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Religare 9 (1), 3- 16, março de 2012

LUZIA PINTA: EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS CENTRO-AFRICANAS


E INQUISIÇÃO NO SÉCULO XVIII

LUZIA PINTA: CENTRAL AFRICAN RELIGIOUS EXPERIENCES


AND THE 18TH CENTURY INQUISITION

Robert Daibert Jr
Universidade Federal de Juiz de Fora
___________________________________________________________________________
Resumo: Esse artigo tem como objetivo analisar os conflitos entre a africana Luzia Pinta e seus inquisidores
portugueses em torno da interpretação de suas práticas religiosas. O texto investiga o significado das associações
e relações estabelecidas por Luzia entre elementos de sua herança cultural e religiosa centro-africana e o Deus
Cristão da tradição católica. Nesse sentido, serão observadas as estratégias de mediação simbólica operadas pela
acusada no intuito de demonstrar que seus rituais religiosos eram inspirados pelo Deus Cristão e não pelo diabo.

Palavras-chave: tradições religiosas centro-africanas, inquisição, escravidão, catolicismo.

Abstract: This article aims to analyse the conflicts between the African Luzia Pinta and her Portuguese
inquisitors concerning the interpretation of her religious practices. The text investigates the significance of
associations and relationships established by Luzia between elements of her Central-African cultural religious
heritage and the Christian God of the Catholic religion. To this end, the strategies of symbolic mediation used by
the accused to demonstrate that her religious rituals were inspired by the Christian God, and not the devil, are
analysed.

Keywords: Central-African religious traditions, Inquisition, slavery, Catholicism.

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Introdução Após ter seu vestido arrancado, ela foi


deitada em um potro, espécie de estrado de
Na manhã do dia 12 de agosto de madeira com saliências pontiagudas sobre
1743, o Tribunal do Santo Ofício de as quais seu corpo foi amarrado com
Lisboa submeteu Luzia Pinta a uma sessão correias de couro. Como era de costume,
de tortura. (ANTT, 1744, processo 252) 1 nesse tipo de tortura essas cordas eram
puxadas com intensidade de modo a
1 O processo inquisitorial de Luzia Pinta, comprimi-la contra as pontas de seu leito.
depositado no Arquivo Nacional da Torre do (DINES, 1992, p. 1007)
Tombo (ANTT) em Lisboa, é composto por 87
folhas manuscritas e foi registrado sob o número
252, maço 26. Esses manuscritos, produzidos entre Luzia era natural de Luanda,
1739 e 1744, encontram-se digitalizados e Angola, onde viveu desde o nascimento,
disponíveis na Torre do Tombo on line em < como escrava, por cerca de doze anos mais
http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=2300124>. ou menos, antes de ser levada ao Brasil
As citações desse processo, ao longo do meu texto,
serão feitas da seguinte forma (ANTT, 1744, pelo tráfico negreiro, no início do século
processo 252) XVIII. Em Sabará, Minas Gerais, ela ainda
permaneceu como cativa por muito tempo,
até conseguir a tão sonhada liberdade.
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Após viver em torno de trinta anos na contrato, uma pessoa renunciava a Deus,
região mineradora, a africana foi forçada tornando-se criatura do Diabo. Em troca,
novamente a cruzar o Atlântico. Dessa vez, recebia poderes especiais e conhecimentos
seu destino era Lisboa, onde foi submetida sobrenaturais sobre os homens e as coisas.
à prisão e ao julgamento no Tribunal do (MANDROU, 1979, p. 65-66) Ao
Santo Ofício. Após aprisioná-la nos contrário de um assassinato, roubo ou
cárceres da Casa do Rocio, os inquisidores estupro, julgados e punidos na justiça civil
iniciaram uma série de audiências do Antigo Regime pelo ato em si mesmo, o
intercaladas por um ou mais meses. O foco crime religioso (heresia) era avaliado pela
da investigação recaía sobre os consciência do delito, ou seja, pela escolha
significados dos serviços espirituais que deliberada em transgredir a fé católica.
ela prestava à população de Minas Gerais Julgavam-se assim as possíveis intenções
em rituais de matriz africana identificados do cristão em negar ou abandonar a sua
como calundu(s) pelas testemunhas religião (CALAINHO, 2008, p. 225-226).
ouvidas no Sumário de Culpas, em Sabará.
No caso de Luzia, o recurso à
Explicitamente, Luzia Pinta não era tortura foi escolhido após meses de
acusada pelo fato de recriar rituais tentativas frustradas de confissão de culpa.
possivelmente originados na África. O Entre março e julho de 1743, ela havia
foco de seu julgamento era a suspeita de passado por cerca de quatro audiências nas
que, nesses calundus, estivessem presentes quais foi interrogada sobre suas práticas e
as chamadas práticas de feitiçaria. Desde o estimulada a confessar seus crimes. No
século XIV, a feitiçaria foi transformada Tribunal do Santo Ofício, instalou-se um
em objeto de perseguições inquisitoriais embate cujas armas eram os sentidos
por meio da bula Super illius specula, do colocados em jogo em torno de uma
Papa João XXII. Desde então, as práticas negociação entre palavras que ora
mágicas que envolvessem explicita ou tentavam traduzir práticas ora tentavam
implicitamente a presença do demônio evidenciá-las ou escondê-las. Nesse
passaram a ser consideradas heresia. sentido, esse texto tem como principal
(DELUMEAU, 1996, p. 352) objetivo acompanhar esses embates entre
Luzia Pinta e seus inquisidores em torno da
Para que Luzia fosse interpretação de suas práticas religiosas.
responsabilizada pelo crime de feitiçaria, Para tanto, interessa perceber o significado
seus inquisidores precisavam, a todo custo, da associação estabelecida por ela entre
encontrar provas da evocação e pacto com elementos de sua herança cultural e
o demônio. Geralmente, essa necessidade religiosa centro-africana e o Deus Cristão
era uma verdadeira obsessão, transformada da tradição católica. Desta forma, será
muitas vezes em fio condutor do processo possível problematizar, ao final, as
(LAHON, 2004, p.10). Isso porque o que estratégias de mediação simbólica
caracterizava o feiticeiro como herege era, operadas pela acusada no sentido de
em suma, o fato de evocar e ter feito pacto demonstrar que suas práticas eram
com o demônio, conforme prescrição do inspiradas por Deus e não pelo Diabo.
Regimento do Santo Ofício de Portugal, de
1640. (apud CALAINHO, 2008, p. 226) Nessa luta entre ambas as partes
Para a Igreja, o pacto era um elemento pela afirmação e/ou construção de
crucial na classificação dessa heresia que significados, os inquisidores precisavam
afastava o cristão de sua verdadeira fé. saber mais detalhes a respeito dos serviços
Acreditava-se que, por meio desse espirituais oferecidos por Luzia Pinta.
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Inicialmente, com base em seus relatos em Ao som dos instrumentos e do


