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Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

T171l Tanzi Neto, Adolfo (org.).


Linguística Aplicada de Resistência: transgressões, discursos e política / Organizador: Adolfo
Tanzi Neto; Prefácio de Cláudia Hilsdorf Rocha.– 1. ed.– Campinas, SP : Pontes Editores, 2021.
il.; quadros; fotografias.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-272-3.

1. Educação. 2. Linguística Aplicada. 3. Prática Pedagógica.


I. Título. II. Assunto. III. Tanzi Neto, Adolfo.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:

1. Política. 320
2. Formação de professores – Estágios. 370.71
3. Didática - Métodos de ensino instrução e estudo – Pedagogia. 371.3
4. Linguística Aplicada. 468
Copyright © 2021 - Do organizador representante dos colaboradores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Editoração: Eckel Wayne
Capa: Acessa Design
Revisão: Joana Moreira

PARECER E REVISÃO POR PARES


Os capítulos que compõem esta obra foram submetidos
para avaliação e revisados por pares.

Conselho Editorial:
Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp – Campinas)
Glaís Sales cordeiro
(Université de Genève - Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UnB – Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UnB – Brasília)
Rogério Tilio
(UFRJ – Rio de Janeiro)
Suzete Silva
(UEL – Londrina)
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
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2021 - Impresso no Brasil
Agradecimentos

Aos colegas de trabalho que contribuem na realização desta obra e a


todos outros cientistas que coletivamente resistem para manter a pesquisa
viva e pulsante em nosso país.
sumário
PREFÁCIO
UM POSSÍVEL PREFÁCIO EM TEMPOS DE LUTO: Porque Resistir
é Preciso – e Sempre (Ins)Urgente..............................................................................11
Cláudia Hilsdorf Rocha

Linguística Aplicada de Resistência: agência radical, transgressões


e política para transformação social escolar................................................25
Adolfo Tanzi Neto
Larissa Picinato Mazuchelli
Vanessa Moreno Mota

Criticidade como prática de resistência: intersecções


entre os estudos de letramentos e a LA indisciplinar...............................47
Rogério Tilio
Paula Tatianne Carréra Szundy

Ethos e construção de imagens negativas de adversários


no discurso político: uma reflexão ilustrada...............................................71
Adail Sobral
Karina Giacomelli

Escolas e Partidos: ideologias, letramentos e decolonialidade...................97


Ana Paula Marques Beato-Canato
Clarissa Menezes Jordão

Colaboração crítica na formação superior em tempos de


resistência: questões epistemológicas e teórico-metodológicas......121
Maria Cecília C. Magalhães
Maria Otilia G. Ninin
Viviane L. S. Carrijo
Formação de professores: implicações de políticas públicas
na sensibilização para uma educação linguística ampliada
e contemporânea..............................................................................................................149
Ana Amélia Calazans da Rosa
Aryane Santos Nogueira

As balbúrdias nas Universidades Públicas: Entre a educação-


resistência e a (des)educação dos Ministros da Educação
do Brasil................................................................................................................................177
Grassinete C. de Albuquerque Oliveira
Paula Tatiana da Silva-Antunes

Tempos de resistência: o discurso carnavalesco da Paraíso


do Tuiuti em 2018.................................................................................................................205
Luiz Carlos Villalta
Ronaldo Corrêa Gomes Junior
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva

Uma reflexão sobre os conceitos de manipulação, resistência


e ativismo baseada em práticas de tradução política nas
redes sociais........................................................................................................................231
Érica Lima
Janine Pimentel

Ciborgue, bruxa, professora e o que mais ela quiser ser: educação


linguística de inglês na universidade.................................................................259
Gabriela Claudino Grande

Culturas para uma LA contemporânea: resistências e


persistências.......................................................................................................................287
Christine Nicolaides
Renata Archanjo

Discurso da naturalização de estupros masculinos: sentidos


de virilidade em contos homoeróticos...............................................................315
Dánie Marcelo de Jesus
Gabriel Oliveira
É possível transgredir o ensino de pronúncia na sala de aula
de língua inglesa? Reflexões com estudantes de Letras sob o
viés da expansão global do inglês........................................................................337
Denise Cristina Kluge
Eduardo H. Diniz de Figueiredo

A potência afetiva na transgressão de discursos opressores ...................355


Francisco Estefogo
Fernanda Coelho Liberali
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

PREFÁCIO

UM POSSÍVEL PREFÁCIO EM TEMPOS DE LUTO:


Porque Resistir é Preciso – e Sempre (Ins)Urgente

Cláudia Hilsdorf Rocha1

(Rosana Paulino,
Geometria à brasileira, 2018
Fonte: Pinacoteca de São Paulo2)

[…] E eu não aguento a resignação. Ah, como devoro


com fome e prazer a revolta.

(Clarice Lispector,
Todas as Crônicas, 2018)

1 Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Programa de Pós-Graduação em Linguística


Aplicada (PPGLA-UNICAMP).
2 Imagem extraída da obra Rosana Paulino: a costura da memória, editado pela Pinacoteca
de São Paulo (p. 142). Disponível em: http://pinacoteca.org.br/wp-content/uploads/2019/07/
AF_ROSANAPAULINO_18.pdf. Acesso em: 16 maio 2021.

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Este livro – Linguística Aplicada de Resistência: Transgressões,


Discursos e Política – nasce da aliança entre pessoas que se recusam a
aceitar os efeitos violentamente destrutivos do fascismo social (SAN-
TOS, 2006) ou do fascismo contemporâneo (LAZZARATO, 2019) que,
compactuado com a necropolítica (MBEMBE, 2016), em um país peri-
férico, autoritário e estruturalmente racista como o Brasil, cede à força
hegemônica do capital, arruína o ecossistema e viola os direitos humanos
universais, atingindo de forma letal as populações socioeconomicamente
desfavorecidas, bem como os grupos minoritários e minoritarizados
(BRUM, 2017).
A aliança à qual aqui me refiro responde à urgência de um pensa-
mento e de um movimento radicalmente transformadores, como postula
Butler (2018), ao debater a luta por justiça social em um mundo que viola
direitos plurais e que estrategicamente violenta, de variadas formas, a
existência de pessoas cujas vidas e corpos não se conformam a padrões
hegemônicos. Nessa perspectiva, o movimento social de resistência
“depende mais fortemente da ligação entre pessoas do que de qualquer
noção de individualismo” ou de identidades específicas, permitindo que
expandamos nosso entendimento ou nossas vivências “quando falamos
de nós” (BUTLER, 2018, p. 75, ênfase no original).
Assim sendo, a aliança não se apresenta apenas como uma forma
social a ser realizada no futuro, uma vez que ela pode também revelar-se
latente ou, ainda, estruturar nossa própria formação subjetiva, permitindo
uma relacionalidade social necessária para que possamos exercitar toda a
força do sujeito coletivo (BUTLER, 2018). As transformações radicais,
portanto, derivam de nossa vontade de construir alianças que nos permi-
tam resistir com o outro e para o outro, em uma luta interessada na (re)
construção do espaço público, em sua condição plural e comunalmente
democrática.
Como bem coloca Martins (2020), em qualquer campo social é im-
portante nos mantermos juntos, em aliança comunal, para que possamos
enfrentar, em tempos adversos, as amarras opressoras das ideologias
autoritárias e dos discursos hegemônicos. Afinal, não parece possível

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

“tratar de resistência sem resistir, junto com os resistentes, de mãos


dadas” (MARTINS, 2020, p. 324).
Em sua complexa heterogeneidade temática e pluralidade de focos e
contextos, os capítulos que constituem esta coletânea não se apresentam
como a mera união de múltiplos elementos, mas revelam a possibilidade
de insurgência de elos de resistência em sua potencialidade interdiscursi-
va. Este livro, que tenho a honra de prefaciar, constitui-se pela tessitura
singular das questões trabalhadas em seus variados capítulos, os quais
apresentam reflexões profundas e situadas sobre agência, identidade, dis-
curso, línguas hegemônicas, políticas, racismo, monolinguismo, gênero,
entre outros pontos, todos de suma relevância. O entrelaçamento singular
dos apelos e vozes mobilizadas ao longo de toda a coletânea permite um
acabamento único, singularizado em torno de seu compromisso de luta
contra forças opressoras e regimes autoritariamente disciplinadores e
reguladores que nos arremessam à condição precária, não somente em
tempos pandêmicos, mas também em um tempo histórico em que a crise
é permanente e sombriamente cruel em todo o mundo.
Por esse prisma, situado no pensamento de Butler (2018), a obra
pode ser compreendida como um corpo, uma montagem ou um organismo
fractalmente constituído, que se mostra intensamente vivo como uma
unidade, em toda sua potencial e transgressiva unicidade. Esse corpo,
que se movimenta em sua condição de resistente, em um mundo de de-
sigualdades abissais, enuncia em meio ao e também através do campo de
uma linguística aplicada que se reconhece indisciplinarmente (MOITA
LOPES, 2006; FABRÍCIO, 2018; SZUNDY; FABRÍCIO, 2019) resis-
tente e desobedientemente (MIGNOLO, 2017) resiliente.
Aliar o conceito de resiliência à noção de resistência pode se mostrar
interessante para chamar nossa atenção para outras formas de aliança
(MARTINS, 2020). Na luta contra as formas de subalternização e silen-
ciamento opressor produzidas nas e por meio das práticas de linguagem,
a relação dinâmica de ruptura e de complementaridade desses conceitos
pode abrir espaço para uma maior visibilidade no que diz respeito a postu-
ras protagonistas e proativas de enfrentamento (MARTINS, 2020). Esses

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

movimentos, por sua vez, podem ser mais suscetíveis a um pensamento


alternativo, oportunizando, desse modo, a criação ou a reinvenção de
novas realidades, orientadas por outras sensibilidades de mundo (MIG-
NOLO, 2017) e permitindo a insurgência de alianças radicais.
Ao nos convidar para (re)pensar como essas alianças de resistência-
resiliência podem ser (re)construídas, a fim de permitir a abertura para
mundos outros ou (re)começos alternativos, esta coletânea revela seu
potencial de nos fazer refletir sobre e questionar acerca dos modos (im)
possíveis de produção e vivência da pluralidade como obrigação ética
(BUTLER, 2018). Esse exercício compromissado com a pluralidade po-
tencializa o exercício de um aliançar, com o objetivo de (re)inventarmos
formas outras de convivência. Nessas bases, este livro mostra seu compro-
misso para com a (re)construção de uma ética de coabitação alternativa,
que expressa a potência da transformação libertária (FREIRE, 1987,
2003, 2013) e nos permite abrir espaço para “relações possibilitadoras e
dinâmicas que incluem suporte, disputa, ruptura, alegria e solidariedade”
em espaços-tempo específicos (BUTLER, 2018, p. 34).
Dessa maneira, penso que uma forma interessante de perceber esta
obra seria, inicialmente, compreendê-la a partir da ideia de um corpo que
“encampa, a seu modo, a resistência possível” (BRAGA; DE SÁ, 2020, p.
12), aos moldes de Foucault (1979). Possível, não no sentido de se pautar
por uma realidade redutora e limitadora, que nos paralisa, mas como algo
que nos convida e nos encoraja a construir o inédito viável (FREIRE,
2014; LIBERALI, 2020) ou a realizar gestos impossíveis (SAFATLE,
2020). Nesse horizonte, encampar uma resistência possível implica,
portanto, provocar e nutrir o agenciamento de lugares de resistência que
nos permitam viver e exercitar a ousadia de (re)criar o desconhecido
(BRAGA; DE SÁ, 2020) ou de “saltar no vazio” (SAFATLE, 2020, p.
35) como um gesto (im)possível, urgente e necessário para a insurgência
de movimentos antiautoritários.
Esta obra realiza-se, então, nas fronteiras, as quais permitem po-
sicionamento axiológico e, por consequência, oportunizam que o ato
(Postupok, em russo), a partir da visão bakhtiniana, possa ser compre-

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

endido como “ato de pensamento, de sentimento, de desejo, de fala, de


ação” (PONZIO, 2017, p. 10). Essa compreensão, por sua vez, nos permite
vislumbrar um alinhamento da concepção de ato com a ideia de dar um
(pequeno) passo, de promover iniciativas arriscadas ou de possibilitar
outros começos (PONZIO, 2017). Por esse prisma, esta obra se revela
um convite à prática da resistência, como um início e uma iniciativa.
Esse convite abarca também o desejo de que um primeiro passo para
a realização de um ato de resistência possa mostrar-se suficientemente
resiliente, a ponto de se tonalizá-lo com uma coragem afirmativa que
fortaleça nosso poder de enfrentamento das violências socioculturais,
político-econômicas, institucionais, linguísticas e identitárias perpetradas
em nossa sociedade.
Assim sendo, esta coletânea ecoa os gritos dos povos e grupos
subalternizados, denunciando os silenciamentos, os apagamentos, as
explorações e as aniquilações promovidas por um sistema opressor e
violento, que tem suas raízes no projeto civilizatório ocidental, ao mes-
mo tempo em que nos convoca a resistir criando fissuras e semeaduras
(WALSH, 2019), para que possamos viver uma boa vida (BUTLER,
2018). Essa vida, como podemos pensar também a partir das discussões
e proposições trazidas nessa coletânea, é aquela “vivida com outros” e
se funda na impossibilidade de vivência “sem esses outros”, na medida
em que, “seja eu quem for, serei transformado pelas minhas conexões
com os outros” (BUTLER, 2018, p. 239).
Essa vida boa, que faz parte de uma vida ruim, só pode se fazer
possível por meio de uma aliança radical, porque “a minha dependência
do outro e a minha confiança são necessárias para viver bem” e também
para nutrir “as condições críticas da vida democrática” (BUTLER, 2018,
p. 239). Em sua tessitura singular, esta obra convoca o pensamento par-
ticipante (SOBRAL, 2019) e incita nosso dever de responder, responsa-
velmente, a partir do lugar que ocupamos na vida social, na qualidade
de sujeitos sem álibi e sem exceção (PONZIO, 2017), a essa obrigação
de fazermos da vida boa uma forma possível de existência pacífica em
nosso planeta.

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Nesse sentido, em meio aos espaços fronteiriços entre a linguística


aplicada de resistência e outros campos diversos, entre eles, a tradução,
a educação linguística, a formação docente e os estudos das mídias e
tecnologias, esta coletânea ecoa e encampa gestos (im)possíveis pe-
rante futuros ecologicamente organizados (SANTOS, 2007) ou deco-
loniais (STEIN et al., 2020). Tais gestos se fundamentam na ideia de
que transformações e transgressões implicam movimentos radicais de
enfrentamento também possibilitados por uma linguística aplicada que
não foge à sua luta por transformação social e, portanto, permanece com
o problema e com a dificuldade (STEIN, 2020). A radicalidade desses
gestos permite o empoderamento em meio à adversidade, à incerteza e ao
sofrimento, de modo a criar condições para que nosso compromisso de
tratar das dores e dramas do mundo não seja tangencial. Nessas bases, a
linguística aplicada de resistência poderá se constituir como um campo
fértil para a produção de alianças de cumplicidade, em uma ética de
coabitação comunal (BUTLER, 2018), e para a insurgência de práticas
potencialmente capazes de promover interrupções perante ideologias e
discursos hegemônicos, em contextos e tempos históricos específicos.
Em seu apelo à resistência, nessa ótica, esta obra nos provoca a
pensar sobre como ouvir os gritos, agarrar os problemas e procurar
maneiras coletivas de semeaduras de vidas possíveis em nosso país.
Nesse sentido, é importante Nesse sentido, é importante reafirmar que,
desde sempre violento e abissalmente desigual, o Brasil de hoje já nor-
malizou e oficializou o cotidiano de exceção, uma vez que a violência
subjetiva perversamente instalada em nosso país multiplica-se de forma
exponencial e é insistentemente perpetrada contra os corpos mais frágeis
(BRUM, 2019a).
Com a internet e as intensas transformações originadas pela presença
das redes e mídias sociais na atualidade, ampliou-se em todo o mundo, por
um lado, a possibilidade de democratização de acesso à informação e ao
conhecimento, bem como a oportunidade de denúncia contra realidades
injustas. Em contrapartida, intensificou-se o individualismo exacerba-
do, enquanto também se alastrou o livre compartilhamento de notícias
fraudulentas, da ignorância e do ódio ao diferente, o qual é determinado

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

a partir das bases capitalistas destrutivas, racistas, patriarcais, coloniais,


xenofóbicas e heteronormativas que estruturam as bases do cotidiano em
nosso país (BRUM, 2015).
Essa condição da sociedade brasileira, que permite o esvaziamento
e a eliminação do outro e autoriza a proliferação da espiral do ódio, é
denominada por Brum (2015, s/p) como “a boçalidade do mal”. Essa
caracterização faz uma explícita alusão ao conceito de banalidade do
mal, criado por Hannah Arendt (1999), o qual busca explicar como, na
ausência do pensamento, a crueldade extrema pode se instalar por meio
de um sistema social que aniquila a pluralidade e trivializa os valores
morais. A boçalidade do mal se instala em nosso meio, segundo Brum
(2015), quando nos sentimos orgulhosamente autorizados a expressar
livremente nossa crueldade, travestida de liberdade de expressão e, assim,
a cometer qualquer tipo de maldade.
Nesse mesmo horizonte, é relevante reconhecer, como evidenciado
em diversos capítulos desta coletânea, o caráter extremamente oligárqui-
co, hierárquico, violento e autoritário da sociedade brasileira, cujas raízes
historicamente remontam ao início de nossa colonização e sustentam
até hoje as estruturas que (re)produzem o autoritarismo, a violência e as
assimetrias que a constituem (CHAUÍ, 2008).
Diante dessa realidade cruel, parece extremamente difícil encontrar
palavras que possam minimamente expressar o terror que temos viven-
ciado, de forma mais perceptível e crescente, a partir dos movimentos
de junho de 2013, em que brasileiros e brasileiras foram massivamente
às ruas para manifestar sua insatisfação com a conjuntura nacional e
demandar mudanças sociais. Na análise de Pinheiro-Machado (2019, p.
14), “de junho de 2013 à eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, o Brasil
virou do avesso”. As contradições e especificidades dessas manifestações,
aliadas à natureza ambígua e difusa de outros atos de ação coletiva que as
sucederam, tais como os rolezinhos e a greve dos caminhoneiros, podem
ser considerados como um marco para as profundas transformações que
o país tem sofrido nos últimos tempos, em termos sociais, econômicos,
culturais e políticos (PINHEIRO-MACHADO, 2019).

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Como bem sabemos, esse momento sombrio da história brasileira


abarca o golpe consumado em 2016, quando a presidenta Dilma Rousseff,
democraticamente eleita, sofre um processo de impeachment e acaba sen-
do afastada do cargo. Para Cittadino (2016, p. 5), além de ser a expressão
de uma violência em si mesma, por romper com o princípio democrático,
esse ato revela, ainda, “a vitória da ignomínia, da corrupção, do populis-
mo”, intensificada pelas marcas avassaladoras de elementos fundantes
da sociedade brasileira, como “o ressentimento, o preconceito, o ódio
de classe, o machismo e a misoginia”. Posteriormente, vivenciamos de
maneira mais perceptível a emergência perversa do bolsonarismo, a partir
de 2018. Como enfatiza Brum (2019b, s/p), o Brasil da primeira metade
do século 21 revela estilhaços de faces que formam algo impossível de
se nomear porque, ao ceder à expressão explícita do autoritarismo, adere
“àquele que grita, saliva, vocifera, confundindo ódio com força, berro
com verdade, máscara com rosto”.
A crise sanitária atualmente em curso, provocada pela pandemia de
coronavírus, iniciada em meados de 2020, intensifica o caos de forma
exponencial, uma vez que brutalmente acentua os efeitos genocidas da
necropolítica no Brasil. Além disso, esses tempos cruelmente pandêmicos
escancaram não somente nossa fragilidade como espécie humana neste
planeta, mas também e principalmente a barbárie perpetrada pelas formas
de dominação impostas ao Sul Global, as quais cruelmente perpetuam
“o sofrimento humano injusto causado pela exploração capitalista, pela
discriminação racial e pela discriminação sexual” (SANTOS, 2020, s/p).
Enfim, é também contra todo esse absoluto horror, materializado
de diferentes formas nos mais diversos campos da vida social brasilei-
ra, que esta obra nos convida a lutar. É preciso resistir3, porque se faz
urgente criarmos linhas de fuga e um outro futuro, para que o amanhã
possa ser, se não maior, como quer Pinheiro-Machado (2019), ao menos
um pouco mais suportável. Afinal, “imaginar um novo futuro é tarefa da
qual não podemos abrir mão” (PINHEIRO-MACHADO, 2019, p. 12),
3 Busco ecoar o grito de guerra contra o autoritarismo materializado por meio da Exposição
intitulada “Resistir é Preciso” e promovida pelo Instituto Vladimir Herzog entre 2013 e 2014
com o objetivo de contar a história da resistência à ditadura no Brasil. Para mais informações
sobre essa iniciativa e para o atual projeto homônimo, visite: http://resistirepreciso.org.br.

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

se quisermos salvar o que resta de nossa frágil e destroçada democracia.


Ecoando o apelo esperançado de Eliane Brum (2019, s/p), cada
capítulo desta obra é um convite ao enfrentamento, corajoso e coletivo,
do cenário de horror que impera no Brasil de hoje e, assim, revela-se
um acontecimento ao mesmo tempo que um prenúncio, já que “resistir
ao medo e se juntar para criar futuro é o ato primeiro de resistência”.
Enquanto somos convidados a travar, de modo resistente-resiliente, lutas
anti-hegemônicas, esta coletânea nos mantém resistentes pela “crença
de que nenhum fato poderá nos fazer perder, de uma vez por todas, a
possibilidade de recomeçar” (SAFATLE, 2020, p. 128). Ademais, esta
obra alimenta resilientemente a chama do esperançar (FREIRE, 1992)
como prática libertária de resistência, ao fortalecer a premissa de que,
além de urgente e necessário, é possível “aprender a resistir”, ou seja,
“nem ir, nem ficar, aprender a resistir” (FUKS, 2015, p. 79).
Ao insurgir dos espaços fronteiriços e indisciplinarmente resistentes
da linguística aplicada, este livro nos convida a habitar lugares reper-
toriados, constituídos de história, de memória e de luta (AUGÉ, 2012),
em movimentos que incitam a resistência, à maneira pensada por Noemi
Jaffe (2015). Como já aludi em trabalhos anteriores (ROCHA, 2020), essa
autora consegue capturar de modo singular a potência do ato de resistir,
considerando, nesse movimento, tanto a força das pessoas que tomam
para si, em uma cumplicidade transformadora, as dores do outro, como
o poder da linguagem de provocar transgressões e transformar o mundo,
principalmente quando afetadas por uma orientação ética e estética. Nas
palavras de Jaffe (2015, Orelha do livro):

Pessoas resistem – não permitem que forças externas alte-


rem seus princípios e valores; suportam dificuldades apa-
rentemente inimagináveis; não revelam segredos, nem sob
penas e dores terríveis. Por vezes, resistem mesmo quando
parece que se entregam: uma resistência semelhante à da
água, maleável, mas nem por isso menos resistente.

A linguagem também resiste. Se tratadas com rigor,

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

propriedade e tino poético, as palavras sustentam trancos


dolorosos, reagem com forças ainda maiores do que as que
sobre elas foram aplicadas; suportam fardos, banalizações,
e driblam poderes.

Que nosso grito de (–) luto (!) possa ser revigorado pela leitura
dos capítulos desta coletânea e que, a partir dos diálogos provocados,
possamos exercitar e alimentar nossa força de resistência e de insubor-
dinação. Que sejamos afetados pelos sentidos e pelos gritos mobilizados
desta obra, a ponto de permitir que o ato de resistir possa ser realizado
como um acontecimento contingente e, assim, trazer à cena o incomen-
surável e aquilo que ainda não percebemos (SAFATLE, 2018). Que
cada momento de leitura suscite gestos (im)possíveis e corporificados
de resistência (quando) vividos junto com as pessoas e com o mundo.
Que nossa leitura desta obra possa ser atenta, cuidadosa e interessa-
da, permitindo-nos viver esperançadamente o sonho ancestral anunciado
por Ribeiro (2019), o qual combina, com muita resiliência, a sutil e pro-
visória suspensão de nossa descrença com o compromisso desobediente
de duvidar do (nosso) fim. Que possamos (fazer) ouvir, sobretudo, as
vozes do sul global.

“[…] tem um ditado que diz que: o mais corajoso não é o primeiro
soldado que entra na batalha, mas o segundo, que sabe o que vai en-
contrar lá. Nóiz, de todas as quebradas, somos esse segundo soldado,
porque a gente sabe o que vai encontrar, e continuamos na batalha,
dia após dia.

[…]

É necessário e urgente sonhar.


Fácil, fácil não é, mas vale a pena.

[…]

20
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Nem sempre eu recebi apoio nas minhas ideias. Então, eu tive que ser
esse lugar inspirador. Encontrar ele dentro de mim.

[…]

Mas se eu consegui chegar no proverbial lá, é porque, desde cedo,


eu tive dona Jacira me ensinando não só o poder das plantas, mas a
importância de me conectar com a natureza, do poder de escutar o
que as plantas tinham prá me dizer. Eu tinha a arte e o poder das his-
tórias, de várias histórias, que me davam o universo e esse universo
conseguia quebrar as barreiras de toda a miséria que me cercava. Eu
tinha meus irmãos e irmãs junto comigo. Sonhando e vivendo o hip
hop. Eu não tava sozinho. Eu não tô agora. Como você também não
está.”

Trechos da fala de Emicida no Podcast AmarELO Prisma/Coragem4.

Referências

AmarELO Prisma – Movimento 4: Coragem. [Locução de]: Emicida. Brasil, Mulato


Produção, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y3Bd8wbO61o.
Acesso em: 18 maio 2021.
ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999 [1963].
AUGÉ, M. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São
Paulo: Papirus, 2012.
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João,
2017 [2009].
BRAGA, A.; DE SÁ, I. Apresentação. Encampar a resistência possível. In: BRAGA,
A.; DE SÁ, I. (org.). Por uma microfísica das resistências: Michel Foucault e as lutas
antiautoritárias da contemporaneidade. Campinas: Pontes Editores, 2020. p. 7-18.
4 O documentário AmarElo Prisma é uma iniciativa multiplataforma desenvolvida por Emicida
como um desdobramento de seu álbum AmarELO, lançado em 2019. O projeto, realizado em
2020, busca promover a transformação social e coletiva, gerando empatia e autocuidado, a
partir de quatro pilares: paz, clareza, compaixão e coragem. Para saber mais, visite: http://www.
emicida.com.br/ e http://www.emicida.com.br/noticia/13-AmarElo-Prisma-Documentario-de-
Emicida-propoe-reflexoes-sobre-autocuidado-e-vida-em-sociedade?lang=ptbr.

21
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

BRUM, E. A boçalidade do mal: Guido Mantega e a autorização para deletar a


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24
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Linguística Aplicada de Resistência: agência


radical, transgressões e política para
transformação social escolar

Adolfo Tanzi Neto1


Larissa Picinato Mazuchelli2
Vanessa Moreno Mota3

Como o senhor afirmou. Cavaleiro!, deveriam existir leis


para proteger os conhecimentos adquiridos. Tome um de
nossos bons alunos, como exemplo: modesto e diligente,
desde as aulas de gramática começou a preencher seu
pequeno caderno de expressões e, tendo, durante vinte
anos, prestado a maior atenção nos professores, acabou
por acumular uma espécie de pequeno pecúlio intelectual.
Será possível que isso não lhe pertença como ocorre em
relação a uma casa ou dinheiro? 
(P. Claude, O Sapato de Cetim4)

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação


em Linguística Aplicada (PIPGLA-UFRJ).
2 Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS). Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP). Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada e Estudos da
Linguagem (LAEL-PUC-SP).
3 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada (PIPGLA-UFRJ).
4 BOURDIEU, P. Introdução. In: BOURDIEU, P. A Distinção: crítica social do julgamento.
Porto Alegre: Zouk, 2017.

25
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Num contexto banhado por violências e incertezas políticas, sociais


e econômicas, entramos numa constante de reflexão e questionamento
sobre o nosso trabalho no campo da educação linguística e suas reais
contribuições transformativas para o contexto educacional brasileiro.
De um lado, a sociedade pós-moderna caracterizada pelo impacto
devastador dos processos econômicos globais que aprofundam a produção
e manutenção das desigualdades sociais patrocinadas por mecanismos
políticos e econômicos que produzem e normalizam a exclusão e a mar-
ginalização. De outro, a escola contemporânea cada vez mais distante das
práticas sociais dos seus envolvidos e ainda em busca de oferecer pecúlio
intelectual para os poucos modestos e diligentes que ainda resistem.
Para Stetsenko (2016), a escola atual, baseada nas filosofias e teorias
dominantes para o desenvolvimento e aprendizagem humana, continua
perpetuando e aprofundando a crise da desigualdade e a mercantiliza-
ção da ciência e educação. Diante disso, conceituações e metodologias
alternativas mais radicais devem ser desenvolvidas para “apreender e
apoiar as possibilidades de desenvolvimento humano e educação para
além do status quo” (STETSENKO, 2016, p. 14). Vale notar, como nos
aponta Davis (2017 [1990]) que o conceito de “radical” nada mais é do
que “compreender as coisas desde a sua raiz” (p. 24), ou seja, a busca
por mudanças na sociedade, em especial no contexto educacional, ne-
cessariamente precisa atingir a raiz das opressões, sejam elas sexistas,
raciais, de gênero e outros.
Acreditamos que uma educação que busque problematizar tais
questões, segundo Stetsenko (2016), aborda a subjetividade humana
e a agência para a mudança/justiça social e sustenta diferentes visões
de mundo críticas sobre as causas econômicas e políticas sistêmicas e
estruturais.
No Brasil, “se antes a corrupção como herança maldita era o prin-
cipal, temos agora que pensar a nossa desigualdade e suas mazelas como
a resultante de um processo histórico que impossibilitou aprendizados
sociais e políticos decisivos…” (SOUZA, 2018, p. 26) e, acrescentamos,
com um grande desafio formativo para a sua sociedade, de noções meca-

26
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

nicistas de transmissão, acúmulo de conhecimento e pecúlio intelectual,


de modelo bancário, como criticado por Freire (1987 [1970]), de noções
hierárquicas de relação de poder e controle e perspectivas cognitivistas
ortodoxas de processos de ensino-aprendizagem, para novos processos
de relação com o conhecimento, de posicionamento semiótico crítico
colaborativo, ético-ideológico de transformação/justiça social.
Considerando as condições que permeiam a realidade educacional
brasileira, onde todos os tipos de exclusão social como gênero, classe,
necessidades especiais, raça etc., em um contexto de crianças e adoles-
centes que têm uma percepção muito limitada de seu papel de atuação
na mudança da realidade, a discussão de uma educação linguística de
resistência para uma agência radical dos alunos para a transformação/
justiça social no Brasil é fundamental.
Agência, nesta discussão, pode ser entendida como rupturas de
padrões de ação pré-estabelecidos nos papéis dos sujeitos para tomar
iniciativas para transformar realidades (ENGESTRÖM, 2006, 2011;
VIRKKUNEN, 2006; LIBERALI, 2019). Essas dinâmicas constituem
a discussão deste capítulo, uma vez que o desenvolvimento humano no
campo da educação linguística será visto com o objetivo de transformar/
transgredir atividades humanas nas suas intenções e ações intencionais
para criar novas possibilidades de expansão e transformação de reali-
dades.

Língua e poder para transformar realidades

Para pensarmos a transformação de realidades no campo da educa-


ção linguística, inicialmente partimos da concepção da interiorização do
conhecimento, proposto por Shotter (1993), segundo o qual, os signos
linguísticos, apesar de arbitrários, são sustentados por formas estáveis
ou como “dispositivos” na mediação das relações sociais e cujas pos-
síveis formas de transgressões “podem ser sancionadas ou reparadas”
(SHOTTER, 1993, p. 62). Para o autor, a interiorização do conhecimento
não pode ser vista apenas pelo prisma de uma ação, mas também no

27
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

desenvolvimento do ser humano como membro posicionado político,


ético, cultural e, retoricamente, na sociedade.
Os processos mentais são, portanto, influenciados pelos funciona-
mentos éticos e retóricos entre as pessoas pelo mundo. O pensamento
ou o efeito de sentido de uma sentença não vem simplesmente de um
sistema cognitivo ordenado e bem desenvolvido internamente, mas, sim,
de sentimentos vagos, difusos e desordenados, influenciados pelo modo
como estamos semio(e)ticamente posicionados em relação aos que nos
cercam.
Essa visão de Shotter, como já discutido em outro trabalho (TANZI
NETO, 2017), baseia-se nos pressupostos de Bakhtin e seu Círculo sobre
a palavra não ser uma unidade neutra, abstrata e sem sentido, mas “inte-
rindividual e [que] reúne, em si, vozes de todos aqueles que a utilizam
ou têm usado historicamente” (CEREJA, 2010, p. 203). A palavra, nessa
perspectiva dialógica, é indissociável do discurso, “palavra é discurso,
história, ideologia, luta social, pois ela é síntese das práticas discursivas
historicamente construídas” (CEREJA, 2010, p. 204). É o que hooks
(2013, p. 223) assinala em sua obra ao falar da língua que “rebenta”,
que “recusa estar contida dentro de fronteiras”, invadindo os “espaços
mais privados da mente e do corpo”. Ainda que tentemos colonizá-la, a
palavra escapa e lança raízes onde não imaginávamos ser possível. Ela
se torna lugar de resistência onde antes era espaço de dominação. 
Nesse pensamento, a palavra é uma (re)construção social de signi-
ficados, já que as pessoas não estão isoladas no mundo e não são donas
de uma soberania interna de construção de conhecimento (SHOTTER,
1993); muito pelo contrário, estão em um sistema heterogêneo de sentidos
e significados para o uso nas negociações entre nós mesmos e com as
pessoas que nos cercam. Nas palavras de Shotter,
Assim eu pondero, partindo de Wittgenstein e Bakhtin-
Vološinov, que apesar das palavras poderem ser usadas
como uma ‘forma de ferramenta’, como meios de ‘mo-
delar’ uma ação e um discurso significativo, elas não
podem ser usadas como queremos; esses usos são também

28
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

restrições nas nossas formas de ser. Elas exercem uma


influência ontológica assim como epistemológica sobre
nós (SHOTTER, 1993, p. 62).

Nesse sentido, a interiorização, no desenvolvimento humano,


vai muito além do simples processo de internalização, no processo
de ensino-aprendizagem, do que está no mundo para o plano da
consciência individual, numa educação linguística da língua pela
língua. Isso nos implicaria numa individualidade e autocrítica muito
bem desenvolvida e acabada. Ao contrário, na perspectiva que de-
fendemos, a educação linguística deveria sugerir que aprendamos a
ser membros críticos e autônomos em uma sociedade em constante
transformação, “como ver e ouvir coisas como os outros, como ligar
nossas ações com os tipos de práticas morais de conhecimento”[1]
(SHOTTER, 1993, p. 62), como resistir e transformar os discursos
sexistas, xenófobos, racistas, homofóbicos e colonizantes disponíveis
em uma sociedade.
Para Shotter (1993, p. 72-3), a mente está, assim, em constante
tensão, no “encontrar e fazer” das formas de um discurso, nas ações da
fala e nas reações dos outros, no seu desenvolvimento no contexto sócio-
histórico-cultural intralinguístico da sociedade que o cerca, considerando
o caráter semiótico/ético das posições das pessoas que a constituem. É,
portanto, papel da escola garantir que essas tensões sejam trabalhadas,
pois é através delas que o desenvolvimento e a transformação são pos-
síveis. 
Partindo de uma perspectiva do capitalismo predatório, das mazelas
sociais e injustiças no campo da ciência e educação para uma educação
linguística de resistência de transformação/justiça social, recorremos à
discussão de agência, situada nas dinâmicas e interações sócio-histórico-
culturais, nos diferentes espaços de desenvolvimento humano, como
ferramenta de transformação social e não apenas de ação, numa direção
mais radical igualitária de educação para ideais ético-democráticos
emancipatórios.

29
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Para Wright (2010), quatro componentes precisam estar interliga-


dos em qualquer busca teórica que envolve transformação social: uma
teoria da reprodução social, uma teoria das lacunas e contradições da
reprodução, uma teoria de trajetórias de mudança social não intencional
e uma teoria de estratégias transformadoras.
No campo da teoria da reprodução social, a reprodução de estruturas
sociais pode ser vista pelo prisma da reprodução passiva e ativa social. A
reprodução passiva está ancorada nas práticas cotidianas, hábitos, traba-
lho, regras, num mundo apenas para viver e reproduzir commodities para
o mercado e para o seu status de trabalhador, num equilíbrio autossusten-
tado que reforça os mesmos dispositivos e escolhas (WRIGHT, 2010). Já
a reprodução de estruturas sociais ativas está relacionada a instituições e
dispositivos com o específico objetivo de reprodução social; nessa lista,
podemos pensar a escola, a polícia, a mídia, as igrejas, o Estado etc. Para
Wright (2010), essas instituições conseguem efetivamente cumprir com
o seu papel de reprodução ativa social. Nesse sentido, qualquer transfor-
mação emancipatória precisa considerar os limites e contradições dessas
instituições. Alguns de seus mecanismos, que afetam as ações individuais
e coletivas das pessoas, são “coerção, regras institucionais, ideologia e
interesses materiais” (WRIGHT, 2010, p. 195), que constituem a repro-
dução social capitalista.
Para uma teoria das lacunas e contradições da reprodução, ao bus-
carmos entender as lacunas e contradições do sistema, abrimos espaços
para estratégias transformativas. Para tanto, não se trata de simplesmente
mapear os mecanismos de reprodução social, mas identificar processos
que “geram rachaduras e aberturas no sistema de reprodução” (WRIGHT,
2010, p. 203). Por exemplo, compreender que o Brasil foi o último país do
Ocidente a abolir a escravidão e que ainda enxergamos reflexos da falta
de políticas adequadas à população escravizada à época é imprescindível.
É fundamental reconhecer que o país, hoje, possui mais da metade da
população autodeclarada como negra, e tem como índices as preocupantes
taxas de 18,3% de pessoas pretas e pardas no ensino superior, entre 18 e
24 anos, em contrapartida aos 36,1% de pessoas brancas, nessa mesma

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

faixa etária (IBGE, 2018)5, mesmo após a adesão da Lei nº 12.711/2012,


que reserva 50% das vagas para diferentes cotas, entre elas, as raciais,
em universidades e institutos federais de educação.
Outros números reforçam a urgência para entendermos as la-
cunas e contradições do sistema. Negros são 79,1% das vítimas de
intervenções policiais que resultam em morte, segundo dados do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgado em 2020. Enquanto
a taxa de homicídio de mulheres negras aumentou 12,4% na última
década, a de mulheres brancas caiu 11%. Esses dados estatísticos,
embora fundamentais para a compreensão da violência histórica que
o Brasil inflige aos negros, não tem sido suficiente para instaurar
mudanças, embora mapeiem os mecanismos de reprodução. É preciso,
portanto, compreender e criar caminhos que nos levem a transformar
esses números e criar rachaduras e Gretas6, como aponta  Walsh
(2019, p. 105): “Minha aposta hoje em dia está (…) por esses modos-
muito-outros de pensar, saber, estar, ser, sentir, fazer e viver que
são possíveis e, ademais, existem apesar do sistema, desafiando-o,
transgredindo-o, fazendo-o fissurar.”.
Para uma perspectiva da teoria de trajetórias de mudança social
não intencional em grande escala, Wright (2010) nos aponta para dois
movimentos: um em relação aos subprodutos capitalistas introduzidos
na sociedade que operam sob as relações sociais existentes com o uso
de tecnologias, estratégias de investimento e competição, mudanças de
hábitos familiares no trabalho, sociedade e saúde, mas com macro efeitos
que não justificam as ações, como a inserção da mulher no trabalho, mas
com efeitos indesejados de não poder escolher a maternidade para não
interromper sua inserção no mercado de trabalho. O segundo movimento
cumulativo de transformação social dar-se-á por agentes coletivos, sindi-
catos, associações, instituições, coletivos, fundações, partidos políticos
com o objetivo de transformar deliberadamente, por meio de práticas de
5 https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf.
6 A partir do trabalho de Walsh, ressignificamos a palavra “greta” e a indexamos como “Greta”
para marcar o trabalho transgressor da ativista ambiental sueca, Greta Tintin Eleonora Ernman
Thunberg, que ganhou notoriedade por ter protestado fora do prédio do parlamento e liderar
o movimento de greve das escolas pelo clima.

31
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

fortalecimento institucional, pressões políticas e confrontos violentos ou


não, as estruturas e instituições sociais.

Movimento significativo em direção ao empoderamento


radical social democrático igualitário não é algo que
acontecerá apenas por acidente, como um subproduto da
ação social para outros fins; requer ação estratégica deli-
berada, e uma vez que tal empoderamento popular ameaça
os interesses de atores poderosos, essa ação estratégica
normalmente envolve luta. Mas estratégia e luta não são
suficientes. Para que a transformação radical ocorra, as
condições devem ser “amadurecidas”; as contradições e
lacunas nos processos de reprodução social devem criar
oportunidades para que a estratégia tenha efeitos transfor-
madores significativos (WRIGHT, 2010, p. 208).

Entretanto, no Brasil, desde pouco antes do impeachment da pre-


sidenta Dilma Rousseff em 2016, temos observado como os diferentes
agentes coletivos da extrema direita se fortaleceram institucionalmente
e politicamente numa perspectiva ideologicamente carregada de carac-
terísticas semióticas de valores implícitos de identidade e poder antide-
mocráticas e anti-igualitárias de transformação radical social. No campo
dos estudos da linguagem, pudemos observar como essas trajetórias
linguísticas superdiversas da extrema direita de outros países começaram
a permear o nosso contexto nacional.
Movimentos de empoderamento radical social, de agência “trans-
formadora7” ganham espaço na sociedade em função do caldeirão das
pressões políticas, sociais e econômicas por meio de discursos translo-
cais (Brasil x EUA), criando novas ordens indexicais8 que flertam com
o fascismo, eugenia, segregação, meritocracia, entre outras perspectivas
7 Pontuamos que a transformação social ganha diferentes perspectivas de acordo com as mãos
que as manipulam.
8 Na discussão de Blommaert (2015), que busca, pela análise do contexto/condição de uma ação
semiótica, entender como esquemas sócio-históricos são reconstituídos em uma atividade
situada e criam ordens de indexicalidade que determinam sentimentos de pertença, cultura,
identidade e papéis na sociedade.

32
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

antidemocráticas. Esse espaço é rapidamente conquistado em nosso país,


talvez por grandes contradições e lacunas nas condições “não amadure-
cidas” de empoderamento popular, já que estratégias mais deliberativas
não ganharam força e assistimos diariamente pela TV o desmantelamento
da sociedade brasileira.
Para uma teoria de estratégias transformadoras, para Wright (2010),
é por meio dos confrontos e lutas políticas que possivelmente consigamos
criar uma disjunção radical (que busca entender a raiz) das estruturas
institucionais já estabelecidas. Para o campo da educação linguística,
entendemos que essas lutas e confrontos podem ser permeados por
uma educação linguística de resistência para uma transformação ético-
democrática social9.

Agência radical como ferramenta transformadora

A perspectiva de educação linguística de resistência para a transfor-


mação/justiça social que propomos abarca o conceito de agência situada
sócio-historicamente. Devido ao fato de realizarmos ações mediadas por
signos, em interações com outros sujeitos e com o meio que nos cerca,
compreendemos, pois, que a linguagem é uma forma de ação social
(AHEARN, 2001).
Pesquisas alinhadas com a Linguística Aplicada (doravante, LA)
de Resistência devem reconhecer, portanto, a importância da linguagem
na constituição dos sujeitos e na construção dos significados, a partir da
identificação das agências que emergem na práxis. Ahearn (2001), em
linhas gerais, propõe uma definição de agência como “uma capacidade
de agir mediado socioculturalmente” (p. 112). Parish e Hall (2021)
especificam este conceito de agência como a “capacidade para a ação

9 Entendemos que a “transformação social” pode ganhar diferentes frentes, desde a busca para
o crescimento vertiginoso da desigualdade social para alimentar mecanismos capitalistas
até o genocídio sanitário como proposta de saúde pública (sob comando do atual presidente
Jair Messias Bolsonaro). Nesse sentido, nos debruçamos para uma “transformação social”
ético-política, ético democrática, com olhares para as lutas de classes, as mazelas sociais, a
desigualdade na distribuição de capitais, as vozes negras e das minorias do nosso país com
objetivo de criar fissuras de mudanças de status quo.

33
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

socialmente significativa” (p. 1), ao justificar a indispensabilidade de um


maior foco na análise em elementos semióticos, que indicam as ideologias
presentes nas práticas sociais.
Expandindo a discussão de Wright (2010) sobre transformação
social, pontuamos que nem a agência e nem a transformação ocorrem
dissociadas das estruturas sociais, tais como o Estado, a Igreja, a Família,
o trabalho remunerado, entre outros. Segundo Ahearn (2001), é possível
identificar, nas ações das pessoas, a forma como essas estruturas moldam
o enfrentamento das contradições presentes nas práticas sociais, que
podem ser tanto de reforço das contradições, quanto de reconfiguração
delas. Parish e Hall (2020), ainda, alinhados com Ahearn (2001), des-
tacam a influência das estruturas sociais nas agências dos sujeitos e na
construção de suas identidades.
Ao tratarmos da agência e das estruturas sociais, é inegável, então,
estabelecermos uma relação direta, com as urgências situadas das re-
produções sociais que nos cercam, como os casos recentes de racismo e
o contínuo extermínio da população negra10 na sociedade brasileira. O
debate acerca das questões raciais deve nos impulsionar a agir, no sentido
de irmos em busca da transformação social ético democrática. Almeida
(2019) nos aponta que debater sobre o racismo estrutural11 nos levaria
a refletir acerca de mudanças que envolveriam mais do que solucionar
casos isolados, mas a uma mudança profunda nas esferas sociais, polí-
ticas e econômicas. Assim, destacamos o que o autor entende por raça:

raça é um conceito cujo significado só pode ser recolhi-
do em perspectiva relacional. Ou seja, raça não é uma
fantasmagoria, um delírio ou uma criação da cabeça de
pessoas mal-intencionadas. É uma relação social, o que
significa dizer que a raça se manifesta em atos concretos
10 Defendemos a urgência da Linguística Aplicada de Resistência de pautar e problematizar as
discriminações de raça, classe, gênero, sexualidade, entre outros, que emergem nos discursos.
Entretanto, por limitações de espaço, daremos uma maior ênfase nas agências e a relação com
o racismo na sociedade.
11 Reconhecemos a importância da distinção que Almeida (2019) faz acerca do racismo individual,
institucional e estrutural. Com fins de aproximação do debate aqui proposto, nos apoiamos no
conceito do racismo estrutural.

34
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ocorridos no interior de uma estrutura social marcada por


conflitos e antagonismos. (ALMEIDA, 2019, posição
Kindle 469).

A partir desse entendimento, conseguimos ilustrar como as relações
sociais tanto no contexto brasileiro, quanto no exterior, são marcadas
por dores e exclusões, no que concerne à questão racial. Não é uma
problemática recente as mortes da população negra por policiais, o que
escancara o que trazemos à tona aqui: de acordo com a Rede de Obser-
vatórios da Segurança (2020)12, “o racismo enterra corpos pretos todos
os dias. É ele que também ensina ao policial que o alvo da sua bala tem
cor” (p. 5). Isso é evidenciado com as tristes estatísticas de que pessoas
negras (pretos e pardos) ainda estão no topo dos dados de mortes por
policiais. Somente no estado do Rio de Janeiro, em 2019, 1423 negros
foram mortos pela polícia, enquanto 231 brancos perderam suas vidas
pelos agentes de segurança. Na semana em que finalizamos este capítulo,
somos tomados, mais uma vez, pela dor e revolta de ver 27 corpos negros
mortos no Jacarezinho, no Rio de Janeiro, em mais uma ação ilegal da
polícia militar. Uma chacina que entra para a história brasileira, como
tantas, que nos dilacera e que reforça a urgência de ações antirracistas e
transformações radicais13.
Em outros países, como os Estados Unidos, esse cenário se repli-
ca, aos olhos de todas e todos e em plena luz do dia, como foi o caso
do homem negro George Floyd, assassinado por um policial branco

12 Disponível em: http://observatorioseguranca.com.br/wp-content/uploads/2020/12/Novo-


Relat%C3%B3rio_A-cor-da-viol%C3%AAncia-policial_a-bala-n%C3%A3o-erra-o-alvo.pdf.
Acesso em: 02 maio 2021.
13 Registramos aqui os nomes dos 27 moradores do Jacarezinho e o policial da operação que
morreram, para que suas vidas sejam reconhecidas e para que a violência do Estado não seja
esquecida. Jonathan Araújo Da Silva, Jonas Do Carmo Santos, Márcio Da Silva Bezerra, Carlos
Ivan Avelino Da Costa Junior Rômulo Oliveira Lúcio, Francisco Fábio Dias Araújo Chaves,
Cleyton Da Silva Freitas De Lima, Natan Oliveira De Almeida, Maurício Ferreira Da Silva,
Ray Barreiros De Araújo, Guilherme De Aquino Simões, Pedro Donato De Sant’ana, Luiz
Augusto Oliveira De Farias, Isaac Pinheiro De Oliveira, Richard Gabriel Da Silva Ferreira,
Omar Pereira Da Silva, Marlon Santana De Araújo, Bruno Brasil, Pablo Araújo De Mello,
John Jefferson Mendes Rufino Da Silva, Wagner Luiz Magalhães Fagundes, Matheus Gomes
Dos Santos, Rodrigo Paula De Barros, Toni Da Conceição, Diogo Barbosa Gomes, Caio Da
Silva Figueiredo, Evandro Da Silva Santos, e André Frias. Presentes.

35
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ajoelhado sobre o seu pescoço, em 25 de maio de 2020. Esse caso foi


filmado e amplamente compartilhado nas diferentes mídias, o que
resultou em uma grande comoção internacional. Acreditamos que
precisamos cada vez mais falar sobre racismo e lutar para que mortes
sejam evitadas e os assassinos respondam por seus crimes. Assim,
concordamos com Barrie (2020) a respeito da difusão de casos de
racismo, principalmente, pelo fato dessa divulgação ter o potencial de
surtir um maior interesse nas pessoas por assuntos políticos. O autor
identificou, após o assassinato de George Floyd, um aumento signifi-
cativo no número de buscas na nternet pelo termo “racismo” em 101
países e em 32 idiomas diferentes.
Ao compreender que o conceito de raça se dá por uma perspectiva
relacional (ALMEIDA, 2019), como pesquisadores e pesquisadoras da
Linguística Aplicada que possui um caráter de resistência, devemos,
pois, resistir a todo e qualquer ato racista e utilizar a nossa voz como
instrumento de luta, seja em nossos trabalhos acadêmicos, seja em nossa
vida fora da academia.
Destacamos, portanto, os pressupostos de Edwards (2015), que
podem nos iluminar, como educadores e educadoras de línguas, acerca
do nosso papel profissional. Para a autora, a agência profissional de do-
centes requer um maior comprometimento e interpretação de problemas
em nosso contexto situado, para então, podermos agir uns com os outros.
Embora a autora não desenvolva seu pensamento a respeito de questões
sensíveis, como o racismo, levantamos, assim, uma aproximação teórica
sobre tal temática e a agência relacional, que envolve a responsabilidade
e o comprometimento interpessoal sobre nossas ações. Portanto, ecoamos
as palavras de Almeida (2019): “[e]m um mundo em que a raça define
a vida e a morte, não a tomar como elemento de análise das grandes
questões contemporâneas demonstra falta de compromisso com a ciência
e com a resolução das grandes mazelas do mundo” (ALMEIDA, 2019,
Posição Kindle 524).

36
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Agência transformativa-radical: o empoderamento


radical social

Stetsenko (2019) se afasta dos conceitos relacionais-ecológicos


(BIESTA; TEDDER, 2006, 2007; BIESTA et al., 2015; PRIESTLEY et
al., 2015) de agência por considerá-los atravessados pelo que chama de
“resíduo de passividade” que ressoam discursos e práticas de aceitação
sobre o mundo e de agência como uma “resposta” às circunstâncias. Para a
autora, a compreensão necessária para uma agência transformativa-radical
é a de que o desenvolvimento humano não é decorrente apenas de sua
relação com o mundo em contextos dinâmicos, mas é realizado em cada
“contribuição agentiva em práticas comunais” (STETSENKO, 2019, p.
148). Trata-se, portanto, de um conceito que emerge de um movimento
bidirecional e recursivo: práticas são transformadas como um todo toda
vez que o sujeito age como um membro ativo da comunidade.
Nesse sentido, agência aqui deve ser atribuída a um papel formativo
no processo de correalização do desenvolvimento humano, da dinâmica
sócio-histórica e do próprio mundo como ferramenta propiciadora de
disjunções radicais das estruturas institucionais e sociais já estabeleci-
das. A noção de realidade para Stetsenko, nessa visão transformativa, é
assumida, assim, como “não-dada” mas em realização. Para a autora, “a
realidade é (re)concebida como aquilo que está sendo constantemente
transformado e realizado (literalmente tornado real) pelas próprias pes-
soas – e, mais importante, por pessoas, não como entidades isoladas e
autônomas, mas como atores agentes ou agentes ativos de práticas so-
ciais.” (STETSENKO, 2019, p. 149). A ênfase, portanto, está no elo de
“pessoas mudando o mundo e sendo mudadas neste mesmo processo de
mudar o mundo”, o que ocorre através da linguagem e da práxis e, para
nós, através da resistência e transgressão.

O viés transgressivo da educação linguística

A língua é, sem dúvidas, um importante espaço de resistência em


contextos de dominação. Os negros africanos escravizados, apesar de pre-

37
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

cisarem aprender a língua do dominador para falarem entre si, “pegaram


fragmentos do inglês e os transformaram numa contralíngua. Juntavam
suas palavras de um modo tal que o colonizador teve de repensar o
sentido da língua inglesa” (HOOKS, 2013, p. 227). Nessa subversão, a
língua transgrediu sentidos e amarras linguísticas, brincou com a sintaxe
do colonizador, mudou padrões fonológicos e em sua força centrípeta
expandiu-se. Já não é “a simples língua do opressor”, mas um lugar de
encontro em que histórias de sofrimento se tornam resistência, possibili-
tando a sobrevivência e a produção cultural e epistemológica dissidente.
Como consequência, embora a África possua aproximadamente
2100 línguas, o processo ideológico da promoção da língua inglesa como
língua global, neste território, representa, dentre outros fatores, o estigma
e o fato de a língua materna de educandos nesse contexto ser ignorada
pelos professores, muito influenciados pela naturalização da expansão
deste idioma e na crença de que o inglês é sinônimo de poder, o que acar-
reta, inclusive, na ameaça de extinção de mais de 300 línguas africanas.
Além disso, em relação aos impactos do imperialismo linguístico com
a expansão do inglês, Rodrigues (2011) destaca que o “apagamento das
contradições imbricadas em sua expansão, ou seja, o esquecimento de
que a hegemonia do inglês é, em grande parte, uma força de exclusão
social e política que marginaliza inúmeras línguas e grande parte da
população mundial” (p. 22).
Se a palavra, como vimos, é dialógica, e a língua lugar de resistência,
a educação linguística que defendemos precisa transgredir os movimentos
e práticas centrípetas, como essas em curso em países africanos, que criam
alunos colecionadores de pecúlio intelectual. É preciso, pelo contrário,
desestabilizar os caminhos para que a natureza inacabada – tanto da
linguagem quanto dos sujeitos e da educação – possa ser reconhecida e
valorizada. Isso exige ir além das práticas discursivas de identificação,
centralizadoras de si, que reforçam as diferenças por se sustentarem no
dualismo.
No contexto africano, Gretas possíveis na criação de educação
linguística de resistência passa pelo investimento em pesquisas, pela

38
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

valorização das línguas maternas em contextos formais de ensino e apren-


dizagem e pelo planejamento curricular com vistas ao plurilinguismo e
a consequente diversidade cultural, com uma proposta de educação de
qualidade e fomento de comunicações local e global. Entretanto, ainda
podemos identificar que 

o uso consistente de línguas maternas na educação formal


dos países africanos está ainda longe de se concretizar.
Um dos obstáculos é a oficialização das línguas euro-
peias no período pós-independência desses países. O fim
da colonização não significou uma mudança política,
cultural e social capaz de reverter ou ao menos repensar
o lugar tomado pelas línguas europeias. Para detrimento
das línguas africanas autóctones,  aquelas permanecem
como capital cultural precioso e restrito a poucos (RO-
DRIGUES, 2011, p. 31).

A educação linguística de resistência passa, portanto, seja no con-


texto Africano ou no Brasileiro, por transgredir os efeitos diversos da
colonização, como a identidade. Ao problematizá-la, a partir da alteri-
dade bakhtiniana, Ponzio (2009) argumenta que quando ela predomina,
“existe sempre um inimigo externo contra o qual unir-se e contra quem
lutar (…).” (PONZIO, 2009, p. 23). Para o autor, a constante criação
de um “inimigo externo”, marca do processo “civilizatório” europeu,
da colonização das américas e da educação mercantil, está na base das
culturas e práticas identitárias fundadas na categorização e catalogação
sistemática das diferenças do outro. Em contrapartida, a radicalidade do
pensamento bakhtiniano estaria, segundo o autor, na compreensão de
que “nosso encontro com o outro não se realiza com base no respeito ou
na tolerância, que são iniciativas do eu [e, portanto, da identidade]. O
outro impõe sua alteridade irredutível sobre o eu, independentemente das
iniciativas deste último” (PONZIO, 2009, p. 23). Ou seja, reconhece-se
que minha identidade é fundada pelo outro e é nessa relação dialética
que minha subjetividade se (trans)forma. 

39
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Nesse contexto em que refletimos sobre a educação linguística,


a alteridade torna-se uma força transgressora por não ser centralizante
(“em-si-mesmada”), mas por sua força centrípeta, expansiva, porque
reconhece a radicalidade da presença dos outros nas minhas palavras e
na minha práxis.
 
Resistência transformadora de existências diversas

No contexto escolar, a agência transformadora (STETSENKO,


2019) e a radicalidade transgressora da alteridade (PONZIO, 2009;
BAKHTIN, 2010) nos fornecem caminhos de resistência para combater
uma educação mercantilizada, do “ensino personalizado”, das práticas
identitárias que ainda essencializam as subjetividades e alimentam for-
ças centralizadoras. Caminham, portanto, na contramão da pluralidade,
diversidade e desestabilização.
Embora seja fundamental reconhecer a importância das pautas de
identidade, da valorização de existências diversas, a tendência à estabili-
zação e essencialização das marcas identitárias nascidas na colonização
ainda produzem muros difíceis de serem fissurados. Um deles, por exem-
plo, cada vez mais presente no contexto educacional brasileiro é a busca
pela “personalização do ensino”. Nessas práticas, em que os professores
precisam saber de praticamente todas as necessidades individuais de
cada um de seus alunos, centralizando todo o processo pedagógico nelas,
diminui-se a potência da agência transformadora-radical que defendemos.
Enfraquece-se a comunidade e a troca, uma vez que a prática pedagó-
gica se torna “clientelista” – a educação é fundamentada na resposta do
professor às demandas individuais dos alunos e não daquela comunidade
de aprendizagem. Ao invés de oportunizar aprendizagens com o grupo,
trocas entre pares, a escola reafirma essa identidade de aluno fechada,
“em-si-mesmada”, alheia ao outro. Com isso, perdemos a resistência que
se sustenta na pluralidade e na radicalidade da alteridade – sem perso-
nalismos e metodologias de ensino salvacionistas. As justificativas hoje
são diversas para esse raciocínio. A nova saída salvacionista da educação
brasileira parece estar em formações e metodologias cognitivas, por

40
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

exemplo. Na lógica do personalismo, o professor passa a ser chamado a


ensinar o cérebro da média-típica (CANGUILHEM, 1978) cujo atraves-
samento da história da humanidade e dos próprios sujeitos é apagado.
Uma educação linguística de resistência só é possível, assim, na
coletividade, no comum. Como nos ensina Berth (2019), ao ressignificar
o conceito de “empoderamento” pela ótica das teorias do feminismo
negro e interseccional, é preciso compreender que o termo se refere à
subversão das relações de poder, o que ocorre através do conhecimento
histórico, político e social da cultura em que os sujeitos estão inseridos.
São as ferramentas culturais necessárias para o desenvolvimento de uma
agência transformativa-radical, segundo Stetsenko (2019). O conceito de
Stetsenko se aproxima, assim, da teorização de Berth, já que “Indivíduos
empoderados formam uma coletividade empoderada e uma coletividade
empoderada, consequentemente, será formada por indivíduos com alto
grau de recuperação da consciência do seu eu social, de suas implicâncias
e agravantes” (BERTH, 2019, p. 52).
Nessa abertura de fissuras ou disjunções sociais radicais, quebrando
os muros que nos impedem de conhecer e compreender nossa história
de dominação e colonização e subvertendo as relações de poder, resis-
timos e nos transformamos enquanto transformamos o mundo. Assim
transgredimos leituras prontas, fechadas, centrípetas, generalistas e ho-
mogeneizadoras e criamos caminhos de mobilidade, abertura, leituras
inacabadas, porque há algo que sempre deixa de ser capturado, centrífu-
gas, expansivas, diversas e reconhecedoras de singularidades.

Transformação Social dos que buscam (r)existir

A transformação social, que nos interessa, pautada na resistência


que resulta do comum e se expande, além de causar fissuras e empode-
ramentos, é fundamental para lutar contra o que Sawaia (1999) chama
de sofrimento ético-político, efeito de uma sociedade conflituosa que
surge na experiência dos sujeitos no processo de luta e de sobrevivência.
Trata-se, segundo a autora, de um processo que perverte a imagem do

41
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

sujeito no coletivo e a imagem do coletivo na vivência dos sujeitos. O


sofrimento ético-político surge, assim, “da situação de ser tratado como
inferior, subalterno, sem valor, apêndice da sociedade” (SAWAIA, 1999,
p. 56) e alimenta o processo de inclusão imaginária do diferente porque
temporária e propensa à exclusão já que o processo dialético de inclu-
são/exclusão do sistema capitalista sustenta a servidão, a passividade, a
miséria e a alienação.
O sofrimento ético-político não é, portanto, individual, fruto de pro-
blematizações particulares e circunstanciais, mas do sofrimento gerado
pelos processos históricos de opressão. Esses sofrimentos “diminuem
nossa potência de ação e nos mantém na servidão em todas as esferas da
vida” (SAWAIA, 2011, p. 42).
Segundo Marx e Engels (2020 [1846]), o pressuposto da existên-
cia humana é estar em condições de viver para fazer história. Quando
as condições de vida não são favoráveis para a emancipação social, o
que encontramos é a reprodução da violência, da pobreza e das diversas
desigualdades existentes. A educação linguística de resistência precisa
estar atenta a essas problemáticas e trazer à luz tais questões na formação
de cidadãos de maneira integral. Desse modo, ecoamos Ramos (2017),
que nos aponta que

uma das contradições virtuosas próprias à educação esco-


lar é exatamente o fato de que o acesso ao conhecimento
sistematizado pela classe trabalhadora possibilita a essa
classe compreender o mundo e ampliar sua capacidade de
transformá-lo, primeiramente no plano mais imediato de
suas vidas e, mediatamente, por meio de sua organização
coletiva. Assim, o sentido político do conhecimento está
no fato de que o acesso a ele, pelos dominados, é força
material na luta social (p. 81).

De acordo com Jameson (1981), “[h]istória é o que machuca” (p.


88) e a Linguística Aplicada de Resistência deve ser engajada com o
reconhecimento das diferentes histórias dos sujeitos e se questionar se as

42
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

suas epistemologias são comprometidas com a aproximação e não com o


distanciamento das práticas sociais daqueles que vivenciam as suas dores
e as suas contradições oriundas de processos excludentes.
Ademais, a LA de resistência deve comprometer-se a amenizar “his-
tórias que machucam”, a partir do combate ao sofrimento ético-político
como caminho de construção do comum e de transformação social. Para
tanto, espera-se que instituições, pesquisadoras e pesquisadores alinhados
com essa proposta desenvolvam também ações, cuja linguagem tem o
papel central, para além dos muros das universidades (rodas de conversa,
aproximação com movimentos sociais, manifestações literárias e artís-
ticas, entre outros), como um movimento de aproximação da academia
com os diferentes setores da sociedade.
A LA de resistência, portanto, além da luta por maiores investimen-
tos em pesquisas na área, também deve comprometer-se com pesquisas
que valorizem as diferentes manifestações linguísticas, em relação com
as questões de gênero, de classe, de raça e sexualidades, na construção
dialógica dos diferentes significados que emergem nas interações entre
sujeitos e das agências de pesquisadoras e pesquisadores.
O papel da linguística aplicada de resistência é, portanto, fundamen-
tal, já que a transformação do sujeito, segundo Vygotsky (2004 [1930]),
depende da destruição das forças que o oprimem e o mantém escravizado,
do potencial positivo de criação que surge ao mesmo tempo em que essas
correntes de opressão desaparecem, e das próprias relações sociais entre
as pessoas, o que só é possível na práxis e na/pela linguagem. Como
afirmam Marx e Engels (2020 [1846]), “a linguagem é a consciência real
prática que existe também para outros homens e que, portanto, só assim
existe também para mim; e a linguagem só nasce, como a consciência,
da necessidade [Bedürfnis] da necessidade orgânica [Notdurft] do in-
tercâmbio com outros homens” (p. 59). Como bem nos lembra também
Vygotsky (2004 [1930]), citando Marx; Engels (1978 [1846]): “Minha
relação para com meu ambiente é minha consciência”.
A transformação social, de que o Brasil tanto necessita para aban-
donar o acúmulo de pecúlios intelectuais e para compreender seu próprio

43
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

passado e preencher nossas lacunas passa pela transformação de cons-


ciência que só é possível, como buscamos mostrar, em comunidade, no
empoderamento que transgride e subverte as relações de poder, na radi-
calidade da alteridade e no abandono de práticas identitárias centrípetas
e essencializadoras. Precisamos de Gretas e fissuras que estremeçam as
fronteiras e abram caminhos reais de mudança.

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46
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Criticidade como prática de resistência:


intersecções entre os estudos de letramentos
e a LA indisciplinar

Rogério Tilio1
Paula Tatianne Carréra Szundy2

As concepções de mundo, as crenças e mesmo os instá-


veis estados de espírito ideológicos também não existem
no interior, nas cabeças, nas “almas” das pessoas. Eles
tornam-se realidade ideológica somente quando realizados
nas palavras, nas ações, na roupa, nas organizações das
pessoas e dos objetos, em uma palavra, em algum mate-
rial em forma de um signo determinado. Por meio desse
material, eles tornam-se parte da realidade que circunda
o homem. (MEDVIÉDEV, 1928 [2016], n.p.)3.

Diante da escalada autoritária, da prática do ódio como política4 e da


profunda polarização social que experimentamos no governo de extrema
direita de Jair Bolsonaro, tornou-se bastante comum o uso do sintagma “a
ala ideológica do governo” pela grande mídia. Três manchetes de notícias
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação
em Linguística Aplicada (PIPGLA-UFRJ).
2 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação
em Linguística Aplicada (PIPGLA-UFRJ). Pesquisa desenvolvida com apoio PQ-CNPq,
processo número 307218/2018-0.
3 Edição digital Kindle, posição 1137.
4 Ver a esse respeito O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (GALLEGO et
al., 2018).

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

publicadas por veículos de imprensa distintos nos meses de junho, outubro


e dezembro de 2020, com as quais nos deparamos após uma rápida busca
no Google, ilustram bem esse uso: “Weintraub era estratégico para ala
ideológica do governo, diz analista de risco”5, “Insatisfeita com os rumos
do governo, ala ideológica usou Salles para tentar derrubar Ramos”6, “Ala
ideológica do governo prepara decreto para banir Huawei do leilão 5G”7.
Embora uma análise mais aprofundada dessas manchetes não seja nosso
objetivo, as atitudes responsivas por elas enunciadas sobre o que (não)
conta como ideologia operam como pano de fundo para introduzirmos as
reflexões acerca de criticidade, letramentos e Linguística Aplicada (LA)
Indisciplinar que pretendemos tecer ao longo do capítulo.
As três manchetes refratam uma visão de ideologia como “ideias fal-
sas que ajudam a legitimar um poder político dominante” (EAGLETON,
1997, n.p.)8. A ideologia seria, sob essa perspectiva, como “o mau hálito”,
“algo que a outra pessoa tem” (EAGLETON, 1997, n.p.)9. Essa concepção
de ideologia tem forjado a construção do binarismo “ala ideológica” e
“ala técnica” para se referir ao atual governo de extrema direita como se
fosse formado por dois grupos bastante distintos. A “ala ideológica” do
governo, representada pelo próprio presidente, seus filhos, ex-ministros
como Ricardo Salles, Ernesto de Araújo, Damares Alves, o presidente
da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, entre outros/as, é enunciada
como aquela que, ludibriada pelos próprios vieses ideológicos, ameaça
o que temos de democracia no Brasil através de ataques constantes às
instituições, deslegitimação das ciências, descumprimento de acordos
multilaterais e ameaças aos direitos humanos. Em contrapartida, a “ala
técnica” composta por alguns generais, ministros como o da economia,
Paulo Guedes, da agricultura, Tereza Cristina, o presidente do Banco
Central, Roberto Campos Neto, entre outros/as, representa os/as adultos/
5 Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/06/19/weintraub-era-estrategico-
para-ala-ideologica-do-governo-diz-analista-de-risco. Acesso em: 18 dez. 2020.
6 Disponível em https://g1.globo.com/politica/blog/valdo-cruz/post/2020/10/26/insatisfeita-com-
os-rumos-do-governo-ala-ideologica-usou-salles-para-tentar-derrubar-ramos.ghtml. Acesso
em: 18 dez. 2020.
7 Disponível em https://olhardigital.com.br/2020/12/08/noticias/ala-ideologica-do-governo-
prepara-decreto-para-banir-huawei-do-leilao-5g/. Acesso em: 18 dez. 2020.
8 Edição digital Kindle, posição 151.
9 Edição digital Kindle, posição 168.

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

as na sala, aqueles/as capazes de conter seus impulsos ideológicos para


tomar as decisões necessárias à retomada do crescimento econômico,
pautadas sempre na racionalidade técnico-científica. Ao forjar esse bina-
rismo e omitir o caráter ideológico de suas próprias notícias, tratando-as
como um retrato fiel da realidade, como isentas e imparciais, a mídia,
a um só tempo, coloca-se como defensora dos princípios civilizatórios
abraçados pela alcunha dos direitos humanos e fiadora de políticas
neoliberais que, sob o pretexto de crises econômicas permanentes e do
discurso da austeridade, (re)posicionam cada vez mais os indivíduos
como empreendedores de si mesmo regidos pela lógica do mercado. O
binarismo “ala ideológica” x “ala técnica” opera, portanto, para reforçar
a necropolítica que, aparentemente, os próprios veículos que o forjam
se propõem a combater.
Compreender ideologia como distorção da realidade assumindo
que apenas aqueles/as que se distanciam de seus posicionamentos ide-
ológicos são capazes de análises técnica e cientificamente respaldadas
e, portanto, mais merecedoras de legitimidade, ignora a complexa arena
ideológica que caracteriza as nossas (inter)ações semióticas em esferas
sociais diversas. Como reificações e/ou abalos de discursos hegemônicos
e de formas normalizadas de ser e estar no mundo (hétero, cisnormativa,
branca, ocidental, cristã, entre outras) são forjados nessa arena ideoló-
gica através de aproximações e/ou distanciamentos que estabelecemos
com os discursos de outrem, entendemos que não há como escapar da
ideologia. Partilhando, portanto, a visão de Medviédev (2016 [1928]) de
que as formas como axiologicamente nos (re)posicionamos in-mundo
(ABRAHÃO et al., 2014)10 não são atributos individuais abstratos, mas
respostas concretas e eticamente situadas a signos ideológicos (des/re)
construídos nas relações sociais (MEDVIÉDEV, 2016 [1928]; VOLÓ-
CHINOV, 2017 [1929]), o binarismo “ala ideológica” x “ala técnica” é
totalmente falacioso. Todas as nossas (inter)ações in-mundo são ideolo-
gicamente orientadas e prenhes de atitudes responsivas variadas. São os
efeitos, as desestabilizações e as potenciais transformações provocadas
10 A concepção de pesquisador/a in-mundo (ABRAHÃO et al., 2014) será expandida na próxima
seção.

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

pelas formas como mobilizamos, circulamos e (re)distribuímos recursos


semióticos em performances sociais sempre situadas cultural, histórica e
ideologicamente que devem interessar ao linguista aplicado/a que opera
com perspectivas críticas, transgressivas ou indisciplinares de LA.
Situados em uma perspectiva indisciplinar de LA que busca “direcio-
nar a sensibilidade investigativa para processos de fricções transgressoras
e transformadoras” (SZUNDY; FABRÍCIO, 2019, p. 76), nosso objetivo
central neste capítulo consiste em articular concepções de criticidade,
indisciplinaridade e perspectivas ideológicas dos estudos dos letramen-
tos. Buscamos, com essa articulação, contribuir para o debate acerca do
lócus da LA como espaço epistemológico de resistência e transgressão.
Em tempos de acirramento de necropolíticas através da instalação de um
estado de exceção que ameaça permanentemente corpos de LGBTQIs+,
mulheres, negros/as, trabalhadores/as pobres, indígenas e outros grupos
sociais, esse espaço (re)posiciona o/a linguista aplicado em um esperançar
ativo, no sentido freireano de que:

Só através dessa esperança que nos engaja em outras


(inter)ações possíveis é que podemos redesenhar rotas
epistemológicas mais éticas para compreender e trans-
formar os usos situados de recursos semióticos no mundo
social. Esse redesenho é o grande desafio que se impõe a
uma linguística implicada em aliviar a dor e o sofrimento.
(SZUNDY; TILIO; MELO, 2017, p. 16).

O redesenho a que, como linguista aplicados/as in-mundo, nos pro-


pomos neste capítulo está organizado em três seções. Após conceitualizar
concepções acerca de criticidade sob o prisma de quatro perspectivas
teóricas distintas, a primeira seção estabelece inter-relações entre o
pensar-fazer crítico e a perspectiva indisciplinar de LA. A segunda seção
recorre às diferenciações estabelecidas por Street (2009, 2014 [1995])
entre modelos autônomos e ideológicos de letramentos para tecer apro-
ximações críticas entre vertentes tradicionais e indisciplinares/transgres-
sivas de LA e os estudos de letramentos. Por fim, a seção que encerra o

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

capítulo aprofunda as articulações entre as concepções de criticidade e


letramentos a fim de refletir, conforme sugere o título dessa seção, so-
bre o “Pensar-fazer Linguística Aplicada em perspectivas críticas como
formas de transgressão”.

Criticidade e indisciplinaridade na LA

Alinhados a uma perspectiva indisciplinar de Linguística Aplicada,


entendemos o conceito de crítico como fundamental na criação de inteligi-
bilidade sobre questões sociais em que a linguagem desempenha um papel
central (MOITA LOPES, 2006), e no compromisso com a transformação
social e com a redução do sofrimento humano (PENNYCOOK, 2001).
Ser crítico, portanto, não é entendido aqui como o desvelamento de sig-
nificados ocultos, mas como a prerrogativa de problematizar narrativas
e práticas sociais a partir de um engajamento com seus discursos e com
as diferenças por elas – e nelas – produzidas. Nesse sentido, o cidadão
crítico é aquele que mobiliza um aparato analítico-crítico que possibi-
lita a reflexão acerca de experiências e práticas com a linguagem – as
suas próprias e as dos outros –, em instituições das quais fazem parte e
na sociedade como um todo. A criticidade não pode ser tomada como
um procedimento metodológico a ser seguido ou como um conjunto de
ferramentas a serem utilizadas com o intuito de promover uma análise
crítica, mas como um comprometimento com o engajamento com a
diversidade cultural, igualdade econômica e emancipação política, com
vistas a possibilidades de mudança social (LUKE; FREEBODY, 1997).
Uma postura crítica possibilita o questionamento e a ressignifica-
ção de relações ideológicas e de poder naturalizadas; ganham espaço as
representações subalternizadas e as análises a respeito de diferenças –
tais como as raciais, de gênero, de sexualidade e de classe – bem como
questionamentos sobre a quem interessa manter a naturalização dessa
subalternização e quem ganha ou perde em determinadas relações sociais.
O conceito de crítico, contudo, tem se mostrado bastante polissê-
mico. Trataremos aqui de quatro concepções do termo (PENNYCOOK,

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

2001, 2004), produtos de diferentes entendimentos sociais e políticos:


pensamento crítico, relevância social, modernismo emancipatório, prática
problematizadora e proximidade crítica.
A primeira concepção, pensamento crítico, defende o distan-
ciamento crítico e é bastante popular no meio acadêmico anglófono,
referindo-se ao desenvolvimento de conhecimentos envolvendo compre-
ensão e produção textual. Exemplos de desenvolvimento de pensamento
crítico são: definição de um bom argumento; diferença entre argumento
e opinião; pontos em comum e destoantes entre argumentos, questão e
reivindicação, e entre argumentação, explicação e persuasão; tipos de
argumentação; estrutura da argumentação; linguagem pertinente à argu-
mentação; conceitos como verdade, conhecimento, julgamento de valor,
premissa, generalização, vagueza, ambiguidade, avaliação; credibilidade
das fontes etc. Embora se tratem, sem dúvida, de questões relevantes, não
se pode encerrar o conceito de criticidade apenas na questão da argumen-
tação: o poder de argumentação pode ser considerado o ponto de partida
para um pensar crítico, mas não o ponto de chegada. Pensar criticamente
não se resume à capacidade de interpretar discursos argumentativos e
produzir bons argumentos.
Central à ideia de pensamento crítico é o entendimento de que para
lançar um olhar crítico sobre o fenômeno é preciso se distanciar dele,
não se envolvendo com a questão, uma vez que esse envolvimento pode
supostamente atrapalhar o olhar crítico e, consequentemente, a suposta
compreensão correta do fenômeno. Essa é justamente a concepção que
subjaz à ideia de argumentação apresentada anteriormente: o distancia-
mento do fenômeno pode possibilitar enxergar seus diferentes lados,
permitindo a observação e análise de diferentes argumentos.
Apesar de apresentar uma lógica coerente, tal acepção não considera
as diferenças, desigualdades e conflitos inerentes às relações sociais e às
posições sociais ocupadas por indivíduos, uma vez que é orientada por
uma teoria sociopolítica de orientação liberal e humanista, que centra
exclusivamente no indivíduo toda a responsabilidade pela adoção de
uma postura crítica. Além disso, pressupõe que qualquer um consegue se

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

distanciar facilmente e igualmente de um fenômeno, apesar das diferen-


tes histórias de vida que trazem consigo e das diferentes participações e
inserções sociais dos sujeitos. A criticidade seria, então, um conjunto de
habilidades cognitivas que opera exclusivamente a partir de uma apre-
ciação distanciada, sem considerar subjetividades, diferenças, relações
de poder e questões sociais e políticas em geral. A partir do momento
que esse distanciamento ocorre, acontece também o pensamento crítico.
Ser crítico, portanto, nessa concepção, significa chegar a um determi-
nado lugar onde a criticidade está, em que todos podem chegar desde
que se distanciem do fenômeno; há apenas um olhar crítico, que pode
ser alcançado por todos, independentemente dos contextos sociais, das
subjetividades e das relações de poder que se colocam.
Diferentemente da visão de distanciamento crítico, a segunda
concepção de crítico aqui tratada considera a diversidade dos contextos
sociais, atrelando a ideia de criticidade ao reconhecimento e à análise
da relevância social do fenômeno. Tal concepção se baseia em teorias
sociopolíticas de base liberal-pluralista, funcionalistas e construtivistas,
que consideram a construção de significados em contextos sociais espe-
cíficos e com funções sociais também específicas. Pensar criticamente,
portanto, requer o conhecimento do contexto social em que o fenômeno
ocorre. Embora seja verdade que o mesmo fenômeno assume signifi-
cados distintos em diferentes contextos, e que pensar os contextos de
produção, circulação e distribuição de significados e sua relevância para
o fenômeno sejam fundamentais para um pensar-fazer crítico, este não se
resume a reconhecer, entender e analisar o comportamento do fenômeno
em seu contexto e as funções que ali adquirem. Agir criticamente não
se resume ao (re)conhecimento do contexto e à (re)adequação de modos
de agir segundo a relevância do contexto – o que perpetuaria a ideia de
reprodução, e não de transformação social.
Entendendo a centralidade do papel transformador inerente a um
pensar crítico, discutimos a seguir a terceira concepção: o modernismo
emancipatório, que se baseia na teoria crítica e faz a crítica à ideologia
dominante. A expressão “teoria crítica” foi cunhada por Horkheimer em
seu ensaio “Teoria tradicional e teoria crítica”, de 1937, e, embora nunca

53
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

tenha sido formulada explicitamente, pode-se dizer que, em linhas gerais,


buscava alertar a sociedade a respeito das ordens sociais instituídas.
Para isso, utilizava-se do marxismo para explicar o funcionamento da
sociedade e a formação de classes.

Em meu ensaio “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”


apontei a diferença entre dois métodos gnosiológicos. Um
foi fundamentado no Discours de la Méthode [Discurso
sobre o Método], cujo jubileu de publicação se comemo-
rou neste ano, e o outro, na crítica da economia política.
A teoria em sentido tradicional, cartesiano, como a que
se encontra em vigor em todas as ciências especializadas,
organiza a experiência à base da formulação de questões
que surgem em conexão com a reprodução da vida dentro
da sociedade atual. Os sistemas das disciplinas contêm os
conhecimentos de tal forma que, sob circunstâncias dadas,
são aplicáveis ao maior número possível de ocasiões. A
gênese social dos problemas, as situações reais nas quais
a ciência é empregada e os fins perseguidos em sua apli-
cação, são por ela mesma consideradas exteriores. – A
teoria crítica da sociedade, ao contrário, tem como objeto
os homens como produtores de todas as suas formas histó-
ricas de vida. As situações efetivas, nas quais a ciência se
baseia, não são para ela uma coisa dada, cujo único pro-
blema estaria na mera constatação e previsão segundo as
leis da probabilidade. O que é dado não depende apenas da
natureza, mas também do poder do homem sobre ela. Os
objetos e a espécie de percepção, a formulação de questões
e o sentido da resposta dão provas da atividade humana e
do grau de seu poder. (HORKHEIMER, 1968b, p. 155).

Essa concepção de criticidade é orientada por teorias sociopolíticas


de bases neomarxistas, preocupadas com questões de desigualdade social,
dominação, opressão e injustiça, e seu objetivo é desvelar para o opri-
mido a ideologia dominante do opressor, de forma a instrumentalizá-lo
a resistir e lutar por transformação social e por sua emancipação. Sua

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

relevância é inegável, uma vez que as ideologias dominantes presentes


na superestrutura da sociedade dão uma aparência naturalizada aos dis-
cursos hegemônicos que circulam socialmente. Essa falsa naturalização
acaba por camuflar uma opressão que o oprimido, muitas vezes, sequer
percebe. Essa concepção de criticidade é, portanto, fundamental para
a conscientização dos sujeitos e para o desenvolvimento de qualquer
reflexão que se pretenda crítica.
A fragilidade dessa concepção, contudo, é o seu determinismo, ou
seja, a assunção de que a desigualdade estrutural determina a opressão,
apagando não apenas as demais diferenças que não a de classe, mas
também a agência dos indivíduos.

Essa concepção acaba, de certa forma, simplificando a


questão ao dividir a sociedade entre dominados/oprimi-
dos e dominadores/opressores, considerando apenas a
divisão de classes. Embora tal divisão realmente exista
e seja protagonista no estabelecimento de hegemonias
e de relações sociais, é preciso considerar a questão da
subjetividade, ou seja, as relações de opressão não são
homogêneas. A sociedade comporta diferentes graus de
dominação/opressão, assim como possibilita diferentes
graus de resistência da parte dos dominados/oprimidos, a
depender de seus outros lugares sociais. Além de classe,
há uma gama de outros lugares sociais que se articulam
na construção das hegemonias sociais e das relações de
poder: raça, gênero, sexualidade, idade, profissão, forma-
ção acadêmica etc. (TILIO, 2019, p. 27).

