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Um Projeto de Espiritualidade

Integral - Caio Fábio.


SINOPSE

O que é espiritualidade? Quem é espiritual? Como ser uma


bênção? Quais os passos para sermos espirituais? Questões como estas
tem ocupado o pensamento do povo de Deus. Todo ser humano é
fascinado por este tema, e a compreensão dele tem moldado o
comportamento de muitos.

Neste livro o Pastor Caio Fábio analisa de maneira clara e


profunda a questão da espiritualidade. Expõe com autoridade o que as
Escrituras nos ensinam sobre um estilo de vida sem o extremismo da
ortodoxia conservadora e sem o fanatismo de coreografias vazias, nos
levando ao equilíbrio entre o reter e o extravasar. Deixe Deus tirar as
suas máscaras e fortalezas e seja você mesmo diante de Deus e dos
homens.
DEDICATÓRIA

Dedico este livro a meu amigo Alípio dos Santos e sua família,
como expressão de minha gratidão a Deus pela maneira prática como
eles têm manifesto sua espiritualidade.
SOBRE O AUTOR

"Enquanto viver, viverei para Jesus; quando morrer, morrerei por


ele!" Esta frase resume o autor deste livro, Caio Fábio D'Araújo Filho.
Declaradamente apaixonado pelo Evangelho, converteu-se em julho de
1973. Amazonense, casado, quatro filhos, fez de sua vida um projeto de
evangelização e compromisso com o Reino. Iniciou seu ministério na
TV em 1974 com o programa "Jesus, Esperança das Gerações", que
atualmente se chama "Pare e Pense", transmitido por rede nacional de
rádio e televisão.

Sua sede de pregar o Evangelho fez com que criasse a VINDE -


Visão Nacional de Evangelização, missão que tem servido de apoio ao
seu ministério. Sua palavra de exortação e conteúdo o tornou
mundialmente conhecido. Anualmente recebe convites para participar
como preletor de eventos na Europa, Comunidade dos Estados
Independentes, Estados Unidos e América Latina.

Seus 31 títulos, alguns em espanhol, têm inspirado homens e


mulheres, líderes e leigos, causando uma verdadeira transformação na
vida de milhares de pessoas.

O Reverendo Caio Fábio, além de conferencista, escritor e


evangelista, é membro da Fraternidade Teológica Latino-Americana e
do Comitê Executivo de Lausanne para Evangelização Mundial.
Presidente da Associação Evangélica Brasileira anseia ver a Igreja
Evangélica no Brasil forte e unida.
PREFÁCIO

Este livro é o resultado de palestra proferida pelo autor em um dos


primeiros "encontros de reflexão teológica promovidos em Brasília.
Trata-se de assunto que tem levado a Igreja deste final de século a um
esforço cada vez maior para redescobrir os princípios de vida ensinados
e vivenciados por Jesus, conforme registrado no seu Evangelho. No
entanto, ainda estamos distantes do ideal divino, e carregamos as
marcas de uma espiritualidade fragmentada, dicotômica e promotora
de desajustes psicológicos e emocionais.

Para um lado encontramos igrejas que pouco se preocupam com o


assunto e adotam a "espiritualidade da indiferença" deixando que cada
membro desenvolva seu projeto pessoal e seja responsável pelo seu
comportamento. Outros transformam a espiritualidade em ética
comportamental enquadrando nela todos os crentes produzindo uma
espécie de "espiritualidade em série", onde, conhecendo um se conhece
todos. É a espiritualidade dos "chavões", advinda de uma subcultura
alienante, marcada pelo legalismo, agente de escravidão religiosa.

Este livro procura resgatar, a partir da vida de Jesus, os elementos


da verdadeira espiritualidade. Espiritualidade integral, não
dicotomizada, cheia de vida, promotora de liberdade, vivida com igual
intensidade em todos os segmentos e momentos da vida do mestre.

Sua leitura proporcionará excitante descobertas que certamente


produzirão profundas transgressões em sua vida, como também alegria
de viver o projeto de Deus para sua criação. Espero que você leia este
livreto sem preconceitos, com o espírito desarmado, pois a reflexão
livre e dirigida pelo Espírito Santo nos converterá em cristãos
autênticos, sem as máscaras da pseudo-espiritualidade,
comprometidos com o Reino de Deus; transformando nossas igrejas
em comunidades terapêuticas, maduras, evangelizadores, promotoras
de vida e sobre tudo da alegria do Senhor Jesus Cristo.

Brasília, Ricardo Barbosa de Sousa.


INTRODUÇÃO

A BUSCA DO SAGRADO

A espiritualidade humana é um dos fatos mais incontestáveis, mais


inequívocos, mas irretorquivelmente demonstrados da História. A
Arqueologia ou a Antropologia, à medida que pesquisam e fazem
incursões nas culturas humanas - sejam elas as mais primevas, as mais
antigas, as mais rudimentares e ordinárias - encontram
invariavelmente as marcas do sagrado: os signos da adoração, os
altares para os rituais, os códigos de ritos e todas aquelas coisas que
demonstram o desejo que se projeta para a verticalidade e que brota do
coração do homem, na perspectiva de discernir, de "teologizar", de
entender, de integrar o Ser Cósmico à realidade da sua vida e ao seu
cotidiano.

Isso é pacífico. Nem os antropólogos questionam mais este fato.


Há cerca de dezenove anos, ainda havia polêmica sobre se, de fato, o
homem mais primevo teria tido ansiedades pelo sagrado, porque havia
um grupo afirmando que esse interesse teria surgido posteriormente.
Hoje em dia, contudo, tanto mais quanto se possam fazer escavações e
pesquisar as culturas humanas mais antigas, mais variadas, mais
espalhadas pelo planeta, fica explicitamente demonstrado que a
ansiedade básica, a ansiedade constitucional de todo ser humano, é
pelo sagrado.

A questão sobre a espiritualidade humana não se baseia na


demonstração ou não de sua existência, mas, sim, em como ela pode
manifestar-se em plenitude, de forma totalizante, ou seja, como poderá
ela ser uma espiritualidade integral.
CAPÍTULO 1

A ESPIRITUALIDADE NA HISTÓRIA ANTIGA

A questão sobre a forma perfeita e completa de espiritualidade,


somente se justifica por se encontrarem, na história, diversas e
variadas formas de espiritualidade, que se manifestam como que a
retratar um momento na história da busca do homem pelo sagrado.
Analisemos, brevemente, algumas dessas formas manifestas na
Antiguidade.

Intimista-oriental

Primeiramente, talvez a mais antiga forma registrada de


espiritualidade, conforme o veio e a expressão religiosa nos venha do
Oriente: a espiritualidade intimista-oriental.

Trata-se de uma espiritualidade de meditações e de


arrebatamentos; uma espiritualidade contemplativa, de incursões
psicanalíticas, e de um desejo imenso de fazer a vida ascender aos
níveis e aos nirvanas da percepção absoluta da totalidade do cosmos.

Judaica

Vemos, em seguida, a espiritualidade judaica: legalista e


intransigente. Uma espiritualidade comportamentalista. Uma espécie
de pré-história do behaviorismo. Uma atitude no sentido de
transformar a vinculação com Deus na forma de um comportamento
intocável, intangível, ilibado, irrepreensível, irretocável.

Não estamos dizendo que as escrituras do Velho Testamento falem


assim acerca da espiritualidade, mas sim que, paralelamente à
revelação escriturística, paralelamente à revelação de Deus no Velho
Testamento, o judaísmo desenvolveu uma forma sua, uma espécie de
subcultura da espiritualidade judaica, que não nascia e que não brotava
da revelação da Escritura, mas que fora produzida por essa
mentalidade dada a um pragmatismo comportamentalista.

Grega

Segue-se a espiritualidade grega: dicotômica e abstrata.


Dicotômica, porque a maior parte do que se pode chamar de
espiritualidade grega não se encontra tanto no panteão; não vem tanto
dos mitos religiosos dos gregos. Na realidade, o grande legado da
espiritualidade grega vem dos, às vezes, anti-religiosos: os filósofos
gregos. E é aí que a sensibilidade humana mais se aflora, como não
ocorrera nem mesmo no judaísmo - fazendo-se uma comparação
apenas fenomenológica, e deixando de lado a questão da revelação.
Nem mesmo no judaísmo houve uma sensibilidade, uma acuidade de
raciocínio tão grande quanto a que se manifestou no psiquismo dos
gregos.

Mas as reflexões eram quase todas dicotômicas. Dificilmente eles


conseguiam integrar as diversas partes do mundo. O espiritual quase
sempre esteve divorciado do material, fosse no platonismo, fosse no
gnosticismo, fosse nas outras expressões filosóficas secundárias;
sempre havia um "racha". Ora o abismo era maior, ora era menor; em
certos momentos, chegava a ser apenas uma fratura; havia sempre,
contudo, um ponto de tensão entre o espiritual e o material.

A espiritualidade grega era abstrata, posto que trabalhasse muito


com conceitos e quase nunca os transportasse para o plano da
realidade tangível.

Segue-se um breve apanhado das formas de espiritualidade


manifestas já no período cristão, que vamos chamar de espiritualidades
cristãs.
CAPÍTULO 2

ESPIRITUALIDADES CRISTÃS

Posteriormente à espiritualidade intimista-oriental, à


espiritualidade judaica e à grega, aparecem as formas de
espiritualidade marcadas pelo advento de Jesus Cristo. Elas alegam ter
como base de sua convicção e fonte de sua compreensão do sagrado, a
revelação de Deus em Seu Filho, Jesus.

Da Igreja Primitiva

Na seqüência de nosso rastreamento histórico, vamos pensar,


inicialmente, na espiritualidade da Igreja Primitiva. Não há texto que
melhor a descreva do que o de Atos, capítulo 2, do verso 42 ao 48.

A espiritualidade da Igreja Primitiva era íntima, mas não era


intimista. Era íntima, porque não negava e asseverava, mesmo, o fato
de que o homem tem um íntimo, o que algumas correntes psicológicas
andaram tentando negar.

É por isso que, na espiritualidade da Igreja Primitiva, os homens


aparecem orando sozinhos, e é por isso também que eles, como
indivíduos, se expõem à possibilidade de que Deus fale com eles. Mas
ela não era intimista, porque não era solitária, ilhada existencialmente;
ao contrário, ela impelia os homens para o ajuntamento comunitário.
Por isso, eles estavam juntos todo dia, de casa em casa e no templo, e
perseveravam, unânimes, em oração, partindo o pão e celebrando
juntos.

Essa espiritualidade era carismática, à proporção que se abria para


os carismas e para um convívio natural com o sobrenatural. Mas era
também social, porque não havia pobres entre eles, sendo seus bens
socializados no critério da fraternidade e do amor, da justiça e da
equidade. No dizer de Paulo, em sua segunda carta aos Coríntios, no
capítulo 8 - e citando Êxodo -, o ideal daquela comunidade e da
teologia que estava sendo ali ensinada, expressava-se no seguinte fato:
"Aquele que colheu muito não teve demais; e o que pouco, não teve
falta". Isto acontecia, porque eles davam conforme suas posses, e cada
um recebia conforme suas necessidades. Uma social-democracia.

A Igreja Primitiva, então, vivia essa espiritualidade íntima,


comunitária, carismática, porém, social.

Da Patrística

No próximo estágio - já da passagem do primeiro para o segundo


século em diante, quando os pais da Igreja, no período que se
convencionou chamar "da Patrística", vieram a conduzir a perspectiva
teológica e de comportamento da Igreja - nasceu uma segunda versão
de espiritualidade: a espiritualidade greco-cristã.

Houve, a essa altura, um interesse apologético enorme nascendo


do seio da Igreja. A Igreja, sentindo a necessidade de dar respostas ao
tempo e ao seu mundo, começava a vivenciar uma série de conflitos.
Ora ela se acasalava com o gnosticismo, e corria o risco de enfraquecer
a encarnação e a sua doutrina soteriológica - e a própria cruz; ora ela se
ligava ao platonismo, e corria o risco de tornar-se a-histórica ou supra-
histórica, negligenciando o "aqui e agora"; ora ela se tornava
aristotélica, e corria o risco de exacerbar imensamente a perspectiva do
intelecto. De modo que a Patrística toda vive esse momento de tensão e
de luta, questionando-se com que tipo de instrumental de medição
científica teria a teologia da Igreja de tratar, para conceber sua
espiritualidade. Seria com a ferramenta platônica, gnóstica,
aristotélica? Com qual seria?

Essa tensão foi tão forte que, praticamente até aos nossos dias, a
maior parte dos pensadores e dos filósofos cristãos ainda teologizam
com as categorias aristotélicas, e boa parte dos movimentos
carismáticos teologizam com as categorias platônicas.
Da Idade Média

Depois disso, vem a espiritualidade medieval, basicamente


centrada na Igreja Católica. Trata-se de uma espiritualidade mágica, de
ritos e rituais, de adereços e de artefatos; de símbolos, de signos e de
gestos que, em si mesmos, pareciam ter a virtude que eles alegavam
esconder.

Era uma espiritualidade sacrificial, porque cobrava dos homens


penitências sem fim, para que houvesse, via dor, uma aproximação de
Deus. Era monástica, como resposta sociológica ao fenômeno de
atrelamento da Igreja ao Estado. O monasticismo medieval não nasceu
de um desejo de reclusão de certos homens; nasceu como uma resposta
sociológica. A Igreja se tinha atrelado tanto ao poder, à riqueza e à
fascinação das festas nababescas, que alguns indivíduos assumiram o
caminho do ermitão, do eremita, do nômade, do monge, não porque
essa tenha sido uma ação preconcebida, mas simplesmente porque esta
foi uma reação de repúdio a um "status quo" que se instituíra na
comunidade. Definiu, no entanto, uma espécie de espiritualidade
monástica, de ilha, de isolamento, encastelada, entrincheirada contra o
mundo, tentando viver de uma maneira quase psicopatológica: a da
autopurificação da mente. Por isso mesmo, era uma espiritualidade
culposa, própria para fazer nascer a doutrina do purgatório, onde os
homens começassem a purgar-se aqui e a purgar-se ali, para poder ter
acesso ao além.

Da Igreja Reformada

Segue-se a espiritualidade da Igreja Reformada. É uma


espiritualidade apologética, porque é discursiva, porque é batalhadora,
e porque quer dar respostas aos papistas e aos romanistas. É
intelectual, porque os homens que deflagram o processo reformista são
homens de extrema acuidade intelectual. Lutero não era um bobalhão
qualquer que resolveu zangar-se com o Papa e romper com a Igreja; ao
contrário, ele era um indivíduo com uma extraordinária consciência do
seu tempo e do seu momento. Calvino era simplesmente um gênio. De
modo que a espiritualidade que eles passam aos seus contemporâneos
tem muito do raciocínio grego, porquanto seja ela extremamente
racionalista, e também pelo fato de que a ênfase da Igreja Reformada
está no púlpito: está na palavra, está no ensino, na didática, em fazer a
pessoa raciocinar. Ela reage ao culto mágico da Igreja Católica, onde a
hóstia é literalmente o corpo e o vinho é o sangue; onde a vela acesa
significa a presença de Deus, onde o sacerdote, com certos
movimentos, faz abluções e purificações de pecados. A Igreja
Reformada reage a isso, quase que "desmagificando" o culto, quase que
tirando dele toda a perspectiva do mistério, do desconhecido. E
transforma a Bíblia e o púlpito nas únicas coisas mágicas do seu ritual.

É um culto, portanto, extremamente intelectual. De uma piedade


quase que absolutamente individual. Só nos preocupa o que tem a ver
conosco e com nossa moralidade, circunscrita ao âmbito da nossa
responsabilidade individual; uma santidade comportamental-
individualista.

Mas era uma espiritualidade operosa, trabalhadora, a ponto de


fazer deflagrar, no mundo ocidental, a ideologia capitalista. Esta
ideologia é uma deformação de alguns lindos conceitos calvinistas
sobre a realidade do trabalho; sobre o trabalho como elemento a ser
incorporado ao patrimônio litúrgico da vida. Para Calvino, o trabalho
poderia ser incorporado à atividade cúltica; não havia separação entre
o profano e o secular. O homem de Deus trafegava do trabalho ao
templo, com a mesma devoção. E isso simplesmente destruir o que o
medievalismo havia criado na ruptura, no seccionamento, na fratura
entre o profano e o sagrado, porque os monges e os sacerdotes
acumulavam-se nos mosteiros, entendendo só ser possível viver vida
santa na clausura.

A Igreja Reformada vem e diz que não. Você pode viver


sacerdotalmente com a enxada na mão, trabalhando e produzindo. E
ela, então, gera uma classe operosa, porque religiosa; é uma
religiosidade que desemboca na operosidade.
Mas adiante, esse processo é distorcido e transformado no
famigerado capitalismo que hoje domina o mundo ocidental, cuja culpa
se atribui a Calvino. E Calvino, coitado, pessoalmente muito pouco teve
a ver com tudo isso.

