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UM

SÁBADO
EM 30
Texto de Luiz Marinho
PERSONAGENS
SÁ NANA

JOANA

CHICO

JULIÃO

ZEFA

FILÓ

D. MOCINHA

SEVERIANO

QUITÉRIA

MAJOR PAULINO

LUZIA

LENINHA

MERCÊS

MARIA DE JESUS

ROMEU

GUSTAVO

QUINCAS

VASCO

AMA
AÇÃO
Timbaúba - 1930 (Pernambuco)

PRIMEIRO ATO
Ao abrir a cortina, a cena está vazia. Depois entra Sá
Nana (andar capenga), abre as janelas do fundo, a porta
da varanda e retira louças do guarda-louças e põe em
cima da mesa. Entra Joana. Traz alguma coisa
escondida nos seios e está desconfiada. Procura sempre
disfarçar quando se aproxima de Sá Nana.

JOANA (Ao entrar) - Madrugou hoje, hein, Sá Nana?

SÁ NANA - Dia de sábado é assim!

JOANA - Ah, hoje é sábado. (Rapidamente procura com


a vista um lugar para esconder um
pequeno embrulho. Retira dos seios um
pacote e o esconde atrás das garrafas do
aparador. Ouvem-se assovios de Chico e
Julião, chegando).

SÁ NANA - Olhe. É Chico com Julião. (Entram os dois).

CHICO - Pronto o pão.

JULIÃO - Ontem lá no engenho foi um caso sério. Dona


Sinhá botou pra morrer e passaram a
noite acendendo vela. Eu tava selando o
cavalo para vir chamar o pessoal daqui,
quando ela tornou... Vi a hora dela
morrer.

SÁ NANA - Morrer? E aquilo morre, assim, com duas


risadas? Aquilo é ruim que só o cão. Ah,
meu filho. Se os cativos fossem vivos, você
ia escutar quem era ela. Olhe. Tinha o
gosto de apartar as parelhas de negros
que eram casados e vendia ou comprava
separados. E a sujeição na cozinha?
Menino. Permita Deus que ela viva
ainda muito tempo pra purgar toda a
ruindade... senão vai direitinho para o
inferno.

JOANA (Com ar solene) - A coruja passou ontem por


cima do telhado rasgando... eu acho que a
velha vai embarcar... E você, Julião, não
vai avisar a Dona Mocinha? (Zefa passa
da esquerda baixa para a direita alta).

JULIÃO - Não. Foi o que mais Seu Quincas recomendou.


Cuido que é porque Dona Mocinha vem
levando muito aperreio com Seu Vasco
na guerra...

CHICO - Ele não dá notícias, ninguém sabe por onde


anda. Se está vivo, se está morto...

JOANA - Coitada de Dona Mocinha. Outro dia, quando


passou o trem das tropas e que tocou a
corneta... ela se ajoelhou no oratório com
um rosário na mão e botou pra rezar e
chorar que nem quando dá trovão.
CHICO - Também é a única que se aperreia... O resto nem
parece...

SÁ NANA - Isso é de mãe, mesmo. Aquele menino desde


pequeno que dá trabalho. Gostador de
pagode...

CHICO - Só vivia junto mais o irmão, por aqueles


mundos de Campina Grande, Itabaiana,
dando tiro, acabando samba, metido com
tudo que era de rapariga... Só se via
chegarem as notícias.

SÁ NANA - Foi brigar só de influência. O avô, que não


vale semente de gato, foi quem botou na
cabeça dele que ele devia ser herói. E lá se
foi ele. E a mãe que fique, que chore, que
se acabe feito uma besta. O outro, pelo
menos até agora, aquietou o cedém num
canto, mas nesses dias está de novo
arrumando emboanças...

CHICO - Menas a verdade. Ponha Seu Romeu de


raparigueiro, eu não digo nada. Mas
dizer que ele gosta de briga, não. Seu
Romeu, sozinho, tem outra natureza. Seu
Romeu não é de briga, não. Ele é de
reprodução.

SÁ NANA - Eu só via era os dois sair daqui de parelha e


depois as notícias.

CHICO - Mas também ele não ia deixar que o irmão se


metesse na briga e ele ficar de fora. Isso,
não. Agora na voz de mulher, eu não
digo nada. Aquele ali não vai casar nem
no civil, nem no religioso. Ele vai casar é
no entusiasmo. Na voz de mulher, ele é
uma perdição, mesmo.

SÁ NANA - Taí. Nessa parte eu não boto crime nele,


não. Os homens dessa casa, são mesmo
que barrão. (Estalando o dedo) Isso vem
de longe. Não vê esse velho cego, aí? Uh!
Era mesmo que pai de chiqueiro. E tem
uma coisa. Ainda hoje, eu não aconselho
a mulher nenhuma, em tempo de lua,
dizer perto dele que estão sozinhos...

JULIÃO (Rindo) - Quem? Aquele? Pode juntar o sol, lua,


estrelas que não corre mais perigo.
Aquilo é velho de contar o que foi!

SÁ NANA - Menino, tu não sabes o que eram os velhos


de antigamente, criados com farinha de
osso e bebendo leite de cabra... Vigie o
Finado Rufino. Que Deus o guarde.
Morreu de uma ferida braba na cara - lá
nele, lá nele - . O Finado Rufino na
véspera de morrer, me chamou pra se
despedir. Agarrou-me pelo cangote, e eu,
pensando que era um abraço de
despedida, me agarrei com ele também...
Pois não era que o finado queria...

JOANA - Sá Nana! Eu não quero ouvir essas histórias,


não. Sou uma moça! (Ficam todos rindo e
Joana, num gesto brusco, se afasta para
um canto da sala, pega uma terrina de
ágata e fica batendo com a tampa, para
não escutar o resto da conversa. Sá
Nana, rindo espalhafatosamente, chama
com a mão Julião e Chico e lhes cochicha
nos ouvidos o resto da frase. Julião dá
uma risada alta e bate com intimidade
nas costas da velha. Eles agora falam em
tom natural. Perguntam alguma coisa à
velha e ela responde que não. Gargalham.
Nada se está ouvindo, devido ao barulho
que Joana faz. Ela acaba por sair).

CHICO - Julião! Diz que vai chegar uma tropa de


soldado nova, aqui pra Timbaúba?
(Ouvem-se barulhos na sala de jantar e
vozes).

SÁ NANA - Já estão chegando pra mesa. (Para dentro


da cozinha) Avia, Joana.

JULIÃO - E o Major não disse que dá poucos dias para a


revolução se acabar? (Joana entra com
grande bandeja e sai para a sala de
jantar).

SÁ NANA - E aquilo cego sabe de nada? Ele tá pensando


que ainda é a Guerra do Paraguai!

JULIÃO - Dona Nazinha, espírita, foi presa!

SÁ NANA - Boa coisa. Só vivia fazendo catimbó pra


Deus e o mundo.

JULIÃO - Mas não foi negócio de catimbó, não. Parece


que foi uma briga com a mulher do
delegado. Parece que foi o gato da mulher
do delegado que pegou o pinto de Dona
Nazinha. Ou o pinto de Dona Nazinha
que pegou o gato da mulher do delegado.
Eu só sei que houve pinto na cara.

CHICO - Taí. O delegado agora está acertado. A


urucubaca velha vai bater em cima dele
que ele não se apruma mais nunca.

JULIÃO - Tá, eu não me passo pra acreditar nessas


coisas, não. Quero ver Dona Nazinha
fazer um catimbó pra me pôr eu branco.

SÁ NANA - Quem, meu nego? Nem Nosso Senhor. Só se


for esfolado feito bode.

JOANA (Voltando com a bandeja vazia) - Virgem! Essas


meninas nem parece que têm irmão na
guerra... O sentido delas é só cinema,
vestido novo, namoro, no irmão nem
falam.

SÁ NANA - Desde o dia que o pai botou essas meninas


pra estudar na rua que o barco virou
nesta casa. Elas só vivem de janela,
tocaiando o bonde quando passa,
especulando quem vai, quem vem...

CHICO - O cocheiro, já dá bom dia. É uma afoiteza...

SÁ NANA - Mas elas dão gás. Qualquer dia desses ele


esbarra o bonde aqui e vem prosar. Eu só
estou é essa tia das meninas, essa
vitalina, essa Quitéria, não se dar a preço
e viver fazendo perna com as meninas.

CHICO - Sá Nana, vem cá. Eu sei que ela é solteirona,


que é vitalina, mas eu vou dizer uma
coisa: me disseram, veja bem, me
disseram que já destrumbicaram as
partes donzelas dela.

SÁ NANA (À parte) - Terá sido o sacristão, meu Deus?


(Entra Zefa. Usa cachos compridos,
apesar de ter os cabelos ruins. Anda se
rebolando. Tem os seios desenvolvidos. É
fogosa e risonha. Quando entra está com
um espanador debaixo do braço. Chega
cantando moda de Pastoril, pondo o
dorso da mão na testa e a outra
levantando o bico da saia).

ZEFA (Cantando) - Alerta, alerta, rapaziada / Acorda


agora e lava o rosto na calçada / A noite
hoje está muito boa / A de amanhã, a de
amanhã não vale nada.

CHICO e JULIÃO - Trás-zás, trás-zás, trás-zás / O velho


chegou agora / Com o seu charuto na
boca / E o seu chapéu à espanhola.

JULIÃO (Imitando o velho) - Eu era moço, bem


aprumado / Pescoço liso, pé delicado.

TODOS - Eu era moço, bem aprumado, / Pescoço liso, pé


delicado.
JULIÃO - O patrão mais a patroa / Come carne com
salsicha / E eu mais a criada / Me
desgraço na lingüiça.

TODOS - E eu mais a criada / Me desgraço na lingüiça /


Eu era moço, bem aprumado / Pescoço
liso, pé delicado. (Bis).

JULIÃO - O patrão mais a patroa / Dormem em cama


de colchão / E eu mais a criada / Me
desgraço pelo chão.

TODOS - E eu mais a criada / Me desgraço pelo chão /


Eu era moço, bem aprumado / Pescoço
liso, pé delicado. (Bis). / O patrão mais a
patroa / Tomam banho de banheiro / E
eu mais a criada / Me desgraço no
barreiro. / E eu mais a criada / Me
desgraço no barreiro / Eu era moço bem
aprumado / Pescoço liso, pé delicado.
(Bis).

ZEFA (Falando) - Viva o cordão encarnado! O cordão


encarnado é quem me mata! Viva o
cordão encarnado! Viva a Aliança
Liberal! (Vibrando, dá um rodete de
armar a saia. Para. Dá continência. Cai
na gargalhada. Todos riem e aplaudem).

JULIÃO - Tu vais dançar Pastoril hoje?

ZEFA - Se Deus for servido. E logo hoje que tem uns


soldados bonitos que chegaram. Só não
vou se estiver morta...
CHICO - E onde é que vai ser a dança?

ZEFA - É no Alto do Afoga Judas! Vai ser uma grande


noitada! (Suspira e depois com um olhar
longe e cintilante) Quando subo num
tablado e começam a bater palmas e
assobiar, aí me dá um remorso no
coração, eu sinto aquele sobrosso,
arrepiada, é como uma gostosura que me
dá. Como quem toma um copo de gelada
com pão-de-ló. Eu não sei, não. Eu viro
outra.

JULIÃO - Mulher, tu não te mete com soldado. É a pior


nação de gente que existe.

SÁ NANA - O resultado de soldado é deixar as moças de


barriga e desaparecer. Vão embora, são
tudo parecido, ninguém dá mais notícia...
depois elas ficam por aí!

ZEFA - Nada disso, Sá Nana. Soldado é gente regular.


As perneiras é que me matam. Sou zoró
por uma farda. Duas perneiras
lustrando, uns botões reluzindo e um
bigode em baixo de um boné, eu me
acabo. Eu me acabo. Ainda agorinha
passou um lourinho, olhe, da pontinha.
Eu marco que vieram da Paraíba. A rua
está cheinha deles! As meninas lá fora,
não saem detrás dos postigos. Até Dona
Quitéria. E eu vou é pra rua.
JOANA - Escuta aqui, Zefa. E teu namoro com o músico
da "Pé do Cará", não voga, não?

ZEFA - E eu quero mais negócio com músico? De noite


vai pro ensaio! Quando tem festa, vai
tocar na retreta... E a gente que fique
encostada feito uma idiota. Esperando
pra marchar atrás da música feito
carneirinho. Ele que se dane. Hoje com
esses soldados bonitos que chegaram...

CHICO - Mas espere aí. Esses soldados bonitos que


chegaram não são pro seu bico, não.

ZEFA (Com mofa) - Não, não, não? Por que, hein,


bichinho?

CHICO - Porque eu vi. São soldados decentes, são gente


fina, são da elite.

ZEFA - Que da elite. Eles são é da Paraíba. E vão


arrematar meu cravo.

SÁ NANA - Espere aí. Me disseram que paraibano tem


cotoco?

ZEFA - E tem mesmo. (Ri).

SÁ NANA - Cuidado com eles. Tem muito homem casado


por aí.

ZEFA - Primeiro lhe participo-lhe que sou séria. Homem


casado pra mim, é mulher. Não sou o que
a senhora está pensando, não.
SÁ NANA - Olha, vem cá. (Aproxima-a) Tu sabes o que
foi que Luzia ganhou na capoeira? Pois
vá.

ZEFA - Eu vou é arrumar os quartos. (Sai bamboleando-


se).

SÁ NANA - Não cuida dos teus não que tu vais ver uma
coisa. (Zefa sai. Batem palmas lá fora.
Chico sai. Volta acompanhado por uma
moça. Tem cabelos bonitos e lisos, presos
em cocó. É amatutada e tímida. Tem a
vista baixa. Traz uma maleta de
madeira e uma caixa de sapatos debaixo
do braço).

CHICO - Esta aqui é a moça que Seu Severiano mandou


pra trabalhar de copeira, aqui. Eu vou
avisar a Dona Mocinha. Pode arriar os
teréns aí, que eu vou chamar Dona
Mocinha. Dona Mocinha! (Sai para o
interior. A moça fica olhando um por
um, de soslaio. Sá Nana olha-a da cabeça
aos pés e a moça fica atrapalhada,
torcendo o botão do vestido, baixando a
vista e tornando a olhar timidamente).

SÁ NANA - Escute aqui, minha nega. Você ainda é


moça?

FILÓ (Arregalando os olhos sem entender) - Senhora?

JULIÃO - Sá Nana, espere aí.


SÁ NANA - E eu estou dizendo nada? É só pra prevenir
logo como é aqui.

CHICO (Voltando) - Dona Mocinha já vem. Ela está


acabando o café.

SÁ NANA - Já tomou café?

FILÓ - Já, inhora, sim. Eu estava assistindo na casa de


uma comadre de mãe e lá me deram um
caneco. (Entra Dona Mocinha e a moça
interrompe a fala. Dona Mocinha está
vestida de preto, luto de promessa - usa
cocó, chinelos de talão, etc. Com exceção
de Sá Nana, os criados ante os patrões
sempre se mostram calados e reservados).

MOCINHA - Bom dia. Você é a moça que Seu Severiano


recomendou?

FILÓ - Sou, inhora, sim.

MOCINHA - Você tem prática do serviço ou já


trabalhou noutra casa?

FILÓ - Bom. Eu trabalhei na casa do Dotô Promotor,


mas demorei pouco.

MOCINHA - Demorou pouco? E por que saiu de lá?

SÁ NANA - Vai ver que foi alguma safadeza!

MOCINHA - Não se incomode, não. Vá logo se


habituando a ela. Está caducando. Criou
minha mãe, me criou e o jeito que tem é
aturá-la assim como é.
SÁ NANA - Ná Moça tem uma história de me pôr de
caduca. Eu não sou caduca, não. Gosto
das histórias explicadas bem direitinho.

FILÓ - Saí de lá porque me pagavam pouco. Também o


patrão era muito gritão... eu até que
apreciava Dona Duvirge...

MOCINHA - Como é seu nome?

FILÓ - Filomena, mas acudo por Filó.

SÁ NANA - Cuma?

FILÓ - Filó.

