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A LINGUAGEM NA VIDA

Adriana Cristina Sambugaro de Mattos Brahim


Alessandra Coutinho Fernandes
Ana Paula Marques Beato-Canato
Clarissa Menezes Jordão
Eduardo Henrique Diniz de Figueiredo
Juliana Zeggio Martinez
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B813l Brahim, Adriana Cristina Sambugaro de Mattos et al.

A linguagem na vida / Autores: Adriana Cristina Sambugaro de Mattos Brahim,


Alessandra Coutinho Fernandes, Ana Paula Marques Beato-Canato, Clarissa
Menezes Jordão, Eduardo Henrique Diniz de Figueiredo e Juliana Zeggio
Martinez; Prefácio e Posfácio de Angela Maria Hoffmann Walesko, Denise
Akemi Hibarin e Iara Maria Bruz.
1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2021.

103 p. ; il. ; quadros.


E-Book: 2 Mb; PDF.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-205-1.

1. Leitura. 2. Letramento. 3. Linguagem. I. Título. II. Assunto. III. Autores.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:


1. Educação. 370
2. Alfabetização e leitura. 372. 4
3. Linguagem, Línguas – Estudo e ensino. 418. 007
A LINGUAGEM NA VIDA

Adriana Cristina Sambugaro de Mattos Brahim


Alessandra Coutinho Fernandes
Ana Paula Marques Beato-Canato
Clarissa Menezes Jordão
Eduardo Henrique Diniz de Figueiredo
Juliana Zeggio Martinez

Nossa capa é uma foto que ilustra a quarentena de duas famílias aparentadas.
Helena e Marina pintaram uma parte da parede com tinta de tecido. Fizeram
várias mãozinhas. Quando flagradas, dois dos adultos ficaram malucos. Ao
verem que os outros dois adultos estavam rindo do que havia acontecido,
eles relaxaram e aí todos usaram as mãos para fazer a parede da quarentena.
Copyright © 2021 – Dos autores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Diagramação e capa: Vinnie Graciano
Revisão: Dos autores
Imagem da capa: Famílias Beato Canato e Beato Corradi

PARECER E REVISÃO POR PARES


Os capítulos que compõem esta obra foram submetidos para avaliação e revisados por pares.

CONSELHO EDITORIAL:

Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp – Campinas)
Glaís Sales Cordeiro
(Université de Genève – Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UNB – Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UNB – Brasília)
Rogério Tilio
(UFRJ – Rio de Janeiro)
Suzete Silva
(UEL – Londrina)
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
(UFMG – Belo Horizonte)

PONTES EDITORES
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Dedicatória

Para as leitoras que compartilham do interesse pelos estudos da linguagem.


Para professoras, que assim como nós, acreditam na educação.
Para nossas alunas que, a cada dia, nos inspiram e nutrem nossa von-
tade de continuar a aprender.
Agradecimentos

À CAPES e ao Programa de Pós-graduação em Letras da UFPR,


pelo financiamento.

À Giuliana Mattos Brahim, uma adolescente nota 10, a nossa leitora


número 1, que se dispôs a ler as versões iniciais deste livro, comentá-las
conosco e nos instigar ainda mais nos caminhos da linguagem.
SUMÁRIO

PREFÁCIO................................................................................................................8

APRESENTAÇÃO...................................................................................................12

A LINGUAGEM QUE NOS CONSTITUI.................................................................18


O que entendemos por linguagem?.....................................................21
Qual o papel da linguagem escrita?.....................................................28
Qual a função social da escola?...........................................................31
Afinal, por que estudar a linguagem?..................................................37
LEITURA, PALAVRA-MUNDO E LETRAMENTOS...............................................40
O que entendemos por leitura?...........................................................43
O que entendemos por letramentos?...................................................50
Afinal, por que tratar de leitura e de letramentos?................................58
LINGUAGEM E (DES)HUMANIDADE NAS REDES SOCIAIS...............................60
O que entendemos por multimodalidade?...........................................63
Como conversamos com o que/quem é diferente de nós?......................69
Afinal, o que linguagem (em sua multimodalidade) tem a ver com
ideologia?.........................................................................................72
A LINGUAGEM QUE NOS FAZ VIVER.................................................................74
Linguagem, interculturalidade e migração – (des)encontros..................76
Desafiar, criar e transgredir a/na linguagem.........................................80
Aprender, acolher, construir e transformar a/na linguagem...................84
Afinal, o que a linguagem e a escola têm a ver com a vida?....................92
PALAVRAS PARA UM FINAL PROVISÓRIO........................................................93

PARA SABER MAIS...............................................................................................96

POSFÁCIO.............................................................................................................99

BIODATAS...........................................................................................................102
A LINGUAGEM NA VIDA

PREFÁCIO

Linguagem, alfinetes, fios, carretéis e maternidade. O que pode


haver em comum entre essas palavras no campo de estudos da lin-
guagem? Há mais semelhanças entre elas do que as classes de pala-
vras às quais pertencem. O livro que chega em suas mãos, prezadas
leitoras, revela olhares de linguistas aplicadas voltadas para linguagem
como um alfinete: nos espetando e nos provocando a sair de posições
confortáveis.
Sim, vocês leram certo. Estamos nos dirigindo a vocês como
leitoras. Assim como as autoras do livro também o fazem e se auto-
denominam como tais. Além disso, não é porque somos três profes-
soras-pesquisadoras – dentre tantos outros papeis que vivenciamos
– convidadas a escrever este prefácio. Guiadas pelo pacto ficcional
de Eco (1994), como diriam os mais tradicionais, aceitamos ser leva-
das pelas tramas moventes (FABRÍCIO, 2006) de um mundo líquido
(BAUMAN, 2001), que tem colocado em xeque visões binárias de usos
de linguagem e, no qual, segundo as autoras, “[.. ] nossas antigas cer-
tezas se dissolvem diante de nossos olhos e temos que constantemente
nos ressignificar”. Uma vez que estamos envolvidas nos fios dessas tra-
mas, estamos, desde o início, alfinetando todas vocês a saírem de seus
lugares cômodos para percorrer os labirintos móveis dos estudos da
linguagem conosco.
Nessa obra, o fio condutor é a vida da professora-pesquisadora
Laura, personagem fictícia, mas que pode representar muitas de nós.
Ao ler as situações vivenciadas por ela em cada abertura de capítulo,
vocês provavelmente se identificarão com as personagens e/ou com
suas histórias, o que as motivará a querer saber e aprender mais. Como

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A LINGUAGEM NA VIDA

seres emocionais (apesar de muitas vezes pensarmos que somos tão


racionais), aprendemos aquilo que toca nosso coração, não é mesmo?
Nos quatro capítulos propostos, as leitoras mergulharão nos
debates e embates sobre língua, linguagem, função social da escola,
papel da professora e papel da aluna. Ao seguir os passos de Laura, vi-
venciamos seus momentos reflexivos e percebemos que, quando con-
frontada, (re)age e reflete em meio aos discursos do seu entorno: “Hoje
vejo minhas alunas sem medo de expressar suas opiniões. Isso é bom, não
é?”. E nós, como leitoras, vemos nossos sentimentos e reflexões des-
pertarem quase ao mesmo tempo.
A linguagem acessível adotada pelas autoras desenrola-se como
carretel, de forma rizomática (DELEUZE; GUATTARI, 1980), em dire-
ção a temas como: a leitura e seu viés crítico, os letramentos (crítico e
visual), as práticas de linguagem, a interculturalidade, a migração e a
translinguagem. Tudo isso sem deixar de citar Paulo Freire e questões
atuais como: o tema da COVID-19 e as crescentes interações comple-
xas, por vezes, problemáticas nas redes sociais.
Este livro interessa, em especial, a todas aquelas que vivenciam
(ou já vivenciaram) a sala de aula, seja como alunas, professoras, pes-
quisadoras e demais papéis que podemos assumir nesse espaço tão
complexo, no qual ideologias culturalmente marcadas permitem a (re)
construção de sentidos, a (trans)formação de crenças e a constituição
de identidades.
Em um determinado momento, Laura é desafiada a pensar sobre
“o quanto o corre-corre diário nos absorve e, muitas vezes, nos distan-
cia dos valores mais preciosos da humanidade”. Junto com ela, podemos
aprender a desenvolver a nossa criticidade para com os discursos que
nos cercam e nos posicionarmos diante deles para interagir com e agir
no mundo à nossa volta, isto é, exercermos nossa cidadania.
Em seguida, a mesma personagem nos leva a refletir sobre
uma crise global e de importante relevância: o papel fundamental
da linguagem no acolhimento das pessoas em processo de migração.
Novamente, somos incitadas a pensar criticamente na “linguagem que
nos faz viver” e no nosso papel social para com o outro.

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A LINGUAGEM NA VIDA

Esperamos, então, caras leitoras (talvez já acostumadas agora


com essa marcação linguística), que as discussões em torno dos estu-
dos da linguagem aqui propostas possam nos tornar um pouco Laura:
um misto de personagem protagonista-antagonista-coadjuvante da-
quilo que pensamos, mas não ousamos verbalizar e, ao mesmo tempo,
sensíveis ao “pinicar” de pensamentos, lembranças, crenças e sonhos.
Além disso, esperamos que se sintam desafiadas a assumir outros po-
sicionamentos, assim como nós, na leitura maternal deste texto que
nasce nas mãos, na cabeça e no coração de quem o lê.
Boa leitura!

Angela Maria Hoffmann Walesko


Professora de Teoria e Prática de Ensino no Setor de
Educação da Universidade Federal do Paraná
Formadora de professoras, mãe de uma Laura de 7 anos que
também tem o espírito curioso e questionador como a persona-
gem do livro – talvez um pouco mais teimosinha.
angela. walesko@ufpr. br

Denise Akemi Hibarino


Professora de Língua inglesa no Departamento de Línguas
Estrangeiras Modernas da Universidade Federal do Paraná
Filha da Dona Aurora, com quem alterna o papel de mãe quan-
do precisa alfinetá-la.
denise. hibarino@ufpr. br

Iara Maria Bruz


Professora de Língua inglesa no Setor de Educação
Profissional e Tecnológica da Universidade Federal do Paraná
Professora que, muitas vezes, sonha com suas alunas e suas histórias.
iarabruz@ufpr. br

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A LINGUAGEM NA VIDA

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar,


2001.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia.
Rio de Janeiro, RJ: Editora 34, 1996.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo, SP: Companhia
das Letras, 1994.
FABRÍCIO, Branca Falabella. Linguística Aplicada como espaço de desa-
prendizagem: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo. Por uma
Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo, SP: Parábola Editorial, 2006, p.
45-65.

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A LINGUAGEM NA VIDA

APRESENTAÇÃO

Eis aqui um livro escrito a 12 mãos. Foram 12 mãos com man-


gas arregaçadas e profundamente engajadas no trabalho de escrever
de forma colaborativa para conversar com pessoas cujas trajetórias são
diferentes das nossas (que já são diferentes entre si). Somos acima de
tudo professora e, com isso, somos também pesquisadoras, educado-
ras, formadoras e várias outras -oras conforme os espaços em que nos
vemos existindo. Somos escritoras também e pensadoras, alfinetado-
ras de nossos próprios pensamentos e dos pensamentos das leitoras
do livro que escrevemos juntas. E que agora leremos juntas também.
Juntas, nós autoras, e você, leitora, num esforço interpretativo que nos
possibilitará crescer em colaboração; afinal, durante a sua leitura nos-
sas vozes estarão junto com a sua.
Nosso objetivo com este livro é possibilitar acesso, populariza-
ção, reflexão e problematização sobre a linguagem e suas implicações
para/na vida. Escrevemos para pessoas que não estão necessariamen-
te familiarizadas com conceitos e teorias acadêmicas. Pelo menos não
enquanto cientificamente elaboradas, pois acreditamos que, como
existimos todas em linguagem, também todas nós desenvolvemos
nossos conceitos e teorias sobre e na linguagem. Vivemos com os pés
no chão e as cabeças e os corações na linguagem, movendo-nos nesse
veículo gasoso que nos sustenta: podemos pensar na linguagem como
uma teia que a gente mesmo tece e nos sustenta – foi assim que um
antropólogo chamado Clifford Geertz se referiu à cultura, e é assim
que nós entendemos também a linguagem. Você vai perceber isso em
mais detalhes conforme a leitura avance.
Este livro quer conversar com você, permitir que você traga
sua vida para a leitura e para a construção dos sentidos que a leitura

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A LINGUAGEM NA VIDA

suscitará em você. Não traremos, via de regra, citações diretas de au-


toras ou teorias. Opa, mas já trouxemos uma referência no parágrafo
anterior, o nome de um antropólogo. E isso que o livro mal começou:
sim, certo, você está atenta. Mas isso acontece(rá) porque ocasional-
mente tais referências parecem criar vida própria em nossa linguagem,
já que estão entranhadas em nossa maneira de construir sentidos.
Como acadêmicas, às vezes não conseguimos (e nem queremos) deixar
de creditar as criações a suas autoras mais conhecidas. Essa imbrica-
ção de linguagens (a acadêmica e a não-acadêmica) aparece aqui de
forma assumida, na busca de aproximar você das reflexões embasadas
em outras leituras para além da experiência concretamente vivida em
nossos cotidianos. Escrevemos a partir de nossas experiências, que se
relacionam bastante com a escola, uma vez que esse mundo consti-
tui nossa atuação. Como a escola é um ambiente pelo qual passa todo
mundo que chega a ler um livro como esse, imaginamos que tomar tal
espaço como referência significa apontar para um contexto com o qual
todas as nossas leitoras se identificarão de alguma forma. Nesse sen-
tido, a experiência vivida com a leitura da palavra, acreditamos, é tão
importante quanto a experiência vivida com a leitura do mundo. Aqui
a alusão é a Paulo Freire e à “palavra-mundo”, mas não vamos estragar
a surpresa – mais adiante conversaremos melhor sobre isso.
Para contarmos um pouco sobre a produção deste livro, toma-
remos como metáfora a ideia de maternidade, de gerar, gestar e fazer
crescer. Pensando no processo de crescer em colaboração, queremos já
de início esclarecer alguns pontos muito importantes para nós a fim
de que, ao iniciar a leitura dos capítulos deste livro, você possa estar
ainda mais perto de nós em sua liberdade de ler. Ao explicitar esses
pontos, pretendemos contribuir para que este livro atinja os propósi-
tos que sonhamos para ele, como mães sonham com o futuro de suas
filhas. Imaginamos as reverberações dos sentidos construídos durante
a leitura; imaginamos seus efeitos na vida das leitoras. Esperamos que
nosso livro ajude você a fazer sentido em sua existência, suas histórias,
suas comunidades.
O primeiro ponto a ressaltar chama nossa atenção para questões
relacionadas à representatividade das mulheres na linguagem. A essa

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A LINGUAGEM NA VIDA

altura você já deve estar se perguntando como é que, mesmo sendo


um de nós do sexo masculino, estamos nos referindo a nós mesmas no
feminino. É que queremos permitir a nosso livro bebê não tomar como
natural a convenção que determina a forma masculina como incluindo
a feminina; por isso, decidimos marcar na linguagem, na nossa lin-
guagem, o contrário do que comumente se faz. Explicamos: em vez de
ignorar questões de gênero e simplesmente escrevermos “os alunos”,
“os professores” ou “os pesquisadores”, escrevemos “as alunas”, “as
professoras” e “as pesquisadoras”, como um lembrete constante sobre
como o mundo aparece na linguagem e sobre a importância de tomar-
mos a linguagem para nós e ressignificarmos nossas práticas de vida.
Essa intencionalidade tem também uma outra consequência: além de
remeter ao universo majoritariamente feminino em termos quantitati-
vos, o uso do feminino como generalizador na linguagem homenageia
as mulheres em sua dedicação ao mundo e, ao mesmo tempo, convida
os homens (inclusive o homem que participou da escrita deste livro)
para que se sintam incluídos no feminino.
Sabemos que com isso corremos o risco de estarmos, indireta-
mente, reforçando o binarismo culturalmente construído como única
possibilidade de existência (ou você é homem, ou é mulher), e silen-
ciando outras cores no espectro das identificações de gênero e de se-
xualidade. Mas não queremos arriscar perturbar as leitoras em excesso
diante da pouca familiaridade com generalizadores do tipo alunes e
professorus, exemplos de linguagem não-binária. Nessa luta quixotes-
ca pela igualdade de gêneros, vamos devagar com o andor.
O segundo aspecto que trazemos é uma forma de revisitar a per-
cepção um tanto generalizada de que linguistas às vezes parecem, es-
pecialmente a outras profissões, criaturas de outro mundo, um mundo
à parte, numa outra dimensão. A partir dessa ideia, a Linguística faz o
que mesmo? E essa tal de Linguística Aplicada, então? Mais indecifrá-
vel talvez. Nós nos identificamos como sendo linguistas, e especifica-
mente nós autoras deste livro como linguistas aplicadas. Por quê? Essa
é uma pergunta de um milhão de dólares, mas podemos dar à resposta
um breve atalho: somos linguistas aplicadas porque nos interessa in-
vestigar as relações entre a linguagem e a sociedade, buscando melhor

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A LINGUAGEM NA VIDA

compreender essa relação com base em uma gama de saberes que não
se limitam ao universo da linguística. A linguagem, como a estudamos,
é como se fosse o líquido amniótico que nutre o feto. Sem linguagem,
morremos. Estudamos a linguagem na vida, como discutimos em vá-
rios exemplos trazidos neste livro, sempre preocupadas com os impac-
tos que a linguagem exerce sobre nossa forma de ver o mundo, sobre
nossas ações e relações com outras pessoas e sobre nossas identidades.
Olhar para a linguagem, como linguistas aplicadas, envolve considerar
os mais diferentes saberes produzidos em várias áreas do conhecimen-
to, pois a linguagem atravessa todas elas; envolve considerar as vozes
das pessoas em suas práticas diárias, em seu cotidiano e inclusive em
diferentes áreas do conhecimento. Então, não nos vemos como ETs:
somos deste planeta, cujas práticas cotidianas de linguagem nos inte-
ressam na medida em que informam o que fazemos, o que pensamos,
quem somos, como nos vemos, como existimos, como vemos as outras
pessoas e o mundo. Estamos com os pés no chão e com as cabeças, os
corações e as mãos na linguagem.
É nesse sentido que para nós os estudos da linguagem constituem-
se numa área de conhecimento que se interessa pelo mundo e pelos
problemas existentes nele; portanto, suas contribuições são de diversas
ordens – sociais, educacionais, culturais, linguísticas, políticas,
dentre tantas outras. O trabalho que fazemos e compartilhamos com
você aqui neste livro é construído na interdisciplinaridade, em uma
interface direta com o campo da Educação e no diálogo com outras
áreas do conhecimento, como as Ciências Sociais e outras ciências que
também integram o que conhecemos por Humanidades. Os estudos da
linguagem a que nos referimos aqui caracterizam portanto uma área
do saber diretamente relacionada ao contínuo debate sobre sociedade,
educação, cultura, ética, relações de poder, desigualdades, diferenças.
O terceiro ponto a ressaltar está na elaboração de cada capítu-
lo como tendo um núcleo temático específico, mas não independente
dos núcleos temáticos de cada um dos outros capítulos. Neste livro,
tratamos de temas entrelaçados, todos enredados numa compreensão
de linguagem como prática social. Assim, nosso livro vai crescendo e
se desenvolvendo em sua infância, a partir das narrativas em torno das

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A LINGUAGEM NA VIDA

experiências de Laura, uma professora de inglês, que nos ajuda a trazer


os diferentes temas que tratamos aqui.
Já adolescente, nosso livro quer ousar: ao escolhermos a pala-
vra linguagem pretendemos fazer sempre referência a várias formas de
construir sentidos para além do verbal. Via de regra, em outros espaços
que não neste livro, há uma ênfase na linguagem verbal, oral ou im-
pressa. Partimos aqui da noção de que os sentidos são sempre cons-
truídos de modo múltiplo, lançando mão de um repertório variado que
recorre a gestos, cheiros, cores, imagens, sensações, emoções, histórias
de vida que vão muito além das palavras ditas ou escritas. É para reme-
ter a essas múltiplas materialidades que usamos a palavra linguagem.
Entendemos que, uma vez crescido, este livro esteja pronto para
ganhar o mundo. Nessa nova fase de sua vida, ele continuará apren-
dendo e crescendo, se transformando a cada leitura. Reconhecemos
que será você, leitora, quem dará vida a este livro nas relações que es-
tabelecerá entre sua própria vida e a dele. Esperamos que você se sinta
confortável nessa função, e a considere produtiva.
De nossa parte, crescemos um bocado com este livro. Como par-
te desse processo de crescimento, nossos quatro capítulos vêm prece-
didos de narrativas que contam experiências vividas pela professora
Laura – personagem fictícia, inspirada em nós mesmas e em várias
professoras que conhecemos. Nessas narrativas Laura enfrenta a vida
de mulher professora e nos permite indagar com ela sobre assuntos
da linguagem. Assim, buscamos aproximar a leitora das autoras e da
personagem, numa demonstração de que a linguagem é a vida, de que
existimos na linguagem, de que a linguagem nos constitui a todas.
Após os capítulos, o livro também traz uma seção final chamada “Para
saber mais”, na qual indicamos leituras que nos foram inspiradoras
dos principais aspectos discutidos no livro. Desta forma, podemos
continuar crescendo.
Escrever um livro a 12 mãos pode parecer uma missão impos-
sível: 6 cabeças provenientes de gerações diferentes, com experiên-
cias de vida e trabalho diferentes, mas compartilhando uma mesma
profissão, a de professora-pesquisadora. Essa identidade nos permitiu

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A LINGUAGEM NA VIDA

encontrar e trocar conhecimentos, (des)afetos, percepções, avaliações;


de forma generosa, pudemos debater perspectivas, argumentar, criar
e vivenciar conflitos. Sim, porque em vez de cada uma escrever uma
parte, escrevemos juntas cada frase, em reuniões online em tempos de
pandemia, utilizando aplicativos de vídeo chamada e de compartilha-
mento de documentos em tempo real. Nesse encontro o propósito de
escrever um livro a 12 mãos resultou para nós em muito mais do que
um livro: resultou em construções de outros sentidos, aprendizagens
profundas, relações intensas, convivência produtiva com o diferente.
Nossas 12 mãos também estão representadas na capa do livro
que retrata uma outra construção ocorrida durante a pandemia. Em
um momento tão complexo, duas famílias se uniram em uma mesma
casa e vivenciaram partilhas, afetos, amorosidades, ansiedades e de-
sestabilizações por muitos meses. Em um desses momentos memo-
ráveis, as duas menininhas da família experimentaram as tintas em
suas mãozinhas e começaram o que acabou se tornando uma obra de
arte. Elas lambuzaram as mãozinhas e as carimbaram em uma parede
que acabara de ser pintada. O que, a princípio, gerou surpresa e insa-
tisfação dos pais, acabou se tornando um momento de muita alegria
e um marco na casa desse momento tão inusitado que vivemos con-
juntamente em uma “quarentena maluquinha”, como as crianças das
famílias costumam dizer.
Esperamos que você também possa experimentar alegria, sur-
presa e aprendizagens inusitadas na leitura deste livro e tornar encon-
tros com o diferente em algo recompensador e pleno de aprendizagem.

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A LINGUAGEM NA VIDA

A LINGUAGEM QUE NOS CONSTITUI

Na saída da escola, Laura conversa com Sandra, mãe de uma de suas


alunas, enquanto aguardam a chegada da filha de Sandra. Sandra, de-
monstrando certa aflição, compartilha preocupações em relação à escola
e à aprendizagem de sua filha.

Sandra: Olha Laura, eu ando muito preocupada com a educação da mi-


nha filha, e como você sabe ela só tem 8 anos e tá no terceiro ano do
Ensino Fundamental I. Ela é uma criança, não tá nem aí pro futuro,
mas, na minha opinião, o principal objetivo do ensino deve ser o vesti-
bular que minha filha vai prestar daqui a 9 anos. Parece muito tempo,
mas o tempo passa muito rápido! Mas pelo jeito a minha preocupação
não é a mesma dessa escola, sabe? A escola não está levando a sério a
preparação para o vestibular, pois as aulas de matemática, geografia e
história não estão de acordo com o que normalmente a gente vê nas
provas de vestibular. Isso sem contar minha preocupação com o por-
tuguês que inclui a principal e mais difícil avaliação: a tal da redação,
não é? Como é que minha filha vai se sair bem no vestibular, fazer uma
boa redação e ser aprovada? Me diga, como é?

