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ORGANIZADORES

Juan Oliver e Luiz Coelho

A encarnação

da liturgia
A ENCARNAÇÃO
DA LITURGIA
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Internacional (CC BY-NC-SA 4.0).

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A ENCARNAÇÃO
DA LITURGIA

Organização
Juan Oliver & Luiz Coelho

Salvador/BA
2021
Direitos de publicação e comercialização da
Editora Soffia10

Revisão
Aline Ferreira Antunes Antunes

Projeto gráfico e diagramação


Rafael Tarcísio Forneck

Capa
Tatiana Ribeiro

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua – CRB-8/7057
E46 A encarnação da liturgia [livro eletrônico] / organizado
por Juan Oliver & Luiz Coelho. – Salvador (BA) : Soffia10
Editora, 2021.
1,1 Mb ; PDF
144 p.

Bibliografia
ISBN: 978-65-993160-9-8 (e-book)

1. Teologia Anglicana - América Latina 2. Liturgia I. Oli-


ver, Juan II. Coelho, Luiz

CDD 264
21-3966
Índices para catálogo sistemático:
1. Teologia Anglicana
SUMÁRIO

Agradecimento............................................................................ 9

Apresentação.............................................................................. 11

Introdução.................................................................................. 13

1ª CONFERÊNCIA: 8 DE SETEMBRO DE 2020.............................. 15

“A liturgia e as culturas latino-americanas” (David Limo)............. 16

Liturgia anglicana e culturas latino-americanas (Juan M. C. Oliver). 20


I. Igreja e a cultura............................................................................ 21
II. O conjunto de sinais..................................................................... 24
III. A inculturação da liturgia............................................................. 27
Conclusão.......................................................................................... 29
Referências........................................................................................ 29

Resposta (Orlando Espín)................................................................ 31

Resposta: Liturgia e inculturação na América Latina: uma visão


da igreja luterana no Brasil (Júlio Cézar Adam).............................. 35
Considerações Iniciais....................................................................... 35
1. A liturgia é sempre o resultado de um processo de inculturação. 39

A encarnação da liturgia 5
2. Por que inculturar a liturgia na cultura da América Latina?.......... 40
3. Que cultura inculturar?................................................................. 41
Referências........................................................................................ 43
Para discussão................................................................................... 44

2ª CONFERÊNCIA: 22 DE SETEMBRO DE 2020............................ 46

“Liturgia, inculturação e poder” (David Limo)............................... 47

Liturgia, inculturação e poder (Luiz C. T. Coelho)........................... 50


I. Teoria Decolonial Latino-americana: uma necessidade em um
mundo globalizado........................................................................ 51
II. Uma cultura ainda colonial? A verticalização do poder nas igrejas
latino-americanas hoje................................................................. 53
III. O poder horizontal: testemunho do Evangelho.......................... 55
IV. A liturgia horizontal: como identificar e abolir a verticalização do
poder............................................................................................ 56
Referências........................................................................................ 59

Resposta: Liturgia, inculturação e poder (Damaris De Jesús-Carrasquillo). 61


I. Conceitos básicos.......................................................................... 62
II. Propostas...................................................................................... 66

Resposta: Liturgia, inculturação e poder (Sandra Teresa Montes).... 69


Para discussão................................................................................... 77

3ª CONFERÊNCIA: 06 DE OUTUBRO DE 2020............................. 78

“A inculturação da liturgia: ideias práticas” (David Limo)............. 79


Referências........................................................................................ 81

6 Juan Oliver & Luiz Coelho


A inculturação da liturgia: ideias práticas (Juan M. C. Oliver)........ 82
As ações da Eucaristia....................................................................... 83
As ações............................................................................................ 84
Ações da Palavra de Deus.................................................................. 84
Ações da Sagrada Comunhão............................................................ 87
Referência......................................................................................... 92

Resposta: A liturgia como experiência do povo (Angel Rivera)..... 93


Referências........................................................................................ 101

Resposta (Yannel Valdivia Melo)........................................................ 102


Urgência do Processo contínuo de inculturação............................... 103
Um culto vivo e atualizado............................................................... 104
Aplicando os métodos hermenêuticos.............................................. 106
Uma alternativa idiomática para a inculturação................................ 106
Antecedente histórico cubano da inculturação da liturgia levando
em conta a tradução......................................................................... 107
Conclusões........................................................................................ 107
Referências........................................................................................ 108
Para discussão................................................................................... 109

4ª CONFERÊNCIA: 22 DE OUTUBRO DE 2020............................. 110

“Liturgia, inculturação e inclusão” (David Limo)........................... 111

Liturgia, inculturação e inclusão (Luiz C. T. Coelho)....................... 115


I. Mudanças culturais na América Latina e entre os povos da diáspora
latina.............................................................................................. 116
II. A Revolução Batismal na Teologia Litúrgica.................................. 119
III. A renovação da Aliança Batismal – compromisso de inclusão na
Igreja............................................................................................ 121
IV Desafios e propostas litúrgicas para uma inclusão plena de todas
as pessoas.................................................................................... 122
Referências........................................................................................ 124

A encarnação da liturgia 7
Resposta: A liturgia sem “carambadas” (Yuriria Rodriguez)........... 125
Referências........................................................................................ 131

Resposta: Liturgia, inculturação e inclusão (Arthur Cavalcante).... 132


Referências........................................................................................ 142
Para discussão................................................................................... 143

8 Juan Oliver & Luiz Coelho


AGRADECIMENTO

“A Palavra se fez carne e habitou


entre nós, e vimos sua glória”
(João 1.14).

Esta coleção de contribuições para a discussão sobre os desa-


fios da encarnação da Liturgia foi organizada pelo Dr Luiz Coelho
(Guardião do LOC da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil) e pelo
Dr Juan M.C. Oliver (Guardião do LOC da Igreja Episcopal nos Esta-
dos Unidos da América), patrocinado pelo Bispo Julio C. Martin da
Diocese Anglicana do Sudeste do México e Rev. Cônego Anthony
Guillén, Missionário e Diretor do Escritório de Ministérios Latino-
hispânicos da Igreja Episcopal.
A encarnação é uma realidade querida pela espiritualidade e
teologias anglicanas. Deus nos chama a seguir Jesus nesta jornada
de diálogo e aprendizado mútuo como Igreja de Deus no mundo
de Deus. A Comunhão Anglicana, uma família de várias igrejas ao
redor do mundo, quer abraçar este debate e continuar no caminho

A encarnação da liturgia 9
das conversões para “ter a mesma mente que Cristo” (Fil 2,5) e agir
como ele.
Esta compilação e publicação deste produto desta jornada
2020 foi possível graças à colaboração e apoio do Departamento
de Relações Globais da Igreja Episcopal USA, da Sociedade Unida
Parceira no Evangelho (USPG) e do Departamento de Educação Teo-
lógica para a Comunhão Anglicana. Agradecemos-lhes alegremente
e continuamos juntos na missão.

Dr Luiz Coelho
Dr Juan M.C. Oliver

10 Juan Oliver & Luiz Coelho


APRESENTAÇÃO

No outono de 2020, o Escritório Episcopal dos Ministérios


Latino/Hispânicos da Igreja Episcopal, com o Bispo do Sudeste do
México da Igreja Anglicana no México, o Reverendíssimo Júlio C.
Margin, patrocinou uma série de conferências sobre o tema da Incul-
turação da liturgia anglicana nas congregações de língua espanhola
e portuguesa. Estes foram muito bem recebidos por sua seriedade
e relevância, com uma média de 175 participantes por webinar de
todas as Américas.
Temos o prazer de publicar as quatro palestras neste modesto
e-book, a fim de preservá-las e torná-las disponíveis para toda a
Comunhão Anglicana. O livro contém as palestras dos quatro pales-
trantes principais, com duas respostas de cada um dos palestrantes
convidados, e um resumo das perguntas e respostas dadas. Também
inclui perguntas e tópicos para posterior discussão.
As palestras, com seus palestrantes e reatores, são:
Liturgia e Culturas Latinoamericanas, pelo Rev. Dr. Juan M.C.
Oliver, Guardião do Livro de Oração Comum da Igreja Episcopal.
Panelistas: Dr. Orlando Espín Professor Emérito de Teologia da Uni-

A encarnação da liturgia 11
versidade de San Diego, EUA e Rev. Dr. Júlio Cézar Adam Professor
da Escola Superior de Teologia do Brasil.
Liturgia, inculturação e poder, pelo Dr. Luiz Coelho, Guardião
do Livro de Oração Comum da Igreja Episcopal Anglicana do Bra-
sil. Panelistas: Dra. Sandra Montes (Reitora do Seminário Teológico
Union, Nova York, e Dra. Damaris de Jesús (Professora de Psicologia
da Universidade de Porto Rico).
A Encarnação da Liturgia, pelo Rev. Dr. Juan M.C. Oliver. Pane-
listas: Rev. Yannel Valdivia da Diocese de Cuba e Rev. Angel Rivera da
Diocese de Porto Rico.
Liturgia, inculturação e inclusão, pelo Rev. Dr. Luiz Coelho.
Panelistas: Yuri Rodriguez, seminarista da Universidade da Escola
de Teologia do Sul, Sewanee, TN, e Rev. Arthur Cavalcante da Igreja
Episcopal Anglicana do Brasil.
É nossa esperança que este recurso obtenha a máxima dis-
tribuição, provoque preocupações, conversas e decisões que irão
equipar nossas igrejas anglicanas ao redor do mundo para encarnar
toda sua vida nas culturas ao seu redor.

Luiz Coelho e John M. C. Oliver


Páscoa de 2021

Guardiães do Livro de Oração Comum da Igreja Anglicana do


Brasil A Igreja Episcopal Anglicana do Brasil e a Igreja Episcopal no
Brasil

12 Juan Oliver & Luiz Coelho


INTRODUÇÃO

Esta edição é uma compilação de uma série de conferências


que surgiram como resultado do fato de que, como novo bispo
diocesano, convoquei um colóquio sobre a enculturação da litur-
gia anglicana na América Latina. Pondo de lado minhas preferências
pessoais e gostos litúrgicos, assumi meu dever como sucessor dos
apóstolos para garantir que o Evangelho e a vida no Deus Trino
tenham na liturgia um verdadeiro canal e veículo de expressão cor-
porificado na linguagem, mentalidade e cultura dos povos que Deus
nos envia para servir; superando assim a tendência natural que as
minorias religiosas têm de se reafirmar perante a maioria, por meio
de um apego absurdo, irracional e sentimental a fórmulas que não
respondem à realidade que nos rodeia.
Acreditamos que esta edição que apresentamos é uma valiosa
contribuição de nossos teólogos latino-americanos para a reflexão
bíblica e teológica de nossas comunidades cristãs, ajudando-as a se
aprofundarem na imagem próxima do Deus de nosso povo.
Devemos buscar ser uma comunidade de fé, de profetas e
profetisas que denunciam as injustiças, de verdadeiros adoradores
e adoradores a quem Deus chama para estar – em Cristo pelo Espí-

A encarnação da liturgia 13
rito Santo – Sua presença no mundo, para ser essa Igreja de Deus!
Profeta, libertando Deus, perdoando Deus, renovando Deus: esse
Deus Salvador!”
Seu servo em Cristo

V.Exa. Rev.ma Julio C. Martín


Bispo da Diocese Anglicana do Sudeste - Igreja Anglicana do México

14 Juan Oliver & Luiz Coelho


1ª Conferência:

8 de setembro de 2020
“A LITURGIA E AS CULTURAS
LATINO-AMERICANAS”

David Limo1

Para a fé cristã, a encarnação do Filho de Deus nos convida


a ampliar o horizonte para ver que Jesus, presente na sua Igreja,
abraça todas as culturas, povos e línguas e nos abre para humanizar
e divinizar a nossa aldeia global. A Igreja na sua liturgia (embora não
só nela) tem uma importante tarefa que consiste em mostrar que o

1 Reverendo Cônego David Limo. Missionária da Diocese do Sudeste do México.


Igreja Anglicana do México. Moderador do Fórum Interreligioso para os Direitos
Humanos na América Latina – URI. Ex-Fiduciário Global para a cooperação inter-
religiosa e ecumênica na Cultura de Paz, Justiça e Direitos Ecológicos na América
Latina para a Iniciativa das Religiões Unidas (www. uri.org). Ativista dos direitos
humanos na América Latina e membro do Conselho da Rede Internacional de
Líderes Religiosos que vivem com HIV e AIDS ou pessoalmente afetados por
ela (INERELA Américas+ – www.inerela.org). Moderador do movimento latino-
americano “Anglicnxs por la Igualdad” (@anglicanosxlaigualdadALyC). Contatos:
dlimo.uiogd@gmail.com; dpajar@uri.org; anglicanxsigualdad@gmail.com
Missionário Canônico da Diocese Anglicana do Sudeste do México.

16 Juan Oliver & Luiz Coelho


Senhor está presente em nossa história, em nossas vidas, em nossas
culturas latino-americanas. A questão então consiste, claramente
destaca Dr. Juan Oliver: Quem faz teologia e de onde? Quem são
essas pessoas que refletem sobre sua fé?
Justamente por isso o projeto de inculturação não pode ser
um exercício “de fora”. A inculturação da Igreja Anglicana na Guate-
mala não pode ser a inculturação da Igreja Americana na Guatemala,
mas da Igreja Anglicana com sua identidade e carismas. E, uma vez
que não existe liturgia cristã que ainda não esteja inculturada, a
inculturação deve ser inter-culturada, pois ocorre num encontro de
reciprocidade, sinergia e respeito entre os valores do Evangelho e
cada cultura. Por exemplo, a liturgia que herdamos, originalmente
inculturada na cultura mediterrânea do século IV e re-inculcada na
Inglaterra no século XVI, deve ser desconstruída, desmontando o
que herdamos, e retornando aos seus aspectos essenciais originais
que os próprios judeus e greco-romanos expressavam de acordo
com sua cultura. Isso porque o povo é o principal sujeito e ator da
liturgia, que não é “o espetáculo da cura” nem é algo apenas do
mundo das/os teólogas/os.
Devemos também reconhecer que estamos culturalmente
vinculadas/os a uma visão da igreja machista, hierárquica e colonial.
Por isso, quão importante é devolver a voz litúrgica às pessoas que
celebram! É muito importante, portanto, compreender a liturgia
em seu contexto original do primeiro século; mas este é apenas
um ponto de partida para que possamos encontrar em cada uma
de nossas culturas, modos análogos de realizá-la, incorporando-a
nelas. Nesta análise, Orlando Espín indica que devemos ter muito
cuidado no exercício litúrgico das relações de poder. Porque o papel
das/os clérigas/os, teólogas/os e outras pessoas é ser animadoras/es

A encarnação da liturgia 17
e fontes de explicações, aprendendo e desenvolvendo teologia à
medida que as pessoas perguntam sobre mesma.
Embora as sementes da Palavra já se encontrem nas cultu-
ras, Juan Oliver destaca que nossas comunidades têm sofrido uma
tendência de desconfiar da cultura como se ela fosse totalmente
falha e até aberrante; mas não é assim, o próprio Jesus usou dos
esquemas culturais anteriores e de sua época (como os banhos ritu-
ais de Israel, as refeições compartilhadas da cultura greco-romana
e outras), dando-lhes um sentido novo, humanizador e libertador.
Julio Adam compartilha conosco que embora seja verdade que a
cultura, assim como a vida e os corpos, contém sementes da Pala-
vra de Deus, também contém aspectos “decaídos”: individualismo,
hedonismo e consumismo. Por isso, precisamos dar recursos às pes-
soas para que saibam diferenciar. Portanto, inculturar a liturgia com
o povo é um desafio de o que, como e com quem fazê-lo, para ser
uma Igreja autêntica, fiel à tradição e fiel à cultura.
É fundamental, diz Juan Oliver, esclarecer que o “anglicano”
na liturgia não é apenas a prática deste ou daquele rito, mas a inter-
pretação ou significado desta prática litúrgica a partir da convivência
cultural e percepção religiosa das pessoas que a celebram, em diá-
logo com a tradição teológica litúrgica anglicana. A este respeito,
Orlando Espín destaca que, na realidade, existem aqueles de nós
que se interessam por ser latinos, – cristãos latinos. Para isso deve-
mos compreender que os muros que separam as diferentes deno-
minações e eclesialidades são invenções do império. Por isso, Juan
Oliver, Julio Adam e Orlando Espín nos desafiam: Perguntemos às
avós de nossas comunidades como veem a espiritualidade paro-
quial. Vamos perguntar às pessoas à nossa frente como oram, como
se expressam, que vocabulário usam, etc. Não é possível inculturar a

18 Juan Oliver & Luiz Coelho


liturgia independentemente da religiosidade popular. Por exemplo,
a veneração da Virgem na América Latina talvez não surja do desejo
popular por um Deus mais feminino e maternal, quase o oposto do
Deus machista patriarcal que muitos clérigos expressam?

A encarnação da liturgia 19
LITURGIA ANGLICANA E
CULTURAS LATINO-AMERICANAS

Juan M. C. Oliver2

Boa tarde, e muito obrigado a todas/os pelo seu interesse e


entusiasmo pela liturgia das Igrejas Anglicanas. Agradeço em espe-
cial ao Bispo Martín, da Diocese do Sudeste do México e ao Cônego
Anthony Guillen, do Escritório de Ministérios Latinos da Igreja Epis-
copal, por seu entusiasmo e apoio a essas conferências.

2 O Reverendo John M. C. Oliver é Doutor em Filosofia e Guardião do Livro de


Oração Comum da Igreja Episcopal. Antes de sua aposentadoria em 2008, foi
Diretor do Programa Latino em Teologia e Pastoral no Seminário Geral de Nova
Iorque, e Professor Adjunto de Liturgia no Seminário Geral de Nova Iorque. Ele
obteve um Mestrado em Divindade pela Escola da Igreja Divindade do Pacífico,
Berkeley, CA, e um Ph.D. em Estudos Litúrgicos pela Graduate School of Theo-
logy e pela Berkeley School of Theology, CA, com sua dissertação, The Book Of
Common Prayer. Ele publicou extensivamente sobre liturgia, ministério latino, e
a inclusão plena do povo LGBTQ na Igreja Episcopal. Ele é membro da Consulta
Internacional de Liturgia Anglicana. Ela atualmente reside em Santa Fé, Novo
México, EUA, com seu marido, Santero Johnny Lorenzo.

20 Juan Oliver & Luiz Coelho


É um grande prazer discutir este assunto com vocês, em parte
porque o tema me interessou durante toda a minha vida acadêmica,
mas também porque acredito ser urgente que as Igrejas Anglicanas
na América Latina e aqui nos Estados Unidos falem a sério sobre
isso. Como veremos, já se passaram 32 anos desde que a conferência
de Lambeth (1988) nos ordenou incorporar a liturgia! Eu gostaria de
abordar esta questão em três momentos relacionados: primeiro,
a relação entre a Igreja, sua liturgia e as culturas nas quais ela se
encontra; segundo, a liturgia como um conjunto de ações significa-
tivas; e terceiro, a introdução da liturgia na cultura que a circunda.
Concluímos então olhando para a próxima conferência.

I. IGREJA E A CULTURA

Por Igreja entendemos não apenas a instituição e seu aparato


hierárquico, mas toda a assembleia (ekklesia) de pessoas batizadas
na morte e ressurreição de Cristo. Portanto, a Igreja nunca é um
conceito abstrato, mas a comunidade de pessoas concretas incorpo-
radas em Cristo através do batismo. Por cultura entendemos todo o
campo de costumes, usos, significados, comportamentos, produção
de materiais e conhecimentos, formas de expressão, etc., típicos de
uma comunidade, povo, nação ou etnia.
Em seu livro popular Cristo e Cultura, H. Richard Niebuhr
(1951) sugeriu que a relação entre a igreja e a cultura deve ser trans-
formadora: A Igreja existe para transformar, através das boas novas
de Deus em Jesus, a cultura em que você se encontra. Como cris-
tãos, não temos que nos separar completamente da cultura nem
nos identificar com ela, visto que “estamos no mundo, mas não
somos do mundo”. (Cf. Jn 17:22-26). Essa transformação ocorre

A encarnação da liturgia 21
por meio da proclamação em atos – e palavras, se necessário – da
boa nova da proximidade do Reino de Deus, ou seja, o evangelho.3
Para conseguir isso, temos que nos encarnar na cultura, porque
seria muito difícil dizer: “Temos uma grande mensagem, mas para
ouvi-la, primeiro é necessário aprender nossa língua.”
Esta encarnação da vida da Igreja continua a ser necessária
mesmo em culturas já supostamente cristianizadas, como é o con-
texto latino. Como Aylward Shorter (1988) escreve:

A cultura ... está sempre se desenvolvendo e, portanto, deve


haver um diálogo contínuo entre fé e cultura. A encarnação da
Igreja tem relevância também nos países da Europa e da Amé-
rica do Norte, outrora cristianizados e agora descristianizados.
(pp. 11-12).

Nós, pessoas latinas, também fomos cristianizadas, mas não é


por isso que deixamos de precisar de transformação.
Com efeito, as formas como os nossos povos expressam a sua
religião surgem precisamente do encontro da religiosidade popu-
lar espanhola medieval do século XVI com as tradições indígenas
e afro-americanas e, mais recentemente, com as tradições protes-
tantes e evangélicas do norte. Durante séculos, esse sincretismo
religioso popular foi causado e impulsionado não apenas por uma
escassez de clero, mas também por nossa tendência, como clero,
de ignorar os membros do Corpo de Cristo e sua religiosidade em
nome de um chamado “anglicanismo internacional” que, conforme
veremos, não existe.

3 Mc 1:15: “É chegada a hora: o Reino de Deus está próximo; mudem vossos cora-
ções e confiem nas boas novas”.

22 Juan Oliver & Luiz Coelho


A base teológica desta encarnação da Igreja (e não apenas
da liturgia) é a encarnação do Verbo. Assim como o Verbo se fez
carne em Jesus, a Igreja, seu Corpo ressuscitado, deve se encarnar
na cultura local. No entanto, a encarnação por si só, sem mais nada,
pode nos levar a supor que a criação não tem valor sem a inter-
venção de Deus, reforçando a ideia (pouco anglicana, aliás) de que a
criação sofre de depravação total por causa da queda. Mas, de fato,
a Palavra (“por quem todas as coisas foram feitas”)4 já está presente
nas criaturas de Deus.5 Essa presença íntima da Palavra nas culturas
tem algo de positivo a contribuir em relação ao evangelho; ela não
é apenas um receptor passivo ou um mero meio de transmissão.
Escreve Shorter (1988),

O Cristo que se fez carne é o Verbo no qual todas as coisas


foram criadas. [ …] Está no centro de toda a cultura humana e é
responsável por todo o bem que nelas se encontra, tornando-as
meios de salvação. (p. 78).

Mas a Igreja não se encarna nas culturas apenas para cele-


brá-las. Também está encarnada para desafiá-las a ser tudo o que
Deus as chama a ser, deixando para trás seus aspectos desumaniza-
dores. Esta é a nossa dimensão profética e rebelde. É por isso que
Shorter (1988) aponta:

A libertação dos pobres e oprimidos é condição fundamental


para uma autêntica encarnação da vida da Igreja. Do contrário,
o diálogo não é com o verdadeiro evangelho de Cristo. (p. 248).

4 Jo 1:3.
5 Orígenes de Alexandria propôs que toda a criação contém “sementes da Pala-
vra”. Conforme Shorter (1988, pp. 75-79).

A encarnação da liturgia 23
As culturas, e não apenas os indivíduos, também devem mor-
rer para o pecado e renascer para uma nova vida, assim como foi
graças à passagem de Jesus pela morte para uma nova vida que seu
espírito se fez presente em todas as culturas. Portanto, a Igreja, se
é o corpo de Cristo, deve repetir em si mesma o padrão de sua des-
tituição – sua Kenosis, esvaziando-se na obra de libertação ou salva-
ção do mundo. Isto é porque a Páscoa de Jesus significa não só a sua
própria morte e ressurreição mas, como elemento central da nossa
identidade e missão, implica também a morte e a ressurreição da
própria Igreja, se quiser ser congruente com o Evangelho de Cristo.
Resumindo: a comunidade da Igreja não deve separar-se
das culturas nem se identificar plenamente com elas, mas trans-
formá-las à luz do Evangelho, não só celebrando-as, mas também
as desafiando a deixar para trás seus aspectos desumanizadores.
Assim repete a Kenosis de Jesus, pela libertação/salvação do mundo,
esvaziando-se de si mesma.
À luz desta relação transformadora entre Igreja e culturas,
podemos agora indagar: que papel desempenha a liturgia em tudo isso?
Para responder, devemos primeiro explorar o que a liturgia é como
um evento de comunicação entre Deus e nós, entre nós mutua-
mente, e entre nós e o mundo.

