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repetitivo em Aristóteles, a forma original Seja como for, afigura-se-nos


que Anaximandro aplicou ao Indefinido os principais atributos dos deuses
homéricos, imortalidade e poder ilimitado (relacionado no seu caso com
uma extensão ilimitada); e parece não ser improvável que ele, efectivamente,
tenha chamado «divino» ao Indefinido, sendo, neste caso, representativo dos
pensadores pré-socráticos em geral.

i Sobretudo porque as duas palavras se aplicam k estrutura do mundo natu­


ral, numa descrição de cunho filosófico, da autoria de Eurípides (fr. 910 Nauck 2) :
«a o observar a estrutura que não envelhece da imortal Natureza», âêavdrov xad-oQ&v
qróaeoiç y.áaaov áytjgto.

(vi) O Indefinido não está em movimento contínuo, nem é uma mistura

(Estes pontos suplementares respeitantes ao Indefinido são debatidos


na «Cosmogonia», pp. 126 e ss.).

O F R A G M E N T O SU B S IS TE N T E D E A N A X IM A N D R O

110 Simplício in Phys. 24, 17 (repetido de 101 a ) ... êxégav nvà (pvaiv
SsiBiqov, rjç ãnavxaç yíVF.aíim. xovç ovçavovç xai xovç êv avxotç xótT/UOVç.
ê£ cbv ôè rj yéveaíç êaxi xolç o fiai, xai xr/v rpDooàv slç xavxa yívm ifm 'xaxà
xò xqeÓ v òiÔávai yò.fj avrà Ôíxrjv xai xúsiv ôAbjÀoiç xfjç áÔtxíaç xaxà xrjv
xov xqóvov xáÇw, noirjxixaixépoiç otixcoç ôvóftaotv avxà XíyOiV.

110 ... uma outra natureza apeiron, de que provêm todos os céus e
mundos neles contidos. E a fonte da geração das coisas que existem é
aquela em que a destruição também se verifica «segundo a necessidade;
pois pagam castigo e retribuição umas às outras, pela sua injustiça, de
acordo com o decreto do Tempo», sendo assim que ele se exprime, em
termos assaz poéticos.

(i) A sua extensão

Simplício está incontestavelmente a fazer uma citação a partir de uma ver­


são da história de Teofrasto sobre a filosofia anterior, e da secção respeitante ao
princípio material, neql âgxfjç. A frase final, em que se aprecia o estilo de
Anaximandro, mostra que a parte imediatamente precedente é uma citação
directa. Assim, xaxà xrjv xov xqóvov x áÇiv, que muitos têm sustentado tra-
lar-se de uma paráfrase teofrástica de xaxà xò xqêojv, deve ser provisoria­
mente aceite como original l . fiiôóvai — áÔixlaç é decerto original, e exem­
plifica bem o estilo poético apontado por Tcofraslo. Também xaxà xò %geáv
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deve provavelmente aceitar-se como da autoria de Anaximandro: %Qeá>v
conservou uma acentuada cor poética (excepto no emprego particular %qe<»v
êari), até que a expressão xò %qsw v se tornou popular no período helenístico
como circunlóquio de morte. E uma emenda em tudo plausível, no fr. 80 de
Heraclito, xa r’ sqiv tcal %qbwv (em vez de %Q&bneva), consiste precisamente em
atribuir uma expressão semelhante à frase em questão. As palavras que a
precedem, ã v — d ç xavxa yívsadm, têm sido objecto de larga discussão.
O emprego dos abstractos yéveaiç e (pêogá, bem documentado no vocabu­
lário peripatético, mas não no pré-socrático (como se conclui de outros
testemunhos existentes), sugere que eles são de Teofrasto, O teor de pensa­
mento afigura-se-nos, também, peripatético: trata-se de uma fiel reexposição
de um dos dogmas básicos de Aristóteles acerca da substância primária dos
monistas físicos, «todas as coisas são destruídas naquilo de que provieram»
(Pis. r 5, 204 b 33; cf. ainda 85 linha 3). Teofrasto era dado à citação de
simples palavras ou frases; por isso, podia ter citado as palavras finais de
uma frase, tendo parafraseado o restante, a fim de salientar a relação com
a frase seguinte que cita por inteiro. Veja-se mais adiante § (V ).