Laura: Mas..

Sandra (aflita, não deixa que Laura continue sua fala e retoma o turno
imediatamente): A gente sabe que uma das grandes dificuldades no
vestibular é a redação, e eu tenho acompanhado pela televisão como
estudantes em geral escrevem muito mal hoje em dia. Até o nosso pre-
sidente da República comentou isso numa entrevista que eu assisti
dias atrás. Me lembro também de uma reportagem, não sei se você viu,

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A LINGUAGEM NA VIDA

que mostrava textos horríveis escritos por candidatos nas provas de


redação de uma universidade famosa dessas aí. Não dava para enten-
der os textos e ainda estavam escritos com uma caligrafia horrível! E
eu sei que é verdade essa situação tão triste, porque vejo minha pró-
pria filha com uma letra muito feia e quase não dá para entender o que
ela escreve quando está fazendo as tarefas escolares. Fico pensando
que isso deve estar acontecendo porque as crianças hoje em dia não
escrevem mais, não praticam a língua, não se comunicam! Elas ficam o
tempo todo trocando mensagens pelo celular, abreviando tudo, usan-
do memes e figurinhas, uma coisa horrível que eu mesma não entendo.
Eu quase sempre tenho que pedir para minha filha me explicar as men-
sagens que ela me envia. Veja a que ponto chegou!

Laura: Sandra, eu acho..

Sandra (quase sem fôlego, novamente interrompe Laura e retoma seu


turno): Como se não bastasse toda essa falta de preocupação da es-
cola com o vestibular e o fato de minha filha já ficar muito tempo no
celular, eu agora vejo que o uso do celular na sala de aula tá aumen-
tando a cada dia, porque várias professoras têm feito atividades em
que as crianças têm que usar o celular. Não sei o que você acha disso,
se você usa o celular dos alunos nas suas aulas de inglês, mas escuta
isso: na semana passada, aconteceu na aula de português. A professora
deu uma atividade e as crianças tinham que usar um aplicativo, que eu
não sei direito como funciona, para criar uma história todos juntos a
partir de uma experiência que elas tiveram. Como você sabe, a escola
tem um funcionário com nanismo, não é mesmo? E uma menina da
turma, um dia desses na hora do recreio, falou alguma coisa ofensiva
e a professora ficou sabendo do acontecido e trouxe a situação para a
aula de português, fazendo um debate sobre discriminação, respeito à
diversidade, etc. Meu Deus! O que isso tem a ver com a aula de portu-
guês? Laura, eu fiquei indignada! Não estou entendendo! E além disso,
a professora foi pedir depois para as crianças criarem uma história a
partir do debate que foi promovido em sala usando o celular! É pra
acabar com o peão, como diria meu saudoso pai!

Laura: Eu te entendo, mas queria dizer que..

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A LINGUAGEM NA VIDA

Sandra (cada vez mais nervosa, não deixa que Laura termine de falar e
continua, aos borbotões): Olha, eu não sei onde as coisas vão parar..
por que a escola mudou dessa forma, Laura? Lembro que quando eu
estava no colégio a minha professora de português dava textos para
copiarmos no caderno de caligrafia. Nossa letra era linda, toda dese-
nhadinha! A gente escrevia muito. Me lembro que quando voltávamos
das férias, a primeira atividade já era para praticar a escrita. A profes-
sora pedia uma redação com o título “Minhas férias”. Era ótimo! E as
aulas eram de explicação de gramática. A gente aprendia muito sobre
a língua portuguesa, repetindo a conjugação dos verbos. A gente deco-
rava tudo e quando chegava o dia da prova, a gente conseguia escrever
muito, completando os exercícios…

Laura: Sandra, minha amiga, são outros tempos, a escola precisa acom-
panhar, precisa ser significativa para os jovens..

Sandra: Ah, olha, Laura, eu sei que você gosta dessa escola, mas como
mãe vejo que ela está cada vez menos preocupada em ensinar a língua
e não sei o que vai ser de minha filha no vestibular! Na minha época a
gente aprendia português, matemática, história, geografia de verdade!

Nesse momento a filha de Sandra chega correndo, abraça a mãe e elas vão
embora, deixando Laura com suas reflexões sobre a conversa que teve com
Sandra.

Na cena que abre este primeiro capítulo, temos uma mãe aflita
com a educação da filha. Embora Sandra considere que “o principal ob-
jetivo do ensino deva ser o vestibular”, ela fala sob a impressão de que a
escola da filha tem outra intenção. Sandra demonstra maior apreen-
são com a disciplina de português, porque, em sua opinião, apesar de
as pessoas “em geral escreverem muito mal hoje em dia, a escola está
cada vez menos preocupada em ensinar a língua”, bem diferente de sua
época, em que se “aprendia português de verdade!”. Em sua análise, a

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A LINGUAGEM NA VIDA

escola tem promovido debates que nada têm a ver com a aula de por-
tuguês e estimulado o uso de tecnologias que impedem o aprendizado
da língua.
Situações como essa são corriqueiras em nosso cotidiano e reve-
lam embates gerados por compreensões distintas sobre língua, lingua-
gem e educação, temas que vamos abordar neste capítulo. Para isso,
primeiramente, vamos conversar sobre a diferença entre língua e lin-
guagem a partir de exemplos e situações que remetem ao cotidiano.
Em seguida, a partir dessa diferença, fazemos algumas reflexões sobre
a linguagem escrita, que tem sido extremamente importante em nos-
sa sociedade. Depois, tendo esclarecido a perspectiva que vai orientar
nossas discussões sobre as narrativas de Laura, traçaremos um breve
histórico de como a educação institucionalizada de massa passa por
uma demanda do mundo da vida para se adaptar aos novos tempos
que vivemos. Por fim, com essa breve recuperação histórica em mente,
fecharemos essa discussão tratando de percursos educacionais reali-
zados nas práticas de linguagem nas esferas cotidiana, educacional e
de trabalho do mundo contemporâneo. Vamos lá?

O que entendemos por linguagem?

Um dos problemas levantados na narrativa acima diz respeito à


suposta falta de conhecimento de língua portuguesa e da pouca capa-
cidade de produção escrita por parte das alunas na escola. De acordo
com Sandra, em sua época, o trabalho com a língua era completamente
diferente, “as aulas eram sobre explicação de gramática e se aprendia
muito sobre a língua portuguesa”, com a repetição e memorização de
conjugações verbais. Também “se escrevia muito, fazendo cópias com
letras lindas, bem redondinhas”. Veja como o termo língua é recorren-
temente utilizado na narrativa e como tais afirmações revelam uma
crença específica sobre o que é língua e sobre o papel da escrita na
nossa sociedade.
Nesse contexto, uma compreensão comum é que a língua é um
instrumento de comunicação. Segundo essa percepção, a língua existe

21
A LINGUAGEM NA VIDA

para que informações, instruções, ordens, pensamentos, vontades, an-


seios, emoções, etc. sejam transmitidos de uma pessoa (emissor) a ou-
tra pessoa (receptor). Ou seja, nessa concepção, o que está na mente
do emissor pode ser transmitido, como em telepatia, para o receptor,
com exatidão. Algumas pessoas ainda vão além e esperam que essa
transmissão implique ou resulte no entendimento completo – por par-
te do receptor – tal qual como foi falado ou pensado pelo emissor. E
o que poderia ser visto como um erro, nesse caso? Um entendimento
diferente – pelo receptor – daquilo que foi enunciado pelo emissor.
Quando isso ocorre, um possível entendimento diferente é compreen-
dido como ruído de comunicação, ou seja, uma interferência de algum
fator não esperado.
Essa compreensão de língua como instrumento é bastante pro-
blematizada nos estudos da linguagem. Uma das razões para tal ques-
tionamento é que pensar em língua como um instrumento significa
pensá-la como algo externo ao sujeito. Pensemos, por exemplo, em um
telefone celular, ou um mapa, ou um martelo. Podemos dizer que todos
esses objetos são instrumentos que utilizamos para realizarmos tare-
fas: o celular, para fazer chamadas, tirar fotos, jogar jogos eletrônicos,
dentre diversas outras possibilidades; o mapa, para nos localizarmos
ou para conseguirmos instruções que nos levem de onde estamos para
onde queremos chegar; e o martelo para fixarmos um prego em algum
lugar, ou para retirar um prego também. Notem que todos esses ins-
trumentos não são parte de quem os utiliza, eles são externos aos su-
jeitos. Para nós, língua é diferente. Não se trata de algo externo a cada
uma de nós, mas de algo que faz parte de quem somos, uma vez que
não existimos de forma independente das línguas que nos constituem.
Um outro questionamento com relação à ideia de língua como
instrumento de comunicação diz respeito justamente ao que fazemos
com ela. Nós não usamos a língua (no sentido instrumental discutido
até aqui) meramente para comunicarmos nossos desejos, vontades e
pensamentos, como muitas pessoas podem pensar. Nós a utilizamos
de forma a construir sentidos nela, estando dentro dela como estamos
dentro do ar; não apenas para dizer coisas, mas para pensar coisas, en-
tender o mundo, sonhar, imaginar, sentir, interagir. Isso quer dizer que

22
A LINGUAGEM NA VIDA

quando comunicamos algo concebemos nossas identidades e construí-


mos relações, afetos, sentimentos, dentre outras coisas.
Vejamos um exemplo simples: digamos que você está no eleva-
dor sozinha e, ao entrar outra pessoa, você diz um simples “bom dia”.
A princípio, pode parecer que você está meramente desejando a essa
pessoa que ela tenha um dia agradável, feliz. No entanto, esse simples
“bom dia” provavelmente está fazendo várias outras coisas: construin-
do uma identidade da pessoa que fala como alguém educada; cons-
truindo uma relação agradável, mesmo que por alguns segundos, entre
as duas pessoas no elevador; estabelecendo uma conexão, mesmo que
rápida, entre essas pessoas; iniciando uma conversa ou simplesmente
reconhecendo a presença dessa pessoa, mas não desejando iniciar uma
conversa, dentre várias outras possibilidades. Na verdade, se pensar-
mos bem, talvez a coisa que menos estejamos fazendo é desejando um
dia agradável a essa outra pessoa que mal conhecemos. Importante in-
dicar ainda que essa mensagem não é construída pela simples junção
de duas palavras: bom + dia, mas sim por um emaranhado de elemen-
tos: as duas palavras “bom” + “dia”, a entonação, os elementos ges-
tuais, as emoções das participantes no momento e até mesmo outros
fatores como aparência física e papel social, o lugar, os cheiros, a visão
que as pessoas envolvidas têm uma da outra, etc. Afinal, quem são es-
sas pessoas no elevador? Todos esses itens juntos são partes constitu-
tivas desse momento e influenciam diretamente a maneira como essas
pessoas entendem esse simples cumprimento.
Há um segundo entendimento comum sobre o que é língua: um
conjunto de estruturas. Língua, nesse caso, se refere a sistemas de
sons, palavras, classificações gramaticais e significados (literais e pre-
tendidos). Nesse entendimento, é através dessas estruturas que relata-
mos as realidades que observamos e/ou que sentimos. É a partir desse
entendimento que Sandra, personagem de nossa narrativa, expressa
sua nostalgia pelo trabalho “sério” com a língua portuguesa em seu
tempo de escola, ao dizer que “as aulas eram de explicação de gramáti-
ca. A gente aprendia muito sobre a língua portuguesa, repetindo a conju-
gação dos verbos. A gente decorava tudo e era muito bom”. Destacamos
o sobre a língua porque vemos aqui uma compreensão de ensino de

23
A LINGUAGEM NA VIDA

língua portuguesa em que se aprende a respeito da língua, mas não


necessariamente a praticá-la. Ainda destacamos repetir e decorar, por-
que indicam um olhar bastante comum para a educação, pautada em
estímulo e resposta, em que não há espaço para construção e reflexões,
mas remete a uma atitude passiva diante das práticas de linguagem,
atitude que discutiremos no próximo tópico.
“Errar”, a partir dessa compreensão de língua e aprendizagem, é
fugir do que é esperado, abstrair-se das maneiras como essas estrutu-
ras são supostamente utilizadas por falantes nativos, vistos como os
“donos da língua” (conforme discutiremos em nosso último capítulo)
ou falantes cultos, considerados os responsáveis por criar os usos cor-
retos (a norma padrão) de tais estruturas. Essas ideias explicam um
pouco das preocupações de Sandra sobre a importância de que sua fi-
lha aprenda, ou decore, as normas de funcionamento da língua enten-
dida como instrumento a fim de fazê-la funcionar adequadamente.
Para nós, mesmo reconhecendo a existência das normas que
estruturam as línguas, os sentidos são construídos e desconstruídos,
negociados e ressignificados contingencialmente e, por isso, não são
determinados a priori das situações de comunicação, nem fechados ou
imutáveis. Então, para marcar esse entendimento, usaremos a palavra
linguagem para nos referirmos a essa concepção, enquanto a palavra
língua fica reservada para quando estivermos pensando no sistema lin-
guístico, na norma padrão, nas línguas que têm nome (como língua
portuguesa, língua espanhola, etc. ).
Para ilustrar essa nossa visão, observemos situações em que apa-
rece a palavra ótimo. Digamos que você está na rua e escuta alguém
dizendo “ótimo”! Se fôssemos levar em conta apenas o significado da
palavra em si, é provável que achássemos que a pessoa que falou a pa-
lavra estivesse feliz com algum acontecimento. Sabemos, entretanto,
que essa palavra tem outros sentidos, podendo ser usada para momen-
tos em que estamos frustradas ou até mesmo irritadas. Imagine, por
exemplo, que você acaba de derrubar seu sorvete e diz: “ótimo!”. Qual
seria o sentido? De que foi desagradável. Ou seja, você demonstra frus-
tração. Ou você pede para sua filha fazer algo e ela age de maneira com-
pletamente diversa e você, ironicamente, diz: “Ótimo!”. Está querendo

24
A LINGUAGEM NA VIDA

parabenizá-la? Obviamente não. O que você faz é demonstrar irrita-


ção, desaprovação. Sem o entendimento da situação, ou seja, sem co-
nhecimento sobre questões contingentes e contextuais (questões essas
que pretendemos abarcar com a palavra linguagem) não chegaríamos a
esse sentido, pois “ótimo”, por si só, não tem sentido negativo. O que
esse exemplo ilustra bem, na nossa interpretação, é que a língua não se
esgota em entendimentos apenas baseados em questões de estrutura,
ou seja, que língua no fundo sempre acontece como linguagem.
Os sentidos que construímos não são determinados simplesmen-
te de forma literal pelas palavras e por suas classificações gramaticais,
mas a partir de um conjunto de recursos semióticos (outras palavras,
gestos, imagens, cores, etc. ), além de nossos contextos histórico-cul-
turais. Então, para determinar quais sentidos são mais aceitáveis em
cada instância comunicativa, é fundamental que saibamos perceber o
contexto, ler cada espaço onde acontece cada evento de comunicação
como um espaço para além da presença imediata dos corpos físicos
das pessoas que lá estão: o espaço comunicativo é um contexto sem-
pre multidimensional, cujas características informam possibilidades
diferentes de sentidos. Isso significa que não são apenas os elementos
visíveis, concretamente presentes nas interações, que fazem parte dos
contextos em que existimos – deles também fazem parte as percep-
ções das pessoas umas sobre as outras, os sentidos que elas fazem do
que está acontecendo naquele momento, suas histórias, seus proces-
sos de formação como sujeitos, suas relações com as comunidades que
as constituem, com as línguas identificadas naquele espaço, etc. , etc.
, etc.
Desse modo, preferimos usar a palavra linguagem ao invés de lín-
gua, para destacar a existência de várias modalidades de construção de
sentidos. Nesta compreensão que estamos discutindo aqui, produzi-
mos sentidos lançando mão de um grande repertório desses recursos
semióticos. Nossa escolha pela palavra linguagem aponta positivamen-
te para a prática da professora de língua portuguesa mencionada por
Sandra na narrativa que abre esse capítulo. Você lembra que Sandra
comenta a solicitação da professora para que as alunas fizessem uma
produção coletiva de textos utilizando seus celulares? Pois bem,

25
A LINGUAGEM NA VIDA

Sandra questiona esse trabalho, dizendo que “o uso do celular em sala


de aula está aumentando a cada dia, porque várias professoras têm feito
atividades em que as crianças têm que usar o celular. ” Para ela, isso é um
problema, afinal, as crianças “ficam o tempo todo trocando mensagens
pelo celular, abreviando tudo, usando memes e figurinhas”. Ou seja, em
seu entendimento, essas interlocuções não são comunicação e nem es-
crita (“as crianças hoje em dia não escrevem mais, não praticam a língua,
não se comunicam!”).
Contudo, a partir da compreensão de linguagem enquanto cons-
trução de sentidos, em um mundo cada vez mais conectado virtual-
mente, propor tarefas dessa natureza pode propiciar usos da lingua-
gem mais próximos do cotidiano e possibilitar maior engajamento,
portanto, maior aprendizagem. Ao contrário, a manutenção do traba-
lho analógico e de repetição pode não fazer sentido para as estudan-
tes e afastá-las do ambiente escolar e do interesse pela aprendizagem,
seja da língua ou seja de qualquer outro conteúdo. Além disso, a lin-
guagem abreviada do celular é uma linguagem adequada ao contexto,
ou seja, ao espaço onde ocorre a comunicação – conversas de bar, en-
trevistas de emprego, palestras acadêmicas preconizam modos de falar
e de se comportar distintos: cabe às pessoas que se encontram nessas
situações avaliar se é o caso de romper com eles ou de seguir as regras
e protocolos de comunicação esperados em cada um desses espaços, e
em cada momento de interação dentro deles.
Você deve estar se perguntando: se cabe às pessoas então decidir
entre romper ou seguir regras sociais, qualquer coisa poderia ser dita
de qualquer forma? Sabemos que não é bem assim. Como já apontamos
neste capítulo, a linguagem nos constitui e nossa convivência com
outras pessoas se dá nas diversas comunidades (familiar, escolar, pro-
fissional, religiosa, entre amigas, etc. ) nas quais nos inserimos. Nosso
desafio está, portanto, em percebermos como determinados modos de
falar, de compreender, de se expressar, de se comportar são mais ou
menos legitimados socialmente (como discutiremos mais adiante nes-
te livro).
Considerando ainda as questões contingentes e contextuais na
linguagem, podemos nos perguntar: o que caracterizaria então um

26
A LINGUAGEM NA VIDA

erro, nessa perspectiva? Para pensarmos sobre isso, convidamos você


a observar a seguinte situação:

Uma professora está em sua sala de aula e diz o seguinte:

• Existem variações de algumas línguas em que dois negativos


juntos dão sentido negativo à frase. Por exemplo: “eu não gos-
tei não”, como falado em diversas localidades do Brasil. No en-
tanto, não há nenhuma variação de qualquer língua onde dois
positivos resultam em um sentido negativo.

Ao que uma aluna responde:

• Yeah, right. [Expressão comumente usada na língua inglesa


para indicar que alguém não acredita no que foi dito].

Você achou engraçado? Nós, sim. A graça para nós está em que,
nesse exemplo, a professora queria explicar questões de significado a
partir de estruturas gramaticais, sem levar em consideração que essas
estruturas analisadas em separado da situação em que são utilizadas
não dão conta de como usamos a linguagem, como vimos anterior-
mente. Ao tratar a linguagem como algo pré-concebido e fechado, a
professora não se deu conta de que estava tentando limitar sentidos
a essas estruturas supostamente pré-estabelecidas, desconsiderando
situações específicas de contexto e de práticas sociais de linguagem. A
aluna, ao usar duas palavras de sentido positivo quando isoladas (yeah
= sim + right = certo), combina-as numa situação em que o sentido pro-
duzido tem a intenção de ser negativo, desfazendo assim o sentido fixo
e descontextualizado que a professora apresentou em sua explicação.
Como nós entendemos o que seja linguagem, então, para resu-
mir? Entendemos que a linguagem constitui e é constituída por
pessoas. Isso significa dizer que a linguagem não é um instrumento
ou um conjunto de estruturas simplesmente, nem um sistema externo
às pessoas que a utilizam, nem foi construída a priori das situações de
interação. A linguagem é um processo que faz parte das pessoas. Isso

27
A LINGUAGEM NA VIDA

significa dizer que é construída continuamente. Por outro lado, isso


não significa dizer que não haja sistematicidade nas línguas, mas sim
que as estruturas não dão conta dos significados construídos a todo
momento pelas pessoas, contingencial e contextualmente; e que esses
sistemas são abertos a novas estruturas e novos significados. Nessa
perspectiva, produzir textos é um processo de construção de sentidos
usado para interagir com outras pessoas, para demonstrar empatia ou
indiferença (no caso de nosso exemplo de Bom dia); demonstrar ale-
gria, frustração ou repreensão (no caso de ótimo), etc. Vale ressaltar
também que a linguagem não existe apenas para interagirmos com
outras pessoas, pois também produzimos textos para nós mesmas,
no caso de listas de afazeres ou de supermercado, lembretes, diários,
por exemplo. Ainda, é importante lembrar que não produzimos textos
orais e escritos apenas com linguagem verbal; podemos fazer uso de
diversas linguagens e recursos, ou seja, podemos escrever no papel,
mas também podemos fazê-lo no computador, no celular ou em ou-
tros meios e usar linguagem verbal, visual, corporal, etc. Todos esses
diferentes recursos e usos contribuem cotidianamente tanto para a
constituição de quem somos quanto para a construção e transforma-
ção da linguagem. Dito de outro modo, a linguagem, assim como cada
uma de nós, não existe a priori de nossas práticas comunicativas; nós e
ela somos criadas e transformadas cotidianamente em nossas interações
sociais. Em nossa avaliação, é papel da escola contribuir para a forma-
ção cidadã de suas alunas, incluindo aí a compreensão da potência que
é a linguagem enquanto prática social dinâmica, complexa, múltipla.

Qual o papel da linguagem escrita?

Antes de falarmos do papel da escola e encerrarmos a primei-


ra parte deste capítulo, destacamos um aspecto na narrativa inicial,
presente nas aflições de Sandra, que consideramos relevante de ser
discutido aqui. Como pudemos perceber, Sandra não se preocupa ape-
nas com o ensino que sua filha está (ou não) recebendo sobre a língua
portuguesa, mas também com o que deve ser, em sua opinião, a prá-
tica com a linguagem escrita na escola. Como já apontamos, em seu

28
A LINGUAGEM NA VIDA

desabafo, ela diz que “as crianças hoje em dia não escrevem mais [.. ].
Elas ficam o tempo todo trocando mensagens pelo celular, abreviando
tudo, usando memes e figurinhas”. Sandra ressalta ainda sua preocu-
pação em relação à prova de redação do vestibular, que, para ela, se
trata da avaliação mais difícil dentre todas as etapas de um vestibular.
Segundo Sandra, a escola interrompeu exercícios importantes de es-
crita quando deixou de exigir das alunas a produção de textos como
“Minhas férias!”, por exemplo.
A compreensão de Sandra sobre o que seja a linguagem escrita
é interessante de ser analisada. Em sua forma saudosa de lembrar de
seu tempo como aluna, ela diz que “a gente escrevia muito”. No entan-
to, ela parece não perceber a existência da escrita na vida cotidiana
das crianças atualmente e nem refletir sobre o que seja a linguagem
escrita. Podemos nos perguntar: as mensagens trocadas pelo celular
não seriam linguagem escrita? Ou ainda, a proposta da professora de
língua portuguesa em solicitar que sua turma crie uma história de for-
ma colaborativa em um aplicativo (“E além disso, a professora foi pedir
depois para as crianças criarem uma história a partir do debate que foi
promovido em sala usando o celular?”) também não seria linguagem
escrita?
Um primeiro aspecto a ser observado está no fato de as formas
de linguagem escrita terem se alterado em relação, digamos, ao século
passado, mas não terem deixado de ser linguagem escrita. Sabemos
que com o advento das novas tecnologias de comunicação, certamen-
te diferentes maneiras de escrever surgiram nas últimas décadas, tais
como blocos eletrônicos de anotações, e-mails, postagens em redes so-
ciais, mensagens de textos pelo celular, currículos virtuais, livros digi-
tais, etc. (conforme discutiremos mais adiante neste mesmo capítulo
e também no terceiro). Além disso, a preocupação de Sandra remete
ao fato de a linguagem escrita estar comumente associada à norma
gramatical de determinada língua em uma sociedade, como podemos
perceber nas frequentes aproximações que Sandra faz em relação à ne-
cessidade de redação e ao ensino da gramática na escola.

