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SEMINÁRIO PRESBITERIANO DO SUL

GUILHERME OLIVEIRA DA SILVA

A RELAÇÃO ENTRE A LEI E A GRAÇA DE DEUS

SÃO PAULO - SP
2023
GUILHERME OLIVEIRA DA SILVA

A RELAÇÃO ENTRE A LEI E A GRAÇA DE DEUS

Trabalho de conclusão de curso


apresentado ao Seminário Presbiteriano
do Sul como parte do requisito para
obtenção de grau de Bacharel em
Teologia.

SÃO PAULO - SP
2023
AGRADECIMENTOS

A Deus por ter me amado é escolhido desde o ventre da minha mãe para ser

um discípulo de Jesus, por ter me chamado para o ministério da Palavra e me

sustentado durante os quatro anos de seminário. A Ele rendo toda glória, afinal, de

um modo maravilhoso trabalhou em mim através das circunstâncias boas e ruins, e

principalmente através de pessoas, ferramentas de Deus para me moldar ao sagrado

ministério. Obrigado Senhor!

Aos meus pais, Gilmar e Denise, sem os quais eu não estaria aqui e que

sempre estiveram ao meu lado nos momentos mais difíceis e felizes da minha vida.

Aos amigos e irmãos que Deus me deu ao longo desses quatro anos de

seminário. Ao Julio, uma das pessoas mais sensacionais que eu já conheci na minha

vida, por todo amor, cuidado e carinho que Ele demonstrou para comigo, meu muito

obrigado amigão! Ao Plínio, um dos maiores presente que Deus poderia me dar,

companheiro de quarto, parceiro de treino, amigo mais chegado que um irmão que

tive a honra de conhecer e hoje faz parte de quem eu sou e da minha família. Amo

vocês e sei que vou levar nossa amizade por toda a eternidade!

Aos membros da "pequena gigante" Igreja Presbiteriana de Jardim Popular,

que sempre estiveram ao meu lado, pela amizade incondicional e pelo apoio

demonstrado ao longo de todo o período em que me dediquei a este seminário.

Por fim, agradeço a você, meu querido, que está lendo este trabalho, obrigado

por oferecer seu tempo, disposição e que Deus o abençoe poderosamente.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 4

2 ESTAMOS SOB A LEI OU SOB A GRAÇA? .......................................................... 6

2.1 O QUE É LEI? .................................................................................................... 6

2.2 TIPOS DE LEI .................................................................................................... 9

2.2.1 Lei moral ................................................................................................... 10

2.2.2 Lei cerimonial ........................................................................................... 13

2.2.3 Lei civil ...................................................................................................... 14

2.3 TRÍPLICE USO DA LEI .................................................................................... 15

2.4 O QUE É GRAÇA? .......................................................................................... 21

2.5 GRAÇA COMUM E GRAÇA ESPECIAL .......................................................... 22

3 AS CONFUSÕES E OS EXTREMOS .................................................................... 26

3.1 LEGALISMO .................................................................................................... 26

3.2 ANTINOMISMO ............................................................................................... 32

4 RESGATANDO A VISÃO BÍBLICA ....................................................................... 39

4.1 PONTO DE EQUILÍBRIO ................................................................................. 39

4.3 CRISTO E A LEI .............................................................................................. 44

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 49

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 52
4

INTRODUÇÃO

Esta monografia tem como título “A relação entre a Lei e a Graça de Deus”; ao

enfatizar a natureza do trabalho, busca-se entender de que modo ambas se

relacionam na perspectiva reformada e auxiliar a igreja na compreensão dessas

doutrinas, tendo como fonte as Escrituras e apresentando aos fiéis uma forma válida

e eficaz de pautarem a vida pela vontade prescrita de nosso Senhor.

Ao longo dos séculos, muitas pessoas interpretaram essas verdades de

maneira equivocada e, de um modo geral, caíram tanto no extremo do legalismo como

do antinomismo. Diante dessa realidade, nosso objetivo é apresentar qual a

perspectiva bíblica sobre o assunto e como chegar a um ponto de equilíbrio, com base

em uma proporção adequada entre a graça de Deus e as nossas obras.

Mauro Meister afirma que “as implicações da forma como entendemos a

relação entre lei e graça vão muito além do aspecto puramente intelectual. Esse

entendimento vai, na verdade, determinar toda a forma como alguém enxerga a vida

cristã e que tipo de ética esse cristão irá assumir em sua caminhada”.

Se a salvação é pela graça e a lei não pode salvar, como afirma o apóstolo

Paulo, qual a relevância da lei para os dias de hoje? É o que vamos buscar entender

e responder no decorrer deste trabalho. Logo no capítulo 1, a fim de clarear a linha de

pensamento proposta e deixar claro certos conceitos importantes para a compreensão

do que será abordado, procuraremos, antes de tudo, entender o que é lei; quais as

suas divisões (civil, cerimonial e moral); e de que forma a lei moral opera em nossos

dias, com base no tríplice uso da lei, segundo Calvino. Posto isso, ainda no primeiro

capítulo, procuraremos também compreender o que é graça e no que consiste tanto

a graça especial quanto a graça comum.


5

No capítulo 2, voltaremos nossos olhos para as confusões e os extremos da

relação entre a lei e a graça de Deus, a saber, o legalismo e o antinomismo, ambas

heresias as quais nos afastam de uma vida de piedade e retidão e que nada mais são

do que distorções das obras da lei e do evangelho da graça de Jesus Cristo.

Finalmente, no terceiro e último capítulo, nossa proposta é retratar qual a visão

bíblica dessa relação; entender de que forma qual nosso Senhor Jesus Cristo interagiu

com a lei de Deus; bem como responder a pergunta: “Para que serve a lei, se vivemos

na era da graça?”, de acordo com a teologia reformada, enfatizando o último parágrafo

(VII), do capítulo XIX da CFW que diz: “os supracitados usos da lei não são contrários

à graça do Evangelho, mas suavemente condizem com ela, pois o Espírito de Cristo

submete e habilita a vontade do homem a fazer livre e alegremente aquilo que a

vontade de Deus, revelada na lei, requer que se faça”.


6

2 ESTAMOS SOB A LEI OU SOB A GRAÇA?

2.1 O QUE É LEI?

Para entender bem a lei de Deus e como usá-la, é fundamental, antes de

adentrar no assunto proposto, esclarecer algumas questões basilares, principalmente

no que tange à maneira como aprouve ao Criador relacionar-se com as suas criaturas.

Na visão reformada calvinista, esse elo estabelecido entre Deus e o homem se dá em

um contexto pactual, ao passo que não há quem possa, de alguma maneira, viver fora

desse relacionamento, quer seja um crente ou um incrédulo, o primeiro recebendo as

bençãos do pacto, o último, as maldições dele.

Conforme nos aponta a Confissão de Fé de Westminster:

Deus deu a Adão uma lei, como um pacto de obras. Por esse pacto Deus o obrigou,
bem como toda sua posteridade, a uma obediência pessoal, inteira, exata e perpétua;
prometeu-lhe a vida sob a condição de ele cumprir com a lei, e o ameaçou com a morte
caso ele a violasse, e dotou-o com o poder e a capacidade de guardá-la (cf. Gn 1.26;
2.17; Ef 4.24; Rm 2.14-15; 10.5; 5.12,19 - CFW XIX.1)1

Logo no princípio, Deus faz ao homem uma promessa de vida sob a condição

de obediência. Assumindo, a partir desse momento, um compromisso de manter a

vida e toda sorte de bençãos para que o homem pudesse viver de maneira plena e

plenamente satisfeito no relacionamento com seu Criador e o restante da criação.

Essas bençãos pactuais, no entanto, estavam condicionadas à obediência total e

pessoal do primeiro ser humano criado pelo Senhor do pacto à lei dada de forma direta

em Gênesis 2.17 - não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal:

1Assembleia de Westminster. Símbolos de Fé: Confissão de Fé, Catecismo Maior e Breve


Catecismo. 2a edição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2014, p. 68.
7

“E o Senhor Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás

livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque,

no dia em que dela comeres, certamente morrerás.”2

Adão e sua esposa viveram debaixo desse pacto, no qual, por meio da lei do

Senhor e em contato direto com ele, eram plenamente instruídos sobre como

deveriam viver e se relacionar com Deus de maneira que ele fosse glorificado e o

homem pudesse gozar de plena alegria ao servi-lo.

Infelizmente, como sabemos, nossos primeiros pais descumpriram sua

obrigação, desobedeceram a lei de Deus e introduziram inúmeras mudanças no

mundo, ao perderem as bençãos concedidas pelo Criador, recebendo em seu lugar a

condenação ou maldição do pacto: a morte.

“Depois que nele foi apagada a imagem celeste, não sustentou sozinho essa pena pela
qual, no lugar da sabedoria, da virtude, da santidade, da verdade, da justiça - das quais
fora revestido como ornamentos -, odiosamente acometeram a peste, a cegueira, a
impotência, a impureza, a vaidade, a injustiça, mas envolveu e mergulhou sua
posteridade em cada uma dessas misérias.”3

A partir daquele momento a obediência à lei não mais poderia trazer vida, uma

vez que a raça humana já se encontrava em estado de morte, carente da glória de

Deus e completamente incapaz de aproximar-se do padrão de justiça exigido. Ainda

que ao longo da História, uns tenham se esforçado mais, outros menos, desde Adão

e Eva até a última criança a nascer, todos, sem exceção, são excluídos da comunhão

com Deus. E em consequência de seu pecado, ao invés de buscarem ao Senhor,

2 Almeida Revista e Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993, Gn 2.16-17.

3CALVINO, João. As Institutas. Tradução de Waldyr Carvalho Luz. Edição Clássica, vol. 2. São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 2006, p. 230.
8

amam e cultuam seus delírios, diariamente subvertem a verdade pela injustiça e

aproximam-se propositalmente das trevas.

Todavia, vale ressaltar que, mesmo após a queda de Adão que sujeitou todo o

gênero humano à maldição e condenação eterna, a lei de Deus não foi, de forma

alguma, revogada. Tampouco perdeu sua aplicabilidade. A lei que sempre foi perfeita,

porquanto reflete a mente, natureza e caráter daquele que a ordenou, continuou sendo

uma “perfeita regra de justiça”, que instrui os homens a viverem de uma maneira

agradável ao Senhor. Parafraseando George Hendry, a norma de Deus para o bom

comportamento não foi anulada pelo pecado assim como prescrições de saúde não

são anuladas pela doença.4

É importante entender, contudo, que a lei de Deus, apesar de posteriormente

ter sido dada a um povo específico, não se restringe aos judeus do Antigo Testamento

ou aos crentes do Novo Testamento, mas a todos os homens, indistintamente, os

quais por meio dela conhecem de maneira clara e objetiva qual a vontade de seu

Criador. Ocorre, no entanto, que Deus escolheu a nação de Israel para servir como

um canal de revelação dessa lei. E quanto a isso, a CFW ensina:

Essa lei, depois da queda do homem, continua sendo uma perfeita regra de justiça.
Como tal, foi por Deus entregue no monte Sinai, em dez mandamentos e escrita em
duas tábuas; os primeiro quatro mandamentos ensinam os nossos deveres para com
Deus; e os outros seis, os nossos deveres para com o homem (XIX.2).5

Ainda que em si não houvesse nada que o fizesse mais atrativo do que os

outros povos, aprouve ao Senhor escolher Israel e elegê-lo como a nação por meio

da qual seus propósitos, bem como sua santa e justa lei, seriam manifestos a toda

4 HENDRY, G. The Westminster Confession for Today. Richmond, 1962, p. 176.

5 Assembleia de Westminster, 2014, p. 68.


9

criação. A própria escolha de Abrão é uma demonstração disso. Tendo em vista o fato

de Deus tê-lo chamado e firmado uma aliança com ele, não por conta de algum mérito

ou qualidade que o destacasse dos demais, mas apesar de suas debilidades e

inadequações, sendo ele de uma terra idólatra, marido de uma mulher estéril e um

tanto quanto avançado em idade. Não por merecimento, mas única e exclusivamente

pelo beneplácito da sua soberana vontade.

