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A encarnação
da liturgia
A ENCARNAÇÃO
DA LITURGIA
Este trabalho está licenciado sob a Licença Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0
Internacional (CC BY-NC-SA 4.0).
Organização
Juan Oliver & Luiz Coelho
Salvador/BA
2021
Direitos de publicação e comercialização da
Editora Soffia10
Revisão
Aline Ferreira Antunes Antunes
Capa
Tatiana Ribeiro
Bibliografia
ISBN: 978-65-993160-9-8 (e-book)
CDD 264
21-3966
Índices para catálogo sistemático:
1. Teologia Anglicana
SUMÁRIO
Agradecimento............................................................................ 9
Apresentação.............................................................................. 11
Introdução.................................................................................. 13
A encarnação da liturgia 5
2. Por que inculturar a liturgia na cultura da América Latina?.......... 40
3. Que cultura inculturar?................................................................. 41
Referências........................................................................................ 43
Para discussão................................................................................... 44
A encarnação da liturgia 7
Resposta: A liturgia sem “carambadas” (Yuriria Rodriguez)........... 125
Referências........................................................................................ 131
A encarnação da liturgia 9
das conversões para “ter a mesma mente que Cristo” (Fil 2,5) e agir
como ele.
Esta compilação e publicação deste produto desta jornada
2020 foi possível graças à colaboração e apoio do Departamento
de Relações Globais da Igreja Episcopal USA, da Sociedade Unida
Parceira no Evangelho (USPG) e do Departamento de Educação Teo-
lógica para a Comunhão Anglicana. Agradecemos-lhes alegremente
e continuamos juntos na missão.
Dr Luiz Coelho
Dr Juan M.C. Oliver
A encarnação da liturgia 11
versidade de San Diego, EUA e Rev. Dr. Júlio Cézar Adam Professor
da Escola Superior de Teologia do Brasil.
Liturgia, inculturação e poder, pelo Dr. Luiz Coelho, Guardião
do Livro de Oração Comum da Igreja Episcopal Anglicana do Bra-
sil. Panelistas: Dra. Sandra Montes (Reitora do Seminário Teológico
Union, Nova York, e Dra. Damaris de Jesús (Professora de Psicologia
da Universidade de Porto Rico).
A Encarnação da Liturgia, pelo Rev. Dr. Juan M.C. Oliver. Pane-
listas: Rev. Yannel Valdivia da Diocese de Cuba e Rev. Angel Rivera da
Diocese de Porto Rico.
Liturgia, inculturação e inclusão, pelo Rev. Dr. Luiz Coelho.
Panelistas: Yuri Rodriguez, seminarista da Universidade da Escola
de Teologia do Sul, Sewanee, TN, e Rev. Arthur Cavalcante da Igreja
Episcopal Anglicana do Brasil.
É nossa esperança que este recurso obtenha a máxima dis-
tribuição, provoque preocupações, conversas e decisões que irão
equipar nossas igrejas anglicanas ao redor do mundo para encarnar
toda sua vida nas culturas ao seu redor.
A encarnação da liturgia 13
rito Santo – Sua presença no mundo, para ser essa Igreja de Deus!
Profeta, libertando Deus, perdoando Deus, renovando Deus: esse
Deus Salvador!”
Seu servo em Cristo
8 de setembro de 2020
“A LITURGIA E AS CULTURAS
LATINO-AMERICANAS”
David Limo1
A encarnação da liturgia 17
e fontes de explicações, aprendendo e desenvolvendo teologia à
medida que as pessoas perguntam sobre mesma.
Embora as sementes da Palavra já se encontrem nas cultu-
ras, Juan Oliver destaca que nossas comunidades têm sofrido uma
tendência de desconfiar da cultura como se ela fosse totalmente
falha e até aberrante; mas não é assim, o próprio Jesus usou dos
esquemas culturais anteriores e de sua época (como os banhos ritu-
ais de Israel, as refeições compartilhadas da cultura greco-romana
e outras), dando-lhes um sentido novo, humanizador e libertador.
Julio Adam compartilha conosco que embora seja verdade que a
cultura, assim como a vida e os corpos, contém sementes da Pala-
vra de Deus, também contém aspectos “decaídos”: individualismo,
hedonismo e consumismo. Por isso, precisamos dar recursos às pes-
soas para que saibam diferenciar. Portanto, inculturar a liturgia com
o povo é um desafio de o que, como e com quem fazê-lo, para ser
uma Igreja autêntica, fiel à tradição e fiel à cultura.
É fundamental, diz Juan Oliver, esclarecer que o “anglicano”
na liturgia não é apenas a prática deste ou daquele rito, mas a inter-
pretação ou significado desta prática litúrgica a partir da convivência
cultural e percepção religiosa das pessoas que a celebram, em diá-
logo com a tradição teológica litúrgica anglicana. A este respeito,
Orlando Espín destaca que, na realidade, existem aqueles de nós
que se interessam por ser latinos, – cristãos latinos. Para isso deve-
mos compreender que os muros que separam as diferentes deno-
minações e eclesialidades são invenções do império. Por isso, Juan
Oliver, Julio Adam e Orlando Espín nos desafiam: Perguntemos às
avós de nossas comunidades como veem a espiritualidade paro-
quial. Vamos perguntar às pessoas à nossa frente como oram, como
se expressam, que vocabulário usam, etc. Não é possível inculturar a
A encarnação da liturgia 19
LITURGIA ANGLICANA E
CULTURAS LATINO-AMERICANAS
Juan M. C. Oliver2
I. IGREJA E A CULTURA
A encarnação da liturgia 21
por meio da proclamação em atos – e palavras, se necessário – da
boa nova da proximidade do Reino de Deus, ou seja, o evangelho.3
Para conseguir isso, temos que nos encarnar na cultura, porque
seria muito difícil dizer: “Temos uma grande mensagem, mas para
ouvi-la, primeiro é necessário aprender nossa língua.”
Esta encarnação da vida da Igreja continua a ser necessária
mesmo em culturas já supostamente cristianizadas, como é o con-
texto latino. Como Aylward Shorter (1988) escreve:
3 Mc 1:15: “É chegada a hora: o Reino de Deus está próximo; mudem vossos cora-
ções e confiem nas boas novas”.
4 Jo 1:3.
5 Orígenes de Alexandria propôs que toda a criação contém “sementes da Pala-
vra”. Conforme Shorter (1988, pp. 75-79).