Lisboa e nos depoimentos das testemunhas canto de suas escravas, Luzia começava a
interrogadas em Sabará durante a pular, tremer e gritar palavras e frases
elaboração do Sumário de Culpa, (ANTT, desconhecidas, entrando em uma espécie
1744, processo 252) é possível reconstituir de transe. A partir daí, suas auxiliares
em parte seus rituais, considerando ao soltavam uma cinta antes amarrada em sua
menos aquilo que ambos quiseram ou barriga e Luzia colocava alguns penachos
puderam revelar adquirindo visibilidade coloridos na orelha dizendo receber
pelo filtro dos registros escritos do “ventos de adivinhar”. Nesse momento, os
processo. participantes eram convidados a se ajoelhar
e passavam a ser cheirados e assoprados,
Esses rituais eram presididos pela como forma de diagnóstico das doenças e
própria Luzia, acompanhada por três queixas. Aqueles identificados como
auxiliares, duas “negras angola” e um pessoas enfeitiçadas recebiam pós ou ervas
escravo de origem desconhecida. É curioso ora sobre suas cabeças ora em suas bocas,
notar que seus ajudantes eram todos sempre ao som dos gritos da oficiante que
escravos de sua propriedade, o que revela a muitas vezes precisava ser acalmada pelos
capacidade de certo acúmulo de recursos seus auxiliares. (ANTT, 1744, processo
financeiros, gerados talvez da prestação de 252)
seus serviços religiosos, como era comum
nessas situações. No caso de Luzia, não há Em algumas ocasiões, Luzia
indícios de enriquecimento ou formação de também oferecia vinho ou outras bebidas
grande fortuna. No entanto, ao que parece, alcóolicas aos seus assistidos. Na
parte de seu sustento financeiro após a sequência, ela ordenava que todos se
conquista da alforria vinha dos serviços deitassem de bruços no chão e
religiosos que ela passou a oferecer em imediatamente começava a passar por
Sabará. sobre seus corpos gesticulando de modo
ininterrupto. Havia casos em que muitos
Durante os rituais, celebrados em assistidos, após ingerirem as substâncias
sua própria casa ou na residência de seus oferecidas no ritual chegavam a vomitar,
assistidos, ela vestia-se com roupas ato que era interpretado como eliminação
especiais, ora descritas como “à moda de dos males espirituais. Em geral, dentro de
anjo” ora como “à moda turquesa”. Muitas certas variantes, procedia-se assim ao ritual
vezes, seus cabelos eram amarrados em de adivinhação e cura, realizado
formato de meia lua e sua cabeça era geralmente à noite e que chegava a durar
revestida por uma fita larga. No início da em torno de duas horas. Seus atendimentos
cerimônia, em uma espécie de altar cujo não eram oferecidos exclusivamente aos
dossel era composto por tecidos, Luzia africanos ou afrodescendentes, nem
permanecia assentada em uma cadeira, tampouco eram voltados apenas para
segurando nas mãos um espadim, uma cativos. Luzia era procurada tanto por
machadinha ou outro objeto de ferro. Ao escravos quanto por alforriados e também
agitar esses instrumentos, ela marcava com por homens e mulheres brancos, inclusive
os pés e os braços o compasso da música portugueses. (ANTT, 1744, processo 252)
ao som dos tambores e atabaques tocados
por seus escravos. (ANTT, 1744, processo Os atendimentos espirituais de
252) Luzia Pinta tiveram início após uma
experiência sobrenatural, espécie de êxtase
que ela classificou como doença em seu
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depoimento à inquisição. Segundo o habitado pelos antepassados e pelos


