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Catequese e Liturgia

No processo de des-escolarização da catequese, não pode faltar a recuperação do caráter


litúrgico da catequese. Foi quando a catequese perdeu seu tom orante e mistagógico, que ela se
escolarizou. Deixou de ser percurso para ser curso. Deixou de ser um itinerário de fé para
ser esclarecimento de pontos doutrinários da fé. Celebrar a fé é fundamental. Nossa fé é proclamada,
vivida, celebrada.

Celebrar faz parte da vida. Festejar os momentos, marcar a vida com festas e símbolos para
arrancá-la da mesmice e ressignificar a existência, mostra-se como uma característica humana. Todos
os povos celebram, realizam liturgias… Cada qual a seu modo, conforme suas crenças e sua cultura,
marcam os tempos com eventos, ritos e símbolos, lembrando que a vida é cíclica, Morre a primavera,
vem o verão. Morre o verão, vem o outono. Morre o outono, vem o inverno… E uma hora, morre o
inverno e a primavera renasce. A vida é cíclica, marcada pela morte e pelo renascimento. E o ser
humano, observador das etapas da vida, marca-as com celebrações. Assim, tudo o que é importante
para a vida da gente, costumamos celebrá-lo.
Observemos os sacramentos que celebramos na caminhada da fé cristã. Nasceu alguém?
Celebremos o dom da vida e sua acolhida no seio da comunidade de fé: batismo. Alguém está doente
e precisa do apoio da comunidade? Celebremos com ele a força do amor e da oração em meio à sua
fraqueza: unção dos enfermos. Alguém vai começar nova vida construindo-a ao lado de um
companheiro? Celebremos juntos, augurando-lhes uma vida plena de amor e realizações: matrimônio.
Alguém muito especial deu a vida por nós e, mesmo depois de morto, se faz presente caminhando
com a gente? Celebremos a alegria e as dores da jornada na companhia do Ressuscitado: eucaristia.
E assim vai. As liturgias são parte integrante da vida cristã. A fé cristã é professada (dita em alto e bom
som, dando as razões de se crer), celebrada (marcada por ritos e símbolos que reafirmam a fé e
atualizam os mistérios professados) e vivida (traduzida em gestos concretos que expressam em quem
cremos e como cremos).

Na fé cristã, celebrar é essencial. E, desde o começo da Igreja, foi assim. O catecumenato, por
exemplo, nunca separou essas três dimensões da fé: professada, celebrada e vivida. Ao contrário,
todo o itinerário do catecumenato era acompanhado pela comunidade eclesial com orações, ritos e
símbolos… Os catecúmenos eram iniciados nos mistérios não por meio de explicações complicadas,
mas pelo mergulho no mistério pascal. Isso era feito certamente com algum cuidado com o
conhecimento intelectual, mas, como a fé cristã é adesão a uma pessoa e não a uma doutrina, a
preocupação maior era dar a conhecer essa pessoa a quem a vida do catecúmeno seria atrelada. Isso
era feito especialmente na prática cristã, no mergulho na vida eclesial, acompanhada de muitos ritos
que iam mostrando o itinerário feito por aquele que desejava a fé,

Os ritos são algo muito forte. Eles realizam algo; têm o condão de nos transportar para algo
além deles mesmos, de nos arrebatar para uma experiência que transcende a própria vida, de nos
colocar referidos a algo que é muito maior do que nós e que orienta nossa vida toda. Não faz nenhum
sentido catequizar sem celebrar, como se catequese fosse curso de religião para estudar Deus e não
para entrar em comunhão com ele. Essa é a função da liturgia: quebrar a insignificância da vida,
dando-lhe um sentido bem mais além.
Liturgia e catequese são irmãs siamesas, inseparáveis. Onde uma vai, a outra vai também. É bem
verdade que andamos separando as duas, mas o resultado não tem sido favorável, nem para a liturgia
nem para a catequese. Quase sempre, essa separação dá na morte das duas irmãs. Uma e outra
perdem seu sentido mais pleno. É hora de resgatar o caráter celebrativo, litúrgico, da catequese.
Mas como recuperar esse vínculo? Basta introduzir ritos, gestos e símbolos no itinerário
catequético? Seria suficiente pegar o RICA – Ritual de Iniciação Cristã para Adultos – repetindo, na
catequese paroquial, as celebrações nele previstas? Ou seria o caso de exigir que crianças, jovens e
adultos da catequese participem das liturgias da paróquia? Devemos motivá-los até o
constrangimento, a ponto de a participação na celebração dominical se tornar uma condição para a
recepção dos sacramentos previstos no itinerário catequético?

