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Institutum Sapientiae
Ordinis Canonicorum Regularium Sanctae Crucis

Cursus Theologiae

Cartas Paulinas e Católicas


(Apostila para o uso privado dos alunos)

6ª edição revisada

Pe. Paulus Seeanner, ORC


Anápolis
2022
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1. Introdução:
Por quê estudamos São Paulo?
"zw/ de. ouvke,ti evgw,( zh/| de. evn evmoi. Cristo,j\ o] de. nu/n zw/ evn sarki,( evn pi,stei zw/ th/| tou/
ui`ou/ tou/ qeou/ tou/ avgaph,santo,j me kai. parado,ntoj e`auto.n u`pe.r evmou/Å " (Gl 2,20)
O coração de JESUS CRISTO era o coração de Paulo. Paulo personaliza os valores de
CRISTO e os exprime numa síntese: no seu coração.
Paulo interessa do ponto de vista histórico, contato com a tradição
Paulo interessa como teólogo: inteletualmente: pensa, valoriza, procura
AT – CRISTO – Igreja – Reino
Desperta as grandes horas na historia da Igreja
Paulo interessa como cristão: conta, partilha
É uma personalidade rica no contato com DEUS, CRISTO e o
próximo
Paulo interessa como apóstolo: anuncia o evangelho na cultura concreta
DV 20: "O cânon do Novo Testamento contém, além dos quatro Evangelhos, também as
epístolas de S. Paulo e outros escritos apostólicos exarados sob inspiração do Espírito Santo,
pelos quais, por um sábio desígnio de DEUS,
- é confirmado tudo o que diz respeito ao CRISTO Senhor,
- mais e mais se elucida Sua genuína doutrina,
- anuncia-se o poder salvífico da obra divina de CRISTO,
- narram-se os inícios e a admirável difusão da Igreja e
- se prenuncia a sua gloriosa consumação.
Pois o Senhor JESUS, conforme prometera, assistiu seus Apóstolos (cf. Mt 28,20) e lhes
enviou o Espírito Paráclito que deveria conduzi-los à plenitude da verdade (cf. Jo 16,13)."

2. A pessoa e a vida do Apóstolo São Paulo


Paulo apresenta-se a si mesmo nestes termos: “Eu sou um judeu de Tarso na Cilícia,
cidadão de uma cidade não sem importância”. (At 21,39), falando ao tribuno romano em
Jerusalém. "Circuncidado ao oitavo dia, da estirpe de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu,
filho de hebreus. Segundo a Lei, fariseu. No zelo, perseguidor da Igreja. Pela justiça que
deriva da observância da Lei, irrepreensível" (Fl 3,5s).
Ele nasceu, portanto, duma família de pura linhagem judia, em Tarso na Cilícia. O seu pai
deve ter sido bastante rico, porque ele possuiu além da cidadania de Tarso (At 21,39) também
a cidadania romana, que os não romanos normalmente podiam adquirir somente com muito
dinheiro (cf. At 22,27-28). Por isso Paulo nasceu cidadão romano. De conformidade com o
uso de muitos judeus da dispersão, recebeu dois nomes: um hebreu: Saulo (Desideratus),
outro, latino: Paulo (o pequeno).
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Tarso, a cidade natal de Paulo, era, naquela época, uma das cidades mais florescentes da
Ásia Menor. Era a capital da montanhosa província de Cilícia. É uma cidade muito antiga,
fundada pelos fenícios, e situada a poucos quilômetros do mar. Tarso foi famoso pelos seus
tecidos. Lá se elaborava um grosso tecido feito com pelos de cabra, utilizado para a confecção
de barracas ou tendas de campanha. Como pormenor curioso: na antiguidade e na Idade
Média, era famoso fazer penitência vestido com o "cilício", ou seja, com este pano oriundo da
província da Cilícia, traje pouco confortável. Atualmente Tarso é uma pequena cidade da
Turquia. Seus habitantes, todos muçulmanos, continuam tecendo a rude tela. Sua colocação

geográfica a tornava o ponto de encontro dos dois mundos, oriental e ocidental, ponto de
encontro de duas culturas, semítica e helenístico–romana, importante para a formação do
jovem Saulo. Sobretudo podia orgulhar-se de uma célebre escola filosófica, e ostentar a
merecida fama de centro cultural de primeira grandeza.
O pai de Paulo era fariseu e educou o seu filho severamente segundo os princípios judaico-
fariseus. Na sua primeira educação ele deve ter recebido pouca coisa do meio helênico. Na
família, provavelmente, se falou aramáico. Seu grego permanecerá sempre uma língua viva,
imaginosa, popular, admirável de expressão, mas estranha ao grego das escolas; aprendeu-o
no contato diário do ambiente de Tarso. A cultura helênica ele deve ter adquirido por
intermédio da literatura helenística ou judaico-grega, e não propriamente por um contato
direto com os mestres gregos de Tarso.
Quanto à sua família sabemos ainda que teve uma irmã (cf. At 23,16).
O ano de nascimento de Paulo não sabemos com exatidão. Muitos estão de acordo em
afirmar que Paulo nasceu não depois do ano 10 depois de CRISTO; e isto porque no martírio
de Estêvão, pelo ano de 36, Paulo é chamado de "jovem"; daí deve ter tido entre 24 e 40 anos,
do outro lado porque escrevendo a Filêmon (v.9), epístola escrita na segunda metade dos anos
50 (ou entre 61 a 63 em Roma), diz-se velho.
Segundo um antigo costume judeu que prescrevia que todas as crianças deveriam aprender
algum trabalho útil, Paulo torna-se tecelão, um trabalho que vai exercer durante a sua vida de
apóstolo cristão (cf. At 18,3).
Segundo a tradição severa da família Paulo não visitava as escolas públicas mas sim a
escola da sinagoga da sua cidade, onde ele estudou principalmente a Sagrada Escritura e o
Talmud (explicação judáica do AT). Aqui ele conheceu a tradução da LXX.
Para completar os seus estudos Paulo foi enviado a Jerusalém. Aí foi aluno daqueles
Doutores, em meio dos quais havia aparecido o Menino JESUS. As duas escolas entre as
quais se distribuíam então os estudantes de Jerusalém, ambas de disciplina farisáica, eram a
escola de Hillel e a de Schamai. Foi à primeira que pertenceu Paulo; iniciou-se na ciência
sagrada junto ao sucessor de Hillel, Rabi Gamaliel, o grande doutor fariseu, estimado de toda
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a gente, que deveria tomar um dia, por ocasião das primeiras pregações dos Apóstolos do
Senhor, a defesa dos Apóstolos contra os saduceus (cf. At 22,3; At 5,34-39).
Dessa educação rabínica Paulo guardará uma incomparável ciência das Escrituras e uma
maneira sutil e refinada de argumentar a partir das S. Escrituras (maneira de argumentar bem
diversa do silogismo grego).
Sabe-se que os fariseus ardiam de zelo pela integridade da doutrina e das tradições e por
uma observância exata e rigorosa da Lei mosáica. Mas, a maior parte das vezes, este zelo era
um zelo humano e pouco iluminado. A cegueira do coração, aliada a um ardor imperioso pela
religião, a uma inteligência aguda, e ao ódio ao erro, e a esse desejo sem repouso de se tornar
moralmente irrepreensível justamente por si mesmo (é isto que se manteve como o traço mais
comumente reconhecido do farisaísmo), é um dos mistérios de nossa fraqueza, quando ela se
endurece para tentar elevar-se. Pode-se imaginar Saulo a uns trinta anos, pequeno judeu
ardente e piedoso, mais estrito que qualquer outro naquelas santas observâncias que, no
entanto, não fixam o coração na justiça, entregue com toda a sua alma à ciência das letras
sagradas, e persuadido de que cabe aos puros de Israel gerirem eles próprios os interesses de
DEUS. Ele se pôs a serviço dos chefes religiosos de Jerusalém, está "cheio de zelo por
DEUS", crê honrar Seu nome perseguindo a nova seita, que – segundo ele – se filia a um
blasfemador que a si mesmo chamou de Filho do DEUS Altíssimo e que foi condenado pelos
príncipes dos sacerdotes à morte na cruz, e cujos discípulos seduzem agora o povo,
pretendendo que Ele ressuscitara.
Nos primeiros sermões de Pedro e na primeira pregação do evangelho pode-se reconhecer
o esforço dos Apóstolos de converter a casa de Israel ao seu Messias e Salvador; pedem aos
judeus que se emendem de seu erro fatal e reconheçam como verdadeiro Messias "aquele
JESUS Que eles haviam crucificado" (At 2,36). No tempo em que Estêvão foi escolhido para
diácono, grande número de judeus de língua aramaica, ou de língua grega, se convertiam, e
mesmo em Jerusalém "uma multidão de sacerdotes" (At 6,7).
Mas, precisamente, a partir do martírio de Estêvão, a oposição feita pelos príncipes dos
sacerdotes aos progressos do Evangelho torna-se cada vez mais forte; era preciso, a todo
custo, deter aquele movimento perigoso (assim deve ter pensado Saulo). As perseguições
assaltaram por toda parte aqueles que abraçaram a fé em JESUS o CRISTO. Os judeus
apegados à sua Lei iam tornar-se, em todo o mundo mediterrâneo, os instigadores de
violências opostas à pregação apostólica. Só pouco a pouco, e dolorosamente, é que os
Apóstolos – e o próprio Paulo, após sua conversão – iriam reconhecer que decididamente a
Casa de Israel não somente tinha condenado a JESUS, mas resistia à fé em JESUS
crucificado, e consumava assim o mistério de sua própria exclusão.
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Na vida de Paulo aconteceu algo de importantíssimo e decisivo para toda a sua vida futura:
a sua conversão de perseguidor para apóstolo da fé antes perseguida (cf. At 9,1-19). Quanta
impressão, quanta revolução íntima deve ter provocado este encontro com o Senhor! A sua
cegeira também foi um sinal: JESUS, luz do mundo, tinha sido perguntado pelos fariseus se
eles também estavam cegos e Ele tinha respondido: "Se fôsseis cegos, não teríeis pecado. Mas
como agora dizeis: Vemos!, por isso, o vosso pecado permanece" (Jo 9,41). Saulo se tornou
cego nos olhos corporais para que se lhe abrissem os olhos do coração.
O momento da conversão de Saulo é também o momento em que ele recebe sua missão: é
escolhido para levar o nome de JESUS perante os povos, os reis e os filhos de Israel. E a
grande doutrina que ele pregará, segundo a qual todos os fiéis formam um só corpo, que é o
corpo do Senhor, continuando no tempo a obra da redenção dos homens, tal doutrina já está
contida nas palavras que ele escutou: "EU sou JESUS, a quem persegues".
O encontro com o Senhor ante as portas de Damasco fez do fariseu Paulo o apóstolo Paulo.
Deste acontecimento temos 4 relatos: Gl 1,11-24; At 9,3-19; 22, 6-16; 26,12-18.
Depois da sua conversão (pelo ano de 36, se este ano se aceita
como ano do martírio de Estêvão), tendo sido batizado, Paulo
permanece alguns dias em Damasco (At 9,19). Em seguida não
voltou a Jerusalém, mas partiu para a Arábia, isto é a atual Jordânia
(Gl 1,17). Tendo voltado a Damasco (provavelmente durante a
primavera do ano 37) Paulo ficou por três anos em Damasco (Gl
1,18), pregando a JESUS nas sinagogas. Os judeus que não
aceitavam a JESUS preparavam-lhe ciladas e queriam matá-lo. (cf.
At 9,22; 2Cor 11,32s). A pergunta quanto tempo Paulo ficou na
Arábia e quanto, correspondentemente, em Damasco, depois de ter
voltado da Arábia, esta pergunta não podemos responder com
certeza e exatidão. São indicados por Paulo "3 anos" (Gl 1,18),
mas não está claro se são 3 anos em Damasco, depois de ter
voltado da Arábia, ou 3 anos depois da conversão (estadia na
Arábia e Damasco, tudo junto, seriam 3 anos).
De Damasco vai então, pela primeira vez depois da sua
conversão, a Jerusalém (Gl 1,18; At 9,26). Chegado a Jerusalém,
procurava reunir-se aos discípulos, mas todos tinham medo dele, não querendo acreditar que
fosse um discípulo". Foi então Barnabé que "o tomou consigo, levou-o aos Apóstolos e
contou-lhes como ele, no caminho, tinha visto o Senhor, que lhe falara, e como falara
corajosamente do nome de JESUS em Damasco" (At 9,27). Paulo mesmo (Gl 1,19) diz que,
dos Apóstolos, só viu Pedro e "Tiago, irmão do Senhor" (Gl 1,19: "... fui a Jerusalem, para
visitar (avistar; pode ser também: "entrevistar", informar-me com Pedro) e fiquei com ele
quinze dias"). Terá sido isto pelo ano 40. Paulo não podia deixar de anunciar o nome de
JESUS. "Dirigia-se também aos helenistas (= judeus de língua grega) e discutia com eles, mas
estes planejavam a sua morte. Os irmãos, porém, ao saberem disto, levaram-no para Cesaréia
e fizeram-no seguir para Tarso" (At 9,29s). Em Gl 1,21, Paulo diz: "fui para as regiões da
Síria e da Cilícia". Em Jerusalém ainda, tinha no templo uma visão do Senhor que o
esclareceu a respeito de sua missão; a esta visão ele vai referir-se 18 anos mais tarde, por
ocasião de sua defesa diante do povo, na sua última visita a Jerusalém (At 22,17).
Paulo ficou alguns anos em Tarso (ou seja, região de Síria e Cilícia); parece de 40 a 44;
não se sabe nada o que fez durante este longo período. Durante esse tempo, Pedro, depois
daquela visão dos animais puros e impuros, batizou o centurião Cornélio com sua casa
(família) e estabeleceu a regra de se poder batizar os pagãos sem exigir que se tornem judeus.
Em Antioquia fundou-se a primeira Igreja composta de judeus e de gentios, e onde os gentios
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estavam sem dúvida em maioria, aí foram os discípulos pela primeira vez chamados de
"cristãos". Barnabé, enviado de Jerusalém para controlar o trabalho assim começado, vai em
busca de Paulo em Tarso e o leva consigo para Antioquia. Passam lá "todo o ano" (At 11,25s)
(Antioquia era a terceira cidade do Império Romano quanto ao número de habitantes (meio
milhão), depois de Roma e Alexandria). Neste período um profeta de nome Agabo prediz uma
grande fome (carestia) por toda a terra. É o que se realizou pela fome que houve no tempo do
reinado do imperador Cláudio, pelo ano 46. São precisamente Paulo e Barnabé que levam
uma coleta em favor da Igreja de Jerusalém e, depois de breve estadia em Jerusalém, voltam a
Antioquia (At 11,27-30; 12,25).
Durante uma assembléia litúrgica o Espírito escolhe Barnabé e Paulo: "Separai Barnabé e
Saulo para o trabalho a que Eu os chamei" (At 13,2). Será este o começo da primeira viagem
missionária.

Primeira viagem missionária: At 13,3-14,26; tempo: ano 46-49.


Os capítulos 13 a 14 dos At apresentam-nos o quadro de uma viagem missionária de
Barnabé e Paulo na Ásia Menor. Acompanha-os João Marcos (At 13,5), como colaborador,
mas depois os abandonará (At 13,13).
O itinerário desta missão é o seguinte: Partindo de Antioquia embarcam no porto de
Selêucia em direção à ilha de Chipre, percorrendo aí a estrada de Salamina até Pafos (ca. 150
km). Nesta cidade (Pafos) deu-se a conversão do proconsul Sérgio Paulo (At 13,7-12).
Infelizmente não podemos fixar exatamente a data do seu mandato. De Pafos partem para
Perge da Panfilia, onde João Marcos os abandona para
retornar a Jerusalém (At 13,13) Barnabé e Paulo
continuaram a sua missão para o interior e visitaram a
cidade de Antioquia da Pisidia (Perge a Antioquia: 160
km). Paulo prega à Sinagoga a remissão dos pecados
por JESUS CRISTO (At 13,38s). O discurso ("palavra
de exortação") de Paulo em Antioquia é uma pregação
típica para judeus, que se fundamenta num comentário
sobre a história da salvação, cujo ponto culminante é
JESUS, o Salvador. Supõe um auditório familiarizado
com a leitura do AT. Paulo usa os textos bíblicos ao
modo dos rabinos que consideravam a Palavra de
DEUS como algo vivo e, portanto, aplicável às
diversas situações. Em Antioquia (é claro, a Antioquia
da Pisídia, não da Síria) a palavra de Paulo é realmente
bem aceita: "No sábado seguinte, quase toda a cidade
se reuniu para ouvir a palavra de DEUS" (At 13,44).
Isto, no entanto, provoca a inveja dos judeus, os quais
"responderam com blasfêmias ao que Paulo dizia.
Diante desta oposição Paulo e Barnabé exclamam: "Era primeiramente a vós que a palavra de
DEUS devia ser anunciada. Visto, porém, que a repelis a vós próprios vos julgais indignos da
vida eterna, voltamo-nos para os gentios" (At 13,46). È uma ameaça que Paulo repetirá várias
vezes, e que não o impedirá de continuar a pregar ainda aos judeus. As outras cidades
visitadas por Barnabé e Paulo durante esta viagem são Icônio, Listra e Derbe, onde têm certo
sucesso (At 14,1-21). Em Listra as multidões tomam Barnabé por Júpiter, por causa da sua
elevada estatura, e Paulo por Hermes, "porque era ele quem dirigia a palavra". Depois, por
instigação dos judeus, vindos de Antioquia (da Pisídia) e de Icônio, Paulo foi apedrejado;
"julgando-o morto, arrastaram-no para fora da cidade. Mas, como os discípulos o tivessem
rodeado ele ergueu-se e voltou para a cidade" (At 14,19s). Paulo e Barnabé voltam então
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seguindo quase o mesmo caminho da ida; não passam, porém, por Chipre, e retornam a
Antioquia (At 14,21-29).
Fruto desta atividade apostólica serão os primeiros convertidos provenientes do
paganismo. Este fato significava um problema no interno da comunidade cristã. Em quais
condições os pagãos podem ingressar na Igreja e dela participar? Basta que creiam em
CRISTO, ou devem submeter-se também à circuncisão? Deverão observar toda a lei de
Moisés? Assim o jovem cristianismo teria corrido o perigo de tornar-se somente uma seita
judáica. Todas estas questões serão discutidas no "concílio de Jerusalém" (At 15,1-29). Paulo
e Barnabé foram como representantes da comunidade de Antioquia. O princípio da liberdade
dos pagão-cristãos foi plenamente reconhecido e os chefes da Igreja de Jerusalém firmaram
um pacto de colaboração com os dois expoentes da Igreja antioquena (cf. At 15,23-29).
De qualquer modo, é seguro que o concílio de Jerusalém, realizado em 49, constituiu um
importante ponto de chegada para a história do cristianismo primitivo, agora libertado do
condicionamento da herança religioso-cultural judaica. Mas não encerrou, de uma vez por
todas, as dificuldades. Alguns aspectos do problema não tinham sido resolvidos. Em
particular: como tornar possível a coexistência pacífica de circuncisos e incircuncisos na
mesma comunidade? De fato, pouco depois, em Antioquia, Paulo teve um desencontro com
Pedro justamente por causa dessa questão prática (cf. Gl 2,11-19). Nesta altura teria
acontecido sem dúvida uma separação entre igreja de cristãos provenientes do paganismo ou
do judaísmo, se Paulo não tivesse reconhecido este grande perigo e defendido a verdade do
evangelho. Assim ele conseguiu também a liberdade dos judeu-cristãos da lei mosáica.

Segunda viagem missionária (At 15,36-18,22); tempo: ano 49-52.


Na sua segunda viagem missionária Paulo se separa de Barnabé que, tendo João Marcos
como companheiro de viagem, parte com este para Chipre, enquanto Paulo leva consigo Silas
(Silvano), cidadão romano como ele. Partem eles de Antioquia para visitar em primeiro lugar
as comunidades fundadas durante a primeira viagem missionária na parte meridional (sul) da
Galácia: Derbe, Listra, Icônio e Antioquia da Pisídia. Em Listra toma como companheiro a
Timóteo (At 16,1-3) e o fez circuncidar por causa dos judeus. Pois Timóteo era um jovem
filho de pai pagão, mas de mãe judia. Paulo fez isso para que ele não fosse algum obstáculo
na missão entre os judeus. Todos os três (Paulo, Silas e Timóteo) atravessam então a região da
Frígia e parte norte da Galácia. Aí Paulo esteve doente (cf. Gl 4,13s).
Dirigindo-se sempre para
o ocidente atravessam a
Mísia e chegam a Tróade.
Parece que nesta cidade
Lucas os encontrou; ao
menos o relato dos Atos usa
de agora em diante o plural
"nós" (At 16,10-17). Visão
noturna de um macedônio
(anjo?) que convida a Paulo
a andar a Macedônia (= uma
província da Grécia). É
assim que Paulo e seus
companheiros chegam a
Neapolis (hoje: Cavalla) e daí vão à cidade de Filippi. Encontro com Lídia que é batizada.
Paulo cura uma escrava adivinha (expulsa dela o espírito). Surge daí um grande tumulto e
Paulo e Silas são encarcerados depois de terem sido açoitados. Libertação do cárcere por um
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terremoto (At 16,26). Conversão do carcereiro. Desculpas da parte dos magistrados (Paulo e
Silas eram cidadãos romanos!) e libertação (cf. At 16,36-40). Deixando a Filipi chegam a
Tessalônica (At 17,1), donde devem novamente fugir por causa da perseguição dos judeus.
Vão a Bereia (At 17,10) e Paulo, como sempre, prega primeiro na sinagoga dos judeus. Surge
uma agitação da parte dos judeus provenientes de Tessalônica, e Paulo deve novamente ir-se
embora. Ficam Silas e Timóteo. Paulo chega assim a Atenas. Discurso diante do Areópago
(captatio benevolentiae no discurso; mas no seu íntimo sentia horror da idolatria; cf. At.
17,16). Foi o encontro entre a fé cristã e a filosofia pagã. Paulo, depois do seu discurso no
Areópago é ridicularizado, mas alguns aderiram à sua pregação, entre eles Dionísio o
Areopagita, e também uma mulher de nome Dâmaris. Paulo não espera pelos companheiros
em Atenas, mas parte para Corinto, onde encontra o casal Áquila e Priscilla, expulsos de
Roma pelo edito do imperador Claudio (49); com eles praticou a sua profissão de fazedor de
tendas. Pregou todos os sábados na sinagoga e persuadiu grande número, mas encontrando
sempre contradições e oposições. Naquela cidade, tão típica do mundo greco-romano, ele
anunciava o Evangelho da cruz, sem se importar de ofender ao mesmo tempo a altivez judaica
("escândalo") e a razão grega ("loucura"); seu ministério, começado "na fraqueza e no temor e
num grande tremor", foi particularmente frutuoso. "Nada temas", dizia-lhe o Senhor, "mas
fala e não te cales, porque estou contigo; e ninguém te porá a mão em cima para te fazer mal:
porque tenho um numeroso povo Meu nesta cidade". Paulo passou em Corinto 18 meses. Foi
de Corinto que ele escreveu suas duas cartas aos Tessalonicenses. De novo (sempre) por causa
dos judeus foi levado diante do procônsul Galião, o qual não quis saber nada do assunto (At
18,15-17). Paulo ficou ainda alguns dias e embarcou então em direção à Síria, em companhia
de Áquila e Priscilla. Rapou a cabeça em Cêncreas, por causa de um voto que tinha feito (At
18,18). Eles passam por Éfeso e Paulo fica somente poucos dias, embora fosse pedido que
prolongasse sua estadia. Despedindo-se, porém, disse-lhes: "Voltarei novamente a ter
convosco, se DEUS quiser". Áquila e Priscilla ficaram em Éfeso. Paulo "desembarcou em
Cesaréia, subiu para saudar a Igreja (= de Jerusalém) e desceu a Antioquia" (At 18,22).
Uma nota sobre o procônsul Galião. As datas da vida de Paulo não se pode afirmar com
toda exatidão e certeza. Talvez já notassem também que em alguns livros são indicadas datas
diferentes das que eu já indiquei. Fora das datas que encontramos seja nas cartas paulinas seja
nos Atos dos Apóstolos, a respeito da pessoa e da obra de São Paulo, temos outras indicações
fora da Biblia, que nos ajudam a estabelecer com uma certa probabilidade uma cronologia
paulina. São os cinco seguintes datas:
1. No ano 36 Pôncio Pilatos volta a Roma. Tinha que dar contas diante do Imperador por
causa do seu governo. O afastamento de Pilatos e a chegada de um novo prefeito, Marcelo,
foram para os judeus uma boa ocasião para o julgamento e a execução de Estêvão (At 6,8-
7,60) e para a perseguição da Igreja de Jerusalém (At 8,1). Como sabeis, a conversão de Paulo
está em relação com todos estes fatos (cf. Josefo, Ant., 18,4,2.89).
2. A grande fome que aconteceu durante o mandato do imperador Cláudio (At 11,28-30;
cf. 12,25), em volta do ano 46 depois de CRISTO. Esta data não podemos verificar
facilmente; parece que esta miséria durou alguns anos. Não obstante isso, temos indícios que
nos permitem afirmar que esta fome aconteceu na Judéia nos inícios do mandato do
procurador Júlio Alessandro: 46-48 (cf. Josefo, Ant. 20,5,2.101).
3. O edito da expulsão dos judeus de Roma por Cláudio em volta do ano 49. Segundo
Svetônio (Claudii vita, 25), os judeus foram expulsos por causa das frequentes contendas
entre eles e os judeu-cristãos acerca de Chrestos (= CRISTO). Isto aconteceu no nono ano de
Cláudio: 49. Este edito obrigou os judeus Áquila e Priscilla a deixar Roma. Chegaram a
Corinto não muito tempo antes de Paulo na sua segunda viagem missionária (At 18,2).
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4. O proconsulado de L. G. Galião na Acaia, por volta do ano 52. Paulo é citado perante
ele em Corinto no fim da sua segunda viagem missionária (At 18,12).
5. Em volta do ano 60 Pórcio Festo sucedeu como procurador da Judéia a Antônio Félix.
Ao chegar Pórcio Festo, Paulo apela a César para ser julgado em Roma (At 24,27; 25,9-10).
De todas estas datas a mais importante para determinar a cronologia da vida de Paulo é a
do mandato de Galião, irmão de Sêneca, como procurador da Acaia. Ora, em uma inscrição
encontrada em Delfos, no ano de 1905, lemos que o imperador Claudio é aclamado imperador
pela 26ª aclamação imperial no ano 51 ou 52. E essa é a data também da citação de Paulo no
tribunal de Galião, dado que os governadores das províncias romanas ficavam no cargo um
ano. Podemos, então, concluir que Paulo chegou a Corinto nos primeiros meses do ano 51. E
se pensamos que ele precisava mais ou menos 15 meses para tudo o que aconteceu antes de
chegar a Corinto, então ele deve ter partido de Antioquia para a sua segunda viagem
missionária no outono do ano 49, depois do concílio de Jerusalém.

Terceira viagem missionária: At 18,23-21,17; tempo: ano 53-58.


Parte de Antioquia; percorre as regiões da Galácia e da Frígia. Chega a Éfeso (quando
Apolo que tinha estado em Éfeso se encontrava em Corinto; cfr. At 18,24-28; 19,1).
Batismo e "confirmação" de mais ou menos doze discípulos que não tinham antes ouvido
que existe o Espírito Santo. Pregação na sinagoga por três meses. Houve oposição, Paulo
"rompeu com eles (os judeus), afastou-se com os seus discípulos e começou a ensinar,
diariamente, na escola de Tirano (cf. Quanto a essa
atitude de Paulo, Mt 7,6). Isto prolongou-se por dois
anos, de modo que todos os habitantes da Ásia,
tanto judeus como gregos, puderam ouvir a palavra
do Senhor" (At 19,9s). A atividade missionária de
Paulo extendeu-se também para o interior, através
de colaboradores seus, como se pode constatar por
meio da carta aos Colosenses). Tumulto contra
Paulo causado por Demétrio "que construía
santuários de Ártemis em prata e proporcionava aos
artífices lucrativos negócios" (At 19,24ss; At 20,1).
Da Macedônia foi à Grécia (Corinto). Aí ficou
durante três meses. "Uma conspiração fomentada
contra ele pelos judeus, quando ia embarcar para a
Síria levou-o a tomar a decisão de regressar pela
Macedônia" (At 20,3). Em Filipi celebra, em 58, a
Páscoa (At 20,6). Tróade: uma semana; resuscita um
morto; Asso: Paulo tinha feito a viagem de Tróade a Asso a pé. De navio vai então a Mitilene,
Quio, Samos e Mileto. Não passavam por Éfeso, (At 20,16). Durante o último trecho da
viagem rumo Jerusalém, em Mileto, em Tiro, sobretudo em Cesaréia, a atmosfera em torno de
Paulo se torna sempre mais pesada, pelo estímulo de pressentimentos e prenúncios; mas nada
consegue desviar o Apóstolo de sua meta: Jerusalém. Encontro comovente com o anciãos de
Éfeso, em Mileto (cf. At 20,17-38). Prosseguindo a viagem rumo a Jerusalém, foi em Tiro que
discípulos, inspirados pelo Espírito Santo diziam a Paulo que não subisse a Jerusalém" (At
21,4). Em Cesaréia hospedam-se na casa do "evangelista Filipe, um dos sete". Da Judéia vem
o profeta Ágabo, "o qual foi ter conosco, pegou no cinto de Paulo, e, ligando-se de pés e
mãos, disse: "Isto diz o Espírito Santo: O homem a quem pertence este cinto será ligado assim
em Jerusalém pelos judeus, e eles entregá-lo-ão às mãos dos pagãos" (At 21,11s). Paulo está
pronto a morrer por CRISTO e vai a Jerusalém (At 21,16-27ss).
10

Nesta terceira viagem missionária que termina em


Jerusalém sendo Paulo preso, ele escreveu as cartas
chamadas "as grandes epístolas" (Hauptbriefe): Gl,
1Cor em Éfeso, 2Cor na Macedônia (Filipi); Rm em
Corinto; talvez escreveu também Fl em Éfeso
(56/57).
Os acontecimentos em Jerusalém, a sua prisão em
Jerusalém e Cesareia contam-nos os Atos dos
Apóstolos, 21,16-26,32.
Depois de dois anos de prisão (At 24,27), durante
os quais Paulo tinha que comparecer diversas vezes
ao tribunal ou a audiências privadas dos
procuradores, como também de Agrippa II e
Berenice (At 24,1-26,32), quando Pórcio Festo
sucedendo no cargo a Félix, projetava mandá-lo
julgar em Jerusalém pelo sinédrio, Paulo fez uso de
seu direito de cidadania romana e apelou ao tribunal
romano do imperador (At 25-26).
No embarque para Cesaréia em uma
nave de Adramícia, que se dirigia para a
Ásia, sob a responsabilidade de um certo
Júlio, tribuno da coorte Augusta, estavam
com Paulo o macedônio Aristarco e
Lucas, que nos deixou uma exata
narração da viagem. Esta foi rica em
aventuras. Em Mira, na Lícia, trocaram a
nave de Adramícia por um navio
alexandrino, que, após muito vagar ao

sabor das ondas, naufragou em Malta, salvando-


se porém, além da tripulação, todos os
prisioneiros (At 27,1-44). Em Malta, tratados
com muita humanidade pelos ilhéus, os
náufragos passaram o inverno. É provável que
Paulo tenha, inclusive em virtude dos prodígios
efetuados, conseguido conversões, embora o
texto não o diga expressamente (At 28,1-10).
11

No início da primavera os náufragos, em outra nave de Alexandria, chegaram a Siracusa,


Régio, Putéoli, onde Paulo e os seus permaneceram sete dias com a comunidade cristã. De
Roma foram ao encontro de Paulo representações até o Foro de Ápio e as Três Tabernas. Isto
deixou o Apóstolo muito consolado (At 28,11-16). Em Roma, Paulo logo se pôs em contacto
com a comunidade judaica. O primeiro encontro não parece ter sido totalmente negativo; mas
no segundo, como de costume, a ruptura se delineou bem nítida (At 28,17-28). Ainda que
tenham fracassado as tentativas de estreitar boas relações com os judeus, Paulo pôde, todavia,
exercer algum apostolado em Roma, apesar de limitado por sua condição de prisioneiro.
"Dois anos inteiros permaneceu Paulo na casa que havia alugado. Recebia a todos que
vinham ter com ele, pregando o reino de Deus e ensinando com toda a liberdade e sem
obstáculo as coisas a respeito do Senhor Jesus Cristo" (At 27,30-31). Provavelmente neste
tempo escreveu as últimas cartas (Cl, Fl, Fm, Ef). Aqui termina a narração dos Atos.
Por isso temos de confiar unicamente nas informações das cartas: notícias reduzidas e,
além disso, nem sempre colocáveis num quadro histórico preciso. As cartas da prisão – a
epístola aos Filipenses em particular – informam-nos sobre a condição do prisioneiro e suas
esperanças quanto ao fim do cativeiro. É possível que o biênio de prisão tenha terminado ou
por uma sentença favorável a Paulo ou, antes, porque não se haviam apresentado os que
sustentavam a acusação e, assim, expirara o tempo prescrito e o prisioneiro foi posto em
liberdade, conforme a lei. É possível que Paulo tenha sido beneficiado por um ato de
clemência imperial. Assim ele ficou livre para fazer mais duas grandes viagens. Clemens
Romanus conta-nos (Ad Cor 5,6s) que Paulo chegou até aos confins do ocidente. Do ponto de
vista de Roma isto pode somente significar que Paulo chegou até a Espanha. Também o
Fragmento de Muratori fala-nos de uma viagem de São Paulo à Espanha. Além disso o
apóstolo fez ainda uma viagem para o Oriente visitando de novo os lugares da sua
evangelização. Pelas cartas pastorais sabemos, que ele foi a Éfeso (1Tm 1,3), e Filipos estava,
por assim dizer, no caminho. Também Colossas podia facilmente ser alcançada a partir de
Éfeso: o texto de 1Tm 1,3 deixa supor uma visita à Macedônia com a partida de Éfeso. Paulo
teria visitado também Creta, aí deixando Tito (Tt 1,5), que depois convidava a alcançá-lo em
Nicápolis no Epiro (Tt 3,12). 2 Tim 4,19s implica uma visita de Paulo a Corinto e a Mileto.
Assim podemos imaginar que ele visitou mais uma vez as suas comunidades em Corinto –
Creta – Milet – Éfeso – Tróade – Macedônia – Nicápolis – Roma.
No ano 66 ele foi novamente preso em Roma, o seu segundo cativeiro em Roma. Este
cativeiro era muito duro em comparação com o primeiro (2Tm 1,8.12; 2,9s.). Paulo não
pensava mais num éxito propício do processo (2Tm 4,6-18).
Outros pensam que a prisão poderia ter ocorrido em Tróade (cf. 2Tm 4,13), de onde Paulo
teria sido levado a Éfeso para um novo processo, durante o qual teria feito a amarga
experiência do abandono por parte de muitos e da aberta hostilidade de outros (2Tm 4,14-18).
Alguns amigos estavam longe, talvez ainda então em atividades missionárias. Somente Lucas
permanecia a seu lado (cf. 2Tm 4,11). Essas últimas viagens e atividades de Paulo no
Oriente, portanto, teriam sido consagradas ao fortalecimento e à reforma, onde era
necessário, de suas comunidades. No entanto, muitas coisas afligiram a sua alma sensível,
embora fosse generosamente dedicado à causa do apostolado (2Tm 4,6ss). Deve ter recebido
a maior consolação da visita a Filipos (cf. Fl 1,21-26; Fl 2,17s).
A 2 Timóteo foi escrita de Roma durante uma nova prisão, que poderia ter sido
conseqüência de uma nova apelação ao tribunal imperial, no curso de um processo judiciário
contra ele, na Ásia. É possível que Paulo tivesse sido vítima de reflexos da perseguição
neroniana em algumas províncias do Império, no caso concreto, na Ásia. Daí teria sido depois
remetido para Roma, talvez no outono de 66. A previsão de que uma segunda audiência do
processo, na capital, poderia concluir-se com a condenação à morte explicaria o urgente
convite a Timóteo para alcançar logo (2Tm 4,9) o prisioneiro, antes do inverno (2Tm 4,21).
12

De fato veio a condenação, após alguns meses de cárcere muito mais duro que a prisão
anterior; não era, com efeito, a custodia militaris numa casa alugada, mas a custodia publica.
Até o final Paulo continuou interessando-se por suas igrejas e pelo apostolado. Por isso,
talvez, o convite a Timóteo de levar consigo Marcos, que teria sido muito útil (2Tm 4,11)
pela sua precedente experiência na capital.
Como cidadão romano Paulo não podia ser condenado à cruz, como o fora Pedro. Foi, no
entanto, decapitado sob o domínio de Nero, provavelmente em 67. Como local do martírio
uma tradição bastante constante indica "Ad Aquae Salvias" (hoje se chama "Tre Fontane"). O
sepulcro sob a confessio na Basílica "Sao Paolo fuori le mure" corresponde ao lugar da
primitiva sepultura.
13

Datas importantes na vida de São Paulo

Nascimento 1-5 d.CR


Estudos com Gamaliel 20-30 d.CR
Conversão 33/34 d.CR
Estadia na Arábia, Damasco, visita a Jerusalém, Tarso, Antioquia, Jerusalém 36-45 d.CR
1a viagem missionária 46-48 d.CR
Concílio de Jerusalém 48/49 d.CR
a
2 viagem missionária 49-52 d.CR
3a viagem missionária 53-58 d.CR
Cativeiro em Cesaréia 58-60 d.CR
Viagem para Roma 60 d.CR
1o Cativeiro em Roma 61-63 d.CR
Viagem a Espanha 63-64 d.CR
Viagem ao Oriente 64-66 d.CR
2o Cativeiro em Roma 66-67 d.CR
Mártir 67 d.CR

As cartas de São Paulo: ordem cronológica

1 Tessalonicenses 50/51 em Corinto 5 cap 89 vv 1Ts


2 Tessalonicenses 52 em Corinto 3 cap 47 vv 2Ts
1 aos Coríntios 53 em Éfeso 16 cap 436 vv 1Cor
2 aos Coríntios 56/57 na Macedônia 13 cap 255 vv 2Cor
Gálatas 54/55 Éfeso/Corinto 6 cap 147 vv Gl
Romanos 57 Corinto 16 cap 435 vv Rm
Efésios 61/63 Roma 6 cap 155 vv Ef
Filipenses 61/63 Roma 4 cap 104 vv Fl
Filêmon 61/63 Roma 1 cap 25 vv Fm
Colossenses 61-63 Roma 4 cap 95 vv Cl
1 Timóteo 65 Nicápolis 6 cap 113 vv 1Tm
Tito 65 Nicápolis 3 cap 46 vv Tt
2 Timóteo 67 Roma 4 cap 83 vv 2Tm
Hebreus 66/67 Roma 13 cap 302 vv Hb
14

3. As cartas de São Paulo


Dentro dos 27 escritos do NT, 21 são cartas ou epístolas (os outros 6: 4 evangelhos, Atos
dos Apóstolos, Apocalipse), das quais 14 foram atribuídas a São Paulo; 13 trazem o seu
nome. A carta que não traz o seu nome, mas que já foi atribuída a ele, é a carta aos Hebreus.
Já Origenes, porém, opinou (cf. Eusébio, História da Igreja VI, 25/11ss): "Se é para dizer a
minha opinião eu penso que os pensamentos (da carta aos Hebreus) são do Apóstolo, a
expressão literária, porém e a apresentação são de um outro que anotou os pensamentos do
Apóstolo e como que redigiu, ampliando, aquilo que foi dito pelo mestre." Hoje em dia
muitos pensam que a carta aos Hebreus não é da autoria de São Paulo.
Quanto à autenticidade das outras 13 cartas:
7 cartas sem dúvida alguma são de São Paulo: 1Ts, Gl, 1 e 2 Cor, Rm, Fl, Fm
Há discussões a respeito de 2Ts, Cl, Ef, 1 e 2Tm, Tt.

1. carta - epístola
Quanto ao aspecto formal das cartas: há uma variedade de gêneros literários: de uma
simples comunicação privada de indivíduo para indivíduo (Fm; é bastante semelhante a 3Jo)
até escritos que são verdadeiramente cartas, mas expressamente dirigidas a grupos de pessoas
(Igrejas), como Fl, 1 e 2Ts, Gl, 1 e 2Cor. E enfim também há cartas que, embora sendo
enviadas a determinadas pessoas por uma exigência concreta, já fazem parte do gênero
literário de "obra literária" ou de tratado, por causa do conteúdo e do modo de exposição.
Podiam ser chamadas de cartas "abertas" (Rm e Hb, comparáveis com Tiago e 2 Pedro).
Há quem estabeleça uma diferença de gênero literário entre carta e epístola (Adolf
Deissmann). O que distinguiriá uma carta de uma epístola seria o seguinte:
Uma carta não tem finalidade literária; é somente um meio de comunicação entre pessoas
que se encontram separadas; é algo de pessoal e íntimo, escrito exclusivamente para os
destinatários e não para um público geral, tem carácter mais familiar e prático; está ligada aos
problemas e fatos da vida cotidiana.
Uma epístola é uma forma artístico-literária (p.ex. o diálogo, o discurso ou o drama). O
conteúdo da epístola leva em consideração a publicidade e quer interessar o público, destina-
se a um público geral, ainda que endereçada a particulares. Aborda assuntos mais elevados:
problemas morais, filosóficos, artísticos. Não seriam, em todos os casos, próprias das
epístolas as notícias pessoais que constituem, ao contrário, um elemento característico da
carta: conversas à distância.
Não se podem classificar os escritos paulinos, de maneira rigorosa e exclusiva, nem dentro
de um nem de outro desses gêneros literários. Pelo conteúdo são, muitas vezes, verdadeiras
epístolas; mas, também nestes casos, a moldura é a de uma carta, com notícias pessoais e de
amigos, saudações por e para particulares.

2. Escritos ocasionais:
As cartas de São Paulo são escritos ocasionais, não se deveria nunca esquecer isto. Não são
tratados de teologia, mas respostas a situações concretas. Verdadeiras cartas que se inspiram
no formulário então em uso, elas não são nem cartas puramente privadas, nem epístolas
puramente literárias, mas exposições que o Apóstolo destina a leitores concretos e, além
deles, a todos os fiéis em CRISTO; quer dizer: não são cartas privadas, mas documentos
oficiais dentro da Igreja. Ainda que escritas em ocasiões e para leitores diversos, elas contêm
15

a mesma doutrina fundamental que gira ao redor do centro: CRISTO crucificado e


ressuscitado, e que se adapta, se evolui, se enriquece no decurso de uma vida totalmente
entregue a todos (cf. 1Cor 9,19-22).

3. Amanuenses:
Não devemos deixar sem menção a dificuldade que São Paulo deve ter tido nesta sua
atividade escriturística. Sabe-se que a tarefa de escrever, na antiguidade, era difícil e lenta,
pois se usava papiro ou pergaminho, a que se aplicavam estiletes de plantas ou penas de
ganso. Paulo não escrevia as suas cartas diretamente (de própria mão), mas recorria a escribas
peritos (Tércio, em Rm 16,22), a quem o Apóstolo ditava. No fim da carta, no entanto, ele
acrescentava normalmente de próprio punho, alguma saudação ou recomendação final, como
se pode reconhecer particularmente em 2Ts 3,17. Cf. também Gl 6,11; Cl 4,18; 1Cor 16,21.

4. Linguagem e estilo:
São Paulo vibrava com todas as fibras do seu ser ao falar ou escrever de JESUS CRISTO e
do Evangelho. Em conseqüência, a sua palavra não podia deixar de ser rica de vigor de vida.
A todos impressionava não tanto pela forma literária, mas pela profundidade do conteúdo. Foi
isso que o interessava sobretudo: a doutrina a ser transmitida, e não a eloquência humana
(1Cor 1,17). Até, para o conhecimento profundo que possuía, as palavras de que dispunha
eram expressão fraca; cf. 2Cor 11,6. Os críticos reconhecem, nas cartas do Apóstolo dos
gentios, passagens de admirável eloquência, que merecem para São Paulo um lugar de
destaque entre os grandes escritores da literatura mundial (p.ex.: Rm 8,31-39; 1Cor 13,1-13;
1Cor 1,18-30).

5. A ordem das cartas:


A ordem do cânon das cartas de São Paulo não corresponde à ordem cronológica das
cartas. Essa ordem segue outro critério: distribui as cartas segundo se dirigem a comunidades
(1º grupo) ou a pessoas particulares (2º grupo). Dentro destes dois grupos a ordem se
estabelece segundo o critério do volume das cartas (primeiro a carta mais volumosa e assim
por diante). Assim se chega a esta ordem: Rm, 1 e 2Cor, Gl, Ef, Fl, Cl, 1 e 2Ts, 1 e 2Tm, Tt,
Fm, e por fim, pela singularidade do conteúdo, mas também em consequência das discussões
acerca da sua origem paulina, Hb.
Para estudar bem as cartas de São Paulo é bom não lê-las segundo a ordem "canônica" (na
Bíblia), mas segundo a ordem cronológica, situando-as dentro da vida e atividade missionária,
i.é, no seu contexto histórico. Tal procedimento é muito aconselhável também pela seguinte
razão: as cartas paulinas não são tratados teológicos, não são uma elaboração sistemática de
uma doutrina desde logo plenamente desenvolvida. Trata-se de uma doutrina que se
desenvolveu, se enriqueceu durante a vida e atividade missionária do Apóstolo. Houve um
desenvolvimento homogêneo que se encaminhou até aquela plenitude, cuja expressão máxima
é a carta aos Efésios (seg. Benoît). Os degraus deste desenvolvimento pode-se notar quando
se estuda as cartas cronologicamente.

6. Cartas e apostolado:
Jamais se levará bastante em conta que para Paulo escrever é apenas um meio para integrar
o ministério apostólico. Não tinha sentido, para ele, uma vocação literária como tal. Seus
escritos não só não pertencem à categoria dos exercícios mais ou menos acadêmicos, mas nem
mesmo são tratados que abordam problemas especulativos por si mesmos. Sua mente aguda e
penetrante nunca perde de vista o concreto e o prático. E é somente em vista de necessidades
16

práticas que Paulo se decide a recorrer à palavra escrita, como um complemento, então, da
palavra que ele prega. O escrito prolonga a presença e a ação do Apóstolo entre a comunidade
que ele teve de abandonar muito de imprevisto e ainda necessitando de instruções e
esclarecimentos sobre pontos doutrinários mal abordados ou, pelo menos, não suficientemente
compreendidos pelos fiéis: sem falar em problemas práticos imprevistos e ações perturbadoras
de fora. Os escritos de São Paulo devem ser vistos em função dessas finalidades práticas: ele
torna-se escritor unicamente porque é apóstolo e responsável pelas comunidades que fundou.
E mesmo quando ele escreve aos Romanos, a uma comunidade nunca vista, nem é somente
uma exposição doutrinal, mas também escreve conselhos práticos.

7. Gêneros literários:
Podemos reunir as formas ou gêneros literários das epístolas paulinas sob estes dez títulos:
1) formulas epistolares; 2) ação de graças; 3) trechos retóricos; 4) fórmulas querigmáticas;
5) trechos autobiográficos; 6) demonstrações com recurso à Escritura; 7) a forma apocalíptica;
8) bênçãos e doxologias; 9) prosa ritmada e hinos; 10) a parênese.

8. Formulário:
É compreensível que o formulário epistolar de Paulo espelhe em parte o de seu tempo,
embora dele se distinga claramente pelos pormenores inspirados na concepção e no espírito
cristãos.
As cartas dos antigos, gregos e latinos, começavam com um cabeçalho, que levava o nome
do remetente, a indicação do destinatário e um voto; seguia-se o corpo da carta; e, finalmente,
o fecho ou remate com a saudação final. Paulo se apropria deste esquema, colocando nele,
porém, um conteúdo inteiramente novo, que se manifesta não só na substância da carta – o
que é perfeitamente compreensível – mas nas próprias fórmulas protocolares. É a novidade da
mensagem cristã, que se percebe de maneira totalmente pessoal.
No cabeçalho muitas vezes Paulo une ao próprio nome, seguido das qualificações de servo
ou de apóstolo de JESUS CRISTO os nomes dos colaboradores que se encontram junto a ele,
no momento em que escreve, como que para associá-los numa espécie de co-responsabilidade
ou apoio moral ao escrito. Ao nome da comunidade destinatária – às vezes se trata de um
grupo de comunidades (Gl 1,2; cf. 1Cor 1,2; 2Cor 1,1) – seguem-se muitas vezes elementos
especificativos (igreja de DEUS ..., santos ...) que caracterizam já a nobreza da condição cristã
(caso típico é o prólogo de Romanos (1,1-7)
A saudação augural, depois, substitui o cai,rein (cf. Tg 1,1) dos gregos por ca,rij, eivrh,nh,
que retoma, renovando-lhe o sentido e o conteúdo, o ~Alv' hebráico. Acontece também,
nalguns casos (cf. Rm 1,5; Gl 1,1), que já no cabeçalho se encontra uma velada alusão ao
tema ou a um dos temas da carta que será depois enunciado mais claramente no prólogo
propriamente dito (Rm 1,8-17; Gl 1,6-9).
Encerrando a carta, Paulo faz muitas vezes ainda algumas recomendações; saúda, quase
sempre, de maneira mais ou menos difusa, a comunidade destinatária ou alguns de seus
membros mais destacados e transmite as saudações daqueles que se encontram a seu lado.

9. A formação cultural de São Paulo:


Antes de entrarmos no estudo das suas cartas vejamos ainda qual foi a formação cultural
do Apóstolo. Isto, certamente, não é sem importância para entender tantas coisas. Paulo é
fundamentalmente de formação judia com influências greco-helenísticas. Ele era um judeu da
diáspora, um judeu "helenista", portanto. Não estudou os clássicos gregos; mas ele se
17

encontrou com a atmosfera espiritual do mundo helenista, no qual viveu a maior parte da sua
vida. Quanto ao "helenismo" de Paulo deve-se notar: é insuficiente simplesmente constatar
verdadeiras ou supostas analogias de temas ou termos entre São Paulo e a cultura helenística.
Pode haver elementos semelhantes ou comuns entre as duas culturas (ou seja, São Paulo com
cultura judaica e a cultura helenista), sem que haja uma recíproca dependência entre elas!
Pode haver os mesmos termos, que, porém, ocupam um lugar (exercem um papel) bastante
diferente nos respectivos sistemas de pensamento.
Concluimos: A boa exegese vai querer entender São Paulo a partir daquilo que foi o seu
"humus" (Mutterboden): primeiro o judaísmo e depois, o cristianismo. O helenismo, quando é
presente, é já mediado por estes dois contextos culturais (não um helenismo sem o fundo
hebraico ou cristão). Além do mais, não se deve esquecer a genialidade do Apóstolo. Só se
pode realmente compreendê-lo não procurando tais e tais influências culturais-religiosas, mas
colocando-se, por assim dizer, no coração da sua doutrina a fim de compreendê-la a partir de
dentro.

10. A formação judaica de Paulo:


Ao falar da vida do Apóstolo Paulo vimos que ele recebeu uma rígida formação farisaica,
primeiro em Tarso, depois em Jerusalém. Educação levada a plena maturidade pela escola
rabínica, dirigida por Gamaliel. Nas cartas do Apóstolo aparece constantemente este fundo
cultural judaico seja no modo de sentir e pensar, seja no conteúdo doutrinal das cartas.

1) Seu conhecimento da Sagrada Escritura:


Das citações veterotestamentárias nas suas cartas pode-se reconhecer a sua grande
familiaridade com os livros da Bíblia, sobretudo com os Salmos e os livros proféticos. Isto
leva a concluir fundatamente que ele tenha sofrido uma forte influência da religiosidade
profética. Contara-se 118 citações do AT, nas cartas do Apóstolo; outros chegaram a
encontrar 232 citações explícitas e implícitas; alguns acham até que se encontram 800
reminiscências bíblicas no epistolário paulino.

2. Paulo é um judeu espiritual:


Dos dados biográficos das Cartas e dos Atos se chegaria a concluir que Paulo era um
legalista intransigente. Uma leitura aprofundada dos textos apresenta-nos, ao invés, uma
figura exatamente contrária do judeu Paulo, falando do seu passado pré-cristão, se define a si
mesmo "cheio de zelo por DEUS". A Lei é, portanto, para ele algo de "espiritual" (Rm 7,14),
de "santo" (Rm 7,12), de "bom" em si (Rm 7,16). Ela é para Paulo um simples meio, o fim
permanece sempre DEUS. Por conseguinte, quando a Lei se transforma em fim, pelo mau uso
que dela faz o homem, ela torna-se automaticamente "força do pecado" (1Cor 15,56: "e a
força do pecado é a Lei"), porque colocando os seus súditos sob a servidão das realidades do
mundo criado (Gl 4,3.8.10; Cl 2,8.20), faz abundar os delitos (Gl 3,19; Rm 5,28) e, portanto,
mata (2Cor 3,6s; Rm 2,27; 7,6).
Esta concepção da Lei tinha sido facilitada para Paulo, justamente pela sua assimilação das
correntes profética e apocalíptica. Pois, de fato, ambas as correntes acentuam o papel de
DEUS na obra da salvação: é DEUS Que salva na história. Nesta perspectiva era fácil a
passagem, quanto à salvação, da Lei a CRISTO, e era fácil a prontidão a assimilar o conceito
de "salvação mediante a fé". Considerando tudo isto pode-se entender também melhor ou de
modo certo o porquê da atividade perseguidora de Paulo contra a Igreja. O "novo caminho"
deve-se lhe ter apresentado como uma fé que atribui a salvação a uma criatura (JESUS visto
como homem condenado pela autoridade religiosa judaica) e não a DEUS Que salva pelo fiel
cumprimento da Lei. Só à luz dessas constatações pode-se entender, por fim, porque São
18

Paulo veja na sua experiência diante de Damasco mais uma "chamada" do que uma
"conversão", e porque tem, em seguida, a consciência de pregar o "verdadeiro judaismo" (cf.
Gl e Rm). Ele devia reconhecer quem é JESUS de verdade (verdadeiro Filho de DEUS no
sentido forte da palavra), para poder então reconhecer com toda clareza que a salvação vem
somente de JESUS crucificado e ressuscitado.

11. Influências helenísticas sobre São Paulo


Depois de ter falado sobre a formação essencialmente judaica de São Paulo, trata-se agora
de examinar as influências helenísticas exercidas sobre ele. Não se trata propriamente de
formação helenística, mas somente de influências. Paulo recebeu formação judaica com
influências helenísticas. Para explicar estas influências não é necessário que tenha
frequentado escolas helenísticas; bastava somente o contato da vida cotidiana com o ambiente
helenista em que viveu, e, mais tarde, os estímulos derivantes do seu apostolado. Se
procuramos dados helenísticos em Paulo encontramos os seguintes:

A) O uso da língua grega:


Ver como Paulo emprega a língua grega, projeta luz sobre a nossa questão. Verifica-se nele
uma clara e constante atenção na escolha dos vocábulos destinados a exprimir, com clareza, a
mensagem cristã.

1) Uso lexicográfico:
Para esse fim (cf. acima) Paulo evita completamente aqueles termos que poderíam fazer
surgir equívocos doutrinais. Eis os casos mais notáveis:
- o binômio "mestre – discípulo" para indicar a relação entre CRISTO e os fiéis, enquanto
está presente nos evangelhos e nas primeiras partes dos Atos, não é usado por Paulo para
evitar que CRISTO seja confundido com qualquer mestre de religião ou de filosofia do
mundo grego. Para designar os fiéis Paulo recorre às expressões "os (que são) de CRISTO",
"os que estão em CRISTO".
- É também totalmente ausente das cartas paulinas o vocabulário do misticismo e dos
oráculos gregos ("entusiasmo", "inspirar", "inspiração"), junto com o termo i`ero,j (sacro).
Também no vocabulário deve-se saber reconhecer a novidade absoluta da realidade cristã em
relação a todo outro fenômeno religioso contemporâneo!
- Paulo nega-se a usar a terminologia técnica da filosofia religiosa ("sorte", "destino",
(moi/ra, fatum em latim), "felicidade", "inclinação") e aquela dos cultos mistéricos (musth,rion,
"salvação", "escondido", "revelado", "perfeito"). Deve-se precisar aqui, que de fato se
encontram termos usados nos cultos mistéricos, também nas cartas paulinas; foi, porém,
acertadamente constatado que estes termos, no epistolário paulino, não derivam da
terminologia mistérica, mas sim, da apocalíptica judaica.

2. Uso linguístico:
Se São Paulo é muito cauteloso no uso do vocabulário religioso grego, ele assume, ao
invés, bastante a terminologia, os gêneros literários e os temas da filosofia popular
contemporânea. Assim, são abundantes as metáforas tiradas da vida esportiva e militar. Paulo
apresenta também "Catálogos dos deveres", semelhantes àqueles dos pregadores, filósofos e
oradores do seu tempo (cf. 1Cor 5,10s; 6,9s; 2Cor 12,20s; Gl 5,19-21; Rm 1,29-31; 13,13; Cl
3,5-8; Ef 4,31; 5,3-5; 1Tm 1,9s; Tt 3,3; 2Tm 2,5).
19

B) Presença de conceitos helenísticos:

1. Consciência (sunei,dhsij).
Se o uso frequente do termo "consciência" é uma particularidade de São Paulo, não se
deve, no entanto, esquecer que tal termo já estava presente no judaísmo helenístico (AT: Ecl
10,20; Eclo 42,18; Sb 17,11; Filo de Alexandria). Deve-se notar, porém, a diferença de
perspectiva entre São Paulo e a filosofia popular: para ele, na consciência fala o DEUS
pessoal.

2. A cognoscibilidade da existência de DEUS.


Paulo trata expressamente do assunto em Rm 1,18-23. Ora, a convicção da possibilidade de
um conhecimento indireto e racional de DEUS era bastante difundida no mundo filosófico
pagão. Não conhecida pelo AT pré-helenístico, para o qual DEUS é conhecível (somente)
através das intervenções Divinas diretas na história, tal convicção entra no judaismo
helenístico e é testemunhada por Sb 13,1-9; Filo; Apc de Baruc 54,17s; Test. de Neftali 3,3s;
José Flávio, Contra Apionem 2,167. Também aqui, portanto, Paulo parece depender
diretamente do próprio ambiente judeu-helenístico. Há alguns indícios claros que nos fazem
ver isto, como o tema da indesculpabilidade dos pagãos (Rm 1,20b = paralelo de Sb 13-15) e
aquele da "cólera de DEUS" (Rm 1,18 = paralelo de Sb 1,26; 16,1); tais temas são
incompreensíveis ao espírito grego, quer dizer, não podem de modo algum provir do
helenismo (grego).

3. A lei natural no coração do homem.


A formulação do tema é expressa em Rm 2,14s: "Porque, quando os gentios, que não têm
lei, cumprem naturalmente os preceitos da lei, não tendo eles lei, a si mesmos servem de lei.
Deste modo, demonstram que o que a lei ordena está escrito nos seus corações, dando-lhes
testemunho disso a sua consciência e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer
defendendo-os". Tal tema é amplamente documentado na filosofia pagã, especialmente
estóica, e, quanto às palavras, o contato entre esta e Paulo é estreitíssimo. Porém, sob as
semelhanças verbais encontram-se duas realidades totalmente diversas. Enquanto no
estoicismo a lei natural obedece à razão presente na natureza e é por isso orientada para um
cego determinismo imanentista, em São Paulo, ao invés, a lei natural baseia-se no DEUS
pessoal e criador. A lei natural é a manifestação, a todo homem, das exigências da sua
vontade. Essa lei provém, portanto, diretamente de DEUS e cria um relacionamento pessoal
de dois seres em diálogo entre si. De novo, São Paulo encontra-se aqui no rico terreno do
judaismo helenístico, do qual sabe colher os valores universais.

4. O sofrimento compartilhado entre homem e mundo.


A formulação disso encontramos em Rm 8,19-23. É um conceito eminentemente estóico
aquele do "sofrimento comum" (sumpaqei,a) entre mundo (ko,smoj) e humanidade, proveniente
da "comunhão" (koinoni,a) que há entre os dois (mundo e humanidade) em virtude da sua
"origem comum" (suggenei,a). Mas este conceito pode, em São Paulo, derivar mais
provavelmente da meditação do tema "queda – redenção" tendo como base Gn 1-3. Se for isso
verificaria o que dissemos a respeito do uso dos termos que se encontram nos cultos
mistéricos. Há um encontro objetivo de termos bastantes semelhantes no seu conteúdo, mas
de origem diversa.
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5. Comparação entre a ética paulina e a ética pagã.


Paradoxalmente é este o terreno onde uma diversidade substancial de temas e perspectivas
se opõe a uma surpreendente afinidade quanto a vocábulos e imagens. Daí se deve concluir
que entre Paulo e o helenismo, em matéria moral, há em comum somente algumas linhas
gerais, que não conseguem encher o abismo que separa os dois mundos. A diferença
fundamental consiste no conceito diverso de Divindade. Para o estóico, DEUS não é uma
realidade pessoal, mas somente o primeiro e necessário princípio metafísico. Por conseguinte,
a lei moral não exprime a exigência de uma vontade superior, mas somente as instâncias
(exigências) da natureza. O essencial é conhecer estas exigências para não cometer um erro
indo contra as leis do universo. Também as exigências quanto ao comportamento relativo ao
próximo é motivado unicamente da exigência de "conformar-se à razão". Na visão cristã do
Apóstolo, ao invés, tudo se baseia na paternidade Divina. Na lei descobrimos, mediante a fé,
as exigências da Sua vontade. Violando-as não cometemos somente um erro de juízo, mas um
pecado, uma ofensa a DEUS, porque dizemos "não" a Ele (negamos o relacionamento
positivo a Ele). O sentido da vontade de DEUS e do correlativo amor filial são, portanto, a
justificação (motivação) suprema de todo agir humano, encontrando todo o seu centro no
amor (1Cor 13).

12. Paulo como cristão


A religiosidade hebraica de São Paulo pode-se notar pelo fato que os mesmos elementos
religiosos essenciais que estruturam a religiosidade hebraica de Saulo permanecem depois na
sua vida como cristão:
- o zelo por CRISTO deriva do seu zelo por JHWH. CRISTO é identificado com JHWH e
todas as características do seu zelo por JHWH agora são dirigidas a CRISTO (Fl 1,22-26; 3,3-
15).
- A religiosidade hebráica foi a única a entender a relação do homem a DEUS em
dimensão histórica. DEUS se revela na história. Este sentido religioso da história em São
Paulo vemos p. ex. em Rm 9-11: a rejeição de Israel; Ef 1,3-14: o desígnio eterno de DEUS
que se realiza na história; Gl 3-4: função histórica da Lei mosáica no AT.
- Outro elemento da religiosidade hebráica consiste no forte sentido da paternidade de
DEUS. DEUS Pai é um DEUS "da consolação" (2Cor 1,3s), "da misericórdia" (Rm 15,5).
- Outro elemento é o aspecto litúrgico: uma idéia básica da teologia paulina é o sentido
cultual e litúrgico da existência do batizado. Para São Paulo toda a vida cristã é um fato
cultual, um ato litúrgico (Rm 12,1).
- São Paulo manifesta também externamente sua religiosidade hebráica pois, mesmo
depois de sua conversão, permanece consciente de pertencer ao povo judeu que foi e
permanece ainda o povo eleito. Ele não vê oposição alguma entre ser judeu e tornar-se cristão,
pois o regime da lei desemboca na economia da graça.