registro do escrivão do Santo Ofício, certa vez, espíritos ancestrais. A formação do
sacerdote passava assim pela iniciação
“na vila de Sabará ouvindo missa em dia ritual que envolvia, necessariamente, o
santo, lhe sobreveio repentinamente a dita
pagamento de uma taxa e a reclusão ritual
doença, de que ficou muito mal, por não
saberem os remédios que se haviam de por meio da qual o iniciado entrava em
aplicar, até que sendo chamado um preto contato com o mundo dos mortos, era
por nome Miguel, escravo de Manuel de possuído por eles e retornava
Miranda, morador na dita vila, lhe disse posteriormente ao mundo visível,
este que a dita queixa era a do calandus e
capacitado a prestar atendimento espiritual,
que só a havia de curar e ter remédio
mandando tocar alguns instrumentos e tornando-se oficiante do culto do espírito
fazendo (algumas coisas) mais, por ser este ancestral. (MARCUSSI, 2006, p.108-109)
o meio e modo porque se costuma curar a
dita doença, o que com efeito ela fez e Em sua interpretação, Marcussi
experimentou melhora.” (ANTT, 1744,
vale-se das proposições de Macgaffey
processo 252)
(1986, p. 107-113) ao afirmar que
De acordo com Alexandre
“um espírito ancestral (nkulu, em kikongo)
Marcussi, (2006, p. 110) “é provável que podia decidir possuir e afligir um
Miguel fosse, ele também, um praticante descendente como forma de “propor” uma
de magia, ou que ao menos tivesse comunhão e um adensamento de laços
familiaridade com os procedimentos rituais recíprocos entre o ancestral e seu
descendente (laços que podiam inclusive
centro-africanos”. Havia casos em que os
estar sendo negligenciados pelo último).
próprios sacerdotes e religiosos católicos, Procurando tratamento ritual adequado, o
contrariando a orientação da própria Igreja doente livrava-se da enfermidade e passava
e sentindo-se incapazes de prestar a ter uma ligação especial com o espírito
atendimento espiritual aos “possessos e que antes o possuíra. Com isso, tornando-
se um elo de mediação entre mundo visível
doentes de feitiço”, recomendavam a
e invisível, ele passava a poder mobilizar o
procura por “negros calundureiros”. Esses poder do espírito para diversos fins rituais,
africanos e afrodescendentes, cuja eficácia tornando-se um oficiante dos cultos desse
era reconhecida pela comunidade, tinham a espírito.” (MACGAFFEY, 1986, p. 107-
fama de especialistas em tratar de pessoas 113 apud MARCUSSI , 2006, p. 109)
que se diziam possuídas pelas almas de
seus parentes defuntos. (SOUZA, 1986, p. Mas onde estaria o ancestral na
262-263) Esse parece ter sido o caso de história de Luzia? Em depoimento ao
Miguel. Santo Ofício, ela revelou ainda aos
inquisidores outro aspecto de sua
Como um especialista, esse experiência religiosa passada na infância.
escravo deve ter sido responsável por uma Disse-lhes ter herdado aqueles fenômenos,
etapa do processo de iniciação ritual que por uma espécie de contágio, de uma tia
transformou Luzia Pinta em uma líder sua chamada Maria de quem não se
espiritual ou sacerdotisa, possuidora de lembrava muito. (ANTT, 1744, processo
poderes e segredos que a habilitaram 252) De acordo com Alexandre Marcussi,
posteriormente a oferecer serviços (2006, p. 110) a aflição espiritual estava
religiosos. Nas sociedades banto da África tradicionalmente ligada a uma relação
Centro-Ocidental, havia rituais específicos entre uma linhagem e seus ancestrais.
de formação de sacerdotes que se tornavam Assim, ao ser atendida por Miguel, de
mediadores entre o mundo visível, origem possivelmente centro-africana,
habitado pelos vivos e o mundo invisível, Luzia de alguma forma retomava e
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fortalecia sua ligação com seus ancestrais e fazendo-o ela assim, sucedeu secar
com sua terra natal. Assim, ao se tornar repentinamente o dito rio, de sorte que
pode passá-lo enxuto e sem embaraço
uma oficiante dos ritos do calundu, algum. E dando logo a uma encruzilhada,
cumpria seu destino e, de alguma forma, encontrou com outras duas velhas e com
“honrava e respeitava a memória de sua tia dois caminhos, um muito sujo e outro
Maria, possivelmente angustiada pelo muito limpo, e intentando ela ir por este,
débito em relação aos espíritos ancestrais lhe disseram as ditas velhas que havia de ir
pelo sujo se quisesse ou não. E indo com
com os quais Luzia pôde se reconciliar” efeito por ele, chegou a uma casa grande a
(MARCUSSI, 2009, p.16). onde um homem ancião com barbas
compridas, assentado em uma cadeira, e de
Para o autor, é preciso entender o redor dele, vários meninos com candeias
desfalecimento de Luzia na missa em acesas. E querendo ela deitar-se, chegou ao
pé do dito homem, a quem tomou a
Sabará como o complemento de uma outra bênção, e logo este lhe disse que se fosse
experiência extática vivenciada embora, sem passar mais cousa alguma. E
inicialmente em sua infância. Os dois vindo já na escada daquelas casas,
episódios devem, a seu ver, ser tomados retirando-se, sucedeu tornar a si por
como um processo de iniciação ritual. Para virtude de remédios e fumaças que o dito
seu senhor lhe mandou fazer pela achar
entender sua argumentação, é preciso como morta no dito quintal. E dando
conhecer essa primeira ocorrência. depois conta de tudo a um clérigo, o Padre
Manuel João, assistente na mesma cidade
Logo no início, em seu primeiro de Angola, lhe disse este que aquele velho
interrogatório, Luzia revelou aos ancião era Deus Nosso Senhor, o que ficou
ela assim entendendo pela referida razão, e
inquisidores aquela que parece ter sido sua não passou mais cousa alguma nem teve
primeira experiência religiosa considerada outra visão.” (ANTT, 1744, processo 252)
marcante. Tratava-se de uma visão,
decorrente de uma espécie de êxtase. Segundo Alexandre Marcussi,
Segundo ela, quando menina em Luanda, Luzia
“Aos 12 anos, pouco mais ou menos, “adquiriu uma conexão com os espíritos, e
assistindo na cidade de Angola, em casa de mais especificamente com o espírito do
seu senhor Manoel Lopes de Barros, velho que a acolheu na casa. A iniciação
saindo um dia pela manhã ao quintal das ritual propriamente dita, quando ela seria
casas em que morava, caiu repentinamente introduzida nos serviços rituais e
como morta no meio dele, e ficando aprenderia a fazer uso dessa sua conexão,
totalmente imóvel e privada de seus só se completaria em Sabará, aos cuidados
sentidos, foi levada sem saber como, até a do preto Miguel, mas suas raízes estavam
margem de um grande rio aonde neste episódio da infância, do qual Luzia
encontrando uma velha, lhe perguntou esta se lembra não sem razão quando
para que parte ia, e respondendo-lhe ela questionada pelos inquisidores.”
declarante que não sabia, lhe continuou a (MARCUSSI, 2006, p. 116)
dizer a dita velha que fosse muito embora
porque logo havia de voltar. E continuando
com efeito o seu caminho, encontrou mais
Luzia, ao que tudo indica, passou pelo
acima um homem ainda moço que lhe fez padrão de uma iniciação religiosa centro-
as mesmas perguntas e ela lhe deu as africana, recriada e adaptada em Minas
mesmas respostas e andando mais Gerais do século XVIII. Em um primeiro
encontrou outra velha que lhe perguntou momento, na infância, ela vivenciou a
para que parte queria ir, e respondendo-lhe
que queria passar para outra banda do rio,
reclusão ritual que a colocou em contato
lhe disse então a mesma velha que pegasse com o mundo dos mortos (brancos) do
na ponta de uma linha bem fina que tinha outro lado do rio e com seus espíritos
na mão e conseguiria o que desejava. E ancestrais. Ao cruzar o Atlântico, faltava-
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lhe ainda desenvolver essa potencialidade apontam indícios de uma cerimônia