A crítica à ideologia dominante é, sem dúvida, parte importante da


construção do conceito de “crítico”, mas não o esgota.
Agregando os pressupostos das concepções de pensamento crítico,
relevância social e modernismo emancipatório, a prática problemati-
zadora os extrapola ao conceber a criticidade como o engajamento com
as diferenças para construir (novos) significados produzidos a partir de

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

entendimentos concebidos através desse engajamento. Essa concepção


abarca as anteriores, pois o engajamento com as diferenças requer um
distanciamento crítico (um deslocamento de sua zona de conforto),
atenção à relevância social do fenômeno em determinado contexto, e o
reconhecimento das relações de dominação e opressão em jogo. Mais do
que reconhecer que nem todos os sujeitos e contextos são únicos, iguais
ou homogêneos, é preciso desenvolver empatia pelo outro e valorizar
seus lugares de fala (RIBEIRO, 2017).
Essa concepção de criticidade trabalha com a ideia de que o conhe-
cimento, a realidade e o significado não são naturais ou neutros, não são
dados, não podem ser conhecidos de forma definitiva, não podem ser
“capturados” pela linguagem, não são absolutos. São relativos, depen-
dentes de contextos específicos, múltiplos, negociáveis; são contestáveis,
historicamente e culturalmente (des/re/co)construídos, baseados em
regras discursivas de cada comunidade e considerando-se as relações
de poder envolvidas nas práticas sociais. O conhecimento, a realidade
e os significados são, portanto, ideológicos (CERVETTI et al., 2001).
Mais do que mostrar algo, a concepção crítica busca o desenvolvimento
de consciência crítica.
A fragilidade alegada para tal concepção é o seu relativismo, uma
vez que não há um foco específico a ser evidenciado e os entendimentos
são construídos a partir de uma gama quase infinita de interpretações
subjetivas. Mais do que como uma fragilidade, o relativismo precisa ser
concebido como inerente à pesquisa/análise interpretativa.
O Quadro 1 sintetiza as quatro concepções de criticidade discutidas
anteriormente.

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Quadro 1 – Quatro diferentes concepções para o conceito de “crítico”

Pensamento Relevância Modernismo Prática


crítico social emancipatório problematizadora

Pressuposto Distanciamento Análise do Crítica à ideo- Engajamento com


principal crítico contexto e logia dominante as diferenças
das funções
sociais
Teoria – Liberalismo – Liberalis- – Teoria crítica – Teorias pós-colo-
de base – Humanismo mo plural – Neomarxismo nialistas
– Funciona- – Teoria queer
lismo
– Construti-
vismo

Fragilidade Apagamento Relevância - Determinismo Relativismo


das relações entendida - Apagamento
de poder e das como (re) de diferenças
diferenças, de- adequação, que não a de
sigualdades e não como classe
conflitos delas transforma- - Não considera
inerentes ção social agência do indi-
víduo

Fonte: Adaptado de Pennycook, 2004, p. 798.

A concepção de criticidade como engajamento com as diferenças


alinha-se ainda ao conceito de criticidade proposto por Souza Santos
(2013), que traz a noção de proximidade crítica. Segundo o autor, não
é o distanciamento do fenômeno que permite a apuração do olhar crítico,
mas sim a aproximação; é preciso embrenhar-se nele para entendê-lo
melhor. Apesar da proximidade crítica, Souza Santos (2013) defende
ainda a ideia de um envolvimento livre; ou seja, a proximidade não é um
“compromisso orgânico”, e o pesquisador/analista não pode perder sua
liberdade, sua autonomia de pensar criticamente. A proximidade crítica
de Souza Santos (2013) ecoa com a noção de um pesquisador in-mundo

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

(ABRAHÃO et al., 2014, p. 156): o sujeito pesquisador se constitui


no mundo, “in-mundo, com o objeto. Nesta perspectiva a implicação é
intrínseca à produção do conhecimento”.

O pesquisador in-mundo emaranha-se, mistura-se, afeta-se


com o processo de pesquisa, diluindo o próprio objeto,
uma vez que se deixa contaminar com esse processo, e
se sujando de mundo, é atravessado e inundado pelos
encontros. (ABRAHÃO et al., 2014, p. 157-158).

O pesquisador atua no mundo sem se distanciar dele, misturando-se


às questões que analisa. Essa mistura é, justamente, o seu total engaja-
mento, inclusive com as diferenças.
Ainda na concepção de criticidade como engajamento com as
diferenças, Tilio (2019) estabelece inter-relações com os estudos queer
na direção de construir entendimentos para os estudos críticos na pers-
pectiva de uma Linguística Aplicada indisciplinar e transgressiva. A
palavra queer, concebida originalmente como um xingamento para se
referir a pessoas gays de forma pejorativa, foi ressignificada pelos estu-
dos queer, que considera que queer é tudo que o discurso da sociedade
pretende transformar em anormal, em estranho, em abjeto, em subalterno
(MISKOLCI, 2016), em estigmatizado, em “desviante”. Os estudos queer
contemplam não apenas questões de gênero e sexualidade (que remetem à
concepção original da palavra), mas também de raça, etnia, nacionalidade,
classe, religião e outras questões que atinjam grupos menos favorecidos
e gerem sofrimento humano.

Os estudos queer assumem um posicionamento contrário


à classificação e à padronização das identidades, contrário
aos rótulos, contrário ao assimilacionismo cultural, con-
trário ao patriarcado, contrário ao capitalismo e contrário
aos binarismos. Trabalham por uma teoria crítica e pós-
identitária, orientada pelas diferenças, não apenas pela
diversidade. A diversidade considera apenas a pluralidade,
sem hierarquizar as diferenças e problematizar as relações

58
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

de poder e os conflitos inerentes a e consequentes da


diversidade. As diferenças, por sua vez, reconhecem que
a diversidade é assimétrica e que não existe convivência
pacífica na pluralidade. Os estudos queer, portanto,
alinham-se com a concepção de “crítico” de engajamento
com as diferenças na medida em que buscam entender a
questão da diferença e não hierarquizar essas diferenças,
visando a transformação. (TILIO, 2019, p. 29).

A visão de criticidade como prática problematizadora aqui proposta


traz alguns parâmetros orientadores (TILIO, 2019) pensados a partir de
elementos dos estudos queer (LIN, 2014), conforme o Quadro 2.
Quadro 2 – Parâmetros orientadores de uma visão de criticidade como prática
problematizadora

Desafiar e questionar constantemente o conceito de “normal”.


Trabalhar para a justiça social, demonstrando compromisso com a mudança
e, ao mesmo tempo, perturbando os alicerces sobre os quais as naturali-
zações são construídas.
Construir uma base de conhecimento sólida que permita o estranhamento
de naturalizações.
Criar condições para a autorreflexão, trabalhando para a transformação
tanto dos oprimidos quanto dos opressores.
Manter as expectativas em alta.

Fonte: Elaborado a partir de Tilio, 2019.

Em direção a um fazer-pensar crítico, é fundamental desafiar


e questionar constantemente o conceito de “normal”, pois nada
é naturalmente normal. O conceito de normalidade é sempre subje-
tivo e sensível a contextos sócio-histórico-culturais e aos posicio-
namentos sociais dos participantes do evento discursivo. Portanto,
o fazer-pensar crítico deve buscar trabalhar para a justiça social,

59
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

demonstrando compromisso com a mudança e, ao mesmo tempo,


perturbando os alicerces sobre os quais as naturalizações são
construídas. Para tal, é preciso construir uma base de conhecimen-
to sólida que permita o estranhamento de naturalizações. Vale
ressaltar que uma “base de conhecimento sólida” não requer apenas
conhecimentos de conteúdos teóricos formais, mas também outros
tipos de conhecimentos, construídos pelo pesquisador in-mundo
ao longo do processo, que permitam jogar luz sobre o pensar-fazer
crítico e que possibilitem estranhamentos.
Finalmente, faz-se necessário criar condições para a autorre-
flexão, trabalhando para a transformação tanto dos oprimidos
quanto dos opressores. Repor uma verdade por outra não caracteriza
um pensar-fazer crítico que se queira problematizador, pois o silen-
ciamento de uma verdade por meio da imposição de outra implica na
perpetuação da relação opressor-oprimido na imposição de verdades,
e não na sua transformação. Esta só ocorre quando, por meio da au-
torreflexão crítica, novos entendimentos são construídos. Parte do
projeto de ser crítico envolve manter as expectativas em alta, uma
vez que a transformação social é um projeto ambicioso. Mesmo estando
preparado para uma desestabilização moderada das naturalizações, é
importante manter sempre as expectativas em alta, pois quanto maiores
as aspirações, maiores as chances de se alcançá-las. Em outras pala-
vras, nada justifica tentar impor “uma visão crítica” a pretexto de se
menosprezar a capacidade do outro de construir entendimentos a partir
de práticas problematizadoras.
Partindo do pressuposto de que nossas performances ideológicas
nas práticas de letramento a partir das quais (des/re)construímos signi-
ficados no mundo social podem tanto contribuir para abalar quanto para
perpetuar naturalizações que oprimem e/ou causam dor, posicionamos
a seguir a lente sobre as aproximações possíveis entre letramentos e
indisciplinaridade de forma a construir um pensar-fazer crítico em Lin-
guística Aplicada.

60
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Perspectivas ideológicas de letramentos e Linguísti-


ca Aplicada Indisciplinar

O letramento, nesse sentido, é parte de uma relação de


poder, e a forma como as pessoas se apropriam dele é con-
tingente e, portanto, condicionada por práticas culturais e
sociais e não apenas por fatores pedagógicos e cognitivos.
Isso levanta questões que devem ser endereçadas em
qualquer programa de letramento: Qual a relação de poder
entre os participantes? Quais são os recursos? Onde as
pessoas irão se tomarem a rota de um letramento ao invés
de outro? Como os participantes desafiam concepções
dominantes de letramento? (STREET, 2009, p. 337)11.

Assim, em vez de se pautar por uma distância crítica, i.e.


o apagamento do sujeito da pesquisa, uma LA crítica en-
fatiza a performance do/a pesquisador/a, entendendo que
modos de falar, sentir, sofrer, gozar etc. são inseparáveis
do ato de pesquisar. É portanto de uma perspectiva que
valoriza a “proximidade crítica”, seguindo Santos (2001),
que desejamos agir no ato de investigar. (MOITA LOPES;
FABRÍCIO, 2019, p. 713).

As aproximações que estabelecemos entre estudos no âmbito do que


Street (2003) classificou como os novos estudos de letramento e vertentes
da Linguística Aplicada qualificadas como críticas, transgressivas e/ou
indisciplinares partem da premissa de que ambos os campos de pesquisa
estão comprometidos com agendas políticas de transformação social.
Conforme sinalizam as citações que introduzem essa seção, tais agendas
pressupõem o abandono de perspectivas positivistas de pesquisa orien-
tadas pelo distanciamento crítico do/a pesquisador/a em relação ao seu

11 Tradução nossa para “Literacy, in this sense, then, is already part of a power relationship,
and how people take hold of it is contingent on social and cultural practices and not just on
pedagogic and cognitive factors. This raises questions that need to be addressed in any literacy
programme: What is the power relationship between participants? What are the resources?
Where are people going if they take on one literacy rather than another literacy? How do
recipients challenge the dominant conceptions of literacy?” (STREET, 2009, p. 337).

61
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

objeto de estudo em favor de um/a pesquisador/a corporificado/a que, ao


estabelecer uma proximidade crítica com contextos/corpus/participantes
de pesquisa, acaba por (des/re)construí-los. Ciente do caráter contin-
gente dos letramentos (STREET, 2009) e de sua própria performance
(MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2019), o/a pesquisador/a que parte dessa
perspectiva desconfia das generalizações, das verdades absolutas e dos
binarismos. Interessa a ele/a compreender a natureza complexa das (inter)
ações sociais e a forma como performances discursivas e/ou identitárias
(contra)hegemônicas são reiteradas e/ou abaladas à medida que recursos
semióticos são (des/re)contextualizados em trajetórias textuais diversas
(BLOMMAERT, 2005). Nesse sentido, mais do que meramente analisar
os usos situados das línguas(gens) no mundo social, é fundamental, con-
forme enfatiza Street (2009), olhar para os efeitos dos letramentos a partir
de perspectivas de análise que questionem relações de poder, interesses
em jogo, processos de in/exclusão forjados bem como transformações
possíveis/desejáveis.
Na visão de Street (2003), os estudos que se orientam pela ampla
perspectiva intitulada “Novos Estudos dos Letramentos” distanciam-se
de abordagens tradicionais de letramento voltadas para o processo de
aquisição de habilidades e competências para focar nos letramentos como
práticas sociais (STREET, 2014 [1995]). Não obstante as diferentes
abordagens teóricas com as quais dialogam para criar inteligibilidades
sobre práticas de letramento diversas, esses estudos compreendem os
letramentos como práticas situadas histórica, cultural e ideologicamente.
Orientados, portanto, por um modelo ideológico dos letramentos (STRE-
ET, 2014 [1995]), buscam, para além de descrever eventos de letramento
específicos, conceitualizar práticas de letramento. Street (2003) destaca
que nesse processo de (re)conceitualização nenhuma prática de letramento
pode ser tomada como arbitrária e natural. É fundamental que se compre-
enda e se conteste as relações de poder, os mecanismos institucionais e
culturais que legitimam certos letramentos enquanto marginalizam outros.
A dura crítica do autor a modelos autônomos de letramento está
justamente no direcionamento destes para habilidades e funções univer-
salizantes, essencialistas e etnocêntricas de leitura e escrita enquanto as

62
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

razões pelas quais alguns letramentos são hierarquizados ao passo que


outros são ignorados e/ou deslegitimados são completamente ignoradas.
Para Street, a neutralidade pretendida por esses modelos autônomos
de letramento não passa de hipocrisia na medida em que servem para
ocultar porquê e por quem determinadas práticas de letramento são (re)
produzidas e a que interesses elas servem. Ao estabelecerem uma grande
divisão entre gêneros orais e escritos, atribuindo maior valor à escrita,
esses modelos reforçam a superioridade das comunidades grafocêntri-
cas e o caráter hegemônico dos letramentos ocidentais (STREET, 2014
[1995]). Contrapondo-se a essas perspectivas autônomas, Street defende
uma abordagem ideológica nos estudos dos letramentos que, ao invés de
focar em aspectos linguístico-discursivos que, nos modelos autônomos,
podem ser replicados para outros contextos, problematize como recursos
semióticos são (des/re)construídos social e ideologicamente.
Pennycook (2006) tece críticas a perspectivas tradicionais de Lin-
guística Aplicada que dialogam com aquelas de Street a modelos autô-
nomos de letramento. Negar o caráter ideológico da pesquisa sob a justi-
ficativa de se buscar uma cientificidade que se quer neutra tanto política
quanto intelectualmente constitui, conforme enfatiza Pennycook (2006),
uma das grandes hipocrisias de vertentes tradicionais de Linguística
Aplicada. Isso porque ao se eximir de questões político-ideológicas mais
amplas como racismo, pobreza, sexismo, homofobia e/ou de quaisquer
outras formas de discriminação, a LA tradicional deixa de considerar as
muitas vozes que reivindicam visões alternativas de mundo, o que repre-
senta “uma negativa hipócrita de sua responsabilidade social e cultural”
(PENNYCOOK, 2006, p. 70). Dada a preocupação compartilhada por
perspectivas tradicionais de LA e autônomas de letramento com uma
suposta neutralidade e a inspiração de ambas em critérios positivistas de
cientificidade, ainda observamos muitas pesquisas no campo da LA que
operam com modelos autônomos de letramento. Na esfera educacional,
essas pesquisas são, em geral, orientadas por uma perspectiva meramente
instrumental e/ou funcional de linguagem. Embora parte considerável
delas operem com abordagens situadas de línguas(gens), o foco costuma
se restringir à descrição dos usos que se faz de recursos semióticos e/ou

63
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

gêneros discursivos diversos sem que esses usos sejam problematizados


a partir de questões que promovam a reflexão sobre ou desestabilização
de discursos hegemônicos acerca de raça, gênero, classe social, relações
de trabalho, desigualdades sociais etc., conforme defendem linguistas
aplicados/as que operam com perspectivas ideológicas de letramentos e
vertentes indisciplinares/transgressivas/críticas de Linguística Aplicada.
Como linguistas aplicados/as afiliados/as a uma vertente indiscipli-
nar da LA e ideológica dos letramentos, entendemos que não há como
fugir da ideologia. Rejeitamos, portanto, perspectivas epistemológicas nos
estudos situados das línguas(gens) que se omitem de questões políticas
e ideológicas por entendermos que essa omissão faz com que aspectos
sociais relevantes sejam relegados a um segundo plano para se pensar um
indivíduo concebido associalmente (RAJAGOPALAN, 2006). Ao ocultar
as ideologias linguísticas12 sobre as quais está assentada (língua padrão,
norma culta/popular, variedade etc.), essa falsa neutralidade constitui uma
importante fiadora do projeto modernista de purificação das línguas que,
como bem nos alertam Bauman e Briggs (2003), tem sido fundamental na
criação e sustentação de desigualdades sociais ao longo de vários séculos.
Seguindo linha de pensamento semelhante, Pinto (2018, p. 710) também
destaca o quanto ideologias como as “da homogeneidade variável”, “da
clareza” e “da competência”, tão caras à perspectivas mais tradicionais
de LA e autônomas de letramento, têm contribuído para corroborar
concepções de línguas(gens) racistas ao legitimar as formas linguísticas
tidas como padrão e/ou cultas utilizadas por uma elite branca como as
únicas capazes de expressar13 uma comunicação racional.
Se, como nos lembra Paulo Freire (1921-1997) “Não existe im-
parcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica. A questão
é: sua base ideológica é inclusiva ou excludente?”, cabe nos perguntar
que perspectivas ideológicas de letramentos interessam aos/às linguistas
12 Entendemos ideologias linguísticas como as crenças, sentimentos, representações, atitudes
responsivas, mais ou menos sistematizadas, implícitas ou explícitas, que as pessoas constroem
sobre as línguas(gens) e seus usos no mundo social (KROSKRITY, 2004; WOOLARD 1998;
SZUNDY, 2017).
13 Grifo nosso. A ideia de que formas linguísticas expressam significados apaga do signo seu
caráter ideológico. É, portanto, rechaçada por uma visão indisciplinar de LA.

64
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

aplicados/as que se afiliam a vertentes indisciplinares de LA. Comparti-


lhamos com Szundy e Fabrício (2019, p. 69-70) a visão de que:

Ideologias são performativas, pois agem no mundo so-


cial, forjando diferentes efeitos de sentido. A atenção à
multiplicidade de efeitos performativos de nossa práxis
linguística, portanto, seria uma atividade ética central.
Caberia-nos, então, sempre perguntar: Que formas de
existência, que entendimentos e que relações ganham
existência em nossas performances? Entretanto, quanto
mais conservadoras as ideologias, menos se percebem
como produtoras ativas do que chamamos de fenômenos
sociais. A “cegueira” advém do desconhecimento dos
jogos de poder imbricados na localização de sujeitos em
posições sociais fixas, tidas como dadas. Tal posiciona-
mento (des)constrói privilégios atendendo a interesses
políticos. A crença na neutralidade de signos, textos e
discursos ignora a complexa operação semiótica envolvida
na projeção, manutenção ou desafio de posicionamentos
identitários. Assim, práticas linguístico-semióticas de
catalogação de pessoas e objetos, retiradas da conjuntura
sócio-histórica de sua produção, tornam-se leis naturais,
sendo tomadas como verdades cientificas incontestáveis.
A forma de vida naturalizada que sedimentou relações
de raça, gênero, sexualidade e classe social é nossa velha
conhecida. Abalá-la requer ver de outro modo.

Para que ideologias ajam no mundo social de forma a abalar rela-


ções sedimentadas de raça, gênero, sexualidade e classe social, é funda-
mental que nossa práxis enquanto linguistas aplicados/as seja orientada
por bases epistemológicas que nos levem a desconfiar de categorias
teórico-metodológicas que universalizam concepções de língua(gens),
contextos e identidades. A compreensão de que contextos e identidades
não são fixos, mas forjados pelas nossas performances em esferas sociais
diversas construídas, por sua vez, através de atitudes responsivas ativas
(VOLÓCHINOV, 1929 [2017]) a discursos de outrem, demanda que as

65
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

concepções de letramento que compõem nossa bagagem epistemológi-


ca propiciem possibilidades “de compreender nossos tempos e de abrir
espaços para visões alternativas ou para ouvir outras vozes que possam
revigorar nossa vida social ou vê-la compreendida por outras histórias”
(MOITA LOPES, 2006, p. 23). Refletimos sobre concepções críticas de
letramentos como um dos caminhos epistemológicos para forjar essas
possibilidades na seção que finaliza este capítulo.

Pensar-fazer Linguística Aplicada em perspectivas


críticas como formas de transgressão

Todo o percurso epistemológico aqui percorrido aponta para um


fazer LA crítico e indisciplinar, que busca desestabilizar e contestar natu-
ralizações. Nesse sentido, trabalhar na perspectiva de letramentos críticos
significa operar com epistemologias que reconhecem que o conhecimento
é necessariamente ideológico, orientado pelos recursos semióticos que
(des/re)contextualizamos em práticas de letramento diversas para forjar
realidades sempre contingentes e, portanto, passíveis de transformação.
Isso significa que realidades não são singulares ou absolutas; são cons-
truídas discursivamente e, portanto, não podem ser tomadas como dadas
aprioristicamente ao discurso. O significado, também ideológico, não
pode ser capturado pela linguagem; é sempre múltiplo, negociável, con-
testável, historicamente e culturalmente (des/re/co)construído, e produto
de relações de poder envolvidas nas práticas sociais.
Letramentos críticos não podem ser entendidos como um conjunto
de procedimentos a serem aplicados com a expectativa de obtenção de
determinados resultados. Em vez disso, o objetivo de se construir práticas
críticas de letramento é desenvolver a conscientização crítica acerca de
ideologias constitutivas das e constituídas nas práticas discursivas. Essa
conscientização crítica não é dada, mas construída a partir do desen-
volvimento de práticas problematizadoras que busquem desnaturalizar
conhecimentos, reconhecer posicionamentos discursivos e relações de
poder e prestígio, possibilitando engajamentos discursivos com as dife-
renças produzidas por essas relações.

66
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Assim como Pennycook (2004, p. 798) afirma que a Linguística


Aplicada “não é sobre o desenvolvimento de um conjunto de habili-
dades que tornará o fazer da Linguística Aplicada mais rigoroso, mais
objetivo, mas sobre tornar a Linguística Aplicada mais politicamente
responsável”14, o mesmo pode ser dito sobre o desenvolvimento da criti-
cidade. Defendemos que o “tornar a Linguística Aplicada mais politica-
mente responsável” invocado por Pennycook dialoga com a concepção
de “crítico” como prática problematizadora. Nessa visada, o engajamento
com as diferenças permite o entendimento e o reconhecimento de com-
prometimentos políticos que implicam nas relações de poder em jogo,
não as tomando como dadas e naturalizadas. Uma Linguística Aplicada
que se pretende crítica, transgressiva e indisciplinar precisa questionar,
constante e incessantemente, não apenas categorias cotidianas da Lin-
guística Aplicada – como língua(gem), comunicação, diferença, contexto,
texto, cultura, significado, letramento etc. – mas também categorias da
teoria social crítica – ideologia, poder, raça, gênero, sexualidade, classe,
conhecimento, política, ética etc. (PENNYCOOK, 2004).
Para não cair na armadilha de acreditar que há apenas um olhar
crítico, ou que o nosso olhar crítico é o “correto”, Spivak (1993) nos
lembra dos nossos próprios limites, os limites do nosso saber/conhecer.
A postura crítica também requer uma postura autorreflexiva de reconhe-
cer não apenas limites e limitações, mas também a humildade de não
pretender prescrever novas “verdades” que substituam as “verdades”
criticadas. Ao invés de oferecer soluções, o intuito do desenvolvimento
de letramentos críticos deve ser o de problematizar as diferenças, em
um eterno questionamento ético do conhecimento e do reconhecimento
do caráter ideológico resultante de sua construção subjetiva. É por meio
dos letramentos críticos que se pode contribuir para a construção de ci-
dadãos críticos, capazes de utilizarem o conhecimento para exercerem
protagonismo na transformação social.

14 Tradução nossa para “Critical applied linguistics is not about developing a set of skills that
will make the doing of applied linguistics more rigorous, more objective, but about making
applied linguistics more politically accountable”. (PENNYCOOK, 2004, p. 798).

67
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Finalizamos com Poster (1989, p. 3), para quem “a teoria crítica


brota de uma suposição de que vivemos em meio a um mundo de dor,
que muito pode ser feito para aliviar essa dor, e que a teoria tem um papel
crucial a desempenhar nesse processo”15. Acreditamos que seja função da
Linguística Aplicada crítica, transgressiva e indisciplinar (MOITA LOPES,
2006, 2009) contribuir para, através de problematizações e da criação de
inteligibilidade em contextos sociais nos quais a linguagem ocupa um papel
central, trabalhar para a transformação social com vistas a aliviar a dor.

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15 Tradução nossa para “Critical theory springs from an assumption that we live amid a world
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in that process”. (POSTER, 1989, p. 3).

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70
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Ethos e construção de imagens negativas


de adversários no discurso político: uma
reflexão ilustrada

Adail Sobral1
Karina Giacomelli2

Nas últimas eleições presidenciais, em 2018, o país testemunhou o


fenômeno da construção de imagem positiva de um locutor político, na
época quase desconhecido, a partir da desconstrução da imagem de um
seu adversário, não só diretamente, em seu discurso, como no discurso
de boa parte da mídia, que se empenhou em favorecer esse candidato,
e prejudicar o outro, do qual resultou a eleição do primeiro, antes des-
conhecido, ou melhor, de pouca ou nenhuma expressão. Trata-se de um
fenômeno pouco comum da maneira como ocorreu, uma vez que todo
candidato procura mostrar-se melhor que seus adversários, mas não
necessariamente demoniza os adversários, razão pela qual nos parece
merecer uma reflexão.
Neste trabalho, recorremos à noção de ethos e anti-ethos, prévio e
discursivo, a partir de propostas de Amossy (1999, 2001, 2017), consi-
derando, subsidiariamente, propostas de Maingueneau (p. ex., 2005), a
fim de examinar algo que talvez pudesse ser denominado “dissonância
ethica”, que definimos como a adesão de interlocutores a uma imagem de
1 Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL-
FURG).
2 Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL-
UFPEL).

71
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

si de um locutor que se afigura negativa aos que não aderem a ele, mas
é considerada positiva pelos que aderem, ainda que estes não pareçam
aceitar propriamente as teses do locutor, mas apenas o tom com que ele as
diz, a partir de uma configuração prévia positiva de seu ethos, e da criação
de um “anti-ethos prévio”, obviamente negativo, de seus adversários.
Pretendemos investigar se essa “dissonância ethica” tem por base o
que se poderia denominar a junção entre a construção midiática de uma
idealização positiva do locutor objeto de adesão e de uma idealização
negativa (anti-ethos) de seu adversário e a criação e disseminação da
ideia de haver uma crise profunda que só o locutor em questão, com um
discurso populista autoritário, aparentemente “antissistema” poderia
resolver. Vamos considerar para isso o recurso às chamadas fake news
e ao falseamento (ver adiante) no que parecia ser uma campanha siste-
mática em mídias sociais e na mídia hegemônica contra o adversário e
seus substitutos, bem como a prisão intempestiva do referido candidato
às vésperas das eleições.
Como pode um público aceitar como positiva a imagem de um
locutor que se apresenta como sujeito preconceituoso, sem aceitar suas
teses preconceituosas (e, portanto, negativas para boa parte da popula-
ção) com base apenas no tom do discurso? Do mesmo modo, seria essa
imagem positiva, mesmo contraditada pelo dizer do locutor, coerente do
ponto de vista do público que a ele aderiu, isto é, seria possível dizer que
o candidato refletiu as opiniões do público que a ele aderiu ou então que
a parcela do público que o apoiou se deixou levar em parte pela imagem
negativa do adversário, sistematicamente reforçada, e o escolheu como
a alternativa contextualmente “menos pior”?
Tentar levantar dados passíveis de indicar respostas a questões como
essas tem, a nosso ver, grande relevância tanto em termos teóricos, ao
refletir sobre a possibilidade de propor a noção de anti-ethos prévio para
dar conta desse fato, a nosso ver incomum, como pragmáticos, ao pensar
sobre o que permitiu socialmente a ocorrência desse fenômeno?. Vamos
recorrer a enunciados reais para identificar elementos que revelem de
que maneiras foi construído, na história recente do Brasil, o anti-ethos

72
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

para um líder político reconhecido (e seu representante), cujo discurso


foi distorcido por fake news (e por estratégias de falseamento), e um
ethos positivo para um político de pouca expressão, bem como se terá
sido a construção negativa daquele(s) que permitiu a construção posi-
tiva deste. Concentramo-nos, assim, na noção de ethos, pré-discursivo
e discursivo, instaurados em discurso (dado que não se tem acesso à
pessoa real, mas sempre à imagem projetada naquilo que ela diz), mas
dependente igualmente do contexto de instauração desse discurso, isto
é, do ethos prévio dos locutores envolvidos e da disseminação da ideia
de uma grave crise no país.
Buscamos verificar se a construção da imagem positiva do referido
locutor se deu a partir da mobilização de dois elementos, a saber, a exis-
tência real de corrupção no governo e no país como um todo e a culpa
atribuída sem provas a um dado político e seu partido por essa corrupção
e por uma alegada crise. A estratégia geral, pelo que vimos, se baseou na
criação da imagem positiva de um político não convencional, “novo”,
que se mostrou contra a corrupção, mediante a repetição sistemática de
enunciados como “vou acabar com isso que está aí” (o sistema corrupto),
“terminar com a roubalheira do partido x” (o PT, que teria “quebrado o
país”) etc. Essa repetição, em suas várias formas, evoca o que Santana
(2020) caracterizou, no título de seu trabalho, como “construção da nar-
rativa jornalística que legitimou processos políticos na recente história
brasileira”. Narrativa implica precisamente sistematicidade, continuidade
no tempo e nas estratégias discursivas.
Não nos importa aqui discutir se as premissas em que se baseia o
locutor são verdadeiras ou se ele é sincero ao mobilizá-las e prometer
resolver os problemas. Os políticos costumam se apresentar como
capazes de resolver todos os problemas, mesmo sem contar com da-
dos para sustentar suas propostas. Interessa-nos verificar o que criou
condições conjunturais para que esse candidato pudesse dizer isso
verossimilmente, ainda que seu discurso fosse antes destrutivo e pre-
conceituoso, e viesse a ser aceito por grande parcela da comunidade
discursiva a que se dirigiu.

73
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

A questão que pretendemos abordar aqui é complexa, porque


estudos baseados na noção de ethos não costumam incidir sobre a ma-
neira como a criação de um anti-ethos negativo, realizada por vários
locutores e instâncias, de um ou de alguns locutores, construídos como
adversários de um outro locutor, este apresentado como dotado de um
ethos positivo que levou à aceitação de seu discurso por grande parcela
de uma comunidade discursiva. Não nos parece possível fazer um exame
dessa questão sem recorrer a exteriores teóricos que permitam caracterizar
a conjuntura das eleições presidenciais de 2018.

Ethos, Logos, Pathos, Fake News e falseamento

Cabe dizer que, por maior que seja sua produtividade, a noção de
anti-ethos, necessária porque tudo na linguagem se funda na lógica de
“A não é B” e “A e B se definem por um não ser o outro”, não parece
dar conta, por si só, de movimentos discursivos mais amplos de cons-
trução social de imagens negativas de um dado locutor (o que pretende-
mos caracterizar como anti-ethos prévio) e positivas de outro, nem do
moderno artifício de disseminação em massa das chamadas fake news,
usadas de modo a interferir indevidamente na criação de “verdades”
aceitas ou aceitáveis em um dado momento, ou da estratégia midiática
de falseamento, recurso de omissão de parte relevante de algum fato e
de destaque distorcido de aspectos outros.
Como se sabe, o ethos se constrói em associação com o logos (a
argumentação racional, que, no âmbito do discurso, pode recorrer a
falsas premissas e ainda assim fazer um raciocínio lógico a partir delas)
e com o pathos (a mobilização de elementos passionais, que pode ser
explorada indevidamente, mais uma vez usando falsas alegações e criando
um clima de descontrole e mesmo de histeria coletiva, como no caso do
nazismo, por exemplo)3. Isso é explicável pelo fato de o ethos precisar
reunir em si tanto a imagem corporal do locutor como a representação de
seu caráter, ou seja, a representação de algo racionalmente verificável e
a representação de algo que pode ser facilmente apresentado de modo a
3 Trata-se da tríade aristotélica: phrónesis (logos), areté (ethos), e eunóia (pathos).

74
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

despertar reações emocionais a ponto de levar sofisticamente à aceitação


de teses apresentadas na superfície como racionais, porém fundadas em
falsas premissas e em uma patemização hiperbólica (demonização e
endeusamento, por exemplo).
O processo de construção do ethos mobiliza o pathos e o logos a
fim de despertar a adesão do auditório ao locutor mediante a criação de
uma dada imagem, desde sempre positiva (oposta a outras imagens de
outros locutores que se dirigem ao mesmo auditório). Conclui-se disso
que uma explicação da construção de imagens de si que não considere a
presença desses dois outros elementos é necessariamente incompleta. Em
nosso caso, cremos que foi precisamente o investimento no pathos que
se mostrou central, porque por meio dele se criaram falsos argumentos
racionais. Obviamente que não se pode desconsiderar que o auditório
assim sensibilizado poderia já compartilhar de opiniões e crenças do
locutor cujo ethos foi construído.
As relações entre esses elementos, presentes em todo discurso, é
destacada por Amossy (2017, p. 191) da seguinte maneira: “o sujeito
falante (locutor individual ou grupo) pode fazer uso da linguagem como
logos, mas também como pathos e projetar uma imagem de si apropriada
(o ethos) para intervir no espaço social e político”. Chamamos a atenção
aqui para “projetar” e “imagem de si apropriada”. Como se sabe, não se
trata do que o locutor é empiricamente, mas daquilo que ele diz ser, que ele
projeta como verdadeiro, o que admite, repetimos, a possibilidade de um
locutor, mobilizando argumentos (logos) carregados de paixão (pathos)
contra um anti-ethos, criar uma imagem de si falsa, porém positiva, no
sentido de adequada a seu auditório, objeto de adesão por ser aquilo que
é aceito por seus interlocutores, intensificada ou reforçada pela criação
de uma imagem negativa, falsa de seu adversário.
Perelman (1989, p. 362), uma das bases da proposta de Amossy,
descreve esse aspecto de uma maneira que julgamos significativa para
nossos fins. Ele afirma que “toda argumentação depende, tanto para suas
premissas quanto para seu desenvolvimento, principalmente, do que é
aceito, do que é reconhecido como verdadeiro, como normal e verossímil,

75
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

como válido: desse modo, ela se ancora no social, cuja caracterização


dependerá da natureza do auditório. Em outras palavras, o locutor se dirige
a um público nos termos da natureza desse público, de acordo com o que
este aceita socialmente, mas o locutor não tem condições de estabelecer
por si só quais são esses termos e o que é aceito por esse público. Pode,
contudo, manipulá-lo, dizendo o que ele “quer ouvir” a fim de tornar
aceitável o que antes não o era. Mas isso requer um trabalho exaustivo
que não é acessível a um dado locutor, mas que pode ser realizado por
algumas instâncias associadas a favor dele.
O trabalho de Correa (2018), por exemplo, que examinou capas da
revista Veja pouco antes do impeachment de Dilma Rousseff, durante o
processo e logo depois dele, mostra que esse órgão de imprensa tomou
claramente partido, de modo nem sempre sutil ou dissimulado, para
construir uma imagem negativa da referida presidenta e tornar aceitável,
a partir de falsas premissas que foram apresentadas como corretas a par-
tir do ethos de órgão confiável, e do pathos criado por várias instâncias
políticas – uma medida, que os próprios políticos reconheceram ter sido
política (um conluio para afastar a presidenta, porque não atendia a certos
interesses) e não técnica (não havia, como se veio a saber recentemente,
motivos legais para isso). Na conjuntura que levou à eleição do atual
presidente, ao lado da prisão do candidato do PT e do impeachment,
uniram-se as fake news às estratégias de falseamento.
Fake news são entendidas aqui como notícias falsas (cf. RECUE-
RO, 2019, 2020), ou seja, mentiras, vinculadas com a desinformação.
Logo, são não-notícias, não-informação, se assim se pode dizer um dos
instrumentos da desinformação, assumindo mesmo o caráter de novas
informações cujo caráter falso produz danosos efeitos. São propositada-
mente organizadas para levar a tomar como verdades fatos inexistentes,
ou seja, são parte de um processo de desinformação que torna a mentira
verossímil mediante variados mecanismos. Com pouco grau de sutileza
na montagem do texto, exibem um sutil direcionamento a seu público
específico e aos indecisos (neste caso, ao menos cria certo grau de ve-
rossimilhança) a partir da caracterização negativa prévia do adversário
alvo da notícia falsa.

76
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

São facilmente identificáveis por interlocutores a que não são diri-


gidas, mas, sendo dirigidas a um público específico que acredita em tudo
o que confirme suas próprias convicções, convicções essas muitas vezes
criadas por doutrinação de grupos específicos (religiosos, por exemplo)
e intensas campanhas midiáticas (como o Jornal Nacional e o esgoto da
corrupção quando Lula, Dilma, etc., eram mencionados; cf. SANTANA,
2020), acabam tendo efeitos danosos antes de serem refutadas. Santana
(2020) mostra de que maneira as notícias falseadas são objeto de uma
narrativa que vai sistematicamente omitindo dados e acentuando indevi-
damente outros dados de modo a criar um simulacro de verossimilhança
acerca de toda notícia negativa sobre adversários ou um ambiente de dúvida
acerca de notícias positivas sobre eles. Essa estratégia falseadora funda-se
no recurso ideológico de afirmação peremptória e repetida de algo que
tem uma parcela verdadeira, mas cuja parte omitida tem mais relevância.
O falseamento é assim uma maneira de narrar fatos que não repre-
senta a verdade destes, porque omite dados vitais, imprimindo com isso
um tom específico ao discurso, contrários aos desafetos, a fim de levar
a uma dada interpretação que acaba por distorcer por completo o fato
narrado. É um dizer desdizendo, que apresenta variados graus. O modo
de dizer altera o dado concreto ao omiti-lo, mas não o nega e por isso
a notícia parece totalmente verdadeira. Não há, portanto, mentira, mas
distorção da verdade dos fatos (um processo arquivado pode ser noticiado
como “a pessoa x se livra de:
Esse recurso leva a uma interpretação distorcida que atende aos inte-
resses da narrativa do enunciador, não sendo, pois, isolada, mas objeto de
uma continuidade no tempo. É parte de um conjunto de ações tendenciosas
dirigidas contra adversários do órgão, ou, mais precisamente, dos grupos
por ele representados. Ele busca assim manter o discurso hegemônico da
verdade única em que adversários são demonizados, aliados endeusados.
Como suporte, criam falsos problemas (como a crise na época de Dilma
Rousseff) a fim de apresentar os aliados, por vezes de ocasião, outras
vezes contínuos, como os salvadores da pátria. A não-verdade, ou seja,
o falseamento da verdade, é a versão moderna da estratégia fascista de
desinformação (cf. SOBRAL, 2020).

77
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

O Ethos segundo Maingueneau e Amossy

Vamos aqui abordar especificamente os aspectos que julgamos


determinantes das propostas de Amossy, mas cabe recorrer igualmente
à importante contribuição de Maingueneau. Para o autor (2005, passim),
a presença subjetiva da imagem do locutor no discurso vem da formação
discursiva, e constitui uma de suas dimensões. O interlocutor reconstitui
traços psicológicos do autor do discurso, assim como lhe atribui uma
compleição corporal, a partir do modo de dizer, ou tom do discurso, desse
locutor, ou seja, identifica seu ethos. Há diferentes graus de explicitação
do ethos, sendo o grau zero a presença bem atenuada da oposição a um
anti-ethos (aquilo que o locutor não quer ser), aumentando quanto maior
o grau de oposição do ethos a esse anti-ethos. Pode-se dizer, dessa pers-
pectiva, que o interlocutor não parte do corpo concreto do locutor, mas
lhe atribui uma corporeidade com base no “corpo discursivo” que lhe é
apresentado. E, o que tem extrema relevância, essa construção, fundada
no modo de dizer, depende de um conjunto de elementos aceitos como
verdadeiros, ou ao menos verossímeis, por uma comunidade discursiva
em um dado momento histórico.
Maingueneau (2005, p. 63) destaca o caráter enunciativo (modo
de dizer), e não apenas linguístico (o que é dito), do discurso: “O
texto não é para ser contemplado, ele é enunciação voltada para um
coenunciador que é necessário mobilizar para fazê-lo aderir ‘fisica-
mente’ a um certo universo de sentido”. Segundo o autor (2005, p.
72), “a leitura faz emergir uma origem enunciativa, uma instância
subjetiva encarnada que exerce o papel de fiador”. Assim, não se
trata apenas, para o locutor, de criar uma imagem positiva, aceitável;
cabe-lhe ainda garantir que essa imagem seja aceita, ou seja, gere
adesão. Vemos, assim, que segundo esse autor, o ethos é construído
no texto-discurso, em um contexto que estabelece o que é ou não
aceito – e, diríamos, aceitável. O processo de atribuição de um corpo,
imagem autoral, depende da leitura, que pode produzir uma “identi-
ficação” do interlocutor, no discurso, de e com um corpo “investido
de valores historicamente especificados” (Idem).

78
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Parte-se, pois, do texto, e não do autor empírico, para reconstituir,


pela leitura, o ethos construído pelo locutor, mas há, naturalmente,
aquilo que Maingueneau (Idem) denomina “ethos pré-discursivo”, e
que, seguindo Amossy, chamamos de ethos prévio. Trata-se da imagem
prévia do locutor, da maneira como ele é visto fora do discurso, e que
vai influenciar a maneira como sua imagem vai ser criada no discurso.
Essa imagem prévia é na realidade incorporada ao ethos discursivo, ou
seja, tudo o que é extradiscursivo incide sobre o discurso ao ser intra-
discursivizado, incorporado a ele, mas não é intrinsecamente discursivo.
Não há por outro lado como determinar a priori o ponto até o qual
uma ou outra dessas duas instâncias do ethos é determinante, se alguma
o é, uma vez que, seja qual for a imagem prévia, espera-se dela que se
mostre coerente discursivamente. Assim por exemplo, se se espera da
imagem prévia que o locutor seja agressivo, palavras conciliatórias em
seu discurso podem ser objeto de rejeição. Logo, há uma integração
entre ethos prévio e ethos discursivo. Mas, como veremos, pode haver
um conflito entre eles. Assim, em nosso caso, por mais que usasse um
discurso conciliatório, o candidato não favorecido pela mídia era sempre
apresentado como negativamente agressivo, ao passo que a agressividade
do adversário era considerada positiva, prova de franqueza, de “dizer o
que pensa”, construída em contraposição a uma ideia de falsidade do
discurso do adversário.
Parte da mídia do país, como a citada Veja, bem como a Rede
Globo (cf. SANTANA, 2020), contribuiu para criar uma falsa imagem
prévia de um dado locutor, ou seja, para construir, mediante a repetição,
a distorção, a afirmação de inverdades e outros recursos, como o uso de
falsas premissas, um ethos prévio negativo que torna inverossímeis ou
mesmo mentirosas as palavras de um dado locutor, pouco importando a
verdade dessa imagem ou de suas palavras. Nesses casos de manipulação,
talvez se possa dizer que a imagem positiva de um dado locutor vem
mais propriamente da desconstrução da imagem positiva do outro, e da
construção de uma imagem negativa deste, do que da própria construção
como positiva daquele.

79
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Em outras palavras, “X é melhor do que Y porque Y, dadas as


premissas Z e W…, é pior do que X”, um raciocínio tautológico que
se torna aceitável mediante a mobilização intensiva do pathos a partir
da manipulação do logos. Com efeito, a construção de um anti-ethos
pode tomar tanto a forma de “eu sou x, e não y” (por exemplo, “Faço
parte dos x por cento que votaram em Y”, ou seja, não sou, como
outros locutores, eleitor de outro candidato, que, se sugere aí, é ruim
segundo quem enuncia), como de “ele não é, ao contrário de mim, Y”,
por exemplo: “ele não consegue, mas eu sim, mudar o que está aí”.
Amossy (1999), centrando-se na questão dos estereótipos, contribui
sobremaneira para a definição de ethos, recusando tanto propostas que
veem “a autoridade do orador como determinada por sua imagem, mas
que descarta por inteiro o discursivo como lócus de construção dessa
imagem” (SOBRAL, 2012, p. 136) – e, portanto, têm caráter sociológico
estrito, expulsando a linguagem e o discurso de seu domínio –, como
propostas que “postulam dispositivos de enunciação que prescindem de
tudo o que tem caráter institucional” (SOBRAL, Loc. Cit., idem), ou
concreto, e, assim, têm caráter linguístico estrito, apagando os sujeitos
e a situação de enunciação.
Vamos agora explorar mais especificamente as propostas de
Amossy. O fenômeno que nos interessa parece nos obrigar a consi-
derar a integração entre os três planos que sustentam a proposta da
autora, o linguístico propriamente dito, o retórico e o sociológico,
ou seja, os recursos da língua, os recursos textuais-discursivos e o
contexto. Morgante (2011, p. 287) faz uma síntese da posição de
Amossy que destaca que, embora o ethos seja ativado pelo próprio
discurso, essa ativação depende igualmente de “uma referência ao
quadro em que se situa esse discurso”4. Ele define esses componentes
da seguinte maneira: o componente sociológico se refere às “moda-
lidades de gestão da imagem de si nas interações sociais”; o retórico
remete aos efeitos “de certa estratégia de construção da imagem do
locutor na, e mediante a, tomada de palavra dirigida a alguém”; e o
linguístico (que na verdade é discursivo) se acha vinculado ao “cará-
4 Tradução nossa do trecho “d’une référence au cadre dans lequel se situe ce discours“.

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ter essencialmente argumentativo de todo discurso” (MORGANTE,


2011, p. 287 [grifos nossos])5.
Em consequência, a construção da imagem de si integra necessaria-
mente a relação com o outro, e as modalidades de construção do discurso,
de um lado, e, do outro, as coerções culturais do que é aceitável, das
posições que os sujeitos podem e/ou devem assumir, com base, natu-
ralmente em seu dizer, mas com ênfase no modo de dizer o que diz, do
outro. Logo, pode-se afirmar que, para Amossy, deve-se levar em conta
a postura advinda da tomada de posição do sujeito concreto no campo
discursivo, o ethos prévio, o ethos discursivo e o anti-ethos convocado,
tudo isso dependente da situação. Do mesmo modo, mostrando que “o
ethos propriamente dito advém de esquemas coletivos e de representa-
ções sociais (que vê configurados nos estereótipos), reconhece o caráter
sócio-histórico dessa noção” (SOBRAL, 2012, idem).
Amossy (2001, p. 6) alega que todo locutor, em suas circunstân-
cias históricas específicas, tem de adotar uma certa configuração física
e psicológica correspondente ao papel de locutor/imagem de autor ali
desempenhado, ou melhor, desempenhável (assim como é dotado pelos
interlocutores de uma dada configuração física e psicológica). Falando
dos discursos populistas, definidos como aqueles que buscam induzir o
público a considerar o locutor capaz de resolver todos os problemas que o
afligem, afirma Amossy (ver acima a questão da “franqueza”): No caso de
muitos discursos populistas, a cenografia é a de um homem que despreza
as regras comuns e a polidez desnecessária, usando uma linguagem rude
e direta que contrasta fortemente com a sofisticação hipócrita de seus
pares políticos6. Destacamos no trecho o contraste entre “regras comuns
e a polidez desnecessária” e “sofisticação hipócrita de seus companheiros
políticos”, com ênfase na adjetivação. Para a autora (AMOSSY, 2001, p.
6), da adequação do locutor às expectativas do auditório depende da ideia
5 Tradução nossa dos trechos “(modalités de gestion de l’image de soi dans les interactions
sociales); “d’une certaine stratégie de construction de l’image du locuteur dans et par sa prise
de parole adressée à quelqu’um”; “le caractère foncièrement argumentatif de tout discours”.
6 Tradução dos autores do trecho “In the case of many populist speeches, the scenography is
that of a man contemptuous of ordinary rules and futile politeness, using a rude and direct
language that sharply contrasts with the hypocritical sophistication of his fellow politicians.”

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

que o público forma dele: “Assim como o orador apoia seus argumentos
nas opiniões e normas atribuídas ao público, assim também ele ou ela
constrói um ethos a partir de representações coletivas dotadas de valor
positivo. O orador adota os modelos passiveis de produzir nos inter-
locutores uma impressão adequada as circunstâncias [grifos nossos]7.
Assim, mesmo o político “mentiroso” pode recorrer às crenças
(inclusive religiosas) do auditório e construir uma imagem de si capaz
de criar neste a impressão desejada (vou salvar o país da roubalheira, da
destruição, por exemplo, que se fundam na ideia prévia, tornada veros-
símil, de que há roubalheira e destruição). Claro que essas expectativas
do público, ou a aceitabilidade, por ele, de certa versão do ethos, não
são dadas de uma vez por todas nem construídas apenas via discurso.
É preciso que se creia haver roubalheira e destruição do país para se
aceitar que um dado político (quase desconhecido e sem expressão) seja
“diferente” dos outros, seja capaz de acabar com isso, que, se existir, é
de fato negativo. Vê-se que não é a veracidade, mas a verossimilhança,
que importa aqui: “se é possível, é verdade”.
O candidato adapta sua representação de si àquilo que o público
considera “um político confiável”, isto é, escolhe “uma apresentação de
si que atende às expectativas do público” (AMOSSY, Op. Cit., Loc. cit).
Julgamos ser isso uma espécie de esvaziamento do sentido do discurso
como materialidade: ao que parece, não importa o enunciado em si que
venha a ser proferido, mas o fato de o sujeito da enunciação enunciá-lo
com um dado tom. Em outras palavras, não se trata de “X disse a ver-
dade, logo, aceito X”, mas de “se X diz, é verdade”. O enunciado perde
o vínculo com o referente e se sustenta na expressividade do locutor
(o tom do discurso, o modo de dizer) como dispositivo para adequar a
imagem de locutor a uma dada expectativa do público: o locutor diz o
que se quer ouvir. O público aceita uma dada imagem e o político passa
a encarnar essa imagem.

7 Tradução nossa do trecho “Just as an orator to rest s arguments on the opinions and norms
ascribed to the public, so he or she builds an ethos on collective representations endowed with
positive value. An orator adopts the models which are likely to produce in the addressees an
impression befitting the circumstances.”

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

A imagem de si do locutor, portanto, se funda em estereótipos, no


sentido de modelos socialmente aceitos de apresentação e representação
de si via discurso, e é a imagem estereotipada projetada, segundo o que
o auditório julga adequado, que legitima esse mesmo discurso. Segundo
Amossy (Op. cit, p. 8), remetendo a “regras comuns”, “polidez desne-
cessária” e “sofisticação hipócrita”,

… um modo conciso e direto de falar que não mostra


respeito pela polidez convencional pode indicar uma
pessoa íntegra que não se desvia da verdade… É a partir
de todas as características vinculadas à pessoa do orador
e da situação em que estas se manifestam que a imagem
do orador é construída. Mesmo que esta última permaneça
em última análise singular, a reconstrução é efetuada com
a ajuda de modelos culturais que facilitam a integração
dos dados a um esquema preexistente8.

Isso significa que basta o locutor se apresente como franco e direto


de maneira verossímil, ainda que não o seja na realidade, uma vez que
a imagem de locutor é sempre construída indiretamente; ele tem de se
mostrar franco e direto, não simplesmente dizer que o é. Logo, os mode-
los culturais, que definem o que é a pessoa honesta, firme, corajosa etc.
a partir de seu modo de dizer, são mobilizados, seja quem for o locutor
na prática, de acordo com esses modelos cultural e conjunturalmente
aceitos de imagem.
O que merece destaque é que isso ocorre de acordo com a situação
em que essas características se fazem presentes. Em consequência, se
o público tem a expectativa de que é necessário “alguém que diz o que
pensa”, uma vez que julga que outros são hipócritas e não o dizem,
um locutor que exiba características (insistimos, verdadeiras ou falsas)
8 Tradução nossa do trecho: “a concise and blunt manner of speaking which shows no concern
for conventional politeness may indicate a person of integrity who does not deviate from the
truth. … It is from all of the characteristics relating to the orator’s person and the situation in
which these traits manifest themselves that the orator’s image is constructed. Even if the latter
remains ultimately singular, the reconstruction is effected with the aid of cultural models which
facilitate the integration of data into a preexistent schema.”

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

compatíveis, por mais “estranho” que pareça, pode ser aceito como
quem atende a essa expectativa. Assim, embora a imagem de autor seja
discursivizada, seja uma construção de discurso, ela não é apenas uma
construção de língua, mas envolve tanto recursos argumentativos como
elementos contextuais, conjunturais, que vão determinar que ethos do
locutor, tanto prévio como discursivo, é aceitável ou rejeitável, bem
como que anti-ethos específico melhor serve ao fim de levar o público
a aceitar o locutor e rejeitar seu adversário.

Uma reflexão exemplificada

Sendo necessário, como dissemos, considerar as condições contex-


tuais, conjunturais, do fenômeno que nos ocupa, somamos à definição
de discurso populista acima apresentada uma questão que nos parece
vital: o que se apresentou, nos discursos proferidos, em termos de
promessas de satisfação do auditório, diante de uma alegada situação
de crise e da alegada impossibilidade de os políticos “tradicionais” a
resolverem? Essa questão vem do fato de o candidato cuja constru-
ção de ethos nos interessa examinar ter feito, por meio de partidários
seus, um uso massivo de fake news contra o adversário e ter recorrido
a elementos com os quais o fascismo, por exemplo, obteve adesão
em momentos de crise, real ou suposta. Vejamos alguns exemplos de
como esse recurso foi, ao longo de anos, construindo certa percepção
negativa de um dado candidato, e de seu representante, adversários do
político Jair Bolsonaro.

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Vemos nessas iniciativas uma relação com discursos populistas e


com o fascismo porque o candidato, tal como políticos populistas e fas-
cistas, não só buscou criar uma imagem negativa do principal adversário
como se apresentou como o único capaz de resolver uma alegada crise,
referindo-se a um sofrimento (ou desprazer) que essa crise causava, ale-

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

gou com destaque que as instituições não tinham autoridade e acentuou


a impossibilidade de se entender a situação do país naquele momento
sem que houvesse uma mudança radical. Claro está que não se trata
de apontar uma equivalência entre as situações do fascismo italiano e
as do fenômeno aqui analisado, mas de examinar possíveis pontos de
convergência, mantidas as proporções, nos mecanismos utilizados para
criar a imagem de um suposto salvador diante de um suposto abismo.
Para descrever esse mecanismo, recorremos a Barrantes (2014), autor de
um artigo que tenta explicar o fascínio humano por regimes extremistas
em momentos específicos da história do mundo ou em circunstâncias
específicas de crise, real ou suposta. Segundo o autor,

O atrativo do fascismo residiu em prometer satisfazer


impulsos humanos típicos tal como definidos pelas três
escolas vienenses de psicanálise: a vontade de prazer
[Freud], a vontade de poder [Adler], e a vontade de
sentido [Frankly]. Prometeu aumentar o prazer e deter o
sofrimento; defendeu a vontade de poder promovendo a
unidade (e a discórdia) social; e instilou propósito e sen-
tido mediante o ethos do Estado (BARRANTES, 2014,
p. 2, colchetes nossos)9.

Para o autor, é fácil, em situações de crise, manipular os dois pri-


meiros princípios e, assim, obter a atenção do público. É mais difícil
manipular a vontade de sentido, mas isso pode ser obtido seja, como
no fascismo, colocando o Estado como ethos, ou criando uma imagem
carismática de um salvador. Em nosso caso, diante de uma situação de
alegada crise, e da alegada incapacidade de os políticos ditos tradicionais
a resolverem, bem como na ausência de um adversário forte (porque este
fora preterido), a promessa de aumentar o prazer e de criar unidade contra
uma alegada causa de sofrimento e de desunião mobiliza as pessoas a par-
9 Tradução nossa do trecho “Fascism was attractive because it promised to satisfy distinctive
human drives as defined by the three Viennese schools of psychoanalysis: the will to pleasure,
the will to power and the will to meaning. It promised to increase pleasure and deter suffer-
ing; it championed the will to power by promoting social unity (and discord); and it instilled
purpose and meaning through the ethos of the State.”

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

tir de seu medo de sofrer e de seu sentimento de impotência, colaborando


para aplacar sua ansiedade por um propósito na vida. Curiosamente, como
mostra Correa (2018), muitas foram as notícias que buscavam criar um
clima de crise. Por exemplo, antes do impeachment de Dilma Rousseff,
revistas como a Veja publicaram capas como:
Figura 4 – Indicação de crise na mídia

Fonte: Revista Veja – “As três condições para a queda de um presidente” / - Disponível: As três
condições para a queda de um presidente | VEJA (abril.com.br) - Atualizado em 30 jul 2020,
20h50 - Publicado em 24 jun 2017, 02h48

Esse propósito é fornecido então na forma de “vamos acabar com


a roubalheira”, e, assim, resolver os problemas do país. Em vez de ex-
plorar propostas específicas suas, o locutor incita o auditório a recusar o
adversário, direta ou indiretamente. Outra estratégia é se dizer honesto,
sugerindo que o adversário não o é. Considerando a participação da mídia
na criação da crise, essa estratégia tem todas as chances de surtir efeito.
Esse medo foi criado, naturalmente, por haver circunstâncias pro-
pícias: parte significativa do público que aderiu ao referido candidato
já recusava a continuidade de governos voltados para a justiça social.
Tratava-se do medo de certa classe média brasileira de não ter acesso tão
amplo a bens por estarem eles sendo distribuídos ilegitimamente a pessoas
pobres (por exemplo, afirmava-se que “o aeroporto virou rodoviária”,
que se pretendia implantar um regime comunista, ou coisa parecida) e
da consequente perda do sentido de sua existência (ascender socialmente
sempre e mostrar sua ascensão em contraste com uma maioria que não

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ascendeu). Por exemplo, houve quem dissesse algo como “A empregada


tem carro e anda de avião. E eu estudei pra quê?”.
Figura 5 – Aeroporto virou rodoviária Figura – 6 Cara de empregada

Fontes: (Fig. 5) Pragmatismo Político – NOTÍCIAS – EDUCAÇÂO - Disponível: Professora da


PUC debocha de ‘passageiros pobres’ em aeroporto (pragmatismopolitico.com.br) – 07 de fevereiro
de 2014. (Fig. 6) G1RN – “Jornalista diz que médicas cubanas parecem ‘empregadas domésticas’”
Disponível: G1 - Jornalista diz que médicas cubanas parecem ‘empregadas domésticas’ - notícias em
Rio Grande do Norte (globo.com) - 27/08/2013 16h44 - Atualizado em 27/08/2013 17h02

Nesse contexto, um grupo de pessoas de várias instituições, que


partilhavam dessas opiniões, começou a criar uma crise, primeiro ins-
titucional e, mais tarde, econômica, para retirar do poder o partido que
havia promovido justiça social, ainda que cometendo, como é natural,
eventuais erros. E elas foram bem-sucedidas. O segundo passo foi prender
o principal líder desse partido, com base em uma sentença reconheci-
damente fundada em “atos de ofício indeterminados”, ou seja, baseadas
na convicção do juiz e não em provas. Cria-se uma crise na qual se fixa
a ideia de que todo político é corrupto, de que o país está arruinado eco-
nomicamente e o futuro de todos comprometido se não houver correção.
Como se cria uma crise para tornar possível um “salvador da pá-
tria”? A criação da crise se articula em três planos, sempre destacados
pela mídia e por todos os envolvidos: inventar que o país foi destruído,
e por um dado partido; insinuar que não se exerce direito a autoridade
nos poderes, criando confusões de vários tipos; e dizer que não se pode
manter essa situação que leva à perda de sentido (criada justamente por
quem diz que ela é insustentável). O que se consegue quando essas ins-
tâncias desestabilizam o país com a criação da crise? Deixar o país em
convulsão social (famílias se desfazendo por causa da política), deixar

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

de exercer direito a autoridade nos três poderes, com a instalação de


arbitrariedades de todo tipo (não às ocultas, mas para ser noticiadas), e
fazer que tudo pareça perder o sentido (se há uma crise e não há quem a
possa resolver, estamos perdidos).
Essa situação aumenta a ansiedade, especialmente de pessoas que
não têm consciência política, criando desprazer; as instituições param de
funcionar, mediante casuísmos do judiciário (o que vale para a esquerda
não vale para a direita), corrupção ainda maior no legislativo, que só
aprova o que rende dinheiro e inação do executivo (um presidente sem
nenhuma popularidade, refém do legislativo), criando insatisfação com
o exercício do poder, medo de não haver autoridade superior a que se
possa recorrer; cria-se uma enorme confusão na mídia, com notícias
cuidadosamente escolhidas para parecer que nada mais faz sentido.
Eis as condições para o autoritarismo populista, que gera uma
proposta de solução global fundada em artifícios que o fascismo usou:
propõe-se um salvador da pátria que vai acabar com essa destruição (não
haverá mais roubalheira), exercer a autoridade perdida (digo o que penso,
logo, farei o que quiser); e, mediante as duas atitudes anteriores, fazer que
tudo volte a fazer sentido. Como vimos, no discurso populista, as regras
a ser violadas são consideradas “comuns”, no sentido de corriqueiras,
e a polidez julgada “desnecessária”, por se atribuir a elas a condição de
parte da “sofisticação hipócrita” dos outros políticos. Logo, a imagem
que se busca criar se funda em mostrar-se no discurso como aquele que
diz o que pensa sem disfarçar, um político franco, “homem do povo”.
Trata-se de uma dissonância: se X é político, como os outros, e estes
fingem educação e comedimento, por serem hipócritas, X também deveria
ser considerado hipócrita, por ser político, pois sê-lo implica hipocrisia.
(Aliás, alguns sinônimos de “político” como adjetivo são: cortês, edu-
cado, mas também bajulador.) Diante disso, o populista recorre a uma
linguagem “rude” e “direta” para mostrar que “todo político é corrupto e
hipócrita, exceto eu”. Assim, em nosso caso específico, portanto, a criação
de uma crise, e o esforço de destruição do anti-ethos mediante fake news
disparadas por robôs no Facebook e no Twitter criaram a ideia de ser a

89
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

culpa da “crise” de um dado partido, e de seus candidatos, e, aliados à


disseminação sistemática de que todos os políticos são corruptos, menos
o candidato x (que é direto, honesto, forte etc.), tornaram aceitos o can-
didato em si, e seu tom, embora não necessariamente suas teses. Uma
das respostas defensivas diante dessa dissonância foi o uso do bordão
“É da boca para fora”, usada quando o candidato diz, por exemplo, que
vai perseguir LGBTs para que os adeptos dele aleguem não ser verdade,
mas apenas “retórica”.
Figura 7 – É da boca pra fora

Fonte: O Estado de São Paulo – “Homofobia de Bolsonaro é da boca para fora”, diz Regina
Duarte – Disponível: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,homofobia-de-
bolsonaro-e-da-boca-para-fora-diz-regina-duarte

O paradoxo se evidencia: se não se acredita na verdade das afir-


mações, acaba-se por aderir a um candidato a cujas teses não se adere,
simplesmente mediante a aceitação de sua imagem positiva projetada em
discurso. Exclui-se assim, para muitos, o aspecto referencial do dito e
mantém-se apenas o tom do dizer. Ao que parece, o candidato recorreu
menos às crenças do público (cuja maioria não é necessariamente favorá-
vel à perseguição de LGBTs, por exemplo) do que criou, especialmente
para as circunstâncias artificialmente caracterizadas como de grave crise,
a imagem de si adequada ao público.
Pode-se perceber que não há uma adesão às teses do candidato.
Como afirma Gabriel (2019)

90
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

72% da população quer que assuntos políticos sejam


discutidos nas salas de aula. A educação sexual nas
escolas é defendida por 55% dos brasileiros; 59% são
contrários ao encolhimento das leis trabalhistas. Os
que se opõem à redução das áreas destinadas a reservas
indígenas representam 62%. E, por fim, 69% são contra
facilitar o acesso a armas de fogo. Ao que parece, a
maioria dos brasileiros se opõe às principais obsessões
do novo governo.

Logo, o dito parece de fato ter cedido lugar ao modo de dizer


e, mais do que isso, a quem pode dizer; há a manutenção da crença
no locutor como capaz de “resolver a crise”, diga ele o que disser,
isto é, o sentido não está de modo algum nas palavras, importando na
verdade o fato de ele as dizer. O ato de dizer é tomado como prova
da verdade das qualidades do locutor. Para quem se deixa levar pelo
locutor, afirmações como as citadas acima não importam quanto ao
sentido, mas apontam para o fato de ele ser uma pessoa corajosa a
ponto de falar contra minorias que se espera ver respeitadas. Claro
que haverá nesse auditório quem de fato julgue perseguir índios,
por exemplo, uma medida justa, mas, de modo geral, muitos que
aceitaram o candidato não concordam que se faça algum mal aos
índios. Para estes, trata-se de recusar a hipocrisia, a dos políticos
que fingem “gostar de índio”, e de ser direto: “mesmo que eu não
vá fazer, tenho coragem de dizer!”.
Para que essas coisas sejam aceitas, foi necessário investir na cons-
trução de um anti-ethos, prévio e discursivo, negativo, construção que
usou todos os recursos possíveis. A prisão ilegítima de um líder levou à
atribuição a ele da condição de corrupto, a ponto de haver manifestações
exaltadas como:

91
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Figura 8 – Lula maior ladrão do mundo! Figura 9 – Haddad desonesto


Fontes: (Fig. 8) CANAL QUERO VER - YOU TUBE – LULA MAIOR LADRÃO DO MUNDO.
Disponível: https://images.app.goo.gl/zguKX7UzTNTHAmQ5A .
(Fig. 9) Facebook - Partido Anti-PT – “EXISTE PETISTA HONESTO?” – Disponível:
Https://www.facebook.com/PartidoAntiPT/photos/ - 9 de setembro de 2018

Em outros termos, para levar à aceitação de uma dada imagem de


locutor sem manter a referencialidade, foi necessário demonizar o(s)
adversário(s) capaz(es) de se opor a esse candidato, para que aquele(s),
encarnando a origem e o culpado dos males por que passam os membros
da plateia, fossem a justificativa para o caráter positivo do candidato
favorecido pelos poderosos. O mecanismo é: antes de o locutor se apre-
sentar como “salvador”, induz-se uma crise, afirma-se insistentemente
que ela afeta pessoas antes favorecidas, acusa-se um dado político e/ou
partido pela crise, acentua-se essa crise, afasta-se o partido inimigo do
poder, impede-se esse político de participar da eleição usando a imagem
positiva do judiciário para cometer uma injustiça.

Considerações Finais

Tendo em vista os elementos arrolados, pode-se dizer que, para


entender como ocorreu a construção discursiva de imagem em nosso
caso, cabe ir além do dito e do dizer e concentrar-se também no quem
diz (ethos prévio) e mesmo no quem não pode dizer (anti-ethos prévio).
Trata-se de verificar, na conjuntura, qual o consenso social dos interlocu-
tores quanto ao que é aceito e/ou aceitável no tocante a imagens de si de
políticos. Sem uma base na realidade socialmente construída, projetada

92
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

no discurso, não há como criar uma imagem verossímil, mesmo que se


parta de uma falsa realidade, criada previamente para tornar possível e
aceitável um dado discurso populista. Afastam-se as alternativas, cria-se
uma imagem negativa de todos os políticos como “hipócritas”, “corrup-
tos” etc., para que um político inexpressivo (e político profissional há
muitos anos) assuma um estatuto que não teria se seu adversário não
tivesse sido impedido e se a campanha não tivesse sido marcada por
falseamento e disseminação de fake news.
Cabe destacar assim que é possível a um locutor, em uma situação
favorável, simular uma dada imagem para explorar a propensão do pú-
blico a aceitar quem apresente as características associadas a uma dada
imagem e a reconstruí-la de acordo com os modelos aceitos na situação.
O caráter conjuntural é aqui vital. Caso haja dois locutores projetando
imagens de honestidade, o conflito acerca de quem é de fato honesto etc.
vai ser definido não a partir simplesmente de modelos e características
típicas apresentadas no discurso, mas também com base em vários outros
elementos.
Daí a importância, em nosso caso, de considerar, por exemplo, do
ethos prévio, dos anti-ethos e da posição relativa dos locutores em disputa
na situação concreta. Por exemplo, um candidato honesto de um partido
caracterizado junto ao público, justa ou injustamente, como desonesto,
pode mais facilmente ter sua imagem recusada do que um candidato
desconhecido de um partido desconhecido que se apresente como di-
ferente. Enquanto o candidato conjunturalmente favorecido destacava
a honestidade, o candidato desfavorecido apelou para a competência,
formação etc.; enquanto aquele se impunha como firme e dotado de
autoridade, este se apresentava como cordato e negociador. A maneira
como se construiu o anti-ethos nos leva a propor, como veremos adiante,
a ideia da existência de um anti-ethos prévio.
Não se tratava simplesmente de aceitar a imagem daquele e recusar
a deste, mas de definir, na situação, de acordo com a expectativa desse
público, que imagem era associada a uma mudança, a uma solução, para
a crise declarada na época. Assim, a conjuntura, anômala, definiu que

93
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

imagem era preferível, para esse público, a partir de dois elementos: o


clima político geral fazia crer ao público que este deveria esperar firmeza
e autoridade, em vez de propensão à negociação e, o mais importante, o
clima induzia a duvidar do candidato cordato e negociador por ser este
do partido considerado corrupto e por estar substituindo o candidato que
fora preterido por ter sido preso injustamente – clara marca de anomalia.
Esta última característica ensejou comentários de que “ele vai ser
eleito e o preterido vai governar”, o que sugere desonestidade, exceto
para um auditório que não aceitasse as premissas de desonestidade do
partido perdedor. O candidato perdedor foi, além disso, associado à
“velha” política, ao passo que seu adversário se apresentou como capaz
de introduzir uma “nova” política.
Nesse caso, ser um desconhecido de um partido desconhecido foi
uma vantagem, algo que só se concretizou porque o modelo cultural
implantado via mídias para a reconstituição da imagem positiva de
autor, da imagem de político necessária na conjuntura se fundava na
construção de um ethos prévio negativo do candidato conhecido (acusado
de representante de outro, rejeitado por um certo público) e de um anti-
ethos prévio compósito que unia a imagem do candidato concreto à do
candidato que ele substituiu (aquele que estava preso, por ser culpado
de corrupção, para uma parcela significativa do público, e injustamente
preterido, para outra). O objetivo dessa dupla demonização era impedir
que se transferissem votos do preterido para o real. Isso não foi conse-
guido, mas a proporção de transferência não foi suficiente para vencer o
candidato favorecido porque, como muitos apontam, o uso de fake news
nos momentos finais alcançou proporções dantescas.
Esses elementos nos permitem dizer igualmente que a tarefa dos
movimentos de resistência à instituição autoritária desse discurso da
verdade universal, voltado para a manutenção do status quo, implica
a distinção, pelos discursos contra-hegemônicos, entre verdade(s),
mentiras e não-verdades (ou meias verdades). A resistência a táticas de
desinformação como as notícias falsas e o falseamento consiste assim
em cobrar responsabilidade das entidades e sujeitos que enunciam es-

94
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

sas formas de distorção dos fatos. Para isso, é preciso que os locutores
contra-hegemônicos consigam identificar os mecanismos de imposição
da “verdade” parcial dos locutores hegemônicos. Nesse sentido, cabe aos
grupos não-hegemônicos desenvolver imediatamente contraestratégias
de resistência para se opor a essas estratégias, cujos efeitos danosos hoje
vivenciamos.

Referências

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Lausanne: Delachaux et Niestlé, 1999.
AMOSSY, R. Ethos at the crossroads of disciplines: rhetoric, pragmatics, sociology.
Poetics Today, 22:1, Spring, p. 1-23, 2001.
AMOSSY, R. Entrevista: Uma conversação com Ruth Amossy, por Alejandra Vitale.
Conexão Letras. v. 12, n. 18, p. 189-192, 2017.
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CORREA, S. Análise de capas da revista Veja: a construção midiática da legitimação
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GABRIEL, R. de S. Como entender a adesão de tios e tias ao fascismo? O rei das
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MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução Sírio Possenti. Curitiba:
Criar Edições, 2005.
MORGANTE, J.; AMOSSY, R. La présentation de soi. Ethos et identité verbale.
Resenha. I raccomandati / Los recomendados/ Les récommendés/ Highly
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Twitter. Galaxia (São Paulo, on-line), n. 41, p. 31-47, 2019. ISSN 1982-2553. DOI:
http://dx.doi.org/10.1590/1982-25542019239035. Acesso em: 10 fev. 2019

95
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

RECUERO, R. 5ª Mesa de Diálogos em tempos de pandemia. Convidados: Profa.


Dra. Pollyana Farrari (PUC-SP) – Profa. Dra. Raquel Recuero (UFGRS) Mediadores:
Profa. Dra. Rita Argollo e Profa. Julianna Torezani. Mesa on-line: Uso de redes
sociais durante o distanciamento social. 2020. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=ceekI3cLd5k. Acesso em: 30 out. 2020
SANTANA, E. Jornal Nacional, um ator político em cena – do impeachment de
Dilma Rousseff à eleição de Jair Bolsonaro: as bases da construção da narrativa
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(Doutorado) – PUC Minas. 2020.
SOBRAL, A. A concepção de autoria do “Círculo Bakhtin, Medvedev, Voloshinov”:
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SOBRAL, A. Elementos sobre o dispositivo enunciativo de Maingueneau a partir
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(org.). Discurso – Tessituras de linguagem e trabalho. 1. ed. São Paulo: Cortez, v.
1, p. 51-87, 2017.
SOBRAL, A. “Verdade, mentira, não-verdade: por uma ética da interpretação
contra o discurso autoritário”. Comunicação apresentada no Pré-XXIII Congresso
Internacional de Humanidades, realizado pela Universidade de Brasília nos dias 10
e 11 de setembro de 2020. 2020.

96
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Escolas e Partidos: ideologias,


letramentos e decolonialidade

Ana Paula Marques Beato-Canato1


Clarissa Menezes Jordão2

De acordo com informações encontradas em seu site, a Associação


Escola Sem Partido (AESP) surgiu em 2004 como um movimento apar-
tidário de pais e alunes engajades em proteger sus filhes e combater a
doutrinação nas escolas brasileiras. Apesar dessa descrição, sua aproxi-
mação com meios de comunicação declaradamente de direita bem como a
polítiques de (extrema-)direita e certos setores religiosos e conservadores
tem sido cada vez maior. Essa vinculação e suas ações de difamação e
incentivo à denúncia e perseguição de professorus têm contribuído para
tirar o foco de problemas cruciais da educação brasileira, criminalizar
ações educacionais com abordagens progressistas e ampliar o binarismo
de nossa sociedade.
Partindo de uma perspectiva decolonial e à luz da teoria dos letra-
mentos autônomo/ideológico de Street (2003), esse texto se propõe a
investigar os princípios que norteiam a suposta neutralidade do movi-
mento desenvolvido pela AESP. Compreendemos que, embora advogue
por uma educação neutra, as atividades da AESP partem de perspectivas
ideológicas binárias, estáticas e naturalizadas, que beneficiam certa par-
1 Universidade Federal do Paraná (UFPR). Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL-
UFPR).
2 Universidade Federal do Paraná (UFPR/CNPq). Programa de Pós-Graduação em Letras
(PPGL-UFPR).

97
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

cela da população ao obscurecer as continuidades entre o passado colo-


nial e a colonialidade atual (GROSFOGUEL, 2011), isto é, a opressão/
exploração cultural, política, sexual, econômica e de gênero por certos
grupos e o deslocamento de outros grupos para a invisibilidade das di-
ferenças. Nesse sentido, Souza Santos (2019) tem utilizado a metáfora
da linha abissal: construída pela modernidade/colonialidade; essa linha
supervaloriza o que é percebido como semelhante, e nesse mesmo mo-
vimento projeta para o outro lado da linha, ou seja, para o silêncio e a
invisibilidade, aquilo que é percebido como ameaça – nessa perspectiva,
aquilo que é diferente de si. Street (2003) nos convida a problematizar
sempre qualquer perspectiva e, para isso, remete à distinção do senso
comum entre letramentos autônomos e letramentos ideológicos, sendo os
primeiros supostamente neutros e técnicos e os segundos carregados de
valores sociais, morais, políticos. Alinhamo-nos ao autor ao entender que
todo letramento é ideológico, porque referenciado por visões de mundos
específicas; o que há, portanto, são letramentos dominantes (visíveis, nos
termos de Souza Santos) e letramentos marginalizados (os silenciados,
para Souza Santos) construídos todos a partir de relações assimétricas
de poder entre diferentes formas de ser, saber e poder de que nos falam
os estudos sobre (de)colonialidade.
Com esse olhar, que parte da interface entre letramentos, pensamento
abissal e decolonialidade, problematizamos os discursos da AESP que
defende uma educação neutra. Nossos olhares, como professoras na lin-
guística aplicada, trazem consigo uma relação constante entre letramentos
e a colonialidade de muitas das práticas que nos constituem enquanto
educadoras e enquanto pessoas. Tais olhares fazem parecer evidente
demais que qualquer prática humana seja sempre, necessariamente,
ideológica. Diante da AESP que faz uma proposta tão distinta, faz-se ne-
cessário, para qualificar nossa posição, mesmo que pareça óbvio demais,
esclarecer, na primeira parte deste capítulo, a perspectiva que temos tanto
sobre o que seja ideologia, quanto sobre o que entendemos por prática
e por evidência. Em seguida, fazemos uma análise sobre a relação entre
educação, discurso e ideologia, análise baseada nos discursos da AESP
e sua proposta insistente de uma educação “supostamente” neutra. Nossa

98
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

investigação nos leva a enxergar uma associação que, camuflada em um


discurso falaciosamente imparcial e apolítico, questiona sem cessar o
que se encontra do “outro lado da linha abissal” e procura impor certas
formas de ser, saber e poder sobre outras formas e dessa maneira, perpe-
tuar o desejo de reforçar e manter a colonialidade da educação brasileira.
Por isso, advogamos de modo contrário à AESP por entender que suas
ações supostamente neutras favorecem a manutenção de uma sociedade
ideologicamente marcada por uma colonialidade estrutural.

Ideologia, prática, evidência: a leitura como agência

O termo ideologia tem aparecido com frequência na mídia ulti-


mamente, muitas vezes alinhado ao senso comum que entende como
ideológico o que é politicamente engajado, ou melhor, o que é subje-
tivamente construído. Tal sentido é construído a partir do pressuposto
de que existiria um mundo dado, exterior e muitas vezes imutável. Esse
mundo concreto é entendido em oposição a um outro, que seria o mundo
subjetivo, da imaginação, construído nas mentes das pessoas, e, portanto,
ficcional, interior e altamente mutável. Nessa perspectiva binária esses
mundos idealmente não se deveriam misturar, a fim de que se pudesse
alcançar uma objetividade que nos permitisse ver as coisas como elas
são. No entanto, para quem pensa assim, esses dois mundos se misturam
constantemente na vida cotidiana; daí a necessidade da racionalidade,
continuam, entendida como a capacidade de erguer o véu que a ideologia
coloca sobre as coisas do mundo. Em se erguendo o véu, descortina-se
a vida como ela é. Assim, funda-se uma distinção entre aquelus que
conseguem erguer o véu, e aquelus que não conseguem: quem consegue
é racional, não-ideológique, bem intencionade e realista – pois vê a ver-
dade do mundo; quem não consegue está cegue, distante da realidade,
não tem razão, não pensa como eu (que, claro, estou entre aqueles que
ergueram o véu) e, portanto, é ideológico. É nesse sentido que se fala,
por exemplo, em “deixar de ideologizar” certas questões, em pensar no
bem comum (como se o bem comum fosse algo unânime, inquestionável,
abstrato, universal – o mesmo para todos), em superar diferenças e seguir

99
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

o que ditam aquelus que se supõe terem erguido seu véu. Pois bem, desse
pensamento para o fascismo e a ditadura estamos a um passo.
Felizmente existem outras maneiras de entender o mundo e o que
significa ideologia. Ao modo bakhtiniano, por exemplo, ideologia é modo
de ser, ver, interpretar, entender. Como tal, ela está presente em toda a ati-
vidade humana, e orienta nossos olhares, guia nossas interpretações, torna
possível nossos entendimentos de mundo. Ao conceber a linguagem como
um fenômeno social no qual diferentes vozes coexistem em permanente
contato, ou melhor, em incessante conflito dialógico (VOLÓCHINOV,
2017), o Círculo de Bakhtin associa linguagem a poder e ideologia.
Conceitos como heteroglossia e polifonia corroboram tal associação,
apresentando-nos uma concepção de linguagem em que vozes indivi-
duais e sociais (culturais, políticas, históricas) estão sempre em embate,
buscando sobrepor-se umas às outras. Nesse ambiente, as relações de
poder que se estabelecem nesses contatos (ou são estabelecidas por eles)
evidenciam a ideologia como sendo o nome dado a arranjos específicos
entre ideias, objetos, sujeitos, dimensões, aspectos, elementos enfim que
se entrecruzam nestas relações. Cada arranjo tem, assim, origens sociais e
individuais ao mesmo tempo, é particular e coletivo simultaneamente para
cada sujeito que o desenvolve. Desse modo, para o Círculo de Bakhtin,
o social e o individual estão inextricavelmente unidos na ideologia que
constitui o pensamento, a emoção, a mente e o corpo dos seres humanos.
Na visão bakhtiniana, portanto, não entra em discussão qual ideologia
estaria mais próxima ou mais distante da verdade, mas sim a partir de
quais quadros de referência interpretamos as diversas verdades com que
nos relacionamos. No posfácio de autoria de Carlos Alberto Faraco para
o ensaio de Bakhtin chamado “Para uma Filosofia do Ato Responsável”
(2010, p. 154), Faraco destaca que, no pensamento de Bakhtin, “não
tenho álibi na existência: ser na vida significa agir – eu não posso não
agir, eu não posso não ser participante da vida real”. O presente texto é
entendido por nós, portanto, como um agir ideologicamente implicado.
Entretanto, alinhadas à primeira visão de ideologia, que vê a neutra-
lidade como possível e desejável, algumas perspectivas sobre letramento
(STREET, 2003) entendem que a linguagem e os significados poderiam

100
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ser dissociados uns dos outros, que se poderia aprender língua de modo
apolítico, como se a língua fosse um mero instrumento que manuseamos
para fazer contato com o mundo. Vista deste modo, a língua se aproxi-
maria do modelo de comunicação que, no início do século XIX, colocava
a língua como intermediária entre o pensamento de emissoru e a com-
preensão desse pensamento pele receptoru, num modelo chamado por
Harris de telementização (HARRIS, 2003; MAKONI; PENNYCOOK;
SEVERO, 2015). A língua seria então um código neutro que, se bem
ensinado e bem aprendido mecanicamente, possibilitaria a transmissão
e recepção do pensamento. Neste sentido, língua e pensamento seriam
entidades discretas, distinguíveis entre si.
Com base na segunda perspectiva de ideologia, no entanto, língua
e pensamento são indissociáveis: uma informa a outra incessantemente
assim como significante e significado – um não existe sem o outro e
eles não podem ser separados. Essa perspectiva nos convida a pensar
sobre letramento a partir da ótica dos processos de significação compar-
tilhados social e culturalmente: letramento aqui significa produção de
sentidos, conjuntos de procedimentos interpretativos que construímos
nos entrecruzamentos que fazemos, cada um à sua maneira, entre os
diversos sentidos que produzimos e com que tomamos contato. Ou
seja, (re/co/des)construímos contextos dialogicamente em e através
de atitudes responsivas do “eu para mim”, do “eu para os outros” e
dos “outros para mim” (BAKHTIN, 2010). Portanto, todo letramento,
enquanto prática social, é “incrustrado de princípios epistemológicos
socialmente construídos” (STREET, 2003, p. 77). Isso significa que
todas as escolhas que fazemos, sejam elas no ambiente escolar ou não,
são carregadas de relações de poder e de questões culturais, sociais,
ideológicas, não sendo jamais universais. Nesse sentido, letramentos e
procedimentos interpretativos são sempre ideológicos, porque sempre
estarão imersos em processos responsivos de produção de sentidos. Essa
visão de letramentos, os quais Street (2003) chama de ideológicos (em
contraste à visão de letramentos como uma atividade autônoma, não
ideológica, dissociável de outras práticas com linguagem), clama pela
problematização constante e permanente de toda e qualquer perspec-

101
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

tiva, uma vez que o olhar é sempre ideológico, está sempre inserido
em relações de poder e quadros de referência.
Para Street (2003), o senso comum distingue entre letramentos
autônomos, que seriam os relacionados ao que aqui estamos chamando
de primeiro conceito de ideologia, e letramentos ideológicos, que esta-
riam contaminados por valores morais e políticos. No entanto, para o
pesquisador, os letramentos são sempre ideológicos, porque só se tornam
possíveis nas práticas cotidianas, só adquirem existência em meio à
vida social, que é sempre política, sempre plural e ideológica, tomando
materialidade na associação com quadros referenciais específicos. Con-
cordamos plenamente com Street nesse sentido, e entendemos que o que
se nos apresenta são de fato letramentos dominantes e/ou letramentos
marginalizados, mas todos eles construídos nas relações assimétricas de
poder invariavelmente ideológicas.
Entendemos que essa perspectiva, que se pode entender como
bakhtiniana, está alinhada também ao pensamento do grupo de pesquisa
latino-americano conhecido como Modernidade-Colonialidade. Este
grupo de pensadorus, que inclui Mignolo, Escobar, Grosfoguel e Walsh,
para mencionar apenas alguns nomes mais representativos, defende a
ideia de que algumas ideologias promovem grandes violências, como
é o caso da colonialidade. O grupo explicita a inseparabilidade entre
modernidade e colonialidade, como dois lados de uma mesma moeda:
para eles o pensamento da modernidade, ligado ao capitalismo, à inva-
são e destruição de povos e suas culturas, à hierarquização de formas de
ser e de saber, à projeção do capital acima de todas as coisas, constrói a
colonialidade que, por sua vez, localiza os povos não-europeus (e alguns
povos europeus também – GROSFOGUEL, 2013) em espaços inferiores,
primitivos, infantilizados, caracterizando-os como povos sem conheci-
mento e sem erudição. Nesse patamar, fragmentado pela “linha abissal”,
fundam-se as universidades, os paradigmas de pesquisa científica, os
ideais de civilização e de sucesso, calcados exclusivamente no paradigma
ontoepistemológico europeu que se projetou como hegemônico. A fim de
perdurar, esse modelo precisava apagar suas raízes brutalmente violentas,
obscurecer as continuidades entre nosso passado colonial e a colonialida-

102
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

de atual (GROSFOGUEL, 2011), isto é, a opressão/exploração cultural,


política, sexual, econômica e de gênero realizada por certos grupos num
processo de deslocamento de outros grupos para a invisibilidade do outro
lado da linha abissal (SOUZA SANTOS, 2019).
A estrutura educacional brasileira tem sido construída com base no
paradigma da modernidade/colonialidade, emulando modelos europeus
que se colocam até hoje como supostamente neutros, imparciais, apo-
líticos, mas que reforçam determinadas formas de ser, saber e poder e,
dessa maneira, perpetuam a colonialidade fundante do nosso sistema de
educação, centrado na racionalidade e projetando ideais capitalistas e
neoliberais como únicos caminhos para o sucesso e o bem-estar da nação.
Decolonizar nossa estrutura educacional passa, portanto, necessariamen-
te, pela valorização de saberes e sujeitos conhecedores historicamente
subalternizados e estrategicamente silenciados (KUMARAVADIVELU,
2016).