29
A LINGUAGEM NA VIDA

Isso nos leva a pensar que não é raro encontrar pessoas, assim
como Sandra, entendendo que os textos escritos precisam estar sem-
pre gramaticalmente corretos. Essa compreensão acaba por gerar uma
linha divisória entre aquilo que é considerado “certo”, de um lado, e
“errado”, de outro. Os textos escritos por pessoas no mundo tendem,
portanto, a ser mais valorizadas quando essas pessoas que escrevem
dominam as normas gramaticais legitimadas em suas comunidades e,
assim, seus escritos são considerados legítimos em detrimento de ou-
tros, que acabam desconsiderados ou não entendidos como válidos.
Se pensarmos, por exemplo, nas comunidades que têm a escrita como
essencial em sua organização, e acabaram por registrar suas histórias
nessa forma de linguagem (como é o caso da nossa sociedade), essas
comunidades acabaram sendo consideradas como mais avançadas em
relação a sociedades de tradição oral, que são muitas vezes entendi-
das como primitivas, sem que haja uma reflexão sobre quais normas,
perspectivas são legitimadas ou consideradas para que tais avaliações
sejam feitas.
A linguagem está sempre atrelada à existência de pessoas que
a usam em determinadas situações culturais e histórico-sociais. Isso
significa que a forma escrita da linguagem também é dependente das
pessoas envolvidas no ato da escrita. Da mesma forma como na lingua-
gem oral, quando escolhemos modos de dizer e expressar, a linguagem
escrita também está atrelada à razão pela qual se escreve, para quem
se escreve, de que forma se escreve e quem é a pessoa que desempenha
o ato de escrever. Desse modo, simplesmente copiar textos ou ape-
nas reproduzir estruturas gramaticais da língua na escola, ou mesmo
escrever uma redação sobre “minhas férias” sem considerar a relação
intrínseca entre quem escreve e quem lê o texto, não poderiam ser
consideradas práticas que caracterizam a escrita como uma atividade
social, como uma prática de construção de sentidos no mundo.
Vejamos, por exemplo, a questão da redação no vestibular.
Podemos nos perguntar: o que exatamente é uma redação? E o que
seria considerada uma redação de qualidade? O que acontece com uma
candidata ao vestibular no momento da produção de sua redação?

30
A LINGUAGEM NA VIDA

Sabemos que as respostas para essas perguntas não estão no ensino


tradicional das aulas de língua portuguesa, pois saber conjugar verbos,
diferenciar usos de maiúsculas e minúsculas, ter uma caligrafia bonita,
acentuar as palavras corretamente não garantem escrever uma boa re-
dação. Será por isso que muitas pessoas consideram a etapa da redação
como a mais difícil do vestibular?
Nossa ênfase está em entender que a produção de uma redação
é uma prática social de linguagem e em sua produção encontram-se
reunidas uma multiplicidade de complexidades que envolvem aspec-
tos de como a linguagem escrita se manifesta e é legitimada social-
mente. Quando escrevemos, trazemos para a forma escrita coisas que
pensamos e aprendemos no e com o mundo, coisas que queremos que
sejam aceitas e entendidas pelas nossas leitoras, reunindo nossa pró-
pria voz com muitas outras vozes que ecoam em nossas mentes. E os
modos como escrevemos e como nos relacionamos com a linguagem
escrita também influenciam os modos como pensamos – são dois lados
da mesma moeda. Assim como a linguagem oral, a escrita também se
torna uma expressão de nossa identidade e uma forma social de cons-
truir sentidos no mundo, de compartilhar compreensões que temos
sobre determinado assunto, por exemplo. É por essa razão que a ativi-
dade proposta pela professora da filha de Sandra, quando solicita que
suas alunas escrevam uma história de forma colaborativa utilizando
um aplicativo, se mostra, em nossa opinião, como uma compreensão
da professora de que a linguagem é social, de que é compartilhada com
outras pessoas, de que escrever não significa solitariamente colocar no
papel as ideias mirabolantes que se passam em nossas mentes. Mesmo
quando escrevemos supostamente sozinhas, nossa escrita vai além de
nós mesmas e perpassa outras pessoas: aquelas com quem discutimos
e/ou aprendemos sobre o assunto do nosso texto, nossas futuras lei-
toras, etc.
Até aqui tratamos da compreensão que temos sobre lingua-
gem, bem como sobre alguns dos efeitos da linguagem no mundo.
A seguir, retomamos o segundo objetivo deste capítulo que está em
relacionar a linguagem com a escola, a sociedade e as mudanças da
contemporaneidade.

31
A LINGUAGEM NA VIDA

Qual a função social da escola?

Estamos ainda nas primeiras décadas do século XXI, mas em


muitos aspectos o século XX já parece distante. A realidade que vive-
mos hoje é rápida, fluida, nossas antigas certezas se dissolvem diante
de nossos olhos e temos que constantemente nos ressignificar. Nesse
mundo instantâneo, a vida nas escolas também está mudando, mas
as alterações nos parecem mais complexas do que as que estamos vi-
venciando. A educação como a conhecemos historicamente vem se
transformando e a pandemia da Covid-19 escancarou essa urgência de
transformação, demandando o aprofundamento de diversas questões
relacionadas ao uso das atuais tecnologias no ensino e à percepção
dos grupos de estudantes que hoje frequentam as escolas. As tecnolo-
gias em sala de aula, muitas vezes criticadas, parecem ter se tornado
a alternativa viável diante da suposta necessidade do ensino remoto
emergencial, resultante do isolamento físico prolongado que temos
vivenciado. Nesse contexto, o material divulgado em uma Campanha
Nacional pelo Direito à Educação se difundiu e gerou muitos debates
acalorados sobre a educação, seu papel, seus rumos.

Material da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2020).

32
A LINGUAGEM NA VIDA

Esse material foi construído a partir de uma obra de arte surrea-


lista do artista belga René Magritte, na qual, originalmente, há uma
imagem de um cachimbo e o texto: Ceci n’est pas une pipe (Isto não é
um cachimbo). No caso da campanha, o conflito entre a imagem de um
computador e o texto escrito: Ceci n’est pas une école (Isto não é uma
escola) nos leva a ponderar as (im)possibilidades da transposição do
espaço escolar para as telas de um computador, celular ou televisão,
em tempos de ensino remoto emergencial. Tal contexto torna ainda
mais urgente a compreensão da história da educação escolar em nosso
país e de políticas educacionais. Também torna improrrogáveis alguns
questionamentos: o que é educação? Para que(m) serve? Nos próximos
parágrafos, nos propomos a tratar desses temas.
Desde o início do processo de educação institucionalizada de
massa em meados do século XIX, temos experimentado um sistema
desigual de acesso à escola e ao conhecimento socialmente legitimado.
Somos um país que necessita de ações afirmativas, como políticas de
cotas nas universidades, e outras políticas educacionais que defendam
o direito à educação de grupos menos privilegiados, como a educação
de jovens e adultos, a educação do campo ou a indígena, dentre tantas
outras. As desigualdades existentes entre os mais diferentes grupos
sociais e identitários, com mais ou menos acesso à educação, à tec-
nologia, à informação, ao conhecimento legitimado se escancararam
diante da impossibilidade de se manter aulas presenciais nas escolas
pela exigência de isolamento social em meio à pandemia, nos levando
a refletir sobre as mais diferentes realidades de vida das pessoas em
nosso país. Essa enorme parcela da população que não tem acesso à
tecnologia ou não se encontra em condições adequadas de realizar o
ensino remoto emergencial em seus domicílios, por diferentes razões,
nos mostra o quanto a questão da igualdade ainda precisa avançar.
Ao mesmo tempo, em cerca de duas décadas, o mundo como o
conhecíamos foi sacudido pela intensificação da globalização e o sur-
gimento da Internet, ampliando assim as complexidades sociais. As
mudanças são facilmente perceptíveis, passando pelo trânsito das
pessoas entre países, novas ondas migratórias, diferentes formatos de
trabalho com uma dependência maior da tecnologia, e chegando até as

33
A LINGUAGEM NA VIDA

nossas formas de conhecer, fazer sentido do mundo, buscar informa-


ção e aprender. No plano da interação e da linguagem, as novas mídias
deram origem a novas formas de comunicação multimodais como blo-
gs, vlogs, posts, e-mails, memes, entre outros – muitas delas fazendo
uso de linguagem escrita com características mais próximas da lin-
guagem oral, e também de imagens, sons e movimentos. No plano da
disseminação de informações, em vez dos poucos canais de TV aberta
e dos poucos veículos de mídia impressa, incluindo jornais e revistas,
as pessoas pertencentes às classes mais abastadas da população pas-
saram a ter acesso a canais de TV por assinatura, por exemplo, e, com
a Internet, uma imensidão de conteúdos produzidos por cidadãos co-
muns de diferentes classes e grupos sociais, e não apenas por jornalis-
tas renomadas, passou a existir em nossas vidas.
E isso não é tudo: também em decorrência das novas mídias, as
pessoas passaram a se relacionar de maneiras diferentes. Surgiram
as redes sociais como Orkut, Facebook, Instagram, Twitter, e outros
diversos aplicativos como WhatsApp e Telegram que tornaram ainda
mais difusas as barreiras entre o que se entende como vida “real” e vida
“virtual”, linguagem escrita (entendida como modalidade mais formal)
e linguagem oral (compreendida como mais informal), criando diver-
sos tipos de montagens com seus filtros e recursos de Photoshop. As
pessoas passaram também a consumir produtos culturais de maneiras
diferentes – por exemplo, em vez de esperar que suas músicas predi-
letas toquem no rádio, passaram a organizar suas próprias playlists de
músicas em aplicativos como Deezer e Spotify; em vez de assistir a
filmes na TV aberta, com dia e horário marcados, passaram a flexibili-
zar essas restrições ao dar preferência a assistir filmes pela Internet e
aplicativos como Netflix; ao invés de se restringirem a aprender em es-
paços educacionais oficiais, passaram a buscar informações em fontes
diversas, como em lives e cursos organizados por movimentos sociais,
por exemplo.
Todas essas mudanças fazem parte de nossas vidas na contempo-
raneidade e entram em contradição com escolas que continuam presas
a uma arquitetura e a uma pedagogia mais tradicional, sem considerar
novas formas de linguagem e de construção de sentidos no mundo,

34
A LINGUAGEM NA VIDA

tampouco as diferentes realidades de vida das alunas que chegam às


escolas. No que diz respeito à arquitetura, por exemplo, na maior par-
te das escolas as aulas continuam organizadas em salas de aulas com
carteiras individuais e dispostas em fileiras, que fazem com que os cor-
pos das alunas e da professora se fixem em uma organização pré-de-
terminada. As alunas sentam-se todas olhando para a frente e para a
professora, e a professora, muitas vezes colocando-se em um pedestal
pelo menos um degrau mais alto do que o nível do chão, onde ficam
as cadeiras das alunas, mantém sua figura em evidência, como centro
do processo de ensino e aprendizagem. Nessa arquitetura tradicional,
espera-se que as alunas mantenham seus olhos na professora, ou no
quadro negro ou no livro didático, pois se prevê pouca ou nenhuma
movimentação em sala e interação entre as colegas. É como se a apren-
dizagem ocorresse em um caminho solitário, individual e dependente
da professora com o quadro negro e/ou o livro didático.
Essa arquitetura tradicional faz uso de uma pedagogia também
tradicional, conhecida com o que Paulo Freire chamou de educação
bancária, que se caracteriza pela crença de que a função da educação é
a transmissão de conteúdos disciplinares valorizados cultural e social-
mente por grupos hegemônicos e legitimados. Desse modo, a escola se
organiza em disciplinas acadêmicas e conteúdos escolares entendidos
como fundamentais, como por exemplo português e matemática, e as-
sim concentra seus esforços em transmitir esses conteúdos às alunas.
Esse tipo de educação foi chamada de bancária porque nela os conteú-
dos seriam depositados (como se faz nos bancos) na cabeça das estu-
dantes sem considerar quem são essas alunas e como esses conteúdos
se legitimaram. A educação bancária, ou educação tradicional, é for-
temente calcada no desenvolvimento de técnicas para transmissão de
conteúdos e averiguação de aprendizagem por meio de testes, sendo
que a nota obtida nesses testes representaria o que as alunas apren-
deram. Isso explica a pouca valorização da interação entre alunas e
professoras, e o foco em retenção de conteúdos comumente cobrados
em testes externos e massificados, como os vestibulares a que Sandra
se refere com ênfase quando reclama da escola na narrativa que abre
este capítulo.

35
A LINGUAGEM NA VIDA

Vemos nesse argumento de Sandra uma semelhança muito gran-


de com a compreensão de linguagem como veículo para transmissão de
mensagens: ou seja, na perspectiva dela, assim como uma mensagem
seria supostamente transmitida por um emissora para um receptora,
como discutimos no início deste capítulo, conteúdos disciplinares po-
deriam também ser simplesmente transmitidos de uma professora para
uma aluna, como se a aluna não tivesse nenhuma influência sobre a
informação que está supostamente sendo depositada em sua cabeça. O
pressuposto seria de que a linguagem funcionaria como um código que
permitiria a transmissão direta do conhecimento da professora para as
alunas; nesse caso, a linguagem seria o que estamos aqui chamando de
língua, ou seja, um conjunto de estruturas supostamente neutras. Caso
não haja aprendizagem ou haja problemas de comunicação, a inter-
pretação é de que não houve interesse de alguma das partes, emissora
ou receptora, ou houve algum ruído que teria atrapalhado o processo.
Essa compreensão de educação e de língua tem sido questiona-
da há bastante tempo por quem entende ser impossível esse tipo de
transmissão, como é o nosso caso. Para nós, tanto as práticas sociais
fora da escola quanto o ensino e a aprendizagem dentro da escola
são processos muito mais complexos do que a mera transmissão de
conteúdos: são processos dinâmicos que envolvem as particularida-
des de cada participante, bem como interações, relações, construções
colaborativas, capacidade de tomada de decisões, pensamento críti-
co e criatividade. Entendemos que a escola precisa abrir mais espaço
para aprendizagens que envolvam os usos das novas mídias, para a
participação ativa das alunas, para que elas trabalhem em pequenos
grupos, encontrando e avaliando suas próprias fontes de informação
e construindo conhecimento de forma coletiva. Para nós, é assim que
aprendemos: na multiplicidade de práticas sociais colaborativas, es-
timulando a participação, criatividade e criticidade das alunas e das
professoras. Assim, a escola pode nos proporcionar uma compreensão
mais profunda do mundo e de quem somos neste mundo.
Entendemos, portanto, que o papel da educação na contempora-
neidade deve ir muito além de simplesmente preparar para provas, ves-
tibulares ou formar alunas para se encaixarem no mercado de trabalho

36
A LINGUAGEM NA VIDA

como se fossem meras executoras de tarefas, acumulando conheci-


mentos disciplinares em sua memória para que sejam reproduzidos
quando necessário, sem que se leve em conta suas identidades num
mundo cheio de complexidade. A educação precisa tornar as pessoas
mais sensíveis às demandas do planeta, às desigualdades e injustiças
sociais, às questões econômicas, sociais, biológicas, raciais, humani-
tárias, e dessa maneira transformar nossas sociedades em melhores
espaços de convivência, de aprendizagem coletiva e colaborativa. A
escola, assim, tem como um papel importante fomentar a convivência
na diversidade. Num mundo tão fortemente interligado, onde o que
acontece em um lugar específico reverbera no planeta inteiro, ou onde
uma forma de vida impacta outras, a importância dessa empreitada
educativa se torna ainda mais evidente. É, certamente, um papel muito
desafiador, e urgente.
Veremos um pouco mais sobre esse desafio em que percebemos
se encontrar a escola na contemporaneidade quando chegarmos ao úl-
timo capítulo. Por enquanto, vamos a uma retomada do presente ca-
pítulo a fim de podermos seguir aos poucos, sem colocar a carroça na
frente dos bois.

Afinal, por que estudar a linguagem?

Depois de tudo isso, afinal para que e por que estudamos a lin-
guagem? Antes de mais nada, é preciso lembrar que refletir sobre a
linguagem não é responsabilidade apenas das especialistas que a es-
tudam diretamente, mas se estende a qualquer pessoa, uma vez que
a linguagem, sendo constitutiva de quem somos, nos afeta e traz im-
plicações para nossas relações no mundo, tanto no âmbito da escola
quanto para além dela. Nossa perspectiva sobre os estudos da lingua-
gem enfatiza a sua relevância nas práticas diárias, como estamos ven-
do aqui e aprofundaremos nos próximos capítulos deste livro.
É fundamental observarmos que existem diferentes formas
de construir textos orais, visuais, escritos, em diversas modalidades
e conforme as situações comunicativas em que elas acontecem. Um

37
A LINGUAGEM NA VIDA

ponto importante seria a exploração, em sala de aula, da ideia de que a


linguagem nos constitui como o ar que respiramos, trazendo à discus-
são uma ampla variedade de textos e linguagens, em mídias diversas,
observando como os sentidos se constroem na prática, em diferentes
espaços, por diferentes pessoas. Os estudos da linguagem podem se
debruçar tanto em questões do meio escolar, quanto familiar, empre-
sarial, midiático, religioso, jurídico, médico/hospitalar, etc.
Vejamos um exemplo. Quando conversamos com uma médica e
utilizamos certas maneiras de explicar o que estamos sentindo, a lin-
guagem que usamos está constituindo quem somos naquele momen-
to, o papel social que ocupamos. Claro que podemos subverter esse
papel, problematizá-lo, atender ou contrapor-nos às expectativas que
a situação comunicativa nos parece trazer. Por vezes, as médicas fa-
lam conosco de maneiras que temos dificuldade de entender, porque
a linguagem médica as constitui. No entanto, nossas identidades não
são caracterizadas exclusivamente por nossas profissões ou papéis so-
ciais, mas também por nossas experiências de vida, nossas formas de
interpretar e de nos relacionarmos no e com o mundo. Existem, assim,
diversas dimensões em quem somos, dimensões que informam o cha-
vão “onde estamos, de onde viemos e para onde vamos”. Tudo muito
interligado na linguagem. Ao aprender a ser médica e/ou empresária
e/ou professora e/ou mãe e/ou filha e/ou amiga, aprendemos não ape-
nas como podemos (ou devemos, ou queremos) nos comportar e atuar
nesses diferentes papéis, mas também a usar a linguagem de formas
distintas.
Voltando para a escola, talvez algumas das maiores contribui-
ções dessa perspectiva sobre a linguagem na educação está na comu-
nidade escolar perceber que:

• a linguagem é sempre diversa, múltipla e dinâmica, ou seja, ela


se constrói e se modifica de acordo com as circunstâncias em que
acontece;
• cada pessoa tem práticas de linguagem diversas, construídas em
suas vivências em atividades e ambientes também diversos como

38
A LINGUAGEM NA VIDA

em casa, na escola, na padaria, no trabalho, no estádio de fute-


bol, ao jogar videogame, em consultas médicas, etc;
• a diversidade das práticas de linguagem tem impacto no desen-
volvimento da sensibilidade em relação às diferenças, uma vez
que os diversos modos de construir uma mensagem e usar certas
palavras, frases, estruturas, são maneiras de ser e existir na lin-
guagem e de se relacionar com outras pessoas no mundo e com
o mundo;
• o que se entende como “certo” e “errado” na linguagem depende
das circunstâncias em que ela está sendo praticada; por exem-
plo, o que se conhece como norma gramatical legitimada é uma
forma de usar a linguagem (geralmente associada à escrita) que
se adequa a situações específicas, mas não a todas as práticas de
linguagem.

E assim chegamos ao final do primeiro capítulo. Entendemos


que nossos estudos podem nos ajudar a pensar em uma educação lin-
guística engajada com a compreensão e a transformação de questões
sociais. Reforçamos que além das questões educacionais enfatizadas
aqui, os estudos da linguagem lidam com diversos outros assuntos e
questionamentos, muitos dos quais serão explorados nos capítulos
subsequentes. Essas são, portanto, cenas dos próximos capítulos.

39
A LINGUAGEM NA VIDA

LEITURA, PALAVRA-MUNDO E LETRAMENTOS

Em um dia comum de sua rotina, Laura encontra, por acaso, Ana, uma
amiga de infância. Logo após se atualizarem quanto aos caminhos de vida
de cada uma, Ana acaba por trazer para a conversa sua “saudade dos bons
tempos” e de como a vida era boa no passado. Nessa altura da conversa,
as duas já estão confortavelmente acomodadas num café na vizinhança.

Ana: Nossa, Laura! Você professora, hein? Puxa…. E que saudades da


nossa turma! Que saudades do respeito que tínhamos pelas professo-
ras. Você lembra? Ninguém dava um pio nas aulas. A gente prestava
atenção em tudo o que a professora dizia, copiava o que estava no qua-
dro e estudava. Eu realmente não sei como você consegue ser profes-
sora hoje em dia.
Laura: Sim, Ana, eu lembro bem que eu passava noites em claro, me-
morizando conteúdos pra tirar notas boas nas provas. A verdade é que
se eu não tirasse notas boas meus pais ficariam muito decepcionados
comigo.
Ana: Eu lembro que seus pais eram muito rígidos mesmo!
Laura: Eram sim. Naquele tempo, nós não nos atrevíamos a contrariar
nossos pais. Na realidade, nem nossos pais e nem os nossos mestres –
essa é que é a verdade. O que eu mais ouvia dos meus pais e de nossas
professoras era: “Obedeça!”, “Faça silêncio!”, “Escute!”, “Não me in-
terrompa enquanto estou falando. ”, “É assim porque que é, e pronto!”.
Ana: Isso! Não tinha essa história de contestar professora não. E não
tinha essa de professora conversar com as alunas sobre tudo. Hoje

40
A LINGUAGEM NA VIDA

parece que o que menos importa é a matéria que vocês professoras


ensinam.
Laura: Eu acho que o mundo tá mudando, Ana, a educação tá mudan-
do. Eu lembro que quando eu discordava de alguma coisa que minhas
professoras ou meus pais diziam, eu não me sentia confiante para ex-
por minhas ideias. Não era que eu não discordasse, eu só não dizia
nada. Hoje vejo minhas alunas sem medo de expressar opiniões. Isso
é bom, né?
Ana: Ah, Laura, o mundo realmente está mudando, mas não sei se é
pra melhor não. Hoje vejo minha filha adolescente falar que é impor-
tante ter pensamento crítico, que não dá para confiar cegamente no
que a gente lê. Sei não. Pra mim, essa história de pensamento crítico é
o que tá virando esse mundo de cabeça pra baixo. Que história é essa
que não dá para confiar no que a gente lê?! Você não imagina o que
aconteceu outro dia! Não é que minha filha veio dizer que eu estava
compartilhando fake news no grupo de WhatsApp da família!
Laura: Sério? Você não checou antes se a informação que você compar-
tilhou era confiável?
Ana: Como assim? Eu sei que era confiável! Foi minha vizinha de anos
quem me enviou!
Laura: Mas Ana, você não acha que, com a Internet, e a quantidade de
textos que surgem a todo momento tratando dos mesmos assuntos de
maneiras diferentes, se a gente não desconfiar, não questionar, a gente
vai comprar muito gato por lebre?
Ana: Não estou entendendo o que você quer dizer, Laura..
Laura: Estou dizendo que, atualmente, tem circulado muita notícia
falsa, que parece real, mas foi inventada. Sabe, Ana, minha filha é pa-
recida com a sua. Sempre muito atenta a tudo que lê. Um dia desses
ela veio me dizer que dá para ler imagens e que a gente tem que “ler se
lendo”. Nós duas então passamos um bom tempo conversando sobre
como o mundo realmente tá mudando e eu não sei mais se ainda tenho
tantas saudades daqueles velhos tempos..