13. A novidade cristã na piedade paulina:


São dois os elementos que re-estruturam o espírito de Paulo nas suas relações a DEUS
depois da conversão: a realidade de CRISTO e do Espírito Santo.

1. CRISTO é o centro da vida de Paulo:


Paulo pertence exclusivamente a CRISTO, eles vivem num amor mútuo inseparável. Gl
2,20; Rm 5,5. Conseqüência deste amor é tornar-se servo de todos: 2Cor 1,24; 2Cor 4,5; 1Cor
9,19ss. A sua grande esperança é estar com CRISTO (1Ts 4,14ss).
21

2. A posse consciente do Espírito Santo


Paulo é de tal maneira penetrado pelo divino, que não existe nenhum momento da sua
existência fora desta realidade: cf. 1Cor 7,40; Rm 8,26ss etc. Esta posse consciente do
Espírito Santo é um salto qualitativo em relação à concepção da ação do mesmo Espírito no
AT: enquanto no AT entenderam a posse de DEUS como a sua presença misteriosa no
Templo e a sua presença moral na Lei, agora Paulo faz a experiência de uma relação pessoal
direta com o Espírito Santo. Tendo recebido o Espírito no Batismo (Rm 5,5; 8,15; Gl 4,6), ele
continua a sua ação ao longo da vida cristã (1Ts 4,8; 1Cor 2,12); ele vive no coração dos fiéis
(Rm 8,9), santifica-os (1Cor 6,11) e os torna filhos de DEUS (Rm 8,15-16). O Espírito Santo
une os fiéis a CRISTO e entre si (Gl 3,27-28; 1Cor 12,13). O Espírito Santo é como o
princípio interior da vida espiritual dos cristãos. Ele é a alma da sua filiação divina. Por isso
Ele é a alma da oração dirigida ao Pai. A sua ação mais íntima e mais profunda se exprime
nos gemidos inexprimíveis. Quando Paulo fala desta ação ordinária do Espírito Santo na
oração ele deixa aparecer alguma coisa da sua própria experiência religiosa.
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4. A Teologia de São Paulo


1) Teologia trinitária de São Paulo:

a) DEUS Pai.
São Paulo tinha uma relação bem pessoal com DEUS Pai. O Pai é para ele o DEUS de toda
a consolação: 2Cor 1,3. Por isso podemos aproximar-nos do Pai com toda confiança,
chamando-o Pai: Rm 8,15. Todos têm acesso ao Pai: Ef 2,18. Por isso, São Paulo está
convencido, que o Pai nos ama: 2Ts 2,16. É importante, conhecê-lo cada vez mais: Ef 1,17.
Apesar desta familiaridade com o Pai, ele nunca perde o respeito diante dele, sabendo que
dependo totalmente dele: Ef 3,14-15; Ef 4,6. Sendo o Pai fonte de tudo, devemos agradecer-
lhe por tudo, sabendo que ele preparou para nós uma herança no céu: Cl 1,11-12.

b) DEUS Filho
São Paulo fala repetidas vezes do Filho de DEUS como preexistente à encarnação e, nesta
preexistência, Ele é distinto de DEUS Pai (Gl 4,4-5).
DEUS enviou o seu Filho. Nada pode ser enviado se não existe previamente, não se pode
enviar uma pessoa não-existente. Portanto, o Filho, antes de ser enviado, antes de se tornar
Filho da mulher, preexistia. Tampouco se envia a si mesmo. Então o Filho enviado não é o
DEUS, que envia. O enviado é o Filho de DEUS, filiação esta essencialmente distinta da
filiação adotiva que nos temos recebido com a sua vinda. Temos então aqui a afirmação de
São Paulo: JESUS é o Filho próprio de DEUS, distinto de DEUS Pai, preexistente, nascido
temporalmente de uma mulher.
São Paulo repete esta mesma afirmação escrevendo aos Romanos (8,3). Mais esplêndida é
a afirmação de São Paulo na carta aos Filipenses (2,6-9).
Certamente, a vida terrena de JESUS, apesar da sua santidade, dos seus milagres, dos seus
ensinamentos, da sua obra salvífica, não foi para JESUS CRISTO a sua glorificação divina,
antes foi um despojamento. Ele possui a glória divina antes da sua descida enquanto Ele era
na sua condição divina. Esta, contraposta à condição de escravo, não pode significar senão a
natureza divina, como esta condição de escravo significa a natureza humana. Humilhando-se
exteriormente e ocultando o que era, não deixa de ser o que era sempre. Ele, sendo de
condição divina, vivendo em igualdade com DEUS, é pessoalmente distinto de DEUS Pai,
porque só pode ser igual a DEUS, e DEUS o pode exaltar somente, se são duas pessoas
diferentes.

c) DEUS Espírito Santo


Continuando a frase, acima citada, São Paulo escreve aos Gálatas: «A prova de que sois
filhos é que Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai!»
O valor deste texto é duplo: o sentido formal das palavras e o paralelismo entre a missão
do Espírito Santo e a missão do Filho. Se o Filho enviado é pessoa distinta do Pai, igualmente
o Espírito do Filho, enviado por DEUS, tem que ser pessoa distinta do Pai.
Na passagem paralela da carta aos Romanos escreve o Apóstolo (8,14-16): «pois todos os
que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Porquanto não recebestes um
espírito de escravidão para viverdes ainda no temor, mas recebestes o espírito de adoção pelo
qual clamamos: Aba! Pai! O Espírito mesmo dá testemunho ao nosso espírito de que somos
filhos de Deus».
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Este Espírito de DEUS que recebemos nos nossos corações, é o Espírito do Filho, do qual
fala a carta aos Gálatas, enviado por DEUS, distinto de DEUS. Não é, por outro lado, um dom
impessoal: a característica, que São Paulo lhe atribui de associar seu testemunho ao
testemunho do nosso próprio espírito é um ato pessoal.
Mais significativo é o que São Paulo escreve aos Coríntios (1Cor 2,10-12). Já a expressão
inicial: «Todavia, Deus no-las revelou pelo seu Espírito», coloca o Espírito Santo entre DEUS
revelador e o homem que recebe a revelação; portanto, posto entre DEUS Pai e o efeito
produzido no homem. O Espírito está entre ambos e é distinto de ambos. «Porque o Espírito
penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus» apresenta-nos o Espírito como imanente, como
Divino, como pessoal, distinto do Pai. Imanente, porque penetra as profundezas de DEUS.
Divino, pois é próprio de DEUS penetrar tudo, também as profundezas do seu próprio ser e
dos seus conselhos. Distinto do Pai: não somente porque é o agente da revelação divina aos
homens, mas também porque penetra as profundidades de DEUS, distinto do outro em alguma
maneira. Mais claramente São Paulo exprime estas características do Espírito Santo com uma
comparação: «Pois quem conhece as coisas que há no homem, senão o espírito do homem que
nele reside?» Se o espírito do homem é imanente no homem, deve ser imanente em DEUS o
Espírito de DEUS. Se o espírito do homem é humano, o Espírito de DEUS não pode ser senão
divino. «Assim também as coisas de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus».
Conhecimento semelhante de DEUS, universal, exclusivo, exaustivo, numa palavra,
compreensivo, supõe evidentemente a imanência, divindade e personalidade do Espírito
Santo. «Ora, nós não recebemos o espírito do mundo, mas sim o Espírito que vem de Deus,
que nos dá a conhecer as graças que Deus nos prodigalizou». Com estas palavras o Apóstolo
exprime ainda a distinção pessoal: o Espírito procede de DEUS. O Espírito que procede de
DEUS, o mesmo por quem DEUS atua na revelação, não pode ser pessoalmente o Pai de
quem procede e de quem é agente na santificação do homem.

2) O "desígnio" de DEUS.
O termo «desígnio» vem do grego proti,qhmi e significa «pôr primeiro». Esta idéia do
desígnio divino é muito cara a São Paulo e por isso queremos meditar um pouco sobre este
termo. Cf.: Rm 8,28; Rm 9,11; Ef 1,11; Ef 3,11; 2Tm 1,9; 2Tm 3,10; Rm 1,13; Rm 3,25; Ef
1,9.
Em 2Tm 3,10 e Rm 1,13 Paulo se refere a si mesmo, as outras vezes a DEUS. Agora não
tratamos os planos, desígnios de São Paulo, mas o que significa este desígnio da parte de
DEUS. Para responder à pergunta devemos considerar como se formou em São Paulo esta
idéia que DEUS tem um desígnio e que DEUS destina.
O que se refere agora à ideia do desígnio de DEUS: Paulo por um lado vive em profunda
união com DEUS, por outro lado se interessa também pelo homem e tudo o que está em volta
dele. Paulo sabe que o homem é criado por DEUS e que DEUS tem um plano para o homem e
para toda a criação. Este desígnio nasce em DEUS, no interior de DEUS, e concentra-se para
o homem. CRISTO é o início e o fim do desígnio divino. Quando DEUS elabora o seu plano,
Ele olha para CRISTO como início e como cumprimento do Seu desígnio. Toda a realidade
humana e cósmica parte de CRISTO e se conclui em CRISTO. Tudo converge a CRISTO,
CRISTO é o centro de tudo: cf. Cl 1,16-18; Ef 1,9-12:

3) O Evangelho.
Para São Paulo o evangelho é a síntese de tudo o que tem observado acerca do anúncio
apostólico. Não é, portanto, somente a boa nova, o bom anúncio, como diz a etimologia. Para
Paulo Evangelho significa:
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1. O anúncio de CRISTO que morreu e ressuscitou.


2. O Evangelho interpela o homem, alcançando-o onde ele está.
3. O homem deve decidir-se, deve escolher: sim ou não.
4. Disto depende a situação escatológica: a "salvação" ou a "perdição".
A soma destes 4 pontos é o evangelho que São Paulo anuncia.
1. Em primeiro lugar Paulo anuncia a morte e a ressurreição de CRISTO, não somente
como um acontecimento, mas como um fato que liberta, que salva dos pecados. São
acontecimentos "para", em função de alguma coisa. JESUS realmente morreu e ressuscitou;
mas isto não é tudo: morte e ressurreição comunicam aos homens a vida divina.
2. Este anúncio chega ao homem no seu ambiente, interpela cada pessoa pessoalmente.
3. Os homens, portanto, devem decidir-se e escolher: "sim" ou "não". O "sim" significa
acolher com fé. De tal resposta ao evangelho depende todo o desenvolvimento futuro da
pessoa.
4. Salvação ou perdição. Agora compreendemos em que medida o evangelho é
verdadeiramente uma boa nova: somente no caso que uma pessoa o acolhe e adere a ele com a
sua vida.
Enfim encontramos uma certa tensão entre uma certa transcendência e imanência do
evangelho. Paulo diz de fato, que o evangelho vem de DEUS, mas ele fala também "o meu
evangelho". De quem é, então, o evangelho: de DEUS ou de Paulo? Podemos responder: é de
ambos. O evangelho de DEUS é pesonalizado, incarnado em Paulo. O evangelho é
transcendente, porque é de DEUS; é imanente, porque é Paulo quem o anuncia e o traduz na
sua própria vida.

4) A fé.
A fé é a resposta ao anúncio do evangelho, a plena abertura ao plano divino, que nos vem
apresentado e concretizado através do anúncio do evangelho. Mediante a abertura da fé o
cristão acolhe o evangelho.
Para compreendermos melhor o pensamento paulino podemos distinguir 4 níveis, nos quais
se pode colocar tudo que o Apóstolo disse a propósito da fé e do ato da fé, de acreditar. O
esquema seguinte ajuda-nos a compreender São Paulo melhor:
a) Adesão inicial – batismo.
b) Assimilação progressiva em toda a vida.
c) expressão comunitária.
d) zelo missionário através do anúncio da fé.

a) Adesão inicial e batismo:


Queremos primeiro considerar a adesão inicial, que forma o fundamento destes quatro
níveis: a fé é para São Paulo uma abertura para o conteúdo do evangelho. A pessoa é
interpelada através do anúncio do evangelho: "CRISTO morreu e ressuscitou para ..."; este
conteúdo tende a tornar-se vida. Se alguém o acolhe, então nele começa a fé, que é o
acolhimento pleno e total do evangelho. Para Paulo, fé não é somente a abertura para DEUS,
como já foi no AT, para ele a fé é uma abertura radical, com a qual, num segundo passo, o
próprio conteúdo do evangelho é personalizado, concretizado, incarnado na pessoa, à qual o
evangelho é proclamado.
Pois, o acolhimento deve ser pleno. O homem deve não somente acolher o CRISTO todo,
que lhe é apresentado, mas esta totalidade deve penetrar toda a nossa vida. Desde todo início,
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a fé não é um ato separado da nossa vida, mas sim, deve encher todas as partes da nossa vida.
São Paulo requer um acolhimento total, pleno, sem restrição, porque o conteúdo da fé tende a
penetrar todos os aspectos da vida. Este primeiro acolhimento do conteúdo do evangelho é
aquele, que segundo São Paulo, precede ao batismo e conduz para o batismo.

b) Assimilação progressiva em toda a vida:


A fé no segundo nível pode-se chamar uma assimilação progressiva que tende para
abranger toda a vida, a fim de que se realize aquela plenitude, escolhida na primeira abertura
da fé. A primeira abertura de fé, o acolhimento do anúncio de CRISTO que morreu e
ressuscitou é um acolhimento que deve ser mantido sempre, isto significa que é uma aplicação
da morte e da ressurreição de CRISTO que tende a interessar todas as partes da vida. É isto
que Paulo exprime em Gl 2,20: "Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim. A
minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou
por mim." Esta expressão é um pouco paradoxal: Paulo vive, quer dizer conduz uma vida
normal, mas CRISTO vive nele. E CRISTO vive nele sem haver uma substituição do sujeito;
Paulo não é eliminado por CRISTO, mas na sua vida normal emergem os elementos típicos de
CRISTO.

c) Expressão comunitária:
A fé no terceiro nível é a fé da assembléia litúrgica na sua expressão comunitária. Deve-se
compreender bem este conceito: a fé é sempre uma escolha pessoal, uma responsabilidade de
cada pessoa em particular. Se num grupo de cem pessoas está presente uma pessoa que não
tem fé, então a fé da comunidade não compensa a fé desta pessoa, que como indivíduo não
crê. A fé da comunidade ajuda, estimula, mas não pode substituir a decisão de fé que é
plenamente uma decisão pessoal: a pessoa deve escolher ou negar a abertura da fé.
Por outro lado também não podemos esquecer-nos da palavra do Senhor (Mt 18,20):
"Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles." A fé da
comunidade pressupõe a fé já do segundo nível de cada membro. Quando rezamos em
comunidade, também quando rezamos em silêncio, o fato de rezar juntos dá à oração uma
dimensão mais forte. As cartas de São Paulo foram lidas na assembléia litúrgica. Paulo
partilha a experiência da assembléia e a faz sua própria. Desta maneira a fé de uma pessoa
ajuda também a fé de outra pessoa. Isto se exprime nos hinos e nas assim chamadas fórmulas
de fé. Assim temos que compreender este terceiro nível de fé em São Paulo.

d) Zelo missionário:
O quarto nível de fé podemos chamar nível missionário: quando numa comunidade, como
por exemplo naquela de Antioquia, a fé amadureceu nestes três níveis que acabamos de
explicar, podemos constatar ainda um quarto nível; não somente um intercâmbio interior na
comunidade mesma, mas uma comunicação para todos aqueles, que ainda não têm ouvido
nada destes valores. Leva-se aos outros aquele conteúdo da fé que a pessoa mesma já possui.

5) A justificação.
Quais são os significados da justificação em sentido ativo, justificação como ato justo, e do
verbo justificar? Têm um significado fundamental? Este tema é central, mas muito discutido;
um pouco por causa da história, um pouco também por causa do modo original e variado em
que Paulo usa estas palavras. A justificação em Paulo vem de um termo hebraico equivalente,
hq'd'c., que é traduzido com justificação. A palavra hebráica qd,c, significa a justiça de
DEUS para com os homens e em particular para com o povo de Israel, depois de ter feito com
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ele, por vontade livre, um pacto especial, um pacto de amor e de graça, da parte de DEUS; um
pacto de obediência à lei, da parte do povo. Este pacto se realiza, por exemplo, quando o
povo, atacado pelos inimigos, invoca a DEUS como defensor do seu direito: porque DEUS
prometeu ao seu povo uma proteção especial e a salvação messiânica. Podemos compreender
a justiça de DEUS como fidelidade às suas promessas.
hq'd'c. indica uma compensação entre uma medida e uma realidade concreta que
corresponde a esta medida. Quando temos entre uma realidade concreta e uma medida uma
plena correspondência, temos uma hq'd'c., uma justificação.

Temos uma hq'd'c. em sentido físico, em sentido legal e também em sentido religioso. Por
exemplo o "amarás o Senhor teu DEUS com todo o teu coração, com toda a tua alma e com
todas as tuas forças" (Dt 6,5), é também uma medida, quer dizer uma fórmula ideal a que
corresponde uma certa maneira de viver, que quer exprimir e concretizar esta fórmula. Se uma
pessoa se esforça por corresponder a esta fórmula, temos uma pessoa justa segundo o ponto
de vista religioso. O homem justo no sentido religioso é, portanto, aquele que faz uma
compensação entre as exigências da lei e a sua própria vida concreta.
Quando falamos de um DEUS justo, não devemos pensar num DEUS, que reivindica os
próprios direitos. DEUS não se coloca no sistema da justiça comutativa, que vale para a
comunidade humana: tenho direitos e deveres, todos devem respeitar os direitos dos outros.
DEUS fez as promessas a Abraão, e esta promessa incluiu a realização daquilo que DEUS
disse. DEUS é fiel às suas promessas; temos, portanto, uma compensação em DEUS entre as
suas promessas e sua realização. Esta fidelidade de DEUS na história da salvação é o que
Paulo chama a justiça de DEUS.
Temos um aspecto que se refere a DEUS e um que se refere ao homem. Em Rom 3,26
Paulo fala de DEUS justo e justificando, "Assim, digo eu, ele manifesta a sua justiça no
tempo presente, exercendo a justiça e justificando aquele que tem fé em Jesus."
DEUS, portanto, é justo, faz a compensação plena, mas Ele faz também o homem capaz de
realizar esta compensação, o homem, que tem fé em JESUS. DEUS tem um plano concreto
com a pessoa humana. Dando então o evangelho, pedindo a abertura da fé, DEUS dá ao
homem a possibilidade da justificação: através do batismo. Desta maneira o homem recebe a
capacidade de realizar a compensação plena entre o plano que DEUS tem para com o homem,
e a realidade concreta da sua vida: o homem pode viver segundo a vontade de DEUS.
O plano de DEUS encontramos em Gen 1,26: "Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais
domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra."
Imagem e semelhança não são uma tautologia. Imagem é a soma daqueles tratos, valores de
DEUS, que o homem pode realizar, por exemplo a inteligência, o amor, a bondade; assim a
imagem torna se semelhança na medida em que está plenamente realizada; a imagem é a
semente, a semelhança a flor desta imagem. Esta é a idéia, o plano, que DEUS tem para com
o homem. CRISTO agora é a realização plena no nível humano, dos valores próprios de
DEUS: "Aquele que me viu, viu também o Pai." (Jo 14,9). DEUS vive como o Pai. A atitude
de JESUS revela-nos a atitude e os valores do Pai. Neste sentido JESUS é a imagem viva do
Pai.

6) A Igreja.
A Igreja é para São Paulo o conjunto dos justificados. E este conjunto dos justificados se
apresenta logo desde o início com uma certa estrutura. O primeiro exemplo é a Igreja de
Tessalônica: várias pessoas dedicam todo o seu tempo aos outros. "Suplicamo-vos, irmãos,
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que reconheçais aqueles que arduamente trabalham entre vós para dirigir-vos no Senhor e vos
admoestar" (1Ts 5,11).
Este grupo está junto porque se sente participando na vitalidade de JESUS CRISTO como
Senhor, como ku,rioj. Na carta aos Filipenses, no fim do hino cristológico, Paulo fala do
Senhor JESUS (Fl 2,6-11).
O Senhorio de JESUS não significa Senhor no sentido de Patrão. Este sentido é
propriamente excluído. Devemos compreender o sentido de "ku,rioj" do contexto do uso de
Paulo e sobretudo do contexto da carta aos Filipenses. Na Septuaginta o nome ku,rioj quase
sempre traduz o nome de DEUS, hw"hy>, o tetragrama, que significa: Aquele que é, aquele que
faz existir o seu povo (formando-o no monte Sinai).
Ku,rioj se refere a CRISTO morto e ressuscitado, que vive na assembléia litúrgica, a quem
se diz: "Vós sois o Senhor". Propriamente com esta sua presença transfunde a sua vida.
CRISTO faz viver e existir a sua comunidade. Isto é o valor fundamental de chamar CRISTO
como Senhor. A Igreja é para Paulo uma comunidade de pessoas, comunidade estruturada. A
sua consistência e o seu ponto de referimento é CRISTO, o Senhor, que transfunde a sua vida
na comunidade. Este núcleo podemos encontrar nos diferentes estados do desenvolvimento da
Igreja, que o Apóstolo vê e apresenta. CRISTO dá uma energia nova, uma força nova, uma
relação viva com DEUS e com o próximo, que Paulo como fariseu não tinha experimentado.
Isto é para Paulo a comunidade: um grupo vivo, penetrado da força de CRISTO Senhor.
Um ponto muito importante para Paulo é também o templo. Paulo tem uma predileção pelo
templo, porque nele se manifesta e se realiza um contato em tudo particular entre DEUS, que
sai da sua transcendência, e do homem, que sai do seu profano. Assim podemos dizer, que no
templo DEUS adere ao seu povo e o povo adere a DEUS. Esta é a experiência que Paulo fez
com a liturgia do templo ao longo de sua vida.
Podemos distinguir três graus diferentes de Igreja:

a) Primeiro nível: a Igreja em volta da Ssma. Eucaristia.


CRISTO faz viver a sua comunidade pela Ssma. Eucaristia. Característico é 1Cor 10,16-
17, que fala da Ssma. Eucaristia e diz: "O cálice de bênção, que benzemos, não é a comunhão
do sangue de Cristo? E o pão, que partimos, não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez
que há um único pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós
comungamos do mesmo pão."
Temos a presença do CORPO e do SANGUE de CRISTO. Esta presença eucarística de
CRISTO influencia todo o grupo que celebra este mistério, porque o une a DEUS e
mutuamente. Nós muitos somos um só corpo porque participamos de um só pão. Paulo diz-
nos que é propriamente a Ssma. Eucaristia que faz existir a Igreja, que nos torna Igreja.
CRISTO Senhor forma a sua Igreja pela Ssma. Eucaristia. Portanto, podemos dizer: em volta
do corpo de CRISTO se forma o corpo da Igreja. A comunidade não é somente uma
aglomeração, mas sim uma união viva.

b) Segundo nível: a Igreja é como um corpo.


A Igreja funciona como um corpo. CRISTO Senhor transfunde na Igreja o Seu Espírito, a
Sua vida nova. Podemos lembrar-nos de Jo 20,22: "Recebei o Espírito Santo". JESUS,
soprando, comunica a própria vida, o próprio Espírito. Também a Adão DEUS inspira a sua
vida: "O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um
sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente" (Gn 2,7). Esta nova vida, comunicada à
Igreja, transmite-lhe muitas novas capacidades: os carismas. Cada carisma possui a sua
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especialidade e é dado para a edificação da comunidade. Meditando sobre esta diversidade e


multiplicidade por um lado e sobre a união e harmonia da comunidade por outro lado, Paulo
chega a formular de maneira seguinte: Como num único corpo há muitos membros, mas todos
devem inserir-se no mesmo corpo, assim é a Igreja. Temos muitos dons e carismas diferentes;
esta multiplicidade é uma grande riqueza e deve conduzir naturalmente para a união, porque é
o único Espírito que a dá e orienta (cf. 1Cor 12).

c) Terceiro nível: a Igreja é o corpo de CRISTO.


Nas cartas aos Efésios e aos Colosenses Paulo desenvolve o tema da Igreja como corpo de
CRISTO. Paulo não diz corpo místico, que foi introduzido mais tarde como nota explicativa.
O que significa "corpo" – "sw/ma" no tempo de Paulo? Sw/ma no ambiente grego e
helenístico apresenta o princípio mais baixo do homem, a parte material, oposto à parte mais
alta, à alma, ao espírito. Corpo no sentido helenístico – grego não significa todo o homem,
somente a parte inferior.
No ambiente judaico, ao contrário, não se desenvolveu um conceito de corpo. No tempo de
Paulo usava-se "@WG", ou principalmente o termo "rf'B'", que significa propriamente carne.
Esta palavra é traduzida em grego com sw/ma e significa toda a pessoa, às vezes talvez com um
certo acento para uma ou outra parte da pessoa, mas significa sempre toda a pessoa.
Para Paulo corpo significa a pessoa toda, que está em relação com outros, em primeiro
lugar com DEUS, depois também com o próximo. Assim Paulo pode dizer: "Porque fostes
comprados por um grande preço. Glorificai, pois, a DEUS no vosso corpo" (1Cor 6,20).
Portanto, glorificai DEUS com toda a vossa pessoa, na vossa vida concreta.
Então podemos interrogar-nos: em que sentido a Igreja é o corpo de CRISTO? Se corpo
significa toda a pessoa, que está em relação com outros, então a Igreja é o instrumento, pelo
qual CRISTO se comunica, entra em relação com as pessoas. CRISTO ressuscitou dos mortos
e possui a plenitude desta nova vida; a Ele não falta nada. Mas existe também um CRISTO a
formar-se. Porque DEUS tem este desígnio de recapitular tudo em CRISTO, Ele quer
comunicar a sua nova vida a todos, quer fazer participar todos no seu mistério pascal, na sua
morte e na sua ressurreição, com a meta final da vida eterna. CRISTO é uma soma: Ele mais
as pessoas humanas. CRISTO possui a sua plenitude individual de vida; mas Ele quer esta
relação íntima com os homens, comunicando-lhes a própria vida. O que é d’Ele, passa aos
homens, e o que é dos homens, passa a Ele. Desta maneira CRISTO é o novo Adão. A Igreja é
o corpo de CRISTO, que tende a alcançar também aqueles que ainda não crêem e não
participam na união com CRISTO. Os cristãos recebem a vida de CRISTO e estendem,
prolongam a vida de CRISTO, a presença de CRISTO. Através dos cristãos CRISTO se torna
concreto no tempo e no espaço. Assim compreendemos a Igreja como corpo de CRISTO: a
Igreja permite a CRISTO a expansão até chegar à plenitude.
Assim Paulo diz: "E sujeitou a seus pés todas as coisas, e o constituiu chefe supremo da
Igreja" (Ef 1,22). JESUS é a cabeça da Igreja, não no sentido de chefe, presidente, mas no
sentido fisiológico: toda a vida da pessoa depende da cabeça. O resultado é que os fieis se
tornam os seus membros, os seus instrumentos, pelos quais CRISTO age no mundo, no tempo
e na história.

7) A Escatologia.
São Paulo acentua a história, i.é o desenvolvimento dos acontecimentos. A história para
Paulo são os acontecimentos que se sucedem no tempo. O "tempo" São Paulo exprime com
dois termos: "cro,noj", i.é o tempo em geral, que parece não ter fim, e "kairo,j", um tempo
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determinado, quer dizer uma parte especial do tempo em geral, o momento de salvação. Isto é
muito importante, porque em São Paulo encontramos muitas vezes "o tempo está perto ...";
com isto não se entende o fim dos tempos, mas um tempo particular com a sua especificidade.
No que diz respeito à história da salvação Paulo insiste muito na presença, "nu/n", agora.
Mais característico ainda é a expressão "nuni,", que significa "próprio agora", "neste
momento", e que é uma acentuação do momento presente. Paulo dá uma atenção particular ao
momento em que está vivendo.
Paulo ilumina este momento presente com um raio do passado: a história da salvação,
sobretudo aquela que está presente no AT; os acontecimentos do passado são uma amostra,
um ensinamento para o presente; o AT é interpretado à luz de CRISTO; e com um raio do
futuro em que há vários aspectos, porque existe um futuro individual e um futuro universal. O
futuro individual para Paulo é aquele que começa com a morte e depois da morte com o juízo,
que é uma valorização da pessoa e daquilo que tem feito; depois deste juízo segue o estado
intermédio entre a vida presente e o estado final da ressurreição universal. Este estado
intermédio é melhor do que a vida presente, mas menos intenso que o estado definitivo depois
da ressurreição universal. A nossa vida é uma participação na vida de CRISTO (cf. Fl 1,23-24
e 2Cor 5,2-4).
1Cor 15,20-28 fala de uma conclusão de toda a história da salvação, que é chamada te,loj;
esta conclusão é entendida como o cume duma montanha, como uma meta alcançada. Na
carta aos Efésios este desenvolvimento é apresentado como o crescimento até atingirmos o
estado de homem perfeito, a estatura da maturidade de Cristo.
Quando esta estatura completa será realizada, temos to. te,loj, a consumação, que por São
Paulo é exprimida com dois termos característicos: parousi,a, a vinda, presença; e basilei,a, o
reino. Quando chegará a última consumação, haverá a parousi,a, que pode derivar de dois
verbos: ou de parei/mi, chegar, vir; ou de pareimi,, estar presente. O termo parusia pode ser
derivado de ambos os verbos, por isso se deve compreender o significado segundo o contexto.
Paulo usa ambos os sentidos.
Parusia significa para Paulo uma presença, que inclui um movimento anterior. CRISTO
influencia atualmente, agora, a vida da comunidade. Ele está presente, como temos visto no
primeiro nível da Igreja: ele está presente na Ssma. Eucaristia, é Ele que une a Igreja e lhe
confere a Sua vida. Não podemos pensar a Igreja sem a presença de CRISTO. Agora não há
sentido em falar de uma "vinda", se Ele já está presente.
Mas temos uma certa passagem do implícito para o explícito. A parusia é uma explicação,
uma revelação, uma manifestação plena e total, porque CRISTO volta à terra visivelmente.
Temos então um movimento qualitativo, como também um movimento do imperfeito ao
perfeito. Tudo o que agora recebemos de CRISTO, do seu mistério pascal, é ainda imperfeito.
O dom do Espírito é um penhor, uma parte deste dom do Espírito, que receberemos ao fim,
quando não podemos mais morrer. Isto se realiza somente na plenitude da vida. Quando
falamos da vinda definitiva de CRISTO, falamos desta manifestação plena e gloriosa do
Senhor. Então "DEUS será tudo em todos" (1Cor 15,28) e o desígnio de DEUS estará
plenamente realizado.
30

5. Parte exegética
As Cartas de São Paulo em particular
As Cartas aos Tessalonicenes
1. A cidade de Tessalônica
Tessalônica encontra-se no golfo de Terma. Tinha sido fundada pelo ano 300 a.C. por
Casander de Macedônia (general; morreu 297), casado com uma irmã de Alexandre Magno, a
qual se chamava justamente Thessalonike. Em 168 a.C. foi conquistada pelos romanos, e em
146 tornou-se capital da província romana da Macedônia. Depois da batalha de Filipos, no
ano de 42 a.C. Otaviano Augusto a proclamou "cidade livre" (pois tinha ajudado ao seu
exército na dita batalha contra Cássio e Bruto). Este privilégio, longe de enfraquecer a
dependência em relação a Roma, impunha a obrigação moral de uma lealdade acima de
qualquer suspeita, da daí se compreende bem a agitação e o temor dos politarcas e de todo o
povo em face da acusação de insubordinação política e de alta traição (At 17,8s) levantada
pelos judeus contra os missionários do Evangelho.
Esta cidade que mais tarde se chamou Salônica e a partir de 1937 de novo se chama
Tessalônica (e é hoje a segunda cidade da Grécia, depois de Atenas), era um centro
importante de encontro entre o Oriente e o Ocidente. Era a cidade mais rica e de mais
numerosa população da Macedônia. A população era, na sua maioria, grega; havia também
colonos romanos e judeus, os quais, no tempo de S. Paulo, possuíam já uma sinagoga (At
17,1).
A fundação de uma comunidade cristã tão importante deve ter parecido a S. Paulo e seus
companheiros uma base firme para o apostolado sucessivo. Reconhece-se o intuito de Paulo
de dirigir-se prevalentemente aos lugares verdadeiramente importantes, onde sua atividade de
apóstolo pudesse atingir um número maior de pessoas (Tes no NT: At 17,1-13; 27,2; Fl 4,16;
2Tm 4,10). A presença de numerosos judeus e de uma sinagoga teria propiciado o primeiro
berço à palavra evangélica; a posição geográfica e a importância comercial e social da
metrópole teria facilitado a irradiação da pregação a toda a Macedônia e à Acaia (1Ts 1,8).
É importante ainda saber que em Tessalônica, como privilégio especial, havia um templo
dedicado ao Imperador e, portanto, lá residia um sacerdote dedicado a esse culto e com
amplos poderes sobre a população. Pelo resto encontramos na cidade o costumeiro
sincretismo religioso das cidades helenístico-orientais, que ainda se tornava mais evidente
pelo acentuado caráter cosmopolita da cidade, empório portuário e ponto de encontro entre o
Oriente e o Ocidente.
Quando Paulo chegou a Tessalônica, a cidade vivia um dos períodos mais felizes de sua
história. Unida ao interior do país pela via Egnácia – a grande artéria romana que, partindo de
Egnatia (ou Gnatia), na Apúlia, através de Durazzo e da Macedônia, ligava a Itália à Ásia
Menor – protegida ao nordeste pelas elevações do monte Khortiatis, abrindo-se para o mar
numa bela baía do golfo Termaico, na desembocadura do rio Axios (hoje Vardar), era então,
sem dúvida, a cidade mais florescente da Grécia e a rainha do mar Egeu, que dominava com
seu grande porto.
31

2. A Igreja em Tessalônica.
Segundo os Atos dos Apóstolos, Paulo chegou a Tessalônica pela primeira vez durante sua
segunda viagem missionária (ca. 49). Estavam com ele Silvano e Timóteo (cf. At 17,1-15).
Chegaram aí pela via Egnácia depois de terem atravessado Anfípolis e Apolônia, provenientes
de Filipos (a distância de Filipos a Tessalônica, cerca de 160 km, exigia cinco a seis dias de
viagem a pé), e daí se haviam despedido sentindo ainda nas costas as feridas infligidas pelos
litores (cf. At 17,4).
O relato do cap. 17 dos Atos pode-se considerar incompleto, seja quanto à duração da
estadia (o texto fala só de três sábados!), seja quanto às circunstâncias em que se realizou a
atividade missionária. Há razão para pensar que S. Paulo tenha estado vários meses em
Tessalônica, pois a 1Ts supõe uma comunidade importante que podia resistir às contínuas
perseguições da parte também dos próprios judeus. Paulo escreve com satisfação que
trabalhou com as próprias mãos para não ser um peso a ninguém e para distinguir-se tanto dos
filósofos como dos pregadores ambulantes, que só pensavam no dinheiro, e dos mestres
judaizantes, e ainda para dar o bom exemplo de uma vida de honestidade laboriosa, Paulo
trabalhava noite e dia (1Ts 2,9); insiste no caráter irrepreensível do seu modo de agir, na sua
bondade paternal, nas repetidas exortações, alternando a pregação de grupo e de indivíduo por
indivíduo, com muita paciência e franqueza (1Ts 2,5-12); dados estes que se entende melhor
admitindo uma estadia do Apóstolo de ao menos dois ou três meses e talvez mais ainda (cf.
1Ts 1,6-9; 2,2-12).
A comunidade era formada sobretudo de cristãos de origem pagã (cf. 1Ts 1,9; 2,14).
A toda pressa e quase fugindo, o Apóstolo e seus companheiros tiveram de abandonar
Tessalônica. Os judeus invejosos puseram em sobressalto a cidade, provocando uma invasão
da casa de Jasão, onde provavelmente se achava a base dos missionários. Mas não os tendo
encontrado, arrastaram Jasão e alguns dos irmãos diante dos politarcas, gritando: Aqueles que
subvertem o mundo inteiro chegaram aqui e estão na casa de Jasão. Todos estes agem contra
os decretos de César, dizendo que há um outro rei, JESUS. Ao ouvirem isto, a multidão e os
politarcas ficaram perturbados e, depois de fazerem que Jasão e os outros pagassem uma
fiança, soltaram-nos (17,5-9). Não sabemos de que espécie foi a fiança empenhada por Jasão;
certamente ela implicava que Paulo e os outros missionários abandonassem logo a cidade, e
assim tiveram que partir apressadamente, de noite, rumo à Beréia.
A primeira carta aos Tessalonicenses oferece uma visão sobre o estado de alma de Paulo e
sobre a comunidade que tão cedo teve que abandonar (cf. 1Ts 2,17s). Entretanto, a fama das
conversões de Tessalonica se havia espalhado para além dos limites da cidade, e não só na
Macedônia e na Acaia, mas em toda a parte se havia difundido a sua fé em DEUS, a ponto de
o Apóstolo não precisar falar mais a respeito desse ponto (cf. 1,7s).
Mas o sobressalto que havia provocado uma partida tão repentina dos missionários não
ficou sem conseqüências na recém-fundada comunidade: os neófitos de Tessalônica são
perseguidos por seus concidadãos, tal como as Igrejas da Judéia por parte dos judeus (2,14;
3,3s); e a hostilidade popular se agrava a tal ponto que o Apóstolo chega a temer seriamente
que fique inútil o seu trabalho (cf. 3,1-6s).
Foram a Beréia onde se repetiram as mesmas experiências (devido à chegada de judeus de
Tessalônica; At 17,10-15). Os Atos contam então que Paulo, depois do discurso (não bem
sucedido) no Areópago, dirigiu-se a Corinto. Silas e Timóteo chegaram mais tarde a Corinto,
vindos da Macedônia (cf. At 18,5). 1Ts 3,1-8, porém, diz que Paulo enviou a Timóteo de
Atenas a Tessalônica para encorajar os Tessalonicenses nas perseguições. Entre estas duas
fontes, no entanto, não há nenhuma contradição: Silas e Timóteo obedeceram à ordem de
Paulo e chegaram o mais rápido possível a Atenas. Mas Paulo, preocupado com a sorte dos
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neo-convertidos perseguidos da Tessalônica, enviou-lhes Timóteo para os animar na fé (e


enviou provavelmente Silas a Beréia e Filipos).

3. Ocasião das Cartas aos Tessalonicenses.


A ocasião é dada pelas informações que Timóteo traz a Paulo, encontrando-se este em
Corinto, a respeito da situação da comunidade dos fiéis em Tessalônica. Tratava-se, em geral,
de boas notícias, segundo o que afirma o próprio Apóstolo (1Ts 3,6-8): Os novos cristãos
manifestavam uma grande firmeza na fé; as perseguições da parte dos seus concidadãos não
os fizeram vacilar (1Ts 2,14); eles têm uma exemplar caridade fraterna (1Ts 4,9); tinham
amor para com o Apóstolo (3,6).
Havia, porém, questões que preocupavam os cristãos tessalonicenses. A morte de alguns
membros da comunidade havia suscitado neles a incerteza sobre a sorte daqueles que
morreram antes da prometida chegada (parusia) do Senhor (1Ts 4,13ss). Pensavam que
aqueles (mortos antes da parusia) talvez pudessem ser privados da salvação futura a realizar-
se plenamente pela vinda do Senhor. Esta incerteza e este receio nos fazem imaginar quão
realisticamente S. Paulo deve ter falado sobre a expectativa da vinda do Senhor, ao ponto de
os novos cristãos não se terem dado conta de que podiam morrer antes da vinda do Senhor,
como também da idéia da ressurreição dos mortos.
São Paulo dá em resposta: nenhum daqueles que morreram e dos que vivem ainda
perecerá; ressuscitados ou transformados, para todos vem a salvação (1Ts 4,13s). Por isso a
questão de morto ou vivo não tem tanta importância. E, ao mesmo tempo, é privada de
importância uma outra questão que aqui fica sem resposta, isto é, o tempo e a hora da parusia
(cf. quanto a isso, Mc 13,32; Mt 24,36; At 1,6s; Mc 13,35; Mt 24,44; Lc 12,40.). Aquilo que
verdadeiramente importa é a perseverânça dos fiéis como filhos do "dia" e da "luz", e a firme
esperança de estarem eternamente com o Senhor (1Ts 5,1s).
Na base da idéia da proximidade (iminência) da parusia tinham surgido outras dificuldades
e entre estas aquela dos fiéis que não quiseram mais trabalhar.

4. Lugar e data.
A 1Ts foi escrita logo depois de Timóteo ter retornado de Tessalônica, quer dizer, pelo ano
51. Quanto a 2Ts não temos dados seguros para conhecer as circunstâncias que deram Paulo a
ocasião de escrevê-la. Esta segunda carta tem em comum com a primeira sobretudo os
remetentes (Paulo, Silas e Timóteo) e os destinatários ("a Igreja dos Tessalonicenses"; 2Ts
1,1). Há também questões comuns: parusia, normas de comportamento diante da suposta
proximidade da parusia etc. Apesar disso não sabemos com certeza onde se encontrava Paulo
ao escrever esta carta. Nem a própria carta, nem os Atos nos informam a este respeito. Em
todo caso, o que está certo é que Paulo, Silas e Timóteo estão juntos; a Igreja em Tessalônica
continua a discutir sobre a parusia. Tudo isto faz pensar que Paulo tenha escrito esta carta
pouco depois da primeira e estando talvez ainda em Corinto (At 18).
O que Paulo tinha escrito a respeito da sorte dos defuntos tinha tranquilizado os
tessalonicenses. Mas referente à parusia não era assim. As suas afirmações gerais a respeito
do fim que deveria chegar de repente (imprevistamente), como um ladrão durante a noite (1Ts
5,2), continuavam a ser discutidas. Havia também pessoas que causavam confusão entre os
fiéis (2Ts 2,2; 3,11.17). A perseguição da parte dos judeus punha à prova a fidelidade dos
novos cristãos. Alguns deles viviam desordenadamente e outros pensavam que era mais fácil
viver à custa da comunidade e não trabalhavam mais (2Ts 3,6-15). Diante destas dificuldades
doutrinais e práticas Paulo sente a necessidade de escrever uma segunda carta. Dissemos que
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pode ter sido escrita poucos meses depois da primeira, isto é, pelo ano 51-52, encontrando-se
Paulo ainda em Corinto.
Quanto à autenticidade (se são de Paulo ou não): as duas cartas são bem solidamente
testemunhadas como cartas de São Paulo (os códices e o testemunho unânime da tradição
patrística); foi só no século passado que a 2Ts começou a ser contestada, mas por razões de
modo algum convincentes.
Os argumentos aduzidos pelos adversários, podem resumir-se desta forma:
a) As semelhanças literárias, numerosas e freqüentes, da segunda carta e da primeira fazem
suspeitar uma falsificação.
O argumento, entretanto, está bem longe de convencer; pois, antes, a semelhança de
vocábulos e de estilo liga solidamente a carta ao corpus paulinum. Um falsificador, além
disso, teria evitado as divergências que aliás se notam diversas vezes e que são indício de
espontaneidade.
b) A diversidade de tom e de sentimentos não deixa ver na segunda carta o mesmo autor da
primeira.
Tal diversidade de tom geral pode depender da diferença do assunto e da variação das
circunstâncias dos remetentes e dos destinatários.
c) O argumento decisivo contra a autenticidade da carta viria do ensinamento escatológico
de 2,1-12. Tal ensinamento não se poderia conciliar com o das cartas autenticamente paulinas.
Em Paulo, assim como em JESUS, existiria apenas "a consciência da iminência dos últimos
acontecimentos e da impossibilidade de fixar-lhes o momento", e não a indicação de sinais
precursores.
A afirmação parece que não escapa a uma petição de princípio. O ensinamento
escatológico de Paulo, como o de JESUS, deve-se determinar criticamente com base nos
textos que chegaram até nós; ora, nada é mais certo que tanto JESUS (Mt 24,6; Lc 7,20ss;
12,56) quanto Paulo se ligam, por certos aspectos, a uma tradição judaica anterior, em que o
caráter repentino da Parusia e os sinais precursores se acham unidos. Os fiéis sabem que é
preciso vigiar e viver na expectativa: é o que visa a exortação de 1Ts 5,1-7. Mas eles não
devem, apesar de tudo, agitar-se e abalar-se, como se o dia do Senhor ja estivesse em ato:
deverá ser precedido de sinais precursores (2Ts 2,2-10).

5. O exame da primeira carta aos tessalonicenses


A 1Ts é carta marcadamente pastoral, em que o coração do pastor e pai se dirige aos filhos
bem-amados para reconfortá-los (2,7-11). Daí a índole simples e familiar da carta; diríamos
que o Apóstolo queria continuar por escrito os colóquios orais, que outrora iniciara nas casas
dos tessalonicenses. Por isto muitas vezes lhes lembra a catequese oral: "sabeis, bem sabeis,
estais recordados, ainda vos lembrais ..." (cf. 3,5; 2,1s.5.9.11; 3,3s; 4,2; 5,2).
O Apóstolo escreveu esta carta sob o efeito das boas notícias recebidas de Timóteo. Ele
estava cheio de alegria (3,9) diante da fidelidade exemplar dos novos cristãos. Por isso, o tom
da carta é sereno e caloroso. Os três primeiros capítulos são, por assim dizer, uma longa
efusão de ternura e afeto, que atinge o ponto culminante nos v. 7-11 do segundo capítulo.
Nestes versículos os termos da linguagem afetiva são muitos. Paulo compara-se primeiro à
mãe que, "cheia de bondade, acaricia seus filhinhos" (2,7). Logo depois ele se dá os traços de
pai que ampara, exorta e encoraja (2,11). Os tessalonicenses se lhe tornaram tão caros que ele
está pronto a dar a vida por eles (2,8).
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As boas notícias recebidas são a razão de uma das duas finalidades da carta. Pois a
primeira finalidade era a de ação de graças, de felicitações e de encorajamento. No quadro de
uma ação de graças que se prolonga pelos três primeiros capítulos, Paulo se regozija com a
fecundidade da obra de evangelização realizada em Tessalônica e encoraja os novos cristãos a
fortalecerem sua fé no meio das perseguições (cap 1-3). Em seguida, passa a corrigir os
desvios que despontam na comunidade; esta é a segunda finalidade. Pois falsas concepções
doutrinais levavam alguns a desvios no plano moral. Ele responde às preocupações causadas
pelos falecimentos ocorridos e pela intensa espera da parusia (4,13-5,10), exorta a
comunidade a uma revisão de vida em relação ao laxismo sexual (4,1-8), ao amor fraterno
(4,9-10) e à ociosidade (4,11s). Com estas constatações apresenta-se-nos a estrutura da carta
ou seja, sua divisão:
a) Endereço e saudação: 1,1
b) Ação de graças em 4 quadros: cap 1-3
1,3-10: a vivência dos tessalonicenses.
2,1-12: a vivência dos apóstolos na fundação da Igreja em Tessalônica.
2,13-16: a vivência dos tessalonicenses.
2,17-3,8: a vivência dos apóstolos depois da fundação da Igreja em Tessalônica.
c) Exortações à vida cristã: capítulos 4-5.
4,2-8: a santidade
4,9-12: o amor fraterno
4,13-18: a esperança para os mortos na hora da parusia
5,1-11: a vigilância
5,12-22: as exigências da vida comunitária
e) Conclusão: 5,23-28: Votos e saudações.

6. Temas importantes

1. A tríade fé-amor-esperança: 1,3; 3,5.6.7.10; 4,13; 5,18.


O emprego frequente desses termos, sozinhos ou juntos, dá a temática maior da carta.
Paulo apresenta a vida cristã como sendo essencialmente existência vivida na fé, no amor e na
esperança. Note-se que, na ordem de apresentação, a esperança é colocada sempre em último
lugar. Para a comunidade de Tessalônica é a esperança que São Paulo julga importante
salientar.

2. A espera da parusia
O termo grego "parusia", que significa "presença", "vinda", aparece 4 vezes na carta: 2,19;
3,13; 4,15; 5,23. Trata-se sempre da vinda do "Senhor" ou do "Senhor JESUS". Fora das
cartas aos Tessalonicenses (na 2Ts, o termo se encontra em 2,1.8.9), o termo "parusia" só
aparece uma vez nos escritos paulinos (1Cor 15,23). É o segundo tema importante da carta
(veja também 1,10: "e esperardes do Céu o seu Filho ..."). Ele vem precisar o primeiro tema.
A esperança cristã insiste na espera da vinda do Senhor. Outro termo referente a este tema,
termo que é de derivação hebraica (bíblica: termo usado principalmente pelos profetas), é
"Dia do Senhor" hw"hy>-~Ay (1Ts 5,2.4; 2Ts 1,10; 2,2).

3. A vida conforme a vocação recebida


Encontramos aqui o tema de fundo comum às duas cartas do Apóstolo. Na primeira parte
(da 1Ts), Paulo desenvolve alguns aspetos do ser cristão. Na segunda parte, tira as
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conseqüências, no plano do agir, da existência nova recebida em CRISTO. A primeira parte


apresenta, portanto, os princípios que orientarão a solução dos problemas da comunidade.
Na 1Ts a frase de 2,12 prepara a de 4,1, onde começa efetivamente a segunda parte da
carta, que trata das exigências da vida cristã em conformidade com o novo ser.
A última série de exigências de vida apresentadas por Paulo (5,12-24) começa com os
mesmos verbos que introduzem esta parte da carta. As fórmulas "Nós vos rogamos" (5,12) e
"Nós vos exortamos" (5,14) são a recordação explícita de "Nós vos pedimos e exortamos no
Senhor JESUS" (4,1).

4. A ação de graças
A ação de graças introduz (1,2) e encerra (3,9-13) a primeira parte. É a técnica literária da
inclusão: o texto todo deve ser lido na ótica do enunciado que, de certa forma, o engloba.
No meio da primeira parte, a repetição do tema (2,13) traz um elemento de divisão e
convida, por isso, a distinguir seções na primeira parte.

5. A exortação e seus temas


A primeira parte da carta se encerra com uma oração de Paulo (3,10-13). Esta oração pelos
tessalonicenses refere-se a tres pontos: o que falta à fé deles (3,10), o amor fraterno (3,12) e a
santidade (3,13). São esses precisamente os temas que Paulo desenvolve na segunda parte,
mas em ordem inversa: a santidade (4,2-8), o amor fraterno (4,9-12), as crenças – que Paulo
completa ou corrige – a respeito da vinda do Senhor (4,13-5,11): = estrutura em quiasmo.

7. O exame de 2Ts.
Quanto ao tom, a 2Ts é mais impessoal e menos calorosa. A ação de graças e os
encorajamentos estão presentes, mas sem as efusões afetivas que caracterizam a 1Ts. Na
segunda parte, as exortações dão lugar às diretrizes. Isto é explicável pelas circunstâncias que
ocasionaram esta carta: os problemas tinham-se tornado mais sérios. A primeira carta não
tinha obtido todos os seus desejados efeitos. A questão do dia e da hora da vinda de CRISTO
(ou "dia do Senhor") continuou a perturbar. Paulo, em sua primeira carta, deixava o assunto
em suspenso, apenas admoestando todos à vigilância. Em conseqüência, alguns membros da
comunidade, agitados, perturbavam os irmãos, afirmando que o dia do Senhor estava às
portas. Isto deixava muitos membros da comunidade apavorados, como pessoas cujos dias
tivessem sido cortados drasticamente.
Para fundamentar sua afirmação, alguns se baseavam na palavra profética de um irmão
carismático. Outros talvez apelassem para a própria carta de Paulo, onde liam: "Nós, os vivos,
que estivermos presentes ..."; ao escrever assim, o Apóstolo não terá intencionado afirmar a
iminência da parusia? (assim pensavam). Mais outros devem ter falsificado uma carta de
Paulo, apresentando-a como se fosse autêntica mensagem do Apóstolo (cf. 2Ts 2,1s.; 2Ts
3,17).
As notícias de agitação da comunidade devem ter sido levadas a Paulo por cristãos que
viajavam de Tessalônica a Corinto; compreende-se que estes devem ter também relatado o
que havia de bom entre os irmãos (cf. 2Ts 1,3s; 2,16). Em conseqüência, Paulo quis logo
escrever nova carta aos Tessalonicenses: procura tranqüilizá-los e exortá-los a trabalhar, pois
a parusia do Senhor não estava já próxima. E, precisamente para provar isso, S. Paulo aponta
nesta segunda carta algo de novo: os sinais precursores da vinda de CRISTO; é a indicação
destes sinais que caracteriza a 2Ts.
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Assim, a 2Ts é muito semelhante a 1Ts quanto ao vocabulário e aos temas tratados.
Também a sua estrutura se aparenta com a da 1Ts, sendo, no entanto, mais simples.
Distinguem-se nela duas partes, como na 1Ts: ação de graças (cap 1-2), determinações (cap
3). Quanto à primeira parte, veja a mesma expressão como na 1Ts: "Irmãos, por vossa causa
sentimo-nos obrigados a render continuamente graças a DEUS" (2Ts 1,2 e 2,13).
Comparando-se as duas cartas, nota-se: Para cada secção da 2Ts encontram-se paralelos na
1Ts, com exceção de 2Ts 2,1-12. Como a 1Ts 4,13-5,11, também esta secção trata da vinda
do Senhor, mas traz elementos novos de ensinamento que não estão na primeira carta: são os
sinais precursores da vinda do Senhor (a "parusia" do ímpio e a apostasia).
A 2Ts, mais breve, não aborda alguns temas elaborados na primeira carta. P.ex. os
desenvolvimentos da 1Ts 2,1-12 e 2,17-3,8 sobre a atividade missionária dos apóstolos não
tem equivalente na 2Ts. Do outro lado, a exortação ao trabalho é mais desenvolvida e
imperativa na segunda carta do que na primeira; cf. 1Ts 2,9; 1Ts 4,11; 2Ts 3,6-12.

8. Estrutura do texto:
2Ts 1 Ts
Endereço e saudações: 1,1-2 1,1
Acção de graças pela vivência das virtudes teologais 1,3-12 1,3-10; 2,13-16
pelos tessalonicenses no meio das perseguições
(em grego, os v. 3-10 formam uma só frase)
Os sinais precursores da vinda do Senhor: 2,1-12
Acção de graças pela eleição dos Tessalonicenses: 2,13-17 1,4; 2,13
por DEUS
Diretrizes para a vida cristã 3,1-15 4,9-12; 5,14-15
Votos e saudações 3,16-18 5,23-28

9. Decisção da Comissão Bíblica acerca da escatologia paulina:


1) Não é legítimo distinguir entre ensinamento infalível e opiniões pessoais dos Apóstolos,
sujeitas, estas últimas, a erro.
2) O ensinamento de Paulo a respeito do tempo da Parusia concorda perfeitamente com a
afirmação de CRISTO sobre a ignorância da mesma por parte dos homens.
3) A expressão 1Ts 4,15 não comporta a afirmação de que Paulo teria assistido
pessoalmente à Parusia.

10. 2Ts 2,1-12: Os acontecimentos precursores da vinda do Senhor:

1) Ocasião (2,1-2).
A estrutura do trecho deixa perceber uma linha de fundo bastante simples. A situação
manifestada nos dois primeiro versículos (2,1-2) lembra, no seu ponto crucial, a de 1Ts 5,1
trata-se do tempo da vinda do Senhor (2Ts 2,1) ou do dia do Senhor (2Ts 2,2; 1Ts 5,2). Mas a
comunidade aparece agora bastante agitada e perturbada. Ela pensava que a vinda do Senhor
estava iminente. Mas a expressão do Apóstolo escrevendo: "como se o dia do Senhor
estivesse iminente" (2,2), como também o "porque se primeiro não vier ..." (2,3) fazem já
entender que para S. Paulo a vinda do Senhor não é iminente.
37

2) Os acontecimentos precursores (2,3-7).


A expressão "se primeiro não tiver vindo a apostasia e se tiver revelado o homem da
iniquidade..." introduz os dois sinais (acontecimentos) que deverão preceder a vinda do
Senhor JESUS. Tais sinais são a apostasia e a revelação do homem da iniquidade. Os Padres
não eram unânimes ao explicar esta apostasia. Alguns tomaram este termo numa acepção
política: significaria a divisão do Império romano; outros diziam que se tratava do surgimento
de hereges ou do abandono por causa da corrupção moral (Teodoro de Mopseuéstia, S.
Agostinho, Tomás de Aquino).
Esta apostasia, segundo o uso do termo em At 21,21 (Paulo é acusado de ensinar a
apostasia de Moisés) e nos LXX (p.ex. Js 22,22; abandono de JHWH, rebelião; 2Cr 28,19;
33,19; Jr 2,19; 1Mc 2,15; Dn 9,4-11) significa a defecção de DEUS, do culto, da lei de DEUS.
A apostasia de que S. Paulo fala como sinal-acontecimento precursor da vinda de CRISTO
deverá, portanto, ser uma traição de DEUS, um abandono de DEUS em nível universal, como
oposição a DEUS (a Sua lei) e aos Seus representantes da parte dos homens. É isto que é
indicado também nos evangelhos: cf. Lc 18,8; Mt 24,12. No entanto, embora tal apostasia seja
um fenômeno geral, será algo que se realizará de modo particular e particularmente doloroso
nas fileiras dos fiéis, como se pode deduzir dos versículos 10-12. Esta apostasia será a
tentativa final de Satanás de destruir o Reino de DEUS através da defecção dos que compõem
– como súbditos – este Reino da terra (cf. quanto a Satanás, 2Ts 2,9). Tertuliano identificou a
apostasia com o reino do Anticristo (De resurrectione carnis, 24: PL 2,830).
O outro sinal precursor da vinda de CRISTO é o homem da iniquidade. Quem é este
homem da iniquidade? S. Paulo o chama de homem sem lei, o homem do "sem lei", e isto não
num sentido neutro, mas de claro desprezo da lei; ele é "o sem lei" (v. 8), o iníquo, o "filho da
perdição", quer dizer, votado, destinado a perecer, como também a fazer perecer (v. 10). Ele
se volta contra DEUS buscando tomar o Seu lugar. Não se trata do templo de Jerusalém, nem
de outro qualquer templo, nem da Igreja que é templo de DEUS (Ef 2,21), mas é um modo de
falar que significa que ele vai usurpar o lugar, os títulos, os direitos de DEUS.
Este homem da iniquidade foi identificado ao Anticristo de que fala S. João (1Jo 2,18.22;
4,3; 2Jo 7). De fato, de algum modo ele é o adversário de CRISTO: ele tem, como CRISTO
(cf. 1,7; 2,6), uma revelação (2,3.6.8), uma parusia (2,9; CRISTO: 2,1.8). Mas, enquanto o
Anticristo (ou os Anticristos, como diz S. João) se refere a JESUS enquanto CRISTO (=
Messias), o homem da iniquidade, o iníquo se refere a DEUS; uma oposição que se manifesta
mais radical. Certamente há uma relação: a negação de DEUS implica a negação do Messias;
mas a negação do Messias, por si mesmo não quer já dizer, falando em termos absolutos, uma
negação de DEUS (embora, como diz S. João: quem nega o Filho nega também o Pai).
Quem é este homem da iniquidade? Não é o próprio Satanás. O Apóstolo distingue entre
um e outro: (2,9): a parusia do homem da iniquidade se realizará graças ao poder de Satanás,
portanto, com o poder recebido por Satanás. Podia também tratar-se, neste poder, de uma
qualidade: o agir do iníquo é uma demonstração satânica de poder (cf. o que é dito da ação
dele no v. 4), quer dizer: o iníquo é um autêntico "Satanás" enquanto adversário de DEUS e
do Seu CRISTO.
Como S. Paulo apresenta esse homem da iniquidade nos faz pensar com razão num
indivíduo humano concreto, no qual aquele "homem da iniquidade" de que falamos, se
conretiza de um modo eminente ("recapitulatio" de toda maldade chama S. Ireneu o
Anticristo). A iniquidade já atuando na humanidade (2,7) se concentrará num determinado
indivíduo (ou também em determinados indivíduos; em Mc 13,22, JESUS fala de "falsos
messias e falsos profetas" que "surgirão" e "farão sinais e prodígios"; cf. 2Ts 2,9: a vinda do
iníquo será acompanhada de toda sorte de "sinais e de prodígios enganadores").
38

A apostasia e o homem da iniquidade são, portanto, os sinais precursores da vinda-


revelação de CRISTO; e são dois acontecimentos que constituem uma unidade, não duas
realidades somente justapostas.

