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GEFEN

Husserl, Edmund.

Psicologia fenomenológica e fenomenologia transcendental

Seminário sobre as Conferências de Amsterdã


Apresentação Artur M. Scavone
26/04/2023

Editora Vozes. Edição do Kindle.

Textos selecionados (1927-1935) / Edmund Husserl ; Giovanni Jan Giubilato


(coord.); tradução: Anna Luiza Coli, Daniel Guilhermino, Felipe Maia da Silva.
Petrópolis, RJ : Vozes, 2022.
(Coleção Pensamento Humano)
ISBN 9786557137086 .
AS CONFERÊNCIAS DE AMSTERDÃ (1928)*

I. A psicologia puramente fenomenológica. Seu campo de


experiência, seu método, sua função

§ 1. O duplo sentido da fenomenologia:


fenomenologia psicológica
Fenomenologia pode ser
fenomenologia transcendental
psicológica ou transcendental
A fenomenologia como nova ciência surge em razão da falta de fundamentação
teórica que ameaçava as ciências naturais exatas.

Nessa nova ciência se destaca a reação contra um teorizar feito por meio de
As ciências estão distantes da
formações conceituais e especulações matemáticas muito distantes da intuição.
intuição
Esse novo tipo de cientificidade se apresenta em um duplo sentido:

fenomenologia psicológica, a qual deve servir como ciência fundamental


radical para a psicologia em geral;

fenomenologia transcendental, a qual assume, no contexto da filosofia, a


grande função de filosofia primeira, função esta atribuída à ciência
filosófica dos princípios.

Nesta conferência pretendemos considerar as exigências de uma psicologia


Tratará somente da
científica e desenvolver a ideia necessária a uma psicologia fenomenológica.
fenomenologia psicológica
§ 2. A ciência pura da natureza e a psicologia pura

A psicologia moderna é a ciência dos acontecimentos reais que ocorrem no nexo A psicologia moderna trata o
concreto do mundo objetivo-real, portanto é um ramo que envolve tanto o físico físico e o psicofísico
quanto o psicofísico.

Todos os corpos do mundo formam uma unidade conectada, uma unidade que se
Há uma unidade universal da
junta no infinito da natureza total sob a forma da unidade universal da
espaçotemporalidade
espaçotemporalidade.

Na sequência Husserl mostra que não é possível estabelecer uma psicologia pura e
A psicologia pura não pode se
rigorosa em paralelo com uma ciência natural empírica - que avance de forma
articular com o empírico
pura e rigorosa - porque as considerações temáticas sobre o físico e o psicofísico
jamais poderão ser inteiramente ignoradas.

Mas uma pesquisa puramente psíquica deve ser possível, caso contrário não
Alcançar os conceitos do
poderemos alcançar conceitos científicos rigorosos do psíquico naquilo que lhe é
psíquico sem o entrelaçar
mais essencialmente próprio e de maneira independente de todo entrelaçamento
com o físico
real com o físico.

Esses conceitos devem necessariamente incluir aqueles que delimitam a forma


Os conceitos essenciais do
tanto essencial quanto geral e necessária do psíquico no que lhe é essencialmente
que é próprio ao psíquico:
próprio – conceitos que dizem respeito, portanto, àquilo sem o qual o pura e
uma ciência da essência a
simplesmente psíquico não pode ser pensado enquanto tal.
priori do puro psíquico
Afirma a possibilidade de uma possível ciência da essência a priori do puro
Os conceitos essenciais do
psíquico, do psíquico enquanto tal. Seria uma ciência do a priori de toda e
que é próprio ao psíquico:
qualquer natureza concebível.
uma ciência da essência a
§ 3. O método da psicologia pura (intuição e reflexão) – A intencionalidade como priori do puro psíquico
caráter fundamental do psíquico

As verdades a priori só podem surgir nas intelecções apodíticas a partir das fontes
Verdades a priori surgem da
originárias da intuição.
intuição.
Husserl destaca a intuição como fundamento do método fenomenológico, mas
É preciso método para
destaca que, para alcançar essas verdades a priori, é necessário acessar a intuição
conquistar esse acesso
de forma que o psíquico seja dado de modo originário e concreto.