SÁ NANA - Filó?

FILÓ - É.

SÁ NANA - Hum, hum!

MOCINHA - E de onde é que você é?

FILÓ - Lá das "Queimadas" do alemão.

CHICO - Essa já veio queimada...

MOCINHA - Está bem. Vou ficar com você. Pago bem,


quinze mil réis, mas é para passar roupas
a ferro, também. (Palmas fora).

FILÓ - Eu só não sei é passar liforme branco.

MOCINHA - Julião, vá ver quem é! (Julião sai. À Joana


que entra da cozinha) Joana, bote o café
de vocês e cuide dela. (Joana explica a
Filó enquanto Julião entra com o Seu
Severiano).
JOANA (Que traz o café dos empregados, à Filó) - Leve
os seus teréns para o quarto junto da
cozinha e depois vá varrer a sala. (Filó
sai para a cozinha. Os empregados e Sá
Nana sentam-se à mesa e começam a
tomar café. Chegam Julião e Seu
Severiano. Julião senta-se à mesa
também. O Seu Severiano é um
cinqüentão, mal vestido, vive de passar
bicho. É um solteirão apaixonado por
Quitéria).

SEVERIANO - Bom dia. A moça já chegou, hein? Que


tal?

MOCINHA - Não sei, não. Chegou ainda agora. Mas pela


fala parece que é vagarosa... Vamos ver.

SEVERIANO - É. Vamos pra frente. Vamos pra frente.


(Dá uma cutucada com os cotovelos e
depois puxa um talão de bicho) Qual é o
palpite pra hoje?

MOCINHA - O mesmo de sempre. As fêmeas a dez


tostões.

SEVERIANO (Anotando) - Águia, avestruz, borboleta,


cabra, cobra e vaca. E o talão, não vai
jogar não?

MOCINHA - Um cruzadinho na dezena, um cruzado na


centena e dois tostões no milhar.

SEVERIANO - Dona Mocinha, por que a senhora não


faz uma fezinha no burro?
MOCINHA - Bom palpite, Seu Severiano. Ponha dois
tostões no burro.

CHICO - Se eu fosse Dona Mocinha eu fazia uma fezinha


no elefante.

SEVERIANO - Sete mil réis.

SÁ NANA - Há dois anos que Dona Mocinha sustenta


as fêmeas e este burro a dez tostões.
Quero ver onde Seu Quincas vai parar.

SEVERIANO (Ao ver Julião comendo exageradamente) -


Dona Mocinha! Do jeito que esse negro
está comendo, se eu fosse a senhora fazia
uma fezinha no "poico".

ZEFA - Seu Severiano, que bicho deu ontem?

SEVERIANO - Deu cobra.

ZEFA - Ah, então eu ganhei.

SEVERIANO - Mostre o talão.

ZEFA - Olhe aqui.

SEVERIANO - Não, Dona. A senhora jogou cascavel.


Deu papa-ova. (Volta à Mocinha)
Alguma notícia do menino?

MOCINHA (Voz amargurada) - Não. Nenhuma notícia.


Só vejo passar trem levando tropas, mas
voltar, nada, ninguém...

SEVERIANO - Essa luta não vai dar em nada, Dona


Mocinha. Já viu briga entre irmãos dar
em nada? Me disseram que estão
anunciando o fim da revolução para
estes próximos dias... Pode ser uma
questão de horas.

MOCINHA - Permita Deus. Mas enquanto isto, ainda


podem morrer milhares. E quem garante
que entre esses milhares, não está o meu
filho?

SEVERIANO - A senhora tem razão. É capaz até de seu


filho estar morto. (Entra Quitéria, gorda,
vitalina, gaiata, sapeca, risonha, usando
óculos, etc. Entende a paixão do Senhor
Severiano, mas se fazendo de
desentendida vive se divertindo às custas
dele).

QUITÉRIA - Oh, bom dia. Por isto que o dia estava tão
alegre. Seu Severiano por aqui!

SEVERIANO - Obrigado, obrigado. Pode me tratar por


Severiano mesmo e será pra mim motivo
de grande felicidade.

QUITÉRIA - Quem sou eu para lhe trazer tanta


felicidade assim? Por certo o Senhor
Severiano tem muitas admiradoras,
pretendentes... (Ele faz um gesto de
modéstia, mas não nega as palavras de
Quitéria).

SEVERIANO - Mas aquela que eu amo não me


compreende. (Olha para Quitéria fixando
a vista) Não me compreende.
QUITÉRIA (Desentendida) - Assim? E o senhor já deu
entrada na história? Quero dizer, já se
declarou? Afinal de contas moça espera
isso. (Belisca o olho para Dona Mocinha)
Talvez ela até pense que o senhor não a
queira...

MOCINHA - Eu só estranho é o Senhor Severiano tão


bem apessoado, boa palestra, trabalhador
e ainda solteiro.

QUITÉRIA (Com cinismo) - É que ele é muito exigente,


Mocinha... mas se o senhor já tem assim
uma eleita... agora a coisa vai. Já se
declarou a ela?

SEVERIANO - Não, ainda não falei... temo um


desengano, prefiro estar na ilusão...
desconfio que ela não me quer (sonhador),
mas faria tudo, tudo em minha vida para
lhe agradar. Ela seria senhora de minha
vontade, do meu viver, do meu futuro.

SÁ NANA - Teu futuro é uma cova de sete palmos. Tu


tens mais talento pra agüentar fogo de
mulher nova. Só se for pra...

QUITÉRIA (Cortando a frase e se fazendo séria) - Sá


Nana! Sá Nana! Ave Maria. Que
criatura. (Com riso amável) Desculpe,
Senhor Severiano.

SEVERIANO - É uma inverdade. É uma inverdade.


Estou assim gasto porque fui muito
puxado pelo trabalho. Porém tenho a
certeza que ainda posso ter uma casa
com mulher e cheia de filhos! Cheia de
filhos!

SÁ NANA - Filhos? (Rindo espalhafatosamente)


Menina, deixa eu dizer. Eu não agüento
uma coisa dessa... Tua mulher ter filhos?
Mas de quem? (Quitéria cobre os lábios
com um lenço escondendo o rosto e
disfarçando o riso. Seu Severiano fuzila
com os olhos a velha e percebe Quitéria
rindo. Dona Mocinha também ri).

MOCINHA - Não dê importância, Senhor Severiano. O


senhor já sabe como ela é.

SEVERIANO - Pelo respeito que guardo às senhoras aqui


presentes, eu não digo a esta jararaca o
que ela merece ouvir. Isto é uma cobra,
Dona Mocinha. Grupo Nove. Não quer
fazer uma fezinha? (Acabou o café. Os
empregados se dispersam, tiram a mesa).

MOCINHA - Com licença, Seu Severiano. Vou buscar o


dinheiro. Chico! Vamos fazer a nota da
feira. (Chico levanta-se e a acompanha
para a sala de jantar).

QUITÉRIA (Rindo) - Vamos trocar de assunto. Que é que


há de novo por esta Timbaúba, a não ser
assuntos de revolução? O senhor que é
bem relacionado, freqüenta estas grandes
famílias daqui, deve estar em dia com as
últimas. (Julião e Joana tiram a mesa.
Filó sai. Sá Nana senta).

SEVERIANO - Quem sou eu! Quem sou eu para


freqüentar as altas rodas? Não sei por
que eu, tão pobre e os ricos gostam de
mim. Mas a senhora já soube da história
de Dona Carmina com o professor de
piano?

QUITÉRIA - Dona Carmina? Será possível? Conte-me


logo.

SEVERIANO - Olhe que esta história está muito


abafada. Marieta contou só a mim e eu
vou contar aqui em confiança. (Lança
um olhar de desconfiança para Sá Nana)
Em con-fi-an-ça.

SÁ NANA - Pra que essas nicas. Eu sei que tu gosta de


um boato. Aposto que antes do bicho dar,
até o povo da feira já sabe dessa
história...

QUITÉRIA - Sá Nana, a senhora hoje está demais.

SÁ NANA (Pra Zefa) - Minha natureza não abraça esse


homem.

ZEFA - E pode? Ele é bobo, mas não é ruim, não.

SÁ NANA - Basta ter bigode pra tu não achar ruim.

ZEFA - Eu? Homem é o pau que mais dá na minha terra.


O que dizem é que ele foi mordido de
cachorro...
SÁ NANA - E que dê que na lua nova ele não se avexa?
O que ele é, é fuxiqueiro.

SERVERIANO (Começando pra Quitéria a sua


narrativa) - Dona Carmina estava dando
a lição de piano com o professor novo,
quando chega o Doutor Aniceto, sem
ninguém esperar. Entra e vê tudo. O
professor acompanhava com a mão
esquerda e a Dona Carmina com a mão
direita tocava a melodia. Pra quem
escutava, a música estava completa, mas
deixa que as bandas estavam soltas pra
se agarrar. Se agarrar e se beijar!

QUITÉRIA - Seu Severiano. Que habilidade. Gostei de


ver...

SEVERIANO - Foi um Deus nos acuda. O professor saiu


pisado na carreira. E o Doutor Aniceto
tirou a sandália de Dona Carmina e deu-
lhe na cara, de sapato... foi bem feito
para ela deixar de ser descomposta...

QUITÉRIA - Olhe. Me disseram que ela é perrepista. Eu


logo vi.

SEVERIANO - Por isso não, que eu também sou


perrepista.

QUITÉRIA - O que? O senhor é perrepista? Seu


Severiano...

SEVERIANO - E com muita honra. E a senhora vai ver


que fim vai levar a Aliança Liberal.
QUITÉRIA - A Aliança Liberal vai vencer. Eu nunca me
casaria com um perrepista.

SEVERIANO - A senhora é vingativa. Tem um coração


cruel.

QUITÉRIA - É isto mesmo. Quando eu casar, meu


marido ou concorda comigo ou deserta.

SEVERIANO (Sem se aperceber) - Não. Só terei olhos


para a senhora... Jamais outra mu...

QUITÉRIA - Como foi?

SEVERIANO (Todo atrapalhado) - Não, nada, nada! É


uma coisa cá comigo! (Pausa) A senhora
que é que prefere? Um homem
trabalhador, sem ambição, de certa
idade, mas que dê conta do recado... ou
um moço vadio, um pilantra?

QUITÉRIA (Encarando, bem séria) - Pilantra, Seu


Severiano. Pilantra! (Severiano faz um
gesto de surpresa. Arruma-se, cutuca-se e
na hora que Dona Mocinha vai entrando
ele sai).

MOCINHA - Seu Severiano, espere um pouco. O dinheiro!

SEVERIANO (Já da porta) - Depois. (Sai. Riem todos. Sá


Nana gargalha).

LENINHA (Entrando) - Mãe! Aí tem uma mulher


tirando esmola pra São Severino.

MOCINHA - Diga que perdoe. (Depois refletindo)


Espere... São Severino foi guerreiro... Vá
A secretária do seu pai, tire de lá um
óbolo e dê. (Leninha sai correndo. Entra o
Major Paulino. É cego, usa óculos escuros,
gorro de xadrez, camisa branca de
colarinho duro e paletó de pijama.
Dirige-se à cadeira de balanço que vai
disputar com Sá Nana. Traz jornais).

SÁ NANA - Shi! A coisa já esteve melhor. (Sai pela


direita baixa).

MAJOR PAULINO - Bom dia. (Todos respondem) Joana!


Já pisou o rapé?

JOANA - Já, Seu Major. Está aqui no currimboque.

MAJOR PAULINO - Traz cá para tomar uma pitada.

MOCINHA (Ajeitando o velho na cadeira de balanço) -


Pai ficou bom?

MAJOR PAULINO - Já viu velho ficar bom? Velho tem


melhora. Eu melhorei, dormi melhor...

MOCINHA - Meu pai. Vasco não dá notícias. Estou


aflita... Por onde andará aquele menino?

MAJOR PAULINO - Uma coisa eu garanto. Desertar ele


não desertou, isto nunca. Pode estar preso
ou morto, mas escondido, não.

QUITÉRIA - Mas os rapazes que saíram, já se sabe de


todos... até dos mortos.

MAJOR PAULINO - Essa revolução não chega ao fim


deste mês. Questão de dias. A nossa causa
está ganha. Não vê lá pelo Rio Grande do
Sul como andam as coisas? O menino
anda por aqueles mundos... Ele é
matreiro... deve andar fazendo das suas
por lá. Não digo nada se ele chegar aqui
de gaúcha de lado.

MOCINHA - Não, não creio... Pra mim é como pai disse.


Ele está preso ou morto. E pai... a culpa é
sua. O senhor foi quem influenciou para
que ele seguisse como voluntário. Não
tinha nem idade.

MAJOR PAULINO - Mas era um dever. O Partido


precisava de nossa ajuda. Não será na
quinta geração que os Teixeira
Cavalcanti fracassem.

MOCINHA - O senhor pode se orgulhar daquela galeria


lá dentro. Mas quanto não custou a cada
um daqueles heróis? Sangue e vida. Só o
senhor sobreviveu... mas em que situação.
Quero meu filho simples, vivendo sem
heroísmos, sem tradições... Vivo, pai,
vivo! (Chora).

MAJOR PAULINO - Nem parece que é filha de minha


pranteada Arlinda.

QUITÉRIA - Mocinha, acalme-se. Afinal de contas tudo


são conjeturas. Não há motivo para você
estar se martirizando assim. Anime-se. Já
não fez tanta promessa? Este vestido
preto não é promessa? Tenha fé. (Pausa)
Dê cá o dinheiro da feira que eu vou
andando. Isso sim.

MOCINHA - Vou buscar. (Sai pela direita alta).

JOANA - Seu Major não quer uma papa, agora?

MAJOR PAULINO - Que papa, menina. Eu hoje estou é


danado. Vou comer buchada! Julião!

JULIÃO (Entrando da cozinha) - Pronto, Seu Major.

MAJOR PAULINO - Veja aguardente de cabeça, apanhe


umas pimentas e ponha na mesa no meu
lugar. (Joana e Julião obedecem indo à
cozinha).

CHICO (Cruzando da direita alta para a cozinha) -


Buchada, não é? Abra o olho. Panela,
rede e velho... só se acaba pelo fundo.
(Sai).

ZEFA (Entra cantando) - Alerta, alerta rapaziada /


Acorda agora e lava o rosto na calçada...
(Dona Mocinha entra da direita alta).

MOCINHA - Zefa!

ZEFA (Interrompendo o canto) - Senhora? Que foi?...

MOCINHA - Viu quem mexeu na secretária de Seu


Quincas?

ZEFA - Não senhora, vi não. Que foi?

MOCINHA - Está bem, está bem, não é nada, não. Vá


terminar o serviço.
ZEFA (Continua a cantoria enquanto espana a mesa,
pondo abaixo, de propósito, a nota da
feira no chão. Quitéria, que estava se
empoando no espelho, vê) A noite hoje,
está muito...

QUITÉRIA - Zefa!

ZEFA - Inhora?

QUITÉRIA - Apanhe! (Zefa apanha, a contragosto. Após


o quê, Zefa sai cantando com ironia).

ZEFA - Bota pó, vitalina / Tira pó que moça feia / Não


sai mais do Caritó... (Quitéria tem um
ataque histérico e cai numa cadeira,
gritando. Chico, Joana e Julião entram
correndo, para abaná-la. Logo após,
saem).

MOCINHA (Reaparecendo) - Que é isto?

QUITÉRIA - Foi Zefa que me chamou de vitalina.

MOCINHA - E o que é que tem? Não é, mesmo? Eu aqui


aperreada e você aí tendo chilique.
Imagine, Quitéria, que tiraram o
dinheiro da feira lá da secretária... E eu
não sei quem foi. Um cartucho de
cinqüenta mil réis...

QUITÉRIA - Mas é possível? Todos os empregados aqui


são de confiança, an-ti-gos. (E batendo na
boca) Deus me perdoe.

MOCINHA - Sim. Tive o mesmo pensamento... A novata!


QUITÉRIA - Mas pode não ter sido.

MAJOR PAULINO - Quem é?

MOCINHA - Foi uma moça que entrou aqui hoje...


