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Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

G924g Guedes, Paulo Coimbra.


Gramática e Estilo / Paulo Coimbra Guedes; Prefácio de Daniela Favero Netto.
1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2023.

E-book: 10 Mb; PDF.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-5637-798-8.

1. Ensino. 2. Língua Portuguesa. 3. Prática Pedagógica.


I. Título. II. Assunto. III. Autor.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:

1. Métodos de ensino instrução e estudo– Pedagogia. 371.3


2. Linguagem / Línguas – Estudo e ensino. 418.007
3. Língua portuguesa. 469
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Para Jane Mari de Souza,
companheira.
“A eficácia total, entretanto, eficácia diante da qual nos
devemos declinar – aquela que é realmente o grande feito
que nós, brasileiros, podemos ostentar diante do mundo
como único – é a façanha educacional da nossa classe
dominante. Esta é realmente extraordinária! E por isso é
que eu não concordo com aqueles que, olhando a educa-
ção desde outra perspectiva, falam de fracasso brasileiro
no esforço por universalizar o ensino. Eu não acho que
houve fracasso algum nesta matéria, mesmo porque o
principal requisito de sobrevivência e de hegemonia da
classe dominante que temos era precisamente manter o
povo chucro.”
(Darcy Ribeiro)

“A crítica à gramatiquice e ao normativismo não signi-


fica, como pensam alguns desavisados, o abandono da
reflexão gramatical e do ensino de norma culta/comum/
standard. Refletir sobre a estrutura da língua e sobre seu
funcionamento social é atividade auxiliar indispensável
para o domínio fluente da fala e da escrita. E conhecer
a norma culta/comum/standard é parte integrante do
amadurecimento das nossas competências linguístico-
-culturais, em especial as que estão relacionadas à cultura
escrita. O lema aqui pode ser: reflexão gramatical sem
gramatiquice e estudo da norma culta/comum/standard
sem normativismo.”
(Carlos Alberto Faraco)

“As formas gramaticais não podem ser estudadas sem


que se leve em conta seu significado estilístico. Quando
isolada dos aspectos semânticos e estilísticos da língua, a
gramática inevitavelmente degenera em escolasticismo.”
(Mikhail Bakhtin)
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
DESPRIVATIZAR A LÍNGUA É DESCOLONIZAR A LÍNGUA E VICE-VERSA ...... 15

1 TEORIA DO TEXTO EM HAVER ........................................................................ 18


1.1 BOTANDO POR ESCRITO A PALAVRA ESCRITA ....................................... 24
1.2 NARRAR É PRECISO.......................................................................................... 29
1.3 DAS QUALIDADES DISCURSIVAS ÀS QUALIDADES ESTILÍSTICAS ..... 34
1.3.1 Retomando as qualidades discursivas................................................................. 35
1.3.1.1 Unidade temática ............................................................................................ 37
1.3.1.2 Objetividade..................................................................................................... 38
1.3.1.3 Concretude....................................................................................................... 39
1.3.1.4 Questionamento............................................................................................... 40
1.3.2 Qualidades discursivas em ação......................................................................... 41
1.3.3 Bilhetes orientadores........................................................................................... 48
1.3.4 Leitor de si mesmo.............................................................................................. 51
1.3.5 Reescrever claro costuma levar a pensar mais claro........................................... 53
1.3.6 Qualidades discursivas não deixam de ser qualidades estilísticas......................... 58
1.4 A GRAMÁTICA É UM ESTILO.......................................................................... 61
1.4.1 A tradição normativista da gramática................................................................. 66
1.4.2 Heranças malditas .............................................................................................. 71
1.4.3 Quem precisa da gramática?............................................................................... 81
1.5 O TEXTO É UM ESTILO..................................................................................... 84
1.5.1 O registro da fala vira texto................................................................................ 88
1.5.2 Botando no papel o que desce da cabeça............................................................ 99
1.5.3 O leitor que escreve e o professor que ensina..................................................... 105

2 ENCADEAMENTO ................................................................................................ 109


2.1 MERO ENCADEAMENTO ................................................................................. 111
2.1.1 Delimitação de frases no texto e de orações nas frases...................................... 113
2.1.2 Fluência do encadeamento.................................................................................. 120
2.2 PONTUAÇÃO FINAL DE FRASE E DE ORAÇÃO........................................... 125
2.2.1 Dificuldades de construção................................................................................. 131
2.2.1.1 Frases superpovoadas...................................................................................... 132
2.2.1.2 Frases siamesas................................................................................................ 139
2.2.1.3 Fragmento de frase........................................................................................... 142
2.3 O PODER DAS CONJUNÇÕES.......................................................................... 145
2.3.1 Conjunções que relacionam e separam orações.................................................. 151
2.3.1.1 A conjunção e ................................................................................................. 152
2.3.1.2 A conjunção e, a pausa e o ponto .................................................................... 156
2.3.1.3 O que vem junto com e ................................................................................... 159
2.3.2 As conjunções nem, ou e mas ........................................................................... 160
2.3.2.1 Duplicação das conjunções ou e nem.............................................................. 164
2.3.3 Vírgulas para desambiguizar certas conjunções................................................. 166
2.4 PARA FAZER FLUIR A LEITURA DO QUE SE ENCADEIA......................... 170
2.4.1 Pontuação final e conjunções a favor da fluência .............................................. 174
2.4.2 Alguns critérios para combinar conjunções e pontuação ................................... 179
2.5 AS LIMITAÇÕES DO ENCADEAMENTO ....................................................... 186
2.5.1 Os parágrafos e suas frases delimitam os vários temas do texto........................ 190
2.5.2 O encadeamento precisa ser cronologicamente balizado.................................... 193
2.5.3 Os adequados sinais de pontuação distinguem o que está em sequência do
que se liga por outras relações..................................................................................... 198

3 COORDENAÇÃO ................................................................................................... 202


3.1 O CONJUNTO E OS SEUS ELEMENTOS......................................................... 202
FRANGOS E ASSADOS............................................................................................ 202
3.1.1 A reordenação do mero encadeamento pela coordenação.................................. 209
3.1.2 Do encadeamento à coordenação: parágrafos, frases, orações, conjuntos.......... 211
3.2 O PARALELISMO E OS RECADOS DA FORMA............................................ 221
3.2.1 A clareza da construção paralela: o coordenante e os marcadores dos coordenados ......228
3.2.2 Coordenação e regência ..................................................................................... 232
3.2.2.1 O paralelismo e a regência nos ajudam com a crase........................................ 238
3.2.3 Comparações, correlações, definições................................................................ 240
3.2.4 Falso paralelismo................................................................................................ 244
3.3 DA COORDENAÇÃO À SUBORDINAÇÃO..................................................... 247

4 SUBORDINAÇÃO .................................................................................................. 257


4.1 SUBSTANTIVOS E ADJETIVOS / SUJEITOS E PREDICADOS..................... 258
4.1.1 O objeto e sua objetância.................................................................................... 260
4.1.2 Substantivo e adjetivo e adjetivo e substantivo.................................................. 264
4.1.3 Substantivo como predicativo ............................................................................ 266
4.1.4 O adjetivo como predicativo............................................................................... 268
4.1.5 O sintagma nominal............................................................................................ 272
4.2 FORMAS DO ADJETIVO.................................................................................... 274
4.2.1 Adjetivos-palavra................................................................................................ 275
4.2.1.1 A posição do adjetivo com relação ao substantivo ......................................... 277
4.2.1.2 O adjetivo como predicativo............................................................................ 279
4.2.1.3 O predicado verbo-nominal............................................................................. 280
4.2.1.4 O critério da restritividade .............................................................................. 282
4.2.2 Adjetivos-preposição + nome ............................................................................ 283
4.2.2.1 Substância e atributo ....................................................................................... 283
4.2.2.2 Ambiguidade.................................................................................................... 287
4.2.2.3 Predicação inadequada..................................................................................... 288
4.2.2.4 Concordância................................................................................................... 291
4.2.3 Orações adjetivas................................................................................................ 294
4.2.3.1 A posição da oração adjetiva........................................................................... 296
4.2.3.2 Orações adjetivas desajeitadas......................................................................... 301
4.2.3.3 O qual, os quais, a qual, as quais..................................................................... 305
4.2.3.4 Quem................................................................................................................ 313
4.2.3.5 Onde ................................................................................................................ 315
4.2.3.6 Salvem o cujo................................................................................................... 323
4.2.3.7 Problemas de construção das orações adjetivas .............................................. 335
4.2.3.7.1 Concordância................................................................................................ 336
4.2.3.7.2 Regência ....................................................................................................... 342
4.2.3.7.3 E que............................................................................................................. 350
4.3 RESTRITIVO E NÃO RESTRITIVO .................................................................. 352
4.3.1 O que restritividade e não restritividade implicam?........................................... 359
4.3.2 A especificação do antecedente da não restritiva .............................................. 363
4.3.3 Uma designação para o antecedente geral ......................................................... 365
4.3.4 Uma designação específica para o antecedente.................................................. 369
4.3.5 Temporais e locativas......................................................................................... 372
4.3.6 A mobilidade das orações adverbiais.................................................................. 375
4.4 ADJETIVAS, APOSTOS, REDUZIDAS, ADVERBIAIS .................................. 379
4.4.1 O aposto ............................................................................................................. 381
4.4.2 Oração reduzida de particípio ............................................................................ 385
4.4.3 Oração reduzida de gerúndio ............................................................................. 392
4.4.4 Oração reduzida de infinitivo.............................................................................. 398
4.5 ADVERBIAIS....................................................................................................... 401
4.5.1 Conjunções adverbiais........................................................................................ 406
4.5.1.1 Causa, consequência e finalidade.................................................................... 407
4.5.1.2 Concessivas...................................................................................................... 410
4.5.1.3 Condicionais.................................................................................................... 412
4.5.1.4 Conformativas ................................................................................................. 413
4.5.1.5 Comparativas................................................................................................... 414
4.5.1.6 Proporcionais................................................................................................... 415
4.5.1.7 Temporais........................................................................................................ 415
4.5.2 Principais e subordinadas.................................................................................... 418

5 ORDEM E NEXOS.................................................................................................. 422


5.1 O ENCADEAMENTO NA FRASE...................................................................... 425
5.1.1 Tema e rema/tópico e comentário....................................................................... 426
5.1.2 Sujeito e predicado.............................................................................................. 438
5.1.3 Construção de tópico.......................................................................................... 447
5.1.4 Começo, meio e fim............................................................................................ 457
5.1.5 Efeitos colaterais do encadeamento.................................................................... 470
5.2 PONTUAÇÃO INTERNA DA FRASE................................................................ 480
5.2.1 Advérbios do verbo, do adjetivo, do advérbio, da oração, da frase ................... 491
5.2.2 Adjuntos adverbiais da frase longos................................................................... 495
5.2.3 Intercalações ...................................................................................................... 505
5.2.4 Travessões e parênteses ..................................................................................... 513
5.3 A ORAÇÃO E AS OUTRAS ORAÇÕES ........................................................... 523
5.3.1 Papéis temáticos e funções sintáticas.................................................................. 529
5.3.1.1 A forma do sujeito........................................................................................... 543
5.3.1.2 Elipse do sujeito e do verbo............................................................................. 550
5.3.1.3 Sujeito, tópico, tema........................................................................................ 558
5.3.1.4 Ação, agente, paciente – voz ativa e voz passiva............................................ 564
5.3.2 Concordância ..................................................................................................... 574
5.3.2.1 Sujeito composto.............................................................................................. 582
5.3.2.2 Marcas que antecedem o verbo ....................................................................... 586
5.3.2.3 Marcas que vêm depois do verbo ................................................................... 592
5.3.2.4 Sujeito posposto............................................................................................... 596
5.3.2.5 Infinitivo.......................................................................................................... 601
5.3.2.6 Voz passiva e predicativos............................................................................... 608
5.3.2.7 Voz passiva sintética........................................................................................ 613
5.3.2.8 Recados da concordância................................................................................. 621
5.3.2.9 Traços que regem a concordância.................................................................... 635
5.3.3 Regência ............................................................................................................. 640
5.3.3.1 -o, -a, -lhe, -se ................................................................................................. 650
5.3.3.2 Colocação dos pronomes ................................................................................ 659
5.3.3.3 Fora a mesóclise! ............................................................................................ 661
5.3.3.4 Os complementos e as preposições.................................................................. 666
5.3.3.5 Sentidos de base (unitários) das preposições................................................... 676
5.3.3.5.1 Eixo horizontal.............................................................................................. 677
5.3.3.5.2 A / para / em ................................................................................................. 683
5.3.3.5.3 Precisa mesmo de a ou para?........................................................................ 688
5.3.3.5.4 Em / para / de / por........................................................................................ 692
5.3.3.5.5 Eixo vertical.................................................................................................. 695
5.3.3.5.6 Eixo transversal............................................................................................. 697
5.3.3.5.7 Eixo proximal / distal.................................................................................... 700
5.3.3.5.8 Eixo continente / conteúdo ........................................................................... 703

6 O TEXTO E SUAS FRASES .................................................................................. 709


6.1 A FRASE E AS OUTRAS FRASES..................................................................... 721
6.1.1 Tema e rema ....................................................................................................... 726
6.1.2 Referência .......................................................................................................... 735
6.2 ASPECTOS, MODOS, TEMPOS E FORMAS DOS VERBOS........................... 744
6.2.1 Os tempos com que se narra .............................................................................. 745
6.2.1.1 Modo verbal..................................................................................................... 750
6.2.1.2 Aspecto verbal ................................................................................................ 751
6.2.1.3 O reportamento da fala..................................................................................... 753
6.2.1.4 Tempos predominantes na narrativa................................................................ 760
6.2.2 Os tempos com que se expõe ............................................................................. 762
6.2.3 O que se conta pra entender como foi................................................................. 773
6.2.3.1 Papéis dos tempos verbais .............................................................................. 779
6.2.3.2 Narrar, descrever, expor .................................................................................. 804
6.2.4 O que se conta pra mostrar como é..................................................................... 805
6.2.4.1 As diferentes funções dos tempos verbais....................................................... 808
6.2.4.2 A “tradução” do presente pro passado............................................................. 813
6.2.5 Complexidades virtuosas ................................................................................... 820
6.2.5.1 Os tempos e o tempo ....................................................................................... 829
6.2.5.3 Futuro do pretérito........................................................................................... 835
6.2.5.4 O que vem e o que vai e o que acaba e o que dura ......................................... 838
6.2.5.5 O pretérito perfeito composto e outras perífrases verbais .............................. 841
6.2.5.6 Asserções e conjeturas..................................................................................... 847

7 ESCREVEMOS TEXTO ESCREVENDO FRASES .............................................. 853


7.1 PEDAGÓGICA É A ESFERA ............................................................................. 859
7.2 PEDAGOGIA DA ESCRITA................................................................................ 877
7.3 PARA ALÉM DAS QUALIDADES DISCURSIVAS ........................................ 891
7.3.1 O necessário exercício da narração .................................................................... 893
7.3.2 No âmago da dissertação.................................................................................... 901
7.4 ENSAIO? .............................................................................................................. 915
7.4.1 Traços do ensaio................................................................................................. 919
7.4.2 O que nos bota a falar como falamos o que falamos.......................................... 930
7.4.3 Elis Regina e Hermeto Pasqual no Festival de Montreux.................................. 935
7.4.3.1 Entre os limites do ponto de vista.................................................................... 943
7.4.3.2 Pra dizer o que vem ao caso............................................................................. 953
7.4.3.3 Quando o texto provoca as necessárias confluências...................................... 958
7.5 ENSINAR A ESCREVER, APRENDER A ESCREVER, APRENDER A
ENSINAR A ESCREVER........................................................................................... 965

REFERÊNCIAS........................................................................................................... 975

POSFÁCIO.................................................................................................................. 979

AGRADECIMENTOS................................................................................................ 981
gramática e estilo

APRESENTAÇÃO

DESPRIVATIZAR A LÍNGUA É DESCOLONIZAR


A LÍNGUA E VICE-VERSA

P ara começar a falar de Gramática e estilo, trago à leitora e ao leitor


duas questões elencadas em um texto que publiquei em 2022: 1) no
âmbito da sociolinguística, pode-se apontar um falar brasileiro?; 2) as
práticas linguísticas dos grupos sociais em que nossos alunos se inserem
permitem que descrevamos os fenômenos linguísticos do Brasil como
um todo? A resposta que dei às questões, na ocasião, foi não, por duas
razões: a concepção de linguagem que hoje fundamenta os documentos
oficiais, e a diversidade linguística constituída em uma terra de conivência
de línguas indígenas, africanas, de imigração, de fronteira, entre outras.
A esta resposta, hoje, eu poderia acrescentar mais uma razão: a reflexão
a que me levou a leitura de Gramática e estilo.  
O que o leitor e a leitora encontrarão nesta obra ultrapassa o estudo
de conceitos de que se ocupa a linguística. Tenderíamos, num esforço
desse tipo, a reduzir a leitura à reflexão sobre abstrações, à tentativa de
realização de imagens mentais. E abstrações opõem-se ao que se encontra
nas próximas páginas: um exercício de pensar sobre a língua em uso em
consonância com a permanente atualização das nossas relações sócio-
-historicamente situadas.  

15
gramática e estilo

Para tentar dar concretude ao que se encontra nesta obra, asso-


cio Gramática e estilo a textos que já conhecemos há uma década: a
Nova gramática do português brasileiro (2010), de Ataliba Teixeira
de Castilho, e a Gramática pedagógica do português brasileiro (2011),
de Marcos Bagno. A gramática de Castilho olha para o mais atualizado
registro da norma falada no território nacional e ultrapassa a noção de
língua a serviço da comunicação; afinal, não há como negar o dispo-
sitivo sociocognitivo do qual lançamos mão ao falar, ao escrever ou,
ainda, ao pensar – antes de ou sem qualquer atividade comunicativa.
A língua falada é ponto de partida para pensar a escrita, ponto de che-
gada. A gramática de Bagno, por sua vez, autodenomina-se pedagó-
gica; preocupa-se, dessa forma, com o ensino do português brasileiro
e se apresenta como uma obra que descreve o português brasileiro
contemporâneo. Uma gramática que tem como objeto o mesmo para
o qual olha Castilho.  
Gramática e estilo, ao dedicar-se também à língua em uso, leva o
leitor e a leitora a defrontarem-se com uma riquíssima diversidade de
exemplos e de exercícios, cujas respostas, entre as alternativas possíveis,
podem fazer muito mais sentido se escritas na sua própria língua, pois
pensadas na sua própria língua.
Destaco à leitora e ao leitor não se tratar de uma leitura prazerosa do
início ao fim; tampouco, como dito, da discussão de conceitos linguísticos
ou, ainda, de um manual prescritivo, mas de uma leitura que, por vezes,
desacomoda ao nos colocar na condição de fazer escolhas e entender
o porquê dessas escolhas, condição para o estilo. Assim, ao ler esta obra,
não se pode esperar pela resposta única, pois de certeza (sobre)vivem as
gramáticas normativas. Guedes leva-nos ao exercício de desprivatizar o
uso da língua – termo usado pelo autor já em Da redação à produção
textual. Leva-nos, e aqui recorro a bell hooks, a reconhecer a libertação
das amarras da gramática normativa como um processo contínuo, como
uma oportunidade de descolonizar o pensamento.  

16
gramática e estilo

Nossas necessidades expressivas se atualizam na mesma medida


em que se atualizam as formas de nos relacionarmos. Nas palavras de
Paulo Coimbra Guedes, “estilo é a escolha do recurso expressivo que
parece mais adequado para produzir o efeito de sentido que se tem em
mente”, no contexto sócio-histórico em que nos encontramos. E o cami-
nho pelo qual o autor nos conduz mostra que a melhor escolha pode ser,
por vezes, a subversão da norma.
Se para docentes da educação básica, como é o meu caso, é evidente
que a obra se destina a quem pensa sobre ensino da língua, a emergência
da reflexão sobre os recursos expressivos de que lançamos mão – os quais
se atualizam junto ao modo como nos inserimos sócio-historicamente
no mundo – deixa claro que esta obra se destina também a quem estuda,
a quem revisa, a quem escreve, a quem pensa sobre o uso que faz da
língua. E se não são somente as escritoras e os escritores que escrevem,
ela se destina a todos.

Daniela Favero Netto

17
gramática e estilo

TEORIA DO TEXTO EM HAVER

G ramática e estilo é uma continuação do trabalho empreendido em


outro livro, que se chama Da redação à produção textual1, que se
dedicou a orientar professores de Português e seus alunos a produzirem
textos e não mais as redações escolares, que a tradição escolar levou
gerações e gerações de alunos a produzirem nesta terra. Trata-se, aqui,
neste livro, de orientar a produção de textos bons.
O que fundamenta os dois livros – Da redação à produção textual
e Gramática e estilo – é uma metáfora pedagógica que denominei teoria
do texto em haver. Designar como texto em haver tanto o escrito ruim
produzido por um dos alunos quanto o escrito bom produzido por um
outro aluno declara que a qualidade não decorre de um quimérico talento
conferido pelas musas ao seu preferido e por elas negado aos outros.
Ambos os escritos decorrem (1) do trabalho investido por cada um de-
les no artesanato da escrita, (2) da disposição de cada um para encarar
a complexidade inerente ao tema que teve a coragem de escolher para
tratar e (3) do empenho de cada um no trabalho necessário para dar conta
de tal complexidade.
Quando somos solicitados a escrever, tal como acontece na esco-
la, desde que aprendemos a ler e escrever, botamos no papel ou o que
achamos que se tem de dizer e, nesse caso, escrevemos uma redação
1 GUEDES, Paulo Coimbra. Da redação à produção textual. São Paulo: Parábola Editorial,
2009.

18
gramática e estilo

escolar, ou botamos no papel o que achamos que temos para dizer e,


nesse caso, produzimos um texto.
A escola que tivemos nesta terra, desde que nesta terra se implan-
tou uma escola, sempre explicitou sua preferência pelo que se tem de
dizer, pelo que estamos aqui designando redação escolar, isto é, por
escritos orientados pela intenção de reafirmar o dogma, a começar pelo
dogma católico contra a reforma protestante, estendendo-se para os
dogmas da superioridade dos europeus sobre os nativos, dos brancos
sobre os negros; a dos homens sobre as mulheres; do latifúndio sobre a
indústria; do dinheiro sobre o trabalho; da ignorância sobre a educação,
da brutalidade sobre o diálogo. A reafirmação do dogma foi um projeto
pedagógico muito eficiente e, consequentemente, muito bem-sucedido.
Até hoje, no Brasil, a mais importante verificação de conhecimentos a
que é submetido o sistema de ensino – o exame vestibular para ingres-
so na universidade – é uma prova em que se verifica a habilidade dos
estudantes de aderirem à resposta certa. Mais recentemente, a prática
de publicar as redações nota 1000 no Enem não é um incentivo para
a produção de redações em que se escreve o que é pra dizer pra tirar
nota 1000?
Nesse horizonte, muito esforço e criatividade são especialmente
necessários para convencer estudantes universitários de que eles podem
escrever o que acham que têm para dizer, isto é, textos. Por que especial-
mente necessários? Porque o dogma especialmente mais reafirmado foi
a gramática de um padrão de linguagem criada no século XVI baseado,
segundo Faraco (2008, p. 143)2, em

[...] dois aspectos: o prestígio social da variedade falada


em situações monitoradas pela aristocracia no centro
político do país, ou seja, a norma culta/comum/standard
(que passou a ser identificada à língua) e o cultivo de
uma escrita vernácula latinizada, isto é, de uma imitação
2 FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola
Editorial, 2008.

19
gramática e estilo

adaptação à língua moderna de modelos estilísticos dos


escritores latinos clássicos.

Vamos exemplificar o apego a este dogma e os males que esse


apego causa ao ensino da expressão em língua escrita neste país, em que
a imensa maioria da população aprendeu a falar português falando por-
tuguês com quem nunca teve notícia dessa gramática. Em 1984, começa
a circular O texto na sala de aula3, livro organizado por João Wanderley
Geraldi. Os artigos desse livro tiveram um papel muito importante na
discussão a respeito do ensino de língua portuguesa suscitada a partir
da obrigatoriedade de uma prova de redação nos exames vestibulares
decretada pelo Ministério da Educação no começo do ano de 1977. No
último artigo, que se chama Escrita, uso da escrita e avaliação, Geraldi
reproduz estes dois escritos:

1 A casa é bonita.
A casa é do menino.
A casa é do pai.
A casa tem uma sala.
A casa é amarela.

2 Era uma vez umpionho queroia o cabelo


daí um emninopinheto dapasou um
umenino lipo enei pionho aí pasou
um emnino pionheto daí omenino
pegoupionho da amunhér pegoupionho
da todomundosaiogritãdo todomundo pegou
pionho di até sofinho begoupionho

Em nota de rodapé, Geraldi (2011, p.129) informa que “o primeiro


texto é de um aluno que em 1983 frequentava a segunda série do primeiro
grau (atual terceiro ano do ensino fundamental); o segundo texto é do
aluno que estava, em 1984, repetindo a primeira série (atual segundo
3 GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula. 5. ed. São Paulo: Ática, 2011.

20
gramática e estilo

ano)”. Ficamos sabendo ainda que “o autor do texto 1 foi aprovado no


ano anterior; o autor do texto 2 repetiu a primeira série e foi, portanto,
considerado como não alfabetizado”. Fica bem claro quem foi que botou
no papel o que achou que se tem que escrever e, consequentemente,
produziu uma redação escolar e quem foi que botou no papel o que
achou que tinha para escrever e, consequentemente, produziu um texto.
Acompanhemos as considerações de Geraldi (2011, p. 130):

[...] o autor do primeiro texto entendeu o jogo da escola:


seu texto não apresenta o produto de uma reflexão ou uma
tentativa de, usando a modalidade escrita, estabelecer
uma interlocução com um leitor possível. Ao contrário,
trata-se do preenchimento de um arcabouço ou um esque-
ma, baseado em fragmentos de reflexões, observações
ou evocações desarticuladas. Ele está devolvendo, por
escrito, o que a escola lhe disse, na forma como a escola
lhe disse [...].
O autor do segundo texto, ao contrário, usa a modalidade
escrita para contar uma história. Ainda que no outro polo
do processo de interlocução, a leitura possa ser prejudi-
cada por problemas ortográficos e estruturais, há aqui
de fato um texto, e não uma mera redação. Na verdade,
o autor ainda não aprendeu o jogo da escola: insiste em
dizer sua palavra. Foi reprovado e repete a primeira série.

Quando aprendesse o jogo da escola, o autor do texto 2 passaria a


escrever apenas as palavras cuja ortografia tivesse a certeza de dominar
em frases curtas o suficiente para não correr o risco de cometer erros.
Passaria, portanto, a também escrever redações escolares, a menos que,
nessa sua segunda primeira série, se encontrasse com uma professora
decidida a tratar seus escritos e os de seus colegas como textos em haver.
Essa decisão levaria a professora a valorizar a disposição de seus
alunos para contar histórias e a empenhar-se em ajudá-los nessa empreita-
da. Já o autor do texto 1 também não seria reprovado por ter escrito uma

21
gramática e estilo

redação escolar. O trabalho da professora e dos colegas para transformar


a história da epidemia de piolhos em um texto interessante teria levado
todos a descobrirem que também tinham histórias interessantes para
contar. A história que o autor do texto 1 se poria a contar também seria
trabalhada pela professora e pelos seus colegas. Contando as histórias
que achavam que tinham para contar, passariam, quando solicitados ao
longo de sua vida escolar, a escrever o que têm para dizer a respeito
da vida e do mundo e chegariam à universidade produzindo narrativas e
ensaios e não redações escolares.
Não se pode afirmar que isso nunca tenha acontecido, mas certa-
mente esse não foi o procedimento pedagógico dominante. Por causa
disso, o formalismo contrarreformista que até hoje orienta nosso ensino
da língua escrita levou o professor autor deste livro, que trabalhou a
produção de textos com alunos de ensino médio e de curso superior, a
escrever o livro chamado Da redação à produção textual para orientar
seus colegas professores a orientarem seus alunos a transformarem
suas redações escolares em textos. Lá se propõe que, para fazer isso, a
professora/o professor:

a. bote seus alunos a escrever um elenco de escritos em que terão de


narrar experiências pessoais, descrever pessoas, coisas, organizar
entidades e ideias comparando, analisando, classificando, definindo;

b. leia como leitor esses escritos e, nessa condição de leitor, manifeste-


-se por escrito a respeito do que não gostou e do que gostou no que leu;

c. avalie cada escrito com relação ao que está lá no livro, descrito,


demonstrado e exemplificado como qualidades discursivas: unidade
temática, objetividade, concretude, questionamento;

d. oriente o trabalho de reescrita desses escritos para os alunos neles


incorporarem cada uma dessas quatro qualidades.

22
gramática e estilo

Para orientar essa orientação, aquele livro oferece uma boa quan-
tidade de exemplos coletados pelo professor ao longo dos muitos anos
de trabalho com seus alunos.
Neste outro livro – Gramática e estilo –, propõe-se que o professor
trabalhe sobre o texto em que já se transformou a redação escolar dos
seus alunos a partir de uma leitura curiosa por saber o que o escrito do
aluno tem a dizer a respeito do tema para orientá-lo a explorar o que
está incompleto, obscuro ou impreciso. Nesse sentido, em haver não é
nem um eufemismo reparador para ruim nem se presta para proclamar
demagogicamente que todos os textos são bons, cada um ao seu modo.
Em haver designa o que o professor percebe como um rumo que pode
ser dado numa reescrita desse texto. Os postulados da teoria do texto
em haver para orientar a ação do professor são os seguintes:

a. É o que se escreve que escreve o que temos de escrever: não há,


na cabeça de ninguém, um texto pronto que possa ser registrado no
papel ou na tela como se estivesse sendo apenas simplesmente copiado
de lá para cá. Escrever se escreve escrevendo: é o texto que escreve
o texto, é a frase que compõe a frase, é a palavra que acha a palavra
mais adequada.

b. Todo texto se origina de um diálogo entre o autor e o texto que ele


está escrevendo, ou seja, entre o escritor e o leitor que o escritor é e
o leitor em que o escritor está se tornando no exercício desse diálogo.

c. Na sala de aula, esse diálogo se expande para os colegas e o profes-


sor, que vão tratar cada escrito como matéria-prima a ser trabalhada:
tentativas de estabelecer um ponto de vista, material para a compo-
sição de uma narrativa, elementos para o retrato de um personagem,
encaminhamentos de uma argumentação, escritos para descobrir sobre
o que se está escrevendo.

d. Desse modo, todos estarão aprendendo a ler lendo, a escrever es-


crevendo, a ensinar a escrever ensinando(-se) a escrever.

23
gramática e estilo

Como o texto se materializa nas frases que o compõem, há um


significativo valor pedagógico tanto naquilo que se costuma chamar de
erros gramaticais quanto em outras construções que, sem serem assim
estigmatizadas, desqualificam ou entravam o escrito. Desde que comecei
a botar meus alunos a escrever, copio dos textos deles aqueles tais erros e
construções problemáticas. Faço uso dessas construções para organizar as
minhas aulas de Português, isto é, aulas em que me esforço para ensinar
os meus alunos a ler e escrever para descobrirem o que têm para dizer a
respeito do assunto de que estão tratando e para descobrirem quais são
os recursos expressivos da língua que falamos e da língua em que temos
de escrever mais adequados para expressar isso para os leitores que eles
querem atingir.

1.1 BOTANDO POR ESCRITO A PALAVRA ESCRITA

Trata-se, então, como primeiro passo, de ensinar a transformar


redações escolares em textos, isto é, convencer todos a não mais es-
creverem o que se tem de dizer e passarem a escrever o que têm para
dizer. Trata-se, a seguir, de ensinar a escrever bons textos: claros e es-
clarecedores, organizados e orientadores, certeiros e concisos, precisos
e contundentes. Vamos retomar os exemplos de Geraldi para fazer um
exercício de começar pelo começo.
Esta redação escolar, este escrito que expressa o que se tem de dizer
levou o professor a considerar que quem a escreveu estava alfabetizado:

1 A casa é bonita.
A casa é do menino.
A casa é do pai.
A casa tem uma sala.
A casa é amarela.

24
gramática e estilo

Esse mesmo professor (que, mesmo não sendo a mesma pessoa, é o


mesmo professor) determinou a reprovação do aluno que escreveu este
texto, porque ainda não estaria alfabetizado:

2 Era uma vez umpionho queroia o cabelo


daí um emninopinheto dapasou um
umenino lipo enei pionho aí pasou
um emnino pionheto daí omenino
pegoupionho da amunhér pegoupionho
da todomundosaiogritãdo todomundo pegou
pionho di até sofinho begoupionho

A aprovação de um e a reprovação do outro é uma combinação


que deixa muito claro que a condição de alfabetizado depende, segundo
o critério da escola, da produção de redações escolares, que revelam
a adesão aos valores da escola, entre os quais não consta a disposição
de escrever o que se tem para dizer. O que, no escrito 1, revela que o
aluno está alfabetizado, isto é, capaz de ler e escrever? O que, no escrito
2, que se dispõe a fazer algo que textos fazem – contar uma história que
ainda não foi contada –, revela que o seu autor não está alfabetizado?
Todos sabemos que grande valor diferencial que escola costuma
estabelecer é a ortografia: todos nós, desde crianças, ouvimos coisas
muito desagradáveis a respeito das dificuldades ortográficas, nossas e
dos outros (Como assim? Tu esqueceu da crase?! Oh! Ela escreveu jen-
talha, com j!! Ih! Nem ortografia, ele sabe!). E a recorrência desse modo
escandaloso de denunciar as mazelas ortográficas dos outros consolida a
impressão de que a ortografia é um grande patrimônio da cultura nacional
e o fundamento do nosso ensino básico.
Pois não é, porque é justamente no tratamento dado historicamen-
te à ortografia da língua portuguesa que se revela a mais ardilosa das
manobras que compõem o arsenal que executou a façanha educacional
da nossa classe dominante para conservar sua hegemonia mantendo-

25
gramática e estilo

-nos chucros. Vejamos o que Carlos Alberto Faraco nos informa, em


História sociopolítica da língua portuguesa4 (2016, p. 188), a respeito
do encaminhamento dado pelos portugueses à ortografia da língua que
nos legaram:

No trato das questões ortográficas, é de se notar que foi


relativamente copiosa a produção de tratados nos sécu-
los XVII e XVIII, o que se pode explicar pelo fato de a
ortografia não ter sido logo fixada. Enquanto o toscano
(italiano) fixou sua ortografia no fim do século XVI; o
francês, no início do XVII e o espanhol no XVIII, o por-
tuguês só conseguiu alcançar esse desiderato em 1911.
Foram precisos quase quatrocentos anos para se resolver
o dilema que cercou a questão ortográfica portuguesa – ser
ou não ser etimológica.

Quatrocentos anos discutindo como deveria ser a ortografia da língua


portuguesa – orthographia ou ortografia? – é o mais esclarecedor sinal
de que não havia a menor pressa, que a ortografia podia esperar, ou seja,
que a ortografia não fez a menor falta durante esse tempo todo nem em
Portugal nem nas suas colônias. Na Metrópole, não houve a intenção de
alfabetizar, e, nas colônias, a política foi a proibição de ler o que quer
que fosse e, principalmente, de escrever. Qual foi o prodigioso ardil que
convenceu um povo inteiro, que teve historicamente tão pouco contato
com a leitura e a escrita, de que a ortografia era o mínimo requisito para
habilitar-se?
Ainda segundo Faraco (2016, p. 193), “em 1911 [...] adotou-se em
Portugal, por ato do Ministro do Interior, a chamada ortografia simplifi-
cada ou nacional”, que o Brasil só adotou em 1931, “[...] na sequência do
Acordo Ortográfico, assinado, naquele ano, pela Academia Brasileira de
Letras e pela Academia de Ciências de Lisboa [...]”. Em 1943, a Acade-

4 FARACO, Carlos Alberto. História sociopolítica da língua portuguesa. São Paulo: Parábola
Editorial, 2016.

26
gramática e estilo

mia Brasileira de Letras publicou o Pequeno vocabulário ortográfico da


língua portuguesa, que, imediatamente, virou uma obra rara, reeditada
apenas 34 anos depois, em 1977 como Vocabulário ortográfico da língua
portuguesa: não mais Pequeno, mas nem por isso grande. Sua introdução
pede desculpas pelo atraso de dois anos com relação ao que dispunha a
lei que, em 1971, promovera uma pequena reforma ortográfica, retirando
o acento circunflexo de palavras como agosto, aquele, medo e o acento
grave de, por exemplo, cafezinho e somente.
A introdução da reedição seguinte, em 1998, revela, orgulhosamente
(!), que tinha havido uma segunda edição em 1981, de “20 mil exemplares
rapidamente esgotados pelo ineditismo da obra”. Sobre o destino dessa
edição de 1998 revela a Apresentação da 3ª edição, em 1999, que também
“esgotou-se com uma incrível velocidade”. Teriam sido, segundo notícia
de jornal da época, 2 mil exemplares5. No século XXI, depois do Acordo
Ortográfico da Organização dos Países de Língua Portuguesa, tivemos a
4ª e a 5ª edição do Vocabulário ortográfico da língua portuguesa6, que,
como nunca antes na história deste país, ainda hoje, pode ser encontra-
do nas prateleiras das livrarias. Não por acaso, foi no governo de um
Presidente da República oriundo do povo, metalúrgico de profissão e
sindicalista na sua iniciação política, que a ortografia tornou-se um bem
acessível e não mais um privilégio de poucos afortunados proprietários
daquelas edições raras.
Agora que temos – todos nós, dentro e fora da escola, – direito à
ortografia, podemos fazer um exercício de ficção político-educacional.
Vamos conjeturar o que pode acontecer agora, no começo da terceira
década do século XXI, numa escola pública razoavelmente equipada
por uma gestão municipal que prioriza a educação. Graças ao Pacto
pela Alfabetização na Idade Certa, as crianças até a quarta série do
ensino fundamental ficam na escola em tempo integral. Imaginemos,
5 Essas informações estão transcritas entre as páginas LIII e LXIV da 5ª edição do Vocabulário
ortográfico da língua portuguesa (2009).
6 ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Vocabulário ortográfico da língua portuguesa.
5. ed. São Paulo: Global, 2009.

27
gramática e estilo

consequentemente, uma equipe de professores que renegue por ciência


e/ou por temperamento e/ou por opção política o tradicional formalismo
conformista que vem educando a gente desta terra desde que se estabe-
leceu escola nesta terra.
Imaginemos, também, que, numa afronta genética e/ou cultural
aos estereótipos escolares, o impetuoso escrito sobre os piolhos foi
obra de uma guria. Imaginemos ainda que uma professora/um professor
dessa equipe pense algo como isto: Se essa guria teve a coragem de se
arriscar a fazer o que ninguém pediu que ela fizesse e que ela nunca
tinha feito antes, se essa guria se deu todo esse trabalho de escrever
tudo isso, nós aqui não podemos botar pra perder a Zélia Gattai, a
Helena Morley, a Carolina Maria de Jesus, a Conceição Evaristo que
está se revelando ali.
Imaginemos também que a equipe dessa primeira série tenha
discutido aquele artigo de Jean Foucambert que está em A leitura em
questão (1994, p. 20)7 e lembre da seguinte frase: “para ajudar alguém a
desenvolver um saber, o primeiro passo é dirigir-se a essa pessoa como
se ela já fosse detentora desse saber” – e argumente com os seus colegas
de equipe que é preciso valorizar justamente a disposição dessa menina
de sair botando por escrito o que ela acha que tem pra contar.
– Quem sabe todo mundo escreve com ela o que ela quis escrever?
E depois, todo mundo escreve com cada um dos outros a história que
cada um vai querer escrever. Que tal?
Como é que se faz isso? Se faz fazendo pra descobrir como é que
se faz. Por que um professor, uma equipe de professores tem de fazer só
o que já foi feito? Quem foi que botou isso na nossa cabeça? Quem nos
condenou a tamanho desamparo?

7 FOUCAMBERT, Jean. O analfabetismo já não é mais aquele. In: FOUCAMBERT, Jean. A


leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

28
gramática e estilo

1.2 NARRAR É PRECISO

Vamos combinar que ninguém deve deixar de ser incentivado a escre-


ver as histórias que tem para contar nem por causa de ortografia, nem da
sintaxe do seu dialeto, nem dos cânones de gênero em que enquadrarem seu
texto. Contar histórias é fundamental para aprender a escrever até porque
foi justamente para ler histórias que a gente quis aprender a ler, e esse foi
o pretexto que usaram para que a gente se esforçasse pra aprender. Vamos
combinar também que não foi pra copiar que a gente aprendeu a escrever,
nem pra repetir por escrito tintim por tintim o que o professor disse em
aula. A gente aprendeu a escrever pra contar como é que eu – cada um de
nós – acho que foi mesmo a história que eu quero contar.
Acho mesmo que quem não aprende a narrar não aprende a escrever
direito tudo o que vem depois. E acho que quem aprende a narrar escreve
bem melhor tudo que vem depois. Então, não é porque isto aqui não é
uma biografia nem um romance, mas um livro para ensinar os outros a
escrever, que vou deixar de contar histórias neste capítulo introdutório,
assim como contei histórias no capítulo introdutório do livro que veio
antes deste. E é preciso contar mais uma história, a do acervo, do banco de
dados que fundamenta e que, desde antes do começo, viabilizou este livro.
O que eu queria mesmo, desde que virei leitor, aos sete anos, era ser
escritor; por isso, aos 17, resolvi enveredar pro curso de Letras. Passei no
vestibular na UFRGS e me dediquei a estudar literatura brasileira. Ainda
estudante, fui convidado pra trabalhar na burocracia da cultura, como
assistente do Diretor do Instituto Estadual do Livro, órgão da Secretaria
de Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Sul. Fui contratado
como professor de Português em regime provisório e durante quatro
anos – entre 1964 e 1967 – fiz parte de uma equipe que editava livros e
promovia eventos correlatos.
Me dou conta hoje de que aquele tipo de trabalho não me empolgava,
porque, quatro anos depois, quando outro governador foi nomeado e me

29
gramática e estilo

mandaram para a escola, eu fui; nem me passou pela cabeça aproveitar aque-
la experiência pra arranjar emprego em alguma outra editora. Fui pra escola
dar aula de Português, mesmo sabendo que não ia dar aula de gramática.
Por que não? Por causa do Monteiro Lobato que liam para mim até
que me dei por alfabetizado e me botei a ler pra mim e me atrevi, um ou
dois anos depois, a ler também uma biografia dele, em que era enfatizada
a repulsa dele pela gramatiquice, pelo purismo, pela pedanteria. Aderi a
essa desavença de Lobato, que foi alimentada pelo discurso modernista
dos professores de Português que tive no Colégio de Aplicação da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul: eles priorizavam o conteúdo,
relativizando os aspectos normativos do que escrevíamos. Importa dizer
que isso aconteceu ainda nos anos 1950, quando as aulas de Português
de todos os outros colégios da cidade ainda se pautavam pela análise
sintática. Além desses sinais que vinham diretamente de dentro da língua
escrita, minha inserção na cultura familiar fronteiriça do Continente de
São Pedro do Rio Grande do Sul recomendava que me aprecatasse con-
tra quem vinha querendo engambelar com palavreado metido a correto,
floreado e difícil: gente simples, sincera e direita fala igual a todo mundo
– essa era a mensagem que vinha dos pampas.
Fui, então, para o magistério em 1968 e tive muita sorte: fui traba-
lhar na Escola Técnica de Comércio Protásio Alves, que tinha um curso
de Técnico em Publicidade. O coordenador pedagógico era meu amigo:
tinha sido meu contemporâneo de graduação e companheiro de militância
na política estudantil. Ele me designou pra dar aula nesse curso, e eu,
deslizando na onda da comunicação e expressão, que era o apelido dado
na época à disciplina de Língua Portuguesa, anunciei que ia também en-
sinar a escrever. E não disse que não ia dar aula de gramática até porque
eu já sabia que tinha um livro didático adotado no colégio e que o seu
autor dava aula na sala ao lado. Passei, então, tentando me orientar por
Comunicação em prosa moderna (1967)8, de Othon Moacir Garcia, a
8 GARCIA, Othon Moacyr. Comunicação em prosa moderna. São Paulo: Fundação Getúlio
Vargas, 1967.

30
gramática e estilo

botar os alunos a escrever e a ler o que eles escreviam, mas não lembro
sobre o quê. Também não lembro o que eu dizia do que eles escreviam.
E dava as aulas do livro didático do meu colega, fazendo alguns dos
exercícios em aula. O que eu lembro bem é que, lendo um dos textos dos
alunos, encontrei um erro de concordância em um dos casos que tinha
sido estudado na aula daquela mesma manhã. Copiei e, na aula seguinte,
botei no quadro para explicar. Toda atenção que eles nunca tinham dado
a qualquer exercício do livro didático, eles dedicaram ao erro de concor-
dância daquele colega que fabricava as sandálias de couro que usava.
Quando comecei a examinar os textos dos meus alunos do curso
de Jornalismo e, mais tarde, de Letras para tentar descobrir por que eu
gostava de uns e não gostava de outros – processo que me fez postular
as qualidades discursivas (unidade temática, objetividade, concretude
e questionamento) como requisitos mínimos para uma redação escolar
virar texto –, eu não pude deixar de perceber que, além da falta dessas
qualidades, problemas reconhecidos como gramaticais depreciavam
aqueles textos. Mais do que isso, constatei que havia também outras
ocorrências não mencionadas nas gramáticas – aquilo a que me referi
como construções problemáticas – que mereciam ser registradas como
entraves à produção de um bom texto; essas ocorrências também come-
çaram a ser copiadas à espera de uma designação e de uma adequada
classificação.
Em 1975, escrevemos – Claudio Moreno e eu – para trabalharmos
no segundo grau do Colégio Anchieta, um livro didático chamado Curso
básico de redação9, que se propunha ensinar a escrever com base na
bibliografia principalmente americana que fundamentava nosso trabalho
ensinando Redação técnica no Ciclo Básico da UFRGS. Tentávamos
também, nesse livro, ensinar gramática a partir da identificação dos
problemas que costumam aparecer na escrita escolar e em exercícios de
reescrita de frases afetadas por esses problemas. Muitas das frases que
9 MORENO, Claudio; GUEDES, Paulo Coimbra. Curso Básico de Redação. São Paulo, Ática,
1978.

31
gramática e estilo

utilizamos como exemplos desses problemas ou para esses exercícios


eram transcrições ou paráfrases dessas frases que eu tinha copiado.
Entre os anos de 1981 e 1984, dando aulas de Português no terceiro
ano do segundo grau do Colégio Anchieta para alunos que já haviam
trabalhado com o Curso básico de redação no ano anterior, produzi
uma apostila para orientar meus vestibulandos no trabalho de revisão
das redações semanais que eu solicitava a eles. Sistematizei todo esse
material, com o título de Por uma gramática útil, como o quarto capítulo
de minha tese, que defendi em 1994. Em 1997, por solicitação da Comis-
são Permanente de Seleção da UFRGS, recorrendo novamente ao meu
acervo, elaborei o capítulo Expressão em língua escrita para o Manual
do avaliador10, que passou a orientar o trabalho de avaliação analítica da
redação do exame vestibular. Essas sucessivas sistematizações do meu
acervo de problemas me mostravam um outro caminho para agregar
qualidade a um escrito.
Na passagem de um século para o outro, o meu acervo ampliou-se
e diversificou-se por conta de me solicitarem com muita frequência em
cursos de especialização em vários lugares do sul do país – ou de produ-
ção e de revisão de textos, ou de ensino de Português. Entrei, então, em
contato com outros tipos de problemas gramaticais e textuais que ainda
não tinham aparecido.
Tratei, então, de sistematizar a minha ambição de ir além da mera
transformação de uma redação escolar em texto, para encaminhar a
transformação desse texto resultante em um bom texto, em um texto de
qualidade. Para encaminhar a sistematização do meu acervo num outro
livro pedagogicamente organizado para incorporar ao texto não apenas
adequação gramatical mas também qualidade estilística, eu precisava de
um laboratório. Propus, então, em 2001, a criação de uma disciplina ele-
tiva para a graduação em Letras da UFRGS chamada Gramática e estilo.

10 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Comissão Permanente de Seleção.


Manual do avaliador. Porto Alegre: Gráfica da UFRGS, 1998.

32
gramática e estilo

Esse nome Gramática e estilo me veio à cabeça não por causa do


Bakhtin da epígrafe: “as formas gramaticais não podem ser estudadas
sem que se leve em conta seu significado estilístico. Quando isolada dos
aspectos semânticos e estilísticos da língua, a gramática inevitavelmente
degenera em escolasticismo” (BAKHTIN, 2013, p. 2)11. Ele disse isso na
década de 1940, na União Soviética, trabalhando como professor do que
aqui a gente chama de ensino básico. Só em 2013 Questões de estilística
no ensino da língua foi editado, entre nós.
O nome Gramática e estilo me veio à cabeça porque, quando me
corrigiam – uma colega mais atrevida, um colega mais caridoso –, se
eu falava, por exemplo, Eu não trusse o guarda-chuva e me diziam É
trousse que se diz, eu respondia que eu não era do tipo de gente que
falava assim; enfim, históricas broncas lobatianas e fronteiriças. A ver-
dade é que essa atenção utilitária que passei a dar, desde o início do meu
trabalho como professor, aos problemas gramaticais dos textos que eu
lia para compor palpites com a finalidade de orientar sua reescrita nunca
teve a finalidade de produzir correção gramatical. O que eu queria, o
que eu continuo querendo, é tomada de consciência: que todo mundo
escreva sabendo muito bem qual é bronca que está comprando. Pros que
iam botando simplesmente as coisas no papel, eu chegava a escrever
bilhetes perguntando se eles tinham noção das consequências práticas de
um erro de concordância desses. Pros que tentavam politizar os erros de
ortografia, eu politizava mais ainda: Eles não querem que a gente saiba
pra nos desprezarem como ignorantes. A gente tem de aprender, pra,
quando for o caso, desobedecer cheio de razão.
Eu até botava no quadro-negro coisas como a regra do acento da
crase, da voz passiva sintética, mas sempre terminava a lição com: Em
caso de dúvida, não usem o acento da crase; a falta é muito menos vistosa
do que a presença pretenciosa. E na voz passiva sintética um plural er-
rado fica tão ridículo que é melhor errar pelo singular, que muito pouca
gente acusa. Se alguém reivindicava mais dessas aulas “de gramática”,
11 BAKHTIN, Mikhail. Questões de estilística no ensino da língua. São Paulo: Editora 34, 2013.

33
gramática e estilo

eu acrescentava: Vão ficar dependentes de um professor pelo resto da


vida? E eu queria também produção de expressividade: Eu posso escrever
assim, assim e assim? Escreve, pra gente vê se pode. Tinha também os
que não pediam licença e não tinham mesmo que pedir.
Bem que eu queria naquele tempo ter dado aula disto também, mas
aprender a agregar qualidades discursivas às redações escolares deles era
mais urgente. Dando aula na disciplina Gramática e estilo eu passaria
a tratar da bronca a ser comprada e da expressividade a ser exercitada.
A convicção foi a de que, assim como eu, ano após ano, dando aulas de
Redação jornalística, de Composição em língua portuguesa, de Leitura
e produção de textos, eu tinha criado as qualidades discursivas para
converter redações escolares em textos, eu também haveria de ordenar
e operacionalizar pedagogicamente as já de há muito criadas qualidades
estilísticas para transfigurar meros textos em bons textos.

1.3 DAS QUALIDADES DISCURSIVAS ÀS QUALIDADES ESTI-


LÍSTICAS

O desígnio de transformar redações escolares em textos, habilitando


a botar no papel o que têm pra dizer aqueles que a escola condicionou a
botar no papel o que é pra dizer afronta deliberadamente o zelo com que
a nossa classe dominante vem condicionando o povo a manter-se chucro.
Aqueles que interessa a essa classe dominante educar para a execução
das tarefas mais complexas da dominação, especialmente a mão de obra
escriba, são doutrinados para tornarem-se educados repetidores da lição
e, no caso de se tornarem professores, para se tornarem educadores
repetidores da lição.
Só a disposição político-pedagógica de livrar o povo dessa triste
sina, proporcionando aos seus alunos o domínio da língua escrita, vai
fazer com que a professora/o professor escute e leia os escritos dos seus
alunos em busca do que eles teriam para dizer para deliberadamente
orientá-los a fazer isso. Vamos retomar aqui as qualidades discursivas,

34
gramática e estilo

que foram concebidas para balizar o caminho que leva à reescrita de


uma redação escolar para reconfigurá-la como um texto, porque só de
um texto – e não de uma redação escolar – pode surgir um bom texto a
partir de um outro tipo de reescrita que a ele agregue as qualidades gra-
maticais e estilísticas que vão torná-lo claro e esclarecedor, organizado
e orientador, certeiro e conciso, preciso e contundente.

1.3.1 Retomando as qualidades discursivas

O elenco das qualidades discursivas foi concebido como um ins-


trumento para combater a tradição pedagógica da repetição da resposta
certa, que inventou entre nós a prática da redação escolar. Para afastar
seus alunos dessa prática e inseri-los na produção de textos, o profes-
sor de Português deve levá-los a tomar consciência de que seu escrito
precisa se configurar como uma instância de uso da língua escrita não
apenas para registrar o que já sabe, relatar o que já está presente em sua
memória e revelar o que já está claro em sua mente. Seu escrito serve,
principalmente, para (1) descobrir o que não sabia que sabia; (2) des-
vendar a importância do que vier à sua memória durante o trabalho de
escrever; (3) reorganizar em sua cabeça o conhecimento que está sendo
produzido ao escrever; (4) descobrir o que é bom que ele, escritor, e os
leitores a quem se dirige fiquem sabendo a respeito do tema que trata;
(5) organizar o seu texto da forma que lhe parecer a mais adequada para
atingir os leitores a quem quer se dirigir.
Se essa é a verdadeira serventia de um texto, é preciso renegar
qualquer crença em alguma origem sobrenatural do resultado do nosso
trabalho de escrever (musa, talento, genialidade, inspiração) e trabalhar a
convicção de que é o que se escreve que escreve o que temos de escrever.
Assim como não há, na cabeça de ninguém, um texto pronto que possa
ser escrito como se estivesse sendo apenas copiado diretamente de lá,
também não há texto que não se tenha originado de um diálogo entre o
autor e o texto que está sendo escrito por ele.

35
gramática e estilo

A transformação da redação escolar em texto é operada pela in-


corporação de qualidades discursivas – unidade temática, objetividade,
concretude e questionamento – àquele simulacro de texto caracterizado
como redação escolar. Esse processo é conduzido em Da redação à
produção textual pela escrita de uma sequência de escritos, que são lidos
e discutidos em aula, e pela reescrita de alguns desses escritos a partir das
observações feitas durante essas discussões pelos colegas e pelo profes-
sor. Essas observações o professor se encarrega de registrar por escrito
na versão inicial, indicando um possível caminho para o agregamento
dessas qualidades à versão reescrita. O texto reescrito é avaliado pelo
seu sucesso no trabalho de incorporação dessas qualidades discursivas.
Nos casos de insucesso, o texto é encaminhado – devidamente orientado
– para uma nova reescrita.
Os objetos examinados ao longo desse processo pedagógico não
são, portanto, alunos ruins e bons mas textos ruins e bons (tratados
todos como textos em haver) produzidos pelos alunos. Examinar textos
em vez de classificar alunos é assumir um ponto de vista que se distin-
gue do ponto de vista tradicional, orientado pela gramática normativa
e pela antipedagógica crença romântica no talento individual. Deste
ponto de vista, os paradigmas de bom e ruim não estão fora da sala
de aula, isto é, não se trata de comparar os textos dos alunos com os
textos produzidos por aqueles que a tradição escolar denomina os bons
escritores da língua – clássicos, modernos ou momentâneos – mas de
descobrir o que faz bons os textos considerados bons e ruins os textos
considerados ruins. É claro que a leitura daqueles bons escritores e a
apropriação de sua fortuna crítica faz parte da formação em Letras e
certamente constitui o fundamento do paradigma de bom texto inter-
nalizado por todo professor de Português.12

12 Levando-se em consideração que é a literatura que leva ao extremo as potencialidades expres-


sivas da língua escrita e que o conhecimento da realidade social é uma tarefa que a literatura
brasileira se impôs historicamente, dificilmente se pode pensar de outro fundamento para um
paradigma de bom texto. Sobre isso, ver: GUEDES, Paulo Coimbra. A formação do professor
de Português: que língua vamos ensinar? São Paulo: Parábola, 2006.

36
gramática e estilo

As qualidades discursivas, então, caracterizam um texto como uma


instância de emprego da língua escrita em que o autor escolhe os recursos
expressivos que mais adequados lhe pareçam para produzir efeitos de
sentido sobre aqueles a quem escolheu como leitores. Vamos recapitular
o papel de cada uma delas nessa tarefa.

1.3.1.1 Unidade temática

Ler é trabalhar para atribuir sentido ao que se lê; o leitor vira leitor
justamente para aprender a fazer isso e aprende a fazer isso porque os
textos significativos que leu mostraram como se esforçaram para produzir
sentido. Atribuir sentido a um texto é descobrir qual é o assunto que nele
se trata e o que nele se diz a respeito desse assunto.
Por causa disso, é preciso que o texto guarde a unidade temática
porque se escreve para dizer alguma coisa que se avalia ser do interesse
do leitor e não para dizer qualquer coisa ou várias coisas sem relação entre
si. Mudanças sucessivas de assunto obrigariam o leitor a ir construindo
sucessivas hipóteses sobre qual seria, afinal, o tema do texto. A unidade
temática dá ao leitor uma chave e um rumo que o oriente no trabalho
de atribuir sentido a cada uma das palavras que lê e de estabelecer uma
relação entre elas.
Muitas vezes, a unidade temática é o assunto que resultou de uma
escrita exploratória em que o autor foi juntando dados a respeito de uma
ideia geral até descobrir o que tinha de mais interessante a dizer a respeito
do tema que acabou circunscrevendo. Escrever é trabalhar para atribuir
sentido ao que se escreve.
O professor pode apelar à experiência de seus alunos com a língua
falada, lembrando-os de algumas intervenções em alguma conversa em
que foi inquirido deste modo: Tá, mas o que que isso tem a ver com
o assunto? Que assunto? O tema que amarra as intervenções dos que
estão empenhados naquela conversa. Num texto, esse tema é o ponto de

37
gramática e estilo

referência para que o leitor vá atribuindo sentido às frases que compõem


o texto que expõe o que o autor tem a dizer a respeito desse tema. A
unidade temática é aquele todo que o leitor busca ao ler cada frase do
texto, e ele busca esse todo porque é o leitor que se tornou leitor ao ler
e por ler textos que se construíram em torno de um todo.

1.3.1.2 Objetividade

A marca de oralidade que mais prejudica a leitura é a falta de


objetividade: o leitor toma conhecimento do que o texto tem a dizer
apenas pelo que o texto diz, é dependente do que o texto diz. Quando
conversamos, um dos interlocutores pode interromper o relato ou a ex-
posição para perguntar por um dado necessário para o entendimento do
que o outro está falando. O leitor não pode fazer isso; ele até pode reter
a sua dúvida até que, mais adiante, quem sabe, ache um esclarecimento
no correr do texto, mas, se o texto não der esse esclarecimento, não vai
haver esclarecimento.
A objetividade de um texto depende, portanto, da capacidade do
autor de avaliar quais são as informações necessárias para que o leitor
tome conhecimento de tudo o que ele tem a dizer a respeito do tema e
de materializar tais informações no texto que está escrevendo. Tem ob-
jetividade, portanto, o texto em que tudo o que é necessário para que a
mensagem do texto chegue ao leitor pelo seu trabalho de lê-lo está nele
disposto.
A qualidade discursiva da objetividade é a capacidade de dispor
diante do leitor os objetos que ele vai necessitar para produzir sentido
para o texto sem a necessidade de entrevistar o escritor para saber o
que era mesmo que ele queria dizer, isto é, o que é que ainda está preso
dentro da subjetividade dele. Implica que o escritor tenha desenvolvido
a habilidade de ler o próprio texto como se fosse um leitor do texto, isto
é, como se fosse o interlocutor do texto e não como quem lê no que já
escreveu apenas aquilo que queria escrever.

38
gramática e estilo

Como o leitor de um texto não pode interpelar diretamente o autor


do texto, que não está presente, o autor precisa aprender a colocar-se no
lugar do leitor para antecipar as dificuldades de entendimento que o texto,
na versão em que está escrito, pode provocar. Feito esse diagnóstico,
então reescrever o que está escrito para acabar com essas dificuldades
sem abrir mão do que quer dizer.
A constituição de um ponto de vista para tratar do tema implica a
constituição de uma voz que fala no texto, ou de um narrador que conta
e que reflete sobre o que conta, ou de um porta-voz de uma tomada de
posição num debate. Autor, de um lado, e narrador ou porta-voz, de outro,
são simultaneamente distintos e conjuntos: o autor dá a palavra ao nar-
rador, adota o ponto de vista de seu porta-voz e expressa-se por ele. Não
distinguir claramente o autor do narrador que o autor deve construir para
contar a história que está encaminhando ou não o distinguir do porta-voz
da posição que está tomando é, portanto, um problema de objetividade.
Outro problema de objetividade é não dar ao leitor as necessárias con-
dições para que se oriente no tempo e no espaço da narrativa e no ponto
de vista desse narrador ou nas relações que mantêm entre si os conceitos
e os argumentos com que o seu porta-voz se posiciona na discussão.

1.3.1.3 Concretude

A concretude decorre de uma decidida disposição de dialogar, isto


é, de produzir uma intervenção significativa na discussão em que o texto
se propõe participar e não apenas parafrasear o que vem sendo dito. Um
diálogo autêntico só pode ocorrer se o autor tomar as devidas providências
para evitar que o leitor sobreponha os sentidos que já carrega consigo aos
sentidos que o texto quer produzir. Há concretude num texto que faz as
palavras dizerem o que o autor quer que elas digam, dificultando uma
interpretação do sentido delas pelo que o senso comum diz a respeito do
tema de que tratam. Não faz sentido a disposição de deixar o leitor livre
para entender o que ele quiser, porque a leitura é sempre do leitor, que,

39
gramática e estilo

em última instância, vai ler só o que pode ou o que quer. Nesse sentido,
a melhor disposição do autor seria justamente impedir que o leitor leia
o que quer.
A concretude garante que a mensagem seja expressa com precisão
para que não restem dúvidas no leitor a respeito dos sentidos e valores que
o autor atribuiu aos recursos expressivos com que a constituiu. A redação
escolar tem como uma de suas características a imprecisão de sentido
principalmente pelo lugar-comum e pelo uso de noções confusas e ex-
pressões vagas e genéricas; por isso, é dependente do leitor para produzir
sentido, pois só tem o sentido que o leitor atribuir a ela. A qualidade da
concretude é o remédio para essa patologia: se é verdade que o sentido
do texto resulta de uma negociação entre leitor e texto, a qualidade da
concretude faz com que o autor tome parte ativa nessa negociação.

1.3.1.4 Questionamento

Um texto é um enunciado: diz o que o seu autor queria dizer a


respeito do que o mobilizou para escrevê-lo, e o que nos mobiliza para
escrever é a resposta que esperamos. Para dialogar com o texto ou por
meio de uma resposta configurada em outro texto ou em seu monólogo
interior, é fundamental que leitor saiba com quem está falando e por que
deve se envolver nessa conversa. Para isso é fundamental que o autor
determine qual é o ponto de vista pelo qual examina o tema de que trata. A
determinação do tema e o seu tratamento no texto devem capturar o leitor,
colocar o texto no âmbito dos interesses do leitor, dar ao tema tratado, por
um lado, a necessária generalidade para desconfinar o interesse do tema
do pequeno âmbito das inquietações do autor, e, por outro, a necessária
especificidade para colocar uma questão que o leitor possa perceber como
sua, ao ponto de desejar envolver-se em seu equacionamento.
O questionamento, portanto, envolve o leitor, mobiliza suas ener-
gias intelectuais, convoca-o a participar da solução ou, pelo menos, do
equacionamento do problema que o texto lhe apresenta. Até mesmo as

40
gramática e estilo

conversas mais interessantes de que participamos são aquelas em que


falamos do que nos desafia e desacomoda. O jornalismo tem uma regra
básica que diz que boas notícias não são notícias, os cientistas escrevem
para apresentar e formular soluções para as dificuldades que a huma-
nidade enfrenta em sua trajetória neste universo, e os textos recolhidos
pela tradição letrada tratam de conflitos para desvelar a construção de
palavras com que o poder constituído impôs a visão de mundo que o
legitima com a finalidade de perpetuá-lo.
Desse modo, a qualificação do questionamento decorre da qualifi-
cação que o autor estabelece entre (1) a voz que fala no texto (o narrador
ou porta-voz), (2) o ponto de vista assumido e (3) o leitor.

1.3.2 Qualidades discursivas em ação

Estabelecidas as qualidades discursivas, que chamam a atenção


do escritor do texto para o leitor sobre o qual ele deve pretender produzir
bem determinados efeitos de sentido, os escritos passam a ser examina-
dos em sua condição de textos em haver. Esse enquadramento passa a
orientar os comentários do professor no sentido de (1) propor as modi-
ficações necessárias para que o aluno se ponha em busca do resgate da
potencial unidade temática latente naquela redação escolar; (2) indicar
o preenchimento das lacunas que caracterizam falta de objetividade; (3)
apontar para as especificações que poderiam dar concretude; (4) criar
as relações que o texto poderia estabelecer com os questionamentos de
seus possíveis leitores.
Vamos analisar, do ponto de vista das qualidades discursivas, este
escrito, que foi solicitado pelo professor numa disciplina que tratou do
ensino de língua portuguesa com a finalidade de discutir as concepções
dos alunos sobre leitura e escrita para o encaminhamento de suas práticas
docentes. O pressuposto é que a formação do professor de Português
como leitor e escritor é a sua base para desenvolver o trabalho de orientar
as atividades de leitura e escrita de seus alunos. O escrito de cada aluno

41
gramática e estilo

seria lido em aula, e o professor enviaria cópias de todos eles para todos
os alunos da turma. Essa condição obrigatória afirmava a convicção do
professor da disciplina a respeito do caráter público que deve ter a produ-
ção escrita na escola. O tema proposto e a declaração da circunstância em
que o relato seria tornado público deveriam funcionar como antídotos à
produção de redação escolar porque envolviam a necessidade de alguma
reflexão a respeito da própria experiência de leitura e escrita.

Histórico escolar
C.L.
Minha trajetória escolar iniciou-se no ano de 1975, no interior de
EG, cidade em que moro até hoje, não lembro de conteúdo algum isso
no currículo o qual acabei em 1979, somente lembro das brincadeiras
e então não pude mais estudar por motivos pessoais ficando seis anos
afastada da escola, após este período voltei a estudar, cursando então o
supletivo assim chamado na época no qual eram cursados duas séries no
mesmo ano, nestes dois anos de aula tudo visto superficialmente lembro-
-me que eu gostava muito de estudar sobre verbos e construir textos,
acabando o ensino fundamental passei para o 2º Grau assim chamado na
época, neste lembro que meu gosto continuava pelos verbos e produção
de texto estes dois itens sempre foram meu forte no português acabando
então o 2º Grau em 1990.
Passaram-se mais dezesseis anos sem voltar para a escola, foi
quando surgiu esta oportunidade de cursar na graduação o curso de
letras, em Regime Especial, que significa cursar as aulas aos sábados
e nas férias, optei pelo curso de letras pois algo me dizia que eu iria
gostar, só que tem um porém, sofri muito porque fiquei muito tempo sem
estudar e ainda mais sem ler um livro sequer em todo esse tempo não
posso esquecer de falar na família que constitui nesse período que estive
afastada da escola, e quando voltei a estudar meus filhos e marido me
deram o maior apoio já mais imaginava tanto assim, durante esse período

42
gramática e estilo

eu sempre pensava em voltar a estudar nem que fosse junto com o meu
filho mais velho quando ele fosse ingressar na faculdade, mas aconteceu
antes, surgindo esta oportunidade, onde pude então cursar o curso de
letras e durante o mesmo tive vontade de desistir pois, encontrei muitas
dificuldades mas consegui superá-las sempre fui uma pessoa com muita
vontade de aprender por mais difícil que fossem os obstáculos sempre os
venci pois nunca me faltou fé e força de vontade para seguir em frente.
Na graduação eu gostei muito da produção de textos talvez isso surgiu
porque eu reprovei nas duas produções de texto e ao fazê-las novamente
com outra professora me apaixonei pela produção de textos e foi por
esse motivo que escolhi ler vários autores que escreveram sobre texto.
Na pós-graduação, vou dar continuidade a produção de textos porque
realmente gosto muito e acredito que será um sucesso assim como minha
vida também é um sucesso por ter optado pelo curso de letras.

Percebe-se, desde o início, que nele há um roteiro pré-estabelecido


a orientar o seu rumo, o que é um forte sintoma de redação escolar.

Minha trajetória escolar iniciou-se no ano de 1975, no interior de


EG, cidade em que moro até hoje, não lembro de conteúdo algum isso
no currículo o qual acabei em 1979, somente lembro das brincadeiras
e então não pude mais estudar.

Uma redação escolar trata do que manda algum modelo pronto,


externo a quem escreve, como, por exemplo, falar de língua escrita é
falar do conteúdo da escola, mesmo que não haja nada para falar do
conteúdo: não lembro de conteúdo algum. E, depois de falar do que não
tinha nada para dizer, não dizer nada a respeito do que teria para falar:
as brincadeiras, de que se lembrava e que, certamente, por causa disso,
tinham sido muito mais importantes para ela do que os conteúdos.

43
gramática e estilo

Aqui já tem um critério de unidade temática em jogo: se aquelas


brincadeiras tivessem a ver com a língua escrita, seria o caso de falar
delas; se não, seria o caso de omitir qualquer referência a elas. Por outro
lado, não lembrar de conteúdo algum poderia ser tematicamente relevante
porque se espera que todo mundo lembre de conteúdos da escola pela
vida afora, mas esse também não é o tema tratado por este escrito. De-
clarar que não lembra do que acha obrigatório e apenas mencionar só de
passagem o que lembra do que julga ser não mencionável revela a busca
por um assunto, ou seja, a falta de um assunto, de unidade temática.
É comum que o próprio escrito, ao ser escrito, acabe revelando ao
seu autor o que era mesmo que eles (o escrito e o autor) queriam dizer;
nesses casos, tudo o que foi escrito até chegarem a esse tema costuma ser
ou descartado ou reformulado para ser aproveitado no texto que, então,
se inicia. Não é o caso aqui; este escrito continua encadeando, em sequ-
ência cronológica, as etapas da vida escolar de quem nele se expressa.

...por motivos pessoais ficando seis anos afastada da escola, após


este período voltei a estudar, cursando então o supletivo assim chamado
na época no qual eram cursados duas séries no mesmo ano, nestes dois
anos de aula tudo visto superficialmente lembro-me que eu gostava muito
de estudar sobre verbos e construir textos, acabando o ensino fundamen-
tal passei para o 2º Grau assim chamado na época, neste lembro que
meu gosto continuava pelos verbos e produção de texto estes dois itens
sempre foram meu forte no português acabando então o 2º Grau em 1990.

O que ressalta neste trecho é a falta de concretude: a justificativa por


motivos pessoais costuma ser usada para não revelar quais são, mesmo,
esses motivos. As informações dadas sobre o curso – o supletivo – são de
domínio público, e a avaliação – tudo visto superficialmente – é depreen-
sível da informação já dada: eram cursados duas séries no mesmo ano.
A declaração de seu apreço – gostava muito de estudar sobre verbos e

44
gramática e estilo

construir textos – é vaga e repete-se depois, sem qualquer acréscimo, com


relação aos estudos no 2º Grau. Como vimos, concretude é a qualidade
que faz as palavras dizerem o que o autor quer que elas digam, impedindo
que sejam interpretadas pelo que o senso comum diz a respeito do tema
de que tratam. O que pode pensar o leitor de, por exemplo, estudar sobre
verbos ou sobre construir textos a não ser o que já sabia antes de ler isso?
Isso quer dizer que o leitor fica com o que já tinha.
Não há objetividade, isto é, o escrito não dá ao leitor as informa-
ções necessárias para que entenda e possa avaliar o processo pelo qual
a narradora conta que passou, a começar pela cronologia, que o obriga a
fazer constantemente as contas para acompanhar o decorrer da sua vida
de estudante: entre 75 e 79 são os cinco anos das séries iniciais; somando
os seis anos fora da escola, chega-se ao ano de 1985. Com os dois anos
do supletivo chegamos a 1987... Que leitor tem paciência de fazer esses
cálculos todos?

Passaram-se mais dezesseis anos sem voltar para a escola, foi


quando surgiu esta oportunidade de cursar na graduação o curso de
letras, em Regime Especial, que significa cursar as aulas aos sábados
e nas férias, optei pelo curso de letras pois algo me dizia que eu iria
gostar, só que tem um porém, sofri muito porque fiquei muito tempo
sem estudar e ainda mais sem ler um livro sequer em todo esse tempo
não posso esquecer de falar na família que constitui nesse período que
estive afastada da escola, e quando voltei a estudar meus filhos e marido
me deram o maior apoio já mais imaginava tanto assim, durante esse
período eu sempre pensava em voltar a estudar nem que fosse junto com
o meu filho mais velho quando ele fosse ingressar na faculdade, mas
aconteceu antes, surgindo esta oportunidade...

A oportunidade de cursar na graduação o curso de letras, em


Regime Especial não é, certamente, uma forma comum de ingresso no
curso superior. Isso deveria ter sido levado em conta pela autora, se ela

45
gramática e estilo

tivesse pensado no que o leitor de seu texto se basearia para interpretar


o que ela escreveu nele. Objetividade tem a ver com o que o texto bota
diante dos olhos dos seus leitores para que eles possam ficar sabendo.
A informação dada – cursar as aulas aos sábados e nas férias ­– não
dá conta do que o leitor precisa saber para poder avaliar como terá se
desenvolvido esse curso e como a narradora se envolveu com ele. No
contexto em que o texto foi solicitado e lido – um curso de especializa-
ção sobre ensino de língua portuguesa – muito mais informações teriam
sido relevantes para contribuir com uma discussão sobre, por exemplo,
a formação de professores.
Chama atenção também neste trecho a cronologia que vai e vem
para dar conta de vários assuntos misturados: o outro longo tempo sem
estudar, as informações sobre o ingresso no curso de Letras e sobre o
funcionamento do curso, onde se insere a informação sobre o longo tempo
sem leitura. Segue-se a menção genérica à família e ao seu apoio e sobre
antigos desejos de volta aos estudos. Toda essa mistura revela a adesão
da narradora a um elenco de tópicos comuns obrigatórios em escritos de
natureza autobiográfica: isso é falta de questionamento.
Questionar é o contrário de aderir; se a família sempre dá apoio,
isso não é assunto para o leitor, pois ele também sabe disso. Ele também
já sabe que ler, ter lido, é fundamental para se sair bem num curso de
Letras. O que ele teria muito interesse em saber é o contrário disso: como
é que alguém conseguiu formar-se apesar dessa lacuna na sua formação?
O questionamento relaciona-se diretamente com a razão de se botar a
relatar alguma coisa para o leitor, que não é um desatento ouvinte/par-
ticipante de uma conversa jogada fora num bar, em que mais se repete
o de sempre do que se apresenta novidades. O intelecto do leitor está
trabalhando para botar sentido no que lê. É injusto apresentar pra ele só
o que ele já sabe.
A informação mais relevante dada neste trecho – sem ler um livro
sequer em todo esse tempo – poderia, até mesmo, constituir-se no tema

46
gramática e estilo

do texto, pois teria sido provavelmente do interesse dos outros alunos, de


semelhante origem de graduação. Poderia ter provocado uma interessante
discussão sobre a importância do acervo de leituras de um estudante de
Letras. Teria sido relevante também para os professores do curso de es-
pecialização. Bem mais relevante do que o apoio do marido e dos filhos,
que se restringem à esfera da vida privada da autora.
A falta de questionamento pode se observar neste trecho mais
avaliativo do escrito.

...onde pude então cursar o curso de letras e durante o mesmo tive


vontade de desistir pois, encontrei muitas dificuldades mas consegui
superá-las sempre fui uma pessoa com muita vontade de aprender por
mais difícil que fossem os obstáculos sempre os venci pois nunca me fal-
tou fé e força de vontade para seguir em frente. Na graduação eu gostei
muito da produção de textos talvez isso surgiu porque eu reprovei nas
duas produções de texto e ao fazê-las novamente com outra professora
me apaixonei pela produção de textos e foi por esse motivo que escolhi
ler vários autores que escreveram sobre texto. Na pós-graduação, vou
dar continuidade a produção de textos porque realmente gosto muito
e acredito que será um sucesso assim como minha vida também é um
sucesso por ter optado pelo curso de letras.

Não há questionamento nem objetividade: encontrar dificuldades


e superá-las com muita vontade de aprender, fé e força de vontade para
seguir em frente é um enredo de muitas histórias já lidas, assistidas no
cinema e na televisão: esse enredo não põe diante dos olhos do leitor
nada pessoal, específico a respeito da personagem narradora. Não há
concretude: gostei muito da produção de textos, me apaixonei pela
produção de textos nada diz de pessoal a respeito do aprendizado nem
dos sentimentos próprios da narradora.

47
gramática e estilo

1.3.3 Bilhetes orientadores

Tivesse esse escrito sido apresentado numa disciplina que se ocu-


passe, além da discussão a respeito do ensino de língua portuguesa, do
ensino da produção de textos e, por isso, houvesse a possibilidade de ser
reescrito, o professor teria dado palpites – por meio de bilhetes orienta-
dores – para uma reescrita que agregasse as qualidades discursivas para
transformar essa redação escolar em texto. É claro que não repetiria a
análise acima porque os conceitos das qualidades discursivas ainda não
teriam concretude para os alunos, que não os dominam nem saberiam
relacioná-los com o que escreveram nos seus textos. Os bilhetes precisam
fazer referências muito claras ao que está escrito e prover recomendações
de reescrita. Fica mais claro se os bilhetes se localizarem junto ao trecho
a que se referem.

Histórico escolar

C.L.
Minha trajetória escolar iniciou-se no ano de 1975, no interior
de EG, cidade em que moro até hoje, não lembro de conteúdo algum isso
no currículo o qual acabei em 1979, somente lembro das brincadeiras
É obrigatório lembrar de algum conteúdo das séries iniciais? Quem
não lembra tem de confessar isso, como se fosse um pecado? De que
adianta para o leitor o narrador dizer que lembra de alguma coisa –
das brincadeiras, no caso – e não contar como eram essas lembranças
e por que motivo ficaram na memória? Narrativa é pra contar e não
apenas pra fazer uma lista e então não pude mais estudar por motivos
pessoais É claro que houve motivos, mas todo mundo sabe que se
diz motivos pessoais pra não ter de dizer quais foram esses motivos,
ou seja, é melhor nem mencioná-los. Quem escreve uma narrativa,
seja qual for o assunto, não é obrigado a dizer o que não quer dizer

48
gramática e estilo

nem a justificar por que não diz. Bastava ter dito que não pôde mais
estudar ficando seis anos afastada da escola, após este período voltei a
estudar, Aqui, sim, seria interessante dizer por que voltou a estudar,
já que esse é o nosso assunto comum aqui cursando então o supletivo
assim chamado na época no qual eram cursados duas séries no mesmo
ano, nestes dois anos de aula tudo visto superficialmente De quem é
esta avaliação sobre a superficialidade do supletivo? Certamente a
narradora, que só conhecia as aulas do supletivo, não tinha nenhum
termo de comparação lembro-me que eu gostava muito de estudar sobre
verbos e construir textos, acabando o ensino fundamental passei para
o 2º Grau assim chamado na época, neste lembro que meu gosto con-
tinuava pelos verbos e produção de texto estes dois itens sempre foram
meu forte no português acabando então o 2º Grau em 1990. Esses dois
“conteúdos” – verbos e produção de textos – são importantes para
a narradora, mas são sempre referidos de modo muito geral; por
isso, seria bem interessante contar com detalhes o que exatamente
ela estudou dos verbos, que são um assunto muito amplo e, mais
ainda, a produção de textos. Lá no início, a narradora nada disse
sobre os conteúdos das séries iniciais porque nada lembrava. Então,
de verbos e produção de textos ela lembra. Por que não conta nada?
Passaram-se mais dezesseis anos sem voltar para a escola, foi quando
surgiu esta oportunidade de cursar na graduação o curso de letras, em
Regime Especial, que significa cursar as aulas aos sábados e nas férias,
optei pelo curso de letras pois algo me dizia que eu iria gostar, Esta
justificativa de nada adianta para o leitor nem é uma informação
relevante, já que a narradora, por ter feito o curso, já sabe se gostou
ou não, e isso ela pode dizer. Afinal, o professor solicitou este texto
para subsidiar uma conversa a respeito do trabalho do professor de
Português, que se viabiliza por causa do curso de Letras que todos
devem ter feito só que tem um porém, sofri muito porque fiquei muito
tempo sem estudar e ainda mais sem ler um livro sequer em todo esse
tempo não posso esquecer de falar na família que constitui nesse período

49
gramática e estilo

que estive afastada da escola, e quando voltei a estudar meus filhos e


marido me deram o maior apoio já mais imaginava tanto assim, durante
esse período eu sempre pensava em voltar a estudar nem que fosse junto
com o meu filho mais velho quando ele fosse ingressar na faculdade, Para
o assunto que nos reúne nesta sala de aula, esta informação sobre a
família é secundária; não é proibido falar do que cada um considera
relevante para o relato que está fazendo, mas o que diz aqui é que
a família fez o que se esperava que fizesse. Se a narradora tivesse
algum motivo para esperar que a família não fizesse isso, então, isso
seria assunto mas aconteceu antes, surgindo esta oportunidade, onde
pude então cursar o curso de letras e durante o mesmo tive vontade
de desistir pois, encontrei muitas dificuldades mas consegui superá-
-las sempre fui uma pessoa com muita vontade de aprender por mais
difícil que fossem os obstáculos sempre os venci pois nunca me faltou
fé e força de vontade para seguir em frente. Encontrar dificuldades
e superar dificuldades é uma condição comum a cada um em suas
empreitadas; o que interessaria para o assunto que nos reúne aqui
seriam as dificuldades específicas de um curso de Letras, das quais,
certamente, a falta de leitura é a pior de todas; teria sido bem mais
útil falar disso e do esforço para superá-las do que de genéricas
dificuldades e de uma genérica muita vontade de aprender por mais
difícil que... Na graduação eu gostei muito da produção de textos talvez
isso surgiu porque eu reprovei nas duas produções de texto e ao fazê-las
novamente com outra professora me apaixonei pela produção de textos
e foi por esse motivo que escolhi ler vários autores que escreveram so-
bre texto. Contar esta história com detalhes teria sido um muito útil
depoimento, que poderia enriquecer muito a nossa discussão sobre
aprender e ensinar a escrever, que é a nossa tarefa como professores
de Português Na pós-graduação, vou dar continuidade a produção de
textos porque realmente gosto muito e acredito que será um sucesso
assim como minha vida também é um sucesso por ter optado pelo curso
de letras.

50
gramática e estilo

É claro que cada professor vai ter de desenvolver o seu modo pró-
prio de formular suas observações e vai enfatizar o que lhe parece mais
adequado. Não se trata, a meu ver, de compor um paradigma uniforme,
mas, pelo contrário, agir como um leitor que dialoga com suas leituras
e como um professor que orienta os seus alunos. Não há necessidade de
que os bilhetes sejam tantos, como neste caso. Essa grande quantidade
de bilhetes se deve ao ânimo exemplificativo. Uma grande quantidade
de bilhetes pode desanimar o autor.

1.3.4 Leitor de si mesmo

Essa primeira versão comentada pelo professor chega às mãos do


autor do escrito depois do cumprimento destas etapas: (1) o professor
apresenta a proposta de tema sobre o qual todos devem escrever; (2)
os alunos escrevem a primeira versão do escrito solicitado; (3) na aula
seguinte, cada aluno lê em voz alta na aula o que escreveu; (4) depois
de lido, cada escrito é discutido em aula. O professor participa dessa
discussão apresentando as qualidades discursivas, procurando relacioná-
-las com os escritos lidos e com o que foi dito a respeito deles durante a
discussão. Entre uma aula e outra, o professor relê cada um dos escritos
discutidos, escreve os seus bilhetes e entrega/envia para cada um dos
autores essa versão comentada.
O trabalho de escrever e reescrever passa a ter um ponto de partida,
um ponto de chegada e um caminho para levar de um a outro ponto, um
caminho percorrido ao longo das discussões em aula dos escritos pro-
duzidos por todos. Esse caminho balizado pelos exemplares de redações
escolares e textos em seus vários estágios em Da redação à produção
textual precisa ser refeito na discussão de cada escrito pela turma e pela
reescrita individual de cada um para ou agregar as qualidades discursivas
em falta ou aperfeiçoá-los a partir dos palpites do professor e dos colegas.
A busca pelas qualidades discursivas em cada escrito discutido, além
de propiciar o afinamento de uma sintonia analítica e avaliativa entre o

51
gramática e estilo

professor e os seus alunos, abre caminho para que em alguns desses es-
critos sejam percebidas outras qualidades, cuja incorporação aos demais
escritos da turma pode passar a ser reivindicada na subsequente reescrita.
Trata-se, então, de reescrever o próprio escrito, explorando, no ma-
terial já produzido, as suas possibilidades temáticas para circunscrever o
mais interessante dos temas latentes ou depreensíveis dessa versão inicial,
fornecendo ao leitor todas as informações necessárias para que ele tome
conhecimento do que o autor tem a dizer a respeito de tal tema apenas
lendo o que está no escrito, pois essas são as exigências da unidade
temática e da objetividade, respectivamente. Trata-se de selecionar as
palavras, as expressões, as explicações, os exemplos, os casos, os episó-
dios mais capazes de especificar a peculiar e particular visão do autor a
respeito dos elementos arregimentados pelo escrito para que o leitor possa
se confrontar com essa visão do autor para ampliar seus conhecimentos
a respeito do tema em vez de apenas preencher os vazios do escrito com
os seus próprios conceitos: essa é a exigência da concretude. Trata-se,
enfim, de descobrir (ou de inventar) o envolvimento que o leitor poderia
ter com tal tema, o interesse que poderia trazê-lo para dentro da questão
a ser tratada, pois é isso o que pede o questionamento.
O aluno é orientado a mergulhar em sua subjetividade em busca
da motivação que o levou a escrever esse esboço inicial e do que ficou
latente nessa primeira versão. É incentivado a explorar em profundidade
e em extensão esse tema, nem que seja para descobrir que tratá-lo ainda
está além do acervo das informações que tem disponíveis a respeito dele
e/ou além de sua capacidade de articular e organizar tais informações. O
aluno é instado, enfim, a reconhecer limites e a decidir com consciência se
aquele é o melhor momento para empreender a expansão desses limites.
Escrever, ler os escritos em aula para o público leitor composto
pelo professor e pelos colegas, assimilar um sistema de avaliação para
analisar seu próprio trabalho e o de seus colegas, reescrever o próprio
escrito, ter essa reescrita avaliada pelo professor e pelos colegas, reava-

52
gramática e estilo

liar as reescritas dos colegas, todo esse exercício lida com a diversidade,
com a pluralidade de temas, de gêneros, de soluções formais, de visões
a respeito de um mesmo problema, de opiniões a respeito das soluções
encontradas por uns e por outros. Isso quer dizer que todos aprendem a
olhar para a diversidade e não para a uniformidade. O professor também
não tem outra alternativa a não ser dar conta dessa diversidade ao expres-
sar publicamente a sua leitura de cada um desses escritos.
O resultado esperado é um salto de qualidade: ao exercitar a rees-
crita de suas versões iniciais guiando-se por esse roteiro, o escritor acaba
transformando-o em leitor de si mesmo, isto é, em avaliador da eficácia
de suas escolhas.

1.3.5 Reescrever claro costuma levar a pensar mais claro

“Escrever é precisamente trabalhar a linguagem escri-


ta para descobrir o que se tinha a dizer.”
(Jean Foucambert)

A qualidade discursiva da objetividade se expressa, então, na ade-


quada determinação do modo de assumir a palavra para se dirigir aos
destinatários de nossos textos, mas pode ser ainda mais útil: um claro
entendimento da relação entre subjetividade e objetividade nos ajuda a
entender melhor o próprio processo de produção do texto. Vamos come-
çar examinando o mais divulgado de todos os lugares-comuns a respeito
da atividade de colocar ideias no papel, aquele que diz que a clareza de
nosso texto depende da clareza de nosso pensamento. Quem ainda não
ouviu ou leu a frase que diz que só escreve claro quem pensa claro?
E, tendo lido ou ouvido essa frase, quem não se botou a imaginar
que deve existir gente que escreve simplesmente copiando o que já está
pronto em sua cabeça e, por isso, pôs-se a lamentar que, na própria ca-
beça, nunca tenha aparecido um texto pronto? Pelo contrário, todo texto
que nós, simples mortais, já escrevemos nos custou o trabalho de catar,

53
gramática e estilo

lá dentro de nossa cabeça, os pedaços com que a gente foi montando e


remontando no papel o que a gente queria dizer. E o resultado da com-
binação daquela verdade consagrada e do que observamos a respeito de
nosso desempenho quando temos de escrever é que acabamos conven-
cidos da nossa completa falta de jeito para escrever e da impossibilidade
de um dia aprendermos a escrever direito.
Por outro lado, a gente também ouve falar que todos os escritores
famosos do passado ou do presente, antes de darem seus textos por
prontos e mandarem para a editora, costumam revisar muitas vezes
o que escrevem para que os seus poemas, romances, contos, ensaios,
etc. consigam transmitir exatamente o que eles querem dizer. Ou seja,
a melhor alternativa é confiar mais no que nos dizem e nos mostram
nossos sentidos e nossa experiência. Se a gente pensar nas outras coisas
que a gente aprendeu a fazer e acabou fazendo bem, se a gente pensar
no que vê outras pessoas fazendo bem feito, com qualidade, a gente vai
perceber que o processo é o mesmo: o trabalho bem feito é o resultado
de um aprendizado sistemático, que envolve uma prática que busca a
qualidade. Só aprendeu a dominar uma bola aquele guri / aquela guria
que ficou treinando sozinho até conseguir repetir o que viu o seu ídolo
fazer em campo. Só aprendeu a cozinhar aquela guria / aquele guri que
prestou atenção e tentou muitas vezes até acertar bem direitinho aquela
receita da vovó / do vovô.
Pois é, para o bem do nosso sossego é melhor acreditar que ninguém
pensa claro: dentro do cérebro, os neurônios circulam e se chocam em
órbitas aleatórias, e isso é o que garante que a gente seja capaz de pensar
o que ainda não foi pensado, de conceber o que ainda não foi concebido.
É justamente esse caos na nossa cabeça que nos faz criativos. Quem pensa
claro é robô, é computador, criaturas que só pensam o que gente progra-
mou o cérebro deles pra pensar. Se a gente pensasse claro, não teria sido
necessário inventar o texto, que serve justamente para dar uma ordem nas
ideias, expressando uma por uma em linha reta, tirando-as de dentro de
nós, botando no papel numa sequência de frases umas atrás das outras,

54
gramática e estilo

cada uma delas com as suas orações umas atrás das outras, compostas de
palavras umas atrás das outras. Isso na versão final, porque, no processo
de composição, sempre acontece de termos de deslocar algumas para
antes de algumas outras e outras para depois de algumas outras.
Falando, a gente corre o risco de se atropelar, de falar uma coisa e
se dar conta de que, antes de ter dito isso, deveria ter dito o que esclarece
isso. A gente pode responder uma pergunta e se arrepender de ter dado
essa resposta do jeito que deu; percebe que poderia ter dito de outro jeito
para que as consequências fossem outras, mas com tudo isso a gente já
está acostumado, pois a gente nem sabe nem onde nem quando a gente
começou a falar nem quando nem como aprendeu a falar do jeito como
a gente fala agora. Além disso, é sempre bom lembrar que a gente se
acostumou a falar com outra(s) pessoa(s) e a perceber – não só pelo que
elas nos respondem ou nos perguntam ou nos contestam mas também pela
cara com que nos olham – se estão entendendo o que a gente está dizendo,
se estão gostando do que afirmamos, insinuamos, se estão achando que
nossas perguntas fazem sentido ou se acham que a gente está viajando.
Não podemos esquecer que a humanidade passou alguns muitos
milhares de anos falando, sem nem pensar na ideia de registrar as coisas
que andava dizendo e que na vida de cada um de nós a fala também
chegou muito antes da escrita e, diferentemente de escrever, falar ou
não falar pode ter sido, em determinadas situações, questão de vida ou
morte. Nossa prática de fala é muito mais extensa e intensa do que nossa
prática da escrita.
Então, é melhor esquecer essa balela de que pensar claro é pré-
-requisito para a gente desenvolver uma relação saudável com a prática
da escrita e, em vez disso, adotar esta outra verdade, ainda não consa-
grada: depois que eu conseguir botar por escrito vai ficar claro. Não,
assim ainda parece muito mais simples do que é; revisemos a frase para
que ela fique mais clara e expresse com mais precisão o que realmente
acontece: vai ficar claro depois que eu conseguir botar por escrito de

55
gramática e estilo

forma clara. Com um pouco mais de realismo poderia ser assim: vai
ficar claro se eu conseguir botar por escrito de forma clara.
A escrita não foi inventada para substituir a fala, a escrita foi
criada para expandir as possibilidades da língua além dos limites da
capacidade que a fala tem de botar uma ordem nas coisas. Já foi só uma
questão de abrangência e permanência: a escrita permitiu que muitos
discursos atravessassem os séculos e o mundo todo. Foi também e
continua sendo uma questão de refletir, entender, organizar, planejar,
projetar, administrar. As primeiras coisas que foram postas por escrito
foram os objetos que precisavam ser inventariados em sociedades cuja
complexidade esgotava as possibilidades da memória13 individual dar
conta: quantos sacos de farinha tem no celeiro, quantas lanças tem
no arsenal. Para administrar os reinos que se expandiram além dos
limites do acampamento de uma só tribo, mensagens precisaram ser
transmitidas.
Até aí, a escrita só serviu para levar a fala mais longe, mas logo
alguém se lembrou de escrever as leis, e a escrita passou a trabalhar
pela organização da sociedade, pela consolidação do poder, não apenas
pela sua capacidade de registrar, mas pela sua capacidade de olhar as
coisas de cima, de juntar as partes para enxergar o todo, de examinar
cada parte em função do todo, isto é, pela capacidade de olhar para a
linguagem não apenas como um modo de dar nome para as coisas, as
ações, os processos mas como um modo de organizar o mundo, como
um conjunto de operações mentais.
A escrita permitiu enxergar essas operações mentais materializadas
nos textos colocados diante dos olhos daqueles que os escreveram e os
leram e possibilitou-lhes dialogar com o que tinham escrito para concor-
dar e expressar o teor de sua concordância, para discordar e expressar
13 Eu não sei quem foi a perversa criatura que criou a regra que prescreve que não se junte a
preposição – no caso de – ao artigo – no caso a – se esse artigo fizer parte do sujeito da ora-
ção. Segundo essa perversa regra, produto da mente doentia de um fazedor de regras, a forma
correta seria as possibilidades de a memória. Não contem com a minha contribuição para a
difusão e manutenção desse despautério.

56
gramática e estilo

um outro modo de examinar o mesmo fenômeno, para aplicar o mesmo


raciocínio a outro fenômeno, para tentar dizer com mais clareza o que
lhes pareceu obscuro na formulação anterior. A escrita transformou a
linguagem e as coisas ditas por ela em objetos postos diante dos olhos
e das mentes.
E agora podemos voltar a falar em objetividade, isto é, em pôr
(lançar, dispor, expor) diante de alguém, em oposição a subjetivi-
dade, isto é, em ficar, continuar posto dentro de alguém. Segundo
Houaiss e Villar (2009)14, a preposição latina ob- quer dizer diante
de. O outro elemento da palavra vem do verbo latino jacere, que quer
dizer lançar, colocar, dispor: objeto é o que está lançado diante de.
A objetividade é a capacidade de lançar diante de, o que é o con-
trário de subjetividade, isto é, dispor, arrumar dentro de. A escrita
bota para fora de nós, diante do leitor, em frases encadeadas umas
atrás das outras, compostas por orações encadeadas umas atrás das
outras, compostas, por sua vez de palavras encadeadas umas atrás
das outras, aquilo que estava dentro de nós movimentando-se em
órbitas aleatórias. Por isso, por lançar para fora de nós é que a escrita
permite que dialoguemos com o texto que estamos escrevendo como
se esse texto fosse uma outra pessoa que está tentando nos dizer para
onde quer que levemos a conversa.
A qualidade da objetividade decorre da capacidade de dialogar
consigo mesmo como se a gente fosse uma outra pessoa. Seu exercício
nos permite conversar com outras pessoas que não estão presentes e
que, por causa disso, impõem que a gente se coloque no lugar delas ao
escrevermos nosso texto. Por isso, não é demais revisar também o título
desta seção que trata de revisão: Quem reescreve claro passa a pensar
claro a respeito daquilo que escreveu. Ou seria melhor dizer que passa
a pensar mais claro a respeito daquilo que escreveu?

14 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Sales. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.


Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

57
gramática e estilo

1.3.6 Qualidades discursivas não deixam de ser qualidades estilísticas

Um entendimento claro da natureza e da utilidade do conceito de


redação escolar é fundamental para uma adequada condução desse
processo pedagógico: mesmo que esse conceito decorra da observa-
ção de um conjunto de espécimes e de uma síntese das características
comuns a eles, redação escolar, não sendo um enunciado, não é um
gênero textual. Redação escolar é um marco referencial que não tem
utilidade fora de uma situação pedagógica que tenha a finalidade de
extingui-la. A caracterização de um escrito como redação escolar só
faz sentido como um diagnóstico, que, por sua vez, só vai ter utilidade
se, imediatamente, atribuir a esse mesmo escrito o valor de texto em
haver. Reescrever um texto em haver não significa necessariamente
salvá-lo, pois mais relevante do que gerar um produto é levar o escritor
a refletir sobre as potencialidades enunciativas desse escrito: do que
é mesmo que ele quer falar, o que é mesmo que ele quer dizer, pra
quem e de que acervo do que dizer a respeito disso ele dispõe para
levar adiante esse empreendimento?
A descoberta do leitor e, melhor ainda, dos leitores e suas plurais e
heterogêneas interpretações puxa o escritor para fora do seu solilóquio
(ou de seu diálogo com a cultura escolar da repetição do que é pra repe-
tir), inserindo-o numa comunidade de interpretação: é quase o mundo lá
fora. A recorrência desse processo ao longo de um programa de escrita
semanal e de reescritas mensais num semestre letivo contribui decisiva-
mente para que o escritor constitua-se num leitor capaz de ler o próprio
texto sob os heterogêneos pontos de vista desses leitores com os quais ele
tem de dialogar. Faz um pouco mais do que isso: traz à consciência do
escritor a sua condição de leitor do que escreve para que essa condição
o leve a escrever para si mesmo com a mesma intenção com que passou
a escrever para os leitores lá fora.
Faz, na verdade, um pouco mais ainda: faz com que ele passe a
escrever, dialogando consigo mesmo não apenas como leitor do que já

58
gramática e estilo

escreveu mas também como leitor do que lhe diz o texto em composição
a respeito do que precisa ser escrito.
Entre essas leituras plurais e heterogêneas se insere e, de certa for-
ma, se dilui a leitura do professor, o que favorece o processo pedagógico:
suas orientações de reescrita estarão apoiadas ou serão confrontadas nas
opiniões expressas durante a discussão de cada escrito.
Para reescrever o escrito que produziu, o aluno que levou em consi-
deração tanto a discussão que o seu escrito provocou em aula quanto os
bilhetes do professor releu-se também com outros olhos além dos seus e
avaliou-se também pela interpretação que foi capaz de fazer do que foi
dito sobre o que escreveu. Essa reescrita será orientada por um diálogo
entre a leitura que a sua versão original suscitou e pelo seu esforço para
pôr no papel com clareza o que acabou descobrindo que queria dizer.
O objetivo a ser alcançado neste processo não é ensinar a – como se
diz nas artes marciais – finalizar um texto, isto é, nocauteá-lo, imobilizá-
-lo, fazê-lo jazer em paz, em alguma fôrma tradicional, para impedir que
ele diga qualquer coisa além daquilo que o redator (ou o seu editor) quer
que ele diga. Trata-se, pelo contrário, de ensinar-se a escrever escutando
o que o texto em construção tem a dizer a respeito desse tema, fazendo
o possível para ser o seu mais fiel porta-voz.
Nesse mergulho em sua subjetividade em busca do que tem para
dizer, o aprendiz vai encontrar o leitor em que ele vai se transformando
à medida que – ao exercitar conscientemente a especificidade do diálogo
que se dá na língua escrita – se torna mais capaz de teorizar a sua expe-
riência de leitor. Ao compreender que a forma não está apenas lá fora,
imutável e prescritiva, e que conteúdo não é apenas o discurso que a escola
determinou que fosse repetido, o escritor vai percebendo que também o
leitor não está apenas no mundo lá fora. O leitor está, em transformação,
aqui dentro, onde se dá o mais forte dos diálogos, pois esse leitor interno
ao autor não vai cessar de interrogar o autor em exercício e o texto em
construção, a respeito do que um e outro conversam sobre o tema que

59
gramática e estilo

estão determinando para o texto que compõem. Ao mesmo tempo, esse


autor e esse texto não vão deixar de interrogar esse leitor a respeito de
sua avaliação do trabalho que executam.
Nesse diálogo, o leitor se torna autor para escrever a leitura que faz
do tema, e esse autor recorre ao leitor para avaliar a fidelidade com que
o texto expressa o que é melhor que todos fiquemos sabendo a respeito
do tema em questão. Autor, portanto, é quem está mais interessado em
conhecer do que em registrar o que já conhece; escrever para o autor é
apropriar-se de um conhecimento que está sendo produzido no próprio
processo de escrever. Autor, em vez de impor um conteúdo ao texto que
está escrevendo, dialoga com o texto que está escrevendo: interroga-o a
respeito do que ainda não descobriram juntos, do que não ficou esclare-
cido e que ainda precisa ser escrito. Autor, em vez de impor uma fôrma
ao texto que está escrevendo, consulta-o a respeito da melhor maneira de
organizar o que estão, juntos, tentando dizer para o leitor. Autor é quem, a
cada texto que escreve, ensina-se a escrever o texto que está escrevendo.
Ao reescrever seu texto para nele incorporar as qualidades discursi-
vas, o escritor é levado a repensar os recursos expressivos que mobilizou
para construir sua primeira versão. Nesse processo em que questiona
o sentido e a finalidade do tema escolhido e o efeito que essa escolha
deve produzir sobre os leitores, sua atenção acaba sendo dirigida para as
palavras que colocou lado a lado para compor as frases que alinhou uma
depois da outra para compor os parágrafos e as partes maiores com que
construiu essa primeira versão que agora reescreve fazendo supressões,
acréscimos e substituições que afetam o tema, o enredo, o ponto de vista,
a seleção de dados e de personagens, a sequência das partes.
Nesse caminho, que leva do todo para a parte, a discursividade
materializa-se como textualidade. O texto constrói-se pelas suas frases
em sequência, compostas de palavras umas depois das outras: o efeito
pretendido determinando a escolha de cada palavra, e cada palavra es-
colhida contribuindo para determinar a possibilidade de produzir-se o

60
gramática e estilo

efeito. É nesse sentido que as qualidades discursivas não deixam de ser


qualidades estilísticas porque, ao serem agregadas à redação escolar
em que se configurou a versão inicial do escrito do aluno, atribuem-lhe
a fundamental qualidade de texto, de instância de uso da língua escrita
para estabelecer uma interlocução com os leitores a quem se dirige.
Ao reescrever para agregar unidade temática, objetividade, concre-
tude e questionamento ao que escreveu, o escritor precisa mergulhar em
sua subjetividade em busca tanto da motivação que o levou a escrever
essa versão inicial quanto do que essas respostas dos seus leitores durante
a discussão em aula e os bilhetes do professor revelaram a respeito da sua
capacidade de explorar o tema e de provocar o diálogo. Nessa reescrita
é incentivado a explorar em profundidade e em extensão o tratamento
que deu ao tema proposto, o que implica tanto a busca das informações
necessárias para empreender esse aprofundamento quanto o desenvol-
vimento da habilidade de rearticular todo esse acervo de informações,
experimentando, julgando e escolhendo.
Experimentando, julgando e escolhendo, o escritor já está exercitan-
do o estilo; no entanto, afirmar que as qualidades discursivas não deixam
de ser qualidades estilísticas é afirmar que as qualidades discursivas não
são propriamente qualidades estilísticas. As qualidades discursivas têm o
poder de transformar redações escolares em textos; não necessariamente
em bons textos. De bons textos ocupa-se este livro em que se fala de
gramática e de estilo, e aqui já apareceu uma condição para o exercício
do estilo, a escolha, mas vamos começar pela gramática, que também
não deixa de ser uma escolha, ou seja, um estilo.

1.4 A GRAMÁTICA É UM ESTILO

Como, no entanto, começar pela gramática, e não pelo estilo, se


a gramática também não deixa de ser uma escolha, ou seja, um esti-
lo? Que tal postular uma outra ampliação dos poderes das qualidades
discursivas, na direção do que poderíamos designar perigosamente de

61
gramática e estilo

qualidades gramaticais? Por que perigosamente? Porque atribuir qua-


lidade à gramática está em consonância com o senso comum escolar,
que apresenta a gramática – a correção gramatical – como o requisito
mínimo para a aceitação da peça de língua escrita produzida pelo aluno
e – o que é pior – como o requisito máximo para avalizar a qualidade do
escrito. Afrontando, então, esse perigo, as qualidades discursivas pro-
duzem qualidades gramaticais por causa do processo pelo qual passam
os escritos. O mergulho do escritor em sua subjetividade para ir buscar
o que tem a dizer a respeito do tema em questão, tal como descrevemos
anteriormente, é provocado no processo pedagógico prescrito em Da
redação à produção textual por uma sequência de temas que tratam da
realidade interior e da realidade social mais próxima desse escritor. Até
mesmo as propostas para a escrita de textos dissertativos incentivam os
alunos a organizarem sua experiência pessoal para produzirem compa-
rações, análises, classificações e definições.
Todo o trabalho de produção do texto – sua leitura pública, sua
discussão, a orientação de reescrita e uma eventual nova leitura pública
da versão revisada – que levou à produção de estilo pelo acréscimo das
qualidades discursivas certamente não pode ter deixado de botar o escritor
a preocupar-se também com aquilo que a escola chamou imprecisamente
de gramática. A escola, de fato, certamente falou bem mais de gramática
do que de estilo e, se falou alguma coisa, não passou de uma que outra
manifestação de apreço por algumas daquelas redações geniais que, de
repente, brotam de dentro de raros alunos talentosos. No entanto, se a
escola se preocupou com a gramática, sendo a gramática um estilo, a
escola preocupou-se com o estilo. O que a escola não fez foi orientar a
reescrita dos escritos de seus alunos.
Preocuparem-se os aprendizes com a gramática em suas tentativas
de produzirem escritos de qualidade contrariaria também o senso comum
que desde sempre orientou o ensino de Português, que é o princípio
de que, do estudo da gramática, do conhecimento da gramática (seja o
que for que estudo e conhecimento queiram dizer aqui) decorre o bom

62
gramática e estilo

texto. Mostraria que, pelo contrário, é a deliberação de reescrever para


produzir um texto melhor e o trabalho a que essa deliberação leva que
acarretaria a necessidade subjetiva de agregar qualidade. Nessa reescrita,
o aluno, certamente, daria alguma atenção ao que entendeu como sendo
a gramática de que tanto falou a escola, às vezes até falando de estilo
achando que estava falando de gramática.
Sírio Possenti, em Discurso, estilo e subjetividade (1988, p. 91)15
nos ajuda a destrinçar esse entrelaçamento de gramática e estilo, com
uma muito útil definição de estilo, que se projeta de uma outra definição:
a de linguagem como o trabalho histórico dos falantes, que a constitu-
íram forjando recursos expressivos para resolverem seus localizados
problemas de interlocução. Essa perspectiva nos garante que a escolha
pelo falante dos recursos expressivos à sua disposição não o leve nem a
confinar suas escolhas a um elenco estanque de recursos expressivos já
produzidos nem a dispersar suas escolhas na invenção desenfreada de
novos recursos, num exercício extremado da subjetividade. Nada nos
impede de estender essa definição para a língua escrita e para o uso que
fazemos dela: onde se lê falante, podemos, então, ler também escritor.
Se falantes e escritores foram, ao longo da história, capazes de
produzir novos recursos expressivos para dar conta de necessidades ex-
pressivas emergentes, pode-se perfeitamente acreditar que esse trabalho
continua sendo executado porque a emergência de novas necessidade
expressivas é permanente. Se esses recursos foram forjados para dar conta
de necessidades de comunicação em língua falada e em língua escrita,
devemos acreditar que foi a sua eficácia comunicativa que os pôs em
circulação. Se, por eficácia comunicativa, designarmos a qualidade do
recurso expressivo mais adequado para produzir o efeito de sentido que
se tem em mente, estamos falando de estilo. Em contrapartida, podemos
imaginar que uma boa quantidade dessas invenções não foram usadas
uma segunda vez e que muitas outras desapareceram depois de algumas
ou muitas vezes usadas.
15 POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

63
gramática e estilo

Se texto é discurso, isto é, “uso dos recursos expressivos da língua


para produzir efeitos de sentido sobre bem determinados leitores”, mais
do que o sentido de cada recurso expressivo, trata-se

[...] de suas condições de aparecimento. Claro, interes-


sa saber o que esse elemento significa [...]. Mas, antes
de mais nada, se podem aparecer vários elementos e
exatamente um deles apareceu, excluindo os outros,
podemos perguntar: em que condições, a partir de que
representações, com que efeitos, com que finalidade está
aí? (POSSENTI, 1988, p. 91).

Generalizando, o sentido de um texto (de um discurso) é o seu efeito


de sentido, o sentido que sua enunciação provoca nas condições em que
foi enunciado.16
Com essa definição de estilo não é necessário tratar o estilo como
desvio com relação a uma forma correta, adequada ou neutra, pois, se
há construções, palavras, recursos expressivos considerados adequados
para determinadas situações sociais, para certos tipos de texto, para certos
contextos, o falante e o escritor podem comportar-se conforme o esperado
e fazer uso desse estilo não marcado mas podem decidir-se por um estilo
considerado inadequado, que, nesse caso, interfere no contexto, cria contex-
to. Assim sendo, estilo é a escolha do recurso expressivo que parece mais
adequado para produzir o efeito de sentido que se tem em mente. É claro
que sempre vai existir o risco de que o recurso expressivo escolhido não se
revele como o mais adequado ao ser usado: o estilo é também uma aposta.
Vou dar um exemplo meio estranho: ouvi no rádio do carro uma
interpretação de Sentado à beira do caminho, de Roberto e Erasmo, que
me provocou – pela primeira vez na minha vida – aquela dor no ouvido
que os gramatiqueiros fiasquentos costumam alardear quando escutam,
16 Fundamentado nesta definição de discurso é que, lá no fim dos anos 1980, quando li Discurso,
estilo e subjetividade, batizei de discursivas as qualidades que têm o condão de transformar
redações escolares em textos.

64
gramática e estilo

por exemplo, um erro de concordância. Assim a cantora enunciou o


estribilho da canção: Estou sentado à beira desta estrada triste, onde
a tristeza e a saudade de você ainda existemmmm. Não que eu seja um
fã da dupla, mas eu já tinha ouvido algumas vezes a canção, e me dei o
trabalho de fazer uma modesta pesquisa no Vagalume, onde encontrei
14 outras interpretações e me dei o trabalho de escutá-las todas: 14 a 1
para a tristeza e a saudade de você ainda existe.
Temos aí uma opção estilística, que declara a respeito da cantora que,
entre a poesia e a gramática, o compromisso dela está firmado. Temos aí
também uma regra gramatical, não daquela gramática multicopiada de
alguma gramática portuguesa do século XIX, mas da gramática da língua
que falamos: se formos à seção 10.2.1.4 Concordância verbal, da Nova
gramática do português brasileiro, de Ataliba Castilho, publicada em
2010 com base nos dados do Projeto NURC e do Projeto Gramática do
Português Falado, lemos que “[...] as regras de concordância no Português
brasileiro estão sujeitas a regras variáveis, dependentes de um conjunto
de fatores [...]”. Entre esses fatores, está o “paralelismo linguístico: [...]
a presença da marca [precedente] de plural favorece a concordância,
ao passo que a ausência de uma marca precedente favorece a falta de
concordância” (CASTILHO, 2010, p. 412-413)17.
Roberto e Erasmo não se prestaram a compor uma canção para
ilustrar a regra do paralelismo linguístico, mas nela podemos ouvir este
outro sujeito composto: minhas lágrimas e os pingos dessa chuva se
confundem com meu pranto. Aqui temos várias marcas de plural antes
de confundem: minhas lágrimas e os pingos, e todos os 14 intérpretes
que ouvi no Vagalume cantaram confundem.
Parece que, entre a poesia e a gramática, o compromisso do povo
brasileiro também está firmado; no entanto, não há como negar que a
cantora aquela pode ter sido aplaudida por alguns por causa dessa de-
plorável escolha.
17 CASTILHO, Ataliba. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010.

65
gramática e estilo

1.4.1 A tradição normativista da gramática

A gramática nasceu no século II a.C., na biblioteca de Alexandria,


cidade fundada por Alexandre, o Grande, em 323 a.C., na costa do Medi-
terrâneo, no norte da África, onde hoje fica o Egito. Para essa biblioteca
foi recolhida uma grande quantidade de manuscritos gregos: grandes rolos
de papiro onde escribas profissionais tinham registrado, ao longo dos
séculos VI, V, IV e III a.C., o que lhes era ditado pelos que concebiam
poemas, obras para o teatro, historiografia, reflexões filosóficas e tudo
o mais que alguém julgasse digno de merecer registro e tivesse como
pagar pelo trabalho do escriba. Os escribas eram técnicos em registrar o
que lhes ditavam os que queriam deixar escrito o que suas cabeças con-
cebiam. Dedicavam-se também a produzir cópias de algo que já estava
escrito, geralmente também grafando os sons produzidos por quem lia
em voz alta o que tinha mandado copiar.
Uma das tarefas a que se dedicaram os bibliotecários de Alexandria
foi a de confrontar os vários manuscritos que registravam uma mesma
obra – como, por exemplo, a Ilíada ou a Odisseia, de Homero, que as
teria composto no século VIII a.C. – para estabelecer qual seria a mais
legítima das versões. Para uma adequada avaliação da trabalheira empre-
endida por eles é necessário entender que esses muito antigos manuscritos,
além de estarem danificados, discrepavam entre si porque cada escriba
desenhava a letra correspondente ao som que ouvia e, quando copiavam,
não se inibiam de acrescentar as suas próprias contribuições à obra nem
de não copiarem o que não gostavam.
Tornaram-se, assim, os estudiosos de Alexandria especialistas na
obra do que, posteriormente, os estudiosos denominaram o período he-
lênico da cultura grega. A outra tarefa que se atribuíram foi descrever a
língua em que aquelas obras tinham sido escritas, que, evidentemente,
não era o grego falado em Alexandria, 200, 300 anos mais tarde. As-
sim Maria Helena de Moura Neves, em A gramática e o usuário: uma

66
gramática e estilo

incursão pela história da gramática18, caracteriza o ânimo que movia


(no período denominado helenístico) aqueles dedicados guardiães desse
precioso acervo:

Passando para o período helenístico, veremos que a


filologia, o “amor ao lógos”, tem diferente motivação e
diferente expressão, mesmo porque lógos não significa
o mesmo numa e noutra época. No período helenístico,
a cultura está apoiada em ensino e aprendizagem, e phi-
lólogos é, então, o estudioso, o bom leitor, já que, nesse
momento, cultura já não se cria, só se recria, e isso se faz
pela leitura. Em contraste com a época helênica, época
de criação, em que floresceram a filosofia e a literatura,
o que se busca, agora, é preservar. Atividade menor? Não
cabe julgar, e, aliás, o ofício de julgamento, o ofício de
kriticós – do “crítico” – veio no bojo dessa mudança. O
que se pode dizer é que, nessa época helenística, a cultura
a preservar está na literatura (poetas e mestres da retórica),
a que tem brilho de expressão, aquela cuja leitura conduz
ao belo falar. Filólogo é, pois, aquele que sente a correção
e a beleza, e as estuda em obras exemplares. Assim, o
filólogo não representa uma classe especial de doutos; ele
é simplesmente o que se interessa pela literatura, o que
lê muito. Filólogo é o que ama – e, porque ama, trabalha
para preservar – a cultura que o espírito helênico soube
construir e a linguagem fixou. Impera sobretudo aí a
imagem do usuário. O móvel é a educação, que, sabemos,
toma sua forma clássica exatamente nessa época [...]. Com
vistas à educação se selecionam e se põem em exame as
grandes obras da criação helênica, padrão a cultivar e a
preservar. É assim que o “filólogo” exerce o seu “amor
ao lógos” debruçado sobre o passado, cultuando não mais
o lógos filosófico da verdade das coisas, da definição e
da proposição, mas a bela linguagem das criações geniais

18 NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática: história, teoria e análise, ensino. São Paulo:
Editora Unesp, 2002.

67
gramática e estilo

do espírito grego, linguagem erigida, então, em modelo


de pureza e correção. Na verdade, contrastando com a
língua “corrompida” que já então se falava nos centros
helenísticos, essa língua modelar constituía outro código,
que cabia a todos aprender para seguir.
Essa imagem do usuário como aprendiz é a que dirige,
especialmente, as atividades do gramatikós. Ele é que,
como kriticós, julga as obras do passado, procura suas
virtudes e seus possíveis vícios e os aponta aos usuários
com a finalidade maior de expor e oferecer modelos.
Essa exposição dos modelos necessariamente desce à
explicitação do sistema; metodicamente se estudam, um
a um, seus elementos; metodicamente se descrevem as
estruturas. Aquela metalinguagem que conduzira todo
um processo filosófico (e, desde antes, ainda, poético)
de reflexão sobre a linguagem encontra registro acabado
num edifício fechado de organização metalinguística.
Que nome se dá à obra assim obtida? Grammatiké, a arte
da gramática, arte dos grámmata (letras e sons) (NEVES,
2002, p. 20-21).

Assim, apropriando-se da reflexão a respeito da linguagem que


podiam ler nas obras desses autores dos séculos anteriores, cujas obras
esmiuçavam, foi que os alexandrinos compuseram a sua gramática. A
finalidade com que examinaram a língua que depreendiam de suas lei-
turas, no entanto, era completamente diferente das especulações que os
antigos faziam a respeito da linguagem humana. Assim, Moura Neves
(2002, p. 22) salienta essa diferença:

Por outro lado, a téchne grammatiké (arte da gramática),


que é obra do período de confronto de culturas (do período
helenístico), faz metalinguagem em função sociocultural.
Dirige-se ao homem como cidadão que tem de falar a
língua do modo mais belo possível, isto é, nos moldes
consagrados pelas obras modelares de uma literatura que,

68
gramática e estilo

então, se examina como algo terminado, algo que cabe


restaurar, por imitação.

Atribui-se a um desses bibliotecários estudiosos, Dionísio Trácio,


no século II a. C., a primeira gramática, que, dentro desse espírito, des-
creve a língua registrada por escrito nesses manuscritos, apresentando
essa língua como o modelo ideal da língua em que se deve escrever. No
entanto, como está registrado anteriormente – nesse momento, cultura
já não se cria, só se recria, e isso se faz pela leitura –, sua gramática se
põe a serviço do leitor, que precisa circunscrever cada palavra no fluxo
contínuo das letras que registraram os sons que saíram das bocas dos
que ditaram aos escribas o discurso concebido nos seus cérebros. Assim,
Moura Neves (2002, p. 52) sintetiza:

A arte da gramática de Dionísio, na edição de Uhlig


(1883), consta de 20 parágrafos: 1. Da gramática; 2 Da
leitura; 3. Do acento; 4. Da pontuação; 5 Da rapsódia;
6. Do elemento; 7. Da sílaba; 8. Da sílaba longa; 9. Da
sílaba breve; 10. Da sílaba comum; 11. Da palavra; 12.
Do nome; 13. Do verbo. 14. Da conjugação; 15. Do parti-
cípio; 16. Do artigo; 17. Do pronome; 18. Da preposição;
19. Do advérbio; 20. Da conjugação [...]. A obra abriga,
pois, apenas a fonética e a morfologia, desconhecendo a
sintaxe, e só tem vistas para a língua grega.

Se o que se recria se faz pela leitura, o objetivo dessa gramática é


formar leitores, cuja habilidade básica era a capacidade de circunscre-
ver cada palavra, identificando-a pelos elementos que a compunham,
separando da palavra que a antecedia e da que a sucedia. Daí a suprema
importância da morfologia e a relativa desimportância da sintaxe, já que
o fluxo do encadeamento das palavras era organizado pela oralidade, na
ordem em que as palavras vinham vindo à cabeça de quem as ditava. A
importância da fonética explica-se pela necessidade não só de entender
intelectualmente o que estava escrito mas também pela necessidade de

69
gramática e estilo

executar em voz alta inteligivelmente essa leitura, fazendo as pausas


necessárias para separar as palavras umas das outras, para indicar o fim
de uma frase e o começo de outra.
A gramática de Dionísio Trácio serviu como modelo para a criação
de uma gramática do latim escrito na Roma imperial, língua que sobre-
viveu ao latim falado e em que uma pequena elite de eruditos continuou
escrevendo e até mesmo falando em situações formais (no ensino, na
administração política e religiosa e na diplomacia) na Europa mesmo
depois do desmantelamento do Império Romano. A língua falada pela
população em geral e até mesmo por essa elite em situações cotidianas era
uma das variedades derivadas do latim popular falado. Está inaugurada
a tradição normativista ocidental.
Os primeiros textos escritos naquelas novas línguas só vão apare-
cer no século IX d.C. No início do século XIV, isto é, 500 anos depois,
Dante Alighieri escreveu sua Divina comédia na língua vulgar, isto é, na
língua que ele falava e em que falavam os seus conterrâneos florentinos,
na região da Toscana, que faz parte do que hoje é a Itália19. Escreveu
também, em latim, De vulgari eloquentia, texto em que argumenta que
já era possível e necessário escrever na língua vernácula, que já teria
recursos para dar conta do que era expresso em latim porque um número
muito maior de pessoas passaria a ter acesso à leitura. Essas pessoas que
precisavam ter acesso à leitura eram, além de estudiosos leitores como
Dante, os banqueiros, comerciantes, marinheiros, artesãos, que preci-
savam da escrita e da leitura para mais adequadamente encaminharem
seus negócios e afazeres profissionais. Teriam também acesso não só ao
conhecimento antigo mas também ao novo conhecimento que o nascente
mercantilismo estava produzindo e poderiam também registrar por es-
crito as suas contribuições para a produção desse conhecimento. Como
19 No livro Políticas da norma e conflitos linguísticos, organizado por Xoán Carlos Lagares e
Marcos Bagno (São Paulo, Parábola, 2011) há um interessantíssimo artigo de Thomas Daniel
Finbow, intitulado A formação dos conceitos de “latim” e de “romance”, que é extremamente
esclarecedor a respeito dessa passagem da escrita do latim para a escrita dos dialetos românicos
no início do século IX.

70
gramática e estilo

tinham tudo isso para fazer, não tinham nem tempo nem disposição para
ocuparem-se de aprender a ler e escrever em latim.
Foi aquela gramática do latim baseada na gramática dos alexandri-
nos que serviu como modelo para a criação de gramáticas das línguas
dos estados nacionais europeus que começam a se constituir ao longo
dos séculos XV e XVI. A burocracia oficial e o projeto imperialista que
decorre da atividade mercantil acarretam a necessidade do uso escrito
dessas línguas, e o latim, língua do antigo império, foi o modelo para
a criação de gramáticas para essas línguas nacionais com pretensão a
línguas imperiais.
A criação de gramáticas para as línguas dos estados nacionais fo-
ram atos políticos que tiveram a finalidade de contribuir na constituição
desses estados nacionais como nações independentes umas das outras.
Uma das muitas línguas faladas no âmbito desses estados – a língua dos
que se apossaram do poder econômico e político – foi posta por escrito e
passou a ser considerada como a língua oficial. As primeiras gramáticas
das línguas neolatinas são as do espanhol Juan de Nebrija, de 1492, e as
dos portugueses Fernão d’Oliveira e João de Barros, de 1536 e de 1540,
respectivamente.
É também uma época de releitura, de tradução e de imitação dessa
antiga cultura grega e latina de modo que as formas escritas dessas lín-
guas vão também incorporando muitas formas diretamente do grego e,
principalmente, do latim.

1.4.2 Heranças malditas

Para entender como a gramática chega até nós, é preciso exami-


nar duas encruzilhadas históricas dessa época – o século XVI – em
que aquilo que vai ser o Brasil está sendo incorporado ao domínio
europeu: uma delas afeta as características da nossa língua-padrão,
e a outra, a história do nosso letramento. A primeira encruzilhada

71
gramática e estilo

divide a Europa: nos países que adotaram a Reforma Protestante,


cujo objetivo era estabelecer a relação pessoal de cada fiel com o
texto bíblico, o padrão escrito foi fixado a partir de variedades con-
temporâneas da língua falada. O principal instrumento dessa fixação
foram as traduções da Bíblia feitas por Lutero para o alemão: o Novo
Testamento em 1522 e o Velho Testamento em 1536. Segundo esse
modelo foram feitas as traduções para o holandês, o dinamarquês,
o sueco, o islandês e o inglês, entre outras línguas. Essas traduções
se tornaram pontos de partida para a construção da escrita dessas
línguas. Já na Europa contrarreformista, em que a leitura da Bíblia
continuou atribuição do vigário, que deveria apresentar a sua mais
adequada interpretação ao fiel, o padrão baseou-se na fala formal
das aristocracias dominantes e na imitação dos escritores latinos
clássicos, ou seja, o padrão escrito foi buscado no passado, e esse
foi o caso do português (FARACO, 2008).
A segunda encruzilhada foi o cultivo das letras nas colônias ame-
ricanas: como todos sabemos, a educação no período colonial brasileiro
foi muito estreita e limitada à catequese. A produção escrita foi, conse-
quentemente, muito restrita, e a impressão de livros, jornais e folhetos
só foi descriminalizada depois de 1808, com a chegada da família real.
Um dos indícios mais fortes das intenções criminosas que a adminis-
tração colonial imputou aos inconfidentes de Minas, no século XVIII,
foi o fato de que alguns deles tinham livros em casa. Na verdade, ainda
hoje, estudantes africanos vindos das antigas colônias portuguesas (que
só conquistaram a independência na década de 1970) repassam histórias
contadas por seus pais a respeito de prisões de negros por estarem lendo
em lugares públicos.
Na América espanhola, a história não foi bem a mesma: a Univer-
sidade de Santo Domingo foi criada em 1538, apenas 40 anos depois
da chegada de Colombo; a Universidade Autônoma do México é de
1551 e nesse mesmo ano é criada a Universidade de Lima, no Peru. Isso
explica por que as lideranças que fizeram a independência das colônias

72
gramática e estilo

espanholas dedicaram-se a educar o povo, ao passo que as lideranças da


independência do Brasil dedicaram-se a manter o povo chucro.
Aqui, além das escolas de Medicina abertas ainda por D. João VI,
foram criados em 1827, simultaneamente, o curso de Direito de São
Paulo e o de Olinda, e só em 1837 foi criado o Colégio D. Pedro II,
para ser uma referência para o ensino básico no País. Retórica Nacio-
nal foi o nome atribuído à disciplina encarregada de trabalhar a língua
escrita até 1871, quando se cria a cátedra de Língua Portuguesa. São
os professores dessa disciplina que passam a definir os programas de
Língua Portuguesa e a produzir gramáticas escolares. Tais programas
e gramáticas assumem a atitude normativista, que exalta o purismo e
dissemina uma cultura de busca e correção do erro. Os documentos
oficiais seguem essa orientação por mais de cem anos, até 1996, quan-
do os Parâmetros Curriculares Nacionais20, orientados, concebidos e
formulados por linguistas, passam a recomendar aos professores de
Português que trabalhem a leitura, a escrita e a prática da análise lin-
guística com os seus alunos.
A cultura de busca e correção do erro foi parte de um projeto, assim
desvendado por Faraco (2008, p. 80):

O projeto da norma-padrão no Brasil teve, então, como


objetivo fundamental, [...] combater as variedades do
português popular [...]. A intenção era calar as variedades
rurais e (progressivamente) rurbanas. Nesse afã os formu-
ladores e defensores da norma-padrão se opuseram com
igual furor às características das variedades populares e
às das variedades cultas faladas aqui. O excessivo artifi-
cialismo do padrão que estipularam impediu, porém, que
ele se estabelecesse efetivamente entre nós.

20 BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua


portuguesa. Ensino de primeira à quarta série. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental,
1997.

73
gramática e estilo

Emilio Pagotto (1998, p. 52)21 compara a Constituição do Império,


de 1824, dois anos depois da Proclamação da Independência, com a
Constituição da República de 1892, quase 70 anos depois:

O que se constata é que os dois textos constitucionais


foram escritos em gramáticas bastante diferentes uma da
outra. Da primeira pode-se dizer que foi escrita no que
ficou conhecido como português clássico; da segunda, que
foi escrita no que se tem considerado como a atual norma
culta do português (que, em muitos casos, se espelha em
variedades modernas do português de Portugal).

A mais gritante das diferenças – demonstra Pagotto – está na


colocação dos clíticos, isto é, dos pronomes ditos átonos. Na primeira
Constituição, eles estão predominantemente antes do verbo. Assim diz
Pagotto (1998, p. 52):

No caso dos clíticos, foi feito um pequeno estudo quan-


titativo sobre todos os casos constantes nos dois textos.
A diferença é gritante. A constituição do império chega
a apresentar casos severamente condenados pela atual
norma culta, como começar a sentença pelo clítico.

Aqui estão alguns artigos da Constituição de 1824:

Art. 19. Também será Imperial a Sessão do encerramento;


e tanto esta como a da abertura se fará em Assembleia
Geral, reunidas ambas as Câmaras.

Art. 21. A nomeação dos respectivos Presidentes, Vice


Presidentes, e Secretários das Câmaras, verificação dos
poderes dos seus Membros, Juramento, e sua policia
interior, se executará na forma dos seus Regimentos.
21 PAGOTTO, Emilio G. Norma e condescendência; ciência e pureza. Línguas e instrumentos
linguísticos, Campinas, n. 2, p. 49-68, jul./dez. 1998.

74
gramática e estilo

Art. 25. Os negócios se resolverão pela maioria absoluta


de votos dos Membros presentes.

Qualquer revisor lotado em qualquer legislativo brasileiro contem-


porâneo teria transformado em mesóclises essas próclises: se fará, se
executará, se resolverão virariam far-se-á, executar-se-ão, resolver-se-
-ão. Quem revisou a Constituição do Império, de 1824? Foi o arquivista
das bibliotecas reais Luís Joaquim dos Santos Marrocos, que redigiu a
Constituição de 1824. Uma rápida consulta à Wikipédia nos diz que ele
nasceu em 1791 e foi bibliotecário da Real Biblioteca Portuguesa, tanto
na cidade de Lisboa como no Rio de Janeiro, que

sua família pertencia a uma elite de funcionários e buro-


cratas ligada à cultura e ao saber. Foi o encarregado de
acompanhar o acervo real, de aproximadamente 60.000
volumes de Portugal para o Rio de Janeiro, onde recebeu
o cargo de escriba e encarregado de organizar os docu-
mentos da coroa em terras brasileiras [...]. Após a Inde-
pendência do Brasil assumiu, no ano de 1824, o posto
de oficial maior da secretaria de estado dos negócios do
império brasileiro.

Ele tinha não só estirpe, mas também habilitação e experiência; logo,


escreveu na língua em que estavam escritas as leis e todos os outros pa-
péis oficiais da administração do Reino naquele começo de século XIX:
o português clássico, de Camões, Vieira, etc. e não no português em que
passaram a escrever, a partir do fim do século XVIII, os escritores românti-
cos portugueses que se dirigiam à recentemente endinheirada classe média
portuguesa, no dialeto que ela passou a falar, o português, digamos, assim,
moderno, muito parecido com o que eles falam hoje, bem diferente do nosso,
que continua mais parecido com o de Camões, Vieira, etc.
Já na Constituição de 1891, pouco menos de 70 anos depois, temos a
colocação dos pronomes de acordo com a norma, que passara a ser cultu-

75
gramática e estilo

ada desde o estabelecimento da administração do império independente.


Foi o resultado de um significativo esforço estilístico para escrever – à
revelia do português que falávamos – numa norma semelhante a esse
português de classe média em que os escritores portugueses passaram
a escrever:

Art 1º - A Nação brasileira adota como forma de Gover-


no, sob o regime representativo, a República Federativa,
proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por
união perpétua e indissolúvel das suas antigas Províncias,
em Estados Unidos do Brasil.

Art 4º - Os Estados podem incorporar-se entre si, sub-


dividir-se ou desmembrar-se, para se anexar a outros,
ou formar novos Estados, mediante aquiescência das
respectivas Assembleias Legislativas, em duas sessões
anuais sucessivas, e aprovação do Congresso Nacional.

Art 17 - O Congresso reunir-se-á na Capital federal,


independentemente de convocação, a 3 de maio de cada
ano, se a lei não designar outro dia, e funcionará quatro
meses da data da abertura, podendo ser prorrogado, adiado
ou convocado extraordinariamente.

Outras diferenças entre as duas Constituições são estas: a do Império


usa aonde em contextos em que a Constituição da República usa onde,
tal como prescreve a norma culta atual. Na Constituição do Império
ocorrem orações adjetivas sem a devida preposição, construção que os
linguistas chamam de relativa cortadora (tal como, por exemplo, a moça
que eu conversei ontem, em vez de a moça com quem conversei ontem).
A Constituição do Império usa todo o para a quantificação universal,
onde a Constituição republicana usa todo. Essas características, segundo
Pagotto (1998, p. 52-53),

76
gramática e estilo

são, por um lado, encontradas em outros textos do por-


tuguês clássico, o que atesta o seu caráter de norma culta
do período. Por outro lado, muitas delas vieram a ser con-
sideradas no Brasil como formas populares, fora daquilo
que é prescrito pela norma culta moderna.
Tais resultados nos permitem atestar o seguinte:
1. Que, no decorrer do século XIX a norma culta escrita
mudou radicalmente a sua face, ou seja, o século XIX
representa uma mudança no modo de os sujeitos falantes
encararem as formas linguísticas que deveriam usar na
escrita. Não se trata somente de formas da escrita que caem
em desuso no Brasil, sendo substituídas por formas da
oralidade brasileira. Elas são substituídas por outras igual-
mente estranhas ao português brasileiro nosso de cada
dia, que continua seguindo o seu percurso de mudanças.
2. Que, no caso do Brasil, a língua falada seguia um rumo
e a língua escrita caminhava em outra direção diametral-
mente oposta. A aproximação com as mudanças em curso,
na literatura, só vai se dar fortemente a partir da década
de 20, já no atual século22.
3. Partindo do princípio de que o português clássico era
a norma em Portugal até o século XVIII, é em Portugal
que se teria dado a promoção das variantes em mudança à
condição de norma culta, uma vez que, no Brasil, a língua
falada seguia um curso completamente diferente. Ou seja,
a mudança de postura com relação às formas linguísticas
que se dá em Portugal não ocorre gratuitamente, mas é
fruto da expansão das mudanças na gramática do portu-
guês falado lá.

Tais mudanças chegam à língua escrita em Portugal graças à lite-


ratura, tal como Pagotto explica (1998, p. 53-54):

Antes restrita à nobreza, a literatura, bem como todas as


formas de arte, experimenta no romantismo uma extrema
22 A publicação é de 1998; trata-se, portanto, do século passado.

77
gramática e estilo

popularização, abarcando um novo mercado consumidor


formado pela burguesia ascendente. O artista, antes de-
pendente de nobres mecenas, agora passa viver da venda
de sua obra. A imprensa se encarrega de difundir mais e
mais os romances e a poesia. Isso significa que o escritor
precisa alcançar um público maior e menos afeito às for-
mas clássicas de expressão. É então que se dá o alçamento
das formas gramaticais emergentes à condição de poder
figurar no texto escrito. O romantismo teria funcionado,
assim, como o grande responsável pela mudança de pos-
tura com relação a certas formas até então “populares”.
Forja-se, então, a atual norma culta portuguesa.

Tão romântico quanto esses escritores portugueses era Alencar,


que, junto com Gonçalves Dias, defendia o abrasileiramento da nossa
língua escrita; com relação aos clíticos, por exemplo, colocava-os onde
mandassem seus ouvidos, ou seja, fazia o mesmo que estavam fazendo
os românticos portugueses, cujos ouvidos mandavam que os colocassem
em posição enclítica, a menos que alguma palavra os atraísse para antes
do verbo, de acordo com a fala dos seus leitores. Os nossos ouvidos
brasileiros, se não tivessem sido historicamente tão afrontados pela gra-
mática escolar, nos mandariam fazer o mesmo que Alencar fez, isto é,
usar, na escrita, a próclise que usamos sistematicamente na língua que
falamos e ouvimos.
Então, o que aconteceu em Portugal foi que os escritores modifi-
caram a língua escrita para aproximá-la do português moderno, isto é,
da língua que passou a ser falada, a partir do fim do século XVIII, pelas
pessoas que se dedicavam aos estudos, à leitura e ao exercício da escrita.
Tal português moderno não era falado por ninguém no Brasil, onde as
pessoas cultas, isto é, as pessoas que – tal como Alencar e Gonçalves
Dias – se dedicavam aos estudos, à leitura e ao exercício da escrita,
falavam um português muito mais parecido com o português clássico.
No entanto, foi essa nova norma escrita portuguesa, que se afastava do

78
gramática e estilo

português clássico, a escolhida pelos nossos gramáticos para ser elevada


a norma escrita brasileira.
Pergunta-se, então, Pagotto (1998, p. 54):

Assim, se o romantismo foi bem sucedido em Portugal no


sentido de dar à língua literária e, portanto, à norma culta,
novas feições, aproximando-o das mudanças em curso no
português de lá, é de estranhar que não o tenha sido aqui.
Por que, apesar dos esforços de Alencar de trazer para a
escrita os reflexos das mudanças em andamento no Brasil,
terminamos o século XIX com uma norma culta ainda
mais distante do português brasileiro e extremamente
próxima do português europeu moderno?

