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pela tensão para fora exercida pelos braços do instrumento, produz um


complexo coerente, unificado, estável e eficiente. Podemos inferir que, se o
equilíbrio entre contrários não fosse mantido, por exemplo, se «o calor» (i.e.
o total de substâncias quentes) começasse a prevalecer perigosamente sobre
o frio, ou a noite sobre o dia, então a unidade e coerência do mundo ces­
sariam, tal como, se a tensão na corda do arco exceder a tensão dos braços,
todo o complexo é destruído.

1 U m certo número de fragmentos dá a entender que é necessário ter não só fé,


com o persistência, para encontrar a verdade subjacente. Assim, e.g, 210 Fr. 18,
Clemente Strom. II, 17, 4 ê à v f i f j t À j i i j r a i â v é À m c n o v o v a 0
é $ t v m ) a i; i, áve£eQ S Ó vt]T v

èòv xai ãnoQov. ( Se não esperarmos o inesperado, não o encontraremos, porquanto


ele é inescrutável e d ifícil de abarcar.) Veja-se também 244, e frs. 22, 86; compare-se
com Xenófanes fr. 18 (188).
2 ítaÃívTovoç «retesado em sentido oposto», i.e., que tende igualmente
para direcções opostas. Uma tensão numa direcção produz automaticamente uma
tensão equivalente na outra; caso contrário, o sistema desmantela-se.

(5) O equilíbrio total do cosmos só pode ser mantido, se a mudança numa


direcção conduzir eventualmente à mudança na outra, isto é, se houver uma
«discórdia» infindável entre contrários

211 Fr. 80, Orígenes c. Celsum V(, 42 eiôévai %qi) ròv nóÀspov èóvra
Çvvóv, xai ôíxrjv êftiv, xai yivópeva návra r.ar' eqiv xai %qecov j .

1 xQeáv Diels, xqe(Í>/j,eva ms. A emenda não é segura, mas é difícil melhorar
o texto; as três letras adicionais podem estar relacionadas com a omissão de três
letras precisamente antes, no lugar onde o único ms. Vaticano tem ei ô í, em vez da
evidente form a original elôêvat,

212 Fr. 53, Hipólito Re f . ix, 9, 4 TtóÀepoç návrtov pèv jiarrjO èon,
návrcov ôè jjú.aiÃtvç, xai rov ç pèv (feovç êÔetéje rov ç ôè âv&Q(l>novç, rovç uèr
ÒovXovç ènotrjGE rov ç ôè êÀsv&égovç.

211 É necessário saber que a guerra é comum e que a justiça é discór­


dia e que tudo acontece mediante discórdia e necessidade.
212 À guerra é a origem de todas as coisas e de todas ela é soberana,
e a uns ela apresenta-os como deuses, a outros, como homens; de uns
ela faz escravos, de outros, homens livres.

A discórdia ou guerra é a metáfora favorita de Heraclito para o pre­


domínio da mudança no mundo. Está obviamente relacionada com ;i
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reacção entre contrários; e pode inferir-se que a maioria das espécies de


mudança (excepto no que toca e.g. ao crescimento, que é a acrescência de
um semelhante ao seu semelhante) podia ser convertida em mudança entre
contrários. Em qualquer caso, a mudança de um extremo para o outro
pode afigurar-se-nos como a mais radical possível. A «guerra», que está na
base de todos os acontecimentos, é «comum» em 211, num sentido particular
(Homero havia empregado o termo, mas para significar ‘imparcial’): e!a
é universal e responsável por condições diferentes, e evidentemente opostas,
do homem — mesmo para o seu destino após a morte, visto a morte em
combate (212) poder fazer deuses de alguns deles, cf. 237 e 239. É também
chamada òíxq, a «via indicada» (da mesma raiz de ôehcvvfu), ou regra nor­
mal de comportamento. Deve tratar-se de uma correcção deliberada da
máxima de Anaximandro (110), segundo a qual as coisas pagam retribuição
umas às outras pela injustiça dos seus abusos alternados nos processos da
mudança natural. Heraclito mostra que, se a discórdia — isto é, a acção
e reacção entre substâncias contrárias — viesse a cessar, então o vencedor
de cada competição entre extremos estabeleceria um domínio permanente,
e o mundo como tal seria destruído '. Contudo, assim como numa batalha
há interrupções locais temporárias, ou pontos mortos ocasionados pelo
exacto equilíbrio das forças que se opõem, assim também Heraclito deve ter
admitido que a estabilidade temporária pode ser encontrada aqui e além
no campo de batalha cósmico, desde que seja apenas temporária e esteja
equilibrada por um estado correspondente noutro lugar. Esse facto não
diminuiria a validade do domínio da discórdia (que, como para Anaximan­
dro, fornece uma razão metafórica para a mudança), mas permite que o
princípio seja aplicado ao mundo da nossa experiência real, no qual todas
as coisas devem eventualmente mudar, se bem que algumas sejam, por ora,
obviamente estáveis.