Husserl explica o método: o nosso olhar está desde o início direcionado ao que
permanece constante (essência) diante da livre-variação de exemplos, e não ao O método: buscar a essência
que se modifica aleatoriamente. Notar que “esse nosso olhar” se refere ao
observador fenomenológico, e não à consciência natural. Aqui é importante trazer
a citação do §6:

“quando deixo de ser aquele eu que realiza ingenuamente estas tomadas Abandonar o eu natural e
de posição e me torno aquele eu que delas se abstém e que as considera
assumir o eu observador
apenas na condição de simples espectador, de eu observador.”

Husserl anuncia o método:

1. Somente com a reflexão, com o desvio do olhar daquilo que é


1. É preciso a reflexão e o
imediatamente temático, é possível trazer ao nosso olhar temático a
abandono da atitude natural
própria vida psíquica. A vida psíquica é captada e tematizada pelo perceber
reflexivo e pela experiência reflexiva em geral.
2. Tudo o que nos é acessível por meio da reflexão tem uma característica 2. A consciência sempre é
muito peculiar: trata-se sempre da consciência-de-algo. Falamos, por isso, consciência de. É a
de intencionalidade. intencionalidade.

Definição do psíquico: o caráter fundamental do psíquico é a fenomenalidade - a


A fenomenologia a priori: a
especificidade do aparecer e daquilo que aparece enquanto tal. Por isso a
psicologia pura.
psicologia pura deve ser chamada de fenomenologia a priori.

§ 4. O significado do conceito de pureza

Continuando a descrição do método: como fazer a reflexão para atingir o que


O problema do método: para
pertence ao psíquico?
atingir o psíquico é preciso
a. Como praticar a experiência pura fenomenológica até atingir somente o livrar-se do psicofísico e
psíquico sem qualquer outra associação que não lhe seja essencial, atingir o reino das intuições
intuitivo: trata-se de atingir a “unidade do reino delimitado das intuições possíveis e puramente
possíveis e puramente fenomenológicas”. fenomenológicas, livre do
b. Mas chegar à experiência pura significa liberar-se de tudo que é que é preconcebido.
preconcebido.

Husserl identifica a dificuldade fundamental para atingir a psicologia pura: a A confusão entre
combinação dessas duas dificuldades impediu até hoje uma análise intencional. temporalidade imanente e
Depois de criticar diferentes autores Husserl afirma que a causa mais profunda que temporalidade real foi a
causa.
os impediu de atingir a psicologia pura está na equiparação da temporalidade
imanente e da temporalidade objetivamente real.

Explicação: o tempo objetivo é a forma extensional das realidade objetivas. As


A temporalidade imanente e
vivências psíquicas não têm uma forma unitária e real de coexistência e sucessão.
a temporalidade
Quem dá às objetidades sequencialmente percebidas a percepção da sucessão é a
objetivamente real são
consciência que – ao doar as idealidades constituintes às objetidades – constitui a
distintas.
identidade do mesmo e – com a recordação iterativa – constitui a temporalidade
imanente.

Não há analogia genuína e fática entre a análise da consciência e a análise natural, Daí decorre que não há
seja ela física ou química e até mesmo biológica, como em geral entre o modo de analogia entre análise da
ser da consciência e do eu-da-consciência e, por outro lado, o modo de ser da consciência e a análise
natureza. natural.
§ 5. O puramente psíquico da experiência de si mesmo e da experiência em
comunidade – A descrição universal das vivências intencionais

Husserl busca exemplificar a forma mais intuitiva e imediata da experiência A experiência de si mesmo
fenomenológica: é a experiência de si mesmo. Somente nela a consciência e o eu como experiência
da consciência são dados de forma integralmente originária de si (em originária fenomenológica.
simesmidade1) – como quando, enquanto percebo, reflito sobre meu perceber.

§ 6. A redução fenomenológica e a experiência interna autêntica

Para realizar a pura experiência psíquica é preciso tirar de circuito todo o mundo
Para descrever a pura
real. Não posso participar da minha crença no mundo de modo natural. Daí vem
experiência psíquica é preciso
uma contradição: como descrever o psíquico puro se o ser consciente é ser
ser um espectador não
consciente de alguma coisa?
participante da vida da
Resposta: Enquanto fenomenólogos temos que ser, por assim dizer, um consciência.
espectador não-participante da vida de consciência, que só assim pode se
tornar nosso tema puro de experiência.