A encarnação da liturgia 23
As culturas, e não apenas os indivíduos, também devem mor-
rer para o pecado e renascer para uma nova vida, assim como foi
graças à passagem de Jesus pela morte para uma nova vida que seu
espírito se fez presente em todas as culturas. Portanto, a Igreja, se
é o corpo de Cristo, deve repetir em si mesma o padrão de sua des-
tituição – sua Kenosis, esvaziando-se na obra de libertação ou salva-
ção do mundo. Isto é porque a Páscoa de Jesus significa não só a sua
própria morte e ressurreição mas, como elemento central da nossa
identidade e missão, implica também a morte e a ressurreição da
própria Igreja, se quiser ser congruente com o Evangelho de Cristo.
Resumindo: a comunidade da Igreja não deve separar-se
das culturas nem se identificar plenamente com elas, mas trans-
formá-las à luz do Evangelho, não só celebrando-as, mas também
as desafiando a deixar para trás seus aspectos desumanizadores.
Assim repete a Kenosis de Jesus, pela libertação/salvação do mundo,
esvaziando-se de si mesma.
À luz desta relação transformadora entre Igreja e culturas,
podemos agora indagar: que papel desempenha a liturgia em tudo isso?
Para responder, devemos primeiro explorar o que a liturgia é como
um evento de comunicação entre Deus e nós, entre nós mutua-
mente, e entre nós e o mundo.
A encarnação da liturgia 25
1989, p. 750).6 Esses sinais não são apenas objetos – são pessoas e
ações que significam e, portanto, conferem significado aos objetos
em uso. Além disso, a liturgia não é apenas um meio ou recipiente
para comunicar teologia, mas também origina a teologia, como
apontou Próspero de Aquitânia nos s. IV, insistindo “que a norma da
oração estabeleça a norma da fé.” (PATROLOGIA LATINA, 51, p. 10).7
São Tomás, escrevendo que os sinais sacramentais efetuam
na alma o que significam, acrescentou “eles efetuam significando-o.”
Pois bem. Um sinal que não significa não está funcionando como um
sinal. E, portanto, não pode realizar a graça de Deus. Por isso é
essencial que a liturgia signifique, porque se não significa, não tem
efeito. Mas, significar para quem? Porque os sinais sempre significam
a alguém – eles não estão no ar.8 Esse “alguém” é sempre alguém con-
creto, específico, formado por tal cultura, com seu sentido e “sabor”
de vida, visto que não há, em todo o planeta, nenhuma única pessoa que
não faça parte de uma cultura.
É por isso que nosso ensaio litúrgico da vida do Reino, se
for significar alguma coisa para as congregações latinas, precisa ser
encarnado em suas culturas, – não apenas usando o vernáculo, mas
em todas as expressões da cultura: sua música, arquitetura, movi-
mentos, gestos, sentido de celebração, do sagrado, da adoração,
do humor, do luto, do desespero, do lamento, da esperança. Resu-
mindo, sua visão da vida no Reino.
Mas se para ensaiar o Reino temos que fingir que somos
anglo-saxões, a liturgia funciona como a ritualização do colonialismo
e, sendo um ritual, nos forma em uma cosmovisão colonial em que “o
A encarnação da liturgia 27
que transforma e recria essa cultura, originando assim uma nova
criação. (pp. 229-255).
REFERÊNCIAS
A encarnação da liturgia 29
DECLARACIÓN DE YORK DE LA CONSULTA LITÚRGICA INTERNACIONAL
ANGLICANA, 1989. Disponível em: http://anglicancommunion.org/me-
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PATROLOGIA LATINA, 51,
SHORTER, Aylward. Towards a Theology of Inculturation. NY: Orbis, 1988.
A encarnação da liturgia 31
Reafirmando o que foi dito acima, também acredito que
o Pe. Oliver poderia sublinhar e tornar o seguinte mais explícito
(o que tornaria seu argumento ainda mais forte): Toda interpre-
tação, entendimento e compreensão do Evangelho não ocorre
apenas em contextos culturais, mas também ocorre graças a esses
mesmos contextos culturais. Ou seja: se o Evangelho e a liturgia
devem ser encarnados (“inculturados”) em cada contexto cultu-
ral em que se encontram e também devem desafiar as culturas
nas quais estão inculturados, isso significa necessariamente que
tanto o que se entende, como se interpreta por “Evangelho” e
“liturgia”, bem como o que é entendido, interpretado e enten-
dido por “inculturação” e como “necessidade de desafio”, são
entendimentos, compreensões e interpretações que se tornam
possíveis graças ao fato de que os seres humanos e todas as nos-
sas comunidades são culturais e não podem deixar de sê-lo. Tudo
o que entendemos, interpretamos e compreendemos é criação
cultural. Disto não há como escapar.
O que implica que a inculturação poderia se tornar um
processo ingênuo e criticável se não atentar para a cegueira
e “tapa-olhos” culturais que todo processo cultural acarreta e
assume, por se situar nas culturas humanas. Nada humano é
perfeito, e tudo é transitório. A “inculturação do Evangelho” ou
a “inculturação da liturgia” é um processo cultural e, por isso
mesmo, não se pode presumir que seja entendido, interpretado
ou compreendido sem limitações e cegueira – tanto daqueles
que “trazem” a inculturação e aqueles que a “incorporam” em
seus respectivos contextos culturais.
Ocorreu-me que este artigo, que tão eloquentemente argu-
menta em favor da inculturação, não inclui nenhuma referência
A encarnação da liturgia 33
intercultural é um procedimento em que “o que é discutido”
não leva a um resultado predeterminado. Trata-se de um diá-
logo em que a discussão é levada pelos parceiros de diálogo
onde quer que eles a levem. Nesse processo, as propostas e res-
postas são “lançadas” e oferecidas a partir de suas inevitáveis
perspectivas culturais (contribuições e cegueiras). O diálogo
intercultural (entre iguais) fará com que seja intercultural e de
forma dialogante se encontrem (se “revelem”) as ferramentas,
os fundamentos e as formas de “interculturalizar” a liturgia, o
Evangelho e a tradição eclesial em cada contexto.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A encarnação da liturgia 35
de sua tradição e também de sua liturgia (ADAM, 2018). A Igreja
Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB) foi trazida
por imigrantes alemães ao Brasil há quase 200 anos. A iden-
tidade étnica dessas pessoas encontrou um grande espaço de
afirmação e expressão na liturgia do culto comunitário. Assim,
foi criada uma igreja étnica (a igreja dos alemães), baseada em
uma diversidade de tradições litúrgicas principalmente da Ale-
manha, com liturgias transplantadas desse contexto para o con-
texto brasileiro. Como em uma máquina do tempo, celebramos
liturgias que não existiam na Alemanha há mais de um século.