A resposta é que língua culta no Brasil assumiu a face do português


europeu moderno

porque teria sido um dos mecanismos pelos quais as


nossas elites poderiam se afirmar em oposição a uma
maioria da população. Afirmar o português do Brasil como
gramática possível na língua escrita equivalia a nivelar
por baixo, mesmo que uma série de traços da gramática
já fizessem parte da fala daqueles que os queriam negar.
Como o acesso a esta norma culta se daria somente a
partir de rigorosa educação, estava garantido o processo
de exclusão (PAGOTTO, 1998, p. 55).

Havia, é claro, os que, como Gonçalves Dias e José de Alencar,


achavam necessário abrasileirar a língua escrita, lançando mão de ar-
gumentos nacionalistas e literários, no sentido de que a civilização que
estava sendo gestada no Brasil precisava desenvolver uma língua capaz
de expressá-la e que os escritores precisavam ser entendidos por seus
leitores. Faraco (2008, p. 113-114), no entanto, observa que, mesmo para
os que achavam necessário abrasileirar a língua escrita,

79
gramática e estilo

a questão não se esgotava na contraposição do português


de lá com o de cá; havia que se resolver a diferença in-
terna entre o português da elite letrada e as variedades
do chamado português popular. O problema crucial que
se levantava para esses intelectuais era como admitir o
uso como critério de legitimação e a inevitabilidade da
transformação das línguas e, ao mesmo tempo, manter
o português popular excluído de qualquer legitimação.

É bem mais prudente levar às últimas consequências o que diz Darcy


Ribeiro (1979)23: essa trabalheira de aprender a imitar os portugueses
para distinguirem-se do vulgo, pretextando a imitação dos clássicos da
língua, foi o preço que eles acharam necessário pagar para manter o
povo chucro, tentando convencê-lo de que a língua que eles falavam não
compatibilizava com a escrita. Levando a sério aquele elogio à prudência
e à sabedoria dessas elites, não podemos nos permitir pensar que elas não
sabiam que a língua que falávamos estava mais próxima dos clássicos
do que a dos portugueses.
Sabiam sim, pois muitos alertaram para isso:

A remissão aos clássicos, aliás, como argumento para


combater o arbitrário das regras normativas, mostrando
que os fenômenos apontados como errados já ocorriam
normalmente em seus textos, teve o efeito contrário;
tornou-se comum entre os conservadores acusar os clás-
sicos de terem errado, sempre que seus usos desmentiam
as regras agora inventadas (FARACO, 2008, p. 120).

Todo esse esforço estilístico a que se obrigaram os escribas da elite


teve a finalidade de isolar a população negra e mestiça, que, ao ter sido
obrigada a falar português, tinha aprendido a falar português com quem
não tinha aprendido a falar português. Assim, conclui Faraco (2008, p. 80):
23 RIBEIRO, Darcy. Sobre o óbvio. In: RIBEIRO, Darcy. Sobre o óbvio. Porto Alegre: L&PM,
1979.

80
gramática e estilo

Podemos dizer hoje, passado mais de um século do esforço


padronizador do século XIX, que ele foi um projeto que,
no fundo, fracassou: por ferir excessivamente o senso
linguístico dos falantes urbanos letrados brasileiros, nun-
ca conseguiu, de fato, alterar a face linguística do nosso
país. No entanto, na mão dos pseudopuristas continua a
nos assombrar.

1.4.3 Quem precisa da gramática?

Tínhamos mesmo que sofrer tanto assim por causa da gramática?


E se ela não tivesse sido inventada? Se os bibliotecários de Alexandria
tivessem resolvido imitar a desenvoltura com que os antigos gregos
saíram ditando na língua que falavam e tivessem se dedicado à epopeia,
à historiografia, à poesia, à filosofia, escrevendo tudo isso no grego que
eles (os bibliotecários) falavam? Pois é: aqueles por causa dos quais a
gramática foi inventada não dispunham de uma gramática que dissesse em
que língua deveriam ser escritos os sons que produziam com suas bocas
ao ditar o que tinham formulado dentro de suas cabeças. Ou teriam eles
uma língua para pensar e outra para ditar? Pela história que nos contam,
o que eles ditaram chegou até nós através de cópias de cópias de cópias
de cópias de cópias de cópias que foram armazenadas na Biblioteca
de Alexandria e estudadas pelos bibliotecários, que produziram outras
tantas cópias, que, por sua vez foram sendo copiadas até que, passados
mil anos, começaram a virar textos para serem lidos.
A verdade é que aqueles gregos não tinham uma gramática nem
sonhavam que uma coisa dessas viesse a existir. Mas, se a gente tem
como referência, como fundadores da nossa civilização, uns caras que
falaram na língua que falavam o que até hoje nos orienta, por que nos
conformamos em nos submeter a formular nossas narrativas, nossas con-
jeturas, nossas descobertas, nossos raciocínios numa língua diferente da
que falamos? A resposta é muito simples: nos conformamos porque os
bibliotecários alexandrinos inventaram a gramática, que faz sucesso há 23

81
gramática e estilo

séculos, ao passo que a linguística, que nos dá muito bem fundamentados


motivos para acreditarmos na capacidade da língua – da variedade da
língua – que falamos, é uma ciência que nasceu anteontem, no começo
do século XX ou, como pondera Marcus Bagno (2011)24, na passagem
do século XVIII pro XIX, a partir da obra de Rasmus Rask, também
anteontem com relação à Gramática do Dionísio Trácio.
Nasceu anteontem, mas já comprou muita briga e produziu muita
coisa que nos autoriza a insistir na questão: se aqueles gregos botaram
por escrito nada mais do que a língua que eles falavam, por que nós não
podemos também simplesmente escrever na língua que falamos o que nós
temos a dizer? Pois isso foi o que, de certa forma e não simplesmente,
a gente fez quando deixou de escrever em latim e passou a escrever em
português. Dessa mesma certa forma, a gente fez isso também quando
deixou de escrever no português dos portugueses e passamos a escrever
no nosso português e assim também estamos fazendo ao deixarmos de
escrever no português da capital do império e passarmos a escrever no
nosso português aqui deste lugar de onde falamos. Nesse continuum his-
tórico, tal como os atenienses da época clássica, nós, para escrevermos
o que tínhamos a dizer, tomamos como referência a nossa fala, isto é, a
língua que falamos e o uso que fazemos dela.
Só não fazemos exatamente com a mesma desenvoltura dos ate-
nienses da época clássica porque entre a desenvoltura deles e o nosso
exercício da escrita estão interpostos a invenção da gramática e aqueles
desserviços que ela prestou à nossa autoestima como falantes da língua
que falamos. Mesmo assim, nós nos tornamos capazes de expressar por
escrito o que queremos dizer porque nos tornamos capazes de fazer isso
falando e não porque aprendemos a gramática.
A gramática trata de palavras, de frases, de orações, entidades
que nós só ficamos sabendo que existem quando nos deparamos com a
gramática. Nós não escrevemos nem palavras nem frases nem orações.
24 BAGNO, Marcos. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2011.

82
gramática e estilo

Nós escrevemos textos: a partir de um desejo de produzir determinados


sentidos para determinados leitores, nós tentamos dar ordenamento e
coerência a um aglomerado nada claro de ideias segundo um modelo de
ordenamento e coerência com o qual a nossa experiência de leitores nos
familiarizou. Isto quer dizer que nós nos tornamos capazes de escrever
porque lemos textos; nós não lemos nem palavras nem frases nem ora-
ções. Quer dizer: lemos, sim, palavras, frases orações, instrumentalmente,
para lermos textos.
E por que nós aprendemos a ler textos? Porque texto é o que nós
falamos desde que aprendemos a falar. Não houve um momento em
que aprendemos a falar palavras, frases ou orações. Sempre que a gente
falou, desde a primeira vez, a gente falou com a intenção de fazer com
que alguma coisa acontecesse, de provocar uma reação na pessoa ou nas
pessoas a quem a gente endereçou a nossa fala. O texto faz por escrito
o que a gente sempre fez quando falou. O texto; não a redação escolar.
E é só por causa desse aprendizado fundamental do exercício da
língua falada que a gente consegue escrever, que a gente bota no papel,
uma atrás da outra, frases compostas de palavras postas uma atrás da outra,
para fazer com que alguma coisa aconteça, para provocar alguma reação
nas pessoas que a gente imagina que vão ler aquilo que escrevemos. Aí,
então, depois que o nosso texto está sendo posto por escrito, depois que
o nosso texto está se organizando em frases, orações e palavras, aí então
é que a gramática e o estilo podem nos ajudar a reescrever e a revisar
nosso texto. Isso quer dizer que nós não precisamos da gramática para
produzirmos textos porque produzir texto a gente já sabia antes da al-
fabetização. Isso quer dizer também que a gramática não tem nenhuma
serventia para quem não lê e não escreve e que só vai aprender gramática,
dominar a gramática quem se dedicar a ler e a escrever.
O que nos distingue daqueles gregos é que nós escrevemos, isto
é, dedilhamos o teclado do laptop, da máquina de escrever, pegamos
a caneta, o lápis e desenhamos as letras para formar as frases que vão

83
gramática e estilo

compor o nosso texto. Eles não faziam isso: a invenção que os gregos
arremataram, inventando letras para representar as vogais, que o alfabeto
dos fenícios, que eles copiaram, não tinha, foi o registro escrito da fala,
dos sons que saem das bocas das pessoas. Nós lemos, e isso também nos
distingue daqueles gregos, que não liam porque o registro feito pelos
escribas do que lhes era ditado pelos que tinham o que registrar para a
posterioridade era ilegível para quem não soubesse o que estava regis-
trado ali ou não dominasse a técnica de separar aquele fluxo de sinais
gráficos grudados uns nos outros, e esse é o enredo do primeiro capítulo
da história do texto, que eles não inventaram.
E essa é uma história que não nos contaram e que nos faz muita falta.
Vamos contá-la para entender como é que a gente aprende a aprender e
a (nos) ensinar a escrever.

1.5 O TEXTO É UM ESTILO

“Na linguagem, pois, a individualização no interior de


uma conformidade geral é tão maravilhosa que se pode
dizer com igual correção que o conjunto da humanida-
de tem uma só língua e que cada ser humano tem uma
língua que lhe é exclusiva.”
(Wilhelm von Humboldt)

Então, se é da fala que vem a escrita, e se a fala é a fala da língua


que falamos, o que é que a fala faz com a língua? Sírio Possenti (1988,
p. 57-59) explica que fazemos um trabalho constitutivo:

O que proponho é a eliminação da dicotomia língua-


-discurso, entendendo por língua um objeto teórico e por
discurso um objeto empírico.
É óbvio que negar a dicotomia língua-discurso não pode
implicar em afirmar que não há língua, isto é, um sistema
específico diferente, por exemplo, do sistema de gestos ou
de sistemas de troca em geral. Não significa, por outro lado

84
gramática e estilo

e por consequência, afirmar a total fluidez das relações


gramaticais. Adotar este ponto de vista significaria dizer
que os falantes, já que produzem discursos, criam a lín-
gua. Com o conceito de constituição, pretendo situar-me a
meio caminho entre o que implica a noção de apropriação
e o que implica a noção de criação. [...]. Optando pelo
conceito de constituição, quer-se ressaltar que as línguas
são resultados do trabalho dos falantes. Se foi o trabalho
de todos os que falaram uma língua que a levou a um
determinado estágio, seria incongruente imaginar que,
neste estágio, os falantes não trabalham mais, apenas se
apropriam do produto. Por outro lado, como nem todos os
que trabalham por uma língua são iguais, é de se esperar
que o produto apresente irregularidades, desigualdades,
traços, enfim, da trajetória de cada um dos elementos
constituidores de uma língua. Produzir um discurso é
continuar agindo com essa língua não só em relação ao
um interlocutor, mas também sobre a própria língua. No
mínimo, a cada vez que um locutor diz uma palavra, está
colaborando para que a língua continue mantendo um
determinado traço ou, inversamente, para que ela venha
a modificar-se (ou, terceira alternativa, para que ela
continue a manter duas variantes desse “mesmo” traço).
Dada esta multiplicidade de recursos desiguais que a
língua oferece à atividade do locutor a cada discurso,
pode-se legitimamente supor que o locutor escolhe aqueles
recursos que mais adequadamente servem a sua finalidade
(se quer agradar, agredir, apresentar-se com certa imagem
ou tal outra, etc.).
Como seu ouvinte também é um trabalhador e não um
receptor, é possível que o locutor fracasse ou seja bem-
-sucedido em seu intento. [...]
Em suma, o falante nem é inútil, nem todo poderoso. Entre
ele e o ouvinte está a língua, e, na verdade, o que foi dito,
se, por um lado, é a garantia à qual pode apelar o locutor,
se acusado de produzir um efeito que não intencionava,
pode ser a garantia do interlocutor de que tal efeito decorre

85
gramática e estilo

do que foi dito. É que é possível um trabalho diferente


sobre a mesma coisa. É nisso, aliás, que se distinguem
os sujeitos. Especificamente, um constitui um enunciado
para produzir um certo efeito, e outro trabalhou sobre um
enunciado para extrair dele um certo efeito. A coincidên-
cia não é garantida. [...]
Resumindo e retomando: dizer que o falante constitui o
discurso significa dizer que ele, submetendo-se ao que é
determinado (certos elementos sintáticos e semânticos,
certos valores sociais) no momento em que fala, conside-
rando a situação em que fala e tendo em vista os efeitos que
quer produzir, escolhe, entre os recursos alternativos que
o trabalho linguístico de outros falantes e o seu próprio,
até o momento, lhe põem à disposição, aqueles que lhe
parecem os mais adequados.

Transpondo este conceito de constituição para o âmbito da língua


escrita, podemos dizer que a língua em que escrevemos é o resultado
do trabalho dos que nela escreveram. Foi esse trabalho que a trouxe ao
determinado estágio em que hoje ela se encontra e seria incongruente
imaginar que, neste estágio, os que nela escrevem não trabalham mais,
apenas se apropriam do produto.
A gramática para os gregos do período clássico serviu, já que não
existia, para nada. Para os estudiosos que vieram a frequentar a Biblio-
teca de Alexandria depois da invenção de Dionísio Trácio, a gramática
serviu para ensinar a ler o que estava escrito naqueles rolos de papiro.
Para Varrão, serviu para escrever uma gramática do latim, que espalhou
a semente do normativismo para as línguas escritas que vieram a se
desenvolver no Ocidente. No Brasil, serviu como – na imagem forte
de Maurizio Gnerre (1985)25 – uma cerca de arame farpado a impedir o
acesso do povo brasileiro ao saber e ao poder. Como? Submetendo-se a
elite à trabalheira de aprender a gramática de uma língua que não falava
para acatá-la como o único estilo exercitável. Para ser apropriada e, de
25 GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

86
gramática e estilo

preferência, para não ser trabalhada, como o único estilo em que se podia
escrever. A que preço? A eterna vigilância, a perene censura sobre as
interferências da língua que falavam.
Possenti (1988, p. 167) nos explica, no entanto, que a própria língua
toma providências para que a vigilância se torne mais inócua a cada dia
que passa:

A existência de estilo em qualquer linguagem decorre


do fato trivial de que nenhuma linguagem é o que é por
natureza, mas sim como resultado do trabalho de seus
construtores/usuários ao escolherem. As escolhas his-
toricamente feitas por eles podem ser consideradas sob
duas ordens de elementos: (a) a diversidade dos recursos
expressivos mobilizáveis e (b) o valor (social, estético,
etc.) agregado a eles. Evidentemente, não está na natureza
mesma desses recursos o valor que eles têm: ele também
é o resultado do trabalho dos falantes, inclusive de um
trabalho epilinguístico, isto é, que toma as formas linguís-
ticas como objeto e as avalia, as classifica, atribuindo-lhes
pesos e peculiaridades que vão se disseminando pela co-
munidade dos falantes, numa pressão para que haja certa
uniformidade de reação diante de seu uso.

Ou seja, é claro que as escolhas que andamos fazendo na escrita


que exercitamos ao longo dos séculos XX e XXI nos levaram para muito
longe daquelas prescrições e para muito mais perto da língua que fala-
mos, e ninguém mais por aqui acha que devemos continuar imitando os
escritores portugueses. A gramática da escola, ainda que abstratamente
e quase sempre interesseira e hipocritamente valorizada, é uma institui-
ção que só sobrevive graças à sua obrigatória presença na escola e em
concursos públicos. Cada vez mais, o que orienta o que nós escrevemos
é o que nós lemos porque lemos o que foi escrito para nós lermos e, por
causa disso, foi escrito na língua em que nos entendemos. Como o que se
apresenta para nós para ser lido é cada vez mais diversificado em assunto,

87
gramática e estilo

em remetente, em língua, em linguagem, em meio, em gramática e em


estilo, cada vez menor é nosso convívio com a gramática da escola, e é
cada vez maior a proximidade entre a língua em que lemos e escrevemos
e a língua que nós falamos.
Então, nós não precisamos mais da gramática da escola para es-
crever direitinho? Não, porque a gramática da escola nunca nos ensinou
a escrever direitinho; a gramática da escola, no máximo, nos ajudou a
passar nas provas de gramática da escola. Nisso, ajudou até os que nunca
se interessaram em aprender a escrever. A gente aprendeu a escrever es-
crevendo; só uns poucos tiveram a sorte de cruzar com algum professor
que ajudou a aprender a escrever.
Ao aprender a escrever escrevendo na gramática em que está escrito
o que lemos – tal como aconteceu ao aprendermos a falar na gramática
da língua em que falavam as pessoas que falavam conosco – aprendemos
a exercitar o estilo. Exercitar o estilo é, como vimos, escolher, entre os
recursos alternativos que o nosso trabalho linguístico ao escrevermos e
o dos escritores que lemos puseram à disposição de todos nós, aqueles
que nos parecem os mais adequados para obter os efeitos que queremos
produzir.

1.5.1 O registro da fala vira texto

A transmissão e a apropriação do conhecimento entre os gregos,


como vimos, se davam pela oralidade: ou pela exposição oral do que o
mestre tinha organizado na sua cabeça, na sua memória, ou pela leitura
do que um outro mestre tinha ditado para que um escriba registrasse por
escrito. Entre nós, a oralidade – a exposição do mestre – não foi abolida,
mas a leitura e a escrita de textos tornaram-se imprescindíveis para a
transmissão e a apropriação do conhecimento. A leitura nos familiarizou
com os modos de dizer por escrito, e a escrita nos possibilita participar do
diálogo que se dá em língua escrita. O registro da fala ditada e a escrita
do texto são dois modos muito diferentes de estabelecer uma relação

88
gramática e estilo

com a língua escrita.


De fato, entre a finalização do alfabeto pelos gregos, lá pelo sécu-
lo VIII a.C. e o século IV d.C., quando o rolo de papiro começa a ser
substituído pela chapa de pergaminho, que é uma espécie de protopá-
gina, passaram-se, mais ou menos, 1.200 anos. Nesse tempo todo, nos
estabelecimentos onde as pessoas se envolviam com a língua escrita, os
conteúdos registrados nos rolos de papiro só se tornavam acessíveis se
alguém que soubesse ler o que estava escrito ali lesse em voz alta para
os que não sabiam. O saber entrava pelos ouvidos e saía pela boca.
Pra gente ter uma ideia de como se apresentava a escrita de um
papiro e dos primeiros pergaminhos, vamos trazer de volta a epidemia
de piolhos, escrita naquele modo e não exatamente como aquela valente
guria escreveu.

Eraumavezumpionhoqueroiaocabelodaumemninopinhetodapasouu-
meninolipoeneipionhoaipasouumemninopionhetodaíomeninopegou-
pionhodaamunhérpegoupionhodatodomundosaiogritãdotodomundo-
pegoupionhodiatiésofinhobegoupionho

Dá pra entender agora o que significa registrar por meio de sinais


gráficos os sons que saem da boca da pessoa que está ditando? Dá pra
entender também por que a gramática de Dionísio Trácio só se ocupa
da morfologia? A primeira tarefa do leitor era identificar cada palavra e
cada conjunto de palavras que compunha uma declaração, em voz alta,
fazendo as pausas que sinalizavam essas separações. Essa era a sintaxe
do que estava ali escrito, a da fala. Assim Ken Morrison (1995, p. 166)26
sintetiza essa história:

[...] os textos clássicos gregos foram, em grande parte,


produzidos por meio de ditado oral, nos quais os textos
26 MORRISON, Ken. Estabelecendo o texto: a institucionalização do conhecimento por meio
das formas históricas e filosóficas de argumentação. In: BOTTÉRO, Jean; MORRISON, Ken
et al. Cultura, pensamento e escrita. São Paulo: Ática, 1995.

89
gramática e estilo

eram lidos em voz alta para os copistas, que normalmente


cometiam um grande número de erros nos manuscritos,
tornando-os difíceis de ler e levando, em muitos casos, a
uma transmissão textual insatisfatória.

Essa transmissão textual insatisfatória é que obrigava o mestre a


predicar oralmente aos seus discípulos. Morrison (1995, p. 146) trata da
questão com mais especificidade:

Portanto, fazemos uma distinção entre língua escrita e


textualidade, entre escrita fonética e os rudimentos de uma
evolução textual. Com base nesta distinção, torna-se pos-
sível argumentar que, embora nosso sistema de escrita siga
o modelo alfabético grego, nossas convenções textuais
inscrevem-se em uma história que não é grega. Estudos de
Thompson (1912), Lowe (1967) e Parkes (1976) indicam
que nossas modernas convenções baseiam-se nas inova-
ções dos séculos V, XII e XIII, que começaram a ocorrer
durante a passagem da tecnologia do rolo de papiro para
os códices latinos, de estrutura mais semelhante ao livro
(Lowe, 1972, p. 187-202). Começando com a tradição
do códice dos séculos IV e V d.C., seguida dos aperfei-
çoamentos dos séculos XII e XIII, pode-se afirmar que
o texto só começou a existir quando a página – e não a
frase ou declaração – tornou-se a unidade predominante
de sua organização.

O que nos transformou nos leitores e escritores que somos hoje foi
a evolução textual, de que trata Ken Morrison, que se prolonga do século
IV d.C. até o século XIII e tem uma significativa mudança qualitativa na
segunda metade do século XIV, com a invenção da imprensa. A história
dessa evolução nos ajuda a entender as etapas do aprendizado da leitura
e da escrita e a lidar mais produtivamente com o que pode aparecer nos
escritos de nossos alunos.

90
gramática e estilo

O relato a respeito dos piolhos, assim como foi registrado por escrito
por uma criança que está tomando contato com a língua escrita, teria, nos
tempos helênicos da cultura grega, um apreço completamente diferente
do que teve para a professora/o professor que a reprovou por não estar
alfabetizada. Em Atenas, numa escola de formação de escribas, ela, muito
provavelmente, teria recebido a sua licença para exercer a profissão.
Naquela escola rural onde ela foi reprovada, esse seu escrito teria
sido muito mais útil do que aquela burocrática sequência de asserções
sobre casa bonita para uma aula a respeito da delimitação de palavras,
dos sons das letras, da separação das frases, etc. Emilia Ferreiro (2001)27,
a educadora argentina que estudou a alfabetização, mostra que as crian-
ças fazem hipóteses a respeito do que estão tentando ensinar para elas
e alerta que essas hipóteses reproduzem as hipóteses que a humanidade
fez a respeito do que se está tentando ensinar. Se, na primeira aula da
alfabetização, for solicitado aos alunos que escrevam, por exemplo, casa,
é bem possível que alguma criança desenhe o que lhe parece uma casa,
tal como escreviam, por exemplo, os babilônios por volta de 3000 a.C.
Era bem possível, nos anos 1950 e 1960 na periferia urbana onde ela
lecionava, me disse um aluno meu, um dos raros homens alfabetizadores
na Rede Municipal de Porto Alegre nos anos 1990, quando já era muito
difícil entrar na escola uma criança que ainda não tivesse tido algum
contato com a língua escrita. Só uma vez, em muitos anos, uma criança
desenhou uma casa; as outras todas já saíam rabiscando alguma coisa
parecida com letras. Nesse sentido, é muito útil a gente saber também
que a ortografia foi uma necessidade decorrente da invenção da imprensa.
Já lemos aquela citação de Faraco (2016, p. 188): “enquanto o toscano
(italiano) fixou sua ortografia no fim do século XVI; o francês, no início
do XVII e o espanhol no XVIII [...]”. Antes do fim do século XVI, não
havia ortografia, e a grafia oscilava em todas as línguas.

27 FERREIRO, Emilia. Cultura escrita e alfabetização: conversas de Emilia Ferreiro com José
Antonio Castorina e Rosa Maria Torres. Porto Alegre: Artmed, 2001.

91
gramática e estilo

É muito útil a gente ter na cabeça que a escrita passou muito mais
tempo de sua existência sem o texto do que com o texto e muito mais
tempo ainda sem ortografia. Se a separação das frases e até mesmo das
palavras na língua escrita não foi óbvia para a humanidade, por que seria
para uma criança do interior no início dos anos 1980, que provavelmente
não tinha tido muito contato com a língua escrita até então?
Além disso, se, por exemplo, Aristóteles alguma vez escreveu, isto
é, se, um dia, alguma ideia especialmente interessante e original brotou na
cabeça dele bem na hora do almoço do escriba, e ele, Aristóteles, pegou
aquela protocaneta que estava ali em cima da mesa, ao lado do rolo de
papiro e, de próprio punho, riscou as letras que registraram o ditado que
fez para si mesmo, como foi que ele escreveu? Não foi exatamente como
fez essa menina que achou engraçado contar a história da epidemia de
piolhos? Escreveu todas as letras grudadas umas nas outras, sem nem ima-
ginar que 20 séculos depois inventariam uma coisa chamada ortografia.
Além dos limites das palavras, a professora/o professor poderia,
com todomundosaiogritãdo, trabalhar a nasalidade, expressa pelo til em
gritãdo ensinando a distinguir o uso do til do uso do n, do m, e assim
por diante. O nh em pionho e o lh que deveria ter aparecido em piolho
poderiam ter sido muito oportunamente trabalhados tanto na questão
ortográfica quanto na dialetal: se no dialeto da guria que escreveu se
fala pionho, essa grafia, do ponto de vista alfabético, está certa. Ela teria
tido o maior interesse em aprender tudo isso, vendo que a professora
se ocupava do que ela tinha feito, assim como os meus marmanjos do
Colégio Protásio Alves deram tanta atenção pro erro de concordância
daquele colega. Não só ela se interessaria pela valorização da história
que contou; todos os colegas achariam muito interessante que as histórias
que teriam para contar fossem reescritas desse modo, e esse seria o mais
eficiente dos incentivos para aprenderem a fazer tudo isso, inclusive o
comportadinho aquele que escreveu o que era pra escrever, aquelas frases
soltas sobre a casa bonita.

92
gramática e estilo

As chapas de pergaminho, que se pareciam com páginas e que,


depois de escritas, eram colocadas umas dentro das outras, como um
protolivro, são do século IV e V; só a partir do século IX, as palavras
começam a ser separadas no que se copiava e se escrevia nos conventos,
mosteiros e universidades europeias para que os textos pudessem ser lidos
com os olhos e não mais apenas ouvidos. Demorou? Demorou. Por que,
então, exigir tanto de uma criança com seis, sete anos, que certamente ia
aprender muito, participando com o professor e os colegas da reescrita da
história até que ficasse escrita como coisa de gente que já sabe escrever.

Era uma vez um piolho que roía o cabelo de um menino piolhento.


Daí passou um menino limpo sem piolho ali pelo menino piolhento.
Daí o menino pegou piolho, daí a mulher pegou piolho. Daí todo
mundo saiu gritando, todo mundo pegou piolho. Daí até seu filhinho
pegou piolho.

Usando a imaginação, a gente pode montar um quadro com aque-


les monges quebrando a cabeça pra inventar uma coisa que ia ganhar o
nome de texto:

– Como é que gente faz pra eles aprenderem a separar as palavras


sem que a gente tenha que ensinar toda essa morfologia aí?
– Pois é; bem que essas palavras já podiam vir separadas.
– Como é que é? Escrever as palavras já separadas? Tá maluco.
– Por que não, pô?
– Tu acha que o Abade vai deixar?
– Azahr! Vammfazeh e levarpreleveh.

O abade acabou deixando.

A ortografia é que ainda demorou uns cinco ou seis séculos. As


impressoras e os impressores foram os primeiros a pressionar por mais
uniformidade na grafia dos textos a serem multiplicados, mas nem por
isso a ortografia merece estar no topo dos valores da língua escrita. É

93
gramática e estilo

só ler esta primeira estrofe deste poema de Patativa do Assaré, um dos


maiores poetas brasileiros.

Poeta da roça

Sou fio das mata, cantô de mão grossa,


Trabaio na roça, de inverno e de estio.
A minha chupana é tapada de barro,
Só fumo cigarro de paia de mio.28

Mio (eu escreveria miio) rima com estio; milho não rima com estio,
ou seja, se a escrita alfabética foi criada para representar a fala, por vezes
só uma escrita alfabética, isto é, não ortográfica, pré-ortográfica, pode
representar a fala. É bom não esquecer que a ortografia é também uma
opinião sobre a língua: ela só representa um dos registros da língua e
não recebeu poderes para expulsar da escrita os outros muitos registros.
Além disso, a escrita alfabética está no caminho histórico que levou
à ortografia, e, no caso da nossa língua, como vimos, essa caminhada
levou 400 anos a mais. Isso impediu de escrever os que escreveram em
português durante aquele tempo todo? É justo privar de escrever a língua
que falam os que vieram depois deles só porque também não dominam a
ortografia ou porque a ortografia não dá conta da poesia do dialeto deles?
Considerar que o domínio da ortografia é pré-requisito para o exercício
da escrita só emperra o ensino e o exercício da escrita.
A oralidade sempre foi uma das referências da língua escrita, mas
foi o texto que criou o leitor. Assim como a escrita alfabética decorre
de uma longa tradição de invenção, uso e aperfeiçoamento de modos de
escrever, o texto também é um produto de uma história, assim sintetizada
por Ken Morrison (1995, p. 191-193):

28 SILVA, Antonio Gonçalves da (Patativa do Assaré). Inspiração nordestina. São Paulo: Hedra,
2003.

94
gramática e estilo

A cultura moderna caracteriza-se por sua capacidade de


organizar e apresentar a evolução do pensamento de forma
que possibilita a organização racional e o uso pedagógico
e didático. Assim, a associação entre o conhecimento e
a organização textual é indispensável para a capacidade
de uma cultura quanto à ordenação e à codificação do
conhecimento. [...] Já se afirmou que todas essas obras
(os papiros da Grécia clássica) como hoje as conhecemos,
foram reestruturadas de muitas maneiras importantes, e
que a relevância da revisão não foi levada em conside-
ração por muitas pesquisas atuais da evolução cultural.
Parte desse trabalho deu-se durante a primeira metade da
era cristã e parte ocorreu nos séculos XII e XIII, depois
da introdução de significativos avanços no método, na
apresentação e na técnica do texto. [...] Vários modelos
inteligíveis de organização são discerníveis dentro do tex-
to, e cada um deles tem a característica distinta de surgir
independentemente das regras linguísticas:
1. Uma mudança na estrutura da forma do livro, do rolo
de papiro para o códice latino, em que a página se tornou
a unidade de organização textual.
2. O desenvolvimento de um sistema de layout para o
livro e para a página, em que a disposição do material
escrito começou a atender os métodos de ordenação do
conhecimento de acordo com os estágios de uma obra que
levam a inteligíveis divisões do texto.
3. A aceitação da ordem alfabética e numérica como meio
de se dispor o material na argumentação, cujos itens são
sequenciados de maneira cumulativa e subdivididos em
unidades dentro do próprio texto, permitindo o movimento
sinóptico regressivo ou progressivo.
4. O desenvolvimento da ordem alfabética absoluta como
meio de organizar os índices por assunto e como método
de facilitar a consulta à obra a partir de formas padroni-
zadas, como o sumário dos capítulos.
5. A adoção da exegese como forma literária em que a
complicada argumentação filosófica começa a ser disposta

95
gramática e estilo

segundo os procedimentos pedagógicos que colocam o


texto sobre uma base didática.
6. Um método de inserção do material diagramático no
texto como parte adequada da argumentação empírica
demonstrativa. Esse procedimento coincidiu com o sur-
gimento da introdução da prova nas ciências e criou uma
técnica precisa, capaz de coordenar os critérios empíricos
com os resultados científicos, os quais permitiram trazer a
precisão do laboratório para a página, sem uma resultante
perda da eficácia técnica.
7. A institucionalização de um aparato acadêmico que in-
corporava a fonte e a referência ao texto como uma forma
de verificação em que o fato e o texto estavam unidos.

Aqueles monges, portanto, não fizeram pouca coisa; entre outras,


puseram-se a reescrever aqueles gregos para que nós pudéssemos enten-
der o que eles tinham ditado, acrescido do que escreveram – nos papiros
onde tinham copiado o que eles tinham ditado – os que se tinham posto,
ao longo do tempo, a explicar o que era mesmo que os gregos queriam
dizer. Dedicando-se a transformar a escrita num instrumento pedagógico,
inventaram o livro, os leitores do livro e os escritores de livros.
É muito instrutiva esta observação de Paul Saenger em A leitura nos
séculos finais da Idade Média (1998, p. 151)29 a respeito da intimidade
que a escrita separada criava com o leitor que lia para si mesmo silencio-
samente na privacidade do seu gabinete. O leitor, que lê com seus próprios
olhos, passa a escrever com a própria mão, ditando para si mesmo.

A adoção da escrita com palavras separadas despertou o


interesse pela composição manuscrita. Com o renovado
desejo dos autores de escrever suas próprias obras, certos
escritores como Othlon de Saint Emmeran, no século
XI, e Guibert de Nogent, no século XII, poderão agora
expressar sentimentos íntimos até então nunca confiados
29 SAENGER, Paul. A leitura nos séculos finais da Idade Média. In: CAVALLO, Guglielmo;
CHARTIER, Roger. História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998.

96
gramática e estilo

ao pergaminho pela ausência de privacidade quando a


redação dependia do ditado para um secretário [...].
Guibert secretamente redige poemas eróticos seguindo
o modelo dos da Antiguidade, os quais manterá escon-
didos de seus pares. Também secretamente escreve um
comentário sobre o livro do Gênese, o qual escondeu do
seu abade (SAENGER, 1998, p. 151).

A mão escrevendo para a própria e exclusiva leitura abriu caminho


para a expressão de sentimentos e pensamentos até então inexprimíveis
porque impublicáveis, que, mesmo assim, permaneceram onde foram
registrados, à espera de leitores, que, como se pode constatar, ainda que
mais tarde, compareceram. Escreviam e liam para conferirem se a cabeça
deles tinha formulado com clareza e precisão o que tinham ficado sabendo
a respeito deles mesmos ao registrarem o que lhes vinha vindo à cabeça.
Daí por diante, essa prática de ler e escrever textos foi levada tam-
bém para fora do convento para a universidade, para a cidade. A partir
da segunda metade do século XIV, a invenção de Gutenberg deu origem
a um outro mundo, assim descrito por Steven Fischer (2009, p. 239)30:

A atividade comercial de publicação de livros também


mudou. Patronos individuais não eram mais necessários;
só o grande capital importava. Os principais centros co-
merciais da Europa – não as residências reais, mosteiros,
abadias e capelas – tornaram-se os novos centros tipográ-
fico e literário. O círculo social íntimo de intelectuais que
cercava cada escola de escribas deu lugar a um público
anônimo letrado. Isso, por sua vez, forçou os editores a
padronizar seus textos para garantir maior compreensão,
transformando dialetos locais em línguas nacionais; essa
padronização levou às “línguas escritas” da Europa, que
se tornou mais influente e normativa. Os tipógrafos se
empenharam em simplificar a tipologia também, a fim de

30 FISCHER, Steven R. História da escrita. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

97
gramática e estilo

alcançar o máximo de legibilidade. Os textos impressos


agora obedeciam ao gosto da massa, e mudou para sempre
os critérios. Toda a sociedade ocidental foi alterada com
essa sinergia de homogeneização comercial, linguística
e cultural, processo esse que continua até hoje de modo
acelerado.

Na minha casa da infância, ainda nos anos 1940, já estava lá, ainda
antes das primeiras lembranças que tenho desta vida, uma máquina de
escrever portátil. Por causa dela aprendi os nomes das letras, que meu
pai ditava quando eu queria escrever uma frase sobre algum dos perso-
nagens do Sítio do picapau amarelo, que ele, minha mãe ou minha avó
liam pra mim. Eu não sei em que mês do ano de 1950 aprendi a ler, mas
foi ainda no primeiro semestre. Lembro de que, mais pro fim do ano,
pais de alunos que ainda não tinham aprendido a ler reclamavam que
eles não tinham aprendido porque a professora ainda não tinha ensinado
o nome das letras. Muito tempo depois, fiquei sabendo que essa minha
escola primária da rede estadual, o Instituto de Educação, seguia a Escola
Nova e, por isso, adotava o Método de Contos para uma alfabetização
sem soletração, uma alfabetização para formar leitores e não apenas para
que as crianças não confundissem o armazém com a farmácia.
Meu pai contava da alfabetização dele em São Borja – calculo que
em torno de 1916, já que ele nasceu em 1909 –, que eles soletravam,
por ordem da professora, a página da cartilha com as letras separadas e
as sílabas que formavam, na primeira linha. Na segunda linha, estava a
palavra inteira e, abaixo, a imagem do objeto designado: p + a = pa; n + e
= ne; l + a = la. Então, olhavam para o objeto abaixo e diziam: caçarola!
O nome das letras eles tinham aprendido. É claro que se alfabetizou o
meu pai, que era leitor e dado a contar histórias desse tipo.
Informa-nos o mesmo Fischer (2009, p. 247) que, em 1873, nos
Estados Unidos, “a Companhia Remington pôs à venda a primeira má-
quina de escrever ‘prática’ inventada pelo americano Cristofer Lathan

98
gramática e estilo

Scholes”, e que “o primeiro autor a escrever um romance numa máquina


foi o americano Mark Twain”. Eu fiz um curso de datilografia aos 16
anos, o que me habilitou a bater no teclado com os meus dez descoorde-
nados dedos; por isso, eu, já professor, me atrapalhava com as matrizes
a álcool dos mimeógrafos dos anos 1960. Já no fim dos anos 1970, no
Colégio Anchieta, eu entregava o material manuscrito, o pessoal da me-
canografia batia em matrizes do offset, eu revisava, eles imprimiam, e
eu entregava aos meus alunos. Em 1978, entreguei também manuscrita
minha dissertação de mestrado para uma datilógrafa profissional, que
tinha uma máquina elétrica profissional.
Nos anos 1980, apareceu o xerox, e em 1987 adquiri meu primeiro
computador pessoal, um TK3000 da Apple, onde digitei minha tese de
doutorado, pois os mecanismos de correção minimizavam os tropeços
da descoordenação motora. Trinta e dois anos depois, estou digitando
num laptop, onde está arquivado todo o material a que venho tentando
dar uma ordem para configurar este livro, que quer transformar texto
em texto bom.

1.5.2 Botando no papel o que desce da cabeça

Voltemos pela última vez ao tão precioso contraste entre a repro-


vação de quem escreveu a história dos piolhos e a aprovação de quem
produziu estas frases empilhadas a respeito da casa bonita.

A casa é bonita.
A casa é do menino.
A casa é do pai.
A casa tem uma sala.
A casa é amarela.

Que disse Geraldi a respeito dessa pilha? Disse que o jogo da escola
não incentiva o uso da modalidade escrita para estabelecer uma interlo-

99
gramática e estilo

cução com um leitor possível; o que a escola ensina é o preenchimento


de um arcabouço ou um esquema. O jogo da escola inverte a ordem em
que se deu a trajetória da língua escrita ao longo da história, em que a
frase/as frases só se viabilizaram porque havia discurso para ser posto
em frases. A escola trabalha nessa inversão porque, do ponto de vista
político, aprova preenchimento de arcabouço e desaprova discurso ou,
como já formulamos, a escola quer que os alunos que digam o que é pra
dizer e não o que têm pra dizer.
Não é, então, por acaso que a história da epidemia de piolhos se
assemelha formalmente à scripta continua: a determinação de dizer o
que tinha para dizer levou nossa autora a mobilizar os recursos de que
dispunha naquela etapa da sua alfabetização lançando mão, nos termos de
Emilia Ferreiro (2001), de uma hipótese alfabética para grafar e encadear
os sons que compunham o relato que ditou para si mesma. Rara valentia
a de enfrentar a cultura de desvalia com que se costuma avaliar a nossa
capacidade brasileira de lidar com a língua escrita.
Então, em homenagem àquela valente guria, vai aqui um exercício
introdutório especial para quem nunca se atreveu a escrever o que não
tinha certeza de que seria capaz de escrever. Este exercício é igualmente
útil para quem se atreve a fazer isso e decisivo para quem não escreve
porque trava quando tem de começar a escrever. Assim, ó: de preferên-
cia num caderno especial, só pra isso, escrever à mão o que a cabeça
ditar, sem plano, sem intenção e sem se preocupar com essa invenção
medieval aí, o texto, isto é, sem se preocupar com frase – com o que vai
no início, com o que vem depois do começo e com o que termina, sem
pontuação, sem maiúsculas e minúsculas e, até mesmo, se conseguir,
sem a “correta” separação das palavras. Sem se preocupar com o leitor,
se ele vai entender ou não o que está sendo posto no papel.
E pra que serve fazer isso? Para viver a experiência de conversar
consigo mesmo por escrito, tentando discernir – entre tudo o que te-
ria pra registrar – aquilo que mais vale a pena ser registrado e, como

100
gramática e estilo

consequência disso, vale a pena ser repensado, reavaliado, rediscutido.


Lendo-se, tal como a gente faz quando lê alguma coisa escrita por outra
pessoa – um WhatsApp, um bilhete, um cartão de aniversário, uma carta,
uma reportagem, um artigo, um ensaio, um poema, um romance, etc., etc.
–, a gente pode passar a dar-se a mesma importância que dá às pessoas
que escrevem o que nós achamos que vale a pena ler.
Além disso, esse exercício tem, pelo menos, um efeito prático
comprovado: dei essa sugestão prum filho vestibulando travado. Ele me
disse, uma semana depois, que estava fazendo o exercício. Passou no
vestibular, e eu perguntei pelo efeito do exercício. As ideias passaram a
descer mais rápido da cabeça pra mão, disse ele.
Da onde que eu tirei isso? Eu tinha feito esse exercício – não para
me destravar, que eu escrevo desde antes de ter aprendido a escrever –
como parte de uma psicoterapia bioenergética, bem antes de ter uma ideia
clara a respeito do ditado aos escribas nem, menos ainda, do produto
que resultava deles e dos modos de uso daqueles escritos. Em termos de
psicoterapia, não tenho muita clareza a respeito do específico resultado
do exercício, mas gostei de ter feito isso por causa dos temas pelos quais
essa escrita destrambelhada me fez viajar. Guardei a papelada toda;
assim que eu terminar de escrever a coisa certinha que é este livro, vou
retomar aqueles escritos: vai que eu reencontro o poeta, o romancista
que eu imaginava em mim, quando ralava meus dedos naquela máquina
de escrever portátil lá na casa da minha infância.
Acho que o modo como o Pedro, meu filho, pôs em palavras a rela-
tiva desenvoltura que adquiriu com esse exercício se deve principalmente
à trivial descoberta de que ideias descem, uma atrás da outra, da cabeça
pra mão e que, se a mão estiver aparelhada para encadeá-las no papel,
as ideias se encadeiam no papel. E ficam ou encadeadas no papel, como
naquele primeiro escrito que examinamos na seção 1.3.2 Qualidades
discursivas em ação, ou se transformam em texto como acontece mais
comumente, porque o que nós lemos, há, pelo menos, 800 anos, são

101
gramática e estilo

textos. Ou seja, escrever à mão, o que a cabeça ditar – sem plano, sem
intenção... – o que vem vindo à cabeça, isso exatamente nós não vamos
conseguir fazer. Se nos permitirmos, no entanto, negligenciar algumas
vírgulas, alguns pontos, parênteses, novas linhas, travessões, hifens,
cedilhas, concordâncias, conjunções, margens de parágrafo, maiúsculas
e os demais instrumentos que tiveram de ser inventados para controlar
a livre fluência do nosso pensamento ao longo das linhas que vamos
preenchendo, teremos feito um exercício libertador e produtivo.
A eficiência pedagógica desse exercício de escrita vertiginosa
pode estar nessa tentativa de liberar a cabeça para que ela descubra o
que gostaria de registrar daquilo que tem lá dentro e como gostaria de
registrar isso. Essa descoberta também desobrigaria a cabeça de registrar
o que não gostaria de registrar. Registrar o que desce voluntariamente da
cabeça para esparramar-se tal qual desce faz a prática da língua escrita
encontrar-se com a sua ancestralidade: escrever o que vem na cabeça
sem plano nem intenção é um ditado que a cabeça faz à mão que escreve,
como Aristóteles ditava a um ou mais escribas.
Diferentemente de Aristóteles, que produzia em sua cabeça um
ensinamento a ser registrado para a posteridade, neste exercício, o que
desce da cabeça pra mão e a mão registra tem apenas a finalidade de
puxar o que a cabeça acha que tem a declarar como continuidade do que
foi registrado. Não havia um leitor na expectativa que Aristóteles tinha
para o destino do seu ditado; havia os ouvintes da leitura daquilo, tal
qual os alunos que ouviam o que ele dizia em suas aulas. Neste exercício
também não há ouvintes e, muito melhor ainda, não há um professor
pra cornetear erros, ou seja, não há erros nem acertos nem qualidades
nem defeitos, tal como, talvez, no paraíso. Só tem o que saiu da cabeça,
documentando que na cabeça tinha coisas que foram passadas para o
papel e que na cabeça tem mais coisas a serem passadas para o papel.
O que há naquela pilha de frases sobre a casa bonita? Só os dispositi-
vos de construção do texto bloqueando qualquer manifestação discursiva,

102
gramática e estilo

inibindo o desenvolvimento de qualquer relato e de qualquer raciocínio.


Olhando para Eraumavezumpionhoqueroiaocabelodaiumemnino nos
sentimos incentivados a exercitar a curiosidade para entender a história,
a cooperar para reescrevê-la, a mexer na ortografia. Para a aluna a quem
atribuímos a autoria deste escrito, foi a despreocupação com aquela in-
venção medieval, o texto, que abriu o caminho pra descida dessa história
desde a cabeça até a mão, que botou no papel. Foi também a disposição e
a coragem que ela teve de, para aprender a escrever, lançar-se na aventura
de fazer o que ainda não sabia fazer.
A atitude dela se assemelha muito à desenvoltura com que aqueles
gregos da era helênica – que foram elevados à posição de fundamentos
da cultura do Ocidente – se autorizavam a abrir a boca e a proclamar o
que pensavam pra quem quisesse ouvir e registrar para a posteridade.
Esse modo de se expressar distingue-se significativamente do exercício
furtivo daqueles monges oprimidos que inventaram o texto e endereçaram
para os fundos falsos das gavetas de suas escrivaninhas as confissões
transgressoras aos seus votos de castidade e de obediência que escreveram
com as próprias mãos.
Neste exercício semelhante ao dela que estamos propondo, a gente
está livre das contenções do texto porque neste exercício se pode não
produzir texto, sabendo, inclusive, que o produzido pode, se a gente achar
que é o caso, ser transformado em texto, assim como aqueles monges
transformaram em textos o que Aristóteles ditou. Se a gente achar que
o produto merece ser lido ou se alguém merece ler aquilo tudo, então, a
gente pensa no leitor e bota tudo em texto, com a certeza de que estamos
livres da sina daquele guri que não conseguiu ir além da reprodução de
algumas frases a respeito de uma casa. Por quê? Porque teremos aprendido
a distinguir entre o que queremos dizer por escrito e o modo de tornar
isso legível para o leitor que temos em mente. Aí, então, apelamos para
todos aqueles dispositivos de controle do que desce da cabeça para a mão,
inventados com a finalidade de auxiliar o leitor a ler com os próprios
olhos o que está escrito e, então, construímos um texto.

103
gramática e estilo

Ou seja, não estou propondo que a gente volte a viver sem a frase
porque sem frase não há texto nem, consequentemente, leitor. O objetivo
aqui é ensinar a escrever bons textos, que ajudem o leitor a ler. Pra isso
é preciso ajudar o leitor a escrever porque não é nem a frase nem o texto
que produzem o texto e a frase. O que produz o texto – o discurso escrito
que tem unidade temática, objetividade, concretude e questionamento – é
o que desce da cabeça pra mão e o que mão e cabeça fazem com o que
desceu para que o leitor – que, neste processo, é o cara que escreve – leia,
com seus olhos, o que o escritor – que, nesse outro e mesmo processo, é
o cara que lê – chegou à conclusão, escrevendo e reescrevendo, que era
bem isso (mesmo que, às vezes, tenha que se contentar com quase isso)
o que ele queria dizer.
Recorrendo a Emilia Ferreiro (2001), o encadeamento livre proposto
por este exercício nos leva para a mais primitiva, mais despojada, mais
descomprometida das hipóteses que a humanidade concebeu a respeito
do exercício da língua escrita. Esse exercício desnudo da escrita pode
nos desafogar das demais constrições que foram sendo historicamente
impostas ao seu exercício, bem mais constringentes do que a frase, do
que a pontuação e do que a ortografia, como, por exemplo, a ideia de
que alfabetizar é ensinar a escrever uma pilha de frases sobre um mesmo
assunto ou que a ortografia tem o poder de banir da língua escrita qualquer
outro tipo de registro escrito.
Talvez seja o caso de fazer periodicamente este exercício até para
repensar nossos modos comuns de construir frases e de encadeá-las. E
podemos fazer isso com a tranquila certeza de que – depois de tudo o
que, secularmente, foi dito e continua a ser proclamado a respeito de
nossa incapacidade de nos expressarmos na língua que deveríamos ter
aprendido – não vamos incorrer na prepotência daqueles gregos, que
proclamavam que só a língua deles era língua, que todos os outros povos
nada mais faziam do que blablabá, os blablabárbaros.

104
gramática e estilo

E depois de destravar, o que a gente faz? Depois de destravar, bem


que a gente pode cultivar um diário, que seria uma espécie de extensão
desse primeiro exercício; não no sentido histórico porque o diário é uma
instituição bem mais antiga do que qualquer psicoterapia e, na verdade,
talvez seja a sua semente. É uma extensão desse exercício porque também
prescinde de leitores além do próprio diarista, que pode se valer do que
está registrado para expressar com mais clareza o que tentou expressar
antes. No sentido psicoterapêutico, o diarista pode, até mesmo, espantar-
-se ao ficar sabendo do que é capaz de pensar a respeito de si mesmo, de
suas opiniões, convicções, atitudes, etc., mas, do ponto de vista do que
nos interessa aqui, saber disso só vai atiçar a vontade de escrever mais
para saber mais e para aprender a escrever melhor.

1.5.3 O leitor que escreve e o professor que ensina

– Então, professor, se as qualidades discursivas não deixam de ser


qualidades estilísticas, se a gramática é um estilo e se também o
texto é um estilo, tudo é estilo?
– Não, nem tudo. Eu explico.

Já referi que eu costumo solicitar aos meus alunos estudantes de


Letras ou professores de Português em cursos de especialização que
escrevam sobre a relação que tiveram com a língua escrita em sua vida.
Numa disciplina que tratava especificamente de ensino de Português na
graduação em Letras marquei, no texto de um aluno que se apresentava
como um professor de Português já experiente, uma vírgula, a meu ver
inadequada, entre um sujeito e um predicado. Quando devolvi em aula
os originais com os meus comentários escritos, ele leu as minhas obser-
vações e perguntou, lá de onde estava sentado, em voz bem alta, se eu
não tinha conhecimento de que o Celso Cunha sustentava que a vírgula
entre o sujeito e o predicado é uma vírgula estilística. A resposta nasceu
já descendo da minha cabeça:

105
gramática e estilo

– Texto escrito no ônibus, no caminho de casa pra universidade, em


cima da perna, não tem direito a estilo. Estilo só comparece em texto
pensado e reescrito.

Essa formulação radical silenciou o reclamante e todos os outros que


tinham escrito seus textos em semelhantes condições. Ficou estabelecido
que estilo não vem no pacote: brota de uma deliberação de estilo e de
um exercício de estilo. É nesse sentido que as qualidades discursivas,
que exigem do escritor que as incorpore ao texto que compõe, são es-
tilísticas porque essa incorporação exige releitura, revisão, reescrita. É
nesse mesmo sentido que gramática é estilo, pois cobra mais um olhar
pro que foi escrito; é sobretudo nesse sentido que o texto é estilo porque
questiona, em nome do leitor, a legibilidade daquilo tudo que está enca-
deado ali naquele papel.
E os que têm só estilo? Pra um deles eu escrevi que, lendo o que
ele tinha escrito, eu nem discernia de qual dos temas solicitados o texto
dele tratava, que ele escrevia tudo do mesmo jeito.

– É assim que eu faço; o meu estilo é esse!


– Se tu tem só um estilo, é o estilo que te tem. Tu é um possesso do
estilo.

Estavam demarcados os limites: estilo se manifesta a partir da ultra-


passagem da redação escolar para o texto e sensatamente não incursiona
naquele território onde os demônios do efeito sequestram o discurso.
Recapitulemos para balizar o que se move dentro desses limites; no
texto, portanto.
O modo de escrever que recebeu o nome de texto, como vimos, foi
sendo criado por aqueles monges, ao longo do tempo que medeia entre o
século IV d.C., quando o rolo de papiro começou a ser substituído pelas
chapas de pergaminho dobradas ao meio e colocadas umas dentro das
outras, até o século XII. A finalidade era tornar acessível aos olhos de

106
gramática e estilo

um leitor um acervo escrito até então acessível apenas aos ouvidos dos
estudiosos dispostos a compartilhar da ciência e da arte contida nele.
Esse modo de escrever, fundamentado na separação das palavras
umas das outras e na criação de sinais e outros recursos gráficos para
identificar segmentos que expressavam declarações que tratavam de
um mesmo assunto e para indicar que tipo de relação ligava esses
segmentos, não apenas criou o leitor mas também ensinou esse leitor
a escrever. Foi a leitura individual silenciosa em intimidade com o
texto que atiçou em outros daqueles monges o desejo de escrever
com a própria mão até mesmo o que não se atreveria a confessar para
que um escriba registrasse no papel. Essa prática de leitura e escrita
fez mais: ensinou o leitor que escreve a ler o que tinha escrito e, por
ler-se, aprender a reescrever, libertando definitivamente o escrito do
encadeamento da fala e da ordem em que as ideias descem da cabeça
para a mão que registra.
Foi isso que propiciou postular outros ordenamentos para o que se
escreve, reordenando os ordenamentos que já estavam postos em ordem.
Ao reformularem o que escreviam, reformulavam o que pensavam e o
que pensavam a respeito do que pensavam os textos que liam. Foi isso – a
formulação e a reformulação – do que se escreve, causa e consequência
da formulação do que se pensa – que criou o estilo, que é o resultado da
escolha pelo autor, dos recursos expressivos mais capazes de produzir
os efeitos de sentido que ele deseja criar. Por isso texto produz estilo,
gramática produz estilo, qualidades discursivas produzem estilo, mas
principalmente estilo produz estilo.
Criou-se o texto para que mais gente pudesse partilhar da tradição
escrita, e para que ainda mais gente pudesse ser incluída nessa tradição;
nem bem dois séculos tinham passado e foram criadas máquinas capazes
de multiplicar exemplares legíveis dos componentes desse acervo e de
textos que foram sendo agregados a esse acervo. A história da língua
escrita é a história da ampliação do alcance da língua escrita.

107
gramática e estilo

Nós sabemos muito bem que essa ampliação não é necessariamente


a história da democratização da língua escrita. Sabemos do que se proi-
biu, do que se queimou, do que se puniu, do que se elitizou, do que se
dificultou, do que se rebaixou, do que se estigmatizou. Sabemos também
que, se a escrita não está ao alcance de todos, pelo menos jamais deixou
de aumentar a quantidade de gente envolvida nela, apesar dos esmerados
esforços de gente como a classe dominante brasileira para manter o povo
chucro, a repetir o que é pra ser repetido.
Este livro chamado Gramática e estilo quer se ocupar das dificulda-
des que este professor detectou no processo de aprendizado desse leitor
que escreve e que, por escrever, quer escrever um texto bom.

108
gramática e estilo

ENCADEAMENTO

J ean Foucambert, pedagogo francês que pesquisa a língua escrita, num


artigo chamado Preliminares à pedagogia da escrita (1994, p. 77)31,
nos esclarece a respeito do que se passa em nossa cabeça quando nos
botamos a escrever: “escreve-se somente a partir do que se compreende
que acontece na leitura: escrever obriga a teorizar as estratégias de leitura,
enquanto ler obriga a teorizar as estratégias de escrita”.
Há muitos leitores que nunca escreveram textos, isto é, escritos em
que o encadeamento de frases constitui uma instância de uso da língua
escrita para produzir efeitos de sentido sobre bem determinados leitores.
Redações escolares todos os que passaram pela escola foram obrigados
a cometê-las. Leitores que nunca escreveram textos não foram, por causa
disso, obrigados a teorizar suas estratégias de leitura. Tudo o que fize-
ram foi ler uma frase depois da outra, do começo até o fim sem atenção
ao que esse trabalho teria a ensinar a respeito do texto cuja escrita eles
não vislumbravam no horizonte de suas ocupações. Outros leitores, por
outro lado, uma vez alfabetizados, se puseram a escrever textos como,
por exemplo, cartas; em consequência disso, passaram a receber cartas
em resposta às que escreviam.32

31 FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.


32 Carta, aqui, é um arquétipo: e-mails, mensagens instantâneas, postagens nas redes sociais são
quase cartas e produzem quase o mesmo efeito.

109
gramática e estilo

Foram, então, obrigados a teorizar suas estratégias de leitura


para manterem vivo e aceso o diálogo com seu(s) correspondente(s),
experimentando estratégias para pedir esclarecimentos, para explicar
melhor, para organizar melhor a exposição, para amenizar ou exacerbar
observações críticas, para compor argumentos convincentes, para rebater
argumentos, etc. Durante as leituras que tiveram necessidade de fazer
para se informarem a respeito dos temas tratados nessa troca de corres-
pondência, precisaram ficar atentos aos modos de dizer dos textos que
liam e passaram a experimentá-los nos textos que escreviam.
Outros escreveram diários, em que se correspondiam consigo mes-
mos, lendo-se criticamente, escrevendo comentários críticos a respeito
do que já tinham escrito. Outros escreveram diários, cartas, crônicas,
contos, provocações, réplicas, e esse exercício acarretou a necessidade
de teorizar estratégias de escrita num nível mais constante e complexo, o
que levou à necessidade de teorizar suas estratégias de leitura, as quais,
por sua vez, serviram de base para construírem suas estratégias de escrita.
Como já vimos, essa peculiar relação de interinfluência entre leitura
e escrita começou com aqueles monges que foram inventando o texto a
partir da scripta continua e acabaram descobrindo que o texto falava com
eles a ponto de se sentirem irresistivelmente compelidos a responder ao
que cada texto tão generosa e cumplicemente relatava para cada um deles
na solidão de seu gabinete. Quando foi isso? Faz tempo, mas o tempo
não passa igualmente para todo mundo.
Aquela concepção de escrita como o registro dos sons produzidos
pela boca das pessoas, que gerou a scripta continua não foi de todo
substituída pela concepção que gerou o texto, composto por frases, que
contêm orações, que contêm palavras, separadas as palavras umas das
outras por um espaço; as orações umas das outras por sinais de pontuação
final de oração ou ligadas por conjunções, às vezes pelas duas coisas;
separadas as frases umas das outras por sinais de pontuação de frase. É
o caso do primeiro escrito que examinamos no primeiro capítulo e que

110
gramática e estilo

vamos retomar neste capítulo para examinar exatamente de que modo


esse seu arcaico encadeamento de palavras exemplifica a resistência do
que já foi. É que separar frases, orações, palavras não é tão óbvio assim:
há quem escreva apartir de, derrepente, há quem não se dá o trabalho de
usar vírgulas, há, em suma, quem não leia na frequência, na quantidade
e na intensidade necessária para construir as mais adequadas hipóteses
para orientar a sua escrita, nem, muitas vezes, para orientar a sua leitura.

2.1 MERO ENCADEAMENTO

O que coloca aquele escrito aqui é a peculiaridade do seu encadea-


mento: são quatro frases em 28 linhas. Vamos reproduzi-lo aqui.

Minha trajetória escolar iniciou-se no ano de 1975, no interior de


EG, cidade em que moro até hoje, não lembro de conteúdo algum isso
no currículo o qual acabei em 1979, somente lembro das brincadeiras
e então não pude mais estudar por motivos pessoais ficando seis anos
afastada da escola, após este período voltei a estudar, cursando então o
supletivo assim chamado na época no qual eram cursados duas séries no
mesmo ano, nestes dois anos de aula tudo visto superficialmente lembro-
-me que eu gostava muito de estudar sobre verbos e construir textos,
acabando o ensino fundamental passei para o 2º Grau assim chamado na
época, neste lembro que meu gosto continuava pelos verbos e produção
de texto estes dois itens sempre foram meu forte no português acabando
então o 2º Grau em 1990.
Passaram-se mais dezesseis anos sem voltar para a escola, foi
quando surgiu esta oportunidade de cursar na graduação o curso de
letras, em Regime Especial, que significa cursar as aulas aos sábados
e nas férias, optei pelo curso de letras pois algo me dizia que eu iria
gostar, só que tem um porem, sofri muito porque fiquei muito tempo
sem estudar e ainda mais sem ler um livro sequer em todo esse tempo

111
gramática e estilo

não posso esquecer de falar na família que constitui nesse período


que estive afastada da escola, e quando voltei a estudar meus filhos
e marido me deram o maior apoio já mais imaginava tanto assim,
durante esse período eu sempre pensava em voltar a estudar nem que
fosse junto com o meu filho mais velho quando ele fosse ingressar na
faculdade, mas aconteceu antes, surgindo esta oportunidade, onde
pude então cursar o curso de letras e durante o mesmo tive vontade de
desistir pois, encontrei muitas dificuldades mas consegui superá-las
sempre fui uma pessoa com muita vontade de aprender por mais difícil
que fossem os obstáculos sempre os venci pois nunca me faltou fé e
força de vontade para seguir em frente. Na graduação eu gostei muito
da produção de textos talvez isso surgiu porque eu reprovei nas duas
produções de texto e ao fazê-las novamente com outra professora me
apaixonei pela produção de textos e foi por esse motivo que escolhi
ler vários autores que escreveram sobre texto. Na pós-graduação, vou
dar continuidade a produção de textos porque realmente gosto muito
e acredito que será um sucesso assim como minha vida também é um
sucesso por ter optado pelo curso de letras.

O saber – a teorização – que orientou a redação deste escrito pode


ser formulado desta maneira: o que vem à cabeça expressa-se por pala-
vras que se organizam em unidades de formulação que declaram algo a
respeito do que costuma ser escrito para contar alguma coisa. É costume,
por exemplo, começar pelo começo: Minha trajetória escolar iniciou-se
no ano de 1975, no interior de EG. Essa unidade de formulação põe um
assunto em pauta, e o que é declarado a respeito desse assunto organiza-
-se ao redor de um verbo – iniciou-se – que solicita que se diga o que
iniciou, quando iniciou e onde iniciou, e a escritora preenche as solici-
tações do verbo. Esta primeira unidade de formulação puxa a segunda,
e o lugar onde tudo começou passa a ser o assunto da unidade seguinte:
cidade em que moro até hoje. A unidade que vem a seguir foi solicitada
pela pauta da redação escolar, que determina que escrever sobre escola

112
gramática e estilo

é tratar de conteúdo mesmo que, como já pudemos ler, nada haja a ser
dito a respeito disso: não lembro de conteúdo algum.
Nesse momento, a escritora se deu conta de que essa afirmação
poderia ser interpretada genericamente e tratou de se prevenir contra essa
interpretação – isso no currículo –, e o último elemento dessa unidade
virou o assunto da unidade seguinte: o qual acabei em 1979. E assim
o texto vai: um assunto é posto em pauta, um verbo diz algo a respeito
desse assunto, e as informações solicitadas pelo verbo são providas pela
escritora. Essa teorização implica também que o texto está pronto no mo-
mento em que esse encadeamento de unidades de declarações a respeito
de cada um dos assuntos alinhados terminar de tratar da última coisa
que veio à cabeça. Chamemos de composição por mero encadeamento
o resultado prático da aplicação dessa teorização.
Vamos, então, revisar este escrito. Em sala de aula, é interessante
que cada um faça a sua revisão individual e que, depois, juntem-se em
grupos de três, dois ou quatro para refazerem uma versão consensual, de
tal modo que tenham que se expressar sobre o que cada um fez e entrar
num acordo para uma versão comum ou, se isso não for possível, discutir
e registrar as divergências.

2.1.1 Delimitação de frases no texto e de orações nas frases

O resultado dessa revisão costuma ser, no mínimo, a delimitação


de mais frases – mais maiúsculas iniciais e pontos-finais – ao longo do
escrito. Esse procedimento compatibiliza com o que acontece na leitura
tal como assevera Foucambert. As frases dos textos que lemos não são
assim como o escrito original as compôs: elas não se prolongam desse
modo entre uma maiúscula inicial e um ponto-final. Este exercício, de
certa forma, nos proporciona reproduzirmos, guardadas todas as devidas
proporções, o procedimento que criou o texto, a entidade texto, tal qual
a conhecemos. Não estaremos exatamente tornando acessíveis à leitura
pelos olhos algum registro do que Aristóteles ditou para a sua equipe de

113
gramática e estilo

escribas, mas vivemos/escrevemos uma experiência similar à que inven-


tou não só o texto mas também a frase, demarcando, com os instrumentos
gráficos de uma maiúscula inicial e de um ponto-final, encadeamentos
de assunto, articulando conteúdos expressos por um verbo e os nomes
que preenchem o que esse verbo pede, construindo o que passou a ser
chamado de oração.
Vamos por partes, analisando os assuntos a serem desmembrados
de cada frase gráfica do original:
1 Onde e quando: Minha trajetória escolar iniciou-se no ano de
1975, no interior de EG, cidade em que moro até hoje – o qual acabei
em 1979.
2 Lembranças da escola: não lembro de conteúdo algum isso no
currículo o qual acabei em 1977, somente lembro das brincadeiras.
3 Saída precoce da escola: e então não pude mais estudar por
motivos pessoais ficando seis anos afastada da escola.
4 Volta para o supletivo: após este período voltei a estudar, cursan-
do então o supletivo assim chamado na época no qual eram cursados duas
séries no mesmo ano, nestes dois anos de aula tudo visto superficialmente.
5 Preferências nas atividades escolares no primeiro grau: lembro-
-me que eu gostava muito de estudar sobre verbos e construir textos.
6 O segundo grau: acabando o ensino fundamental passei para o
2º Grau assim chamado na época.
7 Preferências nas atividades no segundo grau: neste lembro que
meu gosto continuava pelos verbos e produção de texto estes dois itens
sempre foram meu forte no português.
8 A conclusão do segundo grau: e acabando então o 2º Grau em
1990.

114
gramática e estilo

Seriam, portanto, oito os assuntos encadeados na única frase com


que a escritora tenta relatar sua trajetória no ensino básico. Como alguns
deles se repetem em lugares diferentes da frase, não precisamos mais do
que seis frases – uma para cada assunto – para reescrever este parágrafo,
que tem como assunto o ensino básico.

1 Minha trajetória escolar iniciou-se no ano de 1975, no interior


de EG, cidade em que moro até hoje, e interrompeu-se em 1979, quan-
do acabei o currículo e, por motivos pessoais, tive de interromper os
estudos. 2 Não lembro de conteúdo algum do que estudei nesse perí-
odo; somente lembro das brincadeiras. 3 Depois de seis anos, voltei
a estudar no então chamado supletivo, onde se cursava duas séries
em cada ano e tudo era visto superficialmente. 4 Lembro-me que eu
gostava muito de estudar sobre verbos e construir textos. 5 Acabando
o ensino fundamental, passei para o que, na época, se chamava 2º
Grau, que acabei em 1978. 6 O meu forte continuou sendo o estudo
dos verbos e a produção de textos.

É claro que a reescrita poderia ser diferente desta e que os assun-


tos poderiam ser determinados, por exemplo, desta outra maneira: 1 as
séries iniciais, 2 o supletivo, 3 o segundo grau. O parágrafo, portanto,
ficaria assim:

1 Cursei as séries iniciais – o currículo – entre os anos de 1975 e


1979, em EG, cidade em que moro até hoje; lembro das brincadeiras
mas não dos conteúdos. 2 Depois de seis anos afastada da escola, voltei
a estudar no supletivo cursando duas séries em cada ano; lembro-
-me que eu gostava muito de estudar sobre verbos e construir textos.
3 Acabando o ensino fundamental, cursei o 2º Grau, que acabei em
1990; o meu forte no Português continuou sendo o estudo dos verbos
e a produção de textos.

115
gramática e estilo

Vamos, agora, examinar a segunda frase, a primeira do segundo


parágrafo. Vamos contar o número de orações já identificando os assuntos
de que tratam para montar as frases:

1 Segunda volta à escola, 2 Opção pelo curso, 3 Dificuldade


básica no curso, 4 O apoio da família, 5 Conjeturas em confronto
com a realidade, 6 As dificuldades, 7 Superação das dificuldades.

Diferentemente da longa frase anterior, esta segunda frase do


original não se limita a contar o que aconteceu, mas trata também de
tomada de decisões e de atitudes, de relações familiares, de projetos, de
dificuldades, o que torna a sua revisão mais complexa do que a daquela.
Vamos revisá-la.

1 Passaram-se mais dezesseis anos, durante os quais eu sempre


pensei em voltar a estudar, nem que fosse junto com o meu filho mais
velho quando ele fosse ingressar na faculdade. 2 Antes disso, surgiu a
oportunidade de cursar uma graduação em Regime Especial, isto é, com
aulas aos sábados e nas férias. 3 Jamais imaginei que a família que eu
tinha constituído nesse período em que estive afastada da escola – meus
filhos e o meu marido – fosse me dar tanto apoio. 4 Optei pelo curso de
letras pois algo me dizia que eu iria gostar. 5 Passei, no entanto, por
muitas dificuldades porque tinha ficado todo esse tempo sem estudar e
sem ler um livro sequer. 6 Sofri tanto que algumas vezes tive vontade
desistir, mas consegui superar as dificuldades. 7 Sempre fui uma pes-
soa com muita vontade de aprender e, por mais difícil que fossem os
obstáculos, sempre os venci pois nunca me faltou fé e força de vontade
para seguir em frente.

O que ressalta de imediato dessa revisão, que transformou aquela


frase em um parágrafo de sete frases, é que nem como parágrafo essas
frases compõem uma unidade. Elas tratam de, pelo menos, quatro assun-

116
gramática e estilo

tos distintos: a oportunidade de satisfazer um desejo latente, o apoio da


família, a escolha do curso e a superação das dificuldades. As informações
a respeito de cada um desses temas são mínimas, como se o parágrafo
resultasse apenas em um roteiro, em uma sinopse de uma história a ser
contada. Essa falta de unidade do parágrafo decorre da falta de unidade
temática do escrito, a qual costuma estar associada à falta de objetivi-
dade: o escrito não coloca diante do leitor os dados que ele necessitaria
para produzir sentido a partir do que lê.
Esses dados ficaram presos dentro da subjetividade da escritora,
que seria a primeira beneficiária deles se conseguisse tirá-los de dentro
de si e colocá-los no papel para reler o que escreve atenta (1) ao que
falta dizer, (2) ao que precisa ser dito com mais clareza e precisão, (3)
à ordem em que esses dados devem ser alinhados, (4) à ideia geral que
surge da combinação de todos eles, (5) aos que estão mais atrapalhando
do que ajudando, (6) aos que devem permanecer, (7) aos que devem ir
para as anotações de um próximo texto, etc.
Retomando, então: para orientar o escritor no processo de transfor-
mação de seu texto em haver em texto de qualidade, o professor precisa
dirigir sua atenção para o leitor, não só para que ele se coloque no lugar
dos seus leitores, mas também para que se torne capaz de descobrir, ao
escrevê-los, reescrevê-los e revisá-los, o que ainda não sabia que sabia
a respeito do tema sobre o qual está escrevendo. A mais importante
finalidade de escrever é botar diante dos próprios olhos o que o escritor
precisa ficar sabendo a respeito do assunto. O que ele já sabia os seus
leitores também já sabiam.
Vamos às duas últimas frases do texto; como são mais curtas, vamos
identificar as suas orações assinalando o verbo que as organizam:

Na graduação eu gostei muito da produção de textos 1 talvez isso


surgiu 2 porque eu reprovei nas duas produções de texto 3 e ao fazê-
-las novamente com outra professora 4 me apaixonei pela produção

117
gramática e estilo

de textos 5 e foi por esse motivo 6 que escolhi ler vários autores 7 que
escreveram sobre texto. 8
Na pós-graduação, vou dar continuidade a produção de textos 1
porque realmente gosto muito 2 e acredito 3 que será um sucesso 4 as-
sim como minha vida também é um sucesso 5 por ter optado pelo curso
de letras. 6

Estas duas últimas frases – muito menores do que as anteriores –


parecem mostrar que a experiência de leitora da escritora deste texto
foi ativada pela escrita das frases anteriores, ou seja, a prática da escrita
despiora os escritos que se sucedem. Sua experiência de ler frases, que se
caracterizam por tratar de um único assunto, conduziu a escrita da terceira
frase, que determina com muita clareza não só o seu tema – a produção
de textos –, mas também o âmbito em que localiza o tratamento desse
tema: a graduação. Todas as suas oito orações tratam desse mesmo tema.
A quarta e última frase deixa clara a intenção de dar continuidade
ao assunto trazido pela anterior, começando de forma paralela – na gra-
duação e na pós-graduação – e tratando do mesmo tema, que também
é a produção de texto; no entanto, acrescenta muito pouco, usando esse
tema apenas como um pretexto para abordar o lugar-comum do sucesso.
Essas frases, portanto, mostram também que a mobilização daquela ex-
periência de leitura não se integrou numa reflexão a respeito da unidade
temática da frase, já que não foi capaz de levar a escritora nem a uma
revisão das frases anteriores nem a manter a unidade temática da frase
seguinte. Vamos, então, revisar estas frases:

Na graduação, mesmo tendo sido reprovada em duas disciplinas


de produção de textos, acabei me apaixonando graças à professora com
quem cursei novamente essas disciplinas. Foi por isso que escolhi ler
vários autores que escreveram sobre texto. Na pós-graduação, vou dar
continuidade a esses estudos porque realmente gosto muito. Acho que

118
gramática e estilo

vou ter sucesso assim como minha vida também é um sucesso por ter
optado pelo curso de letras.

A terceira frase do original foi transformada em duas frases para


possibilitar o manejo das ideias expressas por aquelas oito orações.
Não se trata de produzir frases curtas para facilitar a leitura porque a
exposição de ideias complexas dificilmente vai poder se dar em frases
simples. Trata-se também de avaliar a melhor forma de dar continuidade
ao assunto na passagem de uma frase para outra. Na última frase, essa
continuidade não ficou muito boa por falta de dados para deixar claro
o que relaciona estudar sobre produção de texto e ter sucesso. Cabe ao
professor chamar atenção do aluno para essa carência, que um simples
remanejo das frases originais não é capaz de resolver. Vamos, então, ver
como ficou esta versão revisada do texto.

Cursei as séries iniciais – o currículo – entre os anos de 1975 e


1979, em FD, cidade em que moro até hoje; lembro das brincadeiras
mas não dos conteúdos. Depois de seis anos afastada da escola, voltei
a estudar no supletivo cursando duas séries em cada ano; lembro-me
que eu gostava muito de estudar sobre verbos e construir textos. Aca-
bando o ensino fundamental, cursei o 2º Grau, que acabei em 1990;
o meu forte no Português continuou sendo o estudo dos verbos e a
produção de textos.
Passaram-se mais dezesseis anos, durante os quais eu sempre
pensei em voltar a estudar, nem que fosse junto com o meu filho mais
velho quando ele fosse ingressar na faculdade. Antes disso, surgiu a
oportunidade de cursar uma graduação em Regime Especial, isto é, com
aulas aos sábados e nas férias. Jamais imaginei que a família que eu
tinha constituído nesse período em que estive afastada da escola – meus
filhos e o meu marido – fosse me dar tanto apoio.

119
gramática e estilo

Optei pelo curso de letras pois algo me dizia que eu iria gostar.
Passei, no entanto, por muitas dificuldades porque tinha ficado todo esse
tempo sem estudar e sem ler um livro sequer. Sofri tanto que algumas
vezes tive vontade desistir, mas consegui superar as dificuldades. Sempre
fui uma pessoa com muita vontade de aprender e, por mais difícil que
fossem os obstáculos, sempre os venci pois nunca me faltou fé e força
de vontade para seguir em frente.
Na graduação, mesmo tendo sido reprovada em duas disciplinas
de produção de textos, acabei me apaixonando graças à professora com
quem cursei novamente essas disciplinas. Foi por isso que escolhi ler
vários autores que escreveram sobre texto. Na pós-graduação, vou dar
continuidade a esses estudos porque realmente gosto muito. Acho que
vou ter sucesso assim como minha vida também é um sucesso por ter
optado pelo curso de letras.

Reler o que se escreveu – e até mesmo o que se está escrevendo –


faz parte não apenas da revisão mas também da rotina da escrita. Já não
se trata apenas de facilitar a vida do leitor, dispondo os conteúdos na
sequência em que a relação entre eles fique mais clara. Trata-se também
de buscar a sequência, as construções e as palavras que revelem para o
autor o que é mesmo que ele quer dizer, pois o exercício da escrita é
capaz de fazer isso.

2.1.2 Fluência do encadeamento

Em síntese, o nosso trabalho de revisão fundamentou-se numa


teoria – num saber – que atualizou a concepção a respeito de escrita e
leitura pela qual o original foi construído: a língua escrita já deixou de
ser apenas o registro da oralidade na ordem em que a fala se manifestaria
a respeito do que vem à cabeça sobre o assunto em questão. As tarefas
que foram atribuídas à língua escrita ao longo destes últimos 800 anos
dotaram-na de recursos e de instrumentos que possibilitam a construção

120
gramática e estilo

de textos mediante a organização e a reorganização em frases do material


produzido pelas orações concebidas pelo escritor a respeito do tema em
questão. Essas frases caracterizam-se por apresentar um tema a respeito
do qual um conjunto de orações diz alguma coisa.
Produzir frases para encadear em outras frases envolve reorganizar
as orações com que cada frase foi construída para mais adequadamente re-
organizar esse encadeamento, transformando-o num mais adequado texto
para expressar o que o autor vai descobrindo que quer dizer. As orações
que o escritor vai registrando tal como vêm à sua cabeça materializam
no papel um material com o qual o escritor dialoga para descobrir o que
ainda não sabia que sabia a respeito do assunto sobre o qual escreve. Desse
diálogo, o texto vai se formando pelo desenvolvimento do que já está
escrito, pelo deslocamento de orações dentro da frase, pelo deslocamento
de orações para a frase seguinte, para a frase anterior, para qualquer outra
frase do texto, pelas reformulações de orações, pelo rearranjo de frases,
pela substituição ou pela eliminação de orações ou de frases. A ordem em
que as frases vão ser dispostas ao longo do texto também é avaliada pelo
escritor pela sua eficácia na condução do leitor ao longo da exposição
que o texto faz. Escrever e revisar o que se escreve são procedimentos
simultâneos e permanentes. Foi a partir desta concepção de produção de
texto que revisamos aquele original.
Cabe ressaltar que a frase, inventada com a finalidade de auxiliar
o leitor na difícil tarefa de identificar, no fluxo de letras grudadas umas
nas outras representando os sons produzidos sucessivamente pela boca de
quem ditava, é que possibilita essa revisão. É a frase que orienta o leitor
que escreve com a própria mão – com os próprios dedos – registrando
não mais os sons produzidos por sua boca mas as imagens gráficas das
palavras já impressas em seu cérebro por sua experiência como leitor.
É a frase que permite o escritor olhar para trás para avaliar não apenas
o que falta dizer mas também a mais adequada posição na frase do que
já está dito com relação ao que ainda é necessário dizer. É a frase que
possibilita a composição e a recomposição da progressão do texto, li-

121
gramática e estilo

bertando o escritor da linearidade inexorável da fala, que só é capaz de


dizer uma palavra atrás da outra.
Podemos considerar que fizemos um trabalho estilístico ao revisar
esse escrito composto por mero encadeamento de orações registradas
na ordem em que vieram à cabeça da escritora que o compôs? Vamos
ver a premissa que Bakhtin (2013, p. 23-24) estabelece em Questões de
estilística no ensino da língua, em que relata as aulas de língua escrita
para seus alunos de ensino médio:

Toda forma gramatical é, ao mesmo tempo, um meio


de representação. Por isso, todas essas formas podem e
devem ser analisadas do ponto de vista das suas possibili-
dades de representação e de expressão, isto é, esclarecidas
e avaliadas de uma perspectiva estilística. No estudo de
alguns aspectos da sintaxe, aliás, muito importantes,
essa abordagem estilística é extremamente necessária.
Isso ocorre, sobretudo, no estudo das formas sintáticas
paralelas e comutativas, isto é, quando o falante ou o es-
critor tem a possibilidade de escolher entre duas ou mais
formas sintáticas igualmente corretas do ponto de vista
gramatical. Nesses casos, a escolha é determinada não pela
gramática, mas por considerações puramente estilísticas,
isto é, pela eficácia representacional e expressiva dessas
formas. Por conseguinte, em tais situações é impossível
prescindir das explicações estilísticas.

Escolha e eficácia representacional e expressiva são expressões-


-chave nestas considerações a respeito de estilo: nós escolhemos entre
os recursos expressivos historicamente construídos na língua escrita
aqueles que nos parecerem os mais eficazes para dizer o que queremos.
Digamos que, ao reorganizarmos em frases não apenas menores mas
também mais claras do ponto de vista do estabelecimento do seu tema
e da relação desse tema com a declaração que nessas frases se faz a
respeito dele, operamos uma estilística básica, que podemos caracte-

122
gramática e estilo

rizar como uma atualização histórica da concepção de língua escrita


segundo a qual organizar o texto.
Escritos construídos por mero encadeamento ocorrem e nos co-
locam o desafio de analisá-los e propor procedimentos para revisá-los
com a finalidade de transformá-los em textos e de levar os escritores
que os produzem a habilitarem-se a construir textos eficazes. Podemos
dizer que a mais básica ação estilística é superar o mero registro em
orações – em unidades de língua falada – do que se tem a dizer fazen-
do um ditado para si mesmo e passar a reorganizar essas orações em
frases, que são a verdadeira unidade de língua escrita. Desse modo,
escrevemos textos escrevendo e reescrevendo frases com a finalidade
de organizar melhor as orações que compõem essas frases e de mais
eficientemente encadear essas frases ao longo do texto. Podemos cha-
mar de fluência esta qualidade estilística, que facilita o percurso do
olho do leitor no texto.

Exercício 1

Recapitulando, então, frases são conjuntos de orações que tratam


de um mesmo assunto; orações são as unidades de informação que a
frase precisa organizar para tratar do seu assunto. Revisando as frases
abaixo, vamos examinar o que separa e o que relaciona as orações que
as compõem tendo bem claro que, para fazer isso, vai ser necessário
avaliar a que frase cada oração pertence e quais orações vão compor
cada frase.
1. Não sei como são feitas as pesquisas, mas não costumo acreditar
nos índices. Eles parecem não mostrar a realidade, mesmo sendo alto o
índice de escolarização no RS, a situação da escola é outra.
2. Ah! A ampliação do meu vocabulário também foi um diferencial
entre meus amigos e eu, pois todos percebiam uma diferença na concepção
de alguns deles, eu falava difícil.

123
gramática e estilo

3. Hoje ela vive num apartamento de três quartos, a faxineira vai


uma vez por semana fazer a limpeza, ela come fora diariamente e ainda
tem uma enfermeira que cuida dela todas as noites. Sem contar as mas-
sagens três vezes por semana.
4. Pode até se tratar de oportunismo dos empresários, o que não
podemos negar é o mercado de trabalho que essa iniciativa deles oferece
aos estudantes das licenciaturas.
5. Finalizando minha narrativa é assim que eu vejo a gramática e
a escrita de nossa língua é dessa forma que me sinto em relação a elas.
6. Antes de ingressar na faculdade nunca havia pensado no que
e como seria ser um professor, principalmente, de Português, talvez
pensasse que professores de Português são aqueles catedráticos que
conhecem todos os segredos e exemplares dos usos adequados da lín-
gua, digo isso porque como foi comentado em aula, sempre, pensamos
que os professores têm a resposta certa e total “domínio” da disciplina.
Concepção errônea, sendo que, eu sou professora e existem inúmeras
coisas que ainda não sei.
7. Desde criança, somos ensinados a fazer as coisas, quando
somos bebês e estamos aprendendo as primeiras palavras, aprende-
mos a repetir as palavras dos nossos pais, avós, tios, dindos e dindas,
aquelas palavrinhas engraçadas sempre no diminutivo, com o passar
do tempo, geralmente nossos pais, mesmo antes de entrarmos para
a escola começam a nos ensinar a escrever e ler nos estimulando e
despertando para as nossas primeiras leituras com aqueles livrinhos
coloridos lindos, cheio de histórias e personagens incríveis que nos
fazem viajar por um mundo lindo e fantástico, e com isso, fazendo
com que cada vez mais queiramos dormir escutando aquelas histórias
que nos fazem tão bem.

124
gramática e estilo

2.2 PONTUAÇÃO FINAL DE FRASE E DE ORAÇÃO

“Quem decifra as palavras de um cartaz, de um manual


de instruções, de um cartão postal ou de um progra-
ma de televisão, na maioria das vezes pronunciando-
-as, não vê a escrita da mesma maneira que aquele
que mergulha num romance, saboreia um poema ou
descobre, em poucos minutos, as notícias impressas nas
300 mil palavras de seu jornal diário. O segundo não
dispõe de uma técnica melhorada; faz outra coisa.
O primeiro utiliza a característica alfabética da língua
para compreender a escrita graças ao oral que lhe cor-
responde. O segundo trata a escrita diretamente como
uma linguagem para os olhos, como uma mensagem
concebida para o olhar, não para os ouvidos.”
(Jean Foucambert)

O escrito que examinamos anteriormente revelou-se necessi-


tado de uma revisão na delimitação de suas frases, que tratavam de
demasiados assuntos. Como já determinamos que as orações são as
unidades de assunto, aquelas frases eram superpovoadas de orações.
Chamamos de mero encadeamento o processo pelo qual aquele texto
foi composto: mero encadeamento de frases ao longo do texto e mero
encadeamento de orações dentro dessas frases. Como as maiúsculas
iniciais e os pontos-finais que identificavam cada frase estavam ale-
atoriamente distribuídos, o que realmente estava encadeado ao longo
do texto eram as orações, isto é, dizeres a respeito dos assuntos que
vinham à cabeça da escritora, na ordem em que vinham vindo. Como
as frases não estavam cumprindo o seu papel de organizar as orações,
isto é, de organizar os assuntos para produzir sentidos para a leitura,
ou seja, para os olhos, aquele texto muito mais falava do que escrevia.
Podemos concluir que o mero encadeamento é a hipótese sobre a escrita
de quem utiliza a característica alfabética da língua para compreender
a escrita graças ao oral que lhe corresponde?

125
gramática e estilo

Vamos examinar mais de perto essa relação entre a oração, que fala, e
a frase, que escreve, para tentar ver, do ponto de vista da produção do texto,
essa distinção entre quem meramente encadeia os conteúdos na ordem em
que vêm à cabeça e quem trata a escrita diretamente como uma linguagem
para os olhos, para os próprios olhos e para os olhos do leitor. Imagine-
mos que haveria um aluno que, por desvario ou por paciente e caprichoso
exercício da ironia, produzisse um escrito mais extremistamente escolar
do que aquele da casa bonita, despovoando as suas frases:

A menina saiu de casa. A menina caminhou até a esquina. A menina


viu o cachorro vermelho. A menina correu na direção do cachorro
vermelho. O cachorro vermelho viu a menina. O cachorro vermelho
abanou o rabo. O cachorro vermelho latiu. O cachorro vermelho
correu na direção da menina.

Já sabemos que isso não existe, nunca existiu, já que o texto, como
vimos, nasceu da fala, que encadeia orações, e não da gramática escolar,
que cerca, tolhe, delimita em frases até mesmo o que ainda não foi escrito.
Nenhum dos dois tipos de leitores mencionados por Foucambert (1994)33,
nenhum dos hipotéticos tipos de escritores em que uns e outros se torna-
riam escreveria isso. Só escreveria isso quem quisesse montar um artifício
didático para distinguir frase e oração com a finalidade de esclarecer a
relação que há entre frase e oração. Assim poderiam ocorrer escritos reais:

1. A menina saiu de casa caminhou até a esquina viu o cachorro


vermelho e correu na direção dele o cachorro viu a menina abanou
o rabo latiu e correu em sua direção.

2. A menina saiu de casa, caminhou até a esquina, viu o cachorro


vermelho e correu na direção dele, o cachorro viu a menina, abanou
o rabo, latiu e correu em sua direção.

33 FOUCAMBERT, Jean. A desigualdade ao pé da letra. In: FOUCAMBERT, Jean. A leitura


em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

126
gramática e estilo

3. A menina saiu de casa, caminhou até a esquina, viu o cachorro


vermelho e correu na direção dele. O cachorro viu a menina, abanou
o rabo, latiu e correu em sua direção.

Quem trata a escrita diretamente como uma linguagem para os


olhos bota, entre uma maiúscula e um ponto-final, as informações a
respeito de um assunto – a menina – e, entre outra maiúscula e outro
ponto-final, as informações a respeito do outro assunto: o cachorro.
Nesse processo, a oração – frase simples, que tem apenas um verbo – é
consequência da frase, isto é, o que escrevemos são os encadeamentos
nos quais delimitamos as frases e, dentro delas, as orações. A versão 1
é produzida por mero encadeamento, e a diferença entre 2 e 3 é que o
ponto- final que cria a segunda frase, na versão 3, é a consciência de que
o olho do leitor precisa esbarrar naquele ponto-final para alertar o cérebro
dele de que vai haver uma mudança de assunto. A falta do ponto-final não
faz esse alerta ao cérebro, que precisa reconsiderar – assim que atribui
sentido ao que está escrito a partir de o cachorro – a hipótese de que
esse conjunto de palavras continuava a falar da menina e, então, quando
descobrir que não é esse o caso, refazer a leitura.
Teríamos, também, bons motivos para considerar que essa troca de
tema dentro da mesma frase ficaria mais clara se fosse expressa também
em palavras:

4. A menina saiu de casa, caminhou até a esquina, viu o cachorro


vermelho e correu na direção dele; o cachorro, por sua vez, viu a
menina, abanou o rabo, latiu e correu em sua direção.

Quando o aluno retruca – mas não dava pra entender? – para o


professor que está cobrando maior clareza do seu texto, a resposta mais
adequada é esta: Dá, dá pra entender, mas à custa de não entender e só
depois de não entender, e o leitor, que trabalha para botar sentido no
que lê, não tolera por muito tempo ter de fazer esse trabalho adicional.

127
gramática e estilo

No caso, por sua vez também poupa algum trabalho adicional, dando
ao leitor o trabalho adicional de ler por sua vez e de interpretar essa
expressão no contexto dessa frase.
Ainda segundo Jean Foucambert (1994, p. 22-23), são necessárias
500 horas de estudo para formar quem “utiliza a característica alfabética
da língua para compreender a escrita graças ao oral que lhe corresponde” e
10 mil horas (a grande maioria delas, portanto, fora da escola) para formar
quem “trata a escrita diretamente como uma linguagem para os olhos”.
Quem trabalhou o suficiente para tratar a escrita como uma linguagem
para os olhos aprendeu a atribuir sentido ao encadeamento de palavras
delimitado pela maiúscula inicial e pelo ponto-final, isto é, à frase. Já a
noção de oração, como vimos, foi apresentada pela aula de Português
através de um processo de fracionamento da frase, de isolamento de
cada uma das orações que a compõem. O trabalho de ler para produzir
sentido nos habilitou a escrever porque nos forneceu algumas hipóteses
a respeito da produção de escritos: a teorização de que fala Foucambert.
Ao escrevermos, tratamos do assunto do modo como julgamos que
a leitura daquilo que vai ficar registrado no papel vai atingir os leitores
a quem nos dirigimos. Para fazer isso escrevemos frases, uma depois da
outra. É claro que para escrever frases temos de escrever as orações e as
palavras que as compõem, mas o nosso foco são as frases. Se fizermos
alguma alteração numa oração, se substituirmos uma palavra por outra,
fazemos isso para tentar mexer na frase em que está essa oração, em
que está essa palavra, com a finalidade de qualificar o texto. A noção de
oração aparece aqui para nos ajudar a perceber os conteúdos com que
lidam as frases que escrevemos, o modo como elas são organizadas e
como podemos reorganizá-las sempre que for necessário.
O exercício de delimitação de frases que fizemos no escrito com-
posto por mero encadeamento de frases superpovoadas nos mostrou que
a maiúscula inicial e o ponto-final devem ser determinados pelo assunto
tratado pela frase. Como já foi dito, a transformação daquelas quatro

128
gramática e estilo

frases em 15 ou 16 frases foi orientada por uma teorização a respeito


da relação que achamos que frases e orações mantêm entre elas. Essa
teoria nos levou a uma definição de frase como uma unidade de organi-
zação do texto composta por um conjunto de orações que tratam de um
mesmo assunto e, consequentemente, uma definição de oração como
uma unidade de conteúdo. Essas definições levaram a esta formulação a
respeito do processo de produção do texto: ao escrevermos uma oração,
registramos por escrito o que nós falamos; só começamos a escrever um
texto ao combinarmos orações em frases. Isso não quer dizer que escre-
vamos frases encadeando orações. Isso quer dizer que, ao escrevermos
uma frase ou para escrevermos uma frase, vamos escrevendo as orações
necessárias para escrever a frase que está se formando em nossa cabeça
para expressarmos o que está se formando em nossa cabeça. Aprendemos
a formar orações ao aprendermos a falar; só tomamos consciência da
frase a partir de nossa experiência com a leitura e a escrita.
Tendo em vista os escritos acima a respeito da menina e do cachorro,
podemos acrescentar estas definições estruturais que dão conta da relação
entre frase e oração:

Frase simples é aquela que só tem um verbo e em que se relaciona


apenas um sujeito a um predicado34.
Oração é como uma frase simples que se junta a outras orações
(outras frases simples) para compor uma frase maior.
Frase é o conjunto de palavras encadeadas entre uma maiúscula
inicial e um ponto-final em que se dá a relação entre um assunto e uma
declaração a respeito desse assunto, relação muito frequentemente esta-
belecida por meio de um predicado que se refere a um sujeito.

34 Não tem frase sem verbo, então? Tem sim, mas só funcionam aquelas que a gente lê e sabe
qual é o verbo que elas não têm.

129
gramática e estilo

A escola nos ensinou a ler e nos botou a ler como condição básica
para tomarmos parte em sua dinâmica de nos transformar em pessoas
informadas a respeito do que a escola julga importante conhecermos. O
mundo em que vivemos, que é organizado pela língua escrita, também nos
exigiu muita leitura para nos orientarmos em nossos caminhos por ele e
continua nos exigindo cada vez mais leitura. Não nos exige, no entanto,
que escrevamos com a mesma intensidade, embora essa intensidade ve-
nha aumentando cada vez mais. E a escola, tal como o mundo, também
não nos exigiu que escrevêssemos com a mesma intensidade com que
nos exigiu a leitura porque a escola tradicionalmente tem por objetivo a
transmissão do conhecimento e não a produção do conhecimento.
Por causa disso, quando nos botou a escrever, a escola nos fez
produzir uma escrita a serviço da leitura: cópia, interpretação de textos
e de perguntas de prova, sínteses, dissertações a respeito de algum tema
estudado, isto é, muito mais compilação de informações lidas do que
composição de textos para a descoberta do que temos a dizer a respeito
de alguma questão que nos afeta pessoalmente. Nas aulas de Português,
ao focar nossa atenção num componente natural e, de certa forma, es-
pontâneo da frase – a oração – e não num constituinte do texto, que, tal
como o texto, precisa ser construído e reconstruído – a frase –, a escola
não nos propiciou a oportunidade de exercitarmos a teorização de nossa
experiência de leitura. Tudo se passou como se a habilidade de ler fosse
a condição necessária e suficiente para exercitar a escrita.
A leitura é, sim, condição necessária para escrever, mas não é
condição suficiente para encadearmos mais do que apenas orações que
registram o que nos vem à cabeça na ordem em que nos vem à cabeça.
Para escrever textos, isto é, para organizar as orações em frases e encadear
frases que conduzam em segurança o leitor ao longo dos episódios, das
paisagens, dos cenários ou dos fatos, evidências, exemplos, argumentos,
provas, etc. desde o início até o fim, é preciso praticar a escrita de textos,
prática que nos propicia e até mesmo nos obriga a teorizar o que acontece
em nossa leitura de textos.

130
gramática e estilo

Continuando a nossa teorização, orações são como são: têm sujeito


e predicado, tem tema e rema, tem tópico e comentário35. O verbo que
escolhermos determina como será seu sujeito, seus complementos e ad-
juntos. Orações vêm quase prontas para a nossa cabeça, como se fossem
elementos da natureza. Já a frase vai ser como precisarmos que seja para
colocar-se antes ou depois de outras, tal que, assim encadeadas, cumpram
a missão de dizer o que vamos descobrindo que temos a dizer a respeito
do assunto com que nos ocupamos. Pensar a frase, então, sempre vai
significar pensar as frases, porque elas só servem se estão encadeadas; vai
significar também tratar das orações que se encadeiam dentro das frases.
Podemos levar um pouco mais longe a nossa teorização: já sabemos
que historicamente o texto surgiu de escritos meramente encadeados,
submetidos às constrições que separaram palavras, delimitaram frases,
etc. Deploramos, por outro lado, que a alfabetização daquelas duas crian-
ças – a da casa bonita e a da epidemia de piolhos – tenha sido chancelada
pela capacidade de compor frases e não pela disposição de encadear o
que estivesse ao alcance de seu saber alfabético para expressar-se por
escrito contando uma história. Propusemos, finalmente, um exercício de
escrita sem freios do que desce da cabeça para a mão que produziria um
escrito semelhante ao mero encadeamento com a finalidade de destravar
quem se sente bloqueado ao começar a escrever. Uma prática semelhante
no processo de alfabetização não poderia despertar nas crianças uma
motivação para escrever o que gostariam de dizer por escrito? Não seria
essa prática capaz de criar um ambiente desfavorável para a germinação
da redação escolar?

2.2.1 Dificuldades de construção

Vamos ver a pontuação final de frase, que separa uma frase da


outra no texto, que é o ponto apelidado de final (tem também os especia-
lizados ponto de interrogação e o de exclamação), e a pontuação final
35 Em 5.1.1 Tema e rema/tópico e comentário, tratamos disto.

131
gramática e estilo

de oração, que separa uma oração da outra dentro da frase, que são, de
acordo com a relação que têm entre si as orações, ou ponto e vírgula ou
dois-pontos.
O ponto e vírgula, diferentemente da vírgula, indica com toda a
clareza a existência de um limite entre as orações. É usado sempre que
o escritor achar que a relação entre as orações que separa é genérica e/ou
óbvia o suficiente para ser entendida sem necessidade de sua explicitação
por meio de um nexo mais preciso como, por exemplo, uma conjunção.
Torna-se especialmente útil entre orações encadeadas que não são elemen-
tos de um mesmo conjunto e sempre que a oração seguinte relacionar-se
não com a oração que vem antes dela mas com a que vem depois dela,
como os exemplos e os exercícios vão demonstrar.
Dois-pontos também indicam com toda a clareza a existência de
um limite entre as orações e têm o significado adicional de estabelecer
que a seguinte é ou uma explicação da anterior ou uma conclusão a que
a anterior leva. Já a vírgula, como veremos, precisa quase sempre de uma
conjunção para separar orações.
Vamos tratar aqui de três dificuldades de construção relacionadas
à pontuação final: (1) frases superpovoadas, que tratam de demasiados
assuntos; (2) frases siamesas, que apresentam orações contíguas sem
uma conjunção ou um sinal de pontuação final de oração entre elas; e
(3) frases fragmentadas, que são orações ou parte de orações assinaladas
indevidamente por uma maiúscula inicial e um ponto-final como se fos-
sem uma frase. Uma adequada solução para estas dificuldades contribui
para a fluência do texto.

2.2.1.1 Frases superpovoadas

Superpovoadas eram as frases daquele escrito que reescrevemos


no início deste capítulo; vamos revisar estas outras.

132
gramática e estilo

1. Escolhi como eixo norteador desse texto uma das perguntas


propostas pelo professor: Por que tu quis ser professor de Por-
tuguês? Pelo simples fato de que eu nunca quis, para entender
essa afirmação, primeiramente, explicarei o porquê da escolha
pelo curso de Letras, no vestibular de 2002, posteriormente,
farei um resgate de algumas das poucas lembranças da escola e
das disciplinas da minha área de atuação profissional, para, em
seguida, explicar como me tornei, não só professor de Português
como também de Inglês.

A melhor maneira de deixar bem claro que a segunda frase é uma


citação é pô-la entre aspas ou em itálico: Escolhi como eixo norteador
desse texto uma das perguntas propostas pelo professor: “Por que tu
quis ser professor de Português?”
A vírgula entre as duas primeiras orações da frase seguinte – eu nunca
quis, para entender – leva o olho leitor a mandar ao cérebro a mensagem de
que a oração para entender essa afirmação relaciona-se ao que vem antes.
Ao terminar de ler a oração que ali começa, o cérebro percebe que ela se
relaciona à que vem depois e precisa abandonar essa previsão e recompor
o seu trabalho de construção de sentido. Esse é um esforço adicional, que
irrita o leitor. Um ponto-final entre Pelo simples fato de que eu nunca quis e
Para entender essa afirmação obrigaria o leitor a relacionar Para entender
essa afirmação com o que vai ser dito depois.

1a Escolhi como eixo norteador desse texto uma das perguntas


propostas pelo professor: “Por que tu quis ser professor de Portu-
guês?” Pelo simples fato de que eu nunca quis. Para entender essa
afirmação, primeiramente, explicarei o porquê da escolha pelo curso
de Letras, no vestibular de 2002...

Posteriormente, no começo da oração seguinte, põe as duas orações


em sequência temporal; como este advérbio pode se deslocar dentro da
frase (farei, posteriormente, um resgate de algumas), ele não é, por causa

133
gramática e estilo

disso, um limite confiável de oração. Para indicar claramente o limite


entre as orações é melhor usar o ponto e vírgula.

1b Escolhi como eixo norteador desse texto uma das perguntas pro-
postas pelo professor: “Por que tu quis ser professor de Português?”
Pelo simples fato de que eu nunca quis. Para entender essa afirmação,
primeiramente, explicarei o porquê da escolha pelo curso de Letras,
no vestibular de 2002; posteriormente, farei um resgate de algumas
das poucas lembranças da escola e das disciplinas da minha área
de atuação profissional, para, em seguida, explicar como me tornei,
não só professor de Português como também de Inglês.

A vírgula depois de profissional não é necessária porque as orações


que expressam finalidade são majoritariamente iniciadas pela preposição
para. Emprego desnecessário seja do que for contribui para que o leitor
desista de prestar atenção naquilo que parece não dar sua particular
contribuição para o sentido da frase.

1c Escolhi como eixo norteador desse texto uma das perguntas pro-
postas pelo professor: “Por que tu quis ser professor de Português?”
Pelo simples fato de que eu nunca quis. Para entender essa afirmação,
primeiramente, explicarei o porquê da escolha pelo curso de Letras,
no vestibular de 2002; posteriormente, farei um resgate de algumas
das poucas lembranças da escola e das disciplinas da minha área
de atuação profissional para, em seguida, explicar como me tornei,
não só professor de Português como também de Inglês.

A segunda frase parece comprida demais? Podemos substituir o


ponto e vírgula antes de posteriormente por um ponto-final, pois a frase
foi criada e dotada de seus componentes para fazer o texto fluir de uma
declaração a respeito do assunto para a seguinte declaração a respeito
do assunto.

134
gramática e estilo

1d Escolhi como eixo norteador desse texto uma das perguntas pro-
postas pelo professor: “Por que tu quis ser professor de Português?”
Pelo simples fato de que eu nunca quis. Para entender essa afirmação,
primeiramente, explicarei o porquê da escolha pelo curso de Letras,
no vestibular de 2002. Posteriormente, farei um resgate de algumas
das poucas lembranças da escola e das disciplinas da minha área
de atuação profissional para, em seguida, explicar como me tornei,
não só professor de Português como também de Inglês.

2 Antes de ingressar na faculdade nunca havia pensado no que é e


como seria ser um professor, principalmente, de Português, talvez
pensasse que professores de Português são aqueles catedráticos
que conhecem todos os segredos e exemplares dos usos adequados
da língua, digo isso porque como foi comentado em aula, sempre,
pensamos que os professores têm a resposta certa e total “domínio”
da disciplina. Concepção errônea, sendo que, eu sou professora e
existem inúmeras coisas que ainda não sei.

Nesta frase há quatro temas: (1) o que o narrador pensava antes de


ingressar na faculdade a respeito de ser professor, (2) o que ele conjetura
que pensava, (3) o motivo de se ocupar desses temas, (4) um julgamento
a respeito de uma concepção corrente sobre isso. Cabem perfeitamente
quatro frases:

2a Antes de ingressar na faculdade nunca havia pensado no que e


como seria ser um professor, principalmente, de Português. Talvez
pensasse que professores de Português são aqueles catedráticos que
conhecem todos os segredos e exemplares dos usos adequados da
língua. Digo isso porque, como foi comentado em aula, sempre pen-
samos que os professores têm a resposta certa e total “domínio” da
disciplina. Essa concepção é errônea, sendo que eu sou professora,
e existem inúmeras coisas que ainda não sei.

Substituímos por pontos-finais algumas vírgulas que separavam


orações. As vírgulas não são adequadas para indicar limite nem de frase

135
gramática e estilo

nem de oração (por vezes as vírgulas acompanham algumas conjunções que


são limites confiáveis de oração, como vamos ver). Eliminamos algumas
outras vírgulas desnecessárias como aquela depois de sempre, advérbio
que está no lugar mais adequado, ou seja, ao lado do verbo que modifica
– pensamos – e aquela outra depois da conjunção sendo que porque a vír-
gula que acompanha conjunção que limita frase vem antes e não depois da
conjunção. Acrescentamos uma vírgula antes do e que inicia uma oração
que tem um sujeito diferente do sujeito da oração anterior. Pusemos como
foi comentado em aula entre vírgulas porque está intercalado entre porque
e a oração que o porque abre: sempre pensamos que os professores.

3 Desde criança, somos ensinados a fazer as coisas, quando somos


bebês e estamos aprendendo as primeiras palavras, aprendemos
a repetir as palavras dos nossos pais, avós, tios, dindos e dindas,
aquelas palavrinhas engraçadas sempre no diminutivo, com o passar
do tempo, geralmente nossos pais, mesmo antes de entrarmos para
a escola começam a nos ensinar a escrever e ler nos estimulando e
despertando para as nossas primeiras leituras com aqueles livrinhos
coloridos lindos, cheio de histórias e personagens incríveis que nos
fazem viajar por um mundo lindo e fantástico, e com isso, fazendo
com que cada vez mais queiramos dormir escutando aquelas histórias
que nos fazem tão bem.

No primeiro limite entre orações – ensinados a fazer as coisas,


quando somos bebês – a vírgula induz o leitor a pensar que quando
somos bebês se refere ao que veio antes e não ao que vem depois, isto
é, leva o leitor a fazer uma previsão errônea a respeito do que vai ler.
Ao chegar em aprendemos a repetir, o leitor vai ter de reformular essa
previsão. Como vimos, previsões errôneas tiram a fluência do texto;
consequentemente, tiram a fluência da leitura. Um ponto e vírgula leva
o olho do leitor à previsão acertada:

3a Desde criança, somos ensinados a fazer as coisas; quando somos


bebês e estamos aprendendo as primeiras palavras, aprendemos

136
gramática e estilo

a repetir as palavras dos nossos pais, avós, tios, dindos e dindas,


aquelas palavrinhas engraçadas sempre no diminutivo,...

Neste limite entre no diminutivo, com o passar do tempo, acontece


a mesma indução a uma previsão errada, que também pode ser evitada
com um sinal de pontuação final, um ponto-final para não usar dois
sinais de pontuação final de oração na mesma frase:

3b Desde criança, somos ensinados a fazer as coisas; quando somos


bebês e estamos aprendendo as primeiras palavras, aprendemos a
repetir as palavras dos nossos pais, avós, tios, dindos e dindas, aque-
las palavrinhas engraçadas sempre no diminutivo. Com o passar do
tempo, geralmente nossos pais, mesmo antes de entrarmos para a
escola, começam a nos ensinar a escrever e ler nos estimulando e
despertando para as nossas primeiras leituras com aqueles livrinhos
coloridos lindos, cheio de histórias e personagens incríveis que nos
fazem viajar por um mundo lindo e fantástico.

Acrescentamos uma vírgula no fim de mesmo antes de entrarmos


para a escola, que está intercalado entre o sujeito nossos pais e o seu
predicado começam a nos ensinar. Esta frase já está grande vindo até
aqui, mas ainda encadeia o mesmo tema. Aqui cabe uma outra frase para
tratar do que segue:

3c Desde criança, somos ensinados a fazer as coisas; quando somos


bebês e estamos aprendendo as primeiras palavras, aprendemos
a repetir as palavras dos nossos pais, avós, tios, dindos e dindas,
aquelas palavrinhas engraçadas sempre no diminutivo.Com o passar
do tempo, geralmente nossos pais, mesmo antes de entrarmos para
a escola, começam a nos ensinar a escrever e ler nos estimulando e
despertando para as nossas primeiras leituras com aqueles livrinhos
coloridos lindos, cheios de histórias e personagens incríveis que nos
fazem viajar por um mundo lindo e fantástico. Com isso, fazem com
que cada vez mais queiramos dormir escutando aquelas histórias
que nos fazem tão bem.

137
gramática e estilo

Ainda podemos questionar aquela indicação temporal – com o


passar do tempo – como desnecessária, não só porque o tempo passa
independentemente de observarmos isso, mas também porque o fato de
que nossos pais, mesmo antes de entrarmos para a escola, começam a
nos ensinar já mostra que o tempo passa e o modo como passa.

3d Desde criança, somos ensinados a fazer as coisas; quando somos


bebês e estamos aprendendo as primeiras palavras, aprendemos
a repetir as palavras dos nossos pais, avós, tios, dindos e dindas,
aquelas palavrinhas engraçadas sempre no diminutivo. Nossos pais,
mesmo antes de entrarmos para a escola, começam a nos ensinar a
escrever e ler nos estimulando e despertando para as nossas primeiras
leituras com aqueles livrinhos coloridos lindos, cheio de histórias e
personagens incríveis que nos fazem viajar por um mundo lindo e
fantástico. Com isso, fazem com que cada vez mais queiramos dormir
escutando aquelas histórias que nos fazem tão bem.

4 Não sei como são feitas as pesquisas, mas não costumo acreditar
nos índices. Eles parecem não mostrar a realidade, mesmo sendo
alto o índice de escolarização no RS, a situação da escola é outra.

A primeira oração da segunda frase – Eles parecem não mostrar


a realidade – relaciona-se à frase anterior e não com as demais orações
dentro da frase em que está porque trata dos índices de forma genérica,
enquanto a oração que a segue nessa segunda frase – mesmo sendo alto
o índice de escolarização no RS – trata da especificidade do Rio Grande
do Sul (RS). Podemos explicitar a relação de causa que há entre essa
oração e a primeira frase:

4a Não sei como são feitas as pesquisas, mas não costumo acreditar
nos índices porque eles parecem não mostrar a realidade: mesmo sen-
do alto o índice de escolarização no RS, a situação da escola é outra.

138
gramática e estilo

Para explicitar que a referência à escolarização do RS serve como


exemplo para descrença nos índices, é melhor abrir uma outra frase:

4b Não sei como são feitas as pesquisas, mas não costumo acreditar
nos índices porque eles parecem não mostrar a realidade. Apesar
do alto índice de escolarização no RS, a situação da escola é outra.

5 Não sei bem como foi que a coisa começou, mas o fato é que eu
gostava de escrever. Era especialista em bilhetes.

A segunda frase – Era especialista em bilhetes – faz parte da pri-


meira e tem a finalidade de restringir o alcance dela; assim como está,
parece que o eu que fala escrevia outras coisas mas era especialista em
bilhetes. Com os dois-pontos, parece que bilhetes é a única coisa que ele
escrevia, o que dá um tom de autocrítica à frase.

5a Não sei bem como foi que a coisa começou, mas o fato é que eu
gostava de escrever: era especialista em bilhetes.

2.2.1.2 Frases siamesas

Frases siamesas são frases ou orações contíguas sem qualquer ele-


mento de ligação ou sinal de separação entre elas. Trata-se de separá-las
por um sinal de pontuação final de oração ou de frase ou de relacioná-las
por meio de uma conjunção.

1 Devido a isso, troquei de escola passei a estudar no Colégio Cen-


tenário, concluindo então o Ensino Médio em 1998.

Temos aqui um limite entre orações – troquei de escola / / passei


a – que não está marcado como tal nem por um sinal de pontuação nem
por uma conjunção que as relacione. Ponto e vírgula ou dois-pontos
marcam com toda a clareza um limite entre orações. Dois-pontos, vamos

139
gramática e estilo

repetir, indicam que a segunda é ou uma explicação da primeira (como


é o caso nesta frase) ou uma conclusão a que a primeira leva.
1a Devido a isso, troquei de escola: passei a estudar no Colégio
Centenário, concluindo então o Ensino Médio em 1998.

2 Ah! A ampliação do meu vocabulário também foi um diferencial


entre meus amigos e eu, pois todos percebiam uma diferença na
concepção de alguns deles, eu falava difícil.

Neste limite entre as orações – percebiam uma diferença / / na


concepção de alguns deles –, fica bem clara a necessidade de um sinal
de pontuação final: o que vem depois de todos percebiam uma diferença
é uma explicação: na concepção de alguns deles, eu falava difícil.

2a Ah! A ampliação do meu vocabulário também foi um diferencial


entre meus amigos e eu, pois todos percebiam uma diferença: na
concepção de alguns deles, eu falava difícil.

3 Atribuo também a isso o fato de eu não ter um vasto vocabulário


em termos de gírias, e ele me parece tão restrito que, no momento,
só consigo lembrar do “legal” existe mais é claro, mas, como disse,
não recordo, no momento.

O limite aqui – só consigo lembrar do “legal” / / existe mais é


claro – pode ser marcado por um ponto e vírgula, já que se trata do
acréscimo de uma informação e não de explicação nem de conclusão.
Na verdade, um ponto-final ficaria muito bem para formar duas frases
em vez de uma frase tão grande.

3a Atribuo também a isso o fato de eu não ter um vasto vocabulário


em termos de gírias, e ele me parece tão restrito que, no momento, só
consigo lembrar do “legal”. Existe mais, é claro, mas, como disse,
não recordo, no momento.

140
gramática e estilo

4 Já no curso de Letras foi que a língua portuguesa (a aprendiza-


gem de gramática) se tornou “uma pedra no meu sapato” vou me
apropriar dessa expressão para tentar definir com precisão meu
desconforto.

No limite – “pedra no meu sapato” / / vou me apropriar dessa – é


caso típico de dois-pontos porque a oração seguinte se refere a uma
expressão que faz parte da própria frase.

4a Já no curso de Letras foi que a língua portuguesa (a aprendiza-


gem de gramática) se tornou “uma pedra no meu sapato”: vou me
apropriar dessa expressão para tentar definir com precisão meu
desconforto.

5 Adoro “lagartear” no sol no inverno, já me viciei em chimarrão, e


adoro chamar tangerina de bergamota, às vezes, desde que aprendi
o significado da palavra, até me acho um pouco bravateira, tenho
certeza que minha mãe concorda, mas nas palavras dela a bravata
soa mais ou menos assim: “você é prepotente que nem seu pai”.

A vírgula, naquele limite – e adoro chamar tangerina de bergamota


/ / às vezes – leva o leitor a ler adoro chamar tangerina de bergamota às
vezes; ao continuar lendo, no entanto, o leitor vai conceber a dúvida de
que o texto queira dizer às vezes até me acho um pouco bravateira. Um
ponto e vírgula entre bergamota e às vezes daria certeza ao leitor (outra
seria a certeza com um ponto e vírgula entre às vezes e desde que). Já
no outro limite – bravateira, tenho certeza –, não há sinal de pontuação
separando orações que não estão relacionadas por sinal de pontuação
final. Como há uma nítida mudança de tema – agora já não é mais o que
o narrador acha, mas o que a mãe acha –, podemos abrir outra frase até
pra não usar dois sinais de pontuação final de oração na mesma frase:

9a Adoro “lagartear” no sol no inverno, já me viciei em chimarrão,


e adoro chamar tangerina de bergamota; às vezes, desde que aprendi

141
gramática e estilo

o significado da palavra, até me acho um pouco bravateira. Tenho


certeza que minha mãe concorda, mas nas palavras dela a bravata
soa mais ou menos assim: “você é prepotente que nem seu pai”.

Pode ser que a frase fique mais clara com o às vezes em outro lugar:

9b Adoro “lagartear” no sol no inverno, já me viciei em chimarrão,


e, às vezes, adoro chamar tangerina de bergamota. Desde que aprendi
o significado da palavra, até me acho um pouco bravateira. Tenho
certeza que minha mãe concorda, mas, nas palavras dela, a bravata
soa mais ou menos assim: “você é prepotente que nem seu pai”.

2.2.1.3 Fragmento de frase

Fragmento de frase é uma oração ou uma parte de uma oração


assinalada indevidamente por uma maiúscula inicial e um ponto-final
como se fosse uma frase. O fragmento pode ser transformado em frase
ou em oração.

1 Carolina vive o que eu chamo de vida asséptica, tem uma casa em


que ela mesma não permanece. Não cozinha, não recebe amigos,
não gosta que outras pessoas apareçam em sua casa, não bebe
vinho, não gosta de sol e do dia, não gosta de esportes, não comete
nenhum exagero.

Nossa experiência como leitores já nos ensinou que a vírgula separa


os itens de uma lista (essa foi, provavelmente, a primeira regra de uso da
vírgula que aprendemos). Já aprendemos também que o nome do con-
junto costuma ser separado da lista dos seus elementos por dois-pontos;
no caso, a vida asséptica é caracterizada pela lista que vem depois dos
dois-pontos.

142
gramática e estilo

1a Carolina vive o que eu chamo de vida asséptica: tem uma casa


em que ela mesma não permanece, não cozinha, não recebe amigos,
não gosta que outras pessoas apareçam em sua casa, não bebe vi-
nho, não gosta de sol e do dia, não gosta de esportes, não comete
nenhum exagero.

2 Hoje ela vive num apartamento de três quartos, tem uma enfermeira
que cuida dela todas as noites. A faxineira vai fazer a limpeza uma
vez por semana, ela come fora diariamente. Sem contar as massagens
três vezes por semana

Aqui, além do fragmento de frase Sem contar as massagens três


vezes por semana, também tem um problema de ordem: há um conjunto
de informações a respeito da personagem designada por ela e outras
informações a respeito da faxineira dela e da enfermeira dela. Essas
informações estão intercaladas, de modo que em ela come fora diaria-
mente, ela pode se referir a ela ou à faxineira. O leitor, certamente, vai
gostar de receber as informações mais organizadas:

2a Hoje ela vive num apartamento de três quartos, come fora diaria-
mente, recebe massagens três vezes por semana e tem uma enfermeira
que cuida dela todas as noites. Uma vez por semana, a faxineira vai
fazer a limpeza.

Essa ordem apresenta as informações a respeito da personagem e


depois fala da faxineira, o que organiza um pouco melhor as informações;
no entanto, talvez dê uma ênfase descabida à faxineira tratando dela numa
frase própria, pondo-a, portanto, no mesmo plano da personagem princi-
pal. Atenção: a ênfase é descabida não porque se trata de uma faxineira,
mas porque o assunto da frase não é a faxineira, mas a que é designada
por ela. Podemos desfazer esse paralelismo relacionando a faxineira ao
seu trabalho específico:

143
gramática e estilo

2b Hoje ela vive num apartamento de três quartos, onde uma faxi-
neira vai fazer uma limpeza semanal, come fora diariamente, recebe
massagens três vezes por semana e tem uma enfermeira que cuida
dela todas as noites.

Exercício 2

Examine e revise estas frases.

1. Parti em busca da realização desse sonho, ser professora de


Língua Portuguesa, quando fiz essa escolha mal sabia eu o que estava
à minha espera, leituras e mais leituras, gramática, literatura, colegas e
professores novos.
2. Eu levava uma vida normal como toda criança pobre do interior,
ia junto pra roça, enquanto minha mãe trabalhava, eu brincava de casinha
debaixo das árvores com pedacinhos de pau e com as espigas de milhos
que na minha imaginação eram bonecas.
3. No fim do dia, fiz uma análise da situação em que me encontrava,
com o aluguel atrasado, a prestação da geladeira vencida e desempregado,
cheguei à conclusão de que a situação era desesperadora.
4. As férias estão chegando, quando voltarmos às aulas os meses
passarão muito rápido e logo encerraremos mais um ano letivo.
5. Ao entrar na sala, logo de cara, avistei na mesinha redonda de
centro uma garrafa térmica e uma cuia de chimarrão, fiquei “seca” por
um, se tivesse mais intimidade, juro que me serviria naquela hora.
6. Janeiro de 2007 foi quando vi meu nome do listão dos aprova-
dos no vestibular para a licenciatura em letras e senti ter feito a escolha
certa, porque era a chance de trabalhar com aquilo me encantava e me
comovia, mesmo que ao longo do caminho muitas pessoas tenham me
dito que “as coisas não são bem assim”, eu perseverei porque trabalhar
com as palavras é bonito e é forte uma vez que as palavras são maneiras

144
gramática e estilo

de registrar no tempo sentimentos bons e situações atrozes das quais não


devemos esquecer para não repetirmos.
7 A primeira colega levou o livro para casa e veio apavorada, no
outro dia, que não ia conseguir ler no tempo previsto. Pois, na tarde do dia
anterior só conseguira ler oito páginas, com certeza não conseguiríamos
ler todo o livro num período tão pequeno.

2.3 O PODER DAS CONJUNÇÕES

Comecemos por examinar este estranho escrito:


Ele morreu. Bateu com a cabeça numa pedra. Ele caiu. Dei um
soco nele. Ele xingou minha mãe. Nós discutimos.

Provavelmente, a primeira conclusão a que chegaríamos é que a


forma certa ou normal deste texto seria esta, obediente à convenção de
que as histórias devem ser contadas do início para o fim:

Nós discutimos. Ele xingou minha mãe. Dei um soco nele. Ele caiu.
Bateu com a cabeça numa pedra. Ele morreu.

Se chegamos a essa conclusão, é porque fomos capazes de enten-


der a história contada pela primeira versão, que inverte a ordem dos
acontecimentos, mas também podemos chegar à conclusão de que esta
segunda versão não está em conformidade com um modo de encadear
frases certo, normal ou comum. Se nos depararmos, no entanto, com esta
outra versão, como nos pareceria ela?

Ele morreu porque bateu com a cabeça numa pedra quando caiu
por causa do soco que dei nele depois de ter xingado minha mãe
enquanto discutíamos.

145
gramática e estilo

Poderosos instrumentos são porque, quando, por causa de, depois


de, enquanto, capazes de botar em ordem o que estava desordenado, ou
melhor, capazes de estabelecer para o texto o ordenamento desejado pelo
seu autor, libertando o texto daquele condicionamento da língua falada:
contar a história do começo para o fim. O texto é uma construção capaz
de descobrir e de executar o próprio projeto para expressar o ponto de
vista de quem olha para o mundo e para o que nele acontece e se dispõe
a declarar como foi que viu o que viu, ou como quer que os leitores
vejam o que ele viu.
Chamemos de conjunção tudo o que tem o poder de botar o que
quisermos na ordem que nos parecer a mais adequada para construir o
sentido que queremos construir e vamos combinar que vamos entrar na
disputa por esse poder. Como? Assim, ó: consideremos este par de frases:

Ele era o aluno mais aplicado da turma. Todos o respeitavam.

Ele era o aluno mais aplicado da turma. Ninguém o respeitava.

No primeiro caso, a mera sequência de frases estabelece uma relação


entre elas. Qual? A relação que o leitor reconhece como sendo o consenso
dominante, que vem repetindo que alunos aplicados são respeitados (na
maioria das vezes para dizer que devem ser respeitados ou que só serão
respeitados os que forem aplicados). Essa frase, por causa disso, parece
normal. No segundo exemplo, que não expressa o consenso dominante, o
leitor sente falta de uma referência àquele consenso. A sequência deixaria
de ser estranha se expressasse a concordância de seu enunciador com o
senso comum, isto é, se ele reconhecesse que é legítimo considerar que
há uma oposição entre o que afirmam as duas orações:

Ele era o aluno mais aplicado da turma, mas ninguém o respeitava.

146
gramática e estilo

Sabemos todos, no entanto, que esta outra frase talvez expresse com
maior fidelidade o que acontece na vida real das salas de aula:

Ele era um CDF, mas até que a gente gostava dele.

Ou seja: o poder das conjunções, que costuma estar a serviço do que


o senso comum prescreve para nossa vida, pode ser posto a serviço do
que queremos declarar sobre o que pensamos a respeito do que vemos,
ouvimos, sentimos, mesmo à revelia do senso comum. É quase certo
que, se a gente escrever qualquer uma dessas duas últimas frases, vai ser
preciso continuar com porque... para explicarmos por que discordamos
do senso comum. Voltemos, então, ao encadeamento de frases e orações:

Ele era o aluno mais aplicado da turma. Todos o respeitavam.

O ponto-final afrouxa o vínculo entre as duas orações tirando o


leitor da frase que terminou e levando-o para a seguinte; seria o sinal
mais adequado para relacionar esta outra sequência de frases, em que a
segunda leva o leitor para um outro tema:

Ele era o aluno mais aplicado da turma. Todos o respeitavam também


por sua simpatia.

Já o ponto e vírgula confina as duas orações na mesma frase; seria


o sinal mais adequado se a segunda oração se referisse ao mesmo tema
da primeira:

Ele era o aluno mais aplicado da turma; todos o respeitavam.

Conjunções explicitariam a relação que o enunciador da frase quer


que os seus leitores estabeleçam entre as orações.

147
gramática e estilo

Ele era o aluno mais aplicado da turma; por isso, todos o respeitavam.

Ele era o aluno mais aplicado da turma; mesmo assim, ninguém


tinha respeito por ele.

Conjunções e pontuação final de frase e de oração combinam-se


para deixarmos claro o que queremos dizer e para bem orientarmos o
percurso do olho do leitor ao longo do texto. Não se trata, portanto, de
escolher arbitrariamente encadear duas frases ou transformá-las em ora-
ções e ligá-las indiferentemente por ponto e vírgula, dois-pontos ou por
uma conjunção. Para estabelecer uma diferença entre esses três modos
de relacionar orações dentro de uma frase, vamos reter a ideia de que a
conjunção explicita a relação que o escritor quer que o leitor perceba, e
é para fazer isso que usamos as conjunções.
Para distinguir o uso de dois-pontos e o do ponto e vírgula, lem-
bremos a primeira regra que aprendemos para os dois-pontos, que foi a da
introdução ao diálogo. Então, Rodovalho exclamou: “Não é o que você
está pensando!” O que vem depois dos dois-pontos é o conteúdo do que
o verbo dicendi anuncia. Por analogia, nos demais casos, os dois-pontos
expressam uma pertinência do que vem depois ao que vem antes: o que
vem depois é causa ou explicação do que vem antes. Já o ponto e vírgula
indica simplesmente que há uma relação entre os conteúdos das orações.
A segunda vem depois da primeira e dá continuidade ao assunto tratado
pela primeira. Comparemos estas duas frases:

Nossa casa era a terceira depois do armazém da esquina; a casa


dela ficava em frente da nossa.

Nossa casa era a terceira depois do armazém da esquina: ir comprar


leite, pão, arroz, feijão, farinha e tudo o mais que minha mãe pedia
nunca foi uma atividade penosa para mim.

148
gramática e estilo

Na primeira frase, as duas orações compõem um elemento do cenário


pela relação espacial que estabelecem entre as duas casas: é o caso de
ponto e vírgula. Já na segunda frase, o que vem depois dos dois-pontos
explica por que a localização da casa é declarada. Não vai faltar quem
pergunte se estaria certo delimitar estas frases com outros sinais de
pontuação, como, por exemplo, uma vírgula:

Nossa casa era a terceira depois do armazém da esquina, a casa


dela ficava em frente da nossa.

Nossa casa era a terceira depois do armazém da esquina, ir comprar


leite, pão, arroz, feijão, farinha e tudo o mais que minha mãe pedia
nunca foi uma atividade penosa para mim.

Não faz sentido falar de erro, já que a pontuação não é nem objeto
de uma legislação, como a ortografia, nem instrumento de uma distinção
entre formas de diferente prestígio social, como a concordância, por
exemplo. Trata-se do uso dos sinais de pontuação para orientar a leitura
com mais precisão. Na primeira frase, a vírgula pode levar o leitor a julgar
que a frase está fazendo uma lista com a localização de determinadas casas
em vez de estabelecer entre essas duas casas apenas uma determinada
relação de distância. Na segunda frase, o leitor precisaria ler a frase até
o fim para, só então, estabelecer a relação entre a localização da casa e
a comodidade para as compras do dia a dia.
Quem sabe com um ponto-final?

Nossa casa era a terceira depois do armazém da esquina. A casa


dela ficava em frente da nossa.

Nossa casa era a terceira depois do armazém da esquina. Ir comprar


leite, pão, arroz, feijão, farinha e tudo o mais que minha mãe pedia
nunca foi uma atividade penosa para mim.

149
gramática e estilo

O ponto-final, nos dois casos, também obrigaria o leitor a ler a se-


gunda frase até o fim para descobrir qual é a relação entre as duas. Em
síntese, ponto-final separa frases; ponto e vírgula e dois-pontos separam
orações; conjunções estabelecem relações entre orações e entre frases. A
combinação entre conjunções e pontuação leva o texto adiante.
Exercício 3
Vamos pensar sobre essa combinação nos exercícios que seguem;
trata-se, agora, não apenas de botar os sinais de pontuação adequados mas
também de avaliar a adequação dos sinais de pontuação usados ou, em
outras palavras, revisar a pontuação e o uso de conjunções nestas frases.
1. A escola era o maior sonho tudo o que eu queria na vida era
aprender a ler e a escrever.
2. Por exemplo, acordar é o princípio de tudo, é o início do dia ou
da noite para você desenvolver suas tarefas, caso não acorde é sinal de
que partiu para outro lugar.
3. As férias estão chegando, quando voltarmos às aulas os meses
passarão muito rápido e logo encerraremos mais um ano letivo.
4. Um fim de tarde colegas de trabalho convidaram-na para uma
festa que aconteceria de noite em um bar no centro da cidade, a moça
estava muito cansada, apesar de ter apenas 24 anos, ela trabalhava muito
e não tinha muita disposição para sair.
5. Reescrever este texto que iniciei meses atrás está sendo divertido
não me senti como se estivesse sendo torturada como aconteceu em abril
quando produzi a primeira versão.
6.Apesar do problema em ser tão lerdo em relação aos demais colegas,
eu era um bom aluno: tinha facilidade em aprender e tirava boas notas.
7. Agora, comecei este curso. Sinto-me, ainda, bastante insegura
para produzir os trabalhos escritos, demoro bastante para colocar as ideias
no papel e organizá-las.

150
gramática e estilo

8. É curioso observá-la. Usa sempre o mesmo estilo de roupas e


sapatos valoriza o tipo “executiva”, saia e terninho, sapatos “scarpin” e
meias-calças cor da pele.
9. Nesse período escrevi muito relatório, muitas cartas circulares,
convites, planos de trabalho, cartazes. Foi um período de muita produção
escrita direcionada ao trabalho.
10. Apesar disso, valeu a pena, no caminho encontrei professores
que pensavam diferente e que faziam com que eu refletisse sobre a minha
nova posição. Estes sim fizeram a diferença.

2.3.1 Conjunções que relacionam e separam orações

Há muitas conjunções que são limites confiáveis de oração porque


estão sempre no início da oração que relacionam com a anterior; estas
são algumas delas:

Naquela época a minha solução ideal era esperar passar o problema,


e sempre era isso que eu fazia.
Na sala todos procuravam distrair-se, mas não conseguiam esquecer
que alguns colegas estavam hospitalizados devido ao acidente.
Não quero saber dessa história, nem me interessa especular quem
está com a razão.
Vamos retirar nosso dinheiro do banco imediatamente, ou seremos
vítimas de mais um confisco.
Nós casamos porque convinha aos nossos interesses comuns.
Como estava chovendo, desistimos do passeio a cavalo.
Vamos para a praia se o tempo estiver bom.
Levaram-no direto para o hospital quando o encontraram.
Pude conhecê-la melhor enquanto conversávamos.
Embora soubesse de toda a verdade, preferiu calar-se para poupar
o seu amigo daquele desgosto.
O emprego vai estar aqui esperando por vocês caso mudem de ideia.

151
gramática e estilo

O que não faz cabimento, por ser redundante, é usar, num limite de
oração, um ponto e vírgula e uma conjunção que seja um limite confiável
de oração, como o e, por exemplo:

O desejo foi passando; e chegou um tempo em que eu já não acredi-


tava que eu fosse capaz de entrar numa sala de aula.

A conjunção e já é suficiente para indicar o limite entre as orações;


neste caso, a vírgula vai indicar a mudança de sujeito de uma oração para
a outra, e esse é um dos usos tradicionais da vírgula:

O desejo foi passando, e chegou um tempo em que eu já não acreditava


que eu fosse capaz de entrar numa sala de aula.

2.3.1.1 A conjunção e
A primeira “regra” de pontuação que aprendemos é a do ponto-final,
que encerra uma frase; a segunda é a da vírgula, que separa os itens de
uma lista, os elementos de uma série, como nas frases que seguem:

Professores, alunos, funcionários, pais de alunos e lideranças da


comunidade foram convocados pela Direção para discutir a proibição
do uso do ginásio de esportes nos fins de semana. – A vírgula separa
os elementos componentes do sujeito da frase.
João limpa o chiqueiro, Mariana lava a louça do café, Joel capina
a horta, Chico alimenta as galinhas, e eu faço o pão para o café. – A
vírgula separa a orações que compõem a frase.

A lebre escapou da gaiola, pulou a cerca de arame farpado, correu


pelo meio das árvores e desapareceu no milharal. – A vírgula separa
os predicados da frase.
Todo mundo precisa aprender a ler, interpretar, compreender o texto,
exercitar a produção textual e expressar-se oralmente. – A vírgula
separa os complementos de aprender.

152
gramática e estilo

O aprendizado precoce dessas “regras” e a alta frequência desse uso


para a vírgula nos textos que lemos no estágio inicial de nossa familia-
rização com a língua escrita nos induzem a ler sistematicamente o que
vem depois de uma vírgula como mais um elemento da mesma série do
que vem antes da vírgula. Associada a essa “regra”, vem aquela outra
que prescreve um e para anunciar o último elemento da frase, tal como
podemos ver nestas mesmas frases: ...e lideranças..., ...e eu faço..., ...e
desapareceu..., ...e expressar-se... Esta “regra”, na verdade, é tão forte
que se pode esperar que sua ausência produza um efeito de e tem mais
ainda, isto é, de série inacabada, como nesta frase:

Temos vagas para qualquer tipo de especialista: caldeireiros, tornei-


ros mecânicos, bombeiros hidráulicos, apontadores, contramestres,
vendedores, empacotadores, motoristas, mecânicos.

Para escapar da força dessas duas “regras”, criou-se uma outra:


usar uma vírgula antes do e sempre que o sujeito da oração seguinte
for diferente do sujeito da primeira. É o caso desta frase:

Eu trabalhava com leitura de textos, gramática, redação e os alunos


eram difíceis no comportamento, mas produziam muito e tinham um
compromisso com o trabalho.

Assim como está, o leitor lê: ...trabalhava com leitura de textos,


gramática, redação e os alunos..., isto é, lê os alunos como mais uma
coisa com a qual o enunciador desta frase trabalhava. Depois, o leitor
percebe que os alunos é o sujeito da segunda oração e precisa refazer o
sentido que já atribuiu à frase. Para evitar esse vai e vem interpretativo,
dando fluência ao encadeamento, botamos uma vírgula antes de e os
alunos e ficamos torcendo para que o leitor já tenha sido explicitamente
avisado da função desta vírgula ou que suas leituras já o tenham fami-
liarizado com esta convenção.

153
gramática e estilo

Eu trabalhava com leitura de textos, gramática, redação, e os alunos


eram difíceis no comportamento, mas produziam muito e tinham um
compromisso com o trabalho.

Não botamos vírgula, no entanto, antes do segundo e porque o sujei-


to (alunos) é o mesmo para produziam e para tinham um compromisso.
Vejamos a seguinte:

Adolescentes precisam ser ouvidos, precisam ganhar oportunidades


de triunfo, e ninguém melhor do que o professor para proporcionar-
-lhes isso.