II. O CONJUNTO DE SINAIS

A liturgia é um conjunto ou sistema de sinais. Em seu aspecto


humano, nosso culto é um exemplo de ritualização. Os antropólogos
têm muito a nos ensinar sobre o costume humano de criar e cele-
brar rituais. Do jogo de futebol ao jantar em família aos domingos
na casa da vovó, às formaturas, aniversários, etc., o ser humano

24 Juan Oliver & Luiz Coelho


reserva um tempo e um local para fazer algo significativo para nós
de uma forma mais ou menos estruturada. Esses eventos, pequenos
ou grandes, têm um padrão comum: carregam uma estrutura, nor-
mas (“é assim que se faz”), geralmente se repetem e nos identificam
como membros de algo maior – uma equipe, uma rede de amigos,
família, bairro ou comunidade.
Como evento ritual, então, a liturgia é uma ação significativa
em um lugar e tempo determinados, repetida e estruturada, com nor-
mas que nos identificam como membros da Igreja e cidadãos do Reino.
Com efeito, é a própria liturgia – através do batismo – que nos cons-
titui como membros da Igreja.
Mas tem mais. Em 1973, o antropólogo Clifford Geertz publi-
cou seu livro, The Interpretation of Cultures (2008), no qual mostrava
que os ritos religiosos não apenas transmitem ideias, mas também
formam em nós uma cosmovisão e um ethos. A cosmovisão é o nosso
sentido (intelectual e afetivo) de como o mundo é. Um ethos é o
sentido de como devemos nos comportar nesse mundo. A liturgia
nos apresenta a visão cristã do mundo e nos forma para viver como
pessoas cristãs nele. No nosso caso, a ritualização do “como viver”
é uma reapresentação da vida com Deus aqui, quando chega o seu
Reino. A apresentamos como se já tivesse chegado, embora ainda
não tenha chegado. É como um ensaio, uma promessa, depósito
ou pagamento imediato do Reino. É à luz desse ensaio do Reino que
podemos notar quando erramos. Por isso a liturgia leva em conta
também nossos fracassos em viver esta vida ideal do Reino e os
integra por meio de purificações, perdão, renovações e clausuras.
O catecismo ensina, citando (erradamente) São Tomás de
Aquino, que os sacramentos são “sinais externos e visíveis de (disse
Tomás de Aquino, “efetuam”) uma graça interior e espiritual”. (LOC,

A encarnação da liturgia 25
1989, p. 750).6 Esses sinais não são apenas objetos – são pessoas e
ações que significam e, portanto, conferem significado aos objetos
em uso. Além disso, a liturgia não é apenas um meio ou recipiente
para comunicar teologia, mas também origina a teologia, como
apontou Próspero de Aquitânia nos s. IV, insistindo “que a norma da
oração estabeleça a norma da fé.” (PATROLOGIA LATINA, 51, p. 10).7
São Tomás, escrevendo que os sinais sacramentais efetuam
na alma o que significam, acrescentou “eles efetuam significando-o.”
Pois bem. Um sinal que não significa não está funcionando como um
sinal. E, portanto, não pode realizar a graça de Deus. Por isso é
essencial que a liturgia signifique, porque se não significa, não tem
efeito. Mas, significar para quem? Porque os sinais sempre significam
a alguém – eles não estão no ar.8 Esse “alguém” é sempre alguém con-
creto, específico, formado por tal cultura, com seu sentido e “sabor”
de vida, visto que não há, em todo o planeta, nenhuma única pessoa que
não faça parte de uma cultura.
É por isso que nosso ensaio litúrgico da vida do Reino, se
for significar alguma coisa para as congregações latinas, precisa ser
encarnado em suas culturas, – não apenas usando o vernáculo, mas
em todas as expressões da cultura: sua música, arquitetura, movi-
mentos, gestos, sentido de celebração, do sagrado, da adoração,
do humor, do luto, do desespero, do lamento, da esperança. Resu-
mindo, sua visão da vida no Reino.
Mas se para ensaiar o Reino temos que fingir que somos
anglo-saxões, a liturgia funciona como a ritualização do colonialismo
e, sendo um ritual, nos forma em uma cosmovisão colonial em que “o

6 LOC., p. 750, conforme o uso da Igreja Episcopal (TEC), 1989.


7 Prospero, de Aquitânia, “...ut legem credendi lex statuat supplicandi.”
8 A expressão “significar para alguém” vem de Ronald Grimes (1990, p. 42).

26 Juan Oliver & Luiz Coelho


Norte” é sempre algo melhor, mais digno e mais próximo de Deus.
Não preciso mencionar as consequências desastrosas dessa farsa.
Em suma, a liturgia como um conjunto de sinais nos forma
com uma cosmovisão e um ethos participando (todos, não apenas o
clero) de um ensaio do Reino como imaginamos que será quando
chegar aqui.
Este ensaio, para significar a participantes latinos, deve ser
elaborado com e de acordo com os elementos da cultura – não ape-
nas a linguagem, mas todos os aspectos da cultura – seu sentido e
sabor de vida. Fingir ser anglo-saxão para viver com Deus em seu
Reino forma em nós um colonialismo interiorizado.
Este processo de encarnar a vida da Igreja e a sua liturgia
tem um nome: Inculturação. E me pergunto: será a liturgia anglicana
capaz de se inculturar em nossas culturas latinas? A questão é extre-
mamente importante porque se a liturgia anglicana tiver que ser
anglo-saxônica em todos os lugares, então ela não é católica no sen-
tido de universal, mas uma expressão nacional, étnica e provincial
do cristianismo, adequada apenas para culturas anglo-saxãs.

III. A INCULTURAÇÃO DA LITURGIA

Em 1978, o Superior dos Jesuítas, Pedro Arrupe (1978), escre-


veu numa carta a toda a Companhia de Jesus sobre o assunto que
chamou de “inculturação”, descrevendo-o como,

[...] a encarnação da vida e da mensagem cristã em uma área


cultural específica de tal forma que essa experiência não só
venha a se expressar com os elementos da cultura em questão,
[...] mas se torne o princípio inspirador, normativo e vivificante

A encarnação da liturgia 27
que transforma e recria essa cultura, originando assim uma nova
criação. (pp. 229-255).

Thomas Cranmer e os outros reformadores anglicanos do


século XVI tentaram fazer algo do tipo: inculturar a liturgia romana
na cultura inglesa. Mas desde então nós, anglicanas/os, temos evi-
tado conscienciosamente fazer tal coisa, – até trinta e dois anos atrás,
quando em 1988 a conferência global de bispas/os anglicanos em
Lambeth (1988) declarou:

Esta conferência exorta a Igreja em todos os lugares a traba-


lhar para expressar o evangelho imutável de Cristo nas pala-
vras, ações, nomes, costumes e liturgias que eles genuinamente
comunicam em cada sociedade.” E acrescenta: “... cada provín-
cia deve ser livre, sujeita às normas anglicanas da liturgia, para
buscar a expressão litúrgica apropriada para o povo cristão em
seu contexto cultural. (#s 22; 47).

No ano seguinte, a Consulta Litúrgica Internacional Anglicana


concluiu que

Em cada província e diocese, as/os anglicanas/os devem exami-


nar seu ... apego a formas de adoração que não são exigidas
nem pelo evangelho nem pela cultura local, mas talvez por ...
um suposto “anglicanismo” geral, uma vez que a cultura afeta
toda a expressão do evangelho e o que é conhecido como “angli-
canismo geral” – se puder ser identificado – cresceu em uma cul-
tura ocidental específica (DECLARAÇÃO DE YORK, 1989).

À luz desses pronunciamentos anglicanos, acredito que não


apenas temos permissão, mas também um mandato para inculturar
a liturgia.

28 Juan Oliver & Luiz Coelho


CONCLUSÃO

Vimos que a Igreja, sem se separar das culturas nem se iden-


tificar totalmente com elas, deve transformá-las à luz do Evange-
lho, celebrando-as, mas também as desafiando a deixar para trás
seus aspectos desumanizadores. Por isso, repete-se, esvaziando-se,
a Kenosis de Jesus, pela libertação/salvação do mundo. O sistema de
sinais que é a liturgia da Igreja nos forma com uma cosmovisão e
ethos, participando de um ensaio do Reino. Este ensaio, a fim de
ter sentido e significado – e, assim, realizar a graça de Deus nos
participantes latinos, deve ser elaborado com e de acordo com os
elementos da cultura e seu significado de vida. Além disso, fingir ser
anglo-saxão para poder viver com Deus forma em nós um colonia-
lismo internalizado que nos faz desprezar a nós mesmos e às nossas
culturas em relação a um Norte quase infalível.
Como então podemos inculturar a liturgia em nossas culturas
latinas? Que ferramentas temos para realizá-la? Quais processos,
quais critérios avaliar? Que obstáculos encontramos ao tentar isso?
Abordarei essas questões em minha próxima conferência.
Enquanto isso, um dos principais obstáculos presentes – a
relação entre liturgia e poder – é o tema da próxima conferência
apresentado pelo meu colega, Dr. Luiz Coelho, Guardião do LOC no
Brasil. Muito obrigado.

REFERÊNCIAS

ARRUPE, Pedro S.J., Carta y Documento de trabajo sobre la Inculturación.


(14-V-78). Acta Societatis Jesu, XVIII, 1978.
CONFERÊNCIA DE LAMBETH, 1988.

A encarnação da liturgia 29
DECLARACIÓN DE YORK DE LA CONSULTA LITÚRGICA INTERNACIONAL
ANGLICANA, 1989. Disponível em: http://anglicancommunion.org/me-
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PATROLOGIA LATINA, 51,
SHORTER, Aylward. Towards a Theology of Inculturation. NY: Orbis, 1988.

30 Juan Oliver & Luiz Coelho


Resposta
Orlando Espín9

Concordo plenamente com o Pe. Oliver quanto à indispen-


sável necessidade de expressar a liturgia nas e através das cul-
turas latino-americanas e das comunidades latinas dos Estados
Unidos. Da mesma forma, concordo que qualquer cristianismo
que reivindique ser “genérico” (isto é, culturalmente o mesmo
em qualquer lugar) é impossível. Supor a existência de uma tra-
dição eclesial cristã “genérica” e “igual” em todo o mundo é
uma maneira óbvia de esconder o colonialismo eurocêntrico.

9 O Dr. Orlando Espín é um teólogo católico romano e é membro do corpo


docente da University of San Diego, USA desde 1991. Ele é professor de
teologia sistemática no Departamento de Teologia e Estudos Religiosos.
Espín serviu duas vezes como presidente da Academia de Teólogos Hispâ-
nicos Católicos dos Estados Unidos (da qual foi um dos fundadores), e tam-
bém fez parte dos conselhos da Sociedade Teológica Católica da América
e do Programa de Verão Hispânico em Religião e Teologia. Espín recebeu
um doutorado honorário (União Teológica Católica, Chicago) e uma cáte-
dra honorária. Em 2016 ele recebeu o “Prêmio John Courtney Murray” da
Sociedade Teológica Católica da América, o mais alto e prestigioso reco-
nhecimento em teologia. Espín fundou e foi o primeiro editor-chefe do
Journal of Hispanic/Latino Theology. Ele faz parte dos conselhos editoriais
de várias revistas americanas, européias e latino-americanas. Espín é ativo
na comunidade latina em San Diego, assim como nacionalmente na pes-
quisa teológica e em projetos educacionais latinos. Áreas de especialização:
teologia latina e pensamento teológico sobre cultura, tradição e tradição,
interculturalidade e catolicismo popular. Ele também participa de diálogos
ecumênicos e interreligiosos entre latinos/as.

A encarnação da liturgia 31
Reafirmando o que foi dito acima, também acredito que
o Pe. Oliver poderia sublinhar e tornar o seguinte mais explícito
(o que tornaria seu argumento ainda mais forte): Toda interpre-
tação, entendimento e compreensão do Evangelho não ocorre
apenas em contextos culturais, mas também ocorre graças a esses
mesmos contextos culturais. Ou seja: se o Evangelho e a liturgia
devem ser encarnados (“inculturados”) em cada contexto cultu-
ral em que se encontram e também devem desafiar as culturas
nas quais estão inculturados, isso significa necessariamente que
tanto o que se entende, como se interpreta por “Evangelho” e
“liturgia”, bem como o que é entendido, interpretado e enten-
dido por “inculturação” e como “necessidade de desafio”, são
entendimentos, compreensões e interpretações que se tornam
possíveis graças ao fato de que os seres humanos e todas as nos-
sas comunidades são culturais e não podem deixar de sê-lo. Tudo
o que entendemos, interpretamos e compreendemos é criação
cultural. Disto não há como escapar.
O que implica que a inculturação poderia se tornar um
processo ingênuo e criticável se não atentar para a cegueira
e “tapa-olhos” culturais que todo processo cultural acarreta e
assume, por se situar nas culturas humanas. Nada humano é
perfeito, e tudo é transitório. A “inculturação do Evangelho” ou
a “inculturação da liturgia” é um processo cultural e, por isso
mesmo, não se pode presumir que seja entendido, interpretado
ou compreendido sem limitações e cegueira – tanto daqueles
que “trazem” a inculturação e aqueles que a “incorporam” em
seus respectivos contextos culturais.
Ocorreu-me que este artigo, que tão eloquentemente argu-
menta em favor da inculturação, não inclui nenhuma referência

32 Juan Oliver & Luiz Coelho


ao pensamento e contribuições de autores latino-americanos
ou latinos (dos EUA). Em qual pensamento teológico, antropo-
lógico ou filosófico se fundamentará a “inculturação” e as com-
preensões do que é “cultura”, suas expressões e componentes?
Recomendo o trabalho filosófico de Raúl Fornet-Betancourt, que
até recentemente foi professor de filosofia intercultural latino-
americana na Universidade de Bremen, na Alemanha. Existem
outros autores (também latino-americanos como Fornet-Betan-
court) que podem contribuir para esta discussão.
Há alguns anos, o que se conhece como “interculturali-
dade” (ou “interculturalização”) vem crescendo, indo além do
que conhecemos como “inculturação”. O pensamento inter-
cultural já começou a se fazer presente na teologia. E é muito
importante que assim seja, porque não há fé, vida ou liturgia
que já não esteja inculturada. Não existe evangelização fora das
culturas de quem evangeliza e de quem é evangelizado, nem
existe um programa de “inculturação” que já não esteja (pre-
viamente) inculturado. Por isso, o que “já está inculturado” não
pode ser assumido como “genérico”, “inocente”, etc.
O pensamento intercultural em teologia obriga-nos a per-
guntar: por que e como aquilo que já foi previamente incultu-
rado (seja o Evangelho, a liturgia ou a tradição eclesial) conseguiu
“acesso” às culturas onde diz que agora precisa ser inculturado?
Este “acesso” é uma realidade que torna necessário pensar e
proceder interculturalmente, para evitar a colonização sob o
pretexto da evangelização ou da liturgia, porque a intercultura-
lidade é um diálogo entre culturas, em que ninguém é anfitrião
ou hóspede, e onde todos são radicalmente iguais. O processo

A encarnação da liturgia 33
intercultural é um procedimento em que “o que é discutido”
não leva a um resultado predeterminado. Trata-se de um diá-
logo em que a discussão é levada pelos parceiros de diálogo
onde quer que eles a levem. Nesse processo, as propostas e res-
postas são “lançadas” e oferecidas a partir de suas inevitáveis
perspectivas culturais (contribuições e cegueiras). O diálogo
intercultural (entre iguais) fará com que seja intercultural e de
forma dialogante se encontrem (se “revelem”) as ferramentas,
os fundamentos e as formas de “interculturalizar” a liturgia, o
Evangelho e a tradição eclesial em cada contexto.

34 Juan Oliver & Luiz Coelho


Resposta
Liturgia e inculturação na América Latina:
uma visão da igreja luterana no Brasil

Júlio Cézar Adam10

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Considero de fundamental importância discutir a incul-


turação litúrgica no contexto da América Latina, porque temos
uma riqueza de práticas litúrgicas e uma diversidade cultural
muito ampla que não dialogam suficientemente umas com as
outras. Agradeço as excelentes reflexões do Rev. Dr. Juan M. C.
Oliver, que nos desafia a pensar futuramente sobre este tópico.
Gostaria de apresentar alguns aspectos dos quais falo de
inculturação. O assunto sempre me foi caro, pois pertenço a
uma igreja de imigração que herdou uma cultura como parte

10 Júlio Cézar Adam é doutor em Teologia pela Universidade de Hamburgo


(Alemanha) e pós-doutorado em Filosofia pela PUCRS e em Teologia pela
Universidade de Hamburgo (CAPES/Humboldt). É professor associado de
Teologia Prática nas Faculdades EST (São Leopoldo/RS). Ele faz pesquisas
na área da espiritualidade, religião vivida e mídia. Ele é fundador e coorde-
nador da Beatitud: centro de espiritualidade, psicologia e boa vida. E-mail:
julio3@est.edu.br

A encarnação da liturgia 35
de sua tradição e também de sua liturgia (ADAM, 2018). A Igreja
Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB) foi trazida
por imigrantes alemães ao Brasil há quase 200 anos. A iden-
tidade étnica dessas pessoas encontrou um grande espaço de
afirmação e expressão na liturgia do culto comunitário. Assim,
foi criada uma igreja étnica (a igreja dos alemães), baseada em
uma diversidade de tradições litúrgicas principalmente da Ale-
manha, com liturgias transplantadas desse contexto para o con-
texto brasileiro. Como em uma máquina do tempo, celebramos
liturgias que não existiam na Alemanha há mais de um século.
Por outro lado, essa liturgia transplantada foi, em grande
medida, uma liturgia que resistiu à cultura, às práticas religio-
sas, ao clima, aos costumes do contexto brasileiro. Há pelo
menos 50 anos se fala muito sobre a necessidade de a igreja se
tornar brasileira, algo que ainda é muito difícil. A inculturação
da liturgia no contexto e na cultura brasileira faz parte dessa
dificuldade.
Curiosamente, esse parece ser o caso de muitas igrejas
históricas no contexto latino-americano, como Juan Oliver tão
bem descreveu. Sabemos que grupos de imigrantes tendem a
manter suas tradições de origem mais acentuadas quando estão
longe de seu local de origem. Mesmo assim, em relação à litur-
gia parece haver algo mais por trás desse fenômeno, algo que
Oliver também aponta: A liturgia tem sido usada em nosso con-
texto como forma de colonização e manutenção de um deter-
minado poder (BOSI, 1982, pp. 11-26; CARVALHAES, 2015).
Contrário ao que acontece com as igrejas étnicas no hemisfério
norte, na América Latina carregamos a ideia de que a liturgia

36 Juan Oliver & Luiz Coelho


mais sagrada, mais dogmática, mais evangélica (mais luterana),
mais correta e mais bela é aquela que ressoa com a cultura do
norte.
Sobre o tema da inculturação, em particular, a Federação
Luterana Mundial incentiva a reflexão sobre o assunto. No final
da década de 1980, as igrejas luteranas da América Latina for-
mularam a Declaração de Caracas sobre a Liturgia (FLM, 1989),
com claras indicações da necessidade de inculturação/contex-
tualização da liturgia. Na década de 90, os estudos coordenados
por Anita Staufer sobre Culto e Cultura (STAUFFER, 1994, 1996,
2000) deram forte impulso à discussão do assunto. Os paradig-
mas da inculturação presentes nesses estudos falavam de aspec-
tos transculturais, contextuais, contraculturais e interculturais,
como forma de pensar em uma efetiva inculturação litúrgica.
De especial importância foi a contribuição do filipino
católico Anscar Chupungco (2000), que propõe dois métodos de
inculturação: assimilação criativa e equivalência dinâmica. Por meio
da assimilação criativa, elementos da cultura local como ritos,
símbolos e instituições são reinterpretados e ressignificados
nos conteúdos, elementos e formas de culto, permitindo assim
que a ordem litúrgica seja mais bem compreendida e vivenciada
pela comunidade celebrante. A equivalência dinâmica faz o
movimento oposto. Começa com o que existe na liturgia cristã
para ver como a cultura pode desenvolvê-la. A equivalência é
uma espécie de tradução, que substitui elementos do ordo litúr-
gico por algo que tem o mesmo significado ou valor na cultura
do povo (CHUPUNGCO, 2000, pp. 53-68).

A encarnação da liturgia 37
Mesmo assim, os resultados práticos na vida litúrgica
das comunidades da IECLB ainda são pequenos. Nossos espa-
ços litúrgicos reproduzem templos e estruturas do norte, nosso
calendário litúrgico se adapta às estações climáticas do norte,
nossas canções, ritmos e instrumentos estão em harmonia com
o norte; nosso comportamento litúrgico é racional, sóbrio,
calmo, muito diferente do comportamento cotidiano da cultura
brasileira em geral.
Louis Marcelo Illenseer (2019) pesquisou em seu mestrado
sobre a inculturação da liturgia, considerando principalmente a
importância da música inculturada. É interessante notar nesta
pesquisa que grande parte da produção musical inculturada tem
mais adesão nas assembleias gerais da FLM e CMI, ou nos can-
cioneiros das igrejas do norte (projeto World Music), do que na
vida litúrgica das comunidades locais, às igrejas às quais perten-
cem os compositores.
Penso que outro impulso importante para a incultu-
ração da liturgia se deu no campo da Teologia da Libertação
– TdL – (BUYST, 2008). A partir da TdL houve uma ampla discus-
são sobre a própria cultura e seu papel político no contexto. As
pessoas perceberam o impacto negativo da “cultura do outro”,
da cultura do Norte, como cultura hegemônica e seu poder de
dominar as culturas indígenas, africanas e populares no conti-
nente. Não basta inculturar, é preciso perguntar-nos como incul-
turar, o que inculturar, para quê e para quem inculturar: para
quê e para quem serve ou não serve a liturgia inculturada? Qual
é a função política da inculturação da liturgia? O que está em
jogo: adaptar um rito externo a uma cultura como forma de

38 Juan Oliver & Luiz Coelho


dominá-la melhor ou inculturar a liturgia para dar voz e tempo
às culturas locais, permitindo que o Evangelho se encarne de
fato na cultura? Na esfera protestante, recordo aqui a importân-
cia da reflexão crítica do anglicano Jaci Maraschin (2010) e do
presbiteriano Rubem Alves (1985).
Feitas essas considerações iniciais, gostaria de levantar
três aspectos finais que ressoam e problematizam essas ques-
tões, ao mesmo tempo em que dialogam com as questões levan-
tadas pelo Rev. Juan Oliver.

1. A LITURGIA É SEMPRE O RESULTADO DE UM PROCESSO DE


INCULTURAÇÃO

Não existe Palavra de Deus fora da cultura. Não há evan-


gelho desencarnado. A liturgia, portanto, é sempre resultado
de um processo de inculturação, como diria o monge católico
Marcelo Barros de Souza (1992).

É comum falar em inculturar a Revelação de Deus ou em


inculturar a Eucaristia, como se a revelação existisse em si
mesma, externamente e então, em um segundo ato, ela se
incultura. Mas isso é irreal. A Revelação do nosso Deus já foi
produzida como Palavra humana feita em uma cultura espe-
cífica e condicionada àquela época e lugar (p. 113).

A liturgia cristã sempre foi o resultado de um processo


dinâmico de inculturação das tradições judaicas e das culturas
circundantes. Não existe uma cultura “pura”, “bíblica” e não cul-
tural. Por exemplo, o batismo de João deriva dos ritos de puri-

A encarnação da liturgia 39
ficação essênios. A Eucaristia dos ritos de sacrifício dos povos
vizinhos de Israel, das práticas das refeições judaicas e domésti-
cas. A liturgia da palavra foi inculturada na sinagoga, etc.
Esses elementos litúrgicos inculturados constituirão as
liturgias cristãs dos três primeiros séculos e, por sua constân-
cia litúrgica e teológica, deram o caráter transcultural dos pro-
cessos de inculturação ao longo dos mais de dois mil anos de
Igreja. No entanto, o que acontece com o tempo, à medida que
o ordo litúrgico básico se consolida, o próprio ordo torna-se
algo cultural e, de certa forma, absoluto, esquecendo sua origem
nos processos de inculturação. Por isso, reforço o que Oliver nos
diz: “O princípio encarnacional do Evangelho deve ser levado em
conta nos processos de inculturação litúrgica na América Latina”.

2. POR QUE INCULTURAR A LITURGIA NA CULTURA DA AMÉRI-


CA LATINA?

A Palavra Universal fala apenas dialeto. Inculturar a liturgia


é a única forma eficaz de comunicar o Evangelho, porque não
existe Evangelho fora da cultura, fora das linguagens e idiomas
humanos, fora do conjunto de tradições, símbolos, costumes, rit-
mos, cores, sabores, o conjunto de ações significativas que Oliver
tão bem aponta no segundo ponto de sua apresentação. O Evan-
gelho é um acontecimento que acontece enquanto está encar-
nado. Assim como não há fé sem corpo, não há culto sem cultura.
Ao fazê-lo, o Evangelho não é apenas comunicado, é compreen-
dido/vivido e não apenas compreendido/vivido, mas o Evangelho
transforma a vida de indivíduos, comunidades e sociedades.

40 Juan Oliver & Luiz Coelho


Comunicar o Evangelho desde as nossas culturas é tam-
bém uma forma de dignificar e respeitar as formas de viver,
relacionar-se, celebrar e ser. Uma vida digna, mesmo com suas
fragilidades, é algo que corresponde à própria essência do Evan-
gelho. Geralmente, na América Latina, as culturas, tradições e
costumes locais, especialmente de grupos vulneráveis (indíge-
nas, africanos, mulheres, jovens ...) foram e são subestimados e
escondidos (Boaventura de Souza Santos). Foram e são culturas
que, na mentalidade colonial de muitos, precisam ser supera-
das, “cristianizadas”, caiadas de branco, norteadas, racionaliza-
das, controladas.
Maraschin, referindo-se às liturgias de igrejas históricas,
diz que “nossas liturgias, de modo geral, são apolíneas porque
ainda se baseiam na forma logocêntrica de comunicação e são
regidas por regras, códigos e ideias” (MARASCHIN, 2010, p. 25).
Segundo ele, estamos presos aos nossos livros litúrgicos, hiná-
rios e tradições; nossas liturgias são fortemente clericais; nossa
pregação é moralista e tende ao fundamentalismo; e nossas
liturgias permanecem masculinas (Ibid., p. 28).

