira.
—foi… muito amável por sua parte me ajudar. Embora não o necessitava, é claro. —Com
um meio sorriso ela mostrou o grande tubo de cobre.
Lentamente o bandido voltou a guardar a pistola no bolso de sua capa.
—Muito engenhoso por sua parte. Mas me alegro de ter estado por aqui. —Os olhos
ambarinos se entreabriram—. Tinha feito isto antes?
Silver afastou uma mecha de cabelo rebelde. Agora que Sir Charles tinha sido espantado,
deu-se conta da estranha debilidade que afetava de repente seus joelhos.
—Nunca antes. Não assim, ao menos. Mas, por que está aqui?
Atrás da máscara os olhos cor âmbar a estudaram.
—Parece que não posso me afastar muito. E me sinto muito orgulhoso de ter estado
perto. Servi-la sempre é uma honra, mignonne.
O calor que despedia seu olhar fez Silver estremecer. Não queria sua ajuda. Era perigoso
aceitar ajuda de ninguém, já que não sabia quem eram seus inimigos nesse momento. E este
homem precisamente a fazia sentir muito indefesa e aturdida para que se encontrasse cômoda em
sua presença. Mas se havia uma clara proposta de negócios sobre a mesa…
Franziu o cenho.
—reconsiderastes minha oferta?
—Não.
—Então não temos nada mais que nos dizer um ao outro.
—Ele voltará. Sabe. Os homens como ele sempre o fazem. Protegerá-se devidamente da
próxima vez?
Silver deu de ombros. Resultava-lhe difícil pensar com os olhos dele sobre ela, com seu
corpo alto e fibroso apoiado na porta a só uns centímetros. Voltou-se com as faces febris.
—O que ocorre, mignonne?
—Eu… nada.
—Tem-lhe feito mal? Cheguei muito tarde? Por Deus, eu mesmo estrangularei a esse
homem se…
—Não - disse Silver apressadamente—. Não fez mais que bramar algumas ordens e
retorcer-se como um cão com pulgas. —Ela esfregou a testa tentando esquecer a asquerosa
lascívia que tinha visto na cara de Millbank.
—É perigoso, pequena. Recorde.
Durante um momento sua ira resultou evidente. E deixou Silver tremendo. Havia nele
algo escuro, uma dureza que parecia o distinguir dos outros homens.
Dos homens civilizados, ao menos.
E essa era a razão pela qual ela queria sua ajuda. Mas ele não desejava proporcionar-lhe
assim que isso era tudo.
—Me arrumarei - disse isso despreocupadamente.
—tentei me manter a distância - disse ele, tanto para ela como para si mesmo—. Deveria
me haver mantido longe, mas ouvi que Millbank estava alardeando por aí sobre a forma em que ia
se encarregar de tudo. Queria lhe advertir.
—Considero-me advertida. Deseja algo mais? —perguntou cortante.
Essa obviamente não era a reação que Blackwood esperava. Depois de tudo, acabava de
salvar sua honra e possivelmente também sua vida.
—claro que sim. Indiscutivelmente necessita ajuda para tratar com esse canalha. Levarei-
a a algum lugar seguro e lhe darei algumas lições sobre o uso de uma arma —disse com
sinceridade.
Silver enrugou a testa. Ele ia dar lições a ela? A verdade é que ela era muito boa atiradora.
Seu excêntrico tio Archibald se ocupou disso, treinando-a com alvos constituídos por garrafas e
peças da baixela no meio do urzal do Hounslow.
Mas Silver decidiu não contar isso ao bandido. Parecia estar desfrutando de seu papel de
protetor. Provavelmente o homem tinha poucas oportunidades na vida de ser cavalheiresco. Silver
pensou que era o mínimo que podia fazer para lhe dar a oportunidade de aprender melhores
coisas das que tinha oportunidade de desdobrar em sua existência de criminoso implacável.
De fato, se fosse um pouco inteligente, inclusive poderia o afastar dessa vida perigosa que
estava levando.
—Faria-o?
—Não há nada que temer, asseguro - disse isso Blackwood em tom tranqüilizador—. Faz
muito ruído, mas eu a manterei a salvo.
—A sa… salvo? —Silver mordeu o lábio, lutando por reprimir uma risada incontrolável.
Primeiro as ameaças, depois Millbank e agora isto. Ela podia acertar um alvo justo no centro a
cinqüenta passos e na borda exterior a cento e cinqüenta. Seu tio a havia autonomeado a melhor
atiradora de três condados - Fará isso?
—É claro. É o mínimo que posso fazer - disse o bandido com aspereza—. Especialmente
posto que parece que está terrivelmente decidida a estar aqui, em meio de um nada, sem um
homem que a proteja.
—E por que necessito um homem para me proteger?
O bandido franziu o cenho.
—Admiro sua força, pequena, mas vai ser necessário algo mais que umas ameaças para
manter Millbank longe de você. E sem dizer dos outros que ameaçam você e seu irmão…
—Isso não é seu assunto. Deixou sua postura muito clara ao repelir minha oferta ontem à
noite.
—Oferta! Isso era a coisa mais descabelada que ouvi em minha vida.
—Não há necessidade de chegar aos insultos.
—Não pretendia a insultar. —O bandido a olhou fixamente—. Esse homem está metido
em sérias intrigas.
—Ah. Com isso quer dizer que visita essa casa de dissipação. —Silver deu de ombros—.
Tenho uma idéia bastante clara do que ocorre nesses lugares.
—Ah, assim que a têm, não é? —Os olhos ambarinos se obscureceram—. E o que ocorre?
Silver brincou com as folhas pendentes da camélia.
—É um lugar onde vocês, os homens, vão acalmar essas paixões masculinas
incontroláveis, é claro - explicou ela com toda a serenidade do mundo.
—Paixo… - Luc Delamere, libertino conhecido e assíduo dos caminhos escuros de Londres
a Somerset, emitiu um som estrangulado. Assim estava com isso de novo, não?
—Sim, faço uma idéia clara sobre isso. O que ocorre é que nunca ouvi falar de paixões
femininas incontroláveis. —Sua cabeça se inclinou enquanto estudava seu salvador, que tinha
ficado sem palavras—. O que acontece conosco?
—Nego-me a discutir isso com você - disse o bandido amaldiçoando baixo. Estava
empurrando-o além de seu limite.
—Há! Isso é quão mesmo diz Tinker quando algo começa a ficar interessante.
—Seja quem for essa Tinker, estou completamente de acordo com ela.
—Ele, não ela.
A boca do bandido se converteu em uma fina linha.
—E quem é esse Tinker?
—Trabalhou para meu pai. Depois de sua morte, Tinker ficou para nos ajudar meu irmão e
a mim.
—E suponho que está… apaixonada por ele? — A pergunta soou cuidadosamente neutra.
—Apaixonada? Por Tinker? Suponho que estou, a minha maneira. Passamos por muitas
coisas juntos. —Silver inclinou a cabeça enquanto o considerava—. Sim, acredito que estou.
O criminoso mais famoso de Norfolk ficou rígido. Silver viu a fúria que ardia em seus
duros olhos.
—Minhas felicitações - disse com brutalidade—. Para ambos. Mas será melhor que vá.
Tenho carruagens que roubar e mulheres inocentes que violar. —Seus lábios se curvaram—. Uma
reputação imensamente negra que manter, em definitivo. —Dedicou-lhe uma reverência forçada
e se virou para ir-se.
—Espere! Não vá. —A voz de Silver chegou detrás dele com uma urgência grave e gutural.
Ele ficou muito quieto, seus ombros negros não eram mais que uma pincelada negra na
luz tremula da estufa.
—por que não devo ir ?
—Porque… o que há entre Tinker e eu não é o que imagina. É um amigo, um velho e
querido amigo, não é o que pensa. —Blackwood seguiu imóvel—. E tem mais de cinqüenta anos.
O bandido se virou lentamente. Algo da dureza anterior abandonou seus ombros.
—Tenha ou não cinqüenta anos, esse homem deveria a proteger melhor - disse com
brutalidade.
—Posso me proteger perfeitamente sozinha!
—Uma mulher como você merece ser protegida e cuidada. Maldição, deveria estar
casada, com um bom punhado de filhos brincando junto a suas saias, e um marido rico e com
título que a mantivesse afastada de canalhas como Millbank!
—Temo que supõe muito, senhor.
—E você escolheu ignorar muitas coisas - acrescentou ele amargamente—. Recebeu
alguma outra ameaça?
Silver sacudiu a cabeça.
—Tinker está nos campos agora mesmo e vai bem armado, asseguro-lhe isso. Não é
necessário que se preocupe. Nós arrumamos isso perfeitamente.
Blackwood a estudou durante um comprido e silencioso momento.
—Não me mentiria, não é, carinho?
—É claro que não estou mentindo! Além disso, a maior parte das pessoas diria que você é
o tipo de homem de que deveria me proteger.
—Talvez o seja - disse ele suave e sobriamente—. Depois de tudo, salvei-lhe a vida,
mignonne, e a honra com ela. Isso não me faz merecedor de certos privilégios?
Silver sentiu um inquietante calor em seu sangue.
—E que tipo de privilégios seriam esses?
Os olhos de Blackwood percorreram sua face para depois deslizar-se mais abaixo e
passear preguiçosamente sobre seu peito.
—As possibilidades me deixam sem palavras.
Com um leve sussurro de ar perfumado, ele se situou junto a ela com sua mão enluvada
percorrendo a curva cálida de seu pescoço.
O pulso de Silver se acelerou. Estava fazendo de novo: enredando-a por dentro, fazendo
que seu coração saltasse como se fosse um calhau sobre a superfície de águas turbulentas. Era um
descarado, um descarado.
—Acredito que será melhor que vá. —Ela começava a sentir-se manifestamente
incômoda. Silver tentou convencer-se de que começava a lhe afetar algum tipo de resfriado
primaveril.
Mas não acreditou, nem por um momento. Que era sua presença a que a deixava sem
fôlego e ruborizada.
—Estou começando a me sentir mal. Seguro que estou doente. E você não quererá
contrair minha enfermidade… - disse ela com energia.
Os olhos cor âmbar brilharam sob a seda negra.
—Estou começando a pensar que para estar perto de você vale a pena correr qualquer
risco, pequena.
Silver sentiu como lhe acelerava o coração. Fingiu uma tossezinha.
—Sim, seguro que estou doente. Será melhor que vá - disse ela levantando a mão
dramaticamente.
O movimento fez que seus dedos roçassem seu peito. Inclusive esse ligeiro contato fez
que todo o corpo do bandido se esticasse. E então Silver viu a mancha escura de sua camisa. Ficou
sem fôlego.
—Eles o feriram!
—Só é um arranhão, asseguro-lhe isso.
—Um arranhão? Por que não me disse isso antes? —Rapidamente o agarrou pela cintura
e começou a guiá-lo para uma cadeira.
Seu visitante lhe dedicou um sorriso cansado.
—Duvido muito que nenhum homem possa lhe dizer nada, carinho.
—Agora está me chamando de harpia? Bom, pode ser que seja. Será o resultado de levar
as rédeas durante muito tempo, suponho. —Empurrou-o para que se sentasse na cadeira, tirou-
lhe o chapéu e se inclinou para desatar os cordões da máscara.
Sua mão firme se fechou sobre seus dedos.
—Não. —A palavra soou dura—. Isso a poria em perigo. É mais seguro que não conheça
meu rosto.
Silver suspirou.
—Muito bem. Mas deve ficar quieto aí sentado enquanto vou buscar um copo de água.
Ou talvez um pouco de brandy. Tinker tem um pouco de uísque escocês escondido no armazém,
embora eu sempre finja que não sei que está ali. Deveria…?
—Não é nada.
Naquele momento, Luc Delamere começou a sentir-se estranhamente enjoado. Mas não
podia ser por sua ferida, embora esta lhe pulsasse dolorosamente.
Não, era pela inesperada preocupação daquela mulher de aparência tão frágil que um
raio de sol de verão parecia capaz de deixá-la fora de combate, mas que, depois de ter sido
atacada por esse porco do Millbank, estava ali, preocupando-se com ele!
A enorme e surpreendente novidade que supunha aquilo para o famoso bandido de
Norfolk fez que ficasse impactado.
—Não vai a nenhuma parte até que eu me assegure de que isso é certo.
Ele sacudiu a cabeça.
—Não deveria estar aqui. Nada bom pode sair disto. Para nenhum dos dois. —Voltou a
ficar de pé e fez um gesto de dor ao tentar afastar um ramo de jasmim em flor—. Não sei no que
estava pensando quando decidi…
Silver voltou a sentá-lo na cadeira com um movimento brusco.
—Não vai a nenhuma parte até que eu veja essa ferida! E não há razão para preocupar-se,
porque atendi milhares de cortes e arranhões de nossos animais, aqui, na propriedade. Cromwell,
nosso cão, tem pulgas com as que eu luto todos os dias. Inclusive tratei mordidas de serpente em
algumas ocasiões. O óleo de lavanda faz maravilhas com isso.
Blackwood lhe dedicou um sorriso irônico.
—Não sabe quanto me tranqüiliza isso. Animais você disse? Muito adulador.
Silver ruborizou.
—Não queria dizer… Está zombando de mim de novo!
—E como poderia evitá-lo? Consegue que suba um vermelho tão belo a suas faces…! —
Sua mão enluvada acariciou sua bochecha. Então sua voz se voltou séria—. Poderia lhe fazer feliz,
sabe. Em uma só noite poderia lhe mostrar coisas que nunca viu, pequena, coisas que nunca
imaginaria. Poderia fazer baixar a lua e as estrelas enquanto descansasse entre meus braços.
—Está louco. —Mas a voz de Silver não era mais que um sussurro. E de repente era ela
que estava louca, ela que conjurava escuras imagens, visões febris de pele sedosa e mãos
enredadas e famintas.
—Espero —disse ela brandamente— que esteja falando dessas paixões incontroláveis. Só
que… das femininas desta vez.
Nos olhos do homem ela pôde ver uma avidez desmedida. Perguntou-se se também se
veria nos seus. Essa avidez, essa necessidade, aterrorizavam-na. E essa beleza cegadora.
Nesse momento ela soube que ele tinha que partir, ferido ou não. Ela tinha que obrigá-lo.
Se não…
No exterior se ouviram gritos que chegavam do nebuloso vale.
Silver olhou pela janela.
—É Carlisle e seus homens!
O bandido não se moveu.
—Aparentemente nosso abnegado juiz conseguiu voltar a estar sóbrio. Que
desafortunado!
—Deve ir!Vem com uma dúzia de homens!
—Maravilhoso. Parece-me que me encontro de humor para um enfrentamento.
Blackwood cruzou os braços sobre o peito.
—Além disso, o que será de minha ferida?
—Isso importava antes. Céus, deve ir agora antes que seja muito tarde! —Silver franziu o
cenho quando viu o ricto temerário em sua boca—. Faça por mim, se não o fizer por você mesmo.
Porque eu… eu não poderia suportar ver que o caçam como um… um…
—Como a um criminoso? —Seu tom era duro—. Ah, pequena minha, mas isso é
exatamente o que sou.
—Não acredito - respondeu Silver precipitadamente—. Nem por um momento. Mas,
inclusive mesmo que fosse, Deus me perdoe, eu não poderia… —Sua voz se quebrou—. OH, parte
…simplesmente parte. Agora, antes que cheguem à parte alta da colina e o vejam!
Blackwood enrugou a testa e ficou de pé lentamente.
—Importaria-lhe que me agarrassem?
—É obvio que sim.
Passou lentamente uma perna sobre o batente da janela meio aberta.
—Parece que é uma noite de surpresas.
Silver mal o ouviu, muito atenta aos homens que se aproximavam.
—Parte, por favor! Quase chegaram!
No exterior as vozes se ouviam cada vez mais perto. Os grunhidos de Sir Charles Millbank
enchiam a noite.
Luc ficou tenso, sua mão agarrada ao batente.
—De verdade se importaria que me encontrassem?
—Não têm medo? Parte. Parte agora.
—Não irei sem uma resposta.
—É claro que me… importaria.
A cicatriz prateada que tinha junto aos lábios brilhou.
—Então prove.
—Está louco? Estarão aqui em qualquer momento!
Os olhos do bandido brilharam atrás da máscara.
—Tudo isto acrescenta um delicioso elemento de emoção, não acha?
—Está louco!
—Muito bem, então terei que ficar a esperar. —Voltou a colocar o pé que tinha tirado
pela janela e cruzou os braços sobre o peito—. Não importa. Não há nada que me agrade mais que
mostrar a esses cães sarnentos as maneiras que tanto necessitam.
Silver não esperou para ouvir nada mais.
Lançou-se contra ele tão forte que quase o fez cair de costas pela janela. As mãos dela
rodearam seu pescoço.
Ao se recuperar do golpe, Blackwood ficou sentado, olhando-a, sua cara sombria e
impassível.
Seus olhos se encontraram. Lentamente seus fortes dedos subiram para rodear sua
cintura. Sua outra mão se afundou em seu cabelo solto.
Silver sentiu um trovão selvagem dentro de seu peito.
—Demonstre-me isso.
Sua voz era profunda e dura. Silver sentiu sua necessidade, tão selvagem e incontrolável
como a avidez que corria por suas próprias veias.
Fora, as vozes que gritavam soavam mais perto. Ela pôde ouvir os amortecidos uivos dos
cães cada vez mais perto.
—Parte —sussurrou ela com ferocidade, ouvindo o rugido de seu sangue e sentindo que
sua respiração se acelerava. Sentia-o tenso e forte nos lugares onde seu queixo descansava contra
seu peito e onde seu quadril se encontrava com sua coxa.
—Disse que sentiria falta de mim, meu raio de sol. Demonstre-me isso Agora.
Nesse momento, ele era em cada centímetro de sua pele o odioso bandido que tinha
roubado uma centena de corações femininos, o amante perito e suave da lenda de Norfolk.
—Descarado! —disse ela entre dentes, lutando entre a fúria e a selvagem rendição.
—Fera! —Mas a palavra soou como uma suave carícia. Uma promessa de seda.
E provocou uma reação curiosa no peito de Silver. Franziu o cenho ao dar-se conta de que
o irritante homem não se renderia. Desesperada de preocupação, inclinou-se para diante e ficou
nas pontas dos pés. Com os olhos fechados, tocou os lábios dele com os seus.
O calor a envolveu. Saboreou xerez e hortelã, o vento do crepúsculo e a névoa da meia-
noite que cobria o urzal.
Repentinamente desejava ter mais.
Estirou os dedos para provar a calidez de seu cabelo, a largura de seus ombros poderosos.
O mundo que havia fora da quente e perfumada estufa deixou de existir.
—Maldição, mulher! —grunhiu o homem que tinha junto a ela—. Você é a ladra esta
noite. Roubaste-me a razão e faz que meu sangue ferva. —Suas mãos calejadas tocaram suas faces
enquanto ele a olhava com ardentes olhos ambarinos—. Deus, mas que doce é!
Uma voz furiosa chegou dos campos que havia mais abaixo da estufa.
—Ali, maldição. Tenham as pistolas preparadas!
Já não fica tempo, pensou Silver funestamente.
—Parte!Por favor, parte!
—Estará segura?
—Estarei. Muito mais que você.
Ele riu daquela afirmação; o som tão atraente, temerário e escuro como tudo naquele
homem. Com um movimento ágil se inclinou para a vacilante lanterna e soprou a vela.
A estufa ficou completamente às escuras.
Seus dedos se crisparam, introduzindo-se mais em seu cabelo sedoso enquanto a
empurrava contra ele.
—Sinto seriamente não poder estar de acordo com você, mignonne, mas isto… isto é o
que um homem considera um beijo.
Então a abraçou apaixonadamente, calor contra calor, necessidade com necessidade.
Pressionando suas costas contra o frio painel de cristal ele cobriu sua boca, desafiou-a, saboreou-
a. Ele fez que abrisse sua boca, sua língua se uniu a dela e fez que seu coração cantasse.
Silver gemeu ao ouvir o selvagem bombear de seu sangue. Seus dedos estavam úmidos e
seus joelhos a ponto de desfalecer em qualquer momento.
E tocá-lo era o céu perfeito e o verdadeiro inferno. Quando sua mão se curvou sobre seus
quadris e a aproximou mais dele, foi tão esplêndido, maravilhoso, perigoso e próximo à loucura…
nada que ver com a repulsão que havia sentido perto de Millbank.
A seu redor o cristal, a escuridão e o ar perfumado se desvaneceram. Tudo o que podia
sentir era a carícia líquida de uma boca contra a sua e a dureza do corpo que a tinha cativa contra
a parede da estufa.
Um calor insuportável a invadiu. Sentia uma urgência incontrolável de lhe dar o que
pedia, uma e outra vez, inclusive embora exigisse um pagamento quente e escuro como
recompensa.
Durante um momento… um momento de loucura, sua mão encontrou a curva de um de
seus seios. Ela se arqueou contra ele, gemendo com suavidade.
Fracamente sentiu um final… e um princípio infinito. De coisas que ia necessitar uma
eternidade para compreender. De sentimentos que poderiam lhe trazer gozo ou tortura.
E esse conhecimento a deixou desejosa de começar com tudo isso.
Mas não havia tempo.
As vozes amortecidas do exterior soavam cada vez mais perto.
—Provemos pela parte de trás! —Era a voz de Carlisle.
Com expressão lúgubre, o bandido se separou dela e a separou dele.
—pôs a prova cada fibra de meu controle, tentadora mulher. Uns segundos mais e a teria
aí, meio nua, e estaria tomando o que quero de você. Por Deus, e você sentiria isso selvagem e
temerária quando o fizesse. E encerraria seus gemidos com meus lábios quando a tivesse cativa
sob meu corpo, ali no chão. Entende-me, Silver? Entende o perigo agora, mulher? —perguntou-lhe
com brutalidade.
Ela estava ali de pé, sem fôlego, com o coração acelerado, o pulso descontrolado, vendo a
ira que se escondia em seus olhos.
A realidade abriu passagem quando o calor de seu corpo começou a desvanecer-se.
Ela tragou saliva com os olhos muito abertos.
—Não é correto, então? Sentir-se assim? Que queira me tocar dessa maneira?
O bandido amaldiçoou amplamente.
—Se você fosse diferente, não. Se eu fosse diferente, não. Mas você é boa. OH, Deus, tão
boa! Muito boa para mim, para o criminoso que eu sou. Só lhe romperia o coração, pequena. Só
lhe roubaria a inocência e a confiança e depois os faria pedacinhos muito pequenos. Eu queira ou
não, isso é o que aconteceria.
Ela estava segura de que acreditava no que dizia. Que estava convencido de cada uma
dessas terríveis palavras. Uma vez mais Silver se encontrou perguntando-se o que era aquilo que
fazia que seu interior fosse tão duro e tão desesperado.
—Não tenho medo. De você não.
—Pois, maldita seja, deveria ter! —disse franzindo o cenho. Seus dedos enluvados se
enterraram uma vez mais nas brilhantes mechas de cabelo acobreado, e depois se separou dela—.
Não voltarei. Tentei me manter afastado antes e fracassei, mas desta vez não o farei. Não há
futuro para nós. Tudo isto só pode dar como resultado dor.
Ela ouviu suas palavras como se chegassem de uma longa distância. Tinha a réplica na
ponta da língua, mas não disse nada. Agora não, com o juiz e seus homens rondando não era o
momento.
E também porque algo em seu interior lhe dizia que ele tinha razão.
—Mas se alguma vez se encontrar em um verdadeiro apuro, me deixe uma mensagem no
olmo grande que há junto ao cruzamento. Há outras maneiras, mas essa é a mais segura. Um só
ramo de lavanda fará que eu venha a você. Se não… - Sua voz se endureceu de novo.
Silver tentou dizer a si mesma que essa era a melhor maneira. Que suas vidas eram muito
diferentes para que eles pudessem ser felizes juntos.
Mas suas palavras lhe soavam vazias.
—Boa sorte, bandido - sussurrou ela, deslizando sua mão pela dura mandíbula que só
podia entrever sob a máscara. Sentiu como os músculos dele se esticavam ao sentir seu contato.
Do outro lado da habitação em sombras, punhos furiosos golpearam a porta da estufa.
Silver já podia imaginar suas flores pisoteadas.
—Boa sorte, pequena. —Havia dureza e dor em sua voz.
Ela o viu afastar-se e sentiu frio e calor, fúria e tristeza. Os olhos lhe ardiam.
Sua capa e suas botas se rabiscaram até formar uma mancha negra que desapareceu na
noite.

Capítulo 11
—Procurem na casa! Dispersem e cubram todos os campos!
Silver ficou paralisada quando derrubaram a porta da estufa. Com as mãos na cintura,
Lorde Tiberius Carlisle, juiz de Kingsdon Cross e do distrito norte do condado de Norfolk, parou na
soleira da porta franzindo o cenho.
Cinco de seus sequazes armados se colocaram a suas costas com as lanternas na mão.
Silver reuniu todo o orgulho dos St. Clair.
—O que é o que significa esta intrusão, Lorde Carlisle?
—Não brinque comigo, jovenzinha. Venho em busca desse maldito bandido, isso é o que
significa! Agarrarei esse criminoso e verei como o penduram, isso farei. Já conseguiu escapar
muitas vezes! E a menos que você queira ser pendurada com ele, aconselho-lhe que responda a
minhas perguntas.
Sir Charles Millbank apareceu um momento depois com a cara vermelha e ofegando.
—Não a escute, Carlisle. Ela sabe onde está. Estava aqui mesmo. Aqui com ela, Por Deus!
O magistrado franziu o cenho de novo.
—Aonde foi esse vilão, senhorita St. Clair?
—Quer dizer o homem ao qual chamam Blackwood?
—É obvio!
Não havia tempo para a dor. Nem para desejar que as coisas fossem diferentes. Tinha que
lhe dar tempo para que ficasse a salvo.
Silver levou a mão ao pescoço e estremeceu dramaticamente.
—Nem sequer quero pensar nisso! Foi… foi terrível. Esse homem é uma besta. Não, um
demônio! Seus olhos brilham como brasas e parece flutuar sobre a terra em vez de andar. Tome
cuidado, Lorde Carlisle. Por todos os céus, tome cuidado, porque esse homem está maldito!
Atrás do juiz, vários homens se revolveram incômodos e trocaram o peso de uma perna à
outra, indecisos sobre se rir ou benzer-se ante essa aterradora narração.
—Tolices! Enquanto ela está aí dizendo loucuras, esse criminoso escapa. —Millbank se
aproximou da janela aberta e olhou fora—. Deve ter saído por aqui. Esta bruxa está tentando
protegê-lo!
—Proteger um bandido? — Silver espetou o baronete inchado com um olhar inocente na
cara—. Esteve bebendo outra vez, Sir Charles?
—É claro que não estive bebendo! —respondeu seu cunhado—. E bem sabe, mulher!
Os olhos de Silver brilharam ao vê-lo meter-se na armadilha que acabava de estender.
—E como eu ia saber? Será que nos vimos esta noite em algum momento anterior?
Millbank soltou uma maldição e fez um gesto despreocupado.
—Absolutamente. Simplesmente é que eu nunca bebo. Nunca até o excesso, ao menos. E
quando me chegou a notícia de que o bandido tinha sido visto por esta área, eu cumpri com meu
dever cívico e informei o juiz.
O juiz não tinha tempo para intercâmbios que não compreendia.
—Basta já de tanto palavrório! Maldição, onde foi Blackwood?
Silver estremeceu com todo o dramatismo do mundo.
—Arrastou-me até o abrigo de armazenamento e ficou olhando fixamente com seu olhar
abrasador. Era como lhe olhar à cara de um demônio, ou mesmo o inferno. Quando desfaleci, ele
saiu correndo para o norte como alma que leva o diabo. —Realmente tinha sido para o Sul.
O juiz entreabriu os olhos.
—Se desfaleceu, como sabe a direção que tomou?
—OH, recuperei-me muito em breve e vi como seu cavalo se enfiava para Kingsdon Cross.
—Obviamente delira - disse bruscamente o juiz—. Exatamente o que se pode esperar de
uma mulher. Se disperse. Nós mesmos o buscaremos pelos campos que há ao norte.
—Por todos os Santos, eu não! —disse Millbank com fúria, saltando por cima do batente
da janela. Caiu na dura terra com uma réstia de maldições—. Pode ficar aí revirando os olhos,
Carlisle, mas eu irei por aqui. É óbvio que o homem foi na direção oposta a que ela diz. E eu irei
em sua busca!
—Blackwood é meu, Millbank. Só recorde isso! —trovejou o juiz. Lorde Carlisle sabia que
seria aclamado se capturasse o famoso bandido de Norfolk e não estava disposto que lhe
arrebatassem esse triunfo.
Sir Charles deu de ombros e desapareceu, murmurando zangado. Um momento depois os
outros, homens e cães, seguiram-no pela colina, na escuridão, em busca de sua presa.
Muito depois de que se foram, Silver seguia na janela, observando a noite aveludada.
Inclusive quando o último eco das vozes se desvaneceu e a luz da última lanterna despareceu, ela
seguiu ali, de pé, rígida e tensa.
Quando a lua apareceu atrás da irregular linha de nuvens, ela suspirou e enxugou algo
quente e salgado da bochecha. Só então se deu conta de que o bandido lhe tinha deixado algo na
mão antes de ir-se.
Era uma pequena bolsa de musselina. O tipo de bolsa que ela utilizava para guardar suas
preciosas sementes de lavanda. As sementes que tinham caído pelo urzal duas noites antes.
Irrecuperáveis.
Ou isso tinha acreditado ela.
Ficou sem fôlego. Sentiu que algo duro e quente lhe queimava na garganta.
—Tome cuidado, idiota - sussurrou em direção a noite, sabendo que ele podia ouvi-la.
E seu coração lhe sussurrou a resposta.
E lhe advertiu que tomar cuidado era a única coisa que Blackwood nunca faria.

Quando olho atrás agora posso ver como fui enganado. Tudo começou tão
inocentemente… Eram suficientemente amáveis, o suficientemente sinceros. Até agradaram sua
querida mãe (e ela estava acostumada ser muito boa julgando o caráter das pessoas).
Mas desta vez se equivocou.
Preocuparam-se de esperar o momento preciso, é claro. E então… só um pequeno favor.
Só uma vez. Só uns pequenos objetos guardados entre as gavetas de sementes. OH, estive
encantado de acessar.
Como um tolo, nunca pensei em averiguar o que eram esses objetos. Honra inglesa acima
de tudo. A palavra de um cavalheiro é um compromisso.
Fui um total e completo idiota.
Mas quando descobri o que se escondia entre essas gavetas, era já muito tarde…

Quando a lua se elevou no céu, um homem subiu pela colina e abriu caminho para a
cortina densa de bosque que havia ao norte. Millbank, o juiz e seu bando já fazia muito tempo que
se foram.
Escondido atrás uma roseira, Luc Delamere não fez nenhum movimento para deter o
intruso. Contentou-se sabendo que o criado de Silver estava acordado, armado e passeando
vigilante de um extremo a outro do imóvel. Além disso Luc tinha visto um grande cão amarelo
rondando pelos campos.
Sim, ela estaria segura. Ao menos por essa noite. Talvez seus inimigos tivessem decidido ir
atrás uma presa mais acessível.
Se não, ele saberia logo, já que tinha tantas formas fazer a informação chegar ao juiz. Não
importava que esta chegasse de diferentes lados da lei.
Observou como a figura solitária subia pela colina e desaparecia nos bosques. Luc decidiu
que seria melhor não intervir, e sim simplesmente seguir o homem em silêncio; estava claro que
não era mais que um mercenário enviado para espiar.
Mas o espião logo se converteu em espiado. O interesse de Luc, depois de tudo, não se
centrava nas marionetes, e sim na mão que movia os fios.

Embora The Green Man estava a transbordar, a sala privada do fundo estava vazia. Ali é
onde Sir Charles Millbank se dirigiu apressadamente. Tirou as luvas e o casaco ao entrar.
Chamou o furtivo hospedeiro com um imperioso gesto de cabeça.
—Está tudo preparado?
—Exatamente como Sua Senhoria ordenou.
—Excelente. Os outros chegarão em uns minutos. Enviem alguém a vigiar à mulher. Pode
ser bastante… difícil.
A cara do proprietário se esticou em uma áspera aproximação a um sorriso.
—Não se preocupe, milorde. Eu mesmo me ocupei que vigiá-la.
Sir Charles enrugou a testa.
—Não terá sido muito brusco, espero. Não quero que tenha nenhuma marca, entendeu?
—OH, sim. Nada que se possa ver. Ao menos não à luz das velas, acredito - disse, e soltou
uma risada fria.
Millbank sorriu.
—Tão eficiente como sempre, Timmons. Muito bem, deixe passar os outros. E lhes diga
que o leilão começará assim que entrem.

Duas horas mais tarde, Sir Charles seguia sentado refletindo sobre uma jarra meio vazia,
com os bolsos tilintando pelo ouro.
O leilão da noite tinha ido melhor do que esperava. A moça estava assustada, mas
Timmons fazia bem seu trabalho. No dia seguinte ela seria enviada a um conhecido a oeste de
Londres. Ali lhe encontrariam um trabalho exercendo o ofício que tinha começado aquela noite.
Uma lástima que essa puta não pudesse vender-se por virgem duas vezes, pensou
Millbank, lambendo-os lábios ao pensar no ouro que lhe poderia produzir um truque como esse.
Ainda sorria com frieza quando lhe chegou uma voz das sombras que havia detrás dele.
—Você é Sir Charles Millbank, não é assim?—quem falava era um homem grande, com a
cara da cor da boa madeira de sândalo. De sua orelha direita pendurava um brinco de ouro. Seu
corpo estava coberto por uma capa de seda negra debruada com uma fita carmesim.
Millbank ficou em pé torpemente.
—Pode ser que seja. Quem quer saber?
O recém-chegado o estudou com frieza.
—Não percamos tempo com preliminares, inglês. Sente-se para que possamos falar.
—Maldição, quem é? Como sabe meu nome?
Os olhos do estranho se endureceram e ficaram completamente privados de cor ou
calidez.
—Sei porque meu negócio se apóia em saber esse tipo de coisas. Sei todo tipo de coisas
de todo tipo de gente. Duvida de mim?
—Sim duvido de você - respondeu Millbank—. Além disso, o que lhe dá direito a…?
O estrangeiro suspirou e estudou seus dedos afiados.
—Que aborrecimento! Muito bem, demonstrarei-lhe isso. Agora mesmo. Sir Charles, sei
que acumulou uma grande quantidade de dívidas com o tipo de gente errada. É um homem
extravagante, profundamente endividado com comerciantes e prestamistas. Além disso, têm
afeição pelas mulheres belas… e especialmente por uma madame que esvazia seus bolsos cada dia
mais. —Os frios lábios se curvaram em um sorriso zombador—. Quer que continue?
Sir Charles só conseguiu ficar olhando fixamente. Sua cara era agora da cor do fígado de
vitela cru.
—Suficiente, Por Deus! Não sei quem demônios é ou como têm descoberto…
—Meu nome não interessa, inglês. E a maneira que tenho de saber essas coisas é simples.
As respostas estão aqui, em minhas mãos. —Tirou uma bolsa de debaixo de sua capa e a esvaziou
sobre a deteriorada mesa—. O dinheiro consegue grandes coisas. Especialmente este tipo de
dinheiro.
Sir Charles olhou atônito as moedas de ouro pulverizadas sobre a madeira escura.
—Mas… mas deve haver milhares de guinéus aqui!
—Aproxima-se bastante.
—por que me mostra isso?
—Porque necessito que me proporcionem um serviço. Quem o realize de forma que eu
fique satisfeito, receberá todas estas moedas.
A avareza se mesclava com a suspicacia nos olhos escuros de Millbank.
—Se procura que o introduzam na Corte, isso está fora de meu alcance. Não me movo
nesse tipo de círculos, por desgraça.
O imponente visitante jogou a cabeça para trás e riu, seu único brinco brilhava à luz da
vela.
—Meu querido inglês, verdadeiramente é muito gracioso. Não, não desejo ser
introduzido na Corte. Não tenho nenhuma vontade de conhecer o rechonchudo e miserável
príncipe regente.
—Um momento…!
O estranho continuou imperturbável.
—Nem tampouco, Sir Charles, desejo… como se diz?… acotovelar-me com esses metidos
lordes ingleses e com essas ladies inglesas pouco aficionadas ao banho.
Millbank se endireitou.
—Não pode entrar aqui e dizer…
—OH, não posso? Acredito que posso fazer quase qualquer coisa, inclusive em um país
tão estranho como é o seu. Meu dinheiro me permite isso. Mas o que desejo é uma coisa muito
simples. Embora possivelmente devesse encontrar outra pessoa com quem discuti-lo - disse, e
fingiu partir.
—Maldição, não há necessidade de procurar em nenhuma outra parte. Eu sou seu
homem. —Os olhos de Millbank brilharam com avareza quando se inclinou para diante—.
Simplesmente me diga qual é o trabalho. Por esse dinheiro estou seguro de que pode fazer-se.
—Tão crédulo se sente, meu amigo? Talvez não se sinta assim quando disser do que se
trata.
O inglês riu e afastou seu brandy.
—Por mil peças de ouro poderia fazer qualquer coisa.
Os olhos escuros avaliaram o rosto do baronete. As rugas ao redor desses olhos sugeriam
que enfrentaram tormentas de areia e à fúria tanto da natureza como dos homens.
Sir Charles tentou não retroceder ante esse olhar, embora começasse a notar que o suor
perlava sua testa.
—Muito bem - disse o estranho ao fim, recostando-se na cadeira—. Por sua ajuda
receberá essa bolsa de ouro… e outra como essa quando terminar o trabalho.
Sir Charles piscou.
—E o trabalho? —perguntou com voz abafada, incapaz de acreditar que ia ser receptor de
tão imensa fortuna.
—me traga o bandido chamado Blackwood. Diz-se que freqüenta a propriedade Lavender
Close.
—Deus Santo, como sabe isso?
—De novo, minhas fontes não lhe concernem. Só precisa saber que quero que me traga
para esse homem. Vivo.
—Bla… Blackwood. Vivo - repetiu estupidamente Sir Charles—. Mas, por quê?
—Os porquês do assunto tampouco são de sua incumbência. E faria bem em recordá-lo,
inglês. —A frieza da advertência fez Millbank empalidecer.
Sentiu uma pontada de medo, mas a ignorou. Tinha dívidas que pagar. Dívidas urgentes,
na realidade. O dote de sua esposa tinha sido generoso, mas não era adequado para seu estilo de
vida. E depois da morte de Jessica esse mesquinho do St. Clair não tinha querido ter nada que ver
com seu genro.
Millbank franziu o cenho. Tinha uma imagem que manter, depois de tudo. Isso significava
carruagens, criados e cavalos de primeira. Significava alfaiates de Londres e comerciantes de
Norwich com os quais fazer negócios.
E ultimamente tinha significado prestamistas que lhe faziam endividar-se mais e mais.
Não, não ia fazer mais pergunta sobre este encargo surpreendente. Ganharia seu dinheiro
e desapareceria. Seria difícil, é claro. Lorde Carlisle não quereria que lhe tirassem o bandido das
mãos; queria retorcer o pescoço desse homem por si mesmo e já tinha feito seus próprios planos.
Além disso, havia maneiras e maneiras. Especialmente se mil libras estavam em jogo.
Ele assentiu secamente.
—Quando quer que lhe entregue a esse criminoso?
—Em sete dias. Nem um dia mais. Ter que permanecer em seu frio e triste país mais
tempo me desagradaria sobremaneira. —Seus olhos negros se endureceram—. O entendeu?
De novo Millbank sentiu uma aguilhoada de medo.
—Está claro. Uma semana e não mais. E onde devo levar o homem?
—A King's Lynn. Meu navio está atracado no Canal. Um de meus homens o esperará perto
do cais.
Sir Charles mal levantou o olhar, muito absorvido pelos soberanos de ouro e a operação
de colocá-los em seu bolso.
Sem prévio aviso uma mão de ferro deteve seu movimento.
—Não lhe ocorra me trair, inglês. Se aceitar esse dinheiro, deve me trazer o homem ou
morrerá em seu lugar.
Millbank tragou com dificuldade e logo assentiu.
—Muito bem. Agora podem ir organizar seu negócio.
—E a garota? —O baronete passou a língua pelos roliços lábios enquanto punha a última
moeda em lugar seguro—. Mencionou a propriedade Lavender Close, e… bom, pode ser que seja
necessário utilizá-la como isca.
O estranho entrecerrou as pálpebras.
—Está interessado nela?
—Não, absolutamente! É que eu…
—Já vejo. Pode ficar com ela nesse caso. É o homem que eu quero. Ele é mais
interessante. Sim… O bandido que conseguiu que todos pareçam uns covardes.
Sir Charles começou a protestar, mas seu visitante o cortou com uma mão imperiosa.
—Suficiente. Não quero que me divirtam mais. Agarrastes meu ouro. Agora me traga
Blackwood em uma semana… ou morrerá.
—O levarei - disse o inglês. Quando ficou em pé, dedicou um olhar avaliador à beleza de
cabelo escuro que se mantinha atrás do estranho. Ia vestida de seda esculpida em ouro. Um véu
brilhante ocultava seu rosto.
Sir Charles entreabriu os olhos.
—No enquanto isso possivelmente queira considerar…
—me deixe! —foi a ensurdecedora ordem que recebeu como resposta.
—É obvio… senhor. Considere-me ausente.
Quando Millbank se foi, o estranho se aproximou da janela, totalmente alheio às duas
mulheres que o seguiram para abaná-lo com doçura. Seus olhos se obscureceram ao olhar a noite
que envolvia o exterior enquanto brincava com um abre cartas de marfim esculpido entre seus
dedos.
—Vinho - ordenou de repente—. E ostras. E depois me enviem à garota nova.
Quando uma das mulheres se apressou a obedecer suas ordens, o estranho desceu o
olhar para observar suas mãos. Um anel brilhava em um de seus dedos: um grifo, metade águia e
metade leão, escondia-se ao longo da banda de prata e duas esmeraldas brilhavam no lugar dos
olhos.
Enrugou a testa pensando no homem a quem o inglês conhecia só como Blackwood. Que
estúpidos eram esses granjeiros com cara de bezerros. Só tinha necessitado uns meses para
descobrir a identidade do bandido. Mas ele não podia mostrar claramente seu interesse. Sir
Charles Millbank seria uma coberta perfeita. E se as coisas ficassem complicadas, as culpas
recairiam sobre o gordo baronete.
Sem deixar de girar o afiado abre cartas pensou em como ia castigar ao homem que tinha
escapado dele. Pensou na dor que infligiria a sua vítima até que suplicasse sua morte.
O abre cartas se partiu em dois e o sangue escorreu de seus dedos.
Sua expressão não trocou apenas ao inspecionar a ferida. Realmente não era grande
coisa.
—Estou perto, velho amigo. OH, sim, muito perto. A vingança será muito mais que doce.
Seus lábios se curvaram em um frio sorriso.
—E o seguinte sangue que verei será o seu, Lucien Delamere.

Capítulo 12
O sol da manhã caía sobre Silver, que estava sentada no meio de estufa, olhando com
tristeza o caos de frascos, tubos e algodões encharcados que estavam pulverizados a seu redor.
Esses animais tinham cumprido sua palavra. Ao amanhecer tinha descoberto o dano que
tinham feito a sua oficina. As garrafas de destilação de vidro quebradas, as terrinas de porcelana
para composição feito migalhas e uma quantidade de frascos de essências de cristal esculpido com
plugues dourados roubados das despensas.
Conforme avançava o dia as coisas só tinham ido a pior. Uma fileira de arbustos de
lavanda tinha sido arranco pela raiz perto do extremo sul da propriedade, e tinham desaparecido
uma dúzia de sacos de flores secas. O abrigo para guardar as ferramentas ficou sem porta e sem
vidros em suas duas janelas.
Tinker tinha tirado Cromwell do curral onde estava acostumado a estar e o tinha deixado
solto pelo imóvel, já que sabia que o cão não gostava dos estranhos.
Mas foram muitas incursões de uma vez. Bram, Tinker e Cromwell estavam ocupados
tentando ocupar-se de uma delas quando Millbank e Carlisle chegaram em busca de Blackwood.
Depois disso, Tinker insistiu em que Silver e Bram ficassem na casa e pusessem uma pesada mesa
contra a porta. Quando Bram, que estava pálido e preocupado, ao fim dormiu, Silver se dedicou a
ler o diário de seu pai.
Ela podia notar seu medo e sua ira, mas em nenhuma parte explicava quem eram seus
inimigos ou que objetos tinham escondido entre suas gavetas de sementes.
Com um suspiro, Silver ficou olhando as cem brilhantes garrafas do melhor óleo essencial
de lavanda que estavam prontas para seu envio à empresa perfumista londrina Kenton e filhos.
Não era o Millefleurs. Não era o perfume que seu pai tinha feito famoso em todos os
cantos da Europa. Não era essa suntuosa fragrância que os cortesãos reais e as damas da nobreza
se sentiam orgulhosos de usar.
Não, o Millefleurs se perdeu e sua fórmula tinha desaparecido para sempre. Seu pai levou
seu segredo à tumba.
E com ele se foi também a melhor oportunidade de sobrevivência de Lavender Close.

Estiveram discutindo durante toda a refeição, que consistiu em pão e bolo de porco.
Tinker queria esconder-se no bosque e caçar esses bastardos um por um quando penetrassem
pela porta. Enquanto ele fazia isso, queria que Silver e Bram se escondessem em algum lugar
seguro longe de tudo aquilo.
—Isso não funcionará. Enviarão outros e sabe. —Bram subiu os óculos pelo nariz—.
Temos que assustá-los, assustá-los de verdade para que abandonem suas ações de todo.
Tinker escutou com atenção, com a testa enrugada e empurrando um pedaço de pão ao
redor de seu prato.
—Talvez tenham razão. Mas o jovem Kenton vai vir buscar seu pedido de lavanda esta
tarde. Necessitamos esse dinheiro desesperadamente. Será catastrófico se esses bas… vilões o
espantarem.
—Então temos que conseguir que não ocorra nada até que ele se vá. —Silver se levantou
para agarrar o bule que assobiava sobre o fogo no extremo mais afastado da enorme e diáfana
cozinha. Tinham já por costume comer todos juntos ali. Mas hoje nenhum deles tinha muito
apetite.
Silver podia ver, pela dureza dos olhos cinza de Tinker, que estava considerando as
limitadas possibilidades. Jogou a água quente no bule de barro cozido com forma de gato
sorridente e o levou até a velha mesa polida.
—E como vamos fazer , Bram? Os assustar, quero dizer.
Os olhos de Bram se iluminaram de excitação.
—Bom, poderíamos enganá-los, acredito. Fazer parecer que somos mais dos que
realmente somos. Os fazer pensar que não será tão fácil como acreditam.
Ela encheu uma xícara para Tinker.
—Eu acredito que poderíamos provar.
Tinker deixou o pão na mesa e sacudiu a cabeça.
—É a idéia mais descabelada que ouvi. Só desejaria ter uma idéia melhor. —Olhou Silver
com a mandíbula tensa. Esse olhar frio fez saber a ela que tinha outras idéias, mas que esperaria
primeiro para ver se a de Bram funcionava—. Mas não… - Olhou o relógio que havia na parede—.
Não temos muito tempo antes que chegue Kenton. Façamos o que for, esperemos que seja
acertado.
—Estupendo! —Bram afastou seu prato ansioso e tirou uma folha de papel de seu bolso.
Mal havia tocado a comida, notou Silver preocupada. E sua cara estava muito pálida. Mas ao
menos não respirava com dificuldade.
Ainda não, ao menos.
Acomodando os óculos, o menino ficou olhando a folha.
—Podemos começar com uma pequena valeta aqui e algumas cordas penduradas pelos
campos. Depois algumas armadilhas colocadas ao redor dos secadores. Já tenho feito um mapa.
Acredito que tenho talento para o desenho, de fato.
Interessado apesar de si mesmo, Tinker se inclinou para diante.
—OH, sim o têm, não é, pirralho? Por onde começamos então?
Duas horas depois, Silver se entretinha manuseando uma das garrafas de vidro verde que
continham as mesclas reservadas feitas especialmente para alguns dos seletos clientes de Kenton
e que estavam fazendo desde a época de seu pai. As essências estavam em perfeitas condições,
conservadas na despensa desde sua destilação em agosto passado.
Não era Millefleurs, mas mesmo assim resultava útil. O jovem Kenton trazia um cheque
bancário que tinha entregado a sua chegada. O dinheiro chegava bem a tempo. Silver já levava um
atraso de uma semana nos salários dos poucos trabalhadores que ainda podia permitir-se, a
maioria mulheres que a ajudavam nos momentos chave, quando compilavam as flores para a
primeira destilação.
Fora, a carruagem, bem empacotado e protegido contra os golpes por capas de algodão
apertado, já preparado para sua viagem de dois dias para o sudoeste até chegar a Londres.
Um momento depois apareceu James Kenton, com roupa enrugada e um sorriso no rosto.
—Tudo preparado, acredito, senhorita St. Clair. Felicito-a de novo por seus
extraordinários produtos. Lavender Close será logo uma potência com a que outros terão que ver-
se. Agora que Mitcham produz tão pouca lavanda, Kenton e filhos tem que procurar novos
fornecedores e eu confio que vocês serão o melhor deles. —Observou uma pequena ampola da
última mescla de perfume de Silver e Bram e a estudou com atenção, notando-se em sua
translucidez e a tênue cor dourada. Depois o abriu e o cheirou.
—Sim, uma boa fragrância: com corpo mas delicada. Uma pena que não seja Millefleurs, é
obvio. Mas mesmo assim é bastante superior a todas as que provei nestes últimos cinco anos, aqui
e na França, devo acrescentar. Em poucas palavras, um êxito, senhorita St. Clair. E me ocuparei de
que todas as belezas e matronas da sociedade londrina saibam.
Se ainda estivermos aqui, pensou Silver com amargura. Se ainda ficar algum campo de
lavanda…
—É muito amável, senhor Kenton. —Silver tentou ignorar a calidez que via nos olhos do
cavalheiro—. Estou encantada de que nossa lavanda cumpra seus exigentes requisitos. —Como o
perfumista seguia olhando-a, ela inclinou a cabeça e sorriu—. Oferece-lhe algo mais?
Essa pergunta pareceu infundir ao cavalheiro um movimento repentino.
—Senhorita St. Clair… Silver… —Ele cruzou a sala e tomou sua mão—. Perdoe-me, mas
devo falar. Estes dois últimos anos, o vir aqui, a Norfolk, o a ver entre a lavanda, foi o céu e o
inferno para mim. Sei que lhe fiz uma pergunta o ano passado por estas datas… e também recordo
sua resposta. Espero não resultar molesto, mas devo assegurar que meus sentimentos
permanecem exatamente iguais. Seria uma grande honra que aceitasse ser minha esposa.
Silver sentiu que fazia um nó na garganta. James Kenton era enérgico e responsável. Em
dois anos se converteria em sócio de pleno direito da prometedora empresa de seu pai e em cinco
no diretor em funções, estava segura.
Mas por muito boa opinião que tivesse do jovem, por muitos interesses comerciais que
tivessem em comum, Silver sabia que sua resposta devia ser a mesma.
Ela não podia casar-se com alguém ao qual não podia dar seu coração. Ela recordava com
muita claridade a felicidade de seus pais para aceitar nada menos para si mesma.
Ela olhou desesperada para a porta, pensando que Bram ou Tinker podiam entrar em
qualquer momento.
—Senhor Kenton, eu não…
—Não podem me chamar James? Nem sequer uma vez?
—Muito bem, James. Adula-me profundamente, asseguro-lhe isso, mas não posso lhe dar
uma resposta diferente. Eu adoraria poder dizer o contrário, mas… - Ela suspirou enquanto
retorcia um ramo de lavanda entre os dedos, fazendo que a limpa e fresca fragrância enchesse
seus pulmões.
—Há alguém mais?
—Não.
—Então me perdoe de novo, senhorita St. Clair, mas devo seguir falando. Não pude evitar
notar que se vêem em uma posição incômoda aqui. Seus gastos crescem cada ano. Necessitam
mais capital para investir em melhorar as sementes, ampliar a área de cultivo e provar novas
variedades. Eu poderia a ajudar com tudo isso. Kenton e filhos está perfeitamente preparado
para…
Silver se pôs em pé com presteza.
—Rogo que não continue. Sua oferta reúne tudo o que se pode pedir, James. E seu
interesse em nossa pequena propriedade resulta mais que gratificante.
—Pequena propriedade! Mas têm os melhores campos de lavanda de toda a Inglaterra!
—Muito bem. Mas isso não tem nenhuma influência sobre minha decisão. Não me casarei
se meu coração não aprova. E, perdoe minha franqueza, tenho-lhe grande simpatia, mas não o
amo.
Kenton a estudou intensamente.
—Pode ser que isso mude. Espero, rezo para que possa me amar. Deixe-me tentar,
senhorita St. Clair. Posso lhe fazer feliz, sei que posso.
Silver pensou de novo na insolência de Sir Charles Millbank e em suas ameaças de mandar
Bram a uma escola restrita e longínqua. Talvez estivesse sendo muito egoísta. Possivelmente
deveria casar-se com James Kenton. Era um homem decente. E só Deus sabia que ele e Bram
teriam suficientes coisas de que falar para encher duas vidas.
Mas ela sabia que nunca funcionaria. Não podia pensar em casar-se contra a vontade de
seu coração.
Talvez porque seu coração já estava comprometido?
Suspirou e esticou a rama de cor arroxeada.
—É um bom homem e será um grande marido para alguma mulher. Infelizmente eu não
posso ser essa mulher.
—Mas, por quê? Falam de amor, mas isso é realmente tão importante? Estamos cômodos
juntos, nós gostamos das mesmas coisas, falamos a mesma linguagem… Não é isso suficiente
como base para uma vida em comum?
Silver entrelaçou os dedos.
—Não. Ao menos para mim não. Além disso, eu resultaria ser uma esposa completamente
insatisfatória. Sempre estaria dando o contra, sempre querendo fazer as coisas a minha maneira -
disse lhe dedicando um leve sorriso cúmplice—. Mandaria-me ao inferno a primeira semana.
—Nunca - disse decididamente seu visitante—. É pelo menino? Poderia vir conosco, sabe.
Poderia encarregar-se do armazém de Londres. E suponho que poderíamos lhe encontrar um tutor
se não quiser mandá-lo a uma escola.
—É muito amável, mas não pode ser.
Kenton a estudou de perto.
—Está segura? Sua resposta não vai mudar?
Silver assentiu, incapaz de falar.
—Então não a incomodarei mais. Deixou claro quais são seus sentimentos, o que
agradeço. —voltou-se e calçou as luvas lentamente—. Devo pensar em meu pai, compreende?
Cada dia está mais ansioso por ter netos e um herdeiro que siga com seu negócio. —Ele olhou
para outro lado—. Eu… eu acredito que será melhor que não venha à inspeção de verão. Mandarei
meu capataz; é um homem consciencioso. —Kenton estudou os campos de lavanda e suspirou—.
Espero me casar este ano. Meu pai esteve me pressionando estes últimos seis meses… Bom,
imagino que não voltaremos a nos ver, senhorita St. Clair. Mas levarei sua lembrança em meu
coração. —Seus lábios se converteram em uma fina linha—. Foi um prazer fazer negócios com
você.
E com uma reverência formal se virou e caminhou para a carruagem que o esperava para
levá-lo de volta a Londres.

Haverá homens nos quais possa confiar e homens nos que não, minha filha. Deve
aprender a encontrar a diferença, porque uma rede de perigo se fecha sobre você. Não confie nas
palavras nem nos presentes. Deixa que o coração a guie, porque só seu coração pode ver o fundo
da outra pessoa.
Talvez eu passasse muito tempo entre ervas e plantas e não aprendi a desconfiar. Nunca
suspeitei o tipo de traição da qual são capazes alguns homens.
OH, sim… e me dei conta de meu engano quando era já muito tarde.

Silver ainda estava de pé junto à janela, pensado nessa entrada do diário de seu pai,
quando Tinker entrou esfregando as mãos para tirar a terra.
Lançou-lhe um olhar pormenorizado e sacudiu a cabeça com desgosto.
—Pediu-lhe de novo, não é?
Silver assentiu.
—E você, mulher obstinada, ficou aí e o repeliu.
Assentiu de novo.
—Demônios, senhorita Silver, o que, em nome de Deus…?
—Não, Tinker. Não teria sido correto. Todo o carinho viria só de uma das partes. Ao final
os dois estaríamos suscetíveis e zangados e acabaríamos nos odiando. —Havia um fundo de
desespero em sua voz—. Não poderia me casar com ele, não vê?
—Não, não vejo. Sigo sem vê-lo apesar de todos esses inteligentes rodeios que acaba de
dar.
Os dedos de Silver se crisparam ao agarrar uma das limpas mas desfiadas cortinas.
—Não, Tinker. Agora não.
—Então quando? OH, têm dinheiro no bolso agora, mas, quanto durará? Terá que
comprar novos materiais para a destilação do verão e terá que pagar o último lote de sementes. E
este ano temos que tomar precauções especiais, não vá querer que essa praga de cogumelos se
estenda por aqui como fez pelos campos de Mitcham faz duas temporadas. E, se por acaso isso for
pouco, essa banda de canalhas está rondando por aí e tentando assustar todo mundo. Como
pensa confrontar tudo isso?
Silver uniu fortemente ambas as mãos.
—Arrumaremos isso. Arrumamos isso até agora - disse com convicção.
—Mas também terá que pensar no menino Bram. E nesse descendente de um burro
obstinado que é Millbank, sempre por aqui, farejando o ar; sempre tentando lhe fazer a vida
impossível.
Silver dedicou a Tinker um sorriso torcido.
—Volta a mesclar as metáforas, velho amigo. Assim é como sei que está preocupado.
—Demônios que têm razão! Sim estou preocupado. E mesclarei essas metáforas, seja o
que for, quando quiser. Não tente me distrair, ouviu-me? Sir Charles Millbank esteve aqui ontem à
noite, não é? Ouvi-o quando subia dos campos, não tente me mentir.
Silver suspirou.
—Não o farei. Sempre esperei que se cansasse destes joguinhos e buscasse uma presa
que fosse mais agradável com ele.
—OH, é o prazer da caça o que ele gosta. Tem mulheres daqui a Southold. Além disso,
agora mesmo tem… - Tinker se deteve, murmurando irritado enquanto tirava seu lenço para
limpar o rosto poeirento.
—O que é o que tem agora mesmo?
—Não importa absolutamente. Nada do que seja correto falar, e menos com uma dama
como você.
Assim Millbank mantinha uma amante, pensou Silver. Sendo assim as coisas, surpreendia-
a que ainda seguisse tendo interesse nela.
—O que pretende fazer agora?
Silver deu de ombros.
—Suponho que descerei para ver essas novas plantas de lavanda dos campos do extremo
norte. A terra precisa ser removida, acredito.
—Não estou falando de plantas, menina!
—Ah, não?
—Não, é de Sir Charles Millbank de quem estou falando e não tente escapar !
—Sir Charles se cansará de seus jogos, Tinker. Até então, simplesmente tenho que estar
mais alerta.
—Alerta e armada até os dentes! A esse homem falta um parafuso e não me importa
dizer isso. - De repente Tinker franziu o cenho—. Suponho que já terá tirado esse bandido da
cabeça…
—Bandido?
—Sim, bandido. Vi a cara que tinha aquela noite quando voltou do urzal. E a que tinha
quando voltou da cidade. Assim não tente me dizer que não andou pensando nele.
—Querido Tinker, não tentaria o convencer de nada, porque nunca poderia. É tão cabeça
dura quanto dez homens juntos.
—O que significa que não sou nem a metade de cabeça dura que você, senhorita - foi a
irada resposta—. E se tiver nascido alguma mulher mais difícil de contentar que você, eu ainda não
a conheci!
—Sim, e isso é uma pena, amigo Tinker. Tenho um coração livre, que não está amarrado
nem ao jovem Kenton nem ao arrumado e perigoso Lorde Blackwood. Isso o satisfaz?
—Nem por um segundo, senhorita. Pela tristeza que vejo em seus olhos, sei que o
homem de negro a adulou. E não tente negar.
Silver sentiu que lhe ardia a garganta. De repente teve a necessidade de falar com
alguém.
—Tem razão, Tinker. Ele esteve aqui ontem à noite. Chegou depois que Sir Charles. E se
não tivesse intervindo quando o fez… - Lhe escapou um som grave e desesperado.
—Assim que essa desgraçada exceção dentro da nobreza inglesa chegou a lhe tocar! Por
que, por todos os Santos, não me disseram isso ontem à noite depois de que Carlisle e seus
homens se fossem?
—Porque teria pego sua pistola e teria saído em sua busca. E agora estaria nos calabouços
de Norwich esperando para ser pendurado.
—É possível que o tivesse feito. Mas teria sido um grande prazer ver esse homem morto
primeiro.
—Não diga isso, Tinker. Ele não merece que você morra! —disse Silver olhando fixamente
a seu idoso criado —. Não quero vê-lo pendurando na forca pelas tolices que ocorrem a Millbank.
O ancião esfregou a cara enrugada.
—A verdade é que têm toda a razão. Está bem, não haverá nenhum duelo ao amanhecer -
disse com um sorriso perverso—. Mas isso não quer dizer que não me ate com ele a murros à luz
da lua. Agora parte. Eu me ocuparei de vigiar esta noite. Cromwell e este rifle são tudo o que
necessito. Amanhã tentarei obter um pouco de ajuda na cidade.
Silver lhe tocou o ombro com suavidade.
—Tome cuidado, meu amigo. Embora a verdade é que nunca escuta o que digo.
Os olhos de Tinker recuperaram seu antigo brilho.
—Sou cabeça dura? Se o sou é porque cheguei a me cansar de ver como Bram e você
vêem arrastados de uma confusão a outra.
—E acha que não sei, querido amigo?
Tinker emitiu em desagradável som de protesto, mas suas bochechas adquiriram um tom
rosado de prazer.
—OH, vamos. Estão tentando me adular de novo - grunhiu—. O problema é que…
conseguem cada vez que tentam!

A noite já cobria os frondosos prados de Waldon Hall quando Luc Delamere levantou o
olhar depois de calçar as botas recém lustradas.
—por que não sai e rouba alguns dos proeminentes pilares da sociedade de Norfolk e
deixa de me incomodar?
—Porque eu deixei esse tipo de vida faz anos, senhor Luc. —Jonas Ferguson, um forte
escocês com espertos olhos, ficou olhando o bandido que era o açoite de toda Norfolk—. Coisa
que deveria saber perfeitamente, já que foi seu pai que me fez endireitar meu caminho.
Uma pequena cabeça peluda emergiu debaixo de um monte de roupa de cama. Dois
olhinhos inteligentes olharam Luc, que agarrou à escorregadia bola de pelo e a aproximou do
peito. Acariciou o animal, que não deixou de chiar nem um momento, e logo suspirou.
—E olhe aonde o levou, Jonas. Agora é o cúmplice do bandido mais famoso do país e
puseram preço a sua cabeça. —Entreabriu os olhos e estudou a máscara de seda que havia sobre a
cama—. Quanto tempo passou?
—Desde… aquela noite? —Jonas pronunciou as palavras com dificuldade, como se tivesse
problemas para falar disso inclusive agora.
Aquela noite. Quando sua vida podia ter acabado.
—Sim, desde aquela noite.
—Quatro anos, se não me equivoco.
—Equivoca-se. São cinco já. —Luc seguiu acariciando a sedosa pele da mascote enquanto
sua mandíbula se endurecia mais e mais—. Cinco anos, três meses e vinte e um dias.
Luc voltou a colocar a sua mascote sobre o cobertor e ficou em pé. Absolutamente
silencioso esticou a mão para alcançar sua camisa.
No exterior a lua refletia, fria e zombadora, atrás de uma cascata de nuvens prateadas.
—Direi-lhe isso uma vez mais, senhor Luc. Não vá.
—Tenho que ir. Você sabe melhor que ninguém, Jonas. Há muito em jogo para não ir.
—por que não o deixa? Sim, deixe esta vida desatinada de uma vez por todas. Volte para
casa, ao Swallow Hill, aonde pertence, aonde pertencem todos os Delamere. Onde os seus
nasceram e foram enterrados durante mais de seiscentos anos.
Luc dedicou a Jonas um sorriso triste.
—Não me tinha dado conta de que sabia tanto da história dos Delamere, Jonas. Mas
como vejo que sabe, também saberá que os Delamere não enganam, não mentem. Que não
roubam carruagens ou cavalgam pelo urzal à luz da lua. —Deslizou a fina camisa negra sobre seus
largos ombros e se converteu em uma sombra em um quarto cheio de sombras—. E certamente
nunca trairiam seu país.
O velho criado soprou.
—Nem sequer embora o obrigassem a fazê-lo?
—Nem sequer então - A expressão da boca de Luc se endureceu—. Inclusive ainda que
seu país os esquecesse. Não, coisas como essa não ocorrem a um Delamere.
—Mas ocorreram a você - disse Jonas categoricamente—. Sim, e o sangue azul dos
Delamere corre por suas veias. E você não fez nada para merecer que as coisas ocorressem dessa
maneira, senhor Luc.
O bandido deu de ombros.
—Mas ocorreram, meu amigo. Primeiro em Southold, depois em Ruán e Argel. E não
posso fingir que não foi assim. Nem tampouco posso perdoar à pessoa que está atrás de tudo isso.
Luc agarrou sua capa, que estava pendurada em um pilar da cama de mogno. Os
músculos de suas costas se esticaram quando colocou a peça de seda em seu lugar.
Os olhos de Luc emitiram um brilho: brilho de âmbar, olhar felino. Agarrou seus alforjes e
examinou as duas pistolas que tinha dentro.
—Sabia que houve um Delamere em Agincourt? E outro com Marlborough na batalha do
Blenheim em 1704? —Os carnudos lábios se curvaram em um meio sorriso—. Não imagino o que
diriam se soubessem que o herdeiro do ducado de Devonham brinca de ser assaltante de
estradas. Provavelmente o mesmo que diria meu pai… se soubesse. Coisa que não vai ocorrer
nunca.
—Diga Luc. Andrew Delamere é um bom homem. Maldito seja, entenderia-o. E, o que é
mais, encontraria a forma de ajudá-lo.
—Não.
Sem nenhuma entonação.
Frio. Como se já o tivesse considerado milhares de vezes antes.
—Não posso voltar ali, Jonas. Não até que tenha localizado o homem que me fez isto.
Possivelmente nem sequer então. E se não puder aceitar isso, será melhor que vá. —Luc pendurou
os alforjes no ombro e caminhou para a porta—. Não voltarei até a manhã.
Jonas trocou o peso de um pé ao outro. Parecia zangado e preocupado ao mesmo tempo.
—E espera que eu esteja aqui para costurá-lo quando voltar cheio de chumbo?
Luc deu de ombros.
—Não espero nada.
—E quem vai ser esta noite? Lorde Carlisle? Lorde Clayton? Ou será Sir Charles Millbank
esta vez?
Luc se deteve um momento.
—Millbank? Roubar a esse insuportável petulante seria um prazer, certamente. Mas esta
noite devo fazer uma visita ao bom senhor Abercrombie.
—O joalheiro que vive em Kingsdon Cross? Está louco, menino? Agora vai se converter em
um simples trombadinha de lojas?
Luc estudou a ponta de seu florete, que brilhava como prata líquida à luz da lua.
—Tenho minhas razões. Além disso, erra profundamente, meu amigo. Não há nada de
simples em Lorde Blackwood, asseguro-lhe isso. E se não me acredita, uma grande quantidade de
encantadoras damas darão fé disso.
Jonas franziu o cenho.
—Mulheres, talvez, mas não damas. E de simples têm o que todos outros - murmurou o
velho—. Mas como é tão obstinado como um burro, deixemos assim. Lavo as mãos com respeito a
você, senhor Luc. Dê lembranças de minha parte ao senhor Abercrombie. Sempre e quando não o
agarrar um oficial da lei enquanto vai ali - acrescentou Jonas lúgubremente.
—Não há nenhuma possibilidade de que isso aconteça, meu querido amigo. Blackwood é
invencível, não sabe? Imune às balas e às estocadas. Nada nem ninguém podem ferir esse homem.
Jonas soltou um bufo.
—Simples, já disse isso. Deveria estar de volta em casa, em Swallow Hill, no lugar ao qual
pertencem, maldito estúpido! —disse olhando Luc e sem deixar de sacudir a cabeça.
Mas Luc já estava nas escadas e na última coisa em que queria pensar precisamente
então era em seu passado. Fechou sua mente às lembranças de belos campos verdes e dos raios
do sol deslizando-se pelas paredes de Swallow Hill, a fastuosa mansão do século XVI que possuía a
família Delamere a oeste de Norfolk. Também a fechou ao título de Devonham que estava
destinado a herdar.
Agora devia centrar-se na dura e cruel realidade em forma de estranho anel: um de prata
gasta, com esmeraldas incrustadas e com a forma de um animal fantástico.
Era um anel que Luc não tinha visto nos últimos cinco anos, mas que não era capaz de
esquecer. O anel era a última coisa que tinha visto antes de cair inconsciente, amordaçado e
amarrado, para depois ser encerrado, ainda inconsciente, no fedido inferno do porão-prisão inglês
onde o deixaram para que morresse.
Mas o destino interveio. Conseguiu escapar do navio e ser recolhido por uma fragata
francesa. Ali o alimentaram, curaram-no e o devolveram a liberdade. Em troca ele lhes
proporcionou gostosamente seus serviços.
O que o converteu em um traidor para seu país. Em questão de meses o brilhante
aristocrata se converteu em um marinheiro endurecido com uma fome de vingança insaciável.
Vingança contra o homem que o tinha deixado a mercê de uma morte lenta e agônica
naquele imundo navio. Contra o homem que se encarregou de que permanecesse ali, inclusive
embora ele, suficientemente cordato e lúcido, não deixasse de protestar e dizer que era
completamente inocente.
Mas ninguém o escutou.
E Luc logo descobriu que a prudência era algo relativo. Que a inocência também o era e
que a perdeu depois entre a crueldade inefável de um navio-prisão, amontoado com duzentos
homens mais em um só convés, navegando por mares tormentosos.
A esperança durou até menos.
Agora Luc só vivia para cobrar a vingança contra o homem que tinha arruinado sua vida.
E, se a sorte seguia estando com ele, descobriria o nome desse homem essa noite.
Mas antes tinha uma missão que cumprir.