Pietista

Outra espiritualidade cristã, que vem depois da reformada, é a


pietista, dos grandes movimentos, dos avivamentos, dos avivalistas dos
séculos XVII, XVIII e XIX. Esta é uma espiritualidade intimista,
verticalista, totalmente existencial, onde tudo quanto importa "sou eu e
Deus", se posso ouvir sua voz e fazer sua vontade. Eu e ele. É verdade
que neste ponto refiro-me apenas ao movimento pietista clássico, pois
todos sabemos que homens como Wesley, Finney, Rothford e outros,
viveram um belíssimo projeto espiritual, no qual as várias partes da fé
estavam integradas.

Ortodoxa

Segue-se a espiritualidade ortodoxa, que todos conhecemos muito


bem, porque está viva e ativa entre nós, apesar de paradoxalmente,
moribunda.

É a espiritualidade doutrinária; de um doutrinarismo zeloso,


normalmente vivenciada da seguinte forma: os que a praticam são
ortodoxos doutrinários e liberais práticos. Em relação à ortodoxia, eles
são de uma exigência letrista, filosófica, literalista e absoluta. Só que
eles não entendem que a desembocadura real da ortodoxia acontece na
ortopraxia. Por isso eles são ortodoxos de letra e de doutrina, de texto e
de confissão, mas são liberais na prática, nos negócios, nas atitudes
comerciais etc.
Neo-ortodoxa

Vem, então, a neo-ortodoxia, que traz consigo algumas heresias,


mas apresenta também o redescobrimento da singeleza e da beleza
humana. São os neo-ortodoxos que, apesar de enfraquecerem a noção
de que Bíblia é a Palavra de Deus, apesar de abrirem espaço para uma
espécie de soteriologia de catolicidade total - que açambarcava todo
mundo do planeta, em qualquer fase da História - redescobrem, no
entanto, o fato de que a espiritualidade, necessariamente, tem de
passar pelo caminho da compassividade; de que um homem é tanto
mais espiritual quanto mais humanamente compassivo ele seja.

Liberal

Depois disso, vem a espiritualidade liberal. Contestadora. Contra


ou a favor! Ela não é contra qualquer coisa; é contra o "a favor". É
naturalista, porque é uma espiritualidade que baniu o sobrenatural de
qualquer dimensão da existência cósmica. Ela fechou o sistema do
universo. O sobrenatural ficou de fora. E assim, o que sobra de
espiritual na Bíblia é tão tênue quanto insignificante. Eles também
operaram a "desmilagrificação" da vida de Jesus. Tudo o que ele
realizou teria sido o resultado do extraordinário poder de sua mente. Se
alguém quiser saber qual o resultado dessa espiritualidade, basta ver
como estão as igrejas históricas na Europa e nos Estados Unidos.

Carismática

Surge, na seqüência, uma outra espiritualidade, com a qual


convivemos bem: a carismática.

Trata-se de uma experiência verticalista, intimista,


sobrenaturalista e dicotômica. Ela é verticalista, porque só pensa em
espiritualidade para cima; é intimista, porque acha que o único lugar
da espiritualidade é dentro; é sobrenaturalista, porque acha que só é
espiritual o que está para além do natural, tangível e palpável; e é
dicotômica, porque, para ela, o material é profano, e só o espiritual
abstrato é santo.

Teologia da Libertação

A proposta que, historicamente, se segue, é a da espiritualidade da


Teologia da Libertação. Não pensem que não há uma espiritualidade
ali. Pensam assim apenas os que nunca leram os grandes expoentes
dessa corrente teológica. Leonardo Boff, possivelmente, ora mais do
que muitos de nós; jejua regularmente; faz reclusão freqüentes, e
mantém uma vida de devoção mais intensa do que a maioria de nós
tem conseguido manter. Só que os temas da espiritualidade da Teologia
da Libertação são diferentes dos temas da nossa espiritualidade.

Quando um praticante dessa espiritualidade se ajoelha para orar,


possivelmente não bate no peito dizendo: "Deus, eu sou um verme" -
conforme aqueles que tinham crises de catarse, no auge dos
avivamentos pietistas, onde o indivíduo quase se esfaqueava psíquica,
moral e fisicamente, o dia inteiro. Os temas da sua intercessão são
temas políticos; o espaço vivencial da sua espiritualidade é coletivista, é
fraternalista; a base motivacional dos seus sonhos e dos seus arrojos de
vida estriba-se sobre a utopia, conquanto, para a espiritualidade
libertacionista, a utopia é a esperança que move o homem contra todas
as realidades e contra tudo o que se possa chamar de "apesar de", na
direção de construir um ideal.

Aproximamo-nos, assim, do tema de que gostaríamos de tratar


mais demoradamente, e no qual nos deteremos com mais cuidado: uma
proposta de espiritualidade que integre tudo o que de positivo se pode
encontrar nas múltiplas formas assumidas pela experiência do homem,
em sua sôfrega e desesperada busca do sagrado.
CAPÍTULO 3

O SAGRADO ENCARNADO

Queremos falar, agora de uma espiritualidade integral, que tenta


ajuntar todas as dimensões da vida como elementos litúrgicos, cúlticos,
vazados e pervadidos, fundidos e confundidos com tudo aquilo que se
possa chamar de espiritualidade. Não vamos falar, portanto, de vida
espiritual. Vamos falar de espiritualidade encarnada, integrada,
historificada, jungida, misturada; onde tudo quanto existe tem de estar
a serviço da glória de Deus.

A nosso ver, todo o Evangelho, desde a afirmação de que o Verbo


se fez carne, até as últimas e mais simples ações e gestos de Jesus, é a
suprema apologia de uma espiritualidade integral.

Você quer saber o que é espiritualidade integral? É o que está aí,


retratado nos Evangelhos. Quando a Bíblia diz que o Verbo, o abstrato,
a razão intangível, porém real, se fez gente, tornando-se matéria,
cobrindo-se de carne, veia, sangue; comendo carne, vegetais, bebendo
água, respirando oxigênio; quando a Bíblia diz que o Verbo se fez
carne, e diz que ele habitou entre nós, viveu entre nós; e foi como um
de nós, ela está, em outras palavras, dizendo que a espiritualidade se
tornou integral. O concreto foi vazado pelo abstrato; o material foi
invadido pelo espiritual; a vida foi feita uma, e as dimensões todas,
convergidas para um único ponto, onde Deus é o centro e onde tudo
tem de acontecer liturgicamente, para sua glória.

O que me espanta, no entanto, é o fato de que Jesus não fala uma


única vez, nos quatro Evangelhos, a palavra "espiritual". Esse chavão
não passou por sua boca, por uma razão muito simples: para Jesus, não
havia uma vida espiritual; para Jesus, a espiritualidade era a vida.
Sobre a vida ele falou muito, e o tempo todo; sobre espiritualidade,
não.
Nossa diferença é que temos uma vida espiritual; e pra Jesus, a
espiritualidade era a vida. Por isso, quando ele se refere à vida, está
falando sobre espiritualidade. Porque não é possível existir qualquer
espiritualidade a não ser na vida.

No entanto, para nossa orientação didática expositiva, escolhemos


quatro capítulos de Mateus, que sumariam, de modo magistral, essas
múltiplas dimensões do que estamos chamando de espiritualidade
integral. Não seria possível passear de Mateus a João; seria presunção e
estupidez. Por isso, orei, pedindo a Deus que nos ajudasse a enxergar
alguns blocos, onde os temas principais da espiritualidade integral
estivessem presentes, e assombrei-me, quando vi que, em Mateus 16
a19, estavam as principais tematizações do que se pode chamar de
espiritualidade.

A gênese da espiritualidade

Para iniciar, vale perguntar: onde começa e a partir de onde se


desenvolve a espiritualidade?

O texto de Mateus 16:16 nos incita a crer que ela começa na


aceitação consciente de que Cristo é o Salvador. Efésios 2:1 e 2 nos diz
que o homem está morto para viver a verdadeira espiritualidade. Ele,
como ser morto, não consegue responder ao projeto de vida que Deus
tem para cada um de nós, porque a sua existência está sucumbida na
antivida. O homem natural não tem discernimento das múltiplas
variedades espirituais, diz Paulo, em 2 Coríntios 2:14. Não estamos
negando, aqui, que o homem sem Cristo tenha fome do sagrado - na
introdução, dissemos que tem. O que estamos dizendo é que não se
trata tanto de fome do sagrado quanto de fobia do sagrado.

Mas a espiritualidade verdadeira só é possível em Cristo. A ponto


de ouvir-se o Mestre dizer:
"Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e
sangue quem to revelou, mas meu Pai que está nos céus". (Mateus
16:17)

Essa espiritualidade só começa em Cristo; e só começa quando


alguém tem a revelação de quem ele é, e aceita conscientemente o fato
de que ele é o Salvador de nossa vida perdida.

Essa espiritualidade, então, se desenvolve a partir da aceitação do


convite ao discipulado. Mateus 16, de 21 a 26, estabelece uma
seqüência. Note o que diz o verso 21, como é um segundo bloco:

"Desde esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus


discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer
muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas,
ser morto, e ressuscitado no terceiro dia". (Mateus 16:21)

Pedro, então, reage e como que a dizer: "Senhor, deixe de


depressão; acabe com essa história! Que pensamentos autodestrutivos!
O Senhor está precisando de um tratamento psicanalítico". Se fosse nos
dias de hoje, ele ia pensar que Jesus havia caído numa crise depressiva
irrecuperável. Mas Jesus responde: "Arreda! Satanás; tu és para mim
pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e, sim, das
dos homens".

Transforma, então, o que seria, historicamente, o seu sacrifício, em


teologia existencial, motivacional, destinada a ter uma desembocadura
na história concreta de todos nós, porque disse: "Se alguém quiser ser
meu discípulo, repita no quotidiano o grande gesto do calvário, siga-
me, e negue-se a si mesmo".

Há, então, em segundo bloco, uma seqüência. Começa na aceitação


consciente de que Cristo é o Salvador, e desenvolve-se a partir da
aceitação do convite ao discipulado. Não há caminho a percorrer que
não seja aquele demarcado pelo convite de Jesus para levar a cruz. A
espiritualidade que não se nega e não leva a cruz é, na realidade,
egocentrismo; não espiritualidade.
CAPÍTULO4

A TRANSFIGURAÇÃO COMO PROTÓTIPO DA


ESPIRITUALIDADE INTEGRAL

Já vimos onde a espiritualidade integral começa: na aceitação


consciente de Cristo como Salvador. Desenvolve-se, então, a partir da
aceitação do convite ao discipulado, e é somente a partir daí que ela
pode caminhar; não há outra estrada para o desenvolvimento da
espiritualidade integral, senão mediante a aceitação do convite ao
discipulado.

No entanto, vale a pena perguntar: qual o melhor protótipo, qual a


melhor maquete para a percepção da espiritualidade integral? Na
transfiguração, matéria do texto que se segue, temos o melhor modelo
dessa espiritualidade. É interessante notar que ela vem na seqüência da
confissão (Mateus 16:16) e da aceitação do discipulado (Mateus 16:21)

De fato, a transfiguração é um protótipo; é uma espécie de ensaio


da espiritualidade total; é uma "avant-première" do Reino de Deus.
Está claro no verso 28 do capítulo 16. Quando Jesus acaba de convidar
para o discipulado e de falar na retribuição futura, escatológica,
daqueles que o seguiram, ele diz: "Em verdade vos digo que alguns" -
não todos, alguns - "que aqui se encontram, de maneira nenhuma
passarão pela morte até que vejam vir o Filho do homem no seu reino".

Ele não está falando da sua segunda vinda, porque a sua segunda
vinda não é para alguns de seus discípulos; é para todos. A sua segunda
vinda encerra a morte, e o Mestre está aqui dizendo que eles não vão
morrer antes de ver o Reino. Significa que, depois que vissem, iriam
morrer. Ele não está falando da escatologia plenificada, totalizada; ele
está falando de uma situação relativa, pré- escatológica, de um ensaio,
de uma pré-estréia, de uma maquete; está falando de um protótipo, de
uma demonstração sumariada e sintetizada do que significa a vida no
Reino. Porque a vida no Reino é a vida da espiritualidade integral.

O texto de Lucas, referente à transfiguração, é lindo, porque diz:

"Cerca de oito dias depois de proferidas estas palavras, tomando


consigo a Pedro, João e Tiago, subiu ao monte com o propósito de
orar. E aconteceu que, enquanto ele orava, a aparência do seu rosto se
transfigurou e suas vestes resplandeceram de brancura". (Lucas 9:28
e 29)

Lucas estabelece a conexão, ou seja, o que Cristo prometera ali


cumpre na transfiguração. Esta foi a expressão, a manifestação
antecipada do Reino; do projeto de vida que Deus sonhou para cada
um de nós.

Vamos ver, então, a partir dessa conexão de Lucas, que mostra


como a promessa de Jesus se cumpre na transfiguração, quais são as
características desse protótipo da espiritualidade integral, conforme
manifestado no monte da transfiguração.

A História pode ser espiritual

Inicialmente, afirma-se ali que a história pode ser espiritual.

Em Lucas 9:28 e 37, percebemos, não na letra, mas nos fatos, a


afirmação acima. Vejam o que diz o Verso 28> "Cerca de oito dias
depois, Jesus os levou a um monte com o propósito de orar, e se
transfigurou diante deles". E notem o que diz o verso 37: "No dia
seguinte, eles desceram do monte".

Houve um antes, um durante e um depois. Houve uma afirmação,


e cerca de oito dias depois - uma semana - Jesus os leva ao monte,
transfigura-se e, no dia seguinte, desce do monte. O que é isso? É
história! O antes, o durante e o depois são a história. Só há um antes,
um durante e um depois onde há história.
A partir dessas constatações, algumas coisas têm de ser aprendidas
por nós. Primeiro: o único espaço que se tem para ser espiritual é a
história. Não é na a-história, ou na trans-história; é aqui, e agora. Não é
no céu, não é no além; é no aqui, e no aquém. Não é no "outro
filosófico", como diria Francis Schaeffer, mas é no filosófico imediato,
aqui mesmo. Não é via meditação transcendental, segundo a versão
carismática hodierna dos arrebatamentos freqüentes - ainda que eu
creia neles - que fazem crer que, quando alguém está arrebatado, está
mais espiritualizado do que quando está absolutamente encarnado e
dando um beijo em uma criança.

Espiritualidade se dá na história

Quando a Bíblia diz que, uma semana depois da confissão de


Pedro, Jesus mostrou a maquete da espiritualidade integral, e, no dia
seguinte, eles desceram, afirma, com isso, que o calendário foi
santificado. Cada dia pode ser dia santo. Não se alude aí ao sábado ou
ao domingo. O calendário de Deus não tem sábados nem domingos; só
tem dias santos. A espiritualidade não só pode, mas também deve ser
na história. Espiritualidade que não pode ser historiada não é
espiritualidade; é esoterismo.

Caem aqui, dois bastiões da falsa espiritualidade: o primeiro é o


bastião do dia da espiritualidade. A transfiguração está para além das
agendinhas santificadas. Pedro fez uma confissão, oito dias depois,
Jesus subiu ao monte, transfigurou-se, desceu do monte, e ninguém diz
que é domingo, segunda, terça, quarta, sábado; que é dia nenhum! É
dia do Senhor, o dia em que se vive na presença do Senhor.

Em segundo lugar, cai o bastião do intimismo não-histórico de


certas espiritualidades, porque esta é absolutamente amarrada aos
referenciais históricos concretos. Justamente por isso, ela está escrita.
Se ela não tivesse sido histórica, Deus teria de inventar um evangelista
freudiano, para poder descrevê-la em termos históricos, concretos,
palpáveis, tangíveis, mensuráveis e avaliáveis pela vida.
A geografia pode ser espiritual

Outro ponto que se diz e que se impõe no relato da transfiguração


é que a geografia pode ser espiritual.

Mateus 16:13 diz que eles estavam indo para as bandas do norte,
extremo norte de Israel, as bandas de Cesaréia de Filipe.

No capítulo 17, verso um, após esses episódios da confissão e do


convite ao discipulado, diz-se que Jesus os levou a um alto monte. O
único alto monte e existente no extremo norte do país e o mais alto de
todos os montes de Israel: o Hermom, com 2.840 metros de altitude.

Mas isto significa, também, que Jesus escolher o pior lugar


possível para praticar a teologia da espiritualidade integral. Cesaréia de
Filipe era um lugar impróprio para isso, por, pelo menos, três razões.

Primeiro, por razões históricas: a região jamais deixara de ser


pagã. O texto de Juízes, capítulos 1 e 2, nos diz que, quando os filhos de
Israel invadiram a terra, as bandas do extremo norte foram das poucas
de onde eles não conseguiram desinstalar os pagãos, que ali
permaneceram a vida inteira. Era uma zona maculada para o judeu;
zona "do agrião" da espiritualidade - "teologizando" Nélson Rodrigues.

A região era imprópria para a espiritualidade, também, por razões


políticas. Era uma cidade construída por Herodes Filipe, e dedicada ao
imperador César. Por isso, chama-se Cesaréia marítima, Cesaréia
mediterrânea.

