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Índice

1. Ambiente Religioso e Cultural


2. Vida de Sã o Paulo antes e depois de Damasco
3. A “conversã o” de Sã o Paulo
4. O conceito de apostolado de Sã o Paulo
5. Paulo, os Doze e a Igreja pré -paulina
6. O “Conselho” de Jerusalé m e o Incidente em Antioquia
7. A relaçã o com o Jesus histó rico
8. A dimensã o eclesioló gica de Paulo
9. A importâ ncia da cristologia: pré -existê ncia e encarnaçã o
10. A Importâ ncia da Cristologia: A Teologia da Cruz
11. A importâ ncia da cristologia: a determinaçã o da ressurreiçã o
12. Escatologia: A Expectativa da Parusia
13. A Doutrina da Justi icaçã o: Das Obras à Fé
14. A Doutrina da Justi icaçã o: O Ensinamento do Apó stolo sobre Fé e
Obras
15. Ensinamento do Apó stolo sobre a relaçã o entre Adã o e Cristo
16. A Teologia dos Sacramentos
17. Adoraçã o Espiritual
18. Cartas aos Colossenses e Efé sios
19. Epı́stolas Pastorais: Cartas a Timó teo e Tito
20. Vida e Legado de Sã o Paulo
Notas
sã o paulo
PAPA BENTO XVI

são paulo
Audiências Gerais
2 de julho de 2008 a 4 de fevereiro de 2009

IGNATIUS PRESS SAO FRANCISCO


Traduçã o para o inglê s por L'Osservatore Romano

Capa:
A Conversão de São Paulo (detalhe)
de Caravaggio (Michelangelo Merisi da) (1573-1610)
S. Maria del Popolo, Roma, Itá l ia
© Scala / Art Resource, Nova York

Imagem do brasã o papal de www.AgnusImages.com

Design da capa por Roxanne Mei Lum

© 2009 por Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano


Todos os direitos reservados ISBN 978-1-58617-367-8
Nú mero de Controle da Biblioteca do Congresso 2009923840
Impresso nos Estados Unidos da Amé rica
CONTEÚDO

1. Ambiente Religioso e Cultural


2. Vida de Sã o Paulo antes e depois de Damasco
3. A “conversã o” de Sã o Paulo
4. O conceito de apostolado de Sã o Paulo
5. Paulo, os Doze e a Igreja pré -paulina
6. O “Conselho” de Jerusalé m e o Incidente em Antioquia
7. A relaçã o com o Jesus histó rico
8. A dimensã o eclesioló gica de Paulo
9. A importâ ncia da cristologia: pré -existê ncia e encarnaçã o
10. A Importâ ncia da Cristologia: A Teologia da Cruz
11. A importâ ncia da cristologia: a determinaçã o da ressurreiçã o
12. Escatologia: A Expectativa da Parusia
13. A Doutrina da Justi icaçã o: Das Obras à Fé
14. A Doutrina da Justi icaçã o: O Ensinamento do Apó stolo sobre Fé e
Obras
15. Ensinamento do Apó stolo sobre a relaçã o entre Adã o e Cristo
16. A Teologia dos Sacramentos
17. Adoraçã o Espiritual
18. Cartas aos Colossenses e Efé sios
19. Epı́stolas Pastorais: Cartas a Timó teo e Tito
20. Vida e Legado de Sã o Paulo
Notas
1

Ambiente Religioso e Cultural *

Hoje gostaria de iniciar um novo ciclo de Catequeses centrado no


grande Apó stolo Sã o Paulo. Como sabem, este ano é -lhe dedicado,
desde a festa litú rgica de Sã o Pedro e Sã o Paulo, a 29 de Junho de 2008,
até à mesma festa de 2009. O Apó stolo Paulo, igura notá vel e quase
inimitá vel, mas estimulante, está diante de nó s como exemplo de total
dedicaçã o ao Senhor e à sua Igreja, assim como de grande abertura à
humanidade e à s suas culturas. E justo, portanto, reservar-lhe um lugar
especial nã o só na nossa veneraçã o, mas també m no nosso esforço de
compreender o que ele tem a dizer també m a nó s, cristã os de hoje.
Neste primeiro encontro, façamos uma pausa para considerar o
ambiente em que Sã o Paulo viveu e trabalhou. Um tema como esse
parece nos levar para longe de nosso tempo, já que devemos nos
identi icar com o mundo de dois mil anos atrá s. No entanto, isso é
apenas aparentemente e, em todo caso, apenas parcialmente
verdadeiro, pois podemos ver que vá rios aspectos do contexto social e
cultural de hoje nã o sã o muito diferentes do que eram entã o.
Um dado primá rio e fundamental a ter em conta é a relaçã o entre o
meio em que Paulo nasceu e cresceu e o contexto global ao qual
pertenceu posteriormente. Ele veio de uma cultura muito precisa e
circunscrita, indiscutivelmente minoritá ria, que é a do povo de Israel e
sua tradiçã o. No mundo antigo e especialmente no Impé rio Romano,
como nos ensinam os estudiosos do assunto, os judeus devem ter
representado cerca de 10% da populaçã o total; mais tarde, aqui em
Roma, em meados do primeiro sé culo, essa porcentagem foi ainda
menor, atingindo no má ximo 3% dos habitantes da cidade. Suas crenças
e modo de vida, como ainda hoje, os distinguiam claramente do
ambiente circundante; e isso poderia ter dois resultados: ou o escá rnio,
que poderia levar à intolerâ ncia, ou a admiraçã o, que se expressava em
vá rias formas de simpatia, como no caso dos “tementes a Deus” ou
“prosé litos”, pagã os que se tornavam membros da sinagoga e que
compartilhavam a fé no Deus de Israel. Como exemplos concretos desta
dupla atitude podemos citar, por um lado, a opiniã o mordaz de um
orador como Cı́cero, que desprezava a sua religiã o e també m a cidade
de Jerusalé m (cf. Pro Flacco 66-69), e, por outro outro, a atitude da
esposa de Nero, Poppea, que é lembrada por Flá vio Josefo como uma
“simpatizante” dos judeus (cf. Antichità giudaiche 20, 195, 252; Vita 16
), sem contar que Jú lio Cé sar já havia reconhecido o icialmente
determinadas direitos dos judeus que foram registrados pelo
historiador judeu acima mencionado, Flá vio Josefo (cf. ibid ., 14, 200-
216). E certo que o nú mero de judeus, como aliá s ainda hoje acontece,
era muito maior fora da terra de Israel, isto é , na Diá spora, do que no
territó rio que outros chamavam de Palestina.
Nã o surpreende, portanto, que o pró prio Paulo tenha sido objeto da
dupla avaliaçã o contraditó ria que mencionei. Uma coisa é certa: o
particularismo da cultura e religiã o judaicas facilmente encontrou
espaço em uma instituiçã o tã o abrangente quanto o Impé rio Romano. A
posiçã o daqueles, judeus ou gentios, que aderiram com fé à Pessoa de
Jesus de Nazaré era mais difı́cil e conturbada na medida em que se
distinguiam tanto do judaı́smo quanto do paganismo predominante. De
qualquer modo, dois fatores estavam a favor de Paulo. A primeira foi a
cultura grega, ou melhor, helenı́stica, que depois de Alexandre Magno se
tornou um patrimô nio comum, pelo menos do Mediterrâ neo oriental e
do Oriente Mé dio, e inclusive absorveu muitos elementos de povos
tradicionalmente considerados bá rbaros. Um escritor da é poca diz a
esse respeito que Alexandre “ordenou que todos considerassem todo o
oecumene como sua pá tria . . . e que uma distinçã o nã o deve mais ser
feita entre grego e bá rbaro” (Plutarco, De Alexandri Magni fortuna aut
virtute 6, 8). O segundo fator foi a estrutura polı́tica e administrativa do
Impé rio Romano, que garantiu a paz e a estabilidade desde a Grã -
Bretanha até o sul do Egito, uni icando um territó rio de dimensõ es até
entã o iné ditas. Foi possı́vel circular com bastante liberdade e segurança
neste espaço, usufruindo, entre outras coisas, de uma extraordiná ria
rede viá ria e encontrando em cada ponto de chegada caracterı́sticas
culturais bá sicas que, sem afectar os valores locais, representavam, no
entanto, um tecido comum de uni icaçã o super partes , tanto que o
iló sofo judeu Fı́lon de Alexandria, contemporâ neo do pró prio Paulo,
elogiou o imperador Augusto por “compor em harmonia todos os povos
selvagens, tornando-se o guardiã o da paz” ( Legatio ad Caium 146-147).
Nã o há dú vida de que a visã o universalista caracterı́stica da
personalidade de Sã o Paulo, pelo menos do Paulo cristã o depois do
acontecimento da estrada de Damasco, deve o seu impacto fundamental
à fé em Jesus Cristo, pois a igura do Ressuscitado já era situado alé m de
qualquer estreiteza particularista. Com efeito, para o Apó stolo «nã o há
judeu nem grego, nã o há escravo nem livre, nã o há homem nem mulher;
porque todos vó s sois um em Cristo Jesus” (Gl 3:28). No entanto,
mesmo a situaçã o histó rica e cultural de seu tempo e meio nã o poderia
deixar de in luenciar suas decisõ es e sua obra. Alguns de iniram Paulo
como “um homem de trê s culturas”, levando em conta sua origem
judaica, sua lı́ngua grega e sua prerrogativa de “ civis romanus ”
[cidadã o romano], como sugere o nome de origem latina.
Particularmente, a iloso ia estó ica dominante no tempo de Paulo, que
in luenciou o cristianismo, mesmo que apenas marginalmente, deve ser
lembrada. A esse respeito, nã o podemos encobrir certos nomes de
iló sofos estó icos, como os de seus fundadores, Zenã o e Cleantes, e
depois os mais pró ximos de Paulo no tempo, como Sê neca, Musô nio e
Epicteto: neles os valores mais elevados da humanidade e da sabedoria
sã o encontrados, que deveriam ser naturalmente absorvidos pelo
cristianismo. Como escreveu esplendidamente um estudioso do
assunto: “O estoicismo . . . anunciou um novo ideal, que impô s ao
homem obrigaçõ es para com seus semelhantes, mas ao mesmo tempo o
libertou de todos os laços fı́sicos e nacionais e fez dele um ser
puramente espiritual” (M. Pohlenz, La Stoa , I, Florença, 2 , 1978, pp.
565f.). Pense-se, por exemplo, na doutrina do universo entendido como
um ú nico grande corpo harmonioso e, conseqü entemente, na doutrina
da igualdade entre todas as pessoas sem distinçõ es sociais, na
equivalê ncia, ao menos em princı́pio, de homens e mulheres, e depois
de o ideal da frugalidade, da justa medida e do autocontrole para evitar
todos os excessos. Quando Paulo escreveu aos ilipenses: “Tudo o que é
verdadeiro, tudo o que é respeitá vel, tudo o que é justo, tudo o que é
puro, tudo o que é amá vel, tudo o que é de graça, se alguma virtude há ,
se algum louvor existe, nisso pensai. ” (Fl 4,8), ele estava apenas
assumindo um conceito puramente humanı́stico pró prio dessa
sabedoria ilosó ica.
No tempo de Sã o Paulo estava ocorrendo uma crise da religiã o
tradicional, pelo menos em seus aspectos mitoló gicos e até civis. Depois
que Lucré cio já havia declarado polemicamente um sé culo antes que “a
religiã o levou a muitos crimes” ( De rerum natura 1, 101 [Sobre a
natureza das coisas]), um iló sofo como Sê neca, indo muito alé m de
qualquer ritualismo externo, ensinou que “ Deus está perto de você ,
está com você , está dentro de você ” ( Epistulae morales a Lucilius 41, 1).
Da mesma forma, quando Paulo se dirige a uma audiê ncia de iló sofos
epicuristas e estó icos no Areó pago de Atenas, ele diz literalmente:
“Deus nã o vive em santuá rios feitos pelo homem. . . porque nele
vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17:24, 28). Ao dizer isso, ele
certamente ecoa a fé judaica em um Deus que nã o pode ser
representado em termos antropomó r icos e até se coloca em um
comprimento de onda religioso que seus ouvintes conheciam bem.
Devemos també m ter em conta o facto de muitos cultos pagã os
dispensarem os templos o iciais da vila e usufruı́rem de locais privados
que favorecem a iniciaçã o dos seus seguidores. Portanto, nã o é
surpreendente que as reuniõ es cristã s ( ekklesiai ), como atestam as
cartas de Paulo, també m ocorressem em casas particulares. Naquela
é poca, aliá s, ainda nã o havia edifı́cios pú blicos. Portanto, as assemblé ias
cristã s devem ter aparecido para os contemporâ neos de Paulo como
uma simples variaçã o de sua prá tica religiosa mais ı́ntima. Mas as
diferenças entre os cultos pagã os e o culto cristã o nã o sã o desprezı́veis
e dizem respeito à consciê ncia da pró pria identidade dos participantes,
bem como à participaçã o em comum de homens e mulheres, à
celebraçã o da “Ceia do Senhor” e à leitura das Escrituras.
Em conclusã o, a partir desta breve visã o geral do contexto cultural do
primeiro sé culo da era cristã , ica claro que é impossı́vel entender Sã o
Paulo adequadamente sem colocá -lo no contexto judaico e pagã o de seu
tempo. Assim, ele cresce em estatura histó rica e espiritual, revelando
pontos em comum e originalidade em relaçã o ao ambiente circundante.
No entanto, isto aplica-se igualmente ao Cristianismo em geral, do qual
precisamente o Apó stolo Paulo é um paradigma da mais alta ordem, do
qual todos nó s, sempre, ainda temos muito que aprender. E este é o
objetivo do Ano Paulino: aprender de Sã o Paulo, aprender a fé ,
aprender Cristo e, inalmente, aprender o caminho da vida reta.
2

Vida de São Paulo antes e depois de Damasco *

Na ú ltima catequese antes das fé rias — há dois meses, no inı́cio de
julho — iniciei uma nova sé rie de temas por ocasiã o do Ano Paulino,
examinando o mundo em que viveu Sã o Paulo. Hoje gostaria de
retomar e continuar a re lexã o sobre o Apó stolo dos Gentios,
apresentando uma breve biogra ia dele. Visto que na pró xima quarta-
feira iremos dedicar ao acontecimento extraordiná rio ocorrido no
caminho de Damasco, a conversã o de Paulo, uma viragem fundamental
na sua vida depois do encontro com Cristo, detenhamo-nos hoje
brevemente no conjunto da sua vida. Encontramos os dados
biográ icos de Paulo respectivamente na Carta a Filemom, na qual ele
diz ser “um velho” (Flm 9: presbíteros ), e nos Atos dos Apó stolos, nos
quais, no momento do apedrejamento de Estê vã o, ele é descrito como
“um jovem” (7:58: neanías ). Ambas as expressõ es sã o obviamente
gené ricas, mas, de acordo com cá lculos antigos, um homem de cerca de
trinta anos era descrito como “jovem”, ao passo que seria chamado de
“velho” quando chegasse aos sessenta anos. A data do nascimento de
Paulo depende em grande parte da data da Carta a Filemom. Supõ e-se
tradicionalmente que ele o tenha escrito durante sua prisã o em Roma
em meados dos anos 60. Paulo teria nascido aproximadamente no ano
8. Ele teria, portanto, cerca de trinta anos na é poca do apedrejamento
de Estê vã o. Esta deveria ser a cronologia correta, e estamos celebrando
o Ano Paulino precisamente de acordo com esta cronologia. O ano de
2008 foi escolhido com uma data de nascimento de cerca do ano 8 em
mente. Em todo caso, Paulo nasceu em Tarso, na Cilı́cia (cf. Atos 22:3).
A cidade era a capital administrativa da regiã o e em 51 aC teve como
Procô nsul nada menos que o pró prio Marco Tú lio Cı́cero, enquanto dez
anos depois, em 41, Tarso foi o local onde Marco Antô nio e Cleó patra se
encontraram pela primeira vez. Judeu da diá spora, falava grego, embora
seu nome fosse de origem latina. Alé m disso, derivou por assonâ ncia
do original judeu Saulo/Saulos, e ele era um cidadã o romano (cf. Atos
22:25-28). Paulo aparece assim na interseçã o de trê s culturas
diferentes – romana, grega e judaica – e talvez por isso, em parte, esteja
disposto a uma fecunda abertura universalista, a uma mediaçã o entre
as culturas, a uma verdadeira universalidade. Ele també m aprendeu um
ofı́cio manual, talvez com seu pai, o de “fabricante de tendas” (Atos
18:3: skenopoios ). Isso provavelmente deve ser entendido como um
trabalhador de lã de cabra nã o cardada ou ibras de linho que as
transformava em esteiras ou tendas (cf. Atos 20:33-35). Por volta da
idade de doze a treze anos, idade em que um menino judeu se torna um
bar mitzvah (“ ilho do mandamento”), Paulo deixou Tarso e mudou-se
para Jerusalé m para ser educado aos pé s do rabino Gamaliel, o Velho,
um sobrinho do grande Rabi Hillel, de acordo com as mais rı́gidas
normas farisaicas e adquirindo grande zelo pela Torá mosaica (cf. Gl
1,14; Fl 3,5-6; At 22,3; 23,6; 26,5).
Com base nessa ortodoxia profunda que aprendeu na escola de Hillel
em Jerusalé m, ele viu o novo movimento que se referia a Jesus de
Nazaré como um risco, uma ameaça à identidade judaica, à verdadeira
ortodoxia dos pais. Isso explica o fato de que ele orgulhosamente
“perseguiu a Igreja de Deus”, como ele admitiria trê s vezes em suas
Cartas (1 Cor 15,9; Gl 1,13; Fl 3,6). Embora nã o seja fá cil imaginar em
que consistiu essa perseguiçã o, sua atitude foi intolerante. E aqui que se
encaixa o evento de Damasco; voltaremos a ela na nossa pró xima
Catequese. E certo que a partir desse momento a vida de Paulo mudou e
ele se tornou um incansá vel Apó stolo do Evangelho. Com efeito, Paulo
passou para a histó ria pelo que fez como cristã o, aliá s como apó stolo, e
nã o como fariseu. Tradicionalmente, a sua actividade apostó lica divide-
se com base nas suas trê s viagens missioná rias, à s quais se acrescenta
uma quarta, a sua viagem a Roma como prisioneiro. Todos eles sã o
relatados por Lucas nos Atos. No que diz respeito à s trê s viagens
missioná rias, poré m, é preciso distinguir a primeira das outras duas.
De fato, Paulo nã o foi diretamente responsá vel pela primeira (cf. At
13-14), que foi con iada ao cipriota Barnabé . Eles navegaram juntos de
Antioquia no rio Orontes, enviados por aquela Igreja (cf. Atos 13:1-3), e,
tendo navegado do porto de Seleucia na costa da Sı́ria, cruzaram a ilha
de Chipre de Salamina a Pafos; daqui chegaram à s costas meridionais
da Anató lia, hoje Turquia, e passaram pelas cidades de Atá lia, Perga na
Panfı́lia, Antioquia na Pisı́dia, Icô nio, Listra e Derbe, de onde
retornaram ao ponto de partida. Assim nasceu a Igreja do povo, a Igreja
dos gentios. E entretanto, sobretudo em Jerusalé m, tinha-se instaurado
um debate que durou até que, para participarem verdadeiramente nas
promessas dos profetas e entrarem efectivamente na herança de Israel,
estes cristã os vindos do paganismo foram obrigados a aderir à vida e
leis de Israel (vá rias observâ ncias e prescriçõ es que separavam Israel
do resto do mundo). Para resolver este problema fundamental para o
nascimento da Igreja futura, o chamado Concı́lio dos Apó stolos reuniu-
se em Jerusalé m para encontrar uma soluçã o, da qual dependia o
nascimento efetivo de uma Igreja universal. E foi decidido que a
observâ ncia da Lei Mosaica nã o deveria ser imposta aos pagã os
convertidos (cf. Atos 15:6-30): isto é , eles nã o deveriam ser obrigados
pelas regras do judaı́smo; a ú nica coisa necessá ria era pertencer a
Cristo, viver com Cristo e cumprir suas palavras. Assim, ao pertencerem
a Cristo, pertenciam també m a Abraã o e a Deus e eram participantes de
todas as promessas. Apó s este evento decisivo, Paulo separou-se de
Barnabé , escolheu Silas e iniciou sua segunda viagem missioná ria (At
15,36-18,22). Tendo ido alé m da Sı́ria e da Cilı́cia, viu novamente a
cidade de Listra, onde se juntou a ele Timó teo (uma igura muito
importante na Igreja nascente, ilho de uma judia e de uma pagã ), a
quem havia circuncidado; ele cruzou a Anató lia Central e chegou à
cidade de Troas, na costa norte do Mar Egeu. E aqui aconteceu outro
acontecimento importante: em sonho viu um macedô nio do outro lado
do mar, ou seja, da Europa, que dizia: “Venha nos ajudar!” Era a Europa
do futuro que pedia a luz e a ajuda do Evangelho. No ı́mpeto dessa
visã o, ele partiu para a Macedô nia e assim entrou na Europa. Tendo
desembarcado em Neá polis, chegou a Filipos, onde fundou uma bela
comunidade. Ele entã o viajou para Tessalô nica. Tendo deixado este
lugar por causa dos problemas que os judeus criaram para ele, ele
passou por Beré ia para Atenas. Nesta capital da cultura grega antiga,
pregou a pagã os e gregos, primeiro na Agora e depois no Areó pago. E o
discurso do Areó pago, mencionado nos Atos dos Apó stolos, é o modelo
de como traduzir o Evangelho na cultura grega, de como fazer entender
aos gregos que esse Deus dos cristã os e judeus nã o era um Deus
estranho à sua cultura mas o Deus desconhecido que eles esperavam, a
verdadeira resposta para as questõ es mais profundas de sua cultura.
Entã o, de Atenas chegou a Corinto, onde permaneceu por um ano e
meio. E aqui temos um evento cronologicamente muito con iá vel. E a
data mais idedigna de toda a sua biogra ia porque, durante esta
primeira estada em Corinto, foi obrigado a comparecer perante o
governador da provı́ncia senatorial da Acaia, o procô nsul Gá lio, que o
acusou de culto ilegı́timo. Em Corinto existe uma inscriçã o antiga,
encontrada em Delfos, que menciona este Gá lio e aquela é poca. Diz que
Gá lio foi procô nsul em Corinto entre os anos 51 e 53. Assim temos uma
data absolutamente certa. Paulo permaneceu em Corinto naqueles
anos. Podemos, portanto, supor que ele chegou lá por volta do ano 50 e
permaneceu até 52. Entã o, de Corinto, passando por Cencré ia, o porto
no lado oriental da cidade, ele partiu para a Palestina e chegou a
Cesaré ia Marı́tima. Daqui ele navegou para Jerusalé m, antes de retornar
a Antioquia no Orontes.
A terceira viagem missioná ria (cf. At 18,23-21,16) começou, como
todas as suas viagens, em Antioquia, que se tornou o nú cleo originá rio
da Igreja dos gentios, da missã o aos gentios, e foi també m o lugar onde
o termo “cristã o” foi cunhado. Foi aqui, diz-nos Sã o Lucas, que os
seguidores de Jesus foram chamados pela primeira vez de “cristã os”. De
Antioquia, Paulo partiu para Efeso, capital da Provı́ncia da Asia, onde
permaneceu dois anos, exercendo um ministé rio cujos efeitos frutı́feros
se izeram sentir em toda a regiã o. Foi de Efeso que Paulo escreveu as
Cartas aos Tessalonicenses e aos Corı́ntios. A populaçã o da cidade,
poré m, foi colocada contra ele pelos ourives locais, que viram seus
rendimentos diminuir com a reduçã o do nú mero de adoradores de
Artemis (o templo a ela dedicado em Efeso, o Artemysion , era um dos
sete maravilhas do mundo antigo); Paulo foi assim forçado a fugir para
o norte. Ele atravessou a Macedô nia mais uma vez e voltou para a
Gré cia, provavelmente para Corinto, onde permaneceu por trê s meses e
escreveu sua famosa Carta aos Romanos.
A partir daqui, ele refez seus passos: ele voltou pela Macedô nia,
chegando a Trô ade de barco, e entã o, permanecendo muito brevemente
nas ilhas de Mitilene, Quios e Samos, chegou a Mileto, onde fez um
importante discurso aos anciã os da Igreja. de Efeso, traçando o retrato
de um verdadeiro Pastor da Igreja (cf. Act 20). Daqui ele partiu para
Tiro, de onde veio para Cesaré ia Marı́tima, em sua viagem de volta a
Jerusalé m. Aqui ele foi preso com base em um mal-entendido. Certos
judeus haviam confundido outros judeus de origem grega com gentios,
que Paulo havia levado ao recinto do templo reservado aos israelitas.
Ele foi poupado da inevitá vel sentença de morte pela intervençã o do
tribuno romano de guarda na á rea do templo (cf. At 21,27-36); isso
aconteceu enquanto o procurador imperial na Judé ia era Antô nio Fé lix.
Depois de um perı́odo na prisã o (cuja duraçã o é debatida), e como
Paulo, como cidadã o romano, era apelado de Cé sar (naquela é poca,
Nero), o procurador subseqü ente, Pó rcio Festo, o enviou a Roma sob
escolta militar.
A viagem para Roma envolveu escalar as ilhas mediterrâ neas de
Creta e Malta e depois as cidades de Siracusa, Rhegium Calabria e
Puteoli. Os cristã os romanos desceram a Via Apia para encontrá -lo no
Fó rum Appii (cerca de 70 km [43,5 milhas] da capital), e outros foram
até Trê s Tavernas (cerca de 40 km [25 milhas]). Em Roma, ele se
encontrou com os delegados da comunidade judaica, a quem disse que
era “a esperança de Israel” que ele estava preso (Atos 28:20). No
entanto, o relato de Lucas termina com a mençã o de dois anos passados
em Roma sob moderada vigilâ ncia militar. Lucas nã o menciona nem
uma sentença de Cé sar (Nero) nem, menos ainda, a morte do acusado.
As tradiçõ es posteriores falam da sua libertaçã o, que teria sido propı́cia
quer para uma viagem missioná ria a Espanha, quer para um episó dio
posterior no Oriente, nomeadamente em Creta, Efeso e Nicó polis no
Epiro. Ainda a tı́tulo hipoté tico, conjectura-se uma nova detençã o e uma
segunda prisã o em Roma (onde se supõ e que tenha escrito as trê s
chamadas Cartas Pastorais, ou seja, as duas a Timó teo e a Carta a Tito),
com um segundo julgamento isso teria se mostrado desfavorá vel para
ele. No entanto, uma sé rie de razõ es induzem muitos estudiosos de Sã o
Paulo a encerrar sua biogra ia com a narrativa de Lucas nos Atos.
Voltaremos ao seu martı́rio mais adiante no ciclo das nossas
catequeses. Por enquanto, nesta breve lista das viagens de Paulo, basta
notar como ele se dedicou ao anú ncio do Evangelho, nã o poupando
energias, enfrentando uma sé rie de graves provaçõ es, das quais ele nos
deixou uma lista na Segunda Carta aos Corı́ntios (cf. 11:21-28). Alé m
disso, é ele quem escreve: «Faço tudo por causa do Evangelho» (1 Cor 9,
23), exercendo com generosidade sem reservas o que chamou «a
ansiedade pelas Igrejas» (2 Cor 11, 28). Vemos um compromisso que só
se explica por uma alma verdadeiramente fascinada pela luz do
Evangelho, apaixonada por Cristo, uma alma sustentada por uma
convicçã o profunda; é preciso levar a luz de Cristo ao mundo, anunciar
o Evangelho a todos nó s. Isto me parece ser o que nos resta desta breve
revisã o das viagens de Sã o Paulo: ver a sua paixã o pelo Evangelho e
assim compreender a grandeza, a beleza, aliá s, a profunda necessidade
do Evangelho para todos nó s. Rezemos ao Senhor que fez Sã o Paulo ver
a sua luz, que o fez ouvir a sua palavra e comoveu profundamente o seu
coraçã o, para que també m nó s possamos ver a sua luz, para que
també m o nosso coraçã o seja tocado pela sua Palavra e assim també m
nó s possa dar a luz do Evangelho e a verdade de Cristo ao mundo de
hoje, que dela tem sede.
3