latente, completada pelo atendimento que específica talvez conduzida pelo próprio
lhe foi prestado pelo escravo Miguel em Miguel como parte de sua iniciação. Em
sua aflição espiritual. (MARCUSSI, 2006, todo caso, completava-se assim o ritual
p. 110-112) conforme as bases das tradições centro-
africanas, fortalecendo de alguma forma
Já os gastos financeiros, embora sua ligação com a terra mãe, para onde
não sejam evidentes, podem ser inferidos provavelmente ela sonhava retornar. Desde
por meio de dois indícios apontados por então, Luzia parece ter assumido uma
Alexandre Marcussi (2009, p.15) no trecho responsabilidade frente aos seus
transcrito abaixo: antepassados e também diante da
comunidade da qual fazia parte em Sabará.
Suas escolhas, dentro do quadro de
possibilidades com as quais ela jogava em
“Miguel muito provavelmente recebeu seu trânsito pelo mundo atlântico, revelam
pagamento pelos serviços de cura o recurso à parentela como um elemento
executados, como era habitual entre os
curandeiros coloniais, que muitas vezes
central na (re)construção de identidades
extraíam seu sustento ou acumulavam marcadas pela responsabilidade e respeito
dinheiro para alforrias empregando seus pela memória da linhagem. (MILLER,
poderes sobrenaturais a serviço de clientes 2004, p. 118-120) Nesse sentido, o contato
pagantes (...) Além disso, Miguel afirmou com Miguel parece ter sido bastante
que Luzia Pinta devia mandar fazer alguns
procedimentos rituais, fórmula que muito
definidor em sua trajetória.
possivelmente indica que Luzia pagou
pelos materiais usados do ritual, como É importante perceber que Luzia
comidas, bebidas ou as oferendas Pinta atestava sempre a presença de um
necessárias para restabelecer relações sentido cristão em suas práticas e
adequadas com os espíritos.”
experiências religiosas. Em outras
palavras, na construção de seu relato, ela
É interessante observar que Miguel
sempre fundamenta seus rituais na
foi chamado pela comunidade para
inspiração divina. Diante da inquisição, ela
socorrer Luzia, mas nada indica que seu
afirma estar ligada ao mesmo Deus dos
atendimento tenha se dado exclusivamente
portugueses e não ao Diabo fortemente
dentro da igreja ou que o tratamento
presente no imaginário dos inquisidores.
oferecido por ele tenha sido rápido. Em seu
Para perceber a construção dessa
depoimento à inquisição, Luzia diz apenas
associação do Deus cristão às tradições
que após diagnosticá-la, (a dita queixa era
religiosas centro-africanas, é preciso voltar
a do calandus) o escravo lhe oferece o
àquela primeira experiência espiritual de
seguinte diagnóstico “só a havia de curar e
Luiza, aos doze anos de idade.
ter remédio mandando tocar alguns instru-
mentos e fazendo (algumas coisas) mais,
Segundo sugere Luiz Mott (1994, p.
por ser este o meio e modo porque se
76-77), essa espécie de visão foi
costuma curar a dita doença, o que com
interpretada pela menina como uma
efeito ela fez e experimentou melhora.”
premonição de sua travessia do oceano
(ANTT, 1744, processo 252)
rumo ao Brasil. O autor, infelizmente, não
segue adiante nem detalha sua análise.
O toque dos instrumentos e
Mas, seguindo sua sugestão, pode-se
“algumas coisas mais” que ela
conjecturar que a visão de Luzia trazia
propositalmente deve ter evitado detalhar
várias nuances em relação a uma visão
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espiritual de sua experiência no tráfico entregou aos sentidos outros, orientando-se


