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Resumo Abstract
A partir da revisão da literatura e do This article seeks to give visibility to the
cruzamento de fontes documentais di- experiences of black women in a family
versas, tais como jornais, registros civis in Rio de Janeiro, in the period from
e eclesiásticos, este artigo procura dar 1897 to 1957, through a bibliographical
visibilidade às experiências de mulheres review and the cross-referencing of di-
negras em uma família do Rio de Janei- verse documentary sources, such as
ro, no período de 1897 a 1957. O artigo newspapers, civil and ecclesiastical re-
problematiza os significados da atenção cords. The article problematizes the me-
maior dada às trajetórias individuais de anings of the greater attention given to
homens negros nos estudos e interroga the individual trajectories of black men
os silenciamentos produzidos em rela- in studies and questions the silencing
ção às mulheres negras no interior das produced in relation to black women
famílias. Compreende família como within families. It understands family as
uma comunidade de afeto e solidarieda- a community of affection and solidarity
de na experiência das mulheres negras, in the experience of black women, who
que também exerciam o papel de guar- also played the role of guardians of fa-
diãs da memória familiar. mily memory.
Palavras-chave: mulheres negras; silencia- Keywords: Black women; Silencing; Fa-
mentos; família; memória; experiências. mily; Memory; Experiences
* Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. alexandralima1075@
gmail.com <https://orcid.org/0000-0002-0310-7896>
** Agradeço à FAPERJ, ao CNPQ e ao programa Prociência da UERJ, e também aos colegas Alessandra
Schueler e Carlos Eduardo Costa, pela interlocução.
aos 59 anos, no dia 14 de janeiro de 1957. Casada “com pessoa cujo nome se
ignora, digo, com Jaime Basílio Ferreira”, Eugênia, como atesta o documento
de óbito, era uma mulher de cor “preta”, profissão “obstetrícia” e mãe de uma
“filha maior” (Ferreira, 1957). Não deixou bens. O declarante do óbito foi o
médico Abdical Albano Bahia, cunhado de Eugênia. Como Eugênia viveu? Por
que se ignora o paradeiro do marido Jaime? Quem eram os pais de Eugênia?
Qual o lugar de Eugênia na árvore genealógica de sua família?
Pelas mãos de Eugênia, que era parteira, procuro analisar as experiências
de mulheres negras a partir dos rastros de uma família negra no Rio de Janei-
ro, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, cujo pa-
triarca e membro mais estudado pela historiografia é Israel Soares, um liberto
que teve participação ativa na luta pela abolição da escravidão no Brasil, sendo
próximo de José do Patrocínio, visto que:
Nome não é índice, mas signo e elemento classificatório. Não nos deixemos en-
ganar pela expressão nome próprio. Por que próprio? Propriedade de seu porta-
dor? Por um lado, se o Nome é uma marca de individualização, de identificação
do indivíduo que é nomeado, ele marca também sua pertinência a uma classe
predeterminada (família, classe social, clã, meio cultural, nacionalidade etc.), sua
inclusão num grupo. O nome próprio é a marca linguística pela qual o grupo
toma posse do indivíduo, e esse fenômeno é geralmente assinalado por ritos, ce-
rimônias de aquisição ou mudança de Nome. A denominação é também a domi-
nação do indivíduo nomeado pelo grupo (Machado, 2013, p. 28).
Gumes “deixa um filho maior, não deixa bens, nem testamento” (Gumes, 1977).
Não consegui descobrir quando Sebastião Soares Gumes morreu, mas sei que
foi ele o declarante da morte da mãe, Francisca Antonia Soares Gumes.
Israelina Soares, tia de Eugênia, nascida no Rio de Janeiro em 05/12/1883, de cor preta,
batizada em 13/04/1884. Filha de Antonia Botelho Soares e Israel Antonio Soares,
afilhada de Augusto e Joaquina Botelho. Faleceu em 18/08/1884, aos 8 meses.
Francisca Antonia Soares, mãe de Eugênia, nascida no Rio de Janeiro em 1882, de cor
preta, profissão doméstica. Filha de Antonia Botelho Soares e Israel Soares. Casou-se com
Celestino Gumes por volta de 1897 e passou a usar o nome Francisca Antonia Soares
Gumes. Mãe de 9 filhos: Eugênia Luiza, Sebastião, Ursulina, Maria de Lourdes, Judith,
Israelina, Laura, Emma e Celestina. Faleceu no Rio de Janeiro em 20/01/1950.
Eugênia Alpheu Martins, filha de Eugênia Luíza, nascida no Rio de Janeiro em 1921, de
cor preta, profissão do lar. Filha de Eugênia Luiza Gumes Martins e João de Souza
Martins. Casou-se com Braulino Ramos. Passou a assinar Eugênia Apheu Martins Ramos.
Mãe de 3 filhos.
Maria de Lourdes Soares Gumes, irmã de Eugênia Luíza, nascida no Rio de Janeiro em
10/05/1904, de cor preta. Filha de Francisca Antonia Soares Gumes e Celestino Gumes.