A “conversão” de São Paulo *

A Catequese de hoje é dedicada à experiê ncia que Paulo fez a caminho


de Damasco e, portanto, sobre o que se costuma chamar de sua
conversã o. Foi precisamente no caminho de Damasco, no inı́cio dos
anos 30 do primeiro sé culo e depois de um perı́odo de perseguiçã o à
Igreja, que se deu o momento decisivo na vida de Paulo. Muito tem sido
escrito sobre isso e, naturalmente, de diferentes pontos de vista. E certo
que ele chegou a uma virada, sim, uma inversã o de perspectiva. E assim
começou, inesperadamente, a considerar como “perda” e “rejeiçã o”
tudo o que antes constituı́a o seu maior ideal, por assim dizer, a razão
de ser da sua vida (cf. Fl 3,7-8). O que tinha acontecido?
A este respeito, temos dois tipos de fonte. O primeiro tipo, o mais
conhecido, consiste nos relatos que devemos à pena de Lucas, que
relata o evento pelo menos trê s vezes nos Atos dos Apó stolos (cf. 9,1-
19; 22,3-21; 26:4-23). O leitor comum pode ser tentado a se demorar
muito em certos detalhes, como a luz no cé u caindo no chã o, a voz que o
chamou, sua nova condiçã o de cegueira, sua cura como escamas caindo
de seus olhos e o rá pido que ele fez. Mas todos esses detalhes remetem
ao cerne do acontecimento: Cristo ressuscitado aparece como uma luz
brilhante e fala a Saulo, transforma seu pensamento e toda a sua vida. O
esplendor deslumbrante de Cristo Ressuscitado o cega; assim, o que era
sua realidade interior també m é aparente externamente, sua cegueira
para a verdade, para a luz que é Cristo. E entã o o seu “sim” de initivo a
Cristo no Batismo lhe restitui a visã o e o faz ver realmente.
Na Igreja antiga, o Batismo també m era chamado de “iluminaçã o”,
porque este sacramento dá luz; realmente faz ver. Em Paulo, o que é
apontado teologicamente també m se realiza isicamente: curado de sua
cegueira interior, ele vê claramente. Assim, Sã o Paulo foi transformado,
nã o por um pensamento, mas por um acontecimento, pela presença
irresistı́vel do Ressuscitado de quem depois nunca mais poderia
duvidar, tã o poderosa tinha sido a evidê ncia do acontecimento, deste
encontro. Mudou radicalmente a vida de Paulo de uma forma
fundamental; neste sentido, pode-se e deve-se falar de conversã o. Esse
encontro é o centro do relato de Sã o Lucas, para o qual é muito prová vel
que ele tenha usado um relato que pode muito bem ter se originado na
comunidade de Damasco. Isso é sugerido pela cor local, fornecida pela
presença de Ananias e pelos nomes da rua e do dono da casa em que
Paulo morava (Atos 9:11).
O segundo tipo de fonte sobre a conversã o consiste nas pró prias
Cartas de Sã o Paulo. Nunca falou detalhadamente deste acontecimento,
creio porque presumia que todos conheciam o essencial da sua histó ria:
todos sabiam que de perseguidor se transformara em fervoroso
apó stolo de Cristo. E isso nã o aconteceu depois de sua pró pria re lexã o,
mas depois de um evento poderoso, um encontro com o Ressuscitado.
Mesmo sem falar em detalhes, ele fala em vá rias ocasiõ es deste
acontecimento tã o importante, ou seja, que també m ele é testemunha
da Ressurreiçã o de Jesus, cuja revelaçã o recebeu diretamente do
pró prio Jesus, junto com sua missã o apostó lica. O texto mais claro
encontrado está na sua narrativa daquilo que constitui o centro da
histó ria da salvaçã o: a morte e ressurreiçã o de Jesus e as suas apariçõ es
à s testemunhas (cf. 1 Cor 15). Nas palavras da antiga tradiçã o, que
també m ele recebeu da Igreja de Jerusalé m, diz que Jesus morreu na
Cruz, foi sepultado e depois da Ressurreiçã o apareceu ressuscitado
primeiro a Cefas, isto é , Pedro, depois aos Doze, depois a quinhentos
irmã os, a maioria dos quais ainda vivos no tempo de Paulo, depois a
Tiago e depois a todos os apó stolos. E a esse relato transmitido pela
tradiçã o, ele acrescenta: “Por ú ltimo . . . ele apareceu també m a mim” (1
Corı́ntios 15:8). Assim, ele deixa claro que este é o fundamento de seu
apostolado e de sua nova vida. Existem també m outros textos nos quais
aparece a mesma coisa: “Jesus Cristo, nosso Senhor, por quem
recebemos a graça e o apostolado” (cf. Rm 1,4-5); e ainda: “Nã o vi Jesus,
nosso Senhor?” (1 Cor 9,1), palavras com as quais alude a algo que
todos conhecem. E, inalmente, o texto mais conhecido é lido em
Gá latas: “Mas, quando aquele que me separou antes de eu nascer e me
chamou por sua graça, aprouve revelar seu Filho a mim, para que eu
pregasse com ele entre os gentios, nã o consultei carne e sangue, nem
subi a Jerusalé m para os que eram apó stolos antes de mim, mas fui para
a Ará bia; e novamente voltei para Damasco” (1:15-17). Nesta
“autodesculpa” ele enfatiza de initivamente que é uma verdadeira
testemunha do Ressuscitado, que recebeu sua pró pria missã o
diretamente do Ressuscitado.
Vemos assim que as duas fontes, os Atos dos Apó stolos e as Cartas de
Sã o Paulo, convergem e coincidem no ponto fundamental: o
Ressuscitado falou a Paulo, chamou-o ao apostolado e fez dele um
verdadeiro Apó stolo, uma testemunha da Ressurreiçã o, com a tarefa
especı́ ica de anunciar o Evangelho aos gentios, ao mundo greco-
romano. E, ao mesmo tempo, Paulo aprendeu que, apesar da
proximidade de seu relacionamento com o Ressuscitado, ele deve
entrar em comunhã o com a Igreja, ele mesmo deve ser batizado, deve
viver em harmonia com os outros Apó stolos. Só em tal comunhã o com
todos poderia ter sido um verdadeiro apó stolo, como escreveu
explicitamente na Primeira Carta aos Corı́ntios: “Serei eu ou eles, assim
pregamos e vó s crestes” (15,11). O anú ncio do Ressuscitado é um só ,
porque Cristo é um só .
Como pode ser visto, em todas essas passagens, Paulo nunca
interpreta esse momento como um evento de conversã o. Porque?
Existem muitas hipó teses, mas para mim a razã o é muito clara. Esta
viragem da sua vida, esta transformaçã o de todo o seu ser nã o foi fruto
de um processo psicoló gico, de um amadurecimento ou
desenvolvimento intelectual e moral. Pelo contrá rio, veio de fora: foi
fruto, nã o do seu pensamento, mas do seu encontro com Jesus Cristo.
Neste sentido, nã o foi simplesmente uma conversã o, um
desenvolvimento do seu “eu”, mas sim uma morte e uma ressurreiçã o
para o pró prio Paulo. Uma existê ncia morreu e outra, nova, nasceu com
o Cristo Ressuscitado. Nã o há outra maneira de explicar essa renovaçã o
de Paulo. Nenhuma das aná lises psicoló gicas pode esclarecer ou
resolver o problema. Só este acontecimento, este encontro poderoso
com Cristo, é a chave para compreender o que aconteceu: morte e
ressurreiçã o, renovaçã o por Aquele que se manifestou e lhe falou. Neste
sentido mais profundo podemos e devemos falar de conversã o. Este
encontro é uma verdadeira renovaçã o que mudou todos os seus
parâ metros. Agora ele poderia dizer que o que antes era essencial e
fundamental para ele tornou-se “lixo” para ele; nã o era mais “ganho”,
mas perda, porque doravante a ú nica coisa que contava para ele era a
vida em Cristo.
No entanto, nã o devemos pensar que Paulo foi assim fechado em um
evento cego. O contrá rio é verdadeiro, porque Cristo Ressuscitado é a
luz da verdade, a luz do pró prio Deus. Isso expandiu seu coraçã o e o
abriu para todos. Neste momento nã o perdeu tudo o que havia de bom
e verdadeiro na sua vida, na sua herança, mas compreendeu de uma
maneira nova a sabedoria, a verdade, a profundidade da Lei e dos
profetas e de uma maneira nova os fez seus . Ao mesmo tempo, seu
raciocı́nio estava aberto à sabedoria pagã . Aberto a Cristo de todo o
coraçã o, tornou-se capaz de um amplo diá logo com todos, tornou-se
capaz de fazer-se tudo para todos. Assim, ele poderia ser
verdadeiramente o Apó stolo dos gentios.
Voltando agora para nó s mesmos, vamos perguntar o que isso
signi ica para nó s. Signi ica que també m para nó s o cristianismo nã o é
uma nova iloso ia ou uma nova moral. Só somos cristã os se
encontrarmos Cristo. E claro que ele nã o se mostra a nó s dessa maneira
avassaladora e luminosa, como fez a Paulo para torná -lo o apó stolo de
todos os povos. Mas també m nó s podemos encontrar Cristo na leitura
da Sagrada Escritura, na oraçã o, na vida litú rgica da Igreja. Podemos
tocar o Coraçã o de Cristo e senti-lo tocando o nosso. Só nesta relaçã o
pessoal com Cristo, só neste encontro com o Ressuscitado nos
tornamos verdadeiramente cristã os. E assim se abre a nossa razã o, se
abre toda a sabedoria de Cristo, como se abrem todas as riquezas da
verdade.
Por isso, peçamos ao Senhor que nos ilumine, que nos conceda o
encontro com a sua presença no nosso mundo, e assim nos conceda
uma fé viva, um coraçã o aberto e um grande amor por todos, capaz de
renovar o mundo.
4

O conceito de apostolado de São Paulo *

Na quarta-feira passada, falei da grande virada na vida de Sã o Paulo


depois do encontro com Cristo ressuscitado. Jesus entrou em sua vida e
o transformou de perseguidor em apó stolo. Aquele encontro marcou o
inı́cio da sua missã o: Paulo nã o podia continuar a viver como antes;
sentia agora que o Senhor o tinha investido da tarefa de anunciar o seu
Evangelho como Apó stolo. E precisamente desta nova condiçã o de vida,
isto é , de ser apó stolo de Cristo, que gostaria de falar hoje.
Normalmente, de acordo com os Evangelhos, sã o os Doze que
identi icamos com o tı́tulo de “Apó stolos”, desejando assim indicar
aqueles que foram companheiros de Jesus na vida e que ouviram o seu
ensinamento. No entanto, també m Paulo se sentia um verdadeiro
Apó stolo, e ica claro, portanto, que o conceito paulino de “apostolado”
nã o se limitava ao grupo dos Doze. Obviamente, Paulo é capaz de
distinguir marcadamente entre seu pró prio caso e o daqueles “que
foram apó stolos antes” dele (Gl 1:17); ele reconhece que eles tê m um
lugar muito especial na vida da Igreja. No entanto, como todos sabem,
Sã o Paulo se entendia como Apóstolo em sentido estrito. E certo que, no
tempo dos primeiros cristã os, ningué m percorria tantas milhas por
terra e mares como ele, com o ú nico objetivo de anunciar o Evangelho.
Ele tinha, portanto, um conceito de apostolado que ia alé m da
associaçã o exclusiva do termo com o grupo dos Doze, transmitido
principalmente por Sã o Lucas nos Atos (cf. At 1,2.26; 6,2). De fato, na
Primeira Carta aos Corı́ntios, Paulo faz uma clara distinçã o entre “os
Doze” e “todos os apó stolos”, mencionados como dois grupos diferentes
de bene iciá rios das apariçõ es do Ressuscitado (cf. 15,5.7). Nessa
mesma passagem, ele passa a mencionar-se humildemente como o
“menor dos apó stolos”, comparando-se mesmo a “um prematuro” e
declarando-se “incapaz de ser chamado apó stolo, porque persegui a
Igreja de Deus . Mas pela graça de Deus sou o que sou, e sua graça para
comigo nã o foi em vã o. Pelo contrá rio, trabalhei mais do que todos eles,
embora nã o fosse eu, mas a graça de Deus que está comigo” (1 Corı́ntios
15:9-10). A metá fora do aborto expressa extrema humildade; isso
també m pode ser encontrado na Epístola de Santo Inácio de Antioquia
aos Romanos : “Nã o sou digno, sendo o ú ltimo deles e nascido fora do
tempo. Mas obtive misericó rdia para ser algué m, se eu chegar a Deus”
(9, 2). O que o Bispo de Antioquia iria dizer em relaçã o ao seu iminente
martı́rio, prevendo que reverteria a sua condiçã o de indignidade, Sã o
Paulo diz em relaçã o ao seu pró prio compromisso apostó lico: é nisto
que se manifesta a fecundidade da graça de Deus , que sabe exatamente
como transformar um homem malsucedido em um apó stolo
esplê ndido. De perseguidor a fundador de Igrejas: Deus fez isso naquele
que, do ponto de vista evangé lico, poderia ser considerado um
rejeitado!
Portanto, segundo a concepçã o de Sã o Paulo, o que faz dele e de
outros apó stolos? Nas suas Cartas aparecem trê s caracterı́sticas
principais do verdadeiro apó stolo. A primeira é ter “visto a Jesus, nosso
Senhor” (cf. 1 Cor 9,1), ou seja, ter tido um encontro transformador
com Ele. Do mesmo modo, na Carta aos Gá latas (cf. 1, 15-16), Paulo
diria ter sido chamado ou escolhido, quase, pela graça de Deus com a
revelaçã o de seu Filho, em vista de anunciar a Boa Nova aos Gentios.
Em suma, é o Senhor quem nomeia para o apostolado e nã o a pró pria
presunçã o. O apó stolo nã o é feito por si mesmo, mas pelo Senhor;
conseqü entemente o apó stolo precisa se relacionar constantemente
com o Senhor. Nã o é sem razã o que Paulo diz que é “chamado a ser
apó stolo” (Rm 1,1), ou seja, apó stolo, “nã o da parte dos homens, nem
por meios humanos, mas por Jesus Cristo e Deus Pai” (Gal 1:1). Esta é a
primeira caracterı́stica: ter visto o Senhor, ter sido chamado por ele.
A segunda caracterı́stica é “ter sido enviado”. O mesmo termo grego
apostolos signi ica, precisamente, “enviado, despachado”, isto é , como
embaixador e portador de uma mensagem; ele deve, portanto, agir
como acusado e como representante de um remetente. E por isso que
Paulo se de ine como «apó stolo de Cristo Jesus » (1 Cor 1, 1; 2 Cor 1, 1),
ou seja, o seu delegado, colocado totalmente ao seu serviço, até ao
ponto de també m chama a si mesmo de “servo de Cristo Jesus” (Rm
1,1). Mais uma vez, vem à tona a ideia da iniciativa alheia, a iniciativa de
Deus em Jesus Cristo, a quem Paulo está totalmente em dı́vida; mas
uma ê nfase especial é colocada no fato de que Paulo recebeu dele uma
missã o a cumprir em seu nome, tornando absolutamente secundá rio
todo interesse pessoal.
O terceiro requisito é a tarefa de “anunciar o Evangelho”, com a
consequente fundaçã o de Igrejas. Com efeito, o tı́tulo de “apó stolo” nã o
é nem pode ser honorá rio. Envolve concreta e mesmo dramaticamente
toda a vida da pessoa em questã o. Na Primeira Carta aos Corı́ntios,
Paulo exclama: “Nã o sou eu apó stolo? Nã o vi Jesus, nosso Senhor? Você
nã o é minha obra no Senhor?” (9:1). Da mesma forma, na Segunda
Carta aos Corı́ntios, ele diz: “Você s mesmos sã o nossas cartas de
recomendaçã o . . . uma carta de Cristo entregue por nó s, escrita nã o
com tinta, mas com o Espı́rito do Deus vivo” (3:2-3).
Assim, nã o deve surpreender que Crisó stomo fale de “uma alma de
diamante” ( Panegírico 1, 8) e continue dizendo: “assim como o fogo, ao
iluminar diversos materiais, queima cada vez mais forte. . . assim, as
palavras de Paulo atraı́ram para a sua causa todos aqueles com quem
contactou, e aqueles que lhe eram hostis, cativados pelos seus
discursos, tornaram-se o combustı́vel deste fogo espiritual” ( ibid .,
7,11). Isso explica porque Paulo de ine os apó stolos como
“colaboradores” de Deus (1 Cor 3:9; 2 Cor 6:1), cuja graça age neles. Um
elemento tı́pico de um verdadeiro apó stolo, que Sã o Paulo evidencia
com e icá cia, é uma espé cie de identi icaçã o entre Evangelho e
evangelizador, ambos destinados ao mesmo destino. De fato, ningué m
enfatizou tã o bem quanto Paulo que o anú ncio da Cruz de Cristo
aparece como “uma pedra de tropeço. . . e loucura” (1Cor 1,23), à qual
muitos reagem com incompreensã o e rejeiçã o. Isso aconteceu entã o, e
nã o deveria ser uma surpresa que també m aconteça hoje.
Consequentemente, o apó stolo participa deste destino, aparecendo
como “uma pedra de tropeço . . . e loucura”, e Paulo está ciente disso;
esta é a experiê ncia de sua vida. Ele escreve aos corı́ntios, nã o sem uma
veia de ironia: “Pois penso que Deus nos apresentou a nó s, apó stolos,
como ú ltimos de todos, como homens condenados à morte; porque nos
tornamos um espetá culo para o mundo, para os anjos e para os
homens. Nó s somos tolos por causa de Cristo, mas você s sã o sá bios em
Cristo. Nó s somos fracos, mas você é forte. Você é tido em honra, mas
nó s em descré dito. Até o momento temos fome e sede, estamos
malvestidos, esbofeteados e sem lar, e trabalhamos, trabalhando com
nossas pró prias mã os. Quando injuriados, abençoamos; quando
perseguidos, suportamos; quando caluniados, procuramos conciliar;
nó s nos tornamos e somos como o lixo do mundo, a escó ria de todos” (1
Corı́ntios 4:9-13). Este é um auto-retrato da vida apostó lica de Sã o
Paulo: em todo este sofrimento prevalece a alegria de ser arauto da
bê nçã o de Deus e da graça do Evangelho.
Paulo, alé m disso, compartilha com a iloso ia estó ica de seu tempo a
ideia de uma constâ ncia tenaz em todas as di iculdades que surgem;
mas supera a perspectiva meramente humanista ao recordar o
elemento do amor de Deus e de Cristo: “Quem nos separará do amor de
Cristo? Será tribulaçã o, ou angú stia, ou perseguiçã o, ou fome, ou nudez,
ou perigo, ou espada? Como está escrito: ' Por amor de ti estamos sendo
mortos o dia inteiro; somos considerados como ovelhas para o
matadouro. ' Nã o, em todas essas coisas somos mais que vencedores
por meio daquele que nos amou. Pois estou certo de que nem a morte,
nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o
porvir, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem
qualquer outra coisa na criaçã o poderá nos separar do amor de Deus
em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8:35-39). Esta é a certeza, a
profunda alegria que guia o Apó stolo Paulo em todas estas vicissitudes:
nada nos pode separar do amor de Deus, e este amor é o verdadeiro
tesouro da vida humana.
Como se vê , Sã o Paulo se entregou ao Evangelho com toda a sua
existê ncia; poderı́amos dizer vinte e quatro horas por dia! E exerceu o
seu ministé rio com idelidade e alegria, “para por todos os meios salvar
alguns” (1 Cor 9,22). E em relaçã o à Igreja, mesmo sabendo que tinha
com ela uma relaçã o de paternidade (cf. 1 Cor 4, 15), senã o
propriamente de maternidade (cf. Gl 4, 19), assumiu uma atitude de
serviço integral, declarando admiravelmente: “Nã o que tenhamos
domı́nio sobre sua fé ; trabalhamos convosco para a vossa alegria” (2
Corı́ntios 1:24). Esta continua sendo a missã o de todos os apó stolos de
Cristo em todos os tempos: ser seus colaboradores na verdadeira
alegria.
5

Paulo, os Doze e a
Igreja pré-paulina *

Hoje gostaria de falar da relaçã o de Sã o Paulo com os Apó stolos que o
precederam no seguimento de Jesus. Estas relaçõ es foram sempre
marcadas por um profundo respeito e aquela franqueza em Paulo que
brotava da defesa da verdade do Evangelho. Embora tenha sido
praticamente contemporâ neo de Jesus de Nazaré , nunca teve a
oportunidade de conhecê -lo durante sua vida pú blica. Por isso, depois
de ter icado cego no caminho de Damasco, sentiu a necessidade de
consultar os primeiros Discı́pulos do Mestre, aqueles que ele havia
escolhido para levar o Evangelho até os con ins da terra.
Na Carta aos Gá latas, Paulo escreve um importante relato dos
contatos que teve com alguns dos Doze: em primeiro lugar com Pedro,
escolhido como Cefas , termo aramaico que signi ica rocha, sobre o qual
a Igreja estava sendo edi icados (cf. Gl 1,18), com Tiago, «irmã o do
Senhor» (cfr. Gl 1,19), e com Joã o (cfr. Gl 2,9). Paulo nã o hesita em
reconhecê -los como “colunas” da Igreja. Particularmente importante é o
encontro com Cefas (Pedro), em Jerusalé m: Paulo icou com ele quinze
dias para “consultá -lo” (cf. Gl 1,19), ou seja, para conhecer a vida
terrena do Ressuscitado que o havia “agarrado” no caminho de
Damasco e estava transformando radicalmente sua vida; de
perseguidor da Igreja de Deus, tornou-se evangelizador daquela fé no
Messias cruci icado e Filho de Deus, que no passado havia procurado
destruir (cf. Gl 1,23).
Que tipo de informaçã o Paulo reuniu sobre Jesus Cristo durante os
trê s anos que se seguiram ao encontro de Damasco? Na Primeira Carta
aos Corı́ntios podemos notar duas passagens que Paulo aprendeu em
Jerusalé m e que já foram formuladas como elementos centrais da
tradiçã o cristã , uma tradiçã o constitutiva. Paulo os transmitiu
verbalmente, como os havia recebido, com uma fó rmula muito solene:
“Pois eu lhes entreguei como de primeira importâ ncia o que també m
recebi”. Ele insiste, portanto, na idelidade ao que ele mesmo recebeu e
ielmente transmite aos novos cristã os. Estes sã o elementos
constitutivos e dizem respeito à Eucaristia e à Ressurreiçã o; sã o
passagens que já foram formuladas na dé cada de 30. Chegamos assim à
morte de Jesus, à sua sepultura no seio da terra e à sua ressurreiçã o (cf.
1 Cor 15, 3-4). Tomemos as duas passagens: para Paulo, as palavras de
Jesus na Ultima Ceia (cf. 1 Cor 11, 23-25) sã o verdadeiramente o centro
da vida da Igreja: a Igreja é edi icada sobre este centro, tornando-se
assim ela mesma. Alé m deste centro eucarı́stico, no qual a Igreja
renasce constantemente – també m em toda a teologia de Sã o Paulo, em
todo o seu pensamento – estas palavras tê m um impacto considerá vel
na relaçã o pessoal de Paulo com Jesus. Por um lado, testemunham que a
Eucaristia ilumina a maldiçã o da Cruz, tornando-a uma bê nçã o (Gl 3,13-
14), e por outro, explicam a importâ ncia da morte e ressurreiçã o de
Jesus. Nas Cartas de Sã o Paulo, o “por vó s” da Instituiçã o da Eucaristia é
personalizado, tornando-se “para mim” (Gl 2,20) — pois Paulo
percebeu que naquele “tu” ele mesmo era conhecido e amado por Jesus
— como bem como ser “para todos” (2 Cor 5:14). Este “para vó s” torna-
se “para mim” e “para ela [a Igreja]” (Ef 5,25), ou seja, “para todos”, no
sacrifı́cio expiató rio da Cruz (cf. Rm 3,25). A Igreja constró i-se a partir e
na Eucaristia e reconhece-se como «Corpo de Cristo» (1 Cor 12, 27),
alimentada todos os dias pela força do Espı́rito do Ressuscitado.
O outro texto, sobre a Ressurreiçã o, mais uma vez nos transmite a
mesma fó rmula de idelidade. Sã o Paulo escreve: “Porque em primeiro
lugar vos transmiti o que també m recebi: que Cristo morreu pelos
nossos pecados, segundo as Escrituras, que foi sepultado, que
ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, e que apareceu a
Cefas, depois aos Doze” (1 Cor 15:3-5). Este “pelos nossos pecados”
repete-se també m nesta tradiçã o transmitida a Paulo, que põ e a tó nica
na doaçã o que Jesus fez de si mesmo ao Pai para nos libertar do pecado
e da morte. Deste dom do pró prio Jesus, Paulo extrai as expressõ es
mais envolventes e fascinantes de nosso relacionamento com Cristo:
“Por nossa causa, ele o fez pecador, aquele que nã o conheceu pecado,
para que nele fô ssemos feitos justiça de Deus” (2 Cor 5:21); “Você s
conhecem a graça de nosso Senhor Jesus Cristo: embora fosse rico, por
amor de você s se fez pobre, para que pela sua pobreza você s se
tornassem ricos” (2 Corı́ntios 8:9). Vale a pena lembrar o comentá rio
feito por Martinho Lutero, entã o um monge agostiniano, sobre estas
palavras paradoxais de Paulo: “Este é aquele misté rio que é rico em
graça divina para os pecadores, no qual, por uma troca maravilhosa,
nossos pecados nã o sã o mais nossos, mas de Cristo, e a justiça de Cristo
nã o é de Cristo, mas nossa” ( Comentários aos Salmos de 1513-1515). E
assim somos salvos.
No querigma original (anú ncio), transmitido de boca em boca, o uso
do verbo “ressuscitou” em vez de “ressuscitou” – que teria sido mais
ló gico de usar, em continuidade com “morreu. . . e foi sepultado” —
merece mençã o. A forma verbal “ressuscitou” foi escolhida para
enfatizar que a Ressurreiçã o de Cristo tem um efeito na existê ncia dos
crentes ainda hoje; poderı́amos traduzi-lo como: “ressuscitou e
continua a viver” na Eucaristia e na Igreja. Assim, todas as Escrituras
dã o testemunho da morte e ressurreiçã o de Cristo porque, como
escreveria Ugo di San Vittore, “toda a divina Escritura constitui um só
livro, e este ú nico livro é Cristo, porque toda a Escritura fala de Cristo e
se cumpre em Cristo” ( De arca Noe 2, 8). Se Santo Ambró sio de Milã o
pô de dizer que “na Escritura lemos Cristo”, é porque a Igreja primitiva
reinterpretou todas as Escrituras de Israel, partindo de e voltando a
Cristo.
A enumeraçã o das apariçõ es do Ressuscitado a Cefas, aos Doze, a
mais de 500 irmã os e a Tiago culmina com a mençã o da apariçã o ao
pró prio Paulo no caminho de Damasco: ” (1 Corı́ntios 15:8). Visto que
havia perseguido a Igreja de Deus, nesta con issã o ele expressa sua
indignidade de ser considerado um Apó stolo em pé de igualdade com
aqueles que o precederam: mas a graça de Deus nele nã o foi em vã o (1
Cor 15:10). Assim, a avassaladora a irmaçã o da graça divina une Paulo
à s primeiras testemunhas da Ressurreiçã o de Cristo: “Se entã o eu ou
eles, assim pregamos e vó s crestes” (1 Cor 15, 11). A identidade e a
unidade do anú ncio do Evangelho sã o importantes; tanto eles como eu
pregamos a mesma fé , o mesmo Evangelho de Jesus Cristo que morreu
e ressuscitou e que se entrega na Santı́ssima Eucaristia.
A importâ ncia que ele confere à tradiçã o viva da Igreja, que ela
transmite à s suas comunidades, mostra como é equivocada a visã o que
atribui a Paulo a invençã o do cristianismo; antes de evangelizar Jesus
Cristo, seu Senhor, Paulo o encontrou no caminho de Damasco e o
visitou na Igreja, observando sua vida nos Doze e naqueles que o
seguiram pelos caminhos da Galilé ia. Nas pró ximas catequeses teremos
a oportunidade de examinar as contribuiçõ es que Paulo deu à Igreja
das origens. No entanto, a missã o que recebeu do Ressuscitado para
evangelizar os gentios precisava ser con irmada e garantida por aqueles
que lhe ofereciam a ele e a Barnabé a mã o direita em comunhã o, como
sinal de aprovaçã o do seu apostolado e da sua evangelizaçã o e da sua
aceitaçã o no uma só comunhã o da Igreja de Cristo (cf. Gl 2,9).
Compreende-se entã o que a expressã o «ainda que outrora olhá ssemos
a Cristo do ponto de vista humano» (2 Cor 5, 16) nã o signi ica que a sua
vida terrena tenha pouca importâ ncia para o nosso desenvolvimento na
fé , mas que, desde a sua Ressurreiçã o, a nossa a forma de se relacionar
com ele mudou. Ele é ao mesmo tempo o Filho de Deus «que descende
de David segundo a carne e foi designado Filho de Deus em poder
segundo o Espı́rito de santidade pela sua Ressurreiçã o dos mortos»,
como recordaria Paulo no inı́cio do sua Carta aos Romanos (1:3-4).
Quanto mais tentarmos seguir os passos de Jesus de Nazaré pelos
caminhos da Galilé ia, melhor compreenderemos que Ele assumiu a
nossa humanidade, compartilhando-a em tudo, menos no pecado. A
nossa fé nã o nasce de um mito ou de uma ideia, mas do encontro com o
Ressuscitado na vida da Igreja.
6

