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Indice

Prefá cio
Introduçã o
Algumas chaves para abrir este segredo de abandono a Deus
A Fundaçã o do Abandono: O Amor Providencial do Pai
Abandono: suas imitaçõ es e outros impasses
O abandono deve ser vivido na fé
O Movimento de Abandono em Teresa de Lisieux
A “Aná lise” do Abandono em Teresa
A primeira fase do movimento de abandono: acolhimento
A segunda fase do movimento de abandono: con iança
A terceira fase do movimento de abandono: rendiçã o
Alguns exercı́cios prá ticos de abandono a Deus na escola de
pensamento de Thé rè se
Entregando-nos a Deus
Experimentando o abandono na oraçã o
Experimentando o abandono em Deus no meio da caridade fraterna
Experimentando o abandono nas preocupaçõ es com nossos entes
queridos
Experimentando Abandono no Trabalho
Experimentando Abandono em Sofrimento
Conclusã o
Ato de oblaçã o ao amor misericordioso
FR. JOEL GUIBERT

Um bandonment
a Deus
O CAMINHO DA PAZ DE
Santa Teresa de Lisieux
Traduzido por James Henri McMurtrie
SOPHIA INSTITUTE PRESS
Manchester, New Hampshire

Copyright © 2019 por Sophia Institute Press

é uma traduçã o de (Toulouse: Editions Du Carmel, 2017).


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As citaçõ es de documentos papais foram retiradas do site do Vaticano © da Libreria Editrice


Vaticana. Todos os direitos reservados.

Trechos da traduçã o em inglê s do para uso nos Estados Unidos da Amé rica copyright © 1994,
United States Catholic Conference, Inc. - Libreria Editrice Vaticana. Traduçã o para o inglê s
do copyright © 1997, Conferê ncia dos Bispos Cató licos dos Estados Unidos - Libreria Editrice
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Dados de Catalogação na Publicação da Biblioteca do Congresso


Nomes: Guibert, Joë l, 1959- autor. | McMurtrie, James Henri, tradutor.
Tı́tulo: Abandono a Deus: o caminho da paz de Santa Teresinha de Lisieux /
Fr. Joë l Guibert; traduzido por James Henri McMurtrie.
Outros tı́tulos: Abandon à Dieu, un chemin de paix à l'é cole de la petite
Thé rè se. inglê s
Descriçã o: Manchester, New Hampshire: Sophia Institute Press, 2019. |
Inclui referê ncias bibliográ icas. | Resumo: “Explica a con iança em
e o abandono a Deus segundo o caminho de Santa Teresinha de
Lisieux ”- Fornecido pela editora.
Identi icadores: LCCN 2019029024 | ISBN 9781622828340 (brochura) - ePub ISBN
9781622828357
Temas: LCSH: Thé rè se, de Lisieux, Saint, 1873-1897. |
Espiritualidade - Igreja Cató lica. | Vida espiritual - Igreja Cató lica. |
Vida cristã - autores cató licos.
Classi icaçã o: LCC BX4700.T5 G82413 2019 | DDC 248,4 / 82 - dc23
Registro LC disponı́vel em https://lccn.loc.gov/2019029024

Conteú do
Prefá cio
Introduçã o
Parte 1
Algumas chaves para abrir este segredo de abandono a Deus
1. A Fundaçã o do Abandono: O Amor Providencial do Pai
2. Abandono: suas imitaçõ es e outros impasses
3. O abandono deve ser vivido na fé
Parte 2
O Movimento de Abandono em Teresa de Lisieux
4. A “Aná lise” do Abandono em Teresa
5. A primeira fase do movimento de abandono: acolhimento
6. A segunda fase do movimento de abandono: con iança
7. A terceira fase do movimento de abandono: rendiçã o
Parte 3
Alguns exercı́cios prá ticos de abandono a Deus na escola de
pensamento de Thé rè se
8. Entregando-nos a Deus
9. Experimentando o abandono na oraçã o
10. Experimentando o abandono em Deus no meio da caridade fraterna
11. Experimentando o abandono nas preocupaçõ es com nossos entes
queridos
12. Experimentando Abandono no Trabalho
13. Experimentando Abandono em Sofrimento
Conclusã o
Ato de oblaçã o ao amor misericordioso
Prefá cio
Sã o Francisco de Sales disse que abandonar-se a Deus é tudo. Como
este trabalho nos mostra amplamente, um Doutor da Igreja nã o diz
mais nada.
O Padre Joë l Guibert mergulha-nos aqui nos conceitos de con iança e
abandono, que sã o como os pilares deste “pequeno caminho”, cujo
mé dico incontestá vel é Santa Teresinha do Menino Jesus. Apoiando-se
solidamente na sua doutrina, ele nos convida a este movimento
essencial de abandono, sem o qual nã o há vida espiritual autê ntica.
O autor diz em sua introduçã o que Deus deseja ter uma relaçã o de
“abandono de amor” com cada um de nó s. Ou seja, Deus, que, segundo a
pequena Teresa, “é só Amor e misericó rdia”, nã o quer deixar de criar
uma relaçã o ilial com cada um de nó s. Durante sua peregrinaçã o a
Lisieux, por ocasiã o de sua viagem apostó lica à França em junho de
1980, o Papa Joã o Paulo II declarou que a mensagem do evangelho,
como fundamento do caminho espiritual da infâ ncia, consistia em
acreditar na paternidade de Deus sobre nó s:
De Teresa de Lisieux, pode-se dizer com convicçã o que o Espı́rito de
Deus permitiu ao seu coraçã o revelar diretamente, aos homens e à s
mulheres do nosso tempo, o misté rio fundamental, a realidade do
Evangelho: o fato de ter realmente recebido “a espı́rito de adoçã o
como crianças que nos faz clamar: 'Aba! Pai!' ”O“ Pequeno Caminho ”é
o caminho da“ infâ ncia espiritual ”. Este caminho conté m algo ú nico
que faz parte do gê nio de Santa Teresinha de Lisieux. Ao mesmo
tempo, ele conté m uma con irmaçã o e renovaçã o da verdade mais
fundamental e universal. Pois que verdade da mensagem do
Evangelho é mais fundamental e universal do que esta: que Deus é
nosso Pai e nó s somos seus ilhos?1
O Padre Guibert nos convida a mergulhar no misté rio da conexã o
divina. A primeira parte de sua obra, mais teoló gica, aborda o tema da
providê ncia divina e nos convida a contemplar uma paternidade divina
que nada tem a ver com as caricaturas a que muitas vezes a
reduzimos. Mostra que, segundo toda a grande tradiçã o da Igreja - e em
particular Santo Tomá s de Aquino, que ele frequentemente cita - Deus
tem um desı́gnio divino para cada um de nó s e nã o para de o perseguir,
apesar das nossas resistê ncias. Ele escreve que “todo o objetivo deste
livro está na resposta a esta pergunta: Posso entrar neste plano de
amor muito prá tico que Deus tem para minha vida, por meio de um
abandono con iante e ativo?”
O abandono con iante à providê ncia divina, portanto, é o tema
subjacente a esta obra, pois o misté rio providencial abre o segredo para
o caminho da infâ ncia. O movimento de abandono a Deus a que Thé rè se
nos convida, atravé s de sua vida e de todos os seus escritos, conta com
uma visã o muito positiva e re lexiva da açã o de Deus em sua vida e do
pró prio Deus. Chegou a declarar, no inı́cio de sua autobiogra ia, que
levou a pena para começar a cantar na terra o que cantará eternamente:
as misericó rdias do Senhor (Manuscrito A, 3 r).
Abandonar-se a Deus é , portanto, con iar-se totalmente, nã o a uma
força que nos seria hostil, mas a um Deus pessoal e ao Seu amor
onipotente. O caminho, que parece simples, nã o é , no entanto, tã o fá cil
quanto nosso autor enfatiza; pois para se abandonar a Deus, devemos
abandonar nosso orgulho, que está sempre pronto para superar o amor
de Deus por nó s. O caminho espiritual da infâ ncia e seu movimento de
abandono, que é um de seus pilares, junto com a con iança, mostra-se a
antı́tese do pecado original e, ao mesmo tempo, seu antı́doto mais
seguro. Pois a causa principal do primeiro pecado, o arqué tipo de todos
os outros, nã o prové m dessa autossu iciê ncia e falta de con iança em
Deus, de quem o homem quer se emancipar - esse Deus que é a fonte de
seu ser? Sua principal consequê ncia nã o prové m desse temor a Deus,
que é tã o difı́cil, desde a queda, arrancar de seu coraçã o pecaminoso?
Como O padre Dominique Barthé lemy escreve magni icamente em
uma obra que agora é clá ssica: “Só podemos receber de Deus uma vida
que se renova incessantemente se estivermos irmes e abertos a Ele
com todo o nosso ser. Assim, o homem, ao querer ser um deus, se
desligou dessa relaçã o total e con iante de abertura, que é a ú nica coisa
que lhe teria assegurado a vida ”.2
O abandono total que Thé rè se defende é o caminho que devemos
percorrer se quisermos encontrar o Pai, que nos espera na casa ardente
da Santı́ssima Trindade, nossa verdadeira casa. Este caminho requer
uma grande pobreza de espı́rito, bem como uma fé con iante e
audaciosa na bondade do Pai. Segundo Thé rè se, a pequenez da infâ ncia
torna-se uma disposiçã o essencial do coraçã o - mesmo a bem-
aventurança das mã os vazias e da pobreza de coraçã o, como també m o
motor de toda a santidade.
Na escola de pensamento de Jesus, que é o Filho perfeito do Pai, a
Santa de Lisieux nos convida a compreender que a porta que conduz à
vida nã o se abre à força e nã o se conquista por mé ritos preliminares. A
salvaçã o é uma graça e um dom imerecido que devemos acolher com a
con iança e a dependê ncia de uma criança, que recebe dos pais tudo o
que precisa para viver. “Em verdade, eu vos digo: a menos que se
convertam e se tornem como crianças, nunca entrarã o no reino dos
cé us” (Mt 18: 3).
A pequenez da infâ ncia é a capacidade de depender daquele sem o
qual nada podemos fazer nem ser nada. Nele somente, “vivemos, nos
movemos e existimos” (Atos 17:26).
Teresa, pelo dom da sabedoria, experimentou sua pequenez
espiritual; longe de ser um obstá culo, esta pequenez tornou-se, pelo
contrá rio, um meio para Deus espalhar “as ondas da ternura do Seu
Amor in inito” nela.3 Essa pequenez, com a qual ela consentiu, permitiu
que Deus manifestasse Sua benevolê ncia paternal nela, assim como ela
permitiu que Ele a enchesse de Si mesmo e de Seu puro amor. Assim,
ela se tornou o vaso perfeito e puro da dá diva de Si mesmo que Deus
quer oferecer, um amor que é total e gratuitamente doado.
Tal abandono nã o pode acontecer sem uma luta espiritual que é “mais
difı́cil do que a batalha dos homens”, como Arthur Rimbaud disse
em Uma temporada no inferno . E a suprema luta espiritual que consiste
em abrir mã o da presunçã o de que podemos nos salvar. Pois,
abandonar-se é abandonar-se a Outro; é oferecer a nossa liberdade
Aquele que é a fonte e que pode permitir que estejamos completamente
realizados neste amor para o qual só nó s fomos criados. O Padre
Guibert nã o nega em absoluto esta dimensã o e convida-nos a
compreender o que está em jogo espiritual nesta luta interior. Ele diz
que “a mensagem de Teresa é uma graça imensa para nos ajudar a
encontrar a ligaçã o exata entre fazer algo e sentar-se e lutar e se
entregar”.
Na verdade, o Pai revela Seus segredos aos pequeninos. Ele quer
esconder essa graça daqueles que pensam que sã o sá bios e
inteligentes. Eles continuam a ser miserá veis, cegos e nus porque estã o
muito cheios de si e espiritualmente vazios.
Por outro lado, o Pai se agrada em doar-se totalmente à queles que
estã o cientes de sua fraqueza, de sua carê ncia e de sua impotê ncia para
fazer tudo bem. Thé rè se escreveu frequentemente sobre esta
mensagem. Ele tem o prazer de fazer isso com aqueles que concordam
em permitir que sejam salvos por ele.
“Quanto mais pobres e fracos formos, sem desejos ou virtudes, mais
disponı́veis estaremos para as operaçõ es do Amor.” E, novamente,
"receber é a virtude".
Deus, nosso Pai, espera que consentamos, com todo o nosso ser, em
uma disposiçã o de coraçã o completamente despojada de nó s mesmos e
con iantes na bondade do Pai. Ele espera que consentamos em nascer
de novo no Espı́rito Santo e ser queimado por este fogo de amor “que
transforma tudo em Si mesmo”. Ele espera que concordemos em nos
oferecermos com idelidade ao Amor misericordioso, a ponto de nos
comunicarmos com a Cruz de Jesus.
Pois a luta da fé é també m a da Cruz. O movimento de abandono nã o
saberia nos poupar disso. Mas, aqui novamente, nossas cruzes serã o
vividas nesta plena con iança ilial no Amor de um Pai que nunca nos
faltará . Como o Padre Guibert mais uma vez aponta em seu livro, as
ú ltimas palavras de Jesus na Cruz sã o aquelas de entrega con iante nas
mã os do Pai: “Pai, nas tuas mã os entrego o meu espı́rito!” (Lucas
23:46). O caminho espiritual da infâ ncia da pequena Teresa nos convida
a esse mesmo abandono. Este presente trabalho, que oferece um
comentá rio iel sobre ele, també m o faz.
Por meio deste comentá rio, possamos ser favorecidos com essa
atitude ilial. E a base de toda a doutrina de Teresa de Lisieux e de todo
o evangelho, pois, no Filho Unico, que é cheio de graça e de verdade,
“Deus é nosso Pai e nó s somos Seus ilhos”.
- Jean-Gabriel Rueg, OCD
1 Joã o Paulo II, homilia em Lisieux, 2 de junho de 1980, publicado em Catholic Culture,

https://www.catholicculture.org/culture/liturgicalyear/blog/index.cfm?id=157.
2 Dominique Barthé lemy, Dieu et son image (Deus e sua imagem) (Paris: Editions du Cerf,

2008), 55.
3 Ver Ato de Oblaçã o ao Amor Misericordioso de Thé rè se.

Introduçã o
Basta pronunciar as palavras “abandono” e “caminho da infâ ncia” para
que a igura de Teresa de Lisieux ganhe forma espontâ nea. No entanto,
ela nã o deté m o monopó lio dele, uma vez que cada santo se tornou
santo apenas na proporçã o de seu abandono ao Espı́rito. Posto isto, a
mensagem da con iança de Thé rè se atrai irresistivelmente o coraçã o
dos nossos contemporâ neos, porque apreciam a sua simplicidade e
sentem o seu estilo paci icador. E por isso que, ao longo deste trabalho,
adotamos Thé rè se como uma “irmã mais velha”, para que ela nos guie
neste caminho de abandono a Deus, fonte de paz.
Ao escolher um tı́tulo para este trabalho, hesitei em usar a expressã o
“abandono a Deus”. Com efeito, para as pessoas marcadas por uma
histó ria dolorosa, a palavra “abandono” expressa apenas tristeza e uma
relaçã o de amor ferida. No entanto, destaquei essa palavra neste livro,
pois parece difı́cil apagá -la de toda a tradiçã o espiritual. Alé m disso,
estes tempos parecem maduros para redescobrir seu signi icado
profundamente positivo e emocionante. Deus realmente deseja manter
uma relaçã o de “abandono amoroso” com cada um de nó s.
Nã o me parece impró prio falar assim, visto que esta disposiçã o de
abandono amoroso inundou o coraçã o de Cristo quando Ele o ofereceu
ao Pai até a cruz: “Pai, nas tuas mã os entrego o meu espı́rito!” (Lucas
23:46). En im, nosso abandono nunca é estritamente nosso, mas é o
abandono de Cristo, ao qual estamos unidos! Este movimento de
entrega a Deus, portanto, nada tem a ver com um processo
piedosamente sentimental. Leva-nos ao cerne do abandono vivido
entre as trê s Pessoas divinas e, por isso, está no cerne da vida
baptismal: «A vida que agora vivo na carne vivo pela fé no Filho de Deus
, que me amou e se entregou por mim ”(Gal. 2:20).
A aventura que este caminho sugere é fascinante, mas a observaçã o
dos nossos limites pode nos desencorajar profundamente a seguir em
frente. Fique tranquilo, diz Thé rè se, que se você tem consciê ncia de ser
“grande”, sua grandeza é o su iciente para você . O abandono é
incompreensı́vel para você . Mas se você tem um coraçã ozinho pobre,
você tem o material perfeito para ousar empreender a aventura do
abandono!
De qualquer forma, mesmo que ainda nã o sejamos “pequenos”, nã o
lamentaremos este itinerá rio de con iança, pois é verdadeiramente
fonte de uma paz profunda e de grande liberdade interior. Se os rostos
de nossos contemporâ neos parecem tantas vezes preocupados, é , em
parte, porque este mundo está separado de sua Fonte, que é o coraçã o
de Deus. Portanto, o abandono nã o é uma nova terapia da moda. Esta
pequena forma de con iança marca simplesmente o nosso reencontro
com a nossa vocaçã o mais profunda, que é nos tornarmos ou nos
tornarmos ilhos de nosso Pai Celestial. Redescobrir nossa identidade
como ilhos de nosso Pai Celestial, estabelecendo-se com con iança no
coraçã o de nosso Pai, nã o importa o que esteja acontecendo, só pode
transbordar para todo o nosso ser como frutos de paz e alegria
serena. Depois de saborearmos os primeiros frutos do abandono,
deixamos de o “consumir” para nos deixarmos “consumir”, a ponto de
querer que o Espı́rito nos puri ique e ajuste cada vez mais
profundamente a nossa vontade à vontade do Pai. Sim, esta pequena
forma de con iança é uma á rvore que dá frutos deliciosos, mas como
toda colheita, exige trabalhar dia apó s dia e à s vezes até luta.
O abandono se tornou, para muitas pessoas, uma linguagem tã o
estranha que parece apropriado para nó s, na primeira seçã o deste livro,
olhar para a “providê ncia” do Pai. Sem esta chave fundamental, seria
difı́cil abandonar-se com total con iança. A im de evitar decepçõ es e
outras desilusõ es, també m reservaremos tempo para encontrar
algumas imitaçõ es de abandono.
Tomados esses cuidados, na segunda seçã o nos colocaremos mais
diretamente na escola de pensamento de Thé rè se para interpretar mais
efetivamente seu “movimento de abandono” em Deus - suas condiçõ es,
armadilhas e fases principais.
Seria lamentá vel simplesmente saber que Thé rè se se entregou a Deus
sem fazer isso nó s mesmas. Para tanto, na ú ltima seçã o, entraremos em
trabalhos prá ticos. “Thé rè se, conte-nos o seu segredo; ensina-nos a
viver com abandono nas situaçõ es mais triviais da vida. ” Com Thé rè se,
isso é mais profundo, mas sempre muito real. Ela nã o deixará de nos
ensinar e orientar neste belo caminho de abandono da vida quotidiana.
Aqui está um conselho para os leitores que tê m uma mente mais
pragmá tica. Eles podem considerar que a primeira seçã o deste livro - a
re lexã o sobre Deus - requer uma certa re lexã o. Nã o é imediatamente
prá tico. Sendo este o caso, nã o hesitem em começar a leitura na
segunda seçã o. Tocada pela simplicidade da escola de pensamento da
pequena Thé rè se, certamente desejarã o descobrir aquilo que “cria” este
pequeno caminho de con iança. Entã o, eles lerã o a primeira parte com
uma nova mente para contemplar o grande misté rio de Deus com mais
e iciê ncia.

Parte 1

Algumas chaves para abrir este segredo de abandono a


Deus
Para de inir em poucas palavras “abandono a Deus”, nada melhor do
que deixar Thé rè se falar. Aqui está o que ela escreveu ao Padre Belliè re:
“Vou te ensinar, querido irmã ozinho de minha alma, como você deve
navegar no mar tempestuoso do mundo com abandono e com o amor
de uma criança que sabe que seu pai o ama e seria incapaz deixá -lo na
hora do perigo. ”4 Por meio dessas palavras concisas, Thé rè se quer que
reconheçamos que, em certos momentos de nossas vidas,
conheceremos alguns balanços, mas o abandono nos salvará de
virar. Alé m disso, suas palavras sugerem que é no seio da vida, pela
intensidade dos acontecimentos que nos afetam, que ocorre o
autê ntico abandono em Deus. Nosso Pai Celestial nã o apenas nos
estima, mas també m cuida de nossas vidas de acordo com um “plano
de amor” que convoca nossa colaboraçã o: “Ele nã o nos deixaria
sozinhos na hora do perigo”.
Portanto, parece difı́cil entrar nos segredos do abandono sem dar
atençã o particular à chave que o abre, a saber, este famoso misté rio da
“Providê ncia” de Deus, que está agindo em nossas vidas e na histó ria do
mundo. .
4 Thé rè se de Lisieux, Carta 258 ao PadreBelliè re, em Letters of St. Thérèse of Lisieux ,

vol. 2, 1890-1897 , trad. John Clarke (Washington, DC: Publicaçõ es ICS, 1988), 1152.

A Fundaçã o do Abandono: O Amor Providencial do Pai


"Providê ncia"5 é uma palavra que precisa de um novo signi icado
porque foi esquecida ou caricaturada a tal ponto. Para muitas pessoas,
a providê ncia evoca apenas um “paliativo” para os inais de meses um
pouco difı́ceis. Assim como a “irrigaçã o” minimizou os desperdı́cios
agrı́colas, a abundâ ncia em nossa sociedade inalmente libertou o
homem de acreditar em Deus: “Vamos, senhor, vamos em frente. Você
nã o vai realmente con iar nesse 'gentil sonhador' chamado Jesus, que
a irma que você nã o deve se preocupar com nada, que Deus cuida
disso? ” Para nos afastarmos da fé na providê ncia, assim que esta
palavra é deixada escapar, nos apressamos em caricaturá -la, nã o de
forma mesquinha, mas simplesmente regurgitando a atmosfera dos
tempos em que vivemos: “Você ainda acredita em um Deus, que
determinaria de antemã o tudo o que vai acontecer com você , sem
deixar sua liberdade ter nada a dizer sobre isso? Você ainda acredita
em um Deus que parece indiferente ao mal e ao sofrimento dos
homens? ” O peso destas caricaturas certamente lhes assegura uma
longa carreira, mas se nos atrevermos a deixar a Providê ncia falar por
Si, teremos algumas surpresas, algumas boas surpresas!
Deus nã o se contentou em criar o mundo como se constró i algo a
partir de Legos e depois o deixa: “Queridas criaturas, aqui está o
presente de Natal, divirtam-se e, acima de tudo, nã o me
incomodem; meu trabalho divino acabou! ” Certamente, em cada
instâ ncia, Deus “carrega” Sua criaçã o, mas em Seu amor, a Trindade nos
“carrega” como parte de um plano benevolente: “Todos os eventos
histó ricos se desenrolam de acordo com a vontade ou permissã o da
Providê ncia divina, e Deus alcança Sua objetivos na histó ria. ”6
Algumas pessoas irã o preferir esta fó rmula mais simples à expressã o
mais té cnica “Projeto providencial de Deus”: “Deus Pai tem um projeto
pessoal de amor para a minha vida!”7 Todo o objetivo deste livro reside
na resposta a esta pergunta: “Eu quero entrar neste projeto tã o
concreto de amor que Deus tem para minha vida atravé s de um
abandono con iante e ativo?” Infelizmente, nossas mentes feridas e
irre letidas freqü entemente transmitem essa falsa imagem de um Deus
ativo presidindo a vida dos homens de muito alto e muito longe. Nã o, a
Providê ncia se envolve nos menores detalhes de nossa vida: “O
testemunho da Escritura é unâ nime de que a solicitude da providê ncia
divina é concreta e imediata; Deus cuida de todos, desde as menores
coisas até os grandes acontecimentos do mundo e da histó ria ”, diz
o Catecismo da Igreja Católica ( CCC ) (303). Se for esse o caso, que
espaço e que grande amor podemos dar aos menores detalhes de
nossas vidas! “Tudo é tã o grande na religiã o. . . . Pegar um al inete por
amor pode converter uma alma. Que misté rio! ” Thé rè se maravilhas. 8
O homem moderno, tendo retirado Deus de sua vida, parece estar
cada vez mais desesperado para enfrentar a histó ria deste mundo, que
parece ser mais um estado de confusã o do que um desı́gnio
maravilhoso vindo das mã os de um “bom Deus”. Hoje, muitos tê m
di iculdade em a irmar que Deus é o Senhor da histó ria. Mas
“acreditamos irmemente que Deus é o senhor do mundo e de sua
histó ria” ( CIC 314). Nã o tenhamos medo de “proclamar a palavra. . . se
é conveniente ou inconveniente ”(2 Tim. 4: 2); vamos proclamar esta
verdade da fé , - para que, no Dia do Juı́zo, nã o sejamos acusados de nã o
ajudar uma sociedade em perigo de desespero! O dogma da
providê ncia é uma "verdade a ser vivida",9 uma verdade que muda a
vida. O abandono ao Deus de amor renova a vida injetando nela uma
esperança imensa. Oferece signi icado - talvez o signi icado ú ltimo da
histó ria do mundo e de nossas vidas.
Esta descoberta, ou redescoberta, de um Deus que está muito perto da
vida dos homens, talvez já tenha permitido o crescimento da ideia da
providê ncia. Agora enfrentemos duas di iculdades que frequentemente
nos impedem de nos abandonarmos a Deus:
1. Se Deus tem um plano de amor para minha vida, ainda sou livre?
2. Como posso ter con iança neste plano de Deus para minha vida
quando o mal e o sofrimento me sobrevê m?
Se Deus tem um plano de amor, o que acontece com a minha
liberdade?
Como conciliar um plano providencial que Deus conhece desde toda a
eternidade - “o plano de inido e a presciê ncia de Deus” (Atos 2:23) -
com uma liberdade humana digna desse nome - ou seja, totalmente
livre?
Deixemos de lado o cená rio de um plano providencial que trata da
"predestinaçã o". Nesse cená rio, Deus determinou tã o bem as coisas
que certas pessoas estariam predestinadas desde toda a eternidade
para serem felizes, enquanto outras estariam predestinadas a
experimentar o castigo eterno, antes mesmo de exercer sua
liberdade. Se fosse esse o caso, nã o serı́amos amigos de Deus (Joã o
15:15), mas sim Seus brinquedos, nos quais esse tirano perverso se
safaria com todos os tipos de caprichos. Nã o, Deus tem um plano
favorá vel para todos porque Ele é Amor. Este plano inclui e respeita
in initamente o exercı́cio da nossa liberdade: “Deus é o dono da
histó ria. Mas, apesar disso, Ele o concebeu de forma a permitir a
liberdade de desempenhar seu papel ”.10
Causas primeiras e secundárias
Deus é realmente o Mestre soberano de Seu plano de amor e, para
executá -lo, Ele invoca Suas criaturas, que sã o "causas
secundá rias". “Deus é a causa primeira que opera em e por causas
secundá rias” ( CIC 308). Assim, o sol é uma causa secundá ria, o que
permite as condiçõ es da existê ncia humana na terra. Por meio do ato de
procriaçã o e do amor que manifestam, os pais sã o as causas
secundá rias de seus ilhos. Dessa forma, eles permitem que o amor
gratuito de Deus se manifeste.
Thé rè se con idenciou o testemunho de seu pai em oraçã o: “Entã o
todos subimos para fazer nossas oraçõ es noturnas juntos e a pequena
Rainha estava sozinha perto de seu Rei, bastando olhar para ele para
ver como os santos rezavam”.11 Prossigamos. Mesmo uma pessoa
desagradá vel pode ser uma causa secundá ria quando, por meio de um
comentá rio mordaz, ela nos ensina a sermos curados de nosso orgulho!
Temos di iculdade em pensar em Deus - que atuaria no homem sem
limitar sua liberdade - como uma causa primeira, que atuaria por
causas secundá rias.
Deus não anula nossa liberdade. Freqü entemente, transmitimos essa
visã o ferida da onipotê ncia de Deus, que só poderia esmagar nossa
pobre e limitada liberdade como uma escavadeira. Sim, Deus é
onipotente e capaz de criar mundos! Mas Seu poder é tal que pode
penetrar a liberdade do homem sem nunca atacá -la: “Nã o pense que
você está sendo atraı́do contra a sua vontade; a vontade é atraı́da
també m pelo amor e pelo deleite ”, diz santo Agostinho tã o
magni icamente ao comentar Joã o 6:44. Nã o apenas nossa liberdade
nã o é esmagada pela de Deus, mas també m é elevada à dignidade
divina, visto que Deus nos faz cooperadores (1 Corı́ntios 3: 9) em Seu
plano benevolente.
Deus não compete com nossa liberdade. Tampouco existe competiçã o
entre Deus e o homem como as cadeiras musicais do jogo, nas quais há
apenas uma cadeira, e se Deus a tomasse, o homem perderia sua
liberdade de se sentar. Nã o, Deus atua no homem. A cadeira é 100 por
cento de Deus e 100 por cento masculina. “Deus atua em cada
agente.”12 Existe cooperaçã o, mas em dois nı́veis; a açã o da causa
secundá ria nã o pode ser colocada no nı́vel de Deus, que é a Causa
Primeira. Assim, nã o é preciso se dar ao trabalho de “pegar Deus”
agindo em nossas vidas, diretamente ou por causas secundá rias, pois
Sua açã o será sempre “outra” que nã o humana, que nã o notaremos
com nossos olhos humanos. Portanto, se eu decidir me abandonar a
Deus, minha liberdade nã o sofrerá com isso. Pelo contrá rio, aumentará !
Se a liberdade soberana de Deus se mistura constantemente com a
liberdade do homem, nã o nos surpreendamos se a Bı́blia ou os santos
parecem atribuir tudo o que lhes acontece diretamente a Deus, embora
muitas vezes nã o prestem muita atençã o à s causas secundá rias: “O
Espı́rito Santo, o principal autor da Sagrada Escritura, muitas vezes
atribui açõ es a Deus sem mencionar quaisquer causas
secundá rias. Este nã o é um 'modo primitivo de falar', mas uma maneira
profunda de relembrar a primazia de Deus e o senhorio absoluto sobre
a histó ria e o mundo ”.13 Acontece que certas pessoas altamente
intelectuais olham as Escrituras ou as palavras dos santos do alto,
como se sua linguagem nã o tivesse rigor cientı́ ico. E esse julgamento
arrogante que tem escamas nos olhos. Limita a realidade à s aparê ncias,
ao mesmo tempo que nega Aquele que a coloca nos seres humanos em
todos os momentos. Um santo realmente merece ser chamado de
"iluminado". Ele está longe de pairar na irrealidade. Seu olhar de á guia
lhe permite penetrar na realidade a ponto de discernir a mã o
providencial do Pai por trá s do que é visı́vel.
Deus, mestre da história, e o homem, mestre de sua liberdade
Considerar a liberdade de Deus e do homem já nos confronta com o
misté rio do mal. A liberdade das criaturas - homens e anjos caı́dos - é
tal que eles podem escolher o mal. Como Deus pode cumprir Seu plano
de amor se Suas criaturas usam sua liberdade para pecar?
O homem, que é perfeitamente livre, mesmo que trabalhe para
destruir o desı́gnio de amor de Deus, colabora com ele indiretamente,
pois Deus é capaz de usar misteriosamente para um bem maior o mal
que comete: “Deus é o dono da histó ria. Mas, apesar disso, ele o
concebeu de forma a permitir que a liberdade desempenhasse seu
papel. Entã o, é possı́vel que eu me afaste de Seu plano para
mim. . . . Deus, por um lado, aceita plenamente a liberdade e, por outro
lado, Ele é tã o grande que pode transformar o fracasso e a destruiçã o
em um novo começo que os ultrapassa e parece ser maior e melhor ”.14
Podemos dizer a mesma coisa sobre o trabalho de esgotamento de
energia dos anjos caı́dos - os demô nios? Sim, é o paradoxo observado
por Goethe nesta descriçã o: [Sataná s], aquele que sempre quer o mal e
sempre faz o bem.15 O Diabo e seu bando devastam em vã o, pois sua
açã o maligna é “integrada” no misterioso plano de salvaçã o. “Mesmo
com aqueles que nã o fazem o que Ele quer, Deus faz o que Ele
quer.”16 Devemos contemplar Cristo, o Vencedor, para descobrir essas
perspectivas surpreendentes!
Deus quer o mal que acontece comigo?
Eis que a vontade de Deus é agora convocada perante o tribunal do mal
e do sofrimento: “Se Deus, o Pai onipotente, cuida de todas as suas
criaturas, por que existe o mal? Como algué m pode acreditar em um
Deus que parece nã o fazer nada quando o sofrimento atinge nossas
vidas ou o mundo? ” O questionamento nã o é nada abstrato e
certamente nã o está longe de nosso assunto. Isso nos leva ao â mago do
processo de abandono. Como posso me abandonar a um Deus que quer
que eu experimente tanto quanto uma onça de mal ou que usaria o mal
para me machucar mais? Abandonar-se a Deus só é concebı́vel se Deus
for “inocente do mal” e um “conquistador do mal”. Vamos agora
contemplar o amor de Deus que luta contra o mal e o sofrimento.
O amor de Deus não é razoável
A instruçã o divina de Deus, que nã o quer o mal, mas o usa para um bem
maior, parece, à primeira vista, desanimadora. Para entender melhor,
vamos ser tocados pelo amor irracional de nosso Deus.
A primeira mensagem de amor autê ntico está nas palavras dirigidas ao
amado: “Eu te amo tanto que quero que você seja livre para me amar
també m”. Em Seu amor, Deus, embora seja onipotente, “implora” por
nossa resposta. Nietzsche, um ateu, a irmou que “Deus també m tem o
Seu inferno: é o Seu amor pelo homem”. Por falar nisso, nossa
mentalidade moderna é uma contradiçã o adicional que nã o mudará o
jogo. Exige, por um lado, que Deus permita que os homens sejam
absolutamente livres, ao mesmo tempo em que O culpa severamente
por nã o descer do Seu Cé u para corrigir os brutos que pecam. “Se
houvesse um Deus bom, nã o haveria todo esse mal no mundo!”
Deus ama a nossa liberdade até o ponto, em Sua misericó rdia
“irracional”, de preferir a Encarnaçã o a uma boa correçã o! Eu vou me
explicar. Quando um de nossos ilhos quebra voluntariamente a janela
do vizinho, reagimos espontaneamente exigindo que ele nã o repita o
delito. Mas quando pecamos, Deus, “tendo amado os seus até o im”
(veja Joã o 13: 1), nã o repara a aliança quebrada “exteriormente” com
um simples “tapa”! Em seu amor irracional, nada paternalista, Deus,
inocente do mal, prefere deixar-se aprisionar com o pecador que
apodrece em sua prisã o. Desta forma, Ele espera conquistar, curar e
transformar a liberdade humana “por dentro”, em vez de oferecer um
simples perdã o que nã o mudaria o coraçã o do pecador.17 “O Jerusalé m,
Jerusalé m, mata os profetas e apedreja os que te sã o enviados! Quantas
vezes eu teria ajuntado seus ilhos como uma galinha ajunta sua
ninhada sob as asas, e você nã o faria ”(Mateus 23:37). Sim, Deus está
realmente louco para escolher a Encarnaçã o em vez de uma boa
correçã o; nosso problema é suspeitar que Ele nã o nos ama, e nã o
consideramos Seu amor excessivo por nó s!
Deus, você quer o mal ou não?
Agora que a situaçã o está um pouco desarmada, vamos confrontar mais
diretamente a vontade de Deus em relaçã o ao mal e ao sofrimento:
Deus nã o “quer” o mal. Mas porque Ele deseja criaturas livres, Ele
“quer” permitir isso. Finalmente, de acordo com Seu plano providencial,
Ele “deseja usá -lo” em vista de um bem maior. Vamos retomar essas
trê s proposiçõ es.
Deus nunca quer o mal. Deus é fundamentalmente bom: “Ningué m é
bom, mas somente Deus” (Marcos 10:18). Ele nã o pretende
secretamente nos fazer sofrer de maneira sá dica. Alé m disso, o mal e o
sofrimento absolutamente nã o fazem parte de Seu plano como
Criador. Finalmente, ao anunciar os Dez Mandamentos, Deus mostra
claramente que Ele absolutamente nã o quer o mal que Suas criaturas
cometem. Mas em Seu amor louco, Ele integra esse mal em Seu plano
providencial.
E muito evidente que, em uma situaçã o pastoral, nem sempre
podemos anunciar imediatamente esta mensagem revolucioná ria da
“reciclagem” dos dramas da vida no desı́gnio providencial de
Deus. Pode até ser necessá rio icar quieto ao enfrentar situaçõ es
extremamente dolorosas. Escutando com compaixã o, seremos sempre
capazes de apresentar à Providê ncia do Pai o problema que nos foi
con iado, juntamente com os a litos, para que “Ele proceda por amor do
seu nome” (cf. Jr 14, 7) . Embora permaneça glorioso, Deus é
in initamente repelido e “sofre” ainda mais terrivelmente do que o
indivı́duo que foi devastado ao enfrentar um crime, um estupro ou uma
catá strofe. “Se as pessoas soubessem que Deus sofre conosco, e ainda
mais do que nó s, com todo o mal que assola a terra, muitas coisas
mudariam. Muitos coraçõ es seriam libertados disso! ”18 Mas porque
Deus é onipotente, este crime que é cometido por um ser livre é
reunido, de certa forma, em um plano de amor: “Deus preferiu tirar do
mal algum bem do que prevenir todo o mal”.19
Deus quer permitir o mal - por causa de Seu amor louco. Porque Deus é
amor, Ele deseja permitir que Suas criaturas se expressem, mesmo que
isso signi ique permitir que pequem. Assim, é o pró prio amor de Deus
que O impele a querer permitir o mal que é cometido por Suas
criaturas. Para ser mais preciso, devemos distinguir entre a “vontade
ativa” de Deus e Sua “vontade permissiva”. Imaginemos que fomos
caluniados injustamente. Deus nã o quer isso de acordo com Sua
“vontade ativa”, mas Ele quer permitir de acordo com Sua “vontade
permissiva” por causa de Seu imenso respeito por nossa liberdade:
“Deus usa a malı́cia; Ele nã o o produz ”, diz Santo Tomá s de Aquino. O
caluniador impõ e uma injustiça à vı́tima e a Deus! Deus, em Sua
surpreendente sabedoria, e de acordo com o abandono virtuoso da
pessoa que foi menosprezada, misteriosamente “recicla” essa
iniqü idade em vista de um bem maior - talvez atravé s de um processo
de perdã o surpreendente ou distanciando-se de sua reputaçã o sagrada
e talvez mesmo atravé s da conversã o do caluniador. E isso certamente
nã o signi ica que se deva renunciar a reparar a injustiça!
Deus deseja permitir o mal apenas em vista de um bem maior. Causar
nã o é o mesmo que permitir! Se Deus permite o mal, é sempre em vista
de um bem maior, que nó s, aliá s, teremos di iculdade em discernir no
pró prio coraçã o da provaçã o: “O Deus onipotente. . . , visto que Ele é
supremamente bom, nunca permitiria a existê ncia do mal entre Suas
obras se Ele nã o fosse tã o onipotente e bom que Ele pode até tirar o
bem do mal.20
O sofrimento e o mal nã o vã o evaporar magicamente quando algué m
se entrega a Deus. Mas essa perspectiva de fé abrirá nossos olhos para
sua surpreendente sabedoria, que permeia misteriosamente uma
situaçã o que parece um impasse. Mas como Deus pode permitir que o
pâ ntano negro da pornogra ia, da pedo ilia e das injustiças do mundo,
que tanto ferem a felicidade de Seus ilhos e des iguram sua beleza,
desça sobre o mundo? Santo Tomá s diz que é para que Sua in inita
misericó rdia seja mais triunfante.Serã o necessá rios 21 meses, anos ou
simplesmente entrar no cé u para entender, na visã o de Deus, o
signi icado de uma situaçã o tã o dramá tica.
5 Re iro-me a dois livros sobre o assunto: Pierre Descouvemont, Peut-on croire a la

Providence? (Podemos acreditar na providê ncia?) (Paris: Editions l'Emmanuel,


2007); Georges Huber, Cours des évènements: hasard ou providence (O curso dos
acontecimentos: acaso ou providê ncia) (Paris: Pierre Té qui, 2005).
6 Pio XII, Discurso no Dé cimo Congresso Internacional de Ciê ncias Histó ricas, 7 de setembro de

1955, Acta Apostolicae Sedis 47 (1955): 673–674.