Capítulo 13
Da janela de seu dormitório, justo sob o beiral feito de palha, Silver viu como a escuridão
cobria as colinas. Na copa de alguma árvore um rouxinol cantou suas primeiras notas tristes
enquanto a lua subia, pálida e orgulhosa, pelos suaves campos de lavanda.
O menino é o próximo.
Era assunto de Silver agora. Tirou o mapa com a rota até The Green Man que tinha
desenhado apressadamente; um dos trabalhadores tinha explicado como encontrar esse antro de
má morte que estava no limite do urzal. Também lhe havia dito que era o tipo de lugar onde se
podiam contratar homens em troca de ouro… e onde ninguém fazia pergunta.
Justo o tipo de lugar onde se podia contratar quatro valentões para expulsar uma mulher
desarmada, um menino e um velho, de quarenta acres de campos de lavanda.
Silver estudou o mapa. Tinha que ir a The Green Man e descobrir quem estava tentando
obrigá-la a ir-se. E depois simplesmente enfrentá-lo, fosse quem fosse.
Ela sozinha. Sua pistola seria um bom cúmplice para ajudar nessa tarefa.
Não necessitava a ajuda de nenhuma outra pessoa.
Sentindo-se mau, escondeu o mapa em uma estante de palissandro que havia junto à
janela. Enquanto revisava mentalmente seus planos, dedicou-se a recolocar uma escova de cabelo
com cabo de prata e um par de terrinas de porcelana cheas de composição.
Com um suspiro tirou a camisa de linho e as calças gastas.
E então algum tipo de instinto a fez virar-se. Caminhou pelo retângulo de lua, seu corpo
todo prata e curvas, até o grande armário de carvalho, onde abriu uma das gavetas.
A expressão de seus olhos era nostálgica quando tirou um vestido suave como uma
nuvem de cambraia branca.
Tinha sido de sua mãe. O pescoço estava adornado com rosas brancas bordadas e umas
fitas, também brancas, agrupavam-se nas mangas cheias de franzidos. Silver gostava de tirar
aquele vestido de vez em quando. Ajudava-a a recordar que uma vez teve uma mãe. Que uma vez
foi feliz. Que uma vez houve uma família e discussões e brincadeira diante do fogo e
acompanhadas pelo bule e o pão torrado.
Levantou os braços e deixou que o vento beijasse sua pele, cheirando o suave aroma de
lavanda, hortelã e bergamota que se mesclava com o ar.
Suspirando se deixou cair na cama e colocou o vestido sobre os ombros. Depois começou
a tirar as presilhas do cabelo, que caiu sobre seus ombros, denso e escuro, exceto pela franja
branca que saía desde sua testa.
Silver passou seus dedos lentamente pela mecha brilhante. Em outros tempos a tinha
odiado, mas agora a levava com orgulho. Agora essa mecha branca lhe recordava coisas que não
queria esquecer jamais e marcava o dia que soube da morte de seu pai.
Se lhe faltavam as lembranças, essa mecha prateada em seu cabelo sempre resultaria um
bom aviso.
E ela se alegrava por isso.
Deslizou a escova por seu cabelo enquanto observava como a lua dançava entre as
cortinas e escutava a canção dos grilos nos campos de lavanda.
E tentava não pensar em uma sombra. Em uma lenda. Em um homem cujo nome se
pronunciava em sussurros ou não se pronunciava absolutamente.
Um homem que facilmente podia ser um assassino.
Ela tentava não pensar em nenhuma dessas coisas enquanto olhava pela janela e via
como as cortinas se moviam com lentidão.
E então o viu.
Escuros ombros. Máscara negra. Mandíbula rígida.
Seu reflexo encheu o espelho de corpo inteiro que pendurava da parede. Ele estava de pé
junto à janela, alto e imóvel, uma sombra como outra qualquer em uma sala cheia delas.
Silver reprimiu um grito. Virou-se bruscamente e o vestido caiu de seus ombros.
Sem dar-se conta a escova também caiu e ressonou sobre o chão, e as presilhas se
pulverizaram ao deslizar da cama.
Levou a mão aos seios e agarrou o tecido de sua regata, que de repente lhe parecia muito
fina sobre uma pele que um momento parecia muito quente e ao momento seguinte totalmente
fria.
—Meu raio de sol. —Umas palavras que lhe chegaram diretamente à alma. Uma forma de
chamá-la que conjurava uma eternidade de esperanças, uma infinidade de tolos sonhos de
menina.
Mas Silver não era uma menina tola, já não. Ou disso tentava convencer a si mesma. Só
era a noite. Só aquela estranha inquietação. Ela deu um passo atrás.
—Você.
—tornei a tentar me manter afastado. Não pude.
A mão de Silver se elevou até sua garganta.
—Você… estava olhando.
Não era uma pergunta. Ela havia sentido o olhar escuro sobre ela. Talvez alguma parte
dela tivesse sabido sempre que ele estava ali.
E se alegrava de que assim fosse.
Suas faces ficaram cor carmesim. Seu queixo se elevou com ar zangado.
—Você… você estava aí. Estava olhando. Deus Santo, viu-me…
—Linda. —Ele tinha sussurrado a palavra. Ela quase podia sentir como se a tocasse, como
se essa palavra deslizasse sobre seus ombros nus e seu cabelo solto.
—Não, não sou. Eu saberia se…
—Linda - repetiu ele—. Linda além de qualquer sonho. De qualquer permissão. Nega a um
homem toda sua paz.
Ela abriu muito os olhos. Viu-o cruzar o quarto para chegar junto a ela. O espelho refletia
cada um de seus movimentos, branco contra negro, uma mulher ante um homem.
Seus dedos se enterraram em seu cabelo.
—Queria lhe olhar. Queria ser como a luz da lua e lhe tocar por toda parte. Condenar
minha negra alma ao inferno para poder fazê-lo.
Ela mal ouviu essa maldição. Seu coração estava muito ocupado tropeçando com todas as
outras imagens que suas palavras invocavam.
—Mas, por que? Em Kingsdon Cross agia como se quisessem que me fosse.
—E isso era o que queria. Então estava bêbado. Mas esta noite, OH, esta noite só me
embebedei com a visão de seu corpo, pequena. E como estou completamente sóbrio me digo que
sou suficientemente forte para estar aqui. Para me aproximar de você assim. —Ele riu
maliciosamente—. OH, sim, sóbrio sou mil vezes mais perigoso, pequena. Porque esta noite sou só
um homem. Um criminoso de coração duro atrás do aroma de uma presa tenra e fácil.
—Não… não deveria ter vindo.
—Claro que não deveria. Mas queria vir. E Blackwood nunca nega a si mesmo o que quer -
acrescentou com dureza.
Muita dureza? Para convencê-la ou para convencer-se a si mesmo?, pensou Silver.
—Mas é muito perigoso.
—É. Será melhor que agarre a pistola que há sobre a mesa e a use.
Silver fez um som de impaciência.
—Não é perigoso para mim, e sim para você. Pode ser que Millbank tenha alguém por aí,
vigiando.
Os olhos ambarinos pareciam não ter fundo sob a máscara.
—É uma estúpida impossível, uma louca. O perigo é para você, não entende? E eu o
represento. O que eu sinto… e todas as coisas que penso em fazer. Isso não a assusta?
Silver sentiu sua garganta quente e vazia.
—Sim.
—Por isso eu deveria a assustar também.
Ela levantou uma das mãos, uma pálida linha de negação.
—Não, você não. É a forma como me faz sentir o que me assusta. Não a entendo, nem
sequer uma parte. —Ela tragou saliva, obrigando às palavras a sair—. É tudo… muito estranho.
O bandido soltou uma maldição.
—Como conseguiu crescer sem que ninguém a ensine que não deve ser sincera? Que têm
que ser fria e dura e esconder as coisas importantes muito dentro de seu coração?
—Isso é o que aconteceu a você?
—Isso acontece com todo mundo - disse bruscamente o homem vestido de negro—.
Exceto a você. —Sua mão seguiu lentamente um de seus cachos avermelhados—. De algum jeito
escapou a essa dura lição.
Silver voltou a tragar, tentando esclarecer seus aturdidos pensamentos.
—Será… melhor que vá. Alguém poderia vir. Eles o agarrarão e… - Ela lutou para não
emitir um som profundo e perdido.
—OH, meu raio de sol, custará muito me apanhar, asseguro-lhe isso.
Suas mãos se converteram em punhos junto a seu peito, que parecia ser feito de pedra
fria e dura.
—Não zombe de mim. —Sua voz se quebrou e se encheu de fúria—. Os odeio, ouviu-me?
E odeio você também.
—É claro - disse ele enquanto seus dedos acariciavam seu cabelo, veludo sobre veludo—.
Sim, entendo-lhe perfeitamente.
—Não, não me entende! Aparece a sua conveniência e desaparece da mesma forma. Não
sei quem é nem nada sobre você! Mas não posso evitar pensar. Fazer-me perguntas. Preocupar-
me de que eles… de que você…
Passou-lhe o braço ao redor da cintura. Seus lábios tocaram seu cabelo. Silver
estremeceu, assaltada por emoções que nunca antes tinha conhecido.
—Não - disse ele com convicção—. Nunca me agarrarão. Não tenho medo disso. Matar-
me possivelmente, mas me agarrar, nunca - acrescentou com uma risada sardônica.
—Acha que tudo isto é uma brincadeira? —Lhe fez um nó na garganta só de pensar—. E o
que o faz pensar que me importaria que o agarrassem? Não me importaria, sabe! Nem sequer que
o levassem a rastros e acorrentado. Nem sequer se o levassem a forca em Norwich. —Ela se virou
bruscamente. Sua mão aberta golpeou contra seu peito—. Assim parte. E não volte nunca mais!
—Se isso for o que quer… - Mas não fez nem um só movimento.
—Sim, é. —passou-se a mão airadamente pelas bochechas—. Parte.
Ele olhou seu rosto úmido e franziu o cenho.
—Vamos! Não estou chorando! —disse sorvendo pelo nariz desafiante—. Isto não é
chorar e estas não são lágrimas. O odeio, ouviu-me? Só é um simples ladrão. Um bandido. Um
homem sem escrúpulos e sem sentido de honra. —As palavras se atropelavam, cheias de raiva e
dor—. Merece que o pendurem, como diz as pessoas!
—Completamente certo.
—Não discuta comigo.
A cicatriz prateada brilhou junto à boca de Luc.
—Nem sequer me ocorreria, carinho.
Um estremecimento a percorreu.
—Tampouco me dê razão. Não quero seu encanto, nem suas promessas, nem seus
sorrisos. E não estou brincando. Nunca faço brincadeiras sobre a morte, porque chega quando
menos se espera - disse ela cheia de fúria.
—Têm razão. Terei mais cuidado com minhas palavras no futuro.
—Deve ir. Não está seguro aqui.
—Têm razão, não estou.
—Então, saia. O que aconteceria se o seguissem? E se…?
—Logo. —Seus dedos procuraram suas faces e roçaram a boca carnuda que tanto
desejava beijar—. Muito em breve…
Ele tentou não olhá-la mais abaixo, onde a fina cambraia abraçada uns mamilos grandes e
exuberantes.
Ele fechou os olhos e respirou o delicado aroma da lavanda e das rosas, um aroma que
era tão único como ela.
—Cheira como uma doce e infinita tarde de verão. Não posso pensar em nenhuma outra
coisa, Por Deus. Tudo o que vejo é sua pele, seus olhos. Tudo o que ouço é sua voz, grave e
ansiosa. —Seus dedos se crisparam entre seu cabelo—. Todas essas coisas me fazem sonhar. E
para um homem como eu, sonhar é uma das coisas mais perigosas que existe.
Ficou olhando seus reflexos no espelho. O seu, duro e furioso; o dela, pálido e cheio de
perguntas.
E jovem. Deus, tão jovem.
Ele nunca tinha sido tão jovem, pensou Luc com tristeza. Nem sequer quando era um
bebê chorão de dois dias.
O que ia fazer com ela? Com a perigosa maneira em que o fazia sentir quando estava
perto? Deus do céu, assim se sentia agora.
—Venha comigo. —As palavras o surpreenderam tanto quanto a ela.
Os olhos dela se abriram muito, umas bolinhas verdes rodeadas de um dourado brilhante.
—por quê?
Luc sorriu um pouco. Não «onde» nem «quando». Tudo o que ela, essa mulher volátil,
vulnerável, quase uma menina com olhos verdes e dourados, tinha perguntado era «por que». Ela
sempre passava por cima de todas as coisas corriqueiras para ir diretamente ao coração de tudo.
OH, era estranha aquela mulher. E de alguma forma sentia a necessidade de protegê-la de
todo o mau.
Inclusive dele mesmo.
—por quê? —Ele seguiu o dilacerador arco de seu lábio inferior, sentindo como seus
músculos se endureciam com força com o contato—. Porque importa. Porque você importa isso. E
porque faz muito tempo desde que alguém me importava desta maneira.
—Não o suficiente, bandido. —Seus olhos brilharam, cambiantes como o mar que
açoitava a costa de Norfolk.
—Maldição, mulher, não vê o perigo? Não pode ver o que sou?
Perigo. Saltava e pulsava ao redor do homem como um fogo fátuo. Rodeava seus duros
ombros e dançava em seus olhos cor âmbar.
E a Silver não importava.
Estava perdida. Talvez tivesse estado perdida desde o primeiro momento em que olhou
dentro de seus olhos e caiu, em corpo e alma, justo como sua velha babá lhe disse que ocorreria.
Não olhe nos olhos! Um só olhar no interior desses olhos endemoninhados e estará
perdida, minha menina.
Talvez, só talvez, todas essas escuras histórias eram certas…
—mostre-me isso bandido. Mostre-me do que parece seu perigo. Ou é que só se trata de
outra mais de suas fanfarronadas?
A cicatriz de seus lábios dançou. Seus olhos pareceram voltar-se mais escuros,
absorvendo toda a luz da habitação.
—Não me têm medo?
Ela sacudiu a cabeça.
Luc soltou uma gargalhada.
—Deveria, inocente mulher. E agora vou mostrar-lhe por que.

Capítulo 14
Era loucura e temeridade. Tentação e pura imprudência.
Mas Silver deixou cair a cabeça para trás e olhou os rasgos duros e cinzelados. Sentiu-se
cair.
E deixou que todo seu ser caísse. Abaixo, mais abaixo, até o fundo…
—Não sabe a que tipo de perigo está se expondo, mulher. Passou muito tempo. E o que
sinto é muito… - A seda negra ficou tensa quando sua mandíbula se endureceu—. Só é uma
menina. E eu, Deus amado… eu sou muito homem. Um homem que viu passar muitos duros
amanheceres. Seria muito melhor que esquecesse que me conheceu.
Seus ombros se esticaram enquanto tocava com suavidade a curva de seu pescoço.
—Mas, OH, faze-me sentir jovem de novo. E nunca pensei que poderia. E isso lhe
agradecerei sempre. —Suas carícias eram suaves como a luz da lua que entrava pela janela.
—Agradeça-me agora. —As palavras lhe escaparam sem dar-se conta.
Os dedos dele se crisparam ao mesmo tempo em que todo seu corpo se esticava ao ouvir
sua resposta. O desejo o golpeou, duro e quente como o siroco4 africano.
Paixão. O desejo que ele acreditava que podia subjugar a sua vontade. Mas agora se dava
conta de que não podia.
Como ia poder com essa nuvem avermelhada entre os dedos? Com esse corpo que era
todo poesia prateada contra seu peito?
—Seguem sem me acreditar, não é? —Seu olhar se endureceu. Com uma dura maldição
apertou as costas dela contra a parede.
—Não, não acredito.
—Mas me acreditará - respondeu ele. Encontrou suas mãos e as agarrou junto à cabeça.
O sentir osso contra osso fez que seus corpos se unissem também, músculo em busca de outro
músculo faminto—. Logo me odiará.
—Nunca - sussurrou ela.
Luc tentou ignorar a avidez que via em seus olhos. Deslizou o polegar sobre seus lábios
ansiosos, vendo como o desejo alagava seus esplêndidos olhos verdes e dourados.
—Isto é o que quer, meu raio de sol?
Ela só estremeceu e seus lábios se separaram um pouco. Com os dedos lhe tirou o chapéu
e lhe penteou o cabelo.
Agora foi Luc que grunhiu quando o desejo penetrou em seu olhar. Inclinou a cabeça.
Lambeu-lhe o lábio inferior com a língua e a sentiu tremer. Mordeu-o com suavidade,
introduzindo sua carne suave em sua boca.
Sabia doce como a fruta amadurecida. Podia tê-la, aqui e agora. Sabia. E lhe daria em
troca esse estranho fogo e sua paixão, tão rápida e aguda como a sua.
Suas mãos se enredaram na tormenta de seu cabelo. Seu corpo rodeava o dela, toda
suavidade e calidez, sua regata de fina cambraia nada mais que uma teia de aranha entre eles.
Deus do céu, quanto a desejava!
Ele puxou sua cabeça para trás e a deixou sentir seu desejo, rezando para que ficasse
nervosa e se afastasse.
Mas ela não o fez. E só restou gemer quando ela se abriu a ele, sincera, rebelde e cheia de
inocência em cada movimento.
Nesse mesmo momento, o sedutor se converteu em seduzido. Luc se afundou em suas
texturas, em sua entrega, quase incapaz de refrear sua própria necessidade crescente.
Os dedos dela se cravaram em seus ombros. Um gemido saiu de sua boca, já unida
indissoluvelmente a dele.
Mais calor. Luc pensou que poderia morrer por sua culpa. Tinha que parar. Agora mesmo.
Antes que fizesse algo que os dois iriam lamentar.
Ela não estava feita para o desejo selvagem. Não seria capaz de voltar a olhar-se no
espelho depois de algo tão frio e impessoal como aquilo.
Tinha que parar antes que…
A língua dela tocou a sua timidamente.
Seu corpo gritou. Repentina e rapidamente, ainda com as costas contra a parede, suas
coxas brancas se abriram e rodearam sua cintura. Seu cabelo solto se derramava entre seus dedos
e o nome dela era o único que vinha aos lábios.
Antes de dar-se conta lhe estava subindo a regata e enchia suas mãos com seus suaves e
turgentes seios. Ela emitiu um leve grito abafado e se apertou mais contra ele.
Seus mamilos já estavam duros, tensos e doces como cerejas contra suas mãos calejadas.
Ele se perguntou qual seria seu sabor e soube que tinha que descobrir.
Porque se estava morrendo só ela podia salvá-lo. Só sentindo seu corpo, o calor que
4
Siroco: vento sudeste
despedia e que o rodeava.
Inclinou o corpo dela para trás e lentamente apanhou uma dessas escuras cúpulas entre
seus dentes.
Ela gemeu.
Ao ouvir esse som, Luc a olhou, a loucura alagando sua cabeça. Ficou sem fôlego ao ver
suas coxas prateadas, o matagal de pêlo em sombras, a pálida curva de seus seios sob suas
crispadas mãos.
E foi isso o que a salvou: a visão de sua suavidade contra suas mãos calejadas.
Mãos que tinham conhecido muita crueldade. Mãos que tinham repartido também muita
selvageria.
Não queria isso para ela, pensou com tristeza, encontrando ao fim a saída entre calor e
tanta loucura. Para ela só queria lavanda de verão e frescas noites em Norfolk. Só desejo quente
que crescesse e crescesse até…
—Não posso fazer isto. Não… não a você - disse, deixando cair a fina cambraia sobre suas
curvas tremulas com o olhar impenetrável—. Sou o último homem no mundo que deveria a estar
tocando desta maneira.
Ela piscou. Mal o ouvia.
—Não me compreende, não é?
Seus olhos estavam nublados, perplexos. Claramente não compreendia. Ele podia vê-lo.
Deus, era muito inocente para entender o fogo que despertava nele.
Mas o corpo dela sim sabia. E gritava procurando uma liberação. Luc viu sua tensão, seu
desejo cego.
E nesse momento soube que só havia uma maneira de acabar com aquilo. Amaldiçoando
sua sorte e amaldiçoando o que ele tinha começado, encontrou os sedosos cachos e empurrou
para cima, para o interior da cavidade tensa e úmida.
Ela ficou sem fôlego e lhe escapou um gemido suave e rouco.
Ele apoiou sua testa contra a dela, lutando contra seu desejo.
—É tão doce, meu raio de sol. Suavidade e calor em qualquer lugar que toque. Se abra
para mim. Deixe-me sentir toda essa doçura.
—Não… Não entendo.
Seus dedos se introduziram mais, exigentes e possessivos, ignorante de seus protestos
para lhe dar isso que ela ainda não tinha aprendido que necessitava.
Mas Luc sim sabia. Ele era um professor na paixão, embora fosse um total fracasso no
amor. Seus dedos se moveram. Ele deixou a um lado essa seda úmida para tentar o tenso e
escondido centro de suas sensações.
A cabeça dela caiu para trás. Seu corpo se arqueou.
—OH, não, não posso! É muito…
Seus olhos se abriram muito de repente e suas unhas se cravaram em suas costas.
Ele viu que continha a respiração. Seus olhos pareceram brilhar. Observou a forma em
que estremecia enquanto a paixão a embargava como uma onda brilhante e cheia de brilhos.
Enquanto, ele era consciente dos sedosos tremores que lhe transmitia através do lugar em que
envolvia seus duros dedos.
Dor. Ele estava seguro que ia morrer por ele. Mas seu triunfo o salvou.
Tinha conseguido. Agora ela entenderia. Agora podia ir-se e deixá-la, seguro de que a
próxima vez ela teria mais cuidado de não fazer ofertas descabeladas a homens desconhecidos.
Só pensar nela assim, flexível e bela, aberta a qualquer homem, fazia que a expressão de
Luc se endurecesse e franzisse o cenho.
Ainda estava tentando compreender por que, quando ela abriu os olhos. Ele tinha
esperado incerteza e arrependimento. Dor… ou inclusive fúria.
Mas não o gozo e a sinceridade impassível que encontrou.
—OH, carinho, não. Não me olhe assim.
—Não deveria? Não é correto?
Ela deslizou os braços ao redor de seu pescoço e suspirou, aproximando-se. Luc enrugou a
testa, lutando contra a onda de ternura que o sacudia.
—Não é que não seja correto. Mas é perigoso, muito perigoso inclusive para dizê-lo com
palavras.
Amaldiçoou entre dentes, pôs os lábios sobre sua testa e ficou muito quieto, lutando
contra o desejo, lutando para ser sensato e responsável.
Por uma vez em sua maldita vida.
—Não o entendo.
—Não, vejo que não. —Ele suspirou e tentou ignorar o desejo que ainda esticava seu
corpo. Doía-lhe o peito de novo e golpeou um cotovelo contra a parede, esperando que a dor
fizesse as coisas mais fáceis.
De repente ela ficou rígida.
—Dói-te. Por que não me disse isso?
Aí estava de novo, essa honestidade que lhe chegava tão dentro e o fazia sentir como se
tivesse outra vez dezoito anos.
Em vez dos mil anos que sentia que tinha, cinzas e carregadas de tão amarga experiência.
—Não havia necessidade. Além disso, quase nem sinto - disse despreocupadamente.
—Mesmo assim deveria me haver dito.
—por quê?
—Porque podia haver dado uma olhada. Tenho óleos: lavanda, romeiro… —Sua voz
estava cheia de preocupação. E só esse som enviou um relâmpago de calidez devastador que
atravessou Luc de acima a abaixo.
Vá agora. Vá antes que lhe faça mais dano.
—Não havia necessidade. Estou bem, asseguro-lhe.
Um movimento das cortinas o interrompeu. Duas formas escorregadias apareceram, com
as orelhas rígidas e as caudas em movimento.
—O que ocorre, preciosidades?
As silhuetas peludas correram pelo chão e se lançaram em seus braços.
—O que é isso?
—Meus furões. Preciosos, não é? E muito mais preparados que a maioria dos homens que
conheço.
—Hu… Furões? —repetiu Silver entrecortadamente.
—OH, e não são uns furões qualquer. Apresento os dois melhores ladrões a este lado de
Newgate. Esta é milady Mãos - disse assinalando à fêmea de bonito cabelo cinza—. E este é
milorde Acima. —O segundo animal era negro e tinha olhos verdes agudos.
—Mãos… acima… - Silver riu da ocorrência do bandido.
—Isso. Temo que seja um homem débil e a tentação era muito grande para poder resistir.
Mas então os animais começaram a chiar e Luc entrecerrou os olhos. Olhou pela janela.
—Parece que meus dois amigos vieram me avisar de que temos companhia.
—Aí fora?
Luc assentiu com seriedade.
—Mas, quem…?
—Isso, pequena, é exatamente o que vou averiguar.
Ela esticou o braço e agarrou sua mão.
—Não é seguro. Não pode sair aí fora!
Um ligeiro sorriso curvou seus lábios.
—Faz uns minutos era exatamente o que queria que fizesse.
Seu lábio inferior tremeu.
—Não se você for se encontrará metido totalmente em uma armadilha.
Tocou-lhe a face. Algo escuro e fugaz atravessou seus olhos.
—Posso cuidar de mim mesmo. É em você em quem deveria pensar. —Ele se aproximou
da janela e afastou com cuidado a cortina. Seus dois pequenos mascotes subiram a seu ombro,
silenciosas e atentas—. Acredito que posso ver nosso visitante. E parece estar sozinho.
—Mas como descerá?
—Graças aos bons ofícios de uma tília. Da mesma forma que subi. —Estudou-a durante
um momento. Sua mandíbula se via tensa à luz da lua—. Não confie em mim, Silver St. Clair. Até
que todas estas ameaças tenham cessado, não confie em ninguém.
—Espera! As sementes… Me devolveu isso e não cheguei a lhe agradecer.
Mas ele já foi saltando por cima do batente e deixando cair, aparentemente sem esforço,
sobre um ramo que se sobressaía.
Silver o observou, obrigando-se a permanecer de pé, imóvel, e a esperar que sua cabeça
desaparecesse. Finalmente, as cortinas deixaram de mover-se.
Fora só se ouvia silêncio.
E ela só sentia as duas lágrimas que corriam por suas bochechas.

Chamava sua mãe de Silver também, sabia, Susannah? Havia uma razão para isso, mas era
nosso segredo. Pode que seja certo para você também, mas não posso sabê-lo. Algum dia o
descobrirá, se der seu coração a um homem que ame. Reza para que isso ocorra assim.
Até então, escolhe bem e cuidadosamente.
Escondem-se aqui, em Lavender Close, todos os segredos que necessita. Não posso dizer
mais. Tem que descobri-los por si mesma.

Capítulo 15
Sir Charles Millbank estudou as formas exuberantes de sua amante envoltas em uma
nuvem de diáfana seda.
—Vêem aqui comigo, amontoado de tentações.
A francesa pestanejou vivamente com seus olhos debruados de Kohl e riu.
—Ainda não, inglês. Eu agora quero beber mais vinho.
O baronete franziu o cenho, vermelho de exasperação, mas se voltou para encher o copo
de sua imprevisível companheira.
—Não o da jarra de estanho, querido meu. O da garrafa de cristal, se não se importar.
Millbank sussurrou uma maldição entre dentes enquanto se movia com o fim de
obedecer esta última petição.
—Eh, bem, esse está muito bom. Quero beber muito dele. —Elegantemente, Angelique
inclinou a taça de cristal e deixou que seu conteúdo deslizasse por sua garganta. Além disso
conseguiu que um fio do líquido rodasse por seu queixo—. Quelle bêtise5. Necessitarei uma
serviette6, querido Charles - disse ela.
—Nenhum pedaço de tecido tocará seus lábios, querida. Eu me ocuparei desse excesso -
disse inclinando-se sobre ela e deslizando a língua sobre o fio de líquido—. Doce, gatinha. Mas
nem a metade de doce que você. —E com um grunhido o inglês se deixou cair em seus braços e
tentou deitá-la na pequena chaise longue que lhe tinha tirado em sua última visita. O suporte de

5
Quelle bêtise: que babona em Frances.
6
Serviette: guardanapo
madeira vinha de Paris e a seda bordada da mesma da China.
Fez-lhe uma careta perfeitamente calculada.
—Em minha elegante chaise longue não, Charles. Não é conveniente. —Ela viu que a
irritação cruzou o rosto do homem e imediatamente lhe dedicou seu sorriso mais sedutor—. Aqui,
tolo. No bonito sofá, diante da janela - disse ela dando tapinhas num móvel amplo, embora um
pouco gasto, que havia diante a janela coberta por cortinas daquele segundo piso com vistas à rua
principal de Kingsdon Cross.
Irritado, Sir Charles fez o que lhe pedia.
—Levo esperando a metade da noite, Angelique. Seus jogos estão deixando de me
divertir. Sou um homem importante, sabe? Um homem com uma grande quantidade de dinheiro.
A bruxa loira ficou de pé em toda sua vaporosa estatura que não chegava ao metro
cinqüenta.
—Monsieur, acaba de ultrapassar seu limite. Eu sou uma cortesã da classe mais alta. E
uma mulher como eu merece ser tratada com uma délicatesse que você não possui. Eu só quero
lhe mostrar as artes de l'amour… - E lhe deu um pequeno soco sob o queixo para dar ênfase a suas
palavras—. Mas como foi um menino tão bom esta noite, irei pôr-me cômoda. —Dedicou-lhe um
olhar impossível de interpretar mal e levantou, deslizando sua mão por seus quadris ao mesmo
tempo.
A cara de Sir Charles se encheu de manchas vermelhas. Esticou os braços para agarrá-la,
ansioso de que começassem os prazeres noturnos, mas não lhe dedicou nada mais que uma risada
provocadora.
—Que impaciente! Mas ainda não, meu querido Charles. —A francesa entrou no quarto
adjacente.
Mas tomou cuidado de deixar a porta entreaberta para que seu protetor pudesse ver
cada sedutor movimento enquanto ela se despia. Millbank se esquentava mais e mais cada
minuto.
—Angelique, não está pronta ainda?
Ouviu uma risada sedosa como resposta.
—Uma taça, acredito, mon amour. Seu gosto é mais excelente cada dia. —Como o vinho
tinha sido escolha de Angelique e tinha sido enviado, com um preço muito alto, do mesmo
Burdeos, esse cumprimento era amplamente imerecido.
Mas isso não queria dizer que a Sir Charles não produzira um profundo prazer. Poliu-se,
puxando orgulhosamente do extremo de seu proeminente colete e esclareceu a garganta.
—É claro, petite. —Pronunciou a palavra trabalhosamente, mas só conseguiu que soasse
inglês apesar de todos seus esforços. Encheu outra taça de vinho e se dirigiu onde estava
Angelique.
—Não, não, mon chou. Ponha aí, junto à janela. Eu demorarei um momento. Você gosta
disto, non? —Ela não usava muito mais que um fino tecido de organdi transparente e dois brincos
de pérolas, Sir Charles definitivamente gostava de muito.
De fato, gostava tanto que a veia de sua testa parecia como se fosse explodir a qualquer
momento.
Com dedos trêmulos colocou a bebida de Angelique onde lhe tinha pedido e voltou para
preencher sua taça.
Nesse breve intervalo, uma mão saiu de detrás da cortina, agarrou a bebida destinada a
Angelique, os dedos enluvados a esvaziaram pela janela e voltaram a colocá-la, vazia, em seu lugar
anterior.
A francesa saiu ufana pela porta e foi em busca de sua bebida. Então fez uma careta de
desgosto.
—Mas Charles, que mau é. Por que não pôs o vinho?
—Vinho? Que me parta um raio se não acabei de te servir uma taça. Coloquei-a justo aí,
isso fiz!
—Bom, vejo uma taça de cristal, mas nada de vinho dentro, je vous assure.
Sir Charles deu de ombros, já um pouco afetado pela copiosa quantidade de vinho que
tinha consumido. Trabalhosamente preencheu a taça e a pôs junto a Angelique, que acabava de
voltar-se para estudar sua face cuidadosamente maquiada no pequeno espelho que havia sobre a
lareira.
Assim que se virou, uns dedos com luvas negras voltaram a esvaziar o copo e a colocá-lo
em seu lugar.
A mulher olhou a taça e chutou o chão com um de seus pés.
—Esta é uma de seus plaisanteries, não? Outra dessas brincadeiras inglesas?
Sir Charles ficou boquiaberto ao ouvir sua amante.
—Do que está falando, Anjo? Acabo de encher isso, seguro!
A francesa voltou a chutar o chão com seu pé coberto de seda.
—Já sabe que eu não gosto que me chame com esse nome.
—Anjo quer dizer?
—Esse nome, exactement. Faria-me um favor se não o usasse siempre jamás.
—Jamais - murmurou o inglês, cada vez mais confuso.
—Eh, bem, agora corrige minha forma de falar! Suponho que não sou suficientemente
boa para você. Eu, Angelique, que provei os prazeres de Napoleón e do mesmo rei Luis! —Sua ira
demonstrada crescia com cada palavra.
Sir Charles franziu o cenho.
—É suficiente. Não é necessário que agarre uma raiva, gatinha. Só queria dizer…
—Que sou uma stupide! Que sou tão parva como um burro, non?
—Mas eu não disse nada disso, Áng… Angelique. Só queria dizer…
—Tiens, o que queria dizer está muito claro. E eu já não estou de humor para ter
companhia. Assim vá. Agora, antes que lhe atire a taça à cabeça.
A cara de Sir Charles ficou branca ao recordar o preço dessa taça em concreto, a qual ela
agarrava com tanta fúria com seus brancos e perfumados dedos.
—foi um engano, Angelique. Vamos, vamos, não briguemos. Foi minha culpa, tudo minha
culpa. —Ao ver que ela começava a abrandar-se, ele se apressou a lhe servir outra taça—.
Esqueçamos esta discussão tão tola.
Sua amante sorveu pelo nariz.
—O que sabem vocês os ingleses? Seu clima é mau e a comida ainda pior. E tudo aqui é
tão caótico! Tudo o que ouço é sobre esse Blackwood, um sauvage que assalta estradas, roubando
mulheres inocentes e levando tudo o que quer. É affreux.
—Já não ouvirá mais - disse Sir Charles com ar de suficiência—. Em alguns dias Lorde
Blackwood irá para sempre e eu serei o homem mais famoso de Norfolk, ou até mesmo de toda a
Inglaterra.
Sua amante o olhou com pouca convicção. Ela voltou a entrar em seu quarto de vestir.
—Eh, bem, agora tenho que arrumar meu penteado. O vento… está soprando
horrivelmente aqui hoje.
—Vento? —Sir Charles já tinha aprendido naquele momento a tomar cuidado com o que
dizia diante dessa feroz bruxa francesa—. Sim… bom… claro. Enquanto, tenha seu vinho. Beba um
gole e tudo voltará a estar em seu lugar outra vez. —E sacudindo a cabeça se afastou dela para
encher sua própria taça, que esvaziou até a metade de um só gole.
Mulheres francesas! Se não resultassem tão tremendamente desejáveis, não haveria
nada que fazer com elas, pensou Millbank molesto. A próxima vez buscaria uma moça bonita e
dócil de Yorkshire ou Dorset. Alguém que não atirasse taças de cristal ou montasse cenas iradas.
Mas ainda não, decidiu. Angelique sabia como fazer coisas com as mãos e com seus
quentes lábios escarlate que o deixavam absolutamente louco.
Sim, ainda não, estava decidido, pensou, recordando tudo o que tinha passado a última
vez que esteve em sua cama. Quente pelo desejo, acabou sua taça de vinho e se serviu outra.
Uma vez mais os dedos enluvados apareceram e esvaziaram a taça de Angelique.
Quando Sir Charles se voltou, Angelique o olhava fixamente com fogo obscurecendo suas
faces perfeitamente maquiadas.
—Quel sacré diable! seu Pourquois m'embêtes comme ça! —A beleza loira agitou seus
cachos e chutou com sua pequena bota—. Eu não gosto nada desses seus truques!
O corado inglês franziu o cenho ante as palavras de sua amante, que lhe resultavam
completamente incompreensíveis e que o estavam fazendo perder o último farrapo de paciência
que ficava.
—Basta já de dramas, Angelique. Não preciso lhe recordar quem paga esse vinho que
bebe com tanta liberdade e esse cristal que faz pedaços quando perde os nervos. Além desse caro
vestido sobre o qual acaba de pulverizar todo esse pó perfumado. Assim acabemos com esta tolice
e vêem aqui beijar seu amo e senhor como é devido.
—Amo? Senhor? —Uma corrente de irado francês alagou seus ouvidos. Com poucas
palavras, Sir Charles ficou condenado como bastardo filho de um ladrão marsellés e de uma
prostituta de ruas de Ruán, enquanto sua pessoa foi descrita em termos que se aproximavam
muito aos que adornariam um asno de quatro patas.
O inglês cuspiu um juramento.
—Basta, Angelique. É seu dever me receber, se submeter a mim. —Sua voz se voltou fria
pela arrogância—. E o fará, aqui e agora, ouviu-me?
—o ouvir? Espero que todo mundo neste estúpido e minúsculo vilarejo o tenha ouvido!
OH, seu comme é vulgaire!
E com essas palavras se virou com brutalidade, lançou-se para a porta de seu quarto de
vestir e, tremendo de raiva, fechou-a com força.
Depois ouviu como corria o fecho com um golpe seco.
—Angelique, já é suficiente toda esta desobediência tão descarada! Não vou suportar
nenhuma tolice mais, ouve-me? Saia agora mesmo ou eu…
Nesse momento uns ombros largos cobertos de seda negra saíram com facilidade detrás
da cortina.
—Problemas, Sir Charles? Essa mulher é puro fogo. Compadeço-me.
Millbank soltou um grito abafado e deu um passo atrás. Levou a mão à garganta.
—Você! Por Deus, sua desfaçatez não tem fim?
—Acredito que não - disse Lorde Blackwood, apoiando-se comodamente contra uma das
paredes forradas de seda—. Mas me deixe lhe dar um conselho sobre mulheres. É melhor não as
pressionar muito, sabe? Com um pouco de açúcar por aqui e uma carícia suave por lá será muito
mais fácil conseguir o que quer que com uma corrente de maldições.
—Conselho! Eu lhe darei um conselho! Sim, quando o vir pendurado!
O bandido simplesmente levantou a taça que acabava de subtrair e a esvaziou.
—Um vinho satisfatório. Eu preferiria algo com mais caráter, com mais resistência, mas
possivelmente isto seja o que melhor se ajusta a seus gostos e preferências. —Deixou a taça de
cristal sobre a mesa com cuidado, sem deixar de olhar a cara avermelhada de Sir Charles.
E então, muito lentamente, tirou seu florete da capa e elevou a ponta até o pescoço de
Millbank.
—Parece-me que demonstrastes muito mal gosto na hora de escolher as mulheres às que
perseguir, meu amigo.
—Mu… Mulheres?
—Sim. Refiro-me à senhorita St. Clair.
—Silver? O que lhe dá o direito de defender essa deplorável…? —De repente a ponta do
florete se apoiou comodamente contra sua proeminente garganta.
—Não é possível que tenha ouvido bem. Seguro que não, não é, querido amigo?
—Eh?, não. Quero dizer que eu…
—Excelente. Comecemos de novo. A senhorita St. Clair não vai voltar a ser incomodada,
compreendeu-me?
Um assentimento desesperado.
—Não é suficiente, temo. Diga.
—Silver… não será incomodada de novo. —Sir Charles não deixava de baquear enquanto
falava.
—E você deixará de visitar a propriedade Lavender Close. Para sempre.
—Maldito seja homem, isso é… - O aço frio roçou preguiçosamente seu queixo—.Eh?,
bom, não o farei. Nunca mais. A propriedade Lavender Close - terminou com voz rouca.
—Muito bem. É um homem com um bom senso passível, vejo. E agora só o incomodarei
um momento mais e logo poderá voltar a tentar recuperar sua amante. Suponho que ela lhe
manterá as mãos razoavelmente ocupadas. Mas primeiro necessito sua palavra de que esses
carregamentos de tubos de cobre que estivestes retendo serão milagrosamente devolvidos à
senhorita St. Clair amanhã.
—Carregamentos? —perguntou o baronete—. Não sei de que demônios está falando. Eu
não tenho nada que ver com…
De novo a folha de aço brincou sobre a pessoa de Millbank, esta vez colocando-se
bastante mais abaixo, roçando partes de sua anatomia que momentos antes tinham estado duras
e ansiosas clamando por sua amante.
—Sugiro-lhe que pense um pouco melhor, meu amigo - foi a sedosa advertência do
bandido.
—Bem, sim. Sim estive retendo-os! Tremendamente impróprio de uma dama converter-
se em uma simples comerciante. Minha própria cunhada! Por Deus, todo o país estará rindo de
mim!
—E rirão mais se der a casualidade que tenha um acidente, meu querido Sir Charles. Um
acidente que o prive dessa parte de sua flácida anatomia que está determinada a encontrar prazer
na cama de Angelique esta noite.
O inglês empalideceu.
—Não… não o faria!
Um lento sorriso brincou nos lábios duros do bandido, justo sob a máscara negra.
—Quer averiguar? Aqui e agora?
Millbank ficou da cor da aveia do dia anterior.
—Não, maldição!
—Muito bem. Então acredito que a propriedade Lavender Close vai ficar fora de suas
atividades de agora em diante.
Depois de um momento de olhar terminante ao fim assentiu rigidamente.
—Acredito que não o ouvi.
—Não farei mais visita a essa… essa mulher.
Durante um segundo, os olhos do bandido brilharam de forma perigosa.
—Essa mulher? O que é exatamente o que quer dizer, meu amigo? Se tive alguma calúnia
que expressar, será melhor que a diga claramente para que todos a entendamos.
Sir Charles, embora um valentão de pouca monta e um fanfarrão, não era um tolo.
—Não era… nada. Não é meu assunto, depois de tudo - disse com formalidade—. Minha
cunhada. Seu problema se… - Se calou ao notar que a folha do bandido voltava a dirigir-se para
seu pescoço—. Bom, não é assunto meu absolutamente.
—Exato - disse Blackwood com doçura—. E sugiro que recorde isso, Millbank. Eu tenho
ouvidos em todas as partes. Se me inteirasse de que estivestes falando por aí… - Sua espada se
moveu como um relâmpago.
Uma parte de linho branco caiu ao chão. E ali ficou, agitando-se com o ar.
—Entendemo-nos então?
—Perfeitamente.
—Excelente. Agora tenho curiosidade por saber de onde arrumou todo esse ouro.
—Que ouro?
Blackwood tirou um porta-níqueis cheio do bolso de Millbank e o deixou cair sobre o
tapete.
—Esse ouro.
—Eh? … ganhei nas mesas de jogo. Sim, tive um golpe de sorte.
—Mas não estivestes jogando - foi a imediata resposta da suave voz—. Esta noite não.
Nem ontem a noite tampouco.
Sir Charles começou a suar.
—Uma mesa particular, era isso.
—Claro. —O florete do bandido voltou a elevar-se.
Então franziu o cenho. Umas vozes se aproximavam pelo vestíbulo.
— Vire-se — ordenou ao suarento baronete.
Com um movimento rápido Blackwood rasgou uma tira de seda das cortinas de damasco
de Angelique e cobriu com ela os olhos de Sir Charles.
—Agora contem. Até quinhentos, por exemplo? E não se movam até que tenha acabado.
Ficou claro?
—Completamente.
—Estou encantado de ouvir isso. Comece.
O inglês começou a contar com voz tremula. Uns momentos depois Blackwood voltou a
esconder-se no pequeno espaço que havia junto à janela, não sem antes liberar Millbank do peso
da metade de seus soberanos de ouro. Havia causas melhores nas quais empregar esse dinheiro…
Silver St. Clair para começar.
Millbank ia pelos trinta e cinco quando o bandido deslizou para a escuridão. Tinha
chegado já aos noventa quando Angelique abriu a porta de seu quarto de vestir. Seus lábios
pintados de carmim se franziram pela surpresa ao ver as cortinas soltas ondeando pelo ar da
noite.
—Charles? O que está fazendo aí? E isso que tem nos olhos… é outro de seus jogos tolos,
non?
—Angelique? Há… há alguém detrás de mim? Alguém mais na sala?
—Não, é claro que não. Só eu. Mas, por que…?
—Então cale-se, maldita seja, e me tire isto —ordenou Millbank furioso.

—Mucoso estúpido. Sempre foi e sempre será.


Jonas ficou olhando à figura escura que se apoiava cambaleante contra a porta.
—Em que diabrura se colocastes agora, senhor Luc?
—Nada do que tenha que preocupar-se, Jonas. —O homem de negro cambaleou
ligeiramente—. Só uma bala de um dos sabujos de Carlisle com os quais encontrei ontem à noite.
—tirou-se a capa fazendo um gesto de dor.
—Outra vez não! Está sangrando como um porco, moço! O que é o que têm na cabeça?
—Jonas correu para atravessar a sala abobadada e agarrar Luc quando este começou a cair. Olhou
furioso à figura indefesa que estava ao seu cuidado desde a idade de sete anos.
—Não sabe quando ceder - murmurou, puxando o tecido úmido—. Não sabe fazer nada
de outra maneira que não seja a sua própria. Sim, é um Delamere verdadeiro. Do extremo de sua
obstinada cabeça até a ponta de seus dedos arrogantes.
—Já não sou um Delamere - murmurou o fardo semi-inconsciente—. Só Blackwood. O
maldito bandido. Procurado desde Norwich até Nottingham. As damas me amam, não sabia?
—Damas? Tolices. Mulheres loucas, possivelmente. É igual ao seu pai, igual. Sim, cheio de
fogo e de problemas, assim era o velho Andrew. Até que conheceu sua mãe, justo até então. Note
bem ela conseguiu que tudo em sua vida se voltasse completamente do reverso. —O velho criado
enrugou a testa com tristeza, estudando a ferida irregular que acabava de descobrir no ombro de
seu tutelado—. Desejaria que a duquesa estivesse aqui agora, não sabe quanto.
De repente uns dedos firmes agarraram a mão de Jonas.
—Não diga. Não pode dizer-lhe. Mato você se o fizer. E não ache que não o farei.
—Deixe suas ameaças para outro, senhor Luc. Eles não saberão nada da boca de Jonas
Fergusson. Até agora esta língua não há dito nada, assim suponho que poderei mantê-la em
silêncio um pouco mais. Mas chegará o dia em que tenha que me ouvir. E quando chegar, verá
como me planto junto a você para poder ver bem como saltam as chispas, menino!
Luc emitiu um som inseguro que era parte uma exclamação abafada e parte risada.
—De acordo!
—Agora feche a boca para que possa examinar esse pedaço de chumbo.
Enquanto as chamas das velas dançavam, o velho criado descobriu a ferida de Luc, lavou-
a amplamente com brandy e logo pôs a esquentar a folha de uma faca na chama de uma das velas.
Com a folha na mão olhou com o cenho franzido a seu tutelado imóvel.
Ele tinha levantado o jovem depois de seu primeiro acidente a cavalo. Tinha-o recolhido
quando caiu sem sentido de uma macieira pela primeira vez.
Tinha-o restituído a seu ser depois de um ano encerrado em um navio-prisão inglês.
Não ia deixar o jovem agora, nos maus momentos, jurou-se.
—vai doer, senhor Luc. Suponho que saiba.
O jovem ao seu encargo, agora um homem de músculos duros de vinte e oito anos,
fechou um olho frágil.
—Sempre dói, Jonas. Tudo o faz, ou será que não sabe?
Jonas suspirou. Para Luc Delamere isso sempre tinha sido assim.
—Bem. Então será melhor que ponhamos isso quanto antes. Beba isto.
Os lábios do Luc se curvaram fazendo que sua cicatriz prateada brilhasse com
descaramento. Levantou a garrafa, tragando com dificuldade.
—Uma boa colheita, Jonas. Felicito-o. Já pode começar a desfrutar…
Jonas amaldiçoou em voz baixa. A folha entrou em contato com a pele no lugar da ferida.
O aço chamuscou a carne suave.
Mas Lucien Delamere não estremeceu, nem sequer quando o aroma acre da carne
queimada encheu o ar.
—Sabe? Os franceses acreditam que sabem dar chicotadas… Mas não são nada
comparados com o homem de Bey. Sim, Hamid sabia como esfolar cada centímetro das costas de
um homem. Aquele homem tinha uma paixão insana por produzir dor.
Apertando os dentes, Jonas sondou sob as malhas rasgadas até que encontrou a bola de
chumbo.
—Encontrei-a - disse—. Quase está, moço.
—Não tenha pressa. Estava pensando em Hamid. Contei-lhe alguma vez a ocasião em que
me encontrou tentando escapar? Fez que me atassem e pediu seu chicote especial. Isso sim era
dor…
Luc piscou. No segundo seguinte sua cabeça caiu sobre o ombro de Jonas no qual se
apoiava. O velho criado franziu o cenho enquanto acabava de tirar a bala.
—Durma, moço. É certo que conheceu muito dor em sua vida. —Com cuidado colocou
sua carga inconsciente sobre os lençóis brancos e limpos e terminou seu trabalho.
Uma vez finalizado, Jonas se levantou e soprou a chama da vela sem deixar de sacudir a
cabeça.
—E algo me diz que ainda fica muita dor por chegar. Especialmente se não consigo tirar
essa louca idéia de vingança dessa obstinada cabeça de Delamere que têm.

Ele se levantou tremendo, pálido. Não estava seguro de onde estava. Igual às outras
vezes.
Seus dedos calejados puxaram o tecido frio, mas ele sentiu a aspereza das cordas e a
mordida do couro ardendo.
Podia tratar-se de qualquer uma dúzia de lugares ou de uma dúzia de lembranças
selvagens.
Southold. Ruán. Argel.
Nem sabia nem lhe importava. Em seus sonhos todos se queimavam juntos, uma mancha
laranja e avermelhada de fúria que consumia tudo o que tocava.
E ele lutava. Da mesma forma em que tinha lutado tantas vezes antes.
Seu braço disparou fora da cama, atirando ao chão travesseiros e um candelabro,
apagado fazia tempo, que havia junto à cama. O som do metal ao cair ressonou em sua cabeça,
jogando fora essas lembranças impossíveis.
Inglaterra. Norfolk. Doces amanheceres e noites de veludo.
Em casa de novo.
OH, Deus, se ao menos fosse certo. Se pudesse ir para casa de novo…
Luc Delamere se levantou, piscando, com os dedos em seu cabelo comprido e escuro.
Livre… embora nunca livre de todo.
Suas lembranças se ocupavam de que isso fosse assim.

Capítulo 16
Tinker dormiu fora essa noite, atrás de um arbusto de bagos do qual podia ver a única
estrada que unia a casa com Kingsdon Cross. Quando voltou, ao amanhecer, estava cheio de pó e
cansado, e tinha uma mancha roxa no olho direito. Mas também parecia muito contente.
—Agarrou-os? —perguntou Bram saltando de sua cadeira e lançando-se para ele—. Os
amarrou e golpeou até os deixar a muito pouco de perder suas vidas?
—Quando se tornou tão violento, mucoso?
Bram ruborizou, de repente consciente de tudo, muito mais velho para ter a inocência de
um menino e ainda muito jovem para ser um homem.
Tinker lhe alvoroçou o cabelo.
—Não é que me importe. Foi de grande ajuda, homenzinho, e isso não posso negá-lo. —
Os olhos do ancião se iluminaram cheios de um humor escuro enquanto recordava os
acontecimentos da noite—. Sim, apanhei dois tentando penetrar no secador. Rompi o braço de
um e no outro dei um golpe na cabeça que não esquecerá com facilidade. Se tivermos sorte, isso
será suficiente para assustá-los de tudo.
Se tivermos sorte… Silver estudou os olhos do Tinker. Viam-se frios e da cor do granito.
Essa frieza deixou claro a Silver que ele tampouco pensava que isso fosse suficiente.
Silver lutou contra uma onda de desalento.
—Mas não podemos contar com isso - continuou Tinker sem expressão na voz—. Assim
aproximem essa cadeira, jovem Bram. Falemos dessas idéias que têm.

Soltaram Cromwell às três, justo quando Bram tinha sugerido, e uma hora depois já
tinham acabado de colocar várias armadilhas. Agora duas valetas cruzavam o campo que havia
perto da estufa e vários buracos cobertos com folhas se repartiam pelo caminho que levava a
casa.
Silver analisou seu trabalho tentando convencer-se de que seria suficiente. Finalmente ela
e Tinker foram descansar, sabendo que necessitariam todas suas forças quando caísse a noite.
Bram, enquanto isso, situou-se no alpendre que dava ao caminho que subia do vale.
Estava pálido e Silver não gostava da idéia de que se visse envolto em tudo aquilo, mas não havia
ninguém mais. Seus pais e seu tio estavam mortos e Lavender Close era tudo o que ficava.
—O menino as arrumará bem - disse Tinker ao vê-la franzir o cenho—. Amadureceu muito
estes últimos dias, de verdade. Deveriam estar orgulhosa dele.
—Estou, mas…
—Nada de mas, senhorita Silver. Não temos escolha. Esse menino é toda a ajuda que
temos. Não pude recrutar homens na cidade. Quase seguro que esse asno degenerado do
Millbank esteve montando algum alvoroço. —Suspirou—. Agora suba e descanse um pouco.
Assegurarei-me de despertar antes do entardecer.

—Será melhor que se levante agora, senhorita. Silver piscou e se levantou de um salto.
Tinker estava sacudindo seu ombro e parecia preocupado.
—O que… o que ocorre, Tinker?
Ela notou que seu olhar era frio e que levava o velho mosquete de seu pai pendurado no
ombro. Ainda estará em condições de disparar essa coisa?, perguntou-se.
—O que ocorre?
—Bram viu alguém penetrar do vale. Rapidamente Silver calçou as botas sobre as calças;
adormeceu vestida. —Deus, Bram está bem?
—O menino está perfeitamente. E tudo está disposto - acrescentou Tinker—. Chegou o
momento de dar a nossos amigos uma lição que consiga que não os ocorra voltar por aqui.
Silver colocou também o chapéu e seguiu Tinker ao exterior, para a penumbra que já se
abatia sobre os campos, rezando para que pudessem conseguir exatamente o que havia dito
Tinker.

Luc estava de pé no salão de baile de Waldon Hall, uma sala que ninguém usava.
Observava uma bolinha de pó que dançava sobre o chão polido.
Estava cansado.
Também estava confuso. E essa confusão era algo novo para ele. Nos cinco anos que
tinham passado desde sua captura tinha organizado sua vida com uma eficácia desumana, cada
ato e cada emoção dedicada a conseguir um único fim.
Vingança. Doce e completa. Contra aqueles estranhos que tinham destruído sua vida.
Só que agora, pela primeira vez desde aquela amarga noite, a Luc parecia que não ia ser
fácil. Em lugar dos absolutos tons de branco e negro que tinha sentido até então, agora apareciam
umas pequenas áreas cinza e outras de cores pasteis que foram suavizando seu ponto de vista.
Perigoso, maldição. Só sendo forte poderia fazer o que tinha que fazer. Só sendo tão
desumano, tão decidido e tão desumano quanto seus inimigos.
E assim tinha sido Luc durante todo esse tempo.
Até que uma noite de lua cheia no urzal, o destino tinha posto em seu caminho uma fera
de cabelo avermelhado. E após só Deus sabia como tinha mudado tudo para ele.
Com cada fôlego, com cada olhar, ela conseguia que ele se enternecesse. Recordava-lhe
coisas que não podia arriscar-se a rememorar. Coisas suaves, cálidas. Coisas meio esquecidas que
eram partes de sua vida passada.
Douradas tardes de verão em Swallow Hill.
Velas quentes e dançarinas em uma sala cheia de risadas. Quase podia vê-la nessa sala,
rindo com sua mãe e brincando com sua descarada e insolente irmã. Ela se sentiria em casa ali.
Todos a adorariam, sobre tudo sua avó, essa mulher com vontade de ferro.
Sem deixar de amaldiçoar, Luc golpeou a parede com o punho e sentiu o relâmpago de
dor que o percorria. E ele acolheu a dor como se fosse um amigo. Uma dor que ele conhecia bem
e que sempre podia agüentar.
Mas esse outro sentimento, esse abrandamento, essa ternura, essa onda impossível de
esperança…
Isso era algo que Luc não podia suportar sentir de novo.
Estudou seu rosto no espelho e viu seu cabelo negro e um só diamante entre o engaste
de seu pescoço.
Viu o rosto de Lucien Delamere, herdeiro de um dos títulos nobiliários mais grandiosos da
Inglaterra e de um dos patrimônios mais ricos. Mas os olhos que o olhavam de seu reflexo eram
mais velhos do que deveriam e mostravam uma dor que nenhum homem deveria conhecer
jamais.
Já não sou um Delamere, disse-se Luc sem deixar de franzir o cenho enquanto sentia que
o sangue lhe formava redemoinhos no peito. Já não podia voltar a ser esse aristocrata descuidado
e libertino. Ele era simplesmente Blackwood, só um criminoso procurado ao longo e largo de toda
a Inglaterra. Agora seu único lar era a noite.
—Que demônios acha que está fazendo, moço? —Com os braços cruzados, Jonas
Fergusson observou seu patrão com muito clara preocupação.
Luc seguiu enfaixando seu antebraço musculoso, apertando os dentes para suportar a
dor.
—Estou me vestindo para um baile a fantasia, é obvio. Eu irei de Napoleão e você será
Josefina. Seguro que a seda branca fica muito bem…
—OH, milorde, é uma ofensa para meus olhos. E está pulverizando sangue por todo o
chão que acabo de esfregar!
—Jonas - disse Luc com secura—. Nada de títulos.
—Muito bem, meu… senhor Luc. É que não me resulta adequado absolutamente. Ao
menos não sendo, como é, um marquês de direito.
—Não sou. Agora já não. Recorda, Jonas. —Luc voltou a apertar os dentes ao ajustar o
tecido mais forte—. E minhas mais sentidas desculpas pelo chão.
—Maldito estúpido.
—Disse algo, Jonas?
—Não me faça conta. Embora não faça isso nunca, na verdade. Milorde - se atreveu a
dizer o criado, magro como um junco.
Luc suspirou.
—Já lhe disse isso: nada de títulos, Jonas. Qualquer desorientação pode ser fatal. Sou
Blackwood agora.
—Fora daqui, possivelmente. Mas aqui é «Sua Senhoria» e não há mais que falar.
Luc voltou a suspirar enquanto terminava a bandagem que estava colocando ao redor de
seu ombro dolorido e rasgava o extremo com os dentes. A ferida doía horrores, mas teria que
agüentar-se. E não tinha sentido seguir tentando faze Jonas r mudar de opinião.
Luc jogou uma olhada final no espelho. Sua capa negra estava imaculada. Tinha
exatamente a aparência do galhardo demônio de estradas que pretendia.
Norfolk estava cheio de homens que desfrutariam da fama passageira que obteriam ao
serem assaltados pelo famoso Blackwood, homens tão ricos que não sentiriam falta de umas
centenas de libras aqui ou lá. Homens que tinham arrancado esse dinheiro de outros antes.
Sim, Luc tinha escolhido seus objetivos cuidadosamente. O primeiro foi um financista
corrupto que alardeava os enormes benefícios que tinha obtido do comércio indecente de
mercadoria humana tirada da África. O segundo, um jogador profissional que se especializou em
arruinar meninos jovens e inocentes que acabavam de herdar. Depois, duas semanas atrás, tinha
dado caça a um bígamo descarado de Dorset que já tinha depenado três esposas com dotes
imensos, para depois as deixar, desonradas e arruinadas.
O dinheiro da incursão daquela noite tinha voltado para as damas em questão, embora
nunca lhes proporcionasse o nome de seu benfeitor.
Era um jogo perigoso, sim, mas Luc desfrutava do perigo. Buscava-o, de fato. A audácia
desesperada que corria por suas veias o ajudava a esquecer sua amargura.
Mas nunca durante muito tempo.
Chegou-lhe o som do metal de algum lugar a suas costas. O marquês de Dunwood e
Hartingdale sorriu quando Jonas aproximou o estoque de prata esculpida.
—Surpreende-me, Jonas. Está-me servindo de cúmplice? Acreditava que não aprovava
minhas pequenas incursões…
—E não as aprovo. Digo que conseguirá que matem aos dois algum dia. Mas até que esse
momento chegue, eu estarei grudado a você como um marisco, verá como o faço. É um juramento
de sangue que fiz quando me tiraram daquele cárcere fedido e estaria condenado se chegasse a
rompê-lo, não importa o imprudente que insista em ser. Necessitará essa espada, suponho. E fará
falta essa sua inteligência também, porque esse condenado juiz não é nenhum tolo.
Lucien elevou o excelente florete lentamente, saboreando seu equilíbrio perfeito.
—Não se preocupe por mim, Jonas. Será necessário mais que um juiz bêbado para poder
com Lorde Blackwood - disse, e posou a mão sobre o ombro de seu criado.
—Se você diz isso, milord. Eu prefiro esperar e ver.
—Sua confiança anima meu coração.
O idoso criado soprou.
—Louco, isso é o que é. É um jogo muito perigoso o que está jogando, milorde, e eu não
gosto nada.
Luc lhe dedicou uma elegante reverencia.
—Tão pouca confiança tem em mim, meu amigo?
—Pronto sempre fostes, não negarei isso. Mas a inteligência não o tirará desta situação.
Oxalá nunca houvesse retornado aqui!
—Não tinha escolha, Jonas. Aqui era onde me levava o enredo. Encontrarei o dono desse
anel, asseguro-lhe isso. E quando o fizer… - engoliu um juramento e virou para a porta.
—E o que acontecerá se não o encontrar? O que ocorrerá se tudo isso do anel for só uma
miragem?
—Isso também saberei logo - disse Luc sobriamente—. Meu papel de criminoso me
proporciona a oportunidade perfeita para averiguar tudo o que preciso saber.
—Deveria haver maneiras melhores - grunhiu Jonas.
—Mas não as há, velho amigo. —Luc tocou o ramo de lavanda que tinha escondido no
interior de sua camisa, junto a seu coração.
—Talvez a inteligência seja tudo o que fique, Jonas. Possivelmente a esperança e a
confiança se foram e a inteligência seja tudo o que fica a todos ao final.
—Então volte para casa, moço. Voltem para Swallow Hill. Sua mãe só necessitará um
segundo para recebê-lo. Só com que você…
—Isso fica fora de toda discussão. E esta é a última vez que falamos desse assunto.
—Maldito seja, moço, quando achará a razão? Seu ombro e seu braço ainda têm as
feridas frescas. Arrisca-se a ser capturado a qualquer momento, mas segue insistindo nessa
descabelada idéia de vingança.
Luc levantou os braços, flexionando os músculos com cautela.
—Meu braço se curará logo. Mas não voltarei para Swallow Hill, Jonas. Não posso depois
de tudo o que me passou. Não sou o mesmo homem que tiraram arrastado dali. O Bey de Argel se
ocupou disso. —Ele sopesou o florete e fez uma filigrana rápida e furiosa no ar—. Nunca, Jonas.
Não volte a puxar o assunto.

Tinker apanhou o primeiro deles atrás do abrigo de secagem. Ia armado com pederneira e
algodão e se dispunha a botar fogo. Um direto de direita e um golpe cruzado enviaram o homem,
inconsciente, diretamente até um monte de verbena e violetas que estavam secando.
Bram, enquanto isso, estava montando guarda em uma cornija sobre a oficina. Quando a
porta chiou ao abrir e um homem com um vasto capuz marrom tentou cruzar para dentro, Bram
empurrou um saco de aveia de dezoito quilos para que caísse justo sobre sua cabeça.
O visitante indesejado caiu ao chão instantaneamente.
Mas Silver não teve tanta sorte.
Enquanto deslizava entre as sombras da parte traseira da estufa, uns dedos imundos
rodearam seu pescoço.
—O que temos aqui? —grunhiu uma voz dura.
Embora o coração do Silver repicasse como os sinos de uma igreja, conseguiu lançar o pé
contra a tíbia do homem.
O golpe não teve nenhum efeito. Seu captor só soltou uma gargalhada e seus fornidos
dedos se apertaram um pouco mais sobre sua garganta. No minuto seguinte puxou as mãos de
Silver até colocá-las as costas.
Pequenas luzes começaram a dançar ante seus olhos. Ela tentou gritar, mas não
conseguiu emitir nenhum som. Ardiam-lhe os pulmões quando lhe cortou o fornecimento de ar.
Agüenta, disse-se desesperadamente. Alguém virá.
—Não será que não estava avisada, mulher. —Silver ouviu a voz gasta como se chegasse
de uma longa distância—. Só é sua culpa, maldita estúpida.
A terra começou a girar. Muito tarde, pensou Silver meio inconsciente, com a garganta
lhe ardendo. Cegamente arranhou a cara de seu captor.
Ele saltou para um lado e a lançou contra uma esquina.
Quando ela levantou o olhar se encontrou com o buraco cinza do canhão de uma pistola.
—Sim, uma verdadeira pena. Seria uma peça que mereceria a pena provar, seguro.
Deveria ter escutado meu conselho o primeiro dia que a adverti e lhe disse que fosse.
Silver retrocedeu para a parede. Desesperada procurou a suas costas, notando a aduela
quebrada de um barril, a áspera malha de um saco de ervas e, finalmente, o grosso cabo de seu
machado. Não valia muito como arma, mas teria que ser suficiente.
Com os dedos trêmulos agarrou a madeira.
Estava se perguntando como demônios conseguiria distrair esse bruto o suficiente para
ter a ocasião de o pegar, quando se ouviram uns latidos que subiam pela colina. Um momento
depois, um corpo pesado cruzava uns densos arbustos baixos.
Querido e estúpido Cromwell.
Seu atacante amaldiçoou.
—Que demônios…?
Isso era tudo o que Silver necessitava. Ela se lançou para diante no mesmo momento em
que o cão atravessava os arbustos. Quarenta quilos de músculos em tensão e de pelo poeirento e
amarelo caíram como um tornado sobre o estupefato atacante de Silver. Então apareceu Bram,
que levava um pequeno tonel de madeira com o qual golpeou os joelhos do intruso.
Depois Silver arrancou a arma da mão do homem com o machado e enviou a pistola
voando longe.
Cromwell terminou o trabalho atirando sua presa ao chão e cravando os dentes na lã que
cobria o peito do homem.
—tirem isso de cima de mim! Afastem este monstro de mim antes que me abra a
garganta!
Tudo era uma pantomima, é claro. Cromwell nunca faria nada mais que montar um
alvoroço furioso, mas Silver não ia contar isso a aquele homem.
Enquanto sacudia o pó das mãos e se levantava, ainda tremula, pôde ouvir o som surdo
de uma risada apreciativa. Uma figura alta vestida de negro saiu das sombras que havia entre dois
espinheiros e baixou a pistola que segurava entre seus dedos enluvados.
—É um trio implacável, posso assegurar. Quando ouvi o cão ladrar pensei que
possivelmente necessitaria ajuda. —Estudou a cara aterrada do homem que tremia sob as garras
de Cromwell—. Parece que estava equivocado.
Silver piscou; só via a máscara negra dançar e oscilar.
—Arrumamo-nos per… perfeitamente, obrigado.
—OH, sim, não é? —A voz soava tensa—. Pequena, está bem?
Silver afastou uma nuvem de cabelo avermelhado de seus olhos enquanto o chão não
deixava de girar sob seus pés. Analisou o rosto coberto de negro com uma profunda concentração.
Por alguma razão parecia não poder deixar de mover-se acima e abaixo…
E essa sensação estava peculiar em seus joelhos.
—Estamos bem, como pode ver. Não há nenhuma necessidade de que se veja envolto em
nossos… nossos… - Voltou a piscar e sacudiu a cabeça— assuntos - concluiu com dificuldade.
E então se precipitou para diante em um revôo de tecido branco e casulos de lavanda
dispersados, para cair justo nos braços do bandido, que felizmente a estavam esperando.

