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Aquela “neguinha” atrevida: Lélia Gonzalez e o movimento negro brasileiro1

Raquel de Andrade Barreto

“Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente pra uma festa deles, dizendo
que era pra gente também. Negócio de livro sobre a gente. A gente foi muito bem recebido e tratado
com toda consideração. Chamaram até pra sentar na mesa onde eles estavam sentados, fazendo
discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado, explorado. (…)E agente foi se
sentar lá na mesa. Só que tava cheia de gente que não deu para gente sentar junto com eles. Mas a
gente se arrumou muito bem, procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles. Eles tavam tão
ocupados, ensinando um monte de coisa pro crioléu da platéia, que nem repararam que se apertasse
um pouco até que dava pra abrir um espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa.(…) A gente
tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso.
Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente, deu uma de atrevida. Tinham chamado
ela pra responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa pra falar no microfone e começou a
reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava armada a quizumba. A
negrada parecia que tava esperando por isso pra bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar,
vaiar, que nem dava mais pra ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de
raiva e com razão. (…) Se eles sabiam da gente mais do que a gente mesmo? Teve uma hora que
não deu pra agüentar aquela zoada toda da negrada ignorante e mal educada. Era demais. Foi aí que
um branco enfezado partiu pra cima de um crioulo que tinha pegado no microfone pra falar contra
os brancos. E a festa acabou em briga...
Agora, aqui pra nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se não tivesse
dado com a língua nos dentes... Agora tá queimada entre os brancos. Malham ela até hoje. Também
quem mandou não saber se comportar? (...)”2

Introdução

Se existe uma trajetória política e intelectual que pode resumir de forma


contundente a retomada do movimento negro no Brasil de meados da década de 1970, essa
trajetória foi a de Lélia Gonzalez, em particular por suas contribuições intelectuais e

1
Texto publicado originalmente no livro Revolução e Democracia (1964-...) organizadores Daniel Aarão Reis
e Jorge Ferreira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2007, (Coleção: As Esquerdas no
Brasil; volume 3).
O artigo é uma versão do capítulo I da minha dissertação de mestrado “Enegrecendo o Feminismo ou
Feminizando a Raça: Narrativas de Libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez”. A dissertação apresenta,
de forma comparada, as trajetórias e pensamento de Angela Yvonne Davis e Lélia Almeida Gonzalez, duas
intelectuais e militantes dos movimentos negros nos EUA e no Brasil, que tiveram uma grande importância
em suas respectivas épocas pelas ações e reflexões desenvolvidas. A pesquisa articulou as histórias de vida e
as idéias, a partir da comparação de aspectos das trajetórias e dos pensamentos das duas autoras. A dissertação
foi apresentada ao Departamento de História da PUC-Rio em março de 2005, com o auxilio do Conselho
Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico(CNPq).
2
GONZÁLEZ, Lélia. Epígrafe de abertura do texto “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, in: Movimentos
sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos, Brasília, ANPOCS, 1983.

1
políticas para um melhor entendimento a respeito das relações raciais e de gênero no Brasil
nas décadas de 1970-80.

Personagem única por suas características, sua história de vida reúne alguns
aspectos e particularidades não muito frequentes na vida da maior parte das mulheres afro-
brasileiras. Além de uma personalidade forte, irreverente e contestadora, que sobressai na
sua produção acadêmica, como observado na a epígrafe de abertura.

Lélia também foi uma destacada militante do movimento de mulheres, bem como da
esquerda, inicialmente no Partido dos Trabalhadores/PT e, posteriormente, no Partido
Democrático Trabalhista/PDT.
A participação mais intensa de Lélia encaixa–se dentro do processo de distensão e
de abertura política brasileira entre 1974 e 1985. Sua atuação, como a do movimento negro,
foi parte da resistência da sociedade civil rumo ao processo de construção da democracia.
No entanto, o movimento negro apresentava uma nova questão para o debate a respeito da
nascente democracia: a necessidade de uma verdadeira democracia racial que, até então,
não existira no Brasil.

Apresentando Lélia

Lélia Gonzalez nasceu Lélia de Almeida, em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 01


de fevereiro de 1935. Tornou-se Gonzalez quando adulta, depois do casamento. Era a
penúltima filha de uma família pobre com 18 filhos. O pai, Acácio Joaquim de Almeida,
era ferroviário e morreu quando ela era ainda criança. A mãe, Urcinda Seraphina de
Almeida, era trabalhadora doméstica de origem indígena. Como era costume na época, em
famílias numerosas, os irmãos mais velhos acabavam cuidando dos menores, e com a
família de Lélia ocorreu o mesmo. A irmã mais velha tornou-se, então, responsável por ela.

Lélia conseguiu estudar mais do que os irmãos, que, em sua maioria, só terminaram
a escola primária. Isso ocorreu graças à ajuda de uma família italiana, para qual a mãe
trabalhava, que resolveu custear a sua educação. Apesar de ter dado prosseguimento aos
estudos, isso não impediu que ela fosse obrigada, por um tempo, ainda muito nova, a
trabalhar como babá. Dessa forma, também vivenciou a experiência de grande parte das
mulheres negras brasileiras: a execução do trabalho doméstico. Em 1942, um dos irmãos,

2
Jaime de Almeida, começou a jogar no Flamengo e, tendo se estabilizado no futebol,
conseguiu trazer a família de Minas Gerais para o Rio de Janeiro.

Dando prosseguimento aos estudos, Lélia graduou-se em história e geografia em


1958, e em filosofia em 1962, na antiga Universidade do Estado da Guanabara (UEG),
atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Na época,– como muitos(as)
negros(as) que cursam o ensino superior no país – manteve-se, bastante, afastada da sua
comunidade de origem. Assim, toda a experiência com os estudos, foi para ela espaço de
realização de um processo de lavagem cerebral racista: “(...) vocês podem imaginar como
eu me sentia na aula de história quando a professora dizia que o negro era servil e o índio,
indolente! Logo eu, filha de pai negro e mãe índia!”3.