3. QUE CULTURA INCULTURAR?

Desde o Evangelho de Jesus Cristo, como critério, toda


cultura e tudo na cultura podem ser inculturados. Às vezes, há
uma tendência a inculturar o exótico ou certas tradições e cos-
tumes mais folclóricos, sem perceber as tendências contempo-
râneas, as culturas urbanas, as culturas juvenis, a cultura pop,
até mesmo a mídia. Como Oliver diz, a cultura muda constante-

A encarnação da liturgia 41
mente. Portanto, refletir sobre a inculturação da liturgia signi-
fica ler atentamente e compreender a própria cultura.
Nesse processo, o objetivo principal não é a cultura, mas
a comunicação do Evangelho. Acredito que o objetivo da incul-
turação deve ser celebrar um culto com rosto local, um culto
que tenha rosto de povo e que, ao mesmo tempo, ajude essas
pessoas a se verem como parte da encarnação do Evangelho, ou
seja, penso em um culto no qual as pessoas e as comunidades,
em suas diferentes matrizes culturais locais e regionais, podem
reconhecer os elementos transculturais, contextuais e contra-
culturais do culto cristão, e assim se libertar das estruturas de
dominação social, de gênero, domínio acadêmico, cultural e
econômico.
Nesse movimento não há uma mera inversão de elemen-
tos étnicos e culturais, mas uma inculturação que faz sentido
para os próprios povos e comunidades. Certamente, corporei-
dade, movimento, ritmo e agitação, beleza e leveza (MARAS-
CHIN, 2010), matrizes culturais e religiosas indígenas, africanas
e populares (SOUZA, 1992; BUYST, 2008), lutas pela igualdade de
gênero, diversidade juvenil, festas e tradições populares como
o carnaval no Brasil, o sincretismo e a transgressão das frontei-
ras religiosas (BOBSIN, 2000, 2016) devem estar presentes de
forma crítica e afirmativa nesse processo. Além disso, a incul-
turação deve levar a sério a questão sócio-política envolvida na
cultura (BUYST, 2008; SOUZA, 1992; ADAM, 2018) e a questão
ambiental. Como diz Juan Oliver “a Igreja não se encarna nas
culturas apenas para celebrá-las. Ela também está encarnada para
desafiá-las a ser tudo o que Deus os chama a ser”.

42 Juan Oliver & Luiz Coelho


REFERÊNCIAS

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culto com rosto brasileiro”. Revista de Cultura Teológica, São Paulo, n.
26, v. 92, p. 57-86, jul.dez, 2018. Disponível em: https://revistas.pucsp.
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A encarnação da liturgia 43
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PARA DISCUSSÃO

1. Se a Igreja e sua liturgia devem ser encarnadas na cultu-


ra em que você se encontra, que aspectos bons dela você
pode melhor apoiar e celebrar?
2. A liturgia deve transformar a cultura em que você se encon-
tra, desafiando-a a deixar para trás seus aspectos desuma-
nizadores. Com quais aspectos de sua cultura a liturgia de
sua congregação poderia lidar muito melhor?
3. Como Corpo de Cristo, a comunidade que é a Igreja deve
imitar Jesus, esvaziando-se de si mesma para servir ao
mundo circundante. Que aspectos da liturgia de sua con-
gregação devemos deixar para trás, abandonando-os para
servir melhor?

44 Juan Oliver & Luiz Coelho


4. Nossa participação na liturgia forma em nós uma cosmo-
visão e um ethos, conforme ensaiamos, a vida no Reino
de Deus como imaginamos que seja quando chegar. (Não
estamos indo para o Reino; ele virá para nós: “Venha a nós
o Teu Reino”). Como será sua vizinhança quando o Reino
de Deus vier? Liste exemplos concretos. Como sua liturgia
pode expressar melhor esses aspectos? Seja específico.
5. Que aspectos de sua liturgia no momento negam ou se
opõem a esta visão de como será o Reino? Como eles po-
dem ser ajustados, alterados, redimidos ou rejeitados para
expressar melhor o Reino?

A encarnação da liturgia 45
2ª Conferência:

22 de setembro de 2020
“LITURGIA, INCULTURAÇÃO E PODER”

David Limo11

Se o paradigma da opção preferencial de Deus pela gente


oprimida continuar e a teologia decolonial nos convidar a vê-las e
trabalhar com elas, cujas culturas sempre foram isoladas e rejeita-
das, podemos estar certos de que estamos caminhando para a cons-
trução de um cristianismo latino, ecumênico e pluralista.
O que é a decolonização nesta realidade mestiça se parte do
que somos vem desses povos que nos dominaram e continuam a
fazê-lo? Existe uma democracia racial, onde somos todas/os mesti-
ços, diz Luiz Coelho, mas a realidade histórica é que o “mais branco”
era o melhor. Portanto, se somos mestiças/os, devemos valorizar a
parte afro ou indígena de nossa origem como alguns valorizam sua
origem europeia. Não só não devo ser racista, mas também antir-
racista. Isso significa na liturgia dar voz a experiências, música,
cultura, símbolos afro ou indígenas. Eu adoraria, por exemplo, em

11 Missionário Canônico da Diocese Anglicana do Sudeste do México.

A encarnação da liturgia 47
um contexto onde as línguas originais ainda são faladas pelo povo,
incluir em nossas liturgias as respostas do Evangelho, uma aclama-
ção e uma bênção para que possamos aprender a orar com eles
e deles. O colonialismo é tão terrível que, além do genocídio de
nossos povos, eles tiraram o conhecimento de nossos ancestrais
e seus saberes. Se a liturgia pretende ser autêntica, não podemos
improvisar colocando elementos latinos sem convidar gente latina
a ser protagonista, criadora e criativa da autenticidade dessa litur-
gia e de sua própria liturgia. Porque o que normalmente acontece
é apenas a folclorização da liturgia em decorar e colocar coisas de
outras culturas sem significado cultural. Por isso, Damaris de Jesús
assinala que é extremamente importante na liturgia distinguir entre
“ser a voz das/os marginalizadas/os” e assumir o desafio de dar voz
a essas pessoas.
Como retirar elementos de verticalização nos textos litúrgi-
cos e também dos espaços litúrgicos? Damaris de Jesús assinala que
não podemos negar que o poder está nas mãos de quem ocupa car-
gos oficiais (bispas/os e clérigas/os), que devem reconhecer que não
têm que monopolizar esse poder e que não devem se sentir amea-
çadas/os em relação a outras lideranças da Igreja. Porque se con-
tinuarmos com os modelos coloniais em que todo o tempo quem
determina tudo é o clero, não seremos coerentes com o nosso
modelo anglicano de ser igreja. Onde o laicato, bem como o clero
são considerados essenciais no governo e missão da igreja por um
mesmo batismo.
Não há dúvida de que a experiência do patriarcado na litur-
gia e nos espaços litúrgicos é alarmante. Luiz Coelho lembra que
os espaços litúrgicos em particular estão repletos de elementos de
poder. O trono da/o Bispa/o, o altar, a altura da plataforma, até a

48 Juan Oliver & Luiz Coelho


nossa forma de participar nos ritos ainda é uma forma de submis-
são. Portanto, se recebermos a comunhão na boca e de joelhos,
o que queremos dizer? Aquele que dá a comunhão é mais impor-
tante do que eu, e não que a comunhão é o fato evangélico mais
importante do sacramento. E isso é claramente observado na Amé-
rica Latina e nas comunidades hispânicas nos EUA. Portanto, pre-
cisamos repensar como nosso espaço está organizado. Por que o
altar está tão longe do povo? Será possível alterar a posição das
cadeiras ou bancos? Por que precisamos celebrar uma missa com
vinte pessoas e muitos ministros leigos com batinas? E quanto à
nossa simplicidade e proximidade com as pessoas? Alguns de vocês
podem considerar que estas questões são muito simples, embora
sejam costumes medievais, mas são tão essenciais que devemos
enfrentá-las, dialogar e resolvê-las. É por isso que precisamos de
pessoas de origens multiétnicas, geracionais, de gênero e culturais
envolvidas em nossas comissões litúrgicas, tanto sinodais quanto
paroquiais, que nos questionem sobre esses aspectos.

A encarnação da liturgia 49
LITURGIA, INCULTURAÇÃO E PODER

Luiz C. T. Coelho12

Boa tarde. Sempre que falamos em inculturação, penso que é


necessário compreender o que queremos inculturar. Isso é impor-
tante porque, na América Latina, e nas culturas latinas em geral, há
muito que NÃO, não queremos que continue. Temos uma herança
colonial que proporcionou preconceitos, desigualdade étnico-racial,
sexismo e, sobretudo, uma imensa disparidade de poder, que está
envolvida em todos os problemas já mencionados.
Portanto, se queremos realmente uma inculturação que seja
boa, adaptada ao modo de ser do nosso povo e que produza uma litur-
gia verdadeiramente latina e verdadeiramente baseada no Evangelho,
é necessário examinar com muito cuidado as raízes dessa disparidade

12 Rev. Dr. Luiz Carlos Teixeira Coelho Filho é sacerdote anglicano e planejador
urbano. É o atual Custódio do Livro de Oração Comum da Igreja Episcopal
Anglicana do Brasil, membro do Conselho Diretor da Consulta Internacional
Anglicana de Liturgia e da Societas Liturgica. Possui livros e artigos publicados
nas diferentes áreas do conhecimento em que atua.

50 Juan Oliver & Luiz Coelho


de poder. Ou seja, decolonizar a cultura que queremos inculturar na
liturgia, para que possamos efetivamente refletir o que de melhor os
nossos povos ofereceram no louvor e em elogios a Deus.
E por isso, esta apresentação começa justamente com uma
discussão sobre a Teologia Decolonial e suas consequências hoje.
É necessário revisitar nossa história e o poder da Igreja ao longo
dos séculos, para que possamos ver os elementos de clericalismo,
machismo, sexismo e preconceito que estão tão arraigados em nos-
sas culturas e contaminam a vida da Igreja (incluindo a Igreja Episco-
pal). Portanto, gostaria de abordar essa questão em dois aspectos:
primeiro, para identificar o que é a Teologia Decolonial, o que ela
busca fazer e como dialoga com sua prima mais conhecida – a Teolo-
gia da Libertação; segundo: quais são as consequências do passado
colonial ibérico e neocolonial norte americano em nossas culturas,
em nossas igrejas e em nossa liturgia. Por fim, proponho então a
necessidade não só de horizontalizar o poder na vida da Igreja, mas
também na sua liturgia.

I. TEORIA DECOLONIAL LATINO-AMERICANA: UMA NECESSIDADE


EM UM MUNDO GLOBALIZADO

Antes de chegar à Teologia Decolonial, é necessário referir-se


ao pensamento decolonial que começou sobretudo com o sociólogo
peruano Aníbal Quijano, e seus discípulos do Grupo M/C/D (Moder-
nidade-Colonialidade-Decolonialidade), que se desenvolveu a partir
dos anos 90. Para ele, não era possível lidar com a modernidade sem
colonialidade, uma vez que a colonização europeia nas Américas, e
posteriormente na África e na Ásia, impôs uma forma singular e única
de ler e compreender o mundo (QUIJANO, 2014, p. 27).

A encarnação da liturgia 51
Na América Latina não é diferente. Embora sejamos pessoas
ditas livres e os nossos países sejam independentes, o paradigma
colonial ibérico ainda sujeita a forma de organização dos nossos
povos. Em outras palavras, a epistemologia que nos direciona ainda
é a mesma da época colonial. A matriz das nossas instituições
(incluindo a Igreja) é sobretudo europeia, colonial ibérica ou neo-
colonial anglo-americana. E é por isso que é tão difícil para nossos
governos e sociedades criticar realidades dolorosas, como o fato de
que muitas regiões da América Latina, onde a maioria da população
é branca (como o Cone Sul, mas também regiões de outros paí-
ses) porque houve um genocídio dos povos nativos que ali viviam,
ou porque nunca existiu democracia racial em países multiétnicos
como Brasil, Venezuela ou Colômbia; ou porque toda a mitologia
dos grandes impérios pré-colombianos que é usada como símbolo
nacional em muitos países andinos e mesoamericanos não encontra
respaldo na realidade dos descendentes dos primeiros habitantes
dessas terras.
A independência dos países latino-americanos não alterou a
estrutura de poder político, econômico e eclesial que neles existia,
e assim uma normalmente tem muito sucesso entre os povos latinos
quando não apenas passa por branca, mas age como branca. É pre-
ciso parecer europeu, comportar-se como europeu, vestir-se como
europeu e fazer parte da cultura ocidental globalizada (de origem
europeia). Essa herança colonial é tão forte que também é replicada
entre os latinos na diáspora norte-americana. E é por isso que Qui-
jano diz que não é possível trabalhar a questão da modernidade sem
falar das questões raciais (QUIJANO, 2005, p. 70). Mas há mais: não
só o colonialismo nos deixou órfãos das múltiplas culturas ao nosso
redor, mas também impôs profundas divisões sociais, classismo e

52 Juan Oliver & Luiz Coelho


sistemas corruptos que beneficiam as elites. Para o Grupo M/C/D, é
então necessário revisar o que é mais central para o colonialismo:
sua epistemologia. Se mudarmos a forma de pensar, ensinar e agir,
respeitando e incluindo as diferentes culturas do mosaico latino-
americano, será possível descolonizar essas estruturas de poder. E,
por isso, a Teologia da Libertação e a Pedagogia do Oprimido de
Paulo Freire entram nessa discussão.

II. UMA CULTURA AINDA COLONIAL? A VERTICALIZAÇÃO DO PO-


DER NAS IGREJAS LATINO-AMERICANAS HOJE

A Teologia da Libertação (TdlL) foi, e continua sendo, uma


das principais línguas vernáculas por meio das quais o discurso teo-
lógico se desenvolveu na América Latina. É uma corrente indígena
daquela região do mundo e é ecumênica por excelência. Em termos
gerais, propõe uma forma mais horizontal de ser Igreja, em sintonia
com o testemunho da Igreja Primitiva. Afirma a opção preferencial
de Deus pelos pobres (GUTIERREZ, 1975, p. 23), com base em tex-
tos bíblicos13 que enfatizam a justiça de Deus para com aquelas/es
que historicamente sofreram exclusões. Isso não significa que
o amor de Deus seja exclusivo, pelo contrário; Deus ama tanto a
humanidade que é desejo de Deus trazer igualdade. O Reino de
Deus, para as/os teólogas/os da Libertação, passa a ser uma meta a
perseguir nesta vida, por meio de ações proféticas que mobilizam os
cristãos a se organizar e lutar por uma mudança positiva que apro-
xime este mundo da vontade de Deus. É também uma teologia de
esperança (ALVES, 1969, p. 19). Como consequência dessa linha de
pensamento, a mobilização política contra líderes injustos também

13 Por exemplo: Êxodo 22, 20-26, Jó 34, 20-28, Isaías 58, 5-7 e Lucas 4, 16-21

A encarnação da liturgia 53
tem sido comum entre os círculos liberacionistas, e até mesmo as
estruturas da igreja se adaptaram a uma forma mais igualitária de se
relacionar com as pessoas de forma teológica, litúrgica e pastoral.
Segundo Leonardo Boff (1969), a TdlL passou por quatro gera-
ções com nomes diferentes: 1. gestação e gênese, 2. difusão e cres-
cimento, 3. consolidação e revisão, e 4. novo impulso. É importante
levar em consideração todas essas etapas, pois apenas a última quis
aprofundar temas como a Teologia Feminista, a Teologia Queer e
a Ecoteologia. Muitas vezes, porém, a TdlL foi criticada por flertar
com o academicismo. A contribuição da Pedagogia do Oprimido,
proposta por Paulo Freire, ajuda-nos a sair um pouco do mundo
epistemologicamente europeu da academia (e a necessidade de
validação da TdlL por meio dela) e pensar em uma teologia essen-
cialmente decolonial e prática para os povos latinos.
O paradigma da opção preferencial de Deus pelas/os opri-
midas/os continua, mas a Teologia Decolonial nos convida a
ouvi-las/os e a trabalhar com elas/es, cujas culturas sempre foram
isoladas e rejeitadas, para a construção de um cristianismo latino,
ecumênico e plural. Isso permeia não apenas como lemos a Bíblia,
mas também como oramos, louvamos e nos organizamos como
comunidades de fé. O método histórico-crítico pode ser importante,
mas a interpretação popular da diversidade cultural latina também
precisa ser considerada. A liturgia da Igreja e suas formas podem
ser importantes, mas precisam ser adaptadas às muitas expressões
culturais existentes. E também a estrutura da nossa Igreja, baseada
no modelo canônico europeu, precisa ser revisitada para garantir
uma distribuição igualitária e respeitosa do poder a todos os povos,
cores, gêneros e culturas.

54 Juan Oliver & Luiz Coelho


III. O PODER HORIZONTAL: TESTEMUNHO DO EVANGELHO

A Igreja horizontal, ou a Igreja onde o poder é distribuído


entre todas as pessoas, não segue uma epistemologia europeia. Não
está na modernidade, está no Evangelho.
A Igreja horizontal deve, portanto, ser culturalmente menos
eurocêntrica e mais diversificada. Por meio do estudo da Bíblia, da
liturgia e da governança da Igreja, temos que ouvir não apenas as
vozes dos líderes que refletem a epistemologia europeia, nem as
vozes das elites latinas14 que muitas vezes pensam que realmente
sabem o que é inculturando a Igreja (mas apenas acrescentam ele-
mentos estéticos a ela). É preciso ouvir todas as vozes de todo o
povo de Deus: horizontalizar a Igreja. E isso significa que às vezes
nós, que estamos nos círculos acadêmicos, temos que ficar calados
e ouvir intencionalmente as mulheres, os povos indígenas e afro-
latinos e as minorias de gênero e sexuais.
Por isso, precisamos fazer perguntas difíceis, como... Por que
a maioria de nossos bispos ainda são homens, depois de quase qua-
renta anos de ordenações femininas na América Latina? Por que o
modelo de episcopado nas dioceses latinas ainda está tão centrado
em torno do bispo, que muitas vezes carrega o título colonial de
“Dom”?15 Por que em nossas igrejas, muitas vezes, o presbítero
(geralmente um homem) dá a última palavra? E por que a participa-
ção de leigas/os em nossas igrejas ainda é tão limitada?

14 Como eu, de origem luso-hispânica, tenho educação formal e sou considerado


branco em um contexto latino.
15 O título Dom vem da tradição colonial ibérica, mas não tem equivalente na Comu-
nhão Anglicana. Um bispo é o Reverendíssimo, mas nunca Senhor ou Senhora.
É uma tradição que reflete um modelo monárquico de episcopado, como o
implementado pela Igreja Católica Romana nas colônias ibero-americanas.

A encarnação da liturgia 55
IV. A LITURGIA HORIZONTAL: COMO IDENTIFICAR E ABOLIR A VER-
TICALIZAÇÃO DO PODER

Anscar Chupungco (2006, p. 153; 1988, pp. 337-340) oferece


dois caminhos básicos pelos quais a inculturação pode ocorrer com
segurança: a assimilação criativa, que adapta elementos culturais
derivados de fontes diversas e não contradizem o caráter cristão da
liturgia; e a equivalência dinâmica, que investiga o que existe nas
liturgias cristãs (o ordo) e permite que se expresse nos costumes,
símbolos e elementos de uma cultura local. Enquanto isso, para
que possamos realmente inculturar nossa liturgia, é importante
que identifiquemos elementos de verticalização do poder nela e os
removamos para que seja possível discernir o que é cultural e o que
é patrimônio colonial em nossas culturas. Ou seja, para que incultu-
remos o melhor de nossas culturas, e não os elementos venenosos
de poder que ainda existem.
Nossos textos litúrgicos ainda usam o pior das línguas neo-
latinas: seu sexismo, inerente e escondido sob o que chamamos
de “norma culta da língua”. Há algum tempo, os círculos liberais
e feministas tentam superar o masculino neutro com expres-
sões como x, @ e e. Tornou-se comum ver termos como tod@s,
amigxs ou latine. Essas opções não são práticas para uso litúrgico,
mas tentam abordar uma questão que muitas vezes é ignorada por
nossas comunidades: o poder da linguagem como um transmissor
de sexismo estrutural e institucional. Quando usamos expressões
como “ela é médico” (em espanhol), ou “todos os que estão aí”
(mesmo que sejam 99 mulheres e um homem, ou 999 mulheres e
um homem, ou 999.999 mulheres e um homem ...), ou – na litur-
gia – nossos textos que mencionam “o celebrante” ou “o ministro”
“o bispo”, estamos enfatizando em nossas próprias palavras uma

56 Juan Oliver & Luiz Coelho


cosmovisão que assume que ser homem é um padrão e ser mulher
é uma exceção.
O uso exagerado de maiúsculas para se referir a Deus tam-
bém comunica uma cristologia elevada e ascendente: é um Deus
que está muito longe de nós. Os pronomes em letras maiúsculas,
como Tu, Ele, Te, Lhe e outros, nada acrescentam à compreensão
do texto, mas aumentam a distância entre o povo e seu Deus. A
tradição anglicana nos oferece muitas coletas a um Deus “Todo-
Poderoso”, sempre se referindo a ele como masculino, embora a
Bíblia e a tradição nos ofereçam outras opções no feminino. A lin-
guagem tradicional, muito formal e cheia de inversões de frases, é
de difícil compreensão para pessoas sem educação formal, dificulta
a descrição para pessoas com deficiência visual ou sua interpretação
na linguagem de sinais.
É possível, no entanto, tentar contornar todos esses proble-
mas, mantendo as regras oficiais da língua, e chegar a um texto
menos sexista, mais claro e simples, mas bonito e culturalmente
adequado16. Para isso, nossas comissões devem incluir nosso povo
em sua diversidade, aprender como oram, como clamam a Deus, e
explorar opções mais criativas para o uso expansivo da linguagem
(no que se refere ao Sagrado e à humanidade). E sempre, sempre se
pergunte: “Como os oprimidos leem esse texto? Eles se veem nele?”
E nossos espaços litúrgicos? Muitos são adaptações pouco
criativas de edifícios antigos às propostas do Movimento Litúrgico.
Antes dele, os altares ficavam na extremidade oriental, e todas

16 O novo Livro de Oração Comum da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (2015)


tenta, no mínimo, reduzir ao máximo o uso sexista da língua portuguesa, e
busca oferecer uma linguagem mais simples (embora formal) e uma diversidade
de formas de referir-se a Deus – no masculino e no feminino.

A encarnação da liturgia 57
as pessoas oravam olhando na mesma direção. Pelo menos havia
algum tipo de coerência. Agora, a maioria de nós concorda que é
possível celebrar a missa mais perto da cidade, com altares versus
populum. Mas o que aconteceu em muitas de nossas igrejas? Os alta-
res foram movidos, mas só um pouco. Todas as divisões espaciais
possíveis que isolam os ministros do resto da assembleia perma-
necem, limitando assim a participação física dos fiéis. As escadas,
áreas de comunhão e plataformas servem como barreiras que colo-
cam as pessoas “em seus devidos lugares” e criam uma divisão sim-
bólica entre dois grupos diferentes de pessoas. As pessoas “do lado
do altar” recebem toda a atenção e perpetuam profundas divisões
hierárquicas. A quantidade de elementos artísticos e decorativos
encontrados ao redor do altar cria uma tensão visual que desorienta
as pessoas da ação litúrgica principal e limita o cenário à “área do
altar” ao invés do povo de Deus.
Mesmo os novos edifícios insistem em uma plataforma ele-
vada para o altar, o que não é muito útil em pequenas igrejas em uma
época em que bons sistemas de som estão disponíveis. Se o espaço
litúrgico for amplo e não superlotado, o altar será claramente visível
de longe sem a necessidade de plataforma, o que pode promover o
entendimento de que uma área específica do espaço de culto é um
palco ou plataforma de conferência, e o resto é uma mera audiência.
Um espaço polivalente, onde todos os móveis sagrados são colo-
cados no mesmo nível e podem ser movidos livremente para dife-
rentes propósitos, alinha todo o povo de Deus horizontalmente e
é mais adequado para a metáfora de uma sala comum em uma casa
sagrada. Também é adequado para fins práticos inclusivos, como
permitir que pessoas com deficiência sirvam no altar. E é hora de
remover tronos e outras referências imperiais ao papel do presi-

58 Juan Oliver & Luiz Coelho


dente. Se o presidente for um entre muitos (ADAMS, 1995, p. 13) e
se a assembleia for o local principal da Igreja (CHAUVET, 2001, pp.
25-26), essa pessoa deve sentar-se no mesmo tipo de cadeira geral
fornecida aos demais, e o mais próximo deles.
As imagens sagradas devem ter um significado simbólico,
mas também culturalmente sensível. Não existe arte sacra “alta”
ou “baixa”. Existe arte sacra. Se conecta os fiéis a Deus, então é
adequada ao propósito para o qual foi criada. Imagens devocionais
populares que centralizam o Evangelho devem ser incentivadas,
independentemente do seu estilo ou formação cultural.
E como serão a música litúrgica e a pregação neste novo con-
texto? Algumas das questões relativas ao uso de linguagem inclusiva
já foram propostas nesta apresentação. Mas eu gostaria apenas de
sugerir brevemente que usar ritmos musicais populares não signi-
fica necessariamente inculturação. É necessário que a performance,
os instrumentos musicais e as letras sejam autênticos, assim como
aqueles que compõem essas peças musicais. Isso vale também para
homilias e leituras, que não devem seguir as instruções dos manuais
anglo-saxões, e sim nossa forma de apresentar, falar em público e
apresentar uma ideia. Mas essas questões, eu as deixo em aberto
para uma discussão mais aprofundada. Por enquanto, reflitamos:
o que devemos retirar de nossa liturgia para torná-la horizontal e
inculturada?