7 “O Espı́rito Santo é uma Pessoa divina e, conseqü entemente, possui uma inteligê ncia

in inita. O Espı́rito Santo sabe o que Ele deseja; Ele tem um pensamento e um plano; Ele quer
alcançá -lo e Suas intervençõ es cobrem os menores detalhes. ” Padre Marie-Eugè ne do Menino
Jesus, Au souf le de l'Esprit: priere et action (No sopro do Espı́rito) (Paris: Editions du Carmel,
1990), 260.
8 Carta 164 a sua irmã Lé onie, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 2: 855.
9 Joã o Paulo II, Encı́clica Veritatis Splendor (6 de agosto de 1993), n. 88
10 Cardeal Joseph Ratzinger, Voici quel est notre Dieu (Este é o nosso Deus) (Paris: Mame,

2007), 38.
11 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito A, 18r, em A História de uma Alma: A Autobiogra ia de

Teresa de Lisieux , trad. John Clarke (Washington, DC: Publicaçõ es ICS, 1996), 43.
12 Tomá s de Aquino, Summa Theologica I q. 105, art. 5
13 “Em muitas ocasiõ es a Igreja teve que defender a bondade da criaçã o, inclusive a do mundo

fı́sico” ( CIC 304).


14 Ratzinger, Voici quel est notre Dieu , 38.
15 Citado em Georges Huber, Cours des évènements , 206.
16 Agostinho, De corrupte et gratia 14.
17 “Outra forma de salvaçã o era possı́vel para Deus, a cujo poder tudo está submetido, mas nã o

havia forma mais adequada de curar nossa misé ria.” Agostinho, De Trinitate 13, 10, 13; Tomá s
de Aquino; Summa Theologica III, q. 24, art. 4
18 Jacques Maritain em uma palestra para os Pequenos Irmã os de Foucauld em Toulouse.
19 Agostinho, Enchiridion 27.
20 Agostinho, Enchiridion 11.
21 Tomá s de Aquino, Summa Theologica I, q. 21, art. 3; Descouvemont, Peut-on croire a la

Providence? , 62–63.

Abandono: suas imitaçõ es e outros impasses


Acabamos de ver o misté rio da providê ncia que revela o segredo do
caminho da infâ ncia. Agora é hora de arriscar algumas palavras sobre o
processo de abandono. E uma tentativa perigosa, por um lado, pois,
como acontece com os produtos de luxo, existem imitaçõ es! Thé rè se
de Lisieux, tã o generosa em ensinar seu caminho de abandono, parece,
aliá s, reticente em revelar esse segredo a quem quer que seja sem
precauçõ es, pois poderia ser confundido com “quietismo”.22 Irmã
Maria da Trindade, uma das noviças de Thé rè se, que, ao que parece,
melhor compreendeu o caminho da infâ ncia, assim se expressou no
processo de canonizaçã o:
Um dia, eu disse a ela que iria explicar seu pequeno caminho de amor
a todos os meus parentes e amigos e pedir-lhes que izessem seu ato
de oferta para que fossem direto para o cé u. Ah, disse ela, se for esse
o caso, tenha muito cuidado! Pois, se nosso pequeno caminho for mal
explicado ou compreendido, pode ser interpretado como quietismo
ou iluminismo. Essas palavras, das quais eu nã o estava ciente, me
surpreenderam e pedi que ela explicasse seu signi icado. Ela entã o
me falou de uma certa Sra. Guyon, que havia se desviado para o
caminho do erro.23
Este aviso está longe de ser inú til. Podemos, incidentalmente, notar
outras imitaçõ es ou entendimentos errô neos de abandono que nos
impediriam de compreender seu valor.
Abandono parece um pouco desatualizado
Para algumas pessoas, as expressõ es “abandono” e “santo abandono”
tê m vestı́gios româ nticos de sé culos passados. Podemos preferir a
expressã o moderna “deixar ir”, mas, como veremos, nã o escaparemos
de outras ambigü idades, que talvez sejam ainda mais incô modas.
“Abandono” é uma palavra que pode ter se originado há muito tempo,
mas a atitude profunda do coraçã o que ela sugere pode passar por
tendê ncias e até revelar-se profé tica. Nesta categoria, o “abandono a
Deus” nunca icará para trá s, mas sempre diante de nó s, pois esta
postura interior traz em si a sempre nova mensagem de Cristo:
“Humilhai-vos, pois, sob a poderosa mã o de Deus, para que ele pode
exaltar você no tempo devido ”(1 Ped. 5: 6). Nosso Mestre encarna o
abandono perfeito a Deus Pai, que se manifestou de maneira sublime
durante sua Paixã o: “Pai. . . nã o a minha vontade, mas a tua, seja feita
”(Lucas 22:42). Assim, ao ensinar o abandono, Teresa mostra-se muito
moderna, pois nos conduz ao coraçã o do Evangelho, portador da eterna
juventude de Deus.
Uma nova técnica de "deixar ir" com um sabor católico
Por muitos anos, ouvimos muito sobre "deixar ir" em psicologia,
higiene da vida, coaching e assim por diante. Como cristã os, podı́amos
ver uma bela oportunidade ali: “Você nã o saberia que a mentalidade
secularizada moderna fala a mesma linguagem que a linguagem da
experiê ncia espiritual? Abandono, abandono: nã o é inalmente a
mesma coisa? ”
Nada é menos certo! O atual abandono, com um toque de New Age,
talvez seja até o oposto do abandono a Deus descrito nos Evangelhos e
vivido pelos santos. Pois bem, o desapego moderno tem a cor do
abandono, talvez até o sabor do abandono, mas sem dú vida nã o é
abandono a Deus!
Vamos examinar mais de perto esse desapego tã o na moda. Para sofrer
menos neste mundo difı́cil e experimentar menos sofrimento em si
mesmo e em relacionamentos corrosivos, somos aconselhados a deixar
ir! Se a realidade é muito dolorosa para você , negue! Fique frio, se você
tiver desejos. Acima de tudo, nã o seja inibido. Permita-se “ lutuar” sem
qualquer esforço, mesmo que a moralidade e a dignidade humana
tenham que ser diminuı́das como resultado. A ú nica coisa importante é
que você se sinta bem consigo mesmo! Mas “nã o fazer nada” torna-se
“desleixo” porque o essencial é estar “confortá vel na minha pró pria
pele” - “expandir-me”, mesmo que isso deva levar ao meu
“desaparecimento”!
O abandono cristã o autê ntico tem caracterı́sticas pró prias que o fazem
se destacar e chegar a se opor a esse “desapego” horizontal.
O atual desapego leva inalmente a uma obsessã o consigo mesmo que
afasta a pessoa de si mesma e a convence de que, assim, se sentirá
melhor. Por de iniçã o, o verdadeiro abandono afasta-se de si mesmo
para se orientar radicalmente para o Outro: "O abandono só existe na
doaçã o generosa de si mesmo e, vice-versa, nã o há dar sem abandono,
se dar implica nã o reter nada."24
Alé m disso, o abandono, na escola de pensamento da pequena
Thé rè se, nã o leva a fugir da realidade para suportar menos de suas
devastaçõ es. O que está em jogo, ao contrá rio, é mergulhar no â mago da
realidade, que está impregnada pela invisı́vel mas gloriosa presença de
Cristo: “Estou certo de que nem a morte, nem a vida. . . nem qualquer
outra coisa em toda a criaçã o será capaz de nos separar do amor de
Deus em Cristo Jesus nosso Senhor (Rom. 8: 38-39).
Finalmente, o abandono espiritual nã o é uma té cnica psicoló gica que
nos permite sentir melhor. Claro que, como veremos, o abandono
autê ntico cria realmente paz e alegria, mas nã o usamos o abandono
como receita para nos sentirmos melhor. Em vez disso, o abandono
thé rè siano é um presente de amor nã o correspondido a uma
pessoa. Abandonamo-nos livremente porque amamos livremente!
Abandonar-se signi ica desistir?
Quando as circunstâ ncias me permitem falar de abandono a Deus em
um retiro, geralmente há um provocador que lança esta observaçã o
para mim: “Pai, eu sou um fazendeiro; você disse que devemos nos
deixar ser. Quem vai cuidar das minhas vacas? ” Quando o humor está
presente, como costuma acontecer, amé m! Mas, para muitas pessoas,
"deixar-se ser" equivale a "nã o fazer mais nada". “Nã o acreditemos que
seguir o nosso pequeno caminho é seguir um caminho de descanso,
cheio de doçura e de consolo. Ah! E o oposto completo! ”25
O abandono denuncia ativamente e combate o mal. Deixar-se ser nã o é
permitir que tudo seja feito. Nem é para icar quieto. Descansar no
coraçã o de Deus diante de uma situaçã o injusta nã o leva à resignaçã o,
mas à denú ncia e à luta contra esse mal: “O mal é o que decidimos lutar
quando desistimos de explicá -lo” (Paul Ricoeur).
O abandono clama pelo presente. O abandono em Deus nã o impele
ningué m a deixar de servir aos pobres ou à sociedade. Pelo contrá rio,
impele a fazer o contrá rio. Se o amor nos atrai para Deus, o amor de
Deus automaticamente nos convida a servir aos outros! Este é , aliá s, um
dos crité rios do autê ntico abandono: “Mostra-me a tua fé sem as tuas
obras, e eu pelas minhas obras te mostrarei a minha fé ” (Tg 2,18).
O abandono é o motivo da “missão”. O caminho da infâ ncia nã o fecha
ningué m numa relaçã o puramente pessoal - “meu pequeno Jesus e eu,
ambos encerrados numa sacristia”. Se o processo de abandono é
autê ntico, certamente leva a evangelizar. O abandono espiritual nã o
está separado da missã o; é seu trampolim. A missã o sendo, antes de
tudo, a obra de Deus,26 o evangelista opta por entregar-se ao Espı́rito,
que o precede e é o coraçã o da sua evangelizaçã o. Esta recepçã o
con iante à graça divina27 aumentará até mesmo a força e os recursos
do missioná rio em seu anú ncio do evangelho. Quando a missã o e o
abandono espiritual forem conciliados e melhor articulados, a nova
evangelizaçã o experimentará um crescimento poderoso.
O diá logo entre Cristo e Santa Margarida Maria é rico em
ensinamentos para este propó sito. Jesus apareceu para oParay le
Monial santa e deu-lhe a extraordiná ria missã o de revelar o Seu
Coraçã o ardente de amor ao mundo. Margarida Maria perguntou a
Jesus: “Senhor, o que queres que eu faça?” Jesus respondeu-lhe: “Deixa-
me agir!”28 E claro que Margarida Maria agiu, mas ela o fez permitindo-
se que Deus agisse de acordo!
O abandono não signi ica que se deva parar de olhar para a frente. “Se
nos abandonarmos a Deus, nã o poderemos sustentar inanceiramente
nossos ilhos e guardar dinheiro para nossa aposentadoria?” O
abandono espiritual pode levar certas vocaçõ es a um caminho radical,
mas até um abade deve pensar em alimentar seus irmã os até o inal do
mê s! Jesus nã o nos impede de olhar para frente. Ele nos encoraja a
con iar Nele, mesmo quando se trata de preocupaçõ es
materiais. Farı́amos bem em distinguir entre “ocupaçã o” e
“preocupaçã o”, para apreender a verdade do abandono: “Nã o te
preocupes com o amanhã , porque o amanhã se preocupará consigo
mesmo. Deixe que o pró prio problema do dia seja su iciente para o dia
”(Mat. 6:34).
O abandono é uma atividade intensa contra um fundo de passividade. O
abandono a Deus nos mostra o paradoxo de ser eminentemente ativo
em um contexto de ser receptivo e passivo para criar algo
positivo. Infelizmente, muitas pessoas equiparam passividade com
resignaçã o, ao passo que uma passividade autê ntica implica estar
alerta e convocar todas as nossas energias e faculdades humanas para
sermos receptivos.29 Pensemos simplesmente na imensa atividade e
inventiva caridade que realizamos para receber amigos no contexto de
um jantar.
O abandono não é um caminho bastante fácil?
“Você está tendo um problema? Bingo! Um pequeno abandono, e isso é
tudo que há para fazer! " Alguns dirã o que abandonar a Deus é um
pouco fá cil demais, e eles estã o certos! O abandono a Deus nã o é
alcançado rapidamente sem esforço e dor ou mesmo sem ter que estar
envolvido. Nã o quero desanimar, mas por respeito a Deus e à s pessoas,
devo sustentar que o caminho da infâ ncia é um caminho que se molda à
Pá scoa. Ansiamos pela vida e pela paz, mas teremos que consentir com
um certo nú mero de “correçõ es” que nem sempre serã o confortá veis!
O abandono nos levará especialmente a reestruturar seriamente
nossos vá rios apegos. Nosso coraçã o tentará apegar-se ao desejo do
amor de Deus como ú nica certeza absoluta e, portanto, realidade
fundamental. Nosso problema é que muitas vezes Deus nã o é a certeza
absoluta de nossa vida. Nó s O substituı́mos por realidades humanas
relativas, como dinheiro, pro issã o, amor, famı́lia, reputaçã o e
saú de. Eles sã o bons e desejados por Deus, mas nã o podemos esperar
que nos dê em a certeza absoluta de que nossos coraçõ es anseiam. E
essa confusã o que leva nosso mundo contemporâ neo ao desespero: “O
que leva o homem contemporâ neo ao desespero é a caça ao prazer. O
homem, tendo sido feito para a felicidade in inita, pode agregar todos
os prazeres que desejar. Enquanto ele adicionar o inito, ele nunca terá
o in inito. ”30 Nã o se trata de desprezar as realidades da vida, mas de
colocá -las em seu devido lugar e colocar Deus no centro. O abandono a
Deus exigirá , portanto, um trabalho que nã o é detestá vel, mas
devidamente desvinculado da criaçã o e das criaturas, para que
possamos nos acomodar ainda mais na vontade de Deus.31 Nã o valeria
a pena inventar montanhas de renú ncias voluntá rias. A vida cuidará
disso! Se nos mantivermos lexı́veis entre os dedos de Deus, os riscos
da vida nos oferecerã o oportunidades sucessivas de nos desapegar e
experimentaremos a liberdade interior.
Em suma, o abandono exige que passemos pelo cadinho de uma morte
progressiva para nó s mesmos - para nossa pró pria vontade e nossa
busca de um consolo que seja humano demais. Por fora o abandono
parece muito fá cil, mas por dentro a perspectiva nã o é a mesma! Se
considerarmos a natureza está vel do abandono, percebemos, desde as
primeiras pá ginas, que ele nã o está separado do combate espiritual,
mas é sua espinha dorsal.
O abandono a Deus leva à extinção de todo desejo?
Longe de extinguir o desejo, o abandono a Deus, ao contrá rio, uni ica
nossos diversos desejos em torno deste fundamento bá sico que é a
vontade de Deus. Mas duas condiçõ es sã o necessá rias - especialmente
hoje - para acessar esse tipo de harmonia. Se os desejos sã o bons, o
coraçã o do homem o é menos; ele precisa aprender a dominar seus
desejos. E unindo-os à vontade de Deus que o coraçã o do homem se
acalmará e sua vida se simpli icará profundamente.
Quando os desejos se tornam tirânicos
Nossa cultura ocidental, ao querer se libertar de todas as proteçõ es -
polı́tica, educaçã o, religiã o - pensou que inalmente havia libertado os
desejos. Todo desejo humano, dizem eles, é bom e deve ser
satisfeito. Caso contrá rio, essa repressã o teria consequê ncias
danosas. Mas esse dogma de nã o controlar os impulsos, de “tudo,
imediatamente”, paradoxalmente precipitou o homem em uma
dependê ncia ainda maior: “Ao tentar se libertar das restriçõ es
tradicionais, o indivı́duo hipermoderno entrou em multi-
dependê ncia. . . . Nã o somos mais educados sobre a
frustraçã o. . . . Privados de uma estrutura de grandes valores
transcendentais ou pontos de referê ncia religiosos, nã o somos mais
limitados e bem de inidos como no passado. . . . Como os limites serã o
devolvidos a este eu voraz? "32 Nã o nos surpreenderemos, portanto, se
for aumentando o fosso entre o discurso moral da Igreja e a nossa
mentalidade dominante, que parece muito “cool”, mas se mostra
bastante totalitá ria.
O abandono em Deus é a escolha da liberdade. Uma pessoa escolhe
Deus, o ú nico que oferece liberdade em abundâ ncia. Para isso, aprende-
se o domı́nio de seus desejos instintivos, nã o porque eles seriam
imediatamente “maus”, mas porque podem ser tirâ nicos. Para ser dono
da pró pria casa, o abandonado trabalha para se dominar: “O fruto do
Espı́rito é . . . autocontrole ”(Gal. 5: 22-23).
Quando a vontade de Deus uni ica o desejo, a vida é simpli icada
Muitas pessoas sem grandes problemas reclamam que a vida é
complicada. Esta sociedade em crise, calejada e distanciada pode
explicar este mal-estar, mas a causa fundamental deve ser procurada
no fundo do coraçã o do homem. O indivı́duo moderno se parece com
uma roda sem aro; uma roda que saiu do eixo, mais cedo ou mais tarde,
terá complicaçõ es! Assim, o homem moderno, que nã o vive mais com
Deus no centro de seu ser, acaba nã o se entendendo mais e acha a vida
muito complicada, pois, como diz o Concı́lio de maneira soberba: “Sem
o Criador a criatura desapareceria”.33
Se, atravé s de todos os detalhes da minha vida, optar por estar
conectado à vontade de Deus, vou, ao mesmo tempo, experimentar
uma simplicidade que é muito profunda. Depois de ter substituı́do
meus desejos mú ltiplos com Deus como o centro de minha vida, serei
acalmado e puri icado. Minha vida será unida em torno do desejo
fundamental da vontade de Deus. Minha vida nã o estará isenta de
preocupaçõ es, mas parecerá muito mais simples.34 Teresa de Lisieux é
uma testemunha privilegiada desta fecunda obra de abandono, que nã o
embotava os seus grandes desejos, mas os unia para que crescessem:
“Quando o coraçã o do homem se doa a Deus, nada perde da sua ternura
inata; na verdade, essa ternura cresce quando se torna mais pura e
mais divina. ”35
22 O quietismo é uma tendê ncia espiritual e mı́stica do sé culo XVII que foi ensinada por um

padre espanhol chamado Molinos (1628-1696) e se espalhou pela França, particularmente por
Jeanne-Marie Guyon (1648-1717). E a doutrina do “amor puro”. Quando a alma se torna
intimamente unida a Deus, ela deve se estabelecer neste estado de “abandono” e nã o deve fazer
mais nada, nem mesmo resistir à tentaçã o. Mesmo em pecado, a alma abandonada nã o
pecaria! E uma doutrina que foi condenada pela Igreja no sé culo XVII. Por ser a histó ria um
pê ndulo eterno, um certo medo do quietismo estaria na raiz de outras peculiaridades, cujo
preço estamos pagando hoje: “Algumas tendê ncias ativistas na espiritualidade, que decorrem
do orgulho, e um medo do quietismo, que se tornou doentio por ter sido muito cultivado,
destacaram o valor do esforço pessoal. També m tê m insistido excessivamente no ascetismo, a
ponto de permitir praticamente a todas as almas ignorar o equilı́brio das forças divinas e
humanas que estã o empenhadas na vida espiritual. Eles praticamente permitiram que
ignorassem a supremacia da açã o de Deus, o que, em todos os momentos, faz com que a alma
seja cooperativa. As intervençõ es diretas de Deus foram sistematicamente relegadas à s regiõ es
mais elevadas da vida espiritual. Eles foram apresentados como casos extraordiná rios e
habitualmente duvidosos. ”Padre Marie-Eugè ne do Menino Jesus, Ton amour a grandi en
moi. Un génie spirituel, Thérèse de Lisieux (Todo amor aumentou em mim: Thé rè se of Lisieux)
(Paris: Editions du Carmel, 1997), 155–156.
23 Procès de béati ication et canonization de sainte Thérèse de l'Enfant Jésus et de la Sainte

Face (Roma: Teresianum, 1973–1976), 456.


24 Robert Scholtus, prê mio Faut-il lâcher? Splendeurs et misères de l'abandon spirituel (Deve-

se deixar ir ?: esplendores e misé rias do abandono espiritual) (Paris: Bayard, 2008), 56.
25 Procès de béati ication et canonization , 456.
26 “A atividade missioná ria é . . . uma manifestaçã o do decreto de Deus, e seu cumprimento no

mundo e na histó ria mundial, no curso da qual Deus, por meio da missã o, manifesta a histó ria
da salvaçã o ”. Concı́lio Vaticano II, Decreto sobre a atividade missioná ria da Igreja Ad Gentes (7
de dezembro de 1965), n. 9
27 “Claro que Deus nos pede que cooperemos realmente com a sua graça e, por isso, nos

convida a investir todos os nossos recursos de inteligê ncia e energia no serviço à causa do
Reino. Mas é fatal esquecer que “sem Cristo nada podemos fazer” (cf. Joã o 15: 5). . . . Quando
este princı́pio nã o é respeitado, é de se admirar que os planos pastorais nã o dê em em nada e
nos deixem com uma desanimadora sensaçã o de frustraçã o? ” Joã o Paulo II, Carta
Apostó lica Novo Millenio Ineunte (6 de janeiro de 2001), n. 38
28 Citado em Madre Teresa, Carta da primeira sexta-feira de junho de 1962 à s irmã s religiosas,

em Tu m'apportes de l'amour, des écrits spirituels (Você me traz amor: escritos espirituais)
(Paris: Le Centurion, 1975), 98
29 “Nas mã os de Deus, nã o somos simplesmente instrumentos, ferramentas simples que um

trabalhador usa para fazer isso ou aquilo. Nã o abrimos mã o de nossa qualidade ou poder
humano, ao nos tornarmos apó stolos. Nossa cooperaçã o instrumental permanece humana, ou
seja, inclui o exercı́cio de nossa inteligê ncia, de nossa liberdade e de todas as nossas qualidades
humanas ”. Padre Marie-Eugè ne do Menino Jesus, Au souf le de l'Esprit , 266.
30 Monsenhor Bernard Genous, Coop é ration 52 (22 de dezembro de 2004).
31 “A alma que ama qualquer outra coisa torna-se incapaz de uniã o pura com Deus e de

transformaçã o Nele. Pois o estado inferior da criatura é muito menos capaz de se unir ao
estado elevado do Criador do que as trevas com a luz. ” Sã o Joã o da Cruz, Ascent of Mount
Carmel 4, 3, Christian Classics Ethereal Library, https://www.ccel.org/ccel/john_cross/ascent.
32 Sophie Carquain, atitude de viciado: l'ère des dépendances (atitude de viciado: a era das

dependê ncias), Le Figaro, www. igaro.fr.


33 Concı́lio Vaticano II, Constituiçã o Pastoral sobre a Igreja no mundo moderno Gaudium et

Spes (7 de dezembro de 1965), n. 36


34 “Este dom indeterminado de si mesmo [a Deus], longe de diminuir nossas forças, impede que

se espalhe sobre os objetos e o reú ne para aplicá -lo, com sua força, para cumprir a presente
vontade de Deus.” Padre Marie-Eugè ne do Menino Jesus, Je veux voir Dieu (quero ver Deus)
(Toulouse: Editions du Carmel, 1988), 332–333.
35 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito C, 9r, em História de uma Alma , 216.

O abandono deve ser vivido na fé


Nosso Pai Celestial deseja que participemos de Sua felicidade. Ele
deseja que provemos os deliciosos frutos do abandono em Seu
Amor. Para isso, procuremos colocar as mã os sobre Ele, que sempre
escapará do nosso desejo de conhecer tudo, inclusive Seu Ser e seus
planos. Sua “ló gica” nã o coincidirá automaticamente com a nossa, pois
nossa ló gica é marcada por limitaçõ es e pecados.
Nem sempre entendendo tudo e nem sempre sendo compreendido
Se entrarmos sem hesitaçã o no movimento do abandono espiritual,
aceitaremos que nã o apenas nã o entendemos tudo, mas també m que
nem sempre somos compreendidos.
Nem sempre entendendo tudo
A pessoa que está lutando com a cruz já tem di iculdade para entender
o signi icado de seu sofrimento. Ele icará ainda mais desequilibrado
se exigir que tudo sobre os planos de Deus, que tomam forma atravé s
das voltas e reviravoltas de sua dor, deve ser compreendido. E possı́vel
que certos leitores que se deparam com um momento crı́tico em suas
vidas nã o possam ouvir falar de abandono a Deus e nã o estejam
prontos para ler essas linhas. Que eles concordem em estar lá por
enquanto e até mesmo fechar este livro por enquanto! Admito que, em
certos perı́odos da minha vida, nã o pude acolher a mensagem de
entrega à con iança do abandono. Tive que esperar anos para que o
solo do meu coraçã o fosse arado mais para que estivesse pronto para
receber esta semente. Nã o é porque nã o estejamos prontos para ouvir
tal ensino de Cristo que é falso. Nem devemos nos culpar porque
lutamos neste caminho de abandono. Sã o Bernardo ensina claramente
que é preciso ir devagar antes de adotar dramaticamente um abandono
mais radical: “O principiante que é movido pelo medo suporta
pacientemente a cruz de Cristo. Aquele que está progredindo e movido
pela esperança, de boa vontade a suporta. Aquele que é consumido pela
caridade, a partir deste momento, abraça-a avidamente ”.36 O
importante é que o coraçã o esteja aberto à Palavra de Deus, mesmo
que nã o possamos, de momento, integrar certas dimensõ es
exigentes. Sempre poderemos adotar as palavras de uma pessoa que
foi atormentada pela vida e repelida pelo abandono a Deus: “Jesus,
neste momento, nã o posso acolher esta mensagem de abandono no
meu sofrimento, mas deixo o meu coraçã o aberto . Volte no pró ximo
ano, e falaremos sobre isso novamente! ”
Em certos momentos de nossas vidas, perceberemos um certo
signi icado espiritual sobre o que está acontecendo conosco. Outras
vezes, em face de certos acontecimentos perturbadores, seremos
desequilibrados diante da ló gica do bom Senhor: “Pois, assim como os
cé us sã o mais altos do que a terra, assim sã o os meus caminhos mais
elevados do que os vossos caminhos e os meus pensamentos mais do
que os vossos pensamentos ”(Isa. 55: 9). Resta-nos a con iança do
apó stolo Pedro quando Jesus revelou o seu desı́gnio eucarı́stico: “Caros
apó stolos, vou dar-vos o meu corpo de comer!” Sã o Pedro deve ter se
assustado. Nã o entendendo com o coraçã o, optou por entrar neste nı́vel
de compreensã o mais profundo do que de con iança: “Senhor, para
quem iremos? Você tem as palavras de vida eterna ”(Joã o 6:68). Só mais
tarde, pelo dom do Espı́rito, Pedro pô de ver o projeto eucarı́stico de
Cristo com mais luz. O plano parecia muito denso para sua fé naquele
momento.
As vezes, precisamos de muito tempo, talvez anos, antes de podermos
decifrar as intençõ es de amor de Deus que se escondem por trá s dos
riscos de nossas vidas. Vamos mais longe: em situaçõ es muito
dolorosas, como a perda de um ente querido, sem dú vida será apenas
na gló ria do Cé u que inalmente compreenderemos as “boas novas” do
desı́gnio de amor de Deus em açã o no que parecia para nó s sermos de
partir o coraçã o. “[No Juı́zo Final], conheceremos o signi icado ú ltimo
de toda a obra da criaçã o e de toda a economia da salvaçã o e
compreenderemos os caminhos maravilhosos pelos quais a Providê ncia
de Deus conduziu tudo em direçã o ao seu im inal. O Juı́zo Final
revelará que a justiça de Deus triunfa sobre todas as injustiças
cometidas por Suas criaturas e que o amor de Deus é mais forte que a
morte (ver Câ ntico de Sol. 8: 6) ”( CIC 1040).
Deus nã o recusa Sua luz quando pedimos a Ele que ilumine os
labirintos de nossas vidas. Mas devemos ter cuidado para nã o cair na
armadilha de um certo “providencialismo” - isto é , querer entender
tudo sobre o plano providencial de Deus para nossas vidas e pretender
decifrar as razõ es providenciais escondidas por trá s de todos esses
eventos. Avançar em abandono a Deus sempre terá um ar de semi-
escuridã o. Podemos até mesmo nos perguntar se esse desejo feroz de
decodi icar todas as intençõ es de Deus por meio de diversas situaçõ es
esconde uma certa vontade de poder: “Deus, exijo que me dê conta das
tuas intençõ es que estã o ocultas por trá s de tudo o que me acontece,
inclusive o os menores detalhes! ” E claro que o abandono a Deus
oferece grandes luzes para a vida, mas nunca a luz total. Deve-se
entregar-se a Deus na fé : “Que a cidade terrestre e a celeste se
penetrem é um fato acessı́vel só à fé ; permanece um misté rio da
histó ria humana.
Nem sempre sendo compreendido
Para ousarmos abandonar-nos, devemos consentir nã o apenas em nos
sentirmos incomodados por nã o compreender tudo, mas també m em
nã o sermos sempre compreendidos pelos que nos
rodeiam. Abandonar-nos a Deus permite-nos saborear a alegria e a
serenidade, uma experiê ncia que especialmente nã o queremos guardar
para nó s pró prios. E é aı́ que o delicioso fruto do abandono tem um
sabor amargo. Essa “felicidade” que é essencial para nó s nã o parece
essencial para outras pessoas, mesmo para nossos familiares
pró ximos. Que alegria dolorosa! Sentimos a dor da falta de acolhimento
por parte dos que nos rodeiam, mas a nossa alegria nã o se esgota com
essa dor. “Ele foi para sua casa, e seu pró prio povo nã o o recebeu” (Joã o
1:11).
Como explicamos essa falta de compreensã o, essa possı́vel
descon iança de nossos companheiros diante de tal atitude espiritual?
O medo moderno de correr riscos pode explicar em grande medida
essa falta de compreensã o. Dada a obsessã o de hoje em nos vigiar e
adquirir mais segurança (o que é falso), nã o parece razoá vel arriscar a
aventura da con iança. “Nã o se deve realmente ter os pé s na terra para
ousar acreditar na providê ncia!”
Por outro lado, o homem moderno viveu tal massa de eventos
violentos - duas guerras mundiais, os con litos na Bó snia, as
atrocidades do marxismo, Hiroshima e Chernobyl - que acaba
duvidando das intençõ es do amor de Deus e até da bondade do homem
: “A esperança é destruı́da por um pessimismo em relaçã o à bondade da
pró pria natureza humana, um pessimismo decorrente do aumento da
angú stia e a liçã o.”37 Hoje, acreditar e viver no abandono da
providê ncia de Deus se tornou nã o apenas peculiar, mas també m
impró prio.
O cristã o que ousa abandonar-se a Deus deve preparar-se
serenamente para ser alvo de desprezo e de certa ironia. Mudança nem
sempre fá cil de suportar, como nos diz Sã o Paulo: “Nã o tornou Deus
louca a sabedoria do mundo? Pois, visto que, na sabedoria de Deus, o
mundo nã o conheceu a Deus por meio da sabedoria, isso agradou a
Deus pela loucura do que pregamos para salvar os que crê em ”(1 Cor. 1:
20–21).
O abandono é o fruto delicioso do amor; O amor é o fruto delicioso
do abandono
Se o misté rio da providê ncia é o arco que leva ao abandono, o amor é a
chave que o abre de ponta a ponta. Thé rè se disse que “o abandono é o
fruto delicioso do amor”.38 Podemos igualmente olhar pelo outro lado
da luneta e dizer que o amor é o delicioso fruto do abandono: “Santo
abandono, sendo uma espé cie de conformidade perfeita, amorosa e
ilial, só pode vir da caridade. Mas é o seu fruto natural, para que uma
alma, tendo conseguido viver com amor, viva també m no abandono. Na
verdade, é uma caracterı́stica do amor unir o homem intimamente a
Deus ”.39
Quem se abandona progressivamente a Deus, perceberá que Deus se
abandona progressivamente a ele: “Deus nã o força a nossa vontade. Ele
pega o que damos a ele. Mas Ele nã o se dá completamente enquanto
nó s nã o sejamos absolutamente dados a ele. Esta verdade é muito
importante. ”40 Ao nos abandonarmos, nã o só recebemos graças
espirituais de Deus, que se sente endividado por tal devoçã o, mas a
Trindade nã o faz nada menos do que nos introduzir em seu mú tuo
abandono do amor. A alma con iante participa do abandono do amor
do Pai por Seu Filho: “O Pai ama o Filho e todas as coisas entregou nas
suas mã os” (Jo 3:35); e no abandono do Filho ao Pai: “O Filho nada
pode fazer por si mesmo, senã o o que vê o Pai fazer” (Jo 5:19). Isso
també m é verdade para o abandono do amor do Espı́rito - que é o
“Amor-Pessoa”, o “Dom-Pessoa”41 - ao Pai no Filho. Apresentar o
abandono a Deus apenas como um esforço para se aproximar de Deus e
ser aprovado por Ele nã o levaria em conta o processo de abandono de
si mesmo no ritual do Batismo.
Assim, quem empreende o caminho do abandono verá
progressivamente o amor e a pró pria vida de Deus manifestados
nele. Mas esses deliciosos frutos do abandono nã o devem ser buscados
simplesmente para icarmos à vontade. Nossa preocupaçã o ú nica deve
ser nos unir o mais pró ximo possı́vel à vontade de Deus. Os frutos serã o
recebidos como algo a mais - a cereja do bolo! Permitam-me referir
alguns destes frutos do abandono para despertar ou reavivar o forte
desejo de empreender esta via de amor.
Como acabo de dizer, a alma abandonada participará , antes de mais
nada, do pró prio amor de Deus. Muitas pessoas revelaram até que
ponto Deus parecia distante de suas vidas e, depois da transiçã o,
descobriram uma atençã o amorosa de seu Pai Celestial muito delicada e
muito real: “A solicitude da providê ncia divina é concreta e
imediata; Deus cuida de todos, desde o mı́nimo ”( CIC 303).
A alma abandonada experimentará com certa rapidez a pró pria
liberdade de Deus, que se identi ica com o Seu Amor: “Onde está o
Espı́rito do Senhor, aı́ está a liberdade” (2 Cor. 3:17). Esta experiê ncia
de liberdade divina leva a uma certa plenitude interior e a uma
sensaçã o de leveza. Nó s saboreamos a vida completamente! Essa
plenitude certamente poderia ser prejudicada pelas preocupaçõ es da
vida, mas “ningué m tirará essa alegria de você s” (ver Joã o 16:22).
Alé m disso, quando nos entregamos a Deus, a vida se torna simples,
como deveria ser! Nada há de surpreendente ou exagerado nessas
observaçõ es, pois o abandono nos faz provar a Deus, que é o Ser mais
simples que existe, pois Ele é apenas amor (1 Jo 4, 8). Simpli icaremos
nossa vida, pois deixaremos de nos desgastar por querer administrar
nossa vida e permaneceremos calmos diante das tempestades da vida
para receber o Espı́rito.
Vivemos espontaneamente surfando em nossas emoçõ es e nos
apegamos excessivamente aos aspectos perceptı́veis dos eventos que
nos afetam. Dessa forma, nossa vida interior muitas vezes parece uma
montanha-russa. Hoje, o moral de uma pessoa pode estar bom, mas um
evento desagradá vel ocorre e a pessoa está imediatamente
deprimida! Com o tempo, o abandono a Deus produzirá uma
organizaçã o dos altos e baixos da nossa moral, simplesmente porque
deixaremos de ser escravos da percepçã o do momento para nos
apegarmos a quem é Deus e ao que Ele realiza nas nossas almas: “
Descobri o segredo do sofrimento em paz. . . . Para sofrer em paz, basta
desejar tudo o que Jesus deseja ”.42 Nossos coraçõ es estarã o atados à
vontade de Deus, que nã o muda: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e
eternamente” (Hb 13: 8), e Ele nunca nos deixará ir: “Nada será capaz
de nos separar do amor de Deus ”(veja Rom. 8:39).
Se algué m se entrega a Deus, Deus també m lhe renderá um pouco de
“amor doloroso” por este mundo, que está distante Dele. A pessoa vai
querer abandonar-se um pouco a esta extraordiná ria obra de “co-
redençã o” para o mundo. Ele concordará em carregar sua parte na cruz,
nã o por causa de um desejo masoquista de sofrer, mas por pura
caridade. Ele o fará para que o mundo conheça uma parte da gló ria do
Ressuscitado: “Meus ilhinhos, por quem novamente estou de parto, até
que Cristo seja formado em você s!” (Gal. 4:19).
A vida em Deus é muito paradoxal. O que acabamos de dizer nã o
contradiz o fruto que é a serenidade do momento presente. Uma das
grandes causas de nossa angú stia interior vem do fato de que nã o
vivemos aqui e agora. Estamos constantemente sobrecarregados de
uma só vez com a carga do momento presente, os arrependimentos de
ontem e as preocupaçõ es de amanhã , e isso acaba pesando muito
sobre nossos ombros pequenos! Ao nos abandonarmos a Deus,
permitimos que Ele nos encontre na pró xima encruzilhada, onde Ele se
doa totalmente no momento presente. Entã o todo o nosso ser entra em
paz profunda no lugar preciso onde a graça é depositada: “Senhor, dia
apó s dia, momento apó s momento, açã o apó s açã o, escrevo o romance
da minha vida, e escrevo para a eternidade. Ajude-me a viver cada
momento o mais plenamente possı́vel. Este momento que Você me dá
nunca mais será dado. Nã o quero icar angustiado ou tenso por causa
disso, mas nã o desejo desperdiçar nada na vida. Cada momento é uma
gota de uniã o com você . Nã o vivo ontem nem hoje. Eu vivo neste
momento. E eu estou unido a você . Eu tenho tudo."43
36 Bernardo de Clarivaux, Primeiro Sermã o para a Festa de Santo André , par. 5, em Oeuvres