Letramentos e colonialidade: a leitura como protesto

Nessa parte, tomamos os princípios teóricos sobre letramentos e (de)


colonialidade apresentados em seção anterior para fazer uma leitura das
proposições e ações da AESP. Iniciamos apresentando a associação. De
acordo com informações encontradas em seu site, a AESP surgiu em 2004
e constitui-se como “uma associação informal, independente, sem fins
lucrativos e sem qualquer espécie de vinculação política, ideológica ou
partidária […].” (AESP, s.d.), que reúne pais/mães e estudantes dispostos
a afrontar a “instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos
e partidários. (AESP, s.d.)”. A escola seria um espaço de transmissão de
conhecimentos válidos e a ideia central do grupo seria buscar um ensino
neutro, que respeitasse a constituição e os princípios morais e religiosos
da família. Ou seja, o ambiente escolar deveria ser um lugar privilegiado
da racionalidade e do realismo, onde deveria haver espaço unicamente
para conhecimentos inquestionáveis. Assim, ses adeptes concebem como
ideologização partidária qualquer tentativa de problematizar seja qual for
o conteúdo universalizante e unívoco selecionado à priori.

103
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Embora criado em 2004, até 2014 o movimento mantinha-se no os-


tracismo. Neste ano, entretanto, tomou o combate à “ideologia de gênero”
como uma de suas principais bandeiras e angariou muites simpatizantus
dispostes a destruir esse espectro contrário à família tradicional. Sob a
bandeira de “ideologia de gênero” são colocadas todas as reivindicações
LGBTQIA+ e feministas, compreendidas como lamúrias partidárias da
esquerda ou doutrinações marxistas a serem suprimidas, porque contri-
buem para a destruição das famílias e da sociedade.
Ainda no mesmo ano, segundo Algebaile (2017), a AESP esta-
beleceu uma vinculação orgânica com segmentos parlamentares, com
a produção de um Projeto de Lei com o nome Programa Escola Sem
Partido, encomendado pelo então deputado estadual do Rio de Janeiro
Flavio Bolsonaro, que apresentou o projeto na Câmara Legislativa de
seu estado. Embora sua constitucionalidade seja questionada, tal projeto
de lei encontra-se disponível para download no site do Programa3 e já
foi apresentado por 25 deputados e 120 vereadores por todo o país tendo
sido aprovado em vinte e três municípios até o momento de nossa última
consulta4. Durante as eleições de 2018, a ligação político-partidária do
movimento se intensificou, quando a AESP declarou apoio ao candidato
eleito e divulgou nomes de candidates que a apoiava. Além disso, chama
atenção o fato de o coordenador do AESP atuar frequentemente com
sua cunhada, Bia Kicis, deputada federal por Brasília pelo PSL, caso
do evento estudantil com pautas de direita ocorrido em junho de 2019
(Figura 1).

3 Disponível em: https://www.programaescolasempartido.org/anteprojetos. Acesso em: 09 abr.


2020.
4 No momento em que finalizamos o texto, o Projeto havia sido proposto em 16 estados brasileiros,
conforme pode ser consultado em: https://www.google.com/maps/d/u/0/viewer?mid=1AbaBX
uKECclTMMYcvHcRphfrK9E&ll=-20.5505089%2C-48.56952669999998&z=8. Acesso em:
07 abr. 2020. No mesmo período, também tomamos conhecimento da decisão do STF sobre a
inconstitucionalidade do Projeto de Lei Escola Sem Partido em Alagoas, conforme pode ser visto
em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/08/21/stf-tem-maioria-contra-lei-
de-alagoas-inspirada-no-escola-sem-partido.htm. Acesso em 29 set. 2020. O arbítrio parece ter
sido crucial para que o perfil do movimento fosse desativado no Facebook.

104
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Figura 1 – Postagem de Beatriz Kicis

Fonte: Perfil pessoal de Beatriz Kicis no Facebook do ESP, em 27 de junho de 20195

A postagem de Bia Kicis, reproduzida na Figura 1, foi comparti-


lhada pela AESP em seu perfil do Facebook, gerando uma discussão
acalorada. O movimento defende sua participação no evento e ataca
possíveis crítiques chamando-es de “retardados (em geral militantes
disfarçados de professores)” (AESP, 2019). O debate gerado a partir
dessa postagem é pautado em olhares distintos, tendo: 1) aquelus que
questionam fortemente o claro teor partidário do evento e a contradição
da participação do movimento que se declara apartidário (“A E.S.P. já
está adotando as mesmas estratégias ideológicas e táticas ocupacionais
que condenava. Só falta coragem e conteúdo pra debater a escola…”);
2) aquelus que defendem a participação e sua neutralidade (“Só tem uma
diferença grande: eles não estão dando palestras dentro das Universidades,
como Boulos e cia, levando o comício onde os alunos estão. Nesse caso,
quem tem interesse vai até eles.”); 3) aquelus que não só defendem a
participação como reivindicam uma escola de direita (“Eu apoio o ESP,
pq quero tudo q diga respeito à esquerda retirado da escola. Mas o q eu
5 Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10205912761414108&set=
pb.1711260439.-2207520000..&type=3. Acesso em: 20 abr. 2020.

105
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

queria mesmo é a Escola Da Direita, pois essa é a corrente política na


qual crio meu filho e minha família cria todas as crianças.”).
Boa parte das postagens e comentários são ilustrativos de perspecti-
vas ideológicas binárias, que dividem a sociedade entre nós e eles, bons
e maus, sendo os primeiros aqueles que coadunam com as propostas da
AESP e os segundos os que se alinham a pensamentos progressistas. O
último comentário evidencia os dois lados da linha abissal conforme
discutimos na seção anterior (SOUZA SANTOS, 2019), estando de um
lado o grupo com viés partidário de direita, enquanto o segundo seria
atacado por usar o espaço da sala de aula para propagar ideias políticas
contrárias à família (tradicional) ao ser tratado de forma pejorativa e
agressiva (retardados e militantes políticos).
Com o álibi de que a AESP é um movimento e não uma escola, a
qual precisaria manter neutralidade absoluta, o grupo ataca professorus
em tom pejorativo e agressivo (“retardados” e “militantes”), insistindo
na ideia de que educadorus de esquerda aproveitam o espaço da sala de
aula para propagar ideias políticas de forma organizada e sistematizada,
como se pode confirmar numa resposta dada no FAQ do site:

Existem professores de direita que usam a sala de aula


para fazer a cabeça dos alunos. Mas são franco-atiradores,
trabalham por conta própria. No Brasil, quem promove a
doutrinação político-ideológica em sala de aula, de forma
sistemática e organizada, com apoio teórico (Gramsci,
Althusser, Freire, Saviani, etc.), político (governos e
partidos de esquerda, PT à frente), burocrático (MEC
e secretarias de educação), editorial (indústria do livro
didático) e sindical é à esquerda. (AESP, s.d.).

Nos últimos anos, tal compreensão tem angariado cada vez mais
adeptes e, desde 2019, com a (extrema-)direita no governo, temos visto
triunfarem políticas alinhadas à narrativa da AESP, bem como frequentes
declarações de apoio ao movimento advindas tanto do presidente atual
quanto da base de seu governo ligada especialmente à educação, caso

106
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

de Ricardo Vélez e Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub, ex-


Ministros da Educação, e do ministro atual Milton Ribeiro, que advoga
a favor de uma prova do ENEM “técnica, sem matizes ideológicas de
qualquer natureza”6. Políticas claramente favoráveis às propostas da
AESP teriam sido a criação da Secretaria de Alfabetização do Ministério
da Educação e a publicação, em 11 de abril de 2019, do Decreto da Nova
Política de Alfabetização Nacional7, que prioriza o método fônico em
detrimento de outras abordagens de alfabetização/letramento, explícita
ou implicitamente associadas a Paulo Freire e aos Estudos dos Novos
Letramentos/Letramentos críticos. Avaliamos que tais propostas têm sido
preteridas porque buscam expor mecanismos causadores de desigualda-
des e subalternizações que produzem e reproduzem opressão e exibem
que o encadeamento de vozes resistentes gera alternativas pedagógicas
emancipatórias, humanistas, multiculturais, interculturais e inclusivas.
Entendemos que tais abordagens têm sido preteridas porque apontam
para a construção de realidades mais equânimes, mais éticas, que cau-
sam menos sofrimento, como abordaremos com maior aprofundamento
em outro momentoA repetição com afinco da falta de ética profissional
de grupos de esquerda (professorus, teóriques, polítiques, organizações
governamentais, mercado editorial e sindicato) delineia a sala de aula
como uma arena a ser monitorada e denunciada. Tal construção vem
mascarada pelo discurso de que a AESP tem a única intenção de afixar
nas salas de aula um cartaz com excertos da constituição que indicam
as obrigações des professorus (Figura 2, com grifos nossos), buscando
garantir que es profissionais cumpram com seus encargos. Com uma
pretensa neutralidade, o coletivo aponta insistentemente suas ações in-
cansáveis para proteger es indefeses, a constituição e princípios morais e
religiosos. Para tanto, tem buscado alianças com polítiques supostamente
de qualquer alinhamento partidário para implementar um projeto de lei
que exige a afixação de tal cartaz.

6 Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2021/07/ministro-da-educacao-


tv-olavo-de-carvalho/. Acesso em: 28 jul. 2021.
7 Disponível em: http://www.brasil.gov.br/100dias/arquivos_pdf/acao-12-decreto-no-9-765-de-
11-de-abril-de-2019.pdf. Acesso em: 05 jul. 2019.

107
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Figura 2 – Cartaz com Deveres do Professor – Escola Sem Partido (grifos nossos)

Fonte: Site do movimento Escola sem Partido8

Segundo a AESP, o cartaz apenas lembra es professorus de suas


obrigações e respalda es alunes para exigir que seus direitos sejam res-
peitados. Contudo, um olhar mais crítico evidencia a forma tendenciosa
como ele pretende engendrar es alunes, pressupondo que elus sejam
tábulas rasas, vítimas e indefesas, ao passo que as escolas e professorus
são apresentados como um grupo ocupado em disseminar uma visão
político-ideológica-partidária unilateral, que ameaça à democracia e
princípios morais e religiosos das famílias brasileiras, como buscamos
ilustrar com os grifos que fizemos no cartaz da Figura 2. Com o pretexto
da obrigatoriedade de um sistema educacional apartidário, a AESP insiste
na existência de uma educação neutra, destituída de ideologia. Paulo
Freire (não por acaso muito atacado pela AESP), chamou essa concep-

8 Disponível em: https://www.programaescolasempartido.org/por-uma-lei-contra-o-abuso-da-


liberdade-de-ensinar. Acesso em: 08 abr. 2020.

108
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ção de educação “bancária”, ou seja, ocupada com a formação técnica e


supostamente limitada a transferir conhecimentos incontestáveis, os quais
seriam “depositados” peles professorus e “arquivados” peles alunes. Esse
entendimento estaria de acordo com o que Street (2003) aponta como
concepção de letramento “autônomo” porque hipoteticamente destituído
de ideologias.
Em uma alusão ao método brasileiro de alfabetização mais usado
entre as décadas de 40 a 90 no qual o foco era o desenvolvimento da
capacidade de decodificar sem preocupação com letramentos/leitura de
mundo, Freire (2005 [1996]) advoga que não basta saber ler que Eva
viu a uva. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu
contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com
esse trabalho. Enquanto a AESP entende conhecimento como commodi-
ty, ou seja, um produto ou mercadoria, forças contrárias ao movimento
compreendem conhecimento como parte integral da personalidade, o que
significa dizer que a escola contribui para nossa constituição cidadã, quer
isso seja explicitamente assumido ou não. Portanto, exigir neutralidade
é uma falácia.
A construção dessa arena bipartida – na qual as escolas seriam o mal
a ser contido e a AESP o bem protetor das vítimas indefesas (estudantus)
– tem sido feita com o uso de termos pejorativos como “manipuladorus”,
“criminoses”, “militantus”. A repetição de vocábulos dessa natureza é
indicativa de que sua proposta vai muito além da afixação de tal cartaz
e incentiva a denúncia, a difamação e a perseguição de professorus.
Em seu site (https://www.programaescolasempartido.org/) há inclusive
instruções de como filmar professorus e como fazer uma denúncia. Seu
perfil do Facebook é alimentado diariamente com delações, que geram
debates muitas vezes calorosos, como ilustra a Figura 3 – uma postagem
feita em dez de março de 2019, na qual a justificativa da inexistência de
neutralidade é comparada com apologias a estupros ou roubos.

109
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Figura 3 – Justificando a neutralidade

Fonte: Perfil do movimento no Facebook9

Notamos que, dos cinco comentários que aparecem na Figura 3,


quatro respaldam o movimento, tanto engendrando uma educação neu-
tra quanto corroborando as analogias de ataque à classe profissional. A
convicção de viabilidade de construção de currículos neutros sustenta
9 Acesso indisponível, como explicado na nota de rodapé 6

110
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

a exigência de uma educação bancária e da concepção de letramentos


autônomos, destituídos de valores axiológicos. Chama atenção a maneira
agressiva como alguns internautas comentam a postagem (“Se a (impos-
sibilidade da) neutralidade absoluta é desculpa para descaralhar de vez
[…]”) bem como suas certezas (“Se não exite (sic) neutralidade seremos
os primeiros a criá-los” ou “Eles vêem (sic) esses 2 casos como corretos
[...]”). Há um único comentário que questiona as denúncias feitas pelo
movimento, indicando seu viés partidário, ao questionar por que o mo-
vimento se ocupa em denunciar (supostos) abusos de um viés partidário
exclusivamente: “[…] Só vi pessoas apontando acertadamente que os
senhores apenas denunciam os abusos e supostos abusos dos esquerdistas
e não se interessam em divulgar o que acontece quando um professor
ancap resolver fazer o equivalente.”). Ao fazer isso, o internauta aponta
para a maneira enviesada como a AESP age de forma combativa contra
tudo o que é diferente das ideologias que a constitui, enrustida em seu
discurso de neutralidade e de defesa de estudantus indefesus.
Além da orientação partidária, ao homogeneizar e fixar grupos e
papéis sociais, a AESP atua dentro de uma catalogação de estereótipos
que obscurece a diversidade de possibilidades de existência. A título de
exemplo, selecionamos algumas postagens da associação em torno de
família e educação sexual. A primeira publicação que escolhemos (Figu-
ra 4) é de uma campanha da AESP em defesa de que as crianças sejam
educadas exclusivamente por suas famílias. Segundo o movimento e boa
parte de sus seguidorus (vide comentários na imagem), a educação das
crianças compete apenas a suas famílias, cabendo à escola um trabalho
estritamente técnico, instrumental, transmissivo, destituído de qualquer
caráter educacional-reflexivo. A campanha se alinha a um dos propósitos
da associação: combater a suposta usurpação – pelas escolas e peles profes-
sorus – do direito des pais sobre a educação religiosa e moral de sus filhes
(ESP, s.d.). Tal perspectiva só parece possível diante de uma hipotética
convicção de que todas as famílias seriam eticamente bem estruturadas e de
que as crianças seriam propriedade dos pais. Assim estariam camuflados os
sérios problemas sociais que o Brasil enfrenta, dentre os quais destacamos
a constituição patriarcal e classista de nossa sociedade.

111
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Figura 4 – Defesa dos direitos das famílias de educar sus filhes

Fonte: Perfil do movimento nas redes sociais10

Como se pode ver, a imagem da campanha é de uma família cons-


tituída por cinco pessoas brancas, às quais é possível atribuir raça, ida-
de, classe social, etnia, nação e até mesmo religião. Na parte de baixo,
vemos, além da logomarca da associação, dois slogans com os dizeres:
“Diga não à doutrinação” e “Basta – não à ideologia de gênero”. Em
uma sociedade em que valores são atribuídos às pessoas e as relações
de gênero patriarcais são reconhecidas como o centro de grande parte
da violência social, pleitear a favor da censura de diálogo em sala de
aula sobre questões dessa natureza indica, no mínimo, uma negação de
que a desigualdade começa no universo familiar e sustenta tal sistema
hierárquico que naturaliza a violência moral.
Localizamos tal campanha como parte de uma cruzada moral que
temos presenciado em nosso país, compreendida como uma reação de re-
cusa a mudanças nas relações de poder sob o disfarce de defesa de alguns

10 Acesso indisponível, como explicado na nota de rodapé 6.

112
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

princípios (ALMEIDA, 2017; RODRIGUES, 2017; MISKOLCI, 2018)


como os da família, tradicional diga-se de passagem. Como parte dessa
dinâmica, o termo “ideologia de gênero” foi engendrado por lideranças
religiosas católicas, em 1995, para “sintetizar o que compreendem como
divergência entre o pensamento feminista e seus interesses” (MISKOLCI,
2018, s.p.). Aos poucos, a expressão foi ganhando notoriedade e negati-
vidade, alcançando destaque com o reconhecimento legal da união entre
pessoas do mesmo sexo em 2010, na Argentina, e 2011, no Brasil. Quando
a AESP tomou essa bandeira para si, ganhou popularidade, contribuindo
para a construção de um espectro a ser combatido: uma hipotética doutri-
nação “marxista” kafkiana nas escolas, que envolveria uma agenda contra
a nação, a estrutura social e a família patriarcal. As ações do movimento,
especialmente denúncias nas redes sociais, forjam a compreensão de que
as escolas estariam contaminadas e teriam se transformado em espaços
político-partidários, cuja intenção principal seria lobotomizar estudantes
e ameaçar a democracia e a família tradicional11.
Na Figura 5 vemos uma denúncia contra uma escola em função do
trabalho com uma unidade de um livro de inglês, na qual são exploradas
diferentes formações familiares. De acordo com a AESP, a intenção da
unidade do livro seria a de destruição de um tipo de formação familiar
e a subversão de princípios cristãos. A presumida imparcialidade desta
análise parte de um olhar particular, o qual favorece uma constituição
específica e trata as demais como exceção. Pai, mãe e filhos é indicada
como a composição natural, sendo as demais entendidas como exceção.
Essa aparente neutralidade, que essencializa a família como um monólito
transferido de geração em geração, obscurece a opressão e o preconceito
contra outras organizações familiares. Ou seja, sob o rótulo de isenção,
temos um exemplo de olhar único e excludente, que mascara uma tenta-
tiva de manutenção de um status quo constitutivo da sociedade patriar-
cal e classista o qual, segundo Grosfoguel (2011) favorece a opressão/
exploração cultural, política, sexual, econômica e de gênero de grupos
subordinados por grupos dominantes.
11 Veja um exemplo em: http://escolasempartido.org/blog/os-alunos-estao-tao-doutrinados-ou-
melhor-lobotomizados/. Acesso em: 25 abr. 2020.

113
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Figura 5 – Denúncia contra trabalho sobre constituição familiar variada

Fonte: Perfil do AESP no Facebook 12

A acusação vista na Figura 5 é um exemplo da “linha abissal”


(SOUZA SANTOS, 2019), na qual a família patriarcal ficaria do lado do
que é entendido como correto, neutro e normal e qualquer outra consti-
tuição familiar estaria do lado do que é diferente e precisa ser evitado,
combatido ou, ao menos, invisibilizado. Essa denúncia de falsa ideolo-
gização não é isolada, conforme ilustra a Figura 6, na qual há mais uma
recriminação contra o trabalho com constituições familiares diversas. De
acordo com a AESP, a tal suposta destruição familiar está sendo realizada
com o uso de um “truque sujo” e uma “covarde manipulação subliminar”,
a qual estaria misturando questões diversas a fim de destruir a família
tradicional. O comentário do movimento imagina estar em curso um
projeto educacional de destruição de um tipo de constituição familiar,
concebido pelo movimento como se fosse natural e único, cabendo às
famílias a escolha ou não de apresentar às crianças outras formas.
12 Acesso indisponível, como explicado na nota de rodapé 6.

114
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Figura 6 – Denúncia contra o trabalho educacional a respeito de constituições familiares


múltiplas

Fonte: Perfil do AESP no Facebook 13

A repetição incessante de acusações como essas tem contribuído


para a construção de uma divisão entre o sistema educacional e a AESP,
constituída, de acordo com a descrição feita por elus, por famílias e
cidadãos unidos para combater a suposta doutrinação marxista e pro-
postas de destruição de princípios das famílias tradicionais. Parece-nos
evidente que não há nada de neutro em tais “denúncias”: elas partem de
pressupostos axiológicos bastante específicos, e defendem valores que
beneficiam certa parcela da população ao obscurecer as continuidades
entre o passado colonial e a colonialidade atual (GROSFOGUEL, 2011).
Com isso queremos dizer que a opressão/exploração cultural, política,
sexual, econômica e de gênero por certos grupos desloca outros grupos
para a invisibilidade, condição de existir que caracteriza, como vimos,
o “outro lado da linha abissal” (SOUZA SANTOS, 2019).
Segundo a visão do movimento, portanto, o sistema educacional que
deveria trabalhar com princípios universais e neutros está se ocupando
13 Acesso indisponível, como explicado na nota de rodapé 6.

115
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

de questões ideológicas alinhadas a partidos políticos específicos. Sob a


pretensa intenção de trabalho com diferentes perspectivas, o movimento
caracteriza certos modos de ver o mundo como sendo de esquerda. Assim,
criam-se espectros a serem destruídos: tudo o que é considerado ruim é
tratado como “de esquerda”, e precisa ser suprimido em busca de uma
suposta neutralidade. As denúncias em seu perfil costumavam ser diárias
conjecturando que as escolas deixaram de ser espaços privilegiados de
transmissão de conhecimentos válidos, técnicos, neutros, destituídos de
valor axiológico, e se transformaram em contextos político-partidários de
ataque a princípios democráticos e tradicionais por meio do que chamam
de “ideologia de gênero”, “marxismo cultural”, “comunismo” e “família
não tradicional”.
Entendemos que essa vinculação de tudo que é negativo à ideolo-
gia, e de ideologia ao que vem de uma orientação de esquerda (como
se a própria orientação não fosse também ideológica), juntamente com
suas ações de difamação e incentivo à denúncia e perseguição de pro-
fessorus, têm contribuído para ofuscar problemas reais da Educação
brasileira, reificando certas ideologias e ampliando o binarismo de
nossa sociedade (BEATO-CANATO; FABRÍCIO, prelo). O contra-
ponto a esse argumento, como vimos na seção anterior, é a perspec-
tiva de que somos constituídos por nossas experiências no mundo,
em práticas sociais e linguagens carregadas de sentidos e, portanto,
ideológicas. Assim, somos seres políticos e ideológicos (VOLÓCHI-
NOV, 1929). Importante lembrarmos sempre que o entendimento de
que somos seres políticos não significa a defesa de partidos políticos
específicos, mas sim, em termos aristotélicos, a compreensão de que
necessitamos viver em sociedade, o que implica agir no mundo com
responsabilidade e coletividade. Ao advogar que o ensino precisa ser
neutro e uma aula de língua não pode trazer temas como “família” em
suas diversas possibilidades de estruturação, o movimento se pauta
em uma compreensão de que língua seria uma entidade existente a
priori, um conjunto de regras a serem transmitidas e seguidas para que
a comunicação se efetive, ou seja, completamente dissociada de suas
dimensões sociais, culturais, políticas.

116
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Por suas ações de encorajamento de filmagens e delações, a AESP


tem sido denunciada por estudioses, professorus e parlamentarus progres-
sistas como um movimento que defende o cerceamento nas escolas, o
que Ramos (2017) compreende como uma escola partida entre educação
e política, como se de um lado tivéssemos instrução e neutralidade e de
outro educação, que seria realizada pela família. Para a autora, o debate
pautado em conhecimento sistematizado e a busca por uma compreen-
são crítica da sociedade são inerentes ao ato pedagógico. Longe de se
constituírem como doutrinação ou escola com partido, esses processos
são intrínsecos à formação humana de educandes,

Isto porque, se educação e política podem ser vistas como


“irmãos siameses”, isto é, como uma relação de unida-
de, mas não de identidade, ao tentar separá-los, querem
sacrificar a política, supostamente salvando a educação.
Porém, este ser sobrevivente, como não pode viver sem
a unidade que o constitui, retém a face desfigurada do
irmão sacrificado: a doutrina conservadora (RAMOS,
2017, p. 77).

Por concordarmos com Ramos, recebemos com entusiasmo alguns


julgamentos contrários ao Projeto de Lei Escola Sem Partido ocorridos
enquanto escrevíamos e revisávamos esse capítulo. No primeiro, o su-
premo considerou inconstitucional uma lei municipal que proibia debates
sobre ideologia de gênero14 em função de sua violação, de modo “formal
e material”, de princípios e dispositivos constitucionais; no segundo, o
Projeto de Lei Escola Sem Partido foi arquivado pelo mesmo motivo15.
Embora saibamos que as ações da AESP já deixaram lastros em nossa
sociedade e, possivelmente, o grupo continue atuando, comemoramos
tais veredictos, porque procuram assegurar a liberdade de cátedra e um
ensino laico, plural, democrático.
14 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/04/stf-forma-maioria-para-
declarar-inconstitucional-lei-que-veta-discussao-de-genero-nas-escolas.shtml?origin=uol.
Acesso em: 25 abr. 2020.
15 Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-extincao-judicial-do-escola-sem-partido/ Acesso
em: 12 jul. 2020.

117
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Algumas palavras finais

Nesse texto, criamos certas inteligibilidades sobre as ações da AESP


e a engendramos como uma defesa do absolutismo, pautada em certas
compreensões de verdades que evidenciam sua tentativa de ofuscamento
da pluralidade própria ao ser humano. Para isso, após uma discussão
sobre os sentidos de letramento e os efeitos da colonialidade em nossas
práticas, avaliamos o site do Programa Escola Sem Partido e seleciona-
mos postagens da associação em seu perfil do Facebook, especialmente
relacionadas ao trabalho com o tema família.
A problematização sobre as estruturas familiares tanto em âmbito
jurídico (no que concerne o direito de família) quanto educacional (no
que tange às diferentes constituições de família abordadas em livros
didáticos e salas de aula) nos parece extremamente importante já que
muitas vezes o senso comum exclui ou discrimina constituições fami-
liares consideradas “anormais” mas que simplesmente fogem do padrão
de normalidade aceito por um determinado grupo, ou seja, localizam-se
do outro lado da “linha abissal”. A repetição incessante de uma consti-
tuição familiar única faz com que ela se naturalize e seja compreendida
por boa parte da sociedade como a única possível, ou ao menos como a
única natural/normal, excluindo todos os demais arranjos familiares e
causando sofrimento, especialmente, para quem se sente excluíde, mas,
muitas vezes, não tem consciência de como essa exclusão é construída.
Essa interpretação de família como um monólito constituído indis-
cutivelmente por homem, mulher e filhos, parte do entendimento de que
práticas sociais seriam autônomas e homogêneas, ou seja, destituídas de
valores, de avaliações ideológicas. Desse modo, se aproxima bastante
da visão de mundo que pauta também a perspectiva de que as línguas
funcionariam como códigos e seriam neutras, independentes das situações
de interação e das pessoas que existem nelas. Esse tipo de orientação
para a neutralidade do mundo (e das coisas do mundo) se pauta em uma
determinada perspectiva como a única possível, fortalecendo, assim, uma
forma cultural específica e engendrando a ideia de que outras possibili-
dades são falhas. A inadequação a certo padrão normativo (seja ele em

118
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

referência à estrutura social ou à linguagem) é entendido como prejudicial


à coletividade, promovendo a busca pela adequação, pelo encaixe dentro
do que é apontado como padrão.
Diante desse quadro que gera sofrimento, preconceito e exclusão,
cada vez mais, as escolas têm assumido a responsabilidade de problema-
tizar narrativas monolíticas como as relacionadas ao conceito de família,
constituindo-se como espaço em que as certezas e invisibilidades são
abaladas, buscando contribuir para a diminuição do sofrimento humano.
Nesse sentido, o espaço escolar tem se constituído como espaço demo-
crático privilegiado de ações remediadoras e tem sido cada vez mais
comum termos, nos livros didáticos, por exemplo, discussões sobre
a constituição da família. Entretanto, o trabalho com temáticas como
essa tem contribuído para a insatisfação de uma parcela da população
que se beneficiava com o apagamento da pluralidade. Essa insatisfação
tem dividido a população, exigindo de nós maior atenção e esforço para
remediar a situação e valorizar a pluralidade característica da sociedade.

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120
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Colaboração crítica na formação superior


em tempos de resistência: questões
epistemológicas e teórico-metodológicas

Maria Cecília C. Magalhães1


Maria Otilia G. Ninin2
Viviane L. S. Carrijo3

Este capítulo discute a abordagem epistemológica e teórico-metodo-


lógica que apoia a organização da linguagem em discussões com foco no
conceito de agência, em uma disciplina de pós-graduação em Linguística
Aplicada que, neste capítulo, é definida como crítica, transgressiva, deco-
lonial e apoiada em bases epistemológicas do Sul Global (cf. SANTOS,
2016; MIGNOLO; WALSH, 2018; PENNYCOOK; MAKONI, 2020).
Pesquisadores como Santos e Pennycook e Makoni apontam que
o conceito de Sul Global, metaforicamente, refere-se ao sofrimento hu-
mano causado pelo capitalismo e colonialismo, com foco na luta contra
as desigualdades sócio-políticas, econômicas e educacionais. Todavia,
tem, também, um foco geopolítico, uma vez que a grande maioria dos
que estão à margem e vivem na pobreza estão em países do hemisfério
sul. Nas palavras de Pennycook e Makoni (2020, p. 4-5), “O Sul episte-
mológico e o Sul geográfico se sobrepõem parcialmente, principalmente
1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Programa de Estudos Pós-Graduados
em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL-PUC-SP), CNPq.
2 Universidade Paulista-SP (UNIP). Pós-Graduação Lato Sensu (UNIP-SP). COGEAE-PUC-SP.
3 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Programa de Estudos Pós-Graduados
em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL-PUC-SP).

121
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

no que diz respeito aos países submetidos ao colonialismo histórico”


[tradução nossa]4.
Para esses pesquisadores, a linguagem e a Educação têm papel cru-
cial em qualquer projeto decolonial, uma vez que criam possibilidades
para o processo de constituição de sujeitos como indivíduos críticos e
questionadores, constituídos em experiências vividas em comunidades/
coletivos na relação com outros participantes. Nessa direção, focali-
zando o diálogo entre professores e alunos como práxis na organização
colaborativo-crítica das relações, Freire (1987 [1974], 1997, 2014)
discute o potencial da ação dialógica que, intencionalmente, objetiva
transformar os modos próprios de agir por meio de ações questionadoras.
Assim, trata-se de questionar valores, temas e conceitos opressores que
focalizam o indivíduo em lugar do coletivo, e a linguagem como linear,
unidirecionada e a-histórica, voltada à transmissão de conhecimentos
colonizados e encapsulados no contexto escolar, apenas.
Esse questionamento é central à educação, uma vez que, como
salienta Maldonado-Torres (2007, p. 243), a colonialidade refere-se a
padrões de poder que definem cultura, trabalho, relações intersubjetivas,
currículo, produção de conhecimento e pesquisas. Para esse pesquisador,

a colonialidade sobrevive ao colonialismo. É mantida viva


nos livros, nos critérios de desempenho acadêmico, nos
padrões culturais, nos sentidos comuns, na autoimagem
das pessoas, nas aspirações de si, e tantos outros aspectos
de nossa experiência moderna. De certa forma, como su-
jeitos modernos, respiramos colonialidade o tempo todo
e todos os dias [tradução nossa]5.

4 Original: “The epistemological South and the geographical South partially overlap, particularly
as regards those countries that were subjected to historical colonialism” (p. 4-5).
5 Original: “coloniality survives colonialism. It is maintained alive in books, in the criteria for
academic performance, in cultural patterns, in commonsense, in the self-image of peoples, in
aspirations of self, and so many other aspects of our modern experience. In a way, as modern
subjects we breath coloniality all the time and everyday” (p. 243).

122
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Também nas palavras de Maldonado-Torres, a partir de uma edu-


cação consciente, comprometida com uma perspectiva decolonial, “as
disciplinas e seus métodos aparecem como tecnologias a serem desman-
teladas, criticadas”, de modo que possam ser usadas em um projeto que
não focalize a acumulação do conhecimento (MALDONADO-TORRES,
2006b, p. 94).
Essa é uma questão central neste capítulo que, como já apontamos,
aborda o conceito de agência e sua relevância para a transformação da
sociedade e da educação, com base em pesquisadores como Stetsenko
(2017, 2019), Liberali (2020), Liberali et al. (prelo), Magalhães (2019),
Magalhães e Fidalgo (2019), Ninin e Magalhães (2017) que, entre ou-
tros, discutem a importância chave desse conceito para a transformação
da sociedade e dos interagentes envolvidos. Central à base teórica e à
abordagem metodológica da disciplina, o conceito de agência apoia a
constituição colaborativo-crítica dos sujeitos como agentes políticos e
ativistas na transformação da sociedade, de si mesmos e de seus projetos
de pesquisa. Essas são questões fundamentais para a construção das rela-
ções colaborativo-críticas entre os participantes da disciplina ministrada
na pós-graduação, voltadas às ações do pensar, sentir, conhecer e agir,
orientadas pelos conceitos epistemológicos discutidos ao longo do curso.
Com base nas questões acima apontadas, este capítulo discute a
formação em contextos acadêmicos, enfatizando a necessidade de se
pensar a construção de relações que questionem conceitos coloniais
e liberais, por meio de um movimento sociopolítico que problematize
valores coloniais, há muito apoiando o ensino-aprendizagem e as po-
líticas públicas nas escolas e universidades brasileiras. Trata-se de um
movimento que objetiva desconstruir e desorganizar as bases teórico-
metodológicas, sociais e políticas que apoiam uma visão colonial de
país, deixando emergir fortemente, nas discussões, na Universidade,
questões relacionadas a meio ambiente, saúde, raça, gênero e educação
para a cidadania, voltadas aos menos favorecidos.
Nessa direção, procura revisitar e discutir novos modos de pensar,
conhecer, sentir e agir ao se planejar pesquisas voltadas à organização

123
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

crítico-colaborativa da linguagem, apoiadas na construção de relações


dialéticas entre todos os participantes, como apontam as obras seminais
de Freire: Pedagogia do Oprimido (1974) e Pedagogia da Esperança:
um Reecontro com a Pedagogia do Oprimido (1997). Objetiva, assim,
a desconstrução de relações e modos de agir hierárquicos que enfatizam
a individualidade, o silenciamento e as questões de poder.
Este capítulo organiza-se a partir de uma tessitura de conceitos teó-
ricos e discussões da práxis teórico-metodológica organizativa do curso.
Assim, a seção 2, de caráter metodológico, apresenta a organização da
disciplina Linguagem e Constituição de Educadores Críticos, na pós-
graduação em Linguística Aplicada. A seção 3 dá ênfase aos conceitos
teóricos que orientam a proposta da disciplina e, na seção 4, a ênfase
recai no imbricamento dos conceitos de colaboração crítica, agência e
decolonialidade, a partir de alguns excertos selecionados das interações
ocorridas ao longo do curso. Os registros produzidos caracterizam-se
como uma discussão teórico-prática, de modo a provocar um diálogo
leitor-texto-autor-pesquisador-participante. Ao final, destacamos algumas
considerações, também provocativas no sentido de repensarmos o papel
de uma disciplina da pós-graduação que se quer transgressiva e ativista.

Revisita ao contexto da pós-graduação: a disciplina


Linguagem e Constituição de Educadores Críticos

Oferecida no programa de estudos pós-graduados em Linguística


Aplicada e Estudos da Linguagem, na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, a disciplina Linguagem e Constituição de Educadores
Críticos tratou de situações-problema atravessadas pela complexidade
dos contextos de cada um dos alunos participantes, orientando-se pelo
rompimento com as capsulas que envolvem as diversas áreas do saber, em
busca de uma construção coletiva, crítica, que permitisse compreender a
dinamicidade dos contextos educacionais e a práxis teórico-metodológica
constitutiva dos participantes e de seus objetos de pesquisa.
Metodologicamente, a disciplina orientou-se por uma perspectiva
colaborativo-crítica (MAGALHÃES, 2019), transmetodológica (SOUSA,

124
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

2018, p. 109), uma vez que buscou, a partir da historicidade dos sujeitos
e de seus contextos, possibilidades de ruptura com uma organização
monológica, a-histórica, a-crítica e a-política da linguagem. O trabalho
orientou-se por discussões com ênfase nas intervenções formativas
nos contextos pesquisados, problematizando fatores sociais, políticos,
culturais, históricos, no sentido de desconstruir percursos naturalizados
de pesquisa, para compreendê-los como “contingentes, dinâmicos e
produzidos no particular, em vez de serem entendidos como dotados de
um status ontológico anterior” (PENNYCOOK, 2006, p. 71).
Como destacado por Pennycook (2006, p. 69-70), a perspectiva críti-
ca da LA, refutando a neutralidade, não poderia negar questões de cunho
político e de responsabilidade social; não poderia ignorar “as muitas vozes
que reivindicam visões alternativas do mundo”, presentes nos contextos
educacionais em que atuam os alunos participantes da disciplina.
A ementa da disciplina Linguagem e Constituição de Educadores
Críticos destaca, especificamente, como um de seus objetivos, “abordar
a constituição de contextos de pesquisa e formação que questionem a
manutenção de hierarquias quanto a relações lineares e a-históricas da
linguagem que, usualmente, organizam o currículo e papéis de aluno e de
professor, de coordenador, de diretor, de pesquisador, (im)possibilitando
a constituição de profissionais agentes”.
Desenhada metodologicamente a partir de uma perspectiva trans-
gressiva, que busca romper limites (FREIRE, 1987 [1974]), a disciplina
procurou destacar as dimensões política (no plano do desejar trans-
formações, do revisitar a quem os interesses servem), ética (no plano
das relações de equidade, de justiça, de caráter subjetivo e valorativo),
epistemológica (no plano da reflexão crítica em direção aos fundamentos
para a práxis) e estética (no plano das ações movidas por sentimentos,
pela sensibilidade ao que emerge do contexto) das pesquisas realizadas
pelos participantes, para compreendê-las como processos coletivos em
situações-limite a serem enfrentadas e superadas.
A partir de dezesseis encontros semanais de três horas cada,
organizados por meio de discussões orientadas por leituras teóricas

125
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

(e.g., STETSENKO, 2017, 2019; VIANNA; STETSENKO, 2019; VI-


RKKUNEN, 2006; SMYTH, 1992; JONES, 2018; EDWARDS, 2007;
NININ; MAGALHÃES, 2017; FREIRE, 1987 [1974] e outros) e seu
imbricamento às atividades práticas, buscou-se contemplar na disciplina
uma agenda de pesquisa informada e transgressiva, de modo a “marcar a
intenção de transgredir, tanto política como teoricamente, os limites do
pensamento e ação tradicionais” (PENNYCOOK, 2006, p. 74). Nessa
direção, as atividades desenvolvidas, de cunho reflexivo, questionaram
os papéis dos participantes, “interrogando a lei, apontando não só os
específicos e, frequentemente, arbitrários mecanismos de poder (…),
mas também seu envolvimento com aquilo que proíbe” (JERVIS, 1999,
p. 4 apud PENNYCOOK, 2006, p. 75). Objetivou-se, assim, desafiar
os limites estáveis comumente emergentes de disciplinas em cursos de
pós-graduação, para produzir novos modos de pensar os contextos de
pesquisa dos alunos participantes.
Atividades em grupo, consideradas as proximidades por temáticas
de pesquisa, constituíram a geração de registros para análise. Desses,
foram escolhidos para discussão neste capítulo os correspondentes às
aulas em que se discutiu o texto de Stetsenko (2019), Radical-Trans-
formative Agency: Continuities and Contrasts With Relational Agency
and Implications for Education, que trata do conceitos de agência numa
abordagem política, buscando “superar ideologias de adaptação passi-
va e aquiescência com a ordem existente das coisas e do mundo como
ele provavelmente ‘é’” [tradução nossa]6 (STETSENKO, 2019, p. 1),
confrontando-o aos textos de Virkkunen (2006), Dilemmas in building
shared transformative agency; de Edwards (2007), A relational agency in
professional practice: a CHAT analysis; e de Ninin e Magalhães (2017),
A linguagem da colaboração crítica no desenvolvimento da agência de
professores do Ensino Médio em serviço.
As discussões de alguns excertos, à luz dos conceitos de colabo-
ração crítica, agência e decolonialidade, são orientadas ao modo como
emergem, das interações, posturas de superação das situações-limite.
6 Original: “(…) overcome ideologies of passive adaptation to, and acquiescence with, the
existing order of things and the world as it presumably ‘is’” (p. 1).

126
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Em diálogo: linguagem da colaboração crítica, agên-


cia e decolonialidade

Esta seção discute, prioritariamente, a linguagem da colaboração


crítica como uma organização dialética pensada para intervir em contex-
tos educacionais, articulada aos conceitos de agência e decolonialidade,
de forma a questionar práticas alienantes e coloniais do passado e do
presente, apoiadas em valores, relações, questões de poder e conceitos
educacionais herdados de um mundo colonizado e injusto. Como apontam
Baptista e López-Gopar (2019, p. 3), há necessidade de uma “constante
reavaliação dos espaços e lugares teóricos, haja vista o alcance de pres-
supostos erigidos na racionalidade ocidental que ainda nos atravessam
enquanto sujeitos historicamente situados”.
Trazendo ao foco a organização da linguagem, Stetsenko (2019),
com base nas discussões de Vygotsky, por sua vez apoiado na dialética
marxista, aponta como esta possibilita ações colaborativo-críticas das
pessoas, transformando suas comunidades de ação, o mundo, suas vidas
e a de outros por meio de práticas transformadoras.
Como apontam Fidalgo et al. (2020), entre outros pesquisadores,
colaborar requer a criação de conflitos cognitivos e afetivos que, indis-
sociáveis entre si, possam levar à organização de diálogos que Freire
(1987 [1974]) denomina críticos, voltados à transformação de modos de
pensar, conhecer, sentir, ser e agir no mundo quanto a questões de poder,
opressão, injustiças, desigualdades. Dessa forma, embora colaborar possa
remeter a diferentes focos, conforme o objetivo de cada pesquisa, proje-
to ou discussão, para ser transformadora, a ação colaborativa necessita
envolver, prioritariamente, um foco crítico de questionamento do status
quo e dos interesses a que servem as ações. Segundo Mateus (2013, p.
9), trata-se de uma organização que “amplia o potencial de participação
democrática ao permitir que as diferenças sejam discutidas abertamente
e as posições revisadas” e transformadas.
O papel da “escuta responsiva” do outro no diálogo (em termos
bakhtinianos) é fundamental nessa organização crítico-colaborativa da

127
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

linguagem, uma vez que os participantes (alunos, professores e pesqui-


sadores) necessitam ouvir, considerando a singularidade do interlocutor,
as colocações de quem fala, para poderem ser responsivos a elas. Seme-
lhantemente, o papel do professor é, como aponta Medina (2011), criar,
de forma colaborativa, intervenções que possibilitem aos interagentes
questionarem os sentidos apresentados na relação com colegas e pro-
fessor para que diferenças sejam discutidas politicamente e as posições
retomadas e transformadas, coletivamente. Vale ressaltar que “todos os
fenômenos em que a linguagem é parte central têm vértices políticos,
econômicos, culturais, de gênero e de (i)niquidade social” (BAPTISTA;
LÓPEZ-GOPAR, 2019, p. 22).
Liberali et al. (2020, prelo) apontam a importância de tomar o
coletivo como central na produção e/ou questionamento da realidade,
para que novas formas de agir no mundo sejam compartilhadas e todos
os pontos de vista, conceitos, ideias de cada participante sejam respei-
tados, valorizados, mas também questionados, para que transformações
possam ocorrer.
Para os autores, três questões são centrais à colaboração crítica: 1)
escutar o sujeito com o qual se interage em condições de igualdade, para
que este possa dizer o que pensa e acredita, ser ouvido e valorizado, inde-
pendentemente de sua posição hierárquica, política ou epistemológica; 2)
compreender o outro como um sujeito singular, único, que se constituiu
nas experiências vividas, mesmo que não compartilhemos das mesmas
ideias; e 3) verificar se o tema em discussão é adequado à crítica.
Em contextos educacionais, essa organização da linguagem pela
colaboração crítica rompe com valores coloniais da centralidade do poder
na figura do professor, um movimento político que, apoiado nas necessi-
dades educacionais, questiona poderes tradicionalmente hierárquicos nas
escolas e nas salas de aula e propõe o desenvolvimento de relações em
que professor e alunos são formadores e cocriadores do espaço escolar.
Essas escolhas, na organização de contextos decoloniais de ensino-
aprendizagem, criam um ambiente para interações contra-hegemônicas
orientadas pela linguagem da argumentação, voltadas à colaboração.

128
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Como salienta Liberali (2019), trata-se de uma linguagem usada não


para destruição dos oponentes, mas para compartilhar, com base em
justificativas, apresentação de novos significados e bases teóricas; para
possibilitar o questionamento de epistemologias, valores e interesses na
organização de pesquisas. Em âmbito de pós-graduação, a organização
da linguagem pela colaboração crítica é crucial para ampliar o escopo
do conhecimento acadêmico, muitas vezes restrito ao conteúdo teórico.
Transformar esse contexto é um dos desafios da Linguística Aplicada e
demanda pensamento e ação decoloniais, visando à não reprodução ou
aplicação teórica.
Nessa direção, para Mignolo e Walsh (2018, p. 17), é preciso “tornar
visível, abrir e avançar perspectivas e posicionamentos, radicalmente,
distintos” que desnudam o pensamento colonial, visto como única forma.
Pennycook e Makoni (2020), por sua vez, argumentam que educação
decolonial é muito mais do que acrescentar ao currículo produções de
pesquisadores ou ativistas do Sul. Não se trata de banir da ementa, por
exemplo, da pós-graduação, estudos do Norte, mas de repensar como o
currículo pode facilitar uma abordagem multicultural do conhecimento,
também proposto por Santos (2012), como ecologia de saberes. Para
além desse aspecto curricular, encontramos em Mignolo e Walsh (2018)
a noção de decolonialidade como “práxis decolonial”, isto é, a vivência
constante, nas diferentes atividades humanas, de uma atitude decolonial.
Neste capítulo, defendemos uma educação em que a práxis da de-
colonialidade não se reduz à busca por produtos, mas é compreendida
como movimento contínuo de desenvolvimento dos sujeitos, que com-
partilham reflexão crítica para percepção e questionamento dos saberes
coloniais, em escolhas pedagógicas, curriculares e políticas presentes
dentro e fora do ambiente educacional. Em consonância com as questões
epistemológicas e metodológicas da colaboração crítica e do Sul Global,
na educação decolonial, os envolvidos não somente refletem e questionam
valores coloniais, como também criam intervenções colaborativas para
desenvolvimento de novos modos de pensar, ser e agir na vida social,
política e cultural.

129
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Há, portanto, uma necessidade premente de se criar um “campo


epistemológico” que, como ressalta Santos (1996), questione a apli-
cação técnica da ciência, colocando-a no cerne do processo de ensino-
aprendizagem. Há necessidade de um modelo alternativo de aplicação
edificante da ciência que deveria se pautar por diversas características,
dentre elas, a de que

a aplicação é, assim, um processo argumentativo e a ade-


quação, maior ou menor, da aplicação reside no equilíbrio,
maior ou menor, das competências argumentativas entre
os grupos que lutam pela decisão de um conflito (…)
(SANTOS, 1996, p. 20).

Como essa concepção está ligada à necessidade de uma atitude


decolonial contínua por parte dos envolvidos, constituídos na sociedade
perpassada pela colonialidade histórica, há conflitos internos e entre
as relações instauradas nesse processo de reflexão, questionamento e
intervenção colaborativa. Nessa direção, Medina (2011), apoiado na
epistemologia de resistência foucaultiana, ao descrever o trabalho com
intervenções críticas que venham a ter efeitos transformadores, ressalta
que as discussões necessitam uma cuidadosa organização. Nas palavras
do autor,

[…] intervenções críticas que rompam e interroguem as


hegemonias epistêmicas e as perspectivas tradicionais (por
exemplo, histórias oficiais, interpretações padrão, signi-
ficados excludentes ossificados, etc.) requerem o difícil
trabalho de mobilizar públicos dispersos e marginalizados
e de explorar o potencial crítico de suas experiências e me-
mórias abatidas (MEDINA, 2011, p. 11, tradução nossa)7.

7 Original: “critical interventions that disrupt and interrogate epistemic hegemonies and mains-
tream perspectives (e.g. official histories, standard interpretations, ossified exclusionary
meanings, etc.) (…) involve the difficult labor of mobilizing scattered, marginalized publics
and of tapping into the critical potential of their dejected experiences and memories” (p. 11).

130
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Para esse pesquisador, os saberes subjugados são invisíveis e


possibilidades de resistência passam despercebidas e necessitam da or-
ganização de ações críticas que envolvam relações colaborativas entre
pesquisadores e participantes da pesquisa, porque estes últimos, por si
próprios, podem não ser capazes de desestabilizar o status quo epistêmi-
co. Para isso acontecer, é necessário mobilizá-los de modo que tragam à
discussão práticas passadas em curso das experiências por eles vividas.
Essas questões discutidas por Medina são extremamente relevantes
ao contexto educacional, quanto à organização de atividades críticas que
possibilitem o compartilhamento de novos significados voltados a pen-
sar, sentir, conhecer, agir. Assim, criar contextos crítico-colaborativos,
que possibilitem a coparticipação entre todos em um diálogo crítico,
em contextos educacionais é, como aponta Medina, bastante complexo,
pois, necessariamente, envolve tensões e riscos na colocação de pontos
de vista, ideias e comentários.
As questões acima foram fundamentais para a organização teórico-
metodológica da disciplina Linguagem e Constituição de Educadores
Críticos, na discussão do conceito de agência – quando imbricado ao
conceito de decolonialidade –, apoiadas em textos que, diferentemente,
abordam o conceito em foco, centralmente importante à compreensão
e transformação dos modos de agir no mundo dos participantes. Foram
também focalizados os textos de Edwards (2007), Engeström e Sannino
(2011), além dos já citados anteriormente – Ninin e Magalhães (2017),
Stetsenko (2017, 2019) e Virkkunen (2006) –, que apresentavam dife-
rentes focos na discussão, todos, no entanto, apoiados em bases sócio-
histórico-culturais.
A escolha do conceito de agência, discutido na disciplina, foi,
como também salienta Stetsenko (2017, 2019), motivada pelo interesse
revelado, especialmente na última década, por pesquisadores da área
educacional de base sócio-histórico-cultural. Como discutem Ninin e
Magalhães (2017), a agência, apoiada nessa base epistemológica, não
pode ser entendida como qualquer ação do sujeito, mas como ações
intencionais e conscientes, que estejam relacionadas a necessidades e

131
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

interesses coletivos dos participantes e sejam transformadoras do status


quo e de modos de agir no mundo. Discutimos, a seguir, resumidamente,
as diversas abordagens do conceito focalizado nas discussões.
Virkkunen (2006) discute a agência transformadora com base nas
discussões de Engeström (2005) quanto à Pesquisa de Desenvolvimento
do Trabalho (Developmental Work Research), uma metodologia interven-
cionista que visa estimular e apoiar a agência de profissionais na análise
e transformação do sistema de uma atividade conjunta. O conceito de
agência transformadora, nesse contexto, tem lugar “quando um grupo
de pessoas procura, colaborativamente, por uma nova forma para uma
atividade produtiva em que estão engajados” (VIRKKUNEN, 2006, p. 43,
tradução nossa)8, rompe com o quadro de ação dado e toma a iniciativa de
transformá-lo. Para Virkkunen, a colaboração para o desenvolvimento de
um novo conceito é um dos principais dilemas envolvidos na construção
da agência transformadora, uma vez que envolve a relação entre a agência
individual e a constituição de uma agência compartilhada transformadora.
As discussões de Engeström (2011) e Engeström e Sannino (2011)
focalizam a agência transformadora, entendida como a capacidade dos
sujeitos para, conscientemente, transformar sua atividade profissional de
modo a discutir questões complexas em comunidade. Nesse contexto, a
agência transformadora “emerge das manifestações das contradições, ou
seja, dos conflitos e dilemas vivenciados pelos sujeitos, quando envolvi-
dos com atividades coletivas” (NININ; MAGALHÃES, 2017, p. 628).
Para Engeström (2013), é importante entender agência como um conjunto
específico de ações que, potencialmente, desencadeiam transformações
no âmbito do coletivo.
Diferentemente, a discussão de Edwards (2007) focaliza a agência
relacional como a capacidade do sujeito participante, em um coletivo, de
oferecer e solicitar apoio a outros, levando em conta seus posicionamentos
nas interações. Nessa direção, as ações dos sujeitos ocorrem sempre na
relação com as ações de outros. Nas palavras de Edwards,

8 Original: “When a group of people (…) search collaboratively for a new form for the productive
activity in which they are engaged” (p. 43).

132
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

o conceito [agência relacional] se destina a captar uma


capacidade do sujeito para alinhar os pensamentos e ações
com os dos outros, para interpretar aspectos do mundo e
para agir e responder a essas interpretações. Em termos da
Teoria da Atividade Histórico-Cultural, é a capacidade de
trabalhar com os outros para expandir o objeto com o qual
se está trabalhando, para aceitar a atribuição de sentido
de outros e para aproveitar os recursos que eles oferecem
ao responder o que lhes faz sentido (EDWARDS, 2007,
p. 4, tradução nossa)9.

Ninin e Magalhães (2017) discutem a agência crítico-colaborativa,


sendo foco das autoras, prioritariamente, a relação entre participantes,
no contexto educacional, como essencial ao desenvolvimento de novos
modos críticos de pensar e agir. Todavia, embora ampliem a compre-
ensão de agência como modos intencionais, colaborativos e críticos de
agir, uma vez que estão apoiadas em um quadro de pesquisa educacional
crítica, voltada à transformação dos contextos, da sociedade, do outro e
de si mesmos (MAGALHÃES, 2011, 2012; MAGALHÃES et al., 2014),
as pesquisadoras não abordam explicitamente questões relacionadas
ao agir no mundo. Seu foco recai na ação dos professores em direção
à transformação da sala de aula a partir da organização colaborativo-
argumentativa da linguagem.
Avançam ao envolver a discussão dos conceitos de colaboração e
de contradição na organização dialética da linguagem, nas relações em
contextos coletivos, o que possibilita o entrelaçamento das vozes dos
participantes na produção de novos modos de ver, conhecer, pensar,
sentir e agir, bem como a apropriação de recursos que possibilitem uma
ação crítica transformadora na escola e na sociedade, e dos próprios
participantes, como resultado desse processo.

9 Original: “the concept is intended to capture a capacity to align one’s thoughts and actions
with those of others to interpret aspects of one’s world and to act on and respond to those
interpretations. In CHAT terms it is a capacity to work with others to expand the object that
one is working on by bringing to bear the sense-making of others and to draw on the resources
they offer when responding to that sense-making” (p. 4).

133
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Stetsenko impulsiona a discussão do conceito de agência, sa-


lientando seu caráter transformador e radical (radical-transformative
agency). Questiona abordagens de agência com foco relacional, apenas,
salientando que, embora esse seja um foco importante e necessário, há
necessidade de novas compreensões que abordem explicitamente visões
políticas e ativistas e que desafiem o status quo. Discute agência como
uma característica do papel social e transformador do ser humano, em
práticas sócio-históricas nas comunidades em que age. A agência está,
assim, relacionada ao desenvolvimento de capacidades de participação
nas comunidades, apoiada em ferramentas culturais transformadoras e
coletivamente inventadas.
Para Stetsenko (2019, p. 7), agência é uma característica inalienável
do ser humano saber-ser-fazer, definida como:

(…) uma capacidade situada e formada coletivamente de


pessoas, enquanto agentes de práticas sociais, da história
e do próprio mundo – cada pessoa como um membro de
uma comunidade que ao mesmo tempo age a partir de
uma posição e postura únicas em determinados dilemas
e conflitos da comunidade – para correalizar o mundo e
a si próprios, desafiando o status quo existente e contri-
buindo para as práticas sociais da humanidade com um
horizonte particular de possibilidades à vista. É importante
ressaltar que essa habilidade é contingente no domínio de
ferramentas culturais para ação transformadora e ativismo,
por meio da participação e contribuição nos processos e
práticas inerentemente sociais e coletivos de comunidades
humanas [tradução nossa]10.

10 Original: “Agency is conceptualized as a situated and collectively formed ability of people, qua
agents of social practices, history, and the world itself—each person as fully a community mem-
ber who at the same time is acting from a unique position and stance on a given community’s
predicaments and conflicts—to co-realize the world and themselves while challenging the
existing status quo and contributing to social practices of humanity with a particular horizons
of possibilities in sight. Importantly, this ability is contingent on the mastery of cultural tools
for transformative action and activism through participating in and contributing to the inherently
social, collective processes and practices of human communities” (p. 7).

134
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Retomando a trajetória da disciplina Linguagem e Constituição de


Educadores Críticos, o que se pretendeu ao discutir diferentes posições a
respeito do conceito de agência foi possibilitar aos participantes do curso
uma visão crítica desse conceito e de suas consequências nos contextos
de pesquisa, além de favorecer um movimento orientado – da consciência
ingênua (FREIRE, 1997) à consciência crítica – em direção à decolonia-
lidade no campo da pesquisa e nas práticas educativas, de modo geral.

Em diálogo: teorias e vivências contextuais

Nesta seção, a partir da discussão de alguns excertos, a ênfase será


dada às interlocuções geradas ao longo do curso, para exemplificar o
imbricamento entre contextos reais dos participantes e o modo como
discutem/compreendem/relacionam conceitos teóricos, visando à orien-
tação de suas ações de pesquisa.
Uma das discussões ocorridas em aula remete à compreensão do
conceito de agência pelos participantes, que nos permite perceber a
presença da colonialidade/decolonialidade. As discussões de M, C e A
(alunos participantes), provocadas por P (professoras do curso) sobre o
modo como Virkkunen conceitua agência e sobre a relação entre esse
conceito e os demais discutidos, revela a compreensão de uma organi-
zação de sala de aula e de ação em contextos coletivos. Revela, ainda,
posicionamentos mais e menos voltados à perspectiva colonial das prá-
ticas de pesquisa/acadêmicas.

Excerto 1
M: Eu gostei muito do texto do Virkkunen… Eu gostei muito do texto
dele, eu gostei muito dos exemplos que ele trouxe. E vi muita aplicabi-
lidade no que ele falou, nos exemplos daqueles esquemas (…) usando
a teoria da atividade, trazendo do individual pro coletivo colocando as
duas possibilidades do individual para o coletivo. Eu achei muito, muito
rico… assim, eu fiquei bastante contente de ter lido e até de esse texto
me proporcionar algumas ideias de trabalho, sabe?
P: Isso… mas se a gente pensar nos três textos… Stetsenko como

135
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

base, há várias maneiras de você trabalhar agência. (…) E se come-


çássemos por aí? Já que você trouxe o do Virkkunen, então… como é
que ele foca a agência?
M: A impressão que eu tenho é que ele traz a agência de uma forma
onde ele também trabalha com… é… ele traz exemplos muito de em-
presas de coisas muito ligadas ao mundo empresarial (…) A impressão
que me dá é que a agência para ele tem muito a ver com a prontidão…
sei lá se eu posso usar essa palavra… prontidão em resolução de proble-
mas, ajudar na prontidão na resolução dos problemas… e aí, é… esse
caminho que ele faz envolve tanto as questões relacionadas ao contexto
(…) ele traz a questão da história, das pessoas que estão envolvidas,
resistências das pessoas…
C: Então, deixa eu só comentar um pouquinho o que M comentou. O
texto do Virkkunen é… fala do Taylor… e é interessante porque, na
época, o Taylor trouxe uma sistematização e uma agilidade dentro das
empresas. Mas fica bem clara a questão da agência… Quando você tem
uma produtividade mecanicista que todo mundo faz todo dia a mesma
coisa, você não promove agência. (…)
P: E se a gente pensar na sala de aula? Esse modelo promove agência?
C: É… se você, na sala de aula, trabalhar como Taylor trabalhava nas
fábricas?… Todo mundo faz a mesma coisa, a expectativa é que todo
mundo responda a mesma coisa, faça os mesmos exercícios, pense da
mesma forma? Você não promove o desenvolvimento de agentes, nem
de contradição.
P: Mas então, qual é a diferença entre a definição de agência de
Stetsenko e de Virkkunen?
C: (…) ela entra na agência como um fenômeno também relacionado
ao ser humano e ao outro o tempo todo.
P: Stetsenko põe um problema para se resolver. Qual é?
A: Ela fala das injustiças.
M: Ela vai para o social.
P: E como essa questão está relacionada com agência?
A: Então. A Stetsebnko critica a questão da agência relacional (…)
diz que essa ideia de Biesta da agência relacional não está errada, está
incompleta e ela aponta a questão do estímulo resposta, porque, pelo
que Biesta diz, a agência se dá a partir da resolução dos problemas
que o mundo coloca para a gente. E aí, ela acaba dizendo que isso tem

136
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ideia estruturalista, behaviorista; parece que só partindo desse problema


é que eu vou agir. E aí a Stetsenko acaba dizendo que os problemas
não surgem… os problemas estão nas nossas relações e não no mundo.
Então, para a gente agir, para ter agência não precisa esperar que o
mundo nos coloque um problema. E aí ela veio com essa ideia de agência
radical transformativa, não é isso? (…) Aí ela coloca a agência como
uma forma de resolver questões, problemas sociais e injustiças… foi
o que entendi. (…) Ela fala que dentro da Agência Relacional tem um
pouco de passividade também, né? Biesta coloca o sujeito de uma for-
ma um pouco passiva, de quem está esperando que se coloque alguma
coisa para poder agir. Ela disse que a gente não tem que ser assim, a
gente tem que ser ativo e atuante, ativista, e não neutro.
P: (…) E Ninin e Magalhães? Onde está situada a discussão de Ninin
e Magalhães?
A: Entre Stetsenko e Virkkunen. (…) muito mais na relacional do
que na transformativa. Posso pensar aqui para embasar minha resposta,
não sei, tenho que dar uma fixada na análise, mas pela parte teórica
aqui… eu senti mais a questão da agência relacional, mas também eu
não consegui pegar se essa agência relacional que está colocada aqui
se aproxima dessa agência relacional que Stetsenko coloca de Biesta.
Só não consegui pegar ainda. Tenho que ler de novo.

A organização do discurso dos participantes segue um caminho


favorável ao desenvolvimento de uma consciência crítica, uma vez que,
a partir do dizer de M, apoiado na ideia de agência como organizativa
da ação do sujeito em direção à solução de problemas no coletivo, e da
intervenção de P, que sugere uma discussão com foco em contraposi-
ções – de Virkkunen e de Stetsenko, apontando as várias maneiras de
se trabalhar a agência –, tem lugar a escuta responsiva de C, inserindo
a sistematização de Taylor no mundo do trabalho (o Taylor trouxe uma
sistematização…) como não promotora de agência.
Nesse sentido, podemos dizer que C impulsiona a reflexão, bus-
cando, ainda que a partir de consciência ingênua, romper e interrogar o
status quo (Mas fica bem clara a questão da agência… Quando você tem
uma produtividade mecanicista que todo mundo faz todo dia a mesma

137
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

coisa, você não promove agência.). É, no entanto, o ponto de vista de A,


quando provocado por P (qual é a diferença entre a definição de agência
de Stetsenko e de Virkkunen?), que desnuda a perspectiva de Stetsenko a
respeito de agência – ao ressaltar o fato de que, para a autora, agência não
estaria relacionada a essa espera do sujeito para agir (para ter agência,
não é preciso esperar que o mundo nos coloque um problema). Esse
posicionamento assumido por A revela, de certo modo, a possibilidade
de uma práxis decolonial (a gente tem que ser ativo e atuante, ativista, e
não neutro) ou “atitude decolonial” (MALDONADO-TORRES, 2006a,
p. 88), que coloca em destaque as vivências dos sujeitos nas diferentes
atividades das quais participam, para “questionar e buscar mudar padrões
coloniais do ser, do saber e do poder”.
Se, por um lado, a ampliação dessa discussão revela uma posição
de A contrária à passividade dos sujeitos, por outro, também revela uma
necessidade de desestabilizar o status quo epistêmico, um modo de in-
terrogar as hegemonias epistêmicas (P: Onde está situada a discussão
de Ninin e Magalhães? A: Entre Stetsenko e Virkkunen (…) muito mais
na relacional do que na transformativa). Para A, o foco da discussão de
Ninin e Magalhães (2017) ainda está distanciado do que considera uma
posição ativista, justamente por apoiar sua compreensão mais nos concei-
tos teóricos do que na análise e discussão dos dados, espaço este em que
as autoras ressaltam a não paralisia dos sujeitos professores participantes
frente à complexidade de seus contextos de ação e a ruptura empreendida
por estes quanto aos modelos prescritivos impostos no contexto escolar.
A perspectiva da disciplina volta-se para uma ruptura “das correntes
que ainda estão nas mentes”, buscando desafiar as “estruturas epistêmicas
[e ontológicas] da colonialidade” (WALSH, 2009, p. 24). Em um primeiro
momento, a leitura dos participantes estaria apoiada na colonialidade, uma
vez que leem e discutem os textos atribuindo a eles um valor de verdade
absoluta. Validar esses conhecimentos, no entanto, é um posicionamento
questionado no grupo: as provocações, os questionamentos, os confrontos
entre posições assumidas pelos participantes sugerem uma atitude de
reivindicação por uma Epistemologia do Sul, que se volte à crítica e a
novas relações entre os conhecimentos disseminados nos textos.

138
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Os excertos seguintes referem-se a momentos em que os participan-


tes apresentavam e discutiam seus projetos de pesquisa. M é psicóloga
e investiga questões relacionadas ao trabalho de gestores escolares, a
partir de um grupo aberto formado no WhatsApp; L é fonoaudióloga e
investiga o desenvolvimento de um paciente quanto à escrita, em um
trabalho desenvolvido em uma APAE; D é professora de língua espanhola
e apresenta uma reflexão sobre um projeto de formação de professores
nessa área, elaborado por ela própria, voltado a graduandos e professores.

Excerto 2
M: Então… eu pensei em perguntar… é… olhando pra a vida deles hoje,
nessa situação [da pandemia] que eles estão vivendo, como eles estão
vivendo esse momento com os professores, o que está fluindo… e quais
são os gargalos… porque eu pensei assim: se eu faço isso, eles serão
obrigados a olhar também para o lado positivo das coisas. E também
poderão trazer esses gargalos (…) Pensei em fazer essa pergunta (…)
e pensar com eles de que modo estão vivendo em suas realidades. E
aí, eu coletar essas informações e (…) e aí, eu vou dizer que isso será o
meu trabalho, e que eu mudei porque a ideia era fazer outra coisa, mas
agora eu quero ouvi-los, porque eu acho que isso é mais emergencial
do que o que eu tinha antes (…) tudo isso eu pensei em discutir com
eles porque eles precisam dizer se querem participar ou não. Não sei
se isso interessará a eles. De repente, não.

As discussões ocorridas ao longo da disciplina Linguagem e Cons-


tituição de Educadores Críticos, provocadas pelas vozes distintas dos
participantes e professoras, e pelos conflitos gerados a partir do papel de
uma agência radical-transformativa (STETSENKO, 2019), criaram um
contexto favorável a M, que, embora já tivesse um projeto de mestrado
pré-configurado, parece desconstrui-lo (eu mudei, porque a ideia era
fazer outra coisa, mas agora eu quero ouvi-los), abrindo espaços para
uma construção coletiva, que visa romper com padrões que, na realidade
vivida, oprimem os envolvidos (hoje, nessa situação [da pandemia] como
eles estão vivendo esse momento). Ao propor um trabalho com gestores
de contextos educacionais diversos, pelo WhatsApp, M incita possibi-

139
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

lidades outras de participação, por meio de novas maneiras de pensar,


escutar, ser e estar, características de uma pedagogia voltada a “processos
e projetos de caráter, horizonte e intenção decoloniais” (WALSH, 2013
apud MOTA NETO, 2018, p. 9).
Podemos, ainda, caracterizar a proposta de M como decolonial,
dado o fato de que organiza-se em uma perspectiva dialógica, uma vez
que favorece a multiplicidade de vozes, por ser um grupo aberto no
WhatsApp, convocando os participantes a uma descentralidade no papel
de gestor (isso é mais emergencial do que o que eu tinha antes), em prol
de um espaço colaborativo crítico de discussão.

Excerto 3
L: Bom… Foi o que eu pensei (…) um projeto sobre linguagem e es-
crita… e aí eu pensei em uma pergunta: há agência na clínica? (…) Na
APAE, são crianças muito mais comprometidas, mas quando a gente
abre para esse público externo, chegam crianças que… que são autistas
e que estão nas escolas regulares… crianças que estão na fase de aquisi-
ção da escrita mesmo. (…) é um projeto que eu fiz no meu trabalho (…)
eu via que algumas crianças tinham um potencial bacana de desenhar,
de criar e aí (…) a ideia era que as crianças produzissem algo e que
pudéssemos mostrar pra todo mundo e então nós trabalhávamos em
cima de um tema e as crianças produziam algo a partir disso. (…) foram
4 meses de trabalho para um texto de… de 4 linhas (…) Se a criança
desenha bem, então a ideia era trabalhar esse desenho para desencadear
a escrita (…) Um propósito para escrever… Porque essas crianças não
veem propósito e significado nenhum no que fazem… porque elas vivem
no fracasso escolar… Esse desenho é uma forma de se chegar à escrita.
Não é como tem lá – escreva sobre tal coisa… É importante trabalhar
com o interesse deles… Hoje eu escolhi apenas uma criança, porque eu
acho estrondoso o que aconteceu com a escrita dessa criança (…) Na
medida que iam produzindo, eu ia dizendo que havia outras crianças
produzindo também e eles começam a se interessar pelas produções
dos outros (…) Eu digo aqui: o importante é resgatar o lugar da escrita
para essas crianças porque a escrita, para eles, é o lugar do fracasso…
então… (…) e para cada criança, eu trabalhei de uma forma… Para
esse menino… Com ele, o trabalho foi por meio de listas, de jogos, e ele

140
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

encontrou o lugar da escrita a partir daí. (…) Uma criança que enjoava
para pegar na caneta, que sentia-se mal, tinha tontura… depois pedia
para escrever… Essa criança teve uma mudança enquanto sujeito. Ele
chegava de cabeça baixa… sem ânimo… sem vontade de conversar…
e ela mudou como pessoa… não só na escrita. (…) Esse menino passou
a desejar enviar mensagens escritas para mãe, pelo WhatsApp, e não
mais pelo áudio (…) E os profissionais da instituição também tiveram
uma certa mudança… de olhar de outra forma para o que é produzido
por essas crianças (…) E aí, eu trago a questão: qual a relação dessas
crianças com a escrita e com o mundo?… Porque elas passam a se ver
de outra maneira? E aí eu pergunto: qual é a agência dessas crianças
na clínica? Essas crianças podem ser agentes? (…)

A narrativa de L revela uma compreensão sobre agência radical-


transformativa em um contexto específico – a Associação de Pais e
Amigos dos Excepcionais (APAE) –, em um trabalho com foco na lin-
guagem, com crianças provenientes do sistema de ensino regular. Revela,
ainda, uma compreensão que foge a uma visão colonizada da escola,
uma vez que L tira a criança de um contexto de fracasso, que a imobi-
liza (porque essas crianças não veem propósito e significado nenhum
no que fazem… porque elas vivem no fracasso escolar…), para levá-la
a um contexto outro que valoriza seu fazer, pensar e agir (a ideia era
que as crianças produzissem algo e que pudéssemos mostrar pra todo
mundo), promovendo novas possibilidades de relações no mundo (eles
vão se interessando uns pelos outros… esse menino passou a desejar
enviar mensagens escritas para mãe, pelo WhatsApp, e não mais pelo
áudio), expandindo as vivências com a escrita. Mostra, desse modo, sua
compreensão para o fato de que os padrões estabelecidos pela instituição
escola são, portanto, excludentes por ignorar a singularidade dos alunos
(e para cada criança, eu trabalhei de uma forma…).
As perguntas de L – inicial: há agência na clínica? e final: essas
crianças podem ser agentes? – são respondidas, acima de tudo, porque
suas ações, ao longo do projeto, caminham em sentido oposto à colonia-
lidade; porque assume essa postura de desconstruir relações ossificadas
que a escola regular impõe à criança singular, visando inseri-la no mun-

141
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

do. As ações de L presentificam uma pedagogia decolonial, em busca


de promover e provocar “fissuras da ordem moderno/colonial, às quais
tornam possível e dão sustento e força a um modo distinto, inteiramente
outro, de estar no e com o mundo (WALSH, 2014, apud MOTA NETO,
2018, p. 9).

Excerto 4
D: Exatamente esse texto da Stetsenko é que me levou para um lugar
um pouco desconfortável… Somente no final do texto é que eu percebi
o que ela estava querendo dizer com essa agência transformadora…
Acho que é por isso que eu fui transportada para esse lugar… do… do
desconforto… Quando ela fala dessa agência transformadora radical…
dessa capacidade de mobilidade coletiva, das práticas sociais… histó-
ricas… em que essa comunidade está inserida, ela fala exatamente das
necessidades e conflitos… Então eu fiquei pensando exatamente na parte
do meu projeto que se propõe a oferecer um curso de formação… e aí eu
fui avançando na leitura e nas questões que a Stetsenko estava fazendo…
ela fala que…“a agência é fundamental para o ensino-aprendizagem se
for entendida como significativa, ativa, pelo saber-fazer… pelas pessoas
como atores da história e agentes do mundo em construção”. E agora eu
fiquei pensando… Como eu poderia… É … Será que o meu projeto…
em que medida o meu projeto assim como está seria possível, levando
em conta este momento… as possibilidades de ensino agora, neste
momento de pandemia, de maneira remota... Porque aqui na Bahia (…)
os alunos da escola pública ainda não têm isso… então eu fiquei muito
preocupada com isso, com essa força que oprime, com essas práticas
sociais (…) e com o que eu, como pesquisadora, estou propondo como
formação dos professores. Em que medida eu teria de alterar um pouco
dessa minha proposta… ou alterar muito (rs)… Pra dizer a verdade,
eu estou bastante preocupada. Penso… não sei se o que eu vou falar
ainda se mantém (…) eu sei que entram outras questões que eu acho
que não trabalho no meu projeto… Não sei se consegui me explicar…
é… porque o texto da Stetsenko fala dessa necessidade de criar essa
consciência de oposição a essas teorias… fala também da abordagem
decolonial… mas pede também uma concepção de agência política… e
não sei como pedir isso aos professores… neste momento… e também

142
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

de eu não ser mais um agente nesse sentido de cobrar desses professo-


res ou de impor o meu projeto a eles, que não é de modo algum o meu
objetivo… e como desenvolver isso neste momento…

É possível perceber no relato de D o impacto causado por sua


compreensão de agência radical-transformativa (STETSENKO, 2019)
(texto da Stetsenko é que me levou para um lugar um pouco descon-
fortável…). De algum modo, as discussões provocadas desencadearam
um pensamento crítico de D, voltado à desconstrução de uma tendência
acadêmica dominante – a formação de professores a partir de um projeto
de construção de conhecimentos pré-formatado não de acordo com a
realidade (eu sei que entram outras questões que eu acho que não tra-
balho no meu projeto). O despertar à consciência crítica de D é capaz de
revelar de que modo um conflito instaurado toma lugar e desestabiliza
um fazer investigativo sustentado pela colonialidade (em que medida
eu teria de alterar um pouco dessa minha proposta… ou alterar muito),
uma vez que D já não acredita que a formação de professores possa ser
organizada sem que se pense na opressão a partir da qual tais projetos
causam a professores (de eu não ser mais um agente nesse sentido de
cobrar desses professores ou de impor o meu projeto a eles).
A reflexão de D revela essa “necessidade de outras formas de com-
preensão da e para a realidade, que possibilitem uma relação diferenciada
entre saberes, práticas e lócus enunciativo” (BAPTISTA; LÓPEZ-GO-
PAR, 2019, p. 2). Revela, ainda, a importância desse diálogo presente
na disciplina Linguagem e Constituição de Educadores Críticos, que
possibilita aos participantes ampliar sua compreensão a respeito da pers-
pectiva crítica e decolonial, e de seus efeitos nas práticas investigativas.

Uma seção (in)conclusiva: transgressão e ativismo em LA

Como dito na Introdução deste capítulo, e orientadas pelos con-


ceitos de colaboração crítica, agência e decolonialidade, priorizamos
a apresentação de um contexto de pós-graduação, de modo a provocar
discussões sobre uma “pseudo decolonialidade” que se faz presente,

143
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ainda, na formação de educadores e pesquisadores. O contexto de pós-


graduação, revestido de propostas ativistas e agentivas, questionadoras
das relações no campo educacional, nem sempre alcança essa perspectiva
política transgressora que se quer consensual, uma vez que, ainda, muitos
pós-graduandos, em um movimento de consciência ingênua (FREIRE,
1997), sentem-se presos às propostas em que as “capsulas organizativas”
assumem o papel central em seus contextos. Os excertos discutidos na
seção anterior revelam isso, e nos permitem ressaltar que, enquanto para
alguns participantes a perspectiva ativista transgressora dá o tom em seu
movimento como pesquisadores, para outros, a perspectiva da capsula
organizativa insiste em orientar o fazer.
A decolonialidade é uma opção epistêmica, social e humana que
permite o exercício de ruptura das múltiplas extensões coloniais. Na
educação, e, por sua vez, na pós-graduação e no desenvolvimento de
pesquisas em contextos de ensino, a colonialidade insiste em manter
presença, uma vez que temos sido orientados por padrões nem sempre
adequados às necessidades de nossos contextos. Por um lado, observa-
mos a resistência de pós-graduandos quanto ao movimento de ruptura
com as capsulas coloniais, impostas à universidade, justamente por esta
espelhar-se muito mais nos modelos externos de produção e investigação
do conhecimento do que nas necessidades contextuais reais e nas desi-
gualdades enfrentadas em um país como o nosso, constituído de tantas
singularidades. Por outro, observamos a discussão desses alunos e seus
esforços para romperem com a colonialidade, com as formas excluden-
tes de se produzir conhecimento, para “desfazer os lugares de poder”
(BAPTISTA; LÓPEZ-GOPAR, 2019) ocupados por conhecimentos
cristalizados mas ainda capazes de exercer superioridade sobre outros
caracteristicamente mais democráticos.
Como discutido por Maldonado-Torres (2006), em uma educação
comprometida com uma proposta decolonial, “as disciplinas e seus
métodos aparecem como tecnologias a serem desmanteladas, criticadas
e usadas” em prol da não acumulação do conhecimento apenas. Nessa
direção, na disciplina da pós-graduação, o que se pretendeu foi deflagrar
questionamentos de ordem epistêmica e metodológica para compreender

144
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

como cada participante buscava sua inserção na situação investigada


por ele próprio. Teve relevância, portanto, pensarmos na consciência
decolonial necessária aos participantes, isto é, nas formas de atuar, ser
e conhecer que os atravessam e são alimentadas pelas esferas política,
social e cultural.
Podemos dizer que a relação entre conceitos epistêmicos que
emergiram das interações na disciplina Linguagem e Constituição de
Educadores Críticos foi relevante, justamente, porque encontrou apoio
nos conceitos teóricos de agência e decolonialidade, não esgotando a
problemática apontada, de que é necessário reavaliar o espaço teórico
da pós-graduação em busca de decolonizar o movimento investigativo
que incide nos contextos educacionais. A perspectiva crítica decolonial
possibilitou, por sua vez, “um movimento dinâmico no sentido de criar
inteligibilidades outras sobre questões cotidianamente vivenciadas, ex-
perienciadas e enfrentadas como pesquisadores aplicados” (BAPTISTA;
LÓPEZ-GOPAR, 2019, s.p.), permitindo-nos visualizar outras potencia-
lidades para uma educação crítica.

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

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148
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Formação de professores: implicações de


políticas públicas na sensibilização para
uma educação linguística ampliada e
contemporânea

Ana Amélia Calazans da Rosa1


Aryane Santos Nogueira2

“Nós vamos ter que fazer alguma coisa com a sua lín-
gua”, eu escutei a elevação raivosa na sua voz. Minha
língua retém-se, empurrando pra fora os tufos de algodão,
repelindo as brocas, as longas agulhas finas. “Eu nunca
tinha visto nada tão forte ou tão resistente”, ele diz. E eu
penso, como você doma uma língua selvagem, adestra-a
para ficar quieta, como você a refreia e põe sela? Como
você faz ela se submeter?
(Gloria Anzaldúa, Como domar uma língua selvagem,
2009)

Este capítulo foi construído a partir de inquietações compartilhadas


entre duas docentes formadoras que, pela amizade e pela parceria pro-
fissional, dividem/trocam experiências sobre os desafios da educação
linguística de futuros professores de línguas e de outras áreas. Ao com-
por essa discussão, nosso objetivo foi levantar questões e implicações
1 Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Programa de Mestrado Profissional em
Letras (PROFLETRAS-UFTM).
2 Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Programa de Pós-Graduação em Educação
(PPGE-UNICAMP).

149
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

relativas à persistência de ações de educação linguística em nosso país


que promovem ideologias e práticas monolíngues voltadas à noção de
línguas nomeadas3, descartando, ou tornando menos importantes, outras
formas de compreender e praticar a linguagem e outros recursos semió-
ticos. Nesse caminho, nosso foco se voltou para a BNCC como política
pública, cujos possíveis impactos na educação linguística de professo-
res de línguas4 pretendemos discutir. Assim, no capítulo, o problema
que colocamos para a área de formação de professores diz respeito aos
limites impostos às ações de ensino-aprendizagem de línguas quando
se reduzem aos contornos das línguas nomeadas sem questionar seus
construtos, geralmente fundados na homogeneidade territorial, cultural,
identitária e de práticas.
Por isso, a epígrafe de abertura deste capítulo não é uma escolha
aleatória. Para ilustrar os argumentos que aqui construímos, selecio-
namos três produções que entendemos como práticas que resistem às
forças de um suposto monolinguismo nacional. O trecho da epígrafe foi
retirado do texto intitulado How to tame a wild tongue, que se encontra
no livro Borderlands/La Frontera da escritora chicana Gloria Anzaldúa5.
Nele, Anzaldúa nos mostra um pouco da sua realidade de “frontera” ao
apresentar-nos suas descobertas com relação à sua própria língua e ao
seu povo. Segundo a autora, o espanhol chicano se estabelece como uma
necessidade da população chicana de se reconhecer legítima, como gente
que (re)existe, com identidades e com línguas tão complexas quanto sua
própria história.

3 Entendemos que línguas nomeadas são um construto social e, portanto, o entendimento sobre o
que é uma língua (português, inglês, libras) e o que não é uma língua (muitas vezes reconhecidas
como um “dialeto” ou uma “variedade”) são também entendimentos sociais e determinados
por forças ideológicas e não por questões linguísticas (lexicais ou estruturais) em si. Conferir
Makoni e Pennycook (2007, p. 1) sobre os construtos de língua como invenção.
4 Embora nosso foco no capítulo seja a formação do professor de línguas, nossa experiência de
atuação com Licenciaturas em diferentes áreas (incluindo, para além das humanidades e das
ciências sociais, as ciências exatas) tem indicado a importância de uma educação linguística
ampliada para todos os professores que atuam nas escolas.
5 A tradução do excerto é de Joana Plaza Pinto e Karla Cristina dos Santos com revisão de Vi-
viane Veras. A tradução do capítulo “How to tame a wild tongue” (Como domar uma língua
selvagem) para a língua portuguesa foi publicada nos Cadernos de Letras da Universidade
Federal Fluminense (UFF) – Dossiê: Difusão da Língua Portuguesa, n. 39, p. 297-309, 2009.