> O próprio Teofrasto empregou certamente uma fraseologia semelhante,


nomeadamente rá$iv n và xai xeóvov mpto/iévov (a respeito de Heraclito). Mas há
uma grande diferença entre isto e a arrojada personificação de rrtv rov xqóvov rá£tv:
sobre esta personificação veja-se, também, § (rv),

(ií) O significado da asserção principal

O contexto mostra que Teofrasto considerava a citação adequada ao


ponto de vista que acabara de atribuir a Anaximandro, ou seja que «todos
os céus e mundos neles contidos» provieram do Indefinido, ef wv ... (o plu­
ral é provavelmente genérico) acrescenta que, uma vez que eles provieram
do Indefinido, a ele hão-de também regressar «segundo a necessidade; pois
pagam castigo e retribuição uns aos outros ...» Pela versão do Pseudoplu-
tarco, 101c, parece que por «os céus e mundos neles contidos» Teofrasto
se referia aos cbieiQoi xóafjioi, aos mundos inumeráveis. Mas há uma dificul­
dade muito grande em interpretar as citadas palavras de Anaximandro como
referentes aos mundos inumeráveis que provêm do Indefinido, e nele são des­
truídos. àXXrjXou; mostra que a retribuição se faz mutuamente entre as partes
que são o sujeito da frase. Poderemos nós acreditar, de facto, que o Indefi­
nido, sendo divino, pratica uma injustiça contra os seus próprios produtos, e
tem de os recompensar? Esta ideia é, seguramente, inaceitável; mas se assim
fosse, então Teofrasto (qualquer que seja o significado por ele atribuído a
‘céus’ e ‘mundos’) enganou-se na aplicação adequada da máxima de Ana­
ximandro !. Tem-se argumentado desde longa data que as coisas que come­
tem injustiças umas contra as outras devem ser iguais, diferentes, mas correla­
tivas; e que é muito possível serem estas as substâncias contrárias que
compõem o mundo diferenciado 2.

t Kahn, op. clt., 34 e s., considera o erro com o sendo precisamente do Pséudo-
plutarco, e não de Teofrasto; mas a sua sugestão (p. 50), de que kó apoç em Teofrasto
se deve referir a algum ‘ arranjo’ mais baixo, da terra ou da atmosfera, é dificilmente
convincente.
2 G , Vlastos, C P 42 (1947), 171 e s., na esteira de Cherniss, procurou
demonstrar com o o equilíbrio básico entre os contrários podia ser reconciliado
com a reabsorção do mundo no Indefinido: quando isso acontece, disse ele, dá-sc
finalmente um ajuste de contas entre os contrários (e não entre os contrários e o
Indefinido). Mas se o princípio de justiça se aplica no mundo presente, não é fácil
ver como podia alguma vez verificar-se uma transformação assim tão drástica, que
afectaria todos os seus constituintes, como a do regresso do mundo ao Indefinido.

(iii) Os contrários

Ver-se-á mais adiante (118, 121) que a produção de aígo que pudesse
ser descrito como «contrários» era para Anaximandro um estádio essencial da
cosmogonia; por isso, é razoável supor que eles desempenhavam um impor­
tante papel no mundo desenvolvido. A acção recíproca dos contrários é
básica em Heraclito, que parece ter corrigido deliberadamente Anaximandro
por meio do paradoxo «discórdia é ju stiça », (fr. 80, 211). É em Anaximandro
que claramente se encontra, pela primeira vez, o conceito de substâncias natu­
rais contrárias (conceito que reaparece em Heraclito, Parménides, Empédocles,
Anaxágoras, e, certamente, nos Pitagóricos desde Alcméon). Anaximandro
foi, sem dúvida, influenciado pela observação das principais mudanças das
estações, nas quais o calor e a seca do Verão parecem ter como adversários o
frio e a chuva do Inverno. O constante intercâmbio entre substâncias contrá­
rias é explicado por Anaximandro numa metáfora legalista derivada da socie­
dade humana: a prevalência de uma substância à custa do seu contrário é
«injustiça», e a reacção verifica-se através da aplicação do castigo, com a res­
tauração da igualdade — de algo mais que igualdade, porquanto o prevarica­
dor fica, também, privado de parte da sua substância original. Esta é dada à
vitima, além daquilo que lhe pertencia, e por sua vez conduz (poderemos
nós inferir) ao xóqqç, ao excesso, por parte da primeira vítima, que passa a
cometer uma injustiça contra o antigo agressor. Assim, tanto a continui­
dade como a estabilidade da mudança natural eram, para Anaximandro, moti­
vadas por meio desta metáfora antropomórfica. Os principais contrários da
cosmogonia eram a substância quente e a substância fria — a chama ou o fogo
c ii névoa ou o ar. Estas, a que estão associadas a secura e a humidade, são
Inmbém os principais contrários cosmológicos, mais particularmente implica­
do* nu» mudanças cm Inrgii csculti do mundo natural. Essas substâncias
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foram, provavelmente, isoladas por Heraclito (fr. 126) antes mesmo de terem
sido elevadas, por Empédocles, à forma de elementos-padrão irredutíveis.
Impõe-se-nos, evidentemente, usar de prudência no que respeita aos contrá­
rios de Anaximandro: é possível, por exemplo, que os Peripatéticos tenham
usado as suas próprias formulações mais abstractas, calor e frio, etc., em lugar
das expressões mais concretas empregadas pelo próprio Anaximandro. Para
ele, o mundo pode ter sido formado a partir de substâncias que, apesar de
possuírem, cada uma delas, tendências individuais contrárias às de algumas
das outras, não precisam de ter sido formalmente descritas como contrárias,
isto é, por exemplo, como duro e mole; mas simplesmente como fogo, vento,
ferro, água, homem, mulher e assim por diante.