11. Exegese de 1Ts 4,1-8.


Loipo.n ou=n: Finalmente, por fim. Fórmula de transição; indica o fim de uma parte e o
início de uma nova.
avdelfoi,: Irmãos. Paulo usa muitas vezes esta palavra no vocativo. Todos os cristãos
pertencem a mesma família, todos temos o mesmo Pai, todos nós somos irmãos.
evrwtw/men u`ma/j kai. parakalou/men: Rogamo-vos, pois, e vos exortamos. Paulo exerce a sua
autoridade pedindo e suplicando. Ele usa aqui o plural, porque ele inclui também os seus
colaboradores, aqueles, que com ele anunciam o evangelho.
evn kuri,w| VIhsou/: no Senhor Jesus. A preposição evn indica uma relação entre dois sujeitos.
Pode-se então traduzir: "em relação a". No nosso caso significa então a relação entre Paulo e
os seus colaboradores com o Senhor JESUS. Este relação é a relação de apóstolos, enquanto
Paulo e os seus falam como enviados, em nome de JESUS CRISTO. Eles falam porque foram
vivificados pelo mistério pascal do Senhor JESUS. Paulo sabe bem conscientemente que entre
ele e os seus colaboradores existe uma relação que os liga, une a JESUS CRISTO. É o JESUS
CRISTO Senhor, como temos falado acima, aquele, que dá vida a sua comunidade.
i[na: a fim de que; depende de evrwtw/men u`ma/j kai. parakalou/men e exprime o objeto da
exortação e do pedido de Paulo. Não segue logo o objeto da exortação, mas sim abre-se uma
parêntese.
kaqw.j parela,bete parV h`mw/n: como aprendestes de nós. O «como» interrompe a
continuidade do discurso e abre uma parêntese; «nós» se refere a Paulo e os seus
colaboradores; parela,bete se refere aos Tessalonicenses que acolheram o evangelho. Paulo
comunicou-lhes o mistério pascal com todas as suas conseqüências. Eles devem agora chegar
a realizar a justificação, i.é a compensação entre a realidade do homem como DEUS a pensou
e como eles vivem no tempo e no espaço. A justificação dá-lhes a possibilidade de agradar a
DEUS. Quando eles receberam o evangelho, estavam privados da glória de DEUS. O mistério
pascal os transformou e conferiu-lhes valores positivos.
to. pw/j: como. indica o aspecto da unidade do ensinamento de Paulo, que leva a agradar a
DEUS com toda a sua existência.
dei/ u`ma/j peripatei/n kai. avre,skein qew/|: deveis proceder para agradar a Deus. Paulo
ensinou um comportamento que leva a agradar a DEUS. Mas a gente deve caminhar e
comportar-se segundo esta diretiva. Por um lado, Paulo fala de agradar a DEUS; isto significa
uma relação entre duas pessoas, uma relação de amor com DEUS. Por outro lado, ele fala de
peripatei/n, i.é de uma vivência, de caminhar com uma conduta, isto significa um
comportamento com aspecto dinâmico. Deve-se pôr em prática o que DEUS quer, e isto por
amor, nesta relação de amor de agradar a DEUS. Ambas as partes são necessárias, senão não
existe uma relação interpessoal válida, seria incompleta.
kaqw.j kai. peripatei/te: como já o fazeis. A súplica e a exortação de São Paulo não se
refere a perseverança neste estado, mas se dirige a uma abundância maior ainda.
i[na perisseu,hte ma/llon: que progridais sempre mais. perisseu,hte significa abundar,
ma/llon acentua mais ainda esta abundância. Isto é muito importante para Paulo, porque ele
nunca está contente e porque esta abundância é uma exigência da situação dos cristãos de
Tessalônica. Eles não devem somente observar e praticar um certo número de preceitos para
39

agradar a DEUS, mas sim eles devem chegar a uma relação interpessoal com DEUS, que
requer sempre mais.
oi;date ga.r: sabeis, pois. O "ga,r" se refere ao contexto precedente, porque explica o que foi
dito acima. Nas instruções, que Paulo deu aos Tessalonicenses, está contida a exigência de um
crescimento contínuo. Isto deve cumprir-se na força e na autoridade do Senhor JESUS
CRISTO, que comunica a sua própria vida.
ti,naj paraggeli,aj evdw,kamen u`mi/n : que preceitos vos demos. Paulo deu estas instruções e
estes preceitos com a autoridade de Apóstolo. Ele considera todo o seu apostolado como um
dom para com aqueles, aos quais ele se dirige. Por isso, também os preceitos que ele dá, são
um dom. O verbo evdw,kamen implica uma oferta, uma oblação. Portanto, os preceitos que
Paulo deu, são um dom, expressão de amor mútuo.
dia. tou/ kuri,ou VIhsou/: pelo Senhor JESUS. Paulo está convencido, que o seu apostolado é
garantido por JESUS CRISTO no sentido, que ele apresenta JESUS CRISTO como conteúdo
da sua pregação. Mas ele faz o seu trabalho de apóstolo também "por meio de" e "na força de"
JESUS CRISTO. É JESUS CRISTO que chamou Paulo para evangelizar e que lhe deu a sua
missão, e é JESUS CRISTO que comunica ao Apóstolo a sua vida, que lhe comunica a
capacidade de ser um apóstolo, de cumprir a sua tarefa.
tou/to ga,r evstin: isto é, pois. Agora se trata de ver de perto o que é a vontade de DEUS e o
que é a santificação. Paulo junta de novo um ga,r para indicar, que tudo aquilo que ele disse,
todos os preceitos que ele tem dado, tudo isto é vontade de DEUS e conduz à santificação.
qe,lhma tou/ qeou/: a vontade de DEUS. Para compreendermos o que é a vontade de DEUS,
temos que primeiro compreender, quem é DEUS. Para Paulo DEUS é um Pai. Devemos
compreender DEUS como Pai, então compreenderemos bem a expressão e as exigências da
sua vontade.
o` a`giasmo.j u`mw/n: A santificação é aquilo que DEUS Pai pede aos cristãos. Este termo
aparece muitas vezes em São Paulo. Ele chama os cristãos os "santos" ou os "santificados".
Isto não quer dizer que os cristãos são perfeitos; isto indica a realidade da justificação: os
batizados são restaurados interiormente, são santificados.
avpe,cesqai u`ma/j avpo. th/j pornei,aj: abster-vos da impureza. Paulo exprime agora a vontade
de DEUS com dois infinitivos: avpe,cesqai e eivde,nai. Abster-se da impureza se refere a uma
desordem moral, seja a respeito do matrimônio no sentido de adultério, ou seja em geral no
sentido de fornicação. Santificação é para São Paulo nenhuma coisa abstrata, é algo bem
concreto.
eivde,nai e[kaston u`mw/n : Quando Paulo diz, que "cada um de vós saiba" ele atribui a cada
um uma responsabilidade. Cada um deve decidir-se, empenhar-se, colaborar com a graça que
o impele, cada um deve ser ativo.
to. e`autou/ skeu/oj kta/sqai: O que é que Paulo quer dizer com skeu/oj? St. Agostinho e São
Tomás referem isto a esposa. Portanto, eles pensam que Paulo quisesse dizer, que cada um
cure bem da própria esposa e haja uma conduta correta no que se refere a sua esposa e ao
matrimônio. É uma resposta válida, mas talvez podemos encontrar um sentido mais profundo
ainda. Sem dúvida, Paulo não se refere somente aos homens, mas a homens e mulheres. Por
isso deve também ter um significado para as mulheres.
Podemos referir skeu/oj também ao nosso corpo como vaso, recipiente da nossa alma.
Grande parte dos padres gregos são nesta línea. Significaria então que devemos por o corpo
ao serviço da alma, devemos dominar o nosso corpo.
40

Uma terceira interpretação deixa-nos ver skeu/oj num sentido especial: a pessoa é portadora
do Espírito, então "vaso", "recipiente" do Espírito. (cf. 1Cor 3,16).
evn a`giasmw/| kai. timh//|: em santificação e temor. A santificação deve-se entender aqui no
sentido ativo como impulso do ESPÍRITO SANTO, que realiza a santificação dentro das
pessoas humanas. Já que somos portadores do ESPÍRITO, devemos realizar todos os impulsos
deste ESPÍRITO que visam a nossa santificação. Timh, significa aquilo que dá valor a todo o
crescimento da vida cristã e portanto a toda a santificação. Por isso pensamos aqui na
reverência e temor de DEUS, que deve informar toda a nossa tendência à santidade.
mh. evn pa,qei evpiqumi,aj kaqa,per kai. ta. e;qnh ta. mh. eivdo,ta to.n qeo,n : não na paixão da
concupiscência, como os pagãos que não conhecem DEUS. Portanto devem os cristãos
distinguir-se notavelmente dos pagãos, que não conhecem a DEUS, e não ser dominados pela
"paixão da concupiscência". Paulo ensina aos cristãos, que devem dizer um claro "não" a toda
desordem sexual, que implica um grande obstáculo para a santificação e desonra o templo do
ESPÍRITO SANTO. Os pagãos, que não conhecem DEUS, não fazem caso do seu impulso
sexual, os cristão, pelo contrário, enquadram a sexualidade na hierarquia dos valores.
to. mh. u`perbai,nein kai. pleonektei/n evn tw/| pra,gmati to.n avdelfo.n auvtou/ : não oprimir ou
enganar nesta matéria o seu irmão. Em seguida São Paulo trata das relações entre os irmãos.
Não devemos assaltar nem explorar os irmãos nos negócios concretos do dia-a-dia.
u`perbai,nein significa 'passar por cima', usar uma violência moral contra alguém, aproveitar-se
da fraqueza do outro, que é o próprio irmão, pois todos fazemos parte da família de DEUS. Os
Tessalonicenses eram comerciantes, e portanto São Paulo escreve esta admoestação de
propósito, pois conhece as dificuldades dos seus filhos espirituais.
dio,ti e;kdikoj ku,rioj peri. pa,ntwn tou,twn: porque o Senhor é justo acerca destas coisas. O
próprio DEUS é o vingador das injustiças cometidas contra os irmãos. Portanto devemos
prestar contas ao SENHOR sobre o nosso relacionamento com o irmão, porque DEUS é a
garantia dos nossos irmãos.
kaqw.j kai. proei,pamen u`mi/n kai. diemartura,meqa: como temos vos dito antes e também
temos testemunhado. Paulo tinha testemunhado o seu ensino quer pela palavra viva quer pela
sua vida, seu exemplo, porque sabe que o melhor ensinamento não vale nada, se o próprio
pregador não vive o que está dizendo. Isto nos mostra, que para Paulo a mensagem e a prática
são uma só coisa.
ouv ga.r evka,lesen h`ma/j o` qeo.j : Pois, DEUS não nos chamou. Agora São Paulo volta à
temática geral da vocação por parte de DEUS. O chamamento é muito importante na temática
do evangelho e da fé, porque o próprio evangelho se torna um chamado que interpela a uma
pessoa e requer a resposta da aceitação. Vocação sempre é uma chamada pessoal, é DEUS
mesmo que escolhe e chama alguém pelo nome, não imputando a miséria da criatura.
evpi. avkaqarsi,a| avllV evn a`giasmw/| : para impureza, mas para a santificação. Esta vocação não
se realiza no contexto da impureza mas da santificação. O conceito avkaqarsi,a significa a
pureza cultual; portanto era impuro tudo o que não correspondia perfeitamente com a
sublimidade da liturgia: assim as vítimas sacrificadas deviam ser sem defeito, e também os
sacerdotes em perfeita condição física e moral. A pureza cultual significa uma certa proporção
à santidade de DEUS, e a impureza é uma falta, um defeito na integridade do homem. Pelo
contato íntimo com DEUS toda a vida do cristão se torna liturgia e comporta a sacralidade do
próprio templo. Por isso DEUS nos chamou não para a impureza, mas para a santificação. A
vida cristã é uma contínua santificação, uma remoção das imundícies do pecado que afetam o
relacionamento com DEUS e os irmãos. Por outro lado a santificação significa a crescente
participação do cristão na vida de CRISTO Ressuscitado, que deve penetrar todos os aspectos
da nossa vida sem deixar lacuna.
41

toigarou/n, enfim, portanto, por conseguinte, significa uma conclusão definitiva.


o` avqetw/n ouvk a;nqrwpon avqetei/ avlla. to.n qeo.n :Quem rejeita esta vocação, não rejeita uma
pessoa humana, não rejeita Paulo ou um dos seus colaboradores, mas sim DEUS mesmo. Isto,
portanto, é uma grande responsabilidade. Quando DEUS chama e o homem rejeita este
convite, então ele fere o intercámbio entre DEUS e o homem.
to.n Îkai.Ð dido,nta to. pneu/ma auvtou/ : O Pai deu-nos também o Seu Espírito. O kai, é uma
acentuação, que segundo o contexto tem o seguinte resultado: Quem rejeita um homem rejeita
na realidade DEUS, o qual nos deu também o Seu Espírito. O Espírito é o dom por
excelência, o dom maior, que o Pai pode dar-nos; o Espírito é como a vitalidade do Pai e do
Filho; esta vitalidade provêm do Pai, é dada ao Filho e nos é comunicado no Espírito Santo.
to. a[gion eivj u`ma/j: O Espírito é chamado "Santo" para acentuar e sublinhar a sua acção
santificante. Esta ação santificante do Espírito, de que Paulo falou acima, é realizado pelo
Espírito, que penetra a vida cristã com os valóres típicos de CRISTO. Deste modo Ele
transforma nossa vida numa constante liturgia. O Espírito Santo produz a santificação.
Poderíamos resumir a nossa exegese com as seguintes palavras: Segui verdadeiramente o
impulso do Espírito Santo, assim realizareis a vida que agrada a DEUS, evitareis os defeitos e
vivereis verdadeiramente em relação perfeita com o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Esta acentuação do Espírito Santo, que conclui nosso trecho, é a chave de interpretação
para toda a nossa parte. Paulo ensina-nos, que a aceitação plena da atividade do Espírito Santo
inclui tudo aquilo que temos visto na nossa perícope.
42

A Primeira Carta aos Coríntios


1. A cidade de Corinto.
Cícero chamou à antiga Corinto "Totius Graeciae lumen" (Pro lege Manlia, 5), que no ano
de 146 a.C. fora completamente arrasada pelo cônsul Lúcio Múmio.
Sua feliz posição no istmo homônimo, a cavaleiro do mar Jônico e do Egeu, tornava-a,
com efeito, um centro comercial de primeira ordem, como o ponto de encontro entre os
mercados da Europa – especialmente da Grécia e da Itália – e os da Ásia.
Tudo isto explica a sua florescente riqueza, a opulenta majestade de suas construções, e
também a sua proverbial corrupção, favorecida pelo caótico cosmopolitismo de seus
habitantes.
Depois de sua destruição (146 a.C.), por mais de um século a cidade permaneceu como um
desolado cemitério; mas sua invejável posição geográfica exigia que ressuscitasse das ruínas.
Por isso, em 44 a.C. Júlio César ordenou a sua reconstrução e quis que recebesse o nome de
Colonia laus Iulia Corinthus. Para povoá-la chamou colonos itálicos, tanto veteranos como
libertos, que os gregos desprezavam como pessoas sem cultura e de gostos grosseiros. No ano
27 a.C. Otaviano Augusto fê-la capital da nova província senatorial da Acaia. É desta data que
principia o pujante desenvolvimento da cidade, que chegou a superar em importância e
esplendor o anterior período de prosperidade.
Sua população foi aumentando sempre mais, além de gregos e itálicos, com uma turba
variegada de homens de negócios, traficantes, marinheiros, que procediam de todas as partes
do Império, sobretudo do Egito e da Ásia Menor. Muito numerosos também os escravos, que
alguns chegam a avaliar em dois terços de toda a população (esta devia somar ao todo uns 600
mil habitantes). No meio de tanta gente não podiam faltar os judeus, atraídos pelo florescente
comércio: uma inscrição, pouco posterior aos tempos de São Paulo, lembra, com efeito, uma
sinagoga dos hebreus. Como se está vendo, era uma população híbrida, onde o elemento
grego constituía a menor parte. Por isso, Corinto foi chamada de a menos grega das cidades
gregas.
Viviam todos do intenso comércio da cidade, favorecido pelos dois portos de Cencres, no
mar Egeu, e Lequeu, no mar Jônico.
Juntamente com o comércio florescia também a vida cultural e religiosa. No século II d.C.
o retor Hélio Aristides celebrava as escolas, os jogos, os filósofos e literatos de Corinto, que
se podiam encontrar em qualquer esquina.
No que diz respeito à vida religiosa, dado o diversificado cosmopolitismo da cidade,
Corinto hospedava em seus muros os cultos mais disparatados: desde o culto de Isis e Serápis,
proveniente do Egito, ao da Grande Mãe Cíbele, originário da Frígia, ao dos deuses de Roma,
ao culto dos deuses indígenas, especialmente Possêidon, Esculápio, Melicerte, Palêmon, ao
qual se atribuía justamente a fundação dos jogos ístmicos.
Continuava, porém, sempre em primeiro, como antes da destruição da cidade por parte dos
romanos, o culto de Afrodite. Embora fosse Corinto rica em muitos atrativos, nenhum deles
superava o fascínio exercido pela deusa da luxúria.
Este precisamente o campo em que se apresentou Paulo para plantar a semente da boa-
nova, entre a primavera e o verão do ano 51 d.C.
43

2. A chegada de Paulo a Corinto.


Corinto representava a última etapa da caminhada da segunda viagem missionária de Paulo
(At 15,36-18,22), que chegou aí depois da dolorosa experiência efetuada em Atenas.
Na metrópole da cultura grega, seu apostolado se assinalara por um fracasso: o discurso no
Areópago (At 17,22-31), temperado com não comum habilidade retórica e sadia sabedoria
humana, suscitou hilaridade e gélido ceticismo, assim que Paulo recordou a Ressurreição de
CRISTO (At 17,32). Os ouvintes estavam por demais impregnados da própria filosofia para se
acharem em condições de humilhar-se diante da loucura da pregação (1Cor 1,21). Somente
umas poucas pessoas creram (At 17,34).
Sob a impressão desse fracasso, sozinho, sem a companhia de Timóteo e Silas, totalmente
desprovido de meios de subsistência, Paulo apresentou-se em Corinto, a cidade do dinheiro e
da luxúria. Interessante notar que Atenas é a única cidade da qual o Apóstolo voluntariamente
fugiu sem ter sido expulso daí. A tristeza sobre a recusa e a indiferença deve ter sido muito
grande. Mas, se em Atenas as coisas tinham corrido mal, com certeza ele não poderia iludir-se
de que iriam melhor em Corinto.
Quais eram o seu estado de espírito e os planos para sua futura atividade missionária ele
mesmo no-los descreve no trecho autobiográfico de 1Cor 2,1-5. Mas o poder de DEUS soube
operar prodígios de conversão ao novo caminho na corrompida e enfatuada cidade de Corinto.
As preocupações econômicas (cf. 2Cor 11,8s; Fl 4,14ss) foram bem cedo superadas por
Paulo, pois a Providência fê-lo encontrar dois esposos judeus, naquela época já cristãos (cf.
1Cor 16,19) – Áquila e Priscila – que justamente então haviam chegado a Corinto,
procedentes de Roma, uma vez que o imperador Cláudio expulsara todos os judeus da capital,
por causa de algumas perturbações que teriam provocado. E como Paulo exercia a mesma
profissão, permaneceu em casa deles trabalhando: com efeito, sua profissão era a de
fabricantes de tendas (At 18,3).

3. A evangelização.
Libertando-se das peias econômicas, Paulo se entregou logo à tarefa de pregação,
começando, como de costume, pela sinagoga. Nesse meio tempo, da Macedônia, vieram
juntar-se-lhe Silas e Timóteo, que traziam também abundantes subsídios daquelas
comunidades para o mestre amado (cf. Fl 4,14ss): isto reanimou a Paulo. Visto, porém, que os
judeus não aceitavam a mensagem evangélica, gritando-lhes desdenhosamente: "O vosso
sangue caia sobre vossas cabeças!" (At 18,6), dirigiu-se aos gentios, no meio dos quais teve a
consolação de agregar muitos seguidores (At 18,2). Ministrava as instruções na casa de um
certo Tício Justo (gentio filiado ao judaísmo), contígua à sinagoga: nesse ínterim se havia
convertido também Crispo, arqui-sinagogo, com toda a família.
Este intenso trabalho se prolongou por um ano e seis meses e, ao menos na superfície, se ia
desenrolando muito serenamente. Na realidade, contudo, deviam interpor-se obstáculos e
dificuldades de toda espécie diante da atividade do Apóstolo, uma vez que o Senhor lhe
apareceu em sonho, durante a noite, para confortá-lo (cf. At 18,9s).
Os obstáculos, sem dúvida, procediam dos judeus e de outros inimigos declarados de Paulo
que chegaram, como veremos, a ameaçar até a incolumidade pessoal do Apóstolo. Mas
deviam também vir dos próprios convertidos que, embora tendo boa vontade, não conseguiam
caminhar conforme as regras e os ensinamentos do Evangelho. Todo o ambiente conspirava
contra eles: como era possível falar em castidade e renúncia numa cidade como Corinto? E
além do ambiente, havia seus costumes anteriores, a mentalidade adquirida, as práticas
gentílicas em que se havia alimentado a vida deles, que a cada momento tornavam a florescer
44

destruindo o paciente e extenuante trabalho de Paulo. E isto se compreende melhor ainda,


caso pensemos que a grande maioria dos cristãos de Corinto devia ser formada por escravos
(1Cor 1,26-31), os mais corrompidos dentre todos. A esta situação, humanamente
desesperada, certamente se referia Paulo quando em termos muito crus lembrará mais tarde
aos coríntios aquilo que haviam sido outrora (cf. 1Cor 6,9ss). A Paulo, que estava agora quase
cedendo terreno e abandonando as armas, a visão celeste lembrou que a graça é mais forte de
que a natureza e que o Espírito de DEUS é Espírito santificante por excelência.
Continuou, então, a trabalhar tranqüilamente, até que se levantou contra ele uma violenta
tempestade provocada pelos judeus, mas sem dúvida favorecida igualmente por outras
pessoas, a quem a reforma moral pregada e posta em execução por Paulo devia aborrecer não
pouco. Um belo dia, portanto, sendo Galião procônsul de Acaia, levantaram-se os judeus
unanimemente contra Paulo, e conduziram-no perante o tribunal, dizendo: "Este persuade os
homens a prestar culto a DEUS de modo contrário à lei" (At 18,12). A acusação era
demasiadamente vaga para que Galião, homem sumamente astuto, pudesse levá-la a sério e
não suspeitasse ao contrário que era uma das costumeiras manobras para desfazer-se, sob o
manto da legalidade, de algum adversário político ou religioso. Por isso respondeu secamente
aos acusadores: "Se se tratasse de alguma injustiça ou um crime grave, ó judeus, razão haveria
para que eu vos escutasse; mas, tratando-se de questões de doutrina, de nomes e da vossa lei,
vós lá o vede; não quero ser juiz em tais coisas! E assim os pôs para fora do tribunal" (At
18,14ss).
Os judeus se haviam enganado em seus cálculos: Galião se havia colocado fora de seu
alcance! Em lugar de Paulo, quem pagou foi o chefe da sinagoga, Sóstenes, que talvez tivesse
atiçado a rebelião. Com efeito, como os gregos guardassem rancor aos hebreus, aproveitaram
a ocasião para descarregarem o ressentimento: pegaram por isso o arqui-sinagogo e bateram
diante do tribunal; e Galião não fez nenhum caso diante de tais fatos (At 18,17). Fortalecido
com o apoio do procônsul, Paulo permaneceu ainda muitos dias (At 18,18) em Corinto, até
que, depois de ter pago um voto, zarpou com Áquila e Priscila para as costas da Síria.
A presença em Corinto do procônsul Júnio Galião, irmão do filósofo Sêneca, serve de
ótimo ponto de referência para datar o período de permanência de Paulo na capital da Acaia.
Com efeito, uma inscrição fragmentária, encontrada em Delfos e publicada em 1905,
reproduzindo uma carta do imperador Cláudio àquela cidade, faz referência a Júnio Galião,
procônsul da Acaia. Como a carta data certamente de janeiro a julho de 52, este deve ter sido
o ano do proconsulado de Galião na Acaia. Calculando globalmente como de dois anos o
apostolado de Paulo em Corinto (um ano e seis meses antes da sublevação, mais os muitos
dias sucessivos), podemos concluir que ele iniciou nos primeiros meses de 51 e partiu nos
últimos de 52 ou talvez no início de 53.

4. Ocasião e data da carta aos coríntios.


Detendo-se Paulo em Éfeso (1Cor 16,8), durante a terceira viagem missionária (que vai de
53 a 58, cf. At 19,1-20,11), embora dedicando-se totalmente à evangelização daquela grande
metrópole e de seus arredores, não deixava de interessar-se pelas outras comunidades e
sobretudo pela de Corinto, a que se sentia ligado por particulares sentimentos de afetuosa
paternidade (1Cor 4,15). Havia alguma coisa em Corinto que não ia bem: devia tratar-se de
abusos morais e de graves desregramentos nos costumes. Tentou remediar, escrevendo uma
primeira carta que, infelizmente, se perdeu (1Cor 5,9-13).
O êxito dessa carta, contudo, não deve ter sido muito lisonjeiro, uma vez que o Apóstolo
continuou a receber notícias muito alarmantes: ao invés de melhorar, a situação se estava
deteriorando. Com efeito, algumas pessoas da casa de Cloé, chegadas a Éfeso (1Cor 1,11), e
as notícias recebidas mediante Apolo (cf. At 18,27 e 1Cor 16,12) colocaram Paulo a par de
45

cisões, antagonismos e criação de estranhos "partidos" que se estavam criando em Corinto (1


Cor 1,10-17). A igreja dos coríntios corria pois o risco de dividir-se em muitas seitas rivais.
E isto não era tudo. Abusos ainda maiores se deviam lamentar no campo moral. Sobre este
ponto pensavam muitos que podiam dar-se as mesmas liberdades dos gentios, a tal ponto se
achava o vício neles arraigado! Mais, pensavam justificar-se, apresentando o ensinamento do
Apóstolo sobre a "liberdade" cristã: tudo me é lícito (cf. 1Cor 6,12-20; 10,23). Chegaram
mesmo a tolerar um horrível e repelente caso de incesto público (1Cor 5,1-13). Além disso,
havia pouca caridade entre os cristãos e davam escândalo perante os gentios levando aos
tribunais deles litígios e controvérsias (1Cor 6,1-11).
Este o quadro da situação. Que fazer para pôr-lhe um cobro? Paulo pensou em logo mandar
a Corinto Timóteo, para cuidar ao menos das mais urgentes necessidades (1Cor 4,17). Mas
isto não o satisfez: suspeitando talvez que, dada sua pouca idade, os coríntios não levassem a
sério o seu querido discípulo (1Cor 16,10s), decidiu-se a escrever uma carta bastante enérgica
e magoada.
Nesse meio tempo, contudo, iniciada já a carta, deve ter chegado de Corinto uma missão
oficial, composta de Estéfanas, Fortunato e Acaio (1Cor 16,17), que apresentava ao Apóstolo
alguns casos de consciência e diversos quesitos: relação entre matrimônio e virgindade (1 Cor
7,1), uso das carnes imoladas aos ídolos (8,1), ordem a seguir nas reuniões litúrgicas (11,2ss),
reto uso dos carismas (12,1), dúvidas quanto à ressurreição dos mortos (15,1). Levando em
conta estes elementos todos, Paulo ditou sua carta.
Quando é que foi escrita esta carta? Há controvérsias, entre os estudiosos, a respeito da
data precisa. Segundo alguns, Paulo tê-la-ia escrito em 55, durante o primeiro ano de sua
permanência em Éfeso. A maior parte, contudo, inclina-se a favor do ano de 56 ou 57; em
ambos os casos, na iminência da Páscoa (cf. 1Cor 5,7s; 16,5-9; At 19,21).

5. Importância histórica e doutrinal


A primeira carta aos coríntios assume uma importância toda especial entre as epístolas
paulinas. Mais e melhor do que todas as outras, ela nos apresenta o quadro vivo e realístico da
situação interna de uma das primitivas comunidades cristãs. A Igreja de Corinto torna a
ganhar vida sob nossos olhos.
Além disso, justamente pelo fato de a epístola apresentar uma Igreja em seu dinamismo
vital, com todos os complexos problemas que lhe comprometem as energias e
potencialidades, a primeira aos Coríntios vem a ser, simplesmente, a carta paulina mais rica
em temas, em motivos doutrinários e disciplinares.
Sem lembrar pequenas alusões teológicas, nas quais praticamente está fervilhando,
assinalamos os seguintes pontos da doutrina:
- instituição da Sagrada Eucaristia, como sacrifício e sacramento, por parte do Senhor
(11,23-29; cf. 10,16.22);
- Ressurreição de CRISTO, como tipo e modelo da dos justos com seus corpos
glorificados (15,1-58);
- superioridade do estado virginal sobre o matrimônio (7,25-35);
- santidade e indissolubilidade do matrimônio, juntamente com a promulgação do
privilégio paulino (7,1-17);
- descrição dos carismas e suas relações com as virtudes teologais, especialmente com
a caridade (cc. 12ss);
- poder coercitivo da Igreja, exercido na excomunhão (primeiro exemplo) do
incestuoso (5,3ss);
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- divindade do Espírito Santo e a sua inabitação na almo do justo (2,10ss; 6,9; 12,4-
11);
- Igreja, Corpo místico de CRISTO, hierarquicamente organizada (6,15-20; 12,27-30
etc.).
Não obstante esta rica variedade de temas, a carta possui uma particular e admirável
estrutura unitária. Essa unidade deriva, em primeiro lugar, do fácil e evidente sistema de
ligação literária dos argumentos; em segundo lugar, do espírito animador que orientou o
Apóstolo na compilação de seu escrito: JESUS CRISTO é a luz que ilumina os diversos
desenvolvimentos, o centro ao qual é necessário referir todos eles. São Paulo não dá nenhum
ensinamento sem a Ele referir-se.

6. A Estrutura de 1Cor.
Embora a primeira carta aos Coríntios não tenha um caráter sistemático, por ter sido
composta para atalhar situações muito concretas e flutuantes, podemos nela todavia perceber
duas grandes partes, bem distintas entre si: a primeira, relativa à correção das desordens que
se verificavam em Corinto (cc. 1-6); a segunda, relativa à solução de certas perguntas
apresentados pelos coríntios a Paulo (cc. 7-16).
Exórdio: 1,1-9
Primeira Parte: Condenação das desordens: 1,10-6,20.
1,10-4,21: Facciosidades humanas e sabedoria divina
5,1-13: Um caso de incesto
6,1-20: O recurso a tribunais gentílicos
Segunda parte: 7,1 – 15,58.
7,1-40: Matrimônio e virgindade
8,1-11,1: As vítimas sacrificadas aos ídolos
11,2-34: Boa ordem nas assembléias religiosas
12,1-14,40: Uso dos carismas, a caridade
15,1-58: A ressurreição dos mortos
Epílogo: 16,1-24

7. Exegese de 1 Coríntios 12,31-14,1


A articulação estrutural não apresenta nenhuma dificuldade. Os primeiros três versículos
repetem, em formas diversas, o mesmo motivo temático: a presença do amor e sua ausência
determinam o ser e o não ser cristão, e não apenas uma modalidade de sua (do cristão)
existência. A cada versículo repete-se um esquema formal fixo: se tenho isto ou aquilo ou se
faço isto e aquilo, mas não tenho amor, nada sou. Cada fiel, tomado em sua individualidade –
note-se o discurso na primeira pessoa do singular -, não tem como fugir do juízo decisivo
sobre sua pessoa: sem amor, é insignificante, por grande que seja o que ele possui ou faz. Isso,
naturalmente, é dito em relação ao desígnio salvífico de DEUS. Segue-se a descrição das
linhas de atuação do amor (vv. 4-7). Trata-se de uma rápida sucessão de quinze verbos, que
indicam seu vastíssimo campo de atuação. No plano formal, nota-se a personificação literária
do amor, apresentado como sujeito ativo dos verbos: o amor age assim e não de outro modo, o
amor faz isto e não aquilo. Enfim, a terceira parte (vv. 8-13) evidencia o caráter de absoluta
perfeição do amor, e sua conseqüente permanência no mundo futuro da ressurreição,
diferentemente da parcialidade e limitação das experiências carismáticas, destinadas a
desaparecer com o fim deste mundo. Essa parte é dominada por uma série de antíteses: a
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permanência e o fim; o que é limitado e imperfeito e o que é perfeito; criança e adulto; agora e
então; ver mediante o espelho, de modo obscuro, e ver face a face.
O hino está incluído entre duas frases. No início lemos: "E agora, ainda vou indicar-vos o
caminho mais excelente de todos". No fim temos o convite: "Empenhai-vos em procurar a
caridade". Apresentam em qualquer maneira o contexto próximo do hino do capítulo 13.
São Paulo, para excitar a curiosidade dos Coríntios lhes diz de mostrar-lhes um caminho
mais excelente de todos. Este caminho não é um caminho pelo qual se pudesse chegar aos
dons melhores, porque São Paulo não fala do modo como adquirir estes dons, estes carismas,
porque os carismas, sendo uma graça, são dados. São Paulo fala do amor em relação aos
outros carismas, concluindo que o amor tem a preferência. O amor, portanto, é o caminho
mais excelente que leva à perfeição.
Parece que avga,ph é um caminho melhor, superior a todos os outros. A imagem do
caminho, que Paulo usa para falar do amor, mas que não aplica aos carismas, pode ajudar-nos
a compreender melhor e distinguir um dos outros. avga,ph é um caminho, os carismas não!
a) o`do.j é uma imagem que indica a conduta a seguir, o caminho para o bem ou para o mal.
Traduz o hebráico %r,d, e significa o ato de caminhar, a marcha. Este sentido vale para o
amor e Paulo em 1Cor 13,4-7 nos diz que se trata de uma praxe, de um agir, um peripatei/n (=
viver), que Paulo usa exclusivamente no seu sentido metafórico de uma ação moral. Todas as
indicações que Paulo nos da acerca do peripatei/n cristão nos servem para determinar a
natureza deste caminho melhor que é o amor:
- caminhar no Espírito (cf. Gl 5,16.25; Rm 8,4).
- caminhar no Senhor JESUS (cf. Cl 2,6-7; Ef 4,20-21).
- caminhar no amor (cf. Ef 5,2).
b) Nos Atos dos Apóstolos o cristianismo é apresentado como "o caminho": cf. At 9,2;
19,9; 19,23; 22,4; 24,14; 24,22.
Desde o início a nova religião é vista como caminho, um estilo de vida que implica uma
concreta maneira de pensar, que é essencialmente uma concreta maneira de atuar, de agir, de
viver: "a fé que opera pela caridade" (Gl 5,6).Este caminho é uma fórmula breve para falar do
caminho do Senhor ou do caminho de DEUS (cf. At 18,25.26).
c) No AT o caminho "do Senhor" não é igual ao caminho "verso o Senhor". O caminho do
Senhor é o caminho que o Senhor mesmo percorre e o caminho que ele faz percorrer o
homem.
- O caminho que o Senhor mesmo percorre: DEUS vai em frente do seu povo:
libertação do Egipto, exílio de Babilónia: Jz 5,4; Sal 68,8-9; Ex 13,21; Sb 10,17; Ex 33,16;
Is 40,9-10; 35.
Em sentido metafórico, para salvar o seu povo: Ex 33,13-14; Sl 103,6-8.
- O caminho, que DEUS faz percorrer o homem:
o mesmo caminho = imitar o agir de DEUS, sobretudo o seu amor: Dt 10,12.16.17 (cf. Jr
4,4; Rm 2,25-29); Ex 33,13.18.19; Sl 25,4-5; 86,11;
equivale com a vontade de DEUS: Mt 7,21; 6,10; Is 44,28; Jr 31,31-33; Ez 36,27; Mt 5,17-
20. Tudo isto prepara a nova aliança.
d) O caminho no NT é JESUS CRISTO. Mc 1,3 e par. A obra de CRISTO é a obra do Pai,
cumprido no Filho e para o Filho. Ele mesmo é o caminho (Jo 14,6.7.9.10; 10,30). O uso
desta imagem no sentido metafórico se identifica praticamente com o sentido próprio: DEUS
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salva exclusivamente no Filho e para o Filho (cf. At 4,12). A novidade do NT será aquela que
une praticamente o agir de DEUS com o agir do homem. De fato, o NT nos ensina, que o agir
que DEUS pede ao homem não é mais um simples agir humano, mas sim um agir de DEUS
mesmo dentro do homem (Jr 31,33; 33,22; Ez 37,1-10; 47,1-12). Esta nova aliança é inscrito
no coração do homem e não mais sobre a pedra como no AT: é a aliança no Espírito, e não
mais na letra: Dt 10,16; 30,6; Ez 18,31; 36,26-27. São Tomas identifica a nova lei com a lei
do Espírito da vida de Rm 8,2 (In Rom 8, lect.1).
e) Conclusão: O caminho do Senhor oferece uma novidade característica no NT: O agir do
cristão é o agir do Senhor, mas não somente porque se segue os seus ensinamentos, mas sim
porque o Senhor ressuscitado é o próprio princípio vital (Gl 2,20).
Quando Paulo chama o amor um caminho mais excelente a todos ele quer distingui-lo de
todos os dons espirituais e carismas. O amor não é somente um dom do Espírito Santo, mas é
o Espírito Santo mesmo que opera no coração do homem; não é somente aquilo que nos leva a
DEUS, mas sim é DEUS mesmo que caminha com aquele que ama. DEUS mesmo ama no
homem.

Primeira estrofe: 1-3:


VEa.n tai/j glw,ssaij tw/n avnqrw,pwn lalw/ kai. tw/n avgge,lwn( avg a,phn de. mh. e;cw( ge,gona
calko.j hvcw/n h' ku,mbalon avlala,zon: Aqui começa uma subida, que alcançará seu ponto
culminante no v. 3. São Paulo alude à glossolalia, um dom muito desejado pelos coríntios,
mas por Paulo considerado pouco importante. 'Línguas dos homens e dos anjos' é uma
hipérbole que se refere ao falar mais excelente, portanto a um dom que somente DEUS pode
conferir. Se porém carece da caridade, não serve para nada. Uma palavra que não está
informada pela caridade só é um ruído.
kai. eva.n e;cw profhtei,an kai. eivdw/ ta. musth,ria pa,nta kai. pa/san th.n gnw/sin kai. eva.n
e;cw pa/san th.n pi,stin w[ste o;rh meqista,nai( avga,phn de. mh. e;cw( ouvqe,n eivmi: Agora São
Paulo vai mais alto ainda e se refere aos dons intelectuais: o dom da profecia, o conhecimento
de todo mistério e toda ciência, e até o dom de uma fé taumatúrgica que consegue os milagres
mais surpreendentes. Embora estes dons possam dar qualquer efeito na comunidade, não
valem nada espiritualmente e não produzirão frutos verdadeiros sem a caridade.
ka'n ywmi,sw pa,nta ta. u`pa,rconta, mou kai. eva.n paradw/ to. sw/ma, mou i[na kauch,swmai(
avga,phn de. mh. e;cw( ouvde.n wvfelou/mai: Por fim São Paulo afirma que até as obras caritativas,
sem motivação pelo amor de DEUS, não adiantam nada. São Paulo se refere aos cristãos que
oferecem tudo que possuam e não duvidam de sacrificar até a própria vida em favor dos
irmãos: tudo isto não serve nada se faltar a caridade.
Paulo coloca, portanto, o amor acima seja do poder taumatúrgico do Espírito seja dos atos
morais mais elevados. Tudo isto é completado do amor. Porque em todas as obras e em todos
os dons carismáticos a pessoa humana somente procura-se a si mesmo, se lhe falta o amor.

Segunda estrofe: 4-7:


Nesta estrofe São Paulo expõe as características da caridade. Antes de falar dela como uma
virtude São Paulo a trata como pessoa humana, atribuindo-lhe a iniciativa da vida dos fiéis
nas circunstâncias mais diferentes: 15 verbos em 4 versículos, todos estes em relação com o
próximo: duas notas positivas, oito negativas, depois ainda 5 positivas. Não são todas as
caraterísticas do amor, mas tampouco são arbitrariamente escolhidas. Referem-se à virtude
que os coríntios desprezam. Deste modo os versículos são para nos um espelho da vida desta
comunidade.
49

~H avga,ph makroqumei: A paciência é apresentada nos Salmos como atributo divino: "Lento
para a ira" (Ex 34,6; Nm 14,18; Gn 4,2). Assim como DEUS refreia a sua ira consentindo aos
pecadores tempo para a conversão, os cristãos devem por sua vez vencer os seus desejos de
vingança. Isto pressupõe uma grande fortaleza do coração. Graças a esta união entre fortaleza
e paciência o cristão vive numa paz e tranqüilidade interior frente a qualquer mal que lhe
possa acontecer seja da parte dos homens seja da parte de acontecimentos da vida.
crhsteu,etai: A palavra aparece somente aqui em toda a Sagrada Escritura. Existem muitas
traduções. Preferimos aquela que traduz "benigna", que é também a tradução da Vulgata. S.
Tomaso diz (1 ad Cor. N. 773): "benignitas autem dicitur quasi bona igneitas". O fogo dá luz
e calor. A caridade não retêm as coisas para si, mas faz participar os outros nos próprios dons.
O termo exprime tanto a nobreza e excelência, como também a benevolência e a
liberalidade de agir em favor dos outros. A caridade multiplica-se na generosidade, tendo
como norma a amabilidade.
h` avga,ph ouv zhloi: A inveja divide. Esta inveja, oposta a grandeza do amor, não era
ausente nas primitivas comunidades cristãs (cf. Tg 3,14; 4,2). A comunidade de Corinto era
dividida em grupos e partidos; havia um zelo egoístico, todos queriam ser os primeiros, todos
queriam possuir qualquer carisma, querendo ultrapassar os outros. São Paulo diz: em nome do
amor todos estes sentimentos devem ser superados (cf. Fl 1,15-18).
ouv perpereu,etai: Também este termo aparece somente uma vez na Escritura. A caridade
não conhece qualquer ambição ou vanglória. O termo indica a falta de medida, que se
manifesta na arrogância e no orgulho.
ouv fusiou/tai: A caridade não é vaidosa. Paulo se refere às pessoas que se julgam
superiores aos outros por causa da posse da vários carismas ou privilégios o favores
religiosos. Mas isto é somente encher-se com ar, é uma plenitude vazia. A caridade não
ofende ninguém, coloca-se no seu próprio lugar e rejeita qualquer falsidade em frente de
outros.
ouvk avschmonei/: A caridade não falta contra o respeito, mas se distingue pela sua delicadeza
e sensibilidade. Ela tem um sentido pela honra, e por isso evita os escândalos das causas
perante os tribunais pagãos (6,1ss.), dos incestuosos (5,1ss.) e dos que perturbam a liturgia
(11,21s.).
ouv zhtei/ ta. e`auth/j : A caridade é desinteressada, não procura a própria vantagem, é
portanto um amor puro, sem restrições e interesses. Para a caridade é mais importante amar do
que ser amado, ela é contrária ao egoísmo e renuncia até aos próprios direitos. A caridade
então não insiste e prefere sofrer injustiça ao reivindicar seus direitos num tribunal (6,7).
Também São Paulo não usou seu direito de viver do Evangelho (cf. 9,15; 2Cor 11,9; 1Ts 2,9;
2Tes 3,8; cf. Mt 5,38-42). A caridade não procura seu bem pessoal, mas quer agradar a todos
em tudo (cf. 10,33). Mesmo CRISTO não buscou a Sua própria complacência (cf. Rm 15,3).
ouv paroxu,netai: A caridade não se irrita, não sente mágoa, rancor, não perde o controle de
si e o equilíbrio interior. Mesmo que se deve odiar o mal em si, a caridade não se deixa levar
pelo impulso da agressividade, mas guarda o respeito e o amor para com a pessoa do outro.
Portanto a caridade é fundamentalmente pacífica.
ouv logi,zetai to. kako,n : A caridade não considera o mal, não reflete, dá importância ao
mal, não julga o outro, e não se deixa desviar pelo mal recebido. Ela esquece, desmente o mal
recebido, como DEUS não toma mais em conta os pecados dos homens convertidos (cf. Is
38,17), e como JESUS perdoa aos seus carrascos (cf. Lc 23,34).
50

ouv cai,rei evpi. th/| avdiki,a|( sugcai,rei de. th/| avlhqei,a| : A caridade não se alegra sobre a
injustiça, mas sim sobre a verdade. Esquecendo-se do próprio mal recebido, a caridade é
zelosa em proteger o próximo contra as injustiças e se compraz na verdade, isto é, no bem e
na virtude. É próprio da caridade de compartilhar as alegrias e as dores com a pessoa amada.
Por isso os Coríntios devem aprender a sofrer e alegrar-se com os irmãos.
pa,nta ste,gei: Agora seguem quatro notas positivas da caridade: ela cobre, esconde tudo
(de mal), com silêncio e discrição, como uma mãe tenta esconder e desculpar todos os delitos
dos filhos diante do pai. É claro que aqui não se trata do próprio mal.
pa,nta pisteu,ei: A caridade crê tudo. Ela está sempre disposta a ver o lado positivo das
coisas, a julgar tudo favoravelmente. A caridade manifesta a sua confiança no próximo e
permanece fiél.
pa,nta evlpi,zei: A caridade nunca perde a calma, não tem medo do futuro, é sempre
optimista e generosa e está convencida do triunfo do bem.
pa,nta u`pome,nei: Mesmo quando parece tudo desmoronar-se, a caridade continua firme e
resiste. É mesmo esta paciência incansável que enfrenta melhor as decisões mais difíceis.

Terceira estrofe: vv. 8-13.


A caridade é forte e suporta tudo. Isto é uma doutrina muito antiga. Sendo a fortaleza e a
dinâmica fruto da caridade, São Paulo mostrará na última estrofe (vv. 8-13), que esta caridade
supera todos os outros carismas também segundo o ponto de vista da duração. A caridade, de
fato, não passará.
~H avga,ph ouvde,pote pi,ptei\ ei;te de. profhtei/ai( katarghqh,sontai\ ei;te glw/ssai(
pau,sontai\ ei;te gnw/sij( katarghqh,setaiÅ evk me,rouj ga.r ginw,skomen kai. evk me,rouj
profhteu,omen\ o[tan de. e;lqh| to. te,leion( to. evk me,rouj katarghqh,setaiÅ o[te h;mhn nh,pioj(
evla,loun w`j nh,pioj( evfro,noun w`j nh,pioj( evlogizo,mhn w`j nh,pioj\ o[te ge,gona avnh,r(
kath,rghka ta. tou/ nhpi,ouÅ ble,pomen ga.r a;rti diV evso,ptrou evn aivni,gmati( to,te de. pro,swpon
pro.j pro,swpon\ a;rti ginw,skw evk me,rouj( to,te de. evpignw,somai kaqw.j kai. evpegnw,sqhnÅ
Na terceira estrofe São Paulo nos apresenta a vida humana como uma realidade que se
concretiza no conhecimento. Como filhos da luz, os cristãos caminham para a revelação de
DEUS e de CRISTO (cf. 1Ts 5,5; Ef 5,8). Na situação presente, o nosso conhecimento é
pequeno, imperfeito, infantil no que se refere a DEUS. Os carismas nos são concedidos para
ajudar nesta dificuldade, para conhecermos melhor a DEUS. No entanto, no fim, quando o
cristão alcançou a idade adulta, estes carismas serão superadas. Então o conhecimento se
torna luminosa, veremos DEUS face a face.
Esta barreira da última etapa será atravessada somente pela caridade, cujo fruto é
precisamente o conhecimento de DEUS. Paulo explica esta diferença do conhecimento
presente em comparação com o definitivo com a imagem do espelho. Em Corinto havia uma
produção de espelhos. Tratava-se de espelhos metálicos, os espelhos de cristal apareceram
somente no fim do primeiro século.
Parece que Paulo pensava no espelho como qualquer coisa que serve de medianeiro entre a
realidade como tal e o olho que vê esta realidade, i.é como uma espécie de conhecimento
indireto. O espelho oferece somente uma imagem da realidade (cf. 2Cor 5,7; 1Jo 3,2). Neste
modo podemos dizer que o Espírito apresenta-se como através de um espelho; sendo o mundo
o espelho de DEUS, através do mundo – em função de espelho – podemos ter um certo
conhecimento da divindade. Este ensinamento corresponde ao que diz São Paulo em Rm 1,20.
O mesmo encontramos em todo o AT: não é possível, ver DEUS diretamente (Ex 23,20).
51

Este modo indireto de conhecimento é ainda explicada com uma outra nota negativa:
obscuramente, evn aivni,gmati em enigma; trata-se de um conhecimento não claro, confuso.
Na última etapa, definitiva, o conhecimento será face a face. V. 12 distingue entre visão e
visão: a;rti - to,te . Aqui em baixo vemos "como num espelho, de maneira confusa", no céu,
ao invés, veremos "face a face" (1Jo 3,2: "O veremos como ELE é").
São Paulo não indica o objeto desta visão; ele fala somente do modo desta visão ou
contemplação. É não mais um modo sensível, mas sim espiritual. Isto indica o verbo, que São
Paulo usa: evpignw,somai, que é mais apto para indicar o conhecimento espiritual, enquanto
ble,pomen indica mais o conhecimento sensível.
nuni. de. me,nei pi,stij( evlpi,j( avga,ph( ta. tri,a tau/ta\ mei,zwn de. tou,twn h` avga,ph: Aparece
aqui a tríade fé – esperança – caridade, mas o verbo me,nei, que se refere aos três sujeitos, está
em forma singular. Comparando os três conceitos entre si encontramos o acento claro na
caridade: cf. Gl 5,6; Rm 5,5. Fé e esperança pertencem para Paulo ao mundo presente (cf.
2Cor 5,7; Rm 8,25). Em Rm 8,28.35ss Paulo afirma, que o amor vitorioso de DEUS nos salva
de todas as calamidades e o amor para com DEUS resiste a todas as provações.
~H avga,ph ouvde,pote pi,ptei é dito em vista da parte final do hino. É verdade que durante
este tempo presente subsistem juntos estas três virtudes; mas esta tríade implica em si uma
certa imperfeição: a fé é uma visão em enigma (cf. 2Cor 5,7); a esperança ainda não possui o
que espera (cf. Rm 8,25); por isso terão fim. Em contraposição àqueles dois estados subsistirá
somente o amor, o mais alto dos três, a virtude definitiva e perfeita, a única capaz de ver
DEUS: a caridade. Em São João encontramos o motivo para isto: DEUS é amor (1Jo 4,16).
Daí nasce então o imperativo de 14,1: Diw,kete th.n avga,phn)
Os carismas são objeto de um desejo legítimo, se são para a utilidade e edificação do
próximo. A caridade, porém, deve concentrar todas as forças do cristão, porque é o único
necessário, o indispensável. Mas a caridade é algo que se deve realizar, praticar, não é
somente objeto sobre o qual se fala.
Neste modo Paulo realiza a sua intenção de demonstrar a excelência do amor sobre todos
os carismas e virtudes (12,31) segundo um motivo tríplice:
1) A caridade é indispensável para o cristão (1ª estrofe);
2) a caridade é fonte de uma atividade multiforme (2ª estrofe);
3) a caridade nunca haverá fim, porque é a maior (3ª estrofe).
52

A Segunda Carta aos Coríntios


1. Circunstâncias da composição:

Alguns pontos seguros


Os fatos seguros que imediatamente precederam a nossa carta, são os seguintes: Pelo fim
de sua permanência em Éfeso, Paulo tinha enviado a Corinto o discípulo Tito por motivos
referentes à vida interna daquela comunidade. Terminada sua missão, Tito deveria ter-se
dirigido a Tróade para encontrar o Apóstolo que, nesse meio tempo, teria deixado Éfeso. Mas
a revolta dos artífices de prata obrigou Paulo a antecipar sua partida, e por isso, chegando em
Tróade, não encontrou aí o discípulo amado. Não encontrando descanso para o espírito (2Cor
2,13), apressou-se a atingir a Macedônia, onde finalmente pôde tornar a abraçar Tito, que lhe
deu notícias bastante confortadoras da comunidade de Corinto (7,5ss). Para dispor os espíritos
à sua chegada iminente, para dissipar dúvidas e equívocos, que haviam perturbado, de
maneira dramática, as relações cordiais entre o Apóstolo e a comunidade de Corinto, escreveu
ele então esta carta, que é toda lampejos, polémica vivíssima, ironia aguçada, defesa
compacta. Estamos, portanto, na Macedônia (2,13; 8,1ss; 9,2ss), provavelmente em Filipos1,
por volta de 56 (ou outono de 57 ou no início de 58).

Indícios
Os Atos são completamente mudos quanto aos fatos que se passaram entre a primeira e a
segunda carta, que deveriam explicar por que esta tem um tom tão diferente da primeira e
respira um clima de tensão bélica, embora tendendo a aplacar-se. Somente algumas escassas
notícias da própria carta nos informam o que poderia ter sucedido de mais grave entre Paulo e
a comunidade de Corinto.
Antes de mais nada, ficamos sabendo que a ida a Corinto, para a qual se está Paulo
preparando, não será a segunda, como poderia parecer pelos Atos, mas a terceira. Atestam-no
os seguintes textos: 2,1.3.4.9; 7,8; 12,14.21; 13,1-2. (2,4).
Em último lugar, deve-se notar uma dupla menção (2,5-8; 7,12) a uma ofensa, direta ou
indiretamente recebida por Paulo da parte de um ofensor (7,12) de Corinto, que não fica bem
determinado.
Tudo isto demostra que o espaço de tempo entre a primeira e a segunda carta, breve ou
longo, foi preenchido por fatos bastante importantes e dolorosos, cuja substância e
concatenação lógico-cronológica nos escapam. Entre estes, contudo, deveriam colocar se
- uma vistia de Paulo a Corinto,
- a carta com as muitas lágrimas, e
- a misteriosa ofensa.
Poderiam reconstituir-se os fatos da maneira seguinte:
A primeira carta aos Coríntios – a primeira canônica – e a visita contemporânea de
Timóteo não obtiveram o efeito desejado. A situação da comunidade, ao contrário, piorou
com a chegada de alguns inimigos declarados de Paulo.
Informado a respeito, o Apóstolo decidiu ir a Corinto para uma rapidíssima visita,
pensando que teria podido, pessoalmente, acertar as coisas. Ao partir prometeu também que

1
É insinuado por alguns códices que trazem a subscriptio: «evgra,fh avpo. Filippw/n».
53

haveria de regressar o mais breve possível. Durante sue breve permanência, porém, foi
publicamente injuriado por algum irresponsável malfeitor.
De regresso a Éfeso, com o coração partido de dor, Paulo escreveu a epístola das muitas
lágrimas, confiando-lhe a entrega a Tito. Nesta, para experimentar a obediência dos coríntios,
reclamava a punição do ofensor: cf. 2Cor 7,8-13. Por prudência, a prometida visita foi adiada,
pois Paulo tinha esperança que a carta teria igualmente produzido efeitos benéficos.
Nesse meio tempo estorou, imprevistamente, a revolta dos artífices de prata (At 19,23-
20,11), que obrigou Paulo a refugiar-se em Tróade, onde esperava encontrar a Tito, já de
regresso de sua missão em Corinto. Não no tendo encontrado, preso de fortíssima angústia,
partiu para a Macedônia onde, finalmente, pôde tornar a abraçar o discípulo querido. Este o
colocou a par da situação interna da comunidde de Corinto: pudera constatar, com grande
consolação, a ânsia, o pranto, o zelo por Paulo que se haviam novamente acendido entre os
fiéis (cf. 2Cor 7,7).
Em substância, as coisas pareciam encaminhar-se agora para a melhor solução: a maior
parte dos coríntios se entristecera vivamente pelo que havia sucedido e tinha separado as
responsabilidades próprias tanto do ofensor como dos agitadores judaizantes.
Para reconciliar-se definitivamente com os seus amados filhos e para preveni-los das
ciladas dos caluniadores pseudoapóstolos, Paulo escreveu esta carta, rica em labaredas de
caridade (1,12; 7,16) mas também em ameaças e sangrentas chicotadas (cc. 10-13). Afinal de
contas, podemos deveras ser agradecidos aos volúveis coríntios, aos invejosos e vulgares
detratores do Apóstolo, que o provocaram a abrir-nos tão intimamente o próprio coração: (cf.
6,11).
Tudo o que dissemos só é válido se admitirmos, como faz a maior parte dos estudiosos, a
unidade literária de 2 Coríntios. Negando este ponto, é claro, que a reconstrução da crise
dessa comunidade e dos fatos a ela ligados deveria assumir um contorno mais ou menos
diverso.

2. Importância da epístola:

Para a história e a biografia paulinas


A segunda carta aos Coríntios nos fornece uma grande abundância de notícias a respeito de
Paulo: tribulações, ansiedades, viagens que tencionava fazer, peripécias, visões, enfermidades
etc.: 1,4-8; 1,15; 2,13; 4,9; 6,4-10; 11,23-33; 12,1-10; 13,1-10 etc., da comunidade de Corinto
(crise daquela Igreja, competamente calada pelos Atos, agitações dos judaizantes, coleta pelos
cristãos de Jerusalém, crata das muitas lágrimas etc.). A carta é um documento excepcional
para a história do desenvolvimento do cristianismo. Enquanto o livro dos atos oferece quadros
gerais da vida das primeiras comunidades cristãs, 2 Coríntios mergulha o leitor hodierno no
palco das situações concretas: a necessidade de aceitar as tradições das diversas Igrejas e a
submissão à autoridade dos Apóstolos, a árdua missão de manter os cristãos dóceis aos planos
de DEUS e ao espírito de CRISTO, as muitas e complexas dificuldades encontradas no
ministério apostólico, a coragem e a energia de que deve dar provas o Apóstolo.

Retrato de Paulo
Mas a carta é importante sobretudo como fotografia da alma de Paulo: seu coração, tão
grande quanto o mar, nela bate com isopitável intensidade de afeto. Sua personalidade aí
aparece no esplendor de seus aspectos, aparentemente contraditórios, de místico e de homem
de ação, de teólogo e missionário, fundador e organizador, lavrador e pastor, diretor de almas,
polemista, orador: dotes que na maior parte dos casos se excluem, nele se encontram unidos.
54

A 2 Coríntios é o reflexo de uma alma em ebulição: a mais pessoal, mais reveladora e mais
patética de todas as epístolas de São Paulo.

3.Análise da epístola:
A carta apresenta-se como articulada em três partes. A primeira parte é acentuadamente
apologética: nela o Apóstolo procura desfazer os mal-entendidos que haviam surgido entre ele
e os cristãos de Corinto por causa principalmente dos judaizantes (1,12-7,16). A segunda
parte é parenética e dedicada à preparação da coleta em favor dos cristãos hierosolimitanos
(8,1-9,15). A terceira parte, finalmente, é vivamente polêmica (10,1-13,10) e dirigida contra
seus adversários, dos quais nos dá, em breves e eficacíssimos traos, a torpe figura moral.
Também não faltam, como de costume, um prólogo (1,1-11) e um epílogo (13,11s).
Prólogo: 1,1-11
Primeira Parte: Apologética: 1,12-7,16
Contra a acusação de inconstância e de insinceridade: 1,12-2,17
Ministros do Novo Testamento: 3,1-4,6
O paradoxo da vida apostólica: 4,7-5,13
O ministério da reconciliação: 5,14-7,16
Segunda Parte: Exortativa: 8,1-9,15
Emulação: 8,1-24
Amor próprio e interesse: 9,1-15
Terceira Parte: 10,1-13,10
Contra os adversários: 10,1-18
Censura aos coríntios: 11,1-12,10
Anúncio de sua próxima ida: 12,11-13,10
Epílogo: 13,11ss

4. Doutrina

Doutrina trinitária
Entre estes podemos lembrar os ensinamentos acerca do mistério da SS. Trindade. Não
temos apenas alusões (1,21s; 3,3), mas justamente uma das fórmulas mais precisas, da qual se
depreendem também as relações de cada pessoa divina com os remidos: a graça do Senhor
JESUS CRISTO e a caridade de DEUS e a comunhão do Espírito Santo (estejam) com todos
vós (13,13). De maneira particular se fala no Espírito Santo e na sua missão de santificação,
inabitação e iluminação íntima das almas (1,22; 5,5; 13,13; todo o c. 3): é por ele que os
cristãos são transformados de glória em glória (3,18).

CRISTOlogia e soteriologia
Desnecessário, aliás, afirmar que CRISTO, também aqui, se acha no centro do pensamento
paulino. Embora o Apóstolo não ignore o CRISTO histórico, isto é, o Verbo encarnado na sua
vida humilde e na morte (4,10s; 5,14-21; 8,9; 10,1), é porém sobretudo o CRISTO que se
tornou em Espírito vivificante que ele considera e ao qual se sente ligado. Não quer, por isso,
conhecê-lo mais segundo a carne (5,16), mas segundo o Espírito. CRISTO é essencialmente
Redentor e Reconciliador por missão divina (5,18). Os cristãos formam agora com ele uma
unidade mística, de modo que se pode afirmar que deveras com ele todos estão mortos e todos
por ele devem igualmente viver (5,15).
55

Antigo e Novo Testamento


Em torno da figura de CRISTO se delineiam a harmonia e, ao mesmo tempo, o contraste
entre os dois Testamentos. CRISTO é o sim de todas as promessas do Antigo Testamento
(1,20), no sentido que ele é que as cumpre todas. Portanto, o Antigo Testamento recebe toda a
sua significação no Novo, que não é mais o Testamento da letra, mas do Espírito (3,6). A
glória do Antigo Testamento nem mesmo pode chamar de glória em comparação com a do
Novo: Pois, se o transitório foi de certa forma glorioso, muito mais glorioso ainda há de ser o
permanente (3,11). É necessário sempre ver esta funcionalidade preparatória e dispositiva do
Antigo Testamento em relação ao Novo: de outra forma, faremos como os hebreus que têm
como que um véu sobre os olhos quando lêem o mesmo (3,14s).

Escatologia
Importante também é a doutrina escatológica desenvolvida aqui por São Paulo.
Diversamente das outras cartas (1Cor 15; as duas epístolas aos tessalonicenses), aqui ele
considera de preferência a sorte de cada alma individual diante do tribunal de CRISTO,
depois de sua morte, antes ainda da última Parusia do Senhor (5,1-10).

Para a Teologia Pastoral


No campo da teologia pastoral e ascética podemos definir a presente epístola como um
verdadeiro tratado sobre o ministério apostólico e sobre a prática da mais absoluta confiança
em DEUS malgrado e própria fraqueza. A doutrina do paradoxo da Cruz, mistério de fraqueza
e força arrasadora, impregna toda a carta do princípio ao fim (1,3-11; 2,14ss; 4,7-15; 6,3-10;
11,30-33; 12,7-12; 13,3s). Justamente por isto aí encontramos maiores referências, que em
outras, à oração, tanto de ação de graças como de intercessão, como indispensável
instrumento de força e de consolidação no amor (1,3-11; 2,14; 8,16; 9,15; 12,7ss; 13,7ss etc.).
Dificilmente se poderia exprimir de forma mais incisiva e sintética a incapacidade da
natureza humana para realizar a salvação própria ou dos outros e a onipotência da Graça do
que nessas frases flamejantes: Pois a força se aperfeiçoa na fraqueza ... Quando estou fraco,
então é que sou forte (12,9-10). Desses pressupostos ascético-místicos é que nasce a clássica e
insuperável experiência contemplativa do Apóstolo arrebatado ao terceiro céu (12,1-10).
Os cc. 8 e 9, ademais, contêm um tratado completo sobre a esmola: descrevem-se as suas
qualidades, objetivos, o espírito que deve animá-la, e até a correta administração. Tudo deve
ser feito conforme o exemplo de CRISTO, o qual por nós se fez pobre, embora fosse rico
(8,9).