A vírgula antes do e evita que ninguém pareça mais um estranho


componente do elenco das coisas que os alunos precisam. Esta outra
frase é um pouco mais complexa:

Somente no último ano é que alguns começaram a falar como deve-


ríamos agir em sala de aula e na disciplina do estágio nos foi dito
que não deveríamos ensinar os conteúdos compartimentados.

Nesta frase, o sujeito da primeira oração é alguns, e o da segunda


é um não expresso agente da voz passiva foi dito; na verdade, podemos
julgar com boas razões que esses alguns e os que disseram que não deve-
ríamos ensinar são os mesmos. Nesse caso, a omissão da vírgula poderia
sutilmente – muito sutilmente – expressar essa revelação. A presença da
vírgula, por sua vez, poderia – também muito sutilmente – expressar que
não são os mesmos:

Somente no último ano é que alguns começaram a falar como deve-


ríamos agir em sala aula, e na disciplina do estágio nos foi dito que
não deveríamos ensinar os conteúdos compartimentados.

154
gramática e estilo

Talvez fique um pouco mais claro que não são os mesmos, se bo-
tarmos na disciplina do estágio entre vírgulas:

Somente no último ano é que alguns começaram a falar como deverí-


amos agir em sala aula, e, na disciplina do estágio, nos foi dito que
não deveríamos ensinar os conteúdos compartimentados.

Nesta frase que segue, a vírgula está antecipando que 17 anos e a


pouca experiência profissional não fazem parte da mesma série, como
o tema da frase pode levar a crer.

Durante esse período, alimentei o desejo de estudar Direito e ser


advogada ou talvez juíza, seguir as carreiras que pareciam pro-
missoras. Mas eu não tinha certeza de nada com meus 17 anos, e
a pouca experiência que eu tinha no mercado profissional, dando
aulas de balé, não me permitia conhecer o cotidiano de trabalho das
profissões idealizadas.

Na frase abaixo, a falta de vírgula não antecipa nada:

Na cidade onde moro, Caxias do Sul, interior do Rio Grande do Sul,


a maioria dos habitantes tem origem italiana e o sobrenome, para
muitas pessoas, é de fundamental importância.

Sem a vírgula antes do e, o leitor lê que a maioria dos habitantes


tem duas coisas: a origem italiana e o sobrenome. Só descobre que o
sobrenome é fundamental lendo o resto da oração que vem depois do e.
A função da vírgula antes desse e é avisar o leitor de que vem pela frente
algo a respeito do sobrenome:

Na cidade onde moro, Caxias do Sul, interior do Rio Grande do Sul,


a maioria dos habitantes tem origem italiana, e o sobrenome, para
muitas pessoas, é de fundamental importância.

155
gramática e estilo

Esta frase da revista Carta Capital (nº 873, de 28/10/2015, p. 88)


melhoraria com uma vírgula antes do e:

Miele pintou no Rio em meados dos anos 50, com a cara (de pau) e
a coragem. A TV Continental estava no auge e, na pindaíba, ele con-
seguiu um bico como contrarregra dos programas e dos comerciais.

Assim como está, numa primeira leitura, a TV Continental pode


parecer no auge e na pindaíba; uma vírgula antes do e encaminha a
leitura na direção de que Miele é que estava na pindaíba:

Miele pintou no Rio em meados dos anos 50, com a cara (de pau) e a
coragem. A TV Continental estava no auge, e, na pindaíba, ele con-
seguiu um bico como contrarregra dos programas e dos comerciais.

A palavra “regra” foi usada nesta seção em homenagem ao nosso


aprendizado infantil da pontuação; foi posta, assim, entre aspas, porque,
como já foi registrado, nosso uso da pontuação decorre de uma conso-
lidação do uso histórico que foi feito dos sinais de pontuação e não de
uma legislação. Daqui pra frente, é desse modo que deve ser entendida
a palavra regra, assim, sem aspas, referida à pontuação.

2.3.1.2 A conjunção e, a pausa e o ponto

Então, cuidado com a posição da vírgula; por maior que seja a pausa
que se faça antes do primeiro e depois do último elemento de uma série
durante uma leitura em voz alta, nada de vírgula nesses lugares. Como já
vimos, desde que se inventou o texto, a língua escrita foi criando recursos
para comunicar-se com os olhos do leitor e não mais para os ouvidos dos
que só tinham acesso ao texto através da leitura em voz alta do único
exemplar disponível na biblioteca do convento.

156
gramática e estilo

Eles querem que levemos, (esta vírgula levaria o leitor a esperar


um outro verbo aqui em vez do começo da série de coisas a serem
levadas) alcachofras, beterrabas, berinjelas e bacalhau.

Diamantes, opalas, ametistas, esmeraldas, (e esta vírgula levaria o


leitor a esperar uma outra joia aqui) esparramaram-se pelo chão.

Na verdade, há uma antirregra de pontuação que prescreve que não


se separa por qualquer sinal de pontuação os elementos contíguos da
oração, como seria o caso de verbo e seu complemento em:

Eles querem que levemos: alcachofras, beterrabas, berinjelas e


bacalhau.

Simplesmente não se coloca qualquer sinal de pontuação entre o


verbo e o seu complemento nem entre o sujeito e predicado:

Eles querem que levemos alcachofras, beterrabas, berinjelas e


bacalhau.

Diamantes, opalas, ametistas, esmeraldas esparramaram-se pelo


chão.

Há quem implique com conjunções no início da frase já que a função


da conjunção seria estabelecer relações entre orações; no entanto, este
encadeamento não fica mal assim:

Ele tinha sido um bom companheiro de farras e de irreverência.


Por isso, fiquei espantado quando o vi de terno, gravata, sapatos
de verniz, penteando o cabelo para o lado. Ele, entretanto, parecia
mais surpreso do que eu: “As férias acabaram”, disse. Depois, quis
saber o que eu fazia durante o “período útil” do ano.

157
gramática e estilo

Também há quem ache que não é bom que a frase fique com vír-
gulas demais:

A necessidade chegava, e lá ia eu para a folha em branco, que, em


seguida, era preenchida. E, ao mesmo tempo, o meu coração ficava
mais leve.

Neste caso, podemos passar sem o último e:

A necessidade chegava, e lá ia eu para a folha em branco, que, em


seguida, era preenchida. Ao mesmo tempo, o meu coração ficava
mais leve.

Nesta outra frase, há uma significativa troca de tema, da mãe para eu:

Constantemente flagrava minha mãe, que era professora de portu-


guês, lendo jornais e livros ou escrevendo num caderno. E pensei
que aquilo devia ser importante.

Já nesta outra, eu, que é o sujeito da última oração, já era o tema


da primeira; talvez seja melhor manter a última oração na mesma frase:

Aquilo me estimulou, pois ela era uma garota inteligente, e sua letra
era admirada por todos, e eu queria ser igual.

Melhor do que depreciar a capacidade do leitor é dar um voto de


confiança na sua inteligência e na sua persistência, deixando que ele
perceba as relações que a frase estabelece entre suas orações e o valor
que atribui ao que expressa. Se, no entanto, o sentido de um e no início
da frase for diferente do sentido de um e entre orações, se tiver, por
exemplo, o valor de um além disso tudo, de um como se tudo isso não
bastasse, de um ainda tem mais, aí é o caso de ponto antes do e:

158
gramática e estilo

Para que nós viéssemos a executar tal ordem seria necessário que
renunciássemos a todo o nosso passado, a toda a nossa formação,
a todas as nossas convicções, a nossa dignidade humana. E seria
preciso também que esse tipo de tarefa fosse de nossa competência.

Ela é a moça mais inteligente, culta, sensata, arguta, simpática, gentil


que já conheci. E a mais bonita.

Quando quis aprender a ler, pedi diretamente, sem rodeios, para a


minha bisavó que era professora primária aposentada. E olha que
eu tinha só quatro anos e uma curiosidade que não cabia em mim.

2.3.1.3 O que vem junto com e

Se a série é longa e contém vírgulas internas, usamos ponto e vírgula


para separar um elemento do outro, tal como nesta frase:

A produção em ambientes aquáticos é limitada pela luz, cuja pene-


tração diminui rapidamente com a profundidade; pelos nutrientes,
que são escassos em águas abertas; e pela temperatura.

A lista do que limita a produção aquática é composta por luz, nu-


trientes e temperatura; na caracterização de luz e nutrientes há vírgulas
que marcam orações adjetivas não restritivas; por isso, o ponto e vírgula
ocorre também antes do e que anuncia o último dos itens da lista. Nas
frases seguintes também há vírgulas internas:

O trajeto sempre conta muito na escala do medo. Se o fiz várias vezes,


o medo é pouco; se algumas vezes, é um medo bem chatinho; e, se
não o conheço, é crise total.

Já haviam planejado casamento, mas, na primeira vez, cancelaram


porque o pai de Paulo ficou muito doente; na segunda vez, porque
Flora teve de operar o apêndice; e, na terceira, porque Paulo perdeu
o emprego.

159
gramática e estilo

Convém também não abusar dos superpoderes do e, que pode sig-


nificar simplesmente o que vem depois do que acabou de passar, como
nesta frase:

Diferentemente da maioria das histórias que ouço, não fui criada


em uma família onde a leitura fizesse parte do meu cotidiano, e,
consequentemente, a escrita também não foi uma atividade frequente
na minha infância.

A relação entre as duas orações é claramente e mais precisamente


estabelecida pelo consequentemente; pra que o e?

Diferentemente da maioria das histórias que ouço, não fui criada


em uma família onde a leitura fizesse parte do meu cotidiano; con-
sequentemente, a escrita também não foi uma atividade frequente
na minha infância.

2.3.2 As conjunções nem, ou e mas

As conjunções nem, ou e mas, tal como o e, relacionam não apenas


orações mas também elementos de uma mesma oração, como podemos
ver nos exemplos que seguem.

1. Duas orações cada uma com seu sujeito:

Não aceito o apoio desse indivíduo, nem meus companheiros de


partido admitiriam que eu o fizesse.

Trata de estudar bastante, ou arranjar-te-ei um trabalho na estiva.

Ele era o aluno mais aplicado da turma, mas ninguém o respeitava.

160
gramática e estilo

2. Dois predicados do mesmo sujeito:

Não aceito o apoio desse indivíduo, nem quero recebê-lo em meu


gabinete.

Trata de estudar bastante, ou terás de arranjar um emprego.

Queria voltar cedo para casa, mas não consegui fechar o balancete.

3. Dois elementos do predicado:


Não aceito o apoio desse indivíduo nem o de seus companheiros.

Trata de estudar ou de trabalhar.

Não queria voltar para casa mas para a cabana nas montanhas.

Usamos vírgula no primeiro caso – em que os sujeitos das orações


são diferentes – e no segundo caso – em que apenas os predicados são
diferentes. Sendo assim, podemos simplificar o enunciado da regra:
usamos vírgula com mas, nem e ou se os predicados das orações rela-
cionadas forem diferentes.
Estas três conjunções junto com o e são capazes de relacionar
elementos de uma oração, mas, diferentemente do e, que é muito mais
empregado para indicar séries do que para ligar orações, raramente pro-
duzem séries (o mas não produz séries), isto é, quase que só relacionam
apenas dois elementos. Usamos a vírgula antes do e para marcar o caso
mais raro, que é a ligação de orações com sujeitos diferentes. No caso de
nem e ou não faria sentido assinalar com vírgula o caso mais raro – qual
é? – por causa do pequeno tamanho dos elementos de uma série em com-
paração com o tamanho muito maior de uma oração com sujeito próprio.
O assunto desenvolvido pela série, no entanto, já foi comunicado
ao leitor na oração anterior e costuma ser apresentado em palavras ou

161
gramática e estilo

em locuções muito mais do que em orações, ou seja, o caso mais raro


é também o mais abarcável pelo olho do leitor, que não lê palavra por
palavra mas enxerga grupos de palavras. Qualquer sinal de pontuação
antes da série perturbaria a rapidez desse fluxo.
Não se pode dizer que haja uma significativa maior quantidade de
segunda oração com sujeito diferente do da primeira no caso das orações
relacionadas por nem, ou e mas; vamos, por isso, tratar os dois casos da
mesma maneira, usando vírgula em ambos, como aparece nos exemplos
dos grupos 1 e 2.
Retomemos, então: vírgula antes de ou, nem e mas remete o leitor
para o centro da frase – para o sujeito ou para o predicado –; não é o
caso da frase que segue:

Em função de estar presa a um programa que permitia a entrada da


escrita mas não fazia dela seu ponto forte, meu trabalho foi muito
deficiente no sentido de conseguir desenvolver os potenciais de es-
crita dos alunos.

Não usamos vírgula porque o mas relaciona dois elementos que


fazem parte da oração adjetiva, que está dentro da frase, no interior do
predicado.
Há também quem seja peremptoriamente contra o uso de mas em
início de frase, e o peremptório é sempre problemático até por causa da
tradição normativista que, por tanto tempo, atormentou o nosso exercício
da língua escrita. Examinemos esta frase:

Quanto ao namoro, pude fazer minhas constatações, pois iniciei um


relacionamento, que acabou não dando certo por falta de tempo e
imaturidade. Mas, em muitas ocasiões, fomos felizes.

Vai ficar melhor assim?

162
gramática e estilo

Quanto ao namoro, pude fazer minhas constatações, pois iniciei um


relacionamento, que acabou não dando certo por falta de tempo e
imaturidade, mas, em muitas ocasiões, fomos felizes.

Talvez o motivo que torne estranha a segunda frase seja que a oração
iniciada por mas opõe-se não ao que vem imediatamente antes (a falta de
tempo e maturidade) mas à ideia geral de infelicidade que se depreende
do que foi expresso antes. Na primeira versão, a frase começada com
mas continua a contar a história. Uma solução mais adequada poderia
ser tratar o que vem depois do mas como um comentário e não como a
introdução a uma discussão nem como a continuação da história:

Quanto ao namoro, pude fazer minhas constatações, pois iniciei um


relacionamento, que acabou não dando certo por falta de tempo e
imaturidade (mesmo assim, em muitas ocasiões, fomos felizes).

Vamos ver como fica com vírgula este outro interessante caso de
mas que não relaciona dois predicados:

Aqui podemos observar a união de indivíduos sem fronteiras pré-


-estabelecidas, destoando das nações políticas que vêm cercadas por
suas fronteiras imaginárias, mas determinadas por seus cartógrafos.

Assim como está – com vírgula antes do mas – a expressão deter-


minadas por seus cartógrafos parece estar relacionada a cercadas por
suas fronteiras. Vamos ver como fica sem vírgula:

Aqui podemos observar a união de indivíduos sem fronteiras pré-


-estabelecidas, destoando das nações políticas que vêm cercadas por
suas fronteiras imaginárias mas determinadas por seus cartógrafos.

Desse modo, fica mais claro que determinadas por seus cartógrafos
se refere ao que vem imediatamente antes: imaginárias.

163
gramática e estilo

É claro que este sistema de pontuação só vai ser útil se o leitor


souber disso, e o leitor só pode ficar sabendo disso lendo isso siste-
maticamente, porque é lendo que o leitor aprende a ler. Foi assim que
ele, graças à ortografia, aprendeu a ler as palavras ao ponto de não
ter mais necessidade de soletrá-las, isto é, sem ter mais a necessidade
de relacionar cada letra com o som que ela representa. É por isso que
é fundamental que, tal como a ortografia nos libertou dos sons e nos
permitiu ler o desenho de cada palavra, um sistema consistente de
pontuação nos liberte definitivamente das explicações que recorrem
a maiores ou menores pausas na leitura para identificar o papel da
vírgula, do ponto e vírgula e do ponto-final.

2.3.2.1 Duplicação das conjunções ou e nem

Já vimos que a conjunção e, que vai somando e acumulando, aponta


para a frente, para o que vem depois dela; já as conjunções nem, ou e
mas, que não costumam fazer listas, precisam manter o olho do leitor
preso ao que ficou para trás para perceber onde começou o primeiro termo
da relação estabelecida pela conjunção. Vamos examinar estas frases:

Depois de deliberar maduramente em assembleia geral durante


mais de cinco horas, decidimos que não vamos aceitar a proposta de
modificar nossos contratos originais nem acatar as determinações
arbitrárias do ano passado, contra as quais já nos insurgimos.

Podemos agora começar a procurar entre nós mesmos os culpados


pela situação em que nos encontramos e começar a nos insultar uns
aos outros ou esfriar a cabeça e tentar encontrar alternativas para
sairmos dessa enrascada em que nos metemos.

Fica difícil, num e noutro caso, estabelecer onde começa o que


está coordenado ao que vem depois do nem: acatar as determinações
(deliberar nem acatar, aceitar nem acatar, modificar nem acatar?) e do

164
gramática e estilo

que vem depois do ou: esfriar a cabeça (começar ou esfriar, procurar


ou esfriar, insultar ou esfriar?)

A frase fica mais clara se acrescentarmos um outro nem ou um outro


ou antes do primeiro termo da coordenação:

Depois de deliberar maduramente em assembleia geral durante mais


de cinco horas, decidimos que não vamos nem aceitar a proposta de
modificar nossos contratos originais nem acatar as determinações
arbitrárias do ano passado, contra as quais já nos insurgimos.

Podemos agora ou começar a procurar entre nós mesmos os culpados


pela situação em que nos encontramos e começar a nos insultar uns
aos outros ou esfriar a cabeça e tentar encontrar alternativas para
sairmos dessa enrascada em que nos metemos.

Possibilidades diferentes: Para chegar lá pode-se ir pela estrada


ou por aquele morro.
Exclusão: Deves agora decidir se vais ou ficas.
Outra forma de expressar a mesma ideia: A filosofia marxista,
ou materialismo dialético, promove uma análise da constituição da
sociedade burguesa.

Um candidato a governador, lá no começo do fim da ditadura, ten-


tava exorcizar o perigo comunista com este slogan: “Fulano de Tal ou
um salto no escuro”. A ideia de exclusão desejada pelos seus assessores,
que a oposição transformou em sinonímia – Fulano de Tal, que é também
conhecido como um salto no escuro – nos debates da campanha, poderia
ter sido marcada com toda a clareza pela duplicação do ou: Ou Fulano
de Tal ou um salto no escuro.
É bom lembrar que nem é uma forma mais econômica e precisa de
dizer e não:

165
gramática e estilo

Eles não sabem ler e não acham necessário aprender.

Eles não sabem ler, nem acham necessário aprender.

Neste trecho memorialista de Mario Quintana há, no início da frase,


um mas, que não se refere ao que vem antes:

Em meus tempos de criança era aquela encantação. Lia-se contínua


e avidamente um mundaréu de histórias. [...] Mas lia-se corrido, isto
é, frase após frase, do princípio ao fim. Ora, as crianças de hoje não
se acostumam a ler corretamente.

Só depois que lemos a frase seguinte – Ora, as crianças... – é que


ficamos sabendo o que o mas projeta uma oposição do que vem depois
com o que vem depois desse depois: nós líamos corrido, ...(mas) as
crianças de hoje não se acostumam a ler corretamente.

2.3.3 Vírgulas para desambiguizar certas conjunções

Há conjunções que indicam mais de uma relação; as mais comuns


são o pois e o porque, que formam orações causais e orações explicati-
vas; o que, que forma orações adjetivas, orações substantivas e orações
consecutivas; o como, que forma orações comparativas e orações confor-
mativas. Podemos antecipar a relação que tais conjunções estabelecem
por meio de vírgula ou pela falta de vírgula.
O caso mais tradicional é de pois e porque: a oração causal apre-
senta uma razão, um motivo, uma causa para que tenha ocorrido o que
está expresso pela principal. A oração chamada explicativa apresenta um
indício, um sinal através do qual pôde ser deduzido o que está expresso
pela outra oração. Vamos examinar estas frases:

Mário saiu mais cedo do serviço porque não se sentia bem.

166
gramática e estilo

Mário saiu mais cedo do serviço, pois seu carro não está no esta-
cionamento.

Na primeira frase, não se sentir bem é a causa que levou Mário a


sair mais cedo. Na segunda frase, o carro não está no estacionamento é
o sinal que, segundo o juízo do enunciador da frase, permite inferir que
Mário já saiu. Muitas vezes, a segunda oração pode ser tanto explicativa
quanto causal:

Ele nunca sente frio porque toma banho gelado todas as manhãs.

Tomar banho gelado todas as manhãs é o sintoma que leva à con-


clusão de que ele não sente frio ou é a causa que faz com que ele não
sinta frio? É impossível decidirmos sem saber a intenção do enunciador
da frase. Se ele quis afirmar categoricamente que a pessoa de quem ele
fala não sente frio porque toma banho gelado todas as manhãs, trata-se
de uma causal. Se, por outro lado, ele está dizendo que o vê tomar banho
gelado todas as manhãs ou que sabe disso por fonte segura e, sabendo
que banho gelado provoca frio, conclui que ele, por causa disso, não
deve sentir frio, estamos diante de uma explicativa. Em resumo, a causal
expressa a causa do que foi enunciado; a explicativa, a causa para fazer
a afirmação. O escritor tem de decidir se o seu leitor vai ser esclarecido
apenas com a vírgula (ou sem a vírgula); se não estiver seguro disso,
pode expressar de outra forma o quer dizer:
Todas as manhãs de inverno ele sai de casa vestido só com um calção
de banho e se joga no mar: ele nunca sente frio.

No capítulo a respeito de subordinação examinaremos a pontuação


do que que forma orações adjetivas; aqui tratamos do que consecutivo.
Vamos examinar esta frase:

167
gramática e estilo

Lembro-me de que gostava tanto dessa religião e acreditava tanto


no que era ensinado pelas irmãs e pelo padre que, toda noite, fizesse
frio ou não, eu me ajoelhava em frente à cama e fazia minhas preces,
não esquecendo sempre de agradecer pela minha família, por termos
comida, roupas e podermos estudar, quando tantos outros não tinham
nem um prato de comida.
As orações adjetivas são muito mais usadas do que as consecutivas;
por isso, é muito provável que o leitor custe a se livrar de uma primeira
leitura a respeito do padre que fizesse frio ou não. É possível que uma
vírgula antes do que não ajude muito porque as orações adjetivas não
restritivas também são indicadas por uma vírgula antes do que; uma so-
lução mais segura seria deixar o verbo (e não o substantivo padre) antes
do que, e a vírgula nesse caso chega a ajudar:
Lembro-me de que gostava tanto dessa religião e acreditava tanto
no que as irmãs e o padre ensinavam, que, toda noite, fizesse frio
ou não, eu me ajoelhava em frente à cama e fazia minhas preces,
não esquecendo sempre de agradecer pela minha família, por termos
comida, roupas e podermos estudar, quando tantos outros não tinham
nem um prato de comida.
Para tratar do como, vamos examinar esta frase:
Já nos primeiros encontros que tivemos, pude perceber o quanto, para
aqueles alunos, não era prioridade estar na sala de aula já que eles
precisavam dar conta de outras questões mais urgentes e importantes
para eles como eles mesmos relatavam.

Temos, nesta frase, como eles mesmos relatavam, o que pode levar
o leitor a uma previsão equivocada: questões urgentes para eles como
eles, isto é, uma leitura em que o como é comparativo e não conformativo,
já que a comparação é muito mais usada do que a conformidade. Para
tentar dirimir essa ambiguidade, adotemos o critério de usar uma vírgula
antes do caso mais raro – o conformativo – como uma contribuição para
a fixação dessa prática como regra:

168
gramática e estilo

Já nos primeiros encontros que tivemos, pude perceber o quanto,


para aqueles alunos, não era prioridade estar na sala de aula, já
que eles precisavam dar conta de outras questões mais urgentes e
importantes para eles, como eles mesmos relatavam.

Essa ambiguidade criada pela relação que se pode estabelecer entre


a(s) última(s) palavra(s) da oração e a conjunção é bastante comum nos
casos em que a conjunção é formada por alguma coisa + que, como é
o caso desta frase:
Em 2000 eu começava o Ensino Médio e começava a apresentar os
primeiros sintomas que caracterizavam a histeria coletiva causada
pela proximidade do vestibular, mesmo que essa proximidade cor-
respondesse a três anos! [...] Era impossível evitar uma vez que os
professores sempre davam um jeito de trazer à tona o assunto sempre
que perdiam o controle da aula e precisavam instaurar o medo entre
os alunos.

A leitura evitar uma vez não ocorreria com a vírgula separando as


orações, e uma vez que assumiria seu papel causal; é o mesmo caso de
mesmo que depois de do vestibular nesta frase que segue:
Em 2000 eu começava o Ensino Médio e começava a apresentar os
primeiros sintomas que caracterizavam a histeria coletiva causada
pela proximidade do vestibular, mesmo que essa proximidade cor-
respondesse a três anos! [...] Era impossível evitar, uma vez que
os professores sempre davam um jeito de trazer à tona o assunto
sempre que perdiam o controle da aula e precisavam instaurar o
medo entre os alunos.

Assim também em já que depois de aula nesta outra:


Já nos primeiros encontros que tivemos, pude perceber o quanto,
para aqueles alunos, não era prioridade estar na sala de aula, já
que eles precisavam dar conta de outras questões mais urgentes e
importantes para eles, como eles mesmos relatavam.

169
gramática e estilo

Então, preste atenção nessas conjunções, que elas são muitas: antes
que, depois que, logo que, assim que, sempre que, até que, desde que,
primeiro que, todas as vezes que, cada vez que, uma vez que, dado que,
visto que, tanto mais que, por isso que, contanto que, a menos que, sem
que, ainda que, posto que, se bem que, por muito que, para que, do mesmo
modo que, tanto que, posto que. A elas podem ser acrescentadas exceto
se, salvo se e as demais formadas de alguma coisa + se.
Sintetizando, então, ao revisarmos frases nossas ou alheias, vamos
juntar ou separar orações, mantendo ou alterando sua sequência nas frases,
vamos diminuir ou aumentar frases, alterando ou não sua sequência no
texto, marcando os limites entre frases por ponto-final e os limites entre
orações por dois-pontos, ponto e vírgula e/ou conjunção.

2.4 PARA FAZER FLUIR A LEITURA DO QUE SE ENCADEIA

O encadeamento das frases no texto, das orações nas frases e das


palavras nas orações deve proporcionar a fluência da leitura, ou seja, a
sequência em que se dispõem – frases, orações e palavras –, umas depois
das outras, deve orientar o leitor a prosseguir na leitura construindo o sen-
tido visado sem ser obrigado a voltar atrás para relê-las com a finalidade
de corrigir uma previsão que se revelou inadequada. Vamos ver como
se identifica a falta de fluência e como se procede para estabelecê-la.

1 A direção do curso tinha avisado que os alunos não gastavam


com xerox, só gastavam com cerveja, portanto, o pobre professor
tinha de usar o quadro-negro para tudo, tendo em vista que aluno
de Primeiro Grau sente a necessidade de ter a matéria no caderno,
nem preciso dizer que a maior parte da aula era tomada pelo copia
– apaga – copia – apaga.

A vírgula que separa tudo de tendo em vista que induz o leitor a ler
a oração iniciada por tendo em vista como se estivesse relacionada com
o que foi expresso pelo que vem antes: a necessidade de usar o quadro-

170
gramática e estilo

-negro para tudo. Quando a leitura chega a nem preciso dizer que, o leitor
percebe que aquela oração está relacionada com essa oração seguinte:
tendo em vista essa necessidade dos alunos, a maior parte da aula era
tomada pelo copia – apaga – copia – apaga. O leitor, então, percebe que
a sua previsão estava errada.
Um sinal de pontuação final depois de usar o quadro-negro para
tudo evitaria que o leitor formulasse essa previsão equivocada. Como
há uma mudança de assunto – da relação entre xerox e cerveja para a
necessidade de copiar a matéria – cabe ali um ponto-final, o que, além de
sinalizar para o leitor a previsão correta, também evita uma frase muito
comprida e sobrecarregada com dois assuntos:

1a A direção do curso tinha avisado que os alunos não gastavam


com xerox, só gastavam com cerveja, portanto, o pobre professor
tinha de usar o quadro-negro para tudo. Tendo em vista que aluno
de Primeiro Grau sente a necessidade de ter a matéria no caderno,
nem preciso dizer que a maior parte da aula era tomada pelo copia
– apaga – copia – apaga.

Temos, então, duas frases, cada uma com seu tema, que se relacio-
nam ao tratarem de duas condicionantes do trabalho do professor naquela
sala de aula. É conveniente marcar com ponto e vírgula os limites entre
orações onde estão conjunções que podem deslocar-se dentro da oração
seguinte, como é o caso aqui de portanto – só gastavam com cerveja,
portanto, o pobre...

1b A direção do curso tinha avisado que os alunos não gastavam


com xerox, só gastavam com cerveja; portanto, o pobre professor
tinha de usar o quadro-negro para tudo.

Desse modo, podemos, se tivermos um bom motivo para isso, des-


locar o portanto, deixando bem claro o limite entre as orações:

171
gramática e estilo

1c A direção do curso tinha avisado que os alunos não gastavam com


xerox, só gastavam com cerveja; o pobre professor, portanto, tinha
de usar o quadro-negro para tudo.

Podemos também relacionar os dois temas no tópico de uma mesma


frase:

1d Graças à indisposição daqueles alunos de gastar em xerox o que


gastavam em cerveja e ao fervor infantil com que se dedicavam a
preencher seus cadernos, a maior parte da aula era tomada pelo
copia – apaga – copia – apaga.

Ou, ainda, podemos trocar o tópico da frase pela sua parte menos
comprida:

1e A maior parte da aula era tomada pelo copia – apaga – copia –


apaga por causa da indisposição daqueles alunos de gastar em xerox
o que gastavam em cerveja e ao fervor infantil com que se dedicavam
a preencher seus cadernos.

A adequação dessa troca vai ser determinada pela frase que antecede
e pela que vem depois desta no texto, como vamos examinar em 6.1 A
frase e as outras frases, especificamente na seção 6.1.2 Referência.

Vamos examinar esta outra frase:


2 Sempre fui uma criança à frente do meu tempo, mesmo quando
era pequena e não tinha nenhuma experiência escolar, já gostava de
ouvir e contar histórias, como já contei, lembro que pegava cadernos
e fazia de conta que estava escrevendo.

Temos dois problemas de indução a previsões erradas nesta frase:


na oração começada por mesmo quando e na oração começada por como
já contei. No primeiro caso, podemos usar dois-pontos para indicar
que a oração seguinte é uma conclusão ou uma consequência do que

172
gramática e estilo

foi dito antes. No segundo, podemos começar outra frase porque não é
conveniente usar mais do que um ponto e vírgula ou do que dois-pontos
ou mais do que um e outro na mesma frase. Por quê? Porque empenhar-
-se em descobrir qual é exatamente a relação que se percebe entre dois
enunciados a respeito do tema da frase é mais esclarecedor para quem
escreve e para quem lê. A relação estabelecida apenas por ponto e vírgula
ou por dois-pontos não é precisa. A frase seguinte vai ter de determinar
o seu tema, o que vai fazer avançar o texto.

2a Sempre fui uma criança à frente do meu tempo: mesmo quando


era pequena e não tinha nenhuma experiência escolar, já gostava de
ouvir e contar histórias. Como já contei, lembro que pegava cadernos
e fazia de conta que estava escrevendo.

Repetindo pela última vez, os sinais de pontuação final de oração


são o ponto e vírgula e os dois-pontos. A vírgula não é um adequado
sinal de pontuação final de oração até porque (repetindo também pela
última vez) a primeira regra de vírgula que aprendemos na vida – a
vírgula que separa elementos de uma série – influencia muito forte-
mente a nossa interpretação de qualquer vírgula, como podemos ver
nestes exemplos:

3 A escola era em Vacaria, toda de madeira, escurecida pelo tempo.

Aquela vírgula depois de madeira faz a frase dizer que a escola era
escurecida pelo tempo, isto é, marca uma série de duas características
da escola, tal como faria um e ali:

3a A escola era em Vacaria, toda de madeira e escurecida pelo tempo.

Esta mesma frase sem aquela vírgula enfatizaria que é a madeira


que está obscurecida pelo tempo. Na verdade, ambas dizem isso porque,
dizendo que a madeira com que a escola foi construída está obscurecida

173
gramática e estilo

pelo tempo, se diz que a escola é escurecida pelo tempo. Nesta versão
sem e há maior economia de meios expressivos, mais concisão.
O exemplo a seguir, que também fala de escola, é mais expressivo
ainda:

4 A escola era constituída por uma sala de aula, um pequeno cômodo


com materiais da escola, como livros didáticos, mimeógrafo, giz,
mapas geográficos, as 25 classes para os alunos e um quadro-negro,
uma cozinha, dois banheiros para os alunos e a sala dos professores.

Aqui certamente o leitor vai ler um pequeno cômodo como a outra


peça além da sala de aula. Só vai perceber que a vírgula está indicando
um aposto quando chegar às 25 classes (uma sala de aula, que era um
pequeno cômodo); por isso, é preciso evitar que o leitor faça essa leitura.
Pode-se recorrer a uma oração adjetiva, como aparece na explicação entre
parênteses. Nesse caso, é melhor marcar o que pertence a cada um dos
dois conjuntos – as coisas da sala de aula e as coisas da escola – com
diferentes preposições, como, por exemplo, como e por.
4a A escola era constituída por uma sala de aula, que era um pequeno
cômodo com materiais da escola, como livros didáticos, mimeógrafo,
giz, mapas geográficos, as 25 classes para os alunos e um quadro-
-negro, por uma cozinha, por dois banheiros para os alunos e pela
sala dos professores.

2.4.1 Pontuação final e conjunções a favor da fluência

A outra dificuldade que o encadeamento precário cria para o leitor é


sobrecarregá-lo com a tarefa de atribuir sentido à relação entre as orações
que se sucedem. Quando ele tem de suspender a leitura a cada passagem
de uma oração a outra para tentar imaginar que nexo o texto atribui à
sequência delas, a leitura torna-se tão penosa que acaba inviabilizando
a produção de sentido para o texto. Na verdade, nossa experiência como

174
gramática e estilo

leitores já nos ensinou que as conjunções têm a capacidade de esclarecer


a relação que o escritor quer atribuir às orações contíguas. Seu uso ade-
quado combinado com o uso de adequados sinais de pontuação facilita
a leitura porque, desse modo, o leitor não fica completamente à mercê
de suas conjeturas.
Certos sinais de pontuação estão tradicionalmente vinculados a
certas conjunções, e a tradição, em atividades que se desenvolveram
fortemente ligadas ao seu passado, como a escrita e a leitura, costuma
preservar as práticas que se revelaram mais úteis. Comecemos por exa-
minar esta frase complicada:

1 Era melhor evitar música que desse vontade de fumar, já que a


fumante era muito dramática, e a ex-fumante continuava sendo, por-
tanto, pela sobrevivência da ex-fumante era preciso trocar a trilha
sonora do final de tarde.

A vírgula que separa sendo de portanto pode parecer apenas a


primeira das que botam portanto entre vírgulas dentro da oração; por
causa disso, o olho do leitor vai adiante em busca do complemento de
sendo: a ex-fumante continuava sendo o quê? O olho do leitor não acha
esse complemento, mas acha portanto, pela sobrevivência da ex-fumante
era preciso trocar a trilha sonora do final de tarde, isto é, a oração que
portanto inicia. É obrigado, então, a refazer a sua previsão a respeito do
portanto, colocando-o no início da oração. Relê, então, as duas orações
anteriores ligadas pelo e – a fumante era muito dramática, e a ex-fumante
continuava sendo... o quê? Como sua experiência de leitura já ensinou
que, se o complemento do verbo não aparece dentro da oração, muito
provavelmente esse complemento é o mesmo do verbo da oração ante-
rior, o leitor, então, conclui que a ex-fumante continuava sendo muito
dramática.
Esta frase reforça o que já vimos: não é apenas a falta de uma
conjunção que impõe um sinal de pontuação final de oração; esse sinal

175
gramática e estilo

é exigido também por conjunções que, como portanto, não são limites
confiáveis de oração porque podem se deslocar dentro da oração. Pode-
mos, nesses casos, com o uso adequado de um ponto e vírgula, poupar o
leitor de previsões erradas causadas pela trava na fluência na sua leitura:

1a Era melhor evitar música que desse vontade de fumar, já que


a fumante era muito dramática, e a ex-fumante continuava sendo;
portanto, pela sobrevivência da ex-fumante, era preciso trocar a
trilha sonora do final de tarde.

O ponto e vírgula deixa bem claro o limite entre as orações, obrigan-


do o olho do leitor a deter-se antes do portanto e levando-o a procurar o
complemento de sendo antes e não depois do ponto e vírgula, que, agora,
marca o limite entre a oração onde está o sendo e a oração que começa
com o portanto. Se, mesmo assim, o autor da frase achar que, apesar do
ponto e vírgula marcar com clareza o fim da oração, é melhor sinalizar
esse limite com maior clareza ainda, ele pode deslocar o portanto para
dentro da oração:

1b Era melhor evitar música que desse vontade de fumar, já que a


fumante era muito dramática, e a ex-fumante continuava sendo; pela
sobrevivência da ex-fumante era preciso, portanto, trocar a trilha
sonora do final de tarde.

Não é demais reforçar que essas conjunções que não são limites
confiáveis de oração, quando deslocadas para dentro da oração, costumam
ser postas entre vírgulas; quando estão no início da oração, a vírgula
separa-a da oração que inicia:

2 Tinha hora marcada no dentista; não conseguiu, contudo, despren-


der-se do livro que estava lendo.

2a Tinha hora marcada no dentista; contudo, não conseguiu des-


prender-se do livro que estava lendo.

176
gramática e estilo

3 Passara dois anos e meio praticando capoeira durante oito horas


por dia; julgava-se apto, consequentemente, para enfrentar qualquer
situação de perigo.

3a Passara dois anos e meio praticando capoeira durante oito horas


por dia; consequentemente, julgava-se apto para enfrentar qualquer
situação de perigo.

Portanto, contudo, consequentemente, entretanto, não obstante,


todavia, porém, no entanto já nos foram apresentados como conjun-
ções; há outras palavras, que nos foram apresentadas como advérbios,
que também relacionam orações e compartilham dessa capacidade de
se deslocarem dentro da oração, o que recomenda o mesmo critério no
uso da pontuação:

4 Foi ao colégio pela manhã; naturalmente, não estava mais com


febre.
4a Foi ao colégio pela manhã; não estava mais com febre, natural-
mente.

5 A secretária estava em sua sala trabalhando; ao lado, seu patrão


dormia tranquilamente.
5a A secretária estava em sua sala trabalhando; seu patrão, ao lado,
dormia tranquilamente.

6 Omar estava expulso do colégio; agora, poderia viajar para o Rio


de Janeiro sem nenhuma preocupação.
6a Omar estava expulso do colégio; poderia, agora, viajar para o
Rio de Janeiro sem nenhuma preocupação.

7 João não conseguiu pagar as contas no fim do mês; realmente, a


vida está muito difícil.
7a João não conseguiu pagar as contas no fim do mês; a vida, real-
mente, está muito difícil.

177
gramática e estilo

8 Resolveram fazer uma festa na minha casa; antes, passaram no


supermercado para comprar a comida.
8a Resolveram fazer uma festa na minha casa; passaram, antes, no
supermercado para comprar a comida.
9 Paulo estudou durante a noite inteira; certamente, passará na
prova.
9a Paulo estudou durante a noite inteira; passará, certamente, na
prova.

Mesmo no caso de conjunções que são limites confiáveis de oração


porque sempre aparecem no início da oração que ligam à anterior, po-
demos ter de também marcar com ponto e vírgula o limite entre orações
contíguas se a oração seguinte se relacionar com a próxima e não com a
anterior. Estas frases exemplificam esses casos:
10 Se realmente eu fosse uma incapaz, teria sido demitida há muito
tempo, como isso não acontecia, tentava erguer a cabeça e seguir
em frente.
10a Se realmente eu fosse uma incapaz, teria sido demitida há muito
tempo; como isso não acontecia, tentava erguer a cabeça e seguir
em frente.

Como, nesta frase, é uma conjunção causal, que é usada para


enunciar a causa antes do efeito (com a conjunção porque, a oração
que expressa a causa costuma vir depois: eu tentava erguer a cabeça
e seguir em frente porque isso não acontecia). Por se referir sempre à
oração que vem depois, é muito mais provável que a oração antecedida
por uma conjunção como causal precise ser separada da anterior por um
sinal de pontuação final de oração.

11 No final do ensino médio, tinha certeza de que queria ser pro-


fessora de língua portuguesa e literatura, muito embora não tivesse
tido aula de produção textual, passei a escrever como uma forma de
terapia, como algo extremamente prazeroso e divertido.

178
gramática e estilo

11a No final do ensino médio, tinha certeza de que queria ser pro-
fessora de língua portuguesa e literatura; muito embora não tivesse
tido aula de produção textual, passei a escrever como uma forma de
terapia, como algo extremamente prazeroso e divertido.

Sem o ponto e vírgula, pode parecer que muito embora não tivesse
aula de produção textual se refere a queria ser professora de língua
portuguesa e literatura e não a passei a escrever como uma forma de
terapia, como...

2.4.2 Alguns critérios para combinar conjunções e pontuação

Podemos postular que o uso do ponto e vírgula está vinculado a


duas importantes negativas: (1) não usar apenas vírgula para indicar um
limite entre orações e (2) não usar dois-pontos indiscriminadamente.
Um ponto e vírgula desacompanhado de conjunção é o sinal de pontu-
ação final de oração mais adequado se a segunda oração acrescenta um
esclarecimento ao assunto apresentado pela primeira ou mais ratifica a
informação da oração anterior do que a explica ou tira dela uma conclu-
são. É o caso destas frases:

1 E muito provavelmente ficaria louca se continuasse sozinha por


muito tempo; alguns filmes na própria televisão de canal aberto já
mostraram isso.

2 Na minha infância, fui uma criança muito tranquila; não gostava


muito de brincar para depois não ter o que arrumar.

Na verdade, se a frase é relativamente pequena e se resume a duas


orações, a vírgula não criaria ambiguidade e, por isso, não ficaria mal:

3 Não fui estudar Letras com a intenção de virar professor de Por-


tuguês, o que eu pretendia era aprender a escrever.

179
gramática e estilo

O ponto e vírgula, no entanto, posto entre duas orações sem con-


junção que as relacione sempre vai indicar, sem ambiguidade, o limite
entre elas; por isso, vale a pena poupar a vírgula dessa tarefa, já que ela
desempenha tantas outras funções.

3a Não fui estudar Letras com a intenção de virar professor de Por-


tuguês; o que eu pretendia era aprender a escrever.

Reservamos, então, os dois-pontos para identificar o conteúdo do


que está apresentado na oração anterior, tal como nas duas frases seguinte:

4 Mas consegui: me formei e aprendi a gostar e compreender a


língua portuguesa, mesmo não sabendo regras gramaticais na ponta
da língua.

5 Ele não jogava conversa fora: falava de assuntos interessantes


referentes à sua vida, seu trabalho e suas perspectivas para o futuro.

O que vem depois de consegui é o motivo pelo qual consegui foi


enunciado. O que vem depois de conversa fora é o significado que o
escritor dá à expressão usada para caracterizar o a fala do personagem.
Na frase seguinte, os dois-pontos identificam uma decorrência do
que está expresso pela oração anterior:

6 Eu estava na terceira série do Ensino Fundamental quando a


professora me descobriu bem no cantinho da sala e pediu para que
eu fosse escrever no quadro: quase tive um colapso, mas juntei toda
a coragem e fui, quase nem sentindo minhas pernas de tanto que
tremiam.

Neste outro caso, o que vem depois dos dois-pontos é a conclusão


a que levam os dados anteriormente apresentados.

180
gramática e estilo

7 Nesta tardinha de inverno, foi-se o sol, veio a neblina, seguida de


uma garoa tão fina que gela até os ossos. As tardes, com seus ocasos
carregados de nuvens escuras se aproximando ligeiro, são sempre
tristes, cinzentas: algo está chegando ao fim.

Na frase que segue, os dois-pontos equivalem a um ou seja:

8 Tomás é um sério candidato ao programa de reeducação, mas por


sorte ele trabalha sozinho: o risco de alguém denunciá-lo é menor.

Estes dois casos são de explicação:

9 Durante dois anos, abandonei tudo: tive que plantar fumo para
ajudar no sustento da minha família.

10 Era assim que ela andava: como se alguém a perseguisse.

Um bom motivo para usar a conjunção é, como já salientamos,


poupar o leitor de ter de adivinhar qual é a relação entre orações na mesma
frase. Vamos preferir usar uma conjunção em vez de ponto e vírgula ou de
dois-pontos sempre que a relação entre as orações não for tão claramente
perceptível ou nos casos em que o escritor achar conveniente deixar bem
clara a sua posição, mesmo que essa posição possa ser depreendida sem
a conjunção. É melhor usar conjunção do que apresentar pro leitor uma
fila de orações unidas apenas por vírgula, ponto e vírgula ou dois-pontos:

11 Lá concluí o Ensino Fundamental, o Ensino Médio realizei em


uma Escola Particular onde cursei magistério, me formei professora.
11a Lá concluí o Ensino Fundamental; o Ensino Médio realizei
em uma Escola Particular onde cursei magistério e me formei
professora.

181
gramática e estilo

12 Esta organização, no entanto, não surge como um simples im-


pulso egoísta; está norteada por um princípio: o professor, além de
educador, deve ser um pesquisador.
12a Esta organização, no entanto, não surge como um simples impulso
egoísta, mas está norteada por um princípio: o professor, além de
educador, deve ser um pesquisador.

13 Aquele momento me marcou tanto que eu nunca mais quis ir ao


quadro, fui me tornando uma criança cada vez mais introvertida.
13a Aquele momento me marcou tanto que eu nunca mais quis ir
ao quadro; por causa disso, fui me tornando uma criança cada vez
mais introvertida.

14 Lembro que minha professora (uma freira de cabelo curto, gorda,


usava aquelas saias longas e uma blusa de lã azul) começou a cami-
nhar, e meus coleguinhas também, um atrás do outro.
14a Lembro que minha professora (uma freira de cabelo curto, gorda,
que usava aquelas saias longas e uma blusa de lã azul) começou a
caminhar, e meus coleguinhas também, um atrás do outro.

Ponto-final também poupa o leitor de ter de adivinhar mais de uma


relação entre orações na mesma frase.

15 Sempre gostei da ideia de ensinar, o retrato de uma sala de aula


era algo que me fascinava, pensava que um dia também teria meus
alunos e seria chamada de professora.
15a Sempre gostei da ideia de ensinar: o retrato de uma sala de aula
era algo que me fascinava. Eu pensava que um dia também teria
meus alunos e seria chamada de professora.

16 Quando eu era criança costumava brincar com meu irmão no sofá


da sala, imaginávamos que era um caminhão, meu irmão, o motorista,
e eu, a caroneira, por insistência dele, pois, na realidade, eu queria
ser a motorista, controlar aquela possante máquina, com marcha de
colher de pau e direção de bacia de amassar pão.
16a Quando eu era criança costumava brincar com meu irmão no

182
gramática e estilo

sofá da sala. Imaginávamos que era um caminhão: meu irmão, o


motorista, e eu, a caroneira, por insistência dele, pois, na realidade,
eu queria ser a motorista para controlar aquela possante máquina,
com marcha de colher de pau e direção de bacia de amassar pão.

17 Meu contato com as letras começou antes mesmo de ser alfa-


betizada, gostava de pegar os livros e “lê-los” ao meu modo, isso
acontecia na escrita também, traçava algumas linhas tortas e dizia
que estava escrevendo.
17a Meu contato com as letras começou antes mesmo de ser alfa-
betizada: gostava de pegar os livros e “lê-los” ao meu modo. Isso
acontecia na escrita também: traçava algumas linhas tortas e dizia
que estava escrevendo.

18 Primeiramente, senti medo ao me deparar com os alunos, isso


é bom, o medo faz parte da profissão professor, preparava minhas
aulas e sempre tentava trazer e fazer o melhor de mim, quando o
resultado não era o esperado, culpava-me, mesmo sabendo que a
culpa não era só minha.
18a Primeiramente, senti medo ao me deparar com os alunos: isso é
bom, pois o medo faz parte da profissão professor. Preparava minhas
aulas e sempre tentava trazer e fazer o melhor de mim; quando o
resultado não era o esperado, culpava-me, mesmo sabendo que a
culpa não era só minha.

Assim sendo, é conveniente não usar, por frase, mais do que apenas
um sinal de pontuação final de oração sem conjunção entre orações, além
de só usá-lo entre orações que mantêm relações muito óbvias. Vejamos
estes casos:

19 Agora, comecei este curso, sinto-me ainda bastante insegura


para produzir os trabalhos escritos, demoro bastante para colocar
as ideias no papel e organizá-las.
19a Agora, comecei este curso; sinto-me ainda bastante insegura
para produzir os trabalhos escritos; por isso, demoro bastante para
colocar as ideias no papel e organizá-las.

183
gramática e estilo

Para ficar rigorosamente fiel à recomendação de não usar dois sinais


de pontuação final de oração na mesma frase, podemos também aplicá-la
até mesmo a frases em que ambos estão acompanhados de conjunções,
pois sempre se acha um modo de fazer isso nem que seja apelando para
o versátil coringa que:

19b Agora que comecei este curso, sinto-me ainda bastante insegura
para produzir os trabalhos escritos; por isso, demoro bastante para
colocar as ideias no papel e organizá-las.

20 Minha família diz que quando eu era pequena não me interessava


muito pela leitura, minha irmã atribui isso ao fato que eu sempre fui
uma criança agitada e moleca.
20a Minha família diz que, quando eu era pequena, não me inte-
ressava muito pela leitura, e minha irmã atribui isso ao fato que eu
sempre fui uma criança agitada e moleca.

A oração quando eu era pequena está intercalada entre a conjunção


que, que inicia a oração não me interessava muito e essa oração; as vír-
gulas marcam essa intercalação. No outro limite – pela leitura, e minha
irmã – é o caso de e, já que a oração seguinte apresenta uma informação
paralela à da oração anterior: Minha família diz... minha irmã atribui...

21 Quando adolescente escrevia compulsivamente no meu diário


lá estão registradas as crises existenciais, as descobertas e demais
pirações típicas da idade, depois fui morar em outra cidade para
fazer faculdade, me afastei da família e de muitos amigos, amigos
de sempre, como não existia internet ainda o meio de comunicação
adotado foi o velho e bom caminho missivista.
21a Quando adolescente escrevia compulsivamente no meu diário:
lá estão registradas as crises existenciais, as descobertas e demais
pirações típicas da idade. Depois fui morar em outra cidade para
fazer faculdade; em consequência disso, me afastei da família e de
muitos amigos, amigos de sempre, e, como não existia internet ainda,
o meio de comunicação adotado foi o velho e bom caminho missivista.

184
gramática e estilo

O tema deste encadeamento são duas das práticas de escrita do


narrador; por isso, faz sentido separá-las em duas frases. É o que faz o
ponto depois de idade. Os dois-pontos depois de diário indicam que a
oração que começa com lá estão registradas é a consequência, o produto
do que enuncia a anterior. Na segunda frase, o ponto e vírgula depois de
faculdade marca o limite entre a oração que termina aí, e a conjunção
em consequência disso estabelece a relação que há entre essa oração e a
seguinte. O e no fim da oração que apresenta os últimos dados descriti-
vos da situação que propiciou o outro exercício da escrita permite que a
apresentação dessa segunda prática fique na mesma frase, estreitamente
vinculada à circunstância que a propiciou. Quem acha que a frase, assim,
fica grande demais, está autorizado a usar outro ponto-final:

21b ...em consequência disso, me afastei da família e de muitos ami-


gos, amigos de sempre. Como não existia internet ainda, o meio de
comunicação adotado foi o velho e bom caminho missivista.

Exercício 4

Revise a pontuação destas frases:

1. Ele não tem amigos porque nunca sai de casa nem recebe visitas.
2. Em face da pluralidade étnica e política dos governantes secu-
lares, o discurso universalista da Igreja oferecia a unidade espiritual e a
ação efetiva dos bispos junto aos governantes garantia certa estabilidade
institucional.
3. Laurinha teve ótimos conceitos neste bimestre pois estudou cinco
horas por dia durante todo o mês.
4. Nada se comparava a isso, nem ganhar um presente que há muito
tempo era esperado.

185
gramática e estilo

5. De acordo com o que observo nas aulas da pós, isso é a “pedra


no sapato” de todas, ou quase todas as minhas colegas.
6. Costumo afirmar que, desde que me conheço por gente, admiro,
e muito, o poder advindo das palavras, sejam elas quais forem, ou qual-
quer que seja o sentido em que estejam empregadas. Sempre é possível
encantar-se com elas, pelo menos comigo é assim.
7. A primeira vez foi assustadora. Nunca tinha visto tanta gente en-
tubada, em coma, ou com tantos aparelhos pendurados. Fiquei chocada!
Não sabia se chorava, se agradecia por ela estar podendo falar, ou se ria
de nervosismo.
8. Minha família sempre foi muito unida, daquelas em que a “mama”
faz a comida e chama todo mundo para almoçar junto. Impossível uma
pessoa fazer a refeição fora de hora, ou separada do restante da família.

2.5 AS LIMITAÇÕES DO ENCADEAMENTO

O escrito que revisamos no início deste capítulo foi produzido pelo


que chamamos de mero encadeamento de palavras na oração, de orações
nas frases, das frases no texto. Na revisão, botamos atenção justamente
naquela imensa cadeia de orações para transformá-las em frases que apre-
sentassem o seu assunto e tratassem dele. Dentro dessas frases tratamos
de prover os sinais de pontuação de oração capazes de melhor orientar os
olhos do leitor até a próxima frase e, assim, ao longo do escrito. Temos aqui
um outro escrito a respeito do mesmo tema cujo encadeamento das frases e
das orações dentro delas não é capaz de expressar a relativa complexidade
nem do que o seu enredo pretende narrar nem dos comentários que a voz
que nele se manifesta faz a respeito do que narra. Vamos lê-lo.

Aos seis anos de idade, meu pai começou a me alfabetizar antes de


eu ir para a escola. Com sua experiência de terceira série primária,
ele fez com que eu aprendesse alguma coisa.
Com seu jeito autoritário me ensinou a ler, mas acima de tudo a ter

186
gramática e estilo

persistência naquilo que se deseja.


Ao entrar na escola achei tudo muito difícil, como meu pai traba-
lhava em outra cidade, só me restava pedir ajuda à minha mãe, mas
como ela não sabia ler nem escrever, ela me ajudava como podia,
me incentivava dizendo que eu ia conseguir, rezava, fazia promessa
para eu passar de ano.
Saber ler se tornou muito importante para mim, lembro-me de que
meu pai certa vez, me colocou numa situação difícil, ele estava com
seu colega de trabalho, esse colega tinha um cargo mais elevado que
o seu, ele era chefe do laboratório da Corsan e meu pai um humilde
ferreiro da obra. Os dois estavam no laboratório, e eu cheguei.
Então, meu pai mandou que eu lesse uma palavra que estava escrita
em um dos vidros da sala. Um medo tomou conta de mim, senti que
estavam me testando, analisando e eu não podia decepcionar.
Olhei a palavra e era diferente de tudo que eu tinha lido até aquele
momento. depois de alguns segundos soletrei a palavra corretamente.
Com alegria vi um largo sorriso de satisfação em meu pai, recebi
elogios de seu colega e pude perceber como era importante ler.
Continuei estudando, sempre passando de ano. As escolas que eu
frequentava não tinham biblioteca, meu pai não tinha dinheiro para
comprar livros ou jornais. Quando cheguei na quarta série, comecei
a ler gibis, revistas com fotonovelas, tudo que me emprestavam eu
ia lendo, quando eu terminava começava a reler. Então descobri o
prazer da leitura.
Com onze anos de idade, descobri uma biblioteca na escola vizinha,
e aí foi o máximo, eu lia dois livros por semana, na metade do ano
eu já tinha lido todos os livros indicados para a minha idade, mas
não parei por aí, a mina era grande e eu pretendia conhecê-la toda.
Quando cheguei no segundo grau, fui obrigada a ler determinados livros
impostos pelos professores, percebi então que existia leituras que não
eram nada interessantes, mas se era pra ler eu lia, o que não impediria
de eu ler também o que eu gostava. Desta forma eu lia bastante para
fazer os trabalhos escolares, por lazer ou para me informar.
Na adolescência, a maior parte do tempo eu ficava com um livro nas
mãos. Minha mãe antes de dormir passava no meu quarto e mandava
desligar a luz para não aumentar a conta da CEEE. Todos diziam
que eu estudava demais e acabaria ficando doente.

187
gramática e estilo

Ao terminar o segundo grau, resolvi parar um ano já que todos diziam


que eu estava cansada. Eu até adoeci para não decepcionar a maio-
ria. Eu não conseguia me entender, eu estudava, lia, me esforçava, e
isso por um lado incomodava meus pais, porque minhas irmãs eram
reprovadas de ano, não mostravam interesse pelos estudos e também
deixavam eles preocupados.
Diante do problema da falta de professores pelas dificuldades do
lugar, cresci vendo minha mãe dizer que eu ia ser professora, já que
eu morava na comunidade, iria resolver os problemas e até mesmo
porque ela não estudou; por isso, depositou em mim todo o seu sonho.
Depois de um ano parada sem ir para a escola, resolvi fazer o vesti-
bular para entrar na faculdade de Letras. Minha dificuldade maior
era a redação, não conseguia escrever com clareza minhas ideias.
Porém estudei bastante, me senti viva novamente com livros, cadernos
e colegas. Fiz de conta que não ouvia as recomendações das pessoas
dizendo que eu exagerava nos estudos. Passei a me dedicar dia e
noite, foi maravilhoso, passei no vestibular.
O primeiro ano de faculdade foi muito difícil, pois eu trabalhava
durante o dia e estudava à noite numa outra cidade. Fiquei doente,
tive uma rápida depressão, mas não desisti.
Durante o curso e o estágio mais tarde, senti uma certa familiaridade
com a educação escolar.
Ao receber uma proposta para lecionar, tive dúvidas de trocar a
profissão de secretária de nove anos pela de professora. Mas não
pensei muito na época, já que a proposta se adaptava à nova vida
que eu escolhera, eu ia me casar e tinha terminado o curso de letras.
Durante dez anos dei aulas pra meus alunos sem fazer muitos ques-
tionamentos sobre o meu trabalho. Mas uma dúvida sempre me
incomodava, por que eu evitava escrever, fugia da escrita?
Entrei no curso de pós-graduação com muita esperança de enfrentar
essas dificuldades. Para minha surpresa e alívio, descobri que não
existe um modelo para seguir. Temos condições de escrever e superar
as barreiras criadas ao longo de nossa vida.
Ao fazer o primeiro texto, tive uma decepção, porque eu havia usado
uma técnica bastante conhecida, e ela não funcionara. Porém com
a ajuda do professor e colegas, analisei os problemas que havia na
redação, e notei que eu poderia melhorá-la.

188
gramática e estilo

Após dois meses de aula, meus textos não estão totalmente corretos
mas algo brotou dentro de mim, o prazer também pela escrita.

Este escrito encadeia, numa certa ordem cronológica, as informações


a respeito da história pessoal de sua autora relacionada à língua escrita.
Nesse aspecto, sua produção, de fato, assemelha-se à daquele primeiro
escrito que revisamos no início deste capítulo. Distingue-se significati-
vamente daquele, no entanto, por, pelo menos, duas características: (1)
a delimitação de suas frases, que não são superpovoadas de orações;
são frases de tamanho variado, em sua maioria povoadas por orações que
tratam do mesmo tema; (2) sua ambição temática: em vez de revisitar os
assuntos obrigatórios da experiência escolar, propõe-se tratar da história
pessoal de quem o escreve.
Chama atenção, de cara, o excesso de margens de parágrafo: sabe-
mos que as margens de parágrafo também são dispositivos para orientar
os olhos do leitor, delimitando o conjunto das frases que tratam de um
determinado assunto, de algum modo distinto do assunto do parágrafo
anterior e do assunto do parágrafo seguinte. Revisor nenhum vai se dar a
trabalheira de contar a quantidade de parágrafos para confrontá-los com
a quantidade de frases, a menos que seja um encanzinado professor de
redação escrevendo a respeito desse equacionamento.
Por outro lado, pode ter sua serventia fazer, pelo menos uma vez na
vida, esse tipo de contagem de orações, frases e parágrafos para verificar
a correspondência adequada entre temas abordados no texto, a pertinên-
cia das orações às frases onde estão e a adequada sequência das frases.
Nem que seja para começar a prestar mais atenção para o que estiver
encandeando à medida que escreve.
Neste caso, os números que revelam inadequação são muito elo-
quentes. São 42 frases, distribuídas em 20 parágrafos, dos quais 9 com
2 frases; 6 com 1 frase; 3 com 3 frases; 1 com 4 frases; e 1 com 5 frases
num encadeamento que se estende ao longo de 73 linhas para tratar:

189
gramática e estilo

(1) do início da alfabetização em casa;


(2) da primeira experiência escolar;
(3) de uma situação especial, que demarcou a sua condição de alfa-
betizada;
(4) da descoberta do prazer e a do desprazer da leitura;
(5) da escolha da profissão relacionada com as dificuldades do curso
superior;
(6) do início do trabalho como professora e a rotina dos primeiros anos;
(7) do ingresso no curso de especialização, em especial as dificuldades
com a produção de textos e as perspectivas para a sua continuação.

Para tratar de 7 temas, esses 20 parágrafos praticamente anulam a


serventia da margem de parágrafo, criada – tal como a pontuação – para
orientar o leitor sobre as mudanças de assunto ao longo do texto; 7 pa-
rágrafos, no máximo, dariam conta. Essa dispersão das frases impede
que o escrito cumpra o que chamamos de sua ambição temática: o mero
encadeamento só faz o escrito andar para frente do começo ao fim. Para
dar conta do que fica ao lado e do que volta pra trás inventamos outros
dispositivos, que podemos pôr em ação.

2.5.1 Os parágrafos e suas frases delimitam os vários temas do texto

Começando pelo começo, podemos perceber que os três primeiros


conjuntos de palavras graficamente apresentados como se fossem frases
estão distribuídos em dois parágrafos e tratam de um mesmo tema: o papel
do pai na alfabetização da narradora. Vamos, então, num parágrafo só,
reescrever o que se refere ao pai dela:

Aos seis anos de idade, ainda antes de eu ir para a escola, meu


pai, que tinha cursado até a terceira série primária, começou a me
alfabetizar. Com seu jeito autoritário, fez com que eu aprendesse
alguma coisa, mas, acima de tudo, me ensinou a ter persistência
naquilo que se deseja.

190
gramática e estilo

Saliente-se que o ensino da persistência, no fim da segunda frase,


não tem nem objetividade nem concretude nesta história: só cumpre a
obrigação de ser mencionado.
Já o relato sobre a façanha leitora da criança recém-alfabetizada
ocupa inadequadamente três parágrafos. É melhor fazer um parágrafo
grande do que levar o leitor a ler dois parágrafos esperando pelo novo
assunto que não está nem num nem noutro:

Meu pai, certa vez, me colocou numa situação difícil. Ele estava no
laboratório da Corsan, onde trabalhava como ferreiro, com o seu
colega que chefiava o laboratório, quando eu cheguei. Então, meu
pai mandou que eu lesse uma palavra que estava escrita em um dos
vidros da sala. Um medo tomou conta de mim, pois senti que estavam
me testando, me analisando, e eu não podia decepcionar. Olhei a
palavra e era diferente de tudo que eu tinha lido até aquele momento;
depois de alguns segundos, soletrei a palavra corretamente. Com
alegria vi um largo sorriso de satisfação em meu pai, recebi elogios
de seu colega e pude perceber como era importante ler.

O papel da mãe e o papel do pai no processo de alfabetização e letra-


mento da autora também podem ser comparados e não apenas colocados
um depois do outro. Essa comparação ocuparia um único parágrafo.

Aos seis anos de idade, meu pai começou a me alfabetizar antes de eu


ir para a escola. Com sua experiência de terceira série primária, ele
fez com que eu aprendesse alguma coisa. Com seu jeito autoritário
me ensinou a ler, mas acima de tudo a ter persistência naquilo que
se deseja. Ao entrar na escola achei tudo muito difícil; como meu pai
trabalhava em outra cidade, só me restava pedir ajuda à minha mãe,
mas como ela não sabia ler nem escrever, ela me ajudava como podia,
me incentivava dizendo que eu ia conseguir, rezava, fazia promessa
para eu passar de ano.

Para enfatizar a comparação, podemos reescrever assim:

191
gramática e estilo

Como minha mãe não sabia ler nem escrever, minha alfabetização
esteve vinculada, de um modo ou de outro, ao meu pai, que, apesar
de não ter estudado além da terceira série, tentou me alfabetizar
mesmo antes de eu entrar para a escola. Minha mãe só conseguia
me ajudar pelo incentivo e pelas rezas e promessas que fazia para eu
passar de ano; já o meu pai me fez o grande desafio que me mostrou
a importância de saber ler.

Em contrapartida, se cada frase de um texto deve expressar um tema,


não é conveniente misturar temas sem estabelecer uma clara relação entre
eles. A frase que segue começa tratando das dificuldades do lugar onde mo-
rava a narradora quando criança e termina falando dos sonhos da sua mãe.

Diante destes problemas da falta de professores pelas dificuldades do


lugar, cresci vendo minha mãe dizer que eu ia ser professora, já que
eu morava na comunidade, iria resolver os problemas e até mesmo
porque ela não estudou; por isso, depositou em mim todo o seu sonho.

Duas frases encadeadas podem separar os dois assuntos:

Cresci vendo minha mãe dizer que eu ia ser professora para resolver
as dificuldades pelas quais passava o lugar onde morávamos por cau-
sa da falta de professores. Minha mãe nunca tinha estudado; por isso,
eu acho que ela estava depositando em mim um sonho não realizado.

Podemos também adotar o critério de procurar pela relação que há


entre o que pareceu serem dois assuntos diferentes, estabelecendo com
clareza, numa única frase, essa relação que há entre eles:

Cresci vendo minha mãe dizer que eu ia ser professora: ela dizia
que era porque o lugar onde morávamos não tinha professores, mas
acho que ela estava depositando em mim o seu sonho não realizado
de estudar.

192
gramática e estilo

2.5.2 O encadeamento precisa ser cronologicamente balizado

Examinemos a transição do primeiro para o segundo parágrafo:

Com seu jeito autoritário me ensinou a ler, mas acima de tudo a ter
persistência naquilo que se deseja.
Ao entrar na escola achei tudo muito difícil, como meu pai traba-
lhava em outra cidade, só me restava pedir ajuda à minha mãe, mas
como ela não sabia ler nem escrever, ela me ajudava como podia,
me incentivava dizendo que eu ia conseguir, rezava, fazia promessa
para eu passar de ano.

O segundo parágrafo declara que o pai, que ensinava a narradora


a ler desde antes dela ir para a escola, ensinou-a a ler, mas o parágrafo
seguinte diz que, ao entrar na escola, ela achou tudo muito difícil. O leitor,
então, pergunta-se: o que poderia ser difícil se ela já sabia ler? Ou ainda
não sabia? Teria o pai terminado de ensinar a ler depois dela ter entrado
na escola? O mero encadeamento destes dois parágrafos não é capaz de
substituir as indicações de tempo que não estão no texto.
Este é um típico caso de falta de objetividade: a escritora não
conseguiu perceber que os seus leitores só podem tomar conhecimento
do que ela narra se ela lhes der no texto todos os dados necessários para
isso, isto é, se ela transformar em objeto o que está invisível para eles,
dentro da subjetividade dela. Sem acesso a esses dados não há como
reescrever esse trecho obscuro.
Mais imprecisa ainda é a relação cronológica entre essa entrada na
escola e o relato do episódio da leitura do que estava escrito no vidro
da sala do local de trabalho do pai, trecho que começa com Saber ler se
tornou e termina com e pude perceber como era importante ler. O que
não fica claro é quando isso aconteceu e fez com que saber ler se tivesse
tornado tão importante para ela já que esse episódio é indicado muito
imprecisamente por certa vez.

193
gramática e estilo

As heterogêneas indicações de tempo que aparecem nestes parágra-


fos tornam ainda mais imprecisa a narrativa:

Continuei estudando, sempre passando de ano. As escolas que eu


frequentava não tinham biblioteca, meu pai não tinha dinheiro para
comprar livros ou jornais. Quando cheguei na quarta série, comecei
a ler gibis, revistas com fotonovelas, tudo que me emprestavam eu
ia lendo, quando eu terminava começava a reler. Então descobri o
prazer da leitura.
Com onze anos de idade, descobri uma biblioteca na escola vizinha,
e aí foi o máximo, eu lia dois livros por semana, na metade do ano
eu já tinha lido todos os livros indicados para a minha idade, mas
não parei por aí, a mina era grande e eu pretendia conhecê-la toda.

Continuei estudando marca uma sequência ininterrupta, que se


estende para além do período em questão; a relação entre a chegada na
quarta série, os onze anos de idade e a metade do ano tem de ser calcu-
lada pelo leitor, que, certamente, não vai se dar esse trabalho de puxar
pela memória para lembrar da idade com que chegou na quarta série;
por isso, vai ficar sem saber se esses momentos estão ordenados ou são
simultâneos. Vamos tentar revisar:

Continuei estudando, sempre passando de ano. As escolas que eu


frequentava não tinham biblioteca, nem meu pai tinha dinheiro para
comprar livros ou jornais. Então, quando cheguei à quarta série,
comecei a ler gibis, revistas com fotonovelas, tudo que me empres-
tavam eu ia lendo; ao terminar, começava a reler. Assim descobri o
prazer da leitura. Com onze anos de idade, descobri uma biblioteca
na escola vizinha, e aí foi o máximo: eu lia dois livros por semana.
Na metade do ano eu já tinha lido todos os livros indicados para a
minha idade, mas não parei por aí: a mina era grande, e eu pretendia
conhecê-la toda.

Outras indicações heterogêneas de tempo vão aparecer nestes outros


parágrafos:

194
gramática e estilo

Quando cheguei no segundo grau, fui obrigada a ler determinados


livros impostos pelos professores, percebi então que existia leituras
que não eram nada interessantes, mas se era pra ler eu lia, o que
não impediria de eu ler também o que eu gostava. Desta forma eu
lia bastante para fazer os trabalhos escolares, por lazer ou para me
informar.
Na adolescência, a maior parte do tempo eu ficava com um livro nas
mãos. Minha mãe antes de dormir passava no meu quarto e mandava
desligar a luz para não aumentar a conta da CEEE. Todos diziam
que eu estudava demais e acabaria ficando doente.

Quando cheguei no segundo grau dá início ao parágrafo que vem


antes do que é marcado por na adolescência: se o leitor se deixar orien-
tar pela predominância cronológica da disposição dos fatos no texto,
ele vai ter de concordar que a adolescência vem depois da chegada ao
segundo grau, o que ele sabe que não costuma corresponder aos fatos.
Para contornar essa confusão cronológica, é melhor usar uma expressão
generalizante.

Quando cheguei no segundo grau, fui obrigada a ler determinados


livros impostos pelos professores. Percebi então que existiam leituras
que não eram nada interessantes, mas, se era pra ler, eu lia, o que
não me impedia de ler também o que eu gostava. Por isso, eu lia
bastante: para fazer os trabalhos escolares, por lazer ou para me
informar. Nessa época, a maior parte do tempo eu ficava com um
livro nas mãos. Minha mãe, antes de dormir, passava no meu quarto
e mandava desligar a luz para não aumentar a conta da CEEE.

A frase que, no original, vinha depois da conta da CEEE – Todos


diziam que eu estudava demais e acabaria ficando doente – tem com-
patibilidade com a temática tratada no parágrafo seguinte:

Ao terminar o segundo grau, resolvi parar um ano já que todos diziam


que eu estava cansada. Eu até adoeci para não decepcionar a maio-
ria. Eu não conseguia me entender, eu estudava, lia, me esforçava, e

195
gramática e estilo

isso por um lado incomodava meus pais, porque minhas irmãs eram
reprovadas de ano, não mostravam interesse pelos estudos e também
deixavam eles preocupados.

O que não está clara neste parágrafo é a comparação, mais ou menos


complexa, do tratamento que os pais davam à disposição que a narradora
tinha para estudar e o modo como esses mesmos pais reagiam à falta de
interesse das irmãs pelos estudos; vamos reescrever:

Todos diziam que eu estudava demais e acabaria ficando doente. Ao


terminar o segundo grau, resolvi parar um ano já que todos diziam que
eu estava cansada e até adoeci para não decepcionar a maioria. Eu
não conseguia entender por que meus pais se incomodavam com o meu
estudo e com o meu esforço e ficavam tão preocupados porque minhas
irmãs eram reprovadas de ano e não mostravam interesse pelos estudos.

Nos parágrafos seguintes, a narrativa trata com intervalos de tempo


de nove anos e de dez anos como se continuasse relatando os fatos na
mesma sequência temporal anterior, sem estabelecer relação de simul-
taneidade.
O primeiro ano de faculdade foi muito difícil, pois eu trabalhava
durante o dia e estudava à noite numa outra cidade. Fiquei doente, tive
uma rápida depressão, mas não desisti.
Durante o curso e o estágio mais tarde, senti uma certa familiari-
dade com a educação escolar.
Ao receber uma proposta para lecionar, tive dúvidas de trocar a
profissão de secretária de nove anos pela de professora. Mas não pen-
sei muito na época, já que a proposta se adaptava à nova vida que eu
escolhera, eu ia me casar e tinha terminado o curso de letras.
Durante dez anos dei aulas pra meus alunos sem fazer muitos
questionamentos sobre o meu trabalho. Mas uma dúvida sempre me
incomodava, por que eu evitava escrever, fugia da escrita?

196
gramática e estilo

Entrei no curso de pós-graduação com muita esperança de enfren-


tar essas dificuldades. Para minha surpresa e alívio, descobri que não
existe um modelo para seguir.
Podemos reescrever em dois parágrafos: durante e depois da fa-
culdade:

O primeiro ano de faculdade foi muito difícil, pois eu trabalhava


durante o dia e estudava à noite numa outra cidade. Fiquei doente,
tive uma rápida depressão, mas não desisti. Mais tarde, durante o
curso e o estágio, senti certa familiaridade com a educação escolar.
Ao receber uma proposta para lecionar, tive dúvidas em trocar o
trabalho de nove anos como secretária pelo de professora. Como a
proposta se adaptava à nova vida que eu escolhera, não pensei muito
na época, já que eu ia me casar e tinha terminado o curso de letras.
Durante dez anos dei aulas pra meus alunos sem fazer muitos ques-
tionamentos sobre o meu trabalho. Apesar disso, uma dúvida sempre
me incomodava: por que eu evitava escrever, fugia da escrita? Com
muita esperança de enfrentar essas dificuldades, entrei no curso de
pós-graduação. Para minha surpresa e alívio, descobri que não existe
um modelo para seguir, pois temos condições de escrever e superar
as barreiras criadas ao longo de nossa vida.
Senti certa familiaridade com a educação escolar é uma frase obscura,
que só a autora poderia esclarecer; já profissão de secretária de nove
anos certamente dá pra entender, apesar das piadas que podem ser
feitas com o sentido dela; daí a revisão. No fim, mais uma observação
obrigatória descontextualizada sobre a superação das barreiras.

Nos dois últimos parágrafos, a revisão pode tentar dar um jeito


no que está meramente encadeado, mas não há dados disponíveis para
tentar agregar um pouco de objetividade e concretude:

Ao fazer o primeiro texto, tive uma decepção, porque eu havia usado


uma técnica bastante conhecida, e ela não funcionara, porém, com
a ajuda do professor e colegas, analisei os problemas que havia na
redação e notei que eu poderia melhorá-la. Após dois meses de aula,

197
gramática e estilo

meus textos não estão totalmente corretos, mas algo brotou dentro
de mim: o prazer também pela escrita.

2.5.3 Os adequados sinais de pontuação distinguem o que está em


sequência do que se liga por outras relações

O abuso da vírgula, próprio do mero encadeamento de frases e de


orações dentro delas, trata os elementos que estão em sequência como
se fossem componentes de um mesmo conjunto, mesmo que não sejam.
É o que faz, nesta frase, a vírgula entre incomodava e por que:

Durante dez anos dei aulas pra meus alunos sem fazer muitos ques-
tionamentos sobre o meu trabalho. Mas uma dúvida sempre me
incomodava, por que eu evitava escrever, fugia da escrita?

Durante dez anos dei aulas pra meus alunos sem fazer muitos ques-
tionamentos sobre o meu trabalho. Apesar disso, uma dúvida sempre
me incomodava: por que eu evitava escrever, fugia da escrita?

Vamos ver como ficou o texto reescrito:

Aos seis anos de idade, ainda antes de eu ir para a escola, meu


pai, que tinha cursado até a terceira série primária, começou a me
alfabetizar. Com seu jeito autoritário, fez com que eu aprendesse
alguma coisa, mas, acima de tudo, me ensinou a ter persistência
naquilo que se deseja.
Ao entrar na escola achei tudo muito difícil; como meu pai trabalhava
em outra cidade, só me restava pedir ajuda à minha mãe, que não
sabia ler nem escrever. Ela me ajudava como podia: me incentivava
dizendo que eu ia conseguir, rezava, fazia promessa para eu passar
de ano.
Meu pai, certa vez, me colocou numa situação difícil. Ele estava no
laboratório da Corsan, onde trabalhava como ferreiro, com o seu
colega que chefiava o laboratório, quando eu cheguei. Então, meu
pai mandou que eu lesse uma palavra que estava escrita em um dos
vidros da sala. Um medo tomou conta de mim, pois senti que estavam

198
gramática e estilo

me testando, me analisando, e eu não podia decepcionar. Olhei a


palavra e era diferente de tudo que eu tinha lido até aquele momento;
depois de alguns segundos, soletrei a palavra corretamente. Com
alegria vi um largo sorriso de satisfação em meu pai, recebi elogios
de seu colega e pude perceber como era importante ler.
Continuei estudando, sempre passando de ano. As escolas que eu
frequentava não tinham biblioteca, nem meu pai tinha dinheiro para
comprar livros ou jornais. Então, quando cheguei à quarta série,
comecei a ler gibis, revistas com fotonovelas, tudo que me empres-
tavam eu ia lendo; ao terminar, começava a reler. Assim descobri o
prazer da leitura. Com onze anos de idade, descobri uma biblioteca
na escola vizinha, e aí foi o máximo: eu lia dois livros por semana.
Na metade do ano eu já tinha lido todos os livros indicados para a
minha idade, mas não parei por aí: a mina era grande, e eu pretendia
conhecê-la toda.
Quando cheguei no segundo grau, fui obrigada a ler determinados
livros impostos pelos professores. Percebi então que existiam leituras
que não eram nada interessantes, mas, se era pra ler, eu lia, o que
não me impedia de ler também o que eu gostava. Por isso, eu lia
bastante: para fazer os trabalhos escolares, por lazer ou para me
informar. Nessa época, a maior parte do tempo eu ficava com um
livro nas mãos. Minha mãe, antes de dormir, passava no meu quarto
e mandava desligar a luz para não aumentar a conta da CEEE.
Todos diziam que eu estudava demais e acabaria ficando doente. Ao
terminar o segundo grau, resolvi parar um ano já que todos diziam
que eu estava cansada e até adoeci para não decepcionar a maioria.
Eu não conseguia entender por que meus pais se incomodavam com
o meu estudo e com o meu esforço e ficavam tão preocupados porque
minhas irmãs eram reprovadas de ano e não mostravam interesse
pelos estudos.
Cresci vendo minha mãe dizer que eu ia ser professora: ela dizia
que era porque o lugar onde morávamos não tinha professores, mas
acho que ela estava depositando em mim o seu sonho não realizado
de estudar.
Depois de um ano parada sem ir para a escola, resolvi fazer o vesti-
bular para entrar na faculdade de Letras. Minha dificuldade maior
era a redação, pois eu não conseguia escrever com clareza minhas

199
gramática e estilo

ideias. Estudei bastante e me senti viva novamente com livros, cader-


nos e colegas. Passei a me dedicar dia e noite fazendo de conta que
não ouvia as recomendações das pessoas dizendo que eu exagerava
nos estudos. Foi maravilhoso: passei no vestibular.
O primeiro ano de faculdade foi muito difícil, pois eu trabalhava
durante o dia e estudava à noite numa outra cidade. Fiquei doente,
tive uma rápida depressão, mas não desisti. Mais tarde, durante o
curso e o estágio, senti certa familiaridade com a educação escolar.
Ao receber uma proposta para lecionar, tive dúvidas em trocar o
trabalho de nove anos como secretária pelo de professora. Como a
proposta se adaptava à nova vida que eu escolhera, não pensei muito
na época, já que eu ia me casar e tinha terminado o curso de letras.
Durante dez anos dei aulas pra meus alunos sem fazer muitos ques-
tionamentos sobre o meu trabalho. Apesar disso, uma dúvida sempre
me incomodava: por que eu evitava escrever, fugia da escrita? Com
muita esperança de enfrentar essas dificuldades, entrei no curso de
pós-graduação. Para minha surpresa e alívio, descobri que não existe
um modelo para seguir, pois temos condições de escrever e superar
as barreiras criadas ao longo de nossa vida.
Ao fazer o primeiro texto, tive uma decepção, porque eu havia usado
uma técnica bastante conhecida, e ela não funcionara, porém, com
a ajuda do professor e colegas, analisei os problemas que havia na
redação e notei que eu poderia melhorá-la. Após dois meses de aula,
meus textos não estão totalmente corretos, mas algo brotou dentro
de mim: o prazer também pela escrita.

Em síntese, se é verdade que escrevemos botando uma frase depois


da outra, também é verdade que já descobrimos, há tempo, que não basta
apenas botar uma frase depois da outra e apenas botar uma oração depois
da outra dentro de uma frase para expressarmos o que queremos dizer.
Por isso, há tempo, inventamos outros procedimentos mais eficazes para
organizar nossos textos, nossas frases, nossas orações e até mesmo as
palavras dentro dessas orações.
Se a gente se ligar em relações básicas como pertinência a um
mesmo conjunto, estágios de um mesmo processo, causa e efeito,

200
gramática e estilo

declaração e explicação, equivalência, finalidade e mobilizarmos os


procedimentos de controle de encadeamento e de orientação do leitor ao
longo do texto, estaremos aparelhados para reescrever.

201
gramática e estilo

COORDENAÇÃO

A revisão que fizemos, no fim do capítulo anterior, do texto da moça


que relata o papel do pai e o da mãe no seu processo de alfabeti-
zação e as suas broncas com a produção de textos mostrou que o mero
encadeamento não é capaz de dar conta das relações mais complexas que
percebemos entre fatos e suas causas e consequências ou entre ações que
os fatos nos levam a executar e o que julgamos que sejam decorrências
dessas ações. Vimos então, que são necessários outros recursos expres-
sivos para tratar do que acontece simultaneamente, ou do que é parte de
um todo e, como tal, se relaciona às outras partes do mesmo todo, ou,
ainda, para tratar do que causou e do que foi causado. Em busca desses
recursos, chegamos à coordenação e à subordinação.

3.1 O CONJUNTO E OS SEUS ELEMENTOS

Neste capítulo, vamos tratar da coordenação; comecemos por exa-


minar estes dizeres pintados na parede de uma lancheria na esquina da
rua São Luís com a rua Monsenhor Veras, em Porto Alegre:

FRANGOS E ASSADOS

Trata-se de uma coordenação estranha mesmo para quem não está


com a cabeça de algum modo ocupada com as construções coordenadas

202
gramática e estilo

e com a postulação de conjuntos, que é a intenção do processo da coor-


denação. É justamente porque esses dizeres estão escritos na parede de
uma lanchonete para serem lidos pelos possíveis e pretendidos fregueses
que vamos nos empenhar em entender o seu significado. Poderíamos até
mesmo adentrar o estabelecimento e perguntar no balcão o que frangos e
assados quer dizer, mas a gente não costuma fazer isso, principalmente
por sabermos que a língua escrita foi inventada justamente para aqueles
casos em que o enunciador não está presente e, por isso, está indisponível
para uma consulta dessas. Nesse caso, é até possível que estivesse, mas
poderia não estar preparado para receber um questionamento desses.
Poderíamos também cumprir o protocolo tradicional, que manda
deplorar a ignorância do dono do boteco e seguir em frente, mas nos
proibimos do protocolo tradicional. Se o leitor for versado em sintaxe,
pode acrescentar ao comentário que o substantivo – frangos – coordenado
ao adjetivo (no caso, em forma de particípio) – assados – configura um
falso paralelismo. A gente (incluindo aqueles que se deixaram conven-
cer de que a denúncia de um erro gramatical encerra o assunto) sabe, no
entanto, que ali, naquela parede, anunciando o que se pode encontrar lá
dentro, está um texto – uma instância de uso da linguagem para produzir
sentido para aqueles leitores que o seu autor pretende como fregueses. E
texto é uma coisa que a gente (nós mais aqueles) acaba por reconhecer
como tal e, por isso, bota sentido nele.
O mínimo que fazemos é considerar, por causa daquele E, que
lá dentro podemos encontrar algo mais do que frangos para comer no
balcão ou sentados ao redor de uma daquelas mesinhas. Esse algo mais
são os assados, que podemos também comer ou levar para comer em
casa. Podemos mobilizar nossos conhecimentos a respeito do assunto:
sabemos, por exemplo, que, nesses estabelecimentos, os frangos não
costumam ser servidos menos do que assados, isto é, nem fritos, nem
cozidos, nem, menos ainda, crus, e isso nos leva à conjetura de que lá
dentro estão disponíveis, além de frangos assados, assados, ou seja,
frangos assados e outras coisas assadas.

203
gramática e estilo

Como não são só as palavras que nos fazem botar sentido num texto,
podemos recorrer, também ao que sabemos a respeito, por exemplo, da
história, mais ou menos recente, desse tipo de comércio de alimentos na
cidade. Sabemos que, naqueles grandes fornos elétricos com portas de
vidro, que, com alguma crueldade, batizamos de televisão de cachorro,
os primeiros assados que ficaram historicamente disponíveis foram as
galinhas. Só mais recentemente, depois que passamos a chamar galinha
assada pela generalizada designação brasileira de frango assado, é que
algumas lancherias mais criativas passaram a assar ali também salsi-
chões, costelas, picanhas, maminhas, lombos de porco e outros pedaços
de carne além dos de frango. Alguns assam polenta também. Esse co-
nhecimento histórico apoia a interpretação produzida pela sintaxe e pelo
nosso senso comum a respeito de comida que podemos comprar pronta:
trata-se dos mesmos frangos assados de sempre e desses outros assados
relativamente novos.
Para os que não se contentam apenas em botar esse sentido assim,
digamos, pragmático no cartaz para singelamente catalogarem na me-
mória mais um endereço a que recorrerem em caso de necessidade, a
gente pode ir um pouco mais longe e conjeturar que a palavra outros não
foi escrita porque, bem mais antigamente do que quando se começou a
assar galinhas na porta das lancherias, quase que só se assava (em casa,
no forno ou na churrasqueira, ou em restaurantes) essas outras coisas,
pois galinha assada era coisa rara, de dia de festa, ou seja, assado, assim
sozinho, como substantivo, designava aquelas outras coisas assadas. A
novidade, a galinha, é que precisou (principalmente depois que passou a
ser chamada de frango) do assado como adjetivo. É claro que o cara que
escreveu ou que mandou escrever isso não desenvolveu todo esse racio-
cínio, que não faz nenhuma falta pra ele. Ele, simplesmente mergulhado
na corrente da comunicação verbal36, considera que precisa anunciar os
36 “Na verdade, a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evo-
lutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na
corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que
sua consciência desperta e começa a operar. É apenas no processo de aquisição de uma língua

204
gramática e estilo

assados que passou a produzir, além dos frangos assados que já produzia.
Além de não se usa em anúncios desse tipo; o que se usa é e. Para o leitor,
sobra mobilizar o que já aprendeu que precisa mobilizar para entender o
que está escrito onde está escrito. Assim é a comunicação verbal: ela nos
obriga a considerar que, coordenados por um e, frangos e assados passam
a pertencer a um mesmo conjunto, em que assado deixa de expressar um
estado em que se transforma o cru depois de ser processado pelo fogo e
passa a ser uma coisa da mesma laia que frango, sem ser frango. Obri-
gados a construir sentido a partir disso, nós nos viramos para encontrar
um jeito de botar sentido nisso. E a gente encontra.
Encontra sentido porque a coordenação tem sentido, produz sentido.
Vamos ver como: estas duas frases incompletas têm em comum uma
palavra incomum:

Neste mundo existem umas pessoas mais pazistas...

Os pazistas só entram em ação amanhã de manhã...

Pazistas não é uma palavra comumente usada; por isso, não vai
faltar quem pergunte se essa palavra existe nem quem conjeture se ela
está no dicionário, o que, para muita gente, é uma espécie de registro
civil das palavras. Não estando no dicionário, não havendo por perto
quem já tenha sido apresentado a ela, o máximo que podemos constatar
é que parece uma palavra formada por mecanismos regulares da língua.
Sendo assim, nenhuma das duas frases nos dá condições de atribuir um
sentido a ela. A coordenação poderia nos dar a chave:

Neste mundo existem umas pessoas mais pazistas e outras mais


agressivas.

estrangeira que a consciência já constituída – graças à língua materna – se confronta com uma
língua já toda pronta, que só lhe resta assimilar. Os sujeitos não adquirem sua língua materna;
é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência.” VOLÓSHINOV,
Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 108.

205
gramática e estilo

Os pazistas entram em ação amanhã de manhã, e hoje trabalham os


enxadistas para soltarem a terra que vai ser jogada dentro do caminhão.

Umas mais isto e outras mais aquilo é uma construção que esta-
belece contrastes entre elementos de um mesmo conjunto; sabendo o
sentido de agressivo e atentando para a possibilidade de que paz seja o
radical do outro termo do contraste, postulamos que -ista seja o sufixo
que indica partidário de alguma coisa que vem antes e descobrimos que,
na primeira frase, pazista opõe-se a agressivo porque é o adepto da paz.
Na segunda frase, o adjetivo ou substantivo pazistas é inserido no mesmo
conjunto a que pertence enxadistas, palavra que nos dá acesso a enxada;
percebemos, então, que pazistas, nesta frase, deriva de pá e designa o
trabalhador (substantivo) que a maneja. É assim que a coordenação faz
funcionar a nossa capacidade de produzir sentido.
A seguir, vamos pôr em evidência alguns aspectos peculiares da
coordenação, começando pela pontuação, que – não é demais repetir
para repelir de vez as tão antiquadas instruções para as pausas na leitu-
ra – orienta o olho do leitor para que ele reconheça com maior precisão
a relação que o autor quis estabelecer entre frases, orações e palavras.
Como já vimos, uma das características do mero encadeamento é o uso da
vírgula como sinal de pontuação final de oração (e até mesmo de frase),
o que confunde o leitor que vai ler a oração seguinte como se ela fosse
apenas mais um elemento do conjunto a que pertence a oração anterior.
Vamos examinar estas frases em que a vírgula é indevidamente
usada para separar o que não pertence ao mesmo conjunto:

1 No começo eu dava algumas moedas, nosso dinheiro valia muito


naquele país.

As orações separadas por vírgula não mantêm entre si relações de


coordenação: para não desorientar o leitor, convém usar dois-pontos
porque a segunda oração explica a primeira.

206
gramática e estilo

1a No começo eu dava algumas moedas: nosso dinheiro valia muito


naquele país.

2 A estudante de Ciências Jurídicas gostava muito de sair com amigos,


só não queria saber de namoros, dizia com muito bom humor que
namoraria quando conhecesse bem os seus direitos.

Se considerarmos só não como um limite confiável de oração, pode-


mos manter aquela vírgula. Já a oração dizia com muito bom humor não
expressa um elemento do mesmo conjunto do que vem antes. É melhor
separá-la por um sinal de pontuação final. Como dizia com muito bom
humor que dá uma explicação do que foi expresso pela anterior, o sinal
de dois-pontos fica bem:

2a A estudante de Ciências Jurídicas gostava muito de sair com ami-


gos, só não queria saber de namoros: dizia com muito bom humor
que namoraria quando conhecesse bem os seus direitos.

Quem acha que só não não é um limite confiável de oração e quer


enfatizar, no fim da frase, a consequência em vez da causa, pode fazer
assim:

2b A estudante de Ciências Jurídicas gostava muito de sair com ami-


gos; só não queria saber de namoros. Dizia com muito bom humor
que, quando conhecesse bem os seus direitos, namoraria com todos os
colegas da faculdade.

3 Isso estava me deixando louco, não sabia mais o que fazer.

A segunda oração expressa uma consequência do que diz a primeira,


o que é um bom motivo para o uso de dois-pontos:

3a Isso estava me deixando louco: não sabia mais o que fazer.

207
gramática e estilo

4 Em geral sou cautelosa, não corro muito e fico atenta para não
causar transtornos aos demais motoristas.

Sou cautelosa anuncia o conjunto, cujos elementos são não corro


muito e fico atenta para não causar transtornos. Dois-pontos depois
de cautelosa garante essa distinção entre a designação do conjunto e os
seus dois elementos, que, no pensar do autor do texto em que está esta
frase, caracterizam uma pessoa cautelosa no trânsito. O e estabelece essa
relação de pertinência entre eles.

4a Em geral sou cautelosa: não corro muito e fico atenta para não
causar transtornos aos demais motoristas.

5 Ela era incrivelmente exigente, passava tema todos os dias, revisava


cada caderno na manhã seguinte, aplicava uma prova por semana,
mandava ler pelo menos dois livros por mês.

Há aqui a caracterização de uma pessoa como exigente, e essa


caracterização se justifica por meio de um conjunto de ações que ela
executava comumente. Dois-pontos fazem a separação entre o nome que
caracteriza e o elenco das ações que justificam esse nome:

5a Ela era incrivelmente exigente: passava tema todos os dias,


revisava cada caderno na manhã seguinte, aplicava uma prova por
semana, mandava ler pelo menos dois livros por mês.

Exercício 5

Reescreva estas frases, com atenção especial à pontuação:

1. Estudava em uma instituição militar, cursava o segundo semestre,


fazia o treinamento para meu primeiro salto de paraquedas.

208
gramática e estilo

2. Chegava o entardecer, mal tínhamos coragem de jantar e tomar


banho.
3. Sempre me considerei um cara cético, daqueles que fazem questão
de passar por debaixo de escadas, ler o horóscopo, então, nem pensar; en-
fim todo o tipo de ação que contradiga as superstições e crenças populares.
4. Nunca me senti tão injustiçado como no dia em que a polícia me
prendeu e me agrediu com o pretexto de que eu era um ladrão, mas o
verdadeiro motivo desta agressão era a discussão que eu havia tido com
o filho do delegado alguns dias antes.
5. Márcia olha para fora, remexe-se na poltrona, está sem jeito e
sente-se culpada.
6. Somos, na verdade, comandados pelo relógio, acordamos no ho-
rário marcado, saímos no horário certo, voltamos nesse mesmo horário.

3.1.1 A reordenação do mero encadeamento pela coordenação

Os trechos abaixo, compostos por frases meramente encadeadas,


ficam muito mais claros e expressivos com o uso da coordenação para
relacionar as ideias. Vamos tentar fazer isso.

1 Os jovens de hoje são surpreendentes em suas atitudes. Seus modos


são também bastante chocantes. Além disso, frequentemente rebelam-
-se contra seus pais.

O assunto comum às frases encadeadas são os jovens de hoje, sujeito


expresso da primeira frase e indicado pela desinência do verbo na terceira
pessoa. Já a segunda frase tem como sujeito seus modos, referindo-se aos
mesmos jovens e atribuindo-lhes uma outra característica: chocantes. A
terceira frase expressa a característica que atribui ao sujeito por meio de
um verbo – rebelam-se. Cada uma das três frases, portanto, atribui uma
característica aos mesmos jovens de hoje. Para expressar esse conjunto

209
gramática e estilo

de características por meio da coordenação, basta dar aos jovens de hoje a


função de sujeito da frase e organizar o predicado usando a conjunção e:

1a Os jovens de hoje são surpreendentes em suas atitudes, chocantes


em seus modos e frequentemente rebeldes contra seus pais.

2 O desenvolvimento da Ciência ensinou-nos muita coisa a respeito de


nossa vida biológica. É graças a ela que vemos também a sociedade
com maior clareza.

Temos duas frases a respeito do desenvolvimento da ciência; pode-


mos, pois, construir apenas uma por coordenação:

2a O desenvolvimento da Ciência ensinou-nos muita coisa a respeito


de nossa vida biológica e da sociedade em que vivemos.

3 Bom aproveitamento na faculdade depende de bons hábitos de es-


tudo. Um candidato a bom aluno também precisa aprender a resistir
a um convite para tomar chope quando estudar é mais importante.
Alguma inteligência também vai ser um instrumento indispensável.

Estão aqui expressos os elementos do conjunto bom aproveitamento


na faculdade. Trata-se de coordená-los na mais adequada ordem, que
costuma ser a que leva do menor para o maior:

3a Bom aproveitamento na faculdade depende de alguma inteligên-


cia, de bons hábitos de estudo e da habilidade de resistir a um convite
para tomar chope quando estudar é mais importante.

4 Excesso de população é um dos graves problemas das cidades


grandes. Outro fator que também as prejudica é a falta de dinheiro.
Além disso, elas não têm planejamento adequado.

210
gramática e estilo

São três os problemas das cidades grandes. Trata-se de expressá-los


da forma mais adequada para um conjunto:

4a As cidades grandes sofrem com o excesso de população, com


a falta de dinheiro e com a inadequação dos seus planejamentos.

Exercício 6

Reescreva estas frases:

1. Esqueci de dizer que eu podia acompanhar a vida de meus colegas


devido a minha faculdade de ler seus pensamentos, era fantástico, ficava
sabendo cada coisa.
2. Só que comigo não deu muito certo, eu não gostava da aula de
piano, não gostava de ler partitura nem de estudar.
3. Clara é professora de Português e trabalha em uma escola pública
da capital. Seu dia, assim como o da maioria da classe, inicia bem cedo.
Mas, apesar de todas as dificuldades, não se queixa, acredita no que faz,
é idealista e persistente.
4. Ela era superdescontraída, a gente sentia que ela gostava do que
fazia, e isso passa ânimo para o aluno. Ela tinha ideias para nos avaliar
e contava para nós, ela deixava a gente fazer a aula junto com ela, isso
nos dava motivação para estudar. Ela nos fazia ler algumas obras con-
sagradas, porém, nos dava um leque de opções, então, em certa medida,
escolhíamos o que iríamos ler, não necessitávamos fazer fichas de leitura,
nem tampouco éramos obrigados a gostar do que líamos.

3.1.2 Do encadeamento à coordenação: parágrafos, frases, orações,


conjuntos

Vamos examinar este texto:

211
gramática e estilo

1 Meu nome é E, tenho 21 anos, sou nascida em MU, moro com meus
pais. Comecei a frequentar a escola aos seis anos de idade, quando entrei
na pré-escola (1993) já sabia escrever meu nome completo e reconhecia
algumas letras, antes de entrar para a escola não tinha muito contato
com livros, porém muito incentivo para estudar, pois meus pais sempre
estiveram presentes em minha vida escolar, nas reuniões escolares a
frequência dos mesmos era constante.
2 Então, passei para a primeira série (1994), e o incentivo para a
escrita e a leitura de pequenos textos começou a nascer, pois convivia
com outros colegas que já sabiam ler e escrever e eu também queria
saber, quando eu chegava em casa, meu pai e minha mãe sempre re-
visavam meus cadernos e me ajudavam a fazer as tarefas, sempre com
motivação e entusiasmo, comecei a escrever palavras novas, gostava
de pintar figuras em livros e já tinha aprendido a ler pequenos textos.
3 Quando eu estava na primeira série do ensino fundamental,
aconteceu algo que poderia ser confuso para mim e para os colegas,
que foi a troca de professores, pois nesta época tive quatro professoras,
confuso porque na alfabetização que tem que ter todo um cuidado e uma
metodologia adequada, era estranho para eu ter que se despedir de uma
professora para seguir o ritmo de outra, mas felizmente deu tudo certo
e minha alfabetização não foi prejudicada.
4 Minhas notas e meus pareceres sempre foram muito bons, pois era
muito determinada e sempre fazia as tarefas propostas, gostava muito
de ler e conhecer palavras novas, porém não gostava de copiar textos
imensos dos “famosos livros didáticos”, ou então fazer um texto o qual
as professoras chamavam de redação de tema livre, pois isto para mim
não era ter aula, gostava de conteúdo exposto no quadro para copiar.
5 Sempre tive boa relação com os professores e colegas, gostava de
fazer trabalhos em grupo para assim corrigir os colegas, isto é, sempre
gostei de revisar, corrigir a ortografia e as redações dos colegas.

212
gramática e estilo

6 No primeiro ano do ensino médio (2002), outro transtorno es-


colar, ou seja, mais uma vez ocorreu a troca de professor, pois neste
ano eu tive quatro professores diferentes de Língua Portuguesa, pois
cada uma que chegava desconsiderava o conteúdo da professora
anterior e começava novamente com a redação de tema livre, para
depois entrar em um dado conteúdo, porém mesmo assim consegui ter
boas notas, o acesso com os livros, a leitura e a escrita já estava em
crescente, pois no final do ensino médio tinha que fazer vestibular e
ler livros, fazer uma boa redação para ser aprovada, essa leitura e
escrita não era problema.
7 É sempre importante ressaltar, que o convívio com meus pais e a
vida escolar sempre estavam juntas. Na graduação (2005), nas discipli-
nas de Literatura principalmente, ler era praticamente obrigatório. Nos
estágios, preparar as aulas, corrigir textos e interpretações diversas era
muito complexo, porém gratificante de ensinar coisas novas, ver que os
alunos estavam entendendo e tirando suas dúvidas.
8 Agora na Especialização (2008), novamente escrita e muita
leitura, pois acredito que esses elementos são fatores essenciais para
a formação de um bom profissional, seja o mesmo professor de Língua
Portuguesa, de Matemática, ou um médico.

Neste escrito há quase uma equivalência entre parágrafo e frase:


só o primeiro e o sétimo parágrafos têm mais de uma frase: o primeiro
tem duas, e o sétimo tem três. Percebe-se também imediatamente que
apenas a primeira frase do primeiro parágrafo e as três frases do sétimo
não são frases superpovoadas de orações tratando de vários assuntos.
Essa equivalência entre parágrafo e frase anula o papel dos parágrafos
como grupos de frases que tratam de um dos aspectos em que o escritor
divide o tratamento do tema geral do texto. Do mesmo modo, frases
superpovoadas anulam o papel da frase como unidade de tratamento de
um assunto: é um escrito composto por mero encadeamento.

213
gramática e estilo

Há, além disso, uma estranha contradição entre o ordenamento


temporal da história contada – antes da pré-escola, a pré-escola, a pri-
meira série, o primeiro ano do ensino médio, a graduação, a especiali-
zação – e o conteúdo tratado, que não é a evolução da vida escolar da
autora. O que está destacado são as características constantes em seu
desempenho escolar: (1) a dedicação, o empenho, o entusiasmo, a boa
relação com professores e colegas, (2) a recorrência de um problema
que lhe pareceu ser mais grave em sua trajetória – a troca de professores
na primeira série do ensino fundamental e na primeira série do ensino
médio – e (3) a constante ajuda dos pais.
O exercício a fazer é verificar se um ajuste na pontuação vai me-
lhorar a apresentação do escrito, especialmente na pontuação final de
frase e de oração. Vamos subdividir as frases superpovoadas, ajustar a
pontuação que separa orações dentro da frase para distinguir entre o que
está em sequência, o que está formando conjuntos e o que se relaciona
por outros nexos.
Meu nome é E, tenho 21 anos, sou nascida em MU, moro com meus
pais. Comecei a frequentar a escola aos seis anos de idade.

Aqui há um problema de pontuação final de oração já que a próxima


oração, começada por quando, relaciona-se à seguinte e não à anterior:
quando entrei na pré-escola (1993) já sabia escrever meu nome completo
e reconhecia algumas letras,...
Na sequência se repete o problema anterior: antes de entrar para a
escola não tinha muito contato com livros, porém muito incentivo para
estudar, pois meus pais sempre estiveram presentes em minha vida esco-
lar, – essa vírgula depois de escolar está assinalando indevidamente um
limite entre orações. A explicação do incentivo para estudar que a autora
tinha antes de entrar para a escola é a frequência dos pais nas reuniões
da escola, que só poderiam ter acontecido depois dela ter entrado na
escola – nas reuniões escolares a frequência dos mesmos era constante.

214
gramática e estilo

Vamos revisar este trecho:

Meu nome é E, tenho 21 anos, nasci em MU e moro com meus pais.


Quando entrei na pré-escola, em 1993, já sabia escrever meu nome
completo e reconhecia algumas letras, embora ainda não tivesse muito
contato com livros. Ao entrar na escola, aos seis anos de idade, recebi
muito incentivo para estudar dos mais pais, que, sendo frequentes nas
reuniões escolares, sempre tiveram presença na minha vida de estudante.
Então, passei para a primeira série (1994), e o incentivo para a
escrita e a leitura de pequenos textos começou a nascer, pois convivia
com outros colegas que já sabiam ler e escrever e eu também queria
saber, – estas orações têm um tema comum, que é o aprendizado da
leitura e da escrita; cabem, portanto em uma só frase.
Quando eu chegava em casa, meu pai e minha mãe sempre revi-
savam meus cadernos e me ajudavam a fazer as tarefas, sempre com
motivação e entusiasmo – essas três orações também compõem uma
outra frase, com outro tema: a ajuda da mãe e do pai.
Comecei a escrever palavras novas, gostava de pintar figuras em
livros e já tinha aprendido a ler pequenos textos. Este parágrafo vem
tratando de língua escrita; por isso, gostava de pintar figuras em livros,
em vez de ficar no meio da lista, fica mais bem colocado no fim, como
uma outra atividade. Uma revisão pode ser esta:
Na primeira série, o incentivo para a escrita e a leitura de pequenos
textos aumentou com o convívio com outros colegas já alfabetizados.
Quando eu chegava em casa, meu pai e minha mãe sempre revisavam
meus cadernos e me ajudavam a fazer as tarefas; entusiasmada, escrevia
palavras novas, lia pequenos textos e também pintava figuras em livros.
Quando eu estava na primeira série do ensino fundamental, acon-
teceu algo que poderia ser confuso para mim e para os colegas, que foi
a troca de professores, pois nesta época tive quatro professoras, confuso

215
gramática e estilo

porque na alfabetização que tem que ter todo um cuidado e uma me-
todologia adequada, era estranho para eu ter que se despedir de uma
professora para seguir o ritmo de outra, mas felizmente deu tudo certo
e minha alfabetização não foi prejudicada.

Esta imensa frase tenta dar conta de algo mais do que um relato de
fatos: esta frase parte de um fato – a troca de professores –, que leva a
escritora a conjeturar que isso poderia ter prejudicado a sua alfabetização
e a justificar essa conjetura com a afirmação de que alfabetizar exige um
cuidado incompatível com esse rodízio de professoras.
Tal receio, no entanto, revelou-se infundado já que o seu processo
de alfabetização nada sofreu com o que tanto poderia ter sofrido. O
relato do que poderia ter acontecido mas não aconteceu talvez fosse um
depoimento significativo numa discussão a respeito de alfabetização.
Desse modo, poderia interessar os leitores deste texto – alunos de um
curso de especialização em ensino de língua portuguesa – se tal dificul-
dade tivesse sido real e se a autora se dispusesse a fornecer os dados
necessários a respeito de sua experiência com ela para que os leitores
pudessem entendê-la para acompanhar a reflexão que ela faria a partir
desses dados. Não é o caso: a narradora conta que superou um obstáculo
que não existiu.
Há um problema gramatical interessante em era estranho para eu
ter que se despedir de uma professora para seguir o ritmo de outra:
trata-se de uma ultracorreção a partir de uma regra que prescreve a for-
ma reta e não a oblíqua em pronomes em função de sujeito antecedidos
de preposição. Na verdade, o sujeito da oração é ter que se despedir de
uma professora para seguir o ritmo de outra, isto é, um sujeito oracio-
nal. Isso – ter que me despedir de uma professora para seguir o ritmo
de outra – era estranho para mim; para mim, portanto, é um adjunto
adverbial, parte do predicado da oração e deve ser escrito assim mesmo:
para mim e não para eu.

216
gramática e estilo

Revisamos a frase, transformando-a em três:

Ainda nesse ano, tivemos três trocas de professora. Isso poderia ter
sido prejudicial para mim e para meus colegas porque aconteceu
justo no ano em que se deveria ter todo um cuidado e uma metodo-
logia adequada para uma boa alfabetização. Era estranho ter que
se despedir de uma professora para seguir o ritmo de outra, mas,
felizmente, deu tudo certo, e meu aprendizado não foi prejudicado.

Nos dois parágrafos seguintes aparecem alguns conjuntos com seus


elementos intercalados: características pessoais, o que ela gostava, o que
não gostava. Se os conjuntos forem apresentados como tal em vez de
terem seus elementos intercalados com os de outros conjuntos, ficam
mais inteligíveis.

Ao longo do ensino fundamental, minhas notas e meus pareceres


sempre foram muito bons: eu me relacionava muito bem com os
professores, era muito determinada e sempre fazia as tarefas propos-
tas. Investindo na leitura, eu expandia meu vocabulário. Gostava de
fazer trabalhos em grupo para assim corrigir a ortografia e revisar
as redações dos colegas, com os quais sempre tive uma boa relação.
Só não gostava de copiar textos imensos dos famosos livros didáticos
nem de fazer as redações de tema livre. Como gostava de conteúdo
exposto no quadro para copiar, aquilo para mim não era ter aula.

No primeiro ano do ensino médio (2002), outro transtorno escolar,


ou seja, mais uma vez ocorreu a troca de professor, pois neste ano eu
tive quatro professores diferentes de Língua Portuguesa, pois cada
uma que chegava desconsiderava o conteúdo da professora anterior
– esses dois pois estão sendo usados de modo, no mínimo, incomum:
ter tido quatro professores não é nem explicação nem causa da troca;
poderia ser o contrário. Cada um deles desconsiderar o conteúdo
dado pelo anterior também não é causa de ter tido quatro professores
e também o contrário não é causa do que vem antes. Foi, mais uma
vez, o relato de um problema que não houve: porém mesmo assim
consegui ter boas notas.

217
gramática e estilo

Segue-se um relato atropelado – o acesso com os livros, a leitura e a


escrita já estava em crescente – onde encontramos esse estranho conjun-
to, que parece um sujeito composto de estava. A falta de concordância,
no entanto, parece desmentir isso, e a estranha expressão em crescente
não ajuda. Mas a gente “entende” e revisa; afinal, o relato leva à mesma
revelação de sempre: não era problema.

No primeiro ano do ensino médio, outra vez o mesmo transtorno


escolar: tive quatro professores diferentes de Língua Portuguesa, e
cada um que chegava desconsiderava o conteúdo do professor ante-
rior, começando novamente com a redação de tema livre para depois
entrar em uma dada matéria. Mesmo assim, consegui ter boas notas,
devido ao contato constante com os livros, a leitura e a escrita, o que
também me ajudou, futuramente, a fazer o vestibular.

É sempre importante ressaltar, que o convívio com meus pais e a


vida escolar sempre estavam juntas. Esta frase genérica está desconec-
tada tanto do que vem antes quanto do que vem depois. Na graduação
(2005), nas disciplinas de Literatura principalmente, ler era praticamente
obrigatório. E esta frase ultrapassa a anterior em generalidade ao insi-
nuar que ler literatura pode não ser obrigatório. E a frase seguinte, que
faz uma descrição do que todo mundo já sabe – Nos estágios, preparar
as aulas, corrigir textos e interpretações diversas era muito complexo,
porém gratificante de ensinar coisas novas, ver que os alunos estavam
entendendo e tirando suas dúvidas –, há uma coordenação estranha entre
preparar, corrigir e interpretações. São dois verbos e um substantivo.
Se o leitor quiser ser muito cooperativo, ele pode conjeturar que a coor-
denação não é bem essa, mas corrigir textos e (corrigir) interpretações
diversas, seja lá o que queira dizer corrigir interpretações.
O que segue é o lugar-comum da gratificação que vem do trabalho:
porém gratificante de ensinar coisas novas, ver que os alunos estavam
entendendo e tirando suas dúvidas. Outro lugar ocupa o último parágrafo:
Agora na Especialização (2008), novamente escrita e muita leitura, pois

218
gramática e estilo

acredito que esses elementos são fatores essenciais para a formação de


um bom profissional, seja o mesmo professor de Língua Portuguesa, de
Matemática, ou um médico.
Em síntese, o texto foi escrito por mero encadeamento de frases
compostas por orações meramente encadeadas dentro delas. A revisão
não teve outro remédio a não ser reorganizar o que foi escrito.

Já na graduação, principalmente nas disciplinas de Literatura, éra-


mos praticamente obrigados a ler. Nos estágios, se por um lado, era
muito complexo preparar as aulas e corrigir os textos com diversas
interpretações, por outro, era gratificante ensinar coisas novas e
ver que os alunos estavam entendendo o conteúdo e esclarecendo
as suas dúvidas.
Agora na especialização, muita leitura e escrita possuem grande
relevância, pois acredito que esses elementos são fatores essenciais
para a formação de um bom profissional, seja ele um professor de
Língua Portuguesa, de Matemática ou até um médico.

Ao revisar este texto, tal como já tinha acontecido em revisão ante-


rior, foram as orações que nos forneceram elementos para transformar as
frases superpovoadas em frases de temas definidos porque, se as frases
são unidades que estruturam o texto, são as orações que revelam quais
são os assuntos que o escritor mobiliza para tratar do tema do texto.

Exercício 7

Estes trechos tentam formar conjuntos; vamos revisá-los para que


os conjuntos fiquem bem organizados.

1. Ao longo da graduação, tive algumas disciplinas bem voltadas


para o estudo gramatical, mas a maior parte delas envolvia a leitura
de obras literárias (latina, portuguesa e brasileira), a leitura de textos
teóricos dentro da própria Literatura, dentro da Sociologia, Linguística,

219
gramática e estilo

Psicologia da Educação, etc. as quais me possibilitaram entender o ensino


de Português como um exercício que vai além da simples “decoreba”
de regras gramaticais, mas levar o aluno a entender a importância de se
dominar a língua, as estratégias usadas, por exemplo, por publicitários
para atrair seu público-alvo, os recursos utilizados por autores de livros
literários para elaborarem suas obras e discutirem de uma forma original
questões que envolvem a sociedade.
2. Na sexta série tive a professora Leisa, que me marcou por três
razões: uma porque um dia em aula nos ensinou, através de umas palavras
que deveríamos decorar a regra de acentuação das paroxítonas. Dizia
que as paroxítonas terminadas em LINXURÃO eram todas acentuadas;
outra porque costumava fazer uma atividade muito divertida que consistia
em formar um círculo, cada aluno pegar o seu caderno e começar uma
história, que, ao sinal da educadora, era continuada pelo colega ao lado,
e, assim, os cadernos iam passando até chegar novamente ao seu dono
(gosto tanto da atividade que já a fiz com várias turmas que passaram
por mim); e, por fim, pelas festas que ela promovia em sua casa (que era
uma mansão) e que chamávamos de reunião dançante.
3. Discutir sobre o que eu aprendi faz relembrar de coisas que foram
de certo modo mal ensinadas e que hoje pouca coisa mudou, pois se hoje
eu voltar nas escolas em que eu concluí o ensino fundamental e médio, as
professoras serão as mesmas e muito pouco mudou sobre a metodologia
de ensino da língua.
4. Lembro-me dos tempos em que meus avós paternos ainda eram
vivos e dos finais de semana que eles vinham passar na nossa casa. Im-
possível esquecer das muitas vezes que o meu avô perdia a paciência com
seus terríveis netinhos, que, só pelo fato de serem quatro, conseguiam
agitar a vida de um casal de idosos acostumados com a regrada vida
germânica que levavam. Nunca esqueço da minha mãe reclamando que,
sempre que eles iam, as coisas deveriam seguir horários rígidos, coisas
do tipo ter que almoçar às onze e meia e jantar às sete e meia, além de,

220
gramática e estilo

durante as refeições, ter que tentar domar suas quatro feras para que não
ficassem falando durante as refeições.

3.2 O PARALELISMO E OS RECADOS DA FORMA

A expressão formal similar dos elementos ligados por coordenação


ressalta a pertinência desses elementos a um mesmo conjunto e a seme-
lhante função sintática que exercem na frase. O nome que damos a essa
similaridade formal dos elementos coordenados é paralelismo, que é a
qualidade estilística da coordenação. Vamos examinar esta frase:

1 Matriculei-me na disciplina, achei-a muito interessante, fiz os


trabalhos, provas e presença nas aulas.

Identificamos aqui, marcada por vírgulas e e, uma construção co-


ordenada que encadeia cinco elementos: os três primeiros – matriculei-
-me na disciplina, achei-a muito interessante, fiz os trabalhos – estão
expressos em forma de orações. Entre o primeiro elemento e o segundo
– Matriculei-me na disciplina, achei-a muito interessante –, há em co-
mum o mesmo sujeito na primeira pessoa e um mesmo complemento,
expresso como a disciplina na primeira oração e retomado pelo pronome
a (achei-a) na segunda. Nossa experiência de leitura já nos ensinou que
produzimos sentido preenchendo as lacunas – as elipses – de uma oração
com os elementos que têm a mesma função sintática na anterior. O quarto
elemento do conjunto – provas – está em paralelo e semanticamente cor-
relacionado com trabalhos, que é o complemento de fiz. Isso nos leva a
ler fiz os trabalhos (e) fiz provas. Esse paralelismo ficaria mais evidente
se o artigo tivesse sido repetido para reforçar a semelhança da forma: fiz
os trabalhos (e) as provas.
Ao preencher a lacuna para tentar produzir sentido para o último
elemento do conjunto – presença nas aulas –, teremos dificuldade de
admitir que se diga sem ironia algo como fiz presença nas aulas, o que

221
gramática e estilo

significaria que o narrador está dizendo que procurou chamar a atenção


do professor para o fato de que estava presente nas aulas.
Se o escritor, ao ler o que escreveu para verificar se ali está ex-
presso, com a clareza necessária, o sentido que ele quer que o seu leitor
produza, descobrir que o paralelismo não se estabelece entre todos os
complementos do verbo fiz, ele vai precisar estabelecer o paralelismo
por outra similaridade de forma e, consequentemente, por outra função
sintática. O paralelismo que não se dá entre os complementos pode se
dar, por exemplo, entre as orações:

1a Matriculei-me na disciplina, achei-a muito interessante, fiz os tra-


balhos, as provas e estive presente em todas as aulas (ou na maioria
das aulas, ou em 70% das aulas, ou...).

Deste modo, fica claro que há coordenação entre quatro orações –


matriculei-me..., achei-a ..., fiz... e estive... – e entre dois complementos
de um verbo – fiz os trabalhos e as provas –, ou seja, há uma coordenação
dentro da coordenação.
O escritor pode também simplesmente não revisar o que escreveu
ou revisar e achar que, assim como estava, dá pra entender. Não revi-
sando, ele corre o risco de não perceber que produziu algo que não dá
pra entender de jeito nenhum. Revisando e deixando como está, ele tem
razão: leitor não gosta de admitir que não entendeu o que está lendo e
acaba considerando que, assim como estava, dá pra entender.
O escritor pode, contudo, ponderar que também há leitor que não
gosta do que meramente dá pra entender e que, por causa disso, vai botar
na conta do escritor o desconforto causado pelo rastro de dúvida que o
dá pra entender sempre deixa, e esse desconforto é cumulativo ao longo
do texto. O leitor acaba desgostando-se com os textos que o obrigam a
conceder-lhes muitos dá pra entender porque o leitor, afinal de contas,
está trabalhando para produzir sentido com o material que o texto for-

222
gramática e estilo

nece. Se o texto não fornece o material necessário, o leitor recorre ao


conhecimento que ele já adquiriu de vivências ou de leituras anteriores
para botar um sentido apenas presumido nesse texto obscuro, confuso,
vago, desnorteado que está lendo.
Vamos retomar um caso que vimos em 2.4 Para fazer fluir a leitura
do que se encadeia. Lá diz assim: a vírgula não é um adequado sinal de
pontuação final de oração até por ser muito fortemente contaminada,
em nossa prática de interpretação do que lemos, pela primeira regra de
vírgula que aprendemos na vida: a vírgula que separa elementos de uma
série. Um dos exemplos dados lá é este:

A escola era constituída por uma sala de aula, um pequeno cômodo


com materiais da escola, como livros didáticos, mimeógrafo, giz,
mapas geográficos, as 25 classes para os alunos e um quadro-negro,
uma cozinha, dois banheiros para os alunos e a sala dos professores.

Reconhecendo as limitações da pontuação para esclarecer que, nesta


complexa lista dentro de outra lista, um pequeno cômodo com materiais
da escola não é uma outra peça da escola além da sala de aula, propu-
semos esta revisão:

A escola era constituída por uma sala de aula, que era um pequeno
cômodo com materiais da escola, como livros didáticos, mimeógrafo,
giz, mapas geográficos, as 25 classes para os alunos e um quadro-
-negro, por uma cozinha, por dois banheiros para os alunos e pela
sala dos professores.

Deixamos, assim, bem claro que que era um pequeno cômodo é uma
caracterização dessa sala de aula e ressaltamos a pertinência de sala de
aula, cozinha, dois banheiros e sala de professores ao mesmo conjunto
usando a preposição por antes de cada um dos elementos desse conjunto
para estabelecer o paralelismo entre essas peças da escola.

223
gramática e estilo

Vamos examinar outros casos de paralelismo problemático ou de


falta de paralelismo:

2 Sonhava que ele voltaria e com a felicidade que sentiria então.

Esta frase é clara, mas fica mais simples e ainda mais clara se os
elementos coordenados forem construídos paralelamente:

2a Sonhava com sua volta e com a felicidade que sentiria então.


2b Sonhava que ele voltaria e que, então, ela seria feliz

3 No poema em estudo podemos notar o uso de vocábulos difíceis e


que as coisas nunca são ditas diretamente.

Nem sempre é possível produzir duas versões como fizemos na


frase anterior porque na língua não há uma correspondência regular
entre nomes e verbos:

3a Podemos notar que no poema em estudo são usados vocábulos


difíceis e que nele as coisas nunca são ditas diretamente.

4 Eu sentia uma enorme necessidade de estudar, em ser a primeira


da turma.

O mito de que não se deve repetir palavras ou de que a variedade é


uma virtude absoluta não ajuda muito; a frase fica bem mais simples e
clara com a repetição da preposição:

4a Eu sentia uma enorme necessidade de estudar, de ser a primeira


da turma.

5 Conheci muitos políticos de renome e os de Minas Gerais fui pes-


soalmente em seus gabinetes.

224
gramática e estilo

Às vezes, é só a posição relativa dos elementos coordenados que


não está adequada; o segundo elemento coordenado sempre fica mais
em evidência se for colocado logo depois da conjunção que coordena.
Assim como está parece que políticos de renome e os de Minas Gerais é
que estão coordenados. Isso excluiria os políticos mineiros do elenco dos
políticos de renome. A coordenação que faz sentido é entre conheci e fui:

5a Conheci muitos políticos de renome e fui pessoalmente nos ga-


binetes dos de Minas Gerais.

Se ainda assim parece que os de Minas Gerais são uns quaisquer,


vamos usar a repetição:

5b Conheci muitos políticos de renome e fui pessoalmente nos gabi-


netes dos políticos de Minas Gerais.

Desse modo, os dois conjuntos ficam completamente disjuntos: ela


conheceu uns e visitou outros. Não é bom facilitar, pois a construção
paralela é tão fortemente indicativa de coordenação que pode levar a
leitura a produzir indevidamente uma coordenação entre o que tem a
mesma forma mas não tem a mesma função. Vamos examinar estes casos:

6 Júlia foi morar naquela casa distante da cidade; no começo es-


tranhou o silêncio quebrado apenas por passarinhos e a falta de
vizinhos.

Para deixar bem claro que a falta de vizinhos não contribuiu para a
quebra do silêncio, basta alterar a ordem pondo a conjunção e entre os
elementos de mesma função:

6a Júlia foi morar naquela casa distante da cidade; no começo


estranhou a falta de vizinhos e o silêncio, quebrado apenas por pas-
sarinhos.

225
gramática e estilo

Por outro lado, se fosse o caso de querer deixar bem claro que a
falta de vizinhos, por absurdo que parecesse, contribuía para quebrar o
silêncio, seria necessário repetir a preposição:

6b Júlia foi morar naquela casa distante da cidade; no começo es-


tranhou o silêncio quebrado apenas por passarinhos e pela falta de
vizinhos.

7 Não se ouvia nenhum ruído; apenas as lágrimas rolando ininter-


ruptamente.

Nesta frase não há e, ou, mas, nem, nenhuma das conjunções que
produzem construções paralelas, mas a possibilidade de que o mesmo
verbo da primeira oração esteja elíptico na segunda pode induzir a uma
leitura estranha: Não se ouvia nenhum ruído; apenas se ouvia(m) as lá-
grimas rolando ininterruptamente. A justaposição paralela dessas duas
orações evitaria essa interpretação estranha.

7a Não se ouvia nenhum ruído; as lágrimas apenas rolavam inin-


terruptamente.

Não precisamos, por outro lado, ficar criando formas paralelas para
o que não está coordenado:

8 Era uma mulher bem vestida de aproximadamente 60 anos e que


trazia na parte interna do braço uma série de números tatuados.

O que temos aqui é uma sucessão de adjetivos que especificam


sucessivamente o substantivo mulher, expressos por um adjetivo com
seu advérbio – bem vestida –, por uma locução adjetiva formada por
uma preposição – de – seguida por uma locução nominal com seu ad-
vérbio – aproximadamente 60 anos – e mais um adjetivo expresso por
uma oração adjetiva – que trazia na parte interna do braço uma série

226
gramática e estilo

de números tatuados –, ou seja, não se trata de coordenação. Aquele e


é, portanto, desnecessário:

8a Era uma mulher bem vestida de aproximadamente 60 anos que


trazia na parte interna do braço uma série de números tatuados.

É claro que o paralelismo, por si só, não é garantia de clareza,


precisão e orientação segura, mas a forma tem um papel muito forte
nas construções em que a coordenação participa; por isso, a atenção à
forma costuma nos esclarecer qual é o mais relevante papel dos recursos
expressivos de que nos valemos para construir nossas frases. Nesta outra
frase podemos ver que é a forma que avisa o escritor (se ele tiver olhos
para ver) o que é que está coordenado com o quê e com relação a quê:

9 Minha mãe, apesar de sua pouca formação escolar, me levava a


bibliotecas, achava lindo tudo o que eu escrevia, pensava que eu tinha
que ser poetisa e durante um tempo fez com que eu achasse também
e ainda me empurrava sua Pollyanna e seu Pequeno Príncipe para
que eu lesse.

Estão coordenadas as orações que apresentam as ações recorrentes


da mãe durante a formação da narradora como leitora: levava..., achava...,
pensava..., empurrava... Estes verbos na terceira pessoa do imperfeito
do indicativo são as marcas formais mais evidentes da coordenação,
mas, entremeado nesses elementos coordenados e marcado pela con-
junção coordenativa, encontramos e durante um tempo fez com que eu
achasse também. O verbo fez, que, tal como os outros, tem minha mãe
como sujeito, não está no imperfeito, isto é, não há paralelismo com
as outras ações da mãe. Isso ocorre porque, na verdade, essa oração
não expressa mais uma ação da mãe, mas uma convicção da filha, da
narradora. A escritora, revisando seu texto, vai botar atenção no que lhe
diz essa diferença de forma verbal e aquele e antecedendo o que seria o
penúltimo elemento da série e não, como de costume, o último. Então,

227
gramática e estilo

ela pode repassar com maior clareza para o seu leitor essa distinção entre
as ações da mãe e a convicção da filha, usando, por exemplo, em vez da
coordenação, parênteses, um recurso da língua escrita que dá conta de
semelhantes distinções:

9a Minha mãe, apesar de sua pouca formação escolar, me levava


a bibliotecas, achava lindo tudo o que eu escrevia, pensava que eu
tinha que ser poetisa (e durante um tempo fez com que eu achasse
também) e ainda me empurrava sua Pollyanna e seu Pequeno Prín-
cipe para que eu lesse.

Atenção, portanto, aos recados da forma.

3.2.1 A clareza da construção paralela: o coordenante e os marca-


dores dos coordenados

As construções coordenadas entram no encadeamento do texto


para, de certa forma, estancarem o fluxo do encadeamento porque, ao
ler o segundo (o terceiro, o quarto, o quinto, quantos houver) dos termos
coordenados, o leitor precisa reter os anteriores desde o primeiro para
conferi-los com todos os outros até o fim da lista. Como os elementos
coordenados estão coordenados com relação a um outro elemento da frase,
que podemos chamar de coordenante, o paralelismo pode ser enfatizado
pela repetição, antes de cada um deles, de uma expressão – um lembrete
– que marque sua pertinência a esse conjunto, como já vimos na descrição
daquela sala de aula, que era constituída por vários aposentos, cada um
deles ligado ao verbo por essa mesma preposição por.
Vamos examinar estas frases:

1 Nesse episódio senti como há falta de educação e experiência em


nosso povo.

228
gramática e estilo

Muito provavelmente quem escreveu esta frase quis dizer que nosso
povo não tem nem educação nem experiência, mas a frase, assim como
está, não bloqueia a interpretação de que o nosso povo não tem educação
mas tem experiência: há falta de educação e há experiência ou há falta
de educação, mas há experiência. Uma clara identificação do coorde-
nante por meio de um lembrete bloquearia esta segunda interpretação.

1a Nesse episódio senti como há falta de educação e de experiência


em nosso povo.

Assim, usando a preposição de como lembrete, fica claro que se


trata de falta de... e falta de...

2 Os índios foram dominados pelos portugueses, que também haviam


dominado os negros na África. Escravizados, os índios e negros não
tiveram acesso à escola.

Vamos interpretar que os dois subconjuntos dos escravizados pelos


portugueses – os índios e os negros – não tiveram acesso à escola, mas
não podemos deixar de conjeturar se o autor não está propondo a tese de
que os mestiços – os que se tornaram índios e negros – foram, na verdade,
os que, de fato, não tiveram acesso à escola. Para evitar tal conjetura, é
preciso deixar claro qual é o elemento coordenante:

2a Escravizados, os índios e os negros não tiveram acesso à escola.

Aquele artigo antes de negros não deixa dúvida de que índios e


negros estão coordenados com relação a escravizados.

3 Pediu aos colegas e amigos que o esperassem.

4 Pediu aos colegas e aos amigos que o esperassem.

229
gramática e estilo

Ambas as frases podem estar claras: a primeira diria que os colegas


são amigos; a segunda diria que há dois conjuntos em questão: o dos
colegas e o dos amigos. A primeira, no entanto, pode ser interpretada
como se se referisse a dois grupos, mas a segunda não se presta à outra
interpretação.

5 Miriam havia se divorciado há quatro anos. Durante este tempo


estava se restabelecendo de uma relação que durou seis anos e uma
filha que ficou sob sua guarda.

Assim como está, a frase está determinando que durou é coorde-


nante de seis anos e de uma filha que ficou sob sua guarda, isto é, que a
relação durou uma filha, o que só faria sentido numa clave de absurdo
ou de desajeitado pastiche machadiano. Vai ser preciso uma outra oração
adjetiva para que o coordenante passe a ser uma relação:

5a Miriam havia se divorciado há quatro anos. Durante este tempo


estava se restabelecendo de uma relação que durou seis anos e que
gerou uma filha, que ficou sob sua guarda.

Aquela velha lição de que não devemos repetir palavras, levada às


últimas consequências, pode produzir uma frase como esta, em que o
segundo elemento coordenado não está claro:

6 Minha mãe sempre valorizou demais a minha educação e da minha irmã.

Não há necessidade de repetir educação; basta deixar um lembrete:

6a Minha mãe sempre valorizou demais a minha educação e a da


minha irmã.

Nem sempre o paralelismo, por si só, deixa o coordenante claramente


acessível ao leitor. Vamos examinar este caso:

230
gramática e estilo

7 Hoje, pelo menos, já aprendi que não se deve confiar nas pessoas
que não conhecemos muito bem e a matar aulas indo para um lugar
onde o assistente não me veja.

Não há paralelismo entre os elementos coordenados pelo e, mas


dá pra entender que o escritor quis dizer que aprendeu que (1) não se
deve confiar nas pessoas que não conhecemos e que aprendeu que (2)
é melhor matar aulas onde não se é visto por quem está encarregado de
ver quem está matando aulas. A falta de paralelismo – aprendi que e
aprendi a – é um primeiro obstáculo para a clareza da frase; vamos ver
se o estabelecimento do paralelismo deixa a frase mais clara:

7a Hoje, pelo menos, já aprendi que não se deve confiar nas pessoas
que não conhecemos muito bem e que é melhor matar aulas num lugar
onde o assistente não me veja.

Os dois que – aprendi que e pessoas que não conhecemos – antes


do que em e que é melhor obscurecem o paralelismo: em qual dos dois
quês anteriores começa o primeiro elemento do conjunto? Para evitar
essa possível ambiguidade, é melhor evitar o outro que:

7b Hoje, pelo menos, já aprendi que não se deve confiar em pessoas


desconhecidas e que é melhor matar aulas num lugar onde o assis-
tente não me veja.

Como, na verdade, pessoas que não conhecemos muito bem não são
exatamente pessoas desconhecidas, podemos exagerar na marcação do
elemento coordenante para manter clara essa diferença:

7c Hoje, pelo menos, já aprendi duas lições: a primeira é que não se


deve confiar nas pessoas que não conhecemos muito bem e a segunda
é que é melhor matar aulas num lugar onde o assistente não me veja.

231
gramática e estilo

3.2.2 Coordenação e regência

Nós falamos assim: concordo com isso, discordo disso, ela des-
pertou para a vida, reconheço o teu direito à liberdade; as palavras
negritadas são as preposições que relacionam os verbos aos seus comple-
mentos, que, nesses casos, como nos ensinaram na escola, são chamados
de objetos indiretos. Como nós falamos assim, nós escrevemos assim.
Tentaram nos ensinar na escola que o verbo obedecer também deve
ter um objeto indireto a ele ligado pela preposição a; por causa disso,
deveríamos escrever Todos os motoristas devem obedecer ao Código
Nacional de Trânsito e não Todos os motoristas devem obedecer o Có-
digo Nacional de Trânsito, tal como falamos. Tentaram nos ensinar na
escola também que visar o cheque é correto, mas que Ele visa a um futuro
brilhante como atleta é a forma correta da frase que tem esse mesmo
verbo visar empregado com o sentido de ter como objetivo.
Tentaram nos ensinar também que isso deve ser assim, mesmo que
ninguém fale assim e que muitas vezes encontremos isso escrito – em
jornais, em revistas, em livros – sem aquela preposição a. Se alguma vez
questionamos na escola essa diferença entre a nossa fala e essa obrigação
de escrever de modo diferente, o mínimo que nos disseram foi que essa
é a regência culta desses verbos, o que implica que a regência da nossa
fala é inculta. Quando não disseram esse mínimo, disseram que essa é a
regência certa e que nós falamos de outro modo porque falamos errado.
Nós, é claro, não concordamos com isso.
Chama-se regência o dispositivo que liga o verbo ao seu comple-
mento, dispositivo complementar à concordância, que liga o verbo ao
seu sujeito. O verbo concorda com o sujeito e rege o seu complemento;
assim temos uma oração. Também temos oração só com a concordância,
sem complemento como em O sol nasceu. Se não há complemento, o
verbo passa a ser classificado como intransitivo. Se não há preposição
entre o verbo e o seu complemento, diz-se que a regência é direta; o

232
gramática e estilo

verbo passa ser classificado como transitivo direto, e o complemento


como objeto direto. Se há preposição entre o verbo e o seu complemento,
diz-se que a regência é indireta; o verbo passa a ser classificado como
transitivo indireto, e o complemento como objeto indireto. Lá pelas
tantas, geralmente naquela revisão de português às vésperas do vesti-
bular, nos deram uma lista de verbos com sua respectiva regência culta.
Fizeram isso partindo de dois pressupostos: (1) de que nós costumamos
usar os verbos dessa lista com uma regência diferente da culta e (2) de
que essa lista nos poria, desde então, a usar esses verbos seguidos das
preposições prescritas nessa lista.
A longa vida dessa lista, a sua recorrência obrigatória em todas as
revisões de português e o progressivo aumento, nessa lista, da quantidade
de verbos necessitados de retificação culta em sua regência mostram que
nós não vamos passar a usar esses verbos todos seguidos das preposições
prescritas nessa lista. Faremos isso, talvez, muito eventualmente, em
provas de cruzinhas de concursos porque decorar listas pra responder
questões de certo e errado, isso a escola nos ensinou.
O que a escola não nos ensinou – e que poderia ter um efeito muito
mais significativo para o nosso aprendizado dessa regência culta – foi usar
tais preposições nas frases dos textos que teríamos escrito na escola, se a
escola nos tivesse posto a escrever textos e tivesse lido esses textos e nos
dado palpites para melhorá-los. Teríamos aprendido, por exemplo, que
tais preposições, segundo esse conceito de regência culta, precisam ser
mantidas depois do verbo em construções que usam que, tal como estas:

Todos devem obedecer ao que estabelecem as leis do país.


Ainda hoje ele visa ao que sonhou quando jovem.
Concordo com que ele seja admitido como nosso gerente-geral.

Por que segundo esse conceito de regência culta? Porque o conceito de


regência culta da gramática tradicionalmente ensinada na escola orienta-se
pelo mesmo conceito de norma culta vinculado à tradição de certo e errado.