Após a conclusão da primeira graduação, Lélia começou a trabalhar como


professora. Lecionou em instituições de ensino superior como a Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Gama Filho (UGF), a Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj) e, também em colégios, como o Santo Inácio e o Colégio de
Aplicação da Universidade do Estado do Estado do Rio de Janeiro (CAP- Uerj).

Existem, porém, controvérsias sobre a formação acadêmica de Lélia: em entrevista a


O Pasquim, em 1986, ela afirma ter cursado “comunicação e antropologia na pós-
graduação.”4 No entanto, ao realizar a pesquisa sobre a autora, nunca me deparei com a sua
dissertação ou tese, nem com qualquer referência mais aprofundada à mesma. O fato se
deve a não haver na época, obrigatoriedade de cursos de Pós-graduação para lecionar em
instituições de ensino superior do país. Os centros de pesquisa ainda estavam em estágio
embrionário. Além disso, em função da ditadura militar, muitos professores universitários
estavam exilados. Os cursos de ciências sociais, em especial, foram os mais afetados pelas
cassações a professores oposicionistas ao regime militar.

Ao término da graduação no curso de Filosofia, Lélia casou-se com Luiz Carlos


Gonzalez, um colega de faculdade de origem espanhola. O casamento é referido com
frequência, em entrevistas e depoimentos a respeito de sua trajetória, como um momento
importante em seu processo de transformação. Ela sempre destacaria os problemas
existentes com a família de Luiz Carlos como o inicio do processo de tomada da sua

3
www.leliagonzalez.org.br/historia.html, consultado em 12/01/2005.
4
O Pasquim, n. 871, 20-26 de março de 1986, p. 9.

3
consciência racial. De acordo com Lélia, na época em que se casaram, Carlos morava
sozinho e não mantinha contatos com a família, que não ficou sabendo do casamento.
Posteriormente, depois de reatadas as relações, a família não aceitou o casamento, pois
definiam aquela relação como “(...) concubinagem, porque mulher negra não se casa
legalmente com homem branco, é uma mistura de concubinato com sacanagem, em última
instancia.”5 A família reagiu de forma racista: “Quando eu disse que nós havíamos nos
casado, passei a ser vista como safada, prostituta, sem vergonha (...).”6 O casamento duraria
até o falecimento dele, dois anos depois de casados. “Ele encheu o saco e rompeu relações
com a família de novo. As relações com a família dele eram muito complicadas, tão
complicadas que ele acabou se matando”.7

Lélia casou-se novamente, dessa vez com um negro, que, apesar disso, buscava
escapar da sua condição de negro, tendo o casamento durado cinco anos. A experiência do
segundo casamento deixou questionamentos e problemas a Lélia. Como era possível que
um homem branco, de origem espanhola, tivesse dado a ela todo o apoio no que se referia à
questão racial, enquanto o marido negro não demonstrara solidariedade alguma? Como
consequência dessas experiências, ela afirmou: “fui parar no psicanalista.”8

A experiência com a psicanálise foi iniciada com Carlos Byngton, de orientação


junguiana, e a ajudou no processo de descobrimento de sua negritude. A partir daí, Lélia
pode entender os seus mecanismos de racionalização, de esquecimento, de recalcamento.
Apoiada no instrumental da psicanálise, ela levou essas reflexões para a análise da questão
de raça e gênero no Brasil9. Nesse mesmo processo, começou a frequentar o Candomblé,
desmistificar muitas coisas e “tornar-se negra”. Um processo de auto-reconhecimento e
valorização como afro-descendente. A psicanálise e o candomblé tornaram-se partes do
processo de uma nova construção de si mesmo, de uma transformação, ruptura e

5
HOLLANDA, Heloísa Buarque. op. cit., p.203.
6
O Pasquim. op. cit., p. 10.
7
Idem.
8
Idem.
9
O entrelaçamento dessas discussões pode ser observado em um dos seus textos mais conhecidos: “Racismo
e sexismo na cultura brasileira”, in: Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília:
ANPOCS, 1983.

4
metamorfose. A sua experiência de “torna-se” negra resume a historia de outros militantes,
que narram sempre a sua tomada de consciência racial de forma individual para, depois,
partirem para uma intervenção política, uma vez que o racismo no Brasil não se manifesta
de forma institucional, através de legislações que instaurem a segregação racial, como
foram os casos dos Estados Unidos e da África do Sul. No Brasil, o racismo é vivenciado
na exclusão ao mercado de trabalho formal, nas dificuldades postas à ascensão profissional,
na violência policial, nas representações sociais, nas desigualdades econômicas que
separam negros e brancos.

Os movimentos sociais e a política partidária

O surgimento do movimento negro, como mencionado anteriormente, foi parte


integrante da rearticulação da sociedade civil brasileira em meados da década de 1970, com
atenção à questão da identidade. Como ressalta Luiz Cláudio Barcelos,

“(...) o conceito de identidade passa a substituir o de ideologia como referencial


para a atuação e a análise dos movimentos sociais. Ao articularem visões
alternativas, elaborando novas identidades sociais ou redefinindo as já existentes.
As dimensões individual, coletiva e pública da identidade interagem nos
movimentos coletivos (...) propõem novos projetos cognitivos para a sociedade.”10

É importante destacar fato da historiografia brasileira ter dado pouca atenção ao


estudo do movimento negro.
Em meados da década de 1970 realizaram-se as primeiras reuniões clandestinas na
cidade do Rio de Janeiro onde se discutia a questão do racismo no Brasil. O regime militar
ainda proibia que grupos se reunissem sob qualquer pretexto. Alguns dos participantes das
reuniões eram novatos na organização política, outros tinham acumulado uma experiência
anterior na esquerda e já possuíam experiência de organização política11. Nesse sentido, é
importante destacar que, no seio do movimento, abrigavam-se distintas culturas políticas e

10
BARCELOS, Luiz Cláudio. Mobilização racial no Brasil: Uma revisão crítica.  In  Afro-­‐Ásia,  n.  17,  Rio  de  
Janeiro:  UCAM,  1996.
11
Apresentamos aqui um resumo da historia do movimento negro brasileiro na década de 1970. Para maior
aprofundamento, conferir a bibliografia incluída no fim do artigo.