Por outro lado, essa liturgia transplantada foi, em grande
medida, uma liturgia que resistiu à cultura, às práticas religio-
sas, ao clima, aos costumes do contexto brasileiro. Há pelo
menos 50 anos se fala muito sobre a necessidade de a igreja se
tornar brasileira, algo que ainda é muito difícil. A inculturação
da liturgia no contexto e na cultura brasileira faz parte dessa
dificuldade.
Curiosamente, esse parece ser o caso de muitas igrejas
históricas no contexto latino-americano, como Juan Oliver tão
bem descreveu. Sabemos que grupos de imigrantes tendem a
manter suas tradições de origem mais acentuadas quando estão
longe de seu local de origem. Mesmo assim, em relação à litur-
gia parece haver algo mais por trás desse fenômeno, algo que
Oliver também aponta: A liturgia tem sido usada em nosso con-
texto como forma de colonização e manutenção de um deter-
minado poder (BOSI, 1982, pp. 11-26; CARVALHAES, 2015).
Contrário ao que acontece com as igrejas étnicas no hemisfério
norte, na América Latina carregamos a ideia de que a liturgia
A encarnação da liturgia 37
Mesmo assim, os resultados práticos na vida litúrgica
das comunidades da IECLB ainda são pequenos. Nossos espa-
ços litúrgicos reproduzem templos e estruturas do norte, nosso
calendário litúrgico se adapta às estações climáticas do norte,
nossas canções, ritmos e instrumentos estão em harmonia com
o norte; nosso comportamento litúrgico é racional, sóbrio,
calmo, muito diferente do comportamento cotidiano da cultura
brasileira em geral.
Louis Marcelo Illenseer (2019) pesquisou em seu mestrado
sobre a inculturação da liturgia, considerando principalmente a
importância da música inculturada. É interessante notar nesta
pesquisa que grande parte da produção musical inculturada tem
mais adesão nas assembleias gerais da FLM e CMI, ou nos can-
cioneiros das igrejas do norte (projeto World Music), do que na
vida litúrgica das comunidades locais, às igrejas às quais perten-
cem os compositores.
Penso que outro impulso importante para a incultu-
ração da liturgia se deu no campo da Teologia da Libertação
– TdL – (BUYST, 2008). A partir da TdL houve uma ampla discus-
são sobre a própria cultura e seu papel político no contexto. As
pessoas perceberam o impacto negativo da “cultura do outro”,
da cultura do Norte, como cultura hegemônica e seu poder de
dominar as culturas indígenas, africanas e populares no conti-
nente. Não basta inculturar, é preciso perguntar-nos como incul-
turar, o que inculturar, para quê e para quem inculturar: para
quê e para quem serve ou não serve a liturgia inculturada? Qual
é a função política da inculturação da liturgia? O que está em
jogo: adaptar um rito externo a uma cultura como forma de
A encarnação da liturgia 39
ficação essênios. A Eucaristia dos ritos de sacrifício dos povos
vizinhos de Israel, das práticas das refeições judaicas e domésti-
cas. A liturgia da palavra foi inculturada na sinagoga, etc.
Esses elementos litúrgicos inculturados constituirão as
liturgias cristãs dos três primeiros séculos e, por sua constân-
cia litúrgica e teológica, deram o caráter transcultural dos pro-
cessos de inculturação ao longo dos mais de dois mil anos de
Igreja. No entanto, o que acontece com o tempo, à medida que
o ordo litúrgico básico se consolida, o próprio ordo torna-se
algo cultural e, de certa forma, absoluto, esquecendo sua origem
nos processos de inculturação. Por isso, reforço o que Oliver nos
diz: “O princípio encarnacional do Evangelho deve ser levado em
conta nos processos de inculturação litúrgica na América Latina”.
A encarnação da liturgia 41
mente. Portanto, refletir sobre a inculturação da liturgia signi-
fica ler atentamente e compreender a própria cultura.
Nesse processo, o objetivo principal não é a cultura, mas
a comunicação do Evangelho. Acredito que o objetivo da incul-
turação deve ser celebrar um culto com rosto local, um culto
que tenha rosto de povo e que, ao mesmo tempo, ajude essas
pessoas a se verem como parte da encarnação do Evangelho, ou
seja, penso em um culto no qual as pessoas e as comunidades,
em suas diferentes matrizes culturais locais e regionais, podem
reconhecer os elementos transculturais, contextuais e contra-
culturais do culto cristão, e assim se libertar das estruturas de
dominação social, de gênero, domínio acadêmico, cultural e
econômico.
Nesse movimento não há uma mera inversão de elemen-
tos étnicos e culturais, mas uma inculturação que faz sentido
para os próprios povos e comunidades. Certamente, corporei-
dade, movimento, ritmo e agitação, beleza e leveza (MARAS-
CHIN, 2010), matrizes culturais e religiosas indígenas, africanas
e populares (SOUZA, 1992; BUYST, 2008), lutas pela igualdade de
gênero, diversidade juvenil, festas e tradições populares como
o carnaval no Brasil, o sincretismo e a transgressão das frontei-
ras religiosas (BOBSIN, 2000, 2016) devem estar presentes de
forma crítica e afirmativa nesse processo. Além disso, a incul-
turação deve levar a sério a questão sócio-política envolvida na
cultura (BUYST, 2008; SOUZA, 1992; ADAM, 2018) e a questão
ambiental. Como diz Juan Oliver “a Igreja não se encarna nas
culturas apenas para celebrá-las. Ela também está encarnada para
desafiá-las a ser tudo o que Deus os chama a ser”.
A encarnação da liturgia 43
MARASCHIN, Jaci. Da leveza e da beleza: liturgia e pós-modernidade. São
Paulo: Aste, 2010.
STAUFFER, S. Anita. (Ed.). Baptism, Rites of Passage and Culture. Gen-
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Ginebra: FLM, 2000.
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En: STAUFFER, S. Anita (Ed.). Christian worship: unity in cultural diver-
sity. Geneva: LWF, 1996.
SOUZA, Marcelo de Barros. Celebrar o Deus da Vida: tradição litúrgica e
inculturação. São Paulo: Loyola, 1992.