Em vez de viver na vida de consciência temos simplesmente de olhá-la e considerá-


Na epoché o experienciado é
la a partir do modo como ela é, em si mesma, consciência disto ou daquilo, e do
o que é intencionado, seja
como ela se interessa por si mesma. Caso contrário, o objeto de nossa descrição
existente, possível, provável
seria constantemente o mundo extrapsíquico e não sua pura consciência. Na
ou mesmo inexistente na
epoché fenomenológica aquilo de que a consciência é consciente a cada vez se
alma.
destaca como componente psíquico pertencente à própria consciência: aquilo que
é experienciado externamente é – para o fenomenólogo – tão somente o que é
intencionado como existente, possível, provável ou mesmo inexistente no
psíquico2, mas não a coisa mesma na sua externalidade. Husserl afirma que a
crença ontológica também pertence ao contenente fenomenológico da vivência.
Talvez possamos traduzir de forma simplificada que a crença ontológica está
presente no psíquico, mas o fenomenólogo descarta essa crença. Vale a citação:

1
Ao que tudo indica simesidade deve ser entendida como simesmidade, si mesmo
genuinamente.
2
Neste ponto sobra uma dúvida: o contenente tem o sentido daquilo que contém, do
anímico. Portanto nulo no anímico, na alma, significa uma intencionalidade para algo
inexistente na alma, no contenente?
“quando deixo de ser aquele eu que realiza ingenuamente estas tomadas A condição de simples
de posição e me torno aquele eu que delas se abstém e que as considera espectador, de eu
apenas na condição de simples espectador, de eu observador.” observador
A observância da epoché – ou redução fenomenológica – ao fazer a purificação
Noema: aquilo que é
temática das vivências individuais revela os seus componentes noemáticos.
intencionado
“Se toda a natureza se transforma em mero fenômeno noemático à medida
que sua realidade real é posta fora de validade, então mesmo o eu, agora O eu como fenômeno
reduzido ao ser e à vida puramente psíquicos, não está mais referido ao eu noemático.
humano real da orientação da experiência natural-objetiva. Este <eu> se
tornou agora o real intencionado enquanto tal, transformou-se em
fenômeno noemático.”

§ 7. O polo egóico como centro dos atos egóicos – O caráter sintético da


consciência3

7.1 - Desdobramento do NOEMA (aquilo que é intencionado) é a NOÉSIS (o ato de Noesis: o ato de ter algo a
ter algo consciente). Destaca-se então o eu – do ponto de vista fenomenológico – cada vez como consciente.
idêntico nos múltiplos atos egóicos, polo de irradiação de múltiplas atividades
egóicas. 7.2 - O polo egóico é o irradiador das ações e é também o polo que reúne
todas as afecções.

7.2 - Husserl explica que a consciência executa operações noemáticas constituindo


Toda consciência é
uma rede de conexões dessas operações. Por isso cada consciência, no sentido de
consciência do meu eu
cada noesis, de cada ato de estar consciência de algo intencionado, é também
consciência desse eu central: toda consciência é consciência do meu eu. Portanto
toda análise de consciência diz respeito ao eu central.

7.3 - Em todos os diferentes modos de consciência – valorativa, volitiva e prática – A duplicidade essencial da
está presente a própria vida egóica pura na duplicidade essencial entre consciência vida egóica
e aquilo de que é consciente – o noético e o noemático.

7.4 - “A diferença fundamental do modo de ser da consciência em sua


Consciência natural x
pureza fenomenológica face à natureza dada em orientação natural se
Consciência fenomenológica
revela sobretudo na idealidade própria ao ser-contenente dos
componentes noemáticos de cada consciência que lhe corresponde.”

