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Aristóteles versus Heráclito

e Protágoras: uma batalha


metafísica

Juliana Ortegosa Aggio


Universidade Federal da Bahia (UFBA)

A problemática central do livro IV da Metafísica de Aristóteles é


o  combate travado entre o  filósofo metafísico e  seus oponentes,
Heráclito e Protágoras, no que diz respeito ao princípio de todos
os princípios: aquele que assegura a unidade e identidade de toda
e qualquer coisa existente no mundo e a inteligibilidade de todo
e  qualquer discurso e  pensamento, a  saber: o  famigerado prin-
cípio de não contradição (PNC). O  presente texto visa analisar,
suscintamente, o  esforço de validação do princípio mais funda-
mental do próprio ser, esforço esse que se caracteriza como uma
tentativa de assegurar a ordem do mundo, bem como a coerência
do dizer o mundo. Validá-lo significa refutar tanto o relativismo
de Protágoras como o mobilismo de Heráclito, pois ambas as con-
cepções de filosofia ou, como diz Aristóteles, de “aparente filo-
sofia” pretendem levar o  pensamento para o  estado abismal da
contradição, em que tudo pode ser e não ser; pior, em que tudo é
e não é ao mesmo tempo. O cerne da argumentação do estagirita
é que nenhuma filosofia poderia comunicar algo com sentido sem
fazer uso desse princípio mais fundamental do discurso enuncia-
tivo, uma vez que nenhum pensamento e, consequentemente,

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nenhuma asserção poderia transgredi-lo. Desse modo, como não se pode
provar um princípio, caso contrário já não seria mais princípio, validá-lo sig-
nifica refutar aqueles que o negam. Por isso, o meu objetivo é compreender
a  chamada prova indireta ou via refutação de tal princípio, o  que implica
expor a solução aristotélica à questão da possibilidade de haver um discurso
significativo sobre o  ser em franco combate àqueles que põem em dúvida
a validade do princípio de não contradição: Heráclito e Protágoras.

O princípio de não contradição

Antes de chegarmos à exposição do princípio de não contradição em Metafísica


IV, capítulo terceiro, vejamos, brevemente, o contexto argumentativo em que
ela se encontra. No primeiro capítulo do referido livro, Aristóteles propõe-se
a estudar os atributos e as causas primeiras do ser enquanto ser. No segundo
capítulo, o  filósofo afirma que apenas a  filosofia pode se ocupar do ser
enquanto ser e de seus atributos, como o perfeito, o contrário, o uno, o múl-
tiplo, o mesmo, o outro, o semelhante, o dessemelhante, o gênero, a espécie
etc. (1004a12-18). Assim, diz ele que os vários atributos da substância (ousia)
devem ser estudados por uma e mesma ciência, chamada filosofia primeira,
pois, apesar de variegados, os atributos dizem respeito e  existem em refe-
rência à substância. Assim, se o ser se diz de muitos modos, mas todos eles
fazem referência a um modo de ser primeiro e essencial ou substancial, o filó-
sofo é aquele que deve apreendê-lo.
No início do terceiro capítulo, Aristóteles nos diz que cabe à filosofia pri-
meira estudar os axiomas que pertencem a  todos os seres, por serem tais
axiomas ou princípios as propriedades do ser enquanto ser. Sendo assim,
além da substância e  seus atributos, também cabe ao filósofo investigar os
princípios da demonstração, sobretudo os primeiros, aqueles que são os mais
seguros e  incontestáveis (1005b5-11). Em seguida, o  princípio mais seguro
e incontestável, o PNC, é expresso a partir de três1 formulações no decorrer
do capítulo:
i. “É impossível que ele pertença e não pertença ao mesmo simultanea-
mente e sob o mesmo aspecto”. (ARISTÓTELES,Met, IV, 3, 1005b19-
20, tradução nossa)

1 Jan Lukasiewicz (2005), em seu texto “Sobre a lei da contradição em Aristóteles”, explora
com refinamento as três formulações.

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ii. “Não se pode crer que o mesmo seja e não seja”. (ARISTÓTELES, Met.,
IV, 3, 1005b23-24, tradução nossa)
iii. “O mais seguro de todos os princípios básicos é que asserções contradi-
tórias não podem ser simultaneamente verdadeiras”. (ARISTÓTELES,
Met., IV, 6, 1011b13-14, tradução nossa)
Como vimos, o  PNC recebe três formulações. A  primeira é ontológica,
pois diz respeito à própria coisa, ou seja, a própria coisa não poderia receber
simultaneamente duas propriedades contrárias sob o  mesmo aspecto.
A  segunda formulação é psicológica, pois concerne às crenças daquele que
conhece, ou seja, aquele que conhece não poderia crer simultaneamente que
uma coisa tenha e  não tenha a  mesma propriedade ao mesmo tempo sob
o mesmo aspecto. A terceira e última formulação é lógica, pois diz respeito
às condições do discurso enunciativo, i.e., expõe a bipolaridade que todo dis-
curso deve respeitar para que tenha sentido, qual seja: não é possível negar
e afirmar a mesma coisa sobre algo ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.
Temos, portanto, o que poderíamos chamar de uma lei válida tanto para
o ser como para o pensamento e para o discurso, pois não poderíamos pensar
nem dizer que a  mesma propriedade se atribui e  não se atribui à mesma
coisa, no mesmo momento, e a respeito do mesmo aspecto, já que a própria
coisa não permitiria em ato a simultaneidade de atributos contrários. Se o ser
não pode ser em si mesmo contraditório, então ele nos fornece as condições
necessárias para pensá-lo e dizê-lo, ou seja, o ser é essencialmente inteligível
e  comunicável, e  o  PNC assegura a  inteligibilidade do mundo e  a possibili-
dade de apreendê-lo e enunciá-lo. Porém, há quem duvide de uma regra tão
abrangente e evidente. Diante de seus oponentes, Aristóteles, como veremos,
empreenderá uma refutação não apenas para impedir que a validade de tal
princípio seja posta em dúvida, mas, em verdade, para assegurá-la. Passemos
para a análise da refutação propriamente dita.