PARA DISCUSSÃO
A encarnação da liturgia 45
2ª Conferência:
22 de setembro de 2020
“LITURGIA, INCULTURAÇÃO E PODER”
David Limo11
A encarnação da liturgia 47
um contexto onde as línguas originais ainda são faladas pelo povo,
incluir em nossas liturgias as respostas do Evangelho, uma aclama-
ção e uma bênção para que possamos aprender a orar com eles
e deles. O colonialismo é tão terrível que, além do genocídio de
nossos povos, eles tiraram o conhecimento de nossos ancestrais
e seus saberes. Se a liturgia pretende ser autêntica, não podemos
improvisar colocando elementos latinos sem convidar gente latina
a ser protagonista, criadora e criativa da autenticidade dessa litur-
gia e de sua própria liturgia. Porque o que normalmente acontece
é apenas a folclorização da liturgia em decorar e colocar coisas de
outras culturas sem significado cultural. Por isso, Damaris de Jesús
assinala que é extremamente importante na liturgia distinguir entre
“ser a voz das/os marginalizadas/os” e assumir o desafio de dar voz
a essas pessoas.
Como retirar elementos de verticalização nos textos litúrgi-
cos e também dos espaços litúrgicos? Damaris de Jesús assinala que
não podemos negar que o poder está nas mãos de quem ocupa car-
gos oficiais (bispas/os e clérigas/os), que devem reconhecer que não
têm que monopolizar esse poder e que não devem se sentir amea-
çadas/os em relação a outras lideranças da Igreja. Porque se con-
tinuarmos com os modelos coloniais em que todo o tempo quem
determina tudo é o clero, não seremos coerentes com o nosso
modelo anglicano de ser igreja. Onde o laicato, bem como o clero
são considerados essenciais no governo e missão da igreja por um
mesmo batismo.
Não há dúvida de que a experiência do patriarcado na litur-
gia e nos espaços litúrgicos é alarmante. Luiz Coelho lembra que
os espaços litúrgicos em particular estão repletos de elementos de
poder. O trono da/o Bispa/o, o altar, a altura da plataforma, até a
A encarnação da liturgia 49
LITURGIA, INCULTURAÇÃO E PODER
Luiz C. T. Coelho12
12 Rev. Dr. Luiz Carlos Teixeira Coelho Filho é sacerdote anglicano e planejador
urbano. É o atual Custódio do Livro de Oração Comum da Igreja Episcopal
Anglicana do Brasil, membro do Conselho Diretor da Consulta Internacional
Anglicana de Liturgia e da Societas Liturgica. Possui livros e artigos publicados
nas diferentes áreas do conhecimento em que atua.
A encarnação da liturgia 51
Na América Latina não é diferente. Embora sejamos pessoas
ditas livres e os nossos países sejam independentes, o paradigma
colonial ibérico ainda sujeita a forma de organização dos nossos
povos. Em outras palavras, a epistemologia que nos direciona ainda
é a mesma da época colonial. A matriz das nossas instituições
(incluindo a Igreja) é sobretudo europeia, colonial ibérica ou neo-
colonial anglo-americana. E é por isso que é tão difícil para nossos
governos e sociedades criticar realidades dolorosas, como o fato de
que muitas regiões da América Latina, onde a maioria da população
é branca (como o Cone Sul, mas também regiões de outros paí-
ses) porque houve um genocídio dos povos nativos que ali viviam,
ou porque nunca existiu democracia racial em países multiétnicos
como Brasil, Venezuela ou Colômbia; ou porque toda a mitologia
dos grandes impérios pré-colombianos que é usada como símbolo
nacional em muitos países andinos e mesoamericanos não encontra
respaldo na realidade dos descendentes dos primeiros habitantes
dessas terras.
A independência dos países latino-americanos não alterou a
estrutura de poder político, econômico e eclesial que neles existia,
e assim uma normalmente tem muito sucesso entre os povos latinos
quando não apenas passa por branca, mas age como branca. É pre-
ciso parecer europeu, comportar-se como europeu, vestir-se como
europeu e fazer parte da cultura ocidental globalizada (de origem
europeia). Essa herança colonial é tão forte que também é replicada
entre os latinos na diáspora norte-americana. E é por isso que Qui-
jano diz que não é possível trabalhar a questão da modernidade sem
falar das questões raciais (QUIJANO, 2005, p. 70). Mas há mais: não
só o colonialismo nos deixou órfãos das múltiplas culturas ao nosso
redor, mas também impôs profundas divisões sociais, classismo e
13 Por exemplo: Êxodo 22, 20-26, Jó 34, 20-28, Isaías 58, 5-7 e Lucas 4, 16-21
A encarnação da liturgia 53
tem sido comum entre os círculos liberacionistas, e até mesmo as
estruturas da igreja se adaptaram a uma forma mais igualitária de se
relacionar com as pessoas de forma teológica, litúrgica e pastoral.
Segundo Leonardo Boff (1969), a TdlL passou por quatro gera-
ções com nomes diferentes: 1. gestação e gênese, 2. difusão e cres-
cimento, 3. consolidação e revisão, e 4. novo impulso. É importante
levar em consideração todas essas etapas, pois apenas a última quis
aprofundar temas como a Teologia Feminista, a Teologia Queer e
a Ecoteologia. Muitas vezes, porém, a TdlL foi criticada por flertar
com o academicismo. A contribuição da Pedagogia do Oprimido,
proposta por Paulo Freire, ajuda-nos a sair um pouco do mundo
epistemologicamente europeu da academia (e a necessidade de
validação da TdlL por meio dela) e pensar em uma teologia essen-
cialmente decolonial e prática para os povos latinos.
O paradigma da opção preferencial de Deus pelas/os opri-
midas/os continua, mas a Teologia Decolonial nos convida a
ouvi-las/os e a trabalhar com elas/es, cujas culturas sempre foram
isoladas e rejeitadas, para a construção de um cristianismo latino,
ecumênico e plural. Isso permeia não apenas como lemos a Bíblia,
mas também como oramos, louvamos e nos organizamos como
comunidades de fé. O método histórico-crítico pode ser importante,
mas a interpretação popular da diversidade cultural latina também
precisa ser considerada. A liturgia da Igreja e suas formas podem
ser importantes, mas precisam ser adaptadas às muitas expressões
culturais existentes. E também a estrutura da nossa Igreja, baseada
no modelo canônico europeu, precisa ser revisitada para garantir
uma distribuição igualitária e respeitosa do poder a todos os povos,
cores, gêneros e culturas.