150
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Para um povo que não é espanhol nem vive em um país


no qual o espanhol é a primeira língua; para um povo que
vive num país no qual o inglês é a língua predominante,
mas que não é anglo; para um povo que não pode se iden-
tificar inteiramente nem com o espanhol padrão (formal,
castelhano) nem com o inglês padrão, que recurso lhe resta
senão criar sua própria língua? Uma língua com a qual eles
possam conectar sua identidade, capaz de comunicar as
realidades e valores verdadeiros para eles mesmos – uma
língua com termos que não são nem español ni inglés,
mas ambos (ANZALDÚA, 2009, p. 307, ênfase original).

Similarmente, Jamila Lyiscott em sua TED talk em 20146 discursa


sobre sua habilidade de dominar três “ingleses” (tri-tongued orator),
celebrando as três línguas que ela utiliza para se comunicar com seus
amigos, sua família e no ambiente universitário. Em uma fala poderosa
e cheia de ritmo – que nos traz à mente a comparação com as práticas
poéticas do slam – ela explora a complicada e violenta história do povo
afro-americano e como as identidades de sua gente são perpassadas pelas
práticas de usos da(s) língua(s) inglesa(s).
O ponto de encontro nas produções das duas autoras diz respeito à
direção para a qual apontam: suas falas clamam por outras concepções
de língua(gem). Legitimamos os apelos de Anzaldúa (2009) e de Jamila
Lyiscott (2014), enquanto construímos as reflexões neste capítulo ali-
nhadas a César e Cavalcanti (2007) e também Cavalcanti (2013, p. 225),
entendendo que são línguas de fato o que seriam tradicionalmente con-
sideradas “variedades” de uma língua. Sendo assim, se língua é prática
social, como afirmam amplamente vários pesquisadores da Linguística
Aplicada atual, entendemos que Anzaldúa e Lyiscott sublinham a questão
de como pode língua continuar a ser definida por um espaço territorial
e/ou por falantes “nativos” se as práticas sociais não se limitam pelas
fronteiras geográficas e tampouco acontecem entre falantes iguais ou de
mesmas origens.

6 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=k9fmJ5xQ_mc. Acesso em: 02 jun. 2020.

151
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

A terceira produção que trazemos para reflexão corrobora os ques-


tionamentos já levantados a respeito dos limites territoriais7 e fronteiriços
entre línguas, ao mesmo tempo em que acrescenta mais um ponto ao
desafio de repensar concepções de língua(gem) na contemporaneidade.
No Slam do Corpo apresentado no Programa Manos e Minas da TV Cul-
tura em 20178, a declamação performática de Empatia pela poeta surda
Catharine Moreira junto do poeta ouvinte Cauê Gouveia enumera, em
um pequeno manual da cultura surda, aspectos referentes aos mitos e às
crenças que rondam o universo dos surdos e da língua de sinais em sua
relação com as pessoas ouvintes. Aqui, a poética do slam proporciona o
trânsito de línguas e também de modalidades. O tom crítico e, ao mesmo
tempo, esclarecedor do manual, explora o que diferencia e o que aproxima
surdo e ouvinte, língua de sinais e português, relacionando o primeiro
movimento à ideia de opressão e, o segundo, à noção de empatia.
Na performance manual, corporal, vocal e teatral, os corpos senso-
rialmente diferentes dos poetas corporificam língua de sinais, português
e diferentes modalidades (oral, sinal, gestual, sonora, corporal, olhar),
entrelaçando recursos para a produção de sentidos sobre culturas sur-
das. Na medida em que a potencialidade performática do slam deixa vi-
sualmente evidente as incorporações de línguas (oral e de sinais) e outras
semioses para construção do que é enunciado, tais práticas de linguagem
nos incitam sobre a necessidade de (re)incorporar, no que entendemos
sobre língua(gem), corpos e corporificações que, conforme Bucholtz e
Hall (2016), foram desconsiderados nas perspectivas estruturalistas para
construção de concepções de língua e linguagem.
No entanto, quando olhamos para os âmbitos da educação linguística
e da formação de professores de línguas ainda é comum que as fronteiras/
recortes de discussão sejam feitas delimitando as línguas alvo. Nesse
recorte que se faz, não entram outras formas de manifestação (aquelas
7 Aqui os corpos surdos e ouvintes também estão sendo pensados como espaços/territórios
possíveis para que as línguas – de sinais e o português – ocorram. Nesse sentido, questiona-se
a ideia de que português é língua somente de [corpo] ouvinte e, língua de sinais, somente de
[corpo] surdo.
8 Disponível em: https://tvcultura.com.br/playlists/203_manos-e-minas-slams_gnwNDGVg0eI.
html. Acesso em: 14 set. 2020.

152
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

que não se dão como o modo eleito ou que não ocorrem via língua nome-
ada) e muito menos as corporificações e outras semioses que compõem
as práticas sociais de língua(gem). Não se vai, como deseja Cavalcanti
(2013, p. 225), para “[…] além das fronteiras linguísticas, [no sentido de]
estabelecer um posicionamento político-ideológico, [e] buscar desenhar
novas paisagens em mesmas e diferentes geografias sociais”.
Concepções que apontam para a língua enquanto uma entidade
nomeada, uniforme, relativamente homogênea e fixada a territórios e
falantes nativos, com seu valor atribuído principalmente na sua forma
escrita apenas reforçam a ideia de língua (e, consequentemente, ensino
de língua) para a formação de cidadãos que seriam os “adequados” (con-
ferir SIGNORINI, 2004). Nesse sentido, acreditamos que somente uma
Linguística Aplicada transgressiva e crítica (conforme PENNYCOOK,
2006, 2010) poderá lançar luz sobre tais questões, de modo a mobilizar
na formação do professor uma educação ampliada.
Considerando a problemática exposta, organizamos as discussões
deste capítulo da seguinte forma: (i) como pode ser possível formar
professores de línguas para uma educação linguística ampliada (CA-
VALCANTI, 2013) numa abordagem translíngue (HORNER et al., 2011;
LOPES; NASCIMENTO, 2018; dentre outros); (ii) um olhar sobre a
Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018, doravante BNCC),
enquanto documento que reverbera em currículos e em formação de
professores de línguas (e também de outras áreas); e (iii) uma discussão
sobre as compreensões (apreciações de valor) de conceitos como “va-
riedade linguística” e sobre as ações educativas recomendadas para o
trabalho com “as variedades” na seção sobre o componente curricular
Língua Portuguesa na BNCC (BRASIL, 2018). Por fim, finalizamos
com o argumento de que os questionamentos que propomos, em relação
à construção social das línguas e de seus usos, podem sensibilizar os
docentes para a pluralidade linguística, cultural e social que expande as
compreensões de ensino para além das amarras “de um cenário [brasi-
leiro] naturalizado como monolíngue” (CAVALCANTI, 2013, p. 216)
desde que as diferentes práticas de linguagem tenham espaço para serem
apresentadas e vividas.

153
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Uma abordagem translíngue para uma formação


docente ampliada

De acordo com Cavalcanti (20119, 2013), a visão de uma educa-


ção linguística ampliada prevê que a formação docente ultrapasse a
preocupação com o domínio da língua alvo de ensino. Já em 2013, a
autora nos mobiliza a pensar uma educação linguística que se amplia a
partir da construção de relações com uma perspectiva transdisciplinar
e translíngue como um caminho possível para sensibilizar o professor
que forma, assim como aquele que está em processo de formação, para
o que significa comunicar e produzir sentidos em um mundo globali-
zado e digitalizado e que traz à superfície as diferenças na diversidade,
apesar dos constantes processos de naturalização e invisibilização em
funcionamento na sociedade.
Em alinhamento à Cavalcanti (2013), de igual modo, entendemos que
a formação no contexto de uma Linguística Aplicada que opera na lógica
transdisciplinar como “leveza de pensamento” (ROJO, 2006) implica no
cuidado e atenção a uma formação que necessariamente se volta à compre-
ensão, interpretação e intervenção em realidades de ensino-aprendizagem
socioculturalmente complexas e situadas. Assim, a educação do professor
de línguas é linguística, mas também deve ser sociocultural e antropologi-
camente comprometida, envolvendo o formar para pensar criticamente a
pluralidade cultural, social, linguística e semiótica da contemporaneidade.
Ao contrário disso, o que se vê na realidade, conforme explica Caval-
canti (2013), é que os currículos para formação de professores ainda não se
deslocaram das grandes narrativas da modernidade, haja vista a pouca ou
nenhuma visibilidade que há em relação à heterogeneidade social, histórica,
cultural e linguística na escolarização brasileira (CAVALCANTI, 1999;
MONTE MÓR, 2017; SOUZA; MONTE MÓR, 2019). Além disso, o foco
dos cursos de formação (inicial e continuada) parece ainda se encontrar
muito voltado para as temáticas (meta)linguísticas, desconsiderando o
9 Referente a uma conferência proferida pela Profa. Dra. Marilda Cavalcanti no III CLAPFL
Congresso Latino-Americano de Formação de Professores de Línguas, realizado na Unitau,
Taubaté, SP, em 2011. Conferir em Cavalcanti, 2013.

154
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

fato de que o conteúdo linguístico que precisa ser aprendido porque será
ensinado “[…] não é livre de relações e implicações sociais, políticas e
culturais” (CAVALCANTI, 2013, p. 224). É nesse sentido que a autora
enfatiza a urgência do desenvolvimento da sensibilidade do(a) professor(a)
para o ensino de línguas(gens) que tenha no horizonte questões relacionadas
à pluralidade e diversidade. Nas palavras da autora:

[…] um curso de licenciatura neste mundo de diáspora,


imigração e migração, de mobilidade social cada vez
mais emergente, precisaria enfatizar a formação de um
professor posicionado, responsável, cidadão, ético, leitor
crítico, […] sintonizado com seu tempo, seja em relação
aos avanços tecnológicos, seja em relação aos conflitos
que causam qualquer tipo de sofrimento ou de rejeição de
seus pares, lembrando que essas questões são cambiantes,
fluidas assim como as construções identitárias nas salas
de aula (CAVALCANTI, 2013, p. 212).

As descrições linguísticas e as metodologias de ensino de línguas


que atendem às perspectivas de governos e territórios também acabam
imprimindo complexidade na formação dos professores de línguas. A
este respeito, Makoni e Meinhof (2006) afirmam que tais descrições e
métodos – vinculados à noção de estado-nação monolíngue – são, quase
sempre, insensíveis às práticas locais e, acrescentamos, aos discursos
e repertórios semióticos situados. Segundo os autores, as práticas lin-
guísticas locais são, muitas vezes, concebidas como estranhas ou como
equivocadas/desviantes pelas agências de letramentos ligadas aos estados-
nações. Assim, ao adotarmos uma perspectiva translíngue e ampliada de
formação, em alinhamento a Cavalcanti (2013), nos questionamos sobre
como poderá um professor ser formado para construir sentidos com seus
alunos uma vez que as práticas de linguagem de seus estudantes são
oficialmente deslegitimadas10?
10 Essa questão também nos remete a Yip e García (2018) ao argumentarem que, quando uma
lente translíngue é considerada, outras compreensões – mais situadas – a respeito da sala de
aula, do professor e dos estudantes podem ser mobilizadas.

155
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

É por esse motivo que o que se apresenta na BNCC (BRASIL, 2018)


na área de Linguagens, tanto como princípios e pressupostos, quanto o
que é indicado como práticas de ensino-aprendizagem para o componente
de Língua Portuguesa, nos interessa como objeto de análise e será explo-
rada em mais detalhes a partir da próxima seção. A questão que também
se coloca aqui é o modo como uma política pública (estado-nação), no
caso a BNCC (BRASIL, 2018), escolhe trabalhar com as línguas(gens),
os espaços, os corpos e todo um repertório semiótico que se afunila na
área de Linguagens tendo “Língua Portuguesa” como o nome de seção.
É muito comum afirmarmos que no Brasil se fala português bra-
sileiro, porém ainda se vê poucos questionamentos sobre o que seria
o construto “português brasileiro”: o português “misturado” com o
espanhol das fronteiras com outros dez países continua sendo português
brasileiro? E o português falado/ensinado nas escolas do lado de lá da
fronteira geográfica? Qual é o lugar desse construto conhecido pelo nome
de “portunhol”? É possível delimitar o “término” do “nosso português”
segundo as divisas político-geográficas do nosso continente? E, nessa
conjuntura de delimitar/nomear a língua, qual é o lugar do português dos
surdos? E o português dos povos indígenas? E o português dos imigran-
tes e refugiados? Para além da discussão das “variedades linguísticas”
– argumento comum para responder aos questionamentos anteriores –,
o problema aqui posto está relacionado com a língua nomeada enquanto
construto social e não cognitivo ou estrutural e em como essa questão
adentra a formação dos professores de línguas.
Considerar uma perspectiva translíngue para pensar a formação
de professores de línguas, a nosso ver, significa uma possibilidade de
endereçar essas questões e, como indicou Cavalcanti (2013), sensibilizar
o professor em formação para a diferença. Por meio do desenvolvimento
de uma consciência linguística crítica (conferir YIP; GARCÍA, 2018)
nos professores em formação, que contempla as lacunas existentes entre
as práticas reais de linguagem e as crenças e ideologias linguísticas,
caminha-se na direção do que HORNER et al. (2011) consideraram
como oportunidade de desenvolvimento de uma disposição translíngue
por parte daquele que aprende/reflete sobre a diversidade na língua(gem)

156
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

e, assim, abre-se possibilidade para uma formação que pode funcionar


como forma de justiça social.
O olhar heteroglóssico da translinguagem permite considerar que
as práticas de comunicação e produção de sentidos no mundo de hoje
englobam, para além de línguas, recursos semióticos variados, espa-
ciais e corporificados, dentro do que se tem considerado uma concep-
ção mais estendida de língua(gem) (CANAGARAJAH, 2013, 2018;
PENNYCOOK, 2016, 2018).  Sendo assim, o foco da formação para
uma educação linguística ampliada pode ir além de uma ou outra língua,
para responder às práticas comunicativas reais. Apoiadas em García e
Lin (2017), compreendemos que, para o professor em formação (e em
atuação), isso significa que o seu ponto de partida serão as práticas de
linguagem de seus alunos e não modelos pré-concebidos de como as
línguas(gens) devem ser usadas.
Conforme explicam Horner et al. (2011, p. 303), uma abordagem
translíngue “[…] vê a diferença na língua(gem) não como uma barreira a
ser superada ou como um problema a ser gerenciado, mas como um recur-
so para produzir sentido”. Tal posicionamento, sem dúvida, aponta para
a necessidade de um amadurecimento das práticas de formação docente.
Se antes a preocupação com a formação era principalmente depositada
em ações de atualização de conhecimentos linguístico-técnicos e teórico-
metodológicos, hoje é preciso propor o trabalho com a subjetividade. É
necessário, e desejável, o trabalho com o desenvolvimento da sensibi-
lidade para uma educação linguística que combata o fundamentalismo
educacional, que constrói propostas homogêneas e apaga as pluralidades
em prol de uma suposta igualdade de oportunidades/aprendizagens.

A Base Nacional em (des)diálogo com uma formação


linguística ampliada de professores

A BNCC (BRASIL, 2018), como uma política pública nacional,


atua, conforme já destacado por Szundy (2019), na prescrição das prá-
ticas de ensino e aprendizagem consideradas válidas para as diferentes
áreas que o documento contempla, implicando diretamente em políticas

157
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

curriculares e de avaliação subsequentes. Nesse mesmo âmbito, conse-


quentemente, trata-se de uma política com impactos diretos11 na confor-
mação dos moldes que assumem os currículos de formação de professores.
Um dos problemas relacionados ao que foi apontado no parágrafo
anterior se refere ao fato de que no texto da BNCC (BRASIL, 2018), de
acordo com Szundy (2019, p. 127), encontram-se ordens de indexicali-
dade híbridas, de forma que:

[…] questões caras às ciências sociais, como diversida-


de cultural, igualdade social, questões de raça e gênero,
entre outras, as quais integram agendas de estudos que se
identificam como pós-estruturalistas, pós-modernistas,
pós-colonialistas, frequentemente se mesclam a objetivos
meramente instrumentais traduzidos em competências
e habilidades a serem replicadas nas diversas áreas do
conhecimento, sem que as ideologias que embasam os
processos de construção de conhecimento sejam proble-
matizadas (SZUNDY, 2019, p. 127).

Tendo em conta o que foi apontado pela pesquisadora, consideramos


que a premência de uma formação linguística ampliada dos professores
de línguas numa perspectiva translíngue se faz evidente, uma vez que
a esse professor em formação não bastaria apenas o saber do conteúdo
linguístico que vai ensinar (conteúdo contemplado pelas tais competên-
cias e habilidades a serem replicadas) para, de fato, avançar em relação
às fragmentações apresentadas num documento que o serve de guia.
Ao nos questionarmos sobre como a hibridez desse documento pode se
refletir no projeto de formação que estamos assumindo como importante
– de uma educação linguística ampliada de professores de línguas – e
11 Vale mencionar aqui a Resolução CNE/CP nº 2 de 20 de dezembro de 2019 que define as
diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial de professores para a educação básica.
A resolução coloca os princípios e pressupostos, bem como as habilidades e competências da
BNCC, como organizadores dos currículos e conteúdos dos cursos superiores de formação
de professores. Na BNC-Formação, anexada à Resolução, a BNCC é citada diretamente nas
dimensões conhecimento profissional e prática profissional das competências específicas a
serem contempladas nos cursos de formação de modo a garantir o “[…] desenvolvimento
intencional das competências da BNCC” (CNE/CP, 2019, p. 18).

158
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

no desenvolvimento de uma disposição translíngue por parte desses


professores em formação, acreditamos que seria necessário antever, nas
indexicalidades híbridas que o documento apresenta, quando o discurso
se mostra mais avançado do que as propostas de ação, de modo que ele
mesmo não faça de um discurso meramente teórico sua máscara de
atuação (CAVALCANTI, 2013, p. 215):

Uma educação linguística em sua visão ampliada […]


vai exigir muito mais do(a) professor(a) em formação ou
em serviço do que a educação de conteúdo linguístico.
Demanda uma sofisticação que depende de estudo e dedi-
cação para poder ser sensível aos alunos e a sua produção
linguística. E essa sofisticação inclui também a predispo-
sição para aprender com as novas gerações, o estar pronto
para a observação constante do que acontece ao redor, seja
em relação ao modo de falar das pessoas, seja em relação
às atitudes preconceituosas que precisam ser apontadas/
problematizadas e/ou trabalhadas. Inclui ainda o observar
o próprio discurso para pinçar seus próprios preconceitos e
atitudes condescendentes (CAVALCANTI, 2013, p. 215).

Na esteira dessa discussão, no texto “Reforma curricular e ensino”,


Rajagopalan (2019) questiona o “conjunto de aprendizagens essenciais”
(p. 29) posto pela BNCC em sua versão preliminar de 2016 e que está
mantida na versão final de 2018. O questionamento do autor é em torno
da decisão do que é “essencial” e a quem essa decisão é interessante ou
a quem pertence. Assim como Rajagopalan (2019), não acreditamos que
um currículo unificado consiga dar conta da pluralidade e das desigual-
dades sociais de um país como o nosso – características reconhecidas
pela própria BNCC (BRASIL, 2018). As expectativas e as aspirações
educacionais de todo o país dificilmente poderão ser atingidas de modo
uniforme por meio da enumeração de “competências” e “habilidades”
construídas sob o argumento da diversidade, mas que, na prática, ainda
são impostas como se as condições fossem iguais “do Oiapoque ao Chuí”
e os aprendizados dependessem de capacidades individualizadas.

159
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Observamos assim que a BNCC (BRASIL, 2018), enquanto uma


política que norteia não só os saberes a serem ensinados, mas também
age como a grande força que guia a formação de professores Brasil afora,
abriga sua própria ideologia, isto é, constrói e consolida apreciações de
valor sobre os saberes científicos (ou não) que serão transpostos e dida-
tizados. Szundy (2019) também faz uma contextualização ideológica da
BNCC inter-relacionando o documento ao pensamento neoliberal. Com
base em pesquisadores como Malerba (2017 apud SZUNDY, 2019, p.
125), a autora argumenta que uma educação voltada para formar força
de trabalho resignada só poderia mesmo levar à consolidação de currí-
culos padronizados, com descrições de “competências” e “habilidades”
a serem desenvolvidas individualmente como requisito para o sucesso
profissional.
De todo modo, a questão aqui não é apenas sobre quais os saberes
eleitos como essenciais e, se a condição de aprendizagem deles é delimi-
tada pela aquisição de competências/habilidades. Uma pergunta, sobre a
qual talvez já tenhamos algumas possibilidades de resposta, é sobre quem
faz essas escolhas e por que as faz de tal modo e não de outro. Por nosso
alinhamento – anteriormente apresentado – a uma formação ampliada
a partir de uma perspectiva transdisciplinar e translíngue, assim como
Rajagopalan (2019), também questionamos o porquê de começar pela
meta, sempre idealizada, a ser atingida e não pela realidade do aluno.
Nas palavras do autor:

(…) podemos constatar nele [no currículo, na BNCC] ou-


tro fator, igualmente problemático, […] Trata-se da ideia
subjacente de que o que importa determinar de antemão é
a meta que se quer alcançar. Acredito que, em matéria de
propostas educacionais, o mais importante ainda seja de
onde os alunos estão partindo rumo a tal meta. Ou seja,
o lugar onde se encontra o aluno é algo que não pode ser
relegado a um segundo plano (RAJAGOPALAN, 2019,
p. 33).

160
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Essa reflexão sobre o lugar do aluno ainda nos interessa pelo fato de
a BNCC (BRASIL, 2018) discutir amplamente o conceito de letramentos
e multiletramentos como norteadores do ensino de línguas, sem parecer
entender que letramentos, enquanto práticas sociais – impossíveis de
serem desvinculadas de suas realidades locais e situadas –, não podem ser
confundidas como simples habilidades a serem adquiridas – muito menos
de forma homogênea por todos os estudantes espalhados pelo Brasil.
Mais uma vez temos uma tentativa de unir nosso país como um
espaço monolíngue, monocultural, monoidentitário (conferir CAVAL-
CANTI; MAHER, 2018) e que, consequentemente, pode executar um
currículo único e comum. Essa breve contextualização sobre como a
BNCC (BRASIL, 2018) se coloca enquanto política educacional que
norteia currículos e cursos de formação é necessária para então questio-
narmos: qual é a concepção de língua(gem) que esse documento carrega?
A partir dessa concepção, qual é a língua(gem)/variedade12 escolhida
como saber legítimo no documento? Quais são as línguas(gens)/varie-
dades que (re)existem para serem respeitadas e, assim, parecem não ter
valor como objeto de estudo?

Línguas versus variedades: ideologias linguísticas e


repertórios sociossemióticos situados

[…] o(a) professor(a) precisa saber muito mais do que


aquilo que vai ensinar e precisa vivenciar o que ensina. 
(Marilda Cavalcanti, Educação linguística na formação
de professores de línguas [...], 2013)

Especificamente na área de Linguagens da BNCC (BRASIL, 2018),


que contempla os componentes de Língua Portuguesa, Artes e Educação

12 É relevante pontuar que entendemos que as formas de comunicação sem prestígio são “línguas
de fato” e não mera “variação”. Na BNCC, contudo, tais línguas são descritas por meio do uso
do termo “variedades [da língua portuguesa]”. Acreditamos que ver as línguas não-prestigiadas
como variedades resulta na invisibilização de suas comunidades (CAVALCANTI, 2013) e, por
isso, aqui utilizamos os dois termos para formular as perguntas desencadeadoras da discussão:
o termo que adotamos no capítulo e o termo adotado pelo texto da Base.

161
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Física (para o EF Anos Iniciais e Anos Finais) e Língua Inglesa (apenas


para o EF Anos Finais), prevalece, como pressuposto teórico, uma con-
cepção de linguagem como prática social que integra diferentes recursos
semióticos (SZUNDY, 2019). O próprio uso do termo linguagens, no
plural, e a listagem dos modos verbal, corporal, visual, sonoro e digital
(BRASIL, 2018, p. 63), sinalizam nessa direção. No entanto, o mesmo
documento indexicaliza outros entendimentos das línguas(gens), sobre-
tudo quando a) assume seu alinhamento a documentos oficiais anteriores
e, nesse caminho, b) propõe certas práticas de ensino-aprendizagem
perpassadas pela língua(gem).
Na apresentação dos princípios e pressupostos do Componente
Língua Portuguesa, é explicitado que há diálogo entre tal componente e
outros “documentos e orientações curriculares produzidos nas últimas
décadas” (BRASIL, 2018, p. 67). Um desses documentos, os Parâmetros
Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998, doravante
PCN), é citado de forma direta a partir da recuperação – e, portanto,
assunção – da definição de linguagem apresentada naquele texto: “[…]
linguagem é ‘uma forma de ação interindividual orientada para uma
finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas
práticas sociais existentes numa sociedade, nos distintos momentos de
sua história” (BRASIL, 1998, p. 20).
Embora o caráter de prática social da linguagem esteja também
evidente nessa definição, nela encontra-se inscrita, igualmente, uma noção
de línguas(gens) como competências individualizadas e internalizadas,
nos termos colocados por Pennycook (2018, p. 51) – traduzida inclusive
pelas menções à linguagem como ação interindividual ou como processo
de interlocução. Para nós, uma fotografia do que esse autor entende como
sendo o momento em que o uso social da linguagem se tornou inscrito
em uma noção de competência individualizada e, ao mesmo tempo,
quando uma competência internalizada passou a incluir uma dimensão
sociolinguística da língua(gem) (PENNYCOOK, 2018, p. 47). Tal noção
se torna mais evidente quando recuperamos, dos PCN (BRASIL, 1998),
o contexto maior em que a definição de linguagem foi apresentada. A
citação a seguir, além de dar continuidade ao trecho anteriormente men-

162
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

cionado, apresenta, ainda, o conceito de língua – também alinhado com


a perspectiva de linguagem adotada:

Os homens e as mulheres interagem pela linguagem tanto


numa conversa informal, entre amigos, ou na redação
de uma carta pessoal, quanto na produção de uma crô-
nica, uma novela, um poema, um relatório profissional.
Cada uma dessas práticas se diferencia historicamente e
depende das condições da situação comunicativa, nes-
tas incluídas as características sociais dos envolvidos
na interlocução […] tanto em função do registro e do
conhecimento linguístico quanto em relação ao assunto
em pauta. […] Em síntese, pela linguagem se expressam
idéias, pensamentos e intenções, se estabelecem relações
interpessoais anteriormente inexistentes e se influencia
o outro, alterando suas representações da realidade e
da sociedade e o rumo de suas (re)ações. […] Nessa
perspectiva, língua é um sistema de signos específico,
histórico e social, que possibilita a homens e mulheres
significar o mundo e a sociedade. Aprendê-la é aprender
não somente palavras e saber combiná-las em expressões
complexas, mas apreender pragmaticamente seus signi-
ficados culturais e, com eles, os modos pelos quais as
pessoas entendem e interpretam a realidade e a si mesmas
(BRASIL, 1998, p. 20).

A ideia de um emprego individual da linguagem (conferir


PENNYCOOK, 2018, p. 51), por homens e mulheres, para expressar
ideias, pensamentos e intenções, e da língua, como um sistema de signos,
por meio da ação de combinar palavras e de entender seus significados
culturais para fazer sentido da realidade ou de si mesmos, presente no
texto dos PCN (BRASIL, 1998), embora não tenha sido recuperada
como citação direta no texto da BNCC (BRASIL, 2018), mostrou-se em
diálogo com o que é proposto nos itens de competências e habilidades do
Componente de Língua Portuguesa, como exploraremos mais adiante.
Sendo assim, embora a BNCC incentive a consideração de diferentes

163
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

recursos semióticos na forma como entende a língua(gem), estendendo,


portanto, as possibilidades comunicativas e de produção de sentidos,
encontra-se, ao mesmo tempo, filiada à visão de língua(gem) social-
individual ainda muito voltada para o desenvolvimento de habilidades
individuais baseadas num modelo eleito de língua, distanciando-se de
uma concepção ampliada de língua(gem) (CANAGARAJAH, 2013,
2018; PENNYCOOK, 2016, 2018). Portanto, assim como Lopes e Silva
(2018) chamam a atenção para o papel homogeneizador dos PCN (BRA-
SIL, 1998), nós podemos dizer que, 20 anos depois, o mesmo acontece
na BNCC (BRASIL, 2018).
O cenário sociolinguisticamente complexo e multilíngue do Brasil,
já problematizado na literatura especializada anterior à elaboração dos
PCN (p. ex., BORTONI-RICARDO, 1985; MAHER; CAVALCANTI,
1993), comparece nos princípios e pressupostos da área de Linguagens
da BNCC (BRASIL, 2018). Ao mesmo tempo, as indexicalidades híbri-
das do documento revelam que a diversidade linguística é tratada nos
termos do debate sobre “variedades linguísticas” – e, consequentemente,
as ideologias linguísticas sobre correção ou adequação linguísticas são
vistas segundo a lente do “preconceito linguístico” (LOPES; SILVA,
2018, p. 699).
Tal posição da BNCC (BRASIL, 2018) fica clara, por exemplo,
na Competência 4 (ver Quadro 1) dentre as nomeadas Competências
Específicas de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental:

Quadro 1 – Competência Específica de Língua Portuguesa para o Ensino


Fundamental – número quatro (4).

4. Compreender o fenômeno da variação linguística, demonstrando atitude respeitosa


diante de variedades linguísticas e rejeitando preconceitos linguísticos.

Fonte: Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018, p. 87)

Ora, nessa concepção de entender “variação linguística” como


algo a “ser respeitado”, a depender de como se pretende que a noção de

164
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

respeito seja desenvolvida, pode não haver espaço para a sensibilização,


de fato, para a pluralidade linguística, entendida nos termos e reivindi-
cações de Anzaldúa (2009) e Lyiscott (2014) ou visibilizada na poética
do Slam do Corpo (2017), citados na introdução deste capítulo. A noção
de respeito, que parece ignorar ou apagar da discussão os conflitos e as
relações de poder que promovem as desigualdades, pouco contribui para
a visibilização e o acolhimento das comunidades menos prestigiadas e
de suas práticas e repertórios sociossemióticos. Entendemos que visões
pouco críticas sobre “respeitar” atreladas à noção de “variedades” como
não-línguas inviabilizam o entendimento mais complexo das desigual-
dades linguísticas, sociais e culturais.
Na mesma toada, a quinta competência específica (Quadro 2)
para o Componente Língua Portuguesa diz o seguinte:
Quadro 2 – Competência Específica de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental –
número cinco (5)

5. Empregar, nas interações sociais, a variedade e o estilo de linguagem adequados à


situação comunicativa, ao(s) interlocutor(es) e ao gênero do discurso/gênero textual.

Fonte: Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018, p. 87)

Nesse caso, acrescenta-se à noção de variedade a ideia de adequa-


ção à situação comunicativa (Quadro 2) com base em contextualizações
aparentemente pouco complexas. Ademais, tal ideia remete ao uso de
uma “outra variedade” do português para a comunicação que está sem-
pre atrelado ao “não uso da norma padrão” – isto é, a norma padrão não
seria, nesse sentido, também uma outra “variedade”? Retomando a fala
de Lyiscott (2014), poderiam então as suas [três] línguas, que a definem
como sujeito e que definem sua relação com os seus (sua mãe, sua famí-
lia, sua comunidade, sua universidade), serem reduzidas apenas a uma
“adequação à situação de comunicação” em que estaria havendo uso (ou
não) de uma norma padrão?
Tomando em conjunto os itens 4 e 5 da BNCC (Quadros 1 e 2),
salientamos que é preciso levar em consideração que, além das defi-

165
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

nições (meta)linguísticas e do construto social do que é “língua” e do


que é “variedade”, a visibilização dos repertórios sociossemióticos de
comunidades não-prestigiadas torna-se primordial para uma discussão
fundamentada e crítica sobre a questão dos preconceitos linguísticos e/
ou do que se entende por “adequação”.
Na seção da BNCC (BRASIL, 2018) que descreve os princípios/
pressupostos do componente de Língua Portuguesa, fica evidenciado
o entendimento de que as variedades estão contidas no uso da língua
portuguesa e não das demais línguas/culturas que compõem o nosso
“patrimônio cultural e linguístico” (BRASIL, 2018, p. 70). Em tais prin-
cípios/pressupostos veicula-se que tanto os recursos linguísticos quanto
os semióticos têm que ser utilizados de forma articulada e adequada e,
quando o contexto exigir, a norma padrão deve ser a privilegiada.
Queremos, pois, ressaltar que quando partimos da concepção de
que todos nós, brasileiros, falamos a língua portuguesa, porém com suas
variações, estamos reforçando o mito do país monolíngue e assumindo,
de saída, que as “variações” são menos complexas do que o objeto lín-
gua. Nesse sentido, o discurso do “respeito” se torna estratégico para a
naturalização dos entendimentos em torno da unificação da nação mono-
língue. Trata-se de uma afiliação ideológica que apaga a hierarquização
social das práticas linguísticas e dos recursos semióticos em prol da
promoção de uma diversidade “de supermercado”, no qual os “produtos
culturais” convivem de forma respeitosa e/ou indiferente e, portanto,
não há conflito nem desigualdade linguística, há apenas “adequação”.
O reflexo disso na formação docente é justamente o entendimento que,
apesar das diferenças de usos, no Brasil há uma língua única aceitável,
portanto essa é a língua eleita como “aprendizagem essencial” e, a partir
disso, “[a] diferença linguística é assim vista como um já dado, como
algo natural, cabendo à escola apenas pacificar e unificar (…)” (LOPES;
SILVA, 2018, p. 699-700) [ênfase original].
Para além da descrição de Competências, na BNCC (BRASIL,
2018), essas frentes colocadas para o trabalho com “variedades” en-
contram-se também traduzidas em Habilidades previstas (e prescritas)

166
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

para os ciclos do Ensino Fundamental I e II. Os trechos a seguir foram


retirados das tabelas que descrevem as habilidades que o professor de
português deverá trabalhar com os estudantes:
Quadro 3 – Habilidades para o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental –
excertos sobre o tema “Variedades Linguísticas”
Variação linguística
(EF35LP11) Ouvir gravações, canções, textos falados em diferentes variedades linguís-
ticas, identificando características regionais, urbanas e rurais da fala e respeitando as
diversas variedades linguísticas como características do uso da língua por diferentes
grupos regionais ou diferentes culturas locais, rejeitando preconceitos linguísticos.
(BRASIL, 2018, p. 112-113).
 
Formação do leitor literário/Leitura multissemiótica
(EF35LP22) Perceber diálogos em textos narrativos, observando o efeito de sentido de
verbos de enunciação e, se for o caso, o uso de variedades linguísticas no discurso
direto. (BRASIL, 2018, p. 132-133).
 
Análise linguística/semiótica (Ortografização)
Discurso direto e indireto
(EF35LP30) Diferenciar discurso indireto e discurso direto, determinando o efeito de
sentido de verbos de enunciação e explicando o uso de variedades linguísticas no
discurso direto, quando for o caso. (BRASIL, 2018, p. 134-135).
 
(EF69LP47) Analisar, em textos narrativos ficcionais, as diferentes formas de composi-
ção próprias de cada gênero, os recursos coesivos que constroem a passagem do tempo
e articulam suas partes, a escolha lexical típica de cada gênero para a caracterização dos
cenários e dos personagens e os efeitos de sentido decorrentes dos tempos verbais, dos
tipos de discurso, dos verbos de enunciação e das variedades linguísticas (no discurso
direto, se houver) empregados (…). (BRASIL, 2018, p. 158-159, todas as ênfases foram
adicionadas).

Fonte: Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018, grifo nosso)

O primeiro aspecto que se nota nesses trechos é que a questão das


variedades, isto é, das diferentes formas de praticar a linguagem, é sempre
associada com a oralidade. Em todos os trechos destacados das instruções
dadas aos professores fica evidente que a concepção de “variedade” está
delineada a partir dos usos orais da língua portuguesa. Mesmo quando
são mencionadas no contexto da esfera literária, atribui-se a possibilidade
de identificação de “variedade” sempre no discurso direto (EF35LP22 e

167
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

EF69LP47 – Quadro 3), isto é, na reprodução escrita de um trecho oral/


dialogado entre personagens. Será que isso significa que não existem
diferentes formas de praticar a linguagem – variedades – na modalidade
escrita? Variedades são desprovidas de expressão por escrito?
Diante das habilidades descritas, entendemos, portanto, que existe
uma língua unificada, assumida como a língua nacional e que funciona
como a “régua” pela qual identificamos e classificamos práticas linguís-
ticas variantes que são, quase sempre, práticas das margens ou ainda
práticas orais – portanto, menos controladas –, assim, não valorizadas
ou não prestigiadas. Convém ressaltar que, na realidade da sala de aula
pública brasileira, tais “variedades”, mesmo sendo não prestigiadas ou
não estando “à altura” da língua nacional, não deixam de ser práticas
que classificam/definem as identidades pessoais e identificações dos
alunos. Retomamos aqui Makoni e Meinhof (2006), que baseados em
seus estudos desenvolvidos em países africanos, constatam que as prá-
ticas linguísticas atreladas às políticas nacionais são insensíveis e até
mesmo coercitivas no que diz respeito ao tratamento dado às práticas e
repertórios linguísticos locais. Os autores destacam que as práticas locais
são comumente negadas e tomadas como equivocadas/desviantes pelas
agências de letramentos institucionais.
É interessante ver que a questão do tratamento de temas sensíveis
como diversidade linguística e cultural já era colocada como crítica a
vários documentos oficiais de educação anos atrás. Como menciona-
mos anteriormente, ao discutir os Parâmetros Curriculares Nacionais
de 1998, Lopes e Silva (2018) argumentam que tal documento também
reforçava o discurso do Brasil como um país monolíngue. Segundo os
autores, valendo-se da premissa de que nosso país é sustentado por um
“plurilinguismo societal”, o documento constrói a ideia de que

vivemos em estados-nações que tentam continuamente


constituir-se como sociedades oficialmente unificadas,
formadas por uma Cultura pública uniforme, cujas linhas
de demarcação são efetuadas sobretudo por uma língua
imaginada, assumida como a língua correta, nacional ou

168
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

padrão. (…) Assim, um dos elementos dessa ideologia


monoglota padrão é que acreditar nela equivale a uma
questão de bom senso, afinal o padrão, embora não exista
como coisa tangível, é um índice daquilo que é desejável
e moralmente bom. (LOPES; SILVA, 2018, p. 699).

Neste ponto convém reforçarmos o posicionamento, junto com César


e Cavalcanti (2007) e Cavalcanti (2013), de que as formas de comunicação
– entendidas de modo amplo, envolvendo estruturas, culturas, repertórios
sociossemióticos múltiplos e espaços-tempos diversificados, com ou
sem prestígio – às quais denominamos comumente como “variedades”
precisam ser apresentadas e vividas como “línguas”:

Vê-las como variedades pode resultar em invisibilização


e preconceito, como não línguas. Apresentá-las como lín-
guas pode ser uma oportunidade de lhes dar visibilização
que pede um posicionamento das pessoas de dentro das
comunidades e de fora delas (CAVALCANTI, 2013, p.
217).

A citação acima cai como uma luva para a discussão das práticas
linguísticas locais como essenciais para uma formação docente de visão
ampla e sensível às diversas práticas situadas possíveis nesse Brasil
continental e de tantas desigualdades – cerne que motivou a escrita deste
capítulo.
Um segundo aspecto a destacar nos trechos (Quadro 3) se refere
ao tratamento das variedades com respeito e sem preconceitos. Como
vimos na discussão do Quadro 1 – Competências, também no Quadro
3 – Habilidades aparece a rejeição a preconceitos de origem linguística
e o desenvolvimento do respeito às diversas variedades como habilida-
des a serem trabalhadas por meio de identificação e discriminação das
características de diferentes variedades (EF35LP11 – Quadro 3). Assim,
reiteramos que em vários momentos em que a BNCC (BRASIL, 2018)
aborda o trabalho com as variedades linguísticas, o movimento se dá em

169
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

direção ao desenvolvimento do respeito e do não-preconceito em relação


às variedades como uma resposta bem-intencionada aos usos linguísticos
que diferem da norma-padrão. Embora esse movimento possa ser visto
como preferível, se comparado a um total apagamento ou desprezo a tais
variedades, argumentamos, com base em Lee e Jenks (2006, p. 339),
que ele pode encobrir uma apreciação superficial dos usos linguísticos
privilegiando uma variedade, enquanto exotiza o não-padronizado. Se o
que se pretende é uma disposição translíngue, isto é, uma real abertura à
pluralidade e à diferença na forma como são feitos os usos de língua(gem),
o movimento em direção ao reconhecimento da diferença linguística não
pode se dar pela via do respeito e da tolerância (combate ao preconceito)
desenvolvidos apenas por meio do discurso. Em última análise, em uma
visão ampliada de educação linguística, e que almeja estabelecer uma
relação com o conceito de práticas translíngues, é preciso entender, por
exemplo, que o que se nomeia “variedades” – quase sempre estáticas e,
às vezes, até estereotipadas – se constituem, na verdade, línguas brasi-
leiras não prestigiadas.
Considerando o anteriormente exposto, argumentamos que é preciso
insistir na falácia do trabalho com variação por perspectivas tais como as
(i) do desenvolvimento de saberes a respeito do português e da identifica-
ção das variedades, (ii) da promoção do respeito, quase sempre esvaziado
de sentido ou (iii) do combate ao preconceito em relação às variedades
alheias quando se resume ao nível do falar e não envolve o vivenciar
concretamente. Pois, os problemas que vemos aqui dizem respeito ao
apagamento das relações de poder imbricadas nas convenções sociais
sobre o que é “variedade”, o que é língua e o que é norma padrão e ao
reforço do imaginário de que “variedade” é sempre a do outro. Deste
modo, qual é a noção de respeito aos diferentes usos linguísticos que
essas práticas contribuem para construir? Na BNCC (BRASIL, 2018),
nos excertos das páginas 112 e 113, reproduzidos anteriormente (rever
Quadro 3), quando o trabalho com variação é trazido como habilidade
a ser ensinada, encontramos sempre menção a “ouvir/ler, observar e
respeitar” a “variedade” alheia. Isto é, no processo de refletir e analisar,
as práticas são sempre colocadas como sendo do outro. Mas, o que o

170
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

professor deve fazer quando o aluno ouve/observa/questiona e/ou sofre


o desrespeito quanto à sua própria variedade – no nosso entendimento,
sua própria língua(gem)?
Essa forma de conceber o trabalho com as variedades, a nosso
ver, parece muito mais preocupada em desenvolver determinados pen-
samentos e compreensões em torno do conceito de “variedade” do que
em compreender as formas como os estudantes e professores agem e
entendem as variedades, isto é, em que medida já praticam (ou não) o
respeito às diferentes formas de agir na língua(gem).
Em suas pesquisas, Anker e Afdal (2018, p. 59) identificaram que
noções como respeito e tolerância são associadas a uma ampla gama de
sinais, incluindo formas de comportamento, prosódia, olhar, postura,
movimentos corporais, para além dos termos linguísticos. Sendo assim,
os autores argumentam que respeito e tolerância são melhor entendidos
como processos multimodais constituídos de diferentes modos e em
práticas complexas e híbridas.
Por ser o respeito um fenômeno social, interativo, distribuído e
multimodal e não um fenômeno individual, não pode ser tratado me-
ramente como “competências e habilidades” a serem desenvolvidas
individualmente nos alunos, sob o risco de serem promovidos apenas
na forma de um ajuste momentâneo dos alunos a uma disciplina dis-
cursiva (e corporal) exigida na escola, no caso específico tratado neste
capítulo, como identificação, reconhecimento, análise e reflexão sobre
as variedades (rever excertos sobre Habilidades no EF – Quadro 3).
Sendo compreendido em seus aspectos social, material e corporificado,
o respeito à pluralidade linguística precisa, para além de ser negociado
em práticas de análise linguística, também ser entendido e performado/
corporificado de diferentes modos – por professores e alunos – nas práti-
cas de educação linguística a fim de possibilitar uma abertura verdadeira
para a pluralidade linguística, cultural e identitária e o desenvolvimento
de uma disposição translíngue.
Não se pode negar que o reconhecimento das práticas linguísticas lo-
cais dos alunos e dos professores como não-línguas precisa urgentemente

171
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ser debatido como uma ideologia linguística que limita a operacionaliza-


ção de uma formação docente dentro das perspectivas de uma Linguística
Aplicada transgressora. Enquanto isso, Jamila Lyiscott, Gloria Anzaldúa,
Catharine Moreira e Cauê Gouveia nos ensinam que suas línguas são
legítimas. Elas e ele pertencem a espaços e culturas complexos que não
são limitados por fronteiras geográficas. Sua comunicação, ou melhor, sua
condição de estar/ser no mundo não ocorre apenas por meio de palavras/
estruturas “adequadas”, mas por meio dos significados construídos com
os recursos sociossemióticos que envolvem suas línguas, seus corpos e
suas subjetividades.

Considerações Finais

Diante do cenário teórico colocado, entendemos que a ideia de


educação linguística ampliada (CAVALCANTI, 2013) que estamos
defendendo aqui como essencial para a formação docente na atualidade,
celebra em seu âmago uma perspectiva translíngue/transgressora de en-
tender língua(gem). Isso significa repensar o próprio conceito de língua,
olhando para os diversos usos e repertórios e entendendo que as línguas
não deveriam ser definidas por características linguístico-estruturais pre-
viamente estabelecidas, mas também pelos recursos sociossemióticos e
culturais mobilizados pelos seus falantes. Assim, pensar em “competência
linguística” pela perspectiva do domínio de estrutura e de uma norma
padrão em oposição às línguas(gens) menos prestigiadas que a norma
não é suficiente para dar conta de sensibilizar o professor para questões
referentes à pluralidade de recursos mobilizados em práticas de linguagem
reais, isto é, às diversidades sociais, culturais e linguísticas. Queremos
sensibilizar o professor que assume o componente curricular de Língua
Portuguesa a compreender que trabalhar com as línguas brasileiras (as
de maior ou menor prestígio) é entender que nossas práticas linguísticas
ultrapassam, esticam, contraem, diluem, mesclam, etc. diferenças geo-
gráficas, socioculturais, linguísticas e/ou visual-motoras e, portanto, são
muito mais complexas e polêmicas do que variações estáticas de uma
mesma língua (BLOMMAERT, 2010).

172
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

A ideologia linguística que perpassa a BNCC (BRASIL, 2018),


em muitos momentos, sobretudo quando operacionaliza o trabalho com
variedades, trata a questão da desigualdade linguística como algo natural
e sem implicações sociais e/ou políticas – os conflitos estão diluídos no
discurso que prega o respeito e o combate ao preconceito. Isto significa
ignorar qualquer problematização em torno da “hierarquização de línguas
e dialetos” no país (LOPES; SILVA, 2018, p. 699). Não se coloca em
pauta o que gera preconceito, nem as disputas de poder e, tampouco, a
construção do imaginário coletivo que elege uma “variedade” como o
padrão adequado de uso da língua.
Pensar e discutir sobre respeito às línguas/variedades só pode estar
interligado a ações que dão espaço e possibilidade de experienciar e
vivenciar usos reais da língua(gem) que, portanto, respeitam/vivem, as
diferentes formas de praticar a linguagem. Em termos simples, como nos
inspiram Anker e Afdal (2018) a pensar, isso significa considerar uma
abordagem prática que localiza a abertura para pluralidade linguística
não no desenvolvimento de habilidades em um cérebro individual, nem
mesmo apenas em nível discursivo, “mas entre atores e configurações
em rotinas de práticas coletivas” (ANKER; AFDAL, 2018, p. 57), nas
quais o entendimento da diferença é construído no entrelaçamento de
língua(gens), corpos, materiais e tempos-espaços.

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175
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

As balbúrdias nas Universidades Públicas:


Entre a educação-resistência e a (des)
educação dos Ministros da Educação do Brasil

Grassinete C. de Albuquerque Oliveira1


Paula Tatiana da Silva-Antunes2

Vigora o senso-comum de que todos teriam conhecimento para tratar


de/sobre a educação. Assim, qualquer pessoa, em qualquer situação e
lugar, poderia apontá-la como a cura e a solução para problemas sociais-
econômicos-culturais-identitários vivenciados pela população brasileira.
Entretanto, para nós que atuamos neste cenário educacional, sabemos
tratar-se de um tema complexo, que envolve aspectos direcionados, de
modo quase exclusivo, a especialistas da área. Etimologicamente, educa-
ção/educare remete a conduzir o indivíduo, ou seja, expressa uma ideia de
desenvolvimento intelectual, de promoção e incentivo do conhecimento,
da aprendizagem e das habilidades. É uma palavra imbuída de sentidos
e significados, difícil de ser implementada de modo eficiente.
Em relação à qualidade da educação brasileira, na atualidade,
há programas e projetos (re)criados pelo Governo Federal, os quais
sustentam uma lista de problemas dissociados das reais necessidades
de docentes e discentes. Nessa lista de dificuldades, destaca-se, princi-
palmente a partir do Ensino Fundamental II, o ensino compartimentado
1 Universidade Federal do Acre (UFAC). Grupo de Estudos em Análise de Discursos e Ensino
de Línguas – Geadel.
2 Universidade Federal do Acre (UFAC). Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem
e Identidade. Grupo de Estudos em Análise de Discursos e Ensino de Línguas – Geadel.

177
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

e (ainda) distante da realidade do educando; professores sobrecarrega-


dos e desmotivados; infraestrutura comprometida; violência escolar;
acesso às tecnologias incipientes; evasão escolar durante o Ensino
Médio, além de, aproximadamente, 50% dos alunos matriculados em
universidades não concluírem o ensino superior (MORAN, 2007).
Sem contar que temos, ainda, programas de formação de formadores
centrados na transmissão de conhecimento, visto como linear e hie-
rarquizado (FURLANETTO, 2011), de modo a promover e manter o
distanciamento de grande parte da população brasileira aos bens sociais,
culturais e econômicos.
De modo geral, tanto a educação básica quanto a superior carecem
de mudanças estruturais e não bastam ajustes e remendos para resolver
a situação. Os problemas, bem como alguns progressos concorrem
simultaneamente, fazendo-se necessário revisitar os programas educa-
cionais propostos para avançarmos rumo à aprendizagem consciente,
capaz de estabelecer conexões com o mundo cada vez mais global e
interconectado.
Essa conexão impõe novos e necessários desafios. Moran (2007)
destaca que a sociedade aprende novas maneiras de agir, de forma con-
tínua e ininterrupta, e os participantes são atores propondo caminhos
para os problemas detectados. Ademais, tal conexão coloca o indivíduo
a agir e integrar o conhecimento local globalizado e o global localizado,
de modo glocal (KUMARAVADIVELU, 2006), a fim de atender a dife-
rentes demandas, bem como a responder às consequências impostas por
situações que acontecem no local e viralizam globalmente. A exemplo
disso, destacam-se os discursos proferidos por quem ocupou/ocupa o
cargo de Ministro da Educação entre os anos 2019 e 2020, veiculados
na imprensa e nas redes sociais, desqualificando a educação brasileira
e, neste caso em específico, o ensino superior público e, em especial, os
profissionais que nele atuam.
Nesse cenário, ao tomarmos como referência os discursos dos Mi-
nistros da Educação do Brasil, nomeados pelo presidente Jair Bolsonaro,
em 2018 e 2019, proferidos nas redes sociais, na imprensa nacional e in-

178
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ternacional, revelam a posição ideológica (VOLÓCHINOV, 2017 [1929])


e política dos falantes em um contexto situado que polariza, ridiculariza
e desqualifica a educação superior brasileira, por a considerarem como
lugar, por exemplo, de “laboratórios de drogas” e “plantação de maconha”
(WEINTRAUB, 2019)3.
Esse contexto discursivo tenso e conflituoso produziu a atitude de
resposta necessária não apenas das universidades públicas brasileiras,
como também promoveu ações protagonistas colaborativas que ganharam
as ruas públicas, as redes sociais, a imprensa, com intensas manifestações
de repúdio e indignação de grande parte da sociedade, no país e no exte-
rior, materializando discursos em defesa da educação, com significados
de luta, de valorização e de respeito para com o ensino tecnológico e
superior brasileiro.
Diante dessa realidade, em primeiro lugar, apresentamos um breve
percurso teórico de autores que ocuparam e discutem os estudos da lingua-
gem, mídias e culturas a fim de compreender quais sentidos e significados
desses discursos proferidos pelos ministros da Educação marcam uma
ideologia de intimidação, polarizada e estereotipada do ensino superior
público, de modo a resultar, em contrapartida, em manifestações públi-
cas como forma de resistência política, em defesa da democracia e pelo
direito à educação laica.
Em seguida, apresentamos o contexto sócio-histórico e cultural que,
em 2018, após uma eleição marcada por fake news, agressões verbais e
físicas (com a tentativa de homicídio ao então candidato Jair Bolsonaro)
e poucos projetos políticos, econômicos e sociais apresentados, os Mi-
nistros de Educação nomeados em 2019 – Ricardo Vélez, Abraham
Weintraub e, em 2020, Carlos Decotelli (assumiu o ministério por apenas
05 dias, saindo por divergência no Curriculum Lattes) e Milton Ribeiro
– mantiveram, em seus discursos, posicionamentos preconceituosos, e
divulgação de fake news baseadas em discursos de ódio, como a afirmação
3 Notícia publicada na Revista Veja, com o título “Na Câmara, Weintraub reafirma que há
plantação de maconha em universidades”. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/
na-camara-weintraub-reafirma-que-ha-plantacao-de-maconha-em-universidades/. Acesso: 14
ago. 2020.

179
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

do atual ministro Milton Ribeiro de que a “grande moda dos sociólogos


e filósofos” é “desconstruir valores e ideias” e não colocar “nada no
lugar”, “deixam um vazio”4.
Na sequência, selecionados alguns discursos proferidos pelos mi-
nistros nas redes sociais e na imprensa, analisamos à luz da linguística
aplicada de caráter inter/trans/indisciplinar e transgressiva (MOITA
LOPES, 2006; PENNYCOOK, 2006) quais sentidos e significados
(VYGOTSKY, 2005 [1934]) podem ser depreendidos pelas políticas
ideológicas autoritárias que estabelecem um vínculo entre a nostalgia e
a crença de uma realização dos ideais de conservadorismo, incitando a
violência e colocando em risco os direitos humanos. Por conseguinte,
no sentido de resistir-expandir argumentamos que o papel da educação
superior pública abrange refletir sobre a linguagem enquanto prática
social não-neutra, envolvendo escolhas ideológicas e políticas, sendo
imprescindível estudá-la para compreender como a sociedade está atra-
vessada por relações de poder, capazes de provocar diferentes efeitos de
sentido (FABRICIO, 2006) local/global.
Por último, em nossas palavras finais, em atitude responsiva e
responsável (BAKHTIN, 2003 [1953-1954]; 2017 [1920]), pois ser na
vida significa agir, em resistência a uma política autoritária e polarizada,
apresentamos o que acreditamos, como linguistas aplicadas, ser o papel da
educação pública superior, ou seja, atuar como prática problematizadora
na formação de profissionais críticos, transgressivos (PENNYCOOK,
2006) que rompam com regimes de verdades absolutas e promova entre
os sujeitos, no-e-pelo diálogo, o ser mais (FREIRE, 1987, p. 53) em prol
de uma educação eficaz e transformadora.

4 Notícia publicada na Folha de S. Paulo, sob o título “Sem fé, jovens do Brasil são ‘zumbis
existenciais’, diz ministro da Educação”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/
educacao/2020/09/sem-fe-jovens-do-brasil-sao-zumbis-existenciais-diz-ministro-da-educacao.
shtml?origin=uol. Acesso em: 13. set. 2020.

180
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

A linguagem e o poder – nas redes sociais e na


imprensa, no público e no privado

A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar


do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc.
Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a
vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito,
todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e
essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana,
no simpósio universal (BAKHTIN 2003 [1954-1954],
p. 348).

Consideramos que a vida é dialógica e, por assim dizer, os discursos


enunciados na vida produzem sentidos e significados que buscam, na voz
do outro, a resposta, a (con/dis)cordância, o confronto dialético que nos
torna capazes de refletir/agir sobre o discurso proferido. Essa relação
nem sempre harmônica de como usar a palavra viva é constantemente
reatualizada nas redes digitais por sujeitos que procuram disseminar suas
opiniões, crenças, valores, experiências e conteúdos, além de encontrar,
em seus pares, concordância e compartilhamento de tais pontos de vista.
Por outro lado, ao compartilhar textos, vídeos, áudios, imagens, entre
outros, abre-se espaço para o contra-argumento, para a curadoria (ROJO;
BARBOSA, 2015), para uma reflexão cuidadosa (ou não) sobre o que foi
apresentado em tais redes/mídias digitais, por meio da multimodalidade.
No espaço virtual, diferentes linguagens atuam na construção, na
produção e na leitura de textos multimodais de modo que, nas palavras de
Ribeiro (2016), trata-se de assunto urgente para a academia, pois diante
dos inúmeros escritos que circulam socialmente, analisá-los para chegar-
mos a uma consciência sobre a composição e as finalidades desses textos
e como interagem e agem com os mais diversos sujeitos virtualmente, é
de fundamental importância.
É inquestionável que as inovações tecnológicas e científicas al-
teraram, de modo fundamental, a vida de grande parte da população
mundial e essas mudanças vieram associadas às mais diversas inovações

181
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ao longo da história como o desenvolvimento da imprensa ao uso da


telefonia móvel, especialmente os smartphones, cuja função ultrapassa
o envio de voz e conecta-se com rede de dados externos, apresentando
inúmeras outras funcionalidades capazes de auxiliar a vida humana e
torná-la menos burocrática.
Por conseguinte, a interação entre as pessoas engendrou novas for-
mas de ver-ouvir-sentir, ser e estar no mundo, e a relação tempo/espaço
desterritorializados construíram desafios para o sistema educacional res-
ponder, segundo Monte-Mór (2015), às inúmeras demandas de trabalhos
com textos multimodais. Esses textos, ao articularem diferentes recursos
multissemióticos para expressar informação e/ou conhecimento, constro-
em discursos ideológicos, com valores e crenças, podendo conduzir seus
leitores a um compartilhamento, sem que ocorra a curadoria necessária
sobre a informação divulgada.
Essa curadoria, entendida no âmbito educacional como uma for-
ma de o leitor verificar como as ações e os processos de leitura/escrita
acontecem no universo das redes, mediante a abundância de conteúdos
e informações que se apresentam dispersos, contraditórios e passíveis de
múltiplas interpretações (ROJO; BARBOSA, 2015, p. 124), reordená-los
para torná-los compreensíveis é algo imprescindível. Usar da curado-
ria, na perspectiva das autoras, implica em fazer escolhas, selecionar o
conteúdo e as informações em forma e propósito, de modo a despertar o
senso crítico sobre o que é veiculado nas redes digitais.
O exercício de curadoria em um mundo transmídia, no qual as
“velhas e as novas mídias colidem, onde mídia corporativa e alternativa
se cruzam, onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor
interagem de maneiras imprevisíveis” (JENKINS, 2006, p. 29), obriga-
nos a repensar qual a nossa relação e participação neste universo de
conhecimento. Jenkins (2006) argumenta que a convergência do fluxo de
conteúdos que circulam através de múltiplas plataformas de mídias pode
definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais, sociais
e, incluímos, políticas e religiosas, a depender de quem está falando e
do que imaginam estarem falando.

182
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Volóchinov (2017 [1929]) destaca que a palavra penetra em todas


as relações entre os indivíduos, nas de colaboração, nas de base ideoló-
gica, nas de caráter político, religioso, para citar algumas. Seguindo esse
entendimento, podemos afirmar que os fios ideológicos servem como
fio condutor para a interação social em todos os domínios, capazes de
(trans)formar o meio social, como também deturpá-lo por meio de ações
preconceituosas, discursos de ódio e propagação de fake news.
Como a palavra é carregada de conteúdos e sentidos ideológicos,
conforme apresentado por Volóchinov (2017 [1929]), compreendemo-la
dentro de um contexto situado específico, capaz de despertar nos outros as
ressonâncias ideológicas ligadas às experiências vividas. Nesse sentido,
a língua reflete e refrata os sentidos construídos por sujeitos em interação
social, de tal maneira que alguns discursos são capazes de promover
fidelidade e/ou distorcer os fatos apresentados. Desse modo, a pauta
conservadora, de moralidade, de respeito aos valores cristãos e aos bons
costumes enunciados pelo presidente Jair Bolsonaro como princípios
de seu governo, encontra ressonância entre os discursos dos ministros,
instaurando a tensão política e ratificando a crise brasileira, não apenas
econômica decorrente, dentre outros, da corrupção persistente no país,
como também jurídica, social, educacional e cultural, de modo a ameaçar
o pacto democrático validado na Constituição de 1988.
Pautas como democracia, ensino laico, educação para todos, po-
líticas inclusivas de núcleos familiares diversos, direito ao aborto, ao
combate à homofobia passam pela percepção, segundo Miguel (2018)
ao tratar da extrema-direita brasileira de eixos fundamentalistas reli-
giosos e radicais, de que há uma única verdade revelada, pronunciada,
“que anula qualquer possibilidade de debate”, com uma “agenda moral”
(MIGUEL, 2018, p. 20) cujo discurso passa a apresentar o PT como
encarnação viva do comunismo do Brasil, líder da decadência moral
e social, único responsável pelos desvios éticos na política brasileira
(idem, p. 24). As redes sociais passam a ser um dos melhores lugares
para disseminar a verdade revelada, espalhar o discurso de ódio e
estabelecer uma nuvem de fake news estigmatizando o PT, todos os
aliados e simpatizantes, como a “encarnação da desonestidade e do mal”

183
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

(MIGUEL, 2018, p. 24), precisando serem derrotados para avançar nos


bons valores e costumes.
Esses enunciados ganharam força na campanha presidencial em 2018
e, após a posse de Jair Bolsonaro, alguns dos ministros empossados conti-
nuaram com a disseminação de ódio, de fake news na imprensa e em suas
redes sociais. No caso dos enunciados polêmicos dos ministros de Educação,
objetos de análise deste texto, ao verificarmos que a palavra procede de al-
guém e se dirige a alguém, ou seja, “serve de expressão a um em relação ao
outro” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 205) essa interação ativa entre locutor e
o interlocutor (real ou presumido) ativa uma responsividade em que a apre-
ciação valorativa acerca da moralidade e dos “bons costumes” encontra, na
sociedade, porta-vozes adeptos aos mesmos valores e às mesmas ideologias.
Severo (2007, p. 64) destaca que a ideologia é constitutiva da di-
nâmica social, da própria consciência, de tal modo que a comunicação
– verbal, escrita, audiovisual, verbo-visual, sonora, dentre outras – or-
ganiza, regula ou subverte as relações histórico-materiais dos homens
determinadas pelas relações de produção (econômica) e pela estrutura
sociopolítica. Assim, quando os ministros enunciaram que na educação
não se produz ciência e/ou ensino, colocaram em risco o destino dos
recursos financeiros do Fundeb – Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação Básica – enfatizando que deveriam ser alocados a outros
setores, como o programa Renda Brasil5.
Como todo signo reflete e refrata (VOLÓCHINOV, 2017) parte da
realidade, capaz de distorcer um ponto de vista específico, ao tomarmos
como exemplo o termo “balbúrdia”, proferido pelo ex-ministro Wein-
traub, em 2019, em referência a cortes de verbas destinados a universi-
dades que promovessem balbúrdia, esse termo assumiu uma orientação
avaliativa, ou seja, no enunciado vivo e concreto, ela não apenas sig-
nificou como também avaliou (VOLÓCHINOV, 2017) a Universidade
Pública como um lugar onde não se faz ciência, destinado a drogados e
a docentes improdutivos.
5 Programa proposto pelo atual governo em substituição ao Bolsa Família, criado em 2003,
como medida provisória no Governo de Fernando Henrique Cardoso e convertido na Lei nº
10.836, em janeiro de 2004, pelo Governo Lula.

184
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Esse enunciado de Weintraub cruzou ênfases multidirecionadas


que proporcionou ao signo torná-lo o centro da responsividade ativa
dos falantes, principalmente de educadores, conferindo à linguagem o
caráter plural presente em uma sociedade contraditória. Nesse cenário,
manifestações de toda natureza ocorreram pelo Brasil e pelo mundo, na
imprensa, nas redes sociais, nas ruas de todo o país, fazendo valer uma
compreensão de que a fala é viva, prenhe de resposta de tal modo que,
obrigatoriamente, ouvinte se torna falante (BAKHTIN, 2016, p. 25).
De modo semelhante, Almeida (2019) destaca o papel das redes
digitais como plataforma de expressão, informação e de discussão po-
lítica, expressas em opiniões e compartilhamentos de imagens, vídeos,
notícias, dentre outros. A comunicação virtual é mais eficaz por criar
“uma face virtual, manter pouca oralidade, apresentar limites na escrita
digital” (ALMEIDA, 2019, p. 189) sendo mais contundente e excessiva
do que se estivesse em interação face a face. Nessa arena de interação
política, os efeitos do WhatsApp foram crescentes, fazendo circular infor-
mações, fake news, memes em múltiplos grupos fechados, favorecendo
uma interatividade instantânea, próxima (ALMEIDA, 2019, p. 190) e
extremamente eficaz. Nas palavras do autor, o WhatsApp promove

Uma socialidade mais ampla quantitativamente do que


as relações face a face e, no entanto, fechada e menor do
que a proporcionada pelo Twitter e pelo Facebook. Não
é por acaso o esforço cada vez mais crescente de políti-
cos e partidos para alcançar principalmente em período
eleitoral as microrredes de interação virtual extremamente
capilares. A campanha de 2014 foi a primeira a adotar a
tecnologia, mas foi em 2016 que ela começou a ser utili-
zada pelos políticos, tanto em eleições como para manter
a comunicação com apoiadores e parcelas da população
durante os mandatos. Porém, em 2018, a plataforma
teve papel decisivo na construção da (i)legitimidade
dos candidatos. (ALMEIDA, 2019, p. 190-192, ênfase
adicionada).

185
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Sob essa perspectiva, as redes digitais tiveram papel decisivo na


construção da legitimidade das eleições brasileiras em 2018 e serviram
para deslegitimar adversários, promover rejeições e colocar sob suspeita
a honestidade dos candidatos. Com o slogan “Brasil acima de Tudo, Deus
acima de Todos”, Bolsonaro venceu as eleições e tornou-se presidente.
Ao nomear os ministros, deixa evidente que todos precisariam estar com
o discurso alinhado, caso quisessem permanecer no cargo. Discurso esse
que encontrou nos ministros da Educação, em 2019 e 2020, a consolidação
do Estado autoritário, ampliou o preconceito, a xenofobia e a intolerância.
Por nos encontrarmos inseridos nas mais diversas práticas sociais
e discursivas, o enunciado concreto realizado em situação e contexto
específicos manifesta o embate, o conflito, a tensão dialógica, uma
consciência social materializada pelo jogo do poder, pela existência
econômica e, por sua vez, capaz de determinar “a consciência individual
de cada membro da coletividade (MEDVIÉDEV, 2012 [1928], p. 56).
A linguagem desempenha, nesse jogo de interlocuções, papel central ao
promover transformação na comunicação, ao construir novos sentidos e,
segundo Barton e Lee (2015), é essencial na determinação das mudanças
de vida e nas experiências vividas.

Ministério da Educação e os ministros

O Ministério da Educação é uma das principais pastas ministeriais


e, por isso, deveria ser comandada por especialistas que têm real com-
promisso com um projeto educacional efetivo e de qualidade para o
Brasil. Em contrapartida a essa afirmação que parece tão óbvia, o atual
governo tem sido desastroso na escolha de um ministro da educação para
dar continuidade a políticas educacionais já consolidadas socialmente
e para pensar/colocar em prática projetos que visem melhorar consubs-
tancialmente a qualidade educacional do país desde a educação básica
ao ensino técnico e superior e até mesmo programas de pós-graduação,
os grandes aliados no desenvolvimento da ciência.

186
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

A escolha de ministros, no Brasil, configura-se como moeda de troca


entre partidos e governo, servindo a interesses mais particulares do que
à sociedade como um todo. Assim, “[o] presidente nomeia integrantes
de partidos aliados e espera, em retorno, apoio para governar, especial-
mente em votações no Congresso Nacional” (PASSARINHO, 2018). Em
campanha eleitoral, essa foi uma das críticas feitas pelo então candidato
à presidência Jair Messias Bolsonaro, mas, após sua eleição, observamos
que não houve mudanças nesse aspecto, pois, além de atender a interes-
ses de partidos aliados, a influência de Olavo de Carvalho na escolha
de ministros ganhou as mídias e mostrou-se catastrófica com o passar
do tempo, tanto que culminou em um anúncio público de ruptura entre
Olavo e Bolsonaro (FERRARO, 2020). Entretanto, antes de romper com
o governo, as mídias divulgaram sua influência na escolha dos Ministros
da Educação, como apresentamos a seguir, ao discorrer brevemente sobre
cada um dos quatro ministros que assumiram a pasta entre 2019 e 2020.
Após o resultado das eleições, em 2018, o presidente eleito, como
de praxe, passou a montar sua equipe de governo que atuaria a partir do
ano seguinte. Desse modo, no dia 22 de novembro de 2018, Bolsonaro
informou que quem ocuparia a pasta do Ministério da Educação seria o
colombiano, naturalizado brasileiro, Ricardo Vélez Rodriguez, anúncio
este feito em sua conta no Twitter: “Gostaria de comunicar a todos a in-
dicação de Ricardo Velez Rodriguez, Filósofo autor de mais de 30 obras,
atualmente Professor Emérito da Escola de Comando e estado Maior do
Exército, para o cargo de Ministro da Educação” (BOLSONARO, 2018
apud BERMÚDEZ, 2018).
Segundo notícia publicada no site UOL (BERMÚDEZ, 2018), havia
outro nome anteriormente cogitado para a pasta, o do diretor do Instituto
Airton Sena, Mozart Neves Ramos, mas que não tinha a aprovação da
bancada evangélica (grupo de parlamentares formado por pessoas que
compartilham da mesma crença religiosa, baseada em valores cristãos, de
denominações relacionadas ao Protestantismo, e apoiadores do presidente
eleito), pois ele não estaria alinhado aos ideais do Movimento Escola sem
Partido. Esse movimento surgiu em 2004 e se autodenomina como “uma
iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de con-

187
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

taminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis:


do ensino básico ao superior” (ESCOLA, 2020) e foi uma das bandeiras
levantadas por Jair Bolsonaro durante campanha eleitoral, procurando
manter seu posicionamento na escolha dos ministros da educação.
Assim, Ricardo Vélez Rodriguez, com graduação, mestrado e dou-
torado em filosofia, teria sido uma indicação de Olavo de Carvalho, e se
dizia comprometido com a “proposta” de seu governante: “Mais Brasil,
menos Brasília” (BERMÚDEZ, 2018). Sua passagem pelo MEC, que
durou até o dia 08 de abril de 2019, foi marcada por muita polêmica, crí-
ticas e, praticamente, nada de efetivo foi realizado. Em matéria publicada
pela BBC News, sob o título A crise que derrubou o ministro Vélez em 9
tuítes, destaca-se uma das últimas polêmicas em que se envolveu, a de
que “pretendia mudar a forma como o golpe de 1964 e a ditadura militar
são retratados nos livros didáticos, ‘para dar uma visão mais ampla da
história’” (SHALDERS; ALVIM, 2019).
Entretanto, houve outros fatos desastrosos que antecederam essas
crises no final de sua gestão. Logo no início de sua atuação como minis-
tro, no dia 25 de fevereiro de 2018, encaminhou um e-mail a diretores
de escolas, instruindo-os a, no primeiro dia de aula, lerem uma carta a
toda a comunidade escolar, diante da bandeira nacional, e que fossem
enviados a ele trechos de filmagens do acontecimento. Esse fato gerou
uma grande polêmica, tanto pela exposição a que estariam sujeitos alunos
e funcionários, quanto pelo teor da carta, compreendida, principalmente
pelo enunciado final, uma propaganda política do governo: “Brasileiros!
Vamos saudar o Brasil dos novos tempos e celebrar a educação respon-
sável e de qualidade a ser desenvolvida na nossa escola pelos profes-
sores, em benefício de vocês, alunos, que constituem a nova geração.
Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!” (RODRIGUEZ, 2018 apud
SHALDERS; ALVIM, 2019).
Além das falas polêmicas, houve inúmeras substituições em cargos
vinculados ao ministério, publicação de editais com problemas e pouco
comprometimento com a pasta, resultando em uma cobrança pública, no
dia 27 de março, em que o ministro participou de uma audiência com

188
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados. O destaque dessa


audiência foi a fala da deputada federal Tabata do Amaral (PDT-SP)
que o questionou sobre a falta de projetos para o MEC, em três meses
de atuação, e que uma “lista de desejos” apresentada por Vélez, em Po-
werPoint, sinalizava seu total despreparo e que, por isso, deveria deixar o
cargo. Desse modo, após todas as evidências de desqualificação de Vélez
para a pasta, Bolsonaro reconheceu que o ministro não tinha competência
para permanecer no governo e, após o anúncio de sua saída, divulgou o
nome de Abraham Weintraub como o segundo ministro da educação ao
se completarem três meses do novo governo.
Com formação em ciências econômicas e mestrado em adminis-
tração, Weintraub já fazia parte do governo, atuando como secretário-
executivo da Casa Civil, e seu nome agradou, em parte, tanto a ala militar
quanto o escritor Olavo de Carvalho (OLIVEIRA, 2019). No entanto, sua
única experiência no âmbito educacional se dava por meio do cargo de
professor na Universidade Federal de São Paulo (o que não representa
nada em termos de vínculo com a educação, pois muitos bacharéis atuam
na função de professores universitários enquanto “técnicos especialistas
no assunto” sem, contudo, terem formação na área educacional e pouca
ou nenhuma experiência no ensino). E se a passividade e a falta de atitude
do ministro anterior transmitiam a sensação de não sairmos do lugar, a
atuação do segundo ministro foi ainda mais tenebrosa, pois seus projetos
para a educação, suas postagens nas redes sociais e suas falas em reu-
niões ministeriais escancararam a falência do MEC para uma sociedade
tão carente em educação. Sua saída, em meados de junho de 2020, foi
anunciada em meio a denúncias de racismo devido a um post em que
desqualificava os chineses e, também, por, em uma reunião ministerial,
ter chamado de “vagabundos” os ministros do Superior Tribunal Federal.
Após a vacância na pasta, alguns nomes foram cogitados, como o
do atual secretário estadual de educação do Paraná, Renato Feder, e do
secretário de alfabetização do MEC Carlos Francisco Nadalim. Mas o
nome anunciado pelo presidente foi o de Carlos Alberto Decotelli, que
seria doutor em administração, com pós-doutorado na Alemanha. Após
esse anúncio, a mídia e várias pessoas nas redes sociais fizeram denúncias

189
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

em relação às inconsistências no currículo de Decotellli. Oficialmente,


a Universidade do Rosário se pronunciou, informando que não havia
registros da realização do seu doutoramento e, a universidade da Ale-
manha Wuppertal, onde ele teria realizado o pós-doutorado, também o
desmentiu. O resultado de tudo isso foi que o presidente solicitou sua
exoneração cinco dias depois de divulgar o nome de Decotelli à imprensa,
antes mesmo de ele tomar posse do cargo.
Depois dessa polêmica situação, Jair Bolsonaro nomeou como
ministro o professor Milton Ribeiro, pastor da Igreja Presbiteriana e ex-
vice-reitor da Universidade Mackenzie. Sua postura é bem mais discreta
que a de Weintraub, mas os dois mantêm os discursos, sob aprovação do
presidente, como se constata nesta manchete: “Acusado de homofobia,
ministro da Educação é elogiado por Bolsonaro” (FARIAS, 2020). Assim
como se evidenciou em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo6,
em que o ministro demonstrou compactuar com a bandeira levantada por
Bolsonaro em sua campanha eleitoral quanto ao combate à “ideologia de
gênero”, pois, para ele, os homossexuais seriam provenientes de famílias
“desajustadas”.
Com essas breves considerações a respeito dos quatro ministros que
foram indicados para assumir a pasta do MEC, em menos de dois anos
de governo de Jair Bolsonaro, finalizamos esta seção para, em seguida,
analisarmos alguns enunciados polêmicos proferidos por eles, a fim de
problematizar como, em um governo que se diz democrático, ser possível
que pessoas despreparadas assumam um cargo de tão relevância para a
nossa sociedade.

Das balbúrdias e a (des)educação dos ministros

O que fazer com a educação no Brasil? Esta é uma pergunta que,


de algum modo, em todos os governos foi/é pauta recorrente. Os índices

6 Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, com o título “Volta às aulas no país e aces-


so à internet não são temas do MEC, diz ministro”. Disponível em: https://educacao.estadao.
com.br/noticias/geral,voltas-as-aulas-no-pais-e-acesso-a-web-nao-sao-temas-do-mec-diz-
ministro,70003450120. Acesso: 03 nov. 2020.

190
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

dos exames nacionais e internacionais revelam a disparidade de falta de


conhecimento do educando desde o Ensino Fundamental I até o final do
Ensino Médio. Inúmeras medidas e projetos são desenvolvidos pelos
governos com o intuito de diminuir esse abismo instaurado, mas ainda
não conseguimos o ensino de qualidade almejado.
Com o slogan “Brasil acima de Tudo, Deus acima de Todos”, o
atual governo do presidente Jair Bolsonaro revelou seu objetivo de tirar
a educação brasileira da influência ideológica da esquerda. Para isso,
nomear ministros que se aliavam a esse discurso era fundamental. Logo
no primeiro ano de governo, o Ministério da Educação (MEC) foi uma
das pastas mais movimentadas. O primeiro-ministro a assumir a pasta
Ricardo Vélez Rodríguez fazia parte do grupo de seguidores e indicado
por Olavo de Carvalho, uma espécie de guru do presidente, que entoava
discursos frenéticos de ódio contra a esquerda brasileira.
Ricardo Vélez ficou quase três meses como ministro. Durante
sua gestão, demitiu várias pessoas do alto escalão do ministério, entre
eles, o presidente do Inep, Marcos Vinicius. As demissões e as faltas
de projetos colocaram em risco a Base Nacional Comum Curricular
e o Enem, além das confusões em editais e portarias no Sistema de
Avaliação da Educação Básica (Saeb) e do Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD), mas os discursos apresentados nos meios de
comunicação evidenciaram o total despreparo para comandar a pasta
e evidenciar sua deseducação.
Uma das falas emblemáticas do ministro ocorreu na entrevista ao
jornal Valor Econômico ao dizer que “a ideia de universidade para to-
dos não existe […] As universidades devem ficar reservadas para uma
elite intelectual, que não é a mesma elite econômica [do país]”7. Esse
enunciado evidencia uma posição de segregação total, pois considera
as universidades como o lugar reservado para uma elite intelectual e
que apenas os que têm posse podem frequentá-la, negando aos demais
a possibilidade de entrar neste ambiente e espalhar as tintas culturais
7 Em entrevista ao jornal Valor Econômico, em 28 de janeiro de 2019. Disponível em: https://
valor.globo.com/brasil/noticia/2019/01/28/ideia-de-universidade-para-todos-nao-existe-diz-
ministro-da-educacao.ghtml. Acesso: 28 set. 2020.

191
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

(OLIVEIRA, 2006) manifestadas pelas diversidades e pluralidades que


constituem o povo brasileiro.
Na perspectiva do ex-ministro Vélez de que a universidade não é
para todos, esse enunciado concreto revela uma concepção hegemônica,
privilegiada que concebe o conhecimento a partir da lógica da colonização
do saber, da cultura, da língua, da política e da economia. Ao selecionar
quem pode estudar nas universidades, o ex-ministro marginalizou e invia-
bilizou a maior parte dos cidadãos brasileiros, acentuou as desigualdades
sociais e sustentou o discurso de que quem está no poder estabelece um
sistema de coerção que limita os corpos, disciplina e tem, no discurso, a
reatualização permanente de (velhas) regras (FOUCAULT, 1996).
Ainda para o jornal Valor Econômico, em abril de 2019, o ex-
ministro voltou a causar controvérsia ao manifestar que não houve golpe
em 1964 e propôs uma revisão nos livros didáticos para que os estudantes
tivessem uma “versão mais ampla da história”. Ainda nas palavras do
ex-ministro: “A história brasileira mostra que o 31 de março de 1964 foi
uma decisão soberana da sociedade brasileira. Quem colocou o presidente
Castelo Branco no poder não foram os quartéis. Foi a votação no Congres-
so, uma instância constitucional, quando há a ausência do presidente”8.
As palavras podem ter diferentes sentidos, a depender do contexto
e da época em que são empregadas. Possenti (2016) destaca que uma das
razões se deve às mudanças históricas que acontecem pelo deslizamento
do sentido e/ou pela alteração no “referente”, isto é, ao referir-se a fatos
e acontecimentos podem mudar sua “natureza” (POSSENTI, 2016, p.
1080). No caso, a palavra golpe sofre essa variação de sentido como
no golpe de 1964 e do impeachment da ex-presidente Dilma, em 2016,
considerado como golpe de Estado.
Todavia, o sentido empregado pelo ex-ministro Vélez de que não
houve golpe em 1964, consequentemente não vivemos um período de
Ditadura Militar, mostrou que o ex-ministro parecia ter como objetivo
desqualificar a história de terror que o Brasil vivenciou. Pior, ao enun-
8 Em entrevista ao jornal Valor Econômico, em 03 de abril de 2019. Disponível em: https://
valor.globo.com/politica/noticia/2019/04/03/velez-quer-alterar-livros-didaticos-para-resgatar-
visao-sobre-golpe.ghtml. Acesso: 26 out. 2020.

192
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ciar uma tentativa de mudar os livros didáticos sob o argumento de que


era necessário ter uma visão mais ampla da história, esse modo de ação
representa a prática de um discurso conservador, ideológico que busca
naturalizar e manter o posicionamento de quem está no poder.
Sob essa perspectiva, as ideologias são construções e significações
da realidade do mundo físico, das relações sociais, culturais e de identi-
dades tecidas nas variadas dimensões de formas e sentidos das práticas
discursivas (FAIRCLOUGH, 2001) que torna esse discurso um signo
ideológico, o qual reflete e refrata outra realidade (VOLÓCHINOV,
2017), capaz de distorcer um fato histórico para ser fiel a outro ponto de
vista e manter relações de dominação.
Após dois meses e meio na pasta do ministério da Cultura, Vélez
é substituído por Abraham Weintraub, cujo discurso de posse volta-se para
modificar os indicadores do Pisa que colocam o Brasil entre os últimos lugares na
avaliação estudantil e amenizar a tensão provocada pelo ex-ministro. Entretanto,
de maneira semelhante ao seu antecessor, a gestão de Weintraub é cercada de
polêmicas, ataques a Paulo Freire, patrono da educação brasileira, à educação,
em especial, às universidades e aos estudantes.
Uma das polêmicas de maior repercussão nacional e internacional ocorreu
diante de uma entrevista do ex-ministro ao jornal O Estado de S. Paulo9, em
abril de 2019, ao enfatizar “Universidades que, em vez de procurar melho-
rar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas
reduzidas”. Em ação, enquadrou e reduziu os repasses financeiros de 30%
da Universidade de Brasília (UnB), da Universidade Federal Fluminense
(UFF) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA) por considerar que
promovem “bagunça”, “eventos ridículos” e permitem que “pessoas
peladas” circulem livremente dentro desses campi universitários.
Além delas, a Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais,
estava também em avaliação. Essa atitude do ex-ministro Weintraub provo-
cou uma comoção nacional e internacional, com manifestações públicas, criação
9 Notícia publicada no site do Jornal Estadão, com o título “MEC cortará verba de universidade
por ‘balbúrdia’ e já enquadra UnB, UFF e UFBA”. Disponível em: https://educacao.estadao.
com.br/noticias/geral,mec-cortara-verba-de-universidade-por-balburdia-e-ja-mira-unb-uff-e-
ufba,70002809579. Acesso em: 10. set. 2020.