A demonstração via refutação do princípio


de não contradição
Todos nós sabemos a regra lógica que diz que todo princípio a partir do qual
principia a  demonstração é indemonstrável; logo, o  princípio de não con-
tradição também não poderia ser demonstrado.2 Se fosse demonstrável, ou

2 Aristóteles (Met., IV, 4, 1005b35-1006a11) nos fala do problema de se demonstrar um


princípio.

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seja, mediado por outras premissas, não seria primeiro. Ademais, é logica-
mente necessário que haja premissas primeiras, pois se fosse demonstrável
toda e  qualquer premissa, iríamos ao infinito, tornando a  própria demons-
tração vazia.3 Aqueles que exigem uma demonstração do princípio assim
o  exigem por falta de instrução (apaideusia). Evidentemente, uma demons-
tração do princípio seria uma petição de princípio. Também não parece fazer
sentido empreender uma refutação dialética de modo a provar que aqueles
que negam tal princípio são contraditórios, pois eles adotam a própria contra-
dição como verdade possível.
Entretanto, há uma modalidade sui generis de demonstração, a  saber:
a “demonstração via refutação [elegtikôs]”.4 Certamente, devemos ter em mente
a distinção entre demonstração stricto sensu, i.e., em seu sentido estrito e rigo-
roso tal qual se define nos Segundos analíticos e que de modo algum poderia
ser assumida neste contexto, e  a demonstração via refutação, que deve ser
entendia no sentido largo do termo “demonstração” [apodeixis].5 A demons-
tração por refutação ou negativa é a estratégia que Aristóteles encontra para
estabelecer indiretamente a validade do PNC. O objetivo, portanto, não é o de
demonstrar o princípio, mas de refutar quem o esteja negando. Tudo o que
ele quer mostrar é que aquele que pretender refutar tal princípio estará ine-
vitavelmente afirmando-o, portanto, garantindo a  sua certeza. Quem quer
que pretenda refutar tal princípio acaba por demonstrar o próprio princípio.
Ou seja, a demonstração refutativa tem a finalidade de mostrar que a possi-
bilidade de dizer qualquer coisa, até mesmo que o princípio de não contra-
dição é falso, depende da aplicação do próprio princípio. Isso porque qual-
quer pessoa que diga algo significativo tanto para si quanto para os outros
não poderia dizê-lo se não estivesse fazendo uso de tal princípio. Vejamos
como Aristóteles inicia a refutação:

O princípio de todos os argumentos dessa natureza <refutativa>


não é pedir ao adversário para dizer que alguma coisa é ou não é
(já que talvez se pudesse acreditar que se está supondo o que está
em questão), mas significar [semainein] pelo menos alguma coisa

3 Como afirma o filósofo em Segundos analíticos (ARISTÓTELES, I, 3, 72b7).


4 É precisamente este o significado de elenchos, a saber, um silogismo que fornece o oposto
contraditório de uma dada tese. (ARISTÓTELES, PrAn, II, 20, 66b11).
5 Este mesmo sentido largo do termo, em comparação com o  sentido absoluto [haplôs], é
tratado em Aristóteles (Met. K, 5).

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para si mesmo e para outrem. Isso é necessário se se quer dizer
alguma coisa; senão, com efeito, não haveria para tal homem dis-
curso [logos], nem para consigo mesmo nem com outrem. (Met.,
IV 4: 1006a18-22).

