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TOMAS DE
AQUINO
UM PERFIL HISTÓRICO-FILOSÓFICO
Tradução
Orlando Soares Moreira
Edições Loyola
Título original:
Tommaso d'Aquino- Un profilo stonco-fdosofrco
© 2012 by Carecei editore S.p.A., Roma
Corso Vittorio Emanuele 11, 229 - 00186 - Roma
ISBN 978-88-430-6534-9
JS E PS
Porro, Pasquale
Tomás de Aquino : um perfil histónco-filosófico I Pasquale Porre ,
tradução de Orlando Soares Moreira. -- São Paulo · Edições Loyola. 1
2014.
14-02495 CDD-189.4
ISBN 978-85-15-04119-0
© EDIÇOES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2014
SUMÁRIO
Proên1io ............................................................................................................................. 9
Bibliografia........................................................................................................................ 353
Cronologia......................................................................................................................... 379
Índice dos n1anuscritos citados ...................................................................................... 385
Indice onomástico............................................................................................................ 387
fazem parte dessa classe, Tomás - com base também no qt.l~ já t<~.i ~ugerido ~1 or _Al~erto
Magno_ propõe 0 modelo de uma demonstração ex supposilJOIIejllllS (que ele desemol~e
e usa no Come 11 tário à Física): se é impossível estabelecer um nexo absolutamente necessa-
rio entre causa e efeito, deve-se partir do próprio efeito, que representa o tlm de um proces-
so natural, e julgar que, se ele se verifica (ou quando se verifica), então é possív~l subir, for
via demonstrativa (até sem necessidade absoluta), às causas que o tornam poss1vel. Enhm,
tem-se neste caso não uma necessidade a priori, mas uma necessidade c1 posteriori, que se
extrai do fim e da forma. O exemplo de Tomás diz respeito à geração de uma oliveira: de
fato, não é necessário que uma oliveira germine, pois a semente poderia se perder ou ser
impedida na sua ação por outras causas; mas se a oliveira germina então é necessário que
se dê a causa, ou seja, a semente. Essa necessidade, embora inferior à absoluta, é todavia
suficiente para obter proposições científicas válidas no mundo sublunar (precisamente no
mundo dos eventos ut frequenter)2 8• A propósito dos princípios por si conhecidos, Tomás
segue a distinção proposta por Boécio no De (h)ebdomadibus. Tais princípios são as causas
de que se obtém a conclusão e são imediatos porque não podem ser, por sua vez, deduzidos
de outros princípios. O seu traço característico é dado pelo fato de que o predicado está
incluído na razão ou definição do sujeito. Todavia, algumas proposições por si conhecidas
são formadas por termos verdadeiramente conhecidos de todos, como o princípio de iden-
tidade ou o axioma segundo o qual o todo é maior que a parte. Outras proposições por si
conhecidas são formadas por termos que são conhecidos somente pelos especialistas de
uma disciplina; um exemplo de proposições desse tipo é o axioma "todos os ângulos retos
são iguais", que é imediato e por si conhecido porque o predicado está incluído na detlniçào
do sujeito, mas não é conhecido de todos porque nem todos conhecem imediatamente o
significado de ângulo reto. Tomás parece reservar a denominação dignitates para as pro-
posições do primeiro tipo, positiones para as válidas para os especialistas. A abordagem to-
masiana, como foi observado, reflete assim a penetração do modelo euclidiano no coração
mesmo da epistemologia aristotélica. Outros desenvolvimentos originais do comentário
tomasiano referem-se à interpretação do segundo modo de pregação per se (aquele em que
o sujeito é causa do predicado e, mais precisamente, causa material, como Tomás deixa cla-
ro) e à aplicação a esse último da distinção entre pregação abstrata e concreta: no primeiro
caso, o acidente é definido em geral, sem referência a um substrato determinado, e o sujeito
aparece in oblíquo, ou seja, num caso indireto (o achatamento é a curvatura do nariz); no
segundo, o sujeito aparece na definição em caso reto e quase desenvolve a função de gênero
(achatado é o nariz curvo).
28. Cf. A. Corbini, La teoria del/a scienza nel XIII seco/o. I commenti agli Analitici sccondi, Firenze, Sismel!
Edizioni del Galluzzo, 2006, espec. 42-47 ("Unione accadcmica nazionale. Testi e studi", 20); para os outros
temas que mencionamos a seguir, cf. também 74-79 e 106-lOR.