Vamos silenciar e ver se ela ou alguém se
denuncia...

QUITÉRIA - E o dinheiro?

MOCINHA - Pai, me empresta dinheiro que quando


Romeu chegar eu pago. E se ele não
aparecer até amanhã, quando Seu
Quincas chegar, ele resolve. Olhe aqui,
Quitéria. Oh! Esqueci de botar na nota, a
goma e a galinha.

QUITÉRIA - Galinha, Mocinha? Ah, eu não pego em


galinha, não. Eu tenho medo.

MOCINHA - Chico não vai com você?

QUITÉRIA - Eu não gosto de Chico...

MOCINHA - Então só tem um jeito. Vá sozinha e traga o


balaio na cabeça.

QUITÉRIA (Fica no espelho, se ajeitando) - Chico. Traga


o balaio e vamos saindo pra feira.

CHICO (Entrando, fica olhando a situação) - Está vendo,


Dona Mocinha? Essa tem coragem. Me
desculpe, Dona Mocinha, mas se eu
tivesse essa cara, eu andava de ré.

MOCINHA - Oh, Quitéria. Acaba com isso e vá andando


pra feira.
QUITÉRIA - Eu não gosto de andar com Chico... (Ao sair
se encontram com Luzia que vem da rua.
Chico conduz o balaio) Bom dia. Pode
entrar. Já estou indo pra feira.

LUZIA (É do mato. Vem para a feira. É comadre de


Dona Mocinha. Traz um capão debaixo
do braço e uns ovos amarrados em um
lenço) - Bom dia pra todos... Olhe aqui,
comadre. Trouxe, com licença da
palavra, esse capão e esses ovos. Os ovos
são fresquinhos. De quinta-feira pra cá e
o penoso foi cevado por sua afilhada.
(Entra Sá Nana, senta, fazendo boneca).

MOCINHA - Que incômodo, comadre. Não precisava


desse trabalho.

LUZIA - Não é trabalho nenhum. Mais devemos a


vosmicês. Pobre paga é com esses agrados,
mesmo.

MOCINHA (Falando para a cozinha) - Joana, pegue


aqui. Leve esses ovos e o capão. (Entra
Joana, pega a ave e os ovos e leva para a
cozinha).

JOANA - Bem que minha avó dizia. Quem passar de 30


vai ver coisa de admirar. Capão pondo
ovos...

MOCINHA - Como vai comadre Veneranda?

LUZIA - Pelejando. Naquela vidinha de sempre. Ela, até


mandou ajustar o batizado pra amanhã.
Eu marquei que comadre Mocinha anda
desadorada por causo do patrão na
guerra... Mas o pagão apresentou-se com
uma "interissa" e pode morrer de uma
hora pra outra.

MOCINHA - Não, comadre. Olhe: para a igreja eu saio.


Amanhã eu vou à Missa com o Seu
Quincas e depois da Missa o padre batiza.

LUZIA - Ela mandou especular se comadre vai dar o


enxoval do batizado.

MOCINHA - Dou. Já está pronto.

LUZIA - Outra coisa, comadre. Veneranda leva todo


gosto que a senhora escolha uma graça
pro pagão.

MOCINHA - Eu já havia pensado em dois nomes. É


homem ou mulher?

LUZIA - É menina-fêmea.

MOCINHA - Menina? Cassimira! Fica bem, comadre?

LUZIA - Senhora, sim. Mas a folhinha marca Apolônia...


não é Sá Nana?

SÁ NANA - Oxente, mulher, que besteira. Pois se a


folhinha marcar Circuncisão do Senhor a
vosmecê ia botar o nome no menino? (A
mulher fica séria e compenetrada.
Balança a cabeça e concorda).

MOCINHA - E como é que vão suas irmãs? Que é que me


diz de Amara? Casou?
LUZIA - Casou, faz um tempão.

MOCINHA - E tem filhos?

LUZIA - Tem, não. Quem tem filho é Das Dores, a que


não casou.

MOCINHA - Sente, minha filha.

LUZIA - Carece não. A gente vai chegando pra feira.

MOCINHA - Então vou lá dentro buscar o enxovalzinho.


(Sai pela direita alta).

MAJOR PAULINO - Os homens ainda se andam


escondendo lá pelos matos?

LUZIA - É a mesma coisa. Cuidam que estão pegando


homem pra brigar. Aí fica tudo
escondido. As ruas tão um deserto
danado. Na feira, mesmo, só tem velho e
mulher.

MAJOR PAULINO - Homens frouxos. Medo de lutar!


Ah, meu tempo! Homem não se escondia.
Pelo contrário. Fui voluntário na Guerra
do Paraguai. Lutei até o fim. O meu neto
puxou a mim.

LUZIA - E o que foi que ganhou? Olho cego, não foi?

MAJOR PAULINO - Se todos pensassem desse modo,


vocês também, não estariam aqui, assim.
(O Major passa a mão no traseiro de
Luzia, que se espanta).

JULIÃO (Que vem da cozinha) - Pronto a aguardente,


Major. (O Major passa a mão, também,
no traseiro de Julião, por engano) Êpa,
Seu Major! Sou eu!

MAJOR PAULINO - Especial. Vá botar no meu lugar da


mesa. (Julião sai).

MOCINHA (Entrando) - Olhe aqui o enxovalzinho,


comadre. E os meninos como vão? O
maiorzinho ainda tem aqueles cabelos
compridos?

LUZIA - Tem.

MOCINHA - E por que é que não cortaram ainda?

LUZIA - Mas, minha filha, os cabelos não são de São


Severino. Olhe Sá Nana, quando ele
nasceu teve doença de menino e nós
fizemos promessa para mudar o nome
dele para Inácio e guardar os cabelos até
sete anos. Ele já inteirou e estamos
esperando que desça caminhão de
romaria para São Severino dos Ramos...

MOCINHA - E a caçula, ainda tem o vício da chupeta?

LUZIA - Mas apois num tem. Já está se pondo bicuda. Já


experimentamos tudo: azeite, alho, óleo,
pimenta...

SÁ NANA - Escute aqui. Já botaram cocô de galinha?

LUZIA - Já, mas a danada não larga o consolo. E isto


não é nada. Pior é ela comer vício. Está
amarela e sambuda.

MOCINHA - Por que não dá a ela Geofagol?


LUZIA - Como? Como é, Sá Nana?

SÁ NANA - Jefogoió.

LUZIA - Taí, comadre. Assente num papel que esses


nomes alemão, assim, eu me atrapalho
todinha.

MOCINHA (Tirando um lápis do bolso e anotando num


pedaço de papel) - Olhe, aqui. Vá à
Farmácia de Seu Raul e mande
despachar. Diga que bote na conta de Seu
Quincas, que eu mandei.

LUZIA - Vou andando que já é noite. Assim com o papel


é melhor. Outro dia eu marquei na
cabeça um nome de um remédio e fui ver
na Farmácia de Seu Zezinho. Cheguei lá,
eu acho que destroquei o nome. Não sei o
que foi que Seu Zezinho entendeu. Só sei
que me deu um carreirão que eu nunca
mais voltei lá. Mas, agora eu vou mesmo.
Até outrora, comadre. (Saída falsa).

MOCINHA - Não fala com o Major, não?

LUZIA - É mesmo. (Para e se lembra do alisado) Não.


Não carece, não. Até outrora. (Sai. Sá
Nana vai saindo e quando passa por
perto, o Major pensando que é Luzia,
passa a mão).

SÁ NANA - Oxente! Te enxerga, cego!


MOCINHA (Para o Major) - Gente de brio essa. Gostaria
que todas as minhas amizades aqui da
rua, fossem sinceras como a dessa gente.

MAJOR PAULINO - Também, se não fossem


reconhecidas. O que você tem feito por
elas!

MOCINHA - É, mas nunca esquecem. Isso é que é o


importante. Nunca esquecem. (Entra
Julião puxando Leninha pela mão).

JULIÃO - Dona Mocinha: a senhora deixa Dona Leninha


ir pra feira comigo? Ela pediu.

MOCINHA - Não. Não vai, não. A rua está muito cheia


de soldados.

LENINHA - Vai mãe, deixa. Lá eu vou me encontrar


com Tia Quitéria.

MOCINHA - Vá, mas veja como vai. Não largue a mão


de Julião. Cuidado, Julião: não largue a
mão dela. (Saem. Entram, da direita alta,
Mercês e Maria de Jesus. Vestidas de
colegiais e abraçando livros).

MERCÊS e MARIA DE JESUS - Mãe, nós podemos ir


sozinhas pro colégio?

MAJOR PAULINO - Não. A rua está cheia de soldados.


E essa gente você sabe como é, afoita.
Podem querer tomar liberdade.
MARIA DE JESUS - E o que é que tem, vô? O que é que
eles podem fazer? Soltar um gracejo, um
galanteio, nada mais.

MAJOR PAULINO - E é pouco. Moça que se preza se


presta pra isso?

MERCÊS - Ah, mas vô deve entender que estamos no


século XX. Século do automóvel, do
Zeppelin, do charleston. Vô: já vai longe o
tempo em que o noivo só via a noiva no
dia do casamento. Isso ficou para a sua
mocidade.

MARIA DE JESUS - Hoje os casais passeiam de mãos


dadas, vão ao cinema juntos e tudo...

MAJOR PAULINO - E tudo o que?

MARIA DE JESUS - Dão beijocas no escuro.

MOCINHA - Meninas! Respeitem seu avô e a mim,


também.

MAJOR PAULINO - Mas quando eu dizia que trazer


essa gente para a rua não dava certo,
você achava que não. Não, porque as
meninas estão muito amatutadas,
precisam conviver. Está aí, o resultado
da convivência. Beijocas, é o que você
está vendo...

MARIA DE JESUS - Vô: o que é que tem beijo? É nada


de mais? Vô: o senhor nunca beijou?
(Mocinha faz sinal de repreensão com a
mão).
MERCÊS (Imediatamente) - O beijo é o selo do amor de
dois corações enamorados.

MOCINHA - Menina! Onde é que você escutou isso?


Quero você com essas frases vulgares na
boca?

MARIA DE JESUS - A frase é outra. Ela alterou. Isto é


uma frase de um livro que lemos na
estante de vô.

MAJOR PAULINO - Na minha estante? Meninas! Vocês


andam mexendo ali? Mocinha: ali tem
uma obra imprópria, só para homens. São
livros de...

MERCÊS - De Bocage? Ah, ah! Já lemos tudo, vô. Já


lemos. E estamos fazendo sucesso no
recreio do colégio com as anedotas de
Bocage.

MARIA DE JESUS (Com graciosidade) - E quando as


freiras se aproximam, nós, bem
santinhas, dizemos que estamos falando
da vida de Santa Teresinha. (Riem).

MAJOR PAULINO - E vocês, deliberadamente,


cinicamente, vêm contar isto a mim?
Olhem que tenho aqueles livros desde
solteiro. Mocinha, Guiomar, Marina,
Nazinha e até os homens: Afonso,
Sinhorzinho, Yoyô, Totonho... todos os
meninos nunca ousaram pôr a mão ali.
Nunca. Nem os homens. Surgem vocês,
agora, século vinte, com o maior cinismo:
lemos Bocage! Este mundo está perdido!
Perdido! Felizmente minha demora nele é
muito pouca. Não quero sobreviver para
ver o resultado.

MOCINHA - Acalme-se, pai. Acalme-se. Meninas: digam-


me uma coisa. E o vigário? O vigário não
disse nada a vocês sobre esse livro? Não
condenou...

MARIA DE JESUS - Que vigário, mãe? E é preciso


contar até ao padre o que se lê? Ele não
perguntou...

MOCINHA - Meu Deus. E eu pensando que vocês


estavam contritas rezando pelo irmão
que está na guerra... Que faço, pai?

MAJOR PAULINO - No meu regime você sabe como


seria: uma bruta surra e depois
penitência. Mas você lá é quem sabe.
Apenas uma coisa aconselho. Não deixe
de contar a Joaquim. Depois será tarde.

MOCINHA (Tom enérgico) - Perfeitamente! Amanhã Seu


Quincas tem muito o que resolver nesta
casa.

MERCÊS - Pelo amor de Deus não vá com esta história


pro lado de pai.

MARIA DE JESUS - Virgem Maria. Mãe, sabe como pai


é violento. É a história contada assim,
reforçada.
MOCINHA - Reforçada, não. Digo apenas o que está se
passando aqui. Não criei vocês assim. Isto
ainda aumenta mais as minhas
tristezas... Já não são mais tristezas... É
desgosto.

MARIA DE JESUS - Mãe, a senhora nos perdoe. Não


tivemos a intenção de desgostá-la.

MERCÊS - Amanhã vamos nos confessar e dizer tudo ao


padre.

MARIA DE JESUS - Mas é para mãe não dizer nada a


pai. Promete?

MOCINHA - Não sei. Estou tão perturbada. É


brincadeira, tamanha decepção, com
minhas próprias filhas. Minha família de
tradição religiosa e moral... e vocês a par
de assuntos que fazem tremer a gente.

AS DUAS - Juramos.

MOCINHA - Vou ver. Zefa, acompanhe as meninas até o


colégio.

ZEFA (Entra da cozinha e se antecipa às moças, saindo.


As moças, compenetradas, vão se
despedindo do avô e de Mocinha, quando)
- Vem aí um bonde cheinho de soldados
dando vivas. (As moças se entreolham e,
sem se conter, disparam numa carreira
para sair. Zefa também. Saem).

MOCINHA - Voltem. Voltem, já aqui. (Elas não


obedecem).
MAJOR PAULINO - Não voltaram, não é? Está vendo?
Já está ficando tarde para você dominá-
las. Entregue ao pai. Entregue ao pai.

MOCINHA - Não sei mais o que faça com essas meninas.

FILÓ (Entrando) - Qual é o serviço agora? Eu já acabei


de varrer. (Ouve-se um tropel de cavalo e
em pouco tempo entra na copa, pela
porta do oitão, Romeu. É forte, alto,
cínico. Está de botas, esporas e rebenque.
Camisa aberta ao peito, pisa forte e tem
andar de marinheiro).

ROMEU - À bênção, mãe. À bênção, vô. (E, notando Filó,


fica com olhar um pouco disfarçado sobre
ela. O Major responde acenando).

MOCINHA - Deus te abençoe. Como vai sua avó?

ROMEU - Mais ou menos... a senhor sabe como é


nervosa, não é?

MOCINHA - Mas o caso dela não creio que seja


nervosismo, não. Ela está mesmo muito
doente.

ROMEU (Tom zangado) - Bem, não estou dizendo à


senhora que ela anda gozando saúde,
não.

MAJOR PAULINO - Outro século vinte. (Mocinha


suspira acabrunhada).

ROMEU - Olhe aqui. Pai mandou o dinheiro.


MOCINHA (Olha para Filó e reservadamente fala a
Romeu) - Desapareceu um cartucho de
cinqüenta mil réis da secretária do seu
pai e eu não sei quem foi... Estou
desconfiada aí, dessa novata... quero ver
se ela se acusa... (Filó percebe que estão
falando sobre ela. Fica toda atrapalhada)
Observe como está nervosa. (Romeu a
observa com olhar de conquistador)
Estranho Seu Quincas perder uma feira...

ROMEU - Julião não avisou que ele não vinha, não?

MOCINHA - Avisou, mas ele está doente?

ROMEU - Não, senhora.

MOCINHA - E então, por que?...

ROMEU (Gritando) - Ora bolas. Tem comprador de gado


lá no engenho. Pai quer ver se passa os
bezerros que estão desmamados.

MAJOR PAULINO - Filho meu não me responde nesta


altura. Você perdeu a autoridade sobre
seus filhos. Breve estará ouvindo gritos
dos empregados.

ROMEU - Está bem. Desculpe. (Faz menção de se retirar,


mas Dona Mocinha o detém).

MOCINHA - Meu filho! Quer café? Filó: sirva café ao


patrão. (Filó sai para a cozinha) Não sei
se mando chamar Seu Severiano... foi ele
quem a recomendou. Mas pode não ter
sido ela...
ROMEU - Ela tem uma carinha tão inocente... não dá
essa impressão, não. Mãe procurou
direito? Não faça julgamento apressado.