Ou seja, não se trata de afirmar se algo é ou não é, pois é justamente


isso que está em questão. Basta que o oponente signifique algo ao dizer uma
palavra, i.e., uma parte do enunciado, pois não apenas o  discurso é signifi-
cante, como cada uma de suas partes, sejam elas verbos ou nomes.
Brevemente, sabemos que, no tratado Da interpretação, Aristóteles se
esforça por distinguir o discurso em geral do discurso suscetível do verdadeiro
e do falso, a saber, a proposição. A proposição é uma espécie de discurso, mas
não compreende o seu todo. Enquanto a proposição visa revelar o que as coisas
são, o discurso significativo visa significar apenas. Não apenas um enunciado
pode ser significativo, como também os seus termos, as suas partes em sepa-
rado. Os termos, no entanto, “não significam ainda que uma coisa é ou não
é”, (ARISTÓTELES, De Int., 3, 16b19) ou seja, a significação não afirma ou nega
a  existência ou a  inexistência do significante. Por isso, podemos significar
nomes fictícios, como o bode-cervo: “Bode-cervo significa alguma coisa, mas
não é ainda nem verdadeira nem falsa, a menos que se adicione que ele existe
ou que ele não existe”. (ARISTÓTELES, De Int., 1, 16a16) Do mesmo modo, por
exemplo, “o termo homem significa alguma coisa, mas não, entretanto, que
ele existe ou não existe: não haverá afirmação ou negação a não ser que a ele
se ligue outra coisa”, (ARISTÓTELES, De Int., 4, 16b27) ou seja, a não ser que
haja composição ou divisão de termos isoladamente significantes – afirmação
ou negação de um predicado a  um sujeito. A  composição ou a  divisão pre-
tendem imitar a realidade e não somente significar. Desse modo, a intensão
de significar algo é distinta de intensão de apreender a verdade.
Para que Aristóteles não cometa uma petição de princípio, uma vez que
o princípio de não contradição se fundamenta no fato de a própria coisa não
poder ser e não ser atualmente ao mesmo tempo, o próprio fundamento não
poderia ser posto em questão. Ou seja, como o  princípio sustenta tal tese
(A não pode ser e  não ser B ao mesmo tempo sob o  mesmo aspecto), seria
petição de princípio se a  usássemos para fundamentar o  próprio princípio.
Assim, não temos que colocar em questão para o oponente se algo é ou não é.
Para que a refutação funcione, basta que “o adversário diga somente alguma

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coisa”, (ARISTÓTELES, Met., IV, 3, 1006a12, tradução nossa) pois, se ele disser
ao menos uma coisa, ele não poderia admitir que suas palavras não tenham
sentido, já que ter sentido é a condição mesma da possibilidade de todo dis-
curso. Basta que ele diga algo para que ele forçosamente admita o PNC. Se ele
nada disser, se ele se reduzir ao silêncio das plantas, (ARISTÓTELES, Met., IV,
4, 1006a15) não haverá argumentação possível. Em suma, o filósofo pretende
provar com essa refutação que dizer algo de modo significativo, i.e., algo inte-
ligível, é já estar assumindo tal princípio. Caso contrário, não haveria discurso
possível da parte do refutador, mas apenas palavras vazias de significado.
Do que foi dito, podemos inferir o que se segue: a argumentação do opo-
nente não refuta nem escapa ao princípio, o  qual, por sua vez, esteve pre-
sente necessariamente se algo foi dito com sentido. Contra os que negam tal
princípio, Aristóteles mostrará que, forçosamente, eles de fato o pressupõem
e dele se servem quando dizem algo provido de significado. A prova por refu-
tação é levar o  oponente ao silêncio das plantas, já que não há enunciado
possível que transgrida o princípio de não contradição. Negar tal princípio é
ter de calar-se. Ao tentar refutar tal princípio, o oponente está, na verdade,
refutando a si mesmo, na medida em que a sua afirmação destrói a si mesma
ao ser expressa. Por isso, podemos dizer que a estratégia argumentativa é ad
hominem,6 i.e., não se refuta o enunciado, já que não há enunciado possível
que transgrida o PNC; refuta-se quem pretende transgredi-lo até mostrar que
ou ele diz algo com sentido, o  que implica fazer uso do princípio, ou tudo
o  que ele diz é vazio de significado, que suas palavras são vãs e  que se ele
fosse coerente consigo mesmo deveria emudecer ou, como diz o dito popular,
deveria “tirar seu time do campo”. Afinal, no campo da enunciação, não há
jogo possível entre as palavras que não respeite a lei da não contradição.
Em suma, sendo indemonstrável, e, além disso, não sendo possível sequer
colocar em dúvida pelo pensamento a sua existência e verdade, a única coisa
a fazer é se submeter ao princípio de não contradição ou abrir mão de pensar
e de dizer seja o que for. Porém, há quem o negue. Se aquele que o nega diz
algo sem sentido, então teria sido melhor não ter dito nada. Se o nega, mas diz
algo com sentido, então acaba por confirmar a sua verdade. Portanto, não há
argumento possível para invalidá-lo, já que todo argumento é um enunciado
significativo, seja ele afirmativo ou negativo, que necessariamente o valida.

6 Cf. Aristóteles (Met. K 5: 1062a1: “Tais verdades não comportam demonstração propriamente
dita, mas apenas uma prova ad hominem [pros tonde]”.

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O mais incontestável princípio do ser
Se não é possível refutar tal princípio, pois toda refutação seria vazia, é
preciso assentir e  aderir ao mais incontestável princípio do ser. Ou seja, é
impossível se enganar [diapseusthênai] a seu respeito, uma vez que ele é neces-
sariamente o mais conhecido de todos os princípios (1005b12).7 Ele é o prin-
cípio primeiro de todas as demonstrações, na medida em que é, por natureza,
princípio de todos os axiomas (1005b32-34). Em verdade, se pensamos ou
dizemos que algo é ou não é, então já fazemos uso de tal princípio. Ele é tanto
o mais seguro como o mais incontestável por ser o mais conhecido e o mais
crível. O  seu fundamento é tanto ontológico como lógico e  psicológico. Ou
seja, nem o ser, nem o discurso, nem o pensamento poderiam transgredi-lo.
A sua validade é a máxima que se poderia ter um princípio. Não é possível
que não seja assim que as coisas mesmas operem na realidade, nem é pos-
sível que alguém que conheça algo não acredite em tal princípio. Em suma,
há duas condições que um princípio deve satisfazer para ser o  mais incon-
testável de todos: em primeiro lugar, nós não podemos nos enganar a  seu
respeito; (ARISTÓTELES, Met., IV, 3, 1005b13) em segundo lugar, quem quer
que conheça [gnôrizein] qualquer coisa conhece esse princípio. (ARISTÓTELES,
Met., IV, 3, 1005b17)