atlântico, de seu enfrentamento e de sua pelos guias que encontrava pelo caminho.
superação. A análise dessa que parece ter Estes possivelmente significavam a
sido a primeira experiência espiritual da ancestralidade que a acompanharia e a
menina de Angola pode nos ajudar a auxiliaria na viagem rumo a uma terra
desvendar a bagagem que ela estrangeira. Nesse sentido, vale a pena
silenciosamente transportou para o Brasil. lembrar que Luzia Pinta viveu sua infância
em uma sociedade em que os mais velhos
Para os povos banto, habitantes da tradicionalmente eram revestidos de
costa da África Central na região do Congo prestígio por assumirem a responsabilidade
e Angola, a linha divisória que separava o de resolução de diversos fenômenos por
mundo dos vivos do mundo dos mortos era meio da manutenção de contato com os
representada por um rio ou pelo mar. mortos. Somente estes podiam dar
(SLENES, 1992, p.53-54) Em sua respostas às incertezas que se abatiam
cosmologia, concebiam o universo sobre os vivos (FONSECA, 2005, p. 96).
dividido em duas metades: o mundo dos
vivos e o mundo dos mortos. Essas esferas Os dois primeiros guias não sabiam
estabeleciam entre si relações de ou não podiam lhe dizer objetivamente o
complementaridade ou mesmo de local de chegada, mas a encorajaram a
oposição. Enquanto o mundo visível dos enfrentar o desafio assegurando-lhe que
vivos era habitado pelos negros, o mundo voltaria logo para casa. A primeira velha, e
invisível era dominado pelos brancos, que ao que parece também o homem moço, lhe
simbolizavam a morte. Ainda nessa disse que “fosse muito embora porque logo
perspectiva, era corrente a crença de que - havia de voltar”. Antes disso, era preciso
após sofrerem a travessia do Oceano rumo seguir o destino inevitável porém muito
ao mundo branco dos mortos que os mais seguro, se traçado conforme o
escravizavam em uma espécie de aprendizado das estratégias espirituais
encantamento sobrenatural - esses cativos sempre a sua disposição durante todo o
voltariam fisicamente ou espiritualmente à percurso.
sua terra natal, junto de seus familiares
vivos e seus descendentes. A volta física É importante ressaltar que os dois
estaria, no entanto, condicionada à primeiros guias (a velha e o moço), ao lhe
capacidade de se guardar uma pureza encorajarem a seguir adiante, lhe
espiritual, capaz de reverter a prisão fruto asseguraram que ela um dia voltaria para
de um encantamento. (MACGAFFEY, seu ponto de origem. Curiosamente, só
1986, p. 107-112; 1972, pp. 49-74) após esse diálogo acompanhado de uma
informação digamos profética, Luzia
É interessante observar que, ao parece ter aceitado ou entendido o local de
chegar à margem do grande rio, Luzia seu destino. Assim, após esses diálogos,
afirmou estar privada de seus sentidos. continuando a percorrer a margem do
Quando indagada sobre qual seria o seu grande rio, ela encontrou a segunda velha
destino (“para que parte ia?”), não soube que lhe apresenta a pergunta ligeiramente
responder nem à primeira velha nem ao modificada (“para que parte queria ir?”).
moço. Nesse aspecto, seus primeiros guias Dessa vez, ao contrário dos dois primeiros
também não lhe ofereceram respostas encontros, seu desejo ou vontade são
objetivas. Apenas a encorajaram a seguir, considerados.
sem lhe dizer para onde. Desprovida de
seus próprios sentidos, a menina escrava se
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Ao que parece, diante da certeza de estaria habilitado nos segredos e poderes