Como todo Herodes queria agradar ao imperador, fazia, então,


alguma coisa para ele. Havendo, já, uma Cesaréia no mar, ele chamou
esta, "Cesaréia Filipae". E olhe que, em Israel, com exceção dos
herodianos e dos saduceus, de fariseu, passando por zelote, a sicário,
todo mundo queria ver romano virar picadinho.
Era, ainda, uma cidade construída para a superpotência
esmagadora; um "QG" do inimigo na terra. A espiritualidade judaica
repudiaria, por razões políticas, aquela geografia.

Aquele local se manifestava impróprio, também, por razões de


religiosidade, pura e simples. Nos dias de Jesus, reinava grande
idolatria pagã na região, e até hoje se encontram lá, os nichos, os
altares. Cesaréia de Filipe está erguida em uma base rochosa maciça do
Hermom, bem na frente de onde saem as águas de uma das nascentes
do Jordão, do rio Banias, que nasce em uma gruta das montanhas do
Hermom. Era uma cidade paganizada pelos cananeus, paganizada
pelos romanos e profanada politicamente. Jesus vai, no entanto,
justamente para este lugar, a fim de praticar a espiritualidade integral.

E ai, irmão, na geografia da profanação, que Jesus resolve fazer


uma catedral de olivais, pedras brancas e lisas (abundantes na região),
no alto da montanha sobre a qual estava Cesaréia. A ponto de Pedro,
em sua segunda epístola (2 Pedro 1:18), lembrando-se da
transfiguração, dizer que o Hermom fora transformado num monte
santo.

Em Cristo, toda geografia pode ser santificada e pode ser o lugar


da espiritualidade vivenciada. O panteão grego poderia ser um lugar de
culto, sem que precisasse ser derrubado. Bastava que o Deus Todo-
Poderoso fosse ali cultuado.

É pena que a Reforma Protestante não tenha entendido isso; e é


inacreditável o que se derrubou, em toda a Europa, de monumentos
lindos que, se não fossem preservados por razões religiosas, deveriam
sê-lo, pelo menos, por razões culturais e artísticas. Quadros belíssimos
foram queimados, por causa daquela fobia monoteísta, febre
antiidolátrica - qualquer coisa que estivesse pitada podia ser idolatria:
queima! Verdadeiras obras de arte foram destruídas, porque não havia
esta concepção de que o que foi, um dia, geografia da profanação, pode
transformar-se em geografia da santificação, desde que a vida vivida na
presença de Deus ali habite.
A geografia da transfiguração era tão profana para um judeu,
quanto, para protestantes inflexíveis, seria profana a notícia de que um
crente se teria transfigurado no alto do Vaticano, ou que o Pastor
Ricardo Barbosa de Sousa tivesse tido uma crise de espiritualidade
profunda, às portas do Vale do Amanhecer. Era isso! Traduzindo o fato
em termos de impacto histórico, foi isso que aconteceu.

A história e o espaço da espiritualidade, e toda a geografia pode ser


santificada.

Recapitulando...

Vimos, até aqui, que, nessa espiritualidade integral, a história pode


ser espiritual, o calendário é santificado e que a geografia pode ser
espiritual. E vimos isso de maneira exacerbada no fato de que Jesus
escolheu o que o judaísmo convencional chamaria de "a geografia da
profanação", para constituir-se justamente no monte santo da
transfiguração.

A fisionomia da espiritualidade

Vemos ainda que o corpo é a fisionomia da espiritualidade.

O texto de Mateus 17, no verso 2, diz que o ser rosto resplandecia


como o sol. E diz também que até as suas vestes resplandeciam. Se o
rosto resplandecia e as vestes resplandeciam. Se o rosto resplandecia e
as vestes resplandeciam, o corpo todo resplandecia. Em Cristo, a
"shekinah" de Deus tem cara e tem corpo. A "shekinah" de Deus não é
mais nuvem gloriosa, enchendo templos salomônicos; em Cristo, ela
tem rosto, tem nariz, tem boca, tem sorriso, tem testa, tem cabelo, tem
voz, tem altura e tem cor. É o que ensina Paulo, em 1 Coríntios 6:19, ao
dizer que Deus nos transformou em catedrais existenciais do Espírito
Santo; templo habitado pela glória da Divindade.

É por isso que todo ascetismo não passa de falsa espiritualidade.


Como diz o apóstolo Paulo, ao insurgir-se veementemente contra
qualquer tipo de teologia que negue a santidade do corpo, do físico:
"Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, porque,
como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não
manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os
preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o
uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria,
como o culto de si mesmo, e falsa humildade, e rigor ascético; todavia,
não têm valor algum contra a sensualidade." (Colossenses 2:20-23)

A partir daqui deve ficar óbvio que, no projeto da espiritualidade


integral, o físico tem de estar presente, e a própria espiritualidade tem
fisionomia; e a "shekinah" de Deus, em Cristo, ganhou cara; e nos
discípulos de Jesus, ela ganhou manifestação de catedral existencial.
Não existem coisas espirituais e coisas materiais. Para o cristão, a
espiritualidade se dá, principalmente, na imanência, no material.

A natureza como adereço da espiritualidade

Podemos também observar que a natureza aparece com adereço da


espiritualidade. O capítulo 17, no verso 5, diz que, de repente, os
envolveu uma nuvem luminosa. Seríamos tentados a crer e a pensar
que Deus criou uma nuvem especial para envolver Pedro, Tiago e João,
na transfiguração. Afinal de contas, pensaríamos, as nuvens que havia
por ali eram nuvens profanas de orvalhos impuros... Então Deus teria
criado uma nuvem especial. Mas não criou nuvem nenhum; ele apenas
usou as densas nuvens do Hermom.

Você já leu, no Salmo 133, que os orvalhos do Hermom caem sobre


os montes de Sião? Só que o Hermom está no Norte e Sião está no Sul.
Essa é, no entanto, uma verdade pluviométrica, ou seja, sem o
Hermom, o sul de Israel seria um deserto completo e absoluto, porque
todas as nuvens da região se condensam no pico alto do Hermom, tão
densas ficam, que são sopradas pelo vento país afora. E o Hermom faz
parte de um noturno e fundamental processo de irrigação do solo de
Israel.
Deus simplesmente transfigurou uma das nuvens que estavam por
ali. Com isso, fica evidenciado que a natureza não é outra coisa senão
mundo e cenário, mágico e extasiante, da nossa espiritualidade. Fico
penalizado ao ver como transformamos a natureza em uma banalidade
qualquer da existência cósmica. A natureza precisa ser vista como coisa
cheia dessa mágica, do mistério da criação divina.

Uma vez, estávamos, minha mulher e eu, em uma praia de Niterói,


conversando:

- Você gostaria, de todo o coração, de pegar em uma coisa que saiu


diretamente das mãos de Deus? - Perguntei misterioso.

- Eu gostaria - respondeu ela. - Você sabe de alguma?

- Olhe - disse eu - tem uma que... não diga para ninguém, mas eu
sei. Saiu da mão dele. Você quer pegar nela?

- Eu quero!

- Então peguei nessa pedra, onde você está sentada - disse a ela.

Nós perdemos essas percepções! Aquela grama verde é vista como


ridícula grama verde. Um pinheiro só serve para enfeitar 24 de
dezembro em casa, imitando cultura européia e norte-americana.

Mas em Cristo, a natureza não é outra coisa senão o mundo e o


cenário extasiante, no qual vivemos a nossa própria espiritualidade.
Isso porque ela proclama a glória de Deus, diz o Salmo 19:1; ela é
"kerigmática", no sentido de que ela faz uma proclamação da glória de
Deus. Ela é litúrgica no santuário cósmico, diz o Salmo 29, ao
transformar uma tempestade em culto. Já leram aquele salmo? Como
ele é cheio de trovões!

- "A voz do Senhor está sobre as muitas águas!" Buumm!

Davi estava no litoral de Israel e viu uma tempestade chegando no


Mediterrâneo. Trovões retumbando e relâmpagos cortando o céu. Ele
olha para o cosmo e diz: "Isto é um santuário!"
O trovão ribomba e ele diz: "O Senhor cospe chamas de fogo e
despedaça os cedros do Líbano".

O trovão retumba outra vez, e ele imagina o impacto daquilo na


criação, e diz: "Até as corças estão parindo nas encostas das
montanhas, dando as suas crias".

A tempestade também se adensa na direção do extremo sul. Vai no


rumo do deserto do Sinai. Mais precisamente, na direção do deserto de
Cades. O salmista, então, exclama: "O Senhor, com sua voz, faz tremer
o deserto de Cades".

E, extasiado, Davi conclui: "E no seu templo tudo diz: glória". Não
era o templo de Jerusalém, pois ainda não havia sido construído. Ele
descrevia o templo cósmico cuja liturgia era feita com os fenômenos da
natureza. A natureza é mestra espiritual de insuplantável didática,
ensina Jesus. Por isso, ele manda olhar pardais, manda ver como os
lírios crescem, manda tirar lições da natureza.

Achei isso lindo, praticado na vida do irmão Sam Kamelesson, no


congresso de pastores de Visão Mundial, em Manaus. No primeiro dia,
ele estimulou os pastores a olhar a natureza: "Olhem, tirem lições
dela". Eu, comigo mesmo, dizia que queria vê-lo trazer, todo dia, uma
lição da natureza para o pessoal.

Às duas da tarde, ele sempre saía com aquela sandaliazinha


havaiana dele, entrava ali, pelo mato, sumia uma hora e meia, duas
horas, e à noite, na hora de "trovejar" seu sermão, ele sempre trazia
uma lição da natureza.

Chegou um dia em que ele disse aos pastores: "A vida de vocês está
sem energia, porque há um monte de cipós arrancando a energia toda
de vocês. Tirem os cipós!" Foi o que ele viu, ali, entrando no mato ao
lado do acampamento.

Jesus praticava essa didática; a natureza, para ele, era mestra


espiritual: olhem os lírios, vejam como crescem, observem o vestuário
deles, vejam a modo do Criador - que cores Deus usa! As mulheres,
hoje em dia, estão com tudo. Deus tem uns gostos extravagantes. Faz
flores brancas, mas faz também umas agressivas... Só não as conhece
quem nunca andou pelo Oriente, onde as flores parecem ser de sangue,
chocantes, de cores quase estúpidas.

Olhem os lírios; vejam os pardais. Olhem como fazem ninhos,


como comem, como vivem, como sobrevivem; porque a vida é uma só,
diz Jesus. A existência humana está integrada à existência da natureza,
porque há um só Deus sobre isso tudo. E assim como Deus cuida dos
pardais, muita mais razão ainda tem para cuidar da gente, porquanto
há um mesmo Deus integrando todas as dimensões e manifestando a
todas elas os mesmos atributos de providência, de manutenção, de
provisão e de cuidado.

A natureza tem de ser incorporada a nossa espiritualidade. A vida


humana foi produzida para uma espécie de espiritualidade de ar livre.
Gênesis 2:4-17 nos põe em mundo sem tetos; onde a abóbada é o
cosmos, no jardim. Jesus viveu esta espiritualidade debaixo do sol, ao
relento, a caminho, à beira-mar, nos montes e nos campos; Jesus viveu
sua espiritualidade ao longo dos rios. Para Jesus, a natureza podia
ouvir a voz de Deus e obedecer a ela. Por isso, ele diz: "Vento, cessa;
mar, aquieta-te e emudece". Isso pelo fato de a vida ser uma só, tendo
todas as suas dimensões integradas.

A desembocadura prática desta perspectiva espiritual recai sobre


várias áreas da vida cristã. Isto nos deveria fazer passear no campo.
Parece besteira mas eu lhe digo: vá molhar esse seu dedão do pé com o
orvalho que cai na grama verde; vá sentir cheiro de jasmim.

Há algum tempo, me deu uma tristeza, à porta de nossa igrejinha,


lá do bairro onde morávamos. Eu estava no culto, domingo à noite.
Havia um jardim gostosinho à frente, com um pé de jasmim,
"exagerando" cheiro para todo lado; uma coisa maravilhosa!

Acabou o culto, e fui para a porta, pensando: "Mas que coisa boa!"
Eu não sou do tipo que gosta de ir para a porta ficar ali naquele "dói-
munheca, dói-munheca, dói-munheca". Mas, naquela noite, havia uma
compensação: um pé de jasmim, perto da porta.

Estou ali, recebendo, cumprimentando, falando, e chega um


irmão, assim, de uns... - era um contemporâneo de Calvino, que
sobreviveu - e me diz:

- Como vai, pastor, tudo bem?

- Tudo bem, sim senhor.

Aí, ele começa a cheirar o ar, como que procura a procedência de


algum odor:

- Que cheiro horroroso é este, aqui? - referindo-se ao jasmim.

- Isto é síndrome do templo... - pensei um pouco algo.

- Como disse?

- Nada, nada...

Porque a gente se habitou a só gostar do cheiro de mofo dos nossos


sombrios templos.

A lição que estamos desenvolvendo deve estimular-nos a


contemplar o belo, e a chamar o belo de belo; isso deveria transformar
nosso banho de mar ou de rio em culto.

No verão tenho um culto muito gostoso, todo sábado de manhã


com minha família. A gente entra naquela água gostosa... E digo aos
meninos: vamos fazer uma devocional lá na praia. E quando entramos
na água, vamos entrar com muita alegria diante de Deus. Porque só nós
temos razão para entrar ali e dizer: - Louvado seja o teu nome, Senhor!
O Carl Sagan tem de entrar e dizer: - "Uh! que coisa horrorosa e fria!" -
porque a temperatura não é ideal. Mas, para nós, aquilo é uma liturgia,
que vai e que vem, e quem vem, e que quebra na praia, para a glória de
Deus.

O sol tem de ser visto como metáfora constante da luz divina,


porque era assim que os antigos o viam; a flor e os pássaros, como
maneiras coloridas e sonoras de manifestações da providência divina,
diante dos nossos olhos; os fenômenos naturais, como expressão dos
mistérios de Deus, da sua grandeza, do seu poder, dos seus atributos
invisíveis e da sua enorme e imensurável divindade.

A defesa ecológica tem de se impor como necessidade profética da


nossa própria espiritualidade cristã, que crê que a redenção será total,
como diz Romanos 8, de 19 a 25. Não só para homens, mas para
urtigas, pés de mandacaru, carvalhais, mangueiras, jabuticabeiras e
parreiras. Porque até a natureza geme, aguardando a redenção - a sua
redenção - quando juntamente com os filhos de Deus, ela vai explodir
como um flamboyant; uma explosão de glória e cor, para o louvor de
Deus.

Se a redenção de Deus não resgatar o cavalo, a mula, o capim-


gordura, o pé de acácia, os micro-organismos, a flora submarina; se
não resgatar tudo, o diabo terá vencido. Porque a teologia cristã diz que
a queda contaminou tudo isso, logo, a redenção tem de ser redenção
para isso tudo. E, enquanto essa redenção não chega, uma das
participações redentivas nossas no processo é gritar, profeticamente, a
favor da preservação, afirmando que "tudo o que Deus criou é bom".
Está sujeito ao pecado, não voluntariamente, porque não foi a árvore
do conhecimento do bem e do mal quem pediu a Eva que comesse do
seu fruto. A natureza que Deus criou é boa. Paulo diz a Tito que tudo o
que Deus criou é bom, salvo para impuros, porque a mente deles está
corrompida, e eles não conseguem ver a espiritualidade integral.

Cultura é espiritualidade

Outra implicação dessa espiritualidade integral é que a cultura tem


de ser vista como produção humana espiritualizável. O texto de Marcos
sobre transfiguração, diz o seguinte:

"As suas vestes tornaram-se resplandecentes e sobremodo


brancas, como nenhum lavandeiro na terra as poderia alvejar".
(Marcos 9:3)
Poucos textos falam mais acerca da possibilidade de que a
produção cultural humana possa ser vazada pela espiritualidade do que
este. Roupas e vestimentas são produções das mais antigas concepções
culturais dos humanos. Roupa é cultura; cultura, conforme o tempo e a
época; época, conforme as culturas. Este é o ciclo do movimento da
cultura humana: cultura conforme a época, e a época conforme a
cultura. E é assim que hoje eu estou aqui de calça comprida e não com
um camisolão oriental. Se aprendêssemos isso, não teríamos tantos
legalismos e usos e costumes em nossa pseudo-espiritualidade. A
sobriedade é o que deve nortear a vestimenta; o modo ou a moda são
circunstanciais e cíclicos.

Jesus não estava descontextualizado. Há um texto do qual muitos


gostam; não se sabe se é verdadeiro ou não - alguns crêem que é uma
produção, uma espécie de "mentirinha santa" de alguns crentes da
Igreja Primitiva -, e que está rotulado de "Carta Publuis Lentullus",
sobre Jesus Cristo, para César, o imperador. Aqueles que gostam desse
texto só ficam com sua parte interessante: "...seu rosto era lindo,
parecido com o da sua mãe: nunca o viram rir", diz lá. Meu Deus! Esse
homem, certamente, encontrou-se com Jesus por apenas trinta
segundos, porque o Cristo dos Evangelhos chora e também exulta de
alegria no Espírito Santo. E o que diz Mateus 12. Eles não vêem o outro
lado do texto. Lá diz que ele usava seu cabelo e suas roupas à moda dos
nazarenos. Estava bem contextualizado.