É de suma importância, porém, antes de adentrarmos nos pormenores

referentes aos propósitos da lei de Deus revelada ao seu povo por intermédio de

Moisés, que consideremos o contexto em que cada lei é dada, a quem é dada e qual

o seu objetivo manifesto. Só assim poderemos saber a que estamos nos referindo

quando falamos de lei.

2.2 TIPOS DE LEI

A revelação da lei de Deus expressa de forma objetiva foi dada ao povo de

Israel nos tempos de Moisés, e a CFW no capítulo XIX.3,4, bem como Calvino6 e

vários outros reformadores, dividem os muitos aspectos da lei em três tipos: lei moral,

civil e cerimonial. Cada uma delas, levando em conta as circunstâncias e o contexto

em que foram dadas, com um papel e um tempo determinado para sua aplicação.

Além dessa lei, geralmente chamada lei moral, foi Deus servido dar ao seu povo de
Israel, considerado uma igreja sob a sua tutela, leis cerimoniais que contêm diversas
ordenanças típicas. Essas leis, que em parte se referem ao culto e prefiguram Cristo,
suas graças, seus atos, seus sofrimentos e os benefícios, e em parte representam
várias instruções de deveres morais, estão todas abolidas sob o Novo Testamento.
A esse mesmo povo, considerado como um corpo político, Deus deu leis civis que
deixaram de vigorar quando o país daquele povo também deixou de existir, e que agora
não obrigam além do que exige a sua equidade geral. 7

6
CALVINO, 2006, p. 466.
7 Assembleia de Westminster, 2014, p. 68.
10

2.2.1 Lei moral

Comecemos, pois, pela lei moral, a qual representa a vontade de Deus para a

humanidade, no que diz respeito ao comportamento e aos seus principais deveres.

Uma vez que pelo termo “moral”, entende-se “aquele aspecto da lei da qual depende

a verdadeira integridade dos costumes e a regra imutável do bem viver”.8 Conceito

este cada vez mais estranho na sociedade pós-moderna, a qual insiste em dizer que

toda moral é relativa ao seu tempo e lugar, tendo por base usos e costumes sociais

que variam ao longo das épocas. Levando, por meio dessa cosmovisão, diversas

gerações ao extremo de uma vida totalmente imoral, sem qualquer sentido de origem

e propósito que possa norteá-las ou sequer livrá-las do perigo de guiarem sua própria

vida.

De modo geral, este aspecto da lei “tem por finalidade deixar claro ao ser

humano quais são seus deveres, revelando suas carências e auxiliando-o a discernir

entre o bem e o mal”.9 Posto que ao revelar sua lei, estava o próprio Deus, por sua

tremenda e infinita graça, realinhando o entendimento, a vontade e os afetos daqueles

que, outrora criados à sua imagem e semelhança, estavam, devido à queda, por

completo imersos em sua natureza caída e pecaminosa.

Resumida no Decálogo, a lei moral expressa-se basicamente em dois artigos

principais: um manda honrar sinceramente a Deus com verdadeira fé e piedade

sincera; o outro manda amar aos homens com verdadeira caridade. Eis aí, segundo

8 CALVINO, 2006, p. 130.

9 MEISTER, Mauro. Lei e Graça. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. p. 54.
11

Calvino, “a verdadeira e eterna regra da justiça, estabelecida para todos os homens

em qualquer lugar do mundo, caso queiram conformar sua vida segundo a vontade

de Deus”.10

É importante, contudo, entender que, embora a síntese da lei moral esteja

contida nos Dez Mandamentos, de forma alguma ela está restrita apenas a eles.

Porquanto mesmo antes do Sinai, é possível encontrarmos nas Escrituras leis de

caráter moral, como em Gênesis 9.6, que além de proibir o assassinato, também fala

de sua pena: a morte daquele que assim o fizesse.

“Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu;

porque Deus fez o homem segundo a sua imagem”.11

Além disso, sendo uma expressão da santidade de Deus, a lei moral também

tem a função, não apenas de revelar a perfeição de quem a outorgou, mas de tornar

o homem consciente de sua pecaminosidade, escancarar a miserável condição na

qual se encontra, e ao mostrar-lhe quão longe estão seus pensamento e ações do

padrão estabelecido, levá-lo em humildade e submissão a buscar o Deus triúno, que

é a fonte de tudo que é bom, belo, justo e verdadeiro.

Eis aí o motivo da leis morais, ao contrário da civis e cerimoniais, continuarem

sendo de grande valia à igreja como um orientador para a vida. Observe, por exemplo,

como o Catecismo Maior de Westminster entende essa questão, na resposta à

pergunta 95:

“Qual é o uso da lei moral para todos os homens?”


Resposta: A lei moral é de uso para todos os homens, para informa-los sobre a
natureza santa de Deus e sua vontade, e de sua tarefa, constrangendo-os a andarem

10 CALVINO, 2006, p. 230.

11 Almeida Revista e Atualizada. Gn 9.6.


12

conformemente; para convencê-lo da sua incapacidade em guardá-la e da poluição


pecaminosa de sua natureza, de seus corações e vidas; para humilhá-los no sentido
de seu pecado e miséria e, desse modo, guia-los para uma visão mais clara da
necessidade de Cristo e da perfeição da sua obediência.”

De modo semelhante, em seu comentário sobre Gálatas, Calvino afirma que:

“a lei era o gramático da teologia, o qual, depois de conduzir seus alunos até certo

ponto, os entregava à fé, para que completassem a graduação”.12

Era comum naqueles tempos, os pais colocarem seus filhos debaixo da

supervisão de tutores, chamados “mestres de crianças” ou pedagogos, os quais

ficavam responsáveis pela educação moral e espiritual da criança, durante um

determinado período de tempo, geralmente até a maioridade, aos vinte e um anos,

quando, então, cessava a autoridade do tutor sobre a mesma.

Relacionando o que foi dito ao que Paulo escreve em Gálatas 3.24, assim era

a nação de Israel, como um filho de menor idade, sob a tutela e autoridade da lei. Até

que “viesse o descendente prometido”, a saber, Jesus Cristo, em quem a lei cumpriu-

se integralmente e cuja justificação é dada a todos aqueles que por fé o recebem.

Sendo assim, embora libertos pela cruz da condenação da lei moral, ela

permanece sendo extremamente valiosa ao povo de Deus, tanto na nossa como em

todas as épocas. Vista, através do sacrifício vicário de Cristo, não mais como um

fardo, mas como um privilégio que desfrutam aqueles que pelo Senhor foram

chamados.

12CALVINO, João. Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses. Tradução de Valter Graciano


Martins. Série Comentários Bíblicos. São José dos Campos: Editora FIEL, 2010, p. 118.
13

2.2.2 Lei cerimonial

Além da lei moral, Deus deu leis cerimoniais13, que representavam a legislação

levítica do Antigo Testamento, bem como “as formas externas pelas quais os israelitas

poderiam demonstrar a sua fé de maneira solene no culto público e a sua santidade

na vida privada”.14

Se por um lado, a lei cerimonial tinha a função de distinguir o povo escolhido

de Deus e proclamar a santidade do Senhor em oposição à imundícia dos demais

povos que eram idólatras e não faziam parte da aliança, por outro, através de

símbolos, sinais e rituais, seu propósito era ensinar a nação de Israel a aguardar a

vinda do Messias, a saber, Jesus Cristo, o sacrifício perfeito, por meio de quem todos

os tipos e sombras das realidades espirituais seriam reveladas e cumpridas por

completo. Tratando sobre isso, Calvino afirma:

A lei cerimonial teve valor pedagógico para os judeus, ensinando-os uma doutrina
elementar que o Senhor considerou oportuna para esse povo no tempo de sua infância,
até que viesse o tempo da plenitude, no qual ele manifestaria a realidade que estava
figurada em sombras.15

Podemos concluir, portanto, que quando Paulo critica os que estão vivendo sob

a lei no Novo Testamento, sua fala, na verdade, é contra aqueles que ainda

praticavam principalmente as leis cerimoniais como a circuncisão, os sacrifícios e ritos

religiosos, os quais haviam sido encerrados com a vinda de Jesus, nosso verdadeiro

sumo sacerdote, único e perfeito sacrifício. Também contra aqueles que submetiam-

13Toda a lei cerimonial pode ser encontrada nos livros de Êxodo, Levítico e Deuteronômio, sendo
Levítico o principal manual para os israelitas.

14 MEISTER, 2003, p. 49.

15 CALVINO, 2006, p. 466.


14

se sob a lei moral do Decálogo, como forma de obter a salvação, negando dessa

forma a suficiência da morte de Cristo e esquecendo-se que nada podem fazer para

alcançar justiça diante de Deus, por mais comprometidos e zelosos que sejam na

tentativa de cumprir os mandamentos.

2.2.3 Lei civil

Além das leis morais e cerimoniais, Deus deu ao povo de Israel, como um corpo

político, um conjunto de leis civis, cujo objetivo era regular a sociedade israelita e

apresentar os direitos e deveres de cada cidadão.

No que tange aos delitos e contravenções, por exemplo, aprouve ao Senhor

estabelecer os tipos de penalidades aplicáveis a várias situações. Como é o caso das

cidades de refúgio, estabelecidas em Israel para que alguém que tivesse cometido

homicídio involuntário, envolvido em algum acidente de qualquer natureza, tivesse a

oportunidade de um julgamento público antes de cair nas mãos do chamado “vingador

de sangue”.

Das cidades [...] que dareis aos levitas, seis haverá de refúgio, as quais dareis para
que, nelas, se acolha o homicida; além destas, lhes dareis quarenta e duas cidades.
[...] Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: Quando passardes o Jordão para a terra de
Canaã, escolhei para vós outros cidades que vos sirvam de refúgio, para que, nelas,
se acolha o homicida que matar alguém involuntariamente. Estas cidades vos serão
para refúgio do vingador de sangue, para que o homicida não morra antes de ser
apresentado perante a congregação para julgamento. (Nm 35.6,10-12).

Todavia, assim como as leis cerimoniais, vale dizer que essas leis civis não

estão mais em vigor para o povo de Deus hoje, nem para mais ninguém desde o tempo

de Cristo e da destruição da antiga nação judaica nos dias dos apóstolos.


15

Como a própria CFW afirma no parágrafo IV do capítulo XIX: “A esse povo

também, como um corpo político, Deus deu diversas leis judiciais que expiraram

juntamente com o estado desse povo, e que agora não obrigam a ninguém além do

requeira sua equidade geral”.

Um excelente resumo do que foi exposto, principalmente no que tange à

maneira como a lei ou não ser aplicada nos dias de hoje é apresentado por Solano

Portela em seu artigo “Pena de morte - uma avaliação teológica e confessional”:

Não estamos sob a lei civil de Israel, mas sob o período da graça de Deus, em que o
evangelho atinge todos os povos, raças, tribos e nações.
Não estamos sob a lei cerimonial de Israel, que apontava para o Messias, foi cumprida
em Cristo, e não nos prende sob nenhuma de suas ordenanças cerimoniais, uma vez
que estamos sob a graça do evangelho de Cristo, com acesso direto ao trono, pelo seu
Santo Espírito, sem a intermediação dos sacerdotes.
Não estamos sob a condenação da lei moral de Deus, se fomos resgatados pelo seu
sangue, mas nos achamos cobertos por sua graça.
Não estamos, portanto, sob a lei, mas sob a graça de Deus, nesses sentidos.
Entretanto, ainda estamos sob a lei moral de Deus, no sentido que que ela, resumida
nos Dez Mandamentos, representa a trilha traçada por Deus no processo de
santificação, efetivado pelo Espírito Santo em nossa pessoa (Jo 14.15). Nos dois
últimos aspectos, a própria lei moral de Deus é uma expressão de sua graça,
representando a objetiva e proposicional revelação de sua vontade. 16

2.3 TRÍPLICE USO DA LEI

É costume, na teologia, distinguir um tríplice uso da lei.