REFERÊNCIAS

ADAMS, William Seth. Shaped by images: one who presides. New York:


Church Hymnal Corp., 1995.
ALVES, Rubem. A Theology of Human Hope. New York: Corpus Books, 1969.

A encarnação da liturgia 59
BOFF, Leonardo, ed., A Teologia da Libertação Balanços e Perspectivas. São
Paulo: Ática, 1996.
CHAUVET, Louis-Marie. The sacraments: the Word of God at the mercy of the
body. Collegeville, MN: Liturgical Press, 2001.
CHUPUNGCO, Anscar J Handbook for liturgical studies. Volume II. Collegeville:
Liturgical Press, 2016
CHUPUNGCO, Anscar J. Liturgies of the future: the process and methods of
Inculturation. New York: Paulist Press, 2006.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1972
GUTIERREZ, Gustavo. Teología de la Liberación. Salamanca: Sígueme, 1975.
LIVRO DE ORAÇÃO COMUM DA IGREJA EPISCOPAL ANGLICANA DO BRASIL.
São Paulo: Paulus Gráfica, 2015
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Buenos Aires:
CLASO, 2014.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder: Eurocentrismo y Latinoamérica.
Buenos Aires: CLASO, 2005.

60 Juan Oliver & Luiz Coelho


Resposta
Liturgia, inculturação e poder

Damaris De Jesús-Carrasquillo17

Agradeço profundamente o convite. É um privilégio que


as pessoas que respeito e admiro acreditem que minhas ideias
merecem ser ouvidas.
É no meu processo de busca da intimidade com o Deus
que ama, liberta e dá vida, que a escrita do nosso querido Luiz
chega às minhas mãos. Sem dúvida, ele nos presenteou com um
texto de conteúdo poderoso, digno de ser lido, relido, analisado
e colocado em prática. É uma apresentação de qualidade e pro-
fundidade acadêmica, mas também simples, clara e compreensí-
vel para pessoas de diferentes níveis de formação.

17 Dra Damaris De Jesus-Carrasquillo é porto-riquenha. Psicóloga Clínica


e Organizacional. Professora da Universidade de Porto Rico, Campus da
Carolina. Ela participa como voluntária em organizações de base comu-
nitária. Ela freqüenta a Catedral de San Juan Bautista, Igreja Episcopal,
Diocese de Porto Rico. Ela colaborou em várias iniciativas e projetos de
evangelismo em sua diocese e no Ministério Latino Hispânico da Igreja
Episcopal. Alguns tópicos de interesse são: Inteligência Emocional, Lide-
rança, Qualidade de Vida, Psicologia da Saúde, Gênero e Espiritualidade.
Ele vive em Canóvanas, Porto Rico, com seus filhos e animais de estimação.
Ela descreve sua missão de vida como “Servir, Amar, Inspirar, Transcender”.

A encarnação da liturgia 61
Vou usar como guia para minha apresentação a pergunta
final que Luiz nos faz ao final de sua apresentação: o que devemos
retirar de nossa liturgia para torná-la horizontal e inculturada? É
um final estratégico: tente nos levar à ação. Bom trabalho! Tra-
tarei primeiro dos conceitos de inculturação e horizontalidade
do poder, depois compartilharei algumas ideias específicas que
buscam responder à pergunta de Luiz.

I. CONCEITOS BÁSICOS

Inculturação. Harmonizar fé e cultura não é uma tarefa


fácil. A cultura é dinâmica e em constante transformação. A Fé
... depende de quem a descreve. Algumas pessoas (infelizmente,
acho que a maioria) não reconhecem o dinamismo na fé. Eles
acreditam firmemente que Deus já disse o que tinha a dizer e
que a História da Salvação já foi escrita até seu ponto final.
Este é um desafio que devemos enfrentar com urgên-
cia: construir uma cultura litúrgica que considere o dinamismo
divino; um Deus que hoje se relaciona com seu povo; que nos
leva a assumir uma abertura total para amar a nossa liturgia e
reconhecer o que funciona para preservá-la como um tesouro;
e, ao mesmo tempo, criar espaços para gerar novos caminhos
e formas de culto, inspirados no Deus que nos fala através de
nossa identidade cultural.
Luiz se refere a um “mosaico latino-americano”, figura
literária de grande utilidade para expressar a diversidade vista
como riqueza, não como limitação. Isso me trouxe à mente um
exemplo de Stephen Covey, um dos meus autores favoritos.

62 Juan Oliver & Luiz Coelho


Ele diz que podemos ser uma salada de frutas em vez de um
purê. No purê todas as frutas se dissolvem, são amassadas e não
podemos distinguir sabores, formas ou cores. Por outro lado, na
salada de frutas desfrutamos de uma iguaria deliciosa, que além
de ter um gosto bom, é agradável aos olhos. Assim deve ser
nosso mosaico latino-americano, social e liturgicamente. Pode-
mos adorar juntos sem perder nossa identidade particular.
Isso requer abertura, humildade e amor, para reconhecer
a riqueza da nossa própria cultura e a de outros povos. Neste
processo, devemos ter cuidado. Deve haver, na nossa liturgia,
elementos úteis e inspiradores que, embora não correspondam
propriamente à nossa identidade cultural, enriquecem a nossa
experiência de intimidade com Deus e com os nossos irmãos.
Esses elementos merecem ser preservados, talvez enriquecidos
ao alinhá-los à nossa identidade cultural.
Concluo a análise deste termo, “inculturar”, enfatizando
a necessidade de a Igreja entrar em todas as áreas da vida dos
povos que serve. Isso inclui enriquecer a cultura, honrar nosso
patrimônio, fortalecer nossas heranças e nossa identidade.
Em minha amada ilha, Porto Rico, tivemos um profeta
da justiça social. Alguns se lembrarão de seu nome: Bispo Reus
Froylán. Em sua época, ele fez referência à relação colonial de
Porto Rico com os Estados Unidos (que continua até hoje, e
continuamos a ser uma colônia ou território, escolha o termo
que quiser). Em meio a esse cenário, o Bispo Reus propôs que
as Igrejas buscassem, preservassem e estimulassem a cultura,
tanto dentro de si quanto no meio social mais amplo, a fim

A encarnação da liturgia 63
de fazer frente ao “ataque cultural” que estava vivenciando ...
Vamos refletir.
Horizontalidade. Quanto à horizontalidade, concordo
com a proposta de Luiz: Uma Igreja com o exercício de poder
horizontal, em vez de vertical, seria mais rica culturalmente e
mais em sintonia com o modelo evangélico que vivemos con-
tinuamente em cada celebração litúrgica. A liturgia pode ser
um veículo de distribuição de poder entre o povo de Deus,
em todos os níveis. No entanto, me pergunto se a solução é
horizontal. Não estaríamos impondo uma solução a grupos e
indivíduos sem poder na Igreja? Seria possível construir novos
modelos e alternativas COM eles?
Por outro lado, a liderança oficial de nossas igrejas está
disposta a compartilhar o poder? Não há necessidade de ofici-
nas especializadas de liderança. Em vez disso, é necessário exa-
minar a liderança de Jesus. É necessário que nós, povo de Deus
sem acesso ao poder oficial, amemos e promovamos o cresci-
mento de nossas lideranças. Claro, dentro de nossas possibilida-
des. Ao mesmo tempo, é necessário que as/os poderosas/os da
Igreja decidam intencionalmente assumir como meta comparti-
lhar o poder com as/os oprimidas/os, as/os necessitadas/os e as
pessoas pobres de espírito. Com aquelas pessoas que podemos
encontrar nas nossas Igrejas, porque às vezes a própria Igreja é
a opressora.
Esta nova distribuição de poder deve ser apreciada na
liturgia. Aqui estão as “perguntas difíceis” que Luiz colocou.
Acrescento outras: por que em algumas de nossas Igrejas o pro-
cesso vocacional de uma mulher é mais difícil do que o de um

64 Juan Oliver & Luiz Coelho


homem? Por que vivemos em uma dissonância cognitiva em
que promovemos a vida humana como uma dádiva e ao mesmo
tempo a vemos como uma limitação para as mulheres que são
chamadas a uma vida ordenada?
Não posso deixar de mencionar, ainda que brevemente,
um assunto delicado: a relação das chamadas “igrejas filhas”
com as “igrejas mães”. A horizontalidade é necessária desde
as mais altas esferas eclesiásticas. Vejamos este exemplo: O
idioma oficial da Igreja Episcopal é o inglês, mas nem todos os
grupos e comunidades são fluentes nessa língua. Certamente
houve boas tentativas de facilitar as traduções, por exemplo,
para aqueles cujo idioma principal é o espanhol. Acredito firme-
mente que elas não são suficientes.
O poder está centrado em quem pode ter acesso ao
idioma oficial, deixando outros grupos sem acesso à essência
da mensagem. As traduções do Google são úteis, mas limitadas
e geralmente contêm erros e não expressam a essência do que
está sendo dito. O perigo é que a experiência na liturgia está em
jogo e aqueles que não falam o idioma oficial podem ser trata-
dos como “paroquianos de segunda categoria”.
É possível transformar o poder vertical institucional em
um horizontal que reconheça a linguagem e outros elementos
culturais de todos os grupos que compõem a Igreja? A imagem
de mãe e filha aponta para uma relação colonial que requer
transformação. Quantos grupos se sentiriam realmente “bem-
vindos” se lhes dermos o poder de sua língua materna? Quão
difícil pode ser incluir intencionalmente traduções, interpreta-

A encarnação da liturgia 65
ções, linguagem de sinais e tudo o mais que for necessário para
honrar a diversidade?

II. PROPOSTAS

Tendo discutido essas pinceladas sobre o poder horizon-


tal e a inculturação, agora compartilharei algumas propostas
para operacionalizar iniciativas. Não pretendo oferecer soluções
concretas, mas sim compartilhar ideias para que todas/os, em
seu ambiente e realidade, as considerem como o primeiro passo
para iniciar a análise reflexiva.
Espaços litúrgicos. Destaco a abordagem de como nos-
sos espaços litúrgicos contêm “barreiras” que separam e distan-
ciam alguns grupos da tão desejada mesa. Para viabilizar o que
cantamos “À volta da tua mesa viemos festejar”, é necessário
repensar a utilização dos espaços que já temos e, sobretudo, a
concepção de novos espaços.
Um passo inicial pode ser trabalhar com os comitês res-
ponsáveis pelas novas construções. E se integrarmos membros
que têm conhecimento e, em particular, uma visão evangélica
horizontal e decolonial sobre a liturgia? Qual é a utilidade de
ter belos templos que não respondem às necessidades litúrgicas
do povo de Deus?
Luiz cita o conceito de espaços “polivalentes”. Dados os
desafios econômicos e de membros que a Igreja enfrenta, vale
a pena examinar alternativas como essa. Mas há um motivo
poderoso que Luiz propõe: espaços como esses permitiriam
que pessoas com deficiência ou limitações físicas se aproxi-

66 Juan Oliver & Luiz Coelho


massem livremente do altar. Você pode imaginar um espaço
litúrgico onde possamos adorar sem limites físicos ou barreiras
arquitetônicas?
Parece-me que a apresentação flerta com um desafio à
humildade evangélica de nossos líderes oficiais em nossos espa-
ços litúrgicos. Limito-me a chamar você, quando tiver acesso ao
escrito, a rever o convite para retirar tronos e outras referências
imperiais de nossos templos, para que quem celebre seja real-
mente “um entre muitos”.
Textos litúrgicos e linguagem. É difícil abordar este
aspecto, porque em minha opinião exige soluções específicas
para cada grupo, de acordo com sua realidade social e cultural.
No entanto, destaco a posição do Bispo Wilfrido Ramos-Orench,
que me ensinou que os textos litúrgicos e a linguagem estão a
serviço do povo de Deus. Por isso, embora em Porto Rico não
usemos o termo “Diácona” para nos referirmos a uma mulher
ordenada ao diaconado, quando encontro irmãs de outras
dioceses, com muito respeito e amor, me refiro a elas como
“Diáconas”.
E se deixarmos de lado a opinião dos especialistas em
línguas, que são em sua maioria homens, e dermos prioridade à
análise do impacto que ela pode ter em nossa liturgia? Por outro
lado, é possível que, como dizemos em psicologia, produzamos
textos litúrgicos “culturalmente sensíveis” para nosso povo?
É possível promover e encorajar todo o povo de Deus a
“fazer teologia”? Convido você a conhecer o modelo utilizado
pela Academia Ecumênica de Liderança, promovida pelo Ministé-
rio Hispânico da Igreja Episcopal, em colaboração com a Igreja

A encarnação da liturgia 67
Luterana. Facilita que lideranças leigas possam, entre outras coi-
sas, conduzir reflexões teológicas que consistem em ouvir a voz
de Deus em nossa vida atual. Sem a necessidade de mestrados
ou doutorados.
Imagens sagradas. Acho que a questão da idolatria da
imagem está superada, pelo menos de modo geral. (Se este não
for o caso em sua comunidade, certifique-se de esclarecer esta
questão básica.) Portanto, proponho usar como guia, como cri-
tério para a tomada de decisões, o que é proposto na apresen-
tação: se conecta os fiéis a Deus, então se encaixa ao propósito com
o qual foi criado.
Há muitos aspectos a serem mencionados: os estilos de
celebração com nossos meninos e meninas, com nossos jovens,
com nossos enfermos, etc. Cabe a cada um aprofundar e agir.
Termino partilhando as palavras do teólogo Jorge L. Bar-
deguez: “Devemos desenvolver uma Teologia da Descolonização
... O Cristo libertador deve ser também um Cristo descoloniza-
dor”. Este grande teólogo propôs que a teologia em uma colô-
nia é sempre uma teologia colonizada. Agradeço, portanto, a
apresentação de Luiz e, seguindo seu exemplo, compartilho
uma última pergunta: não é hora de criar uma nova teologia
que responda à nossa identidade e cultura? O que estamos
esperando?

68 Juan Oliver & Luiz Coelho


Resposta
Liturgia, inculturação e poder

Sandra Teresa Montes18

É um prazer estar com vocês, principalmente poder ofe-


recer minhas reflexões sobre a apresentação do Rev. Dr. Luiz
Coelho. E é um grande prazer poder compartilhar esses pensa-
mentos com a Dra. Damaris De Jesús-Carrasquillo.
É interessante que essas perguntas que o Dr. Coelho faz
sejam feitas diariamente à Igreja Episcopal de língua inglesa nos
Estados Unidos. Porque quase nunca me vi na liderança ou na
liturgia, ou arte ou música na Igreja Episcopal de língua inglesa
nos Estados Unidos. Lembro quando soube que uma igreja em
Nova York iria celebrar o Senhor dos Milagres – algo meramente
peruano – em uma igreja episcopal. Descobri tarde demais e
não pude comparecer. Mas meu coração ficou muito tocado e
um dia espero chegar lá. Senti-me valorizada e como se minha

18 Sandra T. Montes tem doutorado em educação, é Deã de Adoração no


Seminário Teológico da União, e seu livro bilíngüe Becoming REAL and
Thriving in Ministry foi publicado em maio de 2020.

A encarnação da liturgia 69
cultura não fosse isolada e rejeitada como quase sempre o é
quando participo de uma missa episcopal.
Um grande erro que vejo na Igreja Episcopal dos Estados
Unidos quando tenta inculturar-se na cultura latina ou quando
tenta integrar quem fala espanhol é que nos colocam em uma
caixinha mexicana muito bonita, com celebrações à Virgem
de Guadalupe e arte que reflete uma caracterização mexicana
ou católica romana. Já repeti várias vezes que se deseja me
receber em uma igreja maioritariamente anglo-saxã, que não
seja com mariachis, a Guadalupana ou tacos, pois essas coisas,
embora belas e importantes, não chamam o peruano dentro
de mim. A inculturação de que precisamos vai muito além do
que nos foi ensinado nos cursos dos seminários episcopais ou
nos livros.
O que tenho observado na Igreja Episcopal, nos Estados
Unidos e em outros países, é que parece que tudo é desenhado
como uma flecha apontando para a liderança dos homens. É
como se as mulheres não existissem senão para ser a ajuda
“ideal” e para limpar, arrumar, cozinhar e ajudar em segundo
plano – que não somos ouvidas e às vezes até não somos vis-
tas. Agora, antes que você comece a me dizer que as mulheres
podem ser presbíteras, bispas, ministras, etc. na Igreja Episco-
pal, direi que sei tudo isso, pois estou na Igreja como líder há
mais de 20 anos. E em todo esse tempo e nos últimos 10 anos, vi
a diferença entre a forma como os homens são tratados e como
as mulheres são tratadas. Amo a Igreja Episcopal e é por isso que
fico aqui e procuro fazer o que posso para que ela continue a

70 Juan Oliver & Luiz Coelho


evoluir. Não tem sido fácil, ser franca tem me custado amigas/os,
oportunidades, empregos, embora quase diariamente veja lem-
bretes nas redes sociais ou nos meus e-mails de que podemos
melhorar.
Concordo plenamente que a liturgia, a missa, deve ser
horizontal. Mas como podemos implementar isso? Precisamos
de líderes que sejam maduros o suficiente (como diz Pablo) para
que não fiquem ressentidos e não entrem em pânico quando
forem convidadas/os a ficar ao lado para que alguém mais jovem,
feminino ou trans, etc. possa tomar as rédeas, possa ser vistas/o
como parte da liderança. Devemos ter um compromisso com o
evangelho para colocar as necessidades da comunidade antes
de nossas necessidades de ter a maior igreja ou a diocese mais
conhecida ou ter mais seguidores no YouTube.
É interessante que nossa cultura seja matriarcal, já que a
mãe é a pessoa mais importante em nossas famílias. Nos Esta-
dos Unidos existe um grupo de pessoas que tenta eliminar a
celebração das mães no Dia das Mães, mas sempre peço que não
o façam nos cultos em espanhol porque, como dizem, só existe
uma mãe, e nós a veneramos. A avó é a personagem que está
sempre na frente das famílias. A mãe é tão importante, como já
foi dito, que até Deus quis ter uma.
E, no entanto, mesmo quando Maria é tão venerada, em
todas as suas aparições e milagres, especialmente em nossos
países – poderíamos citar vários agora – Nossa Senhora de Luján,
a Virgem de Aparecida, a Virgem de Chiquinquirá, a Virgem de
Altagracia, a Virgem da Misericórdia ... Ainda não valorizamos

A encarnação da liturgia 71
as mulheres como rainhas que somos. Somos maltratadas, estu-
pradas, abandonadas, mortas e, infelizmente, na igreja somos
ignoradas e silenciadas. No momento, estamos ouvindo falar
de violência contra mulheres em locais de detenção dos EUA –
histerectomias realizadas sem permissão. Mas, na igreja, a vio-
lência também é feita contra nós. Já ouvi pastores dizerem às
mulheres para não se divorciarem ou deixarem seus maridos,
mesmo quando estes foram infiéis a elas ou as maltrataram em
pensamentos, palavras e ações. Somos convidadas a fazer parte
da irmandade do altar ou mesmo de leitores, mas por que não
estamos treinando mulheres desde meninas para fazer parte do
ministério ordenado – parece que o ministério ordenado para
mulheres é o de serem ordenadas – em casa, com filhos e filhas,
apoiando seus maridos e muito mais.
Deus nos criou para sermos as doadoras de vida neste
mundo. Jesus (Deus no mundo, Deus humano, Deus de carne
e sangue, Deus feminino) amou tanto a mulher que a defen-
deu, foram suas amigas, falava com elas, deu a uma mulher o
privilégio de vê-lo ressuscitado antes que outros – antes que
um homem – o vissem. Mas, mesmo assim, por que nos é dado
tão pouco poder nas igrejas, dioceses, etc. Por que somos
temidas?
Sobre música, – um assunto de extrema importância para
mim: a Bíblia diz para cantar salmos, cantar com alegria, cantar
canções espirituais, cantar louvores e cantar as maravilhas de
Deus, usar harpa, melodias, lira, flautas, cordas, pandeiros, pra-
tos e címbalos retumbantes e brilhantes, diz que dancemos, que

72 Juan Oliver & Luiz Coelho


cantemos seu amor e justiça com gratidão, uma nova canção e
eu poderia continuar por horas. O que não diz – pelo menos na
minha Bíblia – é que temos que usar este ou outro instrumento
apenas ou que temos que usar apenas um tipo de melodia, nem
que não pode ser um pop ou rock ou huayno ou cumbia, etc.
Mas o homem, sim, o homem fez regras muito limitadas e mui-
tas pessoas aderem a essas crenças sem pensar que tornamos
opacas as vozes de muitas pessoas, incluindo muitas mulheres,
povos indígenas, pobres, marginalizadas/os, pessoas que não
têm educação formal, mesmo que tenham talento…
Algo que o Rev. Dr. Coelho menciona em sua conferência
acima é “o melhor que nossos povos têm oferecido em adoração
e louvor a Deus”. Isso me faz pensar por que precisamos dar
valor à adoração e ao louvor a Deus usando uma palavra como
“melhor”. Parece-me que este uso das palavras e aquele pen-
samento – que já ouvi várias vezes – é um problema de poder
– quem decide se algo é o melhor? Quem define a medida? Já
ouvi pessoas dizerem que não se pode usar uma música ou ins-
trumento indígena porque não é “o melhor” que existe. Ou que
não podemos usar liturgias escritas por pessoas que não têm
educação formal porque não são “bem escritas”, e assim por
diante.
Tanto a nossa Igreja quanto nossos povos, como refe-
riu o Rev. Dr. Coelho, padecem do pecado do clericalismo,
machismo, sexismo e preconceitos tão arraigados na cul-
tura colonial. Disseram-nos repetidamente que o homem é a
cabeça do lar, que o homem deve chefiar as igrejas. Vejo tan-

A encarnação da liturgia 73
tos leigos e clérigos entusiasmados quando sabem que nos
Estados Unidos temos uma bispa primaz ou outras bispas e
uma reitora, mas não queremos que isso aconteça em nossos
próprios países.
Hoje não seremos capazes de resolver a questão da falta
de mulheres em cargos importantes – e quero dizer cargos de
tomada de decisão e posições onde as normas na Igreja podem
mudar – porque sabemos que tudo o que fazemos é importante,
mas espero que possamos começar a ter essas conversas aber-
tas, necessárias e úteis e vamos começar a ver o que podemos
fazer em nossos próprios contextos para alçar as mulheres a
posições elevadas. Talvez um ou outro bispo ou presbítero
tenha que decidir que já basta ter o mesmo bispo em uma dio-
cese, e que é a vez de outra pessoa chamada por Deus – que na
Igreja Episcopal inclui mulheres, lgbts, etc. – assumir o controle
e fazer alterações. Não vai ser fácil e tenho certeza de que há
pessoas aqui que não querem essas mudanças – mas, se formos
obedientes a Deus, seguiremos sua liderança.
Eu vi vários escritos em espanhol. E tenho certeza de
que todos nós usamos diferentes dialetos do espanhol aqui –
e uma variedade de maneiras de usar o espanhol inclusivo ou
não. Então, eu me pergunto – por que tentamos proteger uma
língua colonizadora e não “danificá-la” com o x ou a arroba,
mas não pensamos que o espanhol seja uma língua orgânica,
viva, e espero que continue crescendo, como cada uma de nós
aqui presentes. Na América Latina, como nos Estados Unidos,
o colonialismo atende pessoas que consideramos de classe

74 Juan Oliver & Luiz Coelho


alta ou pessoas brancas (especialmente nos Estados Unidos).
Ao começarmos a pensar em nos decolonizar, vamos nos lem-
brar do espanhol, do vestuário, da sexualidade, dos rituais, da
religião e até mesmo de como vemos nosso papel na igreja e
no mundo. “Quem disse que você estava nu?” Deus pergunta
a Adão e sinto como se ele perguntasse a você e a mim: Quem
disse que você não vale tanto quanto um homem? Quem te
disse que o teu espanhol “mocho”, espanhol mal falado, (como
dizemos em alguns locais) não vale a pena? Quem lhe disse
que você não pode servir como bispa, presbítera, líder leiga
ou qualquer outra coisa? Quem lhe disse que apenas pessoas
heterossexuais podem ler a Bíblia na igreja ou podem batizar
ou liderar?
Não apenas devemos mudar nosso pensamento, mas
também precisamos pensar sobre o que estamos ensinando
às pessoas em nossa formação dominical ou semanal. O que
ensinamos a elas em nossos sermões, o que compartilhamos
nas redes sociais ou com nossa família? Estamos ensinando
que somos pessoas de fé ou pessoas menos do que as pessoas
mais bem preparadas? E quem decide quem está mais bem
preparado?
Como indígena, peruana, morena, conheci o Deus que me
ama como me criou. E esse Deus é o Deus que quero que meu
filho conheça. Ele é um Deus que me ama, que supre minhas
necessidades, que quer me ajudar, que me instrui, que me
coloca em situações para aprender, que quer um futuro para
mim cheio de esperança. Também quero que Deus conheça cada

A encarnação da liturgia 75
pessoa que venha a qualquer lugar onde estou. Não acredito em
um deus que quer que eu seja submissa ou que me cale ou que
pense que as pessoas LGBTQIA+ não deveriam ter os mesmos
direitos das pessoas que se dizem heterossexuais (sim, que se
dizem...). Não acredito em um Deus que pensa que a/o bispa/o
está acima de todas as outras pessoas, mas em um Deus que nos
dá líderes para nos ajudar a nos aproximarmos de Deus, não nos
isolar e não ser humilhadas ou silenciadas.
Não posso deixar de dizer que este Deus que amo é tam-
bém um deus dos meus colonizadores. Há alguns anos venho
buscando, pesquisando e me educando sobre minha cultura reli-
giosa. Mas, como diz minha mãe, acredito em Deus porque o
senti, o experimentei e tenho fé. Tenho certeza de que podemos
manter a religiosidade cristã e nossa religiosidade indígena.
É por isso que não acho que devemos retirar da liturgia, mas
sim adicionar ritos ou rituais, textos, etc. que sejam importan-
tes para as pessoas que servimos. Como as pessoas dizem em
inglês, vamos pensar em “yes, and” “sim e” em vez de “não,
mas” ou “sim, mas”. Deus, o Deus em quem acredito, é um Deus
de “sim, e”, um Deus de abundância, de adição, que tem espaço
e amor para quem quiser se aproximar dele.