MOCINHA - Bem, se foi ela ou não, eu não sei. Sei que


foi tirado. A gente se vê com cada uma...

MAJOR PAULINO - Os criados aqui têm sido muito


fiéis... Acontece que logo hoje, no dia que
ela chega, sucede isso. Deixa o que
pensar.

MOCINHA - Amanhã vamos ver. (Ao avô) Olha aqui,


pai, o dinheiro que o senhor me
emprestou para a feira. Vou guardar o
resto. (Sai. Filó volta com uma xícara de
café na mão. Romeu recebe e a fita nos
olhos. A moça, desconcertada, se afasta. O
rapaz quando tenciona aproximar-se, o
Major o chama).

MAJOR PAULINO - Romeu: estava lhe esperando para


ler os jornais... (Romeu faz um gesto de
irritação) Tome. Leia primeiro a "Ordem".
Quero ver o que é que esses cretinos
dizem aí.

ROMEU (Depois de selecionar ligeiramente os jornais,


chega-se perto do avô e lê) - "Um salto no
escuro! Acenda a luz. O estado de espírito
público, nervoso e irritado, só pode voltar
ao justo equilíbrio por meio de raciocínios
serenos, sinceramente expostos, tecidos
em alto senso de patriotismo. (Olha para
Filó e esta sorve-o com os olhos e baixa-os
repentinamente. Romeu faz um ar de
riso satisfeito e recomeça) ... Temos sido
vítimas das mais fortes injúrias e
calúnias que nos ferem em cheio o
coração, que tangem fundo o nosso
sentimento moral... mas aqui estamos de
pé... "

MAJOR PAULINO (Interrompendo-o num berro) - Mas


cairão!... E a tragédia do dia 26?... Ficará
impune? (Trêmulo e nervoso) Não posso
me esquecer... que manhã. (Romeu faz
um gesto de enfado e olha Filó. Esta,
novamente, está olhando-o e baixa a
vista) ... Eu estava na Rua Nova quando
ouço correria e tumulto. Sem os meus
olhos, apenas percebia que aquilo era
princípio de revolução. (Romeu olha em
redor e sai discretamente para perto de
Filó, que está de respiração presa) Depois
só se ouvia dizer: mataram João Pessoa.

ROMEU - Quem é você?

FILÓ - Sou Filó, a ama nova...

ROMEU - Quem? (Agrada-a com o dedo).

MAJOR PAULINO - João Pessoa. Vi logo o dedo. O dedo


de Washington Luiz. (O velho está
transtornado. Levanta a bengala no ar e
de pé, dá alguns passos para a frente).

ROMEU (A Filó) - Como foi o nome?


MAJOR PAULINO - Washington Luiz. Sim, Washington
Luiz! Meu sangue liberal ferveu-me nas
têmporas e se não fosse a minha cegueira,
nem sei...

ROMEU - Meu avô, sente-se.

MAJOR PAULINO - É melhor, mesmo. (Senta-se


nervoso).

ROMEU - Por que olhava para mim?

FILÓ (Perturbada) - Eu acho bonito ler... estava


apreciando.

ROMEU - Você estava gostando era de olhar pra mim.


(Aperta o braço da moça. Ela, num gesto
brusco, se afasta um pouco e olhando
para a porta)

FILÓ - Vigie a patroa...

MAJOR PAULINO - Mas como eu ia dizendo... Fiquei


desnorteado com o impacto da notícia, e
sem saber mais quem era, gritei: abaixo a
oligarquia, abaixo a tirania!

ROMEU (Olhando cautelosamente se afasta e acaricia


Filó) - Hoje à noite eu quero falar com
você.

FILÓ - Oxente! Eu sou séria. (Sai).

ROMEU - Conversa! (Mocinha reaparece ignorando o


que se passou).

MAJOR PAULINO - Conversa, não! Foi Joaquim que


reparou no perigo que eu corria, forçou-
me a entrar no automóvel e me trouxe
para Timbaúba! (Com ar vencido volta a
sentar-se na cadeira) E eles se dizem
injuriados...

MOCINHA - Pai, não adianta. Não se mortifique com o


que já passou.

MAJOR PAULINO - Pensar nas manifestações que


estávamos preparando na Paraíba para
a volta de João Pessoa... Na mesma
manhã do assassinato, a "União" trazia
publicado todo o programa da festa - a
passeata, o itinerário, os oradores...

ROMEU - Sim, sim, vô. Não há dúvidas. Foi um grande


golpe. Mas não foi em vão o sacrifício de
João Pessoa... Serviu para acelerar a
marcha da campanha que já se
prenuncia vitoriosa.

MAJOR PAULINO - Prenuncia, não. Nestas poucas


horas teremos notícias da vitória.

ROMEU - Então, nada de tristeza. Vamos antecipar com


um licorzinho, certo? Jenipapo?

MAJOR PAULINO - Vamos. Viva a Aliança Liberal!


(Romeu sai com o avô guiando-o para o
interior da casa).

MOCINHA - Vitória, mas sem o meu filho, para mim é


derrota. (Chora. Entram Leninha -
trazendo uma bruxa de pano, uma
vassourinha e uma cama de bonecas; e
Quitéria).

LENINHA - Mãe, a fita hoje é de Farina e Chuca-Chuca,


eu vou.

MOCINHA - Hoje não me sai vivalma desta casa. Estão


todos de castigo.

LENINHA - E eu fiz nada?

MOCINHA - Não, mas pelo menos você não diz - Eu vou.


É sim, posso ir? E hoje não pode ir,
entendeu? (Leninha fica choramingando,
enquanto Quitéria cai pesadamente na
cadeira).

QUITÉRIA - Ufa! Estou morta. Que calor. A feira está


uma negação. Tudo caro e escasso... só há
fartura é de soldado. Agora isto, tem de
sobra.

MOCINHA - Imagine! E as meninas queriam sair daqui


sozinhas.

LENINHA - As meninas? As meninas estavam era na


feira das pitombas rindo pros homens do
circo. (Chico entra com um balaio de
feira na cabeça, e uma galinha
pendurada na mão. Desequilibra-se ao
passar junto de Quitéria, solta a galinha
no seu colo o que dá lugar a um ataque
histérico. Chico sai para a cozinha.
Mocinha tenta acalmar Quitéria).
MOCINHA - É possível? Você a toda hora tendo
chilique? (Após acalmá-la) Mas o que é
que você estava dizendo? As meninas
estavam na feira das pitombas rindo pros
homens do circo?

QUITÉRIA - Que história é essa?

LENINHA - Foi, eu vi.

MOCINHA (Com todo o ódio) - E Zefa... eu só estou é Zefa


não ver...

LENINHA - Ora, Zefa... Zefa estava na gelada do Chichi


conversando com um soldado.

MOCINHA (Indo à varanda) - Julião! Ô Julião! Vá


chamar esse povo pra casa! Já! Amanhã
Seu Quincas tem muito que acertar nesta
casa. (Julião vai sair. Topa com Seu
Severiano que entra, todo pronto. Roupa
domingueira, chapéu de palhinha,
bengala na mão, cravo na lapela, um
verdadeiro almofadinha, porém ridículo.
Cabelo partido ao meio, e vaselinado.
Quitéria chama, discretamente, Mocinha,
Julião, Chico, Filó e Joana para
apreciarem a cena).

QUITÉRIA - Mocinha, Chico, Julião, Joana, Filó, venham


ver. Mas o que é que há, Seu Severiano?
Vai ao Recife?
SEVERIANO (Convicto) - Não. Eu agora não sou mais
um homem trabalhador. Agora sou um
pilantra! (Gargalhada geral).

SÁ NANA (Entrando) - Quem foi que botou esse palhaço


pra dentro?

CHICO (Comandando) - Hoje tem espetáculo?

TODOS - Tem, sim, senhor.

CHICO - Às oito horas da noite?

TODOS - Tem, sim, senhor. (Ad Libitum. Giram em torno


de Severiano).

FIM DO PRIMEIRO ATO

SEGUNDO ATO
O mesmo cenário - Os criados estão terminando de
jantar. Joana vai recolhendo os pratos. Ao fundo música
de circo.

JULIÃO - Comer eu como, mas não aprecio bode, não.

CHICO - Por bode eu sou mesmo que cabra.

SÁ NANA - Eu gosto de bode, mas quando é capado.


Esses pais de chiqueiro que vendem na
feira... (Gesto de nojo) Vôte. Bem fazia o
finado Rufino. Comia uma coisa que eu só
não digo aqui porque Joana é toda cheia
de nove horas. (Chama Julião com a mão
e comunica-lhe no ouvido alguma coisa)
... e dizia que dava talento.

JOANA - Olhe a música. Já vai pro circo e vocês aí


banzando. Avia, gente.

ZEFA - Eu vou me vestir. (Sai).

CHICO - Eu hoje não quero saber de nada... nem circo,


nem pastoril. Sábado é dia de serenata.

JULIÃO - E eu vou com você.

SÁ NANA (Indo sentar-se na cadeira de balanço) - Já sei


que isso acaba em cachaça. Queira Deus
que não emende com o dia de amanhã...

JULIÃO - Encontrei na feira um morador de engenho e


ele me disse que Dona Sinhá deu outra
bilôra.

JOANA - Essa velha não chega a Quaresma. Olhe, desde


que o caixão do Senhor Morto esbarrou
aqui na porta, que eu fiquei cismada com
Dona Sinhá.

CHICO - Psiu. Dona Mocinha está aí junto. Ela está


impressionada com essa história. Cuida
que o caixão do Senhor Morto esbarrou
aqui pra levar Seu Vasco.

JULIÃO - Eu não acredito que Nosso Senhor mate gente


assim, não. Se fosse assim era melhor
acabar com a procissão.

JOANA - Não. Não é matar não. É um sinal.


CHICO - Já disse que Dona Mocinha anda aqui perto.
Vocês mesmo gostam.

SÁ NANA - E as meninas já foram dormir?

JOANA - Estavam impossíveis. E agora com Zefa


cortando jaca para Jesus. Isso ainda vai
dar um barulho dos diabos.

SÁ NANA - E é Maria de Jesus com quem?

JOANA - Deus me livre de dizer nada pra senhora.

SÁ NANA - Capaz de não ser com o gringo do circo. É


até pra dizer a Ná Moça e me esqueço.
Eu só estou ela saber que esses gringos
aparados só casam com mulher da raça
deles.

CHICO - Mas ela pode não saber.

SÁ NANA - Que não saber. Essas meninas só vão no


pau. Agora que tomaram o freio nos
dentes... Vai ser difícil aquietá-las.

JULIÃO - Não vejo essas meninas fazendo nada de mais.


Pelo contrário. São até muito direitas.

SÁ NANA - Aí é que você se engana. Elas lêem livro de


homem e escurecem tudo ao padre. E
ainda têm coragem de comungar.
(Aproveitando a conversa, Joana tira o
pacotinho de detrás das garrafas do
aparador e sai com ele. Sá Nana percebe
tudo).
CHICO (Chama Julião, ao lado) - Ouvi Dona Mocinha
dizendo a Seu Romeu que roubaram o
dinheiro da feira.

JULIÃO - Roubaram? E quem foi? Infelizmente eu não


estava aqui.

CHICO - Sei não. Vai entrar todo mundo na dança. Dona


Mocinha está esperando que Seu Quincas
chegue pra descobrir tudo.

JULIÃO (Olhando para Filó) - Não terá sido aí, meu


dedo?

CHICO - Eu não quero maldar, não. Mas pra trás a gente


nunca tinha tido isso. Deixa pra lá.
Larita.

JOANA (Aparece pronta para sair) - Vamos ao circo,


Filó? Vai ficar sozinha em casa? Todo
mundo vai sair.

SÁ NANA - Todo mundo, vírgula. Eu me respeito. Não


sou mulher de circo nem de pastoril. Fale-
me, agora, num cavalo marinho, aí sou
capaz de passar a noite inteira...

JOANA - Vamos, Filó.

FILÓ - Vou, não. Sou apalavrada com rapaz do mato que


é tropeiro. Negocia com cachaça e açúcar
bruto pelos engenhos.

JOANA - Faz mal, não.

FILÓ - Vou o quê. Meu noivo pode não gostar.


JOANA - Pois então eu vou sozinha... (Vai sair pela
varanda).

CHICO (Acompanhando-a) - Cuidado pro palhaço


Chimarrão não te pegar. (Joana sai.
Entra Zefa, vestida de encarnado, de
pastora, vinda da cozinha. Canta
enquanto veste as luvas brancas).

ZEFA (Cantando) - Boa noite meus senhores todos / Boa


noite senhoras também / Somos pastoras,
pastorinhas belas / E alegremente vamos
a Belém.

SÁ NANA - Vigia só, que fogo. (Dá-lhe as costas).

JULIÃO (Achando graça, arrasta-a pelo pescoço e dá um


cheiro no cangote dela. Zefa sorrindo
corre para um canto da sala, dando
gritinhos de protesto, sempre seguida por
Julião) - Zefa: vamos casar comigo? Eu
fico tão alegrezinho... Alegria de negro é
ter pano branco! Eu mando te botar um
dente de ouro, te dou um vestido godê e
um sapato de salto alto.

ZEFA - Repara tua qualidade. Eu me passo pra um


negro como tu. Eu aprecio é farda.
Soldado. E se for sarará, ainda melhor. O
homem, pra mim, tem que saber assentar
o nome, tem que na frente de branco não
se pôr de calado, dizer também uns pés. E
tu, coitado, não sabe assentar o nome,
não é soldado e na frente dos patrões fica
morto. Não diz uma loa...

SÁ NANA - E teu namoro com Juvenato?

ZEFA - Juvenato foi com a música pro circo.

SÁ NANA - Vai furar o pano do circo.

ZEFA - Ele quer casar comigo.

SÁ NANA - Se ele casar contigo vai levar tanto biliro de


vaca que vai enjeitar.

ZEFA - Nada. Ele é um homem valente. Negócio de


briga com ele cheira a sangue.

SÁ NANA - Pode cheirar é a chifre queimado.

ZEFA (Entusiasmada) - É hoje à noite. O Cordão


Encarnado vai dar a nota. (Para Filó)
Vamos mais eu, mulher! Tu sabes cantar?

FILÓ - Eu estava aprendendo a puxar umas incelenças...

ZEFA - Que incelença, mulher. Eu falo é moda de


pastoril. A Diana canta, hoje, pela
derradeira noite. Está barriguda e não
pode mais esconder. Estamos procurando
outra.

SÁ NANA - Não desencaminhe a moça...

ZEFA - Desencaminhar o quê? Lá só tem gente séria.


Ainda hoje tomei banho com eles.

SÁ NANA - Imagine só a bagunça. Essa que está aí fica


dando cangapé mais os homens e só sai do
rio depois do derradeiro...
ZEFA - Mas Sá Nana, eu só tomo banho do lado das
mulheres.

SÁ NANA - E tu queres dizer a mim? Eu não tenho


vista? (Para Filó) Ela começa toda santa
mergulhando na barragem. Com pouco,
haja pular homem por perto. Depois
mergulham por debaixo e lá vai
catucada, lá vai pinicão... ela arrocha o
cangapé pra cima, diz desaforo, mas vai
ficando, vai ficando e é aquela danação,
por debaixo d'água. Agora, pra não
faltar à verdade, disso não passa.

ZEFA - Ainda bem que a senhora reconhece.

SÁ NANA - Q uantas pinicadas levasse hoje?

ZEFA (Rindo) - Qual! Esta daqui está virge de homem


pôr a mão em cima dela.

SÁ NANA - Ah! E não é em cima, não? (Riem todos).

ZEFA - Vamos embora, Filó... Larga de ser mole.

FILÓ - Não. Eu prometi ao meu noivo que não saía de


noite. Ainda mais com você assim, tão
"exposta"...

ZEFA - Exposta? Sá Nana, a senhora acha que eu estou


assim, tão exposta?

SÁ NANA - Mais do que isso, só sovaco de São Sebastião.

ZEFA - Então, vamos, Sá Nana?