A refutação aristotélica a Heráclito

Neste momento, iniciaremos a batalha com o primeiro oponente, Heráclito:

É impossível, com efeito, que alguém creia que uma mesma coisa
seja e não seja, como alguns pensam que disse Heráclito; pois não
é necessário que as coisas que alguém diz, ele também as creia
[hupolambanein]. E se não é possível que os contrários pertençam
simultaneamente ao mesmo sujeito (acrescentamos também
a esta premissa as atribuições de costume), e se uma opinião que
contradiz outra é o contrário dela, é evidente que é impossível ao
mesmo homem acreditar simultaneamente que a mesma coisa é

7 Ademais, o princípio de não contradição não é hipotético, na medida em que é um axioma,


e todo axioma é, diferentemente da hipótese (hypothesis) e do postulado (aitema), “o que é
necessariamente por si e que devemos necessariamente acreditar”. (ARISTÓTELES, SegAn.,
I, 10, 76b23)

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e  não é. Pois simultaneamente teria opiniões contrárias aquele
que se enganar neste ponto. (ARISTÓTELES, Met., IV, 3, 1005b23-
31, tradução nossa)

Aristóteles, conforme essa passagem, supõe que Heráclito disse que A  é


e não é B, ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto. De tal suposição testemu-
nhada por algumas pessoas (pois “alguns pensam que disse Heráclito”), não se
pode inferir que Heráclito acredita nisto, embora possa ter dito. A argumen-
tação procede do seguinte modo: como não se pode atribuir duas proprie-
dades contrárias à mesma coisa ao mesmo tempo, então duas opiniões con-
trárias não podem ser atribuídas à mesma pessoa ao mesmo tempo. Temos
que, se tal princípio estabelece que tenhamos que escolher uma entre duas
alternativas exclusivas e presenta-la como real, então, aquele que escolhe as
duas alternativas ao mesmo tempo não escolhe nenhuma na verdade. Ou
seja, dizer algo contraditório em si mesmo, que negue e  afirme ao mesmo
tempo a mesma coisa, implica não dizer nada de significativo.
O ato de escolher pela negação ou pela afirmação é o critério de signifi-
cação do enunciado, mas não o critério de verdade, pois a verdade se encontra
na correspondência desta afirmação ou negação com a  realidade. O  ato de
enunciar é este ato de escolher, mesmo que a  verdade não seja necessaria-
mente atingida. Para o  enunciado, portanto, significar é escolher uma das
possibilidades, independentemente de esta possibilidade se mostrar verda-
deira ou falsa. Como explica Luiz Henrique Lopes dos Santos (1996, p. 24):

O enunciado visa a  realidade como um arqueiro visa o  alvo,


observa Platão. Como o ato de atirar a flecha ao alvo não deixa de
ser um ato de atirar a flecha ao alvo quando a flecha não atinge
o alvo, um ato de enunciar não deixa de ser um ato de enunciar
por não cumprir seu fim, por não atingir seu alvo, por não dizer
que as coisas são precisamente aquilo que realmente elas são.

Ainda que o PNC não possa garantir a produção de conhecimento verda-


deiro, ele pode garantir a produção de um discurso significativo. Sabemos que
a verdade está sob o julgo da adequação entre a coisa e o discurso, ou seja, para
Aristóteles, podemos dizer bem e verdadeiramente a realidade se e somente se
a apreensão da ordem das coisas for adequada. Por exemplo, podemos dizer

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“isto é um texto” ao invés de dizer “isto não é um texto”. Ao apresentar esta
alternativa em detrimento da contrária, i.e., ao escolher afirmar ao invés de
negar, apresento uma alternativa como sendo a real. Se essa alternativa será
real de fato somente a  realidade poderá nos dizer. Se o  que eu digo revela
o que a coisa é, se essa alternativa que apresento é de fato real, então o meu
discurso é verdadeiro; do contrário, se o que o eu digo não revela o que a coisa
é, então o meu discurso é falso. Entretanto, o PNC não estabelece se o que eu
digo é verdadeiro ou falso, mas se o que eu digo tem sentido ou não.
Que fique claro que se o valor de verdade se encontra na adequação entre
proposição e  mundo, o  mesmo não vale para a  significação do enunciado.
Sendo assim, podemos concluir que não é a transgressão da verdade, mas do
sentido que é impossível. Afinal, é impossível transgredir a regra que garante
o sentido do discurso. Em outras palavras, mesmo que a comunicabilidade do
ser esteja garantida pelo PNC, isso não significa que a verdade esteja. A con-
dição de verdade do discurso não se segue necessariamente à condição de
significação do discurso. Agora, se o meu enunciado obedecer à regra da bipo-
laridade e for a expressão da escolha por uma das alternativas, então ele fará
sentido. Em suma, a realidade nos fornece o critério de verdade do discurso
por excelência, enquanto o  princípio de não contradição nos fornece o  cri-
tério de significação do discurso.
Voltemos, neste momento, ao combate com o  oponente Heráclito. Ele,
como observa Aristóteles, não poderia se enganar quanto ao princípio, pois
isso é impossível. É impossível que alguém creia em duas opiniões contrárias
ao mesmo tempo. Todavia, o que Aristóteles quis dizer ao supor que Heráclito
acredita, conhece e não pode se enganar a respeito do PNC, se ele o nega? Será
que Heráclito veria alguma dificuldade em ter duas opiniões contrárias na
alma, se, para ele, cada coisa é e não é o seu próprio contrário?
É célebre o  fragmento em que Heráclito (fr. 49) diz: “no mesmo rio
entramos e  não entramos; somos e  não somos”. Porém, replica Aristóteles
(IV, 3, 1005b26): “não é necessário que as coisas que alguém diz, ele também
as creia [hupolambanein]”. De certo, é possível dizer coisas contraditórias, mas
não acreditar nelas, pois aquele que assim acreditasse teria na alma duas opi-
niões contrárias sobre a mesma coisa ao mesmo tempo, o que é impossível
segundo Aristóteles.
Dizer algo não é o mesmo que acreditar [hupolambanein] em algo. Afinal,
para o  estagirita, o  discurso de Heráclito tem significado ou são apenas