76 Juan Oliver & Luiz Coelho


PARA DISCUSSÃO

1. Você consegue identificar os elementos coloniais de sua


cultura que precisam ser removidos da liturgia? Quais são?
2. Quem possui o poder em sua Igreja? O que devemos fazer
para que tal poder seja mais horizontal e compartilhado
por todo o povo de Cristo?
3. Como evitar a folclorização da liturgia (agregando elemen-
tos culturais sem reflexão, como ritmos, música, lenços ou
devoções populares)? Que reflexão teológica é necessária
para que possamos incorporar o melhor de nossas cultu-
ras, sem apenas copiar elementos sem critérios?
4. O que podemos mudar no espaço litúrgico para torná-lo
mais horizontal? Qual é a experiência do seu espaço litúr-
gico? E sobre música e pregação? O que você precisa mu-
dar em seu contexto?
5. O que representatividade significa para você? Como garan-
tir a participação na liturgia de pessoas de origens multié-
tnicas, geracionais, de gênero e culturais que nos questio-
nam sobre esses aspectos?

A encarnação da liturgia 77
3ª Conferência:

06 de outubro de 2020
“A INCULTURAÇÃO DA LITURGIA:
IDEIAS PRÁTICAS”

David Limo19

Embora compartilhemos um único texto do LOC. (Livro de


Oração Comum), Juan Oliver destaca que temos que descobrir que
ele também oferece muitas possibilidades de inculturação. No
entanto, o maior obstáculo para o uso adequado é mais a atitude
das/os presbíteras/os, que aparentemente não conseguem superar
o próprio clericalismo e a co-dependência de um povo passivo que
costumava obedecer sem pensar e celebrar por hábito. Há uma
grande sede de poder e controle entre nós; como nossa falta de
humildade em querer fazer tudo por nós mesmos e nossa incapaci-
dade de pedir conselhos e ajuda.
Por outro lado, observe que algumas igrejas fingem viver no
século XVI. É incrível que ainda haja nostalgia do uso do Rito Sarum

19 Missionário Canônico da Diocese Anglicana do Sudeste do México.

A encarnação da liturgia 79
na liturgia – algo impraticável por ser do século XV e da Inglaterra.
Isso nos lembra que a inculturação da liturgia não pode ser um exer-
cício romântico, ansiando por um tempo e um lugar exóticos, pois a
liturgia não é uma viagem no tempo para outro momento histórico.
Pelo contrário, é uma viagem ao futuro através da vida, crença e
canto do povo celebrante que aqui e agora, ensaia juntos a chegada
do Reino de Deus.
A genuína inculturação coloca-nos frente a frente com a reali-
dade das pessoas que nos precederam, enquanto compreendemos a
dinâmica interna da liturgia. Por exemplo, se não entendermos que
a Eucaristia do ponto de vista histórico é uma ceia partilhada, e que
nessa ceia já se celebra a presença do Reino de Deus, acabaremos
brincando de decoração de interiores, decorando e fazendo coisas
sem julgamento crítico. A inculturação da liturgia não pretende
esbanjar o tesouro de significados de vários séculos; mas devemos
evitar uma liturgia de museu (antiquada), inexpressiva (rotineira) ou
discordante com a cultura de um povo. Na liturgia inculturada, a
tarefa litúrgica pertence a todos, tanto aos formados desde o nasci-
mento e batismo nessa cultura, como aos que a presidem.
Juan Oliver, Angel Rivera e Yanel Valdivia nos perguntam: nos-
sas comunidades anglicanas têm características próprias que nos
permitem falar de uma liturgia caracteristicamente latino-ameri-
cana? Conseguimos entender que mesmo no próprio uso do LOC
que temos atualmente é possível ajudar as pessoas a desenhar cria-
tivamente sua liturgia? De que forma a liturgia pode ser o meio
para encontrar o Jesus operário, camponês, milagroso, revolucio-
nário, em solidariedade com a causa da justiça e da esperança dos
crentes? Estamos em condições de começar a desenvolver um LOC
a partir de, para e com as comunidades latino-americanas e cari-

80 Juan Oliver & Luiz Coelho


benhas, com toda sua diversidade étnica e cultural que faz uso da
linguagem religiosa vernácula de nossos povos? E quais seriam os
elementos, além dos ritos, que refletem o compromisso teológico e
que contribuem para fazer do LOC também um símbolo de unidade
anglicana para a América Latina?

REFERÊNCIAS

EL LIBRO DE ORACIÓN COMÚN,(LOC), según el uso de la TEC, Church Pu-


blishing Incorporated, Nueva York, 1989. https://www.episcopalchurch.
org/what-we-believe/book-common-prayer/. Acesso em: 05 abr. 2021.

A encarnação da liturgia 81
A INCULTURAÇÃO DA LITURGIA:
IDEIAS PRÁTICAS

Juan M. C. Oliver

Boa tarde. É um prazer estar com vocês mais uma vez. Na


minha última conferência vimos o que é a inculturação da liturgia e
por que ela é necessária para a comunicação na liturgia e, portanto,
para a formação do Povo de Deus. Mais tarde, meu colega Luiz Coe-
lho explorou vários aspectos da relação entre inculturação, liberta-
ção, poder e patriarcado.
Hoje eu gostaria de explorar com vocês o processo, as fer-
ramentas e os desafios que temos pela frente, enquanto tentamos
inculturar a liturgia anglicana numa paróquia latina. Vou deixar
de lado o teórico para me concentrar no prático: como inculturar
a liturgia? Vou usar como exemplo A Eucaristia, Rito II porque a
conhecemos bem. Se você tem o Livro de Oração Comum (LOC.,
1989) em mãos, será conveniente consultá-lo, pois para inculturar é
essencial ver o que o LOC requer e o que ele permite como opcional.

82 Juan Oliver & Luiz Coelho


Mas, primeiro, gostaria de revisar alguns critérios gerais sobre a
liturgia cristã, especialmente a anglicana, que informa todo o traba-
lho de inculturação:
1. A liturgia não é um livro, mas um evento composto de sinais
– objetos, ações e pessoas que funcionam como sinais ou símbolos.
2. A liturgia é sempre obra de Deus por meio de toda a Igreja reunida
em assembleia. 3. Portanto, toda a Igreja celebra a liturgia junta,
e todas as pessoas participam. Não há espectadoras/es; não há
uma/um única/o líder, mas vários, de acordo com seus diferentes
dons, e não apenas pessoas ordenadas. 4. A liturgia não vem pronta.
Recebemos apenas o texto. Você tem que organizá-la.

AS AÇÕES DA EUCARISTIA

Cada liturgia tem um “esqueleto” – uma série de ações que


possuem significados. As ações que configuram a Sagrada Eucaristia
Rito II são: em sua primeira parte, A Palavra de Deus, nos encontra-
mos; ouvimos a Palavra; compartilhamos seu significado e oramos
pela Igreja e pelo mundo. Na segunda parte, a Sagrada Comunhão,
trazemos oferendas, damos graças a Deus, compartilhamos a mesa
juntas/os e, finalmente, somos enviadas/os ao mundo em missão.
Contudo, dentro de cada uma dessas ações utilizamos meios de
expressão ainda mais importantes que o texto, pois 90% da comuni-
cação entre os seres humanos é não verbal. Esses meios de expres-
são são: o local, sua disposição e decoração; nossos corpos, seus
movimentos, posturas e gestos (não só de ministros, mas também
do povo); os objetos que usamos; o vestuário; a música, outros sons
e silêncios e, finalmente, os textos – da Bíblia, do LOC (1989) e de
nossas canções. O LOC (1989) não diz quase nada sobre esses meios

A encarnação da liturgia 83
de expressão – apenas fornece o texto – uma vez que o LOC (1989)
precisa servir desde as igrejas anglicanas evangélicas mais protestantes
até as mais anglo-católicas.

AS AÇÕES

As ações da Eucaristia eram originalmente ações do mundo


hebreu e grego para a) orar a Deus e b) ter uma ceia comunitária como
hebreus e gregos. Não somos gregos nem hebreus. Para inculturá-las,
é importante observar como essas ações acontecem na cultura local
e no cotidiano do povo, principalmente em ocasiões especiais.
Vamos agora examinar mais de perto a Santa Eucaristia Rito II,
fazendo-nos algumas questões provocativas. Observe o que minhas
perguntas levantam para você: as ideias, dúvidas e possibilidades
que surgem à medida que examinamos o essencial e o opcional no
LOC. Observe também que, em vez de apenas nos perguntar, o que
a/o presbítera/o faz? Perguntamos primeiro, o que a congregação
faz? Pois é à luz da ação comunitária que as funções de seus líderes
são mais bem compreendidas.

AÇÕES DA PALAVRA DE DEUS

Nos reunimos (LOC., p. 277). Onde e como as pessoas da sua


vizinhança se reúnem para algo especial? Dentro de casa? Do lado
de fora? Todas chegam ao mesmo tempo, ou aos poucos? Cum-
primentam-se quando chegam ou chegam em silêncio? Cantam e
dançam? Como se sentam? Em círculos, olhando uma para a outra?
Ou enfileiradas, todas na mesma direção como em um teatro? Se se
cumprimentam e se reúnem do lado de fora, vocês vão toda/os jun-

84 Juan Oliver & Luiz Coelho


tas/os? Como? Em grupos, ou dois a dois, como pequenos animais
subindo na arca de Noé? Quais objetos podem facilitar esta ação?
Uma bandeira? De alguma forma, as/os líderes sinalizam com certos
emblemas, sinais ou roupas? Precisamos de assentos? Que música
acompanhará esta ação de reunião, ou nos reunimos em silêncio,
por exemplo, na Quaresma? Que palavras vamos usar? Quais são os
elementos essenciais?
No LOC (1989), os elementos essenciais são: UMA aclamação
(por exemplo, “Bendito seja Deus ...”) seguida por uma canção de
louvor (Glória, O Kyrie O Trisagion, OU outra canção de louvor) e a
Coleta do Dia. O hino de entrada e a Coleta da Pureza são opcionais.
Como estruturar essa primeira ação para que a maioria já chegue
antes da primeira leitura? Se todas/os já estiverem reunidas/os (por
exemplo, em um retiro), a entrada pode ser muito mais curta do
que o normal. Se levar muito tempo para que as pessoas se reúnam,
podem ser necessários cantos adicionais antes da aclamação.

Deus fala conosco (LOC., p. 279). Vamos nos perguntar: como


e onde uma mensagem importante é proclamada em seu bairro?
Sussurrando? É anunciada com alguma solenidade? Quem a anun-
cia? De que habilidades a pessoa que anuncia a mensagem precisa
para fazê-la bem e de forma significativa? Onde vai ser procla-
mada? Em uma parte diferente dentro da Igreja, com outra parte
reservada para a Comunhão? De quais objetos precisamos para
a proclamação? Assentos – que tipo de assentos você usa no seu
bairro? Bíblia, ambão ou mesa? Alto-falantes? Como vamos pro-
jetar essas coisas para que pareçam dignas? Como elaborá-las e
decorá-las? Como é que as pessoas do seu bairro prestam atenção
a um grande anúncio? Intervém com aplausos e gritos? Fica óbvio
que o que Deus está anunciando nas leituras são GRANDES notícias? Que

A encarnação da liturgia 85
música vai acompanhar isso, antes, (durante?) e depois? Ou silên-
cio? Qual tradução da Bíblia vamos usar? Queremos destacar a lei-
tura do Evangelho de uma forma especial? Ou não? Por quê? De
onde o evangelho deve ser proclamado para que possa ser visto e
ouvido melhor?

Compartilhamos o significado do que ouvimos. (LOC., p.


280). Como as pessoas da sua vizinhança compartilham o signifi-
cado de um grande anúncio? Uma pessoa explica isso para todas/os?
Ou elas conversam e compartilham seus vários significados? Onde e
como pregamos? Queremos fazer um breve sermão e depois convi-
dar as pessoas a compartilharem suas experiências à luz das leituras
e do sermão? Nos bancos? Sentado em círculos no pátio? Quem vai
facilitar essas conversas?
Depois da Palavra, o Credo segue aos domingos e feriados
importantes – o que não é essencial no restante do tempo.

Oramos pelo mundo e pela Igreja. (LOC., p. 289) É importante


notar que aqui a rubrica diz primeiro: “A oração é oferecida por ...” Nas
rubricas, a primeira opção é sempre a preferida. É desejável que as
pessoas orem livremente por suas necessidades e as do mundo ao
seu redor, em voz alta. Como as pessoas em sua vizinhança oram?
Onde? Quando? Como você decora o local de oração em sua casa?
Que posturas e gestos usam? Elas falam com as imagens em voz
alta? Como você expressa seus pedidos a Deus? Você pode orar
livremente, ex tempore? Como facilitar isso? Quem o lembrará dos
vários tópicos que devemos cobrir? Ou elas precisam de uma forma
escrita? Você pode escrever uma forma local das orações dos fiéis,
talvez sazonalmente? Se isso não for possível, então o LOC oferece

86 Juan Oliver & Luiz Coelho


fórmulas opcionais. O que não é opcional é parar de orar pelo mundo
e pela igreja.
Em seguida, segue a Confissão dos Pecados. (LOC., p. 282).
A rubrica indica que “Em certas ocasiões pode ser omitida”. Quem
decide? --a pessoa que preside.

A Paz. Como as pessoas se cumprimentam no seu bairro?


Abraçando, apertando as mãos, beijando? Queremos cantar durante
esta ação? Dançar? Como indicamos quando termina?

AÇÕES DA SAGRADA COMUNHÃO

Trazemos ofertas. Como as pessoas da vizinhança trazem


presentes ou ofertas para uma ceia compartilhada? Apenas algumas
trazem ofertas em nome de todos ou todas trazem algo? Elas desta-
cam ou decoram suas ofertas de alguma forma? Além de pão, vinho
e dinheiro, o que as pessoas querem oferecer? Até o século VII, toda
a cidade trazia para o altar não apenas vários pães e garrafas de
vinho, mas também alimentos, vegetais, azeitonas, queijo e roupas
para depois compartilhar com os pobres. Como vamos fazer isso?
Em procissão, cantando e dançando todos, ou apenas alguns? Para
quem você dá ofertas? – a rubrica indica que deve ser dirigida dire-
tamente a/ao diácona/o ou, em sua ausência, a/ao presbítera/o. A/O
diácona/o precisa de ajudantes para armazenar o que não vai ser
usado na Eucaristia?
Que coisas vamos usar na Sagrada Comunhão? Pão. Durante
nossos primeiros três séculos, os anglicanos nunca usaram hóstias, mas
pães. Em que prato ou cesta? Qual vinho? Em qual garrafa? A taça
de vidro, cerâmica, prata, ouro? O que a congregação possui? O que

A encarnação da liturgia 87
seu orçamento permite? Do que você gosta? O que eles podem fabricar?
Precisamos de uma mesa. Qual? Com qual toalha de mesa? Quem
vai costurar? Quais decorações? Por que não decorar todo o lugar, e
não apenas a área do altar?
Quando a mesa é posta, a/o diácona/o convida a/o presbítera/o
(que estava modestamente sentado em sua cadeira presidencial) a
se aproximar, e a/o presbítera/o inicia a bênção da mesa ou a Ora-
ção Eucarística. Como as pessoas podem participar melhor disso?
Podem ficar em torno do altar?
O espaço permite isso? Se não, a Santa Mesa pode ser movida
para o centro? Se elas/es vão rodear o altar, quando se aproximam –
trazendo ofertas? Thomas Cranmer – e as/os anglicanas/os até 1662
– faziam assim. Por que hoje não? Como e quando lhes dizemos
para voltar aos seus lugares, ou eles ficam até o fim?

Abençoamos a mesa (Ação de Graças) Como a mesa é aben-


çoada no seu bairro? Com quais movimentos e gestos? É desejável
cantar toda a Oração Eucarística? A/O presbítera/o pode cantar? O
que as pessoas podem fazer durante a Oração Eucarística? Mãos
erguidas? Repetir Amém, em um coro? Que gestos as pessoas podem
fazer? A Oração é a oração de toda a Igreja. O povo a ratifica com seu
Amém. Terminamos com o Pai Nosso. Nós o dizemos? Nós o canta-
mos? Com quais movimentos e gestos?

Partilha do pão Por quê? -- Para que possamos compar-


tilhá-lo. Também como um lembrete da presença do Senhor. Não
faz sentido usar hóstias individuais; Se você tiver que usar hóstias,
é melhor usar hóstias muito grandes e dividi-las entre todos. Então,
faz-se um período de silêncio. E só então é dito: “Cristo, nossa Páscoa
...” É importante não agir como se Cristo estivesse sendo sacrifi-

88 Juan Oliver & Luiz Coelho


cado ao partir o pão. Foi há dois mil anos. O gesto não precisa ser
dramático.

Compartilhamos a ceia. Como você compartilha uma ceia


no seu bairro? Pessoas importantes comem primeiro? Crianças?
Como? Quem facilita isso? Você precisa de ajudantes para apenas
18 pessoas? Na sua vizinhança, como você dá a uma pessoa algo
muito valioso e sagrado? Onde e como eles receberão a comunhão?
Na mesa da comunhão ou um por um, perante os ministros? Ou o
pão e o vinho são levados para onde estão? O que é necessário para
realizar esta ação? Silêncio? Canções? Apenas música?

Somos enviadas/os ao mundo em missão. Na sua vizinhança,


como você envia ou delega alguém com autoridade? (A bênção é
opcional). No século IV, o bispo ou presbítero impunham as mãos
sobre cada paroquiana/o, em silêncio, talvez na porta da igreja.
Como você pode ver, toda ação significativa em uma liturgia
tem muitas, muitas maneiras de ser realizada. E o LOC (1989) as per-
mite, desde que não contradigam as rubricas. Além disso, a Ordem
para Celebrar a Eucaristia (LOC., p. 323) oferece mais liberdades,
apresentando muito pouco texto, mas indicando uma estrutura.
Antes, esta ordem não podia ser celebrada em uma Eucaristia prin-
cipal; – aos domingos e outras ocasiões; mas desde a última Con-
venção Geral da Igreja Episcopal, podemos fazê-lo com a permissão
do bispo.
Antes de concluir, gostaria de sugerir algumas ideias gerais.

Presidentes: (bispas/os e presbíteras/os). Na liturgia anglicana,


a liderança é compartilhada. Por exemplo, quem preside não tem
muito a dizer: só a saudação, a absolvição, talvez o sermão, duas

A encarnação da liturgia 89
coletas e a Oração Eucarística. É tudo. Quando outra pessoa está
fazendo algo (por exemplo, as leituras), ela é o foco de atenção, não
quem preside. No entanto, nosso comportamento de presidência é
um exemplo para todos de como participar. Acima de tudo, quem
preside acolhe a todas/os em nome de Deus, pois somos como íco-
nes a Igreja que acolhe, que é de fato Corpo de Cristo, que acolhe
a todas/os.

Diáconas/os: Eas/les têm muito trabalho! Supervisionam a pre-


paração de tudo o que é necessário para a celebração. Elas/es trei-
nam e supervisionam as/os acólitas/os. Têm o direito de ler ou cantar
o evangelho, receber ofertas diretamente do povo, pôr a mesa, par-
ticipar da comunhão (vinho e pão, conforme necessário), limpar
a mesa, guardar o que sobrar, lavar a louça na hora, ou depois, e
mandar as pessoas em missão. Cantar também a exultação da Vigília
Pascal. Eles podem dirigir as Orações do Povo ou facilitá-las, visto
que devem saber quais são as necessidades do mundo ao seu redor.
Os diáconos são servos, ícones da Igreja servidora, que é o Corpo de
Cristo, servo de todas/os.

Os objetos. O Concílio Vaticano II nos chamou ao uso pleno e


completo dos símbolos, sem abreviações. Água, óleos, pão, vinho,
corporal e purificadores, toalhas de mesa, velas, lustres, a Bíblia,
etc. devem ser reais e utilizados integralmente sem serem abrevia-
dos, bonitos e dignos sem ostentação, de acordo com os critérios locais
e de preferência o trabalho dos artesãos locais para incluir expres-
sões do povo e de sua cultura.

Música e silêncios. Qualquer tipo de música é possível, depen-


dendo do gosto e cultura da congregação. Para os cantos, devemos

90 Juan Oliver & Luiz Coelho


levar em conta três critérios: os temas e as imagens das leituras do
dia; o tempo litúrgico e o momento em que ocorrem dentro da liturgia.

Palavras. Geralmente não é necessário acrescentar admoestações


ou comentários, exceto na homilia e nos anúncios. Além disso, às
vezes a pessoa que preside não precisa pregar ou fazer os anún-
cios; se algo precisa ser explicado, para isso, há o sermão e os
anúncios. Na verdade, faz mais sentido que os diáconos façam os
anúncios, visto que devem saber o que está acontecendo na congre-
gação naquela semana. Devemos também nos perguntar, por que é
necessário explicar isso ou aquilo? Se não for entendido diretamente,
podemos precisar considerar adaptá-lo para torná-lo mais fácil de
entender.
Resumindo: conhecer bem as rubricas do LOC (1989) e poder
ver o povo como ele é, sem projetar e sem impor nossos gostos
pessoais, são os dois principais elementos de um processo de
inculturação.

Diretrizes e desafios. Como você pode ver, a inculturação


não ocorre da noite para o dia. Leva tempo e vontade de expe-
rimentar muitas ideias e rejeitar o que não funciona. Mas, acima
de tudo, se queremos realmente inculturar a liturgia, temos que
aprender a respeitar o gênio ou o espírito do povo que É o Corpo
de Cristo, devolvendo-lhe a voz e a capacidade de se expressar na
liturgia. Como presidentes de congregações, então, nós presbíteras/
os devemos aprender a dizer: “Não sei, o que você acha?” e apoiar
nossas/os paroquianas/os no processo de a) descoberta e b) expres-
sar sua forma de adorar a Deus. Para isso é imprescindível conhecer
bem as estruturas litúrgicas do LOC, ciente de que a tradição angli-
cana não possui um único estilo, mas vários estilos litúrgicos. Isso

A encarnação da liturgia 91
pode ser especialmente chocante para aqueles de nós que vêm de
denominações que têm apenas uma maneira de fazer as coisas.
As congregações não são idênticas, mas diversas. Por isso,
embora tenhamos apenas um texto, o LOC (1989) oferece muitas
possibilidades de inculturação. Talvez durante essa conversa eles
tenham se sentido um pouco desconfortáveis. O que apresentei
às vezes não corresponde às nossas expectativas como clero. Nós,
presbíeras/os especialmente, devemos superar nosso próprio cle-
ricalismo e co-dependência com um povo passivo acostumado a
obedecer sem pensar; nosso machismo e sede de poder e controle;
nossa falta de humildade em querer fazer tudo nós mesmos; não
saber priorizar: o medo dos conflitos e dos leigos ditatoriais; nossa
tendência de abreviar ações e objetos para nossa própria conveni-
ência; nossa recusa em pedir ajuda e nossa confusão sobre o que
é poder (sempre limitado) e o que é autoridade (a capacidade de
inspirar confiança).
Espero que essas ideias tenham ajudado você a começar a
imaginar o que é possível em nossa liturgia e como começar a aju-
dar as pessoas a projetar sua liturgia. No próximo webinário, no
mesmo dia 20 de outubro, meu colega Luiz Coelho vai compartilhar
ideias sobre o tema da inculturação e inclusão. Muito obrigado.

REFERÊNCIA

El Libro de Oración Común según el uso de la iglesia Episcopal, Church


Publishing Incorporated, Nueva York, 1989. https://www.episcopalchurch.
org/what-we-believe/book-common-prayer/. Acesso em: 05 abr. 2021.

92 Juan Oliver & Luiz Coelho


Resposta
A liturgia como experiência do povo

Angel Rivera20

“Caminhante, não há caminho,


o caminho é feito ao caminhar”
Joan Manuel Serrat.

Boa tarde. Desejo expressar minha gratidão aos orga-


nizadores deste evento por me terem convidado como reator
à importante conferência sobre a inculturação da liturgia: as
ideias práticas.