193
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

de memes, hashtags nas redes sociais em defesa da educação pública e passou


a divulgar as “balbúrdias” realizadas por professores e alunos, evidenciando os
trabalhos desenvolvidos de ensino, pesquisa e extensão. Em consequência, o ex-
ministro contra-atacou e cortou as verbas de todas as Universidades e Institutos
Federais do Brasil.
Bolsonaro foi eleito como o evangélico propagador dos bons costumes,
dos valores morais e da manutenção da família tradicional, compreendida como
a que é formada por pai, mãe e filhos, além de adepto ao armamento para a po-
pulação e radicalmente contra o comunismo (os quais, erroneamente, associam
comunismo, no Brasil, ao Partido dos Trabalhadores). O ex-ministro Weintraub
seguiu a mesma pauta com veemência. Seus discursos inflamavam o ódio con-
tra a educação brasileira por considerar a esquerda como a principal culpada
pelos baixos índices nas avaliações nacionais e internacionais. Ao considerar as
universidades como lugar de balbúrdia, ajudou a promover um discurso conspi-
ratório, com conteúdos alarmistas, deslegitimando as instâncias promotoras do
conhecimento (CESARINO, 2019, p. 533).
Essa deslegitimação da universidade pública, associando-a à bal-
búrdia, levou à propagação desse termo nas diversas esferas da comuni-
cação humana, resultando em inúmeros fios ideológicos na tentativa de
concretizar uma percepção negativa em relação às instituições públicas
de ensino. Ou seja, ao associar à educação um termo pejorativo, o ex-
ministro pretendeu desqualificar o setor educacional e, principalmente,
os docentes, apontando-os como os responsáveis pelas balbúrdias, des-
qualificando e atribuindo sentidos depreciativos a docentes, discentes e
às instituições de ensino superior. Seguindo o que Volóchinov (2017, p.
106) apresenta como a palavra ser capaz de fixar-se em todas as “fases
transitórias das mudanças sociais, por mais delicadas e passageiras que
elas sejam” para atender às demandas de dado grupo social, a ação do
ministro ao deslegitimar o setor educacional público federal brasileiro
abriu o precedente para que parte da sociedade legitimasse esse discurso
de ódio, típico da antidemocracia.
A resposta da sociedade acadêmica a essa falta de respeito do mi-
nistro foi a ressignificação do termo “balbúrdia” que passou a evidenciar

194
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

e a qualificar toda a produtividade de docentes e discentes, como aulas,


reuniões, participação em congressos, publicação de artigos, ativida-
des de pesquisa, atividades de extensão, orientações de mestrandos e
doutorandos, de modo a mostrar para a sociedade a verdadeira face das
instituições federais de ensino.
Em outra entrevista ao Jornal da Cidade On-line, o ex-ministro
Weintraub afirma que, nas Universidades Federais, há plantações extensivas de
maconha e que

[f]oi criada uma falácia que as universidades federais


precisam ter autonomia. Justo, autonomia de pesquisa,
ensino. Só que essa autonomia acabou se transfigurando
em soberania. Então, o que você tem? Você tem planta-
ções de maconha, mas não são três pés de maconha,
são plantações extensivas em algumas universidades,
a ponto de ter borrifador de agrotóxico, porque orgânico
é bom contra a soja, para não ter agroindústria no Brasil,
mas na maconha deles eles querem toda a tecnologia
que tem à disposição (REVISTA FÓRUM, 2019)10.

O ministro usa dos meios de comunicação para desqualificar as


universidades federais. No seu ponto de vista, elas somente realizam
atividades ilegais e imorais e buscam a soberania, de modo a não neces-
sitar responder por seus erros. Cesarino (2019), ao discutir identidade e
representação no bolsonarismo, argumenta que a liderança carismática
ascende, presumidamente de fora do establishment, quando se reivindica
a pureza necessária para reintroduzir a ordem de um sistema corrompido.
Essa linguagem populista, clara, sem fundamentos técnicos e científicos
que comprovem sua veracidade, coloca as universidades federais em
xeque quanto à sua eficácia, enquanto espaço de conhecimento.

10 Notícia publicada no site da Revista Fórum, sob o título “Weintraub afirma que universidades
federais escondem ‘plantações extensivas de maconha’”. Disponível em: https://revistaforum.
com.br/politica/weintraub-afirma-que-universidades-federais-escondem-plantacoes-extensi-
vas-de-maconha/. Acesso em: 10. set. 2020.

195
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Inúmeros adeptos do bolsonarismo concordam com essa posição


do ex-ministro e compartilham em suas redes sociais, especialmente
WhatsApp e Twitter, esse discurso. As universidades públicas federais,
por sua vez, por meio de todos que a compõem resolveram entrar com
representações e contaram com o apoio da população, utilizando os
mesmos recursos digitais, o que torna o uso das mídias digitais um ins-
trumento eficaz no sentido de desconstruir discursos preconceituosos e
infundados, fake news, além de possibilitar o desenvolvimento de ativi-
dades que levem a uma reflexão crítica e emancipatória.
O discurso do ex-ministro Weintraub em relação ao ensino superior
como lugar de plantação de maconha, de balbúrdias, de bagunça, entre
outros, propiciou o movimento dialógico-dialético necessário para que
as universidades federais aliassem a pesquisa, o ensino e a extensão no
ambiente virtual não apenas no sentido de contra-argumentar o que foi
dito pelo ex-ministro, mas também para viabilizar o que ocorre dentro
das universidades públicas federais e a sua relevância na/para sociedade.
Desse modo, não há como negar que a palavra é um terreno fértil
de significações e encontrou no ambiente digital, novos modos de re-
alizar o processo de comunicação social, determinados pelo horizonte
social de uma época e de um grupo social (VOLÓCHINOV, 2017).
Também, não há como desconsiderar que o Twitter, uma espécie de
rede social combinada com mensagens instantâneas (MSN) envia-
das rapidamente para pessoas pertencentes a um mesmo círculo de
contatos, chamadas de “seguidores”, passou a ser amplamente usada
pelo atual governo, em especial, pelo então ministro da educação e
o presidente da República.
Essa política midiática, conforme discutida por Castells (2018),
destaca a luta pelo poder nas sociedades democráticas atuais que passa,
inevitavelmente, pela política do escândalo, pela autonomia comunicativa
dos cidadãos e pela nossa construção da realidade, de comportamentos e
decisões, pois passam a depender dos sinais recebidos e trocados nesse
universo digital. Soma-se a essa situação o fato de passarmos por uma
pandemia de Covid-19, obrigando a população a ficar em isolamento

196
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

social e as redes digitais tornaram-se o meio de comunicação e interação


ainda mais frequentes nos lares brasileiros.
Ressalte-se que, mesmo diante dessa nova realidade, o ex-ministro
Weintraub insistiu em manter as datas do Enem 2020. E, mais uma vez, os
estudantes do país provocaram uma movimentação nacional pelas mídias
pedindo a mudança da data do exame. O ministro Weintraub, com o lema
“Brasil não pode parar”, reafirmou o prazo de inscrição previsto e lançou
uma peça publicitária11 reforçando o prazo das inscrições, sugerindo que
“a vida precisa continuar”, mesmo diante da suspensão das aulas e/ou
de precárias aulas remotas em decorrência do cenário pandêmico. Após
o Senado e diversas Entidades Estudantis se manifestarem, bem como a
Justiça Federal de São Paulo, o Inep resolveu adiar o Enem. O ministro
deixou claro, em suas redes, que os pedidos vinham de “partidecos da
esquerda”. Vejamos um dos tuítes do ex-ministro:
Figura 1 – Twitter de Weintraub
@AbrahamWeint. Meu twitter, minhas regras.

Fonte: Captura de tela. Disponível em: https://twitter.com/ArthurWeint/status/1263256666465


800195?s=20. Acesso em: 05 nov. 2020

Os estudantes, por terem se articulado para mudar a data do Enem


2020, são qualificados como sendo “de esquerda”, em outras palavras,
vinculados ao Partido dos Trabalhadores, comunistas que praticam
balbúrdia e que, por tudo isso, o que reivindicaram e conquistaram não
merece credibilidade. Interessante notar que o ex-ministro faz uso das
11 Enem 2020 – Inscrições. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=apufjiGlIY0&feature=emb_logo. Acesso: 05 nov. 2020.

197
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

aspas como se essas falas não pertencessem a ele e sim a um outro, não
identificado no texto. A única opinião dele estaria no último parágrafo
em que lança uma pergunta aos seus seguidores.
Ribeiro (2018) argumenta que, ao se desqualificar as pessoas de
esquerda chamando-as de esquerdopatas, firma-as como inimigos a se-
rem combatidos, pois, segundo esse ponto de vista, elas seriam um risco
para a sociedade. Nesse entendimento, o chefe dessa quadrilha seria o
ex-presidente Lula, pois nomeou, na sua gestão e na da ex-presidenta
Dilma, ministros do STF e dos movimentos sociais e sindicatos, os quais
serviram aos interesses de um governo mais preocupado em mandar
dinheiro aos países da América Latina do que em governar para os tra-
balhadores brasileiros. Assim, na visão dos movimentos de direita que
propagam o ódio à ala esquerdista,

[…] abundam evidências de que os movimentos sociais


e sindicatos são corruptos, violentos e têm como plano
oculto a implantação do comunismo no Brasil; o comu-
nismo é um risco ainda maior do que a corrupção, pois
ameaça a liberdade do “cidadão de bem”; foi para com-
bater essa ameaça que o Exército foi forçado a intervir
em 1964; diferentemente dos dias atuais, naquele tempo
havia ordem, tanto pública quanto privada. Essa visão de
mundo é autoevidente para todos, mas a mídia, mentirosa
e manipuladora, impede que a população a enxergue; por
isso é importante procurar e propagar a verdade nas
redes sociais. (RIBEIRO, 2018, p. 92, ênfase adicionada).

Vale mencionar, baseadas em Ribeiro (2018), que o discurso proferido


pelo ex-ministro Weintraub, em sua gestão do ministério da Educação, foi
articulado considerando essas posições ideológicas do atual partido, que utiliza-
riam das redes sociais para propagar a verdade e desmascarar os integrantes e
simpatizantes do partido dos trabalhadores, considerando-os inimigos de Estado,
uma ameaça para a liberdade e a democracia. Fairclough (2001) destaca que o
discurso é uma prática social, assim, não apenas serve como representação de
mundo, pelo contrário, é significação de mundo, constituindo e construindo o

198
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

mundo em significados. Dito isso, esse discurso proferido encontra, em seus


seguidores, significado e pertinência, a ponto de repassar esses tuítes sem que
ocorra a reflexão, a curadoria, a compreensão do que significam.
Para as universidades públicas federais como instituições laicas, formadoras
de formadores que atuarão na educação do país, é preciso haver uma revisão
crítico-epistemológica do sistema de ensino, pesquisa e extensão que
ainda se encontram afastados da população brasileira. Para isso, em
consonância com Fabrício (2006, p. 48), devemos compreender que a lin-
guagem é prática social e como tal, ao estudá-la, estudamos a sociedade,
a cultura, a língua que é constituinte e constitutiva. Precisamos entender
que nossas práticas discursivas não são neutras, envolvem escolhas
ideológicas e políticas, envolvidas nas relações de poder e ocasionando
os mais diversos efeitos no mundo social. Não menos importante, na
sociedade contemporânea envolvida em uma multiplicidade de sistemas
semióticos que compõem nossos textos, temos que ter uma concepção
do processo de produção de sentidos que eles envolvem e como atuam
em nossas vidas.

Apontamentos (quase) Finais

É preciso ter esperança.


Mas tem de ser esperança do verbo esperançar.
Porque tem gente que tem esperança do verbo esperar.
Esperança do verbo esperar não é esperança, é espera.
“Ah, eu espero que melhore, que funcione, que resolva”.
Já esperançar é ir atrás, é se juntar, é não desistir.
É ser capaz de recusar aquilo que apodrece a nossa
capacidade de integridade e a nossa fé ativa nas obras.
Esperança é a capacidade de olhar e reagir àquilo que
parece não ter saída.
Por isso, é muito diferente de esperar;
temos mesmo é de esperançar! 
(Paulo Freire, 1997)

199
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Abrimos nossos apontamentos (quase finais) com Freire (1997) ao


argumentar que precisamos ter esperança para ir atrás de uma sociedade
melhor, para nos juntarmos e não desistirmos. Não devemos esperar,
porque é espera e não esperança. Deste modo, iniciamos este texto com
a foto tirada por Dorian Girão, em que diz “vocês cortam a educação,
a gente planta resistência”. Essa é a esperança proposta por Freire, a
nossa capacidade de recusa ao que está posto, ao que é colocado como
verdade e reagir ao que não parece ter saída. Isso é esperançar. As
Universidade Públicas Federais reagiram e convidou-nos, assim como
Freire, a esperançar.
Com essa proposta todos devemos aprender, reaprender para per-
ceber como afetamos e somos afetados pelo outro, de modo a tornar um
(re)aprendizado constante. Nas palavras de Spinoza (1997) tudo que
aumenta a potência do agir é útil e preserva o ser, enquanto as coisas que
diminuem essa potência, destrói. Não somos seres passivos em relação
ao que nos acontece, somos seres pensantes e compreendemos sermos
parte de um todo complexo em que, na interação, pelo diálogo-dialético,
no confronto de vozes, buscamos romper com os modos de pensar colo-
nizado e ir além das fronteiras disciplinares do conhecimento.
A Universidade Pública Federal ressignificou o sentido negativo
da palavra balbúrdia para evidenciá-la como palavra viva e ativa e para
mostrar as balbúrdias realizadas na pesquisa, no ensino e na extensão. O
atual governo não considera a educação como algo transformador para o
país e a relaciona ao lugar onde o comunismo está instalado e que seria
preciso acabar com essa filosofia.
Inspiradas em Fabrício (2017) precisamos aprender o jogo hiper-
dialético para atualizar, academicamente, nossas práticas acadêmicas.
Torná-las práticas envolvidas em transaberes para atuar nessa engrenagem
dos multi- (modal, semiótico, mídia, cultural, linguagem, letramentos)
e ir além das fronteiras impostas na/para educação, a fim de seguir aos
deslocamentos necessários para obter o entendimento adequado da nossa
realidade.

200
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Essas mudanças de vida são necessárias para possibilitar novos


movimentos e articular novos caminhos para atuarmos frente a uma
sociedade cada vez mais permeada por linguagens multissemióticas
e multimodais, capazes de construir conhecimentos, mas também de
interferir e ferir o(s) outro(s) com discursos movidos pelo ódio, pelo
preconceito e pela vontade crescente de manter o ponto de vista hege-
mônico, tentando insistentemente silenciar outros movimentos de pensar
e representar a vida.
Portanto, as universidades precisam transformar os processos de
ensino-aprendizagem e propor um novo olhar para a educação, de modo
que seus agentes (professores e discentes) desenvolvam seus trabalhos
focados na inclusão da comunidade no contexto acadêmico. Uma uni-
versidade pública inclusiva amplia, fortalece e facilita a formação de
cidadãos verdadeiramente engajados na sociedade contemporânea.

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204
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Tempos de resistência: o discurso


carnavalesco da Paraíso do Tuiuti em 2018

Luiz Carlos Villalta1


Ronaldo Corrêa Gomes Junior2
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva3

O samba enredo da escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti, em


2018, teve como título uma pergunta retórica: “Meu Deus, Meu Deus,
Está Extinta a Escravidão?” O desfile respondeu que não, ao levar para
o sambódromo no Rio de Janeiro um discurso multimodal de crítica e
resistência aos donos do capital, ao mesmo tempo em que lembrava a
escravidão africana na história do Brasil.

Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?


Compositores: Cláudio Russo, Moacyr Luz, Jurandir,
Zezé e Aníbal

Não sou escravo de nenhum senhor


Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti, o quilombo da favela
É sentinela na libertação

1 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG/CNPq.). Programa de Pós-Graduação em


História (PPGH-UFMG).
2 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
3 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG/CNPq.). Programa de Pós-Graduação em
Estudos Linguísticos (POSLIN-UFMG).

205
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Irmão de olho claro ou da Guiné


Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé, e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão
E um prato de feijão com arroz

Eu fui mandinga, cambinda, haussá


Fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava gente

Ê, Calunga, ê! Ê, Calunga!
Preto Velho me contou, Preto Velho me contou
Onde mora a Senhora Liberdade
Não tem ferro nem feitor

Amparo do Rosário ao negro Benedito


Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor
E assim, quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra a bondade cruel

Meu Deus! Meu Deus!


Se eu chorar, não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social
Fonte: https://www.letras.mus.br/gres-paraiso-do-tuiuti/samba-enredo-2018-meu-deus-
meu-deus-esta-extinta-a-escravidao

206
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Neste texto, pretendemos fazer um diálogo entre a história e a


linguística aplicada. Inicialmente, apresentamos uma reflexão histórica
sobre a escravidão no Brasil e traçamos comparações entre a exploração
dos escravos do passado, as relações de trabalho análogas à escravidão,
presentes desde a abolição, e, ainda, a situação dos trabalhadores no
cenário após as reformas trabalhistas do governo Temer. Em seguida,
desenvolvemos uma análise das metáforas e metonímias e das integra-
ções conceituais propiciadas pelo desfile da Tuiuti com ênfase no carro
alegórico que fecha o desfile, o navio “neotumbeiro”.
Demonstramos que, no discurso da Escola de Samba Paraíso do
Tuiuti, aborda-se a escravidão não apenas no sentido literal, como relação
de produção específica, preeminente no Brasil até 1888, mas também
como uma metáfora da opressão política, uso frequente no pensamento
ocidental pelo menos desde as Luzes.
Concluímos que, no Brasil atual, a escravidão, mais do que metáfora
da superexploração do trabalhador livre, é uma realidade.

Está extinta a escravidão?

O desfile da Tuiuti, criação do carnavalesco Jack Vasconcelos, com


o enredo “Meu Deus, Meu Deus! Está extinta a escravidão?” defende que
a escravidão não foi extinta, ou que pelo menos, embora formalmente
abolida aos 13 de maio de 1888, se travestiu de outras formas, preser-
vando, porém, sua essência no mundo contemporâneo do trabalho livre
e assalariado.
Como há muito ensinou Costa (1977), a escravidão é um “sistema
de exploração do trabalho baseado no real direito de posse sobre o traba-
lhador”, sendo os escravos vistos, simultaneamente, “como propriedade e
como seres humanos, contradição que gerava tensões permanentes”. Para
saciar à natureza exploradora do Sistema e para mantê-los sob controle,
os senhores recorreram às punições físicas e a “pequenas, mas sedutoras
recompensas”; os escravos representavam capital e trabalho e sua posse
dava status para seu senhor (COSTA, 1977, p. 217).

207
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Diferentemente do sucedido na Península Ibérica, onde os escra-


vos eram usados principalmente como empregados domésticos ou para
as atividades de subsistência (COSTA, 1977, p. 217), no Brasil, além
dos trabalhos domésticos e de subsistência, eles foram empregados
nas grandes lavouras de cana (e na decorrente manufatura do açúcar)
e de café; na agricultura e na criação para abastecimento interno; na
mineração (FRAGOSO, 1998); e em órgãos públicos, em diferentes
atuações no universo urbano, tais como a limpeza de ruas, os reparos
em estradas e a conservação de prédios oficiais (VILLALTA; LIBBY,
2013). Envolveram-se também em atividades artesanais e no comércio.
No meio urbano, frequentemente foram alugados a outrem pelos seus
senhores e igualmente atuaram como escravos de ganho, condição em
que passavam “o dia na rua alugando seus serviços com a obrigação de
entregar ao senhor uma renda diária ou semanal previamente fixada,
pertencendo-lhes o excedente” (GORENDER, p. 1980, p. 451-467).
Indícios de status para seus senhores, em consonância com a civili-
dade das aparências e a sociabilidade cortês típicas de então, os escravos
eram exibidos nas ruas como hoje fazem a burguesia e as classes médias
com suas babás uniformizadas.
Figura 1 – Um funcionário público passeia com sua família

Fonte: DEBRET, Jean-Baptiste, 1939. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Belo


Horizonte: Itatiaia: 1978, v. 4, p. 3.

208
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Na figura de Debret (1939), vê-se uma encenação da ordem social


escravista brasileira, denotando a centralidade da família como institui-
ção e reiterando as hierarquias de classe, “raça” e gênero. Como num
cortejo, o patriarca desfila à frente, seguido pelas filhas e, depois, pela
mulher, todos brancos; em seguida, vem a galeria de marginalizados,
começando pela criada “mulata” e incorporando os negros, até chegar-
se, por último, no escravo mais novo, o último degrau da escala social
(DEBRET, 2001, p. 36).
A escravidão e sua permanência em nossa História, após a Abolição,
sob outras vestes, constituem temas permanentes de preocupação de
cientistas sociais e historiadores. O sociólogo Jessé Souza (2017) defende
que a escravidão é indissociável de nossas relações reais de poder. Ao
mesmo tempo, ele refuta enfaticamente o patrimonialismo como chave
explicativa para o Brasil.
O patrimonialismo corresponde a uma forma de dominação pre-
sente em sociedades tradicionais e tem por características básicas,
primeiramente, a indistinção entre os domínios público e privado e, em
segundo lugar, o uso da coisa pública, da res publica, do que pertence ao
Estado (bens, direitos, cargos etc.), como se fosse propriedade privada
do soberano (WEBER, 1982, p. 229-238). Ao soberano, somam-se seus
servidores, que, tal como ele, usam da coisa pública para fins privados.
Pode-se deduzir que, em tal forma de dominação, a corrupção, seja como
ruína ou apodrecimento, seja como apropriação indevida do que pertence
à coletividade, é uma prática endêmica (FAORO, 2000, v. 1, p. 3-34 e
83-109; RODRÍGUEZ, 1993, p. 45-62).
Os intérpretes do Brasil que se centram no patrimonialismo, segundo
Jessé Souza, identificam, como obstáculo ao avanço do país, a corrupção
secular, que opõe Estado e sociedade: o Estado brasileiro seria o abrigo
de “uma elite corrupta, que vampiriza a nação” (SOUZA, 2017, p. 12),
e a corrupção seria um dado cultural brasileiro (SOUZA, 2017, p. 23).
Tais pensadores pátrios, como por exemplo Sérgio Buarque de Hollanda,
fariam, por conseguinte, a “negação da escravidão como nossa semente
societária” (SOUZA, 2017, p. 13) e se guiariam por uma ideia de mo-

209
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

dernização que tem os Estados Unidos como modelo, modelo em relação


ao qual estaríamos em descompasso e ao qual deveríamos nos curvar.
Souza toma essa postura como expressão de certo “viralatismo”, adjetivo
nominalizado que sintetiza subserviência e sentimento de inferioridade.
O patrimonialismo vedaria nossos olhos para a identificação de que a
corrupção real é a apropriação das riquezas nacionais a baixo custo pelas
forças ligadas ao capitalismo internacional, origem da Lava Jato e do
Golpe de Estado dado em 2016 contra Dilma Rousseff, que teve como
fantoche Michel Temer. Aqui, vale ressaltar que esta última personagem,
o Presidente Vampiro, foi destaque no desfile da Tuiuti.
Jessé Souza, apesar de crítico do “culturalismo racista”, afirma que
Gilberto Freyre “sistematizou e literalmente construiu a versão dominante
da identidade nacional em um país que antes dele não tinha construído
nada realmente eficaz nesse sentido” (SOUZA, 2017, p. 29). Não importa
se os traços antevistos por Freyre como característicos do brasileiro são
verdadeiros ou não, pois, como sublinha Jessé Souza fiando-se na noção
de nação de Benedict Anderson – comunidade imaginada, concebida
como limitada e soberana4 –, a coletividade nacional é uma comunidade
imaginária e, assim, para avaliar a pertinência das ideias de Freyre, o
melhor critério é levar em conta sua difusão social e sua capilaridade
entre nós, no modo como nós mesmos nos representamos.
A apropriação da obra de Gilberto Freyre feita por Jessé Souza – e
também por nós – refuta a sua arquitetura teórica (SOUZA, 2017, p. 41),
que, de certo modo, lhe confere um tom direitista, conservador, fiando-
se exclusivamente nos seus elementos empíricos. O grande problema da
arquitetura teórica freyriana está em sua compreensão de que o mundo
criado pelo português na América, assentado numa base econômica em
que imperavam a escravidão e o latifúndio e protagonizado pela família
patriarcal, fundar-se-ia no “equilíbrio de antagonismos”, dos quais o mais
fundamental era o estabelecido entre o senhor e o escravo (FREYRE,
1981, p. 54). Ao invés de se privilegiar o “equilíbrio”, deve-se lançar luz
4 ComunidadeImaginada, porque mesmo sendo marcada por desigualdades, a nação é entendida
como horizontal, profunda e fraterna. Limitada, porque mesmo as maiores nações têm fronteiras
finitas esoberana, na medida em que o conceito nasceu com o Iluminismo e a Revolução,
quando prevalece o pluralismo e o sonho de liberdade (ANDERSON, 2006, p. 7).

210
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

sobre os antagonismos em e por si mesmos, pondo a nu os mecanismos


de que se valeram aqueles que ocuparam o polo privilegiado das relações
de poder – ou melhor, correlações, pois, como ensina Michel Foucault
(1984), o poder não é propriedade de determinados sujeitos que privariam
outros de toda e qualquer força –, para calar e silenciar as resistências.
Malgrado o olhar que privilegia o “equilíbrio de antagonismos” e que
constitui um louvor à colonização portuguesa, Freyre, ressalte-se, não
perdeu de vista as contradições, a crueldade da escravidão trazida pelos
lusitanos e os contributos dos índios e, principalmente, dos negros, cuja
doçura ele ressalta em vários momentos de sua obra.
Numa de suas passagens mais célebres5, Freyre afirma:

Não era o negro, portanto, o libertino: mas o escravo a


serviço do interesse econômico e da ociosidade volup-
tuosa dos senhores. Não era a ‘raça inferior’ a fonte de
corrupção, mas o abuso de uma raça por outra. Abuso
que implicava em conformar-se a servil com os apetites
da todo-poderosa (FREYRE, 1981, p. 320).

É importante destacar que sadismo e masoquismo, na análise de


Freyre, não se resumem ao campo sexual ou mesmo ao domínio da
família. Eles têm reverberações sociais e políticas mais amplas, que
devem ser aqui mencionadas. Segundo Freyre, o sadismo do branco e o
masoquismo da índia ou da negra (e também dos moleques, “pacientes
do senhor moço tal como em Roma”) levaram ao domínio da mulher pelo
homem e daquela em relação aos escravos; o mandonismo, a ânsia por
um governo “másculo e corajosamente autocrático”, foi outro de seus
efeitos (FREYRE, 1981, p. 51).
Nos conflitos e disputas entre as classes sociais, Souza identifica
três capitais fundamentais: o econômico, o mais visível e monopolizado
pelas elites econômicas; o cultural, correspondente ao conhecimento útil
e de prestígio, objeto de atenção por parte das classes médias (já que é
5 Como salienta Jessé Souza (2017), no conjunto da obra, configura-se como “leitura reprimida”,
pois fica ofuscada pela ênfase do autor ao “congraçamento de raças e culturas”.

211
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

essencial para conservação de sua posição social e de seus anseios de


ascensão, sendo inclusive objeto de iniciativas desta classe no sentido
de inviabilizar seu acesso pelas classes inferiores); e o capital social de
relações pessoais, correspondente às “relações pessoais que se criam
no meio do caminho entre interesse e afetividade”, capital este que, no
Brasil e alhures, depende em boa parte do capital econômico (SOUZA,
2017, p. 90-92).
No processo de modernização ocorrido no Brasil no século XIX,
as exclusões de raça e classe embaralharam-se, mas de uma forma em
que se configurou a ideia do “perigo negro”, uma ideia legitimadora
da perseguição dos negros pelas polícias, as quais receberam apoio das
classes médias. Em meio às exclusões, constituiu-se a singularidade do
Brasil: a formação da “ralé de novos escravos”, composta pelos egressos
da escravidão deixados ao Deus dará, e por seus descendentes, vítimas da
exploração sem limites legais das outras classes, tendo acesso à educação
e à saúde aviltadas, uma camada social sujeita à insegurança crônica, sem
jamais ter sido objeto de algo similar ao sucedido na França da terceira
república, onde se viu a universalização do acesso à escola republicana
(SOUZA, 2017, p. 105).
No século XX, com Getúlio Vargas, teve-se um divisor de águas na
História do Brasil, com a ascensão de um Estado interventor e reforma-
dor, o desenvolvimento das chamadas indústrias de base e, para o que
interessa a este texto, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Porém,
nada se fez em relação à “ralé de novos escravos nem no campo nem na
cidade”: seu público alvo eram os trabalhadores urbanos, qualificados
ou semiqualificados (SOUZA, 2017, p. 110-111)6.
O Golpe de 1964 materializou uma aliança antipopular entre a elite
e a classe média, levando ao “paroxismo a constituição de uma sociedade
baseada no mais completo apartheid de classes” (SOUZA, 2017, p. 143).
Em 2016, no Golpe de Michel Temer, aquela aliança de classes que levou
ao Golpe de 1964 foi reeditada, com o envolvimento da classe média na
defesa dos interesses econômicos das elites, “devidamente travestidos
6 Sobre Vargas e os direitos sociais, ver também Carvalho, 2003, p. 110.

212
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

em princípios morais precisamente para dirigir o ódio dessa classe a


qualquer liderança popular”, conduzindo a grandes manifestações de
rua, em que os participantes trajavam as camisas amarelas da CBF. No
Golpe, aos interesses das elites, somaram-se os da própria classe média,
que se sentiram ameaçadas por políticas do governo petista, tais como
as referentes às empregadas domésticas e ao ingresso dos pobres nas
universidades públicas, outrora “reduto dos privilégios da classe mé-
dia” (SOUZA, 2017, p. 105, 181 e 185). O governo golpista de Temer
não perdeu tempo na implementação de seu programa de ampliação do
apartheid social, promovendo uma reforma trabalhista que representou
o mais violento ataque à CLT herdada de Vargas, ao mesmo tempo em
que aprovou uma legislação que impede o crescimento das despesas com
saúde e educação, a chamada PEC55.
Neste ponto, sem querer avançar na polêmica estabelecida por
Jessé Souza em torno das chaves explicativas para o Brasil atual (pa-
trimonialismo ou escravidão), mas não fugindo dela, primeiramente, é
inequívoca a centralidade da escravidão em nossa história. A Escola de
Samba Tuiuti o endossa. A escravidão faz parte do nosso passado e,
sob outras formas (não tão outras…), marca o nosso presente. É ine-
gável o grande papel exercido por Gilberto Freyre para a construção de
uma identidade nacional. Ao enfatizar que a colonização portuguesa no
Brasil, latifundiária, escravocrata e patriarcal, produziu uma população
mestiça, Freyre ofereceu-nos um espelho que nos permitiu livrar-nos de
pressupostos eugênicos7. Diferentemente de Freyre, hoje sabemos que
a chamada família patriarcal extensa não era tão onipresente como ele
concebeu (SAMARA, 1991); a mestiçagem, além disso, pode ser objeto
de orgulho, mas sem que isso se dê em detrimento da “negritude” e,
apelando ao neologismo, da “indianitude”. De Jessé Souza, por sua vez,
deve-se reiterar a ideia de que, no pós-abolição, emergiu a nova ralé
brasileira, constituída pelas vítimas de uma exclusão monstruosa, com a
7 Neste ponto, para contraste, vale a pena evocar o livro Retrato do Brasil, de Paulo Prado,
publicado em 1928, cinco anos antes de Casa Grande & Senzala, que condenava a mestiçagem,
via nosso futuro como algo sombrio em função de sermos marcados pela cobiça de nossos
colonizadores e pela luxúria de portugueses e, sobretudo, de índios e de negros, do que resultara
um povo triste (PRADO, 1931).

213
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

conivência, cumplicidade e apoio da classe média, sequiosa de defender


seus privilégios referentes a determinados direitos sociais, sobretudo os
que lhe permitem monopolizar o “capital cultural”.
Se a escravidão é importante para compreender os dilemas nacio-
nais – e, aqui, nos afastamos de Jessé Souza –, a noção de patrimonia-
lismo também traz contribuições fundamentais. Em ambos, escravidão
e patrimonialismo, há uma situação homóloga: os sujeitos, sobretudo os
que estão em postos de comando, tratam a “república” e os semelhantes,
os homens situados nas escalas inferiores da hierarquia social, como
“coisas” passíveis de serem pilhadas, apropriadas e violadas. Essa ho-
mologia é fundamental para que compreendamos que o desfile da Tuiuti,
se privilegia, como é preciso, a herança da escravidão, não se furta a
olhar para o patrimonialismo. No desfile, afinal, veem-se as mazelas
ditadas pelos “patos da FIESP” e pela “reforma trabalhista” de Temer,
incompreensíveis sem que se tenha em vista a participação de uma elite
corrupta, que se assenhoreia do controle do governo e do aparelho de
Estado, implantando uma política que serve a seus interesses privados
mais mesquinhos e aos seus sócios estrangeiros, as grandes forças do
capitalismo financeiro internacional. Ao contrário do que sustenta Jessé
de Souza, a “elite real” não está fora do Estado, mas nele se encastela e
faz dele o vetor para desenvolver uma política que é vira-lata e tem claras
características patrimonialistas. O aparato de Estado, em postos chaves,
ademais, é em grande parte ocupado por egressos das classes médias, de
onde saem juízes, oficiais das forças armadas, jornalistas etc. A política
que vem sendo desenvolvida pelas elites desde 2016 tem por efeitos, em
relação à força de trabalho, colocá-la quase em pé de igualdade com os
escravos do passado: se não são propriedade de outrem, os trabalhadores
brasileiros são vítimas da informalidade, da suspensão ou da extinção de
direitos trabalhistas. A uberização, com efeito, é um fenômeno crescente
e o “uberizado”, pouco diferente de um escravo de ganho – aliás, está em
pior situação de que a dele, pois o cativo que saía para trabalhar na rua
e levava algum dinheiro ao final do dia ao seu senhor ao menos contava
com o fornecimento por este de moradia e alimentação básica, o que não
se dá com o uberizado.

214
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Como dizia o deputado Paulino Soares, em oposição à aprovação


do Lei do Ventre Livre, nos idos de 1871, a escravidão:

[…] é uma instituição, que se radicou em nossa sociedade,


prendeu-se ao modo de ser de nossa vida social e com ela
formou um todo compacto, do qual não é possível arrancá-
la violentamente sem que esse mesmo todo se ressinta e
se manifestem perturbações na ordem de cousas que sob
diferentes aspectos com ela afinal veio a fazer corpo (apud
ALONSO, 2015, p. 76-79).

Em pleno século XXI, o apartheid social existente no Brasil, levado


ao paroxismo com o Golpe de 2016 e avançando ainda mais com a dupla
Jair Bolsonaro e Paulo Guedes desde 2019, é mais do que herdeiro do sis-
tema escravocrata: é sua reprodução, cada vez menos sob outras feições
e, inversamente, cada vez mais com os traços do pré 13 de maio de 1888.
Na próxima seção, discutiremos os pressupostos teóricos que nos
ajudarão a entender como a história da escravidão e os efeitos do golpe
foram integrados no desfile da Tuiti em 2018.

Integração conceitual, metáforas e metonímias

Como postulam Fauconnier e Turner (2002, 2008), integração


conceitual é uma operação mental que envolve a integração de matrizes
– inputs– e a criação de novas matrizes mentais, possibilitando a cria-
ção de redes de integração conceitual. As integrações conceituais são
evidentes na cognição dos mamíferos, havendo a hipótese na literatura
de que a forma mais avançada desta operação seria uma característica
cognitiva específica dos seres humanos modernos – praticamente todos
os membros do homo sapiens desde o Paleolítico Superior (FAUCON-
NIER; TURNER, 2008). Essa operação mental seria uma atividade
inconsciente, invisível e presente em diversos aspectos da vida humana.
Para Fauconnier (2001), a integração conceitual tem um papel funda-
mental na construção de sentido em diversas esferas de nosso cotidiano:

215
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

nas artes, nas ciências, no desenvolvimento tecnológico e nos demais


tipos de pensamento.
Integrações conceituais surgem do mapeamento entre espaços
mentais – pequenos pacotes conceituais que são construídos quando
pensamos ou falamos, com o propósito de ação e entendimento local
(FAUCONNIER; TURNER, 2002). Nessa visão, os espaços mentais
seriam (a) parciais e estruturados por frames e modelos cognitivos; (b)
interconectados e modificados na medida em que o pensamento e o discur-
so se desdobram; e (c) utilizados para modelar mapeamentos dinâmicos
no pensamento e na linguagem (FAUCONNIER; TURNER, 1998). Para
os autores, esses “espaços” representam circunstâncias particulares que
são estruturadas por domínios conceituais específicos.
Figura 2 – Diagrama da integração conceitual

Fonte: Adaptado de FAUCONNIER, G. TURNER, M. Conceptual Integration Networks.


Cognitive Science. Cognitive Science Society, 1998. v. 22, 133-187, p. 143

Na teoria de Fauconnier e Turner (1998, 2002, 2008), a construção


de uma rede de integração envolve a criação de espaços mentais que são
mapeados parcialmente, conectando elementos correspondentes entre

216
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

eles. Há também um espaço genérico mapeado em cada espaço mental,


contendo o que eles possuem em comum. Assim, esse processo cria a
mescla, um novo espaço no qual os elementos dos espaços mentais são
projetados, gerando uma estrutura emergente que não estava nos espaços
mentais. Podemos perceber os movimentos dos mapeamentos, projeção
seletiva e criação de espaços mentais no diagrama a seguir.

Metáforas e metonímias

É a partir de Lakoff e Johnson (1980) que ganhou força a visão da


metáfora, não mais como ornamento da linguagem, mas como fenômeno
conceitual, como algo central no pensamento humano. Nessa perspectiva,
com base na experiência humana, as metáforas são conceitos compre-
endidos em termos de outros e estão presentes na linguagem cotidiana
e não apenas na literária.
Na visão de Johnson (1987, p. XV e XX), a metáfora é um modo
de compreensão do mundo. Com as metáforas projetamos um domínio
de experiência em outro diferente, estruturamos cognitivamente nossas
experiências de forma coerente e produzimos sentido. É isso que faz o
desfile da Escola de Samba Tuiuti, com base na experiência da escravi-
dão no Brasil, ao projetar o conceito da escravidão no das relações de
trabalho na era do Golpe de 2016.
Na perspectiva cognitiva, as metonímias também estão presentes no
pensamento e na linguagem cotidiana, em gestos, imagens e sons, como
veremos na análise do referido desfile. Raddenand Kövecses (1999,
p. 21) definem metonímia como “um processo cognitivo no qual uma
entidade conceitual, o veículo, fornece acesso mental à outra entidade
conceitual, o alvo, dentro do mesmo modelo cognitivo idealizado”. No
entendimento de Paiva (2010), as metonímias são elementos essenciais
do processamento metafórico, dentro da rede complexa de processamento
de sentido. Segundo a autora:

217
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Em todo processamento metafórico, temos encaixado


um processamento metonímico, pois quando domínios
conceituais são integrados, não há, necessariamente, uma
integração entre todos os elementos dos domínios fonte
e alvo, mas sim de elementos mapeados dentro de cada
domínio. (p. 13).

Para produzir metáforas, ou seja, para explicar um conceito em


termos de outro, algum elemento desse outro conceito é ressaltado e
outros são apagados. Quando dizemos, por exemplo, que um homem
é um gato, integramos o domínio conceitual do felino e do humano e
acionamos o elemento beleza do gato, mas ignoramos outros, tais como
as unhas afiadas e a agilidade. Da mesma forma, quando optamos pela
metáfora “IMPEACHMENT É GOLPE” para explicar o impeachment
da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, integramos o conceito de golpe
e o de afastamento de um dirigente de seu cargo, e acionamos um dos
elementos do primeiro domínio, o efeito causado por um ato violento.
Assim como a derrubada de uma árvore é o efeito do golpe de um macha-
do, a “derrubada de Dilma”, é o efeito de uma violência política contra
a democracia e uma presidente legitimamente eleita.

Análise

Nesta seção, aprofundaremos a análise iniciada por Paiva (2019)


sobre o desfile da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti, em 2018, cujo
enredo é uma crítica ao Golpe de 2016.
No desfile, que pode ser visto no YouTube8, encontramos muitas me-
tonímias, metáforas e integrações conceituais. As metonímias estão nos
elementos que remetem à escravidão como senzala, correntes, mordaças,
silhueta de um navio negreiro, grades, feitores, chicotes, navio tumbeiro,
balaio (que remete ao dos escravos no campo), além da teatralização
do gesto de açoitar. Há também metonímias que remetem à abolição (a
camélia, símbolo do movimento pró abolição, a representação escrita
8 https://www.youtube.com/watch?v=UXx4k4X0-5c

218
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

da Lei Áurea e do primeiro jornal escrito por negros); à neoescravidão


(casebres de favela; carteira de trabalho; uniformes de domésticas;
motoristas; retalhos de tecidos na roupa da segunda porta bandeira, a
costureira explorada, e o terno luxuoso do magnata da confecção); e a
política da época (vampiro, faixa presidencial, colarinhos brancos, notas
de dinheiro, manifestantes, uniforme da seleção brasileira e panelas).
Vale lembrar também as fantasias que remetem à gravuras de Debret e
a reprodução de parte de sua obra no carro Ouro Negro.
Entre as metáforas, chamam a atenção a do pato, integrando o con-
ceito de manifestante ao de quem paga pelo débito alheio; a do fantoche,
integrando o conceito de manipulação de um brinquedo à de uma pessoa;
a de ouro negro integrando os conceitos de escravidão e de riqueza; e
a do vampiro neoliberalista (integrando os conceitos de vampiro e de
política neoliberal).
Muitas são as integrações conceituais, mas vamos nos concentrar
na análise das alas “Manifestoches” e “Guerreiros da CLT” e do carro
alegórico intitulado “Neotumbeiro”.
Os “manifestoches”, uma fusão entre as palavras “manifestantes” e
“fantoches”, apresentam-se como clara evidência da metáfora conceitual
MANIFESTANTES SÃO FANTOCHES. Essa fantasia (Figura 2) é
composta por uma constelação de metonímias cujos sentidos foram (re)
construídos durante os protestos em apoio do golpe de Michel Temer.
Nela, temos o uniforme verde-amarelo da seleção brasileira, cujo sentido
foi restringido durante as manifestações nas ruas do país: o que antes
remetia aos cidadãos brasileiros como um todo, passou a representar uma
parte, os apoiadores do Golpe. No desfile, a evidente estratégia adotada
para tornar a iminente queda de Dilma Rousseff uma questão de nacio-
nalismo e patriotismo é denunciada como manipulação.

219
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Figura 2 – Manifestoches

Fonte: TESI (2018)

Ao redor da cintura do “manifestoche”, vemos uma boia em um


formato infantil, o pato. Lembramos que uma boia é um objeto que flutua
e é, geralmente, utilizado pelas pessoas como acessório de segurança
para evitar que os corpos se afundem. O já mencionado “pato amarelo da
FIESP”, cujos olhos são aqui representados por cifrões (metonímias do
capital), é conceitualizado como algo que ajuda os apoiadores do golpe
a sobreviverem, em uma crítica irônica do carnavalesco para evidenciar
o quão manipulados ideologicamente foram esses indivíduos.
Em suas mãos, os “manifestoches” carregam uma panela e uma
colher de pau, outros veículos que nos remetem ao domínio dos apoia-
dores do golpe. Muitas manifestações na época eram acompanhadas por
panelaços organizados por movimentos de extrema direita que, do alto
de suas torres em bairros nobres das cidades, batiam em suas panelas
para fazer o máximo de barulho possível durante os pronunciamentos
oficiais da então presidenta. Já em suas cabeças, podemos ver os cha-
péus de coringa, símbolo de uma figura ora cômica, ora desagradável,

220
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

geralmente associada ao palhaço e ao “bobo da corte”. É importante


destacar que essas metonímias estão localizadas na cabeça e nas mãos
do “manifestoche”, que são conectadas por fios a uma outra grande mão:
a do manipulador. Como efeito dessa projeção conceitual, temos um
manifestante metaforizado em um fantoche, cujos ações e pensamentos
são controlados e manipulados por outrem.
Figura 3 – Rede de Integração Conceitual do “Manifestoche”

Fonte: Elaborado pelo autor

A interação de todas essas metáforas e metonímias revela uma rede


de integração conceitual complexa entre os espaços mentais ESPORTE,
INFÂNCIA, IDADE MÉDIA, POLÍTICA, TEATRO e CARNAVAL.
Como espaço genérico, temos um espaço de representações de indi-
víduos. Nessa rede de integração, os elementos “torcedor”, “criança”,
“bobo da corte”, “manifestante”, “fantoche” e “integrante de escola de
samba” são mapeados e projetados para a mescla, da qual emerge um
“manifestoche”. No diagrama (Figura 3), ilustramos a rede de integração
conceitual complexa dessa fantasia.

221
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

A ala que segue a dos “Manifestoches” é a dos “Guerreiros da CLT”,


uma referência clara à metáfora conceitual TRABALHADORES SÃO
GUERREIROS. Novamente, a fantasia (Figura 4) é composta por diversas
metonímias, responsáveis por ativar uma rede de integração conceitual
que torna a construção de sentidos bem mais complexa e multimodal.
Primeiramente, os integrantes da ala vestem um macacão vermelho
que envolve seus corpos por inteiros e um capacete, assemelhando-se a
um uniforme profissional de proteção. A cor vermelha possui uma sim-
bologia diversa, sendo utilizada com referências ao poder, amor, vigor
e beleza. Como informado pelo Google Arts&Culture9, a cor vermelha
era bastante utilizada como uma forma de representar o poder e as forças
políticas e morais de líderes monarcas. Com a queda da monarquia, a
cor passou a ser adotada por movimentos de revolução como símbolos
de liberdade e resistência.
Figura 4 – Guerreiro da CLT

Fonte: TESLA (2018)

9 https://artsandculture.google.com/theme/GwLyao99SLXVKg

222
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Na Revolução Francesa, por exemplo, uma touca vermelha (barrete


frígio ou barrete da liberdade) era utilizada pelos republicanos franceses
que lutaram pela tomada da Bastilha.
Figura 5 – A Liberdade guiando o Povo, Eugène Delacroix

Fonte: DELACROIX, Eugène. A Liberdade guiando o Povo. 1830. Pintura, óleo sobre
tela, 260 x 235 cm.

No famoso quadro “A Liberdade guiando o povo” (DELACROIX,


1830), por exemplo, podemos ver a Liberdade (representada pela figura
da mulher com seios à mostra) usando a touca na cor vermelha (Figura 5).
Da mesma maneira, a cor vermelha foi utilizada em outros movi-
mentos revolucionários: pelos Bolcheviques, na Rússia; por Fidel Castro
e Che Guevara em Cuba; e por partidos que defendem as causas dos
trabalhadores em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil. Podemos
encontrar a referência à cor vermelha como símbolo de resistência inclu-
sive em produções artísticas contemporâneas, como na série “A Casa de
Papel”, produzida pela Netflix, cujos protagonistas utilizam um macacão
semelhante ao da fantasia de carnaval como um uniforme, que serve de
disfarce e símbolo de resistência para os heróis-vilões.
Podemos perceber que o guerreiro da CLT criado pela Paraíso do
Tuiuti possui 6 braços. Neles, vemos que as mãos seguram ferramentas
(pincel, machado, chave inglesa e foice) e uma carteira de trabalho, que

223
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

pelo tamanho e posição podem ser compreendidas como uma repre-


sentação do escudo do guerreiro, mais uma referência do mapeamento
entre os espaços mentais TRABALHO e GUERRA, já que, nesse caso,
FERRAMENTAS SÃO ARMAS.
A representação de múltiplos braços pode ser considerada também
uma referência ao Hinduísmo, em que os deuses são representados com
vários braços e objetos em suas mãos, que funcionam como índices de
suas características, qualidades e poderes.
Todos esses elementos descritos revelam a integração conceitual
dos espaços mentais TRABALHO, GUERRA, DIVINDADE E CARNA-
VAL. Como espaço genérico, temos novamente um espaço de representa-
ções de indivíduos. Nessa rede de integração, os elementos “trabalhador”,
“guerreiro”, “Deus” e “integrante de escola de samba” são mapeados e
projetados para a mescla, da qual emerge um “Guerreiro da CLT”, uma
fantasia de carnaval de um trabalhador com poderes divinos de múltiplas
formas de ataque e defesa contra as reformas das leis trabalhistas.
O último carro alegórico do desfile é o “Neotumbeiro” (Figura
6), uma reconceitualização dos navios negreiros, também chamados de
tumbeiros. Esses, por sua vez, demonstram ser uma metaforização das
tumbas, devido às condições insalubres, desumanas dessas embarca-
ções que levavam os escravos à morte. Temos aqui um continuum de
projeções conceituais que integram a compressão temporal de vários
séculos, apresentando ao público um percurso cuja origem e o destino
são a escravidão. A viagem (o desfile) inicia com os escravos (africanos
escravizados) e termina com os tripulantes do “Neotumbeiro” (traba-
lhadores explorados). A projeção resultante desse mapeamento entre
escravidões acaba respondendo de maneira multimodal (canto, gestos,
desfile, fantasias, carros alegóricos) à pergunta retórica que intitula o
samba enredo da escola.

224
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Figura 6 – Neotumbeiro

Fonte: Captura de Tela

Na frente do carro a bandeira do Brasil, em suas costas uma repro-


dução da carteira de trabalho e, acima dela, as asas de um vampiro. Na
parte mais alta do carro, metáfora do mais alto poder, temos a presença
do “Vampiro Neoliberalista” (Figura 7). Logo abaixo, ao redor do carro,
temos os exploradores, alguns com ternos semelhantes ao do mestre sala
magnata explorador, com dinheiro em torno de suas golas, metonímia da
corrupção e da exploração. Mais abaixo estão os trabalhadores.
As mãos parecem ser uma metonímia integradora de todo o desfile.
Embora possam evocar diversos conceitos e ações, elas foram utilizadas
nesse carro alegórico em relação aos seus aspectos utilitários: um mes-
mo símbolo remetendo a ações diferentes, conflitantes e antagônicas.
Na parte frontal do carro, percebemos uma mão presa em um grilhão
saindo do centro da bandeira do Brasil. No modo como está disposta,
a mão indica o gesto de pedir esmola, associando o “trabalho” escravo
à mendicância. Já na parte lateral do carro, há as mãos manipulando os
manifestante pró-golpe.
Na fantasia do presidente vampiro, vemos a conexão entre várias
metonímias: as asas do morcego, as penas do pavão, metaforizando a
vaidade; as notas de como metáfora do lucro, obtido tanto com a explo-
ração dos trabalhadores e como com a corrupção, a faixa presidencial e
a peruca do Drácula, metonímia do Vampiro, cujo mito inclui o poder

225
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

de transformação de humano em animal, e vice-versa. Tanto o ser mi-


tológico como o animal são conhecidos por se alimentarem de sangue,
tendo sentidos construídos no campo do terror. Desses elementos emerge
a metáfora conceitual PRESIDENTE DA REPÚBLICA É VAMPIRO,
aquele que suga o sangue dos trabalhadores.
Figura 7 – Vampiro Neoliberalista

Fonte: G1

Conclusões

A escravidão está no centro do samba enredo “Meu Deus, meu Deus,


está extinta a escravidão?”. A integração samba enredo e desfile, por um
lado, fala da escravidão em si mesma, da resistência que moveram contra
ela os cativos e da abolição, temática abordada rapidamente. Por outro,
reforça a interrogação colocada no título e pelo último verso, fazendo
uma denúncia veemente: a escravidão está presente na sociedade brasi-
leira contemporânea, oprimindo o “irmão de olho claro ou da Guiné”.
O desfile, em seus cenários, personagens, “blocos” etc., esgarça
até ao máximo a denúncia e amplia a apresentação de elementos que
denotam a permanência da escravidão.

226
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Não estamos diante de survivals, mas de realidade escravista efetiva-


mente vivida. Um texto da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, datado
de 9 de maio de 1886, curiosamente nos evoca este passado que insiste em
se fazer PRESENTE no Brasil do século XXI. Ele noticia um assassinato
de um escravo por seu senhor, em Três Pontas, Minas Gerais. Colocando o
público leitor diante dos acontecimentos, de tal sorte a inseri-lo na plateia
de uma espécie de peça de teatro, o texto conta que, no dia 21 de abril,
quarta-feira santa e dia do suplício de Tiradentes, na fazenda Nova Pata-
gônia, “reproduzia-se ao vivo nova cena de sangue, que faz-nos lembrar
o martírio do Cristo Redentor e do democrata Tiradentes”. Na ocasião,
“cinco homens, honestos”, disseram ao fazendeiro e senhor de escravos
que: “Saiba vossa capacidade que seu escravo fugido acha-se dormindo
encostado em um pau”. A isso, respondeu o protagonista: “Pois bem, visto
estar dormindo e sendo eu apologista dos cinco e, como cinco fazem as
chagas de Cristo que hoje comemoramos e sendo o nosso primeiro mártir
Tiradentes reduzido em cinco pedaços, ide, desfechai-lhe cinco tiros e
voltai!!!”. Então, os “bons dos homens foram cumprir a ordem do supremo
comando”. Mataram o escravo ou, deixando-o semivivo, arrastaram-no
“pelo campo, indo enterrá-lo” sabe-se lá onde. A esposa do escravo, então,
apresentou queixa “à autoridade”. Em seguida, o “Dr. promotor público, o
nosso delegado e os peritos começaram nas investigações”. Localizaram,
então, “um trilho salpicado de sangue, que ia parar em uma porteira e, ali,
no meio da área tocada pela enxurrada, encontrou-se um poço de sangue,
em estado de putrefação”. Diante da situação, “a autoridade” foi procurar
o senhor do escravo, voltando para o “Pretório de Pilatos” para:

pedir-lhe uma explicação dos vestígios que encontrou,


ao que, com toda majestade e verdade, respondeu: ‘Srs.,
o que vós encontrastes na longa excursão pela Patagônia
não é produto da mão do homem, que tem sempre diante
de si Deus e a humanidade, mas é produto da mão dos
bichos!’ […] E um sussurro murmurou dizendo ao ouvido
de todos: ‘Mentes, infame!’ E nós, murmurando, dizemos:
Desnaturado filho, até quando continuará a tua sede de
sangue? (Gazeta de Notícias, n. 129, 9/05/1886, p. 2).

227
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

O texto publicado na Gazeta, datado de cerca de dois anos antes da


Lei Áurea, traz fatos que se tornaram corriqueiros desde o 13 de maio de
1888, fazendo parte de nossa realidade atual. Ainda que restem dúvidas
acerca da sua veracidade – isto é, se a “notícia” remetia à ficção ou à
realidade –, é interessante ver que nela há a figura do hoje chamado “ho-
mem de bem”, correspondente aos cinco homens, adjetivados no texto,
em itálico, como “honestos” e “bons”. Há também a falta de justiça, por
culpa sobretudo dos potentados locais, mas também devido à ação dos
homens da lei. Entre o presente da notícia e seus passados profano e
sagrado, isto é, entre, de um lado, 1886 e a punição imposta aplicada a
Tiradentes em 1792, e, de outro, a crucificação de Jesus Cristo, na história
sagrada, no ano 33 d.C., há um elo: o do martírio. Ao alferes Tiradentes –
e, portanto, a Jesus Cristo, o arquétipo maior de mártir –, é igualado, por
um jogo de metáforas, o escravo assassinado em Três Pontas em 1886.
Em pleno 2021, em coro com a Gazeta de Notícias de 1886 – e tal
como fez, por outras formas, a Escola de Samba Tuiuti em seu desfile
de 2018 –, miramos a “ralé brasileira” e dirigimo-nos a “seu algoz”,
metáfora de nossas classes altas e médias e de nossos dirigentes políti-
cos: “Desnaturado filho, até quando continuará a tua sede de sangue?”.

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230
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Uma reflexão sobre os conceitos de


manipulação, resistência e ativismo baseada
em práticas de tradução política nas redes
sociais

Érica Lima1
Janine Pimentel2

Já Aristóteles dizia que somos seres políticos (do grego, politi-


kos), mas foi apenas na virada deste século que surgiram as primeiras
contribuições aprofundadas sobre a ligação entre política e tradução.
Pesquisadoras do campo dos Estudos de Tradução, Christina Schäffner
e Susan Bassnett (2010, p. 13) explicam, com razão, que a “tradução é,
na verdade, parte integral da atividade política, apesar de ser frequente-
mente invisível na área da política. Quais textos são traduzidos, a partir
de, e para qual língua, é por si só uma decisão política”.
Talvez seja do senso comum que discursos e governos xenófobos,
racistas e opressores são quase sempre fechados ao Outro e, portanto,
monolíngues, estabelecendo poucas trocas linguísticas e culturais. Ao
contrário dessa posição, o multilinguismo seria uma característica de es-
tados democráticos, plurais e abertos a essas trocas linguísticas e culturais
que constantemente envolvem alguma forma de tradução. Contudo, como
bem aponta o artigo da professora Yuliya Komska, publicado no Boston
1 Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Programa de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada (PPGLA-UNICAMP).
2 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação
em Linguística Aplicada (PIPGLA-UFRJ).

231
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Review em 4 de novembro de 2019 e intitulado “Fascismo na tradução”3,


isso nem sempre ocorre. Na verdade, não é toda extrema direita que adere
ao princípio segundo o qual uma nação deverá se unir em torno de uma
só língua gloriosa, e o multilinguismo não foi propriamente desprezado
na Europa nazista e fascista de Hitler e de Mussolini, respectivamente,
mas serviu às agendas propagandísticas e de internacionalização destes
líderes. A estudiosa da tradução dessa época, Kate Sturge (2002), explica,
no entanto, que livros traduzidos eram, sim, censurados na Alemanha
nazista, ou seja, as traduções só podiam servir os interesses do Terceiro
Reich.
Hoje, cada vez mais partidos e comunidades de extrema direita em
várias partes do mundo parecem usar a tradução para alcançar um público
maior de leitores, mas será a internacionalização o principal objetivo
desses movimentos? Ou ainda, a internacionalização facilitada por ini-
ciativas de tradução é algo verdadeiramente positivo? Qual a diferença
entre esse fenômeno e o ativismo?
Para tentar responder a essas questões, acreditamos que vale a pena
revisitar a “virada do poder”4 e as principais pesquisas sobre a relação
entre tradução, engajamento político e ativismo, que mostraram como,
ao longo da história, tradutores e tradutoras foram muitas vezes agentes
culturais responsáveis por introduzir novas ideias e abordagens, ade-
rindo a alguma ideologia ou programa político, de forma consciente ou
não. Graças a essas pesquisas, hoje em dia, é consenso nos Estudos de
Tradução que o ato de traduzir e as traduções que nos rodeiam não são
atividades neutras.
É nessa esteira que pretendemos problematizar as práticas, em sites
e redes sociais, de grupos de tradutores e tradutoras que assumem uma
ideologia de forma aberta, tais como o grupo brasileiro autointitulado
“Tradutores de Direita” cujos integrantes “defendem a causa da direita
no cenário político atual” (ESTIBORDO, 2020). A escolha desse grupo
3 Nossa tradução de “Fascism in Translation”. Todas as traduções apresentadas no corpo deste
trabalho são de nossa autoria.
4 Na década de 90, sob a influência dos Estudos Culturais que então se popularizavam, os Es-
tudos de Tradução passaram por algumas “viradas”: virada cultural, virada do poder, virada
tecnológica, etc. (SNELL-HORNBY, 2006).

232
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

específico surgiu por acaso durante a leitura de um artigo publicado no


jornal El País, no dia 9 de junho de 2020, intitulado “Sites neonazistas
crescem no Brasil espelhados no discurso de Bolsonaro, aponta ONG”5,
que trouxe uma preocupação em relação ao uso que a direita e a extrema-
direita fazem de sites e redes sociais.
Refletindo sobre a ideia de manipulação e ativismo, acabamos por
retomar também a revelação feita em 2015 pela organização WikiLeaks
de que o jornalista Marcelo Tas havia servido aos interesses da Embai-
xada dos Estados Unidos da América ao “construir”6 traduções para o
português de material produzido por Alec Ross, um consultor oficial
sobre o uso da internet para disseminar propaganda a favor dos EUA.
Assim, partindo da problemática aqui apresentada e realizando uma
análise das práticas desses grupos de tradutores, gostaríamos de oferecer
uma pequena reflexão sobre algumas questões que nos parecem relevantes
para o contexto sociopolítico que o Brasil vive atualmente, tais como: as
práticas de tradução que vamos examinar permitem-nos compreender se
engajamento político é sinônimo de ativismo?; essas práticas de tradu-
ção correspondem a exemplos de manipulação, resistência ou ativismo
descritos na literatura da área?; quais as implicações éticas de traduzir
voluntariamente e publicar conteúdo pró-EUA nas redes sociais?
O nosso trabalho foi organizado da seguinte forma: depois de revi-
sitarmos os conceitos de poder, manipulação, resistência, fazemos uma
revisão da literatura mais relevante sobre política e ativismo nos Estudos
de Tradução. Essa revisão nos permitirá abordar o fenômeno das práticas
de tradução que encontramos em comunidades on-line e nas redes so-
ciais. Em seguida, apresentamos uma análise do site e das redes sociais
do grupo “Tradutores de Direita” para buscar responder às questões de
pesquisa enunciadas e terminamos com algumas considerações finais.
5 Notícia redigida por Gil Alessi e Naira Hofmeister, disponível em: https://brasil.elpais.com/
brasil/2020-06-10/sites-neonazistas-crescem-no-brasil-espelhados-no-discurso-de-bolsonaro-
aponta-ong.html?utm_source=Facebook&ssm=FB_BR_CM#Echobox=1591761293. Acesso
em: 10 jun. 2020.
6 O verbo encontra-se grifado com aspas para sublinhar a força criadora que a tradução teve
neste contexto, mas é também uma tradução literal do material que será apresentado mais à
frente neste trabalho: “[Marcelo] Tas picked up on it, built in a Portuguese translation, and
then disseminated to his nearly million followers on Twitter” (grifos nossos).

233
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Poder, manipulação e resistência

Ainda que existam excelentes relatos sobre a função política da


tradução e sobre a tradução de textos políticos ao longo de vários séculos
da história (DELISLE; WOODSWORTH, 2012; D’HULST et al., 2016;
CARCELEN-ESTRADA, 2018) – provando que essa relação íntima
é bem antiga –, o interesse dos teóricos da tradução por esse assunto
começou apenas há cerca de 30 anos. A virada do poder dos Estudos de
Tradução está bem documentada em diversos trabalhos (BROWNLIE,
2010; BOÉRI, 2020), inclusive no Brasil, com a publicação, em 2013,
de uma coletânea de artigos de autores nacionais e estrangeiros intitulada
Tradução e Relações de Poder (BLUME; PETERLE, 2013). Para fins
de contextualização, vale a pena, então, retomar aqui algumas preocu-
pações dos pesquisadores que estudaram a tradução como ato político
e ideológico.
Em uma das primeiras obras sobre o assunto – Translation, Power,
Subversion, publicada em 1996 – Román Álvarez e Maria Carmen Africa-
Vidal juntam uma série de artigos que tratam das variadas relações de
poder que as traduções (sobretudo) de obras literárias evidenciam. Na
verdade, como bem explicam os organizadores da coletânea, as tradu-
ções literárias sempre foram um local de ativismo. Um dos autores das
contribuições da obra é, precisamente, Theo Hermans que, partindo da
análise desse tipo de traduções, já havia proposto, em 1985, o nome
“Escola da Manipulação” para designar os pesquisadores que realizam
estudos de caso sobre tradutores e tradutoras que manipulam um texto
de partida para alinhar o texto traduzido com um determinado modelo
considerado como “correto”, de forma a garantir a aceitação e até o
sucesso do produto traduzido.
Por não ter necessariamente uma conexão direta com a ideologia
política, o conceito de manipulação formulado por Hermans (1985) é mais
abrangente do que o conceito de manipulação discutido, por exemplo,
nos estudos sobre as práticas de tradução durante os regimes fascista e
nazista do século passado. Além da pesquisa realizada por Sturge (2002),
destaca-se a obra de Victor Klemperer (2009), filólogo alemão de origem

234
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

judaica convertido ao luteranismo, que viveu durante o Terceiro Reich e


buscou entender como a linguagem usada pelos nazistas era um elemen-
to de manipulação ideológica. Klemperer argumenta que o nazismo se
consolidou quando conseguiu se apropriar da linguagem.
Edwin Gentzler e Maria Tymoczko (2002) também sublinharam a
ligação íntima entre tradução e relações de poder, lembrando que depois
da segunda guerra “tradutores começaram a calibrar suas técnicas de tra-
dução para criar determinados efeitos nas suas audiências” (p. xi) – uma
ideia parecida com a da “Escola da Manipulação” proposta por Hermans.
No entanto, a contribuição dos ensaios que compõem o livro de Gentzler
e Tymoczko reside na ilustração das formas como a tradução não está
simplesmente associada à posse de controle ou comando sobre os outros
e, portanto, à manipulação, colonização ou opressão, mas também à ca-
pacidade de agir sobre estruturas de comando, de modo que tradução se
torna um meio de resistir a essa mesma opressão ou exploração (p. xvii).
Essa ideia é relevante para duas questões que buscamos proble-
matizar neste capítulo. Por um lado, ela sinaliza que, a partir do início
do século XXI, os pesquisadores da área começaram a estudar tradução
como forma de resistência e não mais apenas como forma de opressão
e manipulação (com toda a conotação negativa que as duas palavras
possibilitam). Por outro lado, ao parecerem criar uma diferença entre
tradução resistente e tradução opressora, é válido nos perguntarmos como
essa dicotomia pode ser estabelecida ou avaliada, ou seja, quem decide
se uma determinada tradução é resistente ou opressora? Tymoczko nos
auxilia a refletir sobre o assunto:

O termo resistência nos Estudos de Tradução foi empresta-


do da designação usada para nos referirmos a movimentos
ativistas clandestinos que se opunham a forças opressivas,
notadamente a governos e exércitos fascistas na Europa
durante a Segunda Guerra Mundial. Contudo, existe um
problema com os termos “resistente” e “resistência” quan-
do aplicados à tradução. (…) No contexto tradutório, nem
sempre há oponente óbvio ou alvo ideológico a que se

235
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

possa presumir que a resistência se refira. Os estudos de


caso apresentados por Venuti e outros às vezes discutem
a resistência como se o antagonista ou o oponente fosse
óbvio, mas estudos descritivos de traduções usando essa
terminologia atribuem essa característica a traduções que
se opõem a objetos diversos e altamente variáveis. Assim,
a resistência pode se referir ao colonialismo, imperialis-
mo, neoimperialismo, capitalismo, dominação ocidental,
regimes específicos como o dos Estados Unidos, várias
condições sociais opressivas, patriarcado, normas bur-
guesas, cristianismo e outras religiões, discursos de poder
(em uma variedade de culturas), convenções literárias e
normas linguísticas dominantes entre muitas outras. Às
vezes, o objeto da resistência não é declarado e é vago ao
extremo. (TYMOCZKO, 2010, p. 7-8).

Ao definir o conceito de resistência no contexto dos Estudos de


Tradução, Tymoczko (2010) formula, portanto, um questionamento
muito relevante para a reflexão que queremos aqui propor – o de que não
existe um consenso entre tradutores e teóricos da tradução sobre o que
pode e deve ser considerado objeto de resistência em práticas de tradu-
ção, de forma geral, ou em um determinado contexto. No entanto, com
uma certeza podemos contar – a de que as traduções têm uma natureza
metonímica e refratária. Traduções são inevitavelmente parciais, porque
as informações e o significado de um texto de origem são sempre mais
extensos do que uma tradução pode transmitir. Toda tradução é resultado
de uma construção de sentidos, de leituras feitas em contextos e mo-
mentos históricos específicos, em que um conjunto de significações são
priorizadas em detrimento de outros que são deixados de lado; ou seja,
o tradutor sempre está contra-assinando7, de uma determinada maneira,
o texto traduzido. Essa parcialidade não é meramente um defeito, uma
7 Derrida discorre sobre a noção de contra-assinatura em entrevista concedida a David Wills,
em 1990, e publicada no livro “Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível” (2012).
Segundo Derrida, “a assinatura não existe antes da contra-assinatura, que se fia na sociedade,
nas convenções, nas instituições, nos processos de legitimação”. Completa, ainda, dizendo que
“tudo começa com a contra-assinatura, com o receptor, com o que chamamos de receptor” (p.
35-36).

236
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

falta ou uma ausência na tradução, mas sim um aspecto que torna o ato
da tradução partidário, engajado e comprometido, implícita ou explici-
tamente (TYMOCZKO, 2010).
Por esses motivos, tradutores e tradutoras não podem fugir da
participação da dialética do poder, do discurso político e de estratégias
de mudança social, sejam elas favoráveis para muitos ou poucos. Dizer
que uma tradução é resistente, engajada ou ativista não é o suficiente,
nem garante que também seja ética e responsável. Como afirma Derri-
da, “[a] filosofia da tradução, a ética da tradução, se é que existe, seria,
hoje, uma filosofia da palavra, uma linguística ou uma ética da palavra.
No início da tradução existe a palavra” (2000, p. 20, grifos do autor). A
questão ética do tradutor e da tradução nem sempre é clara (ou declarada)
e depende de (ou é determinada por) vários fatores, como abordaremos
nas seções seguintes.

Política, ativismo e comunidades on-line

Uma das principais contribuições sobre tradução e política foi


desenvolvida ao longo de mais de uma década pela pesquisadora es-
tadunidense Maria Tymoczko (2000, 2007, 2009, 2010), que estudou
o papel que tradutores e tradutoras desempenharam no movimento de
independência da Irlanda do Norte na segunda metade do século XX.
Tymoczko conseguiu identificar, em sua extensa pesquisa, um conjunto
de características que contribuem para a eficácia da tradução como forma
de engajamento político. Retomamos aqui suas principais descobertas
para verificar, mais à frente neste trabalho, se elas se aplicam de alguma
forma às práticas de tradução do grupo de tradutores em análise.
De acordo com a autora, o engajamento da/na tradução8 depende
da definição (e adoção) de um conjunto de objetivos e valores acor-
dados previamente pelo grupo de tradutores e tradutoras, que atuarão
em conjunto a favor de um movimento cultural e político maior. Essa
atuação pode ser feita por meio da tradução de várias formas textuais,
8 A autora usa o termo “translation movement”, que pode se referir aqui a grupos de tradutores
e tradutoras ou a tradições e fases de um determinado período.

237
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

direcionadas “a um público definido e grande o suficiente para iniciar e


apoiar mudanças culturais, como o público popular integrado na Irlanda
na virada do século” (2000, p. 41). Tymoczko acrescenta que “os textos
devem ser escolhidos para tradução com objetivos políticos em vista e, se
necessário, deve haver uma vontade de manipular os textos na tradução,
de modo a adaptar e subordinar os textos aos objetivos e agendas polí-
ticos” (2000, p. 41-42). Esclarece, contudo, que a manipulação radical
geralmente não é bem aceita, podendo até causar certa hostilidade, por
isso “os tradutores devem ser engenhosos e variados na abordagem da
tradução” (2000, p. 42).
Um exemplo, revisitado há pouco tempo, que ilustra como as
descobertas de Tymoczko podem ser observadas também no contexto
brasileiro, foi o de um tuíte traduzido e publicado pelo jornalista Marcelo
Tas em suas redes sociais em 2011, que veio a público em 2015 e voltou
a ser assunto no início de 2020. O desencadeador da polêmica consistiu
em um e-mail, vazado no WikiLeaks, do arquivo de Hillary Clinton que
Alec Ross, consultor sobre uso da internet, enviou para Thomas Shannon,
então Embaixador dos Estados Unidos no Brasil, em que afirmava que
Tas havia traduzido e publicado uma mensagem relacionada à Síria sem
mencionar que o conteúdo vinha do governo dos Estados Unidos. Para
o consultor, “[i]n translating and disseminating the content himself, he
[Marcelo Tas] became its Publisher and validator”9 (ao traduzir e dissemi-
nar o conteúdo, Marcelo Tas foi responsável pela publicação e validação
da mensagem). Segundo o e-mail, o fato de Tas ter publicado o conteúdo
traduzido, sem mencionar a fonte, conferiu visibilidade e credibilidade
ao conteúdo, ou seja, funcionou como estratégia de comunicação para
enaltecer a imagem dos Estados Unidos no Brasil, tendo Marcelo Tas
como um “colaborador” nas redes sociais.
A questão é trazida aqui para mostrar como um conteúdo traduzido
pode ter efeitos políticos e alcances inesperados pois, no mundo digital,
as informações conseguem reverberar anos mais tarde, como aconteceu
9 Confira a notícia em: https://revistaforum.com.br/midia/marcelo-tas-critica-campanha-por-
the-intercept-no-roda-viva-e-glenn-lembra-que-ele-colaborou-com-os-eua/. Acesso em: 02
ago. 2020.

238
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

com a notícia dessa tradução de Tas, que recebeu atenção novamente a


partir de uma repostagem do editor do The Intercept Brasil, Glenn Gre-
enwald, em 2020. Na época da publicação, Tas considerou “normal” que
os assessores de Hillary tivessem colaborado com a repercussão do tuíte,
e completou: “A novidade é o Estado americano me achar relevante”10.
Observa-se, portanto, que a ação de traduzir e publicar o tuíte foi vista
como manipulação da opinião pública, independentemente de esta ter
sido – ou não – a intenção de Tas na época. Nesse sentido, o “caso”
mostra que é preciso estar atento à ação da mídia, em geral, e das redes
sociais, em particular, e que mesmo não existindo uma declaração de
engajamento político, muitas vezes a tradução possibilita essa leitura11.
Ao retuitar o conteúdo em português, Tas mostra sua relação com
a outra língua, embora não seja possível confirmar se realmente havia
um objetivo político subjacente à publicação, diferentemente do que
veremos com o grupo Tradutores de Direita, no qual o engajamento
político é explícito. Embora nem toda pessoa engajada politicamente
seja – ou se declare – ativista, no caso do grupo Tradutores de Direita
pode se afirmar que, mais do que um ativismo, há uma militância, como
veremos adiante. O grupo deixa claro que os tradutores trabalham como
voluntários12, uma categoria que tem ganhado cada vez mais espaço,
especialmente considerando a globalização e o ambiente digital. Como
não foram encontradas biografias ou contatos dos participantes, não
sabemos se são ou não tradutores profissionais, se possuem alguma área
de especialidade, quantos anos têm de experiência, qual sua faixa etária,
enfim, aspectos importantes para entender o papel de voluntário no grupo.

10 Confira a notícia em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/10/1689273-marcelo-tas-


vira-assunto-entre-equipe-de-hillary-clinton.shtml. Acesso em: 02 ago. 2020.
11 Recentemente, Marcelo Tas apresentou uma visão bastante estereotipada do que seria “ser de
esquerda”, durante o programa Roda Viva (exibido em 17/08/2020). Na ocasião, Tas afirmou
que o humorista Marcelo Adnet não deveria “se declarar de esquerda ou direita”, o que de-
sencadeou várias discussões na internet.
12 Jimenez-Crespo (2017) traz uma ampla discussão sobre as classificações da tradução não
remunerada (voluntária, colaborativa, comunitária, coletiva, crowdsourcing, tradução gerada
por usuário, tradução de fãs, etc.). Entendemos que “ação voluntária coletiva”, como defende
Cronin (2013) reflete melhor o trabalho dos Tradutores de Direita, conforme será desenvolvido
adiante.

239
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

O voluntariado, aliás, é cada vez mais frequente na área, pois como


Cronin explica “(…) as nossas expectativas tradicionais em relação ao
que configura uma tradução aceitável e quem deve ser aceito (ou não)
como tradutor estão sendo alteradas por novas configurações da realidade
virtual trazida pela web global” (CRONIN, 2010, p. 136). A pesquisadora
Maeve Olohan acrescenta que “o [c]rowdsourcing e o voluntariado são
características de muitas comunidades on-line, de redes sociais e, cada
vez mais, também, uma característica da própria atividade de tradução”
(OLOHAN, 2014, p. 18).
Além de não conhecermos o perfil dos Tradutores de Direita, não
sabemos quais os objetivos que leva(ra)m cada um a fazer parte do grupo,
pois, embora a própria ideia do voluntariado na tradução geralmente apa-
reça relacionada a questões de direitos humanos13, uma análise mais detida
nos leva a concluir que a ação voluntária não é totalmente desprovida de
interesses ou condições. Há sempre algum ganho para o tradutor, seja ele
a prática e experiência adquiridas, seja a visibilidade proporcionada por
sua assinatura no texto traduzido, como ocorre em algumas traduções
do Tradutores de Direita – embora, como já mencionado, não tenham
sido encontrados os contatos dos tradutores nem informações sobre o
funcionamento do voluntariado no grupo. Nesse sentido, até a data em
que o nosso estudo foi realizado, as plataformas em que o grupo está
ativo não faziam indicações sobre ferramentas de tradução usadas, código
de ética, manual de estilo, critérios de divisão de trabalho, entre outros
aspectos que serão abordados a seguir.

13 Há várias organizações que usam o trabalho de tradutores voluntários. Algumas oferecem


serviços para outras organizações, como é o caso da AMARA (legendas), UNVolunteering
(ONU) e Translators Without Borders. Há organizações mais voltadas para direitos humanos
(Anistia Internacional, Global Voices, Babels), outras para sustentabilidade e meio-ambiente
(Greenpeace, Mongabay), outras ainda para conhecimento e educação (TED, Khan Academy).
Muitas dessas organizações possuem a própria plataforma de tradução, além de manuais de
estilo, códigos de ética e tutoriais. O número crescente de voluntários e o alcance dessas
traduções tem levado a vários estudos que analisam desde as consequências do trabalho não
remunerado para a área (CRONIN, 2013) até as possíveis contribuições na formação do tradutor
(COMAS-QUINN, 2020).

240
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Tradutores de Direita

De acordo com os resultados divulgados por um projeto que analisa


páginas de política na internet e mapeia a direita virtual, intitulado “Mo-
nitor do debate político no meio digital”14, as páginas e perfis “de direita”
giram, essencialmente, em torno do partido MBL (Movimento Brasil
Livre) e dos elementos da família Bolsonaro atuantes no cenário político
brasileiro e abordam quatro grandes assuntos: o militarismo, o patriotismo,
o liberalismo e o conservadorismo. O grupo Tradutores de Direita faz parte
do mapa traçado pelo projeto de pesquisa15, associando-se à temática do
conservadorismo. Na data do presente capítulo, pode ser encontrado no
YouTube, Facebook, Instagram e Twitter, além de também assinar o site
Estibordo. A criação do canal no YouTube, em agosto de 2012, é a mesma
apresentada na página do Facebook, criada em 2013 (Fig. 1).
Figura 1 – Canal do grupo Tradutores de Direita no YouTube

Fonte: https://www.youtube.com/channel/UCJqOdpqndf1MPequlvDgGkA/videos
14 De acordo com o site www.monitordigital.org o projeto “Monitor do debate político no meio
digital” é um “projeto de pesquisa realizado desde 2016 pelo Grupo de Politicas Públicas para
o Acesso à informação (GPoPAI) com sede na USP Leste. O projeto investiga a polarização
do debate político por meio de pesquisas de opinião e da análise do conteúdo político de
abrangência nacional que circula nas quatro maiores plataformas de redes sociais: Instagram,
Twitter, YouTube e Facebook”.
15 O mapa pode ser conferido em: https://www.boletimdaliberdade.com.br/2017/09/17/projeto-
que-analisa-paginas-de-politica-na-internet-mapeia-a-direita-virtual/ Acesso em 10 ago. 2020

241
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Uma leitura atenta da apresentação permite algumas interpretações, a


começar pelo título: “Tradutores de Direita” é o nome próprio que marca
a singularidade do grupo, e que, como acontecimento único, geralmente
é escolhido levando em conta as expectativas desencadeadas pela nomea-
ção. Lembrando das reflexões de Jacques Derrida sobre o nome próprio de
Babel (DERRIDA, 1982), “Tradutores de Direita” não deve ser traduzido,
seja na própria língua, seja na língua do Outro. A não-tradução pode ser
vista na menção ao grupo feita pelo portal DailyWire16, que mantém o
nome em português, evidenciando o caráter insubstituível do nome pró-
prio. Claramente voltado para uma visão política, o grupo reproduz uma
estratégia bastante comum: a afirmação de que a esquerda, representada
pela mídia, é responsável pelo “establishment cultural, universitário e
jornalístico” (ao qual voltaremos adiante) que está consumindo o país
praticamente à revelia da população, já que “poucos percebem”.
Na página do canal podemos ver o número de inscritos, que ultra-
passa 220 mil, cerca de 20 mil a menos do que o número de seguidores
no Facebook, conforme observamos no print de tela (Fig. 2).
Figura 2 – Página do grupo Tradutores de Direita no Facebook

Fonte: https://www.facebook.com/tradutoresdedireita

16 As informações podem ser conferidas no vídeo do lançamento do portal Estibordo em 21 de


novembro de 2018: https://www.instagram.com/p/Bqcfm8VhUsW/. Acesso em: 05 ago. 2020

242
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Vemos, à esquerda, o logotipo com o nome do grupo e, na capa,


o nome “estibordo” em letras garrafais, ao lado da imagem de uma
caravela e três endereços de plataformas digitais. Na seção “sobre a
página”, é apontado que “Estibordo” foi criado para oferecer mais uma
alternativa de acesso, “após censura”17. Novamente temos a questão da
nomeação: “Estibordo”, cuja significação é justamente ser a parte direita
de uma embarcação (para quem está de frente para a proa). Embora não
tenha sido encontrada uma explicação a respeito da escolha do nome, é
possível deduzir que, além da própria referência à direita, o título ajuda
a estimular a adesão do público por meio do uso de metáforas e expres-
sões marítimas. Assim, mais do que nomear, “Tradutores de Direita” e
“Estibordo” ajudam a criar uma identidade para o grupo e a refletir a
ideologia defendida. Em ambos os casos, nomes comuns passam por uma
apropriação, funcionando como nome próprio, ou seja, a escolha do nome
“desencadeia leituras, gera expectativas e, mais que descrever, o nome
passa a ser indissociável daquilo que denomina” (LIMA, 2011, p. 90).
Outro aspecto que não pode ser negligenciado é o uso de imagens.
Considerando o conceito de paratradução (FRÍAS, 2011), podemos tradu-
zir a imagem começando pelo logotipo: formado por um círculo azul com
a palavra “tradutores” escrita em branco em toda volta e a expressão “de
direita” centralizada, a imagem parece um selo de qualidade que garante
o resultado do produto oferecido. Entre as propriedades fundamentais
do círculo, segundo o dicionário de símbolos de Chevalier e Gheerbrant
(1982), estão a perfeição, homogeneidade, unidade, harmonia e centro.
Em acréscimo a essas características, os autores elencam algumas in-
terpretações que variam de acordo com diferentes religiões. Enquanto
algumas consideram que ele seja a medida do tempo e da eternidade,
outras veem nele a representação de Deus, “cujo centro está em todo
lugar” (1982, p. 195). Os círculos concêntricos (como o logotipo) repre-
sentam graus hierárquicos considerados indivisíveis em sua totalidade.

17 De tempos em tempos há reclamações de que páginas foram tiradas do ar por plataformas


digitais. Em julho de 2020, por exemplo, o Facebook retirou várias páginas e grupos ligados
ao presidente Jair Bolsonaro, com a justificativa de que estariam sendo usadas para espalhar
conteúdo falso.

243
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Passando para as cores da imagem: o azul, usado por várias empresas


(por exemplo, Facebook e Twitter), geralmente é associado à estabilidade,
confiança, lealdade, sabedoria e verdade. Considerada a cor mais pro-
funda de todas as cores, que se perde ao infinito – do céu e do mar – na
tradição cristã é vista como a cor do espírito, da devoção, do manto da
virgem Maria. No budismo, azul é a cor da sabedoria transcendente, da
potencialidade, da consciência. O branco, por sua vez, é visto como a cor
da paz, da passagem, da mudança, da virgindade, da pureza, da iluminação
(branco da noiva e do batismo), da revelação e da graça (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1982, p. 125-8). Temos, então, um logotipo que trans-
mite a ideia de que é uma organização confiável, segura, tranquila, que
diz a verdade e que procura mudança. Portanto, mesmo que a escolha
da imagem tenha sido motivada unicamente por questões estéticas, ela
permite que sejam lidos outros aspectos que vão além da aparência e,
entre eles, podemos destacar a alusão a significados religiosos que são
de senso comum e a sentidos que remetem à clareza e certeza.
Além do logotipo, temos o nome Estibordo, o mar e a caravela, tipo
de navio que nos leva aos séculos XV e XVI, como uma referência a algo
antigo, ultrapassado ou mesmo antiquado, aspectos que se opõem à ideia
de mudança, trazida no logotipo e nas descrições do grupo. Podemos,
inclusive, pensar na referência ao descobrimento, ao nosso passado co-
lonial. Cabe, ainda, considerarmos algumas leituras que podemos ter do
mar, símbolo da dinâmica da vida, de (re)nascimentos, transformações,
movimento (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 623). Nesse
caso, se, de um lado, temos uma imensidão de metáforas com o uso de
mar – inclusive na internet, com o “navegar em um mar de informações”
ou o “mar de histórias” da literatura – de outro, também temos a ideia
de ambivalência, incerteza, indecisão. Na Bíblia, pode ser visto como
símbolo da hostilidade de Deus (abismo de águas profundas) (CHEVA-
LIER; GHEERBRANT, 1982, p. 624), o que reflete a impossibilidade de
controlar os efeitos de sentidos que, certamente, não seriam os desejados
pelo grupo. Também são usadas expressões relacionadas à navegação,
como pode ser conferido na seção “Sobre nós” (Fig. 3), tais como: “mar
de esquecimento”, “águas não navegadas”, “a bordo”, “zarpar”.