5
entendimentos sobre a questão do racismo12. Alguns seguiam uma orientação marxista,
outros tinham como referencia a experiência liberal norte-americana, outros se baseavam
nas concepções africanas de libertação nacional focalizando na experiência dos paises
lusófonos.
Na mesma conjuntura, ocorria a organização de outros setores da sociedade, em
busca da redemocratização do país. Em todos os debates se falava em democracia, mas
nunca em democracia racial. Nesse sentido, o movimento negro resolveu participar da luta
coletiva, mas com reivindicações específicas: o combate ao racismo.

Em 1974, Lélia aproxima-se do movimento negro, participa das reuniões que eram
realizadas no Teatro Opinião em Copacabana e que deram início ao IPCN (Instituto de
Pesquisa da Cultura Negra):

“O IPCN [...] foi criado num momento de enorme tensão social e política, e acabou
expressando uma militância que se radicalizava frente à questão racial,
determinando uma nova característica no movimento negro, de questionar e
denunciar abertamente o racismo na sociedade brasileira.13

Foi de sua responsabilidade a organização, em 1976, do “primeiro Curso de Cultura


Negra no Brasil, na Escola de Artes Visuais (Parque Lage), justamente no momento em que
[...] aquela instituição se renova.”14 O espaço abrigava uma intelectualidade de esquerda
composta por artistas. Na Escola era produzida uma visão crítica sobre a realidade nacional,
chegando inclusive a se tornar o maior espaço cultural da cidade.

No final da década, em 1978, Lélia visita Salvador para participar do evento


“Noventa Anos de Abolição - Uma Revisão Crítica”, desenvolvido pelo Departamento de

12
Não devemos perder de vista que as pessoas que encabeçaram a retomada da luta anti-racista nos anos 1970
formavam uma pequena “elite”, com um nível educacional - respectiva ascensão social - maior que grande
parte dos afro-descendentes, mas que continuavam a se deparar com a discriminação racial no mercado de
trabalho e no seu cotidiano. Isso desmentia a visão do senso comum de que o preconceito era baseado na
classe e não na raça. Essas pessoas haviam desenvolvido seus estudos a partir do boom   do ensino superior do
país na década de 1970, e foram influenciadas pelas lutas dos afro–americanos nos Estados Unidos e pelas
lutas de libertação nacional na África.
13
“Dezessete anos de IPCN”. Texto introdutório da Chapa Munto M’ banda para a eleição da diretoria do
IPCN de 1992, (mimeo).
14
GONZÁLEZ, Lélia. O Lugar do negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982, p.40.

6
Assuntos Culturais da Prefeitura de Salvador, entre 2 e 5 de maio de 1978.15 De acordo
com Luiza Bairros, a visita de Lélia e o curso ministrado foram fundamentais para o
desenvolvimento do movimento negro na Bahia, pois alguns participantes do curso “que já
discutiam a questão do racismo formaram o Grupo Nego, a partir do qual surgiria o
Movimento Negro Unificado da Bahia (MNU-Bahia)”.16

Em junho de 1978, num ato comemorativo em São Paulo, surge o MNUCDR


(Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, posteriormente, apenas
MNU- Movimento Negro Unificado), criando-se, assim, um movimento negro organizado
e articulado em nível nacional, como conseqüência do trabalho desenvolvido por entidades
negras do Rio e de São Paulo, que construíram uma unidade política respeitando as
distintas correntes de pensamento. Lélia, eleita então membro da Comissão Executiva
Nacional do MNU (cargo que exerceu entre 1978 e 1982), teve uma participação
fundamental neste processo, sendo uma das articuladoras principais, assim como outras
lideranças políticas, forjadas sob o regime militar.

No entanto, nesse mesmo processo Lélia começou a refletir sobre a questão de


gênero dentro do movimento negro, identificando o sexismo, refletindo teoricamente sobre
a questão da mulher negra na sociedade brasileira. Como consequência desses fatores, Lélia
e outras mulheres negras decidem criar uma organização exclusivamente de mulheres
negras voltadas para suas questões específicas. Em 16 de junho de 1983, na Associação do
Morro dos Cabritos, fundou, em conjunto com outras mulheres negras, o Nzinga – Coletivo
de Mulheres Negras, nele permanecendo até 1985. O coletivo estruturava-se num trabalho
político baseado nos campos de atuação das militantes, as quais eram ligadas às associações
de moradores, um movimento com muita expressão na época. Atuavam lá as que também
estavam ligadas a outros campos, e com participação em outros espaços. As atividades
eram definidas como frente de trabalho, em que cada um se desenvolvia onde se sentia
mais preparado e livre. O nome do coletivo era uma homenagem à rainha Nzinga da África,

15
Informação obtida no Currículo desenvolvido por Anna Felippe Garcia.
16
BAIRROS, Luiza. “Lembrando Lélia Gonzalez” in  WERNECK,  Jurema  et  alli  (org.).O livro da saúde das
mulheres negras: nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro, Criola/Pallas, 2000, p.43.