Vamos buscar traduzir este texto: A diferença fundamental do modo de ser da


consciência pura frente à natural (para simplificar) se revela sobretudo na As idealidades como essência
idealidade própria dos componentes noemáticos extraídos do psíquico, de cada
consciência que lhe corresponde. Ou seja, é na compreensão das idealidades que
compõem os noemas que se revela a diferença da consciência fenomenológica para
a consciência natural.

7.4 - Husserl, destacando as diferenças entre a consciência natural e a


Sínteses de identidade
fenomenológica, afirma que elas se revelam também na singularidade da síntese
que reúne toda consciência em si mesma como a série de consciências que se

3
No estudo do §7 estou usando a numeração sequencial dos parágrafos gramaticais porque
minha edição é Kindle e não tenho a paginação do livro impresso.
unificam numa mesma consciência de, ainda que partam de diferentes modalidades
de síntese: valorativa, volitiva ou prática.

7.4 - “Todas as modalidades da síntese remetem, em última instância, às


sínteses de identidade.”

7.4 - Husserl revela então o sentido de polo noemático: percebo uma casa; revejo a
Polo noemático: o
casa; relembro a casa; revisito a casa. A relação intencional com a mesma casa (o
absolutamente idêntico para
mesmo noema) em diferentes e distintas vivências é a evidência do polo
uma multiplicidade infinita e
noemático, “uma multiplicidade infinita e aberta de vivências de consciência
aberta de vivências
sempre distintas, para a qual ele seria sempre o absolutamente idêntico”.

7.4 - “pertence à natureza fundamental da consciência o fato de que este


polo objetual (i. e., toda unidade noemática) seja idealmente idêntico em
todas as vivências da sua multiplicidade sintética e que em todas elas ele
contenha e seja o contenente não de modo genuíno [reell], mas de modo
“ideal”. E repito: que “contenha idealmente”.”

Aqui fica explicado o sentido de que a diferença fundamental entre o


A idealidade constitui o
fenomenológico e o natural está no desvelar da idealidade que constitui o noema.
noema
Retornando indiretamente à temporalidade imanente da consciência, Husserl
mostra que a multiplicidade da consciência, as múltiplas mesmas casas que me
foram doadas na consciência, não têm nenhum momento idêntico e estão
separadas no fluxo da consciência. No entanto fica evidente que essas múltiplas
ocorrências fazem parte de uma multiplicidade que corresponde a um momento
genuíno: a casa é imanente enquanto sentido, afirma Husserl. Ou seja, é sempre a
mesma casa intencionada nas múltiplas doações, percepções ou presentificações.

7.4 - “Em outras palavras, podemos dizer que ela <a casa> é imanente
enquanto sentido. De fato, sempre que falamos de sentido, trata-se de algo
ideal [ideell] que pode ser intencionado em uma infinidade aberta de
vivências intencionais reais e possíveis.”

7.5 - Em seguida Husserl introduz outra temática: além da consciência do


Os atos signitivos: é sempre
horizonte. A análise intencional da consciência, explica Husserl, afeta a vivência e
uma demarcação
nos conduz ao universo sintético das vivências da consciência sem o que não se
antecipatória de novos
explicitaria o que está noematicamente na consciência. Eu vejo a casa. Não posso
momentos que pertencem
ver todos os lados e dimensões da casa. Cada visão da casa, de lado, de cima, por
ontologicamente ao
dentro etc, são diferentes percepções remetidas ao mesmo noema: casa. Husserl
percebido, ainda
destaca ainda que ao noema “casa percebida” pertence uma consciência de
indeterminados porém
horizonte, ou seja, de que aquilo que é propriamente visto em si mesmo remete,
determináveis.
segundo seu sentido, a uma abundância de determinações possíveis, não vistas, em
parte conhecidas, em parte indeterminadas e desconhecidas.

7.5 - “Esta parece ser uma interpretação que vai além do momento da
vivência designado como “consciência de horizonte” – e que, como pode
ser facilmente constatado, é inteiramente não-intuitiva, vazia em si e para
si mesma.”

Aqui Husserl faz uma notável descrição dos processos de constituição das potências
exploratórias da consciência.
7.5 - “Uma cadeia de presentificações sinteticamente entrelaçadas e unidas
uma à outra, diante da qual se nos torna evidente o fato de que o horizonte
vazio que se associa ao sentido perceptivo de fato carrega implicitamente
em si um sentido perceptivo e que ele <o horizonte vazio> de fato é sempre
uma demarcação antecipatória de novos momentos que pertencem
ontologicamente ao percebido, ainda indeterminados porém
determináveis.