20 Presbítero na Diocese de Porto Rico da Igreja Episcopal. Ele é Mestre em


Divindade, Mestre em Biblioteconomia e Ciência e Candidato ao título
de Doutor em Teologia (PhD). Ele é professor adjunto no Departamento
de Teologia e História do Campus Metropolitano da Universidade Intera-
mericana de Porto Rico, Professor de História, Liturgia e Ecumenismo no
Seminário Diocesano de São Pedro e São Paulo em Bayamón, Porto Rico.
Atualmente é Reitor da Paróquia Ayudada San José em Caimito, San Juan,
Secretário da Convenção Diocesana, Oficial de Bolsas da Diocese de Porto
Rico, Secretário do Conselho Nacional de Porto Rico do Conselho Latino-
-Americano de Igrejas (CLAI) desde 2013.

A encarnação da liturgia 93
A Conferência do Dr. Juan Oliver acima nos apresenta uma
oportunidade extraordinária para uma revisão séria dos pres-
supostos que herdamos como cristãs/os e anglicanas/os em um
contexto latino-americano ou hispânico/latino nos Estados Uni-
dos, de que desejamos seguir o Cristo da esperança, com um
compromisso de vida que fomenta comunidades de fé inclusi-
vas, transformadoras, missionárias e proféticas nos tempos difí-
ceis que vivemos. Este diálogo tem uma urgência e, por sua vez,
uma oportunidade de rever nossa experiência litúrgica, que já
foi desafiada pela pandemia de COVID-19 e que se pode inserir
na reflexão que se realiza nas diferentes Dioceses sobre qual
modelo de missão e de vida da Igreja.
Um dos critérios que orientou as revisões do Livro de
Oração Comum em cada uma das Províncias da Comunhão
Anglicana foi o processo de inculturação da vida dos povos na
liturgia, como nos diz Richard Geoffrey Leggett (2006):

A revisão anglicana contemporânea tem procurado identifi-


car tanto os elementos transculturais que nos unem quanto
os elementos contextuais que variam legitimamente de uma
província para outra. Seguindo o Quadrilátero Chicago-
Lambeth, a Declaração de York de 1989 da IACL (Consulta
Litúrgica Internacional Anglicana) identifica quatro elemen-
tos essenciais: a Bíblia, os credos, os sacramentos do evan-
gelho e a ordenação episcopal, aos quais acrescenta o uso
do língua vernácula. Mas o vernáculo não se limita à palavra
escrita e falada; estende-se ao tempo litúrgico, ao espaço,
aos padrões diários de oração, às refeições sagradas e ao
cuidado ritual dos enfermos e moribundos, bem como à
indicação de pessoas para serviços especializados dentro da

94 Juan Oliver & Luiz Coelho


comunidade. Gestos, música, roupas e hinos são expressões
do vernáculo (LEGGETT, 2006, p. 448).

Esta importante premissa tem sido um guia para a revisão


litúrgica em nossa Igreja, que busca a unidade na diversidade,
marca da catolicidade e apostolicidade, sinal da teologia angli-
cana e afirmada há séculos. Mas este roteiro não estabelece a
forma como tais revisões serão feitas, deixando a responsabili-
dade por essas revisões para teólogas/os, liturgistas e estudio-
sas/os, que passam por comissões de bispas/os e especialistas
e terminam na Convenção Geral, e daí para o povo. Embora os
textos experimentais tenham sido usados para que as dioceses
apresentem seus comentários, o processo é vertical e isso deve
ser levado em consideração na apresentação de propostas de
reformas litúrgicas.
As propostas sérias do nosso conferencista em suas duas
conferências e da conferência anterior de Luiz Coelho nos con-
vidam a uma reforma litúrgica desde baixo, isto é, do cotidiano
de cada comunidade onde devem nascer as propostas de um
instrumento que reflita as esperanças e os sofrimentos da tota-
lidade do povo de Deus.
Uma revisão vinda de baixo implica um encontro amplo e
fecundo, onde serão convidados episcopais, irmãs/os de outras
tradições cristãs e todos os povos onde a Igreja Episcopal está
presente. Este diálogo centrado nos fundamentos do Evange-
lho deve incorporar os elementos da cultura dos diversos países
que constituem o que chamamos de América Latina com o som
das línguas espanhola e portuguesa, com uma consciência crí-
tica dos vestígios coloniais, da pobreza e marginalização, em

A encarnação da liturgia 95
um contexto urbano e globalizado, afirmando a encarnação e
aquela Imago Dei [imagem de Deus] que nos une como irmãs/os
em um planeta que é cada vez mais uma aldeia global.
Essa reforma desde baixo deve obedecer a alguns elemen-
tos já apresentados, a revisão da linguagem sexista e que man-
tém uma imagem distante de Deus; também requer elementos
de oração pelas vítimas de abuso, estupro, segregação, xenofo-
bia, homofobia e pelos setores pobres e marginalizados. Deve
apelar à reflexão da comunidade sobre os valores da inclusão,
justiça, liberdade e uma cultura de paz.
Nossas Dioceses na América Latina devem reconhecer
que uma revisão das liturgias anglo-saxãs herdadas é necessária
e que consagramos como um sinal indelével de nossa identi-
dade; se elas não são feitas como as/os irmãs/os na América ou
na Inglaterra, pensamos, não são anglicanas/os, e nos agarramos
a nossos Livros de Oração Comum, uma tradução aprovada do
Book of Common Prayer de 1979, como outras/os irmãs/os fize-
ram antes com a versão de 1928.
Pedem a nós caminhos práticos para uma reforma litúr-
gica, também ofereço algumas ideias:
1. Que a celebração seja viva, utilizando instrumentos in-
dígenas de nossos povos e que as canções sejam um re-
flexo de nossa identidade (sugiro minimizar as canções
vindas de cantores com forte divulgação midiática de
tradição neo-evangélica que clamam por uma espiritu-
alidade individualista e escapista, e ter música ao vivo
ou composta na perspectiva da liberdade, fraternidade
e inclusão que aspiramos para nossas comunidades). O

96 Juan Oliver & Luiz Coelho


uso de guitarras, pandeiros e tambores em vez de ou
ao lado dos órgãos tradicionais.
2. Ter uma equipa litúrgica em cada paróquia composta
pela/o presbítera/o e/ou diácona/o responsável pela
paróquia, pelos músicos e membros da paróquia que
representem os diferentes setores da paróquia, mulhe-
res, homens, jovens, adultas/os. Este grupo fará com
que se integrem na liturgia coletas, canções e reflexões
que expressem as necessidades da comunidade e que
convoquem as pessoas a uma ação solidária com as ví-
timas da violência, em solidariedade com as pessoas
marginalizadas e pobres, excluídas por sua identidade
de gênero ou preferência sexual. A Missa é uma cele-
bração do povo, por isso o povo deve participar desde
a sua programação e ser parte ativa na liturgia.
3. Uma liturgia que integra os elementos da cultura urba-
na e ao mesmo tempo seja uma resposta libertadora da
violência de gênero e da glorificação materialista que
se exalta na música e nas atitudes de nossos jovens.
4. Uma liturgia que exalte Jesus operário, camponês,
milagroso, revolucionário e solidário com a causa da
justiça, resgatando o Jesus da história e exaltando o
Cristo da esperança. As/Os santas/os não são apenas
aquelas/es que a Igreja exaltou como exemplos de vida,
são também os membros da comunidade eclesial que
mantém vivo o Evangelho de Cristo.
5. Na Oração Eucarística, se possível, deixe as pessoas
rodearem a mesa, como coparticipantes daquela ação

A encarnação da liturgia 97
que torna Jesus sempre presente no seu povo. Dê me-
nos ênfase aos gestos de quem preside e mais ênfase
na participação do povo com suas orações e gestos que
louvam a Deus por sua presença no meio delas/es.
Fomos desafiadas/os a rever como organizamos nossos
espaços para o ofício divino, exemplo que apresento: não imagino
que se demolisse a Catedral de Saint John the Divine em Nova
York para fazer um edifício mais circular, mas poderia ser possível
substituir os bancos longos por cadeiras almofadadas individuais
que podem ser movidas para as necessidades de uma celebração
contemporânea, um altar mais próximo da cidade e ao seu nível,
uma cidade que pode circundar o altar como companheiras/os,
coparticipantes do momento sagrado, um momento que pode-
ria ser uma canção poliglota, muitas línguas e um coração, que
representa a esperança daquela comunidade no seio de uma das
cidades mais cosmopolitas da terra, uma linguagem que adora a
Deus como pai e mãe, que faz de Cristo, suas/seus discípulas/os,
mulheres e homens, modelo para os santos que agora levantam
as mãos a Deus cheios de esperança. Saint John the Divine é um
exemplo de solidariedade ao trocar locais de culto e bancos por
macas para acomodar os pacientes da COVID-19, apoiando-os em
seu sofrimento na pior crise sanitária vivida pela cidade.
Desejamos que o novo texto litúrgico seja solidário com o
campesinato carente de palavras que fortaleçam sua luta, expres-
sem suas dores e esperanças, coleções que clamam pela criação e
que exigem o fim da destruição dos recursos de todos em benefí-
cio de poucos, um livro que conforta o trabalhador quando perde
o emprego e a vida se torna insegura, que expressa a revolta da

98 Juan Oliver & Luiz Coelho


impotência que sente ao ver membros da comunidade deporta-
dos, famílias divididas, de irmãs/os criminalizadas/os apenas pela
origem ou cor da pele; precisamos de uma reforma da liturgia
como a descrita pelo Dr. Oliver, que dê espaço aos pedidos das/
os paroquianas/os, especialmente crianças, jovens e idosos que
muitas vezes são esquecidos ou pouca participação ou espaço
lhes é oferecido em nossas celebrações.
Uma proposta final neste reativo vai além do proposto pelo
Dr. Oliver. Pretendo trazer para a discussão da reforma o reconhe-
cimento de que em várias de nossas dioceses, nossas reuniões
litúrgicas foram em modalidades virtuais devido à atual pande-
mia da COVID-19; esta pandemia nos ensinou que existe uma
comunidade de milhões de internautas que trabalham, compram
e também querem viver uma espiritualidade conectada a outras/
os cristãs/os que celebram a Cristo dentro ou fora de nossos
templos.
As chamadas modalidades “não tradicionais” têm gerado
um interessante debate teológico entre as/os bispas/os e na aca-
demia sobre sua eficácia, solenidade ou relevância. Este servidor
é uma testemunha da experiência transformadora da comunidade
dos Ofício Matutinos, Vespertinos e Completas nas modalidades
virtuais (onde a celebração do Ofício numa semana que passou
para a modalidade virtual e representou um aumento de 200% na
participação em relação à experiência tradicional no templo, e o
uso de plataformas de comunicação sincrônicas permitem que o
povo e o celebrante interajam “cara a cara”) e a transmissão em
Porto Rico da Eucaristia através das redes sociais, o que repre-
sentou para a nossa Diocese um espaço de acompanhamento
pastoral em meio à crise provocada pelo toque de recolher que

A encarnação da liturgia 99
representou o fechamento total de negócios, indústrias e restri-
ções à circulação da população de meados de março a meados
de maio de 2020.
Este desafio propõe então que o espaço do templo se
estenda ao espaço de convivência de toda a comunidade. Cada
casa é uma extensão do templo e um ponto de encontro para
amigos e vizinhos que também desejam viver a fé e celebrar
juntos por meio de palavras e orações.
Esperamos que estes encontros sejam o início de um
movimento litúrgico que permita a nossas bispas/os, como pas-
toras/es do povo, ver este esforço como uma tarefa urgente
exigida pelos novos tempos em que vivemos, uma liturgia que
encarna os valores do reino e as necessidades da cidade, per-
mitindo que os grupos se reúnam em cada comunidade para
refletir sobre a necessidade de reformar a liturgia atual. Nós,
clérigas/os, temos a séria responsabilidade de ser animadoras/es
do povo, sempre lembrando o norte da inclusão, o fim de toda
violência e a exaltação dos valores de justiça, igualdade e liber-
dade e proporcionando o espaço para ouvir. A academia tem um
grande peso nesse esforço, temos que organizar encontros de
faculdades e teólogas/os em nossas dioceses e na Igreja Epis-
copal em geral, que publiquem materiais com rigor acadêmico
que permitam reflexão e propostas relevantes para o povo. Essa
tarefa é urgente, uma vez que os tratados litúrgicos na tradição
anglicana produzidos em espanhol são escassos e o material
publicado disponível são traduções do inglês ou adaptações de
tradições populares ou ritos da comunhão irmã católica romana.

100 Juan Oliver & Luiz Coelho


REFERÊNCIAS

El Libro de Oración Común (LOC), según el uso de la TEC, Church Pu-


blishing Incorporated, Nueva York, 1989. https://www.episcopalchurch.
org/what-we-believe/book-common-prayer/. Acesso em: 05 abr. 2021
LEGGETT, Richard Geoffrey. “Anglican and liturgical revision”. In The
Oxford guide to the Book of Common Prayer: a worldwide survey”. New
York: Oxford, 2006.

A encarnação da liturgia 101


Resposta
Yannel Valdivia Melo21

Muito obrigado pela oportunidade de compartilhar este


espaço virtual comum; e saúdo todas/os as/os amigas/os que
esta tarde nos acompanham de diferentes lugares.
Em primeiro lugar, gostaria de comentar que esta magis-
tral apresentação do Rev. Juan Oliver é um deleite para todas/os
nós que amamos os detalhes litúrgicos e tudo isso em geral. Se
nos encontramos aqui hoje, é precisamente porque nos interes-
samos pelo aspecto prático da inculturação da liturgia. Assim,
de uma forma geral, concordo com este exercício de analisar,
repensar e questionar cada parte das estruturas das nossas litur-
gias, tendo em conta, como a propriedade menciona, o que o
LOC exige e o que permite como facultativo.

21 Yannel Valdivia Melo, 29 anos de idade. Diácono em transição da Igreja


Episcopal em Cuba. Formado pelo Seminário Evangélico de Teologia em
Matanzas, Cuba. Diretor do Departamento de Comunicação da Diocese
de Cuba e recentemente buscou a alternativa de oferecer a liturgia domi-
nical através de podcasts. Como diácono, ele serve em duas comunidades
locais. Por muitos anos ele também esteve envolvido na pastoral de ado-
lescentes e jovensl. Em cada uma das áreas de ministério em que colabora,
ele se esforça para envolver outras/os no processo de encarnar a liturgia
culturalmente enraizada e dar-lhe um sabor distinto que nos identifica
como episcopais cubanos dentro e fora de Cuba.

102 Juan Oliver & Luiz Coelho


URGÊNCIA DO PROCESSO CONTÍNUO DE INCULTURAÇÃO

O processo de perguntas e respostas às ações litúrgicas e


seus meios de expressão é extremamente necessário e urgente
para as igrejas e sua pluralidade cultural. No LOC (1989) encon-
tramos um rico e diversificado patrimônio teológico, mas que
deve continuar se atualizando sem perder sua essência. A litur-
gia como obra pública e prática não é uma obra acabada. Pois
bem, como expressa o irmão Oliver e com quem concordo ple-
namente: “A liturgia é a Obra de Deus mediante a ação da Igreja
reunida em assembleia”.
Para levá-lo ao plano concreto onde se realizaria a incul-
turação da liturgia, pensemos por um momento numa comu-
nidade de fé “X”. Digamos que estamos nesta Igreja, e depois
de ver esta conferência, eles decidem iniciar um processo de
inculturação e/ou encarnação da liturgia. Isso implicaria então
um trabalho em equipe (clero e leigas/os) para observar, ouvir e
dialogar interna e externamente sobre a idiossincrasia cultural
daquela comunidade de fé. Para mim, esta é a chave: passar por
esse processo. Dependendo da localização geográfica e histó-
rico cultural (o que eles trazem com eles) no cotidiano das pes-
soas que compõem a comunidade “X”, será necessário formular
novas questões e também adaptar algumas das propostas aqui
apresentadas, em termos do código linguístico. Consequente-
mente, estas questões colocadas na estrutura litúrgica do Rito II
da Sagrada Eucaristia oferecem-nos um amplo quadro de refle-
xão e um excelente ponto de partida ao qual teremos de voltar
de vez em quando e que poderá ser enriquecido.

A encarnação da liturgia 103


Hoje posso ver e quero dizer com toda a sinceridade que
a apresentação do Padre Oliver é um ato de profundo respeito
e abertura para considerar a diversidade de nossos povos e
também das comunidades onde há presença latina. Depois de
completar este exercício de investigação cultural dos costu-
mes e práticas diárias, as decisões terão que ser tomadas para
influenciar nosso modo de adoração; o que permitirá, a meu
ver, estabelecer uma relação cultural litúrgica tendo em conta
a diversidade idiomática, musical, organizacional, tradicional e
artística.

UM CULTO VIVO E ATUALIZADO

Nas palavras de Isaías Rodríguez, “O culto de um povo


não deve estagnar, mas deve ser mantido vivo, fresco, para que
não se estrague. Portanto, não seria contra o pensamento de
Cristo adaptar seus ensinamentos para o século XXI” (RODRÍ-
GUEZ, 2005, p. 28).
Este exercício de atualização litúrgica, de modo autêntico
e nativo, deve ser vivido sem ingenuidade e fazendo um juízo
de valor à luz do Evangelho para perguntar: com que lentes vou
observar? Com as lentes dos meus gostos pessoais? Ou com as
lentes de Cristo à luz da diversidade cultural da comunidade em
que me encontro e da qual faço parte?
Vejamos as seguintes figuras para ilustrar de certa
forma o processo prático que podemos percorrer para encar-
nar a liturgia e atualizá-la: (fig. 1) A partir da cultura (vida coti-
diana) – Igreja (liturgia); Igreja (liturgia) – Cultura (vida diária).

104 Juan Oliver & Luiz Coelho


Um método hermenêutico que também podemos usar é o de
Ver-Julgar-Agir / (fig. 2) Partindo da Vida – passando pela Bíblia
– retornando à Vida (vida-Bíblia-vida). Isso nos permitirá refletir
de forma prática sobre os elementos da cultura envolvente que
vamos incorporar.
Figura 1

Fonte: o autor.

Figura 2

Fonte: o autor.

A encarnação da liturgia 105


APLICANDO OS MÉTODOS HERMENÊUTICOS

A questão que pode surgir disso é: como dialogar e deci-


dir diante de uma descoberta cultural que não havíamos levado
em consideração e que, em termos do evangelho, as demandas
e permissibilidades do LOC (1989) e o significado original do
culto cristão estão em conflito? Por exemplo: na ação da Sagrada
Comunhão, levamos em conta que culturalmente a mesa, como
lugar de convivência com a família, foi dispensada, tornou-se
mais um objeto decorativo e em outros casos desapareceu.
Enquanto conhecemos e entendemos esta ação eucarística “à
mesa” como essencial.

UMA ALTERNATIVA IDIOMÁTICA PARA A INCULTURAÇÃO

É verdade que muitas vezes você quer explicar a ação e


algumas questões surgem a este respeito, sem contradizer o
fato de que não é necessário explicar: Não tem a ver também
com a tradução de algumas partes do texto não é compreensível
para a comunidade? A que distância está a tradução de nosso
LOC (1989)? Como facilitar uma adoração mais próxima em uma
linguagem mais acessível? Um exemplo com o qual muitas/os
episcopais não se sentem identificadas/os é a tradução dos Sal-
mos; porque entendemos e nos identificamos mais com a lin-
guagem usada em outras traduções latino-americanas da Bíblia.

106 Juan Oliver & Luiz Coelho


ANTECEDENTE HISTÓRICO CUBANO DA INCULTURAÇÃO DA LI-
TURGIA LEVANDO EM CONTA A TRADUÇÃO

Carlos R. Molina, historiador cubano, menciona em seu


livro Protestantismo em Cuba (2011):

Em 1866, dois anos antes do início da Guerra dos Dez


Anos em Cuba (1868-1878), Joaquín de Palma renunciou
à tradição católica romana e estabeleceu em Nova York,
dentro do rito episcopal (anglicano), a primeira congre-
gação para cubanos refugiados econômicos e políticos: a
Igreja de Santiago Apóstolo. Ali, com o objetivo de faci-
litar o culto, traduziu para o espanhol, além de hinos, o
Livro de Oração Comum da Igreja Episcopal Protestante,
amplamente publicado e divulgado pela The New Prayer
Book Society, de Nova York. (CEPEDA, MOLINA, 2011, p.
39).

Por isso, creio que no processo de inculturação da liturgia,


um fator muito importante é a tradução do texto do LOC (1989),
assunto em discussão nos últimos tempos para um melhor apro-
veitamento dele.

CONCLUSÕES

Por tudo isso, afirmando que: neste processo de incultu-


ração da liturgia, diante do que pode ser assustador, por mais
desconhecido que seja e dos desafios que acarreta, será neces-
sário um sistema de alarme para evitar cometer erros antigos e

A encarnação da liturgia 107


atrozes. Este alarme deve ser acionado cada vez que reagimos
às expressões culturais de nossos povos de maneira colonial
e inquisitorial. Se observarmos a história de Cuba, diante das
expressões religiosas e culturais dos negros africanos, o sistema
escravista espanhol reagiu impondo regulamentações extremas,
às vezes proibindo e reagindo com aparente aprovação, apenas
com o objetivo de amenizar a tensão nas instalações e revoltas.
Se o alarme disparar e reagirmos assim, estaremos cometendo
um crime cultural.

REFERÊNCIAS

CEPEDA, Rafael y Molina Rodríguez, Carlos R. Los misioneros patrio-


tas revisitados, En Protestantismo en Cuba. La Habana, Cuba. Editorial
Caminos, 2011.
EL LIBRO DE ORACIÓN COMÚN,(LOC), según el uso de la TEC, Chur-
ch Publishing Incorporated, Nueva York, 1989. https://www.episcopal-
church.org/what-we-believe/book-common-prayer/. Acesso em: 05 abr.
2021.
RODRÍGUEZ, Isaías A. “Liturgia y cultura” en Introducción al culto: la
liturgia como obra del pueblo. Nashville: Abingdon Press, 2005.

108 Juan Oliver & Luiz Coelho


PARA DISCUSSÃO

1. Escolha um ou dois aspectos específicos de sua liturgia


que possam refletir o Reino muito melhor, usando costu-
mes e características de sua cultura. Em que ponto/s esses
aspectos ocorrem? (Os aspectos podem ser: o local e sua
decoração, a disposição dos assentos e demais móveis, os
movimentos e gestos de cada um, o guarda-roupa, os obje-
tos usados, a música, os sons, os silêncios e os textos).
2. O que o LOC e suas rubricas dizem sobre este momento? O
que é obrigatório fazer e dizer e o que é opcional?
3. Se você quisesse mudar esses aspectos, como faria? Com-
partilhe exemplos de maneiras novas e melhores de ex-
pressar o Reino da maneira que sua congregação imagina.
4. Que obstáculos existem que não permitem a adoção des-
sas adaptações?
5. Que passos podem ser dados para realizar essas adapta-
ções e assim aproximar a liturgia do Reino e de sua cultura?