5. Exegese de 2Cor 5,18-21: O ministério da reconciliação


Continuando a própria apologia São Paulo expõe o princípio animador de sua intensa
atividade apostólica: ele age sob o estímulo da caridade de CRISTO, isto é, do amor que
levou o Filho de DEUS a sacrificar-se por nós. Ninguém, portanto, pode agora viver mais
egoisticamente para si só, mas todos devem viver para CRISTO que por todos morreu e
ressuscitou, respondendo desta forma com amor ao amor (5,14s). Sobretudo os Apóstolos
devem viver desta caridade e não conhecer mais nada e a ninguém segundo a carne (5,16),
porque foram misteriosamente associados por DEUS à própria obra da Redenção e da
reconciliação do mundo, para continuarem realizando a nova criatura em CRISTO (5,17).
Em suas cartas o Apóstolo recorda muitas vezes esta iniciativa divina a seu respeito (1Ts
2,2; Cl 1,25; Ef 3,2.7; Cl 4,3). Também os seus colaboradores (Rm 16,21) são na realidade
colaboradores (1Tm 3,2; 1Cor 3,9) ou ministros (2Cor 6,4) de DEUS. A segunda carta aos
Coríntios, que trata amplamente do tema do apostolado, é fértil em observações deste gênero:
56

não apenas os Apóstolos pregam em nome de DEUS (2,17), mas é de DEUS que deriva toda a
sua capacidade (3,5), pois é o próprio poder divino que age neles (4,7; cf. 6,7); é DEUS que
os conforta (1,4; 7,6); liberta-os em CRISTO (1,21), unge-os e assinala-os com o seu sigilo
(1,22; cf. 2,14s; 8,16). Mais ainda. é DEUS que, depois de haver confiado aos Apóstolos o
ministério da reconciliação (5,19), coloca em seus lábios a palavra da reconciliação (5,19):
desta sorte eles se tornam os embaixadores de DEUS, que por meio deles exorta os homens a
se deixarem reconciliar (5,20), isto é, a tomarem parte na salvação que ele lhes proporcionou
em CRISTO (cf. 1Ts 5,9; 2Ts 2,14).
5,18-21: «Mas tudo isto vem de DEUS que por CRISTO nos reconciliou consigo e nos deu
o ministério da reconciliação. De fato, é DEUS que em CRISTO reconciliava consigo o
mundo, não lhes imputando os seus delitos e colocando em nós a palavra da reconciliação.
Por CRISTO, portanto, desempenhamos a função de embaixadores, como se DEUS exortasse
por meio de nós. Por CRISTO vos suplicamos: reconciliai-vos com DEUS. Aquele que não
conheceu pecado, [DEUS] o fez pecado por nós, a fim de que nele nos tornássemos justiça de
DEUS».

Reconciliação com DEUS: v. 18s


Na origem da obra da salvação encontra-se DEUS Pai, que a projetou e depois executou
por meio de CRISTO, considerado aqui (v. 18) como instrumento nas mãos do Pai. É
apresentada como uma reconciliação («katallagh,», literalmente: permuta, mudança em
outro), isto é, mudança de relações hostis em relações amistosas entre os homens e DEUS (cf.
Rm 3,24; 1Cor 8,6; 1Jo 2,2; 4,10). O homem, do qual havia partido a inimizade, não podia
por si só retornar ao amor do Pai, ou seja, à participação em sua própria vida; daí a
necessidade da obra de CRISTO reconciliador: esta, devendo continuamente ser levada ao
conhecimento e aplicada a cada homem, exige colaboradores - os Apóstolos. Tudo vem de
DEUS2 por meio de CRISTO, com a cooperação dos Apóstolos no ministério da reconciliação
(th.n diakoni,an th/j katallagh/j).
O v. 19, esclarecendo o precedente, determina melhor a natureza espiritual desta
reconciliação, que consiste em não levar em conta (não imputar), como a justiça teria
desejado, os pecados dos homens, porque CRISTO os expiou, destruindo-os em si mesmo.
Tal reconciliação, porém, só pode tornar-se operante quando aceita mediante a fé. Por isso, a
obra do Pai teria ficado incompleta, se não tivesse pensado também nos instrumentos
humanos aptos a difundirem o conhecimento e a aplicação - mediante a pregação e a
administração dos Sacramentos - da reconciliação operada por CRISTO. Portanto, DEUS
incluiu no seu plano também os Apóstolos: de fato 3, é DEUS que em CRISTO4 reconciliava
consigo o mundo... colocando em nós a palavra da reconciliação (to.n lo,gon th/j katallagh/j).

2
Mas tudo isto ... (ta. de. pa,nta) refere-se ao que precede (v. 17).
3
A frase elítica «w`j o[ti qeo.j»..., que os Padres gregos ordinariamente exprimem por «kai. ga,r» quer
explicar o que se afirmou anteriormente e deveria ser completada assim. Assim como consta que Deus... ou
então: Assim como é verdade que Deus...
4
Alguns exegetas antigos (Orígenes, Ambrosiastro, S. Tomás) e também modernos (Bachmann, Menzies,
Allo etc.) traduzem: Deus estava em Cristo reconciliando... isto é, em Cristo habitava a divindade. Pelo contexto,
porém, parece que «qeo,j» deve ser ligado a «h=n katalla,sswn» (construção perifrástica: reconciliava); em
Cristo, então, significa por meio de CRISTO (cf. v. 18: «dia. Cristou/») sem excluir contudo a idéia de uma
união nossa com ele, necessária para obter os frutos da reconciliação. Assim S. João Crisóstomo, Teodoreto,
Éstio, Plummer, Sickenberger, Belser, Jacono, Spicq etc.
57

Os Apóstolos embaixadores de Cristo: v. 20


Daqui vem a dignidade e a grandeza dos Apóstolos, deduzida (v. 20) à guisa de conclusão:
Por CRISTO, portanto, desempenhamos a função de embaixadores (u`pe.r Cristou/ ou=n
presbeu,omen)... Os Apóstolos são os legados especiais de DEUS5, mandados a continuarem a
obra de CRISTO, a trabalharem em favor dele6 a difundirem o conhecimento da sua obra de
reconciliação. Neles, DEUS fala e atua. Também nesta fase de aplicação da reconciliação, que
em CRISTO já ocorreu objetivamente, a parte principal pertence sempre a DEUS. Aproveita
logo Paulo a ocasião para dirigir uma insistente (vos suplicamos...) exortação aos coríntios:
reconciliai-vos com DEUS7. Realizando, com efeito, o maior número de reconciliações dos
homens com DEUS, ele há de demonstrar que é realmente ministro da reconciliação.

CRISTO «Pecado»: v. 21
No v. 21, que não tem nenhuma partícula a ligá-lo ao que precede, os motivos parenéticos
e doutrinais, que levam a inserir-se sempre mais nesta obra de reconciliação, são sintetizados
no amor de CRISTO, que aceitou tornar-se, ele mesmo, pecado, a fim de que todos nós nos
tornássemos, nele, justiça de DEUS.
A dificuldade principal reside no sentido exato a atribuir à expressão: o fez pecado
(a`marti,an evpoi,hsen).
1. Segundo alguns, pecado (a`marti,a) aqui significaria sacrifício pelo pecado. Solução
elegantíssima, se não acontecesse que nos LXX «a`marti,a» não tem quase nunca - exceto Lv
6,18 e, talvez, 4,21; Nm 6,14; Os 4,8 - este sentido. Além disso, «a`marti,a» teria, no mesmo v.
(não conheceu pecado), dois sentidos diferentes8.
2. Segundo outros (R. Cornely, A. Médebielle etc.), mas sobretudo os protestantes (Lutero,
Calvino etc.), «a`marti,a» seria, concretamente, sinônimo de «a`martwlo,j»: fê-lo, tratou-o como
o maior dos pecadores. Essa interpretação baseia-se em três afirmações:

5
«presbeu,w» e «presbeuth,j» referiam-se, no Oriente grego, aos legados imperiais (Deissmann, Licht vom
Osten, 284). O verbo também em Ef 6,20. Em Lc 14,32 temos «presbei,a»: legação para tratar da paz: significado
semelhante ao de reconciliação. Cf. Rm 5,1-10.
6
Não tanto, por conseguinte, no sentido de por sua ordem, em seu nome, em seu lugar, como se «u`pe,r» fosse
sinônimo de «avnti,», como em outros casos, mas no seu significado ordinário de em favor, em prol de etc.
7
O imperativo passivo «katalla,ghte» sublinha que a iniciativa não pertence ao homem mas a Deus: o
homem deve apenas aceitar. Deveríamos, por isso, traduzir assim: deixai-vos reconciliar com Deus. Spicq, em
StB XI, 342, manda observar que, sendo «katalla,ssw» um termo técnico para designar a reconciliação entre
esposos (cf. 1Cor 7,11), poderíamos aqui ver uma alusão ao conceito, freqüente no AT, que Deus é esposo
sempre fiel a Israel e este último a esposa multas vezes infiel. A comparação é sem dúvida sugestiva. Deus é
autor da reconciliação (ver ainda: Rm 5,10s; Cl 1,20-22; Ef 2,16); mas a mudança só se efetua no homem. Deus
modifica, mediante a graça merecida por Cristo, as disposições morais e a estrutura ontológica espiritual do
remido, de modo que este se torne nova criatura. A reconciliação, por conseguinte, é a mesma coisa que a
justificação (contra Büchsel, que põe uma distinção entre elas). Deve o homem, contudo, colaborar livremente na
reconciliação: deixai-vos reconciliar... Cf. J. Dupont, a. c., que tende a distinguir entre justificação e
reconciliação, apresentando a primeira como fundamento da segunda; Büchsel, a. c.
8
Neste sentido se orienta a diligente pesquisa de L. Sabourin, Rédemption sacrificielle. Une enquêto
exégétique, na coleção Studia. Recherches de Philosophie et de Théologia publiées, par les Facultés S.J. de
Montréal, II, Bruges 1961. Examinando 2Cor 5,21 à luz de Gl 3,13 e Rm 6,3-11 e 8,3, ele demonstra que a
tradição exegética antiga, retomada pelos Escolásticos, entendeu este trecho no sentido tão admiravelmente
fixado por S. Agostinho: «Peccatum ergo appellata est caro habens similitudinem carnis peceati, ut esset
sacrificium pro peccato». Excluindo porém esta diversidade de interpretações, o Autor entende a Redenção no
quadro dos pressupostos teológicos (lei de solidariedade, obra de misericórdia e de amor etc.), exigidos pelos
patrocinadores da 3° opinião.
58

a) CRISTO foi pecador universal; b) como tal sofreu o abandono do Pai e, em certo
sentido, a pena da condenação; c) foi objeto da ira divina.
Notemos, em contrário, que a Escritura nos apresenta ordinariamente a Redenção como
obra de suma caridade por parte de DEUS e de CRISTO; por conseguinte, não dá apoio a
nenhuma dessas três afirmações acima. A passagem de Gl 3,13 é de per si muito obscura para
servir para interpretar a nossa. Também o paralelo de Jo 19,31-37 não sugere tal interpretação.
3. Pensamos que «a`marti,a» tem o seu normal significado abstrato assim como o seu
oposto «dikaiosu,nh», e que os dois termos se esclarecem mutuamente. CRISTO não conheceu
pecado, isto é, não o fez, embora o conhecesse bastante bem através de conhecimento teórico
e apreciativo. DEUS fê-lo pecado no mesmo sentido em que de nós se pode afirmar que nos
tornamos justiça de DEUS: enquanto recebemos em nós mesmos os efeitos da justiça divina
que nos assimila a si, sem no entanto transformar-nos (o que é impossível) na própria justiça
de DEUS. CRISTO se torna pecado, no sentido de submeter-se, nos limites do possível, aos
efeitos maléficos da culpa (dor, morte etc.), sem no entanto tornar-se deveras pecado ou
pecador: o que seria absurdo. Com efeito, CRISTO não poderia remir-nos, mesmo
prescindindo de tudo o mais, a não ser como vítima inocentíssima. E tudo isto ocorreu em
virtude daquela admirável lei de solidariedade, pela qual «assim como CRISTO, unindo-se à
natureza humana, de certa maneira, se identificou ao pecado, que lhe era estranho, da mesma
maneira, por uma extraordinária inversão das partes, o homem, que não era senão pecado, se
identifica, unindo-se a CRISTO, à justiça divina: o que confirma a perfeita inocência de
CRISTO no próprio castigo que ele sofreu».
É o mesmo pensamento de Rm 8,3: DEUS, enviando seu Filho na semelhança da carne de
pecado... condenou o pecado em (sua) carne... Nessa carne de pecado, embora fosse
inocentíssimo, CRISTO sofreu por nós todos (u`pe.r h`mw/n), porque com a Encarnação tinha
assumido a humanidade pecadora (1 Pd 2,14; Is 53,6.12).
A redenção constitui essencialmente um dom de DEUS Pai (2Cor 9,15). Ele é que envia o
Filho ao nosso mundo de pecadores para salvar-nos (Gl 4,4; Rm 8,3), que o expõe como
sacrifício propiciatório, aspergido com seu sangue (Rm 3,25), para exercer a própria justiça
salvífica e justificar os crentes (Rm 3,26); e ele é que ressuscita o Filho da morte (1Ts 1,10;
Gl 1,1; Fl 2,9; 2Cor 4,14; Rm 10,9) para a nossa justificação (Rm 4,25). Do Pai procede a
iniciativa da reconciliação: do Pai que, por primeiro, nos amou quando éramos ainda
pecadores (Rm 5,8; cf. 8,35.39).
Esta nos parece a única interpretação conforme ao texto e a todo o pensamento paulino e
em plena harmonia com toda a teologia católica9.
A breve perícope 5,18-21 é rica em elementos teológicos que podemos recapitular da
seguinte maneira:

9
Cf. a propósito S. Lyonnet, Exegesis Epistulas secundae ad Cor., 256-266; P. de Haes, em Coll Mechl 1956,
344-354. Esta é a opinião que também S. Tomás parece preferir, tanto nas obras estritamente teológicas como
nas exegéticas. Ele considera constantemente a Redenção como obra de amor e de misericórdia, mais ao que
como de punição pelo pecado. Veja-se, por ex., S. Th., III, q. 47, a. 3; e mais claro ainda nos comentários às
pessagens paulinas relativas à Redenção. Assim comentando Rom 8,3 (in similitudinem carnis peceati): «(Cristo)
não teve uma carne de pecado, isto é, uma carne concebida no pecado, pois sua carne foi concebida do Espírito
Santo que cancela o pecado... Mas teve a semelhança da carne do pecado, isto é, uma carne semelhante à carne
pecadora, no sentido de uma carne capaz de padecer. Antes do pecado, com efeito, a carne do homem não podia
sofrer: Cristo teve de tornar-se em tudo semelhante a seus irmãos, para tornar-se misericordioso. Hbr 2,17» (In
Rom., VIII, lect. I, n. 608, ed. Cai. No mesmo sentido: In Hebr., II, lect 4, n. 139; In Col., II, Lect. 3. n. 105. Para
uma atualização de toda a problemática, do ponto de vista teológico e precisamente nas pegadas do pensamento
do Aquinata, ver o excelente opúsculo de Philippe de la Trinité, La Rédemption par le Sang, Paris 1959 (col. Je
sais - Je crois, -Encyclopédie du Catholique au XX° siècle).
59

1. A Redenção é essencialmente reconciliação, ou seja, transformação íntima de relações,


pela qual nós não somos mais inimigos de DEUS, pois os pecados não nos são mais
imputados (5,18s).
2. A iniciativa da reconciliação parte de DEUS (5,18): por isso é essencialmente um ato de
graça. O homem, porém, deve livremente cooperar com ela, aceitando-a (5,20).
3. DEUS Pai serviu-se de CRISTO como instrumento para realizar a reconciliação («dia.
Cristou/», 5,18). E Cristo pôde executar isto enquanto assumiu a semelhança de nossa carne
de pecado, tornando-se desta forma solidário conosco, uma vez que nele, homem-DEUS, foi
assumida toda a humanidade. Inseridos em CRISTO, perfeito Mediador, também nós
participamos da santidade divina (5,21), recebendo o efeito de sua justiça salvífica.
4. A reconciliação, levada a termo por CRISTO, é hoje anunciada com a palavra e
administrada mediante os Sacramentos e os outros meios de santificação pelos Apóstolos do
Senhor. A estes, com efeito, ele concedeu o ministério da reconciliação e a palavra da
reconciliação (5,18s). Quando falam, portanto, é como se falasse o próprio Deus, pois eles são
os seus embaixadores (5,20).
60

A carta aos Gálatas


1. Importância da Epístola

Para a biografia de Paulo


A carta fornece informações muito preciosas sobre a pessoa de Paulo. Os primeiros
capítulos constituem uma resumida autobiografia: educação no judaísmo (1,13s), conversão
(1,15s), as relações com os outros Apóstolos (1,17-2,14), as primeiras experiências
apostólicas (1,17-24), as lutas travadas desde o início pelo triunfo da liberdade cristã (2,1-21;
cf. 1,7-10; 4,15ss; 6,12.17). Esta, além do mais, completa de maneira feliz os Atos, dos quais
determina melhor muitos pormenores colocados numa perspectiva diferente.

Para a história das origens cristãs


A carta nos esclarece também a respeito da história da Igreja primitiva. Não que Paulo
forneça aqui muita abundância de episódios (os dois mais importantes se encontram no cap. 2
e ocorrem em Jerusalém e em Antioquia da Síria); mas, ao nos informar sobre o conflito
provocado na Galácia por seus adversários, ele coloca em evidência o momento mais
importante dessa história, apenas mencionado implicitamente nos Atos. Em Gálatas vemos a
Igreja que vai conquistando a própria personalidade, desapegando-se progressivamente do
judaísmo, com o qual, de início, se confundia. Isto aconteceu, não sem dificuldades, choques
e hesitações internos, superados, no entanto, sob a direcção do Espírito.

Como quadro da complexa figura de Paulo


Mas Gálatas, além de um testemunho de primeira mão sobre os acontecimentos em que se
viu envolto o Apóstolo, mostra-se também palpitante de vida. Tal como em 2 Coríntios aí o
seu coração se mostra abertamente: surpresa, indignação, tristeza, angústia, censura e
severidade para com os adversários, indulgência e ternura pelas ovelhinhas tresmalhadas.

Para compreender melhor as origens da Reforma


Acrescentemos ainda que, justamente por causa de seu tema: a reivindicação da liberdade
cristã – e do tom polémico, teve Gálatas um papel de primeiro plano nas origens da Reforma
protestante. Lutero comentou apenas uma vez a epístola aos Romanos, quando ainda não
havia rompido com Roma, e não publicou nunca esse comentário. Comentou, contudo, duas
vezes a Gálatas: primeiro, no inverno de 1516/1517, isto é, depois de Romanos e três anos
antes da Bula de Excomunhão (1520); depois, em forma abreviada, no ano de 1523. Mas
sobretudo depois de ter há muito tempo consumado a ruptura, retomou ele a explicação desta
epístola, na universidade de Wittenberg, entre 1532 e 1535: comentário muito mais
desenvolvido, publicado em 1535 com um prefácio do Autor.
Compreende-se como muitas passagens da epístola – especialmente a narração do conflito
de Antioquia, quando Paulo enfrentou a Pedro – forneceram a Lutero o ensejo de expor as
próprias idéias sobre a liberdade cristã, sobre a justificação por meio da fé somente e
reivindicar para si mesmo uma missão que ele acreditava ter recebido diretamente de DEUS, e
mesmo defendê-la contra seus adversários, ainda que fossem eles o próprio Pedro em pessoa.
Confessou ele que este comentário lhe custara mais trabalho que outro qualquer, e que o tinha
em particular estima.
61

2. Autenticidade e integridade
Quanto à autenticidade, a carta aos Gálatas apresenta-se, no epistolário paulino, como uma
das cartas menos contestadas.

Crítica externa
As cartas de S. Inácio de Antioquia (a. 107) contêm ao menos uma citação implícita quase
segura: Gl 1,1 em Ad Philadel. I,110. Mais claramente a epístola de São Policarpo aos
Filipenses (a. 107/108), 3,3 e 5,1 cita Gl 4,2611 e 6,7. S. Justino (a. 150-160) cita diversas
vezes o AT, como em Gálatas, com as mesmas diferenças tanto do hebraico como dos LXX e
com idêntica aplicação a CRISTO.
A partir do II século multiplicam-se os testemunhos explícitos. Marcião, por volta de 140,
coloca a epístola à frente de seu Apostolicon. S. Ireneu (a. 175-195) cita Gl 4,8s atribuindo-a
formalmente a S. Paulo12; Gl 3,19 e 4,4 como pertencentes à carta aos Gálatas. Clemente de
Alexandria (por volta de 200) invoca Gl 4,19 e observa que essa passagem se encontra em “a
carta que Paulo escreveu aos Gálatas”. O cânon Muratori, finalmente, por volta do ano 200,
enumera-a entre as autênticas “epistulae Pauli”.

Crítica interna
Mas, a propósito da autenticidade paulina, decisivo é o testemunho da própria carta. E
mesmo que a figura de Paulo não seja completamente idêntica à que se depreende dos Atos, o
valor do testemunho ainda aumenta mais. Aquele algo de convencional que existe no Paulo
dos Atos aqui desaparece completamente, para dar lugar a uma figura toda vibrante de
humanidade apostolicamente sublimada13. Efetivamente, nenhuma outra carta possui maiores
títulos do que Gálatas para ser considerada paulina, uma vez que ela, provavelmente mais que
qualquer outra, traz a marca do gênio de Paulo.

Integridade
Menos ainda se discute a integridade da epístola. Diversamente do que ocorre com
Romanos, aqui o problema nem chega a ser posto: “O bloco da epístola desafia qualquer
fragmentação”.

3. Destinatários e Data
Paulo escreve a mais de uma comunidade cristã (1,1-2). Conheceu pessoalmente os
gálatas: sabe que, no passado, viveram no paganismo; e que, há pouco, abraçaram na fé o
evangelho de CRISTO por ele pregado; está a par da repentina marcha-a-ré que eles estão a
ponto de cometer, sob a pressão dos novos pregadores chegados de fora. Toda a história das
Igrejas da Galácia resume-se nessas três frases.
Antes do encontro com o apóstolo, os destinatários da carta viviam no mais completo
desconhecimento de DEUS, cultuando falsas divindades (4,8). Concretamente, a religião
deles consistia na adoração das forças elementares da natureza (4,3.9). À luz da fé cristã,
pode-se dizer que se tratava de uma submissão escrava e alienante a realidades mundanas
absolutizadas e divinizadas.

10
Lagrange indica muitas outras alusões possíveis ou prováveis: assim ad Romanos 2,1 parece reevocar Gl
1,10; ad Romanos 7,2 lembra Gl 5,24 e 6,14.
11
Note-se que apenas falou das cartas de Paulo.
12
Haer., 3,6,5.
13
L. CERFAUX, Introduction à la Bible, A Robert – A. Feuillet, II, 404.
62

Mas, com a chegada de Paulo, a vida dos gálatas trasformou-se radicalmente. Ele
conformara-se a seus usos e costumes, deixando de viver como judeu (4,12). Tinha trabalhado
duramente (4,11). Aliás, na atividade missionária desenvolvera-se marcada pelo sofrimento:
"Filhinhos meus, por quem de novo sinto dores de parto, até que Cristo seja formado em vós"
(4,19). De fato, estava doente quando chegou à Galácia (4,13). Nada sabemos de preciso, mas
devia tratar-se de uma enfermidade grave, pois reconhece que, apesar de tudo, foi acolhido
com grande generosidade (4,14).
À boa acolhida de sua pessoa somaram-se a adesão à mensagem evangélica (1,9). Os
gálatas ouviram com fé sua palavra proclamadora da verdade do evangelho (3,2; 4,6). E não
se tratava de uma adesão fácil, pois Paulo anunciara a cruz de JESUS (3,1). O batismo que
receberam selara o ingresso na Igreja, comunidade caracterizada pela profundíssima união
com CRISTO (3,27).
O apóstolo lembra-se muito bem da exultante e frutuosa experiência de salvação: "Foram
em vão aquelas experiências tão importantes?" A pergunta é claramente retórica. Eles
entraram em relação pessoal com DEUS, abandonando os ídolos; ou melhor: DEUS mesmo
tomou a iniciativa de vir ao encontro deles (4,9). Concretamente, foram beneficiários de uma
gratuita vocação divina: o Pai se revelou em suas vidas como o DEUS que chama (cf. 1,6;
5,8.14). A fé dos gálatas, portanto, foi uma resposta ao chamado de DEUS. Resultado:
tornaram-se filhos de DEUS (3,26).
O quadro do novo relacionamento estabelecido com CRISTO e com o Pai completa-se
com o dom do Espírito (3,2-4). Os sinais carismáticos de sua presença eram visíveis na vida
dos fiéis (3,5). O grito (em forma de oração) com o qual puderam dirigir-se a DEUS,
chamando-o Abba – Pai, é um outro efeito do Espírito presente e atuante em seus corações
(4,6). Por isso Paulo pode agraciá-los com o qualificativo de "espirituais" (6,1).
Em particular, o apóstolo sublinha como eles passaram por um radical processo de
libertação, e, na fé cristã, tomaram um caminho responsável de liberdade (5,1; cf. 5,13). De
fato, emanciparam-se da submissão a "deuses que na realidade não o são" (4,8), da escravidão
ao "domínio dos elementos do mundo" (4,3; cf. 4,9), do peso condicionante das forças do
egocentrismo (lit. da "carne") (5,24) e das amarras de observâncias erigidas em princípio de
salvação, ou seja, da lei (3,13). Por graça, tornaram-se pessoas capazes de amar, isto é, de se
porem uns a serviço dos outros (5,13).
Assim, tudo ia muito bem (5,7). É também provável que Paulo os tenha visto de novo
(4,13). Eis senão quando a situação muda repentinamente. O apóstolo fica literalmente
surpreso (1,6). Os fiéis da Galácia estão para se fazer circuncidar (5,2). Querem submeter-se
ás normas da lei mosaica (4,21). Estão a ponto de aceitar um calendário religioso (4,10). Para
eles, a fé não é mais suficiente. Acham necessário acrescentar a ela a observância de
prescrições e proibições da Torá do Antigo Testamento. De outro modo, pensam que se
afastam da salvação (5,4).
Paulo sabe captar com profundidade de visão as implicações desse tipo de atitude. Na
realidade, os gálatas estão a ponto de trair o evangelho por ele anunciado, estão a ponto de
abandonar a DEUS, romper com CRISTO e rejeitar a verdade da mensagem cristã (1,6; 5,4;
5,7). Ainda mais duramente, ele lança ao rosto de seus interlocutores que a insana decisão por
eles constitui, de fato, um retorno ao passado pagão, à tomada escravidão da divinização das
forças elementares da natureza (4,9). E mais: desse modo eles interrompem uma vida guiada
pelo Espírito e terminam por viver sob o signo da "carne", ou seja, no fechamento egoísta e
orgulhoso em si mesmos (3,3).
É simplesmente inacreditável: abandonam a liberdade para curvar a cabeça sob o jugo da
escravidão! (5,1). Nessa virada, sobrou também para Paulo: "Tornei-me, acaso, vosso
63

inimigo, porque vos disse a verdade?" (4,16). A emoção é tão intensa que se dirige a eles com
um termo fortemente ofensivo: "Ó insensatos gálatas!" (3,1). "Sois assim tão levianos?" (3,3)
E exclui peremptoriamente que aquilo que está acontecendo seja fruto de uma inspiração
divina: "Esta sugestão não vem daquele que vos chamou!" (5,8). Trata-se de uma influência
de magia sedutora: "... quem vos enfeitiçou?" (3,1). A resposta é pergunta – "Corríeis bem.
Quem, pois, vos cortou os passos para não obedecerdes à verdade?" (5,1) – está aqui: por trás
desse desvio pode-se detectar a acção subreptícia de pregadores cristãos que foram à Galácia
para perturbar e instigar (cf. 1,7; 5,10; 5,12).
Mas quem são realmente, os destinatários desta nossa carta? Paulo fala de Igrejas da
Galácia (1,2) e de "gálatas" (3,1.3). No século I d.Cr., o vocábulo Galácia indicava duas
realidades distintas: a região gálata e a província romana homônima. A primeira, situada no
centro-norte da Ásia Menor, tinha por centro as cidades da Ancira (atual Ankara), Pessinunte
e Tavio. A segunda, mais vasta, além da região gálata, compreendia a Pisídia, a Licaônia, uma
parte da Frígia, a Isáuria, a Paflagônia e o Ponto. Gálatas ou celtas eram chamados os
habitantes da região gálata. No século 3 a.C., de fato, tribos gálicas ou celtas – guiadas por
Breno – se fixaram na Ásia Menor. Em luta constante com o reino de Pérgamo, conquistaram
a independência no século seguinte. Seu último rei, Amintas, que morreu em 25 a.C., deixou
em herança aos romanos o seu reino, que assim passou a fazer parte da província romana da
Galácia, cuja capital era Ancira.
Eis, pois, a pergunta: Paulo escreve às Igrejas da região gálata ou às comunidades cristãs
da província romana da Galácia? Os estudiosos se dividiram. A discussão entre os fautores da
teoria norte-galática e os da tese sul-galática ainda está aberta. Deve-se dizer, porém, que hoje
a maioria dos exegetas considera que a carta foi endereçada aos cristãos da região gálata
(teoria norte-galática). De qualquer modo, não se deve valorizar demais a importância do
debate, como várias vezes ocorreu. A interpretação do escrito paulino não depende,
substancialmente, dessa questão.
Por seu lado, o livro dos Atos dos Apóstolos descreveu amplamente a missão de Barnabé e
Paulo no sul da Ásia Menor: os dois missionários deram origem às Igrejas de Antioquia da
Pisídia, de Icônio, Listra e Derbe, na Licaônia (13,13-14,26), revisitadas na segunda viagem
missionária de Paulo (16,1-5). Segundo a teoria sul-galática, a carta teria sido endereçada
justamente a essas comunidades. É difícil, porém, pensar, que Paulo se teria dirigido aos
habitantes destas cidades como «gálatas». Mas o livro dos Atos dos apóstolos nos testemunha
também que o Apóstolo, acompanhado de Silas – sempre na segunda viagem missionária –
percorreu a Frígia e o território gálata, chegando depois a Trôade, através da Mísia (16,6-8).
Num segundo aceno, recorda que na terceira viagem missionária de Paulo passou de novo
pela Galácia e pala Frígia, "confirmando todos os discípulos" (18,23). Reconhece, pois, a
existência de Igrejas paulinas no território da Galácia, distinguindo-as das comunidades de
Icônio, Listra e Derbe. Trata-se das comunidades cristãs da região setentrional da Galácia. É a
essas que Paulo escreve, segundo a teoria norte-galática, que nos preferimos.

Lugar e data
Depois da sua visita aos Gálatas durante a sua terceira viagem missionária, Paulo
permanece dois ou três anos em Éfeso (At 19,21). Éfeso não está muito distante das
comunidades dos Gálatas, de modo que Paulo facilmente podia receber notícias delas. A carta
aos Gálatas provavelmente foi escrito em Éfeso em volta do ano 54 d.C. Ela foi escrita antes
da carta aos Romanos, que em parte trata os mesmos temas como a aos Gálatas, mas com
mais pormenores e com maior profundidade.
64

4. Conteúdo da carta
Como nas outras epístolas, pode-se distinguir uma parte onde predomina a exposição
dogmática (cc. 1-4), à qual se segue uma outra onde predominam as aplicações morais e a
exortação (cc. 5 e 6). Mas, pelo objetivo que Paulo tem em vista e em resposta aos ataques
dos adversários, a primeira parte se subdivide em duas secções, abrangendo uma apologia
pessoal (1,11-2,21) e uma argumentação doutrinária (3,1-4,31); de sorte que, mesmo sem
impor a Paulo o rígido esquema de uma lógica inteiramente ocidental, podem-se distinguir
comodamente três secções de extensão quase idêntica, além de uma introdução (1,1-10) e uma
conclusão (6,11-18).
Sobrescrito e admoestação: 1,1-10:
Primeira parte: Autobiografia: 1,11-2,21:
Antes da conversão: 1,13s
Conversão: 1,15.16a
Depois da conversão: 1,16b-21
A assembléia de Jerusalém: 2,1-10
O incidente de Antioquia: 2,11-21
Segunda parte: Dogmática: 3,1 - 4,31
A experiência cristã: 3,1-5
A fé de Abraão, fonte de justificação: 3,6s
A fé e a Lei: 3,8s
A Lei é fonte de maldição, e não de bênção: 3,10-14
A Lei não anulou a promessa: 3,15-18
A missão da Lei: 3,19-22
O advento de fé: 3,23-29
A filiação divina: 4,1-7
Aceitar a Lei é tornar-se novamente escravo: 4,8-11
Apelo aos Gálatas: 4,12-20
Testemunho da Escritura: 4,21-31
Terceira Parte: Parenética: Liberdade na caridade: 5,1-6,10
Convite à liberdade: 5,1-6
Ameaças contra os perturbadores: 5,7-12
A lei cristã da caridade: 5,13ss
Luta entre o espírito e a carne: 5,16-25
Preceitos da caridade e humildade: 5,26-6,6
Perspectivas do juízo: 6,7-10
Epílogo: 6,11-18

5. Exegese: Gl 4,1-7
Neste trecho São Paulo apresenta uma síntese da história da humanidade sob o ponto de
vista da salvação outorgada por DEUS em três etapas.
4,1-3: O tempo antes de CRISTO. Desde a transgressão de Adão o homem permanecia no
pecado, era escravo do demônio. Um período longo em que na obscuridade causada pelo
pecado brilhava a promessa, já desde o primeiro momento, de um Redentor (cf. Gen 3,15),
mas no qual diante dos pecados dos homens, a justiça divina ia impondo o merecido castigo.
Não obstante, sempre prevalece a misericórdia do Senhor, o amor indefectível que O impede
de exterminar o gênero humano apesar da sua maldade. Por isso, muitas vezes e de múltiplas
formas, DEUS aproxima-Se do homem e fala-lhe para lhe revelar o caminho da salvação.
Podemos dizer que o Senhor esgotou todos os meios para ajudar os homens.
65

4,4-5: O tempo da encarnação. Por último, quando chegou «a plenitude dos tempos» (to.
plh,rwma tou/ cro,nou), DEUS considerou que tinha chegado o momento para acabar com
aquela situação, que São Paulo chama aqui tutela; então, como cúmulo do Seu amor para
conosco, enviou o Seu Filho Unigênito, que Se fez homem para nos tirar do estado de
afastamento de DEUS em que estava submersa a humanidade.
4,6-7: O tempo depois da encarnação: Este período nos comunicam os efeitos salutares da
redenção: o dom do Espírito Santo que nos torna filhos de DEUS.
«u`po. ta. stoicei/a tou/ ko,smou h;meqa dedoulwme,noi». A expressão «os elementos do
mundo» se refere em primeiro lugar às práticas e ritos das religiões pagãs. Mais em concreto
ao respeito supersticioso pelos astros e forças que, segundo as concepções idolátricas, regiam
o curso do universo e da história. Por outro lado, ao incluir-se o próprio Paulo entre os que
estavam sujeitos aos elementos do mundo, parece referir-se também a algumas prescrições
humanas da lei mosáica que no correr dos tempos foram acrescentados à lei revelada por
DEUS. Em ambos os casos, os «elementos do mundo» submetiam os homens a uma
escravidão relativamente à observância de «dias, luas novas, festividades, anos» (cf. Gl 4,10).
No caso dos gentios, pretendiam aplacar e ter favoráveis os deuses e as forças da natureza
com uma visão supersticiosa. Os judeus, pelo contrário, observavam um preceito específico
de DEUS que, todavia, já tinha perdido a sua vigência. Os Gálatas viviam submetidos como
escravos a esses elementos do mundo, até que na plenitude dos tempos, determinado por
DEUS Pai (a;cri th/j proqesmi,aj tou/ patro,j), foram libertados por CRISTO, de maneira
semelhante a como uma criança se vê livre de tutores e administradores, aos quais estava
sujeito até à maioridade.
«geno,menon evk gunaiko,j». São Paulo, que tantas vezes falou da divindade de JESUS,
sublinha agora a sua humanidade autêntica: JESUS não apareceu de repente na terra como
uma visão celeste, mas fez-Se realmente homem, como nós, tomando a nossa natureza
humana no seio puríssimo de uma mulher. Com isso distingue-se também a geração eterna do
Seu nascimento no tempo. Com efeito, JESUS, enquanto DEUS, é gerado misteriosamente,
não feito, pelo Pai desde toda a eternidade. Enquanto homem, contudo, nasceu, «foi feito», da
Santíssima Virgem MARIA. Portanto, a Santíssima Virgem MARIA, ao ser Mãe de JESUS
CRISTO, que é DEUS, é verdadeira Mãe de DEUS, tal como foi definido dogmaticamente no
Concílio de Éfeso14.
«geno,menon u`po. no,mon». Feito sob a lei exprime a condição judaica de JESUS. Ele nasceu
na Palestina como judeu assumindo a lei com todas as suas conseqüências. JESUS se
submeteu à lei para purificá-la dos acréscimos humanos e completá-la pela novidade da sua
encarnação. Cumprir a lei significa agora viver como JESUS.
«i[na tou.j u`po. no,mon evxagora,sh|( i[na th.n ui`oqesi,an avpola,bwmenÅ» JESUS se encarnou a
fim de que nos libertasse do pecado e nos comunicasse a filhação divina.
«{Oti de, evste ui`oi,( evxape,steilen o` qeo.j to. pneu/ma tou/ ui`ou/ auvtou/ eivj ta.j kardi,aj h`mw/n
kra/zon( Abba o` path,rÅ» Somos filhos pelo fato que DEUS enviou o Espírito Santo nos
nossos corações. Ele nos ensina a rezar. A palavra «Abba» é um vocábulo aramaico e significa
«Pai, Papai». É o mesmo termo que Nosso Senhor usou na Sua oração pessoal (cf. Mc 14 36).
Um termo, por outro lado, que os Judeus não tinham utilizado nunca para se dirigirem a
DEUS, provavelmente porque contém uma grande confiança e ternura, própria das crianças
pequenas ao dirigirem-se a seu pai. JESUS CRISTO não duvidou, porém, em usá-la e em
animar os Seus para que a utilizassem. Assim convida-nos a tratar DEUS com a mesma

14
DS 252.
66

confiança e ternura com que um filho pequeno trata seu pai. Porque, na verdade, CRISTO
mediante a Sua obra redentora não só nos libertou do jugo da Lei, mas deu-nos também a
possibilidade de ter uma condição nova diante de DEUS, a condição de filhos. Isto acontece
através do Espírito Santo, que habita no interior do homem e o impele a clamar cheio de amor
e de esperança: Abbá, ó Pai.
Neste passo aparece a ação das três Pessoas divinas na vida sobrenatural do homem. O Pai
envia o Espírito Santo, aqui chamado «Espírito de Seu Filho», que nos ajuda a entender e a
viver o dom da filhação adotiva, a realidade gozosa de sermos filhos de DEUS. Somos filhos
no Filho! Por isso, espera para nós a herança da vida eterna. Tudo isto é a obra de DEUS.

6. Doutrina
A carta aos Gálatas trata o ponto central e essencial da doutrina de São Paulo, i.é. a
justificação por meio de fé em CRISTO. Este ponto é sempre atual e fundamental, também
hoje, porque facilmente nós nos esquecemos disto. É verdade que os cristãos hoje não se
põem o problema da necessidade da circuncisão o da observância das leis alimentares. Mas
fica a pergunta fundamental da nossa vida: confiamos nas nossas obras ou confiamos em
CRISTO; vivemos em nós mesmos ou vivemos em CRISTO. Para Paulo, a única base é a fé,
que opera na caridade, i.é., que tende a união com CRISTO. A Igreja católica defendeu
sempre esta doutrina e exprime esta verdade com a sua doutrina sobre a graça. Base da nossa
salvação é sempre a graça. E é a fé que nos abre para a graça de DEUS (cf. Gl 1,6-10; 3,1-5,
onde São Paulo resume o tema da sua carta).
67

A Epístola aos Romanos


1. Temática teológica da epístola e posições protestantes

Temática teológica
Um só é o protagonista do imenso drama histórico esboçado, com alucinante ousadia, pelo
Apóstolo Paulo nesta epístola: DEUS Pai. Pretende ele absolutamente salvar a humanidade
vendida sob o pecado (7,14), sem distinção de hebreus e de gentios, comunicando-lhes sua
própria justiça, participando-lhes então a sua vida de santidade. DEUS encerrou todos na
desobediência para usar de misericórdia para com todos (11,32). CRISTO será o instrumento
desta universal reconciliação (5,10), enquanto com sua Encarnação nos assume e como que
nos absorve em si mesmo. Sobretudo mediante o Batismo ele nos insere no mistério de sua
morte e de sua Ressurreição (6,5). Este palpitar de vida sobrenatural é aprofundado e dilatado,
feito mais consciente e operante, pelo próprio Espírito de CRISTO (8,9), o qual outro não é
senão o Espírito do Pai que nos foi dado como penhor e fruto de seu amor (5,5).
Em face destas sublimes forças de amor, que agora irromperam na história, espera-se
apenas que o homem dê sua resposta: o assentimento da fé. Esta é a adesão intelectual às
verdades sobrenaturais, conhecidas através da pregação (10,14ss), adesão à pessoa de
CRISTO, sacrifício de propiciação mediante o próprio sangue (3,25); é, além disso, confiança
na bondade do Pai, através da qual se alimenta a esperança, até que sejamos salvos
definitivamente; e é obediência (1,5; 16,26) interior, docilidade da vontade humana, que se
curva diante da vontade divina e a traduz em ato, tornando-se desta sorte caridade operante
(Gál 5,6). Por esta sua mesma complexidade, é certo que a fé (pi,stij) de São Paulo não pode
identificar-se com a fé fiducial de Lutero e dos protestantes em geral, os quais, sem razão,
fundamentam nesta carta, e especialmente em 3,28, a sua doutrina da justificação.
À parte as posições teológicas protestantes, não deixa de ser um fato de que a fé é ao
mesmo tempo o risco do homem e sua única grandeza. Ela implica, com efeito, o honesto
reconhecimento dos limites do homem como tal; sua razão, embora não seja incapaz, na
realidade nem sempre atinge concretamente a verdade, nem mesmo a da existência de DEUS
(1,18-22); sobretudo a vontade se mostra incapaz de efetuar o bem que, no entanto, vê que
deve realizar (7,19). É precisamente sobre o alicerce deste humilde reconhecimento que se
constrói o edifício da salvação: DEUS não pode e não pretende ser devedor senão de seu amor
soberano livremente prodigalizado. Nem a própria fé, no final de contas, é o preço justo da
salvação: é apenas uma condição preliminar pela qual o homem reconhece sua impotência
para salvar-se, e aceita ser salvo por DEUS através de CRISTO.
A própria vida moral mais não será do que a tradução em ato das exigências desta nova
vida em CRISTO e no Espírito: à semelhança de CRISTO morto e ressuscitado, também os
fiéis devem considerar-se mortos para o pecado mas vivos para DEUS em CRISTO JESUS
(6,11). Esta contínua morte para o pecado, que se obtém refreando principalmente os desejos
da carne, será como um contínuo sacrifício vivo, santo, agradável a DEUS, o verdadeiro culto
espiritual desejado pelo Senhor (12,1). Assim como todo o mistério da salvação se recapitula
no amor de DEUS que está em CRISTO JESUS Senhor Nosso (8,39), da mesma forma toda a
vida moral do cristão encontra o seu centro unificador e irradiante na lei da caridade fraterna,
porque a plenitude da Lei é o amor (13,10).
68

A carta aos Romanos e o protestantismo


O protestantismo deduziu justamente da carta aos Romanos e, em menor escala, da quase
análoga epístola aos Gálatas - colocadas porém numa perspectiva deformada - os princípios
da sua teologia. São explícitas, a este propósito, as declarações de dois qualificados
exponentes da exegese protestante moderna, do conservador suíço P. Godet 15 e do luterano P.
Althaus16. Lutero, com efeito, inicia justamente com o comentário a Romanos (1515/1516) 17
sua nova, experiência religiosa. Escreveu-o quando ainda era católico; mas ali já antecipa, ao
menos no espírito, toda a ulterior temática protestante, que será melhor esclarecida e precisada
na sucessiva polêmica com Roma.
Também Calvino sofreu profundamente a influência desta epístola, como se pode perceber
comparando a primeira edição (1536) com a segunda (1539) de sua obra fundamental 18. E
mais decisivo ainda foi o influxo desta carta sobre Filipe Melanchton, discípulo e sucessor de
Lutero. Ele não apenas comentou bem umas duas vezes a epístola aos Romanos (1532 e
1540), mas dela deduziu o livro clássico do protestantismo, que nas escolas principiou a
ocupar o lugar da teologia dogmática: Loci communes rerum theologicarum, seu hypotyposes
theologicae (1521, de forma mais ampla em 1535 e 1543)19.

2. Primórdios do cristianismo em Roma


Quando Paulo endereçou sua carta à comunidade romana, esta devia ser bastante
florescente e estar perfeitamente organizada para o Apóstolo poder afirmar que a fé dos
Romanos é celebrada em todo o mundo (1,8; cf. 16,9), e no final poder mandar-lhes as
saudações de todas as Igrejas de CRISTO (16,16). De resto, o tom de extrema deferência
usado por Paulo e a preocupação em conquistar a simpatia dos Romanos e sua adesão às suas
doutrinas confirmam o prestígio, a influência e autoridade desta Igreja, que decerto não se
originavam apenas do fato de a cidade ser a capital do Império.

15
«A Reforma foi certamente a obra da carta aos Romanos, como também da epístola aos Gálatas; e é
provável que toda grande renovação espiritual na Igreja se há sempre de ligar, como efeito e como causa, a uma
compreensão mais profunda deste escrito» (Commentaire de 1'épître aux Romains 2, Neuchâtel-Paria 1890, 1).
16
«Nenhuma carta de Paulo, nenhuma outra epístola do Novo Testamento teve e tem na Igreja tanto
significado como a epístola aos Romanos. A história do ‘paulinismo’ é a história da carta aos Romanos. A luta
pela pureza do Evangelho, contra a contínua repetição da ameaça do moralismo, mais de uma vez foi dirigida
sob a bandeira da carta aos Romanos. Os grandes momentos da história religiosa cristã são igualmente os
momentos da carta aos Romanos. Nela sobretudo a teologia ocidental (isto é, reformada) hauriu os seus
argumentos e ternas... Ela é o livro fundamental da Reforma» (Das Neue Testament Deutsch, 6 6, Göttingen
1949, 3).
17
Por muito tempo ignorado, foi publicado apenas em 1908 por Joh. Ficker, Luthers Vorlesung über den
Römerbrief 1515-1516. I, Die Glosse, II, Die Scholien, Leipzig 1908. É de particular importância, não tanto para
a exegese quanto para uma melhor compreensão do nascimento do protestantismo.
18
«Christianae religionis institutio totam fere pietatis summam et quidquid est in doctrina salutis cognitu
necessarium complectens». A segunda edição dá quase o triplo da primeira. Nesse ínterim, Calvino também se
dedicara à redação de seu comentário à carta aos Romanos, que foi publicado apenas no ano seguinte (1540); e
sob a influencia desta carta muitos dos seus pontos de doutrina mudaram de perspectiva. Assim, por ex.,
enquanto a doutrina da predestinação e da reprovação é exposta na forma tradicional na primeira edição, na
segunda se ensina a doutrina da reprovação positiva, antecedente a qualquer mérito, baseando-se precisamente
em Roma 9,17. Cf. M. J. Lagrange, em RB, n.s., 12, 1915, 456-484, 13, 1916, 90-120: H. Strohl,
L'épanouissement de la pensée religieuse de Luther de 1515 à 1520, Estrasburgo-Paris 1924; A. Schlatter,
Luthers Deutung des Römerbriefes, 1917.
19
É uma antologia dos mais importantes argumentos teológicos, tirados desta epístola, como explica o
próprio autor na introdução (Corpus Reformatorum, vol. 21, col. 81). Esse trabalho, que Lutero considerava non
solum immortalitate sed et canone ecelesiastico dignus (De servo, arbitrio, ed. Weimar, vol. 18, p. 608),
juntamente com o mérito de um apaixonado regresso às fontes contra as exageradas sutilezas de alguns
escolásticos, apresenta o grave defeito de negar qualquer valor à honesta e diligente reflexão teológica.
69

Mas como foi que nasceu em Roma o cristianismo e quem o favoreceu, a ponto de logo
tornar-se tão florescente que levou Tácito, referindo-se ao tempo da perseguição neroniana
(64 d.C.), a falar em multitudo ingens de cristãos?

Origens obscuras
As origens do cristianismo em Roma acham-se envoltas na obscuridade. Com muita
probabilidade remontam à obra de evangelização de alguns Hebreus convertidos que, dados
os intensos intercâmbios comerciais da Síria e da Palestina com a capital do império, levaram
para Roma a nova fé por eles conhecida no Oriente: efetivamente, no dia de Pentecostes, em
Jerusalém também se encontram peregrinos romanos20.
Que os hebreus eram numerosíssimos em Roma, isto se depreende pelas inscrições
encontradas em seis cemitérios romanos. Delas resulta que os judeus de Roma se achavam
congregados numas treze sinagogas ou comunidades religiosas, cada uma com sua própria
organização administrativa. Segundo J. B. Frey pode-se calcular que no primeiro século da
era cristã havia em Roma nada menos que uns 40 a 50 mil Hebreus.
Neste ambiente é que deve ter nascido e se afirmado o primeiro cristianismo romano. Mas,
enquanto no princípio ele não parecia diferenciar-se muito do judaísmo ortodoxo, com o
correr do tempo as diferenças devem ter começado a tornar-se mais evidentes e mesmo
polêmicas, sobretudo quando principiaram a entrar na comunidade os primeiros adeptos
procedentes do gentilismo, fossem eles já adeptos do judaísmo ou não. Provavelmente foi
então que se criaram profundas divergências no seio da comunidade hebraica de Roma: agora
era evidente que aceitar CRISTO como Filho de DEUS significava apartar-se do hebraísmo
tradicional, e os mais obstinados se recusaram a considerar os adeptos da nova fé como seus
irmãos. É provável que as divergências doutrinárias aumentaram, a tal ponto que o imperador
Cláudio, por volta de 49/50, promulgou um decreto de expulsão dos judeus de Roma. O
decreto de Cláudio, embora executado com bastante brandura segundo atesta Dio Cássio 21,
afastou de Roma não poucos judeus, e entre estes também cristãos: At 18,2 nos dá a conhecer
dois destes hebreu-cristãos, fugidos de Roma por ocasião do edito de Cláudio e refugiados em
Corinto, onde encontram a Paulo. Provavelmente é dessa época que se deve datar uma
diminuição do elemento hebraico na Igreja de Roma com relação ao elemento gentio: a
situação tornou a equilibrar-se apenas pelo favor que os Hebreus recuperaram no tempo de
Nero, cuja mulher Popéia parece que era uma prosélita hebréia.

A primeira ida de São Pedro a Roma


É bem verdade que desde a antigüidade se falou dum ministério de 25 anos de Pedro em
Roma; e partindo de 67, ano possível do martírio de Pedro, chegar-se-ia ao ano de 42 d.C.
Mas deve-se notar, antes de mais nada, não se pode certamente falar duma permanência
contínua de Pedro em Roma, pois, por ex., por volta do ano 49 o encontramos em Jerusalém
(At 15; Gál 2). Em segundo lugar, no que se refere ao início, a notícia parece tirada de At

20
At 2,10. Eram os judeus de nascimento ou apenas prosélitos judeus: seja como for, eram de Roma. Cf.
Lagrange, o. c., XXI. Do mesmo parecer é também o conhecido historiador J. Zeiller (em Histoire de I'Eglise,
sob a direção de Fliche-Martin, Vol. I, Paris 1934, 234). Lietzmann, no entanto, atribui a fundação da
comunidade romana «provavelmente à atividade de cristãos procedentes de Antióquia» (Histoire de l'Eglise
ancienne, t. I, Paris 1936, 115).
21
LX, 6. Ao que parece, Cláudio, pela dificuldade de executar a medida, mudou o decreto de expulsão em
proibição de reunião. Assim K. Lake, em F. Jackson-K. Lake, The Beginnings of Chtistianity, V. 459. Zeiller,
porém, acha que o decreto se referia apenas aos cristãos. Mas Lagrange (o.c., XXIs.) distingue dois decretos: um,
mais suave, no início do império de Cláudio (seria o de que fala Dio), outro mais severo, do ano 49, do qual
falam tanto Suetônio como os Atos.
70

12,17, onde se afirma que Pedro, milagrosamente libertado do cárcere onde o mandara
encerrar Herodes Agripa I (morto em 44), daí saiu, indo para outro lugar.

3. Fisionomia da comunidade romana na época da epístola

Maioria étnico-cristã
Isto deixa claramente entrever que, ao menos naquela época, a Igreja de Roma em sua
grande maioria era constituída por cristãos provenientes do gentilismo 22 («e;qnh»: 1,5; 1,13;
11,11ss; 15,16). Abrangia, no entanto, também uma minoria de Hebreus convertidos. A ala
extrema dessa fração judaica devia ser representada por alguns fanáticos judaizantes, que
semeavam dissensões pela doutrina transmitida e até escândalos (16,17), servindo mais ao
próprio ventre do que a CRISTO (16,18; cf. Fl 3,18s).

Mas Paulo também leva em conta os judeu-cristãos


De resto, o fato de levar em conta que a comunidade romana se compunha, além de étnico-
cristãos, também de judeu-cristãos, ajudava Paulo a proceder com muita cautela e delicadeza
ao enfrentar os problemas que semelhantes convivências, heterogêneas, sempre impõem ao
espírito. Esta forma de delicado equilíbrio, que se evidencia ainda melhor quando comparada
com a veemência de Gálatas, é um elemento característico da epístola aos Romanos. O leitor,
então, para melhor compreendê-la, deverá ter sempre diante dos olhos o quadro preciso da
composição da Igreja destinatária.

4. Ocasião e objetivo da epístola


Deve-se procurar a ocasião que determinou Paulo a escrever aos Romanos em seu
insopitável espírito de conquista missionária. Já fazia tempo, tendo agora esgotado o campo
de sua pregação em todo o Oriente, desde Jerusalém até a Iliria (Rm 15,19.23), pensava ele
em dirigir-se até a Espanha, isto é, até aos confins do Ocidente23, para também aí anunciar a
CRISTO (Rm 15,24.28). Como etapa intermediária de sua viagem ao Ocidente não se poderia
imaginar nada melhor que Roma (cf. Rm 15,24-29). Roma deveria exercer um fascínio todo
particular sobre o espírito do Apóstolo, e quiçá um vago pressentimento lhe predizia a futura
grandeza cristã da Urbe.
Deve-se pensar de preferência num motivo dogmático-teológico. Achando-se num
momento deveras solene de sua existência, a ponto de empreender uma nova e arrojadíssima
expedição missionária, Paulo como que se recolhe em si próprio refletindo sobre os grandes
motivos de sua vida, os temas fundamentais de sua evangelização, os sublimes planos de
DEUS a respeito de todos os povos, como se podia reconstruir com base na alegre aceitação
da mensagem salvifica por parte dos gentios e na recusa por parte dos Hebreus.

22
Uma confirmação indireta do que estamos dizendo é dada igualmente pela predominância de nomes gregos
e latinos sobre os de origem hebraica em 16,3-15. A este propósito, contudo. não se pode forçar o testemunho,
no sentido de que em Roma eram numerosos os hebreus que tinham um nome grego ou latino, como se
depreende das numerosas inscrições estudadas por J. B. Frey, corpus inscriptionum judaicarum, I, Roma 1930:
«Mais de dois quintos dos hebreus romanos mencionados nas inscrições têm um nome grego; apenas uma sétima
parte tem um nome hebraico ou aramaico... Em geral, os nomes bíblicos são mais raros do que se poderia
esperar». Por isso, «é conveniente ser circunspecto... antes de declarar que um determinado nome por não
parecer bastante semítico, não pudesse pertencer a um judeu! Menos ainda se pode, pesquisar, com um critério
tão pouco seguro, em que proporção o elemento vindo do judaísmo e o elemento saído da gentilidade tenham
entrado na composição da primeira comunidade cristã de Roma» (p. LXVII).
23
Cf. 1 Clem. 5,7.
71

É desta reflexão que surge a arrojada e sólida arquitetura de pensamentos que o Apóstolo
pretendeu apresentar, como numa homenagem, também aos Romanos, numa espécie de
diálogo espiritual. É o seu Evangelho (16,25), no aspecto mais característico, que ele
apresenta aos leitores: CRISTO é a única esperança de salvação para os homens (15,12), sem
nenhuma distinção mais entre hebreus e gentios (3,29s; 10,12). Esta salvação, que consiste
essencialmente em participar da própria justiça de DEUS, obtém-se porém mediante a fé
inabalável no Evangelho, que é força de DEUS para a salvação de todo aquele que crê,
primeiramente para o judeu e depois para o grego (1,16).
Por outro lado, o Apóstolo procura demonstrar como esta doutrina implica inimaginadas
profundidades e fertilíssimas aplicações mesmo na vida cristã, a tal ponto que podem
constituir um motivo de recíproca consolação espiritual (1,12) entre cristãos e também um
elemento determinante para resolver certos pequenos atritos, que deveriam ter surgido entre
os dois elementos dos quais se compunham a comunidade romana.

5. Lugar e tempo de composição


Segundo os dados fornecidos pelos Atos e pela própria carta deduz-se que, atravessando a
Macedônia, depois da longa permanência - cerca de três anos - em Éfeso, Paulo vai para
Corinto e ali fica por uns três meses (At 20,1ss), passados os quais pretende dirigir-se a
Jerusalém, onde espera chegar pela Páscoa, levando consigo as ofertas reunidas na Acaia e na
Macedônia para os santos da Igreja-mãe (At 20,3; Rm 15,25s). De fato, porém, teve ele que
mudar seu plano de viagem por causa de uma conspiração contra ele, descoberta nesse
ínterim, e pôde chegar a Jerusalém apenas em Pentecostes (At 20,3.6.16).
Durante a breve permanência em Corinto, Paulo escreveu sua carta aos Romanos. Isto se
depreende de vários indícios. Ele recomenda aos cristãos de Roma Febe, diaconisa da
comunidade de Cêncris (Rm 16,1) - conhecido porto de Corinto, que dava para o mar Egeu - a
qual deve ter sido, muito provavelmente, portadora da carta. Manda igualmente as saudações
de Caio, seu hóspede, e de Erasto, tesoureiro da cidade (Rm 16,23); ambos personagens bem
conhecidos de Corinto (1Cor 1,14; 2Tm 4,20). De Timóteo e Sosípatro, que também enviam
saudações aos cristãos de Roma (16,21), sabemos que foram companheiros de Paulo
justamente na viagem de Corinto para Jerusalém (At 20,4). Além disso, escrevendo aos
Coríntios, alguns meses antes, tinha-lhes recomendado insistentemente que preparassem a
coleta para a Igreja de Jerusalém (1Cor 16,2; 2Cor 9,3s), da qual torna precisamente a falar
nesta carta (Rm 15,25s).
Tudo isto nos leva a pensar que a epístola tenha sido composta 57 ou 5824, pouco antes da
festa da Páscoa (cf. At 20,6), dado que a prisão de Paulo ocorreu, naquele mesmo ano, pouco
depois de sua chegada a Jerusalém, aí por volta de Pentecostes (cf. At 20,16). Vinha
justamente de Corinto (cf. At 20,2s).
Quando foi redigida a epístola aos Romanos, portanto, ainda não tinham decorrido nem 30
anos da morte do Senhor. «Jamais nos admiraremos suficiente pela forma tão plena e tão
sólida da doutrina cristã numa época tão próxima da paixão de JESUS CRISTO» 25.

24
Alguns estudiosos (Prat, Goguel, Lebreton) recuam a composição da carta ao princípio de 57; Lagrange, ao
inverno de 56 ou, o mais tardar, de 57. Que tenha sido escrita em Corinto é confirmado igualmente pelas notas
finais de muitos manuscritos (L 35, 69, 337, 460 etc.) e pelos prólogos latinos às cartas paulinas, que se acham
em numerosos manuscritos da Vulgata.
25
LAGRANGE, o.c., XX.
72

6. Autenticidade e integridade
Excetuando alguns críticos extremistas do século passado, ninguém jamais, colocou em
dúvida a autenticidade paulina da presente epístola, nem na antigüidade nem na nossa época.
Atribuem-na já explicitamente a Paulo S. Ireneu, Clemente de Alexandria, o fragmento de
Muratori etc. A tradição posterior movimenta-se harmoniosamente nos mesmos trilhos.

7. Divisão da carta
Introdução: 1,1-15
Parte I: Dogmática: A Salvação mediante a fé em CRISTO: 1,16-11,36
Tema da carta: 1,16s
A justificação mediante a fé em JESUS CRISTO: 1,18 - 4,25
1. Gentios e judeus, objeto da cólera divina, por não terem realizado a justiça
(1,18-3,20).
2. A manifestação da justiça de DEUS mediante a fé em CRISTO (3,21-31).
3. O exemplo de Abraão, justificado pela fé (4,1-25).
A salvação do homem justificado: 5,1 - 11,36
1. A justificação já alcançada é penhor de salvação eterna (5,1-11).
2. CRISTO obteve para nós a justiça, restaurando a ordem violada por Adão
(5,12-21).
3. A justiça nos livra do pecado (6,1-23).
4. A justiça nos livra da escravidão da Lei (7,1-25).
5. A justiça de DEUS é vida no Espírito, que é penhor seguro da glória eterna
(8,1-39).
6. Uma aparente dificuldade ao plano salvífico de DEUS: a incredulidade de
Israel (cc. 9ss).
Parte II: Parenética: Exigências morais da «justiça» de DEUS: 12,1-15,13
Princípios gerais de vida cristã: 12,1-13,14
1. A prática das virtudes, (12,1s).
2. Humildade e fidelidade no uso dos carismas. (12,3-8).
3. Caridade para com todos, mesmo os inimigos (12,9-21).
4. Deveres em face da autoridade civil (13,1-7).
5. De novo a caridade, como resumo da Lei (13,8-10).
6. Revestir-se das armas da luz, à espera do regresso de CRISTO (13,11-14).
Normas particulares: 14,1-15,13
Epílogo: notícias pessoais e saudações: 15,14-16,24
Doxologia final: 16,25ss

8. Exegese: A justificação se obtém apenas mediante a fé em JESUS


CRISTO (Rm 3,21-31)
Assim como os gentios (1,18-32) se acham sob o sinal da cólera de DEUS, assim também
os judeus (2,1-3,20). Por isso, a amarga conclusão é esta: todos, judeus e gentios, acham-se
sob o pecado, passíveis de serem condenados por DEUS, segundo o testemunho da Escritura
(3,9-20). Nem a Lei pode justificar diante de DEUS: ela propicia o conhecimento do pecado
(3,20), sem fornecer as energias interiores suficientes para vencer-lhe as atrações.
Neste ponto se insere a passagem 3,21-31, onde se demonstra que só a fé em CRISTO
Redentor justifica o homem diante de DEUS: a fé, que é renúncia tanto às loucas pretensões
da razão, em que tanto se fiavam os gentios, como também às ineficazes obras da Lei, com as
quais tanto contavam os orgulhosos judeus. Uns e outros estão presentes ao pensamento do
73

Apóstolo, mas é para os hebreus que vai de preferência o pensamento dele. Esta passagem
tem grande importância porque aborda diretamente a temática essencial da carta, e também
porque o v. 28 foi aproveitado por Lutero como ponto de partida de sua doutrina sobre a
justificação.