Este princípio deve transferir-se para os aspectos mais legítimos


da cultura humana. Roupas transfiguradas; roupas vazadas pela
espiritualidade - por quê? Porque a cultura é santificada por aquele que
se veste com ela.

Vou dizer uma coisa que, para alguns, talvez pareça uma heresia.
Quando a gente chegar lá no céu, vocês vão saber se era heresia ou não.
Vou para lá, porém, com a consciência tranqüilíssima.

Deus me tem dado muitas chances de estar em Paris. Talvez seja


uma das cidades européias que eu mais tenha visitado, onde mais
tempo eu tenha ficado. E, quase sempre, a primeira coisa que faço, ao
chegar, é ir para o Louvre. Entro com um profundo sentimento de
devoção e de adoração, naquele lugar. Parece um santuário, para mim.
Aqueles quadros, a sensibilidade humana pintando o ser; cada nervo,
cada veia, cada ruga, cada coisa... Freqüentemente me apanho orando
ali; e já, algumas vezes, estive chorando, porque há poucos lugares no
mundo onde eu veja retratada tão fielmente a imagem e semelhança de
Deus no homem, quanto em toda a sensibilidade cultural que ali foi
reunida. Só um ser parecido com o Criador lindo, como o nosso, podia
ter sensibilidade suficiente para perceber tanta beleza, como ali se
retrata. Roupas, adereços, culturas, produções, artefatos podem ser
vazados pela espiritualidade.

O que me preocupa é verificar, em nosso meio, a morte - absoluta e


sem muitos indícios de ressurreição - acerca dessa realidade. Alguns
artistas estão-se convertendo, há algum tempo, no Rio de Janeiro, e,
pelo menos, três ou quatro já foram estragados. Podiam estar fazendo
um trabalho maravilhoso, mas os evangélicos não perceberam que,
melhor do que a gente ter um artista evangélico, é ter um evangélico
artista. De fato, o artista evangélico faz peça de teatro no salão
paroquial das nossas igrejas; mas o evangélico artista desempenha
peças para o mundo.

O problema é que as pessoas, ao se converterem, vão logo sendo


estragadas.

- Você não pode mais cantar - dizem os legalistas.

- E como é que eu vou ganhar a vida? - responde o recém-


convertido, assustado.

- Ah, o mercado evangélico de discos é bom - respondem. É bom


mesmo!

- Você não pode mais cantar isso, porque isso não é do Senhor! A
maioria dos hinos sacros, que a gente canta, é folclore europeu; e, lá,
eles são cantados com outra intenção.

Converteu-se no Rio de Janeiro, uma cantora famosa.


O primeiro testemunho que a ouvir dar foi muito bonito: "Olha,
gente, Jesus mudou minha maneira de ver a vida, e agora a estou vendo
com os olhos do meu Criador". Depois, ela disse que queria pedir a
oração de todos os presentes à reunião, porque, no dia seguinte, ela iria
estrear um show na frente do bar "Garota de Ipanema", ela e a filha de
Vinícius de Morais. "Vocês não sabe", disse ela, "eu sou uma
profissional, eu canto; como uns advogam, praticam a medicina,
arrancam dentes; como outros dão aula". Aula de heresia! Muito
professor cristão dá aula de heresia, por aí: coisas que, cientificamente,
não têm nada a ver com a Bíblia, mas eles dão, somente porque são
professores. Mas acham que herege é essa moça cantando Vinícius de
Morais, que, às vezes, está cantando o amor, a flor, a poesia; coisas que
todos nós fazemos, em casa, no quarto - sendo honestos; ou devemos
usar de subterfúgios?

Então, ela pediu oração.

Ficamos olhando em volta, para ver o choque que isso causaria, e


minha mulher e eu decidimos que iríamos ao show, no primeiro dia,
para prestigiá-la. No entanto, tive uma viagem e não pude ir. Pedi,
então, a um irmão da VINDE que fosse lá. O irmão foi e disse que ela
cantou quase três horas, contando sua história, suas lutas, os cantores
com quem havia feito parceria, suas viagens pelo mundo, suas
composições etc... Nada além disso. Simples e singela.

Ao final, com Ronaldo Bôscoli sentado na primeira cadeira e o


salão cheio de artistas e de gente que nunca entraria em lugar religioso
nenhum, muito menos em evangélico (budista, talvez até entrasse), ela
disse: "Bom, gente, vocês já viram minha vida; que ela foi cheia de
experiências, mas eu queria só dizer uma coisa: há alguns meses,
aconteceu comigo a melhor e mais fascinante experiência da minha
vida; eu descobri que Jesus de Nazaré está vivo. eu me encontrei com
ele, e ele mudou a minha vida. E não mudaram muito as coisas em
volta de mim, gente. Eu continuo lutando para viver, para sobreviver;
meu marido me deixou, eu crio os meus filhos... A luta é a mesma, mas
agora a minha atitude mudou; agora eu estou vendo a vida com os
olhos de Jesus.
O irmão lá da VINDE disse que o auditório inteiro se pôs de pé e
aplaudiu efusivamente essa moça.

Uma semana depois, nos desesperamos. Descobrimos que uma


irmã dissera ter tido uma revelação do Senhor, para que seguisse
aquela cantora, para onde ela fosse.

- Meu Deus! - gemi eu.

- Irmão - disse à pessoa da VINDE que estivera no show - estou


tendo uma "revelação" de que você tem de ficar entre os dois, o tempo
todo, senão, vão estragar a menina - afirmei em tom de séria
brincadeira.

E o irmão foi ao show.

Lá chegando, a "irmãzinha da revelação" estava à mesa; e foi logo


dizendo:

- Eu tive uma revelação que é para eu "grudar" no pé dela, senão


ela vai deslizar. Ela tem de se "desmundanizar".

A nossa cantora cantava e todo mundo aplaudia, exceto aquela


irmãzinha vigia. Lá pelas tantas, anunciou-se aqueles música "Se Você
Quiser Ser Minha Namorada", e a garota virou-se para a amiga que
estava com ela e disse: "Essa a gente pode aplaudir, porque - lembra,
antes de começar? - nós consagramos essa música ao Senhor. Então,
essa é santa; quando acabar a gente aplaude".

Eu não sei, não. Se um psiquiatra estivesse perto, mandava


internar na hora! Porque é uma atitude doentia, patológica! Não sei de
onde inventaram este cristianismo. O Jesus desse projeto religioso é
um ídolo! Não é o Cristo histórico, morto e ressuscitado dos
evangelhos, maior que os rituais humanos.
A espontaneidade como forma da espiritualidade

Essa espiritualidade promove a espontaneidade como forma de


espiritualidade na presença de Deus.

A forma da espiritualidade integral é a não-formalidade.

Você sabe por que houve a narrativa da transfiguração? Porque


Pedro, Tiago e João oravam de olhos abertos. Senão, o rosto brilhava, a
veste resplandecia, Elias e Moisés apareciam, e ninguém via nada. No
máximo, eles iam dizer ter ouvido uns rumores noturnos... E só houve
ocasião para os discípulos terem sono naquela hora, porque eles se
sentiam à vontade, na presença de Jesus. Vejam que coisa! Jesus se
transfigurando e Pedro bocejando! Se fosse eu, talvez dissesse:
"Respeitem este momento santo!".

Não estou aconselhando ninguém a bocejar. Estou apenas dizendo


que há pastores por aí que, se o indivíduo se mexer no banco, ele pára
de pregar, porque é um desrespeito a sua espiritualidade. Jesus se
transfigurou, Elias e Moisés falaram, tudo ficou cheio de luz em volta, e
Pedro mostrava-se desesperado para se manter acordado, porque se
sentia à vontade na presença de Deus. Senão, ele pediria a João que lhe
desse uns tapas na cara: "Eu bato na sua cara e você bate na minha, e
fazemos de conta que estamos aqui mantendo a nossa ortodoxia de
vigília".

E só houve a proposta do "santo camping", porque Pedro achava


que Moisés, Elias e Jesus não faziam questão de catedral, diz o verso 4
(Mateus 17:4). por isso é que ele diz:" ...vamos fazer, aqui, três tendas,
rapidinho; e um camping santo". A espiritualidade deles era
espontânea. O Jesus deles não fazia questão de catedral. Qualquer
paninho para cobrir do sereno estava bom.

Moisés e Elias também eram vistos assim. Ora, Moisés andou no


deserto tanto tempo, e Elias dormiu em cavernas, por que é que agora,
depois de glorificados, eles quererão status de catedral? Tenda serve!
E tudo isso só foi possível, porque a liturgia era democratizada e
franqueadora de palavra aos irmãos. Marcos 9:5 diz " Então Pedro,
tomando a palavra... "A expressão está dizendo, literalmente, que ele
interrompeu Jesus, Moisés e Elias! Já imaginou isso? Aquilo era o
supremo concílio da espiritualidade! E ele diz:

- Com licença, senhor presidente. Data venia.

Tomou a palavra!

Outro dia, um irmão me disse que uma igreja de gente muito


simples 0 mas cujos concílios, agora, estão ficando complicados, só
falando em público quem sabe o "advocacês", a língua dos advogados -
estava sediando um desses encontros conciliares da denominação.
Dizem que todo mundo chegava lá e dizia: "Data Venia, irmãos", e
falava. Depois, no intervalo, muitos estavam procurando a irmã Data
Venia, em quem todos falavam.

Mas, voltando ao nosso assunto, você já percebeu como o culto da


transfiguração é espontâneo? Como esta liturgia não tem fixidez? Como
o culto não estava engessado? Pedro toma a palavra! Agora, não venha
me dizer que isso não pode acontecer em sua igreja porque o culto lá
resplandece mais do que o do Hermom. Naquela reunião havia espaço
para as pessoas tomarem a palavra.

O estranho, entre nós, é que, quanto mais espiritual é o líder,


menos democráticos se torna para com sua igreja. Sua espiritualidade é
a dos Aiatolás, não do cristianismo. A esse respeito, Pedro recomenda
aos líderes e presbíteros da igreja que eles não se estereotipem no
modelo sociológico circundante (1 Pedro 5:1-4). Qual era esse modelo?
Era o de César, o dominador. Pedro estava como que a dizer: "Vocês
não são césares da Igreja; não são caudilhos. São apenas modelos do
rebanho".

Mas, entre nós, o que acontece, é que o projeto social opressivo


circundante estabelece a nossa eclesiologia. Há alguns líderes cristãos
que gostam tanto da ditadura, que mesmo que ela acabe "lá fora",
permanece dentro da igreja.
- Como povo de Deus é santo, não dá golpe, não faz virada; não
pede diretas já..." -, não vota a favor do impeachment, o déspota
eclesiástico vai ficando.

Espiritualidade também de vale

Vemos que a espiritualidade ali revelada é uma espiritualidade


também no vale, no buraco, na depressão.

Pedro disse: "Senhor, o sagrado tem de ficar aqui em cima, no


monte". Mas ele não sabia o que dizia; estava falando, conforme o
texto, uma enorme besteira. Quem quer fazer da espiritualidade um
fenômeno apenas dos picos e dos montes, é um louco, porque a vida
não se dá apenas nos picos das montanhas; ela se dá, também, nos
vales escuros e cheios de espíritos malignos, que assombram a
existência. (Mateus 17:14-21)

Não sabia o que dizia.

A espiritualidade integral não é uma espiritualidade só de euforia.


É uma espiritualidade também de gemido, de luta, de depressão. Quem
vive esta espiritualidade não pode jamais escrever o livro: "Dez Passos
sobre como Jamais Ficar Deprimido", porque o caminho desta
espiritualidade passa, também, pelo tédio, pelo banzo, pela saudade,
pela melancolia, pela chance de sentir-se mal-amado, pela guerra
espiritual, pela luta, pelo buraco, pelo vale. E ninguém está mais
espiritual no alto do monte do que quando lá em baixo, no vale. A
alegria da celebração não é mais espiritual do que o gemido da
intercessão. A exultação da vitória não é mais espiritual do que a oração
arrependida dos nossos insucessos. Temos uma vida só, na presença do
Senhor. O Cristo da transfiguração não era mais pleno do que o do
Getsêmani; aquele que "exultou no espírito" pela salvação dos
humildes (Lucas 10:21), não era mais espiritual do que aquele que
chorou sobre a cidade (Mateus 23:37), não era mais humanamente
santo do que aquele que denunciou com energia a tragédia que se
abateria sobre as cidades impenitentes (Mateus 11:20-24). E,
prosseguindo, diríamos: aquele que disse "Vinde a mim os cansados e
sobrecarregados e eu vos aliviarei...", não era mais pujante,
espiritualmente falando, do que aquele que disse: "A minha alma está
profundamente triste até a morte..." (Marcos 14:33)

Dessa forma acaba-se com a idéia de que os estados


verdadeiramente espirituais são apenas aqueles vestidos com a
aparência de euforia. A verdadeira espiritualidade sofre com os que
sofrem (ou quando se deve sofrer) e alegra-se com os que se alegram
(ou quando se deve alegrar), mas não desiste jamais de ir em frente,
encarando a vida ou a morte (1 Coríntios 12:26; Romanos 12:15; João
16:36).
CAPÍTULO 5

CRITÉRIOS PARA AVALIAÇÃO ESPIRITUAL

Conquanto seja importante desenvolvermos nossa sensibilidade,


para percebermos todas as nuanças do modelo de espiritualidade que o
protótipo da transfiguração nos apresenta, isso ainda não nos basta.
Apresentam-se-nos ainda algumas questões que precisam ser
cuidadosamente tratadas. Entre elas, temos a questão dos critérios de
aferição, que respondem as seguintes perguntas: quais são os meios de
avaliar, de aferir e de medir a saúde dessa espiritualidade? Como saber
se se está andando no caminho certo? Porque não bastam os elementos
até aqui mencionados; sua presença, pura e simples, não nos garantem
muita coisa. Senão, vejamos: os liberais dão mais valor à história do
que nós; eles estão dando valor à história há muito tempo, mas a
espiritualidade deles eu não quero. A Teologia da Libertação dá mais
valor à geografia econômica, social e política, do que nós, mas eu não
"fecho" com todos os pontos que ela ensina, nem com sua
hermenêutica, nem com sua noção das Escrituras, nem com sua
mediação que faz do instrumental marxista o único meio de promover
justiça ou de debelar as injustiças na sociedade. O corpo, como
fisionomia da espiritualidade, já vem sendo pregado pelo Fernando
Gabeira há muito tempo, e o Harvey Cox, também há muito tempo,
incorporou esse conceito ao patrimônio da sua teologia; eu, porém, não
concordo com boa parte do que ele ensina. A natureza, como adereço
da espiritualidade, é preconizada e propalada desde o movimento
hyppie, mas não é uma pregação cristã. A cultura, como produção
humana espiritualizável, vem sendo "antropologizada" e resgatada por
grupos de teologia liberal, mas eu também não concordo inteiramente
com a visão deles. A espontaneidade, como forma de espiritualidade na
presença de Deus, já virou até bagunça, em alguns lugares. E a
espiritualidade como um projeto psicologicamente cíclico, que
acompanha o subir e o descer das nossas ondas psicológicas, não é uma
descoberta só nossa; qualquer psicólogo diria que um indivíduo que se
mantém em estado de constante euforia precisa ser internado, tanto
quanto um que permaneça em constante estado de depressão. A vida
sobe e desce. E como o mundo de Perelandra, do C. S. Lewis, lembra?
Sobe e desce. O que no momento e vale, noutro e montanha, sem você
sair do lugar porque em baixo, as ondas estão passando.

Então, como você pode aferir a saúde dessa sua espiritualidade


integral? Quais são as suas principais características?

A espiritualidade sadia é cristocêntrica

Sabemos que ela é sadia, se é centrada em Jesus. O verso cinco


(Mateus 17:5) diz: "Este é". Esta é a grande confissão da transfiguração.
Esta é a grande declaração de fé; este é o centro de tudo: "Este é o meu
Filho amado, em quem tenho todos os meus delírios, todo o meu
prazer". O verso oito diz que eles, levantando os olhos, não viram a
mais ninguém, senão a Jesus.

Francisco de Assis foi maravilhoso, Tomás de Aquino foi


fantástico, Calvino foi um gênio, Lutero foi um gigante e Finney foi
uma brasa viva; mas o centro de nossa espiritualidade é Jesus de
Nazaré. Moisés e Elias desapareceram; ficou só Jesus.

Hoje em dia a gente tem muito mais espiritualidade estribada em


certos personagens canonizados em nosso meio evangélico do que em
Jesus. Watchmann Nee, em cada livro que escrevia dizia: "estou
apavorado, com medo que as pessoas me transformem em mito".
Quanto mais ele disse isso, no entanto, mais o mitificaram, coitado.
Agora, temos aí os "paul yonggi choianos"; temos muitos e muitos
mitos; somos tão católicos quanto os católicos. Só que os nossos mitos
não estão em altares de mármore; estão, sim, em altares psíquicos.