SÁ NANA - Quem? Eu? Não, minha negra. Pra ver você
remexer com as cadeiras não carece me
arredar de casa, não.

ZEFA - Então, vou indo... É soldado muito me


esperando...

SÁ NANA - Você abra o olho... Soldado... Mulher que


ama soldado, ama cachorro também.
Cachorro ainda tem rabo e soldado nem
rabo tem... Toda vez que acabam as
guerras eu vejo é o mundo se encher de
mulher à toa. Dizia minha avó que
haverá de chegar o tempo em que as
mulheres acabam brigando por um botão
de ceroula de homem. Eu acho que esse
tempo já está chegando.

ZEFA - Quem vai chegando sou eu. Té amanhã, minha


gente. (Vai saindo).

JULIÃO - Eu vou lhe levar.

ZEFA - Te enxerga. No tempo em que se vendia gente,


negro era troco. (Sai. Julião senta
acabrunhado. Chico tenta consolá-lo).

CHICO - Esta foi danada. Deixa pra lá. Vamos Julião. A


noite é grande. Boa noite... Sá Nana.
(Julião pega o violão e vai sair).

SÁ NANA - Olhem: não vão abusar da cachaça.

JULIÃO - Não se incomode, não, Sá Nana. Nós não


vamos... pouco... (Dona Mocinha entra
com Leninha).
MOCINHA - Sá Nana: esta menina desde hoje que não
dorme. Passe uma benzedura nela...

SÁ NANA - Oxente, Mocinha. Não sabe que de noite


não se benze ninguém?

MOCINHA - Vai ver que foi olhado...

SÁ NANA - Se foi só pode ter sido de homem.

LENINHA - Ah, de homem? Então eu não sei de quem


foi. Foi Bibiu... Ontem quando eu saltei do
bonde, ele disse: "ô menina das coxas
grossas"...

MOCINHA - Amanhã Sá Nana vai lhe rezar.

SÁ NANA - É... Amanhã eu benzo você, com um galho


de pinhão roxo... Deixe ela comigo. O colo
da velha é melhor que qualquer outro.
(Mocinha sai).

LENINHA (Senta no colo de Sá Nana, na cadeira de


balanço) - Eu estou com medo do palhaço
das pernas compridas. Ele hoje botou a
cabeça pra dentro e pediu um copo
d'água. Eu tomei aquele susto... e agora,
quando fecho os olhos, estão aquelas
enormes pernas compridas dentro de
mim.

SÁ NANA - Bobagem... Aquelas pernas são de pau. Não


pegam ninguém. (Nina).

FILÓ (Vem se chegando) - A senhora é muito antiga


aqui, não é?
SÁ NANA - Antiga! Velha, não. Criei a mãe de Ná
Moça, criei Ná Moça, criei esses meninos
todos daqui - e agora esta derradeira.

LENINHA - Quando eu me casar e tiver filhos, a


senhora é quem vai criar.

SÁ NANA - Provera Deus. Eu não alcanço mais nem tu


botares corpo, que dirá esperar que tu te
cases. Estou dentro de oitenta anos. Deite
a cabeça e durma. (Balança-se ninando
Leninha).

FILÓ - Aquele véio já tem mais de setenta, não é?

SÁ NANA - Setenta ele tem, só de safadeza.

FILÓ - Me desculpe, mas eu reparei que a senhora não


aprecia o velho cego, não.

SÁ NANA - Não aprecio, não. Minha queixa vem derna


quando eu enviuvei. Ele ainda não tinha
perdido a outra vista. Mandou me
chamar pra comprar a safra de algodão
deixada pelo finado Rufino. Eu fui... Ele
botou um preço que era duas vezes mais
do que valia... e com um chove-não-
molha, agarrou-me. Dei-lhe um
sarrabulho, que se estendeu longe. Voltou-
se rindo e veio, de novo, me agarrar...
plantei-lhe a mão na venta que o sangue
espirrou. Derna desse dia pra cá a gente
não se fala.
FILÓ - Sá Nana, os homens aqui vivem todos na
agricultura.

SÁ NANA - É... De dia, na agricultura. De noite, nas


criaturas. (Canta) Ai, Estácio /
Abandona este palácio / Seu Freitas onde
é que eu vou? / Vai no seu rebocador /
Ai, Estácio / Abandona este palácio / Ai,
Estácio / Abandona este palácio / Estácio
se abaixou / Se espremeu mas não... hum,
hum. (Levanta levando Leninha
sonolenta para dentro, cantando) Ai
Estácio / Abandona este palácio...
(Ficando só, Filó se mostra nervosa...
Pausa. Volta Sá Nana. Começa a fechar
as portas e janelas... Acende o candeeiro,
e apaga a luz. O luar invade. Filó está
sentada na ponta da mesa, pensativa)
Está pensando no noivo, é?

FILÓ - Pois não é? Há quanto tempo que não escuto os


guizos da tropa dele... Lá em casa quando
eu ouvia, meu coração me sacolejava,
subia pro goto e ficava aquele nó no pé
da goela. Era ele que vinha. Faz tanto
tempo que não sinto esse remorso. Desde
que arrebentou a revolução que meu
noivo anda se escondendo nos matos...
anunciaram que estavam pegando
homens pra brigar...

SÁ NANA - Esses homens de hoje, não merecem o sinal


de nascença que têm. Vôte. Era melhor
que vestissem saia. Meu finado Rufino,
sim. Era madeira que cupim não rói. Era
macho pra empancar. Mas hoje? Até as
mulheres são piores. No meu tempo, moça
só via homem quando era para ajustar
casamento, e depois, no dia. Hoje? É uma
sem-vergonheza. Os homens não querem e
elas em cima, em cima, se esfregando, se
oferecendo... Depois, quando estão na
rua, vão se queixar deles... Homem é
mesmo que pólvora... O fogo vai por acolá
e eles já estão acendendo aqui. Ou será
que você está pensando em outro homem?

FILÓ - Oxente, Sá Nana! Eu posso lá ter sentido em outro


homem?

SÁ NANA - Abra seu olho, Filó. Tome tenença... É só o


que eu lhe digo. Vou deixar esta luzinha
acesa aqui, pra quando o pessoal chegar.
(Acende o candeeiro em cima da
petisqueira. Apaga a luz) Vai dormir,
mulher. Boa noite.

FILÓ - Boa noite, Sá Nana. (Levanta-se e dirige-se para a


cozinha. Sai. A cena fica deserta. Ouve-
se, ao longe, a serenata de Chico e Julião.
Depois Filó entra, vai a uma gaveta, tira
uma vela e a acende na mesa. Romeu
entra, por trás dela, sem que ela perceba,
apaga a vela da mesa com um sopro. Filó
se espanta, descobrindo Romeu. Ele quer
tirar o pano que está sobre os ombros,
pois ela se acha de combinação) Oxente,
meu senhor. Que é isso? Vá embora.

ROMEU - Eu quero é um lençol. Estou sem lençol.


Arranje um...

FILÓ - Eu ainda não sei das coisas aqui direito... e a


arrumadeira não sou eu, é Zefa. Deixe
ela chegar.

ROMEU - Assustou-se? Deixe ver seu coração... É... está


alterado...

FILÓ - Por favor, vá embora. Vigie Dona Mocinha. Ela


me bota pra fora.

ROMEU (Alisando com os dedos o braço dela) - Que é


isso?

FILÓ - Oxente, meu senhor. Não me catuque, não... Isto é


um sinal de nascença. Largue de ser
abelhudo e vá-se embora...

ROMEU (Toma-lhe as mãos) - Está com frio? Tremendo


tanto... O meu quarto é mais aquecido. Lá
você não sentirá frio.

FILÓ - Que conversa é essa? Eu não estou com frio, não.

ROMEU - Não? E como é que está tremendo?

FILÓ - Foi um sobrosso que me deu.

ROMEU - No meu quarto você não sentirá essas coisas.


Vamos para o meu quarto.

FILÓ - Oxente! Pra quê? Que história é essa? (Romeu


abraça-a) Meu senhor, vá embora. Eu sou
noiva. Não posso estar agarrada com
outro homem, não. Meu noivo nunca fiz
isso comigo, que dirá um forasteiro.

ROMEU - Não dê importância a essas coisas. São meras


formalidades. Você não tem ambições na
vida, de ter jóias, empregadas, luxar,
deixar de trabalhar? Seu noivo jamais
poderá lhe oferecer isso, pode?

FILÓ - Pode, não. Ele é tropeiro, mas eu não tenho


ganância, não. Quero mesmo ser pobre.

ROMEU - É razoável. Mas, seu noivo lhe ama? Já deu


provas de seu amor? Já balbuciou, assim,
no seu ouvido, alguma frase amorosa? Já
lhe aqueceu, assim, nos braços? Já lhe
disse quanto você é angelical, formosa,
fascinante, fenomenal?

FILÓ - Não. Só uma noite de lua cheia, a gente estava


espiando a lua, ele garrou na minha
mão... aí, veio gente, ele esbarrou...

ROMEU - Está vendo? Não tem atração por você. Isto,


em casamento, é uma coisa séria. Acaba
lhe abandonando por outra. Quer ver? Já
lhe beijou?

FILÓ - Nunca! Juro! Vim ouvir falar nessa história de


beijo, aqui com as patroas.

ROMEU - Lábios virgens. Mares nunca dantes


navegados.

FILÓ - Eu não posso navegar, não, que eu lanço...


ROMEU - Espere um pouco... vou ver se todos estão
dormindo... (Sai).

FILÓ (Trêmula) - Valei-me, meu padrinho Ciço... Eu


agora é que estou tomando tenência do
perigo. Esse homem quer fazer coisa
comigo e eu não estou resistindo. Dai-me
força, meu padim. Pra trás eu não era
assim. Que foi que deu em mim? Estou
com vontade de ir pro quarto de homem,
mas não quero ir. Tem uma coisa em
cima de mim que não apalaca. É que nem
sede que por mais que a gente espaireça
não tira o sentido do pote. Meu padim.
Dai-me resistência. Como estou vária.

ROMEU (De volta) - Está tudo dormindo. (Avança pra


moça).

FILÓ - Virge, como o senhor voltou brabo.

ROMEU - Desculpe, eu sou delicado. Vamos, não tenha


medo. Ninguém jamais saberá. Vamos!
Não há nada a temer... Você jamais
sentirá um amor tão devotado, tão
intenso... quanto esta noite em meus
braços. Esta noite ficará inolvidável...
Juro minha filha. Juro. Serei seu, somente
seu. Só a você amarei.

FILÓ - E o senhor está me apreciando? O senhor vai se


passar para apreciar uma ama? Eu não
sou de sua igualha, sou pobre, não tenho
leitura...
ROMEU - Ora, que ingenuidade... isto não é nenhum
problema. Você, querida, freqüentará os
melhores colégios, aprenderá pintura,
piano, francês. De manhã, vai dizer "bon
jour".

FILÓ - Eu não aprecio beiju, não.

ROMEU - Será, enfim, uma legítima dama.

FILÓ - Qual? Eu, não! Eu sou curta das idéias... leitura


não entra na minha natureza, não.

ROMEU - Não é leitura que eu quero que entre, não. (Já


impaciente) Viajaremos todo o Brasil,
iremos a Argentina, em viagem de
recreio... Vamos amor... o mundo é nosso.
Viva a vida. Viva a mocidade. O que há
de mais encantador na vida, nos espera.
(Dá um passo à frente e bate com a
canela na cadeira de balanço, na qual
está apoiada Filó).

ROMEU - Ai!

FILÓ - Que foi? Doeu?

ROMEU - Foi. Venha comigo. Venha ver o meu dodói...

FILÓ (Saindo abraçada e olhando para o santo) - Valei-


me, padim Ciço!

ROMEU - Deixa o santo... (Saem. A cena fica vazia por


um momento. Depois Julião,
cautelosamente, abre a porta da
varanda, põe a cabeça, olha para os
cantos, e depois, na ponta dos pés, volta
ao quintal e logo em seguida escancara a
porta. Entram Julião, Chico, carregando
o soldado Gustavo. Está ferido na perna,
sujo. Tem a túnica rasgada e um lenço
verde amarrado no pescoço. Está exausto
e cai, pesadamente, na cadeira).

JULIÃO - Podem entrar. Não há ninguém, não.

GUSTAVO (Voz arquejante) - Faz três dias que não como


nem bebo...

CHICO - Tire esse lenço do pescoço, senão o senhor morre.

JULIÃO - O povo daqui é da Aliança Liberal... (Gustavo


protege o lenço).

GUSTAVO - Não! Este lenço não sai do meu pescoço.


(Chico traz água e Julião levanta a calça
do soldado para olhar o ferimento).

CHICO - Como é que o senhor veio parar aqui?

GUSTAVO - Andei me escondendo nos matos. Quando me


descobriram, me balearam na perna. Saí
me arrastando, por trás das casas,
sempre me escondendo. Foi aí que vocês
me acharam.

JULIÃO - Coitado. Já padeceu. (Apalpando a perna


ferida) A bala está na flor da pele. Chico!
Traz aguardente de cabeça pra aplacar a
dor dele. (Chico vai buscar no aparador)
Não se incomode, não. Eu sou carreiro de
engenho. Negócio de bicheira de animal,
perna quebrada e capação... é comigo. (O
soldado recua instintivamente na
cadeira. Recebe a aguardente e toma, se
queimando) Vamos botar o soldado em
cima da mesa? Vigie o pessoal se está
dormindo. (Chico vai até a porta da
direita alta. Abre, entra e volta).

CHICO - Tudo dormindo. (Pegam o soldado pelos braços e


pernas e o colocam em cima da mesa).

JULIÃO - Vigie a toalha, a vela e a quicé da ponta fina.


(Chico recolhe o material da gaveta do
aparador) E o iodo! (Chico atende) Pronto!
Agora segura pelo sovaco dele que eu vou
arrancar a bala. (O soldado dá um grito
de dor e desfalece).

GUSTAVO - Que dôôôr.

CHICO - Julião! O homem deu uma bilora. (Com o grito


acordam todos, e em pouco tempo, a copa
está repleta por todos os adultos da casa,
em vestes íntimas. Depois chegam Major
Paulino, com Leninha. Acendem-se as
luzes).

MOCINHA - Meu Deus! É Vasco? É Vasco que está aí? É


ele, meu Deus. É ele?

CHICO - É não, Dona Mocinha, é não. É um soldado que


estava da banda de fora, caído na valeta,
e nós trouxemos pra banda de dentro.
ROMEU (Entra retardado, atacando a roupa) - Que é
isto aqui? Quem é ele?

CHICO - É um soldado que estava na valeta.

ROMEU - Perrepista? Mas é um perrepista! Quem ousou


trazê-lo para cá? Fora com ele. Vamos,
obedeçam-me.

MAJOR PAULINO (Imediatamente) - Um perrepista?


Sob este teto? Fora com ele. Já entregar à
tropa liberal.

MOCINHA - Pela Virgem Maria. Não. Quem sabe a


essas horas Vasco também não está nas
mãos inimigas? Deixem o moço.

MAJOR PAULINO - Não podemos aceitar perrepistas.


Está fora de cogitações.

ROMEU - Mãe. Você não alcança a gravidade da


situação? Não percebe que por nenhuma
hipótese podemos acolher perrepistas?
Quantas complicações viriam para nós?

MAJOR PAULINO - No momento não penso em


complicações. Penso só nisso: ele é um
perrepista.

MOCINHA - Meu pai: aqui não é nenhum campo de


batalha... afinal de contas ele é um
homem e nós somos humanos...

MAJOR PAULINO (Cortando) - Não adianta! Ele é um


soldado inimigo. Eu sou Major. Ele é meu
prisioneiro. Vão entregá-lo.
GUSTAVO (Que vem tornando da síncope, aos poucos, e
vai compreendendo a situação) - Piedade,
por esta noite. Amanhã me entreguem,
me matem, façam o que entender, mas
esta noite, deixem-me dormir... Faz um
mês que não durmo. Enlouqueço...

MAJOR PAULINO - Foi hoje vai dormir muito


sossegado... numa cela.