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iOI!.:,\ IH ;,UUIIIU UI.\ PfRflliii\IORI(O 1110\0flfO
decurso da sua meticulosa exposição 29 • Podemos, porém, nos deter em dois pontos: o modo
como Tomás interpreta a estrutura do texto aristotélico e a nova discussão, no prólogo, em
torno do sujeito mesmo da metafísica como ciência. No que diz respeito ao primeiro ponto,
é interessante observar - como foi muito oportunamente demonstrado - que Tomás in-
terpreta o tercci ro livro (Beta) como agenda ou plano de trabalho de toda a !vletafísica aris-
totélica30. Essa leitura se apoia evidentemente num pressuposto fundamental, ou seja, que a
obra aristotélica como a conhecemos possa ser considerada um texto fortemente unitário, a
despeito não somente das perplexidades dos intérpretes contemporàneos, mas também das
dúvidas levantadas por alguns dos comentaristas antigos tardios ou árabes sobre a copre-
sença nela de instúncias não facilmente conciliáveis. Com efeito, para Tomás a Metafísica
apresenta uma estrutura fundamentalmente bipartida (I- VI e VII-XII), mas ordenada-e ho-
mogênea; os livros do primeiro subgrupo devem ser considerados propedêuticos, ao passo
que os do segundo respeitam a divisão clássica da epistemologia aristotélica, ocupando-se
em seguida do sujeito da ciência, das suas propriedades e dos princípios (subiectum, passio-
nes subiecti, principia subiecti): os livros VII-IX (Zeta, Eta, Teta) têm a ver com o subiectum;
o livro X (Iota), com as passio11es ou propriedades (um e muitos etc.); os livros XI-XII (Capa
e Lambda, levando em conta que, como já lembrado, Tomás não comentou os últimos dois
livros), com os principia. A chave dessa junção, para Tomás, está exposta no livro Beta
- o livro das "aporias" -, que apresenta, por sua vez, uma subdivisão interna: o primeiro
capítulo limita-se a apresentar genericamente as próprias aporias, que são depois explicita-
mente formuladas nos restantes cinco capítulos. Não é, portanto, por acaso que Tomás, ao
comentar os cap. 2-6 do Beta, tenha a preocupação de precisar os lugares em que as várias
aporias são depois efetivamente discutidas e resolvidas dentro da Metafísica - locais que
se encontram quase todos na segunda das partes antes distintas (livros VII-XII, ou Zeta-
Lambda). Somente o quarto livro (Gama) parece pôr algum problema a propósito, porque,
embora pertencendo à primeira parte (a "propedêutica"), já oferece a solução ~e ~lgumas
aporias: Tomás trata do problema explicando que esse livro, junto com o VI (EpsJlon), se
ocupa somente das aporias preliminares que dizem respeito ainda ao modo de proceder da
ciência e não aos conteúdos dela, que são abordados no bloco VII-XII. Desse modo, como
sugerido ainda por Galluzzo, a Metafísica aristotélica parece assumir no seu todo a fo~ma
de uma verdadeira quaestio escolástica, cujos argumentos pro e contra são postos no hvro
29. Cf. a propósito J. C. DoiG, Aqui11as 011 Metaplzysics. A Historico-Doctrinal Study of the Commentary
on the Metaphysics, Thc Hague, Martinus Nijhoft~ 1972; J. F. WIPPEL, Thomas Aquinas' Commentaq: 011
Aristotle's Mctaphysics, in J. J. E. GRACIA, J. Yu (Ed.), Uses mzci Abuses oftlzc Classics: Western Interpretatwns
·t · ,7 164 · lo Ji\tktaplz)'~ical Themes
o f G ree I< Pl11 osophy, Aldershot/Burlmgton, Ashgate, 2004, b - ; agor.l em ·• - .. . . .
in Tlzomas Aqui11as li, Washington, The Catholic University of America Press, 2007, 240-?~1 ( Stud.Jes 1_n
Philosophy and the History ofPhilosophy", 47). Para uma apresentação sistemática (mas suhCJentemente s?-
bria), dos principais temas metafísicos em toda a produção tomasiana, cf. J. J. KocKELl\!ANS, Tlze Mctaplzyszcs
of Aqui11as. A Systematic Presentation, Leuven, Bibliotheek van de Faculteit Godgcleerdhcid, 2001.