Olhe para Jesus de Nazaré. Moisés e Elias sumiram. Ficou só Jesus


Ele é a chave de interpretação da vida. Leia a vida com o rosto de Jesus.
Não aceite nenhuma noção de espiritualidade que, contrastada com
Jesus, fique acima ou abaixo dele. Jesus é o Verbo que se fez carne. Por
isso, a única maneira de você entender o Verbo, hoje, é usando Jesus
como chave hermenêutica para compreensão do Verbo, ou seja, da
Palavra. Porque, se o Verbo se fez carne, tudo quanto a Bíblia diz
ganhou interpretação na vida concreta e histórica de Jesus de Nazaré.
Qualquer hermenêutica, por melhor elaborada que seja, que projete um
texto desses para além ou para aquém da prática de Jesus, é
hermenêutica falseada, porque Jesus é a própria interpretação histórica
e concreta da Palavra; é a hermenêutica vestida de sangue. Ele é o
centro.

É centrada na cruz

Você pode aferir a saúde de sua espiritualidade se ela é centrada na


cruz. Lucas diz, no capítulo 9, versículo 31, narrando a transfiguração,
que Moisés e Elias conversavam com Jesus sobre a cruz! Sobre a
partida que ele estava para realizar em Jerusalém. A cruz é o tema da
espiritualidade; a cruz é o grande assunto da espiritualidade.

A espiritualidade é séria, se leva a cruz a sério, se a põe no centro.


Se não houver cruz na sua espiritualidade, ela é apenas meditação
transcendental; a ioga pode ajudar melhor você. A espiritualidade
cristã vê a cruz como a mira da vida. A cruz, não sé na perspectiva
soteriológica, da salvação, mas também como projeto de existência;
como aquilo que a gente tem de pôr nas costas todo dia e carregar,
seguindo o caminho do Senhor e afirmando uma existência que
acontece em paixão e solidariedade, mesmo em meio à rejeição. O
cristão deve levar a única cruz que lhe é oferecida como referência: a
cruz de Jesus.

Nesse sentido, a cruz que o cristão deve carregar aparece como


perdão aos alienados (Lucas 23:39-43); como preocupação pela
necessidade emocional do próximo (João 9:26-27); como sofrimento
do absurdo em Deus (Mateus 27:46); como solidariedade pela
necessidade material básica do ser humano (João 19:28); como
compromisso com as implicações do amor até ao fim da vida (João
19:20); e como existência que vive e morre nas mãos do Deus que é Pai
(Lucas 23:46). Carregar a cruz e condição "sine qua non" para o
discipulado. Além disso, a própria espiritualidade só se manifesta como
sadia se vivenciada na perspectiva da cruz e das propostas de vida para
as quais ela nos desafia.

Obedece ao Evangelho

Você pode dizer que a sua espiritualidade é sadia, se ela


desemboca em obediência ao Evangelho.

Diz Mateus 17:5: "A ele ouvi". Não há outras vozes; outros ruídos
têm de cessar. Têm-se apenas de ouvir a voz das vozes: a voz de Jesus.
Espiritualidade que não assume a forma e a encarnação da voz de Jesus
não é espiritualidade; não importa o quanto você jejue, quanto tempo
você fique trancado em seu quarto escuro; não importa se o "gueto" de
oração do qual você participa, ora com as mãos erguidas; não importa
se você fala em línguas; não importa o que você faça. O que importa é
se você ouve; se ouve a sua palavra, e não só se lê o que ele disse, mas
se lê também seu modo de viver. O que importa mesmo é se você
convida este projeto dos desejos de Jesus a tornar-se carne na sua
existência. Ouvir, por outro lado, não é apenas assentar-se
dominicalmente nos bancos dos templos; não é, apenas, ir a encontros.
Ouvir Jesus, na Escritura, é encarnar.

Eu conheço pessoas que são capazes dos gestos mais carismáticos


possíveis. Ao vê-los no momento de culto, você é capaz de dizer que
aqueles irmãos são de uma espiritualidade irretocável. Eles sabem
todos os cacoetes da espiritualidade; sabem a hora de delirar, a hora de
levantar a mão, a hora de bater palmas, a hora de ajoelhar, a hora de
dizer, levianamente, a um indivíduo que eles nunca viram, e com o qual
eles não se importam, nem querem saber quem é: "Eu te amo; em
nome do Senhor, eu te amo". Só não conseguem dizer isso àqueles com
quem convivem todo dia. As mulheres de tais irmãos, certamente
ouvem aquilo e pensam: "Meu Deus, há quinze anos que ele não diz
isso para mim". Eles sabem todo o ritual, mas não traduzem o
evangelho que ouvem todo dia, em vida, todo dia.

Eu conheci um homem considerado um profeta. Cada "piscada"


que ele dava era uma visão. Tinha aquele tipo de teologia californiana.
Já ouviu falar nela? Teologia californiana é aquela que diz: "hoje de
manhã, as cinco para as nove, o Senhor me falou que as nove e sete ia
passar o meu ônibus". Muitos desses livros que se vendem aí estão
cheio desta teologia.

Esse irmão tinha essas características espirituais. E eu disse:


"Puxa, esse indivíduo é interessante!"

Um dia ele me encontrou, deu uma piscada, virou os olhos e soltou


uma meia dúzia de profecias. Falou: "Amém?" E eu disse: "Amém,
irmão". Quem bom! Foram todas coisas maravilhosas: "Eu vejo você
pregando para duzentas mil pessoas, amém?" - disse ele. Eu disse:
"Amém, quero muito. Se quiser botar para um milhão, aleluia!"

Estou esperando cumprir. Já chegou perto de cinqüenta mil.


Portanto, ainda falta um bocado. Tem de se multiplicar por quatro,
para chegar lá.

Um ano depois, eu tive contato com um amigo da secretária dele e


com outras pessoas que trabalharam, dia a dia, com ele. Fiquei sabendo
que ele é intragável; e mais intragável que cigarro "pó rouco" de
nordestino, que você tenta botar para dentro e tosse. Insuportável,
estuprador das menores dignidades emocionais dos seus funcionários.
Ele é amargo. Dizem que é um absinto.

Eu não sabia, e, chegando, falei: "Ah, o irmão fulano de tal é tão


amável e bom".

- E bom?! - retrucou alguém. - Só se for lá! Aqui, é uma desgraça.

"A ele ouvi". Espiritualmente sadia ouve e traduz em vida de Jesus


as palavras do Senhor.
Afasta a fobia do divino

A espiritualidade é sadia, se afasta a fobia do divino do nosso


coração. Porque há espiritualidade que são psicopatológicas;
transformam Deus em patrulheiro, em xerife; "Kojak" celestial. Deus
dá menos medo que o deus que alguns pregam por aí.

O que tem de gente apavorada por aí, você não pode nem
imaginar. Apavorada! Por causa de um Deus - desculpe a expressão -
quase diabólico. Punitivo, estraçalhador, vingativo; mesquinho,
egoísta, miserável. Não é o Deus vivo e verdadeiro.

Pedro, Tiago e João tinham dentro de si, uma espécie de


psicopatologia do divino. Eles eram judeus acostumados ao legalismo;
o Deus deles era esmagador. quando eles ouvem a voz do Pai, dizendo:
"Este é o meu Filho", enchem-se de medo. É que diz o verso 7. Mas
Jesus, imediatamente diz: "a espiritualidade integral não comporta
medo da divindade. Não temais! Erguei-vos e não temais".

Que coisa linda! A voz do Pai não tem de apavorar ninguém. Você
pode levantar-se e encher-se de liberdade e alegria na presença de
Deus. A espiritualidade que povoa o mundo com anjos que mais
parecem fantasmas, não é espiritualidade cristã.

Certa vez, minha esposa e eu fazíamos uma visita, com uma irmã,
em São Paulo. Ao entrarmos no apartamento de um pastor amigo, ela
disse: "Ih, estou sentindo um cheiro de opressão..." Ela via demônios
atrás das cortinas, dos móveis, em todo lado. Aquilo me deu uma
pena... Eu estava sentindo cheiro de amor. O pastor que morava
naquele apartamento era tão bom, como uma família maravilhosa; e a
cortina dele era tão bonita... "Não temais!" Mais são os que estão
conosco do que os que estão com eles. Aleluia! "Mais forte é aquele que
habita em vós do que aquele que está no mundo".

- Aquele que falou - viu, Pedro, Tiago e João? - não é o adversário;


é o Outro, o grande companheiro; é o Pai. Nada de medo. Fiquem de
pé, que a vida continua. Vamos em frente - teria dito.
Considera a Trindade

Sua espiritualidade é saudável se ela integra a Trindade à


percepção da fé. Às vezes, a gente fica pensando que a Trindade é
apenas uma espécie de sofisticação teológica cristã da mente
aristotélica. Temo essa mania de seccionar e dividir: o Pai faz isso, o
Filho se ocupa daquilo e o Espírito Santo trata daquilo outro - quase
uma organização multicósmica, onde cada um tem o seu papel.

A Trindade não é uma invenção cristã. Ela brota, corre fina, livre,
viva - todavia perceptível - por todo o Velho Testamento, e explode no
Novo. Nunca como uma Teologia Sistemática. A Teologia Sistemática,
sim, é uma invenção nossa. Agora, a Trindade está presente em todo o
Novo Testamento de maneira velada, mas sistematizável.

É uma fé sadia, é uma fé que integra a Trindade na sua percepção


do sagrado. E vejam como a Trindade está presente na transfiguração:
o Pai é quem fala acerca do Filho - diz o verso 5. O Filho é aquele de
quem o Pai fala; o Espírito, segundo João, é o único que glorifica e onde
há glória há o Espírito. Não é isso que 2 Coríntios 3 nos diz? O
ministério do Espírito é o ministério da glória. De modo que existe o
monte da Transfiguração, conforme 2 Coríntios 3:18, todo dia, na nossa
vida, porque vamos sendo, glorificados, segundo a imagem do Senhor
pela obra do Espírito.

A Trindade tem de ser equilibrada, na percepção da nossa fé. Jesus


só não foi um esquizofrênico porque tinha um Pai. Ele nasce da Virgem
mas teve uma casa, onde havia um pai. A figura do pai não foi
inventada por Freud ou Yung, mas por Deus. Por isso, Jesus de Nazaré
era sadio; a psiquê sadia dele. Ele teve todas as referências necessárias
à saúde psíquica.

Na verticalidade é assim também. Quem tem vida espiritual, sem


Pai, adoece. Quem tem vida espiritual sem um irmão mais velho, fica
dengoso e mimado. Quem não vive a realidade do Espírito fica oco e
seco, e jamais sente aquela solidariedade íntima de Deus consigo;
porque o Espírito é esse companheiro de segredos que intercede por
nós com gemidos inexpressíveis.

A Trindade não é apenas doutrina. É a maquete que se encaixa na


necessidade psicológica de todo ser humano, e compõe o projeto de
nosso psiquismo de saúde mental, e gera em nós uma fé total, e não
seccionada.

Pratica Oração

Você pode aferir a saúde de sua espiritualidade, se ela é uma


espiritualidade que pratica a oração. Lucas 9:28-29 nos diz que Jesus
subiu ao monte com o propósito de orar e diz o verso 29: "Enquanto
orava, transfigurou-se".

Espiritualidade que não passa pela oração, irmão, é meditação.


Paul Tillich disse no fim da vida, que uma coisa estranha acontecera
com ele: à medida que ele enveredara por sua perspectiva teológica
semi-existencialista, ele deixara de orar; não conseguia mais orar. Tudo
quanto fazia, agora, era meditar. Espiritualidade que não ora não é
espiritualidade.

É verdade que, no cristianismo a vida quer converter-se em


oração, mais isso não prescinde dos momentos de entrada solitária do
recôndito da cassa, na solidão de um lugar, para vergar joelho, para
estar diante de Deus, todo dia, e falar com ele, sobre ele e por causa
dele. Falar acerca daqueles que nos oprimem e falar com Deus sobre
nós mesmos. Estas são as três perspectivas de oração dos salmos. Nos
salmos, as pessoas oram a Deus por causa do que Deus é; falam com
Deus acerca dos inimigos que os oprimem e falam consigo mesmos, na
presença de Deus: "Por que estás abatida, ó minh'alma? Por que te
perturbas dentro de mim?"

Se não houver essa oração, a espiritualidade está trôpega, aleijada


e manca. veja o que escrevi, certa vez quando pensava sobre a oração
na vida de Jesus:
"Cristo faz da vida uma oração. Não apenas a oração passa a
ser a chave do dia e a tranca da noite, mas transforma-se no
próprio ato de viver. Jesus ensina que as mãos oram quando
servem em amor, e que a vida é uma prece dramática e
coreografada pelas atitudes e se transformam em oração positiva a
favor dos interesses do Reino de Deus. No entanto, não apenas o
existir é uma oração, mas também deve intensificar-se na forma e
nas expressões cotidianas do corpo que se ajoelha na presença de
Deus, numa hora específica, quando a alma, o corpo e o espírito
balbuciam as orações e súplicas diante do Pai. A este respeito, diz-
nos a Escritura que Jesus orava sistematicamente. quando se via
premido pelos múltiplos afazeres do dia e da semana, convidava os
seus discípulos para um tempo de descanso e oração (Marcos
6:30-34). Tal projeto não excluía, porém, a possibilidade de uma
interrupção pelos clamores e aflições de uma multidão doída e
faminta, que ansiava pelas mãos pródigas de Jesus. Assim, o
tempo de oração podia ser interrompido, mas nunca o objetivo de
estar diante de Deus. E, após atender as carências humanas, ele
retorna ao ponto inicial, ao objetivo maior do dia, ou seja, estar na
presença de Deus, sozinho, em oração (Marcos 6:45-46). O local
não era necessariamente importante desde que oferecesse a
tranqüilidade necessária. Podia ser qualquer monte, em volta do
mar da Galiléia (Lucas 9:28). Mesmo a aridez de um deserto foi
para Jesus um fértil lugar de oração (Lucas 4:1 e Marcos 1:35). E
Jesus chega a enfatizar o fato de que a solidão dos lugares acentua
ainda mais o sentimento da presença de Deus (Lucas 5:16). Tanto
fazia, deserto ou jardim. O importante era orar, pois o que Deus
faz florescer no coração pode brotar em qualquer lugar, desde que
se esteja orando (João 18:1).

"Jesus todavia não orava sempre sozinho. Havia momentos


em que convocava amigos especiais para compartilhar com ele um
tempo de oração. Nestes encontros a glória foi manifestada (Lucas
9:28), mas também o choro e a angústia (Mateus 26:36-37).
Para Jesus, toda hora é hora de oração. As madrugadas
ouviram sua voz diante do Pai (Marcos 1:35) e, na escuridão, sua
presença clareava a noite pelo fulgor que de sua face procedia
(Marcos 6:46-47).

Também ao pôr-do-sol sua voz se erguia em oração (Marcos


6:46-47). Uma grande decisão e uma opção definitiva eram
motivos mais que suficientes para que uma noite inteira fosse
gasta em súplicas (Lucas 6:12).

Dependendo da ocasião, Jesus podia dedicar-se a uma longa


oração (Mateus 4:2), ou proferir uma rápida e objetiva súplica
(João 11:41-42). A coreografia do seu corpo durante a prece
compunha-se de gestos humildes: prostrava-se em terra (Marcos
14:35). Ao intensificar-se a agonia, intensificava-se também o seu
clamor (Lucas 22:44).

"Presentemente, há duas maneiras bem definidas de se


entender a oração: há aqueles que a vêem como um ritual
devocional, com o qual se deve começar bem o dia; é como
levantar com o "pé direito". Para tais pessoas, não importa se
alguém esteja morrendo naquele mesmo instante a espera delas,
pois acham essencial não deixar de orar no tempo marcado.
Pensam que Deus se compraz num tempo de oração que rouba de
alguém um alívio. Este é um ponto de vista legalista em relação à
oração. Por outro lado, há aqueles que não oram e que, na sua luta
contra o legalismo da oração, deixam-se levar por uma espécie de
antinominianismo devocional. E simplesmente não oram. Com
Jesus, no entanto, aprendemos que o discípulo deve segui-lo ao
lugar de oração. O seu convite - "Segue-me" - inclui também os
momentos diários de prece. Sem oração, o discípulo é ativista, mas
não discípulo. E o que retiramos do exemplo de Jesus é que,
evitando qualquer legalismo, não nos deixemos enlaçar pelo
descompromisso com a oração".
Como anda a sua vida de oração? (Citação de D'Araújo Filho,
Caio Fábio - Seguir Jesus: o Mais Fascinante Projeto de Vida,
Niterói, Vinde, 1985, páginas 80-93.

Acontece comunitariamente

Sua fé é sadia se acontece em uma perspectiva comunitária. Jesus


não era desses líderes de espiritualidade individualista e intimista, mas
sim participativa e comunitária. Imagine que ele convida homens a
segui-lo e vive com esses homens todas as implicações de uma
existência vivida vinte e quatro horas por dia. Quando tem sede, ele
pede água; quando está cansado, dorme. Se fosse do tipo que
ressonava, os discípulos o ouviriam. Quando faz necessidades
fisiológicas, ele não é arrebatado para fazê-las; ele é gente, no tempo e
no espaço, e ele se expõe àqueles homens. E quanto mais humano é,
mais divino se torna para essas pessoas, que começam a descobrir que
o lado mais bonito de Deus é a sua humanidade em Jesus Cristo.