A encarnação da liturgia 109


4ª Conferência:

22 de outubro de 2020
“LITURGIA, INCULTURAÇÃO E
INCLUSÃO”

David Limo22

Uma teologia inclusiva, como afirma Luiz Coelho, deve nos


lembrar da igualdade do povo de Deus e de sua inclusão no Corpo
de Cristo pelo batismo. Seria possível excluir alguém que já está
inserido no Corpo de Cristo? Fazer isso significa negar a qualidade
salvívica e a unicidade desse sacramento.
Na mesma linha da afirmação em plenário, surgiu esta ques-
tão: Se somos todos povo de Deus desde o batismo, o que acontece
com as pessoas que não são batizadas? Como é possível comparti-
lhar essa inclusão total com elas? Luiz Coelho nos conta que, em
princípio, pessoas que não fazem parte da família cristã não signi-
ficam não serem importantes para Deus. Já que são criação e ima-
gem de Deus. Mas aqui estamos falando sobre a liturgia cristã. E

22 Missionário Canônico da Diocese Anglicana do Sudeste do México.

A encarnação da liturgia 111


aproveito esta oportunidade para salientar que, mesmo que haja
disposição para incluir, podemos acabar ofendendo e prejudicando
relacionamentos. Como é possível forçar a participação nas litur-
gias cristãs de quem pertence a outras religiões, cosmovisões ou
saberes? Embora algumas/uns de nós entendamos que a Eucaristia
é um sacramento da hospitalidade, tome cuidado para que ela não
se torne mais um espaço de obrigação e imposição religiosa. É por
isso que devemos ter em mente que aquelas/es que não fazem parte
da igreja devem ser apreciadas/os por sua própria religiosidade ou
cosmovisão.
Acredito que persiste em nossas igrejas a ideia de que a incul-
turação como evangelização proselitista consiste em impor símbo-
los e significados cristãos àquelas/es que têm propriamente suas
espiritualidades e cosmovisões afrodescendentes e nativas, bem
como aquela prática de acreditar que a inclusão e interculturalidade
da liturgia consiste em colocar este ou aquele símbolo de outra reli-
gião ou cosmovisão. Cuidado! A interculturalidade da liturgia ocorre
a partir de um encontro onde a partilha não é uma obrigação, e
muito menos consiste em decorar aquela exposição e sem permis-
são de símbolos e significados que não nos pertencem. Acho isso
até ofensivo e desumano! Porque é como indicar a eles que sua espi-
ritualidade só terá importância na medida em que os resgatarmos
ou “salvarmos” por meio de nossas teologias.
Mas quando afirmamos que a liturgia cristã é inclusiva, tem
que ser a partir das múltiplas identidades de ser cristão, porque o
que é distinto é que chegamos à igreja pelo batismo e com nos-
sas múltiplas identidades de gênero, de povos nativos, andinos,
de migrantes que vieram para a América Latina, mulheres, pessoas
LGBTQIA+, afrodescendentes, hispânicos nos EUA, latinos, criou-

112 Juan Oliver & Luiz Coelho


los, negros, panamenhos, costarriquenhos, etc. Todas as pessoas
transformadas em Cristo a ponto de serem a melhor versão de nós
mesmos por direito evangélico.
É importante mencionar o tema do “colorismo” (cor da pele),
pois nos Estados Unidos os anglo-saxões tendem a considerar as
pessoas latinas “pessoas de cor” e como se fossem um único grupo
étnico. Mas na América Latina, nem todas/os nós somos “pessoas de
cor” porque existem aquelas/es de nós que se referem aos outros
como crioulos ou negros, então temos que perceber (mesmo para
aquelas/es que vivem nos Estados Unidos) que as/os latinas/os não
são uma única cultura ou raça. E é por isso que o racismo persiste
em nossas comunidades por sua supremacia branca latina. Por-
tanto, se afirmamos que nossa liturgia é inclusiva pelo batismo,
quão importante é a representação na vida e na missão da igreja de
mais afrodescendentes, indígenas, mulheres, pessoas LGBTQIA+,
como testemunho de uma comunidade transformada pelo Reino de
Deus e não como os sistemas de exclusão e segregação de nossas
sociedades.
Por outro lado, percebi o entusiasmo da inculturação da litur-
gia anglicana de nossas igrejas latino-americanas quando acaba-
mos copiando as práticas do catolicismo romano como a “primeira
comunhão”, mas esta inculturação contradiz totalmente nossa
visão anglicana do batismo. Porque não é necessária aquela teolo-
gia mistagógica específica (iniciação pedagógica) que se tornou algo
contextual e religiosamente cultural em nossa região porque não é
consistente com nossa teologia anglicana onde por toda a vida de
nossas igrejas, ministérios, liturgia, missão e prática pastoral gira
em torno dos votos batismais. E é que a partir do batismo a teologia
mistagógica deve ser contínua e permanente, coletiva, construtiva e

A encarnação da liturgia 113


inclusiva. Portanto, é fundamental refletir sobre a teologia batismal
e não apenas repetir por repetir este ou aquele rito.
Por fim, Luiz Coelho, Yuriria Rodriguez e Arthur Cavalcante
nos colocam as seguintes questões: Você considera que basta não
ser racista, sexista ou LGBTAIA+fóbico ou é necessário que nos-
sas orações, litanias e canções sejam antirracistas, antissexistas e
anti-LGTBQIA+fóbicas? Como fazer a mudança de mentalidade na
Igreja que se governa a partir de uma visão patriarcal e heteros-
sexual branca? Será necessário assumir a voz profética para que a
liturgia seja a celebração da vida e pela vida, com a participação
ativa da Igreja nos cenários políticos de cada território? Promove-
mos a criação de músicas e letras com a imagem feminina e materna
de Deus? Nós, como igreja, oferecemos um espaço seguro de liber-
dade de acesso a ministérios, governo e celebração para mulheres
e pessoas LGBTQIA+?

114 Juan Oliver & Luiz Coelho


LITURGIA, INCULTURAÇÃO E INCLUSÃO

Luiz C. T. Coelho

Boa tarde. Hoje temos a oportunidade de olhar um pouco


mais para frente, para a igreja que queremos construir juntas/os. Até
agora, falamos de inculturação dentro de um contexto “seguro”. Ou
seja, dentro do que conhecemos e identificamos de nossas culturas
desde os tempos antigos, daquilo que nossos ancestrais nos deixa-
ram. Identificamos os elementos fundamentais das culturas latinas
e a parte “boa” de nossa herança cultural, e estudamos como aplicar
esse conhecimento de forma prática na liturgia de nossas comuni-
dades de fé.
Agora, quero apresentar a vocês os elementos culturais que
mudaram, uma vez que não é possível imaginar nossas culturas lati-
nas como imóveis, isoladas, presas no tempo. Nossas culturas muda-
ram. Vimos uma integração latino-americana e o reconhecimento de
uma identidade latina em geral. Mas também vimos mudanças (às
vezes muito rápidas) na maneira como garantimos oportunidades

A encarnação da liturgia 115


para as pessoas de cor entre nossos povos, reconhecemos o papel
igual das mulheres em nossas sociedades, identificamos e celebra-
mos as múltiplas identidades de gênero que existem e abraçamos
em nossas famílias a experiência e a vida de pessoas LGBTQIA+ (lés-
bicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexuais, assexuais e
outras). No entanto, as forças da opressão e do preconceito ainda
existem, mas há esperança de que estejamos caminhando para uma
nova visão de nossas culturas que seja mais inclusiva e tolerante.
E como as igrejas devem reagir a essas mudanças? Teologi-
camente, é claro. Já tratamos das visões que Rudolf Niebuhr apre-
sentou no que chamamos de “encontros de Cristo e culturas”. Mas
quais devem ser os encontros entre Cristo e essa cultura, especial-
mente no que a liturgia oferece? Em primeiro lugar, começarei com
uma apresentação das últimas mudanças culturais, para depois
destacar a importância de uma teologia batismal renovada e, final-
mente, propor algumas possibilidades de aplicação litúrgica de uma
inculturação da inclusão.

I. MUDANÇAS CULTURAIS NA AMÉRICA LATINA E ENTRE OS POVOS


DA DIÁSPORA LATINA

Muito rapidamente, gostaria de descrever as principais


mudanças que vimos em nossas culturas a partir dos anos sessenta
e setenta, seus desdobramentos hoje e os novos cenários que se
constituíram em nossas culturas.
No início do século XX, uma ampla noção de “democracia
racial” se desenvolveu entre os povos latinos. É possível, claro, citar
autores como Gilberto Freyre (2019, p. 48), que havia proposto
uma visão quase mitológica da integração de elementos europeus,

116 Juan Oliver & Luiz Coelho


africanos e indígenas nas culturas latino-americanas e que, em sua
época, foi inovador desde a primeira vez que apresentou as contri-
buições não europeias como dignas. Ao mesmo tempo, a imigração
europeia “branqueou” países onde a maioria da população era his-
toricamente negra ou indígena, como Argentina, Brasil, Cuba, Peru,
México ou Uruguai. Em tais cenários, foi necessário propor um
conceito renovado de integração entre raças, resgatado certa visão
acadêmica da miscigenação como algo bom e desejável – embora
o desejo maior (e muitas vezes não tão escondido) fosse branquear
nossos países, tirar deles os elementos afro-indígenas e os apresen-
tar como novas nações ocidentais, modernas e neo-europeias.
Mas a realidade sempre foi muito diferente. Essa suposta mis-
cigenação e a suposta harmonia racial em nossos países sempre pri-
vilegiaram as pessoas de cor mais branca e de comportamento mais
europeu, algo que já estudamos em nossa discussão sobre o poder.
Somente a partir da década de 1960 os movimentos afro-latinos e
indígenas aprofundaram não só a discussão racial, mas também os
conceitos de raça e etnia na América Latina. O conceito de misci-
genação deu origem aos poucos à auto identificação dessas pes-
soas como negras ou indígenas (ROMÁN, 2010). Essas identidades
não são mais elementos diluídos em um caldeirão étnico-cultural.
Agora, elas são cada vez mais apresentadas como elementos iguais
e importantes de uma grande mistura cultural que constitui nossas
sociedades. Ser um negro, crioulo, caboclo não é mais um demérito,
mas uma parte integrante do que constitui nossas nações.
A emancipação feminina também foi um dos principais temas
das conversas sociais nas últimas décadas na América Latina. A
região conseguiu que os direitos das mulheres ganhassem uma
visibilidade mais importante, embora não sejam respeitados em

A encarnação da liturgia 117


muitos cantos. Conforme apontado por diversas autoras, a eman-
cipação feminina só ocorre quando a mulher tem voz própria, ou
seja, quando fala por si e é dona da própria carreira, dos próprios
objetivos e da própria vida (FEMENÍAS, 2002, pp. 189-214). O con-
texto do feminismo latino é diferente do feminismo anglo-saxão, e
é necessário categorizá-lo como uma etapa posterior ao feminismo
primitivo. No entanto, isso levou a eventos muito importantes,
como as eleições para cargos públicos para muitas mulheres. Em
2014, por exemplo, a região teve quatro presidentas, as presidentas
Dilma Rousseff (Brasil), Cristina Fernández de Kirchner (Argentina),
Michelle Bachelet (Chile) e Laura Chinchilla (Costa Rica). Uma nova
onda de conservadorismo ocorreu nos últimos anos, mas essas – e
outras – mulheres líderes foram as pioneiras em uma época em que
muitos países do mundo desenvolvido não estavam conseguindo
fazer a mudança em direção a uma maior representação das mulhe-
res na política.
O mesmo pode ser dito para a inclusão LGBTI (ANARTE,
2020). O casamento entre pessoas mesmo sexo é legal em vários
países latino-americanos há anos. A Argentina (2010), o Brasil (2013)
e o Uruguai (2013) legalizaram os direitos dos casais homossexu-
ais muito antes dos Estados Unidos e de muitos países europeus.
Hoje, Colômbia, Costa Rica, Equador e alguns estados do México
também reconhecem os amplos direitos desses casais (que incluem
adoção e fertilização in vitro). Outros países, como o Chile, reconhe-
cem as uniões civis. LGTBfobia é considerada crime na Argentina,
Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Peru, Uruguai, El Salvador,
Honduras e Nicarágua. É uma realidade conflituosa, uma vez que a
condição das minorias sexuais e de gênero latinas – especialmente
as mais pobres – está envolvida em conflito e violência. Mas é possí-

118 Juan Oliver & Luiz Coelho


vel dizer que as sociedades latinas mudaram, e que questões como
essas não são conceitos importados de uma visão americana ou
europeia, mas sim realidades presentes em nossas sociedades.
As igrejas latino-americanas não podem, então, dar as costas
ao avanço das questões raciais, de gênero e sexualidade que estão
presentes na contemporaneidade de nossas culturas. Não se trata
de importar polêmicas do Norte, mas de responder às realidades em
que vivemos. E uma resposta teológica a estes fenômenos é, antes
de tudo, uma resposta litúrgica, pois os fatos de inclusão são fatos
da assembleia em adoração. Qual seria, então, a base teológica para
uma inclusão litúrgica?

II. A REVOLUÇÃO BATISMAL NA TEOLOGIA LITÚRGICA

A centralidade do batismo como entrada plena no Corpo de


Cristo é um dos principais pontos da teologia desenvolvida pelo
movimento litúrgico no século XX, e influenciada por uma maior
compreensão da história da Igreja primitiva e pelo movimento litúr-
gico. É uma compreensão essencialmente ecumênica, que se desen-
volveu não apenas entre o povo anglicano, mas também em outras
comunhões cristãs.
O entendimento desenvolvido é que o batismo é irrepetível
e não depende de nenhum outro rito para ser realizado. Portanto,
todas as pessoas batizadas (incluindo crianças) devem ser imediata-
mente admitidas à comunhão. Isso decorre de um fato muito sim-
ples: apenas o batismo e a Eucaristia são sacramentos ordenados
diretamente por Jesus. Também reconhece o batismo celebrado
em outras igrejas e admite à comunhão cristãs/ãos de outras ori-
gens eclesiais. É o entendimento atual da Consulta Internacional de

A encarnação da liturgia 119


Liturgia Anglicana (1991), e, consequentemente, da grande maioria
das/os liturgistas na Comunhão Anglicana.
Nem sempre há uma resposta de fé ativa no batismo, especial-
mente no caso de batismos infantis. Isso não torna o batismo menos
válido, ou algo a repetir. Nem a Eucaristia deve ser negada às pes-
soas que foram batizadas na infância, visto que o batismo é um sinal
visível da entrada dessa pessoa na comunidade visível do Corpo de
Cristo. Quando uma pessoa atinge a idade de fé ativa, é possível ter
uma celebração litúrgica que marque esse momento. Nesse sentido,
o rito pastoral de confirmação é bastante apropriado. Também em
vista do papel mais elevado e fiel do testemunho da Igreja primitiva
agora atribuído ao batismo, o rito da confirmação, como afirmação
madura da fé, torna-se necessário apenas no caso de pessoas que
não fizeram suas propostas batismais para conta própria. Ou seja,
pessoas que foram batizadas na primeira infância. No caso de cren-
tes batizados na idade adulta, a afirmação madura da fé já ocorre no
próprio ato do batismo.
Por fim, a teologia litúrgica contemporânea enfatiza a neces-
sidade de restaurar o catecumenato na vida da Igreja, por meio do
qual as pessoas não só procuram indagar sobre a fé, são forma-
das como catecúmenos e admitidas como candidatos, mas também
continuam em seu aprendizado pós-batismal (mistagogia). Esta for-
mação inclui não só os que vão ser batizados, mas também os apre-
sentadores (que, no caso das crianças, deve incluir os pais) e toda a
comunidade cristã que batiza e alimenta os novos fiéis. O catecume-
nato é litúrgico e também multidisciplinar, abrangendo elementos
de pastoral e discipulado.
E o que tudo isso tem a ver com inclusão racial, étnica, de
gênero e orientação sexual? A centralidade do batismo. Uma teo-

120 Juan Oliver & Luiz Coelho


logia inclusiva deve necessariamente nos lembrar da igualdade do
povo de Deus e de sua inclusão no Corpo de Cristo por meio do
batismo. Seria possível excluir alguém que já está inserido no Corpo
de Cristo? Isso significaria negar a qualidade salvívica e a singulari-
dade desse sacramento. Por outro lado, o convite ao catecumenato
contínuo que o batismo nos apresenta deixa algumas pistas sobre
a experiência litúrgica e pastoral necessária para tentar alcançar a
inclusão plena de todos os cristãos.

III. A RENOVAÇÃO DA ALIANÇA BATISMAL – COMPROMISSO DE IN-


CLUSÃO NA IGREJA

Um dos principais elementos da renovação litúrgica que ocor-


reu nos últimos anos é a inclusão de novas cláusulas ao pacto – ou
aliança – batismal e seu uso mais comum na vida da Igreja como
uma confissão de fé e prática. Historicamente, uma declaração de fé
baseada no Credo Apostólico foi proposta como suficiente e neces-
sária nos ritos batismais. As últimas reformas litúrgicas, por outro
lado, acrescentaram uma série de perguntas e respostas proposi-
cionais, que direcionam o crente à jornada cristã. Ou seja: nossos
ritos nos apresentam cada vez mais não só o que acreditamos, mas
também como vivemos a partir dessa fé.
Na Comunhão Anglicana, praticamente todas as edições
recentes de liturgias batismais autorizadas ou livros de orações
comuns incluíram um pacto batismal mais amplo. Isso significa que
não é mais possível lidar com a fé isoladamente. Não é razoável
vivê-la isolada, sem justiça social e, claro, inclusão.
E é por isso que a inclusão de todas as pessoas em nossas
sociedades deve ser liderada pela Igreja – e não o contrário, como

A encarnação da liturgia 121


vemos agora. Isso significa que nossas ações litúrgicas e a reforma
de nossos ritos devem guiar não só o povo de Deus, mas também a
sociedade para uma visão transformada da realidade em que vive-
mos, para que o mundo conheça a verdadeira inclusão que só Jesus
Cristo pode trazer. Vamos ver algumas notas e exemplos.

IV. DESAFIOS E PROPOSTAS LITÚRGICAS PARA UMA INCLUSÃO PLE-


NA DE TODAS AS PESSOAS

A inclusão racial na liturgia se dá não apenas pela inculturação


de ritmos, cores e expressões artísticas ou culturais das múltiplas
etnias que compõem nossas realidades eclesiais. A liturgia precisa
ser representativa. Quem lê, prega e é ordenado em nossas igrejas?
A maioria de nosso clero e ministros leigos ainda são homens bran-
cos? O mesmo se aplica a mulheres, LGBTQIA+ e outros grupos
historicamente perseguidos. Se eles não estão representados na
liturgia, sua inclusão não é real. Se eles não estão ativamente envol-
vidos na obra de Deus pelo povo (que é uma tradução melhor do
termo leitourgia), apresentamos uma mensagem simbólica de que
eles não são importantes para Deus – não importa o que digamos
em nossos discursos.
Já aprendemos sobre a linguagem, que precisa ser inclusiva
para que todas as pessoas se sintam valiosas na Igreja de Deus,
mas temos examinado principalmente as questões de gênero.
O que seria uma linguagem que incluísse pessoas negras? Certa-
mente uma linguagem onde a cor preta não é sinônimo de algo
ruim ou diabólico. E uma linguagem em que termos muito usados
no passado para forçar a conversão dos povos indígenas também
são excluídos de nossas canções, orações e textos litúrgicos. Por

122 Juan Oliver & Luiz Coelho


isso, é fundamental que possamos garantir a representatividade dos
diferentes grupos em nossas comissões, para que ouçamos outras
perspectivas e aprendamos a nos referir a Deus e à humanidade de
diferentes maneiras.
Essa discussão inclui, é claro, a realidade do casamento reli-
gioso de casais do mesmo sexo, que já é uma realidade civil em
muitos de nossos países. As discussões incessantes sobre essa ques-
tão apenas mostram que ainda somos obcecados pela sexualidade
humana, mas não entendemos a dimensão teológica e a centrali-
dade do batismo na vida dos casais LGBTQIA+, seus filhos e filhas.
Atribuímos mais importância a uma visão litúrgica limitada do casa-
mento (um sacramento não ordenado diretamente por Jesus Cristo,
então não essencial) e desenvolvida há não mais de duzentos anos,
e continuamos a ignorar a essência inclusiva dos ritos de iniciação e
suas consequências para todo o Corpo de Cristo.
Em suma, nossas liturgias precisam incorporar a luta contra
as forças deste mundo, que isolam e prejudicam nossas sociedades.
Não basta não ser racista, sexista ou LGBTfóbico. É preciso ser antir-
racista, anti-machista e anti-LGBTfóbico. E a linguagem das nossas
orações, ladainhas e cantos tem que incorporar essas dimensões da
luta por mais direitos, tolerância e inclusão, pois todas as pessoas
são amadas por Deus, especiais e feitas à sua imagem.
Vejamos agora duas respostas que complementam e apresen-
tam exemplos práticos de inclusão litúrgica em nossas comunidades
latinas. Muito obrigado.

A encarnação da liturgia 123


REFERÊNCIAS

ANARTE, Enrique. Los derechos LGBTI en América Latina y el mundo. Deutsche


Welle. 15 mai. 2020. https://www.dw.com/es/los-derechos-lgbti-en-améri-
ca-latina-y-el-mundo/g-42929697. Acesso em: 05 abr. 2021.
FEMENÍAS, María Luisa. Perfiles del feminismo iberoamericano. Buenos Aires:
Catálogos, 2002.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala – Edição Comemorativa de 80 anos.
São Paulo: Global, 2019.
INTERNATIONAL ANGLICAN LITURGICAL CONSULTATION. The Toronto Con-
sultation. 1991.
ROMÁN, Myriam Jiménez y Juan Flores, Eds. The Afro-Latin@ Reader.
Durham: Duke University Press, 2010.

124 Juan Oliver & Luiz Coelho


Resposta
A liturgia sem “carambadas”

Yuriria Rodriguez23

Boa tarde, minhas irmãs e irmãos. Em primeiro lugar, gos-


taria de agradecer ao Reverendo Juan Oliver, ao Reverendo Luiz
Coelho, ao Escritório dos Ministérios Latinos da Igreja Episco-
pal, à Diocese do Sudeste do México e ao seu Bispo, Reverendís-
simo Julio Martin, e a todas as Dioceses e Igrejas envolvidas para

23 Diretora Associada de Música Hispânica. Soprano costarriquenha, a artista


e educadora Yuriria Rodríguez é bacharel e mestre em música pela Uni-
versidade de Indiana – Jacobs School of Music, onde estudou com Teresa
Kubiak, Carlos Montané e Mary Ann Hart. Ela foi vencedora do concurso
de voz da Sociedade Nacional de Artes e Letras em Bloomington, Indiana,
e vencedora do 9º Concurso Anual de Interpretação de Música Espanhola
e Latino-Americana, que lhe permitiu fazer uma turnê nos Estados Unidos
como artista. Atualmente, Yuri atua como diretora associada de música
hispânica na Christ Church Cathedral, em Indianápolis, onde dirige o Coral
da América Latina e desenvolve um programa coral bilíngüe para os pri-
meiros alunos de música. Ocasionalmente, ela pode ser ouvida cantando
como solista convidada para o Coro Adulto e Coristas da Igreja de Cristo.
Ela é uma artista convidada do Ensemble de Jazz Latino da Universidade
de Indiana. Yuri acaba de completar seu processo de discernimento e está
agora trabalhando para estudos de teologia e música que lhe permitirão
servir como Ministra Ordenada na Igreja Episcopal.

A encarnação da liturgia 125


criar esta conferência que tem sido um grande enriquecimento
para o corpo de Cristo.
O Reverendo Coelho fala-nos de uma revolução cujo tema
central é o batismo, um batismo que nos lembra da igualdade
do povo de Deus e de sua inclusão no corpo de Cristo. Gostaria
de responder aqui com uma expressão não muito acadêmica,
mas que me ajuda a ilustrar esse ponto, que é “a liturgia sem
“carambadas””. Alguns de vocês podem se perguntar, e o que é
uma “carambada”? Bem, no meu país, Costa Rica, uma caram-
bada é uma coisa vazia e sem valor, algo desnecessário. É uma
palavra usada em conversas com pessoas de confiança. É tam-
bém uma palavra usada estrategicamente na canção “Vós sois
três vezes Santo”, da Missa Camponesa da Nicarágua, escrita
por Carlos Mejía Godoy (2021).
Este é o verso:

“Vós sois o Deus companheiro.


Não andais no vazio,
Vós sois um homem de bravura
O mero Tayacán.
Vós sois três vezes Santo,
Vós sois três vezes justo,
Liberta-nos do jugo,
Dai-nos a liberdade.”24

24 Original em espanhol: “Vos sos el Dios parejo. No andás en


carambadas,Vos sos hombre de ñeques, El mero Tayacán. Vos sos
tres veces Santo, Vos sos tres veces justo, Libéranos del yugo, Danos
la libertad.”

