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r e v i s t a d e

ANO 49 - 291 MAIO / JUNHO 2022 R$ 12,00

O Missal:
entre o modelo da prática e a
prática do modelo
SUMÁrio
A tenda da transfiguração
Penha CarPaneDo 4

Revista de Liturgia O livro litúrgico como programa ritual


Proprietário: marCio Pimentel 11
Congregação Religiosa Pias Discípulas do Divino
Mestre, fundada pelo Padre Tiago Alberione.
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Diretora: Rito
Penha Carpanedo Daniel Carvalho
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Brunetta, Neusa Bressiani
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Revisão:
Rogério Muraro A força profética da Palavra proclamada
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Jorge Custódio A Oração sobre o povo na III edição típica
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ISSN 1982-6303
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EdiToriaL

ARQUIVO DO MOSTEIRO DA TRANSFIGURAÇÃO


C
ontinuamos nossa agenda sobre o novo Missal Romano, à
espera da versão brasileira, referente à terceira edição típica,
publicada em 2002. Trata-se de uma tarefa necessária e muito
oportuna, que se justifica pela importância tanto desse ritual como de
sua instrução.

Mergulhar nesse livro de oração do povo de Deus é retomar os


grandes propósitos da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II e,
igualmente, a sua recepção. O Concílio reabilitou o povo dos batizados
como sujeito eclesial e, portanto, como protagonista na ação litúrgica,
superando séculos de não participação e de impossibilidade de beber
da fonte primeira da sua fé.

A Liturgia é norma da fé da Igreja e fonte de sua vida. Por ser


dela guardiã e transmissora, a Igreja consigna, nos livros litúrgicos
– especialmente no Missal – a consolidada experiência de penetrar o
Mistério e realizar a fé, o que faz por meio de ritos e preces (cf. SC 48).
O Missal e os demais livros litúrgicos são recebidos pelas comunidades
como um “modelo da prática”, cuja realização, fielmente criativa, em
cada assembleia local, introduz os seus membros no coração da vida
divina. Sendo berço também da catequese, permite-lhes a compreensão
do mesmo Mistério e a transformação da conduta de vida em conformi-
dade com o evento celebrado. Eis porque cuidar da liturgia é decisivo
para manter viva a fé do povo de Deus ditada pelo Evangelho de Jesus.

Ritos e preces compreendem as orações, as leituras bíblicas, o canto,


as ações e o espaço, aspectos que são conjugados dentro de um pro-
grama que reúne, de forma orgânica, todos os códigos comunicativos
necessários à transmissão da fé. No processo ritual, estruturado, no
livro litúrgico, como típico, característica que o torna modelo para
as igrejas locais, recebe destaque o espaço, elemento que congrega
e orienta os irmãos e irmãs em oração, possibilitando a visibilidade,
o movimento, a escuta, a resposta e a interação nos gestos e preces.

Por isso, ao lado do estudo sobre o Missal como “modelo da práti-


ca”, destacamos, nesta edição, o relato da construção de um espaço, o
qual foi erguido com a precisão e a largueza que requer a ação ritual
e festiva do memorial pascal do Senhor. É uma imagem iconográfica
da Igreja que acolhe, na tenda da Transfiguração do seu Senhor, a
comunidade em oração, “que caminha pelas estradas do mundo rumo
ao céu”.

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Mosteiro

A tenda da transfiguração
Penha CarPaneDo, PDDm

Localizado em Mogi das Cruzes/SP, o por São Bento de Núrsia. A designação de


Mosteiro da Transfiguração abriga uma Camaldolenses, dada a essa irmandade,
comunidade de monges pertencentes à se deve aos esforços do monge italiano São
família beneditina, fundada, no século VI, Romualdo de Ravena, realizados no início

Salão multiuso Nova igreja


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do segundo milênio (1023), quando uma O oratório
nova experiência se consolidou nas mon-
tanhas de Camaldoli, na Itália, integrando Em qualquer comunidade monástica a
à vida comunitária monástica a dimensão vida é ritmada pelas horas da oração, o que
solitária. São Romualdo, que era monge se dá mediante a celebração do ofício divino
beneditino da Abadia de Santo Apolinário, e a lectio divina. Por isso, um lugar muito
em Classe, na Itália, tornou-se itinerante frequentado no conjunto de um mosteiro é o
por todo o país, para promover a renova- oratório. No caso do Mosteiro da Transfigura-
ção da vida monástica e da vida da própria ção, o lugar da oração era, a princípio, uma
Igreja, fundando e reformando mosteiros sala adaptada para os ofícios dos monges.
e eremitérios, restaurando a vida do clero Logo, porém, apareceu a exigência de um
e defendendo os pobres e marginalizados. espaço maior, que pudesse acolher o povo
Sua última fundação foi uma comunidade que procurava o Mosteiro para a oração. As-
monástica composta pelo Sacro Eremitério sim, com essa finalidade foi construído, em
e pelo Mosteiro de Camaldoli, que abriga 1994, um salão multiuso, local que passou a
duas formas de vida, uma eremítica e outra receber grupos que vinham ao mosteiro para
cenobítica. retiros e para a celebração do domingo. Era
Dessa comunidade é que chegaram ao um ambiente simples, mas muito orante,
Brasil, em 1986, os monges Camaldolenses inspirado pela imagem da Deposição do Se-
para constituir a Comunidade Monástica nhor da cruz, a qual havia sido pintada na
da Transfiguração, buscando, como é o seu parede por Dom José Carlos Velasco, monge
carisma, a unidade entre a vida comum, a iconógrafo da mesma comunidade.
solidão e a evangelização. A finalidade a que Com o passar dos anos, esse espaço já não
os monges e o bispo se propuseram foi a de comportava mais o povo. Diante disso, uma
constituir uma comunidade, enraizada na primeira ideia foi a de ampliar o salão, intuito
tradição espiritual beneditina e camaldo- que, porém, não teve prosseguimento. De
lense, aberta às novas exigências de serviço outra forma, decidiu-se construir uma nova
ao Senhor e ao povo de Deus evidenciadas igreja, retomando um projeto que o artista
pelo Concílio Vaticano II. Trata-se, dessa plástico Cláudio Pastro (1948-2016) havia
forma, de uma comunidade que vive a apresentado em 1989, a pedido dos monges,
fraternidade evangélica, a oração litúrgi- e que, à época, não pôde ser executado.
ca e pessoal, o estudo contemplativo e a Por conceber que uma igreja é parte do
meditação da Palavra de Deus, o trabalho lugar onde está inserida, tal projeto fora
manual e cultural, o diálogo ecumênico e pensado em unidade de estilo e de materiais
inter -religioso e a acolhida fraterna dos com os edifícios do Mosteiro, os quais haviam
que procuram alimentar a própria busca sido projetados por um arquiteto chamado
espiritual. Ubiratan. O mesmo plano foi reapresentado

Igreja vista de frente Igreja vista de trás, a partir do mosteiro

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por Cláudio Pastro, em 2013, mas como um até o altar se verifica de uma tal maneira que
projeto totalmente renovado, tanto na ideação a quaresmeira sempre esteve no jardim, mas
como na estrutura. A disposição que antes era numa posição que a coloca no centro da porta
circular, indicando a comunhão dos irmãos e da capela e, hoje, com construção da nova igre-
ja, no mesmo centro, após o seu transplante
irmãs, passa para o formato de tenda, imagem
realizada pela comunidade.
da comunidade a caminho. Iniciada a obra,
o salão, que se compunha de uma estrutura Composição e sentido
simples e bastante frágil, foi derrubado, dan-
do lugar à nova construção, considerando-se Inscrito na paisagem natural, o edifício
ser ali o lugar mais adequado. Os trabalhos mantém uma unidade de estilo com o con-
tiveram início em maio de 2019 e, em 2020, junto do mosteiro. Erigido, como previa o
o novo espaço estava pronto. projeto, no formato de uma tenda, possui
Para guardar a memória, a parede com 15 metros de largura, 25 de comprimento
a imagem da Deposição do Senhor da cruz, e 10 de altura e é sustentado por vigas
que durante anos servira de referência para compostas por listras de madeira, as quais
a comunidade que se reunia no salão, foi são conexas entre si com técnica especial.
recortada e transportada para a capela do Sua cobertura é feita de telhas e com um
Santíssimo. Também a árvore plantada na forro interno, produzido, igualmente, em
frente do salão, onde as crianças brincavam, madeira.
foi transplantada para a frente da igreja, na A composição interna integra, em harmo-
mesma posição que ocupava anteriormente. niosa relação, o altar, o ambão, a cadeira da
Sônia Ferrão de Aquino Ferreira de Araújo, presidência e o lugar da assembleia. Com
Engenheira Ambiental que cuidou da re- relação a este último, trata-se de um espaço
lação entre a igreja e o ambiente natural, que incorpora, também, o coro dos monges,
expressou, no seguinte depoimento, suas permitindo compor uma única assembleia de
impressões sobre o projeto: monges e de povo. Na ausência do povo, a co-
munidade monástica se reúne formando uma
A integração do espaço externo da capela e,
assembleia mais reduzida e, nesses casos, o
hoje, da nova igreja, com a natureza, em nossa
comunidade, é feita através da quaresmeira,
ambão, que foi elaborado para atender a dois
uma árvore nativa do Brasil, frondosa, com uma lados, fica voltado para o coro. Os bancos
floração de chamar a atenção, que reforça o laterais são convergentes em direção ao cen-
contato com a natureza, para que essa conexão tro, onde está situado o altar, de modo que
perpetue, em nossa comunidade do mosteiro, o a assembleia se coloca em torno dele. Peça
amor pela vida. Essa conexão com a natureza única de granito rosa, e disposto em relação

Interno Altar

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com o ambão e com a cadeira da presidên- trajetória espiritual do povo de Deus. No que
cia, o altar é de onde se anuncia o mistério se refere aos discípulos, eles não aparecem,
pascal do qual toda a comunidade participa. uma vez que os discípulos somos nós, a co-
A unidade do presbitério com o conjunto do munidade de fé, a caminho e em processo de
espaço respeita, assim, a compreensão de transfiguração. Cristo, templo vivo de Deus,
que a assembleia, sendo articulada pelos é quem acolhe o povo a caminho e faz dele o
diversos serviços, segundo o carisma de novo templo. O povo, por sua vez, se alimenta
cada membro, é única e, por isso, espacial- da memória do Crucificado-Ressuscitado, por
mente, deve se apresentar sem separações. isso se reúne para celebrar.
Com relação à entrada da capela, nela foi São Romualdo, ainda jovem, com 20 anos
reservado um espaço para o átrio, lugar de de idade, frequentava a igreja de santo Apo-
acolhida e de despedida, tanto do presidente linário, em Ravena. Esse templo tinha, na
em relação à assemblveia, como dos irmãos apside, ou seja, na sua parte alta, a imagem
e irmãs entre si. Adiante dele, está a porta, do mistério da transfiguração, a qual era
na qual foi esculpida uma grande árvore da representada, de forma simbólica, com os
vida, indicando os que estão enraizados em seguintes elementos: uma cruz no céu azul,
Cristo, como aquela árvore que produz fruto sinal de vitória, e, próximo a ela, três ovelhas
doze meses no ano e cujas folhas servem para participando do mistério da transfiguração.
curar as nações [Cf. Ap 22,1-2]. Nessas ovelhas estão retratados os discípu-
Quanto ao formato de tenda dado à edifica- los de todos os tempos. São Romualdo se
ção, ele é inspirado no mistério da transfigu- converte diante desse ícone. Quando funda
ração do Senhor, ao qual a igreja, bem como o eremitério que se tornou a casa mãe dos
o mosteiro, é dedicada. Dessa forma, o projeto monges camaldolenses, esse local tinha o seu
iconográfico da igreja integra o belíssimo ícone centro na imagem da transfiguração do Se-
da transfiguração de Jesus, obra de Márcio nhor. Da mesma forma, várias comunidades
Mota, discípulo de Cláudio Pastro. No relato camaldolenses ao longo dos séculos tiveram
evangélico dessa passagem, quando Pedro suas igrejas dedicadas a esse mistério. Atu-
pede, no monte, para armar três tendas, tem almente há três mosteiros e três eremitérios
na sua memória o povo de Deus habitando que trazem essa representação iconográfica.
em tendas, a caminho da liberdade, e, igual- Além da eucaristia e do Ofício Divino coti-
mente, Deus se fazendo peregrino e demar- diano, a fonte batismal na entrada do recinto
cando, na tenda, o lugar do encontro com seu indica a celebração do batismo do corpo
povo. Moisés e Elias, que aparecem no ícone eclesial. E há celebrações da reconciliação.
da transfiguração, são protagonistas nessa E ainda a capela do Santíssimo.

Ambão Ícone

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Fonte batismal Capela do Santíssimo São Romualdo

Construção coletiva

A construção foi um processo que envol-


veu por inteiro a comunidade monástica e
o povo que a frequenta. Não havia qualquer
recurso disponível. Foi feita, então, uma
assembleia, na qual estiveram presentes
em torno de 40 pessoas, onde ficou decidido
que a igreja seria construída. A partir daí, o
primeiro passo foi unir as pessoas envolvidas
e, com esse objetivo, foram realizados três
retiros, que tiveram como tema o sentido de
construir uma casa para abrigar a comunida-
de cristã em oração, um lugar para recordar
os feitos de Deus na humanidade e para se
permanecer junto a Ele.
Depois disso, durante dois anos, a comu-
nidade se organizou para levantar os recur-
sos necessários: uma comissão de quatro
mulheres planejou, com a cooperação da
comunidade, 20 eventos. Ao mesmo tem-
po, um grupo de famílias se comprometeu
com uma contribuição mensal. Não sendo
paróquia, o Mosteiro não tinha dízimo, mas
o povo, espontaneamente, se ofereceu para
colaborar, se fazendo protagonista no pro-
cesso. Nenhum recurso veio de instituições,
mas tão somente dos fiéis ligados à comu-
nidade, e se deu na forma de contribuições
em dinheiro e de doação de materiais e de
serviços especializados. Desse modo, foi
possível realizar a elaboração do projeto
ideal, do projeto técnico e, também, o acom-
panhamento profissional da execução da
construção. Além disso, conseguiu-se o que
Maria do Conforto era necessário para as diferentes demandas

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Recordações da construção da igreja Dom Emanuele, a comunidade foi crescendo, a ponto
de nossa humilde capela nem sempre comportar a
A experiência de ter participado da equipe de cons- quantidade de pessoas que vinham à missa aos do-
trução da igreja do mosteiro Camaldolense nos deixou mingos.
fortes recordações. A primeira delas foi a discussão Aumentar a igreja foi uma consequência natural
que, no início, o projeto gerou nos fiéis, marcada por dessa vivência em comunidade, e fico feliz por ter
questionamentos como: por que fazer uma igreja tão auxiliado na realização da Árvore da Vida, que seria
grande? Não poderíamos só ampliar a existente? feita pelo arquiteto Cláudio Pastro.
Com base no novo desenho artístico do mosteiro, Para mim, a Árvore teve o sentido de que a Igreja
elaborado pelo Cláudio Pastro, foram feitas e distri- está viva e presente em nossa realidade. O bambu, com
buídas peças em cerâmica com essa estampa. Depois sua flexibilidade, mostra que podemos, com a graça de
de muito debate sobre onde a igreja deveria ser insta- Deus, vencer nossos desafios diários. Cada galho, com
lada, a versão final ficou exatamente igual à indicada suas inúmeras folhas, representa cada um de nós, que
no desenho. somos ligados em comunhão com a mesma raiz, que
Diante do problema dos recursos financeiros, foi é o Evangelho.
sugerido encontrar alguém rico capaz de doar todo Márcia Taccolini Papp
o valor. A surpreendente resposta foi: sim, mas isso
acaba com nossa experiência de comunidade. O resul-
tado, que parecia impossível, se tornou para muitos
um milagre. Sobre construir uma igreja
Nas poucas reuniões que tiveram clima tenso no Há quase três anos um desafio nos foi lançado:
decorrer das obras, D. Emanuele foi incisivo: sem Ajudar na construção da igreja no Mosteiro da Trans-
desconfianças e animosidades. Cada um está fazendo figuração, onde habitualmente já fazíamos uma cami-
o seu melhor. nhada espiritual.
No final da obra, quando já tinham acabado os Após alguns encontros e reuniões, tínhamos a
recursos, foi preciso tomar uma difícil decisão a fim certeza de que essa construção se fazia necessária,
de resolver entre o que deveria ser terminado e o que apesar das cifras apresentadas serem assustadoras.
teria que esperar. Quem podia, antecipou as doações Não parecia possível, mas o nosso Deus é o Deus do
mensais e, com isso, se fechou o caixa daquele momen- impossível, então seguimos em frente.
to. Com o tempo, porém, houve novas doações e foi Muitos encontros aconteceram, muitas ações e
possível retomar. Adquiriu-se, então, o altar, o ambão eventos foram propostos e, à medida que se realiza-
e a fonte batismal. Vão durar uma eternidade. vam, muitas aprendizagens aconteciam, entre elas, a
As festas e eventos programados, na maioria das de que a verdadeira igreja a ser construída passava
vezes, geravam poucos recursos financeiros, mas a pelas nossas relações.
alegria do trabalho em equipe era encantadora. Aliada à construção da igreja física, começamos
No final da obra, vieram os lindos revestimentos em também a reconstruir a nossa igreja interior, buscando
pedra natural, a pintura da imagem da transfiguração nos aproximar cada vez mais do amor de Deus e do
atrás do altar e a restauração da Decida de Jesus da amor ao próximo.
cruz na sala do sacrário. Obras de arte. Muitas dificuldades surgiram ao longo do caminho
Quando podíamos celebrar as missas – encantados e, com elas aprendemos, entendemos e vivemos o
e felizes com nossa nova igreja –, veio a pandemia: verdadeiro sentido da palavra “milagre”.
houve o isolamento, medo do vírus, as igrejas tiveram Esses milagres ocorriam no dia a dia como pequenos
que ficar vazias. Novos tempos e aprendizados. A gestos, atitudes, doações, palavras de conforto, ânimo
pandemia provocou aumento do desemprego, do custo e inspiração que partiam de diversas pessoas que
de vida, gerando miséria, gente passando necessidade. surgiam em nosso caminho, como verdadeiros anjos
Triste! Que o mesmo espírito de trabalho em equipe enviados por Deus.
permeie nossa nova realidade. Vimos e vivemos o “milagre da multiplicação” das
Tony Papp toalhas, mesas, cadeiras, pratos, talheres, alimentos,
prendas, pisos, telhado, entre tantas coisas. Também
fomos testemunhas do amor e da disponibilidade dos
irmãos e irmãs que tanto nos ensinaram com suas
A árvore da vida esculpida na porta experiências.
A vinda dos monges e monjas Beneditinos Ca- Hoje a igreja está “pronta”. E quando estamos
maldoleses a Mogi das Cruzes causou uma profunda dentro desta igreja, nos sentimos de fato parte dela. É
mudança em nossa participação na Igreja. Considero a casa do Pai e compreendemos ainda mais o sentido da
que o testemunho dos monges gerou uma participação Transfiguração. É a igreja que nasceu do nosso coração
especial, ativa, dos leigos na Igreja. Muitas outras e se tornou realidade.
atividades foram desenvolvidas com a presença dos Gratidão a todos que tornaram essa experiência
fiéis, como cursos, retiros, palestras. possível.
Ao longo dos anos, após a vinda para o Brasil de Rosely M. J. C. Lima – Comissão de Eventos