A encarnação da liturgia 55
IV. A LITURGIA HORIZONTAL: COMO IDENTIFICAR E ABOLIR A VER-
TICALIZAÇÃO DO PODER
A encarnação da liturgia 57
as pessoas oravam olhando na mesma direção. Pelo menos havia
algum tipo de coerência. Agora, a maioria de nós concorda que é
possível celebrar a missa mais perto da cidade, com altares versus
populum. Mas o que aconteceu em muitas de nossas igrejas? Os alta-
res foram movidos, mas só um pouco. Todas as divisões espaciais
possíveis que isolam os ministros do resto da assembleia perma-
necem, limitando assim a participação física dos fiéis. As escadas,
áreas de comunhão e plataformas servem como barreiras que colo-
cam as pessoas “em seus devidos lugares” e criam uma divisão sim-
bólica entre dois grupos diferentes de pessoas. As pessoas “do lado
do altar” recebem toda a atenção e perpetuam profundas divisões
hierárquicas. A quantidade de elementos artísticos e decorativos
encontrados ao redor do altar cria uma tensão visual que desorienta
as pessoas da ação litúrgica principal e limita o cenário à “área do
altar” ao invés do povo de Deus.
Mesmo os novos edifícios insistem em uma plataforma ele-
vada para o altar, o que não é muito útil em pequenas igrejas em uma
época em que bons sistemas de som estão disponíveis. Se o espaço
litúrgico for amplo e não superlotado, o altar será claramente visível
de longe sem a necessidade de plataforma, o que pode promover o
entendimento de que uma área específica do espaço de culto é um
palco ou plataforma de conferência, e o resto é uma mera audiência.
Um espaço polivalente, onde todos os móveis sagrados são colo-
cados no mesmo nível e podem ser movidos livremente para dife-
rentes propósitos, alinha todo o povo de Deus horizontalmente e
é mais adequado para a metáfora de uma sala comum em uma casa
sagrada. Também é adequado para fins práticos inclusivos, como
permitir que pessoas com deficiência sirvam no altar. E é hora de
remover tronos e outras referências imperiais ao papel do presi-
REFERÊNCIAS
A encarnação da liturgia 59
BOFF, Leonardo, ed., A Teologia da Libertação Balanços e Perspectivas. São
Paulo: Ática, 1996.
CHAUVET, Louis-Marie. The sacraments: the Word of God at the mercy of the
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CHUPUNGCO, Anscar J Handbook for liturgical studies. Volume II. Collegeville:
Liturgical Press, 2016
CHUPUNGCO, Anscar J. Liturgies of the future: the process and methods of
Inculturation. New York: Paulist Press, 2006.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1972
GUTIERREZ, Gustavo. Teología de la Liberación. Salamanca: Sígueme, 1975.
LIVRO DE ORAÇÃO COMUM DA IGREJA EPISCOPAL ANGLICANA DO BRASIL.
São Paulo: Paulus Gráfica, 2015
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Buenos Aires:
CLASO, 2014.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder: Eurocentrismo y Latinoamérica.
Buenos Aires: CLASO, 2005.
Damaris De Jesús-Carrasquillo17
A encarnação da liturgia 61
Vou usar como guia para minha apresentação a pergunta
final que Luiz nos faz ao final de sua apresentação: o que devemos
retirar de nossa liturgia para torná-la horizontal e inculturada? É
um final estratégico: tente nos levar à ação. Bom trabalho! Tra-
tarei primeiro dos conceitos de inculturação e horizontalidade
do poder, depois compartilharei algumas ideias específicas que
buscam responder à pergunta de Luiz.
I. CONCEITOS BÁSICOS
A encarnação da liturgia 63
de fazer frente ao “ataque cultural” que estava vivenciando ...
Vamos refletir.
Horizontalidade. Quanto à horizontalidade, concordo
com a proposta de Luiz: Uma Igreja com o exercício de poder
horizontal, em vez de vertical, seria mais rica culturalmente e
mais em sintonia com o modelo evangélico que vivemos con-
tinuamente em cada celebração litúrgica. A liturgia pode ser
um veículo de distribuição de poder entre o povo de Deus,
em todos os níveis. No entanto, me pergunto se a solução é
horizontal. Não estaríamos impondo uma solução a grupos e
indivíduos sem poder na Igreja? Seria possível construir novos
modelos e alternativas COM eles?
Por outro lado, a liderança oficial de nossas igrejas está
disposta a compartilhar o poder? Não há necessidade de ofici-
nas especializadas de liderança. Em vez disso, é necessário exa-
minar a liderança de Jesus. É necessário que nós, povo de Deus
sem acesso ao poder oficial, amemos e promovamos o cresci-
mento de nossas lideranças. Claro, dentro de nossas possibilida-
des. Ao mesmo tempo, é necessário que as/os poderosas/os da
Igreja decidam intencionalmente assumir como meta comparti-
lhar o poder com as/os oprimidas/os, as/os necessitadas/os e as
pessoas pobres de espírito. Com aquelas pessoas que podemos
encontrar nas nossas Igrejas, porque às vezes a própria Igreja é
a opressora.
Esta nova distribuição de poder deve ser apreciada na
liturgia. Aqui estão as “perguntas difíceis” que Luiz colocou.
Acrescento outras: por que em algumas de nossas Igrejas o pro-
cesso vocacional de uma mulher é mais difícil do que o de um
A encarnação da liturgia 65
ções, linguagem de sinais e tudo o mais que for necessário para
honrar a diversidade?
II. PROPOSTAS
A encarnação da liturgia 67
Luterana. Facilita que lideranças leigas possam, entre outras coi-
sas, conduzir reflexões teológicas que consistem em ouvir a voz
de Deus em nossa vida atual. Sem a necessidade de mestrados
ou doutorados.
Imagens sagradas. Acho que a questão da idolatria da
imagem está superada, pelo menos de modo geral. (Se este não
for o caso em sua comunidade, certifique-se de esclarecer esta
questão básica.) Portanto, proponho usar como guia, como cri-
tério para a tomada de decisões, o que é proposto na apresen-
tação: se conecta os fiéis a Deus, então se encaixa ao propósito com
o qual foi criado.
Há muitos aspectos a serem mencionados: os estilos de
celebração com nossos meninos e meninas, com nossos jovens,
com nossos enfermos, etc. Cabe a cada um aprofundar e agir.