Capítulo 17
Não ia ser uma boa noite, decidiu Luc olhando à mulher que acabava de cair
precipitadamente em seus braços.
Justo nesse momento, uma figura desajeitada com o cabelo branco emaranhado
apareceu por detrás da colina. A suas costas pendurava um pesado e oxidado rifle Brown Bess de
mais de vinte anos e uma maça de ferro que poderia ter levado perfeitamente Guillermo da
Normandia na batalha de Hastings.
Agarrou o rifle e apontou ameaçadoramente à cabeça de Luc.
—Maldito seja! Deixa-a no chão.
Não, não ia ser uma boa noite seguro, pensou Luc com um ponto de pessimismo.
O homem se aproximou. Devia ter mais de sessenta anos, muitos mais, observou Luc.
—Solte a pistola e deixa ir à garota.
—Acredito que não.
Cromwell ladrou.
Brandon piscou.
—Agora, digo-lhe! Acabo de deixar fora de combate a três de seus cupinchas e não me
importaria ter que disparar a outro!
Luc não tinha nenhuma intenção de obedecer. Por outro lado, tampouco queria que Silver
saísse ferida por culpa de um louco.
—Talvez devêssemos falar disto.
O rifle se agitou com fúria.
—Está surdo? Baixa agora mesmo à garota!
Luc olhou os olhos exagerados de seu adversário, perguntando-se de onde teria tirado o
homem uma arma como aquela.
—Não - disse laconicamente.
—Então se prepare para ver sua cabeça aberta por um disparo.
Nesse ponto Bram acomodou os óculos e olhou Luc.
—Acredito que se equivoca. Ele não é…
—Se mantenha a distância, jovem Bram. Esse é tão perigoso quanto inteligente. Venha
aqui e fique fora de meu campo de fogo.
Bram. Isso queria dizer que se tratava do irmão de Silver. Luc pôde ver a mesma
sinceridade e a mesma inocência nos olhos do menino. Franziu o cenho e voltou a encarar o
homem do rifle.
—Duvido que tenha um campo de fogo com essa coisa. A caçoleta não está fechada,
assim provavelmente tenha perdido a maior parte da pólvora. Além disso, esqueceu de engatilhá-
la.
—Sei - disse airadamente Tinker. Murmurando, fechou a tampa da caçoleta e colocou o
percussor adequadamente.
—Detenha-se, Tinker. Ele não é um deles.
—Quem o diz?
—Acredito que veio para ajudar. —Brandon olhou Luc fixamente com os olhos muito
abertos—. Por Júpiter,é Blackwood, não é? O famoso bandido!
—Infame é uma palavra mais adequada - disse Tinker ainda furioso—. E o que é isso de
que está aqui para ajudar? A senhorita Silver me disse que rechaçou o negócio que lhe propôs…
Luc baixou a arma.
— Eu adoraria explicar isso tudo, mas, antes que nos ponhamos a falar, sugiro que nos
asseguremos de que não fica nenhum desses porcos por aí fazendo seu sujo trabalho.
Tinker enrugou a testa ainda com os ombros rígidos pela suspeita.
—Não é necessário. Já me encarreguei de todos… de todos os que não deixaram fora de
combate estes jovens, ao menos.
Ainda nos braços de Luc, Silver suspirou e começou a revolver-se. Sua mão procurou o
pescoço de Luc. A coxa dela se deslizou contra a sua.
E isso o fez sentir bem. Muito bem, decidiu Luc um momento depois. Começou a notar
como reagiam músculos que não deveriam fazê-lo e ao mesmo tempo em que sentia um
arrebatamento, uma dor rápida e quente que não tinha sentido em semanas.
Talvez nunca.
Silver suspirou sonolenta e se aconchegou mais perto, apoiando a bochecha contra seu
peito.
Luc pigarreou e tentou fingir que não notava. Infelizmente, seu corpo não escutava a sua
mente naquele momento.
Então ela deslizou os dedos por seu peito, o que não fez que a dor de seu sexo
melhorasse nada.
—Tinker? É você? —A cabeça de Silver se levantou ainda meio aturdida.
—Claro que sou, senhorita. O que não entendo é o que está fazendo nos braços desse
criminoso!
Ela tentou levantar-se, mas Luc a manteve no lugar, agarrada com seus fortes braços
contra seu peito. Ela emitiu uma risada vacilante.
—Criminoso? Este criminoso salvou minha vida. E a de Bram também.
—Absolutamente - disse Luc devagar, sorrindo-lhe—. Se não recordo mau, você e seu
irmão estavam se arrumando muito bem sozinhos.
—Bom, mas nos teria salvado a vida. Se tivesse chegado um pouco antes…
—Mil perdões. Tentarei ser mais pontual a próxima vez.
—Maldito seja! Não vai haver uma próxima vez! —rugiu Tinker.
Silver sorriu e curvou os dedos sobre a face de Luc.
Um contato simples. O tipo de contato que havia sentido cem vezes antes. Mas este
percorreu um a um todos os ossos de suas costas e deixou suas pernas cambaleantes.
Pigarreou de novo.
—Talvez devêssemos ir a algum lugar mais cômodo, meu raio de sol.
Silver suspirou apoiando sua cabeça na cálida concavidade suave de seu pescoço.
—OH, mas eu estou muito cômoda aqui, asseguro-lhe.
—Meu raio de sol? —Tinker, exasperado, deixou cair o rifle e a maça—. Mas que
demônios…? —começou e ficou olhando ao sorridente casal—. Algum de vocês seria tão amável
de me explicar o que está ocorrendo?
Cromwell escolheu esse preciso momento para sentar-se pesadamente sobre sua presa,
que, por sorte, ficou inconsciente. O enorme cão amarelo olhou Luc e ladrou feliz, agitando a
cauda que golpeava a cara de sua presa.
—Vê, Tinker? —disse Silver—. Até Cromwell gosta.
—Sempre disse que esse cão não tinha cérebro.
Luc não pôde reprimir um sorriso.
—Eu não vou fazer-lhes nenhum dano. É… uma longa história - explicou tentando separar
Silver de seu peito.
Mas não pôde. Em vez disso, o que fez ela foi aproximar-se mais.
—Bom, não importa. Porque acredito que tenho toda a noite - respondeu Tinker, com os
braços cruzados à altura do peito—. E você, senhorita Silver, desça daí e venha aqui comigo.
—Não quero. Se o fizer, talvez caia. Ou não me encontre nada bem. Esse homem horrível
me atirou ali e golpeei a cabeça, sabe?
—Sei! Deixa-a ir, vilão, antes que…
—Não, ele não, Tinker - disse rapidamente Esse Bram. Que Cromwell assustou até deixar
inconsciente.
—Mas o que estava fazendo ele aqui então? —perguntou Tinker referindo-se ao bandido.
—Ele é Blackwood, é claro. —Bram estudou a figura vestida de negro com um medo mais
que óbvio—. Ouviu todo o alvoroço e veio em nossa ajuda.
—Aha. Certamente veio nos roubar. Ou algo pior.
—Ele não. —A voz de Silver chegou amortecida, já que tinha a cara apertada contra o
peito de Luc—. Sempre se comportou como um cavalheiro. —Para estupor do pessoal, ela
terminou essa frase com um suspiro de claro arrependimento.
—Susannah St. Clair, venha aqui agora mesmo!
—Eu prefiro Silver - disse Luc com doçura.
—Não permitirei! Não acredite nem por um momento que permitirei! —A cara de Tinker
ficou de cor vermelha—. Se começa pelos bandidos e depois vêm os rufiões de todo tipo. Mas que
loucura encherá sua cabeça depois, mulher?
Silver soltou um dramático gemido.
—OH, sim. Encontro-me terrivelmente mal.
Luc sorriu a Tinker.
—Não faça conta. Está fingindo.
—E como é que sabe isso?
Silver levantou a cabeça e estudou a cara mascarada de Luc com interesse.
—Sim, como sabe? Acreditava que minha atuação era bastante acreditável.
—foi o gemido. —Os olhos de Luc brilharam, âmbar e ouro atrás da máscara negra—.
Acredito que chama queixar-se muito. E tem uma cor muito boa para alguém que se encontra,
como era?, «terrivelmente mal».
Silver enrugou o nariz.
—Vá - disse, e deu de ombros—. Mas é certo que essa serpente me jogou naquela
esquina. E agora me pulsa a cabeça com violência. Além disso, seguro que estou pesando
terrivelmente. Será melhor que me desça.
Mas Luc não tinha intenção de deixar no chão sua leve carga. Franzindo o cenho afastou
um cacho da face de Silver. Debaixo dele se via um grande hematoma vermelho no lugar onde sua
cabeça tinha golpeado uma das molduras.
Amaldiçoou com vontade e teve que reprimir o impulso de atravessar o homem que jazia
inconsciente com uma espada. Com uma muito afiada. Isso sim, depois de o ter chutado uma
dúzia de vezes primeiro.
—Maldição, mulher, por que não me disse isso? Deve estar doendo muito… enquanto nós
passando o momento aqui, falando! —Levantou o olhar e o dirigiu para Tinker—. Aonde posso
levá-la?
A boca do idoso criado se converteu em uma fina linha.
—A nenhuma parte, se eu posso evitar.
—Meu Deus, homem, esta mulher está sofrendo! Não vou tentar ameaçar sua virtude de
maneira nenhuma precisamente agora.
Os olhos de Bram se abriram com interesse.
—O que quer dizer “ameaçar sua virtude», Tinker?
—Nada que seja seu assunto, moço - murmurou Tinker zangado—. E há muitos que
pretendem tentar precisamente isso. Assim, como sei eu que você não é um deles, bandido?
A cabeça de Silver reapareceu.
—Sim, como podemos saber isso?
Luc empurrou de novo sua cabeça contra seu ombro.
—Porque eu lhes dou minha palavra. Assim saberão.
—Não sei… - Tinker parecia tão suspicaz como sempre. Silver murmurou algo assim como:
«Que terrivelmente desafortunado!».
—Ela precisa descansar - disse Luc em poucas palavras—. Assim que esteja acomodada,
eu tenho intenção de ir e comprovar que não há mais valentões rondando por aqui.
—E como sabemos que não é um deles? —continuou Tinker, incansável—. Chegaste bem
a tempo, depois de tudo. Muito a tempo, diria eu.
—É um deles? —perguntou Silver, de repente interessada.
—É um demônio - foi a preguiçosa resposta de Luc.
—Não pode ser. —Essa resposta saiu de Bram, que os olhava a todos com um regozijo
muito pouco apropriado—. Não tem nenhum sentido. É muito pouco provável que o homem
ferisse si mesmo.
—Ferir? —perguntou Tinker com o cenho franzido.
—Ferido? —A cabeça de Silver levantou como impulsionada por uma mola—. Por que não
me disse isso?
—Porque não estou ferido, por isso - disse Luc, cortante. Doía-lhe o ombro, é claro, mas
não era nada sério. Por sorte Jonas o tinha enfaixado bem. De fato, Luc tinha decidido que poderia
levar a mulher nos braços toda a noite e que não ia sentir nenhuma dor.
Que não fosse a doce e quente dor que surgia entre suas coxas, é claro. Esse tipo de dor
que começava a encontrar cada vez mais aditivo, por certo.
Bram sacudiu a cabeça; nunca deixava de ser esse cientista observador.
—Então por que faz um gesto de dor cada vez que sua cabeça roça seu ombro?
—É só um arranhão antigo.
—Desça-me! —disse Silver ansiosa, lutando contra os firmes dedos de Luc. Os olhos dela
se fecharam durante um segundo—. Não deveria… Não tem que…
—Em minha opinião, minha irmã tampouco se sente muito bem - ofereceu sua ajuda
Bram.
—O que? —Tinker recuperou o protagonismo da cena.
—Não é nada. Só uma… uma dor de cabeça. —Silver fez um gesto de dor quando Luc
mediu suas costelas—. E, claro, um golpe no flanco no lugar onde esse animal me golpeou com o
bastão.
—Bastão? —Fizeram coro Tinker e Luc de uma vez.
—Disse - acrescentou Bram com sabedoria. Estava sentado em uma caixa vazia
desfrutando imensamente da representação.
—Traga-a aqui - disse Tinker com fúria.
—Nem pensar. —A boca de Luc se converteu em uma linha claramente teimosa.
Bram decidiu que era o momento de encarregar-se daquela situação.
—Bem, deixem já vocês dois. Deixem na cadeira, ali estará bem. Esses homens que há por
aí vão despertar logo.
Ainda molesto, Luc deixou Silver em uma cadeira de estofo gasto com um tecido
estampado. Enquanto o fazia, os dedos dela roçaram seu braço.
Silver franziu o cenho ao ver o sangue que manchava sua mão.
—É verdade que está ferido! Tinker, me traga alecrim e água. Bram, vou necessitar óleo
de lavanda e gazes limpas.
Mas Luc já se afastava e estava ocupado amarrando o intruso com uma corda.
—Isso terá que esperar. Primeiro vou assegurar-me de que esses animais não voltem a os
incomodar. —Suas mãos se moviam com rapidez e eficiência, como se fizesse esse tipo de coisas
freqüentemente—. Depois há algumas perguntas que quero fazer - acrescentou, críptico.
—Ah, sim? E, me diga, o que você perdeu neste assunto? —exigiu saber Tinker.
Luc ficou olhando o hematoma da testa de Silver.
—No momento em que lhe fizeram isso, tudo isto se resumiu em meu assunto.
Depois de um comprido silencio, Tinker assentiu.
—Irei contigo. Eu também tenho algumas perguntas que fazer. —Ambos os homens
intercambiaram um olhar agudo e frio.
—Pode ser um trabalho sujo. —Os olhos de Luc o estavam avaliando.
—Nunca me importou um pouco de violência.
—Nem a mim - disse Bram excitado, saltando para ficar em pé—. Quando vamos?
—«Nós» não, homenzinho. —Ao ver que a expressão do jovem se voltava triste, Luc
suavizou sua ordem—. O necessito aqui. Para proteger o lugar e cuidar de sua irmã.
Depois de um longo olhar aos olhos âmbar e insensíveis de Luc, ao fim Bram se rendeu.
—Ficam com toda a diversão!
Silver se levantou na poltrona com o rosto pálido, mas decidida.
—Não, Tinker. Não permitirei isso, ouviu-me? Está ferido. Além disso, não é assunto dele.
—É se ele escolheu convertê-lo em assunto dele. —Um ligeiro sorriso jogou com os lábios
de Tinker—. Melhor que nos ponhamos a isso - disse, e começou a empurrar o intruso
inconsciente para a porta.
—Eu me ocuparei dos dois que há lá fora - disse a sua vez Luc.
—Não! Está ferido, estúpido com o cérebro furado. E não recordo ter pedido ajuda.
Simplesmente… OH, simplesmente vá!
Luc dedicou a Silver um olhar que era metade uma carícia e metade uma promessa, mas
todo virilidade. Logo desapareceu na noite, cativo de suas sombras.
—Engarrafa esse olhar e conseguiremos uma fortuna - disse Bram pensativo.
—Que olhar?
—Não me pergunte. Só sou um menino, depois de tudo. Não tenho nem idéia dessas
coisas.
Silver estudou a escuridão em que tinham desaparecido Tinker e o bandido.
—Homens! —disse zangada—. Cinco minutos de bate-papo e depois todos desaparecem
como ladrões.
Atrás dela Cromwell agitava sua cauda energicamente. Ele também era um macho, claro.
—Você também, Bruto? —murmurou Silver.
Bram tentou esconder um sorriso.
—Nenhuma palavra, ouviu?
O menino simplesmente levantou as mãos, Sorrindo amplamente.
—Nem sonhando, Sil.

—E agora acredito que eu gostaria de saber que intenções têm.


Luc e Tinker subiam a colina levando nos ombros seus respectivos cativos. Entre eles as
fileiras de lavanda brilhavam como o gelo à luz da lua. Luc moveu sua carga inconsciente para
esquivar dois arbustos e uma roseira e depois se deteve para recuperar o fôlego.
—Sabe?, por ser um velho os acertas grandemente bem.
—Ainda me falta muito para ser um velho. Recorda isso, criminoso. —Mas havia um
brilho inconfundível nos olhos de Tinker—. Nem tampouco tente me fazer esquecer a pergunta
que acabo de fazer.
Luc flexionou as costas e depois fez o mesmo com mais cuidado com seu ombro.
Doía. Não, doía muito. Mas não era nada sério. Ele sabia o que era sério nada mais senti-
lo. Franziu o cenho e estudou as perfeitas fileiras de arbustos de lavanda flanqueadas de
madressilva e rosas brancas.
—Uma bonita parcela. Por que alguém quereria os fazer abandoná-la?
—Há muitas razões, suponho. Nossas sementes, para começar. Agora têm muito valor.
São duras, resistem bem as enfermidades e dão uma boa produção. Sim, Bram esteve fazendo
algumas prova estes dois últimos anos… Esse menino é um gênio com as plantas. —Tinker olhou
diretamente o bandido—. E ainda não respondeu minha pergunta.
—Não, não o tenho feito, não é? —Luc lhe dedicou um sorriso brincalhão—. Ocorre-lhe
alguma outra razão?
—Poderia ser a fórmula.
—Fórmula?
—A do perfume que produzia William St. Clair. Parecia que tinha misturado um milhar de
flores para fazê-lo. Era única em seu gênero, isso era, e tinha uma base muito peculiar que St. Clair
sempre se negou a compartilhar com alguém. Não estranho, de qualquer forma, porque esse
perfume fez dele um homem rico. A rainha não usava nada além de seu perfume. Igual à metade
das mulheres de Londres.
—E morreu sem contar esse segredo nem a seus próprios filhos?
O velho criado deu de ombros.
—Era um homem bastante desconfiado no que se referia a suas fragrâncias. Não deixava
que ninguém entrasse em sua oficina quando fazia a mescla final. E quando morreu perdeu, tudo
se foi com ele. Nunca encontraram nem rastro. —Tinker duvidou.
—Continue.
—É muito sagaz, não é? —Tinker riu pelo baixo—. Tampouco era próprio dele deixar
nenhum cabo solto. O homem era especialmente cuidadoso com seu trabalho. Supus que alguma
vez apareceria, mas nunca o fez.
Luc franziu o cenho.
—E se o fizesse, seriam capazes de reconhecê-la?
—Eu não. Mas o jovem Bram sim. Ele é quem tem bom nariz.
—Nariz? Não compreendo.
—Tem habilidade para os aromas. Dê ao menino qualquer coisa e poderá averiguar
exatamente o que há nisso. Sim, é uma habilidade muito estranha. Herdou-a de seu pai.
—E por que o menino simplesmente não o copia?
—Tentou. Nãos e dedicou a outra coisa durante um ano. Conseguimos averiguar a
maioria dos ingredientes, mas não as quantidades. E nos faltava uma coisa importante, algum
elemento que St. Clair descobriu para fazer que a essência durasse. —Tinker sacudiu a cabeça—.
Ele tentou tudo, mas simplesmente não era o mesmo.
—Já vejo. Há algo mais que alguém pudesse querer aqui?
Tinker deu de ombros.
—A terra talvez. Caiu nas mãos da senhorita Silver quando seu pai morreu. Tem que
manter o negócio até que o menino cumpra a maioridade e então tudo será dele. Um testamento
bastante estranho, acredito eu. —Tinker entreabriu os olhos—. Dizia que a senhorita Silver tinha
que viver nestas terras para mantê-las.
—Muito interessante.
—É, não é certo?
—Há alguém que se enfurecesse pela forma em que estavam dispostas as coisas no
testamento de seu pai? Um primo? Talvez algum credor descontente?
Tinker soprou.
—Não têm mais parentes. Só esse macilento do Millbank, mas ele não conta.
—Acha que ele está por trás disto?
Tinker coçou a mandíbula.
—Esse homem é o mais estúpido fanfarrão de todos os que conheci em minha vida, mas
se me pergunta se ele promoveria um assassinato, não posso dizer sinceramente que acredito.
—Talvez devamos tentar fazer-lhe algumas pergunta. —Luc ficou olhando o homem que
tinha ante ele com uma expressão dura nos olhos.
—Por mim está bem. Rompemos-lhe o braço ou bastará torcer um ou dois dedos? —
Tinker não parecia gostar muito da idéia.
Luc riu e se aproximou do homem que tinha mais longe. Enquanto o fazia, um ramo
enganchou na máscara. Amaldiçoou baixo, deslizou um dedo sob a fina seda para tirá-lo e logo
ficou muito quieto quando o tecido se soltou e caiu até seu pescoço.
Um nariz cinzelado e sua pele cor bronze brilharam à luz da lua.
—Espero que seja um homem que pode guardar um segredo.
Tinker simplesmente ficou olhando o bandido durante bastante tempo. Por seus olhos
cinzas cruzou uma idéia e se foi rapidamente. Então assentiu.
—Posso se quiser. Ou se for necessário.
—Bem. —Luc olhou o homem que tinha a seus pés—. Acredito que conheço uma maneira
para nos evitar ter que exercer uma violência extra.
—Conhece-a? E por que não me surpreende ouvi-lo?
Os olhos de Luc brilharam.
—Um homem aprende habilidades estranhas no desenvolvimento de seu trabalho.
—nos ponhamos a isso, então.
Luc se moveu entre os arbustos iluminados pela lua, através do ar da noite enriquecido
com o aroma da lavanda e a doçura das rosas brancas. Depois olhou a Tinker.
—E a respeito de sua pergunta, minhas intenções são honoráveis. Sempre foram. Não há
nada entre Silver e eu - disse—. Nem haverá nunca. Ela não é adequada para meu mundo e eu não
o sou para o seu.
Tinker assentiu. Mas enquanto avançavam na noite carregando seus fardos a suas costas
pela terra fértil e escura, o rosto do ancião parecia expressar que de repente não estava muito
seguro disso.

Capítulo 18
—O que está levando tanto tempo a esses homens? —Silver caminhava acima e abaixo
pela imaculada oficina. A luz da lanterna brilhava cálida e arrancava brilhos ao forno de destilação
de cobre e ao brilhante chão de carvalho. Na parede mais afastada a luz da lua deslizava através
das altas janelas.
—Estão ocupados, Sil. Têm trabalho que fazer. —Bram, como sempre, tinha o nariz
enterrado em um tratado científico.
—Faz horas que deveriam ter retornado. —Silver se virou e voltou sobre seus passos—.
Não é que me importe. Os dois são uns intrometidos insuportáveis, se me perguntar isso. Não me
importaria nada que não voltassem nunca.
Bram levantou a vista, absorvendo esta grande quantidade de nova informação sobre o
comportamento das mulheres. No passado, sua irmã tinha desfrutado de uma alegria inesgotável
e um sentido pratico a toda prova. Ele a tinha querido, admirado e respeitado desde que podia
recordar.
E agora, em questão de horas, converteu-se exatamente no contrário e se debatia entre
momentos pensativos e exageradas ondas de emotividade. Especialmente quando o intrigante
bandido estava perto.
Muito interessante, decidiu Bram. Teria que fazer uma anotação em seu caderno: «Efeitos
da emotividade profunda na mulher adulta».
—Acredito que atirou em um homem em King's Lynn. E que roubou duas joalherias na
mesma noite.
Silver girou de um salto, seu rosto tão pálido como a luz da lua que penetrava
fantasmagórica pelas janelas.
—Não o fez! Não acredito. Não acredito em nenhuma palavra. —Suas mãos se esticaram
agarrando sua cintura—. Só são falatórios. Fofocas odiosas!
Arrependido pelo que havia dito, Bram cruzou a sala e lhe colocou o braço sobre os
ombros. Estavam muito rígidos e frios.
—Claro que o são, Sil. E eu sou um estúpido por repeti-las. Se me perguntassem isso, eu
diria que é um homem perfeitamente correto.
—Acha isso, Bram? —Seus olhos estavam muito abertos e da cor dos primeiros casulos de
rosas da primavera—. De verdade?
—Não tenha nenhuma dúvida - disse o menino alegremente, dando golpezinhos no
ombro de sua irmã.
Sim, todo aquele assunto era tremendamente interessante decidiu Bram. Ele tomou nota
mentalmente de ampliar essa anotação que tinha pensado até convertê-la em uma seção inteira.

No outro lado do vale, uns gritos aterradores brocavam a noite.


—me responda, cão! Diga-me exatamente o que quero saber ou farei isso de novo.
Outro gemido de dor.
—Quer que lhe quebre o outro braço agora mesmo?
A uns centímetros de Luc, Tinker estava ajoelhado em terra, flanqueado por uma porta
aberta que levava a despensa subterrânea de Lavender Close. Um bom lugar para armazenar gelo
e também um lugar perfeito para ter encerrados a três homens que, de outra forma, suporiam um
problema de segurança. Agora só um dos homens estava na superfície e jazia amarrado,
amordaçado e ainda inconsciente aos pés de Luc.
Mas foi Tinker quem se inclinou junto à porta e emitiu mais gritos que punham os cabelos
de ponta em direção à escuridão.
Luc lhe sorriu.
—Não está mal - disse em voz suficientemente baixa para que os homens que estavam
abaixo não pudessem ouvi-lo—. Especialmente para um homem tão entrado em anos.
—Você tampouco o faz mau, bandido. Mas será melhor que tome cuidado com essa
língua ou terei que demonstrar o entrado em anos que estou de verdade.
—Terei-o em conta. —Luc deixou cair ao chão uma pedra que produziu um ruído surdo e
seco. Sua voz se elevou em um grito cheio de dramatismo—. Vai falar agora, miserável?
Tinker grunhiu no momento justo.
—Não sei nada! Nunca me disseram nada. Pergunte aos que há aí abaixo. —Mais
grunhidos—. Eles são os que me contrataram.
—Acredito que isso é exatamente o que vou fazer. Mas não até que tenha lhe quebrado o
outro braço. Só por diversão. —Esta vez a pedra caiu sobre um ramo, que produziu um estalo
bastante espantoso.
Tinker emitiu um grito de agonia bastante acreditável.
—Tenta não sangrar em cima de mim, ouviu? Acredito que agora irei ter umas palavras
com seus amigos.
Antes que Luc pusesse um só pé nas escadas, duas vozes gritaram da escuridão.
—Falaremos! Não é necessário que nos rompa em pedaços. Diremos tudo o que queira
saber!
Luc levantou uma lanterna. Tornou a pôr a máscara e sua boca tinha uma expressão dura
sob ela.
—Três perguntas: quem os pagou, por que e o que é exatamente o que queria que
fizessem aqui.
Chegaram sons de discussão da escuridão.
—Não vimos o rosto. Disse que queria que se fossem, a garota e o menino. O velho
também. Disse que tinha algo que fazer aqui. Não sei por que, chefe. Ele não disse e nós não
perguntamos.
Luc estalou a língua.
—Não é suficiente, cavalheiros.
—É verdade, juro-o! Não é, senhor Harper?
—Tudo o que disse. Cada maldita palavra! Juro-o sobre o coração de minha velha mãe.
—Se alguma vez teve uma… - Luc voltou a elevar a lanterna, deixando que a luz
penetrasse em direção à escuridão. Enquanto o fazia, outro grunhido dramático chegou da
superfície. Luc reprimiu um sorriso provocado pelo entusiasmo de Tinker.
—Como os encontrou?
—Cruzando o pântano. No The Green Man, foi ali. O dono nos conhece.
—Aposto que sim - disse Luc com um tom de voz bastante lúgubre—. E como irão
contatar de novo com este homem, depois, quando o trabalho já estivesse feito?
—Da mesma forma. No The Green Man. Ele ia pagar nossos honorários ali também.
Não havia nada mais que pudesse tirar daqueles rufiões, decidiu Luc. Fosse quem fosse
que os tinha contratado tinha tomado cuidado de apagar seus rastros. Franziu o cenho, subiu os
degraus e começou a fechar a pesada porta.
—O que faz? Deixe-nos sair! Dissemos tudo o que queria saber, não?
—Ah, mas possivelmente lhes ocorra algo mais para quando voltar a procurá-los. Se é que
volto… - E com uma risada seca Luc voltou a fechar a pesada porta e a fechar o fecho. Em umas
horas voltaria para ver se «recordavam» algo mais. Enquanto, preferia os ter encerrados em um
lugar seguro. E quando o que estava no chão despertasse, encerraria-o com seus amigos.
Tinker lhe dedicou um olhar decidido.
—Acredito que vou fazer uma visita ao The Green Man. Possivelmente queira me
acompanhar.
Luc perdeu seu olhar na noite. Tudo era silêncio exceto o suave suspiro do vento e o leve
grasnido de um cernícalo do outro lado do vale. O ar estava aromatizado por dúzias de aromas.
Encheu seus pulmões e identificou lavanda, rosas e jasmim.
Todos eles recordavam Silver, seu rosto branco e seus olhos preocupados, o hematoma
vermelho de sua testa. O ramo que tinha estado segurando entre seus dedos se partiu
limpamente.
—Não, ainda não. Esta noite será melhor que vigiemos aqui. Poderia haver mais como
estes a caminho. Eu irei amanhã ao The Green Man e terei umas palavras com o dono.
—por que? —Os olhos de Tinker o olhavam com intensidade—. Não é teu assunto,
bandido. Ou tem outro nome pelo que possa o chamar?
—Pode me chamar… Luc. E pode ser que esse até seja meu nome verdadeiro.
—Luc. —Tinker fez dançar a palavra em sua boca para acostumar-se a ela—. Algum
sobrenome que vá esse nome?
—Posso ser um temerário, mas ainda não sou um completo estúpido. —O meio sorriso de
Luc suavizou o golpe.
—Compreensível, suponho. Será Luc então. Mas sigo querendo saber por que está
tomando tanto interesse neste assunto.
Luc respirou profundamente.
—Essa fragrância, chamava-se Millefleurs?
Tinker assentiu.
—Eu lembro. Minha mãe a comprou uma vez. Vinha em um frasco de cristal com um lírio
na parte superior. Faz muito tempo, mas ainda recordo a fragrância. Doce, sincera e muito bela.
Recorda a este lugar. E Silver.
Tinker estudou as colinas divididas em terraços cheias de flores, pensando em todo o
trabalho que era necessário para fazer um só frasco de uma fragrância de grande qualidade. Todas
as horas de arar, regar, tirar as ervas daninhas, seguidas do duro trabalho de colher e destilar. E,
ao final de tudo, a mescla dos óleos essenciais definitivos, o mais difícil de tudo.
Com a perda da fórmula de incalculável valor de William St. Clair, o último passo nunca
poderia completar-se.
—Sim, Millefleurs tinha esse tipo de aroma. Nunca se esquece. Por isso William St. Clair
era um gênio. —Suspirou—. Uma verdadeira pena que se foi para sempre. Agora vais dizer-me por
que?
Luc ficou olhando os campos prateados enquanto se fazia a mesma pergunta. Logo
respirou fundo.
—Possivelmente porque essa mulher da casa é tão limpa, fresca e brilhante como estes
campos. Possivelmente porque ela me faz sentir assim também sempre que estou perto dela.
Talvez simplesmente porque é o correto. — deu de ombros—. Não tenho nem idéia.
—É claro que está perdidamente apaixonado - murmurou Tinker, com cuidado de não
dizê-lo suficientemente alto para que Luc pudesse ouvi-lo.
O velho criado de cabelo branco sorria amplamente quando ambos os homens pegaram o
caminho que levava a casa coberta de glicínias com vistas do vale.
Silver estava sentada em um saco de alecrim seco, tentando manter-se acordada, quando
Luc e Tinker voltaram finalmente para a estufa. Bram estava aconchegado sobre seu ombro
direito, o livro já esquecido. Sem seus óculos parecia ainda mais jovem.
Quando os dois homens entraram, Silver se levantou, os olhos obscurecidos pela
preocupação e cheios de um centena de perguntas sem formular.
—Eu levarei o menino - disse Tinker em voz baixa. Olhou Luc, depois Silver e assentiu—.
Vocês dois também deveriam descansar um pouco.
Silver não se moveu. Suas mãos se converteram em punhos brancos apoiados em suas
calças marrons. E, embora ela não se desse conta, tremiam-lhe.
Luc queria ajoelhar-se ante ela e agarrar essas mãos tremulas entre as suas, tocá-la, beijá-
la e alisar seu cabelo alvoroçado. Mas não o fez.
Sabia que se a tocasse era muito possível que não pudesse deter-se.
Assim, em vez disso, apoiou o ombro contra uma elegante coluna de ferro fundido e
começou a falar. Havia coisas que essa teimosa mulher precisava ouvir, embora não quisesse.
—Alguém os contratou para tirá-los daqui. Não sabem quem foi. Mas isto é sério,
pequena. E acredito que ainda não terminou.
Ela levantou o queixo. Seus olhos estavam cheios de determinação.
—Não vamos.
—Têm que fazê-lo. Esta noite tivemos êxito, mas haverá outros homens e outras noites.
—Ele a estudou com os lábios apertados por debaixo da máscara—. Quero que vá. Bram e você.
Tinker também, se estiver de acordo. Eu tenho um lugar, um lugar seguro. Se vocês estiverem fora
de perigo eu poderei me concentrar em…
—Não - foi sua única e contundente resposta.
—Têm que ir. Estes homens foram sério. Não há forma de que vocês e Tinker possam se
manter aqui. Não sem um pequeno exército, coisa que não têm. Venham comigo. Esta noite.
—Não. —A palavra soou mais desesperada esta vez, como se lhe custasse muito dizê-la.
—Maldita seja, mulher, não tem outra opção!
—Sim tenho uma opção. E não irei.
Algo se agitou dentro de Luc então. Possivelmente foi sua cara pálida ou o hematoma
vermelho brilhante de sua testa o que conseguiu lhe levar mais à frente do limite. Cruzou o chão
polido, agarrou-a pelos braços e puxou-a forte para que ficasse em pé.
—Vai.
—Não vou fazê-lo. Fico… ficamos. —Falou lentamente e com precisão, da mesma forma
que um adulto fala com um menino.
—Como poderia? Só a idéia é uma loucura! É teimosa e temerária e… impossível. —Seus
dedos agarraram uma espiral de cabelo avermelhado—. Deveria a pôr sobre meus joelhos e
açoitar-lhe, demônio. Deveria te carregar no ombro e tirá-la daqui agora mesmo.
Os olhos dela estavam obscurecidos pelo desafio que encerravam.
—Te… Tenta-o.
Luc sentiu que um estremecimento a percorria. Por Deus, a mulher estava aterrorizada,
mas tentava não demonstrá-lo. Apesar de todas suas boas intenções se encontrou aproximando-
se dela sem remédio.
Em apenas tocá-la se viu perdido. Ele grunhiu quando as suaves coxas dela roçaram as
suas de granito. Seu aroma o envolveu, todo lavanda e rosas.
Maldita seja, desejava-a. Ali mesmo, deitada sobre um saco de ervas secas ao sol. Com
seus olhos acesos pela paixão enquanto ele abria passo para o interior dela até lhe fazer gemer
seu nome.
Mas Luc não ia render-se a essa luxúria. Já tinha ignorado esses desejos antes.
Mas nunca os provocados por uma mulher tão estranha como esta, sussurrou uma voz
em seu interior.
—Vão. —O desejo fez que sua voz soasse mais profunda do que pretendia—. Recolha
suas coisas.
—Não. E sempre será um não. Esta é nossa terra e nossa lavanda e não vamos.
Luc amaldiçoou com viveza.
—Têm que ir. Não posso os proteger se ficarem aqui.
—Não importa, porque não recordo ter pedido isso. —Silver se retorceu para que a
liberasse. Seus seios o roçaram, o que fez que um novo conjunto de músculos começasse a pulsar
pela consciência agônica. Luc lutou para manter sua cabeça fria.
Ira, essa era a forma. Se centrasse nisso possivelmente não a desejasse tanto. Ignorando a
dor de seu ombro a segurou nos braços.
—vou levá-la para cima. Você vai se despir e se colocar na cama. E pela manhã todos
vocês deixarão este lugar. Compreendeu-me?
—Não. —Esta vez seus olhos estavam frágeis com algo que logo seriam lágrimas—. É tudo
o que tenho. É tudo o que temos. Não podemos ir, não vê? E se tentar fazer que eu suba,
encontrarei a maneira de voltar a descer. Uma e outra vez.
—E o que é que quer fazer, maldita seja?
Ela inspirou tentando serenar-se.
—Quero sair. —Ela assinalou com a cabeça para o alpendre que havia na parte dianteira
da casa. O alpendre que oferecia uma visão privilegiada de todo o vale—. Quero estar vigiando se
por acaso voltam. Quero ajudar.
Era um demônio de mulher, sem dúvida, pensou Luc. As pálpebras lhe caíam de sono e
parecia a beira da extenuação, mas ele sabia que o dizia a sério. Que provavelmente voltaria a
descer se a levava para cima. E o único com o que ele poderia impedir era com seu braço
dolorido… e seus ouvidos mais doloridos ainda.
Sim, era um verdadeiro demônio.
—Bem. —A palavra surpreendeu Luc tanto quanto Silver. Sabia que ia arrepender-se
depois. A única forma de lhe permitir permanecer ali era ele ficando perto. Desse modo poderia
manter a vigilância absoluta sobre ela e sobre o perigo que os espreitava, embora isso significasse
que seus próprios assuntos não poderiam completar-se aquela noite.
Mas ao olhar esses olhos verdes e dourados cheios de sono, Luc se deu conta de que não
se importava.
—Devo ser para você uma quantidade enorme de preocupações - disse Silver com
suavidade e com a face apertada contra seu peito.
Quantidade enorme de preocupações? Podia pensar em muitas palavras para qualificar
Silver, mas essa não era uma delas.
—O que é, é tremendamente cabeça dura e irritante. —Luc sorriu levemente. E
terrivelmente atraente —. Mas uma quantidade enorme de preocupações? Não, acredito que não.
—De verdade? Alegro-me muito de ouvir isso. Jessica, minha irmã mais velha, sempre
dizia que eu era a cruz de meus pais. Dizia que eu os levaria a tumba muito cedo. E talvez… o
tenha feito.
Luc sentiu uma pontada de dor ao ouvir essa crueldade, mas decidiu que não havia tempo
para perguntas.
—Bom, no momento parece que eu posso levar essa cruz. E não me ouviste me queixar,
não é?
—Deve ser porque é surpreendentemente forte - disse com a cabeça inclinada—. Todos
os bandidos são assim, fortes? É bastante… entristecedor.
—Não poderia dizer - Luc decidiu que ela não ia averiguar nunca. Nenhum outro bandido
ia estar suficientemente perto dela para que pudesse chegar a descobrir.
—Mas devo resultar muito pesada. E seu braço… OH, Meu deus, não deveria estar…
—cale-se, demônio.
—Não deveria. Não deveria absolutamente. —Ela tocou com cuidado sua máscara e a
pequena cicatriz que tinha sobre o lábio—. Eu gostaria que não tivesse que usar isto.
—Eu também, pequena. —A voz de Luc soou abafada—. Eu também.
Silver suspirou ao colocar de novo a cabeça contra seu peito. Sentia-se
surpreendentemente bem quando ela fazia isso, pensou Luc.
—Compreende-me, não é? No do por que Lavender Close significa tanto para mim. É o
futuro de Bram e a única casa que tem Tinker. E para mim é… OH, é a riqueza e as lembranças. E
tudo o que resta de meus pais. Vê por que tenho que ficar?
—Entendo. Mas sigo sem gostar - disse ele, tirando-a do alpendre.
Ia começar a discutir, a dizer que teria que ir-se dali ao amanhecer, que estava muito
equivocada se acreditava que ele ia ceder nisso.
E então a olhou.
Suas pestanas avermelhadas roçavam suas pálidas bochechas. Deu-se conta de que ela
estava quase adormecida com sua mão colocada sob seu braço.
Mulheres, pensou. Mas a sombra de um sorriso cruzou seus lábios enquanto se sentava e
a acomodava contra seu ombro.
No alpendre. Exatamente como ela queria.

Capítulo 19
A lua era um pálido disco que pendia sobre umas árvores que pareciam de papel
recortado quando Tinker saiu da casa esfregando os olhos. Dirigiu um olhar a Luc e sacudiu a
cabeça.
—Ah, ser jovem e imprudente de novo. Despertou-se?
—Silenciosa como um gatinho, embora acredite que as costelas a estão incomodando
mais do que admite. Não faz mais que tocar-se enquanto dorme. —Luc assinalou uma tira de gaze
úmida que havia seu lado—. Limpei-lhe a ferida da testa, mas, bom, os outros golpes necessitam
atenção.
—E o que acontece com as suas?
—Não têm importância. —O tom de Luc não convidava a fazer mais perguntas.
—Mas precisam ser atendidas também.
—Mais tarde.
Tinker, acostumado à companhia de dois St. Clair de caráter forte (e seu pai antes deles),
simplesmente bufou e se foi em busca de remédios médicos e ataduras limpas. Quando voltou,
seus olhos estavam cheios de um frio desafio.
Luc enfrentou ele com vontade de ferro.
—Desnecessário, asseguro-lhe isso. Irei daqui muito em breve. À alvorada, quando espero
que o perigo para vocês tenha passado. —Sorriu—. E o perigo para mim comece a aumentar.
Tinker franziu o cenho em direção à alta figura vestida de negro, o que denotava que
nada ia dissuadir-lhe.
—Que braço é?
Luc emitiu uma risada reticente.
—Tem a cabeça muito dura, não é?
—Sim, isso me disseram - foi a lacônica resposta—. Que braço?
Sem despertar Silver, Luc se inclinou para diante e tirou o casaco. Não se surpreendeu
muito ao ver que seu antebraço estava banhado em sangue.
—OH, sim, um simples arranhão. Já vejo. —Quando Tinker o ajudou a tirar o braço da
manga da camisa, ele deu um coice—. Maldito estúpido! —Com atitude concentrada começou a
tirar as ataduras empapadas em sangue. Sob elas a pele estava rasgada em uma ferida irregular—.
Uma bala?
—Sim, foi.
—Sir Charles Millbank, por acaso?
Luc estudou o céu aveludado e as estrelas que lançavam brilhos como se fossem
diamantes. Sua mãe tinha usado diamantes como aqueles uma vez, engastados em ouro, e
brilhavam sobre um vestido de seda azul.
Disse-se que não devia pensar nisso.
—Não estou seguro, mas duvido que sua pontaria seja tão firme. É mais provável que
fosse Lorde Carlisle.
Tinker abafou uma risada enquanto aplicava uma boa quantidade de vinagre de alecrim
para limpar a ferida. Logo pôs um ungüento de lavanda.
—Não subestime Millbank. É um descarado e um valentão, mas acaba o que começa. —
Tinker estudou seu trabalho com satisfação e começou a cobrir a ferida com gaze limpa—. Nunca
viveu em Londres, não é?
Luc enrugou a testa, perguntando-se que pretenderia agora o velho ardiloso.
—Não durante muito tempo. Por que o pergunta?
—Só curiosidade. Juraria que conheci um homem que se parecia com você. —Os olhos
ardilosos e escuros de Tinker sondaram o rosto de Luc—. Vivia em Berkeley Square.
Luc se esticou. Maldito seja, o homem sabia. Ele sabia.
Esse conhecimento se converteu em uma pontada aguda e fria sob as costelas. Tentou
soar distendido.
—Não tenho parentes em Londres que eu saiba. Deve tratar-se de uma confusão. Isso ou
que algum de meus parentes deixou por aí algum descendente ilegítimo.
Tinker acabou de enfaixar a ferida e se sentou para olhar a Luc.
—OH, estou seguro de que não me equivoco. Sabe?, conhecia bem o homem. Trabalhei
para ele durante vários meses, sim. Quando William St. Clair passou uma má época insistiu em me
despedir porque não podia pagar meu salário. Assim que fui a Londres e um amigo me encontrou
um trabalho em Berkeley Square. —Tinker entreabriu os olhos—. Sim, é difícil esquecer o rosto de
meu patrão, embora não passei muito tempo em Londres. Mas o duque do Devonham tem uma
cara que poucos poderiam esquecer - disse Tinker, administrando o golpe final em voz baixa—.
Como poucos poderiam esquecer também seu filho mais velho.
—Uma desafortunada coincidência - murmurou Luc, se levantando em seu assento com
rigidez e colocando a manga em seu lugar—. Nada mais que isso.
Tinker continuou como se Luc não houvesse dito nada.
—Sim, trabalhei para o duque durante três meses, isso fiz. Um bom homem, com grande
quantidade de amigos e um sorriso sempre a ponto. Justo até o dia que se encerrou em seu
estúdio. Se não recordo mal, isso passou quando seu filho mais velho saiu para uma noite de jogo
e desapareceu da face da terra. Isso rompeu o coração do velho, sim.
As mãos de Luc ficaram congeladas e imóveis ao chegar ao punho da camisa.
—Uma história muito emotiva. E agora, se não se importar, será melhor que me…
As mãos calejadas agarraram seus ombros, o obrigando a permanecer onde estava.
—Acha que não ia reconhecer um Delamere ao vê-lo? —disse Tinker com voz dura—.
Acha que não ia reconhecer a mandíbula e a boca de seu pai ao pôr os olhos sobre elas? Deus,
moço, é a viva imagem do velho Andrew!
Luc levantou a cabeça. Seus olhos encontraram os de Tinker, mas seu olhar era
implacável.
—Um engano, meu amigo - disse ameaçador—. Um engano perigoso que será melhor que
esqueça o quanto antes.
A boca de Tinker se converteu em uma fina linha. Olhou à mulher adormecida cujo cabelo
avermelhado estava esparso sobre o peito de Luc.
—E o que acontece com ela? O que acontece ao coração inocente que irá romper quando
for? E a dor que sentirá quando tentar convencer-se de que tudo é para o bem, de que seus
mundos são muito diferentes para nada mais explicar-se?
Algo cru e selvagem cruzou o rosto de Luc. Tentou afastar seus olhos dos sedosos cachos,
dos lábios ligeiramente separados, da mecha branca que saía da têmpora de Silver.
E se deu conta de que não podia.
O velho tinha razão. Meu Deus, o que aconteceria a ela? O que ocorreria quando a
deixasse como sabia que devia fazer? Porque se ficasse, só seria questão de tempo que sua
vontade se quebrasse e voltasse para ela, desesperado e imprudente, com todo o calor e o fogo
que um homem pode sentir por uma mulher.
Mas Luc não podia deixar que isso acontecesse. Ela não podia conformar-se com um
homem como ele, um homem que tinha visto e feito o que ele fez. OH, possivelmente se
permitisse o proibido prazer de um beijo ou dois, possivelmente uma carícia roubada, mas nada
mais. Quando ela estivesse a salvo e Lavender Close seguro, Luc desapareceria na noite e sairia de
sua vida como o bandido sem coração que todos diziam que era. Não tinha outra opção.
De alguma forma, Luc tinha que convencer disso aquele velho de olhar ardiloso e
insuportável honestidade.
Jogou a cabeça para trás até apoiá-la contra a parede e estudou o céu noturno.
—O céu é diferente ao leste de Gibraltar, sabia? Cheguei a conhecer esse céu oriental
muito bem. Durante meses foi minha única companhia. Sob esse céu vi coisas que prefiro não
recordar… Coisas que tento diariamente esquecer, mas que não devo deixar de lado. São parte de
mim agora e por isso nunca poderá haver nada entre uma mulher e eu. Por essa mesma razão o
duque de Devonham nunca saberá que seu filho mais velho não morreu aquela noite depois ser
aprisionado por quatro rufiões em uma escura esquina. Ouviu? —O marquês de Dunwood e
Hartingdale, herdeiro de um dos títulos mais antigos da Inglaterra, ficou olhando Tinker com os
punhos apertados.
—Surpreende-me que só necessitassem quatro - foi o que disse o velho—. Depois seu pai
mandou homens por toda a Inglaterra o procurando. Um dia após outro enviou cartas oferecendo
recompensas a qualquer um que pudesse dar alguma pista sobre seu paradeiro. E sua mãe, a
duquesa…
—Basta! Não quero ouvi-lo. Não quero saber, maldito seja! Tudo isso acabou. Para mim é
como se estivessem mortos!
—Mas não estão mortos. Pode desperdiçar todo seu fôlego mentindo para mim, Silver e a
todos os outros, moço, mas isso não muda nenhum pingo o que ocorre onde realmente importa:
em seu próprio coração.
A boca de Luc se esticou. Um músculo apareceu claramente definido em sua mandíbula.
—Você não sabe nada disso! Nem sequer começa a saber.
—E por que não me conta? —foi a pormenorizada resposta.
Os olhos de Luc se fecharam. Seus dedos se moveram lentamente e com cuidado pelo
sedoso e quente cabelo de Silver.
Era como estar no mesmo céu. Ali e nesse momento.
Notando-a assim, contra ele, cálida e quieta, sentindo sua respiração limpa e regular.
Esperando que ela despertasse, abrisse os olhos e o obsequiasse com aquele sorriso tão
devastadoramente belo.
Mas esse era um paraíso no qual nunca poderia entrar.
Sem uma palavra, sem abrir os olhos, Luc tirou sua outra mão, que tinha debaixo de
Silver, abriu o punho da camisa e levantou a manga.
A pele estava tensa sobre o músculo sobressalente. Duas limpas cicatrizes corriam em
diagonal de lado a lado de seu braço. Entre elas se via uma figura rampante, meio leão meio águia,
desenhada com uma bela tintura de cor roxa.
—me diga o que vê - disse Luc, ainda com voz rouca.
—Um braço forte. Um braço cheio de feridas. Uma espécie de tatuagem. —Tinker se
aproximou para ver melhor—. Nunca antes tinha visto uma coisa como essa.
Luc soltou uma risada amarga.
—Não esperava que o conhecesse. Não é o tipo de coisas que se pode ver no mercado
municipal de Norfolk. —A voz de Luc se endureceu—. Sim, esta é uma marca muito especial. Uma
marca que só se utiliza no palácio de Argel. Só um membro da guarda pessoal do Bey pode levar
uma marca como esta. —Seus dedos se fecharam até formar punhos—. E tem que matar um
homem para ganhar essa honra. —Cuspiu a palavra honra entre seus dentes apertados.
—Deus do céu. Esteve em Argel? Na costa da Berbería7? —Tinker o olhou fixamente—.
Não estranho que não o encontrassem.
—Não se vêem muitos habituais de Bow Street ao leste de Gibraltar - respondeu Luc com
amargura.
—Mas como…? Quem…?
Luc ficou olhando Silver, com os olhos entrecerrados e impenetráveis.
—Não direi nada mais de mim esta noite, James Tinker - disse com tudo suave—. Devo ir,
porque o amanhecer logo se abaterá sobre nós. E essa não é uma hora segura para que um
bandido esteja pelas estradas, como bem saberá - riu sem vontade, com os olhos fixos em uma
mecha de cabelo avermelhado que rodeava sua mão. Logo todos os músculos de seu rosto se
esticaram—. Onde posso acomodá-la?
—O melhor será que a leve para cima, ao seu quarto.
Um olhar duro.
—Confia em mim até esse ponto?
—Sim, claro. E teria acreditado inclusive antes saber que era um Delamere.
Algo estranho se esticou no peito de Luc.
—Ela não me agradecerá o serviço pela manhã. Nem você tampouco, acredito - disse Luc.
Tinker só sorriu.
—Seguro que não. Mas é bem sabido que as mulheres sempre dizem uma coisa e pensam
outra completamente diferente.
Luc piscou.
Tentou esquecer o que Tinker acabava de dizer e levou a mulher adormecida para cima.
Sua mão estava agarrada a seu pescoço quando ele a deitou em sua cama, nesse quarto
cheio de luz da lua. Nem então o soltou.
Luc teve que soltar seus dedos um por um.
Esteve muito tempo ali, estudando seu rosto pálido e seu cabelo esparramado como um
vinho da Borgonha reluzente sobre sua camisa branca.
Tão bela. Tão valente.
Tão jovem.
Nunca funcionaria. Ela necessitava alguém inocente. Alguém que nunca tivesse visto o
lado escuro da vida. Alguém totalmente seguro e crédulo dentro de seu pequeno mundo de
Piquet e caça. Alguém com uma casa em Berkeley Square para desfrutar da temporada social.
O homem que Luc tinha sido cinco anos antes.
O homem que Luc nunca voltaria a ser.
7
Berbería: termo utilizado pelos europeus para se referirem as regiões costeiras do Marrocos.
Quando voltou para o alpendre, seu rosto se mostrava inexpressivo.
Tinker o estudou de perto, uma sobrancelha povoada arqueada.
—Tomará cuidado pelas estradas esta noite, bandido?
Luc deu de ombros. Lentamente voltou a colocar a máscara em seu lugar.
—Tomar cuidado não é uma das prioridades de minha lista. Mas, mesmo assim, tentarei.
Por ela. —ficou olhando as fileiras perfeitas de flores—. Antes disse que confiava em mim. Mas
tome cuidado, James Tinker. Nem sequer eu estou muito seguro de que confio em mim mesmo.
A lua já se escondia quando agarrou seu chapéu e desapareceu na noite com aroma de
lavanda.

Muito longe, em uma magnífica casa que dava a Berkeley Square, Índia Delamere se
sentou na cama olhando para a noite com nostalgia. Acabava de chegar a casa depois de seu
primeiro baile, onde tinha recebido sua primeira proposta de matrimônio de um conde bastante
insípido. Deveria, portanto, estar radiante de felicidade e sentir-se completamente em paz com o
mundo.
Mas não se sentia assim.
Seus olhos estavam cheios de lágrimas.
No exterior, os cascos de um cavalo se ouviam na noite, seguidos do som das rodas de
uma carruagem. Um sereno voltava para casa entre as sombras, a luz de sua lanterna lançando
dançantes brilhos na rua.
A jovem se surpreendeu quando um golpezinho suave soou em sua porta.
—Entre.
Uma dama de cabelo branco e porte régio a olhou preocupada da porta.
—O que faz ainda acordada, menina? Muitos galãs nos quais pensar?
—Não, vovó. Nada disso. Estou pensando em Luc.
Ao ouvir aquele nome a duquesa de Cranford ficou tensa.
—Luc? —Suas costas se esticou ainda mais—. O moço já não está, Índia, disse-lhe isso
milhares de vezes.
—Mas… não há nenhuma possibilidade de que tenha sido um engano? Nenhuma
possibilidade de que entre caminhando pela porta algum dia, Sorrindo e jogando com sua bengala
de prata como fazia sempre? —Sua voz estava cheia de nostalgia.
—Não acredito que isso seja muito provável, querida. Seu irmão está morto. E será
melhor que todos nós aceitemos esse fato.
A beleza ruiva se inclinou em seu assento para abraçar os joelhos. Uma lágrima caiu por
sua face, brilhando à luz da vela que levava a duquesa.
—Mas não posso esquecê-lo, vovó. Tentei, mas… mas poderia jurar que o sinto às vezes.
Em alguns momentos estranhos. Sempre foi assim entre nós. Inclusive quando fomos crianças em
Swallow Hill: eu soube quando Luc caiu de seu pônei e ele soube quando eu caí do velho olmo. E
agora… - Suas mãos se moveram, fazendo um gesto a algo que era real mas não visível—. Agora,
bom, está vivo. Sei, vovó. Posso senti-lo. —Levantou o olhar, seus olhos estavam alagados em
lágrimas—. E está cheio de ira.
Tomou a mão de sua avó e tragou um soluço de dor.
—Onde estará? Maldição, Luc, onde está?

As estrelas se desvaneceram lentamente.


Sobre a propriedade Lavender Close o céu passou de azul marinho a cinza. Finalmente,
franjas carmesins iluminaram o horizonte salpicado de árvores.
A névoa deslizou entre os olmos, os carvalhos e os espinheiros, sobre os arroios
adormecidos e através do pequeno vale verde.
Densa e branca, a névoa alagou tudo. Silenciou tudo: vento, pássaros e inclusive a fértil e
escura terra. Nada mais se movia. Nada mais existia.
E, durante umas poucas horas perfeitas, o vale se converteu em um lugar cheio de magia.
De gozo. De segurança. Um lugar onde os sonhos tomavam uma forma tangível, como o faziam
para todos os que ali dormiam.
E todo esse tempo um homem solitário olhava do topo da colina, com as mãos enterradas
nos bolsos e os olhos cheios de uma névoa diferente… da loucura que chega com as lembranças
cruéis.

Capítulo 20
A luz do sol já caía em cheio sobre os campos de lavanda quando a porta da oficina se
abriu de repente com um forte golpe. A silhueta de Silver apareceu precedida por uma nuvem de
botões roxos, seu cabelo avermelhado e selvagem emaranhado ao redor de seus ombros.
—por que não me despertou? É quase meio-dia!
Tinker levantou a vista do frasco de óleo de alecrim que estava tampando.
—Não pode dizer «bom dia» como todo mundo? Verdadeiramente está perdendo toda
sua educação, moça, e não me equivoco nisso.
—Mas é muito tarde! Eu deveria estar aqui embaixo te ajudando.
—O menino e eu estamos arrumando isso muito bem —disse simplesmente o velho
criado —. Não acreditaria que tudo o que terá que fazer por aqui tem que fazê-lo você, não é? Ah,
necessito mais óleo de alecrim! —gritou Tinker por cima do ombro—. E algo mais de hortelã seca.
Depois tudo isto estará preparado.
Bram saiu da sala contígua com folhas de lavanda seca no ombro e uma garrafa de cristal
agarrada contra o peito.
—Aqui tem, Tinker. —Dirigiu o olhar a sua irmã—. OH, enfim levantou, Sil. —Sem perder
o passo, entregou a garrafa a Tinker e foi em busca dos outros ingredientes que o velho tinha
pedido.
—Sim, nos estamos arrumando isso muito bem, isso sim. E a fragrância para esse
chapeleiro de Norwich está quase terminada também.
—OH. —Silver observou como Tinker terminava sua tarefa—. Então… suponho que não
necessitam de mim.
—Nem um pouco - disse Bram com alegria da porta do lado—. Aqui tenho a hortelã seca,
Tinker.
—Mas… Bom, já está, suponho que deveria comprovar a nova mescla para a composição.
Não estou segura de que eu goste do gengibre que acrescentamos.
—Já está feito - disse Tinker.
—Já está feito? —Silver mordeu o lábio inferior.
—O fiz faz duas horas. Bram trocou as quantidades, acrescentou um pouco de óleo de
cravo e agora está perfeito. Nada difícil, de fato.
Nada difícil? Havia-lhe custado meio-dia conseguir essa mescla.
—E trocou todos?
—Sim, as seis dúzias.
As seis dúzias?, pensou.
—OH - disse Silver muito devagar.
—vou subir até a casa - disse Bram—. Necessito um livro.
—Mantenham os olhos abertos, eh? E traga um pouco de raiz de lírio, já que vai subir.
Quando Bram se foi, Silver ficou olhando Tinker.
—Não acredita que tenha acabado, não é?
Os dedos de Tinker se detiveram um momento e depois deu de ombros.
—Ele não acredita. E teve razão em todo o resto até agora. Provavelmente também tenha
razão sobre a gravidade da situação.
Não se produziu nenhuma pergunta sobre a quem se referia esse «ele».
Silver sentiu uma estranha tensão no estômago.
—Blackwood disse isso?
Tinker assentiu.
—Também que quer que vá.
—Não o farei. E isso é definitivo. —Silver agarrou um frasco de cristal e se levantou para
olhá-lo à luz, avaliando o claro óleo de cor dourada.
Por alguma razão a Silver recordava os olhos de Blackwood. A viva doçura de seus lábios.
Franziu o cenho e afastou o recipiente. Mas não era tão fácil afastar os pensamentos de sua
mente.
—Por acaso disse, bom… algo mais?
—Algo sobre o que? —perguntou Tinker com uma sobrancelha arqueada.
—OH, não sei, sobre o que aconteceu aqui. Simplesmente… algo.
Tinker a estudou.
—chama-se Luc, por certo. Acabado em «c». Pensei que você gostaria de saber. E, não,
não recordo que dissesse nada sobre isso.
—Mas como…? Quero dizer, quem…? —As faces de Silver se encheram de cor.
—Ele me disse isso. Ontem à noite. Sim, tivemos uma longa conversa.
Silver sentiu que uma estranha sensação percorria seu estômago.
—Levantei-me em minha cama.
Tinker sorveu pelo nariz e voltou para o trabalho.
—Estranho, não é? Suponho que o senhor Luc deve tê-la levado até ali.
As mãos de Silver se crisparam.
—Fez isso?
—Sim.
A Silver custava respirar… e muito mais manter-se em pé.
—OH. —Então levantou o queixo, pequeno e desafiante—. Bom, devo dizer que acredito
que foi o mais inapropriado por sua parte. E pela sua, ao permitir-lhe Tinker.
—Não acredito que tivesse podido parar esse homem embora tivesse querido - foi a irada
resposta.
Um calor estranho, metade prazer, metade dor, atacou o peito de Silver.
—OH… OH.
Tinker se voltou.
—Não têm nada que fazer, senhorita? O menino provavelmente anda perdido em algum
de seus livros. Vá e o traga antes que se esqueça do que lhe pedi que me traga. —Um ligeiro
sorriso curvou seus lábios—. A menos que tenha planejado ficar aí pensando no mundo da lua o
resto do dia.
—No mundo da lua! O que o faz pensar que…? —As faces de Silver ficaram de cor
vermelha—. Homem insofrível! —murmurou—. Ambos o são! —No chão, aos pés de Tinker,
estava Cromwell, sentado, olhando-a, golpeando o chão com a cauda—. Todos são!
E atrás dessa grosseria bastante incompreensível, Silver saiu da estadia.

Caminhou lentamente através dos campos de lavanda, alecrim e madressilva, esperando


que o rubor desaparecesse antes que Bram a visse, que começava a dar-se conta de muitas coisas.
Isso a fazia sentir incômoda. Despreocupadamente tomou nota de que campos necessitavam uma
poda e quais que os regasse. Mas durante todo esse tempo seus pensamentos estavam
concentrados em algo diferente.
Em uma boca dura e carnuda coroada por uma cicatriz prateada. Em uns olhos audazes
cor âmbar. Em um homem imprevisível que mal conhecia. Um homem com um passado de uma
dureza tal que ela devia evitar conhecê-lo.
O homem que amava.
Com um grito abafado, Silver ficou muito quieta no meio de um sulco de lavanda, sua cara
foi passando do cinza ao branco mais pálido. A idéia tinha chegado de improviso, arrastando-se
em seu interior enquanto sua mente estava ocupada com cálculos de plantas, pragas e
concentrada em como espantar a seguinte manada de intrusos. Deus Santo, como tinha ocorrido?
Como tinha podido perder a razão dessa maneira?
Apaixonada… e por um bandido! Um criminoso contumaz e implacável, famoso desde
Southampton até Peterborough.
Não, era impossível. Era tremenda e completamente inimaginável.
E era certo, teve que reconhecer Silver mordendo o lábio e com uma mão branca sobre
sua face ardente.
—Céu santo, o que é que tenho feito?
Deixou-se cair em um espaço entre dois arbustos de lavanda e exalou um comprido e
desesperado suspiro. Ali, sobre a fértil terra negra, ficou sentada, quieta, olhando a casa coberta
de glicínias enquanto os raios de sol caíam sobre seus ombros e o vento com aroma de lavanda
penetrava entre seu cabelo.
Luc. Esse havia dito Tinker que era seu nome… acabado em «c». Um nome bastante
estranho, isso era certo. Mas adequado, porque Luc era um homem muito estranho em seu
conjunto.
Luc. Seu Luc.
Estava apaixonada. Por ele. Silver deixou escapar o ar, uma mão convertida em punho
sobre seu peito.
Perdidamente apaixonada pelo maldito Lorde Blackwood, como um regimento de tolas
mulheres que havia por aí.
Maldita seja! Como podia ela também?
Não havia nenhuma esperança para aquilo, é claro. Simplesmente teria que tirar aquele
homem da cabeça.
Começando agora mesmo.
E se pudesse… se pudesse ao menos esquecer como se sentia quando a abraçava e como
seu sangue cantava pela paixão. Se pudesse esquecer a avidez que havia em seus olhos quando a
beijou na estufa…
—Maldição! —murmurou ficando em pé. Isso era muito mais que suficiente. Tinha que
tirar esse homem de sua cabeça e tinha que fazê-lo agora!
Silver seguia refletindo sobre como poderia consegui-lo quando uma densa nuvem negra
alagou a parte dianteira da casa.

Capítulo 21
Abafando um grito, Silver subiu correndo os degraus de pedra que levavam a casa.
Bram estaria no estúdio, sem dúvida, com sua escura cabeça inclinada para diante, alheio
ao mundo enquanto escrevia nesse seu caderno tão gasto.
Mas não havia sinal do menino no tranqüilo estúdio cheio de livros da parte dianteira da
casa. Nem na pequena sala de estar que ele se apropriou como área, de trabalho.
—Bram! —A voz de Silver estava cheia de pânico enquanto abria passo entre a espessa
fumaça que provinha da parte traseira da casa.
—Deus Santo, onde está?
Chegou-lhe um débil som que vinha do chão. Através da fumaça Silver pôde ver uma
figura imóvel. Com um guincho agarrou o braço de seu irmão e o puxou para a porta.
Ele tossiu convulsamente e abriu os atentos olhos cinza com dificuldade.
—Minha irmã… nunca me falha. Sabia que não me deixaria aqui. Sinto muito, Sil. —Bram
tossiu dolorosamente—. Tentei detê-lo, mas nem sequer sei com o que me golpeou.
E depois de dizer isso o menino estremeceu e ficou inconsciente.
Tinker chegou trotando pelo caminho, sem fôlego e pálido de medo, quando Silver já
tinha retirado Bram a um lugar seguro e tinha ido em busca de água.
—Que demônios está ocorrendo aqui agora?
Silver lhe arrojou um balde de madeira às mãos enquanto ela jogava a água de seu balde
sobre as chamas que saíam do alpendre dianteiro.
—Não há tempo… Bram está a salvo longe da casa. Devemos… salvar a casa.
Tinker pôs mãos à obra instantaneamente. Depois de comprovar por si mesmo que Bram
estava bem, saiu correndo em busca de mais recipientes para a água.
Os pulmões de Silver ardiam e tinha as faces cheias de fuligem quando Tinker voltou a
aparecer puxando uma pesada terrina de cobre. Pulsavam-lhe as costelas quando se uniu a ele
para puxar a terrina em direção à casa.
Durante mais de uma hora ela e Tinker correram de um lado a outro sem cruzar palavra.
Quando conseguiram apagar as últimas chamas, Silver caiu de joelhos no alpendre enegrecido,
estremecida pelos estertores que necessitava para respirar, e deixou cair o rosto sobre suas mãos
cheias de fuligem.
Só então pôde ver as palavras escritas na parede sob a janela:

Desta vez foi só uma advertência.


A próxima vez TODOS irão arder.

Ela começou a tremer e apertou as mãos entre os joelhos para evitar gritar. Mas tudo o
que podia ver era o rosto de Bram, pálido e assustado, escuro pela fuligem.
A próxima vez TODOS irão arder.
—Não… Não, Bram não. OH, Deus, por favor, não… - As lágrimas começaram a correr por
sua face. Mordeu o lábio enquanto Tinker as enxugava com carinho—. Não estou chorando.
—É claro que não, senhorita. Isso nem me passou pela cabeça.
—Bom, não estou chorando, assim não ache que estou. —Silver franziu o cenho em
direção às perfeitas filas de lavanda.
Era muito tarde para seus esquemas simplistas, muito tarde para esperar que pudessem
escapar de seus inimigos. Tinha salvado Bram hoje, mas, e a próxima vez? E a seguinte? Luc tinha
razão.
Silver sabia o que tinha que fazer. Enfrentou à idéia com triste determinação levada pelo
insensato orgulho que tinha sido a ruína de tantos St. Clair.
—Cuida de Bram, Tinker.
—E aonde acha que vai, senhorita? Coberta de fuligem como está e com os olhos semi
abertos?
—Eu… eu tenho que me trocar. E limpar o rosto… - Falava mais para si mesmo que para
ele—. Depois tenho que me vestir e sair.
—O único lugar ao qual vai agora é abaixo, a secadora, comigo, para que possa tirar de
cima parte dessa fuligem. Depois se acomodará em uma cadeira enquanto eu enfaixo esses dedos
que queimastes.
Silver inclinou a cabeça, sem mal escutar.
—Dedos? Sim, suponho que tem razão. Necessito luvas. Tinha-me esquecido. Será
impossível poder com eles agora que viram o perto que estiveram que consegui-lo.
—Quem viu o que? O que estão planejando agora, senhorita? Sim, conheço essa sua
expressão. Vi-a muitas vezes antes para poder confundi-la. Problemas, isso é o que significa, puros
e simples problemas. Agora simplesmente me diga…
—Agora não, Tinker. —A voz doe Silver soava completamente calma. Perigosamente
calma—. Devo me apressar. Há muito pouco tempo.
E depois desapareceu subindo as estreitas escadas que levavam a seu quarto.

Quando Silver empurrou a porta enegrecida da casa para abri-la trinta minutos depois, já
não tinha fuligem nas faces e seus dedos cheios de bolhas estavam cobertos por umas boas luvas
de pele de pelica. Tinha esperado até estar segura de que Bram descansava comodamente e que
Tinker estava de guarda. Só então deslizou fora.
Olhou as luvas enquanto franzia o cenho. Que estranho que não os tivesse posto nunca
antes. E que estranho que agora, nesse momento desesperado, conseguisse, encontrar-lhes uma
utilidade. Sentiu que uma risada incontrolável lhe enchia a garganta, mas conseguiu reprimi-la.
Não havia tempo para isso, disse-se com pragmatismo esticando a saia de musselina cor
marfim. Levava seu melhor vestido… quase seu único vestido. Seus metros de muito caro tecido
estavam franzidos em mangas largas e plissadas, e uma capa de renda se curvava sobre o corpete.
Fitas de cor verde bosque saíam das mangas, ressaltando a cor de seus olhos.
Não é que Silver se desse conta disso. Estudou sua imagem em uma janela que estava
coberta de cinzas, como todo o resto na casa.
Passável, decidiu, estirando uma das fitas da manga. Mas o que Silver não via era que ela
estava muito mais que passável. Com as faces avermelhadas e os olhos brilhantes era uma
atraente combinação de inocência e paixão.
Supunha uma tentação para qualquer homem.
E, para um homem que já estava bastante apaixonado por ela, representaria um objeto
de sedução ao qual não poderia resistir.
Mas Silver não pensava em amores, tentações ou sedução. Seu coração era duro como o
granito enquanto se apressava pelo caminho para os estábulos, recordando as palavras de seu pai.
Faria o que fosse necessário para proteger a vida de seu irmão.

Estou escrevendo isto a você, Susannah, porque você tem a curiosidade de sua mãe e meu
terrível temperamento. É algo que não estou orgulhoso de lhe haver legado, mas estou seguro de
que você saberá controlá-lo melhor do que o tenho feito eu.
E me digo mesmo que se necessita um pouco de temperamento e muita valentia para
completar a dura tarefa que tem por diante.
Descobre quem matou sua mãe, minha Susannah. Descobre por que.
Quando o fizer, saberá que está aí, de pé entre as sombras da noite, me olhando enquanto
escrevo.
Eu tentei e falhei.
Agora deixo a você a tarefa…

Luc subiu até as oficinas com um só pensamento em mente: tinha que conseguir que
Silver fosse.
Era muito perigoso para todos eles permanecer ali por mais tempo, pelo menos o seria
até que Luc tivesse tempo de averiguar quem estava por trás desses ataques e por que. Gostasse
ou não Silver, teria que ir. Hoje. Essa mesma tarde, se pudesse conseguir.
Abriu de repente a porta de carvalho polida da oficina, convencido de que ia convencer os
St. Clair para que fizessem exatamente isso. Mas Silver parecia haver se desvanecido. Os campos
de lavanda, as fileiras de roseiras e o jardim de ervas, todos estavam vazios, e havia um rastro de
fumaça que se abatia sobre os campos.
Luc se fixou então nas paredes enegrecidas da casa que havia sobre a colina.
—O que ocorreu? —grunhiu a Tinker, que acabava de aparecer a suas costas.
—Esses animais colocaram fogo na casa, isso é o que ocorreu. Quase matam Bram no
intento. Quando desci do quarto depois de comprovar que o menino estava bem, ela tinha ido.
Luc enrugou a testa imaginando uma dúzia de situações terríveis: Silver enfrentando Sir
Charles. Silver naquele maldito bordel. Silver sendo apanhada e golpeada por essas bestas
mascaradas…
Conteve o fôlego. Não era necessário tirar conclusões precipitadas.
—Disse aonde ia?
—Eu diria que poderia ter ido a Kingsdon Cross, já que tinha posto seu melhor vestido -
disse o velho misteriosamente.
—Como pode deixá-la ir, maldito seja?
Tinker começou a dizer algo, mas logo fechou a boca e deu de ombros.
—A verdade é que escapou. Ia para os estábulos pegar meu cavalo para segui-la quando
chegou. E sobre o de «deixá-la ir», bom, quando à senhorita Silver coloca uma coisa na cabeça, é
impossível raciocinar com ela!
Luc emitiu um sonoro juramento.
—Esses homens são perigosos. Não se deterão ante nada até conseguir o que querem,
têm que ter-se dado conta disso já. Assim que a encontre, temos que fazer que vá. Você pode
fazer que ambos façam as malas e se preparem para ir hoje mesmo… esta mesma tarde. Como
não parece haver nenhuma outra possibilidade, podem vir comigo. Estarão seguros, dou-lhe
minha palavra.
Tinker lhe dedicou um olhar avaliador.
—Seguros, sim, mas protegidos de quem?
—De qualquer um que tente lhes fazer mal. Eu incluído - acrescentou Luc com tom
sombrio.
Tinker brincou com um ramo de lavanda entre os dedos e estudou Luc com os braços
cruzados sobre o peito. Depois de um comprido silencio assentiu.
—Acredito que vi algo mais, bandido. Quando saiu correndo em seu calesín, dirigiu-se
mais à frente do caminho principal.
—Quer dizer que não ia a Kingsdon Cross? Então, por que me disse que…?
—Porque sigo sem estar seguro de se confio em você ou não, moço. Ao menos não o
suficiente para arriscar a vida da senhorita Silver para averiguá-lo. Mas vocês é quarenta anos mais
jovem que eu, assim suponho que não fica mais remédio que confiar em você e por isso lhe digo
isso agora. Foi para o oeste. Além da colina, passando a pradaria.
Para oeste? Não há nada por ali exceto propriedades, terreno pantanoso e…
O rosto de Luc se esticou. E o único caminho que leva a The Green Man!
O juramento que soltou foi terrível.
—Vejo que teve a mesma idéia que eu. Mas por que se dirige a tal guarida de ladrões de
tão má fama escapa completamente a minha imaginação.
A de Luc não. Naquele momento tinha muitas idéias sobre o que ela pretendia. E dada a
absoluta imprudência de Silver St. Clair, cada qual o preocupava mais. Estes homens não eram do
tipo que discute, negocia ou se sente ameaçado… ao menos não por uma mulher sozinha. Ela
estava em sério perigo. Tinha que ir atrás dela, inclusive ainda que isso supusesse que o
capturassem.
E quanto antes chegasse a The Green Man, melhor.