Muitos têm entendido assim. E, num esforço hercúleo querendo acertar, temos visto na
paróquia desde a repetição de ritos e gestos do RICA até a imposição da obrigação de frequentar a
missa. Quanto aos ritos do RICA, melhor a gente ficar atenta. Tenho a impressão que estamos
trocando uma catequese sacramental por uma catequese ritual. E isso não resolve o problema
catequético atual. Quanto ao atrelamento da catequese com a missa dominical, além de esse não
tornar a catequese mais litúrgica, as motivações para participação da liturgia parecem duvidosas:
completar álbum de figurinha com textos do evangelho do dia, ganhar balas e outras guloseimas, ou
até mesmo receber o sacramento desejado. A liturgia e a catequese devem atrair por si mesmas:
porque são plenas de sentido, porque dão força para viver, porque ressignificam a vida da gente.
Qualquer tentativa de atrair pessoas através de outra motivação seria esvaziar a vida de fé do seu
sentido mais original. Não podemos correr esse risco.

Na catequese, a liturgia não é nem um anexo, como a missa dominical tornada obrigatória, nem
se faz uma catequese litúrgica acrescentando ritos no itinerário catequético. Tudo isso é possível, mas
não garante o caráter celebrativo da mesma. A liturgia é uma característica do ato catequético. Todo
encontro catequético deveria ser litúrgico, pois a catequese celebra e comunica a presença do Deus
vivo, possibilitando o encontro com o Ressuscitado. Em cada atividade da catequese, seja na oração
ou na música, nas brincadeiras ou na proclamação e partilha da Palavra de Deus, é Deus mesmo que
está se dando, se comunicando, entrando em comunhão com os catequizandos e o catequista. Assim,
cada gesto da catequese reclama reverência; cada palavra pronunciada exige cuidado por causa de
seu significado; cada rito realizado carrega tom de solenidade. Brincar, cantar, rezar, refletir, ouvir e
partilhar a palavra se tornam rituais celebrativos, ou seja, comunicadores de uma presença que
transcende o próprio ato de brincar, cantar, refletir ou rezar: o mistério pascal que a catequese
comunica.
Uma catequese pode ser dita celebrativa não pelo tanto de rituais que ela prescreve, mas pelo
modo como se desenvolve, pelo caráter orante e mistagógico que conserva. Nada impede que
aconteçam ritos específicos em algumas ocasiões pontuando bem os itinerários da catequese, como
no catecumenato. Fazer, de vez em quando, um encontro que é uma celebração é uma boa ideia. Os
catequistas preparam uma bela liturgia, com símbolos, gestos, músicas, orações, textos bíblicos e
rezam com os catequizandos, marcando as etapas da catequese. Nem precisa de padre ou algum
ministro específico. Os catequistas mesmos – fazendo valer o caráter sacerdotal de seu batismo –
celebram a liturgia, porque liturgia é vida feita oblação, oferta ao Pai. Desse modo, os catequizandos
vão sendo mergulhados no mistério pascal que a liturgia – por meio de seus símbolos – faz acontecer.
A cada encontro orante, a cada celebração realizada, a catequese dá a conhecer o Deus vivo e
ressuscitado que nos acompanha e caminha conosco.

Dra. Solange Maria do Carmo


Mestre em teologia bíblica e Doutora em teologia catequética

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