Rubem Alves disse algo que, se um teólogo ortodoxo, literalista,


fosse interpretar, diria que é uma heresia mórmon. Mas foi algo mais
ou menos assim: "Se alguém pudesse perguntar a Deus: "Ó Deus, o que
o Senhor quer ser quando crescer?"- como a gente pergunta às crianças
- Deus diria "Tudo o que eu quero ser é Jesus de Nazaré. Nele eu me
totalizei; ele é a maturidade divina". Como disse Leonardo Boff: "nela a
gente descobre o lado divino de Deus no homem e o lado humano do
homem em Deus". De modo que, à medida que ele vai se expondo, vai
se revelando, vai se deixando conhecer, ele vai sacralizando até aqueles
coisas que escondemos, que achamos que são vergonhosas, mas que,
quando praticada na totalidade da espiritualidade, são incorporadas a
uma estranha liturgia da vida. De modo que Jesus não só deixa
conhecer as banalidades da existência humana - também presentes no
seu cotidiano, porque ele não estava fora da condição humana, por ser
Deus encarnado -, mas também expõe sua devoção mais íntima aos
seus companheiros, aos seus amigos.
Na verdade, o que estamos estudando é uma exposição devocional
gloriosa, porque, conforme Mateus 17:1, ele não sobe sozinho ao monte;
não quer ter, sozinho, o privilégio da transfiguração; não quer palestrar
com Moisés e Elias sem secretários para anotar. Ao contrário, deixa os
outros penetrarem na sua intimidade, levando consigo Pedro, Tiago e
João. Pode-se alegrar que soa falso convidar alguém para nossa
intimidade devocional, a fim de que eles nos vejam glorificados e
transfigurados. Mas Jesus também faz isso no extremo oposto da
espiritualidade integral. Se o Hermom é o extremo positivo da
espiritualidade, o Getsêmani é o extremo negativo. E, em ambos os
casos, os amigos estão juntos. Ele diz: "Vós sois os que tendes
permanecido comigo nas minhas tentações".

Aí está a marca da espiritualidade integral; um modo de aferi-la;


de ver se ela está presente. Se ela é comunitária; se a nossa devoção não
é apenas intimista; se ela participa alegremente com os irmãos do
compartilhar da vida e da nossa relação com Deus. Nossa
espiritualidade é sadia, se os irmãos estão inseridos no projeto da nossa
devoção; se a nossa tendência não é de um individualismo
absolutamente solitário. Ninguém pode ser uma ilha, nem um
arquipélago; nós tempos de viver fraternalmente no continente do
amor. É aí, onde os outros entram e passam, onde têm liberdade de
penetrar em nossa vida, onde nos expomos, onde têm acesso as nossas
fraquezas, ao nosso choro, ao nosso resplandecer, a nossa oração mais
compungida; é aí que nos encontramos maduros.

Não é autoglorificante

A nossa espiritualidade é saudável, se não é ufanista e


autoglorificante. Diz o verso nove do capítulo 17 de Mateus que Jesus,
ao descer do monte, faz diferente do que qualquer um de nós faria.
Principalmente se tivéssemos levado Pedro, Tiago e João lá, para ver
como a gente têm relação íntima com Deus e como as figuras mais
eminentes do mundo celestial, Moisés e Elias, estão prontas para saber
como estamos vivendo os últimos momentos de nossa vida.
Possivelmente os levássemos lá, também, para propalar em alto e bom
som, a grandeza da nossa comunhão com Deus. Mas Jesus faz
diferente. Ao descer do mundo, no dia seguinte, diz o verso nove, ele
recomenda: "A ninguém conteis a visão. Vamos guardar isso para nós.
Eu não preciso deste "marketing" da minha santidade; não precisam
dizer o que viram e ouviram. Isso grita no silêncio da minha existência.
Sinal maior vai ser a ressurreição dos mortos. Deixem que a própria
história da espiritualidade integral vai desembocar na vitória da vida
sobre a morte. Vocês não precisam fazer propaganda da minha relação
com Deus".

Integraliza a história

A nossa espiritualidade é sadia se ela faz da história uma só


história. Isso porque nós conseguimos esquizofrenizar toda a história.
Temos a história religiosa, temos a história da igreja; temos a história
da salvação, e temos a história da história. E nessa "policotomia"
histórica, fazemos eleição daquela que mais nos interessa. Se o
indivíduo é extremamente individualista, ele diz: "A mim só importa a
história da salvação". Pode, então, o mundo estar se arrebentando; ele
quer e fazer estatística de quantos estão levantando a mão. Se ele faz
uma opção um pouquinho mais abrangente, ele estuda a história da
Igreja: "Só me interessa a Igreja. Inclusive, na Constituinte, acho
interessante termos tido muitos deputados federais evangélicos para
defenderem as causas da liberdade religiosa". Nesse caso o que a ele
interessa é o que à Igreja interessa. Não importam os miseráveis, a
desgraça - isso faz parte de uma história que não é nossa. A nossa é a da
Igreja. Se ele tem uma visão um pouquinho mais ampla, ele se interessa
pela história das religiões. Aí, ele já é um teólogo liberal, de visão
ecumênica.

Mas, se ele é um cristão que vive uma espiritualidade integral, ele


não "dispensacionaliza" a história, não a secciona, não a "dicotomiza",
não a "tricotomiza", não a "policotomiza". Conserva a uma só história.
Veja como, na transfiguração, não há lugar para o
dispensacionalismo nem para o seccionamento da história: a Lei está
presente, e falando da cruz. Não é lá que Moisés está? A Profecia está
presente, e falando da Cruz. Não é lá que Elias está? A Igreja está
presente e ouvindo a mensagem da cruz, através de Pedro, Tiago e
João, que estão lá.

Onde é que há dispensacionalismo aqui? Onde é que acaba a lei,


começa a profecia, começa a Igreja - "Deus não fala com estes, não
pode falar com aqueles, não se mistura com aqueles outros..." A
História é uma só! Deus não é o Lee Iacocca, que divide seus projetos
em fases, departamentalisticamente falando, absolutamente fechadas e
setorizadas; Deus é o Deus da totalidade. E importa a ele o todo da
história. Ele não se importa apenas com Israel, em um certo momento,
ou não se importa, em outro, apenas com a Igreja; nem, tampouco, se
diz, em qualquer lugar da Escritura, se o arrebatamento da Igreja é
antes, durante ou depois da conversão de Israel. Não sei em que tempo
é, nem estou interessado em saber. O que sei é que, seja quando for, eu
subo. Isso é tudo o que importa. Essa questão sobre "a que horas sai o
vôo" não me interessa; meu bilhete está marcado, eu tenho o cartão de
embarque no bolso do coração, e o comandante já me disse para ficar
tranqüilo porque ele mesmo vai chamar todos os inscritos para a
viagem.

Então, todas essas departamentalizações "wimalguianas" não têm


nada a ver com a Escritura. Deus é o Deus da História. Israel só é
diferente da Malásia, como nação, no que se refere ao conselho total de
Deus para a História. Mas diante de Deus, o judeu é absolutamente
igual ao queniano. A pregação pela fé é primeiro para o judeu e depois
para o grego, se crerem. Mas o capítulo 2, verso nove, de Romanos, diz:
"também tribulação e angústia e aflição vêm sobre a alma de todo
homem; primeiro do judeu, depois do grego". Homem é homem, em
qualquer lugar. País é país, em qualquer lugar.

Amós, no capítulo 9, verso 7, diz que não foi apenas Israel que teve
um êxodo patrocinado por Deus; que os filisteus tiveram o êxodo deles;
que os etíopes tiveram o êxodo deles. O profeta pergunta: "Vocês estão
cheios de jactância, pensando que o único ato libertário social de Deus
na História foi a favor de vocês? Não, Deus não está preso e
circunscrito às fronteiras de Israel; Deus é Deus libertador da História.
Até os filisteus tiveram um êxodo; tantos outros tiveram um êxodo; e
foram êxodos que o Senhor promoveu, que o Senhor criou".

A História é uma só. A sorte dos moribundos, na esquina, não é,


aos olhos de Deus, "dicotomizada" da nossa reunião e do nosso
momento de culto; é uma coisa só.

Às vezes fico me imaginando à porta da Igreja da qual sou


membro, lá em Niterói, naqueles dias de "culto de arromba", quando o
negócio está pegando fogo, e a gente pensa que vai estourar o
tabernáculo; fico assim, me imaginando meio de fora, olhando; e
penso: "a julgar por esse povo, parece que o mundo está uma
maravilha".

"Ao Senhor pertence a terra e tudo o que nela se contém..."

Cantamos, alegres.

Mas, às vezes, aquele momento é para nós um momento de "a-


historicidade". Nem sempre a gente consegue integrar aquele momento
de celebração com a lembrança de que, enquanto a gente celebra, tem
gente se descerebrando, porque não tem comida para alimentar o
cérebro; e que, naquele instante, há gente morrendo e ficando burra,
por via de seleção social espontânea.

O que precisamos é ter a visão de Eliseu. Eliseu era capaz de ver a


glória e de celebrar: "Mais são os que estão conosco do que os que estão
com eles". Mas você se lembra de quando ele fitou Hazael? Diz o texto
que ele fitou tanto, que começou a chorar, e disse: "Eu vejo o mal que
tu vais fazer ao povo de Deus".

E difícil integrar essas duas visões: não perder a dimensão da


glória de Deus e não perder a visão da dor.

Aqui, na transfiguração, a história é uma só. Os


dispensacionalismos e os seccionamentos acabam. Moisés, Elias,
Pedro, Tiago e João; Lei, Profecia e Igreja; estão todos juntos,
apontando em uma só direção: a cruz e a salvação de Deus para todos
os povos, para todas as nações, para todas as línguas da terra.
CAPÍTULO 6

CONSEQÜÊNCIAS PRÁTICAS

Após termos visto como se origina a espiritualidade integra, depois


de havermos examinado a maquete apresentada por Deus no monte da
transfiguração e descoberto, no texto de Mateus, alguns critérios para
avaliarmos nossas relações com o absolutamente divino, cabe, agora,
perguntarmo-nos sobre as implicações dessa manifestação integral, do
vazamento total de nossa vida pelo sagrado. Quais serão, enfim, as
conseqüências práticas dessa espiritualidade integral?

Vence o diabo

Vamos traduzir o texto ora em exame (Mateus 17) em cotidiano e


em atitudes nossas, nas coisas corriqueiras da vida. Ele prossegue,
dizendo que a primeira conseqüência prática é que se passa, daí em
diante, a ter uma certeza inolvidável de que a vida cristã integral é uma
vida de vitória absoluta sobre o diabo.

Mateus, no capítulo 17, de 14 a 21, diz-nos que o primeiro


confronto que eles têm é com o diabo. É interessante perceber que essa
vida espiritual integral manifesta se primeiro encontro com o diabo. Há
mentes nas quais falta esta visão da batalha espiritual, da luta e do
confronto, e de que a nossa luta neste mundo não é contra
condicionamentos sociológicos, psicológicos, químicos ou biológicos,
mas é, sobretudo, contra “principados e potestades, contra os
dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do
mal nas regiões celestiais”. Por isso, a espiritualidade integral é
praticada logo na perspectiva do exorcismo; do enfrentamento de
possessos, de obcecados pelo diabo, de gente tomada por espíritos
mediúnicos malignos, por gente cuja mente foi “patologizada” por
espíritos diabólicos. Essa espiritualidade integral crê na natural
presença do sobrenatural no mundo real; crê que a vitória sobre o
diabo é um fato consumado, e diz que, ainda que a luta seja renhida, a
vitória final já está garantida.

Jesus expulsa o demônio, e os discípulos dizem: “Senhor, por que


não conseguimos? “Jesus responde: “É porque faltou perseverança,
faltou oração, jejum e fé”. Porque a vitória já está garantida. Já está
garantida! Eu não acredito em espiritualidade que exorcisa da teologia
a presença do diabo. Toda verdadeira espiritualidade tem de
confrontar-se com o fato de que vivemos em um mundo espiritual de
guerra e de luta. E que o diabo não está aprisionado com alguma
corrente cósmica, em algum cantão do universo, como alguns
escatologistas pregam por aí. Mas ele – com o perdão da citação – “está
vivo e ativo no planeta terra”, possuindo mentes, manipulando
sistemas, transformando ideologias em instrumentos de morte,
exacerbando a pecaminosidade natural do homem, manipulando
governantes e gerando choques.

A história, segundo a Bíblia, não pode ser interpretada apenas com


os instrumentos científicos e sociológicos, nem, tampouco, apenas com
a dialética materialista; a história tem de ser vista, também, a partir da
perspectiva espiritual.

Daniel diz que o confronto entre a Pérsia, megalomaníaca e


opressiva, e o rosto do mundo que ela subjugou não era apenas um
confronto político e social; havia principados e potestades
“marionetando” todo aqueles sistema (Daniel 10:13).

Já observou que, no texto de Marcos 5, sobre o endemoninhado


gadareno, quando Jesus manda que os demônios saiam, o rogo que
fazem é “não nos mande para fora do país”? Aquele era o campo de
ação deles; tinham resolvido agir naquela gente, naquela cultura, e se
especializar em palestinismo. Eram demônios de interessantíssimos
desejos antropológicos: “Conhecer a fundo a cultura, para ver o
máximo de proveito que a gente pode tirar daqui”.
Uma das conseqüências práticas dessa espiritualidade integral é
que ela não foge do diabo; ela o encara e o enfrenta. Enfrenta
endemoninhados e possessos; pisa em cima de despachos na esquina;
não tem medo de galinha preta, nem de carranca, nem de mãe-de-
santo, nem de médium, nem de Lúcifer, porque “maior é aquele que
está em nós do que aquele que está no mundo”.

Sacrifica-se socialmente

Essa espiritualidade integral tem como conseqüência um sacrifício


social altruísta. O capítulo 17 prossegue, nos versos 24 a 27, dando-nos
conta de que Jesus é confrontado com um imposto compulsório
injusto. Roma chegou lá e começou a taxar o povo com impostos
altíssimos. E Jesus resolveu pagar ao opressor, diz o verso 24.
Perguntaram a Pedro:

- Vosso mestre não paga imposto?

- Paga; paga sim – respondeu. – Ele declara imposto de renda todo


ano.

Preste atenção no que vou lhe dizer: a atitude de amargura social é


tão maligna quanto a de subserviência social. Parece que nosso
problema é que não conseguimos viver sem ser polarizando as coisas.
Ou somos amargurados ou somos subservientes. A atitude de Jesus
tensiona esses dois pólos. Jesus ensina uma espiritualidade tensionada
ao nível do social: ele paga, mas denuncia.

- Pessoal, não vamos criar um rebu aqui, para não escandalizar os


mais fracos – diz ele. – Mas, que isso é injustiça, é. E os filhos do Reino
têm de estar acima disto – conclui.

E quando ele mandou o recado, na hora própria, chamou o


presidente de raposa.
Vence a pseudomaturidade

Essa espiritualidade integral cria uma vitória simples e singela


sobre a orgulhosa pseudomaturidade. Vejam o que diz o capítulo 18,
entre os versos 1 e 5, onde se chama à luz e à discussão a questão de
quem é maior, menor, mais humilde, mais líder; de quem tem a
primazia. Quem de nós é o mais maduro? Quem de nós é o líder?

A verdadeira maturidade espiritual leva-nos a uma simplicidade


não simplista; a uma humildade não auto-humilhante, e a uma
consciência total de que ainda existe sempre o que crescer. Jesus
compara a humildade da espiritualidade integral à atitude da criança,
que é simples, que é humilde, mas que não se despreza e que tem uma
consciência total de que está crescendo. O maior sinal de imaturidade é
quando o indivíduo acha que não tem muito mais o que saber.

Tenho encontrado os dois extremos, em minha “peregrinações”.


Um velhinho, certa vez, puxou assunto:

- Eu ouvi dizer que o irmão estará falando em um congresso, não


é? – disse ele. – Convidaram-me, mas eu não vou não. Não preciso
mais de congressos; um pastor da minha idade já aprendeu tudo o que
se precisa saber sobre o Evangelho, o irmão não acha?

- Senhor está dizendo, não é... – balbuciei.

É bonito quando você um homem como o Reverendo Antônio


Elias, com 81 anos de idade, já muito mais para lá do que para cá, em
termos de avaliação natural do percurso da vida humana, dizer: “Sabe,
hoje ou ouvi aquilo; nunca tinha pensado nisso! Que interessante!” Há
algum tempo ele me disse: “Hoje eu estava lendo Filipenses, aquele
versículo 12, do capítulo 2... Sabe que eu nunca tinha prestado atenção
àquele versículo? Que coisa! Como Deus me falou ao coração...” Um
homem idoso, com a condição de dizer isto!