Durante todo o caminho até ali Luc não deixou de dizer-se que estava sendo um estúpido.
Nem sequer alguém tão teimoso como Silver se atreveria a enfrentar o leão em sua guarida.
Mas quando deteve seu cavalo no exterior de The Green Man, meia hora depois, deu-se
conta de que se equivocava. O calesín de Silver estava esperando ante a desconjuntada porta do
lugar.
Um menino pequeno com a cara imunda estava sentado em uma caixa perto dali,
cuidando do cavalo dela. Deu um salto quando viu a imponente figura de Luc, vestida de negro de
pés a cabeça com sua máscara, seu chapéu e suas brilhantes botas.
—É Blackwood, não é?
Luc riu.
—Possivelmente o seja. Ou talvez seja o louco rei Jorge.
O menino sorriu de orelha a orelha.
—Vá. Está procurando à dama furiosa?
A dama furiosa! Essa descrição se ajustava perfeitamente a Silver.
—Suponho que sim.
—Entrou aí. —O menino assinalou para o interior do local—. Disse-lhe que não entrasse
no The Green Man, isso fiz. Que não era lugar para uma dama. Mas não me escutou.
Luc amaldiçoou entre dentes. Não o escutou? Seguro que era Silver então.
Sentiu como o medo lhe atendia a garganta enquanto pendurava seus alforjes no ombro
e descia do cavalo.
Em que tipo de confusão tinha conseguido meter-se a mulher agora?

Capítulo 22
Luc deu uma rápida olhada ao redor. Ninguém tinha fixado nele ainda, graças a Deus. Ao
menos teria a seu favor o elemento surpresa.
Rapidamente tirou uma pequena pistola com a culatra de prata de seus alforjes e a
deslizou no interior de uma de suas mangas. Não sabia o que s encontraria no interior, mas não ia
a nenhum lado desarmado.
The Green Man não tinha mudado desde sua última visita. Seguia sendo uma
desconjuntada estrutura de dois andares com degraus gastos que pareciam datar dos tempos do
rei Guilherme. Havia uma grande sala na parte dianteira que fazia as funções de bar, uma sala
privada à esquerda e meia dúzia de dormitórios na parte traseira e no piso de cima. Ao olhar
através da suja janela, Luc pôde ver o calvo proprietário, de pé diante do descascado balcão,
limpando os dedos roliços em um manchado avental.
Luc empurrou a porta para entrar. Então piscou e parou em seco, acreditando que seus
olhos o estavam enganando.
Mas não o faziam.
Silver estava de pé no meio da sala, vestida para ir a um baile, toda babados de musselina
e suaves fitas de seda, olhando todo mundo como se estivesse olhando vitrines na Regent Street.
Nada em sua expressão revelava medo, nem sequer ao ver que quatro dos piores valentões de
Norfolk a olhavam com o cenho franzido… a ela e à pistola que ela tinha lhes apontando.
Luc fechou os punhos. Ele sim se dava conta do perigo ao qual estava se expondo.
Ela não se deu conta de sua chegada, mas os sete homens que havia na sala sim o
fizeram. Quando o proprietário começou a aproximar-se da porta traseira, Luc tirou sua pistola e
apontou com cuidado.
—Será melhor que fique exatamente onde está, bom homem.
Silver deu um salto.
—Você!
—Seguro que não esperava o juiz - grunhiu Luc—. Vêem aqui agora mesmo.
A cor desapareceu das faces de Silver.
—Não até que tenha terminado.
Os dedos de Luc apertaram a culatra de sua pistola. Viu que um homem grande com uma
cicatriz em ziguezague e sem dentes dianteiros colocava as mãos sob a mesa. Muito lentamente
Luc agarrou a segunda pistola que levava sob a capa.
—Seja o que for que está fazendo, já acabou - disse em direção a Silver—. Agora começa a
caminhar.
Ela golpeou a mesa com um pequeno guarda-sol produzindo um ruído seco.
—Não.
O homem sem dentes começou a sorrir. Luc tirou sua segunda pistola a luz para que se
visse claramente.
—Isso não vai ser necessário - disse Silver cortante—. Estou segura de que estes
cavalheiros…
—Cortariam-na a garganta agora mesmo sem sentir nem o mínimo remorso - concluiu Luc
com tom neutro.
Silver soprou.
—Ao contrário, de fato estavam respondendo algumas de minhas perguntas, não é,
cavalheiros? —disse olhando ao redor e dedicando aos homens ali congregados um sorriso de
camaradagem enquanto elevava um pouco a pistola.
O homem sem dentes lhe devolveu o sorriso… mas seu sorriso era frio e muito feio.
—Agora, mulher! Antes que seja muito tarde.
Mas para então já o era. O homem sem dentes empurrou a pesada mesa para diante. Ao
derrubarem-se, os talheres e as jarras saíram voando e uma perna se enredou com o joelho de
Silver, o que fez que caísse para trás e que sua pistola saísse voando.
Foi cair justo nas mãos gordurentas do homem sem dentes. No segundo seguinte uma
faca brilhava junto à garganta de Silver.
—Baixa essas armas, amigo.
Luc tragou um juramento. Mas com uma faca apontando à garganta de Silver não ficava
mais remédio que obedecer. Deixou a pistola sobre a mesa mais próxima.
—Ambas. Não vá querer que o vestido da pequena rapariga acabe com uma mancha que
não se possa tirar.
No momento seguinte a outra pistola caiu ao chão. Seus olhos não abandonaram nem um
momento a cara do homem. E Luc não gostava da determinação e o deleite que via nela,
—Agora vá até a parede, bandido. Devagar.
—Você tem a faca - disse Luc dando de ombros. Moveu o braço lentamente, como se lhe
custasse muito deslizar o alforje de couro de seu ombro.
O captor de Silver grunhiu enquanto Luc apoiava o alforje no chão e se afastava. Um de
seus largos ombros permanecia apoiado contra uma parede obscurecida pela fumaça.
O homem sem dentes olhou os outros homens, que estavam apinhados na gordurenta
mesa que havia no centro da sala.
—Saiam - ordenou.
Eles obedeceram sem um só protesto, de uma forma que preocupou Luc mais que
nenhuma outra das coisas que estavam ocorrendo.
—E agora, talvez devêssemos ter uma breve conversa com a senhorita Lavanda aqui
presente. —O proprietário se uniu ao homem sem dentes na hora de rir ante o comentário
gracioso—. E depois tiraremos essa sua máscara, bandido. Todos nos perguntamos quem é e
vamos ter a oportunidade de descobri-lo agora.
O proprietário se aproximou de Luc caminhando, cheio de arrogância agora que Luc
estava desarmado.
—Suponho que todos os ricos por aqui desfrutarão o vendo pendurar de uma corda. E eu
também, porque Lorde Carlisle oferece cem guinéus de ouro por qualquer informação sobre o
paradeiro de Blackwood. É um verdadeiro dever cívico fazer saber, não acha, Amos? Quem sabe o
que ofereceria se levarmos o bandido de carne e osso!
—Possivelmente algo que valha a pena - disse o homem chamado Amos com muito
mistério—. Ou possivelmente não.
Silver olhou Luc.
—Nunca pensei que eles…
—cale-se - cuspiu seu captor. A faca tocou seu pescoço.
Luc olhou para outro lado. Se desse rédea solta a sua fúria não conseguiria que ambos
saíssem desta. Em vez disso, levantou um pé para apoiá-lo na cadeira que tinha junto a ele e
estudou a ponta brilhante de sua bota como se não lhe importasse nada mais no mundo.
—Essa é uma idéia intrigante, meu amigo - disse despreocupadamente—. Exceto que há
um pequeno problema.
—E qual é, bandido?
—O fato de que nenhum dos dois vai sair vivo desta sala - disse Luc com o olhar gélido
atrás da negra máscara.
—cale-se - respondeu o que retinha Silver—. A não ser que prefira que eu cale os dois. —
Lançou um olhar incômodo ao suarento proprietário—. Vá e comprova a porta dianteira.
Seu cúmplice, andando como um pato, olhou fora e depois ao redor com um sorriso
confiado no rosto.
—Não há ninguém aí fora exceto o menino.
Amos soltou uma gargalhada repentina e depois fez um gesto em direção a Luc.
—Amarre-o.
O sorriso do proprietário desapareceu de repente.
—Quem, eu?
—Faça-o! Depois podemos mandar o menino em busca de Millbank. Ofereceu duzentas
libras para quem encontrasse Blackwood.
—Então dividiremos o dinheiro - resmungou o proprietário—. Vamos a partes iguais nisto,
não esqueça.
Pela extremidade do olho, Luc notou que a lapela de seu alforje se movia. Um segundo
depois apareceu um pequeno nariz bicudo seguida de um ágil corpinho negro que se retorceu
para liberar-se e desapareceu da vista escondido atrás do pé de uma mesa.
—Quem os encarregou de assaltar a propriedade Lavender Close? —foi a simples
pergunta de Luc.
—Nada de perguntas, bandido. —Amos olhou seu companheiro—. Amarre-o e amordace,
maldição!
—E o que acontece com a garota? —Os dedos do proprietário brincaram nervosamente
com as dobras gordurentas de seu avental—. Quando nos pagou não nos disse nada de…
—cale-se e faça-o.
O proprietário se agachou atrás do balcão descascado e emergiu com um rolo de corda
resistente. Aproximou-se de Luc com cautela.
—Pagou-lhes adiantado, não é? —disse Luc com suavidade—. E isso não os estranha? A
maioria das pessoas espera que o trabalho esteja feito para pagar. Mas possivelmente quem os
contratou tenha suas razões. Talvez se assegure de recuperar seu dinheiro quando conseguir me
apanhar. —Pela extremidade do olho Luc viu que seu furão escapulia sigilosamente pela base do
balcão —. OH, sim, meus amigos, eu diria que é seguro que vocês dois terão um acidente muito
desagradável logo que este assunto acabe.
—guarde suas opiniões, Blackwood - grunhiu Amos—. OH, estou muito assustado, sim
que o estou, bandido. Sim, não vê como me tremem os dedos? —Enquanto falava fez um gesto
brusco com a faca. Era mais um gesto teatral que um verdadeiro movimento, mas Luc ouviu que
Silver abafava um grito enquanto o sangue aparecia em seu pescoço.
Mantém a calma, disse-se Luc com brutalidade, sentindo que os dedos se crispavam pela
selvagem necessidade de retorcer o asqueroso pescoço daquele animal. Se agir muito depressa,
porá tudo a perder.
Pôs as mãos diante dele com exagerada afabilidade.
—Não deixem que interfira em seus planos. Tenho toda a tarde para perder e não
quereria por nada do mundo interferir em sua diversão.
Isso só conseguiu que o cenho do proprietário se franzisse ao máximo.
—Na frente não, idiota. Acha que sou um completo estúpido?
—Nunca se sabe - foi a tranqüila resposta de Luc.
—Vire-se!
Luc se virou, colocou o ombro ante o proprietário e estirou os braços à costas.
—Quem lhes ofereceu dinheiro para expulsar todo mundo da propriedade Lavender
Close?
—Ninguém que seja de sua incumbência.
—Seja o que for o que lhes tenham pago, não será suficiente. Não se pode desfrutar do
dinheiro quando se está morto.
—Quer se apressar? —gritou Amos ao proprietário.
Este agarrou as mãos de Luc com um puxão selvagem, rodeou-as com a corda quatro
vezes e logo fez dois nós apertados.
Não estavam suficientemente apertados. Bram poderia ter feito nós melhores, pensou
Luc. Mas quem o tinha amarrado não ia averiguar ainda.
—OH! —queixou-se—. Não é necessário apertar tanto.
O proprietário riu, divertido.
—Espere que Millbank ponha as mãos em cima de você. Então uivará de verdade.
Amos franziu o cenho.
—Não o vamos levar a Carlisle nem ao Millbank. Há outros que pagarão mais por ele.
Luc ficou sem fôlego. Outros?
—E quem são esses outros? —inquiriu com toda a calma do mundo, embora começasse a
sentir que seu coração se acelerava. Quem mais estava jogando uma partida com mãos tão altas
ali, na campina de Norfolk?
—cale-se! Estou seguro de que isso saberá muito em breve.
Uma sombra passou como uma centelha entre os pés da mesa, diretamente para onde
estava Silver. Com a cauda colada ao chão, o mascote de Luc saiu correndo e desapareceu sob
uma cadeira próxima.
—Agora agarra suas pistolas - ordenou Amos.
O proprietário seguia suando enquanto agarrava a arma mais próxima e estudava a
gravura em prata.
—Esta bonita pistola vai me proporcionar alguns guinéus.
Luc olhou o homem com os olhos entreabertos e notou que o segundo nó se soltava
entre seus dedos.
Enquanto, Silver o olhava enrugando a testa. Luc assinalou com seu olhar o guarda-sol
que estava apoiado na mesa junto a ela.
Ela entreabriu os olhos a sua vez e assentiu levemente com a cabeça.
Luc se sentou em uma cadeira enquanto olhava o homem que tinha apanhada Silver pela
extremidade do olho. Assim foi como viu seu mascote dar a volta à mesa.
Um segundo depois, quinze centímetros de vibrantes músculos entraram em ação. Com
os olhos brilhantes e a cauda levantada se enroscou no braço de Amos e cravou uma linha de
dentes afiados como facas na mão com a qual o homem sustentava a faca. No mesmo momento,
Silver se liberou e agarrou seu guarda-sol enquanto Luc apanhava o surpreso proprietário e
recuperava sua pistola.
Amos não parava de uivar de dor.
O proprietário amaldiçoava.
E Silver estava livre, agarrando seu guarda-sol de maneira protetora contra seu peito.
Não estava mal para cinco segundos de trabalho, decidiu Luc.
Assobiou uma só vez, baixo e agudo. O furão cinza saiu do alforje e cruzou o sujo chão em
direção à bota de Luc. E ali a criatura ficou, mostrando os dentes e vigiando a outra pistola de Luc.
No caso de surgir algum outro problema.
Luc fez um gesto a Silver, que começou a caminhar para trás pela sala com o guarda-sol
em riste. Quando chegou ao lado de Luc, este a empurrou atrás dele.
—Acredito que é hora de ir. Vamos, pequenos. —Ao ouvir essa ordem os dois furões
cruzaram a sala —. Bem feito. Agora, para casa.
Depois de um turno de chiados inquisitivos, o furão negro, o maior, desapareceu no
interior dos alforjes seguido por sua companheira.
Com um sorriso irônico, Luc foi se aproximando da porta.
—Mas o que passa com eles? Esses animais sabem algo, estou segura disso!
—Terá que esperar. Acredito que teremos companhia se ficarmos aqui mais tempo.
—Mas…
Luc soltou um juramento e deu um pequeno empurrão a Silver em direção à porta.
Tinham sido afortunados, mas não ia tentar mais à sorte aquela noite.
—Vamos, mulher!
—Mas, e o fogo que provocaram? Quase matam Bram… E esse homem que dizem que vai
atrás de você? Não quer descobrir quem é?
A voz de Luc se converteu em um sussurro.
—Em qualquer momento este lugar vai ser invadido por seus amigos. Quando isso
ocorrer, será impossível a ajudar, maldita seja.
Sem dizer uma palavra Silver se agachou, levantou a saia de musselina e tirou uma
pequena pistola gravada de debaixo de uma sedutora liga de cor lavanda.
—Suponho que isto poderia me ajudar.
Luc piscou. Tinha conhecido poucas mulheres que pudessem lhe surpreender, mas esta
conseguia fazê-lo uma e outra vez.
—Deus do céu, meu raio de sol.
—Você pode fugir se quiser, mas eu não o farei. Nós os St. Clair não fugimos nunca - disse
franzindo o cenho—. Começarei pelo grande. —Seu olhar era duro e verde como a malaquita.
Murmurando entre dentes, Luc lhe tirou a pistola, meteu-a em seu alforje e depois
agarrou o Silver e o alforje e os carregou no ombro.
—Seu… Solte-me!
Luc não deu a mínima atenção, nem a suas palavras nem aos pés com os quais o chutava.
Com o alforje e sua esperneante cativa bem seguros sobre seu ombro, saiu pela porta de The
Green Man e desceu os poeirentos degraus até chegar onde estava seu cavalo.
O menino imundo seguia esperando. Tinha uma fibra de erva entre os dentes. Os olhos se
abriram de par em par ao ver Luc e sua variada carga.
—Blackwood, esse têm que ser! Soube assim que o vi! Seguro que ninguém mais poderia
fazer nada como isto! Espere até que meu irmão se inteire disto.
—E o que aconteceu com meu cavalo? —disse Silver entre dentes—. E meu calesín?
—Deveria ter pensado nisso antes de se colocar em uma situação tão descabelada.
Apertando os dentes para suportar a dor que lhe chegava do braço, Luc fez girar seu
cavalo com Silver ainda sobre o ombro.
—Não podemos ir ainda - disse Silver desesperadamente—. Esses homens são os únicos
que têm as chaves.
Luc sacudiu a cabeça. Nunca haveria um momento aborrecido perto de Silver St. Clair.
Empurrou-a para diante e a desceu até o chão, sujeitando-a fortemente pela cintura com o braço.
Pensava que ela o agradeceria. Demônios, inclusive esperava que ela o beijasse, justo como o
tinha feito na janela da estufa.
De fato sua temperatura corporal subiu vários graus só de pensar.
Mas ela não o beijou. O que fez foi lhe lançar um golpe direto à mandíbula com seu
enluvado punho.
—E a que demônios vêm isso, mulher?
—Por me tirar dessa maneira desse antro de má reputação! —As faces de Silver estavam
profundamente avermelhadas—. Havia algo que tinha que fazer.
—O que? Conseguir que a matem? Quando vai ser consciente do fato de que não se pode
jogar com homens como esses, pequena? —A mandíbula de Luc se ressentiu por seu gancho de
esquerda e a virilha lhe doía ainda mais pela deliciosa tortura do contato com seu quadril. Lutando
por concentrar-se, olhou-a fixamente—. Por que, em nome de Deus, não me deixou uma
mensagem na árvore, como lhe disse?
—Isso podia haver levado horas! E enquanto isso, aí está a casa destruída e Bram… OH,
Deus, eles quase… - Lhe quebrou a voz.
Luc lhe pôs a mão na face.
—Teria vindo. Teria ajudado. Maldita seja, Silver, não sabe que a…?
Luc se interrompeu, incapaz de acreditar o que tinha estado a ponto de dizer. Incapaz de
compreender o compromisso que tinha estado a ponto de fazer.
Mas o fato era inegável, teve que reconhecer. Amava-a. Tinha-a amado desde o primeiro
momento em que a viu, orgulhosa e cheia de medo mas tentando ocultá-lo enquanto cruzava o
urzal no meio da noite. Apaixonou-se pelo gesto altivo de seu queixo, de seus olhos improváveis
que alternavam entre o verde e o dourado com cada rápida mudança de emoções. Apaixonou-se
por seu fogo, sua teimosia, sua inteligência e a forma em que cuidava do pequeno grupo que
constituía sua família.
Sim, maldita seja, amava-a. Amava-a tanto que lhe queimava como um disparo de
canhão. Tanto que partia seu ser interior em pedaços, o fazendo esquecer todos seus antigos
juramentos.
Mas ele não podia amá-la. Ele era um homem com um passado amargo e um futuro sem
esperança. Convidá-la a compartilhar esse futuro era impensável.
Seus dedos se esticaram sobre os ombros dela.
—Não pode liderar sozinha todas as batalhas. —Rezou para que ela não pudesse ouvir o
tom abafado de sua voz—. Sou seu amigo. Já deveria estar segura de que a ajudarei.
Justo nesse momento o homem sem dentes saiu do The Green Man.
—Aí, esse é - gritou—. Esse é Blackwood. Agarrem-no!
Luc amaldiçoou.
—É momento de ir, definitivamente.
Silver se retorceu bruscamente. Disparou para a porta de The Green Man.
Mas era muito tarde.
Ela gritou quando uma bala assobiou no ar para impactar em seu flanco.

Capítulo 23
Ela estava sangrando.
Isso era tudo o que Luc podia pensar enquanto sustentava Silver contra seu peito e
galopava para o leste.
Só uns minutos antes, ela, rígida de indignação, tinha sido suficientemente valente para
livrar-se de um atacante a cinqüenta passos. Agora jazia imóvel, seu vestido de cor marfim
manchado de sangue.
Ela gemeu um pouco.
—Consegui. Alcancei esse animal calvo com meu disparo, você viu?
Luc recordou os uivos do homem. Se não tivesse estado tão preocupado, teria rido.
—Um disparo perfeito, carinho.
—Disse-lhe isso. Sou uma atiradora excepcional. —Abafou uma exclamação e Luc se deu
conta de quanta dor sentia… e quanto tentava ocultá-la.
—Nunca… falamos de dinheiro. Tenho que lhe pagar. Terei que pagar um famoso
criminoso como Blackwood… - Sua voz vacilou.
—Não fale, pequena estúpida. —Luc pressionou o cavalo com os joelhos para que
avançasse mais rápido—. Simplesmente agüenta. Não falta muito.
Sorriu-lhe com um ar bastante vago.
—economizei quase trinta libras. E Bram tem dois xelins e meio pêni - acrescentou
escrupulosamente.
—Esquece o dinheiro.
—O que ocorre? Meu dinheiro não é bom para você? —Estava pálida, muito pálida. Luc
sentiu como o medo torturava seu coração.
—Não fale. Guarda suas forças.
Ela fez um gesto de dor quando ele a agarrou mais forte e depois fechou os olhos.
—Agüenta, pequena - sussurrou.
E ele sabia que estava falando para os dois, não só para ela.

Seu castrado negro percorreu os quilômetros que faltavam à velocidade de uma centelha
e Luc conseguiu chegar a sua casa com Silver antes que ela recuperasse a consciência. Estava-a
levando para cima, a seu quarto, quando a voz zangada de Jonas o obrigou a parar em seco.
—O que é que fez agora, moço? É seqüestro o que está provando nesta ocasião?
—Esta é… é a mulher que lhe falei, Jonas. A pequena estúpida me salvou a pele, mas a
alcançaram. Tinha que trazê-la aqui.
—Isso é tremendamente perigoso, milorde. O que acontecerá se disser a alguém?
O rosto de Luc mostrava preocupação quando deixou Silver em sua cama e deslizou a faca
por sua manga.
—Não dirá. —Sua regata aparecia brilhante pelo sangue fresco—. Não, minha Silver não.
Poderia torturá-la durante uma semana e ela seguiria cuspindo-o.
Jonas murmurou palavras duras, mas saiu do quarto em busca de gazes e água quente,
com os lábios apertados pela desaprovação.
Luc passou a liberar Silver de sua regata. O suave tecido se rasgou facilmente ao contato
com a lâmina de sua faca.
Engoliu um juramento ao afastar o tecido e ver seu flanco coberto de sangre no lugar em
que tinha impactado a bala, entre duas costelas. Felizmente, e até onde ele podia dizer, o projétil
de chumbo tinha saído limpamente e os ossos estavam intactos.
Luc deixou escapar o fôlego que nem sequer se deu conta que estava contendo. Então viu
o fragmento de tecido agasalhado junto a uma das costelas. Teria que extrair o tecido ou ela não
conseguiria curar-se.
Luc rezou para que ela seguisse inconsciente um pouco mais.
Estava subindo os punhos quando Jonas voltou a aparecer com uma caçarola com água
fumegante e um monte de trapos brancos dobrados sob o braço.
—Quer que eu dê uma olhada, milorde?
Luc cobriu Silver com o vestido, tentando ignorar as curvas brancas e suaves e os
tentadores montículos manchados de sangue.
—Eu o farei - disse com voz rouca.
Jonas o estudou durante um comprido momento e deu de ombros.
—Como preferir, milorde,
—Necessitarei um pouco de uísque, Jonas.
—Está aqui. E umas gazes e um pouco de água também.
A mandíbula de Luc se esticou ao abrir a garrafa de uísque.
—Ainda está inconsciente! A mulher não pode beber, milorde. Não nesse estado.
—O uísque é para mim, Jonas - disse Luc com tom grave.
Uma faísca de humor cruzou os olhos do escocês.
—É? Nunca pensei que viveria para ver este dia.
—Bem, agora o fez, desgraçado com mau gênio. —Luc deu um comprido trago e deixou a
garrafa na arca de mogno que havia junto à cama—. Agora nos deixe.
Parecia que o velho criado ia dizer algo, mas simplesmente se virou sacudindo a cabeça.
Luc franziu o cenho, tirou suas tesouras mais afiadas e começou.

Vinte minutos mais tarde tinha terminado. O fragmento de malha se foi, a ferida estava
limpa e Silver estava enfaixada com um suave linho.
E Luc estava tremendo. Tremendo como não o tinha feito em Ruán, nem tampouco entre
a sujeira e fetidez da mesma Argel. Essa mulher era um perigo para si mesmo. Não conhecia o
significado do medo, nem possuía um ápice de bom senso.
E o pior de tudo era que ele a amava.
Luc suspirou, cobriu sua paciente com uma manta e avivou o fogo porque o dia era muito
pouco próprio da estação e fazia frio. Enquanto olhava as chamas dançarinas pensava no dever e
na inocência. Pensava em tudo o que tinha sido e no que se converteu.
E pensava na mulher de cabelo avermelhado que havia em sua cama e que não havia
lugar para ela nesse novo mundo que criou para ele.
Mas tinha que repetir-se uma e outra vez enquanto as sombras se alongavam e o vento
golpeava as janelas, levando o aroma da chuva. Luc se disse que era só sua imaginação o que o
fazia cheirar também um toque de lavanda no fresco ar.

Ali estava ele, correndo de novo, correndo pelos frios corredores onde habitavam as
lembranças, quando o murmúrio da roupa de cama despertou.
Luc ficou em pé de um salto e ficou olhando fixamente as sombras e o agônico brilho das
brasas na lareira.
Não havia espadas. Nem pistolas. Nem guardas de duras feições com chicotes.
Tudo isso só estava em sua mente.
As mãos tremiam ligeiramente enquanto se aproximava da cama. O rosto de Silver estava
coberto de minúsculas gotas de suor e ela falava em voz baixa.
Afastou-lhe um cacho do rosto.
—Tudo está bem, pequena. Está se recuperando. Tranqüilize-se. Deite-se e deixa que
outros a ajude, para variar.
Ele não se deu conta de que estava ouvindo até que se moveu, inquieta. Abriu os olhos.
Piscou e o estudou sonolenta.
—Dói-me…
Só com isso soube Luc que ainda delirava. Essa mulher tão cabeça dura nunca teria
admitido tal coisa se tivesse a mente clara.
—com certeza que sim. Mova-se um pouco para lá. Os lençóis se enroscaram. —Luc a
aproximou com cuidado de seu peito e puxou um dos lençóis que ficava sob sua costela.
Enquanto o fazia, sua regata se abriu junto a seus dedos. Um de seus seios, redondo e
pálido, ficou apoiado contra seu braço.
O desejo o golpeou.
Apertou os dentes e se separou dela, chamando-se estúpido de todas as formas que
sabia. Mas isso não o ajudou. Poderia cobrir essa curva sedosa, mas não conseguiria deixar de vê-
la. A imagem estava gravada em sua memória.
—Bram! Onde está…?
—Está bem, pequena. O menino está a salvo.
Silver pareceu estremecer. Esticou a mão e agarrou a de Luc.
—Vem vento frio. Deve l dizer ao Tinker… que cubra a lavanda. —Seus olhos se abriram e
se sentou de repente, puxando sua mão—. Tenho que cobrir a lavanda.
Luc a empurrou com cuidado para que se deitasse de novo.
—A lavanda não sofrerá danos. Descansa. Volta a dormir.
Os olhos ainda delirantes dela se fixaram em seu rosto. Sua mão tocou a face dele.
Só então recordou que tirou a máscara ao entrar em Waldon Hall, deixando atrás todas as
precauções que tinha mantido com tanto cuidado.
—Luc - murmurou ela tocando a cicatriz que tinha junto ao lábio—. Que nome mais
estranho.
Tinker tinha a língua muito comprida, pensou Luc.
—Mas… não está desfigurado - disse Silver enrugando a testa—. Não. É lindo. —Seus
dedos acariciaram as maçãs do rosto altas e seguiram a protuberância de seu lábio inferior—. Igual
em meus sonhos.
E então fechou os olhos. Com um ligeiro suspiro voltava a inundar-se em seus sonhos,
sonhos perfumados de campos cheios de lavanda, madressilva e rosas.

—O que é que vai fazer? —Jonas deixou a bandeja que levava e franziu o cenho ao olhar a
cara de cansaço de Luc.
—vou ordenar isto um pouco e vou comer essa substanciosa comida que me trouxeste,
Jonas.
—Não se faça de tolo, Luc Delamere. Sabe exatamente do que estou falando e não é da
comida.
Luc suspirou.
—vou vigiá-la a até que isto passe e depois a enviarei de volta a sua casa, aonde pertence.
Depois tenho planejado não voltar a ver esta mulher. Satisfaz-lhe isso?
—Sim, para começar. —Jonas ficou olhando à mulher que dormia e sacudiu a cabeça—. Já
passou a febre? —perguntou.
—Não saberia dizer. Parece dormir profundamente, mas quem pode dizer quanto durará?
—Luc passou uma mão cansada pelo pescoço—. Olhe como está, e não deixou de preocupar-se
com sua ditosa lavanda. Maldita mulher. —Mas seu olhar era cálido ao olhar o rosto de Silver.
—O que tem de família?
—Só um irmão… bom, e um criado que é um verdadeiro ogro. Será melhor que se
aproxime por ali e os diga que está aqui.
—Eu? —chiou Jonas, incômodo—. E o que vou lhes dizer?
Luc deu um tapinha no ombro do escocês.
—Duvido que as palavras sejam suficientes, meu amigo. Estou seguro de que insistirão
em vir contigo para vê-la eles mesmos.

Os sonhos se dissiparam. A noite foi deslizando sobre as verdes colinas e as claras fileiras
de Angélica, madressilva e lavanda.
Silver se agitou e depois abriu os olhos para ver os raios inclinados do amanhecer.
E abafou uma exclamação.
Umas cortinas de moaré8 cor esmeralda cobriam um conjunto sólido de janelas com
venezianas. Os cobertores das camas eram de cetim dourado debruado de verde. Nas parece
penduravam gravuras, cenas de batalhas navais em alto mar elegantes e detalhadas.
Então Silver viu o homem que estava de pé junto à janela, uma mão sobre o batente, a
outra sujeitando a coxa.
Seu bandido. E pela primeira vez não usava a máscara.
Com o sol do amanhecer entrando pálido pela janela ela viu pela primeira vez seu perfil:
sua mandíbula cinzelada e suas marcadas maçãs do rosto sobre uma boca muito carnuda para
provocar paz ou comodidade.
E ele era lindo, justo como o tinha imaginado. Igual ela tinha sussurrado em sonhos. Só
que não se tratava de um sonho.
Todas as histórias sobre ele não eram certas.
Levava a camisa branca aberta, o que revelava um peito bronzeado salpicado de pêlo
escuro. Não se via nenhum rastro de desfiguramento por nenhuma parte.
Silver se moveu e a dor lhe atravessou as costelas. A dor a fez recordar o resto, a forma
em que lhe tinham disparado quando fugiam do The Green Man. Depois disso certamente ele a
tinha levado ali.
Suas faces se acenderam quando colocou a mão sob as mantas. Só uma fina gaze lhe
cobria o flanco dolorido. Seu vestido tinha desaparecido e sua regata era pouco mais que uns
farrapos.
Deus Santo, havia ele…?
Ele se virou ao ouvir sua exclamação. A luz alagou suas duras e orgulhosas feições.
OH, que belo, pensou Silver com um fio de consciência. Muito bonito para que fosse
seguro.
—Está acordada.
Ela não pôde responder. Não pôde fazer nada mais que ficar olhando.
—Tem fome?
Ela sacudiu a cabeça com dificuldade.
—Sede?
Silver voltou a sacudir a cabeça.
Luc arqueou as sobrancelhas.
8
Moaré: tipo de renda
—Tem febre outra vez?
As mãos de Silver apertaram os brancos lençóis.
—Você… tirou-me a roupa!
O rosto de Luc ofereceu um sorriso tranqüilo.
—Só o vestido. Além disso, salvei-lhe a vida. Isso é tudo o que tem que me dizer?
—Você… Então não o nega? Trouxe-me aqui em cima e depois…
—Percebo que volta a se referir a essas paixões masculinas incontroláveis. Afasta seus
medos, mulher. Esteve inconsciente a maior parte da noite. —Os olhos de Luc brilharam—. E eu
nunca tocaria uma mulher que não pudesse compartilhar minha paixão centímetro a centímetro.
Ela conteve a respiração.
—OH. —As perguntas formavam redemoinhos na ponta da língua, mas não se atrevia a
perguntar—. Bram há…?
—mandei meu criado para buscá-los.
—Já vejo. Suponho um grande problema você.
—Absolutamente - disse Luc com aspereza. Aproximou-se da cama e, sem dizer uma
palavra, começou a afastar as mantas.
Silver puxou-as com dedos tensos.
—O que acha que está fazendo?
—olhar seu flanco. Acredito que já é momento de trocar as bandagens.
Seus dedos apertaram ainda mais o tecido branco.
—Agora mesmo?
—Agora mesmo.
—Mas seguro… quero dizer… não pode esperar? Só esta vez?
Ela não podia lhe olhar à cara. As faces ardiam e lhe custava respirar.
—Não, não posso - disse Luc com toda a suavidade do mundo enquanto lhe afastava as
mãos—. Tem-me suposto um grande esforço chegar até aqui para deixar agora que piore!
Apertando os lábios Silver olhou para outro lado, pela janela, além dos bosques.
Mas sentia cada um de seus movimentos: como soltava o nó, o roce rápido de seus dedos
e depois o tecido ao cair.
E o que mais sentiu foram as fortes mãos deslizando-se por sua pele. Pele nua que tremia
e que doía, mas não pela ferida.
A dor que Silver sentia agora era a de um desejo cego como não nunca tinha conhecido.
Apertou os lábios ainda mais, mas mesmo assim lhe escapou um leve gemido.
—A machuquei? Maldita seja, terei mais cuidado. —A voz de Luc soava rouca.
—Não, não é… Estou perfeitamente… - Inspirou com dificuldade, seus olhos se fixaram
com desespero nas cortinas que se agitavam com o vento do amanhecer. A pele lhe ardia em
todos os lugares onde ele a tocava. Deus Santo, todo seu corpo ardia. E ardia em lugares nos quais
nem sequer podia pensar.
Seu braço apertou sua cintura.
—Não se desculpe - disse Luc—. Suponho que sou muito torpe com estas coisas. —Ele
murmurou algo entre dentes e depois puxou o cobertor pelo outro lado para lhe cobrir os seios.
Silver ficou muito quieta ao dar-se conta. Ele estava tão afligido por suas sensações como
ela. Ele, o Cavalheiro Negro, o duro criminoso e sedutor de mulheres de três condados, esse
contato íntimo lhe parecia tão desconcertante como a ela.
De alguma forma essa idéia restaurou parte da confiança de Silver. Respirou fundo e virou
o rosto para olhá-lo.
Seus olhos estavam cheios de fogo e tinha a mandíbula apertada. Concentrava-se com
todas suas forças e seus movimentos eram rápidos e torpes.
Ela estremeceu um pouco quando lhe roçou a costela.
—Sinto muito. —Amaldiçoou baixo e afastou o cobertor um pouco mais, incapaz de
seguir trabalhando ao redor.
Marcou-se um novo músculo em sua bochecha quando todo seu corpo nu ficou ante ele.
Fascinada, Silver levantou o olhar, sentindo o calor de seus olhos, a cálida tensão de seus
dedos e o trabalho que lhe custava respirar.
—Onde estou?
—Em minha propriedade. Está segura aqui.
Silver olhou a seu redor, estranhava algo no quarto, mas a cabeça lhe dava voltas e não
podia concentrar-se.
—Luc?
Ele se afastou, o corpo tenso.
—Acredito que… isso será suficiente. Só fica um extremo. Pode curar isso você mesma.
Assim eu não… não lhe farei mal.
Pôs as mãos, convertidas em punhos, à costas e se afastou um pouco em direção à janela.
Silver o olhou; a surpresa se via em seu rosto.
—Preferiria que você o fizesse.
—Não, não prefere, Silver - disse ele com brutalidade.
—Confio em você.
—Então é uma maldita estúpida! Blackwood não começa coisas que não pode terminar.
—Mas você não é Blackwood. É Luc. Um homem de honra. Um homem que me salvou a
vida.
Ela viu que seus ombros se esticavam.
—Alguns diriam que há destinos piores que a morte, pequena.
—Alguns são perfeitos idiotas.
Ele se virou ao ouvir aquilo; seu olhar era impenetrável.
—Dói? Tenho láudano se o necessitar.
Silver sacudiu a cabeça. Não queria mais inconsciência. Tudo o que queria era estar ali
com ele, acordada e consciente. A dor era um preço muito baixo que pagar por isso. Sua mão
roçou a face dele.
—por que não me disse isso?
—dizer o que?
—Sobre as cicatrizes.
Ele ficou muito quieto.
—Que cicatrizes?
—as de seu rosto. Eu repeti essa desagradável historia de que lhe explodiu a arma. E não
era mais que uma tola mentira, é claro. É… É bonito. Quanto deve ter rido de mim.
—Não ri, meu raio de sol. E não sou tão bonito. —Luc tomou sua mão e levou a palma aos
lábios. Sua boca deslizou sobre ela, quente e persuasiva, até que Silver sentiu que lhe encolhia o
estômago.
—OH, carinho. Desejaria que não me tocasse assim.
—Como não posso tocar-lhe outras partes do corpo, terei que me conformar com isto -
murmurou.
Silver endireitou os ombros, tentando ignorar um insidioso calor que encerravam seus
lábios.
—Quero saber por que me trouxe aqui.
—Aqui? Quer dizer a minha cama? —Luc soltou uma gargalhada—. O cenário perfeito
para a sedução, não?
—Onde dormiu?
Luc assinalou uma poltrona Luis XIV que havia junto à janela.
—Ali.
Ela mordeu o lábio.
—Não parece muito cômodo.
—Bom, vale para seu propósito - disse Luc pensando em todos outros lugares nos que
tinha dormido nos últimos cinco anos, das sujas redes do navio de guerra francês aos asquerosos
barracões para os escravos em Argel—. OH, sim, a poltrona está mais que bem.
—Mas é muito pequena para você. —Silver afastou as mantas—. Deveria dormir aqui. A
poltrona estaria muito melhor para mim…
Bloqueou-lhe o caminho e seu rosto não admitia discussão.
—OH, não, nada disso, demônio. Ficará nessa cama até que esteja bem de tudo! —Luc a
obrigou a deitar-se sobre a suave cama—.Enfrentar alguém tão adoentada como você, que além
disso está meio delirante, não supõe nenhum esforço para mim.
—Adoentada? —Os olhos de Silver lhe dedicaram um olhar apreciativo—. Está tentando
me provocar. É insofrível, sabia?
—Isso me disseram.
Silver inclinou a cabeça.
—Além disso, já sabia que esta era sua cama.
—Outro de seus insultos, harpia?
—Absolutamente. Simplesmente é que a cama tem seu cheiro. —cheirou
delicadamente—. Cheira a algum tipo de sabão de limão aqui no travesseiro, com um toque de
cravo. —Sorriu—. De uma loja muito cara de Norwich, acredito. Pergunto-me se saberão que têm
um famoso bandido entre seus clientes. Ah e há um rastro de tabaco. —Passou a mão pelo
travesseiro e espremeu um pouco—. E um toque de brandy. —aproximou a manta do rosto —. E
um pouco de couro também. Suponho que com essa típica mania masculina da desordem, deixaria
um par de calças sobre a cama enquanto se trocava, equivoco-me?
O rosto de Luc lhe disse que era exatamente como ela havia dito. Sacudiu a cabeça e riu,
divertido.
—Há cem anos teria sido queimada em uma fogueira por um truque como esse, carinho.
—Vá - burlou Silver—. Pois isso não é nada comparado com o que pode fazer Bram. Ele
tem o verdadeiro nariz dos St. Clair e poderia haver dito uma dúzia de coisas mais das que disse
eu. Mas agora é seu turno.
—Meu turno?
—Isso é o que disse. Abre a janela. —Como Luc não se moveu, acrescentou—. A janela.
Essa coisa quadrada que há na parede.
—Sei perfeitamente a aparência que tem uma janela.
—Então vá e abre-a.
Murmurando entre dentes Luc cruzou o quarto e abriu a janela. Silver fechou os olhos.
—Agora me diga o que cheira. —Ela ouviu o som que fazia ele ao inalar.
—Cheiro a chuva que se aproxima. Uma tília. Lilás. E suponho que meu criado deve ter
estado queimando agulhas de pinheiro outra vez, porque cheiro a fumaça com aroma de pinheiro
no vento.
—Excelente - disse Silver assentindo—. E que mais?
Luc franziu o cenho.
—As rosas do jardim que há sob a janela, acredito. Um pouco de madressilva. Isso é tudo.
—OH, de jeito nenhum - disse Silver com uma risada baixa—. Isso é só o princípio. Há
jacintos. Nós os usamos em nossos perfumes. E também há umas violetas que crescem perto de
uma parede, e poderia assegurar que na parte baixa da colina se pode encontrar lírios do vale que
acabam de começar a florescer.
Luc olhou pela janela e sacudiu a cabeça surpreso.
—Meu Deus, tem razão. É uma bruxa com toda segurança.
—Mas não devemos esquecer o mais importante de tudo. Cheiro a lavanda. OH, sim, é
claramente lavanda. O que significa, bandido, que esta sua casa está perto da minha, de Lavender
Close.
—Temos nossos próprios arbustos de lavanda no jardim.
—Não, este tipo de lavanda seguro que não. Esta espécie em particular só cresce em dois
lugares: um é na parte mais alta de um escarpado que dá ao Mediterrâneo e que está no sul da
Espanha. O outro está aqui, na Inglaterra, e é a propriedade Lavender Close, lugar ao qual meu pai
trouxe os brotos faz quinze anos.
Luc voltou a sacudir a cabeça.
—Não acredito que alguém possa ter um nariz como esse.
—Pode ser incomodo em ocasiões, reconheço. Sobre tudo para Bram, que tem um olfato
melhor que o meu. —Silver entreabriu os olhos—. E também em momentos como este, no que
cheiro um cão pastor muito molhado nas cercanias.
Assim que terminou de falar chegaram uns golpes de debaixo deles, seguidos de um
estrondo de vozes ansiosas. Uns latidos produziram eco na escada.
Um momento depois, Cromwell, molhado, cheio de barro e radiante de felicidade, entrou
no quarto e subiu à cama.

Capítulo 24
Em uns segundos o quarto se encheu de um ruído ensurdecedor. Cromwell ladrava,
Tinker rugia e Bram soltava uma dúzia de perguntas ansiosas sem parar.
Luc observava o caos e olhava Silver, que tentava responder a sucessão de perguntas.
Quando a viu fazer um gesto de dor, cruzou os braços e enrugou a testa.
—Silêncio! —gritou.
Fez-se a calma.
—Agora falem devagar e por turnos. A senhorita St. Clair sofreu uma ferida e não deve ser
incomodada. —Luc se dirigiu ao enorme cão amarelo que deitou junto ao lado de Silver—. Desça,
besta enorme—. Cromwell ladrou, desceu ao chão e golpeou o tapete alegremente com a cauda.
—Bram, traz uma cadeira. Você falará com Silver primeiro, mas só lhe dou cinco minutos.
Depois disso sua irmã deve descansar.
Bram acomodou os óculos sobre o nariz e aproximou uma cadeira até colocá-la junto à
cama.
—OH, Sil, quem teria imaginado que este velho lugar…
Silver interrompeu com um rápido movimento de cabeça.
Luc, enquanto isso, notou o olhar preocupado de Tinker e fez um gesto ao velho criado
para que saísse fora.
—Encontrou-a no The Green Man, não é?
Luc assentiu tristemente.
—estava enfrentando uma multidão de rufiões. Se não tivesse chegado quando o fiz… -
Sua voz se apagou.
—A garota tem o orgulho dos St. Clair e também sua teimosia. —Tinker suspirou—. Tem
meu infinito agradecimento por ter intervindo quando o fez.
Luc agarrou o ombro do velho durante um momento e depois se virou para estudar à
mulher que estava deitada na cama. Pensou o adequada que lhe parecia a imagem. Pensou em
quão maravilhoso seria despertar cada manhã e encontrar seu brilhante cabelo esparso pelo
travesseiro e seus braços o rodeando.
A mandíbula esticou.
—Voltará para casa logo que este assunto se esclareça, mas não antes, Tinker. Bram fica
também. Sua ferida não é muito profunda, graças a Deus, mas não vou permitir-lhe correr mais
riscos.
Era uma ordem muito clara. Luc desejava desesperadamente ter esse tempo com Silver.
Era tão pouco… e deveria durar o resto de sua vida.
—Eu cuidarei dela. Estou familiarizado neste tipo de feridas superficiais.
—Mas…
—fica aqui - disse Luc com brutalidade, em um tom que não admitia discussão. Sua mão
apertou um pouco o ombro de Tinker e depois a afastou. Voltou a entrar no quarto sem fazer
ruído, seus olhos fixos no rosto de Silver.

Tinker viu que Luc se afastava com a expressão endurecida pela preocupação.
Estava se perguntando se deveria tentar levar Silver quando ouviu passos a suas costas.
Um homem enxuto com uma mata de cabelo negro emaranhado e agudos olhos escuros estava
subindo as escadas.
—Então você é o criado da dama, não é?
Tinker assentiu silencioso.
—Esse cão cheio de barro que trouxe é um demônio.
—OH, Cromwell não é um cão. É da família, sim que é.
—Sim, esses cães são assim, não é? —Fergusson assentiu ausente—. Sim, eu mesmo criei
vários cães pastores. —De repente estendeu a mão calosa a Tinker.
Tinker ficou olhando o homem durante comprido momento antes de lhe estreitar a mão
que estendia.
—Meu nome é James Tinker. E com quem tenho o prazer de falar?
—Jonas Fergusson. Estou com Sua Excelen… aqui, na mansão, bastante tempo.
—Não há necessidade de ocultá-lo. Reconheci o moço assim que tirou a máscara. A viva
imagem de seu pai, o duque do Devonham, igualzinho. Ninguém poderia não reconhecer esses
maçãs do rosto de Delamere.
—Delamere? —exclamou Jonas—. Não sei do que está falando.
—Deixa de ocultá-lo, homem - disse Tinker com simplicidade—. Sei. Contou-me isso
ontem à noite.
As sobrancelhas de Jonas se elevaram.
—Fez? Nunca contou a ninguém que eu conheça. O que o faz tão especial?
—Não sou eu o que é especial - disse Tinker—. É ela. Sim, puseram as coisas de pernas
para o ar esses dois jovens. E nós teremos que voltar às encaminhar, isso estou vendo.
Os dois homens se viraram com as cabeças juntas. Já estavam arranjando o primeiro
plano enquanto desciam as escadas em direção à cozinha e à garrafa de bom uísque que Jonas
tinha estado guardando para uma ocasião como aquela.

Luc ficou olhando os dois St. Clair em silêncio. Ao menino viria bem um pouco de boa
comida e exercício. Luc decidiu que a esgrima seria o melhor. Pela tarde levaria a menino para
baixo e lhe ensinaria alguns movimentos básicos.
De repente Luc se refreou. Mas que demônios estava fazendo? O menino não era assunto
dele. Os problemas dos St. Clair não eram seus problemas. Era muito fácil deixar-se acreditar que
sim, mas dentro de uns dias seus caminhos se separariam para sempre pelo bem de todos.
Enquanto caminhava para o interior do quarto, Luc tentou convencer-se de que era ele
quem queria assim.
Bram se virou, ansioso e espectador.
—Por Júpiter, era tudo mentira! Não há nenhuma só marca em seu rosto. Não sei que
estúpido fez correr o rumor de que estava desfigurado. As feições deste homem estão
perfeitamente.
—Sim, miúdas maçãs do rosto têm, né, Bram? E olhe a linha de seu nariz.
—Tremendamente aquilina, se me perguntar isso.
Luc cruzou os braços sobre o peito e franziu o cenho.
—OH, perdão, incomodou-o nossa conversa? —disse Silver cheia de inocência.
—Absolutamente. Eu adoro ser tratado como um pedaço de carne de cavalo no mercado
do Tattersall.
—Mas não estávamos… - Bram se interrompeu e sorriu—. Está brincando. Às vezes é
difícil de saber.
Ao notar que o menino acabava de ruborizar-se, Luc se deu conta de que Bram não tinha
pego muito no pé de alguém em sua breve vida cheia de livros, ou ao menos não o tinha feito com
as pessoas corretas.
—Certo, pirralho. É um cacoete que tenho. Mas acredito que agora será melhor que nos
deixe. Já incomodamos bastante sua irmã em uma só manhã. Vá procurar meu criado com cara de
vinagre e diga que lhe faça algo de comer. Depois disso o ensinarei a manejar um florete, se quiser
tentar. Acredito que viria bem cobrir esses ossos com um pouco de músculo.
—Faria-o? —Os olhos de Bram se abriram cheios de excitação—. Com um florete de
verdade?
Luc assentiu.
—Agora vá. E leve essa criatura imunda que diz ser um cão contigo.
Cromwell ladrou feliz ao dar-se conta de que falavam dele e depois seguiu Bram.
—Cansada? —disse Luc olhando Silver.
—um pouco. Mas foi fantástico vê-los.
—Agora deve descansar. Deixarei-os subir de novo em algumas horas.
Os lábios de Silver se curvaram. Deslizou a mão com suavidade pela mandíbula de Luc.
—É todo um ogro.
Ao notar seu contato, Luc sentiu que se esticavam todos os músculos de seu corpo.
—É preciso um ogro para manter a raia um demônio como você.
—Meu pobre ogro. Como está seu braço?
—Meu braço está bem - disse Luc cortante. Era o tato de seus dedos o que estava
deixando-o louco.
—De verdade? Posso fazer que Tinker traga um pouco de óleo de lavanda e água de
genciana. É maravilhosa para as feridas superficiais.
—Minha ferida está bem, mulher! Agora fecha a boca e descansa.
—De verdade, o óleo de lavanda é a substância perfeita. Ou talvez o óleo de tomilho.
Embora seja um pouco forte e…
—Basta! Vai deixar essa mórbida fascinação que tem por minhas feridas?
Parecia zangado de verdade, pensou Silver. Provavelmente tinha passado muito tempo
desde que alguém se preocupou por ele para que se sentisse cômodo com essa atitude. Mesmo
assim, esse homem necessitava que cuidassem dele. Fazia gestos de dor cada vez que se sentava e
isso era um sinal inequívoco de que sua ferida não estava curada. Decidiu falar com esse amável
criado que tinha estado no quarto antes. Talvez entre os dois pudessem arrumar algo.
—Muito bem, bandido. O que você disser.
—Como? Sem discussões?
—Nenhuma.
—Não confio em você. Nem por um segundo. Rendeu-se com muita facilidade. O que está
planejando agora?
Silver suspirou dramaticamente.
—Temo que sigo sendo um esforço muito grande para você.
—Tolices. —Luc a olhou fixamente—. E se alguma vez a ouvir dizer algo como isso de
novo, tomarei medidas drásticas.
—Muito bem - disse Silver complacente, absolutamente assustada pela terrível ameaça.
Acomodou-se sobre o travesseiro de Luc, saboreando o aroma de sabão cítrico que impregnava o
tecido.
Sim, era um quarto muito bonito. E estava mobiliado muito mais elegantemente do que
ela tivesse podido imaginar.
Não disse a Luc por que o quarto lhe resultava familiar. Em vez disso, fechou os olhos,
recordando as paredes sem o papel novo e sem os móveis. Em sua mente, Silver viu como era o
quarto no passado, quando ela tinha estado ali, obscurecido pela umidade, com os batentes das
janelas rachados e os chãos sem um só tapete.
Então Waldon Hall pertencia à família St. Clair. Ali tinha estado a mansão, nua como um
esqueleto, com todos os móveis vendidos, além das pinturas e a prata, para pagar as faturas que
saíram à luz depois da morte de seu pai.
Não, não havia necessidade de mencionar isso a Luc. Silver decidiu que isso só o faria se
sentir incômodo. E ele não devia sentir-se assim. Havia devolvido à sua velha casa a antiga beleza.
Silver suspirou e uma onda de fadiga caiu sobre seu corpo. Se seu pai não tivesse morrido
quando o fez… Se tivesse deixado uma lista com os ingredientes do Millefleurs…
Se… Se…
Mal sentiu os dedos que alisaram os lençóis junto a seu pescoço.
—Frio. É necessário cobrir a lavanda. Diga a Tinker…
Mas o sono pôde com ela antes que terminasse a frase. À medida que ia entrando em
estado de inconsciência, Silver poderia jurar que tinha ouvido uma leve risada enquanto uma mão
áspera lhe roçava a testa.

—Não, não, assim não, moço. Assim. Mantém a mão firme. —Luc, vestido com uma
camisa branca e umas calças cinza estava, florete em mão, no centro do salão de baile de Waldon
Hall, agora iluminado por velas—. Deixa que o florete descanse ligeiramente. Agora respira fundo
e sente o equilíbrio.
Bram franziu o cenho enquanto sopesava o liso punho de metal entre os dedos. Sua mão
se elevou e cortou o ar, experimentando.
—Isso. De novo. —Luc olhou os movimentos do menino e assentiu. Era rápido e ágil, um
bom aluno. Em uns poucos meses poderia…
Luc reprimiu um juramento. Não ia cair na mesma armadilha.
Logo iriam.
Então Luc se dedicaria de novo à dureza, à ira e ao plano de vingança que o tinha mantido
vivo nos últimos e agônicos cinco anos.
—Devagar, agora. Mantém os olhos abertos. A fundo. Passo, passo, a fundo. Muito bem!
—disse finalmente Luc enquanto o suarento mas feliz moço se deixava cair e enxugava a testa—. É
suficiente por hoje, acredito. Tem aptidões para a esgrima, jovenzinho. Sua irmã deveria lhe
encontrar um instrutor na cidade.
Bram franziu o cenho. Algo parecido à tristeza cruzou seu rosto. Olhou para outro lado,
voltando a colocar o florete em sua caixa com cuidado.
—É claro. Seguro que há algum - disse em voz baixa.
—O que ocorre?
—Nada. É muito amável por tomar tantos incômodos com um menino tolo. Seguro que
resulto um grande incômodo.
Luc tragou uma maldição, aproximou-se do lugar onde estava o menino e se sentou a seu
lado. Pôs a mão no ombro de Bram.
—Não é nenhum incômodo. É só que… bom, eu não sou professor. Conseguiria avançar
muito mais com um profissional. Alguém que esteja treinado para estas coisas.
Bram o olhou com os olhos obscurecidos.
—É claro.
Mas a decepção no rosto do menino golpeou Luc diretamente no estômago. Não estava
preparado para a onda de culpa que veio com ela. Maldição, era só um bandido. Um famoso
assassino! O que acontecia com aquele menino que o olhava com essa veneração nos olhos, como
se tratasse de algum tipo de herói?
Acabam de chegar, disse-se Luc, e já estou lhes fazendo mal.
—Maldição, Bram, não é o que pensa. Eu… Eu não posso, não vê? É melhor para você não
ver-se envolvido comigo. Poderia acontecer algo. Pode ser que uma noite saia por essa porta e
não volte nunca, compreende-me? E se alguém pudesse me conectar com vocês, as coisas
ficariam muito feias para todos. Com tudo o que teve que passar sua irmã, não quero que nada a
faça infeliz.
Bram assentiu com sensatez.
—Não tinha pensado nisso. — tirou os óculos e os limpou cuidadosamente com a
camisa—. Suponho que será por isso que está sempre carrancudo quando está perto de Sil.
Luc ficou tenso.
—Não tenho nem idéia do que está falando.
—Não? —Bram o estudou durante um momento e logo voltou a colocar os óculos—. É
claro não é necessário que me explique isso. Só sou um menino tolo, depois de tudo. Mas vi como
a olha. A forma em que olhe ela. —O menino passou os dedos pela dobradiça metálica da caixa do
florete—. Da mesma forma que a olhava Lorde Easton o ano passado. Dizia que estava interessado
em um pouco de água de lavanda para sua mãe, mas se me perguntar, tudo o que esse homem
queria era ficar só com minha irmã na estufa e lhe pôr as mãos em cima.
A mandíbula de Luc se esticou.
—E o que ocorreu?
Bram sorriu.
—Que minha irmã é uma fera. OH, Sil ensinou ao homem uma lição ou duas. Quando
Easton saiu da estufa, cambaleando, tinha o lábio partido e sua excelente gravata branca
completamente coberta de turfa. Saiu como um tufão, uivando sobre a forma em que lhe tinha
agredido com um tubo de destilação de cobre em uma parte muito delicada de sua anatomia,
espero que me entenda - acrescentou Bram com um sorriso malicioso —. E depois disso lhe deu
um perfeito gancho de esquerda. Eu mesmo lhe ensinei isso, sabe?
—Justo o que necessita a educação de uma mulher de bom berço para que seja de todo
completa - disse Luc com ironia.
—Isso é quão mesmo pensei eu. Entretanto Tinker não o via da mesma maneira, mas o
que saberá ele?
Muito mais do que diz, decidiu Luc.
—E esse Lorde Easton tornou a… pôr as mãos em cima de sua irmã depois disso?
—Não tornamos a vê-lo. Esse chorão disse que lhe jogaria os cães se ela se aproximasse a
menos de um quilômetro de sua propriedade, coisa que a nenhum de nós ocorreria fazer, porque
o homem é um espécime bastante desagradável. Tem umas maneiras deploráveis e os dentes
podres. Usa uma fragrância espantosa, uma mescla de canela e lilás. Canela e lilás para um
homem! Isso supera todos os limites!
Luc sorriu.
—Já vejo que é certo que tem o nariz dos St. Clair. Silver me disse isso. Não acreditei de
tudo.
—Quer que lhe demonstre? Acredito que acaba de vir dos estábulos, porque posso
cheirar a aveia que deu a seu cavalo. Inclusive posso cheirar o musgo e as agulhas de pinheiro que
pisou com as botas de caminho para aqui. —Bram estudou Luc por um momento—. Minha irmã é
um demônio. Não tem nada de senhorita afetada. Nunca obriga ninguém, nunca lhe diz que
ordene sua roupa ou que tire a cabeça do livro. Além disso, tem umas pernas condenadamente
bonitas.
—tem o que?
—Bom, tem-nas. Eu ouvi Lorde Easton dizer justo antes que entrasse na estufa. E não é o
único que vem a Lavender Close a rondar minha irmã.
—Moço, tenta se fazer de casamenteiro?
—Demônios, um pouco - disse Bram alegremente—. Só quero ver minha irmã feliz. E ela
nunca foi, não de verdade. Não durante muito tempo. Mas tem muito bom caráter. Nunca se
queixa, nunca. Embora suponha que terei que estar cego para não vê-lo. —De repente ficou em pé
de um salto—. Será melhor que vá ver como está.
Ao chegar à porta se virou.
—Não vem?
—Acredito que não. —O arrependimento alagou seu rosto quando voltou a olhar seus
floretes.
Bram deu de ombros e foi cantarolando, muito feliz para dar-se conta.

Silver estava olhando pela janela quando Jonas bateu na porta e introduziu a cabeça no
interior.
—Interessaria-lhe receber algo de comer?
—A verdade é que estou mais interessada em Luc. Conte-me coisas dele, Jonas.
—É um maldito estúpido - murmurou Jonas apoiando a bandeja que havia trazido para
Silver—. Sempre foi um louco. Esse menino sai e consegue que lhe disparem com a mesma
facilidade com que outros compram um chapéu novo.
—Quando ocorreu a ferida no ombro?
—Quando saiu de sua casa, se não me engano. Disse que um dos homens de Carlisle lhe
disparou.
—Idiota - disse Silver com suavidade—. Imbecil, insensato, irresponsável…
Jonas soltou uma gargalhada seca.
—Essa é a pura verdade! Quase não chega até em casa. Eu mesmo tive que lhe tirar a
bala, assim que sei muito bem.
Silver olhou a seu redor, o belo quarto, às paredes cobertas de moaré, às elegantes
gravuras de batalhas navais. Elementos estranhos para o típico bandido.
Que fazia então que esse homem corresse esse tipo de riscos?
—Nem sempre foi assim, senhorita. Nem tampouco sua vida era desta maneira. Tudo
poderia ser muito diferente para ele. Sim, mas tem que deixar que seu passado se esqueça. Mas
não quer. Simplesmente não quer.
—por que não?
Jonas trocou o peso de uma perna à outra, incômodo, e olhou a bandeja de comida.
—Não é que não queira lhe dizer. Contá-lo seria um alívio, senhorita. Mas não posso. É
um segredo.
Silver sentiu que em sua mente giravam milhares de perguntas.
—Eu sei que não pode ser um simples criminoso!
Jonas agarrou uma faca e começou a cortar uma fogaça de pão em fatiadas estreitas e
perfeitas.
—OH, não me interprete mal, senhorita. O senhor Luc ganha a vida roubando. Tem que
fazê-lo se quiser sobreviver, compreenda. Quando voltamos não havia mais que feijões e água e
nada mais.
—Voltaram de onde?
—dali - disse com dificuldade e com um tom que advertia Silver que não fizesse mais
perguntas. O velho servente colocou com cuidado umas fatias de presunto e umas fatias de pão
com manteiga sobre um prato de porcelana—. Será melhor que coma algo. Sentirar-se melhor.
Apenas consciente do que estava fazendo Silver agarrou uma fatia de pão.
—Não pode me dizer nada então? Quero entendê-lo. Ajudá-lo, se puder. —Ela sorriu com
tristeza—. Embora nunca conheci ninguém que seja tão cabeça dura como ele.
—É estranho, mas essas são as mesmas palavras que ele utilizou para referir-se a você,
senhorita.
Silver emitiu um som de surpresa e depois um sorriso apareceu em seus lábios. Sentiu
que suas faces se avermelhavam.
—Não é necessário que se ponha assim. Ele é um bom homem e acredito que você é uma
dama de um estranho tipo. Luc tem seu atrativo, seguro. Houve mulheres que se fixaram nele.
Duas viúvas. Uma condessa. Inclusive a filha de um duque que tinha uma figura bastante
chamativa. —Jonas sacudiu a cabeça, Sorrindo com carinho—. Mas o menino não se incomodou
por nenhuma delas. —Suspirou e se aproximou da porta—. Acabe o pão, ouviu? E tampouco lhe
fará nenhum dano tomar uma taça desse vinho que há aí com ele.
—Vejo por que confia tanto em você - disse Silver.
Jonas lhe dedicou um sorriso repentino. Isso a fez pensar que em outro tempo ele tinha
sorrido assim freqüentemente.
Antes que ocorresse algo, algo terrível naquele lugar de que tinha falado.
E Silver pretendia descobrir exatamente o que foi que aconteceu.

Essa mesma necessidade imperiosa de compreender é o que fez que Silver se levantasse
da cama várias horas depois, ao ouvir vozes que subiam do pátio.
A voz de Luc lhe chegava determinada e profunda, a de Jonas cortante e irritada.
Aproximou-se da janela e olhou por ela. Aí estava Luc com o peito nu e uma atadura
branca envolta ao redor de seu ombro. Perto, Jonas estava ocupado jogando água em um
recipiente de estanho.
—Vai me levar a tumba, isso conseguirá. E talvez inclusive me alegre! Não é mais que um
trabalho infinito, isso é o que é! Desde aquela escapada a meia-noite à cidade em uma missão
amorosa faz cinco anos. E olhe aonde o levou isso! A que o apanhasse o bando de valentões mais
vil que jamais houve no cais.
Silver ficou muito quieta quando se deu conta de que estava escutando coisas que não
estavam feitas para seus ouvidos. Mas não se retirou. Sua necessidade de entender a dor de Luc
era muito grande para isso.
Luc jogou para trás sua cabeça úmida e penteou com os dedos seu comprido cabelo
negro.
—Não poderia ter conseguido sem você, Jonas. Não foste mais que uma pedra em meu
sapato todo este tempo, mas no fundo um verdadeiro amigo apesar de tudo. Aí está, ao fim
admiti. Agora me faria o grande favor de deixar já suas incessantes queixa?
Jonas levantou o recipiente e olhou seu orgulhoso protegido.
—Nem sonhe. Não até que abandone esse absurdo plano de vingança.
O tom da voz de Luc se endureceu.
—Acredito que já tratamos esse assunto antes, Jonas.
Silver olhou fixamente os dois homens. O sol já quase se ocultava e os ombros nus de Luc
brilhavam, largos e bronzeados, na última luz avermelhada do dia. Mas não foi seu cabelo nem
seus ombros musculosos o que a deixou gelada e sem fôlego junto à janela.
Foram umas marcas irregulares, de uns vinte e cinco centímetros de comprimento, que
cobriam toda sua costas e parte de seus flancos. Eram antigas e fazia tempo que tinham sarado,
mas se notava que tinham sido feridas graves e isso provocou náuseas em Silver.
Deus Santo, o que era que as tinha provocado?
Aproximou-se um pouco mais quando Jonas voltou a falar.
—Sim, claro que falamos. E então pensava que era uma loucura e sigo pensando agora.
Deixa-o. Permita que o Almirantado descubra quem…
—Basta Jonas! Só há uma pessoa que pode chegar ao fundo disto e essa pessoa sou eu!
Quando penso em tudo o que aconteceu, em toda as pessoas que ficou ali para apodrecerem…
Maldição, é o mínimo que posso fazer para que o sistema mude, não entende?
—Tudo o que entendo é que vai conseguir que o matem, moço. E sem dizer nenhuma
palavra para que seu pai e sua mãe saibam que não morreu como eles acreditam que aconteceu.
Nesse momento Jonas olhou para cima.
E viu Silver na janela.
—O que ocorre Jonas?
O criado duvidou e depois deu de ombros.
—Nada. Acreditei que tinha visto um dos furões escalando por aí, isso é tudo. Suponho
que me equivoquei.
Mas o olhar do criado parecia pensativo enquanto entravam na casa.

Ainda estava sentada, atônita, quando Bram entrou e se deixou cair em uma cadeira junto
a sua cama.
Ela mal escutava suas proezas, assentindo e com atitude interessada, embora seus
pensamentos estivessem muito longe.
O que podia ter deixado essas marcas em suas costas? E qual era essa vingança que Jonas
não podia lhe contar?
—Luc inclusive me permitiu usar os floretes. E disse que era um bom aluno. —Os olhos de
Bram brilharam ao recordar —. E deveria ver o que tem feito no salão de baile, Sil. Está inclusive
melhor que quando nós vivíamos aqui. É claro, suponho que nós não tínhamos nem a metade do
dinheiro necessário para fazer as reparações que ele tem feito. Mas por que não quer que o diga?
—Porque isso faria que ele se sentisse incômodo. E depois de tudo o que tem feito por
nós eu não quero que se sinta assim.
Bram enrugou à testa.
Tinha ouvido quase as mesmas palavras de boca de Luc só uns momentos antes. OH, sim,
os dois estavam totalmente ligados um pelo outro. O problema era o que ele ia fazer a respeito.
Silver tentou sentar-se se apoiando nos travesseiros que Bram tinha empilhado atrás dela.
—Ele disse… Ele disse se ia subir depois?
—Não recordo tê-lo ouvido dizer algo. É um homem tremendamente ocupado, já sabe.
Dei uma olhada em seu estúdio e está cheio a transbordar de correspondência, jornais e revistas
em todo tipo de línguas estrangeiras. Não é o estúdio que se pode esperar de um bandido,
certamente. Tinker e esse Jonas andam por aí silenciosos como ladrões. Os dois estavam bebendo
uísque na cozinha com as cabeças juntas, quase como se estivessem urdindo algum tipo de plano
secreto.
—Estou segura de que isso é imaginação sua - disse Silver—. Acabam de se conhecer. O
que poderiam estar planejando?
Bram deu de ombros.
—Isso me supera. Mas de qualquer maneira há muitas coisas que não entendo por aqui. E
uma delas é por que parece tão triste agora. —O menino ficou olhando as faces ruborizadas de
sua irmã—. Outra é por que Luc parecia tão incomodo quando mencionei Lorde Easton.
—Não, Bram, não terá se atrevido!
—Sim o fiz. E por que não? Não é necessário que o homem pense que ele é único que se
interessou por você em todos estes anos.
O rubor das faces de Silver se fez mais pronunciado.
—E, se me perguntar isso, direi que vocês dois estão complicando muito as coisas. Mas,
claro, a mim ninguém pergunta porque só sou um humilde menino de doze anos.
Silver olhou para outro lado.
—Não é isso, Bram. É que… bom, não posso lhe explicar isso.
Agarrou o pequeno espelho de mão que havia junto a ela na cama e suspirou.
—Pareço um despropósito! Nunca conseguirei tirar estes matagais do cabelo, mas
suponho que deveria tentá-lo.
Agarrou também a escova com o cabo de prata que Bram havia lhe trazido de Lavender
Close. Fez um gesto de dor quando tentou abrir caminho entre a massa de nós.
—Embora não que ele o vá notar - murmurou—. Ele não vai voltar a subir aqui. Nunca
mais.
Seus olhos brilharam pelas lágrimas quando atirou a escova contra a cama.
—Não é que me importe tampouco. Quem quer dedicar tempo a um famoso bandido? E
quem quer estar, nada mais, que com outra tola mulher a que tem quebrado o coração?
Franzindo o cenho Silver passou a mão pela face. Ardia-lhe o flanco e lhe pulsava a
cabeça. Mas não era isso o que a estava incomodando, não verdadeiramente.
Sentia uma dor no peito que ia muito mais à frente do sofrimento físico.
OH, e por que não vinha esse homem insofrível?