1 Cf. 213 Aristóteles Eth. Eudem. H I, 1235 a 25 xal rHnáxÀetToç £mxt/i$


Tiú Tzoitpavji 'Q ç êntç sx re &eã>v uai àv9gámt>v ânóXoiro ( — II. 18, 107)' ov yàg
âv eivai ág/iovíav [ii) õvroç d£éoi xat fidoéog oúôè tà Çqja ãvev i)i]Âroç xai õqqevoç
êvavriojv Svrcov. ( Heraclito censura o autor do verso « Quem dera que a discórdia desa­
parecesse de entre os deuses e os hom ens»; pois não haveria escala musical, se não exis­
tissem os sons agudo e grave, nem seres vivos sem fêmea e macho, que são opostos.)
Neste passo, áo/iovía tem o seu sentido particular de «escala musical».

(6) A imagem do rio esclarece o género de unidade que depende da conser­


vação da medida e do equilíbrio na mudança

214 Fr. 12, Ário Dídimo ap. Eusebium P . E. xv, 20, + fr. 91, Plutarco
de V. 18, 392 B nora/notai t otaiv nvtotm v è/iflalvovoiv Htcqu xai êreça flòara
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totalmente a ideia de divindade, ou mesmo algumas descrições convencio­
nais dessa divindade. O fragmento de 242 dá a entender que os mistérios
não seriam completamente inúteis, se fossem correctamente celebrados.
O trecho 243 sugere como isto assim é: tais rituais podem possuir (e por
vezes acidentalmente possuem, de facto) um valor positivo, porque guiam
os homens indirectamente para a apreensão do Logos. A s bases precisas,
sobre as quais o Hades e Dioniso são aqui identificados, não se conhecem, mas
provavelmente o primeiro representa a morte, o segundo, a vida exube­
rante; e é a identificação implícita destes contrários especialmente significa­
tivos (cf. 202, 239) que impede o culto de ser completamente vergonhoso l .
O método adoptado por Apoio nas suas proclamações délficas é elogiado
em 244, porque um sinal pode estar mais de harmonia com a natureza da
verdade subjacente, a do Logos, do que uma afirmação ilusoriamente explícita
(cf. 207-209). Talvez Heraclito pretendesse, por esta espécie de compa­
ração, justificar o seu próprio estilo oracular e obscuro 2.

1 Uma possível referência aos ritos órficos/dionisíacos fo i sugerida na n. 1


da p. 216; uma outra tabuinha de Ólbia, de novo com a abreviatura de ‘Dionysos’,
contém as palavras ‘guerra, paz, verdade, falsidade’, uma vez mais com um anel hera-
clítico à sua volta,
2 Cf. 245 Fr. 92, Plutarco de Pyth. or. 6, 397 a EiftvXÂa Ôè /tat.voftévq> aró-
lia rt y.aíf ’HgdnXeirov âyéXaara xal áxtM í& m ffta -mi á/jtéguna qtâ-eyyo/tévt) yjlkov
irw v êÇitcveZzai Tfj qxovjj Ôtà tò v &sóv. ( A Sibila, que, segundo Heraclito, profere,
com a boca possessa, palavras sombrias, sem adornos e sem perfume, alcança com a sua
voz m il anos, por intermédio do deus.) É impossível determinar com precisão,
quanto desta citação é verbatim; H . Frãnkel, por exemplo, pensa que só o é atéará/iati.
Eu admito a hipótese de que até ip&eyyofiévíj (com a possível excepção de xal
âxaXXtlmurta xal ã/i/ÓQiara) o texto seja provavelmente de Heraclito, e de que o
restante é uma paráfrase muito livre de Plutarco. A máxima parece ser uma justifica­
ção do singelo método oracular de exegese; mas a sua interpretação exacta é impossí­
vel. O próprio Heraclito combinou, certamente, a sobriedade do estilo gnómico com
a obscuridade do estilo oracular afim; a sua intenção fundamental era por vezes
reforçada coro jogos de palavras (e.g. $vv vóm — çvvw em 250) e perífrases etimo­
lógicas. Um processo idêntico encontra-se em Esquilo, cujo estilo coral, especial­
mente na Oresteia, tem algumas afinidades com Heraclito.