Completes de Saint Bernard Traduction Nouvelle , ed. M. l'Abbe Charpentier, 8 vols. (Paris:
Librairie de Louis Vivè s, 1865–1867), 3: 477.
37 International Theological Commission, Some Current Questions Concerning
Eschatology (1992), no. 1
38 Santa Teresa de Lisieux, poema 52.
39 Dom Vital Lé hodey, Le saint abandon ( Santo Abandono ) (Editions DFT), 90.
40 Santa Teresa de Avila, Caminho da Perfeição , cap. 30
41 Joã o Paulo II, Carta Encı́clica Dominum et Vivi icantem (18 de maio de 1896), n. 10
42 Carta 87 a Cé line, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , vol. 1, 1877–1890 , trad. John

Clarke (Washington, DC: ICS Publications, 1982), 553.


43 Padre André Sè ve, excerto de O Sol das Orações.

Parte 2

O Movimento de Abandono em Teresa de Lisieux

A “Aná lise” do Abandono em Teresa


Armados com essas chaves indispensá veis, podemos agora abrir a
porta do abandono. O desa io de Thé rè se é “abreviar” essas palavras
tã o cheias de divino! Ao entrar neste capı́tulo, vamos deixá -la falar por
muito tempo, atravé s do que parece ser um “livro de instruçõ es” do
movimento de abandono a Deus.
Sabe, minha Mã e, sempre quis ser santa! Ai de mim! Sempre notei
que, ao me comparar aos santos, há entre eles e eu a mesma diferença
que existe entre uma montanha cujo cume se perde nas nuvens e o
obscuro grã o de areia pisoteado pelos transeuntes. Em vez de icar
desanimado, disse a mim mesmo: Deus nã o pode inspirar desejos
irrealizá veis. Posso, entã o, apesar da minha pequenez, aspirar à
santidade. E impossı́vel para mim crescer e, por isso, devo tolerar-me
como sou com todas as minhas imperfeiçõ es. Mas eu quero procurar
um meio de ir para o cé u por um caminho pequeno, um caminho que
seja muito direto, muito curto e totalmente novo.
Estamos vivendo agora em uma era de invençõ es e nã o precisamos
mais nos dar ao trabalho de subir escadas, pois, nas casas dos ricos, um
elevador as substituiu com muito sucesso. Queria encontrar um
elevador que me levasse a Jesus, pois sou muito pequeno para subir a
escada á spera da perfeiçã o. Procurei, entã o, nas Escrituras algum sinal
deste “elevador, objeto de meus desejos, e li estas palavras vindas da
boca da Sabedoria Eterna: ' Quem for MENINO venha a mim' (Prové rbios
9: 4). E assim consegui. Senti que havia encontrado o que
procurava. Mas querendo saber, ó meu Deus, o que farias
ao pequenino que atendeu ao teu chamado, continuei minha busca e foi
o que descobri: ' Como quem a mãe acaricia, assim te confortarei; serás
carregado pelo peito e eles te acariciarão sobre os joelhos '(Isaı́as 66: 12–
13). Ah! Nunca palavras mais ternas e melodiosas vieram alegrar
minha alma. O elevador que me deve elevar ao cé u sã o os teus braços, ó
Jesus! E para isso nã o tive necessidade de crescer, mas sim de
permanecer pequeno e tornar-me cada vez mais isto. O meu Deus,
superaste todas as minhas expectativas. Eu quero apenas cantar para
Sua misericó rdia.44
Este texto nos leva a compreender as “cinco condiçõ es fundamentais”
do movimento de abandono a Deus ao descrever as “trê s grandes fases”.
As cinco condições de abandono
Para colocar as cinco condiçõ es de abandono em Deus, proponho
retomar a imagem do elevador, que é cara a Thé rè se e atualizá -la, em
forma de pará bola, com aqueles elevadores modernos transparentes,
que deslizam ao longo de certos imensos torres de vidro. Vamos
embarcar.
Um grande desejo: “Sempre quis ser santa”
Thé rè se queria muito subir até o quinquagé simo andar dessa torre de
vidro para contemplar a magnı́ ica vista da capital. Ela desejou unir-se a
Deus e realmente desejou ser uma grande santa! A primeira condiçã o
para viver no abandono é realmente querer viver em Deus ou, pelo
menos, pedir a Deus que desperte este desejo em nó s.
Consciência da própria impotência: “Ai de mim! É impossível para mim
crescer! ”
Na base do edifı́cio, ao contemplar com Thé rè se o cume desta torre, que
se perde no cé u, rapidamente compreendemos que nunca
conseguiremos, pelas nossas pró prias forças, lá chegar. Como ela,
sabemos que somos pequenos e pobres demais para realizar grandes
coisas na esteira desses gigantes que sã o santos. Enfrentando a
ascensã o, sentimo-nos, com razã o, completamente impotentes.
O elevador divino: “O elevador que me deve elevar ao céu são os teus
braços, Jesus!”
Embora realmente desejemos viver em Deus, observamos nossa
impotê ncia. Estamos, portanto, condenados ao desespero? Nã o, porque
na base do arranha-cé u existe uma dá diva de Deus. Descobrimos um
elevador que nos pode elevar ao cume tã o desejado. Este elevador sã o
os braços de Cristo, que descerã o até nó s e nos elevarã o ao coraçã o de
Deus. Com Thé rè se, entramos neste elevador “libertador”, mas, eis que
os nossos olhos caem nas instruçõ es do painel de controlo. Duas
condiçõ es sã o indispensá veis para a subida.
Pequenez: “Devo permanecer pequeno e me tornar menor”
Este elevador é tã o pequeno que nã o há espaço para bagagem - para
coraçõ es que estã o desordenados. Como a “pequena Teresa”, o elevador
“dos braços de Jesus” só será capaz de nos levantar na medida em que
aceitemos ser aliviados de nossa segurança interior, grandiosidade e
outros apegos. Teremos até de amar a nossa pequenez, que, para Jesus,
nã o é um obstá culo, mas sim a condiçã o necessá ria para ser carregada
em Seus braços.
Con iança: “O que Você faria com a criança muito pequena que
responderia ao Seu chamado”
Agora, eis a segunda condiçã o a respeitar para embarcar: este elevador
exterior é transparente para que possamos admirar a paisagem durante
a subida. Mas nã o é aconselhá vel para quem ica tonto olhar para
baixo. Eles devem concordar em nã o se olhar muito de perto e
permanecer inabalavelmente con iantes com “os nossos olhos ixos em
Jesus, de quem depende a nossa fé ” (veja Hb 12: 2). Desta forma, Jesus
será capaz de nos levar muito alto à Santı́ssima Trindade.
Os três momentos do movimento de abandono
Existem cinco condiçõ es e trê s momentos no movimento de
abandono. Acabamos de ver os cinco trampolins, segundo a doutrina de
Thé rè se. Podemos dividir o movimento de abandono em trê s
“momentos” ou fases: receber, con iar e se entregar.
Recebendo
O primeiro momento tem a ver com o recebimento do encontro do
evento, ou do problema que me é apresentado, aqui e agora. Vou deixar
que todos os sentimentos negativos e reaçõ es pecaminosas surjam à
medida que sã o provocados pelo evento. Isso pode ser perturbador. No
coraçã o desta agitaçã o interior, vou deixar també m emergir o meu
desejo de me abandonar a Deus, ainda que, neste momento, me sinta
enojado ou impotente para seguir em frente.
De con iança
Sem me recusar de forma alguma a tentar praticar esse necessá rio
combate espiritual, aceito que nã o tenho forças para enfrentá -lo
sozinho ou para me salvar. Sem tentar entender tudo o que está
acontecendo comigo neste momento, entro em um movimento de
con iança no amor de Deus, que me ama intensamente e quer me elevar
a Si mesmo como um elevador. Estando con iante, eu me jogo nos
braços fortes de Jesus. Ele é capaz de cumprir Seu plano de amor e
felicidade por meio do que parece uma situaçã o impossı́vel. Con iante,
atiro-me ao Seu Coraçã o misericordioso, que é capaz de transformar o
meu pecado em graça e a minha tristeza em alegria.
Rendendo-se
Por im, com o coraçã o con iante e grato, abandono a minha açã o
humana e a minha imagem ideal de mim mesma para me entregar à s
mã os de Deus, tã o poderosas e misericordiosas. O importante é
perseverar neste abandono con iante ao amor iel e ativo do
Pai. Entendemos que o movimento de abandono nã o signi ica de forma
alguma recusar-se a agir ou a lutar. Render-se à graça de Deus envolve
essa atitude bá sica - essa capacidade de estar aberto a ela, que está por
trá s de todas as situaçõ es em nossa vida - quer estejamos causando
nosso sofrimento ou ele está sendo in ligido a nó s.
44 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito C, 2v – 3r, em Story of a Soul , 207–208.

A primeira fase do movimento de abandono: acolhimento


O primeiro passo para entrar no abandono é receber o acontecimento e
seu des ile de emoçõ es, à s vezes perturbadoras. Entã o, permitimos a
sensaçã o de impotê ncia diante dessa situaçã o, que, de certa forma, nos
supera. Por im, acolhemos nosso desejo de entrega, apesar de tudo.
Acolhendo o evento
E vital receber o que nos é apresentado, pois é muito nesta realidade
que se deve viver o abandono. Deus é o Ser mais “realista” que
existe. Ele se junta à s pessoas nã o em um mundo de sonho, mas no
meio da realidade em que vivem, aqui e agora.
Acrescentemos que a graça do abandono está disponı́vel em todas as
situaçõ es. As vezes, transmitimos imagens falsas de um Deus que está
interessado apenas em nossas almas. Deus nã o nos corta em fatias. Ele
ama tudo em nossas vidas, que Ele cria a cada momento e que Ele quer
investir com Seu amor.
Portanto, nã o tenhamos medo de nos abandonarmos nas mais
diversas situaçõ es, como um momento doloroso, um telefonema que
precisa ser feito, um trabalho que se tem a fazer que é avassalador, um
impulso interno, uma doença, o desemprego, uma perda, um problema
de relacionamento, uma tarefa simples de realizar, ó dio de si
mesmo, frieza, um encontro temido, uma preocupaçã o inanceira ou
ansiedade que uma famı́lia ou um casal experimenta.
Quando nossa prá tica de abandono se concentra nas situaçõ es mais
difı́ceis, nã o é para causar sofrimento. Todos nó s sabemos por
experiê ncia pró pria que nossos desa ios mais difı́ceis podem
facilmente nos fazer perder nossa paz interior. Na escola de
pensamento dos santos, “o sofrimento é a incompará vel escola do
amor verdadeiro”.45 O sofrimento, embora educativo, nos torna
vulnerá veis e pode certamente causar amargura. També m pode ser um
importante ponto de transiçã o para o abandono a Deus.
Acolhendo as emoções negativas após um evento
Um acontecimento, por mais insigni icante que seja, pode ser recebido
como um golpe, pelo menos pelo seu cará ter imprevisto. Por sua vez,
tem todas as chances de desencadear um des ile de emoçõ es mais ou
menos negativas.
E importante acolher esses sentimentos e reconhecer serenamente
que estamos experimentando ansiedade, raiva, confusã o, excitaçã o ou
aborrecimento, pois corremos o risco de negá -los sutilmente,
precisamente porque nos magoam e nos desa iam. Ficamos entã o
tentados a enterrar a cabeça na areia para nã o ver a di iculdade. Mas
isso nã o resolverá magicamente o problema objetivo. Isso evitará
enfatizar o desconforto causado por um fato perturbador é bom
quando resulta em uma atitude mais alegre. Quando nã o somos
sepultados pelas emoçõ es negativas do momento, “esperando contra a
esperança” (veja Rom. 4:18), podemos decidir ter esperança mesmo
quando nã o o sentimos. Mas se negarmos profundamente a verdade de
todas as emoçõ es que experimentamos, construiremos nosso
abandono na areia. O Espı́rito Santo nã o pode oferecer os frutos do
abandono em uma á rvore cujas rachaduras e feridas negamos. “O
trabalho de cura começa nesta liberaçã o das emoçõ es.”46 Nó s nos
oferecemos totalmente, incluindo nossas emoçõ es negativas, ao
Pai. Em troca, é todo o nosso ser, incluindo nossas emoçõ es, que Deus
deseja entrar.
Sem beati icar todas as emoçõ es negativas que podemos experimentar
no momento, temos que recebê -las. Nó s os reconhecemos e, se
necessá rio, gritamos com eles na proporçã o da dor.
Na companhia de Thé rè se, sem a pretensã o de categorizar todos os
desconfortos causados por uma situaçã o inquietante, podemos pelo
menos apontar aqueles que sã o mais frequentes. Isso poderia ajudar o
leitor a perceber sua maneira de reagir diante de acontecimentos
perturbadores e talvez acalmar certas lembranças do passado que
estã o um pouco profundamente enterradas no subconsciente.
Raiva. Quando somos magoados por algué m, podemos icar irritados e
até com raiva. O iló sofo Sê neca chamou: “O primeiro acesso de raiva,
esse primeiro choque que faz a alma pensar em uma ofensa”. Os santos
aprenderam progressivamente a experimentar a paz, fruto do
abandono, mas ainda eram humanos. Teresa, que é a santa da paciê ncia,
con idenciou à Irmã Maria de Jesus sua irritaçã o com uma Irmã que, no
silê ncio da oraçã o da noite, triturou a unha nos dentes. Thé rè se nã o
negava esse sentimento de aborrecimento que progressivamente surgia
nela:
EU . . . tentei me unir a Deus e esquecer o barulhinho. Tudo era
inú til. Senti o suor me inundar e fui obrigado simplesmente a fazer
uma prece de sofrimento; poré m, enquanto sofria, busquei uma
maneira de fazê -lo sem aborrecimentos e com paz e alegria, pelo
menos no interior da minha alma. Tentei amar o barulhinho que era
tã o desagradá vel; em vez de tentar nã o ouvir (impossı́vel), prestei
muita atençã o para ouvi-lo bem, como se fosse um concerto
delicioso, e minha oraçã o (que nã o era a Oração do Silêncio ) foi gasta
em oferecer este concerto a Jesus .47
Sentimentos ansiosos . Este é um sentimento que é muito doloroso em
si mesmo e muitas vezes acarreta culpas que se somam ao
medo. Thé rè se nos diz muito serenamente que nã o podemos escapar
da ansiedade porque ela faz parte da vida do ser humano. E até parte da
ascensã o do Espı́rito: “Amar é render-se a todas as ansiedades”.
Orgulho. Quando somos feridos por uma pessoa ou situaçã o, o orgulho
pode transparecer em nossas reaçõ es. A medida que Thé rè se se
aproximava do im do noviciado, soube que seus diretores decidiram
adiar a pro issã o religiosa. Eis o que ela mesma descobriu: “Tive de
esperar mais oito meses. Achei difı́cil, a princı́pio, aceitar esse grande
sacrifı́cio, mas logo a luz brilhou em minha alma. . . . Um dia, durante a
minha oraçã o, compreendi que o meu desejo intenso de fazer pro issã o
se misturava a um grande amor pró prio. Já que me entreguei a Jesus
para agradá -lo e consolá -lo. ”48
Ansiedade diante de uma tarefa a ser realizada . O trabalho muitas
vezes nos confronta com novas tarefas que nos dã o a impressã o de ser
incapazes. Thé rè se nã o escapou dessas reaçõ es quando lhe foi con iada
a difı́cil tarefa de ser mestra noviça. Ela simplesmente con idenciou
que se sentiu oprimida pelos acontecimentos. “Percebi imediatamente
que a tarefa estava alé m das minhas forças. Eu me joguei nos braços de
Deus quando era criança e, escondendo meu rosto em Seus cabelos,
disse: 'Senhor, sou muito pequeno para alimentar Teus ilhos.' ”49
Secura. Um discı́pulo do Senhor pode ter di iculdade em organizar sua
vida de fé de forma a evitar a frieza. Thé rè se conheceu alguns breves
momentos da poderosa in luê ncia do Espı́rito Santo, mas na maioria
das vezes, experimentou a secura: “Bem, eu estava começando a Via
Sacra; de repente, fui tomado por um amor violento por Deus. . . . Eu
experimentei apenas uma vez e por um ú nico instante, voltando
imediatamente ao meu estado habitual de secura. ”50 Isso é
reconfortante para aqueles de nó s que entram em pâ nico quando
cruzamos o menor deserto.
Um desejo de se comparar . A santa do caminho da infâ ncia
con idenciou que nã o foi protegida da tentaçã o do ciú me. Depois de
explicar a Madre Maria de Gonzaga, em seu ú ltimo manuscrito, que
podemos olhar desfavoravelmente para quem repete uma de nossas
descobertas sem indicar a fonte, Thé rè se acrescentou: “Mã e, eu nã o
saberia explicar esses tristes sentimentos da natureza se eu nã o os
tivesse sentido em meu pró prio coraçã o, e gostaria de alimentar a doce
ilusã o de que eles visitaram apenas meu coraçã o, mas você me mandou
ouvir as tentaçõ es de seus queridos pequenos noviços. ”51
Nojo, a dolorosa consciência do próprio pecado. Imaginamos facilmente
que os santos experimentam a cruz com a mesma facilidade com que
um sur ista abraça uma onda. Teresa ensinou que, em certos
momentos, nã o devemos nos surpreender ou culpar a nó s mesmos se
nos sentirmos apenas enojados ou deprimidos: “Jesus sofreu na
tristeza! Sem tristeza a alma sofreria! ”52
A sensação de não chegar a lugar nenhum nos caminhos de Deus. A
prova da vida espiritual é descobrir nossa grande lentidã o e até
estagnaçã o nos caminhos da virtude. Esta é uma fase saudá vel, pois
nos “força” a sermos salvos por Outro; mas a conversã o muitas vezes é
dolorosa: “Em breve fará nove anos que estarei na casa do Senhor. Eu já
deveria estar avançado nos caminhos da perfeiçã o, mas ainda estou na
base da escada. Isso nã o me desanima. ”53
Inquietação psicológica. Thé rè se realmente merece o tı́tulo de doutora,
nã o só pela precisã o de sua doutrina, mas també m por conhecer os
remé dios para as enfermidades que viveu, inclusive as
psicoló gicas. Sobre a doença de seus escrú pulos, que durou quinze
meses, de maio de 1885 a meados de outubro de 1886, ela escreveu:
“Seria preciso passar por este martı́rio para entendê -lo bem e para eu
expressar o que sofri durante um ano e a metade seria
impossı́vel. Todos os meus pensamentos e açõ es mais simples se
tornaram a causa de problemas para mim, e eu só tive alı́vio quando os
contei a Marie. ”54
Inquietação ísica. Quando Thé rè se vivia, a tuberculose nã o era tratada
com os nossos e icientes meios atuais que amenizam muito o
sofrimento. Parece terrı́vel morrer sufocando. Muitas vezes, ao morrer,
Thé rè se tinha um medo obsessivo de morrer de as ixia: “Quando é que
vou icar completamente sufocada! Eu nã o aguento mais! Ah! Oxalá as
pessoas orassem por mim! . . . Jesus! Marie! ”55
Acolhendo a sensação de impotência ou pequenez ao enfrentar
uma situação
Uma visita inesperada, uma nova atividade a empreender, um confronto
que nos atinge, a contradiçã o de um familiar pró ximo, o luto: tudo isso
pode desencadear uma sé rie de emoçõ es difı́ceis de suportar. E esse
pequeno ou grande bombardeio interno provoca uma sensaçã o de
impotê ncia - a dura percepçã o de nossa pequenez e a impressã o de
estarmos sobrecarregados.
Mais uma vez, nã o devemos ter medo de acolher este sentimento
difuso de pequenez e impotê ncia, nã o como uma de iciê ncia ou uma
falha, mas antes como uma ocasiã o favorá vel. Thé rè se chega a esfregar:
chega a dizer que, entre as grandes graças que se recebe de Deus, “a
maior é ter-lhe mostrado a sua pequenez , a sua impotê ncia”.56 Isso
pode surpreender-nos, até escandalizar-nos: “O facto de nos sentirmos
um pouco sobrecarregados em determinados momentos é sem dú vida
bom para nos trazer de volta à realidade, mas ir ao ponto de admitir
que a consciê ncia da pró pria pequenez é a graça das graças, é um
pouco demais! ”
Mesmo se pudé ssemos icar desconcertados a princı́pio com as
palavras de Thé rè se, vamos permitir que ela nos mostre sua concepçã o
de “pequenez”. Certamente compreenderemos melhor como a
consciê ncia de nossa impotê ncia pode ser uma graça particular. En im,
sendo “derrotados” pela ló gica de Thé rè se, consentiremos ainda mais
em que nossa pequenez se torne a pró pria condiçã o de nosso abandono
em Deus.
O que é “pequenez”, de acordo com Thérèse?
A pequenez não é infantilismo. Os mestres da suspeita (Nietzsche, Marx
e Freud) criticaram fortemente a mensagem evangé lica de pequenez -
de fraqueza. Segundo eles, isso levaria o homem a uma certa resignaçã o
interior, que o impediria de lutar contra as injustiças. Podemos nos
perguntar se esses “pais do ateı́smo moderno” conviveram mais com as
caricaturas da pequenez do que com os santos autê nticos que, no
Espı́rito, sempre uniram muito habilmente sua pequenez com grande
ousadia no serviço ao homem.
Nã o é o ateı́smo moderno baseado em um erro profundo quanto à
de iniçã o do homem? Por orgulho ou cegueira de inteligê ncia, ela se
recusa a aceitar que o homem é uma criatura ferida que é colocada em
um corpo pela pura graça e constantemente salva por seu Salvador. O
ensinamento de Thé rè se sobre a pequenez nã o leva de forma alguma a
se desacreditar. E simplesmente a aceitaçã o realista de nossa
humanidade.
Quando Thé rè se admitiu sua pequenez, reconheceu lucidamente que
vinha do nada e que tudo o que possuı́a era uma pura graça de Deus: “a
verdadeira alegria que ela experimenta em seu coraçã o. Aqui ela se vê
como realmente é aos olhos de Deus: uma coitadinha, absolutamente
nada. ”57
Alé m disso, ela se sabia muito pequena e incapaz de qualquer açã o
boa sem a graça divina: “Se eu dissesse a mim mesma: adquiri uma
certa virtude e estou certa de que posso praticá -la. . . isso seria con iar
nas minhas pró prias forças e, ao fazermos isso, corremos o risco de
cair no abismo. . . . Quando eu caio assim, percebo mais o meu nada e
digo a mim mesmo: 'O que eu faria, e o que seria, se dependesse da
minha pró pria força?' ”58
Somos seres feridos pelo pecado. Quanto mais avançamos na vida do
Espı́rito, mais perceberemos a necessidade de viver “suspensos” na
graça e misericó rdia divinas. Mã eAgnè s de Jesus perguntou a sua irmã
Thé rè se o que ela entendia por “permanecer como uma criança diante
do bom Senhor”. O santo respondeu: “E reconhecer o nosso nada,
esperar tudo de Deus como uma criança espera tudo de seu pai; é para
nã o icarmos inquietos por nada, e nã o devemos nos empenhar em
ganhar a vida ”.59
Portanto, o caminho da infâ ncia nã o é a recusa em crescer, levando a
uma regressã o infantil. Thé rè se é simplesmente “cristã ” - convencida de
que a vida divina é um puro dom da Santı́ssima Trindade. Nã o é
esforçando-nos com todas as nossas forças e virtudes que podemos ter
esperança de “criar” a graça divina. Ficar pequeno é , em suma, ser
quem somos e abrir espaço para que as torrentes de graça nos
encham. Este é o grande paradoxo. O pequenino concorda com a sua
pequenez, nã o como im em si, mas como meio de aumentar a
esperança para atrair a graça e deixar-se preencher pelo Espı́rito.
A pequenez não é a consagração da nossa mediocridade. O pequeno
caminho de Teresa é oferecido especialmente aos pobres e aos
pecadores, mas nã o é a consagraçã o da mediocridade: “Nã o vale a pena
lutar contra os seus pecados. Você corre o risco de icar tenso e perder
o abandono em Deus! ” Padre Marie-Eugè ne do Menino Jesus apontou
este possı́vel desvio do caminho da infâ ncia: “E grande o perigo (e nem
sempre o evitamos) de pensar confusamente que era fá cil para Teresa
continuar a buscar a santidade e a tendem a fazer o mı́nimo possı́vel
por causa de sua fraqueza infantil, reduzindo a simplicidade a uma
mediocridade alegre e uma mediocridade insı́pida. ”60
A pequenez é querer, sem cessar, manter-nos humildes mesmo que
continuemos caindo. O pequenino em questã o é certamente um pobre
pecador, mas é corajoso! Ele é corajoso o su iciente para fazer tudo para
realizar o que é bom. Claro, ele cai e cai de novo, talvez muito, mas
nunca desanima e se levanta imediatamente para se lançar com
con iança nos braços da misericó rdia de Deus. Aqui estã o alguns
exemplos que certamente experimentamos uma vez ou outra: “Meu
tempo de oraçã o secou por vá rios meses. Gostaria de reviver a alegria
do inı́cio, mas tentei de tudo em vã o. Eu me sinto como uma concha
vazia. ” “Faço tudo para lutar contra tal e tal pecado, mas muitas vezes
caio de novo, sem desanimar com este empobrecimento.” “Devo
resolver tal e tal problema material, e me sinto oprimido por encontrar
a soluçã o.” “Estou passando por um con lito com algué m que é pró ximo
a mim e procuro uma maneira de me reconciliar, mesmo que nã o esteja
encontrando uma saı́da.” “Estou ansioso para conhecer uma pessoa que
tende a me machucar. Mesmo assim, faço tudo para buscar a paz
interior. ” “Meu chefe me con ia uma tarefa que me assusta e me apó ia
nessa missã o. Mesmo assim, sinto-me arrasado. ” Recomeçar sem
nunca desanimar é o coraçã o do pequeno.
Para ilustrar a exatidã o de seu pensamento em relaçã o ao “pequenino”,
Thé rè se oferece a pará bola - que se popularizou - da criança que tenta
em vã o subir as escadas:
Você me faz pensar em uma criança que está aprendendo a icar de
pé , mas ainda nã o sabe andar. Em seu desejo de chegar ao topo da
escada para encontrar sua mã e, ele levanta o pezinho para subir o
primeiro degrau. E tudo em vã o, e a cada esforço renovado ele
cai. Bem, seja como aquela criança. Sempre continue levantando o pé
para subir a escada da santidade, e nã o imagine que você pode subir
nem mesmo o primeiro degrau. Tudo o que Deus pede de você é boa
vontade. Do alto da escada, Ele olha para você com amor e, em breve,
tocado por seus esforços infrutı́feros, Ele mesmo descerá e,
tomando-o nos Seus braços, o levará para o Seu Reino para nunca
mais deixá -lo.61
Observe que isso tem a ver com uma grande fraqueza, mas no â mago
dessa pequenez, a criança manifesta muita coragem em se manter
incessantemente humilde.
Impotência: uma chance de se tornar pequeno
Finalmente, pequenez é consentir humilde e alegremente com a graça
de Deus. Mas nossas resistê ncias ao dom de Deus sã o tã o poderosas e
arraigadas que muitas vezes será necessá rio experimentar algo amargo
que nos permite tocar em nossa impotê ncia. Entã o, inalmente dizemos
sim à nossa pequenez. As vezes, precisamos cair para permitir que
Deus nos coloque de volta no lugar!
Quando a vida nos enfraquece, temos duas opçõ es: desesperar ou nos
tornar pequenos, esperando tudo da graça de Deus. A maioria de nó s
moldou nossa personalidade administrando nossas vidas por nó s
mesmos e desenvolvendo con iança em nossas soluçõ es e quase nunca
envolvendo a graça de Deus em nossas vidas, nosso trabalho ou nossas
rotinas diá rias. A di iculdade, sob suas mú ltiplas aparê ncias, logo
derrubará este belo castelo de cartas e nos forçará a mudar a forma
como operamos. Nã o encontrando mais nenhuma soluçã o humana,
seremos “felizmente” compelidos a nos render mais radicalmente à
graça de Deus, o que seria impensá vel diante das adversidades que nos
fazem ser pequenos. A bendita impotê ncia que nos obriga a ceder à
graça divina entrou no mundo da nobre pequenez: “Para ser Seu é
preciso permanecer pequeno, pequeno como uma gota de
orvalho! . . . Oh! quã o poucas sã o as almas que aspiram a permanecer
pouco desta forma! ”62
Nossa pequenez deve se tornar o "meio" de nosso abandono
O ato de abandono caminha ao lado de nosso consentimento para nossa
pequenez e pobreza. Com a graça de Deus, aprenderemos
progressivamente como combinar abandono e pequenez:
Deixaremos de olhar para a nossa pobreza como inimiga e a
acolheremos como aliada na nossa ascensã o a Deus e no nosso
abandono: “Enquanto nos opormos à nossa fraqueza de mil maneiras,
o poder de Deus nã o pode agir em nó s. Podemos, é claro, tentar corrigir
um pouco a menor parte de nossa fraqueza, mas, na verdade, isso nã o
adianta. Pois, a beleza do poder de Deus e a beleza de nossa conversã o
estã o fora de nosso alcance. ”63
E chegará o tempo em que, no Espı́rito, pararemos de suprimir nossa
pequenez para nos aprofundarmos mais nela: “[Nossa] fraqueza dá
origem a toda [nossa] con iança”.64 O abandono nã o é o oposto de nossa
fraqueza, mas está muito por dentro:
Compreendam que para ser Sua vítima de amor , quanto mais fraco
for, sem desejos nem virtudes, mais adequado é para este Amor que
consome e transforma. O desejo por si só ser uma vı́tima basta, mas é
preciso o consentimento para permanecer sempre pobre e sem força,
e esta é a di iculdade, pois: “A verdadeiramente pobres de espı́rito,
onde é que vamos encontrá -lo”65
Se, apesar de todas as palavras da pequena Thé rè se, ainda duvidamos
dos benefı́cios da nossa pequenez para correr o risco do abandono,
ouçamos o grande padre teré siano Maria Eugê nia do Menino Jesus. Ele
chega a dizer que, se essa pobreza nã o estivesse em nó s, precisarı́amos
inventá -la para abraçar o nosso abandono mais plenamente:
Muitas vezes nos concentramos em dois falsos obstá culos que sã o
meios. Nó s nos concentramos em nossa fraqueza, pobreza, misé ria,
falta de inteligê ncia e falta de saú de ou, pelo menos, a saú de como a
concebemos. Bem, tudo isso é o meio para puri icar nossa fé . Sim, a
pobreza que nos envolve, as feridas que carregamos, a fraqueza de
que estamos cheios, a ausê ncia de virtude e a falta de inteligê ncia
penetrante - digo que tudo isso é o meio. A fé deve surgir, de certa
forma, em toda essa pobreza. Se essa pobreza nã o existisse, ela
precisaria ser criada para se elevar e entrar em Deus.66
Acolhendo meu desejo de me render
O poder do desejo no abandono
O amor de Deus só tem um desejo, que é o de ser abundantemente
espalhado nos coraçõ es; e, para isso, Ele procura almas sedentas. O
caminho de nosso abandono será mais condicionado pela intensidade
de nosso desejo de vivê -lo do que por nossas ú nicas “performances” no
exercı́cio da virtude:
Ele me fez entender que minha pró pria glória nã o seria evidente aos
olhos dos mortais, que consistiria em me tornar um
grande santo ! Esse desejo certamente poderia parecer ousado se
algué m fosse um grande santo ! Esse desejo certamente pareceria
ousado se considerá ssemos o quã o fraco e imperfeito eu era. . . . Eu
sempre me sinto, no entanto, a mesma con iança ousada de se tornar
um grande santo, porque eu nã o contar com meus mé ritos pois
tenho nenhum , mas con io naquele que é virtude e santidade. Só
Deus, contente com meus dé beis esforços, me elevará a Si mesmo e
me fará um santo , revestindo-me de Seus in initos mé ritos.67
E extraordiná rio que esse desejo pareça sem limites. Claro, somos
criaturas initas, mas, porque fomos criados à imagem do Deus in inito,
nosso desejo por Ele é incalculavelmente “ lexı́vel”. A medida que Deus
toma o lugar que Lhe damos, se tivermos um “pequeno” desejo de nos
render, Deus virá “um pouco” e, se, como Teresa, nã o limitarmos esse
desejo - “Eu sinto no meu desejos imensos do coraçã o ”68 - entã o o
in inito de Deus nos envolverá totalmente! Esta mensagem é muito
libertadora, pois nos permite discernir que o abandono nã o está
reservado para os inteligentes, bem ajustados, virtuosos e ascé ticos. Se
a motivaçã o do abandono é a força do desejo, a pessoa mais
“maltratada” sabe que nã o pode contar apenas com suas capacidades
naturais. Ele estará mais apto a cair em um abandono poderoso e
frutı́fero do que algué m que é mais “está vel”, mas que con ia demais em
suas pró prias aptidõ es naturais e senso de segurança.
Como podemos “impulsionar” nosso desejo de rendição?
Comecemos acolhendo nosso desejo de nos entregar, tal como é e
conforme sonhamos com isso. Alé m disso, o "desejo profundo" nã o
deve ser identi icado com o "desejo sentido". Podemos, em certos
momentos, nã o gostar de nos render, e nã o é por isso que falta nossa
determinaçã o. Se nos parece que, neste momento, nã o temos vontade
de nos entregar, podemos pelo menos pedir a Deus que aumente este
desejo, pois tudo é graça, até o desejo da graça. Para Teresa, os desejos
fortes e puros certamente sã o nossos, mas, mais fundamentalmente,
sã o aqueles que Deus traz à existê ncia e aumenta para realizá -los:
“Deus nã o teria me dado o desejo de fazer o bem na terra depois da
minha morte, se Ele nã o queria perceber isso. ”69 O poder do desejo de
nos oferecer será inalmente medido por estas duas palavras: “Eu
quero”. Madre Teresa, de quem di icilmente podemos suspeitar de
dever ou de esquecer o primado da graça, lembrava à s suas Irmã s a
importâ ncia da “vontade” na vida espiritual: “Muitas vezes, usando a
humildade, a con iança ou o abandono como desculpa , temos sido
capazes de esquecer a força de nossa vontade. Tudo depende dessas
duas a irmaçõ es: “Eu quero” ou “Eu nã o quero”. E devo colocar toda a
minha energia na expressã o “Eu quero”.70
“Quero entregar-me a Ti, Jesus, mas está muito difı́cil neste
momento!” Esta determinaçã o de permanecer na cruz será o
“barô metro” de nosso abandono e o “combustı́vel” privilegiado de seu
crescimento. Em um mundo que recusa todas as adversidades, é uma
verdade muito difı́cil de repetir, mas nã o devemos iludir as almas neste
ponto: “Uma multidã o de almas nunca chega no im. Isso resulta, em
grande medida, do fato de que eles nã o abraçam generosamente a cruz
como um princı́pio fundamental. ”71 A determinaçã o de se entregar no
meio das adversidades nã o signi ica que nã o nos sentiremos
esmagados, que nos proibiremos de chorar, que nã o admitiremos que
estamos sofrendo, ou que nã o imploraremos a Jesus para tirar isso
copo amargo. Nem signi ica que devemos inventar novas cruzes. A vida
fará isso muito bem por si mesma! Em Sua providê ncia, Deus usará
essas situaçõ es de impotê ncia para aumentar um desejo ainda mais
profundo por Ele em nó s. Sã o Joã o da Cruz, o grande mestre do
itinerá rio espiritual de Teresa, dizia: “Quanto mais [Deus] quer dar,
mais nos faz desejar, indo tã o longe que nos faz sentir completamente
vazios para nos preencher com o Seu. presentes. ”72 Essa determinaçã o
de se entregar é a vontade de conectar nossa vontade à de Deus, por
mais contrá rios que os ventos possam ser.
Obviamente, nã o estejamos “prontos” para nos rendermos, pois nunca
daremos o primeiro passo. Nem devemos esperar até que sejamos
“fortes” para arriscar o abandono, pois é justamente nossa pequenez
que despertará nosso desejo e atrairá o poder do Senhor: “Teresa é o
in inito do desejo em total impotê ncia”, disse com precisã o o Cardeal
Danié lou.
45 Discurso de Marthe Robin, 17 de março de 1927, citado em "The Ordeal of Illness", Marthe