7
uma figura importante na luta contra o colonizador e, além disso, personagem histórica, que
se converteu em símbolo de luta como “guerreira” e estrategista.17

No contexto da atuação política de Lélia não podemos esquecer o papel destacado


que desempenhou no movimento feminista na década de 1970-80.18 Ao mesmo tempo,
essas atividades foram marcadas por desencontros, críticas políticas e intelectuais. Foi de
fundamental importância ter levado a bandeira da mulher negra para o movimento
feminista. Todavia, a sua imagem dentro do movimento feminista branco não era a das
melhores. Lélia mesmo afirmava isso, pois era definida como

“(...) criadora de caso, porque elas não conseguiram me cooptar. No interior do movimento,
havia um discurso estabelecido em relação às mulheres negras, um estereótipo. As mulheres
negras são agressivas, são criadoras de caso, não dá para a gente dialogar com elas etc. E eu
me enquadrei legal nessa perspectiva aí, porque para elas a mulher negra tinha que ser, antes
de tudo, uma feminista de quatro costados, preocupada com as questões que elas estavam
colocando.”19

De acordo com Lélia, as análises feministas sobre as desigualdades não apontavam


para a dimensão racial das mesmas, por ainda estarem presas ao mito da democracia racial
e à ideologia do branqueamento. Um outro ponto denunciado era que as melhorias
econômicas obtidas pelas mulheres nos anos de 1970 e início dos 80 não contemplavam as
mulheres negras.
Sem dúvida, o tema mais polêmico levantado por Lélia no movimento feminista foi
a afirmação de que a emancipação econômica e social das mulheres brancas fora feita à
custa da exploração das mulheres negras, como domésticas. Afirmava Lélia:

17
“Nzinga Mbandi Ngola, rainha de Matamba e Angola nos séculos XVI - XVII (1587-1663) foi uma das
mulheres e heroínas africanas cuja memória mais tem desafiado o processo diluidor da amnésia, dando
origem a um imaginário cultural na diáspora, tal como no folclore brasileiro, com o nome de Ginga.
Despertou o interesse dos iluministas, com a criação de um romance inspirado nos seus feitos
(Castilhon,1769) e citação na ‘Histoire Universelle’ (1765); é cultuada como a heroína angolana das primeiras
resistências pelos modernos movimentos nacionalistas de Angola; (...) destreza política e de armas desta
rainha africana na resistência à ocupação dos portugueses do território angolano e conseqüente tráfico de
escravos”. SERRANO,Carlos. “Ginga, a Rainha Quilombola de Matamba e Angola”. in Revista da USP. n.
28. São Paulo, USP, 1995, p. 13.
18
Participou da primeira composição do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, CNDM,1985-1989.
19
MNU Jornal.  n.  19,  São  Paulo,  MNU,  maio  a  julho,  1991,  pp.  8-­‐9.

8
(...) o atraso político dos movimentos feministas brasileiros é flagrante, na medida em que
são liderados por mulheres brancas de classe média. Também aqui se pode perceber a
necessidade de denegação do racismo. (...) Aqui também se percebe a necessidade de tirar
de cena a questão crucial: a liberação da mulher branca se tem feito às custas da exploração
da mulher negra.20

Uma outra frente de luta onde Lélia esteve inserida foi a esquerda brasileira, por
considerar fundamental a questão da aliança entre setores progressistas da sociedade na luta
anti-racista. Contudo, caberia aos (às) negros (as) um papel de vanguarda nessa luta pela
superação do racismo, que não seria possível sem a conscientização dos(as) brancos(as).
Apesar disso, ela apresentava questionamentos a grande parte da esquerda em consequência
da compreensão teórica que apresentava em relação à questão racial, resumindo a um
problema meramente econômico-social, cuja resolução se daria com o fim do capitalismo.
Para a militante, “não é uma mudança de sistema para o outro que vai determinar o
desaparecimento da discriminação racial”.21 Sua participação nas eleições ligou-se então às
suas preocupações em tornar público o debate em torno da questão racial no país. Além
disso, considerava importante que os/as negros/as estivessem nos partidos de esquerda. Via,
porém, como problemática a relação com comissões ou secretarias para os negros, por estar
reproduzindo o esquema da democracia racial, e não inserir a questão do racismo no
programa do partido. No vocabulário político afirmado pela autora estaria presente a
questão da cidadania e da garantia de direitos formais para os afro-brasileiros.
Apesar da sua visão crítica, ingressou no Partido dos Trabalhadores (PT), ali
permanecendo, entre 1981 e 1986, quando integrou o Diretório Nacional, entre 1981 e
1984. Candidata à deputada federal, em 1982, baseou a campanha em sua militância no
movimento negro e no de mulheres, intitulando a mesma, de forma provocativa, “maiorias
silenciadas” – e não silenciosas. Tinha como ponto-chave os sujeitos dos novos
movimentos sociais surgidos no Brasil de então, as mulheres, os negros e os homossexuais.
O ponto de união entre as três vertentes era a questão da discriminação, uma forte bandeira
de luta dos três movimentos na época, mantendo a especificidade de cada um. Entretanto,

20
GONZÁLEZ, Lélia. “Cultura, etnicidade, trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da
mulher.” Comunicação apresentada no VIII Encontro Nacional da Latin American Studies Association.
Pittsburgh, Pensilvânia, USA, 5-7 abril, 1979. (mimeo), p.20.
21
HOLLANDA, Heloísa Buarque. (org.). Op. cit., p.204.

9
embora com boa votação, não conseguiu eleger-se, ocupando a primeira suplência da
bancada.

A pesquisadora Tereza Costa22 refere-se às articulações entre as distintas


identidades de Lélia, acionadas durante a campanha: a de intelectual, a de líder do
movimento negro e a de militante feminista. A da militante ainda relacionava à sua luta
aquela dos homossexuais. Esse conjunto de protagonistas políticos formariam, segundo ela,
uma maioria silenciada. Isso propiciou uma ampla rede de relações que auxiliou a
sustentação de sua campanha. Contudo, Costa sublinha ainda que, dessas múltiplas
identidades de Lélia, destacava-se a de ser mulher negra. A campanha também se
caracterizou pela ousadia e inovação para a época, em especial por tratar da questão da
homossexualidade, além de outros temas polêmicos como a descriminalização do aborto, a
titulação de posse para os moradores de favelas, entre outras questões. No entanto, a
campanha não foi muito bem recebida por certos setores do PT, que a consideravam muito
pouco ortodoxa, sobretudo pelas temáticas articuladas e propostas. .