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Árvore da vida Atrio e quaresmeira

da obra, tanto em relação à parte estrutural Contudo, esses materiais não constroem a
do prédio, a exemplo da instalação do piso, casa do Senhor senão quando são unidos pela
da estrutura especial de madeira do forro, caridade. Se estas madeiras e pedras não se
do telhado, da parte elétrica e do sistema de encaixassem ordenadamente, não se entrela-
çassem pacificamente e, por assim dizer, não
ampliação do som, como em relação aos seus
se amassem mutuamente, ninguém poderia
componentes litúrgicos: o altar, o ambão, a estar aqui. Mas, vês em qualquer construção
cadeira da presidência, a fonte batismal, o pedras e madeiras formando um todo ajus-
tabernáculo para a reserva eucarística, a tado, então podes entrar nela sem temer que
restauração do grande ícone da Deposição desabe.1
e outros mais. Durante a construção, uma
comissão de 10 pessoas, incluindo o prior do Para terminar, não posso deixar de agra-
Mosteiro, Dom Emanuele, acompanhou os decer às pessoas que se dispuseram a contri-
engenheiros na compra dos materiais, bem buir com a elaboração deste relato, também
como a execução da obra. ele, um trabalho coletivo. Gratidão muito
Assim, enquanto a “Casa de Deus” foi especial a dom Emanuele, que acompanhou o
sendo erigida pelo povo, como lugar de sua percurso desde o sonho até a realização, que
perene presença, Deus construiu o templo teceu a unidade dos irmãos e irmãs em tor-
vivo, a habitação do Espírito (1 Cor 3,16). no da construção do templo e da Igreja viva
Nesse sentido, nada mais oportuno que as e que traz, bem presente em sua memória,
palavras de Santo Agostinho: o espírito que moveu toda a comunidade a
construir sua casa.
O que acontecia aqui, enquanto esta casa
estava sendo erguida, é o que acontece agora
quando se reúnem os que creem em Cristo. 1
SANTO AGOSTINHO. Sermão 336,1.6: PL 38, [4--].
Com efeito, ao abraçarem a fé, foram como
In: OFÍCIO divino: renovado conforme o decreto do
a madeira cortada na floresta e as pedras Concílio Vaticano II e promulgado pelo papa Paulo VI:
talhadas nos montes; ao serem catequizados, tradução para o Brasil da edição típica: liturgia das ho-
batizados e instruídos, foram lavrados, acerta- ras segundo o rito romano IV: tempo comum: 18ª – 34ª
dos e aplainados pelas mãos dos carpinteiros semana. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulinas: Paulus:
e construtores. Ave-Maria, 1995.

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O Livro Litúrgico como programa ritual
O Livro Litúrgico como elemento da Tradição viva

mÁrCio Pimentel

PASCOM - PARÓQUIA S. DIMAS - BH

S
abendo que a Liturgia não se encon- parágrafo da Constituição Apostólica se lê,
tra no livro, mas no corpo que age sobre o Missal pós-tridentino: “[...] durante
in memoriam de Cristo, morto e res- quatro séculos, os sacerdotes de rito latino
suscitado, é necessário nos indagar sobre o o tiveram como norma para a celebração
seu lugar no ato de culto. Em se tratando da do sacrifício eucarístico”; no Proêmio da
celebração eucarística, a própria Instrução Instrução Geral, por sua vez, tomando como
Geral nos oferece algumas pistas. referência a ordem do Senhor de preparar a
Tanto a Constituição Apostólica Missale ceia pascal, afirma: “A Igreja sempre julgou
Romanum1, com a qual vem promulgado o dirigida a si tal ordem, estabelecendo como
livro litúrgico para a celebração eucarísti- preparar as pessoas, os lugares, os ritos e
ca na Igreja de rito romano por ordem do os textos” (IGMR 1).
Concílio Vaticano II, quanto o Proêmio da Nesses documentos, ambos partes do
Instrução Geral do Missal Romano (IGMR), Missal, discernimos dois aspectos funda-
consideram o livro litúrgico dentro do pro- mentais para receber, acolher e dispor de
cesso de transmissão da fé. No primeiro qualquer que seja o livro litúrgico : esses

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livros são parte e condição de se guardar dentro de uma identidade cultural-religiosa
e transmitir a fé viva da Igreja (= ato de específica (romana, no caso) e adaptá-la
tradição) e um modo de educar e formar à no contexto vital de cada assembleia local.
experiência dessa mesma fé, que na Liturgia Desde a perspectiva mais simples das pe-
se vê realizada de modo incomparável (cf. quenas adaptações, até a tarefa complexa
SC 7). da inculturação, o livro litúrgico é a base
Sobre o aspecto da Tradição se pode sobre a qual se dão conjuntamente tradição
afirmar que, historicamente, a Igreja co- e progresso.
nheceu fases de desenvolvimento da prática Antropologicamente, se sabe que os ritos
da oração ritual. No começo mais livres e não são inventados e codificados por seu
criativas, seguindo, no entanto, esquemas sujeito imediato. Isto é, não é da natureza
bem determinados, ligados estritamente à da ritualidade que cada assembleia crie ex
maneira de Jesus e seu povo rezarem, o que nihilo (do nada) aquelas ações chamadas
se vê conservado nas Sagradas Escrituras. simbólicas, capazes de formar a identidade
Depois, paulatinamente, com a expansão dos fiéis. Tais ações e palavras são desco-
da Igreja e o contato com outros povos, bertas e recebidas como uma herança e la-
com distintas mentalidades e costumes, pidadas por cada sujeito litúrgico. A herança
ela estabeleceu formulários e textos para está codificada no livro litúrgico e pode ser
que não se perdesse o tesouro da fé. E, bem chamada de “modelo da prática”. Já o me-
mais tarde, preocupada com o modo mesmo canismo de lapidação advém do pôr em ato
de celebrar, compilou instruções mais ou o modelo, ou seja, da “prática do modelo”. A
menos precisas sobre o “como” proceder ri- Liturgia em si mesma não se identifica com
tualmente dentro do espectro da identidade o “modelo da prática”, mas com a “prática
religiosa romana – embora já influenciada do modelo”. E o livro litúrgico surgiu não
pelas idas e vindas dos primeiros livros li- como um “modelo” pensado anteriormente
túrgicos copiados e transferidos de uma a à prática, mas é o resultado multissecular
outra tradição cultural. de práticas que se fizeram “modelo”.
O mais significativo em tudo isso é que Por trás dessa concepção está a contri-
o livro litúrgico aparece como uma conse- buição de um exímio estudioso da liturgia,
quência da ação litúrgica e não o contrário. que muito fez para criar uma ciência es-
Primeiro celebrou-se e depois compilou-se, pecífica, denominada ritologia: o francês
gradativamente, tanto o “conteúdo” quanto Jean-Yves Hameline. Em seus estudos,
a “forma”, que são indissociáveis dentro Hameline conclui que os ritos se apresen-
de uma perspectiva identitária concreta e tam como um conjunto de determinações
precisa. O livro litúrgico, então, condensa o formalizadas que dão acesso a uma identi-
que hoje chamamos ars celebrandi (a arte de dade facilmente reconhecível, a qual pode
celebrar) e é referência indispensável para ser repetidamente praticada porque deles
a Pastoral Litúrgica. Exige-se, em relação toma parte3. O programa ritual é composto
a ele, tanto respeito e fidelidade – porque por diversos dispositivos que são experimen-
conserva a fé no processo de transmissão tados simultaneamente quando se celebra:
– quanto ousadia e criatividade – para que as ações, os lugares e tempos, as coisas e
responda ao gênio de cada povo. E, assim, objetos, os atos de linguagem e os atores.
conjugam-se, responsavelmente, a sã Tra- Sobre esses elementos já tivemos oportu-
dição e o legítimo progresso, conforme SC nidade de conversar noutro artigo, quando
4 e 23. fizemos a análise simbólico-funcional do rito
de apresentação das oferendas, conforme a
O modelo da prática proposta analítica de Pe. Maggiani4.
De fato, quando observamos um ritual
Os princípios da sã Tradição e do legítimo em ato nos damos conta de que não se trata
progresso não devem ser lidos de maneira tão somente de “cumprir” rubricas e pres-
reducionista, como se referidos ao que se crições normativas condensadas no livro li-
deve manter e ao que se pode inovar2. Na túrgico. Celebrar implica simultaneamente:
verdade, se trata da percepção e do cuidado - agir simbolicamente (dispositivo eto-
em receber a forma ritual da fé estabelecida lógico) gerando significados no corpo e a

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partir dos exercícios do corpo. Quando de “custódia” de uma Tradição que deve ser
agimos ritualmente nós constituímos uma recebida, discernida, acolhida e posta em
corporeidade coletiva mediante expressões prática, levando em conta a índole e forma-
e experiências comunitárias, que ao mesmo ção da assembleia, requerendo sua partici-
tempo nos põem em relação uns com os pação direta e ativa mediante o recurso à
outros e com Deus. Assim, o corpo existe dimensão simbólica, o respeito à ministeria-
na medida que atua ou performa um gesto, lidade, recorrendo também a um adequado
que, por sua vez, é recebido dentro da cor- senso de criatividade, dadas as adaptações
rente da Tradição; que se possam fazer necessárias.
- ocupar espaços e estabelecer ritmos
(dispositivo ecológico). Um lugar torna-se A prática do modelo
sacro pela ação que nele se dá. A territoriali-
dade é demarcada por um tipo de agir, o que Se nós observarmos a práxis ritual da
se consegue no modo como os performers adoração da cruz na Sexta-Feira Santa, ve-
rituais (o sujeito litúrgico, a assembleia e rificaremos todos esses elementos dando-se
seus ministros) se deslocam e se detém, se simultaneamente. O livro litúrgico limita-se
avizinham e se afastam entre si e dos ele- a prescrever possibilidades que resguardem
mentos que compõem o lugar da celebração. o acesso da assembleia:
Já o tempo se faz sagrado pela qualidade ou
densidade significativa das ações e relações; Para a adoração da cruz aproximam-se,
pelo “quê” de afetividade e emoção emprega- como em procissão, o sacerdote, o clero e
dos e pelo grau de envolvimento conseguido; os fiéis, exprimindo sua reverência pela ge-
- dispor de objetos e coisas que adquirem, nuflexão simples ou outro sinal apropriado,
por seu emprego ou manipulação, signi- conforme o costume da região, por exemplo,
ficação, constituindo-se mediação em um beijando a cruz. Durante a adoração can-
processo de transição (objeto transicional tam-se a antífona Adoramos, Senhor, vosso
da psicologia winnicottiana). Em termos madeiro, os Lamentos do Senhor, ou outros
práticos, a identidade do fiel configurada cantos apropriados, sentando-se todos
aqueles que fizeram a adoração.
na relação que ele estabelece com o altar, o
Deve-se apresentar à adoração do povo uma
sacrário, o cálice, o ícone ou a imagem etc;
só e mesma cruz. Se, por causa da grande
- realizar ações pronunciando-as. Este
quantidade de fiéis, não for possível aproxi-
aspecto performático e criativo da lingua-
mar-se individualmente, o sacerdote toma a
gem é muito importante no que toca a no- cruz, e de pé, diante do altar, convida o povo
ção de sacramentalidade católica. Ele tem em breves palavras a adorá-la em silêncio,
a ver com a dimensão da “confecção” da fé, mantendo-a erguida por um momento.
mediante o emprego de expressões como: Terminada a adoração, a cruz é levada para
“Palavra do Senhor – Graças a Deus”; “Ale- o altar, em seu lugar habitual. Os castiçais
luia!”; “Confesso a Deus”; “Creio em Deus acesos são colocados perto do altar ou da
Pai”; “O Senhor esteja convosco – Ele está cruz.5
no meio de nós”; “Isto é o meu corpo – isto é
o meu sangue”; “Eu te batizo”; “Te prometo Essa descrição prescritiva do livro li-
ser fiel na alegria e na tristeza” etc; túrgico, no entanto, não é ainda o “rito”, o
- enxergar-se dentro da ação, como parte qual deverá ganhar forma no corpo de uma
do evento comemorado mediante o gesto que assembleia concreta. A esse ponto, decisões
se cumpre. A noção de assembleia celebran- deverão ser tomadas levando em conside-
do, ministerialmente constituída, encaixa-se ração o que se estabelece, por exemplo, no
neste dispositivo do programa ritual. Capítulo I da Instrução Geral e que corres-
A Igreja, ao recomendar, através da Ins- ponde quase exatamente ao que chamamos
trução Geral, as “linhas gerais segundo as de programa ritual. No caso da adoração
quais se deve ordenar a celebração eucarís- da cruz, por exemplo, qual a cruz? Com ou
tica” (cf. IGMR 12), não parece considerar o sem o crucificado? Como entrará e como
livro litúrgico como condição exclusiva para será desvelada? Que tipo de gesto – o con-
uma boa e correta celebração do mistério. texto pandêmico, por exemplo, pode exigir
Antes, o Capítulo I assume-o na perspectiva restrições? Com uma grande assembleia,

Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022 - 13


qual o tempo destinado a esse rito? Ainda Talvez nos ajude considerar o livro li-
no caso de uma comunidade numerosa e túrgico como uma partitura de orquestra.
se os fiéis não puderem se aproximar, como Ela, em si mesma, não é a música. Esta,
resolver esse problema de interação com o somente a teremos quando os performers –
“objeto transicional” – uma cruz grande? aquela grande e rica comunidade fiéis, quais
Como provocar nos fiéis o desejo de se mover instrumentistas empregarem com afeto,
em procissão e acender neles emoções que inteligência e fidelidade criativa toda a sua
tornem o momento significativo? A dimen- energia para interpretar e executar o que
são artística deverá ser considerada, como ali está codificado. Certamente estarão im-
sugere Paschalis Solemnitatis? Etc. buídos de estilo próprio, mas sem deixar-se
O que aguarda a Equipe de Liturgia, que dominar, ao contrário, se permitirão guiar
prepara a celebração, e a Equipe de Celebra- pelo Maestro. E o Maestro é Cristo mesmo.
ção, que cumpre ministerialmente o que lhe E porque Cristo se faz manifesto mediante
é designado, é uma fidelidade à performance os ritos e preces, sendo a Liturgia seu ícone,
e não puramente ao livro, pois, como se pode todos nós devemos cuidar para que dela nos
perceber, o livro litúrgico é incompleto6. É tornemos servidores (cf. IGMR 24), como um
necessária uma Equipe competente que músico no fim das contas está a serviço da
possa incumbir-se de estudá-lo, decifrá-lo arte que realiza.
até, dadas algumas incongruências que sur-
gem nas sucessivas revisões, algumas vezes
por motivações ideológicas. Há decisões por
tomar referentes a textos e cantos que se
deva empregar nesta ou naquela ocasião,
monições e introduções que são requeridas e
devem ser compostas. Como a própria IGMR
352 recorda, Liturgia não se improvisa.