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palavras desprovidas de significado? Analisemos a questão a partir do seguinte
exemplo: Heráclito pode ter dito que nós somos e  não somos ao mesmo
tempo, produzindo assim um enunciado sem sentido. Mas não poderia ter
acreditado que somos e não somos o mesmo simultaneamente sob o mesmo
aspecto. Duas crenças contrárias não poderiam habitar a sua alma ao mesmo
tempo. Logo, se ele disse tal contradição, ele certamente não acreditou nela.
E, se ele de fato disse algo contraditório, isso que ele disse é absolutamente
insignificante. Em suma, para o estagirita, a filosofia de Heráclito não passa
de um aglomerado de fragmentos sem sentido, que ele teve a infelicidade de
proferir, embora não tenha acreditado em nenhum deles.
Em verdade, Aristóteles não tentaria persuadir Heráclito ou qualquer
pessoa que não acreditasse no PNC a mudar de opinião. Não há tal pessoa,
não é possível haver. A estratégia, portanto, é mostrar que não há quem não
acredite em tal princípio, embora haja quem o negue. Ninguém pode acre-
ditar e  não acreditar simultaneamente no PNC, mesmo que o  negue. Dizer
que “tal princípio é falso” já é escolher uma das alternativas e, portanto, pro-
duzir um enunciado significativo, o que implica adesão ao próprio princípio.
Assim, podemos afirmar que o PNC fundamenta o argumento segundo o qual
todos devem acreditar no próprio princípio. Refutar aqueles que o negam não
é propriamente demonstrar tal princípio, mas mostrar que ele é o mais incon-
testável e  seguro de todos, independentemente daqueles que desconhecem
suas próprias crenças ou proferem contrariedades.
O oponente ao princípio, diz Aristóteles (IV, 4, 1006ª26, tradução nossa),
“embora desaproprie o logos, adere [hupomenei] ao logos”. (Met. IV 4: 1006ª26).
Ou, como interpreta Alexandre de Afrodisia (274, 27, tradução nossa), “supri-
mindo o  discurso, serve-se de discursos”. Aubenque o  parafraseia, dizendo:
“ele cai no golpe do discurso”. Eu diria: ele cai no golpe do logos, entendendo
logos por discurso e  razão. Para negar o  logos é preciso fazer uso do logos,
e o PNC é o modus operandi do próprio logos, a lei que rege a razão e o dis-
curso, que dá coerência, inteligibilidade e  comunicabilidade ao logos. Sem
o PNC, o logos não seria logos. E sem o logos ninguém poderia refutar o PNC,
portanto sem respeitar e aderir ao PNC não se tentaria refutá-lo. Tentar refu-
tá-lo é, às avessas, reafirmá-lo, reconhecer sua validade e  assumir sua ver-
dade. O oponente é capaz de argumentar contra, mas a própria argumentação
depende de sua adesão ao princípio. Se uma pessoa fala e age de modo inte-
ligível, então não é possível que ela não o creia. Agora, se ela fala de modo