233
gramática e estilo

Já vimos que essa tradição é renegada pelos contemporâneos estudos da


linguagem, que já descreveram a norma culta real praticada hoje no Brasil
pelas pessoas escolarizadas. Tais estudos já mostraram que a diferença
entre o português brasileiro culto e o português brasileiro popular é apenas
de estatística, ou seja, a língua culta realmente falada no Brasil está muito
distante daquele ideal de língua postulado pela tradição do certo e errado.
É por isso que Marcos Bagno, em sua Gramática pedagógica do
português brasileiro (2011, p. 14), propõe “a plena aceitação de novas
regras gramaticais que já pertencem à nossa língua há muito tempo e, por
isso, devem fazer parte do ensino sistemático da língua”. Tal aceitação,
no entanto, não significa ignorar a existência daquela gramática e o pa-
pel dessa tradição. No capítulo Um roteiro de estudos dessa Gramática
pedagógica, podemos ler isto:

No entanto, como patrimônio cultural do Ocidente, a


gramática tradicional tem de ser muito bem conhecida
por aqueles que, profissionalmente, serão confrontados a
ela – cobrados para que a ensinem, desafiados a dizer por
que não a ensinam, acusados de não reconhecer a suposta
(e nunca comprovada) necessidade de ensiná-la. Além
disso, é impossível negar que a gramática tradicional é o
repositório de importantes reflexões de filósofos e filólo-
gos – por baixo da pesada ideologia prescritiva existem
importantes sugestões de análise, além de descobertas
importantíssimas sobre o funcionamento da linguagem
humana em geral e das línguas em particular (BAGNO,
2011, p. 23).

Vamos, portanto, nós, que nos ocupamos da língua escrita como


alunos ou como professores ou como tradutores, revisores, roteiristas,
etc. aprender o que diz a tradição para adquirirmos autoridade para
praticar, com intenções respeitosas ou irreverentes, o que ela diz e para
fundamentarmos nossa dissidência do que ela prescreve.

234
gramática e estilo

O exame da realidade de nossa prática da língua falada nos mostra


que, se a gente já não fala a preposição a nem mesmo naquelas frases mais
simples, menos ainda falaríamos em construções complicadas, e, mesmo
falando Concordo com isso, falamos Concordo que ele seja admitido
em nosso clube, isto é, sem a preposição com. Mesmo que ninguém fale
assim, a escola nos disse que Concordo com que ele seja admitido em
nosso clube é a maneira correta, culta, elegante de escrever.
Já o exame do que escrevemos nos mostra que o esforço escolar
em prol do uso de regências cultas certamente produziu alguns efeitos
estranhos em nosso exercício da língua escrita, como podemos ver nestas
frases:

1 Mas, a cada dia que passa, as pessoas reconhecem e despertam


para o verdadeiro significado de uma mulher atuante.

Temos aqui, coordenados, os verbos reconhecem e despertam: o


coordenante é o sujeito comum a ambos – as pessoas –, com o qual ambos,
na terceira pessoa do plural, concordam. Além desse sujeito comum, os
dois verbos têm em comum o complemento – o verdadeiro significado
de uma mulher atuante –, com o qual não se relacionam pela mesma
regência. Reconhecem é transitivo direto – reconhecem o verdadeiro
significado de uma mulher atuante –, e despertam é transitivo indire-
to – despertam para o verdadeiro significado de uma mulher atuante.
Esta forma de coordenar dois verbos de diferentes regências com um
complemento comum também não é a maneira correta, culta, elegante de
escrever. Nesse tipo de coordenação, para mostrar que reconhecemos a
diferença de regência que há entre os verbos coordenados, ou repetimos
o complemento ou nos referimos a ele:

1a Mas a cada dia que passa, as pessoas reconhecem o


verdadeiro significado de uma mulher atuante e desper-
tam para isso.

235
gramática e estilo

No caso desta frase há uma verdadeira vantagem nessa operação,


que é botar o escritor a pensar a respeito do que escreveu: reconhecem
o verdadeiro significado de uma mulher atuante é uma predicação que
faz algum sentido, mas o que quer mesmo dizer despertam para isso?
Uma inversão da ordem dos elementos coordenados, se não é suficiente
para responder essa pergunta, pelo menos declara que despertar é que
leva a reconhecer.

1b Mas a cada dia que passa, as pessoas despertam para o verdadeiro


significado de uma mulher atuante e reconhecem isso.

Algo semelhante vai acontecer na revisão desta frase:

2 A literatura brasileira constitui o meio pelo qual podemos e ex-


pressamos nossa verdadeira identidade.

A literatura brasileira constitui o meio pelo qual expressamos


nossa verdadeira identidade e podemos... o quê? Ao tentar a revisão,
verificamos que a frase estava indevidamente coordenando o verbo
auxiliar podemos com o verbo principal que com ele forma a locução
verbal podemos expressar. Verbos auxiliares e principais não estão em
relação de coordenação porque não desempenham funções semelhantes
na frase. Esta frase, portanto, termina antes do e.

2a A literatura brasileira constitui o meio pelo qual podemos expres-


sar nossa verdadeira identidade.

Estas frases precisam do mesmo tipo de revisão:

3 Eu havia marcado uma prova para uma segunda-feira; logicamente,


os alunos teriam de estudar antes ou durante o fim de semana.
3a Eu havia marcado uma prova para uma segunda-feira; logicamen-
te, os alunos teriam de estudar durante o fim de semana ou antes dele.

236
gramática e estilo

4 O individualismo manifesto em posturas pessoais bem como grupais


está enraizado nesta nossa universidade, que certamente é um retrato
fiel da sociedade em que estamos, fazemos parte e, ao mesmo tempo,
tão pouca voz ativa temos.
4a O individualismo manifesto em posturas pessoais, bem como
grupais está enraizado nesta nossa universidade, que certamente é
um retrato fiel da sociedade em que estamos, de que fazemos parte
e em que, ao mesmo tempo, tão pouca voz ativa temos.

São três verbos, cada um com sua preposição: estamos na sociedade,


fazemos parte da sociedade, temos pouca voz ativa na sociedade.

Exercício 8

Examine e revise estas frases:

1. O tempo quantificaria e poderia prever o surgimento dos fenô-


menos naturais.
2. Porém a macaca, a quem eu tanto abuso e maltrato, salvou a
minha vida botando os lobos para correr.
3. Come e gosta muito de macarrão.
4. Mas o que me salvava e me saía bem era a literatura e outras
disciplinas que lidavam com leitura
5. O mais comum hoje em dia é encontrarmos crianças em frente
à televisão e, na maioria das vezes, sem que nenhum adulto escolha ou
assista com ela toda a programação
6. Conclui-se que o poder e acesso da televisão é bem abrangente.
7. Os professores precisam perceber a importância da redação, bem
como praticar o exercício da escrita e abandonar um pouco a fixação
pelo livro didático, precisam conscientizar-se de que não podem mais
ser causadores ou cúmplices da baixa autoestima dos alunos,

237
gramática e estilo

8. Este é um quadro frente ao qual consigo, hoje, parar e contemplar.


9. As ideias tinham a ver com o que eu pensava e me aproximei,
acabando por me filiar ao Partido dos Trabalhadores, o que gerou brigas
e discussões familiares e mesmo entre amigos.
10. Para expor minhas ideias ou falar sobre a minha pessoa, preciso
ter muita confiança e conhecimento do indivíduo que me dirijo.

3.2.2.1 O paralelismo e a regência nos ajudam com a crase

O a craseado – à – pode ficar mais bem esclarecido se recorrermos


ao paralelismo; vamos examinar estas frases:

1 Temos um desequilíbrio tanto na natureza quanto na vida social


devido ao desmatamento e a poluição de rios e mares.

Há uma coordenação entre ao desmatamento e a poluição; o co-


ordenante é devido, que se relaciona a desmatamento pela preposição
a, que se liga ao artigo o, resultando ao desmatamento. Para organizar
o paralelismo é necessária a mesma preposição antes do outro termo
coordenado: à poluição.

1a Temos um desequilíbrio tanto na natureza quanto na vida social


devido ao desmatamento e à poluição de rios e mares.

2 As crianças levam essa bagagem de violência nelas incutida pelos


meios de comunicação de massa, ficando, assim, vulneráveis as
drogas e aos oportunistas construindo uma vida baseada em falsos
valores.

Há uma coordenação entre vulneráveis as drogas e aos oportunistas;


o coordenante é vulneráveis. A preposição em aos oportunistas impõe a
mesma preposição a antes de as drogas; logo às drogas.

238
gramática e estilo

2a As crianças levam essa bagagem de violência nelas incutida pe-


los meios de comunicação de massa, ficando, assim, vulneráveis às
drogas e aos oportunistas construindo uma vida baseada em falsos
valores.

3 É fundamental que esses jovens tenham acesso a educação, a saúde


e ao trabalho.

Há uma coordenação entre a educação, a saúde e ao trabalho. O


coordenante é acesso. A preposição a em ao trabalho mostra que há
preposição antes dos dois outros termos coordenados: educação e saúde.

3a É fundamental que esses jovens tenham acesso à educação, à


saúde e ao trabalho.

4 O mais importante é que elas conciliavam a crítica de estrutura,


vocabulário e ortografia aos elogios em relação a como o assunto
era tratado em meu texto e a emoção que eu impunha a ele.

Há uma coordenação entre a como o assunto era tratado em meu


texto e a emoção que eu impunha a ele; o coordenante é em relação
a. A preposição a que vem antes de como o assunto não está ligada a
artigo nenhum porque como não é um substantivo, mas a preposição a
que vem antes de emoção precisa de um artigo a porque emoção é um
substantivo feminino.

4a O mais importante é que elas conciliavam a crítica de estrutura,


vocabulário e ortografia aos elogios em relação a como o assunto
era tratado em meu texto e à emoção que eu impunha a ele.

Exercício 9

Vamos examinar estas frases para verificar se há casos de a cra-


seado:

239
gramática e estilo

1. Naquela cidade a violência estava associada ao crime e a diversão.


2. Seja durante o dia ou a noite, vigiaremos sempre.
3. A estrutura de apoio a criança e ao jovem é um dever constitu-
cionalmente atribuído ao estado e a família.
4. Estudava neste colégio em razão de uma bolsa de estudos rece-
bida graças as boas notas que tinha tido na escola onde fizera o ensino
fundamental.
5. Não conseguiam se concentrar devido a balbúrdia provocada
pelo colega.
6. Ele agora trabalha todo o dia e me disse que estuda a noite.
7. Olhei para o relógio e vi que faltavam apenas cinco minutos para
as dezoito horas.

3.2.3 Comparações, correlações, definições

Os termos de uma comparação ficam mais evidentes se forem ex-


pressos de modo paralelo:

1 O poder da televisão americana é muito maior que os brasileiros.

Não tem muito sentido fazer esta comparação de coisas tão díspa-
res; muito provavelmente a ideia é comparar coisas comparáveis, como,
por exemplo, o poder da televisão americana com a mesma capacidade
que teria a televisão brasileira. É preciso expressar isso com clareza
dizendo que o poder da televisão americana é muito maior que o po-
der da televisão brasileira. O que se pode omitir no segundo termo da
comparação é aquilo que se recupera por elipse, no caso, poder. Não
esquecer do lembrete.

1a O poder da televisão americana é muito maior que o da brasileira.

240
gramática e estilo

2 Naquela manhã de sábado, Priscila e Max acordaram com um jeito


bem diferente de outros sábados.

Não se trata de comparar o jeito do casal com o jeito dos sábados:


a comparação é entre o jeito do casal em diferentes sábados:

2a Naquela manhã de sábado, Priscila e Max acordaram com um


jeito bem diferente de como acordavam nos outros (sábados).

3 Minha infância correu tranquila como a maioria das crianças.

A comparação é de uma infância com outras:

3a Minha infância correu tranquila como a da maioria das crianças.

4 As gurias conversam sobre o que fizeram nas férias e, é claro,


comparam seus horários com a sua colega de aula inseparável.

Esta frase é ambígua: as gurias estão comparando seus horários


com os horários da sua colega ou estão comparando cada uma delas os
seus horários na companhia de sua colega? Na segunda hipótese, a frase
está adequada; na primeira, é preciso dizer o que está sendo comparado:

4a As gurias conversam sobre o que fizeram nas férias e, é claro,


comparam seus horários com o da sua colega de aula inseparável.

5 O perfil da humanidade hoje difere muito de décadas atrás.

A comparação é entre diferentes perfis da humanidade.

5a O perfil da humanidade hoje difere muito do de décadas atrás.

241
gramática e estilo

Nas correlações, os termos correlacionadores precisam delimitar


claramente quais são os elementos correlacionados:

1 Podem tanto nestas frases faltar sinais de pontuação quanto exis-


tirem sinais de pontuação empregados erroneamente.

O termo correlacionante é o verbo auxiliar (podem existir e podem


faltar); para que isso fique bem claro, os correlacionadores – tanto...
quanto – antecedem os correlacionados: faltar... existirem.

1a Nestas frases podem tanto faltar sinais de pontuação quanto


existirem sinais de pontuação empregados erroneamente.

Definições também precisam de paralelismo: o que é definido e


vem antes do verbo ser e o que vem depois pertencem à mesma classe
gramatical. Examinemos estas construções paralelas.

1 E realmente, até certo tempo, ser professora era status.


1a E realmente, até certo tempo, ser professora era ter status.

Ter status é uma construção paralela a ser professora.

2 Passar para a idade adulta não é uma fórmula nem um tempo


determinado; apenas é um estágio indeterminado.
2a Passar para a idade adulta não é seguir uma fórmula nem cumprir
um tempo determinado; é apenas atingir um estágio indeterminado.

Esta versão, mesmo que se oriente pelo paralelismo que encadeia


passar no sujeito da primeira oração, seguir e cumprir no predicativo e
atingir no predicativo da oração justaposta, não é uma boa solução por
causa da imprecisão do verbo ser nos dois predicativos. Um verbo de
processo pode trazer mais adequação e precisão:

242
gramática e estilo

2b Passar para a idade adulta não decorre da adoção de uma fórmula


nem da passagem de um tempo determinado; se dá pelo cumprimento
de um estágio que dura o tempo que for preciso.

Além dos verbos mais específicos e, por isso, mais precisos, há um


outro paralelismo que fica mais explícito entre os substantivos adoção,
passagem e cumprimento.

Exercício 10

Revise o paralelismo nestas frases:

1. Hoje se sabe de muitas pessoas que na infância ou adolescência


usaram vitaminas não naturais e, após anos, tiveram problemas como
aumento excessivo de peso e, em casos piores, câncer.
2. Soube que o delegado ordenara sua captura e que o trouxessem
vivo.
3. Todos reconheciam sua esperteza para negócios, mas não que
ele fosse desonesto.
4. Após a reprovação, era hora de recomeçar os estudos e os per-
turbadores questionamentos sobre que profissão seguir.
5. Passei a estudar numa escola particular muito tradicional e que
tinha fama de rígida e conservadora.
6. A primeira vez que a vi foi em fotos de revistas e em shows
famosos.
7.. Ninguém, no entanto, aguenta mais esta rotina e começa a tomar
providências.
8. A concepção de mundo revelada pelos poetas românticos brasi-
leiros e os românticos alemães eram bem diferentes.

243
gramática e estilo

9. Naquele dia achei que as minhas atividades seriam iguais aos


outros dias.
10. O tempo de formação do médico é bastante extenso: entre a
graduação e a especialização, levando em torno de 8 a 10 anos; logo,
seu ingresso no mercado efetivo de trabalho se dá com uma idade mais
avançada em relação a outros cursos.

3.2.4 Falso paralelismo

Chama-se falso paralelismo a coordenação de elementos que não


pertencem ao mesmo conjunto. É o que acontece nesta frase que coordena
dois complementos de um mesmo verbo:

1 Só pudemos telefonar à noite, pois, antes disso, os policiais não nos


deixaram livres; ficaram fazendo perguntas e fichas nossas.

Fazer perguntas e fazer fichas não estão no conjunto do mesmo


modo de fazer coisas; a menos que o escritor queira denunciar uma
insuspeitada semelhança entre essas duas atividades, o coordenante do
que está relacionado por e é outro:

1a Só pudemos telefonar à noite, pois, antes disso, os policiais não


nos deixaram livres; ficaram nos interrogando e nos ficharam.

2 Meu namorado era de outra cidade, e nos correspondíamos sema-


nalmente: eram páginas e páginas de declaração de amor, desenhos,
figurinhas e muita saudade daquele tempo.

Muita saudade daquele tempo, assim como está na frase, aparece


como mais um elemento do conjunto de coisas escritas na correspon-
dência do casal de namorados, mas claramente não é isso. Na verdade,
aqui temos mais do que dois conjuntos diferentes; temos dois assuntos,
isto é, duas frases:

244
gramática e estilo

2a Meu namorado era de outra cidade, e nos correspondíamos sema-


nalmente: eram páginas e páginas de declaração de amor, desenhos,
figurinhas. Hoje sinto muita saudade daquele tempo.

3 Pediu demissão de seu cargo de gerente-geral uma semana depois


de tê-lo assumido: descobriu que a direção proibia que se empregas-
sem cearenses, índios, ex-jogadores de futebol e métodos modernos
de administração.

Métodos modernos de administração não é um elemento do mesmo


conjunto a que pertencem cearenses, índios e ex-jogadores de futebol;
do mesmo modo, empregar não tem o mesmo sentido aplicado a uma
coisa e outra.

3a Pediu demissão de seu cargo de gerente-geral uma semana depois


de tê-lo assumido: descobriu que a direção proibia métodos modernos
de administração e não queria que se empregassem cearenses, índios
e ex-jogadores de futebol.

O que falamos não se limita a expressar o que nos ensinaram a


respeito do mundo. Com a linguagem somos capazes de dizer como nos
parece ser o mundo; por isso, a coordenação não serve apenas para nos
referirmos a elementos já identificados de conjuntos já delimitados an-
tes de olharmos para eles. Usamos a coordenação também para compor
conjuntos e para postular os seus elementos, e isso pode transformar um
falso paralelismo em verdadeiro, como propôs Machado de Assis, pelas
lembranças de Brás Cubas:

4 Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis;


nada menos.

Marcela amou-me durante onze contos de réis? Dinheiro apre-


sentado como medida de tempo em paralelo com onze meses? Pois é:
alguém se atreveria a corrigir esse erro? Não, nada seria mais expressivo

245
gramática e estilo

da opinião que Machado atribuiu àquele seu narrador patife a respeito


de Marcela, a mais argentária de todas as suas personagens. Nada seria
mais verdadeiro do que este falso paralelismo que deixa bem claro que
o sentido de uma palavra ou expressão não é o sentido desde sempre
atribuído a ela, mas o sentido criado pela frase em que está essa palavra,
pelo texto em que está essa frase e, fundamentalmente, pelo leitor dessa
palavra nessa frase desse texto, que tem o poder de acolher um falso
paralelismo como verdadeiro e de denunciar a jeitosa falsidade de um
paralelismo falacioso.
É verdade que o leitor muito provavelmente não vai se compor-
tar diante de um falso paralelismo cometido pelo seu colega de aula
do mesmo modo como se comportaria diante de um falso paralelismo
machadiano, ao qual, graças ao respeito já adquirido pelo consagrado
escritor, vai esforçar-se para atribuir uma sutileza similar à que se atribuiu
historicamente ao que ele produziu. Já o professor que encontra um falso
paralelismo no texto de seu aluno faz o quê? Aproveita o gancho pra dar
uma aula como esta, melhor do que esta.

5 Portanto, o nosso projeto de um mundo melhor para o leitor de ma-


nuais foi arrefecido com o argumento dos custos. E assim continuamos
a traduzir os horrorosos manuais que nos mandam traduzir sobre
as máquinas cada dia mais equipadas, mas sempre com os mesmos
processos escritos de fazer funcionar, as mesmas advertências sobre
perigos e os mesmos centavos pagos pelas mesmas palavras.

Como se pode perceber, o último elemento da série – os mesmos


centavos pagos pelas mesmas palavras – não é paralelo, isto é, não
pertence ao mesmo conjunto em que estão os mesmos processos e as
advertências. Esse falso paralelismo, no entanto, funciona melhor do que
uma conclusiva porque, com o falso paralelismo, a ideia de que se trata
de uma conclusiva se forma na cabeça do leitor, que, por causa disso, se
sente mais participante da produção do sentido. Além disso, ao equipa-

246
gramática e estilo

rar os mesmos centavos de antigamente aos avanços tecnológicos das


máquinas, a frase deixa bem claro para onde os que fabricam e vendem
máquinas querem realmente avançar.
Em síntese, se o paralelismo é a qualidade estilística da coordenação,
o erro de paralelismo – o falso paralelismo – por vezes transfalseia-se,
converte-se na virtude maior do paralelismo, revelando como o diferente
é igual e como o igual é diferente.

Exercício 11

O que dizer a respeito destes outros falsos paralelismos?

1. Era o meu primeiro dia de escola: eu tinha seis anos, usava uma
saia azul-marinho pregueada, camisa branca, sapatos pretos, duas marias-
-chiquinhas, o coração aos saltos e os olhos arregalados. Ia sendo levada
pela mão de minha mãe.
2. Esfregou as panelas, os talheres, os pratos, as paredes, os olhos.
Percebeu, então, que há uma semana não saía de casa.
3. Com a carteira roubada foram todos os documentos e ficou a
sensação de identidade perdida.
4. Como as mais intensas e clichês paixões surgem durante a ado-
lescência, comigo não seria diferente.

3.3 DA COORDENAÇÃO À SUBORDINAÇÃO

Exercitamos a coordenação como um procedimento capaz de superar


as limitações que o mero encadeamento de orações impôs à capacidade
da língua escrita de relatar ações e acontecimentos simultâneos no tempo
e de postular a pertinência de determinados elementos a determinados
conjuntos. Apresentamos o paralelismo como a qualidade estilística

247
gramática e estilo

própria da expressão escrita da coordenação e como a possibilidade da


coordenação estabelecer inusitadas relações de semelhança entre ele-
mentos ainda não percebidos como pertencentes, de alguma forma, a um
mesmo conjunto. Vimos, inclusive, de que modo um falso paralelismo,
isto é, a apresentação em construções paralelas de elementos que não
pertencem a um mesmo conjunto, pode revelar uma inusitada semelhança
entre esses elementos de tal modo que o falso pode se tornar verdadeiro.
Nem sempre, porém, a coordenação dá conta do que se tenta resolver
por meio de um e, um ou, um mas ou um nem; por isso, o esforço de
revisão de formas coordenadas expressas em estruturas não paralelas se
revela, por vezes, incapaz de produzir paralelismos satisfatórios. Isso
pode nos levar a duvidar ou de nossa capacidade pessoal de produzir
uma satisfatória estrutura paralela ou da adequação da coordenação para
dar conta da relação postulada para os elementos na frase em questão.
Vamos revisar estas frases.

1 A característica principal desses encontros familiares é pôr na


roda defeitos e qualidades de um ou de outro, coisa que sempre deixa
ressentimentos ou mesmo acabam discutindo seriamente.

Nesta frase, ou mesmo coordena a oração acabam discutindo se-


riamente com algo que vem antes; o leitor candidata, por paralelismo, a
oração que está mais próxima, que é sempre deixa ressentimentos, mas,
ao tentar descobrir o coordenante, depara-se com coisa que sempre deixa
ressentimentos e tenta dar à segunda oração uma construção paralela à
primeira, obtendo coisa que sempre deixa ressentimentos ou mesmo
coisa que acabam discutindo seriamente.
Se esse leitor é o próprio escritor do texto onde está esta frase, ele
sabe que não se trata de discutir seriamente alguma coisa mas de bater
boca perigosa e intransitivamente. Postulando um outro coordenante, ele
pode revisar para coisa que sempre deixa ressentimento ou mesmo acaba
levando a discussões muito sérias. A construção paralela, tal como o uso

248
gramática e estilo

de um vocabulário mais preciso, deixa a coordenação mais clara; isso


leva o autor a procurar um sinônimo mais específico do que coisa, que
designa qualquer coisa. Pôr na roda defeitos e qualidades de um ou de
outro é, de fato, uma coisa assim como um capelete de frango, a teoria
da relatividade, o drible da vaca, etc., isto é, e outras coisas. Pôr na roda
defeitos e qualidades de um ou de outro é, neste caso, um costume, ou
melhor, um mau hábito:

1a A característica principal desses encontros familiares é pôr na roda


defeitos e qualidades de um ou de outro, mau hábito que sempre deixa
ressentimentos ou mesmo acaba levando a discussões muito sérias.

2 Se cada cidadão em nosso município se conscientizar e plantar


árvores, não jogar lixo nos rios, não usando agrotóxico na planta-
ção; poluindo os rios matando os peixes, o amanhã vai ser melhor
para todos nós.

Esta coordenação, além de apresentar a designação do conjunto


como um de seus elementos – conscientizar é o pré-requisito para as ações
coordenadas a seguir –, enfrenta dois desafios formais: coordenação de
sim com não e coordenação dentro de coordenação. A oração condicional
Se cada cidadão em nosso município se conscientizar é o coordenante
entre plantar árvores, não jogar lixo nos rios, não usando agrotóxico
na plantação; no entanto, as orações poluindo os rios matando os peixes
são coordenadas entre si e têm como coordenante o último elemento da
coordenação anterior, usando agrotóxico na plantação, ou seja, o coor-
denante não é não usando agrotóxico na plantação como todo mundo
sabe e a frase diz. Mesmo que dê pra entender, qual é o autor que vai
gostar de ser tratado pelo leitor como um coitadinho que não sabe dizer
direito o que quer dizer? Revisemos, pois:

2a Se cada cidadão em nosso município se conscientizar e, por causa


disso, passar a plantar árvores, a dar um destino adequado ao seu

249
gramática e estilo

lixo, mantiver sua plantação sem os agrotóxicos, que poluem os rios


e matam os peixes, o amanhã vai ser melhor para todos nós.

Esta revisão trabalha com dois coordenantes – por causa disso e


passar a: (1) por causa disso passar e por causa disso mantiver e (2)
passar a plantar e a dar um destino...

3 Só quem depende de ônibus sabe o que significa perdê-los quando


já estamos na esquina a poucos passos da parada e é preciso esperar
outro que nunca se sabe quando vai chegar.

O autor da frase tenta a coordenação para relacionar perder um


ônibus por um pequeno atraso e ter de esperar outro por um tempo
indeterminado a partir do prejuízo que isso causa a quem depende de
ônibus para se locomover. O que há, na verdade, entre perder e ter de
esperar é uma clara relação de causa e efeito; perder o ônibus estando
a poucos passos da parada e, por causa disso, ter de esperar outro que
não tem hora certa para chegar.
Já a oração que nunca se sabe quando vai chegar caracteriza outro,
que está referindo ônibus; trata-se de uma oração adjetiva, que também
é uma relação de subordinação. Parece, portanto, que a subordinação
organiza melhor esta frase e que a troca do plural pelo singular – perdê-
-lo em vez de perdê-los – torna a cena mais real e mais dramática até
porque só se perde um ônibus de cada vez.

3a Só quem depende de um ônibus que não tem horário certo para


passar sabe o que significa perdê-lo quando já estamos na esquina
a poucos passos da parada.

4 Escolhi cursar Relações Públicas, já que um profissional dessa área


deve gostar de humanas, de ler e até mesmo a minha curiosidade,
a minha ânsia por aprender será aplacada, pois sempre estarei em
contato com a novidade.

250
gramática e estilo

Aqui há relações de causa e efeito: (1) expressa por já que entre um


profissional dessa área deve gostar de humanas, de ler e cursar Relações
Públicas; (2) expressa por pois entre a minha ânsia por aprender será
aplacada e sempre estarei em contato com a novidade; (3) não expressa
entre a minha curiosidade, a minha ânsia por aprender e cursar Relações
Públicas; (4) outra não expressa entre cursar Relações Públicas e estar
em contato com a novidade.
Há uma coordenação não paralela entre já que um profissional
dessa área deve gostar de humanas, de ler, de um lado, e até mesmo a
minha curiosidade, a minha ânsia por aprender será aplacada. O que
existe aqui é um conjunto de causas para cursar Relações Públicas, que
podem ser expressas de forma paralela. É o caso de inverter a ordem para
organizar o paralelismo e explicitar essa relação de causa e efeito. Para
expressar a outra relação de causa e efeito podemos usar uma oração
adjetiva não restritiva.
4a Como sou curiosa, gosto de ler e tenho ânsia por aprender, escolhi
cursar Relações Públicas, curso em que estarei sempre em contato
com a novidade.
5 Pensei nos fatos de minha vida que pudessem servir para dividi-la
em antes e depois: antes e depois da morte de minha mãe foi o que
me ocorreu de imediato e que, sem dúvida, marcou-me, obrigando-
-me a mudar de cidade, estado.

Tem um falso paralelismo entre que me ocorreu de imediato e que,


sem dúvida marcou-me; na verdade, a conjetura expressa no início da
frase visa a um fato que, por ter sido marcante, pode ser tomado como
marco de antes e depois na vida do narrador, ou seja, a relação é de causa
e efeito. Não há necessidade de repetir antes e depois, e talvez duas frases
– uma para a conjetura e outra para o resultado da conjetura – organizem
melhor o enunciado; a relação de causa e efeito também não foi expressa
por uma conjunção adverbial mas por uma oração adjetiva não restritiva,
isto é, por uma predicação (uma declaração) a respeito da morte da mãe.

251
gramática e estilo

5a Pensei nos fatos de minha vida que pudessem servir para dividi-la
em antes e depois. O que me ocorreu de imediato foi a morte de minha
mãe, o que, sem dúvida, marcou-me, pois, inclusive, obrigou-me a
mudar de cidade, de estado.

Exercício 12

Revise o paralelismo destas frases para verificar se é mesmo caso


de coordenação:
1. A força militar argentina invadiu as Malvinas e não permite a
presença de imprensa, evitando, assim, que os moradores deem decla-
rações e as consequências das mesmas.
2. Desde que entrei no mercado de trabalho, nunca acreditei muito
na história de concorrência interna entre colegas, disputa por melhores
cargos e salários e a constante “bola nas costas”, ou seja, a culpa dos
problemas é sempre dos outros e nunca de si próprio.
3. Meu namorado era de outra cidade, e nos correspondíamos se-
manalmente: eram páginas e páginas de declaração de amor, desenhos,
figurinhas e muita saudade daquele tempo.
4. Hoje em dia, vimos que todo mundo está preocupado com a
situação do meio ambiente e as consequências que a destruição do meio
ambiente pode trazer para as gerações futuras.
Nestas outras frases nos deparamos com a presença desnecessária
e/ou pouco esclarecedora de um e; de fato, é muito difícil encontrar um
texto sem a conjunção e, que, além de formar conjuntos, tem a capacidade
de declarar que aquilo que vem depois dela vem depois do que veio antes
dela, ou seja, é a conjunção própria do encadeamento e, por causa disso,
também a conjunção própria do mero encadeamento. Vamos avaliar o
papel da conjunção e nestas frases.

252
gramática e estilo

1 As reflexões apresentadas aqui têm a proposta de enriquecer o


campo de discussão e planejamento da formação dos professores que
se apresentam voluntariamente para fazer este curso e que optaram por
uma caminhada profissional diferente da até então realizada.

Há uma relação de causa e efeito mascarada pela segunda oração


adjetiva – e que optaram por uma caminhada profissional diferente da
até então realizada – coordenada à anterior.

1a As reflexões apresentadas aqui têm a proposta de enriquecer o


campo de discussão e planejamento da formação dos professores que
se apresentam voluntariamente para fazer este curso porque optaram
por realizar uma caminhada diferente da realizada até então como
profissionais.
2 Hoje se sabe de muitas pessoas que na infância ou adolescência
usaram vitaminas não naturais e, após anos, tiveram problemas como
aumento excessivo de peso e, em casos piores, câncer.

Simplesmente há uma relação de causa e efeito:

2a Hoje se sabe de muitas pessoas que tiveram problemas como


aumento excessivo de peso e, em casos piores, câncer porque, na
infância ou adolescência, usaram vitaminas não naturais.

3 Resolvi aperfeiçoar-me na área que escolhi como profissão, ini-


ciando na pós-graduação em Letras e automaticamente passar ao
meu alunado a aprendizagem adquirida no andamento desse curso.

São duas relações: uma relação de ação e sua finalidade e uma


relação de causa e consequência.

3a Iniciei uma pós-graduação em Letras para aperfeiçoar-me na área


que escolhi como profissão; desse modo, vou automaticamente passar
ao meu alunado a aprendizagem adquirida no andamento desse curso.

253
gramática e estilo

4 Há professores realmente conscientes de sua importância para a so-


ciedade, e dão o máximo de si no desempenho da tarefa que executam.

Não há coordenação; a oração depois do e caracteriza esses pro-


fessores:

4a Há professores realmente conscientes de sua importância para


a sociedade que dão o máximo de si no desempenho da tarefa que
executam.

5 O médico cria o monstro com o objetivo de mostrar que a ciência


pode vencer a morte e, assim, conseguir ser respeitado na sua pro-
fissão e podendo, então, casar-se com a sua amada.

O que há é uma cadeia de finalidades e uma coordenação expressa


de forma não paralela.

5a O médico cria o monstro com o objetivo de mostrar que a ciên-


cia pode vencer a morte; espera, com essa descoberta, passar a ser
respeitado na sua profissão, o que poderia habilitá-lo a casar-se
com a sua amada.

Exercício 13

Revise o paralelismo destas frases:

1. Quando procuramos livros para consultar sobre o assunto, cons-


tatamos a falta de uma série deles na biblioteca e por isso não serão aqui
relacionados.
2. Na decorrência normal de adolescência, muitos planos traçados
e, dentre eles, encontrar um príncipe encantado e ter filhos. Por vezes, a
tristeza e a demora em encontrar alguém fazia-me pensar que só restava
ficar para “titia”.

254
gramática e estilo

3. Eu pensava que ser professor de Português era algo muito fácil,


que era repetir ano após ano as mesmas coisas, como me ensinaram
no ensino fundamental e que, no meu ensino médio, já teve algumas
mudanças.
4. É uma quebra de paradigmas sim, os filhos não necessitam mais
sair de casa, se libertam dos pais quando sentirem vontade para tanto,
não são mais arremessados para uma vida a dois ou solitária assim que
adquirirem certa independência financeira, permanecem por não senti-
rem a necessidade de liberdade que seus antecessores sentiam, vez que
as relações familiares hoje estão significativamente mais democráticas,
o diálogo é elemento construtor nas famílias.
5. No ano seguinte, já com dez anos, eu estava na quarta série, e
minha professora era adorável, contava histórias, e eu gostava muito
da aula então, numa prova ela pediu uma redação, o assunto era livre.
Escrevi sobre o que eu imaginava que era Deus e também escrevi que
acreditava que eu havia escolhido meus pais para nascer. A diretora do
colégio era freira e pediu para explicar-me sobre as ideias que eu havia
escrito respondi que era o que eu achava lógico. Ela me fez prometer
que não falaria sobre o assunto e nem escreveria assim, ela não chamaria
meus pais na escola.
O manejo do simultâneo e do semelhante propiciado pela coorde-
nação nos ajuda a superar as limitações do mero encadeamento de frases
no texto e das orações dentro delas; do mesmo modo, a capacidade da
subordinação de estabelecer hierarquias de principal e subordinado nos
ajuda a superar as limitações da coordenação e do paralelismo. No pró-
ximo capítulo vamos examinar os modos de ser da subordinação, que,
muito provavelmente, também apareceu, na história da língua escrita,
depois da coordenação para resolver problemas mais complicados.
No desenvolvimento pessoal de escritores, a subordinação vem de-
pois da coordenação, já que, como pudemos observar, é muito comum que
escritores que ainda não desenvolveram um bom domínio dos recursos

255
gramática e estilo

expressivos da língua escrita lancem mão da coordenação para resolver


problemas em que a intervenção da subordinação seria bem mais útil.

256
gramática e estilo

SUBORDINAÇÃO

C oordenação envolve igualdade de funções e de forma, similitude,


identidade, pertinência a um mesmo conjunto. Subordinação implica
diferença de funções, dessemelhança, hierarquia (se há o subordinado,
há o principal), desigualdade. Retomemos os dizeres da lanchonete com
que mostramos a transformação de uma desigualdade comum em uma
instigante igualdade: FRANGOS E ASSADOS.
Por causa de seu contexto – o apelo da gerência aos passantes, presu-
míveis fregueses – chegamos à conclusão de que a mensagem poderia ser
compreendida assim: FRANGOS ASSADOS E OUTROS ASSADOS.
Com essa redação renegamos a coordenação, isto é, a igualdade de fun-
ções entre o substantivo FRANGOS e o adjetivo ASSADOS, e restabe-
lecemos a subordinação, em que o adjetivo assado declara alguma coisa
a respeito do frango e das outras carnes disponíveis na lanchonete para
a freguesia: Os frangos estão assados, as outras carnes estão assadas.
Nesta formulação, o substantivo frangos faz parte do sujeito da
frase, e o adjetivo assados faz parte do predicado. A relação que há en-
tre sujeito e predicado é uma relação entre diferentes funções na frase,
ou seja, é o contrário da relação que a coordenação estabelece ao criar
sujeitos compostos, predicados compostos, complementos compostos,
adjuntos compostos, orações compostas, frases compostas. Do mesmo
modo, a relação entre um substantivo e um adjetivo é uma relação de
predicação já que assados diz alguma coisa a respeito de frangos. É

257
gramática e estilo

também uma relação de subordinação, já que podemos considerar que


a locução nominal frango assado pode ser considerada uma oração (O
frango está assado ou O frango é assado) em que o verbo está elíptico.
Temos, então, de tratar de substantivos e adjetivos.

4.1 SUBSTANTIVOS E ADJETIVOS / SUJEITOS E PREDICADOS

Aqui temos algumas situações que podem produzir reflexões úteis.


Seria interessante refletir sobre elas antes de ler os comentários que vêm
depois. Em Da redação à produção textual (2009, p. 194), no início do
capítulo que trata de descrição, encontramos este diálogo a respeito do
qual se apresenta esta pergunta: a que se refere a palavra gato nas suas
várias aparições no diálogo abaixo?

– Olá. Ei, que cara é essa? Que que houve?


– O gato, cara, morreu.
– Que gato?
– O meu gato.
– Bom, eu não sabia que tu tinha um gato.
– Um gato preto, bonito, ágil, inteligente e carinhoso que entrou lá
em casa na sexta-feira passada, perto da meia-noite.
– Sexta-feira passada, dia 13? Então foi melhor que tivesse morrido.
– Por quê? Coitado...
– Gato preto dá azar. Tu pensou nisso?
– Não acredito nisso.
– Nem pensou na barulheira que eles fazem?
– Gato mia. Miado não é barulho.

Na frase Gato mia, a palavra gato designa a espécie toda, da mesma


forma que na frase Gato preto dá azar. Nesta, no entanto, o adjetivo preto
determina um subconjunto dentro da espécie toda. Na segunda frase do
diálogo, O gato, cara, morreu, a palavra gato está designando um só
membro da espécie. O artigo definido o indica que o autor da frase já
julgava seu gato apresentado anteriormente ao interlocutor, que desfaz

258
gramática e estilo

o equívoco na sequência imediata do diálogo: Que gato? O possessivo


e, a seguir, o artigo indefinido nas duas frases seguintes fazem a apre-
sentação do gato; os adjetivos vinculam-no a outros subconjuntos dentro
do conjunto de todos os gatos: bonito, ágil...
A palavra gato, então, refere-se neste diálogo:

a) à espécie toda: gato mia;


b) apresenta e distingue um dos elementos da espécie: Um (meu)
gato preto;
c) remete para um elemento já particularizado da espécie: o gato
(morreu).

Podemos ler na Gramática de usos do português (GUP), de Moura


Neves (2000, p. 68)37, o seguinte: “afinal, o que o substantivo comum faz
é uma categorização, que é o estabelecimento de um tipo (a) rotulando
uma categoria estabelecida e (b) definindo o conjunto de propriedades
que a identifica”. Para discutir categorização, rotulação e definição de
conjunto de propriedades, vamos tentar descobrir como se responde a esta
estranha pergunta estampada num pôster de banca de jornal anunciando
uma reportagem da Zero Hora: Procura de emprego: aparência: ajuda
ou atrapalha?
Se a resposta for Ajuda, sim, isto é, se concordarmos com o senso
comum e formos conhecedores de práticas que costumam usar o sub-
jetivo critério de boa aparência para excluir velhos, gordos, negros,
portadores de deficiências físicas, então vamos ter de concordar que
aparência atrapalha os que forem alvejados por esses critérios de má
aparência. Ou seja, aparência ajuda e atrapalha; ajuda uns, atrapalha
outros. Atrapalha alguns justamente porque ajuda outros e vice-versa.
Por isso, é descabida a pergunta por singelamente aparência, isto é, pelo
substantivo sem artigos e sem adjetivos. É muito provável que a repor-
tagem pretendesse inquirir sobre a validade do senso comum: boa apa-
37 NEVES, Maria Helena Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Unesp, 2000.

259
gramática e estilo

rência ajuda ou atrapalha? Também é possível que, inadvertidamente,


o editor do pôster tenha usado o substantivo aparência como sinônimo
de boa aparência, o que implica que, na cabeça dele, quem não tem boa
aparência não tem aparência, isto é, não aparece, não é visto ou, pior,
não deveria sequer aparecer.

4.1.1 O objeto e sua objetância

Aqui tem o começo de uma história; vamos ver (1) o papel que nela
tem o substantivo que designa o objeto que é o centro de interesse desta
cena inicial e (2) o papel do adjetivo que adjetiva esse substantivo para
refletirmos a respeito dessa relação substantivo-adjetivo-verbo.

Ainda não era hora de levantar, mas Teresa foi até o banheiro. Não
se sentia muito cansada; por incrível que parecesse, ela sentia menos
dores no corpo do que quando dormia. Além disso, não tinha havido
o impacto de acordar, de sair da atmosfera do sonho, de se tocar e
sentir o corpo de novo.
Ligou a luz e olhou no espelho. Até que era bonito de ver, o cabelo
loiro fino caía reto no lado esquerdo da cabeça, emoldurando o rosto.
Mas, do lado direito, havia uma orelha protuberante, sobressaindo
por entre os fios e quebrando a simetria do rosto. Teresa não pren-
deu os cabelos como de costume; jogou eles para o lado esquerdo e
inclinou-se para lavar o rosto. A água pegava no cabelo. Antes de
secar o rosto, Teresa ainda se olhou por cima da toalha: seria bom
se o cabelo sempre estivesse ali, e ela não precisasse ver como era
aquilo que ele tapava.
Prendeu os cabelos, tentando olhar o mínimo possível para o espelho.
Quando percebia sua imagem, apertava os olhos para tentar embaçar
a visão. Abriu a caixinha amarela e pegou a prótese. Assim, dentro
da caixinha, ela nem parecia que podia ser uma parte do corpo de
alguém. Teresa abriu a bisnaguinha e, automaticamente, começou
a passar a tal “cola hidratante” na prótese. Era engraçado: como
tinham conseguido vender aquilo pra ela? Ela sabia que não podia
existir uma cola hidratante... É que, desde o acidente, ela meio que

260
gramática e estilo

se deixou levar pelas mãos de outras pessoas. Teresa tirou o algodão


do ouvido e aproximou a prótese. Lentamente, fixou a orelha: tão
pequena, tão mais delicada que a sua original.

Que pensa o leitor ao ler este trecho?

Ligou a luz e olhou no espelho. Até que era bonito de ver, o cabelo
loiro fino caía reto no lado esquerdo da cabeça, emoldurando o rosto.
Mas, do lado direito, havia uma orelha protuberante, sobressaindo
por entre os fios e quebrando a simetria do rosto.

Ao ler orelha protuberante, o leitor faz uma imagem de uma enorme


orelha; no mínimo, de uma orelha grande, isto é, o leitor fixa-se não no
que é designado pelo substantivo mas no que é qualificado pelo adjetivo.
Por quê? Porque o substantivo orelha, neste caso, não está apresentan-
do ao leitor o objeto que designa; está referindo um objeto que o leitor
sabe que deve estar ali. O leitor fixa-se no que não sabia que estava ali:
a protuberância da orelha. E na expressão protuberância da orelha, a
relação substantivo e adjetivo inverte-se com relação à expressão ore-
lha protuberante: protuberância é uma palavra que exemplifica aquilo
que tentaram nos ensinar na escola como substantivo abstrato, que não
designa coisas mas a característica mais representativa de um conjunto
de coisas.
Antes de ter tomado conhecimento sobre a orelha protuberante,
sobressaindo, a leitora tinha lido a frase anterior – Até que era bonito
de ver, o cabelo loiro fino caía reto no lado esquerdo da cabeça, emol-
durando o rosto. Assim como está, esta frase não chega pra preparar o
leitor para escandalizar-se com a comparação que vem pela frente: por
que o cabelo não cairia reto? Não é isso que um cabelo liso costuma
fazer? Nas duas frases que seguem, o leitor vai sendo levado a conceber
que algo não está como costuma ser:

261
gramática e estilo

Teresa não prendeu os cabelos como de costume; jogou eles para


o lado esquerdo e inclinou-se para lavar o rosto. A água pegava no
cabelo. Antes de secar o rosto, Teresa ainda se olhou por cima da
toalha: seria bom se o cabelo sempre estivesse ali, e ela não precisasse
ver como era aquilo que ele tapava.

A leitora, no entanto, se é mesmo leitora, sabe que em qualquer


história tem – tem de ter – algo que não está como costuma ser porque,
se assim não for, não há história. Então, essa pista também não nos leva
na direção da questão, até porque ali, onde seria bom que o cabelo per-
manecesse, onde é? Ficamos sabendo que o cabelo está dos dois lados
e que, em um dos lados, há uma orelha protuberante e que no outro o
cabelo loiro fino caía reto. Alguém retém na cabeça o que está à direita
e o que está à esquerda lendo uma descrição? Ela preferia não ver o que
tinha embaixo dos cabelos por quê? Porque a orelha que sobressaía era
muito grande, meio grotesca? No que segue, tem várias pistas:

Abriu a caixinha amarela e pegou a prótese. Assim, dentro da caixi-


nha, ela nem parecia que podia ser uma parte do corpo de alguém.
Teresa abriu a bisnaguinha e, automaticamente, começou a passar
a tal “cola hidratante” na prótese. Era engraçado: como tinham
conseguido vender aquilo pra ela? Ela sabia que não podia existir
uma cola hidratante...

Parece que a moça usa uma prótese, que o narrador tenta deixar em
suspense com a digressão sobre a cola hidratante, mas logo depois vem
a confirmação do acidente e o motivo pelo qual o cabelo loiro fino caía
reto no lado esquerdo da cabeça.

É que, desde o acidente, ela meio que se deixou levar pelas mãos
de outras pessoas. Teresa tirou o algodão do ouvido e aproximou a
prótese. Lentamente, fixou a orelha: tão pequena, tão mais delicada
que a sua original.

262
gramática e estilo

E a outra orelha era também uma desgraça? Era uma orelha enorme,
protuberante, de um lado, e ela vai logo perder a outra, que não era tão
delicada quanto a prótese, mas, pelo menos também não era protuberante?
Aí, o leitor pode começar a suspeitar que foi induzido a um erro pela
orelha protuberante, passando a suspeitar que talvez a protuberância da
orelha remanescente não passasse da protuberância que qualquer orelha
teria quando comparada a uma ausência de orelha no outro lado. Se era
esse o efeito de sentido desejado pelo autor, talvez fosse melhor reescrever
a cena sem adjetivar a orelha:

Até que era bonito de ver, o cabelo loiro fino caía reto no lado esquer-
do da cabeça, emoldurando o rosto. Mas, do lado direito, havia uma
orelha, sobressaindo por entre os fios e quebrando a simetria do rosto.

Havia uma orelha é uma formulação estranha porque apresenta,


por meio do pronome indefinido uma, uma entidade que não precisa
ser apresentada, a orelha que todo mundo tem no lado direito; o efeito
incomum que produz, portanto, pode chamar atenção para a outra, no
lado esquerdo da cabeça, onde o cabelo loiro fino caía reto, emoldu-
rando o rosto, criando, desse modo, um contexto para a revelação que
vem depois. Uma versão que não criaria tal suspeita no leitor pode usar
o artigo definido, que refere o que não precisa ser apresentado:

Até que era bonito de ver, o cabelo loiro fino caía reto no lado
esquerdo da cabeça, emoldurando o rosto. Mas, do lado direito, a
orelha sobressaía por entre os fios quebrando a simetria do rosto.

Agora, o mas estabelece um paralelismo tanto entre os sujeitos ca-


belo loiro fino e a orelha quanto entre seus predicados, respectivamente,
caía reto e sobressaía. Estabelece também uma oposição entre o cabelo
que cai e a orelha que sobressai, levando o olhar do leitor de um para o
outro em busca do que quebra a simetria do rosto, preparando-o para a
revelação que não tarda.

263
gramática e estilo

Se a relação entre substantivo e adjetivo é uma relação de diferenças,


de desigualdades, de hierarquia, assim também é a relação entre o sujeito
e o predicado. Assim como podemos construir o sintagma orelha pro-
tuberante, podemos construir a frase A orelha é protuberante, sinônima
de A orelha sobressaía. Nada nos impediria, além disso, de propor uma
frase como A orelha protuberava. Isso quer dizer que, tal como faz um
verbo, um adjetivo predica sobre um substantivo, declara alguma coisa a
respeito dele, não podendo, pois, ser igual a ele, semelhante a ele, paralelo
a ele, a menos que vire um substantivo como vimos em frangos e assados.
Temos ainda a possibilidade de aproveitar a capacidade de abstração
do substantivo que representa a característica não da individualidade
mas da espécie em geral. Se a descrição fosse esta, o leitor ainda teria a
impressão de que a orelha remanescente era enorme?

Até que era bonito de ver, o cabelo loiro fino caía reto no lado es-
querdo da cabeça, emoldurando o rosto. Mas, do lado direito, havia
a protuberância da orelha por entre os fios quebrando a simetria
do rosto.

Dito assim, a orelha não é mais protuberante do que a protuberância


comum a todas as orelhas nos dois lados do rosto. O que poderia ocorrer
ao leitor seria uma inquietação que talvez se expressasse deste jeito: Como
assim havia a protuberância da orelha do lado direito? Do outro lado
não? Acertou, leitor, é isso mesmo. Então, vamos fazer uso também da
discreta caracterização promovida pelos substantivos abstratos.

4.1.2 Substantivo e adjetivo e adjetivo e substantivo

Para começar vamos refletir a respeito da relação que se estabelece


entre substantivo e adjetivo nestas frases.

1 A rainha menina renunciou.

264
gramática e estilo

Se o substantivo expressa um conjunto de seres pela delimitação de


uma ou mais características comuns, de tal modo que o substantivo menina,
por exemplo, designa ser humano do sexo feminino de idade entre 5 e 13
anos, então, um substantivo posto à direita de outro substantivo deixa de
referir o conjunto e passa a referir apenas as características que o delimitam
atribuindo-as ao substantivo à sua esquerda. Menina, nesta frase, predica
sobre o substantivo rainha, enunciando suas características próprias.
Podemos ler também em Moura Neves (2000, p. 175): “um subs-
tantivo pode deixar de ser referencial e funcionar como se fosse um
adjetivo. Ele pode atribuir o conjunto de propriedades que indica, como
se fosse uma única propriedade, a um outro substantivo, isto é, atuar
como qualificador ou como classificador”.

2 Não sou um autor defunto mas um defunto autor.

Aproveitando-se dessa possibilidade expressiva, Machado de As-


sis faz seu personagem narrador Brás Cubas ressaltar, com essa frase,
a circunstância de que escreve suas memórias depois ter morrido. Ele
não é, portanto, um autor defunto, isto é, um escritor que já morreu –
característica presente no substantivo defunto –, mas um defunto autor,
um morto que escreve – característica presente no substantivo autor.

3 Quem costuma assistir a shows musicais no Brasil pode perceber


que são muito raros entre nós os cantores bailarinos; no máximo,
temos alguns bailarinos cantores.

Temos a oposição cantores bailarinos / bailarinos cantores, que


é semelhante à da frase anterior. Como entre substantivo e adjetivo não
há distinção de forma, o adjetivo que costuma ser atribuído dentro de
um determinado contexto a um mesmo substantivo pode substituir a
locução que formaria com ele: produzir efeitos interessantes como esse
é um interessante exercício.

265
gramática e estilo

4 É proibida a entrada de chatos.

Chatos está por homens, caras chatos ou qualquer outra coisa chata
que o contexto indique.

5 O verde de seus olhos é a minha perdição.

Ocorre também uma substantivação do adjetivo – seus olhos verdes


– para tornar possível a tematização da característica e não do ser que tem
a característica. Neste caso, verde passa a funcionar como o substantivo
núcleo do sintagma nominal sujeito, o que deveria levar a concordância
verbal para o singular, mas o verbo, segundo a concordância variável do
português brasileiro, pode sucumbir à proximidade do plural de olhos.
6 Entrou o homem grande. Entrou o grande homem.

Como todo mundo sabe, são acionados sentidos diferentes para


grande: homem grande se relaciona ao sentido físico, ao tamanho do
homem; grande homem pode aplicar-se a um homem pequeno que tenha
mérito por suas qualidades. Também é um exercício interessante verificar
se fenômenos desse tipo ocorrem com essa mudança de posição de outros
pares de substantivos e adjetivos.

4.1.3 Substantivo como predicativo

Que efeito de sentido tem a permuta que ocorre nestes pares de frase?
1 A casa é uma maloca. / A maloca é uma casa.
2 A casa é um palacete. / O palacete é uma casa.
3 O jantar foi um banquete. / O banquete foi um jantar.

Como podemos ver nestas frases, não é apenas o adjetivo que usa-
mos como predicativo; podemos usar também o substantivo, que passa
a referir o conjunto de propriedades que indica atribuindo-as, neste caso,

266
gramática e estilo

ao substantivo núcleo do sujeito. A frase A casa é uma maloca atribui


à casa em questão as características peculiares do conjunto designado
pelo nome maloca, isto é, identifica um dos elementos do conjunto casa
como um dos integrantes do conjunto designado pelo substantivo maloca,
o qual, por sua vez, sendo definido como casa precária e rústica, é um
subconjunto do conjunto casa.
Já a frase A maloca é uma casa, que coloca no predicativo o nome
do conjunto a que pertence o nome que está no sujeito, nega a atribuição a
esse específico elemento do conjunto – a essa maloca – das características
próprias do que o designa, ou seja, a frase nega que a casa em questão
seja uma casa precária e rústica.
Na verdade, podemos pensar cada conjunto de seres designados por
um substantivo como subconjunto de um conjunto mais abrangente: casa,
por exemplo, é um subconjunto de habitação, que, por sua vez, é um
subconjunto de abrigo e assim por diante. É mais comum que o substan-
tivo que designa o conjunto mais amplo apareça no sujeito de frases com
verbo de ligação tal como em A casa é uma maloca. Menos comuns são
as frases em que no predicativo vai um nome que designa um conjunto
mais abrangente do que aquele a que pertence o elemento apresentado
no sujeito. De fato, é mais comum produzir frases para qualificar do que
para desqualificar, como também fazem os outros dois pares de frase.
Em A casa é um palacete / O palacete é uma casa, a primeira qua-
lifica a casa como uma mansão rica e requintada, enquanto a segunda
nega essas qualidades a uma residência afamada como tal, afirmando
que ela não passa de uma casa como qualquer outra. Ou então atribui ao
palacete alguma qualidade mais própria de uma casa, como, por exemplo,
a da informalidade, a do aconchego.
Em O jantar foi um banquete / O banquete foi um jantar, a segunda
frase também proclama o não cumprimento de uma promessa pretenciosa
ou atribui-lhe a característica informal, descontraída, familiar, própria
de um jantar e rara em banquetes.

267
gramática e estilo

4.1.4 O adjetivo como predicativo

Examinemos agora estes pares de frases

1. A menina sossegada dormia / A menina dormia sossegada.


2. O menino interessado observava os gestos do maestro / O menino
observava interessado os gestos do maestro.

A partir do predicado nominal, podemos considerar o que a gramáti-


ca chama de predicado verbo-nominal: nas primeiras frases dos primeiros
pares, os adjetivos sossegada e interessado delimitam subconjuntos dos
conjuntos expressos por menina e menino. Nas outras frases dos pares,
os adjetivos não delimitam subconjuntos e se referem tanto ao sujeito
da frase quanto ao verbo, como se fossem advérbios, dizendo que o
modo como a menina dorme é sossegado, que o modo como o menino
observa o maestro é interessado. Para entender o que é um predicado
verbo-nominal, podemos usar a coordenação:

1a A menina dormia e estava sossegada.


2a O menino observava os gestos do maestro e parecia interessado.

Não delimitando subconjunto e referindo-se também ao verbo, esses


adjetivos – sossegada e interessado – não fazem parte do sujeito da frase
e podem ser deslocados para o início da frase:

1b Sossegada, a menina dormia.


2b Interessado, o menino observava os gestos do maestro.

O deslocamento desses adjetivos para antes do sujeito mostra que


nem sossegada nem interessado compõem sintagma com os substanti-
vos que estão no núcleo dos sujeitos; portanto, se os deslocarmos para

268
gramática e estilo

a direita do núcleo do sujeito, precisamos marcar essa condição de ele-


mentos exteriores ao sujeito. Já está convencionado que essa marca é da
responsabilidade da vírgula.
Nestas frases o adjetivo velozes tem diferentes referências:

Os cavalos velozes corriam.


Os cavalos corriam velozes.

À primeira frase, podemos acrescentar uma oração complementar:

Os cavalos velozes corriam, e os cavalos lerdos trotavam.

O que acontece se fizermos um acréscimo desses à segunda frase?

Os cavalos corriam velozes, e os cavalos trotavam lerdos.

A frase com predicado verbo-nominal não admite esta oração com-


plementar porque seu adjetivo, diferentemente do da primeira, não deli-
mita subconjunto; refere-se a todo o conjunto expresso pelo substantivo.
Por isso, o adjetivo velozes forma, na primeira, um sintagma nominal
com o substantivo e o artigo – os cavalos velozes. Esse adjetivo só pode
trocar de posição se permanecer dentro desse sintagma:

Os cavalos velozes corriam.


Os velozes cavalos corriam.

Na frase com predicado verbo-nominal, esse mesmo adjetivo velo-


zes não está dentro desse sintagma, como mostra esta possibilidade de
troca de ordem:

Os cavalos corriam velozes.


Velozes, os cavalos corriam.

269
gramática e estilo

Nesta troca de ordem, velozes está colocado antes do artigo os e dele


separado por uma vírgula, isto é, não faz parte do sintagma composto
por os e cavalos. Não faz parte, portanto, do sujeito da frase mas do pre-
dicado: é o predicativo, a parte nominal do predicado verbo-nominal.
Diferentemente do adjetivo restritivo, não pode ser colocado à esquerda
do substantivo e, se for posto à direita do substantivo, seu caráter de
predicativo e, consequentemente, de adjetivo não restritivo38 precisa
ser assinalado por vírgulas, que indicam que ele está fora do sintagma.

Os cavalos, velozes, corriam.

Encontramos em Liberato e Fulgêncio (2007, p. 65)39 esta oposição:

Nossos valentes soldados não temem o inimigo


Nossos soldados valentes não temem o inimigo.

Afirmam as autoras que, em valentes soldados, entende-se necessa-


riamente que todos os “nossos soldados” são valentes. Portanto, soldados
tem um grau de dinamismo comunicativo maior do que o adjetivo valen-
tes, que denota uma qualidade implícita. Já em nossos soldados valentes,
nem todos os soldados são valentes; portanto o adjetivo é essencial, pois
delimita o conjunto dos nossos soldados de que falamos, isto é, “aqueles
dos nossos soldados que são valentes”. Traz, portanto, uma informação
indispensável; tem, então, um alto grau de dinamismo comunicativo.
Isso quer dizer que um baixo grau de dinamismo comunicativo im-
plica em não restritividade ou que todo adjetivo anteposto é não restritivo?
Vamos verificar equivalências e desigualdades do que significa e do que
implica cada uma destas formas de expressar a apreciação a respeito da
velocidade desses cavalos: o que velozes implica nestas frases.
38 A gramática escolar chama os não restritivos de explicativos, termo que nada diz de específico
sobre eles porque há muita coisa na língua que explica algo a respeito de alguma outra coisa.
39 LIBERATO, Yara; FULGÊNCIO, Lúcia. É possível facilitar a leitura. São Paulo: Contexto,
2007.

270
gramática e estilo

1 Os cavalos velozes corriam.

Velozes é restritivo, implicando que no conjunto há os que não são


velozes.

2 Os velozes cavalos corriam.

3 Os cavalos corriam velozes.

Velozes é não restritivo, implicando que todos estão velozes nessa


corrida.

4 Velozes, os cavalos corriam.

Velozes é não restritivo, implicando que os cavalos estão velozes


porque é assim que eles costumam ser.

5 Os cavalos, velozes, corriam.

Velozes é não restritivo, implicando que são velozes porque essa é


mínima obrigação deles.

6 Os cavalos eram velozes e corriam.

Velozes é não restritivo, implicando que sabiam quem eram e que


tinham um nome a zelar.

7 Só os cavalos velozes corriam.

Velozes é restritivo, implicando que o conjunto era heterogêneo.

271
gramática e estilo

4.1.5 O sintagma nominal

Vamos tratar do uso da vírgula que indica a não restritividade de


uma outra perspectiva: em Os cavalos velozes corriam, como vimos, o
sujeito é o sintagma Os cavalos velozes; em Os cavalos corriam velozes,
o predicado verbal é corriam, e o predicado nominal é velozes. Em Os
cavalos, velozes, corriam, precisamos marcar com vírgulas a não per-
tinência de velozes ao sintagma do sujeito. Marcar a não pertinência de
um elemento a um sintagma é uma das funções que foram historicamente
atribuídas à vírgula. Vamos examinar esta frase, que está impressa num
cartaz em uma caixa de supermercado:

Caixa preferencial para gestantes, idosos, portadores de necessidades


especiais. Na falta destes fregueses com até dez volumes.

A frase, evidentemente, não está escrita bem assim no cartaz; aqui


ela foi escrita desta maneira para mostrar que destes fregueses, tal qual
cavalos velozes, pode constituir um sintagma, e a constituição do sin-
tagma destes fregueses nesta frase dificultaria a leitura. Na verdade, a
grafia, no cartaz, é esta:

Caixa preferencial para gestantes, idosos e portadores de neces-


sidades especiais. Na falta destes, fregueses com até dez volumes.

Nesta versão com vírgula entre destes e fregueses, fica muito claro
que destes não é determinante de fregueses mas referente dos nomes já
mencionados, os merecedores da preferência acima proclamada: na falta
de gestantes, idosos e portadores de necessidades especiais, fregueses
com até dez volumes.
Assim como não colocamos vírgula – e nenhum outro sinal de pon-
tuação – entre o sujeito e o predicado de uma oração como, por exemplo,
em Esta caixa é preferencial, mesmo que, falando, façamos uma pausa

272
gramática e estilo

exatamente depois de Esta caixa para deixar claro ao nosso ouvinte que
ali termina o sujeito e que o predicado é preferencial vai ser enunciado,
também não separamos os elementos do sintagma por nenhum sinal
de pontuação. Pelo contrário; usamos uma vírgula para indicar que o
elemento que poderia ser determinante em um sintagma – como em
destes fregueses – ou complementador em um sintagma – como cava-
los velozes – não faz parte do sintagma. Tratemos, então, do sintagma,
começando por esta oração:

Gato mia.

Esta oração é composta de sujeito e predicado: gato é o sujeito, o


tema a respeito do qual a oração vai dizer alguma coisa, isto é, vai predi-
car. Mia é o predicado, isto é, a declaração que a oração faz a respeito do
sujeito. O sujeito gato é um substantivo, e o predicado mia é um verbo.
Consideremos, agora, esta outra frase:

Gato preto dá azar.

Esta oração também é composta por sujeito e predicado: o sujeito é


gato preto, e o predicado é dá azar. Gato preto é um sintagma nominal
composto por um adjetivo e por um substantivo; gato, o substantivo, é o
núcleo do sintagma, e preto, o adjetivo, é o complementador. Dá azar é
um sintagma verbal em que dá, o verbo, é o núcleo, e azar, o substantivo,
é o complementador. Vamos ver outra frase:

Qualquer gato de qualquer cor pode azarar quem acredita nisso.

O sujeito dessa frase é o sintagma nominal qualquer gato de qual-


quer cor, em que qualquer é o determinante, gato é o núcleo, e de
qualquer cor é o complementador. O predicado dessa frase é o sintagma
verbal pode azarar quem acredita nisso, em que pode é o determinante,

273
gramática e estilo

azarar é o núcleo, e quem acredita nisso é o complementador. Simplifi-


cando, o sujeito é sempre um sintagma nominal, e o predicado é sempre
um sintagma verbal. Sintagmas, segundo Moura Neves (2000, p. 56),
são “grupos de palavras que formam uma unidade sintática hierarquizada
maior que uma palavra, pois resulta de uma associação de palavras, e
menor do que a sentença, de que é constituinte”.

Exercício 14

Experimente colocar vírgula(s) nestas frases e explique os diferentes


sentidos que elas adquirem:
1. Logo como já foi mencionado quando da elaboração do ante-
projeto buscou-se realizar um levantamento da mão de obra qualificada
disponível na região.
2. O macete proclamado pelo professor para decorar a acentuação
das oxítonas era “Organização dos Estados Americanos”; tão inesque-
cível quanto é o macete da crase.
3. Assim terminei o segundo grau sem saber a gramática e sem saber
escrever uma redação.
4. Se o professor quer que os textos que solicita sejam produzidos
para encaminhar outras intenções mais próximas da vida real dos textos
persuadir encantar enrolar comover agredir por exemplo se tem a preten-
são de construir a situação ideal de um organismo literário em sua sala
de aula isto é todos escrevendo com referência ao que ali já se escreveu
para a turma toda o professor precisa construir tal situação com seus
recursos de professor.

4.2 FORMAS DO ADJETIVO

Os vários tipos de adjetivo podem combinar-se para delimitarem


subconjuntos cada vez mais restritos dentro do conjunto expresso pelo

274
gramática e estilo

substantivo. Esta é a sequência para a disposição desses tipos de adjetivos,


que estão em relação não paralela, como nesta frase:

Ela morava numa casa grande (palavra) com muitas peças (prepo-
sição + nome) que sua mãe reformara na década de 1930 (oração
adjetiva).

Inversões dessa ordem – palavra, sintagma adjetival, oração adjeti-


va – levam a uma desnecessária tentativa de estabelecer um paralelismo
entre formas diferentes:

Ela morava numa casa de três andares e majestosa.


Ela morava numa casa de pedra e que conservava um aspecto se-
nhorial.

Restabelecendo a ordem temos:

Ela morava numa casa majestosa de três andares.


Ela morava numa casa de pedra que conservava um aspecto senhorial

Entre adjetivos de mesma forma, a construção é paralela:

Ela morava numa casa grande, bonita e confortável.


Ela morava numa casa com muitas peças, pátio amplo e jardins bem
cuidados – a preposição com é o elemento coordenante.
Ela morava numa casa que pertencera ao Marquês de Maricá, fora
comprada por seu bisavô e sua mãe reformara na década de 1930 – o
pronome relativo que é o elemento coordenante.

4.2.1 Adjetivos-palavra

Vamos retomar alguns aspectos já tratados sobre adjetivos-palavra


na seção anterior para fundamentar alguns exercícios. Vimos, por exem-
plo, que um substantivo pode funcionar como se fosse um adjetivo, o

275
gramática e estilo

que exemplificamos com a famosa frase de Brás Cubas: Não sou um


autor defunto mas um defunto autor. Um outro exemplo interessante,
mais recente, pode ser dado pelo contraste entre o título de uma famosa
canção e do disco em que ela foi gravada e o aproveitamento que uma
peça de publicidade fez desse título. A canção se chama Doces bárbaros
e foi gravada por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal
Costa. Fala de uma invasão amorosa a uma cidade. Os que a invadem
são bárbaros – gente que não é dessa cidade invadida – que a invadem
com doçura, isto é, bárbaros – substantivo – que são doces – adjetivo.
A peça de publicidade anunciava o aniversário de conhecida con-
feitaria de Porto Alegre com este aposto: Dez anos de doces bárbaros
– em que doces é o substantivo, e bárbaro é o adjetivo, isto é, doces que
são bárbaros.

Exercício 15

Vamos, então, para começar, escrever uma frase interessante, inteli-


gente e original em que essa caracterização de um substantivo por outro
substantivo funcione reciprocamente, isto é, em que dois substantivos
permutem sua função de apresentar conjunto com a de apresentar uma
característica, tal como na frase de Brás Cubas, como na frase dos doces
bárbaros baianos, como na frase que faz reclame dos doces bárbaros
da confeitaria.

Exercício 16

Vimos também que um adjetivo pode ser substantivado como em


o verde dos seus olhos tal como acontece em o azul do mar. Escreva
duas frases interessantes, inteligentes e originais em que um adjetivo
seja substantivado tornando-se o centro do sintagma nominal (que não
precisa ser necessariamente o sujeito da frase).

276
gramática e estilo

4.2.1.1 A posição do adjetivo com relação ao substantivo

No caso de autor defunto e defunto autor, o substantivo que está à


direita assumiu a função de expressar a característica; podemos, por isso,
pensar que a posição normal do adjetivo na locução nominal é à direita do
substantivo. Na verdade, sabemos que o adjetivo pode aparecer à esquerda
do substantivo, às vezes, como já recordamos, até com sentido diferente
do que teria se estivesse à direita. Nem sempre, porém, a mudança de
sentido da expressão é assim tão consensual como no exemplo clássico
que costuma ser dado pelas expressões homem grande e grande homem.
Tomemos este par de frases:

O garoto esperto já saiu.


O esperto garoto já saiu.

Não havendo um contraste entre os dois sintagmas nominais na


mesma frase nem um contexto que faça com que garoto seja um adjetivo
para esperto, podemos postular que o adjetivo à direita – garoto esperto
– é claramente restritivo pois distingue esse garoto de um outro que não
é dotado de igual esperteza. É como se nesta frase estivesse subentendida
uma outra oração: O garoto esperto já saiu, e o garoto pateta ficou lá
dentro sem se dar conta do perigo que corria.
Já com o adjetivo à esquerda do substantivo – o esperto garoto –
garoto, à direita, no fim do sintagma teria um grau de dinamismo comu-
nicativo maior do que o adjetivo esperto. Essa combinação não implica a
comparação que apareceu na outra versão, e essa característica é apenas
declarada como mais uma entre outras.
Há, no entanto, uma diferença entre valentes soldados, que nos diz
que todos são valentes, e esperto garoto, que é singular. Se a característica
não está sendo enunciada para distinguir, certamente também não estaria
sendo enunciada para nada; pelo contrário, em O esperto garoto já saiu
podemos perceber uma conotação causal, como se o garoto tivesse saído

277
gramática e estilo

justamente porque sua esperteza lhe soprou que era melhor dar o fora
naquele momento. Seria como se aquela posição normal do substantivo
contaminasse o adjetivo com o caráter substantivo, o que fica expresso
pela necessidade de recorrer ao substantivo esperteza para explicar o
sentido da expressão. Na verdade, os valentes soldados não temem o
inimigo justamente porque são valentes, ou seja, aqui também se pode
perceber aquela conotação causal.
Vamos ver mais adiante que os adjetivos não restritivos podem ex-
pressar aquilo que as orações adverbiais especializaram-se em expressar.

Exercício 17

Escreva duas frases interessantes, inteligentes e originais em que


uma troca de ordem entre substantivo e adjetivo sem que haja troca de
classe gramatical entre eles provoque mudança no significado da locução
nominal e, então, explicite que mudança é essa.
Noutros casos, um substantivo pode ser caracterizado por um adje-
tivo à esquerda e por outro à direita, como nesta frase:

O bravo caçador solitário esperava os invasores.

Vamos trocar a posição desses dois adjetivos para entender melhor


o que implica estar antes ou depois:

O solitário caçador bravo esperava os invasores.

Parece mais natural que o adjetivo descritivo – solitário – venha


depois do substantivo e que o adjetivo avaliativo – bravo – venha antes.
É isso mesmo?

278
gramática e estilo

Exercício 18

Produza duas frases em que o sujeito seja uma locução com um


substantivo entre adjetivos. Cada uma delas deve ser submetida ao teste
de troca de posição dos adjetivos, e o exercício completa-se com um pa-
recer a respeito da hipótese aqui levantada: é mais natural que o adjetivo
avaliativo esteja à esquerda e o descritivo à direita.

4.2.1.2 O adjetivo como predicativo

Vimos que, em frases em que um substantivo é usado como predica-


tivo, o substantivo que designa o conjunto mais amplo costuma aparecer
no sujeito da frase como em A casa é um palacete. São menos comuns,
portanto, as frases em que no predicativo vai um nome que designa
um conjunto mais abrangente do que aquele a que pertence o elemento
apresentado no sujeito. É o caso de O palacete é uma casa. Podemos, no
entanto, imaginar um contexto em que o incomum apareça:

Sempre que eu visitava essas imensas mansões de meus clientes milio-


nários, sentia-me muito mal, cercada por aquela legião de serviçais:
mordomo, copeiras, garçons, motoristas; envolvida por todo aquele
cerimonial de trocar de roupa várias vezes ao dia: para o desjejum,
para jogar tênis, para ir à piscina, para cavalgar, jogar golfe, jantar,
dançar. Sentia-me participante de um espetáculo de teatro, de um
filme, de um romance do século XIX.
Bem diferente foi minha sensação quando passei duas semanas em
Petrópolis, na casa dos herdeiros do Marquês de Ipu. Não havia
nada dessas cerimônias e convenções esclerosadas: lá qualquer um
fazia o que queria a qualquer hora, vestia a roupa que julgasse mais
adequada; enfim, o palacete era uma casa.

279
gramática e estilo

Exercício 19

Escreva um pequeno texto para contextualizar uma frase interes-


sante, inteligente e original em que o predicativo seja um substantivo
que designa um conjunto mais abrangente do que aquele a que pertence
o elemento apresentado no sujeito.

4.2.1.3 O predicado verbo-nominal

Instado a manifestar-se a respeito da cerveja que desce redondo,


assim pronunciou-se o professor Cláudio Moreno em seu site40:

O que temos aqui é um caso de adverbialização do adjeti-


vo, fenômeno que já se observava no Latim e que se tornou
muito comum em nosso idioma. Dito de maneira mais
simples: o adjetivo, em Português, pode ser usado como
um advérbio: “A águia voava alto”; “Cães de fila custam
caro”; “Ela não senta direito”. Dá para notar perfeitamen-
te que esses adjetivos (aqui, no masculino singular – que
é, na verdade, a forma neutra dos nomes flexionáveis)
estão modificando o verbo, e não o substantivo.
A dúvida dos leitores quanto a essa estrutura, como bem
diz Celso Cunha, nasce do caráter fronteiriço entre o
adjetivo e o advérbio. Nas frases em que predomina o
valor de adjetivo, o leitor interpreta o vocábulo como
um predicativo do sujeito; somos levados a ler “ela
desceu maquilada” ou “eles chegaram tristes” como
“ela estava maquilada quando desceu” e “eles estavam
tristes quando chegaram”. Notem como, nesses casos, a
concordância é uma manifestação concreta da relação
sintática sujeito-predicativo.
Nas frases em que predomina o valor de advérbio, no
entanto, o leitor interpreta o vocábulo como um adjunto

40 MORENO, Cláudio. A cerveja que desce REDONDO. Sua Língua, c2023. Disponível em:
https://sualingua.com.br/a-cerveja-que-desce-redondo/. Acesso em: 22 jan. 2023.

280
gramática e estilo

adverbial (geralmente de modo). Para mim, “ela desceu


rápido” significa “ela desceu rapidamente”. Quando uso
“baixo” em “eles falavam baixo”, estou especificando
de que maneira eles falavam. A ausência de flexão de
“baixo” e de “rápido” confirmam o seu valor de advérbio.

Como se vê, o propósito da explicação é tranquilizar os consu-


lentes a respeito da correção do adjetivo no masculino no predicado
da oração adjetiva. A pergunta a ser respondida é esta: Mas está certo
aquele redondo no masculino sendo a cerveja do gênero feminino?
Esta resposta libera os curiosos para respirarem sossegados, que assim
está certo.
A pergunta aqui seria outra: por que os redatores daquela peça
publicitária escolheram o masculino para indicar o modo de descer da
cerveja, que é do gênero feminino? Por que o masculino (ou o neutro),
se a cerveja aparece vinculada a mulheres, inclusive às que, em alguns
dos vídeos da campanha, de fato, desciam redondinhas em oposição
a alguns homens, associados nas imagens a cervejas concorrentes,
que desciam quadrado? A cerveja que desce redonda desceria menos
redondo ou só no neutro o adjetivo funciona como advérbio? Nesta
frase, o adjetivo continuaria a se referir adverbialmente ao verbo,
indicando o modo como a cerveja desce, e a concordância faria com
que redonda se referisse explicitamente ao sujeito: a cerveja, que, por
ser redonda, desce redondo, ou seja, não haveria separação entre a re-
ferência adjetiva e a adverbial, já que estamos diante do mais genuíno
predicado verbo-nominal.
A questão aqui não é a correção gramatical, mas o questionamen-
to dos efeitos resultantes das escolhas que podem ser feitas dentro do
acervo da língua escrita que nossas leituras nos ensinaram, da língua que
aprendemos a falar e da língua que nos ensinamos a inventar para suprir
as nossas mais íntimas e irredutíveis necessidades expressivas.

281
gramática e estilo

Exercício 20

É por isso que este exercício propõe a composição de frases com


inusitados predicados verbo-nominais. Duas frases, pelo menos.

4.2.1.4 O critério da restritividade

Retomemos aquele par de frases em que o adjetivo velozes funciona


numa delas como adjunto do substantivo e como predicativo na outra:

1 Os cavalos velozes corriam.


2 Os cavalos corriam velozes.

Vamos criar contextos para essas frases começando pela frase 1,


em que velozes é restritivo:

A alegria dos cavalos diante daquela forte chuva que vinha aliviar a
prolongada estiagem expressava-se de várias maneiras: os cavalos
velozes corriam, e os lerdos trotavam atirando as patas dianteiras.

Este outro contexto é para a frase 2, em que velozes é não restritivo:

Na semana passada, finalmente obtivemos autorização para buscar


de volta um grupo de cavalos que havia fugido há três anos de vá-
rias fazendas da redondeza e se refugiado nos campos do Parque
Nacional. Eram cavalos muito jovens e já estavam vivendo em estado
de semisselvageria. Depois de uma semana de buscas, conseguimos
cercá-los e obrigá-los a dirigirem-se a uma mangueira improvisada.
Os cavalos corriam velozes enquanto gritávamos atrás deles.

Podemos, então, retomar o necessário entendimento de que todos os


valentes soldados sejam valentes (entende-se necessariamente que todos
os nossos soldados são valentes) e de que o esperto garoto tenha saído
justamente porque era esperto. Vamos escrever assim:

282
gramática e estilo

Nossos soldados, valentes, não temem o inimigo.


O garoto, esperto, já saiu.

Assim, estamos expressando, com toda a clareza, que todos os


soldados são valentes, que o garoto saiu porque é esperto e que os sol-
dados não temem o inimigo porque são valentes; tudo isso fica também
expresso se escrevermos assim:

Valentes, nossos soldados não temem o inimigo.


Esperto, o garoto já saiu.

4.2.2 Adjetivos-preposição + nome

Como já vimos, um substantivo pode funcionar como adjetivo: no


famoso contraste machadiano – um príncipe sapo e não um sapo príncipe,
uma bailarina atriz e não uma atriz bailarina –, o substantivo à direita
apresenta um atributo que caracteriza o substantivo à esquerda.

4.2.2.1 Substância e atributo

O substantivo expressa a substância, isto é, a essência, e o adjetivo


acrescenta algo que se atribui a essa essência: um príncipe sapo é um
príncipe caracterizado pelo fato de se apresentar como sapo, diferen-
temente de um sapo príncipe, que é um sapo caracterizado pelo fato de
que se apresenta como príncipe. Distinguir entre substância e atributo
é uma importante função da relação entre um substantivo e um adjetivo.
Consideremos esta frase:

As modernas telenovelas têm enredos muito parecidos com os folhe-


tins do século XVIII.

283
gramática e estilo

Esta frase não trata propriamente de telenovelas, mas de enredos,


ou seja, a substância é o enredo. Que enredo? O enredo das modernas
telenovelas. A finalidade da frase não é afirmar que as telenovelas têm
enredos mas que os seus enredos se assemelham aos dos antigos folhetins.
Enredo é uma ideia mais abstrata do que telenovela, já que o enredo é
um componente também de filmes, romances, lendas, contos, dramas.
O concreto é mais acessível do que o abstrato, e muito frequentemente
é o concreto que dá acesso ao abstrato. Uma leitura atenta e crítica do
que já escrevemos daquilo que estamos escrevendo costuma nos levar
à descoberta do verdadeiro tema do nosso texto. Na primeira versão da
frase, o autor está falando de telenovelas, tratando de um aspecto da tele-
novela, o enredo. A releitura da primeira versão dessa frase e das demais
que a antecedem e a seguem dá acesso a enredo como o tema do texto
e pode levar a uma reescrita da frase que expresse mais adequadamente
a relação entre enredo – substância – e telenovela – atributo – que vem
ao caso para o texto.

Os enredos das modernas telenovelas são muito parecidos com os


dos folhetins do século XVIII.

Antecedido do artigo, enredo é o substantivo; antecedida da prepo-


sição de, o sintagma as modernas telenovelas transforma-se em adjetivo.
Colocar um substantivo à esquerda de outro substantivo, transformando o
segundo em adjetivo por meio de uma preposição é um seguro dispositivo
para expressar ideias de forma abstrata, o que deve ser perseguido num
texto sempre que abstração significar clareza. Vamos ver outro exemplo:

Este trabalho trata da política habitacional do governo, que se tem


desviado sistematicamente de seus apregoados objetivos sociais.

O tema política habitacional do governo recebe uma única caracte-


rização: tem-se desviado dos seus apregoados objetivos sociais. Isso quer
dizer que o tema da frase não é genericamente a política habitacional do

284
gramática e estilo

governo mas o desvio sistemático dessa política. Podemos indicar com


maior clareza o verdadeiro assunto do trabalho se tomarmos a palavra
central dessa informação e a transformarmos num substantivo colocando-
-o no núcleo do sujeito:

O desvio sistemático da política habitacional do governo com re-


lação a seus apregoados objetivos sociais é o assunto de que trata
este trabalho.

Examinemos ainda este outro caso:

Gosto de vê-la com os meus sapatos a seus pés e minha bolsa em


um dos braços como se estivesse me convidando para sair, gosto de
encontrá-la ao chegar em casa, como se estivesse a me esperar. Da-
quela poltrona solitária não restou mais nada, é nela que me escondo
para ler e até adormeço tal qual criança satisfeita no colo de sua mãe.

Aqui tem um problema de foco: não é da poltrona (solitária) que


não restou mais nada; nada restou da solidão daquela poltrona, pois da
poltrona restou até mesmo o que ela não tinha antes. Assim a frase não
obrigaria o leitor a corrigir o sentido que já produziu ao chegar ao fim
da frase e ficar sabendo que a poltrona subsiste.

Gosto de vê-la com os meus sapatos a seus pés e minha bolsa em


um dos braços como se estivesse me convidando para sair, gosto
de encontrá-la ao chegar em casa, como se estivesse a me esperar.
Da solidão daquela poltrona não restou mais nada: é nela que me
escondo para ler e até adormeço tal qual criança satisfeita no colo
de sua mãe.

Exercício 21

Identifique a ideia substantiva destas frases e coloque-as no núcleo


do sujeito:

285
gramática e estilo

1. Todos nós sabemos que os profissionais do jornalismo e suas


respectivas atuações são instrumentos dos mais significativos para o
exercício de uma verdadeira democracia.
2. Veremos como o chinês é um artista milenar que conserva nas
belas pinturas de bambu e na utilização das cores de acordo com o seu
significado o conhecimento acumulado durante séculos de existência.
3. A primeira vaga que surgiu era em um órgão público, e confesso
que fiquei decepcionada pois era uma péssima estreia, mas acabei acei-
tando já que não aparecia coisa melhor.
O sintagma formado por preposição + nome é uma estrutura de
amplo uso tal como demonstra a frase abaixo:

A casa de pedra pertenceu a meu bisavô. Ela foi construída no século


XVIII por um vice-rei apaixonado pelas montanhas de Minas Gerais.

Nesta frase:
a. de pedra expressa um atributo de casa;
b. de meu bisavô expressa o possuidor de pertenceu;
c. no século XVIII expressa o tempo com relação a construiu;
d. por um vice-rei expressa o agente de construiu;
e. pelas montanhas expressa a meta de apaixonado;
f. de Minas Gerais expressa um atributo de montanha.

Um mesmo sintagma, portanto, pode representar diferentes catego-


rias, expressar diferentes noções e cumprir diferentes funções sintáticas,
como, por exemplo, de casa nas frases abaixo:

Estou com saudades do pessoal de casa – é um adjetivo e expressa


origem.

Faz dois meses que ele não sai de casa– é um advérbio e expressa
lugar.

286
gramática e estilo

4.2.2.2 Ambiguidade

Por não estarem associadas a uma única categoria e não cumprirem


apenas uma função sintática, as construções de preposição + nome podem
produzir referências ambíguas, como por exemplo, nestas frases:

Todos os visitantes receberam cartões do deputado.


Olhares curiosos vigiavam os exploradores das montanhas.

Na primeira delas, a locução do deputado pode ser adjetivo de car-


tões ou complemento de receberam; poderia, por isso, ser interpretada
com este sentido:

O deputado entregou cartões a todos os visitantes.

Pode ser interpretada com este outro sentido:


Cartões do deputado foram entregues a todos os visitantes.

Na segunda frase, o sintagma das montanhas pode ser adjetivo de


exploradores ou complemento de vigiavam:

Os exploradores das montanhas eram vigiados por olhares curiosos.


Das montanhas, olhares curiosos vigiavam os exploradores.

Exercício 22

Identifique a ambiguidade nestas frases e escreva tantas versões


claras para cada uma delas quantos forem os sentidos que elas podem ter.
1. Todos devem responder as questões em letras maiúsculas.
2. Os programas apresentados na televisão são tão alienantes que
não permitem que exista uma juventude esclarecida sobre nosso mundo.
3. Ele comprou 70 revistas do Cebolinha.

287
gramática e estilo

4.2.2.3 Predicação inadequada

O sujeito compõe-se de um sintagma que tem um substantivo como


núcleo; esse núcleo, como já vimos, expressa a essência do tema da frase.
Há predicação inadequada quando a declaração feita pelo predicado
não se refere ao núcleo do sujeito mas aos adjetivos que caracterizam o
que está no núcleo. Frequentemente uma oração adjetiva encomprida o
sujeito, colocando mais perto do predicado uma estrutura semelhante à
do sujeito. Vamos examinar estas frases:

1 A polêmica do aborto é muito discutida em nossos dias.

Polêmica é uma discussão organizada em que se sucedem as mani-


festações de pontos de vista que se opõem. O que provavelmente o autor
da frase quis dizer é isto:

1a O aborto é muito discutido em nossos dias

2 As consequências de uma Terceira Guerra Mundial são inevitáveis.

Consequência é o efeito resultante de uma determinada causa; por


isso, ocorrendo a causa, a consequência é inevitável por definição; a
causa é que pode ser evitado ou não.

2a A Terceira Guerra Mundial é inevitável.

3 Desejar uma vida feliz é o objetivo de todas as pessoas.

Certamente, o que o autor da frase tinha em mente era isto:

3a Uma vida feliz é o objetivo de todas as pessoas.

288
gramática e estilo

4 As nossas opiniões divergentes a respeito da luta pelas Malvinas


que pode trazer grandes mudanças no Cone Sul é muito mais grave
do que parecia à primeira vista.

Aqui se dá uma completa perda de rumo: o núcleo do sujeito é


opiniões; o verbo é, que é núcleo do predicado, deveria, portanto, dizer
algo sobre essas opiniões. Há um acúmulo de predicações dentro do
sujeito sobre (1) opiniões – divergentes –, sobre (2) divergentes – a
respeito da luta pelas Malvinas –, sobre (3) luta pelas Malvinas – que
pode trazer grandes mudanças no Cone Sul. Esse acúmulo distancia de
tal modo opiniões de é (muito mais grave...) que provoca problema não
apenas na concordância mas também na referência. O predicado – é muito
mais grave do que parecia à primeira vista – parece referir a luta pelas
Malvinas, que está na periferia do sujeito e não no núcleo. Frases desse
tipo não se consertam enquanto frases porque indicam que é o texto que
não tem clareza a respeito de seu tema.

5 O motivo de tanto prestígio deve-se à capacidade que ele tem de


transmitir os mais profundos sentimentos aos que o observam.

O que se deve a essa capacidade é o prestigio e não o motivo.

5a O seu prestígio deve-se a sua capacidade de transmitir os mais


profundos sentimentos aos que o observam.

6 Já naquela época, Jânio usou uma vassoura como símbolo de sua


campanha que, segundo ele, varreria a corrupção e espantaria o
comunismo do país.

É o predicado da oração adjetiva que predica inadequadamente o


seu antecedente: não seria a campanha que varreria a corrupção, etc.,
mas o governo do país, que era o objetivo da campanha.

289
gramática e estilo

6a Já naquela época, Jânio usou como símbolo de sua campanha uma


vassoura, simbolizando a promessa de que varreria a corrupção e
espantaria o comunismo do país.

Exercício 23
Examine a relação entre o sujeito e o predicado destas frases e
reescreva-as se for o caso.

1. As diferenças existentes entre a visão a respeito do índio dos


autores românticos e a dos modernistas são distintas.
2. Uma forte razão para que a opção profissional de nossos jovens
não seja feita de maneira consciente é o mercado de trabalho de vários
grupos profissionais que não existe, ou, quanto existe, é mal remunerado.
3. A certeza da maior qualidade técnica dos jogadores brasileiros
sobre os europeus sobre a qual ninguém tem dúvidas não foi suficiente
para impedir-nos de passar 24 anos sem o título mundial.
4. O aumento do consumo de gasolina pelos automóveis de passeio
deveriam ser substituído por veículos elétricos de transporte coletivo que
constitui a solução ideal para a questão energética.
5. O exemplo de inspiração de minha avó campeã olímpica é maior;
vai bem além das águas de qualquer piscina, rio ou de outra travessia.
6. O incentivo da leitura, não me lembro de ser muito cobrada na
vida escolar, era mais a parte gramatical, ou seja, a acentuação, pontuação
das frases, orações, etc.
7. Com o passar dos anos, o crescimento do casulo se torna pequeno
demais.
8. Um conhecimento maior sobre a maneira de jogar de nossos
adversários entre os quais há dois jogadores europeus baseia-se mais
na velocidade e no vigor físico do que nas virtudes técnicas individuais
dos jogadores.

290
gramática e estilo

4.2.2.4 Concordância

Podemos ler na Nova gramática do português brasileiro (NGPB),


de Ataliba de Castilho (2010, p. 412): “no PB [português brasileiro]
padrão, o verbo concorda em pessoa e número com seu sujeito, e não
concorda com os argumentos internos nem com os adjuntos. [...] Mas o
PB não padrão exibe outras regras de concordância”. Essas regras, que
orientam nossa fala, muito frequentemente, orientam a nossa escrita.
Vamos examinar estas frases:

1. A simples marcação de cruzinhas tornam a prova uma verdadeira


guerra de nervos.

2. A descoberta de novas substâncias permitem duas alternativas


de trabalho.

3. Um ser humano atingido por essas doenças não vão produzir o


máximo.

Uma dessas regras variáveis é a concordância com o componente


do sujeito que está mais perto do verbo, no caso, cruzinhas, substâncias
e doenças, que compõem com as preposições que os antecedem – de cru-
zinhas, de novas substâncias, por essas doenças –adjetivos dos núcleos
dos sujeitos das frases.
Se escrevermos o que falamos tal como falamos, é bem provável
que essas regras de concordância da língua que falamos apareçam em
nossas frases, que, se forem avaliadas pela gramática do PB padrão,
serão consideradas erradas. Trata-se, então, para quem julga imperioso
obedecer as (às) regras do PB padrão, prestar atenção na composição dos
sujeitos para verificar a flexão tanto do núcleo quanto dos substantivos e
adjetivos do adjunto que está mais perto do verbo. Neste caso, adequando
a concordância à regra do PB padrão, temos:

291
gramática e estilo

1a A simples marcação de cruzinhas torna a prova uma verdadeira


guerra de nervos.

2a A descoberta de novas substâncias permite duas alternativas de


trabalho.

3a Um ser humano atingido por essas doenças não vai produzir o


máximo.

Nestas frases ocorre o mesmo fenômeno:

4 Isso porque o assalto a pessoas logo que estão entrando em seus


carros são constantes.

5 O reboco das casas estavam todos despencando.

Os núcleos dos sujeitos são assalto e reboco, mas, na frase 4, mais


perto do verbo, há pessoas e, mais perto ainda, está o sintagma seus carros
e, na frase 5, há das casas; por causa disso, surgem os plurais são e esta-
vam. Na revisão, convém considerar que assalto, na frase 4, indica uma
série de acontecimentos, e reboco, na frase 5, se refere ao revestimento
de várias casas. Nesses casos em que o sujeito se refere a coisas plurais,
pode-se considerar a alteração do sujeito em vez da alteração dos verbos:

4a Isso porque os assaltos a pessoas logo que estão entrando em seus


carros são constantes.

5a Os rebocos das casas estavam todos despencando.

O que está mais próximo do verbo na oração que vem depois dos
dois-pontos é o complemento, composto por uma série de plurais:

6 Hoje em dia nossa vida diária está muito agitada; isto geram neu-
róticos, loucos e toda a espécie de doentes.

292
gramática e estilo

Segundo o padrão, teríamos:

6a Hoje em dia nossa vida diária está muito agitada; isto gera neu-
róticos, loucos e toda a espécie de doentes.

Graças às pesquisas que embasam trabalhos como a NGPB é que


sabemos que “o PB não padrão exibe outras regras de concordância”,
diferentes das do PB padrão (CASTILHO, 2010, p. 412). Essas regras,
que podem ser conferidas entre as p. 411 e 413 da NGPB, aparecem
– segundo a gramática do PB padrão – nos erros de concordância de
textos brasileiros.

Exercício 24

Examine a concordância nestas frases; ser for o caso, revise-as.

1. O acúmulo de pessoas carentes de ensino fazem com que uma


atitude seja tomada e soluções urgentes sejam encontradas.
2. Essa pesquisa pretende vislumbrar como o método de avaliação
das redações dos vestibulares das universidades brasileiras acontecem.
3. A solução para os problemas da nação, em grande parte, talvez
dependam de tempo.
4. O homem tenta buscar no sobrenatural algo que segundo suas
crenças completariam sua felicidade e sua razão de existir.
5. A escola nos mostra a parte teórica das coisas, e os meios de
comunicação de massa nos mostra, além da parte teórica, a parte prática.
6. A desproporção entre o salário real de um brasileiro e o mínimo
que deveria ganhar é de 140%, motivo pelo qual as grandes esperanças
de um futuro melhor vai por terra.

293
gramática e estilo

7. Não sei se você já reparou, mas a faculdade, para nós, que pode-
mos nos dedicar totalmente ao estudo, apesar de guardar muitas diferenças
em relação ao trabalho, também apresentam semelhanças.
8. Não podemos negar que os meios de comunicação, em especial
a televisão, nos dá um grande número de informações numa pequena
quantidade de tempo.

4.2.3 Orações adjetivas

A oração adjetiva tem o poder de transformar qualquer predicação


em caracterização atribuindo um caráter de citação à predicação que faz,
despojando-a da asserção que faz no aqui e agora da frase. Sendo uma
oração subordinada, contribui para hierarquizar predicações a respeito
de um tema, como se pode fazer nesta frase, composta por mero enca-
deamento:

1 A minha cama tinha estado muito sozinha nos últimos tempos,


ansiava por um pouco da minha atenção, uma proximidade maior.

A coordenação com e revela algum controle do mero encadeamento:

1a A minha cama tinha estado muito sozinha nos últimos tempos e


ansiava por um pouco da minha atenção, uma proximidade maior.

Nesta segunda versão, o e deixa bem claro que temos aqui dois
predicados a respeito da minha cama: o primeiro – tinha estado muito
sozinha nos últimos tempos – é descritivo e até mesmo verificável; já
o segundo predicado– ansiava por um pouco da minha atenção, uma
proximidade maior – é opinativo e tem o anterior como justificativa.
Predicados que opinam são bem mais interessantes do que predicados que
apenas constatam; costumam constituir, por isso, o eixo do predicado, a
oração principal. Já o predicado meramente descritivo tem vocação para

294
gramática e estilo

oração subordinada, no caso, adjetiva. E aquela coordenação entre os


dois complementos do verbo da oração principal fica mais clara se for
expressa paralelamente com uma repetição da preposição por:

1b A minha cama, que tinha estado muito sozinha nos últimos tempos,
ansiava por um pouco da minha atenção, por uma proximidade maior.

Podemos testar o acerto de nossa escolha de principal e subordinada


invertendo essa hierarquia:

1c A minha cama, que ansiava por um pouco da minha atenção,


por uma proximidade maior, tinha estado muito sozinha nos últimos
tempos.

Nessa disposição, a asserção da segunda predicação transforma-se


numa óbvia conclusão tirada da primeira, e é sempre melhor terminar a
frase pelo que é novo, como na frase 1ª. A singela operação de colocar
um pronome relativo depois de qualquer substantivo ou sintagma no-
minal e um predicado depois dele nos permite criar caraterizações que
tanto suprem as lacunas do elenco dos adjetivos-palavra quanto evitam
as ambiguidades do sistema dos adjetivos-preposição + nome, como
neste caso, por exemplo:

2 Sempre tive uma consideração especial pelas pessoas que carre-


gam canivete.

Nesta frase, a oração adjetiva supre a falta de um adjetivo que


expresse essa noção e evita a ambiguidade da expressão de canivete e a
pedanteria de uma expressão como, por exemplo, portadora de canivete.
A singeleza dessa operação não deve nos deslumbrar ao ponto de fazer-
-nos esquecer do rico acervo de adjetivos-palavra nem dos que podem ser
construídos a partir de uma preposição + um sintagma nominal. Vamos
examinar estas frases:

295
gramática e estilo

1 O livro que tem uma capa dura azul pertenceu a meu bisavô.

2 Meninos que costumam fazer exercícios com peso podem contrair


doenças cardíacas.

3 Naquela casa que é muito grande passei minha infância.

Estas frases não precisam de oração adjetiva:


1a O livro azul de capa dura pertenceu a meu bisavô.
2a Meninos halterofilistas podem contrair doenças cardíacas.
3a Naquela casa muito grande passei minha infância.

Evidentemente, se o verbo não estiver no presente do indicativo, a


indicação do tempo vai justificar a oração adjetiva:
2b Naquela casa que já foi muito grande passei minha infância.

4.2.3.1 A posição da oração adjetiva

Vamos examinar estas frases:

1 Fui selecionada em alguns concursos literários e tive publicações


em algumas coletâneas, das quais tenho dois ou três exemplares de
cada em casa, que guardo com carinho.

A oração adjetiva que guardo com carinho vem depois de casa, mas
refere-se claramente a dois ou três exemplares de cada. Uma pequena
alteração de ordem resolve o problema:

1a Fui selecionada em alguns concursos literários e tive publicações


em algumas coletâneas, de cada uma das quais tenho em casa dois
ou três exemplares, que guardo com carinho.

296
gramática e estilo

Se parecer que estas alterações de ordem para encordoar duas ora-


ções adjetivas deixam a frase muito complicada, pode-se dividi-las em
duas frases:
1b Fui selecionada em alguns concursos literários e tive publicações
em algumas coletâneas. Guardo em casa, com carinho, dois ou três
exemplares de cada uma delas.

2 Meu primeiro contato com os clássicos foi com “A moreninha”, na


sexta série, que eu achei maçante e de difícil leitura.

Ela até pode ter achado a sexta série maçante, mas de difícil leitura
foi certamente A moreninha. Uma alteração de ordem bota as coisas no
lugar:

2a Meu primeiro contato com os clássicos foi na sexta série com “A


moreninha”, que eu achei maçante e de difícil leitura.

3 Maus tratos, violência, abuso sexual são os motivos desses jovens


abandonarem seus lares que caem no mundo do crime por total falta
de oportunidade.

O antecedente da oração adjetiva são os jovens: eles é que caem no


mundo do crime.

3a Maus tratos, violência, abuso sexual são os motivos que provocam


o abandono do lar por esses jovens, que caem no mundo do crime
por total falta de oportunidade.

Essas duas orações adjetivas encaixadas podem ser evitadas, desde


que junte o que motiva com o que provoca:
3b Maus tratos, violência, abuso sexual provocam o abandono do
lar por esses jovens, que caem no mundo do crime por total falta
de oportunidade.

297
gramática e estilo

4 Quanto a minha vida pessoal, passo por um momento único. Es-


tou esperando o nascimento do meu primeiro filho, previsto para
a primeira semana de julho, que com certeza será o marco mais
importante da minha vida.

Mais do que a primeira semana de julho, o marco mais importante


é o nascimento do primeiro filho:

4a Quanto a minha vida pessoal, passo por um momento único. Estou


esperando, para a primeira semana de julho, o nascimento do meu
primeiro filho, que, com certeza, será o marco mais importante da
minha vida.
5 Seu semblante guardava um aspecto preocupado e triste enquanto
escutava alguma coisa que lhe dizia a moça de avental azul; ao que
aquiesceu com um rápido olhar e um leve movimento da cabeça.

Aquele ponto e vírgula entre a oração adjetiva e o seu antecedente –


avental azul; ao que aquiesceu – está inadequado: entre uma oração adjetiva
e o seu antecedente, uma vírgula assinala o caráter não restritivo da oração
adjetiva, e isso significa que a falta da vírgula indica que a oração adjetiva
é restritiva. Qualquer outro sinal de pontuação nessa posição perturba essa
convenção. A oração adjetiva, que começa com ao que aquiesceu, mostra,
justamente por causa desse artigo masculino que acompanha a preposição,
que a personagem aquiesceu ao que lhe dizia a moça e não à moça, pois
tudo o que não é marcado como feminino expressa-se pelo masculino. Esse
é, portanto, o antecedente. Vamos alterar a ordem:

5a Seu semblante guardava um aspecto preocupado e triste enquanto


escutava a moça de avental azul que lhe dizia alguma coisa, ao que
aquiesceu com um rápido olhar e um leve movimento da cabeça.

Se ele fez um gesto de quem havia escutado, não há necessidade


de dizer que ele escutava. Podemos também pensar em uma construção
por justaposição, sem a oração adjetiva:

298
gramática e estilo

5b Seu semblante guardava um aspecto preocupado e triste enquanto


a moça de avental azul lhe dizia alguma coisa; ele aquiesceu com
um rápido olhar e um leve movimento da cabeça.

Fica claro, então, que a oração adjetiva caracteriza-se por um pro-


nome relativo que a relaciona ao substantivo ou sintagma nominal que a
antecede. O pronome relativo refere, na oração que se torna adjetiva, esse
substantivo ou sintagma que o antecede na oração anterior, adquirindo,
dentro da oração adjetiva, uma das funções sintáticas que são desempe-
nhadas por ele. Tomemos estas duas frases simples, que vão se tornar as
duas orações de uma frase formada por principal e subordinada adjetiva:

6 O espelho quebrou. O espelho era feito com o mais fino cristal.

Já vimos que, genericamente, a oração que vai caracterizar, isto é,


apresentar algum aspecto próprio do tema da frase, tem vocação para
oração adjetiva, e a oração que narra ou assevera algo a respeito desse
tema tem vocação para principal. Genericamente quer dizer que nem
sempre é assim; neste caso, por exemplo, a informação a respeito do
montante da perda pode ser mais importante do que uma informação que
é quase uma caracterização do objeto, já que os espelhos têm o costume
de quebrarem-se. Em todo caso, podemos fazer o teste:

6a O espelho que quebrou era feito com o mais fino cristal.


6b O espelho que era feito com o mais fino cristal quebrou.

Como também já vimos, esta segunda frase fica prejudicada pela


ordem em que se distribuem os seus dois principais elementos: um enor-
me sujeito na frente e um minúsculo predicado no fim. Vamos inverter
a ordem para equilibrar o juízo a respeito do acerto da escalação de
principal e subordinada:

6c Quebrou o espelho que era feito com o mais fino cristal.

299
gramática e estilo

Com o espelho na posição de tópico – nas frases 6a e 6b –, parece


que a informação mais importante é o material de que o espelho é feito;
se pusermos quebrou, isto é, a informação sobre o acontecimento, na
posição de tópico, a informação sobre sua composição parece que ganha
mais relevo ainda. Enfim, vai para a oração principal o que for principal
com relação às orações adjacentes, e essa decisão tem de ser tomada
frase por frase. Vamos acrescentar estas outras duas frases simples, que
vão formar outra frase composta de principal e subordinada adjetiva:
7 Quebraram o espelho. O espelho era feito do mais fino cristal.
7a O espelho que quebraram era feito do mais fino cristal.
7b Quebraram o espelho que era feito do mais fino cristal.

Em ambas as frases, o antecedente do pronome relativo que é o


sintagma nominal espelho: na frase 7a o que torna-se o complemento da
oração adjetiva e na frase 7b o que torna-se o sujeito da oração adjetiva.
A função do pronome relativo na oração subordinada tem consequências
na concordância e na regência da frase, como vamos ver.
Exercício 25

Transforme em orações adjetivas as frases entre parênteses e


coloque-as no lugar adequado.

1. Os sequestradores exigiram uma grande soma em dinheiro. (Os


sequestradores tinham telefonado de manhã.)
2. A razão de sua demora era, como sempre, o excesso de trabalho.
(O trabalho exigia a presença dele na cidade até muito tarde.)
3. O conjunto musical foi convidado para gravar um disco. (O
conjunto musical excursionava pelo interior de Goiás.)
4. Os alunos enfrentaram várias dificuldades durante a viagem.
(Eles foram para a Bahia.)

300
gramática e estilo

Exercício 26

Atribua as funções de principal e subordinada adjetiva a estas frases:


1. Os conhecimentos constituem um capital precioso para toda a
vida e podemos adquirir conhecimentos durante nossa juventude.
2. O filho de dona Araci era um menino franzino, ele teve uma luta
muito violenta com Juca, o menino mais forte da vila.
3. O assaltante ameaçava seu avô com o revólver, e Francisco jogou
o livro-caixa na cabeça do assaltante.
4. Meus amigos me estimam de verdade: eles me mandaram feli-
citações pela promoção.
5. A porta ficava a dois passos de nossos lugares, e nós tentamos
escapar por ela, mas estava trancada.
6. Não cabe, ao resumir um texto, emitir julgamentos sobre posição
do autor. O resumo é o momento da compreensão do texto. A compre-
ensão do texto é uma etapa indispensável para o momento posterior da
interpretação.

4.2.3.2 Orações adjetivas desajeitadas

Nem sempre a oração adjetiva é a melhor solução e, por vezes,


mesmo sendo uma boa solução, a oração adjetiva não é usada da maneira
mais adequada; nesses casos podem ocorrer orações adjetivas desajeita-
das. Vamos examinar estas frases.

1 Trabalha num restaurante como músico; este local tem pista de


dança que, a partir das 23h, vira uma danceteria.

A oração adjetiva não só está mal colocada mas também a sua rela-
ção com a principal não é de subordinação mas paralela, já que as duas
se referem ao mesmo sintagma nominal, o restaurante:

301
gramática e estilo

1a Trabalha como músico num restaurante que tem pista de dança


e que vira uma danceteria a partir das 23h.

A frase pode ser mais concisa se economizarmos um que e um


artigo desnecessários:

1b Trabalha como músico num restaurante que tem pista de dança


e vira danceteria a partir das 23h.

2 O livro narra a história de adolescentes na década de 70 e tem de


tudo: amor, amizade, música, sexo, drogas e, sim, rock. Mas o final
dele é triste: a tal herança de Léo era a Aids, que ao fim da trama nos
é revelado que ele pode ter passado o vírus da Aids à personagem
principal do livro.

A oração adjetiva que ao fim da trama nos é revelado que ele


pode ter passado o vírus da Aids à personagem principal do livro
também foi usada pelo autor com a finalidade de poupar-se de contar
direito a história e chegar mais rapidamente ao fim. O antecedente
da oração adjetiva é a Aids, que Léo pode ter passado à personagem
principal do livro, como nos é revelado ao fim da trama. A reescrita
que segue não preenche a lacuna que ficou aberta pela canhestra
resenha do livro, mas, ao menos, dá à oração adjetiva uma ordem
que restabelece a sua relação com a principal e deixa clara a sua
pertinência ao antecedente.

2a O livro narra a história de adolescentes na década de 70 e tem


de tudo: amor, amizade, música, sexo, drogas e, sim, rock. Seu final
é triste: revela-nos que a tal herança de Léo era a Aids, cujo vírus
ele pode ter passado à personagem principal do livro.

3 Minha mãe foi minha primeira professora, que ao seu lado, en-
quanto costurava, ensinou-me a ler, escrever e contar.

302
gramática e estilo

O antecedente minha primeira professora ensinou o narrador a ler,


escrever e contar, mas ele é que ficava ao lado dela – ao seu lado –­ en-
quanto ela costurava; trata-se, pois, de botar ordem nessa frase, abrindo
mão, se for o caso, da oração adjetiva:

3a Minha mãe foi minha primeira professora: ensinou-me a ler, es-


crever e contar enquanto costurava e eu ficava sentado ao seu lado.

4 Hoje em dia, mais madura, consigo perceber que minha família


é tipicamente italiana, Temos uma hierarquia muito forte dentro
de casa, que, embora pareça ser uma constituição com destaque
patriarcal, a última palavra sempre foi da “mama”.

A oração adjetiva tem casa como antecedente, mas não se refere à


casa: refere-se à hierarquia e fala da constituição dessa hierarquia (na
verdade, o seu referente mais adequado está na frase anterior: família
tipicamente italiana). Podemos também discutir a adequação do verbo ser
na oração adjetiva; seria mais adequado dizer que a família ou a hierarquia
tem (e não é) uma constituição com destaque patriarcal. Podemos tentar
compor a frase adequadamente com o material que temos:

4a Hoje em dia, mais madura, consigo perceber que minha família


é tipicamente italiana, pois temos, dentro de casa, uma hierarquia
muito forte, que só aparentemente tem uma constituição patriarcal,
pois a última palavra sempre foi da “mama”.

5 Um texto que escrevi como dever de casa, a pedido da professora


Aneci, proporcionou um novo problema que só mais tarde conseguiria
argumentos consistentes para defender a minha escolha.

A oração que parece adjetiva – que só mais tarde conseguiria argu-


mentos consistentes para defender a minha escolha – tem novo problema
como antecedente, mas novo problema não pode ser sujeito dessa oração
adjetiva porque novo problema não conseguiria argumentos consistentes

303
gramática e estilo

em momento algum. Podemos imaginar que a forma verbal conseguiria


está, então, em primeira pessoa e não em terceira: só mais tarde (eu)
conseguiria argumentos. Mesmo assim, essa oração que parece adjetiva
não se refere a novo problema. O que aconteceu foi que o autor usou a
oração adjetiva pra cortar um atalho que o desobrigasse de explicar que
problema é esse, de que modo esse problema levou a uma escolha, que
tipo de escolha é essa que precisava ser defendida, por que essa defesa
se armaria com argumentos consistentes, etc. Um exercício interessante
pode ser uma tentativa de dar conta do que foi atalhado nesta frase, in-
ventando alguma coisa, é claro.

5a Um texto que escrevi como dever de casa, a pedido da professora


Aneci, a propósito da minha vinda do interior para a cidade grande
criou um problema novo, isto é, que até então não tinha aparecido
naquela sala de aula. Todos me criticaram duramente porque eu
contei que vim fugido da minha mãe, que me tirou da escola depois
que passou a frequentar o culto de um pastor que dizia que a edu-
cação pública era pecaminosa. Meus colegas achavam que um filho
jamais abandona sua mãe, seja pelo que for. Eu fiquei tão espantado,
no momento, que não achei o que dizer. Fui embora depois da aula,
certo de que mais tarde eu conseguiria argumentos consistentes para
defender a minha escolha.

Exercício 27

Revise estas frases, ajeitando a(s) oração(ões) adjetiva(s) ou trans-


formando-a(s) em outras construções.
1. Na escola de ensino médio que a professora de Literatura cedeu
uma de suas turmas para o meu estágio relembrei de muitas coisas. Meu
relatório de estágio foi o primeiro texto da minha vida, nessa língua, que
recebi um elogio de verdade.
2. Já nos primeiros encontros, portanto, pude perceber o quanto,
para aqueles alunos, não era prioridade estar na sala de aula, precisavam

304
gramática e estilo

dar conta de outras questões mais urgentes e importantes, como eles


mesmos relatavam.
3. Trabalhava em uma empresa que era conveniada ao Sesc, no qual
eu adquiri direito a usar a biblioteca.
4. Estou enviando algumas flores do campo por meu filho, as quais
acabam de ser colhidas em nosso jardim.
5. Os livros solicitados pelos professores foram adquiridos por seu
pai, nos quais poderei estudar para as provas.
6.A mulher do dono do Circo Voador ganhou o primeiro prêmio da
loteria, e os agentes da Caixa Econômica comunicaram-se com ela ontem.
7. Meu melhor amigo está muito feliz porque esforçou-se para vencer
o concurso o qual ganhou o primeiro prêmio.
8. Depois do caso do pó-de-mico, que o gordo não conseguiu provar
quem eram os autores da brincadeira, a direção contratou um detetive
4.2.3.3 O qual, os quais, a qual, as quais

Então, como vimos, a oração adjetiva resulta da transformação de


uma predicação em caracterização operada por um pronome relativo que
a liga ao sintagma nominal antecedente. O pronome relativo que usamos
até aqui foi o pronome relativo que, o de maior transparência (isto é, o
que menos chama atenção para si mesmo) porque se refere indiscrimi-
nadamente a pessoas e coisas e é usado sempre que não houver um bom
motivo para usar outro.
Ambiguidade é um bom motivo para não usar o que; vamos exa-
minar estas frases:

1 O pai das crianças que a diretora repreendeu estava indignado.

2 Ontem no restaurante vegetariano comemos um prato com legumes


da Serra do Mar que jamais esqueceremos.

305
gramática e estilo

3 Um amigo de minha cunhada que pretende criar gado comprou


uma fazendo no Mato Grosso.

4 Peça desculpas ao filho da vizinha que você denunciou à polícia.

Como o pronome relativo refere-se ao sintagma nominal que o


antecede, as orações adjetivas destas frases são ambíguas:

1 O sintagma nominal que antecede o que é O pai das crianças; a


diretora repreendeu as crianças ou o pai das crianças?

2 O sintagma nominal que antecede o que é um prato com legumes


da Serra do Mar; jamais esqueceremos do prato com legumes, dos
legumes da Serra do Mar ou da Serra do Mar?

3 O sintagma nominal que antecede o que é um amigo de minha


cunhada; quem pretende criar gado é um amigo de minha cunhada
ou minha cunhada?

4 O sintagma nominal que antecede o que é o filho da vizinha; o


denunciado foi o filho da vizinha, ou a vizinha é que foi denunciada?

Nestes casos, para desfazer a ambiguidade, podemos usar o pronome


relativo o qual, que, tal como que, também se refere indistintamente a
pessoas e coisas e, diferentemente do que, é capaz de marcar concordância
de gênero e número através das formas a qual, os quais, as quais.

1a O pai das crianças o qual a diretora repreendeu estava indignado.


1b O pai das crianças as quais a diretora repreendeu estava indig-
nado.

2a Ontem no restaurante vegetariano comemos um prato com legumes


da Serra do Mar o (ou do) qual jamais esqueceremos.
2b Ontem no restaurante vegetariano comemos um prato com legumes
da Serra do Mar, a (ou da) qual jamais esqueceremos.

306
gramática e estilo

3a Um amigo de minha cunhada o qual pretende criar gado comprou


uma fazendo no Mato Grosso.
3b Um amigo de minha cunhada a qual pretende criar gado comprou
uma fazendo no Mato Grosso.

4a Peça desculpas ao filho da vizinha o qual você denunciou à polícia.


4b Peça desculpas ao filho da vizinha a qual você denunciou à polícia.

Nem sempre é necessário lançar mão de qual e suas flexões para


indicar o componente do sintagma a que o pronome relativo se refere;
é o caso desta frase:

Foram dois anos com essa professora, aprendendo a língua portu-


guesa de uma forma muito saborosa, sempre partindo de leituras
indicadas por ela, que me incentivaram a voltar a dar importância
para os livros e relembrar tudo aquilo que minha mãe havia me
ensinado quando eu era criança e que, com o passar dos anos, eu
havia preterido.

Neste caso, a concordância deixa bem claro que foram as leituras (e


não ela) que incentivaram. Frases sintaticamente ambíguas não produzem
necessariamente ambiguidade textual, como nestes casos:

A mãe de Joana, que continua internada no pronto-socorro, ontem


esteve aqui trazendo notícias da filha.

Quem esteve aqui ontem trazendo notícias não pode continuar inter-
nada; logo, a internada só pode ser a Joana, a filha. Neste caso, a infor-
mação que desambiguiza está dentro da própria frase. Nesta outra frase,
também não há ambiguidade por causa do que referencia o antecedente:

O resumo é o momento da compreensão do texto, que é uma etapa


indispensável para o momento posterior da interpretação; portanto,
no resumo não cabem julgamentos sobre a posição do autor.

307
gramática e estilo

O sintagma que antecede a oração adjetiva que é uma etapa indispen-


sável para... é o momento da compreensão do texto; texto não é etapa,
mas compreensão é; sendo assim, a compreensão é a etapa indispensável.
Mesmo naqueles casos em que usamos o qual e suas flexões, o
contexto pode encarregar-se de indicar a interpretação adequada:

1c A reunião foi convocada pelo presidente do Conselho Escolar


a pedido dos pais dos alunos por causa da intervenção da diretora
num ensaio do coral da escola. Ela teria repreendido as irmãs Clara
e Antônia Soares, que, no intervalo do ensaio, cantaram uma velha
paródia do hino da escola. A diretora teria dito que o comportamento
delas era próprio de quem não recebeu educação em casa. O pai das
crianças que a diretora repreendeu estava indignado.

3c Nos conhecemos num camping em São José dos Ausentes, em


janeiro de 1995, e passamos os cinco anos seguintes viajando juntos
num trailer de um camping para outro ao longo das montanhas – São
Joaquim, São Bento do Sul, Morretes, Campos de Jordão, Resende,
Nova Friburgo, – indo e voltando. Levávamos uma vida saudável,
comprando nosso alimento em granjas e sítios na beira da estrada que
ainda cultivavam vegetais que não fazem sucesso nos supermercados.
Desde que nos estabelecemos na cidade, temos tentado preservar um
pouco das alegrias culinárias daquela vida. Ontem no restaurante
vegetariano comemos um prato com legumes da Serra do Mar que
jamais esqueceremos.

4c Um amigo de minha cunhada que pretende criar gado comprou


uma fazenda no Mato Grosso. Entusiasmado com o preço da soja no
mercado internacional, ele adquiriu três mil hectares e vai começar
a plantar ainda este ano.

5c Eu sempre disse que a sua implicância com adolescentes era pre-


conceituosa e que o distribuidor dos salgadinhos não me inspirava
confiança. Agora nós já sabemos a causa do prejuízo. Peça desculpas
ao filho da vizinha que você denunciou à polícia.

308
gramática e estilo

Nestes casos, o uso de o qual e suas flexões não vai funcionar:


1 A redação da menina que foi considerada a melhor da aula falava
da infância desamparada.
2 Depois do acidente, a porta da caminhonete que nós pintamos na
semana passada ficou imprestável.
3 Todas as crianças estavam boquiabertas diante das manobras
incríveis do aeromodelo do aniversariante que viera do Japão.
4 Os meninos receberam um disco de seu tio que tinha vindo espe-
cialmente da Holanda.

De fato, os sintagmas são do mesmo número e do mesmo gênero;


nesse caso, os recursos de o qual, os quais, a qual, as quais não resolvem,
mas, como sempre há muitas maneiras de dizer com clareza o que a gente
quer dizer, usemos os outros recursos que a língua nos proporciona.
1a A redação da menina que foi considerada a melhor aluna da aula
falava da infância desamparada.
1b A redação da menina que foi considerada o melhor texto da aula
falava da infância desamparada.
2a Depois do acidente com a caminhonete, a porta que nós pintamos
na semana passada ficou imprestável.
2b A caminhonete que nós pintamos na semana passada perdeu a
porta depois do acidente.

3a O aniversariante encantou todas as crianças com as manobras


incríveis do aeromodelo que viera do Japão.
3b O aeromodelo que o aniversariante trouxera do Japão encantou
todas as crianças com suas manobras incríveis.

4a Os meninos receberam de seu tio um disco que tinha vindo da


Holanda.
4b O tio que tinha vindo da Holanda trouxe um disco para os me-
ninos.

309
gramática e estilo

Exercício 28

Expresse com clareza os dois sentidos possíveis desta frase:

Durante um longo período, meus coleguinhas tiraram sarro das minhas


roupas, do velho Corcel I verde-limão que meu pai usava para me
levar ao colégio, dos meus materiais que não eram importados, do
fato de eu ser a queridinha da professora que respondia tudo.

Há um outro motivo para usar o qual e suas outras flexões. Exami-


nemos esta frase desajeitada ou, no mínimo, estranha:

O salário dos muito pobres, ou seja, daqueles que o trabalho tornou-


-se a única saída, passa a ser chamado de esmola.

Transformando a oração adjetiva – daqueles que o trabalho tornou-


-se a única saída – numa frase simples, temos: O trabalho tornou-se a
única saída dos muito pobres. É a preposição de que produz daqueles
que, o que faz com que a frase pareça incompleta. Podemos usar outra
preposição: O trabalho tornou-se a única saída para os muito pobres.
Neste caso, a frase seria assim:

O salário dos muito pobres, ou seja, daqueles para os quais o trabalho


tornou-se a única saída, passa a ser chamado de esmola.

O motivo que leva ao uso de os quais nesta frase são as duas sílabas
de para: se a preposição que antecede o pronome relativo tiver mais de
uma sílaba, o qual substitui o que, como nestas frases:

Foi uma época muito boa, durante a qual o que menos fiz foi estudar.

Um incêndio destruiu o prédio mais antigo desta rua, sobre o qual


já tinham sido escritos dois livros.

310
gramática e estilo

O rapaz lembrava-se sempre com carinho dos velhos moradores do


apartamento 401, através dos quais conseguira seu emprego de zelador.

Aquele homem por causa do qual você vive preocupada certamente


não merece isso.

Exercício 29

Transforme a frase entre parênteses numa oração adjetiva da pri-


meira frase.
1. Amanhã cedo iremos esperar o ônibus na cidade. (Eles promete-
ram enviar o material pelo ônibus.)
2. Passaram ali uma hora e meia. (Ela não disse nada durante esse
tempo todo.)
3. Deu ao garoto um anel. (Por esse anel ele seria identificado pelos
bandidos da floresta.)
4. Um agente do serviço secreto entregou um punhal ao recepcionista
do Hotel Jaguarão. (Artur passara tinta infravermelha ao redor do punhal.)
5. O tribunal especial das Forças Aliadas foi instalado na cidade de
Nurenberg. (Os criminosos de guerra foram levados perante esse tribunal.)
6. Refugiava-se nos galhos amigos da árvore mais alta do pátio
nesses momentos de crise existencial. (Ele já tinha confidenciado todos
os seus ­dramas íntimos àquela árvore.)
As flexões de gênero e número são as características peculiares do
relativo o qual; daí decorre o seu uso para evitar ambiguidades. Vamos
examinar esta frase:

1 Mas explico a eles que o tipo de pessoa que deve chegar à universi-
dade – ou ao menos deveria ser dessa forma – é aquela que consegue
se pensar em um contexto mais amplo, que se pensa integrante de uma
sociedade que apresenta problemas, os quais necessitam de soluções.

311
gramática e estilo

Neste caso, o uso de que não geraria ambiguidade – uma sociedade


que apresenta problemas que necessitam de soluções. A qualidade da
concisão se expressa com o uso dos recursos expressivos para formular
o que há para ser formulado; quanto menos, menor trabalheira pro leitor.
Pode-se argumentar, no entanto, que em problemas, os quais necessitam
de soluções há uma ênfase maior do que em problemas que necessitam
de soluções. Vai ser preciso, então, avaliar se é o caso de ênfase ou de
concisão.

2 Ao entrar para a escola, tive que aprender a ler pelo bê-á-bá. Era
um aluno muito bagunceiro, e isso atrapalhou consideravelmente
a minha alfabetização. Apenas dominei a leitura quando descobri
a coleção de gibis da Turma da Mônica que minha tia possuía, os
quais passei a ler incessantemente.

Nada de ambiguidade aqui também – a coleção de gibis da Turma da


Mônica que minha tia possuía, que passei a ler incessantemente. Pode-se
justificar o uso de os quais argumentando que, desse modo, enfatiza-se
que todos ou muitos gibis foram lidos, ao passo que o que aponta não
para os gibis, um a um, mas para a coleção, o que perde aquela ênfase.
Há casos em que a ênfase agregada por o qual não compensa a
imprecisão do seu uso:

3 O tempo passou, mas as minhas indecisões permaneciam; mesmo


no último ano do segundo grau, o qual torcia que se prolongasse o
máximo possível, pois deveria escolher qual curso seguir.

Dá pra entender que quem torcia que o segundo grau se prolongasse


é o narrador que enuncia a frase, mesmo que a oração diga que era o
segundo grau que torcia, até porque isso não faria sentido; no entanto,
não é nada bom deixar que a frase diga alguma coisa à revelia de quem a
escreve. A impressão que dá é que o qual está sendo usada por ser mais
culto ou mais chique do que o que, e essa condição isentaria a frase de

312
gramática e estilo

ser mais clara e mais precisa, o que ela também não ficaria se houvesse
uma simples substituição de o qual pelo que – ...mesmo no último ano
do segundo grau, que torcia que se prolongasse... – porque o segundo
grau é que continuaria torcendo.
É preciso mexer mais na frase, a começar pelo pronome que iden-
tifica o narrador para que o narrador, em primeira pessoa, e segundo
grau, em terceira pessoa, não se confundam, já que a forma do verbo é
comum: eu torcia, eu deveria / ele torcia, ele deveria. Além disso, há
outras formas além da oração adjetiva para expressar o tempo.

3a O tempo passou, mas as minhas indecisões permaneciam até


mesmo no último ano do segundo grau, quando eu deveria escolher
qual curso seguir; por isso, eu torcia que esse ano se prolongasse
o máximo possível.

4.2.3.4 Quem

O pronome relativo quem refere-se exclusivamente a pessoas e


precisa da companhia de uma preposição:

A moça de quem te falei na semana passada é a nossa nova colega


de trabalho.

A zeladora do prédio, a quem todos se referem de forma elogiosa, é,


sem dúvida, uma mulher de confiança.

Aquele sujeito com quem fizeste o acordo não merece crédito.

Ontem conheci o famoso cientista para quem trabalhava a filha da


vizinha.

313
gramática e estilo

Exercício 30

Transforme a frase entre parênteses numa oração adjetiva da pri-


meira frase.
1. O presidente do Clube Comercial ordenou ao detetive da casa que se-
guisse o garçom. (O presidente entregara a ele as chaves do balcão frigorífico.)
2. Acho que vou enviar algumas flores para a nova professora.
(Ontem jantei com ela.)
3. Você viajou com aquela moça loira. (Eu gostaria que me desse
maiores informações a respeito dela.)
4. Ordeno-te que nunca mais vejas aquele rapaz. (Falavas novamente
com ele no portão ontem.)
5. Aquela moça encostada no balcão é a atriz. (Falei-te dela na
semana passada.)
6. Meu sobrinho mais velho acaba de vencer um concurso nacional
de poesia. (Estou enviando alguns livros por ele.)
As ambiguidades das orações adjetivas com quem também podem
ser resolvidas com o relativo o qual e suas flexões:
1 O sócio de minha tia com quem eu tanto gostava de conversar
mudou-se para Fortaleza.
1a O sócio de minha tia com o qual eu tanto gostava de conversar
mudou-se para Fortaleza.
1b O sócio de minha tia com a qual eu tanto gostava de conversar
mudou-se para Fortaleza.
2 O amigo de sua irmã com quem minha prima está tendo desavenças
parece-me um bom rapaz.
2a O amigo de sua irmã com o qual minha prima está tendo desa-
venças parece-me um bom rapaz.
2b O amigo de sua irmã com a qual minha prima está tendo desa-
venças parece-me um bom rapaz.

314
gramática e estilo

Exercício 31

Crie contextos para expressar sem ambiguidade os sentidos possí-


veis desta frase:

Ainda não chegou a menina da vizinha a quem se atribuiu a tarefa


de comprar doces.

4.2.3.5 Onde

Sobre o onde pronome relativo, na NGPB lemos a respeito desta


frase da Folha de S.Paulo: “Não há uma área em São Paulo que a polícia
não entre”. Para Ataliba de Castilho (2010, p. 367-368), “deve haver
alguma relação entre a sintaxe [dessa frase] e o uso crescente do advérbio
onde, que substituiria a estrutura padrão em que: “Não há uma área em São
Paulo onde a polícia não entre”. Refere, a seguir, Braga e Manfili, que:

[...] descreveram a variação de onde / pronome relativo


preposicionado, observando que essas expressões têm
a mesma chance de ocorrência quando o antecedente
representa a categoria de lugar ou tempo em:
Qualquer lugar onde/que você vai, o preço é o dobro.
Os moradores poderão reviver aquela época onde/em que
a cidade era a capital da laranja.
[...] Essas autoras notaram que a função de adjunto adver-
bial favorece a opção por onde e a de argumento, a opção
pelo pronome relativo preposicionado.

Já na GUP, Moura Neves (2000, p. 386) explica que “o pronome


onde sempre funciona como adjunto ou complemento adverbial de lu-
gar”. Acrescenta ainda que “é muitas vezes empregado equivalendo a em
que, mas sem valor locativo, o que não tem justificativa”. E exemplifica
com uma outra frase também da Folha de S.Paulo: “Na prática, a venda
com caderneta funciona como um negócio ONDE o dinheiro também

315
gramática e estilo

é virtual, só que sem a sofisticação dos modernos cartões magnéticos”


(grifo da autora).
O problema do onde não é o seu generalizado uso para indicar
tempo; é o seu uso como cola-tudo sintático, que quase sempre indica
uma supersimplificação da relação que se tenta estabelecer entre uma
oração e outra.
O relativo onde indica lugar:

Recomendo o novo restaurante de nossa rua, onde nós jantamos


ontem: uma verdadeira maravilha.

O avô dela retirou-se para Minas Gerais, de onde nunca mais voltou.

A casa comercial onde eu trabalho vai mudar-se para o Centro no


mês que vem.

Na fazenda onde moram meus pais, todas as galinhas botam três


ovos por dia.

Sentiu um frio no estômago ao entrar no cinema onde se encontrara


com ela pela última vez.

O novo restaurante, Minas Gerais, a casa comercial, a fazenda, o


cinema, os antecedentes de onde nestas frases são sintagmas nominais
que indicam lugar, mas nem sempre há necessidade de onde em antece-
dentes que indicam lugar:

1 Nosso ônibus seguiu até as margens do rio Paraná, onde atraves-


samos de balsa.

Para evitar implicância com a possibilidade do ônibus ter feito a


travessia das margens em vez de atravessar o rio, um singelo e transpa-
rente que daria conta da relação:

316
gramática e estilo

1a Nosso ônibus seguiu até as margens do rio Paraná, que atraves-


samos de balsa.

Só um leitor de má vontade levantaria a hipótese de ambiguidade no


antecedente do que, pois balsas atravessam rios. A transparência do que
por oposição à relativa especialização do onde favorece a interpretação
mais óbvia.
Onde também não deixa de produzir ambiguidade:

2 Em Porto Alegre, não passam de grossos, de interioranos, de


pessoas que moram num lugar onde a maioria nunca ouviu falar e
não sabe onde fica.

Se a frase quis dizer que a maioria nunca ouviu falar do lugar onde
moram essas depreciadas pessoas e não que essas pessoas moram num
lugar onde a maioria dos moradores nunca ouviu falar nem sabe onde
fica, então, é melhor usar do qual:

2b Em Porto Alegre não passam de grossos, de interioranos, de


pessoas que moram num lugar do qual a maioria nunca ouviu falar
e que não sabe onde fica.

Onde pode gerar frases imprecisas:

3 É uma fofoqueira que incomoda muita gente com seu blá-blá-blá


e com suas visitas inoportunas onde ela só vai para contar do ca-
samento da filha.

Ela vai nas visitas a gente entende, mas a visitas não se vai como
se vai a museus ou espetáculos; há uma deliberação mais específica no
ato de visitar, que se expressa por fazer visitas:

317
gramática e estilo

3a É uma fofoqueira que incomoda muita gente com seu blá-blá-


-blá e com suas visitas inoportunas que ela só faz para contar do
casamento da filha.

Onde costuma ser usado também com antecedentes que apenas


parecem ser lugares, como o tempo, por exemplo:

1 Assim, depois de me vestir novamente, resolvi ir até a biblioteca


para uma relaxante tarde de estudo, onde apenas o texto de latim
me tomaria a atenção.

2 Foi uma época muito boa, onde o que menos fiz foi estudar.

3 Comecei a preocupar-me com a poluição sonora no futuro, onde


existirão mais carros e, consequentemente, mais barulho nas ruas.

4 Aquele era um momento mágico onde poderíamos estar mudando


o rumo da nossa sofrida nação.

5 Uma das vantagens da profissão é a carga horária, que, geralmente,


nos permite uma pausa profissional onde aproveitamos para colocar
em dia os assuntos pessoais pendentes.

6 Foi uma campanha solidária e espontânea feita pela própria po-


pulação, onde famílias inteiras trabalhavam.

7 Estas são as questões onde ocorre o maior número de erros.

Lugar e tempo são noções associadas, até porque se costuma falar


em espaço de tempo, e esse é o caso de relaxante tarde de estudo, que é
um tempo acondicionado no espaço da biblioteca. Talvez por isso, o onde
tenha, neste caso, mais transparência ou, pelo menos, uma justificativa.
Uma época, o futuro, um momento mágico e uma pausa profissional indi-
cam tempo: no primeiro caso, a duração ficaria mais clara com durante a
qual; o futuro é caso de quando; um momento mágico, em que a palavra

318
gramática e estilo

momento já traz a noção de tempo, combinaria bem com em que, e uma


pausa profissional, em que a palavra pausa faz a mesma coisa, também
pode funcionar até com um singelo e transparente que.

2a Foi uma época muito boa, durante a qual o que menos fiz foi
estudar.

3a Comecei a preocupar-me com a poluição sonora no futuro, quando


existirão mais carros e, consequentemente, mais barulho nas ruas.

4a Aquele era um momento mágico em que poderíamos estar mu-


dando o rumo da nossa sofrida nação.

5a Uma das vantagens da profissão é a carga horária, que, geral-


mente, nos permite uma pausa profissional que aproveitamos para
colocar em dia os assuntos pessoais pendentes.

Já em uma campanha solidária e espontânea feita pela própria


população há uma ressonância de tempo porque a campanha foi um
evento que aconteceu; neste caso, o quando ressalta essa temporalidade.

6a Foi uma campanha solidária e espontânea feita pela própria


população, quando famílias inteiras trabalhavam.

Questões não é um lugar físico, geográfico, mas, em Estas são as


questões, há o demonstrativo que aponta para algum lugar, o que jus-
tificaria o onde. Há uma certa implicância com esse uso do onde como
antecedente de espaços metafóricos, uso que, na verdade, é muito antigo,
e a antiguidade, do ponto de vista dos que implicam, costuma ser fator de
legitimação. Quem não quiser dar ocasião para implicâncias com o uso
de onde para lugares metafóricos também pode usar em que.

6a Estas são as questões em que ocorre o maior número de erros.

319
gramática e estilo

Onde costuma ser usado também com antecedente que nada tem a
ver com lugar: onde, por causa disso, não pode ser substituído nem por
em que:

7 É que no ano de 1977, no Colégio Coração de Maria, foi adotada


uma nova pedagogia onde o conteúdo das aulas ministradas deveria
se encaixar no mundo objetivo do aluno.

8 Alguns alunos coletariam histórias dos seus pais, avós ou tios e


trariam para contá-las dentro da sala de aula para seus colegas onde
logo após ouvirem as histórias selecionariam uma para escreverem
sobre a mesma.

9 O gás carbônico se faz presente nesta atmosfera e, com o aumento


do gás carbônico, aumenta o calor, onde quem sabe seja essa a
resposta para esse nosso tipo de clima.

10 Nos anos 1960 sofreu forte censura com a ditadura militar, onde
ela só mostrava e contava o que era conveniente à situação do país.

11 Isto é uma tecnologia de ponta onde é usado tanto no Brasil como


no mundo inteiro.

Na melhor das hipóteses, o impulso de usar onde em vez de um singelo


que nestas frases indica que o autor vê entre as orações ligadas uma relação
mais complexa do que uma adjetivação. Revela também que ele não teve
nem a paciência nem a persistência suficientes para explorar a nebulosa
intuição que o afastou do lugar-comum e o desafiou a descobrir e expressar
com um nexo mais adequado à complexidade da relação que pressentiu
entre aquelas orações. É nesses casos que se apresenta a tentação de usar
esse onde como uma conjunção universal que tudo junta e que, por isso,
nada expressa, botando a perder a aquela intuição criadora.
Na pior das hipóteses, o uso de onde em vez de um singelo que
nestas frases indica a vã pretensão de falar difícil para que o texto pareça

320
gramática e estilo

mais importante. Nos dois casos é aconselhável restringir o uso do onde


para antecedentes de expressões de lugar, função em que tem maior
transparência.
Vamos revisar as frases uma a uma:

7a É que no ano de 1977, no Colégio Coração de Maria, foi adotada


uma nova pedagogia que tinha por princípio relacionar o conteúdo
das aulas com as experiências que os alunos tinham no ambiente
em que vivem.

Neste caso, o onde escamoteava uma ideia mais abstrata que aqui
ficou expressa pela palavra princípio, que permitiu o uso do singelo e
transparente de que.

8a Alguns alunos coletariam histórias dos seus pais, avós ou tios e


trariam para contá-las dentro da sala de aula para seus colegas, que,
logo após ouvirem as histórias, selecionariam uma para escreverem
sobre a mesma.