Robin, https://www.martherobin.com/en/sa-vie/lepreuve-de-la-maladie/une-vie- qui-


bascule /.
46 Padre Jean Monbourquette, sacerdote e psicó logo canadense, entrevista na Família

Chrétienne , n. 1109, 15 de abril de 1999.


47 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito C, 30v, em Story of a Soul , 249-250.
48 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito A, 73v-74r, em História de uma Alma , 158.
49 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito C, 22r, em História de uma Alma , 238.
50 Yellow Notebook , 7 de julho, 2, em St. Thérèse of Lisieux: Her Last Conversations , John

Clarke (Washington, DC: ICS Publications, 1977), 77.


51 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito C, 19r, em História de uma Alma , 233.
52 Carta 89 a Cé line, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 1: 557.
53 Carta 202 para Madame Gué rin, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 2: 1021–1022.

54 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito A, 39r, em História de uma Alma , 84.


55 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 25 de agosto, 9; 29 e 5 de setembro.
56 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito C, 4r, em História de uma Alma , 210.

57 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito C, 2r, em História de uma Alma , 206.


58 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 7 de agosto, 4, em Últimas Conversas , 140.
59 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 6, 8 de agosto, em Últimas Conversas , 138.
60 Padre Marie-Eugè ne do Menino Jesus, TOC, Ton amour a grandi avec moi (Seu amor cresceu

comigo) (Toulouse: Editions du Carmel, 2015), 120.


61 “Conselhos e Reminiscê ncias de Soeur Thé rè se, a Florzinha de Jesus,” em História de uma

Alma: A Autobiogra ia de Santa Teresa de Lisieux , Biblioteca Eté rea de Clá ssicos
Cristã os, https://www.ccel.org/ccel/therese/ autobio.xxi.html. Veja pe. Marie-Eugè ne do
Menino Jesus, OCD, Je veux voir Dieu , 848.
62 Carta 141 para Cé line, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 2: 784.
63 André Louf, Au gré de sa grâce (De acordo com Sua graça) (Paris: Desclé e De Brouwer,

1991), 65.
64 Carta 55 para Irmã Agnè s de Jesus, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 1: 442.
65 Carta 197 à Irmã Maria do Sagrado Coraçã o, nas Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 2:

999.
66 Padre Marie-Eugè ne do Menino Jesus, OCD, Jean de la Croix , Présence de lumière (Joã o da

Cruz, Presença da Luz) (Editions du Carmel, 1991), 42.


67 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito A, 32r, em História de uma Alma , 72.
68 Santa Teresinha de Lisieux, Ato de Oblaçã o de Amor Misericordioso.
69 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 18 de julho, 1º, em Últimas Conversas , 102.
70 Madre Teresa, Escritos Espirituais, You Bring Me Love , Ed. Le Centurion, pá g. 31
71 Teresa de Avila, Vida , cap. 11
72 Sã o Joã o da Cruz, Carta 31 a Madre Elé onore de Sã o Gabriel.

A segunda fase do movimento de abandono: con iança


Depois de ter “acolhido” o acontecimento e as suas ondas de choque,
estamos agora no segundo perı́odo de re lexã o sobre o abandono em
Deus, que é a con iança: “Nunca podemos ter demasiada con iança no
bom Deus, que é tã o poderoso, tã o misericordioso . ”73 Esta expressã o
thé rè siana mostra claramente as duas grandes direçõ es que nortearã o
nossa con iança e abandono. Um está con iando na providê ncia de
Deus, que deseja estender Seu plano de amor em cada uma de nossas
vidas. A outra é con iar na onipotê ncia da misericó rdia divina, que é
capaz de transformar nossa pequenez em força e nosso pecado em
santidade.
O poder da nossa con iança
Só Deus é onipotente e capaz de criar do nada e recriar o que
destruı́mos com o pecado. Mas, visto que Deus “implora” por nossa
resposta amorosa, somos guardiõ es de uma virtude que poderia ser
quali icada como “onipotente” no coraçã o de Deus, que é a con iança. E
essa poderosa “resiliê ncia” que, quando ligada à nossa pequenez, nos
permite ser literalmente catapultados para Deus. E um ı́mã irresistı́vel
”que, plantado no coraçã o da nossa pobreza, atrairá realmente o
coraçã o de Deus.
Para que esse abandono con iante dê frutos, devemos, aos poucos, nos
libertar, de nossos apegos ao que percebemos e ao nosso isolamento
mental.
A con iança cristã é baseada em quem Deus é e no que Ele faz, e nã o,
antes de tudo, em nossa percepçã o. A açã o de Deus pode ser muito
poderosa em nó s sem que sintamos o menor impacto.74 Thé rè se nos
orienta radicalmente para essa con iança que vai alé m do que é
perceptı́vel com esta luminosa pará bola do passarinho: “Eu me vejo
como um passarinho fraco . . . . Eu nã o sou um eagle . . . . Com ousada
rendiçã o, deseja permanecer contemplando seu Sol Divino. Nada o
amedrontará , nem vento nem chuva, e se nuvens negras vierem
esconder a Estrela do Amor, o passarinho nã o mudará de lugar porque
sabe que alé m das nuvens seu Sol ainda brilha. ”75
Alé m disso, nossa con iança se baseia na açã o iel de Deus, que
ultrapassa in initamente o que nossos pequenos cé rebros podem
entender. Essa con iança nada tem a ver, é claro, com a fé de um homem
simplista. Tampouco o coraçã o que pratica o abandono renuncia ao
exercı́cio de suas capacidades ou inteligê ncia. Busca, analisa e trabalha
permanecendo constantemente aberto para ser “ensinado”76 pela
sabedoria de Deus, para que transforme todas as nossas faculdades
humanas. Estar à disposiçã o do Espı́rito é o que Teresa nos convida a
praticar: “Jesus nã o precisa de livros nem de mestres para instruir as
almas; Ele ensina sem o ruı́do das palavras. Nunca O ouvi, mas sinto
que Ele está dentro de mim a cada momento. Ele está me orientando e
inspirando com o que devo dizer e fazer. ”77
“Nunca podemos ter muita con iança no Bom Deus, que é
tão poderoso ”
O movimento de abandono é baseado em um ato de fé . E acreditar na
onipotê ncia paternal de Deus. Nossa con iança permite que o Pai
Celestial espalhe Sua onipotê ncia de duas maneiras - puri icando-nos e
enchendo-nos. Em Sua providê ncia, Ele irá , com nossa colaboraçã o,
usar os eventos que acontecem conosco para nos puri icar e ajustar
nossa vontade à Sua. Quanto mais acolhedores formos, mais icaremos
muito surpresos com os tantos atos de bondade que este mesmo Deus
gosta de nos cobrir. E quanto mais avançarmos nesse caminho de
con iança, menos nos oporemos a essas duas formas de atuaçã o de
Deus. A providê ncia puri icadora “é també m um dom”, pois liberta o
coraçã o e abre-o sempre mais ao in inito de Deus.
Con iar em Deus, que puri ica
Contemplando o plano de puri icação de Deus para nossas vidas. O amor
de Deus estava no “princı́pio”, mas o pecado original existe desde o
inı́cio! Recusar nossa condiçã o, que está ferida pelo pecado original, e
nossas pró prias faltas tornará difı́cil entender o ensinamento
puri icador de Deus para nó s.78 Deixe-nos esboçar este desı́gnio
puri icador de Deus para nossas vidas: “Ele nos escolheu em [Cristo]
antes da fundaçã o do mundo. . . . Ele nos destinou por amor a sermos
seus ilhos por meio de Jesus Cristo ”(Ef 1: 4-5).
O Deus de amor olha para nó s como se fô ssemos ú nicos no mundo:
“Assim como o sol brilha simultaneamente nos altos cedros e em cada
lorzinha como se estivesse só na terra, assim Nosso Senhor se ocupa
particularmente com cada alma como se nã o houvesse nenhum outro
igual. ”79 Ele quer nos preencher com Sua felicidade unindo-nos ao Seu
amor. Mas essa comunhã o de amor só pode ser alcançada em uma
uniã o perfeita de nossas vontades com as de Deus.80 Basta observar
quantas vezes a cada dia nos recusamos interiormente e quando nos é
tã o difı́cil dizer “seja feita a tua vontade” e simplesmente confessar que
temos muito trabalho a fazer nesta á rea!
Por causa do pecado original e do peso de nossos pró prios pecados,
nã o sabemos mais como amar "divinamente". Tendo nos desligado de
nossa fonte, que é o amor de Deus, caı́mos nas realidades materiais,
como se elas pudessem nos dar um amor absoluto. Nossa vontade
deve, entã o, experimentar a puri icaçã o em dois nı́veis. Separados da
fonte divina, da qual agora "descon iam",81 nossas vontades terã o que
redescobrir o caminho do abandono con iante em Deus. Alé m disso,
nossas almas terã o que experimentar alguns “desligamentos dos
apegos” - mesmo os mais legı́timos, como bens materiais, reputaçõ es,
cô njuges, ilhos, amigos e até mesmo a organizaçã o de nossa vida
espiritual.82
Este plano providencial de amor puri icador nã o pode ser alcançado
sem nosso consentimento ou abandono con iante nas mã os do Mé dico
Divino. Nã o é o sofrimento como tal que nos puri icará , mas a maneira
como o experimentamos, com lexibilidade amorosa e con iante. Se
permanecermos rebeldes, nã o colheremos frutos disso. Tudo se
tornará amargo - até o pró prio amor de Deus! Mas se nos deixarmos
reformar docilmente por Deus, Ele nos redirecionará e realizará sua
in luê ncia amorosa: “Como tenho sede do cé u, onde amarei Jesus sem
reservas! . . . . Mas é preciso sofrer e chorar para chegar lá . . . . Pois bem,
quero sofrer tudo o que agrade a Jesus; deixe-O fazer o que Ele quiser
com Sua bolinha. ”83
Aqui está um testemunho para ilustrar esse plano providencial
puri icador. Um homem viveu sem Deus desde sua infâ ncia, e entã o ele
foi diagnosticado com câ ncer enquanto estava com ó tima saú de. Essa
doença deixou de lado todas as suas belas estruturas humanas - sua
vida, sua esposa, sua famı́lia, sua casa, sua carreira e assim por
diante. Foi nessa angú stia, ele admitiu, que seu coraçã o inalmente se
abriu para a existê ncia de Deus e, em breve, para uma relaçã o de amor
com seu Senhor. Alguns anos depois de sua cura, ele disse serenamente:
“Meu câ ncer pode recomeçar. Agora sei para quem estou indo! ” E, anos
depois, ele ainda está muito bem. Deus nã o causou seu câ ncer, mas por
meio dessa provaçã o, o Senhor veio para curar uma doença ainda maior
- a cegueira de seu coraçã o - “Eu era cego, agora vejo” (Joã o 9:25). Nã o
se trata de desejar que as pessoas experimentem um infortú nio para
inalmente se renderem a Deus. Mas sabemos que à s vezes temos que
sacudir a macieira para colher todos os frutos. Este é o benefı́cio de
uma provaçã o certamente atormentadora. Abala nossas fracas certezas
e nossa triste orientaçã o para nos abrir aos frutos do Espı́rito.
Ver a mão de Jesus em tudo o que nos acontece. Essas con irmaçõ es
colhidas do plano de puri icaçã o de Deus, sem dú vida, exigirã o
desenvolvimentos mais amplos, nem que seja para nos permitir
“integrá -las” quando as feridas da vida nos ferem. Este esboço do
desı́gnio de Deus tem o mé rito de trazer à luz que, mesmo nos
momentos difı́ceis, a nossa vida nã o se enreda nas garras de um
destino cego, mas permanece ixada num desı́gnio de amor. Se toda a
nossa vida, com suas alegrias e dores, está nas mã os do Pai, ningué m
pode arrebatá -la de Suas mã os (ver Joã o 10:29). A atitude mais
inteligente e frutı́fera é a con iança - ver a mã o de Deus por trá s de tudo
o que nos acontece84 e apegar-nos com irmeza à vontade de Deus:
“Mais do que nunca, entendo que os menores acontecimentos da nossa
vida sã o conduzidos por Deus; Ele é Aquele que nos faz desejar e
concede nossos desejos. ”85
Peçamos a Thé rè se a graça desta “doce obsessã o” - ver a mã o de Deus
em tudo:
O que importa para a pequena cana se ela entortar? Nã o tem medo de
quebrar, pois foi plantado à beira das á guas, e em vez de tocar o solo
ao se dobrar, encontra apenas uma onda bené ica que o fortalece e o
faz querer que outra tempestade venha e passe sobre ele. cabeça
frá gil. Sua fraqueza dá origem a toda a sua con iança. Nã o pode
quebrar porque, nã o importa o que aconteça com ele, ele quer apenas
ver a mã o gentil de seu Jesus.86
E como Thé rè se nã o tem medo de nos levar para o alto mar, ela até vê a
mã o de Deus por trá s das pessoas “menos gentis” que sã o
deliberadamente ofensivas:
Quando é o doce Amigo que perfura a bola Ele mesmo, o sofrimento é
apenas doçura, Sua mã o é tão gentil ! . . . Mas criaturas! . . . Os que me
rodeiam sã o muito bons, mas tem alguma coisa, nã o sei o que me
repele! . . . Eu nã o posso te dar nenhuma explicaçã o. Entenda sua
pequena alma. Estou, no entanto, MUITO feliz por sofrer o que Jesus
quer que eu sofra. Se Ele nã o perfura diretamente Sua bolinha, é
realmente Ele quem dirige a mã o que a perfura! 87
Diremos que tudo isso é muito bom, mas que está longe de ser
evidente! Isso é totalmente verdade por duas razõ es. Por um lado,
porque o abandono nã o é inato. As vezes, leva anos para se entregar à
vontade de Deus.88 Por outro lado, o abandono nã o só nã o é evidente,
mas é impossı́vel para o homem que está con iante em sua pró pria
força. O abandono é um presente de Deus. Cabe a cada um de nó s
preparar-se para recebê -lo, humilhando-se nos pequenos con litos do
cotidiano.
Con iar em Deus, que satisfaz
Deus nã o apenas nos reforma de acordo com uma forma de cura, que é
um tanto penosa. Ele també m quer nos encher de suas bê nçã os, agindo
para o nosso bem e nosso benefı́cio: “Em tudo Deus trabalha para o
bem daqueles que o amam, que sã o chamados segundo o seu propó sito”
(Rm 8:28). Portanto, o abandono nos fará tocar na bondade sensı́vel de
um Deus que nos alivia, abre engarrafamentos e nos traz paz em meio
à s nossas cruzes.
Ação adaptável de Deus em nossas vidas. Para que possamos con iar e
nos entregar mais facilmente, é bom saber o que Deus é capaz de fazer
por nó s. Para muitos, a açã o da providê ncia de Deus se limita a nos
amar à distâ ncia e nos inspirar com boas ideias, mas para aı́! Uma certa
teologia de Deus talvez nã o tenha escapado dessa limitaçã o.89 Mas as
falsas imagens de Deus que sã o veiculadas pelo nosso subconsciente
acabam por distanciar Deus da vida real. Para remediar essas falsas
concepçõ es de Deus, nã o há nada melhor do que olhar com admiraçã o
como Ele é adaptá vel - se permitirmos que seja assim, é claro!
O Espı́rito pode inspirar-me pessoalmente: “Creio que é o pró prio
Jesus escondido no fundo do meu pobre coraçã ozinho: Ele está me
dando a graça de agir dentro de mim, fazendo-me pensar em tudo o
que Ele deseja que eu faça no momento presente. ”90
O Espı́rito també m pode inspirar outra pessoa a nos ajudar e abrir um
desfecho favorá vel para nó s, sem, aliá s, estar em contato com nossas
necessidades: “Nã o nos cansemos de orar; a con iança faz milagres. E
Jesus disse à Bem-aventurada Margarida Maria: “ Uma só alma tem
tanto poder sobre o meu Coraçã o que pode obter o perdã o de
mil criminosos ”.91
O Espı́rito també m pode atuar em um evento. E bom lembrar esta
a irmaçã o em um mundo que pensa ser indecente que um Deus se
envolva no mundo, “derrubando” as leis naturais: “Enquanto os antigos
hereges tentavam proteger Deus de todo envolvimento com o homem,
nossa é poca tenta para proteger a autonomia do mundo contra a
intervençã o divina, que é considerada inadmissı́vel. ”92
Finalmente, como observamos anteriormente, tenhamos cuidado
para nã o tentar controlar Deus. Ele sempre continuará livre em seus
planos, sempre agindo para o nosso bem: “O Espı́rito Santo sempre me
aborreceu. . . mas em uma direçã o positiva ”, admitiu com humor o
padre Marie-Eugè ne, do Menino Jesus. O abandono nã o dá o “direito”
de ser exigente; dá a algué m o direito de “alcançar” a santa vontade de
Deus! Assim, Deus nã o responderá necessariamente à oraçã o
especı́ ica de uma alma abandonada, mas dará a ela o Espı́rito de força
e paz para permanecer em sua situaçã o: “Meu coraçã o está cheio da
vontade de Deus, e quando algué m derrama algo sobre ele, isso nã o
acontece. t penetre em seu interior; é um nada que desliza facilmente,
como o ó leo que nã o se mistura com a á gua. Eu permaneço sempre em
paz profunda no fundo do meu coraçã o; nada pode perturbá -lo. ”93
Ousar acreditar nos dons de Deus. Lançando pessoas "a todo vapor
sobre as ondas de con iança e amor"94 ou ousar sugerir o abandono a
Deus para que Deus nã o só os inspire, mas també m “aja” em suas vidas,
nã o é isento de riscos. Nã o corremos, assim, o risco de provocar uma
certa procura do “milagroso” e do “sobrenatural”? Existe a tentaçã o de
ver intervençõ es do Espı́rito Santo em todos os lugares e confundir o
Espı́rito Santo com nossas pró prias idé ias. Este perigo é tã o prejudicial
quanto “extinguir o Espı́rito” (veja 1 Tes. 5:19) com a desculpa de que
nã o devemos ser excessivos! Se tivermos o cuidado de olhar para o
“lado pastoral de Cristo” com serenidade, veremos que Ele nã o parecia
incomodado com a ó bvia açã o do Espı́rito Santo, que num instante fez
galopar um paralı́tico! A educaçã o para a vida do Espı́rito, proposta por
Paulo à s suas comunidades, parece imitar de forma perigosa a do seu
Mestre. Ele convidou “os cristã os comuns” a deixarem o Espı́rito
inspirá -los - “deixai-vos guiar pelo Espı́rito” (ver Gl 5:18). Ele també m
os convidou a deixar Deus agir poderosamente, se fosse a Sua vontade:
“O nosso evangelho vos veio nã o só em palavra, mas també m em poder
e no Espı́rito Santo e com plena convicçã o” (1 Tes. 1: 5). Algué m que se
rende à vontade providencial de Deus deve imediatamente se
considerar um “visioná rio” se, em certos momentos de sua vida,
testemunhar a brandura do Espı́rito assim como Seus sinais evidentes.
O abandono do homem “abrirá caminho” para Deus: “Quando me é
permitido fazer algo, eu faço”, diz Deus! O sobrenatural é natural para
Deus! Nã o imaginamos até que ponto nossos planos mentais, que
duvidam do poder de Deus, O atormentam. Nã o percebemos até que
ponto nossa resistê ncia à graça paralisa a inundaçã o do sobrenatural
em nossas vidas: “[Jesus] nã o fez ali muitas obras poderosas, por causa
da incredulidade deles” (Mt 13:58).
Acrescentemos que é a nossa entrada no abandono que nos permite
“ver” Deus em açã o. A entrega conduz à açã o de Deus, mas també m
permite iluminar os olhos da alma, que contemplam o agir “vivo” do
Espı́rito: “Para quem sabe olhar tudo é milagre e tudo está imerso no
misté rio e no in inito. A menor coisa é um milagre. E cada encontro é
ainda mais de um. Eu experimentei que nosso Deus é o Deus dos
milagres e o autor de todas as maravilhas. ”95 Se queremos ensinar o
abandono, temos que consentir em ser apenas uma “placa de
sinalizaçã o” deste maravilhoso itinerá rio. Só o sim do ouvinte o
deixará ver, por si mesmo, o Espı́rito agindo em sua vida: “Ningué m
compreende os pensamentos de Deus, a nã o ser o Espı́rito de
Deus. Ora, nã o recebemos o espı́rito do mundo, mas o Espı́rito que vem
de Deus, para que entendamos os dons que nos foram concedidos por
Deus ”(1 Cor. 2: 11-12).
“Nunca podemos ter muita con iança no Bom Deus, que é
tão Misericordioso ”
Apresentamos razoavelmente Thé rè se de Lisieux como a santa da
misericó rdia. Sua descoberta do amor in inito de Deus nã o é
conceitual, mas muito existencial. Seu senso de clemê ncia divina era
tã o poderoso que ela pró pria sofria com o fato de o Amor Divino ser tã o
pouco conhecido. E quando se sabe que o seu universo imediato é um
Carmelo de pessoas que se dedicam ao amor de Deus, é a realizaçã o de
um sonho. “Ah! Quã o pouco conhecida é a bondade , o amor
misericordioso de Jesus! ”96 E uma sorte que o nosso tempo atual tenha
sido libertado de um Deus de medo, mas parece que estas palavras de
Teresa continuam, infelizmente, a ser verdadeiras: “Quã o pouco
conhecidas sã o a bondade, o amor misericordioso de Jesus”.
Misericórdia não é condescendência
Certas palestras contemporâ neas podem dar a impressã o de uma
misericó rdia divina que se parece com lokum , um doce oriental
pastoso, doce e muito macio. Aqui estã o algumas caricaturas para nos
ajudar a identi icar essa visã o de misericó rdia, que é muito limitada.
Um Deus que se contentaria em olhar para a nossa pobreza do alto. Para
Teresa, Deus é in initamente misericordioso, e Sua onipotê ncia reside
em Sua capacidade de se fazer muito pequeno para estar no nı́vel de
Sua criatura. Ela escreve em uma foto de Natal: “Um Deus que se fez tã o
pequeno só pode ser Amor!” Nã o estamos preocupados com a imagem
de um Deus que se contenta em inclinar-se ligeiramente em direçã o a
Suas pobres criaturas do alto de Seu Cé u, ao mesmo tempo em que
tomamos cuidado especial para nã o machucar Suas costas?
Podemos descobrir que essa imagem di icilmente se ajusta à nossa
experiê ncia ı́ntima de misericó rdia. A atual falta de paixã o pelo
sacramento da Reconciliaçã o con irma até que ponto a misericó rdia
divina ainda se manté m à distâ ncia. Nossa maneira de experimentar o
sacramento do perdã o transmite algo sobre nossa conexã o com a
misericó rdia de Deus. Sobre este assunto, aqui icam as palavras
encantadoras de Thé rè se relembrando a sua primeira con issã o:
“Oh! Mã e querida, com que cuidado me preparaste para a minha
primeira con issã o, dizendo-me que nã o era a um homem, mas a Deus
que ia contar os meus pecados; Eu estava muito convencido dessa
verdade. Fiz minha con issã o com grande espı́rito de fé , até
perguntando se tinha que dizer ao Padre Ducellier que o amava de todo
o coraçã o, pois era a Deus em pessoa que estava falando ”.97
Um Deus que se contentaria em suportar nosso sofrimento. Aqui está
outro cená rio que é mais ou menos inconsciente em relaçã o à
misericó rdia - Deus é como um pai que ica profundamente irritado
com a tolice de seu ilho. Extremamente frustrado, sente vontade de
explodir, mas diz para si mesmo: “Lembre-se de que você é o papai
dele; tenha controle sobre você mesmo. Você tem que mostrar a ele que
você o ama! ” De acordo com este ponto de vista, Deus tem alguns dias
de folga em Sua caridade, mas se sente compelido a continuar
mostrando Sua bondade, mesmo que Ele nã o sinta vontade, porque é
Seu “trabalho”. Ele realmente precisa fazer isso! Certamente, nosso
pecado fere o coraçã o do bom Senhor, mas o barô metro de sua
misericó rdia nã o se compara à nossa riqueza de boas açõ es: “A lor que
vai contar sua histó ria se alegra por ter que publicar os dons
totalmente gratuitos de Jesus. Ela sabe que nada em si mesma era
capaz de atrair os olhares divinos, e somente a Sua misericó rdia trouxe
tudo o que há de bom nela. ”98
Deus é só misericórdia
Essas duas visõ es da misericó rdia de Deus talvez nos tenham
permitido puri icar algumas concepçõ es do perdã o divino que eram
muito limitadas. Deste modo, podemos deixar-nos surpreender da
melhor maneira pela mensagem thé rè siana da misericó rdia
divina. Durante o tempo em que ela estava viva, as pessoas realmente
apreciavam a justiça de Deus. Com medo no estô mago, ousou oferecer-
se à misericó rdia de Deus: “O Senhor é in initamente justo; e é esta
justiça que assusta tantas almas que é o objeto da minha alegria e
con iança. ”99 Teresa nã o nega particularmente a justiça de Deus, mas a
imagina atravé s do “prisma” da misericó rdia, que lhe parece a pedra
angular de todas as perfeiçõ es divinas e do seu pequeno caminho de
abandono: “A mim Ele concedeu o Seu in inito Misericórdia , e através
dela contemplo e adoro as outras perfeiçõ es divinas! Todas essas
perfeiçõ es parecem resplandecentes de amor , até mesmo Sua Justiça
(e talvez ainda mais do que as outras) me parece revestida de amor .
”100
A misericórdia é "atraída" pelo pecador
Como um ímã atrai! E muito evidente que nosso pecado, que é mau,
nunca “atrairá ”, como tal, a compaixã o de Deus, mas o amor de Deus é
atraı́do pelo pecador que, ao ferir outra pessoa, fere a si mesmo. Santo
Agostinho gostava de dizer: “Deus odeia o pecado, mas ama o pecador”.
Quando cometemos um pecado, estamos longe de perceber todas as
consequê ncias nas profundezas do nosso subconsciente. O pecado
provoca, por exemplo, o medo de que nã o sejamos mais amados por
Deus. Nosso “policial do interior”, com o conluio do Maligno, no
momento que se segue ao nosso pecado, tenta nos convencer de que
Deus é repelido por nó s. E exatamente o oposto. O Deus Santo é atraı́do
ao coraçã o ferido de Seu ilho pecador. Depois da nossa queda, Deus
nã o coloca o Seu amor “em espera” de mau humor, para nos punir e
fazer com que voltemos para Ele. E no exato momento em que “caı́mos”
no pecado que Sua misericó rdia nos alcança. Se estivé ssemos realmente
cientes disso, serı́amos muito sensı́veis para evitar o mı́nimo pecado.
Na pará bola do passarinho, mencionada anteriormente, Thé rè se faz
um bom trabalho em transmitir essa “atraçã o” de Deus para nó s,
pecadores:
E, no entanto, depois de todos esses crimes, em vez de ir e se
esconder em um canto, para chorar sobre sua misé ria e morrer de
tristeza, o passarinho se volta para seu amado Sol, apresentando
suas asas molhadas aos seus raios bené icos. Chora como uma
andorinha e em seu doce canto narra detalhadamente todas as suas
in idelidades, pensando na ousadia de sua plena con iança que
adquirirá em plenitude ainda maior o amor dAquele que veio chamar
nã o os justos, mas os pecadores.101
A alegria de Deus em ser misericordioso. Como removemos essa
consequê ncia do pecado, que é o medo de nã o ser mais
amado? Simplesmente permitindo que a misericó rdia de Deus nos
envolva! Saber que Deus experimenta alegria em ser misericordioso
conosco é , sem dú vida, o antı́doto mais poderoso para esse medo de
nã o ser mais amado incondicionalmente: “Há alegria diante dos anjos
de Deus por um pecador que se arrepende” (Lucas 15:10). Ao me fechar
na tristeza de minha misé ria, privo a Deus da alegria de ser
misericordioso comigo. Oferecendo-me generosamente na minha
misé ria, permito que Deus experimente a alegria de ser
misericordioso.102
O divino Coraçã o se entristece mais com as mil pequenas
indelicidades de Seus amigos do que até mesmo com os graves
pecados que as pessoas cometem no mundo; mas querido
irmã ozinho, parece-me que é somente quando os Seus, inconscientes
de suas contı́nuas indelicidades, fazem deles um há bito e nã o pedem
Seu perdã o. . . . Em relaçã o aos que O amam e que a cada indelicade
vê m pedir-Lhe perdã o, atirando-se nos Seus braços, Jesus exulta de
alegria, como o pai do ilho pró digo.103
A onipotência da misericórdia
Durante uma catequese sobre o chamado à santidade - durante a
Jornada Mundial da Juventude em Roma em 2000, Monsenhor Bernard
Pana ieu, entã o bispo de Aix-en-Provence, tinha uma expressã o que
causou impacto: “Um santo é um patife de quem Deus cuidou!” A
expressã o tem a virtude de ser contundente, mas també m destaca esta
verdade profunda: o poder da misericó rdia divina é tal que pode
transformar o pecado em santidade - “lixo em ouro puro!” “O amor, eu
o experimentei, sabe usar (que força!) O bem e o mal que encontra em
mim. Transforma minha alma em si mesma. ”104
Mais uma vez, o poder da nossa con iança
Quanto da misericó rdia de Deus que experimentamos depende do
quanto con iamos nele. “Se eu tivesse cometido todos os crimes
possı́veis, teria sempre a mesma con iança; Eu sinto que toda esta
multidã o de ofensas seria como uma gota d'á gua lançada em uma
fornalha ardente. ”105
Para todos os pecadores, Thé rè se diz: “Você quer 'desfrutar' da
misericó rdia de Jesus?106 Assim que você cometer o menor pecado,
nunca retenha uma pitada de “tristeza mundana” (2 Cor. 7:10): com
alegria ofereça-se imediatamente a Jesus para agradá -Lo! ” Nã o se
trata de um slogan super icial de um pregador, já que Thé rè se
respondia à irmã , que lhe con iava seus pensamentos de tristeza e
desâ nimo depois de um pecado: “Você nã o age como eu. Quando
cometo uma falta que me entristece, sei muito bem que essa tristeza é
consequê ncia da minha in idelidade, mas você acredita que ico
aı́? Oh! nã o, eu nã o sou tã o tola! Apresso-me a dizer a Deus: Meu Deus,
sei que mereço este sentimento de tristeza, mas deixa-me oferecê -lo a
Ti como uma prova que me enviaste por amor. Sinto muito pelo meu
pecado, mas estou feliz por ter este sofrimento para oferecer a Você .
”107 Este retorno à misericó rdia divina afetou fortemente a Irmã Maria
da Trindade.Em 1925, esta noviça de Thé rè se comentou com Madre
Agnè s na Carta 243: “Que santa canonizada já falou assim? O resto de
nó s, ela [Thé rè se] me disse, nã o sã o santos que choram nossos
pecados. Regozijamo-nos por eles ajudarem a glori icar a misericó rdia
do bom Senhor. ”108
Por im, o abandono a Deus mostra-se extremamente exigente. Ele nos
pede para parar de julgar da perspectiva do homem para nos ver em
Deus. Esta experiê ncia da gentil misericó rdia de Deus nã o apenas
tocará o espı́rito do homem, mas se espalhará por todo o seu ser. A vida
parecerá mais leve e fá cil: “Isto é , irmã o, o que penso da justiça de
Deus; meu caminho é cheio de con iança e amor. Nã o entendo almas
que temem um Amigo tã o terno. . . . A perfeiçã o me parece simples, vejo
que é su iciente reconhecer o nada e abandonar-se como criança nos
braços de Deus ”.109
73 Epı́logo em Story of a Soul: The Autobiography of St. Thérèse of Lisieux , Christian Classics

Ethereal Library, https://www.ccel.org/ccel/therese/autobio.xx.html.