O primeiro uso da lei (Usus Theologicus) é o de evidenciar aos homens o quão

longe eles estão de alcançar o padrão divino de justiça - “ela adverte, informa,

convence, e por fim, condena cada homem da sua própria injustiça”. 17 A lei, nesse

16 PORTELA, Solano. A Pena Capital e a Lei de Deus. São Paulo: Os Puritanos, 2000, p.22-23.

17 CALVINO, 2006, p. 115.


16

caso, ao exibir a justiça divina e avultar a deplorável condição de pecado na qual o

homem encontra-se após a queda, cumpre seu propósito ao levá-lo, destituído de todo

orgulho e ciente da natureza pecaminosa que o torna indigno de qualquer favor da

parte de Deus, a buscar e aguardar ajuda de outro lugar à parte de si mesmo. No

caso, em Jesus Cristo, em quem a lei cumpriu-se integralmente e cuja justificação é

dada àqueles que com fé o recebem.

Tratando sobre este uso da lei, Calvino afirma:

“A lei é como um espelho. Nela contemplamos nossas fraquezas e a iniquidade que


delas provém, e, finalmente, a maldição que provém de ambas - exatamente como um
espelho nos mostra as manchas de nossa face. Porque quando a capacidade de seguir
a justiça lhe falta, o homem se enlameia com o pecado. Logo em seguida ao pecado
vem à maldição. Em consequência, quanto maior a transgressão da qual a lei nos
acusa, mais grave o julgamento do qual nos faz responsáveis. A declaração do
apóstolo é relevante nesse ponto: “... pela lei vem o pleno conhecimento do pecado”
(Rm. 3.20). Aqui ele aponta apenas para a primeira função, que os pecadores ainda
não regenerados experimentam. Relacionados a estas são as declarações: “Sobreveio
a lei para que avultasse a ofensa” (Rm. 5.20), e então é o “ministério da morte” (2Co
3.7) que “suscita a ira” (Rm 4.15) e mata. Não há dúvida de que quanto mais a
consciência é golpeada com a realidade do seu pecado, mas cresce a iniquidade.” 18

Nesse caso, ao fornecer a convicção do pecado, revelando aos homens o quão

longe estão seus desejos e atos do padrão estabelecido por Deus para os seres

criados a sua imagem e semelhança, haja vista o que o apóstolo Paulo afirma em

Romanos 7.7, este uso da lei não apenas rompe com qualquer possibilidade de

autojustificação, por mais generosa que seja a avaliação que alguém faz de sua

própria justiça, como também aumenta a gravidade do pecado.

Uma vez que ao conscientizar-se das ordenanças divinas, imediatamente

invalida-se a prerrogativa da ignorância da maneira que convém ou não ao homem

18 CALVINO, 2006. p. 118.


17

viver e escancara o completo descaso e consciente transgressão da lei de Deus por

parte dele.

Quanto a isso Lutero, em seu bem conhecido comentário sobre o livro de

Gálatas, declara que:

O uso e fim correto da lei, portanto, é nos acusar e condenar como culpados quando
vivemos em segurança, para que possamos ver a nós mesmos em perigo do pecado,
ira e morte eterna. A lei com esse ofício ajuda indiretamente na justificação, no fato de
direcionar o homem para a promessa da graça (sobre Gl. 2:17 e 3:19).

Contudo, apesar desse uso da lei ser em grande parte negativo em sua

descrição, visto que é por meio dele que o ser humano reconhece sua

pecaminosidade, é confrontado com sua condição caída, avessa aos princípios

divinos, e torna-se indesculpável diante de Deus, ele também tem uma função positiva

de conduzir o pecador a Jesus, por meio do reconhecimento da necessidade de um

redentor, que decorre de sua evidente incapacidade de agradar a Deus através da

obediência aos mandamentos.

Nesse sentido, essa função da lei também continua em vigor para os cristãos

de hoje, mostrando-lhes a necessidade de arrependimento e conversão. Ao passo

que é somente quando alguém abandona toda a confiança em si mesmo e reconhece

seu estado de absoluta falência espiritual, que ele de fato está pronto para entender

o maravilhoso plano da salvação e receber em suas mãos, suficientemente vazias e

destituídas de orgulho, o maior presente que existe: a vida eterna.

Referente a isso, Calvino afirma o seguinte:

Quanto ao proveito de implorar-lhe a graça da assistência, Agostinho se expressou


algumas vezes, como quando escreve a Hilário: “A lei ordena que, tentando nós
cumprir-lhe as injunções e fatigados em nossa fraqueza debaixo da lei, saibamos pedir
ajuda da graça.” De igual modo, a Asélio: “A utilidade da lei é que convença o homem
acerca de sua enfermidade e o compila a implorar o remédio da graça que está em
Cristo.” Também, a Inocêncio de Roma: “A lei ordena; a graça ministra o poder para
cumprir.” Ainda, a Valentino:154 “Deus ordena as coisas que não podemos, para que
18

saibamos o que lhe devamos pedir.” Então: “A lei foi dada para que vos fizesse
culpados; feitos culpados, temêsseis; temendo, buscásseis perdão e não vos fiásseis
em vossas próprias forças.” Ademais: “A lei foi dada para isto: que de grande pequeno
te fizesse; que te mostrasse que, de ti mesmo, não tens poder para a justiça; e assim,
pobre, necessitado e carente, recorras à graça.”19

De maneira diferente dessa dimensão basicamente pessoal no primeiro uso da

lei, o segundo uso de Calvino tem uma função mais social e civil, que é de promover

a ordem e restringir o pecado humano. Visto que, embora não possa mudar o coração

do homem, fazendo-o justo ou reto no obedecê-la, a lei divina também cumpre seu

propósito ao refrear e inibir as transgressões por meio de suas ameaças de

julgamento, principalmente quando apoiadas pelo código civil que executa os castigos

nos casos de transgressões comprovadas.

Segundo Calvino:

O segundo uso da lei é, por meio de suas terríveis denúncias e o conseqüente temor
da punição, refrear aqueles que, a menos que forçados, não teriam nenhum respeito
pela retidão e a justiça. Tais pessoas são contidas, não porque suas mentes sejam
internamente movidas e afetadas, mas porque, como se um freio fosse posto sobre
elas, refreiam suas mãos de atos externos, e internamente controlam a depravação
que de outra forma irromperia petulantemente (Institutes, 2.7.10). 20

Dessa forma, a lei garante certa ordem e preserva a sociedade do

comportamento perverso de homens ímpios, cruéis e orgulhosos, os quais têm sua

maldade e conduta errônea refreadas, não por submissão voluntária, mas por conta

do medo da punição que a lei sugere. Evitando assim, que as paixões da carne,

rebeldes e de outra sorte prontas a alastrar-se sem medida, corrompam os homens

de tal maneira que a vida em sociedade torne-se insustentável. Assim como em

Sodoma e Gomorra, cidades nas quais as ordenanças da lei foram por completo

19
CALVINO, 2006, p. 120.
20 Ibid., p. 121.
19

desprezadas e onde a todos tudo era permitido a tal ponto que a ira de Deus

manifestou-se contra suas transgressões no colapso progressivo da ordem social e

decência moral.

Segundo este ponto de vista, a lei pressupõe o pecado e é necessária por conta

deste, pois uma vez que entendemos que cada aspecto que faz do homem ser

realmente quem ele é foi corrompido pelo pecado, também é verdadeiro afirmar que

nada de bom provém de sua natureza caída a não ser o mal.

Contudo, embora este uso seja focado nos não-regenerados, sua função

também é de grande valia aos filhos de Deus, principalmente no que tange a sua vida

pregressa, a fim de que estes, antes de sua vocação e destituídos do Espírito de

santificação, não se esbaldem em sua insensatez e sejam, pelo temor da punição,

impedidos de cometer atrocidades.

Por fim, o terceiro e mais importante uso da lei é ensinar aos cristãos, em cujo

coração já vigora e reina o Espírito de Deus, a como viver de uma maneira agradável

ao Senhor. Servindo assim, segundo Calvino, como “o melhor instrumento mediante

o qual os crentes aprendem a cada dia qual é a vontade de Deus para sua vida”.21

Nesse sentido, esse uso da lei, diferente dos demais, só é válido aos

verdadeiros cristãos, os quais nasceram do alto e são governados pelo próprio Cristo,

uma vez que apenas aqueles cuja consciência é despertada e a vida é guiada pelo

Espírito Santo, é que podem conhecer com intimidade a vontade de Deus expressa

na sua lei, não mais como um fardo, uma mera obrigação ou “como se fosse um

21 CALVINO, 2006, p. 122-123.


20

carrasco à procura de nossas cabeças”, mas como uma dádiva, uma forma graciosa

do Senhor trazer vida e prosperidade aos seus eleitos.

Tratando sobre isso, Calvino exemplifica essa verdade com a figura de um

servo que, de todo o coração, empenha-se para servir seu senhor, mas para ainda

melhor servi-lo, precisa entender e conhecer melhor a quem serve. Assim, o crente,

procurando melhor servir a Cristo, empenha-se em conhecer a sua vontade revelada

de maneira clara e objetiva na lei.

A lei, portanto, ensina como Deus é, o que ele exige dos homens, e como eles

devem conduzir a vida segundo a sua vontade. Sendo uma parte necessária da vida

do homem. Ao passo que sem ela, estariam todos completamente perdidos,

procurando respostas em seu próprio coração enganoso. Quem sabe buscando

conhecer a vontade de Deus na pregação do pastor, no consenso eclesiástico, ou

mesmo em experiências místicas e subjetivas. Sem, contudo, encontrar a declaração

do desejo do Criador para a criatura e do desejo do Pai para seus filhos, prevista de

forma especial na lei do Senhor.

O que precisa ficar claro desses três usos da lei, que referem-se às maneiras

pelas quais a lei moral é usada para restringir o pecaminosidade (Usus Civilis),

convencer os pecadores da sua pecaminosidade (Usus Theologicus) e ensinar os

cristãos a como viver de uma maneira agradável ao Senhor (Tertium Usus Legis), é

que, embora a lei seja o meio pelo qual alcançamos uma vida virtuosa, a salvação

vem única e exclusivamente pela graça, fruto da bondade e amor de Deus. Assunto o

qual trataremos a seguir.


21

2.4 O QUE É GRAÇA?

Graça é um termo recheado de significados em nossa cultura, podendo referir-

se tanto a um pronome de tratamento reverente para duques, duquesas e arcebispos;

como para expressar aquilo que é divertido; um sentimento de estima em relação a

alguém; ou a característica de quem é engraçado.

Até mesmo na Bíblia, a palavra “graça” apresenta uma certa variedade de

definições. No Antigo Testamento, por exemplo, temos a palavra chen (adj. Chanun)

da raiz chanan, presente em alguns textos como Pv 22.11, e que remete não ao

significado mais comumente usado na teologia, mas à beleza, encanto e graciosidade.

Contudo, ainda que o termo nas Escrituras nem sempre seja empregado no

mesmo sentido, é válido afirmar que, de um modo geral, a graça está intrinsicamente

ligada ao excepcional e imerecido favor de Deus àqueles que ele escolheu. Dádiva

esta, que revelou-se por intermédio de Jesus Cristo e é vista mais claramente na

redenção e perdão dos pecadores, os quais não eram, não tinham e sequer mereciam

coisa alguma, se não o juízo divino e a condenação eterna.