244
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Figura 3 – Seção “Sobre nós” no site do grupo Tradutores de Direita

Fonte: https://www.estibordo.org/sobre

Assim como nas plataformas anteriores, o grupo se apresenta como


“tradutores empenhados” que trabalham como “voluntários pela difusão
do conservadorismo e de notícias do mundo vistas pela ótica conserva-
dora” (descrição no Facebook e no YouTube). Apesar da proposta “[c]
onheça um pouco da nossa caminhada até aqui e quem são as pessoas
contribuindo com o Estibordo”, a única informação sobre as pessoas
envolvidas corresponde a uma apresentação genérica de que são uma
comunidade de “humildes estudantes e curiosos” cujo trabalho é “reco-
nhecido internacionalmente e recomendado pelo próprio presidente”. Os
reconhecimentos aparecem em um vídeo de apresentação, em que são
destacadas postagens de Jair Bolsonaro retuitando conteúdos traduzidos
pelo grupo e uma reportagem do DailyWire, citada anteriormente.

245
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

O objetivo não é apenas “trazer ao Brasil uma nova perspectiva”,


mas “destacar a visão conservadora ao Brasil e à comunidade lusófona
em todo mundo”, tornando “acessíveis materiais antes relegados ao mar
do esquecimento”. Entendemos que essa tentativa de recorrer a metáforas
de navegação acaba não sendo muito bem-sucedida, já que os conteúdos
trazidos não estão esquecidos, muito ao contrário, são trazidos o tempo todo
para a pauta de discussão de partidos políticos em geral, pois representam
problemas socioeconômicos de extrema relevância atualmente – o que
também invalida, de certa forma, o uso de “águas não navegadas”. Nesse
sentido, ao falar de “nova perspectiva”, deixam subentendido que o ma-
terial que está sendo traduzido é inovador e nos levará “tão longe”, assim
como o grupo, o que parece não ser confirmado pelas escolhas dos temas.
Além disso, ao chamar os “valentes” “a bordo” para “zarpar”, dá
um ar heroico para aqueles que estão dispostos a seguir o grupo nas
plataformas diversas das quais fazem parte. O uso de “zarpar” acaba por
desencadear uma leitura negativa, pois a palavra também é usada com o
sentido de escapar, fugir, retirar-se de um lugar apressadamente18.
Por fim, ao se apresentarem como “voluntários pela difusão do
conservadorismo e de notícias do mundo vistas pela ótica conservado-
ra”, criam uma expectativa de que serão traduzidas notícias do mundo,
embora no Instagram esteja explícito que traduzem dos Estados Unidos,
conforme veremos adiante.
O site Estibordo, atualizado com menos frequência que as demais
plataformas, apresenta cerca de trinta artigos, entre os quais há traduções
não assinadas, outras assinadas com o primeiro nome ou nome completo
de quem traduziu, outras ainda apenas com as iniciais. No momento de
consulta para este trabalho, já fazia quatro meses que o último artigo
tinha sido postado (maio de 2020). Na página inicial, abaixo do título dos
artigos traduzidos, aparece a indicação “por Estibordo Internacional”.
A escolha de textos mostra uma coerência em relação aos assuntos dos
vídeos legendados divulgados nas demais plataformas.
18 De acordo com o dicionário Michaelis: “zarpar: Pôr-se em fuga; abandonar um lugar apressa-
damente ou de modo desordenado; fugir: Os vândalos zarparam ao ouvirem a sirene da viatura
policial.” http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=zarpar

246
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Diferentemente do que acontece no Facebook e no site, as contas do


grupo no Twitter e no Instagram são atualizadas com bastante frequência.
No Twitter (Fig. 4), a descrição é resumida, há uma fusão entre o símbolo
do grupo e o do site, além de imagens dos autores traduzidos. É possível
concluir que ocorreram modificações desde a inscrição, em 2015, uma
vez que o site Estibordo foi criado em novembro de 2018.
Figura 4 – Página do grupo Tradutores de Direita no Twitter

Fonte: https://twitter.com/tradutores_br

Mais uma vez, aparece o uso de “establishment”, que é um termo


bastante complexo porque pressupõe que o grupo da direita está lu-
tando contra uma ordem ideológica, político-econômica estabelecida
e consolidada pela esquerda, que tem privilégios e representa o poder.
No entanto, atualmente a direita está no poder – o que a coloca em uma
posição dominante –, tornando-se de certa forma contraditória a postura
antiestablishment adotada pelos Tradutores de Direita. Nas descrições
encontradas no Facebook e no YouTube, contudo, a oposição é feita
ao “establishment cultural, universitário e jornalístico”, o que é mais

247
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

coerente com o viés apresentado nos vídeos e textos traduzidos que


trazem muitos conteúdos contra uma determinada concepção de uni-
versidade e de mídia atribuída ao pensamento de esquerda, outros com
críticas a atitudes e indicação de padronizações sociais (que, ao que tudo
indica, corresponderia ao “cultural”). O que merece atenção, portanto,
é o fato de afirmarem reiteradamente que há um “establishment” em
cena, defendido pela esquerda, pressupondo que pontos nevrálgicos
ainda em discussão, especialmente em relação a questões de ideologia
de gênero, direitos reprodutivos e papel da universidade na sociedade,
já estariam resolvidos. Na prática, entretanto, a tentativa de mudança
desse suposto establishment defendido pela esquerda pode ter ajudado
a eleger o atual governo19.
Na plataforma Instagram (Fig. 5), cuja primeira postagem é de
maio de 2017, foi adotada uma descrição diferente, que deixa claro o
objetivo do grupo: “US > BR Traduzimos informações políticas para
mudar o Brasil!” – comprovando, portanto, que os vídeos divulgados
são traduções de conteúdos provenientes de páginas dos Estados Unidos
(e não do mundo).
Figura 5 – Página do grupo Tradutores de Direita no Instagram

Fonte: https://www.instagram.com/tradutoresdedireita/

19 Márcio Moretto Ribeiro (2018) mostra a polarização antipetista e anti-antipetista, iniciada em


2013 (ano de criação do grupo Tradutores de Direita) e categoriza o grupo como “conservador
em termos morais” (p. 89). Segundo Ribeiro, para os conservadores, os “esquerdopadas”, entre
outas características, são os inimigos que querem manter políticos corruptos no poder, sustentar
vagabundos, implantar o comunismo e defender uma educação equivocada e promíscua. Nesse
contexto, é possível concluir que o discurso político do “cidadão de bem”, usado durante as
eleições, acabou determinando a vitória de Jair Bolsonaro como representante do antipetismo
e contra “a mídia manipuladora e mentirosa” (discurso reforçado pelo presidente até hoje).

248
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

A plataforma, embora tenha sido criada por último e tenha o


menor número de seguidores, no momento parece ser uma das que
traz mais atualizações, reproduzidas no YouTube e no Twitter. Em
um vídeo publicado em 21 de novembro de 2018, deixam claros os
objetivos do grupo:

Os Tradutores de Direita iniciaram sua jornada no ano


de 2013, com a missão de furar o bloqueio midiático e
acadêmico da esquerda no Brasil. Sentimos que era neces-
sário levar informação em português sobre o que estava
acontecendo no mundo, sem o filtro da velha imprensa
progressista. Em um contexto de hegemonia cultural
marxista, nossa missão era colaborar na reconstrução
do pensamento conservador no Brasil, apresentando ao
público brasileiro exemplos de um conservadorismo
forte e atuante em outras partes do mundo. De lá pra cá
muita coisa aconteceu: dezenas de voluntários, ilustres
anônimos, sacrificaram horas de descanso e lazer na
produção de conteúdo legendado e até mesmo dublado
em português (…)20.

Constatamos que os 340 vídeos publicados até julho de 2020
apresentam conteúdos que variam entre assuntos que dizem respeito ao
governo e à ideologia política e outros que concernem à família e à reli-
gião. No primeiro caso, os vídeos tratam predominantemente de críticas
à esquerda (“dicionário de esquerdês”, por exemplo), explicações sobre
conservadorismo, gastos e impostos governamentais, direitos trabalhistas,
lockdown e outros aspectos decorrentes da pandemia, questões ambien-
tais, armamento da população, críticas às universidades e doutrinação
nas escolas. No segundo caso, os vídeos abordam principalmente ideo-
logia de gênero, aborto, masculinidade, casamento, moralidade, poder
da religião. Cabe ressaltar a ideia da “mídia, mentirosa e manipuladora,
[que] impede que a população enxergue; por isso é importante procurar

20 Ben Shapiro, Donald Trump e Olavo de Carvalho estão entre os exemplos trazidos no vídeo.
Disponível em: https://www.instagram.com/p/Bqcfm8VhUsW/. Acesso em: 03 ago. 2020.

249
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

e propagar a verdade nas redes sociais”, um discurso bastante recorrente


entre os conservadores (RIBEIRO, 2018, p. 90).
Nas apresentações dos vídeos (que funcionam como paratextos,
no sentido de GENETTE, 200921), não há preocupação do grupo em
explicar que as informações são provenientes de um outro país, e pos-
turas estadunidenses são assumidas como universais, desconsiderando
nossa realidade. Nesse sentido, o grupo alimenta um discurso dominante
e defende que, ao trazer informações sobre como a direita funciona no
exterior, pretende estabelecer diretrizes para a direita nacional e, assim,
“ajudar o brasileiro a restaurar sua identidade e reerguer, politicamente,
o conservadorismo latente da população” (conforme o vídeo já cita-
do). É nítida a defesa da polarização direita versus esquerda, com as
oposições extremamente marcadas, apresentando resistência ao Outro,
em uma disputa que divide cada vez mais a população e coloca, de um
lado, valores mais democráticos, defesa de direitos humanos e respeito
às diferenças; de outro, defesa de armamento e intervenção militar,
negação do diferente, da ciência, do racismo estrutural, do politica-
mente correto. A escolha dos vídeos demonstra que não há interesse
em traduzir assuntos que dizem respeito a projetos sociais, como é
característico das organizações que promovem traduções voluntárias
(mesmo que tenham, subjacentes a elas, interesses que ultrapassam a
questão do voluntariado).
O ativismo que exercem é claramente oposto ou incompatível
com o defendido, por exemplo, por Carcelen-Estada (2018), para quem
um tradutor ativista deve ir além das concepções pós-estruturalistas
do que significa ser crítico e do poder como fonte absoluta e única de
conhecimento22 e adotar discursos críticos que residem fora dos limites
da modernidade e que emergem dos sobreviventes da colonialidade (p.
261). Depois de oferecer exemplos democráticos concretos da sua pró-
21 Muito a propósito, Genette (2009 p. 10, grifos do autor) explica que um paratexto “constitui
entre o texto e o extratexto uma zona não apenas de transição, mas também de transação: lugar
privilegiado de uma pragmática e de uma estratégia, de uma ação sobre o público, a serviço,
bem ou mal compreendido e acabado, de uma melhor acolhida do texto e de uma leitura mais
pertinente – mais pertinente, entenda-se, aos olhos do autor e de seus aliados.”.
22 Em consonância com os princípios de Michel Foucault e Frantz Fanon.

250
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

pria prática professional de tradução, a autora apresenta a sua visão de


ativismo (CARCELEN-ESTADA, 2018, p. 263):

Prefiro conceber ativismo em um sentido mais amplo para


ir além das estruturas políticas eurocêntricas e incorporar a
ação política de pessoas que lutam por direitos coletivos e
autonomia cultural em sua experiência diária de opressão.
As redes de solidariedade devem incluir as visões de mun-
do de povos indígenas, afrodescendentes e islâmicos, para
que possamos encontrar uma nova linguagem e, assim,
garantir direitos coletivos e individuais, sejam políticos,
culturais ou outros.

Essa definição de ativismo também é defendida por Calzada Pérez


(2007), para quem os estudos de tradução devem se tornar uma plata-
forma de resistência ideológica, sobretudo convocando os estudiosos
da tradução a contribuírem para resistirem à “ideologia hegemônica do
Novo Consumismo” (2007, p. 165). Como sublinha Tymoczko (2009,
p. 184-189), os analistas da globalização fariam bem em examinar as
maneiras pelas quais a tradução cultural é usada para estimular e espalhar
a violência política e recrutar voluntários para participar da violência e
que os estudos de tradução, tradutores e tradutoras também devem se
comprometer a tornar audíveis as vozes de pessoas de dentro e de fora
de culturas que infligem ou sofrem violência. Já Baker (2010, p. 39) ar-
gumenta que diante de um mundo cada vez mais polarizado e violento,
no qual as oportunidades para permanecer “neutro” são continuamente
corroídas, os tradutores – como a maioria dos grupos profissionais – têm
dificuldade em se posicionar individualmente e como um grupo em rela-
ção às várias narrativas que circulam ao seu redor e entre eles.
No caso do Tradutores de Direita, há uma adoção das narrativas da
ideologia dominante e, ao contrário da ideia de multilinguismo, temos
uma submissão, um etnocentrismo “às avessas”, em que a cultura, nor-
mas e valores do Outro são privilegiadas e apagam as idiossincrasias do
“próprio”. Há uma transferência daquilo que é defendido em outro país,

251
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

com outra cultura, para a nossa realidade, como se não fossem situações
diferentes – apesar de partirem da “mesma” ideologia política. Assim,
falar de aborto no Brasil é diferente de falar de aborto nos Estados Unidos,
mesmo que ambos tenham, em comum, o fato de serem contra o direito
da mulher de decidir se quer ou não levar adiante a gravidez. A realidade
educacional superior dos norte-americanos é diferente da nossa realidade,
e essas diferenças ocorrem em várias áreas dos vídeos traduzidos – si-
tuação que não é apontada nem mesmo nas descrições de apresentação
desses vídeos. Há uma promessa de um nacionalismo, mas a resposta é o
apagamento das diferenças e valorização única daquele que supostamente
devemos imitar, independentemente das circunstâncias ou, para usar uma
expressão mais adequada à área, sem considerar os contextos. Não há,
portanto, uma desterritorialização, ao contrário, o inglês é a única língua
traduzida, o que mostra um imperialismo linguístico e hegemonia das
ideias sociopolíticas estadunidenses. As diferenças que nos constituem
são apagadas, e, com elas, a possibilidade de pensar caminhos que sejam
adequados para nossa sociedade.

Considerações finais

Como mencionado no início deste trabalho, as pesquisas sobre tra-


dução ativista vêm da década de 90 quando surgiram os primeiros estudos
sobre ideologia, poder e agentividade, que quebravam os paradigmas
da neutralidade e invisibilidade (BAKER, 2010; TYMOCZKO, 2000;
VENUTI, 1995). Com o uso crescente da internet e das redes sociais,
surgiram novas práticas de tradução política em ambientes colaborativos
e voluntários. Foi assim que entramos em contato, por acaso, com o grupo
Tradutores de Direita, que defende abertamente uma ideologia de direita.
Então, partindo de uma revisão dos conceitos de manipulação, resistência
e ativismo buscamos entender as práticas de tradução ligadas à política
que encontramos em comunidades on-line e nas redes sociais, em geral,
e nas práticas de tradução desse grupo, em particular.
Consideramos que os resultados deste pequeno estudo de caso nos
permitem afirmar que as práticas do grupo Tradutores de Direita estão

252
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

em consonância com as práticas de manipulação que foram estudadas


pelos integrantes da Escola da Manipulação (HERMANS, 1985; GENT-
ZLER; TYMOCZKO, 2002), uma vez que calibram certas informações
para criar um efeito de partilha de identidade política e ideológica no
público-alvo. Também estão em consonância com as descobertas de
Sturge (2002) e de Klemperer (2009), que mostraram como regimes de
extrema-direita selecionam textos para tradução que promovem ideais
supremacistas e imperialistas.
O grupo compartilha as características apontadas por Komska (2019)
em relação à política linguística de extrema-direita, na medida em que
“tem demonstrado cada vez mais habilidade em usar a tradução para di-
vulgar suas mensagens”. Os Tradutores de Direita são militantes políticos
que têm conseguido disseminar informações em diferentes plataformas.
Como “valentes”, eles se consideram uma minoria excluída e ameaçada,
e, para a preservação de valores morais e da família tradicional, traduzem
discursos em nome da manutenção de uma suposta ordem social. Nesse
sentido, a ação que fazem difere das propostas de ativismo estudadas na
área de tradução voluntária e por autores como Calzada Pérez (2007) e
Carcelen-Estada (2018).
Já em relação ao conceito de resistência, havíamos mencionado que
não existe um consenso entre tradutores e teóricos da tradução sobre o que
pode e deve ser considerado objeto de resistência em práticas de tradução,
de forma geral, ou em um determinado contexto. Apesar de apregoarem
uma resistência à ideologia de esquerda, as práticas do grupo Tradutores
de Direita também contrariam o sentido que tem sido atribuído à palavra
desde a época da eleição presidencial23. Nesse contexto, nosso papel é
tentar mostrar como esses discursos de “resistência” têm sido construídos
e propagados, e como é necessário entender o funcionamento de grupos
antidemocráticos para conseguir combatê-los. Como afirma Komska
(2019), “não devemos nos iludir e acreditar que o fascismo na tradução se
dissipará sem intervenções diretas. Especialmente no trabalho voluntário,
23 A expressão “se fere minha existência, serei resistência” se tornou bastante popular e repre-
sentou, na época, uma manifestação contra o discurso de ódio, racista e homofóbico e a favor
de uma política antifascista, antirracista e pelos direitos das mulheres e das minorias.

253
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

nossa intervenção começa na escolha daquilo que iremos traduzir e das


possíveis consequências que essa tradução terá, ou, no termo usado em
outro contexto por Derrida (2000, p. 17), na sua relevância:

O que é dito “relevant”, na maior parte das vezes? Aquilo


que parece mais certo, pertinente, a propósito, bem-vindo,
apropriado, oportuno, justificado, bem afinado ou ajusta-
do, surgindo de forma adequada lá onde é esperado – cor-
respondendo, como deve ser, ao objeto ao qual se referem
o gesto dito relevante, o discurso relevante, a proposição
relevante, a decisão relevante, a tradução relevante.

Como sublinha Tymoczko (2009), se a tradução vai ajudar a criar


um mundo mais justo ou instituir novas formas de imperialismo, se vai
estimular conflitos e violência ou promover a paz e o diálogo, só depende
de nós, tradutores e tradutoras, porque a tradução tem poder para isso
tudo. A escolha do quê e de como traduzir proporciona a percepção do
Outro e das nossas próprias ideologias, e problematizar as consequências
daquilo que traduzimos, como fizemos aqui, também é uma maneira de
resistirmos e nos mostrarmos éticos, conscientes e responsáveis, para
que tenhamos uma tradução relevante na construção de um mundo mais
democrático e igualitário.

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257
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Ciborgue, bruxa, professora e o que mais ela


quiser ser: educação linguística de inglês na
universidade1

Gabriela Claudino Grande2

A sociedade contemporânea, constantemente transformada por


novas tecnologias e mídias, é marcada por discursos que cada vez mais
acentuam a condição pós-humana, orientada pela lógica neoliberal e
estruturada pelo capitalismo patriarcal e dadocêntrico. Ao reproduzir
desigualdades e opressões de variados tipos e formas, o pensamento
abissal3 (SOUSA SANTOS, 2007) tem predominado em diversas esferas
da sociedade. Nesse contexto, a educação linguística também sofre os
impactos desses novos modos de comunicação, existência e controle,
sendo que, caso essa educação não construa algumas formas de resistên-
cia que permitam possibilidades de produção de relações interessadas na
construção do bem coletivo, ela pode assumir uma posição que reforça
ou mantém o status quo.
1 Este capítulo surgiu a partir de uma série de reflexões tecidas ao longo dos últimos quase dois
anos com o professor Dr. Marcelo El Khouri Buzato (Unicamp), a quem eu agradeço pelas
valiosas interlocuções, juntamente com seu grupo de pesquisa LiTPos (Linguagens, Tecnologias
e Pós-humanismo/humanidades). Também agradeço a Laryssa Paulino de Queiroz Sousa por
sua cuidadosa leitura.
2 Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Programa de Pós-Graduação em
Linguística Aplicada (PPGLA-UNICAMP).
3 O pensamento abissal consiste em um sistema de distinções invisíveis que são estabelecidas
por meio de “linhas radicais que dividem a realidade social em dois reinos, o reino do ‘este
lado da linha’ e o reino do ‘outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’
desaparece como realidade, torna-se inexistente”. (SOUSA SANTOS, 2007, p. 45-46, grifo
no original).

259
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Nesse sentido, repensar a linguagem e a comunicação a partir


de novas fronteiras epistemológicas perpassará, inevitavelmente, as
práticas educacionais com o uso de novas Tecnologias da Informação
e Comunicação (TIC). Em relação a discussões que se debruçam so-
bre a formação4 de professores de Língua Inglesa (doravante LI), um
elemento constitutivo das relações é a concepção de língua, que, por
vezes, exerce efeitos coercitivos, fazendo referência a ontoepistemo-
logias ainda marcadas por uma visão de modernidade e colonialidade
que reforçam as noções dicotômicas do sujeito humanista, liberal e
iluminista, que se opõem às formas de conceber agentes humanos e
não-humanos preconizados pelo Pós-humanismo. Dentro da lógica
pós-humana, o “melhoramento humano”5 tem tido destaque na cultura
popular e erudita, sendo denominado por alguns teóricos como ciborgue
(HAYLES, 1999).
Os ciborgues “populares”6, retratados na literatura e em filmes ou
séries de TV, tais como o Robocop7 ou o Capitão Picard em uma tem-
porada de Jornada nas Estrelas: nova geração, são entidades que em
sua materialidade são compostos pela junção de elementos orgânicos e
inorgânicos, criando agentes com habilidades ou capacidades computa-
cionais que ultrapassam as habilidades ou capacidades de qualquer ser
humano. Desse modo, ciborgues são “organismo[s] cibernético[s], um
híbrido entre máquina e organismo”8 (HARAWAY, 2006, p. 5), nos
quais as fronteiras entre orgânico e máquina se diluem em entidades
que são ontologicamente ambos. Embora já existam pessoas com partes
4 A ideia de formação, embora possa ser pensada semanticamente como formatação, é expandida
a partir de Freire e outros que pensam na formação como processo (em devir) constante e
como forma de existência e resistência, indo ao encontro dos objetivos elencados no presente
capítulo.
5 “Human enhancement” se refere tanto a adição de tecnologias digitais para a sobrevivência e
uma maior eficiência, quanto para delegar atividades outrora unicamente humanas.
6 Popular é tido aqui como senso comum, ou seja, os modos de pensar da maioria das pessoas,
o que nem sempre retrata os entendimentos científicos ou acadêmicos sobre um determinado
assunto, artefato ou fato.
7 Robocop é um filme clássico de ficção científica da década de 1980 em que um policial é
morto por criminosos e ressuscitado por uma empresa de tecnologia para se tornar um ciborgue
super-humano policial.
8 Todas as traduções das citações de textos em língua inglesa para língua portuguesa são de
minha autoria.

260
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

do corpo não-orgânicas9, ou seja, conforme a taxonomia proposta por


Hayles (1999), ciborgues reais, os chamados ciborgues metafóricos, ou
analogamente “ciborgues de baixa tecnologia” (KATH; GUIMARÃES
NETO; BUZATO, 2019, p. 682) estão presentes na forma de extensões
de nós mesmos imbricadas ao espaço e às tecnologias, sobretudo em
sociedades urbanas.
O ciborgue enquanto um construto teórico poderia ser compreendido
como um ente oposto ao ideal mítico da bruxa – que posiciona mulheres
em aliança com a natureza e contra a tecnologia. No entanto, tal pro-
posta seria contrária a perspectivas pós-humanistas, que se distanciam
das dicotomias das tradições humanistas. Assim, a metáfora da bruxa (a
terceira seção deste texto tem a tarefa de explicar tal metáfora) se refere
a centenas de mulheres reais que foram executadas por volta do início da
Era Moderna, ou seja, durante o surgimento do capitalismo na Europa,
ao se posicionarem de forma desviante ao que era esperado delas naquela
época (FEDERICI, 2017).
Embora pareça paradoxal utilizar nomeações – ciborgue, bruxa
e professora – para debates pós-humanistas acerca das subjetividades
em práticas de educação linguística de inglês, a presente reflexão não
pretende atribuir significados estáticos às noções mobilizadas, tão
pouco aos processos de construção de subjetividades compartilhadas
da professora em si e da sala de aula. Por meio deste texto, objetivo
trabalhar com novas perspectivas em relação a identidades que fujam
à noção de matriz identitária natural, defendendo projetos educacio-
nais que se oponham à opressão, utilizando a figura da bruxa, por
exemplo, enquanto metáfora contra-hegemônica, para (re)pensar a
mulher, a linguagem, a professora, o mundo e as relações humanas e
não-humanas através de um viés que permita refutar o antropoceno e
potencializar uma ética pautada pela ideia de participação coletiva.
A ampliação dessa visão é importante para desestabilizar a lógica
individualista, patriarcal, racionalista, centrada na supremacia do ser
9 Refere-se a pessoas com partes do corpo mecânicas, como “pessoas com marca-passos ele-
trônicos, articulações artificiais, lentes corneanas implantadas e peles artificiais” (HAYLES,
1999, p. 115).

261
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

humano cartesiano, e as dicotomias da sociedade moderna, tal qual


a matriz identitária natural e dualista.
Abordagens contemporâneas em relação à identidade (DE FREI-
TAS; CURINGA, 2015; GIDDENS, 2003; HALL, 2006; MOITA
LOPES, 2002) tendem a enfatizar a maneira fragmentada, múltipla, não-
unitária, flexível, em constante progresso, contingente e performativa com
que identidades são (des)(re)construídas continuamente a depender dos
contextos nos quais estão inseridas. A construção de identidades, nesse
sentido, é tida como “sempre em processo”, “complexas, diferenciadas
e constantemente reposicionadas”, e nunca completas (MOITA LOPES,
2002, p. 33-34). É apenas a partir da desconstrução e reconstrução do
conceito tradicional de identidade que posso, conforme Hall (2006),
continuar a empregá-lo.
Partindo das perspectivas teóricas do Pós-humanismo Crítico e do
ciborguismo, proponho discutir práticas de educação linguística através
de análises de alguns recortes de aulas ministradas por mim no ensino
superior de uma instituição federal localizada no centro-oeste brasileiro.
A proposta serve para a reflexão de professores, especialmente aqueles
que privilegiam o trabalho com (des)(re)construções em salas de aulas de
línguas, levando em consideração novas fronteiras ontoepistemológicas,
tal como propõe o Pós-humanismo Crítico, ao tratar de seres pós-humanos
e suas formas de tornar-se, aprender e ensinar no mundo.
Com o propósito de organizar as reflexões que orientam este
trabalho, a primeira seção deste capítulo busca discorrer sobre o Pós-
humanismo Crítico e sua relação com as tecnologias, para então discutir
o ciborgue como um construto teórico-prático, a fim de conectá-lo ao
trabalho docente e a algumas questões relativas à subjetividade humana
na constituição de mulheres/bruxas, mais especificamente na minha cons-
tituição como professora e mulher atuante na formação de professores.
Em seguida, as análises feitas têm a mera função de ilustrar algumas
das práticas educacionais que, em certa medida, retratam algumas das
formas de tornar-se no mundo contemporâneo e na educação linguística
do contexto investigado.

262
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Pós-humanismo Crítico e tecnologias no ensino superior

O Pós-humanismo, enquanto termo guarda-chuva que abriga diver-


sas correntes teórico-filosóficas, é entendido como uma fronteira episte-
mológica na construção de perspectivas críticas e culturais. A rejeição
das dicotomias características à sociedade moderna e evocação de novas
formas de subjetividade da formação do sujeito, faz com que essa nova
fronteira ontoepistemológica nos leve a um entendimento diferente sobre
nós mesmos (BRAIDOTTI, 2013).
De maneira geral, o Pós-humanismo, dentro de sua episteme, privi-
legia padrões informacionais, considerando que o ser pós-humano passa
a se comunicar com as máquinas sem haver demarcações essenciais entre
as existências do mundo virtual e não-virtual, uma vez que o virtual, na
visão de Hayles (1999), também é corporificado. Um exemplo disso é a
forma como a autora atesta que simulações da realidade virtual demons-
tram como a subjetividade ultrapassa a barreira da pele e está presente,
de forma dispersa, em circuitos cibernéticos nos quais os “loops de rea-
limentações (feedback) conectam o corpo e a simulação em um circuito
biotecno-integrado” (HAYLES, 1999, p. 27).
O Pós-humanismo Crítico, vertente utilizada neste capítulo, e par-
ticularmente na visão de Braidotti (2013), não irá superar a existência
humana, como é o caso para o Transhumanismo10, tampouco propor que
humanos façam o upload de consciências no esforço de deixar seus corpos
orgânicos para trás. A condição pós-humana implica a descentralização
do homem no universo (PENNYCOOK, 2018) e a coexistência de agen-
tes humanos e não-humanos, sendo a tecnologia e as suas propiciações
essenciais para a proposição de novas subjetividades pós-humanas.
Diante da corrente Pós-humanista adotada – a crítica –, é importante
destacar algumas características distintivas para sua compreensão. A
genealogia que culminou na discussão e proposição dessa vertente tem
suas origens no pensamento filosófico de pós-estruturalistas (ou anti-
10 Não cabe ao presente trabalho discutir outras vertentes ligadas ao Pós-humanismo além da
corrente crítica. Para maiores informações e referências sobre essas outras vertentes, veja a
discussão tecida por Ribas (2019).

263
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

humanistas) como Michael Foucault, Gilles Deleuze e outros. Ainda


que esses teóricos não tivessem discutido as características trans/inter/
pós-disciplinares amplamente debatidas na Linguística Aplicada (LA) e
no Pós-humanismo Crítico, de acordo com Braidotti (2019), eles mobi-
lizaram conceitos que fundam também, além do próprio Pós-humanismo
Crítico, os Estudos Culturais, que passaram a se descolar de disciplinas
fechadas e tradicionais das escolas humanistas de pensamento. Há,
segundo a mesma autora, duas gerações de Estudos Culturais que pavi-
mentaram as vias para que o Pós-humanismo Crítico pudesse emergir,
nomeadamente: primeiramente os Estudos Críticos, advindos de práticas
interdisciplinares, e, posteriormente, na virada do milênio, estudos que
tratavam diretamente do antropocentrismo e/ou sua superação.
É possível observar que algumas das correntes da LA se circuns-
crevem aos Estudos Críticos, que a autora (BRAIDOTTI, 2019) aponta
como sendo: os Estudos Culturais, a Teoria Queer, os Estudos Femi-
nistas, os Estudos Africanos e outros estudos que embasam e enfatizam
experiências empíricas, trazendo a perspectiva de minorias largamente
marginalizadas nas tradições humanistas de pesquisa, que fazem emergir,
portanto, vozes silenciadas para produção de conhecimento. Fundamenta-
da por perspectivas anti-humanistas que desafiaram (e até hoje desafiam)
o status quo sobre diversas metanarrativas e/ou verdades, é justamente
no cruzamento e na cartografia de diversas áreas trans/interdisciplinares
que as bases para o surgimento do Pós-Humanismo Crítico são criadas.
Conceitualmente, o Pós-Humanismo Crítico se enquadra em um
campo rizomático supradisciplinar “composto por um meta-padrão
indexado como um tornar-se-minoritário de conhecimentos acerca de
sujeitos e práticas” (BRAIDOTTI, 2019, p. 109). Embora as acelerações
epistêmicas advindas do capitalismo busquem produções de conheci-
mento rápidas e/ou em grandes quantidades, como a salami Science11, no
Pós-humanismo Crítico, essa produção contemporânea de conhecimento
funciona em velocidades diferentes e alinha-se a forças éticas afirmativas,
11 Salami Science ou “ciência salame” é a prática de dividir uma única pesquisa ou estudo como
um salame, para publicá-la no maior número possível de artigos científicos. Com isso, o
cientista aumenta seu currículo e cria a impressão de que é muito produtivo.

264
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

se movendo de formas, em espaços e em tempos distintos, priorizando a


qualidade, a ética e o compromisso com a sociedade.
Práticas educacionais menos hierárquicas e colaborativas que pro-
movem as ações afirmativas éticas que Braidotti (2019) faz referência
dão vazão para que elementos não-humanos, como espaços físicos, tec-
nologias digitais, animais e outros – com ênfase na mistura, no híbrido
e na diferença –, possam intervir/ter papéis em práticas educacionais,
trazendo à tona relações de poder que os envolvem. A promoção de
ações afirmativas advém, por exemplo, de reflexões críticas acerca de
práticas educacionais: como podemos repensar ou discutir a desigualda-
de de acesso à internet, particularmente no presente momento, durante
a pandemia de 2020/2021? A conexão à internet nesse cenário passa a
democratizar a educação ou é uma ferramenta de exclusão aos que não
possuem acesso?
Embora algumas correntes Pós-humanistas coloquem seus holofotes
sobre a tecnologia digital e ela seja relevante para as discussões de poder
e acesso que fiz alusão brevemente, a proposição à qual faço menção
entende os meios tecnológicos digitais como um elemento, sem agregar
valoração de melhor/pior ou mais/menos importante, para o entendimento
das relações. Em contextos de sala de aula, é preciso reconhecer que
agentes não-humanos têm papel relevante em práticas educacionais desde
sempre, tomando igual espaço nas produções de agência compartilhada,
bem como nas análises que pretendo fazer.
Tecnologias enquanto agentes não-humanas em sala de aula podem
assumir diferentes formas e modos em sua materialidade. De acordo com
Dascal (2002, p. 1), “a linguagem é uma tecnologia cognitiva, empregada
por humanos enquanto ferramenta para a performance de certas tarefas
cognitivas”. Se, por um lado, a complexidade cognitiva da linguagem
humana nos difere dos outros animais, ela igualmente medeia, de forma
relativa e até mesmo distorcida, formas não-verbais do pensamento
(CHANDLER, 1995). Ao entender que, portanto, a noção de tecnologia
pode abranger uma enorme variedade de reflexões filosóficas, direcio-
narei as lentes de análises às relações que são e podem ser constituídas

265
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

entre agentes humanos e não-humanos. Para cumprimento dos objetivos


elencados nessa breve discussão, e, particularmente, no contexto estu-
dado, as relações com novas tecnologias da informação e comunicação,
bem como o uso da internet em sala de aula terá papel nas práticas aqui
apresentadas, não perdendo de vista a perspectiva crítica da corrente
pós-humanista adotada.
O uso de computadores para a aprendizagem de línguas não é exata-
mente uma novidade. Embora haja certa concordância de que os cursos de
Letras e os de formação continuada de professores deveriam dar conta de
uma reflexão crítica sobre as novas TIC digitais, é sabido que a realidade
universitária de futuros professores de Língua Inglesa muitas vezes não
ultrapassa a superficialidade utilitarista do uso de ferramentas digitais.
Ainda que a internet não seja em si mesma um recurso unicamente
educacional e o debate em relação ao seu caráter excludente precise ser
feito, quando há acesso, ela propicia o uso de diversas ferramentas de-
senhadas para a educação. O Prezi, por exemplo, é um software on-line
de apresentações armazenadas na nuvem, usado em diversos âmbitos da
sociedade, inclusive em escolas e universidades:

O Prezi é um provedor de serviços de apresentação on-line


que oferece diferentes […] opções para criar e armazenar
apresentações digitais. […] O Prezi permite um fluxo
linear e livre da apresentação de um enredo. O usuário
cria uma apresentação em um grande espaço de trabalho
em branco chamado de tela [canvas], onde todos os ele-
mentos de uma apresentação são visíveis. […] o Prezi
tem a capacidade de integrar textos, imagens, animações,
áudios e vídeos perfeitamente em uma única apresentação.
(PERRON; STEARNS, 2010, p. 1).

Na educação superior, tanto o Prezi quanto outros softwares são


constantemente utilizados com a intenção de melhorar ou otimizar a
organização dos conteúdos e a disponibilização de apresentações ou
materiais, processos relevantes para educação linguística. Nesse sentido,

266
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

tecnologias digitais, particularmente o computador e os smartphones,


fazem parte da vida cotidiana de grande parte dos docentes. É no mínimo
assustadora a quantidade de horas que professores e alunos passam em
frente a telas dentro e fora de sala de aula. Tais agentes não-humanos se
tornam uma extensão de nós mesmos à medida em que não é possível
imaginar ou performar nossas práticas sociais sem eles.
De acordo com Kath, Guimarães Neto e Buzato (2019, p. 682),
a maioria de nós, humanos em sociedades urbanas que “passam uma
grande parte de seus dias conectados a máquinas como carros, telefones
e computadores”, seríamos “ciborgues de baixa tecnologia”. Na seção
seguinte, portanto, discuto o ciborgue enquanto um construto teórico-
prático, para então relacioná-lo a práticas educacionais pautadas por uma
perspectiva ciborgue-feminista (HARAWAY, 2006), utilizando a metá-
fora da figura da bruxa enquanto símbolo de resistência e militância em
direção a práticas educacionais menos desiguais, em prol de uma visão
pós-humanista crítica que prevê ações afirmativas para o bem coletivo.

Construto teórico de ciborgue: e o que isso tem a ver


com a educação?

Considerando que “narrativas são formas de discurso mais corpori-


ficadas” (HAYLES, 1999, p. 22), em comparação a teorias analíticas, e
para que fique explicado o que entendo por ciborgues, faço uma peque-
na incursão ao narrar um exemplo da área da saúde e sua consequente
extensão da longevidade. Há cerca de 10 anos, minha irmã sofria de um
quadro grave de colite ulcerativa, doença degenerativa que atinge os
intestinos. Seu quadro era crítico de tal forma que foi necessária uma
cirurgia para correção e remoção de parte do órgão. Para a realização
da cirurgia, o médico precisou, além de uma formação coerente e uma
equipe humana composta de enfermeiros e anestesiologista, de uma série
de equipamentos tecnológicos, do simples bisturi e medicamentos (que
envolvem outras assemblagens12 para sua composição, além daquelas
12 Embora discussões acerca das noções de assemblagem sejam tecidas através de diversos
enfoques teórico-filosóficos que fogem do escopo do presente trabalho, utilizo o termo para
fazer uma referência à teoria da assemblagem, desenvolvida no livro A Thousand Plateaus, de

267
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

instauradas para a composição da cirurgia) a computadores que conse-


guiriam medir os sinais vitais da paciente.
Sem esses agentes não-humanos/artefatos tecnológicos e sem a
delegação de algumas funções (LATOUR, 1990), como a checagem
de sinais vitais, não seria possível nem mesmo juridicamente legal que
minha irmã pudesse passar pelo procedimento. Ainda que nenhum objeto
inorgânico tenha sido acoplado ao seu corpo permanentemente – exceto
por uma bolsa de colostomia que foi utilizada por apenas seis meses –,
sem as tecnologias necessárias para a cirurgia e sem a assemblagem de
agentes humanos e não-humanos, sobretudo sem o cirurgião-ciborgue13,
a paciente em questão muito provavelmente teria sérios problemas para
continuar a viver e performar atividades cotidianas.
O exemplo ilustra como as tecnologias estão diretamente conectadas
à longevidade humana e, mais especificamente, como nós, humanos,
somos diretamente dependentes delas, seja como pacientes, para estender
o tempo de vida, seja como o cirurgião que necessita de artefatos tecno-
lógicos para exercer sua profissão e constituir sua identidade médica. De
forma análoga, é possível refletir sobre que sujeito-professor-ciborgue
está sendo constituído nas práticas educativas que exigem artefatos
diversos.
No entanto, antes que eu relacione a noção de ciborgue à educação,
é preciso fazer uma breve incursão em relação ao construto de ciborgue.
Para tal tarefa, recorro ao pensamento das seguintes autoras: Donna
Haraway com o seminal A cyborg manifesto: Science, Technology, and
Socialist-Feminism in the Late 20th Century, de 1985/2006, e Nancy
Katherine Hayles com o livro How we became post-human: virtual bo-
dies in cybernetics, literature, and informatics, de 1999, além de outros
textos de apoio sobre a temática.

Deleuze e Guattari (1987), para proposição de estruturas complexas sociais que sejam fluidas,
múltiplas, nômades, em contextos de continuidade e heterogeneidade, possuindo paradoxal-
mente características de estabilidade e mudança.
13 Materializado em sua constituição orgânica em conjunto com tecnologias diversas para de-
sempenhar suas atividades de cirurgião.

268
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

O termo ciborgue foi cunhado por Manfred Clynes e Nathan Kli-


ne, em 1960, como abreviação para organismo cibernético (KUNZRU,
2009), tendo como base os estudos da primeira onda da cibernética a
partir do matemático e filósofo Norbert Wiener. No entanto, de acordo
com o Glossário Pós-humano (BRAIDOTTI; HLAVAJOVA, 2018), na
década de 1980, a noção de ciborgue ganha novas ramificações quando
reconfigurado por Haraway (2006, p. 9), ao relacioná-lo a identidades
fluidas e corporificadas, constituindo nossa ontologia como agentes
híbridos (de máquina e organismo), “determinadamente comprometido
com a parcialidade, a ironia e a perversidade […], [sendo] oposicionista,
utópico e nada inocente”.
Desde 1985, quando a primeira versão do livro foi lançada, Haraway
(2006, p. 28) apontava para a transição “de uma sociedade industrial,
orgânica, para um sistema polimorfo, informacional”. Conforme a mesma
autora, as tecnologias de comunicação interferem diretamente na consti-
tuição ou remodelação de nossos corpos, sobretudo para novas relações
sociais e participação em sociedade. Um exemplo disso é a recente possi-
bilidade de opção de participação na vida pública e do trabalho por parte
das mulheres, que foi corroborada pelo possível controle da natalidade.
A possibilidade de mulheres desempenharem papéis diferentes daqueles
que outrora mantiveram a base de sustentação do capitalismo – com o
trabalho doméstico e o cuidado das crianças – fez com que mulheres
pudessem, em certa medida, remodelar seus corpos para outras funções
e participações em sociedade.
Embora a obrigatoriedade das atividades domésticas e dos papéis
maternais possam ser amplamente discutidos, a depender de cada contex-
to, a ideia da ciborgue-feminista a qual faço referência tem a intenção de
desconstruir ou reimaginar histórias de identidades. Autores ciborgues,
segundo Haraway (2006), deveriam subverter a genealogia falocêntrica e
colonizadora da história do Ocidente, para a construção de histórias de um
mundo corporificado e biotecnologizado em direção à reprogramação da
comunicação e inteligência. Nesse sentido, ao refletir sobre a eficácia de
organismos cibernéticos, o ciborgue enquanto construto teórico-prático,
conforme Haraway (2006), propõe o aumento da entropia na luta pela

269
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

linguagem e contra comunicação perfeita. Nessa linha de raciocínio, e


segundo a mesma autora, a escrita, uma das tecnologias ciborguianas,
não é tida como código único – ou semanticamente perfeito e monossê-
mico – ao contrário, mulheres-ciborgues são incentivadas para produções
de discursos e ruídos que subvertem dogmas falocêntricos, tal qual a
reprodução de identidades binárias ocidentais ou quaisquer dicotomias
(homem/mulher; cultura/natureza; máquina/organismos orgânicos; eu/
outro). Um exemplo dessa lógica está na cultura high-tech, na qual as
relações entre quem faz e quem é feito, ou entre o que é mente e o que
é corpo, não têm fronteiras claras e se confundem conforme as práticas
de codificação são desenvolvidas. Afinal, ontologicamente, a partir de
uma perspectiva pós-humanista, não há demarcações fundamentais entre
máquina e organismo. Adicionalmente, conforme brevemente apontado
por Hayles (1999), por que nossos corpos deveriam terminar em nossas
peles? Eu certamente não conseguiria operar em sociedade sem meus
óculos, computador, smartphone etc., que passam assim a funcionar
como dispositivos protéticos que compõem o eu (HARAWAY, 2006).
De acordo com Hayles (1999), humanos e não-humanos, quando
formam assemblagens (como o cirurgião do exemplo ou a professora-
bruxa), ainda que como ciborgues metafóricos, em circuitos cibernéticos,
implicam em uma união reflexiva e transformativa que tem impactos dire-
tos na consciência e nas subjetividades. De forma análoga e com a ajuda
da literatura em forma de ficção científica, ambas na forma escrita ou
em séries de TV ou filmes, o ciborgue assume um icônico papel cultural,
ligando questões sociais e representacionais complexas a textos cientí-
ficos, que, por sua vez, exploram fundações filosóficas que compõem o
quadro teórico na construção da noção do ciborgue (HAYLES, 1999).
Desse modo, teoria científica e literatura ficcional compartilhariam bordas
porosas nas quais a separação entre tais áreas não mais seria relevante,
reforçando a proposta de Haraway (2006) em relação às produções de
discursos que subvertem binarismos oposicionistas.
Adicionalmente, Haraway (2006, p. 9) descreve o ciborgue como
“filhos ilegítimos do militarismo e capitalismo patriarcal” – filhos es-
ses que não são fiéis às suas origens. Assim, entendo a constituição de

270
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ciborgues-professores – tanto para práticas que envolvam a delegação


de funções às máquinas, quanto nas próteses que eles utilizam, tais como
óculos de grau – como mediadores e incentivadores para construções
de conhecimentos de formas rizomáticas nas quais as relações de poder
podem ser revistas, procurando, inclusive, locais não necessariamente
territorializados para a resistência (DAMARIN, 1994) ao status quo do
capitalismo patriarcal. A metáfora da bruxa, melhor explicada adiante,
será utilizada, portanto, no sentido metafórico para um posicionamento de
resistência ante às práticas de educação de corrente neoliberal, mostrando
como as identidades – ciborgue, bruxa e professora – se embaralham na
prática material-discursiva.
O encerramento do manifesto ciborgue deflagrou inquietações que
culminaram na presente discussão e refletem, em certa medida, parte da
visão de ciborgue aqui abordada. Conforme Haraway,

A imagem do ciborgue pode sugerir uma forma de saída do


labirinto das dicotomias através das quais temos explicado
nossos corpos e nossos instrumentos para nós mesmas.
Trata-se do sonho não de uma linguagem comum, mas de
uma poderosa e herética heteroglossia. Trata-se da imagi-
nação de uma feminista falando linguagens [glossolalia]
para imprimir medo nos circuitos dos super salvadores
da nova direita. Significa tanto construir quanto destruir
máquinas, identidades, categorias, relações, narrativas
espaciais. Embora estejam envolvidas, ambas, numa
dança em espiral, prefiro ser uma ciborgue a uma deusa.
(HARAWAY, 2006, p. 67-68).

Assim como na saúde, as áreas educacionais têm se ocupado com


novas TIC – já não tão novas assim – para a educação linguística. O
ensino superior, no Brasil e no mundo, tem sido local de descobertas
e criações tecnológicas diversas. Mais precisamente, para o ensino e a
formação de professores de línguas, as tecnologias digitais têm opor-
tunizado propiciações para as mais diversas inovações que buscam a
ampliação de repertórios linguísticos (BUSCH, 2012) em oposição aos

271
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

posicionamentos hegemônicos que a língua (nomeada) inglesa, por


exemplo, tem tomado.
Por isso, quando questionada a intersecção entre ciborgue e a edu-
cação linguística, é importante ressaltar que defendo o desenvolvimento
de uma proposta pedagógica que, a partir do referencial adotado, possa
contribuir para a produção de relações mais transgressivas e horizonta-
lizadas nas quais as tecnologias digitais passam a ser extensões de nós
mesmos, repensando a universidade pelo reconhecimento da condição
pós-humana crítica. A seguir, problematizo a imagem feminina das do-
centes e a forma crítica e contra-hegemônica com que estou propondo
a prática pedagógica de professoras-ciborgues que metaforicamente
também seriam bruxas.

Bruxa: metáfora contra-hegemônica em negação à


matriz identitária natural

Tendo consciência de que a nomeação evoca a exclusão e de que a


consciência de classe, gênero e raça nos aproxima do patriarcado, propo-
nho taxonomias ilustrativas – bruxa, professora e ciborgue – na tentativa
de produzir epistemologias pós-identitárias que propõem que nenhuma
matriz identitária seja tida como natural e que as (des)(re)construções
aqui propostas não pressupõem qualquer totalidade, estando abertas
constantemente, em processos de tornar-se, em direção a ressignificações
da subjetividade e, sobretudo, à reflexão de práticas docentes de uma
professora de língua inglesa no ensino superior.
Em relação à suposta matriz identitária, é preciso deixar evidente
que não parto das noções de bruxa da cultura popular, que concebe que
elas seriam indivíduos míticos providos de feitiçaria, por vezes tidas
como monstruosas ou como seres que negam a tecnologia e se mostram
particularmente conectadas com a natureza. A noção de bruxa14 aqui

14 As chamadas bruxas eram, em geral, mulheres viúvas ou solteiras que participavam do comér-
cio sem responder a um homem (marido ou pai). Foram, em grande parte, queimadas entre
os séculos XV e XVII. Para maiores informações, veja o livro Calibã e a Bruxa, de Silvia
Federici (2017).

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

proposta parte da performatividade de mulheres reais que foram mortas


(muitas vezes queimadas) por não se encaixarem nos papéis reservados
ao sexo feminino (que deveria ser sempre submisso ao masculino),
posicionando-se de forma antagônica ao imaginário patriarcal dos séculos
XVI e XVII. Essa guerra contra as mulheres destruiu o controle que elas
tinham sobre seus corpos e suas funções reprodutivas. Nesse sentido,
corpos femininos não se instauram na esfera privada, já que o controle
deles, principalmente o reprodutivo, é mantido por esferas públicas, e
podem significar tanto identidade quanto prisão (FEDERICI, 2017)15.
A figura dessa bruxa também faz alusão às formas com que as mu-
lheres têm sido estigmatizadas em relação à tecnologia, como se pouco
ou nada soubessem sobre o assunto. O ciborguismo das bruxas está
justamente nas formas de resistência, enfrentamento e ressignificação
das tecnologias para imaginar sociedades melhores e menos desiguais.
De acordo com Federeci (2017), a construção coletiva imagética
dessas mulheres, ditas bruxas, data de antes da caça às bruxas. No século
XIV, quando os primeiros julgamentos por bruxaria começaram a ocorrer,
mulheres já assumiam posições de trabalho como professoras escolares,
médicas, cirurgiãs, enquanto as classes mais baixas tratavam de ocupar
posições do proletariado. Com o adiamento do casamento e políticas
de abrandamento ou até mesmo a não punição para estupros, mulheres
pobres eram estupradas com consentimento estatal. Assim, a destruição
da reputação de mulheres, não apenas das pobres, instaurou um clima
intensamente misógino durante o fim da Era Feudal. A independência
feminina recebe repreensões por meio de sermões dos padres e das sátiras
dos fabliaux (FEDERECI, 2017). O controle em relação aos papéis que
mulheres podem desempenhar e a imagem que devem apresentar têm
sido um sistema cibernético (cujas retroalimentações advêm de diversas
áreas da sociedade, mas sobretudo das igrejas e, atualmente, também do
governo) que se perpetua até os dias de hoje, talvez ainda mais cruelmente,
em relação ao mercado da beleza.
15 O ataque genocida contra as mulheres, ditas bruxas, tem a função “de preparar o terreno para
o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor”. É preciso considerar que, durante
a aurora do capitalismo, os corpos de mulheres são fábricas para “produção de homens traba-
lhadores assalariados” (FEDERICI, 2017, p. 30-34).

273
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Tomo como exemplo a imagem de professora mostrada pela mídia,


nacional e internacional, retratada como uma pessoa generosa e amorosa,
devota aos alunos e altruísta, quase destituída de sexualidade e vestida de
forma conservadora, como a professora Helena16, da famosa série de tele-
visão Carrossel, sempre disposta a ajudar, jovial e maternal, configurando
uma imagem análoga a de uma santa (VALENTIM, 2016). O imaginário
das pessoas da vida real parece não ser muito diferente, já que professores
de escolas de ensino fundamental e médio aposentados, em uma pesquisa
internacional, expressaram que a recompensa da profissão é ver seus alunos
transformados, e que a pior coisa que pode ser dita sobre um(a) professor(a)
é que ele(a) está lá pelo dinheiro (DAMARIN, 1994), colocando docentes
num patamar quase mítico de nobre identidade. Ainda que a pesquisa tenha
indicado resultados que se referem a ambos, professores e professoras,
levando em conta o caráter tradicionalmente feminino atrelado a profissão,
atribuir a professoras um estereótipo como esse, tal como o da professora
Helena, faz parte de uma série de “formas virulentas de opressão, as quais,
em face da violência existente, são nostalgicamente naturalizadas” pelo
capitalismo patriarcal (HARAWAY, 2006, p. 50).
Antagonicamente a essa imagem, a característica mais marcante na
imagem da bruxa é a criminalização da mulher que não se conformava
aos moldes da época e que praticava atividades ligadas ao comércio,
sendo consideradas, sobretudo pela igreja, como suspeitas, e quando
bruxas, as principais agentes do demônio (TOSI, 2012). Em geral, a caça
às práticas de bruxaria estava muito mais ligada ao medo da indepen-
dência e emancipação feminina, que se contrapunha aos ideais de uma
sociedade patriarcal conservadora em sua preparação para as bases do
capitalismo, do que a supostas atividades ligadas a feitiços ou mágica
(FEDERICI, 2017).
Desse modo, levando em conta a metáfora da bruxa enquanto figura
contra-hegemônica, questionadora de autoridades e não conformada a
padrões patriarcais, é que proponho que as professoras sejam mais bruxas
16 Para maiores detalhes, veja a tese de doutorado A imagem docente na novela Carrossel apre-
sentada na Argentina, no México e no Brasil: a vocação, o magistério e a indústria cultural,
apresentada por Lucy Mary Soares Valentim. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/
handle/ufscar/8304. Acesso em: 05 ago. 2019.

274
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

e menos Helenas. Fazendo alusão à constituição de gênero enquanto pro-


cesso constantemente inacabado (LOURO, 2001), em direção à negação
da matriz identitária natural, a construção identitária de professoras é um
processo constantemente aberto e que passa por (des)(re)construções a
todo tempo, no qual a subjetividade perpassa a agência compartilhada.
Ressalvo que não estou defendendo que docentes não possam ser
generosas ou amorosas com seus alunos. O que quero dizer é que a des-
construção da imagem de que mulheres não entendem nada de tecnologia
ou de que o magistério deve ser uma vocação, quase que um chamado
divino, precisa ser colocada em pauta.
Reconheço que as tecnologias relativas ao ensino a distância assín-
crono para grandes massas possam ser usadas – e têm sido amplamente
utilizadas em decorrência da pandemia que estamos vivendo – com
propósitos neoliberais para a geração de lucros por meio da privatização
e de uma pretensa e ilusória democratização, à custa de uma queda da
qualidade da educação em todos os níveis. No entanto, quando se atua
em um contexto onde há acesso a hardwares, softwares e internet, como
é o caso de parte das instituições federais de ensino superior no Brasil,
é preciso tomar decisões firmes e assumir um posicionamento político e
ideológico condizente com uma educação para a formação cidadã. Nesse
sentido, a professora-bruxa-ciborgue pós-humana se constitui como
uma assemblagem de “componentes heterogêneos que sofrem (des)(re)
construções constantemente” (HAYLES, 1999, p. 3-4).

Contextualização

Enquanto linguista aplicada, busco referências de usos e práticas


reais de linguagens, “numa tentativa justamente de seguir essas redes, de
não arrancar o objeto da tessitura de suas raízes” (SIGNORINI, 1998, p.
91). Na tentativa ao expor, por meio de exemplos de sala de aula, práticas
pedagógicas de uma professora meio ciborgue, meio bruxa, meio “outras
coisas também”, pretendo demonstrar como práticas pós-humanas estão
imbricadas às salas de aula.

275
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Professores-ciborgues aceitam e possibilitam o uso de tecnologias


digitais em suas aulas. Desse modo, o Prezi, software on-line e ferra-
menta tecnológica de extensão da minha prática docente, pode propiciar
discussões sobre questões de gênero e de representação ligadas a aspectos
políticos do nosso cotidiano.
Antes de seguir para a análise qualitativa-interpretativa de alguns
recortes, cabe contextualizar a prática docente aqui focalizada. Sou
docente de língua inglesa e ministro aulas de prática de ensino, língua
inglesa e estágio em uma universidade federal do Centro-Oeste do Brasil.
Sou professora de língua inglesa em diversos contextos desde 2002, e
tenho trabalhado no ensino superior há pouco mais de seis anos. Foca-
lizei aqui algumas práticas pedagógicas dentro da disciplina de Língua
Inglesa III – Fonética e Fonologia, ministrada no primeiro semestre de
2019 para o terceiro semestre do curso de Letras – Português e Inglês.
As aulas ocorreram às terças e quintas-feiras, presencialmente, das 9h40
às 11h25, em uma sala do prédio da faculdade que abriga o curso, totali-
zando uma carga horária semestral de 68 horas, distribuídas de fevereiro
a junho do mesmo ano.
A ementa da disciplina propõe dois eixos principais de trabalho:
de um lado, precisamos, enquanto curso de Letras, ampliar repertórios
linguísticos dos discentes, com aulas para a aprendizagem de produções
multimodais, sobretudo, em língua inglesa; e, de outro lado, a ementa da
disciplina propõe que aspectos metalinguísticos, como fonética e fonolo-
gia, também sejam contemplados para sua formação. A seguir, separo os
exemplos em forma de análises de ferramentas pedagógicas – em geral
digitais – e de minha constituição identitária como professora-bruxa-
ciborgue. Os recortes e os exemplos foram escolhidos por dois critérios:
(1) aqueles que estão diretamente atrelados a ferramentas digitais pe-
dagógicas e (2) aqueles que marcaram minhas aulas durante o referido
semestre e que demonstram, em alguma medida, as características de
bruxa e/ou ciborgue em minha prática.

276
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Práticas de educação linguística de inglês

Na turma focalizada, dos 37 alunos matriculados, três nunca compa-


receram e 11 desistiram de continuar frequentando as aulas. Ainda que o
curso de Letras e toda a estrutura organizacional do curso de graduação
em questão tenha uma lógica hierárquica e vertical, busco, em alguma
medida, nas turmas onde trabalho, promover uma participação nas de-
cisões em relação à disciplina para que a agentividade possa criar neles
mesmos mapas conceituais de suas formações diacrônicas, ao mesmo
tempo polissêmicas, individuais e intransferíveis.

Identidade bruxa-ciborgue da professora de língua


inglesa

Em geral, todas as minhas disciplinas são acompanhadas por uma


apresentação de Prezi, que me acompanha em (quase) todas as aulas e que
sofre alterações na nuvem, onde fica armazenada e por onde é acessada,
conforme o contexto de cada turma e conforme também sou transformada
enquanto docente de ensino superior. O link está na forma de QRcode
para acessar o Prezi mencionado, no caso da disciplina em questão.

Figura 1 – QRcode para acesso ao Prezi - Disciplina Língua Inglesa III – Fonética e
Fonologia

Fonte: Grande (2019)

277
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

A visão ampla de planejamento de todo semestre com o Prezi –


todas as telas/slides podem ser visualizadas em uma única imagem
(inicial) –, não possível com o PowerPoint, por exemplo, auxilia os
alunos e a mim mesma com a formação de mapas mentais do que vimos
(ou veremos) em aula e abre espaço para formas não lineares de acesso
e estudo, seja para questões acadêmicas ou para a vida. A princípio, a
sistematização de minha apresentação pode parecer um pouco desor-
ganizada. Isso porque, adicionalmente à não linearidade, cada círculo
contempla diferentes tópicos e/ou conteúdos nos dois eixos de trabalho,
conforme a ementa da disciplina. Além disso, há uma seção, dentro do
Prezi, na forma de um quadrado, que busca atender, em alguma medi-
da, necessidades pontuais que aqueles alunos possam ter em relação
à língua inglesa17. E assim como a bruxa-ciborgue a qual fiz alusão,
minha relação com tecnologias digitais tem sido de complementação
e delegação de atividades para otimização da educação linguística sob
uma ótica Pós-humanista Crítica.
Como a aprendizagem de uma língua em sua materialidade é um
tópico bastante amplo, é possível expandir o repertório linguístico dos
aprendizes enquanto tratamos de questões ligadas a raça, gênero, sus-
tentabilidade, tecnologia e outros temas transversais que fazem alusão
ao tornar-se-minoritário ressaltado pelo Pós-humanismo Crítico (BRAI-
DOTTI, 2019). Diante de propostas da extrema direita reacionária, que
vão na contramão das propostas de inclusão e dos movimentos sociais,
como, por exemplo, a Escola sem Partido ou os recentes cortes nos
orçamentos das universidades18, é de grande importância que os profes-
sores, mesmo correndo o risco de serem processados ou denunciados,
posicionem-se criticamente ao lidar com questões transversais, tais como
representatividade, preconceitos, misoginia e outras que resgatam a me-
táfora da bruxa, enquanto uma figura de linguagem e de performance
de resistência e luta para propiciar espaços de negociação e discussão,
17 Uma atividade é conduzida no início do semestre, em grupos, para que os alunos expressem
quais conteúdos, tópicos ou discussões esperam ou querem estudar dentro das disciplinas que
eu leciono.
18 Os cortes orçamentários do governo atual (2021) englobam a educação como um todo e com-
prometem perigosamente o funcionamento de instituições públicas de ensino, particularmente
no que tange a pesquisa e a produção científica.

278
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

promovendo e propiciando (des)(re)construções constantes nas forma-


ções discentes.
A imagem a seguir, retirada do Prezi da mesma disciplina, traz à
tona questões de representatividade política e de gênero para a discussão
dos alunos.
Figura 2– Tela 15/124 – Diferença de gabinete: governos Dilma (2014) e Temer (2018)

Fonte: Grande (2019)

É evidente que as mesmas imagens da figura 2 poderiam ser co-


locadas em uma outra plataforma, como o PowerPoint, ou até mesmo
mostradas através do Google Imagens. No entanto, o Prezi possui o que
chamo de propiciações combinadas, que são caras à minha prática. São
elas: a convergência de linguagens e, portanto, a multimodalidade; sua
possível não linearidade; a possibilidade de visualização de todas as te-
las (slides) ao mesmo tempo e em um mesmo frame; a possibilidade de
alterações feitas a cada aula na nuvem, com atualização em tempo real;
acesso a links de vídeos dentro do próprio Prezi, sem ser redirecionado
para outra página, e várias outras propiciações combinadas. Ademais,
o acesso dos alunos, com a possibilidade de consultar a apresentação a
qualquer momento no tempo e espaço, sem ter que fazer qualquer do-
wnload, faz do Prezi uma ferramenta de extensão dos conteúdos, tópicos

279
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

e informações referentes a cada disciplina. É como se eu delegasse ao


Prezi parte de minha própria memória, numa espécie de prótese do meu
eu professora, conforme reflete Haraway (2006).
Outros dois exemplos de resistência, que remetem à metáfora da
bruxa, estão nas figuras 3 e 4. A figura 3, predominantemente imagética,
como o exemplo anterior, pede que os alunos reflitam e conversem, em
produções orais predominantemente em língua inglesa, sobre dois cartuns
que remetem à deprimente situação dos refugiados e/ou imigrantes. A
figura à direita, além de abordar o tema, engendra uma crítica social ao
fazer uma alusão ao discurso religioso que diz “Meus pensamentos e
orações estão com você”, que, sendo frequentemente reproduzido em
redes sociais como o Facebook ou Instagram, aparenta expressar uma
preocupação ou disposição para a ajuda, mas que, na prática, reflete uma
inércia e uma hipócrita preocupação apenas com a autoimagem cristã
daqueles que reproduzem esse tipo de discurso nas mídias sociais.
Figura 3 – Tela 37/154 – Proposta de debate sobre imigrantes e o papel do cidadão

Fonte: Grande (2019)

A figura 4, por outro lado, lida com questões diretamente ligadas ao


neoliberalismo, à cultura do vencedor e ao mito da meritocracia. Em um
primeiro momento, os discentes, por meio de produções orais, discutiram
perguntas reflexivas sobre a lógica capitalista de produção máxima. As
perguntas da imagem estão abaixo, no quadro 1, em língua portuguesa:

280
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Quadro 1 – Questões para reflexão dos discentes

– Você se sente culpado quando tira um dia de folga?


– Você é tão produtivo quanto gostaria?
– Você adia trabalhos que precisam ser feitos? Por quê?
– O que significa a palavra sucesso para você?
– Você se considera bem-sucedido?

Transcrição das perguntas da figura 4 – abaixo

As perguntas também buscavam a construção de alguns concei-


tos, como os de sucesso/vencedor, para que, posteriormente, os alunos
pudessem repensá-los e/ou (des)(re)construí-los, se assim desejassem.
Em um segundo momento, os alunos fizeram a leitura de um currículo
acadêmico de fracassos, postado por um professor universitário.
Figura 4 – Telas 47 e 19 de 154 – Propostas de produções orais e escritas – à esquerda
perguntas em língua inglesa e à direita currículo de fracassos de Johannes Haushofer

Fonte: Grande (2019)

A atividade levou os discentes, ou pelo menos parte deles, a ques-


tionar as motivações que levaram o docente a produção de um currículo
de fracassos. Finalmente, os acadêmicos foram desafiados a produzirem
um currículo com seus fracassos, majoritariamente em língua inglesa.
Após a produção, uma nova discussão foi feita a fim de que os alunos
opinassem sobre a lógica capitalista neoliberal de que o sucesso é uma
obrigação e um resultado tanto do trabalho quanto da dedicação dos in-

281
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

divíduos. A discussão trouxe à luz a forma como a sociedade moderna


tenta culpabilizar, de modo unilateral, o indivíduo que não é bem-sucedido
como aquele que não se esforçou o bastante.
Ao considerar as reflexões feitas pelos discentes, de forma geral,
é possível afirmar que eles se adaptaram bem ao Prezi. Os comentários
dos aprendizes, tal qual o comentário 1 (C1), feito pela aluna Fernanda19,
no primeiro dia de aula, fazem-me crer que, de alguma forma, o Prezi
também organiza e dá um direcionamento aos discentes:

C1. Aluna Fernanda – Ah que saudades do Prezi, ainda


bem que nessa disciplina temos o Prezi. Agora fica melhor
de estudar para a prova.

O comentário 1 expressa o apego da aluna à ferramenta tecnológica


usada pela professora, e não pela professora sozinha. Além disso, percebe-
se que a organização da aluna no que se refere ao estudo e preparo para
atividades avaliativas perpassa o acionamento da ferramenta digital.
Para além do Prezi e das práticas pedagógicas dentro de sala de
aula, soube que os discentes têm um grupo no WhatsApp, do qual não
faço parte, no qual eles compartilham links, trocam textos, dão avisos
sobre aulas e professores e fazem outras atividades. Então, parece seguro
dizer que a turma é feita de “matérias diferentemente formadas, de datas
e velocidades muito diferentes” como uma espécie de agenciamento
inatribuível (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 2).
Após uma reflexão teoricamente orientada, percebi que o Prezi é
uma extensão de mim mesma enquanto professora, já que delego boa
parte do que preciso lembrar e a organização da disciplina em si a esse
software. Tornamo-nos, assim, agentes interdependentes, eu do Prezi e
o Prezi da minha prática, para a atuação em sala de aula. Lembro-me,
que, em certa ocasião na mesma disciplina, não havia luz nem internet
disponíveis. Sem o meu Prezi, propus atividades de speaking. Sentamo-
nos para conversar sobre alguns conceitos teórico-práticos e a aula
19 Para preservar o anonimato dos discentes, todos os nomes utilizados são fictícios.

282
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

seguiu, ainda que tenha acabado um pouco antes do previsto. Contudo,


a sensação de que eu estava perdida e de que a minha preparação tinha
ido por água abaixo ficou bastante visível.
Poderia, então, considerar que minha constituição identitária de pro-
fessora é uma espécie de educadora-ciborgue? E ainda que, ao levantar
conflitos na tentativa de provocar construções que exigem negociação
e reflexões críticas em relação ao conhecimento e o status quo de uma
sociedade neoliberal patriarcal, poderia fazer referência à metáfora da
bruxa na constituição de uma identidade docente ciborgue-bruxa? Talvez
eu tenha ido longe demais e talvez minha prática seja mais tradicional
do que eu gostaria de imaginar. Ainda assim, essa discussão pode servir
para gerar reflexões para outros professores que privilegiam o trabalho
com (des)(re)construções em sala de aula de línguas, sobretudo de lín-
guas adicionais que passam a vivenciar a educação a partir de uma ótica
Pós-humanista Crítica.

Referências

BRAIDOTTI, R. The Posthuman. 1. ed. Cambridge: Polity Press, 2013.


BRAIDOTTI, R. Posthuman knowledge. 1. ed. Medford: Polity Press, 2019.
BRAIDOTTI, R.; HLAVAJOVA, M. Posthuman glossary. London: Bloomsbury
Publishing, 2018.
BUSCH, B. The linguistic repertoire revisited. Applied linguistics, v. 33, n. 5, p.
503-523, 2012.
CHANDLER, D. The act of writing: a media theory approach. Aberystwyth:
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DAMARIN, S. K. Would you rather be a cyborg or a goddess? On being a teacher
in a postmodern century. Feminist Teacher, v. 8, n. 2, p. 54-60, 1994.
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285
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Culturas para uma LA contemporânea:


resistências e persistências

Christine Nicolaides1
Renata Archanjo2

A história de nosso país traz consigo movimentos de resistência. Só


para mencionarmos aqui as últimas décadas, somos uma geração que poderia
ser denominada de “filhos(as) da ditadura”. Vivemos o período da ditadura
militar no Brasil entre 1964 e 1984. A verdade, no entanto, é que muitos
de nós mais “ouvíamos” fatos isolados de forma bastante velada sobre ela,
mas nem todos, de fato, adquiriram plena consciência de seus efeitos e suas
nefastas consequências. Muitos desses fatos e evidências vieram à tona nos
anos seguintes, porém, até hoje continuam sendo ignorados por parte da
população, muito por força das narrativas que moldam a história a bel prazer
da ideologia que se faz desnudar pelo poder da linguagem. Os movimentos
de resistência daquele período, obviamente, eram reprimidos por meio de
força policial, qualquer cidadão(ã) que se rebelasse poderia ter que pagar
com exílio político, prisão ou mesmo com sua própria vida. Em 1985, porém,
com a ditatura enfraquecida e, oficialmente, em vias de extinção, o povo se
encorajou e demonstrou sua resistência, indo às ruas por meio do movimento
“diretas já”, para eleições presidenciais.

1 Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Programa Interdisciplinar de Pós-


Graduação em Linguística Aplicada (PIPGLA-UFRJ) e Programa de Pós-Graduação em
Linguística Aplicada (PPGLA-UNISINOS).
2 Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Programa de Pós-graduação em
Estudos da Linguagem (PPGEL-UFRN).

287
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Outro movimento social e político que se pode considerar como


fruto da resistência popular no Brasil foi a posse da esquerda partidária
na presidência da República, com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva
pelo Partido dos Trabalhadores, em 2003. Igualmente um movimento
de resistência popular, mas na contramão do movimento esquerdista,
foi o impeachment da então Presidenta, também do Partido dos Traba-
lhadores, Dilma Rousseff, em 2016. Considerando a roda viva da vida,
hoje temos uma outra ideologia no poder ou a volta da que vigorava há
cinquenta anos. Fosse esse movimento apenas uma alternância de forças,
preservando-se em seu núcleo duro os valores essenciais e inalienáveis
da dignidade humana, dos direitos iguais para todos, “sem distinção al-
guma de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política
ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de
qualquer outra situação” (Artigo 2º, ONU, 1948), seria normal dizer que
é da regra do jogo. Pode até ser salutar e renovador. Mas, parece que só
Chico Buarque de Holanda (RODA VIVA, 1967) consegue traduzir os
tempos em que vivemos, hoje…

“Tem dias que a gente se sente


Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu…
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá…”

O sentido de resistência pode ser visto, no entanto, por vários vieses,


não somente o político, o social, mas também o econômico, o sanitário
e até o emocional, por exemplo. Haja vista a pandemia instalada pela
disseminação viral da Covid-19 que afeta toda a humanidade sem poupar
ninguém, ou melhor, que nos afeta da forma mais democrática possível,
incluindo todos e com isso implicando todos na tarefa de lhe resistir. A
pandemia parece testar não somente os limites de resistência de cidadãos
e cidadãs, mas também sua resiliência. Resiliência, embora um conceito

288
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

originário da física, e amplamente referenciado na psicologia (SOUSA


et al., 2014), é entendida aqui como a capacidade do ser humano de não
somente superar tensões e dificuldades, mas também de persistir em
enfrentá-las, em um contínuo de ajustamentos, de forma a promover
transformação social, não apenas para si, mas para as comunidades de
prática (LAVE; WENGER, 1991; WENGER; TRAYNER, 2015) nas
quais se insere.
O que queremos neste capítulo é estender os conceitos de resistência
e resiliência, trazendo-os para dentro dos contextos educacionais, por
considerarmos que seu fomento é fundamental para a preparação de novas
gerações, de forma que venham a viver com mais equidade, tanto social
como econômica. Uma das formas de estimular a reflexão sobre como
podemos resistir para expandir (LIBERALI, 2019) é dentro do escopo
da Linguística Aplicada (doravante LA). Uma LA crítica, entendida
aqui como análise de contextos discursivos situados com o intuito de
dar respostas a problemas sociais e aliviar angústias que acompanham a
humanidade (MOITA LOPES, 2006).
Outrossim, como possível caminho para uma educação linguísti-
ca que responda a essas angústias, trazemos à tona as Culturas da Paz
(OXFORD, 2014) como uma alternativa para que, por meio da lingua-
gem, se possa talvez “interromper ciclos transgeracionais de violência”3
(DUCKWORTH, 2015, p. 167). Em outras palavras, como educadores
linguísticos, mais do que promover a comunicação ou melhorar ha-
bilidades culturais de nossos aprendizes, que possamos talvez saciar
o desejo de “interromper os gatilhos macro-históricos de violência”4
(DUCKWORTH, 2015, p. 167).
Desenvolveremos nosso trabalho discorrendo sobre como com-
preendemos a identidade da área da LA e, seguindo nossa linha de
pensamento, buscaremos responder a três perguntas: De onde viemos?
Onde estamos? Para onde vamos? Propomo-nos a concluir a trajetória
apresentada com algumas reflexões orientadas pelas Culturas da Paz
3 “to interrupt transgenerational cycles of violent conflict”. Todas as traduções deste trabalho
são de responsabilidade das autoras deste trabalho.
4 “to interrupt macro-historical drivers of violence”.

289
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

como forma de resolver conflitos por meio da linguagem. Em última


instância é nosso objetivo apresentar de que forma a área da LA, no
Brasil, persistindo, continua resistindo e se fortalecendo.

A nossa Linguística Aplicada e sua identidade

No ano de 2019, realiza-se pela 12ª vez, no Brasil, a maior reunião


nacional de linguistas aplicados e de pesquisadores de áreas afins, para
os quais a Indisciplina (MOITA LOPES, 2006) entre os campos de
saber ultrapassa o mero desejo teórico e torna-se razão de suas práticas
de pesquisa. Com o tema “Transitando e transpondo (n)a Linguística
Aplicada”, o Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada (doravante
CBLA), organizado pela Associação de Linguística Aplicada do Brasil
(doravante ALAB) e um dos eventos de classe mais importantes da área,
vem, novamente, nos convidar a apresentar nossa produção científica,
discutir com nossos pares nossos interesses e objetos de estudo, nossas
perspectivas teóricas, apresentando em e no discurso, nossos olhares e
nossa compreensão sobre quem somos e o que fazemos na vida social.
Em sua peculiar forma de ser, o CBLA, vem mostrar-se também como um
movimento de resistência e também de resiliência de Linguistas Aplicados
que, ainda que com seus recursos cortados por medidas governamentais,
se esforçam para reunirem-se, debaterem ideias e quebrarem paradig-
mas5. Nos reunimos, assim, para, no uso e movimento da linguagem, na
pluralidade de vozes, prestar contas à sociedade quanto à nossa produção
acadêmica, para nos confraternizar e para quem sabe, descobrir novos
caminhos que a LA pode tomar para trazer respostas a algumas das
angústias que vivemos, caminhando em direção a uma sociedade mais
equânime, menos permeada de injustiças sociais e, especialmente, mais
tolerante não somente em suas práticas discursivas, mas também sociais.
5 Outro exemplo de resistência e resiliência da área, muito característico do momento histórico
que vivemos em 2020, tem sido o movimento de manter a área produzindo e divulgando seus
saberes por meio das lives promovidas pela Associação de Linguística Aplicada do Brasil
(ALAB) e da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN) em pleno isolamento social,
em que congressos são cancelados por conta da pandemia do Covid-19. Lives organizadas
pelas associações podem ser assistidas em https://www.youtube.com/channel/UCL2T7eqA-
WL71T-q1SYMhelg e https://www.youtube.com/channel/UCf75fg3VemQx9A_Z6FfoDRg,
respectivamente. Acesso em: 26/07/2021

290
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Escrevendo este texto nos primeiros meses do ano de 2020, quando,


por exemplo, a ALAB completa 30 anos de existência, nossa tarefa pa-
rece se agigantar na medida em que não nos cumpre mais falar somente
da LA e de sua, nossa, trajetória. O trânsito da LA contemporânea não
pode fugir à responsividade e à responsabilidade (BAKHTIN, 1997) do
encontro de sua práxis com os eventos de seu tempo quando nossa rea-
lidade “normal”, em praticamente todo o planeta, se encontra subvertida
por algo “anormal”, o que nos faz perguntar como e o que será de nós
no amanhã, no que tem sido chamado de “novo normal”.
Embora por trilhas nem sempre fáceis, caminhamos bastante para
chegarmos até aqui, hoje. De Pit Corder (1973), quando incialmente se
entendia ser papel da LA estar a serviço dos conhecimentos linguísticos
para transmiti-los aos práticos das salas de aula (professores de línguas,
sobretudo), até uma definição relativamente estável dada por Christopher
Brumfit (1995) segundo a qual a LA é a investigação teórica e empírica de
problemas da vida real nos quais a linguagem tenha centralidade (COOK,
2015). Assim, para alguns, talvez, a área passe pelo que comumente se
chama de “crise de identidade”, não mais se identificando como uma
mera aplicadora de teorias, seja de sua disciplina mãe, da linguística, seja
da educação ou quaisquer outras áreas. Há quem clame pela mudança,
inclusive, de seu nome, de forma que não faça alusão à uma simples
aplicação de teorias já prescritas, mas a uma identidade que faça jus à
nossa área de conhecimento, que apesar de nova quando comparada com
outras, se ergueu e desenvolveu um forte construto teórico-científico,
inclusive em vertentes bastante novas como: análise da conversa, lin-
guística para surdos, corpus linguístico, análise multimodal, linguística
forense, entre outras especialidades (COOK, 2015). Vale ressaltar que,
no que diz respeito ao cenário nacional, no entanto, parece haver um
consenso de que fazer LA no Brasil é muito mais um posicionamento, do
que um foco de investigação. Talvez por isso aqui buscamos tanto o que
denominamos de uma linguística aplicada transdisciplinar, indisciplinar,
crítica, pós-humanista, conforme a identidade de cada grupo de estudo.
O que também percebemos, nessa caminhada, é que nem todos
tomaram as mesmas direções e a LA se diversificou e se diferenciou

291
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

atendendo aos imperativos de sua própria natureza, a linguagem. Os es-


tudos da linguagem, dadas as demandas sociais dos vários contextos em
que ela é lente para ler e compreender o mundo, ampliaram seu escopo,
multiplicaram suas especialidades e particularizaram suas epistemes.
Assim, são condições da LA “a situacionalidade e a particularidade do
conhecimento” (MOITA LOPES, 2013, p. 17) que produz ao pautar-se
por suas demandas histórico, cultural e ideologicamente situadas. O
desafio da reinvenção parece ser natural e, o que para algumas culturas
acadêmicas sedimentadas pode parecer inconsistência teórico metodo-
lógica e até identitária (felizmente não!), para a cultura de uma LA con-
temporânea é sinal de vitalidade, ebulição, inovação. É, sobretudo, um
sinal de escuta de práticas discursivas e sociais que insistem em emergir
pela linguagem quando a mesma linguagem performada em discursos
totalizantes e excludentes busca no movimento oposto, a submersão e a
invisibilidade do que incomoda.
Sabemos quem somos! Sabemos definitivamente o que não somos,
e o que queremos ser! E, se o que importa, se “o real não está na saída
nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”,
como diria Guimarães Rosa (2006), é na produção do conhecimento de
linguistas aplicados de ontem, de hoje e de amanhã, que se conhece(rá)
a LA. E essa tem sido profícua. A história dos CBLAs, no Brasil, dos
colóquios e congressos das associações internacionais, em todo o mundo,
sem falar da ampla produção em livros e periódicos especializados em
diversas línguas, nos atestam a travessia. E assim a LA “resiste e expande”
(LIBERALI, 2019). Nada mais pertinente para os dias de hoje, portanto,
do que resistir e persistir pois, a linguagem, nossa matéria prima, nunca
antes reverberou tão fortemente as ideologias de que se revestem os
signos linguísticos (VOLÓCHINOV, 2017).
Para melhor apresentar essa realidade, nos apropriamos aqui da
metáfora de Guy Cook que, ao fazer uma análise sobre o futuro da LA,
se refere a dinossauros e pássaros. Os primeiros se referem a quem éra-
mos com linguistas e os segundos a quem somos hoje ou podemos ser.
Melhor explicando, a autor diz que se por um lado é muito bom termos
hoje na área tantas especificidades, por outro, estamos tendo dificuldade

292
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

em manter uma unidade disciplinar significativa. Sua visão é a de que os


estudos que dizem respeito ao ensino e aprendizagem de língua adicio-
nal, em grande parte, continuam sendo aplicações de teorias e são esses
estudos os mais divulgados na área de LA. Enquanto isso, pesquisas que
têm como objeto de estudo problemas “do mundo real”, acabam sendo
publicadas em revistas científicas de outras áreas que não da LA. Fatos
como esse nos levam a questionar se de fato a LA está tão engajada assim
em outras questões, que não as de ensino e aprendizagem de línguas e,
assim, até que ponto deveríamos manter todas essas subáreas específicas
dentro de um mesmo guarda-chuva como a LA. Seja um caminho ou
outro, discussão para um outro fórum bem mais longo, o que queremos
apontar é para a luz ao fundo do túnel que Cook nos dá ao utilizar a
metáfora dos dinossauros e dos pássaros, ou seja, nas palavras do autor:

Muito milhões de anos atrás, alguns dinossauros co-


meçaram a evoluir para os pássaros de hoje (há alguns
taxonomistas evolucionários excêntricos que desafiariam
a linguagem de hoje e reclassificariam os pássaros como
répteis, apesar das diferenças óbvias). Os dinossauros não
existem mais, mas seus descendentes, os pássaros, ainda
estão entre nós, e por toda nossa volta. Eles são maravi-
lhosamente diversos, variando de avestruzes não-voadoras
corredoras e pinguins que dão mergulhos simples, até
mestres de voos como os pequenos beija-flores e seus
voos acrobáticos. O fato de todos serem descendentes de
dinossauros é interessante, mas não de relevância imediata
para o que hoje são (COOK, 2015, p. 432).

Difícil concordar plenamente com a visão de Cook, no sentido


de que estamos eminentemente produzindo apenas para nossos pares e
meramente aplicando teorias, mas certamente sua metáfora e seus apon-
tamentos nos servem como insumos para refletir em que direção/direções
queremos seguir como área de LA. Ademais, o fato de dialogarmos com
o passado, olhando para o futuro, não pode, nem deve, nos cristalizar
nem limitar. Pensando em uma perspectiva dialógica na qual:

293
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limi-


tes para o contexto dialógico (este se estende ao passado
sem limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do
passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados,
podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma
vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-se)
no processo de desenvolvimento subsequente, futuro do
diálogo (BAKHTIN, 2003, p. 410).

O futuro da LA será sempre a renovação de seu existir

O que foi, o que é, e para o que caminha a LA, identificamos nos


trabalhos e pesquisas de linguistas aplicados que passaremos a destacar
como forma não somente de lhes prestar homenagem, mas igualmente
de reconhecer a riqueza de suas contribuições. Ao buscar respostas para
essas que são, provavelmente, as perguntas mais feitas pela humanidade
sobre si e sobre seu destino, é a própria LA que passaremos a conhecer:
de onde viemos, onde estamos, para onde vamos?

De onde viemos?

Responder a primeira das perguntas talvez seja a tarefa mais fácil


delas. Não tem como iniciar respondendo de onde viemos sem construir
sobre o passado e honrar a memória de alguns que nos deixaram fisica-
mente, mas que, certamente continuam vivos em nossos corações não
apenas pela memória afetiva de tantos que com eles conviveram, mas
também por suas grandes contribuições ao campo da LA, tendo sido
responsáveis, entre outros, pelo início da Linguística Aplicada no Brasil.
Como não poderia deixar de ser, trazemos à tona a memória de
quem nos referimos carinhosamente como a primeira dama da linguista
aplicada brasileira, Profa. Maria Antonieta Celani. Em sua inesgotável
fonte de inspiração para nós pesquisadores, trazemos as palavras de Leila
Barbara a respeito de nossa saudosa pesquisadora:

294
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

O diálogo com outros campos do saber, característico


da Linguística Aplicada, reflete-se no respeito que
Antonieta tem e demonstra ao aceitar as várias aborda-
gens teóricas e linhas de pesquisa de seus orientandos
e colegas… pesquisa narrativa, linguística sistêmica-
funcional, estudos hermenêutico-fenomenológicos,
teoria da complexidade, vertente sócio-histórica da lin-
guagem e dos processos de ensino-aprendizagem, todos
perpassados pela perspectiva celaniana da Linguística
Aplicada (BARBARA, 2013, p. 10).