GUSTAVO - Deixem-me aqui, por hoje. Quando tudo isto


passar, meu pai será um eterno
reconhecido de todos. Ele me adora.
(Nervoso) Meu pai. Dêem-me notícias de
meu pai. (Põe a mão nos olhos).

MAJOR PAULINO (Mais calmo e compadecido) - Quem


é seu pai?

GUSTAVO - É o Coronel Ludugero do Engenho


Guaratuba na Paraíba.

MAJOR PAULINO - Ludugero de Guaratuba? Você é


filho de Deoclécia, minha sobrinha e
afilhada... Meu filho, como você se meteu
numa hoste tão velhaca?

MOCINHA - Deoclécia a estas horas deve estar maluca.


Maluca, meu Deus.

GUSTAVO - Também creio minha senhora. Há mais de


um mês que saí de casa. Soube agora que
o nosso engenho foi incendiado e que a
minha família fugiu para a capital, todos
vivos, mas só isso. Vivos. O resto é
miséria, devastação e derrota. (A esta
altura todos rodeiam o soldado e há uma
onda de simpatia em torno dele. Todos
querem confortá-lo, sobretudo as moças,
que passam toalhas úmidas em seu rosto
e penteiam-no. Vêm almofadas,
travesseiros, etc. Dona Mocinha vai se
intrigando com o exagero das meninas).

MAJOR PAULINO - É, meu filho. Vocês tomaram a


trilha errada.

MERCÊS - Ele é um suco. (Para Maria de Jesus e


Quitéria).

MARIA DE JESUS - Parece Ramon Novarro.

MERCÊS - Se ele quisesse tirar uma linha comigo... (Riem


as três).

MOCINHA - Vamos agasalhar o rapaz no quarto do


Romeu. Aqui é que ele não pode ficar.

ROMEU - Mas... para o meu quarto? E... e... ele... ele pode
ficar aqui na cidade? Ele tem que ir para
o engenho, e ainda hoje.

MOCINHA - Para o engenho? Não vê que é


humanamente impossível?

ROMEU - Mas aqui é muito arriscado ficar. Pode ter


sido visto nas imediações por alguém,
depois... uma busca... nada convencerá
que ele está aqui na qualidade de
parente. E olhe pai enrascado.
MAJOR PAULINO - Não, Romeu. Mais arriscado é ele
sair daqui a estas horas... chamará muito
mais a atenção. Ele ficará. Está passando
bem... amanhã chamaremos o Doutor
Apulcro e explicaremos tudo a ele... Mas,
lembre-se. É um perrepista. Só ignoro
porque é filho de Deoclécia.

SÁ NANA - Vai ver que essa Deoclécia é uma


namorada velha dele.

JOANA - Sá Nana. Ela é sobrinha dele.

ROMEU (Chamando Chico à parte) - Abra a porta do


meu quarto e quem estiver lá, diga que
eu mandei dizer que fique calada, que
amanhã eu resolvo. Tome a chave do
quarto. Tire ela de lá. (Sá Nana vê tudo).

MAJOR PAULINO - Leve-me. Já não tenho o que fazer


aqui. Passe boa noite.

GUSTAVO - Obrigado, senhor.

ROMEU (Com pouca simpatia) - Até amanhã... Mãe...


vou dormir no engenho. (Sai pela porta
da varanda. Julião trata de Gustavo.
Chico acompanha Romeu até a porta.
Dona Mocinha leva o Major. As moças
continuam conversando com o rapaz).

GUSTAVO - Sinto-me feliz... depois de tanto sofrimento...


tive o prazer de conhecer tanta moça
simpática...

QUITÉRIA (Rindo) - Obrigada, pela parte que me toca...


GUSTAVO (Olhando para Mercês) - Como se chama?

QUITÉRIA (Se intrometendo) - Eu? Quitéria. Esta é


Maria de Jesus, tem namorado. E esta,
Mercês, livre e desimpedida... Como eu...

GUSTAVO - Desimpedida? Que sorte!

QUITÉRIA - Como eu...

MERCÊS - Oh, obrigada.

SÁ NANA - Espere aí...

MARIA DE JESUS - Sá Nana!

SÁ NANA - Não! Deixe eu falar. Antes que isso vá pra


frente... Deixe eu botar uma aguinha
nessa brasa antes que vire fogueira...

QUITÉRIA (Rindo) - Pelo amor de Deus, Sá Nana. Pelo


amor de Deus!

SÁ NANA - Meu negro: a bala, só pegou mesmo na


perna?

MOCINHA (Entrando) - Vocês ainda estão aqui?


Recolham-se imediatamente. (Mercês,
disfarçadamente, aperta a mão de
Gustavo e sai acompanhada de Maria de
Jesus e Quitéria. Volta Chico) Chico!
Julião! Vamos levar o rapaz pro quarto
do Romeu. (Filó atravessa a cena, para a
cozinha, sem ser vista. Ouve-se lá fora o
berreiro de Zefa, que chega fazendo como
que todos retornem à cena pelo barulho.
Ela vem toda rasgada, ferida, pintada
exageradamente e com um cravo
encarnado na mão).

TODOS - Que foi isso? - Virgem! - Que foi que fizeram com
você? - Danou-se. - Eita pau.

CHICO - Mas Zefa! O que foi que lhe aconteceu?

ZEFA (Parando o soluço e dando três suspiros breves) -


Foram os perrepistas. Acabaram o
pastoril... e deram uma pisa no cordão
encarnado.

FIM DO SEGUNDO ATO

TERCEIRO ATO
É a manhã de domingo. Quando abre o pano, Chico e
Julião estão sentados à mesa. Já estão bebendo. Filó
passa o ferro em roupa. Joana prepara a bandeja e Sá
Nana está sentada na cadeira. Chico Chama Julião para
prosseguir tomando cachaça.

CHICO - Julião! Vem tomar dessa. É de cabeça.

JULIÃO (Reservadamente) - Aqui, pra nós. (Ri) Ontem


quando eu estava no telhado tirando
goteira do quarto de trás... Ouvi barulho
d'água caindo e me deu uma vontade de
espiar...

CHICO - E que foi que tu visse?


JULIÃO - Dona Quitéria tomando banho. (Riem. Riem
demoradamente e Chico, com gestos
volumosos, indaga, sem falar. Julião
fechando os olhos afirma com a cabeça e
disparam na risada).

SÁ NANA (Ouvindo a risadaria) - Vocês já começaram


a beber, não é? Eu conheço pelo olho e
pela pagodeira.

JULIÃO - Começaram, não. Chico ainda não parou.

SÁ NANA - Quando Seu Quincas botar reparo na


ancoreta...

JULIÃO - É nalda. (Vão sair os dois pela varanda).

SÁ NANA - Olha! Vocês vão encontrar Seu Quincas no


caminho!

CHICO - Oxente, Sá Nana! Como é que a gente pode


encontrar ele se a gente vai daqui pra lá
e ele vem de lá pra cá? (Saem e passam
por trás, pelo quintal, em frente às
janelas. Filó termina o engomado, dobra
as roupas, tira um vestido das moças e
experimenta sobre si, fazendo uma
reverência afetada).

SÁ NANA (A Joana) - Espia pra ela. Aquela ali está no


papo. Nunca vi tanta rapidez. Na certa
Seu Romeu encheu os ouvidos dela de
folhas. Olha só como ela está
experimentando os vestidos das meninas.
Quando a gente vê este povo de vista
baixa, falando manso, sonsa.

JOANA - Faz pena. Tão moça. Podendo até casar


direitinho.

SÁ NANA - Bem, se havera de casar pra enfeitar o


marido é melhor logo do jeito que está.

JOANA - Coitado do tropeiro.

SÁ NANA - Estou beba de sono. É capaz de eu cochilar


na Missa. Nunca vi uma noite tão
movimentada nesta casa, como a de
ontem. Nem quando arrebentou a
revolução e a gente dormiu no chão.
Passei a noite todinha acordada. Botei
reparo em tudo o que se passou aqui
nesta casa. (Cantando) Eu sei de uma
coisa, / Eu sei de uma coisa, / Não digo a
ninguém. / Quem, quem, quem, quem,
quem? / Estás ouvindo Filó? / Quem,
quem, quem, quem, quem? / Estás
ouvindo Filó?

FILÓ - Estou ouvindo, Sá Nana. Mas não estou


arrependida, não. Estou muito feliz. Olha,
foi uma noite inolvidável. Eu ontem
comecei a viver...

SÁ NANA - Eu vi. Já está falando difícil.

FILÓ - Eu ontem comecei a viver...

SÁ NANA - Foi. Tua vida começou ontem. Tu ontem


entrasse pra vida... Menina, vou te dar
um conselho. Não atravesse a linha,
porque se tu fores para aquelas bandas,
terás um fim amargurado.

FILÓ - E que história é essa de atravessar a linha?

JOANA - A linha do trem. Do outro lado é a rua das


mulheres.

FILÓ - E quem foi que entoou no ouvido da senhora que


eu vou ficar assim, à toa? Eu vou é me
casar.

SÁ NANA - Casar? Mas casar com quem? Me diz,


mesmo.

FILÓ - Ora esta! Com quem havera de ser? Com Romeu.

SÁ NANA (Engasgando-se) - Dobre a língua. Tu podes


tratar teu patrão por fulano. Que
atrevimento é esse de esperançar
casamento com um branco?

FILÓ - É porque a senhora não sabe. Ele me chamou de


minha filha e disse que eu podia tratar
ele de Romeu. Disse que ia casar comigo.
Diz que tem havido causos. Olhe, ele disse
que eu era fenomenal.

SÁ NANA - Meu Deus, como ela é besta! Oh, menina: tu


não está vendo que isso não tem
cabimento? Te enxerga.

FILÓ - E o que é que tem? É algum fim de mundo? Ele


queria que eu aprendesse leitura, mas
como eu sou curta das idéias, a gente vai
viajar.

SÁ NANA - Vai o que?

FILÓ - Viajar.

SÁ NANA - Tu vais viajar, mesmo, mas é para as


queimadas do alemão. Deixa Ná Moça
saber. E ele mesmo, o mais que ele pode
fazer é pagar um morador de engenho
pra casar contigo. Pra casar ou pra se
ajuntar. Não é a primeira vez que ele faz
isso. A história é sempre a mesma.
Quando ele encontra uma boba como tu,
ele promete casamento e quando é dessas
assanhadas, promete montar casa. No
fim, nem figo, nem tatu. (Filó olha
decepcionada para a velha, sem
palavras).

FILÓ - É verdade, Sá Nana? É verdade que ele é


acostumado a desgraçar moça que nem
eu?

SÁ NANA - Mas pra que é que tu fosses avoada? Tu


caísses na esparrela por que quisesse. Tu
não estava vendo logo que um moço
branco, de família, não ia ter paixão por
uma piniqueira como tu? Olha, te consola
pra casar com um morador.

FILÓ - Não. Eu não caso com quem ele mandar, não. Eu


tenho meu noivo. Eu não tenho coragem
de fazer isso com ele, não. Olhe: mesmo
que ele não viesse a saber, eu não ia fazer
isso com ele, não.

SÁ NANA - Taí. Uma coisa que é difícil da gente


escurecer. O homem por mais besta que
seja, na hora do casamento...

JOANA (Interrompendo) - Oxente, Sá Nana. Espere aí.


Deixe eu me retirar. Depois você fica
com Filó e explica tudo. Comigo aqui,
não.

SÁ NANA - Também eu não posso nem falar...

FILÓ - Precisa não, Joana. Eu estou desgraçada. Mas eu


não fico aqui, não. Eu vou-me embora
pras minhas terras.

SÁ NANA - Mas minha filha, se tu ficar quieta


ninguém tem nada com a tua sina...

JOANA - Sá Nana: a senhora foi muito dura com Filó. A


pobre coitada, sem experiência é capaz
de fazer uma asneira. Deixa aos poucos
ela ir se desenganando.

SÁ NANA - Por que é que ia deixar ela enganada?


Repare se nem tão cedo Romeu aparece.
Eu dou um doce se ele aparecer nestes
três dias. (Voltam Chico e Julião. Chico
puxa as tranças de Filó, na brincadeira).

CHICO (Surpreso) - Oxente, Sá Nana! Por que é que Filó


está chorando?
SÁ NANA - Por que é que você vem com todo esse ar de
inocência? Tu não recebesse recado,
ontem, de Seu Romeu? Eu não vi quando
ele te deu a chave do quarto?

CHICO - Sá Nana, a senhora está enganada. Saiba


guardar segredo.

JULIÃO - Segredo? Pois sim.

SÁ NANA - Olhe. Eu aqui, sei segredo de todo bichinho


de orelha.

JOANA - Menos meu, Sá Nana. Que eu não tenho


segredo.

SÁ NANA - Quer que eu fale? (Indecisa, pensa um pouco


e depois categórica, Joana responde).

JOANA - Não! (Riem todos, inclusive Joana,


encabulada).

SÁ NANA (Batendo no peito) - Só essa aqui sobe direto


pro céu. Ninguém põe uma falta em mim.
Estou virgem.

CHICO - Escute uma coisa, Sá Nana. E especular a vida


alheia, não é pecado não?

SÁ NANA - Não. Levantar falso testemunho e acoitar


mulher pra homem, isso sim.

JOANA - Está aí o que tu querias.

CHICO - E você? Por que é que não quis que ela falasse?
Tu não é tão santa?

JOANA - Não sei, nem é da sua conta.


JULIÃO - Espere aí. Vamos acabar com essa briga besta,
vocês dois aí. Parecem dois meninos.

CHICO - Sabe de uma coisa? Eu não quero mais saber


disso, não.

SÁ NANA - Pediu penico!

CHICO - Joana, falando sério. Como é que vai passando


aquele soldado que nós trouxemos ontem
de noite para aqui?

JOANA - Está bem. Mas o doutor disse que se demorasse


mais um pouco, ele tinha que cortar a
perna.

CHICO - É, é mesmo? Dava a gangrena. Feito deu


naquele galo pedrês que a gente teve que
cortar a perna dele. Que ficou cotó. De
manhã cedo ele cantava: cocorocotó....

JULIÃO - Sá Nana! Oh, Sá Nana! Vem tomar uma


branquinha com a gente.

SÁ NANA - Que nada. Eu não fui pra Missa com o


patrão, vou agora beber com um negro
fedorento que nem tu! (Chico cantarola e
dança um frevo. Interrompe e chama
todos para cantar uma embolada).

TODOS - Ê, ê, ê, ê cauã, o galo canta de manhã /


Carneiro quando se lava, bate o pé sacode
a lã. (Bis).
CHICO - Essas mulheres casadas / Que enganam o
marido / São pistolas de dois canos / Um
do besta e um dos sabidos.

TODOS - Ê, ê, ê, ê cauã...

JOANA - Minha mãe me deu dinheiro / Pra comprar


sapato branco / Mas a venda era mais
perto / Eu comprei um par de tamanco.

TODOS - Ê, ê, ê, ê cauã...

JULIÃO - Xiquexique é imburana / Imburana é pau de


abeia / Paletó de boi é canga / Gravata
de negro é peia.

TODOS - Ê, ê, ê, ê cauã...

SÁ NANA - As muié quando se ajunta / Pra falar da


vida alheia / Começa na lua nova / E
acaba na lua cheia.

TODOS - Ê, ê, ê, ê cauã... (A entrada de Zefa interrompe


a cantoria).

CHICO - Olha Zefa.

JOANA - Que estrago.

CHICO - Que foi isso, Zefinha? Senta aqui.

ZEFA - E eu posso?

CHICO - Não pode sentar, não? Então não foi briga só,
não. Me diz uma coisa. O soldado que te
deu a pisa era sarará? Ele tinha muita
leitura? Ele lhe largou alguma loa?

ZEFA - Vai-te pras profundas, ouviu?


SÁ NANA - Mas menina. Nem por tu balançares tanto
estas cadeiras, eles não se agradaram de
tu, não? (Todos, menos Joana, riem).

ZEFA - É. Mas hoje de noite vão brincar de pastoril de


novo... e os liberais vão tirar a desforra.
Já está tudo combinado.