Em 1983, num artigo publicado na Folha de S. Paulo,23 a militante apresenta uma


forte critica ao PT, em que questiona duramente o programa televisivo elaborado pelo
partido apresentado em rede nacional. O programa não mencionava a questão racial entre
os dez temas abordados pelo PT, nem menção houve à situação dos afro-descendentes.
Lélia considerou a atitude como “racismo por omissão”, um dos aspectos da ideologia do
branqueamento no Brasil. Havia, segundo ela, pessoas dentro do partido comprometidas
com a luta contra o racismo, mas, no Rio de Janeiro, como ela frisava, eram minoritárias.
Como consequência desses problemas, Lélia desligou-se do PT.

Em 1986, Lélia filiou-se ao Partido Democrático Trabalhista (PDT). É importante


mencionar que Lélia tivera já oportunidade de conhecer Leonel Brizola no final dos anos de
1970 em Nova Iorque, através de Abdias do Nascimento e Elisa Lakin - quando Brizola e
Abdias se encontravam no exílio. Lélia estava nos Estados Unidos na ocasião, participando
de uma serie de atividades em universidades americanas. No entanto, sua adesão ao PDT
aconteceu muitos anos depois, e foi motivada pelo programa do partido, que tinha como

22
COSTA, Teresa Cristina Araújo. “Caminhando contra o vento. Notas sobre a candidatura de Lélia
Gonzalez.” Comunicação do ISER. v. 1, n.3. Rio de Janeiro: ISER, dezembro de 1982.
23
GONZÁLEZ, Lélia. Racismo por omissão. Folha de S. Paulo, 13/08/1983.

10
prioridades os trabalhadores, as crianças, a mulher e o negro. Nas eleições de 1986, Lélia
concorreu novamente à eleição, dessa vez como deputada estadual. Contudo, mais uma vez,
ficou como suplente.

Apesar de ter participado de um conjunto de agremiações políticas, foi capaz de


“transitar por vários mundos, ajustando e conciliando suas múltiplas identidades segundo o
contexto e as situações”.24

As relações de Lélia com o movimento negro, e a com a militância política de uma


forma geral, se mantiveram intensas até cerca de 1988. Recordamos que neste último ano
foi publicada a nova Constituição Federal, em que se apresentam alguns avanços em várias
questões sociais. Para o movimento negro, em especial, foi aprovada a proposta do
deputado federal Carlos Alberto Caó de Oliveira (PDT-RJ) de tornar o racismo “crime
inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei”.25 Um grande
salto em um país que sempre negou a existência do racismo e afirmava a ‘democracia
racial’.

A partir dos anos de 1990, as referências sobre Lélia diminuem, provavelmente em


função de uma dedicação mais direcionada à academia. De fato, foi justamente nos anos de
1990 que ela assumiu a direção do Departamento de Sociologia da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Luiza Bairros recorda algumas dificuldades de
Lélia, provavelmente em função de seu engajamento e posicionamento político, para
conseguir se tornar chefe do departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio: “após
algumas tentativas frustradas, apesar do apoio que tinha entre os estudantes, só foi eleita,
em maio de 1994, para o único cargo que a vi desejar durante nosso período de
convivência”.26

E o DOPS nessa Historia?

24
KUSCHINIR, Karina. “Trajetória, projeto e mediação na política”. in VELHO, Gilberto (org.). Mediação,  
cultura  e  política.  Rio de Janeiro, Aeroplano, 2001, p. 139.
25
A Constituição foi promulgada em 5 de outubro de 1988. Em seu capítulo dos direitos e deveres individuais
e coletivos, artigo 5°, inciso XVLII, declara o racismo crime inafiançável e imprescritível.
26
BAIRROS, Luiza. op.cit., p. 58.

11
Provavelmente como consequência da pouca importância atribuída ao movimento
negro brasileiro no contexto dos movimentos sociais, ignorou-se o impacto e as
preocupações que o mesmo trazia aos militares no Brasil. Como consequência disso,
acreditamos, não houve nenhuma curiosidade ou pesquisa séria na documentação do
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) sobre o movimento negro.

A pesquisa que realizei nos arquivos do DOPS, embora restrita (uma investigação
mais aprofundada seria capaz de revelar questões novas sobre o tema), foi capaz de
proporcionar interessantes informações, tanto sobre o movimento negro, como sobre Lélia
Gonzalez. Assim, os dados obtidos, e aqui expostos, são os que estavam na “parte pública”
da documentação do DOPS.

As informações sobre ela aparecem pela primeira vez nos fichários do DOPS em
27
1972 , quando era professora de Filosofia na Universidade Gama Filho. Nessa ocasião, foi
solicitada uma averiguação sobre o seu possível envolvimento no “recrutamento de adeptos
à doutrina marxista” na citada universidade. No entanto, nada foi comprovado após a
investigação. Com base nos depoimentos recolhidos para a pesquisa, pressuponho que o
recrutamento teria alguma relação com a prática de reuniões na casa de Lélia para
discussões filosóficas com amigos(as) e ex-alunos(as). As referências a ela voltam a
aparecer nos arquivos em 1978, relacionadas à sua participação no movimento negro. A
presença de Lélia em reuniões e em atos públicos foi acompanhada de perto e algumas de
suas palestras que abordavam o tema das relações raciais no Brasil foram gravadas e
transcritas nos relatórios.