O “Conselho” de Jerusalém e o
Incidente em Antioquia *

A relaçã o de Paulo com os Doze foi sempre de respeito e veneraçã o que


nã o falhava quando defendia a verdade do Evangelho, que nada é senã o
Jesus Cristo, o Senhor. Re litamos hoje sobre dois episó dios que
mostram a veneraçã o e ao mesmo tempo a liberdade com que o
Apó stolo se dirige a Cefas e aos outros Apó stolos: o chamado
“Conselho” de Jerusalé m e o incidente de Antioquia, na Sı́ria,
mencionado na Carta aos Gá latas (cf. 2:1-10; 2:11-14).
Na Igreja, cada Concı́lio e Sı́nodo é um “evento do Espı́rito” que
considera as petiçõ es de todo o Povo de Deus à medida que ocorre. Isso
foi experimentado em primeira mã o por todos aqueles que receberam o
dom de participar do Concı́lio Vaticano II. Por isso, Sã o Lucas, ao falar-
nos do Primeiro Concı́lio da Igreja, celebrado em Jerusalé m, introduz a
Carta que os Apó stolos enviaram naquela ocasiã o à s comunidades
cristã s da diá spora: «Pareceu bem ao Espı́rito Santo e a nó s . . .” (Atos
15:28). O Espı́rito, que opera em toda a Igreja, toma pela mã o os
Apó stolos, conduzindo-os por novos caminhos para realizar os seus
desı́gnios; ele é o principal artı́ ice que constró i a Igreja.
E a Assemblé ia de Jerusalé m també m ocorreu em um momento de
grande tensã o na comunidade primitiva. Tratava-se de resolver a
questã o se a circuncisã o era ou nã o obrigató ria para os gentios que
aderiam a Jesus Cristo, o Senhor, ou se era lı́cito a eles nã o se
sujeitarem à Lei mosaica, ou seja, à observâ ncia da as normas exigidas
para ser pessoas ı́ntegras e cumpridoras da lei e, principalmente, nã o
se sujeitar à quelas normas que diziam respeito à puri icaçã o religiosa,
alimentos puros e impuros e ao sá bado. Paulo també m se refere à
Assemblé ia de Jerusalé m em Gá latas 2:1-10: quatorze anos apó s seu
encontro com o Ressuscitado em Damasco - estamos na segunda
metade da dé cada de 40 dC - Paulo partiu com Barnabé de Antioquia na
Sı́ria, levando com ele Tito, seu iel colaborador, que, embora fosse
grego, nã o fora obrigado a circuncidar-se para ingressar na Igreja.
Naquela ocasiã o, Paulo expô s aos Doze, que ele descreve como
“reputados”, o seu Evangelho da liberdade da Lei (cf. Gl 2,6). A luz do
encontro com Cristo Ressuscitado, Paulo compreendeu que, desde que
aderiram ao Evangelho de Jesus Cristo, os gentios já nã o precisavam,
como marca de justiça, nem da circuncisã o, nem das regras que regiam
a alimentaçã o e o sá bado: Cristo é nossa justiça, e todas as coisas que
se conformam a ele sã o “justas”. Nenhum outro sinal é necessá rio para
ser justo. Na Carta aos Gá latas, Sã o Paulo conta em poucas linhas como
foi a Assembleia. Diz com entusiasmo que o Evangelho da liberdade da
Lei foi aprovado por Tiago, Cefas e Joã o, “as colunas”, que ofereceram a
ele e a Barnabé a destra da comunhã o eclesial em Cristo (cf. Gl 2,9). Se,
como vimos, para Lucas o Concı́lio de Jerusalé m expressa a açã o do
Espı́rito Santo, para Paulo representa o reconhecimento crucial da
liberdade compartilhada entre todos os que dele participam: uma
liberdade das obrigaçõ es que derivam da circuncisã o e da Lei; aquela
liberdade para a qual “Cristo nos libertou” para que possamos
permanecer irmes e nã o nos submetermos novamente a um jugo de
escravidã o (cf. Gl 5,1). As duas narrativas de Paulo e Lucas da
Assembleia de Jerusalé m tê m em comum a açã o libertadora do
Espı́rito, porque “onde está o Espı́rito do Senhor, aı́ há liberdade”, diria
Paulo na Segunda Carta aos Corı́ntios (cf. . 3:17).
No entanto, como aparece muito claramente nas Cartas de Sã o Paulo,
a liberdade cristã nunca se identi ica com a libertinagem ou com a
vontade de fazer o que se quer; atua na conformidade com Cristo e,
portanto, no autê ntico serviço aos irmã os e, sobretudo, aos mais
necessitados. Por isso, a narraçã o de Paulo sobre a Assembleia termina
recordando a recomendaçã o dos Apó stolos: “Somente eles querem que
nos lembremos dos pobres, o que muito quis fazer” (Gl 2,10). Todo
Concı́lio nasce da Igreja e volta para a Igreja: neste caso, volta com uma
atençã o aos pobres que sã o principalmente da Igreja de Jerusalé m,
como se vê em vá rias anotaçõ es das Cartas de Paulo. Na preocupaçã o
pelos pobres, que testemunha em particular na Segunda Carta aos
Corı́ntios (cf. 8-9), e na parte inal da Carta aos Romanos (cf. Rm 15),
Paulo demonstra a sua idelidade à s decisõ es tomadas na Assembleia.
Talvez nã o possamos mais compreender plenamente o signi icado
que Paulo e suas comunidades atribuı́am à coleta para os pobres de
Jerusalé m. Foi uma iniciativa totalmente nova no campo das atividades
religiosas: nã o era obrigató ria, mas gratuita e espontâ nea; participaram
todas as Igrejas fundadas por Paulo no Ocidente. A arrecadaçã o
expressava a dı́vida da comunidade para com a Igreja Matriz da
Palestina, da qual havia recebido o dom inefá vel do Evangelho. O valor
que Paulo atribui a este gesto de partilha é tã o grande que raramente o
chama apenas de “recolha”. Pelo contrá rio, para ele é “serviço”, “bê nçã o”,
“dom”, “graça”, até “liturgia” (cf. 2 Cor 9).
Particularmente surpreendente é este ú ltimo termo, que confere um
valor até religioso a uma arrecadaçã o de dinheiro: por um lado, é um
ato litú rgico ou “serviço” oferecido por cada comunidade a Deus e, por
outro, é uma açã o amorosa feita para as pessoas. O amor pelos pobres e
a divina liturgia andam de mã os dadas; o amor pelos pobres é liturgia.
Os dois horizontes estã o presentes em cada liturgia celebrada e vivida
na Igreja, que, por sua natureza, se opõ e a qualquer separaçã o entre
culto e vida, entre fé e obras, entre oraçã o e caridade para com os
irmã os. Assim, o Concı́lio de Jerusalé m surgiu para resolver a questã o
de como tratar os gentios que chegaram à fé , optando pela liberdade da
circuncisã o e das observâ ncias impostas pela Lei, e foi resolvido pela
necessidade eclesial e pastoral que é centrada na fé em Jesus Cristo e no
amor aos pobres de Jerusalé m e de toda a Igreja.
O segundo episó dio é o conhecido incidente de Antioquia, na Sı́ria,
que atesta a liberdade interior de Paulo: como se comportar ao comer
com crentes de origem judaica e gentia?
Aqui emerge o outro epicentro da observâ ncia mosaica: a distinçã o
entre alimentos puros e impuros que separava profundamente os
judeus praticantes dos gentios. A princı́pio, Cefas, Pedro, compartilhava
as refeiçõ es com ambos; mas com a chegada de alguns cristã os
associados a Tiago, “o irmã o do Senhor” (Gl 1,19), Pedro começou a
evitar o contato com os gentios à mesa para nã o chocar aqueles que
continuavam a observar as leis que regiam a limpeza dos alimentos , e
sua decisã o foi compartilhada por Barnabé . Esta decisã o dividiu
profundamente os cristã os que vieram da circuncisã o e os cristã os que
vieram do paganismo. Este comportamento, que era uma ameaça real à
unidade e à liberdade da Igreja, provocou uma reaçã o apaixonada em
Paulo, que chegou a acusar Pedro e os outros de hipocrisia: “Se tu,
sendo judeu, vives como gentio e nã o como Judeu, como você pode
obrigar os gentios a viverem como judeus?” (Gl 2:14). Com efeito, os
pensamentos de Paulo, por um lado, e de Pedro e Barnabé , por outro,
eram diferentes: para estes ú ltimos a separaçã o dos gentios era uma
forma de salvaguardar e nã o de chocar os crentes que vinham do
judaı́smo; para Paulo, por outro lado, constituı́a o perigo de uma má
compreensã o da salvaçã o universal em Cristo, oferecida tanto a gentios
quanto a judeus. Se a justi icaçã o só é alcançada em virtude da fé em
Cristo, da conformidade com ele, independentemente de qualquer
efeito da Lei, de que adianta continuar a observar a limpeza dos
alimentos nas refeiçõ es compartilhadas? Com toda a probabilidade, as
abordagens de Pedro e Paulo eram diferentes: o primeiro nã o queria
perder os judeus que haviam aderido ao Evangelho, e o segundo nã o
queria diminuir o valor salvı́ ico da morte de Cristo para todos os
crentes.
E estranho dizer, mas ao escrever aos cristã os de Roma alguns anos
depois (em meados dos anos 50 dC ), Paulo se viu diante de uma
situaçã o semelhante e pediu aos fortes que nã o comessem alimentos
impuros para nã o para perder ou escandalizar os fracos: «é bom nã o
comer carne, nem beber vinho, nem fazer coisa alguma que faça
tropeçar o teu irmã o» (Rm 14,21). O incidente em Antioquia provou ser
uma liçã o tanto para Pedro quanto para Paulo. Só o diá logo sincero,
aberto à verdade do Evangelho, poderia guiar a Igreja no seu caminho:
«Porque o Reino de Deus nã o é comida nem bebida, mas justiça, paz e
alegria no Espı́rito Santo» (Rm 14, 17). E uma liçã o que també m nó s
devemos aprender: com os diversos carismas con iados a Pedro e a
Paulo, deixemo-nos todos guiar pelo Espı́rito, procurando viver na
liberdade que se guia pela fé em Cristo e se expressa no serviço aos
irmã os. E essencial conformar-se cada vez mais com Cristo. Desta
forma, a pessoa se torna realmente livre; assim se expressa em nó s o
nú cleo mais profundo da Lei: o amor a Deus e ao pró ximo. Rezemos ao
Senhor para que nos ensine a partilhar os seus sentimentos, a aprender
d'Ele a verdadeira liberdade e o amor evangé lico que envolve cada ser
humano.
7

A relação com o Jesus histórico *

Nas ú ltimas catequeses sobre Sã o Paulo, falei do seu encontro com
Cristo Ressuscitado que mudou profundamente a sua vida e depois da
sua relaçã o com os Doze Apó stolos chamados por Jesus —
especialmente a sua relaçã o com Tiago, Cefas e Joã o — e da sua relaçã o
com a Igreja em Jerusalé m.
A questã o permanece sobre o que Sã o Paulo sabia sobre o Jesus
terreno, sobre sua vida, seus ensinamentos, sua paixã o. Antes de entrar
neste tema, talvez seja ú til ter em mente que o pró prio Sã o Paulo
distingue entre dois modos de conhecer Jesus e, de forma mais geral,
dois modos de conhecer uma pessoa. Ele escreve em sua Segunda Carta
aos Corı́ntios: “de agora em diante, portanto, nã o consideramos
ningué m do ponto de vista humano; embora uma vez tenhamos
considerado Cristo do ponto de vista humano, nã o o consideramos mais
assim ”(5:16). Conhecer “do ponto de vista humano”, à maneira da
carne, signi ica conhecer unicamente de modo externo, por meio de
crité rios externos: pode-se ter visto uma pessoa vá rias vezes e,
portanto, conhecer seus traços e vá rias caracterı́sticas de seu
comportamento: como ele fala, como ele se move, etc. Embora algué m
possa conhecer algué m dessa maneira, nã o o conhece realmente, nã o
conhece a essê ncia da pessoa. Somente com o coraçã o se conhece
verdadeiramente uma pessoa. De fato, os fariseus e os saduceus
conheciam Jesus externamente; eles aprenderam seus ensinamentos e
sabiam muitos detalhes sobre ele, mas nã o o conheceram em sua
verdade. Há uma distinçã o semelhante em uma das palavras de Jesus.
Depois da Trans iguraçã o, perguntou aos Apó stolos: “Quem dizem os
homens ser o Filho do homem?” e: “quem você s dizem que eu sou?” As
pessoas o conhecem, mas super icialmente; eles sabem vá rias coisas
sobre ele, mas nã o o conhecem realmente. Por outro lado, os Doze,
graças à amizade que põ e em questã o o coraçã o, compreenderam pelo
menos em substâ ncia e começaram a descobrir quem é Jesus. Este
modo diferente de conhecer ainda existe hoje: há pessoas eruditas que
conhecem muitos detalhes de Jesus e pessoas simples que nã o
conhecem esses detalhes, mas o conheceram em sua verdade: “O
coraçã o fala ao coraçã o”. E Paulo quer essencialmente dizer que é
necessá rio conhecer Jesus assim, com o coraçã o, e assim conhecer a
pessoa essencialmente na sua verdade; entã o, posteriormente, saber os
detalhes sobre ele.
Dito isto, ica a pergunta: o que sabia Sã o Paulo sobre a vida prá tica
de Jesus, as suas palavras, a sua Paixã o e os seus milagres? Parece certo
que nã o o conheceu durante sua vida terrena.
Por meio dos Apó stolos e da nascente Igreja, Paulo certamente deve
ter conhecido os detalhes da vida terrena de Jesus. Nas suas Cartas
podemos encontrar trê s formas de referê ncia ao Jesus pré -pascal. Em
primeiro lugar, há referê ncias explı́citas e diretas. Paulo fala da
genealogia davı́dica de Jesus (cf. Rm 1,3), conhece a existê ncia dos seus
“irmã os” ou parentes (1 Cor 9,5; Gl 1,19), conhece a sequê ncia dos
acontecimentos da Ultima Ceia (cf. 1 Cor 11,23), e conhece outras
coisas que Jesus disse, por exemplo sobre a indissolubilidade do
matrimó nio (cf. 1 Cor 7,10 com Mc 10,11-12), sobre a necessidade de
quem proclamar o Evangelho para ser sustentado pela comunidade
porque o trabalhador merece o seu salá rio (cf. 1 Cor 9,14, com Lc 10,7).
Paulo conhece as palavras que Jesus pronunciou na Ultima Ceia (cf. 1
Cor 11,24-25, com Lc 22,19-20) e conhece també m a Cruz de Jesus.
Estas sã o referê ncias diretas a palavras e eventos da vida de Jesus.
Em segundo lugar, podemos entrever em algumas frases das Cartas
Paulinas vá rias alusõ es à tradiçã o atestada nos Evangelhos Sinó pticos.
Por exemplo, as palavras que lemos na Primeira Carta aos
Tessalonicenses que dizem que “o dia do Senhor virá como um ladrã o
de noite” (5:2) nã o poderiam ser explicadas com referê ncia à s profecias
do Antigo Testamento, já que a comparaçã o com o ladrã o noturno só se
encontra nos Evangelhos de Mateus e de Lucas; portanto, é de fato
retirado da tradiçã o sinó tica. Assim, quando lemos: “Deus escolheu o
que é loucura no mundo. . .” (1 Cor 1,27-28), ouve-se o eco iel do
ensinamento de Jesus sobre os simples e os pobres (cf. Mt 5,3; 11,25;
19,30). Depois, há as palavras que Jesus pronunciou com alegria
messiâ nica: “Eu te dou graças, ó Pai, Senhor do cé u e da terra, porque
escondeste estas coisas aos sá bios e instruı́dos e as revelaste aos
pequeninos”. Paulo sabe — pela sua experiê ncia missioná ria — quã o
verdadeiras sã o estas palavras, isto é , que o coraçã o dos simples está
aberto ao conhecimento de Jesus. També m a referê ncia à obediê ncia de
Jesus “até à morte”, que lemos em Fl 2,8, só pode recordar a
disponibilidade sem reservas do Jesus terreno para fazer a vontade do
Pai (cf. Mc 3,35; Jo 4,34). Paulo conhece assim a Paixã o de Jesus, a sua
Cruz, o modo como viveu os ú ltimos momentos da sua vida. A Cruz de
Jesus e a tradiçã o sobre este evento da Cruz estã o no centro do
querigma paulino . Outro pilar da vida de Jesus conhecido por Sã o Paulo
é o “Sermã o da Montanha”, do qual citou alguns elementos quase
literalmente ao escrever aos romanos: “amem-se uns aos outros. . . .
Abençoa aqueles que te perseguem. . . . Vivam em harmonia uns com os
outros. . . vencer o mal com o bem. . . .” Por isso, nas suas Cartas se
re lete ielmente o Sermã o da Montanha (cf. Mt 5-7).
Por im, é possı́vel encontrar uma terceira forma pela qual as
palavras de Jesus estã o presentes nas Cartas de Sã o Paulo: é quando ele
realiza uma forma de transposiçã o da tradiçã o pré -pascal para a
situaçã o depois da Pá scoa. Um caso tı́pico é o tema do Reino de Deus.
Estava certamente no centro da pregaçã o do Jesus histó rico (cf. Mt 3,2;
Mc 1,15; Lc 4,43). E possı́vel notar em Paulo uma transposiçã o deste
tema porque, depois da Ressurreiçã o, é evidente que Jesus em pessoa, o
Ressuscitado, é o Reino de Deus. O Reino, portanto, chega onde Jesus
está chegando. Assim, o tema do Reino de Deus, no qual se antecipou o
misté rio de Jesus, se transforma em cristologia. No entanto, as mesmas
atitudes que Jesus pediu para entrar no Reino de Deus aplicam-se
precisamente a Paulo no que diz respeito à justi icaçã o pela fé : tanto a
entrada no Reino como a justi icaçã o exigem uma atitude de profunda
humildade e abertura, livre de presunçõ es, para acolher a vontade de
Deus graça. Por exemplo, a pará bola do fariseu e do publicano (cf. Lc
18,9-14) transmite um ensinamento que se encontra exatamente como
em Paulo, quando insiste na devida exclusã o de qualquer vangló ria a
Deus. Até as sentenças de Jesus contra publicanos e prostitutas, que
estavam mais dispostos a aceitar o Evangelho do que os fariseus (cf. Mt
21,31; Lc 7,36-50), e a sua decisã o de partilhar as refeiçõ es com eles (cf.
Mt 9: 10-13; Lc 15,1-2) sã o plenamente con irmados no ensinamento
de Paulo sobre o amor misericordioso de Deus pelos pecadores (cf. Rm
5,8-10; e també m Ef 2,3-5). Assim, o tema do Reino de Deus é
reproposto de forma nova, mas sempre em plena idelidade à tradiçã o
do Jesus histó rico.
Outro exemplo da transformaçã o iel do nú cleo doutriná rio
transmitido por Jesus encontra-se nos “tı́tulos” que utiliza. Antes da
Pá scoa, ele se descreveu como o Filho do homem; depois da Pá scoa
torna-se ó bvio que o Filho do homem é també m o Filho de Deus.
Portanto, o tı́tulo preferido de Paulo para descrever Jesus é Kýrios ,
“Senhor” (cf. Fl 2,9-11), que sugere a divindade de Jesus. O Senhor
Jesus, com este tı́tulo, aparece em plena luz da Ressurreiçã o. No Monte
das Oliveiras, no momento da extrema angú stia de Jesus (cf. Mc 14,36),
os discı́pulos, antes de adormecer, o ouviram falar com o Pai e chamá -lo
de “ Aba , Pai”. Essa é uma palavra muito familiar, equivalente ao nosso
“papai”, usada apenas pelas crianças ao conversar com o pai. Até aquele
momento era impensá vel para um judeu usar tal palavra para se dirigir
a Deus; mas Jesus, sendo um verdadeiro Filho, naquele momento de
intimidade usou esta forma e disse: “Aba, Pai”. Surpreendentemente,
nas Cartas de Sã o Paulo aos Romanos e aos Gá latas, esta palavra “Abba”,
que exprime a exclusividade da iliaçã o de Jesus, aparece nos lá bios dos
baptizados (cf. Rm 8,15; Gl 4,6 ) porque receberam o “Espı́rito do Filho”.
Eles agora carregam este Espı́rito dentro de si e podem falar como Jesus
e com Jesus como verdadeiros ilhos de seu Pai; eles podem dizer
“Abba” porque se tornaram ilhos no Filho.
E, por ú ltimo, gostaria de referir a dimensã o salvı́ ica da morte de
Jesus que encontramos no Evangelho, segundo o qual: «o Filho do
homem nã o veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em
resgate por muitos” (Mc 10:45; Mt 20:28). Uma re lexã o iel destas
palavras de Jesus aparece no ensinamento paulino sobre a morte de
Jesus como comprada (cf. 1 Cor 6,20), como redençã o (cf. Rm 3,24),
como libertaçã o (cf. . Gal 5,1) e como reconciliaçã o (cf. Rm 5,10; 2 Cor
5,18-20). Este é o centro da teologia paulina que se fundamenta nestas
palavras de Jesus.
Para concluir, Sã o Paulo nã o pensava em Jesus em termos histó ricos,
como uma pessoa do passado. Ele certamente conhecia a grande
tradiçã o da vida, palavras, morte e ressurreiçã o de Jesus, mas nã o trata
tudo isso como algo do passado; ele a apresenta como a realidade do
Jesus vivo. Para Paulo, as palavras e açõ es de Jesus nã o pertencem ao
perı́odo histó rico, ao passado. Jesus está vivo agora, ele fala conosco
agora e vive por nó s. Este é o verdadeiro caminho para conhecer Jesus e
entender a tradiçã o sobre ele. També m devemos aprender a conhecer
Jesus, nã o do ponto de vista humano, como uma pessoa do passado,
mas como nosso Senhor e Irmã o, que está conosco hoje e nos mostra
como viver e como morrer.
8

A Dimensão Eclesiológica de Paulo *

Na catequese da quarta-feira passada falei da relaçã o de Paulo com


Jesus pré -pascal na sua vida terrena. A pergunta era: “O que Paulo sabia
sobre a vida de Jesus, suas palavras, sua paixã o?” Hoje gostaria de falar
sobre o ensinamento de Sã o Paulo sobre a Igreja. Devemos começar
notando que esta palavra “ Chiesa ” em italiano como em francê s, “
Église ”, e em espanhol, “ Iglesia ”, vem do grego “ ekklesia ”. Vem do
Antigo Testamento e signi ica a assembleia do Povo de Israel,
convocada por Deus. Signi ica particularmente a assemblé ia exemplar
aos pé s do Monte Sinai. Esta palavra agora signi ica a nova comunidade
dos crentes em Cristo que se sentem a assemblé ia de Deus, a nova
convocaçã o de todos os povos por Deus e diante dele. O termo ekklesia
vem pela primeira vez da pena de Paulo, o primeiro autor de um texto
cristã o. Aparece pela primeira vez no incipit de sua Primeira Carta aos
Tessalonicenses, onde Paulo se dirige textualmente à “Igreja dos
Tessalonicenses” (cf. també m “a Igreja dos Laodicenses” em Col 4,16).
Em outras Cartas ele fala da Igreja de Deus que está em Corinto (1 Cor
1,2; 2 Cor 1,1) e das Igrejas da Galá cia (Gal 1,2 etc.), portanto, das
Igrejas particulares, mas també m diz que perseguiu “ a Igreja de Deus”:
nã o uma comunidade local especı́ ica, mas “a Igreja de Deus”. Vemos
assim que esta palavra “Igreja” tem um signi icado multidimensional:
indica uma parte da assembleia de Deus num lugar especı́ ico (uma
cidade, um paı́s, uma casa), mas també m signi ica a Igreja como um
todo. E assim vemos nã o apenas que “a Igreja de Deus” é uma coleçã o
de vá rias Igrejas locais, mas que essas vá rias Igrejas locais, por sua vez,
constituem uma Igreja de Deus. Todos juntos sã o “a Igreja de Deus” que
precede cada uma das Igrejas locais e nelas se expressa ou nasce.
E importante observar que a palavra “Igreja” aparece quase sempre
com a quali icaçã o adicional “de Deus”: nã o é uma associaçã o humana,
nascida de ideias ou interesses comuns, mas uma convocaçã o de Deus.
Ele a convocou; assim, em todas as suas manifestaçõ es ela é uma. A
unidade de Deus cria a unidade da Igreja em todos os lugares onde ela
se encontra. Mais tarde, na Carta aos Efé sios, Paulo elaborou ricamente
o conceito de unidade da Igreja, em continuidade com o conceito de
Povo de Deus, Israel, considerado pelos profetas como “a esposa de
Deus”, chamado a viver em relaçã o esponsal com dele. Paulo apresenta
a ú nica Igreja de Deus como “a noiva de Cristo” no amor, um só corpo e
um só espı́rito com o pró prio Cristo. E sabido que, quando jovem, Paulo
foi um feroz adversá rio do novo movimento constituı́do pela Igreja de
Cristo. Opô s-se a este novo movimento porque o via como uma ameaça
à idelidade à tradiçã o do Povo de Deus, inspirada pela fé no ú nico
Deus. Esta idelidade exprimia-se sobretudo na circuncisã o, na
observâ ncia das regras de pureza religiosa, na abstençã o de certos
alimentos e no respeito do sá bado. Os israelitas pagaram esta idelidade
com o sangue dos má rtires no perı́odo dos Macabeus, quando o regime
helenı́stico queria obrigar todos os povos a se conformarem à ú nica
cultura helenı́stica. Muitos israelitas derramaram seu sangue para
defender a pró pria vocaçã o de Israel. Os má rtires pagaram com a vida
pela identidade de seu povo, que se expressou atravé s desses
elementos. Depois do encontro com Cristo Ressuscitado, Paulo
compreendeu que os cristã os nã o eram traidores; pelo contrá rio, na
nova situaçã o o Deus de Israel, por meio de Cristo, estendeu a sua
chamada a todos os povos, tornando-se o Deus de todos os povos.
Assim se alcançava a idelidade ao ú nico Deus. Os sinais distintivos
constituı́dos por regras e observâ ncias especiais nã o eram mais
necessá rios, pois todos eram chamados, em sua variedade, a pertencer
ao ú nico Povo de Deus na “Igreja de Deus” em Cristo.
Uma coisa icou imediatamente clara para Paulo em sua nova
situaçã o: o valor fundamental, fundamental de Cristo e da “palavra” que
ele anunciava. Paulo sabia nã o só que nã o se torna cristã o por coerçã o,
mas també m que na con iguraçã o interna da nova comunidade o
elemento institucional estava inevitavelmente ligado à “palavra” viva,
ao anú ncio de Cristo vivo, por meio do qual Deus se abre a todos povos
e os une em um só Povo de Deus. E sintomá tico que nos Atos dos
Apó stolos Lucas use duas vezes, també m em relaçã o a Paulo, a frase
“falar a palavra” (cf. Atos 4:29.31; 8:25; 11:19; 13:46; 14:25; 16:6.32),
evidentemente com a intençã o de dar a má xima ê nfase à importâ ncia
crucial da “palavra” do anú ncio. Na prá tica, esta palavra é constituı́da
pela Cruz e Ressurreiçã o de Cristo, na qual as Escrituras encontraram
cumprimento. O misté rio pascal, que levou o Apó stolo à viragem da sua
vida no caminho de Damasco, está obviamente no centro da sua
pregaçã o (1 Cor 2, 2; 15, 14). Este Misté rio, anunciado na Palavra,
realiza-se nos Sacramentos do Baptismo e da Eucaristia e depois torna-
se realidade no amor cristã o. O ú nico objetivo de Paulo em sua obra de
evangelizaçã o é estabelecer a comunidade dos crentes em Cristo. Esta
ideia é inerente à pró pria etimologia do termo “ ekklesia ”, que Paulo, e
com ele toda a cristandade, preferiu ao termo “sinagoga”: nã o só porque
o primeiro é originalmente mais “secular” (derivado da prá tica grega de
a assemblé ia polı́tica, que nã o era exatamente religiosa), mas també m
porque envolve diretamente a ideia mais teoló gica de uma convocaçã o
ab extra e nã o é , portanto, uma mera reuniã o; os crentes sã o chamados
por Deus, que os reú ne numa comunidade, a sua Igreja.
Nesta linha podemos compreender també m a concepçã o originá ria
da Igreja, exclusivamente paulina, como “Corpo de Cristo”. A este
respeito, é necessá rio ter presente as duas dimensõ es deste conceito.
Uma é de cará ter socioló gico, segundo a qual o corpo é feito de seus
elementos e nã o existiria sem eles. Esta interpretaçã o aparece na Carta
aos Romanos e na Primeira Carta aos Corı́ntios, na qual Paulo utiliza
uma imagem que já existia na sociologia romana: diz que um povo é
como um corpo com as suas diversas partes, cada uma das quais tem a
sua pró pria funçã o, mas todos juntos, mesmo as suas partes mais
pequenas e aparentemente insigni icantes, sã o necessá rias para que
este corpo possa viver e desempenhar as suas funçõ es. O Apó stolo
oportunamente observa que na Igreja há muitas vocaçõ es: profetas,
apó stolos, mestres, pessoas simples, todos sã o chamados a praticar a
caridade todos os dias; todos sã o necessá rios para construir a unidade
viva deste organismo espiritual. A outra interpretaçã o refere-se ao
pró prio Corpo de Cristo. Paulo sustenta que a Igreja nã o é apenas um
organismo, mas realmente se torna o Corpo de Cristo no Sacramento da
Eucaristia, onde todos nó s recebemos seu Corpo e realmente nos
tornamos seu Corpo. Assim se realiza o misté rio esponsal para que
todos se tornem um só corpo e um só espı́rito em Cristo. Assim é que a
realidade vai muito alé m de qualquer imagem socioló gica, exprimindo a
sua essê ncia real e profunda, isto é , a unidade de todos os batizados em
Cristo, considerados pelo Apó stolo “um” em Cristo, conformados ao
Sacramento do seu Corpo.
Ao dizer isto, Paulo mostra que sabe bem e faz compreender a todos
que a Igreja nã o é dele e nã o é nossa: a Igreja é o Corpo de Cristo, é uma
“Igreja de Deus ”, “campo de Deus, edifı́cio de Deus, . . . templo de Deus”
(1 Corı́ntios 3:9, 16). Esta ú ltima designaçã o é particularmente
interessante porque atribui a um tecido de relaçõ es interpessoais um
termo que comumente servia para signi icar um lugar fı́sico,
considerado sagrado. A relaçã o entre igreja e templo passa, portanto, a
assumir duas dimensõ es complementares: por um lado, aplica-se à
comunidade eclesial a caracterı́stica de separaçã o e pureza que merecia
o edifı́cio sagrado, mas, por outro, é també m aplicado o conceito de
espaço material superado, para transferir esta qualidade para a
realidade de uma comunidade viva de fé . Se antes os templos eram
considerados lugares da presença de Deus, agora se sabia e se via que
Deus nã o habita em edifı́cios de pedra, mas que o lugar da presença de
Deus no mundo é a comunidade viva dos crentes.
A descriçã o “Povo de Deus” mereceria um comentá rio à parte. Em
Paulo aplica-se principalmente ao Povo do Antigo Testamento e depois
aos gentios que eram “o nã o-povo” mas també m se tornaram Povo de
Deus graças à sua inserçã o em Cristo atravé s da palavra e do
sacramento.
E, inalmente, uma ú ltima nuance. Na sua Carta a Timó teo, Paulo
descreve a Igreja como «casa de Deus» (1 Tm 3,15), e esta é uma
de iniçã o verdadeiramente original porque se refere à Igreja como uma
estrutura comunitá ria na qual relaçõ es interpessoais calorosas e de
tipo familiar sã o vividos. O Apó stolo ajuda-nos a compreender cada vez
mais profundamente o misté rio da Igreja nas suas diversas dimensõ es
como assembleia de Deus no mundo. Esta é a grandeza da Igreja e a
grandeza do nosso chamado; somos um templo de Deus no mundo, um
lugar onde Deus realmente habita e, ao mesmo tempo, somos uma
comunidade, uma famı́lia de Deus que é amor. Como famı́lia e casa de
Deus, devemos praticar o amor de Deus no mundo e assim, com a força
que vem da fé , ser lugar e sinal da sua presença. Peçamos ao Senhor que
nos conceda ser cada vez mais a sua Igreja, o seu Corpo, o lugar onde o
seu amor está presente neste nosso mundo e na nossa histó ria.
9