Uma questão de hermenêutica 1


CONSTITUIÇÃO Apostólica Missale Romanum. MIS-
SAL ROMANO. Restaurado por decreto do Sagrado
No livro litúrgico nem tudo tem a mesma Concílio Ecumênico Vaticano II e promulgado pela
autoridade do Papa Paulo VI. São Paulo: Palus,
importância. Em primeiro lugar está o su- 1992, p. 261.
jeito que celebra, aquele povo concreto que, 2
Cf. GIRARDI, Luigi; GRILLO, Andrea. Sacrossanc-
congregado em santa assembleia, celebrará tum Concilium, Commentario ai documenti del Vati-
a Liturgia. Em seguida, o próprio Ordo, ou cano Bologna, 2014134.
3
HAMELINE, Jean-Yves. L’accordo rituale: pratiche
seja, o significante, o que e o como se deve
e poietiche della liturgia. Milano: Glossa, 2009, p.31.
dizer e fazer. Depois, a Instrução Geral, que 4
Cf. Revista de Liturgia 283, março-abril, p. 22.
nos dá as necessárias pistas teológico-pas- 5
ADORAÇÃO da Santa Cruz. MISSAL ROMANO. Res-
torais, cerimoniais e litúrgico-espirituais taurado por decreto do Sagrado Concílio Ecumênico
para que não haja uma distância muito Vaticano II e promulgado pela autoridade do Papa
Paulo VI. São Paulo: Palus, 1992, p. 261.
acentuada entre o que a tradição dispõe e 6
Cf. GIRARDI, Luigi. Celebrare com i libri liturgici:
aquilo que se pode (e deve, em muitos casos) arte e stile. Rivista Liturgica, Camaldoli, 98 (2011),
adaptar ou incrementar. p. 966.

14 - Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022


Vocabulário Litúrgico:
Rito
Daniel Carvalho
Silvia Ludovina Barroso Quintino

A
Constituição Sacrosanctum Concilium po, como a teologia9, a fenomenologia10, a
(SC) n. 48, ao incentivar a mais provei- antropologia11 e a sociologia12.
tosa participação possível dos cristãos O reconhecido teólogo Romano Guardini,
na liturgia, afirma que ela se dá “por meio de numa de suas obras-chave para o Movimento
uma boa compreensão dos ritos e orações”1. Litúrgico, afirmou que o rito é como um jogo:
Tal afirmação abre margem para refletirmos capaz de reportar quem participa dele desde
sobre o que é o rito e sobre como ele tem sido a realidade objetiva até outra realidade alter-
entendido no seio da teologia litúrgica. De nativa13, remetendo-o do “como é” ao “como se
acordo com Terrin2, a palavra rito encontra fosse”. Há muitas pesquisas, ainda, sobre a
sua raiz no vocábulo latino ritus, que significa liminaridade do rito, isto é, sobre sua capaci-
algo como “ordem estabelecida, prescrição, dade de interromper o ritmo da cotidianidade
decreto, modo de ser, disposição organizada e abrir portas de acesso à transcendência14.
e harmônica das partes no todo”. Terrin afir- Alguns dos dados elementares para a iden-
ma que o mesmo termo teria também uma tificação de uma ação como ritual, conforme
segunda possibilidade de raiz etimológica muitos pesquisadores, são: a ruptura com
encontrada nas palavras rta ou rita (do idioma a cotidianidade, a repetição e o exagero. Por
sânscrito) e arta (do iraniano). Esses corres- romper com o ritmo comum da vida, o rito
pondentes são traduzidos, em português, resulta como marcador do tempo. É o caso,
por “arte, rito e ritual” respectivamente. Uma por exemplo, do dia de domingo, em torno do
terceira possibilidade estaria ligada, ainda, qual se organiza a vida dos cristãos. Devido à
a uma raiz indo-europeia, que poderia ser repetição, o rito é sempre transmitido de gera-
traduzida por “escorrer” e, nesse caso, estaria ção em geração, e isso garante certa invaria-
vinculada aos sentidos de “ritmo, rima e rio”. bilidade em seu cronograma. Em decorrência
O sociólogo francês Émile Durkheim da ruptura e da repetição, os gestos rituais
entende que ritos são práticas relativas às são sempre carregados de exagero, o que os
coisas sagradas3. O cientista da religião e diferencia das ações costumeiras do dia a dia.
exegeta argentino Severino Croatto afirma No cristianismo, a palavra rito tem sido
que o rito é, ao lado do mito, uma linguagem utilizada muitas vezes como sinônimo de
religiosa que coloca os símbolos da fé em liturgia15. Inclusive, as famílias litúrgicas (ro-
ação4. O teólogo italiano Giorgio Bonaccorso mana, bizantina, armênia...) são compostas
diz que o rito é como um olho por meio do conforme as particularidades do conjunto
qual cada ser humano é iniciado na cultura, de ritos que celebram e são classificadas e
de modo que cada pessoa forme sua cosmo- identificadas pelas expressões “rito romano”,
visão acerca da realidade a partir das vivên- “rito bizantino” e assim por diante. Ademais,
cias rituais5 que frequenta. Assim, é possível os livros litúrgicos, no catolicismo romano,
afirmar que o rito, embora componha o são denominados “rituais”. Portanto, é pos-
quadro das tradições religiosas, o extrapola. sível afirmar que a palavra rito açambarca a
Enquanto dado antropológico, o rito parece enorme gama de significados que orbita em
ter lugar em todas as culturas conhecidas. torno das ações religiosas.
E, atualmente, ele tem sido objeto de inte- Nesse sentido, é possível problematizar a
resse das mais diversas ciências, a saber: a afirmação depreendida da SC 48, citada ante-
linguística6, a psicologia7 e a neurobiologia8; riormente. Na liturgia católica, rito e oração se
além daquelas onde ele figura há mais tem- fundem. As orações, proclamações dos textos

Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022 - 15


bíblicos e bênçãos, por exemplo, são todas cristãos dentro do mistério celebrado e, assim,
realizadas de modo ritual. O espaço, as vestes, permitir-lhes que façam experiências de Deus,
a postura, a entonação de voz, entre outros, de encontrar-se com Ele, de senti-lo.
são sinais clarividentes de que tais elementos
se efetivam dentro do jogo ritual. O sociólogo Daniel Carvalho é leigo, especialista em Liturgia
Marcel Mauss teceu uma hipótese a partir da Cristã (FAJE / Rede Celebra) e mestre em Ciências
da Religião (PUC-Goiás).
qual defende que, nos primórdios das expe-
E-mail: dancarvalho90@gmail.com
riências religiosas, as orações eram sempre
coletivas e feitas de modo ritual. No entanto, Silvia Ludovina Barroso Quintino é leiga,
o mesmo pesquisador afirma que a evolução da prelazia de São Félix do Araguaia (MT) e
da oração resultou que, na contemporanei- especialista em Liturgia Cristã (FAJE / Rede
celebra). E-mail: silvia.ludovina@gmail.com
dade, ela pode se reduzir a uma elaboração
mental16. Na liturgia, sempre comunitária,
no entanto, oração e rito são indissociáveis. 1
Tradução Paulus (Col. de bolso), 2001. Buyst apresen-
Outro ponto passível de reflexão diz res- ta uma tradução mais próxima do original: que os fiéis
peito ao verbo “compreender” aventado pela participem consciente, piedosa e ativamente da ação
SC 48. A teóloga Ione Buyst recorda que “o sagrada, compreendendo o mistério em seus ritos e pre-
rito, como gesto humano, é antes de tudo ces (Cf. BUYST, Ione. O segredo dos Ritos: ritualidade e
sacramentalidade da liturgia cristã. São Paulo: Paulinas,
um gesto corporal (cinético, ou sonoro, ou 2011. p. 72-73).
olfativo, ou visual...), que vem acompanhado 2
TERRIN, A. N. O rito: antropologia e fenomenologia da
de um trabalho cognitivo da mente e de uma ritualidade. São Paulo: Paulus, 2004, p. 18.
valoração afetiva”17, portanto, a experiência
3
DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religio-
sa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins
ritual não se reduz à dimensão racional hu- Fontes, 1996.
mana, já que é vivida também, e em primeiro 4
CROATTO, S. J. As linguagens da experiência religiosa:
lugar, pelas dimensões corpórea e emotiva18. uma introdução à fenomenologia da religião. São Paulo:
Aliás, a tese de Bonaccorso vai nessa direção. Paulinas, 2001. p. 329-385.
5
BONACCORSO, G. Rito. Padova: EMP, 2015.
Segundo ele “o rito não é feito, sobretudo, para 6
DEACON, T. W. The symbolyc species: the co-evolution
ser entendido, mas para entender o mundo e of language and the brain. New York: Norton & company,
a existência humana”. A questão central não 1997. p. 401-410.
é compreender os ritos celebrados, mas sim
7
REIK, T. Il rito religioso: studi psicoanalitici. Turim:
Boringhieri, 1977; MORENO, J. L. Fundamentos do psi-
“assumir o sentido da vida”19 a partir deles. O codrama. São Paulo: Ágora, 2014.
fato é que o rito, embora se assemelhe muito 8
BURKERT, W. Creation of the sacred: tracks of biology
ao teatro20, possui a característica de não ad- in early religions. Massachusetts: Harvard University
mitir expectadores. Quem participa do rito é Press, 1998.
9
GRILLO, A. Ritos que educam: os sete sacramentos. Bra-
imerso nas realidades aventadas pelo ritual. sília, DF: Edições CNBB, 2017; BUYST, op. cit.
E tal experiência imersiva nem sempre é, em 10
SCHEFFLER, I. Symbolic Worlds: Art, Science, Language,
primeiro lugar, da ordem da racionalidade, já Ritual. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
que tange diretamente o corpo e, consequen-
11
TURNER, V. Dal rito al teatro. Bologna: Il Mulino, 1986;
TAMBIAH, S. Culture, thought and social action: an An-
temente, as emoções. thropological Perspective. Cambridge: Harvard University
Embora, atualmente, não seja possível Press, 1985; VAN GENNEP, A. Os ritos de passagem.
apresentar definições simplistas acerca do Petrópolis: Vozes, 2012.
fenômeno ritual, é possível dizer que rito tem
12
RIVIÈRE, C. As liturgias políticas. Rio de Janeiro: Imago,
1989; CAZENUEVE, J. Sociologia do rito. Porto: Rés, 1978.
a ver com a performance (a dramatização) de 13
GUARDINI, R. Lo Spirito della liturgia: i santi signi.
um evento originário que condensa os valores Brescia: Morcelliana, 2005. p. 69-82.
mais fundamentais a uma sociedade. Uma 14
BONACCORSO, G (Org.). La liminalità del rito. Padova:
premissa básica para a execução de um rito é EMP, 2014.
15
ALDAZÁBAL, J. Vocabulário básico de liturgia. São Paulo:
que a comunidade que o realize conheça bem Paulinas, 2013.
o mito que, associado à sua celebração, o fun- 16
MAUSS, M. A oração: introdução geral. RBSE, João
damenta. Nesse sentido, enquanto o mito é a Pessoa, v. 8, n. 24, p. 774-788, dez, 2009.
narração de um evento fundante, o rito é sua
17
BUYST, op. cit, p. 193.
18
SILVA, D. C. Romaria, reconciliação e celebração marti-
repetição, sua realização no hoje da história. rial: dispositivos rituais para a experiência de superação do
Desse modo, quem participa do rito mergulha pecado e da morte. 2022. Dissertação (Mestrado em Ciên-
como que em duas realidades: uma na sincro- cias da Religião) – PUC Goiás, Goiânia, 2022. p. 87-109.
nia – aqui e agora – e outra na diacronia – como
19
MARTINS FILHO, J. R. F; BONACCORSO, G. A centra-
lidade do rito na experiência religiosa: uma entrevista a
se estivesse presente no evento originário. E Giorgio Bonaccorso. Caminhos, Goiânia, v. 18, p. 1153,
é justamente por essa dinâmica que podemos dez. 2020.
dizer que a liturgia, o rito, é capaz de inserir os 20
TURNER, V. Dal rito al teatro. Bologna: Il Mulino, 1986.

16 - Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022


PASCOM - PARÓQUIA S. DIMAS - BH
Uma biblioteca chamada
Missal Romano – Parte III
Lecionário: o livro do leitor
JoÃo Paulo veloSo

N
esta série de artigos sobre os livros do o leitor termina, o presidente faz uma
litúrgicos que compõem o Missal Ro- exortação e convite para imitarmos esses
mano, já analisamos o Sacramentário belos exemplos. Em seguida, levantamo-nos
(o livro do presidente da celebração) e o An- todos juntos e elevamos nossas preces”1.
tifonário (o livro do cantor). Hoje falaremos Nesse testemunho podemos perceber
sobre um livro litúrgico fundamental para a que, já no início do cristianismo, havia lei-
estrutura celebrativa, sem o qual não é pos- turas específicas para serem realizadas aos
sível realizar nenhum dos sacramentos: o domingos. É certo que, nos primeiros sécu-
Lecionário, ou livro do leitor. los, utilizava-se o método da lectio continua,
O mais antigo atestado de uma Liturgia ou seja, a leitura continuada e sequencial
da Palavra na celebração da Eucaristia se dos diversos escritos bíblicos. Mas de que
encontra na 1ª Apologia de Justino, n. 67, do modo essas leituras foram escolhidas e, de-
século II: “No dia que se chama do sol, cele- pois, agrupadas, até se tornarem um livro
bra-se uma reunião de todos os que moram derivado e independente da Bíblia? Antes de
nas cidades ou nos campos, e aí se leem, en- responder a essa questão, vamos analisar a
quanto o tempo o permite, as memórias dos figura ministerial relacionada ao lecionário,
apóstolos ou os escritos dos profetas. Quan- ou seja, o leitor.

Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022 - 17


O ministério do leitor três modalidades: notas às margens da Bí-
blia; capitulários, ou seja, folhetos que con-
Sendo o mais antigo ministério litúrgico tinham o início e o fim do trecho a ser lido e
não ordenado na Igreja, o leitorado era rea- acompanhavam a Bíblia; e o lecionário pro-
lizado por pessoas aptas, preparadas e bem priamente dito, um livro com a transcrição
fundamentadas na fé. De fato, na igreja afri- dos textos sagrados, dispostos na ordem em
cana, no século III, têm-se notícias de que os que deveriam ser lidos. Nas duas primeiras
leitores eram escolhidos entre os que haviam modalidades, a Bíblia se apresentava como
confessado a fé católica diante das persegui- um verdadeiro livro litúrgico6, lembrando
ções2. Os próprios concílios africanos ates- que, nessa época, a Sagrada Escritura ainda
tam a importância desse ministério, deter- não era dividida em versículos ou capítulos.
minando vários requisitos para que alguém A partir do século VIII, os lecionários se
pudesse receber a dignidade de ser leitor3. impõem como o modo mais prático para a
Em Milevi, também na África, eram os lei- celebração. Eles são muito variados até o
tores os responsáveis por proteger a Palavra século XII, com leituras específicas. Alguns
de Deus, escondendo os livros sagrados em continham apenas as cartas de Paulo, outros
suas casas em tempos de perseguição4. apenas as cartas católicas, outros apenas
A escolha do leitor era realizada pela co- o Antigo Testamento. Entre os lecionários,
munidade, que o apresentava ao bispo como aqueles que sempre ganharam mais desta-
digno. O bispo, então, o instituía, usando que foram os que continham os Evangelhos,
as seguintes palavras: “Recebe e proclama ou seja, os evangeliários, que eram ricamen-
a Palavra de Deus, para ter, se realizares te decorados com gravuras e preciosos aca-
fiel e diligentemente o teu ofício, parte com bamentos. Essa exuberância do evangeliário
aqueles que a ministraram”5. Essa fórmula permanece até hoje.
se espalhou por todo o mundo ocidental e foi O mais antigo lecionário do século VIII
usada por muitos séculos, acompanhada da que temos é o Comes de Würsburg, o qual
entrega das Sagradas Escrituras. corresponde às celebrações contidas no Sa-
No entanto, pouco a pouco esse ministé- cramentário Gelasianum Vetus, apresentan-
rio foi sendo orientado à hierarquia eclesiás- do um epistolário (as leituras das cartas do
tica, tornando-se uma das várias ordens me- Novo Testamento). No final desse século, o
nores. Tanto no Oriente quanto no Ocidente, lecionário já continha, também, os evange-
meninos e rapazes especialmente instruídos lhos, como se pode observar no Liber Comitis
na fé eram escolhidos para serem leitores, de Paris, que mesclou a tradição das leituras
para que, a partir desse ministério, eles rece- realizadas em Roma com a tradição galica-
bessem, futuramente, as ordens maiores do na. No século XIII, com o advento do mis-
diaconato e do presbiterato. sal plenário, fundindo tanto o sacramentário
O que é comum no primeiro milênio em quanto o lecionário, as leituras permanece-
todas as tradições litúrgicas é que o leitor, rão praticamente as mesmas até a reforma
seja criança ou não, subia a um lugar eleva- litúrgica realizada pelo Concílio Vaticano II,
do para proclamar a Palavra, levando consi- em 1970.
go seu próprio livro. Mas que livro era esse?
O lecionário hoje
A formação do lecionário
A reforma litúrgica pós-conciliar, no que
Desde o início, a Igreja realiza dois tipos tange à Liturgia da Palavra, partiu da ordem
de leitura da Palavra de Deus durante a cele- de que “seja mais abundante, variada e bem
bração eucarística: a leitura continuada e se- adaptada a leitura da Sagrada Escritura nas
quencial dos livros, divididos em perícopes, celebrações litúrgicas”7. Se a partir do século
ao longo de várias celebrações; e a leitura de XIII a praxe era de ter apenas duas leituras
perícopes específicas nas festas e solenida- na missa (cartas de Paulo e Evangelho), ago-
des. Essas leituras, nos primeiros séculos, ra retornou-se ao modo mais antigo, do pri-
eram escolhidas pelos bispos e, até mesmo, meiro milênio, com três leituras nas missas
pelos presbíteros, mas a partir do século IV dominicais (Antigo Testamento, cartas ou
se estabeleceram listas de perícopes mais ou Atos dos Apóstolos, Evangelho).
menos fixas. Foram recuperadas, portanto, as antigas
As listas dos trechos que deveriam ser listas de perícopes dos lecionários da Alta
lidos configuraram-se, até o século VII, em Idade Média, tanto para as leituras quanto