126 Juan Oliver & Luiz Coelho


O teólogo José María Vigil (1988), em sua introdução à
Missa Camponesa, publicada em 1988, escreve que a identidade
do Deus dos pobres, refletida nesta obra, é “um Deus que não
anda em “carambadas”, que se atém ao que é essencial, que
não se distrai nem desvia a atenção de nada por “coisas vazias”
como, por exemplo, um culto sem justiça, uma religião sem
um coração, uma divindade sem encarnação,” (VIGIL, 1988, p.
10) e eu acrescentaria hoje… um batismo sem igualdade nem
inclusão.
A obra musical de Carlos Mejía Godoy, bem como a arte
e a poesia que nasceram das experiências da Teologia da Liber-
tação nos anos 1970, oferecem-nos muitos exemplos de uma
narrativa onde a solidariedade e a igualdade são os valores pri-
mordiais. Não há recriminações, nem ameaças, não encontra-
mos “Ele está com você e você não o conhece”, ou “mas ele vai
nos julgar por tudo isso” (Ibid., p. 10). Em vez disso, reconhece-
mos Deus, e o louvamos como o Deus dos pobres: “é por isso
que te falo, como o meu povo fala, porque tu és o Deus obreiro,
o Cristo trabalhador.” (Ibid., p. 10). Acredito que seria muito
valioso para nossa Igreja redescobrir e reconhecer como essa
música fala diretamente sobre a necessidade de solidariedade e
inclusão de nossa Igreja na América Latina.
Minha primeira reação como uma mulher latina que sofreu
discriminação contra minhas irmãs e irmãos na comunidade
LGBTQIA+, e contra outras mulheres, é querer destruir o patriar-
cado. É fácil pensar que se já tivemos 2.000 anos de machismo
na Igreja, agora devem vir mais 2.000 anos de feminismo. E
embora eu seja uma feminista, reconheço que o que essa abor-

A encarnação da liturgia 127


dagem promove é responder à violência com violência, à discri-
minação com discriminação, os oprimidos se tornam opressores
e nós perpetuamos o ciclo da violência. Se nosso pacto batismal
nos chama a desmantelar os sistemas de discriminação e opres-
são, onde se alimenta a injustiça social, devemos responder de
forma subversiva, que nos lembre de nossa dignidade de filhas
e filhos de Deus e que promova a libertação, não só dos que é
discriminado, mas também daquele que discrimina, e isso nos
permite perceber, muitas vezes, que não estamos apenas do
lado do povo oprimido, mas também, muitas vezes, nos com-
portamos ao lado do Faraó que tem o povo oprimido.
Nesse sentido, “A Representação”, de que fala o reve-
rendo Coelho, é extremamente importante. E do ponto de vista
da música sacra na Igreja, devemos buscar a representação de
três formas:
1. Promover a criação de música e letra com a imagem
feminina de Deus e da Igreja, a imagem materna de
Deus (Lc 13:34), da mulher que canta para Deus no li-
vro do Êxodo (Ex 15:1-21), da mulher que procura uma
moeda perdida e a encontra (Lc 15:8-10), ou porque
não, uma oração à Nossa Mãe: “Nossa Mãe que está
em marcha, santificada seja suas lutas ... não nos deixe
cair no machismo e nos liberte do patriarcado.” E o que
aconteceria se cantássemos louvores ou canções que
tivessem apenas substantivos femininos. Por exemplo,
em 2018, o líder leigo Hugo Olaiz, do Forward Move-
ment, compôs esta joia de verso que pode ser usada
como doxologia cantando música tradicional:

128 Juan Oliver & Luiz Coelho


“Fonte de vida e criação,
Fonte da nossa salvação,
Fonte de toda inspiração,
A ti elevamos a oração”. Amém.
(HUGO OLAIZ, 2018).25

2. A celebração e o reconhecimento das musicistas e


dos músicos e compositoras/es que vivem à margem
dos nossos hinários, os imigrantes, a comunidade
LGBTQIA+, as mulheres, as crianças, as/os idosas/os.
Quais são as músicas que permitem que essas pessoas
se sintam membros de uma comunidade de fé? E quem
são as pessoas que podem nos ajudar a escrever músi-
cas que incluam todos nós?
3. A inclusão de canções verdadeiramente latino-ameri-
canas. A evolução histórica de nossos hinários é uma
janela para os precedentes da inculturação de nossa
música. Do início do século 16 ao final do século 19,
a colonização musical foi o veículo de transmissão
da música em congregações de língua espanhola. Em
meados do século 20, havia o entendimento de que
era necessário que as congregações hispânicas se res-
ponsabilizassem pela produção de seu próprio hinário.
Este foi um esforço dos bispos da região do Caribe,
que foram encarregados, na Convenção Geral de 1955,
de criar um Hinário provisório. Isso foi chamado de “O
Hinário da Igreja Episcopal 1961: para uso das Congre-

25 Citado com permissão do autor, Hugo Olaiz (2018).

A encarnação da liturgia 129


gações de língua espanhola”. Um grande esforço que
ainda não refletia uma liturgia ou música incorporada
na cultura latina, mas era um espelho da estética mu-
sical europeia branca da Igreja tradicional. Em 1998,
o Escritório de Ministérios Latinos produziu um Hiná-
rio, o Hinário Vermelho, que todos conhecemos, com o
objetivo de ser “uma resposta à necessidade expressa
do povo cristão de língua espanhola de um recurso de
culto apropriado para o dia de hoje.” (EL HIMMARIO,
1998, p. IX). É importante mencionar que o comitê edi-
torial do Hinário, conseguiu incorporar na coleção de
hinos algumas canções que já existiam no imaginário
e na memória popular daqueles que emigraram para a
Igreja Episcopal. No entanto, a maioria dos hinos do Hi-
nário não é de origem latino-americana. Outra grande
desvantagem é que o Hinário é um livro para quem lê
música, o que, naquela época, se tornou um obstácu-
lo, já que a maioria das pessoas que cantam, pessoas
voluntárias em corais, não leem música, e às vezes têm
baixa escolaridade, o que as/os impede de participar no
louvor do povo de Deus.
Hoje sabemos que nossos coros são muito variados e que
para responder à variedade de bagagem cultural e educacio-
nal que existe em nossos coros, é necessário ter as letras para
quem não lê música, e a música escrita em uma pauta para quem
a lê. Além disso, hoje sabemos que precisamos usar canções
que sejam inclusivas e que reflitam a identidade da alma latina
de nossa igreja. Estamos em um momento histórico em que a

130 Juan Oliver & Luiz Coelho


Igreja pode oferecer às nossas congregações recursos musicais
inclusivos que refletem a identidade latina, como Cancioneiro
“Nuevo Amanecer”, que está sendo criado pelo Escritório dos
Ministérios Latinos da Igreja Episcopal nos Estados Unidos. Não
podemos subestimar o potencial de ter um Novo Cancioneiro
da Igreja Episcopal em um momento em que nos disseram que
somos uma Igreja insustentável e que, em 2050, não haverá
mais paroquianos sentados em nossos bancos (EGAN, 2020).
Acredito que a proposta do reverendo Coelho e de todas/os
as/os expositores desta conferência é um movimento do Espírito
Santo para que deixemos de ser consumidores de cultura. Para
que professemos e vivamos uma fé onde está representado todo o
corpo de Cristo, onde se produz uma liturgia renovada e enrique-
cida, uma “liturgia sem coisas vazias”, onde prevalecem os valores
da solidariedade, da inclusão e da verdade. Só a partir desta profis-
são de fé renovada podemos ter canções e liturgias alegres.

REFERÊNCIAS

EGAN, Millard, 2019 parochial reports show continued decline and a


dire future for the EPISCOPAL Church, Episcopal News Service, October
16, 2020. Disponível em: http://episcopalnewservice.org. Acesso em:
05 abr. 2021.
EL HIMNARIO. New York, NY. Church Publishing Incorporated. 1998.
GODOY, Carlos Mejía. Vós sois três vezes Santo, Missa Camponesa da
Nicarágua. Disponível em: https://www.letras.mus.br/carlos-mejia-go-
doy/1047083/. Acesso em: 05 abr. 2021.
VIGIL, J.M. Misas Centroamericanas. Managua: Centro Ecuménico Anto-
nio Valdivieso, 1988.

A encarnação da liturgia 131


Resposta
Liturgia, inculturação e inclusão

Arthur Cavalcante

Agradeço a divulgação deste texto elaborado pelo Dr.


Luiz Coelho e o aprimoramento que ele tem dado a este pre-
cioso tema, e porque não, fundamental para nossa espirituali-
dade. Falar do Santo Batismo é ir às últimas consequências na
radicalidade da nossa fé pessoal e comunitária. Para nós, paro-
quianas/os anglicanas/os e para outras igrejas cristãs, o batismo
ocupa um lugar de extrema importância, sendo impossível
esgotá-lo em nossas pobres e limitadas definições teológicas.
Por isso, símbolos como água, óleo e vela nos ajudam a ir além
do racional, no que a tradição cristã oriental chamará de “misté-
rio” e a ocidental de “sacramento”.
Através do tema batismal, Coelho propõe a utilização de
uma lupa hermenêutica inclusiva com a qual podemos trabalhar
o tema da recepção irrestrita, nunca perfeita, mas pelo menos
desejada e ensaiada nas inúmeras coreografias litúrgicas das
nossas comunidades. O batismo iguala e dignifica a todos, reco-
nhecendo os preciosos dons derramados pelo Espírito Santo,
e que o apóstolo Paulo descreve em suas cartas dirigidas às
comunidades:

132 Juan Oliver & Luiz Coelho


Todos vocês são filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus, porque
todos os que foram batizados em Cristo se revestiram de Cristo.
Não há mais judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem
mulher, mas todos vocês são um em Cristo Jesus.26
Existe apenas um corpo e apenas um Espírito, assim como
foram chamados a uma única esperança; um só Senhor, uma
só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, que é
sobre tudo e por meio de todos e em todos.27

Nesse sentido, a afirmação de Coelho está correta sobre


a necessidade urgente de a liturgia ser representativa da diver-
sidade que existe na comunidade. Esta representatividade não
pode ser falsa, mas antes exprimir, de fato, que a diversidade é
uma dádiva que abraça a todos, incluindo os que estão à mar-
gem da nossa sociedade. Portanto, o papel dos líderes pastorais
e leigos é garantir que o exercício do ministério de todas as pes-
soas seja uma realidade. Em relação a isso, Maraschin nos alerta
sobre o que chamou de “tendências de clericalização dos lei-
gos e secularização do clero” que se afastam do objetivo dessa
representatividade. A primeira trata da clericalização dos leigos,
na qual, participando dos deveres de preparação litúrgica, não o
fazem apenas como leigos, mas como clero:

[...] Na verdade, a liturgia não é entregue aos leigos para que


se torne, afinal, a serviço do povo de Deus, mas os leigos
são clericalizados para que a liturgia permaneça onde sem-
pre se quis, protegida e isenta da corrupção dos analfabetos
e ignorantes. A segunda tendência é a laicização do clero.

26 Ga 3: 26-28. Nova Versão Internacional.


27 Ef 4: 4-7. Nova Versão Internacional.

A encarnação da liturgia 133


Na verdade, se todos são ministros, se todos são igualmente
parte do sacerdócio de todos os paroquianos, por que insistir
no fato intrigante de que alguns seriam mais padres do que
outros? A laicização do clero torna-se certo tipo de esquizo-
frenia eclesiástica em que as funções de um e de outro não
são muito bem distinguidas no mesmo corpo de Cristo. [...]
Tanto a laicização do clero como a clericalização dos leigos
incorrem na ignorância da experiência dos carismas. A litur-
gia que surge de tal situação se manifesta clericalista e reflete
a estrutura de uma igreja autoritária. [...] Na verdade, nada
muda. [...] Querem a mesma liturgia tradicional somada à cle-
ricalização dos leigos. [...] só podemos desenvolver liturgias
autênticas e indígenas na América Latina fazendo um esforço
inicial para libertar a liturgia da prisão da falsa tradição e da
falsa renovação. O desenvolvimento de liturgias autênticas e
indígenas oscila entre tradição e renovação em uma espécie
de dialética que não se contenta com sínteses fáceis e provi-
sórias (MARASCHIN, 1996, pp. 55-59).

Para não cair no que denominei de “liturgias caricatu-


radas”, precisamos garantir a presença de diferentes grupos e
segmentos sociais, abrindo espaços para uma recepção e escuta
mais inclusivas. Talvez o que William Rowland (2004), ativista
sul-africano do movimento de pessoas com deficiência, expres-
sou muito bem através de seu lema “nada sobre nós, sem nós”,
possa nos ajudar a elaborar melhor essa integração em nossos
serviços religiosos. Esse lema inspirou diversos grupos de luta
por direitos, como o movimento negro e o movimento gay e lés-
bico, diante da opressão constante em diferentes áreas da socie-
dade. Pode parecer óbvio, mas é precisamente nos detalhes que
pecamos contra esses grupos e fazemos questão de tratá-los

134 Juan Oliver & Luiz Coelho


na terceira pessoa, colocando-nos acima deles e criando hierar-
quias que aumentam as diferenças.
Falar da inclusão de grupos marginalizados e estigmati-
zados no espaço sagrado é levar muito a sério o discipulado
cristão, o que, por sua vez, nos levará de volta aos Evangelhos.
O espaço sagrado deve ser o espaço seguro ou o que o CCA15
chamou de igreja segura (A REDE SAFE CHURCH).
Já que estamos falando sobre a concretização de nossos
discursos de acolhimento e representação nos templos, vou me
concentrar em um determinado grupo, mencionado por Coelho,
que está à margem da sociedade: as pessoas LGBTQIA+28. Eu
me concentro nessa questão, porque me toca existencialmente,
e claro, também a muitas pessoas LGBTQIA+ dentro e fora das
igrejas, que buscam na fé comunitária um espaço seguro para
viver suas espiritualidades. Isso vai além de colocar uma ban-
deira de arco-íris para adornar as decorações do templo e dizer:
“Venham!”
Não existe manual teológico-pastoral-litúrgico para o
acolhimento. A experiência nos mostra que esse acolhimento
acontece na base, em experiências planejadas e até improvisa-
das nas comunidades. É aí que é possível construir formas mais
laicas e mais “eclesiais” de acolhimento latino, capazes de rom-
per o bloqueio das normas institucionais, longe do que chamei
de “leitos procustianos29 de grupos anglicanos fundamentalistas

28 Significado da sigla: lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, trans-


gêneros, queer, intersexuais, assexuados e outros.
29 Procusto foi um personagem mitológico na história de Teseu. Diz-se que Pro-
custo tinha uma cama de ferro que combinava exatamente com seu tamanho.
Ele convidava seus convidados a se deitarem naquela cama. Se o convidado

A encarnação da liturgia 135


e ortodoxos”, que estabelecem “caixas teológicas – bíblicas”
para adaptar a vida e o corpo de seus paroquianos a um estra-
nho modelo pastoral.
Certa vez, me lembro de um paroquiano gay dizendo o
seguinte para mim: “Ah, Reverendo, não quero uma igreja “gay” e
é por isso que vim para a paróquia da Santíssima Trindade. Aqui
é ótimo porque sou mais um adepto do espaço onde há casais
heterossexuais com seus filhos, idosos com seus netos, jovens,
negros, gente de esquerda e de direita e, claro, também gays, sem
ser condenados ou discriminados no púlpito ou por seus gestos”.
Este paroquiano assume com orgulho a sua condição, sabendo
da sua responsabilidade de apoiar quem é. Aliás, o cantor brasi-
leiro Caetano Veloso (1986) verbalizou esse sentimento em uma
de suas canções intitulada “Dom de Iludir”: “[...] cada um conhece
a dor e o prazer de ser o que é” (VELOSO, 1986).
Neste depoimento do paroquiano, não há desejo de “ati-
vismo pela causa” ou de invisibilidade, mas sim de se sentir livre
em um espaço onde as relações se constroem a partir da ideia
de comunhão. O teólogo Dr. André Musskopf (2005) destacará a
necessidade de tornar essas pessoas visíveis com seus discursos:

O silêncio sobre a homossexualidade oprime os homosse-


xuais de duas maneiras. Em primeiro lugar, porque impede
o acesso a qualquer informação, mesmo sobre a experiên-
cia de outras pessoas que possam ajudar a construir a sua

fosse maior, ele simplesmente amputaria parte de seu corpo. Se ele fosse
menor em relação à cama, resolveria o problema esticando o corpo até o
tamanho exato. Ninguém cabia perfeitamente em sua cama, já que Procusto
tinha duas camas de tamanhos diferentes. Teseu conseguiu prendê-lo a uma
cama e aplicou o mesmo método, cortando sua cabeça e pés

136 Juan Oliver & Luiz Coelho


própria identidade. Em segundo lugar, porque, por meio
da política de “não pergunte, não diga”, sua experiência é
relegada ao território do não dito, do não pronunciado, um
território escuro e perigoso. Em ambos os casos, o silêncio
garante a invisibilidade de gays e lésbicas, que são impedi-
dos de se pronunciarem. [...] Uma teologia gay, portanto,
precisa partir das histórias vividas pelos homossexuais,
como forma de devolver a palavra e permitir que articulem
seus próprios desejos e necessidades. (pp. 81-82).

Todas/os nós precisamos, independentemente de nossa


identidade de gênero, expressar nossa fé junto com nosso
corpo em serviços religiosos. Bater palmas, dançar, gesticular
livremente, trocar beijos, chorar, sorrir, gesticular, abraçar ou
até cheirar a cabeça das pessoas, gesto estranho, mas costume
comum no Nordeste do Brasil. Todos nós queremos nos expres-
sar abertamente sem nos sentirmos vigiados.
As/Os LGBTQIA+ não têm um plano de dominação nem
vão transformar a nós e nossas/os filhas/os em gays e lésbicas.
Todas/os elas/es estão em diferentes estados sociais. Elas/es são
pobres, alguns são de classe média ou mesmo de classe alta.
Alguns vivem nas ruas. Muitas/os se unem para construir uma
casa, pois foram expulsos de suas famílias. Elas/es são homens
e mulheres. Alguns não se sentem confortáveis com o corpo
ou com os órgãos genitais. Fatalmente, o que acontecerá é que
estaremos falando sobre papéis/relações de gênero, e muitos
terão a oportunidade dentro da igreja de tocar neste tópico.
Antes de continuar, quero alertar rapidamente sobre o
perigo do avanço de fundamentalismos religiosos e reacioná-
rios políticos que ameaçam nossa diversidade no espaço das

A encarnação da liturgia 137


Igrejas Anglicanas na América Latina. Nenhum grupo social ou
religião está imune a este poderoso vírus que pode destruir nos-
sas comunidades de fé. Não podemos permitir que nos instru-
mentalizemos por fundamentalismos que exigem o controle de
tudo, inclusive do nosso corpo, verdadeiros templos do Espírito
Santo. A teóloga feminista e da libertação Nancy Cardoso ofe-
rece uma breve descrição do poder desses grupos:

Fundamentalismos são palavras contra corpos, palavras sem


corpos, palavras apesar dos corpos. Palavras que se solidi-
ficam em política, palavras que silenciam outras palavras. A
luta contra fundamentalismos se dá na afirmação do corpo
em suas relações como lugar de produção e fruição do pra-
zer e da beleza. (CARDOSO, 2013, p. 33).

Não há negociações com o fundamentalismo cristão, por-


que a palavra diálogo não existe em seu vocabulário! As igrejas
que incluem a diversidade são uma ameaça ao projeto funda-
mentalista, único possuidor do que chamam de “verdade”.
Esses grupos veem a diversidade sexual como uma expressão
do liberalismo e a questão está fora da agenda da Igreja. Coelho
desfaz o jogo dos fundamentalistas/ortodoxos, imperialistas de
fé, afirmando que esta não é uma agenda importada do “norte”,
mas sim uma realidade vivida por todos, e está em muitas das
nossas casas, e se está na agenda está porque ainda não sabe-
mos como lidar com a questão e por isso adiamos o conflito.
Receber aberta e francamente as pessoas LGBTQIA+ não
significará “aumentar nosso número de membros” nem será a
causa de “diminuir” nossos templos. No entanto, é verdade que
a convivência gerada pela presença no espaço de culto enri-

138 Juan Oliver & Luiz Coelho


quecerá e fortalecerá a comunidade, favorecendo o amadure-
cimento da fé. Claro, pode haver algum conflito gerado pelo
embate com a cultura/costumes/machismo, principalmente por-
que a igreja faz parte disso tudo. Panotto, refletindo a proposta
decolonial de Walter Mignolo, atribui ao que chamou de “pen-
samento de fronteira” os jogos que acontecem nos espaços que
se encaixam perfeitamente no espaço litúrgico:

O pensamento de fronteira insiste que a descolonização


não virá dos conflitos derivados da coerção imperial, mas
dos espaços de experiência e dos horizontes de expecta-
tivas gerados na diferença colonial, ou seja, de experiên-
cias subordinadas à convivência/resistência ao sistema. O
pensamento crítico decolonial conecta a diversidade de
experiências encerradas em marcos coloniais com o projeto
universal de distância constante dos horizontes imperiais.
Isso constrói uma proposta que vai além da implementação
de um modelo dentro das categorias modernas (direita, cen-
tro, esquerda), mas sim a demonstração dos espaços sub-
versivos inscritos na ação dos agentes colonizados entre as
fissuras do sistema imperial que revelam outras formas de
ser, de conviver, de fazer política, de compreender o mundo,
de agir, de construir conhecimentos, até habitando o pró-
prio sistema colonial. (PANNOTO, 2019, pp. 48-49).

Assim, encontramos a nossa forma de lidar com a diver-


sidade no espaço do sagrado, numa práxis que ditará uma cons-
trução teológico-litúrgica a partir desse encontro. A Igreja no
Brasil se permitiu vivenciar essa diversidade e pagou um preço
alto por se posicionar em relação ao discurso da diversidade de
gênero. Os pronunciamentos sistemáticos da Câmara Episcopal e

A encarnação da liturgia 139


dos Primazes deram início ao diálogo com a diversidade sexual.
As posições de líderes clericais e leigos corroborando o discurso
episcopal alimentaram o debate dentro e fora da Igreja Anglicana,
junto com os movimentos sociais e inter-religiosos. No entanto, o
ato de sair do armário de LGBTQIA+ Anglicanos foi, sem dúvida,
necessário para a realização de uma Igreja acolhedora.
Por fim, gostaria de compartilhar uma experiência que con-
sidero muito interessante litúrgica, que foi a inauguração do tem-
plo da Paróquia da Santíssima Trindade para a obra “O Evangelho
segundo Jesus, Rainha do Céu”, escrita pela teóloga e trans atriz
escocesa Jo Clifford (CLIFFORD, 2019 10th Edition) estrelando a
artista trans Renata Carvalho no papel de Jesus Cristo. Uma pro-
posta de atualização e reformulação de passagens dos Evange-
lhos. Devido à censura dos setores religiosos e políticos, e à falta
de financiamento para a apresentação, a obra foi realizada duas
vezes no templo com uma presença massiva (cerca de 300 pes-
soas), nunca vista nos nossos serviços religiosos regulares.
No monólogo, a atriz lança uma provocação: “E se Jesus
voltasse hoje como travesti?” No decorrer da peça, houve um
momento em que “Jesus Travesti” se revolta, deitado quase nu,
retratando trechos do Evangelho. Uma contextualização teoló-
gica das principais passagens de Jesus que tornam vergonhosas
as nossas homilias e atuações litúrgicas. No entanto, gostaria
de destacar a resposta do público que não esteve relacionado
com a vida religiosa, ao expressar com ar de reverência, conec-
tividade e respeito à interpretação, isso gera certa inveja pelos
nossos serviços. Algumas pessoas que estiveram presentes na
obra nunca haviam posto os pés em um templo cristão. Outros o
fizeram por muitos anos porque não tiveram boas experiências

140 Juan Oliver & Luiz Coelho


no espaço sagrado. E alguns me perguntaram: esse lugar existe
aqui? Estamos mesmo dentro de uma igreja em São Paulo?
Ficamos com a intrigante pergunta que inicia este monó-
logo e que nos preocupa profundamente: “Não é estranho que
eu (Jesus) esteja dentro de uma igreja?” Esta “estranheza” deve
estar em nós, o povo e o clero, sempre que entramos nos espa-
ços litúrgicos e com o que Maraschin (1996) tão bem se relacio-
naria com o corpo e a estética do sagrado:

O espaço da liturgia é o espaço do corpo, mas não de um


corpo indeterminado e indistinto. O corpo que entra
neste espaço vai se recuperando gradativamente, transfor-
mando-se também em liturgia. [...] O espaço da liturgia é
o espaço dos sonhos. É o espaço da utopia. É o espaço da
esperança. Entramos neste espaço, com nossos pés e mãos,
como corpos. E é como os corpos que glorificamos a Deus:
‘Glorificai a Deus no vosso corpo’ (1 Co 6, 19), como disse
o Apóstolo Paulo. Este espaço é temporário porque indica
outro espaço definitivo. Espaço que ainda não conhecemos,
mas que nos foi prometido e que, portanto, aguardamos.
Espaço futuro. No espaço da liturgia, celebramos a chegada
desse espaço futuro. Já desfrutamos dele de antemão. Como
um dom do Espírito de Deus. Este lugar que nos foi prome-
tido é o lugar de completa liberdade e fraternidade. É um
lugar de novidades. Lugar para todos. Por causa do que nos
foi prometido, somos chamados a trabalhar para torna-lo rea-
lidade. (pp. 86-91.)

Esta “estranheza” nos manterá sempre alertas para não


endurecer o Sagrado no espaço e nas nossas propostas litúrgi-
cas que reservamos para a sua manifestação. Que haja liberdade
para todos os corpos, inclusive o nosso!

A encarnação da liturgia 141


REFERÊNCIAS

A REDE SAFE CHURCH, Iglesia Espacio Seguro. Disponível em: https://


acscn.anglicancommunion.org/media/220580/Safe-Church-Network-
-report-to-ACC-16-rev.pdf. Acesso em: 05 abr. 2021.
CARDOSO, Nancy. Palavras...se feitas de carne: Leitura feminista e crítica
dos Fundamentalismos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir/
CDC, 2013.
CLIFFORD, Jo. The Gospel According to Jesus, Queen of Heaven: 10th
Anniversary Edition. Edingurg: Stewed Rhubarb Press, 2019, 10th
Edition.
LA RED SAFE CHURCH, Iglesia Espacio Seguro, surge como resulta-
do práctico del Encuentro del Anglican Consultative Council (ACC-15).
Disponible en: https://acscn.anglicancommunion.org/media/220580/
Safe-Church-Network-report-to-ACC-16-rev.pdf. Acesso em: 05 abr.
2021.
MARASCHIN, Jaci. A Beleza da Santidade: Ensaios de Liturgia. São Paulo:
ASTE, 1996.
MARASCHIN, Jaci. Da leveza e da beleza: Liturgia na Pós-Modernidade.
São Paulo: ASTE, 2010.
MUSSKOPF, André. Uma brecha no armário: propostas para uma teolo-
gia gay. São Leopoldo: CEBI, 2005.
PANOTTO, Nicolás. Descolonizar o saber teológico na América Latina: Reli-
gião, educação e teologia em chaves pós-coloniais. São Paulo: Editora
Recriar, 2019
ROULAND, Willian. Nothing about us without us. Inside the disability
rights movement of South Africa. Pretoria: Unisa Press, 2004.
VELOSO, Caetano. Dom de Iludir. In Totalmente Demais. Polygram, 1986.

142 Juan Oliver & Luiz Coelho


PARA DISCUSSÃO

1. Qual é a importância do Batismo para você? O que significa


dizer que o batismo é o sacramento da plena participação
no Corpo de Cristo?
2. Como implementar uma liturgia que seja mistagógica, que
desenvolva uma visão de crescimento batismal contínuo e
permanente?
3. O que fazer para que a liturgia e nossas igrejas sejam an-
tirracistas, antissexistas e anti-LGTBfóbicas? Compartilhe
exemplos de iniciativas que existem em seu contexto.
4. Identifique exemplos de igreja como espaço seguro, com
liberdade e inclusão para mulheres e pessoas LGBTQIA+.
Como fazer na liturgia?
5. O que significa ser uma comunidade batismal? Como viver
o batismo como paradigma do nosso jeito de ser?

A encarnação da liturgia 143

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