30. Cf. G. GALLuzzo, Aquinas 011 the Structure of Aristotk's Metaphysics, Doczmze11ti e Studi sulla Tmdi-
zione Filosofica Mediemlc, 15 (2004) 353-386; lo., Aquinas's lnterpretation of Metaphysics Book Beta, QIILit'S-
tio, 5 (2005) 413-427. Galluzzo ressalta, aliás, dt• modo muito oportuno, que a leitura da Mct,~flsica aristotélica
por parte de Tomás, contrariamente ao que se continua com frequência a defender, não está nada orientada
para o livro Lambda.
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h IEuliii!J.\ Rll'Eiill \ [M p,\RI\ 1I /o8 I /.'!i
Beta, ao passo que as relativas soluções se encontram nos livros Gama e Zeta-Lambda. Es~e
tipo de enfoque evidencia a atitude verdadeiramente técnica e disciplinar com ~1ue To~1as
enfocao próprio comentário da obra aristotélica, independentemente das questocs de epo-
ca que muitas vezes prevaleceram sobre sua abordagem.
O problema do sujeito da metafísica, porém, é discutido por Tomús sobretudo no
prólogo do comentário, que retoma e, ao mesmo tempo, integra o que jú fora exposto no
Comentário ao De Trinitate de Boécio. Todas as ciências e artes estão ordenadas a um único
fim, no qual consiste a perfeição do homem, ou seja, a sua felicidade (beatitudo): é, por-
tanto, necessário, como acontece em todos os conjuntos múltiplos orientados para uma só
coisa, que uma dessas ciências e artes governe e dirija as outras: e essa ciência é a que pode
precisamente reivindicar para si o nome de sabedoria se, como afirma Aristóteles, é pró-
prio do sábio ordenar ou dirigir (sapientis est ordinare). O exemplo aristotélico que Tomás
emprega a tal propósito é o da natural divisão em senhores e escravos: como os que são
particularmente dotados de capacidade intelectual sujeitam a si os que, porém, são inte-
lectualmente fracos, assim a ciência que é maximamente intelectual deve ser naturalmente
reguladora das outras. Como identificar, então, essa ciência maximamente intelectual? Se
as ciências se dividem com base nos seus objetos, maximamente intelectual não poderá ser
senão a ciência que se ocupa do que é maximamente inteligível. Mas esse último âmbito
pode s~r considerado de três pontos de vista: em primeiro lugar, a partir da ordem do
conh~Ctmento; nes~e sentido, maximamente inteligíveis são as causas, mediante cujo co-
nhecimento se obtem a certeza do que se segue. Portanto, maximamente intelectual nesse
sentido será a ciência que se ocupa das causas.
Em se~undo lugar, maximamente inteligível é o que se afasta do modo do conheci-
m~nto s~nsivel: .ora, os se~síveis são sempre particulares, ao passo que os inteligíveis são
U~I.versais ..Maximamente mtelectual nesse sentido será, portanto, o que se ocupa dos prin-
cipiOs maximament~ universais, como 0 ente e tudo 0 que a ele se vincula imediatamente,
como o um e os mmtos, a potência e o ato etc.
. . Em t_erc_eiro lugar, maxim~mente inteligível é 0 que é maximamente separado da ma-
tena. Tal : nao so~e~t: o que e abstraído da matéria assinalada, ou seja, pela matéria que
faz a funçao de pnnciplo de individuação, como no caso da física, mas em geral por toda
a matéria sensível, e não somente segundo a consideração, como no caso da matemática,
mas segundo o ser. Absolutamente separados da matéria segundo o ser são Deus e as outras
substâncias separadas (as inteligências). Maximamente intelectual será, portanto, a ciência
que se ocupa de tal âmbito.
Essa tríplice caracterização não indica, todavia, três ciências diferentes, cada qual com
seu próprio sujeito distinto (respectivamente as causas, o ente e as suas propriedades, Deus
e as outras substâncias separadas), mas uma só e idêntica ciência, pois as substâncias se-
paradas, como prossegue Tomás, coincidem com as causas universais e primeiras do ser; e
como compete a uma só e mesma ciência considerar as causas próprias de um gênero qual-
quer e do próprio gênero é preciso que uma só ciência se ocupe das substâncias separadas
e do ente comum, de que tais substâncias são causas comuns e universais.