A Importância da Cristologia:
Pré-existência e Encarnação *

Nas catequeses destas ú ltimas semanas meditá mos sobre a “conversã o”


de Sã o Paulo, fruto do seu encontro pessoal com Jesus cruci icado e
ressuscitado, e perguntá mo-nos que relaçã o tinha o Apó stolo das
gentes com o Jesus terreno. Hoje gostaria de falar do ensinamento que
Sã o Paulo nos legou sobre a centralidade de Cristo ressuscitado no
mistério da salvação , sobre a sua cristologia. Na verdade, Jesus Cristo
ressuscitado, “exaltado acima de todo nome”, está no centro de cada
re lexã o que Paulo faz. Cristo, para o Apó stolo, é o crité rio de avaliaçã o
dos acontecimentos e das coisas, a meta de todo o esforço que faz para
anunciar o Evangelho, a grande paixã o que sustenta os seus passos nas
estradas do mundo. E este é um Cristo real e vivo: “Cristo”, diz Paulo,
“que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20). Esta pessoa que me
ama, com quem posso falar, que me ouve e me responde, este é
realmente o ponto de partida para compreender o mundo e encontrar o
caminho da histó ria.
Quem leu os escritos de Sã o Paulo sabe bem que ele nã o se
preocupou em narrar a sequê ncia de eventos individuais da vida de
Jesus. No entanto, podemos pensar que em sua catequese ele falou
muito mais sobre Jesus pré -pascal do que escreve em suas Cartas, que
sã o admoestaçõ es em situaçõ es precisas. A sua intençã o pastoral e
teoló gica estava tã o centrada na promoçã o das comunidades nascentes
que lhe era natural concentrar-se totalmente no anú ncio de Jesus Cristo
como “Senhor”, já vivo e presente entre os seus seguidores. Daı́ a
essencialidade caracterı́stica da cristologia paulina, que desenvolve a
profundidade do misté rio com uma preocupaçã o constante e precisa:
anunciar Jesus vivo, claro, mas sobretudo anunciar a realidade central
da sua morte e ressurreiçã o como ponto culminante da sua vida
terrena. existê ncia e a raiz do desenvolvimento sucessivo de toda a fé
cristã , toda a realidade da Igreja. Para o Apó stolo, a Ressurreiçã o nã o é
um acontecimento em si, separado da morte: o Ressuscitado é sempre
Aquele que foi primeiro cruci icado. També m como Ressuscitado
carrega as suas chagas: a Paixã o está presente nele, e podemos dizer,
juntamente com Pascal, que Ele é o Sofredor até ao im do mundo,
sendo ao mesmo tempo o Ressuscitado e vivendo conosco e para nó s.
Paulo tinha compreendido esta identi icaçã o do Ressuscitado com o
Cristo Cruci icado no encontro no caminho de Damasco: naquele
momento foi-lhe revelado claramente que o Cruci icado é o
Ressuscitado e o Ressuscitado é o Cruci icado, que pede Paulo: “Por que
me persegues?” (Atos 9:4). Paulo está perseguindo Cristo na Igreja e
entã o percebe que a Cruz nã o é apenas “maldita de Deus” (Dt 21,23),
mas també m é o sacrifı́cio para nossa redençã o.
Fascinado, o Apó stolo contempla o segredo oculto do Cruci icado e
Ressuscitado e, atravé s dos sofrimentos experimentados por Cristo na
sua humanidade ( dimensão terrena ), volta à quela existê ncia eterna em
que é inteiramente um com o Pai ( dimensão anterior ao tempo ). :
“Quando chegou a plenitude dos tempos”, escreveu ele, “Deus enviou
seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que
estavam sob a lei, a im de recebermos a adoçã o de ilhos” (Gl 4 :4-5).
Estas duas dimensõ es, a sua pré-existência eterna com o Pai e a descida
do Senhor na sua Encarnação , já estã o anunciadas no Antigo
Testamento, na igura da Sabedoria. Encontramos nos Livros
sapienciais do Antigo Testamento certos textos que exaltam o papel da
Sabedoria que existia antes da criaçã o do mundo. Passagens como a do
Salmo 90[89] devem ser interpretadas neste sentido: “Antes que os
montes nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, de
eternidade a eternidade tu é s Deus” (v. 2). ; ou passagens como esta que
fala da Sabedoria criadora: “O Senhor me criou no inı́cio de sua obra, o
primeiro de seus atos de outrora. Há sé culos fui estabelecido, no
princı́pio, antes do começo da terra” (Pv 8:22-23). E també m sugestivo
o louvor à Sabedoria, contido no Livro do mesmo nome: “Ela vai
poderosamente de uma extremidade à outra da terra e tudo ordena
bem” (Sb 8,1).
Os pró prios textos sapienciais que falam da preexistê ncia eterna da
Sabedoria també m falam da descida, do rebaixamento desta Sabedoria,
que armou uma tenda para si entre os homens. Assim já ouvimos ecoar
as palavras do Evangelho de Joã o, que fala da tenda da carne do Senhor.
Ele criou uma tenda para si mesmo no Antigo Testamento: aqui o
templo é mostrado e a adoraçã o de acordo com a Torá ; mas a
perspectiva do Novo Testamento permite-nos perceber que esta era
apenas uma pre iguraçã o da tenda muito mais real e signi icativa: a
tenda da carne de Cristo. E já vemos nos Livros do Antigo Testamento
que esse rebaixamento da Sabedoria, sua descida na carne, sugere
també m a possibilidade de ela ter sido rejeitada. Sã o Paulo, ao
desenvolver a sua cristologia, refere-se precisamente a esta perspectiva
sapiencial: em Jesus reconhece a sabedoria eterna que sempre existiu, a
sabedoria que desce e se arma entre nó s, e assim pode descrever Cristo
como «a força de Deus e a sabedoria de Deus” (1 Cor 1:24); ele pode
dizer que Cristo se tornou, por meio da obra de Deus, “nossa sabedoria,
nossa justiça, santi icaçã o e redençã o” ( ibid ., v. 30). Do mesmo modo,
Paulo explica que Cristo, como a Sabedoria, pode ser rejeitado
sobretudo pelos governantes deste mundo (cf. 1 Cor 2, 6-9), de modo
que dentro dos desı́gnios de Deus se cria uma situaçã o paradoxal, a
Cruz, que deveria transformar-se em meio de salvaçã o para todo o
gê nero humano.
No cé lebre hino contido na Carta aos Filipenses (cf. 2, 6-11), um
ulterior desenvolvimento deste ciclo sapiencial vê a Sabedoria rebaixar-
se para depois ser exaltada apesar da rejeiçã o. Este é um dos textos
mais elevados em todo o Novo Testamento. A grande maioria dos
exegetas hoje concorda que esta passagem reproduz uma composiçã o
anterior ao texto da Carta aos Filipenses. Este é um fato muito
importante porque signi ica que o judaico-cristianismo, antes de Sã o
Paulo, acreditava na divindade de Jesus. Em outras palavras, a fé na
divindade de Jesus nã o foi uma invençã o helenı́stica que surgiu muito
depois da vida terrena de Jesus, uma invençã o que, esquecendo-se de
sua humanidade, o teria divinizado; vemos na realidade que o judaico-
cristianismo primitivo acreditava na divindade de Jesus. Com efeito,
podemos dizer que os pró prios Apó stolos, nos momentos importantes
da vida do seu Mestre, compreenderam que Ele era o Filho de Deus,
como disse Sã o Pedro em Cesareia de Filipe: «Tu é s o Cristo, o Filho do
Deus vivo. ” (Mt 16:16). Mas voltemos ao hino da Carta aos Filipenses. A
estrutura deste texto é composta por trê s estrofes, que ilustram os
pontos altos do caminho percorrido por Cristo. A sua preexistê ncia é
expressa pelas palavras: «embora fosse Deus, nã o considerou o ser
igual a Deus coisa a que devia apegar-se» (Fl 2,6). Segue-se a auto-
humilhaçã o voluntá ria do Filho na segunda estrofe: “esvaziou-se a si
mesmo, assumindo a forma de servo” (v. 7), até humilhar-se e “[tornar-
se] obediente até à morte e morte de cruz”. ” (v. 8). A terceira estrofe do
hino proclama a resposta do Pai à humilhaçã o do Filho: “Por isso Deus o
exaltou soberanamente e lhe deu o nome que está acima de todo nome”
(v. 9). O que impressiona é o contraste entre a radical humilhaçã o de si
mesmo e sua subseqü ente glori icaçã o na gló ria de Deus. E ó bvio que
esta segunda estrofe contrasta com a pretensã o de Adã o, que queria
fazer de si mesmo um Deus, e com o ato dos construtores da torre de
Babel, que queriam construir uma ponte para o Cé u e fazer pró prias
divindades. No entanto, esta iniciativa de orgulho terminou em
autodestruiçã o: este nã o é o caminho para o Cé u, para a verdadeira
felicidade, para Deus. O gesto do Filho de Deus é exatamente o oposto:
nã o o orgulho, mas a humildade, que é a plenitude do amor, e o amor é
divino. A iniciativa da humilhaçã o de Cristo, da sua radical humildade,
em contraste com a soberba humana, é verdadeiramente expressã o do
amor divino; segue-se aquela elevaçã o ao Cé u para a qual Deus nos
atrai com o seu amor.
Alé m da Carta aos Filipenses, existem outros lugares na literatura
paulina onde os temas da preexistê ncia e descida à terra do Filho de
Deus estã o ligados entre si. Uma rea irmaçã o da assimilaçã o da
Sabedoria e de Cristo, com todas as implicaçõ es có smicas e
antropoló gicas relacionadas, é encontrada na Primeira Carta a Timó teo:
“Ele foi manifestado na carne, justi icado no Espı́rito, visto pelos anjos,
pregado entre as naçõ es, crido em todo o mundo, recebido na gló ria”
(3:16). E sobretudo com base nestas premissas que é possı́vel uma
melhor de iniçã o de Cristo como ú nico Mediador, tendo como pano de
fundo o Deus Unico do Antigo Testamento (cf. 1 Tm 2,5 em relaçã o a Is
43,10-11; 44 :6). Cristo é a verdadeira ponte que nos conduz ao Cé u, à
comunhã o com Deus.
E, por ú ltimo, apenas uma breve referê ncia aos ú ltimos
desenvolvimentos da cristologia de Sã o Paulo nas Cartas aos
Colossenses e aos Efé sios. No primeiro, Cristo é descrito como o
“primogê nito de toda a criaçã o” (1:15-20). Esta palavra “primogê nito”
sugere que o primeiro de muitos ilhos, o primeiro de muitos irmã os e
irmã s, desceu para nos atrair e nos tornar seus irmã os e irmã s. Na Carta
aos Efé sios encontramos uma bela exposiçã o do desígnio divino da
salvação , quando Paulo diz que em Cristo Deus quis recapitular tudo
(cf. Ef 1,23). Cristo é o epı́tome de todas as coisas, ele assume tudo
sobre si e nos guia para Deus. E assim envolve-nos num movimento de
descida e subida, convidando-nos a participar na sua humildade, isto é ,
no seu amor ao pró ximo, para participar també m na sua glori icaçã o,
tornando-nos com Ele ilhos no Filho. Peçamos ao Senhor que nos ajude
a conformar-nos com a sua humildade, com o seu amor, para nos
tornarmos partı́cipes da sua divinizaçã o.
10

A Importância da Cristologia:
A Teologia da Cruz *

Na experiê ncia pessoal de Sã o Paulo há um fator incontroverso: se a


princı́pio foi perseguidor e perpetrava violê ncias contra os cristã os,
desde o momento de sua conversã o no caminho de Damasco passou
para o lado de Cristo Cruci icado, fazendo de Cristo seu raison d'être e a
razã o de sua pregaçã o. A sua vida nã o foi tranquila nem isenta de
perigos e di iculdades, mas inteiramente dedicada à s almas (cf. 2 Cor
12, 15). No seu encontro com Jesus, o signi icado central da Cruz icou
claro para ele: ele entendeu que Jesus morreu e ressuscitou por todos e
por si mesmo. Ambas as coisas eram importantes; universalidade: Jesus
realmente morreu por todos, e subjetividade: ele també m morreu por
mim. Assim, o amor misericordioso e gratuito de Deus se manifestou na
cruz. Paulo experimentou este amor antes de tudo em si mesmo (cf. Gl
2,20), e de pecador passou a crente, de perseguidor a apó stolo. Dia apó s
dia, na sua nova vida, experimentou que a salvaçã o era «graça», que
tudo derivava da morte de Cristo e nã o do seu pró prio mé rito, aliá s
inexistente. O “Evangelho da graça” tornou-se assim para ele a ú nica
forma de compreender a Cruz, nã o só o crité rio da sua nova existê ncia,
mas també m a resposta a quem o interrogou. Em primeiro lugar entre
eles estavam os judeus que colocaram sua esperança em açõ es e delas
esperavam a salvaçã o; depois houve os gregos que desa iaram a Cruz
com seu conhecimento humano; por ú ltimo, havia aqueles grupos de
hereges que forjaram sua pró pria ideia de cristianismo para se adequar
a seu pró prio modelo de vida.
Para Sã o Paulo, a Cruz tem um primado fundamental na histó ria da
humanidade; representa o ponto focal de sua teologia, porque dizer
“Cruz” é dizer salvação como graça dada a toda criatura. O tema da Cruz
de Cristo torna-se um elemento essencial e primá rio da pregaçã o do
Apó stolo: o exemplo mais claro diz respeito à comunidade de Corinto.
Diante de uma Igreja na qual a desordem e o escâ ndalo estavam
presentes de forma perturbadora, onde a comunhã o era ameaçada por
facçõ es e rupturas internas que feriam a unidade do Corpo de Cristo,
Paulo nã o se apresentou com palavras sublimes ou de sabedoria, mas
com o anú ncio de Cristo, de Cristo cruci icado. A sua força nã o está no
uso de uma linguagem persuasiva, mas, paradoxalmente, na fraqueza e
no temor de quem se entrega unicamente ao «poder de Deus» (cf. 1 Cor
2, 1-5). A Cruz, por tudo o que representa e, portanto, també m pela
mensagem teoló gica que conté m, é escâ ndalo e loucura. O Apó stolo diz
isso com uma força impressionante que é bom ouvir diretamente de
suas palavras: “porque a palavra da cruz é loucura para os que estã o
perecendo, mas para nó s, que somos salvos, é o poder de Deus. . .
agradou a Deus pela loucura do que pregamos salvar aqueles que
crê em. Pois os judeus pedem sinais e os gregos buscam sabedoria, mas
nó s pregamos a Cristo cruci icado, escâ ndalo para os judeus e loucura
para os gentios” (1 Corı́ntios 1:18-23).
As primeiras comunidades cristã s à s quais Paulo se dirigiu bem
sabiam que Jesus doravante estava vivo e ressuscitado; o Apó stolo quer
recordar nã o só aos corı́ntios ou aos gá latas, mas també m a todos nó s
que o Ressuscitado é sempre Aquele que foi cruci icado. A “pedra de
tropeço” e a “loucura” da cruz residem no pró prio fato de que onde
parece nã o haver nada alé m de fracasso, tristeza e derrota, existe todo o
poder do amor sem limites de Deus, pois a cruz é uma expressã o de
amor, e o amor é a verdadeira força que se revela precisamente nesta
aparente fraqueza. Para os judeus, a Cruz é skandalon , ou seja, uma
armadilha ou pedra de tropeço. Parece estorvar a fé do devoto israelita,
que tem di iculdade em descobrir algo semelhante nas Sagradas
Escrituras. Com alguma coragem, Paulo parece dizer que aqui a aposta
é alta: na opiniã o dos judeus, a Cruz contradiz a pró pria essê ncia de
Deus, que se manifestou em sinais maravilhosos. Aceitar a Cruz de
Cristo signi ica, portanto, realizar uma conversã o profunda no modo de
se relacionar com Deus. Se, para os judeus, o motivo da rejeiçã o da Cruz
se encontra no Apocalipse, ou seja, a idelidade ao Deus dos Pais, para
os gregos, ou seja, os gentios, o crité rio de julgamento para se opor à
Cruz é a razã o. De fato, a Cruz para este ú ltimo é moría , loucura,
literalmente insipidez , ou seja, comida sem sal; assim, mais do que um
erro, é um insulto ao bom senso.
O pró prio Paulo, mais de uma vez, teve a amarga experiê ncia da
rejeiçã o do anú ncio cristã o, considerado “insı́pido”, desprovido de
importâ ncia, nem sequer digno de ser levado em consideraçã o no plano
da ló gica racional. Para quem, como os gregos, vê a perfeiçã o no
espı́rito, no pensamento puro, já era inaceitá vel que Deus se izesse
homem, mergulhando em todas as limitaçõ es do espaço e do tempo.
Entã o para eles era de initivamente inconcebı́vel acreditar que um Deus
pudesse terminar numa cruz! E vemos que esta ló gica grega é també m
a ló gica comum do nosso tempo. Como poderia o conceito de apátheia ,
indiferença, como ausê ncia de paixõ es em Deus, ter compreendido um
Deus que se fez homem e foi derrotado e até deveria reassumir seu
corpo posteriormente para viver como o Ressuscitado? “Nó s ainda te
ouviremos sobre isso” (Atos 17:32), disseram os atenienses com
desdé m a Paulo quando o ouviram falar sobre a ressurreiçã o dos
mortos. Eles consideravam a libertaçã o do corpo, concebido como uma
prisã o, como a perfeiçã o. Como nã o ver a retomada do corpo como uma
aberraçã o? Na cultura antiga parecia nã o haver espaço para a
mensagem do Deus Encarnado. Todo o evento “Jesus de Nazaré ” parecia
estar marcado por uma loucura de ponta a ponta, e a Cruz foi
certamente o seu ponto mais emblemá tico.
Mas por que Sã o Paulo fez precisamente disso, da palavra da Cruz, o
nú cleo fundamental de seu ensinamento? A resposta nã o é difı́cil: a
Cruz revela «o poder de Deus» (cf. 1 Cor 1, 24), que é diferente do
poder humano; na verdade, revela o seu amor: “Porque a loucura de
Deus é mais sá bia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte
do que os homens” ( ibid ., v. 25). Sé culos depois de Paulo vemos que na
histó ria foi a Cruz que triunfou e nã o a sabedoria que se opô s a ela. O
Cruci icado é sabedoria, porque mostra verdadeiramente quem é Deus,
ou seja, uma força de amor que foi até à Cruz para salvar os homens.
Deus usa caminhos e meios que à primeira vista nos parecem apenas
fraqueza. O Cruci icado revela, por um lado, a fragilidade do homem e,
por outro, a verdadeira força de Deus, isto é , o dom gratuito do amor:
este amor totalmente gratuito é a verdadeira sabedoria. Sã o Paulo
experimentou isso també m em sua carne e nos conta em vá rias
passagens de sua jornada espiritual que se tornaram pontos de
referê ncia precisos para todo discı́pulo de Jesus: “Ele me disse: 'Minha
graça é su iciente para você , porque meu poder é aperfeiçoado na
fraqueza'” (2 Corı́ntios 12:9); e novamente “Deus escolheu o que é fraco
no mundo para envergonhar o forte” (1 Cor 1:27). O Apó stolo
identi icou-se tã o intimamente com Cristo que, apesar de estar no meio
de tantas provaçõ es, també m ele viveu na fé do Filho de Deus que o
amou e se entregou pelos seus pecados e pelos pecados de todos (cf.
Gá l. 1:4; 2:20). Este fato autobiográ ico sobre o Apó stolo torna-se
paradigmá tico para todos nó s.
Sã o Paulo deu uma sı́ntese admirá vel da teologia da Cruz na Segunda
Carta aos Corı́ntios (5,14-21), onde tudo se encerra entre duas
a irmaçõ es fundamentais: de um lado, Cristo, que Deus fez pecado por
por nossa causa (v. 21), ele morreu por todos (v. 14); e por outro, Deus
nos reconciliou consigo mesmo sem nos imputar nossos pecados (vv. 18-
20). E a partir deste “ministé rio da reconciliaçã o” que toda forma de
escravidã o já foi redimida (cf. 1 Cor 6,20; 7,23). Aqui ica claro o quanto
isso é importante para nossas vidas. També m nó s devemos entrar neste
“ministé rio da reconciliaçã o”, que implica sempre renunciar à pró pria
superioridade e optar pela loucura do amor.
Sã o Paulo sacri icou a pró pria vida, dedicando-se sem reservas ao
ministé rio da reconciliaçã o, da Cruz, que é salvaçã o para todos nó s. E
també m nó s devemos saber fazer isto: que possamos encontrar a nossa
força precisamente na humildade do amor e a nossa sabedoria na
fraqueza da renú ncia, entrando assim no poder de Deus. Todos nó s
devemos modelar nossa vida sobre esta verdadeira sabedoria: nã o
devemos viver para nó s mesmos, mas devemos viver na fé naquele
Deus de quem todos podemos dizer: “ele me amou e se entregou por
mim”.
11

A importância da cristologia:
a determinação da ressurreição *

“Se Cristo nã o ressuscitou, é vã a nossa pregaçã o e vã a vossa fé . . . e
ainda estais nos vossos pecados” (1 Corı́ntios 15:14-17). Com estas
fortes palavras da Primeira Carta aos Corı́ntios, Sã o Paulo evidencia a
importâ ncia decisiva que atribui à Ressurreiçã o de Jesus. Com efeito,
neste acontecimento está a soluçã o do problema colocado pelo drama
da Cruz. A Cruz sozinha nã o poderia explicar a fé cristã , pelo contrá rio,
permaneceria uma tragé dia, uma indicaçã o do absurdo do ser. O
misté rio pascal consiste no fato de que o Cruci icado “ressuscitou ao
terceiro dia, segundo as Escrituras” (1 Cor 15,4), como atesta a tradiçã o
proto-cristã . Esta é a pedra angular da cristologia paulina: tudo gira em
torno deste centro gravitacional. Todo o ensinamento do Apó stolo
Paulo parte e chega ao misté rio daquele que o Pai ressuscitou dos
mortos. A Ressurreiçã o é um dado fundamental, quase um axioma
pré vio (cf. 1 Cor 15,12), a partir do qual Paulo pode formular o seu
anú ncio sinté tico ( kerygma ). Aquele que foi cruci icado e que assim
manifestou o imenso amor de Deus pelos homens ressuscitou e está
vivo entre nó s.
E importante compreender a relaçã o entre o anú ncio da
Ressurreiçã o, tal como o formula Paulo, e aquele em vigor desde as
primeiras comunidades cristã s pré -paulinas. Aqui, de fato, podemos ver
a importâ ncia da tradiçã o que precedeu o Apó stolo e que ele, com
muito respeito e cuidado, deseja transmitir por sua vez. O texto sobre a
Ressurreiçã o contido no capı́tulo 15,1-11 da Primeira Carta aos
Corı́ntios enfatiza a conexã o entre “receber” e “transmitir”. Sã o Paulo
atribui grande importâ ncia à formulaçã o literal da tradiçã o e no inal da
passagem em consideraçã o sublinha: “O que importa é que eu pregue o
que eles pregam” (1 Cor 15,11), chamando assim a atençã o para a
unidade do kerygma , do anú ncio para todos os crentes e para aqueles
que anunciarã o a Ressurreiçã o de Cristo. A tradição a que ele se refere é
a fonte de onde tirar. Sua cristologia nunca é original em detrimento da
idelidade à tradiçã o. O querigma dos Apó stolos sempre preside à
reelaboraçã o pessoal de Paulo; cada um dos seus argumentos parte da
tradiçã o comum, e neles exprime a fé partilhada por todas as Igrejas,
que sã o uma só Igreja. Desta forma, Sã o Paulo oferece um modelo para
todos os tempos de como abordar a teologia e como pregar. O teó logo, o
pregador, nã o cria novas visõ es do mundo e da vida, mas está a serviço
da verdade transmitida, a serviço do fato real de Cristo, da Cruz e da
Ressurreiçã o. A sua tarefa é ajudar-nos a compreender hoje a realidade
do “Deus connosco” que está por detrá s das palavras antigas e,
portanto, a realidade da verdadeira vida.
Devemos aqui ser explı́citos: Sã o Paulo, ao anunciar a Ressurreiçã o,
nã o se preocupa em apresentar uma exposiçã o doutrinal orgâ nica – nã o
deseja escrever o que seria efetivamente um manual teoló gico – mas
aborda o tema respondendo a dú vidas e perguntas concretas
perguntado a ele pelos ié is; um discurso nã o preparado, entã o, mas
cheio de fé e experiê ncia teoló gica. Encontramos aqui uma
concentraçã o do essencial: fomos “justi icados”, isto é , feitos justos,
salvos, por Cristo que morreu e ressuscitou por nó s. Acima de tudo,
emerge o fato da Ressurreiçã o, sem a qual a vida cristã seria
simplesmente vã . Naquela manhã de Pá scoa aconteceu algo
extraordiná rio, algo novo e ao mesmo tempo muito concreto, marcado
por sinais muito precisos e registrado por numerosas testemunhas.
Para Paulo, como para os outros autores do Novo Testamento, a
Ressurreiçã o está intimamente ligada ao testemunho daqueles que
tiveram a experiê ncia direta do Ressuscitado. Isso signi ica ver e ouvir,
nã o apenas com os olhos ou com os sentidos, mas també m com uma luz
interior que auxilia o reconhecimento do que os sentidos externos
atestam como fato objetivo.
Paulo dá , portanto, como os quatro Evangelhos, importâ ncia
primordial ao tema das aparições , que constituem condiçã o
fundamental para crer no Ressuscitado que deixou o sepulcro vazio.
Estes dois fatos sã o importantes: o túmulo está vazio e Jesus de fato
apareceu . Assim se forjaram os laços daquela tradiçã o que, pelo
testemunho dos Apó stolos e dos primeiros discı́pulos, haveria de
chegar à s sucessivas geraçõ es até chegar à nossa. A primeira
consequê ncia, ou a primeira forma de expressar este testemunho, é
pregar a Ressurreiçã o de Cristo como sı́ntese do anú ncio evangé lico e
como ponto culminante do itinerá rio salvı́ ico. Paulo faz tudo isso em
muitas ocasiõ es: olhando as Cartas e os Atos dos Apó stolos, podemos
ver que para ele o essencial é dar testemunho da Ressurreiçã o. Gostaria
de citar apenas um texto: Paulo, preso em Jerusalé m, é acusado perante
o Siné drio. Nesta situaçã o, onde está em jogo a sua vida, ele indica qual
é o sentido e o conteú do de toda a sua pregaçã o: “a respeito da
esperança e da ressurreiçã o dos mortos, estou sendo julgado” (At 23,6).
Esta mesma frase Paulo repete continuamente nas suas Cartas (cf. 1 Ts
1,9ss.; 4,13-18; 5,10), nas quais se refere à sua pró pria experiê ncia
pessoal, ao seu pró prio encontro com Cristo ressuscitado (cf. .Gl 1:15-
16, 1 Cor 9:1).
Mas podemos nos perguntar: qual é , para Sã o Paulo, o signi icado
profundo da Ressurreiçã o de Jesus? O que ele tem a nos dizer ao longo
desses dois mil anos? A a irmaçã o “Cristo ressuscitou” é relevante para
nó s hoje? Por que a Ressurreiçã o é tã o importante, tanto para ele como
para nó s? Paulo dá uma resposta solene a esta pergunta no inı́cio de
sua Carta aos Romanos, onde começa referindo-se ao “Evangelho de
Deus . . . a respeito de seu Filho, que foi descendente de Davi segundo a
carne, e designado Filho de Deus em poder segundo o espı́rito de
santidade por sua ressurreiçã o dentre os mortos” (Rm 1:3-4). Paulo
sabe bem, e diz muitas vezes, que Jesus sempre foi o Filho de Deus,
desde o momento da sua Encarnaçã o. A novidade da Ressurreiçã o
consiste no fato de que Jesus, ressuscitado da humildade de sua
existê ncia terrena, é constituı́do Filho de Deus “em poder”. Jesus,
humilhado até o momento de sua morte na Cruz, pode agora dizer aos
Onze: “Foi-me dada toda a autoridade no cé u e na terra” (Mt 28,18).
Cumpriu-se a a irmaçã o do Salmo 2:8: “Pede-me, e eu te darei as naçõ es
por herança, e os con ins da terra por tua possessã o”. Assim, com a
Ressurreiçã o começa o anú ncio do Evangelho de Cristo a todos os
povos – começa o Reino de Cristo, este novo Reino que nã o conhece
outro poder senã o o da verdade e do amor. A Ressurreiçã o revela assim
de initivamente a identidade real e a estatura extraordiná ria do
Cruci icado. Uma dignidade incompará vel e elevada: Jesus é Deus! Para
Sã o Paulo, a identidade secreta de Jesus revela-se ainda mais no
misté rio da Ressurreiçã o do que na Encarnaçã o. Enquanto o tı́tulo de
Cristo , ou seja, “Messias”, “o Ungido”, em Sã o Paulo tende a tornar-se o
nome pró prio de Jesus, e o de “ Senhor ” indica sua relaçã o pessoal com
os crentes, agora o tı́tulo “ Filho de Deus ” vem ilustrar a relaçã o ı́ntima
de Jesus com Deus, relaçã o que se revela plenamente no acontecimento
pascal. Podemos dizer, portanto, que Jesus ressuscitou para ser o
Senhor dos vivos e dos mortos (cf. Rm 14,9; e 2 Cor 5,15), ou, por
outras palavras, o nosso Salvador (cf. Rm 4: 25).
Tudo isto traz consequê ncias importantes para a nossa vida de
crentes: somos chamados a participar, no nosso ı́ntimo, em toda a
histó ria da morte e ressurreiçã o de Cristo. O Apó stolo diz: “morremos
com Cristo” e cremos que “viveremos com Ele”. Pois sabemos que,
sendo Cristo ressuscitado dentre os mortos, nunca mais morrerá ; a
morte nã o tem mais domı́nio sobre ele” (Rm 6:8-9). Isto signi ica
participar no sofrimento de Cristo, que é o prelú dio daquela plena
unidade com Ele atravé s da ressurreiçã o que esperamos. Foi o que
aconteceu també m com Sã o Paulo, cuja experiê ncia pessoal é descrita
nas Cartas em tons tã o dolorosos quanto realistas: “para conhecê -lo e à
força de sua Ressurreiçã o, e compartilhar seus sofrimentos, tornando-
me semelhante a ele em sua morte, para que, se possı́vel, alcance a
ressurreiçã o dentre os mortos” (Fl 3,10-11; cf. 2 Tm 2,8-12). A teologia
da cruz nã o é uma teoria – é a realidade da vida cristã . Viver na fé em
Jesus Cristo, viver na verdade e no amor, implica sacrifı́cio diá rio,
implica sofrimento. O cristianismo nã o é o caminho fá cil; é antes uma
subida difı́cil, mas iluminada pela luz de Cristo e pela grande esperança
que d'Ele nasce. Santo Agostinho diz: os cristã os nã o sã o poupados do
sofrimento, antes devem sofrer um pouco mais, porque viver a fé
expressa a coragem de enfrentar com maior profundidade os
problemas que a vida e a histó ria apresentam. Mas só assim, atravé s da
experiê ncia do sofrimento, podemos conhecer a vida na sua
profundidade, na sua beleza, na grande esperança nascida de Cristo
cruci icado e ressuscitado. O crente, poré m, encontra-se entre dois
pó los: de um lado, a Ressurreiçã o, que em certo sentido já está presente
e operante em nó s (cf. Cl 3,1-4; Ef 2,6); por outro, a urgê ncia de entrar
no processo que conduz tudo e todos rumo à quela plenitude descrita
na Carta aos Romanos com uma imagem ousada: assim como toda a
Criaçã o geme e sofre quase como em dores de parto, assim nó s
gememos na expectativa da redençã o do nosso corpo, da nossa
redençã o e ressurreiçã o (cf. Rm 8, 18-23).
Em sı́ntese, podemos dizer com Paulo que o verdadeiro crente obté m
a salvaçã o professando com a sua boca que Jesus é o Senhor e
acreditando no seu coraçã o que Deus o ressuscitou dos mortos (cf. Rm
10,9). Acima de tudo é importante o coraçã o que crê em Cristo e que na
sua fé “toca” o Ressuscitado; mas nã o basta levar a fé no coraçã o, é
preciso confessá -la e testi icá -la com a boca, com a vida, tornando assim
presente na nossa histó ria a verdade da Cruz e da Ressurreiçã o. Deste
modo, o cristã o torna-se parte daquele processo pelo qual o primeiro
Adã o, criatura da terra e sujeito à corrupçã o e à morte, se transforma
no ú ltimo Adã o, celestial e incorruptı́vel (cf. 1 Cor 15, 20-22 e 42). -49).
Este processo foi desencadeado pela Ressurreiçã o de Cristo, e é ,
portanto, nisto que encontramos a nossa esperança de que um dia
també m nó s possamos entrar com Cristo na nossa verdadeira pá tria,
que é o Cé u. Animados por esta esperança, prossigamos com coragem e
alegria.
12