7.6 - Em seguida vem uma rara exemplificação das suas ideias. Vale a leitura. (pp.
A radical diferença entre a
164-165). Husserl busca mostrar a radical distinção entre a tarefa de uma
psicologia fenomenológica e
psicologia fenomenológica e da psicologia como ciência natural. Husserl afirma que
a psicologia como ciência
– para o fenomenólogo – todo percebido tem um modo de doação: visão, o tátil, a
natural.
audição, o sabor. 7.7 - E um outro aspecto, o modo de aparição: percepção,
retenção, rememoração, expectativa antecipatória etc. A explicação intencional
que o fenomenólogo deve fazer irá além da vivência propriamente e consistirá em
construir descritivamente os modos de síntese dessas vivências.

7.8 - No passo seguinte Husserl recorre à temporalidade imanente do tempo na


O sentido unitário da
consciência para mostrar que as vivências da consciência têm separação e
totalidade da percepção não
vinculação nessa temporalidade imanente, mas a análise fenomenológica demanda
é a mera composição de cada
compreender que não se trata de combinar as diferentes vivências. Isto porque
vivência.
em cada vivência se pode distinguir elementos parciais e fases e cada uma dessas
partes é uma consciência-de, uma percepção-de, o que caracteriza seu sentido
perceptivo. No entanto não é a mera composição destas vivências que caracteriza
o sentido unitário da percepção na sua totalidade.

7.8 - Há então um esforço de Husserl para explicar a estrutura eidética da


A temporalidade imanente da
temporalidade imanente. Cada percepção parcial ocorre enquanto fase da
consciência
percepção total. A percepção do objeto se estende para o próximo preenchimento
perceptivo, mas nunca como combinação de partes. Eu vejo a casa pela sua frente;
percorro o caminho e vejo a casa pela lateral. Nessa sequência de percepções cada
uma é uma consciência-de que intenciona (noesis) aquela casa (noema) naquele
instante objetivo real, cuja identidade sequencial é dada pela idealidade que
constitui o noema (casa). No entanto as visadas que transcorrem não se compõem
como partes de um todo. A consciência não permite outra modalidade de
associação a não ser as que se dão entre as consciências-de ou quando ocorrem as
sínteses resultantes de distintas consciências-de. Isto de tal forma que toda divisão
em partes resulta em um sentido: eu vejo uma sucessão de visadas da casa; depois
(depois no sentido objetivo real) vejo uma sucessão de visadas de um cachorro que
percorre a casa. As consciências das distintas visadas da casa constituem uma
unidade, um noema, e formam um sentido: a casa que eu vejo. O mesmo ocorre
com as consciências das distintas visadas do cachorro que percorre a casa. E essas
visadas formam um sentido: o cachorro que percorre a casa. São duas fases
distintas.

7.9 - Husserl enfatiza que na essência da vida de consciência coerente há uma


As sínteses categoriais
modalidade de síntese contínua que é a síntese de todas as experiências na
unidade de uma experiência – a síntese concordante de experiência. Um exemplo
simplório: eu vejo um tinteiro; eu vejo a tinta azul do tinteiro; eu percebo uma fita
amarela que envolve o tinteiro. Por recordação eu identifico esse conjunto com o
“meu tinteiro”. Há uma sequencia de visadas que constituem noemas cujas
idealidades lhes dá a identidade. A recordação de outras visadas (o meu tinteiro
que eu conheci ontem) dá a síntese “meu tinteiro”.

7.9 - “Todos os tipos e formas de razão cognoscente são formas de síntese,


de realização da verdade e da unidade da subjetividade cognoscente.”

7.10 – A fenomenologia descritiva se refere à fenomenologia egológica. Somente


após um aprofundamento dessa forma de pesquisa será possível ampliar o método
fenomenológico para abordar-se a comunidade humana.