SÁ NANA - Mas Zefa! Tu ainda tens coragem de subir


num tablado?

ZEFA - Hoje, não. Vou, não. Mas vou lavar meu peito,
quando souber da surra que aqueles
danados vão levar. Eles me pagam.

CHICO - Escuta Zefa. O soldado que te deu a pisa, usava


perneira? Ele usava uns botões reluzindo?
Ele usava um bigode embaixo do boné?
(Zefa investe contra Chico de espanador
em punho. Chico rechaça e o toma dela.
Sobe na mesa do centro e o exibe como
um cravo) Quem dá mais pelo cravo do
cordão encarnado? Quem dá mais? O
senhor aí! O senhor aí! Quem dá mais? O
budum agora é que está ficando cheiroso.
(Passa o espanador na axila) Quem dá
mais? Quem dá mais? (Julião reage,
enciumado).

JULIÃO - Chico! Pare. (Chico continua) Chico! Pare! Pare


com isso! (Chico desce da mesa).

CHICO - Quem é o nego macho que vai me esbarrar?

JULIÃO - Você não chama mais Zefa, nem de bonita.


CHICO - De bonita eu não chamo mesmo, não. Mas dizer
que ela é uma negra safada, eu digo e
repito: nega safada. (Os dois se atracam,
em luta, e as mulheres ficam gritando
por socorro. Joana vai até a porta da
direita alta e grita).

JOANA - Acuda, Seu Quincas, Chico e Julião... estão


brigando. (Os dois rebolam pelo chão. Seu
Quincas entra e eles, num pulo, se põem
de pé).

QUINCAS - Parem. Parem, seus afoitos. Mas o que é isto?

MOCINHA (Entrando) - Que foi que houve, meu Deus?

QUINCAS - Vocês estão na bagaceira, ou não é? Não se


considera mais casa de patrão. Bêbados.
Se é esta moleca anda se desmoralizando
nos pastoris. Que é que vocês estão
pensando?

CHICO - Não é isso, não, Seu Quincas. É que ainda não


nasceu o homem para me mandar calar,
e não haveria de ser um negro ordinário
desta qualidade. (Julião investe
novamente contra Chico e é puxado).

QUINCAS - Olhe aqui o senhor. Vá direto pro engenho,


seu cachorro!

JULIÃO - Não me ponha de cachorro, não, que eu fico


cego.
QUINCAS - O que? (Com o indicador aponta a porta da
varanda) Por ali! Retire-se, agora mesmo.
(Mocinha e Joana levam Julião).

JULIÃO (Parando na porta) - O senhor vai ver.

QUINCAS (Dando uns passos em direção a Julião) - Por


ali, seu cachorro!

JULIÃO (Possesso) - Eu fico cego. Eu fico cego. Não


repita. Não repita!

MOCINHA (Segurando o braço do marido) - Seu


Quincas! Por Deus! Não se misture com
empregados. Já está tudo resolvido. Vá
embora, Julião. Vá embora. Ele já vai. Ele
já vai. (Julião sai).

QUINCAS - Hoje, lá no engenho, vou mandar dar uma


surra naquele negro.

CHICO (Embriagado) - Isso!

QUINCAS - Não me peça nada. Eu mesmo vou deixar


aquele moleque mole de apanhar.
Cachorro.

CHICO (Insuflando) - Isso. Pisa no rabo dele. Amarra ele


num pé de baraúna e dá-lhe uma pisa
com cordão de gitirana. (Quando mais
está animado, Seu Quincas encosta o
rosto no dele. Quando Chico se vira, dá de
cara com ele e disfarça).
QUINCAS - Vou dar-lhe uma surra. Dentro da minha
casa ousando me desafiar. Cachorro. (Vai
saindo).

CHICO (A Filó) - Mas tu não me avisasse que ele estava


junto?

MOCINHA (Aproximando-se de Chico) - E o senhor,


também, fique aí bem quietinho. Seu
Quincas vai saber de uma coisa sua,
muito séria.

CHICO - Que foi?

MOCINHA - Apareceu uma cigana, na feira, dizendo


que tinha um filho seu.

CHICO - Espere aí. Tenha paciência, mas a cigana lhe


enganou. Como é que eu posso ter filho?
Eu não sou casado, não sou amigado, não
sou amancebado, só se foi na rapidez.

MOCINHA - Bem, já que estamos com a mão na massa,


eu quero conversar muito bem com vocês.
Olha aqui. (Para Filó) Venha cá.

CHICO (Livrando-se) - Vai lá, Filó.

MOCINHA - Você mesma se denunciou.

SÁ NANA - Oh, Ná Moça...

MOCINHA - Sá Nana, a senhora se cale. Você tão


recomendada. Seu Severiano fez ótimas
referências suas, e você cair numa
dessas?
QUITÉRIA - Mas, não é? Tão moça, tão cheia de vida.
Não precisava fazer isso.

SÁ NANA - Ná Moça, por favor, deixe eu dizer. Não foi


Filó, não. Foi Joana.

JOANA - Ui, ui, ui. Eu não, Sá Nana.

SÁ NANA - E tu não pusesse o pacotinho ali? (Aponta


para a petisqueira).

MOCINHA - Sá Nana. Você deve estar enganada...

SÁ NANA - Eu não me engano. Mande caçar no quarto


dela. Mande caçar. Mande caçar, lá no
baú. Ela tirou detrás das garrafas e botou
lá.

JOANA - Eu não escondi nada, não.

MOCINHA - Quitéria! Vá lá. Vá lá, no baú de Joana.


(Quitéria sai se rebolando) Mas Joana.
Você tão antiga aqui, e fazer uma coisa
dessas?

JOANA - Eu não tenho nem baú, Dona Mocinha!

MOCINHA - Olhe, eu podia esperar tudo, menos isso de


você.

CHICO (Vendo Quitéria se aproximar) - Lá vem ela, lá


vem ela.

MOCINHA - Vem, Quitéria. (Quitéria entrega um


pacotinho) Mas... aqui tem o retrato de
Romeu... (Joana chora e sai para a
cozinha).
CHICO (Acompanhando com o olhar) - Também? (Entra
Seu Quincas).

QUINCAS - Que é isso? Morreu gente aqui?

MOCINHA - Seu Quincas agora, vai descobrir. Tem que


aparecer o culpado.

QUINCAS - O culpado de que? Descobrir o quê?

MOCINHA - Olhe: tiraram o dinheiro da feira, ontem,


Seu Quincas, lá da secretária e eu não sei
quem foi. Um cartucho de cinqüenta mil
réis.

LENINHA - Oxente, mãe. A senhora não mandou dar


pra São Severino?

MOCINHA - Meu Deus do céu. E você deu aquele


dinheiro todo?

LENINHA - Eu pensei que o bolo fosse aquele pacotinho.

MOCINHA - Cinqüenta mil réis é uma fortuna. Não se


dá de esmolas.

QUINCAS - Seu pai dá outro pra você. (Sai com Leninha,


abraçado).

MOCINHA - Olhe: vocês todos, vocês todos me perdoem.


Me perdoem pelo mau pensamento. Mas é
que é tanta coisa ao mesmo tempo...

CHICO - Está perdoada... Está perdoada. (Sai para a


cozinha).

SÁ NANA - Oh, Mocinha. Bote reparo em Seu Quincas.


Aquele negro saiu danado daqui e negro
quando toma raiva... cuidado. Julião é
negro por derradeiro. (Mocinha sai).

ZEFA - Ai, meu Deus! Não sei o que é que eu faça. Estás
vendo Sá Nana? Chico capaz de perder o
emprego. Julião apois de matar Seu
Quincas. Que é que eu faço?

SÁ NANA - Oxente! Vai dançar pastoril. (Zefa


entroncha a boca e se retira).

JOANA - Mas já viu, Sá Nana? Como sucedem as coisas?


O diabo está solto nesta casa.

SÁ NANA - Você também está com danação pro lado de


Romeu?

JOANA - Não. Eu só acho ele bonito. (Entra comadre


Luzia com o neném).

LUZIA - Virge Maria, minha gente. Eu estou esbaforida.


Minha Santa. Vigie uma caneca d'água
aí pra eu. Mas, Sá Nana, minha nega.
Foi uma puxada danada. Saímos com a
matutina. (Recebe o copo com água)
Quem é servida? (Bebe).

SÁ NANA - Calma, minha filha.

JOANA - Tem mais.

LUZIA - Ah, minha filha. É que uma sede danada desta


só vai matando de golpe. A gente teve de
esbarrar muitas vezes no caminho. Por
mode o pagão. Estava afrontando, com o
sol. Mas pelo menos, agora, não vai mais
pro limbo. Até que na volta, a gente
podia ter vindo no carro de Seu Quincas.
Mas, Deus me livre! Andar num diabo
daquele que solta fumaça pelo rabo...

JOANA - Ah, Sá Nana. Já andei num diabo daquele.

LUZIA - Andasse?

JOANA - Andei. Seu Quincas vinha do engenho pra rua.


Desembalou na carreira, quando desceu
a ladeira... pum, pum, pum...

LUZIA - Tu?

JOANA - Não! O carro. Me deu um abalo no pé do


umbigo...

SÁ NANA - Repara só onde foi dar o abalo.

LUZIA - Apois foi por isso que comadre Mocinha pelejou


pra eu embarcar da igreja pra casa. E eu,
olhe: nem como coisa... mas compadre
Quincas veio com aquelas conversas
dele... "Vem cá, comadre, entre aqui e se
assente." E eu: não vou, não. E ele: venha!
E ficou nisso até que eu com vergonha
acabei indo. Aí, Sá Nana, quando eu fui
assubir no danado do carro, o Seu
Quincas futucou não sei aonde que o
bicho deu aquele berro: aúa, aúa. Eu
esbarrei, chamei comadre Mocinha e
disse: comadre, venha cá. Assuba, entre e
assente que este seu bicho está e me
estranhando.
JOANA (Se aproximando do menino) - Virgem, como
está amarelinho...

LUZIA - É interissa. Não se cria, não. Os filhos da


Veneranda, morre tudinho disso. Mas
também. Raimundo, o pai deles, sofre de
um mal... um mal muito grande. O
homem vive todo avacalhado, triste pra
uma banda. Eu não sei como é que
Veneranda agüenta.

SÁ NANA - E já levaram pro doutor?

LUZIA - Já era pra Veneranda ter levado antes, mas ela


foi "protocolando, protocolando"... Sabe o
que foi que ele fez? Começou a escutar o
cristão todinho, assim como quem
procura abelha em pé de imburana.
Depois veio com uma conversa mole que
o que Raimundo tinha era febre malefa.
Isso pode? O coitado que é mais frio do
que bucho de jia.

JOANA - E por final, o que é que Raimundo tinha?

LUZIA - Ah, minha filha, é um mal muito grande: é


almorreima na boca do coalho devido a
um nó no nervo do fígado.

SÁ NANA - O que?

LUZIA - Almorreima, Sá Nana. E logo na boca do


coalho.

SÁ NANA - Ah, eu já tive um caso desse na família. O


homem ficou mufino, naufragado.
LUZIA - Que nem Raimundo.

SÁ NANA - Eu acho melhor até avisar a Veneranda,


pra ela se aquietar. Aquele, nunca mais
na vida dele, vai safrejar.

LUZIA - É, vai não.

SÁ NANA (Voltando a olhar o menino) - Mas está muito


amarelinho... Dê cá uma pitada pra
velha.

LUZIA - Oxente, Sá Nana. É menina fêmea. Minha filha:


vigie um papeiro pra eu fazer o mingau
da menina. Shi. Mijou-me toda. (Julião
entra pela varanda).

JULIÃO - Sá Nana! Cadê Dona Mocinha?

SÁ NANA - Ela está lá dentro e não quer conversar com


tu, não.

JULIÃO - Mas eu quero falar com ela um negócio de Seu


Quincas.

SÁ NANA - Deixa disso. Tu estás bêbado.

JULIÃO - Eu não estou bêbado, não. Eu estou é


iluminado. Eu quero falar com ela de Seu
Quincas com...

SÁ NANA - Calado. Vem para cá. (Arrasta Julião para


o terraço da varanda, onde ficam
cochichando).

MARIA DE JESUS (Entra aflita e vai a Zefa) - Zefa,


minha negra, vá entregar este bilhete a
Roger, agora mesmo.
ZEFA - E quem disse à senhora que eu saio da banda de
fora, hoje?

MARIA DE JESUS (Aflita) - Mas, meu Deus. Que é que


eu faço? Tinha combinado me encontrar
com ele no oitão da igreja... mas papai
achou de ir à Missa. Leve este bilhete a
ele... (Tira do seio um bilhete que entrega
a Zefa, no momento em que Sá Nana
entra e vê).

MOCINHA (Entrando) - Onde anda essa menina?

SÁ NANA - Está aqui, Ná Moça. Está passando bilhete


pro namorado.

MOCINHA - Que história é essa?

SÁ NANA - Está namorando com o gringo do circo e é


Zefa quem acoita.

ZEFA - Menas a verdade. Eu não acoito namoro de


ninguém. Uma coisa que eu nem entendo
é a fala do galego...

SÁ NANA - Você não me ponha de mentirosa. Está, Ná


Moça. Está namorando com o gringo do
circo. E anda passeando lá pras bandas
dos Mocós.

MARIA DE JESUS - A senhora sabe perfeitamente que


quando acabam as aulas, nós voltamos
direitinho pra casa. A única vez que fui
a Mocós, foi quando o colégio fez um
passeio e a senhora consentiu que nós
fôssemos. E o circo nem tinha chegado,
ainda.

SÁ NANA - Ná Moça sabe que eu não minto. Estava,


minha filha. Eu mesma vi os dois de dedo
enganchado, passeando pelos Mocós. E na
hora da aula...

MOCINHA - Cadê o bilhete?

MARIA DE JESUS - Que bilhete, mãe? (Abrindo as


mãos) Eu não tenho bilhete nenhum.

SÁ NANA - Botou no seio. Está no califon.

MOCINHA - Entregue-me. (Maria de Jesus obedece) E


você dizendo que não tinha bilhete
nenhum? Você está proibida de sair de
casa, hoje. E você também, Zefa.

MERCÊS (Entrando) - Mãe! Eu estou achando Gustavo


tão quente. Pra mim ele está com febre.

SÁ NANA - Mas meu Deus do céu. Essa menina tem


nada que saber se o homem está quente
ou se está frio?

MOCINHA - Você também está proibida de entrar no


quarto do rapaz.

QUINCAS (Entrando) - Mas é possível? Eu não consigo


nem trabalhar!

MOCINHA (Apontando Mercês) - Ela está achando o


rapaz muito quente... E esta (aponta
Maria de Jesus) está namorando com o
gringo do circo. Está aí o bilhete dela.
QUINCAS (Cheirando o bilhete) - E cheiroso!

SÁ NANA - Pois não é! Bafo de homem... (Seu Quincas


pega as duas pelas orelhas e leva-as para
dentro).

SÁ NANA - É Maria de Jesus, é Maria das Mercês, é


Zefa, é Joana... Daqui a pouco isto vai
virar a casa de Maria Não Enjeita.

LENINHA (Entrando) - Sá Nana! A gata teve menino


nas minhas bonecas.

SÁ NANA - Pronto! Agora é a gata... (Fim de quadro.


Quando recomeça estão Mercês e Gustavo
em cena, em colóquio amoroso. É tarde).

GUSTAVO - Se eu morresse ontem, morreria sem saber


que há amor à primeira vista... (Fita
Mercês) Hoje, não.

MERCÊS (Brejeira) - Sou a mulher mais feliz do mundo.


Tenho vontade de gritar aos quatro
ventos.

QUITÉRIA - Que foi?

MERCÊS - Gustavo estava dizendo, por brincadeira,


que... me amou à primeira vista...

GUSTAVO - É... foi.

QUITÉRIA - E tu achas que uma coisa maravilhosa


dessas é brincadeira?

MERCÊS - Eu fiquei seriíssima, compenetradíssima, mas


não acreditei nada.
GUSTAVO - Mas não era brincadeira.

MERCÊS - Não? (Felicíssima, abraça Quitéria).