Anulando, por conta da cruz de Cristo, toda e qualquer pretensão do homem

regenerado em auto justificar-se por intermédio de suas obras, das quais a mais nobre

delas ainda é por Deus considerada como um trapo de imundícias, e concedendo-lhe

a maior das bem-aventuranças que é, excluído da justiça das obras e vestido da

justiça de Cristo por meio da fé, apresentar-se ante o olhar de Deus não mais como

pecador, mas como justo.

Excluindo qualquer vestígio de orgulho, sufocando-o com o fato de nossa

justificação depender única e exclusivamente de Deus, e fazendo calar toda e


22

qualquer negociação do homem com o Senhor baseada em alguma contribuição de

sua parte nesse processo, antes mesmo que ela possa começar.

Nesse sentido, é válido afirmar que não há pré-requisitos na oferta da graça,

visto que todos são convidados e até mesmo o pior dos pecadores pode receber o

perdão de Deus e em Cristo alcançar a salvação.

2.5 GRAÇA COMUM E GRAÇA ESPECIAL

Cabe destacar também a clássica distinção que muitos dicionários e livros

teológicos trazem entre graça comum e graça especial, a graça que atinge toda raça

humana e a graça que Deus aplica sobre alguns. Haja vista que, enquanto a primeira

diz respeito à criação em geral e parte da ideia de que Deus é genuinamente

misericordioso até mesmo para com os pecadores não-eleitos, dando-lhes vida e boas

dádivas, como o raiar do sol todas as manhãs e as chuvas que caem sobre justos e

injustos; a graça especial é exclusiva aos eleitos e refere-se ao meio usado por Deus

para a salvação de sua igreja, a saber, aqueles os quais de antemão escolheu e

predestinou antes da fundação do mundo.

Por conseguinte, pode-se dizer que a graça especial não apenas remove a

culpa e penalidade do pecado, muda a vida interior do homem, como também

gradativamente o purifica da corrupção do pecado e o move para o trabalho e

efetivação do chamado cristão, pela ação sobrenatural do Espírito Santo.

No livro de Atos, Lucas menciona aqueles que “mediante a graça, haviam crido” (At
18.27; cf. Gl 1.15; Ef 2.5,8); pela graça os crentes são justificados (Rm 3.24; 5.18; Tt
3.7); Paulo explica, em Romanos 4, que Abraão recebeu a promessa da herança da
23

terra pela fé, segundo a graça (Rm 4.13-17) e que a Escritura “preanunciou o evangelho
a Abraão” (Gl 3.8); a eleição é segundo a graça (Rm 11.5); os dons são dados segundo
a graça (Rm 12.6; Ef 4.7); pela graça, o crente exerce o ministério que lhe é dado por
Deus (1Co 3.10; 15.10); não há nada positivo que o crente faça que não seja movido
pela graça de Deus operando em sua vida; somos dependentes da graça em tudo. 22

Nesse sentido, ela difere-se ainda mais da graça comum, ao passo que esta

não remove a culpa do pecado e, portanto, não traz perdão; e não suspende a

sentença de condenação, mas unicamente adia a sua execução. Tendo em vista os

benefícios que fluem para a humanidade em geral provenientes da morte de Cristo,

benefícios não somente espirituais e salvíficos, como a salvação, justificação e

adoção, os quais são destinados exclusivamente aos eleitos; mas bençãos materiais,

resultado do cuidado e providência de Deus sobre toda a criação, das quais os

descrentes também fazem parte.

Em geral, quando falamos de “graça comum”, temos em mente, ou (a) as operações


gerais do Espírito Santo pelas quais Ele, sem renovar o coração, exerce tal influência
sobre o homem por meio da Sua revelação geral ou especial, que o pecado sofre
restrição, a ordem é mantida na vida social, e a justiça civil é promovida; ou (b) as
bênçãos gerais, como a chuva e o sol, a água e alimento, roupa e abrigo, que Deus dá
a todos os homens indiscriminadamente, onde e quanto lhe parece bom faze-lo.23

Merece consideração também o refreamento do pecado por meio da graça

comum, a qual, direta e indiretamente, cumpre seu propósito ao interromper o curso

do pecado a fim de evitar a completa aniquilação da humanidade, o que naturalmente

22 MEISTER, 2003, p. 27.

23BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Tradução de Odayr Olivetti. São Paulo: Cultura Cristã,
2009, p. 432.
24

teria acontecido, caso os pecadores fossem entregues a sua própria sorte, como pode

ser inferido do que foi visto nos dias anteriores ao dilúvio.

Nesse sentido, a graça comum serve aos propósitos de Deus não apenas

concedendo boas dádivas aos ímpios, réprobos e incrédulos, mas refreando o

processo de corrupção do mundo, o qual foi devastado pelo pecado, e sem a

intervenção divina, teria se tornado um deserto estéril, bem como o homem, distante

do Senhor e alheio a tudo de bom que provém dele, teria se tornado uma besta ou um

diabo. Sendo, por conseguinte, uma expressão da providência de Deus pela qual ele

é glorificado como Criador. Ao passo que Abraham Kuyper afirma o seguinte:

Deus, por meio da sua “graça comum”, restringe a operação do pecado no homem, em
parte quebrando seu poder, em parte domando seu espírito mal[sic], e em parte
domesticando sua nação ou sua família. Assim, a graça comum tem levado ao
resultado de que um pecador não regenerado pode cativar-nos e atrair-nos pelo que é
nele belo e cheio de energia, exatamente como acontece com nossos animais
domésticos, mas isto certamente à maneira do homem. A natureza do pecado, contudo,
permanece tão venenosa quanto era.24

Em situação semelhante relata Berkohf:

Afinal, se Cristo devia salvar uma raça eleita, era necessário que Deus exercesse
paciência, detivesse o curso do mal, promovesse o desenvolvimento das faculdades
naturais do homem, mantivesse vivo nos corações dos homens o desejo de manter a
justiça civil, a moralidade exterior e a boa ordem na sociedade, e derramasse
incontáveis bênçãos sobre a humanidade em geral. 25

Sendo assim, é válido afirmar que os propósitos de Deus na graça comum

visam primária e diretamente, não às bençãos concedidas indiscriminadamente à

humanidade, mas, sim, à preservação do mundo no qual estão inseridos os eleitos,

24 KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2019, p. 130.

25
BERKHOF, 2009, p. 404.
25

os que já foram salvos e os que ainda serão, por intermédio da obra redentora de

Jesus Cristo.

Caso contrário, já teria a raça humana sido sucumbida a sua própria

depravação e insensatez, causa de toda desordem, desarmonia e disfunção que

reinam sobre esse mundo caído. Uma vez que tudo que o homem natural recebe, fora

a maldição e a morte, é resultado indireto da paciência e da bondade divinas. De modo

que:

É a graça comum que fornece não apenas a esfera sobre a qual, mas também o
material a partir do qual, o edifício bem ajustado pode crescer num templo santo no
Senhor. É a raça humana preservada por Deus, dotada de diversos dons por Deus,
num mundo sustentado e enriquecido por Deus, subsistindo por meio de várias
perseguições e campos de labor, que provê os sujeitos para a graça redentiva e
regeradora. Para concluir, a graça comum provê a esfera de operação da graça
especial e a graça especial, portanto, fornece uma lógica da graça comum.26

Por fim, vale destacar que um dos maiores perigos da pregação do evangelho

é o de se oferecer ao mundo a salvação em Cristo sem o esclarecimento da

necessidade de um compromisso com Deus. Se por um lado, temos o anúncio de uma

graça barata e teórica, carente do poder transformador do evangelho, por outro, existe

um mal tão nocivo quanto, que é um cristianismo legalista, agarrado a tradições, leis

e regras que nada tem a ver com a mensagem bíblica.

É o que veremos no próximo capítulo, focado justamente em entender melhor

quais são os erros mais comuns encontrados na igreja, frutos da incompreensão do

papel da lei de Deus debaixo da sua graça.

26REYMOND, Robert. A New Systematic Theology of the Christian Faith. Nashville, TN: Thomas
Nelson, 1998, p. 403.
26

3 AS CONFUSÕES E OS EXTREMOS

Ao longo dos séculos, muitas pessoas interpretaram essas verdades sobre a

relação entre a lei e a graça de Deus de maneira equivocada e, de um modo geral,

caíram tanto no extremo do legalismo ou do antinomismo.

Os apóstolos denunciaram e lutaram contra ambos, e considerando que tais

atitudes pontuaram toda a história da Igreja e se fazem presentes ainda hoje no meio

evangélico, convém entendê-las, para delas nos afastarmos.

3.1 LEGALISMO

O legalismo pode ser entendido, basicamente, como a tendência de enfatizar e

fomentar confiança na lei em detrimento da graça, como se por meio dela o homem

pudesse ser salvo e justificado. É a busca do favor divino pelos esforços humanos e

a distorção tanto do amor de Deus quanto da obediência requerida pelas Escrituras

àqueles que vivem debaixo e tão somente debaixo da graça.

Ao definir o que é legalismo, J. I. Packer apresenta três falhas concernentes a

esta linha de pensamento. Segundo ele:

O legalismo é uma distorção da obediência que jamais pode verdadeiramente produzir


boas obras. Sua primeira falha é que ele distorce motivos e propósitos, vendo as boas
obras essencialmente como meios para obter mais do favor de Deus do que se obtém
no momento. Sua segunda falha é a arrogância. A crença de que o trabalho de alguém
conquista o favor de Deus provoca desrespeito àqueles que não trabalham da mesma
forma. Sua terceira falha é o desamor no sentido que seu propósito de autopromoção
oprime a bondade humilde e a compaixão criativa que emanam do coração. 27

27PACKER, J. I. Teologia Concisa: Um Guia de Estudo das Doutrinas Cristãs Históricas. São
Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 153.
27

R. C. Sproul, com sua costumeira precisão prática, também segue na mesma

direção ao afirmar que:

O legalista isola a lei do Deus que deu a lei. Não procura tanto obedecer a Deus e
honrar a Cristo, quanto procura obedecer a regras destituídas de qualquer
relacionamento pessoal. Não há amor, alegria, vida ou paixão. É uma forma mecânica
e automática de guardar a lei, que chamamos de externalismo. O legalismo se focaliza
apenas em obedecer a normas, destruindo o contexto mais amplo de amor e redenção
de Deus, no qual ele deu a sua lei.28

Um exemplo desse espírito legalista pode facilmente ser encontrado na figura

dos fariseus, os quais, por serem honrados pelos homens devido a sua observância

às obrigações da lei, acreditavam ser merecedores não apenas da vida eterna, mas

do reconhecimento e galardões divinos.

Visto que o nome “fariseu” é derivado do hebraico “parush”, que significa

separado, era uma característica dos fariseus separarem a si mesmos de qualquer

pessoa que não guardava os mandamentos. “Em sua essência, o farisaísmo era um

‘movimento de santidade’ conservador. Assim, o fariseu era um homem

profundamente habilitado em questões de santidade pessoal e religiosa no que diz

respeito aos detalhes da vida”.29 De modo que investir no cumprimento das obras

prescritas pela lei tornou-se para eles, não apenas um meio pelo qual conquistavam

o favor divino, mas uma forma de colocar-se acima de todos aqueles que não agiam

como eles.