Escatologia: A Expectativa da Parousia *

O tema da Ressurreiçã o, sobre o qual re letimos na semana passada,


revela uma nova perspectiva, a da expectativa da volta do Senhor. Leva-
nos, assim, a re letir sobre a relaçã o entre o tempo presente, o tempo da
Igreja e do Reino de Cristo, e o futuro ( éschaton ) que nos espera,
quando Cristo entregará o Reino ao seu Pai (cf. . 1 Corı́ntios 15:24).
Toda discussã o cristã das ú ltimas coisas, chamada escatologia, sempre
começa com o evento da Ressurreiçã o; neste evento as ú ltimas coisas já
começaram e, em certo sentido, já estã o presentes.
Muito provavelmente foi no ano 52 que Sã o Paulo escreveu a
primeira das suas Cartas, a Primeira Carta aos Tessalonicenses, na qual
fala deste regresso de Jesus, chamado parusia ou advento , a sua
presença nova, de initiva e manifesta (cf. 4:13-18). O Apó stolo escreveu
estas palavras aos tessalonicenses, assolados por dú vidas e problemas:
«Porque, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, Deus ressuscitará
com Ele dentre os mortos os que dormem» (4, 14). E Paulo continua:
“os que morreram em Cristo ressuscitarã o primeiro. Entã o nó s, os
vivos, os sobreviventes, seremos arrebatados com eles nas nuvens para
encontrar o Senhor nos ares. Desde entã o estaremos com o Senhor
incessantemente” (4:16-17). Paulo descreve a parusia de Cristo em tons
especialmente vı́vidos e com imagens simbó licas que, no entanto,
transmitem uma mensagem simples e profunda: no inal, estaremos
com o Senhor para sempre. Para alé m das imagens, esta é a mensagem
essencial: o nosso futuro é “estar com o Senhor”. Como crentes, já
estamos com o Senhor em nossa vida; nosso futuro, a vida eterna, já
começou.
Em sua Segunda Carta aos Tessalonicenses, Paulo muda sua
perspectiva. Ele fala dos incidentes negativos que devem preceder o
evento inal e conclusivo. Nã o devemos nos deixar enganar, diz ele,
pensando que, segundo cá lculos cronoló gicos, o dia do Senhor é
realmente iminente: “Sobre a questã o da vinda de nosso Senhor Jesus
Cristo e de nossa reuniã o com ele, pedimos você s, irmã os, nã o iquem
tã o facilmente agitados ou aterrorizados, seja por uma expressã o
oracular, ou boato, ou uma carta alegada como nossa, acreditando que o
dia do Senhor está aqui. Ningué m vos seduza, nã o importa como” (2:1-
3). A continuaçã o deste texto anuncia que antes da vinda do Senhor
haverá apostasia, devendo ser revelado aquele bem descrito como o
“homem da iniqü idade”, “o ilho da perdiçã o” (2:3), a quem a tradiçã o
viria a chamar de o Anticristo. No entanto, a intençã o da Carta de Sã o
Paulo é principalmente prá tica. Ele escreve: “Na verdade, quando
está vamos com você s, costumá vamos estabelecer a regra de que quem
nã o trabalhasse nã o deveria comer. Ouvimos dizer que alguns de você s
sã o indisciplinados, nã o se mantendo ocupados, mas agindo como
intrometidos. A todos nó s ordenamos e exortamos fortemente no
Senhor Jesus Cristo que ganhem o alimento que comem trabalhando
discretamente” (3:10-12). Em outras palavras, a expectativa da
parousia de Jesus nã o nos dispensa de trabalhar neste mundo, mas, ao
contrá rio, cria responsabilidade perante o Juiz divino por nossas açõ es
neste mundo. Por isso mesmo aumenta a nossa responsabilidade de
trabalhar neste e para este mundo. A mesma coisa veremos no pró ximo
domingo no Evangelho dos Talentos, em que o Senhor nos diz que
con iou talentos a todos e que o Juiz pedirá contas deles, dizendo: foram
bem aproveitados? Portanto, a expectativa de seu retorno implica
responsabilidade por este mundo.
A mesma coisa e a mesma conexã o entre parusia — a volta do
Juiz/Salvador — e nosso compromisso em nossas vidas aparece em
outro contexto e com novos aspectos na Carta aos Filipenses. Paulo está
na prisã o, aguardando uma sentença que pode ser a condenaçã o à
morte. Nesta situaçã o, ele re lete sobre sua existê ncia futura com o
Senhor, mas també m pensa na comunidade dos ilipenses, que precisa
de seu pai, Paulo, e escreve: “Para mim o viver é Cristo, e o morrer é
lucro. . Se devo continuar vivendo na carne, isso signi ica trabalho
produtivo para mim e nã o sei o que preferir. Sinto-me fortemente
atraı́do por ambos: desejo partir e estar com Cristo, pois isso é muito
melhor; no entanto, é mais urgente que eu permaneça vivo por sua
causa. Isso me enche de con iança de que icarei com você s e
perseverarei com todos você s, para sua alegria e progresso na fé . Meu
estar com você mais uma vez deve lhe dar amplo motivo para se gloriar
em Cristo” (1:21-26). Paulo nã o tem medo da morte; de fato, ao
contrá rio, a morte indica estar totalmente com Cristo. No entanto, Paulo
també m compartilha dos sentimentos de Cristo, que nã o viveu para si,
mas para nó s. Viver para os outros torna-se o seu projeto de vida e
assim demonstra a sua perfeita disponibilidade para fazer a vontade de
Deus, para fazer tudo o que Deus decide. Acima de tudo está preparado,
també m no futuro, para viver nesta terra para os outros, para viver para
Cristo, para viver a sua presença viva e assim para a renovaçã o do
mundo. Vemos que o seu estar com Cristo cria uma ampla liberdade
interior: liberdade diante da ameaça da morte, mas també m liberdade
diante de todos os compromissos e sofrimentos da vida. Ele está
simplesmente à disposiçã o de Deus e verdadeiramente livre.
E agora, depois de examinar os vá rios aspectos da expectativa da
parusia de Cristo , perguntemo-nos: quais sã o as convicçõ es de fundo
dos cristã os a respeito das ú ltimas coisas: a morte, o im do mundo? A
primeira convicçã o deles é a certeza de que Jesus ressuscitou e está
com o Pai e, portanto, conosco para sempre. E ningué m é mais forte do
que Cristo, porque ele está com o Pai, ele está conosco. Estamos
conseqü entemente seguros, livres do medo. Este foi um efeito essencial
da pregaçã o cristã . O medo de espı́ritos e divindades era comum no
mundo antigo. També m hoje os missioná rios, ao lado de muitos bons
elementos das religiõ es naturais, encontram o medo dos espı́ritos, das
forças do mal que nos ameaçam. Cristo vive, venceu a morte, venceu
todos esses poderes. Vivemos nesta certeza, nesta liberdade e nesta
alegria. Este é o primeiro aspecto de nossa vida em relaçã o ao futuro.
A segunda é a certeza de que Cristo está comigo. E assim como o
mundo futuro em Cristo já começou, isso també m fornece a certeza da
esperança. O futuro nã o é uma escuridã o na qual ningué m pode
encontrar seu caminho. Nã o é assim. Sem Cristo, ainda hoje o futuro do
mundo é sombrio, e o medo do futuro é tã o comum. Os cristã os sabem
que a luz de Cristo é mais forte e, portanto, vivem com uma esperança
que nã o é vaga, com uma esperança que lhes dá certeza e coragem para
enfrentar o futuro.
Por im, sua terceira convicçã o é que o Juiz que retorna ao mesmo
tempo que Juiz e Salvador nos deixou o dever de viver neste mundo de
acordo com seu modo de viver. Ele con iou seus talentos a nó s. A nossa
terceira convicçã o, portanto, é a responsabilidade perante Cristo pelo
mundo, pelos nossos irmã os e ao mesmo tempo també m pela certeza
da sua misericó rdia. Ambas as coisas sã o importantes. Visto que Deus
só pode ser misericordioso, nã o vivemos como se o bem e o mal fossem
a mesma coisa. Isso seria um engano. Na realidade, vivemos com uma
grande responsabilidade. Temos talentos, e nossa responsabilidade é
trabalhar para que este mundo se abra a Cristo, que se renove. No
entanto, mesmo quando trabalhamos com responsabilidade,
percebemos que Deus é o verdadeiro Juiz. També m estamos certos de
que este Juiz é bom; conhecemos o seu rosto, o rosto de Cristo
ressuscitado, de Cristo cruci icado por nó s. Portanto, podemos ter
certeza de sua bondade e avançar com grande coragem.
Outro elemento do ensinamento paulino sobre a escatologia é a
universalidade da vocaçã o à fé que une judeus e gentios, isto é , nã o-
cristã os, como sinal e antecipaçã o da realidade futura. Por isso
podemos dizer que já estamos sentados no Cé u com Jesus Cristo, mas
para revelar as riquezas da graça nos sé culos vindouros (Ef 2,6s.), o
depois torna-se um antes , para mostrar o estado de realizaçã o
incipiente em que vivemos. Isto torna suportá veis os sofrimentos do
tempo presente, que, em todo o caso, nã o podem ser comparados à
gló ria futura (cf. Rm 8, 18). Caminhamos por fé , nã o por vista, e mesmo
que preferimos deixar o corpo para viver com o Senhor, o que importa
de initivamente, quer estejamos no corpo, quer estejamos longe dele, é
que lhe sejamos agradá veis (cf. . 2 Cor 5:7-9).
Por im, um ú ltimo ponto que pode nos parecer um tanto difı́cil. No
inal de sua Primeira Carta aos Corı́ntios, Sã o Paulo reitera e també m
põ e nos lá bios dos corı́ntios uma oraçã o que nasceu nas primeiras
comunidades cristã s da á rea palestina: Maranàthà! que signi ica
literalmente: "Nosso Senhor, vem!" (16:22). Era a oraçã o do
cristianismo primitivo e també m do ú ltimo livro do Novo Testamento, o
Apocalipse, que termina com ela: “Vem, Senhor Jesus!” Podemos orar
assim també m? Parece-me que para nó s hoje, em nossas vidas, em
nosso mundo, é difı́cil orar sinceramente para que o mundo pereça para
que venha a nova Jerusalé m, o Juı́zo Final e o Juiz, Cristo. Acho que
mesmo que, sinceramente, nã o nos atrevamos a rezar assim por vá rias
razõ es, ainda assim, de maneira correta e adequada, també m nó s
podemos dizer, junto com os primeiros cristã os: “Vem, Senhor Jesus!” E
claro que nã o desejamos o im do mundo. No entanto, queremos que
este mundo injusto acabe. Queremos també m que o mundo seja
fundamentalmente mudado, queremos o inı́cio da civilizaçã o do amor, a
chegada de um mundo de justiça e paz, sem violê ncia, sem fome.
Queremos tudo isso, mas como pode acontecer sem a presença de
Cristo? Sem a presença de Cristo nunca haverá um mundo
verdadeiramente justo e renovado. E mesmo que o façamos de modo
diverso, també m nó s podemos e devemos dizer, plena e
profundamente, com grande urgê ncia e nas circunstâ ncias do nosso
tempo: «Vem, Senhor Jesus!» Venha do seu jeito, da maneira que você
conhece. Venha onde houver injustiça e violê ncia. Venham aos campos
de refugiados, em Darfur, em Kivu do Norte, em tantas partes do
mundo. Venha onde quer que as drogas prevaleçam. Venha para o meio
daquela gente rica que se esqueceu de você , que vive só para si. Venha
onde quer que você seja desconhecido. Entre no seu caminho e renove
o mundo de hoje. E entra nos nossos coraçõ es, vem renovar as nossas
vidas, entra nos nossos coraçõ es para que nó s mesmos nos tornemos a
luz de Deus, a tua presença. Assim rezemos com Sã o Paulo: Maranàthà!
“Vem, Senhor Jesus!” e rezemos para que Cristo esteja realmente
presente em nosso mundo hoje e o renove.
13

A Doutrina da Justi icação:


Das Obras à Fé *

No caminho que fazemos sob a guia de Sã o Paulo, re litamos agora


sobre um tema que está no centro das contrové rsias do sé culo da
Reforma: a questã o da justi icaçã o. Como o homem se torna justo aos
olhos de Deus? Quando Paulo encontrou o Ressuscitado no caminho de
Damasco, era um homem realizado; irrepreensı́vel segundo a justiça
que deriva da Lei (cf. Fl 3,6), Paulo superou muitos de seus
contemporâ neos na observâ ncia da Lei mosaica e manteve zelosamente
as tradiçõ es de seus pais (cf. Gl 1,14). A iluminaçã o de Damasco mudou
radicalmente sua vida; passou a considerar como “lixo” todos os
mé ritos adquiridos numa carreira religiosa impecá vel, em comparaçã o
com a sublimidade de conhecer Jesus Cristo (cf. Fl 3, 8). A Carta aos
Filipenses oferece-nos um comovente testemunho da passagem de
Paulo de uma justiça fundada na Lei e adquirida pela observâ ncia das
açõ es exigidas a uma justiça baseada na fé em Cristo. Ele havia
entendido que o que até entã o lhe parecia um ganho, diante de Deus
era, na verdade, uma perda; e assim decidiu apostar toda a sua
existê ncia em Jesus Cristo (cf. Fl 3,7). O tesouro escondido no campo e a
pé rola preciosa para cuja compra tudo deveria ser investido nã o eram
mais obras da Lei, mas Jesus Cristo, seu Senhor.
A relaçã o entre Paulo e o Ressuscitado tornou-se tã o profunda que o
induziu a sustentar que Cristo já nã o era só a sua vida, mas també m a
sua pró pria inalidade na vida, a ponto de poder chegar até ele, a morte
tornou-se um ganho (cf. Fp 1:21). Isso nã o quer dizer que ele
desprezasse a vida, mas que ele percebeu que para ele neste momento
nã o havia outro propó sito na vida e, portanto, nã o tinha outro desejo
senã o chegar a Cristo como em uma competiçã o de atletismo para
permanecer com ele para sempre. O Cristo Ressuscitado tornou-se o
princı́pio e o im de sua existê ncia, a causa e a meta de sua raça. Foi
apenas a sua preocupaçã o pelo crescimento na fé daqueles que
evangelizou e a sua ansiedade por todas as Igrejas que fundou (cf. 2 Cor
11, 28) que o levaram a abrandar a sua corrida rumo ao seu ú nico
Senhor, a esperar para seus discı́pulos, para que pudessem correr com
ele em direçã o ao alvo. Embora do ponto de vista da integridade moral
nã o tivesse nada de que se censurar na sua antiga observâ ncia da Lei,
uma vez que Cristo o alcançou, preferiu nã o fazer julgamentos sobre si
mesmo (cf. 1 Cor 4, 3-4). Em vez disso, limita-se a decidir prosseguir, a
fazer seu Aquele que o fez seu (cf. Fl 3, 12).
E precisamente por esta experiê ncia pessoal de relaçã o com Jesus
Cristo que Paulo coloca doravante no centro do seu Evangelho uma
oposiçã o irredutı́vel entre os dois caminhos alternativos de justiça: um
construı́do sobre as obras da Lei, outro fundado na graça de fé em
Cristo. A alternativa entre a justiça pelas obras da Lei e a justiça pela fé
em Cristo tornou-se assim um dos temas dominantes que percorrem as
suas Cartas: «Nó s mesmos, que somos judeus de nascimento e nã o
gentios pecadores, mas que sabemos que um homem nã o é justi icado
pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, nó s també m cremos em
Cristo Jesus para sermos justi icados pela fé em Cristo, e nã o pelas
obras da lei; porque pelas obras da lei ningué m será justi icado” (Gl
2:15-16). E aos cristã os de Roma rea irma que “todos pecaram e
carecem da gló ria de Deus; agora sã o justi icados gratuitamente pela
sua graça, mediante a redençã o que há em Cristo Jesus” (Rm 3,23-24). E
acrescenta: “nó s sustentamos que o homem é justi icado pela fé ,
independentemente das obras da lei” ( ibid ., v. 28). Neste ponto Lutero
traduziu: “justi icado somente pela fé ”. Voltarei a este ponto no inal da
Catequese. Primeiro, devemos explicar o que é essa “Lei” da qual somos
libertos e quais sã o essas “obras da Lei” que nã o justi icam. A opiniã o
que se repetiria sistematicamente na histó ria já existia na comunidade
de Corinto. Esta opiniã o consistia em pensar que se tratava de lei moral
e que a liberdade cristã consistia assim na libertaçã o da é tica. Assim,
em Corinto, o termo “παντα μοι εξεστιν” (posso fazer o que quiser) foi
difundido. E ó bvio que esta interpretaçã o está errada: a liberdade cristã
nã o é libertinagem; a libertaçã o de que falava Sã o Paulo nã o é a
libertaçã o das boas obras.
Entã o, o que signi ica a Lei da qual somos libertados e que nã o salva?
Para Sã o Paulo, como para todos os seus contemporâ neos, a palavra
“Lei” signi icava a Torá em sua totalidade, ou seja, os cinco livros de
Moisé s. A Torá , na interpretaçã o farisaica, aquela que Paulo havia
estudado e feito sua, era um conjunto complexo de có digos de conduta
que iam do nú cleo é tico à s observâ ncias de ritos e cultos e que
determinavam essencialmente a identidade do justo. Em particular,
incluı́am a circuncisã o, as observâ ncias relativas à comida pura e à
pureza ritual em geral, as regras relativas à observâ ncia do sá bado, etc.,
có digos de conduta que també m aparecem com frequê ncia nos debates
entre Jesus e seus contemporâ neos. Todas essas observâ ncias que
expressam uma identidade social, cultural e religiosa adquiriram uma
importâ ncia ú nica na é poca da cultura helenı́stica, a partir do sé culo III
aC Essa cultura, que se tornou a cultura universal da é poca e era uma
cultura aparentemente racional, uma cultura a cultura politeı́sta,
aparentemente tolerante, constituı́a uma forte pressã o para a
uniformizaçã o cultural e assim ameaçava a identidade de Israel, que
era politicamente constrangido a entrar nesta identidade comum da
cultura helenı́stica. Daı́ resultou a perda da pró pria identidade e,
portanto, també m a perda da preciosa herança da fé dos Padres, da fé
no ú nico Deus e nas promessas de Deus.
Contra esta pressã o cultural, que ameaçava nã o só a identidade
israelita, mas també m a fé no ú nico Deus e nas suas promessas, era
necessá rio criar um muro de distinçã o, um escudo de defesa para
proteger o precioso patrimó nio da fé ; esta parede consistia
precisamente nas observâ ncias e prescriçõ es judaicas. Paulo, que havia
aprendido essas observâ ncias em seu papel de defender o dom de Deus,
a herança da fé em um só Deus, viu essa identidade ameaçada pela
liberdade dos cristã os: por isso os perseguiu. No momento do encontro
com o Ressuscitado compreendeu que com a Ressurreiçã o de Cristo a
situaçã o mudou radicalmente. Com Cristo, o Deus de Israel, o ú nico
Deus verdadeiro, tornou-se o Deus de todos os povos. Já nã o era
necessá rio o muro, como diz na Carta aos Efé sios, entre Israel e os
gentios: é Cristo quem nos protege do politeı́smo e de todos os seus
desvios; é Cristo que nos une com e no ú nico Deus; é Cristo quem
garante a nossa verdadeira identidade na diversidade das culturas. A
parede nã o é mais necessá ria; a nossa identidade comum na
diversidade das culturas é Cristo, e é Ele quem nos torna justos. Ser
simplesmente signi ica estar com Cristo e em Cristo. E isso basta.
Outras observâ ncias nã o sã o mais necessá rias. Por isso a frase de
Lutero: “ só a fé ” é verdadeira, se nã o se opõ e à fé na caridade, no amor.
A fé é olhar para Cristo, con iar-se a Cristo, unir-se a Cristo, conformar-
se com Cristo, com a sua vida. E a forma, a vida de Cristo, é o amor;
portanto, crer é conformar-se com Cristo e entrar no seu amor. Assim é
que na Carta aos Gá latas, na qual desenvolveu principalmente o seu
ensinamento sobre a justi icaçã o, Sã o Paulo fala da fé que opera pelo
amor (cf. Gl 5, 14).
Paulo sabe que no dú plice amor de Deus e do pró ximo está presente
e realizada toda a Lei. Assim, na comunhã o com Cristo, numa fé que
gera caridade, cumpre-se toda a Lei. Tornamo-nos justos entrando em
comunhã o com Cristo, que é Amor. A mesma coisa veremos no
Evangelho do pró ximo domingo, solenidade de Cristo Rei. E o
Evangelho do juiz cujo ú nico crité rio é o amor. O que ele pergunta é
apenas isso: você me visitou quando eu estava doente? Quando eu
estava na prisã o? Você me deu comida para comer quando eu estava
com fome, você me vestiu quando eu estava nu? E assim a justiça se
decide na caridade. Assim, no inal deste Evangelho quase podemos
dizer: só amor, só caridade. Mas nã o há contradiçã o entre este
Evangelho e Sã o Paulo. E a mesma visã o, segundo a qual a comunhã o
com Cristo, a fé em Cristo, gera a caridade. E a caridade é o
cumprimento da comunhã o com Cristo. Assim, somos apenas por
estarmos unidos a ele e de nenhuma outra maneira.
No inal, só podemos rezar ao Senhor para que nos ajude a crer;
realmente acredito. Acreditar torna-se assim vida, unidade com Cristo,
transformaçã o da nossa vida. E assim, transformados pelo seu amor,
pelo amor a Deus e ao pró ximo, podemos ser verdadeiramente justos
aos olhos de Deus.
14

A Doutrina da Justi icação: O


Ensinamento do Apóstolo sobre Fé e Obras *

Na catequese da quarta-feira passada, falei de como o homem é


justi icado diante de Deus. Seguindo Sã o Paulo, vimos que o homem nã o
pode “justi icar-se” a si mesmo com as suas pró prias açõ es, mas só
pode tornar-se verdadeiramente “justo” diante de Deus porque Deus
lhe confere a sua “justiça”, unindo-o a Cristo, seu Filho. E o homem
obté m essa uniã o pela fé . Neste sentido, diz-nos Sã o Paulo: nã o sã o as
nossas obras, mas a fé que nos torna “justos”. Essa fé , poré m, nã o é um
pensamento, uma opiniã o, uma ideia. Esta fé é comunhã o com Cristo,
que o Senhor nos dá , e que assim se torna vida, se torna conformidade
com Ele. Ou, para usar outras palavras, a fé , se é verdadeira, se é real,
torna-se amor, torna-se caridade, exprime-se na caridade. Uma fé sem
caridade, sem este fruto, nã o seria fé verdadeira. Seria uma fé morta.
Assim, em nossa ú ltima Catequese, descobrimos dois nı́veis: o da
insigni icâ ncia de nossas açõ es e de nossas açõ es para alcançar a
salvaçã o, e o da “justi icaçã o” pela fé que produz o fruto do Espı́rito. A
confusã o desses dois nı́veis causou muitos mal-entendidos no
cristianismo ao longo dos sé culos. Neste contexto é importante que Sã o
Paulo, na mesma Carta aos Gá latas, acentue radicalmente, por um lado,
o cará ter gratuito da justi icaçã o que nã o depende das nossas obras,
mas que, ao mesmo tempo, põ e em evidê ncia també m a relaçã o entre a
fé e a caridade, entre a fé e as obras: «Em Cristo Jesus, nem a
circuncisã o nem a incircuncisã o tê m valor algum, mas unicamente a fé
que opera pelo amor» (Gl 5,6). Consequentemente, há , por um lado,
“obras da carne”, que sã o “imoralidade, impureza, libertinagem,
idolatria. . .” (Gl 5:19-20): todas as obras contrá rias à fé ; por outro lado,
a açã o do Espı́rito Santo que alimenta a vida cristã , inspirando “amor,
alegria, paz, paciê ncia, amabilidade, bondade, idelidade, mansidã o,
domı́nio pró prio” (Gl 5,22-23). Estes sã o os frutos do Espı́rito que
brotam da fé .
Ágape , amor, é citado no inı́cio desta lista de virtudes, e o
autocontrole na conclusã o. Com efeito, o Espı́rito que é Amor do Pai e
do Filho derrama o seu primeiro dom, o ágape , nos nossos coraçõ es (cf.
Rm 5, 5); e para ser totalmente expresso, ágape , amor, requer
autocontrole. Na minha primeira Encı́clica, Deus Caritas Est , tratei
també m do amor do Pai e do Filho que nos alcança e transforma
profundamente a nossa existê ncia. Os crentes sabem que o amor
recı́proco se concretiza no amor de Deus e de Cristo, por meio do
Espı́rito. Voltemos à Carta aos Gá latas. Aqui Sã o Paulo diz que, levando
os fardos uns dos outros, os crentes cumprem o mandamento do amor
(cf. Gl 6,2).
Justi icados pelo dom da fé em Cristo, somos chamados a viver no
amor de Cristo ao pró ximo, porque é com base neste crité rio que
seremos julgados no inal da nossa vida. Na realidade, Paulo apenas
repete o que o pró prio Jesus disse e que nos é proposto de novo pelo
Evangelho do domingo passado, na pará bola do Juı́zo Final. Na Primeira
Carta aos Corı́ntios, Sã o Paulo se derrama em um famoso elogio ao
amor. E chamado de “hino ao amor”: “Se eu falar as lı́nguas dos homens
e dos anjos, mas nã o tiver amor, sou um gongo que soa ou um cı́mbalo
que retine. . . . O amor é paciente e gentil; o amor nã o é ciumento nem
arrogante; nã o é arrogante ou rude. O amor nã o insiste em seu pró prio
caminho” (1 Cor 13:1, 4-5). O amor cristã o é particularmente exigente
porque brota do amor total de Cristo por nó s: aquele amor que nos
reclama, nos acolhe, nos abraça, nos sustenta, até nos atormentar,
porque obriga cada um a viver nã o mais para si, fechado em pró prio
egoı́smo, mas por aquele «que por eles morreu e ressuscitou» (2 Cor 5,
15). O amor de Cristo faz de nó s, nele, aquela nova criaçã o (cf. 2 Cor 5,
17), que vem a pertencer ao seu Corpo Mı́stico que é a Igreja.
Vista nesta perspectiva, a centralidade da justi icaçã o sem obras,
objeto primordial da pregaçã o de Paulo, nã o se opõ e à fé que opera pelo
amor; na verdade, exige que a pró pria fé se expresse numa vida
segundo o Espı́rito. Freqü entemente se vê uma oposiçã o infundada
entre a teologia de Sã o Paulo e a de Sã o Tiago, que escreve em sua
Carta: “assim como o corpo sem o espı́rito é morto, assim també m a fé
sem as obras é morta” (2,26). Na realidade, enquanto Paulo se preocupa
principalmente em mostrar que a fé em Cristo é necessá ria e su iciente,
Tiago acentua as relaçõ es consequentes entre fé e obras (cf. Tg 2,24).
Portanto, tanto para Paulo quanto para Tiago, a fé que é ativa no amor
testi ica do dom gratuito da justi icaçã o em Cristo. A salvaçã o recebida
em Cristo precisa ser preservada e testemunhada “com temor e tremor.
Pois Deus está trabalhando em você , tanto para querer quanto para
trabalhar para o seu bom prazer. . . . Faça todas as coisas sem
resmungar ou questionar. . . retendo a palavra da vida”, diria ainda Sã o
Paulo, aos cristã os de Filipos (cf. Fl 2,12-14.16).
Muitas vezes somos induzidos a cair nos mesmos mal-entendidos
que caracterizaram a comunidade de Corinto; aqueles cristã os
pensavam que, uma vez que haviam sido livremente justi icados em
Cristo pela fé , “eles poderiam fazer o que quisessem”. E eles
acreditavam — e muitas vezes parece que també m os cristã os de hoje
pensam assim — que é lı́cito criar divisõ es na Igreja, Corpo de Cristo,
celebrar a Eucaristia sem cuidar dos irmã os mais necessitados, aspirar
a melhores carismas sem estar ciente de que cada um é um membro do
outro, e assim por diante. As consequê ncias de uma fé que nã o se
manifesta no amor sã o desastrosas, porque se reduz ao arbı́trio e ao
subjetivismo que mais prejudicam a nó s e aos nossos irmã os. Ao
contrá rio, seguindo Sã o Paulo, devemos adquirir uma nova consciê ncia
do fato de que precisamente porque somos justi icados em Cristo, nã o
pertencemos mais a nó s mesmos, mas nos tornamos templo do Espı́rito
e, portanto, somos chamados a glori icar a Deus em nosso corpo com
toda a nossa existê ncia (cf. 1 Cor 6, 19). Estarı́amos desvalorizando o
valor inestimá vel da justi icaçã o, comprada pelo alto preço do Sangue
de Cristo, se nã o o glori icá ssemos com o nosso corpo. Com efeito, o
nosso culto ao mesmo tempo racional e espiritual é precisamente este,
pelo que Sã o Paulo nos exorta «a apresentar os [nossos] corpos em
sacrifı́cio vivo, santo e agradá vel a Deus» (Rm 12,1). A que se reduziria
uma liturgia dirigida unicamente ao Senhor sem se tornar
simultaneamente um serviço aos irmã os, uma fé que nã o se exprimiria
na caridade? E o Apó stolo coloca muitas vezes as suas comunidades em
confronto com o Juı́zo Final, por ocasiã o do qual: «todos devemos
comparecer perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba o
bem ou o mal, segundo o que tiver feito no corpo» (2 Cor 5,10; cf.
també m Rm 2,16). E esta ideia do Juı́zo Final deve iluminar-nos na
nossa vida quotidiana.
Se a é tica que Paulo propõ e aos crentes nã o se deteriora em formas
de moralismo e se mostra atual para nó s, é porque, sempre, parte da
relaçã o pessoal e comunitá ria com Cristo, a realizar-se concretamente
na vida segundo o espı́rito. Isto é essencial: a é tica cristã nã o nasce de
um sistema de mandamentos, mas é consequê ncia da nossa amizade
com Cristo. Essa amizade in luencia a vida; se for verdadeiro, encarna-
se e realiza-se no amor ao pró ximo. Por isso, qualquer decadê ncia é tica
nã o se limita ao â mbito individual, mas també m enfraquece a fé pessoal
e comunitá ria da qual deriva e sobre a qual tem um efeito crucial.
Portanto, deixemo-nos tocar pela reconciliaçã o que Deus nos deu em
Cristo, pelo amor “louco” de Deus por nó s; nada nem ningué m nos
poderá separar do seu amor (cf. Rm 8, 39). Vivemos nesta certeza. E
esta certeza que nos dá força para viver concretamente a fé que opera
no amor.
15