41
A LINGUAGEM NA VIDA

As duas amigas continuam engajadas na conversa por mais alguns mi-


nutos, antes de se despedirem, trocando telefones para criar um grupo no
WhatsApp e rememorar os velhos tempos.

O diálogo que abre este capítulo ilustra uma situação comum em


nosso cotidiano: encontros recheados de lembranças sobre a época es-
colar das pessoas. Enquanto uma colega elogia a maneira como foram
educadas e tece comentários nostálgicos sobre o período escolar (“Que
saudades da nossa turma”; “Que saudades do respeito que os alunos ti-
nham pelos professores!”; “Ninguém dava um pio nas aulas. ”), a outra,
mesmo demonstrando saudades, aponta questionamentos sobre aque-
le período (“[.. ] fiquei pensando que o mundo realmente está mudando
e eu não sei mais se ainda tenho tantas saudades dos bons tempos. ”).
Enquanto uma parece não gostar que aconteçam discussões em sala
de aula, nem do fato de as alunas terem espaço para se expressarem
(“Pra mim, essa história de pensamento crítico é o que está virando esse
mundo de cabeça pra baixo. ”), a outra valoriza a possibilidade de deba-
tes e de posicionamentos distintos (“O mundo está mudando. Os jovens
têm mais confiança para expressar suas opiniões. Isso é bom, não é?”).
Acreditamos que um exame atento da conversa nos ajuda a refletir so-
bre as lentes usadas por cada uma das colegas para interpretar o mun-
do de maneiras tão distintas. Talvez você esteja se perguntando o que
a linguagem tem a ver com isso.
Pois bem: como explicamos no primeiro capítulo, entendemos
que a linguagem e nossas experiências no mundo fazem parte de quem
nós somos; desse modo, nossos pensamentos, emoções, mentes e cor-
pos são formados em nossas vivências, que por sua vez formam qua-
dros de referências a partir dos quais agimos. Cenas como essa entre
as colegas são de interesse dos estudos da linguagem, porque são pau-
tadas em compreensões distintas de educação, leitura e linguagem, e
podem nos ajudar a construir outros entendimentos sobre situações
do nosso cotidiano, como essas trazidas na narrativa apresentada.
Neste capítulo, vamos abordar dois temas relevantes aos estudos
da linguagem: a noção de leitura e a de letramentos. Para discutir-
mos esses temas, partimos do princípio de que alguns dos objetivos
da escola devam ser que o processo educacional contribua para que

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A LINGUAGEM NA VIDA

estudantes: a) aprendam a conviver com o diferente de forma ética


e responsável; b) entendam que nossas ações são sociais; por isso,
também são políticas; c) percebam que nossas compreensões são con-
textualizadas e contingentes, pautadas em entendimentos e vivências
diversas, e que as linguagens (verbal, visual, sonora, auditiva, emocio-
nal, corporal) têm papel fulcral neste processo, como veremos em mais
detalhes no terceiro capítulo. Então cabe nos perguntarmos: será que
as perspectivas de educação e leitura das participantes da narrativa
possibilitam alcançar tais objetivos?

O que entendemos por leitura?

Iniciamos o capítulo anterior com uma discussão sobre os di-


ferentes entendimentos de linguagem. Naquela discussão, buscamos
deixar claro nosso posicionamento de que entendimentos de lingua-
gem enquanto língua, ou seja, como um instrumento de comunicação
entre duas ou mais pessoas, ou como um sistema de estruturas determi-
nadas a priori, são bastante limitados. Isso porque, como explicamos,
a língua, para nós entendida como linguagem, constitui quem somos,
e com ela construímos não apenas significados, mas identidades, rela-
ções, emoções, dentre diversas outras coisas. Pensemos novamente em
como a linguagem constrói identidades e relações, como ilustrado com
o exemplo de “Bom dia” no capítulo anterior.
É importante lembrar que essas relações e identidades nem
sempre são tão positivas como no caso do exemplo de “Bom dia”. Em
tempos de trocas em mídias sociais, fica cada vez mais evidente o poder
destrutivo da linguagem no que se refere a identidades e relações. O
uso de fake news pode destruir a imagem pública de pessoas importan-
tes, por exemplo; assim como imagens e ideias que as pessoas postam
em suas redes podem criar para si identidades pouco favoráveis, o que
pode afetar suas relações com outras pessoas.
Vimos também que a linguagem se constitui contingencialmen-
te nas interações que temos com o mundo, sendo portanto, mutável,
aberta a alterações tanto momentâneas (ou seja, que ocorrem apenas
em uma determinada situação de interação e não se repetem), como
mais duradouras (mudanças que se generalizam e passam a fazer parte
do linguajar de uma comunidade inteira, por exemplo). Basta olharmos

43
A LINGUAGEM NA VIDA

para as gírias, e como algumas delas permanecem e outras desapare-


cem: elas marcam identidades, definem o pertencimento de alguém a
certa comunidade, a certa faixa etária, ou mesmo a certa classe social.
Modos de falar são bons exemplos de como as mudanças podem ser
temporárias (quem viveu nos anos 60 e não lembra do “É uma brasa,
mora”?), ou podem vir para ficar, como é o caso de “cara”. Também
na escrita tais mudanças ocorrem: lembremos das abreviaturas usadas
em trocas de mensagens na Internet (como “vc”, “pfv”, “obg” e tantas
outras) e das reformas ortográficas, para citar dois exemplos.
Neste capítulo, beberemos um pouco das reflexões apresentadas
sobre linguagem anteriormente para discutirmos o que está envolvido
em nossas práticas de leitura. Observemos os seguintes enunciados de
Ana:

“A gente prestava atenção, copiava o que estava no quadro


e estudava. ”; “Passava noites memorizando conteúdos. ”;
“Hoje parece que o que menos interessa é a matéria que eles
ensinam. ”

“Hoje vejo minha filha adolescente falar que é importante


ter pensamento crítico, que não dá para confiar cegamente
no que a gente lê. Sei não. Pra mim, essa história de pensa-
mento crítico é o que está virando esse mundo de cabeça pra
baixo. Que história é essa que não dá para confiar no que a
gente lê?! Você não imagina o que aconteceu outro dia! Não é
que minha filha veio dizer que eu estava compartilhando fake
news no grupo de WhatsApp da família!”

Quando Ana fica indignada diante da possibilidade de não poder


“confiar no que a gente lê”, depreendemos um entendimento de lei-
tura como decodificação, decifração de textos e de educação focada
exclusivamente em conteúdos selecionados a priori, os quais devem
ser memorizados pelas aprendizes. O que seria exatamente entender
leitura como decodificação e decifração de textos? Primeiramente, tal
ideia compreende a leitura como sendo a identificação de letras, a as-
sociação dessas letras com determinados sons da fala, a construção de
sílabas a partir da junção de diferentes letras, e, posteriormente, a me-
morização e o reconhecimento de palavras diversas às quais se pensam

44
A LINGUAGEM NA VIDA

estar associados significados específicos. Isso seria o que se entende


por decodificar. A decifração de textos, por sua vez, diz respeito ao en-
tendimento de que cada texto traz em si um sentido que foi construído
pela sua autora, que deve ser compreendido, tal e qual, pela leitora.
O papel da leitora, assim, é passivo, uma vez que a ela cabe o simples
trabalho de decodificar palavras isoladamente e, mais tarde, agrupar
os significados de cada palavra de modo a chegar à “compreensão” do
texto. Nesta maneira de entender o que é ler, portanto, pouca atenção
é dispensada às ideias geradas no ato da leitura de um texto e, assim, a
leitora é simplesmente a receptora de um sentido que supostamente já
fora atribuído ao texto previamente.
Decodificação e decifração dominaram o trabalho com alfabeti-
zação no Brasil por décadas. Baseado num processo de alfabetização
pela imagem, tal trabalho começava com a apresentação das letras
associadas a imagens, como em “abelha”, na qual a letra A aparecia
inserida na imagem de uma abelha. Depois de reconhecidas as letras,
o foco recaia na silabação e, nos anos seguintes, o trabalho com lei-
tura focava na decodificação, com atividades de busca de informação
factual que supostamente estaria dentro dos textos. Vamos pensar, por
exemplo, sobre a história da Branca de Neve e os Sete Anões. Num li-
vro didático que partisse da concepção de leitura como decodificação,
provavelmente, encontraríamos uma atividade desse tipo:

Leia o texto e responda:

1. Quem era a personagem principal da história?


2. O que ela comeu?
3. O que aconteceu com ela?
4. Como se chamava cada um dos Sete Anões?
5. Quem era a inimiga da personagem principal?
6. A história acontece no presente ou no passado? Copie do texto
três exemplos de verbos para comprovar sua resposta.

45
A LINGUAGEM NA VIDA

Apesar de serem comuns, perguntas como essas apenas desen-


volvem a habilidade das leitoras em localizar informações no texto.
Esse entendimento de leitura, em que somente uma resposta parece
possível, não reconhece nem valoriza as interpretações que cada leito-
ra constrói com o texto. A compreensão dos sentidos aqui é baseada no
que é estabelecido como correto por alguém com autoridade para tal
(a autora do livro didático e/ou a professora, por exemplo). É como se
textos fossem entendidos por todas as pessoas de uma única maneira.
Essa visão de leitura se aproxima bastante da visão de educa-
ção bancária, como vimos no capítulo anterior, em que a função da
escola, e da professora, seria depositar nas cabeças das alunas conteú-
dos avaliados a priori como imprescindíveis para a compreensão do
mundo como ele supostamente seria, independentemente do contex-
to das alunas, da professora, da escola. A falta de espaço para discus-
sões e questionamentos seria natural, pois o objetivo do ensino seria a
transferência técnica de conhecimentos incontestáveis, ou pelo menos
incontestavelmente presentes nos textos, desconsiderando questões
sociais, históricas, emocionais, cognitivas, que poderiam influenciar o
processo de atribuição de sentidos aos textos e aos conhecimentos que
supostamente estariam contidos neles.
No caso do trabalho com línguas, por exemplo, importaria traba-
lhar com um conjunto de vocábulos e regras, de modo cumulativo, do
simples para o complexo, e ensinar como decodificar os textos escritos,
ou seja, como encontrar neles os sentidos que se supõe que a autora te-
nha inserido neles. Esse olhar para a educação informa compreensões
como a de Ana, na narrativa que abre este capítulo, o que a leva em de-
fesa da época em que professoras falavam sem serem interrompidas ou
questionadas e que, para aprender, era preciso despender muito tempo
memorizando conteúdos. Claro: se só importam os significados que
as autoras dos textos imprimem a eles, e se esses significados estão
fixados nos textos, independentemente de quem os lê, então não há
discussão cabível. Como disse Laura em referência à sua própria esco-
larização, “É assim porque é, e pronto!”. Ponto.
Mas para nós, em vez de “ponto”, é “vírgula”. Conforme estu-
dos em educação linguística, mais especificamente sobre processos

46
A LINGUAGEM NA VIDA

de ensino e aprendizagem, o processo de ler acontece de forma mais


complexa do que a simples decodificação e decifração de sentidos que
tenham sido atribuídos aos textos antes de cada situação de leitura.
Para nós, há várias dimensões a serem observadas quando pensamos
em práticas de leitura. Todas elas têm implicações importantes sobre
nossos processos de construção de sentidos.
Uma dessas dimensões está associada a quem desempenha o ato
de ler. É importante ter em mente que ao ler (e até mesmo antes de ler)
um texto, as leitoras fazem inferências a partir de seus conhecimentos
prévios. Tomemos como exemplo a capa do seguinte livro infantil, es-
crito por Lenira Almeida Heck, ilustrado por Adriana Dessoy e dispo-
nível no Portal Domínio Público.
Ao simplesmente olhar para a capa
do livro exibida ao lado, leitoras de várias
idades poderão inferir sobre a história
que irão ler: sobre suas personagens, seu
enredo, seu contexto/ambiente, o tom da
história (se será feliz ou triste, por exem-
plo), dentre diversos outros fatores. Essas
inferências são construídas com base nas
experiências prévias e nas relações que
cada leitora estabelece com aquilo que lê.
Inferir não significa que serão capazes de
saber a história antes de lê-la (ou de al-
guém lê-la para elas), mas que serão capazes de fazer suposições, dar
palpites sobre a história, prevendo o que poderá acontecer durante a
leitura do livro. Dizer que fazemos inferências ao lermos significa, por
exemplo, que não estamos apenas decodificando e decifrando senti-
dos pré-estabelecidos, mas que o processo de ler envolve ativar vivên-
cias anteriores, criar expectativas, construir hipóteses, checar se essas
hipóteses que fazemos sobre determinada leitura (antes e durante o
contato com o texto impresso) se confirmam ou não, e tomar decisões
sobre o que nos interessa e o que não é tão importante assim para cada
uma de nós.

47
A LINGUAGEM NA VIDA

Uma outra dimensão da prática de leitura se refere ao que é per-


cebido como texto. A construção dos sentidos acontece para além das
letras, sílabas e palavras que encontramos. Ela se relaciona com ele-
mentos visuais e sensoriais como imagens, cores, texturas, formas,
cheiros, sabores, etc. Muitas pessoas se encantam, por exemplo, com o
cheiro de um livro novo, com a textura de determinado tipo de papel,
não é mesmo? Nossas experiências de leitura e de vida, nosso estado
físico, mental, emocional fazem parte de cada leitura, como aponta-
mos acima ao pensarmos em quem realiza a leitura. Em outras pala-
vras, a leitura é construída em várias dimensões simultâneas, a partir
de vários elementos e das formas como concebemos esses elementos
com base em nossas experiências anteriores, e também de como nos
sentimos no momento de cada ato de ler.
Não estamos com isso dizendo que qualquer entendimento seja
válido ou correto pelo simples fato de a leitora trazer para a leitura
suas interpretações. Dizemos, sim, que mais de um entendimento so-
bre um texto, a partir das vivências das leitoras e de cada experiência
de leitura, é possível. O mais importante é aprendermos a identificar
os elementos que indicam quando uma leitura é válida ou não, ou me-
lhor, quando uma interpretação será aceita socialmente, no contexto
em que a leitura é realizada.
Dessa forma, entendemos ser papel da escola oportunizar espa-
ços em que as alunas leitoras se sintam capazes de construir sentidos,
de conversar com os textos que leem, de trazê-los à vida; e para que
também sejam capazes de entender e explicar de onde vêm os sentidos
que elas estão atribuindo aos textos, por que elas entendem determi-
nado texto de certo modo, e por que outras pessoas podem (e prova-
velmente irão) entender de outras formas. Isso sem falar na riqueza
em conversar com outras leitoras sobre as implicações desses sentidos,
sobre as pessoas, sobre as consequências que os sentidos têm no mun-
do, sobre como alguns sentidos fazem bem, e outros não. Para nós tais
conversas são, ou deveriam ser, a cereja do bolo da atividade de leitura,
tanto na escola quanto na vida.
Em nossa experiência como professoras e leitoras, essa perspec-
tiva de leitura é diferente daquela muitas vezes praticada no ensino

48
A LINGUAGEM NA VIDA

formal, com provas escolares concebidas de forma mais tradicional,


principalmente nas famosas questões de múltipla escolha nas quais
os sentidos de certo e errado estão pré-determinados. Vale lembrar
aqui o caso do cantor Nando Reis, que discordou do gabarito de duas
questões de uma prova de vestibular que se baseavam em uma de suas
canções. Em um show subsequente, o cantor chegou a ironizar o fato
quando disse ao público: “Vou Te Encontrar, ao vivo, sem reticências
e com resposta de sua livre escolha”1. Para ele, assim como para nós, a
“escolha” de uma múltipla escolha não é “livre”, uma vez que restringe
as possibilidades de sentidos para a música.
A última dimensão do processo de leitura que destacamos diz
respeito à nossa compreensão de que ler é uma atividade social, e que,
portanto, vai além de compreender e interpretar as linhas e as entre-
linhas de um texto. Como já sinalizamos anteriormente, Paulo Freire
critica a abordagem que foca na transmissão de conteúdos e na deco-
dificação de enunciados aparentemente neutros, como Eva vê a uva.
Para Freire, seria preciso problematizar o que é lido, refletindo sobre,
por exemplo, quem plantou as uvas e quem lucra com isso. Seria in-
dispensável compreender posições sociais e entender que conhecer e
saber são parte integral de nossa personalidade, nossa constituição ci-
dadã. Vemos aqui a distinção entre leitura como decodificação e o que
chamamos de leitura a partir da palavra-mundo. Enquanto a primeira
perspectiva ocupa-se em ensinar a língua de forma neutra, apolítica,
atemporal, a segunda entende que a linguagem é social e, portanto,
está sempre carregada de valoração, ou seja, de ideologia. Numa ana-
logia com o ensino de ciências, por exemplo, a primeira perspectiva
seria o equivalente a que as alunas memorizassem a fórmula da água,
H2O, e pronto. Na segunda, as alunas discutiriam sobre os sentidos da
água em suas vidas e nas vidas de outras pessoas, podendo conversar
sobre as implicações da poluição ambiental e também sobre questões
econômicas e sociais que lhes permitem ter água potável e saneamen-
to básico, muitas vezes inacessíveis a outras pessoas, por exemplo. Ao
discutir tudo isso, aprenderiam a fórmula da água como uma espécie
de efeito colateral de toda essa problematização. Estariam, desse modo,

1 <https://twitter. com/nando_reis/status/941361327150387202>.

49
A LINGUAGEM NA VIDA

operando na perspectiva da palavra-mundo, que não separa o enten-


dimento da palavra do entendimento do mundo; ou seja, a idéia de
palavra-mundo enfatiza a relação entre a leitura da palavra e a leitura
do mundo.
Essa prática de ler a palavra e o mundo se refere também a ler
e buscar entender as realidades que nos constituem. Queremos dizer
com isso que o ato de ler não é independente da própria leitora nem
do mundo (do contexto social, cultural, ambiental, etc. ) onde ela está
inserida. Pelo contrário, a leitura traz consigo a importância de que
possamos refletir e dialogar sobre nossas próprias vivências em cada
um dos nossos contextos – com a uva, com a fome, com a água, com a
falta de água, com as borboletas, plantas e demais elementos da fauna
e flora (no caso da leitura do livro A Borboleta Azul, ilustrado acima), e
com nossas relações com cada um desses elementos.
Por isso importa, e muito, compreendermos o que são letramen-
tos e como eles se diferenciam de alfabetização, em nossa concepção
de leitura. Vamos, então, a essa questão.

O que entendemos por letramentos?

Nosso entendimento sobre leitura, como pudemos ver na seção


anterior, é diferente daquele que informava (e, em alguns casos, ainda
informa) os processos de alfabetização em várias escolas brasileiras.
Em nossa concepção de leitura o papel protagonista é da leitora, prin-
cipal encarregada na produção de significados.
Para entender melhor essa perspectiva, precisaremos adentrar
aqui na discussão sobre autonomia e ideologia, que embasa nossa com-
preensão de linguagem e leitura. Vimos anteriormente que o processo
de alfabetização percebe o contato com a leitura da palavra de forma
isolada de questões sociais, como se os textos fossem um amontoado
de sinais aos quais existem sentidos fixados previamente, sentidos que
um bom processo de leitura reconheceria e reproduziria. E voilá, temos
uma boa leitora. Ponto.

50
A LINGUAGEM NA VIDA

Mas, como já dissemos, em nossa concepção, é “vírgula” e não


“ponto”. Não entendemos esse modo de ler como caracterizando uma
boa leitora, mas uma leitora conformada a reproduzir sentidos dispo-
nibilizados a ela. Uma leitora passiva, cordata, que reconhece e repro-
duz. Para nós, uma boa leitora é aquela que produz sentidos, que dialo-
ga com os textos, que se transforma no contato com eles. Essa forma de
entender a leitura se relaciona, nos estudos da linguagem, com o que
entendemos por letramentos. Assim, letramentos são sempre ideoló-
gicos. Isso quer dizer que, como processos de produção de sentidos no
mundo, nossas práticas de leitura nunca são apenas da palavra, mas
sempre da palavra e do mundo, juntos, em processos interpretativos
carregados de valores e relações de poder: lemos sempre a palavra-
-mundo, como vimos anteriormente.
Quando pensamos em letramentos, entendemos que a produção
de sentidos vem sempre ancorada em procedimentos que se situam em
contextos específicos, procedimentos que são construídos, valorados
e hierarquizados socialmente por determinados grupos de pessoas.
Os conteúdos escolares, por exemplo, não são escolares por acaso: al-
gumas parcelas da sociedade sancionam tais conteúdos como sendo
(mais) relevantes para serem ensinados e com o passar do tempo, va-
mos esquecendo que eles foram escolhidos, e passamos a vê-los como
se fizessem naturalmente parte dos currículos. Foi o caso, por exem-
plo, das disciplinas de Educação Moral e Cívica e OSPB (Organização
Social e Política do Brasil), obrigatórias nos currículos em 1969, em
substituição à Filosofia e Sociologia durante o período da ditadura no
Brasil. Mais recentemente, essas duas últimas disciplinas foram nova-
mente retiradas do currículo, como se tivessem deixado de ser relevan-
tes. Tais movimentos de retirada e inclusão de disciplinas se ancoram
em ideologias específicas, ou seja, ações, atitudes, comportamen-
tos, pensamentos, interpretações se realizam a partir das lentes que
utilizamos, das visões de mundo construídas socialmente em nossas
vivências em diferentes contextos. Por isso, longe de serem neutras,
são sempre construídas ideologicamente, a partir de valores especí-
ficos. Com isso estamos dizendo que todas as pessoas têm ideologias,
uma vez que nossas perspectivas são construídas de acordo com certos

51
A LINGUAGEM NA VIDA

quadros de referência e não caem do céu. Veremos melhor essa ques-


tão no próximo capítulo. Por ora, voltemos a nossos letramentos.
Ao pensarmos em letramentos como sendo sempre ideológicos,
percebemos que algumas formas de ler e construir sentidos são domi-
nantes e outras são marginalizadas. Infelizmente, a escola por vezes
tem sido um espaço que privilegia conhecimentos associados a grupos
sociais dominantes, invisibilizando e/ou inferiorizando aquilo e aque-
las que não fazem parte desses grupos. Desse modo, a escola, muitas
vezes, perde a oportunidade de fazer contato com uma enorme varie-
dade de conhecimentos que poderiam contribuir para um mundo mais
plural e assim mais inclusivo e acolhedor.
Tal valorização de certos letramentos, em detrimento de outros,
no espaço escolar e a compreensão desse trabalho como neutro e im-
parcial reforçam formas específicas de ser, saber e poder, contribuindo
para a manutenção de certo status quo, que privilegia uma parcela da
população, discriminando e autorizando a desvalorização de outras
formas de existência dentro ou fora do espaço escolar. As formas de
contar uma história, por exemplo, são várias, mas quando a escola le-
gitima apenas alguns modos de contar, certas formas de organizar os
acontecimentos no tempo, de marcar mudanças temporais e, com isso,
inferioriza e invisibiliza outras formas, ela deixa de ser inclusiva e si-
lencia modos de narrar que existem fora desse conjunto pré-determi-
nado. Essas escolhas não são neutras, mas sim ideológicas.
Nessa altura, você deve estar se perguntando que coisa é essa
de letramentos, o que isso tem a ver com leitura e com linguagem.
Tem tudo a ver. Praticamente tudo o que discutimos até agora se re-
laciona ao que entendemos como letramentos. Quando falamos em
letramentos estamos nos referindo a práticas sociais de linguagem, ou
seja, às formas em que existimos na linguagem nos diversos contextos
de que fazemos parte, dentro e fora da escola. Assim, letramentos vão
para além do que se diz ou do que se lê, englobando comportamentos,
atitudes, pensamentos, procedimentos, conhecimentos relacionados
aos espaços onde vivemos. Letramentos são protocolos, são coisas di-
tas e não-ditas que informam nossas ações em contextos específicos e
que nos possibilitam interagir, compreender, transformar estruturas

52
A LINGUAGEM NA VIDA

que regulam nossas práticas sociais. Letramentos envolvem também


nossos contatos com livros, com ideias, com pessoas, com animais, en-
fim, com seres de toda sorte. Ou azar.
Você já atentou para como a gente reconhece quando uma pes-
soa é recém-chegada numa rede social com que estamos acostumadas,
por exemplo? Pode ser que seja porque ela não segue o “protocolo” não
dito, aquelas “regras” de comportamento que a gente nunca comenta
mas segue sem nem perceber? Isso também ocorre em jogos de video-
game online; jogadoras experientes logo percebem os comportamen-
tos “não-comuns” de novatas. Podemos pensar também nos compor-
tamentos característicos de núcleos familiares, e de como eles mudam
de uma família para outra. Tudo isso envolve letramentos, uma vez
que estão em jogo nossas percepções sobre os ambientes em que esta-
mos, as pessoas e/ou objetos, plantas e animais com os quais interagi-
mos, como entendemos quais os tipos de comportamento esperados e
como respondemos a eles, por exemplo. Consequentemente, falamos
em letramentoS para destacar a multiplicidade dessas práticas.
No contexto escolar, as práticas de letramento também seguem
determinados protocolos, ou seja, é preciso conhecer os comporta-
mentos e atitudes que as caracterizam para poder se sentir à vontade
dentro delas, ou mesmo para poder questionar tais práticas. A escola,
nesse sentido, muitas vezes reconhece melhor as práticas de letramen-
tos de certas comunidades do que de outras. Não apenas reconhece,
mas também legitima. É importante percebermos quem está inseri-
da nesses letramentos e quem não está. Além disso, os letramentos
privilegiados em determinadas escolas podem ser diferentes daqueles
privilegiados em outras, pois letramentos são práticas situadas, con-
tingentes. Muitas vezes a escola penaliza as alunas que não correspon-
dem aos letramentos escolares legitimados por ela, rotulando-as como
más aprendizes quando elas estão simplesmente aprendendo de forma
diferente, ou mesmo quando os conteúdos e as práticas escolares não
são desafiadoras ou não fazem sentido para elas.
Uma das práticas de letramento extremamente importante
para a formação da cidadania é o que temos chamado de letramento

53
A LINGUAGEM NA VIDA

crítico, ou seja, uma atitude crítica. Voltemos a esse trecho no final da


conversa entre Laura e Ana, em que Laura pergunta:

Ana, você não acha que, com a Internet e a quantidade de textos


que surgem a todo momento tratando dos mesmos assuntos de
maneiras diferentes, se a gente não desconfiar, não questionar,
a gente vai comprar muito gato por lebre?