74 “O amor de Deus por nó s é certo. Nosso contato inicial com Ele pela fé é certo, mas a entrada

sobrenatural em Deus pode ocorrer sem nos deixar uma luz, um sentimento ou qualquer
experiê ncia da riqueza que alcançamos lá . ” Padre Marie-Eugè ne do Menino Jesus, Je veux voir
Dieu , 62.
75 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito B, 4v – 5r, em Story of a Soul , 198.
76 “Muitas pessoas, ao pesquisar, con iam apenas em seu pensamento ló gico, sua sabedoria

humana ou sua inteligê ncia. Eles nã o se conscientizaram da forma onipotente que contaminou
seu entendimento. Deve exercer plenamente a sua funçã o, mas sendo dó cil ao Espı́rito. Eles
ignoram o que signi ica esse movimento de se tornar ensiná vel ou de se abrir para uma Luz que
dá vida, mas desconhecida. Eles se identi icam apenas com o domı́nio do conhecimento,
raciocı́nio e conhecimento intelectual e histó rico, que é transmitido em um livro. Eles nã o
sabem que só o Espı́rito pode fazer algué m entender as coisas de Deus por dentro. ” Simone
Pacot, Ouvrir la porte à l'esprit (Abrindo a porta para o Espı́rito) (Paris: Editions du Cerf,
2007), 102.
77 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito A, 83v, em História de uma Alma , 179.
78 “Certamente, nada nos atinge mais duramente do que esta doutrina [do pecado original]. No

entanto, neste misté rio, o mais incompreensı́vel de todos eles, somos incompreensı́veis para
nó s mesmos. O nó da nossa condiçã o dá suas voltas e se transforma neste abismo de forma que
o homem é mais inconcebı́vel sem este misté rio do que este misté rio é inconcebı́vel para o
homem ”.Blaise Pascal, Pensées, Contrariétés (Pensamentos, con litos) (Paris: Agora Les
Classiques, 2003), 142.
79 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito A, 3r, em História de uma Alma , 14.
80 “A alma está ciente do imenso amor que Deus tem por ela e nã o quer amá -lo menos

abertamente ou com menos perfeiçã o. Assim, aspira a esta transformaçã o de gló ria onde esta
igualdade de amor se tornará possı́vel pela transformaçã o total de sua vontade em Deus para
que as duas vontades sejam unidas de tal forma que sejam uma só . Dessa forma, haverá uma
igualdade completa de amor. ” Sã o Joã o da Cruz, Cântico espiritual A 37: 2, in Oeuvres
complètes de Saint Jean de la Croix (Paris: Editions du Cerf, 1981), 515.
81 «O homem, tentado pelo demó nio, deixe morrer no seu coraçã o a sua con iança no seu

Criador» ( CIC 397); cf. Gen. 3:10.


82 “Que relaçã o existe entre a fome que as coisas materiais nos deixam e a satisfaçã o que o

Espı́rito de Deus traz? Alé m disso, pode esta satisfaçã o nã o criada entrar na alma se a fome que
é criada pelos apetites da alma nã o for expulsa, uma vez que dissemos que dois opostos nã o
podem existir no mesmo sujeito? ” Sã o Joã o da Cruz, Subida do Monte Carmelo , 6, 3.
83 Carta 79 à Irmã Maria do Sagrado Coraçã o, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 1: 514.
84 Tenhamos cuidado: acolher tudo no abandono nã o é necessariamente aceitar tudo! Podemos

estar profundamente assentados no abandono e lutar contra uma injustiça e lutar contra uma
doença que nos atinge: “Senhor, meu Deus, dá -me a serenidade de saber aceitar o que nã o
posso mudar. Conceda-me coragem para mudar as coisas que posso mudar. Conceda-me
també m a sabedoria para saber a diferença. ”
85 Carta 201 ao Padre Roulland, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 2: 1015.
86 Carta 55 à Irmã Agnè s de Jesus, nas Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 1: 442.
87 Carta 74 para Irmã Agnè s de Jesus, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 1: 499–500.
88 “Em um livro, tomei a liberdade de revelar meu passado de muitos anos de escuridã o e

angú stia, para inalmente 'me render' e me render à vontade de Deus. Foi entã o que Deus
'libertou' Seu plano de amor, libertou meu coraçã o de suas algemas e libertou meu olhar para
ver o plano de Deus operando em mim e ao meu redor ”. Ver Padre Joë l Guibert, Renaître d'en
haut: Une vie renouvelée par l'Esprit Saint (Editions de l'Emmanuel, 2008).
89 “Deus nã o organiza. Ele inspira atores, e é por meio de mediaçõ es humanas que Ele

inalmente faz as coisas por tal e tal homem ou situaçã o. E por meio do samaritano que Deus
cuida do homem vı́tima de ladrõ es ”. François Varone, Ce Dieu absent qui fait problems (Este
Deus ausente que causa um problema) (Paris: Editions du Cerf, 1981), 105.
90 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito A, 76r, em História de uma Alma , 165.
91 Carta 129 para Cé line, em Letters of St. Thérèse of Lisieux , 2: 729.
92 Padre André Manaranche, Pour nous les hommes la Redemption (Redençã o para nó s,

homens) (Ed. Communio-Fayard, 1983), 105.


93 Santa Teresinha de Lisieux. Caderno amarelo , 14 de julho, 9, em Últimas conversas , 97–98.
94 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito A, 80v, em História de uma Alma , 174.
95 O patriarca Atená goras citado em Olivier Clé ment, Dialogues avec le Patriarche

Athénagoras (Paris: Fayard, 1969), 140.


96 Carta 261 ao Padre Belliè re, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 2: 1165.
97 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito A, 16v, em História de uma Alma , 40.
98 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito A, 3v, em História de uma Alma , 15.
99 Carta 226 ao Padre Roulland, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 2: 1093.
100 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito A, 83v, em História de uma Alma , 180.
101 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito B, 5r, em Story of a Soul , 198–199.
102 Deus nã o precisa do nosso dom para compensar uma alegria que Ele perderia, pois Ele é o

Deus da alegria in inita; mas em Seu amor, Ele chega a implorar por esse consolo. Poder
consolar a Deus permitindo-nos ser consolados por Ele - que perspectiva!
103 Carta 261 ao Padre Belliè re, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 2: 1164–1165.
104 Santa Teresinha de Lisieux, poema 30: 3.
105 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 11, 6 de julho, em Últimas Conversas , 89.
106 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 9, 3 de maio, em Últimas Conversas , 43.
107 Santa Teresa de Lisieux, Caderno Amarelo , 3, 2 de julho, em Últimas Conversas , 71.
108 Santa Teresinha de Lisieux, Correspondência Geral , 1010.
109 Carta 226 ao Padre Roulland, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 2: 1093–1094.

A terceira fase do movimento de abandono: rendiçã o


Com esta ú ltima fase de entrega, estamos chegando ao im do
abandono. E a reta inal, mas a corrida nã o está ganha.
Esta ú ltima fase do movimento de abandono exige novamente que nos
comprometamos totalmente com ela. Para negociar essa ú ltima
mudança da melhor maneira possı́vel, é importante notar
nossos medos viscerais em nos rendermos. Abandonar-nos desta forma
equivale a assinar um cheque em branco. Nã o sabemos naquele
momento onde terminará a doaçã o. A “indiferença” tã o cara a Santo
Iná cio de Loyola é semelhante ao abandono. Nã o é su iciente nos
rendermos uma vez. Deve ser um processo contı́nuo. Esta nã o é uma
tarefa fá cil!
O medo de se render
Sã o muitos os temores que surgem ao pensar em se entregar a
Deus. Observemos alguns deles para nã o nos deixarmos limitar por eles
quando nos arriscarmos.
Medo de con iar no invisível
Render-se é literalmente “deixar ir” em Deus. Deus é invisı́vel:
“Ningué m jamais viu a Deus” (Joã o 1:18). “Pela fé ele deixou o Egito,
nã o temendo a ira do rei; pois ele suportou como se estivesse vendo
aquele que é invisı́vel ”(Heb. 11:27).
Como é ousado pensar que este Invisı́vel pudesse olhar para mim
como se eu fosse o ú nico no mundo para Ele! “Eu mesmo nã o vejo o
Sagrado Coraçã o como todo mundo. Penso que o Coraçã o do meu
Esposo é só meu, assim como o meu é só Dele, e entã o falo com Ele na
solidã o deste delicioso coraçã o a coraçã o, enquanto espero um dia
contemplá -lo face a face ”.110
Como é ousado pensar que o Invisı́vel pode atuar na parte visı́vel da
minha existê ncia! Entregar-se nã o signi ica con iar vagamente em um
Deus oculto, de cuja proximidade estarı́amos mais ou menos
persuadidos. Como vimos, con iar em Deus tem a ver com nos
entregarmos a ponto de nos deixarmos “dirigir” pelo Invisı́vel - e de
deixá -Lo “agir” na densidade de nossas vidas. Este pequeno caminho
assemelha-se ao impulso do apó stolo Pedro, que, a convite de Jesus,
ousou andar sobre as á guas, como se pensasse que a mã o invisı́vel de
Deus o fosse transportar - e foi isso mesmo! Rapidamente
entenderemos que podemos, com di iculdade, “experimentar” o
abandono “para ver” como é . Nó s tombamos ou nã o tombamos!
Como é ousado abandonar nossos chamados planos racionais e
nossas seguranças tã o humanas que foram reforçadas ao longo dos
anos! Thé rè se con idenciou que conhecia o medo de se entregar: “Ele
me lançou a todo vapor sobre as ondas de con iança e amor que tã o
fortemente me atraı́ram, mas sobre as quais nã o ousei avançar”.111 Em
suma, baseamos nossas vidas em muitas garantias intelectuais,
pro issionais, psicoló gicas e espirituais. Eles nã o sã o ruins em si
mesmos. Mas eles podem, por muitos motivos, nos aprisionar e se
tornar verdadeiros obstá culos para nos deixarmos entrar no
Espı́rito.112 Nã o é de admirar que nã o tenhamos consciê ncia desse
“bloqueio” interior, pois ele se situa a um nı́vel muito profundo do
coraçã o. E o sim do abandono, criando uma abertura ao Espı́rito, que
nos permitirá iluminar os nossos cadeados interiores. Somente esta
abertura nos permite ver os fechamentos: “Aquele que faz a verdade
vem para a luz, para que seja claramente visto que as suas obras foram
realizadas em Deus” (Joã o 3:21).
Medo de abandonar nossos medos113
Freqü entemente, consideramos nossas preocupaçõ es - os problemas da
vida - o principal obstá culo ao nosso abandono a Deus. As pessoas
costumam dizer: “As preocupaçõ es do dia a dia, que nos impedem de
pertencer a Deus!” E verdade, por um lado, mas devemos saber que
essas mesmas preocupaçõ es podem nos ajudar a nos tornar mais
virtuosos. Dessa forma, paradoxalmente, os medos e as preocupaçõ es
do cotidiano podem ser, para certas pessoas, o trampolim que as levará
a se entregar. Thé rè se escreveu à Irmã Marie de Saint Joseph:
Que travessura passar a noite se lamentando, em vez de adormecer
no Coraçã o de Jesus! . . . Se a noite assusta a criança, se ela reclama
de não ver Aquele que a carrega, que ela feche os olhos , deixe-
a voluntariamente fazer o sacrifı́cio que lhe é pedido, e entã o deixe-a
aguardar o sono. . . . Quando ela se manté m em paz dessa maneira, a
noite para a qual ela nã o está mais olhando nã o será capaz de
amedrontá -la, e logo a calma, se nã o a alegria, renascerá em seu
pequeno coraçã o.114
Como o medo pode servir de motivaçã o para se entregar? A ansiedade
tem um aspecto insuportá vel ou tã o desagradá vel que pode nos incitar
a mudar nossa maneira de ser - encontrar a paz por outros meios. Com
preocupaçã o, sentimos falta, de certa forma, do nosso jeito usual de
ser. Nossa maneira de operar está completamente
perturbada. Desestabilizados por esta angú stia, somos forçados a
respirar algum outro ar, até entã o desconhecido para nó s, "do
alto". Como nã o somos mais capazes de encontrar a paz por nó s
mesmos, tornamo-nos prontos para deixar-nos agir por Outro. Esta
experiê ncia é relatada por uma sé rie de pessoas que entraram no
abandono apó s um impasse: “Foi necessá ria uma tal provaçã o, que me
derrubou ao chã o, para que eu pudesse descobrir o verdadeiro rosto de
Deus e, inalmente, para me permitir ser dirigido e viver Nele! ”
Entã o, qual é a atitude interior a que devemos nos agarrar quando
lutamos contra a ansiedade, mas ainda assim desejamos nos entregar?
115 Em primeiro lugar, tenhamos a certeza de que o Senhor nã o está
fora de nossos medos, pois Ele vive em nossos coraçõ es. Se eu quiser
deixar Jesus me dar a Sua paz, o que nã o é como o mundo dá (ver Joã o
14:27), terei que me render na presença do meu medo, embora nã o o
negue. Meu coraçã o tem apenas uma porta pela qual meus medos
entraram e pela qual a paz de Deus quer entrar. Portanto, devo me
entregar a Jesus, reabrindo a porta do meu coraçã o - incluindo seus
medos - para que Jesus entre e os acalme. E difı́cil imaginar como
acalmar as preocupaçõ es do momento se eu nã o concordar em
“abandoná -las” por meio de vá rias etapas. Em primeiro lugar, devo
aceitar minhas preocupaçõ es, pois nã o posso expulsá -las por uma
simples decisã o. Entã o, eu afrouxo meu aperto e paro de me apegar
para me preocupar. Por im, entrego essas preocupaçõ es e medos a
Jesus para que ele os transforme como deseja. Posso pedir a Jesus para
acalmar meus medos, mas se minha oraçã o é apenas para acalmar os
medos, sem me entregar a eles, corro o risco de vê -los reforçados por
uma ixaçã o psicoló gica. Se ignorarmos os medos para olhar mais
adiante, nos olhos do Senhor Jesus, essas preocupaçõ es podem desabar
por si mesmas. Isso é um pouco como uma criança que quer se exibir
durante uma reuniã o de famı́lia. Podemos icar obcecados por isso ou
simplesmente parar de olhar para ele. Se pararmos de olhar para ela, a
criança, vendo que ningué m está prestando atençã o nela, fará menos
barulho.
Freqü entemente vivemos apegando-nos a nossas preocupaçõ es e
ansiedades enquanto imploramos para sermos libertos delas. Há alguns
anos, havia um programa chamado Pleins les yeux ( Sock It to Me ) que
tinha um tı́tulo atraente para pessoas que buscavam emoçõ es
fortes. Teve acrobacias “deslumbrantes” e outros eventos chocantes que
foram ilmados no local. Tudo se resolveu no inal, como nos bons
ilmes! Lembro-me dessa sé rie que foi ilmada em tempo real nos
Estados Unidos. Uma pequena construçã o estava pegando fogo e um
homem estava no segundo andar com os pé s na beira da janela, pois o
fogo estava começando a lamber suas costas. Os bombeiros ergueram
uma estrutura in lá vel no chã o para que ele pudesse se jogar sem medo
de quebrar os membros. Mas tinha tanto medo da ideia de se deixar ir
para o vazio, mesmo de cair nessa rede que o teria salvado, que preferiu
agarrar-se, com todas as suas forças, à beira da janela, o que lhe deu a
ilusã o de ser seguro. Tudo acabou bem porque um helicó ptero deixou
um bombeiro cair no telhado. Aproximou-se do pobre coitado,
prendeu-o a si mesmo e, assim, desceram ao longo do edifı́cio sem
nenhum ferimento. Essa histó ria de interesse humano transmite, muito
bem, até que ponto frequentemente nos apegamos a nossas ansiedades
e medos. Ter sempre funcionado “alimentando-nos” de nossas
preocupaçõ es, ser forçado a deixá -las ir de um dia para o outro é uma
abordagem pouco familiar que acaba sendo mais perturbadora do que
agarrar-se à pró pria ansiedade.
Medo de sofrer
Sentimos o medo de perder o controle e o medo de ser arrastado sabe-
se lá para onde: “E se eu sinceramente der as chaves da minha casa ao
bom Deus, o que Ele vai fazer comigo?” Conhecemos muito bem o
sofrimento do nosso Mestre e dos santos quando se entregam
totalmente a Deus: “E se eu me entregar a Jesus e Ele me pedir para ser
rejeitado e desprezado, como um Joã o da Cruz? E se eu me entregar a
Jesus sem voltar atrá s e Ele me pedir para sofrer terrivelmente pelo
mundo, como uma Marthe Robin? ” Existem tantos cená rios que vã o
alimentar nossa hesitaçã o, para nã o mencionar nosso terror em nos
rendermos. O Maligno se encarrega de adicionar outra camada.116 Só
há uma maneira de deter esses medos: saber que me entrego nã o a um
ser mais ou menos perverso e sá dico, mas a um Deus que é apenas um
Pai que sabe o que é bom para mim: “Eu nã o tenho quaisquer dú vidas
sobre as lutas inais ou sofrimentos desta doença, nã o importa o quã o
grande eles possam ser. Deus sempre veio em meu auxı́lio; Ele me
ajudou e me conduziu pela mã o desde a minha infâ ncia. Eu conto com
ele. Tenho certeza que Ele continuará a me ajudar até o im. ”117
As palavras do abandono de Charles de Foucauld sã o conhecidas por
muitos: “Meu Pai, eu me abandono nas tuas mã os; faça comigo o que
quiser. O que quer que você faça, eu agradeço: estou pronto para
tudo; Eu aceito tudo. ” Tenha certeza de que você nã o estará em um
frenesi mı́stico se essas palavras despertarem em você o medo do
sofrimento e do martı́rio ao imaginar tal abandono por si mesmo! Nã o é
realista imaginar tais cená rios com antecedê ncia. Deus nã o permitiria
que sejamos tentados alé m de nossas forças (veja 1 Corı́ntios
10:13). Sou levado a propor este conselho aos leigos e aos consagrados
paralisados por estes medos: “Sem se projetar em cená rios
catastró icos futuros que só existem em sua imaginaçã o, na vida que
hoje é sua, decidam entregar-se um dia a um. Tempo. Isso permite,
antes de tudo, diminuir os medos imaginá rios e, sobretudo, ajuda a
dominar, aos poucos, o ato de abandono, que nos parece tã o
intransponı́vel a princı́pio ”. A prá tica da Oferta da Manhã - do ato de
abandono ao acordar - nã o é um ato de devoçã o desatualizado, mas um
ato de amor que é vivido no dia a dia.
Render-se a si mesmo é entrar em uma "indiferença amorosa"
O pequeno caminho da con iança é um roteiro cujas principais etapas
podemos destacar. Parece difı́cil atravessar uma nova etapa se nã o
tivermos tido o tempo necessá rio para assimilar a anterior. Descrever
as etapas principais desta descida à s profundezas do abandono
apresenta, para cada um de nó s, a vantagem de nos reconhecermos
onde estamos - nã o para sentir pena de nó s pró prios, mas para começar
de novo.
Certamente começamos a bater em uma parede de tijolos quando nos
deparamos com um acontecimento perturbador. Nosso precioso
abandono, tendo apenas começado, será feito em pedaços. Decidimos
que é hora de nos rebelar!
Com alguma clareza, decidimos deixar a frustraçã o e a amargura para
trá s. Desta forma, a pergunta é feita de uma nova forma: “E por que nã o
o abandono?” Na etapa seguinte, aparecemos à beira do abandono, mas
com alguma resignaçã o. “Eu digo sim com a minha cabeça, mas por
dentro, eu aguento os acontecimentos da minha vida.”
Entã o, tentamos nos entregar mais amorosamente à vontade de Deus,
mas ainda "calculamos". Diante dos acontecimentos, calculamos o custo
da entrega em uma situaçã o particular. “Sim, eu realmente quero me
entregar nisso, mas por isso um pouco menos, e ainda menos!” Estamos
muito pró ximos do grande salto para o abandono, mas um io ainda nos
segura. Nosso ego continua a olhar para si mesmo demais ao se render.
E inalmente mergulhamos no “abandono abandonado” quando nossa
vontade é “hipnotizada” pela boa vontade de Deus. E claro que nã o nos
tornamos insensı́veis à s dores da vida, mas nosso coraçã o está unido a
Deus mais profundamente do que os pró prios acontecimentos: “Este
dito de Jó : 'Ainda que me mate; Nele vou con iar '(Jó 13:15) me fascinou
desde a infâ ncia. Mas demorei muito para me estabelecer nesse grau de
abandono. Agora, estou lá ; Deus me colocou lá . Ele me tomou em seus
braços e me colocou lá . ”118
A mençã o dessas diferentes etapas do pequeno caminho nos ajuda a
perceber duas motivaçõ es secretas dessa ú ltima fase de
abandono. Primeiro seremos chamados a amar nossa “lentidã o” em nos
rendermos. Mais tarde, queremos nos tornar "desapegados de forma
amorosa".
Amando a nossa “lentidão” em nos rendermos
O abandono é um caminho. Quer nosso ritmo para entrar neste
caminho de infâ ncia se assemelhe ao de um trem de alta velocidade ou
lento, devemos concordar em respeitar suas etapas inevitá veis e, assim,
dar-lhe tempo. No intenso ı́mpeto do inı́cio, decidimos nossa velocidade
de cruzeiro. Entã o, algum problema no motor nos obrigará , dolorosa
mas felizmente, a liberar a direçã o e a velocidade de nosso abandono ao
Espı́rito, que sabe, melhor do que nó s, do que nosso motor é capaz.
Parece muito libertador imaginar nossa lentidã o de uma forma tã o
positiva, mas, em nossa experiê ncia, é um tanto atormentador, por
causa de como os outros podem nos ver. Deus percebe nossa
determinaçã o em entrar no caminho da infâ ncia e usa nossa lentidã o
para nos entregarmos para inserir a humildade mais profundamente
em nó s. A humildade é a base de todo itinerá rio espiritual: “Este é
o caráter de Jesus: Ele dá como Deus, mas quer humildade de
coração ”.119 Ele chama com urgê ncia essa humildade, rainha das
virtudes, para ajudar a mudar nosso centro de gravidade de nó s
mesmos para ele. Para nos manter nesta atitude, Deus permitirá que
experimentemos muita pobreza ao nos entregarmos. Assim, nunca
seremos capazes de nos encher de orgulho de nos abandonarmos a
Deus: “E se o bom Deus quiser que sejas fraco e impotente como uma
criança. . . você acha que terá menos valor? Concorda, portanto, em
tropeçar a cada passo, até mesmo em cair e carregar fracamente a sua
cruz. Ame sua impotê ncia. Sua alma se bene iciará mais com isso do
que se, carregada pela graça, você realizasse com entusiasmo açõ es
heró icas que encheriam sua alma de satisfaçã o pessoal e orgulho.
”120 E muito evidente que Deus sofre com a nossa lentidã o em nos
entregarmos.121 Ele está tã o ansioso para se dar a nó s, mas Sua
sabedoria vai tã o longe a ponto de usar nossa lentidã o para ajudar a
qualidade e pureza de nosso abandono. Deus, como você é cheio de
amor e humor!
Abandono ou “indiferença amorosa”
O caminho do abandono nos levará progressivamente a uma certa
indiferença: “Se soubesses o quanto quero ser indiferente à s coisas
desta terra”.122 Esta é outra expressã o que precisa de um novo
signi icado. Muitas vezes, lembra nossos contemporâ neos do oposto de
uma vida espiritual que é plena, alegre, cheia de vida e cheia de desejo.
Indiferença, mas uma “indiferença amorosa”! Santa indiferença é uma
expressã o cara à tradiçã o espiritual. Santo Iná cio de Loyola de iniu
claramente o que está em jogo em seus exercı́cios espirituais. A vida
em Deus consiste em “nos tornarmos indiferentes a todas as coisas
criadas” para nos concentrarmos na vontade de Deus, que é uma base
essencial “para escolher apenas aquilo que nos conduz mais ao im
para o qual fomos criados”.123 Essa indiferença espiritual, que fez parte
da experiê ncia cristã por muitas geraçõ es, é hoje percebida como
profundamente negativa. Para apreender as dimensõ es positivas com
mais clareza, devemos compreender a relaçã o que o homem
“indiferente” manté m com seu Deus e com a realidade de sua vida.
Quem é indiferente não se decepciona, mas ama a Deus. O fundamento
da indiferença é a vontade de Deus, que é mais importante para o
homem; é a fonte profunda de sua felicidade. De acordo com isso, a
pessoa que se entregou será um tanto indiferente à quilo que nã o é de
Deus. Nã o é que despreze os acontecimentos ou as pessoas, mas, para
ele, aquilo que foi criado nunca poderá ser posto em pé de igualdade
com a vontade divina. Se a pessoa que pratica o abandono manifesta
certa indiferença diante de tal e tal coisa e nã o de outra coisa, nã o é que
ela tenha perdido o gosto pelas coisas, mas que tem muito gosto pelo
amor de Deus e do Seu santo. vontade de ser privado dela. Portanto,
aquele que é indiferente é o completo oposto daquele que está
desapontado ou aquele cujo coraçã o nã o tem gosto por nada; pelo
contrá rio, ele é um amante! Ele nã o “congelou” sua vontade e seus
desejos porque, em todas as circunstâ ncias, ele opta por apegar seu
coraçã o ao que o torna mais feliz: o desejo de amor de Deus.124 “Como
posso agradecer a Jesus por me fazer encontrar ' apenas amargura nas
amizades da terra !' Com um coraçã o como o meu, eu teria me
permitido ser levado e minhas asas cortadas, e entã o como eu seria
capaz de ' voar e estar em repouso '? Como pode um coraçã o entregue
ao afeto das criaturas estar intimamente unido a Deus? Eu sinto que
isso nã o é possı́vel. ”125
Uma certa distância do que nos acontece. O indiferente, segundo o
sentido cristã o, percebe muito bem uma dolorosa realidade; sofrerá
muito por causa disso, mas icará um tanto distante da situaçã o, pois,
alé m dela, verá o amor de Deus que nela habita. Tais acontecimentos,
por mais dolorosos que sejam, nã o devem nos esmagar, pois Deus os
carrega conosco e em nó s. MonsenhorFrançois-Nguyen Van Thuan
compartilhou essa experiê ncia de abandono quando esteve preso por
treze anos no inferno das prisõ es vietnamitas comunistas:
Quando os comunistas embarcaram no navio chamado Hå i-Phong
com 1.550 outros prisioneiros, e fomos deportados para o Norte, ao
ver o desespero, o ó dio e o desejo de vingança nos rostos dos
prisioneiros, compartilhei seu sofrimento, mas, imediatamente , a
mesma voz me chamou: ESCOLHA DEUS E NAO AS OBRAS DE DEUS , e eu disse a
mim mesmo: Esta é realmente a minha catedral, Senhor. Aqui está o
povo de Deus que você me deu para que eu possa cuidar deles. Devo
assegurar a presença de Deus no meio desses irmã os desesperados e
infelizes. E SUA VONTADE. E, PORTANTO, MINHA ESCOLHA .126
Tornou-se muito difı́cil para o homem contemporâ neo acolher a
mensagem da indiferença cristã e, assim, até sentir a grandeza do
abandono a Deus! Se colocamos os meios no mesmo nı́vel ou no lugar
do im127 - a natureza absoluta da vontade de Deus - como recebemos
positivamente esta mensagem de uma certa indiferença em relaçã o à s
realidades materiais em relaçã o à vontade divina? Se Deus é , mais ou
menos, conscientemente uma ameaça ou um amortecedor à nossa
felicidade, como podemos entregar nossa vontade a tal Deus? Teremos
que “abandonar” falsas imagens de Deus e ideologias pesadas para
podermos nos entregar de maneira cristã !
Como entrar nesta amorosa indiferença de maneira amorosa
Aqui estã o alguns caminhos para experimentar o abandono todos os
dias.
Você é solicitado a realizar uma pequena tarefa que considera
completamente desagradá vel. Você tem duas soluçõ es. Você pode
hesitar, mas isso contribuirá para o seu cansaço, e o tempo parecerá se
arrastar para você . Ao contrá rio, você pode se colocar na esfera do
abandono. Você nã o nega sua aversã o por esta tarefa, mas a
aprecia. Você opta por se tornar indiferente a fazer isso ou aquilo, e
mergulha na vontade de Deus, que vem por meio do pedido de seu
supervisor e do que ele exige que você faça. Você opta por nã o suportar
este trabalho, mas realizá -lo com uma alegria mais profunda do que o
pequeno desejo que está na superfı́cie.
Certa noite, Thé rè se foi convidada a acolher as pessoas de fora, ainda
escuro: “Murmurei contra as pessoas e as circunstâ ncias; Fiquei
ressentida com as irmã s touriè re por me fazerem trabalhar. . . . Mas de
repente a luz se acendeu em minha alma; Imaginei que estava servindo
à Sagrada Famı́lia. . . e por isso coloquei tanto amor nela que caminhei
com passos muito leves e o coraçã o transbordando de ternura. Desde
entã o, sempre usei assim. ”128
Vamos mencionar outra situaçã o que é mais dolorosa do que a
primeira. Vamos supor que um pequeno vı́rus da gripe decidiu
permanecer em você por uma semana. Você pode, é claro, consultar um
mé dico, mas os medicamentos mais poderosos nã o farã o a febre baixar
na pró xima hora. Você terá que consentir ou suportar essa gripe que é
imposta a você . Sob o peso dessa febre desagradá vel, você pode optar
por uma reaçã o exagerada resmungando contra si mesmo, os outros ou
o bom Deus - que, aliá s, é culpado por muitas coisas! Admitamos que
esta tendê ncia para cultivar a amargura nã o exige um grande exercı́cio
de virtude, visto que atuamos desta forma há vá rios anos, mesmo sem
ter consciê ncia disso. Você també m pode decidir viver de forma
diferente desta indisposiçã o, permanecendo unido a Cristo no
amor. Você pode dizer a Ele: “Estou com dor, mas digo que sim. Eu
concordo em estar muito cansado e permitir que Você extraia dele um
bem maior, mesmo que seja apenas para melhorar minha paciê ncia!
” Essa indiferença pelo que acontece se escolhermos a vontade de Deus
- que nã o provocou a sua doença, mas que a permitiu - nã o é muito
espontâ nea, admito! Mas vamos saber que o abandono aumenta a
nossa fé e amor e torna a vida mais fá cil para si mesmo e muitas vezes
para os outros!
Subimos essa escada do abandono passo a passo. Portanto,
precisaremos começar nos entregando à s pequenas coisas da vida
antes de a irmar que estamos desapegados de uma forma amorosa em
situaçõ es que sã o muito mais dolorosas - uma perda, uma traiçã o, uma
morte e assim por diante. Assim que entregamos nossa vontade para
nos apegarmos à vontade de Deus nas pequenas coisas, Deus se
apressa em soprar em nó s a graça do desapego e da força. Isso
permitirá que nossas vontades se rendam mais em situaçõ es
posteriores que sã o mais difı́ceis - a ponto de nos tornarmos
amorosamente indiferentes: “Hoje, eu estava pensando em minha vida
passada, no ato de coragem que realizei anteriormente no Natal e no
elogio dirigido A Judith veio à minha mente: 'Você agiu com coragem
viril e seu coraçã o foi fortalecido.' Muitas almas dizem: nã o tenho
forças para realizar este sacrifı́cio. Deixe-os fazer, entã o, o que eu iz:
exercer um grande esforço. Deus nunca recusa aquela primeira graça
que dá coragem para agir; depois, o coraçã o se fortalece e se avança de
vitó ria em vitó ria ”.129
Louvor, a Fundação do Abandono
Experimentamos inevitavelmente o abandono no aqui e agora. O louvor
é sua base.
Louvor: estilo de oração ou estilo de vida? O louvor pode ser expresso
em uma oraçã o envolvendo todo o ser, enquanto se chora alto, com os
braços levantados e as mã os estendidas para o cé u. Mas antes de ser
uma forma particular de oraçã o, é , antes de tudo, uma atitude do
coraçã o, uma “arte de viver”. Nos predispõ e a abençoar a Deus, cujo
amor nunca muda, em todas as circunstâ ncias. O louvor, assim como o
abandono, aliá s, nã o é uma opçã o opcional do cristã o, porque vem com
o “pacote” do Batismo. O louvor deve fazer parte daquele que foi
baptizado, qualquer que seja a sua sensibilidade eclesial: “Dai graças
em todas as circunstâ ncias; pois esta é a vontade de Deus em Cristo
Jesus para você s. Nã o extingais o Espı́rito ”(1 Tes. 5: 18-19).
Louvor e abandono, a mesma luta: a glória de Deus. O abandono visa
afastar a mente de si mesmo, de suas açõ es e preocupaçõ es, para
ajustar-se à vontade amorosa de Deus, até o ponto em que se descanse
no coraçã o de Deus. O louvor tem uma orientaçã o semelhante! As
outras expressõ es de oraçã o, como contriçã o, agradecimento e
intercessã o, sã o boas e sã o ensinadas por Deus nas Escrituras, mas a
graça especı́ ica do louvor é que é totalmente gratuito, sem esperar
nada em troca. Eu bendigo a Deus por si mesmo, independentemente
do que Ele faça por mim. Eu só tenho olhos para Deus! “Muitas vezes,
damos de nó s mesmos apenas apó s alguma deliberaçã o; hesitamos em
sacri icar nossos interesses temporais e espirituais; isso nã o é amor. O
amor é cego."130 O louvor nã o será apenas uma ajuda preciosa para o
abandono, mas é o que o une.
O elogio cura progressivamente a obsessão de cada um por si mesmo. E
uma obsessã o por nó s mesmos - por nossa pró pria vontade - que pesa
sobre nosso abandono con iante em Deus. Louvor, essa feliz “obsessã o”
pela gló ria de Deus, nos libertará progressivamente de nosso ego
protuberante. Para que esta oraçã o revele seus benefı́cios
“terapê uticos”, é necessá rio fazê -la livremente, sem esperar nada em
troca. Nã o devemos usar o louvor para controlar a Deus à luz de nossos
interesses. Alé m disso, para que o louvor transborde seu jú bilo,
devemos aprender a experimentá -lo em todas as circunstâ ncias, seja no
sol ou na neblina:
Hoje, mais do que ontem, se isso fosse possı́vel, fui privado de todo
consolo. Agradeço a Jesus, que acha isso bom para a minha alma, e
que, talvez se Ele me consolasse, eu pararia nesta doçura; mas Ele
quer que tudo seja para Si mesmo ! . . . Pois bem, tudo será para Ele,
tudo, mesmo quando sinto que nã o posso oferecer nada; entã o,
assim como esta noite, eu nã o darei a Ele isso nada! Embora Jesus
nã o esteja me consolando, Ele está me dando uma paz tã o grande que
está me fazendo mais bem!131
Um coraçã o que pratica o louvor de maneira diligente e amorosa
notará rapidamente o impacto sobre o crescimento de seu
abandono. Visto que o louvor vincula nosso amor a Deus, depois de
passarmos horas louvando o Sol Divino, descobrimos que fornecemos
o sol para nó s mesmos. Nossos coraçõ es estã o cada vez mais
descansados na santa vontade de Deus: “Lembra-te de que a tua santa
vontade é o meu repouso, a minha ú nica felicidade”.132
A arte de perseverar no abandono
E relativamente fá cil se entregar uma ou duas vezes, mas é difı́cil
perseverar nessa atitude. Para iluminar esta arte de perseverar,
comecemos com uma re lexã o que muitas vezes é ouvida de pessoas
que querem se entregar e sã o muito generosas no processo: “Pai, eu
tentei me entregar, como o Senhor ensinou, mas nã o funciona!"
Render-se a si mesmo não é praticar Zen
"Nã o funciona!" Essa reclamaçã o mostra que as pessoas muitas vezes
confundem a entrega de si mesmas com a prá tica do zen. O abandono
pode ser buscado como um alı́vio diante do sofrimento e outras
di iculdades da vida, e efetivamente oferece calma e serenidade. Mas se
eu torcer o abandono para se tornar uma troca, icarei amargamente
desapontado. O abandono nã o é o consumo de um anesté sico que nos
permitiria, de forma má gica, sair deste “vale das lá grimas” para sermos
absorvidos num estado de ê xtase onde a tristeza da realidade nã o nos
feria. Nã o nos rendemos apenas quando vale a pena e, quando a cruz
persistir e a paz parecer ir embora, pare o trem. Nó s nos rendemos,
quaisquer que sejam as circunstâ ncias, porque o bom Deus é bom e Seu
amor nunca muda. També m fazemos isso porque Ele faz com que tudo
dê certo para o bem de Seus ilhos, mesmo que, no momento, nã o
entendamos nada. Perguntei a Marthe Robin como nos render quando
nã o aguentamos mais e quando o abandono parece estar alé m de
nossas forças, e ela respondeu: “Mesmo assim, devemos nos render!”
A arte de resistir
O abandono, portanto, deve ser experimentado em dias ensolarados e
em dias escuros quando nos parece impossı́vel.
A di iculdade de hoje em suportar. Em um mundo que surfa no
sentimento, suportar quase se tornou o caminho apenas de
virtuosos! E, no entanto, esta “arte” de perseverar que nos fará
saborear a generosidade do Espı́rito Santo: “Pela prá tica das virtudes,
levante sempre o pezinho para subir a escada da santidade, e nã o
imagine que pode subir a primeira Passo! NAO, MAS O BOM SENHOR SO PEDE
NOSSA BOA VONTADE ! ” 133 Em certos momentos particularmente
dolorosos, devemos decidir render-nos ao Espı́rito, visto que podemos
icar muito enojados. “Quando canto a felicidade do cé u e a eterna
possessã o de Deus, nã o sinto alegria nisso, pois canto simplesmente o
que QUERO ACREDITAR ”.134
É uma luta suportar o abandono. Se for esse o caso, suportar no
abandono nã o é apenas uma arte, mas uma “arte marcial” - uma luta
autê ntica. Aquele que se entrega terá de enfrentar principalmente dois
adversá rios: o Maligno e a si mesmo.
Lute contra o Maligno. Parece-me que Sataná s tem mais medo de uma
pessoa que se entrega com con iança, mesmo que ainda lute para
controlar seus pecados, do que uma pessoa mais virtuosa que ainda
nã o se rendeu ao amor. A virtude praticada por si mesma pode fechar o
coraçã o à graça de Deus. Em contraste, um infortú nio combatido, mas
oferecido à misericó rdia, representa um caminho para o Espı́rito
Consolador: “Haverá mais alegria no cé u por um pecador que se
arrepende do que por noventa e nove justos que nã o precisam de
arrependimento” (Lucas 15: 7).
E, ao entregar a si mesmo e seus problemas a Deus, a pessoa cai no
mundo de Deus, que a garra do Maligno nã o pode alcançar: “A fé
ultrapassa o reino dos sentidos, sobre o qual Sataná s pode exercer seu
poder, e insere a alma no sobrenatural reino que ele nã o pode
entrar. Assim, a alma se torna inacessı́vel ao seu inimigo.
”135 Acrescentemos que ao se entregar a Deus, com todos os seus
problemas, uma pessoa concorda em permitir que seja salva por
Outro. A humildade faz com que o Diabo, que é o orgulho personi icado,
escape: “O Diabo se apega a uma atitude de orgulho por meio de sua
revolta contra Deus. Ele nã o sabe ser humilde e nã o entende a
humildade. . . . A pessoa humilde mora em regiõ es que o Diabo nã o
conhece. Ele está sempre perturbado e conquistado pela humildade.
”136
Lute contra si mesmo. Finalmente, o grande inimigo do abandono
somos nó s mesmos. Construı́mos nossas vidas na con iança unilateral
em nossas pró prias obras. Precisaremos lutar e agonizar muito para
que Deus nos livre de nossos egos, que tanto resistem à Sua graça:
“Portanto, ó alma espiritual, quando vê s teu desejo obscurecido, tuas
afeiçõ es á ridas e constrangidas, e tuas faculdades privado de sua
capacidade para qualquer exercı́cio interior, nã o se a lija por isso, mas
considere isso uma grande felicidade, uma vez que Deus está
libertando-te de ti mesmo. ”137
Rendendo-se até abandonar seu abandono
A mudança inal é entregar-se ao ponto de “abrir mã o” do pró prio
abandono! Nã o imaginamos até que ponto vivemos observando a nó s
mesmos ao vivo! E muito difı́cil sermos quem somos espontaneamente
sem nos espiarmos, mais ou menos conscientemente: “Onde estou
agora com o meu abandono? Eu iz algum progresso? Eu me sinto
menos em paz? ” Essas mú ltiplas “paradas e recomeços” acabam
paralisando a obra do Espı́rito, porque cada vez que nos corrigimos,
forçamos o Espı́rito a parar! Para que o Espı́rito se espalhe em nó s, Ele
deve encontrar uma porta aberta, e é um abandono desapegado que
cria essa ampla abertura. Como podemos nos render sem hesitar se
estamos constantemente nos analisando espiritualmente? Claro,
devemos “revisar nossas vidas” de vez em quando, mas a obra da
santidade nã o é uma obra humana. E o Espı́rito Santo que nos
santi ica; Ele pede apenas que encontrasse o mı́nimo de resistê ncia e
olhar para o umbigo possı́vel: “O amor de Nosso Senhor é revelado tã o
perfeitamente na alma mais simples que resiste à Sua graça em
nada”.138
O abandono exige que renunciemos ao pró prio abandono? Sim, se
bem entendido: “Veja, a maneira de ser feliz no pequenino jeito de
Thé rè se é abandonar-nos em Deus e pensar em nó s mesmos o mı́nimo
possı́vel - nem mesmo tentar saber se estamos ou nã o fazendo
progresso: isso nã o nos preocupa. ”139
110 Carta 122 para Cé line, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 2: 709.
111 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito A, 80v, em História de uma Alma , 174.
112 “Almas que foram tã o bem governadas pela razã o agora sã o muito razoá veis para ir mais