Ressaltando, com isso, um dos maiores e mais letais perigos da prática

legalista, que é o orgulho, a profunda raiz do pecado em todos nós, manifesto a partir

28SPROUL, R. C. Como Posso Desenvolver uma Consciência Cristã? São José dos Campos, SP:
Fiel, 2014, p. 40–41.
29FERGUSON, Sinclair B. Somente Cristo: legalismo, antinomismo e a certeza do evangelho. São
Paulo: Vida Nova, 2019, p. 148.
28

do momento em que o homem começa a achar que sua aceitação diante de Deus é

resultado de seu esforço em seguir uma lista de regras. Ao passo que, “quem é mais

disciplinado, ou tem gostos mais condizentes com as práticas das leis eclesiásticas,

conclui que é mais santo”.30

Nada mais distante das verdades bíblicas. Nada mais contrário à intenção de

nosso Soberano Criador e Redentor, que gratuitamente nos deu a sua lei, não para

que atribuíssemos a nós qualquer mérito proveniente ao cumpri-la, mas para que

conhecêssemos a sua vontade, tanto nos seus aspectos temporais do Antigo

Testamento, como no aspecto permanente de sua lei moral.

Fato é que o legalismo tem muitas faces. Às vezes ele se manifesta em nosso

serviço a Deus. No momento em que ficamos incomodados quando outros (com

menos dons, menos experiência, menos preparo) recebem cargos na igreja, e nós

somos ignorados. Muito provavelmente, porque no fundo ainda pensamos que a graça

deve sempre agir segundo o princípio do mérito, como recompensa ou, pelo menos,

reconhecimento de nosso serviço fiel. Em outras ocasiões, ele fica exposto nas

motivações que estão por trás da nossa obediência. Nas palavras de John Colquhoun:

Quando um indivíduo é levado a atos de obediência pelo pavor da ira de Deus revelada
na lei, e não atraído por eles nem por acreditar no amor divino revelado no evangelho;
quando ele teme a Deus por causa de seu poder e justiça, e não em decorrência de
sua bondade; quando considera Deus mais como um juiz vingativo do que como amigo
e pai compassivo; e quando contempla a Deus mais como uma pessoa de majestade
aterradora do que alguém cuja graça e misericórdia são infinitas, esse indivíduo revela
estar sob o domínio, ou pelo menos sob a prevalência de um espírito legalista. [...] Ele
revela estar sob a influência desse temperamento odioso [...] quando sua esperança
da misericórdia divina é aumentada pelo dinamismo no desempenho de seus deveres
e não pelas descobertas advindas da liberdade e das riquezas da graça redentora que
lhe é oferecida no evangelho; ou quando ele espera a vida eterna não como dádiva de
Deus mediante Jesus Cristo, mas como recompensa divina por sua obediência e
sofrimento; nessas condições, o indivíduo demonstra estar claramente sob o poder de
um espírito legalista.31

30 SHEDD, Russell. Lei, graça e santificação. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 52.

31 COLQUHOUN, John. A treatise on the law and gospel. Morgan: Soli Deo Gloria, 1999, p. 143.
29

E quanto a isso, vale também a citação de um dos mais notáveis pregadores

da antiguidade, João Crisóstomo, que em seu comentário sobre o livro de Gálatas,

declara que:

“Se a lei, sendo nosso aio, nos encerra debaixo dela, não é um adversário, mas um
colaborador da graça. Mas se, após a chegada da graça ela continua a nos subjugar,
torna-se um adversário, porque restringe os que deveriam progredir para a graça, e
destrói, consequentemente, a nossa salvação. Se a vela que à noite nos guardou,
quando chegasse o dia, nos guardasse do sol, então ela deixaria de nos beneficiar;
mais que isso, ela nos prejudicaria. Assim faz também a lei, quando se interpõe entre
nós e os benefícios maiores. Então os maiores traidores da lei são aqueles que ainda
guardam, tal como o aio que torna ridícula a situação do jovem, ao retê-lo junto a si
quando já chegou a hora de sua ida”. 32

Além do orgulho, ainda existe outro grande perigo no legalismo que é o de

pensar que alguém obtém a salvação pela graça e a mantém pela lei. Aliás, é por

conta desse pensamento, disseminado pelos judaizantes da época, outra classe

regida pelo legalismo, que o apóstolo Paulo repreende os cristãos da Galácia, os

quais, devido a ênfase na necessidade da circuncisão, estavam fazendo da lei um

acréscimo à obra redentora de Cristo. De tal modo que Paulo veemente contesta,

dizendo: “Eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos

aproveitará” (Gl 5.2).

Mostrando-lhes, assim, que qualquer “mais” que requeira de nós uma tomada

de decisão para acrescentar algo ao que nos foi dado gratuitamente por Jesus é um

verdadeiro insulto a sua Pessoa. Dentro desse contexto, John Colquhoun tece um

comentário perspicaz:

Um indivíduo deve ser considerado legalista ou alguém que conta com a justiça própria
se, apesar de não alegar uma perfeita obediência, mesmo assim confiar que ela pode
lhe dar algum direito na vida. Em todas as épocas, indivíduos que confiam na justiça
própria consideram impossível cumprir aquela condição da aliança das obras imposta

32
SHEDD, 2008, p. 22.
30

por Deus a Adão e configuram para si mesmos diversos modelos de aliança que,
embora estejam longe de ser instituições divinas e se baseiem em condições aquém
da perfeita obediência, mesmo assim têm a natureza da aliança das obras. Os judeus
que não criam e procuravam ser justos pelas obras da lei não eram tão ignorantes a
ponto de alegar uma obediência perfeita. O mesmo se pode dizer dos cristãos na
Galácia que desejavam estar debaixo da lei e ser justificados pela lei, sobre os quais o
apóstolo testemunhou terem “caído da graça” (Gl 5.4); eles também não afirmavam
viver em perfeita obediência.
Pelo contrário, a profissão de fé cristã pública que eles faziam revelava possuírem
algum senso de necessidade da justiça de Cristo. Mas o grande erro que eles cometiam
é que não criam que a justiça de Jesus Cristo por si mesma era suficiente para lhes dar
o direito à justificação da vida; portanto, para terem direito a essa justificação, eles
dependiam parcialmente de sua própria obediência à lei moral e cerimonial. Era isso,
e não suas alegações de obediência perfeita, que o apóstolo tinha em mente quando
os criticou por se apegarem à lei das obras e esperar a justificação pelas obras da lei.
Ao confiar parcialmente que poderiam ser justificados com base em suas próprias
obras de obediência às leis morais e cerimoniais, eles, conforme lhes diz o apóstolo,
haviam caído da graça; Cristo não mais tinha efeito para eles. Eles estavam “em débito
com toda a lei” (Gl 5.3,4).33

Em termos gerais, o que Paulo queria deixar claro aos gálatas é que, embora

a lei seja norma de vida para os crentes e expressão da graça e bondade de Deus,

ela jamais deve ser usada como “instrumento de santificação”, tampouco para a

salvação de quem quer que seja. Haja vista que agir dessa maneira não apenas

distorce a função que a lei exerce dentro da Nova Aliança, como nega a toda suficiente

graça revelada em Jesus Cristo.

Por conseguinte, se uma pessoa faz um uso errado da lei, sendo este farisaico,

o uso indevido não pode ser imputado como demérito à lei, visto que a própria nunca

intentou ser uma via soteriológica independente da substituição vicária de Cristo.

Bahnsen, um importante teólogo que se propôs a estudar a relação entre a lei

e o graça, além de ter escrito uma grande obra sobre o assunto, diz:

“A administração da lei da antiga aliança (ou a própria administração mosaica) não

ofereceu uma forma de salvação nem tampouco ensinou uma mensagem de

justificação que difere daquela encontrada no evangelho da nova aliança. Ao

33 COLQUHOUN, 1999, p. 18.


31

reconhecer que diante de Deus ninguém podia ser justificado (Sl 143.2), a antiga

aliança prometeu justificação fundamentada no nome: ‘O SENHOR é a Nossa Justiça’

(Jr 23.6).”

Desse modo, ao invés de enriquecer nossa relação com Deus, o legalismo, em

todas as suas formas, faz o completo oposto. Colocando em risco essa relação,

impedindo-nos de focalizar Cristo como único e suficiente meio de salvação e

enfraquecendo nossas almas, enquanto alimenta nosso orgulho.

Vale ressaltar também que, embora seja natural professarmos que não

confiamos em nossa própria justiça, nem sempre é realmente fácil nos despojarmos

de toda confiança na nossa suposta excelência. Vez ou outra, mesmo aqueles que

afirmam que a salvação vem pela graça e não por obras, podem sucumbir à mesma

tentação que caíram os fariseus, de achar que o favor divino pode ser alcançado pelos

esforços humanos. Pensamento este, que ao invés de libertar os cristãos elevando-

os à confiança mediante à certeza de que foram justificados pela justiça de Cristo,

apenas mantém sua consciência num profundo jugo de escravidão. Visto que ao

sentirem-se confusos, culpados, fracassados e envergonhados por não cumprirem

com as exigências da lei, não desfrutam do perdão de pecados obtidos por Cristo,

vivendo sem conhecer a verdadeira libertação.

Sinclair B. Ferguson, ao tratar sobre os efeitos nocivos do pensamento legalista

no meio cristão, declara:

O legalismo tem condições de afetar a alma de tal forma que ela pode se aproximar e
depois se desviar da graça de Deus no evangelho. Se estiver presente especificamente
32

em alguém que desenvolve um ministério pastoral e de pregação, o legalismo pode se


multiplicar e se transformar em uma pandemia dentro da igreja.34

Apenas a graça, alicerçada no amor e comunhão com nosso Senhor e Salvador

Jesus Cristo, é capaz de combater a indiferença que a religião legalista produz. Para

isso, no entanto, é extremamente importante que entendamos que aquilo que a lei não

tinha condições de fazer, por causa da fraqueza de nossa carne, Deus fez por nós.

Só assim poderemos, libertos de uma disposição de espírito regida pela escravidão,

amar a lei sem tentar guardá-la para sua justificação diante dele.

J. Gresham Machen, famoso teólogo norte-americano, escreveu em 1946 a

respeito dessa relação: “Assim sempre é: uma visão pequena da lei sempre traz o

legalismo à religião; uma visão ampla da lei faz do homem um que busque a graça.

Queira Deus que essa visão ampla possa novamente prevalecer”.35

O legalismo, portanto, é uma abordagem desequilibrada das Escrituras em seu

entendimento da relação entre lei e graça. Na próxima seção veremos outro

desequilíbrio, o extremo oposto, o antinomismo.

3.2 ANTINOMISMO

Se devemos tomar cuidado com o legalismo, a fim de não excluir a graça de

Deus, também existe um outro perigo que precisamos ter o mesmo cuidado, que é o

antinomismo, uma velha heresia contra a qual Judas e Pedro escreveram (Jd 4-19;

34 FERGUSON, 2019, p. 96.

35 MACHEN, J. Gresham. What is faith? Edinburgo: Banner of Truth, 1946, p. 142.


33

2Pd 2). Conhecida, principalmente, pela compreensão de que a graça exclui a lei, a

qual não tem qualquer papel a exercer na vida do cristão, devendo ser totalmente

rejeitada.

O termo antinomismo vem do grego “anti” (contra) e “nomos” (lei), e é sinônimo

do vocábulo “libertinagem”. Referindo-se, portanto, a todos aqueles que pensam que

a graça é tão abrangente que todo esforço para fazer o que Deus manda é

desnecessário. Pensamento este, o qual assume como fio condutor a ideia

sobremodo equivocada de que é totalmente possível relacionar-se com Deus sem

obedecer à sua Palavra, e desprezando sua lei moral.

Ao longo da História, o antinomismo tomou várias formas e teve diferentes

expressões. Sproul fala em antinomianismo libertino; espiritualista gnóstico e

situacionista, o qual nega e relativiza a lei de Deus em nome da lei do amor.36 J. I.