(iv) « O decreto do Tem po»

A frase terminal da citação, «de acordo com o decreto do Tempo»,


amplifica a metáfora da injustiça. Que espécie de decreto promulga o Tempo?
A palavra rá ç iç sugere a sentença de castigo proferida pelo juiz ou, mais
propriamente, a imposição de um tributo como nas listas de tributos ate­
nienses. Nestes casos, o que é ordenado ou decretado é o montante do cas­
tigo ou do pagamento; dificilmente pode ser esta a principal finalidade do
decreto do Tempo. O Tempo deve, provavelmente, regulamentar o prazo
para o pagamento; o montante seria fixado, como indemnização total, acres­
cida de uma multa proporcional. A ideia de um prazo é adequada: a injustiça
do Verão tem de ser reparada dentro do período, aproximadamente igual,
do Inverno, a da noite durante o período do dia, e assim por diante. N ão
é possível que se tivesse em mira nenhum período uniforme: o Tempo decreta
de acordo com cada caso particular. Que a ideia adicional de inevitabilidade
está aqui implícita na extraordinária personificação do Tempo é o que pode
ser provado pela semelhança flagrante com « o julgamento presidido pelo
Tempo» em Sólon, aproximadamente uma geração antes de Anaximandro:

111 Sólon fr. 24 Diehl, versos 1-7

êyà> ôè xõ>v fièv oiívexa Çvvrjyayov


Ôfjfiov, x í roúxcov TiQÍv xv%éiv tTtavaá/j.r/v;
av/ifiagrvgoírj xavx’ ãv èv ôíxr) X góvov
/jrjxrjQ ixsyútxr) òai/ióvcov ’ OXvfmwav
ãgiaxa, r f j /uéXaiva, xrjç êyá n o te
õgovç ãvelXov 7toX}.a%f} nemjyóxaç-
7tgóa&cv Ôè ÔovXevoma, vvv êXevêéga,

111 Porque desisti eu, antes de alcançar os fins pelos quais reuni o povo?
A mãe suprema das divindades olímpicas podia ser a minha melhor tes-
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temunha no tribunal do Tempo — a Terra negra, cujos marcos, enterra­
dos por toda a parte, eu outrora arranquei; antes, era ela escrava, agora
é livre.

Aqui a Terra justifica a reivindicação de Sóion, porque com o decorrer


do tempo ela alcançou a liberdade; é isto o que significa o julgamento do
Tempo. Nenhum prazo prefixo se tem aqui em vista. Além disso, em outros
passós de Sólon é a inevitabilidade da retribuição que é constantemente
sublinhada; assim, em Anaximandro, podemos nós concluir, a injustiça deve
ser inevitavelmente punida, mais cedo ou mais tarde — mas aqui os perío­
dos, visto serem os das grandes transformações sazonais, bem como outros
menos importantes, devem ser fiscalizados e decretados por forma adequada
a cada caso.

(v) O original da paráfrase de Teofrasto

Sugerimos a pp. 118 e s. que a afirmação (literal), «a fonte da geração


das coisas que existem é aquela em que a destruição também se verifica»
pode ser uma paráfrase de Teofrasto de algo existente em Anaximandro, que
Teofrasto pensou poder ser refundido na fórmula aristotélica comum. Se
esta afirmação, em Anaximandro, precedia imediatamente a sua máxima
acerca da retribuição dos contrários (conforme sugere, talvez, a frase de tran­
sição xarà rò %o£<hv), então ela também estava provavelmente relacionada
com o comportamento dos contrários no mundo diferenciado. Um a opinião
que, a meu ver, Anaximandro possivelmente exprimiu neste contexto, e
que podia ter iludido Teofrasto da maneira indicada, era a de que substâncias
contrárias pagam uma indemnização ao seu próprio contrário e a nenhum
ou tro; por exemplo, a substância quente, à fria, e não à pesada ou à dura.
É esta uma hipótese necessária à teoria de Anaximandro sobre a estabili­
dade cósmica, hipótese óbvia para nós, mas não tão óbvia no seu tempo,
porquanto Heraclito também teve de a realçar no interesse dos fins especiais
que perseguiu. O axioma pode ter sido exposto em termos tão gerais, e
provavelmente num contexto tão incompleto, que Teofrasto pôde enganar-se
quanto à sua adequada referência.

O S M U N D O S IN U M E R Á V E IS

(i) Sucessivos, e não coexistentes

Uma multiplicidade de mundos de determinada espécie foram atribuí­


do» a Anaximandro por Teofrasto: «... uma outra substância de grandeza
enpncinl inliniiu, dc que provêm todos os céus c mundos neles contidos»

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