7.11 - A intencionalidade interior ao próprio eu, e que por sua vez conduz ao eu de
outrem, é a assim chamada empatia [Einfühlung], e é possível colocá-la em jogo
com aquela mesma pureza fenomenológica e sem que a natureza deixe de ser aí
permanentemente desconsiderada.

=+=
APÊNDICE

Este texto não será apresentado no seminário.

Este texto tem a pretensão de apresentar um esboço simplificado da análise fenomenológica da


temporalidade imanente da consciência, através de uma metáfora que possa dar elementos para uma
compreensão inicial do tema.

Metáforas, em filosofia, são formas de simplificar explicações de sistemas complexos. A temporalidade


imanente da consciência é um conceito altamente complexo de Husserl cuja explanação toma seguidas
conferências e que se mostrou o assunto mais importante da fenomenologia4. O objetivo aqui é buscar
ilustrar em alguma medida aspectos da análise fenomenológica.

Vamos à metáfora. Eu vejo um vídeo. Nesse vídeo aparece uma moça que caminha na beirada de uma
estrada em uma montanha. Na cena seguinte eu vejo um carro que trafega pela estrada da montanha. Na
próxima cena eu vejo uma moça embarcar no carro que trafegava pela estrada da montanha. Recordando
as características da moça eu reconheço que é a mesma moça quem caminhava que embarcou no carro.
Então eu concluo: a moça que caminhava pela estrada da montanha tem as mesmas características daquela
que embarcou no carro que trafegava pela mesma estrada. Logo a moça que caminhava foi quem
embarcou no carro. Essa é a atitude natural.

Na atitude fenomenológica Husserl pretende olhar cada fotograma desse vídeo e compreender como se dá
a unidade do que é visado e a síntese que permite a conclusão final. Cada fotograma do vídeo é uma visada
(noesis), uma consciência-de, um noema cuja idealidade é doada pela consciência. As idealidades moça,
estrada e montanha compõem esse noema com todas suas particularidades. O próximo fotograma, apesar
de distinto em muitas características (ela está andando, a paisagem de fundo se altera), continua ser
composto pelas mesmas idealidades: moça, estrada e montanha. E assim por diante. As seguidas visadas
possuem então uma identidade dada pelos seus noemas moça, estrada, montanha, e passam a compor
uma fase na sequência de visadas na consciência. Aqui é importante notar que Husserl destaca que os
noemas não se entrelaçam na consciência a não ser por síntese ou por sua condição intrínseca da
composição ideal. Ou seja, os fotogramas (isto é uma metáfora, não há fotogramas na consciência
evidentemente, mas tão somente o noema que é a consciência intencional e o sentido da visada) não se
relacionam pela simples sequencia natural das visadas, mas se entrelaçam na constituição de polos
noemáticos. A noção de continuidade se dá pela recordação iterativa – as visadas vão se diluindo conforme
as novas visadas ocorrem. As próximas visadas serão do carro que trafega pela estrada da montanha. Da
mesma forma, a cada fotograma será dada à consciência as idealidades que irão compor cada noema:
carro, estrada, montanha. E as identidades desses noemas comporão um mesmo noema nesta nova fase da
temporalidade imanente. E assim a cena seguinte: os fotogramas da moça que embarca no carro
constituirão as consciências-de, os noemas dessa nova visada. A consciência então se doa a recordação da
primeira fase para buscar as características da moça (suas idealidades) e confrontar com aquelas do noema
da fase final. Esse ato de recordar funda um novo ato, agora como síntese. Eu reconheço a moça que
embarcou como sendo aquela que caminhava.

4
Conforme observou John Barnett Brough: “É verdade que o tempo e a consciência do tempo são parasitários, no
sentido de que são incapazes de existência independente à parte de outras experiências; mas é igualmente verdade, e
de muito maior significado, que eles desempenham um papel fundador, tão essencial quanto universal, em todo tipo e
instância de experiência. Isso certamente ajuda a explicar por que Husserl chamou a consciência do tempo de uma
maravilha e por que pensou que talvez fosse o assunto mais importante da fenomenologia.” (Edmund Husserl Collected
Works – Editor: Rudolf Bernet – Introd. e Trad. John Barnett Brough – Vol IV – pag XIX)

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