longe. Aquilo que foi muito ú til agora se torna um obstá culo quase inevitá vel, pois essas almas
nã o podem perceber que sua razã o fecha o caminho da perfeiçã o para elas ”. Padre Marie-
Eugè ne do Menino Jesus, Je veux voir Dieu , 280.
113 “A alma precisa de muita coragem para se entregar completamente, para se aventurar e para

lutar contra os medos quando pensamos que a vida ou nossos sentidos estã o em
perigo.” Palestra proferida por Marthe Robin, 10 de fevereiro de 1930.
114 Carta 205 à Irmã Maria de Sã o José , em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 2: 1033.
115 Existe preocupaçã o e existe preocupaçã o! Se estivermos experimentando uma ansiedade

paralisante, o abandono começará por nos entregarmos à s mã os de um mé dico, enquanto
aceitamos possı́vel ajuda psicoló gica. O abandono autê ntico nunca causa curto-circuito em
nossa humanidade; sempre leva em conta a pobreza e outros limites.
116 “O diabo, no esforço de nos impedir de nos abandonarmos a Deus, nos faz imaginar que, se

colocarmos tudo nas mã os de Deus, Deus efetivamente tomará tudo e 'estragará ' tudo em
nossas vidas! E isso desperta uma sensaçã o de terror que nos paralisa completamente. ” Padre
Jacques Philippe, Procurando e Mantendo a Paz: Um Pequeno Tratado sobre a Paz de
Coração , trad. George e Jannic Driscoll (Staten Island, NY: Society of St. Paul, 2002), 40.
117 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 27 de maio, 2, em Últimas Conversas , 50.
118 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 7, 3 de julho, em Últimas Conversas , 77.
119 Carta 161 para Cé line, em Letters of St. Thérèse of Lisieux , 2: 851.
120 Procès de béati ication et canonization , 468.
121 “Somos tã o lentos em dar a Deus o dom absoluto de nó s mesmos que nã o acabamos de nos

preparar para esta graça.”Santa Teresa de Avila, Thérèse d'Avila: Vie écrite par elle-même ,
trad. Gré goire de Saint Joseph (Paris: Editions du Seuil, 2014), cap. 11, 103–104.
122 Carta 74 para Irmã Agnè s de Jesus, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 1: 500.
123 Santo Iná cio de Loyola, Exercícios Espirituais , n. 23
124 “Se pudé ssemos, de uma só vez, com nosso olho interior, ver tudo o que é bom e

misericordioso no plano de Deus para cada um de nó s, mesmo naquelas coisas que chamamos
de escâ ndalos, tristezas ou a liçõ es, nossa felicidade consistiria em lançar-nos nos braços da
Vontade Divina com o abandono de uma criança que se lança nos braços da mã e. Agirı́amos, em
todas as coisas, com a intençã o de agradar a Deus, e entã o permanecerı́amos em santo
descanso, muito persuadidos de que Deus é nosso Pai e que Ele deseja nossa salvaçã o, mais do
que nó s mesmos ” (Marie de a Encarnaçã o).
125 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito A, 38r, em História de uma Alma , 83.
126 Monsenhor François-Xavier Nguyen Van Thuan, J'ai suivi Jésus. Un évêque témoigne (Eu

segui Jesus: um bispo dá testemunho) (Paris: Mé diaspaul, 1997), 22-23.
127 “As vezes, por exemplo, muitos optam, em primeiro lugar, pelo casamento, que é o meio, e

em segundo lugar, por servir a nosso Senhor Deus no casamento, ao passo que servir a Deus é o
im. . . . Eles fazem do im um meio e os meios um im. ” Santo Iná cio de Loyola, Exercícios
espirituais , n. 169
128 Santa Teresa de Lisieux, Conselhos e Reminiscências da Irmã Geneviè ve (Lisieux: Central

Of ice de Lisieux, 1952), 100.


129 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 8, 3 de agosto, em Últimas Conversas , 142.
130 Santa Teresinha de Lisieux, Conselhos e Reminiscências , 62.
131 Carta 76 para Irmã Agnè s de Jesus, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 1: 504.
132 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 14 de julho, 3, em Últimas Conversas , 97.
133 Santa Teresinha de Lisieux, Conselhos e Reminiscências , 261; cf. Padre Marie-Eugè ne do

Menino Jesus, Je veux voir Dieu , 848.


134 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito C, 7v, em História de uma Alma , 214.
135 Padre Marie-Eugè ne do Menino Jesus, Je veux voir Dieu , 112.
136 Ibid., 114.
137 Sã o Joã o da Cruz, Dark Night of the Soul , trad. e ed. E. Allison Peers (New York: Image

Books, 1959), 2, 16, 7.


138 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito A, 2v, em História de uma Alma , 14.
139 Irmã Marie da Trindade para sua irmã Germaine, 29 de maio de 1917, citado em Pierre

Descouvemont, Une novice de Sainte Thérèse (Editions du Cerf, 1986), 159.

Parte 3

Alguns exercı́cios prá ticos de abandono a Deus na escola


de pensamento de Thé rè se
Depois de dividir a reaçã o de abandono em trê s perı́odos, proponho-me
agora prosseguir para os trabalhos prá ticos! Na escola de pensamento
de Thé rè se, vamos integrar esse movimento de abandono em domı́nios
importantes de nossa vida humana e espiritual. Faremos exercı́cios
para integrar o abandono a Deus em nossa vida de oraçã o, na forma
como amamos, em meio à s preocupaçõ es, em nossa vida pro issional e
familiar e, por im, no abandono no sofrimento.

Entregando-nos a Deus
As seguintes palavras de Thé rè se, numa mensagem ao Padre Belliè re,
resumem muito bem o que entendemos por entrega-se a Deus: “Sigo o
caminho que Ele está traçando para mim. Procuro nã o estar mais
ocupado comigo mesmo em nada, e me abandono ao que Jesus acha
adequado fazer em minha alma, pois nã o escolhi uma vida austera para
expiar minhas faltas, mas as dos outros. ”140 Sentimos em que direçã o
a santa de Lisieux quer nos conduzir, mas para vivenciar essa entrega
legı́tima de si mesmo é importante limpar o terreno.
Falsa Auto-Aceitação
Auto-aceitaçã o nã o é a recusa derrotista de progredir. Minha histó ria
pode ter, muito cedo, incluı́do algumas di iculdades - um sentimento de
abandono, rejeiçã o, falta de amor e assim por diante. Como resultado,
anos depois, em situaçõ es semelhantes, ainda estou paralisado por
di iculdades anteriores. A auto-aceitaçã o nã o tem nada a ver com a
recusa em curar ou renascer: “Foi assim que aconteceu; é certo que
tenho mancado desde entã o, mas seria tã o complicado e caro tentar
sair disso que pre iro icar do jeito que estou! ” Teresa de Lisieux,
ferida desde muito cedo com a morte da mã e, nã o quis suportar esta
ferida durante toda a vida. Como ela revelou, ao relatar a graça de sua
cura interior que recebeu na noite de Natal de 1886, ela
deliberadamente trabalhou na realizaçã o de atos de virtude por dez
anos com a intençã o de se opor à sua natureza ferida: “O trabalho que
eu tinha sido incapaz fazer em dez anos foi feito por Jesus em um
instante, contentando-se com a minha boa vontade que nunca faltou.
”141 E verdadeiramente uma alma agressiva que empreende o caminho
da cura con iante!
A entrega de si mesmo també m nã o leva ao relaxamento. As
Escrituras confundem o caminho da infâ ncia. Por um lado, convida-nos
a abandonar-nos com a con iança de uma criança: “A menos que se
transformem e se tornem como crianças, nunca entrarã o no reino dos
cé us” (Mt 18: 3). Por outro lado, exige grande esforço ascender ao
monte da santidade: “Sede perfeitos, como o vosso Pai celestial é
perfeito” (Mt 5:48; veja Lv 19: 2). O abandono autê ntico controla com
segurança e serenidade a luta contra as tendê ncias e os
pecados. Thé rè se realmente combinou bem esse paradoxo em uma de
suas ú ltimas conversas. Madre Agnè s de Jesus pediu-lhe explicaçõ es
sobre o caminho que ela gostaria de ensinar à s almas depois de sua
morte. Aqui está a resposta de Thé rè se: “Mã e, é o caminho da infâ ncia
espiritual, é o caminho da con iança e do abandono total.” Este é o
aspecto agradá vel do abandono: a con iança da criança. Sem demora,
ela acrescenta: “Quero ensinar-lhes os pequenos meios que tã o
perfeitamente me deram certo, dizer-lhes que só há uma coisa a fazer
aqui na terra: lançar em Jesus as lores dos pequenos sacrifı́cios, levá -lo
por carı́cias; é assim que O tenho tomado, e é por isso que serei tã o
bem recebido ”.142 E este é o aspecto mais desa iador do abandono, que
é insepará vel do primeiro: a luta, as “obras”, os sacrifı́cios que se fazem
por amor.
Por que a autoaceitação é tão di ícil?
A autoaceitaçã o nã o é fá cil por duas razõ es principais: (1) nosso
orgulho tem di iculdade em ver seus limites e (2) tememos nã o ser
mais amados.
Nosso orgulho tem di iculdade em ver seus limites
A consciê ncia de nossos fracassos e pecados, especialmente com raı́zes
profundas, perturba rapidamente nossa autossatisfaçã o. Isso é orgulho
sutil, que sussurra: "Você ainda nã o é tã o ruim assim!" A auto-
aceitaçã o nã o é excessiva, pois temos que concordar em chorar por nó s
mesmos até certo ponto. Nã o é inato. E preciso aprender: “Eu també m
tenho minhas fraquezas, mas me regozijo nelas. . . . Ainda estou no
mesmo lugar de antes! Mas digo isso a mim mesma com muita
gentileza e sem qualquer tristeza! E tã o bom sentir que um é fraco e
pequeno! ”143 Nó s nos parecemos com uma pessoa que, em seu quarto,
tem apenas duas coisas na parede - um lindo espelho e um ı́cone de
Cristo. Ele passou grande parte de sua vida se contemplando em seu
belo espelho. Um dia, o lindo espelho se quebra e as belas virtudes
junto com ele. Esta pobre alma tem duas soluçõ es. Ou ele vai passar o
resto de sua vida reclamando diante da exibiçã o de suas virtudes
mesquinhas que foram quebradas em mil pedaços, ou ele vai aceitar a
quebra desse espelho e escolher olhar para o ı́cone de Cristo, que nunca
vai cair da parede! Nã o, nã o é tã o simples para nosso orgulho ver nosso
ideal de perfeiçã o se despedaçar.
O medo de não ser mais amado
O livro de Gê nesis é uma liçã o psicoló gica magnı́ ica sobre o
pecador. Em Gê nesis 3:10, vemos que Adã o e Eva, logo apó s seu pecado,
tentaram se esconder de Deus. Assim é com todo pecador. Assim que
for cometido o pecado, ferida de amor, o homem será dominado pelo
medo de nã o ser mais amado pelo Amor, que foi ferido por
ele. Estejamos muito convencidos de que se, por meio de nossos
pecados, caı́mos ainda mais baixo, a misericó rdia de Deus vai descer
ainda mais para nos abraçar: “Para todo pecado, misericó rdia, e Deus é
poderoso o su iciente para dar estabilidade até mesmo à s pessoas que
nã o tê m nenhuma.”144
Como experimentamos uma legítima auto-aceitação?
Entre as palavras de Thé rè se, as dirigidas à irmã Geneviè ve na Carta
243 parecem uma entrada nesta legı́tima auto-aceitaçã o em Deus:
“Alinhemo-nos humildemente entre os imperfeitos, consideremo-nos
como pequenas almas que Deus deve sustentar a cada
momento. Quando Ele vê que estamos muito convencidos de nosso
nada, Ele estende Sua mã o para nó s. Se ainda quisermos tentar fazer
algo grande mesmo sob o pretexto de zelo, o Bom Jesus nos deixa em
paz. . . . SIM, basta humilhar-se, suportar as pró prias imperfeiçõ es. Isso
é verdadeira santidade! ”145
Rejeitar a nós mesmos é exaustivo
Nã o percebemos quanto tempo e energia preciosos perdemos ao nos
recusar a aceitar nossas limitaçõ es ou reclamar do que nã o somos. Nã o
acolher a minha pró pria inadequaçã o é exaustivo, simplesmente
porque é uma realidade e nã o há nada a fazer para mudá -la no
momento. Posso queimar todas as minhas forças recusando essa
realidade. A complexidade de quem eu sou sempre me lembrará de
minhas limitaçõ es e fragilidades! Entã o, vamos abraçar a sabedoria de
Thé rè se. “Vamos nos alinhar humildemente entre os imperfeitos.”
Deus pode agir apenas na realidade de quem eu sou
Se passo meu tempo - inconscientemente ou nã o - me recusando a
aceitar quem sou e principalmente meu lado sombrio e minhas
limitaçõ es, com a desculpa de que nã o é um retrato laudató rio, estou
vivendo, de certa forma, fora de mim. Entã o, Deus, o Ser mais real que
existe, só me encontra na complexidade de quem eu sou, inclusive o
que é “muito complexo”! Um pouco de misericó rdia para si mesmo nã o
é , portanto, um luxo, mas o mı́nimo necessá rio para experimentar
nossa humanidade de maneira justa.146
Aceitando-me suavemente olhando para mim mesmo com os olhos de
Deus
E o Deus Altı́ssimo quem dá sentido, valor e beleza à nossa humildade.
O que paralisa a açã o da graça em nossas vidas nã o sã o tanto nossos
pecados, mas nossa rejeiçã o da misericó rdia divina quando caı́mos. Um
grande Thé rè sian transmitiu isso tã o bem nos famosos Diálogos das
Carmelitas . Georges Bernanos escreveu sobre um postulante muito
novo no convento. Seu sá bio superior deu-lhe apenas estas instruçõ es:
“Acima de tudo, nunca se despreze. E muito difı́cil desprezar a si mesmo
sem ofender a Deus em nó s mesmos. . . . Se a sua natureza é objeto de
luta ou campo de batalha, oh, nã o desanime nem ique triste. Terei
prazer em dizer: ame a sua pobreza, pois Deus dispensa Sua
misericó rdia sobre ela. ”
Em ú ltima aná lise, devemos olhar para nó s mesmos nã o no nı́vel do
homem, mas no nı́vel de Deus! Fora da misericó rdia divina, o homem
tem todas as oportunidades, em um momento ou outro, de se
desesperar consigo mesmo. A graça de pedir misericó rdia é nos vermos
nos olhos do bom Senhor. Ao contemplar Sua extrema misericó rdia e
in inita paciê ncia para conosco, acabaremos tendo um respeito divino
por nó s mesmos: “Sim, basta humilhar-nos e suportar com suavidade
as nossas imperfeiçõ es. Essa é a verdadeira santidade. ” Que conexã o
com o chamado universal à santidade! Mas uma auto-aceitaçã o legı́tima
pressupõ e uma kenosis - um esvaziamento do ego irreal e de todas as
suas fortalezas internas, que foram construı́das na forma de castelos de
areia para esconder nossa pobreza. Quando oferecido à s ondas suaves
da misericó rdia, acabará caindo, abrindo caminho para o Amor. Que
tsunami abençoado!
140 Carta 247 ao Padre Belliè re, nas Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 2: 1134.
141 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito A, 45r – v, em História da Alma , 98.
142 Conversa com Madre Inê s de Jesus, julho de 1897, em Últimas Conversas , 257.
143 Santa Teresa de Lisieux, Caderno Amarelo , 5 de julho, 1, em Últimas Conversas , 73–74.
144 Carta 147 para Cé line, em Letters of St. Thérèse of Lisieux , 2: 813.
145 Carta 243 para Irmã Geneviè ve, em Cartas de Santa Teresa de Lisieux , 2: 1122.
146 “Eu admiro você s cristã os. Quando você dá as boas-vindas ao estranho, você dá as boas-

vindas a Jesus. Você vê algué m que está com fome, você o alimenta e dá a Jesus. Você vê algué m
na prisã o, você o visita e você visita Jesus! Mas o que eu nã o entendo é que você nã o vê Jesus
em sua pró pria pobreza. Você quer ver a pobreza fora de você e servir os pobres, mas nã o
aceitou a pobreza em você . ” Carl Gustav Jung, psicanalista, citado em
Ré mi Schappacher , Veux-tu guérir (Você quer curar?) (Paris: Editions du Cerf, 2000), 54.

Experimentando o abandono na oraçã o


Nã o queremos reduzir a oraçã o à sua dimensã o de abandono. A pró pria
Thé rè se sabia que a oraçã o - como toda a vida cristã - respira com dois
pulmõ es: amar e deixar-se amar. “ Outro dia eu estava lendo um trecho
sobre a felicidade do céu para minha paciênte, e ela me interrompeu
dizendo: 'Nã o é isso que me atrai. . . . ' ' O que então? 'Eu perguntei:' Oh,
é Amor! Amar, ser amado e voltar à terra para fazer o amor ser amado.
' ”147 Esse foco na oraçã o atravé s do prisma do abandono ajudará
nossas oraçõ es a serem mais relaxadas. Teresa nos ensina que nã o só
devemos nos entregar na oraçã o, mas també m seremos levados a
“entregar” nossa oraçã o.
Rendendo Nossa Oração
E claro que nã o se trata de abandonar a oraçã o, no sentido de
interromper a oraçã o, mas de entregar nossa oraçã o a Deus, como ela é ,
e nã o como gostarı́amos absolutamente que fosse.
A tentação de avaliar nossa oração
Há alguns anos, todos os domingos à tarde, o popular Jacques Martin
apresentava um show chamado L'École des Fans (A escola dos fã s) que
era muito apreciado pelas famı́lias. Algumas crianças tiveram que
interpretar a mú sica de um artista que estava presente no set. Ao inal
da apresentaçã o, eles foram convidados a dar notas um ao outro. E
muito possı́vel que nossa oraçã o à s vezes gire em torno da escola de
pensamento dos fã s. No inal da oraçã o, muitas vezes nos avaliamos e a
nota à s vezes é ruim: “Perdi minha oraçã o”; “Minha oraçã o foi
inú til. Minha mente estava completamente em outro lugar ”; “Há meses
que estou doente, tenho a impressã o de nã o poder mais orar”; “Pobre
Jesus, o que Ele pode fazer com a minha oraçã o, eu nã o paro de cochilar
a cada cinco minutos!”
Claro, isso nã o tem nada a ver com tolerar a oraçã o, porque Deus
implora por uma resposta de amor pessoal e generoso de minha
parte. Mas que Deus me proteja de julgar minha oraçã o, como se fosse
principalmente minha. Quando eu oro, é de initivamente minha oraçã o,
mas apenas quando ela se entrega ativamente à oraçã o do Espı́rito, que
a precede e apó ia. Nã o foi uma revoluçã o mesquinha em minha vida de
oraçã o quando, enquanto eu estava no seminá rio, um pregador
pronunciou estas palavras simples: “O mais ativo em sua oraçã o é
Deus. Você só entra na oraçã o do Espı́rito, que te precede! ” Essa
palavra me fez, em um instante, passar de tenso a amorosamente
atencioso.
O sono de Thérèse em sua oração
O padre Combes, um dos especialistas de Thé rè se, tinha esta fó rmula
muito apurada para quali icar a oraçã o da santa do caminho: “A oraçã o
de Thé rè se é o encontro de dois sono: o sono de Jesus e o sono de
Thé rè se”. Irmã Maria da Trindade, muito depois da morte de Thé rè se,
con idenciou a um padre carmelita: “Thé rè se caiu para a frente durante
a missa; ela dormia quase sem cessar durante suas oraçõ es de açã o de
graças, enquanto estava de joelhos, com a cabeça no chã o. Ela passou a
vida desejando dormir. ” De fato, Thé rè se, em vida, fez esta observaçã o
atormentadora sobre sua impotê ncia para orar, mas nã o desanimou:
“Realmente, estou longe de ser uma santa, e o que acabo de dizer é a
prova disso; em vez de me alegrar, por exemplo, com minha aridez,
devo atribuı́-la ao meu pequeno fervor e falta de idelidade; Eu deveria
estar desolado por ter dormido (por sete anos) durante minhas horas
de oraçã o e minhas ações de graças apó s a Sagrada Comunhã o; bem, eu
nã o estou desolado. ”148
Muitas vezes pensamos que nossa oraçã o só é ú til quando estamos
em nossa melhor forma. Thé rè se nos assegura que até o sono pode se
tornar uma forma de oraçã o, se nã o for, é claro, cultivado por si
mesmo. Ela renunciou à oraçã o, acolheu com agrado este sono que se
impô s a ela e nã o tentou julgar a sua oraçã o. Ela aceitou com
serenidade essa limitaçã o, que se devia à sua natureza, e a ofereceu
como um belo presente ao Senhor. Na oraçã o, Jesus ica mais tocado
pelo nosso abandono à Sua vontade do que pelos nossos escrú pulos do
momento: “Lembro-me de que as crianças sã o tã o agradá veis aos pais
quando estã o dormindo como quando estã o bem acordados; Lembro-
me també m de que, quando realizam operaçõ es, os mé dicos colocam
seus pacientes para dormir. Por im, lembro-me de que: “ O Senhor
conhece a nossa fraqueza, que se lembra de que não somos nada mais
que pó e cinzas ”.149
E claro que temos que ajustar nosso dia para que nossa oraçã o nã o se
transforme habitualmente em um cochilo. Mas se nossa saú de ou os
riscos da idade nos levam a tirar uma “soneca” indesejá vel, devemos
valorizar com alegria esse tempo de oraçã o també m. Uma oraçã o que
oferece uma calma profunda é tã o alegre quanto viva: “O Espı́rito ajuda-
nos nas nossas fraquezas; pois nã o sabemos orar como convé m, mas o
pró prio Espı́rito intercede por nó s com suspiros profundos demais para
serem palavras ”(Rom. 8:26).
Aqui está um lembrete gentil sobre este ponto. Um casal relativamente
idoso participou de um retiro pregado, e o marido nã o parava de
cochilar durante as palestras - mesmo na manhã ! Sua esposa, que
queria que ele aproveitasse ao má ximo todos os ensinamentos, nã o
parava de dar tapinhas no joelho dele assim que ele ousava
cochilar. Durante uma conversa particular com esta senhora, ela me
con idenciou seu sofrimento, notando a sonolê ncia do marido a cada
retiro. Eu me permiti sugerir a ela: “Vejo que você busca sinceramente a
vontade de Deus. E se a vontade de Deus fosse precisamente deixar seu
marido dormir em Seu coraçã o? E quem está dizendo a você que Deus
nã o é capaz de nutri-lo cem vezes mais com uma palavra que ele
consegue ouvir entre seus muitos cochilos? E, por im, quem está lhe
dizendo que Deus nã o permite que essa sonolê ncia repetida te cure da
vergonha de ter um marido que nã o para de cochilar ao seu lado?
” Rimos e ela saiu muito feliz e livre - e o marido també m. Que
“relaxamento”! Durante as palestras seguintes, ele cochilou tã o
profundamente que o Senhor deve tê -lo ensinado diretamente durante
o sono!
Rendendo-nos em Oração
O sono de Jesus em oração
Muitas pessoas imaginam erroneamente que a oraçã o da pequena
Teresa foi simplesmente uma experiê ncia fá cil da ternura do coraçã o
do Pai. As palavras de sua iel con idente, irmã Geneviè ve, ajude-nos a
enfrentar a realidade novamente. “Toda a sua vida luiu em oraçã o
absoluta. Ningué m icava menos consolado na oraçã o; ela me revelou
que havia passado sete anos na mais seca das oraçõ es; seus retiros
anuais e mensais eram uma provaçã o. No entanto, pensamos que ela
foi inundada com consolaçõ es espirituais porque suas obras e palavras
foram tã o ungidas e porque ela estava tã o unida a Deus ”.150 Teresa nã o
apenas experimentou as limitaçõ es fı́sicas de sua saú de, que a
mergulharam no sono mais profundo, mas o pró prio Jesus parecia
ignorá -la durante sua oraçã o.
Rendendo-nos à vontade do Senhor em oração
Aqui estã o alguns caminhos de abandono para afetar mais
profundamente nossa oraçã o e, dessa forma, nos ajudar a experimentar
uma oraçã o mais livre e amorosa.
Na oração, acolhendo o silêncio de Deus e nossa impotência. Teresa era
muito sensı́vel à imagem do Santo Rosto de Cristo e, para ela, os olhos
de Jesus, meio abaixados, transmitiam realmente o Seu aparente sono
na sua oraçã o. Ela aceitou pacientemente que Cristo mantivesse os
olhos fechados durante sua oraçã o, o que lhe dava a dolorosa
impressã o de nã o sentir Seu olhar amoroso sobre ela: “Jesus me tomou
pela mã o e me fez entrar numa passagem subterrâ nea. . . onde nã o vejo
nada alé m de uma luz meio velada, que foi difundida pelos olhos baixos
do rosto do meu noivo! ”151
Manter a fé na presença e ação de Cristo quando a oração parece
infrutífera. Esta provaçã o de secura quase contı́nua nã o impediu o
desejo de Thé rè se de se unir a Cristo. Foi com um olhar de pura fé que
Thé rè se orou. Ela sabia com todo o seu ser que nã o era porque Deus
parecia silencioso que Ele nã o agia com amor nas profundezas de seu
ser: “Eu entendo e sei por experiê ncia que: ' O reino de Deus está com
você .' . . . Nunca O ouvi falar, mas sinto que Ele está dentro de mim a
cada momento; Ele está me orientando e inspirando com o que devo
dizer e fazer. ”152
Rendendo-se a Jesus e permitindo-se “descansar”. Jesus parece dormir
no meio da oraçã o? Thé rè se disse que isso era muito bom; ela queria
oferecer a Jesus um espaço de descanso em sua alma, pedindo-Lhe
nada, exceto estar ali da maneira que Ele sentia: “Vejo muito bem como
raramente as almas permitem que Ele durma em paz dentro
delas. Jesus está tã o cansado de ter que sempre tomar a iniciativa e
atender aos outros que se apressa em aproveitar o repouso que ofereço
a Ele ”.153
Entregar-se a Jesus para agradá-lo. Todos os santos ensinam que uma
vida de oraçã o autê ntica deve puri icar aquilo a que somos
sensı́veis. Devemos aprender a preferir Jesus ao nosso
problema. “Muitos servem a Jesus quando ele os consola,
mas poucos consentem em icar com Jesus dormindo nas ondas ou
sofrendo no jardim da agonia! . . . Quem, entã o, estará disposto a servir
a Jesus para si mesmo? ”154 A maioria de nó s deseja orar com
sinceridade, mas à s vezes é com a intençã o secreta de receber
consolaçõ es e de “estar bem”! O objetivo desse desmame emocional,
criado pela secura, é nos curar de nosso amor avassalador. Se, em nossa
oraçã o, Deus nos consola, tanto melhor. Se Ele nã o nos consola, tudo
bem, pois é Jesus e só Jesus que procuramos: “Nã o posso dizer que
muitas vezes recebi consolaçõ es ao dar graças depois da Missa; talvez
seja a hora em que recebo menos. No entanto, acho isso muito
compreensı́vel, já que me ofereci a Jesus nã o como algué m desejoso de
sua pró pria consolaçã o em Sua visita, mas simplesmente para agradar
Aquele que se entrega a mim. ”155
147 Ultimas Palavras de Thé rè se a Cé line, julho de 1897, em Últimas Conversas , 217.
148 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito A, 75v, em História de uma Alma , 165.
149 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito A, 75v-76r, em História de uma Alma , 165.
150 Santa Teresinha de Lisieux, Souvenirs d'une novice: Recueillis par Soeur Geneviève de la

Sainte Face (Conselhos e reminiscê ncias coletados pela Irmã Geneviè ve da Santa Face) (Paris:
Editions du Cerf, 1937), 76.
151 Carta 110 para Irmã Agnè s, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 1: 651–652.
152 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito A, 83v, em História de uma Alma , 179.
153 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito A, 75v, em História de uma Alma , 165.
154 Carta 165 a Cé line, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 2: 862.
155 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito A, 79v, em Story of a Soul , 172.