Termino partilhando as palavras do teólogo Jorge L. Bar-
deguez: “Devemos desenvolver uma Teologia da Descolonização
... O Cristo libertador deve ser também um Cristo descoloniza-
dor”. Este grande teólogo propôs que a teologia em uma colô-
nia é sempre uma teologia colonizada. Agradeço, portanto, a
apresentação de Luiz e, seguindo seu exemplo, compartilho
uma última pergunta: não é hora de criar uma nova teologia
que responda à nossa identidade e cultura? O que estamos
esperando?
A encarnação da liturgia 69
cultura não fosse isolada e rejeitada como quase sempre o é
quando participo de uma missa episcopal.
Um grande erro que vejo na Igreja Episcopal dos Estados
Unidos quando tenta inculturar-se na cultura latina ou quando
tenta integrar quem fala espanhol é que nos colocam em uma
caixinha mexicana muito bonita, com celebrações à Virgem
de Guadalupe e arte que reflete uma caracterização mexicana
ou católica romana. Já repeti várias vezes que se deseja me
receber em uma igreja maioritariamente anglo-saxã, que não
seja com mariachis, a Guadalupana ou tacos, pois essas coisas,
embora belas e importantes, não chamam o peruano dentro
de mim. A inculturação de que precisamos vai muito além do
que nos foi ensinado nos cursos dos seminários episcopais ou
nos livros.
O que tenho observado na Igreja Episcopal, nos Estados
Unidos e em outros países, é que parece que tudo é desenhado
como uma flecha apontando para a liderança dos homens. É
como se as mulheres não existissem senão para ser a ajuda
“ideal” e para limpar, arrumar, cozinhar e ajudar em segundo
plano – que não somos ouvidas e às vezes até não somos vis-
tas. Agora, antes que você comece a me dizer que as mulheres
podem ser presbíteras, bispas, ministras, etc. na Igreja Episco-
pal, direi que sei tudo isso, pois estou na Igreja como líder há
mais de 20 anos. E em todo esse tempo e nos últimos 10 anos, vi
a diferença entre a forma como os homens são tratados e como
as mulheres são tratadas. Amo a Igreja Episcopal e é por isso que
fico aqui e procuro fazer o que posso para que ela continue a
A encarnação da liturgia 71
as mulheres como rainhas que somos. Somos maltratadas, estu-
pradas, abandonadas, mortas e, infelizmente, na igreja somos
ignoradas e silenciadas. No momento, estamos ouvindo falar
de violência contra mulheres em locais de detenção dos EUA –
histerectomias realizadas sem permissão. Mas, na igreja, a vio-
lência também é feita contra nós. Já ouvi pastores dizerem às
mulheres para não se divorciarem ou deixarem seus maridos,
mesmo quando estes foram infiéis a elas ou as maltrataram em
pensamentos, palavras e ações. Somos convidadas a fazer parte
da irmandade do altar ou mesmo de leitores, mas por que não
estamos treinando mulheres desde meninas para fazer parte do
ministério ordenado – parece que o ministério ordenado para
mulheres é o de serem ordenadas – em casa, com filhos e filhas,
apoiando seus maridos e muito mais.
Deus nos criou para sermos as doadoras de vida neste
mundo. Jesus (Deus no mundo, Deus humano, Deus de carne
e sangue, Deus feminino) amou tanto a mulher que a defen-
deu, foram suas amigas, falava com elas, deu a uma mulher o
privilégio de vê-lo ressuscitado antes que outros – antes que
um homem – o vissem. Mas, mesmo assim, por que nos é dado
tão pouco poder nas igrejas, dioceses, etc. Por que somos
temidas?
Sobre música, – um assunto de extrema importância para
mim: a Bíblia diz para cantar salmos, cantar com alegria, cantar
canções espirituais, cantar louvores e cantar as maravilhas de
Deus, usar harpa, melodias, lira, flautas, cordas, pandeiros, pra-
tos e címbalos retumbantes e brilhantes, diz que dancemos, que
A encarnação da liturgia 73
tos leigos e clérigos entusiasmados quando sabem que nos
Estados Unidos temos uma bispa primaz ou outras bispas e
uma reitora, mas não queremos que isso aconteça em nossos
próprios países.
Hoje não seremos capazes de resolver a questão da falta
de mulheres em cargos importantes – e quero dizer cargos de
tomada de decisão e posições onde as normas na Igreja podem
mudar – porque sabemos que tudo o que fazemos é importante,
mas espero que possamos começar a ter essas conversas aber-
tas, necessárias e úteis e vamos começar a ver o que podemos
fazer em nossos próprios contextos para alçar as mulheres a
posições elevadas. Talvez um ou outro bispo ou presbítero
tenha que decidir que já basta ter o mesmo bispo em uma dio-
cese, e que é a vez de outra pessoa chamada por Deus – que na
Igreja Episcopal inclui mulheres, lgbts, etc. – assumir o controle
e fazer alterações. Não vai ser fácil e tenho certeza de que há
pessoas aqui que não querem essas mudanças – mas, se formos
obedientes a Deus, seguiremos sua liderança.
Eu vi vários escritos em espanhol. E tenho certeza de
que todos nós usamos diferentes dialetos do espanhol aqui –
e uma variedade de maneiras de usar o espanhol inclusivo ou
não. Então, eu me pergunto – por que tentamos proteger uma
língua colonizadora e não “danificá-la” com o x ou a arroba,
mas não pensamos que o espanhol seja uma língua orgânica,
viva, e espero que continue crescendo, como cada uma de nós
aqui presentes. Na América Latina, como nos Estados Unidos,
o colonialismo atende pessoas que consideramos de classe
A encarnação da liturgia 75
pessoa que venha a qualquer lugar onde estou. Não acredito em
um deus que quer que eu seja submissa ou que me cale ou que
pense que as pessoas LGBTQIA+ não deveriam ter os mesmos
direitos das pessoas que se dizem heterossexuais (sim, que se
dizem...). Não acredito em um Deus que pensa que a/o bispa/o
está acima de todas as outras pessoas, mas em um Deus que nos
dá líderes para nos ajudar a nos aproximarmos de Deus, não nos
isolar e não ser humilhadas ou silenciadas.
Não posso deixar de dizer que este Deus que amo é tam-
bém um deus dos meus colonizadores. Há alguns anos venho
buscando, pesquisando e me educando sobre minha cultura reli-
giosa. Mas, como diz minha mãe, acredito em Deus porque o
senti, o experimentei e tenho fé. Tenho certeza de que podemos
manter a religiosidade cristã e nossa religiosidade indígena.