18 - Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022


para os evangelhos, mantendo, no entanto, de cada sacramento ou sacramental: matri-
tanto quanto possível, a sequência estabe- mônio, batismo de crianças, iniciação cristã
lecida a partir do Missal da Cúria Romana de adultos, penitência, unção dos enfermos,
(século XIII). Se até a reforma dos anos 1970 exorcismos, bênçãos, exéquias, confirmação.
o lecionário estava contido dentro do próprio Devido à importância capital das Sagra-
Missal Romano, a partir de então ele volta a das Escrituras para a celebração dos sacra-
ser um livro autônomo. mentos, não é por menos que a própria In-
Atualmente, a edição em português do le- trodução ao Lecionário, no número 35, pon-
cionário é dividida em seis volumes: tifica: “os livros de onde se tiram as leituras
- Lecionário Dominical A, B, C: contém da Palavra de Deus lembram os fiéis da pre-
as leituras de todos os domingos do ano li- sença divina, que fala a seu povo. Portanto, é
túrgico, ao longo de três anos, ou seja, o ano preciso procurar que os próprios livros, que
em que se lê o Evangelho de Mateus (ano A), são sinais e símbolos das realidades do alto
o de Marcos (ano B) e o de Lucas (ano C). O na ação litúrgica, sejam verdadeiramente
Evangelho de João é lido nos tempos fortes dignos, decorosos e belos”9.
em todos os anos e, também, complementa No próximo bimestre, ainda dentro deste
o ano B. assunto, iremos abordar aquele que é a pé-
- Lecionário Semanal par e ímpar: con- rola entre os lecionários: o evangeliário, ou
tém as leituras para as celebrações feriais, livro do diácono.
em um ciclo de dois anos (o ano par e o ano
ímpar). Os evangelhos são sempre os mes- Pe. João Paulo Veloso é incardinado na Arquidio-
mos para ambos os anos, alternando a pri- cese de Palmas-TO. É jornalista e mestre em Liturgia
meira leitura. pelo Pontifício Instituto Litúrgico (Roma 2020).
- Lecionário para as missas dos santos, E-mail: contato@padreveloso.com
dos comuns, para diversas necessidades
e votivas: chamado também de “santoral”,
contém as leituras relacionadas a essas ce-
lebrações específicas. 1
Justino de Roma. I e II Apologias. Diálogo com Trifão. São
- Lecionário do Pontifical Romano: Paulo: Paulus, 1995.
contém as leituras próprias das celebrações 2
Cf. Epístolas 38 e 39 de Cipriano de Cartago, escritas
entre os anos 250-251, presentes a obra: Cyprianus Epis-
presididas exclusivamente pelo bispo, como
copus Carthaginensis; DIERCKS, G. F. (ed.). Epistularium.
a dedicação da Igreja e do Altar e as ordena- Turnhout: Brepols, 1994. (CCSL III B).
ções. 3
Por exemplo, o III Concílio de Cartago, do ano 435.
- Lecionário para missas de Nossa Se- Cf. CONCILIUM carthaginense tertium. In: MUNIER. C.
(ed.). Concilia Africae A. 345 – A. 525 Turnhout: Brepols,
nhora: contém as leituras a serem proferi-
1974. (CCSL 149).
das nas diversas memórias, festas e soleni- 4
Cf. OPTATUS MILEVITANUS. Seção VII: capítulo I. In :
dades da Virgem Maria. OPTATUS MILEVITANUS; LABROUSSE, M. (ed.). Traité
- Evangeliário: contém exclusivamente a contre les donatistes. Paris: Cerf, 1996. Tome II (livres III
à VII). (SCh 413). linhas 30-31.
leitura dos Evangelhos das missas domini- 5
Esta prece se encontra pela primeira vez no cânone 8 do
cais dos anos A, B e C. IV Concílio de Cartago, do ano 436. A prece no original
A terceira edição do Missal Romano8, ain- em latim é a seguinte: “[...] accipe et esto uerbi dei rela-
da em vias de tradução para o português, tor, habiturus, si fideliter et utiliter impleueris officium,
partem cum eis qui uerbum dei ministrauerunt”. Cf.
contém, dentro do próprio missal, um micro
CONCILIUM carthaginense quartum. In: MUNIER, op. cit.
lecionário, com os evangelhos para a procis- 6
Cf. FOLSOM, Cassian. I libri liturgici romani. In: SCIEN-
são do Domingo de Ramos, e, além dele, um TIA Liturgica. Casale Monferrato: Piemme, 1998. v. 1.
capitulário, com as indicações das leituras 7
CONSTITUTIO de Sacra Liturgia Sacrosanctum conci-
lium. In: Sacrosanctum Concilium Oecumenicum Vaticanum, II,
para a Vigília Pascal e para a Vigília de Pen-
4 decembris 1963, Roma. Acta Apostolicae Sedis – AAS.
tecostes. Cittá del Vaticano: LEV, 1964. v. 56, p. 97-138. n. 35.
Todas essas leituras apresentam o pano- 8
MISSALE Romanum ex decreto Sacrosancti Oecumenici
rama geral da história da salvação ao longo Concilii Vaticani II instauratum auctoritate Pauli PP. VI
promulgatum Ioannis Pauli PP. II cura recognitum. Editio
do ano litúrgico, de forma que os tesouros
typica tertia. Città del Vaticano: Typis Vaticanis, 2008.
contidos na Palavra de Deus são amplamen- 9
MISSAL Romano restaurado por Decreto do Sagrado
te distribuídos aos fiéis durante as celebra- Concílio Ecumênico Vaticano Segundo e promulgado
ções eucarísticas. pela autoridade do Papa Paulo VI: Palavra do Senhor I:
Lecionário Dominical A-B-C: tradução portuguesa da
Ademais, todos os livros do Ritual Roma-
2ª edição típica para o Brasil realizada e publicada pela
no contêm os seus próprios lecionários, com Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e aprovada
as leituras apropriadas para a celebração pela Sé Apostólica. São Paulo: Paulus, 1994.

Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022 - 19


ARQUIVO PARÓQUIA SANTANA - BH
A força profética da Palavra
proclamada pelos leitores e leitoras
PatriCK BranDÃo

O
valor e a riqueza da Palavra de Deus enumerados acima, pois, na liturgia da Pa-
foi uma das marcas do Concílio lavra, o diálogo se manifesta com a voz do
Vaticano II. Na Igreja, a celebração Leitor ou da Leitora que, do ambão, proclama
litúrgica é um dos terrenos privilegiados a Palavra, e com a escuta e a resposta da
onde a Palavra ressoa hoje, pois, na liturgia, assembleia celebrante.
a Palavra de Deus não é um conteúdo a ser Desse modo, repensarmos o ministério do
compreendido por meio de uma abstração Leitor e da Leitora pode ajudar a fortalecer e
cognitiva racional, mas essa Palavra é o pró- a recolocar no centro a dimensão dialógica
prio Senhor (cf. Jo 1,14) que espera de nós e profética da Palavra de Deus em nossas
um diálogo com Ele. comunidades de fé. Assim, nos propomos,
Com a renovação conciliar, não há ação no presente artigo, a redescobrirmos a im-
litúrgica, especialmente sacramental, que portância da função ministerial do leitor e da
não envolva uma liturgia da Palavra. De leitora com a sua dupla missão: proclamar a
acordo com o documento conciliar sobre a presença de Cristo na liturgia e manifestar,
liturgia, através dessa Palavra proclamada através do testemunho, a força profética da
na assembleia cristã “Deus fala ao seu povo e Igreja.
Cristo proclama novamente o seu Evangelho”
(SC 33). Assim, todos os elementos de um Origem dos leitores e leitoras: da exclu-
diálogo verdadeiro devem se fazer presentes são a uma verdadeira inclusão
em nossas celebrações, isto é: a voz de quem
fala, a escuta atenta do interlocutor, o espaço O ministério do leitor e da leitora nasce
adequado, o silêncio, as respostas, etc. do fato de que alguém deveria proclamar a
A dimensão dialógica de escuta e de Palavra – ler o texto. Para tal função, eram
resposta à Palavra em nossas celebrações necessárias pessoas alfabetizadas. No mun-
litúrgicas é mediada por linguagens simbó- do greco-romano, ambiente das primeiras
licas que ajudam a manifestar os elementos comunidades, muitas escolas eram difun-

20 - Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022


didas; no entanto, as classes mais pobres na, o presidente faz uma exortação e convite
da sociedade permaneciam excluídas 1, o para imitarmos esses belos exemplos7”.
que dificultava o exercício dessa função Portanto, no testemunho acima, o leitor
litúrgica. é identificado como uma figura distinta de
Com isso, no início da comunidade cristã, quem preside, mas é adotada sempre uma
o serviço do leitor e da leitora ainda não tinha expressão genérica que não esclarece se o
uma conotação ministerial ou carismática; leitor era um verdadeiro ministro litúrgico8. No
havia apenas uma necessidade real de se texto, ele é apenas representado como “aquele
proclamar a Palavra de Deus nas liturgias. que lê” (anaginóskon). A primeira menção lite-
Infelizmente tal função se restringia a uma rária segura acerca do leitor ocorre por volta
classe social, mas, felizmente, com o passar do ano 200, com Tertuliano, que se refere ao
do tempo, a comunidade cristã foi desenvol- leitor como um ministério próprio e estável,
vendo critérios de escolhas2 mais inclusivas como um serviço determinado, assim como o
e carismáticas para a ministerialidade a são o do bispo, do presbítero e do diácono9.
serviço da Palavra de Deus nas celebrações Em Cartago, o bispo e mártir Cipriano
litúrgicas . (249-258) testemunha a existência de leito-
A função de leitor já era comum entre res em sua Igreja: “Sabei, pois, que ordenei
os hebreus, bem como em outras culturas Sáturo como leitor e o confessor Optato como
religiosas da época, mas “o serviço sinago- subdiácono10”. Havia dois graus de leitores;
gal comportava, desde os tempos do exílio, os leitores que auxiliavam os presbíteros-ca-
a leitura da lei mosaica e dos profetas3”. tequistas na preparação de catecúmenos; e
McGowan4 afirma que mesmo que os cris- os leitores que eram instituídos pelo bispo
tãos tenham tido tal familiaridade com com a aprovação de toda a comunidade. Além
certos aspectos da liturgia sinagogal, não disso, o leitor em Catargo era uma verdadeira
se poderia afirmar categoricamente que testemunha da fé:
é dessa forma ritual que nasce a liturgia
da Palavra, mas, sim, de alguns aspectos aprouve que começasse pelo ofício de leitor,
como o ato proclamativo da Palavra feito pois nada mais convém à voz que confessou a
Deus com uma gloriosa proclamação do que
por Jesus em Lc 4.
ressoar na celebração das divinas leituras;
Um exemplo claro da diferença entre depois das sublimes palavras que afirmaram o
as liturgias seria a não existência de leito- testemunho de Cristo, ler o evangelho de Cris-
res oficiais na sinagoga, de modo que até to, a partir do qual se constituem os mártires;
visitantes poderiam ser convidados pelo vir ao púlpito, depois do estrato de tortura.11
responsável da sinagoga a fazer a leitura5.
Para a tradição cristã, pelo fato de logo cedo A carta de Cornélio a Fábio de Antioquia
se relacionarem Cristo e a Palavra, a função atesta que, em Roma, havia “quarenta e seis
daquele que lê a escritura é rapidamente presbíteros, sete diáconos, sete subdiáco-
desenvolvida. nos, quarenta e dois acólitos, cinquenta e
Em 1Tm 4,13, se anota: “dedica-te à lei- dois exorcistas, leitores e porteiros [...]12”.
tura, à exortação, ao ensino”. O texto é uma Assim, demonstra que em Roma, em 251, já
clara recomendação de como deve agir o res- se encontrava bem difundido tal ministério.
ponsável local. Assim, ainda nesse período, Um testemunho ainda mais eloquente
o leitor não tem um serviço bem específico encontramos na Tradição Apostólica, que
ou está, também, servindo como função de apresenta o leitor como um ministério ins-
coordenação da comunidade6. tituído: “o leitor se constitui no ato em que
Uma primeira compreensão do ministério o bispo lhe dá o livro, de fato as mãos não
do leitorato distinto de outros ministérios, são impostas sobre ele”13. Ao tratar dos mi-
pode ser encontrado na I Apologia de Justino nistérios instituídos, trata apenas do leitor
(século II – cerca de 150), que, ao descrever e do subdiácono, afirmando se tratar de um
a assembleia litúrgica dominical, diz: “No dia ministério instituído unicamente por meio
que se chama sol, celebra-se uma reunião de um gesto simbólico (receber o livro) e não
de todos os que moram nas cidades ou nos ordenado, isto é, sem imposição das mãos.
campos, e aí se leem, enquanto o tempo o Assim, no século III, o ministério do leitor
permite, as memórias dos apóstolos ou os tem a sua composição bem clara: é um minis-
escritos dos profetas. Quando o leitor termi- tério distinto dos outros ministérios, escolhi-

Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022 - 21


do por parte da comunidade, destacado pelo Apesar de o Concílio de Trento não res-
testemunho de vida cristã, mas, também, taurar as funções das ordens menores como
pela capacidade vocal de proclamação e, por na Igreja antiga, ele as define como estágios
fim, é recebido por um ato litúrgico – há uma jurídicos da preparação para ordens maio-
Instituição – na presença do bispo. res; no entanto, não se encontra qualquer
Além de tais elementos, ele podia ser as- definição específica acerca do leitor. A única
sumido, também, por pessoas mais novas, recomendação a respeito das ordens menores
como é previsto no decreto do papa Sirício que valeria a pena ser destacada é a de que,
ao bispo de Tarragona: “quem prometeu co- na ausência de algum ministro, essa função
locar-se a serviço da Igreja desde a infância poderia ser realizada por homens também
deve estar associado ao ministério de leito- casados, mas de bons costumes, que assu-
res”14. Segundo Righetti15, poderia ser pelo miriam as tarefas vestindo o hábito clerical;
fato de que suas vozes eram mais claras e mas, na prática, tal recomendação não foi
pronunciavam com maior clareza a leitura. tão considerada21.
O desaparecimento do ministério do leitor Será no Concílio Vaticano II a verdadeira
começa no tempo de Gregório Magno (século reforma onde as ordens menores do leitora-
VII-VIII). Nesse período, a função de pro- to e do acolitato passarão a ser conhecidas
clamação da Palavra e dos cantos da missa como ministérios instituídos. A decisão con-
passam aos diáconos e aos subdiáconos, e ciliar culminou no Motu proprio Ministeria
os jovens, que faziam parte do possível grupo Quaedam, de Paulo VI22. Porém, mesmo
de leitores, passam a fazer parte do grupo de sendo um ministério batismal, ainda conti-
cantos16. Nesse período, o leitorato, enquan- nuava a prerrogativa de que apenas homens
to ministério laical, desaparece totalmente e idôneos poderiam ser ministros instituídos,
é transformado em ordem menor. deixando, assim, as mulheres fora do acesso
A ordenação dos leitores é descrita cla- a ele. Sobre o ministério do leitor, Paulo VI
ramente no Ordo romanus 35 (século XI), elencava, no documento, algumas funções
onde normalmente se ordenavam adoles- do leitor instituído, a saber: proclamar a
centes para essa função ministerial. O ordo Palavra de Deus nas celebrações litúrgicas;
35 revela que, se um pai quisesse, poderia na falta do salmista, salmodiar; na falta
apresentar o próprio filho para ser ordenado do cantor, cantar; proferir a oração da as-
leitor e, posteriormente, o adolescente pas- sembleia (preces) e preparar os leitores não
saria por uma avaliação mediante a qual, se instituídos (leitores que exercem o ministério
aprovado, receberia a ordenação17. de forma provisória)23.
A partir do início da Idade Média, a ce- A última grande reforma no ministério
lebração da chamada missa “privada” é instituído do leitorato foi feita pelo papa
difundida, o “sacerdote celebrante” assume Francisco, com Motu proprio Spiritus Domi-
todas as funções litúrgicas, monopolizando ni, onde não se modifica a função do leitor
assim os ministérios litúrgicos, inclusive a e, sim, o Cân. 230 § 1 do Direito Canônico,
proclamação das leituras. Sabemos que, com dando acesso às mulheres para exercerem
o Ritual Romano das ordenações do séc. X, esse ministério de caráter eminentemente
temos o testemunho de ordens menores. batismal.
Assim, tais ministérios laicais, aos poucos, Portanto, a breve história do ministério
vão se clericalizando. do leitor e da leitora nos mostra como, ao
Segundo F. Brovelli18, nos livros litúrgi- longo da história, entre avanços e retroces-
cos do séc. X, havia cinco ordens menores: sos, o leitor e, principalmente, a leitora vai
o porteiro, o leitor, o exorcista, o acólito e o conquistando o seu espaço dentro da liturgia
subdiácono. Aos poucos, no séc. XI, a Igreja e da Igreja. De um ministério exercido por
pede que cada ministério seja recebido su- uma parte do povo, ou seja, a classe que
cessivamente como se fossem degraus para sabia ler e os homens, para um ministério
ascender às ordens maiores (diaconato, eminentemente batismal, de todas as classes
presbiterato e episcopado)19. A partir do séc. e exercido por homens e mulheres.
XII, o subdiaconato passa a ser considerado Além da dimensão simbólico-litúrgica, a
como uma ordem maior20. Tal estruturação história nos impulsiona a redescobrirmos a
ministerial será herdada pelo Concílio de função profética e testemunhal dos ministros
Trento (1545-1563). e ministras que proclamam a Palavra de Deus.

22 - Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022


Função proclamativa do leitor e da lei- (Cf. Lc 4, 16-30). No final da leitura, Jesus
tora na liturgia da Palavra faz uma declaração surpreendentemente
clara na sua formulação: “Hoje se cumpriu
O Concílio Vaticano II, na Sacrosanctum esta Escritura que ouvistes com os vossos
Concilium, n. 7, afirma que: Cristo “está ouvidos” (Lc 4,21).
presente na sua Palavra, pois é Ele que fala Para que a proclamação da Palavra na se-
ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura”. quência ritual seja verdadeiramente epifania
Com isso, o leitor e a leitora, no ato de ler, da presença de Jesus, “é necessário que os
fazem com que Cristo esteja presente. Desse leitores que desempenham este ministério,
modo, a “ação de ler” o texto se transforma embora não tenham sido oficialmente ins-
mistagogicamente em “proclamação”, pois o tituídos nele, sejam realmente preparados.
texto não é mais texto em si mesmo e, sim, Essa preparação deve ser, em primeiro lugar,
presença da pessoa de Cristo na Igreja. espiritual; mas é necessária também a pre-
Entre o proferir o texto por parte do leitor e paração técnica.” (ELM- Elenco das leituras
o manifestar a presença de Cristo na assem- da missa, n. 55). Que não improvisem nem
bleia que escuta, percebemos um forte apelo sejam surpreendidos com um convite de úl-
à força sacramental da Palavra de Deus, pois, timo momento para proclamarem a palavra
de acordo com Bento XVI, em sua Exortação de Deus.
apostólica Verbum Domini, “na relação entre Por preparação espiritual se entende a
Palavra e gesto sacramental, mostra-se de preparação bíblica e litúrgica 26, com que
forma litúrgica o agir de Deus na história, leitores e leitoras possam “compreender as
por meio do caráter performativo da Palavra. leituras em seu contexto próprio e entender
Com efeito, na história da Salvação, não à luz da fé o núcleo central da mensagem
há separação entre o que Deus diz e faz; a revelada27”; já a formação litúrgica é para que
sua própria Palavra apresenta-se como viva leitores e leitoras tenham “certa percepção
e eficaz (cf. Hb 4, 12) (como aliás indica o do sentido e da estrutura da liturgia da Pa-
significado do termo hebraico dabar). Do lavra e a relação entre a liturgia da Palavra
mesmo modo, na ação litúrgica, vemo-nos e a liturgia eucarística”28.
colocados diante da sua Palavra que realiza É importante que tal formação não fique
aquilo que diz”24. apenas no campo teórico, mas, a partir de
A Palavra transmite a sua força perfor- vivências e dos recortes da sequência ritual,
mática mais intensamente na ação litúrgica. dê-se a devida formação litúrgica, além da
Assim sendo, a ação ritual e simbólica do dimensão bíblica.
leitor remonta ainda mais claramente a for- O n. 55 do ELM nos apresenta, também,
ça da Proclamação, pois a Palavra de Deus a necessidade de uma preparação técnica
depositada na Escritura reencontra a sua que “deve capacitar os leitores para que se
força viva como evento de salvação. Portanto, aperfeiçoem continuamente na arte de ler
através da voz do leitor, o “Verbo” mais uma diante do povo, seja de viva voz, seja com
vez se faz “carne” no corpo vivo da Igreja. a ajuda de instrumentos modernos para a
Até mesmo se pensarmos no ato fundativo ampliação da voz”. Haja vista que o ELM já
da liturgia da Palavra25, que se deu mediante havia tratado da importância de o leitor ler
a performance de Jesus, que lê as escrituras de forma alta e clara29, é importante que se
dentro de uma sequência ritual na sinagoga possa investir em profissionais que auxiliem
de Nazaré (Cf. Lc 4,21), o ministério do leitor nesse aprendizado.
e da leitora torna-se manifestação da presen- Na sequência ritual: o corpo do leitor e
ça de Cristo que fala à comunidade reunida. da leitora é revestido com a veste branca,
A leitura feita por Jesus tem um dife- manifestando o exercício do ministério (cf.
rencial: nele, a ação de ler, a palavra que Instrução Geral do Missal Romano – IGMR,
ele pronuncia, deixa de ser um fato verbal 339); o Leitor e a Leitora, na ausência do diá-
para tornar-se um acontecimento; contar cono, poderá levar o Evangeliário e colocá-lo
histórias torna-se história atual; Jesus é o sobre o altar (cf. IGMR, 120d; 190); ao chegar
leitor que encarna e torna a Palavra visível. no presbitério tem a sua cadeira reservada
Lucas inicia a vida pública de Jesus com a próxima ao ambão (cf. IGMR, 310); que a
ação de ler o livro do profeta Isaías, durante tonalidade de voz seja em tom proclamativo
a oração do sábado na sinagoga de Nazaré para que, através da voz do leitor, o mistério

Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022 - 23


de Deus que fala ao seu povo seja ouvido para o exercício desse ministério eclesial.
por toda a assembleia; deverá respeitar os Assim relata São Cipriano:
momentos de silêncio que dão ritmo e aju-
dam a assembleia a acolher a proclamação O que mais convinha, irmãos diletíssimos, do
da Palavra (cf. IGMR, 56). Por fim, a postura que fazer subir ao púlpito, isto é, ao tribunal
da Igreja aquele que, com tão grande clemência
corporal do leitor e da leitora ao se aproximar
do Senhor, veio até nós, tornado ilustre pelo
da mesa da Palavra deve manifestar serieda- testemunho e pelo estupor de quem o tinha
de e, ao mesmo tempo, tranquilidade em ir perseguido, de modo que, apoiado na excelsi-
proclamar a Palavra de Deus. tude de um lugar mais elevado e visível a todo
Infelizmente essas ações simbólicas têm o povo pelo esplendor da sua honra, leia os
sido negligenciadas na liturgia da Palavra preceitos e o Evangelho do Senhor que tão forte
em alguns locais, manifestando uma litur- e fielmente segue? Que seja ouvida a voz que
confessou o Senhor a proclamar diariamente
gia minimizada, que ocorre apenas na mesa
o que o Senhor falou31.
Eucarística e que não se dá conta da dig-
nidade da mesa da Palavra dentro da ação Este belíssimo texto mostra S. Cipriano,
celebrativa. Além disso, muitas vezes tal bispo de Catargo, em uma carta dirigida a
minimização acontece por falta de formação todo povo de Deus em 251, no período em que
dos leitores e leitoras, por se buscar o cami- a Igreja estava passando pela perseguição
nho mais rápido e fácil, a saber: colocar um de Décio, testemunhando como escolheu o
cerimoniário ou coroinha para encaminhar leitor. Na verdade, o texto completo mostra o
tudo dentro da ação celebrativa. Levando- bispo se desculpando por não ter consultado
-se em conta que geralmente os leitores o povo na escolha do novo leitor, por não po-
e leitoras não conhecem, inicialmente, o der fazê-lo naquele momento de perseguição,
Lecionário, o espaço celebrativo, o modo mas apresenta motivo plausível pela escolha,
como proclamar a Palavra, a sequência isto é, o testemunho profético desse cristão
ritual etc., de fato, o ministério do leitor diante da perseguição religiosa.
e da leitora tende a ficar condicionado ao Desse modo, dois elementos essenciais do
“ministro faz tudo”, ferindo, portanto, o ministério de leitor se sobressaem no presen-
princípio litúrgico de que nas “celebra- te testemunho. O primeiro é a dimensão da
ções litúrgicas, cada qual faça tudo e só eleição do ministro por parte da comunidade.
aquilo que pela natureza da coisa ou pelas Era algo comum, como vimos na história, a
normas litúrgicas lhe compete” (SC 28). consulta do povo de Deus para a escolha de
Se o leitor e a leitora diminuírem a im- ministro da comunidade. Com isso, S. Cipria-
portância da performance ritual e da sua no, estando impedido de fazer essa consulta,
ação simbólica, toda a Liturgia da Palavra não se utiliza de um argumento de autoridade
correrá o risco de se perder, pois, como para justificar a sua decisão, mas da autori-
nos recorda A. Cardita, “a Palavra exige a dade da “tribuna do martírio” onde o próprio
ritualização da mesma forma que a liturgia leitor escolhido subia para testemunhar o
se inscreve numa narrativa envolvendo o Senhor Ressuscitado. O segundo elemento
cosmo, a história, as pessoas e os povos”30. é a já citada “autoridade da tribuna”, isto é,
Assim, os gestos simbólicos, a voz do leitor, do testemunho profético daquele que fora
o timbre, o silêncio, o ritmo dão visibilidade escolhido para o exercício do ministério. As-
à presença do Cristo que fala à Comunidade sim, um dos critérios que deveria ser levado
reunida em oração. em conta na escolha de novos ministros e
ministras para o exercício da proclamação da
A força do testemunho profético do Palavra é o testemunho de vida.
leitor e da leitora O Concílio Vaticano II enquadra o critério
do testemunho como função profética do
Na origem do ministério de leitor, um dos inteiro povo de Deus, o que se pode afirmar
critérios para serem escolhidos os ministros uma vez que a constituição dogmática Lumen
da proclamação da Palavra era a sua presen- Gentiun (LG), sobre a Igreja, ao tratar, em seu
ça na comunidade de fé e o modo como eles n. 12, da dimensão profética de todo o povo
confessavam a fé aos irmãos e às irmãs. A de Deus, afirma que a comunidade cristã
dimensão do testemunho profético era cri- se organiza no mundo de três maneiras: a
tério básico para que um cristão fosse eleito partir de carisma próprio e do testemunho

24 - Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022


nos diversos ambientes; através da forma de uno sguardo sociale, storico e teologico. Bologna: EDB,
se organizar, que não está relacionada com 2019. p. 109.
3
CATTANEO, op. cit., p. 170.
o fazer eclesial; e, também, no modo com o 4
Cf. McGOWAN, op. cit., p. 88-89.
qual ela transmite a fé. 5
Cf. CATTANEO, op. cit., p. 171.
Portanto, o testemunho profético é prope- 6
Cf. McGOWAN, op. cit., p. 109.
dêutico ao anúncio da Palavra na Liturgia,
7
JUSTINO DE ROMA. I e II Apologias – Diálogo com
Trifão, São Paulo: Paulus, 2020. p. 83, n. 67, 3-4.
pois a liturgia da Palavra manifesta ritual- 8
Cf. CATTANEO, op. cit., 172.
mente o anúncio profético da Igreja inteira. 9
Cf. TERTULIANO, La prescrizione contro gli eretici, n.
Assim, a missão do leitor, como recorda a 41. In: CATTANEO, op. cit., p. 480-48.
homília presente no rito de instituição do
10
CIPRIANO Obras completas II. São Paulo: Paulus,
2020. n. 29,2.
leitorato, é proclamar a Palavra de Deus na 11
Ibidem, n. 38,2.
liturgia e anunciar às pessoas que ainda não 12
Carta a Fabio de Antioquia. In: EUSÉBIO DE CESA-
conhecem Jesus o Evangelho32. REIA. História eclesiástica. São Paulo: Paulus, 2000. p.
Por fim, o ministério do leitor e da leitora 336, n. 43, 11. (grifos nossos).
13 TRADIÇÃO Apostólica: liturgia e catequese em Roma
manifesta dois aspectos: na dimensão pro- no século III. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 55
clamativa, através da celebração ritual da 14 PP. SIRICIUS. Epistula I ad Himerium Episcopum
Palavra de Deus, a presença de Cristo; e, na Tarraconensem, 1845, p. 1142, n. 9-10. apud RIGHET-
dimensão testemunhal, toda a ação profética TI, M. Manuale Storia Liturgica. Milano: Ancora, 1959.
v. IV. p. 377.
da Igreja. 15
Cf. RIGHETTI, op. cit., p. 378.
Com isso, redescobrir a função ministerial 16
Ibid, p. 379-380.
dos leigos e leigas que proclamam a Palavra e 17
Cf. JOUNEL, P. As ordenações. In: MARTIMORT, A.
anunciam profeticamente o Evangelho, quer G. A Igreja em oração: os sacramentos. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1988. v. III, p. 149.
nos ministérios instituidos, quer exercendo
Ibid., p. 150.
o ministério de leitor e leitora de maneira 18
Cf. BROVELLI, F. Ordem e ministérios. In: NEU-
reconhecida e provisória, ajudará a Igreja a NHEUSER, B. Os sacramentos: teologia e história da
ser ainda mais missionária e a viver a dupla celebração. São Paulo: Paulinas, 1986. v. IV, p. 304.
bem-aventurança proferida pelo autor do
19
Cf. JOUNEL, op. cit. p. 149
20
Ibid., p.150.
livro do Apocalipse: “Feliz aquele que faz a 21
Cf. IZZI, C. La partecipazione del fedele laico al Munus
leitura, e felizes os que ouvem as palavras da Sanctificandi: i ministeri liturgici laicali. Roma: Pontificia
profecia e guardam o que nela está escrito, Universitas Lateranensis, 2001. p. 80-82.
pois o tempo está próximo” (Ap 1,3).
22
Sobre o histórico dos ministérios instituídos faço
referência ao nosso trabalho: Cf. BRANDÃO, P. Minis-
Enfim, o autor sagrado, utilizando-se térios leigos instituídos na Igreja. Revista de Liturgia,
da imagem de uma liturgia sinagogal com São Paulo, n. 284, p. 4-8, mar/abr 2021
linguagem apocalíptica, anuncia uma pro- 23
PAULO VI. Ministeria Quaedam. Litterae apostolicae
fecia de felicidade sobre quem lê, o leitor e a motu proprio datae disciplina circa primam tonsuram,
ordines minores et subdiaconatos in ecclesia latina
leitora, e sobre quem escuta, a assembleia. innovatur (15 ago. 1972). [Città del Vaticano]: Dicas-
Tal predição, que diz respeito a reconhecer a tero per la Comunicazione; Libreria Editrice Vaticana,
revelação de Deus, a qual, em Jesus, pene- [2021]. Disponível em: www.vatican.va/content/paul-
tra na nossa história, faz com que a Igreja, -vi/la/motu_proprio/documents/hf_p-vi_motu-pro-
prio_19720815_ministeria-quaedam.html. Acesso em:
através da ação proclamativa na liturgia e 07 fev. 2022.
do exercício do testemunho do leitor e da 24
BENTO XVI. Exortação apostólica pós-sionodal Verbum
leitora, acolha, no tempo presente, o dom da Domini. São Paulo: Paulinas, 2010. n. 53.
presença de Jesus. 25
Cf. Boselli, G. O sentido espiritual da liturgia. Brasília,
DF: Edições CNBB, 2014. p. 52.
26
ELM, p. 55.
Patrick Brandão, 27
Loc. Cit..
presbítero da diocese de Duque de Caxias-RJ. 28
Loc. Cit.
29
Ibid., p. 14.
30
CARDITA, A. O caráter performativo da Palavra de
Deus: validação de uma proposição de Bento XVI. In:
PARO FACCINI, T. (org.). Atualização litúrgica 3. São
1
Cf. CATTANEO, E. I ministeri nella chiesa Antica: testi Paulo: Paulus, 2020. p.79.
patristici dei primi tre secoli. Milano: Paoline, 2012. p. 31
CIPRIANO, op. cit., n. 39,4.
169-170. 32
Cf. PONTIFICAL ROMANO, Rito de instituição de leito-
2
Cf. McGOWAN, A. B. Il culto Cristiano dei Primi secoli: res, São Paulo: Paulus, 2000, p. 256, n. 12.

Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022 - 25


A Oração sobre o povo na
III edição típica do Missal Romano:
recuperação da sã Tradição e
legítimo progresso
Jerônimo Pereira

A
publicação da terceira edição típica do a sua reinserção nos formulários quaresmais.
Missal Romano (MR) indica uma atua- O fato de se encontrarem num “apêndice”
ção prática dos princípios basilares do do Ordinário da Missa do MR e não estarem
Concílio Vaticano II, tanto de continuidade ligadas a uma determinada celebração ou
ininterrupta da tradição orante da Igreja, tempo particular fez, sim, com que o seu
quanto no que se refere a oferecer a essa uso se tornasse muito raro. Além disso, essa
mesma Igreja a possibilidade de uma sempre disposição não favoreceu a compreensão do
renovada compreensão do mistério eucarísti- seu significado e, sobretudo, da sua função
co (cf. SC n. 231), feita a partir dos conteúdos dentro da celebração3.
teológico-eclesiais e litúrgico-ritual-celebrati-
vos, que sublinham sempre mais a lex orandi “Ó beleza, tão antiga e tão nova”
como a fonte primeira da profissão de fé do
povo de Deus e o substrato essencial para a A inserção das Orações sobre o povo nos
espiritualidade e o viver cotidiano. formulários do Tempo da Quaresma é uma
Entre as muitas consideráveis “novidades” retomada daquilo que já era presente no
do “novo” MR se encontram as chamadas Missal Tridentino como elemento dos ritos de
“orações sobre o povo”, ou melhor dizendo, conclusão que caracterizavam os dias feriais
as “orações de bênçãos sobre o povo”. Essas da Quaresma. A sua história funda as suas
orações aparecem assinaladas para cada raízes nos primeiros séculos da formação dos
formulário de missa, dominical e ferial, do ritos cristãos.
Tempo da Quaresma, precedidas da rubrica Uma forma de despedida da assembleia
“Para a despedida, o sacerdote voltado para o litúrgica é uma exigência de tipo sociológi-
povo, com as mãos estendidas sobre ele, diz co e também psicológico, além de assinalar
a seguinte oração”2. Trata-se, propriamente formalmente a relação temporal do rito. Já
falando, não de uma novidade, no sentido Tertuliano († 220c.) o atesta, as Constitui-
de uma coisa que nunca existiu, mas da ções Apostólicas ( séc. IV) fazem o diácono
recuperação de um elemento eucológico e dizer “Ide em paz” e a peregrina Egéria (IV
ritual antigo, sempre presente nas edições séc.) nota frequentemente que, no fim das
do Missal Romano anteriores a 1970 e que celebrações litúrgicas, o bispo abençoava os
resulta em um enriquecimento positivo em fiéis e se tinha uma despedida. Nesse mesmo
vista de uma maior compreensão da Qua- período, alguns concílios na Gália proibiam
resma enquanto caminho de conversão na que os fieis saíssem da igreja antes da bênção
direção da Páscoa. dada pelo bispo. As Constituições Apostólicas
Não que o MR restaurado pelo Concílio apresentam a forma e a fórmula ritual para
Vaticano II tenha deixado de lado ou esque- tal ocasião: depois da comunhão se prevê
cido esse precioso tesouro. Essas orações se uma oração que se conclui com o “amém”
encontram, em número reduzido, até o pre- da assembleia. O diácono diz: “Inclinai-vos a
sente momento, numa sessão à parte do MR Deus, pelo seu Cristo, e recebei a bênção” e o
intitulada exatamente “Orações sobre o povo” bispo recita uma longa oração que diz, entre
(p. 531-534). O que há de realmente “novo” é outras coisas: “Deus onipotente, abençoai

26 - Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022


aqueles que têm a cabeça inclinada diante de grante era o da Sexta-Feira Santa. Com res-
vós; realizai as aspirações dos seus corações... peito à rubrica que as precede, ela sublinha
fazei que ninguém seja excluído do vosso o seu uso multiforme: “As seguintes orações
reino; santifica-os, guarda-os, protege-os, podem ser usadas, à vontade do sacerdote,
ajuda-lhes, livra-os do adversário, de todo no fim da Missa, da Liturgia da Palavra, da
inimigo; conserva as suas casas, guarda a Liturgia das Horas ou dos Sacramentos” (MR,
sua saída e a sua entrada”4. p. 531). Com a edição típica terceira do MR
Também em Roma, no primeiro milênio, (2002-2008) são reintroduzidas, mudadas e
a celebração terminava com uma bênção em apresentadas como fórmulas facultativas de
forma de oração, na qual o presidente pedia bênçãos finais para todos os dias feriais, da
a Deus para a assembleia os benefícios liga- Quarta-Feira de Cinzas até a quarta-feira da
dos à Eucaristia, além de ajuda e proteção. Semana Santa. Diferentemente do GrH e do
Tratava-se de uma prece de bênção que se MR precedente, a terceira edição típica do MR
dava como despedida, com a qual a Igreja as propõe como obrigatórias também para
saudava os seus membros que voltavam às os domingos quaresmais, tirando o acento
suas ocupações cotidianas. O testemunho unicamente penitencial que essas orações
mais antigo dessas Orações sobre o povo o poderiam ter anteriormente.
encontramos no Sacramentário Veronense
(Ve – séc. VI), no qual elas parecem fazer parte Estrutura e conteúdo
essencial da estrutura ordinária da missa,
tanto do temporal quanto do santoral5. Aqui Diferentemente das outras orações que
elas não recebem nenhum título e são identi- compõem o universo das eucologias menores
ficadas por causa de sua colocação, segunda da missa (Oração do dia, Sobre as oferendas
oração depois dos prefácios, e por causa da e Depois da comunhão), nas quais o presi-
sua estrutura. O Sacramentário Gelasiano dente da celebração, ao formular o pedido em
Vetus (GeV – séc. VII) as apresenta, para o nome de toda a assembleia reunida, se inclui,
tempo do Natal e da Epifania e, também, para usando sempre a primeira pessoa do plural
os domingos da Quaresma e outras ocasiões, (nós, a nós, nossa...), nas Orações sobre o
com o título “para o povo” (Ad populum, Ad povo, aquele que preside não se inclui, mas
plebem) e “sobre o povo” (Super populum. n. se dirige a Deus em favor da comunidade,
1273-1287). O Sacramentário Gregoriano como um verdadeiro mediador entre Deus
(GrH – VIII séc.), por sua vez, as apresenta e o seu povo (vós, a vós, vossos...). A única
somente para os dias feriais da Quaresma, exceção se encontra na oração assinalada na
chamando-as unicamente de “sobre o povo”. edição típica do MR para a quinta-feira da III
Por esse motivo o conteúdo dessas orações semana da Quaresma: “Senhor, confiantes
estava diretamente ligado ao tema próprio na vossa misericórdia, imploramos a vossa
desse tempo: penitência e conversão. Do Sa- clemência, e assim como temos recebido de
cramentário Gregoriano as orações sobre o vós o ser, assim a vossa graça nos conceda
povo passaram para o Missal tridentino até procurar sempre o bem e praticá-lo cotidia-
a edição de 1962. namente6.
Por que se passou de um uso abundante Essa regra estilística constitui o paradig-
dessas orações (Ve) a um número restrito e ma para a identificação e diferenciação das
concentrado num único tempo litúrgico (Gr)? Orações sobre o povo das outras orações da
Talvez por causa de uma tradição própria da missa. Esses textos, cheios de referências da
liturgia de reservar os textos mais antigos Sagrada Escritura, pressupõem uma espiri-
para os tempos litúrgicos mais fortes e signi- tualidade bíblica potente. Como toda forma
ficativos, nesse caso, a Quaresma. de bênção, têm a seguinte estrutura: 1) ex-
As edições do MR post-Vaticano II, de 1970 clamação/aclamação; 2) motivo/anamnese;
e 1975, as tinham eliminado como texto or- 3) pedido/intercessão; e 4) doxologia. Assim,
gânico colocado no fim de cada formulário no exemplo abaixo:
ferial da Quaresma e, como já dito, 26 delas
estavam colocadas em um apêndice do Or- Olhai [3], ó Deus [1], esta vossa família, pela
dinário da Missa, 9 das quais recolhidas do qual nosso Senhor Jesus Cristo não hesitou
Ve, 11 do GeV, 4 do GrH e 2 do MR anterior em entregar-se às mãos dos malfeitores e so-
à reforma. O único formulário no qual essa frer o suplício da cruz [2]. Por Cristo, Senhor
forma de oração aparecia como parte inte- nosso [4]7

Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022 - 27


A finalidade da oração é implorar a bênção 1975)8 faz duas vezes brevíssima referência
divina sobre a assembleia. O presidente invo- às Orações sobre o povo. A primeira vez no
ca a proteção e ajuda de Deus para aqueles capitulo II, dentro do contexto da estrutura,
que participaram na celebração litúrgica dos elementos e das partes constitutivas da
e estão trilhando o caminho espiritual da missa, no número 57a, tratando dos ritos
Quaresma. de conclusão, especificamente da bênção do
Nessa forma de oração, a Igreja, a bene- sacerdote, sublinha “que em certos dias [essa
ficiária das preces, é denominada com os bênção] é enriquecida e expressa pela oração
apelativos de família, vossos fiéis, vossos sobre o povo” .9 Nessa mesma linha, tratando
servos, Igreja, povo fiel e vosso povo. O termo do desenvolvimento da missa com o povo, e
mais usado é povo, a ponto de dar nome às explicando o modo e sublinhando as palavras
Orações. Com esse termo se entende toda a da bênção, a IGMR n 124 afirma que, “em
comunidade cristã e especificamente a assem- certos dias e ocasiões, esta fórmula de bênção
bleia reunida em oração. O objetivo da oração é precedida, conforme as rubricas, por outra
é implorar bênçãos sobre a comunidade, por mais solene ou por uma oração sobre o povo”.
isso o substantivo usado com mais frequência Logo, o MR, nas suas duas primeiras edições,
é bênção e o verbo é abençoar. Tal objetivo fez questão de manter as Orações sobre o
tem como fim último colocar toda a comu- povo como elementos dos ritos de conclusão,
nidade sob a proteção do Altíssimo, por isso ligados à bênção final, infelizmente entendi-
os termos mais comuns são proteger, vigiar, dos como uma espécie de “enriquecimento”
defender, tutelar, guardar, olhar. da própria bênção.
Alguns termos presentes nessas orações, Como nas edições precedentes, a “nova”
tais como: sempre, continuamente, ininterrup- IGMR (2002-2008)10 traz as duas menções
tamente, em todo o tempo, agora e sempre, da Oração sobre o povo, presentes nos nú-
perpétua... sublinham a perenidade da bênção meros 90a (antigo 75a) e 167 (antigo 124),
implorada. Estando essa prece exatamente na com textos idênticos. Somente o texto do pa-
conclusão da celebração, tais termos indicam rágrafo 167 aparece ligeiramente modificado,
o estender-se dessa bênção no viver cristão, sublinhando a função de enriquecimento à
no curso diário da sua vida que está para bênção final da Oração sobre o povo: “Em
começar com o final da assembleia litúrgica. certos dias e ocasiões, esta bênção é enri-
As orações apresentam constantemente as quecida e expressa, conforme as rubricas,
disposições interiores e as atitudes práticas pela oração sobre o povo ou outra fórmula
dos que recebem as bênçãos. Dessa forma, mais solene”11. Quando trata da “Missa com
estes imploram, suplicam, inclinam-se, sub- diácono”, no número 185 da “nova” IGMR
metem-se com todo o coração ou com toda a faz outra referência à Oração sobre o povo,
mente. Além disso, elas insistem em pedir a precisando que: “Se for usada a oração so-
intervenção divina sobre o povo que se prepa- bre o povo ou a fórmula da bênção solene,
ra para as festividades da Páscoa e procuram o diácono diz: Inclinai-vos para receber a
a sua eficácia para alcançar e permear toda bênção”. 12 Aqui, a IGMR testemunha um
a vida quotidiana do crente. Finalmente, elemento não verbal também pertencente
as bênçãos invocadas apresentam-se como à Tradição, como já referido. A rubrica que
propícias e necessárias para os fiéis viverem introduz o apêndice do atual Missal em uso
segundo a mentalidade do Evangelho e para no Brasil coloca em evidência essa sequência
caminharem direcionados sem distrações na ritual verbal e não verbal: “O diácono ou, na
direção dos bens futuros. Elas imploram: puri- falta dele, o próprio sacerdote poderá dizer
ficação da alma, remissão das faltas, renúncia este invitatório ou outro semelhante: Incli-
ao pecado, exercício das boas obras, prática nai-vos para receber a bênção. Em seguida,
das virtudes, progresso na vida espiritual, o sacerdote estende as mãos sobre o povo,
perseverança final. reza a oração e, ao terminar, todos aclamam:
Amém” (MR, p. 531).13
A presença das Orações sobre o povo no Dois gestos devem ser colocados em evi-
MR do Concílio Vaticano II dência, além daqueles estreitamente ligados
à palavra (rezar e aclamar): o inclinar-se da
A Instrução Geral do Missal Romano atual- assembleia e o estender as mãos do sacer-
mente ainda em uso no Brasil (IGMR 1970- dote. Antes de tudo, convém assinalar o que