10

Experimentando o abandono em Deus no meio da


caridade fraterna
A primeira vista, ligar o abandono a atos de amor pode parecer
surpreendente. Mais do que um ú nico elo os une, pois o menor ato de
amizade ou de caridade é uma participaçã o real no amor de
Deus. Assim, amar o irmã o inclui um movimento de abandono ao Amor
Divino, que nos permite amar. Teresa de Lisieux, que mais fortemente
descobriu o misté rio da caridade no inal da sua vida, quer que façamos
parte dela.
Caridade fraterna: uma participação no amor de Deus
Antes de a irmar isso, convé m notar algumas visõ es mı́opes da caridade
fraterna.
Amar o nosso próximo é um dos puros imperativos de Jesus
Mesmo entre os cristã os, amar o pró ximo é muitas vezes reduzido a um
puro mandamento moral imposto por Deus: “Isto vos mando: ameis uns
aos outros” (Joã o 15:17). Deus nos ordena a amar o nosso pró ximo, se
por nenhuma outra razã o do que isso é a Sua decisã o soberana - um
puro, imperativo categó rico: ser um bom cristã o, eu deve amar o meu
pró ximo, mesmo se eu nã o entender o porquê !
Amar o nosso próximo é simplesmente uma imitação de Cristo
Outra visã o mı́ope da caridade fraterna é como pura virtude “da
imitaçã o” de Cristo. Para amar o pró ximo, precisamos apenas
“reproduzir” o modelo externo do amor de Jesus no Evangelho. Um
modelo como Cristo já nã o é ruim, você me dirá , mas se levarmos essa
ló gica ao limite, podemos nos perguntar se ainda precisamos de Cristo,
pois certos homens sá bios, como Gandhi, també m sã o modelos
admirá veis.
Amar não é o mesmo que ter muito em comum com alguém
Vivemos tanto pelos nossos sentimentos que estamos convencidos de
que amamos quando há quı́mica entre nó s e outra pessoa e que nã o
amamos quando nã o temos nada em comum com algué m. Tenha
cuidado para nã o confundir caridade com gentileza. Podemos sentir
repulsa por algué m e, no entanto, amá -lo. Em meio a esse desconforto,
seremos divinamente pacientes com o outro e conosco: “Ao meditar
nestas palavras de Jesus, compreendi quã o imperfeito era o meu amor
pelas minhas Irmã s. Eu vi que nã o os amava como Deus os
ama. Ah! Compreendo agora que a caridade consiste em suportar as
faltas dos outros, em nã o se surpreender com sua fraqueza, em ser
edi icado pelos menores atos de virtude que os vemos praticar ”.156
Amar ao próximo é participação no amor de Deus
Thé rè se adorava repetir que “tudo é graça”.157 A graça de Cristo nã o é
necessá ria apenas para certos atos decisivos da vida e, para o resto,
deve-se administrar tudo sozinho! Nã o, o Espı́rito quer que Sua graça
esteja no menor ato de amor fraterno que participa do
divino ágape . Isso é verdade mesmo para um nã o-cristã o que nã o tem
conhecimento da Fonte Divina: “Fora de mim nada podeis fazer” (Joã o
15: 5).
Portanto, amar o pró ximo nã o é , antes de tudo, uma tarefa da criatura
relacionada com Deus, mas é um dom de Deus! O Espı́rito Santo
oferece-nos o imenso presente da participaçã o no Seu amor divino:
“Amemo-nos uns aos outros; porque o amor é de Deus, e quem ama é
nascido de Deus e conhece a Deus ”(1 Joã o 4: 7). Assim de iniu Santo
Tomá s de Aquino a caridade fraterna: “A caridade pela qual amamos o
pró ximo é uma participação no amor divino”.158
Amar é nos rendermos ativamente ao amor de Deus
E lendo os escritos de Thé rè se que descobri até que ponto a caridade é
um misté rio, no sentido amplo da palavra. Se posso amar, é pela graça
de Deus, que me conduz ao Seu pró prio amor. Somos tã o
espontaneamente inclinados a prescindir de Deus e tã o rá pidos a
administrar nossos modos de vida e a amar, usando a nó s mesmos
como fonte de amor, que facilmente nos esquecemos desta verdade
fundamental da vida cristã .
Sob a orientaçã o da pequena Teresa, procuremos desenhar a dinâ mica
do movimento de abandono no seio da caridade fraterna. Antes do
menor ato de caridade, preparemos nossos coraçõ es, invoquemos o
Espı́rito Santo e, inalmente, deixemos que este Espı́rito de Amor ame
atravé s de nó s. Tudo isso pode parecer fá cil no papel, mas, na realidade,
esse abandono ao amor de Deus exige uma pobreza interior e uma
cooperaçã o eminentemente ativa.
Preparando nossos corações para o menor ato de caridade fraterna
Em seus manuscritos autobiográ icos, Teresa de Lisieux confessou que
parecia ter descoberto o sentido profundo da caridade apenas nos
ú ltimos anos de sua vida: “Este ano, querida Mã e, Deus me deu a graça
de compreender o que é a caridade; Já entendi isso antes, é verdade,
mas de uma forma imperfeita ”.159 Estas palavras do santo do amor
consolam muito para aqueles de nó s que à s vezes nos deparamos com
tanto empenho neste rude caminho quotidiano de caridade.
Thé rè se experimentou um hiato entre seu desejo de amar
divinamente - “Senhor, eu sei que nã o comandas o impossı́vel” - e a
avaliaçã o de sua insu iciê ncia em amar de verdade - “Você sabe melhor
do que eu minhas fraquezas e imperfeiçõ es; Você sabe muito bem que
eu nunca seria capaz de amar minhas irmã s como Você as ama
”.160 Antes de praticar o amor a algué m, devemos respirar,
principalmente se o pró ximo desperta em nó s alguma antipatia:
devemos estar cientes de que, usando nossas pró prias virtudes e
apenas nossa capacidade humana de amar, nã o seremos capazes de
amar isso. irmã o ou irmã como Deus o ama.
Devemos dar um passo atrá s antes de amar uma pessoa de quem nã o
gostamos espontaneamente. Aqui estã o algumas palavras simples que
podem ajudar a preparar o nosso coraçã o: “Jesus, vou ter que encontrar
esta pessoa. Sua presença me faz perder a paz. Consinto em ser incapaz
de amá -lo como Você quer que eu o ame e aceito minha total
impotê ncia para lhe oferecer um sorriso que nã o seja forçado. Eu aceito
ser incapaz de amá -lo. ” Você vai me dizer que essas palavras nã o sã o
muito gloriosas? Eu concordo, mas eles, pelo menos, tê m a qualidade de
serem verdadeiros. Essa impotê ncia, que sentimos, nã o é a ú ltima
palavra do movimento de abandono. As duas etapas seguintes nos
abrirã o para a possibilidade do Amor Divino estar em meio à
impossibilidade de amarmos como Deus quer.
Invocando o Espírito de amor
A aná lise de nosso amor insu iciente nã o nos leva a desistir de forma
passiva. Pelo contrá rio, devemos investir todas as nossas forças para
“atrair” o Espı́rito da caridade e colaborar ativamente no Seu
movimento de amor em nó s e atravé s de nó s. Isso pode ser transmitido
por este grito: “Espı́rito de amor, vem em auxı́lio do meu amor
limitado. Preencha-me com Você para que eu ame esta pessoa em Você
e atravé s de Você . ”
Esta segunda fase do movimento de abandono em meio à caridade é ,
de certa forma, uma invocaçã o do Espı́rito Santo. Na Missa, o sacerdote
pede ao Espı́rito Santo que possua o pã o e o vinho para que eles se
tornem a pró pria Presença do Cristo Ressuscitado. Na segunda etapa
do abandono, a pessoa pede ao Espı́rito que capture o seu coraçã o
humano, cujo amor é limitado, para “consagrá -lo” no pró prio amor de
Deus. Thé rè se nã o fala especi icamente em invocar o Espı́rito, mas a
dinâ mica está muito presente, pois ela tenta se unir ao bom Senhor:
“Quanto mais estou unida a Ele, mais també m amo minhas Irmã s”.161
Deixando o Espírito de amor amar através de nós
Nossa ú ltima etapa, que visa deixar-nos encher de amor divino, pode
parecer muito sutil. Certas realidades da vida espiritual permanecem
nebulosas enquanto nã o sã o experimentadas internamente. Somente o
amor pode iluminar o amor.
Depois de ter invocado o Espı́rito de amor para que Ele ame nã o em
nosso lugar, mas em nó s e por nosso intermé dio, teremos que deixar
que Ele atue. Thé rè se expressou esta “transubstanciaçã o” do coraçã o
desta forma: “Sim, eu sinto isso, quando sou caridosa, é só Jesus quem
age em mim, e quanto mais estou unida a Ele, mais també m amo
minhas irmã s."162 Nas ú ltimas semanas de sua doença, ela demonstrou
um heroı́smo relacionado à paciê ncia. No dia 18 de agosto de 1897,
Madre Agnè s, que a felicitou pela paciê ncia, ouviu a irmã responder:
“Nã o tenho nem um minuto de paciê ncia. Nã o é minha paciê ncia! Você
está sempre errado! ”163
Amoroso a ponto de correção fraterna
O amor autê ntico conecta caridade, verdade e liberdade. E assim que a
caridade fraterna pode e deve à s vezes exigir que corrijamos algué m, o
que nã o deve ser julgado como um capricho da caridade, mas como
uma de suas expressõ es.164 Thé rè se nos oferece uma bela aplicaçã o de
abandono a Deus enquanto corrige algué m. Tendo entrado no Carmelo
aos quinze anos, ela descobriu um companheiro de noviciado com
quem se deu bem. Mas ela percebeu rapidamente que esta Irmã , que
era oito anos mais velha que Thé rè se, demonstrava um apego
excessivo à madre superiora, Madre Maria de Gonzaga. Vendo esta
falha, a pequena Thé rè se sentiu-se obrigada a dizer-lhe, para ganhá -la
para Cristo: “Minha querida companheira encantou-me com a sua
inocê ncia e com a sua franca disposiçã o, mas surpreendeu-me quando
vi o quanto o seu carinho por ti diferia de meu pró prio. Alé m disso,
havia muitas coisas em sua conduta para com as Irmã s que eu teria
gostado de vê -la mudar ”.165
Querendo corrigir esta irmã , Thé rè se, acima de tudo, nã o disse a si
mesma: “Isso nã o nos diz respeito”. Ela nã o queria passar por cima do
Espı́rito Santo. Ela se preparou para acolher a vontade de Deus, que
discerniu o momento certo para este esclarecimento fraterno com a
Irmã em questã o. “Naquela é poca, Deus me fez entender que existem
almas por quem Sua misericó rdia nunca se cansa de esperar e a quem
Ele concede Sua luz apenas gradativamente; portanto, tive o cuidado de
nã o adiantar Sua hora e esperei pacientemente até que agradasse a
Jesus ter esta hora chegado ”.166 E depois de vá rias semanas, a hora de
Deus parecia chegar: “Deus me fez sentir que havia chegado o
momento e nã o devo mais ter medo de falar”.167
O esclarecimento de Thé rè se é vantajoso para os educadores por duas
razõ es. Em primeiro lugar, seu exemplo nos convence de que o
abandono na educaçã o nada tem a ver com “nã o fazer nada” ou com
permissividade. Trata-se de viver em Deus, que é nossa tarefa educativa
e inclui a possı́vel tarefa ingrata de correçã o. Por outro lado,
costumamos ir rá pido demais. Nó s vemos, julgamos e agimos
imediatamente. Precisamos re letir sobre a inclusã o do chamado do
Espı́rito neste processo de ver, julgar e agir. “Espı́rito Santo, o que você
acha disso? Devo intervir e como? ” E fundamental invocar o Espı́rito e,
sobretudo, estar à disposiçã o para que Ele nos inspire. Muitas vezes, no
mesmo movimento, formulamos as perguntas e respostas de uma
forma que nã o dá ao Espı́rito tempo para manifestar a Sua vontade.
O tempo da correçã o fraterna chegou. Teresa deixou-se encher do
Espı́rito para que Ele inspirasse simultaneamente a sua palavra e a
atitude do seu coraçã o. Isso permitiria que a Irmã nã o fosse
quebrantada, mas sim tocada, para que ela mudasse de atitude.
Implorei a Deus que colocasse palavras doces e convincentes em
minha boca, ou melhor, que falasse atravé s de mim. Jesus respondeu
à minha oraçã o; Ele permitiu que o resultado superasse totalmente a
minha expectativa. . . . A pobre irmã zinha, lançando um olhar para
mim, viu imediatamente que eu nã o era mais a mesma; ela sentou-se
ao meu lado, corando, e eu, colocando a cabeça dela no meu coraçã o,
disse a ela com lá grimas na minha voz tudo o que eu pensava sobre
ela , mas eu iz isso com expressõ es tã o ternas e demonstrei por ela
tanto carinho que muito em breve ela as lá grimas misturaram-se à s
minhas. Ela reconheceu com grande humildade que o que eu estava
dizendo era verdade e prometeu começar uma nova vida, pedindo-
me como um favor sempre que ela conhecesse seus defeitos. 168
A caridade fraterna, na escola de pensamento de Teresa, é a
descoberta de um misté rio muito grande e um verdadeiro dom de amar
todos os dias. Em vez de tentar amar por meio de uma luta pelo poder
dirigida a outra pessoa, a si mesmo e a Deus, permitimos que o pró prio
movimento do amor retome seu curso normal. Consentimos ser pobres
de amor para nos deixarmos encher pelo amor de Deus, que nos
precede, e para que Ele ame o nosso pró ximo por nó s e conosco.
156 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito C, 12r, em História de uma Alma , 220.
157 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 5, 4 de junho, em Últimas Conversas , 57.
158 Sã o Tomá s de Aquino, Summa Theologica II-II, q. 23, art. 2, ad.1.
159 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito C, 11v, História de uma Alma , 219.
160 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito C, 12v, História de uma Alma , 221.
161 Ibid.
162 Ibid.
163 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 18, 4 de agosto, em Últimas Conversas , 153.
164 “Nã o se esqueçam que é mais cô modo (embora seja um equı́voco) evitar o sofrimento a

qualquer custo, com a desculpa de nã o querer machucar os outros. Essa inibiçã o muitas vezes
esconde uma fuga vergonhosa de nossa parte do sofrimento, uma vez que geralmente nã o é
agradá vel corrigir algué m em um assunto sé rio. Meus ilhos, lembrem-se de que o Inferno está
cheio de bocas fechadas. ” José maria Escrivá , Friends of God (Nova York: Scepter, 2017), n. 161
165 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito C, 20v, em Story of a Soul , 235-236.
166 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito C, 20v-21r, em História de uma Alma , 236.
167 Ibid.
168 Santa Teresa de Lisieux, História de uma Alma , Manuscrito C, 21r – v, em História de uma

Alma , 236.

11

Experimentando o abandono nas preocupaçõ es com


nossos entes queridos
Preocupar-se com aqueles que amamos - ilhos, cô njuges, pais e
paroquianos - é completamente normal. Isso revela um amor
atencioso. Mas se nos atrevermos a olhar mais de perto, é bem possı́vel
que um pouco de amor controlador e uma certa di iculdade em abrir
mã o de nossos entes queridos para con iá -los a Deus se escondam por
trá s dessas legı́timas preocupaçõ es.
Seria lamentá vel privar-nos desta missã o da verdade com a desculpa
de que teremos de aprender a amar - “alargar o terreno da nossa tenda”
(ver Is 54: 2).
Ouçamos as palavras de Thé rè se, que sã o muito libertadoras para
todos aqueles que se preocupam com os seus entes queridos. Nos
ú ltimos meses de vida, Thé rè se relatou algumas memó rias de salã o
com sua irmã :
Quando a irmã Geneviè ve costumava vir me visitar, eu nã o conseguia
dizer tudo o que queria em meia hora. Entã o, durante a semana,
sempre que eu tivesse um pensamento ou sentisse muito por ter
esquecido de dizer algo a ela, pedia a Deus que a izesse saber e
entender o que eu estava pensando, e na pró xima visita ela falaria
comigo exatamente sobre o que pedi a Deus que a informasse.
No inı́cio, quando ela sofria muito e eu nã o conseguia consolá -la,
saı́a da visita com o coraçã o pesado, mas logo percebi que nã o era eu
quem consolava ningué m; e entã o eu nã o estava mais preocupado
quando ela foi embora muito triste. Implorei a Deus para suprir
minha fraqueza e senti que ele me respondeu. Eu veria isso na
pró xima visita. Desde aquela é poca, sempre que involuntariamente
causava problemas a algué m, implorava a Deus que o reparasse, e
entã o nã o me atormentava mais com o assunto.169
Sem pressa
Quando ela estava preocupada por ter esquecido algo para dizer à irmã
Geneviè ve, Thé rè se nã o se apressou e tentou resolver o problema
imediatamente: “Eu pediria a Deus que deixasse [a irmã Geneviè ve]
saber e entender o que eu estava pensando.” Assim que surge uma
di iculdade na vida de nossos entes queridos, nã o sabemos como
recuar. Imediatamente, apreendemos apressadamente o celular para
tentar resolver o problema. E realmente ascé tico refrear essa reaçã o
apressada de querer resolver tudo por nó s mesmos e
imediatamente. Vamos nos dar um pouco de espaço!
Consentindo com uma Certa Incapacidade de Amar
Uma segunda vez, Thé rè se consentiu em sua impotê ncia em acalmar
coraçõ es perturbados - mesmo os das pessoas que ela amava: “No
inı́cio, quando ela estava de luto e eu nã o podia consolá -la, fui embora,
sentindo pena, mas logo entendi que Nã o era eu que conseguia consolar
algué m; e entã o, eu nã o estava mais chateado quando ela estava muito
triste quando estava saindo. ” As vezes sonhamos em ser um Sã o
Bernardo irresistı́vel, capaz de consolar todos os que sofrem. Isso nã o
revela uma pequena onipotê ncia que se esconde por trá s de uma
generosidade tã o bela e amorosa?
Deixando nossos entes queridos nas mãos do pai
Agora chegamos ao pró prio abandono: “Implorei a Deus que suprisse
minha fraqueza e senti que Ele me respondeu. Eu veria isso na pró xima
visita. Desde aquela é poca, sempre que eu involuntariamente causava
problemas a algué m, eu implorava a Deus para repará -lo, e entã o eu
nã o me atormentava mais com o assunto. ” Isso é uma falta de
preocupaçã o com os limites do nosso amor humano? Nã o, é caridade
em estado puro! Ousar icar parado para nã o sufocar quem nos é
querido. Ousar deixar a outra pessoa ser ela mesma, mesmo que ela
deva, como resultado, icar presa em buracos.170 Ousar acreditar que
Deus pode reparar nossos erros,171 se esta for a Sua intençã o. Ousar
acreditar que Deus sabe melhor do que nó s o que é bom para nossos
ilhos. Por im, ousar deixar nossos entes queridos nas mã os de Deus. A
propó sito, seria mais exato dizer que se trata de colocá -los novamente
nas mã os do Pai e pedir a Deus que continue trabalhando em suas
vidas. Embora desejando fazer o bem, à s vezes entramos no caminho
de Deus e no caminho de nossos entes queridos.
Nã o é desnecessá rio sugerir à s pessoas que se preocupam facilmente
que aprendam a dar seus entes queridos ao bom Deus? "Mas, pai, você
nã o pode entender!" Essa entrega de nossos entes queridos a Deus
realmente exige um certo desapego, que, a princı́pio, parece muito
difı́cil. Mas difı́cil nã o signi ica impossı́vel. Podemos tentar, por um
tempo limitado, tanto quanto possı́vel, nã o aumentar a ansiedade das
pessoas, mas oferecer-lhes um caminho pacı́ ico.
Penso em uma mã e que chegou a um retiro espiritual atormentada
pela ansiedade sobre sua ilha que foi hospitalizada por
depressã o. Depois que sua ilha foi cuidada, foi sugerido à mã e que ela
tentasse “libertá -la” apenas por uma semana e con iá -la à sua Mã e
celestial, a Santı́ssima Virgem Maria. No inal do retiro, esta mã e
testemunhou: “Surpreendentemente, senti muita paz. Vi que era capaz,
por um tempo, de desistir de minha obsessã o por minha ilha e colocá -
la nas mã os de Maria. Sei muito bem que depois de voltar desta semana
de retiro, as preocupaçõ es vã o voltar, mas essa vitó ria vai contar. Eu vi
que, com a ajuda do cé u, eu poderia chegar lá . Tentarei novamente!"
E um ato de fé que Thé rè se nos oferece - um ato espiritual, mas que
está fadado a transbordar para a pessoa e para a vida real. Um autor
tinha essa bela fó rmula para descrever a experiê ncia da fé . E "a
idelidade de Deus, a consciê ncia de estar em Suas mã os e a disposiçã o
de icar lá !" Poderı́amos adaptar estas palavras como um guia para
nossos entes queridos: “Nó s nos damos o direito de chorar por nossos
ilhos quando eles estã o sofrendo. Mas acreditamos na lealdade de
Deus para com eles. Eles nã o podem cair mais baixo do que as mã os do
Pai, que os segura. Queremos viver nesta con iança! ”
169 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 13 de julho, 9, em Últimas Conversas , 93.
170 A atitude a ter nã o é , obviamente, a mesma se uma criança tiver idade su iciente para ser

educada ou se a criança em questã o for con inada ou casada e pai de famı́lia.


171 Isso nã o nos impediria, quando chegasse a hora, de pedir perdã o à pessoa que magoamos.

12

Experimentando Abandono no Trabalho


Mencionamos que em março de 1896, Teresa de Lisieux foi nomeada
assistente da mestra das noviças, Madre Maria de Gonzaga. Sentia-se
perdida diante desta tarefa imensa e traiçoeira, que consistia em
trabalhar com cinco noviças, entre as quais a muito tı́mida Irmã Marie-
Madeleine. Mã eMaria de Gonzaga, que tinha muito ciú me de sua
autoridade, à s vezes contrariava as decisõ es do jovem diretor. Aqui está
o ensinamento de Thé rè se, que é perturbador para uma mente racional,
mas tã o calmante para o pequeno que ousa ter con iança:
Percebi imediatamente que a tarefa estava alé m de minhas forças. Eu
me joguei nos braços de Deus quando era criança e, escondendo meu
rosto em Seus cabelos, disse: “Senhor, sou muito pequeno para
alimentar Teus ilhos; se queres dar por meu intermé dio o que
convé m a cada um, enche a minha mã ozinha e sem deixar os teus
braços nem virar a cabeça, darei os teus tesouros à alma que vier
pedir alimento. Se ela o encontrar de acordo com seu gosto, saberei
que nã o é a mim, mas a Você que ela o deve; pelo contrá rio, se ela
reclamar e achar amargo o que eu apresento, minha paz nã o será
perturbada, e tentarei convencê -la de que esse alimento vem de Ti e
tome muito cuidado para nã o procurar outro para ela ”.
Mã e, desde o momento em que compreendi que era impossı́vel para
mim fazer nada sozinha, a tarefa que me impuseste já nã o me parecia
difı́cil. Senti que a ú nica coisa necessá ria era me unir cada vez mais a
Jesus e que “ todas as coisas também serão dadas a você ”.172
Estas con idê ncias de Thé rè se sã o muito bené icas para quem aspira a
uma mudança profunda na forma de vivenciar o seu trabalho, seja na
empresa ou em casa. Mas para que essa experiê ncia de abandono seja
realmente rica, precisamos esclarecer algumas coisas.
Em primeiro lugar, se o abandono dá frutos deliciosos, permanece o
fato de que a con iança excessiva nã o será necessariamente su iciente
para assumir qualquer responsabilidade. Um padre ciente de suas
limitaçõ es con idenciou com humor: “Se eu fosse chamado para ser
papa, nã o haveria problema! Eu poderia passar o primeiro dia, mas no
dia seguinte, outro teria que ser eleito porque o anterior teve um
ataque cardı́aco! ” Recordemos sempre que a graça aperfeiçoa a nossa
natureza humana, mas nã o pode mudá -la completamente, segundo o
bom princı́pio de Santo Tomá s de Aquino.
Esse abandono no meio do trabalho nã o é uma abdicaçã o? E uma
mentira que a nossa mente fechada e ferida tenta nos impor:
“Entregar-se a Deus, ah, vamos! Ele nã o é realmente aquele que vai
trabalhar no meu lugar! ” A graça divina nã o opera ao lado ou contra
nossa açã o, mas muito dentro dela.173 Entregar-se no trabalho nã o é
icar parado com os pé s para cima enquanto espera que tudo caia em
nosso colo. Trata-se de trabalhar, atender o telefone, resolver disputas,
cuidar de um doente, consertar um carro, plantar, se preparar para uma
aula, e assim por diante, estando à disposiçã o do Espı́rito e entregando
os problemas a Ele enquanto espera serenamente em Sua luz. Nã o
estamos sendo arrogantes em nos considerarmos muito pro issionais
em nosso trabalho, mas o autê ntico abandono se tornará possı́vel
quando ousarmos pensar que o Espı́rito també m é bastante
“pro issional” e que Ele quer e pode nos agraciar com suas
competê ncias! Para isso, devemos viver Nele e ser pobres, ao mesmo
tempo que acolhemos as suas inspiraçõ es no meio do nosso trabalho:
“Senhor, enche a minha mã ozinha e, sem deixar os Teus braços nem
virar a cabeça, darei à pessoa Teus tesouros quem virá me pedir sua
comida. ” Que revoluçã o mental é mudar para tal disposiçã o de
coraçã o!
Muitos patrõ es me revelaram que as di iculdades inanceiras e
estruturais de suas empresas os obrigaram a uma mudança profunda
em seu funcionamento. Eles ousaram assumir um abandono Thé rè sian
no meio de sua responsabilidade. Dessa forma, eles se tornaram
serenos e mais receptivos, o que é um grande trunfo humano em uma
crise. Isso aumentou sua ousadia em olhar para novos mercados e
mé todos. Quando, ao nos entregarmos, estamos convencidos de que
nã o estamos trabalhando sozinhos: uma força interior se expande em
nó s. Esses chefes viram até impasses inanceiros ou té cnicos se abrirem
a tal ponto que os surpreendeu como pro issionais.
Você vai me dizer que é bastante fá cil! Eu concordo totalmente, se for
sobre “usar” o abandono para nossas intençõ es demasiadamente
humanas. Esses chefes de empresa nã o disseram: “Eu me entrego a
Deus. Portanto, seria melhor que aconteça como eu decidir! ” Nã o,
ousaram dizer: “Senhor, decidi trabalhar contigo, de agora em diante, e
seja feita a tua vontade. Eu con io em Você , aconteça o que acontecer
com a empresa! ” Este é um abandono autê ntico. E tã o espontâ neo e
fá cil assim?
Ao contrá rio, esse abandono no meio do trabalho nã o é um trabalho
adicional? “Pai, é muito gentil da sua parte sugerir o abandono, mas já
tenho muito trabalho. Eu realmente nã o vou adicionar mais com
oraçõ es em cima disso! ” Eu entendo perfeitamente essa reaçã o se o
abandono for interpretado como uma tarefa extra que consiste em
oraçõ es alé m do trabalho. Nã o, o abandono a Deus no trabalho
pro issional nã o é uma “coisa” adicional, mas “algo diferente” que
trans igura a atitude do coraçã o. Esta arte de viver nã o se adquire sem
ascetismo. Devemos restringir nossa tendê ncia espontâ nea de pressa e
devemos estar dispostos a permanecer ligados à vontade de Deus e
consentir com uma certa pobreza interior: “Devem exilar-se de sua
tarefa pessoal, usar conscienciosamente o tempo que é prescrito, mas
com um distanciamento de seu coraçã o. Eu li no passado que os
israelitas construı́ram os muros de Jerusalé m, trabalhando com uma
mã o e segurando uma espada com a outra. Esta é muito mais a imagem
do que devemos fazer.174 Se nos jogarmos na á gua, descobriremos
muito rapidamente que o abandono nã o é uma fonte de novas tensõ es
porque essa atitude profundamente receptiva nos ajuda a
“relaxar”. Nossas relaçõ es de labuta e trabalho serã o mais agradá veis.
O abandono que Thé rè se assumiu perante a tarefa que a ultrapassou
enquadra-se muito bem na dinâ mica de con iança que se desenvolveu
na segunda parte deste trabalho. Primeiro, ela consentiu em sua
impotê ncia: “Percebi imediatamente que a tarefa estava alé m de
minhas forças. Eu me joguei nos braços de Deus quando criança e,
escondendo meu rosto em Seu cabelo. . . ”; ela entã o teve a ousadia de
considerar sua impotê ncia uma oportunidade que a compelia a ter
con iança: “Eu disse a Ele: Senhor, sou muito pequena para alimentar
Teus ilhos”. Por im, ela continuou a receber esta graça para melhor
dispensá -la à s suas noviças, como uma fonte que recebe á gua para
difundi-la mais longe do que ela. “Se queres que lhes dê o que convé m a
cada um deles, enche a minha mã ozinha e, sem deixar Teus braços nem
virar a cabeça, darei Teus tesouros a quem vier pedir-me a sua
comida.” Caro leitor, na pró xima segunda-feira, assim que você começar
a trabalhar, nã o hesite em colocar o Espı́rito para trabalhar - e você com
Ele, é claro!
172 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito C, 22r-v, em Story of a Soul , 238.
173 Sã o Tomá s, em seu Comentário sobre o Evangelho segundo São João , cap. 14, versı́culo 12,

declara que: “Deus age em nó s, mas nã o age sem nó s. . . . O que é feito por Deus em mim
també m é feito por mim mesmo. ”
174 Santa Teresinha de Lisieux, Conselhos e Reminiscências , 74.