que um dia voltaria à sua terra natal, Luzia espirituais, tornando-se mediador entre os
responde prontamente “queria passar para dois mundos. De alguma forma, a visão de
outra banda do rio”. Ao entender o seu Luzia parece refletir aspectos dessa
destino, imediatamente recebeu da segunda tradição mágico-religiosa centro-africana.
velha a instrução para pegar na ponta de Seu encontro com o ancião de barbas
uma linha bem fina. Assim, a velha lhe brancas parece significar esse contato com
ensinava a manipular as forças da natureza o mundo dos mortos (brancos) ao mesmo
(secando o rio) para tornar mais segura sua tempo em que sua benção e despedida
travessia. Tratava-se sem dúvida de um indicam parte do processo de iniciação
aprendizado espiritual. Sob a proteção de ritual que a habilitaria como uma futura
seus guias, ela poderia realizar a travessia especialista religiosa.
do Atlântico de modo seguro e adquirir
forças para enfrentar os desafios, Mas, diante dessa explicação, fica
carregando consigo a certeza de seu ainda pendente a compreensão da presença
retorno à terra mãe. de um sentido católico atribuído àquela
experiência religiosa. De acordo com a
Após atravessar o rio, sem tradição cristã, enquanto o caminho limpo
embaraço e sem se molhar, Luzia diz ter se pode ser associado ao caminho largo, da
encontrado com mais duas velhas diante de soberba, que leva à perdição, o sujo é
uma encruzilhada entre dois caminhos, um indicado como aquele da virtude, da
limpo e um sujo. Dessa vez, sua vontade provação e do sofrimento, visto como a
parece não mais ser considerada. Embora porta estreita da salvação. Essa, segundo
seu impulso inicial tenha sido seguir pelo Marcussi, pode ter sido outra chave de
caminho limpo, as duas velhas lhe leitura possível, ao alcance de Luzia Pinta,
apontaram o caminho sujo como o único além daquela centro-africana, apontada
possível, “se quisesse ou não”. Assim, anteriormente. Para o autor, a temática da
apesar de estar diante de uma encruzilhada, escolha é um topos reiterado nas narrativas
a oportunidade de escolha não estava mais judaico-cristãs. (MARCUSSI, 2006, p.
disponível naquele momento. Ao 113-114)
atravessar o Atlântico, seria preciso aceitar
o seu destino. Mas, perseverando em sua Essas lembranças da infância,
árdua trajetória, Luzia encontraria registradas mais de três décadas depois
finalmente a recompensa. Logo após pelo escrivão do Tribunal do Santo Ofício
receber a benção do ancião de barbas em Lisboa, foram relatadas por Luzia Pinta
brancas, ela receberia a ordem para ir em sua audiência. Nesse contexto, é
embora. possível supor que Luzia jogava com
astúcia ao terminar seu relato com um
Assim, retomando as proposições desfecho estratégico. Disse que sua visão
de Wyatt Macgaffey (1986, p. 107-112), havia sido relatada a um padre em Luanda
nas sociedades da África Ocidental, havia e que o mesmo teria interpretado a figura
cerimônias específicas de iniciação de do ancião como Deus Nosso Senhor. Nesse
sacerdotes baseadas em uma espécie de sentido, Luzia tentava dar uma conotação
reclusão. Simbolicamente, passava-se por cristã à sua visão para escapar do olhar
uma morte ritual que levava o candidato a desconfiado dos inquisidores. Sem
sacerdote ao mundo invisível dos mortos discordar dessa explicação, é possível
(brancos). Depois disso, ao retornar ao ainda pensar em outras nuances possíveis
mundo dos vivos (negros), o iniciado
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que podem ter acompanhado o Aos olhos dos congoleses, a viagem


entendimento de Luzia. de seus conterrâneos a Portugal foi tomada
como uma grande iniciação no mundo dos
Ainda de acordo com Wyatt mortos. E assim, seu retorno à África, após
Macgaffey (1972, 49-74), o acontecimento aquilo que entenderam como experiência
chave que garantiu aceitação do de reclusão ritual, passou a ser encarado
catolicismo desde o momento de sua como parte significativa de um processo
introdução na África Central está que levaria à incorporação de uma nova e
relacionado a essa compreensão de morte mais poderosa versão do culto de seus
ritual pelo contato entre dois mundos. A próprios espíritos locais. Assim, a adesão
chegada dos portugueses nessa região, no ao cristianismo - acompanhada pela adoção
final do século XV, foi vista pelos centro- de rituais, crenças, objetos e símbolos
africanos como um acontecimento católicos - não implicava no abandono de
traumático. Era como se a expedição de suas crenças tradicionais. (MACGAFFEY,
Diogo Cão, enviada pelo rei de Portugal, 1994, p. 257) Ao contrário, tratava-se de
trouxesse seres do além. Vindos do mar, uma espécie de re-atualização de sua visão
entendido como domínio do sagrado e via de mundo, por meio da recombinação entre
de acesso ao outro mundo, esses cristãos elementos novos e pré-existentes. A
católicos foram interpretados como chegada do catolicismo à África pode
emissários brancos do mundo dos mortos. então ter sido lida pela lógica das religiões
(RANDLES, 1968, p. 88-89) africanas, tradicionalmente renovadas por
movimentos religiosos conduzidos por
Após aportar no estuário do rio lideranças que propõem mudanças a partir
Zaire - cansados de esperar pelo retorno de da incorporação de estruturas pré-
seus emissários que haviam se embrenhado existentes (CRAEMER; VANSINA; FOX,
pelo interior do Reino do Congo - a 1976, p.458-475)
expedição de Diogo Cão voltou a Portugal
levando consigo alguns reféns. Esses Em suma, o catolicismo e seu
foram muito bem tratados e introduzidos “Deus branco” eram incorporados às
na língua, costumes e religião dos cosmologias da África Centro-Ocidental
europeus. Ao retornarem à África, esses como parte de um processo contínuo que
reféns foram recebidos com grande resultaria no fortalecimento das
entusiasmo e comemorações. Desde então, comunidades locais para o enfrentamento
iniciaram-se contatos e visitas recíprocas de seus desafios e novas situações. Nesse
entre o Reino do Congo e o Reino de processo, as crenças tradicionais eram
Portugal, que passaram a estreitar relações fortalecidas pela incorporação de novos
por meio da troca de presentes. O mani elementos, ritos e objetos religiosos. Nesse
congo, autoridade máxima daquele reino sentido, a percepção do ancião de barbas
africano, decidiu então se converter ao brancas como “Deus Nosso Senhor” pode
catolicismo e abrir espaço para introdução não ser apenas um disfarce ou estratégia de
da cultura e dos costumes portugueses no Luzia, mas também algo intrinsecamente
Congo. Nesse processo, o rei português foi ligado aos movimentos de renovação
assimilado a Zambem Apongo, “divindade religiosa dos centro-africanos.
suprema dos povos banto, senhor que
reinava no mundo dos mortos” (VAINFAS Em sua visão, ao descer as escadas,
e SOUZA, 1998, p. 98-99) dando início ao caminho de volta, Luzia
foi acordada pelo seu senhor em meio a
remédios e fumaças que de alguma forma
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deixaram sua trajetória incompleta. Em sua James Sweet (2003, p. 143-151)