Esta frase, na verdade, desmente a tese apresentada acima a respei-


to da nebulosa que intuiria o onde como um avanço para além do que.
Reafirma, no entanto, a outra tese, a da nossa tradição de escrever difícil
para parecer que estamos proferindo sentenças profundas. De fato, nem
sempre o onde vai além do que e, por vezes, a nebulosa não passa de
uma obscura bruma do passado.

9a O gás carbônico se faz presente nesta atmosfera e, com o aumento


do gás carbônico, aumenta o calor; quem sabe seja essa relação a
causa desse nosso tipo de clima.

Aqui não se trata de tempo mas de... de quê? De conjetura?

321
gramática e estilo

10a Nos anos 1960 sofreu forte censura com a ditadura militar, que
só deixava mostrar e contar os aspectos da situação do país que eram
convenientes aos seus interesses.

Mais uma vez, os esclarecimentos acrescidos à frase permitem o


uso do que.

11a Isto é uma tecnologia de ponta usada não só no Brasil mas


também no mundo inteiro.

Aquele onde estava ali apenas para valorizar a frase; nesta versão o
que aparece é o lugar-comum que valoriza, pelo uso no mundo lá fora,
o que se usa no Brasil.

Exercício 32

Revise estas frases:


1. É preciso chamar a atenção deles quando dão risadas e se pegam
pensando besteira em momentos onde sua concentração está sendo
exigida.
2. A partir daí, nunca mais tomei banho naquela piscina. É que tinha
uma lei onde somente crianças é que entravam nela.
3. Ficaríamos distantes por quatro meses. Isto significava muito
para um casal onde um nada fazia sem o outro.
4. A teoria do Big Bang é uma das mais aceitas dentro comunidade
científica, onde ela afirma que o início de tudo se deu há oito bilhões
da anos.
5. Fui roubada mas não foi um ato agressivo onde a vítima percebe
de imediato o furto.
6. Lembro-me de que o pior trabalho que tive de fazer foi em Bi-
blioteconomia, onde a professora pediu que fizéssemos uma monografia.

322
gramática e estilo

7. Agora lá estávamos nós indo a essa cidade realizar o que os fute-


bolistas chamam de “jogo da volta”, onde só perderíamos o campeonato
de ocorresse um placar adverso de três a zero.
8. A administração é uma mistura de economia, contabilidade, entre
outras coisas, onde a pessoa tem de ser muito fria, ver somente o que é
melhor para a empresa.
9. Tomava o leite quente recém-saído da vaca onde até hoje sinto
saudade do gosto.

4.2.3.6 Salvem o cujo

O cujo não existe; é um fantasma que nos assombra a todos, e a maior


prova dessa fantasmagoria é a inexistência do cujo na canção popular:
alguém aí já cantou cujo? Alguém aí já ouviu alguém cantar cujo? Alguém
aí já leu algum cujo nos versos de alguma canção popular brasileira? Sim,
responde o memorioso que lembrou de Disparada, de Geraldo Vandré:
“...porém por necessidade do dono de uma boiada cujo vaqueiro mor-
reu...”. Seria necessário, no entanto, tentar achar outro porque esse não
é cujo: é cujô ou cuju, já que, na distribuição dos tempos fortes e fracos
do ritmo da canção, o tempo forte (em negrito) cai na última silaba: “...
do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu...”. E quem é mesmo que
tem vaqueiro: a boiada ou o dono dela?41
Já vimos que a NGPB certifica a extinção do cujo de qualquer
registro falado do português brasileiro. Na Gramática pedagógica do
português brasileiro (GPPB), de Marcos Bagno (2011, p. 901-902),
ficamos sabendo que no corpus do NURC-Brasil

41 Na verdade, há um outro cujo, numa obscura canção de um compositor porto-alegrense que


só não é obscuro para os porto-alegrenses, Tulio Piva, cujo centenário foi obscurecido pelo
do luminoso Lupicínio Rodrigues. A audição casual da canção no rádio não permitiu verificar
se há coincidência entre o tempo forte e a sílaba tônica. A frase é esta: “minha história é um
violão cujas cordas falam por mim”. Tem também A raça humana, do Gilberto Gil: “A raça
humana é o cristal de lágrima / Da lavra da solidão / Da mina, cujo mapa / Traz na palma da
mão”.

323
gramática e estilo

[...] só há uma ocorrência de cujo [...] e, mesmo assim,


num emprego não normativo:
Esta camada ela... tá presa a um tecido conjuntivo... ela
sai presa a esse tecido conjuntivo... cujo tecido se prende
a borda anterior da clavícula... constituindo por isso mes-
mo... o que se chama de irrigamento suspensor da mama.42

Como se pode depreender, trata-se de uma aula, conferência ou


coisa afim e não uma fala cotidiana, ou seja, o cujo não comparece pes-
soalmente; só se expressa por escrito ou em falas comprometidas com
a escrita, como é o caso de aulas, conferências ou afins. Mesmo assim,
quase todos os usos do cujo denunciam a sua errância fantasmagórica a
troçar de quem o usa como um bilhete falso de entrada no mundo letrado.
Tanto é assim que a GUP, que é uma gramática da escrita brasileira, se
vê na obrigação de registrar:

Desse modo, não se prevê o uso do artigo definido no


sintagma nominal que o pronome relativo cujo introduz.
Entretanto, especialmente na imprensa, tem ocorrido o
emprego indevido desse artigo, talvez pela falsa ideia de
que o som vocálico final desse pronome relativo repre-
sente a existência do artigo definido, e, que, então, esse
elemento deve ser registrado na grafia:

Depois, encontrei um serviço de informação independente,


de atualização semanal, cujo o responsável abria o texto
de forma honesta. (FSP) (NEVES, 2000, p. 372).

E Moura Neves agrega mais cinco casos semelhantes retirados, tal


qual este, da Folha de S.Paulo. Ou seja, o cujo toca horror até mesmo na
elite do jornalismo brasileiro. Por isso mesmo, esmiuçar o mecanismo
desse morto-vivo pode ajudar não só a resgatá-lo do mundo dos mortos
mas também a pô-lo a serviço do texto em vez de deixar que ele continue
42 Esse cujo ocorreu também em Porto Alegre.

324
gramática e estilo

arrastando correntes ao longo de suas frases. Além disso, o cujo é um


pronome relativo, que produz orações adjetivas; por isso, o entendimento
de como o cujo funciona pode, além de propiciar o seu domínio, lançar
mais luz sobre o funcionamento das orações adjetivas com os demais
pronomes relativos.
Vamos examinar estas frases:

1 A proposta visa que toda a turma forme um único grupo a fim


de trabalharem em conjunto cujas funções devem ser separadas
respeitando-se a individualidade dos alunos.

Em conjunto não é um sintagma nominal; em conjunto é um sintag-


ma preposicionado, que funciona como um advérbio de modo. Podemos
reescrever essa frase usando uma singela coordenação:

1a A proposta visa que toda a turma forme um único grupo a fim de


trabalhar em conjunto e que a função de cada um seja determinada,
respeitando-se a individualidade dos alunos.

Ou, então, mais simplesmente ainda:

1b A proposta visa que toda a turma forme um único grupo a fim de


trabalhar em conjunto com uma função determinada para cada um,
respeitando-se a individualidade dos alunos.

2 Os estagiários precisam, ainda, observar o planejamento do profes-


sor titular da turma onde vão estagiar, e aí, muitas vezes, conteúdos,
cuja visão apresenta uma concepção de ensino que não a professada
no meio acadêmico, acabam por ser exigidos.

Visão não é uma parte de conteúdos; conteúdos não possuem visão.


Quem teria uma visão dos conteúdos, isto é, a respeito dos conteúdos,
no caso, seriam os estagiários ou o professor titular; pessoas têm visão,
opinião, percepção, teoria das coisas. Podemos ler na GUP (p.368):

325
gramática e estilo

Em princípio, só constituintes iniciados por de podem


corresponder a um constituinte relativo introduzido por
cujo. Entretanto, ocorrem estruturas relativas em que o
constituinte introduzido por cujo corresponde a um com-
plemento nominal normalmente introduzido por outras
preposições (NEVES, 2000, p. 368).

Moura Neves (2000, p. 368) apresenta, a seguir, o caso de acesso,


que regeria preposição a, mas que aparece com de em “os acessos da Ta-
moios e da Dutra [...]. A Tamoios e a Dutra, cujos acessos estão fechados
[...]”. A partir desta regra, podemos estabelecer uma outra regra: o de que
corresponde a a respeito de – como em visão dos conteúdos – também
não forma constituinte relativo introduzido por cujo.
Na verdade, essa frase sobre estagiários e professores é tão com-
plicada de se entender e revisar como são complicadas as relações dos
estagiários com os professores titulares das turmas onde praticam o ensino
de Português. Seria lícito simplificar o que causaria mais problemas se
fosse formulada com simplicidade?

2a Os estagiários precisam, ainda, observar o planejamento do


professor titular da turma onde vão estagiar para verificar se os
conteúdos previstos por ele compatibilizam-se com os conteúdos que
aprendeu nas disciplinas de Prática de Ensino, que deveria ensinar
para os alunos.

Tem um que ... que bem ruim aí: vamos tentar outra vez:

2b Os estagiários precisam, ainda, observar o planejamento do


professor titular da turma onde vão estagiar para verificar se os
conteúdos previstos por ele compatibilizam-se com os conteúdos que,
segundo as disciplinas de Prática de Ensino, eles deveriam ensinar
para os alunos.

326
gramática e estilo

Ou seja, se a ideia a expressar já encaminhar o texto por uma trilha


atopetada de cascas de banana discursivas, nada de cujo. Continuemos:

3 Minha mãe tinha uma estante de livros, que ficava na sala de estar
do nosso humilde apartamento, cuja maioria tratava-se de história,
filosofia, economia e autoajuda.

Temos dois problemas nesta frase: a oração adjetiva trata dos livros,
mas seu antecedente é a sala de estar do nosso humilde apartamento.
Se a oração adjetiva estivesse no lugar – na sala de estar do nosso hu-
milde apartamento, minha mãe tinha uma estante de livros cuja maioria
tratava-se de história... –, a impropriedade seria a maioria como um
atributo de livros: livros têm folhas, capa, texto, autor, leitor, mas não
têm maioria.
Está na GUP: “constituintes relativos precedidos de de que não
marquem relação possessiva não correspondem, normalmente, a cons-
tituintes relativos introduzidos por cujo. Estão nesse caso, por exemplo,
construções em que a preposição de introduza complementos partitivos”
(NEVES, 2000, p. 369). Moura Neves exemplifica com: “Galeno escreveu
cerca de quatrocentos tratados médicos, a maioria dos quais se perdeu”.
Assim podemos resolver a frase:

3a Na sala de estar do nosso humilde apartamento, minha mãe tinha


uma estante de livros, a maioria dos quais tratava de história, filo-
sofia, economia e autoajuda.

A frase pode também tratar mais explicitamente dos temas dos


livros:

3b A maioria dos livros que minha mãe tinha numa estante que ficava
na sala de estar do nosso humilde apartamento tratava de história,
filosofia, economia e autoajuda.

327
gramática e estilo

Para examinar melhor essa questão da posse e da atribuição, vamos


considerar esta outra frase:

4 É estranho pensar sobre isso e começar a questionar: afinal, por


que em nosso país, cuja educação formal (com pessoas frequentando
a escola e, posteriormente, uma universidade) só começou lá pelos
anos 1970, o fato de alguém “se puxar” um pouco mais nos estudos
é motivo de piada e exclusão?

Educação formal não é nem uma propriedade nem um atributo do


país; nosso país, cuja educação formal significa não o aparato educacional
da nação mas a educação que o país teria recebido em casa e na escola
se fosse uma pessoa. O cujo implica uma propriedade e um atributo
individualizante e quase pessoal. O que todo país contemporâneo tem é
um aparato formal para a educação; caberia, portanto, algo como isto,
em mais do que apenas uma frase:

4a Vivemos num país cujo aparato educacional – pessoas frequen-


tando a escola e, posteriormente, uma universidade – só começou
a se estruturar lá pelos anos 1970. Nessas circunstâncias, podemos
começar a questionar: por que o fato de alguém “se puxar” um pouco
mais nos estudos é motivo de piada e exclusão?

Vamos, agora, examinar melhor a diferença entre a preposição de,


que indica posse e pertinência, e a preposição a, que indica proximidade,
aproximação:

5 Aos seis anos, entrei para a pré-escola cuja frequência não era
obrigatória na época, visto que hoje a pré-escola seria a primeira
série do ensino fundamental.

A preposição a não desapareceu da língua que falamos, mas teve


o seu uso restringido e foi substituída por de em alguns usos; por isso,
falamos em frequência da escola onde escrevemos frequência à escola.

328
gramática e estilo

Além disso, pré-escola cuja frequência é um caso similar a país, cuja


educação formal: frequência não é nem uma propriedade nem um
atributo de pré-escola. Dois são, portanto, os motivos para não usar
cujo neste constituinte relativo. Para indicar a relação entre pré-escola e
sua frequência, basta usar um que e um verbo que indique pertinência:

3a Aos seis anos, entrei para a pré-escola, que não tinha frequência
obrigatória na época: só hoje a pré-escola é a primeira série do
ensino fundamental.

Retomando e repetindo: o antecedente do cujo tem como atributo


aquilo que se segue ao cujo; vamos ver o que o cujo faz esta frase dizer:

6 Há quem diga que a família é a base de qualquer indivíduo. Nossos


pais e irmãos mais velhos realmente podem influenciar nossa consti-
tuição, pois são as pessoas com quem aprendemos a fazer as coisas
mais básicas que um ser humano precisa saber fazer. No entanto,
algumas pessoas entendem por família também aqueles parentes com
os quais pouco conviveu e cujas relações são um tanto superficiais.

Aquela conjunção e na última frase coordena duas orações ad-


jetivas – com os quais pouco conviveu e cujas relações são um tanto
superficiais –; elas têm como coordenante o antecedente de seus pro-
nomes relativos: aqueles parentes. As orações adjetivas informam que
o sujeito de conviveu é algumas pessoas, isto é, essas algumas pessoas
pouco conviveram com os parentes em questão, e que as relações
daqueles parentes são superficiais. Relações com quem? Com eles
mesmos e não com essas algumas pessoas, como queria que signifi-
casse o autor da frase, que teria sido mais claro se não tivesse caído
na tentação de usar um recurso expressivo que não domina. Ele teria
sido muito mais feliz com relativos menos grandiosos acompanhados
de uma preposição adequada:

329
gramática e estilo

6a No entanto, algumas pessoas entendem por família também aqueles


parentes com os quais pouco conviveu e com quem manteve relações
um tanto superficiais.

Também dá pra escrever assim sem repetir tanto:

6b No entanto, algumas pessoas entendem por família também


aqueles parentes com os quais pouco conviveu e manteve relações
um tanto superficiais.

Nesta outra frase, o cujo obriga o escritor a dizer que o poder pre-
tende vingar-se, mas, pelo que sabemos da história desse príncipe, é ele
quem pretende vingar-se.

7 O príncipe quer saber – mas quer saber antes de agir – se o seu ódio
é motivado pelo ciúme ou o mesmo está legitimamente relacionado
a uma disputa política pelo poder, cuja vingança deve ser a morte
de Cláudio devido à traição.

Neste caso, é melhor abrir mão do cujo (e daquele mesmo desne-


cessário):

7a O príncipe quer saber – mas quer saber antes de agir – se o seu


ódio é motivado pelo ciúme ou se está legitimamente relacionado a
uma disputa política pelo poder; nesse caso, sua vingança deve ser
a morte de Cláudio devido à traição.

O cujo, de fato, até pode não existir, mas mais numerosos do que
os casos de cujo mal empregados são os casos em que o cujo poderia
comparecer para exercer o seu acúmulo de funções como (1) um pro-
nome, que substitui o antecedente; (2) um relativo, que junta as orações
contíguas; (3) um possessivo, que indica uma relação de posse ou de
pertinência entre seu antecedente e seu consequente: o antecedente pos-
sui, e o consequente é possuído assim como o consequente faz parte dos

330
gramática e estilo

atributos do antecedente. Cumprindo essas três funções, o cujo produz


orações adjetivas que se referem ao sintagma nominal que o antecede.
Examinemos esta frase:

8 O diretor de cinema Aldo Alberto casou-se com uma das mais belas
atrizes da Europa na semana passada que sua obra é admirada em
todo o mundo ocidental.

A oração adjetiva que aparece nesta frase – que sua obra é admirada
em todo o mundo ocidental – refere-se ao diretor de cinema Aldo Alberto,
trata de um atributo dele, como demonstra o possessivo sua obra; só não
está no lugar adequado da oração adjetiva, que é à direita do antecedente,
isto é, do possuidor. Pondo a oração no lugar certo e substituindo o que
pelo cujo, temos esta frase:

8a O diretor de cinema Aldo Alberto, cuja obra é admirada em todo


o mundo ocidental, casou-se com uma das mais belas atrizes da
Europa na semana passada.

Na frase seguinte, não temos o possessivo expresso por um prono-


me mas temos uma muito clara relação de atribuição na oração adjetiva
que meu pai me delegou a tarefa de aprender a receita. Receita de quê?
Cucas, aliás, que..., ou seja, receita das cucas.

9 Embora não me veja nem como italiana nem como alemã, acredito
ser um pouco mais alemã, devido ao forte convívio com minha avó
paterna, que sempre me ensinou palavras da língua, me levou aos
cultos e me fez muitas cucas. Cucas, aliás, que meu pai me delegou
a tarefa de aprender a receita, que há anos é passada de geração
a geração, mas que, nesta nossa, nenhuma filha, nora ou neta
interessou-se em aprender.

Temos, então, uma oração adjetiva que expressa uma relação de


atribuição; podemos usar o cujo em vez do que:

331
gramática e estilo

9a Cucas, aliás, cuja receita meu pai me delegou a tarefa de apren-


der, já que essa receita há anos é passada de geração a geração, mas,
nesta nossa, nenhuma filha, nora ou neta interessou-se em aprender.

10 Teve relativo sucesso naquele meio em que ele mesmo nunca se


integrou e ao qual criticava o egoísmo e a desumanidade.

Aqui também podemos usar o cujo:

10a Teve relativo sucesso naquele meio em que ele mesmo nunca se
integrou e cujos egoísmo e desumanidade criticava.

A nossa percepção dessa concordância em masculino plural com


esse sujeito composto de masculino e feminino singulares é muito tênue;
se uma frase dessas parecer muito estranha, ou se o autor da frase achar
que o seu leitor vai achar que essa frase assim é insuportavelmente es-
tranha, sempre se pode dar um jeito:

10b Ele criticava o egoísmo e a desumanidade daquele meio em que


ele mesmo nunca se integrou mas em que teve relativo sucesso.

Nesta outra frase temos o conceito da palavra; é caso de cujo:

11 Um dia desses, me pego em plena madrugada escrevendo; do nada,


me deu um estalo, e indelével é a palavra que me surge na mente. Lá
vou eu pro dicionário achar o conceito e me pego escrevendo uma
poesia sobre uma palavra que cinco minutos antes desconhecia o
conceito.

11a Um dia desses, me pego em plena madrugada escrevendo; do


nada, me deu um estalo, e indelével é a palavra que me surge na
mente. Lá vou eu pro dicionário achar o conceito e me pego escre-
vendo uma poesia sobre uma palavra cujo conceito desconhecia
cinco minutos antes.

332
gramática e estilo

Aqui temos o nome de alguém. Também é caso de cujo.

12 Aqui tento recompor o que foi escrito, procurando entender o que


se passou ao longo de aproximadamente 50 anos, em que alguém
que desconhecemos o nome viveu os dias mais cruciais da história
da humanidade.

12a Aqui tento recompor o que foi escrito, procurando entender o


que se passou ao longo de aproximadamente 50 anos, em que alguém
cujo nome desconhecemos viveu os dias mais cruciais da história
da humanidade.

Nesta frase está a porta da nave espacial:

13 Em frente da confeitaria estava estacionada uma nave espacial,


que ele abriu a porta me colocando frente a uma cena antiga que
poucas vezes vivenciei (ó senhor – uma gentileza me deixa mole para
o resto do dia).

13a Em frente da confeitaria estava estacionada uma nave espacial


cuja porta ele abriu, me colocando frente a uma cena antiga que
poucas vezes vivenciei (ó senhor – uma gentileza me deixa mole para
o resto do dia).

Nesta frase temos a resposta das perguntas:

14 Meu prazer era decorar todas as gramáticas que caíam na mi-


nha mão para encher a Andréia de perguntas que certamente ela
não saberia a resposta e fazia com que ela ficasse constrangida em
frente à turma.

Vai ficar melhor com as respostas das perguntas e com um conserto


radical no paralelismo já que não há um coordenante que junte o que
vem antes do e com o que vem depois:

333
gramática e estilo

14a Meu prazer era decorar todas as gramáticas que caíam na minha
mão para encher a Andréia de perguntas cujas respostas certamente
ela não saberia, o que fazia com que ela ficasse constrangida em
frente à turma.

E aqui temos o nome da professora; podemos usar cujo e diminuir


a quantidade de quês.

15 Mas como tudo que é bom dura pouco, no ano seguinte minha
professora mudou-se para o Rio de Janeiro e foi substituída por
uma professora da qual o nome não lembro e que a única coisa que
procurou ensinar foi ortografia.

15a Mas como tudo que é bom dura pouco, no ano seguinte minha
professora mudou-se para o Rio de Janeiro e foi substituída por
uma professora cujo nome não lembro e que só procurou ensinar
ortografia.

Exercício 33

Construa uma única frase com as duas frases usando cujo.


1. Iremos, no próximo verão, para Fortaleza. Desejo muito conhecer
as praias de Fortaleza.
2. Ontem fomos visitar nossa colega. Os pais de nossa colega estão
desaparecidos no mar.
3. Ela estava nervosa porque ia, pela primeira vez, jantar com o
famoso escritor. Ela já tinha lido muitas vezes os livros dele.
4. Meu irmão tentou novamente engajar-se na legião estrangeira: a
namorada dele fugiu com um surfista profissional.
5. O jóquei estreante ficou lisonjeado com o convite do conde: ele
deveria montar o melhor cavalo do conde no próximo grande prêmio.

334
gramática e estilo

6. Não vejo nenhum motivo para debater tal assunto com esses
pseudotécnicos: discordo frontalmente das ideias deles.
7. Receberemos amanhã nossos amigos recém-chegados da Espanha:
estivemos hospedados, no ano passado, na casa deles.

Exercício 34

Transforme a frase entre parênteses em uma oração adjetiva da


outra frase.
1. O carro de meu tio bateu um recorde nacional de velocidade em
Tarumã. (Nós preparamos o motor desse carro.)
2. Ontem vi aquela menina sorrir pela primeira vez. (A aparência
séria daquela menina sempre me intrigou.)
3. Alberto ficou muito espantado ao reconhecer naquela moça a
alegre companheira de infância. (Muitas vezes puxara as tranças dela.)
4. Sentiu tristeza ao saber da morte do velho verdureiro. (Ele sempre
comprava suas maravilhosas couves.)
5. A vizinha da casa azul defronte à nossa resolveu mudar-se. (Seu
marido vivia brigando com todos os outros moradores de nossa rua.)
6. Alfredo entrou no salão e logo recuou assustado: vira o viajante
recém-chegado e teve medo de ser reconhecido por ele. (Batera nessa
manhã a carteira desse viajante.)

4.2.3.7 Problemas de construção das orações adjetivas

Já vimos alguns dos problemas de construção próprios das orações


adjetivas: (1) a sequência dos tipos de adjetivos (palavras, preposições
+ nomes, orações adjetivas); (2) as orações adjetivas desajeitadas ou
porque não são a mais adequada solução ou porque servem como atalho
pra não contar ou expor direito, ou porque estão mal colocadas; (3) o

335
gramática e estilo

uso inadequado dos pronomes relativos; (4) a ambiguidade que pode ser
provocada pelo uso de que e de quem; (5) o uso do onde como conjunção
cola-tudo.
Há outros problemas, decorrentes de diferenças tanto genéricas
quanto específicas entre o português brasileiro e o português europeu,
do qual se deriva o padrão escrito que nos foi historicamente imposto.
Diferenças genéricas causam problemas de concordância; diferenças
específicas como, por exemplo, a restrição que o conjunto dos pronomes
relativos vem sofrendo no português brasileiro “com a consequente ge-
neralização do que” e o “desaparecimento do cujo no PB contemporâneo
[...] mesmo no padrão culto” (CASTILHO, 2010, p. 367) causam outros
problemas, que vamos examinar. Comecemos pela concordância.

4.2.3.7.1 Concordância

Todos aprendemos na escola que a regra da concordância verbal


do padrão escrito prescreve que o verbo concorda em número e pessoa
com o núcleo do sujeito da frase, da oração; já vimos que, na língua que
falamos, a concordância não funciona com essa simplicidade. Escreve-
mos o que falamos, escrevemos o que não falamos, falamos o que não
escrevemos. Quando a escola nos disse que falar e escrever são coisas
diferentes, geralmente quis dizer que, em caso de divergência, a escrita
estava certa e a fala estava errada e muito frequentemente atribuiu os erros
da escrita aos erros da fala. Deveríamos falar como se escreve para que
nossa escrita não tenha erros; no entanto, o que nossos ouvidos ouvem
quando nos dizem isso é isso dito tal como falamos. Não seria melhor
nos dizerem que não devemos escrever como falamos, que devemos
escrever como está escrito o que lemos? Devemos? Se escrevemos para
entrar na conversa que se dá na língua escrita, seria melhor escrever na
língua em que se dá essa conversa, e uma das regras dessa língua é o que
se chama correção gramatical.

336
gramática e estilo

Correção gramatical, por sua vez, também é um conjunto de regras


variáveis, e a tentativa de imposição da língua dos escritores portugueses
do século XIX como padrão de língua escrita para o Brasil independente
decretou o imediato exercício daquela variabilidade por escritores como
Alencar e Gonçalves Dias, que alegavam o singelo desejo de serem enten-
didos pelos leitores brasileiros com quem queriam conversar por escrito.
Justamente por isso, puseram-se a escrever na língua em que achavam
que seriam entendidos pelos seus leitores brasileiros à revelia dos que os
criticavam por não escreverem exatamente como os portugueses. De lá
pra cá, a ampliação do uso da língua escrita por parcelas cada vez maiores
da população aproximou cada vez mais a língua escrita da língua que
falamos, apesar da eterna vigilância dos que se dão o direito de decretar
o que está certo e o que está errado.
Para examinar alguns efeitos da concordância, vamos retomar estas
frases:

O espelho que quebrou era feito com o mais fino cristal.

Esta frase foi composta a partir destas duas frases:

O espelho era feito com o mais fino cristal. O espelho quebrou.

A segunda frase – O espelho quebrou – virou a oração adjetiva que


quebrou; nela o pronome relativo que substituiu o seu antecedente na frase
– o espelho –, que é sujeito de quebrou e, como sujeito, provoca a concor-
dância, leva o verbo para o singular: quebrou. Vejamos agora esta outra:

O espelho que quebraram era feito do mais fino cristal.

Esta frase foi composta a partir destas duas frases:

O espelho era feito com o mais fino cristal. Quebraram o espelho.

337
gramática e estilo

A segunda frase – Quebraram o espelho – virou oração adjetiva;


nela o pronome relativo que substituiu espelho, que não é o sujeito de
quebraram mas complemento e, como tal, não provoca a concordância.
Escrever o espelho que quebrou não é o mesmo que escrever o espelho
que quebraram, mesmo que ambas as frases digam que o enunciador da
frase não sabe ou não quer dizer quem quebrou o espelho. O espelho que
quebrou pode ter sido quebrado por uma falha estrutural do próprio espe-
lho: o espelho se quebrou sozinho. Já o espelho que quebraram declara
que o espelho foi quebrado por alguma pessoa, não necessariamente por
mais de uma pessoa, pois o plural, no caso, indica que não sabemos quem
foi, e isso fica muito claro quando dizemos bateram na porta, sabendo
que, mesmo que haja mais de uma pessoa lá fora, só uma delas bateu.
Neste caso, a flexão do verbo na terceira pessoa do plural referindo-
-se a uma terceira pessoa do singular não afronta a correção gramatical,
mas indica muito claramente que as orações adjetivas que quebrou e que
quebraram dizem coisas diferentes a respeito do vidro. Não é desprezível,
portanto, o papel da concordância no sentido da frase.
As regras variáveis da concordância da língua que nós falamos e a
circunstância de que a concordância na oração adjetiva depende de uma
palavra invariável como o que fazem com que apareçam frases com pro-
blemas de concordância. O que fazer com elas? Revisá-las para decidir
se deixá-las como estão é o mais adequado procedimento para produzir
os efeitos visados com o texto de que elas fazem parte (rompendo com a
transparência, já que o erro de concordância vai chamar atenção para si),
ou se o procedimento mais adequado é submetê-las às coerções vigentes
no campo em que o texto quer ser lido e levado em conta. Para tomar
essa decisão, convém que o escritor seja capaz de reconhecer o problema
e estar capacitado para executar cada uma dessas soluções. Como todos
nós que falamos brasileiro estamos aptos para executar o procedimento
que levou a essas frases tal qual elas estão, vamos ao procedimento que
as adequa ao modo como se costuma encontrar escrito no que lemos.

338
gramática e estilo

1 Quando crianças, os brinquedos sofisticados e os jogos importados


são os sonhos que a televisão impõem.

Estas são as orações que se envolvem na construção adjetiva: os


brinquedos sofisticados e os jogos importados são os sonhos e a televisão
impõe (esses) sonhos. A segunda frase transforma-se em oração adjetiva;
nela o pronome que substitui televisão, que é o sujeito de impõe e, sendo
singular, leva a concordância para o singular.

1a Quando crianças, os brinquedos sofisticados e os jogos importados


são os sonhos que a televisão impõe.

2 Atualmente a mulher conseguiu superar aquele papel secundário


que a igreja e sociedade lhe designara desde muito tempo.

Temos estas orações: Atualmente a mulher conseguiu superar aque-


le papel secundário e A igreja e sociedade lhe designaram desde muito
tempo (esse papel). A segunda frase transforma-se em oração adjetiva;
nela o que substitui A igreja e sociedade, que é o sujeito composto da
oração e, sendo plural, leva o verbo para o plural.

2a Atualmente a mulher conseguiu superar aquele papel secundário


que a igreja e sociedade lhe designaram desde muito tempo.

3 A civilização industrial nos leva a fazer coisas que não é natural.

Temos estas orações: A civilização industrial nos leva a fazer coisas


e Essas coisas não são naturais. A segunda frase transforma-se em oração
adjetiva; nela o que substitui coisas, que é sujeito e, sendo plural, leva
o verbo para o plural.

3a A civilização industrial nos leva a fazer coisas que não são na-
turais.

339
gramática e estilo

4 Essas reformas devem ser feitas por pessoas sensatas que se pre-
ocupe realmente com o bem-estar do povo.

As orações são estas: Essas reformas devem ser feitas por pessoas
sensatas e pessoas sensatas se preocupam realmente com o bem-estar
do povo. A segunda frase transforma-se em oração adjetiva; nela o que
substitui pessoas sensatas, que é sujeito e, sendo plural, leva o verbo
para o plural:

4a Essas reformas devem ser feitas por pessoas sensatas que se


preocupem realmente com o bem-estar do povo.

5 Os astecas eram pagãos como o povo egípcio, que tinham como


deus a luz, a lua, o sol.

Temos Os astecas eram pagãos como o povo egípcio e o povo egíp-


cio tinha como deus a luz, a lua, o sol. A segunda frase transforma-se
em oração adjetiva; nela o que substitui o povo egípcio, que é sujeito e,
sendo singular, leva o verbo para o singular:

5a Os astecas eram pagãos como o povo egípcio, que tinha como


deus a luz, a lua, o sol.

6 O homem tenta basear no sobrenatural algo que, segundo suas


ideias, completariam sua felicidade e razão de existir.

As orações são estas: O homem tenta basear no sobrenatural algo...


e segundo suas ideias algo completaria sua felicidade e razão de existir.
Esta segunda frase transforma-se em oração adjetiva; nela o que substitui
algo, que é sujeito e, sendo singular, leva o verbo para o singular:

6a O homem tenta basear no sobrenatural algo que, segundo suas


ideias, completaria sua felicidade e razão de existir.

340
gramática e estilo

7 Desta maneira surge um desenvolvimento democrático que, muitas


vezes, são confundidos com outros tipos de democracia.

Estas são as orações: Desta maneira surge um desenvolvimento


democrático e (esse) desenvolvimento democrático é, muitas vezes, con-
fundido com outros tipos de democracia. A segunda frase transforma-se
em oração adjetiva; nela o que substitui desenvolvimento democrático,
que é sujeito e, sendo singular, leva o verbo para o singular:

7a Desta maneira surge um desenvolvimento democrático que, muitas


vezes, é confundido com outros tipos de democracia.

Exercício 35

Revise a concordância nas orações adjetivas destas frases:


1. A todo o instante nos deparamos com fatos desagradáveis, que nos
atingem, mas da mesma forma nos faz meditar, pensar como agiríamos
se tivesse acontecido conosco.
2. Tais histórias provocam reações que o deixa muito infeliz.
3. Os problemas do país são discutidos através dos meios de comu-
nicação que atinge todo o povo.
4. Mas sabe-se que não há setores de cultura que não exiba uma
relação íntima com o fenômeno religioso.
5. Ao mesmo tempo consigo descobrir nele coisas que em outro
momento não me foi perceptível.
6. A vida teria um novo significado se os jovens pedissem ajuda
para uma pessoa mais idosa com quem pudessem trocar ideias sem que
houvesse conflitos: seria uma união que só levariam todos a uma vida
sem amarguras.

341
gramática e estilo

7. Esta foi uma experiência que não pretendo mais passar nem desejo
que aconteça a ninguém, pois o estado nervoso em que me pus durante
aquelas horas nunca mais se apagarão de minha memória.
8. Esse afastamento dos mais jovens com relação à vida torna-se
óbvio justamente pela pouca responsabilidade destes para com os seus
filhos, uma vez que pensam não ter nada que os prendam à família além
da necessidade econômica.

4.2.3.7.2 Regência

O que foi ressaltado com relação à concordância pode ser repetido


no que se refere à regência: nós escrevemos o que falamos e o que não
falamos, já que escrevemos para entrar na conversa que se dá na língua
escrita. Tal como a nossa fala, a nossa escrita é regida pela regra funda-
mental da necessidade de falar a língua daqueles a quem queremos dizer
o que temos para dizer, mesmo que, por vezes, possamos achar que eles
entenderão melhor o que queremos dizer se não falarmos na língua deles
mas na nossa e, coerentemente, façamos isso.
Falar a língua de nossos pretendidos interlocutores pode envolver
falar o que não costumamos falar, aplicando à nossa fala a regra variá-
vel da correção gramatical, que, na fala, é muito mais variável do que
na escrita. Escrever para entrar na conversa que se dá na língua escrita
envolve levar em consideração a regra da correção gramatical porque
o valor que os leitores vão atribuir ao que escrevemos se fundamenta
não apenas no que formulamos no texto mas também no modo como
formulamos o que queremos dizer.
Os estudos do português brasileiro revelam que há várias formas
de construir orações adjetivas tanto na língua que falamos como na que
escrevemos. Moura Neves (2000, p. 381) faz esta observação:

342
gramática e estilo

Frequentemente, a preposição é omitida antes do prono-


me relativo objeto indireto, especialmente a preposição
de, e especialmente com o verbo gostar: Tomei banho,
fiz a barba, coloquei a roupa > QUE eu mais gostava,
camisa preta e calça jeans.
Essa supressão ocorre quase categoricamente quando o
antecedente é o pronome demonstrativo o: Se você não
faz o > QUE gosta, não é feliz e não tem condições de
fazer o outro feliz.

Ataliba de Castilho (2010, p. 367) caracteriza três estratégias de


relativização no português brasileiro:
a) sentença adjetiva padrão: “os pronomes relativos exibem as
formas correspondentes ao caso que recebem de seu verbo” e, desse modo,
mantêm as preposições antecedendo o pronome relativo. Por exemplo:
“Não há uma área em São Paulo em que a polícia não entre. Os painéis
solares geram a energia com que sempre sonhamos”.
b) sentença adjetiva copiadora: “quando o pronome relativo se des-
pronominaliza, reduzindo-se à condição de conjunção, ele perde a proprie-
dade fórica, que será preenchida por um pronome pessoal preposicionado ou
não”. Por exemplo: “Não há uma área em São Paulo que a polícia não entre
nela. Os painéis solares geram a energia que sempre sonhamos com ela”.
c) sentença adjetiva cortadora: “apagando-se os pronomes pesso-
ais, estrutura-se a adjetiva cortadora, que já ocorre no português escrito
veicular”. Por exemplo: “Não há uma área em São Paulo que a polícia
não entre. Os painéis solares geram a energia que sempre sonhamos”.
Chama-se cortadora porque corta a preposição.
Então, vai ser preciso levar em consideração que o padrão, regido
pela regra da correção gramatical, prescreve que a preposição que an-
tecede o nome substituído pelo pronome relativo antecede também o
pronome relativo. É o caso da frase que podemos construir com estas
duas frases simples, transformadas em principal e subordinada adjetiva:

343
gramática e estilo

1 Teu filho menor brincava com um novo jogo. Esse jogo pareceu-
-me interessante.

Transformando a segunda em oração adjetiva, temos:

1a Teu filho menor brincava com um novo jogo que me pareceu


interessante.

Transformando a primeira em oração adjetiva, vamos ter esta outra frase:

1b O jogo com que teu filho menor brincava pareceu-me interessante.

Na frase 1a, o pronome relativo que substitui esse jogo em função


de sujeito, mas, na frase 1b, o pronome relativo que substitui um novo
jogo, antecedido na frase simples pela preposição com, que se mantém
na oração adjetiva. Do mesmo modo, as construções de oração principal
e oração adjetiva a partir destas frases mantêm as preposições antes dos
pronomes relativos:

2 Eu te farei uma proposta, e mais tarde pensarás nela.


2a Eu te farei uma proposta em que mais tarde pensarás.

3 Visita amanhã sem falta a exposição de canários: eu já te falei


dessa exposição.
3a Visita amanhã sem falta a exposição de canários de que já te falei.

Vamos examinar estas frases.

4 Durante todo o mês de janeiro costumamos ter praias sujas com


bandeira preta, que não podemos nem chegar perto.­

A frase simples que se transforma em oração adjetiva é Não podemos


nem chegar perto d(essas) praias. O pronome relativo substitui praias,

344
gramática e estilo

que vem depois da preposição de, que permanece antes do pronome


relativo:

4a Durante todo o mês de janeiro costumamos ter praias sujas com


bandeira preta das quais não podemos nem chegar perto.

5 Não me esquecerei o dia em que visitei o orfanato, visita pela


qual pude compartilhar com muitas, mas infelizmente nem todas, as
crianças abandonadas pelos seus próprios pais.

A frase simples que se transforma em oração adjetiva é Nessa visita


pude compartilhar com muitas, mas infelizmente nem todas, as crianças
abandonadas pelos seus próprios pais. O pronome relativo substitui
n(essa) visita, que vem depois da preposição em (e não depois da pre-
posição por), que permanece antes do pronome relativo:

5a Não me esquecerei o dia em que visitei o orfanato, visita na qual


(ou durante a qual) pude compartilhar com muitas, mas infelizmente
nem todas, as crianças abandonadas pelos seus próprios pais.

6 No ponto que ela estava tentando atravessar a rua não tinha ne-
nhuma sinaleira.

A frase simples que se transforma em oração adjetiva é – ela estava


tentando atravessar a rua n(esse) ponto. O pronome relativo substitui
que n(esse) ponto, que vem depois da preposição em, que permanece
antes do pronome relativo:

6a No ponto em que ela estava tentando atravessar a rua não tinha


nenhuma sinaleira.

7 Desde o tempo em que minha memória alcança, eu fui um entu-


siasmado torcedor gremista.

345
gramática e estilo

A frase simples que se transforma em oração adjetiva é Minha


memória alcança (esse) tempo. O pronome relativo substitui tempo, que
não vem depois de preposição alguma; portanto, não há motivo para que
a preposição em fique antes do que:

7a Desde o tempo que minha memória alcança, eu fui um entusias-


mado torcedor gremista.

8 Esse crime me abalou muito pelo fato de matarem uma pessoa a


quem eu tinha grande carinho.

A frase simples que se transforma em oração adjetiva é Eu tinha


grande carinho por (essa) pessoa. O pronome relativo substitui pessoa,
que vem depois da preposição por (e não a); portanto, a preposição que
permanece antes do pronome relativo é por (e não a).

8a Esse crime me abalou muito pelo fato de matarem uma pessoa


por quem (pela qual) eu tinha grande carinho.

Exercício 36

Transforme a frase entre parênteses numa oração adjetiva.


1. Esta moça é a nossa nova colega de trabalho. (Falei-te dela na
semana passada.)
2. Quero examinar todos os argumentos para rebatê-los um a um.
(Discordo desses argumentos.)
3. Não consentirei que este grupo de músicos seja mal recebido em
minha própria casa. (Eu também faço parte desse grupo de músicos.)
4. Recomendo-te o novo restaurante de nossa rua, uma verdadeira
maravilha. (Nós jantamos ontem nesse restaurante.)

346
gramática e estilo

5. Não consigo lembrar o livro, por mais que me esforce. (Nesse


livro li sobre os costumes dos esquimós.)
6. Gostaríamos muito de que saísses dessa depressão o quanto antes.
(Encontras-te nessa depressão há dois meses.)
7. Passou o resto do fim de semana estudando as demais matérias.
(Nessas matérias ele não tinha muitas dificuldades.)
8. A zeladora do prédio é, sem dúvida, uma mulher de confiança.
(Todos se referem a ela de forma elogiosa.)
9. A fazenda está equipada com o que há de mais moderno em
matéria de máquinas agrícolas. (Eu tenho falado muito da fazenda aos
visitantes desta cidade.)
10. O grande leque ocultava-lhe o rosto dos olhares indiscretos dos
vaqueiros. (Mariana abanava-se com o leque.)
A oração adjetiva copiadora é uma decorrência da perda de noção de
pronome do pronome relativo, que, sendo assim, passa a ser considerado
apenas uma conjunção que relaciona as orações; a marca da oração adje-
tiva copiadora é um outro pronome para referir o que pronome relativo
deveria referir. Vamos ver estas frases:

1 Comprado o papel, ela chegou em casa, telefonou ao primo con-


tando a ideia que tivera e logo se pôs a cortar o tal papel brilhante
que, depois de picado, Luísa o guardou para o dia do espetáculo.

A primeira oração adjetiva – que tivera – não é copiadora: ela


tivera a ideia. O que substitui ela, mas a segunda – que, depois de pi-
cado, Luísa o guardou para o dia do espetáculo – acrescenta um outro
pronome além do que para referir papel brilhante: aquele o – Luísa o
guardou. Esta aparição de um pronome desusado na língua que falamos,
combinada com a não aparição de pronome com semelhante função em
construção semelhante anterior e com a proscrição desse pronome no

347
gramática e estilo

padrão da língua em que temos de escrever mostra o quanto esse padrão


nos assombra. Para adequar a frase ao padrão, basta excluir o supérfluo
fantasmagórico.

1a Comprado o papel, ela chegou em casa, telefonou ao primo con-


tando a ideia que tivera e logo se pôs a cortar o tal papel brilhante
que, depois de picado, Luísa guardou para o dia do espetáculo.

Nesta próxima frase, também se expressa a necessidade de escrever


o que nos disseram que deveríamos escrever mas não nos explicaram
direito como fazer isso.

2 Amanhã vamos ver as terras que quero comprá-las.

O que, pronome relativo, refere terras; -las também refere terras e


é redundante em orações adjetivas. Excluamo-las:

2a Amanhã vamos ver as terras que quero comprar.

Esta próxima frase apresenta uma muito estranha noção de parale-


lismo; o pronome cópia aparece em apenas um dos verbos coordenados
dentro da oração adjetiva.

3 A música nos transmite uma lição de vida que devemos captar e


utilizá-la como convier.

É possível que a intenção não muito consciente tenha sido a de enfa-


tizar a necessidade de utilizar e não apenas captar e ficar por isso mesmo.

3a A música nos transmite uma lição de vida que devemos captar e


utilizar como convier.

348
gramática e estilo

De fato, a frase ganha em padronização, mas perde em ênfase; vale


a pena a troca? Nesta outra frase, esta cópia, que também copia a prepo-
sição que antecede o pronome, não é muito comum também:

4 A preocupação com os minutos e segundos necessários para ter-


minar as várias etapas da corrida com que estamos envolvidos com
ela há meses tem-nos tirado o sono.

Cortar é o que há para fazer:

4a A preocupação com os minutos e segundos necessários para ter-


minar as várias etapas da corrida com que estamos envolvidos há
meses tem-nos tirado o sono.

Para não perder a oportunidade, vamos aplicar aquela mudança de


ordem que deixa a frase mais equilibrada:

4b Há meses tem-nos tirado o sono a preocupação com os minutos


e segundos necessários para terminar as várias etapas da corrida
com que estamos envolvidos.

Exercício 37

Revise estas frases. Se não for possível, explique por quê.


1. Pedro e Ângela foram passear no parque a qual se perdeu.
2. Mudei-me para Erechim, onde passei a estudar na Escola Estadual
José Bonifácio, que, passados três anos, concluí o curso, realizando, em
seguida o estágio.
3. A discussão sobre o envolvimento de nossa empresa nessa aven-
tura africana que nenhum lucro tiraremos a médio prazo pode levar-nos
à falência.

349
gramática e estilo

4. Aliás, era uma ideia que me causava certo pavor, pois o que eu
carregava comigo (e, às vezes, parece que ainda carrego) era aquela
terrível sensação de que professor de português era aquele que a gente
sente pena.
5. Amizade, para mim, hoje, envolve sentimentos, carinho por
alguém; não envolve interesses pessoais, pelo qual eu possa vir a me
beneficiar.
6. A religião é um sistema onde este tenta demonstrar-nos a exis-
tência de um ser superior.
7. Eles estavam anunciando, para o início de setembro, um rodeio crioulo
em Bojuru, interior de São José do Norte, distante cerca de 29 km de Rio
Grande, cuja travessia só é possível através do Canal da Lagoa dos Patos.
8. De fato, desenhar era uma atividade de que gostava muito, cujos
primeiros traços eu já arriscava desde pequeno.
9. Aqueles rabiscos eram coisas escritas e que somente eu entendia
o significado (se é que tinha algum significado).

4.2.3.7.3 E que

Como vimos, os adjetivos compostos por palavras, por preposição +


sintagma nominal e por oração adjetiva encadeiam-se depois do sintagma
nominal antecedente:
Era um galpão velho de madeira que servia de depósito para a
fazenda.

Velho (palavra), de madeira (preposição + sintagma nominal) e que


servia de depósito para a fazenda (oração adjetiva) não estão relaciona-
dos entre si por coordenação porque cada um dos adjetivos acrescenta
ao galpão uma característica a partir da(s) outra(s). Não cabe, justamente
por causa disso, um e que antes da oração adjetiva.

350
gramática e estilo

Vamos examinar estas frases:

1 E enquanto meus colegas liam livros relativamente infantis, eu en-


xerguei o livro “Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída”.
Aquela capa, com o rosto de uma menina da minha idade e que até
lembrava as minhas feições, me chocou e me atraiu ao mesmo tempo.

Sem o e, a ligação do que com o antecedente já fica clara, completa


e concisa:

1a E enquanto meus colegas liam livros relativamente infantis, eu


enxerguei o livro “Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída”.
Aquela capa, com o rosto de uma menina da minha idade que até
lembrava as minhas feições, me chocou e me atraiu ao mesmo tempo.

Nesta outra frase, o e que está coordenando duas orações adjetivas


– sobre a qual... e que –, mas não é a melhor solução para organizar essa
coordenação:

2 Tratava-se de uma nova estrutura curricular sobre a qual eu tinha


as melhores referências como concepção pedagógica e que, por isso,
como professora recém-ingressante, entendia ser meu compromisso
buscar conhecimentos sobre a referida concepção, os quais prova-
velmente me ajudariam a dar conta dos novos alunos.

Vamos revisá-la para construir melhor o eixo tinha as melhores


referências e buscar conhecimento sobre:

2a Tratava-se de uma nova estrutura curricular sobre a qual eu tinha


as melhores referências como concepção pedagógica, e, por isso,
como professora recém-ingressante, entendia ser meu compromisso
buscar conhecimentos sobre a referida concepção, os quais prova-
velmente me ajudariam a dar conta dos novos alunos.

351
gramática e estilo

Uma pequena troca de ordem deixaria mais clara a relação entre o


compromisso e a situação funcional da professora:

2b Tratava-se de uma nova estrutura curricular sobre a qual eu tinha


as melhores referências como concepção pedagógica e, por isso, en-
tendia ser meu compromisso, como professora recém-ingressante,
buscar conhecimentos sobre a referida concepção, os quais prova-
velmente me ajudariam a dar conta dos novos alunos.

Este caso mostra que é preciso prestar atenção na pertinência do


uso de e que, principalmente para que o leitor não seja conduzido para
atalhos (mal) sinalizados pelo e que:
3 Era o mais sério concorrente ao título mundial de tiro ao prato o
atirador alemão e que derrotei na semana passada.

O e é desnecessário para a organização da oração adjetiva e parece


entrar nesta frase para fazer parecer que o seu narrador quer fazer algo
mais do que apenas caracterizar o atirador alemão com o fato de ter
derrotado ele. Se é isso, que o narrador trate de narrar para descobrir o
que quer narrar.

4.3 RESTRITIVO E NÃO RESTRITIVO

Um adjetivo, como já vimos, é restritivo se delimita um subconjunto


dentro do conjunto designado pelo substantivo (ou sintagma nominal)
a que se refere; complementarmente, um adjetivo é não restritivo se
não delimita subconjunto dentro do substantivo a que se refere, isto é,
se se aplica a todos os elementos delimitados pelo substantivo a que se
refere. Como vimos, o predicativo de um predicado verbo-nominal é
não restritivo:
1 Os torcedores dançavam entusiasmados nas ruas a caminho do
estádio.

352
gramática e estilo

Está implícito nesta frase que todos os torcedores a que ela se refere
dançavam e estavam entusiasmados ao dançar a caminho do estádio.
Para que esta interpretação seja mantida, qualquer alteração de ordem
envolvendo o adjetivo entusiasmados implicaria o uso de vírgula(s) para
marcar o seu caráter predicativo:

1a Entusiasmados, os torcedores dançavam nas ruas a caminho do


estádio.
1b Os torcedores, entusiasmados, dançavam nas ruas a caminho
do estádio.

A(s) vírgula(s) indica(m) que esse adjetivo não faz parte do sintagma
que expressa o sujeito. Se o adjetivo fizesse parte do mesmo sintagma do
substantivo torcedores, que é o sujeito da frase, passaria a restringir um
subconjunto dentro do conjunto designado pelo substantivo:

1c Os torcedores entusiasmados dançavam nas ruas a caminho do


estádio.

A esta frase poderíamos agregar uma outra oração tratando de um


outro subconjunto de torcedores:

2 Os torcedores entusiasmados dançavam nas ruas a caminho do


estádio, mas muitos torcedores céticos tinham preferido assistir pela
televisão aquele jogo tão difícil.

Nesta frase, os adjetivos entusiasmados e céticos são restritivos, isto


é, delimitam subconjuntos dentro do conjunto torcedores: o subconjunto
que engloba os torcedores entusiasmados e o que delimita os torcedo-
res céticos. Como já vimos, o adjetivo à esquerda do substantivo não
restringe, ou seja, a outra oração não vai manter o mesmo sentido se for
agregada com substantivo e adjetivo com as posições também trocadas:

353
gramática e estilo

2a Os entusiasmados torcedores dançavam nas ruas a caminho do


estádio, mas muitos céticos torcedores tinham preferido assistir pela
televisão aquele jogo tão difícil.

A segunda oração já não trata do mesmo tema da primeira, não fala


de torcedores porque, em muitos céticos torcedores, o núcleo do sintagma
passa a ser céticos, e torcedores está em função de adjetivo: iam assistir
pela televisão os céticos que eram torcedores, tal como sucedeu com a
distinção machadiana entre autor defunto e defunto autor.
Se o autor do texto dominar a convenção que atribui à vírgula a
capacidade de romper o sintagma e de sinalizar o adjetivo não restritivo
e souber reconhecer o caráter não restritivo do adjetivo que usou no seu
texto e se o leitor também dominar essa convenção e tiver um bom dis-
cernimento dessa diferença, teremos o melhor dos entendimentos. Vamos
comparar alguns pares de frases para aperfeiçoar esse discernimento:

3 Os alunos do terceiro ano que não pretendem fazer vestibular


são raros.

4 Os alunos do terceiro ano que devem ter um razoável conhecimento


de sintaxe não podem cometer erros de concordância.

Para discernir a questão da restritividade na primeira frase, dispomos


de duas evidências bem claras. Uma delas é o que sabemos a respeito
de alunos de terceiro ano: os ainda relativamente poucos estudantes do
nosso país que chegam ao terceiro ano, em sua maioria, pretendem fazer
vestibular. A menos que se estabeleça uma distinção entre vestibular e
ENEM, por exemplo, a oração adjetiva é restritiva porque recorta um
subconjunto do conjunto alunos do terceiro ano. A outra evidência está
na própria frase, no que diz o predicado a respeito do sujeito: diz que
esses aí – Os alunos do terceiro ano que não pretendem fazer vestibular
– são raros; logo, há outros, mais numerosos, alunos do terceiro ano que
pretendem fazer vestibular.

354
gramática e estilo

Na segunda frase, o predicado faz uma afirmação geral a respeito do


sujeito: não podem cometer erros de concordância. Afirmações gerais
referem-se, costumeiramente, a totalidades, e, como o verbo principal
ter é modalizado pelo verbo auxiliar mais assíduo no discurso escolar
– devem –, temos outro indício de que o predicado da frase se refere ao
todo e não a uma parte dele. Escreveremos, portanto, assim, pondo a
oração adjetiva entre vírgulas:

4a Os alunos do terceiro ano, que devem ter um razoável conheci-


mento de sintaxe, não podem cometer erros de concordância.

Nesta outra frase, é o conteúdo da oração adjetiva que expressa o


seu caráter restritivo:

5 É impraticável para um país que não tenha condições de exportar


sua cultura produzir espetáculos muito caros.

Não se pode conceber um país que não tenha condições de exportar


sua cultura sem contrapô-lo a outro(s) país(es) que tenha(m) condições de
fazer isso; logo, condições de exportar sua cultura é uma característica
que divide em dois subconjuntos o conjunto dos países. Nesse caso, não
vamos usar vírgula alguma.
Já nesta outra frase, o que determina o caráter não restritivo da ora-
ção adjetiva é o grau de generalidade com que a frase trata o seu tema:

6 As fábricas de bicicletas tiveram de aumentar a produção para


suprir a demanda das casas comerciais que nunca venderam tantas
bicicletas como neste ano.

A frase trata da venda de bicicletas em geral e de quem, em geral,


vende bicicletas – as casas comerciais. Quais? Todas as que vendem
bicicletas; precisamos, portanto, de vírgula.

355
gramática e estilo

6a As fábricas de bicicletas tiveram de aumentar a produção para


suprir a demanda das casas comerciais, que nunca venderam tantas
bicicletas como neste ano.

Há também instituições que são únicas, como, por exemplo, o júri


do III Festival Nacional da Canção; na verdade, se houver outro, será
o júri do IV, do V, do VI Festival Nacional da Canção. Precisamos,
portanto, de vírgula(s).

7 O júri do III Festival Nacional da Canção, que é composto de


pessoas muito ricas, resolveu premiar também o quarto e o quinto
colocados.

Há outras instituições que também são únicas:

8 O convidado, propositadamente vestido com roupas inadequadas


para a ocasião, estava, mesmo assim, muitíssimo elegante: a camisa
de seda chinesa artesanal que ele usava para fora das calças com-
binava com os canos das botinas para dentro das quais ele havia
enfiado as bombachas brancas de linho cru.

Camisas e botinas, quando em uso, são únicas; portanto, as orações


adjetivas que ele usava para fora das calças e para dentro das quais ele
havia enfiado as bombachas brancas de linho cru só podem ser não restri-
tivas porque não se pode determinar subconjunto em conjuntos unitários.

8a O convidado, propositadamente vestido com roupas inadequadas


para a ocasião, estava, mesmo assim, muitíssimo elegante: a camisa
de seda chinesa artesanal, que ele usava para fora das calças, com-
binava com os canos das botinas, para dentro das quais ele havia
enfiado as bombachas brancas de linho cru.

Esta exemplificação não começou com os casos clássicos, mas não


há motivo para ignorá-los; vamos ver este outro par de frases:

356
gramática e estilo

9 As estrelas que brilham no céu durante a noite guiavam os nave-


gadores da Antiguidade.

10 As estrelas que brilham no céu durante noite invejam as estrelas


que brilham em teu olhar.

A comparação entre as duas frases mostra que a segunda tem duas


orações adjetivas referidas ao mesmo conjunto designado pelo subs-
tantivo estrelas e que o predicado da frase compara o brilho de umas
com o das outras. Fica, desse modo, muito claro que estamos diante de
dois subconjuntos do conjunto estrelas: as que brilham no céu e as que
brilham em teu olhar. Vamos, por isso, deixar as orações adjetivas sem
vírgulas. Já a primeira frase refere-se às estrelas que brilham no céu, isto
é, às estrelas, que, na definição do senso comum, são aquelas luzes que
brilham lá no céu. Estamos diante de uma não restritiva:

9a As estrelas, que brilham no céu durante a noite, guiavam os


navegadores da Antiguidade.

Um outro critério que usamos para distinguir entre restritivo e não


restritivo é o conhecimento que temos a respeito de como a língua escrita
vem tratando do que trata, como neste caso:

11 A cigarra que havia cantado durante todo o verão viu-se na


miséria com a chegada do inverno.

Todo mundo que já passou pela escola já ouviu a fábula da cigarra


e da formiga e outras tantas fábulas, em que os animais são usados para
representar comportamentos humanos gerais; nesse caso, nem esta cigarra
nem esta formiga são elementos dos conjuntos designados pelos substan-
tivos cigarra e formiga. A cigarra, no caso dessa fábula, representa o vício
da imprevidência, e a formiga, as virtudes do trabalho e da poupança;
tomadas assim, como sínteses, elas não são restritivas:

357
gramática e estilo

11a A cigarra, que havia cantado durante todo o verão, viu-se na


miséria com a chegada do inverno.

Vejamos agora esta outra frase sem par:

12 Ontem à noite tentamos avisá-los, por intermédio do filho mais


velho da vizinha, a respeito da mudança no horário da reunião; no
entanto, o menino a quem encarregamos de levar-lhes o bilhete não
encontrou a casa.

Nesta frase, a primeira oração apresenta um personagem – o filho


mais velho da vizinha – encarregado de dar um aviso sobre a mudança
de horário de uma reunião; a segunda oração diz que o menino não en-
controu a casa e acrescenta, numa oração adjetiva, a informação de que
ele deveria levar um bilhete. Para que o leitor não tenha nenhuma dúvida
de que o menino da segunda oração se refere ao filho mais velho da vizi-
nha da primeira oração, é necessário que a oração adjetiva apresente-se
como não restritiva.

11a Ontem à noite tentamos avisá-los, por intermédio do filho mais


velho da vizinha, a respeito da mudança no horário da reunião; no
entanto, o menino, a quem encarregamos de levar-lhes o bilhete,
não encontrou a casa.

Exercício 38

Identifique as orações adjetivas não restritivas e ponha a(s) vírgula(s)


que elas precisam:
1. Não consigo lembrar o nome das estrelas que compõem o Cru-
zeiro do Sul.
2. O descobrimento do Brasil que os historiadores oficiais consi-
deram obra do acaso foi, na verdade, uma deliberada ação colonizadora
do Império português.

358
gramática e estilo

3. O sol que é responsável pela vida neste planeta pode vir a ser
aproveitado como uma inesgotável fonte de energia.
4. O sol que brilha no Equador é mais quente do que o sol que
brilha no Sul.
5. O Palácio Piratini que foi construído no início do século não tem
instalações elétricas adequadas.
6. Era um senhor muito bem vestido, de gestos contidos e fala
pausada, que me fez evocar as leituras de minha juventude: “Um, gen-
tleman!” – pensei. – “Já não se fazem mais homens assim no mundo”.
Essa foi a primeira impressão que eu tive daquele homem que teria uma
tão decisiva influência na minha vida a partir daquele dia.
7. No domingo, demos uma chegada ao hipódromo e não fomos nada
felizes: o cavalo em que apostamos muito dinheiro foi escandalosamente
segurado pelo jóquei.
8. Escondeu no bolso a mão em que usava o anel com um brasão
da família.
9. A mão esquerda em cujo dorso ele tinha uma cicatriz de infância
acabou por denunciá-lo.
10. A casa grande de que falaste ainda não foi alugada.

4.3.1 O que restritividade e não restritividade implicam?

Essa capacidade que a tradição construída na língua escrita atribuiu à


oração adjetiva de lidar com conjuntos e seus elementos por meio de uma
vírgula compromete a oração adjetiva com um uso criterioso e preciso
dessa vírgula. Vamos examinar este par de frases:

1 Poderiam encontrar-se na rua, onde é mais fácil de terminar um


romance.
1a Poderiam encontrar-se na rua onde é mais fácil terminar um
romance.

359
gramática e estilo

Se tivermos confiança de que a vírgula da primeira frase e a ausência


de vírgula na segunda decorrem de deliberações criteriosas dos autores
dessas frases, teremos de admitir que a oração adjetiva não restritiva na
primeira frase nos diz que é mais fácil terminar um romance na rua do
que, por exemplo, dentro de casa, pois a oração adjetiva não está opon-
do esta rua a nenhum outro elemento do mesmo conjunto. Nos parece
razoável a conjetura de que alguém julgue que é mais fácil terminar um
romance fora de casa do que no próprio domicílio de um dos envolvidos.
Teremos, em contrapartida, de aceitar que a oração adjetiva restritiva na
segunda frase implica que existe uma determinada rua onde terminar um
romance é mais fácil do que nas outras, o que, certamente, vai provocar
destes proficientes e confiantes leitores, no mínimo, a exigência de um
relato esclarecedor.
Nesta outra frase, a falta desse esclarecimento seria quase insupor-
tável:

2 Cresci aprendendo a viver sem algumas pessoas importantes.


Nem cheguei a conhecer meu avô paterno, o avô materno perdi com
quatro anos, a avó paterna partiu quando eu tinha nove anos, e a
avó materna, quando tinha dezoito. Além disso, perdi três tios que
ainda fazem falta.

Uma vírgula antes da oração adjetiva – que ainda fazem falta – in-
dicaria que ela abrange o conjunto antecedente, isto é, que ela se refere
exclusivamente a esses três tios perdidos, que ainda fazem falta. A falta
dessa vírgula, tal como se vê na frase, delimita um subconjunto – esses
três tios que ainda fazem falta – dentro de um conjunto maior, ou seja,
implica que houve a perda de outros tios, que não se caracterizam por
fazer falta. Estes mesmos leitores atentos e proficientes, na falta do
imprescindível esclarecimento, prefeririam pensar num problema de
pontuação a admitir que o escritor fosse capaz de confessar tão a frio
um desapego desses.

360
gramática e estilo

Examinemos mais alguns pares interessantes:

3 Comecei com as redações no colégio e, como toda pré-adolescente,


romântica, comecei a escrever poesias por volta dos 12 anos. Foi
nessa época que surgiu o meu sonho de ser escritora.
3a Comecei com as redações no colégio e, como toda pré-adolescente
romântica, comecei a escrever poesias por volta dos 12 anos. Foi
nessa época que surgiu o meu sonho de ser escritora.

Romântica, entre vírgulas, na primeira frase, diz que toda pré-ado-


lescente é romântica. Romântica, na segunda frase, diz que a narradora
considera-se um dos elementos daquele subconjunto das pré-adolescentes
que são românticas.
Vejamos esta outra frase, que dá forma não restritiva a adjetivos
formados por preposição + nome; como essa versão da frase acaba atri-
buindo as características desses adjetivos à pessoa errada, vamos exa-
minar também a versão em que o primeiro desses adjetivos é restritivo:

4 Hoje me vejo em minhas primas, com 15, 16 anos, de coração es-


cancarado, tateando cegamente em meio a um turbilhão de emoções
provocadas por um amor que se acredita ser para sempre.
4a Hoje me vejo em minhas primas com 15, 16 anos, de coração es-
cancarado, tateando cegamente em meio a um turbilhão de emoções
provocadas por um amor que se acredita ser para sempre.

A segunda versão impede que a característica expressa por com


15, 16 anos, sem vírgula a separá-la de minhas primas, seja atribuída à
narradora, que se vê (como num espelho), no momento em que narra, em
suas primas que têm 15, 16 anos e que estão, tal como ela estava quando
tinha essa idade, de coração escancarado, tateando cegamente em meio
a um turbilhão de emoções provocadas por um amor que se acredita
ser para sempre. Ou seja, ela não se vê com 15, 16 anos; ela só se vê de
coração escancarado etc., etc.

361
gramática e estilo

Já a comparação destas duas versões que seguem mostra que nem


sempre a decisão pela vírgula é tão simples:

5 Não me recordo de ter tido na escola alguma experiência inovadora


que me tenha proporcionado uma aprendizagem inserida no contexto
e que estimulasse a reflexão crítica.
5a Não me recordo de ter tido na escola alguma experiência inova-
dora, que me tenha proporcionado uma aprendizagem inserida no
contexto e que estimulasse a reflexão crítica.

O caráter restritivo ou não restritivo da oração adjetiva decorre


do sentido que o escritor atribui a experiência inovadora: se ele pensa
que toda experiência escolar inovadora proporciona tal aprendizagem,
ele deve usar a vírgula; se o que almejava e não conseguiu foi uma
experiência inovadora que tivesse a peculiaridade de proporcionar essa
aprendizagem, ele não deve usar a vírgula.

Exercício 39

Determine se o que está em negrito é restritivo ou não restritivo; se


for o caso, acrescente a(s) vírgula(s) que assinala(m) o não restritivo e
justifique a sua tomada de posição.
1. O tempo em que estudei no Otávio Mangabeira considero como
sendo o tempo em que aprendi algo, ao contrário do tempo em que estu-
dei no Protásio Alves que considero um período de trevas no qual não
só não aprendi nada novo como também desaprendi o pouco que sabia.
2. Esta mudança está acontecendo de maneira gradual pois é extre-
mamente difícil expurgar conceitos e valores que foram introjetados
ao longo de uma vida.
3. No meu primeiro colégio, tinha uma livraria. Livraria mesmo,
não biblioteca onde tomamos emprestados os livros.

362
gramática e estilo

4. Nas universidades particulares, contudo, há um grupo de estudan-


tes que se diferencia sensivelmente dos demais. São os estudantes bolsis-
tas que dividem seu tempo entre as aulas de seu curso e o trabalho,
de projetos de pesquisa ou em algum outro setor como atendentes
na hemeroteca, por exemplo.
5. Aos quatro anos de idade surgiu a oportunidade de realizar meu
sonho. Naquele ano de 1983, meu irmão entrava na escola para ser al-
fabetizado. Eu ficava maravilhada quando chegava a hora do “tema de
casa” que ele tanto detestava.
6. Com os anos, eu até esqueci que fora casada com ele e com isto
nem lembrava de suas infidelidades que tanto me tinham magoado.
7. O professor, diferentemente dos outros professores que trabalha-
vam apenas com a gramática iniciou suas aulas trabalhando com textos.
8. A Daniela que anda por aí, que a maioria das pessoas conhece,
é uma pessoa calma, gentil, de fala tranquila.
9. Não sei definir exatamente se foram estes livrinhos que eu pegava
na biblioteca, os livros que tinha em casa ou as revistas em quadrinhos
que eu adorava que me fizeram desenvolver um gosto grande pela
leitura.

4.3.2 A especificação do antecedente da não restritiva

Certas orações adjetivas não restritivas têm um referente mais amplo


do que o sintagma nominal anterior mais próximo do pronome relativo;
examinemos estas frases:

1 É necessário muito estudo para passar no vestibular, para concluir


o curso na universidade e para cursar com aproveitamento uma boa
residência médica, que exige um tempo de estudo que pode chegar
a mais de 12 anos.

363
gramática e estilo

A oração adjetiva – que exige um tempo de estudo que pode chegar


a mais de 12 anos – refere-se não apenas à residência médica, que é o
antecedente imediato da oração adjetiva, mas a todo o tempo necessário
para formar um médico, que é o tema de toda a frase; costuma-se acres-
centar o pronome o para especificar essa maior abrangência do referente:

1a É necessário muito estudo para passar no vestibular, para concluir


o curso na universidade e para cursar com aproveitamento uma boa
residência médica, o que exige um tempo de estudo que pode chegar
a mais de 12 anos.

2 Foi quando surgiu essa oportunidade de cursar na graduação o


curso de letras, em regime especial, que significa cursar as aulas
aos sábados e nas férias.

A oração adjetiva – que significa cursar as aulas aos sábados e nas


férias – não se refere apenas ao seu antecedente imediato, regime especial,
mas a cursar na graduação o curso de letras. O acréscimo do pronome o
antes do relativo estabelece essa relação:

2a Foi quando surgiu essa oportunidade de cursar na graduação o


curso de letras, em regime especial, o que significa cursar as aulas
aos sábados e nas férias.

3 Comecei a trabalhar e a me interessar por dietas e tratamentos


estéticos, e isso aumentou significativamente minha autoestima.
Porém, conservava meu temperamento fechado e de poucos amigos,
que dificultava também meus relacionamentos no trabalho.

A oração adjetiva – que dificultava também meus relacionamentos


no trabalho – não se refere apenas a poucos amigos mas a meu tempera-
mento fechado e de poucos amigos, que é o tema da frase. O pronome o
antes do que estabelece essa relação com o que está mais atrás:

364
gramática e estilo

3a Comecei a trabalhar e a me interessar por dietas e tratamentos


estéticos, e isso aumentou significativamente minha autoestima. Po-
rém, conservava meu temperamento fechado e de poucos amigos, o
que dificultava também meus relacionamentos no trabalho.

4.3.3 Uma designação para o antecedente geral

Na frase 3 da seção anterior, o limite das orações – a me interessar


por dietas e tratamentos estéticos, e isso aumentou significativamente
minha autoestima – é marcado pela conjunção e e pelo pronome isso.
Essa combinação equivale a o que:

3b Comecei a trabalhar e a me interessar por dietas e tratamentos


estéticos, o que aumentou significativamente minha autoestima.

Isso, assim como que, também é um pronome, isto é, refere um


nome, que, nesse caso, tal como o que, seria o nome que sintetizaria o
sentido do que dizem as orações anteriores. O autor da frase, em vez de
remeter seu leitor para uma referência tão genérica, pode querer exercer
a sua prerrogativa de categorizar esse antecedente por meio de um subs-
tantivo ou um sintagma nominal que o identifique com maior precisão.
Em outras palavras, pode estabelecer a coesão por meio da substituição
lexical. Examinemos estas outras frases:

4 A menina entrou na sala sem pedir licença e não cumprimentou


ninguém, que deixou sua mãe indignada.

A oração adjetiva – que deixou sua mãe indignada – não tem como
antecedente apenas o sintagma ninguém, que o antecede imediatamente,
mas tudo o que foi expresso pelas orações anteriores, ou seja, é caso de
o que. Em vez simplesmente usar o, o autor da frase pode declarar em
que categoria enquadra, no caso, o comportamento da menina:

365
gramática e estilo

4a A menina entrou na sala sem pedir licença e não cumprimentou


ninguém, atitude que deixou sua mãe indignada.

Pode também empregar uma palavra ou expressão que, além de


categorizar, qualifique esse antecedente:

4b A menina entrou na sala sem pedir licença e não cumprimentou


ninguém, falta de modos que deixou sua mãe indignada.

5 Contrariamente à recente tradição de promover processos elei-


torais para a escolha dos dirigentes universitários, o vice-reitor foi
escolhido apenas no âmbito do Conselho Universitário, que provocou
revolta em toda a comunidade acadêmica.

O referente da oração adjetiva – que provocou revolta em toda a


comunidade acadêmica – não é apenas o Conselho Universitário mas
todo processo de escolha do vice-reitor denunciado pela frase. Em vez de
usar apenas o que, delegando ao leitor a tarefa de categorizar e qualificar
o acontecimento, o autor da frase pode assumir essa responsabilidade:

5a Contrariamente à recente tradição de promover processos elei-


torais para a escolha dos dirigentes universitários, o vice-reitor foi
escolhido apenas no âmbito do Conselho Universitário, retrocesso
(arbitrariedade, golpe, traição, manobra, conchavo, etc.) que pro-
vocou revolta em toda a comunidade acadêmica.

6 Passar a usar uniforme já não tinha a menor graça a partir da sexta


série, quando, no início da adolescência, em cujo período passamos
por frenéticas alterações hormonais, a atenção feminina está voltada
à descoberta de seu próprio corpo, e a masculina, por sua vez, também
direcionada aos próprios corpos das meninas.

Já sabemos que no início da adolescência, em cujo período não


é um caso de cujo porque adolescência não possui um período, já que
adolescência é um período:

366
gramática e estilo

6a Passar a usar uniforme já não tinha a menor graça a partir da


sexta série, quando, no início da adolescência, período em que pas-
samos por frenéticas alterações hormonais, a atenção feminina está
voltada à descoberta de seu próprio corpo, e a masculina, por sua
vez, também direcionada aos próprios corpos das meninas.

Para facilitar a leitura daquelas intercalações que se intercalam uma


na outra, podemos usar travessões para marcar a mais interna:

6b Passar a usar uniforme já não tinha a menor graça a partir da


sexta série, quando, no início da adolescência – período em que
passamos por frenéticas alterações hormonais –, a atenção feminina
está voltada à descoberta de seu próprio corpo, e a masculina, por
sua vez, também direcionada aos próprios corpos das meninas.

Às vezes, a palavra ou sintagma que antecede o que é uma repetição


de uma palavra anterior que precisou de um complemento:

7 Tais ensinamentos se enraizaram em mim de uma forma tão forte


que acredito ser a pessoa que sou hoje graças a esse caminho que me
fizeram seguir, caminho que espero poder passar aos meus filhos e
netos no futuro, por acreditar que a fé e o respeito ao próximo devam
ser os princípios fundamentais de nossas vidas.

Há um costume de acrescentar um este à palavra ou sintagma que


rotula o antecedente, como neste trecho:

8 Porém, guardo até hoje a imagem da minha primeira cartilha de


alfabetização. Livro este que eu folheei, incessantemente, durante
ano inteiro, numa impaciência incontida para chegar no Z de zebra.

Podemos considerar a segunda frase como um fragmento de frase,


isto é, como uma oração adjetiva pontuada como se fosse uma frase, mas,
no jornalismo, por exemplo, este tipo de construção é muito comum,

367
gramática e estilo

provavelmente como um mecanismo para não produzir frases compridas.


Quanto ao este não há, pelo menos neste caso, necessidade, já que apenas
livro é suficiente para retomar o antecedente:

8a Porém, guardo até hoje a imagem da minha primeira cartilha


de alfabetização, livro que eu folheei, incessantemente, durante ano
inteiro, numa impaciência incontida para chegar no Z de zebra.

Exercício 40

Substituir o o de o que por x q, em que x é uma palavra ou expressão


que sintetiza o antecedente do que.
1. Alunos de cursos científicos estão procurando, cada vez em maior
número, fazer estudos complementares em disciplinas da área de artes e
humanidades, o que não esperávamos ver acontecer tão cedo.
2. Outro problema relacionado ao uso exclusivo do livro didático
na aula de Português é que tanto a temática quanto a linguagem desses
livros produzidos, em sua grande maioria nos maiores núcleos urbanos do
país, não dizem respeito à realidade dos alunos que vivem em pequenas
cidades ou em áreas rurais, o que, certamente, estabelece um distancia-
mento entre os textos e seus leitores.
3. No jardim de infância tive uma professora chamada Gislaine,
que amassava meus desenhos e jogava no lixo alegando que as figuras
(humanas?) que eu desenhava não tinham pescoço, o que me dava uma
sensação de desamparo muito grande. Não pelo fato de não terem pes-
coço, mas por não saber exatamente o que é que ela achava tão ruim nos
desenhos que todo mundo (minha mãe, minhas tias) dizia que gostava.
4. A primeira encruzilhada divide a Europa: nos países que adotaram
a Reforma Protestante, cujo objetivo era estabelecer a relação pessoal de
cada fiel com o texto bíblico, o padrão foi fixado a partir de variedades
contemporâneas da língua falada, e o principal instrumento dessa fixação

368
gramática e estilo

foram as traduções da Bíblia feitas por Lutero para o alemão: o Novo


Testamento em 1522 e o Velho em 1536. Segundo esse modelo foram
feitas as traduções para o holandês, o dinamarquês, o sueco, o islandês e
o inglês, entre outras, o que se tornou ponto de partida para a construção
da escrita dessas línguas.
5. Por volta dos 13 anos, vivi as aventuras de Sherlock Holmes em
minha imaginação: “O cão dos Baskervilles”, “Um estudo em vermelho”,
“O jogador desaparecido”, o que me instigou a “ajudar” na solução dos
mistérios com que o detetive se deparava.

4.3.4 Uma designação específica para o antecedente

A frase que inicia o primeiro texto que examinamos no capítulo


2, sobre encadeamento, insere uma designação entre o antecedente e o
pronome relativo da oração adjetiva:

Minha trajetória escolar iniciou-se no ano de 1975, no interior de


EG, cidade em que moro até hoje...

O antecedente do pronome relativo é o nome próprio representado,


no caso, por suas iniciais, de uma localidade: EG. A escritora resolveu
esclarecer aos seus leitores que se trata de uma cidade e não de um distrito
ou de um bairro. Essa designação, no entanto, é mais frequentemente
usada no caso de antecedentes mais difusos. Na frase que segue, a refe-
rência do pronome relativo não está antes do sintagma antecedente mas
depois do núcleo desse sintagma antecedente.

1 As grandes cidades estão ameaçando a qualidade de vida do homem


a qual vem sendo construída com terríveis sacrifícios que atingiram
gerações e gerações desde que o homem adquiriu o uso da razão,
que agora parece estar perdendo.

369
gramática e estilo

Nesta frase, a oração adjetiva – que agora parece estar perdendo –


não se refere ao núcleo do sintagma antecedente – uso (da razão) – mas
ao substantivo que faz parte do complementador: razão; neste caso, o
costume estabelecido é repetir o referente antes do pronome relativo:

1a As grandes cidades estão ameaçando a qualidade de vida do


homem a qual vem sendo construída com terríveis sacrifícios de
gerações e gerações desde que o homem adquiriu o uso da razão,
razão que agora parece estar perdendo.

Nesta outra frase, o seu autor não foi muito feliz na categorização
que providenciou para o antecedente geral.

2 A primeira vez que senti necessidade de decodificar palavras


escritas foi quando fiquei fascinado pelo desenho das letras de um
panfleto religioso com que eu brincava. Minha mãe, percebendo o meu
interesse, leu o que estava escrito: “O homem probo teme a Deus”. É
claro que eu não sabia o que significava probo e, na verdade, até hoje
não sei o que significa Deus, mas achei fascinante o que minha mãe
tinha feito. A família, então, decidiu que era hora de me alfabetizar,
fato que coube a minha irmã, já então professora.

Alfabetizar, no entanto, não é um fato; alfabetizar é uma ação, que


foi atribuída à irmã professora; uma ação atribuída a alguém é uma tarefa
(um encargo, uma missão, uma atribuição):

2a A família, então, decidiu que era hora de me alfabetizar, tarefa


que coube a minha irmã, já então professora.

Esta é outra frase em que o antecedente do pronome relativo também


foi inadequadamente classificado:

3 No primeiro semestre da faculdade, entreguei à professora um


trabalho caprichadamente datilografado que teve, por causa disso,

370
gramática e estilo

um desconto de dez por cento na nota. A professora alegou que con-


siderava a máquina de escrever como uma coisa do passado, prática
que eu adotava quando estava no ensino médio.

Não há menção a alguma prática antes da palavra prática, que ante-


cede o pronome relativo. O que é mencionado é um instrumento: a má-
quina de escrever. Seria mais preciso, então, usar a palavra instrumento:

3a No primeiro semestre da faculdade, entreguei à professora um


trabalho caprichadamente datilografado que teve, por causa disso,
um desconto de dez por cento na nota. A professora alegou que con-
siderava como uma coisa do passado aquela máquina de escrever,
instrumento que eu adotava quando estava no ensino médio.

A outra possibilidade é mencionar uma prática nesse antecedente:

3b No primeiro semestre da faculdade, entreguei à professora um


trabalho caprichadamente datilografado que teve, por causa disso,
um desconto de dez por cento na nota. A professora alegou que, desde
o advento do computador pessoal, já na década de 1980, a digitação
tinha superado a datilografia, prática que eu adotava quando estava
no ensino médio.

Exercício 41

Insira uma designação específica para o antecedente do pronome


relativo destas orações adjetivas:
1. Nascida no interior do interior do interior, filha de descendentes
italianos, criei-me em meio a hábitos, costumes e valores tipicamente
italianos. Primar pelo zelo do sobrenome sempre foi o lema dos moradores
daquela comunidade, que permanece forte até hoje.
2. O futebol passou a ser algo chato e, por muito tempo, não fez
diferença quem ganhava ou perdia, e os cavalos passaram a ser apenas

371
gramática e estilo

animais que sujavam as ruas nos dias de desfile, o que eu considerava


um nojo.
3. Ele amava a sua namorada e idolatrava a sua amiga, o que o levava
a loucos pensamentos onde o da traição era o mais digno.
4. Portanto, no campo da literatura querer que determinado escritor
ou obra fique limitada a determinado espaço, região ou nação é muito
subjetivo. Mesmo que alguns elementos, como etnias, raça, religião ou
língua venham a requerer sentimentos protonacionalistas, a construção
de um processo de nacionalismo se vale de uma idealização, de um res-
gate de um passado nem sempre presente e da criação de uma mitologia
nacionalista, os quais muitas vezes estão distantes dos escritores.

4.3.5 Temporais e locativas

Examinemos esta frase:

1 Isto pode gerar confusão quando for necessário explicar a origem


do dinheiro.

Nesta frase, a oração temporal quando for necessário explicar a


origem do dinheiro especifica o momento em que a confusão pode se
estabelecer. Vamos examinar esta outra versão:

1a Isto pode gerar confusão no fim do mês, quando for necessário


explicar a origem do dinheiro.

Nesta outra frase, o que especifica o momento em que vai ocorrer a


confusão é o fim do mês; a oração temporal acrescenta uma informação,
e a vírgula ressalta a característica não especificadora dessa oração. Nesta
outra frase, temos um caso similar:

372
gramática e estilo

2 Em 1981, quando terminei o segundo grau, vim para Porto Alegre


e, desde então, estou aqui.

O que especifica o momento é em 1981; a oração temporal – quando


terminei o segundo grau – não especifica essa data; apenas acrescenta
uma informação sobre ela. Essa semelhança entre especificação e restri-
tividade (e entre não especificação e não restritividade) fica mais clara
nestas duas frases seguintes.

3 Em 1984, minha mãe era merendeira na escola estadual onde meus


dois irmãos estudavam. Eu era a caçula e não tinha idade para fre-
quentar as aulas. Mesmo assim, aos quatro anos, a direção permitiu
que eu ficasse na sala de aula do Jardim todos os dias enquanto
minha mãe cozinhava.

Assim como está – sem vírgula entre todos os dias e enquanto minha
mãe cozinhava – podemos pensar que a direção permitia que a criança
ficasse na sala de aula apenas durante o tempo em que a mãe estava
cozinhando, isto é, a oração temporal se refere a todos os dias especifi-
cando ainda mais o tempo em que se dá a condição expressa pela oração
principal: a direção permitiu que eu ficasse na sala de aula do Jardim. O
sentido muda se houver uma vírgula entre as duas indicações de tempo.

3a A direção permitiu que eu ficasse na sala de aula do Jardim todos


os dias, enquanto minha mãe cozinhava.

Assim pontuada, a oração temporal não especifica a indicação de


tempo tal como fazia a frase anterior, isto é, tal como a adjetiva não
restritiva, esta temporal não especificadora acrescenta uma informação.
Esta outra frase apresenta um caso semelhante.

4 Meu irmão, um ano e nove meses mais velho que eu, foi meu colega
no primeiro desses dois anos e, em seguida, passou para a turma do

373
gramática e estilo

Pré. Foi muito bom ter ele como colega, mas foi triste vê-lo partir
enquanto eu permanecia no Jardim.

Pelo que sabemos a respeito do que acontece na vida escolar, o


narrador/a narradora permaneceu no jardim de infância depois que o
irmão partiu para a pré-escola, mas a versão com vírgula não nos dá a
impressão de que ele/ela estava na sala do jardim de infância olhando o
irmão ser levado, conduzido, carregado para a sala da pré-escola:

4a Foi muito bom ter ele como colega, mas foi triste vê-lo partir,
enquanto eu permanecia no Jardim.

Nesta versão com vírgula, a oração temporal não faz uma indicação
que especifica o tempo em que se deu a experiência anteriormente rela-
tada: foi triste vê-lo partir; enquanto isso, eu permanecia... Nestas outras
frases, as temporais são especificadoras ou restritivas:

5 Mas, graças a Deus, a língua escrita existe sem mim, e minha re-
lação com ela será sempre estreita enquanto meus olhos já míopes
permitirem.

6 A mãe até fazia isso quando eu tinha trabalhos para entregar e


tinha a mania de corrigir o texto sempre que via um erro, fosse qual
fosse, e sem escândalos; apenas dizendo tal palavra é assim e riscava
o erro e escrevia certo.

Na frase 5 é a oração temporal – enquanto meus olhos já míopes


permitirem – que especifica a duração da relação do autor com a língua
escrita. Na frase 6, a oração temporal – quando eu tinha trabalhos para
entregar – não vai entre vírgulas porque ela é que revela o momento (e
a causa) em que a mãe corrigia os trabalhos do narrador.
Esse mesmo critério também pode ser aplicado a indicações de
lugar; examinemos este par de frases:

374
gramática e estilo

7 Quando eu comecei a sair com ele, eu tinha um outro namorado


em Curitiba.
7a Quando eu comecei a sair com ele, eu tinha um outro namorado,
em Curitiba.

Na frase 7, a falta de vírgula antes de em Curitiba implica que a


moça saía com dois rapazes de Curitiba; já a vírgula na frase 7a indica
que esse ele aí com quem ela começou a sair não é de Curitiba, onde ela
mantinha o namoro com outro.
Examinemos esta outra frase, onde aparece uma expressão locativa
não marcada por vírgula.

8 Assim, por exemplo, se dependesse apenas da vontade, seria pos-


sível uma pessoa muito rica isolar-se em algum lugar onde tivesse
armazenado grande quantidade de alimentos.

Onde, que aparece na frase 8, é o pronome relativo mais adequa-


damente empregado para indicações de lugar; não há, portanto, nenhum
estranhamento na classificação de restritiva a esta oração locativa; por
isso, não cabe separá-la por vírgula justamente porque a frase está con-
dicionando o isolamento à possibilidade desse armazenamento.

4.3.6 A mobilidade das orações adverbiais

As orações adjetivas estão sempre coladas à direita da locução


nominal a que se referem; não é o caso das orações adverbiais, que se
movem dentro da frase. Vamos comparar estas duas versões:

1 Brigou com seus colegas de pensão e mudou-se para um quarto


alugado no Centro: ele nunca se dera bem com aqueles colegas.

Nesta frase há coordenação: ...colegas de pensão e mudou-se


para...

375
gramática e estilo

Há também justaposição: ...alugado no Centro: ele nunca se dera


bem...

1a Brigou com seus colegas de pensão, com os quais ele nunca se


dera bem, e mudou-se para um quarto alugado no Centro.

Nesta frase há oração adjetiva: ...colegas de pensão, com os quais


ele...
Há também coordenação: ...colegas de pensão... e mudou-se para...

1b Mudou-se para um quarto alugado no Centro depois que brigou


com seus colegas de pensão, com os quais nunca se dera bem.

Nesta frase há uma subordinada temporal: ...alugado no Centro


depois que brigou...
Há também uma oração adjetiva: ...colegas de pensão, com os
quais nunca...

1c Nunca se dera bem com seus colegas de pensão; por causa disso,
brigou com eles e mudou-se para um quarto alugado no Centro.

Nesta frase há uma locução adverbial que funciona como se fosse


uma conjunção explicitando uma relação de causa: Nunca se dera bem
com... por causa disso, brigou com eles...
Há também coordenação: ...mudou-se para um...

1d Como brigou com seus colegas de pensão, com os quais nunca se


dera bem, mudou-se para um quarto alugado no Centro.

Nesta frase há uma subordinada causal: Como brigou... colegas


de pensão; e uma subordinada adjetiva: ...pensão com os quais nunca
se... No fim da frase está a oração principal: ...mudou-se para um quarto...

376
gramática e estilo

A mobilidade da oração adverbial cumpre a função de ou topicalizar


uma circunstância que vale para todo o enunciado, como no caso da pri-
meira oração temporal da frase que segue, ou estabelecer uma sequência
cronológica, como no caso da segunda oração temporal:

2 Desde o início do discurso do coronel, as tochas estavam acesas,


e, quando foi dada a ordem, os arqueiros aproximaram-se.

A oração temporal que inicia a frase está separada dela por uma vírgula; a outra oração,
intercalada, está separada por vírgulas. Um terceiro motivo para o deslocamento
pode ser a necessidade de desambiguizar uma frase, como ocorre, por exemplo, na
que segue:

3 O público, de uma maneira geral, procura imitar algum personagem


da telenovela mesmo que aja inconscientemente.

A oração adverbial não está separada por vírgula porque está no fim
da frase. Nesse local não fica claro se o sujeito da concessiva é o mesmo
da anterior ou o da principal. Como muito provavelmente é o mesmo da
principal, basta deslocá-la para perto dele:

3a O público, de uma maneira geral, mesmo que aja inconsciente-


mente, procura imitar algum personagem da telenovela.

Agora a concessiva está separada por vírgulas porque está interca-


lada. A topicalização da adverbial pode ser feita com a finalidade
de desequilibrar a importância da oração principal em favor da
subordinada reforçando a circunstância, como, por exemplo, na
frase abaixo:

4 Embora todos reconheçam a necessidade de colaborar para


a limpeza da cidade, muito poucos dispõem-se a denunciar quem joga
lixo nos terrenos baldios.

377
gramática e estilo

O embora no início da frase sugere uma ideia mais forte de obriga-


ção do que teria se aparecesse no seu interior. A oração adverbial está
separada por vírgula porque está no início da frase. Quando está no fim
da frase, a oração adverbial não costuma ser separada por vírgula pois
esse seria o lugar natural dos adjuntos adverbiais em geral. Como regra
geral, sempre que as orações adverbiais estiverem deslocadas, costumam
ser separadas com vírgula(s) do resto da frase.

Exercício 42

Marque com vírgulas o que for não restritivo (ou não especificador):
1. Dependendo do ponto de vista, minha relação com a língua escrita
pode ter começado antes disso quando eu brincava de juntar várias letras
e perguntar à minha mãe o que eu havia escrito.
2. Ressalto, infelizmente, a decepção que tive em relação às aulas
de Língua Portuguesa desde a quarta série com o início dos estudos das
classes gramaticais, até a oitava série quando terminamos de estudar as
funções gramaticais dos elementos em orações complexas.
3. Essa desvalorização tem origem no início da escola quando os
alunos começam a ser recriminados pela forma como falam, como escre-
vem, como comportam-se, como interagem ou como não interagem, etc.
4. Normalmente eu volto a mim quando ela já está tentando engan-
char a bolsa na cadeira.
5. Aos sete anos quando comecei a frequentar a escola já tinha
adquirido mais estrutura corporal, mais força.
6. Esse já era meu primeiro receio, eu não admitia a ideia de ficar
sentada estudando enquanto meus colegas brincavam lá fora.
7. A minha história inicia basicamente no ano de 1995 quando
cursava a sexta série do ensino fundamental.

378
gramática e estilo

8. Chegamos a um espaço livre no corredor onde já estavam meus


irmãos quando a minha irmã já tinha sido chamada.
9. Ficamos nos correspondendo através de cartas até o final dos anos
1990 quando o computador e a internet viraram imperadores.

4.4 ADJETIVAS, APOSTOS, REDUZIDAS, ADVERBIAIS

Vamos examinar a relação que se estabelece entre justaposição e


consenso e a que se estabelece entre conjunção e confronto. Comecemos
por situar a relação que se estabelece entre orações adjetivas, apostos,
orações reduzidas e orações adverbiais, recapitulando o que vimos em
2.3 O poder das conjunções a respeito deste par de frases:

Ele era o aluno mais aplicado da turma; todos o respeitavam.


Ele era o aluno mais aplicado da turma; ninguém o respeitava.

Diz lá que, na primeira frase, a mera justaposição dessas orações,


isto é, a simples sequência delas, é suficiente para estabelecer a relação
que o leitor reconhece como sendo o consenso dominante, que vem re-
petindo que alunos aplicados são respeitados (na maioria das vezes para
dizer que devem ser respeitados). Já na segunda frase, que não expressa o
consenso dominante, o leitor sente falta de uma referência àquele consen-
so. Diz lá também que essa referência pode ser feita por uma conjunção:

Ele era o aluno mais aplicado da turma; mesmo assim, ninguém o


respeitava.

Lá, naquele capítulo anterior, usamos o mas, que, tal como o mesmo
assim, serve para que o escritor comunique ao leitor que ele também acha es-
tranho que um aluno mais aplicado não seja respeitado. Uma conjunção vai
ser indispensável se o escritor quiser questionar o consenso; pode ser uma
oração adjetiva que exponha as características desse aluno mais aplicado:

379
gramática e estilo

1 Rogério Marcelo, que decorava tudo tal como estava escrito nos
livros didáticos e reproduzia tal qual em todas as provas, era con-
siderado pelos professores o aluno mais aplicado da turma, mas
nenhum dos colegas o respeitava.

A oração adjetiva, por predicar a respeito do que se refere, pode,


na verdade, expressar tudo o que quiser. Esta outra frase declara que o
conteúdo da oração adjetiva é a causa:

1a A memória de Rogério Marcelo, que era a causa da admiração


dos professores por ele, tornava-o capaz de decorar tudo tal como
estava escrito nos livros didáticos e de reproduzir tal qual em todas
as provas; justamente por causa disso, ele era desprezado pelos
seus colegas.

A diferença de pontos de vista entre os professores e os alunos pode


ser mais claramente explicitada por uma conjunção adverbial que, tal
como o pronome relativo, introduz uma outra predicação a respeito do
personagem mas não se limita, tal como o pronome relativo, a atribuir
uma característica a ele:

1b Rogério Marcelo era considerado pelos professores o aluno mais


aplicado da turma porque decorava tudo tal como estava escrito nos
livros didáticos e reproduzia tal qual em todas as provas; por causa
disso, nenhum dos colegas o respeitava.

O que era característica tal como expresso pela oração adjetiva


transformou-se, na oração adverbial marcada pelo porque, no motivo da
consideração que os professores tinham por ele; na última oração, por
causa disso expressa com toda a clareza uma outra relação de causa e
efeito: a que era estabelecida pelos seus colegas.

380
gramática e estilo

4.4.1 O aposto

Como vimos na seção anterior, o leitor pode distinguir, de um lado,


adjetivos, orações adjetivas, advérbios e orações que indicam tempo e
espaço restritivos e, por outro lado, adjetivos, orações adjetivas, advérbios
e orações que indicam tempo e espaço não restritivos pela vírgula que
separa o que é não restritivo daquilo que veio antes, o antecedente. Essa
convenção acarreta para quem lê e escreve a necessidade de discernir
entre restritividade e não restritividade para não apenas interpretar as
vírgulas com que se depara nos textos que lê e que escreveu, mas também
para conferir a adequação dessas vírgulas ao que está escrito. Ele não
pode nem se deixar enganar por algum equívoco do autor do texto que
lê, nem levar o seu leitor a semelhante equívoco. Botar uma vírgula não
dá muito trabalho, e muitos são os motivos para fazer isso porque múl-
tiplas são as funções atribuídas à vírgula. Vamos voltar a um trecho que
já examinamos e que já nos botou cara a cara com o perigo que decorre
da versatilidade desse singelo sinal de pontuação.

A escola era constituída por uma sala de aula, um pequeno cômodo


com materiais da escola, como livros didáticos, mimeógrafo, giz,
mapas geográficos, as 25 classes para os alunos e um quadro-negro,
uma cozinha, dois banheiros para os alunos, e a sala dos professores.

Assim, pontuada apenas com vírgulas, a frase induz o leitor a con-


figurar em sua cabeça uma escola que tem (1) uma sala de aula, (2) um
pequeno cômodo cheio de coisas, (3) uma cozinha, (4) dois banheiros
para os alunos e (5) a sala dos professores. Uma leitura atenta que leve
em consideração que as 25 classes para os alunos e um quadro-negro
estão no tal pequeno cômodo quando deveriam estar na sala de aula
bota qualquer leitor a desconfiar que a vírgula que separa sala de aula
de um pequeno cômodo não tem a finalidade de separar dois elementos
de uma série mas a de separar a sala de aula de um aposto não restritivo
expresso por um longo sintagma nominal que a descreve – um pequeno

381
gramática e estilo

cômodo com materiais da escola, como livros didáticos, mimeógrafo, giz,


mapas geográficos, as 25 classes para os alunos e um quadro-negro...
Para o leitor não ser induzido a confundir vírgula com vírgula, já
sugerimos modificações que o poupem da trabalheira de (1) parar a leitura
para perguntar por que as coisas da sala de aula não estão na sala de aula,
(2) esforçar-se para tentar entender o motivo da confusão e (3) conseguir
produzir outro sentido para a frase. A sugestão foi esta:

A escola era constituída por uma sala de aula, que era um pequeno
cômodo com materiais da escola, como livros didáticos, mimeógrafo,
giz, mapas geográficos, as 25 classes para os alunos e um quadro-
-negro, por uma cozinha, por dois banheiros para os alunos e pela
sala dos professores.

Como já vimos, o por que se repete é aquilo que chamamos de


lembrete do coordenante e marca cada um dos elementos do conjunto:
sala de aula, cozinha, dois banheiros, sala dos professores (e, conse-
quentemente, exclui o pequeno cômodo dessa lista). O pronome relativo
que e o verbo era estabelecem uma relação de subordinação entre sala
de aula e um pequeno cômodo... sala dos professores, transformando
aquele longo aposto numa oração adjetiva.
O sucesso desta transformação na tarefa de produzir clareza para
uma frase confusa nos permite postular que o aposto é uma oração
adjetiva que tem um predicado nominal cujo núcleo é um sintagma
nominal e que pode prescindir do verbo (de ligação: ser, estar, ficar,
etc.) e que, sem o verbo, deixa de ser oração e, por isso, prescinde
também da conjunção – no caso, o pronome relativo que a ligava ao
seu antecedente. A necessidade de revisar a frase original transforman-
do o aposto – um pequeno cômodo... e um quadro-negro – na oração
adjetiva – que era um pequeno cômodo... e um quadro-negro – mostra
que nem sempre esse descarte do verbo, que transforma uma oração
adjetiva num aposto, é uma solução prudente, mesmo quando o verbo

382
gramática e estilo

não é necessário para determinar o tempo em que as coisas acontecem


ou em que os processos se dão.
Um sintagma, como já vimos, é um grupo de palavras que têm
coesão interna, organizadas em determinantes à esquerda, núcleo no
centro e complementadores à direita. Um sintagma nominal tem um
substantivo como núcleo: o aposto que estamos examinando compõe-se
de um e pequeno, que são os determinantes; cômodo, que é o núcleo;
e com materiais da escola, como livros didáticos, mimeógrafo, giz,
mapas geográficos, as 25 classes para os alunos e um quadro-negro,
um longo complementador em que aparece um sintagma preposicio-
nal – com materiais de escola –, que subordina, pela conjunção com,
um conjunto de outros sintagmas nominais coordenados entre si pela
conjunção e.
Podemos, então, definir aposto como um sintagma nominal que
se encadeia, como diz o nome, por aposição a um sintagma nominal
anterior, caracterizando-o, classificando-o, especificando-o. A aposi-
ção é uma relação assindética – uma relação sem a intermediação de
conjunção ou de preposição – que os dois sintagmas nominais mantêm
entre si. O aposto pode, se isso for necessário para a clareza da fra-
se, ser transformado em predicativo de uma oração adjetiva com um
verbo de ligação que caracteriza, classifica, especifica um sintagma
nominal anterior. Isso implica que, reciprocamente, se a concisão não
prejudicar a clareza, uma oração adjetiva com um verbo de ligação
pode ser transformada em aposto. Nesse caso, ocorre elipse do verbo
e, consequentemente, do pronome relativo. Assim Mattoso Camara
(1977, p. 103)43 define elipse: “omissão, numa enunciação linguística,
do termo presente em nosso espírito, porque se depreende do contexto
geral ou da situação”.
Examinemos esta frase:

43 CAMARA JR., J. Mattoso. Dicionário de linguística e gramática. Petrópolis: Vozes, 1977.

383
gramática e estilo

1 A formiga, que era trabalhadora e severa, fez um rígido juízo do


comportamento da cigarra, que era uma cantora boêmia e irrespon-
sável e lhe pedia abrigo.

Não há necessidade nem de tanto era nem de tanto que:

1a A formiga, trabalhadora e severa, fez um rígido juízo do com-


portamento da cigarra, boêmia e irresponsável cantora, que lhe
pedia abrigo.

Trabalhadora e severa é aposto de formiga, e boêmia e irrespon-


sável cantora é o aposto de cigarra. O caráter exemplar, simbólico, que
as fábulas costumam atribuir aos seus personagens, torna esses apostos
não restritivos. O critério da elipse pode nos levar bem longe. Vejamos
esta frase:

2 Com o passar dos meses, fui ouvindo a opinião das minhas colegas,
que eram todas desfavoráveis à permanência da atual direção.

Neste caso, em que a ambiguidade – desfavoráveis eram as colegas


ou a opinião delas? – não interfere na produção de sentido, o que e o
verbo podem ficar por conta do espírito do leitor:

2a Com o passar dos meses, fui ouvindo a opinião das minhas colegas,
todas desfavoráveis à permanência da atual direção.

Desfavoráveis é um adjetivo; estamos, portanto, diante de um


sintagma que tem um adjetivo como núcleo, um sintagma adjetival. Ou
não, se postularmos que houve elipse também do núcleo do sintagma
nominal – opinião –, que foi inserido no espírito do leitor pela oração
anterior e que, lá dentro, vira opiniões. Desse modo, todas (essas opi-
niões) desfavoráveis à permanência da atual direção seria um aposto,
mas isso não faria nenhuma diferença porque não é nem a forma – a de

384
gramática e estilo

sintagma adjetival ou a de sintagma nominal – nem esses nomes que


foram atribuídos a cada uma delas que ficam no espírito do leitor que se
esforça para produzir sentido a partir desse encadeamento de palavras.
O que fica no espírito do leitor é o que já foi enviado para lá, e o escritor
tem de decidir se quer alinhar-se com o que já está lá (e está também ali
– em sossego ou em causa – no espírito dele, escritor) ou se quer fazer
diferença, divergir, contestar, problematizar o senso comum. Se esta for
a sua determinação, precisa prover-se de um bom arsenal de conjunções
e outros nexos e fazer uma criteriosa avaliação das elipses e dos assín-
detos44 que vai cometer.

4.4.2 Oração reduzida de particípio

Tal como o aposto, uma oração reduzida de particípio decorre de


uma elipse numa oração adjetiva cujo predicado se compõe de um verbo
de ligação e de um particípio, como esta:

1 O ser humano que é dotado de liberdade tem infinitas possibilidades


de escolha em sua vida.

A avaliação de que, no contexto em que a oração vai ser enunciada,


o verbo pode ser elidido sem prejuízo do sentido e a favor da concisão
pode levar à produção de uma reduzida de particípio. Examinemos a
versão restritiva:

1a O ser humano dotado de liberdade tem infinitas possibilidades


de escolha em sua vida.

Nesta versão, o adjetivo (o sintagma adjetival) dotado de liberdade


se refere a um subconjunto do conjunto seres humanos; por isso, esta-
44 Diz o Dicionário Houaiss (2009) que assíndeto é ausência de conjunção coordenativa entre
palavras, termos da oração ou orações de um período, mas eu acho que dá pra dizer que é falta
de conjunção em geral.

385
gramática e estilo

belece uma diferença entre a liberdade e a falta de liberdade, ou seja,


a frase implica que a falta de liberdade de um outro conjunto de seres
humanos elimina essas infinitas possibilidades de escolha. Vejamos a
versão não restritiva:

1b O ser humano, dotado de liberdade, tem infinitas possibilidades


de escolha em sua vida.

Nesta versão, em que o sintagma adjetival dotado de liberdade é


não restritivo, isto é, se refere a todo o conjunto dos seres humanos e,
portanto, não estabelece uma diferença entre a liberdade e a falta de
liberdade, o leitor pode, com toda a razão, ficar se perguntando o que é
mesmo que dotado de liberdade está predicando a respeito do ser huma-
no. Se essa característica não foi mencionada para distinguir, certamente
ela foi enunciada com a finalidade de proclamar outra coisa, e o leitor
recorre ao que o seu espírito valorizou e reteve daquilo que para lá já foi
enviado pelas suas leituras anteriores, pela sua experiência de vida, pelas
discussões em que se envolveu, etc. para atribuir esse outro sentido, que
bem pode ser o de causa:

1c O ser humano tem infinitas possibilidades de escolha em sua vida


porque é dotado de liberdade.

Como já vimos, a conjunção porque (e as demais conjunções cha-


madas adverbiais), diferentemente de que, qual e dos demais pronomes
relativos, que apenas relacionam orações, expressa também o sentido que
atribui à própria relação – no caso, a de causa – enviando-o ao espírito
do leitor em vez de apenas mobilizar nele a busca por um sentido já lá
registrado. Vamos a outro exemplo, com este trio de frases:

2 Os moradores da rua que estavam irritados com a demora da


prefeitura decidiram não pagar suas contas de água e luz enquanto
a situação não fosse resolvida.

386
gramática e estilo

Esta versão restritiva da oração adjetiva diz que apenas os moradores


que estavam irritados tomaram essa decisão, mas a versão não restritiva
não pode/não quer dizer isso:

2a Os moradores da rua, que estavam irritados com a demora da


prefeitura, decidiram não pagar suas contas de água e luz enquanto
a situação não fosse resolvida.

Mais uma vez, como o leitor não pode apelar para a conjunção que
para interpretar a relação que o autor vê entre estar irritado e não pagar,
ele apela para a predicação que a oração adjetiva faz a respeito do seu
antecedente – os moradores da rua. Todo mundo sabe que a irritação
faz com que as pessoas acabem decidindo-se por agir; desse modo, es-
taríamos novamente diante de uma relação de causa e efeito, que o leitor
pode novamente traduzir por um porque:

2b Os moradores da rua decidiram não pagar suas contas de água e


luz enquanto a situação não fosse resolvida porque estavam irritados
com a demora da prefeitura.

Quem escreveu a versão anterior a esta pode ter achado que, de fato,
não havia necessidade de explicitar essa relação de causa e efeito porque
qualquer leitor faria essa interpretação, e a oração adjetiva localizada ali
produziria uma frase mais equilibrada do que esta segunda versão, que
acabou com um segmento menor – a oração causal porque estavam ir-
ritados com a demora da prefeitura – no fim e com um segmento maior
no início – Os moradores da rua decidiram não pagar suas contas de
água e luz enquanto a situação não fosse resolvida –, além de esconder
no meio da frase a necessária ênfase na solução do problema: enquanto
a situação não fosse resolvida.
Para equacionar melhor esta parecença semântica entre as orações
adjetivas não restritivas e as orações adverbiais, vamos trabalhar esta

387
gramática e estilo

frase destacando uma semelhança formal entre elas: tanto os não restri-
tivos quanto os adverbiais em geral podem deslocar-se dentro da frase.
Como a oração adjetiva – estavam irritados com a demora da prefeitura
– tem um predicado nominal, vamos transformá-la em uma reduzida de
particípio e deslocá-la:

2c Irritados com a demora da prefeitura, os moradores da rua


decidiram não pagar suas contas de água e luz enquanto a situação
não fosse resolvida.

Desse modo, aproveitando as potencialidades de seus componentes,


a frase organiza com clareza, pela ordem: a causa, a consequência e a
condição para solução do problema.
O particípio é, na verdade, um adjetivo como qualquer outro:

3 O atribulado gerente andava de um lado para o outro, suado e


aborrecido mas já recomposto do susto da véspera.

Nesta frase, atribulado é um dos determinantes do sintagma nominal


em função de sujeito da frase; os particípios suado e aborrecido referem-
-se ao gerente já apresentado; são, portanto, não restritivos, assim como
recomposto. O adjetivo anteposto ao substantivo – o atribulado gerente
– como já vimos em nossos valentes soldados, tendo menor dinamismo
comunicativo, não é capaz de restringir, de circunscrever subconjuntos.
Em qual destas frases os adjetivos parecem mais naturalmente
restritivos, distinguindo um gerente de um outro?

3a O atribulado gerente andava de um lado para o outro, mas o


folgado gerente fazia que não via que o restaurante estava lotado.
3b O gerente atribulado andava de um lado para o outro, mas o
gerente folgado fazia que não via que o restaurante estava lotado.

388
gramática e estilo

De fato, a primeira frase não parece tratar de dois gerentes diferentes


mas de uma muito estranha alternância de comportamento do mesmo
gerente, tão estranha a ponto de tornar a frase confusa ou mesmo incom-
preensível. A segunda frase não deixa dúvidas a respeito do contraste entre
as atitudes de dois gerentes. Podemos, ainda, experimentar a colocação
do adjetivo numa posição extrassintagma para ver se esse grau maior
de não restritividade é também capaz de criar um acréscimo de sentido:

3c Atribulado, o gerente andava de um lado para o outro, suado e


aborrecido, mas já recomposto do susto da véspera.

Talvez o acréscimo de sentido seja a antecipação da informação –


pelo adjetivo atribulado antes do sintagma nominal o gerente – de que
a oração vai predicar a respeito de um único gerente. Nesta outra frase,
o particípio festejado é determinante do sintagma nominal, cujo núcleo
é poeta, em função de aposto não restritivo:

4 Mario Quintana, o festejado poeta gaúcho, candidatou-se a uma


vaga na Academia Brasileira de Letras.

Este é um caso clássico de aposto não restritivo porque nada restrin-


ge mais um elemento de um conjunto – o conjunto dos festejados poetas
gaúchos – do que o nome próprio do elemento, no caso, o do poeta. Os que
consideram que o Rio Grande do Sul tem outros poetas que merecem festas
percebem um aposto restritivo nesta frase que especifica um dentre eles:

4a O festejado poeta gaúcho Mario Quintana candidatou-se a uma


vaga na Academia Brasileira de Letras.

Nesta outra frase, está pressuposto que as informações que possam


ter sido enviadas por informantes voluntários não foram levadas em
conta, já que a oração adjetiva reduzida está marcada (ou não marcada)
como restritiva:

389
gramática e estilo

5 Organizamos as informações enviadas pelos repórteres.

Nesta outra frase há três orações adjetivas não restritivas; vamos


examiná-las:

6 A técnica posta em prática foi a de que os alunos, previamente


orientados em sala de aula, pediriam a seus familiares que lhes con-
tassem histórias, que seriam recontadas aos colegas e ao professor.
Esclarecidas as dúvidas desses atentos ouvintes, cada um botava por
escrito a história recolhida.

São duas reduzidas – previamente orientados em sala de aula e


esclarecidas as dúvidas desses atentos ouvintes – e uma desenvolvida
– que seriam recontadas aos colegas e ao professor –, que nos indicam
que (1) todos os alunos receberam a mesma orientação a respeito do
que deveriam pedir a seus familiares, (2) todas as histórias deveriam
ser contadas para os colegas e os professores e (3) todas as dúvidas
suscitadas nos ouvintes pela recontagem das histórias deveriam ser
esclarecidas pelos que as recolheram em casa. O que ressalta a condi-
ção não restritiva de Esclarecidas as dúvidas desses atentos ouvintes
é a posição inicial que ocupa na frase; para atribuirmos ao que é não
restritivo um outro sentido além da caracterização, podemos propor
uma indicação de tempo:

6a Depois de esclarecidas as dúvidas desses atentos ouvintes, cada


um botava por escrito a história recolhida.

Ou seja: como já está estabelecido, a oração adjetiva foi concebida e


criada para embutir um predicado numa caracterização a respeito do sin-
tagma nominal a que se refere. Faz isso ou determinando um subconjunto
dele ou dizendo a respeito dele uma outra coisa além de caracterizá-lo.
Essa outra coisa está muito clara nesta frase:

390
gramática e estilo

7 A razão de sua demora era, como sempre, o excesso de trabalho,


que exigia a presença dele na cidade até muito tarde.

Uma oração adverbial expressaria com maior precisão a causa final


anunciada no tema da frase (a razão da demora):

7a Ele demorava porque o trabalho dele exigia que ele permanecesse


até muito tarde na cidade.

Vamos examinar este trecho:

8 Para muitas de minhas amigas, a primeira menstruação foi uma tra-


gédia. Para mim, foi algo normal. Minha mãe já havia me explicado
tudo. Ela me dizia que falava sobre isso abertamente, pois ela jamais
queria que eu sofresse tanto quanto ela sofreu por ignorar o assunto.
Contava que minha avó nunca havia comentado sobre menstruação
com ela. Nem suas irmãs, mais velhas, explicaram o fenômeno.

Numa versão restritiva – nem suas irmãs mais velhas explicaram


o fenômeno – entendemos que irmãs mais velhas estariam mais aptas a
explicar o fenômeno do que pressupostas irmãs mais novas, mas, nesta
versão não restritiva, é muito forte a implicatura de que essas irmãs
mais velhas, justamente por serem mais velhas, bem que poderiam ter
explicado o fenômeno.
Examinemos esta outra frase:

9 Declarou que, derrotado, abandonaria a cidade.

Aqui há uma relação de condição:

9a Declarou que, se fosse derrotado, abandonaria a cidade.

391
gramática e estilo

Exercício 43

Reescreva cada frase para expressar uma interpretação do sentido


adicional dos não restritivos destas frases.
1. Arrumadas as malas, sentou-se para esperar que a chamassem.
2. Feitas as contas, descobrimos que havia um desfalque de 50
milhões.
3. As bailarinas, exaustas, atiravam-se nas almofadas.
4. Foi internado ontem no pronto-socorro o treinador da mais im-
portante equipe de hóquei sobre patins de nossa cidade: o rapaz, muito
bêbado, jogou seu carro contra um poste.
5. Depois que sua proposta foi rejeitada por todos, o secretário pediu
demissão, desiludido.
6. Superada esta difícil situação, tratamos de arrumar o acampa-
mento.

4.4.3 Oração reduzida de gerúndio

Vamos examinar este trecho:

1 Um acidente muito sério vitimou ontem à noite um carregador que


trabalhava na mudança da Biblioteca Municipal. O último objeto a
ser posto no caminhão, o livro de atas da fundação do município,
rompeu as cordas que o amarravam. O livro, pesando mais de 20
quilos, caiu em cima da perna do carregador.

Na primeira frase há uma oração adjetiva restritiva que caracteriza


o carregador – que trabalhava na mudança da Biblioteca Municipal. A
segunda frase começa individualizando o livro de que trata – O último
objeto a ser posto no caminhão –, que é caracterizado por um aposto
– o livro de atas da fundação do município –, aposto que se torna não

392
gramática e estilo

restritivo devido àquela individualização anterior. Na terceira frase há


uma referência lexical ao mesmo livro, caracterizado por pesando mais
de 20 quilos, o que equivale a que pesava mais de 20 quilos. Estamos
diante de uma oração adjetiva reduzida de gerúndio.
Nesta outra frase, também aparece uma reduzida de gerúndio:

2 Enviamos uma carta reservando lugares.

Se o particípio é um adjetivo, o gerúndio aproxima-se mais do


advérbio; por isso, mesmo nesta versão restritiva, há, além da caracteri-
zação, própria da oração adjetiva – uma carta que reservava lugares –,
uma indicação da finalidade com que a carta foi escrita: uma carta para
reservar lugares. Neste outro exemplo, a reduzida de gerúndio também
é claramente restritiva.

3 Primitivamente, o trabalho apresentava-se como necessidade à so-


brevivência, e seu fruto era repartido coletivamente. O trabalho visto
como atividade de mérito e remuneração individual suprimindo qual-
quer ideário de comunidade e articulação social é criação recente.

A reduzida – suprimindo qualquer ideário de comunidade e articu-


lação social – é restritiva porque acrescenta mais uma característica ao
trabalho além de atividade de mérito e remuneração individual; expressa
uma consequência porque diz que, visto desse modo, o trabalho resulta
na supressão de qualquer ideário de comunidade e articulação social.
Poderíamos reescrever assim:

3a O trabalho visto como atividade de mérito e remuneração indivi-


dual tal que suprima qualquer ideário de comunidade e articulação
social é criação recente.

Ou assim, usando uma reduzida de infinitivo:

393
gramática e estilo

3b O trabalho visto como atividade de mérito e remuneração indivi-


dual capaz de suprimir qualquer ideário de comunidade e articulação
social é criação recente.

Para resistir à tentação de botar uma vírgula de pausa entre social e é


criação, isto é, entre o sujeito e o predicado, recomenda-se uma inversão
de ordem entre o predicado curto e o sujeito longo:

3c É criação recente o trabalho visto como atividade de mérito e


remuneração individual suprimindo qualquer ideário de comunidade
e articulação social.

Já nesta outra frase, a vírgula é crucial para a produção de sentido:

4 Os conselheiros, reunidos na semana passada, após deliberação e


votação, reformularam a decisão anterior concedendo aumento aos
funcionários da portaria.

Assim, sem vírgula entre reformularam a decisão anterior e con-


cedendo aumento, a reduzida é claramente uma adjetiva restritiva, e a
decisão anterior que concede aumento foi revogada (reformularam a
decisão anterior que concedia...), ou seja, podemos inferir que os fun-
cionários da portaria não vão ganhar aumento. Vamos ver com vírgula:

4a Os conselheiros, reunidos na semana passada, após deliberação


e votação, reformularam a decisão anterior, concedendo aumento
aos funcionários da portaria.

Neste caso, o aumento foi concedido – os conselheiros ... reformula-


ram e concederam, ou seja, a decisão revogada foi outra, provavelmente
a de não conceder aumento. Para que essa diferença se torne clara, é
importante que se contribua para o estabelecimento da convenção que
atribui vírgula à reduzida de gerúndio não restritiva, que, desse modo,

394
gramática e estilo

ganha uma função aditiva ou consecutiva, e não se atribua vírgula à


reduzida de gerúndio adjetiva restritiva. De qualquer modo, se o caso é
não dar margem a ambiguidade, é melhor não usar reduzidas de gerúndio,
que repelem conjunções esclarecedoras como, por exemplo, um e aditivo
ou uma conjunção conclusiva, como, por exemplo, por isso ou portanto:

4b Os conselheiros, reunidos na semana passada, após deliberação


e votação, reformularam a decisão anterior e (não) concederam
aumento aos funcionários da portaria.
4c Os conselheiros, reunidos na semana passada, após deliberação
e votação, reformularam a decisão anterior; por isso, (não) conce-
deram aumento aos funcionários da portaria.
4d Os conselheiros, reunidos na semana passada, após deliberação
e votação, reformularam a decisão anterior, (não) concedendo,
portanto, aumento aos funcionários da portaria.

Vejamos esta outra frase:

5 Quando pequenina, sonhava em ser freira pensando no bem que


eu poderia fazer servindo a Deus e aos irmãos.

É mais provável que o leitor não considere a oração pensando no


bem que eu poderia fazer servindo a Deus e aos irmãos como uma ad-
jetiva – ...sonhava em ser (uma) freira que pensa no bem que poderia
fazer. Vírgulas poderiam evitar a possível ambiguidade causada pela
contiguidade entre freira e pensando:

5a Quando pequenina, sonhava em ser freira, pensando no bem que


eu poderia fazer servindo a Deus e aos irmãos.

Uma mudança de ordem também ajudaria porque a reduzida só pode


ser interpretada como restritiva se estiver depois do seu antecedente:

395
gramática e estilo

5b Quando pequenina, pensando no bem que eu poderia fazer ser-


vindo a Deus e aos irmãos, sonhava em ser freira.

A alternativa mais clara seria o uso de uma oração adverbial causal:

5c Quando pequenina, sonhava em ser freira porque pensava no bem


que eu poderia fazer servindo a Deus e aos irmãos.

Ambiguidade, isto é, produção de dois sentidos por uma determi-


nada expressão, pode resultar em impossibilidade de decidir qual desses
sentidos é mais adequado à frase:

6 Antônio não pôde tomar conta de seu sobrinho órfão, sendo menor
de idade.

Aqui há uma maior possibilidade de que o menor de idade a quem a


frase se refere seja Antônio, já que o seu sobrinho, que precisa de alguém
para cuidar dele, é, só por causa disso, menor de idade (a menos que
seja um maior incapaz, mas, nesse caso, o escritor ficaria mais sensível
à possível ambiguidade). Se ele perceber essa possibilidade nesta frase
e desejar precisão, ele pode alterar a posição da reduzida:

6a Sendo menor de idade, Antônio não pôde tomar conta de seu


sobrinho órfão.

Talvez esta versão seja ainda mais clara:

6b Antônio, sendo menor de idade, não pôde tomar conta de seu


sobrinho órfão.

Essa ambiguidade da reduzida de gerúndio pode eventualmente


somar sentidos enriquecendo a expressividade da frase:

396
gramática e estilo

7 Nos dias de hoje, me sinto feliz ao avistar um ser humano colocando


um papel de bala na lixeira.

Colocando um papel de bala na lixeira pode expressar uma adjetiva


(que está colocando), no caso, restritiva, ou uma adverbial temporal
(quando está colocando). Assim como está, induz a interpretação adjetiva;
com uma vírgula favoreceria a interpretação adverbial:

7a Nos dias de hoje, me sinto feliz ao avistar um ser humano, colo-


cando um papel de bala na lixeira.

As reduzidas de gerúndio aditivas são sempre marcadas por vírgula:

8 Alterou os conceitos, enviando-os para a secretaria.

Exercício 44

Acrescente a pontuação que vai servir para distinguir as reduzidas


restritivas das adverbias nestas frases:
1. Tendo passado a maior parte da história como um ser inferior
ao homem a mulher descobrindo que poderia realizar as mesmas tarefas
resolveu lutar por igualdade pressionando o homem para tratá-la de igual
para igual sem discriminá-la.
2. Prevendo que não permaneceria naquele cargo por muito mais
tempo aceitou o convite para escrever uma coluna diária num grande
jornal de São Paulo.
3. Gritando o tempo todo a torcida levou o time à vitória.
4. Encontrando-o junto com sua filha matá-lo-ia sem piedade.
5. Aprendeu a jogar pôquer vivendo no Uruguai.
6. Não sabendo ler fazia versos com rara sensibilidade e com ex-
traordinária habilidade.

397
gramática e estilo

7. Já naquela época, Jânio usou como símbolo de sua campanha


uma vassoura simbolizando a promessa de que varreria a corrupção e
espantaria o comunismo do país.
8. Por vezes, ela sonhava em ser um passarinho voando um peixe
nadando no mar alto.
9. Vi o menino sair do quintal.

4.4.4 Oração reduzida de infinitivo

As orações adjetivas reduzidas de infinitivo são introduzidas pela


preposição a ou de.

1 A secretária relacionou os textos a serem publicados na próxima


edição.

2 Os trabalhos a serem apresentados no congresso devem ser entre-


gues até o dia 25 de maio.

3 Ele não é aluno de tirar nota baixa.

4 É um excelente aluno: pergunta, questiona, participa ativamente


das aulas e é o primeiro a retirar da biblioteca o livro recomendado
pelo professor.

O infinitivo pode expressar uma ideia de futuro; é o que se percebe


pelos tempos verbais assumidos pelos verbos das correspondentes ora-
ções desenvolvidas:

1a A secretária relacionou os textos que serão publicados na pró-


xima edição.

2a Os trabalhos que serão apresentados no congresso devem ser


entregues até o dia 25 de maio.

398
gramática e estilo

3a Ele não é aluno que tire nota baixa. (Neste caso, o presente do
subjuntivo indica uma continuidade no tempo.)

4a É um excelente aluno: pergunta, questiona, participa ativamente


das aulas e é o primeiro que vai retirar da biblioteca o livro reco-
mendado pelo professor.

Não há uma correspondência exata entre o futuro simples – retirará


– e o composto – vai retirar – nesta última frase, o que talvez se deva ao
que não é auxiliar no verbo ir, que é a caminhada; a gente poderia escre-
ver assim: é o primeiro que vai até a biblioteca retirar o livro. Pode-se
parafrasear o infinitivo, isto é, o futuro, com o presente do indicativo, o
tempo sem tempo:

4b É um excelente aluno: pergunta, questiona, participa ativamente


das aulas e é o primeiro que retira da biblioteca o livro recomendado
pelo professor.

As reduzidas de infinitivo adverbiais são introduzidas por outras


preposições:

5 Ulisses, para impressionar Mariana, decorou todo o “Soneto da


fidelidade”.

6 O ser humano, por ser dotado de liberdade, tem infinitas possibi-


lidades de escolha em sua vida.

7 Nunca se mete sem estragar qualquer negociação.

8 O trabalho visto como atividade de mérito e remuneração individual


capaz de suprimir qualquer ideário de comunidade e articulação
social é criação recente.

399
gramática e estilo

Já as reduzidas coordenadas são sempre separadas por vírgula(s):

9 Além de alterar o conceito, demitiu o professor.

As substantivas reduzidas são sempre de infinitivo e, tal como


as desenvolvidas, são elementos essenciais da frase; por isso, também
nunca são separadas do resto da oração por nenhum sinal de pontuação:

10 Foi necessário alterar o conceito.

11 Aquele sujeito diz ser descendente de nobres.

12 Todos a aconselharam a romper com o rapaz.

Exercício 45

Revise a pontuação destas frases. Pode haver tanto sinais de pontu-


ação em falta quanto sinais de pontuação empregados inadequadamente.
1. Confirmando o provável, minha adolescência submersa em lei-
turas desembocou no meu ingresso no curso de Letras
2. Era uma moça bonita de parar o trânsito.
3. Ao concluir o ensino médio, o então naquela época segundo grau,
desejei em um primeiro momento dar continuidade ao curso que acabara
de concluir, ou seja, o de técnico-operador de computador.
4. Sei que, desde o momento em que me vi crescida tentando lem-
brar onde tudo havia começado, percebi que o meu tudo estava (sempre
esteve) submerso nas palavras.
5. Sem dar importância à multidão que o rodeava, e gritava o seu
nome mandou chamar seu filho, para entregar-lhe o presente que trouxera
de tão longe. O filho sabendo que o pai voltara mandou encilhar o cavalo
mais veloz, e o cavalariço obedeceu-o correndo.

400
gramática e estilo

6. Recebeu a incumbência por ser um rapaz sério.


7. Comeu a ponto de passar mal
8. O chapéu, comprado de um camelô, não era muito elegante nem o
defenderia de uma chuva de intensidade média; o rapaz contudo gostava
da cor e do formato parecendo chapéu de mocinho de cinema.
9. Passou por mim sem me ver.
10. Nenhum dos contendores atreveu-se a enfrentar o gigante pe-
sando 120 quilos ele era, realmente, um fortíssimo candidato ao título
máximo. Sem lutar há meses Arnaldo sabendo que perderia resolveu
enfrentá-lo desafiando-o para uma luta de sumô.

4.5 ADVERBIAIS

Assim como o encadeamento – que bota uma palavra depois da


outra na oração, uma oração depois da outra na frase, uma frase depois da
outra no texto – faz mais do que desenvolver uma sequência, do mesmo
modo a caracterização – que expressa os atributos nos processos de pre-
dicação construídos em orações e frases – faz mais do que atribuir modos
de ser ou de parecer. Vamos voltar a examinar uma frase que contribuiu
para tratar do processo de encadeamento de orações dentro da frase:

1 Ele era o aluno mais aplicado da turma; todos o respeitavam.

Entre estas duas orações há apenas um ponto e vírgula, que indica


o limite entre elas porque seu autor, ao escrevê-la, estava seguro de que
qualquer leitor que nela botasse os olhos compartilharia do consenso
cultural de que os alunos mais aplicados devem ser respeitados ou, se
não compartilhasse, estaria ciente de que esse é um consenso bastante
amplo entre os leitores capazes de ler nessa língua. Então, ele, o leitor,
vai interpretar essa frase como uma destas paráfrases:

401
gramática e estilo

1a Ele era o aluno mais aplicado da turma; todos o respeitavam por


causa disso.
1b Ele era o aluno mais aplicado da turma; por isso, todos o res-
peitavam.
1c Todos o respeitavam porque ele era o aluno mais aplicado da
turma.

Ou seja, vai estabelecer entre as duas orações uma relação de causa


e efeito, mesmo que o autor da frase não tenha explicitado essa relação
nem por meio de uma palavra que diz o nome dessa relação – causa – nem
por meio de uma locução adverbial, posta entre as orações – por isso –
nem por uma conjunção tal como, por exemplo, porque. Não é apenas
o simples encadeamento que mascara uma relação mais complexa do
que a de uma mera sequência: por trás das conjunções que estabelecem
relações de igualdade e semelhança também podemos perceber relações
mais complexas. Vamos ver estas frases:

2 Eu estava chegando ao teatro, e ele saía para respirar um pouco.

Aqui há uma clara indicação de uma relação de tempo entre as


orações:

2a Eu estava chegando ao teatro quando ele estava saindo para


respirar um pouco.
2b Quando eu estava chegando ao teatro, ele estava saindo para
respirar um pouco.

3 As dificuldades econômicas dos trabalhadores precisam ser ate-


nuadas ou teremos uma convulsão social.

Aqui há uma condição escondida na alternativa enunciada pelo ou:

3a Se as dificuldades econômicas dos trabalhadores não forem ate-


nuadas, teremos uma convulsão social.

402
gramática e estilo

4 Ela conhecia perfeitamente os seus hábitos boêmios, mas casou-se


com ele mesmo assim.

Aqui há uma relação concessiva:

4a Embora soubesse de seus hábitos boêmios, casou-se com ele.

5 Eu o teria contratado, mas ele foi para Manaus.

Aqui há uma condição oculta sob o mas:

5a Se ele não tivesse ido para Manaus, eu o teria contratado.

Os adjetivos, as orações adjetivas desenvolvidas ou reduzidas e os


apostos, além de caracterizar o nome a que se referem, deixam implícitas
outras relações. Nestas frases, há uma relação de causa sob as formas
de adjetivo assinaladas:

6 Cauteloso, Armênio resolveu colocar em seu anel o veneno com


que pretendia livrar-se de, pelo menos, dois inimigos.
6a Como era cauteloso, Armênio resolveu colocar em seu anel o
veneno com que pretendia livrar-se de, pelo menos, dois inimigos.

7 As bailarinas, exaustas, atiraram-se nos sofás.


7a As bailarinas atiraram-se nos sofás porque estavam exaustas.

8 O samba, que veio para o Brasil junto com os escravos, é visto até
hoje com desprezo pelas elites nacionais.
8a O samba é visto até hoje com desprezo pelas elites porque veio
para o Brasil junto com os escravos.

9 Os estudantes que chegam à universidade com mentalidade de


alunos de pré-vestibular normalmente não saem bem no primeiro ano.
9a Alguns estudantes não saem bem no primeiro ano da universidade
porque chegam lá com mentalidade de alunos de pré-vestibular.

403
gramática e estilo

10 A cigarra, cantora irresponsável, viu-se na miséria com a chegada


do inverno.
10a A cigarra viu-se na miséria com a chegada do inverno porque
era uma cantora irresponsável.

11 Intimidados pelas ameaças recebidas, as testemunhas queriam


desistir de depor.
11a As testemunhas queriam desistir de depor porque estavam inti-
midadas pelas ameaças recebidas.

Nestas outras, tanto a oração adjetiva restritiva que estuda muito


quanto a não restritiva que fora tão instado a disputar a prefeitura ex-
pressam relações concessivas:

12 Às vezes, um aluno que estuda muito pode ser reprovado.


12a Alguns alunos, mesmo que estudem muito, podem ser repro-
vados.

13 Ele, que fora tão instado a disputar a prefeitura, resolveu


candidatar-se a deputado.
13a Embora tenha sido tão instado a disputar a prefeitura, ele
resolveu candidatar-se a deputado.

Aqui estão implícitas algumas condições:

14 Os alunos que forem reprovados na primeira prova terão uma


segunda chance no mês seguinte.
14a Se forem reprovados na primeira prova, os alunos terão uma
segunda chance no mês seguinte.

Nesta frase, a relação é de tempo:

15 Resolvido o problema da acomodação, passamos a tratar da


comida para todo aquele pessoal.
15a Depois que foi resolvido o problema da acomodação, passamos
a tratar da comida para todo aquele pessoal.

404
gramática e estilo

Como já vimos, esta função de indicar a relação que existe entre


as orações não se exerce apenas por aquelas palavras que a gramática
tradicional chama de conjunções; também aquelas que a gramática
tradicional chama de advérbios, quando colocados entre duas orações,
desempenham a mesma função:

16 Acendeu o fogo para assar a carne; depois, encomendou a bebida


– relação de sequência temporal.

17 Desprendeu os estribos da sela antes de montar aquele cavalo


mal domado; assim, não correria o risco de ficar com o pé preso
neles – relação de finalidade.

18 O jeito foi mandar consertar mais uma vez o seu velho sapato;
realmente, a vida estava muito difícil – relação de conclusão.

19 Ela está treinando duas horas por dia desde o mês passado; certa-
mente, tem boas chances de se classificar – relação de causa e efeito.

Exercício 46

Torne mais explícitas as relações entre as orações.


1. Estudantes que trabalham aproveitam melhor o curso.
2. Todos os professores que têm carro devem registrá-lo na portaria.
3. A ciência moderna já encontrou cura para a maioria das doenças
crônicas da humanidade, e a população mundial dobrou nos últimos 50
anos.
4. O sistema educacional deve estudar seriamente os problemas da
educação de massa, ou o nível de nosso ensino continuará caindo.
5. Sabes que aquele sujeito não merece confiança, mas fizeste um
acordo com ele.

405
gramática e estilo

6. As obras relacionadas no fichário de assuntos não foram todas


encontradas, nem mesmo com o auxílio da bibliotecária.
7. Ela sempre foi uma pessoa traiçoeira, e não devemos confiar nela.

4.5.1 Conjunções adverbiais

As conjunções adverbiais costumam ser agrupadas de acordo com


a relação que expressam em causais, consecutivas, temporais, finais, etc.
Esse singelo agrupamento pode dar a impressão de que a substituição de
umas pelas outras dentro do mesmo grupo tem apenas a finalidade de
evitar a repetição. Na verdade, as conjunções adverbiais foram forjadas
para expressar nuances mais precisas das relações entre as ideias. Com
o auxílio do Dicionário de sinônimos, de Antenor Nascentes (1969)45, da
Gramática normativa da língua portuguesa, de Rocha Lima (1978)46, e
da Gramática de usos do português, de Maria Helena de Moura Neves
(2000), vamos examinar esses grupos de conjunção para discriminar as
diferenças de sentido entre as várias conjunções.
Como em 2.3.3 Vírgulas para desambiguizar certas conjunções já
tratamos do pois e do porque, que costumam ser usados tanto para as
orações explicativas quanto para as causais, podemos começar por um
exercício que retoma a distinção entre causa e explicação, que usam
tanto porque como pois.

Exercício 47

Use o porque para a causal e pois para a explicativa.


1. Laurinha teve ótimos conceitos neste bimestre p... estudou cinco
horas por dia durante todo o mês.

45 NASCENTES, Antenor. Dicionário de sinônimos. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1969.


46 LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1978.

406
gramática e estilo

2. Laurinha teve ótimos conceitos neste bimestre p... está mostrando


o boletim para todo mundo.
3. Ele perdeu a chave de casa p... é muito distraído.
4. Ele perdeu a chave de casa p... está pulando a janela da sala.
5. Ele não tem amigos p... nunca sai de casa nem recebe visitas.
6. Ele não tem amigos p... é neurastênico e intratável.
7. Tomava muito mate p... de dois em dois dias comprava cinco
quilos de erva no armazém da esquina.
8. Tomava muito mate p... o médico tinha dito que era bom para
seus rins.
9. Ele nunca sente frio p... jamais o vi com outra roupa além da
calça e da camisa de mangas curtas.
10. Os conselheiros não conseguiram dissuadir o presidente p... ele
vai vender a metade do time.

4.5.1.1 Causa, consequência e finalidade

Podemos dividir as causais entre as que organizam a frase de modo


a apresentar a causa depois do enunciado da consequência e as que levam
a frase a começar pela consequência e depois declarar qual foi a causa.

1 Nós casamos porque convinha aos nossos interesses comuns.

Porque é a conjunção causal de sentido mais geral e também pro-


vavelmente a mais usada para comunicar “impressão de certeza” já que
as demais conjunções causais não são tão diretas nem tão peremptórias
na expressão da razão do que se comunicou.

2 Não vou sair nesse tempo úmido pois posso resfriar-me.

407
gramática e estilo

Pois apresenta uma causa mais provável do que certa como um


acontecimento comum e natural.

3 Sua reação foi violenta porquanto muito grande era a injustiça que
estavam cometendo com ele.

Porquanto indica que a causa é um acontecimento esperado por


ser diretamente proporcional à consequência que provocou.

4 Como estava chovendo, desistimos do passeio a cavalo.

Como apresenta a causa determinante de uma oração principal que


vem sempre depois da causal. Essa peculiaridade de abrir uma oração
anteposta à principal faz do como a conjunção mais adequada para re-
solver a necessidade de topicalizar uma causa.

5 Já que ela não me quer, vou engajar-me na Legião Estrangeira.

Já que também é usada para antepor a causa à consequência e serve


para deixar claro que a causa é um fato bem conhecido.