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recorda a “nova” IGMR, no número 42: “Os sobre o povo que foram designadas para
gestos e posições do corpo tanto do sacerdo- os domingos da Quaresma. No aguardo da
te, do diácono e dos ministros, como do povo tradução para o Brasil, podemos, a partir do
devem contribuir para que toda a celebração texto latino, identificar uma relação estreita
resplandeça pelo decoro e nobre simplici- entre essas orações e o Lecionário desses
dade... e favoreça a participação de todos”. domingos no seu percurso catequético mis-
Infelizmente, essa inclinação da assembleia tagógico. Nos dois primeiros domingos são
é completamente ignorada pelo número 75 colocados em evidência os temas da tentação
da mesma IGMR, que se ocupa, exatamente, e da glória, do mesmo modo que os Evan-
desse gesto. gelhos apresentam esses temas falando do
O ato de inclinar-se em si mesmo expressa, deserto de Jesus (tentação – I Domingo) e da
em si mesmo, benevolência, escuta, reverên- sua transfiguração (glória – II Domingo). No
cia e honra, disponibilidade e atenção. Nesse I Domingo, a Oração sobre o povo implora
sentido, o primeiro a se curvar não é o homem, o crescimento da “esperança no tempo da
mas Deus: ele se inclina para ver, ouvir, aju- provação”, o firme “vigor” para suportar a
dar, em atitude de amor, misericórdia, perdão tentação e se invoca “salvação eterna”. No
e serviço (cf. Sl 13,2; 114,2). Também o ser II Domingo, quando se lê o Evangelho da
humano é chamado a curvar-se para expres- transfiguração, a Oração sobre o povo invo-
sar escuta atenta e vontade reverente, amor ca o desejo de chegar “à glória manifestada
confiante, humildade, e, finalmente, para aos Apóstolos em toda a sua beleza”. No III
manifestar arrependimento. Também o gesto Domingo se pede ao Senhor para guiar os
da mão estendida para abençoar é bíblico (cf. corações dos seus fieis, para que perma-
2Tm 1,6) e pertence a toda a Tradição icono- neçam no seu amor e na caridade fraterna,
gráfica da Igreja do Oriente e do Ocidente. como plenitude dos mandamentos divinos.
No IV Domingo o pedido é para que o Senhor
Colocação e fontes na edição típica ter- vivifique com a sua luz “os que caminham
ceira do MR nas trevas do mundo”, fazendo uma clara
referência ao Evangelho joanino do cego de
Certamente, a inclusão da Oração sobre o nascença. Por fim, no V domingo, aproximan-
povo nos formulários do tempo da Quaresma do-se a Páscoa, se pede que o Senhor leve a
na III edição típica do MR recupera, de modo bom termo os desejos do seu povo.
muito expressivo e significativo, um elemento Finalmente, se deve sublinhar uma di-
da tradição litúrgica romana, colocando-o de mensão fundamental das orações de bênçãos
novo no tempo litúrgico em que tinha sido que é abundante nas Orações sobre o povo: a
preservado até ao Concílio Vaticano II. Além ascendência. Assim, a dimensão ascendente
disso, essa inserção lhe dá um maior destaque é fortemente marcada, mas sempre em “res-
como elemento “novo” no “novo” Missal, enri- posta” à dimensão descendente, como recorda
quecendo abundantemente o número dessas Santo Agostinho:
orações no Ordinário da Missa.
É uma novidade importante que nos per- Bendiga nossa alma ao Senhor e Deus nos
abençoe. Quando Deus nos abençoa, nós
mite, por um lado, dar uma ênfase particular
crescemos, e quando bendizemos ao Senhor,
à época da Quaresma e, por outro, manter também crescemos; ambas as coisas são para
um elemento próprio da liturgia romana na nosso proveito. Ele nada ganha quando o ben-
sua localização original. Nesse sentido, estes dizemos, nem diminui por nossas maldições.
são textos que podem acompanhar signifi- Quem maldiz ao Senhor, ele próprio diminui;
cativamente a Igreja no seu peregrinar num quem bendiz ao Senhor, cresce. A bênção do
tempo tão importante e intenso como o da Senhor vem-nos em primeiro lugar, e por con-
Quaresma14. sequência também nós bendizemos ao Senhor.
A primeira é a chuva, e esta é o fruto. Por isso,
São 43 as Orações sobre o povo introduzi- estamos entregando a Deus, o agricultor, que
das nos formulários quaresmais: 22 tiradas nos manda a chuva e nos cultiva, o fruto que
do Ve, 7 do GeV, 8 do GrH, 2 do Missal de produzimos15.
Paris de 1738, 3 do MR de 1962 e 1 é de nova
composição. Algumas delas, na verdade, são O louvor a Deus é uma constância (dimen-
fusões de vários textos. são ascendente). Ele é invocado como Deus;
Uma atenção mereceriam as Orações Deus onipotente; Pai; fonte e doador de toda

Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022 - 29


bênção, de toda graça e de bondade; revela- para o perdão e o doador de toda vida: Deus,
dor do caminho para a vida eterna; luz que o Pai.
não conhece ocaso; misericordioso; o que se Uma particularidade dessas bênçãos é o
deixa contemplar; o que opera grandes obras; constante pedido para que o senhor inspire
o protetor, guarda e defensor do seu povo; o a oração do seu povo. Que o Senhor inspi-
socorro do seu povo; o que ilumina com o seu re e dê perseverança. Por fim, impera, nas
esplendor; o Senhor que dá os mandamentos; Orações sobre o povo, o tema da caridade.
refrigério na dor; clemente; purificador; sábio; Perseverar na oração é o correspondente à
benevolente; médico do corpo e da alma; o que sinceridade na caridade, sendo esse um modo
sabe escutar; mestre e guia do povo; o que para sublinhar o laço indissolúvel existente
volta o seu olhar para o seu povo; vivificador; entre o amor de Deus e o amor ao próximo.
doador da luz; renovador; lento à ira e grande Essas preces de bênçãos são uma boa opor-
no amor... tunidade de catequese para o povo de Deus,
especialmente no período da Quaresma, uma
Concluindo época de “luta espiritual mais intensa”16 na
qual se deve sempre mais recorrer ao auxílio
Estas breves observações sobre as Orações que vem do alto.
sobre o povo podem nos servir para abrir
estrada para uma série de estudos em torno Dom Jerônimo Pereira, osb
do tema da eucologia. A sua recuperação e Mosteiro de São Bento de Olinda
ampliação revelam uma superabundante ri-
queza do MR desejado pelo Concílio Vaticano
II, único reconhecido como expressão da lex
orandi da Igreja (Tradtiones Custodes 1) e se
coloca na linha do número 50 de Sacrosanc-
tum Concilium, que prevê a recuperação, “se-
gundo a antiga tradição dos Santos Padres”, 1
CONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium – SC. In:
de “alguns elementos, que com o passar do COMPÊNDIO do Vaticano II: constituições, decretos,
tempo foram perdidos”. declarações. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
Os temas tratados nessas orações são sig-
2
MISSALE Romanum ex decreto Sacrosancti Oecumenici
Concilii Vaticani II instauratum auctoritate Pauli PP. VI
nificativos e podem constituir material valioso promulgatum Ioannis Pauli PP. II cura recogitum: editio
para a compreensão da longa caminhada qua- typica tertia reimpressio emendata. Città del Vaticano:
resmal, também do ponto de vista pastoral. Typis Vaticanis, 2008. p. 200. Tradução livre do autor.
Sobretudo quando se valoriza em primeiro
3
Cf. FERRARI, M. Le orationes super populum per il tempo
di quaresima. RL, Camaldoli, n. 107, p. 362, 2020. 
lugar o tema da bênção. Invocar a bênção de 4
Cf. METZGER, M. (ed.). Les Constitutions apostolique.
Deus significa confessar que esperamos dele Paris: Cerf, 1987. v. III (SCh 336). p. 213-215, n. 15, 6-10.
tudo de bom e que o reconhecemos como a 5
Cf. Barba, M. Il messale romano: tradizione e progresso
nella terza edizione tipica. Città del Vaticano: LEV, 2004.
fonte da nossa vida. Essa confissão de fé feita p. 118.
no período quaresmal, tem uma importância 6
MISSALE, op. cit., p. 235..
muito especial. Com ela se afirma que os que 7
DOMINGO de Ramos: Oração sobre o povo. In: MISSALE
celebraram a Eucaristia reconhecem que a ROMANUM, op. cit., n. 17.
8
INSTRUÇÃO geral do Missal Romano. In: MISSAL
fonte que pode tornar fecundo o seu cami- Romano reformado por decreto do Concílio Ecuménico
nho rumo à Páscoa é apenas o Senhor e a Vaticano II e promulgado por autoridade de s. s. o papa
sua Palavra, e não simplesmente a pessoal Paulo VI. Tradução para o Brasil da edição típica de 1970.
São Paulo paulus 1992.
“observância” das práticas quaresmais, que 9
INSTRUÇÃO, op. cit, n. 57a
também conservam o seu valor fundamental. 10
INSTRUÇÃO Geral do Missal Romano. In: MISSALE
As Orações sobre o povo colocadas no ROMANUM, op. cit.
tempo santo da Quaresma também apontam
11
MISSAL, op. cit, grifo nosso
12
Ibid
a penitência e a conversão, não como uma 13
MISSAL, op. cit, p. 531.
conquista do crente, mas como um dom que 14
Cf. FERRARI, loc. cit. 
Deus concede em virtude da sua grandeza 15
SANTO AGOSTINHO. Salmo 66: Sermão ao povo. In:
Comentário aos salmos (Enarrationes in psalmos 51-100).
da sua bondade e do seu amor paterno. Essa
São Paulo: Paulus 2019. p. 207, n. 1.
bondade se manifesta, sobretudo, no perdão. 16
Cf. QUARTA-FEIRA de Cinzas: Oração do dia. In: MIS-
O acento se desloca do pecado e do pecador SAL, op. cit., p.175.

30 - Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022


Preparando o Dia do Senhor
Cláudio Pastro

3º DOMINGO DA PÁSCOA 4º DOMINGO DA PÁSCOA


1 de maio de 2022 8 de maio de 2022

1. Aprofundando os textos bíblicos: Atos 1. Aprofundando os textos bíblicos: Atos 13,14.43-


5,27b–32.40b-41; Salmo 30(29); Apocalipse 5,11- 52; Salmo 100(99); Apocalipse 7,9.14b-17; João
14; João 21,1-19 10,27-30
O Evangelho narra uma manifestação de Jesus O relato do Evangelho, situado no contexto da De-
ressuscitado aos discípulos na Galileia, às margens do dicação “Hanukká” do Templo (10,22-42), é a terceira
lago de Tiberíades onde ele se revelara como o alimento parte do discurso do Bom Pastor.
que sacia plenamente a fome (6,1ss). A presença do Jesus é o Consagrado por excelência, que realiza as
Ressuscitado ilumina e guia as comunidades em missão, obras de Deus como o Messias-Pastor. As ovelhas escu-
representadas por Simão Pedro, Tomé, Natanael, os tam a voz de Jesus e o seguem, pois ele as conhece pelo
filhos de Zebedeu (Tiago e João, Mc 1,19) e outros dois nome e oferece a vida eterna em Deus. Assim, ninguém
discípulos anônimos. O número sete simboliza totalida- pode dispersar o rebanho confiado pelo Pai a Jesus, o
de e realça o sentido universal do trabalho missionário. Bom Pastor que dá a vida pelas ovelhas. A pertença a
Os discípulos pescaram a noite toda sem sucesso, mas ao Deus é enfatizada já nos textos referentes à Aliança do
amanhecer a presença viva do Ressuscitado interpela a antigo povo (Ex 19,6; Dt 26,19). A unidade perfeita
lançar a rede e confiar na Palavra. A rede encheu-se de entre o Pai e o Filho, no pastoreio do rebanho, consiste
cento e cinquenta e três grandes peixes, indicando a ação na vida em abundância para todos. O significado mais
do Senhor nas comunidades que se multiplicam para profundo de “eu e o Pai somos um” aparece quando
espalhar a Boa Nova. O Discípulo Amado proclama a Jesus leva a termo a obra por meio da entrega da vida
fé pascal das comunidades: É o Senhor, reconhecendo-o (17,1ss). A comunhão do Pai e o Filho deve ser o mo-
como o fundamento da pesca abundante. Pão partido delo para despertar a solidariedade entre os irmãos e as
para a vida do mundo (6,51), o Ressuscitado continua irmãs na comunidade. O compromisso com a vida digna
alimentando os que se reúnem para a fração do pão. A das pessoas manifesta a adesão a Jesus e proporciona a
experiência pascal inverte a tríplice negação de Pedro experiência da relação filial com Deus. Muitos, porém,
(18,17.25-27), que agora exprime por três vezes seu não reconhecem Jesus como o Cristo, o Ungido de Deus
amor ao Senhor, testemunhado no serviço. Pedro é e não acolhem seus ensinamentos. Ameaçado pelos
chamado para apascentar e pastorear as ovelhas que adversários, que abandonam e exploram o rebanho,
pertencem ao Bom Pastor, o qual deu a vida para que Jesus se retirou para continuar a missão no outro lado
todos alcancem a salvação (10,11-18). A fidelidade do rio Jordão (10,31-42). O sétimo sinal que realizará,
ao seguimento de Jesus levará Pedro ao martírio, no a ressurreição de Lázaro (cap. 11), acentua a compaixão
tempo do imperador Nero. A leitura dos Atos destaca de Jesus e a presença da vida que vence a morte para
o testemunho corajoso dos Apóstolos, que permanecem sempre. A leitura dos Atos apresenta Paulo e Barnabé
firmes no anúncio do Cristo ressuscitado em meio às anunciando a luz da salvação a todos os povos, em An-
tribulações. A leitura do Apocalipse proclama que Jesus tioquia (atual Turquia). O salmo responsorial exprime
é o Cordeiro imolado, vencedor da morte, glorificado o louvor universal do povo, o rebanho de Deus cuidado
no céu e na terra. com a sua bondade. A leitura do Apocalipse ressalta que
Jesus, o Cordeiro-Pastor, conduz às fontes da água da
2. A palavra na vida vida em meio às tribulações.
A vivência das comunidades primitivas nos ensina
que somente a presença de Jesus ressuscitado pode dar 2. A palavra na vida
eficácia ao trabalho evangelizador. O amor fraterno, o Em meio às adversidades possamos testemunhar a
cuidado pelas pessoas, a começar pelas mais necessita- fé e a esperança em Jesus Mestre e Pastor, Caminho,
das, possibilita a relação viva com o Mestre e Senhor. Verdade e Vida.

3. A palavra na celebração 3. A palavra na celebração


Em cada celebração, o Senhor nos convida para a Neste domingo a liturgia nos faz rezar em comunhão
refeição e para retomar o caminho com Ele. Peçamos com todas as comunidades que se reúnem em oração:
ao Senhor que abra os nossos olhos para perceber sua “que o rebanho possa atingir, apesar da sua fraqueza, a
presença no meio de nossa luta, e nos firme na missão. fortaleza do Pastor”. Que assim seja.

Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022 - 31


Preparando o Dia do Senhor
Cláudio Pastro

5º DOMINGO DA PÁSCOA 6º DOMINGO DA PÁSCOA


15 de maio de 2022 22 de maio de 2022

1. Aprofundando os textos bíblicos: Atos 14,21b- 1. Aprofundando os textos bíblicos: Atos 15,1-
27; Salmo 145(144); Apocalipse 21,1-5a; João 13,31- 2.22-29; Salmo 67(66); Apocalipse 21,10-14.22-23;
33a.34-35 João 14,23-29
O Evangelho ressalta o mandamento do amor doado O Evangelho convida a percorrer o caminho do
por Jesus na Ceia de despedida (13,1ss), o “ágape”, sinal seguimento a Jesus por meio da vivência e testemunho
da fraternidade que nasce de sua vida a serviço do bem da Palavra, que torna a comunidade cristã e cada ser
das pessoas. Eu dou a vocês um mandamento novo: humano morada de Deus. A escuta de Jesus, o qual
Como amei vocês, amem uns aos outros, proclama manifesta a bondade e a compaixão do Pai, leva à iden-
Jesus que exemplifica seu modo de amar através do tificação através da doação e entrega da vida. Na hora
gesto concreto de lavar os pés. Mestre e Senhor, Jesus da despedida de Jesus, a promessa do Espírito Santo
ensina a praticar o amor fraterno para transformar as garante a certeza da comunhão com Deus. “Paráclito”,
injustiças, a violência e a opressão. Em meio às trevas que significa defensor, consolador, confortador, indica
da noite, quando Judas Iscariotes saiu (13,30-31), Jesus a atuação do Espírito Santo que o Pai envia em nome
ilumina a seguir seus passos com fé e esperança. A obra de Jesus para guiar todos os que continuam a missão
de Jesus, o Filho do Homem, resplandece de glória e libertadora. O Espírito ensinará todas as coisas e recor-
Deus é glorificado nele. Filhinhos, tratamento carinhoso dará tudo o que Jesus disse, mantendo viva a memória
de Jesus à pequena e frágil comunidade, designa os diante dos novos desafios. Iluminados pela experiência
cristãos em 1João. Diante da iminência de sua morte, da ressurreição, os discípulos compreendem o sentido
Jesus ensina a viver com a dignidade de filhos e filhas das palavras e ações do Mestre (2,22; 12,16). A ação do
de Deus, deixando seus ensinamentos mais preciosos Espírito Santo conduz a viver a paz do Ressuscitado,
na forma de um testamento literário (13–17). O legado proclamada com insistência: Deixo para vocês a paz,
essencial é o novo mandamento do amor fraterno, funda- dou-lhes a minha paz. A missão de Jesus Cristo, o Un-
mentado na entrega radical de Jesus por amor até o fim. gido de Deus, liberta do medo e dá vida em plenitude.
Amar uns aos outros como Jesus amou, com gratuidade No tempo de Jesus e das comunidades primitivas, a paz
e sem interesses egoístas, deve ser a marca distintiva romana pacificava pelas armas e mantinha os povos sob
da comunidade cristã. Se tiverem amor uns aos outros, o domínio imperial. Jesus é o Caminho, a Verdade e a
todos vão reconhecer que vocês são meus discípulos, Vida que infunde confiança em meio às adversidades
apelo a multiplicar os gestos de Jesus em benefício de (14,1ss). A obra de Jesus confiada pelo Pai estando
todos. O mandamento do amor a Deus vem junto com consumada (19,30), realizada plenamente, motiva seus
o amor aos outros, pois amar a Deus implica o compro- seguidores/as a continuar a missão com alegria. Na
misso solidário com os irmãos e irmãs. Na leitura dos leitura dos Atos, o Concílio de Jerusalém sublinha a
Atos, Paulo e Barnabé retornam à Antioquia da Síria e adesão a Cristo e recomenda a observar o que favorece
partilham a experiência missionária, a obra de Deus que a comunhão fraterna. O salmo responsorial impele a
leva os gentios ao caminho da fé. O salmo responsorial glorificar o Senhor, que manifesta sua benevolência a
bendiz o Senhor, bondoso e compassivo com todas as todos os povos. A leitura do Apocalipse descreve a nova
suas criaturas. Na leitura do Apocalipse, Deus está no Jerusalém com portas sempre abertas para acolher todos;
meio da humanidade em Cristo, que revela a esperança repleta da presença de Deus e do Cordeiro.
de um novo céu e uma nova terra.
2. A palavra na vida
2. A palavra na vida Jesus não nos deixa órfãos; promete o Espírito Santo
A Palavra mostra que a nova criação começa em para guiar-nos no caminho da fidelidade ao seu projeto.
Jesus, o Enviado para manifestar a presença do Deus-
-Amor e ensinar a viver como filhos, buscando o bem 3. A palavra na celebração
uns dos outros. Celebrando o mistério pascal de Cristo, neste domin-
go, acolhemos a promessa do Espirito que estará conos-
3. A palavra na celebração co para prosseguirmos na missão que nos foi confiada.
Celebramos hoje o domingo do mandamento novo:
“amai-vos uns aos outros”. O mandamento do amor.
O amor é nossa “identidade” de discípulo e discípula
de Cristo.
32 - Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022
DOMINGO DA ASCENÇÃO DO SENHOR DOMINGO DE PENTECOSTES
29 de maio de 2022 5 de junho de 2022