Sobre a militância de Lélia no PT, encontramos uma grande documentação referente


à sua candidatura à Deputada Federal, em 1982. Inclusive panfletos com a sua plataforma
política. É importante frisar que o período corresponde ao da reabertura, mas ainda
mantinha, de “forma mais discreta”, a vigilância aos militantes e aos movimentos sociais.
Havia, por parte das autoridades brasileiras, certas preocupações com a amplitude do
movimento negro, em especial, por uma razão muito concreta: o temor que por aqui
acontecesse o mesmo o que ocorreu nos Estados Unidos, conflitos e distúrbios raciais, ou

27
As documentações consultadas referentes à Lélia Gonzalez são: Setor: Informação, Pasta 157, Fl.779;
Setor: DGIE, Pasta,305/K Fl.422; Setor: Município, Pasta 152, Fls.4216/4334/4381/4831/5152/5251;
Setor: DGIE, Pasta,305-H, Fl.507-6; Setor: Estudantil, Pasta74, Fl.244-C; Setor: Comunismo, Pasta 159,
Fl.313.

12
que fosse criada uma organização como os Panteras Negras. Tentavam identificar em que
medida a luta travada pelo movimento negro se definia como um movimento “subversivo”.

Os informantes estavam bem atentos ao surgimento do MNU (Movimento Negro


Unificado) e a todas as atividades do seu Comitê Executivo. Chegavam a ter informes das
reuniões do mesmo, cópias do estatuto do MNU. No entanto, do material observado, o que
parece ter causado maior inquietação aos órgãos repressores foram as festas soul e o
movimento Black Rio.28

Os relatórios feitos pelos agentes repressores continham informações sobre os


participantes, palestrantes, debatedores, horário de inicio e término das atividades, número
de participantes. Os agentes não tinham acesso a todas as reuniões, pois algumas eram
fechadas a lideranças do movimento. O que percebemos também é que, em alguns
momentos, as pessoas responsáveis por executarem as averiguações sobre o movimento não
tinham clareza do que se tratava - em alguns relatórios afirmavam não ter aquele
movimento “nenhum caráter subversivo”.

A pesquisa nessa documentação ajuda a desmentir uma versão com a qual me


deparei, ao entrevistar algumas pessoas sobre Lélia, segundo a qual ela era, na verdade,
uma agente do SNI (Serviço Nacional de Informações), infiltrada no movimento negro.
Além disso, a pesquisa evidenciou também o movimento negro como um dos atores
possuidores de memória sobre “aqueles tempos”, embora poucas vezes qualificado como
tal para o debate.

O legado intelectual: mãe–preta, a neurose, cultura e amefricanidade

Como muitos da época em que viveu, Lélia manteve uma difícil relação entre a
militância política e as atividades acadêmicas, tensa e ambígua entre os dois campos que
muitas vezes se apresentam como opostos, ou se pensam isolados. No entanto, considerava
parte da sua tarefa construir um conhecimento que fosse também integrante da luta pela
libertação, na perspectiva do trabalho intelectual como forma de ativismo. Sobre o
engajamento, Edward Said chama a atenção para a tarefa dos intelectuais nos movimentos

28
Para maiores informações, conferir: Black Rio, DGIE- Pasta 250, Fls. 734-722. Dops.

13
sociais. “O papel do intelectual é, antes de mais nada, o de apresentar leituras alternativas e
perspectivas da história outras que aquelas oferecidas pelos representantes da memória
oficial e da identidade nacional.”29

Um destaque na produção textual de Lélia foi a sua apropriação da linguagem. O


modo como a autora construiu os seus artigos revela muito da sua postura contestadora. Em
textos acadêmicos, marcados pela formalidade, ela transportou o falar cotidiano e
conseguiu estruturar uma escrita com características da fala. O que não significou a
ausência de rigor acadêmico. Lélia usava expressões como “a gente sabe”, “algumas
escritazinhas próprias” expressões que soam atualmente como politicamente incorretas: a
“negrada”, o “crioléu”, “o mulherio”,30 entre muitas outros termos. O que mostra sua
preocupação em ser entendida pela comunidade negra, em grande parte não detentora dos
códigos da linguagem acadêmica, por estar excluída desses espaços. O relato de Luiza
Bairros é bem ilustrativo sobre isso: “o linguajar popular, bem ao modo do falar carioca,
salpicado de expressões acadêmicas, que até permitia que nós, os militantes mais novos,
entendêssemos o que é epistemologia!”.31

Lélia atribuía às relações de produção a mesma importância que conferia à cultura,


em especial ao simbólico, para avaliar o racismo, com base também na psicanálise de
orientação lacaniana, e em diálogo permanente com o afrocentrismo e o pan-africanismo.
Ela estava interessada em pensar os micropoderes, fazendo uma análise mais horizontal das
relações raciais. Também esteve muito preocupada em pensar gênero e classe. Dessa forma,
definia o racismo como construção ideológica com benefícios sociais e econômicos para os
brancos: pobres e ricos.
O racismo também era por ela considerado como um sintoma (manifestação em
público de um problema maior) do que vivem os brasileiros, ao tentar passar por brancos,
ou desejar ser um deles, em um país negro. Essa seria a neurose da nossa cultura, na medida
em que os brasileiros pensam e definem a sua cultura nacional a partir da herança e dos
símbolos afros como o carnaval, o maracatu, o frevo, o candomblé, a festa de 31 de

29
SAID, Edward W. Cultura  e  Política. São Paulo, Boitempo, 2003,  p.  39.
30
Essas expressões aparecem em vários textos: GONZÁLEZ, Lélia. Lugar do negro. Rio de Janeiro Marco
Zero, 1982; O terror nosso de cada dia. in Raça e Classe, n.2, Brasília: MNU¨ agosto/setembro de 1987;
“Racismo e sexismo na cultura brasileira”. in SILVA, Luiz Antônio Marchado (org.). Movimentos sociais
urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília, ANPOCS, 1983.
31
BAIRROS, Luiza. Op. cit., p.43.