A «Justiça de DEUS» se revelou em JESUS em favor de todos os crentes: vv. 21-24a


Em oposição à revelação da cólera de DEUS (1,18), que se manifestou de forma tão
dramática no grave estado de pecado tanto dos gentios como dos hebreus (1,18-3,20), eis
finalmente a revelação da justiça de DEUS (v. 21). «Nuni. de,» ... (Agora, porém) não é uma
simples fórmula de transição, mas um verdadeiro advérbio de tempo, que opõe ao período da
cólera o período da salvação e é precisamente o tempo marcado pela presença de CRISTO (cf.
v. 26): a plenitude dos tempos (Gl 4,4). Cf. 8,1.
Esta revelação, além de ser um fato histórico, fixável no tempo, perdura em seus efeitos e
nas suas dimensões, como sugere o perfeito «pefane,rwtai»: revelou-se. «Fanerou/sqai»
designa ordinariamente a manifestação da glória de CRISTO (2Cor 4,10s; 5,10s; 1Tm 3,16;
2Tm 1,10; Jo 2,11). Um termo semelhante a este é «evpifai,nw», que se refere muitas vezes à
Encarnação. Aquilo que se revela ou se manifesta externamente preexiste já, embora opere
apenas em segredo (cf. Rm 16,25s). Também durante o período do Antigo Testamento a
justiça de DEUS era atuante, embora de maneira limitada e silenciosa: ninguém jamais se
conseguiu salvar sem CRISTO, como demonstrará o c. 4 com o exemplo de Abraão a quem a
fé foi imputada em justiça (4,9); e é isto que se subentende aqui, quando se afirma que tal
justiça é atestada pela própria Lei e pelos Profetas, isto é, pelo Antigo Testamento em geral,
como hão de comprová-lo as diversas citações bíblicas do c. 4. Existe, portanto, um plano
misterioso de DEUS que abrange todos os tempos e se ordena a resgatar, em CRISTO, todos
aqueles que pecaram (v. 23).
O v. 22 esclarece que a condição essencial para obter a justiça de DEUS é a fé em JESUS
CRISTO (dia. pi,stewj VIhsou/ Cristou/). JESUS CRISTO, sobretudo no mistério de sua
Redenção (v. 24s), é o objeto de nosso ato de fé26. E esta fé agora se acha à disposição de
todos aqueles que crêem. Desta maneira DEUS aboliu deveras toda a distinção entre hebreus e
gentios, não ligando mais a salvação deles a algum fato exterior, como a circuncisão ou a
pertença ao povo hebraico.
Toda distinção entre os homens foi abolida, não só porque todos agora têm a possibilidade
de crer, mas também porque todos pecaram e estão privados da glória de DEUS (v. 23): todos,
tanto judeus como gentios, se acham sob o signo do pecado, como se demonstrou amplamente
em 1,18-3,20, continuando portanto a ser estranhos à amizade e à intimidade divina. Todos
pecaram (pa,ntej ga.r h[marton) refere-se, com certeza, aos pecados pessoais, como demonstra
a clara menção aos capítulos precedentes. Alguns exegetas latinos antigos pensaram no
pecado original.
Menos claro é o v. 23b: e [todos] estão privados da glória de DEUS (kai. u`sterou/ntai th/j
do,xhj tou/ qeou/). Paulo provavelmente se inspirou na linguagem do Antigo Testamento,
segundo a qual a glória de DEUS é a manifestação visível de sua presença amorosa e
protetora em meio ao povo de Israel27. Os tempos messiânicos serão caracterizados por uma
abundância de glória de DEUS28. A encarnação constituirá a manifestação mais sublime da
glória de DEUS, que agora se transferiu corporalmente (Cl 2,9) para o meio de nós (Jo 1,14).

26
Não se exclui em «VIhsou/ Cristou/» um certo valor de genitivo subjetivo: CRISTO é igualmente autor de
nossa fé.
27
Cf. 1Rs 8,11 e 2Cr 5,14; Ex 24,16s; 40,34.
28
Cf. Ez 43,2ss; Sl 96,6; Is 60,1; Ag 2,7; Is 40,3ss; Sl 84,10.
74

Também os vv. 24ss falarão da Redenção. Com o pecado, os homens se apartaram desta
presença benéfica e santificante de DEUS: só aceitando por meio da fé o mistério da
Encarnação e da Redenção, isto é, a mais alta manifestação da glória de DEUS, poderão
retornar à amizade divina, a qual principia com a vida da graça e irá culminar na glória da
vida eterna29. O verbo «u`stere,w» não significa ser privado de algo que já se possui, mas estar
privado, ter falta de alguma coisa.
O v. 24 retoma o v. 22, interrompido por aquela espécie de parêntesis que é o v. 23, e
esclarece que a justiça de DEUS, participada a todos aqueles que crêem (v. 22), é um dom
puramente gratuito que nos foi alcançado por CRISTO. Emprega-se o particípio presente
(dikaiou,menoi) porque a justificação se repete toda vez que um novo crente emite o ato de fé
em CRISTO Redentor. Gratuitamente (dwrea,n), isto é, sem nenhum mérito que de alguma
forma exija o ato de DEUS30. É somente pela graça de DEUS (th/| auvtou/ ca,riti) que se obtém
a justificação, entendendo graça, como em geral em São Paulo e nos outros escritos do N.T.,
no sentido de benignidade, favor e não no sentido técnico de graça santificante.

JESUS como «propiciatório» da Nova Aliança: vv. 24a.25a


A causa instrumental da justificação é a Redenção (dia. th/j avpolutrw,sewj) que está em
CRISTO JESUS (v. 24b), executada, portanto, não tanto em virtude de um gesto de CRISTO,
quanto em sua própria pessoa.
Mas o que é que Paulo entende exatamente pelo termo Redenção (avpolu,trwij) que lhe é
quase próprio?31 Uma vez que o presente contexto abunda em referências ao Antigo
Testamento, é a ele que se deve recorrer para o sentido de «avpolu,trwij». No Antigo
Testamento, o verbo «lutrou/n» e derivados exprimem a libertação dos hebreus da escravidão
egípcia e a sua assunção como povo de DEUS (Ex 6,6s). Os dois fatos se integram e se
implicam mutuamente; ou melhor, o primeiro está ordenado essencialmente ao segundo. A
linguagem profética há de assumir tudo isto como tipo e prefiguração da grande libertação
messiânica do pecado, insistindo sobretudo na nova aliança de amor de DEUS com seu
povo32. Ora, tal libertação da humanidade do pecado ocorreu precisamente mediante a morte
de CRISTO, e mais completa será quando nosso próprio corpo participar na glória de sua
Ressurreição. Daí o duplo conteúdo que Paulo vê no termo «avpolu,trwij»: a redenção
escatológica, que se dará na Parusia33; a Redenção substancial, penhor da escatológica, que já
se deu no Calvário34.
É deste aspecto fundamental da Redenção que se está falando nesta passagem, como
confirma o v. 25, descrição, em perspectiva teológica e de tipologia vétero-testamentária, do
sacrifício de CRISTO. A imagem dominante é a de propiciatório. Paulo pretende referir-se
precisamente ao propitiatorium do Antigo Testamento, que ele interpreta como misteriosa
prefiguração de CRISTO.
Na Bíblia dos LXX, que Paulo supõe bem conhecida a seus leitores, como demonstram as
numerosíssimas citações que dela tira, o termo «i`lasth,rion» ocorre com freqüência e designa

29
Como se vê, glória de DEUS é um conceito essencialmente soteriológico. Cf. H. SCHLIER, «Do,xa» bei
Paulus als heilsgeschichtlicher Begriff, em SPCIC 1961, I, Roma 1963, 45-56.
30
O Concílio Tridentino especifica assim a gratuidade da justificação: «... quia nihil eorum quae
iustificationem praecedunt, sive fides, sive opera, ipsam iustificationis gratiam promeretur» (D 801).
31
Ocorre nele umas sete vezes (Rm 3,24; 8,23; 1Cor 1,30; Ef 1,7-14; 4,30; Cl 1,14). Encontra-se, além disso,
duas vezes na epístola aos Hebreus (9,15; 11,35), uma vez em Lucas (21,28), o qual no entanto emprega duas
vezes o equivalente «lu,trwsij» (1,68; 2,38).
32
Cf. Jr 31,32; Ez 36,21-32.
33
Cf. Rm 8,23; Ef 1,14; 4,30; talvez também 1Cor 1,30.
34
Cf. Rm 3,24; Cl 1,14; Ef 1,7.
75

sempre ou o propiciatório (tr,Pok;) da arca (22 vezes) no templo antigo, ou a «hr'z"[]» (cinco
vezes), que no templo ideal de Ezequiel o substituía (Ez 43,14.17.20: em 45,19 o mesmo
vocábulo é traduzido por qusiasth,rion). O propiciatório era mais precioso do que a própria
arca, que cobria: era todo de ouro puro, ao passo que a Arca era de madeira com ornamentos
dourados. Sobre ele repousavam dois Querubins com as asas estendidas (Ex 25,17-21),
considerados o trono de JAVÉ35. Deste trono DEUS comunicava suas ordens a Moisés36, e
por isso a Vg às vezes traduz por oraculum37; aqui sobretudo perdoava o pecado no grande dia
da Expiação (Lv 16,14-22). Mas o propiciatório achava-se no centro do culto, também
durante o ano quando se oferecia o sacrifício pelo pecado (Lv 4)38. «Não podia, portanto, um
hebreu conceber o perdão, quando se tratava de um pecado cometida por uma coletividade,
sem que ocorresse a aspersão do sangue sobre o propiciatório ou em direção ao véu que
estava diante do propiciatório»39.
Nestas condições, é difícil que Paulo, utilizando o termo «i`lasth,rion» não quisesse referir
a CRISTO o significado teológico de que estava impregnada essa instituição do Antigo
Testamento, evidentemente com aquela maior profundidade e perfeição que sempre a coisa
figurada tem em relação à figura 40. CRISTO é deveras o trono da presença de DEUS (Cl 2,9);
é ele igualmente o oráculo de DEUS, no qual a palavra de DEUS não só foi pronunciada, mas
se fez carne (Hb 1,1; Jo 1,14); em CRISTO que se imola na cruz - é este o ponto essencial da
analogia - os homens alcançam verdadeiramente o perdão de seus pecados, reconciliando-se
desta sorte com DEUS, como diz mais claramente ainda o mesmo Paulo, noutra passagem (cf.
2Cor 5,19).
Nesse consciente e generoso entregar-se do Filho de DEUS por nós reside a prova de seu
imenso amor. Existe, além disso, uma diferença radical entre a função do novo propiciatório e
a do antigo, que pretendia significar um amplo perdão dos pecados: não conseguia levá-lo a
termo (cf. v. 25b), dada a inferioridade das vítimas irracionais oferecidas. Outra diferença,
enquanto o antigo propiciatório era subtraído aos olhares do povo e do próprio sumo
sacerdote (Lv 16,2), o novo se acha exposto41 aos olhos de todos42.

DEUS se revela «justo e justificador» em CRISTO: vv. 25b.26


Na segunda parte do v. 25 e no v. 26, em duas frases sucessivas que se correspondem e se
esclarecem mutuamente, descreve-se o objetivo da expiação realizada por CRISTO. É claro
que Paulo aqui distingue nitidamente dois períodos na história da salvação: o tempo da
paciência (avnoch/) de DEUS (v. 26) e o tempo presente (evn tw/| nu/n kairw/|), que é certamente a
época messiânica consagrada pelo sacrifício de CRISTO: o primeiro período, por reflexo, não
pode ser senão o vétero-testamentário, com referência especial, embora não exclusiva, aos

35
Cf. 1Sm 4,4; 2Sm 6,2; 2Rs 19,15; Sl 80,2; 99,1.
36
Cf. Ex 25,22; Nm 7,89.
37
Cf. Ex 37,6; cf. Ex 25,18.20; Nm 7,89; Lv 16,13.
38
Quer para reparar o pecado de todo o povo, quer para reparar o do próprio sacerdote, que fazia
misteriosamente culpado o povo inteiro (Lv 4,3). Nestas duas circunstâncias, de fato, o Sumo Sacerdote, não
podendo entrar no Santo dos Santos, fazia a aspersão sete vezes diante de JAVÉ em direção ao véu (Lv 4,6.17).
39
S. LYONNET, na edição sob seus cuidados de J. HUBY, Epistola ai Romani, 493s.
40
Cf. S. TOMÁS, Summa Tteol., III, q. 48, a. 3 ad 1.
41
Assim entendemos com F. Prat, R. Cornely, F. Zorell, J. Huby, S. Lyonnet, H. Lietzmann, W. Bauer, F.
Büchsel, O. Kuss etc. Em si, o verbo na forma média poderia ser traduzido também por predestinou, propôs e
semelhantes (Rm 1,13; Ef 1,9; cf. o substantivo «pro,qesij» em Rm 8,28; 9,11 etc.); neste caso, porém,
gramaticalmente teria sido mais correto o uso de um infinitivo. O contexto, mais do que razões filológicas, está
aconselhando o sentido que apresentamos.
42
É o que significam igualmente os Sinóoticos (Mt 27,51; Mc 15,38; Lc 23,45) ao narrarem como se rasgou
o véu do Templo: o amor do Pai, que no Filho perdoa, está desvelado, manifesto (observe-se «pefane,rwtai» do
v. 21, perfeito que indica duração) aos homens de todos os séculos.
76

hebreus. É o tempo da paciência de DEUS (evn th/| avnoch/| tou/ qeou/) porque, não obstante os
numerosos pecados e as muitas infidelidades de Israel, DEUS não lhe tirou os privilégios
concedidos esperando ao contrário que se arrependesse (2,4; cf. 9,22)43.
A justiça, aqui, é a justiça que salva, de que já se falou no v. 21 e em 1,17, e que se
mostrou com os fatos (v. 25), como significa o grego (eivj e;ndeixin)44.
A expressão «remissão dos pecados» (th.n pa,resin tw/n progegono,twn a`marthma,twn) se
refere à justiça salvífica e não punitiva; desta última se fala apenas a partir de 1,18 a 3,20, e
não é chamada de justiça mas de ira de DEUS. Além disso, deve-se observar que o vocábulo
«pa,resij» - hapax do Novo Testamento, ausente dos LXX - tem nos poucos casos em que
ocorre na literatura helenística o significado de remissão de alguma dívida ou de despedida de
alguma pessoa, para que se vá embora.
Por isso, nós tomamos «pa,resij» no sentido de remissão, e damos a esta passagem o
seguinte significado: na Redenção de CRISTO se demonstrou o amor salvífico de DEUS, não
só porque salvou os homens do tempo presente (v. 26), mas também pela remissão dos
próprios pecados cometidos anteriormente, sob o império da Lei mosaica, e que não podiam
ser perdoados em virtude do cerimonial do dia de Kippur. Assim a Redenção se coloca
deveras no centro da história e irradia com sua graça tanto os tempos que a precedem como os
que a seguem: não houve jamais perdão a não ser em referência ao sangue da Cruz! 45
Mas principalmente os tempos que vêm depois da Redenção acham-se repletos de sua luz.
Sublinha-o o Apóstolo repetindo a frase no v. 26. Sim! para manifestar a sua justiça no tempo
presente, isto é, nos tempos messiânicos, como já frisamos. E tudo isto aconteceu com o fito
de (eivj to,...) demonstrar que DEUS é justo e ao mesmo tempo justificador de quem tem fé em
JESUS CRISTO. DEUS é justo, no sentido de manter suas promessas e não rejeitar os
homens. Mas precisamente por ser justo neste sentido, também é justificador: como se
disséssemos: justo enquanto justificador assim como ele é rico enquanto enriquece os outros
(S. João Crisóstomo). DEUS é jutificador conferindo aos homens a capacidade de fazer atos
justos. A justificação, todavia, só ocorre com base na fé em JESUS CRISTO e não depende de
forma alguma da Lei (cf. 4,14)46.

43
Por outro lado, tais pecados podiam já ser perdoados, não em virtude do ineficaz rito do dia de Kippur, mas
do cruento sacrifício de CRISTO, que ele tão plasticamente prefigurava e como que antecipava. A paciência de
DEUS já perdoava em previsão do misterioso fato que se verificaria a seu tempo.
44
Cf. 2Cor 8,24. O Verbo correspondente é usado além de 2Cor 8,24, em Ef 2,7; 1Tm 1,16; 2Tm 4,14; Tt
2,10.
45
A propósito, deve-se recordar uma sugestiva e bem documentada explicação de S. Lyonnet, já avançada
por Lightfoot e em parte seguida por B. Weiss e por Dodd. Segundo Segundo S. LYONNET, Notes sur L’exégèse
de l’Epître aux Romains, II. Le sens de «pa,resij» en Rom. 5,25, em Bibl 38, 1957, 40-61, espec. 61, não se
deveria atribuir a «pa,resij» o significado idêntico de «a;fesij», isto é, remissão, porque não se veria o motivo
pelo qual S. Paulo não teria usado o termo mais claro e comum «a;fesij». Empregando, ao invés, «pa,resij», teria
o Apóstolo intencionado frisar esta nuança: DEUS em CRISTO mostrou a sua justiça salvífica mesmo a respeito
dos pecados cometidos no Antigo Testamento, pois os transferiu para o Novo Testamento, para que fossem
perdoados e apagados completamente. Estaríamos, portanto, diante de uma verdadeira remissão dos pecados,
mas não completa: o cerimonial da Expiação não só significava, mas de certa maneira levava a cabo uma
remissão de pecados, que no entanto haveria de ser completa apenas com o sacrifício da cruz.
Embora muito sugestiva, achamos tal interpretação (que o Autor utilizou também para a Bible de Jerusalém)
um pouco sutil. Por outro lado, parece-nos que nossa interpretação, da qual a de Lyonnet não é mais que uma
variante, leva suficientemente em conta o texto, as evidentes referências vétero-testamentárias e a lógica interna
do pensamento do Apóstolo.
46
Comenta S. Tomás: «ut sit ipse iustus, id est ut per remissionem peceatorum DEUS appareat esse iustus in
se ipso, tum quia remittit peccata sicut promiserat, tum quia ad iustitiam pertinet quod peccata destruat, homines
ad iustitiam Dei reducendo».
77

A «lei da fé» abole a «lei das obras»: vv. 27-31


O fato de a justificação vir apenas da fé em JESUS (cf. v. 26) corta pela raiz qualquer
orgulho do homem, e especialmente dos hebreus, que estão particularmente presentes ao
espírito do Apóstolo. O judeu não pode gloriar-se (v. 27) nem de seu passado, em que
dominou o pecado, nem da justificação, que se deve ao sangue de CRISTO. O direito de
gloriar-se («kau,chsij», com o artigo) exprime aquela mentalidade que põe a confiança 47 nos
privilégios da raça e na observância material da Lei. Agora porém à lei das obras, isto é, à
economia religiosa que esperava a salvação das obras do homem, Paulo opõe a lei da fé,
equivale a dizer uma economia de salvação baseada exclusivamente na fé, mediante a qual o
homem confessa sua radical insuficiência e confia unicamente em DEUS. Se, por uma parte, o
ato de fé, emitido livremente sob a luz da graça, afirma a dignidade e a responsabilidade
pessoal do homem, de outra, sublinha toda a vacuidade e ineficiência do mesmo homem: a fé,
na verdade, é um ver não com os próprios olhos mas com os de DEUS, um renunciar a salvar-
se por si mesmos, para ser salvos por DEUS, acolhendo em si a CRISTO como único
princípio de vida e de amor48.
Mas por que é que o Apóstolo para designar esta economia de salvação a chama de lei da
fé, termos que parecem contradizer-se entre si? Sem dúvida, refere-se ele às passagens de
Jeremias (31,31ss) e de Ezequiel (36,25ss) que falam da nova Aliança, quando a lei não será
mais escrita em pedras, mas nos corações: a lei então se tornará um princípio interior de ação
e de vida (cf. Rm 8,2). De tal sorte que uma simples observância dos preceitos evangélicos,
sem a íntima e convicta adesão da fé e do amor, não salva diante de DEUS 49.
O v. 28 aduz a razão (cremos...50) pela qual agora fica excluído para todos qualquer motivo
de glória. O termo homem deve ser entendido em sentido genérico, tanto a respeito dos
hebreus como dos gentios, como se esclarece melhor ainda pelo v. 29. justamente esse
universalismo da soberania de DEUS exigia que se desse a todos um meio para salvarem-se:
este não podia ser naturalmente a circuncisão, própria dos hebreus. Sê-lo-á porém a fé, como
se declara no v. 30: Uma vez que 51... etc. O abstrato (circuncisão e incircuncisão) está no
lugar do concreto.
Duas coisas se devem observar no v. 30: o futuro justificará (dikaiw,sei) e as duas
diferentes preposições («evk» e «dia,») empregadas para exprimirem a causalidade da fé na
justificação. De todo o contexto resulta evidente que a justificação já se efetua no presente (cf.
v. 26); por isso o futuro justificará deve ser ou um futuro lógico ou, antes, real, isto é,
referindo-se a qualquer momento em que uma pessoa, no decurso dos tempos, emitir o seu ato
de fé: não um futuro escatológico, isto é, com referência ao juízo. A diversidade da
construção (em virtude de fé, mediante a fé) não pretende certamente significar uma diferente
forma de justificação para os judeus e para os gentios. Isto é desmentido não só pelo contexto,
como também por Gl 3,8, onde se afirma que os gentios são justificados «evk pi,stewj», que é a
fórmula mais empregada para os judeus. S. Agostinho explicava a diferença pelo gosto de

47
«Kauca/sqai» é típico das cartas paulinas onde ocorre umas trinta vezes como verbo. Vinte vezes ocorre o
substantivo correspondente (ora «kau,chsij» = ato de gloriar-se, ora «kau,chma» = objeto de que alguém se
gloria). No resto do NT ocorre apenas três vezes, em Tg; é freqüente porém nos LXX, para exprimir a atitude
quer nos ímpios que se gloriam em si mesmos e em suas coisas (cf. Sl 48,7; 51,2; 73,4), ou do piedoso israelita
que se gloria em DEUS (Sl 5,12; 17,2ss; 31,1 etc.).
48
Ver o comentário de S. Tomás a Rm 4,5.
49
Cf. S. TOMÁS, Summa Theol., I/II, q. 106, a.2.
50
Em grego «logizo,meqa», do verbo «logi,zesqai», que em si significa julgar depois de ter ponderado
cuidadosamente as diversas razões.
51
Em grego temos «ei;per», não tanto com valor dubitativo quanto assertivo. Cf. Zorell, sub voce. A Vg.,
lendo com o textus receptus «evpei/per», traduziu quoniam quidem.
78

variar o estilo52. É mais provável, porém, que Paulo, tal como costumavam fazer também
autores profanos, alterne as preposições para denotar uma absoluta e completa causalidade
como se pode depreender de Rm 11,16, onde se quer justamente afirmar a soberana
causalidade de DEUS na criação53.
O v. 31 encerra a perícope respondendo a uma dificuldade que se pode apresentar
espontaneamente ao espírito do leitor e fazendo ver a harmonia entre os dois Testamentos (cf.
1,2; 3,21). A declaração de que agora é só a fé que justifica, sem as obras da Lei (v. 28),
autorizava o leitor a concluir que isto não só era a rejeição do Antigo Testamento, mas um
princípio de anarquia espiritual: como é que pode haver ordem sem um mínimo de
regulamentação e de disposições legais?
Pensamos que «no,moj», tendo em vista o contexto, tanto antecedente (3,21) como
conseqüente (c. 4), está designando o Antigo Testamento quer como revelação quer como
ordenação legal. Ora, tudo isto não só não é abolido54, mas até confirmado55. E isto por dois
motivos fundamentais: primeiro, porque já o Antigo Testamento contém o princípio da
justificação mediante a fé, como se demonstrará amplamente no c. 4, com o exemplo de
Abraão e a citação do Sal 32,1s; segundo, porque nem mesmo a nova economia de salvação,
toda ela baseada na fé, pode abolir ao menos um mínimo de regime legal (cf. lei da fé, v. 27)
só que a observância da lei será facilitada pela presença em nós de um princípio operativo
interior, realizado pela própria fé, isto é, o Espírito Santo. Por este motivo, 8,2 falará da lei do
Espírito da vida que nos livra da lei do pecado e da morte e nos ajuda a cumprir mais
perfeitamente as próprias prescrições da Lei mosaica, em seu verdadeiro significado (cf. 2,28;
13,9s). Achamo-nos portanto em face do mesmo pensamento expresso por JESUS em Mt
5,17.
Desta forma podemos dizer que o v. 31 é a conclusão do que precede mas, ao mesmo
tempo, o ponto de passagem para o c. 4, e o anúncio do que será desenvolvido mais tarde em
8,4 e em toda a parte parenética.

A «sola fides» segundo Lutero e segundo S. Paulo


A guisa de excursus acrescentemos algo mais preciso quanto ao significado do v. 28 e
quanto à interpretação que lhe deu Lutero. Ele acrescentou, em sua tradução alemã da Bíblia
(1521), à fórmula paulina «pela fé» o advérbio «apenas» (allein durch Glauben). Isto lhe
trouxe sempre a censura dos católicos e também de não poucos protestantes, como H.
Oltramare e F. Godet, que pensam, no mínimo, não ser oportuna a partícula acrescentada. Mas
Lutero sempre defendeu, de forma bastante áspera, sua tradução, dando-lhe, com o decorrer
do tempo, um sentido sempre mais claramente anticatólico e antipaulino.

52
“Non ad aliquam differentiam dictum est, tamquam aliud sit ex fide et aliud per fidem; sed ad varietatem
locutionis” (De Spiritu et littera, 29,50: PL 44, 231). A mesma explicação, mais ou menos, é dada por Lagrange,
o.c., 80.
53
Outros exemplos em 1Cor 8,6; Cl 1,16; Ef 4,6; cf. E. PERCY, Die Probleme der Kolosser und
Epheserbriefe, Lund 1946, S. LYONNET, em Bibl 32, 1951, 572.
54
O verbo «katarge,w» (de «kata,» + alfa privativo + «evrge,w») propriamente significa tornar ineficiente,
inerte (F. Zorell), e por isso abolir, destruir. É empregado muitas vezes por S. Paulo em relação à Lei (Rm 3,31;
Ef 2,15), à promessa (Rm 4,14; Gl 3,17), à fidelidade divina (Rm 3,3) etc.. A Vg traduz geralmente por
evacuare.
55
Com maior propriedade deveríamos traduzir «i`sta,nomen» (forma helenística de presente «i[sthmi» = pôr de
pé) por consolidamos, fazemos estar de pé.
79

Na realidade, a simples expressão em si pode ser interpretada também de maneira ortodoxa


e conforme ao genuíno pensamento de Paulo. Basta lembrar que a frase «só pela fé» ocorre
nos antigos Padres56 e mesmo em S. Bernardo57 e até em S. Tomás58.
Quanto a São Paulo, não apenas em Rom 3,28, mas também noutras passagens recorda que
a justificação procede da fé e não das obras: Gl 2,16; Fl 3,9. Daí é evidente que o Apóstolo
está se referindo a qualquer obra da Lei mosaica, também no plano moral, que possa ser
concebida como meritória da justificação: só a fé, portanto, nos alcança a justificação!
A fé, no entanto, não seria verdadeira fé, caso não levasse a um coerente compromisso de
vida cristã, executado nas obras de cada dia, como ensina muitas vezes o Apóstolo: Gl 5,6; Ef
2,8ss (texto ainda mais explícito); Tt 2,14. Mas na própria Epístola aos Romanos (8,4; cf.
6,12; 1Cor 15,10) e nas exortações que encerram invariavelmente as cartas paulinas
encontramos frisado este pensamento. Se nada, como ato meritório e exigitivo, pode preceder
a justificação, a não ser a fé, esta, então, pede como conseqüência e confirmação as obras.
Entre estas, em seguida, o Apóstolo destaca os sacramentos, especialmente o Batismo (Gl
3,26s). A fé, portanto, precisa ser integrada e como evidenciada pelo sacramento, o qual,
contudo, mais não é que a misteriosa ação de DEUS dentro de nós para produzir os efeitos de
sua graça. O próprio sacramento, em última análise, embora sendo distinto da fé, resolve-se
nela, sem a qual - como diz S. Tomás, comentando Gl 3,27 - «effectum Baptismi nullum
consequimur».
Concluindo, quando Paulo fala da fé que justifica, quer falar sempre da fé assim chamada
formada ou viva, acompanhada por conseguinte do amor e das boas obras.
Parece, porém, que não é esta a interpretação dada por Lutero, ao menos nas etapas
ulteriores de seu pensamento59.
E eis agora, em síntese, os principais pontos doutrinais ilustrados pelo Apóstolo nesta
passagem:
a) A justiça salvífica de DEUS se manifestou (v. 21) na Redenção que está em CRISTO
JESUS (v. 24). Em virtude de seu sangue, ele realizou aquela função de reconciliação com
DEUS e de verdadeira remissão dos pecados que o propiciatório do Antigo Testamento (v.
25), mais de que absolver, misteriosamente prefigurava. Desta maneira DEUS se manifestou
justo, exatamente enquanto justifica todo aquele que tem fé em JESUS (v. 26).

56
Assim Ambrosiastro, comentando a Rom 3,24, escreve: «Iustificati sunt gratis, quia nihil operantes, neque
vicem reddentes, sola fide iustificati sunt dono Dei" (PL 17,83), onde, pelo contexto e comparando com o
comentário no v. 28s, resulta claramente que ele exclui as obras da Lei mosaica, especialmente as observâncias
cerimoniais.
57
«Quamobrem quisquis pro peccatis compunctus esurit et sitit iustitiam, credat in te qui justificas impium et
solam iustificatus per fidem, pacem habebit ad Deum», onde é evidente que se fala de fé viva, unida à caridade e
à compunção interior (In Cantic., sermo 22, 8: PL 183, 881).
58
Comentando 1Tm 1,8, observa ele que não podemos pedir às disposições legais mais do que legitimamente
podem dar: «Non est ergo in eis spes iustificationis, sed sola fide: arbitramur iustificari hominem per fidem sine
operibus legias». Lect. 3 (Ed. R. Cai, n. 21). Deve-se então notar que S. Tomás pretende falar não só das
disposições cerimoniais, mas também mais propriamente morais da Lei. Até algumas traduções da Bíblia, antes
da de Lutero, acrescenta a mesma partícula: assim, por ex., uma edição alemã impressa em Nuremberg no ano de
1483 traduz Gl 2,16 por «nur durch den Glauben».
59
Assim, comentando Gál, de forma muito incisiva se exprime: «Fides sine et ante charitatem iustificat».
Chega mesmo a dizer: «Fídes nisi sit sine ullis etiam minimis operibus non iustificat, immo non est fides» (Cf. as
citações em S. Roberto Belarmino, De iustificatione, I. c. 12). Em seu comentário aos Romanos (II, 100), porém
Lutero não só não exclui as obras subseqüentes à justificação, mas nem mesmo as que a precedem, contanto
porém que sejam feitas pro iustificatione quaerenda. Estamos ainda com a doutrina católica. O Concílio
Tridentino não afirma algo muito diferente, quando declara: «Si quis dixerit, sola fide impium justificari, ita ut
intelligat, nihil aliud requiri, quod ad iustificationis gratiam consquendam cooperetur, et nulla ex parte necesse
esse, eum suae voluntatis motu praeparari atque disponi: A.S.» (D 819).
80

b) Com base na Redenção a história humana se divide como que em duas grandes
vertentes: o tempo anterior a CRISTO, ou da paciência de DEUS (v. 26), ou seja, o tempo em
que DEUS, malgrado a infidelidade de Israel e a degeneração dos gentios, não aboliu o seu
plano de amor; e o tempo presente, cheio de toda a presença de CRISTO, em que conseguem
a definitiva remissão até os pecados cometidos anteriormente (v. 25; cf. At 13,38).
c) O único meio para conquistar a Redenção é a fé (v. 28; cf. vv. 22.25ss. 30s), mediante a
qual o homem dá crédito a DEUS, às suas promessas salvíficas, à sua onipotência, ao seu
amor e ao infinito valor propiciatório do Sangue de CRISTO. É claro, porém, segundo todo o
contexto próximo e remoto, que Paulo não está falando duma fé estéril e inoperante.
d) A salvação mediante a fé elimina agora qualquer discriminação entre judeus e gentios
(v. 29). Motivo: todos, indistintamente, pecaram e estão privados da glória de DEUS (v. 23).
A circuncisão, por conseguinte, não é um privilégio, como também não o é a incircuncisão (v.
30).
e) A economia da fé (v. 27), contudo, não abole a Lei mosaica, entendida seja como
complexo da revelação vétero-testamentária seja como ordenação legal; antes a confirma (v.
31). E isto porque o princípio da fé estava já atuando no Antigo Testamento como demonstra
o exemplo de Abraão (4,3; cf. Gn 15,6); e também porque, apenas em virtude do princípio
interior da fé, conseguimos executar qualquer ordenação legal (cf. 13,8ss), nós que
caminhamos segundo o espírito (8,4).
81

As Epístolas do Cativeiro em geral


1. O problema do cativeiro
As epístolas que S. Paulo escreveu respectivamente aos Efésios, aos Filipenses, aos
Colossenses e a Filêmon (ordem do cânon tridentino) denominam-se epístolas do cativeiro,
porque nelas o Apóstolo aparece como prisioneiro. Além de relacionarem-se por este
elemento extrínseco, as quatro cartas - sobretudo Colossenses e Efésios relacionam-se por
notáveis semelhanças de conteúdo.
Nestas epístolas S. Paulo declara-se detento em cadeias (Fl 1,7.13), prisioneiro pela causa
de Cristo (Ef 3,1; 4,1; Cl 4,3; Fm 1.9) ou do evangelho (Fm 13), mensageiro de CRISTO em
cadeias (Ef 6,20); nelas gerou o escravo Onésimo na fé (Fm 10); delas devem os fiéis
lembrar-se (Cl 4,18), enquanto ele se alegra porque revertem em beneficio deles (Cl 1,24). A
informação mais ampla sobre o estado do prisioneiro e sobre os reflexos da prisão na difusão
do evangelho encontra-se em Fl 1,12-20.
Paulo revela-se prisioneiro também em 2Tm (1,8.12.16; 2,9), escrita de Roma (1,17); mas,
por causa do conteúdo, esta carta coloca-se entre as Pastorais. Não entraria, em todo caso, no
grupo acima arrolado, por ter sido escrita de prisão certamente diversa.
Até ao fim do século XVIII atribuíam-se as quatro cartas, sem qualquer hesitação, à
primeira prisão que Paulo sofreu em Roma. Depois foi-se difundindo a opinião de que elas
teriam sido escritas – todas ou em parte – em Cesaréia: opinião que entre os católicos não teve
quase nenhuma aceitação, e presentemente não desfruta de muito crédito nem mesmo em
outros campos. Maior aceitação obteve, ao contrário, também entre os católicos, a hipótese da
origem efesina (ao menos da carta aos Filipenses), emitida pelos inícios deste século.

Prisões certas de São Paulo


Os Atos informam-nos de que Paulo esteve preso com Silas, uma noite, em Filipos (16,23-
40); que esteve encarcerado outrossim em Jerusalém, na fortaleza Antônia, mas por breve
tempo: o suficiente para que o tribuno Clâudio Lísias, ao perceber a singularidade e os riscos
do caso, o remetesse ao tribunal do procurador Félix em Cesaréia (21,31-23,31). Aqui a prisão
se prolonga para além de um biênio60 sob os procuradores Félix e Festo (23,35-26,32). Em
conseqüência da apelação ao tribunal do imperador, Paulo é enviado preso para Roma (27,1-
28,16), onde permanece sem liberdade por outro biênio, compendiado por Lucas nos dois
versículos (28,30s) que fecham a sua narrativa.
É provável que essa prisão romana tenha tido um final feliz, i.é, tenha terminado com a
absolvição do réu61. Mas Paulo aparece novamente prisioneiro em 2 Timóteo (1,8.12.16s;
2,9). Desta vez a sua condição é francamente outra: lançado talvez num cárcere comum62,
abandonado pelos amigos, exceto Lucas (4,9ss), Paulo prevê iminente o fim da própria vida
(4,6ss.16ss).

60
At 24,27; cf. 28,30: biênio é, talvez, o termo jurídico que indica o tempo máximo, transcorrido o qual, o
prisioneiro, não condenado por sentença do tribunal, devia ser libertado. Cf. The Beginnings of Christianity, V.
330-336; mas a demonstração não é de todo convincente.
61
O processo provavelmente não se realizou, pelo fato do os acusadores não se terem apresentado; assim o
encarcerado foi liberto por lei. O fato da libertação está conexo com a autenticidade paulina das Pastorais.
62
«... me,cri desmw/n w`j kakou/rgoj», i.é, como delinqüente comum (cf. 2Tm 2,9).
82

Provável prisão em Éfeso


Nenhum texto dos Atos ou das cartas fala, ao menos não expressamente, de uma prisão de
Paulo em Éfeso. E, todavia, que o Apóstolo tenha estado preso também na metrópole da Ásia
é opinião muito provável segundo não poucos críticos. Será que ela tem fundamento válido:
1) nas fontes canônicas e 2) em outros documentos da antigüidade cristã?
1. Notemos, antes de tudo, que em 2Cor 11,23 Paulo rememora, entre as fadigas e os
sofrimentos do seu apostolado, repetidas prisões. Ora, para o período que vai até à segunda
carta aos Coríntios, escrita pouco após a estadia de três anos em Éfeso, os Atos registram só a
prisão de uma noite em Filipos63. Esta não parece suficiente para justificar o plural em prisões
nem o comparativo mais, que, no caso, sugere antes a idéia de repetição que a de duração ou
de intensidade. Cumpre, portanto, admitir que Paulo tenha estado preso mais de uma vez antes
de compor a segunda carta aos Coríntios.
A hipótese, segundo a qual teria havido uma prisão durante a permanência em Éfeso,
torna-se possível já pela prolongada permanência na capital da Ásia, pelo intenso trabalho lá
desenvolvido com repercussões na província inteira (At 19,10), e pelas numerosas
hostilidades lá encontradas (1Cor 16,8s).
Para apoiar a idéia de uma prisão efesina tem-se muitas vezes alegado 1Cor 15,32. Que a
luta com as feras tenha ocorrido realmente, é excluído por quase todos. Continua, porém,
objeto de discussão se Paulo fala - como fará depois S. Inácio (Ad Romanos 5,1) - de feras em
sentido figurado, ou de um realmente enfrentado perigo de ser lançado às feras.
Tem-se feito também o raciocínio de que uma prisão de Paulo e de alguns colaboradores
seus em Éfeso explicaria a designação de companheiros de prisão dada a alguns personagens
de sua comitiva, com referência ao período anterior à prisão cesareense-romana.
Paulo afirma em Rm 16,4 que Priscila e Áquilas arriscaram a cabeça para lhe salvarem a
vida, sem precisar quando nem onde; mas o período efesino parece o mais indicado, embora
se exclua - como está excluído - que o casal tenha sido condenado às feras em lugar de Paulo.
O conjunto desses indícios torna plausível a hipótese de uma prisão de Paulo em Éfeso. Por
ela parecem explicar-se alguns pontos obscuros dos Atos e das cartas paulinas. A mais grave
objeção continua a ser o silêncio dos Atos: como poderia S. Lucas ter calado de todo um fato
tão notável para o apostolado de S. Paulo em Éfeso?
Não é inverossímil que entre os dados omitidos por Lucas, referentes ao biênio
compendiado em At 19,10, se tenha omitido também uma prisão notavelmente longa 64.
2. Clemente Romano afirma (Ad Corinthios 5,6) que Paulo foi preso ao menos sete vezes.
Ora, com as notícias tiradas apenas dos Atos e de 2Tm não se justifica tal afirmação de uma
testemunha tão próxima a Paulo, ainda admitindo que se possa chamar de prisão a detenção
de uma noite em Filipos e a própria condução para o tribunal de Galião em Corinto. Pois,
segundo esse modo de contar, Paulo teria estado preso em Filipos (At 16,33-40), em Corinto
(At 18,12-17), em Jerusalém (At 21,27-36), em Cesaréia (At 23,36-26,32), em Roma (At
28,14-31), de novo em Roma (2Tm 1,16s). Clemente devia, portanto, ter notícias mais
completas do que as referidas pelos Atos e pelas cartas paulínas sobre acontecimentos que
justificavam o plural prisões usado por Paulo já logo após o período efesino (2Cor 11,23).

63
At 16,23-40. O comparecimento ao tribunal de Galião (At 18,12-17) não foi nem precedida nem seguida de
prisão.
64
O processoo pelo qual Lucas compendia um longo e denso período de atividade em poucos versículos,
verifica-se também para a primeira estadia de Paulo em Corinto (At 18,1-18a): o fato saliente (18,12-17) é, como
no caso de Éfeso, uma sublevação popular contra Paulo por obra dos judeus. As cartas aos Coríntios nos deixam
entrever muito mais do que os Atos resumem em 18,1-11.
83

2. Relações entre as epístolas do cativeiro


Indicamos, a seguir, os elementos adotados para sustentar que a carta aos Filipenses se
originou de lugar diferente em relação às outras cartas.

Diferentes os portadores
As Cartas aos Efésios e aos Colossenses possuem, quase com certeza, um portador comum,
Tíquico (Cl 4,7s; Ef 6,21s). A ele vem associado o escravo fugitivo Onésimo (Cl 4,8), que
Paulo remete ao dono Filêmon com carta de recomendação (Fm 12). Na carta aos Filipenses,
ao invés, não são mencionados nem Tíquico nem Onésimo: portador é Epafrodito, o enviado
da Igreja de Filipos, que, tendo convalescido de grave doença, retorna à sua comunidade (Fl
2,25-30).

Diferentes as pessoas junto a Paulo

Diferentes as perspectivas do futuro65

Diferenças de conteúdo
Em Colossenses e Efésios o conteúdo doutrinal e o conteúdo prático estão bem
equilibrados: este é aplicação daquele. Filipenses é quase exclusivamente parenética: uma
livre efusão de espírito do Apóstolo para com a comunidade amada. Também a passagem
dogmaticamente mais importante de toda a carta, 2,6-11, é ocasionada por uma recomendação
à prática da vida cristã, a qual se baseia assim, com solidez, nos grandes princípios doutrinais.
A carta aos Filipenses parece aproximar-se bastante mais, sob certos aspectos, de 1 e 2
Tessalonicenses, de Gálatas e de 2 Corintios do que das outras cartas do cativeiro. O tema
cristológico de Fl 2,6-11 apresenta um caráter todo próprio que o isola não só das cartas do
cativeiro, mas também do restante epistolário paulino; constitui antes uma ponte entre a
cristologia das grandes epístolas e a dos escritos posteriores.

Diferença de linguagem e de estilo


Mais sensível ainda é a diferença de linguagem e de estilo notada em Filipenses, por um
lado, e em Colossenses e Efésios, por outro. Filipenses tem em comum com estas um número
bem limitado de vocábulos e de expressões características; mas tem um número comum bem
notável com Gálatas, 1 e 2 Coríntios e, em geral, com as cartas paulinas ordinariamente
consideradas anteriores a 57/58. O estilo cheio de vida de Filipenses distingue-se do estilo
intrincado e pesado, que caracteriza sobretudo Efésios.

65
Cf. Flm 22, Col 4,3 e Flp 1,20-26.
84

Epístola aos Filipenses


1. Inícios da comunidade destinatária

Filipos
Filipos (Fili,ppoi) era, nos tempos de Paulo, uma das principais cidades da Macedônia:
certamente a primeira a encontrar-se após desembarcar em Neápolis (a atual Kavalla), que
pertencia não à Macedônia mas à Trácia. Filipos não podia ser designada como capital da
Macedônia, que era Tessalonica, e nem sequer do distrito, que era Anfípolis, se admitimos
que ainda estava em vigor a divisão em quatro distritos estabelecida por Paulo Emílio em 167
a.C.
As ruínas de Filipos (Filibah ou Filibegik) situam-se no km 16 da atual estrada entre
Kavalla e Drama. A planície da antiga Filipos está separada da costa do Egeu pelo maciço do
Pangeu (Bounar-Dagi).
Antes de ser conquistada por Filipe II da Macedônia, em 356 a.C., a cidade chamava-se
Krenides (Krhni,dej), por causa das pequenas nascentes, das quais a água descia para irrigar a
planície. Chamava-se também Datos ou Daton. Parece ter sido fundada no séc. VI a.C. pelos
tasianos, da ilha de Tasos, atraídos pelas riquezas da zona. Expulsos pelos trácios, reouveram
a cidade de Calístrato (361 a.C.), exilado de Atenas. Filipe, transformando a cidade numa
colônia avançada para defender as suas conquistas, deu-lhe o seu próprio nome. As minas de
ouro e de prata do Pangeu tornaram-se então uma das principais fontes de renda do jovem
império macedônico; mas, na medida em que as jazidas se iam esgotando, Filipos viu declinar
a sua importância. Permaneceu modesta aldeia também depois da conquista romana (na
terceira guerra macedónica, 171-168, finda com a vitória de Pidna) e depois da construção da
via Egnácia, que a tocava. A batalha de Filipos (42 a.C.) marcou o início de nova vida. A
importância de uma cidade situada no caminho obrigatório entre a Itália e a Ásia, que
apresentava com a sua acrópole, as vantagens de uma fortaleza, e que mostrava, pela
abundância das águas a lhe irrigarem a planície, as características de uma zona agrícola fértil,
não escapou à observação dos triúnviros Antônio e Otaviano nas semanas anteriores ao
combate decisivo contra as forças republicanas de Bruto e Cássio.
A colônia de Filipos teve inicio com um núcleo de veteranos deixados no posto (primeira
deductio, 42 a.C.), por ordens - parece - de Antônio. Após a batalha de Ácio (2 de set. de 31
a.C.), a colônia cresceu notavelmente, pois Otaviano enviou para lá (segunda deductio)
soldados sobreviventes, do exército de Antônio e proprietários italianos que haviam tomado o
partido de Antônio, aos quais o vencedor confiscou as terras em favor dos próprios veteranos.
Para suavizar a dura sorte dos deportados, a cidade de Filipos obteve o privilégio do ius
Italicum (At 16,21), que, entre outras regalias, a isentava do tributo fundiário e pessoal.
Tipo misto, militar e civil, Filipos chamou-se primeiro Colonia Victrix Philippensium, com
a reorganização de Otaviano chamou-se Colônia Iulia Philippensis; após 16 de janeiro de 27
a.C., quando o senado atribuiu a Otaviano o título de Augustus, tornou-se Colonia Augusta
Iulia (ou Iulia Augusta) Philippensis; desde a metade do séc. III, tendo caído em desuso os
demais nomes, chamou-se simplesmente Colonia Philippensium. Só depois que Roma
submeteu por completo a Trácia, Filipos pôde trabalhar em paz pelo próprio desenvolvimento
e embelezamento, dando-se instituições romanas e introduzindo novos cultos.
Se a cidade propriamente dita não era grande, a colônia contava não poucos centros
menores (vici), dedicados à agricultura. A população era greco-romana, prevalecendo a
segunda; mas sobrevivia forte também o elemento original trácio. Língua popular ficou por
85

muito tempo o grego, embora o latim, língua dos atos administrativos, fosse então usado até
pela população trácia - note-se o latinismo «Filipph,sioi» em Fl 4,15 - com influências de
uma língua sobre a outra: encontraram-se inscrições latinas redigidas em caracteres gregos.
As informações mais diretas sobre as religiões e sobre os cultos praticados em Filipos nos
tempos de S. Paulo no-las fornecem as inscrições rupestres da acrópole. O culto das
divindades romanas não suprimiu os cultos trácios nem impediu que se introduzissem as
religiões orientais. Como na Trácia em geral, assim também em Filipos os túmulos atestam,
com símbolos constantes, a adesão daquelas populações aos cultos órfico e dionisíaco, que
acentuavam tão fortemente a vida futura. Estas características da religiosidade popular, bem
como a posição que tornava a colônia filipense uma cabeça de ponte entre Roma e o Oriente,
favorecendo o ingresso das religiões orientais, contribuiu, talvez, para facilitar a entrada à
mensagem cristã.

S. Paulo em Filipos
Filipos, com as outras cidades da Macedônia, foi evangelizada durante a segunda viagem
missionária de S. Paulo (At 15,36-18,22). O Apóstolo estava em Tróia, quando, certa noite,
uma visão o solicitou a passar para a Macedônia, a fim de salvar aquelas populações (At
16,8ss). Paulo, Silas ou Silvano e, quase com certeza, Lucas atravessaram em dois dias -
incluindo-se uma breve parada na ilha Samotrácia - o braço de mar que os separava da costa
trácia. Tendo desembarcado em Neápolis (Kavalla), transpuseram a pequena cadeia do
Symbolon (500 m acima do mar apr.) despontando diretamente sobre Filipos, a mais ou
menos dezesseis km da costa marítima.
Não parece ter havido em Filipos uma sinagoga. Os hebreus possuíam lá apenas um lugar
de oração («proseuch,», At 16,13), fora da cidade («e;xw th/j pu,lhj», ibid.), à margem do
Gangites (ou Angites ou Gangas, hoje Bunarbaschi).
Lá os missionários, no primeiro sábado, encontraram um grupo de piedosas mulheres
hebréias e prosélitas, que acolheram bem a mensagem evangélica. Entre elas havia uma
purpureira, procedente de Tiatira na Lídia; daqui procede, certamente, o sobrenome de Lídia
(a Lídia), dado a ela na sua atual residência. Tendo-se feito batizar, ela ofereceu a casa aos
missionários, dos quais precisou, provavelmente, vencer a inicial resistência (At 16,15). Paulo
não gostava de ser incômodo a ninguém (1Ts 2,9; 2Ts 3,8); mas em Filipos foi necessário
abrir alguma exceção.
As reuniões da pequena comunidade continuaram no lugar da «proseuch,» (At 16,16), que
podia distar dois km da povoação. Durante o percurso ajuntou-se, por vários dias, à comitiva
uma escrava com espírito pitônico; gritando, ela insistia em dizer que os missionários eram
servos de DEUS e mensageiros da salvação. Incomodado, Paulo impôs silêncio ao espírito,
assim como fizera JESUS (Mc 1,24s.34). O prodígio de libertar do espírito a escrava marcou
o início das hostilidades contra a nova religião, porque se extinguiu, com a arte divinatória,
também uma fonte de renda para os amos da donzela. Estes acusaram os missionários junto
aos magistrados como judeus perturbadores de uma população romana. A plebe sublevou-se;
os magistrados fizeram, sem mais nem menos, flagelar a Paulo e a Silas e os lançaram no
cárcere (At 16,19-24). Durante a noite um terremoto sacudiu violentamente a prisão. Resultou
que o próprio carcereiro e a sua família se converteram à fé (At 16,25-34) e os magistrados
restituíram a liberdade aos prisioneiros, embora isto possa antes ter sido fruto de tardia
reflexão sobre seu proceder precipitado e ilegal. Mas os missionários não concordaram em
sair do cárcere senão após terem feito valer os seus direitos de cidadãos romanos junto aos
pretores. Estes rogaram-lhes que se retirassem da cidade; Paulo e Silas consentiram. Ao irem-
se embora, passaram pela casa de Lídia, a fim de confortarem os irmãos (At 16,35-40). O
86

sofrimento selou assim a primeira pregação em Filipos e consagrou os inícios da nova


comunidade.
Em Filipos ficou, provavelmente, Lucas. Pois o plural nós, cessado no momento da prisão
de Paulo e de Silas, só reaparece nos At 20,5, quando Paulo passa por Filipos, retornando da
terceira viagem apostólica66. Menos fundamentado é concluir, dessa provável permanência,
que Lucas era natural de Filipos.
Quanto durou a primeira estadia de Paulo em Filipos? Os elementos cronológicos de que
dispomos nos dão uma resposta apenas relativa. Segundo os At 16,12, antes de iniciarem a
pregação em dia de sábado, os missionários já haviam andado alguns dias na cidade 67,
provavelmente menos de uma semana, pois a frase seguinte (v. 13) parece indicar o primeiro
sábado passado em Filipos. Em 16,18 os Atos informam-nos ter a pitonisa continuado, por
muitos dias, a testemunhar sobre os missionários, que se dirigiam para o lugar da oração. Se
estes iam rezar todos os dias - o que não se exclui - então os muitos dias poderiam não
exceder uma semana. Mas se iam apenas aos sábados, segundo o costume das piedosas judias
e prosélitas, então o número de semanas cresce. Por outro lado, a comunidade apresentava-se
como um núcleo considerável (At 16,40), bem radicado na fé e na caridade e unido de
coração a Paulo como ao proprio pai e mestre. Tudo isto não pôde realizar-se senão no
decorrer de várias semanas, quando não de algum mês.
Sobre as visitas posteriores de Paulo a Filipos e sobre as relações mantidas entre ele e a
comunidade temos apenas leves referências dispersas nos Atos e nas cartas. A visita mais
longa parece ter sido aquela que se afirma implicitamente em At 20,1s; 2Cor 2,13; 7,5; 8,1.
Embora se fale genericamente de Macedônia (At 20,1) ou de aquelas regiões (20,2) não se
pode excluir Filipos, por causa das relações afetuosas manifestadas entre Paulo e aqueles fiéis.
Pode-se supor, antes, que S. Paulo tenha passado em Filipos a maior parte do tempo em que
aguardou penosamente a chegada de Tito vindo de Corinto; e não é improvável que tenha
escrito de Filipos a segunda carta aos Coríntios. Mais breve foi, sem dúvida, a visita que os
Atos referem em 20,6; porque Paulo andava ansioso por chegar a Jerusalém; mas ela não
durou menos de uma semana - a semana dos ázimos.
Com os fiéis de Filipos S. Paulo fez exceção à sua norma de não aceitar recursos materiais
das comunidades (Fl 4,15). Pelo contrário, com o elogio estimulou-lhes a generosidade, tanto
mais apreciável quanto esses eram prevalentemente de condições modestas (cf. 2Cor 8,2).
Pelo que o Apóstolo revela (Fl 2,12), a comunidade mostrou-se constantemente dócil e não
lhe causou desprazer algum. A tonalidade da exortação exprime quanta confiança Paulo
depositava na boa vontade daqueles fiéis. Existe, sim, alguma sombra (Fl 4,1ss), mas é
desprezível num quadro tão cheio de luz.

2. Origens da carta aos filipenses

Dados da carta
Informada sobre a prisão de Paulo, a comunidade de Filipos envia-lhe Epafrodito para
socorrê-lo em suas compreensíveis necessidades. Epafrodito devia pertencer àquele grupo de
pessoas que, como Clemente (Fl 4,3), trabalharam com Paulo desde a primeira evangelização
de Filipos: é chamado de irmão, cooperador e companheiro de luta (2,25), além de apóstolo, i.

66
Isto não significa que Lucas tenha permanecido sempre em Filipos por seis anos e mais, i.é, quantos anos
passaram desde a partida de Paulo, após a primeira evangelização, até ao fim da terceira viagem missionária.
Ter-se-á certamente afastado mais de uma vez: pôde, p.ex., visitar Paulo em Éfeso.
67
Onde se hospedaram antes de serem obrigados (At 16,15) a morar na casa de Lídia? Não é improvável a
hipótese de uma hospedaria pública.
87

é, enviado e representante da comunidade (ibid.). Mas Epafrodito adoece a tal ponto de correr
perigo de vida (2,27). Os filipenses são informados da sua enfermidade (2,26); isso torna
Epafrodito, reconvalescido da doença, tão melancólico e tão ansioso por rever os seus, que
Paulo decide enviá-lo de volta (2,25). Epafrodito será o portador da carta. O Apóstolo espera
poder enviar a Filipos também Timóteo, tão logo conhecer o resultado da sua própria causa
(2,19-23). Tratando disto (1,13.20s.25s), exprime-se acentuando a incerteza de seu futuro,
inclinando-se, todavia, a confiar na libertação, até a curto prazo (1,26; 2,24).
Acham-se perto de Paulo, além de Timóteo (1,1; 2,19-24) e Epafrodito, também outros
irmãos não identificáveis (4,21).

Lugar e tempo de composição


Quanto ao tempo e ao lugar de composição, considera-se muitas vezes a carta aos
Filipenses em separado das outras três, como vimos ao tratarmos das cartas do cativeiro em
geral.

Autenticidade
A autenticidade paulina desta carta é admitida hoje quase unanimemente.

3. Conteúdo de Filipenses
Não é fácil dividir e analisar esta carta à base da costumeira distinção entre conteúdo
doutrinal e conteúdo prático ou à base do desenvolvimento de determinado assunto. O melhor
de tudo é seguir a Paulo nas suas confidenciais efusões para com a comunidade amada,
conduzidas pela lógica do coração mais do que pela da mente, levando em conta, além disso,
a inata rapidez com que Paulo passa de um pensamento, às vezes apenas esboçado, para outro,
retomando depois ao primeiro e completando-o.
Saudação e preâmbulo: 1,1-11
Notícias do presente e perspectivas do futuro: 1,12-26
Exortações várias: 1,27-2,18
Timóteo e Epafrodito: 2,19-30
Inimigos da Cruz! 3,1-21
Últimas recomendações: 4,1-9
Agradecimento: 4,10-22

4. Exegese: O Hino Cristológico (Fl 2,5-11)


Paulo une à exortação moral (vv. 1-4) as mais altas considerações teológicas (vv. 5-11). Os
primeiros quatro vv. formam o preámbulo do hino cristológico que, sob o aspecto dogmático,
é a passagem mais importante da carta, ou antes, uma das mais notáveis do epistolário
paulino.
A parte parenética (vv. 1-4) inicia esconjurando os fiéis pelo que há de mais excelente na
vida em CRISTO, a fim de completarem a alegria do Apóstolo por sua conduta pessoal (vv.
1,2a); recomenda depois (vv. 2b-4) a prática de um complexo de virtudes sobre as quais
domina a humildade, condição indispensável para todas as outras.
88

Estrutura do texto:
O texto tem 2 partes:
2,6-8: humilhação
2,9-11: exaltação
2,8d: momento de transição

Condição divina (modo de existir Divino) - Senhor JESUS CRISTO para a glória de
(Daseinsweise GOTTES) DEUS Pai
não se ateve (reteve) avidamente
1. mas despojou-se (“esvaziou-se”) e toda língua confesse
condição (modo de existir) de escravo para que... todo joelho 5.
assemelhando-se aos homens Lhe outorgou o nome 4.
tendo sido reconhecido exteriormente
2. como homem, humilhou-se ainda mais DEUS O sobreexaltou 3.
obediente até a morte por isso
e morte de cruz

1. Encarnação de CRISTO
2. CRISTO encarnado (ser humano) até as últimas consequências
3. Apresentação
4. Proclamação
5. Aclamação

O Hino em Síntese
11
Preexistência Divina Aclamação
6 10 Adoração universal
Sujeito do agir é CRISTO Sujeito do agir é DEUS
Despojamento 7 9 exaltação (ressurreição e ascensão)
(nascimento em Belém) 8
morte na Cruz

Exegese do texto:
Morfh/ = aparência exterior (Pindar, Aeschylos)
manifestação, característico (Platão, filosofia em geral)
= forma (hilemorfismo!; Aristóteles)
estes significados continuam. Mudança no sentido helenístoco:
metamorfou/sqai não significa mais a mudança do aspecto exterior,
mas da essência. Assim, morfh/ significa outro modo de existir na
substância e força Divina. Outra interpretação: sentido de
condição, estado, posição. Não pode-se tratar da figura exterior,
porque a figura se tem, mas não está nela. A preposição e;n em
ligação com u`pa,rcwn (equivalente a ei/nai) significa o ser
determinado por alguma coisa. Assim significa morfh/ aqui o
«modo de existir de DEUS» (muito perto ao conceito da
natureza). Segundo os padres: morfh/ = ouvsi,a (essência, natureza).
h`gh,sato O núcleo da afirmação está no confronto entre aquilo que não
aconteceu, embora pudesse ter acontecido e fosse “normal”
89

(segundo o nosso modo de pensar humano) que acontecesse, e


aquilo que realmente se deu.
a`rpagmo,n - res rapta (já está na posse)
- res rapienda (a ser conquistado ainda).
Em si, ambos os sentidos são responsáveis. A expressão toda: ouvc
a`rpagmo.n h`gh,sato é um modo de falar, e significa: considerar
alguma coisa como lucro, proveito. Mas deve-se considerar que o
proveito pode significar tanto uma possibilidade, que se dará em
breve, e que a gente não quer deixar passar, quanto um fato
existente de que ninguém se aproveita. Portanto, o significado
desta expressão vale também aqui (Fil 2,6b): CRISTO celeste não
o reteve (avidamente) o u`pa,rcwn (ser igual a DEUS). ELE não
considerou como vantagem que não devia largar, não usa as
vantagens do Seu ser igual a DEUS: JESUS CRISTO não reteve
avidamente o ser igual a DEUS.
ei=nai i;sa qew/ em princípio se identifica com evn morfh/| qeou/ u`pa,rcwn. O acento
está agora na posição. Circunscrever o mesmo pensamento com
palavras diferentes é característico para uma singela linguagem
religiosa.
i;sa acusativo adverbial. Não fala da qualidade da Divindade, mas da
posição de dignidade que é: “igual a DEUS” (GOTTgleiche
Würderstellung). A exegese dos padres vê aqui expresso o
pensamento de que JESUS e só JESUS pode-se legitimamente
colocar no nível Divino (ser DEUS) contrariamente a outros
homens venerados como deuses.
avlla, indica a oposição: forma de DEUS – forma do servo.
e`auto.n evke,nwsen com toda liberdade CRISTO despojou-se a Si mesmo (cf. Jo
17,5); indica a encarnação: DEUS se torna homem, deixando
aquilo, que ELE possuiu. A separação entre o mundo de DEUS e
o mundo dos homens somente podia ser superada por esta
iniciativa de DEUS.
morfh.n dou,lou labw,n última explicação do despojamento. Morfh, aqui tem o mesmo
sentido como em cima, v. 6 (morfh/| qeou/: modo de existir de
DEUS), modo de existir do escravo. Em lugar da Divindade está
agora a escravidão. O ser escravo aqui é considerado em ligação
com o ser homem. O homem encontra-se numa condição de
escravo. Em oposição a Adão há agora a obediência e a expiação
de CRISTO.
evn o`moiw,mati Conclusão da descrição da encarnação. geno,menoj indica ainda um
avnqrw,pwn movimento, um dever, que encontra no seguinte eu`reqei.j
geno,menoj\ (encontrado, achado) o seu fim. o`moiw,mati indica a solidariedade
com os homens.
sch,mati eu`reqei.j w`j sch,mati explica algo exteriormente perceptível. JESUS era
a;nqrwpoj exteriormente reconhecível e reconhecido como sendo um
homem, e foi homem até as últimas consequências
evtapei,nwsen e`auto.n A humilhação está intimamente ligada à obediência. O acento está
no fato de que CRISTO se despojou completamente e obedeceu,
sem indicar a quem e para que ELE obedeceu. Não é importante,
a quem Ele obedeceu, mas que ELE obedeceu.
evtapei,nwsen pode significar subordinação às leis do mundo (cf.
os livros sapienciais no AT). CRISTO assumiu plenamente a
90

condição humana subordinando-Se às leis, às limitações da vida


do ser humano. Testemunha mais eloquente dessas limitações é a
morte. A morte significa o último “sim” de CRISTO à Sua missão
terrestre, o ponto ínfimo do caminho humano, vivido na
obediência.
u`ph,kooj me,cri qana,tou( Morte salvífica de JESUS
qana,tou de. staurou/
dio. kai. o` qeo.j auvto.n Com v. 9 começa a grande revira-volta. Chegado no ponto mais
u`peru,ywsen profundo DEUS intervém por Sua ação. (nos vv. 6-8 o sujeito da
frase é CRISTO; agora DEUS PAI é o sujeito da frase). Até agora
JESUS agiu por Si mesmo. Agora ELE é o objeto da ação de
DEUS. A realidade do ser humano não deve ser posta em dúvida.
dio, Faz a ligação entre as duas partes. Dio, é característico para o
esquema bíblico da Humilhação e exaltação. Assim é acentuada a
exaltação como resposta de DEUS à humilhação do homem.
DEUS recompensa a obediência do homem.
u`peru,ywsen DEUS exalta aquele que se humilhou; indica, manifesta a Sua
posição de senhorio (Herrschaftsstellung) sobre todos os seres.
Este é o pensamento central da Segunda parte do hino.
evcari,sato auvtw/| to. evcari,sato: oferecer um Dom; DEUS oferece um Dom. O nome,
o;noma to. u`pe.r pa/n o;noma que JESUS recebe, é uma graça Divina! A importância desta
expressão está nisto, que aqui é o único lugar no NT, onde se fala
de uma “graça” que CRISTO recebe. O nome significa a essência
da personalidade; o nome tem parte nas qualidades e forças da
personalidade (cf. Ef 1,20s; Hb 1,4; Ap 15,4; At 2,21; 15,17;
9,14.21; 22,16; Rm 10,13; 1Cor 1,2; Tg 2,7). Em Fl 2,10.11
encontra Is 45, 22 –25 a sua realização. O nome de DEUS
segundo a LXX é aplicado a JESUS: «ku,rioj» = JAHWE
(JAVÉ).
i[na evn tw/| ovno,mati invocando, pronunciando o nome de JESUS. O nome JESUS
Vihsou/ indica mais uma vez a realidade do ser humano daquele, que
agora é exaltado.
pa/n go,nu ka,myh| significa agora a aclamação como soberano Senhor depois da
apresentação e proclamação. Na aclamação o nome recebido é
pronunciado e, assim, aprovado. O imperador é agora intronizado.
evpourani,wn kai. evpigei,wn indica a universalidade. Os seres celestes, terrestres e os das
kai. katacqoni,wn regiões debaixo da terra (infernos) são todas as criaturas, não
somente as potências demoníacas.
kai. pa/sa glw/ssa Doxologia final: Senhor é JESUS CRISTO. Todo Seu agir, Seu
evxomologh,shtai o[ti mistério tem como finalidade a honra de DEUS PAI. O cume do
ku,rioj VIhsou/j Cristo.j Seu agir, da Sua obra salvífica é a Sua instituição como Senhor. O
eivj do,xan qeou/ patro,jÅ nome tríplice: Senhor JESUS CRISTO é o fecho que une o fim ao
início: é uma síntese do hino inteiro:
Senhor: nome da Divindade de JESUS
JESUS: nome da Sua humanidade
CRISTO: nome como redentor (Messias)
91

Epístola aos Colossenses


1. Origem da carta

Colossos, cidade da Frigia


Colossos (Kolossai,), em latim Colossae era cidade da Grande Frígia, à margem do rio
Lico, hoje Cürüksu, a sueste de Laodicéia, da qual distava 25 km apr. A cidade gozou, por
certo tempo, de notável atividade e florescimento, por estar situada na paisagem pitoresca do
Cadmos, em posição de grande importância comercial, na estrada que unia Celenes a Sardes e
- isto é bem mais importante – no caminho que ligava Éfeso ao Eufrates; mais tarde, porém, a
concorrência de Laodicéia, fundada por Antíoco II Teos (Theós, 261-241 a.C.), acabou por
absorver-lhe quase de todo o comércio. O seu declinar, progressivo indicam-no também as
qualificações que sucessivamente lhe são dadas. Heródoto (VII, 30) e Xenofonte (Anábase
I,2,6) lembram-na como cidade bela e populosa; e ainda Plínio (Hist. Nat. V, 145) a classifica
- referindo-se certamente ao seu passado - entre as «oppida celeberrima»; Estrabão (XII, 576)
a coloca entre as pequenas cidades (polisma,tia).
Poucos restos, mais ou menos insignificantes, de Colossos foram redescobertos a 4 km da
atual vila de Khonas. A região foi castigada diversas vezes por violentos terremotos. Um
deles destruiu, em 60 ou 62 a.C., a vizinha Laodicéia; esta, contudo, pôde reconstruir-se às
suas próprias expensas devido ao comércio que as outras cidades lá iam fazer. Colossos,
porém, não conseguiu refazer-se, devendo suportar, então e em seguida, duras provações.