experiência espiritual, interrompida pelo considera o calundu colonial uma espécie
senhor escravista, a promessa de volta não de aglutinação de variados ritos de cura
se concretizava. Isso porque Luzia não praticados na África Central e que tinham
secou novamente o rio nem refez a em comum o fenômeno da possessão por
travessia que a levaria de volta para casa. espíritos. A palavra calundu, segundo o
Mas é possível que ela tenha guardado a autor, seria uma variante do vocábulo
convicção de que, de alguma forma, quilundu, termo usado para designar
voltaria um dia. A menina escrava ficava qualquer tipo de espírito responsável por
então com a promessa que ouvira dos causar uma doença ou aflição passível de
primeiros guias que encontrou no caminho. ser curada por meio da intervenção de um
De alguma forma, essa promessa e toda sacerdote. Nesse sentido, segundo o autor,
essa espécie de iniciação ritual pode ter a abrangência desse significado
alimentado sua experiência do outro lado amplamente difundido entre a comunidade
do Atlântico. escrava teria facilitado, no território
colonial, a designação do calundu como
Em suma, entendendo que aquela uma religião centro-africana transplantada
visão pode ter sido lida como premonição para o Brasil e responsável pelo tratamento
pela menina escrava, é possível interpretá- das aflições.
la como uma etapa de uma iniciação ritual
que a habilitaria espiritualmente a enfrentar O autor defende, assim, a
o cativeiro sob uma condição diaspórica. permanência de profundas diferenças entre
Nesse sentido, Luzia pode ter partido de os dois universos. (SWEET, 2003, p. 7) A
Luanda carregando silenciosamente um seu ver, se por um lado, os africanos
aprendizado religioso significativo. Sua praticavam o catolicismo de modo
travessia, embora perigosa, seria certa e superficial, por outro, as religiões africanas
segura se acompanhada pelos guias teriam permanecido intocadas e
espirituais. O local de desembarque do independentes em seu sistema de
outro lado do Atlântico era desconhecido e pensamento. Nesse sentido, para ele, o
guardava um destino inevitável. O contato calundu deve ser encarado como uma
com o mundo dos brancos - religião tipicamente centro-africana
espiritualmente preparado em sua visão e recriada no Brasil. O peso dado pelo autor
vivenciado na diáspora - poderia ser às recriações e transplantes intocados das
tomado como parte de um processo de religiões africanas para o Novo Mundo o
iniciação ritual que a habilitaria como uma impediram de perceber uma interessante
futura especialista religiosa, responsável dinâmica dialógica.
por auxiliar e socorrer sua comunidade em
suas dificuldades no Novo Mundo. Enfim, Em sua leitura do calundu de Luzia
seu retorno esfumaçava-se em meio a uma Pinta, ao adotar uma perspectiva diversa de
promessa que, embora interrompida, Sweet, Alexandre Marcussi (2006, p.117)
permanecia em seu horizonte. Em todo afirma que a mesma possuía uma espécie
caso, com base nessas premissas, o seu de dupla interpretabilidade que lhe conferia
caminho de alguma forma continuava. E uma dupla legitimidade. Ao invés de
para que fosse bem sucedido, precisava ser escolher entre duas cosmologias,
conduzido pela incorporação do Deus do classificando-as como verdadeira e
mundo dos brancos. profunda ou falsa e superficial, Luzia
elaborou um repertório simbólico acionado

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de acordo com as circunstâncias. Segundo preexistiram de modo puro, mas sim um


o autor, ela terceiro espaço, que nomeia intersticial,
construído nos atos de deslocamento entre
“compunha um itinerário de produção eles. Tanto colônia quanto metrópole só
simbólica que lhe permitia adentrar o existem em relação. Nesse sentido, as
universo cultural do catolicismo (mesmo
que no espaço marginalizado da
colônias, forçadas a espelhar-se em suas
religiosidade popular), único legitimado metrópoles, produzem imitações
pelos poderes institucionais na sociedade distorcidas, gerando diferenças
colonial, ao mesmo tempo em que perturbadoras que circulam no interior dos
resgatava e atualizava aspectos de sua sistemas coloniais, desestabilizando-os por
cosmovisão centro-africana e interpretava
o catolicismo a partir deles. Tratava-se,
meio da inserção de um “outro” na imagem
portanto, de uma inclusão simbolicamente de um “mesmo” (BHABHA, 1998, p. 129-
negociada.” (MARCUSSI, 2006, p. 117) 138). Por meio de uma apropriação e
adaptação, bastante livre, das proposições
Nesse sentido, o autor vê no desse autor, é possível perceber no
calundu de Luzia Pinta uma estratégia de discurso de Luzia Pinta uma mímica da
mediação simbólica por meio de uma religião do colonizador, representação
interpretação própria das duas tradições em construída na relação deslizante que
diálogo. Nesse processo ela teria criado assume a condição simultânea de
“um texto cultural particular, nem bem semelhança e ameaça. É interessante
português, e nem exatamente angolano, observar que, em seu depoimento ao Santo
mas um texto próprio da zona de mediação Ofício, antes da sessão de tortura, Luzia
intercultural na qual viveu.” (MARCUSSI, argumentou que suas práticas
2006, p. 122)
“provêm de Deus e não do Diabo, por que
Essas proposições de Alexandre nas ocasiões em que se fazem as ditas
curas, sempre se pedem aos enfermos duas
Marcussi são bastante pertinentes para oitavas de ouro, as quais se mandam dizer
pensarmos a inserção de Luzia Pinta no missas repartidas, a metade para Santo
mundo atlântico, entendido como espaço Antônio e a metade para São Gonçalo e
de mediação intercultural. Sua experiência por intervenção destes santos é que se
na diáspora africana certamente fazem as ditas curas.” (ANTT, 1744,
processo 252)
potencializou sua habilidade em jogar com
um repertório simbólico disponível ao seu
Em sua sessão de tortura, ápice de
alcance desde sua infância. A riqueza desse
um longo processo marcado por outras
aprendizado certamente evitou que Luzia
violências, Luzia grita por Santo Antônio.
se tornasse presa fácil diante da retórica
(ANTT, 1744, processo 252) Seu grito
inquisitorial e de seu arsenal
perturbador representa a condição híbrida
demonológico.
de seu discurso. Guardadas as devidas
proporções, a mesma estratégia discursiva
Por meio de seu texto próprio,
havia sido utilizada algumas décadas antes
espécie de enigma movente, Luzia
por outra centro-africana. Beatriz Kimpa
apresenta-se ao Tribunal do Santo Ofício,
Vita apresentou-se como a própria
perturbando seus inquisidores em Lisboa.
encarnação desse santo, gerando um
Tal situação nos remete à noção de
movimento político de resistência no Reino
hibridismo, conforme apresentado pelo
do Congo, denominado antonianismo. De
crítico pós-colonial Homi Bhabha (1998).
alguma forma, a “Santo Antônio
Para o autor, o híbrido não é o resultado da
Congolesa” devolvia ao colonizador uma
mistura entre dois elementos que
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imagem distorcida de si na qual se na juventude recebeu o sacramento do