14
dezembro na praia, e, ao mesmo tempo, mantêm a pretensão de se pensar um país branco,
ocidental. O momento cristalizador da inversão e da subversão é o carnaval, festa cristã
subvertida pela ordem da consciência32, quando os negros deixam de ser os marginais para
se converterem no símbolo da alegria. Os não-negros dão a passagem para o mestre-escravo,
pois o escravo deixou as suas marcas na cultura e na vida do seu opressor.
Nesse debate, Lélia insere uma personagem fundamental para a “africanização” do
Brasil. A autora apresenta uma a ressignificação para a imagem folclorizada da mãe-preta,
a mucama responsável pela criação e educação dos filhos dos senhores brancos. De acordo
com Lélia, a mãe-preta de forma consciente ou não, acabou por passar os valores africanos
e afro-brasileiros para as crianças brancas de que cuidou. Em especial, ela africanizou o
português, e o ensinou, transformando-o em pretoguês.33 O português “linguagem da
dominação, encontra-se reempregado para marcar uma resistência,”34 segundo o uso que
dele fizeram os negros e os indígenas. Lélia também refuta a idéia da mãe-preta como o
exemplo da harmonia racial no Brasil, e sustenta que ela exerceu uma resistência passiva,
porém, eficaz, do ponto de vista simbólico, dando uma rasteira no pessoal da “casa grande”.
A definição da mãe-preta da autora dever ser lida como uma reapropriação e um
desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a dominação, contra o seu próprio
dominador, ou seja, deixar na memória dos brasileiros brancos a presença africana nesse
país. Ela desempenhou, de acordo com Lélia, uma ação central na formação da cultura
brasileira de raízes afro. Também a partir das interferências nos códigos culturais impostos
pelos dominadores, através da negociação ou do conflito, uma relação, a nosso ver,
marcada por tensões pouco trabalhadas por Lélia. A autora não problematizou o fato de que
o processo ocorreu em mão dupla, porque a mãe-preta também viveu os efeitos da
dominação racial. A militante destaca o

32
Para a autora, o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber.
A memória, o não-saber que conhece, fala pela consciência através dos mancadas do discurso da consciência.
Cf. Racismo  e  Sexismo, p. 226.
33
Expressão criada pela autora.
34
CHARTIER, Roger. “Diferenças entre os Sexos e Dominação Simbólica (nota critica)”. in: Cadernos Pagu,
n. 4. Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, 1995, p.42.

15
[...] papel revolucionário e silencioso desta mulher, desta mãe- preta, no sentido de
passar os valores da sua ancestralidade para o branco, que ela amamentava. E no
meu pretoguês eu afirmo: ela passou uma rasteira no pessoal [...], todo mundo
pensa que ela foi boazinha, [...] ao contrário, sua influência foi de importância
capital para a formação de nossa cultura [...]”35.

Isso se deu a partir da narração, entre outras coisas, por parte das mães pretas, de
histórias de origem africanas que formaram o imaginário dos brasileiros.
A discussão em relação ao simbólico, como observado, é a grande novidade
introduzida por ela no estudo das relações raciais e de gênero no Brasil. Além disso, sua
apropriação da psicanálise permitiu-lhe pensar o papel da linguagem com vistas a uma
maior compreensão dessas relações. Considerando sua referência intelectual lacaniana, em
que a linguagem tem um papel central, vemos que seu desenvolvimento se dá por meio da
função maternal.

A linguagem é o fator de humanização, ou de entrada na ordem da cultura, do


pequeno animal humano. Constatamos que é por esta razão que a cultura brasileira
é eminentemente negra, apesar do racismo e de suas práticas contra a população
36
negra, enquanto setor concretamente presente na formação social brasileira.

Um destaque nas suas contribuições para o pensamento social brasileiro acerca das
relações raciais foi a desconstrução de um dos alicerces do discurso da democracia racial: a
“harmonia” que teria existido nas relações sexuais entre portugueses e mulheres negras e
também indígenas. Uma tradição que, de acordo com Gilberto Freire, seria anterior à
colonização do Brasil, já que teria se manifestado ainda nas relações com as mouras na
Península Ibérica. Essa interpretação teria dado origem, na década de 30, à criação do mito
que, até os dias de hoje, afirma ser o Brasil uma democracia racial. Gilberto Freyre, famoso
historiador e sociólogo brasileiro, é seu principal articulador, com sua “teoria” do

35
GONZÁLEZ, Lélia. “Alocução”. Revista Afro-Asiático. n. 6-7, Rio de Janeiro, UCAM, 1982, p.268.
36
GONZÁLEZ, Lélia. “O papel da mulher negra na sociedade brasileira: Uma abordagem político-
econômica”, In: Spring Symposium the Political Economy of the Black World, Center for Afro-American
Studies. Los Angeles: UCLA, 10-12 de maio de 1979, p. 08. (mimeo)

16
“lusotropicalismo”. O feito maior desse mito é a crença de que o racismo é inexistente em
nosso país, graças ao processo de miscigenação.”37
Em sentido contrário, Lélia a definiria as referidas relações sexuais como sendo “o
resultado da violentação das mulheres negras por parte da minoria branca dominante: os
senhores de engenho, os traficantes de escravos etc.” Atualmente, essas afirmações pode
não provocar o mesmo impacto que tiveram em 1979, mas naquele momento as teses
causaram grande controvérsia, pois foram apresentadas num período em que a sociedade
brasileira, de forma geral, ainda era muito resistente para admitir a existência do racismo.
Com o desenvolvimento de suas reflexões, Lélia irá construir uma categoria de
análise – “amefricanidade” –, para o entendimento mais amplo da experiência negra nas
Américas. A amefricanidade dá conta da experiência dos afro-descendentes nas Américas e
resgata a intensa dinâmica cultural da reelaboração da herança africana no chamado Novo
Mundo:
Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria Amefricanidade
incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação,
resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é,
referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o
Brasil e seus modelos yorubá, banto e ewe-fon.38