—Tem tudo? —Luc olhou gravemente a carroça que Tinker e ele tinham estado
preparando durante duas horas. Uma pilha de mosquetes descansava em um dos lados, junto a
umas cordas e munição suficiente para um pequeno exército.
—Acredito que sim - foi a séria resposta de Tinker—. Suficiente para manter esses animais
a raia ao menos uma noite mais. Mesmo assim, me alegro de que Bram e Silver estejam a salvo
aqui com você.
—Estarão a salvo - disse Luc com convencimento—. Simplesmente preocupe-se em
cuidar-se, amigo. Jonas conseguiu que meia dúzia de homens se reúna contigo em Lavender Close
esta noite e as seguintes. Ex-soldados, acredito, assim que resultarão de grande ajuda. Eu gostaria
de poder me unir também, mas…
—Não precisa me explicar isso Assim é melhor. Já estamos bastante em dívida com você.
Agora será melhor que vá.
Luc ficou de pé longo momento vendo como a pesada carroça descia pela colina. Inclusive
quando já tinha desaparecido, ele seguiu ali. Sentia uma aguda reticência a subir ao quarto do
segundo andar iluminado pelas velas.
Tinha sido tudo tão simples antes… Tão claro… Tudo ira e vingança, sem espaço para a
calidez ou os remorsos.
Agora as coisas não eram tão simples.
Sua expressão era dura quando se virou para voltar para casa.
Encontrou-se com o Bram nas escadas.
—perguntou por você. Não vai subir para vê-la?
—Ainda não. É que tenho que terminar uma correspondência antes e estudar alguns
mapas…
—Por mim está bem, mas ela está se retorcendo de dor. Tentei detê-la para que não
escovasse o cabelo, mas não me escutou. Disse que nunca conseguiria desenredar-lhe. E se negou
a que a ajudasse.
—A maldita pequena estúpida!
Luc subiu as escadas de dois em dois degraus com uma expressão preocupada.
Bram o viu afastar-se com um sorriso em suas feições infantis. Sim, seu modesto plano ia
chegando pouco a pouco a bom termo.

Capítulo 25
Ele se lançou escada acima e abriu a porta de repente.
Silver estava deitada sobre os travesseiros, o rosto pálido pelo esforço enquanto passava
a escova por seu cabelo emaranhado.
—O que acha que está fazendo, em nome de Deus?
Silver o olhou com expressão rebelde, os olhos brilhantes pelas lágrimas não derramadas.
—Estou tentando escovar o cabelo. O que é que parece?
—Parece que está tentando abrir essa maldita ferida, isso é o que parece!
—E como sabe isso? Estou segura de que está muito ocupado com seus assuntos
criminosos para encontrar um pouco de tempo para mim. E isso é exatamente o que eu queria.
Que interesse poderia ter um bandido por mim? —A escova de Silver se enganchou em um
matagal especialmente grande. Ela lutou para tirá-lo e abafou um grito quando o movimento fez
que uma pontada de dor lhe percorresse o flanco.
—Pare! —Luc saltou à cama e lhe tirou a escova da mão.
Ela ficou olhando-o com os ombros tensos.
—Vá. Não o quero aqui. Bram pode me ajudar.
—Bram se foi. Agora sou eu que está aqui e eu sou quem vai ajudá-la.
—por que? —Seus olhos se encheram de ira e confusão—. Não sou mais que um
problema para você. Quanto antes saia desta casa, melhor. OH, me deixe sozinha. Simplesmente
me deixe sozinha! —afastou-se dele bruscamente, com as pálpebras fortemente fechadas.
Uma só lágrima escapou delas. Luc a viu deslizar por sua bochecha. Algo duro e frio se
alojou em seu peito ao vê-la.
Não chore, meu raio de sol, pensou. Não me permita fazê-la chorar.
Mas não disse nada. Apertou a mandíbula enquanto se sentava junto a ela e a aproximava
de seu peito com cuidado. Então começou a lhe passar a escova por seu espesso e brilhante
cabelo.
Ela não se moveu, nem um músculo. Ele podia sentir sua tensão, provocada pela ira, no
lugar onde seus ombros tensos pressionavam seu corpo.
—por que não me disse que vivia aqui antes?
Ele ouviu como ela inspirava.
—Seu homem, Tinker, disse a Jonas. E não respondeu a minha pergunta, Silver.
Ela deu de ombros.
—Pensei que o faria se sentir incômodo.
—Incômodo? —repetiu Luc franzindo o cenho.
—Tudo isto antes era nosso. Teria se preocupado de como nos sentiríamos ao voltar a
estar aqui.
Luc abriu a boca para dizer que não importava. Que era necessário muito mais que essa
minúcia para fazer que um famoso bandido como ele se sentisse incômodo.
Mas isso teria sido mentira. Tinha uma idéia muito clara do que ela devia sentir ao voltar
para uma casa em que tinha conhecido a felicidade e o amor, para pouco depois perder ambos.
Ela tinha razão. Esse pensamento o fez se sentir muito incômodo.
—Sinto muito.
—Não deve sentir. A casa está preciosa. Tudo está muitíssimo melhor que quando…
fomos.
Luc ouviu o pesar de sua voz. Nesse momento compreendeu o verdadeiro alcance das
feridas que lhe tinha deixado a morte de seu pai.
—Fez o que pôde.
—Talvez, mas não foi suficiente. Para que valem todas as boas intenções do mundo se
não se conseguir o que se quer?
Luc não tinha resposta para isso. Era uma pergunta que fez a si mesmo com muita
freqüência.
E então ouviu a única pergunta que não queria ouvir, a única pergunta que tinha estado
evitando fazer a si mesmo.
—por que não veio antes?
Os músculos de sua mandíbula se esticaram.
Porque tinha medo de vir.
Porque sabia que se viesse, não seria capaz de voltar a ir.
Porque é muito jovem e decente, e tudo o que eu não sou.
—Eu… estava ocupado.
—Às vezes mente tão mal, bandido… - Os olhos do Silver se viam escuros pela ira e a
dor—. Se quiser que vá, só tem que dizê-lo.
—Não é isso.
—Não? O que é então?
Não havia resposta. Nenhuma resposta era suficientemente segura para poder dar-lhe ao
menos. Assim simplesmente deu de ombros e a aproximou ainda mais dele, deixando que a
escova deslizasse sobre os últimos nós de seu cabelo.
—Odeio-o, sabe? —Sua voz soava irregular e vacilante.
—É claro, meu raio de sol.
—E tampouco eu gosto disto. Só o permito fazê-lo porque… porque não posso fazê-lo
sozinha. É só o que posso fazer, dadas as circunstâncias. —Sua voz soou cuidadosamente
pragmática.
Mas ela não conseguiu enganá-lo nem um segundo. Estava muito perto de derrubar-se
nesse momento.
E sua vulnerabilidade mais que qualquer outra coisa demonstrou a Luc que tinha razão ao
tentar manter as distâncias com ela, que sua presença só lhe provocaria mais dor.
Ela se mostrou rígida e manteve os dedos afundados na manta todo o tempo que ele
passou penteando-a. Luc acreditou ver outra lágrima correndo por sua bochecha, mas não podia
estar seguro.
E só sabia uma coisa. Já lhe tinha feito mal uma vez.
E tinha o doentio pressentimento de que ia fazer-lhe mal de novo quando estivesse
suficientemente recuperada para deixar Waldon Hall.

Passaram dois dias. Bram manteve Silver entretida, lendo-lhe livros da bem aprovisionada
biblioteca de Luc e lhe contando as histórias das travessuras do Cromwell na cozinha. Só se tinha
produzido um novo incidente em Lavender Close, mas graças aos seis homens de reforço que
tinha contratado Luc, Tinker e Jonas tinham conseguido repelir o ataque com êxito.
Tinker estava embriagado pela vitória agora, com os ombros jogados para trás e o peito
cheio de orgulho. Inclusive Bram estava um pouco ciumento, desejando ter estado ali para ver os
vilãos fugirem.
Silver assentiu enquanto escutava a crônica, aliviada de que Tinker a propriedade
estivessem a salvo. Mas sua mente não estava de tudo no relato. Uma parte dela estava em um
estúdio coberto de livros onde um homem com o olhar duro passeava acima e abaixo.
E seguia sem ir onde ela estava.
O vento tinha parado ao fim e o crepúsculo estava caindo sobre Waldon Hall quando
Bram lhe desejou boa noite alegremente e se foi em direção à biblioteca de Luc em busca de
novas presas.
O ar que entrava pela janela estava alagado de madressilva e flor-de-laranja. Silver sabia
que nunca ia esquecer esse aroma, como tampouco o aroma cítrico do sabão de Luc e o toque de
couro e brandy que tinham os travesseiros.
Exceto por uma mínima dor no flanco, sua ferida estava praticamente curada. Assim já
não havia razão para que ela seguisse ali.
Exceto que ela o desejava e esse desejo se fazia mais perigoso com cada fôlego que
tomava.
Durante um louco momento pensou em fingir uma recaída ou conseguir que a ferida
voltasse abrir-se. Mas Silver descartou a idéia porque não valia a pena. Seu pai a tinha ensinado
que devia enfrentar diretamente os problemas e isso era exatamente o que ia fazer.
Apertando os dentes, aproximou-se da borda da cama e ficou de pé. Uma pontada de dor
lhe atravessou as costelas quando se inclinou para agarrar o xale e o enrolou com força ao redor
do flanco. A pressão aliviou um pouco a dor, já que amortecia um pouco seus movimentos.
Então Silver se encaminhou à porta, determinada a ver Luc antes de ter que ir-se.

Estaria no salão de baile. Bram lhe havia dito que ele ia ali praticar esgrima todas as
noites.
Mantendo a vela em alto, Silver passou por diante da biblioteca, onde a cabeça escura de
Bram estava imersa em um dos livros. Sentiu uma pontada de culpa porque ela era incapaz de
proporcionar a seu irmão as suficientes oportunidades de saciar sua inesgotável curiosidade em
Lavender Close.
Algum dia, Bram, prometeu-lhe em silêncio.
Então viu um ligeiro brilho de luz na ala sul da casa que se abria para o salão de baile.
Silver caminhou entre as sombras tentando não sentir-se assustada.
Encontrou Luc na enorme sala iluminada pelas tremulas velas. Sua camisa estava jogada
sobre uma cadeira e seu torso bronzeado brilhava à luz dos candelabros, perlado de diminutas
gotas de suor. Movia-se com a ágil graça de um bailarino… e todo o poder letal de uma pantera.
Uma e outra vez lançava estocadas que cortavam o ar vazio e evitava as investidas de um inimigo
invisível.
Silver ficou sem fôlego ao ver a graça e a força de seus movimentos. O homem era um
professor. Agora compreendia por que Bram estava tão impressionado por suas lições. Mas havia
algo sombrio na concentração de Luc, algo assustador em sua feroz determinação.
Uma vez mais, Silver se deu conta do pouco que sabia desse homem.
Sem prévio aviso, Luc dirigiu a ponta do florete um pouco mais abaixo e enviou uma
estocada letal em direção ascendente, direta ao coração do inimigo invisível. O movimento se
executou com uma habilidade perfeita e com uma fúria tão incontrolável que fez que Silver
soltasse um grito abafado.
Luc girou de um salto, florete em guarda. Seus olhos eram duros como o aço e seu rosto
não tinha expressão, era o de um estranho. Durante um momento, Silver se perguntou inclusive se
a reconheceria.
Ficou ali, imóvel, uma mão sobre o peito, pensando durante um confuso momento que
ele ia correr para ela e a atravessá-la com sua arma.
E então ele franziu o cenho. Seu florete caiu.
—Deus do céu, mulher, o que é que está fazendo fora da cama?
—Não vieste. Esperei-o todo o dia. Tinker me trocou a bandagem e me contou como
estava a ferida, mas disse que você estava muito ocupado para vir ver-me. Não entendo - disse
Silver e a voz lhe quebrou—. Tão detestável lhe resulta minha presença?
Ela cambaleou ligeiramente e seus dedos se agarraram ao marco lavrado da porta.
Luc amaldiçoou e correu a seu lado.
Mas Silver se separou dela e levantou o queixo.
—posso me arrumar perfeitamente. De fato me arrumei perfeitamente durante anos.
Não acredito necessitar sua ajuda, bandido. E não acredito que necessite nada de você porque
verdadeiramente não o necessito. Nenhum de nós precisa - disse com ferocidade—. E amanhã à
alvorada sairemos por essa porta e deixaremos sua propriedade e sua vida para sempre. OH, não,
não queremos interromper sua perfeita rotina criminosa! E não olharemos atrás. —As lágrimas
brilharam em suas faces—. Nenhuma só vez!
Um músculo se marcou na face de Luc.
—É claro que não o fará, meu raio de sol.
—Não me chame assim. —Silver sentiu que a garganta lhe ardia—. Nunca mais, ouve-me?
—Se for o que quer… - Sua voz soava suave e complacente.
Muito fácil, pensou Silver zangada. Era muito fácil lhe querer. Muito fácil lhe necessitar.
Muito fácil desejar que seus braços a rodeassem e que seus lábios se unissem aos seus, quentes e
exigentes.
—Tenho que admitir que foi amável com Bram —continuou—. De fato conseguiu que o
adore. E a esgrima é perfeita para ele. Foi um acerto por sua parte pensar nisso. —Lhe fez um nó
na garganta—. Temo que há muitas coisas que descuidei na educação de meu irmão.
—Tolices. Bram é um bom menino e faz honra ao seu sobrenome. Tem uma mente rápida
e cultivada. É curioso que saiba mais desses livros que há na biblioteca que eu. Tem-me feito
recordar frases em latim que eu teria jurado ter esquecido faz anos.
—Latim? Algo estranho para um bandido…
Luc se amaldiçoou por seu deslize. Deixava-lhe sem defesas essa mulher valente com a
inocência de uma menina e a coragem de um guerreiro.
Sim, quanto antes deixasse Waldon Hall, melhor.
Ele deu de ombros.
—O latim foi um capricho de um parente longínquo.
Silver ficou rígida.
—Mais segredos? Que enorme incômodo devemos ser para você! Muito bem, pedirei a
Bram que deixe de incomodá-lo.
Os olhos de Silver baixaram até os tensos músculos do largo peito do bandido. Enquanto
o olhava, uma gota de suor cresceu sobre a curva de sua pele e deslizou em um cacho de cabelo
escuro.
Ela desejava tocá-lo. Desejava saboreá-lo. Desejava ver-se envolta por esses fortes braços
e sentir como seu coração pulsava com o seu.
Impossível.
Silver sacudiu a cabeça e fechou as pálpebras com fúria tentando afugentar essa sedutora
fantasia.
Não podia ser. Só uma tola poderia acreditar que era possível. Mas não conseguia que a
abandonasse essa imagem e nesse momento Silver se deu conta de até que ponto lhe tinha dado
seu coração.
E a dor da perda era quase mais do que ela podia suportar.
Abafou uma exclamação e tentou afastar-se. Quando se moveu, seu pé ficou enganchado
na soleira e se inclinou para um lado.
Luc a agarrou antes de cair.
—Basta! Vai subir à cama e vai ficar ali, ouve-me? Ali até o momento em que vá. Mesmo
que tenha que te atar a minha cama para te manter nela.

Durante todo o caminho pela casa e enquanto subiam as escadas, Luc tentou não pensar
no leve e na cálida que era, e em quanto desejava tê-la para sempre junto a ele como nesse
momento.
Com cada passo que dava lutava contra seus sentimentos… e se deu conta de que estava
se rendendo. Sua face era impenetrável quando voltou a colocá-la sobre os lençóis com aroma de
lavanda e lhe afastou o cabelo da face.
Mas quando tentou levantar-se, os dedos de Silver s deslizaram por seu pescoço e o
obrigaram a ficar imóvel.
Seu rosto ficava só a uns centímetros do dele. Seu aroma era uma doce tortura em seus
pulmões. E seus suaves seios o pressionando…
—Não, Silver - disse com voz rouca.
—por que, Luc? diga-me.
—Porque… devo ir.
De novo pôde ver a consciência em seus olhos, a cálida compreensão que tinha visto
tantas vezes nos últimos dias. E era essa emoção que tinha mantido Luc afastado de seu quarto,
isso e só isso. Blackwood, o bandido, tinha suficiente experiência para saber exatamente o que
significava esse olhar nos olhos de uma mulher.
Os dedos dela se esticaram.
—me diga por que.
Agarrou-lhe as mãos, sentindo os frágeis ossos, o pulso acelerado.
—por que? Porque sou um criminoso e um ladrão. Porque não se pode confiar em minha
palavra. Porque você não deveria estar aqui.
—Não acredito.
—Não construa sonhos impossíveis. Sou um homem com um passado muito mais negro
do que imagina. Adverti-lhe que não confie em mim, que não me deixe entrar em seu coração. Só
lhe trará dor.
—Não sou tão frágil!
Seus olhos ambarinos brilharam.
—Talvez seja minha própria força o que temo.
—Assim vai rechaçar-me, simplesmente assim? Sem uma explicação?
—Não tenho outra opção.
Ela o observou com um olhar feroz.
—Aviso-o, não tenho intenção de pôr isso fácil. Vou deixar-lhe mil lembranças que o
perseguirão. Sempre que cheirar a lavanda na pele de uma mulher, pensará em mim. Recordará o
perto que estive de você, aqui, em sua própria cama. —Os dedos de Silver deslizaram por seu
pescoço e o puxaram.
Perto. Cada vez mais perto.
O sangue de Luc se acelerou.
—Não faça isso, Silver.
—Sim. Agora, precisamente agora. Porque o que vai recordar sobre tudo será isto…
Seus lábios se abriram. Ela seguiu puxando-o para ela e deixou que sua boca se movesse
sobre a dele.
Ela não tinha experiência. Não sabia como esconder o tremor de suas mãos ou o de seus
lábios.
Mas, OH Deus, não precisava saber. Luc podia sentir os batimentos de seu coração, tão
rápidos como os seus.
E seu coração, como suas mãos, era o de alguém que ama, assim que a experiência não
resultava necessária. Simplesmente o deixava sentir que ela o desejava. Ele notava seu calor sob
ele, imensamente flexível. Os suaves sons que fazia o animavam a aproximar-se mais e a saborear
toda essa doce flexibilidade.
—Pare. —Ardia-lhe o sangue. Luc sabia que uns momentos mais e não seria capaz de dar
marcha ré—. Não faça isso.
—Sim - sussurrou ela, deixando deslizar suas mãos até rodear suas costelas. Depois ela se
moveu de novo e encontrou seu magnífico e ardente calor—. Agora. —Suspirando ela o acariciou
em toda sua longitude.
Luc gemeu. Olhou-a profundamente nos olhos, embebedando-se com a visão dela.
Desejou ter suficiente força para detê-la. Desejou ser todas as coisas que ela acreditava que era.
—É uma louca estúpida.
—Você é o estúpido. Como poderia alguém não querer isto?
—por que? Este é o por que, Silver —sussurrou com fúria.
E então a empurrou contra o travesseiro com a boca fortemente apertada contra a sua
enquanto lhe oferecia a úmida investida de sua língua. Sua mão cobriu a curva de um de seus
seios. Com um só movimento impaciente ela ficou nua ante ele, seu mamilo duro sob sua palma
calejada.
Ensinou-lhe o alcance de sua necessidade então. Com o cuidado perito de um professor,
ele puxou seu mamilo ereto e mostrou a ela como seu sangue podia arder e sua pele queimar pelo
desejo insatisfeito.
—Sente agora? Entende o que é que lhe faço?
Sua mão afastou a manta de um puxão e se estendeu sobre sua cintura para depois baixar
pouco a pouco pelo sedoso delta que formavam suas coxas. A visão dela à luz das velas resultava
um perfeito sonho erótico para qualquer homem.
—E aqui, também me sente? Aqui também me deseja, Silver? Está quente e úmida de
desejo por mim?
Ela se retorceu contra ele, perdida pelo fogo, pelo desejo.
Perdida pelo amor.
—Desejo-o, Luc. Deixe-me senti-lo. Já me tocou uma vez antes e isso fez que meu sangue
cantasse. Agora eu quero conseguir o mesmo contigo - sussurrou.
Essas palavras lhe arrebataram o ar dos pulmões.
—O que é preciso para lhe assustar, mulher?
—A idéia de te perder. A idéia de nunca conhecer isto. —Os olhos dela procuraram os
dele, profundos poços de desejo. —me deixe te sentir, Luc. Deixe-me… te amar. Mesmo que só
seja uma vez.
—Não chame de amor, maldição. Nem sequer sabe quem sou!
—Então me diga - Seus olhos estavam apanhados em algum lugar entre o verde e o
dourado, brumosos pela paixão—. Não, mostre-me.
O tom grave de sua voz o atravessou, agitando até a última fibra de sua resolução. E seus
dedos suaves tocando sua virilidade com um prazer genuíno e ingênuo… Deus Santo, ia morrer se
não conseguisse entrar nela.
Mas não o fez.
Porque Argel tinha ensinado a Lucien Delamere lições que nenhum homem deveria
aprender.
Assim em vez de agarrar seus quadris e entrar no calor úmido e escorregadio que ela
oferecia, ele se liberou de suas mãos e ficou olhando, sua face toda fogo e bronze à luz das velas.
—mostrar-lhe isso Muito bem, farei-o. Olhe bem, senhorita St. Clair. Olhe isto e começa a
entender por que não deveria ter vindo aqui… e por que não deve voltar aqui nunca.
Virou-se com os braços cruzados com força sobre o peito até que os músculos de suas
costas ficaram completamente tensos e estirados.
E Silver viu com horripilante claridade todas as pálidas cicatrizes que só tinha podido
entrever da janela.
Ondulavam-se por suas costas, abrindo passo por cima dos orgulhosos músculos como se
tratasse de dragões furiosos.
Silver reprimiu um suave gemido sentindo a dentada dessas cicatrizes como se estas
marcassem suas próprias costas.
—Não… - Ela esticou a mão, incapaz de enfrentar à idéia da dor que ele tinha tido que
suportar, incapaz de imaginar o que era que podia ter provocado marcas como essas sobre seu
corpo.
—Marcaram-me, vê? Sou um dos guardas selecionados do Bey. Tenho acesso a sua Corte
e inclusive a seu harém. Só uns poucos homens têm esse privilégio, asseguro-lhe isso.
—Luc, não.
Ele riu grosseiramente,
—Ainda não é suficiente? Então possivelmente isto a convença. —Sua mandíbula se
esticou e desabotoou os dois primeiros botões de sua calça. O tecido cinza se viu estirado para
baixo e ficou dobrada formando dobras e revelando o extremo de uns abdominais de ferro.
E justo em cima das calças abertas, outras duas finas linhas prateadas se dividiam em
finas fileiras.
—Este é o castigo pela desobediência em uma prisão de escravos, Silver. Na Argélia têm
homens especializados no uso do açoite. É seu maior prazer, de fato, e são verdadeiros
professores. Cada golpe arranca um pouco mais de pele, o que faz que seja mais difícil que a ferida
sane. —Sua voz se endureceu—. Chega a se perguntar se não seria melhor deixar ir e…
Seus dedos se crisparam como se o assaltasse alguma lembrança escura, e então voltou a
subir as calças até a cintura.
—matei homens, Silver. Vi-os morrer a meus pés e nem sequer pisquei. E me obrigaram a
fazer coisas…
Seus olhos se voltaram duros e impenetráveis.
—Assim não volte a me perguntar nunca por que. Simplesmente se afaste de mim e não
volte a olhar atrás. Porque se o faz pode ser que eu a esteja seguindo. E a próxima vez, Meu Deus,
possivelmente não seja suficientemente forte para me afastar.
A vela se apagou.
As sombras alagaram as paredes de moaré.
E Luc saiu do quarto e fechou a porta atrás dele com uma pancada.
Foi a seu estúdio. Normalmente isso o tranqüilizava, a visão de todos esses volumes
encadernados em pele cheios da sabedoria de séculos.
Mas essa noite os livros só zombavam dele.
Endireitou uma pilha de correspondência. Jogou água em uma roseira anã que tinha em
um vaso de barro junto a uma janela coberta por uma cortina. Tirou uma bolinha de pó da cabeça
de uma excelente escultura egípcia de malaquita com forma de gato.
E depois se preparou para morrer.
Luc nunca esteve seguro de como tinha chegado até ali. Uma hora depois, sua mão estava
no trinco de seu quarto sem que ele fosse consciente disso.
E ali estava ela ante ele; prata e suavidade à luz da lua, esperança e magia para um
homem que tinha esquecido que essas coisas existiam.
Seu aroma chegou até ele. Lavanda, rosas e salvia. Seu aroma.
Deus Santo, o que ia fazer quando ela fosse? Como ia voltar a fazer-se duro de novo?
Agora mesmo queria calor, não frio. Queria-a, a seu calor, o envolvendo, sua suavidade
apertando sua lacerante necessidade.
Nesse momento esteve a ponto de mover-se, de esquecer sua promessa e ir para ela.
Mas no instante final, justo quando a prudência estava a ponto de ceder, quando o suor enchia
sua testa e seu corpo lhe doía pelo desejo, justo então, algo o deteve.
Foi o tato do metal, frio e suave, sob seus dedos.
A pistola estava guardada nos alforjes que penduravam sobre sua capa escura. Era a
pistola com a qual tinha disparado a homens. A mesma pistola que era possível que tivesse que
usar aquela noite.
Luc ficou muito quieto, pensando no passado, sentindo náusea ao recordar tudo o que
tinha visto e feito.
E com a fria e clara luz da razão soube que ele nunca poderia cruzar os milhares de
invisíveis quilômetros que os separavam.
Seria melhor para ela que ele estivesse morto.
Olhou-a pela última vez, encontrando um gozo profundo e silencioso em sua paz. E depois
se colocou a capa e o chapéu, saiu em busca da morte ou da vingança.
O que chegasse primeiro.

Longe dali, em um salão de baile de Londres, uma mulher estava de pé rodeada de


ansiosos admiradores. A luz arrancava brilhos a suas brilhantes jóias e à rica seda de seu vestido.
Mas Índia Delamere não tinha nenhum interesse nos galãs ou no baile. De repente se
separou daqueles homens e se internou na noite, longe do salão cheio de risadas e de gente.
—Índia? O que aconteceu, moça?
Quando a garota se virou, sua cara estava coberta pelas lágrimas.
—Luc está em perigo, vovó. OH, sinto com tanta claridade desta vez… E aqui estou eu,
perdendo tempo nesta festa insossa quando deveria estar cuidando dele.
A duquesa de Cranford agarrou o ombro de sua neta.
—Tolices. Tudo o que se podia fazer já foi feito. Seu irmão se foi! E o melhor que pode
fazer você é seguir com sua vida.
—Equivoca-se - disse Índia com voz suave e com os olhos fixos na noite, em algo que só
ela podia ver—. Não está morto. E de alguma forma e em algum lugar, vou encontrá-lo, juro-o.

Estava em perigo.
Silver se levantou de um salto com um grito abafado, os olhos obscurecidos pelo terror.
Não viu nada que pudesse assustá-la. O quarto estava em silêncio e a vela apagada fazia tempo.
Mas o terror atendia seu coração como uma corda de brilhante seda negra.
Luc estava em perigo, podia senti-lo com claridade.
Com dedos trementes afastou o cabelo da cara e ficou em pé. Agora entendia muitas
coisas sobre ele. Sabia por que descartava seus sentimentos e afastava todo mundo. Deus,
esqueceria alguma vez a visão das cicatrizes que tinha nas costas? Seu coração se encolhia com a
lembrança dessas marcas cruéis e frias.
E agora estava se pondo em perigo.
Já ia caminho da porta quando Bram entrou correndo com o rosto pálido.
—Viu-o?
—Luc? Não, não o vi. Mas…
—Esperava haver me equivocado e que ele ainda estivesse aqui contigo. —O menino se
atirou ao caos negro que era seu cabelo—. Estava lendo na biblioteca e alheio ao mundo, se não
teria tentado detê-lo.
—Bram, não tem sentido o que diz. Diga-me o que aconteceu!
—É Luc, foi-se a cavalo vestido de negro dos pés a cabeça - disse o menino com cara de
preocupação—. Levava uns alforjes sobre o ombro e um rifle pendurando na sela. —ficou olhando
Silver com olhos ansiosos—. E não cavalgava devagar ou com cuidado, Sil. Lançou-se para os
arbustos como alma que leva o diabo, como se não importasse quem se desse conta.
Silver recordou sua expressão quando se foi de seu lado, com os olhos duros e
impenetráveis, a voz áspera pela desesperança.
Assim não volte a me perguntar nunca por que. Simplesmente se afaste de mim e não
volte a olhar atrás.
O idiota. O temerário idiota e cabeça dura!
Silver procurou desesperadamente uma vela, tentando manter a calma, tentando não
pensar nele subido a algum penhasco olhando a escura franja que eram os caminhos de Norfolk.
—Suponho que terá saído a roubar alguma carruagem, Bram. É sua forma de vida, depois
de tudo, e adora recordar isso aos dois.
O menino a olhou com a cara cheia de surpresa.
—E não se importa? E o que acontece se não voltar? E se morrer aí fora no urzal?
—Importa-me - disse Silver com tranqüilidade—. Importa-me muito. Mas não há nada
que possamos fazer. —Seus olhos não tinham expressão—. Recolhe suas coisas. Voltamos para
Lavender Close.

Capítulo 26
Negra noite.
Negras árvores.
Um negro caminho sobre as colinas infinitas.
Todos eles foram com Luc. Estava de um humor selvagem e tinha a mente alagada de
desolação quando esporeou seu enorme cavalo para o alto penhasco do qual se via o caminho a
Norfolk.
No topo da colina abriu seu alforje e comprovou suas pistolas, tentando não pensar no
rosto de Silver quando a deixou.
Isso era o melhor. O melhor para ambos.
Não volte a olhar atrás, advertiu-lhe uma dura voz.
Do lugar mais afastado do caminho chegou o oco som de cascos. Um momento depois a
cara de Jonas apareceu na penumbra.
—Não deveria estar aqui - disse o desengonçado criado com aspereza—. Nem você nem
eu. Se tivesse um pouco de bom senso na cabeça, giraria meu cavalo e voltaria sobre meus passos.
—Olhou Luc—. Mas suponho que não o tenho. Assim, quais são os planos esta noite, Blackwood?
Luc recostou-se na cadeira de montar.
—Virão do sul. É um rico comerciante de Yarmouth e viaja com todo seu dinheiro sob o
assento da carruagem, isso me disseram. Um guarda vai a cavalo atrás e há duas pistolas no
interior, escondidas em uma parede.
Jonas sacudiu a cabeça.
—Eu não gosto como cheira isso. Muito fácil. O que é que leva a esse homem, rico como
Creso, a levar todos seus guinéus em cima? Cheira mal, digo-lhe isso. E tem toda a pinta de ser
uma armadilha.
Algo começou a subir pela coluna de Luc, mas o ignorou.
—Deve estar se fazendo muito velho para este tipo de trabalho, Jonas. O seguinte será
começar a ver espíritos por aí, rondando na noite.
—Sim, isso verei, Luc Delamere. Espíritos de bandidos que morreram antes do tempo -
acrescentou o escocês.
Um leve véu de névoa se abatia sobre o urzal enquanto Luc colocava a máscara sobre o
rosto. Do extremo mais afastado da colina chegou o trovão amortecido dos cascos dos cavalos,
oito de uma vez e movendo-se rápido. Luc deixou que seus dedos brincassem com as rédeas
enquanto a espera pulsava em seu interior.
Uma carruagem de viagem muita carregada apareceu ante seus olhos.
—Nosso comerciante, acredito - disse Luc—. E um guarda armado atrás, como me
disseram. Minhas informações são corretas até aqui.
Atrás dele, Jonas soprou.
—Muito fácil, isso é o que acredito.
Luc riu baixo tentando ignorar a sensação urgente de advertência que sentia no pescoço.
—Está começando a resmungar como uma velha, Jonas. Ponha máscara e saca a pistola. É
meia-noite e também o momento de que Blackwood cavalgue pelo urzal uma vez mais.
A névoa formava ondas brancas ao redor das enormes rochas que Luc tinha levado
rodando até o centro da estrada minutos antes. Resultariam invisíveis ao cocheiro até que
praticamente estivesse sobre elas.
Só uns minutos mais, pensou Luc. Voltou a sentir essa sensação no pescoço, um instinto
de que algo não era o que deveria ser.
Tragou uma maldição e se disse que estava ficando tão covarde como Jonas. Mas ele não
tinha intenção de voltar sobre seus passos. O comerciante estava muito bem situado para ser
depenado. O homem tinha parado em todas as cidades entre Norwich e King's Lynn, recolhendo
as riquezas que tinha obtido como comerciante de carne negra, um desses malditos partidários da
escravidão.
Luc tinha sofrido os horrores da escravidão de primeira mão e ia-lhe proporcionar um
prazer especial roubar aquele homem.
A menos de seis metros das rochas, o cocheiro viu o perigo e gritou. A névoa formava
redemoinhos ao redor do cavalo de Luc enquanto cavalgava com a arma apontando para a
carruagem que acabava de deter-se.
Com limpa eficácia, Jonas separou a guarda da parte traseira da carruagem e o atirou ao
chão.
Ao mesmo tempo Luc se aproximou da janela.
—Fora da carruagem, viajante! —ordenou com maus modos—. E que seja rápido, não
Lorde Blackwood faça esperar!
A porta rangeu ao abrir-se. Uma figura alta e envolta em um casaco deslizou na
penumbra. Sua garganta estava coberta com um grosso cachecol e seu rosto praticamente oculto
por um chapéu.
—Estou desolado por perturbar sua paz, amigo, mas estão invadindo meus domínios e
devo ajustar as contas.
O viajante deu de ombros e desceu com calma.
—O que? Não protesta? Nenhum sinal de alarme?
O homem tirou o casaco, revelando uns ombros largos e umas coxas poderosas. Se não
tivesse sido pela roupa moderna que usava, Luc teria pensado que se tratava de um boxeador de
algum tipo.
Franziu o cenho e seu desconforto cresceu.
—Quantos passageiros mais há?
Não houve resposta. O comerciante simplesmente deu de ombros e cruzou os braços
sobre o peito.
Luc olhou a seu redor para assegurar-se de que não apareciam mais cavaleiros por detrás
da colina que havia atrás deles. Mas a noite era todo silêncio, exceto pelo suspiro do vento e o
solitário grasnido de um falcão que chegou de algum lugar da escuridão.
Luc olhou o cocheiro.
—Atire a arma que têm escondida a seu lado, homem! —O cocheiro soltou uma
maldição, mas fez o que lhe ordenava. Um pesado mosquete caiu ao chão com um forte ruído que
fez que os cavalos dançassem nervosamente.
Luc sentiu que os olhos do comerciante se cravavam nos seus. Não gostava da
intensidade desse olhar. Havia algo nele…
Luc desceu do cavalo com cautela e se dirigiu à porta da carruagem. Mas não teve o
cuidado necessário.
Quando ainda estava a uns metros de seu objetivo, o casaco do viajante voou até o chão
e, antes que Luc se desse conta, um pé embainhado em uma bota golpeou sua mão e lançou sua
pistola pelo ar. Com uma maldição saltou para trás e tirou seu florete da capa. O comerciante se
atirou ao chão meio agachado, com o rosto escondido pela sombra da carruagem.
Luc entrecerrou os olhos. Aí estava de novo, a sensação de que algo não era o que devia
ser.
—Esse foi um engano muito grave, meu amigo - disse com voz grave—. Outro movimento
e sentirá a dentada de meu aço entre suas costelas.
O comerciante se limitou a rir. De novo lançou seu pé. Desta vez Luc apenas arrumou para
evitá-lo de um salto. Lançou-se abaixo e para a esquerda, retorceu-se e depois se lançou para
diante com uma investida maliciosa que deixou sua folha a centímetros do coração do
comerciante.
Mas em vez das apaixonadas súplicas que Luc esperava, sua vítima simplesmente tirou o
chapéu e o cachecol e riu.
—Uma briga muito estimulante, asseguro-lhe. Mas seguro que não quer ferir um velho
amigo, não é?
Essa voz…!
Os olhos de Luc se abriram de surpresa. Tinha uma estranha cadência que falava de
longos anos no Oriente. A memória envolveu Luc trazendo lembranças de outras brigas sob uma
lua mediterrânea enquanto o convés de um navio de quatro mastros balançava sob seus pés.
—Connor? Connor MacKinnon? Deus do céu! É você?
—E nenhum outro - disse o viajante. Seus largos ombros e sua grande altura se revelaram
um momento quando a lua saiu detrás das nuvens—. E viajei muitíssimos quilômetros em busca
do famoso delinqüente conhecido como Blackwood.
—Parece que já me encontrou, vagabundo. Assim que esses falatórios do ouro escondido
sob o assento eram tudo mentira, né?
—Temo que sim - disse o loiro MacKinnon—. Que demônios ia fazer se não? Depois da
breve e misteriosa mensagem que me deixou em Londres, não tinha forma de contatar contigo,
assim que a rota mais simples era deixar que sua avareza o trouxesse até mim. Inventei a história
de um comerciante coberto de riquezas e esperei que tirasse o famoso Blackwood de sua guarida.
E estou encantado de ver que consegui. —Então a voz do gigante passou a ser baixa—. Mas tenho
notícias, algo que não pode esperar seu ocioso retorno a Londres. Temos que falar.
Luc franziu o cenho.
—O urzal não é lugar para ter uma conversa. Muitos bandidos seguem meus passos,
temo. Jonas - chamou—, envia o cocheiro e o guarda a ocupar-se de seus assuntos. Nosso viajante
não os necessitará mais esta noite.
Em uns poucos minutos os homens se foram, encantados de voltar a subir à carruagem e
galopar para a noite.
—Tão imprudente como sempre, vejo - disse Luc a seu amigo—. Não sabia que podia tê-lo
haver matado?
—Não antes que lhe tivesse quebrado o braço, bandido. Ou talvez destroçar-lhe uma
perna. Ou ambas.
—OH, sim, essas suas artes orientais. Muito úteis em ocasiões, mas não contra meu
brilhante aço.
Connor MacKinnon simplesmente sorriu.
—Alguma vez faremos a prova. Mas por agora será melhor que nos movamos. Eu não
gostaria nada de ter que explicar esta conversa a um juiz que passasse por aqui.
Luc riu.
—Nem a mim tampouco. Iremos para o oeste, mas você terá que caminhar. Meu cavalo
não suportaria o peso dos dois. Sempre foi uma besta de homem, Connor MacKinnon.
—Caminhar será um prazer, mas correr seria até melhor. E seguro que levo melhor
velocidade que esse seu cavalo! —E com essas palavras pôs-se a correr com um ritmo cômodo
pela colina envolta em névoa.
Luc sacudiu a cabeça Sorrindo. Esse homem era um enigma, seguro. Sempre aparecia
quando menos esperava isso e mais o necessitava. Tinha formação nas artes marciais secretas dos
Shaolin chineses, dizia-se, e era um dos poucos estrangeiros que o tinha conseguido. Também
havia rumores de que tinha passado anos de treinamento físico nas enormes montanhas do
longínquo oeste da China.
Se lhe perguntava diretamente, MacKinnon só sorria e nunca confirmava nem desmentia
os rumores.
Luc lhe devia a vida, não havia duvida sobre isso. Ele tinha conseguido escapar do palácio
do Bey de Argel, mas não teria chegado longe, ao menos não com o corpo de Jonas delirante
sobre seu ombro, se MacKinnon não o tivesse visto vir e o tivesse escondido em uma carroça cheia
de especiarias chinesas e chá que estava entrando no palácio do Bey.
Tinham sido duas horas arrepiantes, com Luc e Jonas escondidos sob um monte de grosas
lonas enquanto o Bey inspecionava a mercadoria. Então MacKinnon os havia posto a salvo, não
uma, senão três vezes esse dia, quando Bey descobriu que seu prezado escravo ferenghi9 tinha
desaparecido e pôs a cidade de pernas para o ar para encontrá-lo.
Mas não pôde. Para então Luc estava no porto, bem escondido a bordo de um dos navios
da frota de Connor.
Sim, o homem era todo um enigma. Apreciava de estar sempre onde menos se esperava.
Luc sacudiu a cabeça enquanto via desaparecer a escura forma de Connor pelo desnível da colina.
Se não se apressasse era provável que aquele homem chegasse antes que ele a Waldon Hall.

A ferida de Silver pulsava ligeiramente ao subir no calesín que ela e Bram tomaram
emprestado. As fileiras de lavanda brilhavam pálidas e luminosas à luz da lua e ela encheu os
pulmões com o aroma limpo e fresco e a beleza de Lavender Close.
Mas a visão dos campos em flor e os limites cobertos de rosas brancas e vermelhas não
9
Ferenghi: palavra usada para definir estrangeiro.
proporcionaram a Silver a paz que estava acostumada. Essa noite sentia um vazio em seu interior,
uma dor e uma inquietação que Silver sabia que não podia deixar atrás.
Bram tocou seu ombro com clara preocupação.
—Sil, está bem? Parece que viu um fantasma.
E o tinha visto, é claro. Tinha visto os compridos e solitários dias que se estendiam ante
ela. Tinha visto a dor e a inquietação que a iriam acompanhar enquanto vivia sua vida com o
coração cheio de cinzas.
—Eu… estou bem, Bram - respondeu, tentando não pensar no homem dos olhos cor
âmbar. Endireitou os ombros e começou a subir a colina—. Vamos procurar Tinker, o que acha?
Quero saber quanto dano têm feito esses vilãos enquanto estive fora.

Ele veio hoje outra vez.


Tem feito muitas perguntas e inclusive me fez um grande pedido de perfume. Parecia
muito sincero. Sim, é um bom homem.
Mas não confio nele.
Deus, me ajude, já não confio em ninguém. Não desde que começaram a chegar essas
cartas a cada dia.
Ameaçaram a propriedade, ameaçaram-me. Agora ameaçam meus filhos.
Querida Susannah, se ler isto, deve saber que essa é a razão pela qual envie longe Bram e
você, para que estivessem com seu tio Archibald. Não era o que vocês pensaram. Só foi porque
queria protegê-los.
E os protegerei. De alguma forma tenho que fazê-lo. Embora quase já não reste dinheiro…

Capítulo 27
—Então o que o traz a dar tombos pelo urzal a meia-noite, arriscando a que lhe cortem a
garganta, para encontrar o bandido mais famoso de Norfolk?
A face de Connor estava banhada por uma fina capa de suor. Ele e Luc acabavam de
passar meia hora em um treinamento de esgrima, nenhum dos dois tinha deixado o outro respirar,
embora Luc ainda não estivesse em forma de todo pela ferida da qual ainda estava se
recuperando.
Agora se encontravam olhando os escuros campos de Waldon Hall com as portas abertas
à galeria exterior.
—Notícias - disse Connor—. Notícias que não podem esperar até que retorne a Londres.
Luc tornou para trás seu cabelo comprido, sentindo como a tensão se apoderava dele.
Tentou esquecer a solidão que o tinha embargado desde que voltou com Connor do urzal e
descobriu que Silver se foi e levou Bram com ela.
Não era assunto dele, disse-se Luc. Tinha-a advertido de que devia ir-se. De fato tinha-lhe
ordenado que o fizesse.
Mas Luc descobriu que sua partida o tinha deixado desolado, não importava que se
esforçasse em negar seus sentimentos. E, como Silver tinha prometido, acossavam-lhe as
lembranças: ela em sua cama, seus lábios abertos para ele, o aroma de lavanda de sua pele.
Sabia que essas lembranças estariam sempre com ele.
Mas ele franziu o cenho para olhar o polido chão, fazendo que sua mente se separasse de
todo o resto e centrando-se em cumprir o juramento que tinha feito em Argel. A honra o exigia.
Olhou o amigo que lhe tinha salvado a vida quase dois anos atrás.
—Trabalha rápido. Mandei a mensagem na semana passada. Como arrumaste para
inteirar-se?
—Tinha razão, temo. Há um traidor escondido no Almirantado. Averigüei com um amigo
que tenho na Junta Naval. Uma vez lhe fiz um favor sem importância e o tipo esteve encantado de
responder minhas perguntas.
—Um favor sem importância. —Luc sorriu—. Conhecendo-o, eu diria melhor, que lhe
salvou a vida, MacKinnon. Não, não pretendo bisbilhotar. Só quero saber o que tem descoberto.
—Alguém está passando informação ao Bey da Argélia, justo como suspeitava. Mas a rede
é muito mais ampla do que supunha. Através do Bey, a informação chega a outras pessoas
importantes de Tunísia e Marrocos, e viaja do estreito de Gibraltar até o golfo do Sirte. Tem que
ser o homem que ordenou que o metessem em um navio prisão da Marinha e que finalmente o
viu convertido em corsário. O homem é tremendamente minucioso, também. Anota as datas de
saída, as rotas de navegação e os portos de passagem. Mas o mais monstruoso de tudo são as
listas de passageiros detalhadas e as prováveis jóias ou riquezas escondidas por cada um deles.
Inclusive sugere quanto resgate pode obter-se por cada prisioneiro. Um Comitê de peritos está se
formando para investigar o assunto, conforme me disseram.
Luc mal ouviu as últimas palavras. A raiva o alagava em geladas ondas. Tinha suspeitado,
é claro.
Tinha vivido, respirado e dormido com a suspeita durante cinco anos, todas essas furiosas
e sufocantes noites e os amargos dias de tortura.
Ao final tinha cedido às demandas do Bey quando Jonas estava prostrado morrendo pelas
febres, seu corpo convertido em ossos e uma pele fina como papel.
Só então Luc acessou a mostrar ao seleto grupo que formava a guarda pessoal do Bey a
arte da esgrima. Em reconhecimento a seus serviços, ofereceu a Luc essa odiosa tatuagem que
agora marcava seu antebraço.
E foi no calor daquela noite quando Luc fez o juramento de ver todo esse sistema de
pirataria destruído e, com ele, quem fosse que estava proporcionando informação do
Almirantado, no coração de Londres.
Agora que suas suspeitas se confirmavam, só ficava um dado por averiguar.
—Quem? —exigiu Luc com voz rouca—. Quem foi?
—Ah, eis aí a questão. —Connor MacKinnon olhou seu amigo sob suas pálpebras caídas.
Viu a raiva e a tensão que ardiam nos olhos dourados e âmbar de Luc—. Minhas fontes me dizem
que o Almirantado está procurando o traidor, mas que até agora não têm nenhuma pista. É muito
preparado, nosso pequeno peixe. E não ajuda muito que muitos marinheiros europeus renegados
tenham acessado a mais alta categoria na frota corsária. Em sua posição, capitaneiam seus
próprios navios e se atrevem a atacar suas costas nativas. E qualquer um desses renegados pode
estar indo e vindo, comunicando-se com nosso traidor escondido em Londres.
—Malditos sejam todos! Não há nenhuma pista sobre a identidade do espião?
—Nenhuma. Ou ao menos nenhuma que se revelou. O Almirantado tem seus próprios
problemas, deve compreender. Estão sendo atacados por corrupção, por esbanjar o dinheiro e por
sua monumental extravagância. Compreensivelmente, não querem arejar seus trapos sujos em
público… não até que estejam seguros da identidade do traidor.
—O que quer dizer que não estou mais perto da resposta que antes! —disse Luc
golpeando com o punho a parede coberta de damasco e amaldiçoando tudo o que sabia.
—Bom, não. —Connor MacKinnon apoiou seu largo ombro contra a porta aberta e
estudou seu amigo—. Dá a casualidade de que tenho uma lista dos candidatos que têm mais
possibilidades aqui, em meu bolso. Todos são homens que amassaram uma grande quantidade de
dinheiro nos últimos dois anos… Dinheiro que não pode ter sido obtido legalmente.
—Mas como encontraste…?
—É parte de meu negócio ter fontes em todos os lugares nos quais atracam meus navios,
meu amigo. Em Gênova, em Veneza, na Marselha e sim, também na Argélia, conheço os
banqueiros que se ocupam das contas privadas. Acredito que achará a lista muito interessante,
porque minhas fontes confirmaram que várias das contas secretas pertencem a homens do
Almirantado.
Luc sorriu com malícia.
—Quanto lhe custou essa informação, MacKinnon?
Seu amigo deu de ombros.
—Maldição, Connor, como vou poder lhe devolver tudo isto? —Luc estendeu as mãos—.
Minha casa, minhas propriedades, tudo é seu. Tudo o que vê é seu se finalmente conseguir
encontrar o bastardo que me vendeu à escravidão e que continua mandando ali pobres diabos
todos os dias.
O gigante loiro apertou os lábios.
—Um lugar bastante bonito, tem por seguro. Sua oferta me intriga. Suponho que nela não
entra Swallow Hill também…
Luc ficou tenso.
—Acredito que não deveríamos falar disso. Foi um amigo e o segue sendo, inclusive até o
ponto de salvar Jonas e a mim da morte, mas Swallow Hill está fora de minhas possibilidades,
Connor. Essa vida se acabou para mim. E o advirto que deve recordar isso.
O amigo de Luc, o possuidor de uma frota de navios mercantes que cruzava todos os
lugares navegáveis do mundo, simplesmente riu, nada ofendido pelo duro discurso.
—OH, olhe como tremo, lorde Dunwood. Olhe, treme-me todo o corpo de verdade!
—Velhaco! Já não sou lorde Dunwood. Nunca mais.
—Se você o diz… - disse Connor com calma—. No que me diz respeito, não quero voltar a
ouvir falar de pagamento. Prefiro saber quais são os segredos que guarda. Vá aonde vá só ouço
falar das façanhas o grande Blackwood na estrada principal… e em centenas de quartos também.
Especialmente ouvi comentar um turbulento intercâmbio que se produziu fora do The Green Man.
Agora se vê obrigado a seqüestrar suas companheiras de cama?
Luc soltou uma maldição.
—Assim que se conta a história por aí, não? Maldição, espero que ela possa escapar a
isso.
—Ela? —Connor deixou cair a pergunta delicadamente.
—Uma… vizinha. É a proprietária dos campos de lavanda que bordejam Waldon Hall. Um
demônio de mulher, tremenda e tempestuosa.
—Vejo quão irritante a acha - disse MacKinnon com despreocupação—. Mas não é
Millefleurs o que cheirei ao entrar nesta sala? Poderia jurar que é, exceto porque esse perfume
leva vários anos fora da circulação, o que é uma pena. Conheço uma grande quantidade de
mulheres que seriam muito carinhosas com um homem que pudesse fazer-se com um frasco
desse perfume. —Seus olhos brilharam com uma malícia preguiçosa.
—Sim, é Millefleurs. O pai da senhorita St. Clair criou a fragrância, mas levou a fórmula à
tumba com ele. Acredito que Silver é a que possui o último frasco que resta.
—Silver? Que nome mais intrigante. E esta mulher é vesga? Pesada e com mau caráter?
—Oxalá o fosse - murmurou Luc—. Não, suas informações falham nisso. Silver St. Clair é
um puro raio de sol de verão, valente, divertida e uma verdadeira fera.
Os olhos de Connor se entrecerraram ao ouvir essa descrição. Assim que seu amigo
finalmente tinha caído, isso se via. Bom, bom, isso oferecia um grande leque de possibilidades.
Saberia a mulher?, perguntou-se Connor.
Ou, o que talvez fosse mais importante, ele sabia?
Decidiu misturar-se nesses assuntos amorosos, gostasse Luc ou não. O maltratado
sobrevivente da prisão de escravos de Argel merecia encontrar a felicidade.
—Intriga-me, meu amigo. Poderia ter a honra de apresentar meus respeitos à bela dama?
Os dedos de Luc se crisparam durante um instante e depois deu de ombros.
—Apenas a conheço. É uma vizinha. Se quer ir atrás dela, não é meu assunto. Mas estou
seguro de que tem muito bom senso para acreditar em suas doces mentiras.
—Ah, mas a resistência sempre faz a caça mais interessante.
Luc afastou o rosto de repente. Sua expressão era dura.
Assim por aí era por onde soprava o vento, pensou Connor. Sim, esses dois necessitavam
de seus bons ofícios definitivamente. Felizmente tinha uma semana livre antes de ter que partir
para realizar seus negócios no longínquo Oriente.
Divertia-o ver-se no papel de casamenteiro, descobriu Connor.
—E quando terei o prazer de conhecer esse modelo de virtudes?
—Amanhã. Depois de amanhã. Não me importa absolutamente. Não tenho intenção de
acompanhá-lo. Devo me concentrar em encontrar o traidor e tentar que o último fôlego de vida
escape de sua garganta mentirosa.
—E por onde começamos?
O olhar de Luc voltou para o rosto de seu amigo.
—Começamos?
—Acredito que isso é o que acabei de dizer. —Havia aço na afirmação de Connor atrás
dessa postura cômoda que exibia.
—Maldição, MacKinnon. Não reconhece uma negativa quando a ouve?
—Sempre tive um problema de ouvido. Os insultos e as tolices sempre parecem me
escorregar.
—Está seguro? Pode ser que as coisas fiquem muito perigosas antes que acabemos. Temo
Esse homem seja um professor do engano.
—Esta bem seguro, estúpido.
—Então agradeço sua ajuda. Posso usar essas habilidades nas artes marciais que tem,
especialmente essa endemoninhada maneira que tem de lançar o pé sem fazer nem um ruído.
Mas primeiro quero dar uma olhada nessa sua lista. E depois acredito que gostaria de fazer uma
visita a Kingsdon Cross. Há um antigo moinho no qual tenho muitas vontades de irromper.
Por cima das árvores, os primeiros dedos avermelhados do amanhecer começavam a
fazer-se com o céu oriental. Luc ficou olhando-os com uma selvagem determinação.
—Soa tremendamente intrigante. Quando vamos?
—Muito tarde para começar com isso hoje. Sairemos quando se fizer noite. Tenho um
plano do edifício. Suspeito que alguns dos escritórios se escondem ali.
—Mas, se conhecer o lugar, deve conhecer também o proprietário.
—Desgraçadamente não. O homem tem algum tipo de entrada secreta, porque nunca o vi
entrar ou sair. Mas logo o teremos, garanto-lhe isso.
Connor sorriu.
—Tem muitos recursos…
—Blackwood faz o que pode - disse Luc fazendo uma elegante reverencia—. Tem uma
reputação que manter, depois de tudo.
—Uma reputação que cresce por momentos. E começo a compreender por que. Muito
bem, e que tal outro assalto antes de nos retirar?
Luc lhe dedicou um meio sorriso. Tentou não pensar na dor que tinha visto nos olhos de
Silver antes de ir-se. Tentou não recordar o calor de sua boca, a sedosa beleza de seus seios sob
seus dedos ansiosos. Talvez até estivesse tentando não respirar.
Suspirando elevou o florete.
—Como gostar, canalha.
Suas laminas se encontraram e se entrecruzaram. O repico do bom metal encheu o salão
de baile.
O amanhecer alagou os campos e entrou pelas largas janelas enquanto Luc seguia lutando
por manter-se afastado da dor.
Ao menos isso acreditava.
Mas não conseguiu enganar Connor MacKinnon nem um momento.

Sir Charles Millbank soltou uma maldição furiosa e puxou seu colete enquanto olhava o
brandy que formava um atoleiro sob seu copo.
Maldição, quase tinha amanhecido! Por que aquele homem o fazia esperar?
Mas ele já sabia por que.
Para fazê-lo suar, pensou o baronete furioso. Para fazer que seu medo crescesse mais e
mais, até que caísse implorando piedade.
Através da atmosfera cheia de fumaça das salas traseiras do The Green Man, o baronete
viu que se aproximava uma alta figura. O coração de Millbank começou a martelar no peito ao ver
o brilho do ouro que chegava da orelha do homem.
O visitante, envolto em uma capa, movia-se absolutamente silencioso. Aproximou-se da
mesa mas não se sentou.
—Que notícias me traz, inglês? Agarrastes meu ouro e agora eu espero que cumpra o
prometido.
—Bom… estou perto. Muito perto. Quase tenho descoberto a guarida de Blackwood.
—Quase?
A face de Sir Charles avermelhou.
—Um dia mais e conseguirei. Se não, usarei à garota St. Clair para atraí-lo. —endireitou-se
na cadeira ao pensar na cara de Silver rogando em seu cativeiro, o que conseguiu que reunisse um
pouco de coragem—. Ela o trará até mim. E então eu o arrastarei até você, tal como prometi.
O estrangeiro sorriu.
—Espero, por seu próprio bem, ferenghi, que o façam. Não tenho piedade com aqueles
que me traem.
Millbank pigarreou e ficou imóvel sob esse olhar gélido. Tentou não ficar olhando o
estranho anel que o homem levava na mão. Tinha a forma de um animal e duas esmeraldas por
olhos, e devia valer uma fortuna. Esperando escapar do desagrado que tinha provocado ao
homem, preferiu trocar de assunto.
—Mas, por que Blackwood? O que quer desse bandido?
—Porque me agrada, isso é o que posso dizer. Esse homem esteve uma vez sob meu
poder, mas escapou. E é o único homem que o conseguiu. —Os olhos escuros se endureceram—.
O único homem vivo, ao menos. Mas pagará por sua traição. Antes que eu morra, ele me
proporcionará o prazer de morrer ante meus olhos.
O inglês s estremeceu.
—OH… bem. Será melhor que vá. Tenho planos que arrumar antes que caia a noite,
compreenderá-me.
O homem que o tinha contratado sorriu com frieza.
—Arrume bem. Mas tome cuidado, inglês. Sou um inimigo perigoso. Seria uma pena que
tivesse que saborear minha vingança. —De repente agitou a mão—. Agora vá trabalhar.
Millbank não esperou que repetisse duas vezes. Com a cara branca ficou em pé com
dificuldade e cruzou praticamente correndo a sala cheia de fumaça.

Capítulo 28
O sol já estava alto quando Silver despertou de um sono inquieto. A ferida lhe doía um
pouco, mas já tinha recuperado praticamente toda sua energia. Depois de vestir-se envolveu-se
em um xale e se dirigiu para os campos de flores.
Ali tirou os sapatos e caminhou pelos sulcos, férteis e quentes, rezando para que lhe
proporcionassem a paz que tinham irradiado em outras ocasiões. Mas desta vez não o fizeram.
Não a fizeram se sentir em casa. Não a ajudaram a esquecer o terrível desespero que viu
no rosto de Luc quando saiu de seu quarto em Waldon Hall.
Em duas horas não conseguiu que as coisas mudassem. Nem em dez. A penumbra a
encontrou tão inquieta e agitada como estava quando voltou amanhecer.
E o pior de tudo era que mal tinha nada que fazer. Os atacantes tinham sido repelidos por
fim, graças à vigilância de Tinker e à ajuda dos homens que tinha contratado Luc. Enquanto, Tinker
e Bram tinham inspecionado a lavanda que secava e terminado um carregamento de saches para
um seleto hotel de King's Lynn. Inclusive tinham organizado um aborrecido pedido de sabão de
lavanda e óleos reconstituintes para o mesmo palácio.
Silver sorriu. Tinham-no terminado sem sua ajuda, todo o processo, até o polimento de
cada pastilha para dar-lhe um brilho acetinado. Agora Silver se sentia como uma relíquia em sua
própria casa. E com tanto tempo em suas mãos, seus pensamentos seguiam voltando para um
homem com olhos âmbar e dourado. Teria conseguido voltar para Waldon Hall com os bolsos
cheios de ouro, ou o teria derrubado um dos homens do juiz lhe introduzindo uma bala de
mosquete entre os olhos? Não podia nem pensar.
Obrigou seus pensamentos a voltar para Lavender Close. Com a urgência dos últimos dias
não tinha tido tempo para o diário de seu pai, por isso agora aproveitou para tirá-lo de seu
esconderijo no chão da estufa. Ainda ficava uma dúzia de entradas para ler. Sairia fora às ler, na
colina preferida de seu pai.
Talvez nessas entradas se encontrasse a chave de sua morte.

É seu aniversário esta noite, Susannah. Quanto se parece com sua mãe assim, cheia de
satisfação. Quando ao fim foste dormir, sentei-me a olhar os campos de lavanda e a ver como a
lua os varria com suas ondas prateadas.
A décima segunda noite do quinto mês.
Uma data importante, uma cuja importância não posso revelar. Mas pensa bem, minha
filha. Se ama minha propriedade, se ama meus campos, o significado finalmente se esclarecerá
para você. Não me atrevo a dizer mais se por acaso este diário cai em mãos inimigas.
Se não acontecer assim e for você a ler estas palavras, Susannah, recorda seu aniversário.
Pensa bem.
A resposta aparecerá diante de você.

Silver suspirou e deixou que o diário se fechasse em seu regaço. Apoiou a cabeça contra o
áspero tronco de carvalho que tinha a suas costas e ficou olhando o céu noturno.
O décimo segundo dia do quinto mês.
O que podia significar isso? Seu aniversário, sim, mas qual era a importância que
encerrava essa data? Sacudiu a cabeça. Tinha perdido toda sua inteligência seu pai ao final de sua
vida? Simplesmente teria desenvolvido só melancolia, convencido de que cada sombra era um
inimigo? Deu-se conta de que não podia acreditar.
No silêncio da noite, Silver se sentou na colina, onde seu pai devia ter se sentado tantos
anos antes, olhando seus adorados campos de lavanda sob um céu cheio de estrelas. Mas não
havia pistas nem revelações escondidas ali. Tudo o que Silver via eram três fileiras de novos
brotos, que agora jaziam murchos e inclinados. Inclusive nos canteiros de lavanda mais antigos
pôde ver algumas plantas doentes aqui e lá. Teria que pedir ao Bram que as inspecionasse no dia
seguinte. Se tratasse do cogumelo, teriam que arrancar todas. Se não se arriscariam a perder a
totalidade das plantas de todos os campos, porque essa enfermidade se pulverizava a uma
velocidade terrível.
Silver franziu o cenho, cortou uma folha de gerânio rosa, uniu-a a um ramo de lavanda e
colocou ambos no bojo de seu corpete.
Depois sacudiu as saias e ficou em pé. Não encontraria mais respostas ali aquela noite.

Tinker a estava esperando quando voltou para a casa.


—Você o viu?
—A quem?
—O bandido, é claro. Esteve sentado sob aquele carvalho sobre a colina uma hora ou
mais. Pensei que era algum mais desses animais que devem fazer maldades, mas não. Quando me
aproximei para comprovar, dei-me conta de que era Luc. Estava olhando o céu.
Silver sentiu que algo lhe retorcia no peito.
—Espero que desfrute do aroma da lavanda. Ou talvez simplesmente goste da vista do
céu noturno.
Tinker soprou.
—Tem um céu noturno para ele sozinho, ali atrás, sobre a colina em que está situada
Waldon Hall. Não, suponho que o homem simplesmente é tão cabeça dura como alguém que
conheço e cujo nome não vou mencionar. —O velho criado deu de ombros—. Não preciso que me
franza o cenho assim, Silver St. Clair. Não é meu assunto se vocês dois preferem andar por aí
vagando como almas penada. Não, não é assunto meu absolutamente!
E com essas palavras o velho se virou e caminhou para o armazém resmungando para si
mesmo em voz alta um pouco mais com cada passo.

Bram a alcançou cinco minutos depois, justo no exterior do alpendre dianteiro.


—Viu-o? —disse ansioso.
Silver suspirou.
—Não, não o vi, embora pareça que vai me informar disso cada cinco minutos. Primeiro
Tinker e agora você.
—Mas, o que está fazendo Luc ali em cima? Esteve sentado sob essa árvore mais de uma
hora.
—Suponho que goste da vista.
Bram subiu os óculos sobre a ponte do nariz.
—Se me perguntar isso , esse homem está louco. De fato, acredito que os dois estão. Se
esta for a forma em que agem os adultos, não estou seguro de que queira me converter em um.
Talvez, se tiver sorte, não cresça nunca. —Então também ele se virou e se dirigiu a seu quarto,
deixando Silver a sós com sua curiosidade.
Finalmente não agüentou essa curiosidade.
Virou-se lentamente, procurando com o olhar o grande carvalho que havia no topo da
colina. Então o viu, justo onde Tinker havia dito que estava, sobre a colina que oferecia melhores
vista da propriedade.
Maldição, o que estava fazendo esse homem aí em cima? O que lhe dava o direito a vir
incomodá-la, sobre tudo quando praticamente tinha ordenado que saísse de Waldon Hall?
Seus ombros se esticaram. Obrigaria-o a sair de suas terras, isso é o que ia fazer! E depois
o esqueceria. Capa, chapéu e prateado florete de esgrima, tiraria-o de sua mente de uma vez por
todas. Sim, já veria como o fazia.

Mas o coração de Silver pulsava furiosamente quando subia pela colina. Havia tantas
coisas que queria lhe dizer e tantas perguntas que precisava lhe fazer. Embora ele tivesse
rechaçado todos seus intentos. Mordeu o lábio estudando a silhueta que estava sentada, imóvel,
junto a um arbusto de madressilva, com as costas apoiada contra um velho carvalho.
Antes que Silver pudesse dizer nada, ele levantou a mão.
—Não, não me diga - disse isso com a voz áspera e profunda—. A senhora da mansão veio
me expulsar. E como sei que é ela? —Silver o ouviu respirar profundamente—. Porque cheiro o
aroma de lavanda que tem unido a ela como uma brisa da primavera. E também a fragrância das
rosas e um ligeiro rastro de sua doçura. Porque leva um xale de cachemira. Como sei? Pelo forte
aroma do patchuli com o que sempre se embalam os lenços que vêm da Índia. —Tinha os joelhos
flexionados diante dele. Olhava o céu e em nenhum momento se voltou para olhá-la—. Não vai
pontuar minha habilidade?
Silver o olhou com as mãos nos quadris.
—esteve bebendo!
—Não muito, meu raio de sol. Não o suficiente para que importe, ao menos. E por
desgraça não o suficiente para me fazer esquecer. Mas não pode beber um homem para
atormentar-se e torturar-se em paz? Primeiro esse seu criado com mau gênio vem me incomodar,
depois seu incorrigível irmão. Quem virá depois, Cromwell?
—Possivelmente deveria enviá-lo. Teria uma interessante conversa, de um animal a
outro!
Mas quando Silver viu a tensão em seus ombros sentiu que seu aborrecimento se diluía.
—Claro que vieram vê-lo - disse com suavidade—. Preocupam-se com você.
—Não quero que o façam - disse Luc com voz rouca—. Nem um pouco. Quem se
preocupa comigo… acaba sofrendo dano.
As lágrimas enchiam os olhos de Silver. Deixou-se cair junto a ele no chão.
—Onde está?
—Onde está o que?
—A maldita garrafa da qual esteve bebendo.
—Não sei de que demônios está falando.
Ela esticou a mão por cima dele, procurando na escuridão. Seu braço roçou seu ombro e
seu quadril a coxa dele.
Luc ficou quieto.
—Má idéia, pequena. Muito má idéia.
—OH? E isso por quê?
—Porque não sou feito de pedra. Mas sim bêbado como um gambá. Não sou uma
companhia agradável, esta noite não.
—Porque arrasta as palavras? Disse-me que sempre o fazia.
—Menti - confessou Luc—. Agora será melhor que vá.
Silver o ignorou. Encontrou a garrafa e a arrancou dos dedos. Depois de estudá-la um
momento a levou aos lábios.
—O que é o que está fazendo agora?
—Quero descobrir o que se sente quando alguém se embebeda para atormentar-se e
torturar-se em paz —disse com toda a calma do mundo. O brandy lhe queimou agradavelmente a
garganta—. E me parece que está bastante bem.
—Sobre meu cadáver!
Ela tomou outro gole.
—me dê isso!
Silver se afastou, agarrando a garrafa de cristal com ambas as mãos.
—Pode ser que dentro de um momento. Você já não a necessita. Já bebeu suficiente para
um mês. —E com determinação bebeu outro gole e se deitou na erva com uma mão atrás da
cabeça.
Luc agachou a cabeça para olhá-la e franziu o cenho.
—Parece-me que eu não gosto disto. Por que não vai?
—Mas não pode beber uma mulher para atormentar-se e torturar-se em paz?
Luc murmurou entre dentes.
—Você não tem nenhuma necessidade. Tem amigos, família. Uma vida cheia de emoção
por diante.
—Talvez… mas isso não é suficiente para mim. —Silver ficou assombrada de seu próprio
atrevimento. Possivelmente o brandy tinha algo que ver com isso. Talvez simplesmente fosse a dor
ardente de seu coração que já não podia negar por mais tempo.
Sentou-se, tomou outro gole, um comprido esta vez, antes que Luc conseguisse lhe tirar a
garrafa.
—Suficiente, demônio. Não está acostumada a isto. Subirá à cabeça.
—Já me subiu. E acho a sensação bastante agradável. —Suspirou, voltou a deitar-se e
soltou um botão do corpete —. Mas não me tinha dado conta de que fazia tanto calor… —Franziu
o cenho olhando o céu—. E por que as estrelas dançam no céu dessa maneira?
—Não dançam - disse Luc olhando para cima—. Ao menos não acredito que o façam. —
Olhou Silver e sacudiu a cabeça—. Muito brandy, minha menina. Isso é o que te acontece.
Silver ver de ombros.
—É uma visão muito bonita vê-las fazer esses círculos tão graciosos. —Devolveu o olhar
Luc. Sua mão se aproximou de sua face —. Você também o faz - disse com voz suave.
Sentiu que se esticavam os músculos de sua mandíbula.
—Não deveria estar aqui. Tinker me arrancará a pele.
—Tinker me disse que estava aqui em cima. Bram também. De fato ambos acreditaram
que não tinha coração por não ter subido aqui antes.
—Melhor não ter coração que o ter quebrado - disse Luc com tristeza—. Não sou bom
para você. Nem sequer sou bom para mim. —ficou olhando as escuras colinas na distância—. Esta
noite fui em busca do homem que me enviou a Argel, sabia? Segui-o pelos pântanos que rodeiam
o velho moinho que há perto de Kingsdon Cross. Quase o apanhei, mas perdi um segundo e
escapou. E sabe por que perdi esse segundo? —Luc não esperou sua resposta, os punhos
apertados sobre os joelhos—. Perdi esse momento precioso porque cheirei o aroma da
madressilva e me lembrei de você. Fez-me recordar, como você disse que aconteceria. E não
posso me permitir isso, Silver. Agora não posso ser outra coisa que não seja forte, frio e cruel. Não
posso ser outra coisa sem romper o juramento que fiz a mim mesmo faz cinco anos.
Levantou-se sobre um joelho, a expressão dura.
—Por isso vou agora. Por mim, não por você. Quero que entenda isso.
—Mas… o brandy… Como voltará para casa?
Luc riu com tristeza.
—OH, não estou bêbado, pequena. Isso só era uma mentira para te afastar. Estúpido por
minha parte, é claro. Devia saber que nada a assustaria.
—Que curioso —disse Silver em voz baixa— porque eu tampouco estou bêbada. —Sua
mão se moveu um pouco mais abaixo, soltando o segundo botão de seu corpete—. Nem um
pouco…
Os olhos de Luc estavam fixos em sua mão, no tecido branco cheio de rendas que
ondeava ao vento, na marca V de pele que aparecia debaixo.
—Não.
O terceiro botão ficou livre.
O fôlego de Luc se converteu em um som estrangulado em sua garganta.
—Maldição, Silver, não. Verdadeiramente não sou feito de pedra.
—Espero que não esteja. Pelo que pude sentir de você, é fogo e veludo - disse ela com voz
rouca.
Mas ele não podia mover-se. Paralisado viu como seus dedos desabotoavam um quarto
botão.
—É possível —disse Luc com dificuldade— que esteja tentando me seduzir, Susannah St.
Clair?
—Espero-o de todo coração. —Os olhos de Silver se viam trêmulos à luz da lua—. E estou
tendo êxito, bandido?
Não sabe quanto, pensou Luc desesperado enquanto sua virilidade lhe pressionava um
pouco mais, atacada por uma nova onda de calor. Muito.
—Absolutamente - respondeu, rezando para que ela não ouvisse o tom de sua voz, que
provava a mentira que ocultavam suas palavras—. Blackwood é um pecador muito experiente
para cair por truques tão simples.
Luc viu o tremor que a percorria e que o deixou sangrando por dentro. Mas não podia
permitir-se ser amável. Ela o agradeceria mais adiante, quando tivesse um marido rico e com título
e uma manada de filhos de cabelo acobreado brincando a seus pés.
A idéia fez que Luc sentisse frio em seu interior.
Apertou os punhos.
—Mas talvez não seja Blackwood a quem estou seduzindo - sussurrou Silver—.
Possivelmente seja você, o homem calado que esconde sua dor em um lugar muito profundo. O
homem cuja honra o obriga a fingir a desonra. —Sua voz se quebrou—. É você quem quero, Luc.
Não uma imagem. Não um sonho. Só você. Por que não pode entender isso?
Atrás dele, Luc ouviu o vento sussurrar ao cruzar os campos de lavanda e escapulir-se
entre as roseiras. Esse som tinha um eco nos suspiros de Silver.
E soube que o tinham traído. A mulher, o vento e a beleza da noite conspiraram contra
ele no mesmo momento em que Silver se levantou para sentar-se.
A renda branca ondeou livre, despindo a curva de um de seus seios de marfim ante seu
olhar ardente.
Ele lutou contra isso, contra ela, mas se via perdendo ante toda essa suavidade e essa
sedosa honestidade.
Decidiu que essa era a única forma de detê-la.
Afrouxou a camisa, com um olhar duro que não se separava dela. Assustá-la era sua única
esperança.
—vou fazer-lhe mal, Silver. Possivelmente a faça muito mal. Sempre dói a primeira vez.
—OH, mas não é a primeira - disse—. Tive dúzias… sim, centenas de homens.
Seu lábio se curvou ligeiramente.
—Centenas, né?
—No mínimo. Digamos que o caminho já está completamente aberto. Não há
necessidade de que temas me machucar.
—Já vejo. —Os olhos de Luc eram impenetráveis enquanto deslizava a mão para as
incitantes curvas que revelava o corpete aberto—. E a tocaram aqui? Assim?
Silver abafou um grito quando ele encontrou seu ponto mais sensível, já duro e faminto
de desejo por ele.
—É claro.
—E… você gostou? Quando a tocavam assim?
—Resultou-me bastante agradável, suponho. Seus dedos se abriram em leque e seus
lábios se fecharam sobre os dela, pressionando úmidos.
—Luc!
—Sim? —Ele a estudou sob suas pálpebras entrecerradas—. Isso também lhe resultou
agradável, entendo.
Silver tragou saliva sonoramente.
—Sim. Agradável mas…
Luc brincou com as ávidas curvas, as roçando com a língua até que ela se retorceu
grosseiramente sob seu corpo.
—E todas essas centenas de homens, também lhe fizeram isto?
—Eu… Sim, é claro. —Silver abafou outra exclamação—. Todo o tempo.
—Já vejo - disse Luc. Com um movimento lento agarrou sua saia e a puxou para cima.
—O que está fazendo?
—O que todo homem faz quando quer proporcionar prazer a uma mulher. Seguro que
você, uma mulher com tão vasta experiência, deve ter se dado conta disso.
Silver mordeu o lábio.
—Bom… sim, é claro que sabia. Só que me surpreendeu. São suas mãos. São muito
grandes, sabe?
—E não só minhas mãos, pequena - respondeu Luc—. Mas já sabe tudo sobre isso, já que
lhe são tão familiares essas «paixões masculinas incontroláveis», como você costuma dizer.
Não pensava deixar fácil, nem por um momento. Não poderia, porque se o fazia,
fracassaria. Suas mãos seguiram o caminho que marcava a suave linha de suas coxas, procurando
o calor de seu delta.
Ela não pôde reprimir um grito quando o alcançou.
Mas ele ignorou seus ofegos, seus movimentos bruscos, abrindo com cuidado a pele
escorregadia que agradecia suas íntimas carícias.
—me olhe - ordenou Luc com brutalidade—. Sou um renegado. Um traidor de meu país, a
meu nome e a meu próprio coração. Olhe-me e me diga como é ser amada por um traidor.
Possivelmente isso a faça mudar de opinião.