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ininteligível, ela não poderia ser melhor do que uma planta, e com plantas
não há o que debater. Trata-se antes de combater formalmente o seu oponente
do que travar um embate sobre o que é verdadeiro ou falso; afinal, a validade
do princípio de não contradição é posta em dúvida e, reversivamente, é resta-
belecida via refutação num plano anterior ao verdadeiro ou falso, a saber: no
plano da significação.
É claro que, segundo Aristóteles, aquilo que Heráclito diz não revela a sua
crença no PNC, pois que o nega. Porém, é pelo fato de dizer algo que a sua
crença se revela. Se ele nega em palavras, ainda assim não poderia negar
em espírito, pois não poderia transgredir a formulação psicológica do prin-
cípio. Se o  nega em palavras, contradiz necessariamente o  que pensa, pois
não pode ter pensamentos contrários em sua alma. Como diz acertadamente
Lear (2006, p. 373): “Portanto, uma pessoa revela sua crença no princípio de
não contradição não tanto por aquilo que diz, mas pelo fato de dizer qual-
quer coisa”. Se assim for, devemos inferir que Heráclito, embora o negue com
falsas palavras, adere à sua verdade.
Por isso, sem dúvida alguma, tal princípio é o  mais incontestável, pois
que a própria inteligibilidade só é possível por sua causa. Não aderir ao PNC
significa não aderir ao próprio logos e, portanto, impossibilitar qualquer dis-
curso, pensamento ou ação. (ARISTÓTELES, Met., IV, 4, 10067-11) Significa
estar reduzido ao silêncio e à imobilidade das plantas.
Em suma, podemos concluir que o  realismo aristotélico nos revela que
a essência do ser é tal de modo que o ser possa ser pensado, ou seja, as con-
dições ontológicas são tais que permitem o acesso da razão ao ser. É porque
existe uma realidade que cumpre as condições necessárias para ser enunciada
de modo significativo que podemos pensá-la e exprimi-la em discurso. Sendo
assim, tanto as nossas crenças quanto os nossos discursos dependem da estru-
tura da realidade para terem significado. Para o estagirita, o ser é essencial-
mente inteligível, logo, ele pode ser enunciado.
O pressuposto último, portanto, é dizer que as palavras são significantes,
pois “se elas não significassem nada estaria arruinado todo diálogo entre os
homens e, na verdade, consigo mesmo”. (ARISTÓTELES, Met., IV, 4, 1006b8-9,
tradução nossa) Ou seja, porque produzimos discursos significativos podemos
inferir a tese da inteligibilidade essencial do ser. É a estruturação do mundo
que possibilita a  estrutura do nosso pensamento e  discurso, mas é porque

Filosofia clássica e helenísitica 145

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pensamos e  discursamos que devemos pressupor o  mundo como sendo
inteligível.
Por isso, podemos dizer que o PNC prova que o ser cumpre as condições
para ser enunciado de modo significativo ao fornecer os limites e a validade
do discurso em geral, e, ao provar isso, afirma sua certeza e validade, mos-
trando-se irrecusável e  intransponível. Em verdade, quem o  contradisser é
que estará em contradição. Mais do que isso: quem o contradizer será forçosa-
mente silenciado. E se o oponente está fadado ao silêncio das plantas, então,
sendo coerente consigo mesmo, ele deveria emudecer. Mais ainda, como ao
oponente foi-lhe retirada a  fala, também ele não poderia opinar, e  se não
pode opinar, tampouco poderia agir. Que razão teria ele de ir ou deixar de ir
a Megara? Ele teria de ter alguma opinião para agir, mas como ter uma opi-
nião é afirmar ou negar algo, então ele não terá qualquer opinião nem agirá.
Logo, sendo coerente consigo mesmo, ele deveria emudecer e  permanecer
imóvel como uma planta. A  demonstração via refutação do PNC gera uma
verdadeira redução do oponente ao estatuto vegetal por lhe retirar o próprio
logos.

A refutação aristotélica a Protágoras

Silenciado Heráclito, a batalha, neste momento, se encaminha para o xeque-


-mate, e o oponente passar a ser Protágoras. Segundo Aristóteles (Met., IV, 2,
1004b18-26), a sofística se distingue da filosofia por sua finalidade, a de apa-
rentar ter um conhecimento que não tem. A negação do PNC deflagra essa
aparência de conhecimento, e isso por dois motivos: i. os sofistas não fazem
a distinção necessária entre potencialidade e atualidade; e ii. pressupõem que
o  ser se reduz ao ser sensível. Veremos, brevemente, como a  refutação dis-
corre sobre esses dois erros.
Podemos dizer, grosso modo, que se o conhecimento é sensação segundo
Protágoras, então o que eu conheço, o que é verdadeiro para mim é aquilo
que aparece aos meus sentidos. Isso significa que, por exemplo, se o saudável
pensa que o vinho é doce, mas o doente pensa que é amargo, então é verda-
deiro que o  vinho é doce para um e  não é doce para o  outro. É verdadeiro
para ambos o modo pelo qual o vinho lhes aparece, visto que o modo pelo
qual conhecem depende da disposição ou do estado de espírito de cada um.

146 Aristóteles versus Heráclito e Protágoras: uma batalha metafísica

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Todavia, retirando-se os sujeitos (o saudável e o doente), temos a seguinte con-
tradição: “é verdade que o vinho é e não é doce ao mesmo tempo”.
Como vimos, a refutação a Heráclito se fundamenta na condição de sig-
nificação do enunciado, o que não será diferente para se refutar Protágoras.
Contudo, Aristóteles parece obter alguns ganhos filosóficos expressivos ao
procurar combater o  sensualismo ou relativismo subjetivo, nos capítulos 5
e 6 do livro IV da Metafísica, com a sua defesa da validade do princípio de não
contradição.
O ataque pode ser resumido do seguinte modo: o erro de Protágoras foi
o de ter reduzido o ser ao ser percebido, portanto, o conhecimento à sensação
e, consequentemente, tornado a verdade absolutamente relativa ao que apa-
rece para cada um aqui e agora. Contudo, segundo Aristóteles, o ser não pode
ser reduzido ao ser percebido, nem o  conhecimento à sensação, e  isso por
dois motivos: i. em primeiro lugar, a verdade se encontra na correspondência
entre o ser em si e o ser percebido, portanto a verdade não se reduziria ao
que aparece para mim; ii. em segundo lugar, se há o ser em si, independente-
mente da sua percepção, isso significa que o ser não se reduziria ao ser sen-
sível, pois o universo do ser sensível não esgota todo o universo do ser.
Segundo Aristóteles, essa tese é sustentada por Protágoras e outros que,
ao observarem o mundo sensível, diziam ver contrários emergirem de uma
mesma coisa, pois viam tudo mudar constantemente e  interpretavam toda
mudança como um vir a ser, como crescimento e perecimento, inferindo esse
tipo de mudança, que apenas uma pequena parte das coisas sensíveis sofrem,
para tudo o mais que existe. Porém, como diz o estagirita,

apenas a parte do mundo sensível que nos cerca imediatamente


está sempre em processo de destruição e geração; mas essa parte
é, por assim dizer, nem mesmo uma fração do todo, por isso teria
sido mais justo desconsiderar esta parte tomando a  outra do
que condenar a outra por causa desta. (ARISTÓTELES, Met., IV, 5,
1010a27-33, tradução nossa)