Laura não quer comprar gato por lebre, então ela pede que a ami-
ga desconfie, questione. Nós diríamos que Laura está sugerindo a Ana
que desenvolva seu pensamento crítico.
Ler criticamente exige, cada vez mais, que consideremos a justa-
posição de diversas culturas, modos de pensar, maneiras de existir no
mundo. Essa complexidade aparece ainda mais evidentemente agora
do que em outras épocas, e portanto se torna inegável; não podemos
ler o mundo de forma ingênua, como dizia Paulo Freire. Reconhecer
essa diversidade constitutiva do mundo contemporâneo nos impede
de sequer imaginar que os sentidos sejam “dados” e “incontestáveis”.
No entanto, quando Ana protesta dizendo “Que história é essa que não
dá para confiar no que a gente lê?!”, ela está remetendo à ideia de que
existiriam sentidos contidos no texto, e que esses sentidos deveriam
ser resgatados na leitura, independentemente das outras dimensões
da leitura que já vimos neste capítulo.
Paulo Freire afirma que esta maneira de ler, pressupondo a deco-
dificação e a decifração, é uma maneira ingênua de se relacionar com a
linguagem, e precisa ser substituída por uma forma de ler mais rigoro-
sa. Tal forma de ler não pode deixar de se pautar num processo cons-
tante de reflexão crítica, em que o ato de produzir sentidos na leitura
se coloca num processo contínuo de questionamento, movimento no
qual as leitoras se indagam incessantemente sobre os procedimentos
de leitura de que lançam mão para entender os textos. No caso da afir-
mação de Ana sobre “confiar” no que se lê, uma forma crítica e produ-
tiva de ler seria, por exemplo, se perguntar:

• Quais as características que eu percebo no texto compartilhado


que me levam a acreditar nele?

54
A LINGUAGEM NA VIDA

• Com base em quais experiências e leituras anteriores, eu percebo


essas características como estando presentes no texto?
• Quais outras formas de ler esse texto poderiam existir? Existe
mais alguém que esteja entendendo o texto como eu? Por que
leio da forma como leio?
• Que relações tem esse texto com acontecimentos históricos, po-
líticos, sociais, econômicos – recentes ou distantes no tempo?
• Como esse texto se relaciona com outros textos de quem o as-
sina? A autora me parece ser coerente com o que escreveu em
outros textos?
• Em que situação esse texto foi escrito (em casa, ao longo de vá-
rios dias, em reação a algum acontecimento recente, no calor da
notícia, durante um ano inteiro, etc. )?
• Em que situação esse texto está sendo lido (logo após tomar co-
nhecimento de uma notícia, alguns anos após um acontecimen-
to a que o texto se refere, antes de ter lido outros textos sobre o
mesmo assunto, etc. )?
• O grupo social ao qual pertence a autora do texto é o mesmo
grupo social ao qual eu pertenço?
• Quando compartilho esse texto, por que faço isso?
• Que impactos, desdobramentos este texto pode causar em mim e
nas pessoas com as quais compartilho?

Esses são alguns dos questionamentos que podemos fazer quan-


do lemos de modo crítico, colocando-nos como corresponsáveis, jun-
tamente com as comunidades em que existimos, pelas construções de
sentidos no ato de ler (e escrever), por nossas interpretações, reconhe-
cendo que elas inevitavelmente estarão atreladas aos nossos juízos de
valor. Tais juízos são estabelecidos a partir dos sentidos legitimados e
compartilhados pelas coletividades, pelas comunidades às quais per-
tencemos, nas quais vivemos antes e agora.
Não estamos dizendo que essas questões deveriam ser abordadas
com qualquer texto em qualquer situação de leitura. Como dissemos

55
A LINGUAGEM NA VIDA

antes, letramentos são práticas contextualizadas, situadas, que depen-


dem dos espaços em que acontecem e das pessoas que existem neles.
Tomando esses questionamentos, podemos pensar em como faríamos
uma leitura crítica da história da Branca de Neve, por exemplo, numa
sala de aula do segundo ano do Ensino Fundamental I. Poderíamos
discutir as seguintes questões:

• Você gosta dessa história? Por quê?


• Você gostaria de ser a Branca de Neve? Por quê (sim/não)?
• Você gostaria de ser a bruxa/madrasta? Por quê (sim/não)?
• Quais as opiniões de suas colegas sobre a Branca de Neve? E
sobre a bruxa/madrasta? Por que será que elas acham isso?
• Você relaciona essa história com outras que você conhece?
• Essa história tem alguma coisa a ver com sua vida fora da
escola?
• Vamos imaginar uma história diferente entre a Branca de Neve
e a madrasta? Imagine as duas como parceiras. Que perguntas
elas poderiam fazer para o espelho mágico?

O conjunto de percepções, crenças, desejos, modos de ver o mun-


do, valores, etc. , ou seja, o que nos constitui, o que somos e em que
acreditamos, influencia as nossas construções de sentidos e podem nos
indicar os motivos pelos quais interpretamos um texto de uma forma
e não de outra; quais são as nossas convicções sociais em relação aos
grupos sociais aos quais pertencemos – a comunidade profissional, re-
ligiosa, familiar, escolar. É neste sentido que o processo crítico de “ler
se lendo”, como disse a filha da Laura, na narrativa de abertura deste
capítulo, se torna um exercício fundamental para a vida em sociedade.
Em nosso entender, pessoas de qualquer idade são capazes de tornar
discussões como essas em espaços de grande aprendizagem sobre a
vida, sobre o mundo. Não existem respostas certas ou erradas: são per-
guntas para fomentar discussões e reflexões sobre quem somos, quem

56
A LINGUAGEM NA VIDA

são as outras pessoas em nosso entorno, e assim desenvolver uma vi-


são plural e inclusiva, que se abre para quem pensa diferente de nós. A
escola, na perspectiva do letramento crítico, é um espaço privilegiado
para a formação cidadã que promove a convivência com as diferenças.
O crítico do letramento crítico que mencionamos acima está,
portanto, atrelado a um processo de questionamento constante, não
somente sobre as realidades percebidas nos textos e discursos nos
quais circulamos, mas também sobre as interpretações que construí-
mos. Nossas interpretações são geradas em relação a entendimentos
sociais, e por isso são sempre situadas, relativas a espaço e tempo es-
pecíficos, pautadas em várias dimensões da nossa existência, ou seja,
sempre contingentes.
Um aspecto que gostaríamos de retomar, presente também na
narrativa de abertura deste capítulo, mais especificamente na fala de
Laura, diz respeito ao trabalho com imagens, ou letramento visual,
em sala de aula. Lembremos quando ela comentou com surpresa o fato
de a filha dizer que é possível ler imagens. Talvez a surpresa de Laura
estivesse no fato de podermos “ler” uma imagem; talvez no fato de
que sua filha tivesse desenvolvido tal percepção aguçada sobre a lin-
guagem. De qualquer modo, entendemos, juntamente com a filha de
Laura, que imagens também precisam ser lidas e, como qualquer outra
forma de linguagem, é necessário entender que elas não são imparciais
ou neutras, nem têm a intenção de ser. Uma imagem é uma leitura rea-
lizada por alguém: uma fotógrafa, uma pintora, uma artista plástica,
uma designer gráfica.
As imagens também têm autoria, como os textos verbais; elas
também são textos na medida em que as entendemos como unidades
de sentido. Assim, as leituras que fazemos das imagens, assim como
dos textos verbais conforme vimos acima, dependem do olhar e das
intenções de quem as produz, mas também precisam de uma reflexão
crítica partindo de um olhar não ingênuo, um olhar que leve em conta
o “ler se lendo”. Decisões sobre enquadre, ângulo, plano de fundo e
posicionamento, por exemplo, interferem nos efeitos que uma imagem
pode causar em quem a lê. Em uma sociedade cada vez mais dinâmi-
ca, plural e com várias tecnologias de produção textual (analógicas e

57
A LINGUAGEM NA VIDA

digitais), pensar em texto como sendo verbal e/ou não-verbal permite


considerar a leitura como uma prática para além das palavras impres-
sas, assim como pensar em letramento vai muito além de pensar em
decodificação e decifração de textos.
Na verdade, a ideia de letramentos costuma ser expandida para
pensarmos em como todos os nossos sentidos contribuem nos pro-
cessos de leitura. Inclusive, é importante ressaltar que pessoas com
pouca ou nenhuma visão, com dificuldade de ouvir ou surdas, também
leem, também produzem sentidos com seus sentidos. Isso significa
que ler é uma atividade que não está limitada à palavra impressa, ao
verbal, ao visual: ao ler, lançamos mão de qualquer recurso disponível
na linguagem.
Por isso, modos de ler tradicionais, baseados na palavra impres-
sa, não são adequados para formas de ler e interpretar o mundo, ainda
mais quando se consideram textos em dispositivos móveis ou diferen-
tes tecnologias de comunicação e informação que usamos atualmente.
Várias pesquisadoras da área de estudos da linguagem afirmam que
os modos de ler e de produzir textos em meios digitais são diferentes
daqueles que usamos no meio tipográfico. Práticas contemporâneas
educacionais precisam levar em conta as características das práticas de
linguagem atuais nas quais produzimos sentidos para além daquelas
do mundo tipográfico, com o uso dos mais diversos recursos presentes
no nosso cotidiano.

Afinal, por que tratar de leitura e de letramentos?

Na narrativa de abertura deste capítulo, Laura nos faz pensar so-


bre como a educação tem buscado responder às práticas de leitura em
que vivemos. Talvez para Laura seja importante e necessário desen-
volver em sala de aula práticas voltadas para as realidades das alunas,
valorizando a pluralidade de conhecimentos e modos de ver o mundo
que existem também fora da escola; talvez Laura queira fazer da edu-
cação de suas alunas um exercício de diálogo que as leve a respeitar o
direito de ser e existir de diferentes maneiras no mundo, bem como a

58
A LINGUAGEM NA VIDA

valorizar essas diferenças. Sim, talvez para Laura a escola seja o lugar
de aprender com o que é diferente de si, de crescer nessa aprendiza-
gem, de conviver com a produtividade do encontro, mesmo que geral-
mente conflituoso, com modos diversos de pensar, ser, fazer.
Acreditamos que Laura possa pensar na escola dessa forma.
Desejamos que Laura pense assim, pois, como professora, ela aceitará
em sua sala de aula os jeitos peculiares de existir que identificam nos-
sas filhas, sobrinhas, primas como pessoas únicas que são. Se Laura
estiver pensando dessa forma, ela estará compartilhando conosco o
que entendemos como letramento crítico. Nossas leituras sobre o que
pensa Laura, como toda e qualquer leitura, são situadas, contingentes
e emergem da maneira como entendemos a linguagem e seu impac-
to em nossas identidades e práticas sociais. São leituras desejosas de
uma escola acolhedora para todas, repleta de diferentes linguagens e
democrática, que ensine a conviver. Não sabemos com certeza se Laura
pensa assim, mas são essas compreensões cheias de esperança que
atribuímos aos comentários da professora Laura, e que gostaríamos de
também atribuir ao trabalho com leitura Brasil afora.

59
A LINGUAGEM NA VIDA

LINGUAGEM E (DES)HUMANIDADE NAS


REDES SOCIAIS

Assim que Laura termina suas aulas online após um longo dia de tra-
balho, ela confere suas mensagens de WhatsApp enquanto degusta um
bom café feito em casa. Nisso, Laura se envolve em uma conversa no
grupo da família.

Andréia
Vocês viram essa história de um novo vírus
e a campanha para ficarmos em casa, né?
#FicaEmCasa. A minha chefe, Dra. Vanessa,
mandou avisar. A Laura já está dando
aulas online faz duas semanas!

Marcelo
Ficar em casa? Como assim? Vamos fazer a
economia parar. #BrasilNãoPodeParar.

João
Pois é, como vamos fazer isso? Só as
escolas é que vão conseguir! E os pais
que trabalham? O que vão fazer com as
crianças?

Andréia
Gente, precisamos manter o isolamento.
É hora de parar, de ficar em quarentena e
proteger a todos nós. Quem pode, precisa
trabalhar à distância. Quem trabalha em
serviços essenciais, como Júlia e Alison,

60
A LINGUAGEM NA VIDA

vão trabalhar, tomando os cuidados


necessários. #FicaEmCasa.

Pedro
Será mesmo que precisamos ficar em
casa? Eu estou em casa há uma semana e
não aguento mais. Ficar trancafiado por
causa de uma gripezinha não faz sentido.
Além disso, vejam os encontros entre
Doria, Lula, FHC etc. com os chineses. Será
que não é tudo invenção chinesa?

Laura
Invenção chinesa? Que irresponsabilidade!
#FicaEmCasa. Aproveitem pra perceber o
quanto o corre-corre diário nos absorve
e, muitas vezes, nos distancia dos valores
mais preciosos da humanidade. Curtam
a quarentena e busquem momentos de
reflexão, de conforto e aconchego na
família, nas amizades, na natureza, na arte.
Pelo amor de Deus, é hora de salvar vidas,
de mostrar empatia.

Andréia envia os índices oficiais com número de suspeitos, descarta-


dos, confirmados e óbitos na cidade.

Marcelo
Mas e a economia? Eu enxergo o
lockdown vertical como uma estratégia
para manter pequenos e médios negócios.
Não acha, Laura? #BrasilNãoPodeParar.

Laura
Bem, não sou economista, mas o que sei é
que é preciso encontrar formas de salvar
vidas agora e que temos inconsequentes
mandando todo mundo pra rua. Sabe o

61
A LINGUAGEM NA VIDA

que vejo? Muita desinformação e atitudes


e sugestões inconsequentes. Vamos
presenciar muitas mortes e a economia
entrando em colapso do mesmo jeito.
Quem de nossa família pode morrer
pra manter a economia e para o Brasil
não parar? Precisamos preservar vidas,
como já falei. É hora de termos empatia.
#FicaEmCasa.

Pedro envia um chamado para carreata contra o isolamento social.

Andréia
Oi? Quem de nós vai pra carreata? Depois,
quem vai trabalhar, pegando ônibus
lotado? #FicaEmCasa

Pedro manda um vídeo chamando todos para as ruas, porque o


#BrasilNãoPodeParar.

Laura
Por que carreatas e não passeatas?

Silêncio.

Fernando envia imagem abaixo. 1

1 Meme construído a partir de imagens do site Pixabay. As imagens utilizadas, ambas obtidas
gratuitamente, respeitam os Termos de Uso do site.

62
A LINGUAGEM NA VIDA

Laura
Desisto. Isso não era uma disputa
política, mas sim uma discussão sobre o
que devemos priorizar nesse momento.
Cansei. Nessa disputa #FicaEmCasa x
#BrasilNãoPodeParar, algumas perguntas
que não querem calar são: na nossa
família quem pode morrer pra economia
não parar? Que vidas importam? Que
vidas valem ser vividas e quais vidas são
descartáveis? Fica a sugestão para uma
reflexão e vamos ouvir música, meditar,
etc. pra ver se a gente caminha em busca
de um mundo mais humano.

Fernando muda o nome do grupo para Lula X Bolsonaro.

Essa narrativa remete a trocas comunicativas bastante familia-


res a várias de nós, em conversas do cotidiano explicitamente pola-
rizado em que temos nos sentido inseridas ultimamente. Você já se
perguntou alguma vez que linguagem é essa que usamos em nossas
trocas comunicativas e o que entendemos por dialogar e debater? Ou
o que nos leva a discordar e/ou a concordar com outras pessoas? Ou
ainda, de onde exatamente vêm nossas ideias sobre os mais variados
assuntos e discussões nas quais nos engajamos? Para refletirmos so-
bre as complexidades de nossas trocas comunicativas, com base nas
mensagens de WhatsApp entre Laura e seus familiares, vamos abordar
aqui o entendimento de diálogo como sendo sempre uma luta de poder
e uma constante negociação de sentidos, explorando relações entre
ideologia e linguagem, e entre as várias modalidades de linguagem que
constituem nossos processos de comunicação.

O que entendemos por multimodalidade?

Sempre utilizamos mais do que palavras para nos comunicarmos


– na linguagem oral, fazemos uso de diferentes tons de voz, contato

63
A LINGUAGEM NA VIDA

visual, expressão facial, gestos, posturas, etc. ; na linguagem escrita,


podemos dar ênfase a certos trechos, por meio do negrito ou do itálico,
e pela forma como a mensagem é visualmente organizada na página.
Mais recentemente, com a disseminação de textos digitais, ampliamos
ainda mais nossos repertórios para nos comunicarmos, pois esses tex-
tos escancaram a presença de diversas modalidades na linguagem, em
qualquer que seja seu suporte – aparelho fonador, ondas sonoras, tela
de computador, para citar apenas algumas possibilidades. Em nossas
trocas de mensagens pelo celular, por exemplo, fazemos uso de emojis
e/ou de outras imagens e sons para produzir sentidos. Nossos modos
de usar a linguagem, ou seja, de linguajar no/com o mundo, nos indi-
cam que estudar a linguagem é uma tarefa muito mais complexa do
que possa parecer, pois a linguagem é muito mais do que simplesmen-
te palavras, como também vimos nos capítulos anteriores.
Nesse cenário contemporâneo, algumas áreas nos estudos da
linguagem têm se debruçado com afinco sobre as características da
comunicação, estudando como entendemos e atribuímos sentidos às
coisas do mundo, a partir de diferentes combinações de recursos diver-
sos: imagens estáticas e em movimento, sons, gestos, palavras, entre
outros. Essas combinações evidenciam portanto a multimodalidade
da linguagem, ou seja, como a linguagem se dá na combinação de vá-
rios modos de produção de sentidos. É interessante observar que di-
ferentes pessoas podem fazer diferentes combinações multimodais a
partir dos recursos que estiverem disponíveis em suas comunidades.
Outro ponto a observar é que essas combinações não são naturais ou
óbvias; elas são construções a partir de determinadas visões de mundo
e de linguagem, de determinados conhecimentos e com determinadas
intenções e efeitos, nem sempre conscientes ou racionais, mas sempre
causando algum tipo de impressão nas pessoas que participam de uma
situação de construção de sentidos.
Podemos ver como a conversa de Laura com seus familiares no
WhatsApp é um exemplo explícito da multimodalidade da linguagem,
uma vez que nela os sentidos vão sendo construídos não apenas por
meio da linguagem verbal, mas também por meio do meme e do ví-
deo que são compartilhados. Como indicado na narrativa, o meme

64
A LINGUAGEM NA VIDA

traz de um lado a imagem do presidente do Brasil naquele momento,


Bolsonaro, e do outro lado a imagem do ex-presidente, Lula; entre os
dois vemos um “X”. Essa construção de oposição, no caso “Bolsonaro
versus Lula”, é feita imageticamente, sem qualquer palavra. No mo-
mento em que esse meme é inserido na troca de mensagens entre os
membros da família de Laura, quem o vê também lhe atribui sentidos
dentro dessa situação específica. A inserção dessa imagem na conver-
sa traz novos sentidos, tanto para a discussão quanto para as pessoas
envolvidas. O mesmo pode ser percebido com o compartilhamento do
vídeo na conversa. Para nós, estes dois exemplos ilustram o quanto
a multimodalidade contribui no processo de construção de sentidos,
podendo ampliar, redirecionar, silenciar, simplificar, reduzir, comple-
xificar a comunicação.
Importante relembrar que, em nosso entendimento sobre o pro-
cesso de leitura, a intenção de quem compartilhou tanto o vídeo quan-
to o meme não garante nem determina por si só os sentidos atribuídos
ao texto pelas leitoras. A construção de sentidos é um processo de ler
a palavra-mundo, ou seja, envolve uma combinação de várias dimen-
sões: como vimos no capítulo anterior, ao ler trazemos conosco nossas
histórias de vida, nossos conhecimentos de mundo, nossas posições
sociais, nossas ideologias, e as relacionamos com o que estamos len-
do. Ao ler, dialogamos com essas dimensões do existir que nos consti-
tuem, e esses diálogos podem levar ao reconhecimento da necessidade
de sermos diferentes daquilo que acreditamos ser por muito tempo.
Algumas leitoras terão mais abertura para se deixarem afetar por lei-
turas diferentes das suas; outras menos.
Um aspecto bastante importante para entender a multimodali-
dade é considerar a mídia em que a comunicação se dá. Vejamos, por
exemplo, como isso acontece entre Laura e seus familiares. Será que o
fato de estarem em um grupo de bate-papo da família faz com que se
sintam mais ou menos à vontade para expressar suas opiniões em re-
lação a estarem numa conversa pessoalmente? E por que será que isso
acontece? Essas questões nos mostram a importância de relacionar o
que se diz e por quem é dito, com o onde e o quando algo está sendo
dito. No caso da conversa que abre este capítulo, o onde é o grupo no

65
A LINGUAGEM NA VIDA

WhatsApp da família de Laura. Vemos então que, quando pensamos na


linguagem como multimodal, a noção de contexto precisa se ampliar
e abarcar as inúmeras dimensões que influenciam os processos de
produção de sentidos. Além das pessoas e suas histórias de vida (seus
posicionamentos políticos, as relações que têm com outras pessoas, os
espaços ideológicos de onde falam, como elas percebem esses espaços
e como entendem e reagem ao que é dito/escrito/visto/escutado), a
noção de contexto envolve as mídias que participam no processo de
comunicação. Contexto, aqui, envolve ainda os modos como as pessoas
se relacionam com essas mídias, tudo inegavelmente entrelaçado nos
modos de construir e atribuir sentidos no/ao mundo.
As conversas em ambientes digitais têm merecido análises apro-
fundadas sobretudo em relação a como a comunicação multimodal
atualmente está acontecendo e informando os processos de constru-
ção de sentidos. Nesse aspecto, podemos pensar sobre como os diálo-
gos travados nesses espaços contribuem para o acirramento de posi-
cionamentos polarizados e sobre o desconforto que sentimos, muitas
vezes, com posições radicais nas quais nos percebemos imersas e que
podem nos soar como inaceitáveis. Estudar como esses posicionamen-
tos se dão em diferentes grupos sociais, nos textos em diversas mí-
dias, nas práticas de leitura e escrita, contribui para ampliarmos nossa
compreensão sobre linguagens e ideologias. Diálogo pode ser enten-
dido para além do encontro pacífico de opiniões, como um espaço no
qual embates ideológicos nem sempre acontecem de forma tranquila:
às vezes alguém “sai do grupo” ou “muda o nome do grupo”, como fez
Fernando no grupo de WhatsApp da família de Laura que aparece na
abertura deste capítulo.
Vejam como é interessante pensarmos que, no caso dessa con-
versa no grupo de WhatsApp, Pedro, Marcelo, Andréia e Laura trazem
em suas mensagens não apenas suas opiniões ou dúvidas formadas na-
quele momento específico. Suas ideias estão atravessadas por outros
sentidos, ou seja, suas mensagens são como partes de um grande car-
retel de nós ou fios emaranhados, que vão sendo puxados e aos poucos
vão trazendo as coisas ditas por suas vozes, e por seus entendimentos