6 Uma vez que chegamos a este acordo, a reunião de amanhã está


suspensa.

Uma vez que tem significado de causa que, além de anteceder


temporalmente a consequência que produziu, inevitavelmente leva a ela.

7 Visto que ele não cumpriu sua parte no acordo, foi levado a jul-
gamento.

Visto que indica a causa para reconhecer que a consequência dela


decorrente não poderia mesmo ser outra.

408
gramática e estilo

As orações adverbiais consecutivas indicam a consequência do


que é dito pela oração principal, invertendo, com relação às causais,
a relação de importância entre causa e consequência. Como já vimos,
expressar uma ideia numa oração principal implica considerá-la como o
centro do conteúdo comunicado pela frase que se organiza a seu redor.
Se julgarmos que o tema da frase não se apresenta como tal na forma
mais comum de ser apresentada uma relação de causa e consequência,
que é, por exemplo, esta – Ninguém ficou sabendo onde se refugiara seu
tio porque ele guardara zelosamente o segredo –, podemos topicalizar a
causa: expressando-a por uma adverbial consecutiva, como, por exemplo,
a conjunção tal... que:

8 Guardou com tal zelo o segredo que ninguém ficou sabendo onde
se refugiara seu tio.

Sem que também pode topicalizar a consequência:

9 Sem que as bases do partido o apoiassem, o governador propôs


uma ampla frente contra o vencedor do primeiro turno das eleições.

Há dois grupos de conjunções consecutivas: as que se programam


no meio da principal através de tal, tanto, tão, tamanho e se retomam no
começo da subordinada por meio de um que, como na frase 8; e as que se
manifestam apenas no começo da subordinada por de sorte que, de modo
que, de maneira que, de tal jeito que e outras expressões semelhantes.

10 Acomodou-se num dos bancos de trás do ônibus de tal jeito que


não lhe escapou nenhum movimento dos dois suspeitos.

A consecutiva limita com a final: é só substituir na frase acima o


modo do verbo dando à ação um caráter inconcluso para que a conse-
quência de acomodar-se naquele banco passe a expor a finalidade com
que foi executada:

409
gramática e estilo

10a Acomodou-se num dos bancos de trás do ônibus de tal jeito que
não lhe escapasse nenhum movimento dos dois suspeitos.

11 Não vai a um jogo de futebol que não provoque uma briga.

Que não expressa o sistemático resultado negativo de uma causa


também apresentada de forma negativa.
As orações adverbiais finais indicam a finalidade ou o objetivo
da ação expressa pela oração principal. A oração final mais usada é a
reduzida de infinitivo iniciada pela preposição para:

12 Saiu para caminhar.

Esta forma de oração final só costuma ser usada se o sujeito da


principal e da subordinada é o mesmo; para o caso de uma oração final
com sujeito diferente do da principal a conjunção usada é para que:

12 Saiu para que eles pudessem conversar à vontade.

A fim de que indica a finalidade última, a mais importante:

13 Conversou muito com todos os moradores do bairro a fim de


que eles o ajudassem a elaborar as propostas que pretendia levar
ao prefeito.

4.5.1.2 Concessivas

As orações adverbiais concessivas indicam o que poderia opor-se à


realização do que se declara na principal, mas que não vai impedir essa
realização. Ainda que e mesmo que indicam uma oposição condicional
ou possível:

410
gramática e estilo

1 Ainda que não haja nuvens pretas no céu, a tempestade não tarda.

Bem que apresenta uma objeção que, mesmo assim, considera bem
resolvida situação tal como está:

2 Bem que o resultado das eleições nos tenha favorecido, nosso


desempenho nos debates não foi o melhor que já tivemos.

Se bem que acrescenta uma condição ao que bem que expressa:

3 Seu desempenho na Comissão de Finanças tem sido decisivo para


a boa orientação que a Diretoria tem tomado nos últimos meses, se
bem que ainda persistam dúvidas a respeito da fidedignidade de suas
fontes de informação.

Conquanto realça a ideia de reconhecimento da coexistência dos


fatos que se contrapõem:

4 O novo professor, conquanto não seja do tipo bem falante, logo


conquistou o respeito da maior parte de seus alunos.

Embora indica que não se leva em conta a oposição, sendo irrele-


vante o que expressa a oração concessiva:

4 Embora nenhum setor da sociedade civil organizada tenha dado


seu apoio à medida, o novo calendário escolar foi implantado pela
Secretaria de Educação.

Posto que indica aceitação dos fatos a que se opõe:

5 Posto que venhamos a perder um par ou dois de milhões, não


podemos deixar de entrar nesse negócio.

411
gramática e estilo

4.5.1.3 Condicionais

As orações adverbiais condicionais indicam a circunstância de que


depende a realização do fato expresso na principal. Se indica condição
de uma forma geral:

1 Vamos para a praia se o tempo estiver bom.

Caso indica que a condição apresentada é por si só suficiente para


que se dê (ou não se dê) o evento expresso pela principal; serve, além
disso, para topicalizar a condição:

2 Caso eu não volte até a meia-noite, abram o envelope e sigam as


instruções.

Contanto que expressa a condição necessária para que se realize


o que está expresso na principal:

3 Entregaremos as armas contanto que recebamos salvo-condutos


da ONU.

Sem que expressa negativamente a condição necessária:

4 Sem que nos garantam a posse da terra, não haverá paz nestes
campos.

Desde que apresenta uma nuance temporal na condição, indicada


como anterior e consumada no momento em que é enunciada:

5 Desde que eles retirem a queixa, podemos reabrir as nego-


ciações.

412
gramática e estilo

A menos que propõe uma condição que envolve uma volta a uma
situação anterior à estabelecida no momento da sua enunciação:

6 Não aceitarei um tostão dessa herança a menos que todos os demais


filhos sejam reconhecidos.

Uma vez que expressa a resignação diante de uma condição pre-


viamente acertada e não cumprida:

7 Uma vez que sequer levaram o meu projeto para uma discussão,
resta-me pedir demissão.

4.5.1.4 Conformativas

As orações adverbiais conformativas indicam a conformidade


de um pensamento com o pensamento expresso pela oração principal.
Conforme expressa a conformidade absoluta, exata e rigorosa com o
que se diz na principal:

1 Todo o processo se deu conforme dispõe o regimento interno da


Câmara.

Consoante expressa a conveniência, a congruência entre o enun-


ciado da subordinada e o da principal:

2 Consoante observava o modo de agir dos principais líderes do


bando, ia elaborando sua estratégia para fazer-se eleger chefe.

Segundo expressa a obediência a uma determinada sequência:

3 Segundo indica o mapa, devemos contar três passos à direita da


pedra branca.

413
gramática e estilo

Como expressa a observância de uma prescrição:


4 Construiu o abrigo de folhagens como lhe ensinara o velho caçador.

4.5.1.5 Comparativas

As comparativas assimilativas, ou não valorativas, esclarecem o


pensamento da oração principal mostrando algo semelhante mais conhe-
cido ou mais impressionante. Como (tal como, assim como) correlacio-
nada ou não com assim na segunda oração é a forma mais universal de
expressar uma comparação assimilativa:
1 Como costumava fazer em momentos de crise o seu pai recém-
-falecido, ele mandou reunir todo o clã embaixo do grande umbu.

Tal qual reforça a identidade na comparação:


2 Investiu na direção da torcida que o vaiava tal qual um rinoceronte.

Frequentemente se dá, tal como indicado acima, a elipse do verbo


na oração comparativa: ...tal qual faria um rinoceronte. Tendo em vista a
ambiguidade criada pela ordem das orações na frase, podemos alterá-la:

2a Tal qual um rinoceronte, investiu na direção da torcida que o


vaiava.

As comparações não valorativas podem ser construídas com verbos


comparativos como assemelhar-se a, distinguir-se de, sobressair-se de
(entre), comparar-se a, etc.; com substantivos comparativos: afinidade,
diferença, identidade, etc.; com adjetivos comparativos: semelhante,
desigual, congênere, etc.
As comparativas de quantidade estabelecem comparações de
igualdade, superioridade ou inferioridade com relação à principal. A
igualdade é expressa por tal... qual ou como, por tanto... quanto ou como:

414
gramática e estilo

3 O cavaleiro comeu tanto milho quanto seu cavalo.

As comparativas de inferioridade e de superioridade lançam mão


de advérbios e adjetivos que expressam essas condições (mais, menos,
maior, menor, etc.):

4 As cidades portuárias são mais desenvolvidas do que as do interior.

Para uma comparação hipotética usa-se como se com o verbo da


subordinada no subjuntivo:

5 Seus olhos fixaram-se no vazio como se o atormentasse uma lem-


brança antiga.

4.5.1.6 Proporcionais

As orações adverbiais proporcionais indicam a intensidade de um


fato relacionando-o à intensidade do fato expresso pela oração principal.
À proporção (à medida) que expressam igualdade de intensidade:

1 O perigo de incêndio aumentava à medida que aumentava o vento.

Quanto (mais, menos, maior, menor) e tanto (mais, menos,


maior, menor) expressam correlação variável de intensidade:

2 Quanto mais observo os homens, mais aprecio os anjos.

4.5.1.7 Temporais

As orações adverbiais temporais indicam um acontecimento que


tem uma relação de tempo com o acontecimento expresso na oração
principal. Quando é a forma mais geral de expressar tempo, indicando
uma relação entre os eventos expressos pela principal e pela subordinada:

415
gramática e estilo

1 Quando o encontraram, levaram-no direto para o hospital.

Enquanto expressa a simultaneidade entre os dois eventos:

2 Pude conhecê-la melhor enquanto conversávamos.

Para expressar limites podemos usar as conjunções desde que para


o inicial e até que para o final; para expressar iteração ou repetição pe-
riódica, usamos sempre que. Na verdade, podemos usar uma série de
combinações de preposições e advérbios com que para expressar relações
muito precisas de tempo entre os eventos: assim que, logo que, tão logo
que, antes que, depois que, logo depois que, uma hora depois que, etc.

3 Antes que ela acorde, estaremos longe.

Exercício 48

Complete com a oração mais adequada à conjunção:


1. Hoje tive de acordar mais cedo porque...
2. Como..., não podemos deixar de presenteá-los nesta Páscoa.
3. Não entregarei o dinheiro mesmo que...
4. Embora... viajarei amanhã para o Acre.
5. Vou para a casa de vovó se...
6. Eles sabem muito mais...
7. Pior... é seu péssimo comportamento.
8. Comeu tanta goiaba que...
9. Rapidamente subiu numa árvore, de sorte que...
10. Guardou o segredo com tal zelo...
11. Pedi-lhe o livro emprestado a fim de que...

416
gramática e estilo

12. Para que... convidei-a para jantar fora.


13. Falávamos mais alto à medida que...
14. ...tanto maior será a desilusão.
15. Mandava comprar um saco de bolachas sempre que...
16. Retirou-se acintosamente da festa assim que...

Exercício 49

Explicite, por meio de conjunções adverbiais, as relações que as


orações destas frases mantêm umas com as outras e revise a pontuação
das frases. Pode tanto haver sinais de pontuação em falta quanto sinais
de pontuação empregados erroneamente.
1. Feitas as contas descobrimos que havia um desfalque de 50 mi-
lhões; como a única pessoa a ter acesso à contabilidade, era ele tratamos
de pegá-lo. Se não tivéssemos agido com presteza, ele teria escapado
fugindo com o dinheiro.
2. Sem dar importância à multidão que o rodeava, e gritava o seu
nome mandou chamar seu filho, para entregar-lhe o presente que trouxera
de tão longe. O filho sabendo que o pai voltara mandou encilhar o cavalo
mais veloz, e o cavalariço obedeceu-o correndo.
3. O chapéu, comprado de um camelô, não era muito elegante nem o
defenderia de uma chuva de intensidade média; o rapaz contudo gostava
da cor e do formato parecendo chapéu de mocinho de cinema.
4. Nenhum dos contendores atreveu-se a enfrentar o gigante pesando
cento e vinte quilos ele era, realmente, um fortíssimo candidato ao título
máximo. Sem lutar há meses Arnaldo mesmo sabendo que perderia re-
solveu enfrentá-lo desafiando-o para uma luta de sumô.
5. Como faria seu avô mandou o Prefeito entrar servindo-lhe, logo
em seguida, um chimarrão. Interessado ouviu a proposta feita por vá-

417
gramática e estilo

rios comerciantes da cidade e a proposta que lhe faziam os fazendeiros.


Decidido a não vender o engenho, resolveu, ganhar tempo dizendo ao
Prefeito, que queria uma semana, para pensar no assunto.
6. Desta maneira todos os critérios de civilização foram sustenta-
dos em moldes europeus, o que facilitou, enormemente. o investimento
estrangeiro.
7. Enquanto estivermos vivendo neste sistema chegará sempre, o
dia em que por mais que dure a novela acabará e todos cairão na dura
realidade da vida.
8. Nem todos os senadores do partido do governo que tinham sido
convocados às pressas para aquela reunião de emergência conheciam os
planos que a assessoria especial do ministro das relações exteriores tinha
elaborado em segredo para desestabilizar economicamente o governo
provisório daquela jovem nação centro-americana.
9. O telespectador procura nas novelas as satisfações que não tem
enquanto poderia estar tentando resolver os seus problema.
10. Isto não acontecia antigamente, quando as pessoas davam o real
valor para a nossa música.

4.5.2 Principais e subordinadas

As conjunções adverbiais são mais claras do que as conjunções


coordenativas e do que os pronomes relativos ao estabelecerem relações
entre as ideias, são mais explícitas para determinar uma hierarquia entre
o que cada uma das orações da frase expressa e são mais livres para se-
rem movimentadas ao longo da frase. Essa hierarquia foi designada na
escola com as expressões oração principal e oração subordinada. A
hierarquia entre as ideias expressas pela frase quem determina é o autor
da frase, do texto, mas as presumíveis crenças do leitor não podem ser
simplesmente ignoradas.

418
gramática e estilo

Lendo uma frase como esta – Eu tinha 11 anos de idade, e o presi-


dente Getúlio Vargas suicidou-se –, um leitor ligado vai esperar que as
frases que seguem acabem justificando o motivo pelo qual dois fatos de
relevância tão díspares sejam expressos por uma mera sequência. Se a
frase fosse assim – O presidente Getúlio Vargas suicidou-se quando eu
tinha 11 anos ou Quando o presidente Getúlio Vargas suicidou-se, eu
tinha 11 anos ou, ainda, Eu tinha 11 anos quando o presidente Getúlio
Vargas suicidou-se–, a conjunção temporal quando estabelece uma re-
lação em que o fato histórico passa a ser uma referência para a história
pessoal do narrador, o que justifica a frase.
A ordem em que os fatos são encadeados e a decisão sobre qual
deles vai na oração principal e qual vai na subordinada são determinadas
pelo tema do texto, pelo que disse a frase que veio antes, pela frase que,
presumivelmente, vai continuar o relato e, sobretudo, pela intenção do
autor. Vamos examinar esta frase:

1 A televisão americana não conseguiu encontrar talentos próprios


para dar conta de suas horas de programação e socorreu-se da in-
dústria cinematográfica; a televisão brasileira não encontrou aqui
uma indústria cinematográfica igualmente desenvolvida e apelou
para o rádio.

Esta frase, construída por duas asserções separadas por um ponto e


vírgula, não explicita a complexa comparação que faz entre a televisão
brasileira e a americana nem qual é propriamente a perspectiva em que
esse tema é tratado. Todo mundo sabe que a televisão americana é bem
mais antiga do que a brasileira e que teve uma grande influência sobre
ela. Isso justifica a antecedência da televisão americana nesta frase, que
tem como tema a televisão brasileira. Esta frase, que tenta estabelecer
uma semelhança numa diferença ou uma diferença numa semelhança,
vai precisar declarar essa intenção com muita clareza, de preferência,
logo no início:

419
gramática e estilo

1a Enquanto a televisão americana, não conseguindo encontrar


talentos próprios para dar conta de suas horas de programação,
socorreu-se da indústria cinematográfica, a televisão brasileira, não
tendo encontrado aqui uma indústria cinematográfica igualmente
desenvolvida, apelou para o rádio.

Aquele enquanto, no início da frase, anuncia que, além do que já


vai ser dito, tem outro dito relacionado a este, ou seja, que o assunto não
é só a televisão americana. Essa mobilidade das orações subordinadas
adverbiais ajuda a encaminhar o encadeamento de modo aproximar ou
afastar os demais componentes da frase. A coordenação também tem aqui
um importante papel no paralelismo entre não conseguindo encontrar e
não tendo encontrado aqui, que reafirma a intenção comparativa da frase.
A frase que segue é um bom exemplo disso, com a principal enros-
cada por uma concessiva, uma temporal e uma causal. Ninguém precisa
decorar esses rótulos todos; até hoje não entendo muito bem porque
botaram o nome de concessiva nessas orações de embora, ainda que, por
mais que, mas também não atino com um nome mais adequado.

2 Ainda que considerasse a história pouco edificante, minha bisavó


sempre me contava que, quando a notícia da Proclamação da Re-
pública chegou à cidadezinha onde ela morava, todos os alunos de
sua escola foram obrigados a enfiar uma braçadeira preta porque o
prefeito era um ferrenho monarquista.

Ainda que também é bom começo, assim como enquanto: fazem


ambos uma espécie de prefácio pro leitor; aí vem a primeira metade da
oração principal, que conta também a metade do que contava a bisavó.
Intercala-se a localização temporal e espacial do evento e, do outro lado,
vem o fato a ser registrado e a razão pela qual aconteceu. Esse conglo-
merado de sete orações numa mesma frase se saiu muito bem, mas, na
frase que segue, o abuso das adverbiais pode construir uma cadeia de
orações que gera uma frase dispersiva:

420
gramática e estilo

3 O cinema conquistou o domínio do romance porque as pessoas não


têm mais tempo para ler um livro grande quando estão ocupadas
em uma sociedade que requer delas atenção a tudo o que acontece
porque a vida diária é tão complexa e absorvente muito embora os
modernos aparelhos devessem nos proporcionar mais tempo livre.

Esta frase desenvolve-se expandindo a oração anterior por cinco


vezes em orações que tratam de tempo pra ler, exigências da sociedade,
a complexidade da vida diária e o desvio de função dos eletrodomésticos,
sem nada que ligue algum desses temas ao fim que não chega. Manejar
menos temas, mais concatenados e encadeados em uma frase pode ajudar.

3a O cinema conquistou o domínio do romance porque as pessoas


não têm mais tempo para ler um livro grande. Embora os modernos
aparelhos devessem proporcionar mais tempo livre, a vida diária
numa sociedade, que requer atenção a tudo o que acontece, tornou-
-se muito complexa e absorvente.

A primeira frase se limita a colocar a questão – a vitória do cinema


sobre o romance –, e a segunda introduz o seu próprio tema – os moder-
nos aparelhos– para convergir com a questão da primeira. E dá conta
dele, tematizando o assunto enfatizado no fim da primeira, a falta de
tempo. O limite da frase marca claramente para o leitor tanto a mudança
de tema quanto a relação entre os dois temas, o que ficava diluído na
grande frase anterior.

421
gramática e estilo

ORDEM E NEXOS

N a verdade, já tratamos de ordem e de nexos nos capítulos anterio-


res, ao propormos o exame do encadeamento das frases no texto,
das orações na frase, das palavras na oração para superarmos o mero
encadeamento, que apresentamos como o mais primitivo dos nexos para
relacionar o que temos a dizer a respeito do tema que tratamos em nosso
escrito. O que apresentamos como instrumentos dessa superação foram,
justamente, os nexos da coordenação e da subordinação, que compa-
recem apenas de forma eventual nos escritos que meramente registram o
que vem vindo à cabeça do escritor na ordem em que vem à sua cabeça.
Apelamos à experiência do escritor como leitor para induzi-lo a
tornar-se um mais atento leitor do que está escrevendo para que de-
senvolva, a partir dessa prática de leitor de si mesmo, uma mais clara
percepção do que escreveu, habilitando-se a revisar o que escreveu, o
que está escrevendo. Tratamos das ligações que expressam a natureza
dos vínculos entre o que vai indo e o que foi ficando para trás: o que se
soma, o que se repele, o que se alterna, o que causa e o que é causado, o
que condiciona e o que é condicionado, etc.
Neste capítulo vamos focar essa experiência de leitor também nos
nexos que vinculam os componentes das frases e das orações, os que
vinculam orações com outras orações, as frases umas com as outras. A
primeira seção, intitulada O encadeamento na frase, trata da frase como
uma combinação de orações que aportam informações a respeito de um

422
gramática e estilo

mesmo assunto – o tema – e declaram alguma coisa a respeito dele – o


rema. Vamos conhecer as possibilidades de combinações em que tema
e rema se organizam na frase e o papel da pontuação interna da frase
para proporcionar uma leitura fluente dessas frases todas, que é o tema
da segunda seção.
A terceira seção deste capítulo trata da oração/das orações: os verbos
e nomes que as compõem e as relações que estabelecem umas com as
outras, os verbos determinando os papéis temáticos que devem ser pre-
enchidos para que a oração cumpra o seu papel na frase. Concordância
e regência encerram o capítulo.
Começamos nosso trabalho, lá no primeiro capítulo, caracterizando
o que chamamos composição por mero encadeamento e propusemos a
revisão de um escrito que caracterizamos como composto por mero enca-
deamento de orações porque as sequências ali marcadas por uma maiúscula
inicial e por um ponto-final como frases não constituíam propriamente fra-
ses porque não chegavam a organizar orações que tratavam de um mesmo
assunto. A partir das revisões feitas, propusemos, então, estas definições
de frase e de oração para orientarem nossos trabalhos de revisão não só
daquele texto mas também dos textos que nos puséssemos a escrever:

a) A frase, além de identificar-se pelos limites físicos de uma maiús-


cula inicial e de um ponto-final, compõe-se de um conjunto de orações
que tratam de um mesmo tema; a frase é, portanto, uma unidade de
organização do texto.

b) A oração não se caracteriza por limites gráficos mas pelo que que-
remos dizer com elas; a oração é a uma unidade de fala, de conteúdo,
que, na escrita, se combina com outras orações para compor uma frase.

Para exemplificar essa organização de orações na frase, na seção


Pontuação final de frase e de oração recorremos a esta experiência de
laboratório:

423
gramática e estilo

A menina saiu de casa. A menina caminhou até a esquina. A menina


viu o cachorro vermelho. A menina correu na direção do cachorro
vermelho. O cachorro vermelho viu a menina. O cachorro vermelho
abanou o rabo. O cachorro vermelho latiu. O cachorro vermelho
correu na direção da menina.

A inexistência de construções deste tipo na vida real da língua escrita


nos levou para esta versão comum, que, tal como fizemos na revisão
daqueles textos compostos por mero encadeamento, toma como matéria-
-prima as orações – unidades de assunto – e reorganiza-as em frases:

A menina saiu de casa, caminhou até a esquina, viu o cachorro ver-


melho e correu na direção dele. O cachorro viu a menina, abanou o
rabo, latiu e correu em sua direção.

Na NGPB (p. 665) podemos ler:

[...] a articulação tema-rema é uma propriedade das


sentenças relativa à distribuição da informação por seus
constituintes, de tal forma que a informação menos dinâ-
mica, supostamente conhecida e mais compartilhada pelos
falantes, é codificada no constituinte inicial, denominado
tema (= aquilo de que se vai falar), e a informação mais
dinâmica, supostamente desconhecida pelos falantes, mais
nova, é codificada no constituinte nuclear, denominado
rema (= aquilo que se vai declarar sobre o tema) (CAS-
TILHO, 2010, p. 665).

Na versão com duas frases construídas a partir daquele conjunto


artificial de orações isoladas como frases, ficam bem claros esses dois
componentes da frase: (1) “aquilo de que se vai falar”, ou seja, o tema,
e (2) o rema, isto é, “aquilo que se vai declarar sobre o tema”. A menina
é de quem se fala na primeira das frases, e o cachorro é de quem se
fala na segunda; saiu de casa, caminhou até a esquina, viu o cachorro

424
gramática e estilo

vermelho e correu na direção dele é o que se diz da menina na primeira


frase, e viu a menina, abanou o rabo, latiu e correu em sua direção é o
que se diz do cachorro na segunda frase.
Terminamos de ler estas duas frases e ficamos conhecendo dois
personagens que estão por se encontrar; passamos, então, a esperar que a
frase seguinte comece por uma palavra ou expressão que declare alguma
coisa sobre esses agora nossos dois conhecidos:

Mabel e Gungadin pararam a meio metro um do outro.

Nesta frase, Mabel e Gungadin são o tema, e pararam a meio


metro um do outro é o rema. Esta frase seguindo-se àquela primeira
leva o leitor a atribuir à menina o nome Mabel e ao cachorro o nome
Gungadin, pois é assim que os textos e a leitura dos textos funcionam:
a frase seguinte refere-se ao que foi configurado pela anterior e faz ir
adiante o que a frase anterior tinha posto a andar, estabelecendo um tema
e atribuindo um rema a esse tema. Assim se narra um acontecimento,
se descreve uma cena, se compõe um poema, se organiza por escrito um
conjunto de instruções para instalar um carneiro hidráulico, se explica o
funcionamento das frases num texto, etc., etc.

5.1 O ENCADEAMENTO NA FRASE

Ao analisarmos aquele primeiro escrito – o que tinha quatro frases


em 28 linhas, composto por mero encadeamento –, percebemos que
ele se orientava pelo que caracterizamos como uma pauta externa, que
ditava os temas obrigatórios para se escrever a respeito de memórias
escolares e levava a escritora a apenas mencionar e não desenvolver
temas interessantes para ela, como, por exemplo, as brincadeiras de
que ela participava na escola. Essa pauta externa compunha-se de uma
lista de itens que se sucediam sem uma significativa relação entre eles
a não ser uma certa ordem cronológica. Essa falta de relação entre os

425
gramática e estilo

diversos temas tratados num escrito caracteriza a sua falta de unidade


temática.
Se o escrito não tem unidade temática, o leitor não tem uma chave
para atribuir sentidos específicos às palavras que lê, mesmo que ele
identifique de quem ou de que fala cada frase do texto que lê e o que
elas dizem respeito de quem ou de que falam. Em É possível facilitar a
leitura, podemos ler:

O termo “tópico” designa o assunto sobre o qual se fala.


Podemos tratar do tópico tanto no âmbito de uma sentença
quanto no âmbito de várias sentenças conectadas, como
num parágrafo ou um texto maior. Assim, podemos falar
de tópico sentencial e de tópico discursivo.
O “tópico sentencial” é o tema ao qual se referem as
informações de uma sentença. Trata-se de uma função
comunicativa, isto é, relacionada com o desenrolar da
comunicação, com a carga informacional dos enuncia-
dos. [...]
O “tópico discursivo” incorpora a mesma ideia, só que
o conceito é transferido para um domínio mais extenso:
o tópico discursivo é o assunto principal de um texto, é
o tema ao qual se referem as informações de um texto
(LIBERATO; FULGÊNCIO, 2007, p. 53).

O termo sentença designa aqui tanto frase quanto oração, que


compartilham das mesmas características no que se refere ao modo de
organizar o que têm para dizer porque ambas têm um tópico, que expressa
o seu tema, e um rema, que comenta, que diz alguma coisa sobre esse
tópico. Vamos ver como é que a frase organiza as orações que a compõem.

5.1.1 Tema e rema/tópico e comentário

Aqui nos interessa distinguir frase e oração no que se refere ao


modo de produção de uma e outra. Orações expressam o que diríamos,

426
gramática e estilo

se tivéssemos de falar (e não escrever), a respeito do assunto, enunciando


uma oração depois da outra sem a possibilidade de reorganizar esse en-
cadeamento nem de acrescentar, entre essas orações, nexos mais precisos
para expressar a relação que, ao encadeá-las, descobrimos que há entre
elas. Sua matéria-prima está no nosso cérebro, e sua composição decorre
da capacidade de nossa oralidade de expressar o que está lá dentro e o que
passa a estar lá dentro ao expressarmos o que nem sabíamos que estava
lá. Já as frases organizam por escrito o que essas orações expressam, e
a finalidade dessa reorganização é orientar o olho do leitor a enviar as
mais adequadas informações ao cérebro dele, que vai processá-las para
produzir sentido a partir delas. A matéria-prima da frase são as orações
que vão sendo escritas e reescritas, organizadas e reorganizadas num
diálogo entre o que o escritor está pondo diante dos seus próprios olhos
e a avaliação que ele vai fazendo a respeito de como seria mais adequado
ordenar o que é necessário dizer a respeito do tema para que o leitor seja
informado, esclarecido, consolado, convencido, ilustrado, iluminado.
Textos compostos por mero encadeamento do que vem à cabeça do
escritor na ordem em que vem à cabeça dele, sem reescrita, organização
e reorganização das orações dentro das frases, costumam apresentar pro-
blemas nessa relação entre de que(m) se fala e o que se diz a respeito
de quem ou de que se fala. Vamos examinar estas frases:

1 Para começar, é difícil se falar em democracia quando se chega à


presidência de um país por meio indireto e contra a vontade popular,
e este é o ponto máximo de uma democracia, mas esta é apenas mais
uma das inúmeras contradições que se vive neste país.

Esta frase começa enunciando uma questão preliminar – para quem


chegou ao poder contra vontade popular é difícil falar em democracia
– e segue tratando da democracia em geral, o que leva à classificação
de algo mencionado antes do mas como uma das contradições que se
vive neste país. Qualquer leitor teria dificuldade de estabelecer de que

427
gramática e estilo

assunto a frase trata e, consequentemente, o que é mesmo que a frase


diz a respeito desse assunto.

2 Não podemos, contudo, classificar os criminosos como os únicos


culpados pelos seus atos porque eles são vítimas de uma sociedade
falha, estratificada em classes sociais cada vez mais distanciadas do
ponto de vista econômico, tendo em vista a má distribuição de renda
que se verifica no país, que empobrece ainda mais os já pobres e
enriquece desnecessariamente os já ricos.

Nesta frase, a sociedade é apresentada como corresponsável pelos


atos criminosos que nela acontecem, e o que segue é uma afirmação a
respeito das mazelas sociais provocadas pelas condições econômicas
dessa sociedade, sem que os criminosos apresentados lá no início sejam
retomados.

3 Foi mais ou menos por essa época, lá pela sétima, oitava série, que
comecei a escrever mais, colocar no papel tudo aquilo que eu, que
sempre enchi a boca para falar das minhas habilidades precoces de
escrita, tinha vergonha de colocar por medo de arruinar essa ima-
gem que eu tinha construído de mim apesar de eu ainda ter medo de
escrever, não mais por esse motivo, mas por achar o tempo todo que
o texto nunca vai sair como eu planejava.

Aqui, a narrativa do que teria acontecido na sétima série, anun-


ciada no início, é abandonada para dar lugar a confissões do autor a
respeito de seu medo de não conseguir desempenhar-se à altura do
que costumava alardear. Então, para que o escrito vire texto é pre-
ciso que oração tenha tema, frase tenha tema, parágrafo tenha tema,
seção de capítulo tenha tema, capítulo tenha tema, texto tenha tema.
O tema do texto orienta o leitor a respeito do âmbito em que devem
ser entendidos todos os enunciados do texto. Conforme Liberato e
Fulgêncio (2007, p. 55):

428
gramática e estilo

A identificação do tópico de um texto é indispensável


para sua compreensão. O tópico parece condicionar a
interpretação de cada unidade de um texto. Por exemplo,
em um texto sobre economia, a palavra “banco” tenderá a
ser interpretada como “instituição financeira” e não como
“certa peça do mobiliário”, a menos que haja indicação
do contrário.

Nesta citação, a palavra tópico expressa a generalidade economia,


isto é, o tema e não a expressão que enuncia, numa das frases do texto,
esse tema. É pelo que dizem as frases desse texto que o leitor identifica
a pertinência do que está escrito nele ao tema economia. Se um artigo
sobre economia for editado no lugar onde a publicação costuma botar
a coluna sobre cinema, o leitor certamente vai acabar percebendo que
esse texto não trata de cinema. A palavra tópico também costuma ser
usada para designar a expressão que está no início da frase, designando
de que(m) se fala, e é nesse sentido que vamos usar a palavra tópico
neste livro: o tópico é a expressão escrita do tema no início da frase. A
primeira das frases daquele textinho lá no começo do capítulo usa expres-
são a menina para designar o tema, que poderia ser designado por outro
tópico – a garota, a guria, a pequena, a filhinha da professora, etc. O
que se diz a respeito do tema expresso pelo tópico estamos chamando de
rema e vamos chamar de comentário a expressão escrita do rema, que,
naquele caso, poderia ter sido expressa por atravessou o portão saindo
para a calçada e andou na direção da avenida, dobrou à esquerda e
lá estava aquele animal ruivo. Acelerou o passo, despencando-se rua
abaixo para encontrá-lo.
Essa distinção entre tema como o assunto abstrato e tópico como
a expressão escrita do tema e entre rema como o conteúdo do que se
diz a respeito do tema e comentário como a expressão escrita do que
se diz sobre tópico não costuma ser feita na bibliografia que trata de
descrever o texto como uma entidade teórica, mas a finalidade peda-
gógica deste livro estabeleceu, desde o início, uma distinção entre o

429
gramática e estilo

escrito e o texto, assim como o livro que o antecede – Da redação


à produção textual – toma como ponto de partida a distinção entre
redação escolar e texto. Em escritos que não chegam a ser textos não
costuma haver um tema perceptível, um “tópico discursivo”, e pode
ocorrer que, mesmo em escritos que chegam a ser textos, a expressão
escrita que ocupa a posição de tópico de uma frase não seja a mais
adequada para expressar o tema dessa frase. Algo semelhante se pode
dizer da distinção feita aqui entre rema como o conteúdo do que se
diz a respeito do tema e comentário como a expressão escrita do que
se diz sobre o tópico.
Essa distinção também nos ajuda a entender a diferença entre o
tópico da frase – a expressão, no início da frase, do tema da frase – e
o tema do parágrafo, da seção, do capítulo, do texto, que até podem
ser explicitados no início de cada um por uma frase, um parágrafo,
uma seção, um capítulo, mas vai estar mais claramente expresso pelas
frases que os compõem, que terão sempre os seus temas expressos
pelos seus tópicos.
Na grande maioria dos textos, especialmente dos que são produzidos
em situação escolar, o parágrafo é o único componente maior do que a
frase. Das frases de um texto, a quase totalidade delas faz parte de algum
parágrafo. É necessário, por isso, construí-las levando em consideração o
funcionamento que vão ter dentro do parágrafo a que pertencem porque o
leitor, que aprendeu a ler lendo textos, espera que os parágrafos cumpram
a função de apresentar uma determinada unidade de conteúdo, que vai dar
o embasamento necessário para a compreensão da unidade de conteúdo
que vem a seguir, no próximo parágrafo e assim sucessivamente.
Vamos examinar as frases que seguem, ou melhor, o conjunto das
orações que compõem as frases que seguem, pois esse conjunto pode nos
ajudar a entender a diferença entre o tema tratado por elas e o que diz a
expressão que ocupa a posição de tópico no primeiro dos conjuntos de
orações marcado como frase por uma inicial maiúscula e um ponto-final.

430
gramática e estilo

Laticínios são produtos altamente perecíveis, que estragam facil-


mente quando mal acondicionados. Mas estão sendo vendidos por
ambulantes em condições inadequadas, causando risco à saúde dos
consumidores.

Se dissermos que o tema da primeira frase é laticínios porque o


tópico é laticínios, não temos como afirmar que o tema do conjunto de
orações que aí está marcado como duas frases não é laticínios mas a
venda em condições inadequadas de laticínios por ambulantes porque
o rema trata do risco que a saúde dos consumidores corre por causa
não dos laticínios em geral mas da prática da venda de laticínios em
condições inadequadas. Laticínios é o tema da oração que tem como
rema a sua perecibilidade provocada pelo mau acondicionamento. Se o
tema – a venda em condições inadequadas de laticínios por ambulan-
tes – for topicalizado, ou seja, colocado no início da frase, o leitor não
vai precisar fazer todo esse trabalho de análise de cada oração das duas
frases para chegar à conclusão de que o tema não é laticínios. Trata-se,
agora, de compor o tópico que vai expressar adequadamente esse tema
e o comentário que vai expressar com clareza e precisão esse rema:

A venda de laticínios mal acondicionados por ambulantes está pondo


em risco a saúde dos consumidores porque laticínios são produtos
altamente perecíveis.

Reorganizamos o material fornecido por aquele rascunho, determi-


nando com maior clareza o tópico – A venda de laticínios mal acondi-
cionados por ambulantes – e compondo o comentário: está pondo em
risco a saúde dos consumidores porque laticínios são produtos altamente
perecíveis. Nesta versão, uma redundância foi eliminada, pois, nesse
conjunto de orações, as condições inadequadas resumem-se ao mau
acondicionamento: eliminamos o mais genérico e mantivemos o mais
específico. Há, também, uma ambiguidade no sentido de por ambulantes
– os laticínios estão sendo vendidos ou mal acondicionados por eles?

431
gramática e estilo

–, mas o autor, o arranjador e o revisor desta frase podem alegar que os


ambulantes fazem as duas coisas e que, portanto, essa ambiguidade é do
bem porque soma sentidos.
O comentário é composto pela declaração diretamente ligada ao
tópico – está pondo em risco a saúde dos consumidores – e pela oração
causal porque laticínios são produtos altamente perecíveis. Se o tema da
frase seguinte relacionar-se com laticínios, esta ordem é a mais adequada:

A venda de laticínios mal acondicionados por ambulantes está pondo


em risco a saúde dos consumidores porque laticínios são produtos
altamente perecíveis. Iogurtes precisam ser mantidos numa tempe-
ratura...

A progressão do que cada frase vai dizendo a respeito do tema do


parágrafo deve ajudar o leitor a reter esse tema na memória tanto quanto
o rema que a frase vai compondo a respeito dele. Para tanto é preciso que
cada frase comece com o assunto pelo qual terminou a anterior e termine
pelo assunto que leva ao começo da frase seguinte. Como o encadea-
mento é um nexo muito poderoso, a sequência dessas duas declarações
no comentário pode, no entanto, ser alterada se o tema da frase seguinte
for a saúde dos consumidores:

A venda de laticínios, que são produtos altamente perecíveis, mal


acondicionados por ambulantes está pondo em risco a saúde dos
consumidores. Além de simples diarreias, podem causar doenças
mais sérias como...

E, desse modo, vinculando cada frase à frase que a segue e, con-


sequentemente, cada frase à anterior, é que mantemos o tema do pará-
grafo diante dos olhos leitor. Este próximo exemplo, em que aparece
um ordenamento inadequado de frase, mostra com clareza o poder do
encadeamento na manutenção do tópico na cabeça do leitor:

432
gramática e estilo

Quando ingressei na primeira série, meu irmão e eu passamos a


frequentar a escola municipal construída próxima a nossa casa.
Minha mãe também passou a trabalhar lá como merendeira. No
mesmo ano, minha irmã foi estudar no Centro, pois a escola em que
estudávamos atendia crianças do pré até a quinta série, e ela estava
na sexta. A nova escola era um encanto, pois era nova, toda pintada
e com cartazes que enchiam os olhos. Gostei muito da professora e
dos colegas, mas, no segundo semestre, troquei de turma e de turno,
por estar adiantada.

A primeira leitura da frase que começa por A nova escola... vai


relacioná-la com a irmã, que foi estudar no Centro; como a frase seguinte
volta a falar da narradora – Gostei muito da professora –, o leitor é lem-
brado de que ela também estava numa nova escola. Não é bom induzir
o leitor a esse pingue-pongue interpretativo. Uma troca de ordem entre
as frases, dizendo tudo a respeito da narradora e do irmão e da escola
deles e depois tratando da vida escolar da irmã mais velha pode evitar
essa previsão equivocada:

Quando ingressei na primeira série, meu irmão e eu passamos a fre-


quentar a escola municipal construída próxima a nossa casa. Minha
mãe também passou a trabalhar lá como merendeira. A nova escola
era um encanto, pois era nova, toda pintada e com cartazes que en-
chiam os olhos. Gostei muito da professora e dos colegas, mas, no
segundo semestre, troquei de turma e de turno, por estar adiantada.
No mesmo ano, minha irmã foi estudar no Centro, pois a escola em
que estudávamos atendia crianças do pré até a quinta série, e ela
estava na sexta.

Agora o tópico da terceira frase – a nova escola – refere-se inequi-


vocamente à escola mencionada na frase anterior, e a situação escolar da
irmã é apresentada na frase seguinte, mantendo-se o tema do parágrafo:
a relação da família com a escola naquele determinado ano.

433
gramática e estilo

Sendo a frase, como já vimos, um conjunto de orações, a inteligibili-


dade da frase é dependente não apenas do tópico da frase mas também dos
tópicos de cada uma das orações que a compõem; como já vimos no con-
ceito de sentença, frase e oração têm a mesma estrutura. Neste outro caso,
o problema não está no tópico da frase mas no tópico de uma das orações:

As crianças só querem saber se, depois que o sol vai dormir, ele volta
ou acorda novamente.

O leitor tem motivo para perguntar, ao chegar no fim da frase, quem


acorda ou volta; provavelmente, vai acabar se decidindo pelo sol porque
não há outra opção. Se o sol fosse o tópico da oração, não haveria nem
a necessidade de ele:

As crianças só querem saber se, depois que vai dormir, o sol volta
ou acorda novamente.

O único problema desta versão é que leitor precisa ir até a oração


seguinte em busca do sujeito de vai dormir. Esta outra versão pouparia
o leitor desse esforço extra:

As crianças só querem saber se o sol, depois que vai dormir, volta


ou acorda novamente.

O leitor chega na beira da intercalação sabendo que, depois dela,


algo vai ser dito a respeito do sol, que, na falta de um sujeito e de um
tópico para dormir, é imediatamente candidatado pelo leitor para ocupar
essas funções. Depois da intercalação, chega o esperado comentário a
respeito do sol: volta ou acorda novamente.
Pra deixar bem claro que o tópico expressa o assunto da frase e que
tópico não quer dizer sujeito, vamos examinar este trecho aberto por uma
frase que, em seu tópico, declara, de forma quase protocolar, o seu tema:

434
gramática e estilo

Do ensino fundamental, sobre atividades com a língua e leitura


lembro que eram dadas aos alunos três opções de livros para ler por
bimestre. A cada bimestre mudavam as opções de leitura, e, no fim
de cada um, fazíamos um trabalho sobre o livro que tínhamos lido,
isso a partir da quinta série até a oitava. Depois tínhamos que falar
sobre o livro que havíamos lido para os colegas.

Do ensino fundamental, sobre atividades com a língua e leitura


é o tema da primeira frase, a respeito do qual o comentário, onde fi-
camos sabendo qual é o sujeito da frase, diz: lembro que eram dadas
aos alunos três opções de livros para ler por bimestre. A segunda frase
tematiza, na primeira oração, o que ficou enfatizado na frase anterior: A
cada bimestre é o seu tema, que é comentado por mudavam as opções
de leitura. A segunda oração retoma esse tema por substituição lexical
– no fim de cada um – e comenta: fazíamos um trabalho sobre o livro
que tínhamos lido, isso a partir da quinta série até a oitava. A última
frase é praticamente uma oração coordenada à anterior, que tem depois
como conjunção e como tema o coletivo dos alunos expresso na forma
verbal: tínhamos que falar sobre o livro que havíamos lido para os
colegas. Com exceção desta última oração, há, em todas as outras, uma
dissociação entre tópico e sujeito.
A escolha do tópico decorre do ponto de vista do autor da frase
a respeito do que vai dizer a respeito dele, como vamos ver no exame
desta frase:

Há um generalizado mal-estar entre os jogadores de futebol por


causa das últimas determinações da FIFA a respeito da forma de
comemorar gols.

O tópico desta frase – Há – é dos mais genéricos que se pode con-


ceber porque anuncia qualquer coisa e, consequentemente, transforma
tudo o que vem depois em qualquer coisa entre outras coisas quaisquer.
O comentário precisa, então, encarregar-se da relação tema-rema: um

435
gramática e estilo

generalizado mal-estar entre os jogadores de futebol é comentado por


por causa das últimas determinações da FIFA a respeito da forma de
comemorar gols. Na verdade, toda a cadeia da frase é uma sequência
de tema e rema: um generalizado mal-estar é o tema comentado por
entre os jogadores de futebol, que é o tema comentado por por causa
das últimas determinações da FIFA, comentado por a respeito da forma
de comemorar gols. A relação tema e rema, portanto, não se restringe
ao âmbito da frase nem mesmo ao da oração.
Um tratamento menos abstrato do acontecimento poderia ser obtido
com o uso de um verbo com um pouco mais de dinamismo:

Surgiu um generalizado mal-estar entre os jogadores de futebol por


causa das últimas determinações da FIFA a respeito da forma de
comemorar gols.

Topicalizar a causa pode amenizar um pouco mais a abstração:

A recente recomendação da FIFA a respeito da forma de comemo-


rar gols provocou um generalizado mal-estar entre os jogadores de
futebol.

Agora temos um tópico em função de sujeito – A recente recomen-


dação da FIFA a respeito da forma de comemorar gols – comentado por
um predicado – provocou um generalizado mal-estar entre os jogadores
de futebol.
Podemos também, com o recurso da voz passiva, topicalizar o efeito:

Um generalizado mal-estar entre os jogadores de futebol foi provo-


cado pela recente recomendação da FIFA a respeito da forma de
comemorar gols.

436
gramática e estilo

Para dar alguma concretude ao ocorrido, podemos topicalizar


as pessoas afetadas pela decisão de uma instituição que tem poder
sobre elas:

Os jogadores de futebol não gostaram das últimas recomendações


da FIFA a respeito da forma de comemorar gols.

Nesse caso, foi necessário trocar aquele verbo impessoal por um


verbo que expressa o que sentem as pessoas aqui tomadas como o tema
da frase; temos, então, tópico – Os jogadores de futebol – e comentá-
rio – não gostaram das últimas recomendações da FIFA a respeito da
forma de comemorar gols.
Podemos também indiciar os responsáveis pelo transtorno topica-
lizando a FIFA:

A FIFA promulgou recomendações a respeito da forma de comemorar


gols que desagradaram os jogadores de futebol.

Esta frase topicaliza a FIFA com um verbo que expressa o que ela
fez compondo o comentário da frase com o complemento desse verbo,
em que uma oração adjetiva trata do efeito produzido por esse ato sobre
os jogadores de futebol.
O assunto, enfim, pode ser tratado a partir de diferentes pontos de
vista: como um acontecimento entre outros, como um evento que afeta
os envolvidos, como uma ação de responsabilidade de alguma pessoa
ou instituição, neste caso acontecido no início dos anos 1980, quando a
FIFA determinou que a adequada maneira de comemorar gols não era o
extravasamento das emoções do goleador mas um formal aperto de mão
entre ele e o capitão do seu time. A revolta dos jogadores submetidos à
autoridade da FIFA foi planetária, e houve quem comentasse que não era
só no Brasil que leis não pegavam, ou seja, esse evento certamente não
foi apenas mais um entre tantos outros, mas isso não impediu a ação de

437
gramática e estilo

quem quis fazer de conta que era, assim como nada impede que alguém
queira dar um caráter escandaloso a um ato corriqueiro.

5.1.2 Sujeito e predicado

Na escola, nada nos falaram sobre tema e rema nem sobre tópico
e comentário, mas nos ensinaram que frases e orações se compõem de
sujeito -– a menina e o cachorro naquelas nossas frases de referência
– e predicado – saiu de casa, caminhou até a esquina, viu o cachorro
vermelho e correu na direção dele –, na frase que fala da menina – viu
a menina, abanou o rabo, latiu e correu em sua direção – e na frase que
fala do cachorro. Nessas frases, os sujeitos são os tópicos, tal como na
frase sobre a venda de laticínios, mas, na frase que abre este parágrafo,
o tópico é na escola, e o sujeito é aqueles que nada falaram mas nos
ensinaram ou aquele que nada falou mas nos ensinou, porque esta
terceira pessoa do plural que fala de um que é igual a muitos outros ex-
pressa a irrelevância individual de quem fez isso. Na escola é o tópico
porque, entre Na escola e o comentário, o leitor não encontra ninguém;
só encontra nada.
Além disso, a escola é o único lugar onde alguém, bem ou mal
e para o bem ou para o mal, ensina isso pra todo mundo e não vem
ao caso quem está lá pra ensinar isso porque os que estão lá pra en-
sinar isso só ensinam isso porque estão lá. Nenhum deles pensaria
em chamar um filho, um sobrinho, um afilhado, sentar com ele na
mesa da cozinha e ensinar-lhe o sujeito e o predicado, nem, menos
ainda, sentar com ele na areia da praia pra fazer isso (a não ser, é
claro, que um desastre escolar já tenha acontecido). Nesta frase, o
comentário, isto é, o que se diz a respeito do que acontece na es-
cola, é composto tanto pelo sujeito – os que nada falaram mas nos
ensinaram – quanto pelo predicado – nada nos falaram sobre tema e
rema nem sobre tópico e comentário mas nos ensinaram que frases
e orações se compõem de...

438
gramática e estilo

Por que a escola ensinou sujeito e predicado e não tema e rema


nem tópico e comentário? Porque a escola queria que a gente aprendesse
a responder qual é o sujeito da frase tal, que já estava pronta, especialmen-
te para verificar se a gente sabia a resposta certa e não estava interessada
que a gente aprendesse a determinar com clareza e precisão o tema que
queremos tratar nos textos que queremos escrever nem, menos ainda, o
que queremos dizer a respeito desse tema.
A escola ensinou também que frase tem sujeito, verbo, comple-
mento, como, por exemplo, esta que está sendo lida, em que a escola é o
sujeito, ensinou é o verbo e que que frase tem sujeito, verbo e complemen-
to é o complemento. Nos ensinou também que esta frase está em ordem
direta – primeiro o sujeito, depois o verbo e depois o complemento –
porque o verbo diz alguma coisa a respeito do sujeito, o complemento
diz alguma coisa a respeito do verbo, e o que vem depois diz alguma
coisa a respeito do que veio antes. E assim, como prometido, voltamos
ao assunto: a relação tema e rema, portanto, não se restringe ao âmbito
da frase, nem mesmo ao da oração; a relação tema e rema está em toda
a cadeia da frase. A ordem direta é uma ordem de referência porque é
bem mais comum que o sujeito seja o tópico e que, consequentemente,
o predicado seja o comentário.
Se a frase não estiver em ordem direta, está em ordem inver-
sa. E só agora nós ficamos sabendo pra que serve inverter a ordem:
para topicalizar algum outro elemento da frase em vez do sujeito,
determinando-o como o tema da frase: na escola, no caso da frase que
analisamos antes desta última. Sujeito, portanto, não é sempre o ser de
quem se fala, como ficaria ainda mais claro se aquela frase estivesse
em outra ordem indireta:

Nada nos falaram sobre tema e rema nem sobre tópico e comentário
na escola, mas nos ensinaram que frases e orações se compõem de
sujeito.

439
gramática e estilo

Nesta ordem, em que o tópico é nada, o que fica bem claro é que
nós inventamos com esse uso da terceira pessoa do plural – falaram...
ensinaram... – um jeito de não falar a respeito de quem (não) praticou a
ação, no caso, as ações de falar e de ensinar. Inventamos até mesmo a
voz passiva, que é uma forma não só de topicalizar mas também de dar
a função de sujeito àquele que sofre a ação numa frase em que alguém
desconhecido pratica a ação. Pode ser também que o agente da ação
seja conhecido mas irrelevante como aqueles que nada nos ensinaram
além de sujeito e predicado. Com a voz passiva, podemos até resgatar
a ordem direta:

Nada nos foi ensinado na escola sobre tema e rema nem sobre tópico
e comentário.

Nessa frase, nada, que não faz nada, é o sujeito. Sujeito, portanto,
além de não ser sempre o ser de quem se fala, pode também não ser o
ser que pratica a ação, mas é verdade que a frase, assim como se divide
em tópico e comentário, também se divide em sujeito e predicado, e é a
respeito do sujeito que o verbo, que é o núcleo do predicado, diz alguma
coisa. Vamos examinar esta frase, retirada de uma notícia da revista Carta
Capital nº 854, de 17/6/2015, p. 52:

Tecnicamente, o PRI pode proclamar a vitória. Ainda é o partido com


mais votos, 29%, na eleição para a Câmara do domingo 7. É menos
que os 32% de 2012, e a bancada deve cair de 214 para 200 em 500
deputados, mas, com o Partido Verde mexicano, tão ou mais satélite
seu quanto o homólogo brasileiro o é do PSDB, que deve crescer de
27 para 45 deputados, juntamente com o aliado menor Nova Alian-
ça, que tende a manter suas 10 cadeiras, pode conservar a maioria.

O tema da primeira frase é o PRI, e o rema é a proclamação da


vitória. Tecnicamente, anteposto ao tópico, especifica o âmbito que
condiciona essa proclamação: tecnicamente opor-se-ia a politicamente

440
gramática e estilo

ou eleitoralmente, por exemplo. A segunda frase é só um predicado que


refere seu sujeito – o mesmo da frase anterior – com outro tópico: o parti-
do, que refere o PRI, pelo processo conhecido como substituição lexical.
A primeira oração da terceira frase é também um predicado, em que um
percentual – 32% – indica, como sujeito, por comparação, o percentual
que aparece na frase anterior: 29%. A segunda oração retoma o tema
do parágrafo com um outro tópico (mais uma substituição lexical) – a
bancada –, e o rema é a sua diminuição, que é amenizada pelo mas que
abre a oração seguinte e mais ainda pelo com, que pode ser anúncio de
uma soma e é o anúncio de um sintagma preposicional, ou seja, de uma
intercalação: com o Partido Verde mexicano... O que vem depois é uma
longa intercalação na intercalação, fazendo uma referência externa ao
tema – o PSDB brasileiro –, depois da qual o tema é retomado: que deve
crescer de 27 para 45 deputados. O juntamente com, que abre a próxima
oração, tenta estabelecer paralelismo com com o Partido Verde e espicha
ainda mais a intercalação – juntamente com o aliado menor Nova Aliança,
que tende a manter suas 10 cadeiras –, e aí estamos muito longe de pode
conservar a maioria. O que é mesmo que pode conservar a maioria?
Pode conservar a maioria é o resultado da soma do que vem depois
do com que veio depois do mas; se, no entanto, tudo o que veio depois
do mas tivesse vindo antes do com, a memória do leitor não teria que
fazer um esforço tão grande para reter toda essa soma à espera do que
tinha sido apresentado como a amenização das perdas do PRI. A frase
ficaria assim:

Tecnicamente, o PRI pode proclamar a vitória. Ainda é o partido com


mais votos, 29%, na eleição para a Câmara do domingo 7. É menos
que os 32% de 2012, e a bancada deve cair de 214 para 200 em 500
deputados, mas pode conservar a maioria com o Partido Verde me-
xicano, tão ou mais satélite seu quanto o homólogo brasileiro o é do
PSDB, que deve crescer de 27 para 45 deputados, juntamente com
o aliado menor Nova Aliança, que tende a manter suas 10 cadeiras.

441
gramática e estilo

Esta revisão enfatiza o poder de coesão que há entre, de um lado,


o que está em função de sujeito e em posição de tópico e, de outro, o
verbo que constitui o núcleo do predicado. Nesta posição, o verbo – pode
conservar (que é o núcleo desse imenso predicado de quase quatro linhas)
– fica mais acessível na memória de curto prazo, que mais facilmente
pode recuperar como sujeito o PRI, que é o tema do parágrafo e tópico
da primeira frase. Já sabendo que há uma coalisão de partidos que podem
compor uma maioria, a memória se liberta da necessidade de manter o
mas na memória à espera do cumprimento da promessa de atenuar as
perdas do PRI. Saliente-se que o paralelismo, enfatizado pela repetição
do elemento coordenante – pode proclamar / pode conservar –, contribui
decisivamente para que a leitura identifique o sujeito, passando por cima
do sujeito e tópico da oração imediatamente anterior: a bancada.
A ordem direta contribuiu para a inteligibilidade da frase: o PRI, o
partido, a bancada, tópicos que expressam o tema em função de sujeito,
são retomados pelo “sujeito oculto” de pode conservar, o verbo, que é
núcleo do predicado; a maioria, que é o complemento; e com o Partido
Verde... 10 cadeiras, o adjunto adverbial. O tópico que se manifesta
no sujeito oculto já estava no início; o predicado é que foi posto em
ordem direta. Não só a ordem direta contribuiu para a inteligibilidade
mas também o ordenamento dos constituintes do predicado, que vem do
menor – a locução verbal pode conservar – passando pelo complemento
a maioria e chegando ao maior: o enorme adjunto adverbial, que começa
com com... e vai até ...suas 10 cadeiras.
Esta sequência mostra que uma adequada disposição dos constituin-
tes da frase precisa levar em consideração o tópico da frase, o sujeito,
a ordem direta e o tamanho relativo dos constituintes. Não se trata, no
entanto, de usar sistematicamente a ordem direta mas de manter o con-
trole do eixo da frase, isto é, de saber onde é mais adequado colocar
cada um dos constituintes. Vamos examinar estes trechos:

442
gramática e estilo

1 Quando entrei na pré-escola, aprendi algumas letras, mas creio que


foi ao ingressar na primeira série e lidar com textos que a minha von-
tade de ler qualquer palavra e as pronunciar corretamente começou.

Começou é o verbo da oração que tem um sujeito muito grande – a


minha vontade de ler qualquer palavra e as pronunciar corretamente.
Uma inversão de ordem pode deixar mais evidente que alguma coisa
começou e o que foi que começou:

1a Quando entrei na pré-escola, aprendi algumas letras, mas creio


que foi ao ingressar na primeira série e lidar com textos que co-
meçou a minha vontade de ler qualquer palavra e as pronunciar
corretamente.

O controle do eixo da frase é útil também para verificar outras rela-


ções além das sintáticas: nesta ordem, em que o verbo fica bem próximo
do seu sujeito, mais facilmente pode surgir questionamento a respeito
da adequação de um ao outro: vontade é uma coisa que começa? E, se
começa, também termina? Não será uma coisa que apenas surge se for
provocada? Enfim...

2 Lamentavelmente, o entendimento de que uma turma de progressão


seria um espaço diferenciado para acolher os alunos que apresen-
tassem grandes dificuldades procurando atendê-los em termos de
socialização e de aprendizagem a fim de que fossem reenturmados
o mais brevemente possível em turmas regulares, deixou de ser um
consenso.

O sujeito, mesmo ocupando quase quatro linhas, o que já pode criar


problemas para o leitor, ainda é legível, e uma inversão de ordem com
o relativamente pequeno predicado – deixou de ser um consenso – pode
aumentar a legibilidade desse sujeito e da frase:

443
gramática e estilo

2a Lamentavelmente, deixou de ser um consenso o entendimento


de que uma turma de progressão seria um espaço diferenciado para
acolher os alunos que apresentassem grandes dificuldades procurando
atendê-los em termos de socialização e de aprendizagem a fim de que
fossem reenturmados o mais brevemente possível em turmas regulares.

Há quem não goste de frases grandes, nem mesmo das que são,
mesmo assim, legíveis. Há quem estabeleça um limite de até três linhas
como ainda aceitável, o que não deixa de ser um critério sensato, pois
é bem possível que seja menos trabalhoso dividir uma frase grande do
que torná-la legível. Vamos tentar, mas sem ficar semeando pontos pelo
caminho, como, muitas vezes, simplificam os jornalistas.

2b Já houve o consenso de que os alunos que apresentassem grandes


dificuldades de socialização e de aprendizagem deveriam ser aco-
lhidos em turmas de progressão antes de serem reenturmados em
turmas regulares. Lamentavelmente, esse consenso deixou de existir.

Temos agora uma frase de duas linhas e meia e uma frase menor.
Fica melhor assim?

3 Acho que o texto termina meio abruptamente, mas, enfim, nota-se


que a semente dessa reflexão a respeito do ensino a partir da expe-
riência própria está plantada.

A oração que vem depois de nota-se que também melhora com


uma inversão de ordem entre sujeito e predicado:

3a Acho que o texto termina meio abruptamente, mas, enfim, nota-se


que está plantada a semente dessa reflexão a respeito do ensino a
partir da experiência própria.

4 Mesmo nesse ambiente restrito e limitado de aprendizado de Língua


Portuguesa e também de Literatura, visto que o ensino de Literatura

444
gramática e estilo

foi reduzido de tal maneira que alguns estudantes pensam ser a lite-
ratura, em toda sua grandiosidade, o mero ensino das características
de cada escola literária e as obras escritas em cada época, decidi
cursar Letras.

A frase tem, no início, uma oração subordinada concessiva (que


apresenta uma presumível objeção à assertiva formulada na oração
principal) à qual está encadeada uma justificativa (também em forma de
oração subordinada) para um dos julgamentos feitos nessa oração inicial.
Essa justificativa, por sua vez, se encadeia numa outra subordinada que
apresenta uma consequência do que essa justificativa alega para, só então,
ao fim da quarta linha, chegar à oração principal, de três palavras: verbo
(decidi cursar) e complemento (Letras). Esse longo adjunto adverbial não
é só longo; é também bastante complexo. A ordem direta vai não apenas
colocar a oração principal no início da frase; vai também reestabelecer
o eixo da frase: sujeito (eu, expresso na desinência do verbo) – verbo –
complemento – adjunto adverbial:

4a Decidi cursar Letras mesmo nesse ambiente restrito e limitado


de aprendizado de Língua Portuguesa e também de Literatura, visto
que o ensino de Literatura foi reduzido de tal maneira que alguns
estudantes pensam ser a literatura, em toda sua grandiosidade, o
mero ensino das características de cada escola literária e as obras
escritas em cada época.

Neste caso, esta recomposição acabou por deixar bem claro que
esta frase precisa mais do que apenas esta retificação de ordem: não fica
claro por que o aprendizado de Língua Portuguesa é anteposto ao de
Literatura, já que a frase só trata do ensino de Literatura. Também não
fica clara a relação que a frase quer estabelecer entre o eu que a enuncia
e os alguns estudantes que pensam ser a literatura... O controle do eixo
da frase tem também a virtude de revelar com maior clareza problemas
mais graves do que simplesmente a ordem dos constituintes. Sendo assim,

445
gramática e estilo

o melhor é não insistir no conserto de uma frase; trata-se de questionar


a unidade temática do texto, para começar.

5 Acredito que tudo que faça o aluno se envolver com a obra, que
faça ele tirar da cabeça o pensamento de que não vai servir para
nada o que ele está aprendendo é válido.

Assim como está, o leitor é obrigado a descartar a hipótese de que


é válido é o predicado da última oração – o que ele está aprendendo é
válido – para, só então, considerar que é o predicado das orações co-
ordenadas que funcionam como o complemento de acredito. Isso não
aconteceria se o predicado estivesse no começo da primeira das orações.

5a Acredito que é válido tudo que faça o aluno se envolver com a


obra, que faça ele tirar da cabeça o pensamento de que não vai servir
para nada o que ele está aprendendo.

Exercício 50

Examine estas frases do ponto de vista de seu encadeamento para


verificar se há problemas nas articulações de tópico-comentário e de
sujeito-predicado.
1. Foi em jornal que li sobre um astro do rock que consagrei meu
ídolo no período inicial da adolescência: Jim Morrison, vocalista e letrista
da banda The Doors, que também publicou poesia em livro. Tocador de
violão que já havia sido fanático por Raul Seixas e que idolatrava Bea-
tles, passei a ouvir músicas e a ler tudo que estivesse relacionado a Jim
Morrison – um beberrão de primeira, a propósito.
2. Discussões e avaliações movidas pelo espanto que envolve ques-
tões relativas à (in)eficácia do ensino de leitura e escrita na escola no
precário quadro da educação no Brasil não são novidade.

446
gramática e estilo

3. Posso dizer que o meu grande mérito foi conseguir provocar o gos-
to pela leitura nos alunos, pois há importância de ler para nos tornarmos
pessoas críticas reflexivas diante da realidade que está em nossa volta e
formar cidadãos responsáveis e atuantes na sociedade que se apresente.
4. Muitas coisas do meu aprendizado como aluno de português se
perderam durante esses anos, mas, assim como algumas lembranças se
perdem outras sempre ficam guardadas, consciente ou inconscientemente,
e acabam aflorando, por isso acho bem possível que ao tentar ensinar aos
meus alunos pode surgir uma maneira originalmente minha ou simples-
mente plagiada de um ou outro professor que tive, então, vai me restar
contar aquilo que ainda me lembro das minhas aulas de português mesmo
não sabendo se produzi um conhecimento ou o reproduzi.
5. Eu, em minha curta existência de 21 anos, posso dizer que
foram bem vividos, e foram várias as situações em que considerei um
bom aprendizado, e tive angariado conhecimento e experiência para os
diversos percalços e alegrias da vida.
6. De forma que seja possível a estes jovens encontrarem, enfim,
uma única razão para a vida em sociedade: a possibilidade de enriquecer
enquanto ser humano e a chance de poder criar seus filhos no país que
todos nós um dia sonhamos.
7. Nos próximos quatro anos, o povo brasileiro esperará que o país
passe por uma mudança, agora que trocou de governo o povo está mais
esperançoso.

5.1.3 Construção de tópico

Vamos examinar estas frases:

1 Meu carro furou o pneu.


2 A Joana eu vi ela ontem.
3 Tinta tem um monte ainda.

447
gramática e estilo

4 O que eu como, ganho de bunda, barriga e culote.


5 Pretensão e água benta cada um dá o que tem.

Nestas frases podemos identificar perfeitamente de que(m) se fala


e o que se diz a respeito de que(m) se fala: a respeito do meu carro se
diz furou o pneu; a respeito de Joana se diz eu vi ela ontem; a respeito
de tinta se diz tem um monte ainda; a respeito de o que eu como se diz
ganho de bunda, barriga e culote; a respeito de pretensão e água benta
se diz cada um dá o que tem. Ouvimos todo o tempo frases como estas
e todo o tempo falamos frases como estas sem nos perguntarmos pelo
sujeito e pelo predicado delas. Os tópicos destas frases – o meu carro, a
Joana, tinta, o que eu como, pretensão e água benta – são assim caracte-
rizados na NGPB: “sintagmas nominais anacolúticos, ou seja, fragmentos
soltos, sem conectividade sintática com o resto [...] que fornecem um
quadro de referências para o que vai ser elaborado no texto, atuando na
hierarquização tópica” (CASTILHO, 2010, p. 279). Ou seja: são tópi-
cos sem serem sujeitos nem fazerem parte do predicado. As frases em
que esses fragmentos soltos aparecem como tópicos são chamadas de
construções de tópico.

Pontes (1987) dispõe o PB entre as línguas tanto de tópico


quanto de sujeito proeminente. Essa explicação remete a
duas tipologias linguísticas distintas: (i) línguas de tópico-
-comentário, em que as funções sentenciais não dispõem
de marcas de caso, e (ii) línguas de sujeito-predicado, em
que ocorre essa marcação. Eunice Pontes está dizendo que
o PB ocupa uma posição intermediária entre esses dois
extremos. Com isso, a gramática do PB teria aberto espaço
tanto para as construções de tópico-comentário quanto
para as construções de sujeito-predicado (CASTILHO,
2010, p. 279).

Nós sabemos disso porque todos nós falamos construções tanto de


tópico-comentário quanto de sujeito-predicado. Todos nós: os exemplos

448
gramática e estilo

de construção de tópico que Eunice Pontes47 reuniu para o seu estudo


neste livro citado na NGPB foram frases faladas por seus colegas pro-
fessores do curso de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), ou seja, por falantes não só cultos mas também especialmente
conscientes do que falam.
Quando, no entanto, lemos uma frase como esta, não nos sentimos
assim tão em casa:

Nosso planeta Terra no princípio nele havia ar puro, terras férteis


e águas cristalinas.

Mesmo não tendo dúvida de que esta frase trata de nosso planeta
Terra e assevera que nele havia ar puro, terras férteis e águas cristalinas,
muito provavelmente vai nos ocorrer de perguntar pelo sujeito e pelo
predicado e é bem possível também que nos ocorra de sugerir alguma
revisão, como esta, por exemplo:

No nosso planeta Terra, no princípio, havia ar puro, terras férteis e


águas cristalinas.

Aprendemos na escola que haver forma frases sem sujeito; por isso,
acrescentamos em (no) para impedir que nosso planeta Terra pareça o
sujeito da frase e suprimimos nele, que repete a referência ao planeta.
Para evitar também a muito evidente repetição do no, podemos deslocar
no princípio e eliminar o artigo eliminável:

Em nosso planeta Terra havia, no princípio, ar puro, terras férteis


e águas cristalinas.

Se nosso planeta não for o tema mas o âmbito em que o texto trata
a passagem do tempo, podemos topicalizar no princípio:

47 PONTES, Eunice. O tópico no português. Campinas: Pontes, 1987.

449
gramática e estilo

No princípio havia ar puro, terras férteis e águas cristalinas em


nosso planeta Terra.

Em que circunstância o tópico seria no princípio e não nosso pla-


neta? No caso do tema ser a passagem do tempo ou a degradação da
atmosfera, por exemplo:

No princípio havia ar puro, terras férteis e águas cristalinas em nosso


planeta Terra, mas, a partir da segunda metade do século XIX, a
produção industrial começa a expandir-se pelo mundo e a degradar
o meio ambiente.

Sermos sempre tentados a nos dar esse trabalho de revisão em bus-


ca de um ajuste que faça aparecer um sujeito e um verbo que com ele
concorde mostra que, afinal de contas, houve algum sucesso no ensino
escolar da língua escrita centrado nas prescrições gramaticais: as aulas
de Português conseguiram, pelo menos, botar o sujeito e o predicado a
assombrarem permanentemente a escrita e a leitura de todos nós. Ga-
nhamos com isso? Vamos ver o que nos diz o exame destas construções
de tópico:

1 Político é difícil o que fala a verdade e só quer saber de receber


dinheiro do povo.

O tema, em posição de tópico, é político. O que vem a seguir – é


difícil – é o predicado do sujeito que o segue, composto por duas orações
coordenadas – o que fala a verdade e só quer saber de receber dinheiro
do povo: essa criatura é difícil. O tópico, portanto, não é o sujeito nem o
complemento: e só tópico. Se a frase tivesse enunciado apenas político é
difícil o que fala a verdade, essa formulação coloquial (é difícil significaria
algo como é difícil de achar) passaria tal qual passam aquelas frases faladas
do nosso exemplo inicial, mas o que dá pra entender de político é difícil o
que só quer receber dinheiro do povo contradiz o que o autor da frase quis

450
gramática e estilo

dizer, ou seja, estamos, no mínimo, diante de um caso de falso paralelismo.


O conserto da frase exigiria um outro predicado pra esse sujeito:

1a Político é difícil o que fala a verdade e não está só interessado


em receber dinheiro do povo.

A frase assim, pelo menos, deixa de se contradizer; continua, no


entanto, chafurdando no lugar-comum; por isso, não vale a pena gastar
mais energia com ela.

2 O desmatamento na beira dos rios, bueiros entupidos; quando vem


chuva, enche tudo de lixo.

Um otimista da espontaneidade poderia ver quase um poema neste


mero encadeamento de malfeitos e fenômenos naturais. De fato, dois
eneassílabos cercando uma quase redondilha maior dão um certo ritmo
à frase, e bueiro e beira promovem uma certa aliteração. Já um professor
realista não deixaria de reparar na distância geográfica que separa os
bueiros da beira dos rios e conjeturar o que seria exatamente o tudo que
se enche de lixo. A frase mesmo não dá muitas indicações a respeito de
que tópico quer comentar.

3 Qualquer ramo profissional que se pensa em seguir o mercado de


trabalho pode ou não estar saturado.

Dá pra entender que o tema é o mercado de trabalho de qualquer


ramo profissional que se pensa seguir e que o rema é pode ou não estar
saturado, o que pode com igual clareza ser expresso simplesmente por
pode estar saturado. Aquele redundante ou não é, na verdade, mais pro-
blemático do que a construção de tópico. Conviria, além disso, botar uma
vírgula para marcar o tópico evitando a possibilidade de se ler mercado
de trabalho como complemento de seguir, já que esses dois constituintes
não estão em relação contígua de tema e rema:

451
gramática e estilo

3a Qualquer ramo profissional que se pensa em seguir, o mercado


de trabalho pode estar saturado.

Também vai haver quem queira restabelecer a relação substantivo-


-adjetivo que há entre os sintagmas que expressam o tópico, indo direto
ao assunto:

3b O mercado de trabalho de qualquer ramo profissional que se


pensa em seguir pode estar saturado.

Quem lembra da lição a respeito do ordenamento dos constituintes


do menor para o maior pode querer fazer essa alteração de ordem:

3c Pode estar saturado o mercado de trabalho de qualquer ramo


profissional que se pensa em seguir.

4 A pastinha do cursinho trocaram pela do curso escolhido na uni-


versidade.

O tema está expresso pelo tópico a pastinha do cursinho, que foi


trocada por outra e que, neste modo de expressar um sujeito genérico pela
terceira pessoa do plural, não é o sujeito. Seria o sujeito numa construção
de voz passiva uma boa solução pra quem não quer legitimar este tipo
de construção de tópico?

4a A pastinha do cursinho foi trocada pela do curso escolhido na


universidade.

Esta construção, no entanto, seria mais adequada num texto sobre a


pastinha e não sobre os que trocam uma pastinha por outra e outras coi-
sas por outras: na versão anterior, o trocaram mantém a presença deles.
Semelhantes a esta são as frases que seguem:

452
gramática e estilo

5 Os característicos físicos dos negros importados para o Brasil,


é interessante seguir através da linguagem pitoresca do povo, nos
anúncios de compra e venda de escravos para o serviço doméstico
ou agrícola.

6 A arte de sangrar, exerceram no Brasil colonial escravos africanos,


que foram também barbeiros e dentistas.

7 O livrinho de missa nem sempre sabiam ler.

Nos três casos, o que temos é um tópico que não é o sujeito da frase
– (5) os característicos físicos dos negros importados para o Brasil, (6)
a arte de sangrar, (7) o livrinho de missa. Os sujeitos são estes: na frase
5, a oração que começa com seguir e vai até o fim da frase: isso tudo é
que é interessante; na frase 6, o sintagma que começa em escravos afri-
canos e vai até dentistas: foram eles que exerceram a arte de sangrar;
na frase 7, aquela(s) indeterminada(s) criatura(s) indicada(s) pelo plural
de sabiam: ela(s) é que não sabia(m) ler.
Não foi bem assim que Gilberto Freyre escreveu estas frases em
Casa-grande & senzala. Vamos, então, ver as frases originais:

5a Os característicos físicos dos negros importados para o Brasil, é


interessante segui-los através da linguagem pitoresca do povo, nos
anúncios de compra e venda de escravos para o serviço doméstico
ou agrícola.

6a A arte de sangrar, exerceram-na no Brasil colonial escravos


africanos, que foram também barbeiros e dentistas; e o mister de
parteiras, exerceram-no, ao lado de brancas e caboclas, negras nas
mesmas condições.

7a O livrinho de missa nem sempre se sabia ler.

453
gramática e estilo

Nunca ninguém deplorou este tipo de construção de tópico que


retoma o tópico por meio de um pronome átono enclítico: em 5, segui-
-los (os característicos físicos); em 6, agora completa, exerceram-na (a
arte de sangrar) e exerceram-no (o mister de parteiras); em 7, se, outro
modo de indicar criaturas indeterminadas.
De fato, pronomes átonos encliticamente localizados são verda-
deiros atestados de pertinência ao padrão da língua escrita. É um truque
que a gente poderia usar naquela frase sobre a pastinha do cursinho, se
não nos parecer ridícula essa frase coloquialzinha assim, fantasiada de
ruibarbosa: A pastinha do cursinho trocaram-na pela do curso escolhido
na universidade.
Além desse pronome normatizador, Gilberto Freyre, (um escritor
consagrado na opinião dos gramáticos ativistas da circunscrição e pro-
moção de uma língua escrita padrão para a adoção de todos nós) usa
aquela vírgula que delimita o tópico.

5 Os característicos físicos dos negros importados para o Brasil, é


interessante segui-los...

6 A arte de sangrar, exerceram-na no Brasil colonial...; e o mister


de parteiras, exerceram-no, ao lado...

7 O livrinho de missa nem sempre se sabia ler.

Na frase 7, que é pequena e tem um tópico pequeno, ele não usa


a vírgula (ou foi o revisor que regularizou?). Não usar essa vírgula em
tópicos pequenos é um bom critério porque o olho do leitor enxerga tudo
numa só visada, sem vírgula; deixemos, pois, a pastinha do cursinho sem
vírgula. É claro que, se houver a necessidade de separar duas coisas que
criariam problema de leitura se ficassem encadeadas, a gente vai usar
a vírgula mesmo em tópicos pequenos, tal como acontece nesta frase
cantada por João Bosco:

454
gramática e estilo

O amor quando acontece a gente esquece logo o que sofreu um dia.

Podemos dizer que o tópico aqui é o sintagma nominal composto


por um substantivo definido pelo artigo o – o amor – e restringido pela
oração adjetiva quando acontece. O comentário é uma oração que diz
o que é que acontece quando o amor acontece: a gente esquece logo
o que sofreu um dia. Ninguém teria a insensatez de propor a correção
gramatical do verso de uma canção, que precisa da rima e da métrica
pra funcionar como poema e pra soar junto com a melodia. Além disso,
a frase é sobre o amor em uma de suas mais sublimes manifestações: o
seu acontecer. Nesse caso, não teria cabimento algum a topicalização de
a gente, por exemplo: A gente esquece logo o que sofreu um dia quando
acontece o amor.
Na verdade, a gente é um nós tão genérico que não é um bom tema,
especialmente numa frase em que concorrem esquecimento, amor e
sofrimento. Ou seja, se era para falar de uma das mais nefastas e mais
benéficas consequências do amor, o poeta acertou na mosca. E se essa
mesma frase fizesse parte de um trecho de prosa expositiva, não teria
direito a métrica e rima? E escrito tal qual, seria um caso de vírgula para
marcar o tópico? O amor quando acontece, a gente esquece logo o que
sofreu um dia. Seria, sim, para impossibilitar a leitura de a gente como
um complemento de acontece: o amor quando acontece a gente...
E não venham dizer que só os poetas podem atribuir um objeto
direto a um verbo intransitivo; prestando bem atenção, a gente vê que
todo mundo faz isso de vez em quando. Registre-se que não vai faltar
quem ache que, sendo assim, por que não botar quando acontece entre
vírgulas? O amor, quando acontece, a gente esquece logo o que sofreu
um dia. Seja lá como for que alguém tenha escrito isso, pra nós, que ou-
vimos, João Bosco só cantou, e isso é bom pra gente parar de dizer que
a vírgula é uma pausa: a vírgula é pros olhos, e a pausa é pros ouvidos.

455
gramática e estilo

Exercício 51

Vamos, então, fazer um exercício de decidir entre adequar a constru-


ção de tópico aos costumes da língua escrita ou fazer bom uso da maior
expressividade angariada para o texto pelo uso da construção de tópico
tal qual ela foi gerada pela oralidade do escritor; consideremos, também,
a adequação da vírgula para marcar o tópico:
1. Saber como as pessoas organizam-se para lutar por seus objetivos
são poucos os que têm essa oportunidade.
2. A vitrine, dependendo do humor da proprietária, arrumamos
várias vezes por dia, além do fato dos clientes adorarem as roupas dos
manequins e, por isso, temos que desmontar tudo e montar de novo.
3. Depois, Mafalda em espanhol, que eu adorava porque o que eu
não conseguia ler, inventava um sentido e ficava divertido do mesmo
jeito, às vezes até melhor.
4. Cheguei a cursar Engenharia Civil, Ciências Contábeis, Biologia
e Turismo. Nenhum destes cursos eu passei do terceiro semestre.
5. As madeireiras que cortam as árvores por causa do dinheiro, e
depois nas encostas dos rios.
6. Se a profissão que queremos, o campo de trabalho não está satu-
rado, se trará satisfação pessoal e a parte financeira.
7. Dois anos de reprovação na mesma série e mais as outras possi-
bilidades de greves, eu decidi terminar o ensino médio em um supletivo
particular.
8. Era tarefa minha também preparar cartazes sobre a campanha da
fraternidade. Os primeiros minha mãe ajudou a confeccionar depois eu
fui fazendo sozinha.

456
gramática e estilo

5.1.4 Começo, meio e fim

Já vimos que o encadeamento dos constituintes na frase deve levar


em consideração a combinação das relações entre:
a) tema – de que(m) se fala – e rema – o que se diz a respeito de
que(m) se fala;
b) tópico – o que está no início da frase – e comentário – o que
vem depois;
c) sujeito – o sintagma nominal que aciona a concordância verbal e
pode ser o tema, o tópico ou o tema e o tópico ou nada disso – e predica-
do – o sintagma verbal que está vinculado ao sujeito pela concordância.
Vamos, agora, especificar um pouco mais esses critérios de distri-
buição acrescentando as noções de (d) ênfase e de (e) foco. Ênfase está
relacionada à constatação de que têm maior dinamismo comunicativo os
constituintes localizados no fim do sintagma, como no caso da distinção
entre atentos alunos, em que atentos não chega a distinguir um grupo de
alunos dentro do conjunto dos alunos, em contraste com alunos atentos,
que fica claro que alguns – nem todos – alunos são atentos.
A ênfase pode estar em um constituinte da oração, de acordo com
diferentes disposições desses constituintes:

Chegou finalmente o dia de minha libertação.

O dia de minha libertação finalmente chegou.

Está também em um constituinte da frase:

Sem esperar pelo pronunciamento da justiça, os fazendeiros da região


contrataram pistoleiros para expulsar os sem-terra que invadiram
a Fazenda Santa Rita.

457
gramática e estilo

Os fazendeiros da região contrataram pistoleiros para expulsar os


sem-terra que invadiram a Fazenda Santa Rita, sem esperar pelo
pronunciamento da justiça.

No fim de cada uma das duas frases deste trecho, há uma expressão
deslocada para o fim com a finalidade de produzir ênfase:

Conheci uma intelectualzinha dessas, numa escola em que trabalhei,


que vivia com livros embaixo do braço, cada semana com um livro
novo. Na época em que o “Código Da Vinci” era assunto de programa
de televisão, essa minha colega não largava esse livrinho nem para
ir ao banheiro, sempre com a capa virada pra fora.

Foco é o destaque, a evidência, que se pode dar a um constituinte


que não está nem no início nem no fim da frase. Vamos comparar:

Na fronteira passamos dez dias escondidos no mato.

Na fronteira passamos nada mais nada menos do que dez dias es-
condidos no mato.

A expressão nada mais nada menos lança um foco sobre o que vem
depois, os dez dias escondidos no mato.
A expressão é que produz o mesmo efeito sobre o constituinte que
vem antes dela:

Aquela foi uma turma incomum: eu preparei minha primeira aula e,


mal comecei a expor os fundamentos, vieram as perguntas. Todos
faziam perguntas, eu respondia como podia e, depois da aula, eu
fazia a lista do que eu precisava estudar mais. Na aula seguinte, eu
retomava, e vinham mais perguntas, e, depois da aula, outra lista e
mais estudo. Agora, está muito claro para mim que eles é que esti-
veram no comando o tempo todo.

458
gramática e estilo

Vamos examinar esta outra construção de tópico, que nos fornece um


interessante material para especificar os critérios pelos quais distribuir os
constituintes da frase ao longo do encadeamento das palavras que a formam:

É engraçado porque muitos professores nós, alunos, esquecemos o


nome e a fisionomia.

Bem no início da frase, um modalizador48, a expressão é engraçado


porque (que, na língua que falamos, ressalta uma peculiaridade e não
necessariamente algo que leva ao riso) anuncia a avaliação que o autor
faz do que vai formular a seguir. Segue-se o tema – muitos professores
– que, por ter forma de sintagma nominal, candidata-se a sujeito. O que
vem a seguir, grudado em muitos professores, é nós, o que nós, leitores,
não lemos como um constituinte do mesmo sintagma, ou seja, temos
outro candidato a sujeito, que – logo depois de ficarmos sabendo quem
somos nós (nós somos alunos) – descobrimos que é o sujeito, por causa
da forma do verbo que lemos a seguir (esquecemos).
A esta altura, é claro que também já entendemos o que a frase quer
dizer: a peculiaridade – o que é engraçado – é o fato de que alunos esque-
cem o nome e a fisionomia de muitos professores. Muitos professores, no
entanto, não é nem o sujeito da frase nem o complemento do verbo, que
é o nome e a fisionomia. Aquilo que as aulas de Português, de fato, nos
ensinaram nos leva, então, a propor uma revisão, como esta, por exem-
plo, que transforma os professores num ajunto adnominal de fisionomia:

É engraçado, porque nós, alunos, esquecemos o nome e a fisionomia


de muitos professores.

Descobrimos, então, que, com essa preposição na frente, os muitos


professores podem voltar a ser o tema da frase sem o risco de serem
tomados por sujeito dela:
48 Modalizador é, como esclarece a frase, uma expressão que faz uma avaliação do que está
sendo dito pela frase.

459
gramática e estilo

É engraçado, porque de muitos professores nós, alunos, esquecemos


o nome e a fisionomia.

Desse modo, a frase pode ter como tópico o tema de que queria tra-
tar, isto é, da peculiaridade de serem os professores esquecidos, sem ser
obrigada, para adequar-se à sintaxe da língua escrita, a tratar dos alunos
que esquecem. Essa ordem nos possibilita também enfatizar, no fim da
frase, o nome e a fisionomia, ou seja, exatamente as coisas esquecidas,
e não os imprecisos portadores dessas coisas como na versão anterior.
Se, entretanto, o autor da frase não quiser enfatizar nem o nome nem a
fisionomia mas o esquecimento, ele pode dar um outro equacionamento
a essa cadeia:

É engraçado, porque há muitos professores cujos nomes e fisionomias


nós, alunos, esquecemos.

Esta versão, além de incentivar os entusiastas da campanha Salvem o


cujo, mantém no tópico o modalizador – é engraçado, porque – e o tema
– há muitos professores – e bota ênfase, no fim, em esquecemos como a
informação mais importante, a mais relevante, aquilo que o leitor ainda não
sabia e que precisa ficar sabendo para botar o mais adequado sentido na
frase que acabou de ler e na que vem depois desta ou, se esta for a última
do texto, considerar a partir dela o que o texto disse. No meio, fica o que
articula uma coisa com a outra: nomes e fisionomias e nós, alunos.
Sujeito, predicado, tópico, comentário, ênfase e foco em alunos,
entre vírgulas, interrompendo a cadeia no ponto em que o sujeito e o
verbo iam se encontrar: um manejo hábil e consciente desta combinação
leva a um encadeamento mais esclarecedor. A posição entre vírgulas,
especialmente de constituintes de tamanho pequeno, que podem ser
vistos na mesma visada com o que vem antes e o que vem depois, é um
recurso muito eficaz para pôr o constituinte em foco. Vamos examinar
esta outra frase:

460
gramática e estilo

Quando, finalmente, aprendi a ler, no final da pré-escola, lembro


que fiz um tratamento de saúde muito sofrido.

Temos aí, entre vírgulas, finalmente e no final da pré-escola. Final-


mente está intercalado entre a conjunção que inicia a frase – quando – e
o predicado da frase: aprendi a ler, no final da pré-escola; no final da
pré-escola, por sua vez, está intercalado entre a oração subordinada e a
principal, que é lembro que fiz um tratamento de saúde muito sofrido.
As vírgulas que marcam finalmente decorrem de uma consideração
simplificadora e meramente sintática: o fato de estar deslocado. Já as
vírgulas que marcam no final da pré-escola decorrem de três fatores: (1)
dessa posição intercalada; (2) do seu tamanho: três palavras e uma delas
composta; (3) de sua não restritividade com relação ao tempo.
O que está entre vírgulas evidencia-se mais, ganha mais foco do que
aquilo que não está entre vírgulas. Por causa disso é que se recomenda
que não se ponha finalmente entre vírgulas: esse advérbio curto não me-
rece destaque, e as vírgulas fariam o leitor perder o seu precioso tempo
conjeturando a respeito do motivo que teria levado o autor a focar o que
não lhe parece assim tão relevante.
Já às vírgulas de um lado e de outro de no final da pré-escola, o leitor
vai atribuir a função tradicional de indicar que, depois dessa marcação de
circunstância, a frase continua a dizer algo a respeito do que vem antes
do que está entre essas vírgulas. E o que vem depois das vírgulas? Vem
o verbo da frase, que não está na mais adequada das posições já que o
verbo se refere também ao que vem antes dele e não apenas ao que vem
depois. É o que fica muito claro se pusermos a frase em ordem direta:

Lembro que fiz um tratamento de saúde muito sofrido quando final-


mente aprendi a ler no final da pré-escola.

A ordem direta nos ajuda a botar em ordem a frase, isto é, a identifi-


car com clareza os constituintes que estamos mobilizando, o que, por sua

461
gramática e estilo

vez, nos dá maior clareza para decidirmos o que queremos topicalizar, o


que vamos predicar e o que nos interessa enfatizar, que pode ser o que
não está enfatizado na versão anterior:

Lembro que, quando finalmente aprendi a ler no final da pré-escola,


fiz um tratamento de saúde muito sofrido.

Vamos examinar estas frases:

1 Texto em haver é, para o professor de Português, cuja tarefa é


letrar os seus alunos, isto é, ensinar os seus alunos não só a ler mas
também a escrever, todo texto produzido por cada um dos seus alunos.

O tema em posição de tópico é texto em haver, que também é o


sujeito da frase, e a inclusão anunciada pelo verbo é só se revela no fim
da frase: todo texto produzido por seus alunos. Intercalados entre esse
verbo e esse predicativo está um adjunto adverbial com uma oração
adjetiva interna: para o professor de Português, cuja tarefa é letrar
os seus alunos, isto é, ensinar os seus alunos não só a ler mas também
escrever. A distância entre o tema-tópico- sujeito e o núcleo do rema-
-comentário-predicado é muito grande, e, além disso, a proximidade entre
ler e escrever e texto lá no fim da frase pode criar alguma confusão para
o leitor. Seria o caso de repensar a ordem em que a frase se encadeia:

1ª Texto em haver é, para o professor de Português, todo texto pro-


duzido por cada um dos seus alunos porque a tarefa do professor de
Português é letrar os seus alunos, isto é, ensiná-los não só a ler mas
também a escrever.

Esta versão mantém o sujeito como tópico e aproxima sujeito e


predicado diminuindo o tamanho da intercalação e apresentando a tarefa
não como um atributo do professor mas como uma razão, um fundamento
para a inclusão dos textos dos alunos no conjunto dos textos em haver.

462
gramática e estilo

Como a frase assevera que essa definição tem vigência na relação pro-
fessor-aluno, essa condição pode ser estabelecida desde o início da frase:

1b Para o professor de Português, cuja tarefa é letrar os seus alunos,


isto é, ensiná-los não só a ler mas também a escrever, todo texto
produzido por cada um deles é um texto em haver.

Esta versão estabelece todas as condições em que tem vigência a


definição que vai apresentar e passa para o fim da frase a expressão já
definida. Texto em haver deixa de ser o tópico mas ganha em ênfase
porque todo o esforço da frase levou até essa expressão, que, muito pro-
vavelmente, vai ser retomado pela frase seguinte. Dado o tamanho e a
relativa complexidade da frase, o autor pode ainda avaliar a possibilidade
de abrir mão daquela definição interna que se resume a apresentar um
sinônimo de um termo referente ao contexto e que concorre dispersiva-
mente com a definição-tema:
1c Para o professor de Português, cuja tarefa é ensinar seus alunos
não só a ler mas também a escrever, todo texto produzido por cada
um deles é um texto em haver.

Cabe ainda chamar atenção para a expressão cada um, que, em 1b


e 1c, bota em foco os alunos, que não são considerados em massa mas
na individualidade de cada um deles.

2 Tenho uma vaga lembrança de como comecei a escrever. Lembro


de quando ingressei no antigo primeiro ano, pois não havia Jardim,
com seis anos de idade, que eu já fazia alguns riscos no caderno.

As duas frases estão mal amarradas: a primeira trata da lembrança,


e a segunda começa repetindo lembro, e a distância entre esse lembro e o
que é lembrado (com relação a escrever, que é o tema da frase) é muito
grande. É maior ainda com relação à vaga lembrança. É possível que
uma única frase organize melhor o que há para contar:

463
gramática e estilo

2a Tenho uma vaga lembrança de como comecei a escrever: quando


ingressei no antigo primeiro ano, com seis anos de idade (naquele
tempo não havia Jardim), eu já fazia alguns riscos no caderno.

Como a última oração afirma eu já fazia alguns riscos no caderno,


não se trata de uma vaga lembrança de como o autor da frase começou a
escrever porque esses riscos são anteriores à lembrança; o que ele tem é
uma lembrança apenas vaga. A utilidade maior de escrever é descobrir
o que é exatamente que se tem pra dizer. Vamos tentar adequar a frase
ao esclarecimento trazido pela releitura da versão original:
2b Tenho uma lembrança muito vaga de como comecei a escrever:
quando ingressei no antigo primeiro ano, com seis anos de idade (na-
quele tempo não havia Jardim), eu já fazia alguns riscos no caderno.

Aqui também o autor pode repensar a necessidade do que está entre


parênteses: essa informação é relevante para o texto ou o autor acres-
centou porque julga que está na tradicional pauta obrigatória do tema do
texto que está escrevendo? Há também uma inadequação ou, no mínimo,
uma imprecisão a ser revisada: a primeira frase anuncia o modo – como
comecei a escrever –, mas o que vem depois dos dois-pontos é um
quando, que introduz uma dimensão de tempo. Só lá pro fim da frase é
que aparece o modo: alguns riscos no caderno. Se, de fato, o autor quer
falar do modo, é bom evitar que o leitor julgue que a frase anuncia uma
coisa e fala de outra, mesmo que para isso seja necessário remover esse
modo – os riscos no caderno – da posição de ênfase:

2c Tenho uma lembrança muito vaga de como comecei a escrever: eu


já fazia alguns riscos no caderno quando ingressei no antigo primeiro
ano, com seis anos de idade.

Nessa ordem, o modo – os riscos – vem logo depois do anúncio:


como comecei a escrever, e a informação sobre o tempo relaciona-se só
a comecei a escrever.

464
gramática e estilo

3 Ao terminar o segundo grau, resolvi ficar um ano sem estudar, já


que todos diziam que eu estava cansada.

Esta frase faz parte do texto apresentado para revisão no capítulo


2, Encadeamento, e compõe o desenvolvimento de um tópico relativo
às crenças familiares a respeito dos males que o estudo pode causar a
quem se desmanda neles, como segue:

Na adolescência, a maior parte do tempo eu ficava com um livro nas


mãos. Minha mãe antes de dormir passava no meu quarto e mandava
desligar a luz para não aumentar a conta da CEEE. Todos diziam
que eu estudava demais e acabaria ficando doente.
Ao terminar o segundo grau, resolvi parar um ano já que todos diziam
que eu estava cansada.

O parágrafo anterior trata dessa crença, e esta frase (1) se refere a


essa crença – já que todos diziam que eu estava cansada –; (2) comunica
uma decisão tomada pela narradora por causa dela – resolvi parar um
ano –; e (3) indica o momento em que a decisão foi tomada: ao terminar
o segundo grau.
Como organizar essas três declarações numa frase? Há entre elas
uma ordem de causa e efeito – a crença provoca a resolução – e uma
ordem cronológica – a crença é anterior à resolução. São dois bons mo-
tivos para começar por uma – a que é anterior e causa – e terminar por
outra – a que vem depois e é consequência. O que é menos relevante – o
momento em que se deu a resolução – fica espremido no meio da frase:

3a Já que todos diziam que eu estava cansada, ao terminar o segundo


grau resolvi ficar um ano sem estudar.

4 As aulas de língua daquele ano somente foram salvas graças aos


poucos livros que tivemos que ler durante aquele ano mas que me
incitaram a procurar por diferentes leituras.

465
gramática e estilo

O mas opõe a obrigação (tivemos de ler) ao que a leitura provocou


(me incitaram a procurar). Muito provavelmente, a oposição que o autor
queria relatar é entre a pouca quantidade das leituras feitas e a variedade
das leituras a que, mesmo assim, levaram. Trata-se de colocar poucos
à direita do substantivo a que se refere, posição em que o adjetivo está
marcado de maior ênfase não só por causa disso mas também por ficar
no fim da oração em contraste com as diferentes leituras da próxima
oração. É claro que não há necessidade de repetir durante aquele ano,
que já está circunscrito por daquele ano.
4a As aulas de língua daquele ano somente foram salvas graças aos
livros que tivemos que ler, que foram poucos mas que me incitaram
a procurar por diferentes leituras.

5 Não tanto por causa da ortografia quanto pela legibilidade do que


eu punha no papel: esgotei uma série de cadernos de caligrafia sem
melhoras, para o desespero da professora.

A ordem dos constituintes pode levar o leitor a conceber dúvidas


a respeito do que desesperava a professora: assim como está, pode-se
interpretar que a professora se desesperava com o consumo de cadernos.
Para deixar bem claro que era ineficiência do exercício que perturbava a
professora, é melhor promover uma alteração de ordem:

5a Escrever era muito penoso nem tanto por causa da ortografia


quanto pela legibilidade do que eu punha no papel: para o desespe-
ro da professora, esgotei uma série de cadernos de caligrafia, sem
melhoras.

O desespero da professora fica topicalizado na oração, ou seja, o


que vem depois se refere a ele; na posição de ênfase está a relação entre
caligrafia e sem melhoras. O que se pode fazer ainda é pôr sem melhoras
sob um foco mais forte, entre vírgulas, intrometendo-se entre o verbo e
o seu complemento:

466
gramática e estilo

5b Escrever era muito penoso nem tanto por causa da ortografia


quanto pela legibilidade do que eu punha no papel: para o deses-
pero da professora, esgotei, sem melhoras, uma série de cadernos
de caligrafia.

6 Foi aí que descobri que, apesar de sermos muitos, e que existem


cada vez mais escolas atendendo a esse público, ninguém havia sido
formado para ensinar nessa situação, e todos ali, e nas demais escolas
do município, e por que não dizer, dos municípios pelo resto do Brasil,
também estavam sendo obrigados a viver essa mesma realidade, sem
sequer ter tempo e condições para se prepararem para enfrentá-la,
obrigando-se a seguir suas intuições e a resolver de qualquer forma
as urgências que o dia a dia nessas escolas impõem.

Há intercalações dentro de intercalações de tal modo que o leitor


perde o rumo da descoberta anunciada pelo eu que toma a palavra. Co-
meça a se perder logo no início desta copiosa frase: Foi aí que descobri
que..., e o que está intercalado encobre o que foi descoberto. Nessa
intercalação ocorre uma coordenação de dois termos: apesar de sermos
muitos, e que existem cada vez mais escolas atendendo a esse público.
Nessa coordenação, o segundo que indica que o coordenante é o
mesmo verbo: descobri que, apesar de sermos muitos e descobri que
existem cada vez mais escolas atendendo...; isso quer dizer que, antes
de dizer o que foi descoberto, a frase diz que outra coisa foi descober-
ta. A primeira coisa que foi descoberta está depois dessa intercalação:
descobri que ninguém havia sido formado para ensinar nessa situação.
Nesse caso, podemos regularizar aquela coordenação: apesar de sermos
muitos e de existirem cada vez mais escolas atendendo a esse público...
Depois disso, a frase pode seguir: Foi aí que descobri que, apesar
de sermos muitos e de existirem cada vez mais escolas atendendo a esse
público, ninguém havia sido formado para ensinar nessa situação. O que
segue começa com o tema topicalizado seguido de uma outra intercalação:
e todos ali, e nas demais escolas do município, e por que não dizer, dos

467
gramática e estilo

municípios pelo resto do Brasil, também estavam sendo obrigados a viver


essa mesma realidade. Neste caso, a recuperação do rema / predicado é
mais fácil: e todos ali... também estavam sendo obrigados a viver essa
mesma realidade. Como o intercalado se refere ao que está no fim deste
predicado, podemos transferir para lá o seu conteúdo:

Foi aí que descobri que, apesar de sermos muitos e de existirem cada


vez mais escolas atendendo a esse público, ninguém havia sido forma-
do para ensinar nessa situação, e todos ali estavam sendo obrigados a
viver essa realidade, que é a mesma das demais escolas do município
e – por que não dizer? – dos municípios pelo resto do Brasil.

A frase está dividida por um e; na primeira parte, o eu que nela


fala trata de um nós, que somos muitos, que, como sujeito da segunda
parte, se expressa como todos. Mesmo grande, esta frase mantém claras
as relações entre seus constituintes. O conteúdo que sobrou continua
tratando de todos e fica melhor em uma outra frase:

Sem sequer terem tido tempo e condições de se prepararem para


enfrentar a situação, foram obrigados a seguir suas intuições e a
resolver de qualquer forma as urgências que o dia a dia nessas
escolas impõe.

Com a concordância terem indicamos que o sujeito desta frase é


o mesmo da segunda parte da frase anterior; substituímos um dos para
por de, e o gerúndio obrigando-se por foram obrigados, para criar uma
oração principal e acertamos a concordância de impõe com dia a dia,
o seu sujeito no singular. Também não há porque manter uma primeira
frase tão grande:

6a Foi aí que descobri que, apesar de sermos muitos e de existirem


cada vez mais escolas atendendo a esse público, ninguém havia
sido formado para ensinar nessa situação. Todos ali estavam sendo
obrigados a viver essa realidade, que é a mesma das demais escolas

468
gramática e estilo

do município e – por que não dizer? – dos municípios pelo resto do


Brasil. Sem sequer terem tido tempo e condições de se prepararem
para enfrentar a situação, foram obrigados a seguir suas intuições
e a resolver de qualquer forma as urgências que o dia a dia nessas
escolas impõe.

Exercício 52

Organize início, meio e fim.


1. Hoje, na universidade, na Faculdade de Letras, continuo lendo.
Leio para num futuro próximo pôr em prática tudo o que aprendo com
as leituras que faço. Quero de fato mudar o mundo, nem que seja a um
aluno por vez. As experiências que tive com a língua escrita foram as
maiores influenciadoras da minha insatisfação com meus professores,
já que elas me mostraram que tudo pode ser melhor do que nos fazem
pensar que é, na escola. Estou feliz com isso, com minha insatisfação,
pois ela é parte de tudo o que sou, de tudo o que conquistei empiricamente
para chegar aonde estou.
2. Por último, antes de voltar completamente ao tema, devo deixar
claro que quando eu usar no texto a expressão nunca e sempre estarei
dizendo dos quatro anos em diante, até a entrada no curso de Letras, onde
algumas coisas mudaram, e dizer que vivemos em São Leopoldo durante
toda minha vida escolar, embora meus pais sejam do noroeste do RS e
eu também tenha nascido lá.
3. Ao longo da graduação, tive algumas disciplinas bem voltadas
para o estudo gramatical, mas a maior parte delas envolvia a leitura
de obras literárias (latina, portuguesa e brasileira), a leitura de textos
teóricos dentro da própria Literatura, dentro da Sociologia, Linguística,
Psicologia da Educação, etc. as quais me possibilitaram entender o ensino
de Português como um exercício que vai além da simples “decoreba”
de regras gramaticais, mas levar o aluno a entender a importância de se
dominar a língua, as estratégias usadas, por exemplo, por publicitários

469
gramática e estilo

para atrair seu público-alvo, os recursos utilizados por autores de livros


literários para elaborarem suas obras e discutirem de uma forma original
questões que envolvem a sociedade.
4. O início da minha história com a escrita/leitura da língua portu-
guesa não difere muito do usual, pelo menos em relação a jovens brancos
de classe média alta que acabam procurando se formar em algum curso
de humanidades: tinha bastante livros na minha casa, e eu era incentivado
a ler, recebendo de presente (de aniversário, natal, etc.) livros.

5.1.5 Efeitos colaterais do encadeamento

Já examinamos alguns critérios para determinar a colocação nas


frases que escrevemos; nesta seção, vamos tratar de efeitos colaterais
da colocação e de alguns dispositivos historicamente criados para evitá-
-los, entre eles, a pontuação. Vamos examinar esta outra frase da revista
Carta Capital, de 27 de setembro de 2006, a respeito das repercussões
do pronunciamento do papa Bento XVI sobre a violência de Maomé:

Uns poucos dos muçulmanos que se sentiram insultados parecem ter


reagido com agressão irracional a templos e clérigos e com ameaças
ao papa ou ao Vaticano. Mas o próprio Ratzinger, gostasse ou não
gostasse, vestiu na juventude o uniforme de um regime dito ociden-
tal e cristão, liderado por um suposto católico, que foi intolerante
e violento em grau mais extremo que o Taleban, ante o silêncio do
Vaticano e do papa Pio XII.

Para produzir sentido a partir do que lê, o leitor mobiliza o conhe-


cimento que tem a respeito do assunto sobre o qual lê. O escritor, por
sua vez, leva em consideração o saber que atribui aos leitores a quem se
dirige; na verdade, o escritor escreve pro leitor que ele tem na cabeça, que
sabe algumas coisas que o escritor sabe e não sabe outras tantas, que, ele,
escritor, vai contar pra ele, leitor. No caso desta frase, talvez não fique
claro para todos os leitores da revista que um regime dito ocidental e

470
gramática e estilo

cristão, liderado por um suposto católico, que foi intolerante e violento


em grau mais extremo que o Taleban, ante o silêncio do Vaticano e do
Papa Pio XII se refere ao nazismo. E a afirmação de que Ratzinger vestiu
na juventude o uniforme de um regime pode ser interpretada literalmente
como se Ratzinger tivesse imposto ou proposto que a juventude – e não
ele mesmo – usasse esse tal uniforme.
A informação de que o papa Bento XVI fez parte da Juventude
Nazista quando era jovem, necessária para o entendimento de que foi
com a brutalidade daquele regime que o Catolicismo compactuou, não
foi assim tão difundida a ponto de que qualquer um dos leitores da revista
pudesse entender isso. Uma pequena alteração na ordem dos constituintes
teria encaminhado melhor os leitores nessa direção:

Uns poucos dos muçulmanos que se sentiram insultados parecem


ter reagido com agressão irracional a templos e clérigos e com
ameaças ao papa ou ao Vaticano. Mas o próprio Ratzinger, na sua
juventude, gostasse ou não gostasse, vestiu o uniforme de um regime
dito ocidental e cristão, liderado por um suposto católico, que foi
intolerante e violento em grau mais extremo que o Taleban, ante o
silêncio do Vaticano e do papa Pio XII.

Desse modo, ficaria claro, pelo menos, de quem era a juventude e


quem vestiu o tal uniforme, o que já diminuiria a trabalheira que ainda
resta para alguns dos leitores. Então, como obscuridade, imprecisão e
ambiguidade também podem ser efeitos produzidos pelo encadeamento
de palavras num texto, é necessário treinar o olho que vai revisar o que
está sendo escrito. Vamos examinar algumas frases que exemplificam
estes efeitos colaterais do encadeamento.

1 Para meus pais (e todos os outros), suas filhas deveriam nascer,


crescer, namorar, noivar, casar, ter filhos e ir à igreja aos domingos,
apenas.

471
gramática e estilo

Muito provavelmente, não se trata de ir à missa apenas aos domin-


gos. Apenas se refere a toda a lista de atividades (que são muitas para
serem apenas, mas, afinal, é o autor que decide o que é muito ou pouco);
para tanto precisa ser colocado num lugar em que se refira a tudo isso:
1a Para meus pais (e todos os outros), suas filhas deveriam apenas
nascer, crescer, namorar, noivar, casar, ter filhos e ir à igreja aos
domingos.

Desse modo, com toda a lista vindo depois do apenas, fica mais
fácil para o autor avaliar se tudo isso é realmente apenas e, dependendo
dessa avaliação, manter a frase assim mesmo ou compor uma outra.

2 O primeiro texto que examinamos revelou-se necessitado de uma


revisão na delimitação de suas frases, que tratavam de demasiados
assuntos, ou seja, já que determinamos que as orações são as unidades
de assunto, eram frases superpovoadas de orações.

Uma inversão de ordem entre as orações que vêm depois de já que


evita que ou seja e já que colidam e que a oração que completa o sentido
projetado por ou seja fique travada pela oração que completa já que:

2a O primeiro texto que examinamos revelou-se necessitado de uma


revisão na delimitação de suas frases, que tratavam de demasiados
assuntos, ou seja, eram frases superpovoadas de orações, já que
determinamos que as orações são as unidades de assunto.

Nesta versão, o problema é que as orações iniciadas por já que costu-


mam apresentar uma causa que leva a uma consequência enunciada depois
dela; para não causar estranhamento seria o caso de trocar de conjunção:
2b O primeiro texto que examinamos revelou-se necessitado de uma
revisão na delimitação de suas frases, que tratavam de demasiados
assuntos, ou seja, eram frases superpovoadas de orações, pois de-
terminamos que as orações são as unidades de assunto.

472
gramática e estilo

3 Eu gostava de escrever, de pensar e questionar o que eu sentia e


gostava de fazer isso com o que os outros sentiam também. Conversar
com as minhas amigas e aconselhar às suas aflições era prazeroso.
Eu sempre gostei desse lado subjetivo da vida além do comum e de
tudo o que envolvesse emoção. Na minha cabeça, nenhum outro
curso poderia juntar tudo isso em uma profissão além da psicologia.

O sintagma além da psicologia pode ser lido como um adjetivo de


profissão e não como um advérbio que relaciona psicologia com outro
curso. Uma alteração de ordem coloca as coisas no devido lugar:

3a Eu gostava de escrever, de pensar e questionar o que eu sentia e


gostava de fazer isso com o que os outros sentiam também. Conversar
com as minhas amigas e aconselhar às suas aflições era prazeroso.
Eu sempre gostei desse lado subjetivo da vida além do comum e de
tudo o que envolvesse emoção. Na minha cabeça, nenhum outro cur-
so, além da psicologia, poderia juntar tudo isso em uma profissão.

4 As letras garrafais, em frases curtíssimas com gravuras coloridas,


me hipnotizavam de tal forma que eu folheava aquele livro quadrado
de poucas folhas inúmeras vezes até ganhar outro.

Pode-se ler de poucas folhas inúmeras como um sintagma, o que


não é o caso. Para evitar essa leitura convém mudar de lugar o sintagma
inúmeras vezes:

4a As letras garrafais, em frases curtíssimas com gravuras coloridas,


me hipnotizavam de tal forma que eu folheava inúmeras vezes aquele
livro quadrado de poucas folhas até ganhar outro.

5 Ela já teve que fazer cirurgia no joelho, no braço, nos olhos, e


esses são os motivos das queixas diárias. Sem contar das queixas
desnecessárias da falta de dinheiro e das coisas que não doem, mas
ela diz que doem para ter assunto.

473
gramática e estilo

O sintagma preposicional para ter assunto pode ser lido como


referente a doem; para não obrigar o leitor a ter o trabalho de corrigir a
sua leitura, é melhor colocar para ter assunto ao lado de ela:
5a Ela já teve que fazer cirurgia no joelho, no braço, nos olhos, e
esses são os motivos das queixas diárias. Sem contar das queixas
desnecessárias da falta de dinheiro e das coisas que não doem, mas
ela, para ter assunto, diz que doem.
6 Senti inveja misturada com curiosidade, pedi o livro de presente
para minha mãe e acabei ganhando. Debulhei o livro perplexo, nunca
tinha tido a experiência de uma leitura tão longa e sem figuras.

O adjetivo perplexo certamente não se refere ao livro mas ao nar-


rador. Botar o adjetivo entre vírgulas não seria ainda a melhor solução;
uma troca de lugar provoca a leitura mais adequada:

6a Senti inveja misturada com curiosidade, pedi o livro de presente


para minha mãe e acabei ganhando. Debulhei, perplexo, o livro:
nunca tinha tido a experiência de uma leitura tão longa e sem figuras.

Exercício 53

Examine estes trechos e reorganize os encadeamentos para evitar


contiguidades problemáticas.
1. Os policiais disseram que, a alguns quilômetros atrás, havíamos
passado por uma viatura policial em alta velocidade, fazendo manobras
que poderiam provocar um acidente.
2. Minha trajetória como aluno, de fato, foi basicamente como a
maioria dos estudantes deste país, que eu defino como ineficaz. Levando
em conta o ensino e aprendizado da língua portuguesa, essa ineficiência
pôde ser percebida tanto no ensino fundamental quanto no ensino mé-
dio, não mudando na academia, no que diz respeito, principalmente, ao
estudo da gramática.

474
gramática e estilo

3. Minha mãe, todas as noites, antes de dormir, me contava uma


história diferente; no outro dia, eu imaginava tudo o que minha mãe havia
me contado e desenhava.
4. No ano de 2004, cursando na época Ciências Sociais, muito a
contragosto, me matriculei numa disciplina na faculdade de educação.
5. Segundo dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, em setem-
bro deste ano, foi possível observar que o número de doação de órgãos
duplicou na última década.
6. Como vou fazer de conta que vi que o Titanic não tem salva-vidas
para todos apenas agora?
7. Primeiro porque percebi que a tarefa de escrever textos para os
alunos sempre foi vista como uma obrigação da qual os mais inteligentes
ou espertos queriam logo se desobrigar: o escrever era apenas mais uma
tarefa escolar.
8. Em tempo, ressaltamos que o uso da expressão “redação escolar”
relacionada a uma prática de escrita normativa e artificial não pretende
sugerir que qualquer indivíduo na escola não seja capaz de produzir
algo diferente do que normalmente se pratica. Optamos por usá-la para
refletir sobre uma prática recorrente, com o objetivo de propor caminhos
diferentes para o trabalho com avaliação.
Em certos casos, a ordem mais adequada dos constituintes das
frases pode ser determinada pela necessidade de evitar a contiguidade
entre sintagmas ou palavras que possam produzir ambiguidade ou pela
possibilidade de produzir uma expressão mais clara e precisa. Exami-
nemos estas frases:
1 É justamente no horário da telenovela que toda a família poderia
estar conversando, mas com a telenovela ninguém fala.

Dá pra entender que com a telenovela ninguém fala significa que


ninguém fala por causa da telenovela, mas, como não há vantagem al-

475
gramática e estilo

guma em correr o risco de uma possível ambiguidade, é melhor escrever


com toda a clareza:

1a É justamente no horário da telenovela que toda a família poderia


estar conversando, mas é precisamente por causa da telenovela que
ninguém fala.

2 Então lia sobre Atlântida, extraterrestres (assunto que me inte-


ressava muito, pois iria conviver com eles, segundo meu primeiro
plano), cultura asteca, maia, inca, hieróglifos e ia pesquisando tudo
o que não entendia nos livros.

Já não é tão seguro que ninguém vai ler que a narradora não enten-
dia certas coisas nos livros e, então, pesquisava essas coisas. Pra deixar
bem claro que os livros eram as fontes de informação para entender o
que ela não entendia, uma alteração de ordem ajuda (um eu que outro
vai ajudar o leitor a ter certeza de que a frase trata da narradora e não de
uma terceira pessoa):

2a Então eu lia sobre Atlântida, extraterrestres (assunto que me in-


teressava muito, pois iria conviver com eles, segundo meu primeiro
plano), cultura asteca, maia, inca, hieróglifos e ia pesquisando nos
livros tudo o que eu não entendia.

3 A professora de português, que, devido aos muitos anos passados,


não recordo o nome, por causa de problemas de saúde, faltava muito
às aulas.

Não custa poupar o leitor da dúvida a respeito do que exatamente


causam os problemas de saúde nem em quem causam. Uma alteração
de ordem esclarece tudo:

3a A professora de português, que, devido aos muitos anos passados,


não recordo o nome, faltava muito às aulas por causa de problemas
de saúde.

476
gramática e estilo

Não há necessidade, nesta frase, do eu que fez falta na anterior


porque a forma verbal – recordo – não é, como lia e entendia, na frase
anterior, compartilhada pela terceira pessoa. Já para os muitos militantes
do Salvem o cujo, é uma boa oportunidade para manifestarem-se:

3b A professora de português, cujo nome não recordo devido aos


muitos anos passados, faltava muito às aulas por causa de problemas
de saúde.

4 Os outros governos simplesmente mentiam, divulgando ideias


palatáveis a um povo totalmente desprovido das mínimas condições
de vida para poder aplicar projetos políticos cujas consequências
sempre levaram à concentração de renda e à retirada de recursos
de projetos sociais.

Até o leitor entender que para poder aplicar projetos não se refere
às mínimas condições de vida do povo mas às ideias palatáveis que
outros governos mentiam, um bom esforço interpretativo vai ter de ser
dispendido. O infinitivo, assim como o gerúndio e o particípio, formas
nominais do verbo, não têm desinência de concordância; por causa disso,
a relação sujeito-predicado depende da colocação. Podemos deixar o
sujeito como tópico e rearranjar o meio:

4a Os outros governos, para poder aplicar projetos políticos cujas


consequências sempre levaram à concentração de renda e à retirada
de recursos de projetos sociais, simplesmente mentiam, divulgando
ideias palatáveis a um povo totalmente desprovido das mínimas
condições de vida.

Desse modo, fica claro quem pretende aplicar projetos políticos que
levam à concentração de renda. Como, na verdade, a aplicação desses
projetos é a questão, podemos topicalizá-la:

477
gramática e estilo

4b Para poder aplicar projetos políticos cujas consequências sempre


levaram à concentração de renda e à retirada de recursos de projetos
sociais, os outros governos simplesmente mentiam, divulgando ideias
palatáveis a um povo totalmente desprovido das mínimas condições
de vida.

A oração que apresenta a finalidade inicia a frase, desembocando


no sintagma nominal que se candidata a sujeito.

5 Não dispenso um shampoo cheiroso, que faça muita espuma, que


deixe meus cabelos bem limpos, soltos e um condicionador que
amacie os cabelos, que tenha um aroma agradável, mesmo depois
dos cabelos secos.

Secos, nessa posição que o adjetivo costuma ocupar ao lado do


substantivo, vai ser lido como adjetivo e não como o particípio do verbo
secar. Aí vai ser preciso uma mudança para um lugar em que secos tem
de ser lido como verbo, uma posição fora do sintagma nominal:

5a Não dispenso um shampoo cheiroso, que faça muita espuma,


que deixe meus cabelos bem limpos, soltos e um condicionador que
amacie os cabelos, que tenha um aroma agradável, mesmo depois
de secos os cabelos.

5b Não dispenso um shampoo cheiroso, que faça muita espuma, que


deixe meus cabelos bem limpos, soltos e um condicionador que amacie
os cabelos, que tenha um aroma agradável, mesmo depois de terem
secado os cabelos (ou estarem secos os cabelos).

6 Por volta dos meus 15 anos surgiram meus primeiros amores e eu


passei a adorar expressar o que eu sentia escrevendo.

Podemos também explicitar a finalidade com maior clareza:

478
gramática e estilo

6a Por volta dos meus 15 anos surgiram meus primeiros amores, e


eu passei a adorar escrever para expressar o que eu sentia.

7 Eu discutia com um amigo sobre a cultura nacional, e ele me disse


que muito pouca coisa é genuína em nossa cultura, e isso é lamentável.

O pronome isso se refere à opinião do amigo, ao fato de ele ter dito


isso ou à discussão? A vírgula antes do e nos indica, pelo menos, que a
opinião de que isso é lamentável não é do amigo mas do narrador. Se fosse
do amigo, o narrador procuraria manter o paralelismo: ele me disse que
muito pouca coisa é genuína em nossa cultura e que isso é lamentável.
Para determinar o referente de isso é preciso reescrever a frase:

7a Eu discutia com um amigo sobre a cultura nacional, e ele me


disse que muito pouca coisa é genuína em nossa cultura, e que nossa
tendência à imitação é lamentável.

Exercício 54

Vamos examinar e, se for o caso, revisar o encadeamento nestas


frases.
1. Acabei fingindo não conhecer meu irmão que apanhava na rua
para me salvar.
2. Estava indo com minha irmã de Esteio para Porto Alegre numa
daquelas viagens de trem que eu adorava fazer.
3. Quando penso em consciência crítica, penso na política e nos
políticos chegando à conclusão de que a maioria deles não têm consci-
ência crítica.
4. Assim, lá fui procurar o meu assento, que era ao lado de um se-
nhor idoso e gordo que tinha a mania de esfregar as mãos uma na outra
o tempo todo e que não se acanhou de tirar os sapatos e fazer o mesmo
com os pés.

479
gramática e estilo

5. Tudo indicava que uma tempestade se aproximava. Voltei rapi-


damente para o hotel, para junto de minha irmã. Minutos depois obser-
vamos pela janela a chuva caindo copiosamente, seguida de relâmpagos
e trovões. Tempestade típica de verão, logo passa, consolávamo-nos.
Mas isso não ocorreu.
6. Para retirar o jovem da rua e da criminalidade, o governo tem
de combater o desemprego e o baixo nível de escolaridade, males que o
afetam diretamente.
7. De acordo com essa cultura, os pais levam seus filhos a estudar o
que lhes convém e o que acham necessário para conviver na sua realidade.

5.2 PONTUAÇÃO INTERNA DA FRASE

Estamos tratando do encadeamento dos constituintes na frase,


mais especificamente dos efeitos produzidos pela contiguidade desses
constituintes no processo de produção de sentido pelo leitor. Já vimos
que alterações na ordem dos constituintes das versões iniciais das frases
podem produzir maior clareza e precisão, orientando o rumo do olho do
leitor. Bem orientado, o olho vai enviar ao cérebro as informações mais
adequadas para produzir para o que está lendo um sentido o mais próximo
possível àquele desejado pelo autor. Nesta seção vamos examinar o papel
da pontuação interna da frase nessa mais adequada orientação ao leitor.
Retomando a reconstituição que fizemos a respeito da história da
língua escrita e da história de cada um de nós no processo pessoal de
apropriação da língua escrita em nossa prática de produção de escritos,
convém lembrar que os sinais de pontuação foram criados para assinalar
fins e começos, isto é, para separar. Já tratamos do ponto-final, que se-
para frases, e do ponto e vírgula e dos dois-pontos, que separam orações,
além de prestarem assistência em alguns casos mais complicados para
o ponto-final e para a vírgula. Nesta seção, vamos tratar da vírgula, que
marca constituintes da frase.

480
gramática e estilo

Os princípios que orientam o uso da vírgula na pontuação interna


da frase baseiam-se no que se costuma chamar de colocação, que de-
fine a ordem direta como a básica ou não marcada. A ordem direta é,
como já vimos, a que dispõe sujeito, verbo, complemento(s), adjuntos
adverbiais, nesta ordem. Uma das consequências dessa determinação
tradicional é a convenção de que não se coloca vírgula entre os consti-
tuintes da frase se eles estiverem dispostos nessa ordem:

1 O cirurgião extraiu a bala com muito cuidado.

O cirurgião [sujeito] extraiu [verbo] a bala [complemento] com


muito cuidado [adjunto adverbial]. Em frases simples como esta, a
identificação desses constituintes não dá muito trabalho; fazer inversões
de ordem também não:

1a Com muito cuidado, o cirurgião extraiu a bala.

Essa seria a inversão mais comum: um adjunto adverbial, geralmente


de lugar, tempo ou modo no início da frase indica a circunstância sob a
qual vai se dar o acontecimento relatado a seguir.

1b A bala o cirurgião extraiu com muito cuidado.

Esta é uma construção de tópico, que, como já vimos, pode ser


amenizada, cultificada, com um pronome oblíquo:

1c A bala o cirurgião extraiu-a com muito cuidado.

Neste caso, em que a sequência a bala o cirurgião não forma sin-


tagma, não há motivo para colocar vírgula depois do tópico.

1d Extraiu o cirurgião a bala com muito cuidado.

481
gramática e estilo

Inversões em que o verbo ocupa a primeira posição da frase são mais


comuns na nossa prosa contemporânea com o sujeito marcado no verbo:

Extraímos aquela bala com muito cuidado.

Inversão também costuma ser feita com verbos intransitivos:

Começou, então, a cirurgia para extrair aquela bala.

A ordem direta não é mais correta nem mais natural do que as


outras, nem as inversões de ordem representam necessariamente dispo-
sitivos mais sofisticados ou elegantes ou literários ou solenes ou mesmo
pedantes. Mesmo que pareça mais simples de entender uma frase em
que o sujeito apresente o tópico e em que o comentário se distribua pelo
predicado do menos ao mais importante, a ordem direta é, antes de tudo,
uma convenção. As frases não brotam em ordem direta, não nascem sim-
ples, nem podem ser sempre aperfeiçoadas na direção da simplicidade ou
da ordem direta. O mais comum, pelo contrário, é nascerem complexas
e confusas tal como as ideias circulam, em nosso cérebro, em órbitas
desparelhas e aleatórias. A gente aprisiona essas ideias no papel justa-
mente para encaminhá-las a uma única órbita na mesma fila indiana das
frases alinhadas umas depois das outras e podemos até mesmo achar que
é necessário invertê-las, entortá-las, complexificá-las para dar conta da
complexidade do que estamos querendo expressar.
Falemos, pois, de alterações de ordem e de vírgulas: a vírgula corta
e por vezes faz isso para mostrar o que não é para ser cortado: vamos
examinar estas frases:

2 Resolvi ficar um ano sem estudar ao terminar o segundo grau


porque todos diziam que eu estava cansada.

482
gramática e estilo

[Eu – sujeito] Resolvi ficar [verbo núcleo do predicado] um ano


sem estudar [complemento] ao terminar o segundo grau [adjunto ad-
verbial de tempo] porque todos diziam que eu estava cansada [oração
adverbial de causa].
Temos a cadeia da frase em ordem direta: nessa ordem, o sujeito é
o tema do verbo, o verbo é o tema do(s) complemento(s), e os adjuntos
adverbiais são o comentário de tudo o que veio antes. A vírgula não corta
o que está em ordem direta.

2a Resolvi ficar um ano sem estudar porque todos diziam que eu


estava cansada ao terminar o segundo grau.

Também temos uma cadeia em ordem direta; a diferença com rela-


ção à frase 1 é que, neste encadeamento, os que diziam que a narradora
estava cansada atribuem o cansaço à trabalheira de concluir o segundo
grau porque a reduzida comenta a oração anterior: que eu estava cansada.
Nesta ordem, vírgula nenhuma vai mudar isso49.

2b Ao terminar o segundo grau resolvi ficar um ano sem estudar


porque todos diziam que eu estava cansada.

Não vai vírgula porque Ao terminar o segundo grau é o tópico de


resolvi ficar um ano sem estudar, que é o comentário. Entre tema e rema
em relação de contiguidade não botamos vírgula.

2c Ao terminar o segundo grau, como todos diziam que eu estava


cansada, resolvi ficar um ano sem estudar.

O porque foi substituído por como, que é a conjunção causal cos-


tumeira para orações causais que antecedem a principal, que expressa a
49 A vírgula que aparece nesta última frase – Nesta ordem, vírgula nenhuma vai mudar isso –,
além de marcar o adjunto adverbial – nesta ordem – deslocado para antes do tema – vírgula
– evita a dificuldade de ler a frase sem esta vírgula: Nesta ordem vírgula nenhuma vai mudar
isso. Trata-se de poupar o leitor da possibilidade de ler ordem vírgula como um sintagma.

483
gramática e estilo

consequência. Não há outro jeito se não colocar vírgula antes do como


justamente para que ele seja lido como causal e não como comparativo
e também porque a subordinada causal vem antes da oração principal.

2d Como todos diziam que eu estava cansada ao terminar o segundo,


grau resolvi ficar um ano sem estudar.

Não há vírgula depois de cansada porque os dois constituintes


estão em ordem direta numa relação de principal e subordinada em que
a reduzida adquire uma conotação causal.

2e Como todos diziam que eu estava cansada, ao terminar o segundo


grau, resolvi ficar um ano sem estudar.

Há vírgula depois de segundo grau porque a subordinada causal


alongada pela reduzida temporal antecede a principal. A vírgula depois
de cansada vincula a reduzida à oração seguinte separando-a da anterior:
ela resolveu ficar um ano sem estudar quando terminou o segundo grau.

2f Como todos diziam que eu estava cansada, resolvi ficar um ano


sem estudar ao terminar o segundo grau.

A vírgula se deve, tal como na versão anterior, à anteposição da


subordinada causal, e não há vírgula entre a principal – resolvi ficar
um ano sem estudar – e a reduzida temporal restritiva – ao terminar o
segundo grau.
A vírgula, então, corta, e a primeira regra é que a vírgula não deve
cortar o que não é para cortar. Entre o que não é para cortar, temos (1) o
que está em ordem direta: o sujeito e o seu predicado, o verbo e os seus
complementos, entre isso tudo e os adjuntos adverbiais que os seguem;
(2) o que está em relação de tema e rema: o substantivo e o seu adjetivo
restritivo, o adjetivo e o seu advérbio restritivo, o verbo e o seu advérbio;

484
gramática e estilo

(3) o que está em relação de tópico e comentário: o adjunto adverbial


que expressa o tópico deslocado para o início da oração e o comentário
que o segue em contiguidade tal como na frase 3: Ao terminar o segundo
grau resolvi ficar um ano sem estudar.
Às vezes, não é tão simples identificar as funções sintáticas dos
constituintes das frases resultantes do nosso trabalho de compô-las e
revisá-las para tomar decisões sobre a pontuação mais adequada. Vamos
examinar esta frase:

3 Por um lado, saber ler e escrever, era algo mágico, pois eu podia
ler sozinha e à hora que eu quisesse, mas, por outro lado, isso me
privou de ouvir a voz da minha mãe antes de eu dormir.

Nesta frase há dois problemas complicando essa tomada de deci-


são: seu sujeito não é uma pessoa nem um objeto nem um fenômeno da
natureza a que atribuir alguma ação, algum processo a ser expresso pelo
verbo. Também não há, no seu predicado, a indicação de algum processo
nem de alguma ação a ser praticada. Além disso, foi longo o processo
histórico de criação de uma escrita para ser lida pelos olhos a partir de
uma escrita que registrava com sinais gráficos os sons produzidos pela
boca de quem ditava. Por isso, ainda vigora uma tradição pedagógica que
atribui aos sinais de pontuação a função de produzir pausas. Assim, o
ponto-final produziria uma pausa grande, a vírgula produziria uma pau-
sa pequena, e os demais sinais produziriam pausas de duração gradual,
intermediárias entre a grande e a pequena.
De fato, se executarmos uma leitura em voz alta para transmitir
o conteúdo da frase para quem não está olhando para ela, temos de
fazer pausas em cada uma de suas vírgulas, mas isso não quer dizer
que não faríamos as devidas pausas se as vírgulas não estivessem
lá, nem que deixemos de fazer pausas em lugares onde as vírgulas
não devem estar.

485
gramática e estilo

Retomemos a frase: sua primeira oração começa com um advérbio


– por um lado –, ao qual se segue um sujeito oracional – saber ler e es-
crever –; na sequência está o predicado – era algo mágico. Isso – saber
ler e escrever – era algo mágico. Falando, fazemos uma pausa depois de
enunciarmos o tema para que o leitor fique sabendo que vamos passar
ao enunciado do rema. Na escrita, no entanto, não há pausa; há sinais
gráficos em sequência regidos por convenções que aprendemos lendo e
teorizando nossa leitura quando a escola nos bota a ler e principalmente
quando nos botamos a escrever. A vírgula que marca a passagem do
sujeito para o predicado, entre escrever e era – Por um lado, saber ler
e escrever, era algo mágico – desobedece a convenção da ordem direta
nesta versão da frase.
Essa relação entre sinais de pontuação e pausa fazia sentido quando,
a partir do século XII, foram sendo criados os sinais de pontuação para
libertar os estudiosos da necessidade de recorrer a alguém que, por já
ter ouvido repetidas vezes a leitura em voz alta de um determinado texto
e por ter-se treinado na habilidade de separar as palavras numa scripta
continua, soubesse ler o que estava escrito naquele encadeamento de
sinais gráficos grudados uns nos outros e fosse capaz, por causa disso,
de ler em voz alta fazendo as devidas pausas entre as frases, nos limites
entre sujeito e predicado, no começo e fim de uma intercalação, e assim
por diante. Nos primeiros tempos do uso dos sinais de pontuação era
necessário alertar os que queriam habilitar-se a ler por eles mesmos
para fazerem essas pausas onde houvesse um ponto, uma vírgula, etc.
já que eles aprendiam a ler lendo em voz alta e escutando o que eles
mesmos liam, como aprendiam quando escutavam o que os professores
liam para eles.
Podemos imaginar que muito tempo se passou até que o hábito de
ler em voz alta tenha sido substituído pela leitura silenciosa porque ainda
hoje se fala na pausa do ponto, da vírgula, do ponto e vírgula. Ainda há
professores para os quais ler na escola significa ler em voz alta só para
mostrar que se é capaz de fazer as tais pausas exatamente onde eles – pro-

486
gramática e estilo

fessores – esperam que eles façam. Tais professores costumam também


não perguntar que sentido seus alunos atribuem ao que leem; limitam-se a
fazer provas para verificar se os alunos produzem o sentido que eles – os
professores – acham que os alunos deveriam produzir.
Para superar esses comportamentos arcaicos com relação à língua
escrita, é preciso que combinemos que a escrita é para os olhos e que os
sinais de pontuação – e, neste caso específico, a ausência de qualquer
sinal de pontuação – servem para mostrar ao leitor as relações que há
entre os constituintes das frases. Vamos, então, revisar a frase:

3a Por um lado, saber ler e escrever era algo mágico, pois eu podia
ler sozinha e a hora que eu quisesse, mas, por outro lado, isso me
privou de ouvir a voz da minha mãe antes de eu dormir.

Vejamos esta outra frase, um pouco mais complicada:

4 Ao mesmo tempo em que refletia sobre as complexas caracterís-


ticas dos alunos e suas implicações para a produção do trabalho
pedagógico, percebê-los interessados em conversar para tratar de
questões da própria realidade, alimentou em mim a expectativa de
conseguir continuar a provocá-los fazendo com que se envolvessem,
mais intensamente, na proposta que eu comecei a encaminhar, quando
trouxe para a sala de aula os textos sobre seus temas de interesses.

O sujeito da frase é expresso pela oração percebê-los interessados


em conversar para tratar de questões da própria realidade; foi isso o que
alimentou em mim a expectativa de conseguir continuar a provocá-los
fazendo com que... seus temas de interesses. Temos aí um sujeito que se
estende por uma linha e meia seguido por um predicado de duas linhas e
meia, antecedidos ambos por uma oração adverbial de quase duas linhas
perfazendo uma frase de quase seis linhas. Seria mesmo o caso de revisar
uma frase perfeitamente legível só para produzir frases menores e para
evitar a ocorrência de uma vírgula (...questões da própria realidade,

487
gramática e estilo

alimentou...) que, de fato, facilita a localização do fim do sujeito e do


início do predicado? Seria um preciosismo descabido: deixamos assim e
alertamos o autor para o tamanho da frase. Ele que decida se vale a pena
e se tem ânimo para transformá-la em duas ou três frases.
Já nesta outra frase, a vírgula entre o verbo e o seu complemento
não faz a menor falta:

5 Creio, que é pelo resultado disso tudo que, quando pensamos que
nos conhecemos verdadeiramente, não nos conhecemos e não conhe-
cemos o próximo porque, no próprio ato em que nos conhecemos,
nos desconhecemos.

O sujeito da frase é eu, expresso pela desinência de primeira pes-


soa de creio, que é o verbo; o que vem a seguir, que é todo o resto da
frase, é o complemento desse verbo. Qualquer um que se dispuser a ler
em voz alta para que todos ouçam esta frase complicada e solene tem a
obrigação de – mesmo sem a contribuição daquela redundante vírgula
inadequada – fazer uma pausa dramática entre um verbo tão pequeno e
um complemento tão grande e recheado de intercalações complicadas.

5a Creio que é pelo resultado disso tudo que, quando pensamos que
nos conhecemos verdadeiramente, não nos conhecemos e não conhe-
cemos o próximo porque, no próprio ato em que nos conhecemos,
nos desconhecemos.

Sintetizando, nos limites entre os constituintes da frase que estejam


em ordem direta não se coloca sinais de pontuação, e é a ausência dos
sinais de pontuação que sinaliza esses limites. Vamos examinar esta
outra frase:

6 Como sou nomeada e lotada para a escola em que estou trabalhan-


do, tinha direito a expor minha opinião a respeito da administração
da mesma, através do voto.

488
gramática e estilo

A ordem direta é esta: sujeito – verbo – complementos – adjuntos


adverbiais; na segunda oração desta frase temos: sujeito: eu (na desinên-
cia do verbo lá da primeira oração, que, no verbo desta oração, é comum
com a da terceira pessoa); verbo: tinha; complementos: direito (objeto
direto), a expor minha opinião a respeito da administração da mesma
(objeto indireto); adjunto adverbial: através do voto. Sendo assim, a
vírgula antes de através do voto é inadequada porque o adjunto adverbial
está no lugar adequado segundo a ordem direta. Vamos revisar a frase:

6a Como sou nomeada e lotada para a escola em que estou trabalhan-


do, tinha direito a expor minha opinião a respeito da administração
da mesma através do voto.

Como já vimos, se quisermos dar maior ênfase ao que já está en-


fatizado na posição final da frase, podemos focalizar através do voto
inserindo esse constituinte entre vírgulas logo depois do verbo:

6b Como sou nomeada e lotada para a escola em que estou trabalhan-


do, tinha direito a expor, através do voto, minha opinião a respeito
da administração da mesma.

Se a ausência de vírgula(s) pode ser um confiável indicativo de


ordem direta, disso não decorre que a(s) vírgula(s) seja(m) a marca regis-
trada da ordem inversa: há outros fatores que interferem na(s) vírgula(s)
da inversão de ordem. Vejamos esta frase:

7 Já na língua a coisa era problemática. Do primeiro grau guardo


boas lembranças por causa das leituras, mas sempre havia gramática
e sintaxe. Do segundo grau o único ano que valeu a pena foi o último.