1. Aprofundando os textos bíblicos: Atos 1,1-11; 1. Aprofundando os textos bíblicos: Atos 2,1-11;
Salmo 47(46); Efésios 1,17-23; Lucas 24,46-53 Salmo 104(103); 1Coríntios 12,3b-7.12-13; João
No Evangelho, os discípulos reunidos fazem a 20,19-23
experiência do encontro com Jesus ressuscitado e O relato do Evangelho sublinha que o dom do Es-
acolhem suas últimas instruções, que enfatizam a paz pírito Santo flui da Páscoa de Jesus, de sua exaltação
e a comunhão de mesa (24,36-53). Iluminados pelas na Cruz e na glória, como fonte de vida que permanece
Escrituras compreendem que Jesus é o Servo rejeita- para sempre (7,39; 19,30). No primeiro dia da semana,
do, mas também o Cristo e Filho de Deus exaltado. o domingo da ressurreição, a presença do Ressuscitado
A ressurreição de Jesus e sua elevação ao céu é prova no meio da comunidade infunde confiança para crer
da fidelidade do Pai que o manteve de pé ao longo do na força da vida que vence o medo e as aflições do
caminho. O Espírito Santo, a força do Alto revestirá os mundo (16,33). Jesus cumula seus discípulos com sua
discípulos para o anúncio e o testemunho do Senhor. paz, animando-os a abrir as portas para o anúncio e o
Jesus os levou para fora até Betânia, lugar de sua en- testemunho de sua mensagem libertadora. A alegria
trada messiânica em Jerusalém e que agora se torna o dos discípulos por verem o Ressuscitado, manifesta
local da consumação do seu êxodo. Erguendo as mãos e reconhecimento de Deus que realiza suas promessas de
abençoando seus discípulos, Jesus é elevado para junto salvação. Jesus, que fora enviado pelo Pai, agora envia
do Pai. Os discípulos se prostraram, reconhecendo a seus discípulos como continuadores de sua missão pro-
presença do Cristo Senhor que abençoava as pessoas fética, multiplicando gestos solidários que humanizam e
com gestos e palavras de bondade. Experimentam a transformam o pecado da injustiça. Sopra sobre os dis-
grande alegria, anunciada em 2,10 e louvam a Deus cípulos dizendo: Recebam o Espírito Santo. Evocando
sem cessar no Templo, comprometidos em espalhar a o Sopro Divino no ser humano modelado de argila (Gn
Boa Notícia da vida que vence a opressão e a morte. A 2,7), a ressurreição de Jesus é uma nova criação que
leitura dos Atos narra a elevação de Jesus na glória do restaura a vida segundo o projeto de Deus. O Espírito
Pai e a missão dos discípulos, chamados a testemunhar do Ressuscitado, o Cordeiro de Deus que tira o pecado
a mensagem do Ressuscitado ao mundo inteiro. O salmo do mundo (1,29), conduz a missão de eliminar o peca-
responsorial celebra a exaltação do Senhor, que estabe- do através de formas de vida e convivência marcadas
lece seu reinado em todo o universo. A leitura da carta pelo perdão e amor fraterno. A leitura dos Atos narra
aos Efésios proclama a força de Deus na ressurreição manifestação do Espírito Santo no dia de Pentecostes,
de Cristo, elevado à direita do Pai e constituído cabeça fruto da ressurreição de Jesus Cristo que estabelece a
da Igreja que é seu corpo unido à plenitude. fraternidade entre os povos e desfaz a confusão de Ba-
bel. O Salmo responsorial bendiz o Criador que envia o
2. A Palavra na vida seu Espírito e renova a face da terra, com seu cuidado e
A partir da exaltação plena de Jesus, o dom do seu afeição às criaturas. A leitura aos Coríntios acentua que
Espírito garante a sua presença na caminhada de seus fomos batizados num único Espírito, para formarmos
seguidores e seguidoras. Portadores e testemunhas da comunidades unidas em Cristo na diversidade dos dons.
bênção de Jesus no mundo, possamos buscar o bem
das pessoas e multiplicar gestos compassivos com os 2. A palavra na vida
mais sofridos. Jesus ressuscitado fortalece nossas comunidades
com sua paz e seu Espírito para realizarmos a missão,
3. A palavra na celebração reconhecendo tudo o que é contrário ao projeto de Deus
Demos graças a Deus pelo pão e pelo vinho neste e anunciando a salvação por meio da fraternidade e da
domingo da ascensão do Senhor aos céus, vivendo o comunhão. Que o agir do Espírito Santo renove a face
sentido mais profundo de sua ressurreição e da missão da terra.
que ele nos confiou, e que sugere que nós, os seguidores
de Jesus, temos que construir, com nosso esforço diário, 3. A palavra na celebração
o novo céu e nova terra. Na eucaristia, o pão e o vinho se convertem em sacra-
mento da Páscoa de Cristo, Corpo e o Sangue do Senhor;
participando na mesa do Senhor nos tornamos em Cristo
um só corpo e um só espírito (III Oração Eucarística).

Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022 - 33


Preparando o Dia do Senhor
Cláudio Pastro

DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE SOLENIDADE DO CORPO E


12 de junho de 2022 SANGUE DE CRISTO
16 de junho de 2022
1. Aprofundando os textos bíblicos: Provérbios
8,22-31; Salmo 8; Romanos 5,1-5; João 16,12-15 1. Aprofundando os textos bíblicos: Gênesis
O Evangelho destaca a unidade existente entre o Pai 14,18-20; Salmo 110(109); 1Coríntios 11,23-26;
e o Filho, fundamento da ação do Espírito que leva a Lucas 9,11-17
compreender o plano de salvação realizado plenamente O Evangelho apresenta a multiplicação dos pães
com a exaltação de Jesus (2,22; 7,39; 12,16 etc.). A segundo o relato de Lucas. As multidões seguem Jesus
presença do Espírito Paráclito, o Advogado de defesa, que as acolhe. O dia começava a declinar e os discípulos
conduz ao entendimento a respeito do mundo e das pedem a Jesus para despedir a multidão, a fim de que
realidades de pecado e morte (16,5-15). O retorno de procurem hospedagem e comida. Mas Jesus lança mão
Jesus ao Pai manifesta a vitória sobre os que tiranizam da partilha como alternativa. O deserto evoca a solici-
o mundo e crucificaram o Enviado de Deus. O Espírito tude de Deus, que proporciona o maná para alimentar
da Verdade (14,17; 15,26; 16,13) conduzirá à plena ver- o povo sofrido em busca da libertação. Os cinco pães
dade, que é a revelação de Deus em Jesus Cristo como e os dois peixes estão vinculados às Escrituras, orga-
uma realidade permanente. Assim como Jesus glorifica o nizadas pela Torá (os cinco livros do Pentateuco), os
Pai e revela sua presença e intimidade (1,14.18), a ação Profetas e os Escritos. Jesus leva à plenitude os gestos
do Espírito habitando nas pessoas inspira a comunhão de bondade e compaixão de Deus (Ex 16; 2Rs 4,42-44),
fraterna que manifesta a glória de Jesus (17,10.22-24). realizando o banquete universal que ensina a viver na
A atuação do Espírito mantém viva a obra de Jesus, o paz fruto da justiça, caminho de fraternidade que o leva
Mestre e Senhor, por meio de verbos de ação: ensinar, até a cruz (9,18-27). Obedientes aos ensinamentos de
recordar (14,26); testemunhar (15,26); falar, anunciar e Jesus, os discípulos acomodam a multidão em grupos de
glorificar (16,13-14). O ensinamento de Jesus é atuali- cinquenta, retomando o êxodo e os profetas (Dt 1,15).
zado em cada nova situação mediante o dinamismo do Abençoou o pão, partiu-o e o deu a seus discípulos
Espírito Santo. Deus realiza coisas novas por meio do (9,16) para que distribuam. Todos comeram e ficaram
Filho Jesus (cf. 13,19; 14,29; Is 48,3-7), que se multi- saciados, sinal da presença do Reino de Deus por meio
plicam pelo Espírito em todos os que creem e seguem da atuação de Cristo, o Ungido. Além disso, encheram
com fidelidade o projeto divino. O Espírito recebe do doze cestos dos pedaços que sobraram, número que
que é de Jesus para anunciar e guiar os missionários/as, caracteriza todo o povo de Deus, alimentado agora
unidade da qual participa também o Pai, visto que tudo pelos discípulos e discípulas de Jesus. Na leitura de
o que pertence ao Pai é também do Filho. A leitura dos Gênesis Melquisedec oferece pão e vinho, os quais se
Provérbios é um poema sobre a Sabedoria divina na obra tornam anúncio da Eucaristia. O salmo responsorial foi
do Criador, alegrando-se em estar junto à humanidade. interpretado como revelação de Cristo, sacerdote eterno
O salmo responsorial é um hino de louvor pela gran- como “Melquisedec” (= meu rei é justiça). A leitura aos
deza de Deus nas suas obras, de modo especial, no ser Coríntios é a narrativa da Ceia deixada por Jesus como
humano. A leitura aos Romanos proclama que o amor memorial, na qual o pão e o vinho são sinais de sua vida
de Deus derramado em nossos corações pelo Espírito entregue na cruz.
Santo é dádiva da entrega de Cristo.  
 2. A palavra na vida
2. A palavra na vida Jesus compara o povo sofrido a ovelhas sem pastor
Guiados pelo Espírito da Verdade permaneçamos em (Mc 6,34), ensinando-nos a não ser indiferentes diante
Jesus, comprometidos com seu projeto em prol da vida. das injustiças que causam fome e enfermidades. Ce-
lebrar a Eucaristia em memória de Jesus consiste em
3. A palavra na celebração compartilhar sua missão e entrega pela libertação dos
Em nossa celebração, entramos na dinâmica da pobres e famintos.
comunhão trinitária, oramos ao Pai, pelo Filho no
Espírito Santo. 3. A palavra na celebração
No admirável sacramento, memorial da paixão do
Senhor, não somente veneramos o Corpo e o Sangue
de Jesus Cristo (CF Oração do Dia), mas comemos e
bebemos com ele, nele e por ele.

34 - Revista de Liturgia 291 - Maio / Junho 2022


Neusa Bresiani é discípula do Divino Mestre, tem especialização em liturgia, é membro da Rede Celebra e
contribui no serviço da formação litúrgica nas comunidades.
Helena Ghiggi é discípula do Divino Mestre, mestra em Bíblia e assessora cursos de formação bíblica.

12º DOMINGO DO TEMPO COMUM 13º DOMINGO DO TEMPO COMUM


19 de junho de 2022 26 de junho de 2022

Aprofundando os textos bíblicos: Zacarias 12,10- 1. Aprofundando os textos bíblicos: 1Rs 19,16b.19-
11; 13,1; Salmo 63(62); Gálatas 3,26-29; Lucas 21; Salmo 16(15); Gálatas 5,1.13-18; Lucas 9,51-62
9,18-24 O relato do Evangelho marca o início da subida de
O Evangelho começa com a oração de Jesus, que Jesus a Jerusalém, onde será elevado na cruz e consumi-
marca os momentos importantes de sua vida e missão rá seu êxodo com a morte, ressurreição e ascensão. Os
desde 3,21. As multidões seguiam Jesus com esperança peregrinos que iam a Jerusalém para as grandes festas
e muitos identificavam sua atuação profética a João evitavam passar pela Samaria, utilizando o caminho da
Batista, outros a Elias ou ainda a outros profetas como costa ou o vale do rio Jordão. O culto dos samaritanos
Jeremias, Amós. Os que compartilham o caminho com era centralizado no monte Garizim (Jo 4,20). Jesus passa
Jesus no discipulado são interpelados pela pergunta do pela Samaria, pois é o Enviado de Deus que manifesta
Mestre: Mas vocês, quem dizem que eu sou? A resposta a salvação a todos (17,11-19). Ao encontrar inimizade
de Pedro, em nome da comunidade dos discípulos e entre os samaritanos, os discípulos Tiago e João pensam
discípulas, é um ato de fé em Jesus, o Enviado do Pai. em rogar raios do céu como fez o profeta Elias (1Rs
Então, Jesus adverte para não contar isso a ninguém, 18,36-38), mas Jesus se opõe e ensina a fazer o bem
pois havia a expectativa de um Messias poderoso para para transformar toda forma de violência (6,27-29.35).
libertar o povo do domínio e opressão imperial. Jesus O ensinamento do Mestre sublinha que o discipulado
explica o sentido de seu messianismo por meio do exige viver a caminho, com despojamento absoluto,
anúncio da Paixão, o qual evoca o Servo sofredor de compartilhando a existência do Filho do Homem que
Is 52,13–53,12 e acentua que a entrega é consequência não tem onde reclinar a cabeça. Jesus se deslocava de
da prática da justiça e solidariedade. Jesus, o Filho do um lugar para outro devido ao trabalho missionário
Homem, toma o caminho da libertação pela doação até itinerante, a fim de realizar a obra libertadora confiada
o fim, não pelo poder das armas. Ele anuncia também pelo Pai. Sepultar os mortos é um dever e os discípulos
a sua ressurreição, pois é o Vivente que caminha com sepultarão o corpo do Crucificado (23,53-56), porém o
todos os seus. A opção por Cristo leva a carregar a cruz, ensino de Jesus insiste na urgência de estar a serviço
assumindo a cada dia seu modo de viver e o compro- do Reino da vida, justiça e fraternidade. Quem põe a
misso sem reservas de levar adiante o Reinado de Deus. mão no arado e olha para trás abre sulcos tortos; não
Todos são chamados a colaborar com o projeto de Deus é apto para o Reinado. A entrega confiante em Deus,
a favor da humanidade, que se manifesta de modo espe- conforme o modelo de Cristo, elimina o que pode ser
cial em Cristo e proporciona encontrar a fonte da vida obstáculo no testemunho cotidiano do Evangelho. Na
e salvação. O profeta Zacarias, em meio ao sofrimento leitura, tirada de 1Reis, o gesto de Elias de impor o
e morte de inocentes, anuncia a esperança de salvação: manto significa o chamamento profético de Eliseu, que
“Olharão para aquele a quem transpassaram”, texto apli- assume a missão a serviço do Senhor. O salmo respon-
cado a Cristo na cruz (Jo 19,37). O salmo responsorial sorial exprime a confiança em Deus, a herança da vida.
exprime a confiança do justo que, diante das tribulações, A leitura aos Gálatas convida a permanecer firmes na
busca a Deus como a terra sedenta sem água. A leitura liberdade em Cristo, guiados pelo Espírito na vivência
aos Gálatas lembra que, pelo batismo, nos revestimos de do amor fraterno.
Cristo para viver na igualdade de filhos e filhas de Deus.
2. A palavra na vida
2. A palavra na vida A tarefa mais urgente deve ser sempre trabalhar a
“Quem é Jesus, para nós?”, pergunta a ser renovada serviço do Reino de Deus por uma vida mais humana,
todos os dias a fim de manter viva nossa fé em Cristo seguindo os passos de Jesus de Nazaré.
e manter nossa conduta de vida segundo a fé de Jesus.
3. A palavra na celebração
3. A palavra na celebração A liturgia é uma escola de fé que mantém em nós a
Na celebração litúrgica, lembramos a Deus e a nós memória viva do crucificado-ressuscitado, o Filho de
mesmos quem é Jesus, em quem cremos. Deus que se encarnou para nos humanizar.

Revista de Liturgia 290 - Maio / Junho 2022 - 35


A casa de oração (...) em que os fiéis se
reúnem, e na qual a presença do Filho de
Deus, é honrada para auxílio e consolação
dos fiéis, deve ser bela e apta para a oração
e para as celebrações. Nesta “casa de Deus”,
a verdade e a harmonia dos sinais que a
constituem devem manifestar Cristo que está
presente e age neste lugar.

Catecismo da Igreja católica, 1181

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