É por isso que não acho que devemos retirar da liturgia, mas
sim adicionar ritos ou rituais, textos, etc. que sejam importan-
tes para as pessoas que servimos. Como as pessoas dizem em
inglês, vamos pensar em “yes, and” “sim e” em vez de “não,
mas” ou “sim, mas”. Deus, o Deus em quem acredito, é um Deus
de “sim, e”, um Deus de abundância, de adição, que tem espaço
e amor para quem quiser se aproximar dele.
A encarnação da liturgia 77
3ª Conferência:
06 de outubro de 2020
“A INCULTURAÇÃO DA LITURGIA:
IDEIAS PRÁTICAS”
David Limo19
A encarnação da liturgia 79
na liturgia – algo impraticável por ser do século XV e da Inglaterra.
Isso nos lembra que a inculturação da liturgia não pode ser um exer-
cício romântico, ansiando por um tempo e um lugar exóticos, pois a
liturgia não é uma viagem no tempo para outro momento histórico.
Pelo contrário, é uma viagem ao futuro através da vida, crença e
canto do povo celebrante que aqui e agora, ensaia juntos a chegada
do Reino de Deus.
A genuína inculturação coloca-nos frente a frente com a reali-
dade das pessoas que nos precederam, enquanto compreendemos a
dinâmica interna da liturgia. Por exemplo, se não entendermos que
a Eucaristia do ponto de vista histórico é uma ceia partilhada, e que
nessa ceia já se celebra a presença do Reino de Deus, acabaremos
brincando de decoração de interiores, decorando e fazendo coisas
sem julgamento crítico. A inculturação da liturgia não pretende
esbanjar o tesouro de significados de vários séculos; mas devemos
evitar uma liturgia de museu (antiquada), inexpressiva (rotineira) ou
discordante com a cultura de um povo. Na liturgia inculturada, a
tarefa litúrgica pertence a todos, tanto aos formados desde o nasci-
mento e batismo nessa cultura, como aos que a presidem.
Juan Oliver, Angel Rivera e Yanel Valdivia nos perguntam: nos-
sas comunidades anglicanas têm características próprias que nos
permitem falar de uma liturgia caracteristicamente latino-ameri-
cana? Conseguimos entender que mesmo no próprio uso do LOC
que temos atualmente é possível ajudar as pessoas a desenhar cria-
tivamente sua liturgia? De que forma a liturgia pode ser o meio
para encontrar o Jesus operário, camponês, milagroso, revolucio-
nário, em solidariedade com a causa da justiça e da esperança dos
crentes? Estamos em condições de começar a desenvolver um LOC
a partir de, para e com as comunidades latino-americanas e cari-
REFERÊNCIAS
A encarnação da liturgia 81
A INCULTURAÇÃO DA LITURGIA:
IDEIAS PRÁTICAS
Juan M. C. Oliver
AS AÇÕES DA EUCARISTIA
A encarnação da liturgia 83
de expressão – apenas fornece o texto – uma vez que o LOC (1989)
precisa servir desde as igrejas anglicanas evangélicas mais protestantes
até as mais anglo-católicas.
AS AÇÕES
A encarnação da liturgia 85
música vai acompanhar isso, antes, (durante?) e depois? Ou silên-
cio? Qual tradução da Bíblia vamos usar? Queremos destacar a lei-
tura do Evangelho de uma forma especial? Ou não? Por quê? De
onde o evangelho deve ser proclamado para que possa ser visto e
ouvido melhor?
A encarnação da liturgia 87
seu orçamento permite? Do que você gosta? O que eles podem fabricar?
Precisamos de uma mesa. Qual? Com qual toalha de mesa? Quem
vai costurar? Quais decorações? Por que não decorar todo o lugar, e
não apenas a área do altar?
Quando a mesa é posta, a/o diácona/o convida a/o presbítera/o
(que estava modestamente sentado em sua cadeira presidencial) a
se aproximar, e a/o presbítera/o inicia a bênção da mesa ou a Ora-
ção Eucarística. Como as pessoas podem participar melhor disso?
Podem ficar em torno do altar?
O espaço permite isso? Se não, a Santa Mesa pode ser movida
para o centro? Se elas/es vão rodear o altar, quando se aproximam –
trazendo ofertas? Thomas Cranmer – e as/os anglicanas/os até 1662
– faziam assim. Por que hoje não? Como e quando lhes dizemos
para voltar aos seus lugares, ou eles ficam até o fim?
A encarnação da liturgia 89
coletas e a Oração Eucarística. É tudo. Quando outra pessoa está
fazendo algo (por exemplo, as leituras), ela é o foco de atenção, não
quem preside. No entanto, nosso comportamento de presidência é
um exemplo para todos de como participar. Acima de tudo, quem
preside acolhe a todas/os em nome de Deus, pois somos como íco-
nes a Igreja que acolhe, que é de fato Corpo de Cristo, que acolhe
a todas/os.
A encarnação da liturgia 91
pode ser especialmente chocante para aqueles de nós que vêm de
denominações que têm apenas uma maneira de fazer as coisas.
As congregações não são idênticas, mas diversas. Por isso,
embora tenhamos apenas um texto, o LOC (1989) oferece muitas
possibilidades de inculturação. Talvez durante essa conversa eles
tenham se sentido um pouco desconfortáveis. O que apresentei
às vezes não corresponde às nossas expectativas como clero. Nós,
presbíeras/os especialmente, devemos superar nosso próprio cle-
ricalismo e co-dependência com um povo passivo acostumado a
obedecer sem pensar; nosso machismo e sede de poder e controle;
nossa falta de humildade em querer fazer tudo nós mesmos; não
saber priorizar: o medo dos conflitos e dos leigos ditatoriais; nossa
tendência de abreviar ações e objetos para nossa própria conveni-
ência; nossa recusa em pedir ajuda e nossa confusão sobre o que
é poder (sempre limitado) e o que é autoridade (a capacidade de
inspirar confiança).
Espero que essas ideias tenham ajudado você a começar a
imaginar o que é possível em nossa liturgia e como começar a aju-
dar as pessoas a projetar sua liturgia. No próximo webinário, no
mesmo dia 20 de outubro, meu colega Luiz Coelho vai compartilhar
ideias sobre o tema da inculturação e inclusão. Muito obrigado.