Todavia, uma vez que - como o próprio Aristóteles prescreve nos Segwuios mwlí-
ticos - é necessário que toda ciência tenha um só sujeito determinado, dever-se-á dizer,
com maior precisão, que o sujeito dessa ciência é somente o ens co1t11mme: sujeito em toda
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fOf.\l,\ OI :,OI!IIIO UI.\ Pfiifll tlllfORf[O ftiOIOflfO
ciência, com efeito, é aquilo de que se procuram as causas e as propriedades, e não as causas
mesmas, que representam, antes, o fim a que a ciência tende. Repropõe-se a essa altura a
dificuldade que jú encontramos no Come11târio ao De Tri11itate: como se concilia a escolha
do ens commzme como sujeito da metafísica com o outro postulado aristotélico segundo
o qual a t11osot1a primeira se ocupa do que é separado e, portanto, como parece, imate-
rial? Tomás repropôe o mesmo modelo tomado de Avicena: imaterial não é apenas o que
nunca se encontra na matéria, mas também o que pode se dar igualmente sem matéria,
como o ens com1mme. Também os diversos nomes da própria ciência são explicados com
base em Avicena: ela é chamada de "ciência divina" porque se ocupa das substâncias sepa-
radas; "metafísica" porque se ocupa daquilo a que se chega depois das realidades físicas no
processo de resolução (ou seja, na passagem do que é particular ao que é mais universal);
"filosofia primeira" porque se ocupa das causas primeiras do ente.
Como é fácil constatar, esse prólogo tem alguns elementos em comum com a aborda-
gem desenvolvida, com maior sutileza, no Comelltârio ao De Trinitate, como a explicação
relativa às diferentes denominações e a distinção entre dois diferentes tipos de imaterialida-
de. Mas há também algumas diferenças, talvez não propriamente irrelevantes: a distinção
entre abstração e separação é apenas acenada (e em continuação do comentário é muitas
vezes ignorada), e não é de modo algum referida às duas diferentes operações do intelecto;
embora alguns temas fundamentais avicenianos estejam ainda bem presentes, é realmente
abandonado o ponto decisivo, ou seja, a passagem da análise "transcendental" do conceito
de ente à relativa ao ente divino - operação possível em Avicena porque o ente, em geral,
inclui o divino (e, portanto, o próprio divino é uma das propriedades, porque, sem dúvi-
da, a mais excelente, do próprio ente), ao passo que Tomás entende explicitamente o ens
commune somente como ente criado. O prólogo parece, assim, marcar um passo atrás com
relação ao comentário: o sofisticado trabalho aviceniano para levar à unidade as indicações
esparsas de Aristóteles sobre o sujeito da filosofia primeira parece dar passagem a uma
interpretação mais tradicional. Se há um texto de Tomás que se presta à acusação heideg-
geriana segundo a qual a metafísica ocidental se constituiu essencialmente como ontoteo-
logia (admitido que se trate de uma acusação, evidentemente) é precisamente o prólogo do
Comentário à Metafísica: a metafísica, como ela é aqui apresentada, é ontoteologia porque
se ocupa ao mesmo tempo do que é universal e do que é primeiro, estabelecendo o nexo
entre os dois âmbitos na ligação de causalidade entre o segundo e o primeiro (com. boa
paz de quem minimiza esse nexo para procurar subtrair Tomás ao anátema heidegger~a~o
em relação à ontoteologia)ll. Enfim, não há no prólogo, bem como em todo o comentano,
nenhuma referência à duplicidade da ciência divina ou à exigência de fundamentar um
31. C f. sobretudo J.-L. MARJON, Saint Thomas d'Aquin et l'onto-théo-logie. Revue Tltomiste,. 9~, "Sain~
Thomas et l'onto-théologie. Actes du colloque tenu à l'lnstitut catholique de Toulouse les 3 et 4 JUII1 1994
( 1995) 31-66, que é também uma espécie de palinódia - ou, para usar o próprio termo escolhido pelo autor,
de retractatio - do que ele próprio tinha escrito antes (sobretudo em Dio sc11za csscrc, Milano, Jaca Book.
1992 led. or.: Dieu smzs letre, Paris, Presses Universitaires de France, 1982]). Para algumas observações a
propósito (e sobre a suposta utilidade de fazer referência no medievalismo às "acusações" heideggerianas
em relação à ontotcologia), cf. P. PoRno, Heidegger, la filosot1a medievale, la medicvistica contemporanea.