13

Experimentando Abandono em Sofrimento


Agora chegamos à realidade que mais violentamente atrapalha o
desejo do homem de viver, ser feliz e amar - isto é , sofrer. O grande
psicanalista Viktor Frankl, que desenvolveu sua terapia no horror dos
campos de concentraçã o, disse: “Dostoievski a irmava que o ser
humano se acostuma com tudo. Se hoje me pedissem a minha opiniã o,
responderia da seguinte forma: Sim, o ser humano pode habituar-se a
tudo, mas nã o me pergunte como. ” E se nossas perguntas sobre como
triunfar em tempos de sofrimento pudessem encontrar elementos de
resposta no pequeno caminho do abandono? O terapeuta continuou: “O
homem, é claro, inventou as câ maras de gá s em Auschwitz, mas
també m é quem entrou nelas, com a cabeça erguida e uma oraçã o nos
lá bios”.175
O que não é o abandono na cruz
Abandono é freqü entemente confundido com abdicaçã o diante dos
perigos da vida. Consentir em sofrer nã o é o mesmo que
consentir em sofrer. O verdadeiro abandono faz tudo o que pode para
lutar contra o sofrimento e a injustiça, mas o coraçã o continuará a se
apegar à santa vontade de Deus nesta luta, em vez de evitá -la. Em 14 de
agosto, algumas semanas antes da morte de Thé rè se, a irmã Agnè s
disse a Thé rè se: “Você teve muitos problemas hoje”. Ela respondeu:
“Sim, mas como eu amo isso. . . Eu amo tudo o que Deus me dá . ”176
Quando Thé rè se se atreveu a cantar “Por você , meu Divino Pequeno
Irmã o, ico feliz em sofrer, minha ú nica alegria na terra é poder te
agradar”,177 nã o nos surpreende que certo tipo de psicaná lise diga que
essa linguagem é masoquista. Os santos nã o sã o masoquistas, mas
especialistas em humanidade. Eles nã o tê m prazer em sofrer, mas
gostam de descansar no coraçã o de Deus em seu sofrimento, o que nã o
é a mesma coisa! Eles estã o tã o imersos no amor que seu pró prio
sofrimento, de certa forma, se torna um amor muito intenso. “Parece-
me agora que nada me poderia impedir de fugir, pois já nã o tenho
grandes desejos, exceto o de amar a ponto de morrer de amor.”178 Para
compreender mais facilmente essa alegria misteriosa no meio da cruz,
é necessá rio evitar pensar na experiê ncia religiosa como uma
neurose. També m precisamos descobrir que Deus é uma pessoa real e
nã o uma simples projeçã o da mente. Por im, devemos contemplar
Deus como o Amor in inito, capaz de trans igurar o sofrimento humano
com a força de sua Ressurreiçã o. . . . Ao enfrentar esses passos que
precisam ser superados, nã o se ofenda se a mentalidade do mundo
tiver tanta di iculdade em acolher e assimilar a linguagem do amor dos
santos neste ponto delicado.
O sofrimento que é recusado faz sofrer mais
Sabemos por experiê ncia que o sofrimento recusado nos faz sofrer
mais. O sofrimento que é aceito já dó i menos. A espiritualidade do
abandono pode cair nessa perspectiva, ao mesmo tempo que a supera.
Nó s facilmente pensamos que o sofrimento é o ponto principal e o im
de tudo, um pouco como um tumor simples que poderı́amos remover
dos tecidos aos quais está grudado. A dor é uma realidade mais
complexa do que um simples “idiota”. E composto por duas dimensõ es
que se entrelaçam. O elemento objetivo é a dor que está me
afetando. Se, por exemplo, eu for vı́tima de uma vé rtebra quebrada, a
causa isioló gica - a fonte da dor - será visı́vel em uma ressonâ ncia
magné tica. A dimensã o subjetiva se soma a esse elemento objetivo do
sofrimento. O sofrimento que experimento é agravado pelo signi icado
que dou a ele. Uma pessoa experimentará uma doença como intolerá vel
e outra experimentará a mesma doença como um momento
desagradá vel de passar. O ego inevitavelmente colore a dor por meio de
sua sensibilidade, sua capacidade psicoló gica (ou falta dela) de se
distanciar. Quanto mais maturidade espiritual o ego é , mais algué m será
capaz de sentir dor com certo grau de abandono a Deus.
Se for assim, a maneira como vivo minha cruz pode aumentar ou
diminuir meu sofrimento. A rebeliã o endurecerá o coraçã o e tornará a
cruz mais difı́cil. Pelo contrá rio, um certo abandono a Deus permitirá ao
doente identi icar-se menos com o sofrimento, abrir-se mais a uma
Presença e transformar em amor o que parece insensato. Depois de um
ensinamento sobre o abandono em meio ao sofrimento, um mé dico que
trabalhava no alı́vio de pessoas muito enfermas por meio da
musicoterapia reconheceu um paralelo entre seu mé todo - que, claro,
nã o era religioso - e a dinâ mica do abandono teré siano. A pessoa pode
mudar de foco e, assim, liberar seu sofrimento, graças a estar
calmamente atenta à mú sica. O pequenino nã o saberia se reduzir a um
mé todo de relaxamento. Por mais espiritual que seja, ainda incorpora
respostas fı́sicas.
Entrando no Abandono em Meio ao Sofrimento
Nesta delicada categoria de abandono em meio ao sofrimento, só
podemos sugerir pontos de referê ncia. Ao enfrentar a cruz, cada pessoa
terá um caminho que será totalmente pessoal para ela. Muitos terã o a
impressã o de estar separados de todas as perspectivas de abandono
por muito tempo. A rebeliã o, a retirada e a extorsã o podem nos deter
por anos. Será apenas nos ú ltimos anos de suas vidas que certas
pessoas inalmente se renderã o a Deus. Dito isto, descamos alguns
degraus com Thé rè se, que nos leva ao abandono no meio da cruz.
O tempo de familiarização
Fomos criados pelo bom Deus nã o para sofrer, mas para ser
felizes. Portanto, é um sinal de boa saú de mental e espiritual sentir
repulsa pelo sofrimento: “O Mã e, é muito fá cil escrever coisas bonitas
sobre o sofrimento, mas escrever nã o é nada, nada! E preciso sofrer
para saber! ”179 Acrescentemos també m que o sofrimento nunca anda
sozinho, mas sempre acompanhado por uma procissã o de a liçõ es com
muitos rostos. Jean Guitton disse muito corretamente: “Quando
estamos dentro, pensamos negativamente”.
A cruz cria uma tal perturbaçã o que faz perder as energias habituais,
deixando entrar a tristeza: “Soframos a dor amarga, sem
coragem! . . . . (Jesus sofreu em tristeza ! Sem tristeza a alma sofreria! ...)
E ainda assim gostarı́amos de sofrer generosamente,
grandiosamente! Cé line, doce eco da minha alma! . . . Se você
conhecesse minha misé ria! . . . . Oh! Se ao menos você soubesse."180
O sofrimento realmente enfraquece a pessoa e leva ao desâ nimo:
“Como é fá cil icar desanimado quando estamos muito
doentes!” 181 Este é um desâ nimo que pode levar à tentaçã o do
desespero: “O diabo está ao meu redor; Eu nã o o vejo, mas o sinto. Ele
está me atormentando; ele está me segurando com mã o de ferro para
me impedir de sentir o menor alı́vio; ele está aumentando minhas
dores para me desesperar. E eu nã o posso mais orar!182 Pessoas
particularmente desesperadas poderã o encontrar em Thé rè se uma
verdadeira irmã , porque ela pró pria se sentiu tentada a desistir: “Ah! Se
eu nã o tivesse fé , nunca teria suportado tanto sofrimento. Estou
surpreso que mais ateus nã o se matem! ”183
Finalmente, Thé rè se nos avisou que em uma situaçã o normal,
podemos achar muito fá cil nos rendermos, mas nas provaçõ es que nos
oprimem, o abandono muitas vezes está presente també m! Quando
temos a impressã o de que tudo está desmoronando ao nosso redor,
precisamos nos entregar a Deus em vez de desistir: “Irmã s pequenas,
rezem pelos pobres enfermos que estã o morrendo. Se você soubesse o
que acontece! Quã o pouco é preciso perder a paciê ncia! Você deve ser
gentil com todos eles, sem exceçã o. Eu nã o teria acreditado nisso antes.
”184
Vai demorar um pouco para controlar nosso sofrimento. A maneira
como as pessoas falam de suas angú stias mostra onde estã o no
processo de assimilaçã o: “Uma dor que ica na garganta”; “Fica na
minha barriga”; “Eu tenho um verdadeiro nó no estô mago” transmite
um pouco de distâ ncia ainda a percorrer. Nã o podemos causar um
curto-circuito nas passagens inevitá veis de abandono no
sofrimento. Esse processo acabará por trazer alguma esperança e
serenidade.185
A hora da união
Quando permito que meu olhar seja tocado pelo de Cristo. Perseverar na
cruz só é possı́vel se permitirmos que ela se mova atravé s de nó s com
mais força do que a pró pria falta de sentido do sofrimento. Viktor
Frankl icou impressionado ao observar que aqueles que nã o se
deixaram morrer no inferno dos campos de concentraçã o eram aqueles
que tinham um amor que os esperava ou uma fé que os sustentava:
“Trê s caminhos principais podem nos revelar o sentido da vida . O
primeiro consiste em realizar um trabalho ou uma boa açã o. O segundo
consiste em conhecer ou amar algo ou algué m. O terceiro consiste em
enfrentar de forma digna o sofrimento inevitá vel ”.186 Quando o
sofrimento se torna um obstá culo, especialmente “quando sentimos o
im”, nã o seremos mais capazes de encontrar signi icado em nosso
mundo normal. Só um signi icado poderoso, que vem nã o deste mundo,
mas de cima, será capaz de dar sentido ao que já nã o tem sentido no
nı́vel humano. Assim, Cristo deixará de ser conceito e será vivido como
Pessoa, presença, consolo e força.187
Para que Cristo trans igure meu sofrimento, terei que passar da
“provocaçã o” do mal à “vocaçã o” do mal. Tendo feito de tudo para lutar
contra o mal, chegará o tempo em que pararei de dizer: “Por que, Deus,
por que eu, por que agora?” a im de entrar na uniã o de amor com
Cristo188 - na vocaçã o de amar. Em nosso sofrimento, o Ressuscitado
nã o nos oferece uma explicaçã o que poderı́amos entender com um
pouco de teologia. A compreensã o do sofrimento é um “co-
nascimento”, no sentido mais forte da palavra - literalmente “nascer
com” Cristo e nos entregarmos, como Ele, em amor nas mã os do Pai. A
uniã o de amor em Cristo será a chave mais poderosa para liberar esse
sofrimento intratá vel. Os ú ltimos meses da vida de Teresa foram uma
verdadeira paixã o e, no entanto, parecia cheia de alegria, alegria que
vinha da sua uniã o com Jesus: “Nã o ique triste por me ver doente,
pequena Mã e, porque vê s quã o feliz Deus me faz. Estou sempre alegre e
contente. ”189 Em uma de suas ú ltimas cartas, ela con idenciou: “Eu nã o
icaria tã o alegre como estou se Deus nã o me mostrasse que a ú nica
alegria na terra é cumprir Sua vontade.190
Um pequeno exercício para quem sofre com coração de “pequenino”! O
abandono a Deus é acessı́vel apenas aos “pequeninos” que consentem
em sua pobreza nas adversidades. Só é possı́vel para os coraçõ es que
concordam entrar nele “humildemente”, ou seja, passo a passo, pois, a
cada momento, tudo parece precisar ser refeito. Nos dias em que a cruz
está mais pesada, aqui está um exercı́cio que provavelmente parecerá
muito simples - simples o su iciente até para as crianças
entenderem. Se você agora está sobrecarregado de angú stia, um
problema ou sofrimento, e se preocupa ainda mais simplesmente
pensando no amanhã , tente esta tarefa.
Pare, sente-se sozinho em uma cadeira ou na cama. Ou deite-se se nã o
conseguir se sentar.
Por apenas um momento, no momento presente, pare de se proteger
contra seu sofrimento e sua ansiedade. Projetar-se alé m do momento
presente representaria o risco de perder o â nimo e interromper o
exercı́cio.191 Em meio à sua terrı́vel doença, Thé rè se de Lisieux fez este
comentá rio muito preciso: “Só estou sofrendo por um instante. E
porque pensamos no passado e no futuro que icamos desanimados e
entramos em desespero. ”192
O importante é colocar-se agora na presença do Senhor Jesus, que está
intimamente presente a você e ao seu sofrimento. Por um puro ato de
fé , sem tentar sentir nada e sem tentar compreender, lenta e
amorosamente pronuncie um grande sim na direçã o de Jesus - apenas
para o momento presente.193 Acima de tudo, nã o tente fazer-se maior
ou mais forte do que o seu sofrimento, como se você pudesse dominá -
la. Isso levaria a um obstá culo. Em vez disso, tente ser pequeno indo
“por baixo” do seu sofrimento e mantendo os olhos ixos em
Jesus. “Nã o te peço, neste momento, que ixe o seu pensamento nEle e
que se dê conta da sua situaçã o, em vez de abraçar a forma de se
abandonar ao caminho em que está . Eu só peço que você faça uma
coisa - olhar para ele. O que está impedindo você de olhar para o nosso
Senhor com sua alma, mesmo que apenas por um momento, se você
nã o pode fazer mais nada?194
Nã o preste atençã o a essa vozinha interior que tenta persuadi-lo: “De
qualquer forma, este exercı́cio nã o adianta nada. Nã o pode acabar com
o seu sofrimento magicamente! " Dê a si mesmo uma oportunidade
real de praticar este exercı́cio e saborear seus frutos. Ao ousar se jogar
na á gua, você icará realmente surpreso por ter suportado um
momento sem que a di iculdade o oprima. “Podemos agü entar muito
de um momento para o outro!”195 O Dr. Vittoz foi na mesma direçã o:
“Nã o há nada que seja absolutamente insuportá vel no momento
presente!”
Se você praticou este exercı́cio com seriedade e calma, você acaba de
ganhar sua primeira vitó ria! Se sua con iança ainda estiver lá , reinicie o
exercı́cio na pró xima vez até que a sequê ncia de momentos se
transforme em minutos. Tenha cuidado para nã o deixar a presença de
Cristo, em quem você experimenta este abandono. Se você praticar
este exercı́cio com fé , sem icar obcecado com o seu bem-estar, mas em
um abandono amoroso e livre, isso o ajudará a icar mais
tranquilo. Teresa ensinou, resumindo as palavras de Joã o da Cruz, que
“encontramos alegria quando nã o a procuramos mais. Ao nos
rendermos a Cristo, experimentamos uma maneira de contornar nosso
sofrimento, que o torna menos cortante. Assim, Cristo ocupa mais
espaço, e o sofrimento se distancia a ponto de diminuir, de certa forma:
“Aproveitemos o nosso momento de sofrimento! . . . Vamos ver apenas
cada momento! . . . Um momento é um tesouro. . . . Um ato de amor nos
fará conhecer melhor a Jesus. . . . Isso nos aproximará Dele durante toda
a eternidade !196
Acima de tudo, nã o pretendemos con igurar este exercı́cio de
abandono no momento como um processo má gico. E mais parecido
com uma dinâ mica de "atos anagó gicos"197 que sã o ensinados por Joã o
da Cruz. E ainda menos uma questã o de nos considerarmos inú teis se
nã o o compreendermos ou se nã o o alcançarmos. Ao explicar esse
exercı́cio à s crianças, nossa intençã o é simplesmente nã o privar as
pessoas que sofrem de um tesouro que pode ajudá -las a atravessar um
perı́odo doloroso. Essa espiritualidade do momento presente foi, em
todo caso, um sucesso para a doente Thé rè se. Ela agora o sugere como
um mé dico de almas cansadas e ansiosas.
O tempo de abandono
Quando o perigo estiver presente, aninhe-se humildemente no coração
de Jesus! Em setembro de 1897, pouco antes de morrer, Thé rè se
con idenciou sua tá tica em caso de sofrimento: “Temo ter temido a
morte, mas nã o terei medo depois que ela acontecer; Tenho certeza
disso! . . . E a minha primeira experiê ncia disso, mas me abandono a
Deus. ”198 Podemos considerar essa atitude uma fuga ou falta de
coragem. E, pelo contrá rio, a postura mais realista que pode haver na
luta. Quando estivermos frá geis e fracos diante do perigo, sejamos
humildes o su iciente para nos jogar nos braços do Forte! Teresa
adotará a mesma estraté gia durante as terrı́veis tentaçõ es contra a fé
no inal de sua vida: “Acredito que iz mais atos de fé no ano passado do
que em toda a minha vida. A cada nova ocasiã o de combate, quando
meus inimigos me provocam, conduzo-me com bravura. Sabendo que é
covarde entrar em duelo, dou as costas aos meus adversá rios sem me
dignar a olhá -los de frente; mas eu corro em direçã o ao meu Jesus ”.199
Abandono, fonte de paz. A pessoa consente em se entregar sem exigir
que entenda tudo o que lhe acontece ou chantagear a Deus: “Deus quer
que eu me abandone como uma criancinha que nã o se perturba com o
que os outros lhe farã o”.200 A entrega de si mesmo será acompanhada
por uma certa paz que dominará a pessoa inteira.
Tentemos falar mais sobre este fruto do abandono. Essa paz tem, antes
de tudo, uma dimensã o humana. Nã o nos esqueçamos de que, quando
recusamos a realidade, ela esgota nossa energia e nos esgota. Ao
contrá rio, o desapego e a aceitaçã o da realidade trazem um
relaxamento profundo, quase restaurador. Alé m disso, se esse
abandono é realmente espiritual, Deus dará a Sua paz a quem se
abandona. Esta paz é um dom do Espı́rito: “Deixo-vos a paz; minha paz
eu dou a você ; nã o dou a ti o que o mundo dá ”(Joã o 14:27).
Para evitar sofrimentos e ilusõ es inú teis, é bom evitar a seguinte
armadilha. Se já experimentamos uma certa paz por meio de um ato de
abandono, quando experimentamos outra di iculdade, podemos ter
este pensamento: “Uma vez me entreguei e experimentei muita
paz. Entã o, eu repito a mesma té cnica e será o mesmo jackpot! ” A paz
espiritual é um puro presente de Deus, nunca algo que devemos e que
automaticamente cai de uma má quina de venda automá tica. Deus quer
que provemos Sua paz. Ele deseja ainda mais ver-nos amar com um
amor sacri icial que nã o busca seus pró prios interesses. E assim que,
em certos momentos dolorosos, podemos muito bem nos render, e os
sentimentos de paz que já experimentamos nã o estarã o mais
presentes. Deus pode permitir que iquemos sem forças e sem consolo
para que “sintamos, dentro de nó s, que nã o cabe a nó s suscitar ou
preservar uma grande devoçã o.201 Teresa sabe que a paz vivida no
meio da cruz é um puro dom do alto. O abandono, portanto, nunca
poderá ser reduzido a uma té cnica psicoló gica. E fruto de uma aliança
de amor entre Deus e a alma: “Ah, como é impossı́vel dar-se tais
sentimentos! E o Espı́rito Santo que os dá , Ele que 'respira onde
quer'. ”202
Cristo entrega-se mais para aquele que se rende. Apó s esta aná lise dos
nı́veis de paz que estã o ligados ao processo de abandono, vamos tentar
explicar por que Cristo parece dar mais de Sua paz a uma pessoa o
sofrimento que se entrega sem hesitar em Suas mã os. Primeiro de tudo,
Deus é um Pai que está atento aos Seus ilhos, especialmente quando as
feridas que sofrem lhes: “The L disse: 'Eu vi a a liçã o de meu povo
que está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa dos seus opressores
; Eu sei que os seus sofrimentos e desci para o livrar da mã o dos
egı́pcios”(Ex. 3: 7-8). Por outro lado, o sofrimento é tã o puri icaçã o que
leva a pessoa em mais de um abandono total. Dor provoca um espaço
vazio tal que estimula o apetite para o Espı́rito Consoler. O coraçã o se
torna alargada. Desta forma, o Ressuscitado, descobrindo mais espaço
em algué m que se rende, mais intimamente derrama Sua vida, força,
paz, e alegria para ele: “Nó s sempre estã o sendo entregues à morte por
causa de Jesus, para que a vida de Jesus se manifeste em nossa carne
mortal”(2 Cor. 4:11).
Na esterilidade, a alegria da fecundidade. Como acabamos de ver, a
uniã o do amor em Cristo explica, em grande medida, o derramamento
da paz na pessoa que sofre. Quando este ú ltimo se entregar mais, o
Espı́rito revelará outro motivo para a trans iguraçã o de Sua Cruz, que é
o sofrimento redentor. E como se Jesus dissesse à alma sofredora: “Foi
pelo fracasso vivido no amor que dei à luz o mundo. Foi pela morte que
dei vida. Foi pelo abandono que me tornei um Dom. A você s que sofrem
neste momento e tê m a impressã o de que nã o prestam para nada,
venho anunciar que podem ser um instrumento fecundo para os outros
se, como eu, se entregar ao meu Pai por amor. Você quer?" Nã o é
extraordiná rio saber que, em nossa fraqueza, ainda podemos ser ú teis
para alguma coisa? Que no sofrimento esté ril, ainda podemos ser
fecundos? Que deitados e sem forças, podemos nos tornar uma
verdadeira “alavanca” para o mundo?
Um estudioso disse: “ Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e eu
levantarei o mundo. O que Arquimedes nã o conseguiu obter porque o
seu pedido nã o foi dirigido por Deus e foi feito apenas do ponto de
vista material, os santos obtiveram em toda a sua plenitude. O Todo-
Poderoso deu-lhes como fulcro : ELE MESMO SOZINHO ; como
alavanca : ORAÇAO que arde com o fogo do amor. E é assim que
eles levantaram o mundo .203
Jamais esquecerei o rosto deste enfermo que, nas ú ltimas semanas de
sua vida, redescobriu a fé de sua infâ ncia. Um paroquiano sentiu o
desejo de Deus voltar para sua alma enquanto ele estava muito
fraco. Foi assim que se atreveu a dizer esta palavra: “Queres oferecer a
Jesus aquilo que experimentaste como difı́cil nos teus ú ltimos dias para
que os jovens em retiros espirituais tenham o coraçã o tocado pelo
Senhor?” A resposta nã o tardou a chegar: “Ah, quero muito, mas vai ser
muito mesquinha. Eu me sinto tã o mal que nã o consigo nem orar! ” Sua
famı́lia imediata icou abalada com o que aconteceu assim que ele
concordou com isso. Eles observaram paciê ncia e paz nele, junto com a
alegria de ser ú til para algo e para Algué m! Como seria lamentá vel
privar as pessoas que sofrem de tal perspectiva, com a desculpa de que
seria absurdo falar sobre "sofrimento redentor".
Nos ú ltimos meses de sua vida, Thé rè se estava completamente
exausta e, mesmo assim, Irmã Maria do Sagrado Coraçã o a encontrou
caminhando dolorosamente e gentilmente a castigou por isso. Thé rè se
respondeu dizendo: “E verdade, mas você sabe o que me dá força? Bem,
estou caminhando para um missioná rio. Acho que ali, muito longe, um
deles talvez esteja exausto de seus esforços apostó licos e, para
diminuir seu cansaço, ofereço o meu a Deus ”.204
E esta convicçã o de participar misteriosamente do nascimento de
almas e pecadores por Cristo que reavivou a coragem de Thé rè se na
noite da fé durante os ú ltimos meses de sua vida: “Que todos aqueles
que nã o foram iluminados pela chama da fé um dia a vejam brilhar . O
Jesus! se for necessá rio que a mesa por eles suja seja puri icada por
uma alma que Te ama, entã o desejo comer este pã o da prova ”.205
A graça especí ica do abandono em Maria. Citemos, para concluir, um
ú ltimo aspecto de abandono no meio da cruz, que era tã o importante na
vida de Teresa. Sob o manto de Maria, a cruz será mais fá cil de
transportar. Recordamos “estranha doença”, de Teresa uma mistura
complexa de trauma psicoló gico, puri icaçã o passiva, e uma in luê ncia
demonı́aca. Foi por meio sorriso de Maria que Thé rè se deixou aquela
terrı́vel atrá s de ansiedade. Em 13 de maio de 1883, Thé rè se era dez
anos e meio de idade:
Sem encontrar ajuda na terra, a pobre pequena Thé rè se també m se
voltou para a Mã e do cé u e rezou de todo o coraçã o para que ela
tivesse pena dela. De repente, a Santı́ssima Virgem
apareceu linda para mim, entã o bonita , que nunca tinha visto nada
tã o atraente; seu rosto estava impregnado de uma benevolê ncia e
ternura inefá veis, mas o que penetrou nas profundezas da minha
alma foi o “ sorriso arrebatador da Santíssima Virgem ”. Naquele
instante, toda a minha dor desapareceu e duas grandes lá grimas
brilharam em meus cı́lios e escorreram silenciosamente pelo meu
rosto, mas eram lá grimas de alegria sem mistura.206
A missã o de Maria nã o é nos dar uma ternura que Deus nã o tem, mas
simplesmente manifestá -la. Atravé s de um puro dom do alto, a
Santı́ssima Virgem Maria oferece esta graça de nos levar ao abandono
com uma ternura que é muito caracterı́stica de uma mã e “dando à luz
suavemente”.207 Feliz, caro leitor, se seguir os passos de Teresa para
acolher este “Segredo de Maria” no meio das suas di iculdades! “Se
alguma perturbaçã o ou constrangimento me toma conta, eu me dirijo
rapidamente a ela e como a mais terna das mã es ela sempre cuida dos
meus interesses.”208
175 Viktor E. Frankl, citado em “Encountering God,” Feu et lumière (2007): 11.
176 Santa Teresa de Lisieux, Caderno Amarelo , 14 de agosto, 1, em Últimas Conversas , 148.
177 Santa Teresa de Lisieux, poema 45: 6.
178 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito C, 7v, em História de uma Alma , 214.
179 Santa Teresa de Lisieux, Caderno Amarelo , 25 de setembro, 2, em Últimas Conversas , 199–

200.
180 Carta 89 para Cé line, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 1: 557.
181 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 4 de agosto, 4, em Últimas Conversas , 132.
182 Ultimas Conversas com Cé line, 16 de agosto, em Últimas Conversas , 224.
183 Irmã Maria da Trindade, Procès de béati ication et canonization , 2791.
184 Santa Teresa de Lisieux, Caderno Amarelo , 3, 4 de agosto, em Últimas Conversas , 130.
185 “Muitas vezes leva tempo, mesmo muito tempo, para que essa resposta comece a ser

percebida interiormente. Pois Cristo nã o responde diretamente e nã o responde de forma
abstrata a esse questionamento humano sobre o signi icado do sofrimento. O homem ouve a
resposta salvadora de Cristo à medida que ele pró prio se torna gradualmente um participante
dos sofrimentos de Cristo. ” Joã o Paulo II, Carta Apostó lica sobre o Signi icado Cristã o do
Sofrimento Salvi ici Doloris (11 de fevereiro de 1984), n. 26
186 Viktor E. Frankl, citado em “Encountering God”, 11.
187 “Cristo, o Adã o inal, pela revelaçã o do misté rio do Pai e do seu amor, revela plenamente o

homem ao pró prio homem e torna clara a sua vocaçã o suprema. . . . Por meio de Cristo e em
Cristo, os enigmas da tristeza e da morte tornam-se signi icativos. A parte do Seu Evangelho,
eles nos oprimem. ” Concı́lio Vaticano II, Gaudium et Spes no. 22
188 “Cristo nos faz entrar no misté rio e descobrir o 'porquê ' do sofrimento, na medida em que

somos capazes de compreender a sublimidade do amor divino.” Joã o Paulo II, Salvi ici Doloris ,
n. 13
189 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 5, 2 de julho, em Últimas Conversas , 74.
190 Carta 255 para o Sr. e a Sra. Gué rin, em Letters of St. Thérèse of Lisieux , 2: 1146.
191 “Os piores sofrimentos do homem sã o aqueles que ele teme.” “Todas as vezes, quando eu

estava pronto para enfrentá -los, as provaçõ es se transformaram em belos.” Etty Hillesum, Une
vie bouleversée: Journal (1941–1943) (An Uninterrupted Life: The Diaries [1941–1943])
(Paris: Editions du Seuil, 1985), 199, 230.
192 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 5 de julho, 2, em Últimas Conversas , 155.
193 “O momento presente é o lugar de encontro da alma com Deus. . . o ponto de contato com a

vontade divina. Independentemente de sua forma e conteú do, é , por sua pró pria natureza, a
expressã o da vontade de Deus para nó s. Neste preciso minuto, Deus quer que realizemos uma
açã o que muitas vezes nã o será nem extraordiná ria nem grandiosa, mas mundana e
minú scula. Seu ú nico valor será que é a vontade de Deus. Mas, para ser preciso, essa vontade
nã o é su iciente? O momento presente transmite nã o apenas a vontade divina, mas també m a
presença de Deus. Se, neste momento, o Senhor nos pede que estejamos em tal e tal lugar ou
realizemos tal e tal açã o, é porque Ele nos espera ali. Neste preciso momento, o encontramos e,
se o buscarmos em outro lugar, sentiremos sua falta ”.Padre Victor Sion, Pour un réalisme
spirituel, L'instant present (O momento presente para um realismo espiritual) (Editions des
Bé atitudes, 1989), 15-16.
194 Santa Teresa de Avila, Caminho da Perfeição , cap. 28
195 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 14 de junho, em Últimas Conversas , 64.
196 Carta 89, em Cartas de Santa Teresinha de Lisieux , 1: 558.
197 “Um ato anagó gico ou onda de amor, elevando o nosso coraçã o à uniã o divina. Graças a esta

onda, a pessoa escapa do vı́cio e da tentaçã o, apresenta-se a Deus e se une a ele. Desta forma, o
inimigo ica frustrado em sua espera e nã o encontra mais ningué m para atacar. Na verdade,
aquele que manté m seu coraçã o centrado no amor de Deus e nã o nas lutas e tentaçõ es do dia a
dia, nã o é um alvo fá cil para a tentaçã o. ” Sã o Joã o da Cruz, Conselhos de Espiritualidade , n. 5,
in Oeuvres complètes , 235. Ver també m Padre Marie-Eugè ne do Menino Jesus, Je veux voir
Dieu , 112-114.
198 Santa Teresa de Lisieux, Caderno Amarelo , 11, 4 de setembro, em Últimas Conversas , 188.
199 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito C, 7r, em História da Alma , 213.
200 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 15, 1º de junho, em Últimas Conversas , 65.
201 Santo Iná cio de Loyola, Exercícios Espirituais , n. 322: 3.
202 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 12, 3 de agosto, em Últimas Conversas , 147.
203 Santa Teresinha de Lisieux, Manuscrito C, 36r-v, em Story of a Soul , 258.
204 As ú ltimas palavras coletadas pela Irmã Maria do Sagrado Coraçã o, maio de 1897,

em Últimas conversas , 262.


205 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito C., 6r, em História de uma Alma , 212.
206 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito A, 30r, em História de uma Alma , 65-66.
207 Ibid.
208 “Nã o é que quem encontrou Maria atravé s de uma verdadeira devoçã o esteja isento da Cruz

e do sofrimento - longe disso. Ele é mais atacado do que ningué m porque Maria, sendo a Mã e
dos vivos, dá pedaços da Arvore da Vida, que é a Cruz de Jesus, a todos os seus ilhos. Mas é
esculpindo boas cruzes para eles que ela lhes dá a graça de carregá -las com paciê ncia e até com
alegria, de modo que a cruz que ela dá à queles que pertencem a ela sejam conservas ou cruzes
doces em vez de amargas ”. Sã o Luı́s Maria Grignion de Montfort, O Segredo de Maria , par. 11

Conclusã o
Concluindo, é difı́cil usar a fó rmula usual “no inal desta jornada”, pois
devemos começar esta jornada agora! Na verdade, com Thé rè se, só
conseguimos estabelecer alguns pontos de referê ncia. Cabe agora a
cada um de nó s trilhar este caminho de con iança. E claro que muitos
nã o esperaram por este livro para experimentar o pequeno
caminho. Mas talvez nos tenha permitido organizar verbalmente o que
já foi vivido ou reavivar o desejo de um dom a Deus mais completo.
O tempo que tem sido experimentado na escola do pensamento de
Thé rè se tem sido a ocasiã o para recolher alguns ensinamentos muito
preciosos para o nosso vidas humanas e espirituais. Dois pontos
particulares chamam nossa atençã o. Eles iluminam dois aspectos
fundamentais da vida espiritual. O abandono é realmente no coraçã o da
aliança de amor entre Deus ea pessoa. Por outro lado, uma ligaçã o
ı́ntima une abandono e uma luta espiritual.
O abandono está no cerne da aliança
O abandono pode, é claro, ser considerado do ponto de vista da pessoa
que o vivencia. Nesse caso, tentaremos descrever a maneira como uma
pessoa desenvolve essa “dinâ mica de con iança”. Mas o abandono nã o
se reduz à atitude pessoal, pois conduz imediatamente ao seio de uma
relaçã o de aliança entre Deus e uma pessoa. Quando uma pessoa se
entrega a Deus, Deus, por sua vez, se entrega a essa pessoa: “Parece-me
que se Você encontrasse almas se oferecendo como vı́timas do
holocausto ao Seu Amor, Você as consumiria rapidamente; també m me
parece que icaria feliz em nã o conter as ondas de in inita ternura
dentro de você . ”209 O abandono realmente inicia uma vida
compartilhada! Nã o é simplesmente a pessoa que se entrega ao
Amado. E també m o Esposo Divino que se entrega à Sua criatura pelo
poder da Sua misericó rdia e providê ncia ativa. E por isso que me
pareceu indispensá vel mencionar a obra de Deus para realçar a
fecundidade e a força do abandono a Deus: “Quanta força conté m o
dom de si. Este desejo nã o pode deixar de atrair o Todo-Poderoso para
ser um com a nossa humildade. ”210
Abandono e o combate espiritual
As vezes, tendemos a opor o abandono ao combate espiritual. No
entanto, descobrimos vá rias vezes que o verdadeiro abandono nã o é
distinto do combate espiritual, mas que eles estã o misteriosamente
entrelaçados um no outro.
O abandono já é um combate espiritual. O abandono autê ntico precisa
usar as mesmas armas da virtude que fundamentam o combate
espiritual. Em certos momentos, devemos lutar muito para nos
entregarmos a Deus, porque nossa tendê ncia é construir-nos
sozinhos. Durante as tempestades e provaçõ es internas de nossa vida,
temos que continuar dominando nosso abandono. Por outro lado, a
puri icaçã o de nossa vontade e seu ajuste à de Deus sã o uma vitó ria que
nã o será obtida sem luta e sem entrega. Realmente existe uma luta
espiritual no abandono!
O abandono é o cenário para o combate espiritual. Nã o existe apenas
uma relaçã o entre o abandono con iante e o combate espiritual, mas
existe uma verdadeira sinergia entre eles. Se a vida cristã se reduzisse a
negar a si mesmo, sem abandono e sem a graça e misericó rdia de Deus,
provavelmente acabarı́amos nos tornando rı́gidos ou presos ao
dever. També m podemos nos tornar independentes de Deus. No inal,
nossa vida cristã se tornaria virtuosa sem Deus! Pelo contrá rio, se a
vida cristã se tornasse passiva, acabaria como um pedaço deQueijo
camembert tã o maduro que nem a casca aguenta mais. Ser passivo sem
Deus ofereceria tã o pouca estrutura que o cristianismo se espalharia e
entraria em colapso como o queijo excessivamente maduro. Portanto, o
combate e o abandono sã o os dois pulmõ es que fazem respirar uma
verdadeira vida cristã - nã o um lado ao lado do outro, mas um dentro
do outro. Até me parece que o combate espiritual deve ser “inserido” no
abandono, como uma aliança dentro de sua caixa.
O abandono, que é basicamente o acolhimento da graça de Deus,
estará sempre em primeiro lugar, em relaçã o à nossa resposta e luta. E
Deus quem sempre dá o primeiro passo em nossa direçã o: “Portanto,
nã o depende da vontade nem do esforço do homem, mas da
misericó rdia de Deus” (Rm 9:16).
Acrescentemos que o acolhimento da graça divina será sempre “igual”
da luta espiritual, pois o ú ltimo ato virtuoso tem sua origem em Deus e
nã o apenas na açã o do homem: “O mé rito nã o consiste em fazer ou dar
muito, mas antes, em receber, em amar muito. ”211
Finalmente, consentir com a misericó rdia de Deus sempre
transbordará em uma batalha espiritual. Se por acaso cairmos e
falharmos em nossa luta, nossa luta espiritual será para voltar a nos
render à misericó rdia: “No entardecer desta vida, aparecerei diante de
Ti com as mã os vazias. . . . Toda a nossa justiça está manchada em seus
olhos. Desejo, entã o, estar revestido de Sua pró pria Justiça e receber de
Seu Amor a eterna possessã o de Si mesmo . ”212
A mensagem de Thé rè se é uma graça imensa para nos ajudar a
redescobrir a conexã o exata entre açã o e açã o e entre combate e
abandono. Na vida de acordo com o Espı́rito, o recebimento da graça
sempre será o primeiro. O combate sempre será o segundo sem, no
entanto, nunca ser secundá rio. E tã o cansativo viver para trá s. E
renovador e grati icante inalmente viver com o lado certo para cima
novamente. Quando a vida sobrenatural redescobre seu movimento
natural de receber graça para melhor nos darmos em troca,
relaxamos. Aqueles que estã o ansiosos e tensos icam em paz e
realizados.
No dia em que faleceu, 30 de setembro de 1897, Thé rè se deixou
escapar estas palavras: “Nã o me arrependo de me entregar ao
Amor”.213 Se desejamos sinceramente tomar emprestado, seguindo seu
exemplo, o pequeno caminho da con iança, tenhamos certeza de que
també m nã o nos arrependeremos de nos entregarmos à Santı́ssima
Trindade! Deus entrega sua pró pria felicidade à quele que entrega sua
vida diá ria. Nã o seremos mais os mesmos. Nossa vida nunca mais será
a mesma: “Minha vida nã o tem sido amarga, porque eu soube
transformar toda amargura em algo alegre e doce”.214 Será o inı́cio da
vida real!
209 Santa Teresa de Lisieux, Manuscrito A, 84r, em História de uma Alma , 181.
210 Santa Teresa de Avila, Caminho da Perfeição , cap. 34
211 Carta 142 para Cé line, em Letters of St. Thérèse of Lisieux , 2: 794-795.
212 Santa Teresinha de Lisieux, Oraçã o nº 6, Ato de Oblaçã o ao Amor Misericordioso,

em História de uma Alma , 277.


213 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 10, 1 de setembro, em Últimas Conversas ,

205.
214 Santa Teresinha de Lisieux, Caderno Amarelo , 30 de julho, 9, em Últimas Conversas , 119.

Ato de oblaçã o ao amor misericordioso


JMJT
Oferecendo-me como uma vítima do holocausto ao amor misericordioso
de Deus
Oh meu Deus! Santı́ssima Trindade, desejo amar- te e fazer-te amado ,
para trabalhar pela gló ria da Santa Igreja salvando almas na terra e
libertando os que sofrem no purgató rio. Desejo cumprir a tua vontade
perfeitamente e alcançar o grau de gló ria que preparaste para mim no
teu reino. Desejo, em suma, ser santo, mas sinto o meu desamparo e
rogo-te, ó meu Deus! para ser você mesmo minha santidade!
Já que Você me amou tanto a ponto de me dar Seu ú nico Filho como
meu Salvador e minha Esposa, os in initos tesouros de Seus mé ritos sã o
meus. Ofereço-os com alegria, implorando que olhe para mim apenas
no rosto de Jesus e em seu coraçã o ardente de amor .
Eu ofereço a Ti, també m, todos os mé ritos dos santos (no cé u e na
terra), seus atos de Amor e os dos santos anjos. Finalmente, eu te
ofereço, ó Santíssima Trindade ! o Amor e os mé ritos da Santíssima
Virgem, minha querida Mãe . E a ela que abandono minha oferta,
implorando-lhe que a apresente a Você . Seu Divino Filho,
minha Amada Esposa, disse-nos nos dias de Sua vida mortal: “ Tudo o
que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo concederá ”. Estou certo,
entã o, de que concederá meus desejos; Eu sei, ó meu Deus! que quanto
mais você quer dar, mais você nos faz desejar . Sinto no meu coraçã o
desejos imensos e é com con iança que te peço que venha e tome posse
da minha alma. Ah! Nã o posso receber a Sagrada Comunhã o com a
freqü ê ncia que desejo, mas, Senhor, Você nã o é todo-
poderoso ? Permanece em mim como em um taberná culo e nunca te
separas de tua pequena vı́tima.
Quero consolar-te pela ingratidã o dos ı́mpios e imploro que me retire
a liberdade de te desagradar. Se por fraqueza à s vezes caio, que
Seu Divino Olhar limpe minha alma imediatamente, consumindo todas
as minhas imperfeiçõ es como o fogo que transforma tudo em si mesmo.
Agradeço-te, ó meu Deus! por todas as graças que me concedeu,
especialmente a graça de me fazer passar pelo cadinho do sofrimento. E
com alegria que Te contemplarei no Ultimo Dia carregando o cetro da
Tua Cruz. Visto que se dignou a me dar uma parte nesta cruz muito
preciosa, espero no cé u me assemelhar a Você e ver brilhar em meu
corpo glori icado os sagrados estigmas de sua paixã o.
Apó s o exı́lio na terra, espero ir e desfrutar de Ti na pá tria, mas nã o
quero acumular mé ritos para o cé u. Quero trabalhar somente para o
Teu Amor, com o ú nico propó sito de agradar a Ti, consolar Teu Sagrado
Coraçã o e salvar almas que Te amarã o eternamente.
Na noite desta vida, aparecerei diante de Ti com as mã os vazias, pois
nã o Te peço, Senhor, para contar minhas obras. Toda a nossa justiça
está manchada em seus olhos. Desejo, entã o, estar revestido de sua
pró pria Justiça e receber de Seu Amor a eterna possessã o de Si
mesmo . Nã o quero nenhum outro trono , nenhuma outra coroa alé m
de você , meu amado !
O tempo nã o é nada aos seus olhos, e um ú nico dia é como mil
anos. Você pode, entã o, em um instante me preparar para aparecer
diante de você .
Para viver em um ú nico ato de Amor perfeito, OFEREÇO-ME COMO VITIMA DE
HOLOCAUSTO AO SEU AMOR MISERICOPIO , pedindo que me consuma
incessantemente, permitindo que as ondas de in inita
ternura encerradas em Você transbordem em minha alma, e que assim
posso tornar-me um mártir do Teu Amor , ó meu Deus!
Que este martı́rio, depois de me haver preparado para aparecer diante
de Ti, me faça inalmente morrer e que minha alma possa voar sem
demora para o abraço eterno do Teu Amor Misericordioso .
Eu quero, meu Amado , em cada batida do meu coraçã o para renovar
esta oferta a Você um nú mero in inito de vezes, até que as sombras
tendo desaparecido Eu posso ser capaz de dizer do meu amor em
uma face Eterno to Face !
- Marie-Françoise-Thé rè se do Menino Jesus
e da Santa Face,
indigna carmelita religiosa
Este nono dia de junho,
festa da Santı́ssima Trindade,
no ano da graça de 1895.

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