“Se não vos fizerdes como crianças”, ensináveis, ainda não estareis
no caminho da espiritualidade integral.
Outro extremo é o exemplo do rapaz que viajou comigo, de
Amsterdã para o Rio de Janeiro. Vinte e poucos anos de idade, ele
vinha com um rei na barriga. Eu disse para mim: “Senhor, ele não está
com um rei na barriga; eu é que estou achando que ele está com um rei
na barriga, mas ele não está. Faz de conta que não está”. Mas eu sabia
que ele estava.

Tentei começar uma conversa com o garoto, mas ele estava, assim,
por cima, o tempo todo; e eu fui ficando sem graça. Não sabia o que
falar.

- Onde o irmão mora? – pergunte.

- Belo Horizonte. Já ouviu falar? Já conheceu, lá, a cidade, alguma


vez? – perguntou ele com voz impostada.

- Já sim. Já passei por lá, algumas vezes.

- Ah, certo, Que bom.

Aí, eu pensei: “E agora? O que é que eu pergunto para ele?”


Ocorreu-me uma idéia:

- Escute, irmão. O que é que o irmão faz?

-Ah, eu sou um grande evangelista. Estou fazendo cruzadas por


todo o país.

- É?! Há quantos anos?

-Não, faz alguns meses.

Certo; que bom, irmão; Deus o abençoe. O rapaz, então, esticando-


se um pouco no assento para poder olhar de cima para baixo,
perguntou, no seu timbre preferido:

- E o irmão, onde mora?

- Em Niterói.

- Niterói... Niterói... – repetiu ele, como quem tenta localizar a


minúscula cidade num vasto mapa mental.
- É! Niterói, ao lado do Rio – ajudei. A única coisa bonita que tem
lá é a vista do Rio – gracejei.

Como o silêncio fosse ficando difícil outra vez, arrisquei:

- O irmão é casado?

- Não – disse ele. – Eu cheguei à conclusão de que um evangelista


com as minhas características não poderia mais casar. Com um futuro
tão grande, mulher e filhos só iriam atrapalhar. E o irmão é casado?

- É... – respondi eu – eu tenho mulher e quatro filhos... (e se der


tempo ainda adoto mais uns dois, porque um deles é adotivo – pensei).

- Isso deve lhe atrapalhar demais, não é, irmão? – questionou.

- Não... Até aqui só me ajudou. Sem eles, eu ia ser um infeliz


desgraçado.

Eu tentava me comunicar com ele mas não conseguia. “Ele deve


ter uns trinta e quatro, por ai”, pensava eu, porque o rosto dele não era
de menino.

- O irmão tem quantos anos? Perguntei.

- Vinte e quatro.

E fiquei pensando: “Meu Deus! Será que, apara alguns senhores,


por aí, eu sou tão ridículo quanto esse menino o foi nesta conversa
comigo?” Deu-me um pavor de, em algum momento, em alguma hora,
ao dizer alguma coisa, estar sendo ridículo. Quem sabe, tentando
ensinar, pregar, exortar o dia inteiro.

Esta espiritualidade integral apresenta uma vitória simples sobre a


orgulhosa pseudomaturidade. Sabe muito quem sabe que não sabe;
porque quem pensa que sabe ainda não sabe como convém saber.
Vive para facilitar trajetórias

A espiritualidade integral tem a preocupação de existir para


contribuir e facilitar a trajetória dos irmãos. O capítulo 18:6-14, deixa
isso muito claro. Quem está vivendo essa espiritualidade vive com a
preocupação de facilitar a trajetória dos irmãos. O verso 6 diz que ele
evita ser escândalo; o verso 10 diz que ele evita desprezar os irmãos e
vive com imensa consciência de que, se necessário for, suas ações – as
mãos, diz o verso 8 – se encolherão. O seu comportamento, conforme o
verso 8 – os pés, a maneira de agir, de andar 0 será reformulado; e os
seus desejos – os olhos, conforme o verso 9 – serão entregues em amor,
para o bem do outro.

São duas as realidades aí salientadas por Jesus. A primeira está


nos versos 6 e 9, que é a do juízo. A segunda está entre os versos 11 e 14,
que é a do amor. Note, eu não devo viver preocupado em contribuir
para facilitar a trajetória dos meus irmãos só porque tenho medo do
juízo; de que uma pedra de moinho me seja amarrada no pescoço. Ou
que eu seja lançado o inferno de fogo, como diz o verso9. Eu devo viver
tentando facilitar a trajetória dos irmãos, compelido pelo amor de
Deus, como dizem os versos 11 a 14; “Porque o vosso Pai celeste ama
esses pequeninos, essas ovelhinhas”. Quando uma delas se converte,
ele tem um prazer que ninguém segura. Essa é a expressão que está ali:
prazer. Prazer! Que coisa linda, não é? Que antropomorfismo
“psicologizante” maravilhoso! Um Deus que tem prazer. Aleluia!

Baseado nisso, devo dedicar a minha vida a facilitar a trajetória


dos irmãos. Mantendo, sempre, o equilíbrio entre juízo e amor pois
quando se fundem, eles criam um projeto de vida que existe para o
outro.

Enfrenta amargura

Essa espiritualidade conseqüente gera uma atitude permanente de


enfrentamento da amargura. Examine Mateus 18:15 a 19:12, e veja
como há um trecho todo sobre a amargura.
Essa espiritualidade enfrenta a questão da amargura na Igreja.
Está entre os versos 15 e 20. Essa amargura resultante da quebra de
relações do irmão chocado contra o outro; de um parceiro recalcitrante,
que não admite o erro; essa amargura capaz de quebrar, de
desequilibrar e desafinar a sinfonia do amor comunitário, como diz o
verso 19. Deus só reponde as orações quando estamos de acordo. O
termo grego e “quando há sinfonia” 0 uma palavra técnica que o
maestro Karabischevski convertido poderia transformar de música em
teologia e de teologia em música. Deus ouve as orações quando há
acordo, quando há amor, e há amor quando não há amargura; e não há
amargura quando houve perdão, quando ouve cura. O desligamento só
foi justo quando ocorreu depois de uma insistência enorme para
restaurar aquele indivíduo à comunidade. Nenhuma medida
disciplinar, no Novo Testamento, é “a priori”; é sempre ultra, “a
posteriori”, é sempre “in extremis”. Porque disciplina no Novo
Testamento, nunca é para faltosos; é só para cínicos. Os faltosos a gente
levanta, como diz Gálatas 6:1-2; ajuda a levar a carga, admoesta, ora,
ora, insiste, ajuda. Só os cínicos, que já foram confrontados de todos os
meios e modos, e não refizeram a sua postura diante de Deus, é que
precisam ser desligados; e o desligamento só é justificado depois disso.
Quando o desligamento é “a priori”, Ele quebra a sinfonia do amor. E
não há uma presença qualitativa, intensa, perceptível do Espírito de
Jesus Cristo nesse ajuntamento comunitário justiceiro mas sem amor.

Essa espiritualidade gera uma atitude permanente de


enfrentamento da amargura nas relações interpessoais em geral. Está
no capítulo 18, do verso 21 ao 35, onde se estimula a transformação de
Lameque em um personagem positivo.

Não foi Lameque quem disse que a Caim iriam vingar sete vezes, e
a ele, Lameque, que matara duas pessoas, só porque haviam pisado em
seu calcanhar e arranhado um pouco o seu dedão do pé, iriam vingar
setenta vezes sete?

“E disse Lameque as suas esposas:

Ada e Zilá, ouvi-me;


vós, mulheres de Lameque,

escutai o que passo a dizer-vos:

Matei um homem porque ele me feriu;

e um rapaz porque me pisou.

Sete vezes se tomará vingança de Caim,

de Lameque, porém, setenta vezes sete”.

(Gênesis 4:23-24)

Jesus diz que o Novo Testamento transforma a vingança em


perdão: “assim como Lameque iria ser vingado multiplicadamente por
causa de seus atos de amargura, ódio e homicídio, no Novo Testamento
vocês têm de ser Lameques do amor. Ainda que o seu irmão venha,
peque e o afronte, perdoe sempre; eu não digo sete vezes, mas setenta
vezes sete. Ou seja, tantas quantas forem as vezes que ele venha,
ofereça-lhe sempre uma memória renovada e perdoe-o”.

A conseqüencia de não se perdoar está no verso 35. A parábola de


Jesus, sobre os efeitos de se guardar a amargura no coração, conclui
colocando aquele que não perdoa numa masmorra. A gente, quase
sempre, só interpreta isso escatologicamente, colocando no inferno o
destino eterno das pessoas. Mas para mim, Jesus, antes de tudo, e
sobretudo, está “psicologizando” este texto. Quem não perdoa vive
numa masmorra hoje, aqui e agora.

Estava conversando com um pastor amigo, e falávamos sobre um


colega de ministério, já muito velho e que gastou seus últimos quarenta
anos de vida em amarguras e em ódio. E esse meu amigo comentava
que encontrou com ele em outra cidade e verificou que ele estava
totalmente doente; mentalmente enfermo; doente de dar dó. Um líder
da denominação no país; porém doente mental. Porque guardou ódio e
amargura, queixas e rixas; viveu armado. Não foi irmão dos irmãos; foi
patrulheiro.
Um trágico destino, porque quem não perdoa é posto na
masmorra psicológica, onde os verdugos da culpa chicoteiam dia e
noite, sem parar.

Uma espiritualidade integral sabe que não pode olvidar o caminho


da reconciliação interpessoal freqüente. Você pode falar as línguas dos
homens e dos anjos; remover montes com a grandeza da sua fé;
construir edifícios para as maiores missões do mundo, com o seu poder
de crer. Pode profetizar; tornar-se o maior filantropo do planeta; o
maior líder da comunidade; mas se não tiver amor, diz Paulo, você não
passa de vácuo. Nada. “Ex-nihilo” psicológico e existencial. Nada!

A hora de olhar para dentro do coração é agora.

Essa espiritualidade integral faz o enfrentamento da amargura


também no casamento. Vejam como o texto passa e entra logo a
questão do divórcio. Vem aí, a reboque, em seguida. Porquanto a maior
razão pela qual há divórcio é porque há amargura; questões que não
foram resolvidas, trabalhadas, elaboradas, cuspidas, vomitadas,
tumores que não foram sarjados do peito dos cônjuges.

Então, uma espiritualidade que não passa pelo casamento e falsa.


E quando ela não passa pelo casamento, umas coisas terríveis começam
a acontecer. E a primeira é que qualquer motivo se torna um grande
motivo para a separação. Diz o verso 3 do capítulo 19:

“É lícito ao marido repudiar a sua mulher por qualquer motivo?”

A segunda é que se institui na relação a lei da “dureza de coração”,


diz o verso 8. E a terceira é que acontece imediatamente o divórcio
emocional. Antes do juiz e das autoridades decretarem o divórcio, já
houve o divórcio. Quando discutiram a lei do divórcio, todo mundo
estava brigando contra e eu não entendi por quê. Só se divorciam,
pensava eu, os que já estão divorciados. Conheço centenas de pastores
divorciados, e que permanecem casados – legalmente casados -,
habitando legalmente com suas esposas. Mas eles não têm mais nada
um com o outro. Qualquer motivo os separa; o que prevalece é a lei da
dureza do coração, da inflexibilidade, da rispidez, da apatia; não há
nenhuma poesia entre eles; estão separados. Talvez você, que me está
lendo, esteja literal e emocionalmente divorciado. A diferença é que o
nosso comportamentalismo faz com que a gente continue habitando
com o cônjuge debaixo do mesmo teto. E alguns outros, simplesmente,
resolveram traduzir o divórcio emocional em divórcio legal.

Uma espiritualidade integral vence a amargura no casamento. E a


conseqüência dramática, negativa, terrível, de se estar divorciado
dentro do casamento é retratada por Pedro, na sua primeira epístola (1
Pedro 3:7). Ele podia falar, porque era casado (e, segundo testemunhos
de Pedro, em 1 Coríntios 9:5 e 6, ele costumava levar a esposa consigo,
para as viagens missionárias, fazia a esposa participar da sua vida).
Olhe o que ele diz:

“Maridos, vós, igualmente, vivei a vida comum no lar...”

Preocupem-se com a gaxeta da bomba, que está vazando; ajudem a


trocar lâmpada; dêem uma vassourada, de vez em quando, debaixo do
piano, dêem uma mãozinha à mulher, que está desesperada,
desgrenhada, com menino chorando para todo lado; ajudem a cortar
cebola, vão ao supermercado, vivam a vida comum do lar, com
discernimento, e tenham consideração com a esposa. Não sejam
machistas com a parte emocional mais frágil; tratem-na com a maior
dignidade, porque vocês são herdeiros do mesmo universo carismático.
Vocês são herdeiro da mesma graça de vida. Se vocês estiveram
emocionalmente divorciados, as suas orações serão interrompidas.

Como pode haver espiritualidade em um casamento sem


casamento? Não há oração, quando o marido e a mulher estão
divorciados emocionalmente; quando vivem em mundos díspares, o
casamento torna-se um acontecimento ateu, sem Deus.
Investe nas crianças

Espiritualidade integral promove, como conseqüência, um especial


investimento em crianças e nos filhos. O capítulo 19, nos versos 13 e 14,
depois de tratar do divórcio, chama para a cena as crianças.
Interessante, não é? Porque quando acontece o divórcio, quem mais se
arrebenta são as crianças.

E a espiritualidade integral passa, não só pelo casamento, mas


também pelas crianças; nossas e dos outros. Pela da gente e pelas que
na são de ninguém.

Essa espiritualidade sem atenção e respeito, consideração e tempo,


sem a alegria de ver, de ter e de estar com a criança, não é
espiritualidade. Se você quiser saber o nível de profundidade que uma
pessoa tem com Deus, observe o trato dela com as crianças,
especialmente os filhos.

É por isso que os filhos de pastor vivem, freqüentemente, com ódio


de Deus. São “Andres Gides” da vida; filhos de pastor que apostataram.
Porque os seus pais simplesmente não ajudaram a construir nas suas
mentes uma idéia bonita de pai. Quem não tem uma bela visão do que é
pai, não pode depositar confiança em um Deus que a si mesmo se
chama de Pai e que nos manda assim chamá-lo.

É Jesus quem nos ensina a estar abertos para as crianças. Vejam a


diferença da espiritualidade dele para a dos discípulos. Os discípulos
dizem: “Não, isso aqui não é para crianças. Isto é coisa séria, gente! Isto
é o Reino de Deus! Estamos acabando de expulsar um demônio;
estamos resolvendo um problema eclesiástico tremendo, para ver quem
é o maior no Reino dos Céus. Acabamos de ser advertidos sobre a
questão do inferno, do juízo, do amor de Deus; estamos tratando de
coisas sérias. Há um conflito teológico entre o rabino Hilel e o rabino
Shamai, e Jesus o está resolvendo. Porque Hilel diz que é lícito ao
marido divorciar-se da sua mulher por qualquer motivo, e Shamai diz
que não, só em caso de adultério. E Jesus acaba de dar um veredicto:
disse que Shamai tem razão! E você vem trazer menino? Isso não é
hora de menino! Deixa isso para lá, arranje uma creche... – com
professores crentes, heim?

Essa espiritualidade que repele crianças na é a espiritualidade de


Jesus. Uma espiritualidade que passa alheia à sorte dessas crianças
barrigudas e comidas de vermes. Uma espiritualidade que chama as
crianças de homens do futuro não é espiritualidade; eles são homens
no presente. Pequeninos, ainda, tão somente. Uma espiritualidade que
não se curva para ouvi-los não é espiritualidade.

Tão importante quanto ouvir a voz de Deus é ouvir a voz dos


nossos filhos. Quem não ouve a voz dos filhos não ouve a voz de Deus.
Considere seus filhos um sacramento. Cuide deles com a mesma
reverência com que você cuida do pão e do vinho da Ceia. Bote cara na
cara, olho no olho, boca na boca. Faça como Eliseu sobre o menino:
deite, respire a vida em cima dele, em nome do Senhor.

Há ocasiões em que estou orando e entendo que preciso orar mais,


e a meninada bate lá na porta: Papai, papai! Vamos ver, ali, qualquer
coisa que está acontecendo; às vezes até um super-herói qualquer. Meu
Deus! – penso. Será que vou ter de sair daqui? O meu super-herói é o
Senhor! Para que eu vou lá ver seja quem for?

O meu garoto, segundo, de quinze anos, gosta de uma bola.

- Vamos bater uma bolinha ali ao lado, pai?

- Filho, eu estava aqui...

Houve um tempo em que eu dizia: “Filho, o pai está aqui numa


audiência com o Senhor, orando. Depois eu vou, ta? “Depois, com o
tempo, eles foram-se educando, e sabendo que há hora para tudo.
Freqüentemente, eu estou fazendo uma coisa muito gostosa;
escrevendo um estudo, um livro, lendo alguma coisa que me está
abençoando o coração, e eles fazem um pedido desses, deixando-me
naquela luta sobre o que é o mais importante: se é esta devocional
daqui, ou é jogar bola com eles. Até que, de uns tempos para cá, foi
ficando claro para mim que os meus filhos são mais santos do que meu
púlpito e que a minha devocional, ficar cara a cara com eles, é muito
mais impressionante e necessária que a minha devocional do quarto.
Vou dizer-lhe uma coisa: se eu nunca mais tivesse tempo para orar, e
todo o tempo que me sobrasse fosse apenas para estar com os meus
filhos, eu preferia fazer a devocional do convívio familiar – estar junto
com eles.