Capítulo 29
Silver não respondeu. Deus Santo, não podia responder, não com esse fogo que a
queimava dentro e esse desejo que a alagava com enormes ondas escuras.
Traidor?
Não acreditava. Não podia ser vindo de um homem cujo sentido da honra era tão urgente
que lhe exigia ocultar precisamente essa mesma honra.
—Não… Não acredito.
Luc soltou uma gargalhada seca.
—Fará-o. —Afastou a renda que cobria um de seus seios e começou a estimulá-lo com
brutalidade com a língua e os dentes.
Silver se arqueou contra ele. A costela lhe doeu, mas estava muito perdida no prazer para
que se importasse. Negava-se a acreditar que ele era um traidor!
E tampouco podia lhe dizer a verdade. Se ele soubesse que realmente era o primeiro
homem que a tocava, seguro que se detinha. Essa honra que dizia que não tinha o manteria longe
dela e ela nunca experimentaria a beleza de suas carícias.
Mas Silver quase lhe soltou a verdade quando o polegar do Luc acariciou seus sedosos
cachos.
—Assustada, querida? Bem, porque minha intenção era te assustar.
Assustada? Não, isso não. Sentia-se muito estranha. O calor. O brandy. O martelar de seu
sangue.
E o homem. OH, sim, o homem por cima de tudo.
Tinha seu coração completa e verdadeiramente naquele momento. Mas isso também
devia mantê-lo em segredo. Ele não queria seu amor nem nenhum outro de seus bons
sentimentos.
Assim Silver tragou as palavras e as escondeu no mais profundo de seu coração.
—Deveria estar assustada?
—Deveria - disse Luc com brutalidade—. É o bandido o qual apanhaste com seu feitiço
esta noite. Não o cavalheiro, o agradável cavalheiro andante, senão o criminoso endurecido que
não deve lealdade a ninguém. Agora está assustada?
—Não. —Silver introduziu sua mão sob a camisa de Luc e encontrou a leve protuberância
que formavam as cicatrizes de suas costas—. Não de você. Não disto. São as marcas de um
guerreiro, lembranças da honra. Por que deveriam me assustar?
Os olhos de Luc se fecharam. Não, nada a assustaria. E ele deveria havê-lo sabido.
—vai chegar logo essa dor?
Só para mim, pensou Luc, sabendo naquele momento que não poderia levar aquela
pantomima até o final.
Mas estava tão perto. Uma investida rápida e ela seria dele, tensa, úmida e acolhedora.
Aceitaria-lhe bem, ele sabia. Já havia sentido seu prazer uma vez e sabia que o envolveria com
doçura quando entrasse nela.
Reprimiu uma maldição ao sentir que o suor perlava sua testa.
Não com ela. Não então. Não podia lhe fazer isso, não a essa mulher.
Mas tampouco podia afastar-se dela, ainda não. Não antes que pudesse sentir seu doce
fogo uma vez mais. Ele abriu passo para o interior dela, sentindo-a tremer contra seus dedos
enquanto a acariciava com cuidado.
—Não. OH, Luc, como posso…?
Ela se apertou contra ele, os olhos obscurecidos, a face ruborizada, toda ela entregue ao
prazer que pulsava por todo seu corpo.
Tão bela, pensou Luc. Poderia ficar assim para sempre, ouvindo esses gritos roucos que
ricocheteavam em seus ouvidos. Ao ver sua honestidade e sua entrega, ele se sentia livre, os
últimos três anos desapareciam e por um momento era como se as torturas de Argel nunca
tivessem ocorrido.
Ao vê-la, ao sentir sua pressão tirante e quente, sentia que seu controle se fazia
pedacinhos. Nunca antes tinha conhecido uma necessidade como essa… nem um arrependimento
tão amargo.
Porque Argel tinha existido. Tinha matado homens e ignorado sua consciência. Teve que
fazê-lo para sobreviver. E então chegaram as mulheres. Muito jovens. Muito pequenas. Quando o
Bey viu o tamanho doe Luc riu burlonamente e ordenou que seu prisioneiro ferenghi se dedicasse
a encontros sexuais que castigassem às mulheres por sua desobediência.
E depois de várias sessões de chicotadas, Luc ao fim tinha obedecido.
Para sobreviver tinha feito o que o Bey ordenava. Agora era um traidor de seu país e de si
mesmo. E nada podia mudar isso.
—Não sou Luc - disse com maus modos—. É o bandido o que vê esta noite e Blackwood
não é um homem que jogue com apostas baixas. Tive que matar homens, Silver. Tive que tomar
mulheres, inclusive se isso lhes provocava dor. Fiz muitas coisas… tantas que nem sequer quererá
saber. —E ficou em pé de repente.
—Luc? Aonde vai?
—Para casa. Onde deveria ter ficado. A qualquer lugar que esteja longe de você.
Silver piscou.
—Não pode.
—Não tente me deter. A decisão está tomada.
Então soou um estalo atrás dele. Luc se girou e viu uma pistola que brilhava à luz da lua.
—Maldição, o que é que pretende com isso?
—Quero ver como trocam os papéis, criminoso. —Os olhos de Silver permaneciam meio
fechados—. Começaremos com as botas. Tire-as - ordenou, cortante.
Uma veia pulsou na têmpora de Luc.
—Não o farei.
—Atente às conseqüências. —Silver baixou a arma para apontar a algum lugar entre os
pés de Luc—. Não se pode confiar totalmente em minha pontaria justo agora, advirto-lhe isso. É
um amante do mais potente e isso contribui a me distrair bastante.
Luc soltou uma maldição tentando ignorar a luz da lua que jogava sobre suas pálidas
curvas. Tentando esquecer o quente e excitada que ela devia sentir-se.
—Deixemos estar, Silver. Se ficar, farei coisas que quero fazer, mas que só lhe trarão dor.
O canhão da pistola subiu um pouco.
—Não me faça começar a contar, bandido. Pode ser que minha pontaria piore ainda mais.
Luc se retorceu. No que não foi mais que um relâmpago negro, Luc encontrou seu florete,
tirou-o, o brandiu e dirigiu a ponta à garganta de Silver.
—Pequena estúpida! Acreditava que ia pôr um pé fora de casa sem levar uma arma
comigo?
Silver estava ante ele, os lábios separados e os olhos cheios de vida por um fogo
esmeralda. À altura do peito, a renda branca se agitava com a suave brisa, brincando de mostrar
sua pele nua.
—Talvez seja essa… sua arma o que eu procurava, bandido.
O desejo golpeou Luc ao mesmo tempo que suas palavras. Era um demônio. Era
incorrigível. Era…
Formosa. Desgarradoramente inocente. Uma mulher que poria a prova a integridade de
um santo.
E Luc certamente não era um santo.
Caiu sobre um joelho a seu lado, com o florete a uma mínima distância de seu pescoço.
Sua boca se endureceu quando lhe arrancou a pistola dos dedos e a atirou à erva.
—E agora, milady, que novo plano vai tentar? Já não ficam armas para me vencer.
—Ainda fica uma arma, milorde bandido.
Silver se levantou lentamente, com os olhos fixos no rosto de Luc. Suas mãos se moveram
até encontrar o último botão de seu corpete.
—Quer que lhe mostre agora?
—Não, Silver. —A voz do Luc soava rouca pela necessidade—. Há coisas que não sabe…
enormes perigos aos que expõe…
Mas o ignorou e se levantou.
O florete de Luc se afastou ante o firme avanço dela. Só se deteve uns poucos
centímetros dele, com os dedos sobre o último botão.
E então também desabotoou esse.
Sua mão deslizou pelo peito nu dele. Seus dedos se separaram e deslizaram através do
quente e crespo pêlo de seu peito e Luc gemeu ao sentir seus peitos nus apertados contra ele.
—Posso sentir seu coração. Vai tão rápido como o meu, bandido. O resto de você
também está duro e quente?
Luc voltou a gemer, pego por surpresa pela onda de prazer que lhe proporcionava seu
contato. Seus dedos se crisparam. A ética, os escrúpulos e a honra voaram.
Era de noite e se sentia no céu. E era muito homem.
Sua cabeça caiu para trás. Encontrou uma de suas curvas e bebeu dela com fruição.
—Não pode saber o que está fazendo - disse com voz crispada, enterrando suas mãos em
seu cabelo. Aquilo ia acabar muito mal, mas de repente a Luc não importava. Não tinha forças
para nada mais que o prazer que lhe estava proporcionando.
—OH, sim que sei. —Com os olhos brilhantes, Silver lhe agarrou a cabeça e o encheu de
suaves beijos no pescoço.
E Luc olhou no interior desses olhos lampejantes e se deu conta exatamente do que tinha
estado sentindo falta durante todos esses anos.
Coração.
Tinha-o perdido em algum momento das longas e tórridas horas passadas em Argel. E
sem coração, as cores resultavam planas e o tempo era cru e sem sentido.
Embebedou-se com a visão de Silver e soube que ela era sua única possibilidade de
sobreviver, porque seu coração era suficientemente real e verdadeiro para os dois. Brilhava como
a luz da manhã, delicioso com todas as texturas dos sonhos e as esperanças que Luc já tinha
esquecido.
Coração. Uma coisa tão simples como essa. Uma coisa tão inútil para os sérios e estreitos
olhos dos investidores de grande escala e dos construtores de impérios.
Mas Luc Delamere sabia que todos estavam equivocados.
O coração era tudo. Era o princípio e o fim. Sem ele a vida não tinha sabor, nem aroma
nem propósito.
Pensou na primeira vez que a viu, aterrorizada mas fera quando o enfrentou no urzal.
Pensou na luz que saía de seus olhos e em sua forma gutural de rir.
E soube que se essa mulher não podia lhe ajudar a encontrar seu coração, ninguém
poderia.
Não estava bem, mas ele não podia fazer nada para evitá-lo. Deus Santo, senti-la sob ele
uma só vez. Saborear a rápida pressão de sua paixão…
Ficou em pé. Enredou o florete nos laços de sua saia e os rasgou com facilidade.
As rendas e a musselina se converteram em um lago cremoso em contraste com a escura
erva.
Luc ficou sem fôlego.
—Meu raio de sol, tem armas que nem sequer pode imaginar. Agora mesmo acabam de
deter minha respiração e partir em dois meu coração. —Ele a viu passar a língua pelos lábios—. E
acredito que estiveste praticando toda sua vida - disse ao fim.
Ficou olhando fixamente seus lábios umedecidos. Tudo o que tinha estado pensando se
desvaneceu em uma voragem de sensações enquanto aproximava sua face a dela.
Os lábios dela se separaram. Isso enviou novas ondas de tortura diretamente a entre
perna de Luc.
—Deus Santo, mulher, dentro de um segundo será você quem me ensine.
Mas já era muito tarde. Ela já tinha começado.
Tinha trocado os papéis completamente, inclinando a cabeça e passando sua língua pela
curva de seus lábios.
Gemendo a apertou contra ele. Suas línguas se encontraram e ele sentiu que seu controle
se rompia em pedaços.
Muito tarde, séculos, pensou, afundando-se. Querendo afundar-se. Não querendo nada
mais que esse momento e a essa mulher.
Sempre tinha sido muito tarde. Tinha-a amado no mesmo momento em que a viu pela
primeira vez, com os olhos cheios de medo e uma determinação da mesma magnitude para
ocultá-lo.
Ele sentiu como se liberava seu florete. No momento seguinte a ponta deste cravava
levemente seu peito.
—E agora, bandido, o tenho a minha mercê. —Mantendo a lâmina firme, Silver se dirigiu
aos botões que seguravam sua calça—. Tiremos isto do meio.
O contato de seus dedos era uma tortura. Luc reprimiu uma maldição.
—É muito atrevida para ser tão inocente. Talvez este bandido tenha que te ensinar um
pouco de humildade.
Os lábios de Silver se curvaram.
—O bandido pode arriscar-se a tentar. —Seus dedos deslizaram sobre os botões já ao
limite de sua resistência.
—Para - grunhiu—. Está tentando à sorte.
—Às vezes resulta muito… agradável tentar à sorte. A sorte é algo tão grande, depois de
tudo. E tão quente. Quase posso sentir seu pulso justo aqui, sob meus dedos. Sorte, isso é o que é
- disse Silver em um sussurro.
Ante sua provocação a virilidade do Luc se elevou, pulsando ainda mais e com mais calor.
—Não vai ser só a sorte o que provará esta noite, demônio.
As pálpebras de Silver caíram, cobrindo delicadamente seus olhos.
—Isso espero. —E então com um movimento brusco ela o encontrou. Lentamente
percorreu toda sua envergadura sem deixar de observá-lo com clara curiosidade—. É tão… grande.
De fato não vejo como é possível que…
Luc não deu tempo que sua confusão se convertesse em medo. Com uma maldição lhe
tirou o florete e o lançou longe.
—Não vai necessitar essa arma esta noite. Tenho uma muito melhor. —Empurrou-a
baixou seu corpo, sujeitando-a sobre a suave erva—. Muito tarde para sentir medo, preciosa.
Despertaste o bandido esta noite e o bandido vai cobrar seu preço. —Deixou cair a cabeça e
deslizou a língua pelos pequenos botões rosados enrugados e ávidos de seu contato.
Ela arqueou as costas.
—OH, Luc. Isto é o Paraíso. O Paraíso mais doce.
—Devo assumir que você gosta disto? Que a beijem assim?
Ela estremeceu.
—É muito urgente para me sentir cômoda. —Seus olhos se abriram, escuros pela
confusão—. As pessoas fazem isto freqüentemente?
Luc sorriu.
—Tão freqüentemente quanto é possível. Quando se está apaixonado, claro.
Um assentimento grave.
—Apaixonado. Já… vejo.
Mas ele sabia que não. Sabia que estava se perguntando quantas vezes tinha acreditado
ele que estava apaixonado. E se perguntava quantas mulheres tinha havido antes dela.
—A resposta é nunca, carinho. Nunca me senti como agora, nem nada parecido. —Seu
polegar acariciou profundamente a borda do mamilo escuro—. Parece surpreendida. Por isso vejo
seus muitos amantes nunca lhe tocaram assim.
A cor subiu a suas faces. Colocou sua palma contra a mão dele e afastou seu braço.
—Zanga-se? Ah, mas me disse que… deixe ver se o digo bem… que «o caminho já estava
completamente aberto».
Silver chiou com as faces ardendo.
—E assim é! E houve muitos! Simplesmente é que pegou de surpresa, isso é tudo.
—Me alegro de ouvi-lo. Mas agora está exatamente onde eu queria. E um bandido
sempre se aproveita de sua presa.
Arrancou um punhado de ramos de lavanda com os olhos em chamas.
As pétalas roxas choveram sobre a pele quente dela.
—E sinto uma grande urgência de saborear sua lavanda.
Silver ficou sem fôlego quando ele se inclinou sobre ela. Sua face tinha uma cor
profundamente dourada. Sua boca era dura. Seu nariz, orgulhoso, possivelmente muito arrogante.
Era a face de um guerreiro. A face de um foragido.
A face de um homem que sabia exatamente o que queria e que tomava sem mais.
Nesse momento, Silver sentiu a inquietante sensação de que ela era a única no mundo
que esse bandido queria. E se isso era assim, já não ficavam forças para negar-se
—Suave e doce. Seu sabor é tão doce como sua lavanda.
Silver emitiu um som abafado quando seus lábios encontraram a curva de seu ombro,
logo suas costelas e finalmente a protuberância de seu seio.
Ele se movia lentamente, desfrutando, deslizando a língua por cada centímetro dela como
o preguiçoso perito que era.
Sua necessidade cresceu até converter-se em furor. Ela ficou sem fôlego em um segundo,
voltou-se louca em cinco e se aferrou a ele cegamente em dez.
Mas ele não se apressou. Sorrindo maliciosamente abordou o triângulo escuro entre suas
coxas. Ignorou seu grito rouco e não deixou de deslizar as fragrantes pétalas por sua pele faminta.
—Não Luc. Seguro que aí não…
E então ela exalou com força. Ele a encontrou, rodeou-a, acariciou-a, pulverizando sua
umidade. Cada vez mais profundamente, entendendo seu corpo melhor que ela mesma,
alimentando o fogo de seu interior.
Ela gritou com força. Por cima de suas cabeças o céu estrelado pareceu girar e inclinar-se.
—Luc, não. Não posso…
—Pode, meu amor. E agora o fará. É o que ordena o bandido. —riu com vontade,
demonstrando que era certo que podia, uma e outra vez, enquanto seus braços a abraçavam
como colunas de granito protegendo-a da tempestade.
O mundo se voltou escuro. A luz e as formas foram absorvidas como a areia da praia
apanhada em uma onda crescente. E então a golpeou a grande onda.
Suas costas se arqueou. Seu corpo se esticou. O prazer a cobriu, amplo, rico e pesado.
Soltou uma mescla de grito e suspiro pela surpresa, embargada pelas brilhantes correntes, e
sentiu como suas unhas se cravavam nos ombros de Luc. E enquanto o fazia, Silver o sentiu deixar
sua marca na curva de pele que ficou apanhada entre seus dentes e sua ávida língua.
Ela explodiu em uma segunda onda de prazer.
Luc riu com voz rouca, suas mãos, lentas e tranqüilizadoras, enquanto via que o corpo
dela voltava para ele.
Quando finalmente ela conseguiu falar, quando seu corpo tomou uma forma sólida de
novo, os olhos de Silver se abriram, todo esmeralda e fumaça depois da voragem de sua paixão.
Levantou-se sobre um ombro com um leve sorriso em sua bela boca.
—É esta possivelmente a marca criminosa que me deixaste, bandido?
Seus olhos estavam cheios de malícia.
—Uma marca de amante, e sim. Aborrece-a muito?
Como toda resposta, Silver o puxou para que voltasse a situar-se sobre ela.
Não podia deixar que esse maldito homem acreditasse que sabia tudo.
Seus lábios procuraram os dele. Roçando-lhe, puxando-o, ela conseguiu que as mesmas
habilidades do bandido se voltassem contra ele.
Para quando terminou, ele tinha a mandíbula de aço, a cara branca e uma dor
insuportável em seu entre perna.
—Acredito que deveríamos considerar suas lições como terminadas, fera - disse Luc.
—Ainda não… - Ela inclinou a cabeça. Com seu cabelo como um véu avermelhado, lhe
mordeu o pescoço e deixou sua própria marca de amante sobre sua pele bronzeada—. Agora. Que
tal se sente ao levar minha marca?
O batimento do coração de Luc se converteu em um trovão selvagem.
—Muito excitante, milady. —Suas mãos desceram por sua cintura e rodearam seus
quadris. Ele se aproximou mais, com sua ávida arma pressionando seu sedoso pêlo
encaracolado—. E levar orgulhoso qualquer outra coisa que queira me oferecer.
Silver sorriu com uma beleza dolorosa.
—Fará-o? —Ela se retorceu, encaixando seu corpo com toda a envergadura do seu—.
Inclusive isto?
Seu aroma era o das rosas e lavanda e a combinação era perfeita… mais próxima ao céu
do que Luc sonhou chegar jamais.
Mas ele descobriu que se equivocava quando Silver o animou a introduzir uns centímetros
mais nela.
—Devagar, meu amor - a tranqüilizou Luc, com o rosto tenso pelo esforço de manter-se
quieto—. É muito pequena e não quero te machucar em sua primeira vez.
Silver abriu muito os olhos.
—Sabia? Mas…
—Claro que sabia. Com apenas lhe tocar, tão pequena e tão tensa, sabia que o que dizia
não era mais que fanfarronadas.
Suas faces avermelharam.
—Então por que…
Luc não podia suportar mais palavras. Não quando sentiu seu calor, sua suavidade e seu
mel contra ele.
—Cala-se, preciosa. Não falemos mais, ao menos não com palavras. Escute-me… com seu
corpo. E me responda igual. Grite-me. Grunhe. Sussurre-me cálida e lentamente. Deixe-me ouvir o
que essas doces curvas têm que me dizer. —A voz quebrou, rouca pelo esforço por controlar-se.
Cada músculo lhe pulsava, gritando que esquecesse as sutilezas. Que a sujeitasse e a penetrasse,
rápido, profundo, feroz, e que seguisse com ela até conseguir sua própria liberação.
Mas não o fez.
Luc tinha esperado muito para apressar-se naquele momento. Se tivesse podido, o teria
feito durar para sempre.
Mas esperar não ia ser fácil.
Especialmente quando a mulher não ficava quieta, selvagem e carnal, cheia de idéias
próprias. Apertou-se contra ele, o levando mais dentro.
—Maldição, Silver, não pode. Não deve. —A mandíbula de Luc chegou ao máximo de sua
tensão quando ela conseguiu que introduzisse outro centímetro quente e aveludado nela—. Deus
Santo, não acredito que possa suportá-lo…
Mas descobriu que sim podia, é obvio. Embora sua respiração fosse irregular e seu corpo
estava coberto de suor, ele adorava cada segundo dessa sedosa tortura. Ela voltou a apertar-se
contra ele, um ser mágico saído de seus mais secretos sonhos.
E então Luc sentiu que um leve tremor a percorria e esboçou um meio sorriso. Embora ele
pudesse esperar, não estava seguro de que ela pudesse.
Ela tinha os olhos fechados. Seu pulso se acelerava. E seguia lutando para levá-lo ainda
mais dentro.
Mas ele não podia aproximar-se mais. Ainda não. Uma frágil barreira ainda se estendia
entre eles.
Luc acomodou suas grandes mãos ao redor do quadril de Silver, obrigando-a a
permanecer quieta.
—me escute, preciosa. Estou dentro. Todo dentro o que posso estar, amor. Ao menos
sem a machucar.
Luc não estava seguro de que o estivesse escutando.
—Silver?
As mãos dela apertaram seus ombros. Voltou a retorcer-se inquieta.
—Silver, escuta. Não vai ser como acha que será.
Ela abriu um olho.
—Isso é uma promessa… ou uma advertência?
Ela estremeceu. Seu corpo se moveu embargado pelo desejo contra o dele, buscando
tudo dele.
—peça-me isso agora. Não será fácil, mas me deterei. Mas se isso é o que quer, tem que
ser agora. Mas não depois. OH, Deus, depois não…
Ela tremeu.
—Agora, Luc. —Seu corpo lhe sussurrava, incitava-o, o pedia. Luc grunhiu quando viu o
que ela queria dizer mas não podia expressar com palavras, tão perdida na paixão como estava.
Tentou fazer-lhe mais fácil, desejando que pudesse ser diferente, mas sabendo que isso
era quão único não podia fazer. Rápido. Tinha que ser rápido.
Com um forte puxão ele acabou de despi-la. Depois se introduziu profundamente e com
força, perfurando a frágil membrana de sua virgindade. Amaldiçoou ao notar que ela ficava tensa
e, ainda se tivesse podido, ela teria se liberado dele, ele a manteve quieta, sabendo que qualquer
movimento podia aumentar sua sensação de desconforto.
Ele desdobrou os dedos e fechou os olhos, lutando com a urgência de mover-se, de
empurrar, de senti-la rápido e em toda sua profundidade enquanto seu prazer saía dela em ondas
e o rodeava como um doce e quente veludo.
Mas esperou, só abraçando-a, só lhe dando tempo para que aceitasse seu tamanho e seu
calor em seu interior.
Seus olhos se abriram de repente. Viu-a tragar.
—Maldição - disse com voz rouca—. Se isto for o que ia sentir, por que o chamou prazer?
E por que todas essas mulheres sorriem como endemoninhados gatos bem alimentados nessa
maldita casa de prostituição?
Ele não pôde evitar um sorriso.
—Já o verá, minha doce menina.
—Não, não o farei! —chiou tentando escapar—. Isso dói! E nada disto tem nenhum
sentido.
Luc sorriu.
—Terá, meu doce demônio. Nunca mais o sentirá assim. Você não. E lhe vou demonstrar
isso agora.
Silver apertou os lábios olhando fixamente seus dois corpos entrelaçados, não muito
convencida.
Ao ver seu olhar de precaução, Luc sentiu que seus músculos saltavam e pulsavam em seu
interior.
—OH - exclamou Silver surpreendida—. Como fez isso?
—Não tenho muito controle neste assunto, bruxa. É você quem me faz isso. Tem mais
poder que uma poção de qualquer feiticeira.
Silver franziu o cenho, os olhos escuros pela confusão.
—Então, há mais? Não acabou quando fez, bom… isso?
Luc teve que conter-se para não soltar uma gargalhada. Ou possivelmente fosse um
gemido. As coisas estavam muito avançadas para saber. Nunca conheceria um momento de paz
com Susannah St. Clair, mas tampouco um segundo de aborrecimento.
E descobriu que gostava da idéia. Imensamente.
—OH, há muito mais. Quer que lhe mostre isso agora? —Enquanto falava, Luc deslizou a
mão entre eles, passando seus sedosos cachos até encontrar o oculto casulo cheio de nervos que
havia debaixo.
Ela ofegou.
—Começa aqui, meu amor. Com isto. E com isto.
Quando sentiu como se abria, Luc se moveu contra ela, os dedos deslizando-se
lentamente. As coxas dele se esticaram, fazendo que se deslizasse mais dentro enquanto a tenra
pele se abria mais para acolhê-lo.
E agora já não havia nada entre eles. Só calor. Só pele como seda úmida. Só um prazer
infinito e tormentoso.
Ele se sentia morrer. Em qualquer momento seu coração se renderia e ele exalaria seu
último fôlego, in extremis.
Mas tinha recuperado seu coração. Sentia-o pulsar; reconhecia seu contínuo calor e essa
avidez que não conhecia o desalento. Ela era quem tinha conseguido isso e, verdadeiramente, só
tinha uma forma de devolver-lhe
Voltou a mover-se, mais dentro.
—Já não protesta, demônio?
As faces de Silver se viam ligeiramente ruborizadas.
—Isso foi… bastante agradável.
—Bastante? Isso é tudo o que tem que dizer? Acredito que você gostará disto ainda mais.
—Rodeou-a com seus braços e se introduziu em toda sua extensão e em uma perfeita e longa
sacudida de veludo.
Ela abriu muito os olhos, que tinha fixos nos dele.
—Muito… prometedor - conseguiu dizer.
—Agradeço-lhe profundamente. —Ele se retirou, sorrindo ao sentir que ela resistia,
grunhindo quando os músculos da mulher se esticaram para mantê-lo onde estava—. E estou
muito mais que encantado de poder demonstrar tudo quão agradecido posso estar.
E o fez.
E lhe animou a que seguisse. Era o Paraíso.
Ambos se deixaram cair, unidos e tensos; sobre a verde erva. Sua respiração era irregular
e ambos davam e recebiam por igual, seus corpos brilhantes pelo suor, quentes, rodeados de uma
brisa dançarina.
Um mocho ululou entre as roseiras. A lua refletia sobre os campos de lavanda.
Mas eles nem sequer notaram, juntos seus corações, cegos pela paixão, perdidos no
amor.
Silver enterrou os dedos profundamente no cabelo de Luc.
—Tome, Luc - sussurrou—. Agora. Rápida e profundamente, me leve contigo aonde você
quiser.
E lhe ofereceu as brilhantes profundidades de sua alma.
E ele correspondeu com seus mistérios, seus sonhos afligidos, suas escuras contas
pendentes… tudo.
Sua face era inocente; suas coxas se moviam com um abandono apaixonado e sedutor. A
combinação esteve a ponto de matá-lo.
—Isso farei, meu amor - disse Luc em voz baixa, empurrando-a contra a úmida terra,
introduzindo-se de forma potente, profunda e rápida.
Ela se aferrou a ele com ferocidade, ambos os corpos tensos em um sedoso intercâmbio
de paixão.
Ele deixou cair sua testa até tocar a dela. Estremeceu quando a ouviu gritar seu nome e
sentiu sua convulsão. Nesse instante entrou mais nela, profundo, muito profundamente,
possuindo-a, necessitando-a, enchendo-a com sua semente cálida e potente.
Ela o envolveu com suas pernas, recebendo tudo e sujeitando-o forte, ambos os corpos
convulsos pelo prazer uníssono.
E, quando ela chegou ao clímax de sua paixão, Luc podia jurar que tinha visto brilhar em
seus olhos um brilho de verdadeira prata.
Na parte baixa da colina, Tinker passou seu braço sobre os ombros do Bram.
—Lhe disse que subiria para buscá-lo.
—E eu lhe disse que não voltaria a descer se subisse. —De repente Bram enrugou à testa.
Junto a ele, Cromwell soltou um latido de espera—. Mas, o que estarão fazendo aí em cima,
Tinker?
Os olhos do velho se entrecerraram ao olhar os campos mais altos. Sorriu um pouco, fez
girar Bram e ambos tomaram o caminho para a casa.
—Já têm feito suficientes pergunta esta noite, moço. À cama. E leve essa criatura cheia de
pulgas contigo.
Cromwell agitou o ar com sua cauda peluda, feliz ao ouvir que falavam dele.
—Vamos, Cromwell. Parece que ninguém nos quer por aqui. —Bram suspirou enquanto
acariciava a cabeça do cão.
A forma de comportar-se dos adultos era realmente estranha, um momento tristes e ao
seguinte exultantes de felicidade. Talvez esse assunto de crescer ia ser mais complicado do que ele
acreditava.

Capítulo 30
—por que não se despediu?
Estavam deitados juntos, entrelaçados, o cabelo de Silver era uma nuvem avermelhada
sobre o peito de Luc e as mãos dela acariciavam o cabelo negro dele.
—Porque minha ferida estava melhor. E você deixou muito claro que queria que me
fosse.
—Não, isso era a última coisa que queria, mas não parecia haver outra solução. E sigo sem
estar seguro de que isso não seja o melhor - disse Luc sobriamente—. Sabe que não tenho nada
para lhe oferecer.
—Não necessito nada mais que isto - disse Silver seguindo com o dedo a pequena cicatriz
que tinha Luc junto a seu lábio sensual e carnudo—. Ajudou-me a salvar Lavender Close. Que mais
poderia pedir?
O aroma da primavera tardia os envolvia e se juntava às flores que cresciam e à terra
arada fazia pouco enquanto Silver empurrava brandamente Luc para que se deitasse sobre a erva
suave.
Ele contra-atacou enchendo seus ombros e seu pescoço de pequenos beijos até que ela
desejou gritar de prazer. Mas não o fez. Havia perguntas que devia lhe fazer.
—me conte desse homem que estava seguindo, Luc.
Ela jogava com uma mecha de seu cabelo e parecia pensativa.
—Depois - disse Luc franzindo o cenho.
—Agora.
—Primeiro pistolas, depois floretes e agora isto. Muito bem, demônio, contarei-lhe. —
Ficou olhando com os olhos duros—. Tenho que encontrar esse homem. Eu sofri um inferno por
sua culpa. Enviou-me e a muitos outros a Argel sem um pingo de remorso, e quando escapei fiz o
juramento de que impediria que mandasse mais homens a sofrer esse destino. E devo ver isso
completo, Silver. Se não nunca deixará de me perseguir.
—Eu não pediria que traísse um juramento. Ao menos não agora que posso entender por
que corre esses riscos tão terríveis. Mas, por onde começará?
—Pelo velho moinho. Suspeito que é algum tipo de lugar de reunião. Mas ainda não sei
quem está comprometido. —Ele acariciou sua face—. Agora tenho mais raciocínio que nunca para
encontrar esse homem e completar minha tarefa. Quando tiver terminado, poderei começar a
viver de novo. A respirar outra vez. Poderei voltar a pensar em ter um futuro.
Silver fechou os olhos, consciente do terrível perigo que o aguardava. Se o apanhavam, a
pena seria a forca.
Silver se negou a permitir que isso ocorresse.
Mas não o disse a Luc, é obvio. Só se aconchegou mais perto e acariciou as lívidas cicatrize
de suas costas, Sorrindo ao sentir como estremecia.
Agora era o momento dos votos silenciosos e a construção de sonhos impossíveis. Era o
momento para os amantes que acabam de conseguir roubar a felicidade das mesmas faces do
destino.
—E o que me diz de você, Susannah St. Clair? Vai-me contar o que foi o que provocou isto
daqui? —Enquanto falava Luc não deixou de acariciar a mecha branca que saía de sua têmpora.
—Surgiu quando meu pai morreu - disse tragando saliva. Precisava lhe contar parte da
verdade que tinha descoberto—. Mas agora sei que não morreu como pensávamos. Assassinaram-
no. Antes de sua morte escreveu em seu diário que havia homens o perseguindo, homens
suficientemente malvados para querer matá-lo porque se negava a ajudá-los. E temo que
finalmente tiveram êxito.
—Meu doce amor - sussurrou Luc, beijando a mecha pálida—. Não mais lágrimas - disse—
. Só felicidade, meu coração. —Silver ficou sem fôlego quando ele a encontrou e a possuiu. Seu
desejo era tão urgente como o dele quando seus corpos se encontraram. Rodaram pela suave
erva, coxa contra coxa, ela colada a ele, que tinha uma mão rodeando seu quadril.
E enquanto a lua presidia a noite de Norfolk e as rosas dançavam entre os escuros
arbustos de madressilva, um rouxinol começou a cantar, e parecia que o fazia só para eles.

—Por onde quer começar?


Em cima de suas cabeças a alvorada começava a pintar de cor o céu oriental. Silver estava
deitada com a cabeça sobre o regaço de Luc e ele estava sentado, apoiado no velho carvalho.
Ele preferiu interpretar mal a pergunta deliberadamente.
—Acredito que vou contar todas as sardas que tem no ombro.
Silver lhe puxou o cabelo.
—Sério, Luc.
—Digo a sério. Não é uma tarefa fácil nesta semi-penumbra, asseguro-lhe isso.
—Homem insofrível! Diga-me. Preocuparei-me mais se não o fizer.
Luc voltou a sentir que o calor que já lhe resultava familiar começava a pulsar de novo em
seu interior. Seu corpo se esticou, desesperado por tê-la de novo, inclusive depois das longas
horas que tinha passado em seus braços.
—Muito bem - disse enquanto seus olhos se fixavam em sua face preocupada—. Não vou
mentir. Haverá perigo. E necessitarei documentos para provar minhas suspeitas.
—Mas os riscos…
—Você é meu risco principal. Primeiro uma pistola, depois minha espada. No que estão se
convertendo as mulheres inglesas?
—Estou falando sério, Luc. Deixe-me ajudar. Eu posso ir a lugares onde você não pode.
Posso…
—Nem pensar. Quero-a completamente fora disto - disse de muito maus modos.
Silver reprimiu um protesto. Ela sabia que nessa questão ele nunca se deixaria convencer.
—Não tenha medo, meu amor, voltarei. —Luc seguiu com um dedo a curva de seu pálido
quadril iluminado pela lua—. Por enquanto, encarregarei-me de manter sua mente ocupada com
assuntos mais felizes.
Silver esboçou um sorriso.
—De verdade, ladrão? Ou é só outra de suas fanfarronadas de bandido?
—vai pagar caro isso que acaba de dizer, preciosa. —Lutou com ela até deitá-la e mantê-
la quieta sob seu corpo. Seus olhos soltavam brilhos dourados enquanto saboreava com sua língua
a suave pele de seu estômago—. Nada de fanfarronadas, meu doce amor. Só advertências. Quero
um tesouro esta noite e o conseguirei a toda custa. Não importa que obstáculos se apresentem
ante mim - acrescentou com malícia.
Os dedos dela se cruzaram em seu caminho. Ele os apartou e seguiu para seu objetivo em
sombras.
—Seus olhos são muito fascinante, milady. Sua cor, sempre cambiante, parece estar em
consonância com seu humor. No melhor momento de sua paixão parecem voltar-se prateados.
Isso é algo —disse com voz rouca— que tive a ocasião de observar várias vezes hoje.
Silver se ruborizou. De repente recordou as palavras do diário de seu pai. Assim que isso
era o que queriam dizer10…
—Não é necessário que me recorde minha vergonhosa conduta.
—Vergonhosa mas cativante. Uma provocação impossível. Um homem se encontra
sonhando com todas as formas possíveis para poder ver esse brilho prateado de seus olhos de
novo.
E então simplesmente se dedicou a isso.
Silver gritou quando ele encontrou seu centro e voltou a trazer esse fogo doce e feroz a
seu interior. Suas mãos agarraram a fresca e escura erva e os dedos de seus pés escavaram na
doce e fértil terra.
Enquanto ainda ardia o fogo, enquanto a terra ainda se mesclava com o céu, ele voltou
para ela, todo aço e necessidade.
Ela não pensou duas vezes.
Não olhou atrás.
Só o aproximou mais dela, sem lhe negar nada e devolvendo todo seu abrasador prazer.

Quando o sol saiu sobre as colinas do leste, Luc finalmente a soltou e a ajudou a vestir-se.
Inclusive então suas mãos se atrasaram em seu vestido, em seu xale, em suas ardentes faces e em
seu cabelo brilhante. Não tinha tido suficiente dela e a abraçava forte, como se tivesse medo de
perdê-la.
A noite se foi. O sol tinha saído e podia haver olhos indiscretos olhando. Não era seguro
que um bandido estivesse fora a essas horas.
Enquanto o via ir-se, Silver tomou uma decisão imprudente.

—Bram! Bram, acorda! —A luz penetrava pelas janelas da casa enquanto Silver sacudia a
figura adormecida meio enterrada sob as mantas.
Não ia mudar de idéia. Não ia deixar que Luc se expusesse a tais riscos. Tinha que salvá-lo.
Os homens podiam falar de sua famosa honra mas para que servia a honra a um morto?
E para a mulher que o ama?
Não, que os homens ficassem com sua honra; eram as mulheres as que conseguiam que o
mundo seguisse seu curso sem contratempos.
—Acordada, dorminhoco, temos trabalho que fazer.
Um par de olhos verdes esmeralda saiu sonolentos de debaixo da roupa de cama.
—Sil, é você? Maldição, mas se acabar de amanhecer!
10
O nome da protagonista quer dizer “prata ou prateada”
—E acha que não sei? —disse Silver. Por um momento houve um tom impaciente em sua
voz—. Mas temos trabalho que fazer. Vamos, levante. Não é você o que sempre me diz que sou
fria com esse bandido ao que tanto idolatra?
—Blackwood, quer dizer?
—Quem se não?
O jovem Brandon se sentou de um salto.
—Não o capturaram, não é? Meu Deus, Sil, o juiz e seus homens não o terão apanhado,
não?
—Não, não, nada disso. —Silver pôs as botas a seu irmão—. Mas o apanharão se não o
ajudamos. Esse homem é muito temerário e insensato. —Mas sua voz estava alagada de ternura
quando disse.
—Não o entendo. —A voz do Bram soava amortecida porque estava pondo a roupa—.
Como vamos ajudar-lhe? —A cabeça do menino saiu da camisa—. Vamos acompanhá-lo em um
assalto a meia-noite no urzal, armados até os dentes? Ajudaremo-o a capturar uma carruagem?
Isso seria muito divertido!
Silver sacudiu a cabeça rindo.
—Está se convertendo em um sanguinário, Brandon St. Clair! Passou muito tempo com
esse bandido e esse seu criado escocês tão seco. Não, é claro que não vamos acompanhar Luc ao
urzal. Temos coisas muito mais importantes que fazer. —Os olhos de Silver se entrecerraram um
momento enquanto recordava a explicação de Luc de sua infrutífera busca noturna no velho
moinho—. Está procurando informação, Bram, algo sobre um homem que o seqüestrou faz cinco
anos. E você e eu vamos encontrar essa informação para ele - disse Silver muito convencida.
O sorriso de Bram vacilou.
—E Luc sabe?
—Claro que não. Essa é a chave. Se esse homem insistir em ir daqui para lá por toda
Norfolk, seguro que o capturam. —Silver cruzou os braços sobre o peito—. Nosso trabalho é
encontrar o homem e trazer para Luc a informação que necessita tão desesperadamente.
Bram não parecia tão crédulo como Silver quando agarrou seu casaco e a seguiu.

O velho moinho estava justo onde Luc disse que estava, depois da curva do arroio que
fluía para o sul desde Kingsdon Cross. O edifício estava meio escondido atrás dos salgueiros que
beiravam o arroio. Parecia não haver nenhum tipo de vida por ali aquela hora tão temprana.
—É esse? —disse Bram com tom de brincadeira—. Não me parece mais que um estúpido
e velho moinho. —O menino subiu os óculos sobre a ponte do nariz e enrugou a testa olhando o
caminho que subia da casa, meio escondido entre grandes sebes. Parecia perfeitamente normal,
muito mundano para a história de espadachins que ele tinha estado imaginando—. Seguro que
confundiu o lugar, Sil.
—Não, este é o lugar. Olhe, há um olmo partido em dois por um raio justo onde Luc disse
que estava. —Silver mordeu o lábio um momento, sentindo um calafrio lhe percorrer o pescoço—.
Luc me disse que acreditava que um traidor estava usando este lugar como guarida. E que quase
conseguiu apanhá-lo, inclusive.
—E o que aconteceu?
Silver se ruborizou. Não estava disposta a contar a Bram que Luc tinha fracassado porque
se distraiu… com lembranças dela.
—O homem era muito preparado. Certamente tinha uma saída secreta.
—E qual é seu plano? —perguntou seu irmão ansioso—. Talvez pudéssemos derrubar a
porta e arrastar para fora esse vilão. Ou seria melhor por fogo no lugar e que se asfixie com a
fumaça?
Silver puxou o cabelo do menino.
—Mas que vândalo parece! Nenhuma dessas opções. Esperaremos. E vigiaremos ambas
as entradas. Nossa tarefa é descobrir a identidade do homem e averiguar que documentos leva.
Depois, quando sair, simplesmente temos que o despojar desses documentos.
—faremos isso, não é? —Bram dedicou a sua irmã um olhar avaliador—. E como vamos
fazer isso?
Silver levantou a prega de sua saia de montar para que Bram pudesse ver a pequena
pistola que tinha escondida dentro da bota.
—Muito persuasiva, Sil. Que porta vigiarei eu?
—A dianteira, acredito. Eu vigiarei a traseira, a que dá ao rio. Suspeito que pode ter uma
entrada secreta por ali. Se for assim, esse criminoso poderia tentar chegar até um barco que tenha
amarrado correnteza abaixo. —Silver enrugou a testa. Desejou ter trazido Tinker com eles para
ajudar, mas sabia que ele nunca teria permitido que nenhum dos dois St. Clair ficasse em perigo.
Assim era sua responsabilidade procurar a segurança de Bram.
Seu irmão, enquanto isso, não mostrava outra coisa que deleite ante o plano.
—Genial, Sil! Podemos arrumar isso perfeitamente sozinhos!

A manhã passou, mas não houve absolutamente nenhum sinal de atividade no pequeno
moinho branco. Três navios desceram pelo rio e muitos transeuntes cruzaram a estreita ponte
para o sul. Perto do meio-dia um granjeiro passou formando estrondo com um carro cheio de
milho que levava a King's Lynn, mas seguia sem haver movimento no moinho.
Um pouco antes do meio-dia, Bram cruzou o bosque para o lugar onde Silver estava
sentada vigiando a parte traseira da casa.
—Está segura de que é o lugar correto, Sil?
—Totalmente segura - disse zangada—. Luc o descreveu perfeitamente. E é provável que
o homem esteja aí dentro agora mesmo. —mordeu o lábio inferior—. E terá que sair em algum
momento.
—Por mim não há problema - disse Bram alegremente—. Isto me evita ter que destilar
outro lote de lavanda com Tinker. Só que eu gostaria de ter trazido algo para comer.
Silver estava a ponto de mandá-lo buscar bolos de peito de pomba que tinha
embrulhados dentro de seus alforjes, quando uma minúscula porta se abriu na base do moinho.
Um homem apareceu ao início de uns estreitos degraus que levavam até o tranqüilo arroio.
Rapidamente puxou Bram para que se escondesse atrás da densa folhagem de um salgueiro.
—Vê?
—Sim, já vejo - disse seu irmão em voz baixa.
Enquanto eles observavam sem fôlego, uma figura coberta por uma capa escura desceu
lentamente os degraus com um pesado saco de farinha sob o braço. Os degraus pelos que descia
estavam meio escondidos atrás de uns alicerces de tijolo meio ruídos. No mais profundo da noite,
ou com um pouco de névoa que subisse do rio, o homem resultaria invisível.
Não é estranho que Luc o perdesse, pensou Silver.
Um momento depois um pequeno bote atracou em silencio além dos juncos, no extremo
mais afastado da margem. Uns homens com um casaco e calças de algodão cru, ambos marrom
escuros, inclinou-se sobre os remos.
Silver abafou uma exclamação.
Havia algo que lhe resultava muito familiar naquele homem que ia aos remos. A posição
dos ombros e a cor das calças lhe deixaram uma fria sensação na boca do estômago.
A menos que se equivocasse, era o líder do bando que tinha estado aterrorizando-a em
Lavender Close.
O olhar de Silver se endureceu enquanto via o bote aproximar-se dos degraus. O outro
homem arrojou o saco no interior e logo subiu com estupidez.
—O que fazemos agora, Sil? —A voz de Bram soava rouca pela excitação.
—Acredito que devemos segui-los.

Justo no mesmo momento, a uns quinze quilômetros dali, Luc Delamere estava de pé
olhando James Tinker, ainda sonolento.
—Que demônios quer dizer com que não está aqui, maldição?
—Exatamente o que disse - respondeu o velho criado—. Suponho que deve haver
escapado à alvorada. Sim, surpreende-me que lhe reste forças para mover-se, visto o ocupada que
estava ontem à noite com certa pessoa nos campos de lavanda da colina.
Luc reprimiu um juramento e se ruborizou ligeiramente. Assim que o velho sabia… É claro,
e um criminoso não podia esperar nenhum pingo de discrição. E muito menos na propriedade
Lavender Close!
Tinha deixado Silver ao nascer do sol, muito antes do que teria querido, mas tinha
assuntos que atender em Waldon Hall e planos que fazer com Connor MacKinnon. Mas, por todos
os santos, quem teria acreditado que esse demônio ia escapar dali assim que lhe desse as costas?
Luc fez uma lista rápida dos lugares onde poderia encontrá-la. Estava a casa de jogo
clandestino de jogo em Kingsdon Cross e, claro, o bordel. Ele estremeceu só de pensar que
demônios podia estar fazendo ela ali.
Deus Santo, possivelmente tinha voltado para o The Green Man!
Algo era seguro, decidiu Luc. Quando a encontrasse ia açoitar suas tenras nádegas. Tinha
que aprender que um pouco de terror poderia não estar tão mal se a mantivesse segura de uma
parte.
Luc estava tomando essa decisão quando lhe chegou um pigarro detrás dele que o fez
voltar-se. Franziu o cenho ao olhar seu enorme amigo.
—James Tinker, apresento Connor MacKinnon - disse cortante.
—Outro de seus amigos bandidos? —perguntou o criado—. Tem pinta de ladrão, parece-
me.
O homem loiro jogou a cabeça atrás e riu com vontade. O som alagou a sala como se um
trovão tivesse saído de seu amplo peito.
—Seus competidores comerciais não duvidariam em o chamar de ladrão - acrescentou
Luc sorrindo—. Mas como o homem me salvou a vida várias vezes, suponho que não deveria ser
muito duro com ele.
Mas quando olhou mais à frente e viu os campos em flor e a névoa da primeira hora da
manhã convertendo-os em uma mancha violácea brilhante, seu sorriso desapareceu.
—Suponho que terei que ir buscar essa mulher de volta.
—Ou você ou eu - disse decididamente o criado—. Mas temo que eu não tive muito êxito
na tarefa de mantê-la a salvo.
—Tem feito o melhor que pode, Tinker. Irei eu. Você fique e vigia as coisas aqui. Mas
desta vez me vou assegurar de que essa mulher fique à margem —disse Luc com seriedade—.
Mesmo que tenha que me casar com ela para consegui-lo.
Os lábios de Tinker se curvaram.
—Boa sorte, milorde - foi quão único disse—. Eu levo tentando durante os dez longos
anos que leva a meu encargo e não tive sorte. —Entreabriu os olhos—. Mas talvez você tenha
mais sorte, já que é um homem com encantos especiais para as damas.
—Com esta mulher sim terei - respondeu—. Ela se dê conta ou não.
A seu lado, Connor MacKinnon sorriu pensativo. Assim havia uma mulher no fundo de
tudo aquilo… Não era surpreendente, considerando a vasta experiência de Luc no campo da
sedução. Mas esta parecia diferente. E matrimônio? Isso não era próprio de Luc.
Ao menos não do Luc Delamere que Connor tinha conhecido.
Um sorriso lento encheu a face de MacKinnon ao contemplar a idéia de Lucien Delamere,
uma vez o melhor partido da nobreza e também o mais impenitente sedutor, com a cabeça
sentada ao fim.
A mulher devia ser uma estranha jóia sem dúvida! Connor se deu conta de que ardia em
desejo de conhecê-la.
E não pôde ocultar o brilho travesso em seus olhos quando seguiu seu amigo até os
cavalos.

Capítulo 31
O sol ascendeu ainda mais.
Silver e Bram seguiram o arroio ao longo de muitos quilômetros. O remador se inclinava
para fazer seu trabalho, mas o passageiro permanecia encolhido na parte traseira do barco.
O sol penetrava entre os salgueiros enquanto os dois ocupantes do barco se dirigiam para
o norte mantendo-se cuidadosamente fora da vista. Tanto cuidado punham em manter-se
escondidos que quase perderam o controle da barco uma vez quando se viram arrastados por uma
corrente que se dirigia para o leste.
O estômago do Bram já se queixava sonoramente. Fazia tempo que haviam consumido a
fatia de presunto e o bolo de pomba.
—Não pode estar muito longe - disse o menino franzindo o cenho ao olhar os
redemoinhos da água—. Este arroio logo se unirá ao curso mais largo do rio Ouse. E mais à frente
está King's Lynn.
—Eu acredito que é a King's Lynn aonde se dirigem, Bram.
Seu irmão suspirou.
—E não acha… bom, que deveríamos mandar uma mensagem a Luc para que saiba onde
estamos?
—Nem pensar - disse Silver com firmeza—. Podemos arrumar isso perfeitamente sozinhos
sem que esse homem ande por aí galopando e arriscando sua vida ao sair em nossa perseguição.
—Sim, eu também acredito que podemos - disse seu irmão, mais alegre ao ver a
confiança de Silver—. Só desejaria que pudéssemos parar para comer.
Era já bem entrada a tarde quando cruzaram a pequena ponte de pedra que levava a
King's Lynn, onde os aldeãos começavam a ir ao concorrido mercado que se formava à beira do rio
Ouse. Enquanto se apressavam para cruzar Bridge Street, Silver pôde distinguir as agulhas da
igreja de São Nicolás que se elevavam por cima de sua cabeça.
Cruzaram várias ruas lotadas e passaram ante uma fileira de armazéns que se apinhavam
à borda do rio, esforçando-se por não perder de vista a sua presa. Finalmente viram que o
pequeno bote se detinha junto a um pequeno embarcadouro perto de um alto armazém com teto
de madeira que havia muito perto da água. Sem fazer ruído, Silver e Bram observaram como o
viajante desconhecido subia desconjuntados degraus e desaparecia em uma passagem que levava
para o interior do armazém.
—Viu? —perguntou Bram com ansiedade—. Entrou nesse armazém. Agora o temos. O
que resta nos perguntar é: o que fazemos agora?
Silver estudou a última curva inferior do rio. Havia vários navios carboníferos ancorados
esperando a acabar de carregar antes de dirigissem para Wash. Perto, uma dúzia ou mais de
pivetes brincavam a salpicar-se com água formando um sonoro revôo. Seus olhos começaram a
brilhar.
—Acredito que tenho uma idéia, Bram. Espera aqui.
Quinze minutos depois os cavalos estavam em um estábulo de uma rua lateral e Silver e
Bram abriam passo pelo coração de King's Lynn procurando algum lugar respeitável para comer.
Tinham conseguido com mais facilidade do que Silver tinha pensado. Tinha falado com o
líder do bando de meninos que brincavam no rio e lhes ofereceu duas coroas para que vigiassem o
armazém. Se o viajante saísse, os meninos deviam ir procurar Silver e informá-la imediatamente.
Como logo descobriu Silver, os meninos conheciam esse armazém em concreto muito
bem.
—Algo suspeito ocorre aí - confiou o líder—. Entram e saem barcos a todas as horas do
dia e da noite, com homens que não falam inglês e que mantêm a cara coberta enquanto remam.
E no que se referia ao viajante do barco, os meninos lhe deram ainda melhor informação.
Depois de conseguir penetrar por uma janela quebrada tinham ouvido que o transporte do
homem não estaria preparado até uma hora depois.
—OH, e houve gritos e discussões ao ouvir essa notícia - comentou alegremente o
menino—. Mas tudo em vão. Simplesmente o homem teria que esperar. O que significa, senhora,
que você e seu irmão têm uma hora para perambular. Vão por aí. Nós vigiaremos o armazém e a
seu amigo perfeitamente. Além disso, os dois têm cara de mal. Vão e comam algo no King Street
ou comprem algo nas lojas além de Guildhall - explicou o maroto com ar de orgulho local—. Os
bolos dali são fantásticos.
Seu valente camarada voltou a assegurar que os buscaria assim que se visse o primeiro
sinal de atividade e, com essa segurança, Silver e Bram partiram.
O sol abria caminho entre um céu nubloso enquanto eles passeavam entre as bonitas
lojas de King Street. Mas Bram seguia parecendo preocupado.
—Está segura de que devemos fazer isto, Sil? Não queremos que o vilão escape.
—Temos que comer - respondeu Silver, pragmática—. E tenho a sensação de que esse
homenzinho e seus amigos vigiarão o rio melhor do que o faríamos. Praticamente é sua casa.
Seguro que conhecem cada curva, cada meandro e todas as entradas e saídas, enquanto que nós
poderíamos cometer um engano e entrar como um regimento de cavalaria em um claustro de
uma igreja.
—Espero que tenha razão - concluiu Bram finalmente. Embora, sinceramente, tivesse
gostado de trocar histórias com o curtido bando de pivetes de ruas. Mas seguia tendo fome. E
Silver necessitava que alguém a acompanhasse para cuidá-la.
De repente abriu muito os olhos.
—Olhe, o outro lado da rua, parece um bom lugar. Vamos, Sil? Detemo-nos embora só
seja um momento?
Silver olhou tristemente sua saia manchada de pó, mas não podia fazer nada com isso.
Arranjou um pouco o cabelo e esticou sua jaqueta de montar. Depois ofereceu o braço a Bram.
—Isso soa maravilhoso. Vamos.
E foi uma boa decisão, porque depois de tomar o chá com bolos ambos se sentiram muito
melhor providos para tratar estranho que se escondia no armazém.
Silver não deixou de olhar o relógio da praça. Depois de comer ainda ficavam quarenta e
cinco minutos e decidiram dar uma olhada pelas buliçosas lojas que proliferavam à sombra do
hotel Duke's Head. Pelo que se via, o príncipe regente e um grupo de gente muito seleta passavam
por King's Lynn a caminho de uma reserva de caça em uma propriedade próxima onde foram
passar uma semana. Silver sentiu uma pontada de tristeza quando viu as mulheres com brilhantes
vestidos de musselina, seda e o mais fino tule, adornadas com alegres fitas e plumas.
Quando as modernas damas passaram junto a ela, Silver se deu conta, incômoda, do
passado de moda que estava seu traje de montar. Mas não ia deixar que isso a incomodasse.
Levantou o queixo enquanto se movia entre a multidão, ignorando as olhadas depreciativas que as
pessoas dirigiam a seu simples traje de camponesa.
Mas Silver estava determinada a desfrutar do tempo que passasse naquela bonita cidade
cheia de comércios com seu elegante vigamento de ruas. Os meninos do rio lhe tinham
assegurado que se o viajante saísse antes do esperado, um deles viria avisá-la. Assim não havia
nenhuma razão para essa sensação incômoda que sentia no pescoço, disse-se Silver com dureza.
Sim, sentia-a uma e outra vez enquanto Bram e ela caminhavam pelas calçadas
empedradas.
Bram olhou a sua irmã ansiosamente.
—Tem a sensação de que alguém nos está seguindo, Sil?
Silver evitou franzir o cenho. Isso era exatamente o que tinha estado sentindo, mas não
tinha querido alarmar seu irmão.
—Alguém? Seguro que temos a centenas de pessoas atrás de nós…
—Não, Sil. —A ruga que tinha seu irmão entre os olhos se fez mais profunda—. Uma
pessoa em particular. Que tem seus olhos só em nós. Estou sentindo desde que entramos em King
Street.
—Estou segura de que se equivoca, querido - disse Silver com uma confiança que não
sentia—. Suponho que será porque não estamos acostumados a esta quantidade de gente.
De novo Silver sentiu essa sensação no pescoço. Girou com rapidez e estudou a rua atrás
dela.
Estranhos todos e cada um deles, cada um concentrado em seus próprios assuntos. Nem
um só par de olhos mostrava interesse em Silver e seu irmão.
Mas Silver não podia desfazer-se da sensação de que estavam sendo vigiados.
Felizmente, nesse momento seu irmão estava distraído por uma fileira de frascos de
cristal esculpido que havia na vitrine de uma loja de perfumes e ungüentos seletos de todo o
mundo.
—Entremos para dar uma olhada, não? —Bram puxou-a —. Só para ver o que têm e se
têm comparação com nossos produtos.
Feliz de encontrar uma distração, Silver assentiu e uns segundos depois estavam no meio
do seleto estabelecimento, acotovelando-se com as damas mais elegantes da sociedade e com
uma multidão de cavalheiros muito arrumados.
Mas Bram só tinha olhos para os frágeis frascos de cristal. Se pôs imediatamente a
exercer esse dom tão singular que tinha herdado de seu pai e este a sua vez do dele. Passando de
um frasco a outro farejava ligeiramente, analisando os verdadeiros conteúdos em comparação
com o que punha nas etiquetas.
Em sua testa ficava claramente patente sua opinião sobre as placas excelentemente
gravadas que anunciavam uma lista de vários ingredientes estranhos e caros.
Enquanto Silver estava concentrada em aconselhar duas mulheres jovens na escolha de
aromas. Escondendo um sorriso assegurou a uma delas que «musgo de carvalho, madeira de
sândalo e vetiver11 era uma combinação um pouco forte para o verão» e à outra que sua escolha
de almíscar e nardo12 não era adequada para uma dama de sua delicadeza e juventude.
Uns momentos depois, não sabia muito bem como, Silver se viu consultada por um
corpulento cavalheiro que levava uma casaca negra muito elegante e um colete de damasco cinza
imaculado.
Seus olhos brilharam quando lhe perguntou para quem comprava o perfume.