inscrevia como diferença perturbadora de Crisma, Luzia frequentava missas. Diante
um mesmo. Beatriz afrontava do exame de fé proposto pelos
explicitamente o catolicismo pela recusa inquisidores, soube rezar as principais
dos sacramentos católicos, criticando o orações do Catecismo e os mandamentos
clero oficial por monopolizar a revelação e da Lei de Deus e da Igreja. Em seu
o segredo das riquezas em proveito depoimento, afirmou, então, que os
exclusivo dos brancos e em prejuízo dos remédios que preparava eram oferecidos
negros (SOUZA & VAINFAS, 1998, p. aos doentes em nome da Virgem Maria e
105-108). que suas adivinhações vinham de Deus
Nosso Senhor. (ANTT, 1744, processo
De um modo não explícito, Luzia 252)
Pinta fazia a mesma crítica ao gritar pelo
santo. Como vimos anteriormente, os Após a sessão de tortura, Luzia
movimentos de renovação religiosa na permaneceu por cerca de quase um ano no
África Central passavam pela incorporação cárcere sendo então submetida a um Auto
e acréscimo de crenças, processo entendido de fé, em 21 de junho de 1744 na Igreja de
como estratégia eficaz no enfrentamento da São Domingos de Lisboa, diante de D.
adversidade e no alcance da boa fortuna. João V, então rei de Portugal. Como de
(PARÉS, 2007, p. 111). Pela ótica centro- costume, o monarca estava acompanhado
africana, a devoção de Luzia ao Deus por representantes de sua família, por
cristão e aos santos católicos era um meio membros da nobreza e do alto clero
legítimo que, ao mesmo tempo em que portugueses. Nesse auto, dos quarenta e
subordinava o catolicismo àquelas um réus sentenciados, oito foram
tradições africanas, passava a considerá-lo condenados à fogueira, dentre eles uma
como novo e principal elemento de feiticeira. (MOTT, 1994) Luzia conseguiu
fundamentação de seus rituais, escapar da morte, mas não foi considerada
modificando e re-significando suas antigas inocente. Na ausência de provas explícitas
práticas religiosas sem contudo excluí-las. e contundentes, seu pacto foi presumido.
Nesse sentido, mais uma vez, é importante Sentenciada pela “abjuração de leve
destacar que o discurso de Luzia não pode suspeita de ter abandonado a fé católica”,
assim ser tomado como mero simulacro, ela foi para sempre proibida de retornar a
disfarce ou estratégia. A seu ver, era Sabará, sendo ainda condenada a quatro
perfeitamente possível associar e inserir o anos de degredo no Algarve (ANTT, 1744,
Deus cristão em seus calundus de matriz processo 252).
centro-africana, sobretudo a partir daquelas
experiências que culminaram em sua Embora tenha sido submetida a
iniciação ritual. uma nova experiência de desenraizamento,
Luzia sobreviveu àquela violenta batalha
Enquanto seus inquisidores inquisitorial entre sentidos em movimento.
tentavam a todo custo descobrir sinais de De sua vida no Algarve, nunca se teve
pacto demoníaco, Luzia, por outro lado, notícia. Talvez ela tenha prosseguido sua
tentava dar provas de sua fidelidade e travessia, silenciosamente, escondendo-se
obediência aos preceitos da Igreja. Em sua pra sempre de nossos olhares curiosos,
trajetória, aliás, não faltavam elementos fugindo do diabo cristão e à espreita dos
para isso. Quando criança, em Luanda, rastros do deus branco centro-africano,
havia sido batizada na Igreja de Nossa talvez motivada pela previsão inconclusa
Senhora da Conceição. Em Sabará, onde
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daquela primeira velha que encontrou na Madison: University of Wisconsin Press,


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Sobre o autor:

Robert Daibert Jr.: Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de
Juiz de Fora.

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