66
A LINGUAGEM NA VIDA

que são, na verdade, coisas já ditas por outras vozes, ouvidas antes e
que vão se enrolando com as vozes ali no grupo de WhatsApp.
A complexidade dessa trama ainda aumenta quando lembramos
das várias vezes em que uma mensagem demora um pouco para ser
digitada e acaba aparecendo na hora “errada”, quando um outro as-
sunto já está sendo discutido. Outra situação comum é receber uma
mensagem encaminhada que “cai de paraquedas” na conversa e acaba
por quebrar, de modo não intencional, a conversa em andamento. Isso
evidencia como podemos estar falando sobre várias coisas simulta-
neamente. Em outras palavras, percebemos que nossos processos de
comunicação e atribuição de sentidos não são lineares: são, na prática,
interrompidos, retomados, emergenciais, e acontecem num processo
constante de fazer e refazer, dizer e retomar sentidos. Daí a importân-
cia de ouvir, ou seja, de estarmos sempre prontas a negociar os senti-
dos que construímos para nós e para as outras pessoas, de checar nos-
sas interpretações com as leituras das outras pessoas, de nos abrirmos
para os entendimentos das outras pessoas. Quando dizemos algo, por-
tanto, dizemos um conjunto de coisas ao mesmo tempo: quem somos,
de onde somos, o que pensamos e sentimos sobre o mundo, aquilo que
aprendemos e acreditamos. E tais dizeres são interpretados por quem
faz contato com eles também conforme seu próprio carretel, emara-
nhadas que somos em sentidos múltiplos.
No caso da interação em mídias digitais, temos alguns recursos
característicos para marcar a força e/ou a autoridade do que está sen-
do dito, como o uso de #: de início, a hashtag era utilizada simples-
mente para ajudar nas buscas nas redes sociais, como uma forma de
localizar temas semelhantes e pessoas com interesses semelhantes;
mais recentemente, ela tem sido utilizada também para indicar motes
como se fossem gritos de guerra, afirmações condensadas em poucas
palavras mas com grande força argumentativa, identitária e ideológi-
ca. Na conversa do grupo da família de Laura nos parece que o uso da
hashtag remete mais a um mote do que a um tema a ser identificado,
especialmente quando consideramos os demais elementos da conver-
sa, e quando lembramos que, no WhatsApp, não existem mecanismos
de busca entre grupos, pois nessa mídia a busca se faz pelo comando

67
A LINGUAGEM NA VIDA

simples de pesquisar, e apenas internamente a cada grupo: quando


usamos # no WhatsApp, o que vem logo depois da hashtag não vira
automaticamente um link, como acontece no Facebook, por exemplo.
Parece confuso? Vamos destrinchar um pouco mais! O que esta-
mos querendo dizer é que a linguagem que usamos e compartilhamos
interrelaciona quem somos e aquilo que estamos dizendo (quer seja
ouvindo, escrevendo ou desenhando, estamos “dizendo”). O nosso di-
zer sempre surge de algo prévio, de algo que já sabemos, pensamos,
com o que concordamos ou em que acreditamos; pode vir também do
que já fez sentido para nós e, portanto, agora é reverberado. É fácil
perceber isso em nosso dia-a-dia, pois sempre que conhecemos algo
novo, esse novo se dá relacionado a algo que já conhecíamos antes, e
é isso que fazemos na linguagem: precisamos conhecer o novo sempre
a partir do velho, relacionando o novo com os sentidos que já fazem
sentido para nós.
Podemos dizer, então, que, ao mesmo tempo em que Laura e seus
familiares estão batendo papo no WhatsApp, suas mensagens refletem
muito mais do que o bate-papo daquele momento. A forma como cada
membro da família responde à dúvida sobre a necessidade de isola-
mento social é feita de maneira distinta, o que pode inclusive nos levar
a pensar se o grupo está realmente conversando ou apenas repetindo
suas próprias verdades. Ainda, pensando sobre a mídia onde a con-
versa acontece, o que nos chama a atenção é que a interação digital
pode facilitar a ausência de cuidado ou atenção para o dizer dos outros
membros do grupo. Particularmente em interações virtuais desse tipo,
que não acontecem face-a-face, parece mais fácil e mais comum que
participantes se recusem a interagir com o dizer de outras participan-
tes, ignorando os sentidos produzidos por essas outras participantes,
em especial quando não ressoam com seus próprios sentidos. Assim,
em interações digitais não presenciais, sem o olho-no-olho, muitas ve-
zes temos a impressão de não estar havendo interlocução, pois cada
pessoa fala para si mesma, repetindo seus argumentos sem estabele-
cer de fato um processo de comunicação que leve em consideração a
palavra da outra, que atribua sentidos ao que se lhe apresenta como
diferente dos sentidos já conhecidos.

68
A LINGUAGEM NA VIDA

Como conversamos com o que/quem é diferente de nós?

Nessa altura você deve estar se perguntando: mas então, se parti-


mos do conhecido para o desconhecido e se nos baseamos nos sentidos
que já nos fazem sentido, como aprendemos o novo, como reagimos ao
inesperado, como nos relacionamos com o diferente? Buscar respon-
der essas perguntas envolve entender que nossas trocas comunicativas
também estão imbuídas de questões relacionadas a ideologia, poder,
controle, competição – como se a conversa pudesse ser um debate em
que deve haver vencedoras e perdedoras. Entretanto, na medida em
que ninguém quer “perder”, a maior perda é não aprender com outras
pessoas, não se modificar, não aproveitar a diferença para mover-se
para além da posição inicial no argumento, independentemente da
mídia em que ele se apresente.
E por falar em ideologia, será que ideologia é uma coisa ruim?
Qual a relação entre ideologia e linguagem? Não entendemos ideo-
logia como algo ruim. Para nós, a ideia de ideologia está atrelada aos
modos de ver, de ser, de estar e de agir no mundo. E nós agimos no
mundo em nossas ações e em nosso linguajar, ou seja, nas maneiras
como nos expressamos no sentido amplo que estamos discutindo nes-
te livro. Ideologia e linguagem se entrelaçam de várias maneiras. Mas,
antes de começarmos a tratar dessas diferentes maneiras de entrela-
çar linguagem e ideologia, vale lembrar que, como já afirmamos an-
teriormente, independentemente das mídias em que a comunicação
acontece, ou dos recursos utilizados, esses entrelaçamentos devem
ser compreendidos como construções feitas a partir de determinadas
perspectivas, interesses, possibilidades e restrições; diferentes pes-
soas podem fazer diferentes construções dos mesmos eventos a partir
de outras perspectivas, interesses, possibilidades e restrições em rela-
ções complexas que se dão entre o individual e o coletivo, entre a vida
privada e a vida pública, para mencionar apenas duas dimensões das
ideologias que nos constituem. Em nosso caso, por exemplo, a con-
cepção de linguagem como prática social nos leva a perceber o mundo
como sendo construído por nossas interpretações e ações e isso confe-
re a cada situação comunicativa uma singularidade. Isso é ideológico.

69
A LINGUAGEM NA VIDA

Assim como o contrário disso também é ideológico. Estamos tratando


aqui, portanto, de uma noção de ideologia que não se relaciona apenas
a determinados discursos ou posições políticas: entendemos ideologia
como visão de mundo e, portanto, todas nós temos nossas ideologias.
Nas práticas de linguagem legitimamos e deslegitimamos ideo-
logias, ou seja, crenças, posicionamentos, entendimentos, versões dos
fatos, como veremos logo mais. Podemos, por exemplo, desenvolver
todo um raciocínio lógico que enumere argumentos e busque uma de-
terminada conclusão. Um argumento bastante familiar que temos visto
é a tentativa de validar o que dizemos argumentando que é assim em
todos os lugares, sempre foi assim e sempre será. Ou então podemos
utilizar palavras que suavizem nossos posicionamentos, os famosos
eufemismos, como quando dizemos que alguém está “faltando com a
verdade” em vez de “mentindo”; ou quando se falam em “danos colate-
rais” em vez de “mortes” em relação a um ataque militar. Os eufemis-
mos podem ser utilizados para minimizar o impacto do que dizemos,
como quando se chama a COVID-19 de “gripezinha”. Entretanto, não
podemos deixar de perceber que o uso de eufemismos também torna
menos perceptíveis os efeitos da linguagem que podem ser muito da-
nosos para algumas pessoas; podemos nos perguntar: quem se benefi-
cia com o uso desses eufemismos? As ações de quem estão sendo mi-
nimizadas? Quais são as possíveis consequências desses eufemismos?
O deslocamento de termos típicos de uma área da atividade hu-
mana para outra também é ideológico. Quando “alunas” passam a ser
“clientes”, “aulas” passam a ser “serviços”, “acompanhar o desenvol-
vimento das alunas” passa a ser “gerenciar o rendimento das alunas”,
por exemplo. Ao pensar em educação como mercadoria, estaríamos
operando dentro de uma lógica de mercado que, a nosso ver, é também
uma perspectiva ideológica. Assim como é ideológico entender a fun-
ção social da educação de qualquer outra maneira.
Para nós, educação não é um produto que deva estar sujeito a
relações de compra e venda, ou seja, à lógica do mercado que conside-
ra o conhecimento como passível de ser um objeto de propriedade de
algumas pessoas. Se pensarmos, por exemplo, na posse de um terreno,
essas pessoas teriam então a prerrogativa de transferir a propriedade

70
A LINGUAGEM NA VIDA

da terra, doando ou vendendo seu terreno. Essa lógica, que atinge tan-
to a educação privada (na qual há pagamento direto de mensalidades
escolares) quanto a pública (na qual estão envolvidos recursos públi-
cos), a nosso ver, prejudica todas as pessoas envolvidas. Prejudica as
alunas, que, quando percebidas como clientes, ao escolherem o que
querem “comprar” (ou melhor, aprender), podem perder a oportuni-
dade de entrar em contato com algo diferente daquilo que elas já co-
nhecem; é como se a cliente buscasse encontrar o objeto que ela já co-
nhece e, com isso, perdesse a chance de conhecer um “produto” novo.
Prejudica as professoras que, quando percebidas como prestadoras de
serviço, ficam sujeitas a satisfazer os desejos de suas clientes, silen-
ciando conhecimentos que eventualmente tenham construído em seus
processos de formação profissional e enquanto cidadãs. Todas perdem
quando se afastam da ideia de educação como um processo relacio-
nal, social, formativo, criativo, ou seja, um processo de crescimento e
transformação mútuos.
Portanto, referir-se à escola com a linguagem típica do mercado
normaliza, insidiosamente, uma determinada forma de ver e tratar a
formação das alunas, o papel das professoras e o espaço educacional.
Esse deslocamento de termos do mercado para a educação influencia
nossos modos de conceber a escola e seu papel social, o que ilustra o
quanto a linguagem é ideológica: vemos que nela se constroem sem-
pre sentidos, pois até o que parece não ter sentido já é um sentido, não
é mesmo?
Uma terceira dimensão do entrelaçamento entre linguagem e
ideologia, ao lado do uso de eufemismos e do deslocamento de termos
de uma área para outra, é construir uma sensação de pertencimento,
um sentimento de unidade. A partir desse sentimento, algumas pes-
soas são construídas como amigas, outras como inimigas. Construir
um grupo de pessoas como semelhantes estabelece uma suposta iden-
tidade entre elas, além de excluir aquelas que são entendidas como
diferentes. As hashtags #FicaEmCasa e #BrasilNãoPodeParar, que dis-
cutimos anteriormente, criam esse efeito de marcar tais identidades e
relações de proximidade ou distanciamento.

71
A LINGUAGEM NA VIDA

No entanto, elas não significam por si sós: elas se relacionam


com sentidos que nossas diferentes experiências de leitura e de vida
e nossas diferentes ideologias constroem e atribuem, ou não, a elas.
Vejamos o que aconteceu com a #FicaEmCasa. Algumas pessoas po-
dem tê-la entendido como significando única e literalmente “ficar em
casa”. No entanto, ao relacionar essa hashtag com outras dimensões
ideológicas de nossas práticas de linguagem em espaços específicos,
a compreensão pode ter variado bastante: ela pode ter sido entendi-
da como apontando para o reconhecimento de que poder trabalhar de
suas casas era um privilégio; pode também ter indicado que ficar em
casa era contribuir para diminuir a taxa de disseminação do coronaví-
rus. Por outro lado, a hashtag pode ter sido compreendida como uma
referência ao medo da contaminação ao sair de casa, e mesmo como
indicador de que “ficar em casa” seria demonstração de egoísmo, de
falta de consideração com as pessoas que não podiam ficar em casa
sob pena de não terem renda para se manter. Uma evidência de como
essas dimensões de sentidos informam as práticas com essa hashtag
está inclusive no fato de que, com o passar do tempo, ela mudou para
#SePuderFiqueEmCasa, colocando a #FicaEmCasa em desuso.

Afinal, o que linguagem (em sua multimodalidade) tem a ver com


ideologia?

Os modos de entender essa e outras hashtags evidenciam, por-


tanto, que os textos não existem no mundo de forma independente:
eles não são nem independentes entre si, nem abstraídos das coisas do
mundo. São sempre multimodais. Textos (como no caso das hashtags)
se realizam no processo de leitura (como discutido em detalhes no ca-
pítulo anterior), um processo que se torna produtivo quando a leito-
ra reconhece as relações entre textos; entre textos e contextos; entre
textos, suas leituras e leitoras, entre textos e sociedade, etc; em outras
palavras, quando o processo de leitura não perde de vista a dimensão
multimodal da linguagem. Esse reconhecimento informa o processo de
construção de sentidos que cada leitora e seus procedimentos de lei-
tura atribui aos textos e, desse modo, indica que quanto mais relações

72
A LINGUAGEM NA VIDA

a leitora fizer entre as diferentes modalidades da linguagem, entre di-


versos textos e diversos modos de ler, mais complexa será a leitura.
Poderíamos escrever um livro apenas sobre a relação entre lin-
guagem, multimodalidade e ideologia, mas acreditamos que os pontos
que apresentamos aqui já podem dar uma noção de que não podemos
simplificar essa relação, entendendo o termo ideologia como algo
prejudicial ou reduzindo a linguagem aos elementos verbais, apagan-
do a sua multimodalidade. Na família da Laura, como vimos na con-
versa que abriu este capítulo, a linguagem, de caráter multimodal, está
sempre relacionada a entendimentos, interpretações que não acon-
tecem no vácuo, mas são informadas por visões de mundo, de texto
e de linguagem, sendo portanto sempre ideológicas. Essas ideologias
constituem a linguagem, as pessoas e também interferem na forma
como elas se relacionam, mostrando que os entrelaçamentos não se
dão apenas entre ideologia e uma linguagem supostamente exterior,
mas são constitutivos do ser, do estar e do existir no mundo.

73
A LINGUAGEM NA VIDA

A LINGUAGEM QUE NOS FAZ VIVER

Depois de uma semana de trabalho intenso preparando aulas, deslocan-


do-se de uma escola para outra (pois trabalha em 3 escolas diferentes),
corrigindo textos de suas alunas e fazendo as leituras exigidas em seu
curso de formação continuada, Laura finalmente consegue uma noite de
sono. Mas mesmo dormindo Laura está imersa em suas preocupações com
a educação, com o ensino, com suas alunas. Ela sonha com a escola. Segue
aqui uma descrição feita por Laura de seu sonho, que ela postou em seu
blog sobre formação de professoras.

“Na noite passada, tive um sonho cheio de detalhes, daqueles que pa-
rece que aconteceram mesmo. Foi um sonho bem vivo, um sonho em
que eu lembrava de uma criança migrante, a Safira, que foi minha alu-
na no sexto ano. Ela era uma menina pequena, magrinha, e no sonho
parecia ter talvez até menos do que os 10 ou 11 anos de idade que tinha
de verdade. No sonho, eu lembrava bem que ela tinha uma irmã mais
velha, Yasmin, que também tinha sido minha aluna uns anos antes de
Safira chegar e que, assim como Safira, tinha dificuldades em aprender
o que a gente achava que ela devia aprender.

Mas Safira era diferente. A Yasmin tinha chegado ao Brasil, vinda da


Síria, uns anos antes de ser minha aluna, mas Safira era recém-chegada
no país e na escola. Safira não era extrovertida nem descontraída como
a irmã dela. Com Safira era diferente. Ela tinha um olhar que às vezes
parecia desconfiado e às vezes triste, distante, solitário. No início ela
nem conversava com as outras colegas da turma dela, nem mesmo com
as poucas crianças que falavam árabe na escola. Parecia até que ela so-
fria bullying das colegas que só falavam português quando ela tentava
se comunicar com elas. Além disso, Safira se recolhia ainda mais quan-
do, ao conversar com sua irmã em árabe, sentia os olhares de censura

74
A LINGUAGEM NA VIDA

e o estranhamento que a língua causava nas colegas. Impressionante


como eu lembro disso tudo e, como no sonho, isso tudo passava pela
minha cabeça muito rápido. Eu lembro da sensação que tínhamos na
escola de que a introspecção de Safira muitas vezes parecia ser medo,
um medo que a gente não sabia do que ou de quem era. Na verdade, a
gente nunca ficou sabendo. Afinal de contas, com Safira era diferente.

O interessante era que no sonho eu lembrava que nós, as professoras


de inglês e espanhol da escola, achávamos que a nossa escola era mui-
to boa e acolhedora para as nossas alunas (brasileiras e migrantes).
Na verdade, a escola tinha, além de centenas de alunas brasileiras, al-
gumas dezenas de estudantes de países como Síria, Venezuela, Haiti e
Congo. A gente fazia um trabalho que ia além da sala de aula e que era
feito junto com a assistente social e com a pedagoga da escola, além
das outras professoras dali. Era bastante desafiador, mas nós do espa-
nhol e do inglês achávamos que nos cabia a maior responsabilidade
pelo acolhimento das alunas migrantes, já que éramos professoras de
língua estrangeira, afinal.

Mas a Safira era diferente. Sim, ela demonstrava vontade de aprender,


ela queria fazer mais amigas, participar das aulas, entender os conteú-
dos, e se esforçava para fazer as tarefas na escola e em casa. A gente
via que ela queria fazer parte daquele contexto novo para ela. Mesmo
assim, apesar de ser tão criança, e de ter começado a se soltar aos pou-
cos, ela não era como as outras alunas… nem como as amigas que ela
acabou fazendo naquele período. Era angustiante conversar com ela,
sempre com a ajuda da Yasmin, e ver o quanto Safira era inteligente,
esperta, mas o quanto, ao mesmo tempo, parecia não pertencer àquele
lugar. Eu tinha essa impressão, e no sonho essa percepção ficava ainda
mais forte. Acho que essa impressão vinha de Safira ser muito calada,
ou então das dificuldades dela para se comunicar e, consequentemen-
te, aprender os conteúdos das matérias. ”

A narrativa que abre este capítulo envolve um sonho de Laura


que lhe remeteu a um dos episódios marcantes de sua experiência

75
A LINGUAGEM NA VIDA

como professora. Através do sonho, ela enfatiza o impacto que a pre-


sença de uma aluna migrante teve em suas reflexões sobre o fato de
que ensinar parece envolver muito mais do que transmitir conteúdos;
e sobre a comunicação ir muito além do uso de sistemas linguísticos,
como vimos nos capítulos anteriores.
Pode parecer que a história de Safira faz parte de um cenário
educacional específico, onde alunas migrantes buscam integrar-se ao
sistema educacional e social de seu novo país e, comumente, apresen-
tam dificuldades de pertencer a esse novo lugar. Sem dúvida, a expe-
riência de Laura está inserida nesse contexto, mas sua narrativa expli-
cita relações diretas também com uma conjuntura global e nos convida
a ampliarmos nossa compreensão sobre a linguagem na questão mi-
gratória. Laura nos faz pensar sobre a função da educação na contem-
poraneidade e, consequentemente, sobre as funções das instituições
escolares, uma das tarefas fundamentais a que se propõem educadoras
e estudiosas da linguagem no século XXI.
Neste capítulo, vamos abordar o contexto de Safira, a partir da
narrativa compartilhada por Laura em seu blog, em três temas princi-
pais. O primeiro trata de linguagem, interculturalidade e migração; o
segundo enfoca a linguagem como espaço de criação e transgressão; e
o terceiro discute as relações entre identidade, acolhimento e educa-
ção transgressora.

Linguagem, interculturalidade e migração – (des)encontros

Não é de hoje que práticas migratórias ocorrem mundo afora.


Se resgatarmos a história conhecida da humanidade, veremos que, as-
sim como os animais, somos seres originalmente migrantes em busca
de melhores condições de sobrevivência. Com o tempo, fomos desen-
volvendo conceitos, técnicas e regras que facilitam a mobilidade e a
comunicação, diminuindo as distâncias físicas e sociais. Assim, conti-
nuamos tendo pessoas se movendo pelos mais diferentes motivos, seja
por escolhas pessoais ou por necessidades outras, políticas, econômi-
cas, sociais, culturais, ambientais, dentre tantas outras.

76
A LINGUAGEM NA VIDA

Por mais paradoxal que pareça, alguns países foram criando re-
gras cada vez mais rígidas que dificultam o trânsito de (certas) pes-
soas. Consequentemente, ainda vemos com frequência tentativas de
migração supostamente “ilegal”, especialmente em busca de sobrevi-
vência. De acordo com a Agência da ONU para Refugiados, a diferença
mais marcante nos processos migratórios da atualidade está no fato
de estarmos diante do maior número de pessoas se deslocando con-
comitantemente desde que há registros dessa prática. É interessante
pensar se essa diferença estaria relacionada à quantidade de pessoas
que migram, ou se ela se daria por causa das mudanças realizadas por
diferentes países em suas regras migratórias, que, se por um lado per-
mitem um registro mais fidedigno sobre a entrada de estrangeiras nos
seus países, por outro lado parecem buscar inviabilizar o ato de sair de
um país para outro em busca de uma vida melhor.
Essa expansão da crise migratória em nossa atualidade nos mos-
tra os desafios que pessoas, em diferentes partes do mundo, estão en-
frentando para sobreviver, para se adaptar a uma nova vida em um
novo país, nova cidade, nova comunidade, nova língua, nova cultura.
Migrar é recomeçar com tudo ao seu redor sendo diferente e, em muitos
casos, distante de suas referências anteriores, de seus valores, crenças,
afetos, histórias, sentimentos de pertencimento; é levar a outro lugar
um pouco de si, com a esperança de se sentir em casa novamente.
É nesse cenário migratório que vamos aprender um pouco do que
a história de Safira tem a nos ensinar, uma vez que tem sido cada vez
mais comum crianças, adolescentes e pessoas adultas – estrangeiras,
migrantes, refugiadas ou qualquer outro nome que se possa lhes
dar – buscarem acolhimento em cidades, escolas (e universidades),
igrejas e tantas outras comunidades e instituições. Podemos então
nos perguntar: como as escolas podem acolher essas pessoas? Qual a
função dos estudos da linguagem e da educação na atual globalização,
atravessada por tanta mobilidade e diversos tipos de conflitos e fluxos?
Como os estudos da linguagem podem nos ajudar a pensar a relação
entre linguagem, identidade, interculturalidade e migração? De que
forma histórias como a de Yasmin e Safira podem contribuir para essas
ponderações?