Diante da tese do ser em si e irredutível à percepção, Protágoras poderia


objetar que não há ser em si, mas apenas ser para mim, logo, poderíamos tran-
quilamente afirmar e negar a mesma coisa ao mesmo tempo. Ora, se o ser é
para mim e a verdade é relativa, não há nada que me desautorize a produzir

Filosofia clássica e helenísitica 147

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contradições e lhes atribuir verdade. Também para Heráclito não haveria ser
em si, como um ser idêntico a si mesmo, unitário e não contraditório. O ser
é em si mesmo contraditório, pois é e já não é ao mesmo tempo. A unidade,
para o filósofo de Éfeso, é ela mesma uma unidade de contrários. Tudo é um
par de contrários em contínua transformação. Cada coisa está vindo a  ser
o seu contrário, portanto, cada coisa é o que é e o que não é ao mesmo tempo
aqui e agora. Tudo o que existe é a contínua e eterna mudança do que está
vindo a ser e deixando de ser simultaneamente.
De fato, responderia Aristóteles, Heráclito e Protágoras pensam ter razão
por desconhecerem a distinção entre potencialidade e atualidade, afinal, uma
mesma coisa pode ser e  não ser ao mesmo tempo, mas não sob o  mesmo
aspecto: “a mesma coisa, pois, pode ser potencialmente ao mesmo tempo dois
contrários, mas não pode ser em ato”. (ARISTÓTELES, Met., IV, 5, 1009b34-36,
tradução nossa)
Por exemplo, dizemos que potencialmente Sócrates é e  não é músico,
ou seja, que ele pode vir a  ser músico ou vir a  ser não músico, mas, atual-
mente, ou Sócrates é músico ou não é músico. A distinção entre potenciali-
dade e atualidade restringe a contradição ao campo do possível, do vir a ser,
jamais permitindo que ela habite a  atualidade presente e  real. A  realidade
atual traduz justamente a cláusula “sob o mesmo aspecto”. Conforme tal prin-
cípio, sabemos que não é possível afirmar e  negar o  mesmo predicado do
mesmo sujeito simultaneamente e sob o mesmo aspecto, nem algo poderia ser
e não ser simultaneamente sob o mesmo aspecto, i.e., atualmente aqui e agora.
Disso decorre que a refutação aristotélica consiste em retirar a cláusula
relativa para mim e  conceber o  ser em si, ou seja, conceber Sócrates em si
mesmo ou atualmente como sendo e  não sendo ao mesmo tempo músico.
Todavia, se preservarmos a cláusula para mim, não haveria contradição alguma
em dizer que, para fulano, Sócrates é músico, mas, para sicrano, Sócrates não
é músico e  sim filósofo. A  refutação parece falhar justamente por atribuir
categorias como as do “ser em si”, do “ser em potência” e do “ser em atuali-
dade” para quem não as adota. Não há, para Protágoras, “ser em si mesmo”,
“ser enquanto ser”, “ser em potência” ou “em atualidade”. Tampouco para
Heráclito, para o qual há apenas a eternidade do tempo presente e o ser que
está sempre vindo a ser e deixando de ser simultaneamente e, se for o caso
dizer, sob um único aspecto que existe: o agora.

148 Aristóteles versus Heráclito e Protágoras: uma batalha metafísica

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Para Heráclito, não haveria potencialidade, pois tudo está sendo e  dei-
xando de ser. Há uma efetivação constante do contrário de cada coisa, o que
torna a  mudança gradual, proporcional e  continuamente em ato. Heráclito
jamais diria que uma semente é potencialmente uma planta, exemplo que
adora dar Aristóteles. Dizer isso é não perceber, é não estar atento ao logos da
mudança. A semente é, em alguma medida, não semente por efetivamente
estar em processo de vir a  ser planta, mesmo que os nossos sentidos não
sejam sensíveis o suficiente para perceber esse processo. A semente não tem
em si atributos contrários, ela é o seu próprio contrário em alguma medida,
ela está realmente se transformando no seu contrário: no não ser semente
para ser planta. A planta, por sua vez, também está se transformando em seu
contrário: em não planta para voltar a ser semente. E assim por diante, sem
fim, sem começo, apenas processo.
Resta ainda o  grand finale da batalha: poderia ainda permanecer inaba-
lável a  condição de significação do enunciado pressuposta na refutação de
Aristóteles a Heráclito? Afinal, bastaria Heráclito dizer qualquer coisa, uma
palavra que seja para aderir ao PNC e ver a sua filosofia completamente arrui-
nada e desacreditada? Mas a palavra, como bem nos diz o filósofo efésio, pode
nos enganar justamente ao dar a aparente ilusão de imobilidade. “Tomemos
cuidado ao proferir uma palavra sequer! Ela não revela a natureza da própria
coisa, essa natureza que ama ocultar-se. Quando dizemos ‘homem’ não ins-
tituímos a imobilidade com a palavra ‘homem’. Não somos deuses para insti-
tuir realidade alguma com o verbo. Antes, é preciso estar desperto e vigilante,
com os olhos e ouvidos atentos. A única realidade que existe não é facilmente
compreendida e  exprimida por nós. A  nossa linguagem é exígua diante do
mundo e pode nos enganar. A linguagem das coisas, o logos que a tudo subjaz,
esse não nos engana, pois que revela a mudança em tudo. E não há mudança
sem guerra. E não há guerra sem contrários. Quem procura eliminar a contra-
riedade, procura, em verdade, aniquilar a própria realidade, já que sem con-
tradição não há mudança, não há nada”. Assim diria Heráclito se tivesse tido
a oportunidade de se defender das acusações do filósofo metafísico.