As palavras de Leila sobre Maria Antonieta já expressam a essência


da LA, que apesar de sua autonomia e reconhecimento no cenário nacional
e internacional como área que hoje tem suas próprias teorias, por outro
lado, busca humildemente apoio em outros campos do conhecimento
para trazer respostas a anseios que surgem a partir de diversos contextos
discursivos situados.
Imprescindível, também, honrar a memória de Hilário Bohn, pre-
sidente da ALAB no biênio 1994-1996 e vice-presidente da Association
Internationale de Linguistique Appliquée (AILA) de 1999-2002, perten-
cente à primeira geração de linguistas aplicados no Brasil. Tendo formado
muitos dos linguistas aplicados que hoje, são referência na produção do
conhecimento desse campo, Hilário, desde há muito um ativista da área
da LA, ao falar sobre política linguista, nos alertava:

Talvez seja urgente que a ALAB organize ou forme


‘corpos’ especializados que possam dialogar com a com-
plexidade político social e com os fóruns e as mídias em
que se discutem e se engendram os projetos de pesquisa
e das ações políticas linguísticas.
… Significa também que os linguistas aplicados ainda têm
um espaço enorme para ser ocupado no jogo dos estudos
da linguagem em todas as instâncias da vivência humana
(BOHN, 2013).

295
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Hilário Bohn nos deixa, então, o ensinamento sobre a importância de


resistirmos por meio de associações e entidades afins, que nos fortaleçam
e indiquem por quais caminhos devemos trilhar na busca por alternativas
que se assemelhem aos ideais de nossa classe de linguistas aplicados.
Uma vez trazida a memória de pelos menos dois dos nossos grandes
precursores da LA no cenário brasileiro e, assim, responsáveis pela for-
mação de nossas identidades como linguistas aplicados, passemos então à
segunda pergunta que guia este texto – a que questiona nosso status quo.

Onde estamos?

Passados 30 anos desde a fundação da ALAB, o que coincide com


o estabelecimento da área de LA no Brasil, pode-se dizer que nossos
“braços” se multiplicaram. Estamos hoje atuando nas mais diferentes
áreas, muitos ainda preocupados com a educação linguística, em especial,
de línguas adicionais, tema muito caro a todos nós, mas também nos
lançando em áreas como saúde coletiva, trabalho, identidades, literatura,
tecnologia, inteligência artificial, estudos midiáticos, isso só para elencar
algumas delas.
Para se ter uma ideia da multiplicidade e diversidade dessa atuação,
recorreremos novamente ao último CBLA (2019), evento organizado pela
ALAB que, como mencionado anteriormente, reúne a cada três anos a
comunidade científica da área. Nele, 22 linhas temáticas foram elencadas
para acolher os trabalhos a serem apresentados. São elas:

Análise da Conversa; Análise do Discurso e Pragmática;


Aquisição de Linguagem; Autonomia na Aprendizagem
de Línguas; Crenças na Aprendizagem de Línguas;
Ensino de Línguas para Fins Específicos Necessidades
Especiais; Ensino e Aprendizagem de Língua Materna;
Ensino e Aprendizagem de Línguas Adicionais; Formação
de Professores; Gêneros discursivos e/ou textuais; Letra-
mentos; Linguagem e Identidade; Linguagem e Literatura;
Linguagem e Mídia; Linguagem e Tecnologia; Linguagem

296
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

e Trabalho; Linguagem em Contexto de Necessidades


Especiais; Material Didático; Multimodalidade no texto
e no discurso; Sociolinguística; Tradução; Políticas lin-
guísticas6.

Como resultado de nossa própria presença no 12o CBLA e observan-


do cada uma dessas linhas temáticas, nos foi possível identificar trabalhos
inovadores, relevantes e dignos de menção em qualquer levantamento que
se pretenda fazer sobre a produção científica da LA. Contudo, aceitando
o risco de apresentar uma fotografia incompleta do todo, queremos, nos
trabalhos e nas pessoas dos pesquisadores e pesquisadoras que citaremos
aqui para ilustrar o hoje, render homenagem a toda a comunidade da LA.

Chama nossa atenção que, mesmo ao nos espraiarmos


por outras áreas, um fio condutor parece nos conectar
direta ou indiretamente como linguistas aplicados. Um
fio condutor que diz respeito ao que Alastair Pennycook
(2004) tão bem nos traz e é propagado por tantos linguis-
tas aplicados como Luís Paulo da Moita Lopes, que é a
tentativa de aliviar o sofrimento humano, ao examinarmos
diferentes práticas discursivas e sociais. Nesse sentido,
trago as palavras de Rogério Tílio7 neste evento:acredito
que a Linguística Aplicada, dentro de uma perspectiva
transgressiva e indisciplinar, possa contribuir para, atra-
vés da criação de inteligibilidade em contextos sociais
nos quais a linguagem ocupa um papel central (MOITA
LOPES, 2006), trabalhar para a transformação social com
vistas a aliviar a dor (TILIO, 2019, p. 30 -31).

No sentido de “aliviar” questões que podem causar o sofrimento


humano é que Izabel Magalhães e Júlia Argenta descrevem e exami-
6 Disponível em https://alab.org.br/xii-cbla/linhas-tematicas/ acessado em 12/07/2020.
7 Nesta seção citamos e parafraseamos alguns dos excertos de publicações do livro lançando
durante o XII CBLA “Transitando e transpondo (n)a Linguística Aplicada” (FINARDI et al.)
grifados no prefácio do livro Transitando e transpondo (n)a Linguística Aplicada por uma das
autoras deste trabalho, bem como por algumas falas coletadas em simpósios e comunicações
ao longo do evento em si.

297
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

nam, com base nos pressupostos da Análise do Discurso Crítico, o que


pensam e anseiam profissionais da saúde e pacientes sobre o sistema de
atendimento da área. Em suas palavras:

O que percebemos é que a relação de poder opressora exis-


tente, seja na forma de contratação de profissionais, seja
no sucateamento do aparelho público configura-se como
problemática e geradora de sofrimento para a população
que recebe e que oferta o atendimento (MAGALHÃES;
ARGENTA, 2019, p. 103).

Na mesma linha de pensamento e ao tentar trazer respostas à


sociedade, neste caso tendo como sujeitos de pesquisa moradores de rua,
ouvimos a professora Claudiana Alencar (2019) nos relatar sobre seu belo
Programa “Viva a Palavra: circuitos de linguagem, paz e resistência da
juventude negra da periferia de Fortaleza” em que um dos objetivos é
“atravessar a rua que separa a universidade das comunidades que a circu-
lam, que separa saberes acadêmicos dos saberes populares, atravessando
também as fronteiras disciplinares por meio da transdisciplinaridade”
(ALENCAR, 2019)8.
No que concerne ao campo de legendagem em filmes e vídeos para
surdos, a LA também pode ser uma grande aliada ao abrir espaço para
uma discussão sobre a neutralidade na audiodescrição. Pedro Henrique
Lima Praxedes Filho, integrante do grupo Legendagem e Audiodescrição
(LEAD) do Laboratório de Tradução Audiovisual (LATV) – UECE, de-
fende a inexistência da neutralidade na audiodescrição por entender que
as marcas de autoria em um trabalho de tradução não deixam de aparecer.
Ainda na mesma linha temática, Vera Lúcia Santiago Araújo nos
explica que “não é a velocidade, mas a segmentação o principal fator
de influência que pode otimizar a leitura de legendagens por parte dos
surdos” (ARAÚJO, 2019, p. 130).

8 Excerto retirado do Simpósio do 120 CBLA “Sarau como gramática de resistência da juventude
negra da periferia de Fortaleza”, apresentado por Claudiana Nogueira de Alencar (UECE).

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Um outro movimento que perspirou durante o XII CBLA, sempre


também com um cunho social, mas de uma forma bastante específica, foi
o da tecnologia e linguagens. Dentre os muitos trabalhos apresentados,
captamos aqui o de Cláudia Hilsdorf Rocha que propõe que as tecno-
logias digitais podem “mais efetivamente viabilizar o engajamento dos
participantes em práticas de aprendizagens colaborativas e embasadas
em contextos, conhecimentos e experiências da vida social” (ROCHA,
2019, p. 141-142).
Também na seara da tecnologia trazemos à tona o trabalho de Rafael
Vetromille-Castro que, por sua vez, faz uma reflexão sobre qual deve ser,
afinal, o principal papel da aprendizagem de línguas, considerando que a
sociedade hodierna é permeada por tecnologias digitais e seus membros
conectados por meio delas. Em suas palavras:

A aprendizagem de línguas demanda e gera práticas pe-


dagógicas transgressoras (não meramente instrumentais),
materiais e práticas para aprendizagem de línguas orienta-
dos à competência simbólica e que vejam as tecnologias
digitais como meio, como lócus para práticas sociais de
linguagem onde o jogo de poder é jogado (VETROMIL-
LE-CASTRO, 2019, p. 206).

Nukácia Araújo é outra linguista aplicada que, na área de tecnologia


e linguagem, nos traz a ideia de curadoria, de como a LA é transdisciplinar
e toma emprestado conceitos de outras áreas, neste caso, da Engenharia
de Software, Comunicação e Educação. A autora apresenta a noção de
curadoria como “prática social emergente na cultura digital, localizando-a
nas interfaces de diferentes áreas” (ARAÚJO, 2019, p. 235).
Em referência aos estudos sobre gêneros, outro tema bastante
presente durante o evento, entre interessantes discussões sobre gêneros
discursivos e gêneros textuais, Vera Menezes, nos surpreende com a
proposta de “gêneros da linguagem”. Ao mesmo tempo que nos expõe a
experiências multimodais por meio de seus exemplos retirados da mídia,
a autora propõe que:

299
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Agir na sociedade por meio da linguagem é agir com


gêneros materializados não apenas no texto linguístico,
mas também em outros sistemas semióticos, o que justifica
minha escolha por gêneros da linguagem (MENEZES,
2019)9.

A autonomia no ensino-aprendizagem de línguas segue sendo


uma temática bem explorada no contexto da qual destacamos a fala de
Walkyria Magno e Silva que ao discorrer sobre aconselhamento lingua-
geiro nos diz que:

O aconselhamento em aprendizagem de línguas transfor-


ma não só o aconselhado como o próprio professor que
passa a ter um olhar mais holístico sobre o processo de
aprendizagem de cada aluno (MAGNO; SILVA, 2019)10.

Sempre presente, também destacamos uma das áreas mais caras à


LA, a de formação de professores. Entre os trabalhos que fizeram parte
do CBLA, estão o de Telma Gimenez (GIMENEZ, 2019) que contribui
trazendo uma discussão sobre os referenciais para formação de profes-
sores de inglês como língua estrangeira ou adicional e apresentando uma
análise bastante crítica da Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
em especial, em como sua implementação pode afetar as licenciaturas
em Letras-Inglês pelo país afora.
Não atentar às nossas diversidades culturais seria como legitimar
o desrespeito às nossas próprias identidades, o que vai na contramão de
uma LA crítica e transgressora (PENNYCOOK, 2004), como parece
ser a tendência não só deste evento, mas de vários segmentos da área.
Corroborando com a preocupação de Telma Gimenez (2019),
Renata Archanjo (2019) faz-nos ver que a formação de professores de
línguas é uma atividade que se estabelece entre fronteiras educacionais,
9 Excerto retirado da Conferência de Abertura do 120 CBLA – “Gêneros da linguagem e ex-
periências multimodais” apresentada por Vera Menezes (UFMG).
10 Excerto retirado do Simpósio do 120 CBLA – “A Base de Apoio à Aprendizagem Autônoma
como um SAC” apresentado por Walkyria Magno e Silva (UFPA).

300
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

culturais, políticas e éticas. Transitar nessas fronteiras coloca formadores


e professores em formação diante de quatro desafios:

Resistir à instrumentalização do processo de formação do


professor de línguas; promover o ensino da diversidade
ressaltando as diferenças; insistir que a língua e seu uso
é um exercício de poder e não somente um produto de
consumo; assumir a responsabilidade sem álibi de profes-
sores de línguas e formadores de professores de línguas
(ARCHANJO, 2019)11.

Ainda sobre formação de professores não poderíamos deixar de


mencionar a contribuição de Vilson Leffa, outro grande linguista aplicado
a quem nossa área muito deve que, juntamente com seus colegas Alan
Ricardo Costa e André Firpo Beliváqua, nos obsequeiam com o que de-
nominam “de o prazer que se pode ter ao se elaborar materiais didáticos
para o ensino de línguas” – uma perspectiva otimista de que essa tarefa
pode ser um deleite não só para o aprendiz que desfruta de um material
bem elaborado, mas também para o professor que prepara o material e vê
nele potencial de aprendizagem para seus alunos. Nas palavras dos autores:

Os professores não estão apenas produzindo objetos de


aprendizagem, mas recursos mais amplos, que se afinam
com uma filosofia de divisão de trabalho, compartilha-
mento e colaboração em massa, numa dimensão ainda
não vista na história da humanidade e com chances de um
empoderamento, também ainda não visto, em relação ao
trabalho do professor (LEFFA; COSTA; BELIVAQUA,
2019, p. 289-290).

Também tratando de políticas linguísticas e educacionais, soma-


se a voz de Ana Paula Beato-Canato (2019) que ao rememorar Paulo
Freire, questiona o Movimento Escola Sem Partido ao indicar que suas

11 Excerto retirado do Simpósio do 120 CBLA – “Encontrando Sua Voz: formação de professores
de línguas em sociedades em transformação” apresentado por Renata Archanjo (UFRN).

301
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ações favorecem a manutenção de uma sociedade dividida e opressiva.


Freireamente, a pesquisadora nos convida a lutar contra essa proposta a
favor de uma escola crítica e plural12.
Tempos difíceis parecem nos pedir soluções criativas e inovadoras e
assim, muitas iniciativas procuram dar respostas aos anseios da sociedade.
Entre elas, destacamos pelo menos dois projetos de ponta, que precisam
ser reconhecidos e aplaudidos por todos da comunidade da LA. Um deles
é o PROFLETRAS13, programa coordenado nacionalmente pela professora
Maria da Penha Casado Alves, e que tem por objetivo a capacitação de
professores de Língua Portuguesa para o exercício da docência no Ensino
Fundamental. Seus excelentes resultados titulam, ano a ano, novos professo-
res mestres em língua portuguesa para atuar na rede pública, enfrentando os
desafios educacional, cultural e ético diários com mais ferramentas teórico,
práticas e culturais, mais motivação e mais dignidade. O PROFLETRAS e
suas a contribuições na formação de profissionais e alunos das instituições
de Ensino Superior, no Brasil, certamente mudaram para sempre o cenário
de formação de professores de línguas adicionais no país.
O segundo projeto que destacamos, este na área de língua adicio-
nal pelo viés da internacionalização, liderado pela professora Denise de
Abreu Lima, é nacionalmente conhecido como Programa Idiomas sem
Fronteiras14. O programa foi responsável pela formação inicial e continu-
ada de milhares de professores de línguas no país, além do oferecimento
de cursos de línguas com vistas à internacionalização para docentes,
discentes e técnicos administrativos no âmbito universitário. O referido
projeto teve sua continuidade interrompida pelo governo do Presidente
Bolsonaro, ao ter as bolsas CAPES para professores em formação e
coordenadores cortadas, mas renasce repaginado por meio da Rede IsF,
apoiado pela Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais
de Ensino superior – Andifes15.
12 Excerto retirado do Simpósio do 120 CBLA – “A falácia do letramento autônomo defendida
pelo Escola Sem Partido”, apresentado por Ana Paula Marques Beato-Canato (UFRJ).
13 Mais informações sobre o PROFLETRAS podem ser acessadas em http://portal.mec.gov.br/
component/tags/tag/35807-profletras. Acesso em: 26/07/2021
14 http://isf.mec.gov.br/#. Acesso em: 26/07/2021
15 https://www.andifes.org.br/?p=87678 . Acesso em: 26/07/2021

302
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Como podemos perceber, muitos e variados trabalhos e pesquisas de


linguistas aplicados, de diferentes gerações, foram apresentados durante
o XII CBLA e o recorte que trouxemos aqui nada mais é do que a visão
parcial que nos foi possível ter durante quatro dias de um evento tão rico.
Segundo os organizadores, nesse tempo-espaço foram apresentados 1
minicurso, 4 conferências, 8 simpósios convidados, 3 mesas redondas,
315 comunicações temáticas e 6 apresentações de pôsteres (CBLA, 2019).
Sem poder trazer todas essas vozes aqui, dedicamos a todos os pesqui-
sadores que fazem o hoje, nossa homenagem por dar vida à LA no Brasil.

Para onde vamos?

Essa é de fato a mais complexa e obscura pergunta de se responder.


Esperamos poder afirmar que iremos para onde escolhermos ir, para
onde acharmos que possamos ser úteis à sociedade como educadores e
pesquisadores. E, de certa forma já o dissemos antes. Mas esta é somen-
te a primeira parte da resposta, aquela que fica na superfície visível do
iceberg. O que está abaixo da superfície é o que nos interessa, ainda, pro-
blematizar. No movimento de resistir, persistir resilientemente e avançar,
que cultura(s) podemos defender para a continuidade da LA? Ou melhor
dizendo, que agenda podemos propor para uma LA contemporânea?
Gostaríamos de defender que nossas escolhas se pautassem pela
Cultura da Paz como tão bem trouxe Vilson Leffa, ainda no 12o CBLA.
Debatendo, especificamente, um ensino crítico da língua, o autor toma
o cuidado de dizer que:

A busca de uma atitude conciliadora, com base no dis-


curso da fraternidade universal pode ser uma armadilha
do discurso hegemônico se não for abordada de uma
perspectiva crítica… a proposta é buscar uma atitude
conciliadora com a força de uma crítica contundente e
construtiva (LEFFA, 2019)16.
16 Excerto retirado da conferência do 120 CBLA – “Ensino de línguas em conflito: a busca de
atitudes críticas conciliadoras” proferida por Vilson Leffa.

303
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Parecem-nos palavras-chave a combinação entre “atitude conci-


liadora” e “crítica contundente e construtiva”. Uma agenda para a LA
que se paute por uma cultura da paz, busca ser conciliadora sem ser
condescendente e ser crítica sendo ao mesmo tempo problematizadora,
agentiva e propositiva. A esse respeito, Luís Paulo da Moita Lopes nos
precede com uma proposta abre alas. Nas palavras dele há 14 anos atrás,
“preparando uma agenda para a LA contemporânea” (MOITA LOPES,
2006, p. 90) dizia respeito a um projeto epistemológico implicado na
vida social, respondendo a ela e sendo por ela transformado. Pensar na
cultura da paz como uma proposta de agenda para a LA, em 2020, nos
insere nesse projeto epistemológico e nos renova.
Como trazer a cultura da paz para nossas práticas? Podemos defender
o desenvolvimento de uma educação para a resiliência (SOUSA et al.,
2014) diante dos desafios de superação de situações adversas da vida
social e podemos defender uma educação para a paz (DUCKWORTH,
2015).
Cheryl Duckworth (2015) ao relacionar história, memória e edu-
cação para paz esclarece que pensadores e estudiosos com foco na
promoção pela paz desejam, por meio da memória histórica ou coletiva,
compreender:
como grupos que foram vítimas de algum trauma his-
tórico, como guerra civil, escravidão ou o Holocausto,
sobrevivem e processam esse horrível sofrimento, não
apenas como indivíduos, mas como um coletivo e como
uma cultura (DUCKWORTH, 2015, p. 1)17.

Segundo a autora, em uma perspectiva mais cânone, a educação para


paz é promovida por meio desenvolvimento de técnicas de comunicação
entre culturas, aprender a ouvir o outro, comprometimento das partes en-
volvidas e mediação pelo outro. Esta abordagem, bastante bem-sucedida
em alguns contextos escolares auxilia aprendizes a comunicarem-se
17 “…how groups which have been subjected to some historical trauma, such as a civil war, a
genocide, slavery, or the Holocaust, survive and process such horrific suffering – not just as
individuals but as a collective and as a culture”.

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

entre si, tendo como ênfase o combate à intolerância e ao bullying, por


exemplo, procurando soluções para convivência de grupos distintos e
possíveis soluções de conflitos entre eles.
Em uma perspectiva mais crítica da educação para paz, no entanto,
Cheryl Duckworth propõe atividades que envolvam questões relaciona-
das à análise de desigualdades de poder “engajando alunos em sistemas
desafiadores e transformadores de opressão que os impactem”18. Ela
descreve, então, dois tipos de atividades pedagógicas que sugere a pro-
fessores e outros profissionais envolvidos na educação: histórias orais e
“visionamento futuro”. Em suas palavras, “se a implementação de me-
todologias como visionamento do futuro ou histórias orais se provarem
como possíveis, devemos reivindicar por salas de aula como espaço para
o diálogo crítico” (DUCKWORTH, 2015, p. 173)19.
As duas metodologias propostas pela autora dizem respeito, na
verdade, ao que ela denomina de transformação narrativa. Em sua pers-
pectiva a transformação narrativa permite que os envolvidos revivam seu
passado de forma a propor um futuro seguro e sustentável. Desta forma
é possível “reumanizar o Outro” e, ao mesmo tempo, reconhecer a sua
própria parcela de conivência na história do sofrimento do Outro. Não
é preciso ir longe para nos darmos conta, o quanto nós, que de alguma
forma desfrutamos de determinados privilégios inerentes à classe social, à
raça, ao gênero a que pertencemos ou tantos outros atributos com os quais
nos identificamos, muitas vezes nos intimidamos e não nos posicionamos
frente às inúmeras injustiças sociais que sofrem as minorias. Sendo assim,
ouvir as histórias daqueles que sempre tiveram posicionamentos, sejam
eles políticos ou históricos, diferentes dos nossos, seja um dos caminhos
para que grupos diversos, sejam eles de aprendizes – no contexto educa-
cional – ou não, tenham a oportunidade de escutar a história do Outro,
talvez nunca por eles ouvida antes.
Interessantemente, Zvi Bekerman e Michalinos Zembylas (2014)
ao relatarem seu estudo etnográfico que relaciona a educação para paz
18 “engaging students in challenging and transforming systems of oppression that impact them”.
19 “If implementing methodologies such as futures visioning or oral histories is to prove possible,
we must reclaim classrooms as spaces for critical dialogue.”

305
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

com a formação de professores, observam a mesma resistência por par-


te dos professores analisados. Melhor explicitando, os pesquisadores
chegaram à conclusão de que os professores são “educados a colocar
uma enorme ênfase na identidade – seja ela religiosa, cultural, étnica,
nacional ou outra – e/ou em formas nas quais eles possam nutrir a cultura
por meio da escolaridade.”20 (BEKERMAN; ZEMBYLAS, 2014, p. 2).
Os autores citam como exemplo o fato de os professores temerem que
seus alunos percam seu sentimento de pertencimento e, de certa forma,
acabam por aderir também a perspectivas hegemônicas e essencializadas
de cultura e identidade. Há ainda, segundo os autores, um sentimento
entre professores estudados de que essas perspectivas hegemônicas são
muito difíceis de serem combatidas, havendo aqueles que simplesmente
concordam com essas perspectivas hegemônicas e, por último, aqueles
que carregam seus próprios conflitos internos sobre combater ou não tais
perspectivas. Esse tipo de sentimento, obviamente, dificulta a formação
de professores intrinsicamente críticos que criem oportunidades para
aprendizes, então, fomentarem seus próprios questionamentos sobre o
status quo que vivem e promoverem possíveis transformações sociais
advindos de seus questionamentos.
Finalmente, trazemos à baila novamente Rebecca Oxford e Rebecca
Boggs, que nos inspiram ao trazer Culturas da Paz como uma das for-
mas de promover a paz. Segundo elas, a paz é multidimensional e desta
forma inclui
• a paz dentro de si (a paz interior);
• a paz com aqueles que conhecemos pessoalmente,
família, amigos ou um grupo social próximo (a paz
interpessoal);
• a paz entre coletividades baseadas em raça, religião,
idade, gênero, classe, necessidades especiais e assim
por diante;
• a paz entre culturas, que podem ser pequenas ou
grandes;
20 “we have come to realize how teachers are educated to put enormous emphasis on identity – be
this religious, cultural, ethnic, national or other – and/or the ways in which they can nurture
culture through schooling.”

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

• a paz entre estados/nações – ou seja, entidades políti-


co-geográficas, cada uma com governo independente
e soberano (como a paz que é comumente denominada
de paz internacional) e
• a paz entre humanos e meio-ambiente (a paz ecoló-
gica). (OXFORD; BOGGS, 2014, p. 14).

As autoras, muito loquazmente, selecionam grandes líderes mundiais


e analisam discursos de Martin Luther King21, Deepak Chopra22, Peace
Pilgram23 entre outros grandes nomes, que, em sua perspectiva, eminen-
temente promoveram a paz por meio da linguagem. Paradoxalmente,
o que fica ao nosso olhar das palavras das autoras é que o ser humano
parece, muitas vezes, escolher o que ela chama de discurso oco (hollow
words), quando se refere a tão almejada paz, e nesses casos, o discurso e
as ações revelam uma enorme lacuna entre si e pouco ou nenhum efeito
real dele surge.
Seguidores de uma paz multidimensional, por outro lado, claramente
optam pela “palavra da paz, pela luz e liberdade” (OXFORD; BOGGS,
2014, p. 22). Todavia, elas chamam atenção para o fato de que nossa
capacidade de produzir tais discursos está longe de ser perfeita e que
estamos constantemente dizendo algo errado ou de forma inadequada,
mesmo na tentativa de chegarmos a um consenso com aquele que produz
um discurso que se opõe ao nosso. É preciso que o ser humano evolua
na sua forma de se comunicar e arguir. Discursar sobre a paz, segundo
as autoras, requer:

1) Praticar a linguagem interior da paz, da tranquilidade


e da centralidade (centeredness); 2) desenvolver nossas
interações verbais e não verbais com outros indivíduos por
meio da cooperação, demonstrando compreensão, acei-
21 Informações sobre sua biografia podem ser acessadas em https://www.biography.com/activist/
martin-luther-king-jr Acesso em: 26/07/2021
22 Informações sobre seus princípios podem ser acessadas em https://www.deepakchopra.com.
Acesso em: 26/07/2021
23 Informações sobre seu trabalho podem ser acessadas em https://www.peacepilgrim.org/. Acesso
em: 26/07/2021

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

tando pontos de vista divergentes e resolvendo conflitos


de forma produtiva no lugar de destrutiva; 3) fomentar a
tolerância e cuidando da melhor maneira possível a re-
lação entre grupos e nações; 4) comunicar-se da melhor
possível com a Terra e todas as espécies de seus habitantes
(OXFORD; BOGGS, 2014, p. 23).

E que opções nos restam? Queremos acreditar que muitas! Tantas e


tão diversas quanto tantos e tão diversos somos nós. Entretanto, permitam
que nossos olhares se voltem para esse futuro, talvez presente próximo,
em que a cultura da paz nos possibilite ser melhor amanhã do que somos
hoje. Isto será possível se em nossas práticas sociais, em nossas práticas
acadêmicas, em nossos discursos praticarmos a cultura da paz. Con-
cordando, de há muito, com Moita Lopes (2006), que nos alerta para o
caráter ético que deve pautar a práxis da LA contemporânea, vemos que
uma forma de escolher significados, e excluir significados que tragam
sofrimento aos outros, é por meio de uma cultura da paz.

Considerações finais

São tempos difíceis, talvez mais difíceis do que nós, pesquisadores


e educadores, estejamos acostumados. Tempos em que somos acusados,
por nossos próprios governantes, de “fazermos balbúrdia” ou, pior ainda,
de “idiotas úteis utilizados como massa de manobra”24. De fato, palavras
difíceis de serem engolidas, significados que trazem muito sofrimento
a tantos de nós que, como classe profissional e acima de tudo enquanto
sujeitos sociais merecemos respeito e dignidade, como qualquer outro.
No entanto, como defensoras da autonomia da área de LA, temos a
convicção de que a escolha sobre o agir diante de tal discurso ainda é
nossa. Ou esmorecemos e desistimos de nossos espaços, ou utilizamos
momentos como esses para não só resistir, mas expandir como proposto

24 Palavras utilizadas pelo Presidente Jair Bolsonaro ao se referir a manifestantes que participam
de protestos contra cortes na educação. Leia matéria completa em: https://www.gazetadopovo.
com.br/educacao/idiotas-uteis-sendo-usados-como-massa-de-manobra-diz-bolsonaro/. Acesso
em: 26/07/2021

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

por Liberali (2019)25 durante o X SIAC (Simpósio Ação Cidadã) e o V


Fórum ISCAR (International Society for Cultural-Historical Activity
Research) Brasil na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2019.
Uma certeza, contudo, temos: não vivemos somente para nós mes-
mos. Portanto tudo aquilo que atinge o outro, nossa coletividade, nossa
comunidade, local e global, de alguma forma, nos atinge. Hoje, podemos
dizer, sem sombra de dúvidas, que a pandemia do coronavírus, com sua
crise sanitária, nos atinge. Mas quantas outras crises hoje nos atingem, nos
fazendo questionar os alicerces de nossas certezas? Crises migratórias,
crises ambientais, crises raciais, para citar apenas as mais atuais. Porém,
como diz Morin (2020), crises trazem em si rupturas e incertezas e com
elas a possibilidade de pensar alternativas. Para Morin, não vivemos hoje
apenas a crise sanitária, mas uma cadeia de crises, da política à econômica,
da individual à planetária, da existencial à humanitária, cada qual trazendo
a sua cota de incerteza, mas também a sua urgência por alternativas. O
que esperar do futuro? Morin não responde assertivamente senão nos
prevenindo a todos para que esperemos pelo inesperado pois o futuro
é uma aventura incerta. Talvez a melhor opção, ou a grande esperança
de Morin, que também é a nossa, seja a de que se tivermos que pensar
em mudar alguma coisa, se quisermos regenerar alguma coisa, que seja
o nosso humanismo. Buscar a cultura da paz, resistir aos ataques a essa
cultura e persistir nesse caminho pode ser uma alternativa.
O futuro passa pela resistência (MORIN, 2020). Resistir seguindo
nossos caminhos, cada um em sua causa, desvendando caminhos para
uma sociedade mais equânime, com menos injustiças sociais e mais
oportunidades para todos. Seguindo com nossas pesquisas, nossos ensi-
namentos, mas também como eternos aprendizes dispostos a dialogar não
só com nossos pares, mas com quem, porventura, pense diferente de nós.

25 Fernanda Liberali coordenou junto com Adolfo Tanzi o SIAC-ISCAR 2019 na Universidade


Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em parceria com o Núcleo de Estudos e Pesquisas da
Escola de Vygotsky em Linguística Aplicada – NUVYLA/UFRJ, cujo tema foi RESISTIR-
EXPANDIR, maiores informações podem ser acessadas em https://sites.google.com/view/
siaciscar2019/página-inicial?authuser=0 e https://iscarbrasil.wordpress.com/2019/08/29/
sobre-resistir-expandir-e-a-forca-do-coletivo/
Acesso em: 26/07/2021

309
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Em nosso exercício, ao mesmo tempo de resgate histórico e de


olhar para o futuro, buscamos ao apresentar mostras de movimentos de
resistência e resiliência no Brasil reviver a identidade da LA discutindo
suas crises e suas transformações. Para dar conta dessa trajetória ini-
ciamos pelo caminho da saudade, rememorando dois linguistas que já
se foram e para identificar de onde viemos. Seguimos olhando para os
caminhos que trilham nossos pés, hoje, exemplificando, nos trabalhos
da área da LA, onde, nós, linguistas aplicados, estamos e o que estamos
produzindo. Tais produções, além de render também uma homenagem
à toda a classe, mostrou a capacidade de resistência e de resiliência da-
queles que, analisando como a linguagem pode ser a causa do sofrimento
humano, buscam caminhos para aliviar este sofrimento. Concluímos nos
questionando para onde vamos? Como nosso exercício foi de reflexão e
não de futurologia, compreendemos que o futuro tem um caminho ain-
da indefinido, apresentando-se cada vez mais plural e diverso, às vezes
inclusive faltando uma unidade, como aponta Cook (2015), mas que
reconhecemos em plena ebulição e efervescência. Assim, nesse futuro,
mesmo esperando pelo inesperado, como nos aconselhou Morin (2020),
apostamos nas culturas para paz como um caminho possível para a LA
seguir adiante.

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Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/
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MORIN, E. Sur la crise: pour une crisologie suivi de Où va le monde? Paris: Champs
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de aprendizagens situadas e transgressivas. In: FINARDI, K. et al. Transitando e
transpondo (n)a linguística aplicada. Campinas: Pontes Editores, 2019.
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Buarque de Holanda Volume 3. Intérprete: Chico Buarque. RGE Discos, 1967. 1,
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SOUSA, C. et al. Educação para a resiliência. Conhecimento & Diversidade. Niterói,
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VETROMILLE-CASTRO, R. O professor de línguas e as tecnologias digitais:
reflexões sobre a profissão na sociedade conectada. In: FINARDI, K. et al.
Transitando e transpondo (n)a linguística aplicada. Campinas: Pontes Editores, 2019.

312
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais


do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila
Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo:
Editora 34, 2017.
WENGER-TRAYNER B.; WENGER-TRAYNER, E. Communities of practice – a
brief introduction. 2015. Disponível em: https://wenger-trayner.com/wp-content/
uploads/2015/04/07-Brief-introduction-to-communities-of-practice.pdf. Acesso
em: 03. jul. 2020.

313
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Discurso da naturalização de estupros


masculinos: sentidos de virilidade em contos
homoeróticos

Dánie Marcelo de Jesus1


Gabriel Oliveira2

O objetivo deste capítulo é tratar do processo de naturalização


discursiva do estupro em contos homoeróticos na internet, partindo de
uma perspectiva de virilidade heteronormativa. O que originou este tra-
balho foi a observação de processos de hierarquização de personagens
em narrativas pornográficas de conteúdo homossexual e seu apelo por
enunciados que narram experiências sexuais análogas ao estupro.
Este estudo também se ancora em uma perspectiva do discurso em
Linguística Aplicada indisciplinar (MOITA LOPES, 2006; FABRICIO,
2017; SOUZA; ZOLIN-VESZ, 2018), que se vale de um arcabouço teó-
rico transdisciplinar que se afasta de uma vertente que postula a ideia de
aplicação da Linguística. Nessa visão, as teorias que nos fundamentam
são cruzadas pelo campo das ciências humanas e sociais com objetivo de
criar inteligibilidade aos problemas de ordem social e sua relação com
linguagem e discurso (MOITA LOPES, 2006; SOUZA; ZOLIN-VESZ,
2018). Advertimos ao leitor que este estudo não se centra em questões
puramente linguísticas, antes foca na produção de enunciados que cola-
1 Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Programa de Pós-graduação em Estudos de
Linguagem (PPGEL-UFMT) e no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura (ECCO-
UFMT).
2 Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT).

315
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

boram na disposição de certos sentidos em determinado momento socio-


discursivo (FOUCAULT, 2012). Devemos também enfatizar que há um
número abundante de trabalhos das teorias queer que procuram discutir
a questão de gênero e performatividade. Contudo, neste estudo, faz-se
opção por focalizar o conceito de virilidade diante de nosso contexto, no
qual a figura mítica do pênis se faz mais presente do que propriamente
a performatividade de gênero.
Com a popularização da internet, na década de 90 do século passado,
a indústria pornográfica homoerótica se ampliou drasticamente. Aquilo
que era visto com muita dificuldade e secretamente por seus consumi-
dores passa a ser captado em um simples movimento de mãos. Torna-se
muito mais fácil o acesso a uma produção “mainstream” fílmica gay que,
segundo Tamagne (2013), se caracteriza por processos de hierarquização
de personagens ‘ativos’, entendido como ‘heterossexuais’, e ‘passivos’,
como homossexuais mais femininos, evidenciando superioridade àqueles
que, diante das câmeras, desempenhavam performances mais próximas
do padrão viril: ser o penetrador na relação sexual.
Esse mesmo padrão parece ser recorrente em outras produções
culturais homoeróticas, como é o caso de contos que, em conjunto com
outros artefatos culturais, constroem discursivamente a noção de virili-
dade e masculinidade no imaginário homossexual. Mesmo nos contos
pornográficos, facilmente encontrados na internet e menos atrelados às
demandas comerciais, se notam processos de hierarquização dos “papéis”
sexuais de ativo-penetrador (superior e viril) e de passivo-penetrado
(inferior e efeminado).
Essa hierarquização discursiva viril não é algo tão novo no mundo
ocidental. Para os gregos, por exemplo, segundo Sartre (2012), a socia-
bilidade masculina era marcada pela naturalização do sexo entre homens.
No entanto, tal prioridade do desejo deveria seguir normas, a assimetria
da relação sexual, pois “esta não une dois indivíduos que tentam alcançar
o prazer buscando satisfazer seu parceiro, mas trata-se de um dominante
e de um dominado, ou, dito de uma forma mais brutal, de um penetrante
e de um penetrado” (SARTRE, 2012, p. 48-9). Assim, estabelece-se a

316
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

hierarquia entre o ativo (dominante/penetrante) e o passivo (dominado/


penetrado). Interessante notar neste ponto que “a virilidade se situa
claramente do lado do penetrante”, não havendo menção nos textos
clássicos que indique que os “papéis” nas relações sexuais pudessem
mudar segundo o desejo dos sujeitos “sempre se fala explicitamente de
um varão dominante, que exerce a função de macho, e de um homem
dominado como uma mulher”, que poderia ser um garoto, um prostituto
ou um escravo, mas jamais um cidadão pleno (p. 49).
Apesar de essa relação dicotômica entre ativo/passivo ser algo per-
cebido até hoje, gostaríamos de salientar para o leitor que esses rótulos
na economia sexual dos sujeitos podem perfeitamente ser intercambiados
– mesmo se levarmos em consideração os diferentes contextos sociais
e históricos de cada época –, mas discursivamente o ativo penetrador é
sempre mais legitimado.
Feita essa digressão, voltamos nosso olhar para os gregos que – assim
como os romanos – acreditavam que a virilidade inclui a robustez física
militar aliada a um pênis sexualmente funcional. Thuillier (2013) apresenta
todo o complexo jogo de palavras e representações a partir do termo latino
“vir” (homem) e suas conexões com “virilitas” – o órgão sexual, aquilo
que se encontra entre as virilhas – e “virtus” – termo ligado às virtudes
associadas a ser um homem na Roma Antiga.
Caminho paralelo pode-se descrever acerca dos efeitos de sentido
sobre a palavra “virilidade”, que deriva diretamente das correlatas latinas
“vir”, “virilitas” e “virtus”, de acordo com Thuillier (2013), ao explicar a
semântica em torno da palavra vir que, na linguagem popular, equivale a
“meu homem”, coligando relação e atividade sexual. Em latim, alguém
somente se torna homem, vir, após sua primeira experiência sexual com
uma mulher. Thuillier (2013) salienta que o “vir” também se opunha tanto
ao gênero e comportamento femininos quanto ao “puer” (garoto e/ou es-
cravo), a quem se permitia ser sexualmente ativo/penetrador com outros
garotos e com garotas, devendo, no entanto, ser passivo com um “vir”.
No aspecto físico, além de órgãos genitais funcionais, a virilidade
na sociedade romana clássica também era ostentada por meio de um

317
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

corpo. A funcionalidade genital e a robustez física deveriam formar,


portanto, um corpo viril, guerreiro e atlético, não muito diferente do que
se dá nas academias contemporâneas. Mas este homem deveria manter
certo aspecto rústico, já que “um bellus homo, encaracolado, perfumado,
depilado, tagarelando com mulheres, não é nem modelo de virilidade
nem, apesar do adjetivo e da etimologia, de beleza viril” para os padrões
romanos (THUILLIER, 2013, p. 113). Tais características poderiam afas-
tar o homem da virtude, da “virtus” – coragem para a guerra.
A funcionalidade dos órgãos genitais também é algo fundamental
para a virilidade romana, diferenciando o homem do garoto e do idoso. O
termo “virilitas”, associado ao “vir”, designa o órgão genital em si, lite-
ralmente aquilo que está entre as virilhas. Apenas o homem sexualmente
funcional na posição ativa tinha condições de ser o pleno cidadão romano.
Em termos ainda mais diretos: “Virilidade, portanto, é penetrar analmente
os garotos, penetrar vaginalmente as mulheres (futuere, ‘transar’), e fazer
uma felação” (THUILLIER, 2013, p. 84).
Por fim, esta introdução tem por finalidade apresentar brevemente
o tema de nossa pesquisa e os sentidos do termo virilidade. A análise se
baseia na relação entre discurso e virilidade exposta nas narrativas de
contos homoeróticos com a finalidade de responder à seguinte questão:
como ocorre o processo de naturalização discursiva do estupro em contos
eróticos gays? Para esquadrinhar nosso corpus, buscaram-se parâmetros
analíticos e metodológicos nos estudos sobre discurso e alguns princípios
sobre virilidade, com o intento de entender a naturalização do estupro
nos enunciados dos contos. Como desfecho, procuramos refletir sobre a
importância da pesquisa no atinente a discurso, virilidades e sexualidade
no contexto digital, bem assim em suas consequências políticas, culturais
e sociais no âmbito dos estudos relativos à linguagem.

Discurso, pornografia e virilidade na produção de


masculinidades

A relação entre discurso e virilidade na produção de masculinidades


tem como base a influência dos estudos discursivos e sua historicidade

318
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

sobre o saber e sua produção de sentidos para sexualidade, original-


mente escrutinados por Foucault, que em princípio procuram questionar
a manutenção de processos binários de hierarquização e de exclusão
na sociedade de sua época. Ampliando as pesquisas foucaultianas, os
estudos sobre virilidades nos auxiliam na compreensão de modelos de
masculinidades em contos homoeróticos e a escolha de certos corpos de
personagens recorrentes em nossos dados observados.
Discurso e sujeito, neste trabalho, devem ser entendidos pelo pris-
ma foucaultiano. Assim, o discurso é uma representação culturalmente
construída por uma realidade, ou seja, não é uma entidade livre na His-
tória, mas (re)produz as relações já postas pelos saberes e instituições
considerados estabelecidos numa dada realidade (FOUCAULT, 2012). E
o sujeito, por sua vez, é uma figura do saber da sua contemporaneidade,
um objeto de poderes, ciências e instituições. O sujeito é um composto
histórico, assumindo determinada identidade produzida em determinado
contexto histórico, concebendo essa identidade como se sua fosse.
Foucault menciona a expressão exacerbada da sexualidade como
um dispositivo discursivo de saturação. Cria-se, a partir deste quadro, o
jogo paralelo entre poderes e prazeres, como um mecanismo de dupla
incitação. Há posições no sistema para as quais determinados compor-
tamentos sexuais são acessíveis, possíveis.
Legitima-se, com esse discurso, um jogo que estabelece um traçado
paralelo entre a posição que o sujeito ocupa no sistema – e o poder que
a ele se concede por ocupar tal posição – e a sexualidade que o sujeito
poderá exercer – os prazeres a ele outorgados. A determinadas pessoas
são barradas certas formas de demonstração de prazer, pois o cargo por
elas ocupado no sistema social não lhes permite, dentro do imaginário
social, desempenhar tal papel.
Enquanto inseridos em uma formação discursiva, os contos eróticos
em apreço autenticam as posições viris e naturalizam determinados atos
cometidos por sujeitos que imaginariamente ocupam tal posição.
Dada sua natureza de conteúdo sexual explícito, os contos eróticos
se valem de linguagem que representa um conjunto diversificado de

319
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

práticas semióticas restritas, inscritas na história, com uma finalidade


social, distribuídas em tipos e em gêneros associados a determinados
suportes e a determinados modos de circulação. Maingueneau (2010)
aponta que a pornografia evoca claramente um aspecto da natureza, ou
da atividade sexual de um ou de vários seres humanos. O discurso dos
textos pornográficos, efetivamente, representará a demanda de prazeres
de determinado segmento social. O efeito principal da pornografia é
estimular a libido do leitor.
Longe de estar desprendida da realidade, na feição de discurso a
pornografia é organizada seguindo preceitos sociais. Sob este aspecto,
a produção pornográfica pode ser classificada como “canônica” – re-
presentativa de práticas compatíveis com os princípios sociais vigentes
– “tolerada” – com atitudes julgadas como anormais, abrindo caminho
para uma série de fetiches – e “interdita” – com atos que infringem as
leis em voga (MAINGUENEAU, 2010).
A matriz genealógica dos personagens arquetípicos que aparecem
em nossos dados parece ter como marco, segundo Tamagne (2013), o
período entre fins do século 18 e início do 19, quando se achou por bem
representar artisticamente o pênis em proporções menores, ao gosto grego,
tentando diminuir o mal-estar plástico por ele causado. Tal representati-
vidade visual é somente alterada na segunda metade do século 19, com
o advento da fotografia. Os modelos vivos nus de Durieu e de Delacroix
– lutadores de feira, ex-soldados pagos para se despir – apresentam o
pênis em dimensões reais na convenção artística. “A fotografia desnuda
o pênis no centro de todo o dispositivo acadêmico – ou clássico – de
representação”, aponta o autor, complementando que “é através dela que
este perdura ao longo de toda a primeira metade do século XX, senil,
obsceno e fascinante” (p. 496).
Com o passar do tempo e ampliação das interações digitais, a imagem
viril se tornou inexoravelmente mais complexa, mas ainda necessaria-
mente incluindo a presença de um pênis funcional em estado de manipu-
lação. Aboudrar (2013) afirma que, de uns anos para cá, se redescobriu
a complexidade dos vínculos entre o sexo anatômico do homem, o sexo

320
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

simbólico e a identidade, sendo sinal de virilidade a ostentação de um


pênis funcional dentro de um contexto maior que inclua valores já co-
nhecidos nas virilidades gregas e romanas: autocontrole (sem afeição a
emotividades), potência (disposição guerreira) e afastamento das carícias
(um sinal de fraqueza física e/ou espiritual), como pode ser claramente
observado em textos pornográficos.
Tamagne (2013) aponta que, no início do século 20, o modelo da
homossexualidade viril se constrói em torno de três elementos: a pe-
derastia grega, a camaradagem masculina e a virilidade operária. Os
gregos forneciam um ideal estético de beleza, espírito guerreiro, coragem,
lealdade e sabedoria. O mito da camaradagem viril defendia o ideal de
uma sociedade masculina e cavalheiresca, dedicada ao culto da amizade,
tendo vários grupos bélicos das duas guerras mundiais se baseado nes-
ses princípios. A falta de refinamento da classe operária afastava seus
integrantes do padrão mais delicado, construindo um estereótipo que se
mantém como fetiche de virilidade até hoje.
Padrões estéticos, segundo Tamagne (2013), que serviam como base
para a produção de imagens eróticas voltadas ao público homossexual
masculino colocavam em cena corpos musculosos dos garotos sob a capa
do fisiculturismo e do naturismo. Essas características físicas colaboraram
para construir um “imaginário gay” que fazia alusão ao machismo, suge-
rido como forma de virilidade associada às culturas latinas na América,
ou mediterrâneas na Europa.

Metodologia

Este capítulo surgiu durante a coleta de material de análise para


uma outra pesquisa, que versa sobre a construção de efeito de sentido
da virilidade representada em episódios fílmicos em um portal brasileiro
especializado na produção contemporânea de pornô gay. Nesse processo,
deparamos com os contos eróticos gays que assumiam uma preocupação
não tanto com questão semiótica da linguagem, mas com uma descrição
verbal mais meticulosa do evento erótico, diferentemente dos filmes que

321
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

apregoavam uma ditadura da imagem e a “concisão” textual. Assim, nos


movimentamos na busca de dados que pudessem auxiliar na produção
deste trabalho.
Em uma rápida busca na internet, esbarramos com o portal Conto
Erótico, no endereço http://www.contoerotico.com/princ.cfm, que, nada
modestamente, se apresenta como “o melhor acervo de Contos Eroticos
(sic) da língua portuguesa”.
Imagem 1 – Página do site Conto Erótico

Fonte: http://www.contoerotico.com/princ.cfm

Com 19 anos de atividades, em janeiro de 2019, o portal contava


com mais de 134 mil contos eróticos publicados, enviados por pessoas
que se cadastraram, divididos em 17 categorias, dentre elas “Fantasia”
(pouco mais de 4 mil contos), “Fetiche” (com quase 3 mil) e “Gays”,
com mais de 26 mil contos publicados. Ao acessarmos esta última
categoria, pudemos observar a recorrência de termos como “forçado”,
“à força”, “deflorado”, “iniciado”, “invadido”, “virei mulherzinha”,
“sádico”, “algemado”, “assalto”, “empalamento” e “estupro” nos
títulos dos contos.

322
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Para compor nosso percurso analítico-interpretativo, seguimos os


seguintes procedimentos: a) leitura exploratória inicial para conhecer
os contos que compõem o corpus deste trabalho que insinuavam prática
de relação sexual sem autorização. Com base nesse reconhecimento
prévio, selecionamos 10 contos discursivamente representativos como
amostragem mais evidente de um discurso pornográfico que naturaliza a
violência sexual praticada; b) realizamos a leitura e a releitura do material
que se apresentava em primeira pessoa, e, no total, os enunciadores se
caracterizavam por ser vítimas de violência sexual; c) sistematização e
agrupamento dessas manifestações em categorias analíticas das recorrên-
cias discursivas; d) descrição de categorias de análise correspondentes
a essas manifestações; e) seleção dos excertos dos contos do corpus
para ilustrar as categorias de análise elaboradas; f) realização de análise
interpretativa dos dados selecionados por meio dos excertos que são
considerados representativos.
Vitimado, este enunciador vê na experiência da relação sexual
não consentida uma espécie de ritual de passagem para descobertas
e, ancorado, assume nova postura quanto à sua sexualidade. O vio-
lentado enxerga, em seu algoz, a figura positiva do responsável por
tal descoberta, não raro estabelecendo uma relação mais duradoura
com ele.
Como texto representativo de nosso percurso analítico, examina-
mos o conto “meu primo me cumeu (sic) a força”3, com a finalidade de
evidenciar um discurso pornográfico constante nos 10 contos analisados
que parece naturalizar a violência sexual praticada. É de salientar que
a exiguidade de espaço que o gênero capítulo de livro impõe não nos
permite a descrição detalhada de todos os contos. Como forma de vin-
car a frequência dos enunciados de nosso eixo argumentativo, expomos
alguns títulos e trechos de fragmentos de outros contos com o objetivo
de aclarar a recorrência discursiva de nossa análise.

3 Disponível em: https://www.contoerotico.com/conto/25/726477/meu-primo-me-cumeu-a-forca.


html. Acesso em: 21 out. 2018.

323
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Construção discursiva da naturalização de estupro

Os contos eróticos costumam pôr em cena o cotidiano e o furtivo


de relações sexuais casuais que envolvem pessoas comuns em situações
do cotidiano. Para Maingueneau (2010), a simples justaposição de fan-
tasias remete o leitor à sua efetiva condição, em vez de propor ficções
compensadoras possíveis. O bom discurso pornô é aquele em que a cena
pode acontecer com qualquer pessoa em qualquer lugar, inclusive – e
preferencialmente – com o leitor. Daí a grande maioria dos contos apre-
sentar enunciador homodiegético, que também é personagem da história
e narra suas aventuras sexuais a um terceiro, o leitor, em uma enunciação
significativa, com a qual este possa se identificar.
Dentro dessa realidade, os personagens raramente possuem nome
completo, pois o sobrenome revela uma origem, uma família, ancestrais,
uma inserção social. O prenome é individual sem individualizar, reduzin-
do as personagens unicamente à sua funcionalidade sexual na narrativa.
Horas, lugares, experiências e personagens são bem diversificados, mas
o que nunca varia é o fato de os personagens serem sempre apresentados
exclusivamente como seres desejantes. Sua psique está subordinada a
esse único aspecto, condição sine qua non para as cenas, e os parceiros
precisam ser trocados de um conto para outro, pois não há exclusividade,
há o desejo do gozo: condição própria para a possibilidade do discurso
pornográfico.
Utilizaremos como espinha dorsal de nosso capítulo o conto inti-
tulado “Meu primo me cumeu (sic) a força”, do autor “LaurinhoRJ”. O
nome do enunciador no diminutivo já constrói efeito de sentido de alguém
“menor”, e a isso se somam informações dadas pelo próprio enunciador
de que fora criado pela avó (indicando ausência de figura paterna, mas-
culina, e que as diretrizes eram dadas por uma figura feminina idosa), o
que fazia com que ele desfrutasse de liberdade reduzida para sair de casa.
“Cresci desse jeito, sempre desejando mais liberdade que outros tinham”,
confessa o enunciador, posicionando-se como um sujeito desejante, mas
que não exercia seu desejo, uma qualidade não viril.

324
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

A figura masculina em exercício de poder aparecerá nesta narrativa


com a introdução do primo “Luis Fernando”, cujo nome jamais aparecerá
no diminutivo. Em uma saída da avó, que o proibira de ir à rua, Lauri-
nhoRJ desobedece e sai. O primo o viu na rua com outros adolescentes e
exerceu autoridade de mandá-lo entrar, mesmo sendo apenas um ano mais
velho que ele – dialética indicando exercício de autoridade pelo primo.
“Falou com mais severidade, falou sério, tentei dialogar, indignado, me
senti humilhado”, narra LaurinhoRJ, numa demonstração de submissão
ao primo. Voltou para casa, quando então discutiu (não se expôs na rua,
o domus é seu território de tentativa de voz).
Já neste ponto está criado o cenário e estabelecida a dialética entre
o enunciador sujeito à autoridade do primo. Na história em análise, o
primo viril, que já havia exercido autoridade brigando com LaurinhoRJ
na rua, à frente de todos, mantém-se exercendo o controle dentro de casa:
“ele [Luis Fernando] avançou prá cima de mim, me empurrou sobre o
sofá da sala e, sem que eu pudesse adivinhar suas intenções, puxou meu
short, tirando, e me deixando nu da cintura prá baixo”, fazendo valer sua
maior aptidão física. “Como ele era maior e bem mais forte do que eu,
não consegui meu intento. Era só ele segurar meu short com os braços
levantados e eu já tinha dificuldades para pegá-lo”, frisa LaurinhoRJ,
demonstrando possuir estatura bem menor que a do primo.
Essa cena levará a uma relação sexual entre os primos, segundo
a história contada. Uma relação com a qual, a princípio, o enunciador
não concordará, tentando resistir a ele, situação em que será subjugado
pelo primo.
Este domínio físico viril pode ser observado no conto ora analisado
em vários momentos, como no trecho: “Como [Luis Fernando] era maior
e mais forte não demorou para me alcançar. Nem bem tinha conseguido
sair da casa e Luiz Fernando me pegou, me ergueu no ar e me levou para
dentro, pro quarto dele, onde me jogou sobre a cama”, numa demonstra-
ção explícita de superioridade física. “— Se tentar fugir de novo vou te
encher de porrada, entendeu? Falou energicamente enquanto me dava
um tapa no rosto.” O primo utilizava sua robustez física para o exercer o

325
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

controle da situação. “Chorando, obedeci, totalmente submisso, quando


ele me mandou ficar de quatro sobre a cama.” O choro, a submissão,
a obediência, o recebimento da ordem, o ficar de 4, todos indícios de
subjugo do enunciador com relação ao poder viril exercido pelo primo.
Demonstrando sua falta de afeição a emotividades, Luis Fernando
“se posicionou atrás de mim e começou novamente a forçar sua rola
no meu cu. Dessa vez ele foi mais bruto e cutucou com força seu pau
no meu buraquinho. Dei um grito de dor e, chorando, implorei para ele
parar”, afirma LaurinhoRJ. A utilização da força física provocou grito,
dor, choro e até o implorar para parar, mas nada disso demoveu o primo
viril: “Sua resposta foi um forte tapa na minha bunda e uma ameaça
clara de agressão, caso eu repetisse meu gesto.” O forte tapa e a ameaça
deixavam explícito que o primo seguiria em frente com o propósito de
obter prazer. Restava ao enunciador o subjugo ao desejo do outro: “Sem
poder fazer mais nada, procurei alcançar um travesseiro com as mãos e
fiquei aguardando ser impalado (sic)4 por aquela lança enorme”. Aqui
o pênis comparado a uma lança remete quase que automaticamente às
ideias de funcionalidade (estava rígido e apontando para cima) e do ideal
guerreiro, tendo o belicismo como uma das bases da virilidade desde os
gregos e romanos antigos.
O empalamento é demonstração da potência sexual do primo na
penetração. “Luiz Fernando voltou a forçar a passagem e, de tanto tentar,
meu cu cedeu e a cabecinha escorregou para dentro de mim. A sensação
era de que eu estava sendo dividido ao meio”. A submissão do enunciador
é proporcional à dominação viril do primo.
“Com medo de apanhar, enfiei a cara no travesseiro e começei (sic)
a chorar bastante. A dor ficaca (sic) cada vez maior a medida que seu
pau ia entrando dentro de mim.” O subjugo físico torna-se mais evidente,
e o ativo viril exerce seu direito ao prazer indiferente ao choro do pas-
sivo. “Quando viu que eu não ia aguentar mais do que a metade de sua
rola, Luiz Fernando parou por ali e passou a me comer num vai e vem
4 O termo empalamento deriva do verbo latino impalare, donde o prefixo in-, com o significado
dentro, se amarra a palus, sentido de pau, estaca. Empalar é espetar pelo ânus, suplício comum
na Antiguidade, para qual a crucifixão foi um avanço.

326
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

que quase me fez desmair (sic) de dor.” Os marcadores textuais fazem


questão de legitimar o pênis do penetrante como grande e funcional,
pois apenas a sua metade seria suportada pelo passivo na penetração. O
movimento de “vai e vem” causa no penetrante uma dor que o leva ao
limite da consciência, segundo o enunciado.
A relação não consentida continua com a marca da indiferença do
penetrante viril à dor física imposta ao penetrado até o gozo, a plenitude
de seu exercício de prazer: “Ficou comendo meu cu e eu inundando o
travesseiro de tanto chorar até que, sem avisar gozou dentro de mim.
Depois de se saciar, Luiz tirou seu pau de dentro de mim e eu senti um
tremendo alívio, apesar da dor.” Luiz deu vazão ao seu direito ao prazer,
gozou, saciou-se; LaurinhoRJ finalmente sentiu alívio, apesar da dor.
Vítima de violência, num primeiro momento após o ato consumado
o enunciador só desejava sair daquele contexto: “Querendo me livrar
totalmente daquela situação, pedia a ele meu short para eu poder sair
para a rua (não ia conseguir brincar mas não queria ficar com ele em
casa).” Mas, a autoridade viril de Luiz precisava discursivamente dar
sinal do que estava estabelecida para além do sexo: “Na maior cara de
pau ele me respondeu: — O trato era que eu deixaria você ir prá rua, e
não que eu ia te dar o short… se quiser pode sair, mas vai sair pelado!”.
E LaurinhoRJ, apesar de contrariado, reage à imposição do primo com
outra demonstração de falta de virilidade: “Fiquei puto com o que ouvi
e chorei mais ainda.”, submetendo-se mais uma vez à imposição das
vontades de Luiz Fernando.
Passado o episódio, legitimou-se o exercício de poder e dos prazeres
do primo mais robusto e viril, pois LaurinhoRJ conta que Luiz “passou a
me assediar direto e impedir minhas saídas”, em demonstração de domi-
nação física e psicológica. Mais ainda, “depois desse dia Luiz Fernando
demorou mais de uma semana para poder me comer de novo e então virou
freguês do meu cuzinho”, afirma o enunciador, confirmando a recorrência
das relações sexuais entre eles – e sempre com o primo como penetrante,
mas sem dar indícios de resistência por parte do penetrado LaurinhoRJ.
Continua: “Ele me comeu tantas vezes que, quando meu amigo Marcos

327
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

foi me comer, estranhou o fato do entrar sem nunhuma (sic) resistência


dentro de mim.” Essa falta de “resistência dentro” de LaurinhoRJ o po-
siciona, dentro do discurso pornográfico, como “arrombado”, posição
que ele claramente não ocupava antes do episódio.
Finalizando o relato, LaurinhoRJ assegura: “Hoje posso dizer, com
orgunho (sic), que tá prá nascer um pau que eu não dê conta”, dada sua
descoberta e adaptação após as experiências com o primo Luiz. E, em
caso de dúvida do leitor, LaurinhoRJ desafia: “Se você quiser pagar para
ver escreva para mim e vou te provar direitinho”, encerra o enunciador,
garantindo orgulhosamente sua nova condição.
Na mesma linha analítica, passamos a observar os títulos de outros
contos que compõem o corpus desta pesquisa: a) “Deflorado no bambu-
zal5, b) “virei mulherzinha”6, c) “iniciado pelo cunhado brutamonte”7, d)
“deflorado pelo cunhado”8, e) “Me comeram tirando fotos”9, f) “assalto
e estupro em Salvador”10, g) “algemado”11, h) “meu médico sádico”12.
Na leitura inicial dos títulos, percebe-se que o passivo sempre é
lido como sujeito feminino e inferior, talvez por essa premissa possa ser
abusado. Ele é um indivíduo que pode ser “comido”, “deflorado”, “al-
gemado”. Reparem que todas essas cadeias semânticas aludem a alguma
atitude violenta e de inferiorização. Ser comido pode significar, entre
outros sentidos, a coisificação do sujeito passivo que deixa de pertencer
à natureza humana para se tornar objeto puramente de satisfação. Da
mesma forma, a metáfora “deflorar” pode ser entendida como perder a

5 https://www.contoerotico.com/conto/252/500409/deflorado-no-bambuzal.html Acesso em:


25/07/2021
6 https://www.contoerotico.com/conto/315/874018/virei-mulherzinha.html Acesso em:
7 https://www.contoerotico.com/conto/481/720675/iniciado-pelo-cunhado-brutamontes.html
Acesso em: 25/07/2021
8 https://www.contoerotico.com/conto/416/458631/deflorado-pelo-cunhado.html Acesso em:
25/07/2021
9 https://www.contoerotico.com/conto/3132/447889/me-comeram-tirando-fotos.html Acesso
em: 25/07/2021
10 https://www.contoerotico.com/conto/4312/821270/assalto-e-estupro-em-salvador.html Acesso
em: 25/07/2021
11 https://www.contoerotico.com/conto/4146/395327/algemado-i.html Acesso em: 25/07/2021
12 https://www.contoerotico.com/conto/3186/954404/meu-medico-sadico.html​ Acesso em:
25/07/2021

328
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

virgindade, mas também provar algo13. Normalmente degustamos coisas


que apenas saciam nossos sentidos sem nenhuma relação de afetividade
por ela. Igualmente, a palavra “algemar” carrega o sentido de oprimir ou
subjugar alguma pessoa, tolhendo-lhe a liberdade e, por analogia, o poder
de tomar decisões quanto ao rumo do que acontecerá. Como se vê, essas
escolhas linguísticas não aparecem no vácuo, e muito menos, são fruto
da preferência do enunciador, mas ressoam relações de poder, percepção
sobre o que são virilidades e masculinidades, entre outros tantos sentidos.
Por outro lado, aquele que encarna a figura do “homem” dominador
e penetrador é descrito como alguém hierarquicamente superior, fami-
liar e confiável, como figura de um cunhado ou de um médico, além de
seus atributos físicos que o qualificam como um ser masculino superior
brutalmente ou sádico. Portanto, da análise empreitada encontramos as
seguintes recorrências discursivas que podem ser resumidamente obser-
vadas no quadro que segue.
Quadro 1 – recorrências discursivas

Passivo Ativo
Jovem pouco viril e afeminado Homem viril e mais velho
Ex: “Quando eu tinha aproximadamente Ex: “O motorista do ônibus, um senhor
18 anos, o meu jeitinho meio efeminado de meia-idade, calvo e com uma certa
começou a incomodar meus pais.” (conto barriguinha…” (conto “Deflorado no
“Deflorado no bambuzal”) bambuzal”)
Obediência a autoridade Controle
Ex: “Decidi obedecer, afinal ele era mais Ex: “O homem me falou sorrindo que não
velho e até aquele momento sempre foi havia do que ter medo.” (conto “Deflorado
digno tanto da minha confiança como da no bambuzal”)
dos outros alunos que usavam aquele trans-
porte.” (conto “Deflorado no bambuzal”)

13 Disponível em: https://dicionario.priberam.org/deflorar. Acesso em: 06 mar. 2019.

329
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Fisicamente e emocionalmente mais fraco Fisicamente e emocionalmente mais


Ex: “Tentei desesperadamente desvencilhar- forte e violento
me, mas uma rasteira me fez cair em seus Ex: “’Calma menininha, não chore, só vou
braços. Ele era definitivamente mais forte e ensinar a você o que é bom.’” Menininha?
eu nunca fui de briga. Desesperei-me, meus Esse cara está louco? Tentei fugir, tomei
olhos encheram de lágrimas.” (conto “Virei um tapa na cara, seguido de um aviso de
mulherzinha”) que na próxima seria um soco. Parei”
(conto “Virei mulherzinha”)

Aceitação da subjugação Subjugação sobre o outro


Ex: “Era humilhante , eu de quatro chupado Ex: “Ele foi pressionando, firme. Começou
porra do chão , acho que ele se excitou comi- a doer e a arder. Num dado momento a
go naquela posição e segurou meu quadril e resistência ficou menor e ele empurrou
meteu de novo o pau no meu cuzinho , desta tudo. Ví estrelas. Quis gritar e ele tapou
vez ele praticamente me galopava e por fim a minha boca. Seu pau enterrado no meu
gozou tudo dentro , o cara era um animal rabo e ele pressionando com todo o peso
, mandou eu ficar naquela posição ..... , dele. Tocava fundo.” (Conto “Iniciado
amordaçou minha boca e disse. — Agora pelo cunhado brutamontes”)
vai ficar ai quetinha que eu tenho que sair,
minha putinha. Pegou as chaves, se arrumou
e saiu me deixando daquele jeito...” (Conto
“Algemado”)

Fonte: Quadro elaborado pelos pesquisadores com base na análise dos dados

Como pode ser visto no quadro, a relação entre passivo e ativo nos
contos é marcada pela violência física e simbólica. Frequentemente, o
primeiro é descrito como alguém mais jovem, que não se apresentava
como um modelo de virilidade esperado, assumindo, portanto, papel de
katapugon/kinaidos14, nos termos gregos, para os homens que se aproxi-
mavam da feminidade. Amiúde, o passivo é descrito como alguém que
tem medo e em estado de inação perante a violência sofrida, enquanto o
ativo é mostrado como alguém com pênis funcional, viril e violento, que
utiliza de sua força física para o exercício da sua satisfação pela submissão
do sujeito passivo. Sendo assim, a dor do passivo e a violência do ativo
marcam peremptoriamente os enunciados dos contos.

14 A figura do Kinaidos/katapugnon, segundo Allouch (2010), citando John Winkler, é entendida


como contra modelo ao ideal de masculinidade grega: não sendo mulher, um homem que deseja
simples e diretamente ser dominado.

330
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Na próxima seção, apresentamos as considerações finais deste


capítulo, apontando as implicações sociais, culturais e políticas da natu-
ralização do estupro nesses contos.

Considerações finais

Neste capítulo, pretendeu-se analisar um texto sistematicamente


representativo das recorrências discursivas da naturalização do estu-
pro em conto pornográfico homoerótico. Paralelamente, utilizou-se,
como forma de referendar o olhar analítico, o suporte de mais nove
contos que apresentam características semelhantes do texto examina-
do visando a perceber como se processa discursivamente a violência
contra homens que são apresentados como passivos e mais femininos
na relação homossexual masculina. Teoricamente, nosso trabalho
teve como suporte uma perspectiva discursiva e estudos em torno do
conceito de virilidade.
Alicerçados nesta análise, colhe-se que os enunciados sugerem
violências sexuais sofridas pelos personagens que são lidos como
passivos, pode se assemelhar a um ritual de passagem à descoberta
de sua própria sexualidade. Essa transição, tão recorrente nos contos
investigados, torna-se preocupante à medida que, discursivamente,
pode funcionar como um dispositivo a ser utilizado como justificativa
para controlar e agredir corpos que não são considerados hegemoni-
camente viris.
Dessa forma, os contos figuram como mais um dos diferentes
reguladores de comportamento de homens cisgêneros, à medida que
procuram silenciar formas não canônicas de expressão de masculinidade.
Pela popularidade desse tipo de publicação, os contos acabam colabo-
rando para compor o discurso de violência e da homofobia que procura
alimentar o imaginário popular. Portanto, os homens que se apresentam
como fracos e femininos podem sofrer abusos de qualquer natureza na
economia sexual de nossa sociedade. O que se torna mais assustador é
que os homens penetrados violentamente podem ver, em outro momento,

331
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

como naturais as agressões sofridas, naturalizando, assim, as relações


homoeróticas em processo de inferiorização e subjugação daqueles que
se tornaram passivos. Não queremos negar que algumas pessoas podem
sentir prazer diante desse quadro mostrado nos contos. A questão posta é
que esse discurso, repetido e generalizado, pode assumir um estatuto de
verdade, justificando violências de diversas ordens, já que muitos podem
alegar que todo “viado” gosta de ser abusado e maltratado, legitimando
uma série de agressões cometidas contra a comunidade LGBT no Brasil.
Ao gerar esses sentidos, os contos podem reforçar a relação de su-
perioridade de alguns homens sobre outros podendo ter consequências
políticas à proporção que desconsidera um sujeito diferente do pensa-
mento hegemônico. Levando isso em conta, a pornografia gay, vista
como avanço por alguns pode, na verdade, legitimar apenas uma posição
de masculinidade hegemonicamente estabelecida. Advertimos nosso
leitor, contudo, que nossas considerações não podem ser vistas como
generalizadora numa relação binária simplista entre dominante (ativo)
e dominado (passivo). A pornografia é muito volátil, podendo ser lida
e performatizada para além da submissão a uma potência fálica apenas.
A título de exemplificação, destacamos a pornografia das mulheres
gordas, com peso de mais de 200 quilos, estudada por Kulick (2012),
demonstrando que o foco desse tipo de produção não se atenta ao ato
sexual em si, mas o destaque recai na ação de alimentar mulheres obesas.
Essa mesma pesquisa nos chama atenção para a questão racial na medida
em que Kulick (2012) percebeu que as modelos desse tipo de produção
são mulheres brancas e lidas como heterossexuais. Portanto, estamos
diante de processos social e discursivamente complexos e inconstantes.
No caso de nossa pesquisa, os próprios enunciadores, em dado momento
da narrativa, descrevem a experiência de ser abusado como prazerosa e
fascinante. Não queremos negar que o discurso do ato sexual violento
forçado, como uma espécie de ritual de passagem para o penetrado desco-
brir sua sexualidade, também pode formar um movimento de realocação
dessas atitudes, passando de uma pornografia interdita a uma tolerada,
fugindo ao canônico do socialmente aceito, que, no entanto, se encaixa
no fetiche sobre o qual não incide qualquer ilicitude.

332
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

A título de esclarecimento, fetiche é termo empregado por diversas


áreas, nas ciências do comportamento designa um substituto mágico do
falo faltante. Segundo David Zimerman (2001), em seu Vocabulário
contemporâneo de Psicanálise, o fetiche, para Freud, era “uma perversão
sexual caracterizada pelo fato de uma parte do corpo (…) ou um objeto
exterior (…) serem tomados como objetos exclusivos de uma excitação
ou prática perversa de atos sexuais” (p. 149).
Importante salientar que estes objetos são “tomados como exclusi-
vos de uma excitação”, ou seja, cumprem o papel de atiçar a libido do
sujeito que identifica nele um meio de reprimir sua tensão. No processo
de significação desencadeado pelo sujeito, os objetos se revestem de
significações essencialmente sexuais e, uma vez atiçados pela libido,
causam no organismo do indivíduo uma reação de excitação. É pelo con-
sumo do material, é pela leitura dos contos que o sujeito pode manifestar
seu prazer. O contato com a história, respondendo momentaneamente
à demanda da manifestação de prazer incitada pela libido, faz do conto
um fetiche sexual para o sujeito que apresenta esta reação, por ser um
objeto inanimado por meio do qual um fetichista manifesta seu prazer,
supre sua demanda dotando-o de significação sexual.
Por outro lado, ao mesmo tempo que os contos podem constituir
uma experiência de vazão para os desejos de seus leitores, paralelamente
eles podem auxiliar na construção de um discurso de masculinidade
hegemônica à medida que mostram o passivo como alguém inferior no
comportamento sexual humano e, portanto, passível do processo de coisi-
ficação, de ser tratado como um objeto a serviço do exercício dos prazeres
do homem viril. Esse discurso basicamente parece se alimentar dentro
de uma lógica que procura evidenciar o outro-estranho com caracteriza-
ções generalizadoras ou estereotipadas como forma de expurgo social.
Ao produzir esses sentidos, assegura-se a manutenção de identificações
homogêneas e fixas. Disso podem resultar ações geradoras de atitudes
que fomentem a discriminação contra aqueles tidos como diferentes.
Se atentarmos às consequências políticas pinçadas nos contos
que compõem o corpus desta pesquisa, pode ser notada a necessidade

333
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

premente de revisitar esse discurso que parece pretender engajar seus


leitores em práticas sexuais homogêneas, apagando qualquer outra forma
de manifestação de identidade que não seja dita padrão.
Diante desse contexto, a sexualidade humana e seus efeitos discursos
vêm assumindo um espaço cada vez maior nos estudos em Linguística
Aplicada, principalmente por meio da popularização da internet com pro-
cessos de mestiçagens de signos e maior circulação de textos de diferentes
sentidos. Nesse aspecto, o arcabouço disciplinar, que outrora caracterizou
as pesquisas na seara da linguagem, não consegue mais operacionalizar
com a complexidade do mundo contemporâneo e responder as demandas
da ordem social e a relação discurso-linguagem. Vivemos em tempo de
deslocamentos e de incertezas que nos convida inexoravelmente a repen-
sar nosso trabalho como pesquisador. Acreditamos que futuras pesquisas
devem atentar para maior transversalidade dos estudos de linguagem além
de uma postura ética favorável ao diferente, principalmente ao excluído.
Compreender os efeitos discursivos da pornografia homoerótica, por
exemplo, pode ser um dos possíveis caminhos para entender a dinâmica
das relações humanas neste século.

Referências

ABOUDRAR, B. N. Exibições: a virilidade desnudada. In: COURTINE, J-J. (dir.).


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FABRÍCIO, B. F. Linguística aplicada e visão de linguagem: por uma
INdisciplinaridade radical. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 1, p. 1-19,
2017.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012 [1969].
MAINGUENEAU, D. O discurso pornográfico. Tradução Marcos Marcionilo. São
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KULICK, D. Porno. Caderno Pagu, n. 38, 2012, p. 1-18.

334
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo:
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SARTRE, M. Virilidades gregas. In: VIGARELLO, G. (dir.). História da virilidade.
v. 1. A invenção da virilidade. Da Antiguidade às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2013
[2012].
SOUZA, D. S.; ZOLIN-VESZ, F. Da hospitalidade à intolerância ao migrante árabe:
construções discursivas sobre um mesmo Brasil. Trabalhos em linguística aplicada,
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TAMAGNE, F. Mutações homossexuais. In: COURTINE, J-J. (dir.). História da
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THUILLIER, J-P. Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus. In: VIGARELLO, G.
(dir.). História da virilidade. v. 1. A invenção da virilidade. Da Antiguidade às
Luzes. Petrópolis: Vozes, 2012 [2013].

335
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

É possível transgredir o ensino de pronúncia


na sala de aula de língua inglesa? Reflexões
com estudantes de Letras sob o viés da
expansão global do inglês

Denise Cristina Kluge1


Eduardo H. Diniz de Figueiredo2

Em um livro que trata sobre transgressões, discursos e política, falar


sobre pronúncia talvez soe fora de contexto. Afinal, depois da escrita, é
provável que o ensino de pronúncia seja visto como uma das questões
mais rígidas, engessadas, antigas no ensino-aprendizagem de línguas.
No entanto, é exatamente por esse motivo, por essa suposta rigidez – e
pelos medos e anseios que ela causa – que o esforço de engajar-se com
ela de forma crítica faz-se não apenas importante, mas – ao menos a
nosso ver – essencial.
Antes de iniciar as reflexões que vamos apresentar aqui sobre o
ensino-aprendizagem de pronúncia, é importante já destacarmos duas
questões importantes do presente trabalho. A primeira delas é o fato
que concepções tradicionais sobre o ensino de pronúncia não são apenas
sedimentados em concepções normativas e fechadas sobre língua – ou
seja, aquelas que veem língua como pertencendo a falantes nativos,
muitas vezes idealizados, e que enxergam no ensino de uma outra língua
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Programa de Pós-Graduação em Letras
(PPGL-UFPR).
2 Universidade Federal do Paraná (UFPR). Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL-
UFPR).

337
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

a necessidade de que aprendizes se aproximem ao máximo desses fa-


lantes. Na verdade, tais concepções tradicionais também trazem consigo
entendimentos estáticos sobre sujeitos aprendizes. Entender que o obje-
tivo de um aprendiz deve ser o de soar nativo ou quase nativo significa,
por um lado, homogeneizar os próprios falantes nativos (que são muito
mais diversos do que seus “modelos” idealizados), categorizando-os, ao
menos em muitos casos, como sujeitos monolíngues (apagando também
diversidades de raça, gênero, idade, dentre tantas outras); e, por outro
lado, significa também pensar em pessoas que estão se tornando bi/
multilíngues (e que, com isso, estão ampliando suas experiências de
linguagem) como meros imitadores de indivíduos monolíngues, o que
não faz nenhum sentido do ponto de vista cognitivo ou social (COOK,
1999; MAY, 2014).
A segunda questão que precisamos destacar diz respeito a nosso
lócus de enunciação. Como discutido anteriormente (DINIZ DE FI-
GUEIREDO; MARTINEZ, 2019; MENEZES DE SOUZA, 2019), é
imprescindível termos esse lócus sempre em mente e deixarmos claro de
onde estamos partindo (local e teoricamente) para nossos leitores. Uma
de nós é professora de língua inglesa com vasta experiência em ensino-
aprendizagem de pronúncia, e com interesse em questões diversas rela-
cionadas a essa prática como, por exemplo, produção e percepção de fala.
O outro autor, por sua vez, é também professor de inglês, mas com pouca
experiência com pesquisa na área de pronúncia. Seu principal interesse
de pesquisa está relacionado às implicações socioculturais e pedagógicas
da expansão global do inglês e, mais recentemente, à contribuição que
estudos decoloniais (ex. MIGNOLO, 2000; SOUSA SANTOS, 2018)
podem trazer para tais implicações. Ambos atuamos em universidades
federais brasileiras – uma no sudeste e outra no sul do Brasil.
Foi da união entre esses dois interesses de pesquisa e das conversas
sobre necessidade de diálogo e de aprender conjuntamente que nasceu
esse capítulo. Apesar de virmos de áreas entendidas muitas vezes como
praticamente incompatíveis, nossa busca por um ensino de línguas que
seja mais inclusivo, partindo das realidades dos/as aprendizes e dos con-
textos onde temos atuado, é mútuo. E isso por si só já mostra a nós ao

338
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

menos que a pequena (talvez até insignificante para alguns) transgressão


a que tentamos nos permitir – como colocado no título do capítulo – tem
como primeiro passo o simples fato de estarmos trabalhando um com
o outro.
Porém, a transgressão sobre a qual vamos tentar refletir aqui vai
além desse trabalho em conjunto. Ela parte do entendimento de que
professoras e professores em diversos contextos do Brasil (e de outras
partes do mundo) são muitas vezes confrontados com a necessidade de
ensinar suas alunas e seus alunos com base em modelos idealizados de
língua, modelos esses que são na maioria das vezes pensados a partir de
falantes nativos. Engajar-se com essa questão, e ainda mais no ensino de
pronúncia, significa, para nós, engajar-nos com as realidades de docentes
atuantes e em formação em escolas e universidades, que sofrem as con-
sequências de ideologias sobre língua, ensino e aprendizagem que são
muitas vezes excludentes – excluindo até mesmo os próprios aprendizes
e professores que fazem parte do ato de ensino-aprendizagem (BERNAT,
2008; RAJAGOPALAN, 2005).
Nosso trabalho, portanto, visa trazer uma reflexão sobre se e como
é possível subverter o ensino de pronúncia na sala de aula de inglês
como língua estrangeira. Para tal reflexão, partimos não apenas de nos-
sas próprias experiências, mas também das reflexões de estudantes de
Letras-Inglês de uma universidade pública no sudeste do Brasil sobre
suas práticas de ensino e aprendizagem de pronúncia. Obviamente, essas
reflexões discentes são permeadas pelas vozes da autora e autor do capí-
tulo, que fizeram/fazem parte da formação desses estudantes, direta ou
indiretamente. Deixamos isso claro de início, pois entender as diversas
vozes que fazem parte de um processo de formação é crucial para que
essa mesma formação ocorra de forma crítica.
As reflexões que trazemos aqui têm embasamento teórico princi-
palmente em estudos em inglês como língua internacional/franca (ILI/
ILF, respectivamente) relacionados ao ensino de pronúncia. Na próxima
seção do capítulo, apresentamos um breve panorama a respeito dessas
áreas. Em seguida, explicamos o trabalho com os estudantes de letras

339
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

que levou à construção desse texto. Por fim, apresentamos uma discussão
teórico-prática sobre o ensino de pronúncia, buscando sempre responder
à pergunta estabelecida no título.

Inglês como Língua Internacional/Franca e Ensino de


Pronúncia

Para falarmos sobre questões ligadas ao ensino de pronúncia a partir


de entendimentos sobre Inglês como Língua Internacional/Franca, é ne-
cessário primeiramente trazermos uma conceptualização teórica desses
termos. Apesar dos diversos usos de ambos e de haver entendimentos
divergentes sobre eles, olharemos aqui principalmente para o que eles
trazem de comum: 1) o olhar para a função do inglês em comunicações
entre pessoas de diferentes linguaculturas (FRIEDRICH; MATSUDA,
2010); e 2) o estudo sistemático de questões linguísticas, socioculturais e,
em alguns casos, de implicações pedagógicas de práticas comunicativas
diversas em inglês, com o questionamento de conceitos tradicionalmente
aceitos em contextos educacionais (tais como “falante nativo”). É im-
portante notar que ambos os termos foram (e, dependendo do estudo em
questão, ainda são) influenciados por estudos em campos como World
Englishes (KACHRU, 1992), World English (RAJAGOPALAN, 2009)
e pragmática (FIRTH, 1996), além de dialogarem com estudos na área
de sociolinguística crítica (por exemplo, BLOMMAERT, 2010).
No que diz respeito à pronúncia, mais especificamente, uma das
questões mais discutidas por abordagens informadas por ILI/ILF diz
respeito à centralidade da inteligibilidade em comunicações entre falan-
tes de linguaculturas diferentes (ou seja, em comunicações em línguas
francas diversas). Em poucas palavras, o conceito de inteligibilidade
está relacionado ao fato de que falantes que estão se comunicando em
uma língua franca não precisam soar de uma determinada forma (por
exemplo, pronunciar o th de palavras como thank e think, em inglês, de
forma interdental) para se fazerem entender; mais importante do que
sons isolados, portanto, é que tais falantes sejam inteligíveis um para o
outro (ou seja, que se entendam entre si).