Casou-se em 17/03/1945 com Paulo José da Conceição. Passou a usar o nome Maria de
Lourdes Gumes Pacheco. Teve 3 filhos.
Judith Antonia Soares Gumes, irmã de Eugênia Luíza, nascida no Rio de Janeiro em
08/11/1906, de cor preta, profissão doméstica. Filha de Francisca Antonia Soares Gumes e
Celestino Gumes. Casou-se com Américo Oliveira em 16/02/1950. Passou a usar o nome
Judith Antonia Soares de Oliveira.
Laura Soares Gumes, irmã de Eugênia Luíza, nasceu no Rio de Janeiro em 29/09/1910.
Filha de Francisca Antonia Soares Gumes e Celestino Gumes.
Emma Soares Gumes, irmã de Eugênia Luíza, nascida no Rio de Janeiro em 29/10/1912, de
cor preta, professora de piano. Filha de Francisca Antonia Soares Gumes e Celestino
Gumes. Afilhada de Francisco Perdigão e Eugênia Luiza Gumes. Casou-se com Francisco
Silva em 14/06/1947. Passou a usar o nome Emma Gumes Silva.
Celestina Soares Gumes, irmã caçula de Eugênia Luíza nascida no Rio de Janeiro em
27/06/1916, de cor preta, professora. Filha de Francisca Antonia Soares Gumes e
Celestino Gumes. Casou-se com o médico Abdicai Albano Bahia, em 27/06/1939. Passou
a usar o nome Celestina Gumes Bahia.
Fonte: Elaborado pela autora a partir da documentação do site Family Search (s.d.).
Uma das minhas inspirações para a escrita deste artigo foi a experiência
de Toni Morrison, que, a partir de um recorte de jornal a respeito de uma es-
cravizada de nome Margaret Garner, deu à luz o aclamado romance Amada.
Foi também em um fragmento de jornal que localizei os nomes das mu-
lheres em torno da figura do liberto e velho abolicionista:
Antonia Botelho Soares, Francisca Soares Gomes (sic) e filhos, Marieta Soares de
Faria e filhos, Rosa Ferreira, Marcelino da Silva Campos e filhos, profundamente
reconhecidos a todas as pessoas que lhes trouxeram o grande conforto de sua
amizade na ocasião do falecimento de seu idolatrado esposo, pai, sogro, avô e tio
Israel Antonio Soares, de novo as convidam para a assistir a missa de sétimo dia
que em sufrágio de sua alma mandam celebrar hoje, sábado, 27 do corrente, às 9
horas, na igreja de São Elesbão e Santa Ephigenia, à rua da Alfândega, próximo à
Avenida Passos, e por esse acto de religião se confessam sumariamente agradeci-
dos (Israel Antonio Soares, 1916, p. 11).
muitas delas esquecidas, foram as guardiãs das memórias familiares. Entre esses
nomes que apareceram na pesquisa, a experiência de uma me chamou a atenção.
Escolhi Eugênia para conduzir a escrita deste artigo porque as pegadas que
deixou foram se tornando nítidas e cheias de sentidos. A mais velha de nove
filhos, filha de pai, mãe e avós negros, por que foi registrada como “parda” ao
nascer? Por que decidiu ser parteira? Por que se casou a primeira vez? Por que
se casou pela segunda vez? Por que deu o próprio nome à única filha? Por que
foi registrada como “preta” ao morrer? Durante muito tempo, Eugênia Luíza,
tendo enviuvado aos 24 anos, criou sozinha a única filha, Eugênia Alpheu.
Diferentemente de algumas das suas irmãs, exerceu profissão remunerada.
Acredito que Eugênia tenha aprendido, na prática, a transformar “o silêncio em
ação” (Lorde, 2019, p. 51).
O documento com o qual iniciei este texto diz que Eugênia Luíza “não
deixou bens”. Tendo a discordar. Mulheres como Eugênia deixaram como le-
gado suas próprias histórias.
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NOTAS
1
De acordo com o atestado de óbito e as notas publicadas na imprensa, o filho médico de
Israel Soares faleceu em 1913 e não em 1914. Possivelmente, Evaristo de Moraes foi traído
pela memória.
2
A respeito dos usos de registros civis na pesquisa histórica, ver Costa (2020).
3
A respeito dos usos dos registros paroquiais e eclesiásticos na História Social, ver Guedes
e Fragoso (2016).
4
Por meio do site Family Search (s.d.), foi possível localizar muitos documentos digitaliza-
dos, o que foi muito importante nesta pesquisa, realizada durante a pandemia de
COVID-19.
5
Segundo Campos (2016, p. 11): “Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951, conhecida como Lei
Afonso Arinos, em homenagem ao jurista e deputado federal Afonso Arinos de Melo Fran-
co, autor do projeto de lei. Ela incluía entre as contravenções penais a prática de atos resul-
tantes de preconceito de raça ou de cor, definidos em seus nove artigos, e vigorou até ser
revogada pela Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, ainda vigente.”.