Packer, por outro lado, apresenta mais tipos, distinguindo-os como: antinomianismo

dualístico; centrado no Espírito; centrado em Cristo; dispensacionalista; dialético e

situacional.37

A versão contra a qual Judas e Pedro escreveram enfatiza que a salvação é

somente para alma e não importa o que fazemos com o nosso corpo em nossas ações

e comportamento. Segundo esse pensamento, também conhecido como antinomismo

dualístico, uma vez que o comportamento físico não tem qualquer relevância, tanto

para o relacionamento com Deus quanto para a saúde da alma, as transgressões

físicas da lei, como por exemplo os pecados sexuais, são perfeitamente aceitáveis.

36 SPROUL, 2014, p. 47.

37 PACKER, 1999, p. 155-156.


34

Outra forte expressão do antinomismo apareceu no primeiro século da era

cristã com Marcião, o qual apresentou uma aversão extrema a qualquer ensino ou

opinião positiva do Antigo Testamento e influenciou a muitos com seu ensino de que

a lei opunha-se à graça de Cristo, por meio do qual fora estabelecida uma nova

relação com os homens.

Séculos depois, mesmo o grande reformador Martinho Lutero preocupou-se em

combater essa heresia, a qual sutilmente influenciava o pensamento de alguns de

seus seguidores, que no afã de proclamar a graça, antes desprezada pela igreja

romana, acabaram por desprezar a lei. Um desses foi João Agrícola (1492-1566), que

na busca de um princípio eficaz pelo qual pudesse combater a doutrina da salvação

pelas obras, negou que o crente precisasse cumprir a lei moral.38

Ao longo dos séculos, principalmente depois da Reforma, sucederam-se

diversas ondas de antinomismo, de diferentes tipos e graus. Um das expressões deste

pensamento é o antinomismo centrado no Espírito que, pela ênfase exacerbada na

ação do Espírito Santo, acaba por rejeitar a necessidade do cristão ser instruído pela

lei quanto ao seu modo de viver. Nesse caso, a liberdade do jugo da lei torna-se

sinônimo de libertação da lei como guia de conduta. Esse tipo de antinomismo tornou-

se comum nos primeiros cento e cinquenta anos da Reforma. Todavia, a insistência

de Paulo em mostrar que o verdadeiro cristão reconhece a autoridade da Palavra de

Deus (1Co 14.37), “sugere que a igreja de Corinto, obcecada pelo Espírito, estava sob

o domínio da mesma obstinação”.39

38 KEVAN, Ernest. The Grace of the Law: A Study of Puritan Theology. Grand Rapids: Baker Book
House, 1976. p. 23.
39
PACKER, 1999, p. 155.
35

Outro tipo de antinomismo que ciclicamente aparece nos meios evangélicos é

o antinomismo centrado em Cristo, que argumenta que, pelo fato dos cristãos estarem

em Cristo, aquele que observou a lei em seu lugar, eles têm toda a liberdade de adotar

o pecado como modo de vida, desde que a fé permaneça.

De fato, por causa de Cristo, o homem regenerado é livre e de acordo com

Romanos 8.1, sobre ele não há mais nenhuma condenação. Essa liberdade, no

entanto, não dá direito ao regenerado para ele fazer o que bem quiser. A tese de que

“liberdade é agir conforme a consciência” é inteiramente falsa, visto que Cristo não

libertou os eleitos de Deus para serem pessoas sem limites e princípios, mas para a

responsabilidade, para o desenvolvimento do caráter cristão e para glorificação de

Deus por meio de uma obediência filial.

Se por um lado, aquele que tem sua vontade escravizada por Satanás,

constantemente é dirigido para o mal, que mais e mais o afasta de Deus, sem que

este tome consciência de sua escravidão. O crente regenerado, no entanto, é

diferente e age conforme as orientações e vontade divinas por intermédio do

direcionamento das Escrituras e da ação interna do Espírito Santo.

Dentre as muitas faces do antinomismo, encontramos também o antinomismo

dispensacional, o qual sustenta a ideia de que, tendo em vista que vivemos sob a

dispensação da graça e não da lei, não é mais necessário, em nível algum, que os

cristãos continuem guardando a lei moral. No entanto, passagens como Rm 3.31 e Tg

2.8-13 mostram claramente o oposto, ao afirmar que a observância da lei continua

sendo uma obrigação dos cristãos. Tratando sobre esse tipo de antinomismo, Meister

comenta que:

Essa forma de abordagem surgiu no século passado caracterizando a lei como meio
de salvação no período mosaico e o evangelho na dispensação do evangelho. Uma
36

vez que vivemos na dispensação da graça, a dispensação da lei é passada e, portanto,


seu papel é irrelevante. Esse tipo de ensino é incapaz de verificar que ao mesmo tempo
em que existe uma distinção entre lei e graça, as duas estão unidas debaixo de um
mesmo pacto. Esse é, possivelmente, o movimento que mais influência exerce na
interpretação do papel da lei e da graça entre os evangélicos ao redor do mundo hoje. 40

Existe ainda o antinomismo dialético, o qual nega que a lei bíblica seja uma

ordem direta de Deus. Antes, afirma que a “Palavra do Espírito” é que deve confirmar

se as declarações imperativas da Bíblia correspondem ou não ao que está escrito.

Bem como argumenta J. I. Packer: “É evidente aqui a impossibilidade de adequação

da visão neo-ortodoxa da autoridade bíblica, que explica a inspiração da Escritura, em

termos de instrumentalidade da Bíblia como canal para os pronunciamentos de Deus

a seu povo na atualidade”.41

Uma das faces modernas do antinomismo, e também uma das mais influentes

nos dias de hoje, é o antinomismo situacionista, “que descreve toda uma geração de

cristãos que afirma que o amor deve motivar toda a nossa prática e esse é superior à

lei escrita.”42Para os que defendem este ponto de vista, uma vez que o amor está

acima da lei, o que o cristão faz não interessa, não faz diferença, desde que a

motivação seja norteada por esse princípio.

O problema é que, ao considerarem que a lei não tem mais qualquer papel

determinante na ética cristã, as consequências dessa conclusão manifestam-se,

principalmente, na evaporação do sentido do pecado, na negação dos absolutos e na

40
MEISTER, 2003, p. 80.

41
PACKER, 1999, p. 156.

42
MEISTER,op. cit., p. 81.
37

relativização de princípios morais, os quais jamais, de modo algum, deveriam

desassociar-se da igreja de Cristo. Segundo R. C. Sproul:

Esta filosofia foi desenvolvida por Joseph Fletcher. Ele procurou fazer do amor a norma
mais elevada sobre todas as outras. Tentando achar um meio termo entre os dois
perigos de legalismo e antinomianismo, Fletcher declarou que o único absoluto era a
lei absoluta do amor. Todas as outras leis, disse ele, estão sujeitas à lei do amor e
devem ser quebradas, se um curso de ação melhor e mais amável for encontrado. Ele
queria achar o melhor resultado de determinada situação ao sustentar a lei do amor.
Pode até parecer nobre e bom, mas este ponto de vista tem problemas. Nunca
devemos dizer que as outras leis das Escrituras são negociáveis e redutíveis a um
ponto de vista mal formulado a respeito do amor. Fletcher disse que devemos fazer o
que parece certo em determinada situação. Devemos fazer o que o amor exige que
façamos. Mas a Bíblia não diz o que o amor parece ser; em vez disso, ela define o que
é o amor.43

Tomemos por exemplo a questão do divórcio, cada vez mais comum até

mesmo entre o povo evangélico. Segundo a ética situacionista, independente do que

as Escrituras nos ensinam e instruem acerca do casamento, se viver com alguém me

faz infeliz, o princípio do amor é que deve prevalecer e a separação é o remédio

indicado.

Semelhante abordagem acontece com a questão do homossexualismo. Visto

que na perspectiva antinomista situacionista, tal prática deixa de ser considerada

pecado, ou mesmo torna-se um pecado aceitável. Única e exclusivamente por conta

da lei do amor, que acaba por negar a lei de Deus ao estabelecer-se como princípio

norteador de toda prática e ética cristã. O comentário de Mauro Meister sobre esta

cosmovisão sobremodo libertina é pertinente aqui:

Não é de se admirar que nossa sociedade tenha chegado aos níveis de imoralidade
que temos hoje de forma tão descarada, quando aqueles que supostamente deveriam
lutar pela preservação dos valores morais ensinados nas Escrituras se voltaram contra
eles. Tudo isso fruto da falta de entendimento da relação entre a lei e a graça de Deus.44

43
SPROUL, 2014, p. 52.
44
MEISTER, 2003, p. 83.
38

Para não cair nesse perigo, é preciso, portanto, entender que apesar de termos

sido alcançados pela graça, a lei ainda constitui uma parte inalienável da nova aliança,

posto que manifesta a vontade de um Deus gracioso, o qual, depois de reconciliar

consigo seu povo desobediente e ingrato, deve ser reconhecido num relacionamento

pessoal vivo por meio da obediência às exigências de seu caráter e vontade.

Em outras palavras, não é pelo fato do cumprimento da lei em si não contribuir

para a salvação, que deve-se cultivar a impressão de que a lei não é santa, justa e

boa, ou mesmo, que não tem relevância na vida daqueles que foram regenerados por

Cristo. Sobre este ponto o apóstolo Paulo é muito enfático quando argumenta aos

romanos sobre o poder da lei designada por Deus: “Que diremos, pois?

Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante?” (Rm 6.1).

É verdade que o amor de Deus por nós não se baseia em nossa aptidão ou

capacidade de cumprirmos a sua vontade. Todavia acreditar que nosso

relacionamento com Cristo não muda em nada nossas ações, escolhas de vida e

mentalidade, nada mais é do que uma completa distorção, não apenas da graça de

Deus, mas do caráter do próprio Deus, o qual nunca, nem jamais pretendeu que

permanecêssemos no estado em que fomos achados, mas que a cada dia fossemos

transformados à imagem de seu Filho Jesus Cristo. Ao passo que, sem essa

transformação e sem essa nova conformidade de vida, não há nem sinal de que algum

dia tenhamos pertencido a ele.


39

4 RESGATANDO A VISÃO BÍBLICA

A lei nos foi dada pelo Senhor para nos ensinar a justiça perfeita, e que nela nenhuma
outra justiça nos é ensinada, senão a que nos manda regrar-nos pela vontade de Deus
e conformar-nos a ela. Assim, inutilmente imaginamos novas formas de obras para
obter a graça de Deus, sendo que o único serviço legítimo que se lhe pode prestar é a
obediência.45

Diante do que vimos até aqui, após conhecermos um pouco dos extremos e

controvérsias decorrentes do papel da lei e da obediência na vida cristã, neste terceiro

capítulo pretendemos olhar para a visão bíblica dessa relação, no que diz respeito à

doutrina da lei e graça e de uma maneira prática, responder à pergunta: “Para que

serve, então, a lei, se vivemos na era da graça?”

4.1 PONTO DE EQUILÍBRIO

Aqui chegamos a uma questão central em toda a nossa abordagem: Se Cristo

nos remiu de toda lei, submetendo-se a ela e satisfazendo suas exigências em nosso

lugar, qual, pois, é a razão de ser da lei em nossos dias?

Não há como negar que, uma vez santificados pelo Espírito e aceitos na

presença de Deus através da obra de Cristo, não estamos mais debaixo da lei como

um pacto de vida, e sim da benignidade imerecida de Deus (Rm 3.19; 6.14,15; Gl

3.23-25). Todavia, ainda que aparentemente essa seja a conclusão mais óbvia, isso

não significa que não devamos mais obediência ao ensino da lei, a qual, segundo

Calvino, permanece sendo a norma eterna de uma vida agradável e santa.46

45
CALVINO, 2006, p. 167.
46
CALVINO, 2010, p. 136.
40

O parágrafo VII, do capítulo XIX da CFW afirma: “os supracitados usos da lei

não são contrários à graça do evangelho, mas suavemente condiz com ela, pois o

Espírito de Cristo submete e habilita a vontade do homem a fazer livre e alegremente

aquilo que a vontade de Deus, revelada na lei, requer que se faça.”