Comunidade cristã de Colossos


Embora não tenha sida fundada por Paulo em pessoa, a comunidade de Colossos deve
incluir-se entre as suas comunidades pela participação indireta que ele teve na fundação ou, ao
menos, na organização e pela intervenção direta (cf. Cl 2,1) mediante a carta enviada a ela.
Não se pode excluir com certeza a existência de um cristianismo pré-paulino em algum ponto
da Frígia, devido à informação - aliás bem genérica - dos At 2,10 dizendo que habitantes da
região estavam presentes em Jerusalém no dia de Pentecostes; mas uma comunidade
certamente não existiu em Colossos antes de 54/55 d.C. quando, presumivelmente, Epafras, o
apóstolo direto de Colossos68, foi ganho para o cristianismo ou, ao menos, entrou no campo
do apostolado paulino. Mesmo que Epafras não tenha sido expressamente enviado por Paulo
com missão bem definida - os textos não o afirmam - ele agiu certamente sob a influência e
no espírito do Apóstolo. Epafras dá-lhe notícias desde os primeiros tempos de vida da
comunidade (Cl 1,9) e recorre a ele para superar as dificuldades em que esta veio a encontrar-
se. Lá do seu campo de ação, Paulo fala e age com a consciência de ter sobre aquela Igreja a
mesma autoridade de ensinar e de orientar que tem sobre as comunidades fundadas
pessoalmente por ele.
A evangelização de Colossos e das outras duas cidades a ela associadas - Laodicéia (2,1;
4,13-16) e Hierápolis (4,13) - realizou-se, portanto, naqueles três anos da terceira viagem
missionária que Paulo dedicou à capital da Ásia (At 19,1-20,1). Naquele período houve, sem
dúvida, algum afastamento temporário de Éfeso; mas deve-se excluir que Paulo tenha visitado

68
«o[j evstin pisto.j u`pe.r u`mw/n dia,konoj tou/ Cristou/ » (o qual é para vós fiel ministro de CRISTO). Estas
palavras colocam Epafras numa luz toda especial, entre os personagens do âmbito paulino, que de ordinário vêm
simplesmente associados a Paulo no trabalho evangélico.
92

então as comunidades da Frígia, pois se diz expressamente (2,1) ser ele pessoalmente ainda
desconhecido àqueles fiéis no tempo em que lhes escreveu a carta.
A respeito de Epafras, tanto podemos imaginá-lo entre os primeiros convertidos em Éfeso -
no período em que Paulo trabalhou particularmente no âmbito da sinagoga local (At 19,1-8) -
quanto podemos vê-lo entre os ouvintes do Apóstolo na escola de Tirano (At 19,9), logo no
início daquele fecundo biênio que serviu para difundir a mensagem cristã não só na
metrópole, mas em toda a Ásia proconsular, quer entre os judeus quer entre os gentios (At
19,9s).
Donde era Epafras e por que se encontrava naquele tempo em Éfeso não é fácil precisar.
Pois o NT não nos oferece informações sobre os precedentes dele. No caso de ser um gentio,
poder-se-ia esperar encontrá-lo, por exemplo, na capital da Ásia por ocasião das
«Artemísias», as mais solenes celebrações à deusa efesina 69. Mas a grande metrópole oferecia
também outros atrativos de valor tanto para os gentios quanto para os judeus, como o intenso
tráfico mercantil. E deve ter sido sobretudo este que ofereceu ao Apóstolo a possibilidade de
fazer chegar a palavra de Deus a toda a Ásia (At 19,10).
A pregação de Paulo fez de Epafras um apóstolo não menos ponderado do que ardoroso,
segundo o retrato que dele nos traçou o próprio Apóstolo 70. Ele mantém afetuosas e
constantes as relações com o mestre, a quem recorreu especialmente quando dificuldades de
caráter doutrinal e prático surgiram na Igreja de Colossos - e provavelmente não só nesta -
que terá dirigido, por muito tempo, de modo mais imediato com relação às Igrejas de
Laodicéia e de Hierápolis71. Isto seria ainda mais compreensível se Epafras fosse originário de
Colossos; mas os textos sobre os quais pareceria basear-se a afirmação - compare Cl 4,12 com
4,9 - não são decisivos72.
As comunicações entre Éfeso e as novas comunidades da Frígia eram muito fáceis
mediante a estrada que ia da metrópole até ao Eufrates. As primeiras etapas importantes,
através dos vales do Meandro e do Lico, eram exatamente Colossos e Laodicéia. Epafras pôde
percorrer até mais de uma vez os duzentos km apenas que separavam de Éfeso as suas
comunidades, para referir ao mestre os progressos da nova religião e as dificuldades que ela
enfrentava da parte dos judeus e de outros elementos difíceis de identificar. Por essa
multiforme atividade Epafras recebe o título de ministro de CRISTO (Cl 1,7) com respeito à
comunidade, e de companheiro de serviço em relação a Paulo (ibid.).
Do ponto de vista étnico a comunidade colossense devia compor-se prevalentemente de
pagãos convertidos (1,21; cf. v. 27; 2,13). Os At 19,10 contam, é verdade, que judeus e
gentios tiveram na Ásia a possibilidade de ouvir a palavra do Senhor; mas, seja pela
costumeira atitude dos judeus contra Paulo, seja, no caso concreto, pela forte oposição que
estes determinaram fazer no próprio centro da atividade apostólica de Paulo, em Éfeso (At
19,8s; cf. vv. 13-17), é óbvio supor que não se tenham convertido muitos judeus em Colossos,
tanto mais no caso de Epafras ser - como parece mais provável - de origem pagã. É difícil,
todavia, excluir de todo o elemento judaico, porque certas correntes de judaísmo - que
notaremos ao tratar dos erros difundidos no seio da comunidade colossense - não se podem

69
Realizavam-se em abril-maio.
70
Cl 1,7s; 4,12s; Fm 23. Os dois primeiros textos apresentam-no como o apóstolo todo absorto pelo trabalho
e pela preocupação – até, dir-se-ia, angustiar-se (4,12) – pelo progresso dos seus fiéis; no terceiro texto ocorre a
problemática designação de «sunaicma,lwtoj».
71
Cl 2,1 menciona Laodicéia, mas com menção genérica de «outros que», podendo bem incluir os fiéis de
Hierápolis e outros mais; 4,13 cita ambas as comunidades de Laodicéia e de Hierápolis. É provável que estas
duas últimas eram dirigidas diretamente por representantes de Epafras.
72
Cl 4,12 e 4,9 podem indicar que a origem (isso não é muito provável para o escravo Onésimo, pois o
escravo não pertence a nenhuma cidade), quer a vinculação à comunidade local.
93

explicar facilmente pela simples ação de agentes externos e nitidamente hostis à nova religião,
ou até só de judaizantes agindo de fora para dentro.

Ocasião e objetivo
O escrito prende-se a uma visita de Epafras, que havia informado Paulo prisioneiro sobre a
situação da comunidade (1,8). O Apóstolo, referindo-se às informações de Epafras, dá, sobre
as primeiras, realce apenas ao aspecto honroso, i. é, às condições espirituais florescentes
daqueles fiéis. Mas podemos compreender facilmente que, se Paulo se decide a intervir
mediante um escrito, as coisas não andavam de todo bem, nem mesmo em Colossos. A
propaganda dos erros, de que falaremos mais adiante, devia ter feito alguma presa entre os
fiéis, ou, pelo menos, devia ser forte o perigo de sedução, dado o temperamento próprio
daquela gente, amante do novo e do emotivo em matéria religiosa.
Afirma-se freqüentemente que Epafras pediu tal escrito porque ele se sentia incapaz de
dominar a situação em Colossos - o que faria supor ser ela mais grave do que falamos atrás - e
que a sua viagem teve por objetivo informar Paulo e pedir-lhe a intervenção. Mas a carta não
apresenta elementos decisivos a respeito disso. Por outro lado era próprio do temperamento
paulino tomar decididamente a iniciativa, assim como era seu costume não fazer outros
aparecerem ante as comunidades na função de informadores73.
Que a viagem de Epafras não teve por objetivo único o de informar Paulo deduz-se
também do fato de ele ter permanecido junto ao Apóstolo, quando Tíquico e Onésimo
partiram para Colossos como portadores do escrito (4,7ss). Paulo transmite as saudações de
Epafras aos fiéis de Colossos, testemunhando, ao mesmo tempo, que este servo de Cristo está
sempre solícito pelo bem não só deles mas também dos irmãos de Laodicéia e de Hierápolis
(4,12s). O fato de Epafras, a pessoa mais autorizada junto àquelas comunidades, continuar
longe delas é muito significativo: quer dizer que em Colossos os acontecimentos certamente
não se precipitavam; tanto é assim que a comunidade podia ficar entregue aos cuidados de um
delegado de Epafras: talvez Arquipo.

Autenticidade paulina
A autoria paulina da carta aos Colossenses é contestada hoje menos do que no passado,
tendo-se superado em parte o radicalismo da escola de Tübingen. O estudo mais acurado, da
parte protestante, sobre os problemas criados pelas cartas aos Colossenses e aos Efésios, o de
E. Percy, conclui pela paternidade paulina de ambas.
A tradição cristã não conheceu dúvidas sobre a autenticidade paulina desta carta. Deixando
de lado as alusões e citações encontradas nos escritos dos Padres Apostólicos 74 - onde falta
geralmente a atribuição explícita a Paulo - notemos os reconhecimentos abertos de Paulo
autor em S. Ireneu, no Fragmento Muratoriano, em Clemente de Alexandria, em Tertuliano e
outros. Os hereges docetas Valentim e Marcião abusavam da carta para defenderem os seus
próprios erros.
Não se podem ignorar as diferenças de substância e de forma entre as precedentes cartas de
S. Paulo e a dirigida aos Colossenses: isto vale, de resto, também para as outras cartas do
cativeiro, não excluindo Filipenses, carta esta que menos se afasta, pelo conteúdo substancial
e pela forma, das grandes cartas paulinas. Mas as diferenças não são tais que levem
necessariamente a um julgamento negativo, se tivermos em conta que elas são
contrabalançadas por semelhanças tanto de doutrina quanto de veste literária.

73
Cf. 1Cor 1,11: a expressão genérica os de Cloé quer provavelmente encobrir os verdadeiros informadores.
74
1 Clem 49,2 (Cl 3,14); Epist. Barn. 12,7; Inácio, Ad Trallenses 5,2; Ad Ephesios 10,2 (Col 1,23); Justino
(Dial. 84,2; 85,2; 100,2; 125,3; 138,2), que usa mais vezes a fórmula primogenitus omnis creaturæ.
94

As características doutrinais (ver adiante) explicam-se facilmente pela natureza dos erros
que ameaçavam a fé dos Colossenses. Tais erros atacavam particularmente as prerrogativas de
Cristo-Cabeça (2,19). Daí a insistência no tema cristológico. E não se exclui que Paulo tenha
aproveitado o ensejo de desvios doutrinários, atuais ou possíveis, para aprofundar aspectos
particulares da cristologia apenas apontados ou diretamente silenciados nos escritos
precedentes. A substancial convergência aparece, todavia, se confrontarmos a cristologia de
Colossenses com a das cartas anteriores; nestas já se encontra, não só a doutrina essencial da
divindade do Filho feito homem para salvar os homens, mas também, ao menos em germe, a
doutrina da nossa incorporação nele (1Cor 12,12-27; Rm 12,4s etc.), da qual Paulo deduzirá a
síntese maravilhosa de Cristo-Cabeça, Plenitude (plh,rwma) da Divindade, da humanidade
remida e do próprio universo.

2. Análise
O prólogo: 1,1-14
Primeira parte: 1,14-2,5
Segunda parte: 2,6-3,4
Terceira parte: 3,5-4,6
O epílogo: 4,7-18

3. Teologia
Para conhecer a natureza e a proveniência dos erros difundidos em Colossos a nossa única
fonte é a própria carta; e esta contém apenas simples alusões ocasionais. Sobre a polêmica
predomina a exposição positiva da doutrina que o Apóstolo contrapõe a tais erros. Não se
tome a carta como sendo uma fotografia dos erros que se iam propagando na comunidade:
seria reduzir a proporções muito mesquinhas a força especulativa da mente de Paulo, a sua
capacidade de chegar diretamente às últimas conseqüências, a sua tendência ao paradoxal na
refutação dos adversários. Um termo, uma idéia destes podem ter-lhe dado a ocasião de
aprofundar o seu próprio ensinamento, chegando a conclusões especulativas e a aplicações
práticas que superam muito os elementos casuais que lhe proporcionaram o ponto de partida.
A carta insiste muito no primado de Cristo, não só em relação à Igreja (aspecto que prevalece
em Efésios) mas também em relação ao universo: ele é a imagem perfeita do Deus invisível,
gerado antes de toda a criatura, porque nele foram criadas todas as coisas e tudo nele subsiste
(1,15ss), a sua obra de reconciliação e de pacificação abrange todas as criaturas, terrestrês e
celestes (1,20). Estas solenes afirmações a encabeçarem o escrito podem fazer pensar que
Paulo sentisse ameaçada a absoluta soberania de Cristo pelos erros aparecidos em Colossos.
Em contraste com essas prerrogativas soberanas de Cristo, Paulo apresenta também o culto
dos Anjos (2,18). Levando os erros às conseqüências extremas, o Apóstolo sente quase como
um atentado ao próprio monoteísmo as observâncias que diziam respeito a coisas materiais ou
que se prendiam, de alguma forma, aos elementos de mundo («stoicei/a tou/ ko,smou», 2,20).
Esta expressão deve-se talvez ao fato de que, na angelologia judaica, se atribuía aos anjos o
governo do mundo material, ou então - mas é menos provável - ao fato de que os anjos tinham
sido associados à promulgação da lei mosaica (cf. Hb 2,2; At 7,38.53; Gl 3,19), concebida
exatamente como um período de sujeição aos elementos do mundo (Gl 4,3). Em todo caso,
aquele período encerrou-se definitivamente: existe um único Mediador entre Deus e os
homens; ele é Cabeça de todos, também dos tronos, das dominações dos principados e das
potestades (2,10; 1,16): em virtude do sacrifício de Cristo, Deus quis, antes, expor estes seres
à zombaria pública, como vencidos ligados ao carro do triunfador (2,15).
A carta é sobretudo cristológica. A sua cristologia tem a particularidade de colocar Cristo
não só como cabeça da humanidade remida, mas do universo, por conseguinte também dos
95

seres espirituais superiores ao homem, por mais elevada se possa conceber a dignidade deles
(1,15-20).

4. Exegese: O hino CRISTOlógico de Cl 1,15-20


Segundo o A. Feuillet, Cl 1,15-20 pode-se reconhecer com razão como ponto culminante
da CRISTOlogia paulina. Longe de ser somente uma «peça» ocasional, ditada ao Apóstolo
pelas necessidades da polêmica (da heresia em Colossa), ela foi longamente preparada pelas
cartas anteriores, notadamente pelas cartas aos Coríntios75.

v.15: a Ele é imagem do DEUS invisível


b primogênito de toda criatura (toda a criação),
v.16: a porque n’Ele (evn auvtw/|) foram criadas todas as coisas
b nos céus e na terra
c as visíveis e as invisíveis,
d sejam tronos, sejam dominações,
e sejam principados, sejam potestades,
f tudo foi (e está) criado (tempo perfeito!) por Ele e para Ele
v.17: a e ELE é antes de todas as coisas
b e todas (as coisas) têm n’Ele a sua subsistência
v.18: a e Ele é a Cabeça do Corpo, da Igreja;
b Ele é principio,
primogênito dos (evk) mortos,
c para que em tudo Ele seja o primeiro (tenha o
primado)
v.19: porque n’Ele agradou (a DEUS) que habitasse toda a plenitude
v.20: a e por Ele fossem «reconciliadas» todas as coisas para Ele
b estabelecendo a paz por meio do sangue da Sua Cruz por Ele
e sejam as coisas na terra, sejam as nos céus.

Divisão do hino:
O hino divide-se, conforme a opinião corrente, em duas estrofes: v.15-17 e v.18-20; os
v.12-14 são uma introdução.
Quando se olha o paralelismo de palavras pode-se constatar facilmente os seguintes
paralelos:
«o[j evstin» (Ele é) no v. 15 e no v.18b;
«o[ti evn auvtw/|» (porque n’Ele) no v.16a e v.19,
«kai. auvto,j» (e Ele) no v.17a e no v.18a.
Também se pode constatar uma correspondência entre

75
Assim FEUILLET, Le CHRIST Sagesse de DIEU, Paris 1966,271.
96

«imagem» e «primogênito» (v.15)


e «princípio» e «primogênito» (v.18).
Em base a estas constatações pode-se concluir: o hino compõe-se de duas estrofes e de
uma estrofe intermédia que faz a ligação entre as duas estrofes. Estas duas estrofes começam
com «o[j evstin» (Ele é). A «estrofe intermediária» (v.17-18a, com, duas vezes, «kai. auvto,j» (e
Ele)) não deve ser tomada como estrofe própria, pois o v.17 pertence ainda, sem dúvida, à
primeira estrofe, enquanto o v.18a («e Ele é a Cabeça do Corpo, da Igreja) já pertence à
segunda estrofe. Trata-se, portanto, de um paralelismo antitético. O v.17 encerra o que foi dito
nos versículos anteriores, enquanto o versículo 18a já inicia plenamente o novo tema.
Quais são estes dois temas?
No fundo, não se trata de dois temas, mas de um só grande tema: o primado de CRISTO.
Este primado, no entanto, pode ser visto na ordem da criação, como também na ordem da
redenção ou salvação. Daí os dois temas ou duas estrofes.
Outras correspondências notáveis nas duas estrofes são: «evn auvtw/|» (n’Ele), «diV auvtou/»
(por Ele) e «eivj auvto,n» (para Ele) nos v.16a,f; 19,20a; note-se que a sucessão destas
expressões é a mesma nas duas estrofes. Além disso encontra-se nas duas estrofes: «nos céus»
e «na terra» (v.16b e v.20c), com a diferença, porém, da sucessão das duas indicações.
A particularidade estilística mais saliente, no entanto, é a palavra «pa/j», referida sete vezes
à criação (só no v.19 é referida a «plenitude» com o v.19 são oito vezes que aparece no hino),
e a palavra «auvto,j» que se encontra doze vezes neste hino. Este fato somente já expressa que
no hino se trata da relação de CRISTO à criação inteira - em criar e redimir. É este motivo
central do hino. Estas constatações já são suficientes para perceber que, nestes versículos, não
se trata da relação intradivina de JESUS CRISTO ao PAI, mas da Sua relação a toda a
criação.
Constatando isso já respondemos à pergunta pelo sujeito do hino. O «auvto,j» (12 vezes)
refere-se ao pronome relativo «o[j» dos v.15 e 18; a palavra a que se refere o primeiro «o[j»
(v.15) e, assim, todo o hino, encontra-se na introdução do hino: «o FILHO do Seu amor»
(v.13). É o FILHO bem-amado do PAI, «no Qual temos a redenção, a remissão dos pecados»
(v.14). O sujeito de todas as afirmações no hino é uma e mesma pessoa: JESUS CRISTO Que
é o Redentor dos homens; é o Senhor exaltado que S. Paulo tem diante do seu olhar ao
escrever este hino.
Outra particularidade a ser considerada neste hino, é a seguinte estrutura: Em cada uma das
duas estrofes temos primeiro uma afirmação sobre o que CRISTO é76 (v.15: «Ele é imagem ...
primogênito ...» v.18: «Ele é a Cabeça ... princípio ... primogênito ...»); em seguida vem uma
afirmação sobre um acontecimento77 (v.16: «porque n’Ele foram criadas ...»: v.19: «porque
n’Ele aprouve ...»). Em ambas as vezes a afirmação sobre um acontecimento fundamenta a
afirmação sobre o que CRISTO é (cf. o «o[ti», «porque»). Esta constatação deve ser levada
em conta na interpretação do hino que podemos chamar de «sinfonia» de predicados de
CRISTO e de acontecimentos referente a CRISTO.

A primeira estrofe
Nesta primeira estrofe encontram-se dois títulos (predicados) de CRISTO: «Imagem do
DEUS invisível» e «primogênito de toda criatura». Qual o seu significado? «Imagem do
DEUS invisível» significa: JESUS CRISTO, o FILHO de DEUS feito homem e agora

76
Predicados de CRISTO; Wesensaussage.
77
Geschehensaussage.
97

exaltado, é a imagem que nos revela a DEUS (cf. 2Cor 4,4: «Ele é a imagem de DEUS»). O
ser «imagem», da parte de CRISTO, está em contraposição ao ser «invisível», da parte de
DEUS. JESUS CRISTO é única perfeita imagem do DEUS invisível, quer dizer: Ele é o
perfeito revelador de DEUS invisível. Esta visibilidade de CRISTO não significa que Ele
possa ainda ser visto por nós (o CRISTO exaltado encontra-se fora do alcance direto dos
nossos sentidos), mas, quando o homem, na fé, aceita todo o «mistério de CRISTO» (Sua
vida, Seus atos, particularmente o mistério pascal) ele chega, deste modo, ao conhecimento do
DEUS invisível. Esta dimensão «funcional» do ser imagem não exclui, mas, sim, implica a
dimensão «mais profunda», isto é, a dimensão Divino-ontológica desse ser «imagem», ou
mais exatamente ainda: ela a pressupõe. Pois numa imagem pode-se distinguir dois aspectos:
é imagem de alguém (algo) e para alguém. CRISTO é para nós imagem de DEUS. Esta
última relação é, no nosso caso, uma relação de igualdade e de origem (imagem de DEUS
PAI: «DEUS de DEUS, Luz da Luz»). O título mesmo como tal («imagem do DEUS
invisível») não fala, portanto, da preexistência de CRISTO, mas a implica e pressupõe (Ele
pode ser tal imagem perfeita de DEUS porque Ele é a IMAGEM de DEUS).
O segundo título de CRISTO, no hino, é: «primogênito de toda a criatura». Também este
título refere-se a CRISTO exaltado. Se este título devesse expressar a prioridade temporal de
CRISTO, a expressão «primogênito de toda a criatura» teria sido escolhida muito sem jeito, e
mais ainda, se ao mesmo tempo se quisesse indicar que CRISTO não é criatura (os Padres que
tiveram de lutar contra os Arianos interpretaram esse título no sentido de «primogênito antes
de toda a criatura»). Esse título de CRISTO só se entende a partir do sentido que a palavra
«primogênito» chegou a ter no AT: um título jurídico. chegou-se a isso assumindo tal
conceito em sentido figurado: «rAkB.» (protótokos) indica a relação todo especial ao pai,
sobretudo a DEUS. Assim, o primogênito pode ser expressão equivalente a «filho muito (ou
mais) amado». Em Cl 1,15, porém, CRISTO não é chamado o primogênito de DEUS, mas o
«primogênito de toda a criatura (criação)». Tal título indica uma relação de CRISTO a toda a
criação, e é esta relação que é diretamente visada no nosso lugar (Cl 1,15b). Quer dizer:
CRISTO ocupa, em relação a toda a criação a posição de «primogênito». É uma posição de
soberania, de estar acima dos outros. O primogênito é o herdeiro, o direito de primogenitura é
um direito de domínio (cf. Gn 27,29). Em Cl 1,13 S. Paulo escreve do «Reino do Seu FILHO
amado». O «FILHO amado» («primogênito» = «meu FILHO amado») é portanto, rei, o rei
messiânico, ao qual o PAI entregou o domínio. Isto está na linha da tradição messiânica (Sl
2,7, 89,28; 2Sm 7,14), onde o rei messiânico é chamado de «Filho» ou «Primogênito». Se em
Cl 1,15b não é a relação a DEUS PAI, mas a relação de CRISTO a toda a criação, o que é
visado diretamente, o título «primogênito de toda a criatura» deverá indicar a posição
soberana (soberano = rei, senhor) em relação a toda a criação. Por isso pode-se traduzir,
conforme o sentido que a expressão «primogênito de toda a criação» tem: «Senhor sobre toda
a criação» ou - levando em consideração também a realeza do PAI, da qual o Messias
participa - «co-regente (rei) sobre toda a criação». Tal posição, tal reinado assumiu CRISTO
como o ressuscitado e exaltado à Direita do PAI (cf. Rm 1,4, 1Cor 15; Ef 1,20-23; cf. também
Mt 28,18). JESUS CRISTO ressuscitado é este «primogênito» «porque n’Ele tudo foi criado»
(Cl 1,16). Deste modo podemos ver a seguinte conexão lógica entre o v.15b e o v.16: Porque
tudo foi criado n’Ele (por Ele e para Ele), toda a criação foi feita em vista de Ele se tornar seu
Senhor.
O v.16 diz que tudo foi criado «n’Ele», «por Ele» e «para Ele» (evn auvtw/|, diV auvtou/, eivj
auvto,n). Tudo foi criado «n’Ele». «evn auvtw/|» poderia ter um sentido instrumental; neste caso
seria anticipada já o «diV auvtou/» do v.16f. Mas é pouco provável que «evn auvtw/|» signifique
aqui o mesmo que «diV auvtou/», e nada mais. O «evn» é, então, um «evn» relacional: tudo foi
criado em relação a CRISTO, em conexão com Ele; nada, portanto, foi criado sem se ordenar
a Ele. Já pelo ato criador todas as criaturas estão colocadas em conexão com CRISTO; tudo
98

foi criado em vista de CRISTO. Segundo esta interpretação o «evn auvtw/|» é ainda precisado
pelo «eivj auvto,n» (precisado numa determinada direção). Tudo foi criado (evkti,sqh = ato de
criar) «n’Ele» (em conexão com Ele) e, assim, tudo está criado (e;ktistai = estado de ser
criado) «para Ele» (em vista d’Ele, ordenado para Ele). No entanto, já que o «evn» pode muito
bem ter aqui sentido instrumental (cf. Sb 9,1s e Pr 3,19), o «evn auvtw/|» inclui também o «diV
auvtou/» do v.16f.
Conclusão: «evn auvtw/|» tem um significado amplo (relacional incluindo também o
instrumental) e é (por isso) depois ainda precisado em duas direções pelas fórmulas
posteriores: «por Ele» e «para Ele». Tudo foi criado em relação a CRISTO, por Ele e para Ele
está criado tudo.
Uma vez que o v.16 apresenta o fundamento para a afirmação do v.15, pode-se formular a
conexão entre estes dois versículos: Já pela própria criação (ato de criar) tudo está feito assim
que CRISTO assuma na criação a posição de «primogênito» e de «imagem (reveladora,
singular) de DEUS».
Na estrofe «intermediária» a posição de CRISTO é apresentado na seguinte formulação: «e
Ele é antes de tudo e tudo tem n’Ele a sua subsistência» (v.17). Note-se que não está escrito
que Ele «era» antes de tudo, mas que «é» antes de tudo. Trata-se de uma prioridade não só de
tempo, mas também de soberania (dignidade, domínio). Uma vez que ocupa esta posição de
prioridade (primado) porque tudo foi criado em vista d’Ele e por Seu intermédio (como
preexistente), é também n’Ele que tudo tem sua subsistência. Já que nada foi criado sem
relação a Ele, a criação não existiria se CRISTO não existisse. CRISTO é - como a sabedoria
no AT - «aquilo que no mais fundo dá coesão ao universo criado».

A segunda estrofe
A segunda estrofe apresenta três títulos de CRISTO: «Cabeça do Corpo, da Igreja»,
«princípio, primogênito de entre os mortos». Estes títulos Lhe são atribuídos não devido à Sua
participação na criação de tudo, mas, sim, devido à sua obra salvífica de «reconciliação», de
estabelecimento da paz pelo «sangue da Sua Cruz». Note-se já que essa atividade de CRISTO
se refere também à criação inteira (v.20).
Aos três títulos da segunda estrofe segue imediatamente um acréscimo: «para que em tudo
Ele seja o primeiro (tenha o primado)». Que intenção é expressa por esta frase? Certamente a
de DEUS. DEUS quis que CRISTO fosse a Cabeça da Igreja, o princípio, o primogênito de
entre os mortos, para que Ele, CRISTO, tenha em tudo o primado. «Em tudo», isto é que
deve ser acentuado. Esta frase dá a entender que CRISTO deveria realmente sob todo aspecto
possuir o primado, e que isto se realizou tornando-Se Ele «Cabeça da Igreja, princípio,
primogênito de entre os mortos».
Pelo fato de Ele Se tornar o princípio (avrch,) de uma nova criação Ele possui agora também
na ordem da salvação o primado. Não somente na ordem da criação, quer dizer, em base à
ordem da criação (v.16), Ele devia ter o primado, mas também na ordem da salvação, isto é,
em base à Sua ação salvífica (v.19 e 20).
Em base a estas constatações podemos dizer: Se a intenção de DEUS é que CRISTO tenha
em tudo o primado (v.18c), e se CRISTO possui esta posição de primado universal como o
ressuscitado, o exaltado (v.18a.b), então toda a criação estava, de antemão, orientada para Sua
vinda ao mundo, sobretudo para Sua exaltação (ressurreição - ascensão) - como «fruto» do
Seu sacrifício da Cruz (cf. a conexão lógica entre o v.20 e o v.18 («i[na», «para que»).
O significado dos três títulos da segunda estrofe «Cabeça do Corpo, da Igreja»,
«princípio», «primogênito de entre os mortos»; qual o significado destes títulos de CRISTO?
99

«kefalh,» (cabeça), «avrch,» (princípio) e «prwto,tokoj ...» (primogênito ...) podem ter um
mesmo «denominador comum» (base comum): «varo» (hebr. = cabeça, mas que significa
também o princípio, o primeiro). Quando se examina a tradução grega dos LXX pode-se
constatar que as três palavras «kefalh,», «avrch,» e «prwto,tokoj» podem ser quase sinônimos
(sempre como tradução do hebr. «varo»). Isto faz com que o conceito «kefalh,» assuma um
significado que não se encontra na literatura grega profana. Esta constatação vale também
para o conceito de «kefalh,» como «chefe».
S. Paulo tem um conceito bem específico de «kefalh,», o qual se baseia no conceito
veterotestamentário de «varo» com sua tradução para o grego (LXX). Qual é esse conceito?
«Kefalh,» significa «o que está em cima (de outrem)» devido ao ser, de algum modo, origem
do ser de outrem (cf. 1Cor 11,3ss; a mulher é «por causa do homem» e «do homem» (evk)).
«Kefalh,» é também nas cartas aos Efésios e aos Colossenses um quase-sinónimo de «avrch,»,
indicando a posição de CRISTO em relação à nova humanidade, a Igreja, que é o «Corpo» de
CRISTO. Tal posição é de Ele estar acima dos outros e de ser Ele a origem, o princípio dos
outros, semelhantemente como Adão era «varo» (primeiro, princípio, personalidade
originário da qual vêm todos os outros) da humanidade (na litereratura judia Adão é de fato
chamado de «varo»). A esse respeito deve-se notar o fato de que uma razão de CRISTO ser a
«Cabeça do Corpo, da Igreja», é esta: porque n’Ele habita toda a plenitude. Como Adão,
segundo a concepção bíblica, não é simples e somente o primeiro de uma fila de homens, mas
realmente o homem originário, no qual estavam, de algum modo, contidos todos os homens
posteriores, descendentes dele, assim CRISTO é o princípio de uma nova humanidade; Ele é
«homem novo», em cuja plenitude está contida toda a novidade do «homem novo».
Notemos aqui que o conceito de «kefalh,», não somente em 1Cor 11, mas também em Cl e
Ef, não significa (literalmente, embora em sentido metafórico) a «cabeça» em contraposição
ao «tronco do corpo» (= o corpo com exceção da cabeça). Como também: «kefalh,» não
significa simples e somente «chefe», «senhor». A gênesis da concepção paulina de CRISTO
como «Cabeça» «do Corpo» (= a Igreja): S. Paulo entende a Igreja como «Corpo de
CRISTO», e isto a partir da concepção bíblica da «personalidade corporativa» (Adão e seus
descendentes como uma só pessoa; todos contidos em Adão), juntamente com a concepção
esponsal («e os dois serão uma só Carne (= um só corpo)»), a qual é realizado, quanto a
CRISTO a nós, de modo particularíssimo, pela SS. EUCARISTIA (cf. 1Cor 10,17: embora
sendo muito somos um só corpo (= o Corpo de CRISTO), porque participamos de um só PÃO
(= o Corpo do Senhor)). Do outro lado, S. Paulo tem uma acepção figurativa de «kefalh,» (= o
que está em cima, por ser, de algum modo, princípio do outrem). Em Cl e Ef, o Apóstolo une
os dois conceitos de «Corpo» (sw/ma) e «cabeça» («kefalh,») sem que, por isso, esses dois
conceitos assumam um outro significado (quer dizer: «kefalh,» não se torna «cabeça em
contraposição (distinção) do corpo (= corpo com exceção da cabeça)», e «sw/ma» não se torna
«corpo em contraposição (distinção) da cabeça»). Por isso mesmo, o termo «kefalh,», em Col
e Ef, não assume dois significados bem diferentes: «kefalh,» = chefe, e «kefalh,» = «cabeça»
em contraposição ao corpo (= tronco).
Tendo esclarecido isso podemos determinar o sentido dos três títulos da segunda estrofe do
hino CRISTOlógico: O conceito de «primogênito» no título «primogênito de entre os
mortos», tem um outro significado do que tem no título «primogênito de toda a criação» (Cl
1,15). «Primogênito de entre os mortos» significa que CRISTO é realmente o primeiro dos
que ressurgiram. CRISTO é como ressuscitado, segundo 1Cor 15,20, «primícias (avparch,) dos
que adormeceram»; «avparch,» significa as primícias (primeira parte) sempre sob o aspecto de
que por tal primeira parte se torna acessível o todo ou é garantida a obtenção do todo.
100

«Primogênito de entre os mortos» não significa, por isso, a posição soberana («chefe») de
CRISTO, mas a Sua posição primacial (cf. v.18c: «para que em tudo Ele tenha o primado»)
como «primeiro» e «princípio, origem» para todos os outros (cf. Rm 8,29). Por isso, em Cl
1,18 «avrch,» e «prwto,tokoj evk tw/n nekrw/n» encontram se justapostos como duas expressões
que não designam algo essencialmente diferente. CRISTO é o princípio de uma nova
humanidade, de uma nova criação. Nesta linha encontra-se também o título «Cabeça do
Corpo, da Igreja». Na análise da estrutura (divisão) do hino já vimos que, na estrofe
intermediária (v.17s), o v.18a já introduzia o tema da segunda estrofe. Isto significa que
CRISTO é a «Cabeça» como «princípio», como «primogênito de entre o mortos», como o
novo Adão, portanto. No que difere o conceito de «kefalh,» daquele de «avrch,», é o seguinte:
«kefalh,» inclui o significado de «estar em cima de», «ser chefe», o que não comporta o
conceito de «avrch,».
Portanto: os três títulos da segunda estrofe indicam CRISTO como principio de uma nova
criação, na qual certamente a Igreja deve ocupar um lugar todo especial, pois é ela que é
expressamente mencionada sendo chamada de «Corpo» de CRISTO» (não: corpo da
«cabeça»).

A plenitude
Que não se trata de uma relação somente à Igreja vê-se nos v.19-20. Nestes versículos é
dito que CRISTO é a morada escolhida de «toda a plenitude». A expressão «toda a plenitude»
é um pleonasmo, querendo salientar particularmente que não falta nada à plenitude de
CRISTO JESUS («plenitude», em si, já diz que não falta alguma coisa). Que plenitude é esta?
O contexto soteriológico (v.20: «Sangue da Sua Cruz») indica que se trata da plenitude de
todos os dons Salvíficos Divinos (de tudo que DEUS pode e quer dar além dos dons dados já
simplesmente pelo ato criador (= conteúdo da primeira estrofe), por isso também plenitude de
amor (cf. Ef 3,18s), de sabedoria (cf. Cl 2,3: «no Qual estão escondidos todos os tesouros da
sabedoria e ciência»).
Tal plenitude tem que ver com a criação inteira, pois essa plenitude é base da
«reconciliação» de tudo para Ele (CRISTO).

A «reconciliação»
De que «reconciliação» se trata aqui? Já que é reconciliação que se refere a «tudo» (ta.
pa,nta). Ora, o significado básico do verbo grego «(avpo%katalla,ssein» é «fazer (de algo) uma
outra coisa», «mudar», «transformar». Este verbo expressa, portanto, o estabelecimento de
uma relação entre duas coisas (pessoas) que seja conforme à ordem. Por isso poderia-se
indicar como «sentido próprio» de «avpokatalla,ssein»: «pôr em ordem». Trata-se sempre do
(re)estabelecimento de uma relação segundo a ordem certa. (Só na aplicação desse verbo à
relação entre DEUS e homens antes pecadores, «katalla,ssein» corresponde ao significado
(em sentido estreito) de reconciliar). No nosso lugar trata-se da relação de toda a criação para
com CRISTO («eivj auvto,n» refere-se, como na primeira estrofe, a CRISTO; quando S. Paulo
fala da reconciliação com DEUS ele usa o dativo («tw/| qew/|» ou «e`autw/|»: Rm 5,10; 2Cor 5,18-
20; Ef 2,16 (cf. 1Cor 7,11)). Toda a criação foi colocada na relação certa para com CRISTO.
Segunda a primeira estrofe do hino toda a criação (Anjos, homens e criação material) está
orientada para CRISTO como seu «primogênito», porque mediador na criação. CRISTO,
porém, não assumira esta posição - devida a Ele a partir e em base ao ato criador - até a Sua
morte na Cruz. Algum acontecimento deve ter trazido, para dentro da criação, uma desordem.
DEUS quis que esta desordem fosse removida e que CRISTO tenha o primado em tudo
(v.18c), quer dizer: também naquele campo, no qual Ele não o ainda tinha. Ele ocupa esta
101

posição primacial como «Cabeça do Corpo, da Igreja», como «princípio» e «primogênito de


entre os mortos» (v.18ab). Isto Ele é devido (v.19: «porque ...») à inabitação de toda a
plenitude (v.19) e de Sua morte na Cruz (v.20b). A «reconciliação», portanto, tem esta meta:
«para que Ele tenha em tudo o primado» (v.18c).
Ora, em que consistia aquela desordem de que falamos? Deve ser o pecado. Pois o pecado
é, afinal, a causa de toda ausência de paz e toda desordem. E é o pecado que CRISTO
eliminou pela Sua morte na Cruz (cf. Cl 1,20b.22; 2,14, Ef 1,7, Rm 3,25; 5,9s), e, exatamente,
o pecado dos homens. Em que sentido causou o pecado dos homens uma relação não bem
conforme a ordem certa, entre CRISTO e toda a criação, sobretudo entre CRISTO e os Anjos?
Pode-se pensar na «kénosis» de CRISTO (Fl 2,6-8). CRISTO assumiu o modo de ser de servo
até ao ponto de extremo da obediência até à morte de Cruz. Quanto à relação com os Anjos,
pode-se dizer que Ele Se «humilhou debaixo dos Anjos» (cf. Hb 2,7). Pode-se levar em
consideração também Gl 4,4: CRISTO, o FILHO, estava «debaixo da Lei». Ora, estar debaixo
da Lei significa escravidão, servidão aos «elementos do mundo» aos quais pertencem também
os Anjos (cf. Gl 4,3). «Enquanto o herdeiro é menino, em nada difere do servo, ainda que seja
senhor de tudo» (Gl 4 1). Tanto Ele estava debaixo da Lei que Ele tomou sobre Si a
«maldição da Lei» referente os pecados dos homens para nos subtrair a esta maldição (Gl
3,13). Pela Sua morte de Cruz (Cl 1,20b; 2,14) CRISTO vence o pecado dos homens e assume
- já reconhecível para o fiel - a posição devido a Ele desde o princípio.
Conclusão: a «reconciliação» de tudo por CRISTO e para Ele significa: DEUS põe tudo
(inclusive os Anjos, que na primeira estrofe foram nomeados expressamente) na relação certa
para com CRISTO; DEUS ordena tudo para Ele, coloca-o no novo estado da ordem de
salvação erguida em CRISTO.
102

Epístola a Filêmon
A fuga de um escravo chamado Onésimo da casa de Filêmon, um abastado cristão (Fm
2.7) de Colossos, convertido à fé por Paulo (Fm 19), originou esta carta de recomendação,
saída num só jato do coração de Paulo, como aplicação prática das suas exortações aos
escravos e aos patrões cristãos (Cl 3,22-4,1; cf. Ef 6,5-9).
Os fatos poderiam, em suma, reconstituir-se da seguinte maneira. Onésimo encontra Paulo
prisioneiro, que o converte ao cristianismo e o remete a Filêmon com a carta de proteção.
Filêmon, consentindo no delicado pedido do Apóstolo (Fm 13s), manda o escravo de volta ou
durante a mesma prisão ou durante uma prisão subseqüente.
O fundamento doutrinal, implícito na ação de Paulo, é o mesmo de outros escritos nos
quais tocou o problema da escravidão. O Apóstolo não intenciona subverter a ordem social do
seu tempo, mas lhe tira o fundamento da odiosa discriminação entre livres e escravos,
afirmando a igualdade de todos na ordem sobrenatural: em Cristo já não há lugar para
distinções78. Com o seu senso prático, Paulo compreende como a execução do princípio de
igualdade só pode ser fruto de uma lenta transformação da ordem social vigente; por isso,
posta a questão na base sobrenatural, preocupa-se em cristianizar as relações entre patrões e
escravos (Cl 3,22-4,1; Ef 6,5-9).
O caso de Onésimo oferece uma feliz oportunidade para pôr em prática eloqüente as
normas doutrinas. Além de fugir, o escravo acarretou prejuízos a Filêmon. Desses prejuízos
Paulo assume as conseqüências pecuniárias, como um pai endossa as dívidas de um filho
ainda incapaz de responsabilidades pessoais diante da lei. De fato, Onésimo era um filho para
ele que o havia regenerado em Cristo (Fm 10); disso resultava que desde então só podia ser
considerado, também por Filêmon, como irmão (Fm 16).
Em qualquer hipótese, é preciso reconhecer que os ensinamentos de Paulo (sobretudo em
Colossenses) a respeito do problema da escravidão, embora apresentem constantemente
caráter prático, são mais meditados, inspirados pelo propósito de tornar suportável uma
situação que não se podia mudar de repente, conciliando-a, o mais possível, com as novas
relações estabelecidas entre os homens em Cristo. A questão era tanto mais delicada quando,
como no caso de Onésimo, intervinha a conversão.
Apesar do seu caráter ocasional, a carta a Filêmon exerceu uma influência de primeira
importância na renovação social realizada por força do fermento cristão. Ela conserva ainda
hoje o seu valor espiritual pela elevação em tratar de assunto em si modesto, pela delicadeza
dos modos, não destituída de certa superioridade afável que conquista sem ofender.
É sobretudo o coração de Paulo que se revela aqui, como nas páginas mais ardentes de
Gálatas, de 1 e 2 Coríntios e, mais ainda, de Filipenses; melhor, revela-se apenas o coração:
aqui, de fato, não aparece o caráter polêmico, abundante naquelas cartas. Paulo dirige-se a
Filêmon como amigo a amigo; e sabe que com os amigos o seu desejo e o seu pedido valem
por uma ordem. O atrativo da carta está mesmo na arte de impor-se sem faze-lo notar, de
conseguir fazer obedecer conquistando pelo coração. O argumento mais forte para Filêmon
foi, sem dúvida, aquele que Paulo coloca quase entre parênteses, após ter idealmente firmado
uma letra de câmbio com a qual toma sobre si todos os danos causados pelas faltas de
Onésimo (v. 18s).

78
Cf. 1Cor 12,13; Gl 3,28; Cl 3,11.
103

Epístola aos Efésios


1. Destinatário

Éfeso
Éfeso (:Efesoj - Ephesus) era cidade de origem micênica, situada na costa jônica, perto da
foz do Caistro, o atual Küçük Menderes. As freqüentes aluviões lançadas sobre o porto
fizeram que as ruínas da cidade distassem hoje do mar uns 8 km.
Os primeiros colonizadores foram jônios (pelo fim do segundo milênio a.C.); depois
habitaram lá cários, lídios ou léleges. Passou da dinastia dos Basílides para o regime
aristocrático, depois para a tirania (séc. VII/VI a.C.), até que, após demorada luta, foi
submetida pelos lídios guiados por Creso (560-546 a.C.). Com a derrota de Creso acabou nas
mãos dos persas. Após sucessivas peripécias no longo período de luta entre a Grécia e a
Pérsia, foi subtraída definitivamente ao domínio persa pela conquista de Alexandre Magno
(334 a.C.). Depois foi disputada pelos sucessores do Macedônio, passando enfim para o poder
dos reis de Pérgamo. Por testamento de Atalo II, último rei de Pérgamo, Éfeso foi incorporada
pacificamente ao império romano (133 a.C.). Tal fato marcou um reinício para a vida da
cidade. Esta, embora tenha permanecido sempre centro ativo de comércio para toda a região
compreendida entre o Egeu e o Tauro, se ressentira não pouco do longo período de passagens
de um senhorio para outro. Os romanos não tardaram a fazer de Éfeso a capital da província
da Ásia (129 a.C.) e um importantíssimo centro de comunicações entre o Oriente e o
Ocidente.
A parte mais antiga de Éfeso deve ter-se desenvolvido aos pés da colina de Ayasoluk. Pois
lá as escavações trouxeram à luz as ruínas do Artemísio, i. é, do famoso templo da Grande
Mãe, divindade oriental da fecundidade, que os gregos identificaram com Artemis e os latinos
com Diana. Tudo faz crer que a vida dos primeiros habitantes se desenrolava ao redor daquele
santuário, reconstruído sempre de novo, após cada destruição. Ele surgiu em formas
grandiosas no templo chamado de «Creso» (séc. VI), porque o opulento rei da Lídia, tendo-se
apoderado de Éfeso, contribuiu largamente para construí-lo. Destruído também este santuário
por certo Eróstrato, que em 356 a.C. o incendiou para celebrizar-se, ergueu-se na época de
Alexandre aquele que ainda estava de pé no tempo de Paulo. Por causa do solo pantanoso, o
novo templo foi edificado numa plataforma notavelmente mais alta em relação aos terrenos
vizinhos. De resto, toda a cidade deve ter lutado contra a invasão das águas do mar, que
submergiram várias vezes a zona portuária, situada aos pés da colina do Coresso.
Depois daquelas experiências, a cidade helênico-romana foi edificada de preferência nas
zonas elevadas das encostas do Coresso (atualmente, Bulbul-Dagi) e do Pion (Panayir-Dagi),
duas colinas a sudoeste da zona do Artemísio. A nova cidade foi também protegida, por obra
de Lisímaco, com um imponente sistema de muros, que se estendiam por cerca de 8 km; teve
um teatro, reconstruído em época romana, com um anfiteatro para uns 25.000 espectadores.
Nesse teatro, talvez, ressoou a palavra ardente de Paulo; lá retumbou certamente a gritaria do
tumulto suscitado contra Ele pelo ourives Demétrio (At 19,23-40). Outros monumentos
notáveis, trazidos à luz pelas escavações, são o ginásio de Védio, a biblioteca de Celso
Polemeano etc. Suntuosas eram particularmente duas ruas: uma espécie de via sacra, que da
porta Magnésia conduzia ao Artemísio; outra, que ia da praça principal (agora) até o mar;
estavam ladeadas de pórticos; e a segunda, chamada Arcadiana, nome derivado do imperador
Arcádio, era iluminada à noite, ao menos desde o tempo desse imperador.
104

Não falamos aqui dos monumentos cristãos de Éfeso, a basílica do Concílio ou da Virgem,
a de S. João, construída, parece, sobre o túmulo dele, a lendária gruta dos Sete Dormentes
etc., porque ultrapassam o período e o objeto do nosso estudo.
A cidade evangelizada por Paulo ostentava um aspecto suntuoso, mas não faltava o aspecto
contrário: um subúrbio feito de vielas e de casebres malsãos, onde se aninhava a maior parte
da população, cuja totalidade se calcula em cerca de 225.000 habitantes. O povo vivia do
comércio e do tráfico portuário, bem como da afluência dos visitantes, que acorriam ao
templo de Ártemis sobretudo em abril-maio (Artemísias). Para eles fabricavam-se, em
material precioso (cf. At 19,24s), minúsculas reproduções do templo, e estatuetas da deusa
etc. Famosos eram também os «:Efe,sia gra,mmata» amuletos com inscrições misteriosas (cf.
At 19,18s), tidos como proteção contra mau-olhado e coisas semelhantes (cf. At 19,19).

Destinatários. Dados de crítica literária e textual


Não é raro colocar-se a carta aos Efésios ao lado de Romanos e até de Hebreus, por
pressupor-se ter em comum com elas o caráter de tratado doutrinal, o qual prescindiria das
condições concretas dos destinatários para formular um ensinamento de caráter universal.
Mas é preciso reconhecer que a carta aos Romanos e, sobretudo, aos Hebreus possuem
verdadeiro caráter de carta, se por carta se entende que o escritor, embora tratando temas
doutrinais válidos para todos os cristãos, tem presentes as condições e as exigências dos seus
leitores imediatos, o momento particular que eles atravessam: numa palavra, conhece-os. A
exposição doutrinal, embora cerrada, não lhe impede inserir temas práticos, estabelecer o
contato vivo e afetivo com os leitores. Não se pode afirmar o mesmo de Efésios, que usa de
um tom impessoal, a tal ponto de quase dar a impressão de o autor não conhecer os leitores
ou, pelo menos, não conhecê-los diretamente. Ele ouviu de outros noticias sobre a sua fé
(1,15); supõe-se que os leitores podem ignorar o ministério que DEUS confiou a Paulo em
benefício dos gentios (3,2); não se tem certeza sobre a firmeza da formação cristã deles
(4,21). E contudo Paulo havia trabalhado por três anos em Éfeso, ao passo que ao escrever a
carta aos Romanos conhecia a comunidade de Roma só por informações. A própria carta aos
Colossenses - uma comunidade que, como a de Laodicéia, jamais vira o Apóstolo em pessoa
(Cl 2,1) e fora evangelizada pelo discípulo Epafras (Cl 1,7) - é mais rica em pormenores
referentes aos leitores: conhece-lhes a intensa vida cristã (Cl 1,3s.8; 2,5), os perigos de
sedução a que se acham expostos (2,4.8.16-19) e aos quais, em suma, resistem com firmeza
(2,5ss). O início da carta aos Colossenses é bastante mais epistolar do que o da carta aos
Efésios, por citar o irmão Timóteo (Cl 1,2), silenciado em Efésios (e Timóteo devia ser bem
mais conhecido em Éfeso do que em Colossos); mais vivo é também o epílogo de
Colossenses, amplo (4,7-18), com as saudações de várias pessoas que se encontram junto a
Paulo (Cl 4,10-14) e para determinados grupos de fiéis (Cl 4,15), a saudação da própria mão
de Paulo e a última recomendação de se lembrarem dele prisioneiro, (Cl 4,18). Tudo isso falta
no hierático final de Efésios (6,23s), complicado augúrio de paz, amor e fé, seguido de outro
augúrio de graça para todos os que amam a Nosso Senhor JESUS CRISTO na
incorruptibilidade.

Carta circular ou carta aos Laodicenses?


Às hesitações das testemunhas do texto recorrem, de uma forma ou de outra, as duas
opiniões dominantes nos tempos modernos com referência ao destinatário da carta: 1. Efésios
é uma carta circular dirigida a várias comunidades da Ásia, mais precisamente, do recôncavo
de Éfeso; 2. Efésios não foi dirigida à comunidade de Éfeso mas à de Laodicéia.
105

Conclusão
As observações pró e contra cada uma das duas hipóteses que se propõem resolver o
enigma de Efésios mostram certamente que nem uma nem outra conseguem impor-se com
argumentos decisivos, i. é, permanecem no estado de simples opiniões que dividem entre si as
simpatias dos críticos. Tudo somado, porém, pensamos que a teoria da carta circular apresenta
mais motivos de consideração, pois os caracteres genéricos manifestados por Efésios, se
contrastam sobretudo com o envio da carta à comunidade de Éfeso sozinha, tampouco se
harmonizam com o envio a outra comunidade particular - no caso concreto a de Laodicéia -
pois esta, embora nunca tenha sido visitada por Paulo, devia, contudo, ser-lhe bastante
conhecida pelas informações recebidas.
Talvez a solução mais provável seja admitir que a carta é dirigida aos fiéis de Éfeso, ainda
que não tenham sido os únicos destinatários. Dependendo de Éfeso outras Igrejas, como as de
Colossos, Laodicéia, Hierápole etc., nada teria de estranho que o Apóstolo tivesse escrito esta
carta com a intenção de que fosse lida em cada uma dessas comunidades. Finalmente, deve
ter-se conservado em Éfeso, e daí o título que aparece nela.

2. Lugar e tempo de composição


As relações com Colossenses e o fato de Efésios ter tido com ela o portador comum
Tíquico (Ef 6,21; Cl 4,7), induzem a não separar as duas cartas quanto a tempo e lugar de
composição. Nesses dois lugares citados pronunciamo-nos em favor da tese tradicional da
origem romana, mais precisamente, lá pelo fim da primeira prisão em Roma (62/63 d.C.), por
causa da esperança de libertação próxima, expressa em Fm 22.
As características de linguagem e de estilo da carta aos Efésios justificam-se amiúde com o
tempo da sua composição: lá pelo fim da vida de Paulo. Insinua-se também que a serena e
profunda meditação sobre o plano divino da salvação, sobre a união dos judeus e gentios no
mesmo Corpo etc. se deve à relativa tranqüilidade da prisão romana, numa casa tomada em
aluguel (At 28,30; cf. 28,16), com possibilidade de receber visitas e de realizar certa atividade
apostólica (At 28,17.31). Escreveu-se a carta em tempo pouco distante de Colossenses,
provavelmente depois desta, da qual difere, todavia, pela veste literária, por alguns aspectos
doutrinais e pelo estado de alma que nela se reflete, devido às notícias inquietantes sobre a
crise de Colossos. Devemos antes confessar que dispomos de dados positivos escassos.

4. Divisão
Exórdio
Parte dogmática: O plano divino de Salvação: 1,3-3,21
Parte exortativa: A vida nova em CRISTO e na Igreja: 4,1-6,20
Epílogo

5. Teologia

Supremacia universal de JESUS CRISTO


A supremacia de JESUS CRISTO consiste, em primeiro lugar, no domínio que exerce
sobre toda a Criação. Em CRISTO cumpre-se o que disse o salmista de que tudo quanto existe
ficou submetido sob os Seus pés (cf. Sl 8,7). O poder de DEUS desenvolveu toda a sua força
ao ressuscitar e exaltar CRISTO, sentando-O à direita do Pai nos Céus. Por isso Ele está
«sobre todo o Principado, Potestade, Virtude e Dominação e sobre tudo quanto existe, não só
neste século mas também no vindouro» (Ef 1,20-21). Não obstante, a descida à terra do Fiho
de DEUS feito homem podia parecer a alguns como se aquele homem, chamado JESUS de
106

Nazaré, fosse em tudo igual a qualquer outro homem e, portanto, menor em dignidade que os
Anjos. Para desfazer esse erro, baseado na mera aparência, São Paulo afirma que «o que
baixou é o mesmo que subiu aos céus para levar tudo à sua plenitude» (Ef 4,10).
Por outro lado, a supremacia universal de CRISTO mostra-se em toda a sua plenitude pela
sua condição de Cabeça da Igreja, que institui, vivifica e ama. JESUS CRISTO, na verdade,
não só «reúne» os homens «dispersos de Israel», o «resto de JHWH» que os profetas
anunciaram, mas também os que estavam fora, os Gentios. Esses dois povos, o udaico e o
gentio, separados inclusive de forma física nos átrios do Templo por um muro, estão
destinados por vontade divina a formar um só povo, o povo de DEUS.
JESUS CRISTO é, pois, Quem dá coesão ao novo povo, fazendo que seja n’Ele um só
corpo, que nutre e assiste, comunicando-lhe as graças necessárias «para a sua edificação na
caridade» (Ef 4,16). Mais adiante voltará a referir-se à capitalidade de CRISTO, o «salvador»
do corpo (Ef 5,23). A ênfase com que JESUS CRISTO é nomeado salvador revela-nos
claramente a Sua função salvadora relativamente à Igreja. Daí que a sua capitalidade não seja
só primacial e de perfeição, mas funcional, enquanto pelo seu influxo a vida da graça passa da
Cabeça para o seu Corpo. É uma doutrina que o Concílio Vaticano II recorda ao dizer que
JESUS CRISTO «com a grandeza do Seu poder domina os céus e a terra e em eminente
perfeição e ação enche com as riquezas da Sua glória todo o corpo» (LG 7).