O Ensinamento do Apóstolo sobre a relação


entre Adão e Cristo *

Na Catequese de hoje re letiremos sobre as relaçõ es entre Adã o e


Cristo, de inidas por Sã o Paulo no conhecido trecho da Carta aos
Romanos (5, 12-21), em que dá à Igreja o esboço essencial da doutrina
sobre pecado original. De fato, Paulo já havia introduzido a comparaçã o
entre nosso primeiro progenitor e Cristo ao abordar a fé na
Ressurreiçã o na Primeira Carta aos Corı́ntios: “Porque, assim como
todos morrem em Adã o, assim també m todos serã o vivi icados em
Cristo. . . . 'O primeiro homem, Adã o, tornou-se um ser vivente'; o ú ltimo
Adã o tornou-se um espı́rito vivi icante” (1 Corı́ntios 15:22, 45). Com
Romanos 5,12-21, a comparaçã o entre Cristo e Adã o torna-se mais
articulada e esclarecedora: Paulo traça a histó ria da salvaçã o desde
Adã o até a Lei e desta até Cristo. No centro da cena nã o é tanto Adã o,
com as consequê ncias do seu pecado para a humanidade, mas sim Jesus
Cristo e a graça que foi derramada abundantemente sobre a
humanidade por meio dele. A repetiçã o do “ainda mais” em relaçã o a
Cristo sublinha que o dom recebido n’Ele supera em muito o pecado de
Adã o e os seus consequentes efeitos na humanidade, de modo que
Paulo pode chegar à sua conclusã o: “mas, onde abundou o pecado,
superabundou a graça. ” (Rm 5:20). A comparaçã o que Paulo faz entre
Adã o e Cristo, portanto, lança luz sobre a inferioridade do primeiro
homem em comparaçã o com a prevalê ncia do segundo.
Por outro lado, é precisamente para destacar o dom imensurá vel da
graça em Cristo que Paulo menciona o pecado de Adã o. Pode-se dizer
que se nã o fosse para demonstrar a centralidade da graça, ele nã o teria
se demorado no tratamento do pecado que “veio ao mundo por um só
homem e pelo pecado a morte” (Rm 5,12). Por isso, se na fé da Igreja se
desenvolveu a consciê ncia do dogma do pecado original, é porque ele
está inseparavelmente ligado a outro dogma, o da salvaçã o e da
liberdade em Cristo. A consequê ncia disso é que nunca devemos tratar
o pecado de Adã o e da humanidade separadamente do contexto
salvı́ ico, ou seja, sem entendê -los no horizonte da justi icaçã o em
Cristo.
No entanto, como pessoas de hoje, devemos nos perguntar: o que é
esse pecado original? O que ensina Sã o Paulo, o que ensina a Igreja?
Essa doutrina ainda é sustentá vel hoje? Muitos pensam que, à luz da
histó ria da evoluçã o, nã o há mais espaço para a doutrina de um
primeiro pecado que entã o teria permeado toda a histó ria humana. E,
com isso, a questã o da Redençã o e do Redentor també m perderia seu
fundamento. Portanto, o pecado original existe ou nã o? Para responder,
devemos distinguir entre dois aspectos da doutrina sobre o pecado
original. Existe um aspecto empı́rico, ou seja, uma realidade que é
concreta, visı́vel, eu diria tangı́vel para todos. E um aspecto de misté rio
sobre o fundamento ontoló gico desse evento. O fato empı́rico é que
existe uma contradiçã o em nosso ser. Por um lado, cada pessoa sabe
que deve fazer o bem e interiormente deseja fazê -lo. Mas, ao mesmo
tempo, ele també m sente o outro impulso de fazer o contrá rio, de
seguir o caminho do egoı́smo e da violê ncia, de fazer apenas o que lhe
agrada, sabendo també m que assim age contra o bem, contra Deus e
contra seu vizinho. Na Carta aos Romanos, Sã o Paulo exprimiu assim
esta contradiçã o do nosso ser: “Posso querer o que é certo, mas nã o
posso fazê -lo. Pois nã o faço o bem que quero, mas faço o mal que nã o
quero” (7:18-19). Essa contradiçã o interna de nosso ser nã o é uma
teoria. Cada um de nó s experimenta isso todos os dias. E sobretudo
vemos sempre à nossa volta a prevalê ncia desta segunda vontade. Basta
pensar nas notı́cias diá rias de injustiça, violê ncia, falsidade e luxú ria.
Nó s vemos isso todos os dias. E um fato.
Como conseqü ê ncia desse poder maligno em nossas almas, um rio
turvo se desenvolveu na histó ria que envenena a geogra ia da histó ria
humana. Blaise Pascal, o grande pensador francê s, falava de uma
“segunda natureza”, que se sobrepõ e à nossa boa natureza original. Essa
“segunda natureza” faz o mal parecer normal para o homem. Daı́ até a
expressã o comum “ele é humano” ter um duplo signi icado. “Ele é
humano” pode signi icar: esse homem é bom, ele realmente age como
se deve agir. Mas “ele é humano” també m pode signi icar falsidade: o
mal é normal, é humano. O mal parece ter se tornado nossa segunda
natureza. Esta contradiçã o do ser humano, da nossa histó ria, deve
evocar, e ainda hoje evoca, o desejo de redençã o. E, na realidade, o
desejo de que o mundo seja mudado e a promessa de que um mundo de
justiça, paz e bem será criado existe em todos os lugares. Na polı́tica,
por exemplo, todos falam dessa necessidade de mudar o mundo, de
criar um mundo mais justo. E esta é precisamente uma expressã o do
desejo de libertaçã o da contradiçã o que vivemos dentro de nó s.
Assim, a existê ncia do poder do mal no coraçã o humano e na histó ria
humana é um fato inegá vel. A questã o é : como explicar esse mal? Na
histó ria do pensamento, à parte a fé cristã , existe uma explicaçã o chave
desta dualidade, com diversas variaçõ es. Este modelo diz: o ser em si é
contraditó rio, traz consigo o bem e o mal. Na antiguidade, esta ideia
implicava a opiniã o de que existiam dois princı́pios igualmente
primordiais: um princı́pio bom e um princı́pio mau. Essa dualidade
seria insuperá vel; os dois princı́pios estã o no mesmo nı́vel, entã o essa
contradiçã o desde a origem do ser sempre existiria. A contradiçã o de
nosso ser, portanto, apenas re letiria a natureza contrá ria dos dois
princı́pios divinos, por assim dizer. Na versã o evolucionista e ateı́sta do
mundo, a mesma visã o retorna em uma nova forma. Embora nesta
concepçã o a visã o do ser seja monista, ela supõ e que o ser como tal
carrega em si o mal e o bem desde o inı́cio. O pró prio ser nã o é
simplesmente bom, mas aberto ao bem e ao mal. O mal é igualmente
primordial com o bem. E a histó ria humana desenvolveria apenas o
modelo já presente em toda a evoluçã o anterior. O que os cristã os
chamam de pecado original seria, na realidade, apenas a natureza mista
do ser, uma mistura do bem e do mal que, segundo o pensamento ateu,
pertencem ao mesmo tecido do ser. Essa é uma visã o
fundamentalmente desesperada: se for esse o caso, o mal é invencı́vel.
No inal, tudo o que conta é o pró prio interesse. Todo progresso seria
necessariamente pago com uma torrente de maldade, e aqueles que
quisessem servir ao progresso teriam que concordar em pagar esse
preço. A polı́tica é fundamentalmente estruturada nessas premissas, e
vemos os efeitos disso. No inal, esse modo moderno de pensar só pode
criar tristeza e cinismo.
E perguntemo-nos novamente: o que nos diz a fé testemunhada por
Sã o Paulo? Como primeiro ponto, con irma a realidade da competiçã o
entre as duas naturezas, a realidade deste mal cuja sombra pesa sobre
toda a Criaçã o. Ouvimos o capı́tulo 7 da Carta aos Romanos;
acrescentaremos o capı́tulo 8. Simplesmente, o mal existe. Como
explicaçã o, em contraste com o dualismo e o monismo que brevemente
consideramos e achamos angustiantes, a fé nos diz: existem dois
misté rios, um de luz e outro de noite, que é , no entanto, envolvido pelos
misté rios de luz. O primeiro misté rio da luz é este: a fé nos diz que nã o
existem dois princı́pios, um bom e um mau, mas um ú nico princı́pio,
Deus Criador, e este princı́pio é bom, somente bom, sem sombra de mal.
. E, portanto, també m o ser nã o é uma mistura de bem e mal; ser como
tal é bom e, portanto, é bom ser, é bom viver. Esta é a boa nova da fé : só
existe uma boa fonte, o Criador. Portanto viver é um bem, é bom ser
homem ou mulher, a vida é boa. Entã o segue um misté rio de escuridã o,
ou noite. O mal nã o vem da fonte do pró prio ser, nã o é igualmente
primordial. O mal vem de uma liberdade criada, de uma liberdade
abusada.
Como foi possı́vel, como aconteceu? Isso permanece obscuro. O mal
nã o é ló gico. Só Deus e o bem sã o ló gicos, sã o leves. O mal permanece
misterioso. Apresenta-se assim em grandes imagens, como no capı́tulo
3 do Gé nesis, com aquela cena das duas á rvores, da serpente, do
homem pecador: uma grande imagem que nos faz adivinhar mas nã o
pode explicar o que é iló gico em si. Podemos adivinhar, nã o explicar;
nem podemos recontá -lo como um fato apó s o outro, porque é uma
realidade mais profunda. Permanece um misté rio de escuridã o, de
noite. Mas um misté rio de luz é imediatamente adicionado. O mal vem
de uma fonte subordinada. Deus com sua luz é mais forte. E, portanto, o
mal pode ser superado. Assim a criatura, o homem, pode ser curada. As
visõ es dualistas, incluindo o monismo do evolucionismo, nã o podem
dizer que o homem é curá vel; mas se o mal vem apenas de uma fonte
subordinada, continua sendo verdade que o homem é curá vel. E o Livro
da Sabedoria diz: “ele tornou curá veis as naçõ es do mundo” (1:14
Vulgata ). E, inalmente, o ú ltimo ponto: o homem nã o só é curá vel, mas
é curado de fato. Deus introduziu a cura. Ele entrou na histó ria
pessoalmente. Ele colocou uma fonte de puro bem contra a fonte
permanente do mal. O Cristo Cruci icado e Ressuscitado, o novo Adã o,
contrapõ e ao rio turvo do mal um rio de luz. E este rio está presente na
histó ria: vemos os santos, os grandes santos, mas també m os humildes,
os simples ié is. Vemos que a corrente de luz que lui de Cristo está
presente, é forte.
Irmã os e irmã s, é tempo de Advento. Na linguagem da Igreja, a
palavra Advento tem dois signi icados: presença e antecipaçã o.
Presença: a luz está presente, Cristo é o novo Adã o, está conosco e entre
nó s. Sua luz já está brilhando, e devemos abrir os olhos de nossos
coraçõ es para ver a luz e entrar no rio de luz. Acima de tudo, devemos
ser gratos pelo fato de que o pró prio Deus entrou na histó ria como uma
nova fonte de bem. Mas Advento també m signi ica antecipaçã o. A noite
escura do mal ainda é forte. E por isso no Advento rezamos com o
antigo Povo de Deus: “ Rorate caeli desuper ”. E rezamos com
insistê ncia: vem Jesus; venha, dê poder à luz e ao bem; vem onde
predominam a falsidade, a ignorâ ncia de Deus, a violê ncia e a injustiça.
Vem Senhor Jesus, dá poder aos bons do mundo e ajuda-nos a ser
portadores da tua luz, paci icadores, testemunhas da verdade. Vem,
Senhor Jesus!
16

Teologia dos Sacramentos *

Seguindo Sã o Paulo, vimos duas coisas na catequese da ú ltima quarta-


feira. A primeira é que nossa histó ria humana foi poluı́da desde o inı́cio
pelo mau uso da liberdade criada que busca a emancipaçã o da Vontade
divina. Assim, ela nã o encontra a verdadeira liberdade, mas se opõ e à
verdade e, conseqü entemente, falsi ica nossas realidades humanas.
Falsi ica sobretudo as relaçõ es fundamentais: com Deus, entre o
homem e a mulher, entre o homem e a terra. Dissemos que essa
contaminaçã o permeia todo o tecido da nossa histó ria e que esse
defeito hereditá rio continuou a se espalhar dentro dela e agora pode
ser visto em todos os lugares. Esta foi a primeira coisa. A segunda é
esta: aprendemos de Sã o Paulo que existe um novo começo na histó ria
e da histó ria em Jesus Cristo, Aquele que é homem e Deus. Com Jesus,
que vem de Deus, começa uma nova histó ria que é plasmada pelo seu
“sim” ao Pai e, portanto, nã o se baseia no orgulho de uma falsa
emancipaçã o, mas no amor e na verdade.
No entanto, surge agora a pergunta: como podemos entrar neste
novo começo, nesta nova histó ria? Como essa nova histó ria chega até
mim? Estamos inevitavelmente ligados à primeira histó ria contaminada
por nossa descendê ncia bioló gica, pois todos pertencemos ao mesmo
corpo da humanidade; mas como se dá a comunhã o com Jesus, como se
faz o novo nascimento para entrar na nova humanidade? Como Jesus
entra na minha vida, no meu ser? A resposta fundamental de Sã o Paulo
e de todo o Novo Testamento é que ele vem pela açã o do Espı́rito Santo.
Se a primeira histó ria começa, por assim dizer, com a biologia, a
segunda começa com o Espı́rito Santo, o Espı́rito de Cristo
Ressuscitado. No Pentecostes, este Espı́rito criou o inı́cio da nova
humanidade, a nova comunidade, a Igreja, o Corpo de Cristo.
No entanto, devemos ser ainda mais concretos: como pode este
Espı́rito de Cristo, o Espı́rito Santo, tornar-se o meu Espı́rito? A
resposta é que isso acontece de trê s maneiras intimamente
interconectadas. Esta é a primeira: o Espı́rito de Cristo bate à porta do
meu coraçã o, move-me por dentro. Mas como a nova humanidade deve
ser um verdadeiro corpo, como o Espı́rito deve nos reunir e criar
realmente uma comunidade, como a superaçã o das divisõ es e a reuniã o
dos dispersos é caracterı́stica do novo começo, este Espı́rito de Cristo
usa dois elementos visivelmente agregados : a Palavra do anú ncio e os
sacramentos, em particular o Batismo e a Eucaristia. Na Carta aos
Romanos, Sã o Paulo diz: “Se com a tua boca confessares que Jesus é o
Senhor e em teu coraçã o creres que Deus o ressuscitou dentre os
mortos, será s salvo” (10,9), ou seja, você entrará na nova histó ria, uma
histó ria de vida e nã o de morte. Sã o Paulo continua: “Mas como
invocarã o aquele em quem nã o creram? E como eles acreditarã o
naquele de quem nunca ouviram falar? E como eles ouvirã o sem um
pregador? E como os homens podem pregar, a menos que sejam
enviados?” (Rm 10:14-15). Em uma passagem seguinte, ele diz ainda: “a
fé vem pelo que se ouve” (Rm 10,17). A fé nã o é produto do nosso
pensamento ou da nossa re lexã o; é algo novo que nã o podemos
inventar, mas apenas receber como um dom, como uma coisa nova
produzida por Deus. Alé m disso, a fé nã o vem da leitura, mas da escuta.
Nã o é apenas algo interior, mas també m uma relaçã o com Algué m.
Implica um encontro com o anú ncio; implica a existê ncia do Outro, que
ela anuncia e cria comunhã o.
E, por ú ltimo, o anú ncio: quem anuncia nã o fala por si, mas é enviado.
Ele se insere em uma estrutura de missã o que começa com Jesus,
enviado pelo Pai, passa pelos Apó stolos – o termo “apó stolos” signi ica
“os enviados” – e continua no ministé rio, nas missõ es transmitidas
pelos Apó stolos. O novo tecido da histó ria toma forma nesta estrutura
de missõ es em que inalmente ouvimos o pró prio Deus falar; sua
Palavra pessoal, o Filho fala conosco, chega até nó s. O Verbo se fez
carne, Jesus, para criar realmente uma nova humanidade. A palavra do
anú ncio torna-se assim sacramento no Batismo, que é o renascimento
da á gua e do Espı́rito, como diria Sã o Joã o. No sexto capı́tulo da Carta
aos Romanos, Sã o Paulo fala do Batismo de maneira muito profunda.
Ouvimos o texto, mas pode ser ú til repeti-lo: “Nã o sabeis que todos nó s
que fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na sua morte?
Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo, para que, como
Cristo ressuscitou dentre os mortos pela gló ria do Pai, assim també m
andemos nó s em novidade de vida” (6:3-4).
Nesta Catequese nã o posso, naturalmente, entrar em uma
interpretaçã o detalhada deste texto nada fá cil. Gostaria de observar
brevemente apenas trê s pontos. A primeira: “fomos batizados” está na
passiva. Ningué m pode batizar a si mesmo, ele precisa do outro.
Ningué m pode se tornar cristã o por conta pró pria. Tornar-se cristã o é
um processo passivo. Somente por meio de outro podemos nos tornar
cristã os, e esse “outro” que nos torna cristã os, que nos dá o dom da fé , é
em primeiro lugar a comunidade dos crentes, a Igreja. Da Igreja
recebemos a fé , o Batismo. A menos que nos deixemos formar por esta
comunidade, nã o nos tornamos cristã os. Um cristianismo autô nomo e
autoproduzido é uma contradiçã o em si mesmo. Em primeiro lugar, este
“outro” é a comunidade dos crentes, a Igreja, mas em segundo lugar
esta comunidade també m nã o age por conta pró pria, segundo suas
pró prias ideias e desejos. A comunidade també m vive no mesmo
processo passivo: só Cristo pode constituir a Igreja. Cristo é o
verdadeiro doador dos sacramentos. Este é o primeiro ponto: ningué m
se batiza, ningué m se faz cristã o. Nó s nos tornamos cristã os.
Este é o segundo ponto: o batismo é mais do que uma puri icaçã o. E
morte e ressurreiçã o. O pró prio Paulo, falando na Carta aos Gá latas da
viragem da sua vida provocada pelo encontro com Cristo ressuscitado,
descreve-a com as palavras: Estou morto. Nesse momento uma nova
vida realmente começa. Tornar-se cristã o é mais do que uma operaçã o
cosmé tica que acrescentaria algo de belo a uma existê ncia mais ou
menos completa. E um novo começo, é renascimento: morte e
ressurreiçã o. Obviamente na ressurreiçã o ressurge o que era bom na
existê ncia anterior.
O terceiro ponto é : a maté ria faz parte do sacramento. O cristianismo
nã o é uma realidade puramente espiritual. Implica o corpo. Implica o
cosmos. Estende-se para a nova terra e os novos cé us. Voltemos à s
ú ltimas palavras do texto de Sã o Paulo. Desta forma, ele disse: “nó s
també m podemos andar em novidade de vida”. Constitui um exame de
consciê ncia para todos nó s: caminhar em novidade de vida. Isso se
aplica ao Batismo.
Agora chegamos ao Sacramento da Eucaristia. Já demonstrei em
outras catequeses o profundo respeito com que Sã o Paulo transmite
verbalmente a tradiçã o da Eucaristia que recebeu das pró prias
testemunhas da ú ltima noite. Ele transmite estas palavras como um
tesouro precioso con iado à sua idelidade. Assim, realmente ouvimos
nestas palavras as testemunhas da ú ltima noite. Ouvimos as palavras do
Apó stolo: “Porque eu recebi do Senhor o que també m vos transmiti:
que o Senhor Jesus, na noite em que foi traı́do, tomou o pã o e, havendo
dado graças, partiu-o e disse: 'Este é o meu corpo que é para você . Faça
isso em memó ria de mim.' Da mesma forma també m o cá lice, depois da
ceia, dizendo: 'Este cá lice é a nova aliança no meu sangue. Fazei isto,
sempre que o beberdes, em memó ria de mim'” (1 Cor 11:23-25). E um
texto inesgotá vel. També m aqui, nesta Catequese, tenho apenas duas
breves observaçõ es a fazer. Paulo transmite as palavras do Senhor
sobre o cá lice assim: este cá lice é “a nova aliança no meu Sangue”. Estas
palavras encerram uma alusã o a dois textos fundamentais do Antigo
Testamento. A primeira refere-se à promessa de uma nova aliança no
Livro do profeta Jeremias. Jesus diz aos discı́pulos e diz-nos: agora,
neste momento, comigo e com a minha morte se cumpre a nova aliança;
pelo meu Sangue esta nova histó ria da humanidade começa no mundo.
Poré m, també m presente nestas palavras está uma referê ncia ao
momento da aliança no Sinai, quando Moisé s disse: “Eis aqui o sangue
da aliança que o Senhor fez convosco segundo todas estas palavras” (Ex
24,8). . Entã o foi o sangue de animais. O sangue dos animais só poderia
ser a expressã o de um desejo, uma expectativa do verdadeiro sacrifı́cio,
do verdadeiro culto. Com o dom do cá lice, o Senhor nos dá o verdadeiro
sacrifı́cio. O ú nico sacrifı́cio verdadeiro é o amor do Filho. Com o dom
deste amor, amor eterno, o mundo entra na nova aliança. Celebrar a
Eucaristia signi ica que Cristo nos dá a si mesmo, o seu amor, para nos
con igurar a si mesmo e assim criar o mundo novo.
O segundo aspecto importante do ensinamento sobre a Eucaristia
aparece na mesma Primeira Carta aos Corı́ntios, onde Sã o Paulo diz: “o
cá lice da bê nçã o que abençoamos nã o é a participaçã o no Sangue de
Cristo? O pã o que partimos nã o é participaçã o no Corpo de Cristo? Visto
que há um só pã o, nó s, embora muitos, formamos um só corpo, pois
todos participamos de um só pã o” (10:16-17). Nestas palavras aparece
també m o cará ter pessoal e social do Sacramento da Eucaristia. Cristo
se une pessoalmente a cada um de nó s, mas també m o pró prio Cristo se
une ao homem e à mulher que estã o ao meu lado. E o pã o é para mim,
mas també m é para o outro. Assim, Cristo une todos nó s consigo e
todos nó s uns com os outros. Na comunhã o recebemos a Cristo. Mas
Cristo está igualmente unido ao meu pró ximo: Cristo e meu pró ximo
sã o insepará veis na Eucaristia. E assim somos todos um só pã o e um só
corpo. Uma Eucaristia sem solidariedade com os outros é uma
Eucaristia abusada. E aqui chegamos à raiz e, ao mesmo tempo, ao
cerne da doutrina sobre a Igreja como Corpo de Cristo, de Cristo
Ressuscitado.
També m percebemos o realismo total dessa doutrina. Cristo dá -nos o
seu Corpo na Eucaristia, dá -se no seu Corpo e assim faz de nó s o seu
Corpo, une-nos ao seu Corpo Ressuscitado. Se o homem come pã o
comum, no processo digestivo este pã o torna-se parte de seu corpo,
transformando-se em substâ ncia da vida humana. Mas na sagrada
Comunhã o ocorre o processo inverso. Cristo, o Senhor, assimila-nos a si
mesmo, introduzindo-nos no seu corpo glorioso, e assim todos nos
tornamos o seu corpo. Quem lê apenas o capı́tulo 12 da Primeira Carta
aos Corı́ntios e o capı́tulo 12 da Carta aos Romanos pode pensar que as
palavras sobre o Corpo de Cristo como organismo de carismas é apenas
uma espé cie de pará bola socioló gica e teoló gica. Na verdade, na ciê ncia
polı́tica romana, esta pará bola do corpo com vá rios membros que
formam uma ú nica unidade foi usada referindo-se ao pró prio Estado,
para dizer que o Estado é um organismo no qual cada um tem seu
papel, que a multiplicidade e diversidade de funçõ es formam um só
corpo, e cada um tem o seu lugar. Se lermos apenas o capı́tulo 12 da
Primeira Carta aos Corı́ntios, poderı́amos pensar que Paulo se limitou a
transferi-lo apenas para a Igreja, que també m aqui se tratava apenas de
uma sociologia da Igreja. No entanto, tendo em mente este capı́tulo 10,
vemos que o realismo da Igreja é algo bem diferente, muito mais
profundo e verdadeiro do que o de um organismo do Estado. Porque
Cristo dá realmente o seu Corpo e faz de nó s o seu Corpo. Nó s
realmente nos tornamos unidos com o Corpo Ressuscitado de Cristo e
assim estamos unidos uns com os outros. A Igreja nã o é apenas uma
corporaçã o como o Estado, ela é um corpo. Ela nã o é apenas uma
organizaçã o, mas um organismo real.
Por ú ltimo, apenas uma breve palavra sobre o Sacramento do
Matrimô nio. Na Carta aos Corı́ntios há apenas algumas referê ncias,
enquanto na Carta aos Efé sios ele desenvolveu verdadeiramente uma
profunda teologia do Matrimô nio. Aqui Paulo de ine o Matrimô nio
como um “grande misté rio”. Ele diz isso “em referê ncia a Cristo e à
Igreja” (5:32). Uma reciprocidade em dimensã o vertical deve ser
apontada nesta passagem. A submissã o mú tua deve usar a linguagem
do amor cujo modelo é o amor de Cristo pela Igreja. Esta relaçã o Cristo-
Igreja torna fundamental o aspecto teoló gico do amor matrimonial,
exaltando a relaçã o afetiva entre os esposos. Um matrimó nio autê ntico
será bem vivido se no constante crescimento humano e afectivo se
esforçar por permanecer continuamente vinculado à e icá cia da Palavra
e ao signi icado do Baptismo. Cristo santi icou a Igreja, puri icando-a
por meio da lavagem com á gua, acompanhada da Palavra. Alé m de
torná -la visı́vel, a participaçã o no Corpo e no Sangue do Senhor nã o faz
mais do que selar uma uniã o tornada indissolú vel pela graça.
E, por ú ltimo, escutemos as palavras de Sã o Paulo aos ilipenses:
“Perto está o Senhor” (Fl 4,5). Parece-me que compreendemos que o
Senhor está pró ximo de nó s durante toda a nossa vida por meio da
Palavra e dos sacramentos. Rezemos para que com a sua proximidade
sejamos sempre movidos no mais profundo do nosso ser para que
nasça a alegria, aquela alegria que nasce quando Jesus está realmente
pró ximo.
17