A primeira frase declara o tema – a língua – e anuncia o clima – a


problemática. A frase seguinte começa a análise do problema: do primeiro
grau..., e a frase já está em ordem inversa, porque o sujeito nunca vem

489
gramática e estilo

antecedido de preposição. O que vem depois – guardo boas lembranças


por causa das leituras – carrega o sujeito – eu – embrulhado na desi-
nência do verbo, ou seja, o estandarte do sujeito não figura na passagem
do tópico para o comentário; logo, não há necessidade de demarcar o
limite entre um e outro. Na segunda frase, com uma abertura paralela à
da primeira – do segundo grau – lá está o estandarte: o único ano que
valeu a pena. Um sujeito de sete palavras, maior do que o pedaço do
predicado que se colocou depois dele, merece que uma vírgula anuncie
a sua chegada montado num cavalo branco50.
7a Já na língua a coisa era problemática. Do primeiro grau guardo
boas lembranças por causa das leituras, mas sempre havia gramática
e sintaxe. Do segundo grau, o único ano que valeu a pena foi o último.

Cabe chamar atenção também para a necessidade de uma adequada


identificação, acima das aparências, da função dos constituintes da frase.
Vejamos esta frase:
8 Outro dia, depois de exaustivas nove horas de trabalho, em sala de
aula, com mais de 200 crianças e adolescentes, o que exaure qualquer
ser dito humano, fui ao shopping.

Nem tudo o que indica lugar é advérbio: em sala de aula é aqui um


adjetivo, que qualifica trabalho: trata-se do trabalho em sala de aula e
não em casa, na biblioteca, no pátio, numa visita à Feira do Livro nem
em nenhum outro dos muitos lugares onde o professor trabalha. Vírgula
ali só teria cabimento se aquele adjetivo fosse não restritivo, o que, já
está claro, não é. Vamos revisar:

8a Outro dia, depois de exaustivas nove horas de trabalho em sala de


aula com mais de 200 crianças e adolescentes, o que exaure qualquer
ser dito humano, fui ao shopping.
50 Uma vírgula de ênfase entre chegada e montado num cavalo branco? Assim: ...chegada,
montado num...? Claro que não: nada é mais enfático do que chegar montado num cavalo
branco.

490
gramática e estilo

5.2.1 Advérbios do verbo, do adjetivo, do advérbio, da oração, da


frase

Então, em sala de aula, nesta última frase da seção anterior, é um


adjetivo porque distingue o trabalho em sala de aula dos tipos de tra-
balho próprios dos professores, que entram em sala de aula para realizar
esse trabalho, e aí está a diferença entre o adjetivo – o trabalho em sala
de aula – e o advérbio – entram em sala de aula. O advérbio localiza
no tempo e no espaço, modula, ameniza, realça, salienta, extremiza o
que declaram os verbos, os adjetivos, os advérbios, as orações, as frases.
Posto no início da frase, a expressão em sala de aula não se refere a um
dos seus constituintes, mas à frase toda:

Em sala de aula, ele não era encolhido e tímido como se mostrava


na piscina ou nas festas do clube.

O leitor termina de ler esta frase esperando que a seguinte ainda se


refira ao que o personagem fazia em sala de aula. Posto no seu adequado
lugar na ordem direta, refere-se apenas ao núcleo do predicado de que
faz parte:

Ele não era encolhido e tímido em sala de aula, como se mostrava


na piscina ou nas festas do clube.

Nesta frase o leitor vai considerar que a menção à timidez do per-


sonagem tenha servido para salientar, nas frases seguintes, o modo como
ele se mostrava na piscina e nas festas.
Vamos examinar estas frases:

1 Tenho contato com a palavra escrita desde que me conheço por


gente. Digo, não consigo lembrar de nenhuma época da minha vida
sem que eu estivesse em contato ora com livros, ora com textos que
eu mesma produzia, amadoramente.

491
gramática e estilo

A vírgula antes de amadoramente não é necessária porque esse ad-


vérbio é do verbo e só pode ser colocado à sua direita ou à sua esquerda:

1a Tenho contato com a palavra escrita desde que me conheço por


gente. Digo, não consigo lembrar de nenhuma época da minha vida
sem que eu estivesse em contato ora com livros, ora com textos que
eu mesma produzia amadoramente (ou amadoramente produzia).

2 No papel de mãe e dona de casa, diariamente, preciso organizar


tudo, lavar e passar roupas, fazer comida e cuidar da filha.

Diariamente é um advérbio da frase; por isso, pode ser deslocado


dentro da cadeia da frase, marcado por vírgula(s):

2a Diariamente, no papel de mãe e dona de casa, preciso organizar


tudo, lavar e passar roupas, fazer comida e cuidar da filha.

Do mesmo modo, no papel de mãe e dona de casa é também um


advérbio da frase, que pode ocupar outras posições no encadeamento:

2b Diariamente, preciso, no papel de mãe e dona de casa, organizar


tudo, lavar e passar roupas, fazer comida e cuidar da filha.
2c No papel de mãe e dona de casa, preciso, diariamente, organizar
tudo, lavar e passar roupas, fazer comida e cuidar da filha.

3 Relutei um pouco no início porque gostava muito de estudar, e


interromper os estudos na oitava série, realmente não me agradava.
Além disso, não vislumbrava nenhuma possibilidade para o futuro
naquela situação. Estava, realmente, sem perspectivas para sonhar
com qualquer tipo de progresso pessoal ou profissional.

A vírgula antes do primeiro realmente separa o sujeito da oração –


interromper os estudos na oitava série – do predicado: realmente não me
agradava. Como realmente é um advérbio do verbo, não há necessidade

492
gramática e estilo

de vírgula alguma. O segundo realmente é da frase tanto que pode ser


deslocado dentro do encadeamento:

3a Relutei um pouco no início porque gostava muito de estudar, e


interromper os estudos na oitava série realmente não me agradava.
Além disso, não vislumbrava nenhuma possibilidade para o futuro
naquela situação. Realmente, estava sem perspectivas para sonhar
com qualquer tipo de progresso pessoal ou profissional.

4 Me vi forçada a optar por um dos cursos que a Universidade Re-


gional oferecia pois, mais uma vez, barrada pelos meus pais, não
pude estudar em um centro maior.

Mais uma vez é um advérbio do verbo: ela foi barrada mais uma
vez. O que está intercalado é mais uma vez barrada pelos meus pais, entre
pois – a conjunção que abre a oração – e a oração não pude estudar em
um centro maior:

4a Me vi forçada a optar por um dos cursos que a Universidade


Regional oferecia pois, mais uma vez barrada pelos meus pais, não
pude estudar em um centro maior.
4b Me vi forçada a optar por um dos cursos que a Universidade
Regional oferecia pois, barrada pelos meus pais mais uma vez, não
pude estudar em um centro maior.

5 Porém, a segunda vaga foi extinta, praticamente, um mês depois


do concurso e somente eu fui nomeada.

A posição de praticamente produz ambiguidade: a vaga foi pratica-


mente extinta, isto é, a vaga não foi oficialmente extinta, mas, por algum
motivo não revelado, deixou de existir ou a vaga foi extinta praticamente
um mês depois do concurso, ou seja, poucos dias depois de realizado o
concurso? Como esclarecer?

493
gramática e estilo

5a Porém, a segunda vaga foi praticamente extinta um mês depois


do concurso, e somente eu fui nomeada.
5b Porém, a segunda vaga foi extinta um mês depois do concurso
praticamente, e somente eu fui nomeada.
5c Porém, a segunda vaga foi extinta um mês praticamente depois
do concurso, e somente eu fui nomeada.

Nem 5b nem 5c são boas soluções: talvez seja porque advérbios


terminados em -mente fiquem esquisitos ao lado de substantivos, mas
sempre se pode dizer de outro modo:

5d Porém, a segunda vaga foi extinta um mês e alguns dias depois


do concurso, e somente eu fui nomeada.

Exercício 55

Examine estas frases para avaliar a adequação da pontuação.


1. Comecei a ter medo de escrever errado, principalmente, quando
o texto era para ser lido por outras pessoas.
2. E foi com a biodança, terapia grupal que utiliza a música, o
movimento e a emoção para facilitar a descoberta de si mesmo, que
muitas fichas caíram. Durante algumas das vivências, me lembrei de
coisas que havia vivido que acabaram por moldar, negativamente,
alguns de meus comportamentos e também de experiências que tive
que fizeram com que algumas características minhas permanecessem
subdesenvolvidas.
3. E, também, a comunicação é precária, já que a pouca idade não
permite detalhes mais precisos sobre o que aconteceu ou o que está
doendo.
4. Abria a página, colocava lá meus pensamentos, que não de-
moraram muito a virar confissões e longos diálogos imaginários que
supostamente resolviam minha vida.

494
gramática e estilo

5. E assim eu cresci com um desejo arraigado dentro de mim, o


desejo de ser professora.
6. Logo, sentou um adolescente do meu lado e começou a puxar
assunto.
7. Minha história começa no ano de 2009, quando tinha 17 anos e
estava no último ano do ensino médio. Estudava pela manhã e, à noite,
frequentava as aulas de um curso preparatório para vestibular.
8. A língua escrita começou a fazer parte da minha vida desde cedo.
Quando criança, ainda antes de começar a frequentar a escola, livros,
cadernos e lápis já me eram muito familiares e estavam presentes, dia-
riamente, no meu crescimento

5.2.2 Adjuntos adverbiais da frase longos

Vamos retomar aquela frase sobre as eleições mexicanas para exa-


minar o advérbio que está lá no início:

Tecnicamente, o PRI pode proclamar a vitória. Ainda é o partido com


mais votos, 29%, na eleição para a Câmara do domingo 7.

Vamos passar tecnicamente para o seu devido lugar na ordem direta,


ou seja, para depois do complemento:

O PRI pode proclamar a vitória tecnicamente. Ainda é o partido com


mais votos, 29%, na eleição para a Câmara do domingo 7.

Realmente, advérbio ao lado de substantivo fica, no mínimo, muito


esquisito até porque, mesmo nesse lugar, o advérbio parece se referir ao
verbo; então, já que lugar de advérbio é colado no verbo, vamos expe-
rimentar num dos lados:

495
gramática e estilo

O PRI pode proclamar tecnicamente a vitória. Ainda é o partido com


mais votos, 29%, na eleição para a Câmara do domingo 7.

Ou, então, do outro lado:

O PRI pode, tecnicamente, proclamar a vitória. Ainda é o partido


com mais votos, 29%, na eleição para a Câmara do domingo 7.

Não, não é nada disso: o que é técnico não é a proclamação; é a


vitória. Ao lado de um substantivo um adjetivo fica bem:

O PRI pode proclamar a vitória técnica. Ainda é o partido com mais


votos, 29%, na eleição para a Câmara do domingo 7.

Assim fica bem com relação tanto à fidelidade ao sentido original


quanto à composição do sintagma, mas o que fica mais claro ainda é que
o advérbio não era do verbo mas da frase e, como tal – como advérbio
da frase –, estava no seu melhor lugar na frase original, modulando o
sentido em que se deve entender o que a frase diz. A versão inicial é,
assim, a definitiva:

Tecnicamente, o PRI pode proclamar a vitória. Ainda é o partido com


mais votos, 29%, na eleição para a Câmara do domingo 7.

Esta frase, cuja pontuação final já examinamos, nos ajuda a escla-


recer a distinção entre advérbio da frase e advérbio do verbo:

1 A estudante de Ciências Jurídicas gostava muito de sair com ami-


gos; só não queria saber de namoros. Dizia, com muito bom humor,
que namoraria quando conhecesse bem os seus direitos.

Advérbio do verbo fica grudado no verbo, antes ou depois; aqui temos,


entre vírgulas, com muito bom humor, grudado no verbo, à sua direita.

496
gramática e estilo

Sendo dizia um verbo de dizer – o verbo de dizer –, a gente sabe que, na


sequência, em algum lugar, vem um que que antecede o conteúdo do que
ela dizia. Sendo com muito bom humor um modo de dizer, temos duas boas
razões para não usar aquelas vírgulas que cercam com muito bom humor:

1a A estudante de Ciências Jurídicas gostava muito de sair com ami-


gos; só não queria saber de namoros. Dizia com muito bom humor
que namoraria quando conhecesse bem os seus direitos.

Passando para o início da oração, com muito bom humor ficaria do


outro lado do verbo; a vírgula também não é necessária porque o bom
humor se refere ao modo como ela dizia, ou seja, com muito bom humor
continua sendo um advérbio de dizia:

1b A estudante de Ciências Jurídicas gostava muito de sair com ami-


gos; só não queria saber de namoros. Com muito bom humor dizia
que namoraria quando conhecesse bem os seus direitos.

Esse advérbio do verbo pode, no entanto, desgrudar-se do verbo,


referindo-se a toda a frase porque é pelo verbo (dizia) que o bom humor
se expressa, e esse é o verbo que organiza a frase:

1c Ela gostava muito de sair com amigos; só não queria saber de


namoros. Com muito bom humor, a estudante de Ciências Jurídicas
dizia que namoraria quando conhecesse bem os seus direitos.

Nesta ordenação, com muito bom humor e dizia que namoraria


não estão em relação contígua de tema e rema, o que também justifica a
vírgula. Vamos examinar um caso um pouco diferente, justamente para
estudar a diferença:

2 Nos anos seguintes foram dados passos importantes na direção da


independência das colônias americanas.

497
gramática e estilo

Nos anos seguintes é um típico adjunto adverbial da frase: delimita


as condições (de tempo, de espaço, de modo) em que se deram os acon-
tecimentos relatados pelos demais constituintes da frase, tal como em
sala de aula, tecnicamente e com muito bom humor; não há, no entanto,
uma vírgula a separá-lo do resto da frase. Por quê? Para explicar vamos
botar a frase em ordem direta:

2a Passos importantes na direção da independência das colônias


americanas foram dados nos anos seguintes.

Já tratamos da convenção que diz que não se coloca vírgula entre


os constituintes de uma frase em ordem direta porque, nessa ordem, cada
constituinte é tema do que vem a seguir: assim como o predicado – fo-
ram dados nos anos seguintes – comenta o sujeito – passos importantes
na direção da independência das colônias americanas –, importantes
comenta passos; na direção da independência das colônias americanas
comenta passos importantes; da independência das colônias americanas
comenta direção; das colônias americanas comenta independência, etc.
A relação tema-rema, isto é, a relação entre de que se fala e o que
se diz do que se fala está em toda a cadeia da frase. Na ordem direta, o
verbo diz alguma coisa a respeito do sujeito, o complemento diz alguma
coisa a respeito do verbo, e os adverbiais que vêm depois dizem alguma
coisa a respeito de tudo o que veio antes. Na ordem inversa também:
foram dados passos é o que acontece nos anos seguintes; importantes
na direção... caracterizam esses passos.
Convém salientar que ordem direta e ordem inversa não referem
nenhum juízo de valor sobre a frase nem remetem à gênese da frase porque
as frases são compostas, como decorrência do ponto de vista do escritor
sobre o que declara a respeito do assunto. Ordem direta e ordem inversa
são dispositivos de revisão criados na língua escrita para encaminhar a
produção escrita para a leitura com os olhos. Não colocamos vírgula entre
constituintes que estão em relação contígua de tema e rema.

498
gramática e estilo

Depois dos adjuntos adverbiais destas frases, colocamos vírgulas:

Em sala de aula, ele não era encolhido e tímido como se mostrava


na piscina ou nas festas do clube.

Tecnicamente, o PRI pode proclamar a vitória. Ainda é o partido


com mais votos, 29%, na eleição para a Câmara do domingo 7.

Ela gostava muito de sair com amigos; só não queria saber de namo-
ros. Com muito bom humor, a estudante de Ciências Jurídicas dizia
que namoraria quando conhecesse bem os seus direitos.

Colocamos vírgulas porque o constituinte que segue o adjunto ad-


verbial não declara algo a respeito do assunto expresso por esse adjunto
adverbial porque o que vem depois é o sujeito, isto é, o assunto a respeito
do qual vai tratar o predicado. Se passos importantes na... tivesse sido
colocado logo depois do adjunto adverbial topicalizado, haveria necessi-
dade daquela vírgula. Além disso, neste caso, se dá o encontro seguintes
passos, que é melhor quebrar para que não seja lido como um sintagma:

2b Nos anos seguintes, passos importantes na direção da indepen-


dência das colônias americanas foram dados.

Sintetizando, então, o advérbio da frase – o adjunto adverbial –,


se for deslocado do fim da frase para o começo, vai ser marcado por
vírgula se não for o tema do que o segue imediatamente. Como já vi-
mos, o advérbio do verbo, do adjetivo, do outro advérbio precisa ficar
ao lado da palavra que modifica e, nesse lugar, não precisa ser marcado
por vírgula. A pontuação dos adjuntos adverbiais das orações segue os
mesmos princípios.
Se o adjunto adverbial for um advérbio juntivo, é, como já vimos,
marcado por uma vírgula. Vejamos esta frase:

499
gramática e estilo

3 Eu perguntei se ele achava mesmo que uma revisão de português


de 40 horas ia resolver o que 20 anos de escolaridade não tinham
dado conta. Não vai? Não, não vai porque o princípio daquela velha
revisão de português é que nós não sabemos escrever porque não
falamos direito; daí ficam repetindo mecanicamente que o verbo
concorda com o sujeito.

Nesta frase, daí é um advérbio juntivo, isto é, relaciona orações


funcionando como uma conjunção; nesse caso, colocamos ponto e vír-
gula entre as orações e, como esse advérbio pode deslocar-se na frase,
marcamo-lo com vírgulas:

3a Eu perguntei se ele achava mesmo que uma revisão de português


de 40 horas ia resolver o que 20 anos de escolaridade não tinham
dado conta. Não vai? Não, não vai porque o princípio daquela velha
revisão de português é que nós não sabemos escrever porque não
falamos direito; ficam, daí, repetindo mecanicamente que o verbo
concorda com o sujeito

Vamos examinar estas frases:

4 Nas minhas observações e nas conversas com outros colegas (tam-


bém supervisores) as limitações dos alunos estagiários na elaboração
de seus planos de trabalho ficavam claras.

O adjunto adverbial, além de longo e prolongado por aquela expres-


são parentética, encontra o longo sujeito da oração; a vírgula é, portanto,
necessária.

4a Nas minhas observações e nas conversas com outros colegas


(também supervisores), as limitações dos alunos estagiários na
elaboração de seus planos de trabalho ficavam claras.

500
gramática e estilo

5 O curso de Letras da Universidade Regional passou a existir no


início da segunda década deste século, desde então faço parte do
seu corpo docente.

Temos um advérbio juntivo – desde então – estabelecendo uma


relação temporal entre as orações. É o caso de ponto e vírgula separando
as orações e vírgula marcando o advérbio:

5a O curso de Letras da Universidade Regional passou a existir no


início da segunda década deste século; desde então, faço parte do
seu corpo docente.

Podemos deslocar o advérbio juntivo:

5b O curso de letras da Universidade Regional passou a existir no


início da segunda década deste século; faço parte, desde então, do
seu corpo docente.

6 Cada vez que olhava para minha mãe lembrava do rosto daquele
infrator, afirmando que não foi nada.

O adjunto adverbial é comprido e seguido de uma forma verbal que


pode parecer que funciona como predicado de minha mãe, que vem antes;
a vírgula impede essa leitura e encerra o adjunto adverbial:

6a Cada vez que olhava para minha mãe, lembrava do rosto daquele
infrator, afirmando que não foi nada.

Nestes casos em que a forma verbal é a mesma para a primeira e


a terceira pessoa e na frase há primeira e terceira pessoas candidatas a
sujeito dessa forma verbal, é melhor explicitar o sujeito51:
51 Nesta frase há um imenso adjunto adverbial – Nestes casos em que a forma verbal é a mesma
para a primeira e a terceira pessoa e na frase há primeira e terceira pessoas candidatas a
sujeito dessa forma verbal – antecedendo um predicado muito curto – é melhor explicitar o
sujeito –, então seria o caso de começar pelo menor e terminar pelo maior – É melhor explicitar

501
gramática e estilo

6b Cada vez que olhava para minha mãe, eu lembrava do rosto


daquele infrator, afirmando que não foi nada.

7 Na segunda metade do século XIX os efeitos da Revolução Industrial


tinham acelerado o desenvolvimento do capitalismo.

O sujeito da frase limita com o adjunto adverbial; é o caso de vírgula:

7a Na segunda metade do século XIX, os efeitos da Revolução In-


dustrial tinham acelerado o desenvolvimento do capitalismo.

8 Ao ingressar no ensino fundamental o contato enriqueceu-se, pois


passei a escrever histórias curtas, que eram posteriormente publi-
cadas em pequenos livros no final do ano. Nas séries subsequentes
o contato manteve-se através de leituras de livros e escrita de textos
(nunca vou esquecer que o primeiro livro “mais extenso” que li foi
na terceira série do ensino fundamental e se chamava “Vovô fugiu
de casa”). No ensino médio a relação manteve-se, sendo que ela era
maior com a leitura, pois comecei a descobrir leituras como Macha-
do de Assis, Álvares de Azevedo, Clarice Lispector e muitos outros.

Há três adjuntos adverbiais iniciando frases que têm o sujeito ex-


presso aparecendo logo depois. Vamos revisá-las:

8a Ao ingressar no ensino fundamental, o contato enriqueceu-se, pois


passei a escrever histórias curtas, que eram posteriormente publica-
das em pequenos livros no final do ano. Nas séries subsequentes, o
contato manteve-se através de leituras de livros e escrita de textos
(nunca vou esquecer que o primeiro livro “mais extenso” que li foi
na terceira série do ensino fundamental e se chamava “Vovô fugiu
de casa”). No ensino médio, a relação manteve-se, sendo que ela era
maior com a leitura, pois comecei a descobrir leituras como Macha-
do de Assis, Álvares de Azevedo, Clarice Lispector e muitos outros.
o sujeito nestes casos em que a forma verbal é a mesma para a primeira e a terceira pessoa e na
frase há primeira e terceira pessoas candidatas a sujeito dessa forma verbal –, mas o que vem
depois – a frase revisada – fala do que está no fim. Então, é melhor que a frase fique como está.

502
gramática e estilo

9 Sempre com motivação e entusiasmo, comecei a escrever palavras


novas, gostava de pintar figuras em livros e já tinha aprendido a ler
pequenos textos.

O que vem logo depois do adjunto adverbial – comecei a escrever...


– não é um sintagma que materialize um sujeito nem é propriamente o
rema do que vem antes. Essas duas circunstâncias se contrapõem quanto
à necessidade de vírgula. Como é que fica melhor?

9a Sempre com motivação e entusiasmo, comecei a escrever palavras


novas, gostava de pintar figuras em livros e já tinha aprendido a ler
pequenos textos.

9b Sempre com motivação e entusiasmo comecei a escrever palavras


novas, gostava de pintar figuras em livros e já tinha aprendido a ler
pequenos textos.

10 No final do ensino médio teria que prestar vestibular e, para ser


aprovada, teria que ler livros e fazer uma boa redação.

O adjunto adverbial longo no início da frase – no final do Ensi-


no Médio – tem continuidade no que vem depois – teria que prestar
vestibular e...; por isso, é melhor não marcar com vírgula esse limite.
Já o outro adjunto adverbial – para ser aprovada – está numa posição
em que a vírgula é imprescindível: entre a oração e a conjunção que
dá início à oração. Se estivesse no seu lugar na ordem direta, não
haveria vírgula:

10a No final do ensino médio teria que prestar vestibular e teria que
ler livros e fazer uma boa redação para ser aprovada.

503
gramática e estilo

Exercício 56

Revise a pontuação especialmente a dos adjuntos adverbiais.


1. Logo que entrei no curso de magistério não me preocupava mui-
to com a responsabilidade de ser professora e passava os meus dias no
computador me ocupando com um diário que mantinha.
2. Como ele estava muito nervoso, notei que algo não estava muito
correto.
3. Antes de entrar no prédio, avistei um policial militar que passava
na calçada.
4. Para começar, eu vou contar uma história que aconteceu comigo.
5. Nas formas de pensamento e expressão predominaram os ele-
mentos de inspiração greco-cristãs.
6. Decifrando as primeiras letras conheci um mundo à parte, onde
podia realizar todos os meus sonhos sem sair de casa.
7. Enquanto isso, Maristela entrou na faculdade e seguiu lendo
e escrevendo, sem falhar um dia que fosse em qualquer uma dessas
atividades. Mesmo na época do vestibular esses dois prazeres eram sa-
grados: enquanto os amigos dedicavam praticamente todas as horas do
dia a estudar os conteúdos para as provas, ela não abria mão de um bom
romance ou dos cadernos onde anotava seus textos (e nem por isso foi
mal no vestibular, muito pelo contrário).
8. Ao pensar em nação brasileira preciso também pensar no que
não é nação brasileira.
9. Nos primeiros tempos do uso dos sinais de pontuação era ne-
cessário alertar os que queriam habilitar-se a ler por eles mesmos para
fazerem essas pausas onde houvesse um ponto, uma vírgula, etc.
10. Acreditamos que essa técnica tenha resultados positivos na me-
dida em que conjuga os benefícios de um e outro procedimento: enquanto

504
gramática e estilo

a avaliação analítica tem mais confiabilidade no sentido de conseguir


avaliar características detalhadas da produção de um candidato, a avalia-
ção holística tem mais validade, já que proporciona uma leitura próxima
da que é realizada numa situação real. Ao unirmos as duas temos um
ganho em qualidade de avaliação, principalmente numa situação em que
cada detalhe pode ser a diferença entre fazer parte de uma universidade
ou estar fora da disputa pela vaga.

5.2.3 Intercalações

Já observamos que um dos modos de pôr em foco um constituinte


que não está nem topicalizado no início da frase nem enfatizado no fim
é tirá-lo do lugar que costuma ocupar na ordem direta e colocá-lo entre
vírgulas noutro lugar, como já exemplificamos na seção 5.1.4 Começo,
meio e fim, com estas versões da frase que segue:

1 Escrever era muito penoso nem tanto por causa da ortografia quanto
pela legibilidade do que eu punha no papel: para o desespero da pro-
fessora, esgotei uma série de cadernos de caligrafia, sem melhoras.

1a Escrever era muito penoso nem tanto por causa da ortografia


quanto pela legibilidade do que eu punha no papel: para o deses-
pero da professora, esgotei, sem melhoras, uma série de cadernos
de caligrafia.

Na verdade, sem melhoras é, como também já vimos, um advérbio


do verbo; consequentemente, seu lugar é de um ou de outro lado do verbo,
e o papel daquelas vírgulas é justamente o de focalizar sem melhoras. Se
não fosse o caso de focalizar, as vírgulas não seriam necessárias porque
o olho do leitor, numa só visada, enxerga o verbo, esse adjunto adverbial
e o que vem depois; sem as vírgulas, a legibilidade não muda, mas não
há foco sobre sem melhoras:

505
gramática e estilo

1b Escrever era muito penoso nem tanto por causa da ortografia


quanto pela legibilidade do que eu punha no papel: para o desespe-
ro da professora, esgotei sem melhoras uma série de cadernos de
caligrafia.

Vamos precisar de vírgulas para intercalar constituintes suficien-


temente grandes para que o olho do leitor não consiga perceber numa
única visada onde começam e onde terminam, como este:

2 Agora, já com passos mais lentos, não se priva em parar nos por-
tões para conversar com as vizinhas que encontra, porém seu jeito
extrovertido causa um certo incômodo a outras senhoras mais jovens
que quando poderiam sair com a simples finalidade de se divertir e
conversar para melhorar o bem-estar e a qualidade da vida dedicam-
-se apenas aos serviços do lar e ao cuidado dos netos.

Uma longa intercalação fica mais delimitável se for posta entre


vírgulas:

2a Agora, já com passos mais lentos, não se priva em parar nos


portões para conversar com as vizinhas que encontra, porém seu
jeito extrovertido causa um certo incômodo a outras senhoras mais
jovens que, quando poderiam sair com a simples finalidade de se
divertir e conversar para melhorar o bem-estar e a qualidade da
vida, dedicam-se apenas aos serviços do lar e ao cuidado dos netos.

Por que intercalaríamos um constituinte deste tamanho? Um bom


motivo é o que queremos enfatizar no fim da frase, no caso, aquilo a que
se dedicam as outras senhoras ou aquilo a que elas deveriam se dedicar.
O que enfatizamos no fim da frase tem a ver também com o tema que
vai ser desenvolvido na frase seguinte: se os cansaços dos cuidados da
casa e dos netos for o assunto, esse arranjo aí é mais adequado. Se a
próxima frase discorrer sobre o bem-estar e a qualidade da vida, é melhor
desintercalar:

506
gramática e estilo

2b Agora, já com passos mais lentos, não se priva em parar nos


portões para conversar com as vizinhas que encontra, porém seu
jeito extrovertido causa um certo incômodo a outras senhoras mais
jovens que se dedicam apenas aos serviços do lar e ao cuidado dos
netos quando poderiam sair com a simples finalidade de se divertir
e conversar para melhorar o bem-estar e a qualidade da vida.

Convém tomar cuidado com o excesso de intercalações:

3 Isso afetou horrores minha autoconfiança que, aliada a imagens


distorcidas que eu tinha do meu próprio corpo, já que eu me achava
um monstro, e à absoluta interrogação que crescia e pesava cada
dia mais sobre meus ombros quando pensava em que curso escolher,
me levou a uma crise.

A vírgula depois do primeiro que indica que aliadas a imagens


distorcidas... não é a oração aberta por aquele que de autoconfiança que;
o que vem logo a seguir, depois dessa intercalação – corpo, já que eu me
achava –, é também aberto por uma conjunção; por isso, também não
pode corresponder à oração iniciada pelo que. Em síntese, o que sobrou
para fazer o papel de complementador daquele que é me levou a uma
crise. Pondo uma coisa depois da outra, a frase não dá certo:

Isso afetou horrores minha autoconfiança que me levou a uma crise...

Se fosse tanto em vez de horrores, teríamos uma regular relação


de causa e efeito. De fato, muitas intercalações podem levar à perda do
rumo da frase.

Vamos examinar estas frases:


4 Pegou, na oficina, o carro reformado, rebaixado, pintado de ama-
relo e vermelho, equipado com mais de dez caixas de som e deu uma
volta com o funk no último volume. Dessa vez, o bairro inteiro ficou
sabendo que ele estava passando.

507
gramática e estilo

Na oficina não é um advérbio do verbo porque, na ordem direta,


estaria no fim da oração – pegou o carro reformado, rebaixado, ....na
oficina –, mas não deve estar entre vírgulas porque o olho do leitor
enxerga mais do que o carro numa visada desde o início da frase. A
única justificativa para pôr na oficina entre vírgulas seria a necessi-
dade de pôr em foco para salientar que o carro não foi pego do esta-
cionamento, da revendedora ou da garagem, o que, pela história que
aparece nessas duas frases, não é o caso. Já dessa vez é um advérbio
da frase, que está marcado por vírgula porque o que segue – o sujeito
da frase – se apresenta como o tema que vai ser tratado; além disso,
dessa vez remete irremediavelmente a uma outra vez, em que as coisas
foram diferentes dessa, e não é demais usar uma vírgula para pôr em
foco essa diferença.

4a Pegou na oficina o carro reformado, rebaixado, pintado de ama-


relo e vermelho, equipado com mais de dez caixas de som e deu uma
volta com o funk no último volume. Dessa vez, o bairro inteiro ficou
sabendo que ele estava passando.

5 Não vou dizer que nunca pensei em mudar de curso porque eu o


quis diversas vezes, mas meus pais sempre diziam para eu continuar
porque se desistisse apenas uma vez iria desistir de outros cursos
também porque em qualquer ambiente escolar haverá professores
bons e ruins.

Se desistisse apenas uma vez e em qualquer ambiente escolar são


constituintes intercalados. Vamos recompor a ordem direta: porque iria
desistir de outros cursos também se desistisse apenas uma vez pois
haverá professores bons e ruins em qualquer ambiente escolar. Ambos
os constituintes intercalados estão localizados entre a conjunção que
inicia uma oração e a oração iniciada por ela: porque, se desistisse...
iria desistir... e ...pois, em qualquer... haverá professores bons e ruins.
Há dois bons motivos para colocar esses constituintes intercalados entre

508
gramática e estilo

vírgulas: (1) essa posição – entre a conjunção que abre a oração e a


oração – é muito sensível a intercalações, e (2) ambos os intercalados
são muito grandes.

5a Não vou dizer que nunca pensei em mudar de curso porque eu o


quis diversas vezes, mas meus pais sempre diziam para eu continuar
porque, se desistisse apenas uma vez, iria desistir de outros cursos
também pois, em qualquer ambiente escolar, haverá professores
bons e ruins.

6 Entrei no curso com vontade de aprender a escrever e pensei que,


na cadeira de Leitura e Produção Textual, eu satisfaria esse desejo.

Na cadeira de Leitura e Produção Textual é um adjunto adverbial


bem longo intercalado entre a conjunção que, que abre a oração, e o su-
jeito da oração – eu – seguido do predicado. A vírgula costuma ser quase
obrigatória para marcar conjunções que se referem ao que vem depois
do que está intercalado; neste caso, o que está intercalado – na cadeira
de Leitura e Produção Textual – é o tema do rema que vem depois – eu
satisfaria esse desejo. Como o sujeito é muito pequeno – eu –, a falta
de vírgula propicia uma leitura mais fluida dessa relação tema-rema. A
ausência dessa vírgula desnecessária, neste caso, se justifica também
porque economiza meios expressivos.

6a Entrei no curso com vontade de aprender a escrever e pensei que


na cadeira de Leitura e Produção Textual eu satisfaria esse desejo.

7 Muitos autores dos que criaram personagens loucos estavam em-


penhados na muito racional tarefa de criticar, por meio da loucura
de sua personagem, o mundo de sua época.

Por meio da loucura de sua personagem está intercalado entre o


verbo criticar e o seu complemento – o mundo de sua época –, mas dá
continuidade a uma cadeia de causa e efeito em que a frase vem sendo

509
gramática e estilo

ordenada. Usar vírgulas nessa intercalação interromperia indevidamente


não a cadeia sintática da frase mas a sua cadeia de tema e rema.

7a Muitos dos autores que criaram personagens loucos estavam


empenhados na muito racional tarefa de criticar por meio da loucura
de sua personagem o mundo de sua época.

8 Meu primeiro contato com a escrita se deu na infância, quando


comecei a ler com meus pais. Por volta dos 6 anos, lembro de que
em todas as noites antes de dormir meu pai lia um livro de contos
de fadas para mim.

Quando comecei a ler com meus pais é uma oração adverbial que
está no fim da frase, ou seja, no seu adequado lugar na ordem direta; não
há necessidade, portanto, de vírgula. Por volta dos 6 anos é um adjunto
adverbial deslocado para o início da frase; como o que segue não desen-
volve o que diz esse adjunto adverbial, a vírgula é conveniente; já em
todas as noites antes de dormir é um adjunto adverbial intercalado entre
que, que inicia a oração e a oração por ela iniciada – que... meu pai lia
um livro de... Como o tema da oração é o sujeito que a inicia – meu pai
–, é o caso de colocar esse adjunto adverbial entre vírgulas.

8a Meu primeiro contato com a escrita se deu na infância quando


comecei a ler com meus pais. Por volta dos 6 anos, lembro de que,
em todas as noites antes de dormir, meu pai lia um livro de contos
de fadas para mim.

9 Este termo ouvi, ainda quando criança, da boca de minha avó, uma
senhora muito prestativa e amável, também engraçada e irônica.

Ainda quando criança está intercalado entre o verbo e um dos seus


complementos; do ponto de vista da posição, a vírgula não seria indis-
pensável, mas essa expressão é bem própria para ser focalizada. É isso
que justifica as vírgulas.

510
gramática e estilo

10 A qualidade do som é tão ruim que demoramos a identificar do


que se trata, mas conforme aquele indivíduo ou grupo se aproxima,
é possível ver um celular na mão de alguém, a letra vai ficando mais
clara, e logo estamos ouvindo um hit do sertanejo universitário, desses
que tocam nas rádios de dez em dez minutos, ou então, algum pop
rock também já ouvido nas rádios ou na televisão.

Conforme aquele indivíduo ou grupo se aproxima está intercalado


entre o mas, que abre a oração, e a oração – é possível ver um celular na
mão de alguém. É uma oração grande; por isso, as vírgulas são necessá-
rias, nas duas pontas. Então também está intercalado entre a conjunção
– ou – e a oração – algum pop rock... televisão. Então é uma conjunção
enfática; por isso, precisa das vírgulas, uma de cada lado.

10a A qualidade do som é tão ruim que demoramos a identificar do


que se trata, mas, conforme aquele indivíduo ou grupo se aproxima,
é possível ver um celular na mão de alguém, a letra vai ficando mais
clara, e logo estamos ouvindo um hit do sertanejo universitário, desses
que tocam nas rádios de dez em dez minutos, ou, então, algum pop
rock também já ouvido nas rádios ou na televisão.

São cinco linhas ao todo, e entre ...mão de alguém... e ...a letra


vai... bem que cabe um ponto, já que três linhas é um bom limite para o
tamanho de uma frase legível.

10b A qualidade do som é tão ruim que demoramos a identificar do


que se trata, mas, conforme aquele indivíduo ou grupo se aproxima,
é possível ver um celular na mão de alguém. A letra vai ficando mais
clara, e logo estamos ouvindo um hit do sertanejo universitário, desses
que tocam nas rádios de dez em dez minutos, ou, então, algum pop
rock também já ouvido nas rádios ou na televisão.

11 E se antes achávamos legal tirar menos nota que nossa amiga


de infância, agora, fazemos questão de dois décimos a mais para
manter a liderança.

511
gramática e estilo

A oração se antes achávamos legal... de infância está intercalada


entre a conjunção e e a oração principal agora, fazemos questão de...
Orações intercaladas, especialmente se são longas, é bom que sejam
postas entre vírgulas. Já agora é um advérbio do verbo, que está ao lado
do verbo; sem a vírgula da direita, portanto:

11a E, se antes achávamos legal tirar menos nota que nossa amiga
de infância, agora fazemos questão de dois décimos a mais para
manter a liderança.

Exercício 57

Examine as intercalações e decida qual é a pontuação mais adequada;


considere também o tamanho da frase.
1. Jamais consegui usar um fone de ouvidos enquanto estou no
ônibus ou caminhando pela rua como muitos fazem porque nessas
ocasiões a música não tem nenhum significado para mim. Sempre
me perguntei como as pessoas conseguem aproveitar a melodia que
estão ouvindo estando sujeitas às distrações da vida urbana. Mas para
meu espanto, vejo que os adolescentes criaram uma nova forma de se
relacionar com a música: eles a ouvem no celular, em volume alto e
em lugares públicos.
2. A professora para incentivar os alunos a obterem boas notas,
dava uma premiação. Era algo singelo, mas quando eu ganhava, ficava
muito feliz, chegava em casa muito orgulhosa do prêmio que havia
ganhado.
3. Eles não tinham interesse por mim ou se demonstravam algum
era para rir com os colegas depois.
4. Fiz meu primeiro grau na comunidade onde morava, no interior,
em uma escola estadual, e o segundo grau, em uma cidade próxima, sendo
que estudava à tarde e, pela manhã, já trabalhava como babá.

512
gramática e estilo

5. Eu fiquei pensando como alguém podia acordar tão cedo em um


sábado tão feio e ter tanta disposição para ouvir música sertaneja. Mas
pela postura do jovem eu percebi que a música em si não estava fazendo a
menor diferença, pois ele não parecia estar realmente curtindo aquele som.
6. Por quase todo aquele ano em que estagiei na escola municipal,
eu achei que somente os adolescentes eram ouvidores de música alta
em celular em qualquer lugar, mas nas festas que marcaram o fim das
aulas percebi que esse é um hábito que está se difundindo entre outras
gerações também.
7. Como acontece com todas as modas inventadas pelos adoles-
centes provavelmente, esse hábito de ouvir música alta em celular terá
uma vida curta e logo, logo deve surgir outra tecnologia que desperte a
atenção deles.
8. Assim o professor com a maior da boa vontade do mundo tenta
pôr em prática a sua tão planejada aula; surge no entanto mais uma vez
um pequeno problema porque no meio da sua explicação, alguém ergue o
delicado dedo para dizer que precisa com muita urgência ir ao banheiro.
9. Com a bagagem cultural que trouxemos de nossas famílias, é
natural que, em algum momento, as diferenças se manifestem e cada um
tenha que defender a sua ideia mas quando há espaço para a troca sadia
é mais fácil um consenso.
10. É na convivência que as atuais gerações descobrem que não
dá para apostar tudo no sonho comum. É sem a menor cerimônia, que
quando o casal descobre que não está conectado parte para outra relação.

5.2.4 Travessões e parênteses

Então, como já vimos, usamos vírgulas na intercalação de consti-


tuintes grandes, que não são percebidos de uma só visada pelo olho do
leitor. Vejamos este exemplo:

513
gramática e estilo

1 Após insistência de ambas as partes, deles para que eu dormisse


na cama e minha para que eu dormisse na rede, acabei vencendo,
deixando transparecer a eles que eu dormira em redes desde sempre.

A vírgula depois de partes justifica-se por dois motivos: (1)


por causa do deslocamento do adjunto adverbial – após insistência
de ambas as partes – para o início da frase e (2) para separar partes
deles. Mesmo com essa separação, essa vizinhança pode levar o leitor
a um certo estranhamento porque não se relaciona imediatamente
deles com insistência. Travessões, neste caso, marcariam, com maior
clareza do que a vírgula, a separação entre partes e deles, e essa se-
paração anunciaria o descolamento sintático do enunciado inserido
com relação ao resto da frase, explicitando sua função de esclarecer
o que foi dito antes:

1a Após insistência de ambas as partes – deles para que eu dormisse


na cama e minha para que eu dormisse na rede –, acabei vencendo,
deixando transparecer a eles que eu dormira em redes desde sempre.

Aquela vírgula depois do segundo travessão foi mantida para


que o leitor resgate a interrompida sintaxe da frase: o que está entre os
travessões, de certo modo, prolonga a oração adverbial que antecede a
oração principal. Por que travessões são mais adequados neste caso do
que parênteses? Examinemos como ficaria a frase com parênteses:

1b Após insistência de ambas as partes (deles para que eu dormisse


na cama e minha para que eu dormisse na rede), acabei vencendo,
deixando transparecer a eles que eu dormira em redes desde sempre.

Não dá pra dizer que não dá pra entender, mas os parênteses assi-
nalam uma maior distância entre a frase e o intercalado de tal modo que,
se não se pode limitar o uso dos parênteses para assinalar apenas frases
inteiras, pode-se vincular o uso de travessões a constituintes de frases.

514
gramática e estilo

Outra distinção é a referência do intercalado: botamos entre parênteses


o que se refere ao tema da frase e entre travessões o que se refere a um
de seus constituintes. Há ainda um terceiro fator, que é o tamanho do
intercalado: entre parênteses vão os maiores; os intermediários, entre
travessões; os grandes menores do que esses vão entre vírgulas; e os
pequenos vão sem vírgulas. É claro que essas dimensões não são men-
suráveis com régua nem com contagem de palavras; consequentemente,
há uma zona imprecisa entre esses limites, que tem de ser arbitrada caso
a caso. Neste caso, em que o intercalado é um aposto não tão grande e
se refere diretamente a um termo da frase – insistência –, o travessão é
mais adequado.
Neste próximo caso, não é propriamente o tamanho do constituinte
intercalado que pede o travessão: examinemos a versão com vírgulas:

2 Creio, e posso ser imprecisa, pois já faz algum tempo, que tudo
começou quando eu tinha uns 12 anos.

As vírgulas aqui criam, pelo menos, três dificuldades: (1) não há


mudança de sujeito que justifique a vírgula antes de e posso, e essa
seria a primeira previsão do leitor; (2) há discrepância sintática entre o
paralelismo anunciado – creio e posso – e a independência sintática do
intercalado com relação à frase em que se intercala; e (3) mesmo com a
vírgula entre tempo e começou, não vai faltar quem leia ...já faz algum
tempo, que tudo começou. Como o intercalado se refere a creio, travessões
contornariam essas três dificuldades:

2a Creio – e posso ser imprecisa, pois já faz algum tempo – que tudo
começou quando eu tinha uns 12 anos.

Neste próximo caso, vírgulas são inadequadas para mostrar ao leitor


que o intercalado é descolado do tema da frase:

515
gramática e estilo

3 O evento mais concorrido dessas viagens com meus alunos bra-


sileiros era o encontro com aprendizes de português no Centro
Argentina-Brasil, de uma amiga brasileira que morava lá em Buenos
Aires. Este encontro, com o tempo fomos aprendendo, era organizado
desde o primeiro dia de chegada lá.

Travessões, já que o intercalado não é uma frase, poupam o leitor


de voltar para reler com o tempo fomos aprendendo para entender sua
relação com o resto da frase:

3a O evento mais concorrido dessas viagens com meus alunos


brasileiros era o encontro com aprendizes de português no Centro
Argentina-Brasil, de uma amiga brasileira que morava lá em Buenos
Aires. Este encontro – com o tempo fomos aprendendo – era orga-
nizado desde o primeiro dia de chegada lá.

Neste outro caso, dentro da intercalação, há uma outra intercalação,


e a vírgula não dá conta da distinção entre o intercalado e o intercalado
no intercalado que faz uma lista.

4 Mas, quando me deparei com os estudos linguísticos: variações


linguísticas, sociolinguística, a não valorização suprema da grama-
tiquice, aí sim, me encontrei.

Intercalação em intercalação e lista intercalada são dois motivos


para o uso de travessões:

4a Mas, quando me deparei com os estudos linguísticos – variações


linguísticas, sociolinguística, a não valorização suprema da grama-
tiquice – aí sim, me encontrei.

Neste caso, a vírgula depois do segundo travessão parece útil por-


que lembra o distante começo da frase, com que se relaciona a oração
principal deslocada para o fim:

516
gramática e estilo

4b Mas, quando me deparei com os estudos linguísticos – variações


linguísticas, sociolinguística, a não valorização suprema da grama-
tiquice –, aí sim, me encontrei.

Neste outro caso, o uso de parênteses é mais adequado:

5 Através do fascínio com que via minha mãe devorando um livrinho


depois do outro, ah, sim, esqueci de mencionar antes: além de serem
supersimples de ler, sem palavras complicadas ou enredo denso, os
livros tinham poucas páginas, eu passei também a compartilhar com
ela a paixão pela leitura.

Entre a oração adjetiva no início – ...com que via... do outro... – e a


oração principal, intercala-se uma outra frase muito grande que poderia
ter aparecido antes ou depois desta, acrescentando uma informação ao
assunto geral: ah, sim... poucas páginas... Aqui temos novamente um
intercalado que é um comentário a respeito de um tema correlato ao da
frase expresso por uma outra frase sintaticamente descolada da frase
principal:

5a Através do fascínio com que via minha mãe devorando um livrinho


depois do outro (ah, sim, esqueci de mencionar antes: além de serem
supersimples de ler, sem palavras complicadas ou enredo denso, os
livros tinham poucas páginas), eu passei também a compartilhar com
ela a paixão pela leitura.

A vírgula depois do fechamento dos parênteses marca o limite entre


o adjunto adverbial deslocado e a oração principal.
Neste outro caso, há também uma frase que faz um comentário
sobre assunto correlato e é sintaticamente descolada da frase que inicia
antes e acaba depois dela.

517
gramática e estilo

6 Eu sempre tive o sonho solitário, minha família é totalmente re-


lapsa nisso: a expectativa era toda minha, e meio utópico de fazer
um curso superior.

Parênteses deixam isso mais claro:

6a Eu sempre tive o sonho solitário (minha família é totalmente


relapsa nisso: a expectativa era toda minha) e meio utópico de fazer
um curso superior.

Aqui há uma intercalação pequena, mas o comentário que faz, além


de apenas correlato ao tema, é motivado por uma necessidade alheia ao
que a frase enuncia:

7 Lembro de um livro chamado “É tarde para saber” o autor não


lembro que a professora mandou ler na oitava série para trabalho
e que eu li com tanta vontade, pois parecia bom naquele momento.

Parênteses não deixam dúvida a respeito de que o comentário é


descolado tanto da sintaxe quanto do conteúdo da frase:

7a Lembro de um livro chamado “É tarde para saber” (o autor não


lembro) que a professora mandou ler na oitava série para trabalho
e que eu li com tanta vontade, pois parecia bom naquele momento.

Aqui também o que motiva a frase intercalada é o comentário que


complementa a informação da frase principal:

8 Quando já estávamos para terminar o ginásio – naquela época


ainda existia essa etapa da educação que ficava espremida entre
o primário e o científico ou clássico –, nossas famílias tinham que
tomar uma decisão quanto ao nosso futuro.

518
gramática e estilo

O uso dos parênteses, mais do que o dos travessões, ressalta o caráter


complementar da informação que a frase intercalada aporta:

8a Quando já estávamos para terminar o ginásio (naquela época


ainda existia essa etapa da educação que ficava espremida entre o
primário e o científico ou clássico), nossas famílias tinham que tomar
uma decisão quanto ao nosso futuro.

Examinemos agora estas outras frases:

9 Em 2006 tive uma experiência única que, com certeza, nunca vou
esquecer: me mudei para Rio Branco, no Acre. Antes de nos mudar-
mos, pesquisei tudo sobre o estado e a cidade na internet: distância,
quantas horas de voo, como era o clima, tudo, completamente tudo,
e pensei estar preparada para esta mudança, mas não foi bem assim.

Há uma lista intercalada, pois a frase termina depois que a lista aca-
ba; travessões são particularmente úteis para destacar listas intercaladas:

9a Em 2006 tive uma experiência única que, com certeza, nunca vou
esquecer: me mudei para Rio Branco, no Acre. Antes de nos mudar-
mos, pesquisei tudo sobre o estado e a cidade na internet – distância,
quantas horas de voo, como era o clima, tudo, completamente tudo – e
pensei estar preparada para esta mudança, mas não foi bem assim.

10 Na verdade, se eu levar em conta o conceito de que professor é


aquele indivíduo que ensina alguma coisa a alguém, eu sou professora
desde criança – quando morava junto com meus pais – pequenos
agricultores que residem em uma pequena localidade do interior,
distante 32 km da sede do município de Rio Pardo.

A oração adverbial quando morava junto com meus pais está


perfeitamente integrada na sintaxe da frase, isto é, não está intercalada:

519
gramática e estilo

10a Na verdade, se eu levar em conta o conceito de que professor é


aquele indivíduo que ensina alguma coisa a alguém, eu sou profes-
sora desde criança, quando morava junto com meus pais, pequenos
agricultores que residem em uma pequena localidade do interior,
distante 32 km da sede do município de Rio Pardo.

11 Não sei qual dos dois ele conseguiu calar primeiro, mas – pelo
que vi – a única coisa que aquela música estava fazendo pelo passeio
da família era deixar a criança nervosa.

O que foi posto entre travessões não está integrado na sintaxe da


frase, mas é um constituinte muito pequeno; é caso de vírgulas:

11a Não sei qual dos dois ele conseguiu calar primeiro, mas, pelo
que vi, a única coisa que aquela música estava fazendo pelo passeio
da família era deixar a criança nervosa.

12 Na escola, minhas composições versavam sobre gravuras – que


a professora afixava no quadro-negro – mostrando paisagens bucó-
licas, patos que se atiravam felizes de escorregadores, porcos que
tocavam gaitas.

Não há nenhuma necessidade do travessão até porque não há neces-


sidade nem de vírgula; trata-se de uma oração adjetiva restritiva:

12a Na escola, minhas composições versavam sobre gravuras que


a professora afixava no quadro-negro mostrando paisagens bucó-
licas, patos que se atiravam felizes de escorregadores, porcos que
tocavam gaitas.

13 Mesmo assim, eu estava ciente de que passar no vestibular era


prioridade e a única forma de dar continuidade aos meus estudos,
para que, agora remeto ao discurso dos nossos pais e, de regra, ao
senso comum, pudesse ter mais oportunidades de crescer na vida.

520
gramática e estilo

O que está intercalado é uma frase grande que trata de um assunto


correlato ao da frase principal; é caso de parênteses.

13a Mesmo assim, eu estava ciente de que passar no vestibular era


prioridade e a única forma de dar continuidade aos meus estudos,
para que (agora remeto ao discurso dos nossos pais e, de regra, ao
senso comum) pudesse ter mais oportunidades de crescer na vida.

14 As práticas de leitura instituídas em minha sala: ida à biblioteca,


auxílio na hora da escolha de livros, constantes sugestões de títulos,
diversidade textual, leitura em sala de aula, além da hora de leitura
escolar (em que os alunos têm um período semanal de leitura) me
deixam bastante confortável em relação a essa prática, ou em relação
ao desenvolvimento dessa habilidade.

Há uma lista intercalada numa frase que começa antes e termina


depois dessa lista; travessões assinalam essa lista, que o leitor sabe que
termina no segundo travessão. Para marcar o que está intercalado em um
dos elementos da lista, não há outra opção além dos parênteses:

14a As práticas de leitura instituídas em minha sala – ida à biblioteca,


auxílio na hora da escolha de livros, constantes sugestões de títulos,
diversidade textual, leitura em sala de aula, além da hora de leitura
escolar (em que os alunos têm um período semanal de leitura) – me
deixam bastante confortável em relação a essa prática, ou em relação
ao desenvolvimento dessa habilidade.

15 Quanto às atividades de leitura, havia a interpretação de textos,


também não muito frequente, trabalhos com livros literários (envol-
vendo ainda a escrita de resumos), não me lembro se foi realizada
alguma discussão em torno de textos jornalísticos.

Há uma lista distribuída nas duas frases, as quais contêm listas in-
ternas, com alguns de seus itens comentados. A pontuação, no entanto,
não distingue adequadamente entre item e comentário.

521
gramática e estilo

15a Quanto às atividades de leitura, havia a interpretação de textos


– também não muito frequente –, trabalhos com livros literários, en-
volvendo ainda a escrita de resumos; não me lembro se foi realizada
alguma discussão em torno de textos jornalísticos.

Exercício 58

Use travessões ou parênteses ou deixe entre vírgulas.


1. Quando eu atingi uma certa idade, minha mãe se deu conta que
eu precisava ler livros e comprou o meu primeiro livro “A tulipa negra”,
levei um ano inteiro lendo este livro, pois eu não queria ler, achava que
não era interessante, mas depois que eu li, aos trancos e barrancos, reli
novamente e a partir daí despertei para a literatura.
2. Estou neste momento, sexta-feira de manhã cedo, devem ser umas
sete horas, sentada em um banco de ônibus escolar. Ele está indo para a
escola, os passageiros são alunos do ensino médio e algumas professoras
e eu sou uma delas.
3. Após, me sentava ao lado do fogão à lenha, a água para o café
estava borbulhando de quente, e ficava admirando o campo todo coberto
pela geada.
4. Não voltei com minha mãe. Chorei, fiz birra, me puseram sentada
sobre almofadas, porque sem elas não alcançaria a mesa, e fiquei. De certa
maneira, fiquei para sempre, porque continuo sentada vida afora, diante
de papel, com uma caneta ou um lápis na mão, a tela do computador é
apenas um variante, aprendendo, sempre aprendendo, a escrever.
5. Nesse ano, os meses de junho, julho e agosto foram marcados por
longas paralisações, greves, brigas judiciais, enfrentamentos militares,
e situações que pareciam cenário de filmes da época da ditadura. Eu era
nova nesse mundo do sindicalismo, tinha minhas teorias da faculdade,
algumas histórias que haviam chegado aos meus ouvidos, mas a peleia
mesmo estava experimentando naquele momento.

522
gramática e estilo

6. Ao analisar a forma como os alunos falavam: o quê e como di-


ziam o que queriam uns aos outros e como se entendiam nessas falas,
eu comecei a me dar conta de que aquele poderia ser mais um contexto
a me trazer pistas sobre o trabalho a desenvolver em sala de aula.
7. Depois, foram milhões de perguntas sobre a viagem, que tratá-
vamos de responder, ele, muito à vontade; eu, no meu espanhol atrapa-
lhado, tentando lembrar as coisas que Eduardo, assim se chamava meu
companheiro, tinha me contado sobre cada um deles.
8. Isso significa dizer que, por mais que eu, enquanto professora,
invista na minha formação profissional: faça cursos, estude, apresente
trabalhos em congressos, o discurso que me acompanhará é o de desvalia.
9. Depois de algumas semanas fazendo tracinhos e preenchendo
fichas, saiu o resultado do meu teste vocacional: três opções (as duas
primeiras eram profissões desconhecidas para mim) e a terceira era
professora.
10. Ao abrir aquele bonito pacote com um grande laço, não me
recordo das cores do embrulho, deparei-me com um quadro-negro, de
aproximadamente 30x30 cm, pequeno, mas lindo.

5.3 A ORAÇÃO E AS OUTRAS ORAÇÕES

O texto, então, é composto por um encadeamento de frases, que são


as unidades da língua escrita, compostas, por sua vez, por orações, que
são unidades de conteúdo, que expressam o que diríamos se tivéssemos
de falar (e não escrever) a respeito do assunto. Frases têm a finalidade de
dizer alguma coisa a respeito de algo, tal qual as orações. Sentença é a ex-
pressão que os linguistas usam para designar frase e oração e reconhecem
a articulação tema-rema como uma propriedade das sentenças, isto é, da
frase e da oração, porque o objeto de estudo da linguística é a língua falada.
Na língua escrita, no entanto, a distinção entre frase – unidade de
composição – e oração – unidade de conteúdo – é crucial porque o pro-

523
gramática e estilo

cesso de composição de frases na língua escrita é diferente do processo


de composição de sentenças na língua falada, e o processo de produção
de sentido de frases lidas é diferente do processo de produção de sentido
de sentenças ouvidas. Vamos examinar o parágrafo que segue:

Posteriormente fiquei pensando sobre isso. Dizer que os alemães eram


os mais maus seria a resposta mais simples. Ao dizer isso, entretanto,
estaria ajudando a sedimentar um preconceito, uma visão equivocada
sobre um momento histórico, focando a árvore, deixando de olhar
a floresta. Pois o regime fascista aplicado na Itália e sofisticado
na Alemanha não surgiu espontaneamente. Foi apoiado pelo resto
da Europa como alternativa e barreira ao comunismo. Os aliados,
além de terem sustentado o fascismo até o último minuto, cometeram
atrocidades tão brutais quanto Hitler e Mussolini. Começou com a
prática de bombardeios em áreas civis para reduzir o apoio popular
a Hitler. Continuou com a perseguição de descendentes de alemães e
japoneses nos países americanos, e nos EUA foram criados campos
de concentração para essas pessoas. Terminou com o bombardeio
desnecessário, tanto sob o aspecto moral quanto militar, de Hiroshi-
ma e Nagasaki. Para mim, todos eram maus, e o mau mal ganhou.

O parágrafo tem 13 linhas e é composto por 10 frases. Vamos nu-


merar as frases para facilitar a leitura da análise que vem a seguir:

1 Posteriormente fiquei pensando sobre isso. 2 Dizer que os alemães


eram os mais maus seria a resposta mais simples. 3 Ao dizer isso,
entretanto, estaria ajudando a sedimentar um preconceito, uma
visão equivocada sobre um momento histórico, focando a árvore,
deixando de olhar a floresta. 4 Pois o regime fascista aplicado na
Itália e sofisticado na Alemanha não surgiu espontaneamente. 5
Foi apoiado pelo resto da Europa como alternativa e barreira ao
comunismo. 6 Os aliados, além de terem sustentado o fascismo até
o último minuto, cometeram atrocidades tão brutais quanto Hitler e
Mussolini. 7 Começou com a prática de bombardeios em áreas civis
para reduzir o apoio popular a Hitler. 8 Continuou com a perseguição

524
gramática e estilo

de descendentes de alemães e japoneses nos países americanos, e


nos EUA foram criados campos de concentração para essas pessoas.
9 Terminou com o bombardeio desnecessário, tanto sob o aspecto
moral quanto militar, de Hiroshima e Nagasaki. 10 Para mim, todos
eram maus, e o mau mal ganhou.

Neste encadeamento podemos observar que a primeira frase é uma


referência ao que foi dito no parágrafo anterior; a segunda é que esta-
belece o assunto do parágrafo: terem sido os alemães os mais maus na
Segunda Guerra seria uma resposta simples ao que resume o isso (o que
teria deixado o autor pensando) da frase anterior. O tratamento desse
assunto – os alemães, o fascismo – vai até a frase 5, que começa com foi
apoiado por... Na frase 6, os aliados são propostos como o novo assunto,
que é tratado até a frase 9. A frase 10 produz uma opinião do escritor a
respeito do que expôs nas frases anteriores. Temos aí, então, no começo,
uma frase de transição e, no fim, uma frase de conclusão e quatro frases
para tratar de cada um dos assuntos.
Considerando-se que o leitor lê cada frase tentando estabelecer a
relação tema-rema que há nela, essa quantidade de frases, cada uma com
seu tema, pode dificultar a percepção desses dois temas centrais porque
cada uma das quatro frases que tratam desses dois temas também apresen-
ta ao leitor o seu tema próprio e o respectivo rema. Uma revisão radical
dessa relativa dispersão consideraria a possibilidade de estabelecer uma
relação de igualdade entre tema e frase, o que levaria a um parágrafo de
três frases: uma sobre os alemães, outra sobre os aliados e uma terceira
para sintetizar a comparação da atuação de ambos na Segunda Guerra
Mundial. Vamos ver no que isso dá:

1 Posteriormente fiquei pensando sobre isso: dizer que os alemães


eram os mais maus seria a resposta mais simples; ao dizer isso,
entretanto, estaria ajudando a sedimentar um preconceito, uma
visão equivocada sobre um momento histórico, focando a árvore,
deixando de olhar a floresta, pois o regime fascista aplicado na

525
gramática e estilo

Itália e sofisticado na Alemanha não surgiu espontaneamente, já


que foi apoiado pelo resto da Europa como alternativa e barreira ao
comunismo. 2 Os aliados, além de terem sustentado o fascismo até
o último minuto, cometeram atrocidades tão brutais quanto Hitler
e Mussolini: começou com a prática de bombardeios em áreas civis
para reduzir o apoio popular a Hitler; continuou com a perseguição
de descendentes de alemães e japoneses nos países americanos e com
a criação, nos EUA, de campos de concentração para essas pessoas;
terminou com o bombardeio desnecessário, tanto sob o aspecto moral
quanto militar, de Hiroshima e Nagasaki. 3 Para mim, todos eram
maus, e o mau mal ganhou.

Professores de Português costumam recomendar a seus alunos que


não produzam frases tão grandes para que não percam o controle delas;
jornalistas já foram convencidos de que os leitores não são capazes de
entender frases grandes, seja lá o que eles entendam por entender e por
frases grandes. Aqui, mesmo, neste livro, já apareceu a recomendação de
não ultrapassar três linhas com a mesma frase (a primeira vai até a sexta
linha; a segunda expande-se por sete linhas; a última caberia em apenas
uma). Aqui também pode ser lida a recomendação de não usar mais de
um ponto e vírgula ou mais de um dois-pontos ou um ponto e vírgula e
um dois-pontos sem o acompanhamento de uma conjunção.
Na frase 1, há um dois-pontos sem conjunção entre a primeira e a
segunda oração, mas entre a segunda e a terceira há ponto e vírgula e a
conjunção entretanto. Depois temos duas reduzidas de gerúndio coorde-
nadas separadas por vírgula, uma conjunção pois e outra conjunção já que
separando as orações seguintes; a recomendação foi, portanto, observada.
Na frase 2, há um além de intercalando uma reduzida de gerúndio na
primeira oração, que abre uma sequência paralela de orações separadas
por ponto e vírgula: começou...; continuou...; terminou. Na frase 3, há
duas orações coordenadas por e.
Não vai faltar, apesar do tamanho das duas primeiras frases, leitor
que goste dessa muito clara determinação do tema de cada frase até por-

526
gramática e estilo

que essa revisão não perdeu o controle do encadeamento. Os limites das


orações estão muito claramente balizados com dois-pontos, com ponto
e vírgula e com conjunções, e o emprego do paralelismo – ...estaria
ajudando... focando..., deixando...; aplicado... sofisticado... apoiado... na
frase 1 e ...começou... continuou... terminou... na frase 2 – conduz com
segurança o leitor do início da frase 1 ao fim da frase 2.
Outros leitores vão achar que essa versão é extremista, que frases
menores, em que os olhos são capazes de ver, ao mesmo tempo, a mai-
úscula inicial e o ponto-final, dão maior segurança ao leitor. Vai haver
quem diga que o ponto-final não é assim tão determinante na indicação
do tema a respeito do qual vai se tratar dali a seguir. Podemos tentar uma
outra revisão, de acordo com esses critérios:

1 Posteriormente fiquei pensando sobre isso. 2 Dizer que os alemães


eram os mais maus seria a resposta mais simples; ao dizer isso, en-
tretanto, estaria ajudando a sedimentar um preconceito, uma visão
equivocada sobre um momento histórico, focando a árvore, deixando
de olhar a floresta. 3 O regime fascista aplicado na Itália e sofisti-
cado na Alemanha não surgiu espontaneamente, já que foi apoiado
pelo resto da Europa como alternativa e barreira ao comunismo. 4
Os aliados, além de terem sustentado o fascismo até o último minu-
to, cometeram atrocidades tão brutais quanto Hitler e Mussolini. 5
Bombardearam áreas civis para reduzir o apoio popular a Hitler,
perseguiram descendentes de alemães e japoneses nos países ame-
ricanos e criaram campos de concentração para eles nos EUA. 6
Além disso, encerraram a guerra com a destruição de Hiroshima e
Nagasaki, num bombardeio desnecessário tanto sob o aspecto moral
quanto militar. 7 Para mim, todos eram maus, e o mau mal ganhou.

O tema da frase 1 – tal qual na primeira versão – é o que veio


depois do que se passou antes. O tema da frase 2 é o tema do parágrafo
– dizer que os alemães eram os mais maus –, e o rema é a sinopse do
que vem pela frente: as consequências de afirmar o que acaba de ser
expresso pelo tema. O tema da frase 3 é o regime fascista; o da frase

527
gramática e estilo

4 são os aliados; o da frase 5 é bombardearam; o da frase 6 é encerra-


ram; o da frase 7 é a opinião do escritor. São temas que conduzem com
clareza o leitor do começo ao fim do parágrafo com o auxílio destes
recursos formais que permitiram o aumento da quantidade de frases:
o entretanto, na frase 2, continua a juntar duas orações numa mesma
frase; já que, na frase 4, junta as suas duas orações; o além disso, na
frase 6, ao destacar essa última atrocidade, justifica que se abra uma
frase só para ela. A frase 7 continua sendo a conclusão do autor.
Começamos com dez frases, reduzimos para três e conciliamos em
sete. Como não há tradição de contar frases, mas linhas (e colunas, no
jornalismo), palavras ou caracteres, poderíamos continuar rearranjan-
do as orações para compor mais ou menos frases com mais ou menos
orações até descobrir com quantos conteúdos se faz cada assunto, com
quantas orações se faz cada uma das frases. Não é isso que se propaga
em nosso imaginário a respeito do que fazem os grandes escritores?
Graciliano Ramos, em Memórias do cárcere, se queixa quando recebe
a notícia de que seus amigos estão negociando a publicação de seus
originais de Angústia para que a família dele não passe dificuldades
enquanto ele está preso: aquilo tudo – reclama ele – ainda precisava
de muita revisão. O sacrifício da revisão no altar do prazo de entrega,
a suprema musa inspiradora (o prazo de entrega; não o sacrifício)
segundo Luis Fernando Verissimo, é apenas uma das vicissitudes da
grande maioria dos textos da nossa vida.
Mesmo assim, revisamos e, neste capítulo, vamos nos ocupar das
orações, das sentenças que as orações são, pois, tal qual a frase, a oração
compõe-se de um tema, que apresenta aquilo de que se fala, e de um
rema, que diz algo a respeito desse tema. Compõe-se também de um
sujeito e de um predicado organizados por um verbo, que atribui papéis
temáticos a um conjunto de sintagmas a ele relacionados por relação de
concordância ou de regência.

528
gramática e estilo

5.3.1 Papéis temáticos e funções sintáticas

De sujeito e predicado, a escola encarregou-se de nos inteirar; Ilari


e Basso (2014, p. 66)52 nos ajudam a entender o que acontece quando
selecionamos os verbos para construir nossas frases:

Pela significação que comporta como unidade lexical, todo


verbo proporciona o que poderíamos chamar de molde ou
matriz para a construção de sentenças. Ao evocarmos a
ideia de matriz, queremos aqui ressaltar o fato de que,
preenchendo adequadamente certos espaços previsíveis a
partir do verbo, chegamos a orações completas, as quais
caracterizam conceitualmente certos “estados de coisas”
possivelmente reais. Assim, em condições “normais”, o
verbo amar estabelece uma relação entre dois seres hu-
manos, um que ama e outro que é amado. Ao associar à
forma amou os nomes Peri e Ceci, nessa ordem, chegamos
à oração Peri amou Ceci, que, no universo criado por José
de Alencar, descreve um estado de coisas verdadeiro. À
diferença de amar, dormir é uma matriz que comporta
apenas um espaço: para preenchê-lo é necessário apenas
um ser: Ceci dorme vale pela expressão completa de um
estado de coisas.

Os verbos, então, fornecem uma matriz: pensar, por exemplo,


convoca quem pensa e o que é pensado; dizer, quem diz e o que é dito,
simples assim. Se a escola tivesse tratado disso, além daquelas coisas to-
das de sujeito-verbo-complementos-adjuntos, nossa relação com a língua
escrita teria sido outra. A NGPB, nosso guia, na seção 6.2 Propriedades
semânticas da sentença, acrescenta outros preciosos esclarecimentos:

Os papéis temáticos, denominados em certas teorias de


casos, são traços semânticos atribuídos por um predicador
52 ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato Miguel. O verbo. In: ILARI, Rodolfo (org.). Gramática do
português culto falado no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014.

529
gramática e estilo

a seu escopo. Dispondo de uma base cognitiva, os papéis


temáticos correspondem a outras tantas representações
linguísticas do mundo que nos cerca. Dada essa base, os
papéis temáticos têm um caráter universal, diferindo das
categorias estritamente sintáticas, que assumem pecu-
liaridades nas diferentes línguas naturais (CASTILHO,
2010, p. 253).

Temos, então, a matriz fornecida pelo verbo, que é um predicador,


e o que é convocado pelo verbo, o escopo. Vamos voltar ao nosso tão
revisado parágrafo e tomemos a frase 1, que se compõe de apenas uma
oração, já que tem apenas um verbo: Posteriormente fiquei pensando
sobre isso. O predicador é o verbo pensando, que atribui o papel temá-
tico de alguém que pensa ao eu que fala no texto e o papel temático
de conteúdo que é pensado a sobre isso. A relação de concordância,
que só aparece na desinência de primeira pessoa do verbo, indica que
eu – a pessoa que pensa – é o sujeito da oração, da frase. Sobre isso tem
a função sintática de complemento do verbo.
A frase 2 começa com o verbo dizer, que atribui à oração que os
alemães eram os mais maus, que tem a função sintática de complemento
do verbo, o papel temático de conteúdo do que é dito. No infinitivo, dizer
atribui o papel temático de quem diz a quem disser isso, que teria, então,
a função de sujeito da oração. Toda essa oração – dizer que os alemães
eram os mais maus – é o sujeito da frase que se completa com o predicado
seria a resposta mais simples, em que seria atribui ao que vem antes e ao
que vem depois – sujeito e predicativo, respectivamente – o papel de ser o
que o outro é, sendo o que está no predicativo, na maioria dos casos, como
já vimos, um modo de ser mais específico do que o que está no sujeito. O
mesmo ocorre na oração os alemães eram os mais maus, em que o que vem
antes do verbo é o sujeito e o que vem depois é o predicativo.
A frase 3 também usa o mesmo verbo dizer, retomando com isso,
que tem o papel sintático de complemento do verbo, o conteúdo do que

530
gramática e estilo

tem o papel temático do que é dito na frase anterior. A falta de um sujeito


expresso para dizer nesta frase nos leva a atribuir-lhe o mesmo sujeito da
ocorrência anterior do mesmo verbo, isto é, qualquer um que disser isso,
o que também lhe atribui o papel temático de quem diz. A preposição
a antes de dizer (ao dizer) nos avisa que a oração ao dizer isso não é o
sujeito da frase mas um adjunto adverbial de tempo equivalente a quando
disser isso ou de condição: se disser isso. A falta de um sujeito expresso
para estaria ajudando e a inexistência na oração de um candidato que
se apresente para o papel temático de quem ajuda nos levam a atribuir
este papel e a função de sujeito ao que tem tal papel e tal função na frase
anterior: aquele que diz, que diria.
A oração a sedimentar um preconceito, uma visão equivocada sobre
um momento histórico, focando a árvore, deixando de olhar a floresta
expressa o papel do que é ajudado por quem diz isso e é o complemento
do verbo estaria ajudando. Nesta oração, o verbo é sedimentar e quem
sedimenta é a mesma indefinida criatura das orações anteriores, e a coisa
sedimentada é um preconceito... a floresta. Dentro desse complemen-
to temos as orações focando a árvore e deixando de olhar a floresta,
que têm verbos numa outra forma nominal, o gerúndio, e que também
remetem para o mesmo indefinido sujeito das anteriores: qualquer um
que estiver focando a árvore, qualquer um que estiver deixando de
olhar a floresta. Árvore e floresta são os complementos dos verbos, com
o papel temático da coisa focada e da coisa olhada respectivamente.
Predicador, portanto, é o que atribui, o que projeta o papel temático;
escopo é o que recebe o papel temático. Mesmo que nestes exemplos
o verbo seja o predicador, não é sempre assim: consideremos a oração
...sedimentar um preconceito, uma visão equivocada sobre um momento
histórico. O verbo sedimentar atribui o papel temático de quem sedi-
menta à mesma indefinida criatura de quem nas frases anteriores diz e
ajuda a sedimentar e o papel temático de resultado da ação de sedi-
mentar a um preconceito. No que segue – uma visão equivocada sobre
um momento histórico – reconhecemos um aposto, que, como já vimos,

531
gramática e estilo

pode ser interpretado como uma oração adjetiva com verbo ser elíptico
e, como consequência disso, com um pronome relativo também elíptico.
Não há verbo, portanto, mas o substantivo visão atribui a um momento
histórico o papel temático de coisa vista, avaliada, e a equivocada o
papel de resultado dessa avaliação.
Como já vimos na seção anterior deste capítulo, a escola, bem
ou mal, nos alertou para as relações de concordância, que relacionam
o verbo com o sujeito, e para as relações de regência, que relacionam
o verbo com os seus complementos. Sobre papéis temáticos, a escola
nada disse, mesmo que tenha falado em quem diz, o que é dito, a quem
é dito, quem foca e em que foca, quem olha e para o que olha e outras
coisas semelhantes. O que é preciso ficar claro é que as funções sintáti-
cas – sujeito, objeto direto, objeto indireto, etc. – e papéis temáticos não
se superpõem, como nos mostra um exame da frase 5: Foi apoiado pelo
resto da Europa como alternativa e barreira ao comunismo. O verbo é
foi apoiado, que atribui a o regime fascista o papel temático daquilo que
se beneficia de uma ação e a função sintática de sujeito. Já numa frase
como O resto da Europa apoiou o regime fascista como alternativa e
barreira ao comunismo, o regime fascista continua tendo o mesmo papel
temático, mas tem a função sintática de complemento do verbo.
Na NGPB, um pouco mais adiante, na mesma seção, encontramos:

Não há correspondência biunívoca entre as funções


sintáticas de sujeito, complemento e adjunto e os papéis
semânticos de agente, beneficiário, passivo etc. que
lhes são atribuídos. Tampouco dispomos de um quadro
exaustivo desses papéis, conquanto alguns projetos lin-
guísticos tenham trabalhado nessa direção (CASTILHO,
2010, p. 254).

Agente, beneficiário, passivo, objeto (ou objetivo), instrumento,


experienciador, locativo são nomes, entre outros, que os linguistas de-

532
gramática e estilo

ram aos papéis temáticos. Não vamos nos exaurir com nomes já que a
percepção de papéis temáticos é intuitiva, como podemos ver nesta série
de frases com o verbo quebrar:

1 A vidraça quebrou.
2 A bola quebrou a vidraça.
3 O menino quebrou a vidraça.
4 O menino quebrou a vidraça com a bola.
5 A vidraça foi quebrada pelo menino.
6 A vidraça o menino quebrou com a bola.

Ao falarmos em quebrar podemos falar de:

a) uma coisa que quebra, o participante diretamente afetado pelo


processo: a vidraça (objeto ou objetivo, ou paciente são nomes que
se dá a esse papel temático);

b) um participante que desencadeia o processo: o menino (os nomes


são agente ou agentivo);

c) uma coisa com que se quebra: a bola (o nome mais frequente é


instrumento).

A relação não biunívoca entre papéis temáticos e funções sintáticas


está bem clara:
Em 1 A vidraça quebrou, o sujeito é a coisa que quebra (o objetivo):
a vidraça.
Em 2 A bola quebrou a vidraça, o sujeito é a coisa com que se
quebra (o instrumento) – a bola –; o objetivo passa a ser o complemento:
a vidraça.
Em 3 O menino quebrou a vidraça, o sujeito é o participante que
desencadeia o processo (o agente) – o menino –; o objetivo – a vidraça
– continua sendo o complemento do verbo.

533
gramática e estilo

Em 4 O menino quebrou a vidraça com a bola, o sujeito é o agen-


te – o menino –; o objeto direto é o objetivo – a vidraça –; e o adjunto
adverbial é o instrumento: a bola.
Em 5 A vidraça foi quebrada pelo menino, o sujeito é o objetivo – a
vidraça –; o agente – o menino – passa a ser o agente da passiva.
Em 6 A vidraça o menino quebrou com a bola, o tópico é o objeti-
vo – a vidraça –; o agente – o menino – é o sujeito; e o instrumento – a
bola – é adjunto adverbial.
Não vamos nos ocupar dos nomes dos papéis temáticos, mas também
não vamos deixar de usar as designações disponíveis (ao ser que sofre
a ação vamos chamar de objetivo para não confundir com a função sin-
tática de objeto) porque essa distinção entre papéis temáticos e funções
sintáticas é bastante útil para pensarmos e repensarmos nossas frases e
orações. Nessas frases que examinamos, temos, por exemplo, algumas
interessantes lições:

a) nem sempre o ser que pratica a ação, isto é, o agente, tem função
sintática de sujeito (frase 1); se escolhemos o objetivo como sujeito
(frase 1), não sobra lugar na frase para mencionar o agente;

b) também não sobra lugar pro agente se escolhermos o instrumento


como sujeito (frase 2);

c) se, no entanto, escolhermos mencionar o agente, ele vai pra fun-


ção de sujeito (frases 3 e 4) deslocando objetivo e instrumento para
o predicado;

d) na voz passiva (frase 5), o objetivo é o sujeito; nesse caso, há lugar


para o agente na frase (pelo menino), que pode ou não ocupá-lo;

e) na voz ativa, o objeto só vai pra função de sujeito se agente e


instrumento não forem escolhidos (frase 1), e instrumento só vai pra
função de sujeito se agente não for escolhido (frase 2).

534
gramática e estilo

Há, portanto, uma espécie de compatibilidade entre agente e


função de sujeito até porque a função de sujeito põe em foco quem
ou o que a desempenha. A voz passiva é uma forma de contornar essa
compatibilidade pondo em foco quem ou o que sofre a ação. Na frase
1, o objetivo na função de sujeito impede a menção dos outros papéis
temáticos tornando a frase intransitiva. O que podemos ler na NGPB
não é exatamente o que a escola nos ensinou: “[...] a transitividade
gramatical é propriedade da sentença, e não do verbo que a constrói.
Não há verbos exclusivamente transitivos, nem verbos exclusivamente
intransitivos. É o uso da sentença que explicita a decisão tomada pelo
falante” (CASTILHO, 2010, p. 263).
As frases 4 – O menino quebrou a vidraça com a bola – e 6 – A
vidraça o menino quebrou com a bola – são as que preenchem maior
quantidade dos papéis temáticos atribuídos pelo verbo/predicador que-
brar: agente, objeto, instrumento. Podemos dizer que a cena está mais
bem descrita nestas duas orações do que nas outras, em que alguns dos
papéis temáticos não estão preenchidos.
Podemos considerar cada oração – unidade de conteúdo – como uma
espécie de cena que elabora a experiência de quem se expressa. Temos
um processo – expresso pelo predicador (geralmente um verbo) –, par-
ticipantes – expressos por substantivos ou por sintagmas nominais – e
circunstâncias – expressas por advérbios ou locuções adverbiais. Nossa
leitura pode tornar-se mais inquisitiva e crítica se prestarmos atenção nos
papéis temáticos que são explicitados na oração e nos que permanecem na
sombra: uma frase como A vidraça quebrou, que até pode virar Quebrou
a vidraça, pode ocorrer porque quem a diz ou escreve não sabe quem
nem o que quebrou a vidraça, mas uma manchete jornalística como, por
exemplo, Hospital bombardeado em Bagdá dificilmente ocorrerá porque
o redator do jornal ou da agência de notícias desconhece quem tenha feito
isso; nesse caso, podemos nos perguntar que interesse levou à omissão
desse papel temático – agente – na manchete.

535
gramática e estilo

A exploração deliberada e consciente dos papéis temáticos dos


predicadores que vamos selecionando durante nosso processo de escrita
pode nos conduzir a uma ampliação e a um aprofundamento do assun-
to ou, pelo menos, a um preenchimento das lacunas que percebemos
no que estamos escrevendo ou revisando. Uma clara distinção entre
papel temático e função sintática nos ajuda também a entender de que
perspectiva o texto que estamos lendo nos mostra o funcionamento do
mundo. A respeito de, por exemplo, O mercado sinaliza que..., pode-
mos questionar se o mercado é agente tal como o menino que quebra
a vidraça com a bola ou se o mercado é a bola, isto é, o instrumento
inanimado que é usado por invisíveis agentes animados, espertos e
cheios de intenções.
Uma fonte de consulta a respeito de atribuição de papéis temáticos
e de determinação de funções sintáticas é o Dicionário gramatical de
verbos do português contemporâneo do Brasil (DGV)53, organizado por
Francisco da Silva Borba. Vamos dar uma olhada na Introdução:

Uma descrição que tencione determinar as propriedades


sintático-semânticas do verbo tem de tomá-lo como ponto
de partida da estruturação da frase, ou seja, como núcleo
do predicado em torno do qual os demais componentes
(participantes ou argumentos = A) se arranjam em graus
diferentes de coesão e dependência. Cada verbo estabelece
com seus A um conjunto de relações de dependência que
constitui sua valência.
Admitindo-se que toda oração se estrutura em dois níveis
– um, subjacente, onde se estabelecem relações semân-
ticas básicas e/ou restrições de co-ocorrência e, outro,
superficial, onde se estabelece a combinatória mórfica e
se ultima o conteúdo comunicado – então, uma descrição
completa começa pelo nível mais baixo para atingir o
mais alto, próximo de ou até coincidente com a realização
53 BORBA, Francisco da Silva (coord.). Dicionário gramatical de verbos do português contem-
porâneo do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1990.

536
gramática e estilo

efetiva das sequências. As relações subjacentes, obriga-


toriamente implicadas no nível superficial, distinguem-se
das que só atuam nesse nível e que, sendo opcionais, não
caracterizam um verbo ou uma classe deles. Por exemplo,
um locativo que apareça numa oração só será arrolado na
descrição se fizer parte da valência do verbo.
1a. Leo pôs o livro na estante.
1b. Leo pescava perto da ponte.
Em (1a) o locativo (L) é um caso subjacente porque é
implicado pelo verbo, enquanto em (1b) apenas especifica
o conteúdo objetivo oracional (BORBA, 1990, p. IX).

A palavra argumento aqui designa, segundo a NGPB, “o cons-


tituinte da sentença selecionado pelo verbo ou outro predicador, no
processo de predicação. O argumento sentencial pode ser externo,
ou sujeito, quando situado fora do sintagma verbal, ou interno, ou
complemento, quando situado no interior do sintagma verbal” (CAS-
TILHO, 2010, p. 665). A relação entre argumento e papel temático
está expressa na definição de papéis temáticos: “conjunto de traços
semânticos atribuídos pelo predicador a seus argumentos” (CASTI-
LHO, 2010, p. 687). Isso parece compatibilizar com os níveis baixo
e alto, de que trata o DGV: é como se os argumentos já estivessem
ali, e o predicador, na sua tarefa de construir a oração, os escalasse
para nela ocupar um lugar. No exemplo acima, se o falante ou escritor
escolhesse o predicador verbo pôr, seria obrigado a escalar o locativo;
se escolhesse pescar, poderia escalar o locativo se o locativo fosse
relevante para o que ele está querendo contar.
Já podemos examinar esta frase:

Depois de ter colocado os livros, resolveu sair para passear.

Nesta frase, o locativo foi omitido; se a frase anterior já tinha falado


na prateleira, no baú, na pasta ou em outro lugar, ou seja, retomando a

537
gramática e estilo

elipse de Mattoso Camara, se essa informação já estiver em nosso espírito,


ela pode ser omitida nesta frase; se não foi esse o caso, é preciso indicar
o lugar onde os livros foram colocados:

Depois de ter colocado os livros na estante (ou em qualquer outro


lugar), resolveu sair para passear.

Se o assunto não envolve propriamente uma tão minuciosa dispo-


sição dos livros, pode ser mais adequado usar um predicador que não
atribua tal indicação do lugar:

Depois de ter arrumado os livros, resolveu sair para passear.

Nada impede, no entanto, que no predicado formado por tal verbo


apareça o locativo:

Depois de ter arrumado os livros na mesa, resolveu sair para passear.

Já o verbo botar exige, nesse caso, o papel temático locativo:

Botou os livros na pasta e foi para a aula de literatura.

O que explicaria, então, uma frase tão comum como esta: A galinha
botou um ovo? Ou a presunção de que todo mundo sabe onde galinhas
botam seus ovos, ou a avaliação de que, se alguém faz esse anúncio, é
porque sabe onde está ou estava o ovo, ou a percepção de que botar um
ovo não é a mesma coisa que botar um livro na pasta. Seja como for, se
a galinha botar o ovo em algum lugar inusitado, o locativo vai acabar
aparecendo:

A galinha botou um ovo na frigideira que estava em cima do fogão.

538
gramática e estilo

Vamos ver como o Dicionário gramatical de verbos trata os ver-


bos arrumar, botar e colocar. É bom lembrar que o DGV não é uma
invenção prescritiva da cabeça de alguém que se julga um iluminado
sabedor da correta forma de usar os verbos da língua portuguesa,
mas produto de uma laboriosa pesquisa a partir de dados da vida real
da língua escrita no Brasil contemporâneo, isto é, da língua em que
andamos escrevendo.

Arrumar: I indica ação-processo com sujeito agente. 1 Com com-


plemento expresso por nome não animado, significa pôr em ordem,
compor, ajeitar: a empregada arrumou sua cama no quarto do fundo.
Quando o complemento é expresso pelo nome casa, pode apagar-se: A
menina trabalha em casa, arruma. 2 Com complemento expresso por
nome abstrato de ação, significa articular: O que ele quer mesmo é
arrumar o nosso casamento. 3 Com complemento expresso por nome
humano, significa vestir: A comadre arrumou Joãozinho e foram
à procissão. 4 Com complemento expresso por nome designativo
de mecanismo, significa consertar, reparar: Você precisa mandar
arrumar este rádio.

Temos aqui, então, a coisa arrumada – a cama – e o locativo – no


quarto do fundo – mas, dada a informação de que a menina trabalha em
casa, basta dizer que ela arruma, pois, em princípio, ela arruma tudo. Do
mesmo modo, dada a informação de que se trata de vestir, Joaozinho é
o complemento e o locativo.
O verbete continua por uma coluna e meia mostrando que arrumar
II indica processo significando 1 organizar-se, 2 contrair (uma doença),
que arrumar III indica ação com sujeito agente significando 1 fazer
por conseguir, e segue listando mais outras duas significações gerais e
tantos outros casos particulares de cada uma delas.

Botar: I indica ação-processo. 1 Com nome agente. 1.1. Com com-


plemento designativo de nome líquido, significa lançar fora, expelir:
Ninguém podia prever que o doente fosse botar sangue. 1.2 Com

539
gramática e estilo

complemento designativo de peça de vestuário, significa vestir,


calçar: Não bote esse vestido. 1.3 Com complemento designativo de
mesa de refeição, significa preparar, arranjar: Vê se bota a mesa
com mais cuidado.

Botar um ovo tem complemento designativo de nome sólido, mas


significa lançar fora, expelir, tanto faz onde. Já a falta do locativo em
não bote esse vestido nos obriga a interpretar botar como vestir.
O verbete prossegue com o agente causativo e apresenta os casos
de II ação com sujeito agente, onde aparece, com complemento apa-
gável, significando pôr, expelir, o caso da galinha: Galinha velha bota
ovo pequeno e As tartarugas botaram. III Como auxiliar precedendo
a + infinitivo para indicar aspecto inceptivo: O menino botou a fazer
travessuras. IV Modalizador precedendo a + infinitivo para indicar fac-
tividade: Meu sócio botou a perder todo o meu esforço. E segue tratando
das expressões botar a boca no mundo, botar a boca no trombone e botar
olho grande. E aqui vemos que até o complemento pode ser apagado,
pois, se as tartarugas botaram, as galinhas também não costumam botar
outra coisa que seja do nosso interesse anunciar.

Colocar: I Indica ação-processo com sujeito agente. 1 Com dois


complementos, um expresso por nome e outro, locativo, ou da for-
ma a + nome abstrato, significa pôr: Onde colocar tanta gente? O
tricolor colocou seu passe à venda. 2 Com nome expresso por nome
concreto não animado, significa assentar: O pedreiro passa o dia
todo a colocar tijolos. 3 Com dois complementos, um expresso por
nome humano e outro em forma de em + nome de cargo ou insti-
tuição, significa dar emprego a, empregar: Cada ministro coloca os
parentes e amigos quando é nomeado.

Que o pedreiro coloca tijolos um em cima do outro todo mundo


sabe, a menos que ele coloque os tijolos no elevador para fazer a parede
do terceiro andar; neste caso, o locativo é obrigatório.

540
gramática e estilo

São ao todo nove significados indicando ação-processo com sujeito


agente.
Segue-se II Indica processo na forma pronominal, com sujeito be-
neficiário expresso por nome humano. Significa conseguir emprego:
Demorou, mas ele acabou colocando-se. III Indica ação. 1 Na forma
pronominal, com locativo, significa tomar posição, instalar-se: Para
ver o Nei, Márcia colocou-se na primeira fila. 2. Com complemento
expresso em discurso direto/indireto, significa dizer: Você é incompe-
tente, colocou-lhe João; Coloquei, na cara do diretor, que ele era um
incompetente. Se o ministro coloca os parentes e amigos, os parentes e
amigos colocam-se todo mundo sabe onde.
Nas frases que vamos examinar a seguir há discrepância entre e
papel temático e função sintática:

1 No terceiro ano, as provas com consulta perdiam a seriedade da


disciplina.

A função de sujeito está atribuída ao que provoca a perda, as pro-


vas com consulta, mas o predicador perder atribui a função de sujeito
ao que perdeu:

1a No terceiro ano, a disciplina perdia a seriedade por causa das


provas com consulta.

2a As mudanças que ocorreram e continuam ocorrendo no mundo


foram fruto de aspirações, de ideias, que surgiram grandes obras.

Se tivesse começado por surgiram grandes obras ou grandes obras


surgiram, o leitor atribuiria a função de sujeito a grandes obras, o produto
do processo, mas, assim como está, parece haver uma oração adjetiva
– que surgiram grandes obras – antecedida por fruto de aspirações,
de ideias, e essa sequência atribui a função de sujeito ao pronome que,

541
gramática e estilo

que antecede o predicado que surgiram grandes obras. O predicador


escolhido – surgiram – não atribui papel temático de agente e costuma
atribuir a função sintática de sujeito ao produto do processo:

2a Grandes obras surgiram das mudanças que ocorreram e continuam


ocorrendo no mundo e foram fruto de aspirações, de ideias.

Podemos também usar a locução fazer surgir, que atribui o papel


de sujeito ao agente:

2b As mudanças que ocorreram e continuam ocorrendo no mundo fo-


ram fruto de aspirações, de ideias, que fizeram surgir grandes obras.

3 A maioria das emissoras em sua programação constam somente


com programas infantis de violência.

A função de sujeito nesta frase é atribuída a a maioria das emis-


soras, que é um sintagma nominal que tem emissoras como núcleo. O
predicado é o sintagma verbal, em sua programação constam somente
com programas infantis de violência, que tem constam como núcleo. Em
sua programação e com programas infantis de violência são sintagmas
preposicionais, que têm as preposições em e com, respectivamente, como
núcleos. O predicador constam atribui ao que consta a função de sujeito,
e o lugar onde consta o que consta é expresso por um sintagma preposi-
cional. O sintagma preposicional com programas infantis de violência
vira, sem a preposição com, sintagma nominal.

3a Somente programas infantis de violência constam na programação


da maioria das emissoras.

3b A programação da maioria das emissoras consta somente de


programas infantis de violência.

542
gramática e estilo

Exercício 59

Vamos examinar estas frases para verificar (1) os papéis temáticos


explicitados e os que permanecem na sombra, (2) os efeitos que isso
causa, (3) a compatibilidade entre os papéis temáticos atribuídos pelos
predicadores e as funções sintáticas exercidas pelos sintagmas que com-
põem a frase. Em seguida, vamos revisar as frases.
1. Ainda vai fazer outras paradas antes de chegar principalmente se
no seu caminho ainda contiver manteiga, rosquinha e outras gulodices.
2. Neste ano foi criado um novo Código Civil, que consta várias
mudanças.
3. Por causa do conhecimento de inglês que adquiri no colégio,
comecei a despertar interesse pela tradução.
4. Minha adolescência foi vivenciada por vários momentos bons.
5. Ademais, o continente foi aumentando a disparidade entre ricos
e pobres.
6. Os obstáculos surgem os fracassos às vezes, mas o desempenho
profissional depende de cada um.
7. Uma pessoa que me marcou bastante foi meu avô. Através de
suas histórias, fictícias e reais, fizeram com que despertassem o interesse
pela literatura.

5.3.1.1 A forma do sujeito

A escola até pode ter aguçado de alguma forma a nossa intuição a


respeito de papéis temáticos quando o professor de Português chegou a
dizer algo como quem coloca coloca em algum lugar ou a disciplina é
que perdia a seriedade, ou o que surgiu surgiu de alguma coisa, e essas
observações certamente foram úteis. Sobre tema e rema a escola nada
disse porque não estava muito interessada em saber o que tínhamos para

543
gramática e estilo

expressar por escrito. De sujeito e predicado a escola falou para poder


nos ensinar a concordância, a concordância correta. Para nos apresentar
sujeito e predicado, teve de nos apresentar a oração, que tem sujeito e
predicado. Tem complemento também: objeto direto e objeto indireto; por
causa disso, a escola teve de falar também em regência, em preposições,
e, muito provavelmente, falou em regência culta, correta.
Pra nos mostrar onde estavam as orações, a escola teve de falar
também em frases, períodos compostos por orações coordenadas e su-
bordinadas, que também tinham sujeito e predicado, isto é, concordân-
cia. E regência, pois que também tinha objeto direto e indireto. E botou
umas frases na nossa frente para que juntássemos os nomes às pessoas,
os nomes dessas partes das frases com as partes das frases identificadas
por esses nomes. O sujeito é o ser de que se fala. Onde está o sujeito? O
predicado é o que se diz do sujeito. O verbo concorda com o sujeito. O
complemento do verbo é direto ou indireto?
Esses ensinamentos não foram inúteis, mas quem nos ensinou mes-
mo a ler e escrever foi o que lemos e o que escrevemos, ou, repetindo
a citação de Jean Foucambert (1994), ler nos ensinou a teorizar nossa
escrita, e escrever nos ensinou a teorizar nossa leitura. E aí, fomos nos
virando com as noções de sujeito e predicado, que, provavelmente, foram
as que mais nos ajudaram. A coletânea – o conjunto de frases, trechos e
textos – que encaminha as lições deste manual de revisão e de produção
de frases encadeadas formando textos tem origem no esforço daqueles
que não se puseram a ler e a escrever assim tão reflexivamente desde que
aprenderam a ler e a escrever e que foram, lá pelas tantas, atropelados pela
necessidade de começar a fazer isto e isso e se viraram como puderam.
Retomando, então, o que já vimos e acrescentando a contribuição
do que não nos tinham mostrado, nem sempre o sujeito é o ser de quem
se fala, como, por exemplo, em A vidraça o menino quebrou com a bola,
em que o tema, topicalizado, é a vidraça e o sujeito é o menino. O tópico,
como já vimos na seção anterior ao tratarmos de tema e rema, de tópico e

544
gramática e estilo

comentário, de construção de tópico, não tem uma forma exclusiva, mas


o sujeito é sempre um sintagma nominal. Já predicado é um sintagma
verbal, que “é a construção nucleada pelo verbo. E como a sentença é
um verbo que articula seus argumentos, segue-se que a única diferença
entre um sintagma verbal e uma sentença é que naquele não figura o
sujeito, que aparece nesta” (CASTILHO, 2010, p. 391).
Recapitulemos quais são os sintagmas segundo a NGPB. Sintagma
é uma:

[...] unidade da análise sintática composta de um núcleo


(um verbo, um nome, um adjetivo, um advérbio, uma
preposição), uma margem esquerda (preenchida pelos
Especificadores) e uma margem direita (preenchida
pelos Complementizadores). A designação do sintagma
dependerá da classe da palavra que preenche o seu núcleo,
havendo assim:

1 Sintagma nominal: o núcleo é um substantivo, como


em {o filho do vizinho};
2 Sintagma verbal: o núcleo é um verbo, como em {de-
vorou a sobremesa};
3 Sintagma adjetival: o núcleo é um adjetivo, como em
{muito deliciosa};
4 Sintagma adverbial: o núcleo é um advérbio como em
{muito depressa};
5 Sintagma preposicional: o núcleo é uma preposição,
como em {do vizinho}.

Um sintagma é, portanto, um somatório de constituintes,


cada qual ocupando um lugar previsível em sua estrutura.
A sentença é um somatório de sintagmas, como se pode
ver em O filho do vizinho devorou a sobremesa deliciosa
muito depressa.
Devido à propriedade da recorrência, a silaba, o sintagma,
a sentença e a unidade discursiva têm todos o mesmo ar-

545
gramática e estilo

ranjo estrutural, assim representável: unidade linguística


à margem esquerda ou Especificador + núcleo + margem
direita ou Complementador (CASTILHO, 2010, p. 692).

Vamos precisar dessas definições ao longo deste capítulo; nesta


seção vai ser útil acrescentar aqui esta definição de sujeito, que está na
NGPB:

Do ponto de vista sintático, considera-se sujeito o cons-


tituinte que tem as seguintes propriedades: (i) é expresso
por um sintagma nominal; (ii) figura habitualmente antes
do verbo;(iii) determina a concordância do verbo; (iv) é
pronominalizável por ele; e (v) pode ser elidido (CASTI-
LHO, 2010, p. 289).

As frases que vamos examinar são estas:

1 Os primeiros alertas que me chamaram a atenção foram os de que


estava faltando trigo no mundo e de que no noroeste da Amazônia
estava sendo assolada por grande seca.

O sujeito da frase é Os primeiros alertas que me chamaram a aten-


ção; é um sintagma nominal, que tem alertas como núcleo, e o verbo que
organiza o predicado – foram – concorda com o plural desse núcleo. O
predicativo, depois do verbo, tem duas orações coordenadas pelo e: os
de que estava faltando trigo, que expressa um dos alertas, e de que no
noroeste da Amazônia estava sendo assolada por grande seca, o outro
dos alertas. Nesta segunda oração não há um sintagma nominal para
exercer a função de sujeito, mas um olhar mais atento vai perceber que
o noroeste da Amazônia é que estava sendo assolada por grande seca.
Assolar – na voz passiva – atribui à coisa assolada a função de sujeito,
no caso, o noroeste da Amazônia, que é um lugar; por isso, a preposição
em, que compatibiliza com a noção de lugar, entrou inadvertidamente

546
gramática e estilo

no sintagma que deveria assumir essa função. A revisão, portanto, é


muito simples:

1a Os primeiros alertas que me chamaram a atenção foram os de


que estava faltando trigo no mundo e de que o noroeste da Amazônia
estava sendo assolada por grande seca.

Se o noroeste da Amazônia precisa ser apresentado como o lugar


onde coisas importantes acontecem, podemos topicalizá-lo na oração
como sintagma preposicional:

1b Os primeiros alertas que me chamaram a atenção foram os de que


estava faltando trigo no mundo, e de que, no noroeste da Amazônia,
uma grande seca estava se prolongando por mais de quatro anos.

Neste caso, uma grande seca perde a preposição por para poder
exercer a função de sujeito da oração e escolhemos um verbo mais com-
patível com esse sujeito: estava se prolongando.

2 Foi possível observar que na maioria dos colegas, ao apresentarem


seus trabalhos, manifestaram certa insegurança em relação ao que
escreveram.

Nesta frase, cinco orações organizam a estrutura sujeito-predicado


deste modo: o predicador foi possível compõe o predicado da frase e
atribui a função de sujeito ao encadeamento que o segue, ou seja, o que
está entre observar que e escreveram. Compondo esse sujeito há um
verbo no infinitivo – observar –, que atribui ao que vem depois o papel
temático de coisa observada e a função de complemento. Dentro desse
complemento estão (1) o sintagma preposicional na maioria dos colegas,
(2) o sintagma preposicional ao apresentarem seus trabalhos (dentro
do qual está (3) o sintagma verbal apresentarem seus trabalhos), (4)
o sintagma verbal manifestaram certa insegurança em relação ao que

547
gramática e estilo

escreveram, dentro do qual está (5) o sintagma nominal certa insegu-


rança em relação ao que escreveram, dentro do qual está (6) o sintagma
preposicional em relação ao que escreveram, dentro do qual está (7) o
sintagma preposicional ao que escreveram.
Enfim, apresentarem, manifestaram, escreveram, diferentemente
de observar, no infinitivo, que se refere ao que foi observado, estão
flexionados em terceira pessoa do plural, o que quer dizer que se re-
ferem a alguma coisa no plural, têm um sujeito no plural; na frase, no
entanto, não há um sintagma nominal que tenha por núcleo um subs-
tantivo no plural. Na verdade tem, mas está dentro de um sintagma
preposicional: na maioria dos colegas. Já está claro, desde a nossa
segunda leitura da frase, que são eles, os colegas, que apresentaram,
manifestaram e escreveram. Trata-se simplesmente de dar forma de
sintagma nominal à maioria dos colegas para que possa ser lido como
sujeito da frase, que, neste caso não é o tema da frase, que é algo que
foi possível observar:

2a Foi possível observar que a maioria dos colegas, ao apresentarem


seus trabalhos, manifestaram certa insegurança em relação ao que
escreveram.

3 No colégio onde estudei até a oitava série, o único com segundo


grau na cidade, era o ponto de encontro de todos os estudantes da
cidade, com as mais variadas idades.

O problema é semelhante ao da frase anterior: o ponto de encontro


era o colégio; trata-se também de dar forma de sintagma nominal ao
sintagma preposicional que expressa o colégio e cortar a repetição:

3a O colégio onde estudei até a oitava série, o único com segundo


grau na cidade, era o ponto de encontro de todos os estudantes, com
as mais variadas idades.

548
gramática e estilo

Também se pode optar por uma mudança de tópico, se isso for


conveniente para a narrativa:

3b O ponto de encontro de todos os estudantes, com as mais variadas


idades, era o colégio onde estudei até a oitava série, o único com
segundo grau na cidade.

Exercício 60

Tendo em mente (1) que o sujeito preenche um dos papéis temáticos


atribuídos pelo predicador e é um sintagma nominal, que tem como núcleo
um substantivo, e (2) que o verbo que organiza o predicado concorda
em pessoa e número com o sujeito, vamos examinar estas frases e, se
for o caso, revisá-las:
1. Junto com o pelotão de trinta homens, acompanhava o caminhão
de suprimentos.
2. Nesta escola, que é particular, possui seis períodos semanais de
aulas de língua portuguesa.
3. Para o estudante ser bem-sucedido, isto é, ter chances, se não
sabe a resposta correta dos itens, dependerá de vários comportamentos.
4. Com o passar dos anos de trabalho fizeram-me perceber que ser
aposentado, dentro das perspectivas que tinha na adolescência, não mais
me fazia feliz.
5. Sem muita opção de lazer e a ausência diária dos pais devido à
necessidade de prover o sustento da família, faz com que grande número
de crianças e adolescentes tenham acesso ilimitado a programas centrados
na violência exibidos sem censura na televisão.
6. Somente através de uma legislação apropriada ao assunto, muito
bem elaborada, será capaz de recompensar a tentativa de manter saudável
o período de formação de nossos jovens.

549
gramática e estilo

7. Para você possuir uma pessoa e chegar a um relacionamento


acarreta um envolvimento emocional muito forte.
8. Ao vê-lo assim, entregue totalmente a ela, mexia deveras comigo.
9. Num país onde a educação é desenvolvida torna-se aos poucos
um país desenvolvido.

5.3.1.2 Elipse do sujeito e do verbo

Para tratar dos problemas criados por desastradas elipses, convém


lembrar de um outro ensinamento da escola que foi não apenas inútil
mas também prejudicial: expressou-se mais ou menos por “não fiquem
repetindo palavras, não fiquem repetindo eu... eu..., ele... ele..., a televi-
são... a televisão, etc... etc...”. E isso foi muito repetido especialmente
com relação ao sujeito das orações. É claro que não se pode atribuir os
problemas de construção que vamos examinar a seguir apenas a essa
recomendação, que tentava zelar pela riqueza de vocabulário. Teria
sido mais adequado zelar, acima de tudo, pela clareza da frase em vez
de promover essa catastrófica inversão pedagógica.
O que vem ao caso é assegurar-se de que a elipse realmente funcione
como elemento de coesão e não comprometa a inteligibilidade. De que
modo a elipse produz coesão e referência clara? Podemos começar por
pensar no que pode fazer com que duas frases transmitam melhor a ideia
juntando-se em uma só; um desses casos pode ser o uso da elipse como
elemento de coesão. Podemos organizar em duas frases:

1 Minha relação com a Língua Portuguesa remonta a uma época em


que nem sonhava ser professora dessa disciplina. Na verdade, a um
tempo em que eu ainda não havia nascido.

Ficaria bem em uma única frase?

550
gramática e estilo

1a Minha relação com a Língua Portuguesa remonta a uma época


em que nem sonhava ser professora dessa disciplina; na verdade, a
um tempo em que eu ainda não havia nascido.

Repetindo o verbo ficaria mais claro?

1b Minha relação com a Língua Portuguesa remonta a uma época


em que nem sonhava ser professora dessa disciplina; remonta, na
verdade, a um tempo em que eu ainda não havia nascido.

Ou se repete outra palavra?

1c Minha relação com a Língua Portuguesa remonta a uma época


em que nem sonhava ser professora dessa disciplina, a uma época
em que, na verdade, eu ainda não havia nascido.

Vamos examinar estas frases:

2 O que acontece normalmente é que a televisão acaba por ocupar um


espaço exagerado em nossa vida, exterminando quase todo o nosso
tempo livre, quando não passa a preferir a companhia da máquina
à de outro ser humano, deixando-nos literalmente comandar por ela.

O tópico – o que acontece normalmente – remete ao que já vinha


sendo discutido no texto, ou seja, não é propriamente o tema da frase,
que se apresenta no sujeito da oração seguinte – a televisão –, que é
o sujeito dessa oração, da qual diz o predicado: acaba por ocupar um
espaço exagerado em nossa vida. Segue-se uma oração com o verbo
no gerúndio – exterminando quase todo o nosso tempo livre –, que não
tem um sujeito expresso. Nossa experiência como leitor já nos ensinou
que, nesses casos, atribuímos a função de sujeito ao sujeito da oração
anterior – a televisão – e lemos: a televisão exterminou quase todo o
nosso tempo livre.

551
gramática e estilo

O que vem depois da vírgula seguinte é uma oração subordinada


iniciada por uma conjunção que indica tempo – quando não passa a
preferir a companhia da máquina à de outro ser humano –, que também
não tem sujeito expresso. Repetimos o mesmo procedimento de leitura
anterior e atribuímos a esse predicado o mesmo sujeito das orações
anteriores – a televisão – e verificamos que preferir a companhia de
uma pessoa não combina com a televisão, que até pode preferir o que
vai dizer e mostrar. Menos ainda combina com a oração seguinte, com
verbo no gerúndio – deixando-nos literalmente comandar por ela –, mas
diferentemente do exterminando na oração anterior, com uma marca de
primeira pessoa do plural – nos – que nos informa que o sujeito desse
verbo é a primeira pessoa do plural e não a terceira do singular, que
poderia substituir a televisão.
É claro que a gente entende a frase: quem está correndo o risco de
passar a preferir a companhia da máquina à de outro ser humano e de
se deixar literalmente comandar por ela somos nós. Entendemos, depois
de não entender, porque reconhecemos nesta frase torta uma repetição
de um lugar-comum que já ouvimos e lemos. Isso quer dizer que frases
tortas, do tipo das que dá pra entender, estão condenadas a serem in-
terpretadas pelo que o leitor já sabe a respeito do assunto e nunca pelo
que poderiam querer dizer de original. Uma tentativa de dizer algo rele-
vante, com alguma originalidade, precisa expressar-se, no mínimo, com
clareza, nem que seja em prejuízo da concisão. Vamos, então, revisar,
expressando, pelo menos uma vez, os sujeitos que não foram expressos
nem eram capturáveis nas orações anteriores:

2a O que acontece normalmente é que a televisão acaba por ocupar


um espaço exagerado em nossa vida, exterminando quase todo o
nosso tempo livre, quando não nos faz preferir a companhia dela à
de outro ser humano, obrigando-nos literalmente a nos deixarmos
comandar por ela.

552
gramática e estilo

Assim fica claro que é ela – a televisão – que nos faz preferir a
companhia dela e nos obriga a nos deixarmos comandar por ela.

3 Ele caiu no chão batendo com a cabeça numa pedra, dando-lhe


morte imediata.

O sujeito expresso que temos é ele que caiu e bateu; se atribuirmos


esse mesmo sujeito ao verbo da oração seguinte, que não tem sujeito ex-
presso, temos de culpá-lo pela morte da pedra: ele deu morte imediata à
pedra. Se esta frase estiver numa posição do texto tal que o leitor ainda
não saiba para que mundo a história está levando ele, ela não vai ajudá-
-lo a localizar-se no mundo conhecido como real, em que matar pedras
configura um absurdo. No mundo real, a oração dando-lhe morte imediata
não apresenta sujeito, mas aquele pronome lhe refere uma terceira pessoa,
que só pode ser ele, sujeito da primeira oração, que pode morrer se bater
com a cabeça numa pedra, mas não no papel temático de agente. Para
poupá-lo dessa trabalheira toda, revisemos:

3a Ele caiu no chão batendo com a cabeça numa pedra, o que lhe
deu morte imediata.

Nesta frase revisada, o causador da morte foi o acontecimento: a


queda e a batida. Podemos substituir, como já vimos antes, o o por uma
palavra que expresse a causa mais imediata da morte:

3b Ele caiu no chão batendo com a cabeça numa pedra, traumatismo


que lhe deu morte imediata.

4 Quase todas as mulheres já foram abordadas por um tipo conquis-


tador; eles surgem quando menos esperam.

Para lermos eles nesta frase como tipo conquistador, fazemos uma
concordância ideológica com a generalidade que tipo expressa. Para

553
gramática e estilo

atribuirmos a mulheres a função de sujeito de esperam, a operação é


mais complicada por causa do sujeito da oração anterior: eles, que se
apresenta como primeira hipótese. Na verdade, só lemos que ele, o tipo
conquistador, surge quando menos elas esperam porque queremos botar
sentido na frase. Pro leitor é melhor escrevermos assim:

4a Quase todas as mulheres já foram abordadas por um tipo con-


quistador; ele surge quando menos elas esperam.

5 Este momento era muito esperado, embora trouxesse uma grande


preocupação por achar-me um pouco despreparada.

O sujeito das sucessivas orações é este momento, que era muito


esperado, trazia uma grande preocupação e me achava um pouco
despreparada, isto é, a frase acaba dizendo que o momento me achava
– isto é, me encontrava ou me julgava – um pouco despreparada e não
que eu me achava um pouco despreparada, como provavelmente era a
intenção da narradora, que conta a história de sua primeira experiência
docente. Não custa fazer uma frase um pouco mais clara usando uma
forma flexionada do verbo:

5a Este momento era muito esperado, embora me trouxesse uma


grande preocupação porque eu me achava um pouco despreparada.

6 Ocorre com os jovens um misto de rebeldia e alienação provocada


pela sociedade que os marginaliza por não aceitarem suas novas
ideias e serem conservadores.

Não se consegue determinar o sujeito comum das duas orações


coordenadas com relação a por: não aceitarem e serem, e a busca por
seu sujeito na oração anterior leva a sociedade, sujeito de marginaliza,
que não concorda com as formas plurais de aceitarem e serem. Mais
atrás encontramos rebeldia e alienação, que podemos considerar como

554
gramática e estilo

sujeito composto de uma voz passiva com o verbo ser elíptico tendo
provocada como predicativo, que também não concordaria com esse
sujeito composto. Rebeldia e alienação também não pode ser o sujeito
de aceitarem e serem; finalmente, na primeira oração, está jovens, que
seria um sujeito contraditório com não aceitarem suas novas ideias e
serem conservadores. Muito provavelmente estamos diante de uma con-
cordância ideológica de sociedade, que tem sentido plural, com aceitarem
e serem. Além disso, o verbo ocorrer, que apresenta um evento visto de
cima, não é o mais adequado para expressar uma relação de causa e efeito.

6a O comportamento misto de rebeldia e alienação próprio dos jovens


é provocado pela sociedade conservadora que os marginaliza por
não aceitar suas novas ideias.

6b A sociedade conservadora não aceita as novas ideias dos jovens,


que, sentindo-se marginalizados, desenvolvem um comportamento
em que se misturam rebeldia e alienação.

7 Rodolfo levantou-se e convidou-me para dançar. Magicamente a


música frenética se transformou em uma música romântica, bem lenta,
daquelas que, ao dançar, não se sai do lugar e logo fez-me perguntas.

A música frenética é o sujeito mais acessível para fez-me perguntas;


diante da improbabilidade decorrente disso, por exclusão, candidatamos
Rodolfo. Mais uma vez, entendemos ao custo de não entender.

7a Rodolfo levantou-se e convidou-me para dançar. Magicamente


a música frenética se transformou em uma música romântica, bem
lenta, daquelas que, ao dançar, não se sai do lugar, mas ele logo
pôs-se a me fazer perguntas.

8 Inclusive presto serviços na área esportiva, defendendo jogadores


que foram injustamente punidos. Minha profissão vai de vento em
popa. Em época de crise, não posso me queixar. No lar, levo uma
vidinha pacata, regrada, nada que provoque grandes emoções. Com

555
gramática e estilo

os filhos crescidos, senti que minha função materna havia se esgota-


do. Meu marido é ótima pessoa, mas incapaz de quebrar a rotina em
busca de novas emoções. Lia todos aqueles livros que falam de vidas
belas, de conquistas amorosas, de sexo e emoções fortes. Minha vida
estava um marasmo.

Meu marido é o candidato mais forte a sujeito de lia porque é o su-


jeito das frases imediatamente anteriores, mas o leitor tem bons motivos
para achar que a frase continua falando de quem assumiu a palavra em
primeira pessoa. Não é bom que o leitor tenha dúvida a respeito de dados
básicos numa narração. Revisar, neste caso, é muito simples:

8a Inclusive presto serviços na área esportiva, defendendo jogadores


que foram injustamente punidos. Minha profissão vai de vento em
popa. Em época de crise, não posso me queixar. No lar, levo uma
vidinha pacata, regrada, nada que provoque grandes emoções. Com
os filhos crescidos, senti que minha função materna havia se esgo-
tado. Meu marido é ótima pessoa, mas incapaz de quebrar a rotina
em busca de novas emoções. Eu lia todos aqueles livros que falam
de vidas belas, de conquistas amorosas, de sexo e emoções fortes.
Minha vida estava um marasmo

9 Os professores de Português eram bons, utilizavam o quadro-negro,


às vezes levavam material em fotocópia e utilizavam o livro didático
fornecido pela escola. Eram aulas tradicionais, não faziam com que
o aluno fosse além, passavam a matéria para nós e achavam que
era o suficiente.

A segunda frase tem as aulas tradicionais como sujeito, mas a


oração passavam a matéria para nós volta a falar dos professores já que
as aulas tradicionais não achavam nada.

9a Os professores de Português eram bons, utilizavam o quadro-


-negro, às vezes levavam material em fotocópia e utilizavam o livro
didático fornecido pela escola. Davam aulas tradicionais: passavam

556
gramática e estilo

a matéria para nós e achavam que era o suficiente; por isso, não
faziam com que o aluno fosse além.

10 Os trabalhos que meus pais exerceram e ainda exercem não exigi-


ram que eles escrevessem, nem que lessem e nunca tiveram vontade
própria para isso.

Não custa deixar bem claro que o sujeito de nunca tiveram vontade
não é os trabalhos, mas os pais.

9a Os trabalhos que meus pais exerceram e ainda exercem não exi-


giram que eles escrevessem, nem que lessem, e eles nunca tiveram
vontade própria para isso

Ninguém vai sustentar que os trabalhos nunca tiveram vontade


própria.
Exercício 61

Verifique a adequação das elipses nos sujeitos que aparecem nestas


frases.
1. Ela estava irritada pelo fato de uma pessoa bem mais jovem
enfrentá-la sem medo de sua mesa grande, na qual se escondia e dava-lhe
um certo ar de importância.
2. A insegurança e o medo estão, mesmo não querendo, presentes
em nosso subconsciente.
3. Com a falta de espaço, a maioria das crianças passaram a brincar
em seus próprios apartamentos, afetando, assim, a sua criatividade.
4. Todas as pessoas tentam beneficiar-se com esta atitude; entre-
tanto, quando outra pessoa utiliza os mesmos métodos, sente-se lesada.
5. A velhice preocupa muitas pessoas; pensam que só os jovens
gozam a vida.

557
gramática e estilo

6. Os conselhos são inúteis: para os adolescentes, os mais velhos


são atrasados, pertencem a outra geração, dizem que agora tudo mudou.
7. Uma turma com sete integrantes pode parecer pequena, mas,
quando eles trazem para dentro da sala de aula histórias dramáticas como
aquelas que traziam, faz com que pareçam muitos e, às vezes até nenhum,
pelo espaço vazio que se cria nas situações dramáticas produzidas pelos
conflitos em ebulição.
8. Na hora de receber as notas, a minha não foi a melhor.
9. Os pais exercem papel fundamental na formação de seus filhos,
é neles que buscam a identificação com o mundo exterior.
10. Sempre fui fascinada pelas palavras. Desde que consigo lembrar,
os livros foram meus grandes amigos, seja através de suas histórias ou
seja pelo objeto livro em si, que tem para mim um efeito instantâneo de
familiaridade, não por ter sido cercada de livros desde criança, mas por
fazer de qualquer lugar que os contenha um espaço confortável.

5.3.1.3 Sujeito, tópico, tema

O sujeito, então, nem sempre é o ser de que se fala, isto é, nem


sempre é o tema da frase ou da oração, mas, como vimos na seção
anterior, os alunos têm tanta fé no prestígio que a escola deu ao sujeito
que se entregam despudoradamente à prática de sua elipse com cega
confiança de que os leitores haverão de recuperá-lo estejam onde estive-
rem, ou melhor, não estejam onde não estiverem. É verdade que muito
frequentemente o sujeito é o ser de que se fala, mas, invertendo, nessa
sentença, os papéis temáticos, as funções sintáticas e o ponto de vista,
produzimos uma formulação pedagógica bem mais útil: o ser de que
se fala é o sujeito. Disso decorre que a recomendação estilística mais
útil é esta: vê bem se não é melhor que o tema (o ser de quem se fala)
seja o sujeito da frase.

558
gramática e estilo

Claro que só vai fazer uma recomendação destas um professor que


esteja querendo ensinar a escrever e não apenas a reconhecer as funções
sintáticas em frases inventadas para verificar a capacidade de reconhecer
as funções sintáticas que o professor sabe reconhecer. Vamos examinar
esta frase:

1 Em sala de aula, onde minha normal distração levava-me para


infinita distância, foi, neste dia, exacerbada pelo sono da noite mal
dormida e pela ânsia de querer chegar logo em casa: carecia ver o
resultado de minha estratégia.

Ao tentar botar sentido nesta frase, temos dificuldade de identificar


o que exatamente foi exacerbada pelos causativos coordenados o sono
da noite mal dormida e a ânsia de querer chegar logo em casa. O tópico
da oração anterior – em sala de aula – não serve para sujeito por causa
do em, e a releitura acaba achando minha normal distração, que tanto
serve para sujeito que é sujeito de levava-me para infinita distância.
Por que foi necessária essa releitura para preencher a elipse com esse
sujeito? Provavelmente pela convergência de dois fatores: a oração em
que ocorre a elipse está em voz passiva e a que tem o sujeito expresso
está na voz ativa; além disso, o sujeito expresso está dentro de uma
oração subordinada, e o sujeito elíptico é o da frase, isto é, o sujeito da
oração principal. Ou seja, nesta forma, o tema da frase – minha normal
distração – a respeito da qual o predicado diz que levava-me para infinita
distância e que foi, neste dia, exacerbada pelo sono da noite mal, além
de não ser o sujeito da frase, está elíptico na oração principal, ou seja,
quase invisível.
A oração principal se chama oração principal justamente porque
nela vai a informação mais importante – o tema – ou deve ir, e esta é
outra formulação pedagógica mais útil: Bota na oração principal o que
é principal e na subordinada o que contribui para o entendimento do
que está expresso pela principal. Vamos fazer isso:

559
gramática e estilo

1a Em sala de aula, minha normal distração, que costumava levar-me


para infinita distância, foi, neste dia, exacerbada pelo sono da noite
mal dormida e pela ânsia de querer chegar logo em casa: carecia
ver o resultado de minha estratégia.

O que aconteceu neste dia não foi o que costumava acontecer


– minha normal distração levar-me para infinita distância­–, mas a exa-
cerbação dessa normal distração pelo sono. Isso tem de estar na oração
principal, e o que caracteriza vai para a oração adjetiva, que recupera
facilmente o sujeito da principal. Vamos tentar uma outra revisão:

1b O sono da noite mal dormida e a ânsia de querer chegar logo em


casa para ver o resultado de minha estratégia exacerbaram, neste
dia, minha normal distração, que, em sala de aula, costumava levar-
-me para infinita distância.

Nesta outra versão, em voz ativa, a percepção do sujeito de exacer-


baram é imediata tal qual o sujeito de costumava levar-me; no entanto, a
virtude maior desta versão é esclarecer-nos sobre o acerto da voz passiva
da versão anterior, que conduz com maior clareza para o fim da frase o
que vai dar continuidade à narração: o acerto da estratégia, muito mais
do que essa descrição da distração. Pode ser, no entanto, que a ideia
do autor seja discorrer a respeito de sua distração, e esse seja mesmo o
rumo do texto.
Nossa experiência de leitor nos ensinou que o sujeito tem a restrição
morfossintática de constituir-se como sintagma nominal; por isso, sabe-
mos que nem em sala de aula, que começa pela preposição em, nem onde
minha normal distração, que começa pela conjunção onde, podem ser
sujeito de foi, neste dia, exacerbada. O sujeito tem, além disso, a virtude
coesiva de concordar com o núcleo do predicado, e a escola se encarre-
gou de muito nos alertar para isso. Por conta dessas duas propriedades,
o sujeito, esteja onde estiver, está sempre em foco, e é por estar em foco
que o sujeito compatibiliza com o tema. Examinemos estas outras frases:

560
gramática e estilo

2 Os meios utilizados pelos heróis normalmente são extremamente


violentos, sem se preocuparem em procurar soluções mais razoáveis
para os conflitos.

2a Os heróis utilizam normalmente meios extremamente violentos,


sem se preocuparem em procurar soluções mais razoáveis para os
conflitos.

Aqui o sujeito de utilizam, o verbo da principal, é os heróis, resga-


tado pela elipse como o sujeito de se preocuparem.

3 Além das questões específicas trazidas pelos alunos, relacionadas


ao seu contexto de vida quando se encontravam em sala de aula,
apresentavam problemas de relacionamento, não sendo raras as
situações de agredirem-se, inclusive fisicamente.

O resgate do sujeito de apresentavam revela-se custoso porque a voz


passiva – as questões específicas trazidas pelos alunos – alijou os alunos
da função de sujeito. Como além de funciona como uma adição (como
a conjunção e), surge um problema de paralelismo: além das questões...
o que mais? A pergunta então é esta: quem trouxe as questões, quem
apresentava problemas de relacionamento, quem se agredia? Se tem
pessoas, personagens, esse é o foco, esse é o sujeito:

3a Os alunos, além de trazerem questões específicas relacionadas


ao seu contexto de vida, quando se encontravam em sala de aula
apresentavam problemas de relacionamento, não sendo raras as
situações de agredirem-se, inclusive fisicamente.

Pode ser também que tudo isso aconteça em sala de aula; nesse caso,
a topicalização dessa circunstância de lugar assegura esse entendimento:

3b Quando se encontravam em sala de aula, os alunos, além de


trazerem questões específicas relacionadas ao seu contexto de vida,

561
gramática e estilo

apresentavam problemas de relacionamento, não sendo raras as


situações de agredirem-se, inclusive fisicamente.

4 Sob um céu que variava de um azul anil a um azul-claro perpassado


no horizonte pelo intenso vermelho gerado pelo sol se pondo, dava
às nuvens cinza contornos de fogo.

Na frase 3, o deslocamento de quando se encontravam em sala de


aula para o início da frase coloca dentro da sala de aula todos os eventos
relatados a seguir. Nesta outra frase, a preposição inicial sob anuncia o
aparecimento de algo abaixo deste céu; no entanto, nada aparece abaixo
porque a descrição se limita ao céu. Se o que aparece sob esse céu está
na frase seguinte, é o caso de transferir para lá essa indicação de lugar.
Além disso, não temos um sujeito claro para dava às nuvens cinza con-
tornos de fogo, mas faz muito tempo que sabemos muito bem quem é
que dá contornos de fogo às nuvens. Temos então, disponíveis na frase,
o sol se pondo e o intenso vermelho gerado pelo sol...

4a O intenso vermelho gerado pelo sol se pondo perpassando um céu


que variava de um azul anil a um azul-claro dava às nuvens cinza
contornos de fogo (ou ...dava contornos de fogo às nuvens cinza).

5 Então, eu fui notando que os conceitos que eu tinha daqueles grupos


estavam errados, pois as pessoas participavam de vários grupos ao
mesmo tempo, não dando mais a eles a ideia de um sistema fechado,
e os próprios grupos se misturavam uns com os outros.

Temos claramente um sujeito expresso por eu – eu fui notando...


eu tinha... –, um outro expresso por as pessoas, que participavam, e ou-
tro, por os próprios grupos, que se misturavam. Entre eles temos ...não
dando mais a eles a ideia de um sistema fechado. As formas nominais
do verbo – notando e dando – não têm desinência de pessoa e núme-
ro; portanto, é preciso que ou o sujeito do gerúndio (e do infinitivo e
do particípio) apareça expresso ou, pelo menos, que apareça algo que

562
gramática e estilo

compatibilize com o papel temático daquilo que é capaz de dar a ideia


de, no caso, um sistema fechado. Quem ou o que não dá mais a eles, os
grupos, a ideia de um sistema fechado? Parece que é a percepção de que
as pessoas participavam de vários grupos ao mesmo tempo e de que os
próprios grupos se misturavam uns com os outros. Trata-se, então, de
explicitar os sujeitos:

5a Então, eu fui notando que os conceitos que eu tinha daqueles


grupos estavam errados, pois as pessoas participavam de vários
grupos ao mesmo tempo, e os próprios grupos se misturavam uns
com os outros, e essa circulação era incompatível com a ideia de
um sistema fechado.

Exercício 62

Reorganize a relação sujeito-tópico-tema nestas frases.


1. Com um videogame você sai da sua realidade e do seu normal
para entrar em um caça F-15 ou outro superaparelho de guerra, armado
até os dentes para aniquilar qualquer um que estiver sob sua mira, com
o cuidado de poupar munição.
2. Eu sentava na frente de uma tal de Ana Marcia (menina robusta,
cabelos crespos e muito malvada) que puxava minha trança todos os
dias (meu cabelo era comprido e crespo) reclamava para a professora,
que falava:
3. E essa voracidade de ler, aos poucos foi formando meus gostos,
autores de cabeceira, relendo os que mais marcaram ou mexeram de
alguma maneira comigo.
4. Esse afastamento dos mais jovens em relação à vida torna-se
óbvio justamente pela pouca responsabilidade de seus pais para com
seus filhos, uma vez que pensam não ter nada que os prendam à família
além da necessidade econômica.

563
gramática e estilo

5. Entretanto, a partir do momento em que a competição começar a


exigir de você uma atitude, uma capacidade que não queira e não possa
fazer, pode tornar-se negativa.
6. Tudo, até então, rodava em torno de mim, sem ter de dividir nada
com ninguém.
7. O Brasil não teve um processo cultural que surgisse de nossas
raízes culturais, se desenvolvendo com o passar do tempo.
8. Às vezes tentava pôr em prática o padrão culto da língua, mas
ele não se adequava àquele ambiente e acabava sentindo-me mal, pois
parecia que eu queria ser diferente das pessoas do meu grupo.

5.3.1.4 Ação, agente, paciente – voz ativa e voz passiva

Podemos começar examinando esta frase:

1 Olhando para ele desligado, é apenas um computador. Com sua


torre, um gabinete, ATX de 3 xxx, design estilo moderno com formas
arredondadas. O monitor, de 17 polegadas, teclado, mouse e im-
pressora. É só uma máquina. Ao ligar, entretanto, um novo mundo
se mostra naquela janela dantes fechada.

Olhando, no início da frase, bota o leitor a olhar para o compu-


tador, aqui apresentado como a coisa a ser olhada no predicado da
frase, ou seja, o computador é o tema mas não é o sujeito, e o verbo
a ele relacionado – desligado – caracteriza-o como objeto em um dos
seus estados relevantes. As frases seguintes também têm como tema
o computador: as duas primeiras apresentam seus componentes, e a
terceira – é só uma máquina – qualifica-o restritivamente. A última
frase remete ao estado anteriormente referido e anuncia uma mudança
de estado, que, como é de conhecimento de qualquer leitor, só pode ser
provocada por um agente humano ou, no mínimo, animado, ou, pelo
menos, que não pode ser provocada pelo próprio computador. A forma

564
gramática e estilo

verbal – ao ligar –, mesmo admitindo sujeito indeterminado, abre, em


sua sintaxe, o lugar para sujeito agente, ou seja, o tema, o computador,
não é o sujeito dessa frase.
Retomando aquela recomendação – vê bem se não é melhor que
o tema (o ser de quem se fala) seja o sujeito da frase –, nos botamos a
conjeturar de que modo o que não é agente pode ser o sujeito, e a resposta
é esta: voz passiva.

1a Olhando para ele desligado, é apenas um computador. Com sua


torre, um gabinete, ATX de 3 xxx, design estilo moderno com formas
arredondadas. O monitor, de 17 polegadas, teclado, mouse e impres-
sora. É só uma máquina. Ao ser ligado, entretanto, um novo mundo
se mostra naquela janela dantes fechada.

A voz passiva leva diretamente ao resgate como sujeito do que não


é agente, que, no caso, é o tema do parágrafo, referido por uma máquina,
na frase imediatamente anterior. A voz passiva, além disso, garante o
lugar do agente, que, se for relevante, pode aparecer introduzido pela
preposição por: Ao ser ligado por... Não é o caso aqui, em que o agente
de ligar é qualquer um que ligue, e qualquer um muito raramente é
personagem. Na verdade, a voz passiva já estava anunciada – com o
verbo auxiliar elíptico – naquele particípio desligado na primeira frase
(quando está desligado ou se está desligado). Podemos pensar num outro
arranjo: já que, por artes da voz passiva, o computador virou sujeito na
última frase, podemos atribuir-lhe também o papel temático de agente e
de sujeito na oração principal:

1b Olhando para ele desligado, é apenas um computador. Com sua


torre, um gabinete, ATX de 3 xxx, design estilo moderno com formas
arredondadas. O monitor, de 17 polegadas, teclado, mouse e impres-
sora. É só uma máquina. Ao ser ligado, entretanto, (ele) mostra um
novo mundo naquela janela dantes fechada.

565
gramática e estilo

Para levar adiante esta exposição da utilidade da voz passiva, vamos


examinar esta outra frase:

2 Acredito que é durante a fase de criação de condições para aprendi-


zagem que temos oportunidade de chamar os alunos para o compro-
misso de cidadãos que devem assumir a fim de incluí-los socialmente.

Em incluí-los, temos os alunos (os incluídos) expressos pelo pro-


nome enclítico ao verbo: -los; o sujeito elíptico do infinitivo incluir é o
nós que se expressa na desinência de temos (a oportunidade de...). Mais
perto desse verbo – incluí-los – do que esse (nós) temos, estão os alunos...
cidadãos que devem... Como a inclusão afeta mais diretamente a eles do
que a nós, a voz passiva aproxima eles da inclusão que vai beneficiá-los:

2a Acredito que é durante a fase de criação de condições para


aprendizagem que temos oportunidade de chamar os alunos para o
compromisso de cidadãos que devem assumir a fim de que sejam
incluídos socialmente.

Na versão anterior – a fim de incluí-los socialmente –, o agente, o


nós de temos, que está elíptico, tem a função de sujeito; nesta versão,
esse agente tem a função mais comumente elidível de agente da passiva,
o que é compatível com um papel mais discreto nessa inclusão. Curio-
samente, no que costuma ser chamado de voz passiva sintética, em que
não há lugar para a expressão do agente, os incluídos parecem ter um
papel bem ativo, que seria mais um argumento contra a ideia de uma
voz passiva sintética:

2b Acredito que é durante a fase de criação de condições para


aprendizagem que temos oportunidade de chamar os alunos para o
compromisso de cidadãos que devem assumir a fim de incluírem-se
socialmente.

566
gramática e estilo

O se é lido aqui como reflexivo, atribuindo ao sujeito – os alunos,


retomado pelo que – um papel ativo: os alunos incluem-se socialmente
a si mesmos.
Já nesta outra frase, a relação entre as orações pode se tornar mais
coesa com o uso da voz passiva:

3 E assumindo por um período de sete anos essa posição de filha


caçula, meu pai e minha mãe me protegiam mais do que minhas
outras duas irmãs juntas.

A oração reduzida de gerúndio no início da frase não indica o seu


sujeito; o tópico da oração que segue deixa claro que o seu tema não é
o mesmo da reduzida, que só vai aparecer no me do complemento des-
sa oração principal: me protegiam mais. Se a principal for para a voz
passiva, o tema da reduzida e sujeito da principal – eu – aparece bem
antes, no início:

3a E assumindo por um período de sete anos essa posição de filha


caçula, eu era mais protegida por meu pai e minha mãe do que minhas
outras duas irmãs juntas.

Nesta outra frase, a voz passiva configuraria com mais clareza e


propriedade a relevância relativa dos personagens envolvidos:

4 A irmã de meu vizinho teve de levá-lo ontem às pressas para o


hospital; ele tem sérios problemas cardíacos, mas felizmente não
era nada grave.

Levando em conta os dados fornecidos por esta frase, não há dúvida


de que o personagem principal, o tema da frase, é o que foi para o hospital,
o que foi levado – voz passiva – e não quem levou – voz ativa – para o
hospital. Para a melhor orientação do leitor, o tema vai ser o sujeito, e o
predicado encarrega-se do rema organizando, por ordem de importância,

567
gramática e estilo

as informações a respeito desse tema/sujeito, deixando para o fim da


frase a informação que conclui a história, pondo no início a que diz qual
é a novidade e as outras (neste caso, a outra) no meio, enfileiradas por
ordem crescente de importância:

4a Meu vizinho tem sérios problemas cardíacos e teve de ser levado


ontem às pressas para o hospital por sua irmã, mas, felizmente, não
era nada grave.

Como a frase não dá mais informações sobre a irmã, podemos


imaginar que o único papel da irmã nesta versão da história foi o de
motorista ou de acompanhante. Como a frase em voz passiva faculta a
omissão de um agente de importância secundária, podemos simplificar:

4b Meu vizinho tem sérios problemas cardíacos e teve de ser levado


ontem às pressas para o hospital, mas, felizmente, não era nada grave.

Vamos examinar estas outras frases, que vão ampliar as informa-


ções a respeito do que está envolvido nessa relação entre voz ativa e voz
passiva: agente, paciente e ação.
5 Foi concordado por todos que fariam um abaixo-assinado solici-
tando uma escola para a vila.

Há um uso impróprio da voz passiva, já que, segundo a NGPB,

a voz verbal assinala o tipo de participação do sujeito


sentencial no estado de coisas. [...] Se ele for agente, te-
remos a voz ativa, se for paciente, teremos a voz passiva,
e se for ao mesmo tempo agente e paciente, teremos a voz
reflexiva. [...] Como a voz ativa depende de um sujeito
e de um objeto direto, ela é privativa dos verbos biargu-
mentais transitivos diretos ou bitransitivos (CASTILHO,
2010, p. 436).

568
gramática e estilo

Nesta frase, quem concorda não pratica uma ação, isto é, o sujeito
de concordar não é agente nem o complemento de concordar é um objeto
direto, já que concorda com. Não se trata, portanto, de usar mecanicamente
o verbo ser + o particípio do verbo principal para formar uma voz passi-
va: é preciso também verificar a relação entre o agente da ação verbal e o
paciente da ação verbal. Não havendo, ação não há agente; não havendo
complemento sem preposição, não há um objeto direto para virar sujeito.
Na NGPB ainda podemos ler:

As regras de transformação da voz ativa na passiva habi-


tam nossas gramáticas desde sempre. A receita é mover o
objeto direto da ativa para a cabeça da sentença, produzir
o movimento inverso com o sujeito da ativa, fazendo-o
preceder da preposição por ou de. Pronto! Uma ativa
virou passiva. É claro que a base desse raciocínio é que
na língua há estruturas primitivas, a voz ativa, no caso, e
estruturas derivadas, a voz passiva. Se o verbo é bitran-
sitivo, apassiva-se o segmento transitivo direto: O gato
foi doado à vizinha pela mãe do moleque.
Blanche Benveniste (1987) mostrou as inconveniências
dessas transformações, pois vários verbos transitivos
diretos produzem uma “passiva má”, como:
Eu vi o filme – O filme foi visto por mim. (possível só
em determinados contextos)
O rio atravessa a cidade – A cidade é atravessada pelo rio.
O carro atravessa a cidade – A cidade é atravessada pelo
carro. (agramatical dado o papel semântico não agentivo
do sujeito)
A operação ao contrário também traz dificuldades, se
estivermos operando com a passiva resultativa construída
com estar:

Hoje o mar está muito salgado – Alguém salgou o mar


hoje (CASTILHO, 2010, p. 436).