(14) Conselhos de natureza ética e p o lítica ; o conhecimento de si mesmo,


o senso-comum e a moderação são ideais que para H eraclito tinham um lugar
especial na sua explicação do mundo como um todo

246 Fr. 101, Plutarco adv. Colotem 20, 1118 C èôiÇrjoá/nr]v èfi&ovróv.

247 Fr. 119, Estobeu Anth. iv, 40, 23 r/floc; âvêpom.o* <Wfmv.

248 Fr. 43, Diógenes Laércio ix, 2 iSfloiv %q>) (f^BVVvvai /m/.kov fj jr.vyxatyv.
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249 Fr. 44, Diógenes Laércio ix, 2 uáyeaOai yjyij xòv Õfj/iov v jtè ç x o v
vófiov otccoaneQ xeí%boç.

250 Fr. J14, Estobeu Anth. m, 1, 179 £vv vóco Asyovxaç laxvoíÇea&ou ym)
tõ> Çvv ã návxtov, õxaxmeg vóam n ó h ç xaí tioXv usyvQotéQcoç- tQÉcpovxai
yào Jtávxes o í àv&omjTEioi. vófiot vtzò êvòç xov ê s ío v xgaxel yàg tooovxov
ôxóoov ê&ékei xai ê£agxsl nãm xal neQiyívExat,

246 A mim mesmo me procurei.


247 O carácter é para o homem um dáimon.
248 É mais necessário extinguir a insolência do que um incêndio.
249 O povo deve combater pela lei, como se das muralhas da sua cidad
se tratasse.
250 Os que falam com juízo devem apoiar-se no que a todos é comum,
como uma cidade deve apoiar-se na lei, e com muito mais confiança.
Pois todas as leis humanas são alimentadas por uma só, a lei divina;
é que ela tem tanto poder quanto quer, e para tudo elaé bastante e
ainda sobra.

Os conselhos éticos de Heraclito são gnómicos na forma, e na maior


parte semelhantes, quanto ao conteúdo geral, aos dos seus predecessores e
contemporâneos; por vezes são expressos de uma maneira mais pictórica e
frequentemente mais crua Sublinham a importância da moderação, que
depende, também ela, de uma apreciação correcta das faculdades de cada
um. Mas esta espécie de conselhos (a que naturalmente se comparam as
máximas délficas «Conhece-te a ti mesmo» e «Nada em excesso») tem um
significado mais profundo em Heraclito, porque se fundamenta (não expli­
citamente, mas de forma claramente implícita em 194, etc.) nas suas teorias
físicas, e é devida à sua crença de que só pela compreensão do modelo
central das coisas pode um homem tornar-se sábio e completamente eli
ciente: vejam-se 194, 196, 227, 234. É esta a verdadeira moral da íilosoOn
de Heraclito, em que a ética é pela primeira vez formalmente entretecida
com a física.