11
Vetiver: planta gramínea cuja raiz é usada em perfumaria por sua propriedade aromática.
12
Nardo: planta amarilidáceas de caule compacto, folhas radicais e flores brancas muito perfumada.
—Minha… irmã. Sim, é um presente para minha irmã. O que me sugere?
—Este seria muito potente, temo. Uma mulher com gosto sempre prefere algo mais sutil -
explicou Silver, repetindo os mesmos ensinos que tinham feito de seu pai um professor perfumista
vinte anos antes. Quando o distinto estranho finalmente se foi uns minutos depois com os olhos
ainda brilhantes, levava três fragrâncias que Silver lhe assegurou que seriam o melhor para sua
irmã.
A sua vez, Brandon estava reunindo a seu redor a uma multidão que o observava
enquanto estudava frasco após frasco.
—Bergamota, nardo e âmbar cinza? —Cheirou com cuidado—. Só limão e água de rosas…
e de uma classe muito inferior. —Franzindo o cenho, o menino se moveu até a seguinte mostra,
que aparecia em uma caixa de seda com ramos de lavanda atadas com fitas violeta—. Lavanda
real, adequada para uma rainha. —Leu, e cheirou o frasquinho—. E a isto chamam lavanda? Mas
isto não é mais que um óleo do mais barato, da lavanda que cresce silvestre em alguma colina da
França! E nem sequer foi destilado com muito cuidado. Não se pode fazer em menos de uma hora
se não se quiser que perca todo seu corpo. Meu pai estava acostumado a dizer que…
—Não é lavanda? —perguntou uma voz firme e educada que estava perto do ombro de
Silver—. Perdoem minha falta de educação ao me misturar, mas não pude evitar ouvir este
menino… seu irmão, acredito?, falar desse perfume. Parece ter uma incrível habilidade para
averiguar seu conteúdo.
Silver se voltou e se encontrou com uma imperiosa mulher mais velha que a estudava
com atenção.
—Peço-lhe mil desculpas. Temo que estejamos sendo muito mal educados. É que o
perfume é uma espécie de paixão para nós. Era a afeição de nosso pai e nos educou em sua
apreciação também, como vêem. Meu irmão fica tremendamente furioso quando descobre que as
pessoas estão sendo, bom, levadas ao erro.
—Levada ao erro? —riu a mulher—. Acredito que a palavra é enganada. Sempre suspeitei
que Holcombe se aproveitasse de seus clientes descaradamente e estou encantada de descobrir
que não me equivocava.
—OH, estou segura de que o proprietário não pretende enganar - se apressou a
esclarecer Silver—. Simplesmente é que os ingredientes podem variar. O que é perfeito se
comprar em agosto, pode ser tremendamente decepcionante se comprar em novembro,
compreende?
A anciã riu e sacudiu a cabeça.
—Parece-me que não, querida. Estou começando a suspeitar que minha educação sofreu
uma enorme lacuna. Temo que vou ter que a convencer para que me aconselhe.
—OH, não poderia. —Silver se deu conta de que a metade dos olhares das pessoas que
abarrotava a loja se viraram para ela—. É que… nem sequer sei…
—A duquesa de Cranford - foi a imediata resposta.
Silver fez uma graciosa reverência e se ruborizou um pouco, cada vez mais consciente de
sua saia poeirenta e seu cabelo despenteado.
—Susannah St. Clair - disse em voz baixa.
Uns dedos frágeis encontraram os seus.
—Vos rogo que não seja tão formal comigo. Necessito uma fragrância para minha neta. É
para uma noite muito especial e necessito algo bastante excepcional.
Silver ficou cativada. Como podia resistir a um pedido como esse de alguém que ficava em
mãos de sua experiência e sua habilidade para lhe pedir conselho?
—Como a descreveria? Sempre é melhor ter uma imagem em mente.
A duquesa sorriu.
—É bastante mais alta que eu, com o cabelo ruivo e bonitos olhos azuis.
—E é ativa? Passa muito tempo no exterior? A atividade pode afetar à fragrância -
explicou Silver distraída, já perdida em suas cabalas sobre as possibilidades adequadas.
—Muito ativa. Em ocasiões tenho problemas para mantê-la em um mesmo lugar durante
mais de um segundo.
Sem prévio aviso uma moça com um vestido de musselina de cor azul esverdeada
adornada com fitas apareceu ao lado da duquesa.
—Aqui está, vovó. Começava a pensar que tinha se cansado e tinha voltado para
carruagem.
—Cansada? Eu? —A anciã deu uns golpezinhos no ombro de sua neta com seus dedos
enluvados—. Ainda não estou tão decrépita para isso, querida. Mas tem que conhecer minha
amiga, a senhorita St. Clair. Estava a ponto de me aconselhar em questão de uma fragrância para
você.
A garota estudou Silver com seus risonhos olhos, que realmente eram muito bonitos, por
certo. Mas havia algo nela, um halo de tristeza ou de esperanças truncadas que chegou a Silver e
seu sensível coração.
—Temo que pensem que isto é uma terrível impertinência de minha parte.
—Absolutamente. Eu não tenho habilidade para os aromas. Meu irmão estava
acostumado a dizer… - se interrompeu de repente. De novo Silver viu a dor endurecer sua
expressão.
Mas ela se apressou a rir e a encolher ligeiramente os ombros.
—me deixe ouvir sua opinião, senhorita St. Clair. Se suas habilidades forem a metade de
boas que as desse homenzinho aí, estou segura de que eu adorarei, porque ele já foi capaz de
deslumbrar o príncipe regente e metade da cidade com ele.
Silver tragou saliva.
—O príncipe?
—Mas, claro - respondeu seu acompanhante—. E tampouco parecia descontente com o
conselho que você deu.
Silver sentiu que seus joelhos começavam a tremer. Tinha estado tão tranqüila
aconselhando o príncipe regente sobre um presente para sua irmã? Mas tinha alguma irmã? E se
não, para quem…?
De repente suas faces começaram a arder. A duquesa de Cranford riu encantada e
consolou Silver lhe dando golpezinhos no ombro.
—Procurava algo para uma dama, não é assim? Provavelmente disse que era para sua
irmã. Não importa, querida. Estou segura de que sua escolha será mais elegante que seu atual
objeto de desejo receberá em toda sua vida. Mas continue. Estou bastante ansiosa por saber qual
é sua escolha para minha Índia.
Os olhos de Silver se abriram de par em par.
—Índia?
—Um nome muito extravagante, não? —disse a duquesa olhando a sua vibrante neta—.
Mas casa com sua personalidade, porque ela é uma garota muito extravagante também.
—vai me fazer avermelhar, vovó. —Mas a ruiva não parecia absolutamente incômoda—.
E se eu for extravagante, só é porque aprendi tudo de você.
Nesse momento, o proprietário emergiu da parte traseira da loja com os braços cheios de
pacotes. Em uns segundos se deu conta de que a atmosfera tinha trocado e que um ar de tensa
espera alagava a elegante loja.
Instantaneamente se lançou para onde se encontrava Bram, que estava conversando
inocentemente com o homem mais elegante da Inglaterra. O príncipe regente jogou o proprietário
com um imperioso gesto de seus dedos.
Então o homem tentou aproximar-se de onde estava a duquesa e a jovem a seu encargo.
A régia anciã ficou olhando através de seus óculos.
—estamos arrumando isso perfeitamente, Holcombe. Deixe-nos. Já o chamaremos
quando tivermos acabado de escolher.
—É claro, Excelência. Mas…
—Agora não, Holcombe. —A duquesa se virou para Silver, com o olhar espectador—. E
bem, querida? Acredito que estava a ponto de fazer uma sugestão…
Silver se encontrou sob o inquisitivo olhar da dama e sua vibrante neta, cuja face
mostrava uma tristeza que não era nada própria de sua idade. Parecia que havia algo que lhe
resultava familiar nela, embora isso fosse impossível, é claro. Desde a morte de seu pai, Silver
visitava Kingsdon Cross com muito pouca freqüência.
Repentinamente lhe chegou a mescla perfeita.
—Tenho! Acredito que se ajustará perfeitamente. Um pingo de musgo como um fresco
amanhecer do verão. Um toque de rosa de Damasco pela doçura. Um pouco de cravo pela força e
a claridade. E, claro, um rastro de madeira de cedro que demonstra a pureza. Tudo junto, uma
mescla doce mas distinguida. Esta se aproxima bastante, acredito. — Estendeu-lhe um pequeno
frasco e esperou, sem fôlego.
Índia aplaudiu de felicidade.
—Mas têm feito magia, senhorita St. Clair! É perfeito. Como pode me conhecer tão bem
após só uns momentos?
Silver se ruborizou.
—É muito amável. É só uma habilidade que tenho, nada mais.
—Tolices - disse a duquesa de Cranford lhe tirando importância—. Descreveu minha neta
à perfeição. É um verdadeiro tesouro. —Seus olhos atentos adquiriram um brilho especulativo—.
Suponho que não me equivoco ao acreditar que não está casada, não é, querida?
Índia, já muito acostumada à afeição casamenteira de sua avó, só sorriu. Mas Silver ficou
sem fala.
—Excelência… bom, não sei o que lhe dizer…
—Tão somente sim ou não, querida.
—Bom, não, não o estou, mas…
—Maravilhoso! Então devo insistir em que nos acompanhem a tomar o chá para que
possamos examinar suas opções de futuro com mais detalhamento. —A duquesa observou o traje
de montar fora de moda de Silver e suas gastas botas com expressão pensativa—. É de províncias,
não é, moça? Não deve se envergonhar disso, claro que não.
Silver levantou o queixo com fúria no olhar. Todo o feroz orgulho dos St. Clair saiu à
superfície.
—É muito amável, Excelência, mas não acredito que minhas insignificantes circunstâncias
a interessem absolutamente.
Mas a duquesa riu, nada ofendida.
—Se pretendia me desprezar com isso, não tivestes sorte, querida. Tenho a pele tão dura
como um crocodilo egípcio, e tentaram me desprezar tantas vezes que já quase nunca me dou por
aludida.
Silver piscou sem ter nem idéia de como responder a tão franca amostra de humor.
Decidiu que sua resposta devia ser sincera também.
—Têm razão, Excelência, pretendia ser um desprezo. Mas, embora seja «de províncias»
como você expressou isso, estou muito longe de me considerar um camundongo de campo. Meu
irmão e eu estamos muito cômodos aqui. Eu sou uma mulher independente e não vejo nenhuma
razão para ver minha vida desbaratada por culpa do matrimônio.
—Perfeito! —exclamou a duquesa golpeando o chão com sua bengala com cabo de
marfim—. Isto se vai pondo melhor por momentos. Uma mulher com beleza e caráter que se nega
a considerar o matrimônio! Isso supõe uma provocação deliciosa. Agora, me deixem ver, está
Augustus Warburton. Só é um baronete, claro, mas tem muitas propriedades nos condados do sul,
me disseram.
—Excelência, está muito equivocada comigo se acha…
—Não? Muito bem. Estou completamente de acordo. Warburton é vesgo, o que é
bastante desagradável, se não recordar mau. E que tal Lorde Townshende? Um conde, nada
menos, e se tem por muito bonito. —A duquesa olhou sua neta, a quem custava agüentar a
risada—. Você o que acha, Índia?
A beleza ruiva agitou a cabeça.
—Acredito, vovó, que é uma verdadeira descarada. Incomodou à senhorita St. Clair com
suas arrasadoras maneiras. E vai pensar que somos todos dignos de encerrar no hospital
psiquiátrico de Bedlham se não parar imediatamente.
O certo era que Silver pensava que a anciã estava se intrometendo sem permissão. Mas
sentia que essa intromissão se fazia com as melhores intenções, assim que tragou a réplica
cortante que veio aos lábios.
A duquesa a olhou com atenção.
—É certo isso, moça? Acha que estou me intrometendo mais do que adequado?
Silver sentiu que um sorriso aparecia em seus lábios.
—Se intrometer? Certamente - Uma encantadora covinha apareceu em uma de suas
faces—. Mas não mais do que adequado.
A duquesa golpeou o chão em sinal de triunfo.
—Vê, Índia? Uma mulher com caráter e senso de humor, como lhe disse. Deve vir
conosco a tomar uma xícara de chá. Íamos a caminho do salão de chá do Minton quando…
De repente Silver recordou sua missão. Olhou a seu redor com desespero, temendo que
já tivesse passado a hora.
Índia viu a urgência em seu olhar e colocou uma mão enluvada sobre sua manga.
—Talvez a senhorita St. Clair já tem algum compromisso, vovó. Não devemos pressioná-
la. Não quando faz tão pouco que nos conhecemos.
—OH, não, não é isso. É muito amável ao nos convidar, mas temos que estar em um lugar
às duas em ponto. —Silver levantou o olhar e viu seu irmão concentrado em uma profunda
conversa com o príncipe regente, ao qual estava mostrando uma amostra de seus espécimes
botânicos junto com um estragado par de plumas de águia e uma ratazana dissecada.
—Temo que teremos que declinar a oferta, Excelência. Meu irmão e eu temos um
compromisso e não devemos chegar tarde sob nenhum conceito.
E precisamente nesse momento um pequeno relógio dourado que havia sobre o balcão
começou a soar.
—OH, não! Não pode ser duas horas já! Temos que ir! Agradeço-lhes de novo mas… talvez
em outra ocasião. —Silver fez uma educada reverência, apressou-se para o lugar onde estava seu
irmão e o agarrou pelo braço justo quando tirava um sapo de Norfolk de três patas para a
assombrada inspeção do príncipe regente.
—Mil perdões, Majestade. Meu irmão é um apaixonado pela botânica, o compreenda. Se
for tão amável de nos desculpar, devemos ir.
O corpulento príncipe se viu predisposto a comportar-se como um perfeito e amável
cavalheiro ante a estranha inocência daquela mulher encantadora.
—Cinderela a meia-noite, né? Bom, entristece-me enormemente os ver partir. Seu irmão
estava fazendo umas valiosas sugestões para o presente de minha… irmã.
As faces de Silver avermelharam.
—É muito amável. —Agarrou Bram pela a mão e puxou-o para a porta.
—São duas em ponto! —sussurrou-lhe—. Devemos nos apressar!
Capítulo 32
Quando ambos saíram da loja, o rosto de Bram estava avermelhado pelos
desacostumados louvores que acabava de receber.
—Sinto muito, Sil. Resultava-me muito difícil escapar desse homem.
—Não me estranha - disse Silver com ironia—. Esse homem era o príncipe regente.
—Que me crucifiquem! —Os olhos de Bram se abriram muito—. Então, me alegro de não
havê-lo sabido. Não teria sido capaz de dizer nenhuma só palavra.
Correram em direção à rua principal justo quando o enorme relógio que havia sobre o
Guildhall soava para marcar a mudança de hora. Nesse mesmo momento o líder do bando de
garotos de ruas, com o cabelo ainda úmido e o barro do rio ainda grudado a suas botas, chegou
correndo até eles.
—Aqui estão - disse quase sem fôlego—. Houve uma mudança, senhora. O tipo que
entrou no armazém saiu com uma carruagem cheia de barris de cerveja. E vem diretamente para
cá. Não estranhará que apareça a qualquer momento pela curva da rua.
Silver mordeu o lábio. E o que ia fazer agora, apanhada no meio do bulício de King's Lynn,
com o príncipe regente e todo seu séquito a uns poucos passos? Com cuidado tirou a pistola de
sua bota e a guardou em seu porta-níqueis para tê-la mais à mão.
—Está seguro de que vem para cá?
Seu jovem amigo cheio de barro assentiu com entusiasmo.
—Sem dúvida. Só outra rua e ali está a ponte.
—Muito bem - disse Silver. Baixou a voz quando uma matrona amadurecida e sua filha
que não parava de rir passaram a seu lado—. O viu bem? Pôde lhe ver o casaco?
—Sim, seguro, senhorita. E ficava muito estranho porque tinha ambos os bolsos cheios.
Silver assentiu pensativa. Se os documentos que procurava Luc eram tão valiosos,
certamente o homem os levaria com ele. No casaco, sem dúvida.
—É o que leva o homem no casaco o que necessitamos. Ajudariam-nos você e seus
amigos? Há dois guinéus mais se o fizerem. —Deu ao menino duas moedas.
Seus jovens olhos brilharam de excitação.
—Uniríamo-nos e partiríamos mesmos para os campos de batalha franceses por dois
guinéus, senhorita. Estamos com você. É uma dos bons, seguro.
Silver estendeu a mão.
—Então temos um trato. —O menino lhe estreitou a mão e Silver levantou o olhar,
entrecerrando as pálpebras—. Virá por essa esquina daí, acredito. O que precisamos é uma
distração.
—Deixe isso a mim e a meus companheiros.
Silver sorriu com picardia.
—Será uma grande comoção, temo-me.
—Não o duvide - assentiu o menino com energia—. O príncipe e seus amigos certamente
nunca viram nada como isto.

Assim foi como meia dúzia de pivetes se dedicaram a rondar pela rua principal de King's
Lynn até que uma carruagem girou a esquina, com suas rodas trovejando sobre o pavimento, e
dirigiu-se para o centro da cidade. Nesse momento o líder fez um gesto ao resto dos meninos, que
abandonaram seus postos e correram para o objetivo.
Silver assentiu em direção a Bram.
—Lá vou - sussurrou tensa—. Deseje-me sorte.
Seu irmão lhe agarrou a mão.
—por que não posso ir eu, Sil? É muito perigoso. E o que acontecerá se não parar?
Mas Silver já estava na rua. Nem sequer considerou a idéia de permitir que Bram
enfrentasse isso.
A carruagem tomou velocidade. Dois dos meninos de ruas já estavam juntos a sua parte
traseira e Silver viu outros dois correr e ficar aos lados.
Justo como tinham planejado, seu irmão gritou uma advertência. Então fez gestos
grosseiramente ao cocheiro da carruagem.
—Parem os cavalos, estúpido! Não vêem que há uma mulher aí no meio!
Mas os cavalos seguiram adiante, o pó e o cascalho formando nuvens a seu passo.
Pela extremidade do olho Silver viu a duquesa de Cranford e a sua neta sair da loja de
perfumes. Junto a elas ia o príncipe, sorridente, com uma dama pendurada em cada braço.
Se ia morrer, ao menos o faria com estilo, pensou Silver amargamente. O regente e a
metade da boa sociedade londrina seriam testemunhas de sua morte.
Ouviu o cocheiro amaldiçoar e gritar, mas não freou seus cavalos. O outro homem do
barco estava sentado junto a ele. Silver não pôde ver sua cara porque a tinha escondida sob um
chapéu de asa baixa e atrás da gola do casaco, subido até lhe cobrir as bochechas.
O coração de Silver começou a pulsar com força. Mais perto, cada vez mais perto, os
cavalos seguiam correndo enquanto ela rezava para que os meninos recordassem as tarefas que
tinham acordado.
Com um rangido bastante desagradável a parte traseira do carro se abriu de repente e os
seis primeiros barris de cerveja caíram ao chão, rompendo-se. Tinham-no recordado, pensou
Silver. Agora o resto era coisa de Bram e dela.
Seus olhos se fixaram no único passageiro do veículo. Viu-o colocar a mão no bolso com
os dedos tensos. Sim, os documentos estavam ali. Tinham que estar.
Tudo passou muito rápido depois disso. Silver ouviu à duquesa gritar. Vagamente viu que
Índia Delamere subia o braço em uma advertência se desesperada enquanto o príncipe regente
assinalava os cavalos que corriam.
Mas tudo isso era secundário na mente de Silver. Seu objetivo principal era o homem que
se escondia sob aquele casaco. Podia senti-lo olhando-a fixamente, com olhos frios, tensos e
furiosos. Voltou-se ligeiramente e enfrentou a carruagem que se aproximava, com uma mão no
peito em um gesto dramático.
—retire-se do meio! —trovejou o cocheiro.
O passageiro se inclinou e fez um gesto. Um chicote soou por cima das cabeças dos
cavalos. Com horror ouviu o cocheiro gritar:
—Não posso parar! Vou te atropelar se não sair do meu caminho!
Claro que pode, pensou Silver furiosa. Com um gesto brusco abriu seu porta-níqueis, tirou
sua pequena pistola e apontou de modo mortífero ao peito do cocheiro.
Nesse momento, o líder dos meninos de ruas se atirou ao pescoço do passageiro. Como
tinham acordado, arrancou-lhe o chapéu e logo se lançou ao casaco, puxando-o dos ombros. Sem
deixar de grunhir, o passageiro golpeou seu inesperado visitante, mas foi em vão. O menino só riu
e dançou a seu redor, pequeno e ágil como um macaco.
Silver viu tudo sem dar-se conta de nada, como se estivesse em transe. A carruagem
estava a menos de dez metros e se aproximava.
O cocheiro soltou um juramento e virou bruscamente para evitar uma pilha de escombros
que havia na rua. Silver deu um passo atrás.
O passageiro passaria só a uns centímetros dela. Rezou para poder colocar a mão no
bolso dele a tempo.
Enquanto, o menino seguia dançando pelo assento e golpeando com a mão o peito do
passageiro. Em um dos golpes alcançou agarrar algo de um bolso e o lançou a Bram.
Um bolso vazio, pensou Silver. Só fica o outro. O homem do casaco estava brigando com o
queixo contra o peito. Silver não alcançava vê-lo ainda.
E depois resultou muito tarde.
A carruagem passou como um relâmpago a seu lado. Tornou-se atrás só uns segundos
antes que as enormes roda de madeira trovejassem sobre a rua pavimentada exatamente onde
ela tinha estado um momento antes.
Mas seu movimento brusco lhe custou caro porque tropeçou com uma fileira de caixas de
madeira que estavam empilhadas. Sentiu uma dor dilaceradora no flanco e gritou. Ante ela a rua
começou a girar e depois cambaleou, enjoada, caindo para um lado.
Então chegou o caos.
Houve gritos e chiados, e se ouviu o rangido de barris que se rompiam. Mas Silver mal
ouvia tudo isso. Queixando agarrou o flanco e caiu no meio da rua, cegada por uma onda de dor.

A uns quinze quilômetros dali, Luc Delamere se sentou junto a sua inquieta montaria
negra e examinou a terra arenosa.
—foram para o sul. Só eram dois. Aonde poderiam dirigir-se nessa direção? Tudo o que há
ali é o urzal e mais à frente o pântano.
Junto a ele Connor dissimulou um sorriso.
—Sinto muito ter que o contradizer, mas foram para o Norte. Os rastros que está olhando
têm ao menos três dias. Se Silver e seu irmão vieram por aqui, os rastros deveriam ser frescos.
Como estes aqui, digo eu.
Franzindo o cenho, Luc seguiu a direção dos dedos de Connor até um rastro de pegadas
recentes. Seu amigo tinha razão, é claro.
E isso só conseguiu piorar o mau humor de Luc.
—Bom, suponho que pode ser, agora que o diz. Mas não deixe que lhe suba à cabeça,
torpe besta.
—OH, nem sonhar - disse Connor com calma—. Não é sua culpa que os olhos não
funcionem como deveriam, pobre estúpido apaixonado.
—Quem é um estúpido e quem diz que eu estou apaixonado? —grunhiu Luc, olhando seu
companheiro.
—Não serei eu quem diz uma palavra - disse MacKinnon, fazendo que seu cavalo tomasse
a direção norte—. Não, nenhuma palavra. Não é meu assunto se decide se apaixonar.
Absolutamente.

Capítulo 33
O mundo reapareceu ao redor de Silver.
Lentamente, em pequenas chamas e imagens que fizeram que sentisse a cabeça como um
tambor. Quando abriu um olho pouco a pouco se deu conta de que estava apoiada contra um
barril de cerveja a um lado da rua. Bram estava ajoelhado junto a ela e parecia muito preocupado.
Silver tentou lhe sorrir mas não o conseguiu de tudo.
—Viu-o? Viu-lhe o rosto?
Bram sorriu, embora seu sorriso não se estendesse até seus olhos de olhar ansioso.
—Com todo detalhe, Sil. Cara magra, nariz altivo e boca obstinada. Dão-me bastante bem
os retratos acredito.
Enquanto falava, Bram lhe pôs diante seu caderno. Duas murchas plumas de águia, um
pedaço de musgo seco e uma cauda de camundongo caíram do livro até o regaço de Silver. E, justo
como Bram tinha prometido, o rosto de um homem tinha sido desenhado com traços rápidos nas
gastas páginas, todos os detalhes claros e precisos.
Silver apertou a mão de seu irmão, tremendamente orgulhosa de seu êxito apesar dos
sinos que soavam dolorosamente em sua cabeça.
—Um trabalho extraordinário, meu amor. E esses meninos da rua, também conseguiram
fazer suas tarefas?
Bram olhou a seu redor à multidão congregada e baixou a voz.
—Perfeitamente. Agora fique quieta e calada, Sil. Correu um risco tremendo. Esse
monstro teria passado por cima de você, estou seguro, mas o príncipe regente ficou furioso e disse
que era capaz de chamar à tropa.
—E o homem? O que foi que ele?
—No tumulto, o descarado conseguiu escapar, maldito seja seu duro coração.
Silver franziu o cenho tentando escutar, mas de repente a voz de seu irmão lhe parecia
aguda e irregular. Sentia uma profunda dor no peito que se estendia até o flanco.
—E… e os documentos Bram? O que passou com eles?
—Estão aqui, em meu bolso - sussurrou seu irmão—. Mas não podemos falar agora. A
duquesa vem para cá. Meu Deus, o príncipe regente a acompanha. Parecem fascinados pelos
meninos do rio.
Com um suspirou, Silver relaxou.
—dê-lhes… outra coroa a cada um - murmurou. Depois fechou os olhos e voltou a
inundar-se nas trevas.

Quando voltou a despertar, Silver notou que estava apoiada em uma montanha de
travesseiros e que o som de cascos de cavalos ressonava em seus ouvidos. Ao menos acreditou
que eram cascos e não o martelar de seu coração. Abriu os olhos e sentiu que uns dedos quentes
apertavam os seus.
—Ao fim acordada, querida? —Era a imperiosa voz da duquesa de Cranford—. Deu um
bom susto a todos na rua. Acredito que nunca vi o príncipe nem a metade de preocupado que
hoje. Mas não quero cansá-la com meu bate-papo. Precisa descansar, moça, e isso é o que vai
fazer.
—Mas… - Silver tentou levantar-se—. Bram! Onde está meu irmão?
—a salvo com Índia e Ian, seu irmão. Seqüestrei os dois, como vêem. Vamos a nossa
propriedade, onde ambos vão descansar até que eu esteja segura de que se recuperou.
Silver se debatia entre a fúria ante a prepotência da dama e as lágrimas ao ver sua
preocupação. Suspeitava que esse sentimento não resultava incomum à anciã. Qualquer um que
cruzasse o caminho da duquesa de Cranford provavelmente se sentiria como se tivesse sido
atropelado por uma carruagem descontrolada.
Silver lhe dedicou um leve sorriso inseguro.
—É muito exagerado de sua parte, Excelência, embora não posso dizer que tivesse
preferido ficar atirada em uma rua poeirenta, rodeada de centenas de caras curiosas me olhando.
A duquesa entreabriu os olhos.
—E esses assuntos dos quais falava?
Silver pensou nos documentos ocultos em seu bolso.
—Concluídos satisfatoriamente. Mas não devem…
—Shhhh. Tudo está decidido.
—Mas não posso ficar. Há… assuntos que meu irmão e eu devemos atender. E Bram…
A duquesa obrigou Silver a voltar a deitar-se sobre os suaves travesseiros.
—Ele está bem. Vai a cavalo a frente e neste preciso momento está ocupado obsequiando
Ian e a Índia com histórias sobre a curiosa fauna e flora de Norfolk e os hábitos alimentícios dos
ratos cinzas.
Silver sorriu.
—Um menino repelente, temo. Sempre esteve colecionando conchas, ervas, animaizinhos
ou qualquer outra coisa. Assim se converteu em um perito naturalista.
—E além disso nos mantém entretidos. A Índia sobre tudo, e eu estou muito agradecida.
Não foi ela mesma desde que… - A voz da duquesa se quebrou. Levantou o olhar para a paisagem
em movimento. Durante um momento a tristeza obscureceu sua face —. Estou falando de mais
outra vez, querida. Perdoe-me. É a prerrogativa da velhice. Volte a se deitar e feche os olhos.
Estaremos em Swallow Hill em menos de uma hora.
Como a duquesa tinha suposto, nesse momento Bram ia confortavelmente ao lombo de
um cavalo ruão de bom temperamento do qual estava entretendo seus dois acompanhantes com
uma adornada crônica dos sucessos de King's Lynn.
—Um verdadeiro grupo de valentões, isso eram. Com a metade de minha idade e todos
eles melhores lutadores.
—demos graças ao céu por isso - disse Índia Delamere com voz preocupada—. Se esse
jovenzinho não tivesse conseguido distrair o cocheiro, sua irmã não estaria viva agora. Pensará
que sou muito curiosa, mas o que aconteceu para que ficasse diante da carruagem dessa maneira?
Parecia uma mulher da mais decidida e independente, mas devo confessar que não entendo.
Bram pigarreou incômodo.
—O que acontece é… que não posso contar isso
O cavaleiro que ia à esquerda de Bram emitiu uma risada entre dentes. Ian Delamere,
visconde de Dunwood, acabava de voltar da Espanha, onde tinha servido às ordens de Wellington.
Olhou sua irmã.
— renda-se, Índia. O menino já nos advertiu claramente que abandonemos o assunto e
não tem sentido seguir indagando.
Bram se ruborizou.
—Não, não é isso. Maldição, que mal educado devo lhes parecer depois de toda sua
amabilidade.
—Não é amabilidade. Nada disso - disse o alto soldado com despreocupação—. Vovó tem
um apetite insaciável por seu ofício de casamenteira e tem descoberto em sua irmã uma
candidata perfeita. É verdadeiro egoísmo, asseguro-lhes isso.
Índia sacudiu a cabeça, rindo.
—É um canalha, Ian! O que vai pensar o jovem Brandon de nós?
O menino em questão dedicou um olhar de admiração à bela mulher que cavalgava a seu
lado.
—Espero que pense que é enormemente afortunado por tê-los conhecido - murmurou
enquanto seu rubor se pronunciava por momentos.
Ao vê-lo envergonhar-se, Índia teve a amabilidade de olhar para outro lado, dando tempo
ao menino para recuperar-se. Ian se lançou em sua ajuda, começando o complicado relato sobre a
noite em que o mascote do regimento, um urso enorme e com mau gênio, conseguiu penetrar na
tenda de Wellington enquanto este dormia. A paisagem passava a seu lado, verde, frondosa e
bela.
Os três já eram quase amigos quando Ian chegou à clamorosa conclusão de seu relato,
que resultou ser, felizmente, sua própria contribuição à resolução do assunto.

—Mas que tipo de caos se produziu aqui?


Luc estava de pé no centro de King Street, olhando fixamente os barris de cerveja
pulverizados ao redor da carruagem, agora vazia. Graças ao olho perito de Connor tinham seguido
o rastro de pegadas frescas até o centro de King's Lynn.
Connor parecia pensativo.
—ouvi montes de histórias extravagantes, de tudo: desde rumores sobre uma invasão
francesa até algo sobre um assassino que tentou matar o príncipe regente. Mas não tenho nem
idéia do que ocorreu aqui, Luc. A única coisa coerente que ouvi é que uma moça do campo se
colocou no meio da rua com uma pistola na mão e frustrou o ataque.
Ao ouvir essas palavras Luc sentiu uma estranha sensação no peito.
Uma moça do campo com uma pistola na mão? Luc só conhecia uma mulher a quem
pudessem aplicar essas palavras. Mas seguro que não podia ser. Seguro que a encontraria olhando
vitrines ao final da rua ou tomando chá perto do elegante Guildhall.
Seguro que não ficaria no meio da trajetória da bala de um assassino.
Ou ao menos isso esperava Luc.

Algo preocupava Bram.


De fato levava o preocupando toda a tarde. Tinha algo que ver com o homem que havia a
seu lado, de ombros largos, mãos fortes e uns bonitos olhos cinza. Franzindo o cenho, Bram voltou
a olhar inquisitivamente ao irmão de Índia.
Mas ao soldado alto de olhos sonolentos não escapava nada.
—Parecem aflito, Brandon. Tenho feito algo que fez que se incomode comigo?
—Não, absolutamente. É só… bom, parece com alguém que conheço. Ou ao menos, isso
acredito. Mas não consigo descobrir quem.
Ian Delamere encolheu seus largos ombros.
—Parece que tenho esse tipo de cara. Ocorria-me freqüentemente na Espanha. E pode
ser uma experiência endemoniadamente desagradável.
—OH, Ian - exclamou Índia—, não me diga que o confundiram com um ladrão de cavalos
ou com um traidor!
Durante um momento um brilho de dureza cruzou os olhos de seu irmão, mas
desapareceu tão rápido que Bram acreditou que o tinha imaginado.
Exceto pela tensão que seguia havendo nas mãos que sujeitavam as rédeas.
—Não, não com um ladrão de cavalos, Índia. Livre-me disso, por favor. E deixa de
bisbilhotar tanto. Não há nada que um homem odeie mais que uma mulher curiosa, asseguro-lhe.
—OH, acaba de ferir-me de morte! —Índia dirigiu as mãos dramaticamente para seu
peito, embora seus brilhantes olhos mostrassem que muito menos se sentia ferida—. No alvo,
deste justo no alvo. Acredito que vou desvanecer-me e nunca despertar.
Seu irmão a olhou, a ternura alagando seus olhos.
—Bruxa.
—Descarado.
Cavalgando entre eles, Bram ocultou um sorriso sem deixar de fazer-se perguntas sobre
aquela incomum família que cruzou em suas vidas.

Silver abriu os olhos e fez um movimento leve, vacilante. Alegrou-se de descobrir que o
batimento do coração de sua cabeça tinha cessado. Agora só ficava uma leve dor nas têmporas.
Fez um esforço para levantar-se e a duquesa se aproximou para ajudá-la.
—Sente-se melhor, não é, querida? É o momento perfeito, porque Swallow Hill está justo
atrás dessa colina.
—É muito amável, Excelência. Somos uns completos estranhos depois de tudo. Não sei
como lhe agradecer isso.
—Tolices - exclamou a duquesa—. Não me diverti tanto em meses, desde o dia que… -
Seus olhos lhe dedicaram um olhar especulativo—. Mas essa é uma história que será melhor
deixar para outro dia. Agora venha e olhe. Pode ver a parte alta da casa daqui.
Correu a cortina da janela e Silver viu o vale, de uma cor esmeralda brilhante, cruzado por
linhas mais escuras de carvalhos e sebes.
Então ficou sem fôlego.
Swallow Hill não era uma casa que alguém pudesse esquecer com facilidade…
provavelmente não poderia esquecer-se nunca.
Um emaranhado de torres e chaminés retorcidas construídas em um quente granito
rosado se elevava na verde curva da colina. Enormes mirantes dominavam a face sul e um jardim
adornado com figuras feitas com as plantas se estendia para o oeste. Não havia nada comum
naquela casa, nem simetria ou ordem na situação de suas janelas. Era como se essas coisas se
deixassem para mortais menos especiais.
Mas havia uma grande vitalidade e uma beleza incomparável na casa, clara expressão da
família com caráter que tinha florescido ali durante gerações.
—Bem, o que lhe parece? Não segue muito os ditados do estilo palaciano imperante, na
verdade. Talvez lhe pareça feia.
—Feia? —disse Silver quase sem fôlego—. Não, acredito que é a casa mais bela que vi em
minha vida.
Os olhos da duquesa brilharam. Recostou-se no assento agarrando sua bengala de prata
entre seus frágeis dedos.
—Acredito que é muito inteligente para dizer isso, querida.
—Mas é certo. A casa não é comum, têm razão. As janelas têm diferentes tamanhos e as
diferentes alas não são simétricas. Mas de alguma forma funciona. Não se nota as diferenças pelo
entristecedor poder que destila o palácio.
A duquesa assentiu olhando o exterior, às colinas de um verde vivo e à magnífica casa de
pedra construída entre elas.
—Muito bem dito, senhorita St. Clair. Têm um entendimento muito maior que o próprio
de sua idade, vejo. —Seus olhos pareceram voltar-se frágeis enquanto dava tapinhas à mão de
Silver. Depois endireitou os ombros—. O primeiro que vamos fazer é a acomodar para que
descansem Depois faremos que esse velho médico ruim, Sir Reginald, lhe de uma olhada.
—OH, não - disse Silver sacudindo a cabeça—. Nem pensar disso.
—Tolices, menina. A menos que esteja completamente equivocada, têm uma ferida no
flanco além desse golpe na cabeça. Talvez queira me contar como lhe fizeram isso ou talvez não,
mas há uma coisa que sei: não está em condições de correr pelo campo. Nem por nenhum outro
lugar, menina. Hoje não. Possivelmente amanhã. Se for por sua família pela qual está preocupada,
estarei encantada de mandar um homem com uma mensagem para que fiquem tranqüilos.
Quando se sentir melhor, você mesma poderá lhes escrever uma nota.
Silver estudou o rosto da duquesa sentindo uma mescla de irritação e ternura.
—É a mulher mais abominavelmente controladora que conheci, Excelência.
—Isso me dizem - respondeu a duquesa com alegria, absolutamente ofendida—. É parte
de meu caráter, deve me entender.
Silver assentiu, rindo, enquanto a carruagem chegava a rangente grade que dava
passagem aos aprazíveis jardins de Swallow Hill.

A duquesa encabeçou a marcha para um magnífico salão decorado em amarelo por cujas
vidraças, que ocupavam toda a parede do chão até o teto, via-se uma extensão de campos verdes
aparentemente infinita. Depois de ocupar-se de que Silver estivesse cômoda, a imperiosa anciã se
desculpou. Assim que se foi, Silver se levantou e tirou as mantas que a duquesa tinha lhe colocado
em cima.
—Bram, onde está seu caderno?
O menino sorriu e s tocou o bolso.
—E as coisas que havia no casaco do homem? Não sei onde está minha capa!
—Todas a salvo, Sil, não se preocupe. Tirei-as quando todo mundo estava distraído lhe
ajudando a entrar. É um documento enrolado, mas não entendo nada do que diz. Só são listas de
números sem nenhum tipo de padrão.
Silver franziu o cenho.
—Números? Isso é tudo?
—Temo que sim. Mas possivelmente…
Nesse momento se abriu a porta e Índia e Ian entraram. Bram dirigiu a Silver um olhar de
advertência.
—Incomodamos? —perguntou Índia.
—Absolutamente.
—claro que sim.
Silver e Ian falaram de uma vez. Depois os quatro romperam a rir.
—Pensamos que poderíamos vir vê-los enquanto vovó põe em marcha todos os criados.
Não nos esperava até dentro de dois dias e estavam todos tomando um mais que merecido
descanso. Temo que ela possa ser um verdadeiro ogro quando se deixa levar por seu
temperamento. Mas suponho —acrescentou Índia com expressão resignada— que já se deu conta
disso.
—Ao contrário. Acredito que sua avó é extremamente generosa.
—E você é muito diplomática. —Ian assentiu com aprovação—. Poderíamos tê-la levado
conosco e a utilizar na Espanha. Wellington não tem paciência para essas coisas e estava
constantemente mandando aliados furiosos de volta a seus acampamentos.
—esteve lutando na Península? —Silver se deu conta de que não podia afastar os olhos
do rosto de Ian. Havia algo nele… algo que lhe era vagamente familiar, embora não sabia
exatamente o que.
A mandíbula do Ian Delamere se endureceu.
—Durante dois anos.
—Espero que não tenha se ferido.
—Nada importante.
—Não faça caso a Ian - disse Índia com confiança—. Ele nunca conta nada. Temo que toda
essa espionagem lhe subiu à cabeça.
Ian sorriu. A dureza de seus olhos desapareceu. Mas Silver estava segura de que não o
tinha imaginado e só ficava perguntar-se o que lhe tinha deixado umas lembranças tão amargas.
Um minuto depois a porta se abriu uma vez mais. A duquesa se afastou a um lado para
deixar passagem a um mordomo que levava uma bandeja de prata.
—Nessa mesa estará bem, Jeffers. —A duquesa indicou uma mesa de palissandro estilo
Chippendale que havia aos pés de Silver. Logo todos estavam sentados ao redor de Índia, que
servia xícaras de um delicioso chá souchong de cor âmbar vivo e pedaços do bolo especial de
nozes do cozinheiro. Bram já ia por seu terceiro pedaço quando levantou a vista e viu Índia e Ian
sorrindo-lhe.
As faces lhe arderam. Deixou cair o último pedaço no prato como se queimasse.
—Por favor, não pare - disse Índia, esticando o braço para lhe tocar a mão—. Foi muito
mal educado por nossa parte, sei, mas é tão maravilhoso ver uma pessoa jovem com toda essa
energia…
Bram subiu os óculos sobre a ponte do nariz e se serviu o último pedaço.
—eu adoraria que pudessem conhecer meus pais —disse Índia a Silver— mas temo que se
encontrem em uma visita a Itália que se alongou. Meu pai está de novo na fase das antiguidades.
Sem dúvida de Veneza irão a Atenas e depois ao Cairo. Enquanto isso, vovó se prestou voluntária,
corajosamente, para encher o espaço e me escoltar em minhas visitas a Londres até que eles
voltem. Embora não deixo de dizer que não me interessa o mercado matrimonial e que nenhum
cavalheiro conseguirá nunca superar o alto nível.
—Não quando descobrirem que sabe boxear, disparar e usar um florete melhor que a
metade deles - disse seu irmão com mordacidade.
A duquesa doe Cranford soprou.
—eu adoraria que deixasse de usar essa horrenda linguagem, jovenzinha. É do mais
impróprio.
—É? Nesse caso suponho que terei que deixar de passar tanto tempo com meus irmãos.
Um repentino silêncio encheu a sala. Os dedos da duquesa apertaram a bengala e a boca
de Ian se esticou. Índia ficou pálida.
Silver sentiu que a tensão se cevava nas três pessoas e estranhou. Mas Bram, ocupado
com o bolo, não se deu conta da mudança.
—Irmãos? —disse despreocupadamente—. Têm outro irmão além de Ian?
Índia abafou uma exclamação. Sua xícara de chá de porcelana deslizou de sua mão e caiu
ao chão, fazendo-se pedacinhos.
Depois de um momento de sobressalto, todo mundo pareceu mover-se de uma vez. Ian
agarrou um guardanapo para limpar o chá das saias de sua irmã. A duquesa agarrou a mão de
Índia. Bram se agachou, vermelho como um tomate, e começou a recolher os pedaços de
porcelana.
—Por favor, Brandon, não façam isso. —Índia franziu o cenho ao ver a tensão nos ombros
do moço—. Não é necessário - disse lhe tocando brandamente o ombro.
Quando Bram levantou o olhar viu que seus olhos estavam cheios de lágrimas.
—Sinto enormemente os ter… entristecido.
—OH, não é sua culpa, de verdade. —Índia ficou em pé lentamente. De repente parecia
muito cansada—. Se me perdoam, acredito que subirei a meu quarto. A viagem me cansou mais
do que acreditava.
E mantendo o queixo alto, Índia se virou e caminhou para a saída. Um momento depois a
duquesa saiu atrás dela.
— Eu disse algo inadequado, não é? —Bram mordeu o lábio—. E é culpa minha que ela
tenha tido que ir-se.
Ian se aproximou do Bram e lhe passou o braço pelos ombros.
—Tolices. Não foi sua culpa. Sente-se, quer? Será melhor que lhes explique isso.
Bram voltou a acomodar-se na poltrona junto a Silver. O alto soldado deu uns passos com
as mãos agarradas à costas. Então se voltou para eles com uma expressão dura no rosto.
—Vejam, temos outro irmão. Ou ao menos o tínhamos: sete anos mais velho que Índia e
cinco mais que eu. Todo mundo… o adorava. —O tom de Ian passou a ser tenso. Por um momento
pareceu que não poderia continuar.
—Você disse adoravam? É que… ocorreu-lhe algo? —perguntou Silver com delicadeza.
A pergunta de Silver pareceu afugentar as amargas lembranças do Ian.
—Temo que sim. Desapareceu faz uns anos. Nossos pais mandaram mensageiros e
investigadores por toda a Inglaterra, inclusive ao continente, mas não havia nem rastro dele. —
Suspirou e apoiou as mãos no respaldo de uma elegante chaise longue Luis XIV—. Acreditam que
pôde ter sido assaltado por um bando de ladrões e… —Seus olhos ficaram sem expressão um
momento—. Foi duro para todos nós, mas a que pior o leva é Índia. Os dois estavam muito unidos.
É quase como se tivessem algum tipo de vínculo mental entre eles.
Enquanto falava, Silver sentiu que algo lhe esticava no peito. Um leve gemido pareceu
ricochetear nas paredes do quarto até que cada vez foi mais difícil concentrar-se no que Ian estava
dizendo.
Desapareceu faz uns anos.
Nunca o encontraram… Nunca o encontraram…
Uma e outra vez as amargas palavras soaram como um eco em sua cabeça.
—foi imperdoável por minha parte - estava dizendo Bram, com expressão compungida—.
Não devia ter perguntado de forma tão pouco delicada. —Enterrou os punhos nos bolsos,
pesaroso. Ao fazê-lo, empurrou o caderno que estava apoiado sobre a poltrona junto a ele e caiu
no chão.
Com um movimento cheio de graça, Ian se agachou a recolhê-lo.
As páginas se abriram revelando os esboços de Bram da flora e fauna local, as raridades
botânicas, os ciclos de crescimento de várias ervas nativas e uma grande quantidade de espécies
de lavanda.
E, ao final, um esboço à mão do rosto elevado de um homem que tinha feito vários dias
atrás.
Um homem com olhos brilhantes, maçãs do rosto proeminentes e uma pequena cicatriz
junto aos lábios carnudos e sensuais.
Ian ficou gelado, com os olhos fixos no desenho. Silver viu que todo seu corpo tremia.
Levantou o olhar lentamente; uma tormenta de emoções enchia seu belo rosto. Incredulidade,
confusão, ira… todo isso estava escrito no rosto que olhava Bram.
—Deus Santo, é possível que o tenham visto? Ainda está vivo?
O gemido da cabeça de Silver aumentou de volume até fazer-se ensurdecedor. Fez-lhe um
nó na garganta. Tentou ficar em pé, só para perceber que suas pernas não podiam suportar seu
peso.
—Esse homem… é seu irmão?
Ian assentiu.
—Luc - sussurrou ela. Surpreendida. Furiosa—. Por que não me disse isso?
Os dedos de Ian se crisparam como se estivesse lutando com aquela notícia milagrosa que
acabavam de lhe dar.
—Meu irmão. Lucien Reede Tiberius Fitzgerald Delamere, marquês de Dunwood e
Hartingdale. —ficou olhando o esboço e seguiu meigamente as linhas das feições, embebedando-
se com a visão—. Desapareceu quando ia para seu clube sem uma palavra, sem uma pista, e nunca
voltamos a vê-lo. —Os dedos de Ian apertaram o caderno—. Não até agora.
Olhou Bram e Silver. Seus olhos cinza já não pareciam sonolentos, e sim implacáveis.
—E agora devem me explicar exatamente que é o que estão fazendo vocês dois com um
desenho de meu irmão em seu caderno.
Silver não ouviu nada mais. A sala começou a girar a seu redor.
Suas mãos se agarraram a seu peito.
Luc, OH, Luc, idiota. A quanta coisa renunciaste por honra. E quanto o amam todos eles.
Isso mudava tudo, é claro. O filho mais velho do duque do Devonham estava
completamente fora de seu alcance, queria jogar a ser bandido ou não. Não podia nem considerar
a idéia de que houvesse algo entre eles.
Tudo tinha acabado, acabado.
E com esse duro convencimento enchendo sua cabeça, Silver desmaiou. Mal viu os
cremosos casulos do tapete persa de valor incalculável que amorteceu sua queda.

Capítulo 34
Sua primeira impressão quando recuperou a consciência foi o caos mais absoluto.
As vozes se elevavam a seu redor, as cadeiras arranhavam o chão e ressonavam passos no
corredor.
Silver apertou as mãos contra sua avermelhada cabeça, lutando contra a dor que voltava
ao mesmo tempo que as lembranças. Luc…
Lucien Delamere.
Marquês de Dunwood e Hartingdale.
Céus, era o herdeiro do ducado de Devonham!
Abriu os olhos e viu o ansioso rosto de Ian flutuando sobre ela. Ele deu umas palmadinhas
em sua mão e sorriu.
—Espero que me perdoe, senhorita St. Clair. Foi muito desconsiderado de minha parte.
Minha única defesa é que não podia acreditar nisso não podia entendê-lo. Esperamos durante
cinco anos para encontrar alguma pista dele e já tínhamos perdido a esperança. E agora isto…
Olhou pela janela.
—Acredito que todos tínhamos nos rendido exceto Índia. E então, em um instante, ver
seu rosto me olhando das páginas desse caderno… bom, fez-me reagir dessa maneira.
Silver tragou suas lágrimas, dando-se conta agora do que lhe resultava familiar nele. Eram
suas orgulhosas maçãs do rosto, o ar sensual de seu carnudo lábio inferior. Agora que sabia que
era o irmão de Luc, a semelhança resultava tão clara que se perguntou como não se deu conta
antes.
—Não há necessidade de dar nenhuma explicação - disse com suavidade—. Deve ser uma
grande impressão para você.
—Essa não é desculpa para uma grosseria tão atroz. Espero que você e seu irmão me
perdoem.
—Bom, não sei se eles o farão, mas eu não. —Silver levantou o olhar para encontrar-se
com a duquesa de pé junto a Ian. Seus olhos brilhavam pelas lágrimas que não chegava a
derramar—. Tem as maneiras de um macaco, Ian. Agora vá. Os dois. Quero ter uma conversa com
a senhorita St. Clair. A sós.
Ian não se moveu, estudando o rosto de Silver e olhando-a fixamente no fundo dos olhos,
como se lesse ali coisas que ela não pudesse ou não soubesse como dizer com palavras. Depois de
um momento assentiu ligeiramente e ficou em pé.
—Muito bem. Suponho que o jovem Brandon desfrutará dando uma olhada à estufa. —
Sorriu-lhe com ar conspirativo ao irmão de Silver—. Temos uma coleção de cítricos bastante
impressionantes aqui em Swallow Hill. Você gostaria de dar uma olhada a nossos aparelhos de
destilação?
Bram assentiu, dividido entre o êxtase e o que ainda ficava de sua vergonha.
— Se eu gostaria? Necessitarão uma carruagem e oito cavalos para me arrancar dali!
—Então vamos. —Ian e sua avó trocaram um olhar breve mas significativo antes que
conduzisse Bram fora da sala.
A duquesa se sentou junto a Silver. Tinha as costas muito retas e suas mãos se moviam
sem parar sobre sua bengala, até que ao fim ficaram quietas.
—Assim que o ama, não é?
A franqueza da pergunta deixou Silver sem fôlego. Sentiu que suas faces ardiam. Tão
óbvio resultava? É que o tinha escrito na testa para que todo mundo visse?
Ela baixou o olhar e o fixou no amplo tapete.
—É muito complicado, Excelência.
—O amor é sempre complicado, querida - disse a mulher com suavidade—. E como vai
esse meu exasperante neto? Ama você também?
Um leve sorriso brincou com seus lábios.
—foi muito longe para me assegurar que sim, Excelência.
—Se for assim, é a primeira vez que o menino mostrou um pingo de bom senso. —
Estendeu a mão e pôs seus frágeis dedos sobre os de Silver—. Desde o momento em que l vi você
e a seu irmão ali, na loja, soube que de alguma forma eram especiais. Quase… sim, é como se
quase tivesse sentido Luc me dizendo isso.
Ela enxugou uma lágrima de um de seus olhos e depois pigarreou.
—Assim é verdade que está vivo. E como vai, como está o condenado? Está bem? Falou
alguma vez de nós? E por que nunca tentou entrar em contato com a família?
Silver retorceu os dedos em seu regaço. Por onde começar? Luc tinha escolhido não
contar a sua família qual tinha sido seu destino por razões que só ele conhecia e ela não podia
revelar um segredo que não lhe pertencia.
A história teria que sair do mesmo Luc, a seu tempo e a sua maneira.
—Está vivo, Excelência. E está bem.
—E? —Os dedos da duquesa apertaram o cabo da bengala—. Onde está, maldição? Por
que se mantém afastado de nós?
—Eu… temo que não posso dizer mais que isso. Acredito que Luc tem suas razões para
não contatar com vocês e toda a história de suas… peripécias terão que sair de seus lábios.
A boca da duquesa se converteu em uma fina linha por causa do aborrecimento. Silver
esperou o arrebatamento.
Mas a anciã só suspirou.
—Irritante criatura! Mas entendo por que o ama, querida. É tão obstinada como uma
mula e têm um sentido da honra tão refinado como o de Luc. Sim, é um bom par para ele. E não
tenho nenhuma dúvida de que meu neto é uma presa difícil de caçar. —Seus olhos brilharam por
um momento—. Embora possivelmente já o tenham caçado.
A duquesa tocou o rosto de Silver. A anciã viu o amor e a saudade ali. Também a
ansiedade.
—Está em perigo, não é?
Silver assentiu.
—E esteve em perigo.
Outro assentimento por parte de Silver.
—Céus, se o tivéssemos sabido. —Sacudiu a cabeça—. Mas não farei mais pergunta se
sentir que não pode me contar. Só me diga como posso ajudá-lo. Todos estamos preparados em
qualquer momento para ajudá-los, a ele e a você, da maneira que possamos.
—Devo voltar para Kingsdon Cross. Meu irmão e eu temos uma mensagem que devemos
levar a Luc o mais rápido possível. Necessitarei uma carruagem rápida para nos levar até ali.
—Darei a ordem aos estábulos - disse a duquesa sem duvidar um segundo—. Mas não
pode ir ainda. —Encheu outra xícara de chá e a deu a Silver—. Beba isto. E depois quero que coma
algo desse presunto aí e outro pedaço de bolo de nozes antes de considerar a idéia de deixá-la ir.
Os lábios de Silver se curvaram.
—Que obrigação mais terrível! —Seus olhos se obscureceram—. Todos vocês são muito
amáveis.
—Tolices - disse a duquesa, golpeando o chão com a bengala para dar ênfase a suas
palavras—. O dia acabou sendo monstruosamente agradável. E por quê? Tudo por você e seu
irmão, senhorita St. Clair. Nós deveríamos agradecer porque não recordo quando foi a última vez
que senti tantas emoções em um só dia.

—fez o que?
Luc estava de pé em uma ruela sombreada que saía da rua principal de King's Lynn. Tinha
as mãos nos quadris e seu rosto estava tenso pela ira ao olhar Connor MacKinnon e ao pequeno
menino de ruas que tinham frente a ambos.
—O menino acaba de lhe dizer isso, Luc.
—Sim, senhor. —O pivete não parecia absolutamente assustado pela irada pergunta de
Luc—. Quieta como uma morta, assim estava. Ali, no meio da rua. E não se moveu, nem um
centímetro. Simplesmente apontou com a pistola ao homem do carro que ia diretamente para ela.
E esteve a ponto de atropelá-la, sim. Mas não pôde; ao menos não comigo pendurando em seu
pescoço - concluiu o moço com orgulho.
—Mas por quê? —Luc passou os dedos pelo cabelo, irritado—. Que demônio a havia
possuído para chegar a fazer uma loucura como essa?
O menino entrecerrou os olhos.
—Disse que o homem da carruagem era algo assim como um traidor e que tinha uma
informação que ela necessitava.
Luc ao fim entendeu e essa certeza encheu seus olhos.
—Não quis esperar. A maldita mulher veio atrás dele sozinha - disse pensativo.
—Atrás de quem? —perguntou Connor.
—Não importa. —Luc estudou o pivete—. E esses nobres amáveis dos quais falas, a
levaram em uma carruagem? —Sua voz se endureceu—. A um lugar chamado… Swallow Hill?
—Sim, havia muitos ao seu redor. Inclusive o próprio príncipe estava ali. Levaram-na a
algum lugar chamado Swallow Hill, isso é o que disseram —anunciou o menino alegremente—.
Explicaram que estava a menos de uma hora ao leste e que ela precisava descansar. Senti vê-la ir-
se. Era uma verdadeira mulher, essa jovem.
Luc pôs uma mão forte no ombro do menino.
—É um bom menino. Não tenho nenhuma dúvida de que lhe salvaste a vida.
O menino avermelhou por completo e seus olhos se abriram muito quando Luc deslizou
em seus sujos dedos três peças de ouro. Isso era mais do que aquele miserável tinha visto em seus
dez anos de vida.
—Qualquer outra coisa que possa fazer por você, senhor, não tem mais que me dizer.
Estou inteiramente a sua disposição.
Luc entreabriu os olhos, pensativo.
—Possivelmente haja algo… - Olhou à rua abarrotada, concentrado em seus
pensamentos—. Esse armazém que estavam vigiando… Quero que você e seus amigos sigam
jogando um olho enquanto eu arrumo uns assuntos. Eu enviarei alguém logo, mas, enquanto,
preciso saber todas as pessoas que entram e saem e exatamente o que é que levam. Acha que
poderão fazer isso?
—Fazer isso? —O menino riu—. Pode considerá-lo feito.
O pivete saiu correndo com o entusiasmo marcado em cada linha de seu robusto corpo
enquanto Luc seguia de pé, imóvel, observando a rua.
—O que fazemos agora? —perguntou Connor.
—Parece que Silver e Bram já conseguiram fazer o trabalho por mim. Tenho que ir atrás
dela. A Swallow Hill. —Luc soltou uma maldição—. Quero que termine, Connor. Quero que
termine de uma vez por todas para não causar mais dor a minha família. —Suas mãos se
converteram em punhos.
O herdeiro de um dos títulos mais antigos da Inglaterra e de um legado que incluía três
castelos, cinco propriedades, meio milhão de acres na Inglaterra e Escócia e uma das melhores
coleções de arte sobre a face da terra olhou inexpressivo a seu amigo—. Deus, como posso voltar?
Sabe o que ocorreu em Argel, Connor. Deus Santo, sabe as coisas que me aconteceram ali e as que
me vi obrigado a fazer para nos manter vivos a mim e a Jonas. Como posso voltar a olhá-los depois
de tudo isso?
Passados uns segundos seu amigo sorriu.
—Não é tão difícil. Só precisa pôr um pé justo diante do outro. E seguir fazendo-o mesmo
que doa, mesmo que a dor cresça até que ache que vai morrer dela. Só tem que seguir pondo um
diante do outro e antes que se dê conta o pior terá acontecido e finalmente estará onde queria
estar.
Luc arqueou as sobrancelhas.
—Fala por própria experiência, Connor MacKinnon?
—Sim - afirmou o enorme homem de largos ombros—. Todos têm segredos, Luc
Delamere. O caso é, meu estúpido amigo, que nossos segredos nos fazem o que somos. Só que —
acrescentou Sorrindo— a alguns de nós custa um pouco mais nos dar conta desse fato.

Apesar dos ansiosos protestos da duquesa, Índia e Ian, Silver se negou que a
convencessem para não voltar para Kingsdon Cross.
—Mas está muito pálida, moça - disse a duquesa, irritada—. Não sei o que pode ser tão
importante para que tenham que sair correndo desta maneira.
Mas Silver queria contar a notícia desse encontro ao Luc em pessoa. E também estava a
urgência que tinha os documentos que tinham roubado em King's Lynn. Embora as fileiras de
números não tivessem sentido para Bram nem para ela, esperava que fossem exatamente o que
Luc tinha estado procurando.
Silver se virou ao chegar ao pé da escada e lançou um último e prolongado olhar às
brilhantes paredes de Swallow Hill. Sempre recordaria aquela casa, sabia. Estava a ponto de subir
à carruagem quando ouviu uma correria a suas costas.
—Quando vamos? —perguntou seu irmão com impaciência.
—«Nos», não. Eu. Você fica aqui para descansar.
—E deixar que você se divirta sozinha?
Possivelmente tinha razão, pensou Silver. Além de estar um pouco pálido, não parecia
que lhe tivesse afetado muito sua aventura. Graças a Deus não respirava com dificuldade nem
parecia esgotado.
Ainda estava mordendo o lábio enquanto tentava decidir o que era melhor, quando seu
irmão tomou as rédeas do assunto. Agarrou-a, subiu-a à carruagem, saltou atrás dela e fechou a
portinhola.
Fora, no caminho, a duquesa estava imóvel com as mãos apoiadas na bengala.
—Voltem a nos ver - disse com um fio de voz—. Voltem para Swallow Hill. E, por favor…
tragam Luc com vocês - concluiu.
Silver assentiu, sentindo como as lágrimas apareciam em seus olhos.
Nesse momento Bram já tinha dado ordens ao cocheiro e os cavalos começaram a andar;
Silver já estava a caminho pelo atalho de cascalho em direção a sua casa.
Enquanto passavam a seu lado rapidamente as verdes colinas, Silver pensou na última
entrada do diário de seu pai, a que tinha feito no dia anterior a sua morte. A dor atendeu a
garganta ao recordar as letras grosseiramente rabiscadas, tão diferentes da sempre elegante
escrita de seu pai.
Tinham-no perseguido. Tinha temido por sua vida.
Vinham por ele e ele sabia…

Não tenho mais tempo.


Ao fim conseguiram escapar de meus truques. O último carregamento acaba de chegar e
os distraí tudo o que pude, mas agora insistem em examiná-lo eles mesmos.
Me recorde, minha querida Silver. Recorda o sol de verão sobre a lavanda e o suspiro do
vento ao passar entre nossas rosas. Recorda as coisas boas e não como trocaram ao final.
Estarão aqui logo, mas não posso seguir jogando este jogo durante mais tempo. Estou
cansado, terrivelmente cansado. Esta noite me pareceu ver minha querida Sarah outra vez. Estava
junto à madressilva e me fazia gestos, sorrindo-me como sempre o fazia.
Nesse momento soube que tinha chegado minha hora.
Assim não os enfrentarei quando vierem. Bram e você estarão seguros com seu tio
Archibald e com o bom e honesto Tinker. Reza para que eles estejam contigo até que descubra
estas palavras.
Um ruído.
Já vêm.
Não tenho mais tempo.
Minha querida menina, dá um beijo em Bram de minha parte. Sabem que sempre os
amarei…

Silver ficou olhando a paisagem esfumada, enxugando as lágrimas dos olhos.


Bram a olhou ansioso.
—O que aconteceu, Sil? É algo sobre Luc?
—Não aconteceu nada, carinho. Logo estaremos em casa. Então tudo estará bem.
Encontrarei-os, pai. Descobrirei por que. E me ocuparei que não vençam desta vez! Mas
antes tenho que salvar a alguém que amo.

Ian Delamere entrecerrou os olhos ao ver afastar a carruagem que já ia tomando


velocidade.
—O que aconteceu, Ian? —perguntou sua irmã—. Parece um cão com pulgas.
—Não permitirei que minha neta fale dessa forma tão inculta - disse a duquesa, lançando
um olhar irritado Índia.
Ela, sabendo que o aborrecimento de sua avó tinha mais que ver com a partida de Silver
que com algo que ela pudesse dizer, simplesmente sorriu.
—OH, pobre vovó. É certo e sei. Ian esteve carrancudo desde que ouviu falar de Luc. E
não entendo por que, já que se tratam das melhores notícias imagináveis. Não me importa o que
tenha feito ou o que tenha sido. Nem tampouco que não haja tornado junto a nós antes. Tudo o
que quero é tê-lo de volta.
—Bem, moço? —A duquesa olhou Ian—. Talvez fosse melhor que nos explicasse isso.
O alto oficial de cavalaria deu um chute a um calhau com a ponta de sua bota bem
lustrada.
—teve a oportunidade de ver o outro esboço do caderno do jovem Brandon?
A duquesa franziu o cenho.
—Não.
—Bom, pois eu sim - disse Ian com secura—. E reconheceria essa cara alargada e essa
boca arrogante em qualquer lugar. Era Damián Renwick. E o que quero saber é como Luc se viu
comprometido com um canalha como Renwick.

Os olhos de Índia se abriram de par em par.


—Este Renwick, não é uma boa pessoa, não é?
Seu irmão soprou.
—Poderia dizer-se assim.
—É tudo tão confuso, não é? —disse Índia, feliz—. Mas será melhor que troquemos de
roupa e ponhamos algo mais prático. —Olhou sua elegante saia de seda com desgosto.
—Nem pensar de pôr de novo as calças de seu irmão, jovenzinha! —Um brilho atravessou
os olhos da duquesa de Cranford—. Como sua mãe e seu pai estão de viajem a Veneza, agora está
sob minha autoridade, e quero que recorde isso. E quando digo que não às calças de montar,
quero dizer exatamente isso.
—Já sei o que quer dizer, vovó. —Os belos olhos de Índia brilharam—. Mas temo que eu
também queria dizer exatamente o que disse. Além disso —acrescentou um momento depois—
tenho a sensação de que vou necessitar algum vestido mais prático. —Lançou um olhar cheio de
significado a seu irmão, que seguia olhando o caminho—. Volta para dentro a terminar o chá, Ian?
—dentro de um momento, bruxa. Primeiro tenho que mandar uma mensagem a Londres.
—Ian, sabe algo mais desse homem, Renwick? —A duquesa teve a precaução de guarda a
pergunta até que Índia desaparecesse.
—Sua ascendência é impecável, mas precisamente por isso há algo que não enquadrar
nesse homem. Ouvi rumores sobre ele quando estava na Península, e quando a gente ouve muitos
rumores, sempre está acostumado a haver algo de verdade neles. Esse homem tem algo
tremendamente turvo.
—E acha que Luc está comprometido de alguma forma?
—Não sei, vovó. Simplesmente tenho um mau pressentimento sobre tudo isto.
O que Ian não disse a sua avó é que ele só tinha tido esse pressentimento duas vezes em
sua vida. Um tinha sido justo antes de ver-se envolto em uma emboscada e quase assassinado em
um passo de montanha na Espanha. A outra, justo antes de saber que seu amado irmão mais
velho tinha desaparecido sem deixar rastro.
Como soldado Ian tinha suficiente experiência para não ignorar esses brilhos de intuição.
Decidiu enviar uma mensagem com uma pergunta a um velho amigo militar em Londres e ver o
que podia averiguar sobre Renwick.
Teria ajudado, claro, se Silver St. Clair tivesse confessado o paradeiro de Luc.
—E se a sigo, vovó? Só me custará umas horas averiguar onde está.
A duquesa suspirou.
—Não, ela foi categórica. Ela tem um ponto de honra… e ele também, suspeito. Mas se
Luc sentir que não pode confiar em sua própria família, que esperança fica? —Agarrou Ian pelo
braço—. Demos-lhe um dia ou dois. Acredito que a senhorita St. Clair virá nos ver se puder. Ou
enviará ao mesmo Luc.
Se é que ele pode vir, pensou Ian lúgubremente, perguntando-se em que tipo de
demoníaca espiral estava metido seu elegante irmão esta vez.

Estavam sentados tomando um jantar cedo quando algo que ocorria no caminho de
entrada chamou-lhes a atenção. A duquesa levantou a cabeça com surpresa momentos depois,
quando seu mordomo de cabelo branco entrou na sala de jantar com todo seu velho corpo
tremendo.
—É ele - gritou Jeffers com as sobrancelhas brancas arqueadas—. Aí fora. Agora… agora
mesmo! —O pobre homem parecia incapaz de falar duas palavras seguidas.
—Jeffers, esteve bebendo outra vez? —disse a duquesa com frieza.
—Não, Excelência. Mas o farei logo. OH, sim, farei-o! —Com esta escura afirmação o
mordomo se virou e abriu a porta da sala de jantar.
Uma alta figura coberta por uma capa se aproximou da porta. Suas botas estavam
cobertas de barro e tinha os ombros caídos pelo esgotamento da viagem.
Mas era impossível confundir esses maçãs do rosto ferozes e o toque sensual de seus
lábios carnudos.
Índia foi a primeira que conseguiu articular palavra. Levantou-se cambaleando, uma mão
sobre o peito e os enormes olhos azuis brilhando em seu rosto pálido.
—vieste! —exclamou—. OH, Luc, estúpido, ao fim vieste para casa, conosco!

Escondido atrás de uma fileira de altos salgueiros observou como a carruagem descia pelo
caminho. Uma hora depois viu que um só cavaleiro chegava galopando e girava para a casa que
dominava o vale.
Ficou olhando o cavaleiro, os punhos apertados, os olhos escuros ardendo. Pensou nas
intermináveis sessões de chicotadas que tinha tido que suportar quando seu prisioneiro ferenghi
escapou. Pensou nas brincadeiras, os abusos, a desgraça.
Mas nunca mais.
—Logo, ferenghi, será meu. E depois só haverá felicidade. Minha honra voltará a estar
intacta e devolverão todas as minhas posses. Mas para você, meu inimigo, não haverá felicidade.
—O brinco de ouro de sua orelha brilhou em contraste com sua pele queimada pelo sol e o vento
de deserto—. Sim, ri agora, inglês. Porque quando o tiver em minhas mãos de novo, não
conhecerá outra coisa que as lágrimas. E não haverá descanso no inferno ao qual eu vou levar
você.
Sim, a armadilha estava colocada.
O nó estava feito.
Logo o capitão da elitista guarda pessoal do Bey conheceria o doce sabor da vingança.

Capítulo 35
Ficou parado na soleira, olhando a sala.
Viu tudo o que havia a seu redor, fantasmas de uma felicidade passada, e ouviu os ecos
de umas risadas ouvidas muito tempo atrás. Nada tinha mudado. As janelas com batentes seguiam
brilhando como diamantes e os antigos tapetes de incalculável valor luziam como jóias à luz
oblíqua do sol.
Swallow Hill.
Esta era sua herança e a tinha negado. Essa era sua família e lhes tinha dado as costas.
E agora, apesar de todos os juramentos de Luc e todas as razões cuidadosamente ideadas,
havia retornado. Sabia que seu retorno os punha em perigo a todos, porque havia homens que
nunca se renderiam até que ele voltasse a estar cativo sob suas garras.
Mas não queria pensar nisso agora. Tudo o que ocupava sua mente era a dor do rosto de
sua irmã e a surpresa da de seu irmão.
—Índia - disse com um fio de voz—. Meu Deus, cresceste para se converter em uma
beleza. Me cegas.
Sua irmã cruzou a sala e se lançou diretamente a seus braços. Ele a agarrou pelos ombros
e a abraçou forte. Ela nunca tinha deixado de estar em seu coração em todos aqueles anos de
desespero, porque o antigo vínculo que os unia de algum jeito seguia vivo. Luc se perguntou que
parte de sua dor teria podido perceber ela durante todos aqueles anos.
Como se quisesse lhe responder, ela levantou a cabeça. Seus olhos estavam cheios de
lágrimas.
—Sabia - disse com voz entrecortada—. Sabia que estava vivo… mas em perigo, em grave
perigo todo o tempo. Disseram-me que perdesse a esperança, que não o esperasse, mas eu sabia
que se equivocavam.
Luc se inclinou e deu um suave beijo em seu cabelo ruivo.
—Tinha razão, carinho. Embora tivesse sido melhor que tivesse se rendido como todos os
outros.
—Nunca - disse ela com firmeza, com os dedos unidos aos seus.
E então Ian apareceu junto a eles, surpreso, feliz e terrivelmente confuso.
—Descarado sem cérebro! —grunhiu—. Enorme e miserável estúpido. Onde esteve estes
cinco anos? Inclusive para um libertino como você é muito tempo para passar jogando cartas.
Luc estendeu o braço e o pôs sobre o ombro de Ian.
—É uma longa história, Ian, e estou cansado da viagem. Meu Deus, cresceste. Não é
necessário perguntar como está, vê-se pela envergadura de seus ombros. —Entreabriu um pouco
os olhos—. A Península?
Ian assentiu.
—Nonagésimo quinto de infantaria.
—Quanto tempo?
—O mês que vem fará dois anos.
Ambos trocaram um olhar.
—Então estou seguro de que você também tem muitas coisas que contar, anão. —Havia
um tom de ironia na voz de Luc, já que Ian só era uns centímetros mais baixo que ele.
—E o que passa comigo? —A duquesa de Cranford se lançou à luta, suas frágeis mãos
apertando muito sua bengala—. Bom, bruto, não tem nada que dizer a sua avó?
Luc soltou seus irmãos e se aproximou da frágil anciã cujos olhos o olhavam
imperiosamente.
—Só que tem um aspecto fantástico, vovó. Seu vestido é de Madame Gres, não é? Fica
muito bem. Vejo que não perdeste seu gosto excelente.
—Vadio… - disse sua avó com a voz vacilante pelas lágrimas—. Mas não conseguirá me
enrolar esta vez. São respostas o que quero e isso é o que vou obter! Que demônios pretendia
estando longe e nos submetendo a esta tortura?
Ian se aproximou e apoiou o braço sobre as costas de Luc.
—Estou seguro de que nos dirá isso a seu tempo, avó.
Luc sorriu a seu irmão «pequeno».
—Já está liderando minhas batalhas por mim, Ian? Ainda posso recordar quando era justo
o contrário.
—Parece poder liderar suas batalhas por ti mesmo perfeitamente - disse Ian com
franqueza.
—E… pai? A duquesa? Digam-me, como se encontram?
—Bastante bem. Pai está de viajem em busca de antiguidades de novo e mamãe insistiu
em acompanhá-lo para lhe jogar um olho.
Luc exalou um suspiro de alívio.
—Ainda não posso acreditar nisso. —passou uma mão pela testa.
—Todos mudamos - disse Ian—. Mas vêem, tem a metade do pó de Norfolk nas botas.
Sente-se e se ponha cômodo. Direi a Jeffers que traga uma bandeja.
—Bom… - murmurou a duquesa—. Ele não tem direito a nada. Não depois de toda a pena
que nos causou!
Luc sacudiu a cabeça.
—Sempre foi um ogro, vovó. Ainda posso recordar quando me pegou escalando o grande
carvalho junto ao prado. Tinha levado a pistola de duelo de pai e estava lutando com um bando de
vorazes selvagens, segundo lembro. Acredito que ainda devo ter a marca de seus golpes nas
costas.
—Nenhum mais dos que merecia, moço. Essa pistola passou de uma geração a outra da
família Delamere há seis gerações e me custou muito evitar que caísse no lago.
Os olhos de Luc brilharam.
—Sempre teve muito boa vista. E suspeito que ainda a tem.
—me ponha a prova.
Luc abriu os braços. Em seguida se fundiram em um abraço, o pequeno corpo da avó
parecia ainda mais junto ao dele. Luc lhe rodeou os ombros com muito cuidado, dando-se conta
de tudo o que tinha mudado em cinco anos. Havia novas rugas ao redor de seus olhos e parecia
terrivelmente frágil.
Esses cinco anos tinham afetado a todos, observou Luc. Não só ele tinha sofrido. Talvez
houvesse outras formas de dor tão intensas como as que ele tinha conhecido. Mas, para bem ou
para mau, tudo já tinha terminado. Estava em casa outra vez e já tinha cruzado a ponte mais
difícil.
Se ficaria ou não, não sabia. Por agora tudo isto era suficiente.
Aplaudiu o ombro de sua avó e sentiu que ela se virava para olhá-lo. Sua cabeça mal lhe
chegava à parte baixa do peito.
—Não estou chorando - disse com ferocidade, inclusive embora se visse lágrimas correr
por suas faces—. Eu nunca choro. Sobre tudo não por um egocêntrico ingrato como você.
—Claro que não, vovó. —Luc sorriu para si mesmo, pensando em outra mulher que havia
dito palavras similares e roubado com elas seu coração—. Bom, onde está ela?
Uma luz travessa cruzou os olhos da duquesa.
—Ela?
—Não brinque comigo, vovó. Quero saber onde está Silver St. Clair.
—St. Clair? —A duquesa estudou Ian e Índia com atenção, atrasando-se muito na tarefa—
. Esse nome soa familiar a vocês, queridos?
Os irmãos de Luc eram suficientemente inteligentes para manter-se à margem dessa
mutreta.
—Vovó… - Havia uma clara ameaça no tom de Luc.
—OH, sim, agora parece que me soa familiar o nome. Uma garota encantadora… um
pouco obstinada, mas a mim isso nunca pareceu um defeito. Esteve aqui junto com esse
engenhoso irmão que tem. Recorda seu pai quando tinha sua idade. Embora o que apaixonava a
ele eram as antiguidades, claro.
—Vovó!
—Não me grunha, enorme urso. Não me assustam suas ameaças absolutamente. E essa
sua preciosa jovenzinha não está aqui. Dá a casualidade que partiu.
—O que fez?
Índia, sorrindo de orelha a orelha, passou um braço ao redor de seu irmão.
—Ela é realmente bonita, Luc. Mas me diga, teve o «sonho»?
O rosto de Luc avermelhou levemente.
—Sonho? Não sei do que está falando, Índia.
—Claro que sabe, mentiroso. O «sonho» dos Delamere. O sonho que todos os Delamere
têm a noite seguinte ao conhecer seu amor verdadeiro. Mamãe nos disse que o espírito do
primeiro de nossos antepassados Delamere que pisou em chão inglês foi traído no amor e morreu
infeliz. Não recorda? Por culpa de sua infelicidade, sempre s aparece em um sonho para alertar a
seus descendentes de que acabam de conhecer o verdadeiro amor de sua vida. Assim eles não
cometerão seu mesmo engano.
O avermelhamento de Luc se fez mais patente.
—Não sei nada dessa louca história.
—Claro que sabe. Está se ruborizando como um colegial! Vê, Ian?
O soldado dos olhos cinza teve piedade de seu irmão e lhe deu um puxãozinho de cabelo
brincalhão em Índia.
—Não, não o vejo, descarada. Só é sua imaginação.
—Não é! OH, malditos homens. Vovó, você vê, não é?
A duquesa de Cranford apertou os lábios, estudando seu neto mais velho. Não ia deixar
que o menino se livrasse tão facilmente, isso era seguro.
—Talvez.
—Maldição, vovó, e aonde foi?
—A senhorita St. Clair voltou para Kingsdon Cross.
—fez o que?
—Carinho, de verdade, está começando a se repetir. A senhorita St. Clair insistiu em nos
deixar logo que pôde. Disse-me que tinha uma informação importante para você.
—Faz quanto que se foi?
—Duas horas mais ou menos.
—A tola imprudente. —Uma ruga apareceu entre os olhos de Luc—. Tenho que ir já.
A duquesa começou a protestar, mas Ian lhe tocou o ombro.
—Luc sabe o que tem que fazer, vovó. Será melhor que peça ao cozinheiro que faça um
pacote com um pouco de comida para que ele possa comê-la pelo caminho.
—Bom… - A duquesa olhou Luc—. Suponho que isso é o que devo fazer. Mas será melhor
que não esteja longe de nós outros cinco anos, jovenzinho!
—Nem me ocorreria. —Mas o sorriso de Luc não chegou a seus olhos. Seus pensamentos
já corriam diante dele, pela estrada que levava a Kingsdon Cross.
—Há outra coisa que deve saber - disse Ian em voz baixa—. O irmão da senhorita St. Clair
leva um caderno com ele. Entre outras coisas há nele um esboço de seu rosto; foi assim como
conseguimos estabelecer a conexão entre eles e você. Mas há outro retrato no caderno. —Os
olhos do Ian se endureceram—. O do Damian Renwick.
Luc soltou uma maldição.
—Suspeito que tenha algo que ver com o incidente de King's Lynn, quando a carruagem
quase os leva para diante.
—Renwick conduzindo uma carruagem? —Luc sacudiu a cabeça—. Isso não é muito
provável.
—Temo que não possa dizer mais. Tudo tinha terminado quando chegamos até ela e o
homem se esfumou. Talvez devesse lhe tirar mais informação, mas confesso que não pensava com
claridade uma vez descoberto o caderno. —Ian estudou Luc—. Vê, acabava de descobrir que meu
irmão mais velho não estava morto, como se supunha que estava faz muito tempo.
A boca de Luc se endureceu.
—Eu… sinto muito com toda minha alma. Por todos vocês. Mas não posso dizer que não
volte a fazer o mesmo de novo. Há razões, Ian, coisas que ainda tenho que solucionar.
—Não há necessidade que me explique - disse isso Ian entre dentes—. Não estou seguro
de que suas razões para fazer o que tem feito sejam as melhores, mas a próxima vez trate de não
subestimar sua família, maior estúpido.
Índia se levantou e colocou a mão sobre a face de Luc.
—Mas não vai haver uma próxima vez. Seguro que não, Luc.
—Espero sinceramente que não. —A voz de Luc soava triste inclusive ao tentar
tranqüilizá-la—. Mas devo os advertir que desde que conheci a senhorita Silver St. Clair minha vida
parece haver saído completamente de minhas mãos.