Conclusão

Podemos concluir que o  esforço de Aristóteles é o  de procurar refutar os


oponentes do PNC e assim poder afirmar a sua certeza. Como a validade do

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princípio não poderia ser demonstrada, resta ao estagirita validá-lo por meio
de provas indiretas. A prova indireta ou a demonstração via refutação consiste
em provar que a negação do PNC implica a sua afirmação. O objetivo da refu-
tação àqueles que o negam é mostrar que não é possível refutar o PNC com
um discurso significativo, mas apenas com palavras vazias de sentido. Isso
porque qualquer enunciado significativo pressupõe que ele seja conforme
o princípio de não contradição, i.e., pressupõe que ele cumpra as condições
não de verdade, mas de sentido. E se todo discurso deve cumprir as condições
de significação para poder dizer algo significativo sobre o ser, isso prova que
o ser cumpre certas condições ontológicas para poder ser apreendido e enun-
ciado. A adesão irrestrita e irrecusável ao princípio de não contradição tanto
prova que a  acessibilidade do ser ao discurso é possível como afirma a  sua
própria certeza e validade. Do contrário, se o ser não cumprisse as condições
de significação, ele seria, segundo Aristóteles, inapreensível e incomunicável.
Todavia, os oponentes do filósofo metafísico, Heráclito e  Protágoras,
parecem não ter se reduzido ao silêncio das plantas ou aos ganidos dos cães.
O PNC não parece ser intransponível e irrecusável, a não ser que assumamos
a teoria da significação e a do ser enquanto ser. Esses princípios do ser e da
linguagem simplesmente parecem não fazer sentido para os seus oponentes
que não compartilham do mesmo terreno metafísico de Aristóteles.
Afinal, quem venceu a  batalha metafísica? Aristóteles? Heráclito?
Protágoras? Talvez, do ponto de vista lógico-metafísico, não haja resposta sufi-
cientemente convincente, mas, quem sabe, possamos optar por uma filosofia
ou por nenhuma a  depender do tipo de mundo e  de vida que escolhamos.
Talvez, do ponto de vista prático, alguma escolha se justifique satisfatoria-
mente. O que escolher ficará para uma próxima reflexão. Terminamos este
texto, se quiserem, com os juízos suspensos.

Referências
ALEXANDER OF APHRODISIAS. On Aristotle Metaphysics 1. New York:
Bloomsbury, 2013.
ARISTÓTELES. Opera ex recensione I. Bekker. Berlin: Academia Regia Borussica,
1831.
ARISTÓTELES. Aristotle’s Prior and Posterior Analytics. Tradução Ross. Oxford:
Oxford University Press, 1949.

150 Aristóteles versus Heráclito e Protágoras: uma batalha metafísica

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ARISTÓTELES. Works of Aristotle. In: ROSS, W. D. (org.). The Great Books of the
Western World. Oxford: Oxford University Press, 1980. v. 9).
ARISTÓTELES. Posterior Analytics. Tradução Barnes. 2. ed. Oxford: Oxford
University Press, 1993.
ARISTÓTELES. Aristotle: Metaphysics Books 4, 5 e 6. Tradução Christopher
Kirwan. Oxford: Oxford University Press, 2003.
ARISTÓTELES. Da interpretação. Tradução José Veríssimo Teixeira da Mata. São
Paulo: Editora Unesp, 2013.
AUBENQUE, P. O problema do ser em Aristóteles. São Paulo: Paulus, 2011.
HERÁCLITO. Doxografia. In: OS PRÉ-SOCRÁTICOS: fragmentos, doxografia
e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 1978. p. 89-127. (Os Pensadores).
HERÁCLITO. Heráclito: fragmentos contextualizados. Tradução Alexandre Costa.
Rio de Janeiro: Difel, 2002.
LEAR, J. Aristóteles: o desejo de entender. São Paulo: Discurso, 2006.
LUKASIEWICZ, J. Sobre a lei da contradição em Aristóteles. In: ZINGANO, M.
(org.). Sobre a metafísica de Aristóteles. São Paulo: Odysseus, 2005. p. 1-24.
SANTOS, L. H. L. A harmonia essencial. In: NOVAES, A. A crise da razão. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 437-455.
ZINGANO, M. (org.). Sobre a metafísica de Aristóteles. São Paulo: Odysseus, 2005.

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