340
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Apesar de parecer ser um conceito bastante direto e relativamente


simples, a noção de inteligibilidade é complexa (BECKER, 2014; BE-
CKER; KLUGE, 2014) e tem sido problematizada por alguns estudiosos
da linguagem. Rajagopalan (2009), por exemplo, questiona o fato de que
o entendimento de inteligibilidade é geralmente visto de forma genérica e
acaba por privilegiar certos falantes em detrimento de outros. A pergunta
que Rajagopalan faz (“inteligibilidade para quem?”) é especialmente
pertinente quando pensamos que em cursos de língua inglesa em diferen-
tes contextos, a noção de inteligibilidade ainda é alinhada a variedades
linguísticas de falantes nativos.
Estudos iniciais em ILF traziam algo diferente nesse sentido. As
contribuições de Jenkins (2000), em particular, fizeram com que inteligi-
bilidade fosse concebida não a partir de falantes nativos, mas que fossem
centradas em comunicações entre falantes diversos de inglês. A autora
buscava entender, por exemplo, quais sons prejudicavam a inteligibilidade
entre falantes, e quais sons pareciam não fazer diferença nesse sentido.
O que nasceu daí foi o famoso Lingua Franca Core (LFC): um conjunto
de sons pré-determinados que eram vistos como podendo afetar ou não a
inteligibilidade entre falantes de inglês. O problema do LFC, no entanto,
foi que, apesar de não olhar para os falantes nativos como norma a ser
seguida, ele também acabava normatizando (ou ao menos direcionando)
o que poderia/deveria ser ensinado em termos de pronúncia nas salas de
aula de inglês. Tal normatização foi vista com bastante desconfiança,
pois não considerava a fluidez e diversidade de formas que ocorre em
qualquer comunicação – seja ela em uma língua franca ou não (ver, por
exemplo, FRIEDRICH; MATSUDA, 2010).
O que esses estudos iniciais em ILF pareciam não levar em conta
era que inteligibilidade é sempre construída e negociada local e contin-
gencialmente, ou seja, nas interações que ocorrem entre pessoas diversas.
Nenhum core, portanto, dá ou daria conta da diversidade de possibilidades
que se fazem presentes em cada momento interacional entre duas ou mais
pessoas. Não é à toa que aos poucos a área de ILF foi sendo redirecionada
de modo a prestar mais atenção a questões pragmáticas e interacionais
(JENKINS; COGO; DEWEY, 2011) de que falantes diversos lançam

341
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

mão em suas trocas comunicativas e, mais recentemente, a possibilidades


multimodais e multilíngues existentes em cada momento de interação
– em inglês ou qualquer outra língua (JENKINS, 2015). Dessa forma,
parece haver uma maior aproximação de estudos em ILF a perspectivas
multilíngues de aquisição de segunda língua e a concepções translíngues
no entendimento e ensino-aprendizagem de línguas.
Uma nota antes de seguirmos: Estamos falando principalmente de
ILF aqui (e não ILI) porque o LFC foi concebido por teóricos que se
situam nessa área do estudo (principalmente Jennifer Jenkins). Entretanto,
apesar de ILI não ter concentrado em questões relacionadas ao LFC (na
verdade, teóricos que usam essa terminologia foram bastante críticos à
concepção do core em si), as críticas sobre o entendimento de inteligi-
bilidade precisar ser mais fluido, ao menos dentre alguns dos estudiosos
que preferem essa nomenclatura, também são pertinentes.
As críticas que apresentamos até agora podem trazer um questiona-
mento importante para diversos leitores: Diante da fluidez existente em
interações diversas em que o inglês é a língua franca – ou melhor, em
que qualquer língua franca esteja sendo partilhada – falar sobre o ensino
de pronúncia ainda se faz pertinente? Nosso entendimento é que sim, por
um simples motivo: a questão da pronúncia ainda é central para diversos
estudantes e professores em diferentes contextos, e não dialogar sobre
ela pode implicar silenciar desejos e necessidades. Por exemplo, diversos
professores em formação terão (ou já têm, em muitos casos) que ensinar
pronúncia nos variados contextos onde atuam. Discutir possibilidades de
encontrar brechas (DUBOC, 2018) para fazer isso de modo a subverter
o ensino de pronúncia pode ser importante para sair de concepções tra-
dicionais de tal ensino (onde falantes nativos, por exemplo, são privile-
giados, ou mesmo onde inteligibilidade é vista como algo determinado
por sons e estruturas, sem espaço para discussões sobre negociação de
sentidos). Como dissemos desde o início, buscaremos trazer reflexões
que possam subverter não apenas o trabalho com pronúncia, mas o
próprio pensamento de seu papel do ponto de vista teórico e prático no
ensino-aprendizagem de inglês. Seguimos para essa reflexão nas duas
próximas seções.

342
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Refletindo conjuntamente: repensando conceitos

As reflexões que fazemos aqui e na próxima seção partem de uma


experiência que tivemos conjuntamente – nós dois, autora e autor do
presente capítulo, e discentes de um curso de Letras Português-Inglês de
uma universidade no sudeste do Brasil. Os discentes eram estudantes de
uma disciplina de Fonética e Fonologia da Língua Inglesa da presente
autora em 2018, ano em que o presente autor foi convidado a ministrar
uma breve palestra naquela universidade (virtualmente) sobre seus enten-
dimentos a respeito de ILI/ILF. A palestra não era o primeiro momento
em que esses discentes estavam tendo a chance de discutir questões
relacionadas a ILI/ILF, pois os mesmos já haviam tido esse tipo de dis-
cussão em diferentes disciplinas ao longo de sua formação (cabe aqui
esclarecer que a disciplina de Fonética e Fonologia em questão ocorre
no quinto semestre do curso).
Naquele semestre (2018.1), especificamente, 28 alunos fizeram a
disciplina: 18 do quinto semestre e 10 alunos do sexto, sétimo e oitavo
semestres de Letras Português-Inglês. Vinte desses alunos eram profes-
sores no Centro de Línguas Aberto à Comunidade daquela universidade
e/ou em escolas de idiomas, o que aponta para uma certa experiência da
maioria da turma no que diz respeito à prática de ensino. É interessan-
te notar que, desses 20 alunos que já lecionavam inglês em contextos
diversos, 15 disseram que não ensinam ou não se sentem confortáveis
em ensinar pronúncia, o que também pode sugerir, ao menos no nosso
entendimento, a necessidade de pelo menos discutir questões ligadas a
esse âmbito do ensino-aprendizagem de inglês com esse grupo. A maioria
dos alunos disse que não teve aulas de pronúncia/fonética/fonologia do
inglês anteriormente.
Por se tratar de uma disciplina específica sobre Fonética e Fonologia
da Língua Inglesa, os tópicos abordados ao longo do semestre incluíam
conceitos básicos de fonética e fonologia (incluindo o alfabeto fonético
internacional, questões segmentais e suprassegmentais, dentre outras),
além da história e escopo do ensino-aprendizagem de pronúncia em
inglês. No entanto, a disciplina se propunha a ir além de tópicos especí-

343
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ficos de pronúncia, incluindo em suas discussões os seguintes assuntos:


expansão global do inglês; ILI/ILF; língua e identidade, e sua relação
com questões de pronúncia; problematizações sobre o falante nativo;
inteligibilidade e negociação de sentidos.
Para nós, o simples fato de trazer tais discussões para a sala de
aula de uma disciplina de Fonética e Fonologia – geralmente entendida
e abordada de forma tradicional, ao menos em nosso conhecimento – já
é uma forma de repensar o que cabe e o que pode fazer parte de uma
disciplina dessa natureza. Tais discussões, no nosso entendimento,
são cruciais para fazer com que os discentes reflitam sobre assuntos
tais como: se eles realmente devem/precisam lidar com o ensino de
pronúncia em seus contextos de ensino; se sim, como trabalhar com
esse ensino de forma a fazer seus alunos perceberem-se como falantes/
usuários legítimos de inglês e/ou como aprendizes que passarão a ser
bi/multilíngues, em seu próprio direito, ao invés de cópias de falantes
monolíngues daquela língua (COOK, 1999; DINIZ DE FIGUEIREDO,
2011); como trabalhar pensar a pronúncia dentro de um contexto maior
de negociação de sentidos; e como entender a diversidade de falantes
nativos de uma língua, sem cristalizá-los em um modelo único, idea-
lizado de proficiência e uso.
Pode parecer, a princípio, que essas potencialidades a que estamos
nos referindo são apenas frutos de nosso desejo. No entanto, ao final da
disciplina em questão, a autora do presente texto solicitou que os discentes
escrevessem algumas de suas reflexões sobre o que tinham aprendido
e como aquilo havia mudado (ou poderia mudar) seus modos de pensar
sobre pronúncia, ensino-aprendizagem e, dependendo do discentes, suas
práticas de sala de aula. A seguir, apresentamos algumas dessas refle-
xões, as quais nos levam a argumentar que, ao menos em um primeiro
momento, as discussões e diversidade de tópicos que foram levados para
a sala de aula trouxeram problematizações por parte dos alunos sobre o
ensino de pronúncia e seu papel no contexto de ensino-aprendizagem de
línguas. Demos aos estudantes números, tais como Estudante 1, Estu-
dante 2, e assim por diante, para garantir seu anonimato, e para mostrar
a multiplicidade de vozes envolvidas nas reflexões que aqui fazemos

344
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

em conjunto com suas falas (trouxemos apenas algumas das falas que
achamos relevantes, por questões de espaço).

…the main goal of the language use is about intelligibility, which in-
volves negotiation in many aspects like meaning negotiation, values,
cultural aspects, identity, in a relationship with solidarity and respect.
[…o principal objetivo do uso da língua é inteligibilidade, que envolve
negociação em vários aspectos, tais como negociação de significados,
valores, aspectos culturais, identidade, em uma relação de solidarie-
dade e respeito]. (Estudante 1).

…learning a second language is not a process of becoming a “native


speaker copy machine” […aprender uma segunda língua não é um
processo de se tornar uma “máquina de cópia de um falante nativo”]
(Estudante 13).

…what the students do not know is that bilinguals or multilinguals


speakers are cognitively different from a monolingual speaker. It
means that a person who is bi/multilingual processes the language
differently from one who has this language as the mother tongue.
Consequently, to sound like a native it is an unrealistic thing […o
que os alunos não sabem é que pessoas bilíngues ou multilíngues são
cognitivamente diferentes em relação a um falante monolíngue.
Isso significa que uma pessoa que é bi/multilíngue processa a língua de
formas diferentes de alguém que tem essa mesma língua como língua
nativa. Consequentemente, soar como um nativo é algo irrealista]
(Estudante 2).

Talvez em uma primeira lida dos trechos trazidos acima, possa pare-
cer que os estudantes estão meramente tratando de aspectos considerados
“batidos” (ou seja, já antigos) pela literatura sobre ILI/ILF. No entanto,
é interessante notar especialmente como a maneira como os estudantes
1 e 2, mais especificamente, aprofundam seus comentários. No caso do
Estudante 1, é particularmente interessante como o entendimento de
inteligibilidade ultrapassa não apenas questões de pronúncia, mas as ques-
tões linguísticas como um todo. Ao tratar sobre solidariedade e respeito,

345
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

aspectos que são sociais e emocionais, o Estudante 1 está refletindo sobre


como o entendimento de linguagem como algo estrutural, pré-concebido,
não negociado não dá conta do que realmente é necessário quando se
busca ser inteligível. Portanto, se nos indagamos sobre a pergunta feita
por Rajagopalan (2009), trazida no início desse capítulo, com respeito
a “inteligibilidade para quem”, podemos ver, na resposta do Estudante
1, que é inteligibilidade para qualquer pessoa com quem estamos nos
comunicando – sendo que essa perspectiva traz consigo a necessidade de
ir além de aspectos fonéticos, fonológicos e linguísticos como um todo.
Já a fala da Estudante 2 traz uma reflexão sobre a comparação geral-
mente feita entre aprendizes e falantes nativos (muitas vezes concebidos
como monolíngues). Entender essa diferença, principalmente no que diz
respeito ao “soar”, como bem colocado pela aluna, é algo que pode (e em
nossa visão precisa) ser abordado em disciplinas de fonética e fonologia,
para que professores em formação possam questionar ideologias e práticas
que tentam fazer de estudantes meras cópias de falantes nativos (como
bem colocado pela Estudante 13).
É importante deixar claro que esses relatos são reflexos do que foi
discutido em sala de aula – e, portanto, ecoam as vozes da professora,
autora deste capítulo, e do professor convidado, também autor do pre-
sente texto. Isso talvez possa ser alvo de crítica com relação às falas que
apresentamos até agora – com base em um possível entendimento de que
os alunos estariam repetindo o que foi apresentado para eles ao longo
do semestre. No entanto, mesmo que esse seja o caso, relatos como os
que apresentamos acima são importantes por pelo menos dois motivos:
primeiramente porque eles podem apontar para transformações nas
práticas dos estudantes; e, em segundo lugar, porque eles podem trazer
transformações também para as nossas próprias práticas como formadora
e formador de futuros docentes.
Não temos evidências sobre a primeira dessas colocações (mudanças
nas práticas dos estudantes), mas no que diz respeito à segunda, podemos
certamente apontar para transformações que foram importantes para
nós. A principal delas, em nossas discussões após o estudo, diz respeito

346
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ao próprio pensar sobre fonética, fonologia e ensino de pronúncia por


parte da autora deste capítulo – que, como dissemos anteriormente, tem
formação específica nessa área. Ao planejar suas disciplinas posteriores
a essa pesquisa, a professora e autora passou a tratar um conceito comum
na fonética e fonologia (o entendimento de transferência) de outra forma.
Ao invés de pensar que estudantes transferem sons de suas primeiras
línguas quando estão aprendendo outras línguas (algo que é visto como
negativo por muitos professores em diversos contextos, mas que já era
visto positivamente por nós), ela passou a conceber o uso de fonemas
diversos no ensino-aprendizagem de línguas a partir do conceito de re-
pertório semiótico – repertório esse concebido como pluri/translíngue,
por envolver as diversas línguas de cada falante, suas experiências com
elas e os diversos modos de construir significados de que lançamos mão
em cada uma de nossas interações.
Essa pode parecer uma transformação pequena, ou até mesmo não
fazer sentido para alguns. No entanto, a ideia de repertório traz consigo o
entendimento de que todas as pessoas constroem um “acervo” linguístico-
cultural-semiótico a partir de suas diversas vivências, trajetórias, histórias,
contatos, e assim por diante. Isso inclui os sons de que lançamos mão
para construirmos nossas práticas linguísticas e nos fazermos entender.
Entender esses sons como parte de um repertório faz com que possamos
ensinar nossos estudantes a buscar em seus “acervos” diversos as formas
de soar nas línguas que aprendem. Isso não significa tentar aproximar-se
a falantes nativos, mas buscar em nossos repertórios formas de soarmos
inteligíveis para nossos interlocutores, ao mesmo tempo em que entende-
mos que essas buscas estão relacionadas a nossas identidades e às formas
únicas que vamos ter (e que já temos) em qualquer língua; e, talvez mais
importante, significa perceber como nossos interlocutores estão também
lançando mão de seus próprios repertórios para se fazerem entender – e
com isso construindo seus próprios sentidos e identidades.
Ensinar fonética e fonologia e trabalhar com ensino-aprendizagem
de pronúncia a partir da ideia de repertórios traz consigo, ao menos ao
nosso ver, maiores possibilidades de questionar ideias sedimentadas
sobre língua e sobre sujeitos aprendizes. E, como dissemos anterior-

347
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

mente, fazer isso especificamente dentro do escopo da pronúncia pode


ser crucial, uma vez que a ideia de “soar” de uma forma ou de outra (ou
melhor, soar como determinados tipos de falantes) é geralmente tida
no senso comum e em muitos espaços educacionais como sinônimo
de saber uma língua.

Refletindo conjuntamente: dilemas

A possibilidade de repensar conceitos sobre a qual discorremos


acima foi uma das potencialidades da experiência que apresentamos
neste capítulo. Uma outra potencialidade foi a oportunidade de entender
dilemas que surgem quando tentamos pensar no ensino-aprendizagem de
pronúncia a partir de perspectivas alinhadas ao ILI/ILF. Esses dilemas
foram e seguem sendo presentes tanto para nós quanto para os discentes
da disciplina em questão. Desta forma, assim como fizemos na seção
anterior, discorreremos aqui sobre alguns deles, trazendo as vozes dos
discentes em diálogo com as nossas.
Damos destaque a dois dilemas que nos chamaram a atenção nas
falas dos discentes, mais especificamente. O primeiro deles diz respeito
ao entendimento de “erro” a partir de perspectivas ILI/ILF. As falas a
seguir ilustram alguns dos comentários feito pelos estudantes sobre esse
assunto:

…how are we able to define the boundaries between a mistake and


a particular form of pronunciation? […como podemos definir as
linhas/diferenças entre erro e uma forma particular de pronúncia?]
(Estudante 17).

…what is the boundary between a normal process of adaptation of


language and a mistake? What is the role of pronunciation teaching in
a world with so many Englishes? […qual a diferença entre um processo
normal de adaptação de uma língua e um erro? Qual o papel do ensino
de pronúncia em um mundo com tantos ingleses?] (Estudante 15).

348
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Essas não são perguntas simples, e, por si sós, já mostram um nível


de reflexão necessário por parte de alguns dos estudantes sobre as relações
entre ensino-aprendizagem de pronúncia e perspectivas ILI/ILF. Tal tipo
de questionamento tem sido feito por pesquisadoras e pesquisadores em
diversos contextos (por exemplo, HAUS, 2018) e, ao nosso ver, precisa
ser continuamente abordado.
Até o presente momento, o que temos visto como sendo mais
interessante nesse sentido está relacionado às possibilidades que um
trabalho com ILI/ILF tem de ampliar o conhecimento e entendimento
de professores e estudantes quanto a interações diversas em que o inglês
está tendo a função de língua franca. Um exemplo interessante é o traba-
lho recente de Siqueira (2020), em que o autor sugere que estudantes e
professores em formação (inicial e continuada) sejam expostos a diver-
sas ocorrências fonéticas que de fato ocorrem quando falantes diversos
estão se comunicando em inglês. Essa sugestão, ao nosso ver, expande
recomendações anteriores sobre expor estudantes a variedades diversas
de inglês faladas ao redor do mundo (ver, por exemplo, MATSUDA;
FRIEDRICH, 2011). O que é interessante nesse sentido é que ao olhar
especificamente para possibilidades de pronúncia que de fato ocorrem
ao redor do mundo, estudantes estarão ampliando seus repertórios de
entendimento de possibilidades para a pronúncia de diversas palavras – o
que já é um início para o questionamento do que seja um “erro”. Como
bem colocado por Siqueira (2020), esse tipo de exposição está ligado
também ao desenvolvimento, por parte de estudantes e professores, de
sensibilidade intercultural e também de entendimentos decoloniais sobre
o ensino-aprendizagem de inglês (pois modelos idealizados de falantes
nativos são postos em cheque).
Quando entendemos que inteligibilidade é construída não apenas
por questões e elementos estruturais de uma língua (incluindo sons), mas
que ela é construída contingencialmente – como já defendemos acima – é
possível ir um pouco além e dizer que entendimentos sobre erros podem
ser negociados de acordo com cada contexto e cada momento específico;
ou seja, achamos mais produtivo que docentes façam decisões sobre o
que corrigir (ou não) com base em fatores tais como: os objetivos de

349
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

cada turma e cada estudante, quando possível; se tal correção se faz


necessária para a inteligibilidade naquele momento específico de sala de
aula; e se tal correção poderia se fazer necessária em momentos distintos
de interação. É preciso ter em mente (e reconhecer) que fatores como
esses são subjetivos (e situados), então discutir essas decisões com alu-
nas e alunos de inglês nos mais diversos contextos é algo que achamos
importante também.
O segundo dilema sobre o qual trataremos aqui diz respeito aos
contextos diversos em que nossos estudantes trabalham ou irão trabalhar
e à preocupação, por muitos professores em formação e em atividade,
sobre as expectativas que tais contextos têm com relação ao ensino-
aprendizagem de pronúncia. Os comentários a seguir ilustram esse tipo
de preocupação:

As teachers, we are put in a very awkward position. Mainly because


we deal with people. People who interact with world, who are exposed
to lots of content, who compare, who judge, who think. They go to an
English school expecting to speak like that actor they saw on a movie
last weekend, or to sing a song exactly the way that famous singer sings
it at every concert [Como professores, somos colocados em uma posição
muito estranha. Principalmente porque lidamos com pessoas. Pessoas
que interagem com o mundo, que são expostas a muitos conteúdos, que
julgam, que pensam. Elas vão para uma escola de inglês esperando falar
como aquele ator que viram em um filme na semana anterior, ou cantar
uma música exatamente como aquele cantor famoso faz em todos os
seus shows] (Estudante 24).

Most of time, teachers are supposed to teach native varieties of English;


students should also follow this “standard” during their learning pro-
cess as the native ideology is set as prestigious goal most of the time,
despite being unachievable and unnecessary for the majority of students
who will use English for more pragmatic purposes than passing exams
[Na maioria das vezes, espera-se que professores ensinem variedades
nativas de inglês; estudantes também têm que seguir esse “padrão”
durante seus processos de aprendizagem, pois a ideologia do falante

350
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

nativo é posta como um objetivo de prestígio na maior parte das vezes,


apesar de ser inalcançável e desnecessário para a maioria dos alunos
que vão usar inglês para propósitos mais pragmáticos do que passar em
exames] (Estudante 27).

Responder a essas colocações também não é tarefa fácil. Uma das


recomendações que fazem mais sentido para nós, pelo menos até o pre-
sente momento, é – como já mencionado anteriormente – a possibilidade
que professores de mais diversos contextos podem buscar por brechas
em que concepções relacionadas a ILI/ILF e conversas sobre tais tópicos
possam ser discutidas com seus estudantes (DUBOC, 2018). Temos visto
diversos trabalhos em que essas buscas ocorrem, em contextos bastante
variados (por exemplo, GALOR, 2020), sempre com transformações
bastante profundas nas crenças e perspectivas tanto de estudantes quanto
de docentes.
Na prática, isso significa discutir com nossos alunos e nossas alunas
a inviabilidade de soar como falantes nativos, por exemplo. Significa
também transformar ou recriar atividades de livros didáticos para que
sejam mais plurais em termos de diversidade de falantes e contextos
nos quais práticas de linguagem acontecem (SIQUEIRA, 2020). Tais
possibilidades só são possíveis, cremos, a partir da formação inicial e
continuada de professores.

Palavras finais

Iniciamos esse capítulo afirmando que a tradicional rigidez do


ensino de pronúncia e as concepções de língua e de sujeito aprendiz que
geralmente estão relacionadas a tal rigidez foram dimensões motivadoras
ao trabalho colaborativo de reflexão a que nos propusemos. Iniciamos
também nos colocando como autora e autor dispostos ao diálogo, ao
conflito, ao aprendizado mútuo, apesar de virmos de tradições distintas
de pesquisa, de áreas dentro da Linguística Aplicada que podem ser vistas
como incompatíveis. Iniciamos ainda dizendo que o que buscamos aqui é
algo que possa talvez trazer práticas mais plurais de ensino-aprendizagem

351
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

de pronúncia, práticas que sejam possíveis para docentes em contextos


diversos.
Por vezes, achamos que o trabalho ao qual nos propomos era
demasiado difícil – ou porque não acharíamos as transgressões que
buscamos, ou porque elas poderiam ser vistas como simplistas ou como
transformações não transgressoras. Seguimos motivados, mesmo as-
sim, e fomos impulsionados por leituras que nos mostraram que pensar
sobre pronúncia de forma plural pode, sim, ser uma forma de subverter
o ensino de inglês (SIQUEIRA, 2020) – de uma forma não simplória,
mas significativa para docentes atuantes e em formação. Tal motivação
foi ainda mais forte quando levamos em conta o atual momento em que
o termo “Inglês como Língua Franca” tem recebido tanta atenção por
parte de diversos educadores, principalmente devido a sua presença na
Base Nacional Comum Curricular. Trazer ponderações sobre ILI/ILF na
sala de aula dentro de tal contexto é, ao menos para nós, engajar-se com
professoras e professores de diversas partes do país.
Finalizamos dizendo que as reflexões que trouxemos aqui são parte
de algo contínuo, de nossa própria formação como formadora e formador
de docentes e como docentes também – formação essa que não acaba,
como enfatizado por Freire (1997). Finalizamos também deixando claro
que os entendimentos de ILI/ILF que temos visto no cenário brasileiro
(ver, por exemplo, JORDÃO, 2014; GIMENEZ; EL KADRI; CALVO,
2018) são cada vez mais complexos e convidativos a transgressões, in-
clusive das próprias teorias que são citadas. Esperamos que esse capítulo
tenha sido um passo, ainda que pequeno, para reflexões cada vez mais
profundas.

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

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linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

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354
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

A potência afetiva na transgressão de


discursos opressores

Francisco Estefogo1
Fernanda Coelho Liberali2

O ano de 2019 no Brasil foi marcado por várias mudanças políti-


cas, ideológicas e principalmente na seara da economia e no comando
do Poder Executivo do país. Alguns sustos, castrações e ameaças, como
a legitimidade das provas do ENEM e o contingenciamento de verbas
para as universidades federais, também foram destaques verborrágicos
nos noticiários, inclusive, e especialmente, na mídia internacional. Além
disso, impropérios, declarações polêmicas e preconceituosas, proferidas
pelo alto escalão do governo (e.g.: “menino veste azul e menina veste
rosa3”; “o Brasil não pode ser um país do mundo gay, de turismo gay.
Temos famílias4”; “daqueles governadores de ‘Paraíba’, o pior é o do
Maranhã5”; “se a esquerda brasileira radicalizar, uma resposta pode ser
via um novo AI-56”; “professores, pais e alunos não podem promover
1 Cultura Inglesa Taubaté/Universidade de Taubaté. Programa de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada (PPGLA-UNITAU).
2 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Programa de Estudos Pós-Graduados
em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL-PUC-SP).
3 https://oglobo.globo.com/sociedade/menino-veste-azul-menina-veste-rosa-diz-damares-alves-
em-video-23343024.
4 https://www.uol.com.br/universa/noticias/ansa/2019/04/25/brasil-nao-pode-ser-pais-do-
mundo-gay-diz-bolsonaro.htm
5 https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/10/31/eduardo-bolsonaro-diz-que-se-esquerda-
radicalizar-resposta-pode-ser-via-um-novo-ai-5.ghtml
6 https://exame.com/brasil/professores-e-alunos-nao-podem-divulgar-protesto-em-hora-escolar-
diz-mec/

355
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

movimentos político-partidários em promover a participação de alunos


em manifestações7”), também dominaram os holofotes da nação, o que
gerou turbulenta repercussão, no âmbito nacional e, claro, no círculo
internacional, além das cenas de constrangimento, de ameaças e de medo.
Em linhas gerais, os discursos binários, opressores e colonizadores
(que também perpassam a Bielorrússia, a Nicarágua, os Estados Unidos,
o Turcomenistão, a China, Hungria, a Rússia� etc.) mesmo no fim da
primeira década do século XXI, ainda foram a tônica dos principais
pronunciamentos da nova força política no Brasil, já no primeiro ano
de mandato.
Na contramão dessa contemporânea corrente política despótica,
Espinosa (2009) faz uma veemente crítica à maneira imposta e dogmática
como o ser humano deveria ser e agir lá nos idos do século XVII, em sua
monumental obra Tratado Político. Parece que mesmo depois de mais
de 400 anos, vestígios pernósticos e impositivos da Idade Média ainda
pairam sobre algumas nações. Se os afetos não fossem considerados
livres e autênticos do ser humano, pela ótica espinosiana, a política era
apenas uma quimera, um desvario sem propósito.
A gênese da filosofia política espinosiana tem base na esfera da
afetividade humana. Portanto, o modelo político discutido por Espinosa
não tem suas raízes numa atividade puramente racional, mas na signi-
ficativa força dos afetos (MARQUES, 2016). É nessa potência afetiva
que este capítulo se esmera como ferramenta transgressora de discursos
opressores.
Frente a esse contexto que flerta com um ambiente antidemocrá-
tico e que possivelmente silenciará vozes, principalmente dos grupos
minoritários, tais como os homossexuais, os negros, os deficientes, os
imigrantes, dentre outros, o programa DIGITMED, organizado pelo
Grupo de Pesquisa Linguagem em Atividades no Contexto Escolar
(LACE-PUCSP), propõe-se, num nível macro, a desenvolver atividades
que transgridam as forças opressoras. O DIGITMED está pautado pela
7 ESTEFOGO, F. As (des)governanças planetárias do vírus: “líderes-massa” e “líderes-especial”
(no prelo).

356
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

perspectiva da Teoria Sócio-Histórico-Cultural (VYGOTSKY, 2007,


2008), doravante TASCH, e também expande a partir da Pedagogia dos
Multiletramentos (THE NEW LONDON GROUP, 2000; ROJO, 2009,
2012, 2015), dentre outras correntes teórico-filosóficas. O conceito
resistir-expandir espinosiano, enfoque filosófico deste capítulo, também
permeia as atividades do programa DIGITMED.
Assim sendo, este capítulo objetiva discutir e refletir sobre os en-
contros felizes, que expandem a potência de viver (ESPINOSA, 2005,
2009, 2013), promovidos a partir das atividades desenvolvidas pelo
referido programa, nos 8 encontros mensais, ao longo de 2019. Mais
particularmente, dentro de uma toada cultural, as atividades desse ano
foram organizadas a partir das seguintes proposições: saraus, slams,
teatro, musicais, literatura, grafite, visitas a museus e danças/ritmos.
A temática dos encontros foi, de forma geral, inspirada pela pro-
blematização dos impactos das forças opressoras e dominadoras da
contemporaneidade, principalmente vindas das adjacências do Poder
Executivo. O foco foi promover atividades que, baseadas nos encontros
felizes espinosianos, pudessem contribuir para a transgressão de discursos
autoritários, dominadores e controladores que pairam no cenário nacional
nos últimos tempos. Ademais, a centralidade do capítulo é discutir sobe-
jamente o conceito de resistir-expandir, concebido pelo Grupo LACE,
com base nos pressupostos filosóficos de Espinosa (2005, 2009, 2013),
a partir dos afetos humanos, no que se refere às suas potencialidades de
ser, agir e expandir, como força transgressora de discursos opressores
em tempos sombrios.
Em relação a esse rompimento no que tange à exploração e à
opressão (FREIRE, 1987) de forças dominadoras, Estefogo (2019, p. 50)
assevera que a constituição das potências de resistência é central também
para “se garantir a participação dos cidadãos para lutar contra a extrema
pobreza, a desigualdade social, o silenciamento, a educação gratuita de
qualidade etc.”. O autor ainda complementa que “as possibilidades de
resistências agentivas seriam decorrentes da articulação dos conteúdos
escolares com as demandas da vida do aluno”, (ESTEFOGO, 2019, p.

357
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

55). Além do aporte teórico-filosófico já citado, essa ponderação foi


uma das linhas norteadoras que pautaram a elaboração, a preparação e a
realização das atividades dos 8 encontros citados previamente.
Para tanto, este capitulo será organizado primeiro a partir da contex-
tualização do DIGITMED (LIBERALI, 2019) e de uma breve discussão
dos dois principais conceitos teóricos que fundamentam o programa, ou
seja, a TASCH (VYGOTSKY, 2007, 2008), bem como a Pedagogia dos
Multiletramentos (THE NEW LONDON GROUP, 2000; ROJO, 2009,
2012, 2015).
Posteriormente, o conceito de resistir digitmediano será amplamente
abordado no que se refere à perseverança da existência do ser humano,
baseada nos encontros felizes (ESPINOSA, 2005, 2009, 2013), que
podem resistir à repressão, à doutrinação, ao autoritarismo, à imposição
e à submissão.
Na sequência, algumas particularidades dos 8 encontros serão
apresentadas juntamente com a interpretação de alguns dados coletados
durante os eventos. O foco é apresentar, por intermédio da materialida-
de da linguagem, referências de encontros felizes pelos quais afetos de
resistência foram construídos pelos participantes.
E por último, considerações finais serão feitas como intuito de propor
reflexões para que outras ações expansivas e de resistência possam ser
prospectadas para o Programa DIGITMED e, certamente, para outras
ações educacionais que venham se inspirar por este capítulo, dado o
momento (ameaçador e de nostalgia com o autoritarismo) sócio-histórico-
cultural do Brasil, com um futuro não tão promissor.

Programa DIGITMED

Coordenado pela Profa. Dra. Fernanda Coelho Liberali, docente da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e desenvolvido
pelo Grupo de Pesquisa Linguagem em Atividades no Contexto Escolar
(LACE), o Programa DIGITMED vem sendo desenvolvido desde 2013.

358
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

O Programa DIGITMED é uma fase avançada de um projeto, inicia-


do em 2013 também, intitulado como “Perspectivas globais em aprendi-
zagem e desenvolvimento por meio de Mídia Digital: Uma perspectiva
qualitativa sobre o dia a dia de jovens em situações marginalizadas”.
Mantido pelo Projeto Marie Curie International Research Teams, além
de ser desenvolvido por algumas universidades internacionais, o projeto
internacional era coordenado por Michalis Kontopodis, professor da
Universidade de Leeds, Inglaterra (KONTOPODIS; VARVANTAKIS;
WULF, 2019).
Na sua primeira fase no Brasil, que operou entre 2013 e 2015, o
projeto era denominado “Digit-M-Ed-Brasil: Transformando ensino-
aprendizagem pelos múltiplos meios”. Entre 2016 e 2017, o segundo
ciclo, um novo nome foi elaborado, ou seja, “Digit-M-Ed Hiperconec-
tando Brasil: transformando o ensino-aprendizagem”. Foi em 2018 que
o projeto iniciou a nova etapa quando foi intitulado “Programa DIGIT-
MED” (MANZATI, 2018; BARROZO, 2019; LIBERALI 2019, 2020;
LIBERALI; TANZI NETO, 2020).
Um dos principais aspectos que possibilitou a gênese do DIGIT-
MED foi considerar as demandas sociais que pudessem refletir sobre
o papel da escola, em colaboração com a universidade, apoiado em
propostas curriculares de atividades desencapsuladas (LIBERALI,
2015, 2018), para a transformação da realidade. Portanto, na segunda
fase, o DIGITMED objetivou formar formadores para desenvolver
a desencapsulação curricular, bem como o trabalho crítico-colabo-
rativo entre educadores e alunos (surdos e ouvintes), pesquisadores,
coordenadores, diretores e gestores de escolas. Dessa forma, todos
os participantes se responsabilizam pelo desenvolvimento de si e
dos outros e, assim, cada integrante foi/é considerado um agente
formador (LIBERALI, 2019). Possibilitar que as comunidades, nas
quais os participantes moravam, fossem também transformadas foi
um dos focos daquele momento. Unidades escolares, particulares e
públicas, de diversas regiões da cidade de São Paulo, e até do nor-
deste brasileiro, abraçaram a proposta.

359
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

A adesão de diversas escolas oportunizou a criação de contextos


múltiplos de formação. As decisões, as definições dos temas, as delibe-
rações e as divisões de tarefas são sempre realizadas horizontalmente,
pois todos os participantes são formadores. O foco é produzir novas pro-
postas formativas que são sempre discutidas e construídas coletivamente
(MANZATI, 2018; BARROZO, 2019).
Em linhas gerais, o programa DIGITMED objetiva formar formado-
res para desenvolver a mobilidade dos participantes por meio de projetos
desencapsuladores que fomentem vivências marcantes, apropriação de
recursos diversos, bem como a construção de repertórios, além de ações e
transformações de/em múltiplos e superdiversos territórios (LIBERALI,
2015, 2018, 2019). O intuito é que, com base nos seus saberes e vivências
multidiversas, articulados com os preceitos teórico-filosóficos discutidos,
e cientes das necessidades de seus contextos, os participantes possam
produzir novos significados e ressignificar outros para, assim, prospectar
novas formas de agir e ser no mundo.
Os encontros do DIGITMED, em formato de oficinas, acontecem
mensalmente, normalmente aos sábados, no campus Perdizes da Ponti-
fícia Universidade Católica, em São Paulo (PUC-SP). Por volta de 90
pessoas (dentre os quais, pesquisadores, gestores, intérpretes de língua
de sinais, diretores, coordenadores, professores, imigrantes, artistas, ati-
vistas LGBTQIA+, alunos, às vezes, alguns pais de alunos) participam
dos eventos. De forma geral, os encontros abordam temas da atualidade
articulados com preceitos teóricos, que se desdobram em propostas pe-
dagógicas para a realização de atividades sociais. Esses encontros são
territórios de experiências marcantes, permeados por repertórios, a partir
dos quais recursos se tornam artefatos culturais para ação e transformação
de/em contextos superdiversos e multiculturais. O propósito é que essas
dinâmicas dos encontros sejam posteriormente recriadas nas unidades
escolares dos participantes, bem como em suas respectivas comunidades.
O planejamento dos encontros é feito previamente nas reuniões
semanais entre os pesquisadores. Há em média 20 envolvidos, mestran-
dos, doutorandos e pós-doutorandos. O cerne das reuniões é estabelecer

360
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

um diálogo com os participantes do DIGITMED de modo a contemplar


a necessidade de estudar os contextos das escolas que participam do
programa, discutir as necessidades no grupo, definir coletivamente os
objetos, bem como refletir sobre as atividades propostas e planejar a di-
nâmica das oficinas na PUC-SP (MANZATI, 2018; BARROZO, 2019).
Uma vez que 2019 foi um período marcado por falas autoritárias que,
dentre outros augúrios ditatoriais, restringem a liberdade de expressão e
silenciam vozes e, assim, impossibilitam o desenvolvimento do pensamento
crítico, as oficinas do DIGITMED desse ano foram focadas em atividades
agentivo-transformadoras na transgressão de discursos opressores.
Como “eventos culturais” foi a esfera de circulação de 2019, saraus,
slams, atividades teatrais e musicais, literatura, grafite, visitas a museus e
danças/ritmos foram as atividades que permearam as oficinas de 2019, como
será pormenorizado mais adiante neste capítulo. O objetivo foi que essas
manifestações artísticas pudessem propiciar artefatos culturais para que,
por intermédio dos encontros felizes (ESPINOSA, 2005), as problemáticas
relacionadas aos contextos de opressão e ao controle social fossem discu-
tidas e ressignificadas. O vídeo a que o QR Code abaixo direciona ilustra
brevemente os eventos que foram desenvolvidos pelo DIGITMED em
2019, fontes dos dados que serão interpretados mais adiante deste capítulo.
Figura 1 – Eventos desenvolvidos pelo DIGITMED

Fonte: Acervo do LACE

361
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

No primeiro ano do DIGITMED, em 2013, o tema escolhido foi


“manifestações e qualidade de vida”. A inspiração foi decorrente dos
protestos no Brasil, também conhecidos como Manifestações dos 20
centavos. O Movimento Passe Livre (MPL) protestou contra o aumento
das tarifas de transporte em São Paulo, que passaria de R$ 2,80 para R$
3,00. O efeito cascata foi dantesco em toda a nação: mais 1,25 milhão de
pessoas ocuparam as ruas de 130 cidades do país. Foi uma maneira de
resistência às formas de mercantilização do trabalho por mais democracia
e investimentos no transporte público.
Em relação aos anos posteriores, de forma geral, foram elaborados
os seguintes temas: “identidade escolar, lixo, tolerância na relação com
os nordestinos” foi a temática de 2014; em 2015, “gênero e mobilidade
urbana” foi o teor dos encontros mensais; em 2016, a temática norteadora
foi a diferença entre “o público e o privado”; a partir das reflexões sobre
os problemas decorrentes das interações nas mídias sociais, no que diz
respeito a diferentes perspectivas, formas de ser e modos de agir, “Nó-
soutros” foi o tema escolhido para 2017; em 2018, o tema selecionado,
inspirado nos preceitos filosóficos espinosianos, foi “resistir-expandir
em paisagens compartilhadas” (MANZATI, 2018; BARROZO, 2019).
Nesse ano, os ataques contra as diferentes formas de liberdade pelas
quais o Brasil já estava atravessando, prenúncio dos ditames ditatoriais
de 2019, foram o cerne das oficinas. Desenvolver formas de respeitar e
conviver com o diferente, bem como superar o conflito de uma maneira
mais libertadora e emancipatória foram demandas sociais prementes nos
encontros mensais de 2018.
Como as atividades do DIGITMED abordam temas sociais e se
estendem como ações de intervenção nas escolas dos participantes, bem
como nas suas respectivas comunidades, o programa se aliou à agenda
da Organização das Nações Unidas (ONU), no que diz respeito ao de-
senvolvimento sustentável (LIBERALI; TANZI NETO, no prelo). Mais
particularmente, a ONU estabeleceu os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) como parte de uma nova agenda de desenvolvimento
sustentável, num projeto intitulado “Transformando Nosso Mundo: a
agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”. O foco é desenvolver

362
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

atividades que fomentem a erradicação da pobreza e da fome, a promo-


ção da saúde, do bem-estar e da educação de qualidade, bem como a
proteção ao meio ambiente e a redução das desigualdades sociais, dentre
outras metas (UNITED NATIONS, 2015). Especificamente, em 2019, o
DIGITMED abordou a ODS referente às desigualdades sociais.

Pilares teóricos do DIGITMED

Do ponto de vista teórico, o DIGITMED está pautado pela Teoria


da Atividade Sócio-Histórico-Cultural (TASHC) (VYGOTSKY, 2007,
2008; LEONTIEV, 1978; ENGESTRÖM, 1999, 2015) por conceber
o ser humano como um agente cujas ações intencionais oportunizam
transformações nos mais variados âmbitos da vida. Para tanto, portanto,
é necessário que o indivíduo, inicialmente, autocompreenda-se como ser
histórico e socioculturalmente constituído. Assim, poderá compreender
a dialética das relações de poder socialmente estabelecidas e propor
transformações sociais desencapsuladoras por meio do engajamento
social em atividades (LIBERALI, 2009).
Dito de outra forma, pela perspectiva da TASCH (VYGOTSKY,
2007, 2008; LEONTIEV, 1978; ENGESTRÖM, 1999, 2015), o ser hu-
mano é compreendido como um agente em constante transformação, uma
vez que está engendrado a um sistema dialético de atividades sociais.
Essa concepção permite afirmar que a realização de atividades, que se
manifesta nas e por meio das relações sociais, possibilita que ser humano
produza e reconstrua a realidade, mediado por artefatos culturais, sobre-
tudo a linguagem, e com base na agência.
A Pedagogia dos Multiletramentos (THE NEW LONDON GROUP,
2000; ROJO, 2009, 2012, 2015) é outro preceito teórico central que
permeia as atividades do DIGITMED. Essa base teórica é também ful-
cral no programa uma vez que a “vida que se vive” (MARX; ENGELS,
2007) contemporânea está profundamente entremeada pela exposição a
diversos gêneros textuais difundidos por de inúmeros recursos midiáticos
e de ferramentas digitais.

363
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Portanto, frente à multiplicidade dos modernos canais de comunica-


ção e mídia, bem como à importância crescente da diversidade cultural e
linguística da contemporaneidade (COPE; KALANTZIS, 2000), é central
que a formação escolar abarque as múltiplas linguagens e as diferenças
culturais no contexto social, aspecto crucial para a vida profissional,
cidadã e pessoal.
Os novos gêneros textuais e as novas formas de produção e cir-
culação das linguagens verbais e não verbais, veiculados pelas novas
tecnologias, indubitavelmente ocasionam transformações sócio-histó-
rico-culturais. Há novas exigências do mercado de trabalho, o cenário
político é diferente, as relações sociais são mais fluídas, dentre outras
mudanças.
A partir desse cenário multimidiático discutido pela Pedagogia dos
Multiletramentos (THE NEW LONDON GROUP, 2000; ROJO, 2009,
2012, 2015), Rojo e Moura (2012) entendem que o ensino escolar deve
“levar em conta e incluir nos currículos a grande variedade de culturas
já presentes nas salas de aula de um mundo globalizado e caracterizado
pela intolerância na convivência com a diversidade cultural, com a alte-
ridade” (ROJO; MOURA, 2012, p. 12).
Mais recentemente, Carrijo e Liberali (no prelo) expandiram a
discussão de como os significados são construídos na modernidade,
pautadas na Pedagogia dos Multiletramentos (THE NEW LONDON
GROUP, 2000; ROJO, 2009, 2012, 2015). Uma vez que as atividades
propostas nos encontros oportunizam a construção de recursos diversos
que se desdobram em repertórios para agir e transformar os contextos
múltiplos e superdiversos (CARRIJO; LIBERALI, no prelo), os parti-
cipantes do DIGITMED também se engajam mais articuladamente em
atividades sociais da “vida que se vive” (MARX; ENGELS, 2007) e,
assim, expandem suas formas de participação na sociedade (CARRIJO;
LIBERALI, 2020b, no prelo). Para as referidas autoras, mais que os
multiletramentos, o DIGITMED se fundamenta também em uma forma
de multiletramento engajado.

364
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Resistir DIGITMEDIANO

Enquanto no contexto nacional se avolumam indícios de discursos


opressores, autoritários e ditatoriais e, assim, os dominantes se fortalecem
e se insuflam nas sombras da sua acomodação, limitação e acriticidade, os
opressores se intimidam e se calam. À vista dessa arbitrariedade, resistir
é preciso. “Se forem poucos a decidir tudo de acordo apenas com o seu
afeto, perecem a liberdade e o bem comum” (ESPINOSA, 2009, p. 14).
A resistência desponta da potência e da essência humana. Os tra-
tados de Espinosa (2005, 2009, 2013) focam, dentre outros aspectos, na
perseverança da existência que resiste ao fim, à destruição, à servidão,
à opressão, à asfixia, à tristeza e ao aniquilamento. Para o filósofo ho-
landês, existir é resistir. Se não há resistência, portanto, não há vida. É
nessa tônica que o DIGITMED se inspirou profundamente, sobretudo a
partir de 2018, como já mencionado anteriormente, e elaborou o conceito
resistir-expandir. Nessa toada, o que move o DIGITMED é expandir a
potência dos participantes e, assim, também a capacidade de pensar,
existir e, por conseguinte, resistir.
Pela ótica de Espinosa (2005, 2009, 2013), o corpo é uma potência
em ato, ou seja, uma força de existir. Como fazemos parte de uma cadeia
de causa e efeitos, tanto física, do corpo, por exemplo, como abstrata,
no que se referem às capacidades da mente, encontros felizes são neces-
sários para que a potência humana do pensar e do agir seja fortalecida e
expandida. Dessa forma, seremos capazes de (re)criar e agir.
Independentemente do momento sócio-histórico-cultural, mais que
existir, é preciso resistir e expandir o nosso conatus, ou seja, o esforço
humano de autopreservação (ESPINOSA, 2005). Para o filósofo Laurent
Bove, na Universidade Picardie Jules Verne, França, o conatus é uma
ferramenta estratégica para perseguir um objetivo, uma meta, um projeto,
um sonho, um desejo, que são inerentes à própria essência humana. Nas
palavras do especialista em Espinosa:

365
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

O conatus é essencialmente uma potência de agir à qual


nada falta e que tem poderosos efeitos de conservação para
a coisa da qual constitui o esforço. O conatus afirma-se, de
fato, na e pela própria produtividade do real da natureza, e
esta afirmação é imediatamente também uma resistência a
tudo o que possa ser obstáculo à produtividade afirmativa
desse esforço (BOVE, 2012, p. 01).

Na visão de Chauí (2003), o conatus diz respeito à essência atual,


ou seja, o ser humano é uma singularidade individual em ato por sua
própria essência. Dessa forma, não se trata de uma inclinação, potência,
ou propensão, mas da energia humana em constante atividade.
Pelo olhar espinosiano, somos indivíduos múltiplos convergentes,
visto que somos oriundos de outros indivíduos (BOVE, 2012). Portan-
to, a nossa potência reside na nossa multiplicidade e diversidade. É na
pluralidade que nos constituímos de forma singular. Portanto, somos
plurais sem deixarmos de ser singulares. A participação coletiva, então,
é central na parte ativa constitutiva e constituinte da potência do conatus.
Assim, a construção da vida humana, pela perspectiva espinosiana, não
é norteada pela dominação de iguais-semelhantes, mas pela resistência à
dominação. Resistir, na ótica espinosiana, é força propulsora da evolução
da humanidade. Marques (2016), pautado nas proposições espinosianas,
assevera que o poder político é constituído pela potência coletiva. Logo,
a sociedade pode ser de grande valia para fortalecer ou definhar o co-
mando do Estado. Diz Marques (2016, p. 236): “é a união das potências
individuais que forma a potência do corpo coletivo”.
A importância da coletividade da determinação do ser humano e
da trajetória política da comunidade é abordada por Espinosa com as
seguintes palavras:

A maior parte dos que escreveram sobre os afetos e sobre


a forma de viver dos homens não parece tratar de coisas
naturais que se seguem das leis comuns da natureza, mas
de coisas que estão fora da natureza. Eles parecem con-

366
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ceber o homem na natureza como um império dentro de


um império. Pois eles creem que o homem parece mais
perturbar do que seguir a ordem da natureza, ter uma po-
tência absoluta sobre suas ações e só ser determinado por si
mesmo (ESPINOSA, 2005, p. 95). Uma vez que o direito
da cidade se define pela potência comum da multidão, é
certo que a potência e o direito da cidade diminuem na
medida em que ela própria ofereça motivos para que vários
conspirem. (ESPINOSA, 2009, cap. III, §9).

Assim, o poder e a potência coletivos são conceitos-chave na filo-


sofia política espinosiana, uma vez que constituem o Estado. Renunciar
essas pujanças significa viver sob leis definidas antidemocraticamente
pelo Estado, que exercerá a sua própria potência, isto é, o seu próprio
conatus. Consequentemente, será um reflexo das potências dos indiví-
duos que o estruturam e o governam. Uma vez que discursos opressores
inundam a conjuntural política nacional, como apontado no início deste
capítulo, é possível afirmar que o conatus brasileiro dos últimos meses
desponta para um cenário ditador e dogmático.
A liberdade é um dos elementos constitutivos do indivíduo para
zelar pelas potências como um reflexo do corpo coletivo. Assim, poderão
agir, por meio do uso da razão, de modo que seja favorável ao bem-estar
comum a todos. Já a opressão, o medo e o comando, que enfraquecem
a potência da coletividade, não oportuniza a ação racional, mas sim o
afeto passivo das paixões.
O esforço para fortalecimento do conatus, segundo Deleuze (2002),
filósofo francês, não pode ser entendido como a mera conservação de um
estado, mas como força de afirmação que se revela de forma dinâmica
na existência do ser. Dessa maneira, o esforço humano, que também
compreende a mente e o pensamento, motiva o indivíduo a agir à frente
de cada objetivo, meta, projeto, sonho ou desejo. Espinosa entende o
esforço da seguinte forma: “o esforço pelo qual cada coisa se esforça
para perseverar em seu ser não é nada além da essência atual da própria
coisa” (ESPINOSA, 2015, p. 251). Assim, essa busca pela satisfação

367
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

de um desejo, afeto central para Espinosa (2015), instiga o conatus a


se encorajar a se perseverar no ser. Uma vez o conatus alimentado,
considerando a nossa multiplicidade e diversidade e, assim, a força da
coletividade, a potência da resistência se expande.
Espinosa (2005, 2009, 2013) propõe encontros felizes para o ro-
bustecimento do conatus, de modo que possamos, assim, prosseguir na
existência, resistindo e expandido, e não apenas sobrevivendo. Na pers-
pectiva espinosiana, os encontros felizes expandem a potência do corpo
e da mente, o que possibilita compreender melhor o mundo. A partir
dessa intimidade com o mundo, podemos selecionar melhor os nossos
encontros, ou seja, ser ativo na geração dos nossos próprios afetos. Esse
processo nutre nossa potência de ser em ato para agir e resistir, o que
fortalece o nosso conatus.
Chauí (2005) se refere à força de existir, intrínseca e extrínseca a
todo ser humano, com as seguintes palavras: “sendo uma força interna
para existir e conservar-se na existência, o conatus é uma força interna
positiva ou afirmativa, intrinsecamente indestrutível, pois nenhum ser
busca a autodestruição” (CHAUÍ, 2005, p. 59). Essas são as principais
acepções espinosianas que inspiraram o DIGITMED a conceber o con-
ceito resistir-expandir.
Uma vez que nenhum ser humano “busca a autodestruição”, como
Chauí acima afirma, na visão espinosiana, o encontro dos corpos, ou seja,
o ato de existir, pode ser uma circunstância que aumente ou diminua a
nossa força de ser e atuar no mundo. Em outras palavras, nossos encontros
afetam a nossa interioridade, nossa potência de agir. “O corpo humano
pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é
aumentada ou diminuída” (ESPINOSA, 2005, p. 87).
Mais particularmente, a alteração da potência de ser e de agir ocorre
na relação do corpo humano com outro corpo exterior. Portanto, como a
condição do corpo humano está relacionada às sinergias decorrentes das
relações internas e externas, o corpo é plenamente constituído de afetos.
Assim, o corpo humano só pode ser entendido de forma relacional, uma
vez que tem o poder de afetar e ser afetado.

368
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Espinosa explica que há três afetos primários: a alegria, a tristeza


e o desejo. Esses afetos se combinam de inúmeras maneiras, originando
múltiplos afetos e, dessa forma, a nossa constituição como seres humanos.
A nossa potência afetiva é vivida por uma multiplicidade de intensidades
que nos possibilita transcender os afetos tristes por alegres. No entanto,
também nos faz titubear entre as alegrias e as tristezas (MARQUES,
2016).
O aumento ou diminuição da nossa potência afetiva para agir (cor-
po) e pensar (mente) está associado ao modo como agimos no mundo
de maneira adequada, ativa e livre, ou, de forma contrária, inadequada,
regida por uma paixão ou um afeto passivo. Espinosa (2005) explica esse
nível da potência dos afetos com as seguintes palavras: “a nossa mente,
algumas vezes, age; outras, na verdade, padece. Mais especificamente, à
medida que tem ideias adequadas, ela […] age, à medida que tem ideias
inadequadas, ela […] padece. (2005, Prop 1). Por conseguinte, “toda a
questão, portanto, será substituir os afetos passivos (paixões, ideias ina-
dequadas) por afetos ativos (ações, ideias adequadas)” (PAULA, 2009, p.
68). É nessa concepção que as atividades do DIGITMED estão calcadas,
de modo a oportunizar espaços onde os participantes possam ser e agir
de forma livre, ativa, desencapsulada, colaborativa, crítica e produtiva.
Amor, raiva, alegria, medo, nojo, vergonha, culpa, carinho, felici-
dade, ódio, crítica, tristeza, angústia, mágoa, discórdia, ressentimento,
dentre outros inúmeros sentimentos humanos, são os afetos que, conforme
Espinosa (2005, 2013) discute, têm suas raízes no mundo, pois é o único
cenário possível para existir a vida. A exaustão nos efeitos nocivos dos
afetos de raiva, medo e tristeza, verbi gratia, como os discursos opres-
sões podem ocasionar, certamente limitará a nossa potência de ser, agir,
resistir e expandir.
De acordo com Espinosa (2005), o prazer, por exemplo, decorrente
de encontros de harmonia, satisfação, segurança e entusiasmo, é o afeto
que oportuniza a nossa potência de agir e fortalece o nosso conatus, dado
o fato que somos inundados de alegria. Na contramão, a tristeza, a an-
gústia, o medo, a ameaça, o desprezo, por exemplo, sentimentos comuns

369
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

em contextos dominadores e controladores, debilitam o nosso o conatus,


já que a infelicidade diminui a nossa potência de agir e, por conseguin-
te, a nossa resistência. As atividades do DIGITMED enveredam pelos
caminhos onde o respeito às diferenças, à benquerença, à fraternidade e
à estima possam disseminar a alegria e, assim, potencializar o agir e o
resistir dos participantes. Mesmo quando há nos eventos momentos que
suscitam críticas, desentendimentos e contradições, eles são potenciali-
zadores do conatus dos envolvidos.
Dessa forma, para Espinosa (2005, 2013), devemos buscar encon-
tros que sejam permeados por afetos que nos motivem e nos encorajem a
seguir em diante, e que façam o nosso agir no mundo um ato expansivo.
Amor, alegria, carinho, felicidade são alguns dos afetos que os encon-
tros felizes podem oportunizar. Na sua obra Ética, Espinosa elabora a
seguinte reflexão sobre as implicações dos encontros dos corpos: “por
afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é
aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias
dessas afecções” (2008, p. 34). Em outras palavras, os encontros felizes
possibilitam condições que expandam a nossa potência de ser, ou seja,
o nosso conatus.
O conatus é o que vai definir a produção de um desejo, essência
do ser humano. Como não buscamos a autodestruição, as ações, os
desejos e os afetos estão relacionados aos encontros felizes, posto que
nos esforçamos para aumentar a nossa potência de ser e de agir. As ati-
vidades desenvolvidas nos encontros mensais do DIGITMED, ou seja,
os encontros felizes, têm como propósito embrenhar os participantes em
situações inéditas, instigantes, críticas e significativas, do modo que, uma
vez conhecidas, suscitem desejos e, consequentemente, potencializem
o conatus.
Expandir-se e se tornar alegres são ações inerentes ao ser humano.
Portanto, o corpo naturalmente age para crescer, fortalecer-se e se ex-
pandir. Em particular, neste momento sócio-histórico-cultural, permeado
por discursos opressores, ampliar as múltiplas maneiras de ser e agir no
mundo, para anabolizar o nosso conatus, é central. A partir dos inúmeros

370
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

encontros felizes espinosianos, nossa a missão como humanos é trans-


formar os afetos e os desejos em realização de sonhos. Dessa maneira,
podemos nos afastar da submissão, da alienação e da sujeição para abraçar
a liberdade, uma vez que a servidão é decorrente do enfraquecimento do
conatus por conta de forças externas, como as estultices pronunciadas
pelos residentes e alguns habitués do Planalto Central brasileiro. Para
Espinosa (2005), o corpo servil perece.
Para Chauí (2005), a servidão é um estado de alienação do indivíduo
que asfixia a sua potência de agir. Os discursos opressores, por exemplo,
afastam o indivíduo da sua potência, criatividade e espontaneidade, es-
sências humanas, e de seu desejo de afirmação da vida. Uma vez distante
de sua autenticidade e, portanto, alienado, o indivíduo se escraviza pelos
desejos alheios, o que o torna cego para ser norteado pelos seus afetos
humanos legítimos. “A impotência humana para moderar e refrear os
afetos” (ESPINOSA, 2005, p. 263) é a definição de servidão pela pers-
pectiva do filósofo holandês, que por parte dos pais portugueses, também
era chamado de Benedito de Espinosa.
A inestimável contribuição de Espinosa (2005) foi elucubrar
sobre a importância da força dos afetos na alimentação do conatus.
A ética à qual os estudos espinosianos se referem trata-se da contri-
buição que podemos dar ao outro com o crescimento da potência de
ser, agir e resistir por meio do amor, cultivado nas nossas relações
sociais. Dessa maneira, a afetividade ativa de amor, ou seja, o in-
teresse e a vontade de sensibilizar e ser sensibilizado por afetos de
alegria, pressupõe, indubitavelmente, pela perspectiva espinosiana,
atividades que imprimem a potencialização do conatus, caraterística
das ações do DIGITMED.
Todavia, é importante enfatizar que o afeto inverso da alegria tam-
bém faz parte da liturgia espinosiana no que diz respeito ao sentimento do
ódio, pois a cólera suscita uma anêmica potência de existir. Portanto, ser
cauteloso com ludibriadoras oportunidades que preconizam a felicidade,
mas que não propiciam o fortalecimento do conatus, tampouco a expansão
da criatividade, é central. Em suma, a dinâmica ética espinosiana implica

371
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

em fomentar espaços onde o amor possa ser disseminado por intermédio


de atividades que exalem alegria e esperanças.
A partir do arsenal teórico-filosófico espinosiano discutido aci-
ma, para potencializar a força de existir e, dessa forma, o conatus,
aspirou-se, no DIGITMED, a concepção do conceito resistir-expandir.
A construção de um currículo não encapsulado (ENGESTRÖM, 2002;
LIBERALI, 2019), por exemplo, de modo a nortear o processo de
ensino-aprendizagem até a liberdade individual é uma das ações do
programa calcada nesse conceito. Desse modo, na busca pela ruptura
de um currículo segmentado e, sobretudo, a-histórico e acrônico, o
DIGITMED não entende o conhecimento escolar como uma atividade
“fixa, marcada por perspectivas única e absolutas” (LIBERALI et al.,
2015), mas da “organização de processos de aprendizagem fora das
cápsulas em relação aos participantes, às fontes e à própria instituição
de ensino” (LIBERALI, 2018, p. 272).
Para o DIGITMED, o processo de ensino-aprendizagem deve pro-
mover o desenvolvimento humano a partir da articulação dos conteúdos
escolares com os diferentes modos de ser e agir na vida que cada um
traz consigo. Além disso, Liberali (2018) assevera que o ensino escolar
desencapsulado também objetiva transgredir os contextos de opressão e
dominação, como temos vivido, a partir da mobilidade agentivo-transfor-
madora desenvolvida nas escolas, de modo a oportunizar novas formas
de ser e agir e, assim, além de medrar o conatus dos participantes, criar
o “inédito-viável” (FREIRE, 1987, 1992) para transformar a realidade.
Em outras palavras, a ação escolar pode ser a catapulta para a busca da
realização de um sonho e, assim, o fortalecimento do conatus, calcado
no conceito resistir-expandir, para potencializar a força de resistência,
além de fomentar a transformação do status quo.
Paulo Freire (1987, 1992) aborda o conceito “inédito-viável” nos
livros Pedagogia do oprimido e Pedagogia da esperança, inspirado pelo
sentimento de mobilização, de ação e de transformação, principalmente,
no que tange à claudicante e à injusta relação entre os dominantes e os
oprimidos.

372
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Para o educador e filósofo brasileiro, o indivíduo, em geral, pouco


sabe de seus condicionamentos e da força mobilizadora da sua liberdade
e da sua essência como ser humano. Por isso, impõem-se barreiras para
os obstáculos que precisam ser superados e rompidos. Frente a essa pos-
tura tíbia, a aceitação dócil e passiva do status quo o caracteriza como
um ser oprimido, pois nega a força de transposição. Consequentemente,
a desesperança e a paralisia se instauram. Em paralelo com os estudos
espinosianos, é preciso descortinar horizontes por meio dos encontros
felizes para que desejos possam ser aspirados e, assim, a ação mobili-
zadora na busca desse propósito faça com que o conatus se renove e as
forças de resistência se consolidem.
Tomados pela vontade de se perseverar no ser, os oprimidos, ao
perceberem claramente que os temas desafiadores são passíveis de
transformações e de posse de artefatos culturais mediadores, sentem-se
mobilizados a agir e a descobrir o “inédito-viável” que sonharam. Liberali
(2020a, p. 14) se refere ao caminho que leva ao “inédito-viável” ao dizer
que é preciso nos colocar “frente ao contexto com a nossa história como
uma ferramenta para criar o possível”.
Já os dominantes, por entenderem essas barreiras como determinan-
tes históricos e, assim, que nada pode ser feito, além de se adaptar a elas,
apenas servem o status quo (FREIRE, 1987, 1992). Os dominantes se
acomodam na ausência de um projeto livre, criativo, genuíno e autêntico,
flertando com projetos autoritários e opressores.
O conceito freireano “inédito-viável” está relacionado aos sonhos
possíveis e, sobretudo, coletivos, bem como ao conceito digitmediano
resistir-expandir. Dessa forma, essa força mútua e recíproca norteia os
caminhos para a justiça social, fundamentados em ideais e ações de-
mocráticas e comunitárias, na busca do que ainda não é, mas pode ser
(FREIRE, 1987, 1992).

373
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Os encontros felizes do DIGITMED

Esta seção se propõe a interpretar alguns dados produzidos nos


eventos ocorridos em 2019, de modo que se possam ilustrar exemplos
de encontros felizes propiciados por meio das atividades propostas no
DIGITMED. Por uma questão de espaço e de enfoque como forma
de resistência, das 8 temáticas culturais abordadas em 2019, os dados
apresentados nesta seção se referem apenas a 3 momentos: sarau, slam
e shows musicais. Mais particularmente, em relação à escolha do slam,
como será pormenorizado adiante, esse movimento cultural tem sido um
forte veículo de reivindicações e manifestações de resistência, foco deste
capítulo, em certos bairros paulistanos desde 2008 (FREITAS, 2019).
Em março de 2019, tendo de “participar de eventos culturais” com
atividade social norteadora, o foco do primeiro encontro do ano foi sarau.
Trata-se de um evento cultural marcado por diversas atividades artísticas
relacionadas à poesia, à dança, à música, ao teatro etc., Silva et al. (2016)
entendem o sarau como espaços políticos de socialização e de possibilidade
de construção do pensamento crítico sobre assuntos da sociedade.
O jingle abaixo, elaborado pelos pesquisadores do DIGITMED, foi
o convite enviado para o grupo de WhatsApp dos participantes semanas
antes do evento:
A ordem é descolonizar
Para coletividade
e fraternidade garantir
Para a dor do pobre e do negro amenizar
E assim maior igualdade conseguir
A ordem é reduzir as desigualdades sociais
Seja gay, mexicano ou cristão
Diferenças de idade, religião ou raciais
São desprezadas na inclusão
Os instrumentos podem ser os mais diversos
música e cartazes encantarão
nosso manifesto em versos
Traga arte em geral para a inclusão

374
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Nota-se pela escolha lexical (e.g.: descolonizar, dor do pobre e do


negro, desigualdades sociais, desprezadas etc.) que o transcurso do ano
2019 no DIGITMED teria uma tônica de luta pela liberdade de expres-
são, de ser e de agir, inspirada no ambiente opressor que se avizinhava
naqueles dias.
No dia do primeiro encontro de 2019, os participantes receberam
partes de versões diferentes e paródias do poema Canção do Exílio, de
Gonçalves Dias. Sentimentos e atitudes, tais como esperança e desespe-
rança, otimismo e pessimismo foram observados nos trechos distribuídos.
Em grupos, a partir dessa atividade, poemas, letras de música, como, por
exemplo, um rap, foram produzidos, tendo os poemas como base. Um
dos 5 grupos presentes, como a Figura 2 abaixo evidencia, com média
de 10 participantes cada, elaborou, com breves palavras, mas expressivas
no que concerne aos seus desejos, o seguinte poema:

Brasileiros
Tristes
Futuro
Talvez
Voltar
Melhor
Amanhã
Potência
Ação

375
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Figura 2 – Apresentação do grupo 4

Fonte: Acervo do LACE

No poema acima, é possível observar o desencanto do grupo com


cenário nacional, pois “nós brasileiros estamos tristes”, inferem o primeiro
e o segundo verso. No entanto, numa tônica de esperança, posterior-
mente, o grupo se remete a um futuro promissor melhor, com os versos
“futuro, talvez, voltar, melhor”, em relação às mudanças no Brasil. O
grupo finaliza o poema com os versos “potência e ação”. Essas palavras
permitem interpretar que eles são os agentes potencializadores para as
transformações necessárias e urgentes no país.
Baseado na Ética de Espinosa (2005), os espaços onde o amor
possa ser propagado por meio de atividades que emanam esperanças são
marcas de encontros felizes. Dessa forma, desejos e vontades poderão
ser ambicionados e, assim, a ação mobilizadora na busca desses sonhos
oportunizará que as forças de resistência se consolidem e faça com que
o conatus se potencialize e se expanda.
Posteriormente, após serem expostos a vários tipos de saraus, a partir
de revistas, vídeos e relatos, os grupos discutiram quais saraus, dentre
os exemplos vistos, serviriam à reprodução dos padrões sociais vigentes

376
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

e quais os transgrediam e em quê. O foco foi refletir como a atividade


de participar de um sarau propicia ferramentas para transformar nosso
modo de agir no mundo.
No sarau do DIGITMED, um dos grupos, constituído de 2 garotas
adolescentes, apresentou o seguinte poema, nomeado como “Marias”.
Retrata a luta das mulheres.
MARIAS
Há forças que lutam
E que lutam para ter forças
São histórias antigas
Mas exemplos atualmente
Nos inspirando a continuar em frente
Mas ando matando as guerreiras frequentemente
E como sabemos
Flor quando morre
Deixa semente
Criando novas Marias e abrigam outras mentes
Educação é essencial
E é disso que se trata
Esse projeto social
Criamos vendedores
Que também são fabricantes
Temos ajuda até virtual
Dividimos as funções
Para que tudo saia certo
E para sua ajuda ou participação
Nosso clube está aberto
Venha conhecer e chegue mais perto
Queremos que isso cresça
Mas não só para a gente
E sim com mais gente
Queremos dentro quem está fora
Porque quando a causa é boa
Conhecido colabora
E o desconhecido se interessa
Sempre espalha o conhecimento
E o modo que se expressa

377
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

É interessante observar como as duas adolescentes, tão jovens,


usam o poema para manifestar sua consciência em relação à luta das
mulheres para sobreviverem. São assinadas tão-somente pela sua condi-
ção feminina. O Brasil ocupa vergonhoso o 5º lugar no ranking mundial
de feminicídio, de acordo como Alto Comissariado das Nações Unidas
pra os Direitos Humanos (ACNUDH). Apenas El Salvador, Colômbia,
Guatemala e Rússia lideram essa vexaminosa lista. No Brasil, as mulheres
são covardemente assassinadas 48 mais vezes de que no Reino Unido, 24
mais vezes que na Dinamarca e 16 mais vezes que no Japão ou Escócia8.
Ao denominar o poema de “Marias”, pode-se interpretar que autoras
se preocuparam com um título que remetesse à resistência, à fortaleza e
à potência. Como a tradição cristã assevera, Maria, mãe de Jesus Cristo,
foi uma mulher de determinação e vigor que enfrentou vários desafios
para proteger a sua família.
Além disso, o poema também retrata um projeto colaborativo de ar-
recadação de fundos (ao final da recitação do poema, as garotas disseram
que estavam vendendo doces para angariar receitas para o projeto que
estava sendo desenvolvido na escola e na comunidade delas). Entende-se
que a coletividade é um elemento central nessa proposta. Essa acepção
fica ainda mais clara no final do poema, quando há um convite para
novos adeptos possam colaborar com o projeto e, assim, contribuir com
novos conhecimentos. Como já discutido anteriormente, a participação
coletiva é fulcral como força ativa na potencialização do conatus. A
potência do corpo coletivo é decorrente da união das potências de cada
indivíduo (MARQUES, 2016).
O segundo encontro de 2019 teve como foco o slam. Criado nos
Estados Unidos por Marc Smith na década de 80 e introduzido no Brasil
em 2008 por Roberta Estrela D’Alva, o slam, que significa batida em
inglês, é uma competição de poesia falada. Poesias autorais de até três
minutos sem presença de objetos cênicos, tampouco acompanhamento
musical, são algumas das regras. Os temas são livres, mas, no Brasil,
os grupos minoritários têm usado o slam como espaço de reivindicação
8 https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/feminicidio-brasil-e-o-5-pais-
em-morte-violentas-de-mulheres-no-mundo.htm

378
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

de seus lugares de direito para dar visibilidade às suas lutas e aos seus
posicionamentos. O slam articula os meandros do público e do privado,
da família e do estado, da rua, da casa e da comunidade, do pessoal e do
coletivo, das questões políticas, da violência, da educação, bem como
do questionamento das leis que regem o Estado, dentre outras temáticas
sociais (PAULA, 2019).
O slam é um porta-voz para os agentes de letramento de “reexis-
tência”, fusão das palavras existência e resistência (NEVES, 2017). Para
a autora, a poesia é uma forma de reexistência, pois, por meio dela, os
alunos expressam seus modos de existir, bem como manifestam sua
revolta, suas vontades, seus desejos, sua identidade e resistência.
Freitas (2020), no seu artigo “Slam Resistência: poesia, cidadania e
insurgência”, afirma que as poesias do slam flertam com o cancioneiro
popular. Como uma prática coletiva, o evento se organiza na interface
entre as manifestações orais, escritas e visuais, o que faz da performance
um componente fulcral para a competição. Ainda no mesmo trabalho,
Freitas (2020) faz menção do grupo Slam Resistência que promove a
batalha mensalmente, na Praça Roosevelt, no centro da cidade de São
Paulo, desde 2014. Além desse, a autora ainda aponta outros grupos
paulistanos de slam tais como o ZAP! Slam (ZAP é uma abreviação para
Zona Autônoma da Palavra), do bairro de Pompéia, bem como o Slam
da Guilhermina, desde fevereiro de 2012 em atividade, da Zona Leste,
dentre outros.
No segundo encontro do DIGITMED, cujo foco foi o slam, em
março de 2019, slammers profissionais foram convidados a participar do
evento. Catharine Moreira, uma jovem surda, Yasmin Gabrielle, e o Geóh
primeiro fizeram suas apresentações de slam. Depois visitaram os grupos
para dar explicações e contar a história da competição. Posteriormente,
como os participantes do DIGITMED tinham que, em grupos, elaborar
uma poesia para que fosse declamada como slam, os 3 profissionais
também monitoraram essa fase de criação autoral.
Para efeito de apresentação de um slam profissional, este capítulo
se detém à apresentação da Catherine Moreira que apresentou seu poema

379
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

em língua brasileira de sinais (libras), interpretado em português como


a seguir:

Preconceito é um bicho guloso


Eu devorei
Minha família, meu nascimento, minha infância
Eu devorei o meu primeiro amor
Os amigos que não nunca tive na escola
Eu devorei os meus desejos, os meus sonhos
A minha promessa de futuro
O preconceito devorou as minhas relações de trabalho
Que não existem
Eu devorei o meu orgulho, a minha história
A minha vontade de viver
Perdi a minha carteira, minha identidade
Eu perdi o meu nome
Achei que eu não tinha mais nada
Que eu pudesse comer
O preconceito veio então
Com a sua boca cheirando a morte
E quis devorar minha poesia
Acontece que a poesia é um bicho forte, resistente
Com raiz na teimosia

Como profissional do slam, Catherine Moreira memorizou a poesia


antes dessa execução, prática comum do slammer. Nota-se o uso de um
vocabulário recorrente, a construção de frases de forma direta e simples,
do mesmo modo que a repetição efusiva de certas palavras, trechos e
pensamentos. A voz, o ritmo, a entonação, o olhar fixo, o movimento
acentuado do corpo e dos gestos são componentes centrais para a per-
formance desse slam, em particular (Figura 3).

380
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Figura 3 – Slammer Catherine Moreira

Fonte: Acervo do LACE

Em linhas gerais, sua poesia retrata como o preconceito a privou,


por ser surda, dos afetos familiares, de um amor, de uma satisfação
profissional e da realização de sonhos, do carinho de amigos, dentre
outras deficiências afetivas decorrentes de discursos opressores devido
à sua deficiência auditiva. No entanto, ela usa a poesia como forma de
resistência, pois é “um bicho forte”, enraizado na persistência.

381
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

É notório o esforço da slammer surda para aumentar a sua potência


de ser e agir por meio do slam. A potência que ela se nutre ao declamar a
sua poesia, com uma presença de palco ímpar e emblemático no encontro
do DIGITMED, pela perspectiva espinosiana, indubitavelmente expan-
diu o seu conatus. Promovida a partir das atividades desenvolvidas pelo
referido programa, a experiência vivida por Catherine Moreira indica
como esse dia, em particular, foi um encontro feliz que expandiu não
só a sua potência de ser e agir (ESPINOSA, 2005, 2009, 2013), mas de
todo o grupo participante do evento.
As performances dos slammers profissionais foram muito elucidati-
vas para os participantes do DIGITMED, pois puderam vivenciar os efei-
tos dos significados produzidos a partir, claro, da potência das palavras,
além da articulação da declamação da poesia com os gestos destemidos,
o vibrante tom de voz, os contundentes movimentos do corpo etc.
Um dos grupos declamou o seguinte slam de própria autoria:

Machismo, opressão, racismo, homofobia
Esse é o meu dia a dia
Saí na rua sem saber se vou voltar
Porque os barulhos dos tiros na quebrada
São mais altos que os gritos que eu encontro todos os dias
Minha vontade é soltar tudo que sinto
O PM virou o meu inimigo
Por quê? Se não sou bandido
Sou apenas mais um menino oprimido
Pelo meu cabelo crespo
E pelo meu tênis que não é da Nike
Pela minha roupa que não é de marca
Mas aqui eu deixo minha marca
Ou cai no esquecimento de mais uma estória
Que não sai da minha memória

O poema se inicia com itens lexicais que aludem ao preconceito


diário enfrentado pelo autor. Reporta-se também à criminalidade e à bruta

382
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

ação policial por ser negro, gay e usar vestimentas simples, como as pa-
lavras “homofobia, cabelo crespo, roupa que não é de marca” suscitam.
O autor ainda espera que esse slam seja um veículo que possa difundir
sua estória, uma vez que é premente em sua memória.
A performance é fortemente marcada por um arroubo opressor,
principalmente o da polícia, que normalmente recorre à truculência
contra cidadãos, simplesmente por serem negros. O slam é uma forma
de se vociferar uma dor e angústia para o autor simplesmente ser ou-
vido e permitir que o deixem viver sua liberdade do jeito que nasceu e
se constituiu como ser humano. Como discute Espinosa (2005), agir de
forma ativa e livre é uma das fases para estimular a potência do conatus.
No encontro de novembro de 2019, o foco foi shows musicais com
ênfase em diferentes tipos de música e dança. Os participantes vivencia-
ram a história de diferentes ritmos musicais. Em grupos, como a Figura 4
abaixo ilustra, discutiram como os gêneros musicais permitem/favorecem
a resistência, bem como retratam as desigualdades sociais. Também
abordaram quais instrumentos são usados para os referidos ritmos e como
criam os efeitos demandados pelos gêneros, além de quais grupos sociais
mais consomem/vivenciam os ritmos apresentados. No final, os grupos
fizeram uma apresentação musical que sintetizou a discussão no grupo.
Figura 4 – Discussão dos ritmos musicais

Fonte: Acervo do LACE

383
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Um dos grupos participantes, como ilustrado na Figura 5 abaixo,


inspirado no samba Saco de Feijão, de Beth Carvalho, apresentou a
seguinte versão:
Figura 5 – Apresentação do samba

Fonte: Acervo do LACE

De que me vale um saco cheio de dinheiro


Pra comprar um quilo de feijão
De que me vale um saco cheio de dinheiro
Pra comprar um quilo de feijão
De que me vale um saco cheio de dinheiro
Se eu não tenho consciência de classe
De que me vale um saco cheio de dinheiro
Se nos falta humanização
De que me vale um saco cheio de dinheiro
Se eu não tenho amor no coração
De que me vale um saco cheio de dinheiro
Se me falta acesso à educação
De que me vale um saco cheio de dinheiro
Se o racismo ainda persiste
De que me vale um saco cheio de dinheiro
Se não tenho o mínimo de solidariedade
De que me vale um saco cheio de dinheiro

384
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

Se eu não tenho empatia


De que me vale um saco cheio de dinheiro
Se eu não tenho acesso à diversão
De que me vale um saco de dinheiro
Se eu não tenho acessibilidade (gesticulado por um surdo)

A nova versão do samba Saco de Feijão se vale de uma reflexão


em relação a ter condições financeiras, mas não ser provido de afetos
ativos (PAULA, 2009) decorrentes da falta da humanização, da empatia,
do amor, da solidariedade. Além da questão do racismo, também con-
templou a ineficiência de políticas públicas relacionadas à carência de
promoção da diversão, da educação, bem como da acessibilidade para
os surdos. Frente a esse protesto, é possível afirmar que grupo recorre
à música como meio de exteriorizar a anêmica potência afetiva em que
se encontravam naquele momento sócio-histórico-cultural nacional. O
novo samba foi uma ferramenta para propagar a liberdade de expressão
dos participantes, bem como para dessilenciar suas vozes e promover
afetos ativos (PAULA, 2009).
Esse encontro temático com a música, por envolver os participantes
em situações significativas, suscitou desejos e, como resultado, pela ótica
espinosiana, potencializou o conatus. Como a discussão teórica acima
apresentou, os desejos e, certamente, os afetos ativos decorrentes, estão
vinculados aos encontros felizes propostos por Espinosa (2005, 2009,
2013), posto que nos esforçamos para atingir os nossos objetivos e, desse
modo, expandimos a nossa potência de ser e de agir.
A alquimia dos encontros promovidos pelo DIGITMED, concebidos
aqui como encontros felizes pela perspectiva espinosiana, é oriunda de
um espaço democrático e de força coletiva (ESPINOSA, 2005, 2009)
que esparge afetos de benquerença e acolhimento. Como parte desse
processo, há posturas críticas e até desentendimentos, o que certamente
potencializam o conatus dos envolvidos. As vozes dos participantes,
quer sejam eles negros, crianças, imigrantes, brancos, professores, pais,
quer sejam gordos, magros, LGBTQIA+, índios, asiáticos, altos, baixos

385
linguística aplicada de resistência: transgressões, discursos e política

e qualquer outro ser humano que constitui a diversidade, dissemina


alegria e, assim, potencializa o agir e o resistir dos participantes. São os
encontros desses corpos (ESPINOSA, 2008), permeados por afetos ativos
(PAULA, 2009), ou seja, ações e noções comuns, que nos motivam e nos
encorajam a seguir em diante e, dessa forma, fazem que o nosso agir no
mundo seja um ato expansivo.
Amor, alegrias, descobertas, críticas, acolhimento, desentendimento,
compreensão, discordâncias, carinho, diversão, colaboração, lágrimas e
felicidade são alguns dos afetos ativos que compõem os elementos dessa
alquimia digitmediana. Nota-se, pelos poucos excertos que compuseram
os encontros felizes apresentados acima que, em 2019, reuniram-se teoria,
acolhida, coletividade, parceria, respeito, criticidade, crises, criatividade,
lágrimas e arte, dentre outros ingredientes dessa magia (às vezes espinhosa
e intensa, mas que mesmo assim potencializa o conatus).
É possível asseverar que os encontros felizes que o DIGIMED promo-
ve, pela maneira adequada, ativa e livre de ser e agir (ESPINOSA, 2005),
oportunizam a transmutação dos valores e o desenvolvimento pessoal e
intelectual como uma das etapas para o estímulo da potência de agir e,
por conseguinte, da evolução dos participantes como ser humanos.

Considerações Finais

Este capítulo objetivou discutir e refletir sobre os encontros fe-


lizes, que potencializam o conatus (ESPINOSA, 2005, 2009, 2013),
promovidos a partir das atividades desenvolvidas pelo DIGITMED nos
encontros de 2019.
Primeiro, foi contextualizado o DIGITMED (LIBERALI, 2019),
seguido de uma breve explanação das duas principais correntes teóricas
que pautam o programa, isto é, a TASCH (VYGOTSKY, 2007, 2008),
bem como a Pedagogia dos Multiletramentos (THE NEW LONDON
GROUP, 2000; ROJO, 2009, 2012, 2015).
Posteriormente, o conceito resistir-expandir, concebido pelo pro-
grama DIGITMED, foi profundamente discutido no que concerne à

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potencialização do conatus, pautada nos encontros felizes espinosianos


que podem resistir, além da repressão, da doutrinação e da submissão,
certamente os discursos opressores.
Na sequência, os excertos de 3 momentos, ou seja, sarau, slam e
shows musicais, foram apresentados e interpretados, de modo que evi-
denciassem os encontros felizes promovidos pelo DIGITMED.
Os dados dos 3 eventos escolhidos revelam como os participantes,
de forma colaborativa, se envolveram nas atividades e produziram mos-
tras de armamentos de afetos, materializadas pela linguagem, contra os
discursos opressores.
No evento do sarau, o primeiro poema apresentado retratou, de
forma geral, a força potencializadora e agentiva que os jovens têm para
transformar o Brasil. Portanto, imprime uma eufonia de um horizonte de
esperança. Prospectar uma chance de realização, para Espinosa (2005),
é um afeto marcado em encontros felizes. O segundo poema enaltece o
trabalho colaborativo como celeiro de novos conhecimentos. A potência
afetiva da coletividade é bálsamo para o conatus.
No slam profissional, por exemplo, recitado pela Catherine Moreira,
a slammer surda, o preconceito, o amor, os sonhos profissionais e a amiza-
de foram a tônica da poesia. Já tarimbada, a própria slammer profissional
disse em um dos versos que a poesia, por ser “um bicho forte”, é um
instrumento de resistência. Este capítulo entende assim como o slam pode
ser compreendido como uma guisa que, na visceralidade da articulação
da voz ressonante, do olhar penetrante, dos movimentos veementes e da
força das palavras, ou seja, na construção de sentidos pela linguagem,
promove afetos, potencializa o conatus e resiste aos discursos opressores,
como tanto ouviu Catherine, na sua trajetória de vida.
O segundo slam, feito por alunos que participam do DIGITMED,
destaca um ser e um agir oprimido devido ao racismo e à homofobia.
Traz à tona a improbidade das instituições de segurança pública que,
ultimamente, como se noticia no dia a dia, agem de forma banal em
função da cor da pele e do estilo das roupas. Uma ação que ventila a
opressão e gera ainda mais medo e violência num país tão desprovido

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de paz. O comando e a fobia enfraquecem a potência da coletividade e,


assim, o conatus perde a oportunidade de ser fortalecido. Ao contrário,
empalidece.
Já na releitura do samba de Beth Carvalho, os participantes demons-
traram a insatisfação de, mesmo com (se tivessem!) recursos financeiros,
não poderiam usufruir de seus direitos como cidadãos, pois a sociedade
carece de educação de qualidade, de acessibilidade para os deficientes e
de diversão, dentre outras lacunas de serviço público. Também mostram
que os afetos como a humanização, o amor, a caridade e a compreensão
não podem ser comprados. Liberdade de expressão e dessilenciamento
de suas vozes podem ser considerados os afetos ativos que a versão
reeditada do samba oportunizou.
Neste momento sócio-histórico-cultural, fortemente entremeado
por discursos opressores e autoritários, as atividades do DIGITMED
se propõem a expandir as diversas formas de ser e agir no mundo, para
potencializar o conatus dos participantes.
Os encontros felizes digitmedianos almejam transformar os afetos
e os desejos dos participantes em realização de sonhos, de modo que
possam se afugentar da opressão e exercer a liberdade, como a essência
dos seres humanos apregoa. No mais, anseiam por exortar a servidão que
pode se solidificar e ser a ordem da vez, devido aos discursos opressores,
principalmente aqueles proferidos pelas forças dominantes e coloniza-
doras, com os quais este capítulo foi iniciado, por exemplo.
O DIGITMED prima por arejar os afetos na potencialização do co-
natus. A afetividade ativa de amor, acolhimento, colaboração, parceria,
amizade, crítica, controvérsias, conhecimento e descoberta dos encontros
aos sábados são alguns dos catalisadores que vitalizam a potência afeti-
va na transgressão da injustiça, do preconceito, da desigualdade social,
da imposição, da pobreza, da fome, do silenciamento, da exclusão. A
potência afetiva é o elixir de um conatus que resistente aos discursos
opressores. Um sopro e alento para continuarmos firmes…

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