Culto Espiritual *

Nesta primeira Audiê ncia Geral do ano de 2009, desejo expressar a


todos vó s os meus votos mais fervorosos para o novo ano que se inicia.
Reavivemos em nó s o compromisso de abrir a mente e o coraçã o a
Cristo, para ser e viver como seus verdadeiros amigos. A sua companhia
fará com que este ano, mesmo com as inevitá veis di iculdades, seja um
caminho cheio de alegria e paz. Com efeito, só permanecendo unidos a
Jesus é que o novo ano será bom e feliz.
O compromisso de uniã o com Cristo é o exemplo que també m Sã o
Paulo nos oferece. Continuando as catequeses a ele dedicadas,
detenhamo-nos hoje para re lectir sobre um dos aspectos importantes
do seu pensamento que diz respeito ao culto que os cristã os sã o
chamados a exercer. No passado, estava na moda falar de uma
tendê ncia bastante antirreligiosa no Apó stolo, de uma
“espiritualizaçã o” da ideia de culto. Hoje compreendemos melhor que
Paulo vê na Cruz de Cristo uma virada histó rica que transforma e
renova radicalmente a realidade do culto. Em particular, há trê s textos
na Carta aos Romanos nos quais aparece esta nova visã o do culto.
1. Em Romanos 3:25, depois de falar da “redençã o que há em Cristo
Jesus”, Paulo continua com o que para nó s é uma fó rmula misteriosa,
dizendo: “por meio de seu Sangue, Deus o fez o meio de expiaçã o para
todos os que crê em .” Com estas palavras que achamos um tanto
estranhas: “meio de expiaçã o”, Sã o Paulo menciona o chamado
“propiciató rio” do antigo templo, ou seja, a tampa que cobria a Arca da
Aliança que era considerada o ponto de contato entre Deus e o homem,
o ponto de sua misteriosa presença no mundo humano. No grande Dia
da Expiaçã o – “ Yom Kippur ” – este “propiciató rio” era aspergido com o
sangue de animais sacri icados – sangue que simbolicamente colocava
os pecados do ano passado em contato com Deus, e assim os pecados
eram lançados no abismo da bondade divina. foram, por assim dizer,
absorvidos pelo poder de Deus, vencidos e perdoados. A vida começou
de novo.
Sã o Paulo menciona este rito e diz: Este rito foi uma expressã o do
desejo de poder verdadeiramente lançar todos os nossos pecados no
abismo da misericó rdia divina e assim fazê -los desaparecer. Com o
sangue de animais, poré m, essa expiaçã o nã o foi realizada; era
necessá rio um contato mais real entre o pecado humano e o amor
divino. Este contato ocorreu na Cruz de Cristo. Cristo, o verdadeiro
Filho de Deus, que se tornou um verdadeiro homem, levou sobre si
todos os nossos pecados. Ele mesmo é o ponto de contato entre a
misé ria humana e a misericó rdia divina. Em seu coraçã o dissolve-se a
massa dolorosa do mal perpetrado pela humanidade e renova-se a vida.
Ao revelar esta mudança, Sã o Paulo nos diz: a antiga forma de
adoraçã o com sacrifı́cios de animais no templo de Jerusalé m terminou
com a Cruz de Cristo – o ato supremo do amor divino tornado amor
humano. Este culto simbó lico, o culto do desejo, é agora substituı́do
pelo verdadeiro culto: o amor de Deus encarnado em Cristo e levado ao
seu cumprimento na sua morte na Cruz. Nã o se trata, portanto, de uma
espiritualizaçã o da verdadeira adoraçã o; pelo contrá rio, é o verdadeiro
culto: o verdadeiro amor divino-humano substitui a forma simbó lica e
temporá ria do culto. A Cruz de Cristo, o seu amor com a Carne e o
Sangue, é o verdadeiro culto que corresponde à realidade de Deus e do
homem. Na opiniã o de Paulo, a é poca do templo e sua adoraçã o já havia
terminado antes da destruiçã o externa do templo. Aqui Paulo encontra-
se em perfeita sintonia com as palavras de Jesus, que havia predito a
destruiçã o do templo e també m anunciado outro templo, “nã o feito por
mã os humanas”, o templo do seu Corpo Ressuscitado (cf. Mc 14,58; Jo
2:19ss.). Este é o primeiro texto.
2. O segundo texto do qual gostaria de falar hoje encontra-se no
primeiro versı́culo do capı́tulo 12 da Carta aos Romanos. Nó s o
ouvimos, e vou repeti-lo: “Apelo a você s, portanto, irmã os, pelas
misericó rdias de Deus, para apresentar seus corpos como um sacrifı́cio
vivo, santo e agradá vel a Deus, que é o seu culto espiritual”. Há um
aparente paradoxo nestas palavras: enquanto o sacrifı́cio normalmente
exige a morte da vı́tima, Paulo fala ao contrá rio da vida do cristã o. A
expressã o “apresentai vossos corpos”, independentemente do conceito
sucessivo de sacrifı́cio, adquire o matiz religioso de “dar em oblaçã o,
em oferenda”. A exortaçã o “apresentai os vossos corpos” refere-se à
pessoa na sua totalidade; de fato, em Rm 6,13, ele os convida a:
“entregar-se”. Alé m disso, a referê ncia explı́cita à dimensã o fı́sica do
cristã o coincide com o convite a: «glori icar a Deus no vosso corpo» (1
Cor 6, 20). Em outras palavras, trata-se de honrar a Deus na forma mais
prá tica do cotidiano que consiste na visibilidade relacional e
perceptı́vel.
Essa conduta é descrita por Paulo como “sacrifı́cio vivo, santo e
agradá vel a Deus”. E aqui que realmente encontramos a palavra
“sacrifı́cio”. Neste uso, o termo pertence a um contexto sagrado e serve
para designar o abate de um animal, parte do qual pode ser queimado
em homenagem aos deuses e outra parte comida em um banquete por
aqueles que oferecem o sacrifı́cio. Em vez disso, Paulo a aplica à vida do
cristã o. Na verdade, ele descreve esse sacrifı́cio usando trê s adjetivos. A
primeira — “viver” — expressa vitalidade. A segunda — “santa” —
recorda a ideia paulina de santidade nã o ligada a lugares ou objetos,
mas aos pró prios cristã os. A terceira — “agradá vel a Deus” — talvez
evoque a recorrente expressã o bı́blica do sacrifı́cio, “cheiro agradá vel”
(cf. Lv 1,13.17; 23,18; 26,31 etc.).
Logo a seguir, Paulo de ine assim este novo modo de viver: “que é o
vosso culto espiritual”. Os comentadores deste texto sabem bem que a
expressã o grega ( ten logiken latreían ) nã o é fá cil de traduzir. A Bı́blia
latina traduz como: “ rationabile obsequium ”. A pró pria palavra “
rationabile ” aparece na Primeira Oraçã o Eucarı́stica do Câ non Romano:
nela os ié is rezam para que Deus aceite esta oferenda como “
rationabile ”. A traduçã o italiana usual “ culto spirituale ” [culto
espiritual] nã o re lete todas as nuances do texto grego (ou do latim).
Em todo o caso, nã o se trata de um culto menos real ou mesmo de um
culto apenas metafó rico, mas de um culto mais concreto e realista, um
culto no qual o pró prio ser humano, na sua totalidade de ser dotado de
razã o, se torna adoraçã o. , glori icaçã o do Deus vivo.
Esta fó rmula paulina, que volta mais tarde na Oraçã o Eucarı́stica
Romana, é fruto de um longo desenvolvimento da experiê ncia religiosa
nos sé culos anteriores a Cristo. Nesta experiê ncia sã o encontrados
desenvolvimentos teoló gicos do Antigo Testamento e tendê ncias do
pensamento grego. Eu gostaria pelo menos de mostrar alguns
elementos desse desenvolvimento. Os profetas e muitos Salmos
criticam fortemente os sacrifı́cios sangrentos do templo. Salmo 50[49],
no qual Deus fala: “se eu tivesse fome, nã o to diria; pois o mundo e tudo
o que nele há é meu. Como carne de touro ou bebo sangue de bode?
Ofereça a Deus um sacrifı́cio de açã o de graças. . .” (vv. 12-14). O Salmo
seguinte diz algo semelhante: “Nã o tens prazer em sacrifı́cios; se eu
desse um holocausto, você nã o icaria satisfeito. O sacrifı́cio aceitá vel a
Deus é um espı́rito quebrantado; um coraçã o quebrantado e contrito, ó
Deus, nã o desprezará s” (Sl 50[51]: vv. 18ss.). No Livro de Daniel, na
é poca da nova destruiçã o do templo pelo regime helenı́stico (sé culo II
aC ), encontramos um novo passo na mesma direçã o. No coraçã o da
fornalha – isto é , da perseguiçã o, do sofrimento – Azarias ora com estas
palavras: “E neste tempo nã o há prı́ncipe, nem profeta, nem lı́der, nem
holocausto, nem sacrifı́cio, nem oblaçã o, nem incenso, nenhum lugar
para fazer uma oferta antes de você ou para encontrar misericó rdia. No
entanto, com um coraçã o contrito e um espı́rito humilde podemos ser
aceitos, como se fosse com holocaustos de carneiros e touros. . . tal seja
o nosso sacrifı́cio hoje diante de ti, e possamos segui-lo inteiramente”
(Dn 3:15-17). Na destruiçã o do santuá rio e do culto, nesta situaçã o de
privaçã o de qualquer sinal da presença de Deus, o crente oferece como
verdadeiro holocausto o seu coraçã o contrito – o seu desejo de Deus.
Vemos um desenvolvimento importante e bonito, mas com um
perigo. Há uma espiritualizaçã o, uma moralizaçã o da adoraçã o: a
adoraçã o torna-se apenas algo do coraçã o, da mente. Mas falta o corpo,
falta a comunidade. Assim entendemos, por exemplo, que o Salmo 51 e
també m o Livro de Daniel, apesar das crı́ticas ao culto, desejam um
retorno ao tempo dos sacrifı́cios. Mas este é um tempo renovado, um
sacrifı́cio renovado, numa sı́ntese que ainda nã o era previsı́vel, que
ainda nã o se podia conceber.
Voltemos a Sã o Paulo. Ele é herdeiro destes desenvolvimentos, do
desejo do verdadeiro culto, no qual o pró prio homem se torna a gló ria
de Deus, vivendo a adoraçã o com todo o seu ser. Nesse sentido, ele diz
aos romanos: “apresentem seus corpos como um sacrifı́cio vivo . . . qual
é o vosso culto espiritual” (Rm 12,1). Paulo repete assim o que apontou
no capı́tulo 3: acabou o tempo dos sacrifı́cios de animais, dos
substitutos. Chegou a hora da verdadeira adoraçã o. No entanto, aqui
també m existe o perigo de um mal-entendido. Pode-se facilmente
interpretar este novo culto em sentido moralista: ao oferecer a nossa
vida, nó s mesmos nos tornamos o verdadeiro culto. Dessa forma, o
culto com animais seria substituı́do pelo moralismo: o pró prio homem
faria tudo sozinho com sua força moral. E certamente nã o era essa a
intençã o de Sã o Paulo. No entanto, a questã o permanece: como,
portanto, podemos interpretar esse “culto espiritual [razoá vel]”? Paulo
sempre presume que todos somos “um em Cristo Jesus” (Gl 3,28), que
morremos no Batismo (cf. Rm 1) e que agora vivemos com Cristo, para
Cristo, em Cristo.
Nesta uniã o e somente assim podemos nos tornar nele e com ele
“sacrifı́cio vivo”, oferecer “verdadeiro culto”. Os animais sacri icados
deveriam substituir o ser humano, o dom de si, mas nã o podiam. Na sua
doaçã o ao Pai e a nó s, Jesus Cristo nã o é um substituto, mas traz
verdadeiramente em si o ser humano, os nossos pecados e o nosso
desejo; ele realmente nos representa, ele nos assume. Na comunhã o
com Cristo, realizada na fé e nos sacramentos, apesar de todas as
nossas inadequaçõ es, tornamo-nos verdadeiramente sacrifı́cio vivo:
realiza-se o “verdadeiro culto”.
Esta sı́ntese forma o pano de fundo do Câ non Romano no qual
rezamos para que esta oferta se torne “ racional ” – para que o culto
espiritual seja feito. A Igreja sabe que na Santa Eucaristia se torna
presente o dom de si mesmo por Cristo, o seu verdadeiro sacrifı́cio. No
entanto, a Igreja reza para que a comunidade que celebra seja
verdadeiramente unida a Cristo e transformada; ela reza para que
possamos nos tornar o que nã o podemos ser com nossos pró prios
esforços: uma oferta “racional” que é aceitá vel a Deus. Assim, a Oraçã o
Eucarı́stica interpreta corretamente as palavras de Sã o Paulo. Santo
Agostinho explicou tudo isso maravilhosamente no dé cimo capı́tulo de
sua Cidade de Deus . Cito apenas duas frases dela. “Este é o sacrifı́cio dos
cristã os: nó s, sendo muitos, somos um só corpo em Cristo. . . .” “Toda a
cidade redimida, isto é , a congregaçã o ou comunidade dos santos, é
oferecida a Deus como nosso sacrifı́cio por meio do grande Sumo
Sacerdote, que se ofereceu a si mesmo. . .” (10, 6: CCL 47, 27ss.).
3. Alé m disso, no inal, acrescento apenas algumas palavras sobre o
terceiro texto da Carta aos Romanos sobre o novo culto. Sã o Paulo diz
assim no capı́tulo 15: “A graça que me foi dada por Deus de ser
'ministro' de Cristo Jesus para os gentios no serviço sacerdotal (
hierourgein ) do Evangelho de Deus, para que a oferta dos gentios seja
aceitá vel , santi icado pelo Espı́rito Santo” (15:15ss.). Gostaria de
enfatizar apenas dois aspectos deste texto maravilhoso, no que diz
respeito à terminologia ú nica nas Cartas Paulinas. Antes de tudo, Sã o
Paulo interpreta sua atividade missioná ria entre os povos do mundo
para construir a Igreja universal como serviço sacerdotal. Anunciar o
Evangelho para unir os povos na comunhã o de Cristo Ressuscitado é
uma açã o “sacerdotal”. O apó stolo do Evangelho é um verdadeiro
sacerdote, faz o que é central no sacerdó cio: prepara o verdadeiro
sacrifı́cio. E depois o segundo aspecto: a meta da açã o missioná ria é –
podemos dizer – a liturgia có smica: que os povos unidos em Cristo, o
mundo, se tornem como tais a gló ria de Deus, uma “[oferta] aceitá vel,
santi icada pelo Espı́rito Santo". Aqui aparece o aspecto dinâ mico, o
aspecto da esperança na concepçã o paulina do culto: o dom de si
mesmo por Cristo implica a aspiraçã o de atrair todos à comunhã o em
seu corpo, de unir o mundo. Só na comunhã o com Cristo, o homem
exemplar, um com Deus, o mundo se torna assim como todos nó s o
desejamos: um espelho do amor divino. Este dinamismo está sempre
presente na Eucaristia – este dinamismo deve inspirar e formar a nossa
vida. E comecemos o novo ano com este dinamismo. Obrigado pela sua
paciê ncia.
18

Cartas aos Colossenses e Efésios *

Na correspondê ncia de Sã o Paulo há duas Cartas — aos Colossenses e


aos Efé sios — que em certa medida podem ser consideradas gê meas.
De fato, ambos contê m expressõ es que sã o encontradas apenas neles, e
calculou-se que mais de um terço das palavras da Carta aos Colossenses
també m sã o encontradas na Carta aos Efé sios. Por exemplo, enquanto
em Colossenses lemos literalmente o convite: “admoestai-vos uns aos
outros. De coraçã o, cantai com gratidã o a Deus salmos, hinos e câ nticos
espirituais» (Cl 3, 16), també m Sã o Paulo recomenda na sua Carta aos
Efé sios «dirigindo-vos uns aos outros com salmos, hinos e câ nticos
espirituais, cantai louvores ao Senhor com todo o teu coraçã o” (Ef
5:19). Poderı́amos meditar nestas palavras: o coraçã o deve cantar com
salmos e hinos, e a voz da mesma forma, para entrar na tradiçã o de
oraçã o de toda a Igreja do Antigo e do Novo Testamento. Assim
aprendemos a estar conosco e uns com os outros e com Deus. Alé m
disso, o “có digo domé stico” ausente nas outras Cartas Paulinas
encontra-se nestas duas, ou seja, uma sé rie de recomendaçõ es dirigidas
a esposos e esposas, a pais e ilhos, a senhores e escravos (cf. Col 3 :18-
4:1 e Ef 5:22-6:9, respectivamente).
E ainda mais importante notar que somente nestas duas Cartas o
tı́tulo “cabeça”, kefalé , é dado a Jesus Cristo. E este tı́tulo é usado em
dois nı́veis. No primeiro sentido, Cristo é entendido como cabeça da
Igreja (cf. Col 2,18-19 e Ef 4,15-16). Isso signi ica duas coisas: antes de
tudo, que ele é o governador, o lı́der, o responsá vel que guia a
comunidade cristã como seu lı́der e Senhor (cf. Col 1,18: “Ele é a cabeça
do corpo, a Igreja ”). O outro signi icado é entã o que, como cabeça, ele
inerva e vivi ica todos os membros do corpo que ele controla. (Na
verdade, de acordo com Colossenses 2:19, é necessá rio “[apegar-se] à
Cabeça, da qual todo o corpo [é ] nutrido e unido”.) Ou seja, ele nã o é
apenas aquele que comanda mas també m aquele que está
organicamente ligado a nó s, de quem vem o poder de agir de maneira
correta.
Em ambos os casos, a Igreja é considerada sujeita a Cristo, tanto para
seguir sua supervisã o – os mandamentos – quanto para aceitar todas as
in luê ncias vitais que emanam dele. Seus mandamentos nã o sã o apenas
palavras ou ordens, mas uma energia vital que vem dele e nos ajuda.
Esta ideia é desenvolvida particularmente em Efé sios, onde, em vez
de ser atribuı́do ao Espı́rito (como em 1 Corı́ntios 12), até mesmo os
ministé rios da Igreja sã o conferidos por Cristo Ressuscitado. E ele
quem estabeleceu “que alguns sejam apó stolos, alguns profetas, alguns
evangelistas, alguns pastores e mestres” (4:11). E é dele que “todo o
corpo cresce, e . . . irmemente unida por cada ligamento de
sustentaçã o, edi ica-se em amor” (4:16). Com efeito, Cristo empenha-se
plenamente em «apresentar a si mesmo uma Igreja gloriosa, santa e
imaculada, sem mancha, nem ruga, nem coisa semelhante» (Ef 5, 27).
Ao dizer isso, ele nos diz que a força com a qual ele constró i a Igreja,
com a qual ele guia a Igreja, com a qual ele també m dá a direçã o certa à
Igreja, é precisamente o seu amor.
O primeiro signi icado é , portanto, Cristo, Cabeça da Igreja; tanto no
que diz respeito à sua direçã o como, sobretudo, no que diz respeito à
sua inspiraçã o e revitalizaçã o orgâ nica em virtude do seu amor. Entã o,
em um segundo sentido, Cristo é considerado nã o apenas como cabeça
da Igreja, mas també m como cabeça dos poderes celestiais e de todo o
cosmos. Assim, em Colossenses, lemos que Cristo “despojou os
principados e potestades e os expô s publicamente, triunfando sobre
eles nele” (2:15). Da mesma forma, em Efé sios, encontramos escrito
que, com sua ressurreiçã o, Deus colocou Cristo “muito acima de todo
governo, autoridade, poder e domı́nio, e acima de todo nome que se
nomeia, nã o apenas nesta era, mas també m na vindoura” ( 1:21). Com
estas palavras, as duas Cartas trazem-nos uma mensagem muito
positiva e fecunda. E esta: Cristo nã o tem rival possı́vel a temer, pois é
superior a toda forma de poder que pretende humilhar o homem. Ele
sozinho “nos amou e se entregou por nó s” (Ef 5:2). Assim, se estamos
unidos a Cristo, nã o temos inimigo ou adversidade a temer; mas isso
signi ica, portanto, que devemos continuar apegados irmemente a ele,
sem afrouxar nosso aperto!
Para o mundo pagã o que acreditava em um mundo cheio de espı́ritos
em sua maioria perigosos e dos quais era essencial se proteger, a
proclamaçã o de que Cristo era o ú nico vencedor e que aqueles com
Cristo nã o deveriam temer ningué m parecia uma verdadeira libertaçã o.
O mesmo també m é verdade para o paganismo de hoje, uma vez que os
atuais seguidores de ideologias semelhantes veem o mundo como cheio
de poderes perigosos. E necessá rio anunciar-lhes que Cristo é
triunfante, para que aqueles que estã o com Cristo, que permanecem
unidos a Ele, nã o tenham nada nem ningué m a temer. Acho que isso
també m é importante para nó s, que devemos aprender a enfrentar
todos os medos porque ele está acima de todas as formas de
dominaçã o, ele é o verdadeiro Senhor do mundo.
Mesmo todo o cosmos está sujeito a ele e converge nele como sua
pró pria cabeça. Sã o famosas as palavras da Carta aos Efé sios que falam
do desı́gnio de Deus de “reunir nele todas as coisas, as que estã o no cé u
e as que estã o na terra” (1,10). Da mesma forma, lemos na Carta aos
Colossenses que “nele foram criadas todas as coisas, nos cé us e na terra,
as visı́veis e as invisı́veis” (1,16) e que, “fazendo a paz pelo Sangue da
sua Cruz. . . , [ele] reconcilia[d] consigo todas as coisas, quer na terra,
quer no cé u” (1:20). Portanto, nã o há , por um lado, o grande mundo
material e, por outro, esta pequena realidade da histó ria da nossa terra,
do mundo dos homens: tudo é um em Cristo. Ele é o chefe do cosmos; o
cosmos també m foi criado por ele, foi criado para nó s na medida em
que estamos unidos a ele. E uma visã o racional e personalista do
universo. Diria que seria impossı́vel conceber uma visã o mais
universalista do que esta e que só convé m a Cristo Ressuscitado. Cristo
é o Pantokrator ao qual todas as coisas estã o subordinadas. O nosso
pensamento dirige-se precisamente para Cristo Pantocrator, que enche
a abó bada da abside nas igrejas bizantinas, por vezes representado
sentado no alto, acima do mundo inteiro, ou mesmo sobre um arco-ı́ris,
para mostrar a sua igualdade com o pró prio Deus, a cuja direita está
sentado (cf. Ef 1,20; Cl 3,1) e assim també m o seu incompará vel papel
de guia do destino humano.
Uma visã o deste tipo só pode ser concebida pela Igreja, nã o no
sentido de querer apropriar-se indevidamente daquilo a que nã o tem
direito, mas num outro duplo sentido: tanto na medida em que a Igreja
reconhece que Cristo é maior do que ela isto é , dado que seu senhorio
se estende alé m de seus limites, e na medida em que somente a Igreja,
nã o o cosmos, é descrita como o Corpo de Cristo. Tudo isto signi ica que
devemos considerar positivamente as realidades terrenas, porque
Cristo as sintetiza em si, e ao mesmo tempo viver plenamente a nossa
identidade eclesial especı́ ica, que é a mais homogé nea à pró pria
identidade de Cristo.
Depois, há també m um conceito especial que é tı́pico destas duas
Cartas, e é o conceito de “misté rio”. O “misté rio da vontade [de Deus]” é
mencionado uma vez (Ef 1:9) e, outras vezes, o “misté rio de Cristo” (Ef
3:4; Col 4:3) ou mesmo “o misté rio de Deus, de Cristo, em a quem estã o
escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Cl 2:2-
3). Isso se refere ao inescrutá vel plano de Deus sobre o destino da
humanidade, dos povos e do mundo. Com esta linguagem as duas
Epı́stolas dizem-nos que o cumprimento deste misté rio se encontra em
Cristo. Se estamos com Cristo, mesmo que a nossa mente seja incapaz
de tudo compreender, sabemos que penetramos no nú cleo deste
“misté rio” e estamos a caminho da verdade. E Ele em sua totalidade e
nã o apenas em um aspecto de sua Pessoa ou em um momento de sua
existê ncia que traz em si a plenitude do insondá vel desı́gnio divino de
salvaçã o. Nele toma forma o que se chama “a multiforme sabedoria de
Deus” (Ef 3,10), pois nele “habita corporalmente toda a plenitude da
divindade” (Cl 2,9). A partir daı́, portanto, nã o é possı́vel re letir e
adorar a vontade de Deus, sua soberana instruçã o, sem nos confrontar
pessoalmente com Cristo em Pessoa, em quem aquele “misté rio” se
encarnou e pode ser percebido de maneira tangı́vel. Chega-se assim à
contemplaçã o das «riquezas insondá veis de Cristo» (Ef 3,8), que
ultrapassam qualquer compreensã o humana. Nã o é que Deus nã o tenha
deixado pegadas em seu caminho, pois o pró prio Cristo é a impressã o
de Deus, sua maior pegada; mas percebemos «qual é a largura, o
comprimento, a altura e a profundidade» deste misté rio «que excede
todo o entendimento» (Ef 3, 18-19). Meras categorias intelectuais se
mostram inadequadas aqui e, reconhecendo que muitas coisas estã o
alé m de nossas capacidades racionais, devemos con iá -las à
contemplaçã o humilde e alegre nã o apenas da mente, mas també m do
coraçã o. Alé m disso, os Padres da Igreja nos dizem que o amor
compreende melhor do que a razã o sozinha.
Uma ú ltima palavra deve ser dita sobre o conceito, já mencionado
acima, da Igreja como parceira esponsal de Cristo. Na Segunda Carta
aos Corı́ntios, o Apó stolo Paulo havia comparado a comunidade cristã a
uma noiva, escrevendo assim: “Sinto um zelo divino por ti, porque te
desposei com Cristo para apresentá -la como uma noiva pura a seu
ú nico esposo” (11:2). A Carta aos Efé sios desenvolve esta imagem,
explicando que a Igreja nã o é apenas uma noiva prometida, mas a
verdadeira esposa de Cristo. Ele a conquistou, por assim dizer, e o fez à
custa de sua vida: como diz o texto, ele “se entregou por ela” (Ef 5,25).
Que demonstraçã o de amor poderia ser maior do que esta? Mas, alé m
disso, preocupava-se com a sua beleza: nã o só a beleza já adquirida
pelo Baptismo, mas també m aquela beleza “sem mancha nem ruga” que
se deve a uma vida irrepreensı́vel que deve crescer cada dia na sua
conduta moral (cf. Ef. 5:26-27). E um pequeno passo daqui para a
experiê ncia comum do casamento cristã o; com efeito, nem sequer é
muito claro qual era o ponto de referê ncia inicial da Carta para o seu
autor: se era a relaçã o Cristo-Igreja, à luz da qual se devia ver a uniã o
do homem e da mulher, ou se era a relaçã o experiencial acontecimento
da uniã o conjugal, em cuja luz se deve ver a relaçã o entre Cristo e a
Igreja. Mas ambos os aspectos se iluminam reciprocamente:
aprendemos o que é o matrimô nio à luz da comunhã o de Cristo e da
Igreja, aprendemos como Cristo está unido a nó s pensando no misté rio
do matrimô nio. Em todo o caso, a nossa Carta apresenta-se quase como
um meio-termo entre o profeta Oseias, que exprimiu a relaçã o entre
Deus e o seu povo atravé s das nú pcias já realizadas (cf. Os 2, 4.16.20), e
o Vidente do Apocalipse, que proporá o encontro escatoló gico entre a
Igreja e o Cordeiro como um casamento alegre e indefectı́vel (cf. Ap
19,7-9; 21,9).
Haveria muito mais a dizer, mas parece-me que pelo que foi exposto
já é possı́vel perceber que estas duas Cartas formam uma grande
catequese, da qual podemos aprender nã o só como ser bons cristã os,
mas també m como tornar-se verdadeiramente humano. Se
começarmos entendendo que o cosmos é a impressã o de Cristo,
aprenderemos nossa correta relaçã o com o cosmos, juntamente com
todos os problemas da preservaçã o do cosmos. Aprendamos a vê -lo
com a razã o, mas com uma razã o motivada pelo amor, e com a
humildade e o respeito que permitem agir com retidã o. E se
acreditamos que a Igreja é o Corpo de Cristo, que Cristo se entregou por
ela, aprendemos a viver o amor recı́proco com Cristo, o amor que nos
une a Deus e nos faz ver no outro a imagem de Cristo, de Cristo ele
mesmo. Peçamos ao Senhor que nos ajude a meditar bem na Sagrada
Escritura, na sua palavra, e assim aprender verdadeiramente a viver
bem.
19