77
A LINGUAGEM NA VIDA

Como se percebe pela emotividade do relato no blog de Laura,


seu convívio com Yasmin e Safira marcou bastante sua vida. Assim
como muitas outras pessoas daquela comunidade escolar, a professora
não estava acostumada a lidar com migrantes. Na escola, o trabalho
era desafiador, envolvendo outras professoras, uma assistente social e
a pedagoga. A escola se esforçava para acolher crianças como Safira e
sua irmã. Contudo, Laura relata desconforto e frustração em perceber
que o trabalho da escola parecia não estar surtindo efeito. Talvez a es-
cola estivesse priorizando os conteúdos e deixando em segundo plano
questões relacionais, culturais e identitárias que estão no centro de
nossas experiências escolares e de nossas práticas de linguagem.
Pensar em práticas de linguagem sem considerar essa centrali-
dade reduz o impacto que a linguagem exerce sobre nós e silencia os
modos pelos quais nossas identidades se constroem nela. Em outras
palavras, talvez a sensação da professora quando afirma que Safira pa-
recia “não pertencer” à escola tivesse uma relação direta com os modos
como a cultura escolar estava tratando, ou silenciando, a presença de
mais de uma língua nomeada em suas práticas (explicaremos o que
queremos dizer com língua nomeada mais adiante). Talvez a escola es-
tivesse considerando que o melhor para Safira e Yasmin fosse que elas
deixassem fora dos muros escolares seus modos de existir na multi-
plicidade de linguagens com que estavam convivendo. Talvez a escola
acreditasse ser melhor que as meninas assimilassem o português e a
cultura brasileira, já que planejavam permanecer no Brasil. Talvez as
meninas também pensassem assim. No entanto, existir em várias lín-
guas pode ser produtivo, como veremos em seguida.
Por ora, vamos pensar um pouco sobre a linguagem em sua re-
lação com a globalização e os fluxos de pessoas. No momento atual,
não apenas diferentes grupos passaram a conviver mais intensamente
e em diversos contextos, mas também línguas e culturas se encontram
justapostas com mais frequência. Tal justaposição pode ser percebida
em várias configurações de encontros entre diferentes pessoas, inde-
pendentemente de quão próximas sejam ou estejam: quando se encon-
tram, as pessoas trazem e compartilham suas perspectivas, construí-
das na particularidade de suas trajetórias. No entanto, isso pode ainda

78
A LINGUAGEM NA VIDA

ser mais facilmente percebido em encontros de pessoas de diferentes


nacionalidades, portanto, vindas de contextos linguísticos e culturais
marcadamente distintos, como no caso de Laura e suas alunas. É aqui,
nesta justaposição entre linguagem, cultura e configurações sociais,
que a experiência de Laura com sua aluna Safira nos leva a pensar so-
bre as mais diferentes dimensões que constituem o ensino de línguas.
Compreendemos que, ao migrar, deixamos para trás um pouco
de nós nos lares que habitamos, nas pessoas que ficaram, nas histórias
que vivemos, mas de certa maneira isso tudo também nos acompanha,
pois nossas experiências, assim como a linguagem, nos constituem e
estão conosco onde estivermos. Sabemos que o novo contexto pode
gerar insegurança diante dos (des)encontros interculturais, ou seja,
das relações entre as diferentes práticas de linguagem, culturas, expe-
riências, conhecimentos em contato. Essas relações sempre envolvem
emoções, que por vezes nos fazem bem, por outras não.
No caso de Safira e suas novas vivências, podemos entender seu
desconforto de estar entre a cultura e a linguagem que lhe são fami-
liares, e a cultura escolar e as novas práticas de linguagem que ela está
aprendendo a conhecer. Esse lugar “entre” lugares, ocupado por Safira,
parece estar demandando dela também uma abertura para aprender
as práticas locais de letramento (como discutimos no segundo capí-
tulo) – assim, migrar significa ser acolhida e também acolher, pois um
movimento não acontece sem o outro. A exigência local de que Safira
aprenda essas novas práticas pode ser percebida como um ato violen-
to contra ela, e gerar uma sensação incômoda de despertencimento
ou, no mínimo, o questionamento sobre não pertencer a nenhum dos
dois mundos em que ela se percebe estar envolvida. Ao mesmo tempo,
Safira precisa desenvolver uma atitude aberta para essas novas práti-
cas. Não se trata de ser assimilada pelo novo espaço, nem de recusar-se
a participar dele. Trata-se, nas trocas interculturais, de negociar, de
ampliar repertórios, de abrir-se para o local sem perder de vista o que
nos constitui, numa compreensão de que nossas identidades sempre
interagem com o mundo e com isso se transformam constantemente.
Em outras palavras, é uma via de mão dupla que precisa de abertura de

79
A LINGUAGEM NA VIDA

ambos os lados para negociar as práticas de letramento que oportuni-


zarão um contato produtivo entre as pessoas.
Ao mesmo tempo, é importante lembrar que existem pessoas e
instituições em torno de Safira, todas elas compartilhando a respon-
sabilidade por orientá-la nesse processo de contato com as novas prá-
ticas de letramento em que ela está vivendo. Vamos falar um pouco
mais dessa rede na seção “Aprender, acolher, construir e transformar
a/na linguagem”, pensando especialmente sobre a escola como um es-
paço de ensino-aprendizagem mais acolhedor, afetuoso, construtivo e
transformador.

Desafiar, criar e transgredir a/na linguagem

Até aqui, apontamos o quanto a migração e a escola podem ser


experiências sociais violentas e causar sofrimentos sem que seja essa a
intenção. Salientamos também a necessidade de realização de um tra-
balho mais acolhedor, construtivo e transformador por parte da socie-
dade e suas instituições, como escolas e universidades. Perguntamos,
então: isso seria possível? Se sim, como? Um dos passos para isso nos
parece ser problematizar as visões de linguagem e práticas educativas
mais comumente conhecidas para, em seguida, pensarmos em outras
práticas de letramento possíveis.
Na apresentação e no primeiro capítulo problematizamos o en-
tendimento de língua como conjuntos de estruturas linguísticas com
significados fixos. Desse modo, temos utilizado a palavra linguagem
por acharmos que esse entendimento de língua como fixa e neutra não
dá conta da complexidade das práticas linguísticas como as vemos em
sua relação com o mundo. Algo sobre o qual ainda não tratamos mais
especificamente, no entanto, diz respeito a como a compreensão de
línguas como unidades singulares está imbuído de questões políticas,
sociais e econômicas – e não apenas linguísticas. Então vejamos.
Tradicionalmente, as línguas têm sido entendidas como perten-
centes a determinados países, povos e culturas. Costumamos pensar
que o inglês é a língua dos Estados Unidos e da Inglaterra, o francês é a

80
A LINGUAGEM NA VIDA

língua da França, e assim por diante. No entanto, a relação entre uma


língua e um país começa a trazer problemas quando lembramos que
alguns países “dividem” uma língua, como no caso do Brasil, Portugal
e Angola, por exemplo. Nesses países, a “mesma” língua parece mui-
tas vezes ser bastante diferente. É importante nos perguntarmos como
essas relações foram (e continuam sendo) estabelecidas. Parece-nos
que, mais do que questões estritamente linguísticas, entram na equa-
ção questões históricas (ligadas a processos de colonização), políticas,
culturais, relacionadas a fatores econômicos, hereditários, e envolven-
do relações de poder e legitimidade, que autorizam ou desautorizam
certos grupos de pessoas a determinar se uma língua pertence a um ou
a outro povo, país ou cultura.
O caso da Iugoslávia nos ajuda a ilustrar o quanto essas divisões
entre línguas e o processo de dar nomes a elas são complexos e mais
baseados em questões político-sociais do que em fatores linguísticos.
Antes da guerra da Iugoslávia, nos anos 1990, enquanto esse país ain-
da existia como tal, havia uma língua nomeada como “servo-croata”,
língua que era considerada uma língua única, com diferentes varia-
ções regionais. Depois da guerra, no entanto, principalmente devido a
questões étnicas e disputas entre a Sérvia e a Croácia, sérvio e croata
passaram a ser consideradas línguas distintas. É assim que entender as
línguas como restritas a determinadas fronteiras político-geográficas
parece ignorar dimensões importantes de como as línguas são confi-
guradas no mundo.
Em substituição a esse modo de perceber as línguas como se
fossem objetos pertencentes a Estados-nação específicos, trazemos a
ideia de repertório. Ao invés de nos preocuparmos se estamos falando
a língua X ou a língua Y, nossas interações nos mostram que os proces-
sos de construção e negociação de sentidos são muito mais intensos e
fluidos do que podem parecer: eles integram nossos repertórios, que
também são constituídos por nossas histórias de vida, nossas expe-
riências de leitura, nossas visões de mundo. Tudo o que sabemos e fa-
zemos faz parte de nossos repertórios. Por isso, ao invés de pensarmos
se estamos falando essa ou aquela língua, ou mesmo se estamos ou
não “misturando” línguas, podemos pensar em um acionamento dos

81
A LINGUAGEM NA VIDA

recursos semióticos disponíveis conforme se fazem necessários para a


produção dos sentidos pretendidos e/ou para a atribuição de sentido
às trocas comunicativas em que nos engajamos.
Quando observamos crianças transitando entre duas ou mais
línguas supostamente diferentes, por exemplo, percebemos que para
elas não interessa em nada se estão se comunicando em uma ou outra
língua – as crianças bilíngues nos mostram que o que interessa para
elas é a comunicação, e não os limites entre as línguas. É por isso que
elas associam, desde muito pequenas, o tipo de comunicação que pre-
cisam desenvolver às pessoas com quem interagem, e não a um su-
posto sistema linguístico nomeado por nós como língua X ou língua
Y. Em seu processo de comunicação, essas crianças desenvolvem um
repertório de linguagem que ignora (ou desconhece) os limites entre
as línguas nomeadas: elas lançam mão dos recursos disponíveis em
seus repertórios para atingir o propósito comunicativo que desenvol-
vem em cada situação, não interessando se tais recursos fazem parte
de um ou de outro sistema linguístico.
Tudo isso entra nas preocupações do que se conhece como pers-
pectiva translíngue ou translinguagem. Essa é uma visão que desafia
o entendimento de língua enquanto bloco fixo de estruturas linguísti-
cas e vocabulário, que procura englobar a natureza dinâmica das práti-
cas de linguagem ao compreendê-las como repertório. Nessa perspec-
tiva, o movimento que por vezes uma mesma pessoa faz entre “duas”
línguas é entendido como acontecendo dentro de um mesmo repertó-
rio, e marcado positivamente enquanto estratégia para a construção
de sentidos.
Se entendemos linguagem enquanto práticas translíngues que
lançam mão de um repertório fluido, constituído de diferentes re-
cursos, a ideia de línguas enquanto entidades com identidades fixas
deixa de ser relevante. Na translinguagem, o que nos leva a enten-
der as línguas nomeadas como língua portuguesa, inglesa, espanhola,
etc, é um processo sócio-histórico, geopolítico e dinâmico. Portanto,
com esse olhar, mantemos a ideia de línguas distintas porque elas são
categorias importantes para entendermos as línguas no mundo, mas

82
A LINGUAGEM NA VIDA

abandonamos a visão tradicional de língua como “pertencendo” a de-


terminado(s) país(es), ou mesmo determinado(s) povo(s).
Voltemos à situação da Safira em suas relações no e com o novo
país. Podemos nos perguntar como as experiências dela em seus diver-
sos contextos no Brasil teriam sido diferentes caso a perspectiva trans-
língue estivesse mais presente no cotidiano das pessoas. Possivelmente,
Safira se sentiria mais confortável ao falar árabe com sua irmã, e mais
confiante em seus procedimentos de construção de sentidos a partir do
repertório dela, sem a preocupação se estaria dentro de uma ou outra
língua. Se tivesse essa perspectiva, Safira talvez não se sentisse mal em
seus silêncios, nem em situações em que não compreendesse ou não
fosse compreendida, pois ela saberia que aprender línguas é sempre
negociar sentidos. Quem sabe ela não se sentisse em falta, mas sim
desafiada a aprender novos procedimentos interpretativos e de cons-
trução de sentidos.
Não queremos dizer com isso que uma perspectiva translíngue
seja a solução milagrosa para todos os problemas de comunicação,
uma vez que o processo de construção de sentidos não é uma mera
transmissão de mensagens, mas envolve uma gama complexa de fa-
tores, inclusive ideológicos, como vimos nos capítulos anteriores. No
entanto, a translinguagem pode nos ajudar a desenvolver uma atitude
de maior acolhimento em relação a pessoas com práticas de linguagem
diferentes das nossas, ao mesmo tempo em que nos ajuda a compreen-
der e aceitar a nós mesmas em nossos processos de aprendizagem.
Diante de todas essas colocações, talvez você ainda esteja se per-
guntando: mas, então, o que significa Safira aprender e se comunicar
em português? O que seria esperado dela? De forma mais abrangente:
o que significa ensinar e aprender uma outra língua? Deixamos a pró-
xima seção para essa conversa.

Aprender, acolher, construir e transformar a/na linguagem

Os estudos da linguagem pensados com uma filosofia educacio-


nal freireana compreendem que aprender uma língua é aprender a ser,

83
A LINGUAGEM NA VIDA

aprender a pensar sobre si em sua relação com o mundo, aprender a


narrar-se e a ouvir outras narrativas. A linguagem na formação de nos-
sos seres é, assim, fundamental em nossa existência: é na linguagem
que fazemos contato, que aprendemos a nos contar. Linguagem, como
vimos, é uma prática identitária que, além de nos levar a perceber a
nós mesmas enquanto seres sociais, nos coloca em relação com aquilo
e aquelas que não somos, que são diferentes de nós e que, justamente
por serem diferentes, nos possibilitam entender-nos como seres indi-
viduais e coletivos ao mesmo tempo. É nesse processo narrativo que
vamos construindo (des)identificações com nós mesmas e com o que
percebemos como diferente de nós. É assim que somos e existimos –
na linguagem. Quanto maior nosso repertório, mais possibilidades de
existência se configuram para nós. É assim que vemos a importância
de aprender várias línguas. Safira, por exemplo, ao aprender portu-
guês, está alargando seu repertório de procedimentos comunicativos.
Evidentemente tal processo é bastante complexo, uma vez que, como
vimos, não se trata de aprender um sistema linguístico fechado, fixo,
acabado.
Precisamos, portanto, considerar diversas dimensões relaciona-
das à aprendizagem de línguas. Vamos tomar Safira como referência
aqui, mas enfatizamos que essas dimensões também se encontram em
processos de aprendizagem de línguas de pessoas em situações dife-
rentes. Elas acontecem quando se aprende uma língua em situação de
imersão, ou quando se aprende uma língua em situação de língua “es-
trangeira”, ou seja, num ambiente em que essa língua não é usada no
cotidiano daquela sociedade: sejam quais forem as línguas envolvidas,
sejam quais forem os espaços de aprendizagem (formais ou informais;
escola, família ou mundo social, país de nascimento ou país estrangei-
ro), as dimensões que vamos destacar aqui se manifestam no processo
de aprendizagem de linguagem.
A primeira dessas dimensões diz respeito ao fato de que apren-
der uma língua constitui-se em uma prática social e relacional (o que
corrobora nosso entendimento sobre linguagem defendido ao longo
deste livro). Isso significa que Safira aprenderá se comunicando, em
vivências na linguagem – tanto na escola, em suas aulas e nos demais

84
A LINGUAGEM NA VIDA

espaços que fazem parte dela, quanto na sua vida para além dos muros
escolares. Ou seja, Safira irá aprender português nas relações com co-
legas, professoras, funcionárias e demais pessoas de seu convívio edu-
cacional – dentro e fora da escola, em ambientes formais e informais,
porque afinal se aprende também fora da escola, não é mesmo? Ela irá
aprender quando for ao supermercado com sua mãe, quando for pegar
um ônibus, quando for comprar algo em uma loja, quando for ao médi-
co, e assim por diante. Ainda, mesmo que a língua a ser aprendida não
seja usada no cotidiano da sociedade em que estamos vivendo, pode-
mos pensar nas vivências que surgem nos mais diversos contextos, tais
como: bater papo na internet, ouvir músicas, ler livros, jogar videoga-
mes online, assistir filmes e seriados, fazer cursos em escolas de idio-
mas e pelo YouTube, estudar línguas na escola regular, etc. Todos esses
exemplos nos mostram que esse entendimento de língua como prática
social e relacional, ou seja, língua como linguagem, se opõe à ideia,
muitas vezes comum, de que Safira, ou qualquer pessoa que aprenda
uma língua, precisaria primeiro aprender unidades específicas formais
desta língua para somente depois poder se comunicar.
Outra dimensão que enfatizamos está no fato de que aprender é
uma prática processual e contínua – ad infinitum. Pensando especifica-
mente na aprendizagem de línguas, você já se perguntou, por exem-
plo, o que lhe faz dizer que sabe português, ou inglês, ou espanhol, ou
guarani, ou LIBRAS? Há um momento específico em que você passa
do “não saber” para o “saber” essas línguas? No nosso entendimen-
to, pode até ser que alguém sinta esse momento como tendo ocorrido
em suas experiências: muitas vezes, quando a gente passa a se sentir
mais confortável numa língua, parece que a gente finalmente “apren-
deu”, certo? No entanto, aprender uma língua não é uma atividade que
ocorre e acaba em um tempo específico: não conseguimos precisar o
momento exato em que começamos ou terminamos de aprender uma
língua – no máximo podemos saber quando começamos ou termina-
mos de estudar formalmente uma determinada língua.
Uma última dimensão do processo de aprendizagem de línguas
que queremos discutir diz respeito à problematização da ideia de falan-
te nativa como modelo a ser imitado. Antes de mais nada, é importante

85
A LINGUAGEM NA VIDA

nos perguntarmos o que ou quem é uma “falante nativa”. Podemos


dizer que uma falante nativa é alguém que vive numa língua nomea-
da desde que nasceu, aprendendo essa língua tanto no contexto fami-
liar quanto em outros contextos ao longo da sua vida, em seu país de
origem. Dessa noção vem uma idealização ou entendimento comum
de que falante nativa seria uma pessoa que possui uma “competência
perfeita” numa língua nomeada entendida como pertencendo a ela.
Ela seria, portanto, uma pessoa que usaria a língua da forma que deve
ser, “corretamente”.
Já vimos, no primeiro capítulo, o problema em pensarmos que
alguém “usaria” uma língua (o que chamamos de entendimento ins-
trumental), então não precisamos repetir isso. Precisamos apontar,
isso sim, que essa “falante nativa” é geralmente considerada “autori-
dade” na língua e por isso um “modelo de proficiência linguística” a ser
copiado por (e por vezes imposto a) todas aquelas pessoas que querem
aprender essa língua. Esse entendimento nos parece comum principal-
mente em contextos de ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras
(aquelas nomeadas como “pertencendo” a outro país que não o seu),
nos quais muitas vezes se busca parecer o máximo possível com as
ditas “falantes nativas” da língua que se está aprendendo.
Não é incomum, portanto, encontrarmos cartazes publicitários
anunciando que determinada escola de idiomas tem em seu corpo do-
cente as tais “falantes nativas”, ou ainda, no caso de escolas de inglês,
muito frequentemente se diz, como um ponto forte da escola, que ela
tem “professoras americanas”, por exemplo. Daí vêm também pergun-
tas que professoras de inglês costumam ouvir com frequência: “seu
inglês é americano ou britânico?”; “lá elas falam assim mesmo?”. As
nossas respostas a tais perguntas costumam ser que “nosso inglês é
brasileiro”, ou que falamos o “nosso inglês”, ou ainda “o inglês que
dá”; quanto ao “lá” e ao “elas”, respondemos com outras perguntas:
“onde fica lá?” e “quem são elas?”. Com isso, queremos ressaltar que
a posição central ocupada pela ideia de “falante nativa” não é prerro-
gativa exclusiva das escolas de idiomas, mas é compartilhada cultural-
mente por nossa sociedade em geral.

86
A LINGUAGEM NA VIDA

O que significa, no caso de Safira, essa ideia de ser ou não ser


“falante nativa”? Ela precisa, ou deve, ou deseja ser uma “falante na-
tiva” de português? A projeção de modelos ideais sobre ser proficiente
em uma determinada língua nomeada pode muitas vezes implicar em
uma generalização bastante simplista de todas as falantes nativas de
uma língua, como se todas tivessem a mesma proficiência e soubessem
a mesma língua do mesmo jeito. No entanto, é preciso problematizar
esse tipo de generalização, o que pode ser feito ao nos indagarmos, por
exemplo:

• ela seria “falante nativa” de onde? De que cidade, região?


• essa “falante nativa” pertenceria a qual classe social?
• que nível de escolaridade e formação teria essa “falante nativa”?
• a “falante nativa” em que Safira se transformaria falaria apenas
uma língua ou já teria aprendido outras?

Pensar nessas questões nos leva ainda mais além, refletindo so-
bre como a ideia de “falante nativa” está atrelada a outras construções
sociais que nos rotulam e influenciam nossos olhares, determinando
a legitimidade que conferimos a quem consideramos ser “falante na-
tiva”. Obviamente, não sugerimos tudo isso como uma forma de dis-
criminação entre “falantes nativas” de determinadas regiões, cidades,
classes sociais, níveis de escolaridade, etnias, etc. – discriminações es-
sas que são bastante reais e que ocorrem diariamente, infelizmente,
e contra as quais temos que lutar, não apenas como pessoas interes-
sadas em linguagem mas também como cidadãs. Trazemos esse exer-
cício de levantar tais perguntas para ilustrar que, mesmo dentro da
noção idealizada de “falantes nativas”, elas seriam demasiado diversas
para generalizarmos todas elas em um único “modelo”, especialmen-
te quando esse modelo é usado para excluir “falantes não nativas” ou
mesmo hierarquizar as “falantes nativas”.
Pensando no caso de Safira, poderíamos, portanto, levantar os
seguintes questionamentos: se existe tanta heterogeneidade entre
“falantes nativas” e se reconhecemos essa heterogeneidade no nosso
dia-a-dia, por que é comum que se espere que pessoas como Safira se

87
A LINGUAGEM NA VIDA

adequem a um modelo ideal de “falante nativa” (isto é, que cheguem


o mais próximo possível desse modelo)? Por que algumas diferenças
causam estranhamentos e até rejeições, enquanto outras não?
Como você nessa altura provavelmente já consegue prever, nos-
sa visão é de que a busca por um modelo ideal geral, único, de falante
está imbricada com a rejeição de algumas diferenças e com a aceitação
tácita de outras. Essa busca e essa rejeição/aceitação são práticas ao
mesmo tempo de identidade e de linguagem. Querer falar como uma
“falante nativa”, ou seja, aproximar-se de um suposto falar ideal, pa-
rece-nos bastante violento quando silencia outros modos de falar e,
com isso, outras identidades (que não as de “falante nativa” ou, ainda,
de “falantes nativas” não legitimadas), outras existências e outros co-
nhecimentos. Como sabemos, esse desejo, inatingível, pode criar uma
sensação permanente de frustração, que afeta de maneira negativa o
modo como nos percebemos enquanto aprendizes de linguagem e nos-
so existir no mundo. Para nós, o que importa na aprendizagem de lín-
guas não é buscar ou imitar um modelo supostamente ideal, mas exis-
tir e construir sentidos na linguagem, sentindo-se legitimada nesse
processo. Com isso, ressaltamos que aprender línguas nos possibilita
outras formas de existir e de nos relacionarmos umas com as outras e
com as coisas do mundo.
Você deve se lembrar que a narrativa de Laura na abertura des-
te capítulo nos conta o sonho que a professora teve com sua aluna
Safira, quando ela era recém-chegada no Brasil. O fato da professora
ter sonhado com sua aluna evidencia o impacto de Safira nas reflexões
de Laura, que se mostrava preocupada com a escola funcionar muito
bem com as alunas migrantes, mas não com Safira. Laura parecia se
perguntar o porquê disso, especialmente ao repetir, em sua narrativa,
que com Safira “era diferente”. Acreditamos poder ajudar Laura nessas
reflexões, discutindo as particularidades da linguagem na situação de
Safira a partir das dimensões de aprendizagem de línguas que discuti-
mos aqui, ou seja, que aprender uma língua é uma prática social, rela-
cional, processual e contínua, uma prática que precisa problematizar a
ideia de “falante nativa”.