O apóstolo Paulo entendia isso quando escreveu: “É, porventura, a lei contrária

às promessas de Deus? De modo nenhum! Porque, se fosse promulgada uma lei que

pudesse dar vida, a justiça, na verdade, seria procedente da lei.” (Gálatas 3.21).

Se a lei pudesse declarar alguém justo, de modo a dar direito à vida prometida,

mesmo para aqueles que quebraram seus mandamentos, ou então pudesse ser

satisfeita mediante o cumprimento estrito de deveres externos e uma rigorosa rotina

que os homens adotassem a partir de suas próprias competências, então, de fato, a

justificação seria por obras e não haveria necessidade de qualquer outra provisão para

a salvação. Porém, visto que a lei não faz concessões, tampouco pode diminuir suas

exigências, a justificação por meio da lei é absolutamente impossível para os

pecadores.

A mesma verdade é ensinada de uma forma diferente, quando é dito: “Se a

justiça provém da lei, segue-se que Cristo morreu debalde” (Gálatas 2.21). Porquanto,

embora a lei seja santa, justa e boa e mostre o tipo de vida que agrada a Deus (Lv

18.5; Rm 7.10), ao exigir nada menos do que a perfeita obediência a todos os

mandamentos, não pode nem jamais poderia conceder vida e libertar os pecadores

de sua própria condenação. “Todo homem, portanto, que espera justificação por obras
41

deve cuidar, não para ser melhor que outros homens, ou para ser muito generoso, ou

para jejuar duas vezes na semana, [...] mas para que seja sem pecado”.47

Diante disso, e tendo em vista nossa condição de miseráveis pecadores,

carentes da glória de Deus e incapazes de abster-se do mal, resta apenas que,

destituídos de nossa própria justiça, nos rendamos e entreguemos nossa vida a Cristo,

que sendo santo, justo e inocente, fez-se maldição por nós, levou sobre si as nossas

iniquidades e foi tratado como pecador em nosso lugar, para que nele fossemos feitos

justos. Este é o evangelho da graça de Deus! Este é o evangelho que “é escândalo

para os judeus, e loucura para os gregos. Mas para os que são chamados, [...] poder

de Deus, e sabedoria de Deus” (1Co 1.23-24).

Quanto a esta ideia de Cristo como aquele que cumpre toda a lei de modo pleno

e absoluto em nosso lugar, Hodge declara:

Cristo tomou nosso lugar; sofreu em nosso lugar; atuou como nosso representante.
Porém como a atuação de um substituto é efetivamente a ação do ator principal,
considera-se como se todo crente tivesse feito e sofrido tudo o que Cristo fez e sofreu
nesse papel. O leitor atencioso e piedoso da Bíblia reconhecerá essa ideia em algumas
das formas mais comuns da expressão bíblica. Os crentes são aqueles que estão em
Cristo. Essa é a grande distinção e mais familiar designação deles. Eles estão unidos
a Ele, que se declara que eles fizeram o que Cristo fez a favor deles. Quando Ele
morreu, eles morreram; quando Ele ressuscitou; eles ressuscitaram; assim como Ele
vive. eles também viverão.48

Nesse sentido, cabe destacarmos a dinâmica do argumento de Paulo em

Romanos 7.1-6. Na qual ele ilustra esta situação fazendo referência ao caso da mulher

estar ligada ao marido enquanto ele viver, mas, quando este falece, fica livre de sua

obrigação e tem a liberdade para se casar de novo. Da mesma forma, antes casados

47 HODGE, Charles. O caminho da vida. Londrina, PR: Livrarias Família Cristã, 2021. p. 68.

48 Ibid., p. 79.
42

com a lei, ao morremos em Cristo Jesus, somos libertos de satisfazer as exigências

da lei como regra para a justificação e temos a liberdade de abraçar um método

diferente de obter a aprovação de Deus, cuja implicação, na linguagem de Paulo,

depende e é fruto, única e exclusivamente, do nosso relacionamento com Cristo

Jesus, “autor e consumador da nossa fé”.49 “Em síntese, uma vez que o mérito de

Cristo depende tão-somente da graça de Deus, a qual nos constituiu este modo de

salvação, com toda propriedade se opõe a toda justiça humana, não menos que a

graça de Deus, que é a causa donde procede”.50

Charles Hodge, ao tratar sobre a justiça de Cristo como o fundamento de nosso

justificação, afirma o seguinte:

Os judeus, diz o apóstolo, “não conhecendo a justiça de Deus, e procurando


estabelecer a sua própria justiça, não se sujeitaram à justiça de Deus” (Romanos 10.3).
Essa foi a rocha em que eles se dividiram. Eles sabiam que a justificação exige justiça;
eles insistiram em sua própria justiça, mesmo sendo ela imperfeita. E eles não
aceitavam a que Deus havia providenciado nos méritos de seu Filho, que é o fim da lei
para justiça de todo aquele que crê. A mesma ideia é apresentada em Romanos 9.30-
32, em que Paulo resume o caso da rejeição dos judeus e a aprovação dos crentes.
Os gentios alcançaram justiça, até mesmo a justiça que é pela fé. Porém Israel não a
alcançou. Por quê? Porque eles não a buscaram pela fé, mas, por assim dizer, por
obras da lei. Os judeus não queriam aceitar e confiar na justiça que Deus proveu, mas
tentaram, por obras, preparar uma justiça deles próprios. Essa foi a causa de sua ruína.
Em contraste direto ao rumo tomado pela maioria de sua parentela, nós encontramos
Paulo renunciando toda dependência em sua própria justiça e gratamente recebendo
a que Deus havia provido. Ele tinha toda vantagem e toda tentação de confiar em si
que qualquer homem poderia ter - pois ele era um do povo favorecido de Deus,
circuncidado no oitavo dia e, tocante à justiça da lei, irrepreensível. Ainda assim, ele
teve, por perda, todas as coisas para poder ganhar a Cristo e ser achado n’Ele, não
tendo a sua própria “justiça que vem da lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber,
a justiça que vem de Deus pela fé” (Filipenses 3.9b).51

É, portanto, clara a doutrina bíblica de que os crentes são livres da lei como

algo que dita as condições para serem aceitos por Deus. Não competindo mais a eles,

49 Hb 12.2.

50 CALVINO, 2006, p. 280.

51 HODGE, 2021, p. 83.


43

para obter justificação, guardar a lei ou satisfazer todas as suas exigências. Bem como

reforça Mauro Meister:

Como já vimos, a lei informa, admoesta e condena. Sem a compreensão do estado de


morte e condenação em que o homem se encontra, esse não poderá também
compreender a graça e a salvação de Jesus. Essa é a descrição do “primeiro uso da
lei”. Antes de ensinarmos João 3.16, é necessário que o homem saiba por que Deus
enviou o seu Filho ao mundo e por que é necessário que nele se creia. A consciência
plena do pecado e da queda se faz evidente diante da lei. Portanto, diante da lei, o
pecador é confrontado com seu pecado e com a forma como desagrada o Criador do
universo.52

Diante destas verdades, outro questionamento pode ser levantado, afinal: o que

leva o crente, uma vez salvo e justificado, não por obras, mas pela fé em Jesus Cristo,

a viver uma vida de obediência aos mandamentos de Deus, fazendo o bem e

abstendo-se do mal? É o que trata Dixhoorn em seu guia de estudos da CFW:

Primeiro, como Paulo explicitamente diz em Romanos 6, aqueles que não estão
“debaixo da lei, e sim da graça” se preocupam bastante com o pecado: eles recusam
o reino e o domínio do pecado. Podemos concluir disso que os cristão verdadeiramente
libertos evidentemente preferem obedecer à lei ao invés de se submeterem às
“paixões” do pecado (Rm 6.12,14). Segundo, temos que considerar o fato de que Deus
nos chama à obediência a fim de que possamos receber a “benção por herança”. Essa
não é simplesmente uma maneira de pensar da antiga aliança; pois o salmo 34,
prometendo ricas bençãos para o obediente, é citado extensivamente em 1Pedro 3 (cf.
1Pe 3.8-12 com Sl 34.12-16). Mas a nova aliança informa e até transforma nossa
recompensa de benção ao esclarecer que tudo que é com vem a nós como um dom de
Cristo; nada é obtido por direito nosso. Terceiro, somos gratos pelos dons de Deus,
somos gratos por “receber um reino” de Deus “que não pode ser abalado”, e - como
membros do novo pacto - já não tememos a condenação. No entanto, não nos
esquecemos das advertências de Deus e, assim, comparecemos diante dele “com
reverência e santo temor”, lembrando que “o nosso Deus é fogo consumidor” (Hb
12.28-29).
A Bíblia apresenta três categorias principais de motivação para a obediência, e nós
fazemos bem em considerar todas elas. Primeiro, devemos considerar nossa culpa, a
graça de Deus, e então responder com gratidão. Segundo, somos chamados para ser
o que somos - uma vez que somos novas criaturas, temos de viver como novas
criaturas. Terceiro, como a Assembleia de Westminster argumenta, temos de buscar o
que é mais valioso - a aprovação de nosso Pai no céu e a herança que ele oferece, ao
invés da ninharia dos prazeres do pecado que continuam a nos fascinar muito mais do
que deveriam.53

52MEISTER, 2003, p. 108.


53DIXHOORN, Chad Van. Guia de estudos da Confissão de Fé de Westminster. Tradução de
Edimilson Francisco Ribeiro. São Paulo: Cultura Cristã, 2017. p. 266-267.
44

A obediência, portanto, fortalece a fé e a confirma. Sendo uma demonstração

de amor àquele deu a vida por nós e nos amou com sua graça, enquanto nós ainda

éramos pecadores. O próprio Senhor Jesus nos ensina que aquele que o ama guarda

os seus mandamentos: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é

o que me ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei

e me manifestarei a ele” (Jo 14.21). Assim sendo, o regenerado obedece a lei, não

mais com vistas a alcançar o favor divino, tampouco para autojustificar-se, encobrindo

seus pecados com um comportamento restrito e legalista, mas única e simplesmente

porque ama a Deus.

Enfatizamos mais uma vez, a fim de que não haja mal-entendidos, que embora

o crente tenha morrido para a lei, a lei de Deus não morre. Porquanto continua

existindo para ele, que agora unido a Cristo, tem condições de cumpri-la e produzir

frutos. Sem nenhuma finalidade a não ser agradar a Deus, por meio do qual fora

justificado e a quem ele deseja obedecer o mais fielmente possível.

As obras do homem cristão, justificado e salvo pela sua fé a partir da misericórdia pura
e impagável de Deus, devem ser vistas à mesma luz das que seriam realizadas por
Adão e Eva no paraíso e por toda a sua descendência se eles não tivessem pecado.
Acerca deles é dito, “E tomou o Senhor Deus o homem e o pôs no jardim do Éden para
o lavrar e o guardar” (Gn 2.15). Adão fora criado justo e reto por Deus, de forma que
ele não precisava de ser justificado e feito reto por guardar o jardim e nele trabalhar;
mas para que não estivesse desocupado, deus lhe deu a função de tomar conta do
paraíso e de o cultivar. Estas teriam sido verdadeiras obras de pura liberdade, levadas
a cabo com nenhum outro objetivo que não fosse agradar a Deus, em vez de obter
justificação, coisa que ele já possuía na totalidade que seria inerente a todos nós. 54

4.3 CRISTO E A LEI

Porquanto ele é aquele que a completa, é válido afirmar que Cristo apresenta

uma estrita relação com a lei. Como vemos em Mateus (5.17, grifo nosso): “Não

54 LUTERO, Martinho. A liberdade cristã. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2011. p. 34-35.
45

pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir”. O verbo

em destaque, no grego é o “πληρῶσαι”, que dentre seus possíveis significados

segundo Strong (2002, [verbete πληρόω]), abrange: “tornar cheio, completar,

preencher até o máximo”. Ou seja, Cristo é aquele sem o qual a lei não teria a sua

completude. Ele era a revelação que faltava para que ela pudesse tornar-se completa.