Natureza da Igreja
Um segundo aspeto doutrinal, sublinhado nesta carta de maneira particular, é o da natureza
da Igreja na sua condição de Corpo de CRISTO, perspectiva já contemplada por São Paulo
noutros lugares79. A capitalidade de CRISTO supõe, na verdade, que a Igreja, formada por
todos os cristãos, é um só Corpo com CRISTO (Ef 4,4), para o qual DEUS reparte entre os
fiéis os Seus dons e carismas (cf. Ef 4,11-12). Mais adiante volta a destacar esta doutrina ao
afirmar que CRISTO ama a sua Igreja como algo próprio e muito querido (Ef 5,29),
comunicando-lhe a graça em plenitude.
A Igreja é considerada nesta carta, além disso, como Templo de DEUS, morada divina que
está edificada sobre o fundamento dos profetas e dos apóstolos, e cuja pedra angular é o
próprio CRISTO (Ef 2,21). Sob essa imagem apresenta os cristãos como pedras vivas, juntas
em harmoniosa edificação para ser morada de DEUS pelo Espírito (Ef 2,22). Aqueles que
fazem parte desse edifício já não são estranhos ou forasteiros, mas concidadãos dos santos e
familiares de DEUS (Ef 2,19).
A Igreja é diferente de qualquer instituição humana, por ser a Esposa de CRISTO (Ef 5,21-
23). Esta imagem foi usada com frequência no Antigo Testamento para nos fazer
compreender o grande amor e misericórdia de DEUS80 (cf. Ef 5,25-27). Esta relação amorosa
de DEUS com o seu pova chega à sua perfeição na união de CRISTO com a Sua Igreja, que
uniu consigo em pacto indissolúvel e enriqueceu perpetuamente com bens eclesiais, para que
compreendêssemos a caridade de DEUS e de CRISTO para conosco, que supera toda a
ciência (cf. LG 6).
São Paulo compara o matrimónio cristão à união de CRISTO com a Sua Igreja; por isso
chama-lhe grande mistério. O termo «sacramento» é aplicado em sentido estrito aos sete
Sacramentos instituídos por CRISTO para a justificação e santificação dos homens, mas
também pode atribuir-se em sentido lato à Igreja. Destaca-se assim a função salvadora que
exerce a Igreja ao manifestar diante dos homens CRISTO como Seu Salvador. Com efeito,

79
Cf. Rm 12,5; 1Cor 10,16; 12,13.27; Cl 1,18.24; 2,19; 3,15; etc.
80
Cf. Is 1,21; 49,18; Jr 2,2; Ez 16; Os 2,16-18; Mt 19,15; Jo 3,24; Ap 19,7-9; 20,2.17; etc.
107

através dela os homens chegam ao conhecimento do Mistério da Redenção que DEUS tinha
oculto desde a eternidade (Ef 1,9). Este, que se torna realidade e se manifesta com CRISTO
(Ef 3,3.9), atinge todos os homens por meio da Igreja.

Conhecer
O leitor da carta aos Efésios nota logo a volta freqüente da idéia de conhecimento. Se o
termo «gnw/sij» se encontra uma só vez (3,19), «evpi,gnwsij» não mais de duas (1,17; 4,13), e
«ginw,skw» três (3,19; 5,5; 6,22: neste último v. sem realce doutrinal), não faltam verbos e
substantivos referentes ao ato de conhecer. «gnwri,zein», fazer conhecer (1,9; 3,3.5.10;
6,19.21); «fanero,w», manifesto (5,13 bis); «fwti,zw», ilumino (1,18; 3,9) e «fw/j» luz
(5,8s.13 bis). Note-se também encontrar-se em Ef 3,18 o único caso em que «katalamba,nw»,
«compreendo» se refere ao ato da inteligência.
Quando, às vezes, os termos se acumulam no mesmo lugar, o fato deve-se mais à
preocupação do autor de transmitir plenamente o seu pensamento do que à sua verbosidade.
Compreende-se destarte a aglomeração de: «ginw,skw» e «gnw/sij» (3,19); «noe,w» e «su,nesij»
(3,4); «pefwtisme,nouj tou.j ovfqalmou.j th/j kardi,aj Îu`mw/nÐ eivj to. eivde,nai ...» (1,18:
iluminados os olhos ... para ver ...); « fw/j» e «fanero,w» (5,8-13), e logo após (v. 14) o hapax
«evpifau,skw». Retomando o paralelo entre Colossenses e Efésios, diríamos: aquela opõe-se
polêmicamente à falsa gnose e expõe da gnose cristã o quanto lhe sugeria a situação polêmica;
ao passo que esta faz uma exposição mais positiva e completa, sendo considerada como a
síntese da teologia paulina. Talvez seja mais exato falar em vértice da teologia paulina.

Conhecer e viver o mistério


A revelação do plano divino em CRISTO (mistério) corresponde, no homem iluminado,
um conhecimento ou conhecimento superior (evpi,gnwsij), que é, simultaneamente,
participação na vida divina em CRISTO. Os dois elementos - conhecimento e vida
sobrenatural - ocorrem sempre juntos na carta. O cristianismo, longe de ser pura especulação,
propõe-se levar, pela iluminação da inteligência, o homem inteiro para um novo plano de
vida: a vida da graça, efeito da inserção no corpo cuja cabeça é o próprio CRISTO. O mistério
vem apresentado, às vezes e com algum exagero, como sendo o conteúdo essencial da carta;
Ele, no entanto, é apenas o objeto principal da gnose cristã. Também a união de todos os
homens, judeus e gentios, numa única comunidade religiosa constitui apenas um aspecto do
mistério: o meio pelo qual uns e outros, mediante a ação de um único Espírito, podem
aproximar-se do Pai (2,18) e formam, sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas -
sendo CRISTO a pedra angular - o edifício que se delineia mais claramente como sendo o
templo e a habitação do Espírito (2,19-22).
Iluminar os gentios sobre a economia do mistério, a fim de que os principados e as
potestades celestes venham a conhecer, pela Igreja, a multiforme sabedoria de DEUS, é a
missão do apostolado de Paulo e o modo pelo qual Ele anuncia o Evangelho (3,8-11). Viver
nessa luz é a idéia informadora da moral que distingue nitidamente os cristãos dos pagãos;
estes, por viverem com a inteligência mergulhada nas trevas, andam alheios à vida de DEUS.
Tal ignorância e cegueira de coração conduziu os pagãos a toda sorte de vícios (4,17ss). Mas
o cristão, instruído sobre CRISTO e participante da sua verdade, viverá diferente: despojar-se-
á de tudo o que pertence ao velho homem, para revestir-se do novo, criado em justiça e
santidade da verdade (4,20-24).
108

Unidade
Outro tema fundamental da carta é o da unidade: «e`no,thj» (4,3.14). O termo não ocorre em
outra passagem do NT81. Merece notar-se muito o fato de «ei-j» significa quase sempre um só
ou único. Acentua-se, portanto, fortemente o conceito de unidade ou unicidade em Efésios. A
unidade está na base da vida moral cristã e, mais precisamente, do espírito de caridade que
deve reinar entre os fiéis (4,1-6: um só corpo, um só Espírito etc.). O plano secreto de DEUS
visava formar uma só coisa (e[n, unum)82 da humanidade dividida em judeus e gentios (2,14),
transformados no único homem novo (v. 2,15), pacificados no único corpo (ibid.), de tal
forma que todos podem, num mesmo Espírito, aproximar-se do Pai (2,18). A própria noção do
mistério se concretiza assim na noção da unidade.
Esses e outros temas notáveis, são desenvolvidos num ambiente de oração, característica
inconfundível da carta aos Efésios. A oração de vez em quando volta com particular
intensidade (1,15s; 3,1.14); mas ela se difunde, efetivamente, nos três primeiros capítulos
inteiros, em forma de súplica, de agradecimento, de adoração, elevando-se até à sublimidade
do hino (1,3-14; 3,14-21); daí se pode bem afirmar que em Efésios se expõe a doutrina na
forma de uma solene celebração litúrgica.

6. Exegese: A grande Bênção (Ef 1,3-14)


O cabeçalho e os votos de graça e de paz reproduzem substancialmente aqueles que
iniciam a carta aos Colossenses, mas ajuntam algum leve acréscimo, como, «kai. kuri,ou
VIhsou/ Cristou/» no v. 2. Feita essa introdução, expõe-se o assunto na forma de solene ação de
graças a DEUS, uma espécie de grandioso prefácio que penetra na eternidade, contemplando
o plano secreto de DEUS, e desce ao tempo (na plenitude dos tempos) para celebrar a sua
realização por obra de CRISTO e a sua aplicação na Igreja. Extremamente denso de conteúdo,
o trecho apresenta-se como um único período, uma série de proposições relativas que se ligam
umas às outras. Os editores do texto grego distinguem-nas, em geral, por simples vírgulas, às
vezes por um sinal de pontuação mais forte; mas sente-se o trecho como um bloco único,
embora a sua leitura seja cansativa.
Propomos esta divisão: louvor a DEUS por ter-nos cumulado de benefícios (v. 3); em
particular, por ter-nos escolhido e predestinado à filiação adotiva em CRISTO antes da
criação, e por ter-nos remido do pecado, mediante Si mesmo, e enchido da sua graça (vv. 4-8),
por ter-nos revelado o desígnio de reconduzir todas as coisas a uma só cabeça, CRISTO (v.
9s); nele foram todos constituídos herdeiros, judeus e gentios, recebendo, como penhor de
herança, o dom do Espírita Santo (11-14).

Bendito seja DEUS: v. 3

Bendito (euvloghto,j, adjetivo verbal) corresponde ao hebraico «%WrB'» (bendito, Louvado).


A fórmula - reservada a DEUS no NT (2Cor 1,3; 1Pd 1,3) - exprime simultaneamente louvor
e agradecimento. É incerto se o genitivo de Nosso Senhor JESUS CRISTO é regido apenas por
Pai ou também por DEUS. A gramática83 depõe em favor da dependência de ambos os
termos: também no v. 17 fala-se do DEUS de Nosso Senhor JESUS CRISTO84. As bênçãos

81
A variante de Cl 3,14 - «e`no,thtoj» em lugar de «teleio,thtoj» - é atestada debilmente demais. Falta
também na LXX e nas outras versões do AT.
82
Como amiúde em S. João: 11,52; 17,11.21ss.
83
Tem importância o fato de o artigo ser colocado só antes de DEUS, unido estreitamente com Pai, embora
isso não seja decisivo.
84
Cf. Rm 15,6; 2Cor 1,3; 11,31; Cl 1,3.
109

dos fiéis a DEUS correspondem às bênçãos (= benefícios) de toda espécie com que Ele nos
abençoou (note-se o desenvolvimento do tema: «euvloghto,j, euvlogh,saj, euvlogi,a»). Estas
bênçãos são três: a filiação adotiva (Pai), a redenção (Filho) e a iluminação (Espírito Santo).
Os benefícios dizem-se espirituais porque se referem ao âmbito do espírito ou, antes, porque
derivam do Espírito Santo. A expressão «evpourani,oij» é própria de Efésios (v. 20; 2,6; 3,10;
6,12), e parece indicar o lugar donde desceram sobre nós as bênçãos divinas, i. é, a sua
origem, e, por conseguinte, a sua natureza. Outros vêem nela um simples eqüivalente de «evn
tw/| ouvranw/|» (no céu). Em CRISTO é fórmula típica, mas não exclusiva85, das cartas aos
Efésios e Colossenses, para exprimir a união com CRISTO-cabeça e a sua ação no corpo da
Igreja. Pela nossa união vital com Ele fomos cumulados dos benefícios divinos.

Filiação adotiva: v. 4ss


Após anunciar o tema do louvor a DEUS em geral (euvlogi,a), Paulo desce aos motivos
particulares que impõem o dever de louvar e render graças. Em primeiro lugar vem o desígnio
pelo qual DEUS nos escolheu desde a eternidade em CRISTO (evn Cristw/|), para a condição
de santos e sem mácula. Se as palavras «evn avga,ph|» (no amor) se unem à frase seguinte,
significam que o Pai, por simples ato de seu amor nos predestinou à dignidade incomparável
de filhos seus por adoção; se, ao invés, elas se unem às frases precedentes, então o amor seria
quase o ambiente espiritual em que se desenvolve a vida santa para a qual DEUS nos
escolheu, caso ali não se deva ver também o amor beatificante, de que a vida sobrenatural
presente seria uma antecipação. Ao primeiro ato de DEUS, a escolha, corresponderia assim o
termo último na execução do plano divino, a visão beatifica. Mas é preciso convir que «evn
avga,ph|» está longe demais de «evxele,xato» (escolheu), e que, por outro lado, o ritmo da frase
precedente está completo com «katenw,pion auvtou/» (na sua presença).
Objetivo último do plano de DEUS é a sua glória, que se manifesta no triunfo da glória
comunicada a nós mediante o seu filho amado, o qual é a cabeça de tudo: nele fomos
escolhidos (v. 4), por Ele86 fomos predestinados a ser filhos adotivos e fomos, de fato,
adotados (v. 5); nele fomos, enfim, enriquecidos pela graça divina. Somente no filho pudemos
tornar-nos objeto do amor do Pai.

Redenção: v. 7s
Mas não se podia realizar em nós a filiação adotiva a que DEUS nos havia predestinado,
sem termos sido antes remidos da escravidão da culpa, à qual todos, judeus e gentios,
estávamos sujeitos. Esta afirmação está apenas implícita, enquanto - como veremos na
contraposição entre judeus e gentios nos vv. 11s - ambos foram beneficiados pela obra de
CRISTO.

85
Cf. Rm 3,24; 6,11.23; Gl 3,26.28 etc.: mas às vezes os elementos determinativos tiram alguma coisa da
particular energia concentrada no simples em CRISTO. Cf. A. WIKENHAUSER, Die Christusmystik des Apostels
Paulus2, Freiburg 1956, 6-14.26-37 (com rica informação, ali e nas pp. VIIIss); FR. NEUGEBAUER, In
CHRISTUS. Göttingen 1961, que, porém, considera Efésios e Colossenses só em apêndice, pp. 175-181.
86
«dia. VIhsou/ Cristou/», por meio de JESUS CRISTO, pode entender-se tanto por obra dele, que nos obteve
a adoção de filhos (cf. Gl 3,26), quanto pela nossa incorporação nele, pela quel nos tornamos, de fato, filhos
adotivos. «eivj auvto,n», para ele (in ipsum), em relação a ele, pode referir-se ou ao Pai, que nos predestinou a
sermos seus filhos, ou a CRISTO, com quem nos relacionamos por nossa adoção. A primeira maneira de
entender parece mais fundamentada e evita também certa tautologia com as palavras imediatamente precedentes.
110

Nele (o filho amado do v. prec.), i. é, em virtude da nossa união com Ele 87, conseguimos a
redenção pelo sangue que derramou. Em forma de oposição, como para precisar o conceito de
redenção, acrescenta-se a remissão dos pecados88.
Esta, atribuída como a causa eficiente (dia,) ao sangue de CRISTO, tem por motivo e
medida a riqueza da graça que DEUS derramou em nós com soberana liberalidade 89. Esse
tema, integrado pelo da absoluta gratuidade da ação divina no plano sobrenatural, domina em
todo o trecho. A graça superabundou porque, além de nos remir dos pecados, nos enriqueceu
de sabedoria e prudência com a revelação do mistério (v. 9). A sabedoria (sofi,a) seria o
conhecimento especulativo, a prudência (fro,nhsij) a maneira prática de agir segundo o que se
conhece especulativamente90; mas os dois termos poderiam considerar-se sinônimos: uma
hendíadis para exprimir a idéia com maior plenitude e eficácia91.

O desígnio de DEUS: v. 9s
O mistério de sua vontade, revelado a nós por DEUS como dom anexo ao da redenção,
consiste («kata. th.n euvdoki,an», conforme o desígnio, esclarece o conteúdo do mistério) no
plano que DEUS, soberanamente livre, fixou desde toda a eternidade e que devia realizar-se
na plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4), i. é, quando viria o Messias, tempo que coincide com a
última fase do mundo.
O objetivo do plano divino exprime-se por um verbo muito discutido:
«avnakefalaiou/sqai». Etimológicamente o significado não apresentaria ambigüidade:
«kefa,laion» - donde se forma o verbo - significa capítulo, compêndio; daí o sentido de
recapitular. «VAnakefalai,wsij» é a recapitulação. Com razão já foi abandonado o sentido de
restaurar, sugerido pela Vulgata (instaurare) e por vários Padres latinos, que vêem expressa
aqui a idéia de reconduzir todas as coisas à ordem ou à integridade primitiva. A idéia, embora
não seja estranha à teologia de Paulo92, não concorda com o sentido fundamental do verbo
aqui e em Rm 13,9, onde se fala da lei da caridade que compendia e resume todos os preceitos
(a Vg usa ainda instaurare). Paulo sentiu certamente no composto «avnakefalaiou/sqai» o
sentido fundamental de «kefalh,» - donde o diminutivo «kefa,laion» - e pensou já aqui na
função de CRISTO-cabeça, sob o qual tudo se junta e se reunifica.
O objeto desse ato, intencionado pelo Pai no seu plano divino e efetuado mediante
CRISTO, não é apenas a humanidade dividida, antes de CRISTO, em dois campos adversos
(v. 13; 2,12.16), mas o universo inteiro, material e espiritual: «Ta. pa,nta», todas as coisas.
Confirma-o a frase complementar as que estão no céu e as que estão na terra: nada se
excetua, nem mesmo as criaturas mais altas, i. é, os seres espirituais que adiante 93 receberão
os títulos de principados e de potestades, e que aqui vêm contrapostos às criaturas terrenas.
Também os anjos devem reconhecer e adorar como cabeça o Verbo encarnado. No mais,
sentem-no como dominador as próprias potências infernais (Flp 2,10). Note-se a insistência
no em CRISTO: dito em relação a todas as coisas, é retomado e repetido logo após (... «evn
auvtw/|», «evn w-|» ... nele, no qual) ao introduzir o pensamento dos vv. seguintes.

87
Tal deve ser o sentido de «evn» (em) no início do v. 7: a idéia de meio ou de agente, na qual se poderia
pensar, vem expressa logo após com «dia. tou/ ai[matoj auvtou/», pelo seu sangue.
88
«Para,ptwma», lit. queda, qualquer transgressão da lei de DEUS.
89
«Perisseu,w», com valor transitivo: faço superabundar, derramo sem medida.
90
Exegese de S. Tomás, Vosté, Huby etc.
91
Assim, entre os mais recentes, H. Schlier, que lembra o caso análogo de Cl 1,9 (sofi,a e fro,nhsij).
92
Cf. Rm 8,19-22: não só restauração, mas também glorificação.
93
3,16; cf. Cl 1,26.
111

A herança: vv. 11-14


Após essa visão cósmica, que prevalece na carta aos Colossenses, o Apóstolo restringe-se a
considerar os dois grupos nos quais estava dividida, sob o aspecto religioso, a humanidade
antes de CRISTO: judeus e gentios. Foram reconciliados em CRISTO, encontrando nele o
princípio e o centro unitário de vida sobrenatural.
Aqueles que foram constituídos herdeiros foram também predestinados por desígnio
munificente da liberalidade divina. Manifesta-se, assim, a glória de DEUS (v. 12) naquela
parte da humanidade que por primeira esperou em CRISTO ou - segundo outros - esperou em
CRISTO antes da sua vinda. Em ambas as interpretações do discutido hapax trata-se dos
judeus ou em relação aos outros (os gentios, antes dos quais eles depositaram a sua confiança
em CRISTO), ou em relação à vinda do próprio CRISTO, antes da qual esperaram nele, em
virtude das profecias messiânicas. A diferença entre uma interpretação e a outra não é muito
forte, pois quem esperou em CRISTO antes do seu advento esperou antes dos outros, porque
nenhum povo, em sentido próprio, alimentou esperanças messiânicas afora Israel, embora os
justos não pertencentes a esse povo eleito tenham sido participantes implícitos das promessas
messiânicas.
No v. 14 volta-se à primeira pessoa do plural: o Espírito Santo é o penhor da nossa
herança, i. é, da herança garantida a todos os cristãos. Retoma-se, destarte, a metáfora da
herança, com que o v. 11 inicia. Trata-se, evidentemente, da herança eterna, da qual temos o
penhor no dom do Espírito que nos assinalou como propriedade sua. A ação dele em nós
prepara-nos também para a salvação, certamente a salvação final, pois ela está colocada no
mesmo plano da herança e se considera como objetivo a alcançar. Dos dois termos bastante
afins «avpolu,trwsij» e «peripoi,hsij» entendemos o primeiro como o ato de libertar ou salvar,
e o segundo, concretamente, como o conjunto dos que foram libertados ou adquiridos. Os
cristãos, porque já são propriedade de DEUS, preparam-se, sob a ação do Espírito Santo, para
a salvação total, que se obterá na parusia.
O tema fundamental desta bênção é bem claro: louvor a DEUS pelos benefícios conferidos
aos fiéis. Paulo não se cansa de repetir que os benefícios divinos nos foram concedidos em
CRISTO: isto significa, segundo os casos, por sua obra salvadora, em virtude da nossa união
com Ele, cabeça do corpo da Igreja. Quanto aos termos de escolha (v. 4) e de predestinação
(vv. 5.11) divina, tomam-se em sentido muito largo e compreensivo, não no sentido específico
de predestinação à glória. Entre os benefícios divinos lembra-se também a revelação do
mistério (v. 9s), que ocupará lugar eminente no decorrer da carta. A herança a que fomos
chamados (v. 11) e da qual temos uma garantia no dom do Espírito (v. 13s) é, mais
precisamente, a glória celeste. Notemos ainda a insistência no fato de DEUS agir por simples
liberalidade, sem intervir mérito algum de nossa parte, e para a sua glória, ao cumular-nos dos
seus dons.
112

As cartas pastorais
No epistolário paulino destaca-se um grupo de três cartas (1 e 2 Timóteo, Tito) que se
dirigem antes a pessoas com função de governo na Igreja do que a uma comunidade inteira;
porque elas ditam normas para o cumprimento exato dessa função administrativa, chamam-se
Pastorais. Cunhado no séc. XVIII, esse titulo resume de modo feliz o caráter peculiar das três
cartas, qual foi reconhecido com certeza desde o séc. II94.

1. Destinatários, data e objetivo

Destinatários
Timóteo, irmão (1Ts 3,2), colaborador (Rm 16,21) e filho caríssimo do Apóstolo (1Cor
4,17), surge no cenário do NT no decorrer da segunda viagem missionária. Nascido em Listra
de pai gentio e de mãe judia, tinha sido convertido - talvez por obra do próprio Paulo (cf. 1Tm
1,2; 2Tm 1,2) - já na primeira estadia tempestuosa naquela cidade (At 14,16-20; 2Tm 3,11).
Na época da segunda viagem missionária Timóteo já gozava de larga estima entre os
cristãos da Licaônia (At 16,1-3); por isso o Apóstolo, passando de novo por Listra, decide
tomá-lo por colaborador; tendo-o feito circuncidar para que pudesse trabalhar com liberdade
entre os judeus, dirige-se com ele às províncias da Ásia e da Macedônia. Timóteo reparte
assim com Paulo as fadigas da fundação das Igrejas de Filipos (Fl 1,1) e de Tessalônica (1-
2Ts 1,1). Daqui vai para Beréia, onde permanece quando Paulo parte pelo caminho do mar
(At 17,14); mas a separação é breve e os dois evangelizadores reencontram-se sem demora em
Corinto (At 17,15).
Registra-se, a essa altura, a primeira missão de confiança que Paulo entrega ao discípulo
predileto. Enquanto o Apóstolo pára em Corinto, Timóteo é enviado, com Silas, a Tessalônica
(1Ts 3,2) para fortalecer e exortar aquela comunidade (1Ts 5,1-3). O jovem discípulo não trai
a confiança depositada nele; tendo desempenhado a sua missão com pleno êxito, está bem
depressa em condição de voltar a Paulo (At 18,5), e de comunicar-lhe as boas disposições dos
tessalonicenses (1Ts 3,6).
Não há notícias se, ao terminar a segunda viagem missionária, Timóteo voltou para a
Antioquia com o Apóstolo ou se permaneceu na Macedônia e na Acaia. Seja como for,
encontramo-lo, na terceira viagem (51-58), em Éfeso com o mestre, que recorre mais uma vez
aos seus préstimos para comunicar-se com a Igreja de Corinto e para cuidar das comunidades
macedônicas (At 19,22; 1Cor 4,17; 16,10). Um ano mais tarde, mestre e discípulo encontram-
se ainda juntos na Macedônia (2Cor 1,1) e, juntos, voltam para Corinto. Aqui, durante os três
meses de estadia do inverno de 56/57, Timóteo é testemunha da composição da carta aos
Romanos (Rm 16,21).
Na viagem de retorno, acompanha ainda o Apóstolo (At 20,4), revê a Macedônia, Tróiade
e Mileto e - com toda probabilidade - segue o mestre até Jerusalém. Aqui os Atos perdem-no
de vista no decorrer dos fatos que levam à prisão de Paulo, ao cativeiro de Cesaréia e à
travessia em demanda de Roma; mas, certamente, não ficou longe do mestre, pois o
encontramos de novo em companhia dele durante o cativeiro romano (Fl 1,1; Cl 1,1; Fm 1).

94
Cânon Muratoriano: «Por visarem a honra da Igreja católica (a ser assegurada) pela correta organização da
disciplina eclesiástica, foram compostas com caráter sacro». S. Agostinho: «Aquele a quem, na Igreja, foi
confiado o ofício de mestre deve ter bem presente essas três cartas do Apóstolo» (De doctr. christ. IV, 16). s.
João Cristóstomo: «Vê como ao longo do toda a carta ele vai expondo a doutrina que convém a um mestre» (In 1
Tim., Introd.).
113

Daqui em diante só temos a sumária notícia de 1Tm 1,3 informando que Timóteo está em
Éfeso, onde Paulo o encarregou de dirigir a comunidade, embora ele fosse ainda relativamente
jovem (1Tm 4,12); o convite insistente de dirigir-se a Roma (2Tm 4,9); o comunicado
lacônico e sibilino de Hb 13,23 dizendo que Timóteo foi posto em liberdade.
Tito é mencionado só nas partes autobiográficas das cartas, ao passo que os Atos não
fazem dele menção alguma. Mas, à base das notícias fornecidas por Gálatas e 2 Coríntios, é
possível entrever a função que ele exerceu em situações especiais, de que os Atos nos
informam. Filho de pais gregos (Gl 2,3), foi convertido provavelmente pelo próprio Paulo (Tt
1,4). Certamente se tornou logo um dos cristãos mais zelosos, porque Paulo o levou consigo
ao Concílio dos Apóstolos (Gl 2,3; At 15,2).
Tito não aparece na segunda viagem missionária; mas as funções que teve no subseqüente
Concílio Apostólico e as missões de confiança que o Apóstolo mais tarde lhe entregou (2Cor
2,12; 7,6s; 12,18) levam a crer que tenha acompanhado Paulo durante a estadia dele em
Corinto, do outono de 51 ao verão de 53 (At 18,11.18), e que lá tenha conquistado tal
conhecimento da situação local e tal ascendência sobre os fiéis que lhe permitirão, mais tarde,
restabelecer a ordem naquela comunidade (2Cor 7,6s).
No decorrer da terceira viagem missionária encontrou-se, certamente, com Paulo em
Éfeso; pois daquela cidade começam as relações epistolares do Apóstolo com Corinto (cf.
1Cor 16,8), nas quais Tito exerceu, repetidas vezes, a função de intermediário. As suas
missões junto à inquieta comunidade foram exatamente duas. Na primeira, foi portador da
carta escrita com muitas lacrimas (2Cor 2,4); voltando de Corinto, ao chegar à Macedónia,
encontra-se com Paulo, que, ansioso por receber notícias se antecipou ao tempo e, tendo
deixado Éfeso (At 19,2-3), correu para além de Tróiade ao encontro do discípulo fiel (2Cor
2,12s; 12,18). Tito obteve êxito em sua obra e pôde, enfim, dar ao Apóstolo notícias
tranqüilizadoras sobre o estado daquela comunidade (2Cor 7,6s). A segunda missão não se faz
esperar; da própria Macedônia, Tito volta para a Acaia como precursor de Paulo (1Cor 16,4s;
cf. At 20,1.3), trazendo, provavelmente, a segunda carta aos Coríntios, e vindo com o encargo
de organizar a coleta (2Cor 8,6; cf. At 1.0,4; Rm 15,26).
De agora em diante encobre a pessoa e a obra de Tito um silêncio que dura até à primeira
prisão romana, quando o encontramos em Creta (Tt 1,5) como preposto daquela comunidade e
destinatário da carta que dele recebe o nome. Pelo que se sabe, ausentou-se da ilha uma só
vez, atendendo ao desejo de Paulo de que o visitasse em Nicópolis no Epiro (Tt 3,12), Daqui
talvez tenha dado uma chegadinha à Dalmácia (2Tm 4,10). Não há outras notícias a seu
respeito; mas é fácil pensar que tenha voltado para Creta, a fim de exercer o ministério
segundo as normas que Paulo lhe sugere na carta dirigida a ele.

Data e objetivo
Como aparece dos indícios biográficos dos destinatários, as Pastorais foram escritas no
período que segue ao primeiro cativeiro romano (após 63), i. é, nos últimos anos de vida de
Paulo, não abrangidos pela narrativa dos Atos.
Aceita-se geralmente a seguinte ordem de composição: 1Tm, Tt, 2Tm. Não há dúvida
alguma sobre a datação posterior de 2Tm, ao passo que alguma voz isolada inverte a ordem de
1 Tim e Tito. A distância entre uma carta e outra pode reduzir-se a poucos meses95, de tal
forma que as três cartas aparecem escritas no espaço de um ano.

95
Isso se deduz da identidade das preocupações que dominam o Apóstolo e da extrema semelhança de estilo
existente sobretudo entre 1Tm e Tt.
114

A primeira a Timóteo, que se pode considerar escrita da Macedônia, após uma visita a
Éfeso (1,3), preocupa-se sobretudo em precaver o jovem pastor daquela Igreja contra os falsos
mestres (1,3-20; 4,1-11; 6,3-10); a obra nefasta deles, que se anunciava de longe para o fim da
terceira viagem missionária (At 20,29-30), já começou a desenvolver-se, encontrando fácil
alimento num ambiente cosmopolita aberto às idéias sincretistas. Ao lado das sugestões para a
luta em defesa da sã doutrina, a carta apresenta também outras orientações sobre a disciplina
interna da comunidade (2,1-15), as pessoas revestidas de autoridade (3,1-13) e os deveres de
Timóteo na qualidade de chefe da Igreja (4,12-6,2).
A carta a Tito parece escrita também ela da Macedônia (3,12). Nesta carta Paulo preocupa-
se sobretudo - como sempre fez com as Igrejas de fundação recente (cf. At 14,20-27; 15,36;
18,23; 20,29) - em fazer que a jovem Igreja cretense receba uma sólida organização; por isso
indica os requisitos dos bispos, presbíteros (1,5-9) e das várias classes de fiéis (2,1-10), bem
como as relações que os cristãos devem ter com a autoridade e com os concidadãos (3,1-2);
justifica as normas práticas, lembrando os supremos princípios da fé (2,11-15; 3,3-8); para
que a Igreja dê os primeiros passos com segurança, recomenda a vigilância contra os
propagadores de falsas doutrinas (1,10-16; 3,9-11).
A segunda a Timóteo, verdadeiro testamento espiritual do Apóstolo, foi escrita no segundo
cativeiro romano (1,8.16s; 2,9) com a consciência lúcida de a morte já estar próxima (4,6).
Este pressentimento torna ainda mais insistente a recomendação feita a Timóteo de dedicar-se,
sem poupar energias, ao serviço do evangelho (1,6-2,13; 4,1-8), à proteção da sã doutrina
(3,10-17) e à luta contra os falsos mestres.

2. Análise das cartas

Primeira Carta a Timóteo


Exórdio: 1,1s
Contra os falsos mestres: 1,3-20
A oração pública: 2,1-15
Os ministros da Igreja. Incumbências de Timóteo: 3,1-4,16
Várias classes de pessoas: 5,1-6,2
Recomendações finais: 6,3-21

Carta a Tito
Introdução. Escolha dos ministros: 1,1-16
Deveres de estado: 2,1-15
Trato com os estranhos à comunidade: 3,1-11
Notícias pessoais e saudações: 3,12-15

Segunda carta a Timóteo


Saudação e a ação de graças: 1,1-5
Pregar o evangelho e sofrer por ele: 1,6-2,13
Como proceder com os hereges: 2,14-3,1
Testamento de Paulo: 4,1-8a
Notícias pessoais e saudações: 4,8b-22
115

Epístola aos Hebreus


O P46 (Codex Chester Beatty II), que coloca a carta aos Hebreus entre Romanos e 1
Coríntios, bem como um ou outro manuscrito atestam que a nossa carta não ocupou sempre o
último lugar no Corpus Paulinum. Esta colocação, que contrasta com a amplitude e a
importância doutrinal do escrito e com a opinião dos antigos sobre o seu destino à primeira
comunidade cristã - a de Jerusalém - parece ter-se tornado definitiva após as hesitações do
Ocidente sobre a autenticidade paulina.

1. Divisão e análise
Introdução: 1,1-1,3
Primeira parte: 1,5-10,18
O Filho, ministro da nova aliança: 1,5-4,13
Cristo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec: 4,14-7,28
O sacrifício de Cristo, único e definitivo: 8,1-10,18
Segunda parte: 10,19-13,17
Exortação à perseverança: 10,18-12,2
Recomendações particulares: 13,1-17
Epílogo: 13,18-25

2. Teologia

Cristologia
A designação de Filho, que serve para realçar a superioridade da nova economia anunciada
por ele (1,2; o mesmo conceito em 2,3, onde «ku,rioj» substitui «ui`o,j»), é quase o compêndio
da doutrina cristológica da carta (cf. 1,8; 5,8; 7,28. textos em que «ui`o,j» é usado de maneira
absoluta, como título de excelência; com o adjunto adnominal «qeou/» em 4,14; 6,6; 7,3;
10,29). Isso pertence exclusivamente a Cristo, pela particular intensidade e plenitude de
sentido que o escritor lhe atribui. Os Anjos, com os quais se estabelece a primeira comparação
(1,4-14), não passam de servos, dos quais Deus se utiliza para executar o seu plano salvífico
em bem dos homens (1,14). Os Anjos são, antes, comparados a criaturas sensíveis, às forças
da natureza, ventos e chamas de fogo (1,7), enquanto o Filho, pelas prerrogativas régias e
divinas (1,5-13), tem direito à adoração deles (1,6). O Filho é perfeitamente igual e
consubstancial ao Pai (1,3), participante da sua atividade criadora (1,2). A sua descida externa
e temporária abaixo dos Anjos, ao aceitar a condição humana (cf. Flp 2,7), entrava no plano
de Deus, pois «convinha», («:Eprepen» 2,10) que o Salvador fosse em tudo e por tudo
semelhante aos que deviam ser salvos (2,5-18).
O mesmo título serve de base para uma comparação, apenas esboçada, com Moisés (3,2-
6a): este era servo na casa de Deus; Cristo é Filho na sua própria casa, criador de tudo, ou
melhor, ordenador da própria economia mosaica (3,3s). Moisés entra, por assim dizer, na
sombra, pois o escritor dá maior realce à comparação entre o antigo e o novo povo de Deus
(3,7-4,13). Quando o grande legislador voltar em cena (11,23-29), estará ainda, bastante
abertamente, subordinado a Cristo, mediante uma fórmula (11,26; cf. 13,8; 1Cor 10,4.9) que
pareceria sugerir, com a preexistência de Cristo, a Sua presença ativa já na aliança sinaítica.
Mas não se afirma a humanidade de Cristo menos energicamente do que a divindade. Ele
assemelhou-se em tudo aos seus «irmãos» (2,17), participando-lhes «do sangue e da carne»
(2,14), para ser campeão legitimo da humanidade na luta de libertação contra o império de
satanás e da morte. Na vida terrena Cristo sofreu, chorou, suplicou, aprendeu pela própria
116

experiência dolorosa a obedecer (5,7s) e conseguiu uma perfeição (5,9; 7,28) que, por ser
fruto do sofrimento («dia. paqhma,twn», 2,10), se atribui à natureza humana que ele assumiu.
Esta natureza deu-lhe a possibilidade de oferecer-se como vitima (10,5-10), de derramar o
sangue com que selou o novo testamento (12,24), o testamento eterno (13,20). Focalizam-se
também alguns aspectos da vida terrena de Cristo: a descendência da tribo de Judá (7,14), a
oração no jardim das Oliveiras (5,7), o lugar «fora da porta» (13,12), onde realizou o seu
sacrifício; tudo com uma exatidão tal que rivaliza com a do testemunho ocular de João
(19,20).
Os dois aspectos, divino e humano, da figura de Cristo, os dois momentos, por assim dizer,
da sua glória - antes e depois de descer à terra - são descritos com eficácia no prólogo, que
contempla o Filho na sua perfeita unidade de natureza com o Pai, na ação terrena para apagar
o pecado, e na sua conseqüente entronização à direita dele (1,3).

Sacerdócio de Cristo
O sacerdócio levítico é o termo de comparação para demonstrar a superioridade do
sacerdócio de Cristo. O trecho 5,1-4 sobre os requisitos do sacerdócio, embora contenha
elementos universais, i. é, encontráveis em todo sacerdócio, é concebido no clichê do
sacerdócio do povo hebraico. Isto manifesta-se na referência à vocação de Aarão (5,4), nos
termos com que se indicam os vários tipos de sacrifício (dons pacíficos, ofertas pelo pecado),
correspondentes aos da lei mosaica, e na exigência de oferecer sacrifícios em expiação dos
próprios pecados, além de oferecê-los pelos pecados do povo (5,3; cf. Lv 9,7; 16,6).
O sacerdócio levítico exerciam-no, portanto, homens necessitados, também eles, de
purificação (7,28); a sua duração limitava-se pela morte de cada um dos representantes (7,23),
que se sucediam de geração em geração: sacerdócio, portanto, imperfeito, por ser transitório e
não definitivo. Mas o sacerdócio de Cristo, pelo contrário, em virtude da sua divindade,
possui uma dignidade infinitamente superior e é eterno (7,24), destinado à purificação dos
outros, não de si mesmo; ele não precisa purificar-se, pois nada tem em comum com os
pecadores (7,26s), exceto a natureza humana com as suas fraquezas; é este, todavia, o título
pelo qual pode exercer legitimamente o sacerdócio em favor da humanidade (2,14-18; 4,15).
Compendiam-se as características do sacerdócio de Cristo na fórmula «segundo a ordem de
Melquisedec» tirada do Sal 109/110,4. Como o misterioso Melquisedec - que a história
bíblica apresenta ex abrupto e sem indicar-lhe a origem - assim também Cristo não tem
genealogia, condição indispensável para a legitimidade dos representantes do sacerdócio
levítico, e não tem «princípio de dias nem fim de vida (7,3): é um sacerdócio eterno». A sua
superioridade com respeito ao sacerdócio levítico demonstrado - e o autor insiste nisto de
modo particular - o fato de que também Abraão, o patriarca do povo hebraico, pagou o dízimo
a Melquisedec, e em Abraão toda a tribo sacerdotal de Levi (7,4-10). A interpretação dos
nomes de Melquisedec e de Salem (7,2) recebe pouco realce ao se traçar a figura de Cristo
sacerdote; e nem se lembra a oferta de pão e de vinho. A atenção do nosso escritor, ao
apresentar Melquisedec como tipo do sacerdócio de Cristo, concentra-se no seu caráter de
sacerdócio perene e não hereditário, insinuado pela maneira singular de o personagem bíblico
ser apresentado.

Sacrifício de Cristo
O ato essencial do sacerdócio do Filho encarnado é o sacrifício de si mesmo na morte
aceita de livre vontade. O seu valor expiatório, ao qual já se alude em 1,3 («feita a purificação
dos pecados»), acentua-se de novo em 9,12ss; 9,26; 10,10.17s; 12,24; 13,12. A teologia
paulina da cruz combina perfeitamente com a teologia sacerdotal e sacrifical da carta aos
Hebreus.
117

Do sacrifício de Cristo acentua-se a absoluta eficácia e a não iterabilidade. A segunda


característica tem a sua razão de ser na primeira: o sacrifício de Cristo, tendo, diferentemente
dos antigos, a virtude de expiar, uma vez para sempre, todas as culpas da humanidade, não
pode ser oferecido senão uma única vez (9,23-10,18). O autor toma como termo de
comparação o mais nobre dos sacrifícios legais: o do dia da Expiação (Kippur). Também esse
devia repetir-se cada ano, por ser incapaz de apagar os pecados (10,1-4); mas Cristo, com uma
só oblação na «plenitude dos séculos» (9,26), expiou os pecados de todos os tempos; e só
deverá manifestar-se de novo para conduzir à salvação final aqueles que o esperam (9,28).
A razão intrínseca da eficácia do sacrifício oferecido por Cristo é focalizada pela
comparação com as vítimas prescritas pela lei: novilhos e cabritos (9,12; 10,4) e, em geral,
oblações (9,9) muitíssimo inferiores à dignidade do homem, que elas deviam substituir ou
representar. Enquanto o sangue daquelas vítimas não podia obter senão uma purificação
carnal, isto é, apenas externa, o sangue de Cristo, oferecido em virtude de «espírito eterno»,
purifica interiormente o homem (a sua consciência) e o capacita de servir a Deus (9,14). De
resto, a eficácia redentora do sangue de Cristo atribui-se não à sua efusão material, mas às
suas disposições interiores, de valor meritório infinito, que se compendiam na obediência à
vontade do Pai (10,5-10).
Da natureza do sacrifício de Cristo, particularmente do fato de ele não poder repetir-se, o
autor deduz o perigo gravíssimo a que se exporia quem «calcasse aos pés (o verbo e a imagem
lembram Mt 7,6) o Filho de Deus» e «tivesse em conta de vil (como coisa comum, «koino,n»:
a Vg reforça usando pollutum) o sangue ... com que foi santificado» (10,29). Para esse
profanador, não sendo concebível outro sacrifício de redenção, só resta o calor do fogo da
vingança divina, que consumirá os rebeldes (10,26s).

Novo Testamento
Quase à maneira de interlúdio entre o tratado do sacerdócio de Cristo (cc. 5-7) e o do seu
sacrifício (9,1-10,18) encontra-se o trecho que apresenta a nova aliança (c. 8). O assunto da
nova aliança é fundamental, embora não sempre explicitamente, em todo o escrito. Relaciona-
se expressamente a aliança com o sacerdócio e o sacrifício em 8,6: existe uma espécie de
correlação entre esta e aqueles, de tal modo que uma nova aliança exige um novo sacerdócio e
um novo sacrifício. Uma «nova aliança» Deus a havia prometido por boca do profeta Jeremias
(31,31-34). Citando o texto profético, a nossa carta acentua o anúncio de uma remissão efetiva
e irrevogável dos pecados, bem como de uma nova lei que será impressa nas mentes e nos
corações (8,8-13).
De aliança fala-se ainda no centro da seção sobre o sacrifício de Cristo (9,15-22). Afloram
aqui os dois sentidos de aliança ou pacto (ato bilateral por natureza) e de testamento, isto é,
doação gratuita (ato unilateral). Parece, em todo caso, não se poder excluir em 9,16s o
significado jurídico de testamento, mesmo se ele era estranho à Bíblia e à mentalidade
hebraica. Pelo que respeita à teologia paulina do «testamento», não se pode desconsiderar o
precedente de Gál 3,15ss, que atesta uma notável afinidade doutrinal entre os dois escritos.

Escatologia
Não se acentua muito o conteúdo escatológico: sobretudo não ocupa uma posição de
primeiro lugar o ensinamento sobre a parusia. As noções de futuro (2,5; 6,5; 9,11; 10,1),
últimos dias (1,2) ou consumação dos séculos (9,26), consideradas no seu contexto, sugerem
uma escatologia antes relativa do que absoluta da humanidade: futuro em oposição ao
presente da economia antiga. Tal maneira de conceber, que talvez não seja estranha a S.
Paulo, explica-se facilmente pelo destino da carta e pelas circunstâncias de tempo e de
ambiente espiritual no qual e para o qual foi ditada. O autor e os leitores encontram-se como
118

no ponto de passagem de um período ao outro, no ambiente veterotestamentário ainda


reinante, e todavia já inseridos na realidade da nova aliança. um passado que, embora já se
tenha exaurido oficialmente, por assim dizer, o seu caminho ainda perdura (presente); um
presente que apenas despontou e que, pela familiaridade com a linguagem dos profetas, podia
ainda denominar-se futuro. Isso torna-se ainda mais compreensível se pensarmos que a nova
economia, já em andamento, está, por sua vez, toda voltada para a sua futura fase gloriosa
(13,14).

O povo de Deus a caminho e os seus «guias»


Um dos traços originais da teologia de Hebreus é também o do povo de Deus a caminho,
com o qual vêm juntar-se dois aspectos: escatológico e eclesial. A noção de povo de Deus - o
novo povo que toma o lugar do antigo - está sempre presente; mas é sobretudo no trecho 3,7-
4,13 que o tema se desenvolve com amplas citações. À citação do salmo 94/95, 7-11 (Hb 3,7-
11) segue-se uma aplicação concreta aos leitores (2,12-19), com a qual se introduz uma idéia
mestra para entender a seção inteira. O hoje, de que fala o salmista, é ainda atual, e o será
enquanto perdurar o chamamento divino. Pois Deus continuou a chamar, ainda depois de
rejeitar a geração hebraica do deserto. Somos nós os chamados. Devemos evitar seguir o mau
exemplo daqueles obstinados que se fizeram excluir da terra prometida. Agora já não se trata
dessa terra, mas do próprio repouso de Deus: o repouso em que ele entrou, segundo a
expressão do Gn 2,2, após terminar a obra da criação. Para entrarmos nesse repouso devemos
apressar-nos nós, o novo povo de Deus a caminho (4,1-11).
Em Hebreus encontram-se as conhecidas metáforas eclesiológicas de casa (3,6; 10,21),
cidade (12,22) e reino (12,28) de Deus, mas isoladamente e sem destaque especial; existe
ainda apenas alguma referência ao ensinamento paulino da união em Cristo (2,9; 3,14;
12,23?).
O povo de Deus a caminho é confiado aos guias («h`gou,menoi» 13,7.17.24), que exerceram
também o ofício de anunciar a palavra de Deus (13,7). A menção do «grande Pastor das
ovelhas» (13,20) sugere haver na Igreja pastores que o representam para o governo dos fiéis.
Cf. 1Pd 5,2ss, onde a metáfora de apascentar, amplamente desenvolvida, acaba por mencionar
o «arquipastor» ou pastor soberano, que recompensará a quem tiver exercido dignamente o
ofício pastoral.

3. Canonicidade
A epístola faz parte do cânon dos livros sagrados e, portanto, deve ser considerada como
um escrito inspirado por Deus; assim o afirmaram alguns Concílios antigos - por exemplo o
de Cartago de 397 - e todos os Padres da Igreja.
A canonicidade da Carta aos Hebreus foi ensinada de modo solene pelos Concílios de
Florença (1442) e de Trento (Sessão IV, 1546).

4. Autor e destinatários
Muitos escritores cristãos do Oriente consideraram a Carta aos Hebreus como escrita
pessoalmente por São Paulo. Entre eles, p. ex., sobressai São João Crisóstomo, grande
admirador e profundo conhecedor dos escritos do Doutor das gentes.
Se assim fosse, a epístola constituiria o número catorze das redigidas diretamente pelo
Apóstolo. Contudo, a tradição da Igreja latina não é tão unânime neste ponto: O autor do
primeiro comentário completo em latim a São Paulo, o anônimo chamado Ambrosiaster, evita
comentá-la. O próprio São Jerónimo recolhe e expressa já algumas dúvidas sobre a direta
autoria paulina, e o mesmo faz Santo Agostinho, a partir do ano 409. Mas, tanto o bispo de
119

Hipona como o tradutor da Bíblia, nos anos posteriores e sob a forja da tradição, foram
admitindo, não só a inspiração da carta, mas também a sua autenticidade. Assim por exemplo,
São Jerónimo citando um passo de Heb escreve: «deste modo diz Paulo na sua epístola, a que
escreve aos Hebreus, ainda que muitos autores latinos duvidem dela»96. O fragmento de um
papiro romano, chamado «Cânon de Muratori», que procede de finais do século II e contém
um autorizado elenco dos livros inspirados, não inclui de modo explícito a carta entre os
outros escritos paulinos, que enumera, pelo contrário, pormenorizadamente. Alguns teólogos
renascentistas, entre eles Erasmo e o cardeal Cayetano, também não consideraram São Paulo
como autor da carta. A mesma opinião é mantida pela maioria dos exegetas do nosso século.
Segundo estes autores, as principais dificuldades para considerar, São Paulo como autor da
carta são:
- a ausência do nome do Apóstolo no cabeçalho;
- a falta igualmente das habituais fórmulas de despedida e outras expressões características
de São Paulo;
- a diferença de linguagem e de estilo;
- a diversidade de temas doutrinais;
- o modo peculiar de citar o Antigo Testamento.
O autor sagrado e a sua personalidade permanecem obscuros (cf. Hb 13,18s). Parecem
esconder-se deliberadamente por detrás da grandeza e importância do tema que se expõe. É
seguro, em qualquer dos casos, que se trata de um cristão culto, bom conhecedor da Sagrada
Escritura e das questões teológicas levantadas no momento da redação. O autor literário tem
de ser uma pessoa muito próxima de São Paulo em pensamento e actividade. Pelo conteúdo
da carta, transparece que foi um homem de cultura helenista, com um grande zelo pastoral, e
um profundá conhecimento da vida religiosa dos Hebreus e do culto do Templo de Jerusalém.
Orígenes, no século III, falou da possível existência de um redator das idéias de Paulo,
como autor directo da carta. «As idelas da epístola, - escreve o exegeta alexandrino - são
certamente do Apóstolo; a dicção e a composição parecem, contudo, de outro, que quis
recordar o pensamento de Paulo, como quem escreve as palavras do Mestre».
A tese de Orígenes conseguiu amplo seguimento na tradição da Igreja e foi avalizada pela
Pontificia Comissão Bíblica na sua resposta de 24 de Junho de 191497. Apesar de tudo, não
foram abandonados os intentos de encontrar o autor-redator e aventuraram-se os nomes de
São Barnabé, São Lucas, São Clemente Romano e o discípulo Apolo (cfr At 18,24s) como
possíveis redatores. Não obstante, deve advertir-se que se trata somente de hipóteses e
conjecturas não demonstradas.
A maioria dos Padres e antigos comentaristas pensaram que a carta foi escrita em Roma ou
nalgum outro lugar da península itálica, conforme as palavras de Hb 13,24: «Saudam-vos os
de Itália». Não obstante, esta expressão poderia entender-se também como a saudação de um
grupo de cristãos procedentes daquele país, mas que residiam noutro lugar que nos é
desconhecido e do qual enviaram a carta. De fato, um manuscrito faz referência a Atenas,
como lugar de redação. Outros códices, pelo contrário, assinalam que foi escrita em Roma ou
em Itália. Por tudo isso, não conhecemos com certeza o seu lugar de composição.
A fixação da data aproximada de composição da epístola apresenta menos dificuldades. Hb
1,3-13 aparece citado no capítulo 36,2-5 da carta de São Clemente Romano aos Coríntios,
composta cerca do ano 95. E se neste ano era já suficientemente conhecida e gozava de uma
ampla difusão, fica claro que a Epístola aos Hebreus não pôde ser escrita em nenhum caso
em data posterior ao começo desta década.

96
In Mt IV, 26.
97
Cf. DS 2178.
120

Ora bem, a evidência interna de Hebreus permite-nos adiantar a data de composição, e


afirmar que a epístola foi escrita, com toda a probabilidade antes da destruição de Jerusalém
pelos exércitos romanos de Vespasiano e Tito, no ano 70. A queda da cidade não é
mencionada em nenhum momento, e numerosos lugares sugerem inequivocamente que o
Templo e o culto mosaico continuam em vigor.
Alude-se, além disso, repetidas vezes ao longo do texto98 a uma situação crítica dos
Judeus. Isto pode fazer pensar na proximidade da guerra judeo-romana, declarada no ano 67.
Bastantes autores assinalam o ano 67 como data de composição.
O conteúdo da carta dá azo a afirmar que é dirigida, sem lugar para dúvidas, a convertidos
do judaísmo, ou seja, a cristãos de origem judaica. Parecem pessoas bem conhecidas pelo
autor, já que este lhes pede com confiança que rezem por ele e anuncia-lhes que espera, voltar
depressa a estar entre eles99. São cristãos familiarizados com os livros sagrados,
especialmente com o livro do Êxodo e com os Salmos, e conhecem bem a interpretação
judaica usual. Estão inteirados dos pormenores do Templo e do culto mosaico, assistiram às
cerimônias do grande «Dia da expiação» e dos sacrifícios quotidianos; manejam, enfim, o
vocabulário ritual.
Por outro lado, não se trata de recém-convertidos. Deles a carta diz que já receberam a
catequese inicial100 e até poderiam ser mestres, pois converteram-se nos tempos antigos, e
puderam contemplar em pessoa os milagres e os dons sobrenaturais que acompanharam a
primeira pregação101. Inclusive talvez tenham escutado a pregação de Estêvão102. Mas não só
isto: também, além disso, adquiriram méritos assistindo os santos e, sobretudo, sofrendo com
paciência e fortaleza uma aberta perseguição, que ia acompanhada de afrontas públicas,
privação de bens, detenções e, em algum caso, até de suplícios capitais103.
O propósito central da epístola é estimular estes irmãos na fé à fidelidade, num momento
de persegção, no qual se manifestavam sintomas de desfalecimento, e prevenir, em última
análise, o perigo de apostasia. Por isso, o tom e a linguagem do autor sagrado equilibram
prudentemente a exortação animosa com a severidade com que lhes exige e os alenta em
diversos momentos da argumentação.
Uma questão levantada desde tempos antigos aos intérpretes de Hebreus, é a de saber se o
autor se dirige a uma igreja local na sua totalidade, como no caso dás Epístolas aos Romanos,
aos Coríntios, aos Gálatas, etc., ou se os destinatários são unicamente um grupo concreto,
dentro de uma comunidade cristã mais ampla: o que poderíamos chamar uma «igreja
doméstica» ou, talvez, um grupo de fiéis que se reunia na casa de uma família determinada.
Assinalou-se, de qualquer modo, que esta carta possui uma característica original: apesar de ir
dirigida a uma comunidade ou grupo concreto, evita toda a individualização, ou seja, enuncia
princípios de ordem absolutamente universal. O autor parece dirigir-se a um grupo social que
se encontra isolado, podendo tratar-se de refugiados ou desterrados.
De qualquer modo, a temática e o enfoque especializados sugerem que o Hagiógrafo
escreve a um grupo concreto, no seio de uma comunidade cristã mais ampla. Alguns autores
inclusive consideram que a epístola vai dirigida a antigos sacerdotes levíticos convertidos ao
Evangelho, que, desaniamdos pelas perseguições, sentem a tentação de voltar ao judaísmo.

98
Cf. Hb 10,25; 10,37; 12,26s; 13,13.
99
Cf. Hb 13,18-19.23.
100
Cf. Hb 5,12.
101
Cf. Hb 10,32; 6,4-5; 10,26.
102
Cf. Hb 2,4; At 6,8.
103
Cf. Hb 10,32-34; 12,4.
121

5. Exegese: CRISTO, Sumo Sacerdote (Hb 5,1-10)


Este trecho é a apresentação definitiva de Cristo como sumo sacerdote. Dividimos o trecho
assim: funções de todo sumo sacerdote e sua vocação (5,1-4), vocação de Cristo ao sumo
sacerdócio (5,5s), a sua experiência dolorosa sobre a terra (5,7s), os resultados (5,9s).

Um Homem chamado por Deus: vv. 1-4


Estes vv. não contêm uma teoria sobre o sumo sacerdote ou sobre o sacerdócio em geral,
válida tanto para o estado de natureza quanto para a instituição religiosa do povo hebreu. Em
que terreno se move o escritor? O terreno vem sugerido, mesmo sem o indício indiscutível do
v. 4 (o paralelo com Aarão), pela terminologia sacrifical do v. 1, que é a do AT, bem como
pela referência ao sacrifício do dia da Expiação (v. 3).
O esquema é, portanto, especificamente hebraico, embora não faltem os elementos
suscetíveis de aplicação universal. O primeiro requisito do sumo sacerdote (v. 1) é que ele
seja representante qualificado dos homens, antes de tudo pertencente à família humana.
Afirma-se isso de modo incidental; mas nem por isso está menos presente na intenção do
autor, o qual se refere já aqui à lei que exigia tanto dos sacerdotes (Ex 28,1) quanto dos levitas
(Nm 8,6) serem filhos do povo de Israel. Mas se o ponto de partida é esse, não se diz que a
carta não se estenda a horizontes mais universais. Sendo homem, também ele, o sumo
sacerdote possui a veste para entrar como mediador entre Deus e os homens. Sua função
principal em benefício dos homens é oferecer sacrifícios pacíficos (dons) e expiatórios
(vítimas pelos pecados). É a distinção fundamental dos sacrifícios segundo a lei mosaica.
Dons poderia, contudo, entender-se por sacrifícios em geral; seguir-lhe-ia a menção particular
dos sacrifícios pelos pecados, que oferecem maiores analogias com o sacrifício de Cristo (cf.
9,11-14; 10,1ss; 13,10ss).
Outro requisito (v. 2) do sumo sacerdote é a capacidade de compadecer-se
(«metriopaqei/n», lit.: sofrer segundo medida, com indulgência mas sem fraquezas) dos que
pecam por ignorância ou se transviaram. «avgnoou/sin» e «planwme,noij» unidos sob o mesmo
artigo, são quase sinônimos e designam quem peca quase sem o saber ou por fraqueza
congênita da natureza humana. Para quem pecava com plena consciência, a lei só conhecia a
pena de morte (Nm 15,30s). O sumo sacerdote deve estar disposto a ser indulgente em razão
da sua humanidade (v. 1) e, sobretudo, por ter experimentado a fraqueza. Ele também deve
colocar-se no plano daqueles pelos quais é chamado a tratar diante de Deus. Pois deve
oferecer sacrifícios de expiação não só pelo povo, mas também por si mesmo (v. 3). Em 9,7 o
sumo sacerdote será expressamente colocado em primeiro lugar.
Já o v. 1 insinuou que a elevação ao sumo sacerdócio se obtém pelo ato de uma autoridade
superior. Agora se diz com clareza ser necessária uma vocação divina, com referência à
Bíblia, que narra a vocação de Aarão mediante Moisés. A glória ou dignidade («timh,», cf. 2,9)
de pontífice ninguém a pode tomar para si por iniciativa própria (cf. Jo 3,27), devido às
funções que ela importa: o intermediário entre Deus e os homens deve ser escolhido por Deus,
pela mesma maneira com que não poderia representar a humanidade se não fosse homem: é a
vocação divina que o coloca, por assim dizer, no nível da divindade. A vocação de Aarão e
dos seus descendentes ao sumo sacerdócio era expressa com particular energia (Nm 3,10; cf.
Ex 28,1), acrescentando-se ameaça de morte para quem, não pertencendo a essa família, se
tivesse arrogado funções sacerdotais. Cf. Nm 16,40; 2Cr 26,18-21; 1Rs 12,31.

Também Cristo foi chamado: v. 5s


Agora o escritor aplica a vocação a Cristo. Deixa de lado outros requisitos do sumo
sacerdote - homem, semelhante em tudo aos seus irmãos, misericordioso etc. (2,10-18; 4,15) -
122

para insistir aqui unicamente na vocação divina, demonstrada com textos dos Salmos: 2,7;
109/110,4. Já se utilizou o primeiro texto para demonstrar a superioridade do Filho com
respeito aos anjos (1,5). O segundo cita-se agora pela primeira vez; mas em seguida será um
tema dominante, citado na íntegra (7,17) ou em parte (5,10; 6,20; 7,11.15.21) ou por simples
alusão (10,21).
O texto do Sl 2 apresenta alguma dificuldade para entender-se como prova da vocação de
Cristo ao sumo sacerdócio; a tal ponto que seríamos tentados a tomá-lo como preâmbulo à
segunda citação, pois esta, sim, prova indiscutivelmente o assunto; o Sl 2,7 provaria só que
Deus glorificou Cristo, reconhecendo-lhe a dignidade de Filho. Mantém-se, porém, a
interpretação corrente, que vê na proclamação da filiação divina o fundamento transcendente
do sacerdócio de Cristo, enquanto o ser homem e Deus o coloca na posição de mediador
qualificado entre Deus e a humanidade. Antes o segundo texto, acrescentado para completar o
primeiro, é que está para confirmar o que primeiro já afirmaria. Notemos que ao citar o Sl
109/110,4 se coloca o acento na dignidade sacerdotal em si mesma: só depois se mostrará, em
oposição ao sacerdócio aaronítico, que Cristo é pontífice segundo a ordem de Melquisedec.
Por ora trata-se apenas de provar a vocação divina, implícita no primeiro texto citado,
expressa no segundo.

Aprendeu pela experiência: v. 7s


Além da vocação divina, era necessária à perfeição de Cristo sumo sacerdote - isento, por
natureza, da necessidade de purificação pessoal, também a experiência pessoal dos
sofrimentos dos seus irmãos. Nos dias de sua vida mortal (nos dias da sua carne, semitismo
evidente) provou sobretudo a morte. Para livrar-se dela, orou e suplicou, acompanhando a
oração com gemidos e lágrimas. Trata-se, com toda probabilidade, da oração no jardim das
Oliveiras (Mt 26,39-46 e parr.); mas o pormenor do forte gemido poderia tirar-se da cena da
agonia na cruz (Mt 27,46.50; Mc 15,34.37; Lc 23,46). De lágrimas, porém, não se fala em
nenhum dos dois momentos da paixão de Jesus aqui lembrados; para este termo o autor de
Hebreus poderia depender de uma tradição oral (cf. 2,3), se acaso não completou o quadro
bastante vivo com um elemento interpretativo bem fundado.
A verdadeira dificuldade do v. 7 está na afirmação de que a oração de Jesus foi atendida; e
isso está em íntima conexão com outro ponto não menos difícil, o de saber qual foi o objeto
preciso da sua oração. Sendo que o v. 7 se relaciona com o v. 2 - a capacidade de
compadecer-se que o pontífice deve possuir, por estar envolto ele mesmo de fraqueza - e não
sendo concebível em Cristo outra fraqueza senão a inerente à natureza humana, com exceção
do pecado (4,15), poder-se-ia supor que o objeto da oração de Cristo tenha sido o terror da
morte, como deixariam entender os evangelistas ao descreverem a cena do Getsêmani.
Mas como se pode dizer que a oração de Cristo foi atendida, se ele suportou a morte com
todos os seus horrores? Notemos que a oração de Cristo no jardim das Oliveiras foi, primeiro,
súplica de libertação da morte, depois, aceitação da vontade do Pai. No seu conjunto, a oração
de Cristo foi atendida não com a libertação da morte, mas porque a debilidade da sua natureza
humana foi divinamente fortalecida, para ele conseguir beber inteiro o cálice da paixão. Isto
parece confirmado por 2,15; segundo este v., o fruto da experiência da morte, feita por Cristo,
é a libertação dos seus «irmãos», que estavam sujeitos, por toda a vida, à escravidão pelo
terror da morte. «avpo. th/j euvlabei,aj» exprime o motivo por que a oração de Cristo foi
atendida. Pensamos estar excluída a interpretação que vê nessas palavras o objeto do qual
Jesus foi livrado em virtude da sua oração. A construção com «avpo,» não seria a mais apta a
exprimir tal idéia; mas a objeção mais grave provém do fato de Cristo ter pedido a libertação
da morte, não apenas do temor dela. Se dermos a «euvla,beia» o significado, bastante difundido
no período helenístico, de piedade ou religiosidade ou temor reverencial de Deus, decorre que
123

a sua oração foi atendida pela profunda religiosidade ou piedade para com o Pai, expressa
pela segunda parte da oração de Cristo no jardim das Oliveiras: a aceitação filial da vontade
dele. A oração de Cristo teria sido ouvida, portanto, como ato de perfeita submissão à vontade
do Pai, o qual respondeu fortalecendo-o para o sacrifício supremo (cf. Lc 22,43).
O v. 8 exprime com vigor o contraste entre o ser Filho de Deus e o experimentar o que é
obedecer. Cristo aprendeu a obediência pelos sofrimentos suportados. É esta a expressão da
total semelhança entre Cristo pontífice e os homens que ele representa diante do Pai. Por essa
experiência Cristo aprendeu a misericórdia para com os irmãos junto com a fidelidade para
com Deus (2,17s).