88
A LINGUAGEM NA VIDA

Como professora, Laura poderia se perguntar: “qual seria o papel


da escola no acolhimento de Safira e de sua irmã, tanto na comunidade
quanto no contexto escolar?” A perspectiva translíngue adotada por
nós, conforme exploramos neste capítulo, nos leva a pensar tanto na
linguagem quanto na escola como espaços complexos e dinâmicos, de-
mandando que se considere sempre a multiplicidade de vozes envol-
vidas neles. Será que esse entendimento poderia transformar a escola
na qual Laura e Safira se conheceram em um ambiente mais acolhedor,
no qual houvesse maior espaço para o convívio com as diferenças, para
construção e transformação de práticas de construção de sentidos?
Acreditamos que sim.
No entanto, ser acolhedora não implica evitar ou encobrir confli-
tos, nem mesmo resolvê-los; afinal, nossas vidas são repletas de confli-
tos e a escola faz parte da vida. Os conflitos com que nos encontramos
dentro e fora da escola talvez fiquem mais visíveis nos contatos inter-
culturais com pessoas recém-chegadas à comunidade escolar, mas não
se limitam a essas situações. Safira pode ter evidenciado as dificulda-
des da escola, das alunas e das professoras em lidar com letramentos
diferentes dos seus, mas sabemos que conflitos acontecem sempre nas
relações entre pessoas e das pessoas com o mundo.
Na perspectiva de linguagem com que estamos trabalhando, os
processos de negociação de sentidos são uma constante, e os conflitos
fazem parte deles. Na verdade, pode-se dizer que os conflitos consti-
tuem os sentidos: negociar sentidos envolve entrar em contato com
aquilo que é diferente do que já sabemos ou mesmo aceitamos, o que
nos leva a ter diferentes reações. Se entendemos que a linguagem nos
constitui e compreendemos que somos todas diferentes, não seria ób-
vio termos diferentes interpretações das coisas? Para nós, sim, seria
evidente.
Contudo, a perspectiva bastante difundida de que a linguagem
seria neutra e existiria a priori das situações comunicativas faz com
que muitas vezes os conflitos inerentes à comunicação sejam vistos
como ruídos, problemas a serem evitados ou sanados. Os conflitos
nos deixam inseguras, nos tiram de nossas zonas de conforto – talvez
justamente porque nos trazem a oportunidade de aprender. Aprender

89
A LINGUAGEM NA VIDA

significa confrontar, transformar, ver diferente. E isso nos coloca em


conflito, um conflito entre o que já sabemos e já aprendemos, o que
outras pessoas sabem e nos contam, em contraponto com o que vire-
mos a saber. Esse novo saber não se constrói no vácuo – ele se dá em
relação com os saberes anteriores, e nesse encontro todos se transfor-
mam: os saberes novos e os anteriores, bem como as pessoas que os
constroem. Essa trama de linguagens, pessoas e saberes é informada
também pelos espaços que dão lugar a esses encontros e confrontos,
pelas experiências de vida das pessoas, por suas leituras sobre esses
espaços e saberes, pelas relações de poder que caracterizam tudo isso,
e muito, muito mais.
Um espaço onde essa trama se constrói é a escola, um lugar de
encontro das diferenças e, portanto, um lugar privilegiado para esses
confrontos e transformações. Nesse sentido, quais seriam as caracte-
rísticas de uma escola que fizesse das diferenças oportunidades para
aprender? Deveria essa escola priorizar os conteúdos disciplinares em
detrimento do acolhimento das diferenças que as alunas trazem con-
sigo? Será que essa escola poderia ou deveria elencar conteúdos para
a promoção de uma formação cidadã? Seria uma questão de ter que
“escolher” entre, por um lado, conteúdos, e, por outro lado, formação
cidadã? Em que objetivos essa escola deveria se concentrar? Em outras
palavras, podemos agora retomar a função dessa escola em nossa so-
ciedade, expandindo o que apontamos sobre isso no primeiro capítulo.
Para nós, a escola poderia começar sendo movida pelo dese-
jo de tornar visível aquilo que ela tem tradicionalmente excluído de
sua atenção, ou seja, abrir-se para configurações e saberes sociais, fa-
miliares, econômicos, culturais que eventualmente não façam parte
das práticas legitimadas pela comunidade em que ela se insere. Uma
vez visíveis na escola, essas configurações e saberes fariam parte dos
processos de aprendizagem como oportunidades de pensar “fora da
caixa”, de refletir sobre alternativas ao mundo “como ele nos pare-
ce”, ou como ele nos é apresentado nas perspectivas legitimadas das
disciplinas escolares. No encontro entre diferentes saberes, ideolo-
gias, pessoas, a aprendizagem abre horizontes e amplia repertórios,

90
A LINGUAGEM NA VIDA

construindo a possibilidade de que tenhamos mais do que uma histó-


ria única, mais do que uma linguagem única, mais do que uma cultura
única. Pense, por exemplo, em como os conteúdos de disciplinas tais
como História do Brasil têm sido modificados, a partir do reconheci-
mento de perspectivas diversas sobre o que ocorreu aqui, tanto antes
quanto depois das chamadas grandes navegações e do encontro entre
ameríndios e europeus. É interessante perceber como essas mudanças
nos conteúdos disciplinares constroem para nós outras formas de exis-
tir, de ver o outro, e assim ampliam nossas interpretações e percepções
de nós mesmas e das outras pessoas, nações, países, comunidades, etc.
Em nosso entendimento, toda mudança acontece de forma complexa,
tanto de fora da escola para dentro, quanto de dentro dela para fora,
em um processo constante, afinal, a escola é uma instituição social e,
portanto, em permanente construção por todas as pessoas e os saberes
que a constituem.
Importante destacar que esse processo de visibilização de si e de
outras pessoas e conhecimentos proporcionará aprendizagem (enten-
dida como um processo de transformação que está além da mera repro-
dução de conteúdos) na medida em que os saberes forem confrontados
uns com os outros, e que a comunidade escolar possibilite espaços de
discussão sobre as diversas perspectivas que venham a fazer parte da
escola. Isso não significa legitimar o que não está legitimado, nem des-
legitimar o que está legitimado. Também não significa que todos os
conhecimentos tenham o mesmo valor perante a sociedade, nem que
devam vir a ter; não se trata de saberes neutros, despolitizados, cons-
truídos num vácuo: conteúdos, disciplinas, conhecimentos, saberes
são sempre ideológicos, como vimos no capítulo 3. Aprender confron-
tando saberes, para nós, significa relacionar, associar, cotejar, e desse
modo, desenvolver a reflexão e o pensamento crítico que existem no
reconhecimento de que há uma grande variedade de saberes e que tais
saberes são hierarquizados social, cultural e politicamente em nossa
sociedade. Aprender então, em meio à multiplicidade de saberes, en-
volve ampliar as possibilidades de se posicionar diante do mundo.

91
A LINGUAGEM NA VIDA

Afinal, o que a linguagem e a escola têm a ver com a vida?

Quando olhamos para a escola mais de perto, vemos que ela é


um espaço onde estudantes com diferentes repertórios linguístico-
-culturais entram em contato, aprendem umas com as outras e têm
incontáveis possibilidades de construção e transformação a partir de
diferentes olhares. Isso nos parece evidente. No entanto, nos parece
crucial que essas práticas de linguagem e aprendizagem sejam ainda
mais valorizadas do que têm sido pela escola. A multiplicidade dessas
práticas por vezes pode não ser considerada em seu potencial forma-
tivo, sendo tratada como uma questão menor ou como efeito colateral
dos letramentos escolares. No entanto, acreditamos que se elas fo-
rem ressignificadas como válidas e fundamentais, sendo incorporadas
explicitamente ao trabalho de sala de aula – por exemplo, através da
elaboração de atividades relacionadas aos conteúdos disciplinares –,
pode haver um alargamento das possibilidades de ser, existir, agir e
aprender no mundo pelas pessoas envolvidas na escola.
Talvez, se essas possibilidades tivessem sido exploradas na es-
cola, no caso de Safira, mais especificamente, ela pudesse ter se senti-
do mais acolhida e tivesse tido maior sensação de pertencimento, não
apenas à escola, mas também à sociedade em geral. Talvez, nesse caso,
o medo que Safira parecia sentir pudesse ser compartilhado, visibili-
zado como uma oportunidade de aprendizagem não apenas para ela,
mas também para as pessoas que interagiam com ela. No entanto, esse
parece não ter sido o seu caso, assim como não é o caso de tantas e tan-
tas outras crianças em diversos espaços, sejam elas migrantes ou não.

92
A LINGUAGEM NA VIDA

PALAVRAS PARA UM FINAL PROVISÓRIO

Chegamos ao final. Ou quase. Recordemos então, muito suma-


riamente, que tivemos na apresentação do livro uma breve narrativa
sobre como escrevemos esta obra com os pés no chão e as mãos, as
cabeças e os corações na linguagem. Depois, passamos por 4 capítu-
los construídos a partir de experiências vividas por Laura, uma profes-
sora de inglês, experiências que nos permitiram aproximar a vida de
Laura das nossas vidas e tratar de temáticas da Linguística Aplicada
com uma linguagem não acadêmica. No primeiro capítulo, tratamos de
linguagem como prática social – conceito que fundamenta a proposta
do livro em si e embasa todos os outros capítulos. Nos desdobramen-
tos do capítulo 1, abordamos a linguagem escrita, a noção de recursos
semióticos, a função social da escola (problematizando o conceito de
educação bancária) e o imbricamento entre linguagem e sociedade. No
capítulo seguinte, problematizamos os conceitos de leitura, de pala-
vra-mundo, de letramentos, de letramento visual e de letramento crí-
tico, bem como discutimos a materialidade desses conceitos no mundo
e na vida. O terceiro capítulo tratou dos conceitos de multimodalidade
e de ideologia, e de como eles estão imbricados nas mudanças tec-
nológicas na contemporaneidade, trazendo profundas implicações aos
estudos da linguagem. No último capítulo discutimos os conceitos de
identidade, interculturalidade e migração a partir da concepção de lin-
guagem como prática social transgressora e da escola como espaço de
acolhimento e transformação: essa discussão considerou os conceitos
de translinguagem, repertórios linguísticos e falante nativo.
Buscaremos, por fim e agora, neste final provisório, fazer presen-
tes os desafios que os anos de pandemia têm nos trazido e a importância

93
A LINGUAGEM NA VIDA

dos estudos da linguagem para a compreensão e transformação deste


cenário vivido por todas nós, autoras e leitoras.
Pensemos então um pouco mais sobre Laura, a professora que
nos oportunizou material para este livro e suscitou as reflexões que
compartilhamos com você. Por onde andará Laura hoje? Estará ela em
isolamento físico devido à pandemia da COVID-19? Será que ela ou
alguém próximo a ela sofreu diretamente com essa doença? Como ela
deve estar se sentindo com a iminência (ou não) da retomada das ati-
vidades presenciais (ou remotas) nas escolas?
Só podemos imaginar o quanto a preocupação de Laura com a
saúde física e mental de suas alunas pode ter afetado seu estado de es-
pírito diante da situação pela qual o Brasil passa desde o ano de 2020,
ano em que escrevemos este livro. Não temos como saber em que ano
você, leitora, está lendo este livro; no entanto, podemos adivinhar que,
seja em que ano for que tenhamos nos encontrado, estaremos todas
enormemente impactadas pelos acontecimentos do ano em que este
livro foi escrito. Claro que, no fundo, este livro será reescrito a cada
leitura que dele for feita, e será novo para cada leitora e até para a
mesma leitora em diferentes momentos em que a leitura seja realiza-
da. Mesmo assim, o ano da escritura primeira terá sido marcante em
nossa história, em nossos pés, em nossas mãos, em nossas cabeças,
em nossos corações, em nossos corpos, enfim, em nossa existência.
Literalmente ou não. Queremos registrar aqui nosso pesar diante de
tantas mortes que talvez pudessem ter sido evitadas no decorrer deste
ano.
No entanto, entendemos que este livro pode ser uma maneira
de lidar com tanta tristeza, de buscar uma vida com mais empatia e
colaboração. Sua escritura foi isso, certamente, para nós. Desejamos
profundamente que também o seja para você.
Mas calma, pois este livro quase acabou. Falamos bastante de es-
cola, encontramos uma professora em vários momentos de sua vida.
Como professoras nós também, autoras deste livro, temos uma lição
de casa para você. Apresentamos aqui então mais um desafio de apren-
dizagem, à guisa de encerramento deste livro. Gostaríamos muito que

94
A LINGUAGEM NA VIDA

você pensasse sobre como sua leitura dele pode ter modificado, estar
modificando, ou vir a modificar suas práticas de letramento: este livro
causou algum impacto em quem você se percebe ser, em como você
percebe a linguagem no mundo, em como você percebe o mundo e as
outras pessoas, e outras formas de existência? Você sente que seu re-
pertório se expandiu de alguma maneira?
Se você responde “sim” às duas perguntas, ficamos extremamen-
te satisfeitas e convidamos você a continuar conosco em nossas redes
sociais, em nossos textos acadêmicos que se encontram em diversas
revistas de acesso gratuito no Portal de Periódicos da CAPES e em ou-
tras revistas acadêmicas por aí.
Se sua resposta às perguntas é “não”, convidamos você a fazer o
mesmo que estamos convidando a fazer quem responde que sim; afi-
nal, esperamos que este livro tenha influenciado você, mesmo que de
forma leve, a se sentir motivada a continuar investigando, instigando
seu pensamento, sua percepção, sua interpretação de si e do mundo.
Esse fim (término e finalidade) provisório vem com a esperança
de que a leitura dos capítulos deste livro tenha sido tão construtiva
para você quanto escrever este livro foi para nós: um processo desafia-
dor, sem dúvida, e repleto de aprendizagem, sem dúvida.
Agradecemos pela companhia.

95
A LINGUAGEM NA VIDA

PARA SABER MAIS

ADICHIE, Chimamanda Adichie. O perigo da história única. Jul. , 2009.


Disponível em: <https://www. ted. com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_
the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt> Acesso em: 06 ago.
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BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: O que é, como se faz. São Paulo:
Loyola, 1999.
BAZZONI, Cláudio. A concepção de linguagem determina o que e como ensinar.
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FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: As ideias linguísticas do círcu-
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FERREIRA, Aparecida de Jesus. Formação de Professores – Raça/Etnia: reflexões
e sugestões de materiais de ensino em português e inglês. 2 ed. Cascavel, PR:
Assoeste, 2006.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam.
45. ed. São Paulo: Ed. Cortez, 2003.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Tolerância. Organização e Notas Ana Maria
Araújo Freire. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
FONSECA, André. Teoria de Paulo Freire Explicada em Vídeo. Nova Escola, 09
jun. 2015. Disponível em: <https://novaescola. org. br/conteudo/4630/teoria-
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REVISTA RESSONÂNCIAS. Publicação anual relacionada à temática de mi-
gração e refúgio. UFPR. Volume 1, número 1, fev. 2020. Disponível em: <ht-
tps://issuu. com/ressonancias>. Acesso em: 12 ago. 2020.

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A LINGUAGEM NA VIDA

RITA VAN HUNTY. A realidade é subjetiva. Tempero Drag, 2020. Disponível


em: <https://www. youtube. com/watch?v=kdHmy0_Rkcw>. Acesso em: 06
ago. 2020.
RITA VAN HUNTY. Ideologia. Tempero Drag, 2020. Disponível em: <https://
www. youtube. com/watch?v=cowTCfoegsI>. Acesso em: 06 ago. 2020.
SOUSA SANTOS, Boaventura de. Para além do pensamento abissal: das linhas
globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. – CEBRAP, São Paulo, n. 79, p.
71-94, Nov. 2007. Disponível em: <http://www. scielo. br/scielo. php?script=s-
ci_arttext&pid=S0101-33002007000300004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em:
12 ago. 2020.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era
dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas funda-
mentais do método sociológica na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo;
Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo, SP: Editora 34, [1929] 2017.

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A LINGUAGEM NA VIDA

POSFÁCIO

Depois de acompanharmos a trajetória da professora Laura, pro-


pomos duas reflexões: será que não nos tornamos um pouco como
ela durante a leitura? Ou ainda, será que não somos, eventualmente,
Laura?
Assim como nós, vocês talvez tenham passado pelo processo de
laurear-se: identificar-se com a personagem, com suas inquietações,
com seus questionamentos e com seus sonhos. Ou, quem sabe, tenham
assumido suas características e sua personalidade ao seguirem a ten-
dência atual das mídias sociais: #laure-se.
Dessa forma, as reflexões aqui presentes nos convidam a pensar
que o processo de formação do sujeito ocorre dentro e fora dos muros
da escola.
As doze mãos que escreveram o livro tiveram como preocupa-
ção uma leitura acessível e que fosse, ao mesmo tempo, provocativa.
Ao inovar na adoção do feminino para designar autoras e autor, os
leitores podem tornam-se leitoras como oportunidade de vivenciar a
alteridade.
Ainda seguindo o raciocínio das mãos, podemos afirmar que li-
dar com a linguagem e refletir sobre as mudanças no mundo no qual
estamos inseridas possibilita a construção de outros mundos, bem
como fazem as autoras ao escrever um texto colaborativamente e ao
tensionar diferentes visões e posicionamentos, frutos de seus esforços
interpretativos.
É necessário, então, estarmos com as cabeças abertas para nos
dedicarmos a um livro que parte de uma escrita ousada que não faz uso

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A LINGUAGEM NA VIDA

de referências diretas, citações e tantas outras formas tradicionais de


legitimação de conhecimento.
No entanto, é uma leitura que não deixa de envolver a afetivida-
de. Isso significa que nossas emoções estão constantemente em jogo
nesse processo, evidenciando o quanto a linguagem toca o coração. E,
não é só isso: como colegas das autoras, também nos envolvemos emo-
cionalmente, uma vez que nossas existências e trajetórias se entrecru-
zam dentro e fora da vida acadêmica. Gostaríamos de registrar aqui
nossa gratidão pela oportunidade de ler e escrever sobre esse livro.
Nos dois primeiros capítulos, Laura conversa com a mãe de uma
aluna e com uma amiga, fato que chama a atenção para a importância
das relações e das afetividades envolvidas. Do mesmo modo, nossos
engajamentos em conversas com mães de alunas, com colegas de tra-
balho, com família e com amigas não deixam de envolver afetividade
e conflitos.
Para finalizar, retomamos o desfecho da personagem que sonha
com a história de sua aluna. Isso nos convida a pensar o quão intenso é
o processo de nos tornarmos educadoras, a ponto de não esquecermos
das alunas que marcam nossas vidas, das influências que exercemos em
suas vidas e vice-versa. Sendo assim, esperamos que essa leitura traga
outros sonhos para vocês, caras leitoras. E que esses sonhos se concre-
tizem em ações, projetos, futuras leituras e outros novos sonhos!

Angela Maria Hoffmann Walesko


Professora de Teoria e Prática de Ensino no Setor de
Educação da Universidade Federal do Paraná
Formadora de professoras, mãe de uma Laura de 7 anos que
também tem o espírito curioso e questionador como a persona-
gem do livro – talvez um pouco mais teimosinha.
angela. walesko@ufpr. br

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A LINGUAGEM NA VIDA

Denise Akemi Hibarino


Professora de Língua inglesa no Departamento de Línguas
Estrangeiras Modernas da Universidade Federal do Paraná
Filha da Dona Aurora, com quem alterna o papel de mãe quan-
do precisa alfinetá-la.
denise. hibarino@ufpr. br

Iara Maria Bruz


Professora de Língua inglesa no Setor de Educação
Profissional e Tecnológica da Universidade Federal do Paraná
Professora que, muitas vezes, sonha com suas alunas e suas histórias.
iarabruz@ufpr. br

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A LINGUAGEM NA VIDA

BIODATAS

Adriana Cristina Sambugaro de Mattos Brahim – Doutora e Mestre em


Linguística Aplicada (UNICAMP) e docente do Programa de Pós-graduação
em Letras da UFPR, e do SEPT/UFPR. É líder do GPELIN (Grupo de Pesquisa
em Educação Linguística – DGP/CNPq) e participa do grupo de pesquisa
Identidade e Leitura. adrianacsmbrahim@gmail. com

Alessandra Coutinho Fernandes – Docente do Curso de Letras Inglês


(UFPR). Doutora em Estudos Linguísticos (UFPR). Mestre em Letras Inglês
e Literatura Correspondente (UFSC). Realizou pós-doutorado na University
of Illinois at Urbana-Champaign e na USP. Participa do grupo de pesquisa
Identidade e Leitura (UFPR). alessandrawiggers@gmail. com

Ana Paula Marques Beato-Canato – Docente do Curso de Letras Inglês


e do Programa de Pós-Graduação em Letras na Universidade Federal do
Paraná; mestre e doutora em Estudos da Linguagem (UEL) e pós-doutora em
Linguística Aplicada (UFRJ). Integra o grupo de pesquisa Identidade e Leitura
(UFPR). anabeatocanato@gmail. com

Clarissa Menezes Jordão – Doutora em Letras (USP), mestre em Literaturas


de Língua Inglesa (UFPR) e graduada em Letras Português e Inglês (UFPR).
Realizou pós-doutorados na Universidade de Manitoba e no Glendon College,
Universidade de York, ambos com bolsa da CAPES. Professora sênior no
Programa de Pós Graduação em Letras da UFPR. Líder do grupo de pesquisa
Identidade e Leitura (UFPR). clarissamjordao@gmail. com

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A LINGUAGEM NA VIDA

Eduardo Henrique Diniz de Figueiredo – Professor da Universidade Federal


do Paraná, na graduação e na pós-graduação em Letras. Doutor em Linguística
Aplicada pela Arizona State University. Possui graduação em Letras pela
Universidade Federal da Paraíba e mestrado em Letras (Inglês e Literatura
Correspondente) pela Universidade Federal de Santa Catarina. É vice-líder do
grupo de pesquisa Identidade e Leitura (UFPR). eduardo. diniz@ufpr. br

Juliana Zeggio Martinez – Professora no Curso de graduação e de pós-gra-


duação em Letras na Universidade Federal do Paraná. Doutora em Letras pela
Universidade de São Paulo, mestre em Letras pela UFPR e graduada em Letras
Português-Inglês também pela UFPR. Atua em projetos de formação de pro-
fessores/as no Núcleo de Assessoria Pedagógica (NAP-UFPR) e integra o gru-
po de pesquisa Identidade e Leitura (UFPR). jumartinez@ufpr. br

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Enfrentamos com coragem e determinação o desafio de escrever
um livro colaborativamente, e discutimos entre nós cada palavra,
cada gesto, cada ideia. Mesmo tendo todas nós uma formação
acadêmica dentro da mesma área, a área de Letras, nossos
percursos nos levaram a teorias e práticas diversas. Nossas
reuniões para a escrita desse livro foram conflituosas e intensas,
mas recheadas de disposição e abertura para o contato com o
diferente. Eis o resultado. Um livro que é produto de aprendizagem
advinda sobretudo do trabalho envolvido em negociar sentidos,
calcado no movimento de aprender, ou seja, de desaprender e
reaprender umas com as outras, para logo em seguida iniciar esse
movimento outra vez. Oferecemos ao público nossos saberes,
certas de que eles serão reescritos em cada leitura. Esperamos
que as reações interpretativas das leitoras suscitem nelas algo
próximo do que o processo de escrever a 12 mãos suscitou em
nós: finalizamos este livro com uma sensação de fortalecimento
vinda das generosas trocas de saberes teóricos e práticos, que
enriqueceram quem estamos sendo, na contingência de nossos
existires. Problematizamos e expandimos nossos repertórios e
oferecemos este livro como uma oportunidade para que também
outras pessoas experimentem esse processo e façam dele uma
constante em suas interações com o mundo.
Eis aqui um livro escrito a 12 mãos com mangas arregaçadas
e profundamente engajadas no trabalho de escrever de forma
colaborativa para conversar sobre linguagem. São 12 mãos de
professoras, pesquisadoras, educadoras, formadoras, pensadoras,
alfinetadoras e várias outras -oras. Este livro convida a um diálogo
colaborativo para compreender, transformar e complexificar nossas
práticas de linguagens: como percebemos a linguagem em nós, no
mundo, nas outras pessoas e em outras formas de existência? Como
podemos expandir nossos repertórios a esse respeito?

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