Quaestio, I (2001) 431-461 (C. EsPOSITo, P. PoRRo la cura diJ, Hcidegger e i mcdicvali); lo .• Metafisica e
teologia nella divisione delle scienzc spcculative dei Super Boetium De Trinitate, in Tol\IMASO D'AQUINO,
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,\ ~EGUIIDA RfGfii(IA EM PARI~ 11168 12/2)
espaço epistemologicamente adequado para a tlzeologia 110sln~ ao lado e acima ~la teologia
dos filósofos. Essa última essência poderia ser explicada, porem, com base no tato de que
a intenção principal de Tomás é aqui explicar a iVIetafísica de Aristótele~ e não ampliar o
discurso até incluir o problema da relação entre essa ciência divina e a lundamentada na
revelação. Todavia, deve-se dizer que o comentário de Tomás deve ser ainda lido co.m_ex-
trema cautela, até estar finalmente disponível a edição crítica Leo11i11a: como essa ultima
promete corrigir as edições atualmente disponíveis de modo substancial, pode-se m~ito
bem dizer que ela representa o desenvolvimento editorial mais desejado por todos os leito-
res "filosóficos" de Tomás.
Commellti a Boezio (Super Boetium De Tri11itate. Expositio libri Boetii De ebdomadilms), introd., trad., notas
c apênd. P. Porra, Milano, Bompiani, 2007, 467-526.
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101.\A\ DI /,QUIIiO UM PIRIIIIIISIORICO fiiOSOfi(O
causas por si em relação às acidentais, mas depois negou a absoluta redução ou atribuição
das segundas às primeiras: se tal redução fosse possível, o determinismo tkaria de fato
-para Aristóteles - incontornável. Tanto o destino como a providência implicam, com
efeito, que tudo aconteça segundo certa ordem, mas o que segue uma ordem não é por isso
mesmo acidental, c portanto ou é sempre ou acontece na maior parte dos casos (ill maiori
parte). O determinismo com que Aristóteles se confronta tanto no cap. 9 do De interpreta-
tione quanto no cap. 3 do livro VI da A·Jett~física baseia-se, com efeito, no fato de que se as
causas de alguma coisa são postas no passado e no presente, e se exclui a possibilidade de
causas acidentais, já está predeterminado o que acontecerá no futuro - como a morte do
desgraçado Nicostrato (ou algum outro), que come alimentos picantes e sai de casa para
aplacar a sede. Mas no caso do destino e da providência as causas essenciais já estão estabe-
lecidas no passado e no presente: trata-se, no primeiro caso, dos corpos celestes, cuja ação
é imutável; no segundo, da providência eterna de Deus.
O modo como Tomás procura evitar o argumento antideterminista de Aristóteles ba-
seia-se no ordenamento hierárquico das causas. Quanto mais as causas são elevadas, tanto
mais efeitos abrangem sob sua causalidade: a ordem que subsiste entre os efeitos em depen-
dência de uma causa é coextensiva à causalidade dessa mesma causa. Isso significa que os
efeitos que dependem de causas inferiores particulares não têm nenhuma ordem entre si,
ainda que às vezes acidentalmente coincidam; mas esses mesmos efeitos, referidos a uma
causa superior comum, podem revelar uma forma de ordenamento. Assim, é acidental que
uma planta floresça ao mesmo tempo que outra, considerando separadamente as causas
da virtus de cada uma das plantas; mas a coincidência não se revela acidental se a flora-
ção simultânea é posta em relação com a virtus dos corpos celestes, que regula os ciclos
naturais das plantas. Tomás introduz aqui a célebre doutrina do triplex gradus causarum,
inspirada, aliás, nas mesmas regiões ontológicas em que se subdivide o cosmo aristotélico:
há uma causa incorruptível imutável (Deus); há algumas causas incorruptíveis e mutáveis
(os corpos celestes); e há, enfim, as causas corruptíveis e mutáveis (as substâncias gerais
e corruptíveis do mundo sublunar). Essas últimas causas, como particulares, são sempre
unívocas, ou seja, produzem sempre os próprios efeitos segundo cada uma das espécies de-
terminadas: o fogo gera sempre fogo, uma planta gera sempre uma planta do mesmo tipo e
um homem gera sempre outro homem.