Perfeito e causa de salvação eterna: v. 9s


Sumo sacerdote, Jesus conseguiu a perfeição através do sofrimento. Tal resultado da sua
ação sacerdotal diz respeito primeiramente a ele, depois aos fiéis.
Perfeição, aperfeiçoar, perfeito constituem a expressão de uma idéia verdadeiramente
central da carta aos Hebreus. Para Jesus, pessoalmente, a perfeição é fruto do sofrimento (aqui
e, ainda mais explicitamente, em 2,10). Mas ele age e sofre em função de sumo sacerdote; por
isso o fruto benéfico do seu sofrimento derrama-se em abundância sobre a humanidade por
Ele representada. Torna-se para ela autor de uma salvação eterna, i. é, que se completará na
eternidade ou que dura eternamente. Mas existe uma condição: o sacerdócio de Cristo é
essencialmente um ato de obediência à vontade do Pai; e também nós só poderemos alcançar
a salvação obedecendo a ele. É evidente no texto grego, mais do que na versão latina, a alusão
intencionada entre «u`pakou,ousin» e «u`pakoh,n» do v. precedente.
O v. 10, que repete parte do texto do Sl 109/110,4, já citado no v. 5, conclui a apresentação
de Cristo sumo sacerdote e introduz o novo tema: sacerdócio segundo a ordem de
Melquisedec. Mas desse tema se tratará efetivamente só depois de uma notável digressão
parenética, no fim da qual (6,20) o escritor sentirá ser necessário chamar de novo a atenção
(inclusio) para esse tema, fundamental para ele. Neste v. já não se trata de vocação divina ao
sumo sacerdócio, mas de solene proclamação com que o Filho, já aperfeiçoado pelos
sofrimentos, é entronizado como único pontífice da humanidade, numa ordem que já não é a
levítica mas a do misterioso personagem Melquisedec. O momento dessa proclamação
imaginária pareceria corresponder ao da glorificação celeste de Cristo.
Recapitulemos assim este trecho: 1. Todo sumo sacerdote, pela própria natureza da sua
missão, deve a) ser membro da humanidade, b) representar os homens nas suas relações com
Deus, c) oferecer sacrifícios, antes de tudo em expiação dos pecados, d) ser compassível para
com os que ele representa, e, último na ordem mas não na importância, e) ser chamado por
Deus. 2. Na aplicação a Cristo destaca-se a) a vocação por parte de Deus, b) a experiência
dolorosa que o colocou no mesmo plano dos seus, irmãos e c) o tornou perfeito e causa de
salvação para todos os que o seguem com docilidade.
124

As Epístolas Católicas em geral


1. Denominações comuns ao grupo
A denominação coletiva de Epístolas ou cartas Católicas é hoje de uso quase geral, mas no
passado usou-se bastante largamente também a de canônicas.

Católicas
Deu-se este titulo, num primeiro tempo, só à primeira epístola de S. João, que, por não
trazer nenhuma indicação dos destinatários - antes, nem sequer um cabeçalho - podia com
facilidade imaginar-se como dirigida a toda a Igreja. Parece que o primeiro a usar o título de
católica para 1 João tenha sido Apolônio (lá por 197). Algum decênio após, Orígenes usa a
designação de católicas para 1 João e também para 1 Pedro e Judas; mas estende-a também à
epístola de Barnabé. Finalmente Eusébio e Jerônimo aplicaram-na a todos os sete escritos,
para os quais se tornará depois comum.
Não há dúvida que com este título se queria exprimir o suposto destino universal. Que a
realidade no início tenha sido tal não é igualmente certo. Se pelo caráter genérico dos
destinatários podem chamar-se católicas, de alguma forma, com 1 João, também Tiago, 1 e 2
Pedro e Judas, não se pode dizer a mesma coisa para 2 e 3 João, que se destinam bem
determinadamente a uma pessoa (3Jo) ou a uma comunidade (2Jo) particulares que, quanto ao
conteúdo, se interessam por problemas locais modestos. Entre as sete cartas aquela que mais
facilmente pode suscitar a idéia de «catolicidade» é, sem dúvida, a de Tiago, por destinar-se
(1,1) às doze tribos da diáspora; e deve-se provavelmente sobretudo a esta carta o fato de
afirmar-se, também para as demais, o título de católicas, título que no Ocidente não foi,
todavia, exclusivo.

Canônicas
O titulo de canônicas, que aparece já no sínodo romano de 382, lembra-nos a distinção
destes escritos de outros, como a carta de Barnabé, o Pastor de Hermas, etc.; a estes últimos,
embora largamente venerados e lidos, a grande maioria das Igrejas negou o caráter de livro
inspirado e normativo. Pensou-se, às vezes, que também o título de católicas tinha tido na
origem o mesmo valor de canônicas, isto é, o de exprimir que esses escritos pertenciam à
categoria dos livros reconhecidos pela Igreja como inspirados. Mas, como já dissemos, a
antiga denominação de católicas foi sugerida sobretudo pelo fato de que o destino das cartas
tinha parecido muito mais largo em comparação com o destino bem delimitado de cada uma
das cartas paulinas.

2. Ordem do canon
As epístolas católicas não se apresentam sempre na mesma ordem no Cânon, isto é, a sua
posição varia, como grupo, em relação aos outros livros do NT, e varia a disposição delas
dentro do próprio grupo.

Posição do grupo no cânon do N.T.


As epístolas católicas ocorrem ora imediatamente após os Atos, ora após as cartas paulinas,
mais precisamente após a epístola aos Hebreus. A primeira posição é a do cânon da Igreja
grega, que pode apoiar-se na autoridade de um bom número de antigos manuscritos
abrangendo todo o NT (como B e S) ou uma parte dele, os quais apresentam unidos Atos e
125

Epístolas Católicas. A segunda é a posição normal da Igreja latina, posição sancionada pelo
cânon tridentino.

Ordem no grupo
Dentro do grupo o Oriente deu precedência à carta de Tiago, não tanto porque o seu
destino às doze tribos dispersas no mundo (1,1) a fazia a mais «católica» entre as epístolas
católicas, quanto porque Tiago figurava em primeiro lugar no elenco das «colunas» (Gl 2,9); e
além disso, colocando-se estas cartas logo após os Atos, era natural que se reservasse o
primeiro lugar àquele que neles figurava como personagem mais eminente da comunidade de
Jerusalém. Refletindo sempre Gl 2,9, depois de Tiago coloca-se Pedro, depois João. No
Ocidente, onde o grupo das católicas aparecia como um apêndice às cartas paulinas, dava-se
preferência a Pedro sobre Tiago, certamente por causa da posição que Pedro ocupa no colégio
apostólico. O vínculo entre Pedro e João revelado pelos Evangelhos e pelos Atos levaram a
colocar as epístolas joaninas logo após 2 Pedro; e esta ordem mantém-se, às vezes, também
quando Pedro ocupa o primeiro lugar no grupo. Judas ocorre sempre em último lugar.
A ordem Pedro, João, Tiago, Judas, que aparece já nos cânones dos concílios de Hipona
(ano 393) e de Cartago (397), foi adotada pelos concílios de Florença e de Trento. E todavia a
Vulgata Xisto-Clementina segue a ordem Tiago, Pedro, etc., vindo assim a coincidir,
praticamente, com o cânon das Igrejas orientais.
Enquanto a ordem canônica não parece levar em conta a seqüência cronológica das cartas -
neste caso as de João deveriam vir em último lugar - os comentaristas modernos, quando
apresentam as epistolas católicas em grupo, levam em consideração uma hipotética ordem
cronológica, bem como outros problemas de ordem crítica, como o da relação entre 2 Pedro e
Judas, pelo que esta última pode vir ou após 2 Pedro ou entre 1 e 2 Pedro.

3. Originalidade e variedade de conteúdo


As Epístolas Católicas não despertaram sempre a atenção que merecem pela originalidade
e variedade do conteúdo, bem como pelo fato de revelarem-nos personagens, ambientes e
momentos muitas vezes bastante diferentes dos que figuram no epistolário paulino. As
Epístolas Católicas nos mostram, nos seus autores, personalidades vigorosas e traços
inconfundíveis: Tiago, eco do mais genuíno ensinamento sapiencial e profético em forma
cristã e mestre de uma moral austera; Judas, flagelo implacável do erro, em perspectiva rica
de fulgores apocalípticos; Pedro, pastor de almas, que, seguindo o modelo do Pastor soberano,
une harmoniosamente ensinamento doutrinal e moral, exortações amarguradas e ameaças;
João, que, embora permanecendo o discípulo doce e meditativo do quarto evangelho,
assumiu, frente a tentativas de aberrações do cristianismo, um ardor polêmico quase
intransigente.
Não menos acentuada é a variedade do conteúdo, tanto em comparação com os demais
escritos do NT quanto também das Epístolas Católicas entre si. Não faltam pontos doutrinais
em que a contribuição destes escritos é única e determinante, como é o da Unção dos
enfermos em Tiago, da descida de Cristo aos infernos em 1 Pedro, da conflagração final em 2
Pedro. Dão originalidade e colorido não só a língua e o estilo, em geral vigoroso e incisivo,
mas também muitíssimas alusões e citações do AT, bem como o recurso a algum escrito
apócrifo ou a tradições populares. As Epístolas Católicas representam uma linha particular e
preciosa da revelação neotestamentária; às vezes confirmam e completam, outras vezes
utilizam o conteúdo de outros livros; lançam amiúde uma luz moderada sobre zonas e
aspectos menos conhecidos da Igreja primitiva.
126

Carta de S. Tiago
1. O autor da carta

Dados bíblicos e tradicionais


O autor apresenta-se como sendo «Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo» (1,1). É
óbvio procurá-lo entre os personagens que no NT figuram com esse nome.
Tiago, irmão de João, parece estar fora de discussão, porque foi morto por Herodes Agripa,
cerca de 42 (At 12,2).
Existe outro Apóstolo chamado Tiago, filho de Alfeu (Mc 3,18; Mt 10,3; Lc 6,15; At
1,13); e ainda um Tiago que, com Judas, José e Simão, é mencionado entre os irmãos do
Senhor (Mc 6,3; Mt 13,55; cf. 12,46-50). É muito provável que este último Tiago se
identifique com Tiago, irmão do Senhor, encontrado por Paulo em Jerusalém (Gl 1,19), um
dos personagens mais consideráveis daquela Igreja (Gl 2, 9.12); é também bastante provável
que não se distingue daquele Tiago que, segundo os Atos (12,17; 15,13; 21,18; cf. 1Cor 15,7),
gozava de grande consideração na cidade santa, e que, segundo conta Flávio Josefo, teria sido
assassinado pelos judeus após a morte de Festo.
Dada a sua posição e a influência que exercia entre os primeiros cristãos, é provável que
seja este Tiago, irmão do Senhor e, segundo uma antiga tradição, bispo de Jerusalém, o autor
da epístola. Este, de fato, ensina, admoesta, repreende, ameaça com a autoridade de um
mestre reconhecido. É a opinião de vários escritores antigos.

Os dados internos
O escrito apresenta-se, antes de tudo, como obra de um judeu. As citações, as
reminiscências, o modo de expor revelam um profundo conhecimento do AT (mormente dos
livros sapiencias), bem como um suficiente conhecimento dos principais apócrifos.
Encontram-se, além disso, na epístola, vários semitismos.
As freqüentes expressões de sabor evangélico atestam que o Autor assimilou com
perfeição a mensagem cristã mediante o contato vivo com o Mestre.
Essas averiguações, enquanto confirmam a opinião que atribui a carta a Tiago, irmão do
Senhor, excluem de todo a hipótese, apresentada por alguns, de que se trata de um escrito
judaico, reelaborado e aceito pela comunidade cristã.

Tiago irmão do Senhor e Tiago filho de Alfeu


Pensam muitos que o NT distinguiria Tiago irmão do Senhor e Tiago filho de Alfeu,
apóstolo. Tem-se, de fato, a impressão de que «os irmãos de JESUS» conservaram para com
ele, também após a escolha dos Doze, uma desconfiança que beirava a hostilidade, e que
ficaram em Nazaré (Jo 7,1-5; Mc 6,3; Mt 12,46-50). Os Atos (1,12ss) citam em separado os
apóstolos e os irmãos do Senhor, como faz, em relação a Tiago, S. Paulo (1Cor 17,7). Em Gl
1,19 «eiv mh,» pode ser adversativo (mas), excluindo, portanto, a Tiago do grupo dos
Apóstolos.
Os antigos - também os mais representativos - não concordam em contar Tiago irmão do
Senhor entre os Apóstolos; e menos ainda concordam os modernos.
Os dados de que dispomos não permitem dar uma resposta segura à questão. Mas parecem
prevalecer os indícios em favor da atribuição da carta a Tiago, irmão do Senhor, um dos
127

personagens notáveis da Igreja de Jerusalém, e da distinção dele de Tiago Menor, filho de


Alfeu.

2. A canonicidade
A inclusão da epístola de Tiago - livro deuterocanônico - no Cânon do NT pelo concílio de
Hipona (393), por Inocêncio I (405), pelo Concílio de Florença e - com definição solene -
pelo Concilio de Trento, tem sólido fundamento no testemunho de muitos escritores antigos.
Lembremos: entre os alexandrinos, Clemente, que a teria comentado brevemente, Orígenes e
Atanásio; entre os palestinenses, Eusébio, que cita Tiago 4,11 como Escritura, nota que a
carta é lida em muitíssimas Igrejas; Cirilo de Jerusalém, que a insere, com as outras cartas
católicas, no catálogo dos livros sacros; entre os latinos, Hilario, que a cita com o nome do
autor; Jerônimo, que a menciona num elenco dos livros inspirados transmitido ao amigo
Paulino.
Quanto aos antioquenos, a epístola foi aceita por João Crisóstomo, rejeitada por Teodoro
de Mopsuéstia, por cuja influência se obterá a unanimidade somente no século VI. Mais tarde
Caetano e Erasmo porão em dúvida que a carta pertença a Tiago; Lutero, diferentemente de
Calvino, haverá de repudiá-la decisivamente. Hoje, entre os não-católicos, muitos limitam-se
a apreciar-lhe o ensinamento.

3. Os Destinatarios
A fórmula de endereço «às doze tribos da dispersão» (1,1) presta-se a interpretações várias.
Uma coisa é certa: que os destinatários crêem em Cristo.
A hipótese de a carta destinar-se a judeus-cristãos domiciliados fora da Palestina insiste no
tom simultaneamente judaico e cristão do escrito. E insiste, sobretudo, no teor das suas
admoestações, na ausência de toda precaução pedida contra a idolatria e os usos do
paganismo, e sobre o fato de na comunidade haver pessoas abastadas (1,10s; 2,1-13; 4,13-16;
5,1-6): classe social que, no âmbito do mundo pagão, só tardiamente se voltou para o
Evangelho. Mas esses argumentos não são apodíticos. Tiago poderia dirigir-se ao conjunto
dos cristãos, ou, ao menos, a todos os fiéis de uma determinada região, designando como as
doze tribos o conjunto dos discípulos de Cristo, enquanto vivem como peregrinos e
estrangeiros no mundo (cf. 1Pd 1,1; 21,11).

4. Circunstâncias da composição

Ocasião e objetivo
Parece que os destinatários eram provados de diversas maneiras (1,2ss.12); não só por
causa da fé por parte de judeus ou de gentios, mas também pelo comportamento dos ricos
(não se exclui que esses fossem membros da comunidade), amantes do fausto (cf. 2,2ss),
arrogantes e opressores (2,5ss; 5,1-6). Os mais tímidos dos fiéis assumiam uma atitude quase
adulatória (2,1-9), enquanto outros se entregavam à cólera (1,19s), ao ciúme e às contendas
(3,14s; 4,1-3), à maledicência (4,11s) e à murmuração (cf. 5,9). Muitos talvez não dessem à fé
um conteúdo prático com o exercício das virtudes evangélicas.
Disso Tiago pôde ter sido informado pelos peregrinos chegados a Jerusalém. Com o seu
escrito quis ele amparar na provação os fiéis e reavivar-lhes o fervor primitivo.
128

Data e lugar de composição


Para muitos a carta de S. Tiago seria o primeiro escrito do NT, anterior ao concílio de
Jerusalém (49/50). Explicar-se-ia assim o caráter vétero-testamentário, a doutrina cristológica
apenas esboçada (1,1; 2,1; 5,8), a organização rudimentar da comunidade e a controvérsia
judaizante ainda fora do horizonte. Nessa perspectiva pré-paulina enquadrar-se-ia a discussão
fé e obras.
Para outros, a composição não é muito anterior à morte de Tiago (lá por 62). As
particularidades notadas atrás são atribuíveis ao gênero literário e destituídas, assim, de valor
comprobativo em favor de uma antigüidade maior do escrito. A solução não é fácil. Mas os
indícios de redação pré-conciliar talvez prevaleçam levemente. Aceitando-se a autoria de
Tiago, pode-se concluir que a epístola foi escrita em Jerusalém.

5. Análise
Cabeçalho. A tentação como prova e como impulso ao mal: 1,1-18
Apresentação de outros temas: 1,19-27
Parcialidade e lei régia da caridade: 2,1-13
Fé e obras: 2,14-26
Domínio da língua: 3,1-12
Sabedoria verdadeira e sabedoria falsa: 3,13-18
Raiz de contrastes. Amizade de Deus e do mundo: 4,1-10
Não julgar! 4,11s
Transitoriedade da vida: 4,13-17
Ai dos ricos injustos! 5,1-6
Paciência! O juiz está às portas: 5,7-11
Recomendações finais: 5,12-20

6. Teologia

A sabedoria
Harmonizando-se com os escritos sapienciais, S. Tiago acentua que a sabedoria autêntica é
dom de Deus, fonte de todo bem (1,17): ele a concede aos que lha pedirem sem hesitação
(1,5-8; cf. 3,17). Qualidade fundamental da verdadeira sabedoria, vista por Tiago no aspecto
prático, é a docilidade, isto é, a humilde e sincera submissão a Deus (3,13). Em relação ao
próximo, a sabedoria exprime-se na moderação e discrição: é pura, pacífica, compreensiva,
condescendente, cheia de misericórdia e de bons frutos, persistente, sem parcialidade e sem
hipocrisia (3,17). Além disso, Tiago fala, por oposição, de uma sabedoria terrena, natural,
demoníaca, descomedida e, por isso, formadora de discórdia e de contrastes e causa de todo
mal (3,14ss).

Fé e obras
O ensinamento relativo à fé e às obras distingue-se claramente do ensinamento dos escritos
judaicos, tanto pelo realce dado à fé, à qual esses atendem menos, quanto pela natureza das
obras: prática dos preceitos morais, mormente da caridade.
A carta está tecida de exortações a praticar o bem, isto é, a exprimir em atos a fé recebida.
Central é o c. 2, onde se declara que não são conciliáveis com a fé os parcialismos em tratar o
rico e o pobre (2,1-9), que se devem cumprir todos os mandamentos com fidelidade (2,10-13)
e que uma fé sem obras é morta, como um corpo sem alma (2,14-26).
129

Essa exposição mais orgânica do c. 2 é preparada e seguida por outras muitas exortações
insistentes, seladas com uma grave afirmação: «Quem sabe fazer o bem e não o faz comete
pecado» (4,17). Surgem esparsos os motivos que devem estimular os fiéis a multiplicarem as
boas obras. Estas são uma exigência da regeneração interior. O ciclo principal das exortações
(1,19-4,17) se articula, de fato, na constatação de que os cristãos renasceram por um gesto da
bondade divina (1,18). Devem, por isso, orientar-se com decisão para o bem (4,8), repudiar as
máximas mundanas (4,4) e resistir às sugestões de Satanás (4,7), para tornarem-se objeto da
benevolência divina (4,6). A observância fiel da lei é condição para conquistar a justiça e a
amizade divina (2,21-25), a perfeição e a bem-aventurança (1,4.12.25; 2, 23; 5,11), a vida e a
glória (1,9.12; 4,10), a liberdade nos seus vários aspectos (1,14s; 4,1-7) e a salvação (1,21;
2,14; 5,16a). Estímulo a fazer o bem são ainda os exemplos dos grandes personagens do AT
(2,21-24; 5,10s; 5,16b-18) e a perspectiva do juízo (2,12s; 5,7-11).

A tentação
Tiago distingue entre a tentação nociva (1,13ss), enquanto é impulso ao pecado, e a
tentação como prova ou meio de progresso espiritual (1,2ss.12; 5,7-11). Aos fiéis sujeitos a
tentações ou tribulações de vários gêneros Tiago lembra que o cristão, quando sofre, deve
alegrar-se no íntimo do coração (1,2; cf. 5,11), porque as provações servem para testar-lhe a
firmeza na fé e a constância em praticar o bem (1,3b.4; cf. Rom 5,3ss). As adversidades, por
outro lado, costumam ser de breve duração (5,7b.10s); suportadas, produzem frutos
abundantes e conduzem à vida (1,12; 5,7-11). Assim, tudo encontra a sua última explicação
na bondade misericordiosa de Deus (5,11; cf. 1 Cor 10,13). Ele oferece-nos, ainda, na oração,
o meio de vencer a tristeza (5,13; cf. Lc 22,42s).

Unção dos enfermos


A unção dos enfermos recomendada por Tg 5,14s constitui um rito, sob vários aspetos,
singular e novo. Exige-se a visita diretamente ao enfermo que não está em condições de
locomover-se; os visitantes são os seniores ou presbíteros, isto é, homens escolhidos mediante
a imposição das mãos (veja Atos e Pastorais), com poder de jurisdição e de magistério
(5,14a); a unção se faz em nome (= mandato e assistência) do Senhor Jesus (5,14b); é
acompanhada por uma fórmula de oração da comunidade (5,15a); tem como efeito especifico
a recuperação das forças físicas e o conforto espiritual, incluída a libertação dos pecados
(5,15b). São os elementos constitutivos de um sacramento. A certeza disso no-la dá o Concílio
de Trento.

Deus
Deus é único (2,19), Senhor (1,7; 4,10.15; 5,11), Pai (1,27; 3,9; cf. 1,18), legislador e juiz
(4,12), imutável (1,17; cf. 1,10s; 4,14); Ele cria (1,17; cf. 3,9); manifesta a sua bondade
compassiva (5,11) regenerando-nos espiritualmente (1,18), atendendo às nossas preces (1,5;
5,13-18), derramando sobre nós preciosos bens (1,5.17), como a verdadeira sabedoria (1,5-7;
3,17). Deus é santo e não pode ser tentado ao mal nem tentar (1,13): devemos aproximar-nos
dele para sermos libertados das ciladas do mundo e de Satanás (4,4-7); o seu domínio é
universal (4,12), a sua providência regula todas as coisas (4,13-16) e realiza desígnios de
misericórdia também através das provações (5,1 1).

Cristo
As referências a Cristo Jesus são poucas e vagas, mas significativas no quadro geral do
NT. Assim a fórmula Senhor Jesus Cristo (1,1) é rica de conteúdo cristológico, realçado
também pelo título de servo que Tiago toma em relação a Cristo, exprimindo-lhe a
130

transcendência divina, a qual está implícita também na ação sacramental realizada no nome
dele (5,14). Ele se manifestou Senhor da glória (2,1), sobretudo na sua Ressurreição (cf. Jo
1,15). Uma alusão implícita a Cristo como mestre pode ver-se em 3,1 (cf. Mt 23,8). Como
juiz é apresentado num contexto que se refere, sem dúvida, à Parusia (5,7-11).

O cristão
Na base da vida do cristão está a regeneração, que faz dele primícias das criaturas (1,18).
Ele foi libertado da escravidão do mundo, de Satanás, das más paixões (4,1-7), do pecado e da
morte (1,14s.21; 4,8b-9); além disso é livre, por estar sujeito a uma lei de liberdade (1,25;
2,12). Pertence a Cristo, por ter sido chamado com o belo nome (2,7) dele: pois foi inserido,
pelo Batismo, no povo que é propriedade de Cristo (cf. 1Pd 2,9; Sl 114,1s).
Igreja é a comunidade local (5,14); mas atrás dela delineia-se uma unidade mais vasta: a
verdadeira descendência de Abraão (2,21; cf. Gl 3,6-9; 4,21-31), o novo Israel (1,1: as doze
tribos). Na comunidade ocupam uma posição especial os presbíteros (5,14), aos quais talvez
pertença também o poder de ensinar, a que se refere 3,1.
Tiago toca também nos deveres religiosos e morais do cristão. Lembremos brevemente: O
amor para com Deus (1,12; 2,5), a que se opõe a amizade do mundo (4,4). Entre os que amam
a Deus mencionam-se particularmente os mais humildes: os pobres (2,5). Ao amor de Deus
promete-se a coroa da vida (1,12), a herança do reino celeste (2,5).
Rezando, o cristão dirige-se a Deus - de quem procede todo bem e todo o dom perfeito
(1,5.17) - para louvá-lo (3,9), pedir-lhe a verdadeira sabedoria o conforto na tribulação (5,13),
a salvação dos irmãos (5,16a) e ainda bens de ordem temporal (4,2; 5,17s). A oração deve ser
confiante (1,6ss; 5,15), intensa (5,16b), acompanhada pela intenção de fazer bom uso dos
dons divinos (4,3) e por uma vida correta (5,16b; cf. 4,8s).
Não faltam referências a atos de culto comunitário (2,2s; cf. At 2,42; 1Cor 11,17-34),
como o rito da unção realizado pelos presbíteros (5,14s), a confissão mútua dos pecados
(5,16).
A lei compendia-se no preceito da caridade (2,8-12), que assegura a clemência do juiz
divino (2,13). A caridade inspira as obras de misericórdia (1,27; 2,15s; cf. Ex 22,20s; Dt
10,18), a moderação, a condescendência, a compaixão, a sinceridade (3,13.17; 5,12), a
solicitude pelo bem espiritual do próximo (5,16.19s); elimina a detração, a maledicência e o
juízo temerário (4,11-12; 3,9-12), a aspereza dos modos, a obstinação, as contendas, a inveja e
as murmurações (3,14ss; 4,1s; 5,9), sobretudo a parcialidade (2,1.8ss).
Entre os pecados Tiago condena com particular energia os da língua (1,19.26; 3,1-12) e as
injustiças sociais (5,1-6). Fonte de todo pecado é a concupiscência (1,14s), que leva a amar o
mundo e não a Deus (4,1-4), e leva a consentir nas seduções de Satanás (4,7; cf. 3,15ss). Mas
a culpabilidade pressupõe o pleno conhecimento (4,17). O pecado gera a morte em toda a sua
extensão (1,15), e exclui da salvação (2,14).

Perspectiva escatológica
Na carta de Tiago não falta conteúdo escatológico. O juiz divino, de quem depende a
salvação e a perdição dos homens (4,11s), já está às portas (5,9), para condenar severamente a
quem não tiver sido misericordioso (2,13; 5,1ss); ao passo que os justos haverão de conseguir
a salvação (1,21; 5,19s), participação do reino de Deus (2,5) e da coroa da vida (1,12).
131

As Epístolas de São Pedro


A Pessoa de São Pedro
Simão («!A[m.vi», helenizado ora para «Sumew,n» [2Pd 1,11 ora para «Su,mwn»), era irmão
de André. O pai é chamado em Mt 16,17 Jonas, e em Jo 1,42; 21,15ss João. Simão era casado
(Mt 8,14). De Mt 19,27 se deduz que ele, pondo-se a seguir a CRISTO, deu um adeus
definitivo à família.
Simão e André eram naturais de Betsaida (Jo 1,44). Parece que, por causa de trabalho, a
família se transferiu para Cafarnaum ou possuía nessa cidade um domicílio (Mc 1,29). Os
dois irmãos, pescadores de profissão (Mt 4,18) e associados no ofício a Tiago e a João (Lc
5,7.10), possuíam provavelmente haveres modestos (Mt 19,27). O trabalho de pesca
contribuiu para fortalecer física e moralmente o futuro apóstolo e para aguçar-lhe o espírito de
observação.

O discípulo
Pedro, atraído antes pela forte personalidade e pela palavra penetrante de João Batista, foi
depois um dos primeiros, com o irmão André, que seguiram a CRISTO, indicado abertamente
pelo precursor como sendo o Cordeiro de DEUS (Jo 1,29.35.40ss). O chamamento definitivo
ocorreu na Galiléia (Mt 4,18ss).
Desde o primeiro encontro o Messias mudou o nome de Simão para o de Cefas ou Pedro
(Jo 1,42). CRISTO prenunciou-lhe assim a função de pedra fundamental no futuro edifício da
Igreja, o primado que lhe haverá de conferir e a firmeza na fé garantida pela sua oração (Mt
16,18s; Lc 22,31s; Jo 21,15ss). Com Tiago e João, Pedro formava o grupo dos três discípulos
prediletos, testemunhas, entre outras coisas, da Transfiguração (Mc 5,37; Mt 17,1s) e da
agonia no jardim das Oliveiras (Mt 26,37).
Pedro tinha um caráter impetuoso, um coração generoso e ardente, pelo que poderia
definir-se como sendo o discípulo que amava ardentemente a CRISTO. De seu apego ao
Mestre ele dá provas com gestos, às vezes, impulsivos. Quando muitos discípulos se afastam
de CRISTO, declara solenemente que jamais se afastará do seu Mestre, pois somente ele tem
palavras de vida eterna (Jo 6,60-65). Quando, no lago, percebe JESUS, pede ir-lhe ao
encontro, caminhando sobre as águas (Mt 14,28-33; cf. Jo 21,7s). Quando CRISTO anuncia
sua paixão iminente, Pedro intervém protestando com energia (Mc 8,32; Mt 16,22) No jardim
das Oliveiras desembainha a espada e fere Malco (Jo 18,10) Segue depois a CRISTO até à
casa do Sumo Sacerdote; mas deverá chorar amargamente o momento de fraqueza que o
levou a negá-lo (Mt 26,57s.69-75). Enfim, perto do lago de Tiberíades, fará tríplice profissão
de amor ao seu Mestre (Jo 21,15ss).

O Apóstolo
Tendo sido testemunha, com os outros apóstolos, de CRISTO que ressuscitou e subiu ao
céu, e tendo sido revestido, no cenáculo, do poder do Espírito Santo, Pedro dá - pregando ao
povo e aos seus chefes - uma contribuição decisiva para formar as primeiras comunidades
cristãs de Jerusalém e da Palestina. É ainda ele quem recebe na Igreja os primeiros gentios (At
cc. 1-12).
Encarcerado, lá pelo ano 42, por Herodes Agripa I († 44), porque «a sua prisão agradava
aos judeus», e libertado por intervenção sobrenatural, Pedro deixa a Cidade Santa, mas
encontrar-se-á de novo em Jerusalém em 49/50, para presidir à assembléia conciliar (At 15;
132

Gl 2,1-10). Gl 2,11-14 apresenta-nos Pedro em Antioquia, onde Paulo, solícito pelo bem dos
convertidos do paganismo, lhe desaprova o procedimento. Pedro, realmente, de acordo com a
visão de Jope, comia, antes, livremente com os gentios-cristãos; depois evitava faze-lo para
não desagradar a certos judeus-cristãos vindos de Jerusalém. De 1Cor 1,12 poder-se-ia
deduzir que Pedro visitou também Corinto.
Os pormenores fornecidos pelas fontes canônicas deixam bem clara a posição proeminente
de Pedro na Igreja primitiva. Ele é nomeado por primeiro na lista dos apóstolos (At 1,13);
preside à eleição de Matias (1,15-26); fala em nome de todos (2,14). Omitindo outras
particularidades, podemos dizer que é sempre ele quem toma a iniciativa, tanto no agir como
no falar (3,1-12; 5,29; 9,32; cc. 10s; c. 15). O próprio incidente de Antioquia faz notar, em
última análise, o prestígio gozado por Pedro, mostrando a força do seu exemplo também sobre
as personalidades mais destacadas daquela Igreja (Gl 2,11-15). A reação de Paulo não pode
considerar-se como um não reconhecimento da autoridade de Pedro, e menos ainda como
negação da sua ortodoxia. É divergência sobre um procedimento de ordem prática, não
dissensão doutrinária.
A estadia de Pedro em Roma é atestada pelos catálogos dos pontífices, que concordam em
apresentar Pedro como primeiro bispo desta cidade. E testemunham-na, mais ou menos
expressamente, Clemente de Roma, Inácio de Antioquia, Dionísio de Corinto, Ireneu, o
sacerdote romano Caio, Clemente de Alexandria, Orígenes, Tertuliano e Eusébio. Preciosa
documentação oferece-a 1Pd 5,13, onde Babilônia se deve identificar com Roma.
As descobertas arqueológicas trouxeram uma confirmação eloqüente. As escavações nas
catacumbas de S. Sebastião, desde 1915, trouxeram à luz vários grafites com invocações a
Pedro e a Paulo; disso se deduz que, por algum tempo, os corpos dos dois apóstolos
repousaram naquele cemitério cristão. Os trabalhos realizados, durante e após a última guerra,
nas catacumbas do Vaticano, oferecem uma prova ulterior de que o Apóstolo Pedro foi
sepultado onde surgiu depois a basílica dedicada ao seu nome por Constantino.
S. Pedro sofreu o martírio, segundo os testemunhos de antigos escritores, sob o imperador
Nero, segundo muitos, no ano 67104. Teria sido crucificado de cabeça para baixo.

A primeira carta de São Pedro


Na saudação inicial da carta aparece como autor o Apóstolo São Pedro, testemunha dos
sofrimentos de CRISTO. Estas indicações são coerentes tanto com os testemunhos externos
da Tradição, como com o estudo do conteúdo da epístola.
A carta é dirigida a uma série de comunidades cristãs que viviam em diversas regiões da
Ásia Menor. Não há indícios de que São Pedro conhecesse pessoalmente aqueles cristãos.
Aquelas comunidades desenvolviam-se num ambiente hostil, que podia supor um perigo para
a perseverança dos fiéis. É possível que, ao inteirar-se o Apóstolo das dificuldades pelas quais
passavam estes recém-convertidos à fé, visse a conveniência de lhes escrever umas palavras
de exortação.

1. Análise
Prólogo: 1,1-12
Primeira parte: exortação à santidade: 1,13-2,10
Segunda parte: os deveres dos cristãos: 2,11-4,19
Terceira parte: Exortação ao clero e à comunidade: 5,1-11
Epílogo: 5,12ss

104
1 Clemente 5,1-5.
133

2. Teologia

A salvação em preparo. A ação do Pai


A fase que precedeu à vinda do Salvador caracterizou-se, sobretudo entre os pagãos, pelo
desconhecimento de DEUS (1,14). Mergulhados nas trevas (2,9), os homens tinham uma idéia
inadequada, antes errônea, de DEUS e da sua lei; por isso viviam uma vida reprovável (1,18),
como ovelhas desgarradas (2,25). O povo de Israel, que DEUS havia escolhido, libertado da
escravidão e ligado a si mediante a Aliança do Sinai, tinha a missão de prefigurar e preparar o
povo da nova Aliança (2,9s); a água do dilúvio prenunciava o Batismo (3,21). Os profetas
predisseram as dores, as humilhações, a morte e o triunfo do Redentor (1,11).
DEUS é Pai (1,2) de Nosso Senhor JESUS CRISTO (1,3) por natureza; dos homens é Pai
por geração espiritual (1,3.17). Sendo Pai, é misericordioso (1,3), solícito para com seus filhos
(5,7), que guarda para a salvação no fim dos tempos (1,5). É santo, e quer santas as suas
criaturas (1,15s); é fiel, e dá prêmio generoso aos que nele confiam (4,19).
Ao Pai cabe a iniciativa da obra redentora, segundo um plano que ele havia concebido
desde toda a eternidade (1,2). Os fiéis são objeto do seu conhecimento e amor eterno, o qual
se manifestou a eles no chamamento à fé, pelo qual eles são os escolhidos (1,1; cf. 2,39). O
plano salvífico de DEUS tem o centro em CRISTO, o cordeiro imaculado, predestinado
também ele antes do início dos tempos (1,19s) e constituído pedra fundamental do novo reino
(2,4). O Pai revela-o ao mundo, inserindo na humanidade mediante a Encarnação (1,20).
Depois de o Filho ter sofrido inocentemente (1,20; 2,22; 3,18) humilhações, sofrimentos e a
própria morte, o Pai ressuscita-o (1,3; 1,21;,3,21) e o glorifica à sua direita (1,21; 3,22; cf. At
2,22-36), dando base sólida à nossa fé e à nossa esperança (1,21; 5,10).

O Filho: pessoa e obra


JESUS, a quem se dá habitualmente a designação de CRISTO, é o Messias Prometido à
humanidade por DEUS (1,1s.7.13; 2,5; 3,21; 4,11). A afirmação ocorre implícita quando o
Autor apresenta os atos do Redentor como sendo a realização das antigas profecias (1,10ss)
ou reconhece nele o servo de JAVÉ (2,21-25) e a pedra fundamental do novo reino de DEUS
(2,4-8).
A divindade de CRISTO - embora nunca apareça o título Filho de DEUS - afirma-se
implicitamente quando se atribui a JESUS a designação de Senhor (1,3; 2,3; 3,15), reservada
no AT a JAVÉ. Afirma-se ainda quando se diz que ele está sentado à direita do Pai (3,22), que
DEUS é seu Pai a título exclusivo (1,3), que lhe estão sujeitos também os poderes angélicos
(3,22), que ele agia nos profetas mediante o seu Espírito (1,11), que ele era objeto do
conhecimento e do amor do Pai desde toda a eternidade (1,20).
Como cabeça da sociedade cristã, CRISTO é pastor e bispo das almas (2,25); é supremo
pastor, em quem devem inspirar-se os presbíteros da comunidade, e de quem estes, um dia,
receberão o prêmio (5,4). Em CRISTO o Pai nos fez participantes das suas riquezas (5,10);
por CRISTO oferecemos a DEUS vítimas espirituais (2,5) e lhe damos glória (4,11). A
redenção realiza a união dos homens com a Divindade (3,18; cf. 2Pd 1,4), libertando-os da
escravidão do pecado e fazendo-os possuir uma vida nova, que os torna justos diante de
DEUS e, ao mesmo tempo, os capacita e os compromete a viverem como justos (1,13-25 e
2,24).
Paixão e morte de CRISTO constituem o preço da nossa redenção (1,18; cf. 1,2). Ela nos
livra da escravidão da culpa e nos une de novo a DEUS (3,18), e faz de nós uma raça
escolhida, um sacerdócio régio e um povo santo (2,9). O autor não explora muito a analogia
com a libertação dos escravos, pois o sangue de CRISTO não é o valor pago a DEUS ou às
134

potências que nos retinham como escravos. Pedro aproveita-se mais do simbolismo do sangue
do Cordeiro pascal, que no Êxodo se descreve como o meio de libertar os hebreus da
escravidão egípcia (Ex 12,7.13.21-28), consagrando-os a DEUS; ou aproveita-se do
simbolismo do sangue da Aliança com que Moisés aspergiu o altar e o povo (Ex 24,6ss). As
alusões ao Servo de JAVÉ (2,21-25) acentuam a morte de CRISTO enquanto ato livre e
amoroso, como se faz em Paulo (Tt 2,14) e em Jo 14,31.
A ação de tomar o Filho de DEUS sobre si as nossas culpas considera-se à luz da doutrina
de solidariedade entre ele e os homens, doutrina típica de S. Paulo (2Cor 5,14; 8,9) e implícita
em 1Pd 2,21-25; 3,18.
Freqüentes são as alusões ao triunfo de CRISTO sobre a morte, e à sua glorificação
(1,3.11; 3,21s; 5,1). Relaciona-se a nossa regeneração com a Ressurreição de CRISTO (1,3).
Assim a morte e a Ressurreição de CRISTO são, tanto para Pedro quanto para Paulo (Rm
4,25), dois momentos importantes da sua obra redentora e causa eficiente da nossa
justificação.

O Espírito Santo
Também o Espírito Santo participou na preparação e na realização do desígnio salvífico de
DEUS. Ele está no mesmo plano do Pai e do Filho (1,2); recebe o nome de Espírito de
CRISTO (1,11) pela cooperação na obra dele (cf. Jo 16,13-15; Gl 4,6). Como inspirador dos
profetas (1,11) contribuiu no AT a preparar a humanidade para os grandes acontecimentos da
Redenção; agora contribui a concretizar a salvação, movendo os apóstolos a aunciarem a Boa-
Nova (1,12), santificando os fiéis (1,2; cf. At 2,38) e habitando neles (4,14).

A Parusia, consumação do plano salvífico


A fase atual do reino de DEUS, preparada pela Antiga Aliança (1,10-12), inaugurada pela
primeira vinda de CRISTO, completar-se-á na sua segunda vinda ou manifestação gloriosa
(1,7; 4,13). Nesse dia a salvação, que agora é realidade toda interior, haverá de manifestar-se
(1,5); então receberá a coroa a fé quem se tiver revelado firme (1,7) durante a peregrinação
terrestre (1,1.17; 2,11), e se realizará o julgamento de todos os homens (4,5), reservado ao
Filho, embora se diga que também o Pai (DEUS) é juiz (1,17). Pois é o Filho que deverá
revelar-se na Parusia (1,13).

A fisionomia do cristão
Pelo renascimento espiritual (1,3.23), o cristão possui uma vida nova (2,24). O Autor
esclarece que DEUS depositou no coração purificado dos fiéis uma semente incorruptível
(1,22s; cf. 1 Jo 3,9). Os fiéis passaram das trevas à luz (2,9). São eleitos (1,1), renascidos
(1,23), iluminados. Em virtude da regeneração podem achegar-se à herança (1,4; 3,7.9; 5,10).
A parte das Pessoas divinas na origem e no desenvolvimento da nova vida já foi indicada. O
novo ser é dom gratuito de DEUS, fruto da sua misericórdia (1,3) e da sua graça (3, 7; 5,12).
Instrumento da renovação espiritual, que age na alma por meio da fé (3,12) e do Batismo
(4,20), é a palavra de DEUS (1,23; 3,1), isto é, a verdade cristã (1,22), o Evangelho (4,17):
norma do pensar e do agir, mas sobretudo força viva, renovadora e transformadora (1,23). O
progresso na vida cristã opera-se assimilando sempre mais a palavra da verdade, o puro leite
espiritual (2,2).
Os fiéis são as pedras vivas de um edifício espiritual (2,4s), cuja pedra angular e
fundamental é o próprio CRISTO; são o novo Israel, uma raça escolhida, um sacerdócio régio,
uma nação santa, um povo que o Senhor adquiriu para si (2,9).
135

Como tais, os cristãos devem irradiar aos olhos do mundo a luz da nova lei (cf. Sab 18,4):
porque foram subtraídos às trevas para anunciarem as grandezas de DEUS (2,9), mediante a
palavra e, mais ainda, o exemplo da própria vida (3,1.16).

Virtudes cristãs
A fé, como abre o acesso à vida cristã (1,2), assim deve impregnar toda a atividade do
homem regenerado para este conseguir a salvação integral (1,4-9); confirma-se mediante as
tribulações, que ela transforma em fonte de alegria (1,7); é a arma para resistir vitoriosamente
a Satanás (5,8).
A fé dilata-se, por assim dizer, na esperança (1,21), que para Pedro é como o elemento
central e característico da mensagem cristã (3,15). O cristão é regenerado para a esperança
(1,3; cf. 1,13), que se diz viva (ibid.) porque leva a possuir a vida (3,7); peregrino sobre a
terra (1,17; 2,11), ele já possui em si a garantia e como que as primícias dos bens
escatológicos (1,3ss; cf. Ef 1,14): salvação definitiva, herança reservada nos céus (1,4), coroa
imperecível da glória (5,4), participação na glória eterna de DEUS (5,10), com CRISTO, já
sentado à direita do Pai (3,22).
Não faltam alusões ao nosso amor por CRISTO (1,8; cf. 3,15); mas Pedro considera a
caridade sobretudo em relação ao próximo (1,22; 2,17; 3,8; 4,8), lançando o olhar para além
dos limites da comunidade cristã (2,17; 3,9). O intenso amor fraterno (1,22; 3,8) deve
manifestar-se nas obras: negativamente, evitando toda espécie de malícia, falsidade,
hipocrisia, inveja, detração (2,1) e vencendo a tendência à vingança (3,9); positivamente,
mantendo boa harmonia com todos, participando no sofrimento dos outros (3,8), exercendo a
hospitalidade espontânea e alegre (4,9), usando convenientemente os carismas (4,10s) e
servindo-se, enfim, uns aos outros com humildade (5,5).

O sofrimento na vida cristã


O cristão deve enfrentar as adversidades com fortaleza, mantendo diante dos olhos a
CRISTO, que sofreu por nós deixando-nos o exemplo para lhe seguirmos as pisadas (2,21). Se
ele, inocente, suportou os maiores sofrimentos, com mansidão extrema, (2,22s), também os
seus discípulos deverão sofrer e suportar tudo com paciência, embora só façam o bem
(2,12.15.19s; 3,16). O sofrimento é, de certo modo, essencial à profissão cristã (2,21; 4,16),
enquanto participação na Paixão de CRISTO (4,13) e como atestado de comunhão com as
pessoas irmanadas na mesma fé (5,9). Possui também função pedagógica, porque a virtude do
justo, e sobretudo a sua fé, purifica-se pela tentação, confirma-se por ela e torna-se capaz de
produzir obras de vida eterna (1,7; 4,12s; 5,10).

A segunda carta de São Pedro


1. Origem da epístola

Circunstâncias da composição
Os destinatários são indicados com uma fórmula genérica que exprime só a comunhão da
fé cristã (1,1). Se 3,1 alude a 1 Pedro, segue-se que também esta segunda carta se dirige aos
cristãos dispersos nas regiões da Ásia Menor, mencionados em 1Pd 1,1, os quais provinham,
ao menos em grande parte, do paganismo (cf. 2Pd 2,18ss). Aquelas comunidades estão
infestadas de hereges gnosticizantes (c. 2); além dos erros denunciados na carta de Judas,
esses difundem idéias falsas sobre a Parusia (c. 3). Daí o caráter doutrinário-polêmico do
escrito.
136

A redação da carta pode situar-se entre 64 e 67. Não existem indícios sobre o lugar de
composição. Poder-se-ia pensar em Roma, se a carta foi escrita quando Pedro previa iminente
o seu fim (1,14).

2. Análise
Prólogo (1,1-2)
Primeira parte (1,3-21): O dever do progresso espiritual
Grandeza e exigências dos dons divinos: 1,3-11
Motivo e fundamento da exortação à santidade: 1,12-21
Segunda parte (2,1-22): contra os falsos mestres
Apresentação. Anúncio de castigo: 2,1-9
A conduta dos falsos mestres: 2,10-22
Terceira parte (3,1-16): certeza e retardo da parusia
Certeza e retardo: 3,1-10
Aguardar a Parusia com vida santa: 3,11-16
Epílogo (3,17s)

3. Teologia

Parusia
O tema volta muitas vezes no NT; mas 2 Pedro dá um realce singular à função do fogo na
transformação do universo (3,7.10-12), função alhures apenas indicada (2Ts 1,8; 1 Cor 3,13).
Notemos também haver relação entre o dilúvio e o dia do Senhor: em ambos resplandece a
longanimidade divina para com os pecadores (Gn 6,3; 1Pd 3,20; 2Pd 3,9.15), e em ambos os
casos o cataclismo é provocado pelo desencadear-se dos elementos naturais. A referência ao
dilúvio quer refutar os que negam a intervenção renovadora de DEUS no fim dos tempos,
apoiando-se na ausência presumida de mudanças no passado (3,4-7).
O tempo da Parusia é desconhecido e imprevisível, porque o dia do Senhor virá como um
ladrão (3,10; cf. 1Ts 5,2; Mt 24,43; Ap 3,3; 16,15). Mas existe uma explicação que pode
esclarecer também outros textos onde se fala de proximidade da Parusia: DEUS não mede o
tempo com os nossos critérios (3,8).
A idéia de que as boas obras podem, em certo sentido, apressar a revelação gloriosa do
Senhor (3,12) está insinuada também nos Atos (3,20); insinuaram-na antes o próprio CRISTO
e S. Paulo, que apresentam o anúncio do Evangelho no mundo inteiro (Mt 24,14) e a
conversão dos judeus (Rm 11,25s) como fatos a se realizarem antes da Parusia. A dilação da
vinda não é mudança de propósitos, mas a expressão da bondade divina, que a todos quer dar
a possibilidade de fazerem penitência e salvarem-se (3,9.15; cf. Rm 2,4).
O Juízo final marcará a sorte eterna das criaturas racionais: os pecadores, homens (3,7) ou
Anjos - estes últimos fechados agora num abismo tenebroso (2,4.9; cf. Ap 20,7-10) -
receberão a pena definitiva. Mas os justos esperarão confiantes o dia do Senhor (3,14), que os
introduzirá nos novos céus e na nova terra, onde reina a justiça (3,13; cf. 1Ts 5,4-11).

Conhecimento do Senhor
Para a primeira carta de Pedro o Filho de DEUS feito homem deve sobretudo ser imitado;
para a segunda, conhecido. Aos termos «gnw,sij» (3,18) e «evpi,gnwsij» (1,2s.8; 2,20) segue-se
o genitivo objetivo: de DEUS, de Nosso Senhor JESUS CRISTO, etc. Fala-se sempre, em todo
caso, de conhecimento que, além da inteligência, afeta a vontade do homem, como se verifica
em outros temas bíblicos, como luz, fé, sabedoria. O cristão deve adquirir compreensão
137

sempre mais profunda do mistério de CRISTO, praticando-lhe com fidelidade o ensinamento


e tirando proveito das instituições salutares de que ele é autor. O conhecimento está como que
condicionado pelo exercício intensivo das virtudes cristãs (1,5-8). Trata-se de um conhecer
que é reconhecer, aceitar, amar a CRISTO, e corresponde, na essência, à fé paulina e joanina.

As Sagradas Escrituras
Explícita é a afirmação da origem divina dos escritos do AT (1,20s; cf. 2Tm 3,16), em cuja
composição os homens colaboraram como instrumentos do Espírito Santo (1,21). Insinua-se
também o valor canônico de cartas de S. Paulo, colocadas no plano das Sagradas Escrituras
(3,16).
Livro divino pela origem, a Escritura poderá ser adequadamente compreendida só através
de interpretação divinamente garantida (1,21); faltando esta, falseia-se o sentido, como
aconteceu com escritos antigos e recentes (3,16). Para quem o procura com humildade, o
ensinamento profético é como lâmpada que brilha em lugar escuro (1,19; cf. Sl 118/119,105;
Eclo 24,22-27; Bar 4,4; 1Mc 12,9) e sólido argumento da manifestação gloriosa do Filho de
DEUS (1,19; cf. 3,2).

Comunidade e vida cristã


À comunidade cristã os apóstolos - menciona-se expressamente Paulo (3,15) - transmitiram
os preceitos do Senhor (3,2), em virtude de um poder de magistério, do qual o Autor se sente
particularmente revestido (1,12-18; cf. 3,2).
O cristão é, por essência, um adquirido («avgora,zw» lit. compro) por CRISTO (2,1). Deve
agir de acordo com essa nova condição, para não mostrar-se esquecido do Batismo e das suas
exigências (1,9). A meta imediata a atingir é o conhecimento de Nosso Senhor e Salvador
JESUS CRISTO. A norma que se deve seguir exprime-se como sendo preceito santo (2,1),
caminho da verdade (2,2), caminho reto (2,15), caminho da justiça (2,21). Ela fará evitar a
corrupção do mundo, dominado pela concupiscência (1,4), e, positivamente, fará viver uma
vida santa (3,11) com a prática de um conjunto de virtudes, que possuem como fundamento a
fé e como coroa a caridade (1,5ss).
A luta perseverante contra o mal (2,20ss) levará à verdadeira liberdade, que não deve
confundir-se com a desenfreada licenciosidade, pregada pelos falsos mestres, uma
ignominiosa escravidão (2,18s). A perseverança ajudará a perspectiva do reino, no qual
vocação e escolha divina terão o seu coroamento (1,10s).
138

Epístola de Judas
1. Autor
O autor desta breve carta apresenta-se aos seus leitores como «Judas, servo de JESUS
CRISTO e irmão de Tiago» (1). A designação «servo de JESUS CRISTO» é semelhante à
empregada em várias epístolas do NT105. Esta expressão «servo«, embora convenha a todos os
cristãos, de maneira particular corresponde àqueles que exercem um ministério na Igreja, e,
mais em concreto, aos Apóstolos e aos seus sucessores.
A indicação «irmão de Tiago» faz referência a um personagem conhecido e apreciado dos
leitores imediatos. Pelos dados que temos do NT, refere-se a Tiago, o «irmão» - isto é, parente
próximo - do Senhor106, que foi junto com São Pedro e São João uma das «colunas» da
Igreja107, e que era bispo de Jerusalém108, onde morreu mártir pelo ano 62.
Como na Epístola de Tiago, põe-se a questão de seu este Judas - autor da carta, que figura
entre os «irmãos do Senhor» - é o Apóstolo do mesmo nome, ou se se trata de duas pessoas
diferentes.
São Lucas, ao transmitir em duas ocasiões109 a lista dos Apóstolos, enumera em penúltimo
lugar a Judas, e para o distinguir do traidor, chama-lhe «Judas de Tiago». Esta expressão pode
entender-se de duas maneiras: Judas, filho de Tiago, ou irmão de Tiago. Habitualmente faz
referência ao pai de uma pessoa; não obstante, há exceções: quando se trata de alguém de
especial renome, os membros da família podem ser denominados com referência a ele. Por ser
Tiago o Menor o mais famoso da sua família, pôde São Lucas designar a Judas como «o de
Tiago», entendendo o irmão de Tiago110.
Nas outras listas dos Apóstolos, transmitidas por São Mateus e São Marcos, é mencionado
pelo sobrenome de Tadeu111, para o distinguir de Judas Iscariotes, e
e citado a seguir ao irmão «Tiago o (filho) de Alfeu».
De acordo com estes dados, pode dizer-se que a identificação entre os Apóstolos Judas-
Tadeu e o autor da carta, embora não se imponha com absoluta certeza, tem sólidos
argumentos a seu favor.
Não falta quem ponha em dúvida que o autor desta carta seja o Apóstolo São Judas,
afirmando que se trataria de um escrito redigido por um discípulo seu posterior. Esta opinião
apoia-se em apreciações internas - perfeição de estilo e vocabulário - e algumas expressões
que indicariam uma época mais tardia. Não obstante, a tradição eclesiástica, desde tempos
antigos, assinala explicitamente como autor da carta o Apóstolo São Judas.Testemunhos dessa
tradição são, por exemplo, na primeira metade do século III, Orígenes e Tertuliano.
Deixando de parte algumas alusões, mais ou menos claras, à carta na Didaché (séc. II) e na
epístola de são Policarpo aos Filipenses (pelo ano 110), temos a indicação explícita do Cânon
Muatiri (fins do século II), que enumera a Epístola de São Judas entre os escritos canônicos

105
Cf. Rm 1,1; Fl 1,1; Tt 1,1; 2Pd 1,1; Tg 1,1.
106
Cf. Gl 1,19; Mt 13,55.
107
Cf. Gl 2,9.
108
Cf. At 12,17; 15,13; 21,18.
109
Cf. Lc 6,16; At 1,13.
110
São Marcos, ao mencionar uma das santas mulheres, chama-lhe «Maria, a mãe de Tiago» (15,40), e
também «Maria, a de Tiago» (16,1).
111
Cf. Mt 10,4; Mc 3,19.
139

do NT. Aos tetemunhos de Orígenes e Tertuliano, já mencionados, acrescenta-se o de


Clemente de Alexandria, que - além de a citar nas suas obras - escreveu um comentário sobre
ela. No século IV, Santo Atanásio e São Cirilo de Jerusalém, entre outros muitos,
testemunham a canonicidade desta carta.
O historiador eclesiástico Eusébio (263-330) expõe que era admitida pela maioria como
canônica, ainda que existissem também algumas vozes contrárias; por isso a situa entre os
escritos «discutidos». O motivo principal destas dúvidas conhecemo-lo por São Jerónimo:
«Judas, irmão de Tiago, deixa uma breve epístola, que está entre as sete epístolas católicas e é
rejeitada por muitos pelo fato de citar o testemunho do livro de Henoch, um apócrifo; todavia,
pela sua antiguidade e pelo uso que se fez dela, não careceu de autoridade e situa-se entre as
Sagradas Escrituras»112.
Com efeito, em Jd 14-15 cita-se um versículo do livro apócrifo de Henoch (1,9), muito
apreciado entre os Judeus. Mas não se pode deduzir por esta citação que o autor sagrado
aprove o conteúdo de todo o livro, nem muito menos que o considere inspirado. Nem sequer a
frase «Henoch profetizou», leva a esta consclusão, visto que reflete simplesmente o costume
da sua época de chamar profeta a um mestre reconhecido. Também São Paulo cita numa
ocasião um verso de Epiménides de Cnossos, poeta pagão, chamando-lhe «profeta»113
Em qualquer dos casos, como constata São Jerónimo no texto que acabamos de
transcrever, a carta de São Judas gozava desde tempos antigos de grande autoridade e foi
recebida pela Igreja como escrito sagrado: figura em todas as listas de livros inspirados, desde
meados do século IV. A sua canonicidade, junto com a dos outros livros do AT foi declarada
solenemente no Concílio de Trento.

2. Circunstâncias da composição
Ocasião do escrito foi o difundir-se de perniciosas doutrinas nas comunidades cristãs.
A carta é sobretudo uma acusação contra falsos mestres. Que estes, como os falsos profetas
combatidos em 2 Pedro, punham em dúvida a Parusia, vem insinuado pelo realce dado à
intervenção final de DEUS como juiz (vv. 15s), pelo nome de zombadores (v. 18), reservado
em 2Pd 3,3 aos negadores da Parusia, pela referência à espera confiante da vida eterna (v. 21).
Mas eles difundem também, pela palavra e pelo exemplo, erros de caráter moral:
transformam a liberdade cristã em licenciosidade (vv. 4.19); vivem como animais (v. 10),
seguindo, às cegas, as suas tendências desordenadas (vv. 16.18).

Data e lugar da composição


Se a carta de Judas precede a 2 Pedro, como é muito provável, e se esta última deve
atribuir-se ao cabeça dos apóstolos, se deverá datar a composição do nosso escrito antes de 67
ou de 64. Uma data posterior não a impõem nem as referências aos prenúncios dos apóstolos
(vv. 17s) sobre o aparecimento de falsos mestres (cf. At 20,29s), nem a exortação (v. 3) a
guardar com fidelidade a doutrina tradicional (cf. 2 Tess 2,15; Rom 6,17; 1 Tim 6,20).
As estreitas relações que o Autor parece ter tido com Tiago fazem pensar que o campo de
ação de Judas foi sobretudo a Palestina, que poderia ser, assim, o lugar de composição.

3. Análise
Dividimos a carta em prólogo (vv. 1-4), corpo (vv. 5-23), e epílogo (vv. 24s).

112
De viris illustribus, IV.
113
Tt 1,12.
140

4. Teologia

Doutrina trinitáría
A doxologia final salienta os atributos divinos (v. 25). As três pessoas divinas são
mencionadas na exortação aos fiéis (vv. 20s); o Pai e o Filho são lembrados mais vezes (vv.
1.4.25).
DEUS Pai (v. 1) é autor da salvação dos homens (v. 25); é cheio de amor para com os fiéis
(vv. 1.21); com CRISTO é fonte de misericórdia, paz e caridade (v. 2; cf. v. 21); comunica
aos fiéis a força para triunfarem sobre o mal e disporem-se, mediante uma vida irrepreensível,
para comparecerem diante da sua Majestade (v. 24) de Juiz supremo (vv. 4.6.14s).
CRISTO é colocado no mesmo plano do Pai (vv. 1.4.21), com quem é princípio de todos
os bens (vv. 1-2.21). Judas, seu servo, qualifica-o habitualmente como Senhor («ku,rioj»: vv.
4.17.21.25) e patrão («despo,thj»: v. 4), como o faziam os antigos profetas para com JAVÉ
(2Rs 18,12; Jos 24,29; Am 3,7; cf. Rm 1,1; Fl 1,1); o qualificativo de Senhor já é um
componente do nome de JESUS. O Pai realiza a salvação dos homens mediante ele (v. 25).
CRISTO é o objeto do ensinamento dos apóstolos, isto é, da fé (vv. 1.17.20); da união com
ele depende a salvação (v. 1), e da sua misericórdia, o dom da vida eterna 21).
O Espírito Santo (v. 20s) é princípio de santificação; possuem-no os verdadeiros fiéis, não
os ímpios (v. 19); nele rezamos (v. 20).

Os Anjos
Entre DEUS e o homem inserem-se os Anjos, seres gloriosos (v. 8: glórias, que merecem
especial respeito (v. 9). O Autor conhece a existência de Anjos bons, entre os quais aparece o
Arcanjo Miguel (v. 9), e de anjos maus (o diabo: v. 9), relegados a um cárcere tenebroso,
aguardando o juízo final (v. 6).

O cristão
Os cristãos são filhos de DEUS (v. 1), por terem sido vivificados pelo Espírito (vv. 19s; cf.
Gl 4,6s; Rm 8,14). Como tais, são objeto, por parte do Pai celeste, de singular benevolência e
de especial solicitude, que visa conservá-los na união com CRISTO (v. 1), mediante o qual
podem conseguir a herança eterna (v. 21). A vida cristã desenvolve-se sob o signo da caridade
divina, que confere a posse dos bens sobrenaturais (v. 4), conserva os fiéis (v. 1) e, enfim, os
introduz na vida eterna (v. 21).
Denunciando os ímpios que procuram corromper as comunidades cristãs, o Autor lembra,
várias vezes, os castigos eternos, preparados tanto para os anjos prevaricadores quanto para os
homens (cf. vv. 4.6.13ss); exortando a viver a vida cristã na íntegra, apresenta a perspectiva
da vida eterna (vv. 20.21). A sorte definitiva dos homens será determinada pelo juízo final,
que é um dos temas principais da carta (vv. 14s).

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