1 Heraclito era, sem sombra de dúvida, de um temperamento acentuada-


mente crítico, e a sua linguagem censória dificilmente o pode ter tornado popular
aos olhos dos seus mal-afortunados concidadãos: cf. e.g. 251 Fr. 29, Clemente
Strom. v, 59, 5 ( ííqcvvxcu yàg Sv àvxl ânávrmv oí ãotoxot, xAéoç áévaov {ItnjT&v ol
fíi) noXXol xexÓQtjvrai ôxioaneg nxijvea, ( Os melhores escolhem uma só coisa em vez
de Iodas as demais, a «ete rn a » glória entre os mortais; mas a maioria está saciada como
alimárias.) As suas ideias políticas parecem ter sido antidemocráticas, embora, tal­
vez, por ruzflcs mais empírica» do que ideológicas: «Para mim, um homem vale por
dez mtl, ac for o melhor», iíímc d e (IV. 49), e censurou nspcrnmentc o» iifíslos por exl-
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larem o seu amigo Herm odoro sob o pretexto das suas excepcionais aptidões
(fr. 121). Sendo eíe próprio de nobre nascimento, recusou os privilégios tradicionais
que lhe cabiam ( 191).

Assim, «a busca de si próprio» em 246 conduz, podemos nós concluir,


à descoberta de que a alma se situa fora de cada um (vejam-se 232, 234).
O fragmento de 247 é um desmentido do parecer, comum em Homero, de
que, frequentemente, o indivíduo não pode ser responsabilizado pelos
seus actos. Aaí/Mov significa aqui simplesmente um destino pessoal do
homem; este é determinado pelo seu próprio carácter, sobre o qual exerce
um certo domínio, e não por poderes externos e frequentemente capri­
chosos que actuam, talvez, por intermédio de um «génio» atribuído a cada
indivíduo pelo acaso ou Sorte. Tradicionalmente, Helena culpava Afrodite
da sua própria fraqueza, mas para Heraclito (como certamente para Sólon,
que já havia reagido contra a falta de energia moral da mentalidade heróica)
havia uma finalidade real no comportamento inteligente e prudente.
248 não contém agudezas de sentido especiais: mostra, isso sim, quão con­
vencional era, com frequência, o lado prático da ética de Heraclito, e também
que ele nem sempre pensou no comportamento humano em termos de natu­
reza ígnea da alma (porquanto a vjiotç deveria implicar um humedecimento da
alma, e não a sua conflagração). Por contraste, a insistência no respeito pela
lei, em 249, apesar de uma vez mais expressa em termos convencionais, toma
um significado muito mais profundo, e adquire uma séria justificação à luz do
fragmento de 250 (que deve ser comparado com 194,195 e 196). As leis huma­
nas são sustentadas pela lei divina universal; estão em concordância com o
Logos, constituinte e regulador do cosmos. O termo «alimentadas» é, princi­
palmente, mas não completamente, metafórico: o contacto entre as leis huma­
nas e o Logos é indirecto, embora não desprovido de uma base material, visto
as boas leis serem produto de homens sábios com almas ígneas (230), que, por
isso, compreenderam, como o próprio Heraclito compreendeu, a relação
correcta entre os homens e o mundo.

CO NCLU SÃO

A despeito de muitas obscuridades e incertezas de interpretação, é


evidente que o pensamento de Heraclito possuía uma compreensiva unidade,
que (admissivelmente, devido à carência de informação sobre Anaximandro)
se afigura inteiramente nova. Praticamente, todos os aspectos do mundo
são explicados de forma sistemática, relativamente a uma descoberta cen­
tral — a de que as mudanças naturais de todas as coisas são regulares e
equilibradas, e que a causa deste equilíbrio é o fogo, constituinte coinuni
22]

das coisas, o seu Logos, como era também denominado. O comportamento


humano, tanto como as mudanças do mundo exterior, é governado pelo
mesmo Logos: a alma é feita de fogo, parte do qual (bem como parte da
ordem do universo) se extingue. A compreensão do Logos, da verdadeira
constituição das coisas, é necessária, se as nossas almas não vierem a ser
excessivamente humedecidas e não se tornarem ineficazes devido à insensatez
de cada um. A relação que Heraclito estabeleceu entre a alma e o mundo
foi mais digna de crédito do que a de Pitágoras, por ser mais racional; ela
apontou um caminho que, de uma maneira geral, só foi seguido pelos Ato-
mistas e, posteriormente, por Aristóteles. Entretanto, uma nova tendência,
voltada para a rejeição da Natureza, floresceu com os Eleatas, Sócrates e
Platão.

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