REFERÊNCIA
Angel Rivera20
A encarnação da liturgia 93
A Conferência do Dr. Juan Oliver acima nos apresenta uma
oportunidade extraordinária para uma revisão séria dos pres-
supostos que herdamos como cristãs/os e anglicanas/os em um
contexto latino-americano ou hispânico/latino nos Estados Uni-
dos, de que desejamos seguir o Cristo da esperança, com um
compromisso de vida que fomenta comunidades de fé inclusi-
vas, transformadoras, missionárias e proféticas nos tempos difí-
ceis que vivemos. Este diálogo tem uma urgência e, por sua vez,
uma oportunidade de rever nossa experiência litúrgica, que já
foi desafiada pela pandemia de COVID-19 e que se pode inserir
na reflexão que se realiza nas diferentes Dioceses sobre qual
modelo de missão e de vida da Igreja.
Um dos critérios que orientou as revisões do Livro de
Oração Comum em cada uma das Províncias da Comunhão
Anglicana foi o processo de inculturação da vida dos povos na
liturgia, como nos diz Richard Geoffrey Leggett (2006):
A encarnação da liturgia 95
um contexto urbano e globalizado, afirmando a encarnação e
aquela Imago Dei [imagem de Deus] que nos une como irmãs/os
em um planeta que é cada vez mais uma aldeia global.
Essa reforma desde baixo deve obedecer a alguns elemen-
tos já apresentados, a revisão da linguagem sexista e que man-
tém uma imagem distante de Deus; também requer elementos
de oração pelas vítimas de abuso, estupro, segregação, xenofo-
bia, homofobia e pelos setores pobres e marginalizados. Deve
apelar à reflexão da comunidade sobre os valores da inclusão,
justiça, liberdade e uma cultura de paz.
Nossas Dioceses na América Latina devem reconhecer
que uma revisão das liturgias anglo-saxãs herdadas é necessária
e que consagramos como um sinal indelével de nossa identi-
dade; se elas não são feitas como as/os irmãs/os na América ou
na Inglaterra, pensamos, não são anglicanas/os, e nos agarramos
a nossos Livros de Oração Comum, uma tradução aprovada do
Book of Common Prayer de 1979, como outras/os irmãs/os fize-
ram antes com a versão de 1928.
Pedem a nós caminhos práticos para uma reforma litúr-
gica, também ofereço algumas ideias:
1. Que a celebração seja viva, utilizando instrumentos in-
dígenas de nossos povos e que as canções sejam um re-
flexo de nossa identidade (sugiro minimizar as canções
vindas de cantores com forte divulgação midiática de
tradição neo-evangélica que clamam por uma espiritu-
alidade individualista e escapista, e ter música ao vivo
ou composta na perspectiva da liberdade, fraternidade
e inclusão que aspiramos para nossas comunidades). O
A encarnação da liturgia 97
que torna Jesus sempre presente no seu povo. Dê me-
nos ênfase aos gestos de quem preside e mais ênfase
na participação do povo com suas orações e gestos que
louvam a Deus por sua presença no meio delas/es.
Fomos desafiadas/os a rever como organizamos nossos
espaços para o ofício divino, exemplo que apresento: não imagino
que se demolisse a Catedral de Saint John the Divine em Nova
York para fazer um edifício mais circular, mas poderia ser possível
substituir os bancos longos por cadeiras almofadadas individuais
que podem ser movidas para as necessidades de uma celebração
contemporânea, um altar mais próximo da cidade e ao seu nível,
uma cidade que pode circundar o altar como companheiras/os,
coparticipantes do momento sagrado, um momento que pode-
ria ser uma canção poliglota, muitas línguas e um coração, que
representa a esperança daquela comunidade no seio de uma das
cidades mais cosmopolitas da terra, uma linguagem que adora a
Deus como pai e mãe, que faz de Cristo, suas/seus discípulas/os,
mulheres e homens, modelo para os santos que agora levantam
as mãos a Deus cheios de esperança. Saint John the Divine é um
exemplo de solidariedade ao trocar locais de culto e bancos por
macas para acomodar os pacientes da COVID-19, apoiando-os em
seu sofrimento na pior crise sanitária vivida pela cidade.
Desejamos que o novo texto litúrgico seja solidário com o
campesinato carente de palavras que fortaleçam sua luta, expres-
sem suas dores e esperanças, coleções que clamam pela criação e
que exigem o fim da destruição dos recursos de todos em benefí-
cio de poucos, um livro que conforta o trabalhador quando perde
o emprego e a vida se torna insegura, que expressa a revolta da
A encarnação da liturgia 99
representou o fechamento total de negócios, indústrias e restri-
ções à circulação da população de meados de março a meados
de maio de 2020.
Este desafio propõe então que o espaço do templo se
estenda ao espaço de convivência de toda a comunidade. Cada
casa é uma extensão do templo e um ponto de encontro para
amigos e vizinhos que também desejam viver a fé e celebrar
juntos por meio de palavras e orações.
Esperamos que estes encontros sejam o início de um
movimento litúrgico que permita a nossas bispas/os, como pas-
toras/es do povo, ver este esforço como uma tarefa urgente
exigida pelos novos tempos em que vivemos, uma liturgia que
encarna os valores do reino e as necessidades da cidade, per-
mitindo que os grupos se reúnam em cada comunidade para
refletir sobre a necessidade de reformar a liturgia atual. Nós,
clérigas/os, temos a séria responsabilidade de ser animadoras/es
do povo, sempre lembrando o norte da inclusão, o fim de toda
violência e a exaltação dos valores de justiça, igualdade e liber-
dade e proporcionando o espaço para ouvir. A academia tem um
grande peso nesse esforço, temos que organizar encontros de
faculdades e teólogas/os em nossas dioceses e na Igreja Epis-
copal em geral, que publiquem materiais com rigor acadêmico
que permitam reflexão e propostas relevantes para o povo. Essa
tarefa é urgente, uma vez que os tratados litúrgicos na tradição
anglicana produzidos em espanhol são escassos e o material
publicado disponível são traduções do inglês ou adaptações de
tradições populares ou ritos da comunhão irmã católica romana.
Fonte: o autor.
Figura 2
Fonte: o autor.
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
22 de outubro de 2020
“LITURGIA, INCULTURAÇÃO E
INCLUSÃO”
David Limo22
Luiz C. T. Coelho
Yuriria Rodriguez23
REFERÊNCIAS
Arthur Cavalcante
fosse maior, ele simplesmente amputaria parte de seu corpo. Se ele fosse
menor em relação à cama, resolveria o problema esticando o corpo até o
tamanho exato. Ninguém cabia perfeitamente em sua cama, já que Procusto
tinha duas camas de tamanhos diferentes. Teseu conseguiu prendê-lo a uma
cama e aplicou o mesmo método, cortando sua cabeça e pés