QUITÉRIA (Beliscando o olho) - Vou-me embora. Tenho


que terminar um bordado ainda hoje.

MERCÊS - Desculpe-me. Fiquei tão acanhada. Não quis


forçar nada. É que foi a primeira
declaração de amor que eu recebi.

GUSTAVO (Arrasta-a para beijá-la) - Minha querida.

SÁ NANA (Que observara tudo da porta da cozinha) -


Mas que pintura é essa? Espere aí que eu
vou chamar Ná Moça.

MERCÊS - Sá Nana, pelo amor de Deus.

GUSTAVO - Sá Naninha.

SÁ NANA - Eu não encubro sem-vergonheza de


ninguém.

GUSTAVO - Mas Sá Naninha...

SÁ NANA - Sá Naninha uma tamanca. (Sai).

MERCÊS - Sabe de uma coisa? Eu vou contar logo tudo a


pai.

GUSTAVO - Fique minha filha. Quem vai sou eu. (Saída


falsa. Topa com Quitéria que vem
entrando da direita alta. Há ruídos de
discussão lá dentro. Vozes de Seu
Quincas, Romeu e Dona Mocinha).

QUITÉRIA - Não entre. Está um frevo danado.


MERCÊS - Ainda é por causa do bilhete de Jesus?
Virgem. Não param mais com isso, não?

QUITÉRIA - Nada. Agora é a história de Filó. Estão


Mocinha, Romeu e Seu Quincas.
Trancaram-se na saleta. Seu Quincas está
um leão na jaula... Quer que Romeu case.
Romeu não quer casar...

MERCÊS - Mas já foram contar a pai?

QUITÉRIA - E quem havia de ser? Sá Nana! (Ouve-se


novamente a discussão, que agora está
mais acalorada e vem se aproximando.
Romeu passa apressado e dirige-se para
fora, pela varanda. Quitéria o
acompanha para olhar. Ouve-se o cavalo
saindo) Saiu esquipando no cavalo...
(Entram Seu Quincas e Dona Mocinha).

QUINCAS - Essa imoralidade tem que acabar. Seu filho


vai reparar o erro. Ele tem que casar.

MOCINHA - Mas Seu Quincas. O senhor não está vendo


a diferença? Ela é uma empregadinha.
Não seja injusto.

QUINCAS - Injusto? Injusto é deixar uma pobre moça


entregue ao mundo. Se isto na sua família
é tradição, não tenho nada com os
hábitos do seu pai... Mas seu filho, é filho
de um homem digno que não apóia
vilania. Vá chamar a moça aqui.
(Mocinha sai em direção à cozinha.
Aproxima-se de Gustavo e diz de si para
si) Cachorro!

GUSTAVO - Eu?

QUINCAS - Não. Cachorro. Sob o mesmo teto onde


dormiam a mãe e as irmãs. Enoja-me.
(Põe para fora Quitéria).

GUSTAVO - A mocidade é inconseqüente.

QUINCAS - Não. Eu também fui jovem e tive minhas


aventuras... mas nunca infelicitei moça...
e sobretudo respeitei a casa de meu pai. E
ainda mais essa pobre coitada que era
noiva.

SÁ NANA - Mas olhe aqui, Seu Quincas. O senhor não


fique aí com esse ar de inocência, não. O
senhor já teve, também, o seu par de
botas. (Situação embaraçosa. Seu Quincas
fuzila Sá Nana com o olhar. Entra
Mocinha trazendo Filó da cozinha).

QUINCAS (Chamando Filó) - Venha cá. Você sabe por


que é que eu estou lhe chamando?

FILÓ - Sei não, senhor.

QUINCAS - Eu quero examinar um caso com justeza


para que haja justiça. E você tem que me
responder com honestidade. Você
prevaricou?

FILÓ - Como?

SÁ NANA - Ele quis perguntar se tu...


QUINCAS (Interrompendo) - Espera aí, Sá Nana.
(Pausa) Você fez alguma coisa que não
devia com o Romeu? (Pausa. Bate na
mesa).

FILÓ (Amedrontada) - Fiz, sim senhor.

QUINCAS - Você foi só ou ele lhe forçou?

FILÓ - Bom. Ele me forçou.

QUINCAS (Puxando-a para si, enlaçando-a) - Quer dizer


que ele a puxou assim...

MOCINHA - Seu Quincas: se o senhor vai entrar em


detalhes... eu prefiro me retirar.

FILÓ - Quer dizer... eu fui com meus pés mesmo.

QUINCAS - Você sabe o que é que lhe espera, não é?

FILÓ - Sá Nana me disse.

QUINCAS - Você vai casar.

FILÓ - Sá Nana, também me disse. Eu não quero saber


dessa história de pagar homem para
casar comigo, não.

QUINCAS - Ninguém vai pagar homem pra casar com


você, não. Você vai casar é com quem lhe
fez mal.

FILÓ - Não, senhor. Não carece, não.

MOCINHA - Minha filha: que coração bom você tem...


Sente aqui. (Senta-a).

QUINCAS - Mocinha! Vai haver casamento.


MOCINHA - Ah, Seu Quincas. O senhor está no firme
propósito de prejudicar seu filho. Mesmo
que haja uma solução para contentar.

QUINCAS - Vai haver casamento, já disse.

SÁ NANA (A Gustavo) - Você está vendo o regime aqui,


como é? Não abra o seu olho não, ouviu?

FILÓ - Eu tive pensando... é muito pra mim. Eu me


consolo em ficar solteira mesmo. Na
minha família ninguém repara nisto não.

MOCINHA - Seu Quincas. Não corte a felicidade de seu


filho. A moça mesmo é quem não quer.

QUINCAS - Eu tenho a minha dignidade. Não está


vendo que eu não vou me aproveitar da
ingenuidade desta pobre moça?

SÁ NANA - Quem? Da família dos Bilau? São umas


moças passadas na casca e na gorda. eu
não avisei a essa beleza, quando ela
chegou, quem era Romeu? Ela se perdeu
por gosto. (Entra o Major Paulino direto
para a cadeira ocupada por Sá Nana,
que é expulsa).

MAJOR PAULINO - Eu venho lançar o meu protesto.


Não admito que o senhor venha ligar o
meu nome ao de uma empregada... que já
veio ao mundo predestinada para essas
coisas.
QUINCAS - Pois fique sabendo que o Teixeira Cavalcanti
com i, vai ter um acréscimo de da Silva
ou da Conceição.

MOCINHA - Agora que eu percebo todo o meu erro. O


senhor e sua família sempre tentaram
desmoralizar a minha família.

MAJOR PAULINO - Como é a história? Desmoralizar?

QUINCAS - Desmoralizar, não. Protesto. Mas achar


ridículo essa mania de tradição, eu
sempre achei; e disso o senhor sabe.

MAJOR PAULINO - Eu sei que o seu propósito é


ridicularizar.

MOCINHA - É isso. Sempre compreendi o seu despeito.

QUINCAS - Por que despeito? Por acaso, em que minha


família desmerece a sua?

MAJOR PAULINO - Não quis tocar neste assunto...


Mas... como tudo tem seu momento na
vida, chegou a hora. Sua mãe vem de
Conselheiros e Desembargadores, mas seu
pai era filho de um padre!

QUINCAS - Feliz foi meu pai, que antes de se gerar, já


veio abençoado pela Santa Madre Igreja.
Agora, se está no momento de lavar a
roupa suja, eu também sei de onde veio a
sua fortuna, quando o senhor voltou da
Guerra do Paraguai.
SÁ NANA - Pronto! Catucaram o velho com a Guerra do
Paraguai, agora ele não esbarra mais de
falar.

MAJOR PAULINO - Se eu tivesse a minha vista


perfeita, fazia o senhor engolir estas
palavras agora mesmo. Mas ou o senhor
prova a ilegalidade de minha fortuna, ou
vou processá-lo. (Chico, entrando da
varanda vai a Maria de Jesus, dizer-lhe
qualquer coisa ao ouvido).

QUINCAS - Duvido muito que o senhor tenha esta


coragem.

MARIA DE JESUS (Abre num choro) - Meu Deus! Meu


Deus!

MOCINHA - Que é isso? Que foi? Chico! O que foi que


você disse a ela?

CHICO (Encalistrado) - Eu só disse que estavam


desarmando o circo.

MOCINHA - Esta aí. Se o senhor é tão favorável assim a


certos casamentos, por que empata o
namoro de sua filha com o rapaz do
circo?

MARIA DE JESUS - Mãe, pelo amor de Deus. Não puxe


mais esta história, pro lado de pai!

QUITÉRIA - Mocinha! Jesus não merece isso.

MOCINHA - Há gente demais dando opinião aqui.


QUINCAS - Gente demais, não. Ela tem o direito de
opinar também. (Chico sai da varanda).

MAJOR PAULINO - Hoje mesmo vou sair desta casa.

QUINCAS - Não há motivos. Afinal de contas o filho não


é do senhor.

MAJOR PAULINO - Idiota. Como é que pode pensar que


foi só por isso? Não viu que me insultou?

QUINCAS - Pois pode ir embora. Eu já ando


transbordando com a sua presença aqui.
Vá lá pro seu engenho. Morra, acabe-se
por lá... de uma vez. (O Major levanta-se,
erguendo a bengala na direção de Seu
Quincas. Todos partem para acalmá-lo.
Quando vai voltar à cadeira de balanço
erra e quase cai sentado no chão, não
fossem os que o rodeiam).

MOCINHA (Retomando) - Acalme-se pai. Se meu filho se


casar com essa coisinha eu me retiro
para sempre desta casa.

MERCÊS - Mãe!

QUINCAS - Quando ela chegou aqui, era tão pura


quanto qualquer uma de suas filhas.

MAJOR PAULINO - Dobre a língua.

MARIA DE JESUS - Vou-me embora com Roger. Vou ser


trapezista.

QUITÉRIA - Minha Nossa Senhora. Nunca vi tanta


coisa numa hora só.
SÁ NANA - Deixe eu dizer uma coisa.

MERCÊS - Pois eu acho pai muito certo. Romeu precisa


de um freio. Precisa de uma lição.

MOCINHA - E quem disse que eu quero você dando


opinião em assuntos dessa natureza?
Recolha-se.

SÁ NANA - Deixe eu falar...

MAJOR PAULINO - Agora o senhor vai me dizer por


que eu não tenho coragem de processá-lo.

QUINCAS - Major Paulino: eu hoje só vou tratar aqui do


caso de Romeu.

MAJOR PAULINO - Vou mandar chamar Sinhozinho.


Previnam-se!

QUINCAS - Sinhozinho? Pode mandar chamar sua raça


toda. A mim não me altera. Só digo uma
coisa: que tenham boa pontaria...

QUITÉRIA (A Seu Quincas) - Não vejo motivo para


envolver nossos irmãos nessa história.
(Leva carão de Seu Quincas e tem um
ataque histérico).

MOCINHA - Seu pai desmoralizado e você não acha


motivo.

SÁ NANA - Escutem uma coisa... (Filó vai ficando


nervosa, chora e tenta se retirar).

QUINCAS - Filó! Fique! Espere aqui a volta de seu noivo.


MAJOR PAULINO - Noivo nada. Amante! Estas sem-
vergonhas quando encontram um filho de
família menos avisado, se aproveitam, se
entregam, para depois pretenderem
casamento. Mas não vai ser assim, não.
Se for preciso recorro à justiça...

QUINCAS - É na justiça mesmo que eu quero que ele caia


com os costados.

MOCINHA - Meu Deus! Que fim de mundo! Um pai


dizer isto de seu filho?

SÁ NANA (Gritando) - Arre! Diabo! Me solta. Eu vou


falar. O senhor não pode estar assim todo
franzido pro lado de Romeu não, porque
o senhor também tem rabo de palha.

QUINCAS - Não admito a senhora dando opinião em


assuntos nossos.

SÁ NANA - Chegou a vez de eu falar, embora eu vá


direto pra delegacia.

QUINCAS - Cale-se!

SÁ NANA - Eu não me calo. Eu já me espalhei. O senhor


não pode censurar nada de Seu Romeu
não, porque já quis fazer das suas com
Joana.

JOANA (Pondo as mãos no coração) - Ui, ui, ui, que


agonia.

SÁ NANA - Quitéria, dá um dente de alho aí pra ela


cheirar.
QUINCAS - Eu não devo nada a Joana.

SÁ NANA - Se é mentira, é de Julião. Foi ele quem me


contou.

QUINCAS - Não dê mais uma palavra. Vá embora desta


casa.

MOCINHA - Não vá, não. Conte tudo, Sá Nana.


Continue.

SÁ NANA - O nego contou que uma noite, ele fez que ia


sair mas não saiu, e entrou no quarto de
Joana, mas Julião chegou e ele se pôs de
bandinha. Diz o preto que não aconteceu
nada, mas podia ter acontecido.

ZEFA (Entrando da varanda) - Esta casa é mesmo uma


comédia. Minha gente: vem aí um trem
cheinho de soldados. Eles já vão
marchando confronte a cadeia. Tá um
furdunço danado. Eu vou ver passar, lá
na frente. (Sai. Movimento geral de
ansiedade discreta).

QUINCAS - Prepara-se, Sá Nana, para ir embora já.

MOCINHA - Não, não. Ela não vai, não. É a minha


única amiga nesta casa.

QUITÉRIA - Não diga assim, não, que eu também sou.

QUINCAS - Mocinha: esta velha tem que ir embora.

MOCINHA (Apontando para Filó que entra com os


teréns) - Quem precisa ir embora é
aquela. E Joana também.
QUINCAS - Joana não tem culpa no cartório.

JOANA - Minha Nossa Senhora. Eu não fiz nada.

MOCINHA - Hoje mesmo, eu vou para o engenho.

MARIA DE JESUS - E eu vou-me embora com o circo.


(Quincas manda-a sentar-se).

LENINHA (Entrando animada) - Zefa foi embora num


bonde cheinho de soldados.

SÁ NANA - Daqui a pouco não fica mais ninguém aqui


nesta casa.

ROMEU (Entrando) - Pessoal! A revolução acabou. (Ao


passar por Filó) Seu noivo está lá fora
esperando... (Filó sai).

SEVERIANO - Viva a Aliança Liberal! (Entra


exultante. Traz um lenço vermelho no
pescoço).

QUITÉRIA - Que é que há minha gente? Seu Severiano


virou a casaca?

SEVERIANO - E eu nunca fui perrepista?

VASCO (Entra radiante) - Pessoal! Cheguei!

TODOS - Vasco! Vasco chegou! Louvado seja Deus!


(Haverá mudança completa nas atitudes
de todos, que abandonam os problemas
que vinham discutindo e vão fazer
manifestações de carinho ao rapaz. Todos
o abraçam e se rejubilam com a volta de
Vasco. Deve-se ver, claramente, que Seu
Quincas e Dona Mocinha se reconciliam,
em lágrimas de alegria. Efervescência
geral. Todos entoam A Vassourinha).

TODOS - Pernambuco não desmente / Pernambuco não


desmente / Seu passado varonil / Sempre
foi e é valente / Sempre foi e é valente /
Na defesa do Brasil. (Saem todos pela
direita alta, com exceção de Sá Nana e
Romeu).

SÁ NANA - Oh, Romeu, vem cá. Eu não quero mais me


meter nos negócios desta casa. Mas, um
conselho eu vou te dar. Quem muito se
abaixa...

ROMEU - Já sei, Sá Nana. (Dirige-se para sair pela


direita alta, mas para escutando Chico
que vem chegando, acompanhado da ama
nova. É uma senhora idosa, com pano
amarrado na cabeça).

CHICO - Sá Nana! Tem uma mulher aí perguntando se


tem vaga pra ama. Eu vou mandar ela
entrar para falar com Dona Mocinha.

ROMEU - Mande entrar, Sá Nana.

SÁ NANA - Meu filho: pra tudo só tem mesmo um jeito:


olhe. (Faz com os dedos o gesto de quem
corta algo com a tesoura. Chico volta do
portão, acompanhado da ama. Sá Nana
manda-a sentar-se) Ô minha nega: me
diga uma coisa: você ainda é moça?

FIM

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