Sair com eles é culto; passar a mão na cabeça deles é culto, beijar a
boquinha, o narizinho, acariciar a orelha deles é culto, na presença do
Senhor. Não negligencie essa área e esse aspecto da sua vida, porque
qualquer espiritualidade integral tem, forçosamente, que abençoar as
crianças. As minhas, as suas e aqueles que estão, como cães, virando
latas, sem donos, nas esquinas.

Cria consciência de lei interior

Essa espiritualidade integral gera uma forte consciência de que a


lei é interior, e não exterior. Introduz-se aqui a história do chamado
“jovem rico” (Mateus 19:16). Esse moço que vem falar com o Senhor, a
partir de uma falsa espiritualidade, composta por quatro pontos.

Primeiro, ele apresenta a espiritualidade do “que farei?” (Verso


16). Tudo quanto agrada a Deus é só o que eu consigo fazer, sem
entender que o que eu faço só tem sentido diante do que eu sou.

Segundo, revela uma espiritualidade falsamente fraterna, diz o


verso 17. Ele se julga capaz de estar cumprindo todos os mandamentos
da fraternidade, conforme o texto. E não somente isso, mas ele
estabelece uma relação de reverência fraterna com Jesus, que este
denuncia como falsa. Esse jovem anda gastando o palavreado fraternal
do bom para cá e do bom para lá; amado para cá, amado para lá; “bom
mestre”.

Jesus parece dizer-lhe: “Há um só que é absolutamente bom, que é


Deus. Quando usar essa palavra, pense bem nela. Porque se você não
me vê conforme eu digo que sou, essa palavra foi de um fraternalismo
retórico dispensável. Use-a coerentemente apenas para Deus”.

Terceiro, mostra uma espiritualidade seletiva de mandamentos,


diz o verso 18, porque Jesus, ao lhe perguntar se ele conhecia os
mandamentos, recebe como resposta: “Quais?” Quais são? De fato –
pensa ele – há aqueles pelos quais eu me interesso e outros não”.

Quarto, revela uma espiritualidade comportamentalista, dizem os


versos 18 e 19. Jesus lhe dá uma lista de mandamentos, especialmente
os horizontais, e ele afirma “tirá-los de letra”, desde a sua juventude,
sem nenhum problema. Acontece que Jesus omitiu o último, que é o de
não cobiçar, mencionando apenas os mandamentos exteriores, do
comportamento, aferíveis por critérios de juízo aparentes: se honra o
pai, se honra a mãe, se não vai para a cama com a mulher do próximo,
se não faz falso julgamento de alguém, em algum lugar. Todos esses
mandamentos até Marco Aurélio, o Romano, conseguiu cumprir ao pé
da letra, e neles o filósofo Sócrates foi especialista. Mas omitiu o
último, que é aquele que “internaliza” tudo, e em cima do qual,
basicamente, todo o Sermão da Montanha trabalha, não no que se faz
fora, mas no que se tem dentro. E o último mandamento é: “Não
cobiçarás”. Este Jesus não menciona. Por quê? Porque a mentalidade
desse moço é seletiva. Ele achou bom que Jesus tivesse omitido aquele
mandamento. Jesus, de fato, não o menciona, apenas o traduz em vida:
“Então está ótimo. Vá, venda tudo o que você tem, dê aos pobres e você
terá um tesouro no céu”. Como cobiçasse demais tudo o que tinha e
tudo quanto gostaria de ter, saiu triste e foi para casa.

Com isso, Jesus está ensinando que essa espiritualidade integral


tem uma forte consciência de que a lei é interior; nasce dentro; brota
do coração, da mente, e não é apenas produzida do exterior. A
verdadeira espiritualidade nasce no íntimo, não de fora; vem de nossa
rendição responsável à graça. Há, aqui, duas palavras inconciliáveis na
Teologia: rendição, que é bem calvinista, e responsável, bem
arminiana. É aí que nasce o compromisso com o mandamento e a lei.
Subjuga o dinheiro

Essa espiritualidade integral gera uma atitude permanente de


cautela e subjugamento do dinheiro. O capítulo 19, versos 23 ao 29,
introduz o perigo da riqueza. Jesus faz advertências veementes sobre
como lidar com os recursos concretos e econômicos.

Os ricos – cuja espiritualidade se caracteriza apenas pelas suas


freqüentes orações e consagrações de seus bens a Deus, a cada domingo
de manhã, naquele hora que a gente chama de “momento da gratidão”,
ou cujas riquezas são oferecidas a Deus apenas na perspectiva de um
agradecimento por uma nova conquista – não aprenderam ainda a
verdadeira atitude espiritual para com as riquezas.

Paulo diz, em 1 Timóteo 6:9, 10, 17 e 18, que as riquezas, antes de


serem uma bênção, são um perigo. Na realidade, elas são um perigo
que pode transformar-se em bênção. Isso acontece se o rico é generoso,
dadivoso; se ele compartilha, se olha o outro; se usa a sua riqueza para
promover o bem; se é rico, sobretudo de boas obras. E, como diz o
princípio de 2 Coríntios 8:6, se ele está, até “in extremis”, disposto a
obedecer ao critério de relação altruística com a riqueza, que foi
encarnada por nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo biliardário, fez-se
pobre por amor de nós, para que, pela sua pobreza, nos tornássemos
ricos.

Encontro, às vezes, alguns ricos que dizem: “Irmão, Deus está me


abençoando demais! Aí eu pergunto:

- Por que, meu irmão? Porque Deus só o está abençoando demais,


se você está investindo no Reino. Assim, se você está recebendo isso
tudo e não está investindo no Reino, Deus está amaldiçoando demais
você.

Alguém disse, lá no congresso de Amsterdã 86, que, se riqueza


fosse sinal de bênção, a máfia estaria ungida.
Riqueza só é bênção se ela se transforma em investimento no
Reino. Ela é um perigo que pode converter-se em bênção, dependendo
da atitude para com ela; e a espiritualidade tem de passar por aí.
CAPÍTULO 7

A ESPIRITUALIDADE DA IGREJA

Diante de tudo o que vimos até aqui, resta uma questão final, uma
questão prática a responder: como “eclesiologizar” a espiritualidade
integral? Na realidade, essa espiritualidade sobre a qual falamos até
aqui é de ar livre. Uma espiritualidade do parque, do estacionamento,
da cozinha. Ela não tem muito jargão eclesiástico. Acontece, no
entanto, que vivemos em uma conjuntura comunitária, que faz bem a
nossa vida, e é uma das dimensões da nossa espiritualidade. Então, a
questão se coloca em como eclesiologizar essa espiritualidade.

Vamos procurar ser breves, comentando, apenas, uma porção da


Palavra de Deus, que se encontra em Colossenses 2:8-23. As lições que
este trecho nos traz são as seguintes:

A encarnação unifica contrários

Você consegue “eclesiologizar” essa espiritualidade integral,


quando consegue passar para a comunidade a certeza de que todas as
dicotomias foram vencidas pela encarnação, que unificou o universo
como um todo. Se você é líder, passe isso para a sua igreja, porque é
isso que dizem os versos 8 e 9 de Colossenses 2: as vãs filosofias,
sutilezas, tradições dos homens, rudimentos do mundo, não são
segundo Cristo, porque Cristo resolveu o problema. Nele habita
corporalmente toda a plenitude da Divindade. A encarnação acabou
com os seccionamentos filosóficos, teológicos, com todas as
departamentalizações, e com todas as tradições ascéticas. Jesus integra
a vida.
Vence ordenanças prejudiciais

As ordenanças prejudiciais, que inibem a vida de ser livre e santa,


já foram vencidas por Cristo na cruz. Transforme a sua comunidade em
um lugar de terapia e não de patologia. Depressão, já basta a vida. A
Igreja tem de ser o lugar da libertação. Veja os versos 13 e 15, como
dizem que os delitos, a culpa, tudo isso já foi cancelado; o escrito de
dívida já foi removido; tudo o que nos era prejudicial, e as ordenanças
sobre ordenanças, tudo isso Deus removeu e pregou na cruz. E
despojou os principados e potestades; e deu uma gargalhada na cara
deles, triunfando na cruz. É a vitória da liberdade responsável sobre o
legalismo massacrante. A libertação para viver na presença de Deus.

Supera tabus

Essa verdadeira espiritualidade está para além de alimentos,


bebidas e dias santos, dizem os versos 16 e 17. Ninguém, pois, vos
julgue por causa de comida, carne de porco, presuntada Sadia e bebida.
É verdade que esses tabus são judaicos; são outros os tabus no nosso
meio. Ficamos julgando quem gosta de vinho, quem não gosta de
vinho!

O que estou querendo dizer é que chega de rudimentos e de


besteira. A guerra é maior; o inimigo é mais atrevido do que essa tolice
toda que tem ocupado a nossa mente; essa nossa tentativa de saber
como é o seco dos anjos e a circuncisão dos serafins.

Supera a super-humanidade

A verdadeira espiritualidade comunitária não é de uma humildade


exposta, nem de um revelacionismo repetitivo. Vejam o que diz o verso
18: ninguém se faça árbitro contra vós outros, dizendo que é
carismático demais. “Eu sou muito humilde, por isso posso julgar os
demais”. Ninguém julgue os irmãos, pretextando humildade e desvio
na espinha e rouquidão. A gente encontra um irmão com desvio na
coluna, precisando de médico, rouco, falando baixinho, e pensa: como
ele é humilde! Não, ele é doente! Precisa curar a voz e endireitar a
coluna. Humildade não é essa postura, é atitude.

“Ninguém se faça árbitro contra vós outros”, pretextando


humildade – e nem essa espiritualidade exacerbada, que tem anjos
como secretários o dia inteiro: “Eu vi um anjo aqui, outro ali; outro
falou comigo e mandou um bilhete...” Nem baseado em visões;
efetuadas em sua mente carnal, em uma espiritualidade inventada,
subproduzida.

A verdadeira espiritualidade é de uma humildade não exposta. Ela


não comporta um sobrenaturalismo não natural, nem vem de um
revelacionismo repetitivo.

Retém a cabeça e vive com os outros

A verdadeira espiritualidade comunitária é vivida com obediência


ao Senhor e é praticada na vivência do corpo de Cristo, diz o verso 19.
Retém a cabeça, da qual todo o corpo, suprido, bem vinculado, por suas
juntas e ligamentos, cresce um crescimento que procede de Deus. Não é
isolada, ela vive com os irmãos; aprende com os outros, sofre com os
outros, admoesta e é admoestada.

Supera o ascetismo

Finalmente, a verdadeira espiritualidade comunitária sabe que


usos e costumes e realidades exteriores têm cara de piedade mas não
vencem a sensualidade. Vejam os versos 20 e 23.

O que importa não é a cara da sua piedade, mas sim se você


morreu com Cristo. “Se morrestes com Cristo para os rudimentos do
mundo, como vos sujeitais ordenanças? – a essas irrisoriedades todas?
– diz Paulo. “Não manuseies isto, não proves aquilo, não ponhas na
boca, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos
homens”, porque todas essas coisas você usa, usa, e elas se destroem;
estão aí para isso mesmo. “Tais coisas, com efeito” – essa atitude de
ascetismo – “têm aparência de sabedoria”, mas são apenas fachada.
São culto de si mesmo; do “eu” e do “eu”. São falsa humildade, rigor
ascético – afirma o apóstolo.

Todavia, o que há de crentes legalistas adulterando, não é


brincadeira – “não têm valor nenhum contra a sensualidade”. A ironia
da história é que alguns dos cristãos mais renitentes e de um
fundamentalismo mais intransigente são aqueles que, no curso da
caminhada, mais vão tombando diante da sensualidade.

Há duas coisas muito parecidas: o liberalismo e a intransigência


conservadorista. O liberalismo aproxima do pecado, porque abre; e
esse ascetismo aproxima do pecado porque exacerba na mente os
temas da tentação. Vive em uma guerra tão carnal contra tudo, e tudo é
tão pecaminoso, que o volume da tentação cresce muito na mente e,
simplesmente, um dia explode, porque o legalista vive em um mundo
que o seduz – tudo o que ele toca pode ser pecaminoso e sedutor.
Simplesmente ele vive seduzido o dia inteiro. Um dia, espoca. Essas
coisas “não têm nenhum valor contra a sensualidade”.
CONCLUSÃO

Minha oração, meu desejo e minha certeza é que, se buscarmos


compreender e viver a espiritualidade integral ensinada por Jesus, as
nossas vidas individuais serão mais bonitas, nossas famílias serão mais
sadias, nossa visão da vida será mais dilatada, nosso culto será mais
constante, nossa noção do sagrado será mais cósmica, nosso amor pela
natureza será declarado, nossa teologia será mais completa, nossa vida
de oração será mais profunda, nosso impacto sobre o mundo será
muito mais significativo, e a glória de Deus descerá sobre nós. Amém.

É possível que você esteja terminando este livro com um nó na


cabeça, dizendo-se: quem é este sujeito que gosta de tantas coisas
aparentemente inconciliáveis?

É alguém que crê, como ensinou Paulo, que todas as coisas são
puras para quem anda com o Senhor. O que eu estou querendo dizer-
lhe é que a vida é muito maior do que o que a gente tem feito dela.

A nossa oração sincera é que aquilo que dissemos e que foi para
além do que o Espírito gostaria que tivéssemos dito, seja realmente
esquecido por você. Mas aquilo que dissemos da parte do Senhor,
desejo que o perturbe até que haja transformação.

Se a sua consciência foi fraca para algumas coisas que leu, medite
sobre Romanos 14. Se você é daqueles que comem só legumes, bebem
água e gostam só de vegetais, não julgue a quem come carne e bebe
vinho. Porque tem espaço para todo mundo, no Reino de Deus. João
Batista gostava de um gafanhotinho e de mel silvestre; e Jesus era
acusado de ser glutão, bebedor de vinho e amigo de publicanos e
pecadores (Lucas 7:33-34). A espiritualidade integral é um projeto que
tanto respeita as épocas de nossas consciências em evolução, quanto se
adapta às mais variadas facetas da personalidade e do temperamento
humanos.

Talvez você também se questione porque um evangelista como o


Pastor Caio está interessado em temas um tanto controversos. Eu lhe
respondo que é por duas razões:
1. Porque o próprio fato de eu estar comprometido com a
evangelização de milhares de pessoas neste país deixa claro, para
muitos desconfiados, que quem lhes fala não é um teólogo teorizante
sentado confortável, cômoda e indiferentemente em uma poltrona.
Estou “com a mão na massa”.

2. Porque, conquanto eu seja um obcecado com o crescimento da


Igreja – por isso evangelizo e aflijo-me imensamente quando penso na
qualidade de vida dos cristãos deste país. Há muitas doenças psíquicas
entre nós, as quais chamamos de marca da verdadeira espiritualidade.

Há igrejas que são verdadeiras usinas de doentes mentais. Há


pregadores que produzem psicóticos “em série”. Por que? Porque toda
espiritualidade que não integre todas as partes da vida tende a produzir
esquizofrenia.

Quando Jesus disse “Eu vim para que tenhais vida e vida em
abundância”, ele não se referia a um sentimento bom que invadiria o
coração humano de maneira mágica. Referia-se ao projeto humano
mais plenificante que já se deu na história: o próprio projeto de sua
vida. Daí eu pensar que a vida espiritual integral e abundante e a
própria vida de Jesus sendo buscada como modelo e maquete para as
nossas vidas, mediante a ação do Espírito Santo.

Minha oração é que eu, você, todos nós, possamos ir caminhando


na direção dessa espiritualidade integral, única forma de se ter vida e
vida em abundância.
OBRAS DO AUTOR

• Perdão: Encarnação da Graça


• Seguir Jesus: O Mais Fascinante Projeto de Vida
• No Divã de Deus
• No Divã de Deus – Volume II
• O Que Deus uniu
• Cantares
• A Cura das Feridas Interiores
• Mais que um Sonho
• Mensagem ao Homem do Século XX
• A Mulher no Projeto do Reino de Deus
• Uma Graça que Poucos Desejam
• Onde está o Infinito Pessoal
• Abrindo o Jogo sobre o Namoro
• Abrindo o Jogo sobre o Aborto
• Nos Bastidores dos Espíritos
• Novos Líderes para uma Nova Realidade
• Viver: Desespero ou Esperança
• Igreja: Comunidade do Carisma
• Igreja: Evangelização, Serviço e Transformação Histórica
• Síndrome de Lúcifer
• Elias está nas Ruas
• Espírito Santo: O Deus que Vive em Nós
• Um Projeto de Espiritualidade Integral
• Resposta à Calamidade
• Principados e Potestades
• Incesto
• A Guerra da Esperança Contra o Tempo
• Como Vencer a Tragédia sem Perder a Doçura
• Davi e Golias
• A Crise de Ser e de Ter

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Versão Digital: W. Costa. https://decretosdafe.blogspot.com

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