As causas intermédias ou de segundo grau são em parte universais e em parte parti-
culares: particulares porque se estendem somente ao que é produzido por meio do movi-
mento; universais porque não dizem respeito a uma só espécie de realidades móveis, mas
a tudo o que pode ser alterado, gerado e corrompido. Tudo o que se move depende, com
efeito, do primeiro movimento.
A causa do primeiro grau é, porém, somente universal, porque o seu efeito próprio é 0
ser: portanto, tudo o que é faz parte da causalidade e da ordem da causa primeira.
Considerando somente as causas próximas e particulares, é inegável que muitas coisas
acontecem acidentalmente. Isso depende de três diferentes fatores: a) do concurso ou inter-
ferência entre mais causas; b) da fraqueza do agente, que não é capaz, por isso, de realizar o
fim que se propôs; c) da ausência de uma idônea disposição por parte da matéria.
Essa contingência, se se sobe de grau, reduz-se em grande parte, pois muitas coisas
que parecem acidentais começam a se revelar não mais como tais; o concurso de muitas
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AS!GUt/0,\ R!GLIIUA ft.l PARI\ il1bB I7121
causas acidentais pode, com efeito, ter uma causa celeste determinada. Além disso, nesse
nível também a fraqueza do agente é um fator que pode ser substancialmente transcurado.
Mas, como os corpos celestes agem por meio do movimento, têm sempre necessidade da
matéria e dependem da sua disposição. Por mais que a acidentalidade se reduza, não desa-
parece totalmente, portanto. Até aqui Aristóteles tem razão: se o efeito se produz na maior
parte dos casos (ut in pluribus) e não semper, é óbvio que há um resíduo acidental (in pau-
cioribus). Outro fundamental fator de indeterminação reside no fato de que alguns entes
sublunares, como as almas racionais, não estão submetidos diretamente à influência dos
corpos celestes, embora, como sabemos, as mutações corpóreas induzidas pela influência
dos corpos celestes se reflitam indiretamente sobre a alma e possam incliná-la a agir de um
determinado modo. Para além dessa inclinação, o fato é, todavia, que as ações deliberadas
do homem não podem ser referidas diretamente à ação dos corpos celestes. Para Tomás,
isso é suficiente para rejeitar, em harmonia com Aristóteles, o fatalismo, entendido como
determinismo astral (como já vimos no Comentário ao De Interpretatio11e). Mas subindo
mais de grau, não se pode encontrar nada que fuja do ordenamento divino. Nem sequer se
dá aqui o limite da matéria, porque também a matéria recebe 0 seu ser da causa primeira.
Com relação à causa primeira, portanto, se tudo está ordenado, nada é acidental - o que
equivale a dizer que tudo está submetido à providência, como, aliás, Tomás já havia ampla-
mente explicado na Summa contra gentiles.
As~in:, se_ o destino, como acabamos de ver, não suprime nem anula a acidentalidade
ou c?~tmgenCia por motivo da margem de indeterminação assegurada, de uma parte, pela
mate~Ia ~· de outr_a, pelo agir livre dos entes racionais, 0 caso da providência, reconhece
T~mas, e bem mais_ complicado (maiorem habet difficultatem). A providência não apenas
n~o se engana em SI, mas nem sequer encontra alguma limitação intrínseca ou extrínseca,
difere_ntemente dos corp~s celestes. Enfim, é impossível que alguma coisa seja disposta
(~ro~zsum) por Deus e nao_ se verifique, e isso parece implicar que todo efeito da provi-
denCia aconteça por necessidade. Ora, para Tomás, de uma causa não provém somente o
efeito, m~s provêm também todos os seus acidentes; por exemplo, a natureza não se limita
a produzir o ho~em, mas o homem com a propriedade específica de ser capaz de rir. Se,
portanto, Deus e causa do ente enquanto ente, é causa também dos acidentes que são ine-
rentes ao ente enquanto ente, entre os quais figuram as modalidades, como necessidade e
contingência. Cabe à providência, portanto, não somente produzir um ente, mas lhe atri-
buir contingência ou necessidade, e é o que a providência obtém ao predispor as causas in-
termediárias, das quais se seguirá certo efeito de modo necessário ou contingente.