Luc pensou nessas palavras uma e outra vez durante a longa e poeirenta viagem desde
Swallow Hill, em direção sul, até o Kingsdon Cross. Não eram certas, é obvio. Seguia tendo
controle sobre sua vida. Mas Silver tinha pulverizado a maioria de suas antigas crenças, tinha
posto sua vida de pernas para o ar e tinha dado a volta a seu coração, e isso fazia que às vezes
sentisse que todo saia de suas mãos.
Mas valia a pena, decidiu Luc. E ia fazer tudo o que pudesse para proteger essa
incorrigível mulher de todos os perigos que lhe sobreviessem.
Gostasse a ela ou não.

As botas de Luc estavam cheias de barro e seu rosto mostrava todo seu cansaço quando
subiu pelo pendente da colina que levava a Lavender Close, três horas depois de começar sua
viagem. Desceu do cavalo e se dirigiu diretamente às oficinas da estufa. Quando chegou à soleira
sentiu que algo frio e malvado lhe percorria as costas.
Havia estantes derrubadas, mesas derrubadas e plantas pulverizadas por toda parte. O
chão estava cheio de terra e a água se encharcava em uma das paredes.
O medo o atendeu.
—Silver?
Um grunhido chegou detrás de um pinheiro que havia em um vaso de barro.
Tinker!
Luc se aproximou da parede mais afastada e encontrou Bram, sentado com um braço ao
redor do velho criado, que tinha o rosto muito pálido e sangue saindo de sua testa.
—Meu Deus, pode falar? Pode me dizer o que aconteceu, Tinker?
—Havia… três homens - disse o homem com dificuldade—. Abordaram-me por trás
quando estava limpando o maldito aparelho de destilação. Estavam… procurando algo, e não eram
as malditas flores, isso posso assegurar. Deixaram-me inconsciente depois de arrasar tudo. Depois
disso não recordo nada. O jovem Bram me encontrou faz um momento.
—Mas Silver… onde está Silver? —A voz de Luc soava tensa pela impaciência.
Foi Bram quem respondeu. Assinalou o escritório de Silver.
—Havia uma nota ali quando chegamos. Ela a agarrou e soltou uma exclamação. Depois
saiu correndo. Nada do que disse a deteve. Não sabia o que fazer e então… Tinker despertou,
murmurando e coberto de sangue e…
—Não se preocupe - disse Luc tranqüilizador. E vendo a culpa terrível que enchia os olhos
do Bram, prosseguiu—. Ninguém pode deter Silver quando coloca uma idéia na cabeça. Mas será
melhor que de uma olhada a essa nota da qual fala. —Luc encontrou um pedaço de papel de vitela
enrugado e estudou o conteúdo rabiscado nele.

Minha querida Silver:


Necessito sua ajuda.
Tenho descoberto algo. Algo… incrível.
Algo sobre o segredo da morte de seu pai.
Vêem se encontrar comigo no velho moinho antes do crepúsculo.
Luc.

Os dedos do Luc se crisparam.


Seu nome, mas não sua letra. Mas como ia Silver saber isso?
Sentiu que o medo crescia com uma má erva escura e desagradável em seu interior.
Quando saiu da sala um momento depois, sua cara era dura como o granito.

Capítulo 36
Ondas que rompiam contra a água.
O grasnido das gaivotas de algum lugar distante.
O som dos remos ao entrar na água e tomar impulso.
Ainda enjoada, Silver abriu os olhos à escuridão. Tinham-na apanhado quando corria
pelas sebes que rodeavam o antigo moinho. É claro, Luc não estava ali. No mesmo segundo em
que os viu amaldiçoou a si mesma por ter demonstrado ser uma tola infantil. Luc nunca teria se
encontrado com ela em um lugar como o velho moinho, onde pudesse encontrar-se em perigo. E
por que não tinha pensado nisso antes? Por que não se deu conta de que não podia confiar em
nenhum outro homem tanto como em Luc?
Mas agora era muito tarde, pensou Silver, limpando um fio de sangue. Estava amarrada
como um frango e jogada na parte traseira do que parecia um bote de remos que abria caminho
na escuridão. Ouviu vozes murmurando perto, junto com o contínuo som dos remos. Sem prévio
aviso, umas rudes mãos a levantaram no ar e a colocaram dentro de um enorme saco de farinha.
Revolveu-lhe o estômago e lhe deram náuseas. Viu-se balançada para frente e para trás
enquanto pendurava do ombro de seu captor. Ouviu o chiado de uma porta ao abrir-se e madeira
arranhando contra pedra. Depois a atiraram no frio e duro chão. Uma folha de aço fez um buraco
no vasto tecido do saco.
No momento seguinte, Silver estava olhando, meio cega, a chama de uma vela.
—Ah, bem-vinda, querida.
Sem deixar de piscar, Silver ficou em pé e olhou o homem que tinha ante ela. Um só
brinco de ouro brilhava em sua orelha e mostrava um duro olhar de olhos negros em sua cara
morena.
—Quem demônios é você? —exclamou Silver, embora tivesse as pernas tremulas e mal
podia manter-se em pé.
O homem jogou atrás a cabeça e riu.
—O que acontece? Não tem medo? Excelente. Isso me resulta muito divertido em uma
mulher.
—Bom, seguro que você não gostará tanto se tratar-se de mim —disse Silver entre
dentes, lançando o pé para tentar lhe dar um chute. Mas falhou e a resposta do homem foi lhe
atar as mãos diante dela com uma corda suave.
—Aí; assim está muito melhor - grunhiu—. Isso conseguirá que não dê tanta guerra.
—Não conte com isso - espetou Silver—. Quem é?
O homem cruzou os braços e ficou olhando com os olhos entreabertos.
—É claro, deixa que me presente. Sou Hamid bin Salim, o capitão da guarda pessoal do
Bey do Argel. E agora que fui tão sincero contigo, acredito que é momento que você me responda
algumas pergunta, inglesa.
—Quando as rãs criarem cabelo!
—Uma tigresa, ninguém poderia negar - disse seu captor em voz baixa—, mas me
pergunto se parecerá tão fera dentro de uns minutos.
O coração de Silver se acelerou. Não era possível que tivesse também Bram, não é? Sentiu
como lhe afrouxavam os joelhos ao pensar que seu irmão poderia pagar o preço de seu
atrevimento, mas não ia demonstrar aquele vilão que estava assustada.
—Duvido - respondeu com atitude.
—Que pouco agradáveis são as mulheres inglesas - murmurou seu captor agitando a
cabeça—. Nossas mulheres são muito mais complacentes, graças a Alá.
—Graças aos açoites e aos animais como você - murmurou Silver.
Seu captor só l sorriu.
—O que quer de mim? —inquiriu.
—É muito simples, realmente. O primeiro que quero são os registros que levava seu pai,
senhorita St. Clair, incluindo seu diário e seus informes. E depois quero o carregamento de ouro
que escondi nas últimas caixas de lavanda que chegaram do Mediterrâneo no dia de sua morte.
As mãos de Silver se converteram em punhos. De repente outra peça do quebra-cabeça
se colocava em seu lugar. Esse era um dos homens que tinham estado perseguindo seu pai e o
obrigando a participar de seus negócios ilícitos.
Mas ela fingiu ignorar tudo.
—Eu não sei nada de um carregamento de ouro, animal. Estudei com muito cuidado os
papéis de meu pai depois de sua morte e não encontrei nada que falasse de ouro, asseguro-lhe.
Mas seguro que isso já sabe, já que assaltou as oficinas em sua busca.
—OH, sim, procuramos e não encontramos nada, querida senhorita St. Clair. Mas só um
tolo deixaria uma riqueza como essa em um lugar onde qualquer estranho pudesse encontrá-lo. E
você, querida, não é nenhuma tola, acredito. —Os olhos de Hamid não abandonaram o rosto de
Silver nem um momento enquanto tirava uma adaga adornada com pedras preciosas de seu bolso.
A folha curvada estava polida, um brilho prateado letal. Ele sorriu e a aproximou da garganta de
Silver.
—E agora acredito que chegou o momento das respostas, ferenghi. Onde seu pai
escondeu o ouro?
—Não havia ouro, já lhe disse isso! Se tivesse havido, não acha que o teria usado?
O corsário da Berbería deu de ombros.
—Se for tão preparada como acredito, utilizá-lo seria quão último faria. Tive homens
vigiando Lavender Close durante muito tempo, é lógico. E seguro que você terá suposto que isso
seria assim.
Silver olhou Hamid.
—Deixe-me ir. Eu não tenho nada seu!
O corsário sorriu com frieza.
—OH, mas isso não é certo, senhorita St. Clair. Tem perto de mil libras em ouro.
—Mente!
—Ao contrário. Estavam escondidas entre os galhos e as plantas dos dois últimos
carregamentos de seu pai.
—Não tenho esse ouro, já lhe disse isso!
—Que desgraça que prefira se mostrar obstinada como seu pai! —Estudou-a por cima de
seus grossos dedos—. E que má sorte tive eu de que os homens que enviei a tratar com seu pai
fossem assim estúpidos.
—O que quer dizer?
—Suas mentiras começam a ser cada vez piores, ferenghi. Mas repetirei de qualquer
maneira, só para lhe refrescar a memória. Quando seu pai começou a mostrar-se resistente a
cooperar, enviei homens para raptá-lo. Suas viagens de negócios e seus carregamentos era uma
reclamação irresistível para nossos propósitos, suponho que o compreenderá. Ele não podia
negar-se a aceitar nossas ofertas - explicou Hamid com frieza.
—Mas se negou! Ele nunca teria nada que ver com um animal marinho como você! —
cuspiu Silver com os olhos cintilantes.
—OH, sim que teria tido, querida. Depois de umas semanas sofrendo nosso refinado tipo
de tortura, teria acessado a qualquer coisa que pedíssemos - riu Hamid—. Desgraçadamente os
homens que enviei a capturar a seu amado pai se confundiram de homem. Só são homens do
deserto, depois de tudo, e com esta maldita névoa inglesa se confundiram e levaram um homem
mais jovem que usava um cravo vermelho em vez de seu pai que usava uma rosa vermelha.
—Luc - disse Silver surpreendida ao ver resolvido o mistério. Seu pai estava acostumado a
usar uma rosa vermelha na casa. Luc só teve a má sorte de andar pelos arredores com um cravo
vermelho na lapela.
—Sim, levaram o elegante marquês de Dunwood em vez de seu pai. Quando descobri o
engano, já era muito tarde. O cativo levava fora de circulação mais de um ano por ordens
expressas de nossos amigos de Londres. Não queriam que ele andasse por aí contando a todo
mundo o que tinha descoberto, suponho me compreende. Quando nos demos conta do engano,
mandamos outros homens atrás de seu pai. Mas seguiu sem aceitar nossa oferta. A resposta foi
rápida e definitiva.
—Matou-o! —voltou a cuspir Silver.
—É claro que o fiz, querida. Essa é a pena por trair o Bey.
Pergunta que tinha atormentado Silver durante cinco longos anos lhe escapou dos lábios.
—E por que meu pai? Ele não sabia nada de seus assuntos. Não tinha nada que ver com
tudo isto.
—Porque resultava o meio perfeito para que pudéssemos enviar o ouro a Inglaterra, bem
escondido na terra dos viveiros que trazia de suas longas viagens nunca se detectaria.
A Silver não restou mais que maravilhar-se ante o brilhantismo do plano.
—A ninguém ocorreria ficar a procurar entre fileiras de vasos ou bolsas de sementes.
—Exato. Cada ano aumentava nosso carregamento de ouro. Nossos amigos de Londres
foram se preocupando cada vez mais que pudesse se descobrir sua conexão com o assunto, assim
exigiam que os pagamentos se realizassem de forma infalível. Utilizar os carregamentos de seu pai
foi idéia dele.
—De quem? —disse Silver entre dentes—. Quem o planejou?
—Lorde Renwick, é claro. O homem a quem seu inteligente irmão esteve a ponto de
capturar em King's Lynn. Sim, é uma mulher com muitos recursos, senhorita St. Clair. Nem sequer
se arredou quando enviamos homens a afugentá-la de sua propriedade. —Ficou olhando um
momento entreabrindo as pálpebras—. O certo é que quase me provocam a tentação de lhe levar
comigo e a dedicar a meu próprio prazer. Resultaria uma provocação interessante domesticar uma
inglesa. —Por um momento a lamina brincou rodeando seu pescoço—. Da mais excitante -
murmurou enquanto deixava cair a ponta até fazê-la descansar sobre seu coração.
—Nunca me submeteria a você, como tampouco o fez meu pai. Teria que me matar
primeiro.
—Bom, mas esta é uma possibilidade distinta. E acredito que tem razão. Não seria uma
contribuição amigável a meu harém. Só introduziria problemas. Assim negociaremos isto de forma
muito mais simples. Dará-me o diário de seu pai e meu ouro e eu a deixarei viver.
Silver o olhou fixamente.
—Esta foi uma discussão tremendamente agradável, mas só há um pequeno problema.
Não tenho nem idéia de onde se esconde esse suposto ouro, nem sequer se realmente existe.
A lamina do corsário pressionou com força contra seu coração e Silver fez uma careta ao
sentir uma pontada de dor.
—Dúvidas de que falo a sério, ferenghi? Talvez isto a convença. —Hamid deu a volta e
bateu palmas. Das sombras da parede mais afastada saíram à luz duas figuras. Silver reconheceu
um deles: era o homem que remava no barco que Bram e ela seguiram até King's Lynn. Mas e o
segundo?
Então lhe gelou o sangue nas veias. Entre os dois levavam outro homem. Um homem
desabado, inconsciente.
—Não - exclamou Silver sem fôlego, horrorizada—. Luc, não…
—Mas, é claro, querida. Quando seu inglês escapou de minhas garras, eu tive que pagá-lo
com acréscimo. E agora quero saborear minha vingança.
Silver se lançou para diante com os olhos ardentes.
—Animal! Você é quem lhe deu essas chicotadas tão cruéis! —Puxou grosseiramente a
corda que lhe atava os pulsos.
Os olhos frios do pirata a estudaram.
—Muito certo. E pretendo voltar a dar-lhe de novo agora. Estou seguro de que desfrutará.
—Fez um gesto com a cabeça e um dos homens atirou um balde de água no rosto de Luc. Meio
inconsciente, Luc cuspiu e se levantou, lutando contra as mãos que o agarravam.
—Amarrem-no - disse Hamid cortante—. Quando obedeceram sua ordem, afastou Silver
a um canto e se aproximou de Luc. De uma mesa que havia junto à parede agarrou um chicote de
caudas trançadas e salpicadas de discos de metal. O estendeu a seu imundo companheiro.
—Abdul, começa você.
Luc se retorceu para livrar-se de suas ataduras.
—O que quer, Hamid?
—Quero vê-lo sofrer, ferenghi. Vê-lo gritar e chiar, suplicando minha compaixão… que, é
claro, não vai obter. —Hamid se sentou em uma cadeira e começou a comer um bolo prensado
alternado com capas de massa de tâmaras.
—E, enquanto sofre, espero que a língua da mulher vá se soltando milagrosamente,
louvado seja Alá. E agora, comecemos. —Fez um gesto com a cabeça ao homem chamado Abdul.
O chicote cortou o ar e se incrustou nas costas de Luc, deixando a sua passagem linhas
sangrentas.
Silver abafou um grito e se lançou contra o corsário. O punho deste se estrelou contra sua
face e a atirou ao chão. Hamid nem sequer levantou o olhar ao golpeá-la. Mantinha os olhos fixos
em Luc.
Pela segunda vez ressonou o chicote. Desesperada, Silver olhou a seu redor e viu os
alforjes de Luc atirados em um canto. Rezando uma oração em silêncio, aproximou-se e conseguiu
abri-los enquanto tentava não pensar no cruel som do chicote de couro contra as costas de Luc.
Depois introduziu a mão em um dos alforjes e encontrou uma faca com o que cortou as
ligaduras de suas mãos.
Duas silhuetas ágeis apareceram pela abertura com os olhos atentos.
—Vamos - ordenou Silver com suavidade. Os furões ficaram olhando um momento com
as caudas arrepiadas. Depois partiram lentamente, farejando o ar.
De novo o chicote encontrou seu objetivo. Silver s estremeceu e seguiu procurando no
fundo dos alforjes. Não encontrou pistolas, só um pedaço de corda de cânhamo enrolado.
Agarrou-o com força e se voltou para estudar a sala. Sentado diante de Luc estava Hamid,
iluminado pelo brilho da única vela, Sorrindo enquanto acabava o bolo e via como o sangue corria
pelas costas de seu inimigo inglês.
Os dois furões estavam a caminho, como pôde ver Silver, o que só lhe dava uns
momentos para criar a distração que os bichinhos necessitariam.
Moveu-se em silêncio, com os dedos agarrando fortemente a corda. No momento em que
as mascotes de Luc se aproximaram dos homens que o custodiavam, ela se aproximou de Hamid e
pôs a corda ao redor do pescoço.
Ele ficou de pé em um instante e demonstrou uma força muito maior da que ela tivesse
podido imaginar. Amaldiçoando, agarrou a corda e se retorceu, quase deslocando o ombro de
Silver. Os olhos se encheram de lágrimas. Lutou por manter sua sujeição, mas a força do pirata era
muito forte. Com um puxão de suas enormes mãos rompeu o nó improvisado e a agarrou pelo
pescoço.
Uma chama de luz explodiu nos olhos de Silver. Sentiu como lhe oprimia a garganta e
sentiu um som ensurdecedor em seus ouvidos. Ouviu vagamente o grito de Luc e depois o ruído
amortecido de corpos ao cair.
Mas era como se tudo isso acontecesse a uma grande distancia, muito longe dela e do
som que lhe enchia a cabeça.
A escuridão começou a rodeá-la. Viu a vela que dançava na mesa. Apertando os dentes e
lutando para reunir suas últimas forças, lançou um chute e atirou a vela, mandando-a ao chão
dando voltas.
Instantaneamente a sala ficou às escuras.
De alguma forma, Silver conseguiu manter-se em pé, chutando e retorcendo-se contra as
mãos letais que já não podia ver. A suas costas soaram gritos e o som de uma briga selvagem.
Sorriu, sabendo que os furões estavam fazendo seu trabalho. Só rezou para que tivessem chegado
a tempo.
E, de repente, Silver se sentiu livre. Os dedos de sua garganta tinham desaparecido.
A voz de Hamid ressonou na escuridão.
—Não tem nenhuma escapatória, inglês. Deixa seus inúteis esforços e se submeta a mim.
Então talvez possa mostrar um pouco de clemência com a mulher, fazendo que sua morte seja
rápida e limpa, em vez da cruel agonia que planejei para você.
Apertando os dentes para suportar a dor de sua garganta, Silver se moveu até que
encontrou a parede. Trovejaram ordens em uma dura língua estrangeira e ressonaram as botas
contra a madeira. De algum lugar a sua direita chegou um chiado agudo e uma dura maldição de
um homem quando um dos furões encontrou sua presa. Silver esperou em tensão, rezando para
que Luc tivesse conseguido liberar-se.
Um momento depois sentiu o roce quente do cabelo contra sua face e o peso de um
pequeno corpo no ombro. Uma coisa suave a rodeou no pescoço. Sorriu com os olhos chorosos,
deu-lhe uns tapinhas no furão vitorioso e seguiu esperando alguma sinal de Luc, o sangue lhe
pulsando nos ouvidos.
Mas não houve nada.
Com cada pulsado a espera se fazia mais dura. Cada segundo era uma agonia. Estava a
ponto de encarregar-se da situação e ir em busca de Luc, quando uns dedos calejados lhe
rodearam as mãos. Tentou gritar mas uma mão lhe bloqueou a boca. E então Silver cheirou o
aroma familiar a limão e couro, com um ligeiro toque de brandy. O aroma de Luc.
Seu corpo perdeu toda a tensão pelo alívio. Uns lábios, quentes de aproximaram de seu
ouvido.
—Não se mova - sussurrou—. Não faça nem um ruído.
De repente soou um disparo na escuridão e uma bala passou assobiando junto ao ombro
esquerdo de Silver. Sentiu como Luc se esticava a suas costas. Puxou-a em segundos para o chão
antes que outra bala assobiasse só uns centímetros mais à frente.
Luc soltou uma maldição. Outro disparo se estrelou diante deles.
—Fique perto! —sussurrou—. Vamos sair daqui.
Mas antes que pudessem mover-se ouviu o estalo da pederneira e a luz encheu a sala.
Silver piscou para adaptar-se à dolorosa luz. Viu muito tarde o brilho do brinco de ouro. Muito
tarde os lábios duros curvados em um sorriso cruel.
E então sentiu que puxavam ela para trás com uns dedos cruéis enquanto a risada de
Hamid ressonava em seus ouvidos.
—Está perdido, inglês. Não pode esperar me vencer. E agora levarei a mulher a meu navio
e lhe mostrarei qual é o pagamento por uma traição como esta. Acredito que poderá ouvir seus
gritos daqui.
Gritou uma ordem a um de seus subordinados, que se moveu em direção a Luc com uma
pistola lhe apontando à cabeça.
Silver lutou e lutou, mas foi em vão. Puxou ela para as escadas e a meteu em um barco
que esperava. E desta vez não havia esperança de escapar, porque dois dos marinheiros de Hamid
estavam sentados no barco, sorrindo.

Capítulo 37
—Acredito que isso servirá bastante bem. —Ian Delamere cruzou os braços e olhou o
marinheiro sentado no convés do navio corsário. Junto a ele, Índia limpou o pó das mãos depois
de ter despachado outro marinheiro para um destino similar.
Os cativos já subiam a vinte.
Ian sorriu à luz da lua enquanto estudava seu extravagante exército. Justo atrás do alto
soldado, Jonas olhava ao redor com um olhar frio de triunfo enquanto Connor MacKinnon ia em
busca de uma corda. Bram e Tinker estavam subindo nesse momento depois de depositar outros
dois prisioneiros atados e amordaçados na adega.
Depois de tudo, tinham sido uns vinte minutos bastante afortunados. O navio estrangeiro,
ancorado em uma curva do rio, agora estava sob seu controle e toda a tripulação estava
prisioneira.
Ian não ficou de todo surpreso quando um cavaleiro subiu galopando a colina que levava
a Swallow Hill só uma hora depois da partida de Luc. Jonas Fergusson tinha estado esperando a
chegada de Luc e ao não produzir-se tinha mandado chamar Connor MacKinnon. Juntos tinham
saído a procurar do teimoso Delamere.
Connor tinha descoberto os rastros de Luc não muito longe do Waldon Hall e estes
demonstravam que seu cavalo se viu rodeado por outra meia dúzia deles. O rastro ia para o norte,
para um terreno isolado junto ao rio, não longe do lugar onde o rio Ouse desembocava no frio Mar
do Norte.
Ali encontraram o navio corsário ancorado, balançando-se pelas correntes.
Connor tinha ido a Swallow Hill em busca de ajuda, mas não tinha esperado uma reação
tão entusiasta. Inclusive Índia e a duquesa insistiram em unir-se no resgate.
E todos eles tinham tomado parte no ataque ao navio escondido. A duquesa esperava em
uma carruagem na margem com duas pistolas carregadas a seu lado, no caso de algum dos vilãos
tentasse escapar a pé por terra.
—E o que fazemos agora? —perguntou Bram ansioso—. Deveriam aparecer logo.
Ian se voltou e estudou o arruinado armazém. Entreabriu os olhos ao ver duas figuras que
deslizavam pelos desconjuntados degraus traseiros em direção ao bote de remos que esperava. O
reflexo da lua sobre a superfície da água fazia que resultasse difícil ver com claridade.
—Essa é Silver! —disse Bram convencido.
Ian franziu o cenho.
—E acredito que se dirigem para cá.
De repente outra figura saiu à escada que dava ao rio. Só estava a dois degraus do barco
quando soou um disparo.
Ian soltou uma maldição ao ver seu irmão cair.
Mas não havia tempo. O barco se aproximava.
Os dedos de Índia se esticaram sobre o rifle.
—Estão a menos de vinte metros, Ian; Posso derrubar o homem daqui.
—Será melhor que não nos arrisquemos, Índia, embora seja uma grande atiradora. A
menos que me equivoque, esse tipo tem uma pistola apontando à costas da senhorita St. Clair.
—E o que aconteceu com Luc?
—Iremos buscá-lo assim que a senhorita St. Clair esteja a salvo. Deveria saber que ele
quereria que nós fizéssemos isso.
Índia murmurou furiosamente.
—Mas não podemos ficar aqui e deixar que o homem escape!
—Tem razão nisso, carinho. Mas escapar não é o que eu tinha pensado - disse o alto
oficial de cavalaria—. Não, acredito que vamos dar uma surpresa a nosso desagradável amigo
quando subir a bordo. —virou-se com rapidez—. Ajudem-me a levar abaixo o resto dos homens.
Depois, isto é o que devemos fazer…

Silver ficou olhando seu captor com a fúria lhe brilhando nos olhos.
—Nunca se dará bem, verme! Em algum momento se distrairá e então eu o farei pagar o
que fez a Luc.
—Deixa já suas ameaças vãs, inglesa. —Hamid deu um selvagem puxão de cabelo em
Silver—. Já não diverte. Quando chegarmos a meu camarote eu lhe ensinarei a forma correta de
mostrar respeito a um homem.
Silver o olhou sem pestanejar. Alguém ia aprender algo sobre respeito, mas seguro que
não ia ser ela.
Tentou não pensar no disparo e no som que fez Luc ao cair. Ele chegaria até ela de alguma
forma, sabia que o faria. Até então ela tinha que concentrar-se em burlar esse filho de uma
serpente. Mas para isso necessitava tempo.
—E o que aconteceria se tivesse recuperado a memória? —perguntou
despreocupadamente—. Talvez tenha recordado onde enterrou meu pai esse ouro…
Os olhos de seu captor se entrecerraram.
—chegou um pouco tarde, senhorita St. Clair. Mas não importa, porque logo me revelará
tudo o que preciso saber. Depois enviarei meus homens a fazer-se com o tesouro. E todos seus
inteligentes intentos não poderão mudar isso.
O pequeno barco se colocou junto ao navio. Com uma horrível maldição, Hamid agarrou a
mão de Silver e a empurrou pela estreita passarela que havia diante dele. Silver titubeou, subindo
tudo quão devagar podia e fazendo caretas de dor cada vez que ele a cravava com a adaga nas
costas.
O convés estava em completo silêncio. Lançou um olhar rápido a seu redor e só viu
sombras.
Não havia tripulação.
Essa idéia a animou muito.
Atrás dela Hamid ficou tenso. Gritou uma enxurrada de ordens, mas não chegou
nenhuma voz em resposta do convés. Sem deixar de murmurar, o pirata a empurrou para a proa.
Pela extremidade do olho, Silver viu um leve movimento e durante um fugaz instante viu uma
mecha de cabelo. Cabelo que parecia ser ruivo.
O coração lhe deu um salto no peito. Uma onda de esperança a alagou.
De novo outro leve movimento, e desta vez Silver estava segura de ter visto Índia
Delamere escondida atrás de uma fileira de grosas caixas de chá de madeira.
Mordeu o lábio sem deixar de dar voltas à cabeça. Se tivesse uma pistola! Mas esses
animais a tinham amarrado, assim só ficavam suas brincadeiras.
Silver estava considerando qual seria a melhor forma de provocar que seu captor se
distraísse quando um segundo barco se aproximou do casco do navio. Um momento depois, Sir
Charles Millbank subiu pela prancha, ofegando e com o rosto vermelho de cansaço.
—vim por meu dinheiro, como prometeu, Hamid. Agora têm seu maldito bandido, assim
acredito que me deve o pagamento e a mulher.
A mulher? A boca de Silver se converteu em uma linha cheia de ira. Assim que esse porco
arrogante pensava que agora era dele?
Hamid se limitou a rir.
—De verdade pensou que seria tão fácil, inglês? Caramba, que tolo é. Não vou dar
dinheiro, nem agora… nem nunca. Quanto à mulher, é minha. Partimos em uma hora, com a
mudança da maré.
Millbank soltou um juramento.
—Não pode fazer isso, maldição. Prometeu!
—E o que é uma promessa feita a um infiel? Nada… não, menos que nada. Só foi um
recurso de apoio se por acaso falhavam meus intentos. Então tudo seria sua culpa, inglês. Nossas
atividades aqui são muito importantes para que sejam descobertas. Mas, como pode ver, não
falhei. Tenho à garota St. Clair e logo terei o resto do que vim procurar… além do marquês de
Dunwood.
—Dunwood? —Millbank franziu o cenho—. Quer dizer Luc Delamere? E o que tem ele a
ver com isto? Desapareceu faz cinco anos ou ao menos isso ouvi.
—E voltou também - disse Hamid cortante—. Momento no qual usurpou o rimbombante
nome de um bandido chamado Blackwood.
—Impossível! Não posso acreditar!
—Não é necessário que acredite, estúpido. Não é necessário que faça nenhuma outra
coisa que não seja morrer, para que não possa contar nada disto.
Sir Charles meteu a mão no bolso com o olhar desesperado.
—Acredito que não! E a mulher é minha, ouviu-me? Eu a queria primeiro, antes que
ninguém. —Tirou uma pistola de seu colete e a agarrou com ambas as mãos—. Ela vem comigo ou
disparo, ouviu-me?
—Que problemático é - disse o captor de Silver em voz baixa.
Com o olhar endurecido pela fúria, Millbank rodeou o mastro da vela maior. Caminhou
com cuidado por trás de uma lanterna que balançava e evitou a borda de um canhão de dez libras
que havia no convés.
—Tenho direito a essa mulher, maldição. E a esse dinheiro.
—O homem tem razão e sabem Hamid. —Uma nova figura apareceu na plataforma. Seus
dedos magros e ágeis rodeavam um rifle com a culatra de mogno. Em um de seus dedos brilhava
um gasto anel de prata com a forma de uma criatura fantástica—. E, por direito, o ouro escondido
em Lavender Close é meu, em pagamento pelos serviços prestados. E tenho intenção de recuperá-
lo, quero que fique claro. Pode fazer com a mulher o que queira… mas depois d que me disser
onde está escondido o ouro, é claro.
Hamid sorriu.
—Esse é seu maior defeito, inglês. Você e outros se tornaram muito avaros. Isso esteve
preocupando o Bey durante um tempo, porque sua avareza faz que não se possa confiar em
vocês… nem sequer nós, seus próprios sócios. Temo que isso signifique que devemos prescindir de
seus serviços.
—Digam o que quiserem, Hamid, mas você e todo o maldito resto de sua estirpe de
ladrões me necessitam. E me pagarão enquanto siga lhes proporcionando os nomes de suas
miseráveis vítimas. Assim, já vêem Millbank —disse o homem da cara alargada— a mulher é
minha por questão preferivelmente. Ela e seu pai me causaram muitos problemas estes últimos
sete anos. Ele foi tão surpreendentemente difícil de convencer como ela. Nem sequer quando
enviei seis homens para assustá-la consegui que abandonasse esses campos poeirentos.
Silver ficou sem fôlego. Assim que esse era o homem que estava por trás dos ataques a
Lavender Close!
Mas Millbank já estava se movendo com a pistola lhe tremendo nas mãos.
—Fique onde estão! Ela é minha e só minha. Estive esperando e olhando todo este tempo
e não vou perder agora.
—Um dilema interessante, isso é seguro - respondeu o recém-chegado, apontando seu
rifle diretamente à cabeça de Hamid—. Millbank quer leiloar este bonito corpo da mulher em seu
misteriosamente depravado clube: Suponho que também cobiça a preciosa fórmula do Millefleurs
de seu pai. Hamid, enquanto, anseia lhe ensinar os prazeres da escravidão e a total submissão em
um harém da Berbería. E eu, perguntarão? Eu só quero umas respostas. Sim, este é um problema
perfeito mesmo para Salomão. —O inglês sorriu levemente—. Mas acredito que tenho uma
solução. Simplesmente a dividamos entre nós, como Salomão quis fazer com o menino que s
disputavam. Eu ficarei com a cabeça da senhorita St. Clair e você; Millbank, podem ficar com seu
bonito corpo. Desgraçadamente Hamid, isso deixa muito pouco para você… inclusive tendo em
conta seus repugnantes fetiches.
Esse discurso burlesco fez que os olhos de Hamid ficassem inexpressivos pela fúria.
—É muito rápido quanto a insultos, Renwick, e por isso vai morrer. Como deveria ter
morrido faz cinco anos quando falhou na captura de William St. Clair e seqüestraram o marquês
de Dunwood!
Renwick.
Os olhos de Silver se abriram muito ao dar-se conta, ao fim, de que essa cara alargada,
magra e altiva com esses lábios finos… era a mesma do último esboço do caderno de Bram.
Lorde Damián Renwick, tinha-o chamado Ian.
Mas, fosse qual fosse seu nome, nunca seria mais que uma coisa para Silver: o homem
que tinha assassinado seu pai e sua mãe.
Uma raiva amarga explodiu em seu interior. Esse homem tinha perseguido seu pai todos
aqueles longos meses, fazendo que questionasse sua própria saúde mental, e depois o tinha
assassinado com todo o sangue-frio.
Pagaria por isso e por todo o resto, jurou Silver.
Cravou grosseiramente um de seus cotovelos no estômago de seu captor e lançou seu
corpo para um lado. A raiva lhe proporcionou a força de três mulheres para livrar do braço de
Hamid, agarrar uma lanterna com tela de cristal e atirá-la contra a desagradável cara de Renwick.
Nesse momento o convés se encheu de vida. Chamas saíram da lanterna feito migalhas.
Índia Delamere, escondida atrás uma caixa de chá, disparou uma bala de espingarda no braço de
Millbank e o enviou gritando ao outro lado do convés. Enquanto, Ian e Connor se lançaram contra
Damian Renwick, que ainda cambaleava pelo míssil de Silver, que tinha acertado completamente
no alvo.
Mas tudo isto deixou Silver sozinha, que retrocedia para o corrimão de proa perseguida
por Hamid. E como o pirata levava uma pistola na mão, nem Connor, nem Tinker, nem nenhum
deles podiam fazer nada por medo que disparasse em Silver.
—Tem muitos amigos, inglesa. E isso tem feito que meus planos fossem mal desde o
começo. Que sorte tivemos de que seu pai não tivesse tantos. —movia-se em um absoluto
silêncio. Evitou um rolo de corda e uma vela dobrada sem que seus olhos abandonassem por um
momento o rosto de Silver—. Renwick foi um estúpido. Quão mesmo Sir Charles Millbank. Mas
você, vejo que você não, e sua valentia resulta muito surpreendente. O que quer dizer, claro, que
é necessário a submeter, porque uma simples mulher não pode frustrar meus planos.
As velas rasgadas ondeavam a seu redor. Vagamente, muito vagamente, Silver notou o
aroma do breu, o sal e a madeira empapada.
E então percebeu outro aroma.
Leve, mas inconfundível.
O aroma de limão. Com um toque de tabaco, brandy e bom couro gasto.
Então o viu, seus olhos como profundo abismos escuros cheios de uma selvagem
determinação enquanto, subia pelo cabo da âncora. Não levava camisa e suas costas estavam
cruzadas de linhas sangrentas.
Mas seu sorriso era tão arrogante como sempre… e seu rosto de bandido era
perigosamente belo em todos seus detalhes.
Silver tragou saliva, lutando para que sua alegria não aparecesse em seus olhos. Voltou-se
para Hamid, sorriu-lhe friamente e mudou de direção em sua fuga para atraí-lo para popa e que
Luc ficasse fora de sua linha de visão.
—Realmente acha que me renderei tão facilmente? Nunca direi meus segredos, como
tampouco o fez meu pai. Ficarão enterrados em Lavender Close para sempre. —Seus lábios se
curvaram—. A menos que queira escavar cada centímetro de terra.
Luc tinha chegado ao corrimão já e seu corpo avançava pelo convés. Silver seguiu
caminhando para trás.
—E tampouco é que entenda por que os informes de meu pai são tão importantes para
você.
—Mulher estúpida. Seu pai tinha uma lista da rede de nossos amigos em Londres,
homens muito bem pagos para que nos proporcionassem nomes de navios, datas de navegação e
portos de passagem. Homens como Renwick, que são capazes de fazer qualquer coisa que lhes
peça. Há ao menos dois duques e um secretário naval a assalariados. Uma lista como essa não
pode sair à luz… sobre tudo não agora, quando muitos neste país querem enviar uma força de
castigo contra nossa costa.
—Mas acaba de me dizer isso - particularizou Silver.
Os finos lábios de Hamid se curvaram enquanto levantava a pistola.
—É claro. Porque você, querida senhorita St. Clair, está a ponto de morrer.
Uma sombra abriu passagem pelo convés lançando-se sobre o corsário. Hamid
cambaleou. Terminada ao fim sua inatividade forçosa, Ian e Índia correram para Luc.
Mas Luc não necessitava sua ajuda. A vingança lhe resultava doce depois de todos esses
anos de tortura e sentiu um gozo primitivo ao notar como a mandíbula de Hamid se rompia sob
seu punho.
Dois ganchos de esquerda e um punho castigador no estômago terminaram o trabalho.
Luc duvidou ao abaixar a vista para olhar o homem que tinha odiado todo esse tempo… o
homem ao qual apontava com sua pistola nesse momento.
—Dispara, ferenghi - cuspiu o pirata—.Faça-me essa honra. E serei consciente de que logo
nos veremos no inferno.
Um músculo se esticou na mandíbula de Luc.
Depois baixou lentamente a pistola.
Tinha acabado. O ódio só manteria encadeado o velho pesadelo. Em outro tempo teria
matado Hamid, mas agora…
—Tem uma parada desagradável antes de chegar ao inferno, Hamid, e duvido que você
goste muito do interior de um cárcere inglês. Além disso, estou seguro que os prisioneiros ingleses
tampouco gostarão de você.
Luc limpou um fio de sangue e depois sorriu quando Ian lhe passou um braço pelos
ombros.
—Obrigado, irmão. Tem tantos recursos como sempre. E você - disse sorrindo a Índia - é
tremendamente boa com esse rifle.
Sua irmã sorriu.
—Aprendi tudo do tolo do meu irmão. —Índia lançou um olhar pensativo a Silver, que
estava apoiada no corrimão com as mãos apertando a madeira—. Mas acredito que temos
trabalho que fazer. Façamos que este pedaço de carne de cão se reúna com os outros abaixo, de
acordo, Ian?
Silver não ouviu nada de tudo isso. Seus olhos só se centravam em Luc, na palidez de seu
rosto e no sangue de seus ombros.
No homem que amava mais que a sua vida.
Um leve som agudo saiu de sua garganta.
—Está… a salvo - disse com um fio de voz.
—Estou, meu raio de sol. Mas não estarei… não sem seu coração, sua inteligência e sua
doce coragem.— Luc se aproximou lentamente para ela—. Case-se comigo, Silver. Compartilha
meus dias. Acompanhe-me pelas noites. Faça-me rir, soltar juramentos e gritar. Quero ver como
seus olhos se voltam prateados pela paixão. Quero beber sua risada e saber que leva em seu
ventre nossos filhos.
O coração de Silver se rasgou de dor. Ele era tudo o que ela tinha querido sempre, em
todos seus sonhos inocentes de flamejante valor.
Mas sabia que não podia ser.
O medo e a segurança do abismo infranqueável que havia entre o filho mais velho de um
duque e a quase arruinada filha de um simples comerciante de perfumes fizeram que ela ficasse
tensa e se afastasse dele.
—Eu… não posso.
Luc entreabriu os olhos.
—Não? E por quê? —perguntou-lhe com suavidade.
Terreno perigoso.
Silver se afastou uns centímetros mais dele,
—Porque… mentiu. Deixou-me acreditar que era um simples criminoso! —disse
desesperada.
—Talvez tivesse podido contar algo mais se tivesse deixado de tentar me salvar cada cinco
minutos!
Silver levantou a voz.
—Nunca tentou me contar isso. Nem uma vez!
—O que faz que fiquemos empatados, demônio - respondeu Luc com dureza—, Porque
você tampouco me contou o de Waldon Hall! —Seus olhos se endureceram e deu um passo para
aproximar-se.
—Fique onde está! Não me casarei contigo, ouve-me? Vá e encontra outra moça tola que
enganar, Deve ter dúzias repartidas pela campina!
—OH, milhares, acredito. —Os lábios de Luc se curvaram em um sorriso brincalhão—.
Mas nenhuma a metade de intrigante que você, harpia. Agora deixa de replicar e diga que se
casará comigo.
—Não.
—Muito bem, não me deixa outra opção. —Com um ágil movimento, Luc agarrou ao
Silver pelos ombros e a aproximou de seu corpo. Sua boca deslizou sobre a dela, dura, cálida e
ávida.
Ela se retorceu, desesperada por escapar a seu abraço, por ignorar quão perfeitos
pareciam seus lábios sobre os seus.
E tudo o que queria era aproximá-lo mais dela e beijar cada centímetro de seu esplêndido
corpo.
Silver resmungou, furiosa. Era incrível que esse homem pudesse provocar paixões tão
ingovernáveis nela!
—Eu posso salvar qualquer um que queira salvar, bandido.
Luc baixou a vista para olhá-la, confuso. Lentamente compreendeu.
—É por meu título, não é? Porque, maldição, não acredita que seja suficientemente boa
para mim.
Silver deu de ombros.
—Somos diferentes, isso é tudo. Nossas vidas não podem unir-se.
—Ah, não? —Luc sorriu com um brilho perigoso nos olhos—. Então terei que seguir com
minha vida criminosa, não é? Só que agora de forma mais temerária, assaltando qualquer
carruagem que encontre, do amanhecer até o entardecer. E correndo todo tipo de riscos.
—Não, não pode fazer isso! Não queria dizer…
Ele cortou seu discurso completamente com seus lábios apertados contra os dela até que
o convés balançou e girou deliciosamente sob seus pés.
No outro extremo do convés se elevou um grito do pequeno e poeirento exército de Luc.
Os furões chiaram. Cromwell ladrou feliz golpeando sua cauda peluda contra o convés.
—Bem-vinda à família, senhorita St. Clair. —Ian Delamere se aproximou para beijar Silver
em sua face avermelhada—. Tentará o manter a raia, não é?
Luc olhou seu irmão, divertido. Quando Connor se aproximou de Silver, o ponto travesso
do olhar de Luc se acentuou.
—Nem pense, MacKinnon - advertiu.
Seu amigo só riu e estreitou a mão de Silver com graça.
Em sua carruagem, junto ao corrimão, a duquesa de Cranford ficou um pouco à margem,
encantada com a situação. Sim, tudo estava resolvido para Luc, e bastante bem, como tinha
esperado.
E agora teria que fazer algo mais a sério com esse mulher-macho da Índia…

Epílogo
—Bem, o que parece?
A marquesa de Dunwood e Hartingdale franziu o cenho ante a aquarela inacabada
colocada sobre um cavalete situado olhando à ilha de São Giorgio Maggiore. Toda Veneza se
estendia ante ela como uma jóia brilhante, gloriosa sob uma neblina azul celeste e dourada do
verão.
Silver inclinou a cabeça, brincando distraidamente com o faixa cor esmeralda que punha
uma nota de cor a seu vestido de renda de um tom cru.
—O que parece?
Atrás dela, Luc sorria. Ficou em pé e olhou por cima de seu ombro à aquarela inacabada,
desfrutando da forma em que o calor começava a subir pelo corpo.
—Bom… - Isso a provocaria. Sempre o fazia.
—Bom? Isso é tudo o que tem que dizer? —Silver mordeu o lábio.
Luc sentiu que uma dúzia de músculos se esticava dolorosamente com esse gesto
inconscientemente sensual. Tinha um pouco de tinta vermelha na face. Isso fazia que parecesse
que tinha doze anos.
Doze contra trinta, essa era a proporção. Aos olhos de Luc, ela tinha todo o entusiasmo
pela vida de uma menina… e toda a inefável beleza de uma mulher.
—OH, não é boa. Não posso trabalhar. Como poderia?, só penso na festa que seus pais
insistem em fazer por nossas bodas.
—Não se preocupe, preciosa - disse Luc Sorrindo—. Só será minha família… e seiscentos
amigos próximos.
—Não posso, Luc - disse Silver s desesperada, olhando o convite gravado e bordado de
dourado que estava na mesa junto à caixa de pinturas—. Não saberei como agir nem o que usar.
—Usa isto. —Com os olhos brilhantes Luc tirou uma fina caixa de seu bolso. Dentro havia
uma magnífica esmeralda de quarenta quilates que brilhava em meio de uma fileira de pérolas
rosadas.
Silver ficou sem fôlego.
—OH, Luc, mas não posso!
—Deve, querida. É Seu já que é minha esposa. A Estrela do Ceilão sempre passa à esposa
do filho mais velho. Diz-se que uma vez esta esmeralda teve uma pedra companheira, um fabuloso
rubi de quarenta e seis imaculados quilates, roubadas ambas quando eram os olhos de uma antiga
estátua. Mas há uma maldição sobre essa pedra, assim que meu pai enviou a um homem a
devolvê-la ao povo de onde a roubaram. —Os olhos de Luc se endureceram—. Não se voltou a
saber daquele homem nunca mais. Sempre nos perguntamos o que aconteceu com o olho de
Shiva. Mas não a aborrecerei mais com histórias familiares. Só lhe pedirei um favor. Ponha
Millefleurs esta noite para mim, meu amor.
Silver sorriu pensando no frasco do Millefleurs que havia sobre a penteadeira do palazzo.
Logo haveria mais, destilado das flores das preciosas sementes de lavanda que Luc lhe havia
devolvido aquela noite em Lavender Close. E essas flores em particular seriam quão únicas
tivessem seus filhos e os filhos de seus filhos, como sinal imortal de seu amor que perduraria
durante gerações.
—É claro - sussurrou.
—E quando acabar a festa —disse Luc brandamente— não quero que use nada mais que
Millefleurs.
Silver ficou sem fôlego da mesma forma que o fazia sempre que lhe demonstrava seu
amor com essa claridade. Era uma bênção e ela sabia. E jurou que o faria feliz. Se não fosse por
toda essa gente que seus pais estavam reunindo para aquela noite!
—Mas Luc, não vou saber o que dizer!
—fale-lhes de perfumes. Os enfeitiçará da mesma forma que fez com o príncipe regente.
Por certo, ele também virá.
Silver suspirou.
—OH, muito bem. Suponho que arrumarei isso. —Franziu o cenho em direção à pintura—
. Acha que há muito vermelho?
Não houve resposta.
—E bem?
—Bom… - disse Luc aproximando-se e deslizando um braço ao redor de sua cintura. Hoje
cheirava a bergamota, jacintos e musgo.
Aspirou seu aroma, seu desenfreio por viver, dando graças a Deus de novo pelo estranho
giro do destino que os tinha unido três meses antes. Ela cheirava como Norfolk na primavera.
Como o Bois do Boulogne em junho. Como a Toscana em outono.
E ali é aonde ia levá-la.
Para vê-la pintar. Para ver como sua face se iluminava com a beleza que a rodeava.
Tudo a seu tempo, é claro.
Mas agora Luc era um homem com uma missão.
Suas mãos deslizaram lentamente pela fita de seda que tinha sobre a cintura.
—Muita cor, acredito. Muito quente. Muito… vermelho. —Seus dedos subiram roçando a
turgidez que começava justo em cima de suas costelas.
—Muito… vermelho? —A voz de Silver se fez ofegante.
Luc gostava disso. Precisava saber que ela estava sentindo tudo o que ele sentia.
—Temo, que sim. —Os dedos calejados roçaram com a leveza de uma pluma, seus
mamilos, que já estavam endurecidos—. Muito bonitos, mas temo que sejam muito grandes.
Silver se voltou bruscamente, seus olhos verdes e dourados cheios de indignação.
—Muito grandes! Mas ontem à noite disse…
Luc sorriu ante aquela amostra de inocência.
—Os telhados, meu amor. Não estão em proporção com a piazza. São um pouco maiores.
Silver franziu o cenho e se voltou a olhar de novo a luminosa cena que tinha ante ela.
—É difícil encontrar a perspectiva. E todo esse vinho que seus pais me obrigaram a beber
na refeição não ajuda muito!
—A amam e querem que seja feliz, meu raio de sol. Não deveria lhe incomodar suas
amostras de carinho.
—Não, claro que não. —Silver inclinou a cabeça enquanto estudava a distante silhueta da
Praça de São Marcos, que brilhava com a luz do sol vespertino. —O que aconteceu com Millbank?
Dei-me conta de que até agora se negou a me contar que aconteceu a ele.
—E sigo me negando - respondeu Luc Sorrindo ao pensar no que tinha ocorrido com
todos os atacantes de Silver. Sir Charles Millbank tinha sido enviado às Antilhas, onde
permaneceria o resto de seus dias. Hamid passaria o resto da sua amaldiçoando os úmidos muros
de pedra da cela de uma prisão inglesa. Lorde Kenwick também tinha encontrado, um destino
apto para suas circunstâncias: o tinham enviado ao Bey, de Argel, como prisioneiro, para que
permanecesse por sempre encerrado, sem possibilidade de resgate, nas mesmas masmorras
agonizantes nas quais Luc se viu encerrado.
Lorde Blackwood tinha desaparecido sem deixar rastro. Luc conseguiu deixar atrás esse
papel com a mesma facilidade com que o assumiu.
Sim, finalmente havia uma maravilhosa justiça na forma em que tinha terminado tudo.
Mas Luc não queria entristecer Silver com os detalhes. Se não, sensível como era, teria pedido
indulgência para seus inimigos.
E Luc não ia permitir.
—Sua família foi tão boa comigo… Ian prometeu me ensinar a seguir rastros no bosque e
Índia vai me dar de presente um de seus rifles favoritos.
—Mulher sanguinária. —Luc sorriu—. Isso é o que é. De fato, se alguém a olhar mal esta
noite, saca essa tua pistola e lhe dispare.
—um pouco de seriedade, Luc.
—Tento meu amor, mas me põe isso muito difícil - disse com voz rouca—. E ainda não me
contou o que minha avó lhe deu de presente.
—A duquesa? —Silver se deteve e suas faces se tingiram de rosa—. Temo que é um
pouco… privado. —Silver mordeu o lábio—. Algo que pretende que use para… dormir.
Luc sentiu que a parte baixa de sua anatomia se enchia, endurecia-se e lhe produzia dor.
Deus, ela era impossível. Mas, Deus, como a amava.
Seus dedos seguiram subindo em busca do calor e a suavidade de sua pele. Um momento
depois encontrou ambas. Sem dar-se conta Silver jogou a cabeça atrás até apoiá-la no ombro de
Luc.
—São como esperava? —Sua voz soava gutural—. Os telhados, quero, dizer.
O sorriso do Luc se fez, malicioso. Tocou com a palma da mão a suavidade marfim. Notou
a necessidade de cor rubi.
—Não sei muito bem o que é o que esperava, meu amor. —Penetrou sua mão entre a
seda e a cambraia, tomando mais dela—. Como vi tantos em minha vida…
Silver deu um salto com as faces carmesins e os olhos em chamas.
—Lucien Tiberius Delamere, tire as mãos de cima de mim neste mesmo momento!
—Telhados, quero dizer - disse seu marido com voz rouca. Seus olhos se viam cheios de
fogo pela paixão.
—Descarado. Canalha. Estúpido…
—Tolo apaixonado? Tonto necessitado de carinho?
—Isso é? —Só se ouviu o som de sua respiração—. De verdade, Luc? Acreditava que era a
única.
—Estou além de qualquer descrição, além da redenção e da salvação.
E lhe soltou outro botão. Silver estremeceu enquanto as mãos de Luc entravam mais,
cobrindo-a.
—Tem sardas, sabe?
—Que pouco delicado por sua parte mencioná-lo!
—Tolices, meu amor. É muito encantador. Setenta e quatro havia a última vez que contei,
se não contarmos essa pequena meia lua de seu nariz. O que seria uma pena porque resulta muito
atraente. E tem uma manchinha de cor cenoura sobre seu lábio superior.
Deus, a Luc custava pensar nelas.
Mas tinha intenção de protegê-las todas.
—Suponho que será pelo sol. OH, Luc, isto é precioso. —Silver suspirou e suas costas se
curvou contra seu peito. Viu que uma gôndola descia pelo reluzente canal—. Não esqueça que
temos uma entrevista para ver um homem e falar de uns viveiros de lavanda amanhã.
—O que, meu amor? —murmurou Luc entre dentes—. Acredito que não ouvi o que disse.
Tentava que ela tampouco, mas não resultou.
—Eu disse que espero que este carregamento não nos cause tantos problemas como o
último.
—Tolices. O que são uns poucos ratos?
—Uns poucos! Duzentos no mínimo. Cromwell quase dá um ataque quando saltaram das
caixas. E seus pobres furões ficaram em cima do carvalho uma semana.
Silver riu.
—Serei mais restrita manhã. Entre os dois temos que inspecionar cada centímetro da
propriedade para nos assegurar de que não há ratos.
Luc soprou.
—Além disso, não podemos nos zangar com os ratos, já que foi graças a eles pelo que
entendi finalmente a mensagem de meu pai sobre onde estava o ouro. Se não tivessem chegado
os ratos e mandado Cromwell correndo através dos arbustos, nunca teria descoberto o sinal que
me deixou na lavanda.
—Era bastante engenhoso, tenho que reconhecer. E todo se centrava no décimo segundo
arbusto da quinta fileira, pela data de seu aniversário.
Silver se virou e rodeou o pescoço de Luc.
—No diário me dizia que recordasse meu aniversário, mas não compreendi… Não até que
vi o círculo de lavanda seca. Certamente plantou uma dúzia de plantas doentes, sabendo que
secariam em um ano mais ou menos. Nunca me fixei nesse sinal até que vi Cromwell aquele dia
com os ratos. E pensar que sempre esteve tudo ali: o ouro e a bolsa de couro com seus diários…
Incluso a fórmula do Millefleurs. Era quase… OH, sei que soará estranho, mas…
—O que, amor?
—Quase como se tivesse ouvido sua voz me animando, como se sentisse suas mãos sobre
meus ombros.
Em algum lugar por cima da água soaram os sinos de uma igreja. Silver estremeceu.
aferrou-se mais a Luc.
Ele fez um gesto de dor.
—Suas costas?
—Não é nada, diabinha. Meus pais disseram que nos atrasaremos esta tarde, por certo.
Os olhos de Silver brilharam.
—E vamos chegar tarde?
—Não deveríamos - disse, mas sua mão baixou até a cintura dele—. Pensarão que sou a
mulher mais malvada do mundo por mantê-lo longe deles.
—Não, pensarão que está fazendo seu filho muito, mas muito feliz.
—Luc, suas costas…
—Minhas costas não têm nada que não vá melhorar grandemente se você a tocar, meu
amor.
Meigamente Silver roçou a cicatriz que tinha junto ao lábio.
—Tocar é algo que me dá muito bem, bandido. E que tal… se o tocar agora?
Luc grunhiu e tirou a camisa. Abraçando-a forte, deitou-a sobre a cálida e fértil terra,
cheirando o aroma das agulhas de pinheiro e o romeiro. Uma fileira de pombas cruzou o céu sobre
suas cabeças.
—me toque, meu amor. Nunca deixe de me tocar…
—Isso farei, bandido.
E ela foi até ele, todo pele sedosa, quente e aromática. E Luc a fez rir, gritar e suspirar.
E, enquanto o fazia, soube que seu coração estava curado ao fim.

O sol se escondeu atrás daquela paisagem, próprio do mesmo Tintoretto, arrancando


chamas do Canal de São Marcos em uma fúria de vermelho, pêssego e violeta. O dourado alagou
os telhados do palácio do Dux, encheu a Praça de São Marcos e acendeu as torres da Catedral. O
resto de mundo parecia estar muito longe enquanto a luz passava a ser celeste e prateada para
finalmente converter-se em um azul índigo luminoso por cima dos amantes que riam.
E quando a noite cobriu Veneza e ocultou sua silhueta, a lua cheia apareceu.
O vento assobiava.
Em definitivo: era uma noite perfeita para o amor.

Fim

NOTA DA AUTORA

Que puro e autêntico prazer foi os apresentar a Luc e a Silver!


Como já saberão a estas alturas, um Delamere nunca deixa nada pela metade.
Provavelmente essa é a razão de que tenha sido tão divertido escrever sobre eles. Nos próximos
meses encontrarão mais aventuras desta família deliciosamente excêntrica, começando com a
história da pequena da família, Índia.
Alguma pista? Tudo o que lhes posso dizer é que estejam atentos ao «Sonho dos
Delamere»…
Mas antes, um pouco da história com a qual me encontrei ao começar a escrever este
livro. E que melhor início que os bandidos, essas figuras fascinantes das lendas inglesas e a ficção
popular? Embora haja muito poucas referências confiáveis que datem de datas anteriores ao
século XVII, sabemos que na época isabelina os bandidos eram muito bem considerados, tanto os
profissionais como os aficionados. Escondidos atrás da máscara e a capa negra, cavalgavam pelos
brejos e as colinas com seu grito «Mãos para cima!» nos lábios. Logo as histórias populares e os
folhetins se encheram de histórias épicas sobre sua galanteria e suas fanfarronadas. Isso sim, que
os fatos referendem essas lendas é um assunto completamente diferente.
Shakespeare também viu assim. Os bandidos recebem um trato favorável em várias de
suas peças de teatro, e inclusive se atreveu a propor a idéia do «ladrão honesto». Depois da
Guerra Civil inglesa, os simpatizantes dos realistas viram sua causa perdida e que colocava preço a
suas cabeças. Então retornaram as estradas como último recurso, o que levou um código da honra
mais elevada e uma espécie de «normas de conduta» a esse ofício.
É seguro que poucos possuíam a cortesia do famoso capitão Hind, a galanteria do Claude
Duval ou a imprudência temeridade de Dick Turpin, mas, mesmo assim, a lenda persistiu.
Tratava-se de uma vida perigosa, sem dúvida. Para o delito de assalto só havia uma
sentença: pendurar do cadafalso do Tyburn, em Londres. Essas execuções eram um
acontecimento na vida metropolitana e invariavelmente reuniam multidão de curiosos, tão ricos
quanto pobres. Isto permaneceu assim até a última execução pública da Inglaterra, em 1868.
Mas a época dos bandidos tinha começado a decair muito antes disso. O primeiro
obstáculo importante chegou com a criação em Londres de uma patrulha bem armada
denominada «Bow Street Runners», policiais pertencentes à circunscrição do Bow Street, no
distrito do Covent Garden. Inteligentes, atrevidos e experimentados na luta contra o crime, estes
homens especialmente selecionados eram temidos pelos criminosos dos baixos recursos
londrinos.
E chegaram precisamente no momento justo.
Em 1750 o crime em Londres tinha alcançado proporções exageradas. Os bandidos
acampavam a suas largas pelas ruas a plena luz do dia. Os ladrões entravam nas casas e levavam
seu conteúdo sem encontrar resistência. Um famoso cronista da época, Horace Walpole, afirmava
então que era mais seguro ir em ajuda de Gibraltar que passear pelas ruas de Londres.
E por que não havia polícia para frear essa onda crescente de crime? Principalmente
porque os ingleses se opunham ao estabelecimento de um corpo de polícia profissional e com
plena dedicação; temiam que isso levasse a perda das liberdades civis, como tinha ocorrido na
França quando os oficiais de polícia começaram a ser assalariados de certos movimentos políticos.
Mas a maré de crimes começou a mudar em 1753. Esse ano o novelista Henry Fielding se
converteu em juiz da circunscrição do Bow Street e, portanto, encarregado da polícia. Este homem
criou uma equipe especial denominada «Flying Squad». À morte do Henry Fielding em 1754, seu
posto foi ocupado por seu meio irmão cego, John, que ampliou o alcance desta equipe especial,
estabeleceu como prática habitual que a polícia fizesse informes detalhados, organizou patrulhas
regulares e criou um grupo de oficiais de investigação denominados «Runners».
Em poucas palavras, Bow Street se converteu na Scotland Yard do momento.
A criação de um corpo de polícia municipal com plena dedicação por parte do Sir Robert
Peel em 1822 atirou o golpe final aos já diminuídos bandidos. O último bandido ativo do qual se
tem notícia data de 1831.
Não obstante, as lendas seguem vivas. Seguimos mantendo nossos heróis, não importa
quão ilógicos estes sejam.
Passemos agora a um grupo de criminosos muito diferente e muito menos admirado: os
piratas da costa africana da Berbería, que acossaram os viajantes de princípios do século XVI. Em
suas brutais incursões saqueavam o Mediterrâneo e suas costas, saindo de suas bases situadas na
cidade estado de Marrocos, Tunísia, Argel e Trípoli. O resgate de escravos logo se converteu na
base de sua economia nacional: estima-se que desde 1520 até 1660, somente no mercado de
Argel se venderam entre quinhentos e seiscentos mil escravos. Os prisioneiros chegavam de toda a
Europa: França, Escandinávia, Rússia, Alemanha, Portugal, Espanha e as Ilhas Britânicas. Eram
representantes de todas as classes sociais e profissões; mas só os ricos ou os de boa família
podiam esperar que os resgatasse. O resto permanecia sendo escravos toda sua vida.
Assim que um navio era abordado, os corsários imediatamente faziam um registro
detalhado da tripulação, os passageiros e o carregamento. Depois chegava o processo de avaliar o
status de cada passageiro. Isto se fazia estudando a forma de falar; o comportamento, a forma de
vestir… e a presença ou ausência de calosidades. E havia uma boa razão para todo este interesse,
é claro.
Um status maior significava um maior resgate.
Em Argel, o Bey tinha direito aos doze por cento de todos os prisioneiros. Todos os outros
se leiloavam dependendo da quantidade do resgate que se podia obter por eles. Depois
começavam as longas negociações do preço de liberação, normalmente realizadas pelos cônsus
europeus residentes na área, comerciantes que faziam de intermediários ou ordens religiosas de
monges que se especializavam no intercâmbio de escravos cristãos. Durante todo este tempo os
prisioneiros permaneciam cuidadosamente vigiados e acorrentados com grilhões.
Escapar era perigoso, embora não impossível. Inclusive embora um prisioneiro
conseguisse chegar ao porto e nadar até um navio europeu ancorado ali, seus próprios
compatriotas estavam acostumados a negar-se a intervir, porque isso poderia supor graves
represálias para toda a navegação da área.
Uma fuga frustrada significava golpes; mutilações ou até a execução, que se empregava
como elemento dissuasivo para outros prisioneiros com a mesma idéia na cabeça. Cervantes; que
foi escravo em Argel, escreveu sobre as misérias daquela vida o que ele chamava «inferno na
terra» enquanto esperava ser resgatado. É fácil imaginar que a um prisioneiro aristocrata como
Luc Delamere lhe resultasse difícil adaptar-se a seu antigo estilo de vida depois ter escapado de
um ambiente como esse. Se quiser uma explicação detalhada do sistema reinante na Berbería, e
no Argel em particular, pode consultar a completa obra de fácil leitura do John B. Wolfe, The
Barbary Coast (Nova Iorque, W. W. Norton, 1979).
Retorcidas as lealdades econômicas e políticas da época se fizeram ainda mais
complicadas durante a luta inglesa contra Napoleão. Os fornecimentos que chegavam de Argel
eram essenciais para a manutenção das forças de Wellington na Espanha, além de que os ingleses
estavam ansiosos por ter qualquer possível aliado para essa luta. Em 1796, em um esforço por
ganhar seu apoio, a Marinha inglesa deu de presente ao Bey de Argel um navio francês que tinham
capturado recentemente, com o que todas as pessoas do navio se converteram imediatamente
em prisioneiros.
Quando Trípoli começou a pedir tributo à nova nação americana, Thomas Jefferson soltou
seu famoso: «Milhões para defesa; nem um centavo para tributos» (embora deva assinalar que os
Estados Unidos que seguiram pagando tributo a Tunísia e Argel apesar de tudo). Em 1815, Stephen
Decatur enfrentou e venceu à marinha argelina. Como resultado, a navegação americana após se
livrou de pagar esse tributo, o que fez que os ingleses fossem às nuvens.
As hostilidades continuaram até que em 1829 uma grande quantidade de marinheiros
franceses foram massacrados e suas cabeças mostradas publicamente. O Bey de Argel distribuiu
entre a população uma recompensa de cem dólares por cabeça. Furiosos, os franceses enviaram
uma expedição terrestre que partiu sobre a cidade, que logo se rendeu.
O resultado? Em três semanas os franceses obtiveram todo o poder que não tinham
conseguido conseguir em trezentos anos. O Bey e sua corte foram enviados ao exílio, o governo
tombado e se nomeou um governador francês. Argel se converteu, de fato, em uma posse
francesa e a era dos corsários chegou a seu fim.
Mas passemos a temas mais agradáveis: lavanda.
Só seu nome nos traz para a mente a idéia de frescura e de uma doçura altiva, quase
aristocrática. Um aroma que vai como anel ao dedo a uma heroína aguda e decidida como Silver
St. Clair, acredito.
Os gregos já escreveram sobre o uso medicinal da lavanda no século I d. C. e os soldados
romanos tinham direito a uma ração de lavanda cada um dos dias de uma marcha.
A lavanda era o ingrediente principal da «Água de Colônia» original, destilada no século
XVIII por um italiano que vivia em Colônia. O mesmo Napoleão usava centenas de garrafas desta
fragrância ao ano e a levava consigo a suas campanhas. A água de lavanda era muito popular por
suas propriedades reconstituintes, como tônico e como repelente para insetos. A lavanda também
formava parte dos sais amoníacos que se usavam para devolver a consciência às damas depois de
seus freqüentes episódios de desmaio, provocados em muitas ocasiões pelos espartilhos muito
apertados (ah, os rigores da moda).
Quando a afeição pela lavanda cresceu, este valioso óleo essencial começou a formar
parte de uma grande quantidade de produtos: xampu, brilhantina para o cabelo, talco, sabão ou
sal de banho. A melhor variedade deste óleo era a obtida das autênticas espécies de lavanda como
a L. angustifólia, que resultava muito melhor que a obtida da lavanda silvestre, que contém um
grande proporção de cânfora.
A química moderna demonstrou que as propriedades que atribuíam popularmente à
lavanda não eram absolutamente um engano. Ao analisá-los, muitos óleos essenciais tradicionais
demonstraram ter um forte efeito germicida e antibacteriano. O óleo de tomilho, por exemplo,
tem uma potência germicida doze vezes maior que o ácido carbólico, e a lavanda cinco vezes mais.
Outros óleos também demonstraram seus poderes curativos para uma grande variedade de
afecções, por exemplo os cogumelos, a dermatite ou a intoxicação alimentar.
Não é estranho que os romanos lançassem plantas de lavanda dentro dos banhos
comunitários.
O tempo seco e luminoso, um substrato com uma boa drenagem e umas práticas de
cultivo muito cuidadosas são sempre a chave para obter uma boa colheita de lavanda. As grandes
extensões de arbustos de lavanda sempre foram especialmente sensíveis a enfermidades, como as
que devastaram a maior parte das colheitas de lavanda inglesa que se cultivava em Mitcham em
meados do século XIX. A primeira praga se atribuiu às «venenosas influências do aroma excessivo
das flores», mas os botânicos provaram mais tarde que o problema radicava em um cogumelo
parasitário que se estendia ao utilizar galhos infectados ou ao raspar raízes doentes que
transmitiam os cogumelos às plantas próximas.
Um galho necessitava sete anos para que o arbusto pudesse alcançar seu máximo
tamanho. Uma vez compiladas, as flores amadurecidas se destilavam com vapor e o óleo
resultante, como o bom vinho, armazenava-se em um lugar fresco e escuro para que
«envelhecesse», normalmente durante um ano.
Hoje a tradição inglesa da lavanda continua em Norfolk Lavender Limited, uma empresa
familiar fundada em 1932 com cem acres em um lugar perto de Heacham (noroeste do Norfolk).
Só se selecionam flores locais e o óleo de melhor qualidade para seu uso no Norfolk Lavender.

Além de informação sobre personagens anteriores, próximos livros e curiosidades que


desenterrei durante minha documentação para este livro, vou incluir uma receita da composição
de rosas e lavanda, assim como uma lista dos ingredientes necessários para fabricar sua própria
versão da fragrância Millefleurs de Silver. Também acrescentarei informação para os leitores
interessados em visitar uma propriedade inglesa que trabalha a lavanda como nos tempos
passados. Não garanto que vão encontrar um bandido vestido dos pés a cabeça de seda negra,
mas quem sabe!
Todos os comentários são valiosos e eu adorarei conhecer sua opinião, sobre tudo sobre a
incorrigível família Delamere!
Até que chegue esse momento, desejo-lhes manhãs com aroma a lavanda e noites de
jasmim.

Com meus melhores desejos:


Christina Skye.

***

O nome da protagonista, Silver, significa «prata ou prateado» (N. da T.)

Você também pode gostar