Isso é perceptível nas similitudes flagradas em várias partes das Américas, em


especial nos falares africanizados do espanhol, inglês e francês, como equivalentes ao nosso
pretoguês e até ao black english. De acordo com a autora, “marcas que evidenciaram a
presença negra na construção cultural do continente americano, levaram-me a pensar na
necessidade de elaboração de uma categoria que não se restringe apenas ao caso brasileiro
[...].”39
Desenvolveu-se em quase todo o continente um sistema de dominação estruturado
no discurso da mestiçagem, integração e democracia racial. Lélia irá buscar na história dos
dois maiores colonizadores, Portugal e Espanha, as chaves para o entendimento do que se

37
Idem, p.03.
38
“A categoria político-cultural da amefricanidade.” Tempo  Brasileiro.  n. 92/93, Rio de Janeiro: Ed.Global,
jan./jun. de 1988, p. 76.
39
Idem, p.71.

17
passou aqui, resgatando o processo de reconquista e banimento de mouros e árabes no
século VIII. A estruturação das sociedades ibéricas, a partir de então, se caracterizou como
um modelo hierárquico, em que também também existiam divisões raciais – que o digam os
mouros e os judeus. Esse modelo de organização social foi transportado para a colônia, o
que não tornou tão necessária a segregação aberta, como nos Estados Unidos.
O conceito de amefricanidade pode ser avaliado como uma “resposta” ao African-
American dos negros estadunidenses. Para Lélia o termo African-American nega toda a
experiência vivida no Novo Mundo e apaga toda a experiência dos verdadeiros africanos na
África. A autora, assim, adiantou-se ao movimento feito pela própria intelectualidade afro-
americana na década de 1990, que reviu muitos dos seus conceitos. A insistência de Lélia
em desconstruir o termo African-American também respondeu às acusações frequentes de
que o movimento negro brasileiro seria uma cópia do movimento negro estadunidense.

Como uma conclusão para uma vida ainda em aberto

Em 1994, no dia 10 de julho, aos 59 anos, morreu Lélia, vítima de um infarto do


miocárdio.
O movimento negro foi o grande responsável por manter a sua memória viva,
mesmo que, em vida, não tenha compreendido todas as suas idéias. Foram essas pessoas,
seus(suas) contemporâneos(as), os(as) responsáveis pelo processo de consagração da sua
memória, pela construção de sua “imortalidade”. Mantendo vivas as narrativas sobre ela,
que uma década depois ainda chegam a mim e me apaixonam.

Hoje Lélia representa uma referencia obrigatória para os(as) militantes do


movimento negro, para uma melhor compreensão do racismo no Brasil e das questões de
gênero e raça. É, ainda, uma liderança de referências para quase todos. No entanto – e
infelizmente –, uma referência ainda tímida no debate acadêmico sobre o racismo no Brasil.

A força da contribuição da autora reside no caráter específico da sua intervenção,


capaz de suscitar sempre novas indagações e reflexões. A partir do capital intelectual40

40
Utilizo aqui o conceito formulado por Pierre Bourdieu: “Conjunto de posições distintas e coexistentes,
exteriores umas às outras, definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e por relações de

18
acumulado em sua trajetória acadêmica, iniciada antes da militância, foi possível a ela
propor um salto qualitativo para as discussões teóricas e políticas a respeito de questões
essenciais, principalmente pela combinação dos seus conhecimentos de filosofia, história,
sociologia e psicanálise voltados para a análise e a reflexão sobre a questão negra no Brasil.
A que se somaram as trocas ocorridas entre ela e a militância, e ainda os embates políticos
nos movimentos sociais, na esquerda e na academia.

A historia de vida de Lélia, por sua excepcionalidade41, por seu ingresso na


universidade, por sua ascensão social, não pode ser vista como uma representação idêntica
da vida da grande maioria das mulheres negras brasileiras. No entanto, a sua vida nos fala
de realidades e possibilidades que vão além do seu itinerário pessoal. As realidades de um
Brasil onde a existência do racismo torna Lélia tão única e tão excepcional. E as
perspectivas para o futuro, num Brasil sem racismo onde muitas Lélias possam surgir e se
desenvolver.

Bibliografia

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construído de tal modo que os agentes ou grupos são aí distribuídos em função de sua posição nas
distribuições estatísticas de acordo com os dois princípios de diferenciação, [...] – o capital econômico e o
capital cultural.” Razões Práticas, Campinas, Papirus. 1996, pp. 18-19.
41
“Não se pode negar que há um estilo próprio a uma época, um habitus resultante de experiências comuns e
reiteradas, assim como há em cada época um estilo próprio de um grupo. Mas para todo indivíduo existe
também uma considerável margem de liberdade que se origina precisamente das incoerências dos confins
sociais e que suscita a mudança social” LEVI, Giovanni. “Usos da biografia”. in FERREIRA, Marieta Moraes
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Entrevistas:

21
PEREIRA, Carlos Alberto e HOLLANDA, Heloisa Buarque (orgs). Patrulhas ideológicas.
São Paulo: Ed. Brasiliense,1980.
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O Pasquim. n. 8-10, 20/3 a 26/3/1986.
MNU Jornal. n. (19): 8-9, maio a julho, 1991.

Arquivo DOPS (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro):

Setor: Informação, Pasta 157, Fl.779; Setor: DGIE, Pasta,305/K Fl.422;Setor:Município,


Pasta 152, Fls.4216/4334/4381/4831/5152/5251; Setor: DGIE,Pasta,305-H, Fl.507-6;
Setor: Estudantil, Pasta 74, Fl.244-C; Setor: Comunismo,Pasta 159, Fl.313.

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