É verdade, portanto, que todo efeito submetido à providência divina possui uma ne-
cessidade, mas sempre na forma de uma necessidade hipotética: se foi disposto por Deus,
então acontecerá (si aliquid est a Deo provisum, hoc erit). A mesma coisa, todavia, em re-
lação às causas próximas é contingente, e isso para Tomás é suficiente para afirmar que
nem todo efeito é necessário, mas alguns são necessários e alguns contingentes secundum
analogiam sua e causae (os efeitos são semelhantes às causas próximas, e não às remotas,
que jamais podem igualar). .
Enfim, não temos de nos limitar a julgar que Deus tenha disposto que uma cmsa
existisse: Deus dispôs também o fato de ela ser de modo necessário ou contingente. A posi-
ção da providência não implica, portanto, como suposto por Aristóteles, uma necessidade
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TOMAS Of AOUIIIO UM P~RFILIIIIIORI(O fiLOIOfi(O
absoluta de cada um dos efeitos, mas uma necessidade em sentido composto: é necessário
que o efeito seja ou de modo contingente ou de modo necessário. Todavia, indo bem mais
a~ém de Aristóteles, Tomús t~1la expressamente a propósito de /ex 11ecessitatis vel colltillgen-
twe ou ordo IH'Ccssitatis wl contingclltiac, portanto de uma /ex necessaria, pelo menos com
relação ao sentido composto, que afeta todos os efeitos, também os contingentes.
Há, obviamente, mais coisas que poderiam ser observadas neste nível: limitamo-nos
a destacar duas.
Em primeiro lugar, poder-se-ia observar que, se Tomás, ao defender a liberdade do
agir divino, rompe certamente com o necessitarismo da tradição greco-árabe (como vimos
já a partir do De veritate), é verdade também que ele desfaz a estratégia antideterminista de
Aristóteles a ponto de resultar, pelo menos desse ponto de vista, mais determinista do que
o próprio Aristóteles. Por mais que seja surpreendente, isso é o que a lect. 3 do Comentário
ao VI livro da Metc~(ísica atesta explicitamente. Tomás propõe aqui, com a doutrina do tri-
plex gradus causanmz, um modelo certamente sotlsticado, que procura manter juntas a ne-
cessidade da providência e a contingência das coisas, mas que se mantém num equilíbrio
muito delicado, fruto de uma dupla derivação teórica. A primeira coincide com a extensão
do modelo boeciano da necessidade hipotética do âmbito da presciência ao da providên-
cia. A diferença é facilmente perceptível: para Boécio, o fato de Deus conhecer com ante-
cipação certo evento não influencia o estatuto modal daquele evento; Tomás não se limita,
porém, a dizer que Deus conhece com antecipação um evento, mas que o predispõe, e o
predispõe exatamente no seu mesmo estatuto modal. A segunda derivação é o reemprego
da distinção entre sentido composto e sentido dividido que Aristóteles tinha utilizado e~n
chave antideterminista no cap. 9 do Sobre a hzterpretação: o fato de amanhã haver ou nao
haver uma batalha naval é verdade em sentido composto, mas em sentido dividido nenhu-
ma das duas alternativas possui hoje um valor de verdade determinado. Tomás, p_arece,
porém, sugerir um uso, por assim dizer, metamodal do próprio princípio: é necessano q~e
todo efeito seja ou necessário ou contingente. Isso não implica, evidentemente, a necessi-
dade de todo efeito, mas implica a necessidade de que tudo tenha sido disposto de modo
determinado pela providência, segundo a já citada /ex necessitatis vel contingentiae.
Em segundo lugar, é talvez o caso de ressaltar a razão que Tomás invoca em geral
para justitlcar o fato de que no universo se deem graus diferentes de necessidade e de
contingência: a diversidade dos graus contribui de per si para a perfeição do mundo. Esse
postulado, em Tomás, tem tal tendência a se difundir que é utilizado também no âmbito da
questão extremamente delicada da causa da predestinação: voltaremos a isso no capítulo
6 ("Um esclarecimento sobre as causas da predestinação e a ordem moral do mundo").
Podemos por ora nos contentar com registrar que em relação à providência divina a mar-
gem de indeterminação do universo, para Tomás, tende a zero: bzvenit11r igitur w-ziuscuizts-
que effectus secundum quod est s11b ordine providenticze 1zecessitatem habere (In Metaplz. VI,
lect. 3, n. 1220).
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AllGUIIDA R!Glfl(f,\ IM P~RI\ il!~B 1!111