Epístolas Pastorais:
Cartas a Timóteo e Tito *

A ú ltima das Cartas Paulinas, das quais gostaria de falar hoje, sã o
conhecidas como “Cartas Pastorais” porque foram enviadas a cada um
dos Pastores da Igreja: duas a Timó teo e uma a Tito, ambos
colaboradores pró ximos de Sã o Paulo. Em Timó teo, o Apó stolo viu
quase um “alter ego”; de facto, con iou-lhe importantes missõ es (à
Macedó nia: cf. Act 19,22; a Tessaló nica: 1 Ts 3,6-7; a Corinto: cf. 1 Cor
4,17; 16,10-11) e em seguida, escreveu um elogio lisonjeiro sobre ele:
“Nã o tenho ningué m como ele, que se preocupa genuinamente pelo seu
bem” (Fp 2:20). De acordo com a História Eclesiástica de Eusé bio de
Cesaré ia, um historiador do sé culo IV, Timó teo foi o primeiro Bispo de
Efeso (cf. 3:4). Tito també m deve ter sido muito querido pelo Apó stolo,
que explicitamente o descreve como “cheio de zelo . . . meu
companheiro e companheiro de trabalho” (2 Corı́ntios 8:17-23), e ainda
“meu verdadeiro ilho na fé comum” (Ti 1:4). A ele foram atribuı́das
algumas missõ es muito delicadas na Igreja de Corinto, cujos resultados
animaram Paulo (cf. 2 Cor 7,6-7.13; 8,6). Depois disso, segundo a
tradiçã o que nos foi transmitida, Tito juntou-se a Paulo em Nicó polis,
no Epiro, na Gré cia (cf. Ti 3,12), e foi enviado por ele à Dalmá cia (cf. 2
Tm 4,10). A Carta que lhe foi enviada sugere que mais tarde foi feito
Bispo de Creta (cf. Ti 1, 5).
As Cartas dirigidas a estes dois Pastores ocupam um lugar muito
particular no Novo Testamento. A maioria dos exegetas hoje é de
opiniã o que essas Cartas nã o teriam sido escritas pelo pró prio Paulo,
mas teriam vindo da “Escola Paulina”, e que elas re letem seu legado
para uma nova geraçã o, talvez incluindo algumas palavras ou breves
passagens escritas por o pró prio Apó stolo. Algumas partes da Segunda
Carta a Timó teo, por exemplo, parecem tã o autê nticas que só poderiam
ter saı́do do coraçã o e da boca do Apó stolo.
Sem dú vida, a situaçã o da Igreja que emerge destas Cartas é muito
diferente daquela da meia-idade de Paulo. Ele agora, em retrospecto, se
de ine como o “arauto, apó stolo e mestre” da fé e da verdade para os
gentios (cf. 1 Tm 2:7; 2 Tm 1:11); ele se apresenta como algué m que
recebeu misericó rdia - ele escreve, "para que em mim, como um caso
extremo, Jesus Cristo possa mostrar toda a sua paciê ncia, e que eu
possa me tornar um exemplo para aqueles que mais tarde teriam fé
nele e ganhariam vida eterna” (1 Tm 1:16). Por isso, é de importâ ncia
essencial que em Paulo, perseguidor convertido pela presença do
Ressuscitado, se manifeste realmente a magnanimidade do Senhor para
nos encorajar e nos levar a esperar e a ter fé na misericó rdia do Senhor,
que, apesar da nossa pequenez, pode fazer grandes coisas. Os novos
contextos culturais que aqui se assumem vã o para alé m da meia-idade
de Paulo. Com efeito, faz-se referê ncia ao aparecimento de
ensinamentos que devem ser considerados bastante errô neos e falsos
(cf. 1 Tm 4,1-2; 2 Tm 3,1-5), como aqueles [ensinamentos] que
sustentavam que o casamento nã o era uma coisa boa (cf. 1 Tm 4,3a).
Podemos ver um equivalente moderno dessa preocupaçã o, porque
també m hoje as Escrituras à s vezes sã o lidas como um objeto de
curiosidade histó rica e nã o como a palavra do Espı́rito Santo, na qual
podemos ouvir a voz do pró prio Senhor e reconhecer sua presença na
histó ria. Poderı́amos dizer que, com esta breve lista de erros
apresentados nas trê s Cartas, existem alguns vestı́gios precoces
daquele movimento errô neo posterior que leva o nome de Gnosticismo
(cf. 1 Tm 2:5-6; 2 Tm 3: 6-8).
O escritor enfrenta essas doutrinas com dois lembretes bá sicos. A
primeira consiste numa exortaçã o a uma leitura espiritual da Sagrada
Escritura (cf. 2 Tm 3,14-17), isto é , a uma leitura que as considere
verdadeiramente “inspiradas” e provenientes do Espı́rito Santo, para
que se possa “instruı́dos para a salvaçã o” por eles. A maneira correta de
ler as Escrituras é entrar em diá logo com o Espı́rito Santo, a im de
obter uma luz “para o ensino, para a repreensã o, para a correçã o e para
a educaçã o na justiça” (2 Tm 3,16). Isto, acrescenta a Carta, é : «para que
o homem de Deus seja perfeitamente ı́ntegro e perfeitamente
habilitado para toda a boa obra» (2 Tm 3, 17). A outra advertê ncia é
uma referê ncia ao bom “depó sito” ( parathéke ): uma palavra especial
encontrada nas Cartas Pastorais e usada para indicar a tradiçã o da fé
apostó lica que deve ser preservada com a ajuda do Espı́rito Santo que
habita em nó s. Este “depó sito” deve, portanto, ser considerado como a
soma da tradiçã o apostó lica e como crité rio de idelidade à mensagem
evangé lica. E aqui devemos ter em mente que o termo “Escrituras”,
quando usado nas Cartas Pastorais como em todo o restante do Novo
Testamento, signi ica explicitamente o Antigo Testamento, pois os
escritos do Novo Testamento ou ainda nã o haviam sido escritos ou
ainda nã o constituı́a parte do câ non das Escrituras. Portanto, a tradiçã o
do anú ncio apostó lico, este “depó sito”, é a chave de leitura das
Escrituras, o Novo Testamento. Neste sentido, Escritura e tradiçã o,
Escritura e anú ncio apostó lico como chave, sã o colocados lado a lado e
quase se fundem para formar juntos o “ irme fundamento lançado por
Deus” (cf. 2 Tm 2,19). O anú ncio apostó lico, isto é , a tradiçã o, é
necessá rio para entrar na compreensã o das Escrituras e nelas ouvir a
voz de Cristo. Devemos, de fato, “manter-nos irmes na palavra certa
como ensinada” pelo ensino recebido (Tt 1:9). Com efeito, na base de
tudo está a fé na revelaçã o histó rica da bondade de Deus, que em Jesus
Cristo manifestou materialmente o seu «amor pelos homens», um amor
que no texto original grego se exprime signi icativamente como
ilanthropìa (Ti 3,4 ;cf.2 Tm 1:9-10); Deus ama a humanidade.
No conjunto, é claro que a comunidade cristã começa a de inir-se em
termos estritos, segundo uma identidade que nã o só se manté m alheia
a interpretaçõ es incongruentes, mas sobretudo a irma a sua vinculaçã o
aos pontos essenciais da fé , que aqui é sinó nimo de « verdade” (1 Tm
2:4, 7; 4:3; 6:5; 2 Tm 2:15, 18, 25; 3:7-8; 4:4; Ti 1:1, 14). Na fé , a
verdade essencial de quem somos, quem é Deus e como devemos viver
é esclarecida. E desta verdade (a verdade da fé ), a Igreja é descrita
como “coluna e baluarte” (1 Tm 3,15). Em todo o caso, ela permanece
uma comunidade aberta de amplitude universal que reza por todos, de
todas as classes e classes, para que todos conheçam a verdade: Deus
“quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da
verdade”. porque Cristo Jesus “se deu a si mesmo em resgate por todos”
(1 Tm 2,4-5). Portanto, o sentido de universalidade, mesmo que as
comunidades ainda sejam pequenas, é forte e conclusivo nestas Cartas.
Alé m disso, aqueles na comunidade cristã “nã o falam mal de ningué m”
e “mostram perfeita cortesia para com todos os homens” (Ti 3:2). Este é
o primeiro componente importante destas Cartas: a universalidade e a
fé como verdade, como chave de leitura da Sagrada Escritura, do Antigo
Testamento, de inindo assim um anú ncio uni icado da Escritura, uma fé
viva aberta a todos e um testemunho da amor por todos.
Outro componente tı́pico destas Cartas é a re lexã o sobre a estrutura
ministerial da Igreja. Eles sã o os primeiros a apresentar a trı́plice
subdivisã o em Bispos, presbı́teros e diá conos (cf. 1 Tm 3,1-13; 4,13; 2
Tm 1,6; Tm 1,5-9). Podemos observar nas Cartas Pastorais a fusã o de
duas estruturas ministeriais distintas e, assim, a constituiçã o da forma
de initiva do ministé rio na Igreja. Nas Cartas de Paulo da metade de sua
vida, ele fala de “bispos” (Fl 1,1) e de “diá conos”: esta é a estrutura
tı́pica da Igreja formada no tempo do mundo gentio.
No entanto, como a igura do pró prio Apó stolo permanece
dominante, os outros ministé rios só se desenvolvem lentamente. Se,
como dissemos, nas Igrejas formadas no mundo antigo, temos Bispos e
diá conos, e nã o sacerdotes; nas Igrejas formadas no mundo judaico-
cristã o, os padres sã o a estrutura dominante. No inal das Cartas
Pastorais, as duas estruturas se unem: agora aparece “o bispo” (cf. 1 Tm
3,2; Tm 1,7), usado sempre no singular com o artigo de inido “o bispo”.
E ao lado do “bispo” encontramos sacerdotes e diá conos. A igura do
Apó stolo continua a destacar-se, mas as trê s Cartas, como disse, já nã o
se dirigem à s comunidades, mas sim a indivı́duos, a Timó teo e a Tito,
que, por um lado, aparecem como Bispos e, por outro , começam a
ocupar o lugar do Apó stolo.
Esta é a primeira indicaçã o da realidade que mais tarde seria
conhecida como “sucessã o apostó lica”. Paulo diz a Timó teo nos tons
mais solenes: “Nã o desprezes o dom que recebeste quando, por
profecia, os presbı́teros te impuseram as mã os” (1 Tm 4,14). Podemos
dizer que nestas palavras se manifesta pela primeira vez o cará ter
sacramental do ministé rio. E assim temos a estrutura cató lica essencial:
Escritura e tradiçã o, Escritura e anú ncio formam um todo, mas a esta
estrutura – uma estrutura doutrinal, por assim dizer – deve-se
acrescentar a estrutura pessoal, os sucessores dos Apó stolos como
testemunhas da proclamaçã o apostó lica.
Por ú ltimo, é importante notar que nestas Cartas a Igreja se vê em
termos muito humanos, aná logos ao lar e à famı́lia. Particularmente em
1 Timó teo 3:2-7 lemos instruçõ es altamente detalhadas a respeito do
Bispo, como estas: ele deve ser “irrepreensı́vel, marido de uma só
mulher, só brio, sensato, digno, hospitaleiro, mestre há bil, nã o beberrã o,
nã o violento mas gentil, nã o briguento e nã o amante do dinheiro. Ele
deve administrar bem sua pró pria casa, mantendo seus ilhos sob
controle e respeitoso em todos os sentidos, pois se um homem nã o
souber administrar sua pró pria casa, como poderá cuidar da Igreja de
Deus? . . Alé m disso, ele deve ser bem visto por pessoas de fora.” Uma
nota especial deve ser feita aqui sobre a importâ ncia da aptidã o para o
ensino (cf. també m 1 Tm 5:17), que encontra eco em outras passagens
(cf. 1 Tm 6:2c; 2 Tm 3:10; Ti 2: 1), e també m de uma caracterı́stica
pessoal especial, a da “paternidade”. Com efeito, o Bispo é considerado
o pai da comunidade cristã (cf. també m 1 Tm 3,15). A propó sito, a ideia
da Igreja como “a casa de Deus” está enraizada no Antigo Testamento
(cf. Nm 12,7) e é repetida em Hebreus 3,2.6, enquanto em outro lugar
lemos que todos os cristã os nã o sã o já nã o sã o estrangeiros ou
hó spedes, mas concidadã os dos santos e membros da famı́lia de Deus
(cf. Ef 2,19).
Peçamos ao Senhor e a Sã o Paulo que també m nó s, como cristã os,
nos caracterizemos cada vez mais, em relaçã o à sociedade em que
vivemos, como membros da “famı́lia de Deus”. E rezamos para que os
Pastores da Igreja adquiram cada vez mais sentimentos paternos —
ternos e ao mesmo tempo fortes — na formaçã o da Casa de Deus, da
comunidade e da Igreja.
20

Vida e Legado de São Paulo *

A sé rie de nossas Catequeses sobre Sã o Paulo chegou ao im; hoje
falaremos do im de sua vida terrena. A antiga tradiçã o cristã
testemunha unanimemente que Paulo morreu como consequê ncia do
seu martı́rio aqui em Roma. Os escritos do Novo Testamento nã o nos
dizem nada sobre o evento. Os Actos dos Apó stolos terminam a sua
narraçã o com a mençã o da prisã o do Apó stolo, que soube, no entanto,
acolher todos os que iam ter com ele (cf. Act 28, 30-31). Somente na
Segunda Carta a Timó teo encontramos estas palavras premonitó rias:
“Porque já estou para ser sacri icado; chegou a hora de zarpar” (2 Tm
4,6; cf. Fl 2,17). Aqui sã o utilizadas duas imagens, a imagem religiosa do
sacrifı́cio que ele havia usado anteriormente na Carta aos Filipenses,
interpretando o martı́rio como parte do sacrifı́cio de Cristo, e a imagem
ná utica do repú dio: duas imagens que juntas aludem discretamente ao
evento da morte e de uma morte brutal.
O primeiro testemunho explı́cito da morte de Sã o Paulo chega até nó s
em meados dos anos 90 do primeiro sé culo, ou seja, mais de trê s
dé cadas depois de sua morte real. Consiste precisamente na Epístola
que a Igreja de Roma, com o seu Bispo Clemente I, escreveu à Igreja de
Corinto. Naquele texto epistolar está um convite a manter os olhos ixos
no exemplo dos Apó stolos, e, logo apó s a mençã o ao martı́rio de Pedro,
lê -se: “Por inveja, també m Paulo obteve o galardã o da paciê ncia, depois
de ter sido sete vezes lançado em cativeiro, forçado a fugir e
apedrejado. Depois de pregar tanto no oriente como no ocidente, ele
ganhou a reputaçã o ilustre devido à sua fé , tendo ensinado a retidã o a
todo o mundo, e chegou ao limite extremo do ocidente, e sofreu o
martı́rio sob os prefeitos. Assim foi afastado do mundo e foi para um
lugar santo, tendo-se mostrado um notá vel exemplo de paciê ncia” ( 1
Clem 5:2). A paciê ncia de que fala Clemente é expressã o da comunhã o
de Paulo com a Paixã o de Cristo, da generosidade e constâ ncia com que
aceitou um longo caminho de sofrimento para poder dizer “Trago no
meu corpo as marcas de Jesus”. (Gl 6:17). No texto de Sã o Clemente
ouvimos que Paulo havia chegado ao “limite extremo do ocidente”. Se
esta é uma referê ncia a uma viagem na Espanha empreendida por Paul
está aberta à discussã o. Nã o há certeza sobre isso, mas é verdade que
em sua Carta aos Romanos Sã o Paulo expressa sua intençã o de ir para a
Espanha (cf. Rm 15,24).
A seqü ê ncia na carta de Clemente dos dois nomes de Pedro e Paulo é ,
no entanto, muito interessante, mesmo que fossem invertidos no
testemunho de Eusé bio de Cesaré ia no quarto sé culo. Referindo-se ao
imperador Nero, Eusé bio escreveria: “Está , portanto, registrado que
Paulo foi decapitado na pró pria Roma, e que Pedro també m foi
cruci icado durante o reinado de Nero. Este relato é corroborado pelo
fato de que seus nomes se conservam no cemité rio daquele lugar até os
dias de hoje” ( História Eclesiástica 2, 25, 5). Eusé bio entã o faz
referê ncia à declaraçã o anterior de um padre romano chamado Gaius,
que remonta ao inı́cio do segundo sé culo: “Posso mostrar os trofé us dos
apó stolos. Pois se você for ao Vaticano ou no Caminho Ostian,
encontrará os trofé us daqueles que lançaram os fundamentos desta
Igreja” ( ibid ., 2, 25, 6-7). “Trofé us” sã o monumentos sepulcrais; estes
eram os tú mulos reais de Pedro e Paulo que ainda hoje veneramos,
depois de dois mil anos, naqueles mesmos lugares: o de Sã o Pedro aqui
no Vaticano e o do Apó stolo dos Gentios na Bası́lica de Sã o Paulo Fora
dos Muros na Via Ostian.
E interessante notar que os dois grandes apó stolos sã o mencionados
juntos. Embora nenhuma fonte antiga fale de um ministé rio
contemporâ neo de ambos em Roma, o conhecimento cristã o posterior,
com base em seu enterro comum na capital do Impé rio, també m
associou-os como fundadores da Igreja de Roma. De fato, isso pode ser
lido em Irineu de Lyon, no inal do segundo sé culo, a respeito da
sucessã o apostó lica nas vá rias Igrejas: “Pois seria muito tedioso, em um
volume como este, contar as sucessõ es de todas as Igrejas. . . [fazemos
isso] indicando aquela tradiçã o derivada dos Apó stolos, da grandiosa,
antiquı́ssima e universalmente conhecida Igreja fundada e organizada
em Roma pelos dois mais gloriosos Apó stolos, Pedro e Paulo” ( Adversus
Haereses 3, 3, 2).
No entanto, deixemos agora Pedro de lado e nos concentremos em
Paulo. Seu martı́rio é relatado pela primeira vez nos Atos de Paulo ,
escritos no inal do segundo sé culo. Dizem que Nero o condenou à
morte por decapitaçã o, ordem que foi imediatamente cumprida (cf.
9,5). A data da sua morte já varia nas fontes antigas, que a situam entre
a perseguiçã o desencadeada pelo pró prio Nero apó s o incê ndio de
Roma em 64 de julho e o ú ltimo ano do seu reinado, ou seja, o ano 68
(cf. Jerô nimo, De viris ill . 5, 8). O cá lculo depende fortemente da
cronologia da chegada de Paulo a Roma, uma discussã o na qual nã o
podemos entrar aqui. Tradiçõ es posteriores especi icam dois outros
elementos. Uma, a mais lendá ria, é que seu martı́rio ocorreu na Aquae
Salviae , na Via Laurentina, e que sua cabeça ricocheteou trê s vezes,
dando origem a uma fonte de á gua cada vez que tocou o solo, razã o pela
qual, a esta dia, o lugar é chamado de “Tre Fontane” [trê s fontes] ( Atos
de Pedro e Paulo pelo Pseudo-Marcelo , sé culo V). A segunda versã o, em
harmonia com o antigo relato do sacerdote Caio mencionado acima, é
que seu sepultamento nã o ocorreu apenas “fora da cidade . . . na
segunda milha do Caminho Ostian”, mas mais precisamente “na fazenda
de Lucina”, que era uma matrona cristã ( Paixão de Paulo pelo Pseudo-
Abdias , sé culo IV). Foi aqui, no sé culo IV, que o imperador Constantino
construiu uma primeira igreja. Entã o, entre os sé culos IV e V foi
consideravelmente ampliado pelos imperadores Valentiniano II,
Teodó sio e Arcá dio. A atual Bası́lica de Sã o Paulo Fora dos Muros foi
construı́da aqui apó s o incê ndio em 1800.
Em todo o caso, a igura de Sã o Paulo eleva-se muito acima da sua
vida terrena e da sua morte; de fato, ele nos deixou uma herança
espiritual extraordiná ria. També m ele, como verdadeiro discı́pulo de
Cristo, tornou-se sinal de contradiçã o. Embora fosse considerado
apó stata pela Lei mosaica entre os “Ebionitas”, grupo judaico-cristã o, a
grande veneraçã o por Sã o Paulo já aparece nos Atos dos Apó stolos.
Gostaria agora de prescindir da literatura apó crifa, como os Atos de
Paulo e Tecla e uma coleçã o apó crifa de Cartas entre o apó stolo Paulo e
o iló sofo Sê neca. E sobretudo importante notar que as Cartas de Sã o
Paulo muito cedo entraram na liturgia, onde a estrutura profeta-
apó stolo-Evangelho é determinante para a forma da Liturgia da Palavra.
Assim, graças a esta “presença” na liturgia da Igreja, o pensamento do
Apó stolo deu imediatamente alimento espiritual aos ié is de todas as
é pocas.
E evidente que os Padres da Igreja e, posteriormente, todos os
teó logos se alimentaram das Cartas de Sã o Paulo e de sua
espiritualidade. Assim, ele permaneceu ao longo dos sé culos e até hoje
o verdadeiro mestre e apó stolo dos gentios. O primeiro comentá rio
patrı́stico que chegou até nó s sobre um texto do Novo Testamento é o
do grande teó logo alexandrino Orı́genes, que comenta a Carta de Paulo
aos Romanos. Infelizmente, apenas parte deste comentá rio existe. Sã o
Joã o Crisó stomo, alé m de comentar as Cartas de Paulo, escreveu sobre
ele sete panegı́ricos memorá veis. Foi a Paulo que Santo Agostinho
deveu o passo crucial de sua pró pria conversã o e a Paulo que retornou
ao longo de sua vida. Deste diá logo permanente com o Apó stolo deriva
a sua grande teologia cató lica, como també m a teologia protestante de
todos os tempos. Sã o Tomá s de Aquino deixou-nos um belo comentá rio
à s Cartas Paulinas , que representa o fruto mais maduro da exegese
medieval. Um verdadeiro ponto de virada foi alcançado no sé culo XVI
com a Reforma Protestante. O momento decisivo na vida de Lutero foi o
“Turmerlebnis” (1517), o momento em que descobriu uma nova
interpretaçã o da doutrina paulina da justi icaçã o. Foi uma
interpretaçã o que o libertou dos escrú pulos e ansiedades da vida
anterior e deu-lhe uma nova con iança radical na bondade de Deus que
tudo perdoa, incondicionalmente. Desde entã o, Lutero identi icou o
legalismo judaico-cristã o, condenado pelo Apó stolo, com a ordem de
vida da Igreja Cató lica. E a Igreja, portanto, apareceu para ele como uma
expressã o da escravidã o da lei que ele contrapô s com a liberdade do
Evangelho. O Concı́lio de Trento, de 1545 a 1563, interpretou
profundamente a questã o da justi icaçã o e encontrou a sı́ntese entre lei
e Evangelho em consonâ ncia com toda a tradiçã o cató lica, em
conformidade com a mensagem da Sagrada Escritura lida em sua
totalidade e unidade.
O sé culo XIX, reunindo a melhor herança do Iluminismo, conheceu
um novo ressurgimento do Paulinismo, agora desenvolvido pela
interpretaçã o histó rico-crı́tica da Sagrada Escritura, sobretudo ao nı́vel
do trabalho cientı́ ico. Aqui prescindiremos do fato de que mesmo
naquele sé culo, como mais tarde no sé culo XX, surgiu uma verdadeira e
pró pria difamaçã o de Sã o Paulo. Penso principalmente em Nietzsche,
que ridicularizou a teologia da humildade de Sã o Paulo, contrapondo-a
com sua teologia do homem forte e poderoso. Mas deixemos isso de
lado e examinemos a corrente essencial da nova interpretaçã o cientı́ ica
da Sagrada Escritura e do novo paulinismo daquele sé culo. Aqui, o
conceito de liberdade foi enfatizado como central no pensamento
paulino; nela se encontrava o coraçã o do pensamento paulino, como
Lutero, aliá s, já havia intuı́do. No entanto, o conceito de liberdade foi
entã o reinterpretado no contexto do liberalismo moderno. A
diferenciaçã o entre o anú ncio de Sã o Paulo e o anú ncio de Jesus foi
assim fortemente enfatizada. E Sã o Paulo aparece quase como um novo
fundador do cristianismo. E verdade que em Sã o Paulo a centralidade
do Reino de Deus, crucial para o anú ncio de Jesus, se transformou na
centralidade da cristologia, cujo ponto crucial é o misté rio pascal. E é do
misté rio pascal que derivam os sacramentos do Baptismo e da
Eucaristia, como presença permanente deste misté rio do qual cresce o
Corpo de Cristo e se edi ica a Igreja. No entanto, eu diria, sem entrar
aqui em detalhes, que precisamente na nova centralidade da cristologia
e do misté rio pascal se realiza o Reino de Deus e o anú ncio autê ntico de
Jesus se torna concreto, presente e atuante. Vimos nas nossas
catequeses anteriores que esta inovaçã o paulina é verdadeiramente a
mais profunda idelidade ao anú ncio de Jesus. No progresso da exegese,
sobretudo nos ú ltimos duzentos anos, aumentaram os pontos de
convergê ncia entre a exegese cató lica e a exegese protestante,
alcançando assim um notá vel consenso precisamente sobre o ponto
que esteve na origem da maior dissensã o histó rica. Há , portanto, uma
grande esperança para a causa do ecumenismo, tã o central para o
Concı́lio Vaticano II.
Finalmente, gostaria de mencionar brevemente os vá rios
movimentos religiosos com o nome de Sã o Paulo que surgiram na Igreja
Cató lica nos tempos modernos. Isso aconteceu no sé culo XVI com a
“Congregaçã o de Sã o Paulo”, conhecida como os Barnabitas; no sé culo
XIX com os “Missioná rios de Sã o Paulo”, ou Padres Paulistas; no sé culo
XX com a poliforme “Famı́lia Paulina” fundada pelo Beato Giacomo
Alberione, sem falar no instituto secular da “Companhia de Sã o Paulo”.
No essencial, temos ainda diante de nó s a luminosa igura de um
Apó stolo e de um pensador cristã o extremamente profı́cuo e profundo,
de cuja abordagem todos podem bene iciar. Em um de seus panegı́ricos,
Sã o Joã o Crisó stomo estabeleceu uma comparaçã o original entre Paulo
e Noé . Ele diz: Paulo “nã o juntou as vigas para construir uma arca; ao
contrá rio, em vez de juntar tá buas de madeira, escreveu Cartas e assim
resgatou das ondas nã o dois, trê s ou cinco membros de sua pró pria
famı́lia, mas toda a ecú mena que estava a ponto de perecer” ( Paneg . 1,
5). O apó stolo Paulo ainda pode e sempre será capaz de fazer
exatamente isso. Dele haurir, tanto do seu exemplo como da sua
doutrina, será portanto um incentivo, se nã o uma garantia, para o
reforço da identidade cristã de cada um de nó s e para o
rejuvenescimento de toda a Igreja.
Notas inais

Capı́tulo 1
* Audiê ncia Geral, 2 de julho de 2008, Sala Paulo VI. Voltar ao texto.

Capı́tulo 2
* Audiê ncia Geral, 27 de agosto de 2008, Sala Paulo VI. Voltar ao
texto.

Capı́tulo 3
* Audiê ncia Geral, 3 de setembro de 2008, Sala Paulo VI. Voltar ao
texto.

Capı́tulo 4
* Audiê ncia Geral, 10 de setembro de 2008, Sala Paulo VI. Voltar ao
texto.

capı́tulo 5
* Audiê ncia Geral, 24 de setembro de 2008, Praça Sã o Pedro. Voltar
ao texto.

Capı́tulo 6
* Audiê ncia Geral, 1º de outubro de 2008, Sala Paulo VI. Voltar ao
texto.

Capı́tulo 7
* Audiê ncia Geral, 8 de outubro de 2008, Praça Sã o Pedro. Voltar ao
texto.

Capı́tulo 8
* Audiê ncia Geral, 15 de outubro de 2008, Praça Sã o Pedro. Voltar ao
texto.

Capı́tulo 9
* Audiê ncia Geral, 22 de outubro de 2008, Praça Sã o Pedro. Voltar ao
texto.

Capı́tulo 10
* Audiê ncia Geral, 29 de outubro de 2008, Praça Sã o Pedro. Voltar ao
texto.

Capı́tulo 11
* Audiê ncia Geral, 5 de novembro de 2008, Praça Sã o Pedro. Voltar ao
texto.

Capı́tulo 12
* Audiê ncia Geral, 12 de novembro de 2008, Praça Sã o Pedro. Voltar
ao texto.

Capı́tulo 13
* Audiê ncia Geral, 19 de novembro de 2008, Praça Sã o Pedro. Voltar
ao texto.

Capı́tulo 14
* Audiê ncia Geral, 26 de novembro de 2008, Sala Paulo VI. Voltar ao
texto.
Capı́tulo 15
* Audiê ncia Geral, 3 de dezembro de 2008, Sala Paulo VI. Voltar ao
texto.

Capı́tulo 16
* Audiê ncia Geral, 10 de dezembro de 2008, Sala Paulo VI. Voltar ao
texto.

Capı́tulo 17
* Audiê ncia Geral, 7 de janeiro de 2009, Sala Paulo VI. Voltar ao texto.

Capı́tulo 18
* Audiê ncia Geral, 14 de janeiro de 2009, Sala Paulo VI. Voltar ao
texto.

Capı́tulo 19
* Audiê ncia Geral, 28 de janeiro de 2009, Sala Paulo VI. Voltar ao
texto.

Capı́tulo 20
* Audiê ncia Geral, 4 de fevereiro de 2009, Sala Paulo VI. Voltar ao
texto.
Índice
1. Ambiente Religioso e Cultural
2. Vida de Sã o Paulo antes e depois de Damasco
3. A “conversã o” de Sã o Paulo
4. O conceito de apostolado de Sã o Paulo
5. Paulo, os Doze e a Igreja pré -paulina
6. O “Conselho” de Jerusalé m e o Incidente em Antioquia
7. A relaçã o com o Jesus histó rico
8. A dimensã o eclesioló gica de Paulo
9. A importâ ncia da cristologia: pré -existê ncia e encarnaçã o
10. A Importâ ncia da Cristologia: A Teologia da Cruz
11. A importâ ncia da cristologia: a determinaçã o da ressurreiçã o
12. Escatologia: A Expectativa da Parusia
13. A Doutrina da Justi icaçã o: Das Obras à Fé
14. A Doutrina da Justi icaçã o: O Ensinamento do Apó stolo sobre Fé e
Obras
15. Ensinamento do Apó stolo sobre a relaçã o entre Adã o e Cristo
16. A Teologia dos Sacramentos
17. Adoraçã o Espiritual
18. Cartas aos Colossenses e Efé sios
19. Epı́stolas Pastorais: Cartas a Timó teo e Tito
20. Vida e Legado de Sã o Paulo
Notas

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