Ademais, em todas as áreas, cerimonial, civil e moral, Jesus cumpriu

plenamente a lei para que por meio de sua santa e perfeita obediência, pudéssemos

viver abundantemente, não sem a orientação da lei, mas por ela dirigidos: “Aquele,

pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar

aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os

observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus. Porque vos digo

que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais

entrareis no reino dos céus” (Mt 5.19-20).

Se alguém esperava que Jesus fosse ensinar algo totalmente desvinculado da

Lei e dos Profetas, que eram, supostamente, a base do ensino dos fariseus, tiveram

nesse ponto uma grande decepção. Visto que, desde o início, ficou muito claro que o

padrão daqueles que vivem no reino, de modo algum opunha-se à Lei e aos Profetas,

mas à religião hipócrita dos fariseus, a qual dominava e influenciava a maneira como

o povo praticava a sua religião.

Isso se torna bem evidente no sermão do monte em Mateus 5. Posto que, ao

afirmar “ouvistes o que foi dito [..] eu, porém, vos digo”, de modo algum Cristo estava

contradizendo a lei, mas interpretando-a de maneira correta e traçando um contraste

entre o “espírito da lei” e a interpretação farisaica.


46

Por todo o ministério de Jesus o encontramos como um servo da lei. De modo

que, nenhum de seus aspectos, mesmo o menor de todos, deixou de ser cumprido

por Ele. Prova disso é que nem judeus nem romanos encontraram qualquer acusação

contra ele. Pilatos mesmo afirmou’ que nada encontrava e que, portanto, lavava suas

mãos do “sangue deste justo” (Mt 27.24).

O ponto principal, claro, é que Cristo cumpriu a lei em todos os aspectos, seja no vivê-
la, no submeter-se à maldição da lei para satisfazer sua exigência de punição dos
transgressores, ou restabelecendo sobre outras bases a possibilidade de cumprir
aquilo que a lei requer. Cristo, em outras palavras, satisfez tudo que a lei exigiu ou pode
vir a exigir da humanidade. A justificação que estava associada à lei agora pertence
completamente a Cristo.55

Eis aí o cerne de todas as verdades concernentes à nossa salvação, o fato de

Deus, a despeito da deplorável condição em que nos encontrávamos, ter provido a

nossa redenção e justificação por meio de Cristo, o qual, tendo cumprido

perfeitamente a lei, em todos os seus aspectos, quer sejam morais ou civis e

cerimoniais, recebeu o salário do pecado (Rm 6.23), para que seu povo fosse salvo e

assim pudesse resgatar da morte aqueles que a merecem. “Levando ele mesmo em

seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro” (1Pe 2.24a). “Cristo, oferecendo-se

uma vez para tirar os pecados de muitos” (Hb 9.28). “Bem sabeis que ele se

manifestou para tirar os nossos pecados” (1Jo 3.5).

Tal como pelo pecado de Adão fomos afastados de Deus e destinados à ruína,

assim, pela obediência e sacrifício vicários de Cristo, fomos purificados de nossos

pecados, libertos da justa punição e justificados diante do Pai.

55
MEISTER, 2003. p. 106.
47

O teólogo John Frame, em seu artigo intitulado “Preaching Christ from the

Decalogue”56, nos mostra como podemos enxergar Cristo ao observamos a lei moral

de Deus expressa no Decálogo. Ele afirma que a lei nos mostra a justiça de Cristo;

nossa necessidade de Cristo; a justiça de Cristo sendo imputada a nós; e como Deus

quer que demos graças pelo que Cristo fez em nosso favor. Frame sintetiza da

seguinte maneira:

(a) O primeiro mandamento nos ensina a adorar a Jesus como único Senhor,

Salvador e mediador (At 4.12; 1 Tm 2.5).

(b) No segundo mandamento, Jesus é a imagem perfeita de Deus (Cl 1.15; Hb

1.3). Nossa devoção a ele torna impossível a adoração de qualquer outra imagem.

(c) No terceiro mandamento, Jesus é o nome de Deus, o nome diante do qual

todo joelho se dobrará (Fp 2.10,11; cf. Is 45.23)

(d) No quarto mandamento, Jesus é o nosso descanso sabático. Em sua

presença nós cessamos os nossos afazeres diários e ouvimos sua voz (Lc 10.38-42)

(e) No quinto mandamento, nós honramos a Jesus que nos trouxe como seus

filhos (Hb 2.10) à glória.

(f) No sexto mandamento nós o honramos como a vida (Jo 10.10; 14.6; Gl 2.20;

Cl 3.4), Senhor da vida (At 3.14), como aquele que deu a sua vida para que

pudéssemos viver (Mc 10.45).

56
FRAME, John. Preaching Christ from the Decalogue. Disponível em:
<https://www.thirdmill.org/files/english/html/ot/OT.h.Frame.X.Decalogue.html> Acesso em 17
nov.2022. (Tradução nossa).
48

(g) No sétimo mandamento nós o honramos como o noivo que se deu para nos

lavar, para nos fazer sua noiva pura e sem mancha (Ef 5.22,23). Nós o amamos como

nenhum outro.

(h) No oitavo mandamento nós honramos Jesus como nossa herança (Ef 1.11)

e como aquele que provê para todas as necessidades do seu povo, nesse mundo e

além.

(i) No nono mandamento nós o honramos como a verdade de Deus (Jo 1.17;

14.6), em quem todas as promessas de Deus são “sim” e “amém” (2Co 1.20).

(j) No décimo mandamento nós o honramos como nossa completa suficiência

(2Co 3.5; 12.9) para satisfazer tanto as nossas necessidades externas quanto os

desejos renovados do nosso coração.

Posto isso, é válido afirmar que não estarmos debaixo de lei, mas debaixo da

graça de Deus de modo algum diminui nosso sentimento de responsabilidade como

libertados por Cristo. Pelo contrário, apenas ressalta que nossa obediência à lei não

acontece e nem pode acontecer fora d’Ele. Ao passo que, enquanto tentar viver

debaixo da lei sem Cristo só nos leva à escravidão, submeter-se à lei com Cristo,

olhando para Ele e com o auxílio da graça de Deus é liberdade e vida. Também, nesse

sentido, é que o apóstolo Paulo pode afirmar em Romanos 10.4 que “o fim da lei é

Cristo, para justiça de todo aquele que crê.”


49

CONCLUSÃO

Com o tema: “A relação entre a Lei e a Graça de Deus”, propusemos esclarecer

de que modo ambos os temas relacionam-se segundo as Escrituras e como uma

interpretação equivocada dessas doutrinas pode nos levar a certos perigos que não

apenas prejudicam nossa vida cristã, como define que tipo de ética assumiremos em

nossa caminhada.

A pergunta que permeou todo o trabalho foi: Para que serve a lei, se vivemos

na era da graça? Nosso objetivo ao estudar este tema foi elucidar qual a perspectiva

reformada dessa relação, corrigindo a visão distorcida daqueles que acreditam serem

os dois termos contraditórios, e conduzindo a igreja de Cristo a uma forma válida e

eficaz de pautarem a vida pela vontade prescrita de nosso Senhor.

No primeiro capítulo, procuramos entender o que é lei; quais as suas divisões

(civil, cerimonial e moral); e de que forma a lei moral opera em nossos dias, com base

no tríplice uso da lei na perspectiva de Calvino. Posto isso, ainda no primeiro capítulo,

procuramos também compreender o que é graça e no que consiste tanto a graça

especial quanto a graça comum.

No segundo capítulo, apontamos quais as confusões e os extremos que

existem em torno do papel da lei e da graça na vida cristã, a saber, o legalismo e o

antinomismo, ambas heresias as quais nos afastam de uma vida de piedade e retidão

e que nada mais são do que distorções das obras da lei e do evangelho da graça de

Jesus Cristo.

Já no terceiro e último capítulo, voltamos nossos olhos para a visão bíblica

dessa relação, entendemos de que forma qual nosso Senhor Jesus Cristo interagiu
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com a lei de Deus, e de uma maneira prática, respondemos à questão feita no início

do trabalho: “Para que serve a lei, se vivemos na era da graça?”

Ao passo que pudemos constatar que, embora libertos pelo sacrifício de Cristo

das exigências e condenação da lei moral, a lei de Deus permanece sendo

extremamente valiosa aos regenerados, tanto na nossa como em todas as épocas.

Compreendida não mais como um fardo ou um meio pelo qual alcançamos o favor

divino, mas como um privilégio que desfrutam aqueles que pelo Senhor foram salvos.

Por isso concordamos com o que a CFW afirma em seu capítulo XIX, parágrafo

VII que os “usos da lei não são contrários à graça do Evangelho, mas suavemente

condiz com ela, pois o Espírito de Cristo submete e habilita a vontade do homem a

fazer livre e alegremente aquilo que a vontade de Deus, revelada na lei, requer que

se faça.”

Pensando na vida eclesiástica, é extremamente importante que os cristãos

tenham em mente que apesar da salvação ser obra de Deus e depender única e

exclusivamente de sua graça, a obediência à lei e a busca pela santificação ainda

constituem uma parte inalienável de nossa caminhada cristã.

Não mais “para” serem salvos, mas “porque” foram salvos, é que os fiéis

empenham-se em viver segundo a vontade de Deus revelada nas Escrituras. Não

mais por obrigação, mas por amor e em resposta a essa graça que os capacita para

tal tarefa. Sendo assim, a graça de Deus deve levar a igreja a comprometer-se cada

vez mais com a lei moral de Deus, a amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo

como a si mesmo.

O campo de estudo é vasto e existem vários aspectos que poderíamos

trabalhar dentro dessa perspectiva soteriológica. O próximo passo para uma pesquisa
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e trabalho posterior seria estabelecer a importância da obediência à lei no processo

de santificação do crente, o qual, depois de salvo e justificado por Cristo, entra em um

processo pelo qual o Espírito Santo gradualmente muda a sua vida para dar vitória

sobre o pecado.

Chegamos ao fim deste trabalho com um sentimento de alegria e muita gratidão

a Deus por ter nos dado um entendimento maior da maneira como a lei e a graça de

Deus relacionam-se segundo as Escrituras. Ao passo que agora, cientes de nossa

responsabilidade de ensinar e ajudar os cristãos a desfrutar do beneplácito da graça

e das benesses da lei, cada qual com seu papel muito bem estabelecido, podemos

afirmar assim como Calvino:

O cumprimento da lei, assim, não é uma obra que pode ser realizada pelo nosso poder;
antes, depende do poder do Espírito. Através deste poder do Espírito, nossos corações
são purificados de sua corrupção e amolecidos para obedecerem a sua justiça. Para
os cristãos, o uso da lei é completamente impossível sem a fé, uma vez que, quando e
onde o Senhor gravou em nossos corações o amor pela justiça, o ensino externo da lei
(que antes apenas nos acusava em nossa fraqueza e transgressão) agora torna-se
uma lâmpada a guiar nossos pés até o fim para que não nos desviemos do caminho
certo. Ela é, agora, nossa sabedoria pela qual somos formados, instruídos e
encorajados a toda integridade e a nossa disciplina que não nos permite sofrer por
sermos dissolutos através de uma licenciosidade má.57

57CALVINO, João. Instrução na Fé: princípios para a vida cristã. Tradução de Denise Meister.
Goiânia: Editora Logos, 2003. p. 45-46.
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REFERÊNCIAS

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vol. 2. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2006.

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Graciano Martins. Série Comentários Bíblicos. São José dos Campos: Editora FIEL,
2010.

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