569
gramática e estilo

Então:

5a Todos concordaram que fariam um abaixo-assinado solicitando


uma escola para a vila.

6 Os ladrões roubaram o Banco Central.

Esta frase, que tão inadequadamente dispõe tema e rema, tópico


e comentário, sujeito e predicado, deixa bem clara a importância desse
conjunto de relações, especialmente se for comparada com esta outra
frase, em que a voz passiva permite outra disposição para as palavras
que a compõem:

6a O Banco Central foi roubado.

Nesta versão fica muito clara a inadequação do tema/tópico/sujeito


da versão anterior: se alguém responder Foram os ladrões à pergunta
Foi roubado por quem? ou Quem roubou?, o perguntador certamente
acharia que se trata de deboche. A versão na voz passiva topicaliza o
tema relevante – o Banco Central – e informa que não se sabe exatamente
quem são os ladrões. Se, por outro lado, estivessem envolvidos nesta
ação de roubar, além do Banco Central, a Falange Vermelha, o PCC ou
um outro importante grupo de crime organizado, e a informação a ser
dada fosse essa, a relevância maior seria dada ao agente, mesmo que a
importância dos dois fosse equivalente porque, além de ser mais natural
topicalizar o agente nesses casos, há a ainda a importância da revelação
do autor do crime:

6b A Falange Vermelha roubou o Banco Central.

Este caso endossa a afirmação feita na NGPB: não é o caso de deri-


var a voz passiva da ativa. Usamos a voz passiva por outras motivações,
encontradas no discurso, não na sentença.

570
gramática e estilo

7 Para minha satisfação, a cartela ia preenchendo rapidamente.

O verbo preencher é um verbo de ação que, nesta frase em voz ativa,


tem como sujeito a cartela, que, como sabemos, costuma ser preenchida
por um agente, que costuma ser o sujeito de frases em voz ativa. Claro
que a frase é inteligível, e o agente desse preenchimento pode, de fato,
em determinadas circunstâncias, ser omitido por irrelevante. Foi certa-
mente essa irrelevância que propiciou esta construção dita ergativa, em
que o paciente da ação aparece como sujeito, como, por exemplo, em
Bateu a porta, que usamos quando sabemos (e sabemos também que os
outros sabem) que, por exemplo, o vento foi o causador dessa batida. O
vento não é o agente porque não tem deliberação; o nome desse papel
temático é causativo. Então, fica melhor assim ou fica apenas um pouco
mais formal?

7a Para minha satisfação, a cartela ia sendo preenchida rapidamente.

Aqui também não aparece o irrelevante agente, mas o lugar dele


está guardado à sua espera.

8 Ameaçaram de morte o presidente da CPI do Orçamento.

Essa terceira pessoa do plural – ameaçaram – esconde o agente e


topicaliza o acontecimento, a ameaça.

9 Quebraram a vidraça.

Diferentemente de Quebrou a vidraça, frase que topicaliza a ação e


em que a vidraça é o sujeito (já que o plural seria Quebraram as vidra-
ças), esta concordância com a terceira pessoa do plural, tal como na frase
anterior, estabelece o pressuposto de que a ação teve um agente animado,
capaz de decidir que ia quebrar (ou que ia ameaçar, na frase anterior).

571
gramática e estilo

Tal agente seriam os desconhecidos ou os ocultados sujeitos referidos


por estas terceiras pessoas do plural ou o desconhecido ou o ocultado
referido por essa terceira pessoa do plural, já que quem diz Bateram na
porta não está querendo dizer que mais de uma pessoa está batendo na
porta ao mesmo tempo.
Em Quebrou a vidraça, a causa da quebra pode ser atribuída a al-
gum fenômeno natural, um causativo. Já Quebraram a vidraça, em que
a vidraça é o objeto direto, responde a uma pergunta do tipo O que foi
que fizeram?, em que a existência de um agente para a ação ocorrida é
um dado. No caso de ameaçaram, na frase anterior, o próprio sistema
de casos do verbo também revela a existência do agente.

10 Os fregueses do restaurante do sindicato comem muito bem.

Esta frase topicaliza uma informação redundante, já que quem come


num restaurante costuma ser o freguês desse restaurante. Podemos tentar
um indefinido:

10a Todos comem muito bem no restaurante do sindicato.

Esta forma, no entanto, não topicaliza a informação mais importante


da frase, que é comer bem:

10b Come-se muito bem no restaurante do sindicato.

Nesta frase, o pronome se está em lugar de todos, de qualquer um,


de quem quer que seja, isto é, de quem for comer lá: é o agente, o que
come, em função de sujeito dito indeterminado. Come-se o quê? Tudo,
qualquer coisa, o que quer que seja, o que tiver pra comer lá. Neste uso,
o verbo comer é intransitivo por falta de especificação do que o comple-
menta. Sujeito e complemento são indeterminados, ou seja, não se trata
de voz passiva por falta de objeto direto para virar sujeito e de sujeito

572
gramática e estilo

para ficar no banco de reserva esperando ser chamado para a posição de


agente da passiva. O pronome se representa um sujeito indeterminado,
uma terceira pessoa do singular genérica.
Esta frase serve para rever aquela questão da mecânica da passagem
da ativa para a passiva e da passiva para a ativa, que foi muito útil nos
três primeiros casos examinados nesta seção:

Ao ligá-lo por ao ser ligado.

A fim de incluí-los socialmente por a fim de serem incluídos so-


cialmente.

A irmã de meu vizinho teve de levá-lo ontem às pressas para o hospital


por Meu vizinho tem sérios problemas cardíacos e teve de ser levado
ontem às pressas para o hospital por sua irmã.

Todos nós dominamos essa mecânica nas formas simples do verbo,


que usamos em nossa fala cotidiana; atrapalhamo-nos um tanto com as
formas compostas como em teve de ser levado.

11 Andam contando por aí, desde a semana passada, coisas muito


engraçadas sobre o possível noivado de vocês.

Temos a forma composta andam contando. É assim que se insere


aí o verbo auxiliar ser:

11a Coisas muito engraçadas andam sendo contadas sobre o possível


noivado de vocês.

Exercício 63

Vamos ver um exercício em que vai ser necessário executar essa


mecânica de passar de uma voz para a outra e também o discernimento

573
gramática e estilo

para avaliar se essa passagem é cabível ou não; trata-se, então, de passar


para a passiva o que está na ativa e vice-versa. Se essa passagem não for
possível ou cabível, justifique.
1. Aquelas terríveis formigas vermelhas continuam devastando
nosso lindo canteiro de alfaces.
2. Um ano depois do assalto, ainda não haviam encontrado a mis-
teriosa loira em lugar algum do país.
3. O guarda, sendo agredido por Américo, prendeu-o.
4. Apesar das dificuldades de execução, a sugestão tinha sido
considerada boa pelas autoridades encarregadas das reservas florestais.
5. Mais uma vez, o professor abriu aquele imenso livro diretamente
na página certa.
6. Um mês depois, os suspeitos continuavam sendo seguidos de
muito perto pela polícia secreta.
7. O árduo trabalho poderia exigir dos operários algumas horas-extra
durante o fim de semana.
8. Finalmente foi encontrada uma solução satisfatória para todos.
9. Januário comunicou sua decisão apenas aos amigos mais íntimos.
10. Notificaremos imediatamente aos associados quaisquer altera-
ções no programa estabelecido no ano passado.

5.3.2 Concordância

Estamos tratando da oração, que caracterizamos como a unidade


de conteúdo que, com outras unidades de conteúdo, isto é, com outras
orações, forma a frase, unidade de assunto, que, com outras unidades de
assunto, isto é, com outras frases, compõe o texto. Orações e frases são
sentenças, isto é, compõem-se de tema e rema, de tópico e comentário,
de sujeito e predicado. A oração compõe-se de um verbo que se relaciona

574
gramática e estilo

por concordância com o sujeito e por regência com os complementos.


Examinemos estas frases:

1 O cachorro persegue o gato.


2 O gato persegue o cachorro.
3 Persegue o cachorro o gato.
4 Persegue o cachorro os gatos.
5 Perseguem o cachorro os gatos.
6 Foge do gato o cachorro.
7 Fogem do cachorro os gatos.

Na frase 1 – O cachorro persegue o gato – a ordem das palavras


determina o sujeito e o complemento, assim como na frase 2 – O gato
persegue o cachorro.
Na frase 3 – Persegue o cachorro o gato – a ordem das palavras
não determina quem é o perseguidor, isto é, o sujeito, nem quem é o
perseguido, ou seja, o complemento.
Na frase 4 – Persegue o cachorro os gatos – também não é a ordem
das palavras que nos informa que o cachorro é o sujeito, isto é, o perse-
guidor, e que os gatos são o complemento, ou seja, os perseguidos; o que
determina isso é a concordância de cachorro, no singular, com persegue,
no singular da terceira pessoa.
Na frase 5 – Perseguem o cachorro os gatos – também é a con-
cordância de os gatos, no plural, com perseguem, no plural, que nos diz
que os gatos são os perseguidores e sujeito da frase, e que o cachorro é
o complemento e o perseguido.
Na frase 6 – Foge do gato o cachorro – o que nos diz que o gato
é o perseguidor e o complemento é a preposição de que acompanha o
verbo fugir, ou seja, é a regência. O agente da ação de fugir e sujeito do
verbo é o cachorro.

575
gramática e estilo

Na frase 7 – Fogem do cachorro os gatos –, dois sinais, redundan-


temente, nos dizem que o cachorro é o perseguidor e complemento e
que os gatos são os perseguidos e o sujeito da frase: (1) a concordância
no plural entre fogem e os gatos, e (2) a preposição de que rege o com-
plemento de fogem – do cachorro.
Nestas simplórias frases de aula introdutória de Português, concor-
dância e regência são mecanismos perfeitamente azeitados e perfeitamen-
te funcionais; é nesse âmbito restrito de frases muito simples, de uma ou
duas orações, que a escola costuma nos falar de concordância e regência.
Problemas surgem em frases que juntam mais algumas orações para tratar
de temas mais complexos, como temos visto ao longo deste capítulo.
A NGPB trata disto na seção 10.2.1.4 Concordância verbal, onde
podemos ler:

Concordância é a conformidade morfológica entre uma


classe (neste caso, o verbo) e seu escopo (neste caso, o
sujeito). Esta conformidade implica, portanto, uma redun-
dância de formas, ou seja, se houver marcação de plural
no sujeito haverá marcação de plural no verbo, como se
vê em: As portas da cidade caíram ante o ímpeto das
tropas invasoras.
Já vimos nesta gramática que a sentença é assimétrica com
relação à concordância. No PB padrão, o verbo concorda
em pessoa e número com seu sujeito, e não concorda com
os argumentos internos nem com os adjuntos. A assimetria
vem daí: concordância com o sujeito, expresso no caso
reto, não concordância com os complementos, expressos
nos casos oblíquos. Mas o PB não padrão exibe outras
regras de concordância (CASTILHO, 2010, p. 411).

O PB padrão é aquela língua em que ainda há quem ache que de-


vemos falar, pelo menos em situações formais; é a língua em que muita
gente acha que deve escrever e a língua em que ainda há quem acha que

576
gramática e estilo

escreve. O PB não padrão é a língua que nós falamos, a que foi estudada
pelo Projeto de Gramática do Português Brasileiro Falado e está exposta
na NGPB. No comentário do Quadro 4.2 – Características do PB popular
e do PB culto, que se estende da página 206 a 209, podemos ler:

O quadro anterior confirma que (1) não há uma oposição


categórica entre fala popular e fala culta, ocorrendo em
muitos casos um compartilhamento de propriedades; (2)
em certos casos a preferência culta exclui fortemente a
preferência popular; (3) em situações informais, diminui
a distância entre essas variedades, e o falante culto pode
aproximar-se bastante da execução popular, ainda que não
em todos os casos; (4) as variedades populares flutuam
de acordo com a região geográfica, mas a fala culta é um
pouco mais homogênea, sobretudo na sua forma escrita
(CASTILHO, 2010, p. 209).

O compartilhamento de propriedades entre a fala culta e a popular,


em que a canção brasileira se expressa, produziu a rima de Meu olhar
se perde na poeira dessa estrada triste com onde a tristeza e a saudade
de você ainda existe, no singular, sem a concordância da gramática pa-
drão da língua escrita. Produziu também o acatamento dessa rima pela
esmagadora maioria dos falantes e cantantes do PB não padrão, que
todos nós falamos, mesmo aqueles entre nós que, por escrito, fariam a
concordância existem. Só um pedante afã de correção gramatical seria
capaz de embotar a sensibilidade poética de uma cantora/um cantor a
ponto de levar àquela descabida concordância.
Não se pode afirmar, como faz quem se pauta por uma obediência
cega às prescrições da gramática normativa, que a língua da canção
popular não tem regras, porque, vale a pena repetir aqui, todos os 13
cantores ouvidos num site de canções populares brasileiras chamado
Vagalume, além da cantora do rádio, assim cantaram este outro verso da
mesma canção: minhas lágrimas e os pingos dessa chuva se confundem

577
gramática e estilo

com meu pranto, e nenhum disse confunde, ou seja, todos fizeram a


concordância no plural deste outro sujeito composto. Estamos, portanto,
diante de uma outra regularidade constatada, de uma outra recorrência
linguística, compartilhada pelo PB não padrão e pelo PB padrão.
Ao fenômeno que rege no PB não padrão a concordância dos sujeitos
compostos (e de outras construções), a NGPB dá o nome de “paralelis-
mo linguístico”, que assim se expressa: “a presença de uma marca de
plural favorece a concordância, ao passo que a ausência de uma marca
precedente favorece a falta de concordância”. A frase que sintetiza o
paralelismo linguístico é esta: “marcas levam a marcas; zeros levam a
zeros” (CASTILHO, 2010, p. 413).
Assim, como já vimos, em a tristeza e a saudade de você há
zero marcas de plural; daí, existe. Já em minhas lágrimas e os pingos
desta chuva há quatro marcas de plural; daí confundem. Ou seja, não
houve, nem por parte dos falantes de PB não padrão que compuseram
os versos nem por parte dos falantes de PB não padrão que cantaram
esses versos, nem transgressão nem licença poética: o verso foi cons-
truído e pronunciado em obediência às regras da língua que falam, que
falamos, que são as regras que orientam nossa interpretação do que
ouvimos e lemos.
Vale a pena acompanhar este raciocínio de Marcos Bagno na GPPB:

Observe que um enunciado como – Eles ainda não chegou


– permite, sem nenhum problema cognitivo ou comuni-
cacional, a interpretação <quem chegou foi mais de uma
pessoa>. Quem ouvir esse enunciado pode lançar sobre ele
todos os juízos de valor social que quiser – é fala de gente
“burra”, é fala “descuidada”, “português estropiado”, “não
é português” etc. – mas estará sendo desonesto se disser
que “não entendeu” que se trata de mais de uma pessoa
(BAGNO, 2011, p. 642).

578
gramática e estilo

Na NGPB encontramos até mesmo uma promessa de que o assunto


está em vias de ser encerrado:

Do ponto de vista diacrônico, parece que as regras de


concordância deixarão de ser uma propriedade gramatical,
visto que a colocação dos constituintes sentenciais se torna
progressivamente rígida. A rigidez da colocação identifica
as funções argumentais, tornando dispensável fazê-lo
através da concordância (CASTILHO, 2010, p. 413).

Ou seja, vai ser só O gato persegue o cachorro / O cachorro


persegue o gato / O gato foge do cachorro / O cachorro foge do gato
e não vai ter mais Foge do cachorro o gato / Foge do gato o cachorro.
É isso? Não, provavelmente essa anunciada rigidez vai restringir-se à
língua falada, que é uma das fontes da língua escrita; a outra é a língua
escrita, ou seja, escrevemos tanto o que falamos quanto o que lemos.
Dependendo da quantidade de leitura e do tipo de envolvimento de
cada um com a leitura, maior ou menor será o papel do que lemos no
que escrevemos. Além disso, o que lemos tem influência sobre o que
falamos, não apenas sobre o dialeto mas também sobre a organização
do nosso discurso falado.
É bem provável também que não chegue tão cedo. Enquanto não
chega essa rigidez na colocação dos constituintes, vamos examinar estas
concordâncias escritas problemáticas para ver se elas nos esclarecem a
respeito do que fazer com essa historicamente conturbada relação entre
o que falamos e o que escrevemos, entre o que falam e o que escrevem
os nossos alunos, entre o que está escrito no que temos a revisar e o
que nos parece mais adequado para ser posto por escrito. Para quê?
Para dominarmos o processo ao ponto de decidirmos que efeitos que-
remos provocar com o manejo da concordância, ajustando-a ao que
prescreve a gramática normativa ou desajustando-a deliberadamente.
Costuma-se invocar as práticas de avaliação de Português em várias
instâncias – vestibular, ENEM, concursos públicos, publicações – para

579
gramática e estilo

que se capriche na concordância. Por outro lado, já sabemos o quanto


de colonialismo e de exclusão social está associado aos ideais de cor-
reção gramatical cultuados na gramática normativa.
Escrever com consciência, isto é, escrever para produzir deliberados
efeitos de sentido sobre os leitores que temos em mente, exige atenção
também para os efeitos provocados pela relação que o nosso texto vai
estabelecer com a gramática tradicionalmente atribuída à língua que
não falamos, mas em que fomos alfabetizados e letrados. Sabemos que
a norma escrita construída ao longo do século XIX teve como uma de
suas finalidades a exclusão social, ao se constituir à revelia da fala culta
dos contemporâneos dessa construção. Sabemos também que a língua em
que escreveu a literatura brasileira se constituiu em permanente tensão
com essa gramática e mesmo em deliberada oposição a ela e que a nossa
fala culta contemporânea está ainda mais distante daquela gramática.
Sabemos também, por outro lado, do prestígio que o uso dessa
gramática ainda dá aos textos que, pelo menos, aparentam usá-la. Sabe-
mos, ainda, do uso que se faz dessa gramática para a estigmatização de
quem a transgride voluntária ou involuntariamente. Assim, a decisão de
escrever Começou as férias ou Começaram as férias tem de levar em
conta que cada uma dessas formas produz diferente efeito de sentido
e produz diferentes informações a respeito não só do texto de que faz
parte mas também a respeito de seu autor. Muito provavelmente, o uso
de Começaram as férias não vai levar os leitores a pensarem algo como
Oh! Ele domina a concordância.
É possível que o uso de Começou as férias também não provoque
nenhuma reação especial por parte de muitos leitores que nem vão notar
a falta da concordância. Isso pode fazer com que não se produza o efeito
transgressivo deliberado pelo autor que propositadamente não fez a con-
cordância, mas, em compensação, esses leitores não deixaram de ter uma
impressão de familiaridade, de proximidade com quem escreve assim. É
claro também que não faltará leitor para fazer os piores juízos a respeito

580
gramática e estilo

do autor que errou a concordância (!). Em síntese, quem quer escrever


com consciência precisa não apenas dominar a concordância e as demais
regras arbitradas para a língua escrita; precisa, na verdade, apropriar-se
de todo o processo histórico em que a língua escrita foi constituída.
É nesse sentido que vamos examinar esta tomada de posição a res-
peito de política, linguística e pedagogia que tem como tema a concor-
dância; trata-se de um trecho do capítulo O que (não) ensinar na escola,
sob o subtítulo Concordância verbal: a ilusão da regra geral, da GPPB:

Temos consciência de que a concordância verbal (e no-


minal) é o fenômeno linguístico mais empregado para
a discriminação dos falantes menos letrados. Por isso,
é importante prestar muita atenção a ela. No entanto, é
preciso lembrar que a célebre “regra geral” enunciada pela
tradição gramatical (“o verbo concorda com o sujeito”)
não é uma análise adequada ao fenômeno da concordân-
cia por dois motivos: i) sendo o verbo o núcleo de todo
enunciado linguístico complexo, é ele que impõe suas
propriedades aos demais constituintes da sentença, de
modo que, na realidade, é o sujeito que deveria ser con-
siderado como concordando com o verbo; ii) no entanto,
a concordância não se faz entre o sujeito e o verbo, mas é
provocada, isso sim, por traços morfossintáticos presentes
em outros constituintes da sentença ou do texto.
Além disso, postulamos também que a concordância
verbal é resultante de um processamento sociocognitivo
dificilmente explicitável: a concordância verbal se faz
frequentemente com algo que não está visível na mate-
rialidade do texto, mas que decerto participou do proces-
samento cognitivo do falante/escrevente no momento de
falar/escrever (BAGNO, 2011, p. 994).

As seções que compõem este capítulo foram organizadas pela mes-


ma regra geral que organizou os demais capítulos deste livro, que foi a
classificação do material coletado segundo um princípio comum a cada

581
gramática e estilo

frase, a cada trecho. Desse modo, parece haver um princípio comum


entre as concordâncias problemáticas dos sujeitos compostos.

5.3.2.1 Sujeito composto

É bem possível também que o estudo destes casos reais ocorridos


em textos de quem ainda está esforçando-se para dominar a língua escrita
traga outros ensinamentos sobre a concordância e nos revele alguma
outra virtude da revisão da concordância para além da mera adequação
gramatical. Em homenagem aos autores de Sentado à beira da estrada,
comecemos pelos sujeitos compostos (ou que só parecem compostos)
que estão aí abaixo. Uma leitura prévia atenta de todas as frases para
construir algumas hipóteses torna mais produtiva a leitura das análises
que seguem.

1 A patifaria e a corrupção também reinava ali, e eu passava olhando.

Não há marcas de plural no sujeito composto (A patifaria e a corrup-


ção); por isso, apareceu, reinava, no singular. Em qualquer instância de
avaliação – ou de redação ou de prova de cruzinha – esta concordância,
até que passe a ser considerada certa ou a única possível, vai ser consi-
derada errada. Mais importante do que isso seria questionar o autor a
respeito do que é mesmo que ele quer dizer com essa composição: com
a patifaria e a corrupção, ele está, de fato, tratando de duas coisas ou
uma delas está só reiterando a outra? A genérica patifaria não seria a
minimamente menos genérica corrupção? Nesse caso, o singular reinava
seria uma inconsciente autodenúncia dessa redundância, que, num texto,
é mais danosa do que a falta de concordância. Assim, ele poderia escolher
entre corrigir, revisar ou aprofundar.

1a A patifaria e a corrupção também reinavam ali, e eu passava


olhando.
1b A corrupção também reinava ali, e eu passava olhando.

582
gramática e estilo

1c A patifaria, que ali se expressava pela corrupção dos fiscais da...,


também reinava ali, e eu passava olhando.

2 Quando comecei a traduzir as músicas em inglês para o português


sem ter o conhecimento necessário da língua, minha habilidade com
a escrita e a imaginação aumentou.

Não há marcas de plural no sujeito (minha habilidade com a escrita


e a imaginação), mas podemos estar diante de um caso de paralelismo
mal encaminhado, algo como minha habilidade com a escrita e com a
imaginação, em que o núcleo do sujeito seria habilidade, no singular.
Melhor do que simplesmente imputar o erro é questionar a falta de cla-
reza, já que, se a habilidade com a escrita, de fato, pode aumentar, o que
acontece com a imaginação pode ter uma caracterização mais adequada
com amplia-se, diversifica-se, aguça-se, expande-se. Além disso, tem a
ordem dos componentes da coordenação: minha imaginação e a minha
habilidade com a escrita, nesta ordem, do menor para o maior.

2a Quando comecei a traduzir as músicas em inglês para o português


sem ter o conhecimento necessário da língua, minha imaginação
expandiu-se e minha habilidade com a escrita aumentou.

3 Juan já não sabia mais falar de amor, porque o eterno, o infinito


e o puro que um dia acreditou já não existiam.

Não há um sujeito composto já que eterno, infinito e puro são


adjetivos de amor, coordenados na periferia do sintagma nominal em
construções elípticas: porque o (amor) eterno, o (amor) infinito e o (amor)
puro. Podemos atribuir o plural em já não existiam como a expressão
de uma sensação de apocalipse: não há mais nenhuma espécie de amor
em lugar algum.

3a Juan já não sabia mais falar de amor, porque o eterno, o infinito


e o puro em que um dia acreditou já não existia.

583
gramática e estilo

3b Juan já não sabia mais falar de amor, porque já não existiam


nem o amor eterno, nem o amor infinito, nem o amor puro em que
um dia acreditou.

Será o plural o mais adequado para falar de formas de amor, varie-


dades de amor?

4 Na realidade, não podemos ser tão radicais em afirmar a deca-


dência da escola diante dos modernos meios de comunicação pois
tanto os meios de comunicação modernos como a escola dependem
um do outro, garantem a evolução não só das técnicas, mas também
leva o ser humano a conhecer suas potencialidades para chegar a
tal evolução.

O que cria o problema é a complexidade de combinar duas corre-


lações dentro de uma mesma frase: há um sujeito composto por tanto...
como: os meios de comunicação modernos e a escola. Esse sujeito com-
posto leva para o plural os verbos dependem e garantem, mas deixa de
levar para o plural o verbo da oração seguinte: ...mas também leva o ser
humano a conhecer suas... Este verbo leva é o segundo termo de uma
outra correlação: evolução não só das técnicas... mas também leva... Se as
conjunções que marcam esta segunda correlação estivessem nos lugares
mais adequados, talvez a atribuição do verbo àquele sujeito ficasse mais
clara; melhor ainda seria usar tanto... quanto na primeira correlação:

4a Na realidade, não podemos ser tão radicais em afirmar a deca-


dência da escola diante dos modernos meios de comunicação, pois
tanto os meios de comunicação modernos quanto a escola dependem
um do outro, não só garantem a evolução das técnicas, mas também
levam o ser humano a conhecer suas potencialidades para chegar
a tal evolução.

Descomplexificar a frase também pode ajudar:

584
gramática e estilo

4b Na realidade, não podemos ser tão radicais em afirmar a deca-


dência da escola diante dos modernos meios de comunicação. Tanto
os meios de comunicação modernos quanto a escola dependem um
do outro para garantirem a evolução das técnicas e levarem o ser
humano a conhecer suas potencialidades para chegar a tal evolução.

5 A segurança do povo e o progresso do país depende muito da


tranquilidade da população.

Não há nenhuma marca de plural nem antes nem depois do verbo.


Se a segurança do povo está mais obviamente vinculada à tranquilidade
da população, já não é tão claro o motivo pelo qual o progresso do país
depende dela; talvez essa obscuridade contribua para que o autor da
frase não considere composto o seu sujeito. O mínimo que se pode fazer
é adequar a concordância para que esta frase, que se limita a misturar
lugares-comuns, pelo menos não predisponha avaliadores a considerá-
-la apenas como gramaticalmente ruim. A gramática costuma ser um
atenuante para frases vazias.

5a A segurança do povo e o progresso do país dependem muito da


tranquilidade da população.

6 Essa tradição, e saber como ela se constituía, muito me interessava.

Essas vírgulas, que dão a saber como ela se constituía uma cara de
aposto e não de um segundo termo de uma coordenação, levam o verbo
para o singular. Se o que interessa ao autor não é apenas saber como
essa tradição se constituía mas, de fato, a tradição e sua constituição,
uma construção paralela sempre ajuda:

6a Essa tradição e a sua constituição histórica muito me interessavam.

Tirar o par coordenado da função de sujeito pode evitar essa con-


cordância de risco, ou melhor, o risco da concordância:

585
gramática e estilo

6b Eu estava muito interessado em conhecer essa tradição e a sua


constituição histórica.

Estabelecer um núcleo comum para os dois interesses também pode


ser uma solução:

6c Muito me interessava conhecer essa tradição e a sua constituição


histórica.

5.3.2.2 Marcas que antecedem o verbo

Não é apenas no caso do sujeito composto que atua a regra de que


marcas levam a marcas; zeros levam a zeros. Examinemos os aspectos
comuns que a concordância verbal apresenta nestas frases, em que temos
de levar em consideração não apenas vocábulos no plural mas também
vocábulos ligados por e, tal como se apresentam os sujeitos compostos.

1 Ainda que a manhã de aulas que vem pela frente não sejam tão
merecedoras de minha presença, que acordar às 5h30 da madrugada
não seja humano, que morar a 30 km da universidade seja uma dura
realidade, têm pessoas por aí que passam muito mais trabalho que
eu, então o negócio é mesmo me conformar e correr.

O predicado não sejam tão merecedoras de minha presença refere-


-se a aulas e não propriamente ao núcleo do sujeito – manhã –, ou seja,
mais adequado do que mexer na concordância seria inverter a relação
entre núcleo e adjunto adverbial no sintagma do sujeito:

1a Ainda que as aulas da manhã que vêm pela frente não sejam tão
merecedoras de minha presença, que acordar às 5h30 da madrugada
não seja humano, que morar a 30 km da universidade seja uma dura
realidade, têm pessoas por aí que passam muito mais trabalho que
eu, então o negócio é mesmo me conformar e correr.

586
gramática e estilo

2 Será que a adoção de penas alternativas trariam vantagens para


o infrator e para a comunidade?

O núcleo do sujeito é adoção, uma expressão bem mais abstrata


do que penas alternativas, que poderiam trazer vantagens se adotadas.
O predicado trata da adoção de penas alternativas e também das penas
alternativas; como o plural está mais perto do verbo, trata-se daquilo
que a gramática normativa chama de atração: plural atrai plural, ou seja,
marcas levam a marcas. Cabe ao autor da frase decidir a que(m) atribuir
as vantagens: às penas alternativas ou a sua adoção?

2a Será que a adoção de penas alternativas traria vantagens para o


infrator e para a comunidade?

2b Será que penas alternativas trariam vantagens para o infrator e


para a comunidade?

3 Essa pesquisa pretende vislumbrar como o método de avaliação das


redações dos vestibulares das universidades brasileiras acontecem.

Se várias universidades vão ter o método avaliado, existem, portanto,


vários métodos; logo eles acontecem. Trata-se de um plural provocado
não apenas pelas marcas de plural – as redações dos vestibulares das uni-
versidades brasileiras – mas também pela pluralidade do que é expresso
inadequadamente pelo singular no núcleo do sujeito. Acontecer também
não é o verbo mais adequado para designar o funcionamento de dispo-
sitivos planejados com a finalidade de produzir um resultado desejado.

3a Essa pesquisa pretende vislumbrar como funcionam os métodos


de avaliação das redações dos vestibulares das universidades bra-
sileiras.

Como não seria pensável que em alguma universidade brasileira


as redações do vestibular fossem avaliadas sem método, o que está em

587
gramática e estilo

vias de ser vislumbrado é a avaliação das redações do vestibular nas


universidades brasileiras.

3b Essa pesquisa pretende vislumbrar como funciona a avaliação


da redação do vestibular nas universidades brasileiras.

4 Na realidade não foi a perda material dos livros que me levaram


a toda aquela indignação, mas sim a atitude ditatorial de meus pais.

Lê-se que a indignação de quem fala na frase tem duas causas: a


perda material dos livros e a atitude ditatorial dos pais. Além da marca
de plural em livros, perto de levaram, há essa pluralidade de causas,
que costumam ser protagonistas em frases que falam de causa e efeito,
mesmo que não formem um sujeito composto. Pode-se tentar um sujeito
composto:

4a Na realidade, a perda material dos livros e a atitude ditatorial de


meus pais me levaram a toda aquela indignação.

Como esta formulação perde a ênfase que tinha a original, pode-


mos tentar uma construção impessoal – o que –, em que se corre menos
riscos com relação à concordância:

4b Na realidade, o que me levou a toda aquela indignação foi não


apenas a perda material dos livros mas principalmente a atitude
ditatorial de meus pais.

5 A escola nos mostra a parte teórica das coisas, e os meios de comu-


nicação de massa nos mostra, além da parte teórica, a parte prática.

Além da distância entre a marca de plural no núcleo do sujeito


– os meios – e o verbo – mostra –, o paralelismo com a primeira oração
também contribui para a flexão do verbo no singular: A escola nos mos-
tra... e os... nos mostra... Podemos tentar um paralelismo sem e:

588
gramática e estilo

5a A escola nos mostra a parte teórica das coisas; da parte prática,


os meios de comunicação de massa se encarregam.

Corrigir a concordância também é uma opção para quem não quer


provocar o senso comum de professores e avaliadores de redação em
qualquer tipo de concurso:

5b A escola nos mostra a parte teórica das coisas, e os meios de


comunicação de massa nos mostram, além da parte teórica, a parte
prática.

6 Eu não conseguia mais me afastar da escrita e simplesmente estudar


métodos pra passar no vestibular não me contentavam.

O sujeito de contentavam é a oração simplesmente estudar méto-


dos pra passar no vestibular. Orações, por mais plural que apareça nelas
– nesta há métodos –, estando na função de sujeito, levam a concordância
para o singular. Detectar um sujeito oracional é uma operação que exige
um certo grau de abstração, principalmente neste caso em que há um eu
como sujeito da oração anterior. Se o autor da frase tivesse assimilado a
lição da vírgula antes do e sempre que o sujeito da segunda oração coor-
denada for diferente do sujeito da primeira, ele seria levado a perguntar
pelo sujeito de contentava(m). Uma solução quase tão complicada quanto
essa é antepor o verbo e usar a vírgula para separar as duas orações:

6a Eu não conseguia mais me afastar da escrita, e não me contentava


simplesmente estudar métodos pra passar no vestibular.

Sempre se pode fazer uma pergunta a respeito do sujeito a partir


do verbo: o que é mesmo que não contentava o eu que está contando
essa história? Estudar métodos ou os métodos, o método em estudo?

6b Eu não conseguia mais me afastar da escrita, e o meu método de


estudo para passar no vestibular não me contentava.

589
gramática e estilo

Quem sabe a coisa toda não era um pouco mais simples?


6c Eu não conseguia mais me afastar da escrita, e não me contentava
ficar simplesmente estudando para passar no vestibular.

7 Seu olhar lânguido, debochado e recalcado revelam sua antipatia


pela molecada da rua.

O núcleo do sujeito – olhar – tem uma sucessão de complementiza-


dores coordenados, o que faz parecer que tem vários núcleos coordenados;
por isso, revelam, no plural.

7a Seu olhar lânguido, debochado e recalcado revela sua antipatia


pela molecada da rua.

Podemos optar por dar um certo protagonismo aos modos de ser


desse olhar: neste caso, temos um sujeito composto pela coordenação
das características desse olhar.

7b A languidez, o deboche e o recalque visíveis em seu olhar revelam


sua antipatia pela molecada da rua.

Em síntese, mantida a regra geral de que marcas levam a marcas e


zeros levam a zeros, a concordância com o complementizador do sin-
tagma sujeito pode ser induzida também, como vimos, pelas seguintes
ocorrências:

a) o predicado se refere mais propriamente ao que está no comple-


mentizador do que ao que está no núcleo do sujeito, tal como na frase
1, que trata mais das aulas do que da manhã;

b) o predicado se refere ao sujeito como um todo, mas o que está no


complementizador – penas alternativas – é mais concreto e/ou mais
específico do que o nome que está no núcleo do sujeito – a adoção
de –, tal como na frase 2;

590
gramática e estilo

c) o núcleo do sujeito expressa inadequada ou imprecisamente pelo


singular – o método – a pluralidade do tema em questão – os métodos
de avaliação ou as avaliações –, tal como na frase 3;

d) na frase aparece, não coordenado ao núcleo do sujeito – a perda


material dos livros –, o outro elemento – a atitude ditatorial de
meus pais –; tal que, se estivessem coordenados, fariam um sujeito
composto, tal como na frase 4;
e) o predicado – os meios de comunicação de massa nos mostra –
sofre influência de um outro predicado – a escola nos mostra – com
que está em construção paralela, tal como acontece na frase 5;
f) o sujeito é uma oração, no caso, uma reduzida de infinitivo, com
um plural no seu complemento: estudar métodos, tal como na frase
6. Orações substantivas, por mais plural que apareça nelas, levam a
concordância para o singular;
g) o núcleo tem uma sucessão de complementizadores coordenados
– lânguido, debochado e recalcado –, o que faz parecer que tem
vários núcleos coordenados, tal como na frase 7.

Exercício 64

Examine a concordância e tome uma providência, ou não; neste


segundo caso, explique por quê.
1. A descoberta de novas substâncias permitem duas alternativas
de trabalho.
2. A simples marcação de cruzinhas tornam a prova uma verdadeira
guerra de nervos.
3. Lá dentro, um labirinto de estradinhas faziam com que eu perdesse
o sentido de localização.
4. A exposição das crianças e jovens a estímulos violentos e
agressivos em quase nada contribuem para uma formação digna de sua
personalidade.

591
gramática e estilo

5. É importante enfatizar que o fato de meus pais serem professores


não ajudaram em nada a minha decisão.
6. A desproporção entre o salário real de um brasileiro e o mínimo
que deveria ganhar é de 140%, motivo pelo qual as grandes esperanças
de um futuro melhor vai por terra.
7. A solução para os problemas da nação, em grande parte, talvez
dependam de tempo.
8. A minha visão sobre as aulas, mas principalmente sobre as aulas
de português mudaram completamente.
9. Não sei se você já reparou, mas a faculdade, para nós, que pude-
mos nos dedicar totalmente ao estudo, apesar de guardar muitas diferenças
em relação ao trabalho, também apresentam semelhanças
10. Um ser humano atingido por essas doenças não vão produzir
o máximo.

5.3.2.3 Marcas que vêm depois do verbo

As marcas de plural ou de singular na periferia do sintagma sujeito


não são as únicas a induzir a concordância do verbo; essas marcas podem
aparecer também no complemento ou mesmo nos adjuntos adverbiais.
Talvez se possa acrescentar dois outros traços à dualidade singular/plural:
a classe gramatical e a temática tratada pelo vocábulo que determinaria a
concordância. Para ver se dá pra explicar isso, examinemos estas frases:

1 O homem tenta buscar no sobrenatural algo que, segundo suas


crenças, completariam sua felicidade e sua razão de existir.

Há marcas de plural imediatamente antes do verbo – suas crenças


– e um complemento composto logo a seguir: sua felicidade e sua razão
de existir, que expressam temas de grande relevância. Além disso, o su-
jeito de completar – algo que – é, abstrato, além de indefinido e distante

592
gramática e estilo

do verbo. Seria necessária muita atenção à sintaxe para não sucumbir a


tantas marcas.

1a O homem tenta buscar no sobrenatural algo que, segundo suas


crenças, completaria sua felicidade e sua razão de existir.

2 Todos os mandamentos das crenças envolve e preenche a alma


dos fiéis.

São sete marcas de plural antes e depois do verbo, além da coorde-


nação entre esses dois verbos; alguma coisa muito forte arrasta irrever-
sivelmente esses verbos para o singular: só pode ser a alma. Podemos
nos atrever a corrigir a concordância:

2a Todos os mandamentos das crenças envolvem e preenchem a


alma dos fiéis.

Diante de tanto poder, no entanto, uma voz passiva nos ajuda a


exercitar a prudência:

2b A alma dos fiéis costuma ser envolvida e preenchida por todos os


mandamentos das crenças.

Ou assim:

2c A alma dos fiéis envolve-se e preenche-se com todos os manda-


mentos das crenças.

3 Hoje em dia nossa vida diária está muito agitada; isto geram neu-
róticos, loucos e toda a espécie de doentes.

Esta frase mostra que os pronomes como isto não são levados a
sério como sujeito de frase ou, pelo menos, não são páreo para três
substantivos coordenados que tratam de seres tão peculiares. Talvez um

593
gramática e estilo

substantivo como tópico e núcleo do sujeito tenha mais sucesso no con-


trole da concordância do que aquele pronome; a frase vai ficar melhor
também sem a redundância daquele hoje em dia, o mais comum de todos
os lugares-comuns:

3a A agitação de nossa vida diária gera neuróticos, loucos e toda a


espécie de doentes.

4 Não me é clara a lembrança do que aconteciam nessas aulas, mas


desde sempre senti a angústia do apreender.

Como não há um sujeito para o verbo acontecer, quem acha que


fazer concordância é obrigatório aproveita a marca que se apresentar, no
caso, nessas aulas, e lá está o complemento no plural. Aquela constru-
ção “erudita” não me é clara e a expressão angústia do apreender são
reveladoras da pretensão culta de quem fez a frase, e a concordância no
plural sempre vai soar mais chique.

4a Não me é clara a lembrança do que acontecia nessas aulas, mas


desde sempre senti a angústia do apreender.

5 Mais que ir à escola para conhecer coisas novas, o que está


em jogo é bem aquilo que nossos pais preconizavam, e que nos
chegavam aos ouvidos também sob a forma de promessa a ser
cumprida a longo prazo, mas, mesmo assim, dada como certa, de
que a escola é o único meio capaz de nos livrar de nossa trágica
condição enquanto brasileiros que somos, subdesenvolvidos que
somos.

São muitas as marcas de plural que cercam chegavam: nossos pais


preconizavam, à esquerda e aos ouvidos, à direita. Em contrapartida e em
acréscimo, como sujeito está aquilo que, que, tal como isto na frase 3 e
algo na frase 1, não tem vocação para sujeito. Além disso, tem o plural
do pronome pessoal nos, que não é necessariamente reconhecido como

594
gramática e estilo

complemento. O paralelismo criado por e que dá a sua contribuição.


Além disso, a pretensão de dar conta de tanta coisa entre uma maiúscula
inicial e um ponto-final também não ajuda.

5a Mais que ir à escola para conhecer coisas novas, o que está


em jogo é bem aquilo que nossos pais preconizavam, e que nos
chegava aos ouvidos também sob a forma de promessa a ser
cumprida a longo prazo, mas, mesmo assim, dada como certa, de
que a escola é o único meio capaz de nos livrar de nossa trágica
condição enquanto brasileiros que somos, subdesenvolvidos que
somos.

Exercício 65

Proponha soluções para estes problemas.


1. Não foi preciso, no entanto, abandonar a gramática. Pelo contrário,
assumir que ela continha falhas fez com que a cada conceito trabalhado
suscitassem debates e exemplos que não condiziam com o que estava
sendo dito.
2. Porém, um fato ocorrido em novembro do ano passado me aju-
daram a refletir e superar estas características pessimistas e derrotistas
minhas.
3. Mas, enfim, com um mínimo de condições psíquicas para dar
conta da cena, sento o dedo na buzina com uma fúria que, se bem cana-
lizadas, poderiam escrever uns cinco textos.
4. O contato com os professores e veteranos do seu curso trazem
importantes informações ao aluno.
5. A descoberta de novas substâncias já permitem duas alternativas
de trabalho.
6. A rapidíssima evolução da técnica levam a espantosas desco-
bertas.

595
gramática e estilo

7. Esta exposição desmedida que sofrem nossas crianças se exte-


riorizam em suas brincadeiras e atitudes.
8. Se ele não conseguir ser aprovado, sua autoestima ficará seria-
mente abalada, podendo, assim, conduzi-los a graves conflitos pessoais.

5.3.2.4 Sujeito posposto

Partindo da constatação de que são muitos os casos de problema de


concordância verbal em frases com sujeito posposto e da constatação da
NGPB (p. 413) de que sujeito anteposto favorece a concordância e sujeito
posposto desfavorece (CASTILHO, 2010, p. 413), é o caso de caracterizar
a ocorrência da ordem verbo-sujeito (VS). Isto é o que lemos na NGPB:

Sintetizando os achados desses autores (os que estudaram


a posposição do sujeito), a ordem VS é favorecida pelo
sintagma nominal (1) informacionalmente novo, textual-
mente mencionado pela primeira vez, (2) semanticamente
específico e não agentivo, (3) selecionado pelo verbo
monoargumental, (4) cujo Complementador (= sintagma
adjetival, sintagma preposicional e sentenças relativas)
figure à direita do núcleo nominal, (5) foneticamente
“pesado”, isto é, que contenha mais de sete sílabas (CAS-
TILHO, 2010, p. 292).

Atentando para a circunstância de que são constatações que se


referem à língua falada, vamos examinar estas frases:

1 As aulas terminaram, e começou as férias.

O sujeito da primeira oração – as aulas – vem antes do verbo, o


que favorece a concordância, e o sujeito da segunda – as férias – vem
depois do verbo, o que desfavorece a concordância. Aqui está o caso
que tipifica a relação entre a ordem sujeito-predicado e a concordân-

596
gramática e estilo

cia: sujeito no plural em posição de tópico pode levar o verbo para o


plural, e o verbo em posição de tópico pode ficar no singular apesar
de um subsequente sujeito no plural. Na construção paralela dessas
duas orações, o enunciador obedece ao seguinte protocolo: vou falar
de uma coisa que terminou – as aulas –, que é o tema da primeira
oração, e de uma outra que começou, tema da segunda, e aí estão os
tópicos. Segue-se o que vai ser dito a respeito de cada tema nelas to-
picalizado, isto é, o rema de cada uma: terminaram na primeira e, na
segunda, as férias, que é um sintagma nominal informacionalmente
novo, semanticamente específico e não agentivo e selecionado pelo
verbo monoargumental começou.
Além da posposição, convém considerar que, neste específico caso,
as férias, nesta forma plural, designa, mesmo assim, uma entidade sin-
gular como mês, semana, quinzena, dia. Há algum ganho para o leitor
se a concordância for corrigida?

1a As aulas terminaram, e começaram as férias.

Talvez para o autor haja algum ganho em não ter um erro de con-
cordância indigitado e punido com um desconto na nota.

2 Pode existir discos voadores, mas muitos testemunhos já houveram


que podemos considerar verdadeiros absurdos.

Aparecem dois verbos apresentacionais54 – existir e haver – com


seus respectivos monoargumentos – discos voadores e testemunhos. Na
primeira oração, a ordem VS desfavorece a concordância; na segunda,
a ordem SV favorece a concordância e também, segundo a tradição
gramatical do português (TGP), o erro de concordância, já que o verbo
haver como verbo principal é por ela, a TGP, considerado impessoal.
54 Lemos em Ilari e Basso (2014, p. 92): “os verbos apresentacionais cumprem a importante
tarefa de introduzir no discurso novos referentes”, que serão retomados na sequência do mesmo
discurso.

597
gramática e estilo

Podemos corrigir para que não riam de quem não decorou a regra que
diz que haver é impessoal

2a Podem existir discos voadores, mas muitos testemunhos já houve


que podemos considerar verdadeiros absurdos.

Na verdade, é muito mais provável que houveram apareça justa-


mente porque da escola tenha ficado um vago e difuso terror a respeito
da concordância ou da falta de concordância de haver.

3 Dois meses depois do crime, os investigadores ainda não haviam des-


coberto nada; acreditam, no entanto, que podem haver dois cúmplices.

Há duas ocorrências de haver: haviam descoberto, em que haver é


auxiliar, e podem haver, em que haver é principal. A TGP diz que a im-
pessoalidade de haver contamina seus auxiliares e que, em contrapartida,
haver não é impessoal como auxiliar. Então, é assim:

3a Dois meses depois do crime, os investigadores ainda não ha-


viam descoberto nada; acreditam, no entanto, que pode haver dois
cúmplices.

4 Sobrava-me apenas a noite, feriados e fins de semana para que


pudesse estudar para o concurso a ser prestado, as provas do colégio
e o curso de inglês.

A lista do que sobrava compõe o sujeito posposto ao verbo. Nestes


casos de sujeito composto, o verbo no plural alerta o leitor sobre a lista
que vem. O leitor até pode gostar de ser avisado, mas o mais provável é
que nem repare na concordância em nenhuma das duas versões.

4a Sobravam-me apenas a noite, feriados e fins de semana para que


pudesse estudar para o concurso a ser prestado, as provas do colégio
e o curso de inglês.

598
gramática e estilo

5 Nesse momento pergunta-se: de que adianta o avanço tecnológico,


de que adianta as pesquisas na medicina, de que adianta o progresso
se depois dos 60 anos só nos resta os bancos de praça, a televisão
e os asilos?

A primeira oração com adianta, no singular, tem um sujeito posposto


no singular – o avanço tecnológico –, o que ajuda a levar esse mesmo
verbo para o singular na segunda oração, mesmo com o sujeito posposto
no plural – as pesquisas na medicina –; na terceira oração coordenada,
o sujeito volta ao singular: o progresso.
A oração condicional que segue tem o verbo resta anteposto no
singular a um sujeito posposto com três sintagmas coordenados, dois
deles com marcas de plural. Levando o verbo para o singular, aqui estão
dois traços: (1) anteposição do verbo, e (2) dois paralelismos: a forma
singular dos verbos e a repetição de um deles: pergunta-se, adianta,
adianta, adianta, resta. Conformar tudo isso aos comandos da TGP exige
muita concentração, ou seja, é um bom exercício de controle mental, mas,
repitamos, o mais provável é que o leitor nem note.

5a Nesse momento pergunta-se: de que adianta o avanço tecnoló-


gico, de que adiantam as pesquisas na medicina, de que adianta o
progresso se depois dos 60 anos só nos restam os bancos de praça,
a televisão e os asilos?

6 Foi um alívio quando avistamos o pai das garotas, pois vimos que,
apesar de tudo, ainda existe seres humanos sensatos no nosso mundo.

O verbo apresentacional monoargumental, no caso, existir, com


sujeito posposto não favorece a concordância. Assim quereria a TGP:

6a Foi um alívio quando avistamos o pai das garotas, pois vimos


que, apesar de tudo, ainda existem seres humanos sensatos no nosso
mundo.

599
gramática e estilo

A respeito destes muitos casos de problemas de concordância,


encontramos na GPPB a seguinte proposta de regra: “na ordem VS o
elemento S deixa de ser analisado como sujeito e, por ocupar o lugar
sintático de objeto, não concorda com o verbo” (BAGNO, 2011, p. 655).
Podemos combinar isso?

Exercício 66

Que fazer, então, com estes casos?


1. Aí ela se deixa envolver pelo filme, e sua mágoa e sua decepção
se dilui e surge novamente em seu coração a confiança e a esperança
nas pessoas.
2. Como de habitual faltava umas duas semanas para a prova quando
ela começou a estudar.
3. Pessoalmente, sei que a cada dia surge-me oportunidades de ser justa.
4. Da falta de um bom ensino resulta desemprego, marginalização
e miséria.
5. Nas terras altas não cresce nem o trigo nem o arroz.
6. Quando aqui cheguei, esquálido e quase sem forças, salvou-me
minha formação de agrônomo – fundamental na luta pela reversão do
aniquilamento da vida na terra – e o que sobrou de meu porte de atleta
desenvolvido ao longo de minha juventude em academias.
7. Me encantava o mundo, as pessoas, a vida.
8. Por isso mesmo, me surpreendeu o olhar contente e as palavras
de incentivo de meu pai e de minha irmã na volta da escola no dia em
que contei que aprendera o a-e-i-o-u.
9. Afinal, já se ouviu nestes corredores muitas queixas neste sentido
10. Chegou finalmente, depois de tanta espera ansiosa, as novas
mesas da sala de aula.

600
gramática e estilo

5.3.2.5 Infinitivo

Podemos começar a tratar da flexão do infinitivo pelo exame destes


três casos, em que o infinitivo faz (ou não faz) parte de uma locução
verbal:

1 Que podemos fazer? Continuarmos em nossa campanha de coleta


de fundos? Eles dizem que devemos, depois deste fracasso, desistir-
mos de tudo.

Continuarmos está flexionado por causa do sujeito expresso na frase


anterior – podemos fazer –; na frase seguinte, os verbos componentes
da locução verbal devemos continuarmos estão separados pela inserção
de depois deste fracasso. Ao juntá-los, percebemos que não é o caso de
flexionar o infinitivo, já que a flexão está no verbo auxiliar.

1a Que podemos fazer? Continuarmos em nossa campanha de coleta


de fundos? Eles dizem que devemos, depois deste fracasso, desistir
de tudo.

A tentação de flexionar o verbo principal ocorre pelo mesmo motivo


que provocou a flexão em continuarmos na primeira frase: a explicitação
do sujeito na frase anterior em podemos fazer, nesta frase, se dá no au-
xiliar devemos. Sem separar auxiliar e principal, a tentação de flexionar
o principal desaparece:

1b Que podemos fazer? Continuarmos em nossa campanha de coleta


de fundos? Eles dizem que, depois deste fracasso, devemos desistir
de tudo.

Não se trata, no entanto, de uma recomendação genérica contra a


separação entre auxiliar ou principal na versão final da frase, mas de um
modo de verificar se é o caso de flexionar ou não o infinitivo.

601
gramática e estilo

2 Eles não podem entrar em edifícios ditos dos brancos ou, se entrar,
tem de ser pela porta dos fundos.

Temos a locução verbal podem entrar, o que deixa claro que o


sujeito é plural; há uma coordenação com ou que indica para entrar o
mesmo sujeito do verbo anterior. Neste caso, não há locução verbal, e o
verbo entrar pode flexionar para deixar claro que o sujeito é o mesmo
da oração anterior:

2a Eles não podem entrar em edifícios ditos dos brancos ou, se en-
trarem, tem de ser pela porta dos fundos.

3 Nunca devemos desanimar e sempre seguirmos em frente de cabeça


erguida.

Não há paralelismo entre os elementos coordenados, a menos que se


considere que há uma elipse do verbo auxiliar no segundo termo; nesse
caso, não se flexiona seguirmos:

3a Nunca devemos desanimar e sempre (devemos) seguir em frente


de cabeça erguida.

A flexão no verbo auxiliar é uma prática comum a todas as locuções


verbais; já a flexão do infinitivo é, como podemos ler na GPPB (p.727),
“uma das questões mais controvertidas da sintaxe portuguesa. Nume-
rosas têm sido as regras propostas pelos gramáticos para orientar com
precisão o uso seletivo das duas formas. Quase todas, porém, submetidas
a um exame mais acurado, revelam-se insuficiente ou irreais”. Não se
trata, portanto, de regras mas de “tendências observadas no emprego do
infinitivo flexionado” (BAGNO, 2011, p. 727).

4 Para discutir a avaliação das redações, os alunos eram reunidos


em pequenos grupos para ler as redações e discutir essas avaliações;

602
gramática e estilo

desse trabalho deveria resultar um relatório da discussão e a seleção


de uma das redações do grupo para ser lida e discutida em aula.

Há um problema comum de concordância por causa do sujeito com-


posto e posposto; é necessário fazer a concordância no verbo auxiliar:

4a Para discutir a avaliação das redações, os alunos eram reunidos


em pequenos grupos para ler as redações e discutir essas avaliações;
desse trabalho deveriam resultar um relatório da discussão e a sele-
ção de uma das redações do grupo para ser lida e discutida em aula.

Examinemos também estas frases em que o problema afeta a flexão


do verbo no infinitivo:

5 Nunca vi cair por terra tantos anseios.

Temos outro sujeito posposto no plural colado no verbo, mas, neste


caso, a flexão no plural fica no infinitivo porque não há locução verbal,
já que cair por terra é o complemento de vi.

5a Nunca vi caírem por terra tantos anseios.

6 Desta forma, o que todas essas mulheres, em contextos históricos,


têm em comum é o fato de que todas elas, além de ter um corpo bo-
nito e usarem roupa diminuta, causaram furor tanto entre os homens
quanto entre as mulheres.

Há um sujeito expresso pelo nome – essas mulheres – e pelo pro-


nome que o retoma, mais perto ainda do infinitivo: elas. Curiosamente,
o infinitivo mais próximo do sujeito não está flexionado – ter – mas o
seguinte – usarem – está.

6a Desta forma, o que todas essas mulheres, em contextos históricos,


têm em comum é o fato de que todas elas, além de terem um corpo

603
gramática e estilo

bonito e usarem roupa diminuta, causaram furor tanto entre os ho-


mens quanto entre as mulheres.

7 O telefone celular foi inventado há muito tempo. No passado, ter


o aparelho era privilégio apenas de algumas pessoas, e a funciona-
lidade do objeto restringia-se ao ato de fazer ligações. Ou seja, com
ele, as pessoas podiam comunicar-se de uma forma mais livre, pois
não necessitavam mais estar ligadas a fios e cabos telefônicos para
falar umas com as outras.

O sujeito – as pessoas –, além de ser inespecífico, não está tão pró-


ximo de falar nem é retomado por algum pronome. Será que se nota a
falta da concordância? Quem gosta de se acomodar à regra pode revisar:

7a O telefone celular foi inventado há muito tempo. No passado, ter


o aparelho era privilégio apenas de algumas pessoas, e a funciona-
lidade do objeto restringia-se ao ato de fazer ligações. Ou seja, com
ele, as pessoas podiam comunicar-se de uma forma mais livre, pois
não necessitavam mais estar ligadas a fios e cabos telefônicos para
falarem umas com as outras.

Na verdade, quem gosta mesmo de se acomodar à regra pode exa-


gerar, flexionando aquele verbo auxiliar – estar – também:

7b O telefone celular foi inventado há muito tempo. No passado, ter


o aparelho era privilégio apenas de algumas pessoas, e a funciona-
lidade do objeto restringia-se ao ato de fazer ligações. Ou seja, com
ele, as pessoas podiam comunicar-se de uma forma mais livre, pois
não necessitavam mais estar ligadas a fios e cabos telefônicos para
falarem umas com as outras.

8 Trazia gravuras, pintadas à mão, de animais que eu jamais ima-


ginara existir.

604
gramática e estilo

O sujeito está explícito e próximo, mas não há locução verbal;


trata-se, pois, de flexionar o infinitivo em função do complemento de
imaginara:

8a Trazia gravuras, pintadas à mão, de animais que eu jamais ima-


ginara existirem.

Nestes dois casos seguintes, é possível que as formas do singular


de falar e existir, que designam condições básicas, fundamentais e com-
partilhadas pela espécie humana, sejam aceitas nesse sentido universal.
9 Se todos nós tivéssemos as mesmas condições, não teria por que
sentir inveja dos outros.

A flexão de sentir vai depender do sentido que atribuirmos a todos


nós: se todos nós for todo mundo, o verbo até que fica bem no singular,
tal como nos dois casos anteriores; se todos nós for um grupo distinto de
todos eles, convém flexionar. O que ficaria estranho seria o indeterminado
de terceira pessoa do plural: sentirem.

9a Se todos nós tivéssemos as mesmas condições, não teria por que


sentirmos inveja dos outros.

10 Outros parceiros, como o Serviço Nacional de Aprendizagem


Industrial (Senai), o Serviço Social da Indústria (Sesi) e o Serviço
Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), promovem cursos
profissionalizantes, que ajudam os refugiados a tentar uma vaga no
mercado de trabalho.

É possível que a preposição a antes de tentar favoreça a flexão do


infinitivo. A GPPB constata, a partir de dados do NURC, o seguinte:
“um fator que favorece quase categoricamente o emprego do infinitivo
flexionado é a presença da preposição para introduzindo a sentença
reduzida” (BAGNO, 2011, p. 728).

605
gramática e estilo

10a Outros parceiros, como o Serviço Nacional de Aprendizagem


Industrial (Senai), o Serviço Social da Indústria (Sesi) e o Serviço
Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), promovem cursos
profissionalizantes, que ajudam os refugiados a tentarem uma vaga
no mercado de trabalho

11 Ao prestarem atenção mais na fala dele do que no que ele estava


dizendo com a finalidade de desviar a atenção do que ele dizia para
o modo como ele falava, estavam fazendo uso daquele histórico
preconceito linguístico para desqualificarem o que ele dizia e, prin-
cipalmente, o que ele poderia vir a dizer.

A flexão do infinitivo – desviar/desviarem – é crucial para o en-


tendimento da frase: desviar se refere a ele (ele estava dizendo com a
finalidade de desviar a atenção); desviarem diz que eles é que perseguiam
tal finalidade (prestarem atenção mais na fala dele do que no que ele
estava dizendo com a finalidade de desviarem a atenção).

11a Ao prestarem atenção mais na fala dele do que no que ele estava
dizendo com a finalidade de desviarem a atenção do que ele dizia
para o modo como ele falava, estavam fazendo uso daquele histó-
rico preconceito linguístico para desqualificarem o que ele dizia e,
principalmente, o que ele poderia vir a dizer.

12 Mas será que algumas regras não poderiam serem transgredidas?

Poderiam é o verbo auxiliar da voz passiva ser transgredidas; a


flexão sempre se dá no primeiro constituinte do sintagma; logo não cabe
flexionar o segundo auxiliar:

12a Mas será que algumas regras não poderiam ser transgredidas?

606
gramática e estilo

Exercício 67

O que fazer com a flexão do infinitivo?


1. A população não deve pensar ser comum os escândalos.
2. Devem, ainda, existirem milhares de empresas que estabelecem
seus próprios códigos éticos, para que sejam respeitados e seguidos,
todavia existem nelas grandes falcatruas por parte de funcionários que
tentam se sobressaírem sobre os demais, ou de mais dinheiro ganhar.
3. Estamos fazendo algo que não é esperado e podemos, com isso,
nos prejudicarmos.
4. Como seres pensantes, racionais, maximizamos ainda mais essas
influências, principalmente por ter o meio mais complexo de tomada de
decisão de todo o reino animal.
5. Frutas e verduras não fazem parte do cardápio constante de mora-
dores acreanos, pelo simples fato de ser extremamente caro e também pelo
fato de eles terem uma alimentação muito diferente da nossa aqui do sul.
6. Ficava maravilhada ao ver brotar palavras e histórias daqueles
desenhos e daquelas letras.
7. Quando a mãe pensava ter acabado as surpresas.
8. Os olhares ainda vagavam pelo ambiente, as horas passavam, e
o alvo parecia não surgir. Será que a dona daqueles olhos cor de mel e
lábios carnudos não encontraria uma mira para, pelo menos, brincar, e,
de repente, da troca de olhares, uma paquera surgir e uns beijinhos rolar?
9. Gastam rios de dinheiro para estar aí todos os dias na sua casa
lhe ditando regras, que você nem percebe.
10. Com a evolução das sociedades em função da informática,
foram necessários criarem-se vários novos campos de atividades bem
mais complexas, e o acesso a estas ditas profissões ficaram restritas a um
pequeno grupo de privilegiados em detrimento da maioria da população.

607
gramática e estilo

5.3.2.6 Voz passiva e predicativos

Na NGPB, lemos que as regras de concordância nominal da língua


que falamos decorrem da combinação de três variáveis: “a classe gramati-
cal, a posição dessa classe no interior do sintagma nominal e a ocorrência
eventual de marcas precedentes de plural” (CASTILHO, 2010, p. 461).
Podemos acrescentar também a presença de alguns traços semelhantes
aos que regem a concordância verbal. Vamos examinar estas frases:

1 Sei que ainda tenho muito que aprender, ler, me reciclar, porque
até para mim como aluna tem sido meio complicado acompanhar
algumas coisas que lá no meu tempo de graduação não foi tratado.

Temos, entre o núcleo do sujeito – coisas – e o verbo em voz


passiva – não foi tratado –, o adjunto adverbial da oração adjetiva – lá
no meu tempo de graduação ­–, que tem como núcleo o substantivo tempo
(que tem um referente muito mais específico do que coisas) no masculino
singular. Provavelmente, é isso que leva o verbo em voz passiva para o
masculino singular: não foi tratado.

1a Sei que ainda tenho muito que aprender, ler, me reciclar, porque
até para mim como aluna tem sido meio complicado acompanhar al-
gumas coisas que lá no meu tempo de graduação não foram tratadas.

É possível que, se aquele adjunto adverbial tivesse sido posto


entre vírgulas, já que está colocado entre a conjunção que abre a oração
e a oração, a concordância ficasse mais em evidência:

1b Sei que ainda tenho muito que aprender, ler, me reciclar, porque até
para mim como aluna tem sido meio complicado acompanhar algumas
coisas que, lá no meu tempo de graduação, não foram tratadas.

2 Todo o planeta Terra está preso numa espécie de vandalismo em


massa, ou seja, está sendo traída pelas mãos do homem.

608
gramática e estilo

Terra é um referente muito mais específico do que o núcleo do su-


jeito – planeta –; por isso, só consegue controlar a concordância dentro
da oração em que está: ...o planeta Terra está preso... Não controla, no
entanto, a concordância na oração seguinte, onde a especificidade de
Terra se sobrepõe: ...está sendo traída... Quem quer ficar fiel ao núcleo
do sujeito faz a concordância.

2a Todo o planeta Terra está preso numa espécie de vandalismo em


massa, ou seja, está sendo traído pelas mãos do homem.

Ou, então, pensando na concisão, qual seria exatamente a necessi-


dade de colocar a Terra entre os outros planetas para tratar disso?

2b Toda a Terra está presa numa espécie de vandalismo em massa,


ou seja, está sendo traída pelas mãos do homem.

3 Após concluir o currículo não pude mais estudar por motivos pes-
soais ficando seis anos afastados da escola.

O sujeito da frase, o de não pude mais estudar, não está materiali-


zado nem por nome nem por pronome. Mais perto de afastados estão os
plurais em motivos pessoais e em seis anos, que, provavelmente, induzem
o particípio a esse plural:

3a Após concluir o currículo não pude mais estudar por motivos


pessoais ficando seis anos afastada (afastado) da escola.

4 Ainda tenho guardada na mente todos os pormenores daquele


surpreendente dia.

Os pormenores está posposto à locução verbal que compõe com


ainda o predicado: tenho guardada. Provavelmente o feminino foi in-
duzido por mente, que é precisamente o lugar onde tais pormenores são
guardados.

609
gramática e estilo

4a Ainda tenho guardados na mente todos os pormenores daquele


surpreendente dia.

5 Mas, de repente, é graças a essas repetições que hoje tenho bem


claro a grafia das palavras.

O sujeito – a grafia das palavras – está posposto. Para fazer a con-


cordância, o autor da frase teria de reler-se com atenção; antes disso, ele
usa a forma não marcada do masculino singular. Conforme a tradição
esta é a forma adequada:

5a Mas, de repente, é graças a essas repetições que hoje tenho bem


clara a grafia das palavras.

6 Mariana continuou saindo com Robson, mas achava estranho


alguns hábitos que ele tinha.

O predicativo – estranho – ignora, desta vez, o plural do sujeito


posposto – alguns hábitos – e permanece na forma não marcada. Quem
quiser marcar, faça assim:

6a Mariana continuou saindo com Robson, mas achava estranhos


alguns hábitos que ele tinha.

7 Está subentendido neste documento a necessidade de apresentar


carteira de identidade para ingressar no estádio.

Mais uma vez, a posposição do sujeito leva o predicativo para a


forma não marcada do masculino singular, em vez da concordância com
o gênero do substantivo núcleo do predicado: necessidade.

7a Está subentendida neste documento a necessidade de apresentar


carteira de identidade para ingressar no estádio.

610
gramática e estilo

8 Queremos bem clara nossa opinião e nossos argumentos deixando


escrito, sem possibilidade de outras interpretações, as palavras que
os expressam.

Há dois problemas: (1) o sujeito composto posposto – nossa opi-


nião e nossos argumentos –, que vem depois do predicativo clara; (2) a
distância entre o sujeito posposto – as palavras que os expressam – e o
predicativo – escrito. Com relação a (1) até mesmo os normativos, como
Evanildo Bechara (2015, p. 566)55, na Moderna gramática portuguesa
(MGP), aliviam: “pode dar-se a concordância com o núcleo mais próximo,
principalmente se o sujeito vem depois do verbo”. É o caso: clara – nossa
opinião. Em (2) não há sujeito composto; o que há é ou a concordância
do predicativo – escrito – com o sujeito que vem depois – as palavras
que os expressam – ou a consideração de que sintagma em posição de
objeto não é sujeito pelo singelo motivo de que já não consegue mais
ser visto como sujeito. Também se pode pensar que a categoria sujeito
composto já não consegue ser vista como plural. Quem escreveu esta
frase, no entanto, bem que atentou para a concordância em bem clara
nossa opinião. Então, revisemos segundo o que parece ser o seu intento.
8a Queremos bem claros nossa opinião e nossos argumentos deixando
escritas, sem possibilidade de outras interpretações, as palavras que
os expressam.

Não, não, não: Bechara está certo. Vamos fazer a concordância com
o núcleo mais próximo já que o sujeito vem depois do verbo:
8b Queremos bem clara nossa opinião e nossos argumentos deixando
escritas, sem possibilidade de outras interpretações, as palavras que
os expressam.

9 O espetáculo celeste era lindo, e inútil seriam as palavras e sons


que tentassem descrevê-lo.
55 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

611
gramática e estilo

Temos mais um sujeito posposto composto com seus componentes


no plural – palavras e sons –, mas nem essas marcas foram suficientes
para sensibilizar o escritor a fazer a concordância do predicativo, que
ficou inútil. E nem precisava de concordância de gênero.

9a O espetáculo celeste era lindo, e inúteis seriam as palavras e sons


que tentassem descrevê-lo.

Exercício 68

Vamos estudar estes casos:


1. Quando qualquer ideia a respeito da execução de um projeto de
um invento começa a ser debatido, junto com ele deverá ser debatido
também o problema do desemprego que vai gerar e a questão dos bene-
fícios de seu uso.
2. Para se fazer isso, é dado ao computador informações que são
transformadas na linguagem que ele entende.
3. Foi improvisado uma cozinha e um pequeno refeitório no andar
de cima. Fato que nos deixou mais preocupadas ainda.
4. Neste emprego nunca lhe foi dado chances de empregar o seu
talento inventivo.
5. Foi muito criticado na tribuna da Câmara a sua fala sobre a reforma
fiscal, todos estão certos de que surgirá novas críticas.
6. Durante as festividades foi entregue pela esposa do Governador
muitos presentes às crianças da Santa Casa.
7. Desde que ingressara naquela companhia, nunca lhe tinha sido
oferecido tantas oportunidades como agora.
8. Chamado a prestar depoimento, o delegado confessou, aborrecido,
que lhe tinha sido entregue, naquela mesma manhã, todos os prisioneiros.

612
gramática e estilo

9. Foi em Cingapura que tinha sido avistado pelos pesquisadores


os navios remanescentes da Esquadra Verde.
10. Existem clubes e colégios em que é proibido a entrada de negros.

5.3.2.7 Voz passiva sintética

Para entender o raciocínio que levou à postulação da existência


de uma voz passiva sintética ou pronominal, comecemos por comparar
estas frases:

1 Chegamos a esta situação porque não se respeitou os regulamentos.

Há um verbo transitivo direto, isto é, que tem um complemento


a ele ligado sem preposição – respeitou –, que, por causa disso, pode
produzir a voz passiva chamada analítica, em que o paciente da ação
vira sujeito: Chegamos a esta situação porque os regulamentos não
foram respeitados.
Aquele que não respeitou – o agente da ação – não é mencio-
nado nesta frase; se fosse, tomaria a forma de uma locução preposi-
cional: por ninguém, por exemplo. Na voz passiva dita sintética ou
pronominal desta frase 1, em que o verbo é topicalizado, o agente,
desconhecido ou irrelevante, é indicado pelo pronome se como in-
determinado. Considerando-se, por esse raciocínio, que a frase está
na voz passiva e que regulamentos é sujeito e está no plural, seria
preciso providenciar a concordância:

1a Chegamos a esta situação porque não se respeitaram os regu-


lamentos.

2 Não se necessita de tantos cuidados médicos quando ocorrem


apenas essas crises passageiras.

613
gramática e estilo

Há um verbo – necessita – transitivo indireto, isto é, que tem um


complemento a ele ligado por uma preposição, no caso de; por causa
disso, a frase não pode ser transformada para voz passiva. Nesse caso, o
se estaria indeterminando o sujeito e não o inexistente agente da passiva.
Sendo o se um pronome da terceira pessoa do singular, é com essa pessoa
que o verbo concorda; não há, portanto, o que mexer na frase.

3 Vive-se melhor em lugares mais próximos à natureza.

Há um verbo intransitivo, isto é, sem complemento algum; logo,


também não há possibilidade de voz passiva. Tal como na frase anterior,
o se indetermina o sujeito em terceira pessoa do singular, e também não
há o que mexer na frase.
Do exame dessas frases, podemos concluir que só podemos falar
em voz passiva sintética tratando de orações cujo verbo seja transitivo
direto, ou seja, tenha a ele ligado um complemento sem a intermediação
de qualquer preposição. É a partir desse princípio que vamos examinar
estas outras frases:

4 A televisão abriu um novo caminho para se atingir as grandes


massas.

O verbo atingir é transitivo direto e pode fazer voz passiva – A


televisão abriu um novo caminho para que as grandes massas sejam
atingidas (pelos meios de comunicação) – em que o sujeito é as grandes
massas. Na voz passiva pronominal correspondente, o verbo, no tópico
da oração, concordaria com o sujeito.

4a A televisão abriu um novo caminho para se atingirem as grandes


massas.

614
gramática e estilo

Podemos, no entanto, ponderar que A televisão abriu um novo


caminho para se atingir as grandes massas fica bem melhor porque a
frase indica com toda a clareza que a televisão, que é singular, é o que
atinge, e as grandes massas só podem ser plural e atingidas.

5 Devido ao súbito corte de verbas, introduziu-se várias alterações nos


novos projetos a serem aprovados.

O verbo introduzir tem objeto direto; consequentemente, produz


voz passiva: Devido ao súbito corte de verbas, várias alterações foram
introduzidas nos novos projetos a serem aprovados. Na voz passiva
pronominal correspondente, em que se topicaliza o verbo, seria preciso
fazer a concordância com esse sujeito no plural:

5a Devido ao súbito corte de verbas, introduziram-se várias alterações


nos novos projetos a serem aprovados.

Neste caso, parece que o plural – introduziram-se – fica bem porque


a frase não diz quem introduziu tais alterações, que, no plural, combi-
nam com os muitos outros plurais da frase: verbas... várias... nos novos
projetos... serem aprovados.

6 Faz muito tempo que todos vivem dizendo que se deve comprar tais
mantimentos, mas ninguém toma providências concretas.

A locução verbal deve comprar tem sujeito – todos – e objeto direto


– mais mantimentos –; a oração pode, portanto, ir para a voz passiva: Faz
muito tempo que todos vivem dizendo que mais mantimentos devem ser
comprados, mas ninguém toma providências concretas. A voz passiva
pronominal correspondente precisaria fazer a concordância:

6a Faz muito tempo que todos vivem dizendo que se devem comprar
mais mantimentos, mas ninguém toma providências concretas.

615
gramática e estilo

Vamos combinar que se devem comprar mais mantimentos é uma


coisa muito estranha, que dificilmente sairia da nossa boca, mesmo que
a gente estivesse lendo isso em voz alta. Podemos combinar também
que toda essa história de voz passiva sintética é muito estranha. Já todos
vivem dizendo que se deve comprar mais mantimentos até sairia da nossa
boca, mas quem foi que disse que a gente só escreve o que diria? Tem
muita gente que escolhe escrever apenas o que jamais diria.

7 Uma das vantagens de se estudar na faculdade é que se depende


menos de favores para conseguir um bom emprego.

O verbo depende liga-se ao seu complemento pela preposição de;


não pode, portanto, fazer voz passiva. O pronome se, nesse caso, refere-se
ao sujeito, esse ninguém ou esse qualquer um que a frase não menciona
e que está, por convenção, no singular; por isso, não há o que mexer na
frase.

8 Com abertura e diálogo, resolve-se, quase sempre, muitos proble-


mas que aparentemente são insolúveis.

O verbo resolve tem objeto direto, o que permite voz passiva, em


que esse objeto direto vira sujeito: Muitos problemas que aparentemente
são insolúveis são, quase sempre, resolvidos com abertura e diálogo.
Estando no plural o sujeito da passiva, seria preciso fazer a concordância
do verbo:

8a Com abertura e diálogo, resolvem-se, quase sempre, muitos pro-


blemas que aparentemente são insolúveis.

Assim como está, com o verbo anteposto, até que fica muito bem,
principalmente porque aquilo que vai ser resolvido fica na posição em que
ficaria o que vai ser resolvido mesmo na ordem direta; claro que, falando,
qualquer um de nós diria, nessa ordem ou em outra qualquer, resolve-se.

616
gramática e estilo

9 Ouviam-se, além dos sons naturais do campo, a algazarra de pes-


soas que brincavam ao sol e na água.

O que era ouvido – forma da passiva – era a algazarra das pessoas


que brincavam, ou seja, o núcleo do sujeito da passiva – algazarra – está
no singular. O plural aqui pode decorrer da percepção de um sujeito
composto: os sons naturais do campo e a algazarra de pessoas; nesse
caso, além de seria considerada uma conjunção e não uma preposição.
Além disso, há muitas marcas de plural na frase, tem também a semântica
múltipla de algazarra e a ultracorreção causada pela dificuldade que
todos nós temos de reconhecer essa construção como uma voz passiva.
É mais prudente retificar essa concordância, digamos assim, audaciosa:

9a Ouvia-se, além dos sons naturais do campo, a algazarra de pessoas


que brincavam ao sol e na água.

Se a ordem dos elementos da frase fosse esta – Além dos sons na-
turais do campo, ouvia-se a algazarra de pessoas que brincavam ao sol
e na água –, alguém cogitaria o plural?

10 Era meio-dia, e no céu anunciava-se as primeiras trovoadas de


verão.

O plural fica melhor até porque a gente pode pensar numa forma
reflexiva, em que as primeiras trovoadas de verão é o sujeito, que anun-
cia, e aquilo que é anunciado é objeto direto. Compõe-se aqui um belo
quadro: as primeiras chuvas de verão chegam anunciando-se a si mesmas.

10a Era meio-dia, e no céu anunciavam-se as primeiras trovoadas


de verão.

11 Parece que nossos alunos têm que copiar, ler e ouvir a professora
falando para prestarem atenção e manter o silêncio dentro da sala

617
gramática e estilo

de aula; só assim parece que as coisas funcionam e é levado a sérios


os estudos.

Além do paralelismo que poderia ser mantido com o plural em man-


terem (prestarem e manterem), se o segundo termo da coordenação que
há no fim da frase fosse para a voz passiva, a relação sujeito-predicado
ficaria mais clara, principalmente se o sujeito for anteposto:
11a Parece que nossos alunos têm que copiar, ler e ouvir a professora
falando para prestarem atenção e manterem o silêncio dentro da
sala de aula; só assim parece que as coisas funcionam, e os estudos
são levados a sério.

Até mesmo se o sujeito não for anteposto, essa relação sujeito-


-predicado ficaria mais evidente:
11b Parece que nossos alunos têm que copiar, ler e ouvir a professora
falando para prestarem atenção e manterem o silêncio dentro da sala
de aula; só assim parece que as coisas funcionam, e são levados a
sério os estudos.

O plural nesses verbos todos, especialmente a concordância da


locução verbal – devem comprar – da frase 6, causa estranhamento por
causa da dificuldade que temos de reconhecer essa construção como uma
voz passiva. Maior dificuldade temos ainda para fazer a distinção entre
o pronome se que substitui o sujeito de uma voz passiva (como em 1, 4,
5, 6 e 9) e o pronome se que assinala um sujeito indeterminado (como
em 4). É na frase 7 que parece estar a menor dificuldade de aceitar o
plural, provavelmente pelo motivo já exposto. A dificultar ainda mais a
percepção geral dessa concordância, temos ainda a anteposição do verbo
ao que vira sujeito numa voz passiva pronominal e ao que continua objeto
numa construção de sujeito indeterminado.
Na raiz de toda essa dificuldade está, segundo a NGPB, a perda
generalizada do traço de reflexividade dos pronomes me, te, se, que

618
gramática e estilo

produz, na língua que falamos, frases como Eu silembrei, A gente sivê


por aí, Eu conformei com a decisão dele e outras, em que o se funciona
como o reflexivo de todas as pessoas ou é omitido, e a reflexividade é
expressa sem pronome algum.
Podemos ler na NGPB:

A perda de traços do pronome se, que culminará com


seu desaparecimento (= grau final da gramaticalização),
trouxe várias alterações na estrutura da passiva pronomi-
nal: (i) seu sentido passivo ficou comprometido, surgindo
em seu lugar o sentido de indeterminação do sujeito; (ii)
desapareceu a concordância do verbo com seu sujeito
passivo, agora reanalisado como objeto direto: [...] Nesta
situação se encontra o PB, em que a interpretação passiva
(e consequente concordância do verbo com o sintagma
nominal no plural) se mantém apenas no estilo formal
(CASTILHO, 2010, p. 481).

Marta Scherre (2005)56, recorrendo a Said Ali, fala em falsa concor-


dância; Antenor Nascentes (1969) menciona a concordância por atração;
e, segundo Mattoso Camara (1977), o padrão espontâneo toma o pronome
se sempre como sujeito.
Então, aí está: quem quiser e quem não quiser mas se sentir
obrigado a escrever em estilo formal – seja lá o que isso venha a
ser – vai ter de fazer a concordância da voz passiva sintética. Nesse
caso, vai ter de obedecer as regras que a TGP prescreve para estas
construções com o pronome se, que ora indetermina o sujeito e ora
apassiva a oração. Vai precisar prestar muita atenção na regência
do verbo para fazer a concordância nos casos de voz passiva sin-
tética, que envolvem verbos que teriam objeto direto na frase ativa
correspondente e para não fazer a concordância em frases em que o
56 SCHERRE, Maria Marta Pereira. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia
e preconceito. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

619
gramática e estilo

verbo não teria objeto direto na frase de voz ativa correspondente:


os intransitivos e os transitivos indiretos.
Ou não fazer nada disso, porque, se todo mundo se recusar a fazer
essa concordância mesmo no estilo formal, o estilo formal vai deixar
de contar com essa característica, e a voz passiva sintética vai mais
rapidamente para o museu da língua portuguesa, como se prevê na
NGPB: “todos nós já sofremos com a celeuma do problema do pronome
se apassivador (e da voz passiva pronominal) em nossas gramáticas.
Afinal, o verbo concorda ou não concorda com o substantivo no plural
[...]?” (CASTILHO, 2010, p. 481). Esses sofrimentos gramaticais estão
chegando ao fim.

Exercício 69

Estamos tratando do pronome se.


1. Os beduínos pesam as futuras noivas e, para que o casamento
possa se realizar, devem dar ao pai da escolhida o seu peso em ouro.
2. Sempre achei que não se pode concordar com todas as afirmativas
de uma mesma pessoa, por mais culta que ela seja.
3. Podemos dizer que apenas entre os jovens é que se nota essas
mudanças no modo de pensar e viver.
4. Quando se tenta usar os conhecimentos acumulados, verifica-se
que, afinal de contas, não se aprendeu muitas coisas.
5. Se se admite que todos podem falhar, deve-se admitir nossas
próprias falhas.
6. Confunde-se realidade com fantasia, mas não se mede os riscos
nem as consequências disso felizmente.
7. Divulgaram-se nas três entrevistas que continua ocorrendo pro-
blemas na fronteira; pode até ocorrer choques armados.

620
gramática e estilo

8. Naquela aldeia podemos sobreviver do que plantamos e dos peixes


que, nestas águas, se retira até com as mãos.
9. Neste momento de grave crise mundial é com a sociedade jovem
que se nota estas mudanças no modo de pensar e agir.
10. O velho participa de alguma forma da vida social ativa de sua
cidade: vê-se os velhos nos bares, nos parques, ruas, teatros, enfim, por
toda a parte.

5.3.2.8 Recados da concordância

Examinamos até aqui uma enorme quantidade de casos daquilo que


os professores de Português poderiam considerar erros de concordância
e confrontamos esses casos com o que falamos e cantamos e o que nos
diz a pesquisa linguística a respeito do que se pode observar na língua
que falamos. De passagem, ficamos sabendo que as regras que os gra-
máticos prescreveram e que fundamentam a estigmatização desses casos
como erros não descrevem a língua em que escreveram aqueles que os
gramáticos alardearam que tomavam como referência para a postulação
daquelas regras. Constatamos com isso que as regras de concordância
não pegaram e por qual motivo não pegaram: porque não eram legítimas
regras gramaticais mas instrumentos políticos de interdição do acesso à
língua escrita dos que não tinham meios materiais de se dedicarem ao
estudo de uma língua escrita tornada, por meio desse e de outros seme-
lhantes instrumentos políticos, tão diferente da língua que falavam e,
consequentemente, tão difícil.
Baseados, então, na constatação de que as regras de concordância
da língua portuguesa pelos gramáticos foram, de certa forma, fradulen-
tamente determinadas, podemos combinar que a gente pode querer fazer
ou não a concordância segundo essas regras. Vamos combinar também
que gente pode querer exercitar essa escolha com fundamento. Já vimos
que o mais sólido dos fundamentos é a língua que nós falamos, que não

621
gramática e estilo

é o português prescrito pela TGP mas o português brasileiro, a respeito


do qual já temos informação suficiente à nossa disposição. No que se
refere à concordância, já ficamos sabendo que o princípio decretado pela
TGP – o núcleo do sujeito rege a concordância – é uma postulação, no
mínimo, simplificatória.
Marta Scherre (2005, p. 133) traz a estilística para a discussão:

Uma viagem pelos livros de estilística, por exemplo, nos


permite fazer descobertas interessantes, encobertas de
forma consciente pela tradição normativa e não desvela-
das pelos atuais programas e colunas da mídia brasileira.
Em Estilística da língua portuguesa, Lapa57, pesquisador
português, arrola uma série de casos que, segundo ele, são
erros do ponto de vista da gramática normativa, mas são
fatos a serem explicados pela estilística.

Dentre os exemplos citados por Lapa, de autores clássicos, aqueles


que os gramáticos tomam como ponto de partida exemplar da língua,
está este de Heitor Pinto:
A formosura de Páris e Helena foram causa da destruição de Tróia.

Nessa frase há, certamente, duas formosuras: a de Páris e a de He-


lena; trata-se, segundo Rodrigues Lapa, de concordar as palavras não
segundo a letra mas segundo a ideia. Ele dá outro exemplo, este de Jorge
Ferreira de Vasconcelos:

Só a graça desses olhos venceram os brutos animais.

Neste caso, se dá a concordância com o termo que mais interessa


acentuar; de fato, sem os olhos não há graça nem como percebê-la, nem,
principalmente, ser derrotado por ela/por eles. O exame desses e de outros
casos semelhantes leva Lapa a questionar:
57 LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1965.

622
gramática e estilo

“Que havemos de concluir de tudo isso? Que o que hoje


se afigura aos olhos do gramático um erro ou uma impro-
priedade foi largamente empregado pelos nossos melhores
escritores clássicos”. (p. 163). E, depois de observar que
a evolução do sistema da concordância [...] tem refreado
as liberdades da silepse em benefício da concordância
literal [...] e que isso tem sido o triunfo da lógica sobre a
imaginação e que [...] resulta daí, não há dúvida, maior
disciplina e maior clareza [...], conclui: “É contudo sem-
pre lícito aos artistas escolher a concordância que melhor
lhes parece”.

A conclusão de Marta Scherre, porém, é outra:

Ouso divergir de Lapa em um ponto: os fatos por ele


documentados não são do campo da estilística; são, sim,
do campo da gramática, do campo da língua, no pleno
sentido linguístico do termo. Pelas pesquisas que temos
feito, é possível levantar a hipótese de que a concordância
verbal em português não é regida pelo núcleo do sujeito,
mas por TRAÇOS, que podem aparecer também em
outras funções sintáticas, a saber, no núcleo do adjunto
ou do complemento nominal e no núcleo do predicativo.
Normalmente, os traços controladores da concordância
verbal – o principal deles é o núcleo sintático singular ou
plural – concentram-se no núcleo do sujeito, provocando-
-se a ilusão de que é o núcleo do sujeito que controla a
concordância e que os demais casos são particulares ou
especiais (SCHERRE, 2005, p. 134).

Exemplifica, a seguir, com o exame de um desses casos consagra-


dos pelas gramáticas escolares como particulares/especiais: os sujeitos
percentuais (tantos por cento de...): se o núcleo do adjunto introduzido
por de for plural, o verbo vai para o plural em 94% das vezes, mas, se
for singular, vai para o plural em apenas 30% das vezes:

623
gramática e estilo

70% dos moradores de Rio Branco, capital do Acre, es-


tão infestados pelo vírus da hepatite: moradores – estão
infestados
70% da população economicamente ativa de Roraima é
constituída de funcionários federais e, desses, a grande
maioria é de não estáveis: a população – é constituída.
Portanto, quanto mais fraco for o núcleo do sujeito – a
expressão percentual não tem flexão de número e não porta
o traço [+ humano] – mais o controle da concordância é
assumido por traços mais fortes presentes em outro ponto
da estrutura, nestes casos, no núcleo do adjunto – que tem
flexão de número (SCHERRE, 2005, p.135).

Todo mundo vai entender – com plural ou com singular – quan-


tos estão infestados e quantos constituem aquela parte da população
economicamente ativa, como todo mundo entendeu que a tristeza e a
saudade de você ainda existe e também entenderia que elas existem.
Neste caso, entendem também que a cantora que disse existem estava
em busca do reconhecimento de que, diferentemente do comum dos
ignorantes cantores e compositores brasileiros, ela sabe fazer a con-
cordância. Efêmera e ilusória fama: bastaria o ouvido treinado de um
professor de Português, sentado, durante 15 minutos, na frente dela
num bar para delatar as várias concordâncias problemáticas que ela
cometeria.
A concordância serve para distinguir entre quem conhece e aplica
as regras e quem não conhece e não aplica e quem conhece e não aplica,
ou ainda, entre quem não é artista e quem foi, quatro séculos depois,
reconhecido como tal e, por conta disso, agraciado com uma licença
póstuma para ter escolhido a concordância que melhor lhe parecia.
Quem aí também se aventura em semelhante sina e se bota desde já a
fazer escolhas a serem explicadas não apenas no campo da estilística,
mas, sim, no campo da gramática, no campo da língua, no pleno sentido
linguístico do termo?

624
gramática e estilo

Ou seja, a ilusão de que é o núcleo do sujeito que controla a concor-


dância e que os demais casos são particulares ou especiais58 empobrece
a expressividade escrita da língua que falamos, que se orienta por uma
variedade maior de critérios para estabelecer essa relação. Em vez de
compactuar com essa prática posta a serviço da estigmatização social
de quem não a pratica (que somos todos nós, em maior ou menor grau),
trata-se de fazer bom uso dessa riqueza para agregar aos nossos textos
as qualidades da clareza, da precisão, da transparência, da variedade, da
expressividade: as qualidades estilísticas, enfim.
Há uma preciosa consideração didática na GPPB, na seção Erros
mais errados do que outros?:

A concordância “errada” só desperta rejeição e condena-


ção quando sujeito e verbo estão na ordem SV e não há
grande quantidade de material fonético ou de segmentos
escritos entre S e V. Por isso, a concordância do tipo eles
chegou, na fala ou na escrita, provoca reação imediata
dos falantes mais letrados (que se queixam de que ela dói)
[...]. Fora dessas duas situações, porém, a concordância
“errada” passa tranquilamente pelos ouvidos e sob os
olhos desses mesmos falantes que, é claro, também se
servem dela (BAGNO, 2011, p. 650-651).

Não se trata, portanto – nem para quem escreve nem para quem
ensina a escrever – de mera e mecanicamente corrigir a concordância,
mas de indagar o que estão querendo nos revelar as não ilusórias con-
cordâncias heterodoxas que ocorrem no que escrevemos e no que lemos.
Bem melhor do que esperar outros tantos séculos para que nos outorguem
o crachá de artista e passem a louvar o produto de nossas prodigiosas
intenções criadoras, vamos tentar descobrir que traços controladores de
concordância nos revelam estes casos coletados em textos de quem está
58 Na Moderna gramática portuguesa, de Evanildo Bechara, o Sumário anuncia, no capítulo
Concordância verbal, a partir do subtítulo Outros casos de concordância verbal, 28 casos
que mereceram esse tratamento especial.

625
gramática e estilo

em estágio de aprendizagem do exercício da língua escrita, ou seja, todos


nós em maior ou menor grau.
Comecemos por seguir a pista de Rodrigues Lapa a respeito de
concordar as palavras não segundo a letra mas segundo a ideia, aquilo
que se costuma chamar de concordância ideológica. Vamos examinar
estas frases, só que, levando em consideração tudo o que já foi exposto
aqui, de um jeito ainda mais meticuloso:

1 Seu modo descontraído, seu jeito jovial e seu sorriso aberto leva
encanto à vida.

Não há marca de plural em nenhuma das palavras do seu sujeito


composto de três sintagmas coordenados. Coerentemente com a regra
que descreve o português brasileiro, zero marca de plural leva o verbo
do predicado para o singular, temos leva. Apesar do plural sintático do
sujeito, podemos perceber a composição de uma unidade nas três carac-
terísticas do personagem descrito: esse jeito de ser que se caracteriza por
estas três qualidades leva encanto à vida. Esse instrumento com que ela
fazia isso pode ser expresso de um modo que não afeta a concordância:

1a Ela leva encanto à vida com seu modo descontraído, seu jeito
jovial e seu sorriso aberto.

2 Minha perspectiva do que queria ser, e até mesmo do que eu era,


mudaram naquele ano.

Não há nem marcas de plural nem sujeito composto, já que o e co-


ordena dois adjuntos adnominais oracionais de perspectiva, mas o verbo
do predicado – mudaram – foi para o plural. Apesar do singular sintático
do sujeito da frase, podemos considerar a referência a duas perspectivas:
a do que eu queria ser e a do que eu era, até porque a frase está dizendo
que ambas mudaram. Esse modo de considerar o que diz cada um dos
tópicos pode ter sido o controlador da concordância em cada uma das

626
gramática e estilo

frases, e certamente leitor algum há de ter dificuldade para entender o


que está escrito. Há algo mais além das marcas e dos zeros a controlar
a concordância verbal na língua que falamos e em que muito frequente-
mente escrevemos. A frase poderia até mesmo adequar-se para expressar
com mais clareza que as perspectivas são duas:

2a Minha perspectiva do que queria ser mudou naquele ano; mudou,


até mesmo, a minha perspectiva do que eu era.

3 Parece, entretanto, que a verdade da vida, o cotidiano, a natureza,


todos esses elementos tão reais pintados com vigorosas pinceladas
de cor conseguiram permitir que os olhos de quem observa a pin-
tura percorra o caminho, o movimento, e crie o seu próprio olhar,
um olhar bastante diferente daquele lançado para uma tela com um
retrato realista.

O núcleo do sujeito é olhos, mas a concordância se faz com o


singular percorra. Muito provavelmente foi o traço pronome de quem
observa que levou percorra para o singular. Há um indício de que o su-
jeito pretendido pode ter sido essa pessoa indeterminada: quem observa...
crie o seu próprio olhar... e não os olhos que já tinha. Além disso, um
pronome – quem – antecedendo o verbo é um traço muito forte a reger
a concordância. Num caso como este, não se trata, portanto, de apenas
perceber e corrigir o erro mas de refletir sobre o que a frase está dizendo
a respeito do que o autor tentou dizer: quem exatamente percorre, que
percurso é esse? Substituindo olhos por olhar pode ser que a frase não
perca a marca com que nasceu:

3a Parece, entretanto, que a verdade da vida, o cotidiano, a natureza,


todos esses elementos tão reais pintados com vigorosas pinceladas
de cor conseguiram permitir que o observador da pintura percorra o
caminho, o movimento, e crie o seu próprio olhar, um olhar bastante
diferente daquele lançado para uma tela com um retrato realista.

627
gramática e estilo

De fato, observador não é a mesma coisa que os olhos, mas o ob-


servador que cria o próprio olhar é melhor do que os olhos que criam o
próprio olhar. Às vezes, a gente tem de se contentar com a menos pior das
frases. Se o autor não puder suportar esta frase, ele pode optar pela pri-
meira versão apostando que poucos leitores vão reparar na concordância.

4 Nas universidades particulares há um grupo de estudantes que se


diferencia sensivelmente dos demais.

Desse modo, com diferencia no singular, o que se lê é que esse grupo


de estudantes se diferencia dos outros grupos; se a intenção era dizer
que os estudantes que compõem esse grupo se diferenciam dos demais
estudantes dessas universidades, diferencia, no singular, também não dá
conta. Neste caso, a concordância não pode ser considerada facultativa.
A necessidade de precisão acarreta vigilância também sobre essas flu-
tuações da concordância.

4a Nas universidades particulares há um grupo de estudantes que se


diferenciam sensivelmente dos demais.

5 A maior parte das crianças lembra primeiro da TV quando falam


em tempo livre.­

Há um singular – lembra – que se refere a maior parte, e um plural,


que pode referir-se a crianças. É estranho que as marcas de plural das
crianças não controlem o que está perto – lembra – e alcancem o que
está mais longe: falam. Pode ser que o autor tenha querido aproveitar a
licença para esbanjar, usando as duas formas permitidas. Pode ser ainda
que quem fala/quem falam seja aquele indeterminado que anda por aí
falando coisas sempre na terceira pessoa do plural, algo como isto:

5a A maior parte das crianças lembra primeiro da TV quando fala


em tempo livre.

628
gramática e estilo

5b Quando falam em tempo livre pras crianças, a maior parte delas


lembra primeiro da TV.

Claro que essa ambiguidade pode ser um fenômeno da frase isolada,


que o contexto posterior pode resolver ou o anterior já pode ter resolvido,
mas é melhor ficar vigilante.

6 Sempre olhei para as aulas de português pensando para que é


que aquilo servia; afinal, se pelo menos um quarto da minha turma
na oitava série lia um texto em português como se fosse chinês,
gaguejando e fazendo caretas, e ao final diziam “Hã?!” se alguém
perguntasse simplesmente de que o texto falava?

Aqui, lia, referindo-se ao significativo percentual de colegas que


lia como se não estivesse entendendo nada, configura uma mera estatís-
tica, mas os que diziam “Hã?!” eram cada um deles individualmente e
certamente não em coro. O plural, no caso, é mais adequado para essa
descrição. Rodrigues Lapa, certamente, aprovaria este exercício da es-
colha da concordância que melhor pareceu ao autor da frase, que não
precisa receber o crachá de artista por causa disso, nem sua frase precisa
receber a distinção de literária.

7 A era da internet, além das facilidades de comunicação instantâ-


nea, fez surgir um grupo de pessoas que tira qualquer um do sério
e transformam o sistema num caos devido aos envios de e-mails
“bombas”, que só irritam e são inúteis.

Aqui aparece tira, no singular, referindo-se a um grupo de pessoas,


onde há uma marca de plural, mas, do outro lado, no complemento, há
qualquer um, expressão singular que individualiza cada um dos elemen-
tos de um conjunto em que o enunciador se inclui. Esse papel temático
de afetado por uma ação é, provavelmente, um forte traço controlador
de concordância (especialmente se o enunciador está incluído nele); na

629
gramática e estilo

verdade, só se tira do sério quem sai do sério, ou seja, essa mudança de


estado não é causada só pelo agente. Essa seria uma diferença impor-
tante entre qualquer um e todos. Já o nefasto papel temático de agente
atribuído a cada um dos integrantes daquele grupo de pessoas é que
explicaria o plural em transformam. A reiteração das ações de cada um
desses agentes, um de cada vez, também aponta para o plural.

8 E na expressão “protuberância da orelha” a relação substantivo e


adjetivo inverte-se com relação à expressão “orelha protuberante”:
protuberância é aquilo que tentaram nos ensinar na escola como
substantivo abstrato, que não designam coisas mas características
de coisas.

Na frase 8, há concordância ideológica, pois todo e qualquer subs-


tantivo abstrato designa características de coisas. Além disso, há marcas
de plural no complemento – coisas, características das coisas – e aquele
indeterminado em tentaram, que, mesmo de longe, influencia o plural
no verbo. Essa frase foi escrita pelo professor de Português que escreve
este livro; está lá no capítulo sobre subordinação. Na revisão, o que foi
que ele fez?

9 E mesmo quem fala mal deles e faz fofoca fazem isso porque têm
inveja.

Na frase 9, só a expressão quem fala mal deles já implica uma


certa porção de gente; daí a concordância ideológica fazem, que assim,
na terceira pessoa do plural, expressa esse indeterminado que(m) fala
mal. Esse indeterminado tem um poder absoluto como controlador da
concordância porque só se expressa pela terceira pessoa do plural.

10 O índio, muitas vezes destituído de suas terras, foram obrigados a


procurar outras, mas encontravam somente terras improdutivas onde
a caça, maior fonte de sua alimentação, era escassa ou quase nula.

630
gramática e estilo

Na frase 10, há concordância ideológica já que o índio expressa


o conjunto da população; além disso, tem muitas marcas de plural ao
redor de foram obrigados e de encontravam: suas terras, outras, terras
improdutivas.

11 O aluno, conversando com os colegas, às vezes conseguem chegar


a conclusões satisfatórias sobre as questões.

Na frase 11, conseguem chegar a tais conclusões os que conversam,


isto é, o aluno em questão e os colegas; neste caso, a concordância segun-
do a ideia é muito mais coerente do que seria a concordância com a letra.

12 Nos dias terríveis que correm, o povo, sofrido e desesperançoso,


precisa, cada vez mais, acreditar em algo; por isso é que estão tro-
cando sua velha religião por seitas que prometem um paraíso agora.

Na frase 12, há o povo a controlar a concordância no singular do que


está próximo e do que é próprio do povo como um todo – sofrido e desespe-
rançoso, precisa; no que está longe, o povo não está agindo em bloco: cada
um, por sua vez, está trocando. É daí que decorre o plural estão trocando;
além disso, há marcas de plural um pouco adiante: seitas que prometem.

13 As duas últimas eleições para presidente da República já mos-


trou que, à revelia do que ensinou historicamente a escola e do que
ainda proclamam os meios de comunicação, o povo brasileiro já
está convencido de não é preciso falar a língua dos poderosos para
dirigir o país

Na frase 13, bem melhor do que corrigir a concordância é escutar a


frase (em especial o seu rema) para perceber se o tema de que trata está
expresso com precisão. Neste caso, o que já mostrou o convencimento do
povo não foram propriamente as duas últimas eleições, mas o resultado
dessas eleições.

631
gramática e estilo

13a O resultado das duas últimas eleições para presidente da Re-


pública já mostrou que, à revelia do que ensinou historicamente a
escola e do que ainda proclamam os meios de comunicação, o povo
brasileiro já está convencido de não é preciso falar a língua dos
poderosos para dirigir o país.

Para bem situar a natureza destas conclusões, é necessário reafirmar


que, como já foi ressaltado, não se atribui aqui nenhum valor estatísti-
co ao corpus em que este trabalho se baseia. Mesmo assim, a primeira
conclusão geral que se pode tirar do exame destes casos em que ocorre
o que se pode genericamente designar concordância ideológica é que há
aqui apenas um caso – a frase 4 – em que a escolha pelo singular – gru-
po de estudantes que se diferencia – é decisiva para a clareza da frase.
Semelhante mas não igual é o caso da frase 5, em que também se pode
verificar ambiguidade se falam se refere não à maior parte das crianças
mas ao indeterminado, indevidamente oculto. A segunda conclusão geral
é que a determinação do singular ou do plural é o resultado da combinação
entre as marcas ou os zeros com os traços que coocorrem.
Podemos aventar o papel de alguns traços:

a) O papel temático de agente num sujeito considerado em sua ação


como grupo leva a concordância para o singular e considerada a
ação de cada integrante desse grupo leva o verbo para o plural. Por
exemplo: na frase 6 – um quarto da minha turma na oitava série lia...
e ao final diziam...; na frase 7 – um grupo de pessoas que tira qual-
quer um do sério e transformam o sistema...; e na frase 12 – o povo,
sofrido e desesperançoso, precisa,... por isso é que estão trocando...

b) O papel temático (fortemente) afetado no complemento do verbo


nessa mesma frase 7 – tira qualquer um do sério –, contrariando a
estatística, que deveria levar tira para o plural para concordar com
um grupo de pessoas, contribui para levar o verbo para o singular:
um grupo de pessoas que tira qualquer um do sério.

632
gramática e estilo

c) O indeterminado de terceira pessoa do plural – tentaram – que


aparece na frase 8 em combinação com o sentido de conjunto de
substantivo abstrato contribuem para o plural em designam. Outro
indeterminado – quem – aparece na frase 9, onde, apesar da proxi-
midade com o mesmo verbo no singular referido ao mesmo sujeito,
o verbo vai para o plural: E mesmo quem fala mal deles e faz fofoca
fazem isso.

d) O sentido de conjunto de o índio, na frase 10, apesar do singular


paralelo, a seguir – destituído – leva foram obrigados e encontravam
para o plural.

e) O sentido geral da frase 11 – a conversa envolve a pluralidade


– e as marcas de plural que cercam o verbo – os colegas, às vezes,
conclusões satisfatórias, as questões – levam o verbo para o plural
– conseguem chegar –, que expressa com maior clareza e precisão o
que acontece quando as pessoas conversam.

f) Proximidade e distância controlam a concordância na frase 12: o


povo, o singular mais plural de todos, expressa-se como um conjunto
em precisa e assume o plural na distância ao expressar a reiteração
da ação por cada um dos elementos do conjunto: estão trocando.
Esse plural é reforçado pelas marcas de plural no complemento:
seitas que prometem.

Temos aqui, então, um conjunto de traços que em interação com


marcas e zeros compõem o rico e complexo sistema de controle da
concordância que se transporta da língua que falamos para a língua em
que escrevemos.

Exercício 70

Examine a concordância nestas frases e avalie a necessidade e a


pertinência de corrigi-la ou de corrigir a frase para adequá-la a uma
inspirada concordância mais adequada do que a certa.

633
gramática e estilo

1. Poderíamos dizer, então, que a análise das formas como se re-


porta o discurso de outrem acaba por mostrar os termos do contrato que
estabelecem o papel do enunciador.
2. Meu contato com os professores, somado a esses fatores fizeram
com que minha admiração por eles crescesse muito a ponto de eu também
querer passar meus conhecimentos a outros da mesma forma.
3. Certamente o povo havia escolhido as propostas que mais lhes
agradou, que mais benefícios poderia trazer.
4. Nossa conversa tomava rumos que me fazia constatar que não
era apenas eu que estava admirada.
5. Quando saio andando e analisando o comportamento dos outros,
percebo alguns comportamentos decepcionantes, que não gostaria que
acontecesse.
6. Ao chegar ao ensino médio, fui para o colégio Maria Rocha e
hoje, com a visão que tenho de educadora, a preocupação dos professores
eram seguir o programa do Peies, dar toda a matéria porque constava ali
e tinham que nos passar.
7. Por terem suas madeiras e folhas escuras, essa floresta se chama
de Negra.
8. Infelizmente, a universidade não nos prepara para situações reais,
mas sim ilusórias, tentando valorizar teorias que nem sempre funcionam
na prática, esquecendo que o mais importante ainda é o contato direto
com o aluno real e não imaginários.
9. É muito bonito ver o manipulador fazer espetáculos luxuosos de
grande beleza, que enche os olhos dos pobres do nosso país, mas não
lhes enche a barriga.

634
gramática e estilo

5.3.2.9 Traços que regem a concordância

Para encerrar esta seção sobre concordância, podemos sair em


busca dos traços de que fala Marta Scherre (2005, p. 134): “é possível
levantar a hipótese de que a concordância verbal em português não é
regida pelo núcleo do sujeito, mas por TRAÇOS”. Acho que a gente
pode começar pela formosura de Páris e Helena, que destruíram Troia:
o que justifica a silepse59, que ocorre aqui não é porque tem um nome
grego, mas porque expressa a opinião do autor de que são duas formo-
suras que, por encaminharem-se na direção um do outro, destruíram
Troia. Aqui a designação concordância é redutora do papel predicativo
que a flexão do verbo cumpre. Neste caso, a regra da concordância com
o núcleo do sujeito não apenas imporia uma determinada flexão mas
também bloquearia a tomada de posição do autor com relação ao fato.
Examinemos esta frase:

A ciência e a técnica têm-se mostrado de tal forma ligada à vida do


homem que ele já se vê dependente dela para tudo.

Nesta frase, há os zeros antecedentes no sujeito composto, que levam


a ligada e dela, mas há também a percepção de ciência e técnica como
uma coisa só no que se refere à dependência da vida do homem. Esse
tipo de percepção é também um dos traços que regem a concordância. E,
na frase abaixo, o que leva o verbo pro plural se não há qualquer plural
nem antes nem depois dele?

Qual nada, minha esperança era que com o nascimento de uma


criança talvez a atual situação pudessem mudar.

59 Silepse, segundo o Dicionário Houaiss (2009), significa figura pela qual a concordância
das palavras na frase se faz logicamente, pelo significado, e não de acordo com as regras da
gramática.

635
gramática e estilo

Talvez seja a pressão do caso agentivo composto pelo nascimento


da criança e pela própria criança, já que ambos podem causar a mudança,
e pelo caso objetivo ou afetado pela mudança expressa por situação.
São três argumentos relacionados a pudessem mudar.
Nestes casos que seguem, singular e plural são praticamente a
mesma coisa:

É preciso formar leitores competentes, que compreenda o que lê,


que leia também aquilo que não está escrito, identificando elementos
implícitos, que estabeleça relações com o que lê e o que já foi lido,
que saiba que vários sentidos podem ser atribuídos a um texto.

As virtudes do leitor competente são as dos leitores competentes:


descritas no singular se tornam mais específicas enquanto virtudes in-
dispensáveis, cada uma delas, componentes desse conjunto.

Seus cabelos, hoje brancos, não podem nos dar a ideia da cor que
devem ter tido na sua juventude, mas, segundo contam, era escuro
como a noite.

O cabelo são sempre os cabelos: acertar a concordância de um ou


de outro tem como mérito apenas a observância de uma regra gramatical.

Eu mesmo já vi jovens passeando no shopping com seus celulares e,


ao avistarem uma menina que lhe desperte o interesse, prontamente
sacarem os tais.

O uso do lhe já é uma façanha conservacionista, e qualquer


pronome na imediata esquerda do verbo – no caso, lhe – é um sério
candidato a sujeito; daí o singular desperte. É bem possível que tenha
sido desperte o interesse, singular, que levou lhe pro singular. Já o
problema da frase que segue decorre de um dos tantos equívocos pro-
vocados pelas orientações que a TGP legou à tradição pedagógica do

636
gramática e estilo

ensino de língua portuguesa na escola, no caso, a recomendação de


não ficar repetindo os pronomes:

Isso a consumia por dentro, não sabia se o odiava ou o amava. Sentia-


-se um lixo por isso, o que não entendo é por que nunca teve coragem
de pedir demissão, achava uma situação muito triste.

Quem achava uma situação muito triste? O narrador ou o perso-


nagem consumido por isso e que sentia-se um lixo? Por que, mesmo
mandando não repetir os pronomes, não avisar que achava, assim como
muitas outras formas verbais, serve para eu achava e para ela/ele acha-
va? A concordância do português brasileiro não é a mesma do português
europeu. Em português brasileiro é necessário, tal como no inglês, por
exemplo, repetir os pronomes. Se a gente não fizer isso, o leitor não sabe
quem achava que aquela situação era muito triste.
Os pronomes até mesmo de concordância ideológica sofrem:

O velho, na atualidade, vem perdendo seu valor diante das contin-


gências da vida moderna. Eles buscam apoiar-se nos homens que
atualmente os substituem.

Esse o velho aí é todos os velhos, ou são todos os velhos, mas não


é tão fácil acreditar que a gente possa, de fato, referir-se aos velhos fa-
lando do velho. Então, as dúvidas do autor são sanadas, e as dos leitores
não afloram.
Temos, a seguir, um verdadeiro festival de marcas acarretando
marcas e até mesmo lançando marcas bem longe:

Ouvia um sutil barulho provocado pelo movimento das enormes


árvores que me cercavam. O cheiro dos carvalhos, faias e abetos
invadiam minhas narinas. Por terem suas madeiras e folhas escuras,
essa floresta se chama de Negra.

637
gramática e estilo

Na primeira frase, as enormes árvores levam a cercavam; tudo


bem, já que o núcleo do sujeito – árvores – projeta a marca de plural:
invadiam. A segunda frase trata do cheiro, no singular, mas, na sequên-
cia do sintagma, quatro marcas de plural: dos carvalhos, faias e abetos,
que levam a invadiam e mais duas marcas: minhas narinas. A essas seis
marcas sucedem-se, na frase seguinte, marcas já no verbo que abre a
frase: terem. Terem o quê? Mais marcas – suas madeiras e folhas es-
curas – que predicam apenas uma floresta, que se chama de Negra. O
singular núcleo do sujeito, abafado por marcas de plural, está também
posposto e distante. Não dá pra negar que a frase, assim como está, tem
um certo balanço.
Encerramos a seção com este sapientíssimo erro de concordância:

Apesar de relutar em abandoná-lo, muito devido à tomada de consci-


ência que, acredito, o curso de Ciências Sociais havia anteriormente
me proporcionado, eu vivia uma ressaca de desconstruções e des-
mistificações para com o mundo que me conduziram, entre outros
fatores, a um razoável estado depressivo.

Na oração adjetiva – que me conduziram, entre outros fatores, a


um razoável estado depressivo... – está a declaração central da frase,
o ponto de chegada do relato. A que se refere a oração adjetiva, o que
foi que conduziu o narrador a esse estado depressivo? Foi, certamente,
uma ressaca de desconstruções e desmistificações. O que faz o plural
em conduziram? Impede que o leitor leia que o condutor foi o mundo, o
antecedente imediato do pronome relativo: para com o mundo que me
conduziram. Ao ler conduziram, o leitor procura um plural e encontra no
entorno do núcleo do sujeito: desconstruções e desmistificações.
Muito provavelmente o autor da frase não desenvolveu esse racio-
cínio todo, isto é, não escolheu esse plural de caso pensado, mas essa
escolha de caso intuitivo60 foi muito mais bem-sucedida do que a concor-
60 O caso é que foi intuitivo: caso pensado X caso intuitivo. Não foi a escolha intuitiva de caso.

638
gramática e estilo

dância com o núcleo do sujeito no singular – ressaca –, antes da qual o


leitor acharia o singular de mundo, que, então, teria sido o condutor. Nesse
caso, teria sido bem mais difícil chegar ao singular de ressaca. O erro de
concordância deixou a frase bem melhor do que teria deixado o acerto
da concordância segundo a vetusta e simplória regra dos gramáticos.
Quem (ainda) não se atreve contrariar a vetusta e simplória regra
sempre pode tentar uma revisão para fazer fluir a concordância de con-
duziu até ressaca ou, pela ordem, de ressaca até conduziu.

Apesar de relutar em abandoná-lo, muito devido à tomada de consci-


ência que, acredito, o curso de Ciências Sociais havia anteriormente
me proporcionado, eu vinha mantendo com o mundo uma ressaca
de desconstruções e desmistificações que me conduziu, entre outros
fatores, a um razoável estado depressivo.

Exercício 71

Examine estes casos e, se for o caso, revise; se achar que não é o


caso, explique por quê.
1. Não que eu não tenha uma família, gosto muito de tê-la, porém
desligada de muitos daqueles valores impostos pela cultura de meus pais,
que também fora imposta pelos meus avós e assim por diante.
2. Para ser sincera praticamente não lembro do meu processo de
aprendizagem de leitura e escrita e, em relação a isso, arrisco uma explica-
ção: talvez minha predestinação para as letras e nossa relação íntima desde
o início dos tempos tenha tornado o processo tão natural que não consigo
separá-las (a leitura e a escrita) do todo de minha contínua formação.
3. Os textos impressos agora obedeciam ao gosto da massa, e mudou
para sempre os critérios.
4. Esses cálculos, que não somos capazes de fazer enquanto falamos,
podem ser úteis para escrevermos, desde que tenhamos tempo para fazê-

639
gramática e estilo

-los e, principalmente, que estejamos convencidos de que o resultado a


que esses cálculos levam não fazem parte da língua que falamos.
5. No Brasil, no ensino médio, o ensino de literatura aparece clara-
mente descolado do ensino de língua portuguesa, sendo colocadas como
disciplinas separadas, o que demonstra um entendimento curricular que
percebe a literatura como não pertencente ao mesmo quadro de estudos
da língua.
6. Embora a alta continuada desde 2010 seja uma das mais pro-
longadas da história, o movimento ascendente ainda pode continuar por
mais tempo, talvez alguns anos. Mas a altitude está acima do razoável,
e a capacidade dos estados nacionais de amortecer a queda é hoje muito
menor do que era na primeira década do milênio. O resgate do sistema
financeiro os deixou endividados, e seus desdobramentos na forma de
desemprego e cortes de gastos sociais fez crescer partidos contrários à
ordem neoliberal e fragilizou politicamente os governos ocidentais e
ainda mais sua cooperação internacional. (Carta Capital, n. 981, p. 47,
16 dez. 2017).

5.3.3 Regência

Já examinamos, então, a concordância, isto é, a relação do verbo


predicador com o sujeito. Passemos ao exame da relação do verbo com
os demais componentes da frase, seus complementos e adjuntos, segundo
o princípio de projeção, assim descrito na NGPB:

Para construir as sentenças [...] usamos certas expressões


que arremessam/selecionam outras expressões, denomina-
das argumentos sentenciais, às quais são atribuídos casos
e papéis temáticos, dispondo-as no enunciado segundo
determinada ordem e estabelecendo entre elas regras de
concordância (CASTILHO, 2010, p. 260).

640
gramática e estilo

Dessa definição é importante salientar que o sujeito, com o qual o


verbo estabelece a relação de concordância, é chamado de argumento
externo porque não faz parte do predicado; os demais elementos a rece-
berem casos e papéis temáticos são os argumentos internos porque, junto
com o verbo, compõem o predicado. Sobre papéis temáticos já tratamos
no começo deste capítulo; casos, como também já vimos, têm a ver com
as funções sintáticas, isto é, com o sujeito e com aquilo que a escola nos
apresentou como complementos – objeto direto, objeto indireto, aos quais
a NGPB acrescenta o complemento oblíquo – e adjuntos adverbiais. Pra
entender a diferença que há entre complementos e adjuntos, de um lado,
e casos, do outro, reservamos, para começar esta seção, um interessan-
tíssimo problema de concordância, que envolve os pronomes pessoais e
que aparece nas frases que vamos examinar a seguir:

1 Isso ocorreu porque, disse ele, o baixo salário que recebia e a


enorme censura a que estavam expostos os professores subversivos
de esquerda o estava deixando completamente decepcionado.

2 Sua atitude hostil e distante desde o primeiro dia levaram-nos a


detestá-lo.
3 Durante a discussão, começou-se a dar exemplos de músicas das
quais se extraem narrativas, e isso os fizeram notar a ligação existente
entre a poesia, a narração e a argumentação.

4 E como num momento de vida e luz puderam visualizar aquela


criança que lhes traziam alegria e felicidade.

5 Sempre que algum professor pergunta a cada um dos alunos o que


mais os fascinam em seus cursos, eu digo a mesma coisa.

6 Assistiam sempre à televisão; afinal, a programação não os exi-


giam muito.

7 Ainda viveríamos pipocando de um lado para o outro atrás de um


lugar capaz de nos fornecerem alimento necessário.

641
gramática e estilo

8 Um sentimento de inferioridade veio à tona; por minutos fiquei


embaraçada entre o poder e o querer e naquela noite saí da sala com
a certeza de que, após a formatura, eu prestaria o vestibular, mas
apenas para fazer; afinal, todos os meus colegas o faria.

Em cada uma destas frases ocorre um pronome chamado oblíquo


pela gramática da escola:

Na frase 1, o estava deixando...


Na frase 2, levaram-nos a detestá-lo.
Na frase 3, e isso os fizeram notar...
Na frase 4, aquela criança que lhes traziam...
Na frase 5, o que mais os fascinam...
Na frase 6, a programação não os exigiam muito.
Na frase 7, um lugar capaz de nos fornecerem...
Na frase 8, todos os meus colegas o faria.

Para esclarecer por que os pronomes o, nos, os e lhes são oblíquos e


o que exatamente quer dizer oblíquo, vamos à NGBP, que assim introduz
a discussão sobre os termos oblíquo e reto:

A teoria da valência repôs na ordem do dia a percepção da


Gramática clássica sobre a dupla direção do movimento
predicador: para a esquerda, predicando o sujeito, para a di-
reita, predicando os argumentos internos. Naquele momento
da reflexão gramatical no Ocidente, tinha-se observado que
a sentença abriga relações assimétricas, distinguindo-se o
caso reto, por meio do qual se codifica o sujeito, dos casos
oblíquos, por meio dos quais se codificam os complementos.
O achado dos gregos jamais deixou de frequentar nossas
gramáticas, mas ocorreu um empobrecimento de sua percep-
ção, quando os termos reto e oblíquo passaram a designar
as duas subclasses dos pronomes pessoais, perdendo-se o
efeito da bela metáfora geométrica que tinha sido construída
(CASTILHO, 2010, p. 263).

642
gramática e estilo

Então, já sabemos que oblíquo tem a ver com os complementos,


por oposição a reto, que tem a ver com o sujeito e que pra nós, para as
nossas gramáticas, reto designa uma subclasse dos pronomes pessoais
e oblíquo designa outra. Então, vamos ver o que a NGPB diz a respeito
dos pronomes:

Do ponto de vista gramatical, esta classe exibe as proprie-


dades morfológicas de (i) caso; (ii) pessoa e número; (iii)
gênero. Morfemas afixais e lexemas distintos expressam
essas propriedades. Quanto ao caso, embora o português
seja uma língua de caso abstrato, uma subclasse dos
pronomes, a dos pessoais, preservou a distinção de casos
herdada do latim vulgar, marcando-a através de seus
lexemas. É o caso dos itens nominativo (eu, tu, ele, nós),
o acusativo o, os acusativos-dativos (me, te, se, nos) e os
dativos (mim, ti, si, lhe). Essa marcação de caso particula-
riza os pronomes pessoais dentre os demais (CASTILHO,
2010, p. 474).

O nominativo é o caso do sujeito: eu, tu, ele, nós são os pronomes


retos. Os pronomes oblíquos são o acusativo – o –, que é o caso do ob-
jeto direto, os acusativos-dativos – me, te, se, nos – e os dativos– mim,
ti, si, lhe – o indireto e o oblíquo. Diz-se que o português é uma língua
de caso abstrato porque são só os pronomes pessoais que têm formas
distintas para expressar a sua função na frase. Como vimos, a concor-
dância do verbo se faz com o sujeito; portanto, com os pronomes retos
e não com os oblíquos.
Vamos, então, examinar as frases:

1 Isso ocorreu porque, disse ele, o baixo salário que recebia e a


enorme censura a que estavam expostos os professores subversivos
de esquerda o estava deixando completamente decepcionado.

643
gramática e estilo

Há um sujeito composto com dois núcleos no singular – o baixo


salário... e a enorme censura –, o que, por causa da falta de marcas de
plural, poderia levar o verbo para o singular, mas, no sintagma do segun-
do componente desse sujeito composto, mais perto do verbo, há muitos
plurais – estavam expostos os professores subversivos –, o que poderia
levar a concordância na direção do plural: estavam. O verbo – estava
deixando –, no entanto, está no singular.
Podemos conjeturar que é o pronome oblíquo o, de terceira pessoa
do singular, que está controlando essa concordância para o singular. Para
adequar a frase ao padrão que tentaram nos ensinar na escola, podemos
fazer a concordância para o plural e colocar o pronome oblíquo na po-
sição prescrita pelo mesmo padrão, que, no caso, é a próclise (antes do
verbo) porque a oração em que está o verbo é uma subordinada, já que
começa com porque:

1a Isso ocorreu porque, disse ele, o baixo salário que recebia e a


enorme censura a que estavam expostos os professores subversivos
de esquerda o estavam deixando completamente decepcionado.

Há também nas nossas gramáticas uma exceção a essa regra de


colocação dos pronomes oblíquos, mantendo a ênclise (depois do verbo)
se, entre a conjunção subordinativa e a oração que ela introduz, houver
uma pausa, o que é o caso aqui – ...porque, disse ele, o baixo salário
que... – pois disse ele provoca essa pausa. Por causa disso, estamos au-
torizados a usar a ênclise:

1b Isso ocorreu porque, disse ele, o baixo salário que recebia e a


enorme censura a que estavam expostos os professores subversivos
de esquerda estavam deixando-o completamente decepcionado.

Se a versão 1a já nos criava uma certa dificuldade para imaginar


um modo de pronunciar o estavam, esta segunda, com aquele deixando-

644
gramática e estilo

-ooooo no fim da frase nos parece ainda mais bizarra. Por isso, em nome
da singeleza, podemos nos autorizar a usar o que a NGBP chama de ele
acusativo, da língua que falamos, desde que, é claro, estejamos dispostos
a segurar a bronca dos que acham que isso está errado:

1c Isso ocorreu porque, disse ele, o baixo salário que recebia e a


enorme censura a que estavam expostos os professores subversivos
de esquerda estavam deixando ele completamente decepcionado.

2 Sua atitude hostil e distante desde o primeiro dia levaram-nos a


detestá-lo.

É possível que os adjetivos hostil e distante tenham sido tomados


como núcleos de um sujeito composto; se isso já tinha predisposto o
autor a levar o verbo para o plural, o pronome nos, mesmo à direita do
verbo, pode ter dado o seu empurrãozinho na mesma direção. Revisando
na direção da normatividade, temos:

2a Sua atitude hostil e distante desde o primeiro dia levou-nos a


detestá-lo.

Aqui não há dificuldade de pronúncia, mas há outra forma mais


próxima da língua que falamos:

2b Sua atitude hostil e distante desde o primeiro dia nos levou a


detestá-lo.

Não custa também verificar se já podemos suportar uma versão


escrita que registre a língua que falamos:

2c Sua atitude hostil e distante desde o primeiro dia levou a gente


a detestar ele.

645
gramática e estilo

3 Durante a discussão, começou-se a dar exemplos de músicas das


quais se extraem narrativas, e isso os fizeram notar a ligação existente
entre a poesia, a narração e a argumentação.

Há muitos plurais nas duas primeiras orações, mas a segunda está


muito claramente delimitada pela conjunção e, e o pronome isso está na
posição do sujeito. Mesmo assim, o verbo está no plural, muito prova-
velmente porque a concordância está controlada pelo pronome oblíquo
plural os, mais perto do verbo do que isso. A forma prescrita pela gra-
mática da escola para o uso do pronome oblíquo neste caso também é
quase impronunciável na língua que falamos:

3a Durante a discussão, começou-se a dar exemplos de músicas das


quais se extraem narrativas, e isso fê-los notar a ligação existente
entre a poesia, a narração e a argumentação.

Adotando o infinitamente mais amigável registro da fala, teríamos


outro ele acusativo:

3b Durante a discussão, começou-se a dar exemplos de músicas das


quais se extraem narrativas, e isso fez eles notarem a ligação existente
entre a poesia, a narração e a argumentação.

Podemos tentar uma solução de compromisso entre o escrito e o


falado:

3c Durante a discussão, começou-se a dar exemplos de músicas


das quais se extraem narrativas, e isso fez com que eles notassem
a ligação existente entre a poesia, a narração e a argumentação.

4 E como num momento de vida e luz puderam visualizar aquela


criança que lhes traziam alegria e felicidade

646
gramática e estilo

Há complemento composto – alegria e felicidade – depois do verbo


trazer, o que pode ter dado sua contribuição para a flexão no plural, mas
o pronome pessoal lhes imediatamente antes do verbo pode ter tido a
sua influência. O ajuste é simples e não causa embaraço porque lhes a
gente usa:

4a E como num momento de vida e luz puderam visualizar aquela


criança que lhes trazia alegria e felicidade.

5 Sempre que algum professor pergunta a cada um dos alunos o que


mais os fascinam em seus cursos, eu digo a mesma coisa.

O sujeito da oração – o que, que está no singular – não faz uma figura
muito forte de sujeito para concorrer com um pronome pessoal – os – no
controle da concordância. Então, restaurando o poder do sujeito, temos:

5a Sempre que algum professor pergunta a cada um dos alunos o que


mais os fascina em seus cursos, eu digo a mesma coisa.

É verdade que temos mais dificuldade de aceitar na língua escrita


como objeto direto um eles que não é sujeito, como isso fez eles notarem
em 3b?

5b Sempre que algum professor pergunta a cada um dos alunos, o


que mais fascina eles em seus cursos, eu digo a mesma coisa:

6 Assistiam sempre à televisão; afinal, a programação não os exi-


giam muito.

Há um plural no início da frase – assistiam –, que se refere aos


atingidos pela programação, e um outro plural colado no verbo, o pro-
nome os, que usurpou do que exige, que é a programação, o controle da
concordância, levando o verbo para o plural. Se o autor da frase, em vez

647
gramática e estilo

de fazer esse esforço para usar o pronome da escola, tivesse optado por
registrar sua fala, é muito provável que tivesse escrito uma frase correta
com a preposição de, que usamos depois do verbo exigir:

6a Assistiam sempre à televisão; afinal, a programação não exigia


muito deles.

7 Ainda viveríamos pipocando de um lado para o outro atrás de um


lugar capaz de nos fornecerem alimento necessário.

Além do pronome nos que ali está, colado no verbo, assediando-o


para flexioná-lo no plural, há o apelo de um indefinido de terceira pessoa
que se expressaria pelo plural – fornecerem – porque lugar não tem pro-
priamente a capacidade de fornecer alimento para ninguém. Sendo assim,
não seria esse plural a melhor maneira de expressar a inadequação geral
da frase? Ou, em vez, disso, desadequá-la, substituindo aquele capaz?

7a Ainda viveríamos pipocando de um lado para o outro atrás de um


lugar onde nos fornecessem o alimento necessário.

8 Um sentimento de inferioridade veio à tona; por minutos fiquei


embaraçada entre o poder e o querer e naquela noite saí da sala com
a certeza de que, após a formatura, eu prestaria o vestibular, mas
apenas para fazer; afinal, todos os meus colegas o faria.

Há quatro marcas de plural antes do verbo – todos os meus colegas


–; mesmo assim, o oblíquo o leva o verbo para o singular; se o escritor
abrisse mão de escrever o que não falaria – esse o pronome, que não
pode ser sujeito – e não o tivesse interposto entre sujeito e predicado,
dificilmente não teria estabelecido uma relação de plural/plural entre
todos os meus colegas e fariam.

8a Um sentimento de inferioridade veio à tona; por minutos fiquei


embaraçada entre o poder e o querer e naquela noite saí da sala com

648
gramática e estilo

a certeza de que, após a formatura, eu prestaria o vestibular, mas


apenas para fazer; afinal, todos os meus colegas o fariam.

Reservei estes problemas de concordância para a abertura do capí-


tulo sobre regência para levantar a hipótese de que talvez os pronomes
pessoais sejam os mais poderosos controladores da concordância e para
enfatizar a problemática relação que temos com os pronomes oblíquos.
Essa relação certamente se tornou mais problemática ainda por conta
do tormento a que todos nós fomos submetidos nas aulas de Português
sobre a obrigatória colocação dos pronomes oblíquos justamente onde a
gente não colocava eles, ou pior, onde não os colocávamos. Vamos ver
o que NGPB tem a nos esclarecer sobre isso tudo.
No Quadro 4.2 – Características do PB popular e do PB culto,
encontramos estas observações sobre o uso desses pronomes no PB culto
falado: “difunde-se a perda do o na língua falada para referência à segunda
e terceira pessoas, mantendo-se na língua escrita; difunde-se igualmente
a perda de lhe para referência à terceira pessoa, sendo substituído por
pra ele/ela” (CASTILHO, 2010, p. 207).
Temos cinco ocorrências do pronome o/os referindo a terceira pes-
soa: (1) o baixo salário que recebia e a enorme censura a que estavam
expostos os professores subversivos de esquerda o estava deixando
completamente decepcionado; (2) isso os fizeram notar a ligação exis-
tente entre a poesia, a narração e a argumentação; (3) o que mais os
fascinam em seus cursos; (4) a programação não os exigiam muito; e
(5) todos os meus colegas o faria.
A ocorrência de nos na frase 2 – levaram-nos a detestá-lo – pode
ser mais um caso de os acrescido de n depois de m. A respeito disso,
podemos ler na NGPB: “o acusativo o tem os alomorfes -lo e -no, e está
desaparecendo talvez por conta dessa riqueza toda” (CASTILHO, 2010,
p. 475). É possível também que seja um nos da primeira pessoa do plural,
e essa semelhança não ajuda em nada.

649
gramática e estilo

Temos uma ocorrência de lhes na frase 4: aquela criança que lhes


traziam alegria e felicidade. Como o costume nas aulas de Português não é
ensinar a fazer mas apenas denunciar o erro, o aluno faz suas tentativas de
usar os pronomes oblíquos, que não usa em sua fala, a partir das hipóteses
que construiu a respeito do funcionamento deles segundo o que infere do que
leu e das correções que fazem do que ele escreve. Se leu pouco, tem menos
exemplos na memória para fazer como o professor acha que ele deveria
ter feito; por causa disso, a discussão em aula dos produtos dessas hipóte-
ses – frases como estas examinadas aqui – pode ser muito esclarecedora
principalmente se essas formas forem, no mínimo, devidamente traduzidas
para a língua que falamos, como fizemos nos casos acima examinados.

5.3.3.1 -o, -a, -lhe, -se

Então, se a gente se dispuser a tentar entender toda essa inhanha dos


pronomes oblíquos partindo do princípio de que, de fato, isso não faz
parte da língua que falamos, o mínimo que podemos ganhar com isso é
um entendimento maior de como é que devemos interpretá-los quando
os lemos escritos por aí. Como efeito colateral, pode ser útil para que a
noção de caso – já que o português é uma língua de caso abstrato – se
materialize ante nossos olhos leitores: a forma do pronome de terceira
pessoa para o sujeito é ele e ela; a forma para o objeto direto é o e a; a
forma para o objeto indireto é lhe.
Diz a NGPB que o PB popular produziu novas alterações nos pro-
nomes de terceira pessoa – ele, o, lhe (CASTILHO, 2010, p. 479):

a) A forma singular do pronome mudou para ei, e o plural mudou


para eis, funcionando como sujeito.

b) O pronome ele preservou o nominativo e ganhou o acusativo,


funcionando como objeto direto: Isso fez eles notarem a ligação
existente entre a poesia (sujeito com relação a notarem e objeto direto
com relação a fez).

650
gramática e estilo

c) O acusativo o está sendo substituído pela forma única do acusativo


(ele).

d) O pronome lhe mudou para li e ganhou o caso acusativo: eu lhe


mato / eu li mato.

Além dessa baixa frequência de uso de lhe, a NGPB acrescenta:


“mantém-se, porém, o uso de lhe para referência à segunda pessoa em
variação com te em algumas regiões (eu lhe mato / eu te mato), manten-
do-se igualmente na língua escrita” (CASTILHO, 2010, p. 207). Com
relação ao -se e ao -me e -te reflexivos, observa a NGPB que há uma
perda generalizada do traço de reflexividade, que se estende por todas
as pessoas (CASTILHO, 2010, p. 481).
Examinemos estas frases:

1 Se orgulham do time porque o amam e pela felicidade que o time


os traz.

Há três verbos, isto é, três predicadores, que projetam cada um os


seus argumentos:
1) orgulham, que tem como argumento externo, isto é, como sujeito
no papel temático de experimentador do sentimento de orgulhar-se,
um conjunto de pessoas expressa pela desinência de terceira pessoa
do plural do verbo; como complemento oblíquo no papel temático de
causativo, o time;
2) amam, que tem o mesmo argumento externo como sujeito elíp-
tico e o mesmo complemento na função de objeto direto referido pelo
pronome o;
3) traz, que tem o time como sujeito, no papel temático de causativo;
tem felicidade como objeto direto, com o papel temático de objetivo, e
os como objeto indireto com o papel temático de beneficiário do que
é trazido. Aqui está o problema: o pronome os refere o objeto direto e

651
gramática e estilo

não o indireto, que é referido pelo pronome lhe. Adequando a frase ao


uso comum da língua escrita, teríamos:

1a Se orgulham do time porque o amam e pela felicidade que o time


lhes traz.
1b Se orgulham do time porque o amam e pela felicidade que o time
traz pra eles.

2 A escola é, sem dúvida, o caminho mais seguro para integrar o


indivíduo na sociedade; com poder semelhante está os modernos
meios de comunicação de massa, que, se colaboram para isso, por
outro lado, também pode prejudicá-la.

Temos também cinco verbos predicadores, que projetam seus ar-


gumentos:
1) é, que tem sujeito inativo a escola e, como predicativo, o cami-
nho mais seguro para integrar o indivíduo na sociedade;
2) integrar, que tem o caminho mais seguro como sujeito causativo
e como complementos o indivíduo, que é o afetado pelo causativo, e na
sociedade, que é o locativo;
3) está, que tem como sujeito inativo os modernos meios de co-
municação de massa e com poder semelhante como predicativo, que
atribui uma qualidade ao sujeito;
4) colaboram, que tem, elíptico, o mesmo sujeito da oração anterior,
referenciado pela forma verbal de terceira pessoa;
5) pode prejudicar, que tem, elíptico, o mesmo sujeito da oração
anterior – os modernos meios de comunicação de massa – e como com-
plemento o pronome oblíquo de terceira pessoa -la, que referencia o que
seria afetado pelo que prejudica, que é o quê?
Em busca de um referente para -la, pronome oblíquo de terceira
pessoa do singular, encontramos, do mais próximo ao mais distante,

652
gramática e estilo

massa, sociedade, escola, que não se candidatam a serem prejudicadas


pelos modernos meios de comunicação de massa. Com aquela boa
vontade de leitor, instigada pela insegurança que nos acomete a dificul-
dade de entender o que nos querem dizer, acabamos por postular que a
prejudicada deve ser a integração de que fala a frase, ou melhor, de que
não fala, mas pode ser depreendida do verbo integrar. À custa de não
entender, substituímos a referência sintática dos morfemas do pronome
por um substituto lexical e acabamos entendendo. Mas era isso mesmo?
Cabe mencionar também os dois problemas de concordância: está
e pode, que tem como sujeito os meios de...

2a A escola é, sem dúvida, o caminho mais seguro para integrar o


indivíduo na sociedade; com poder semelhante estão os modernos
meios de comunicação de massa, que, se colaboram para essa inte-
gração, por outro lado, também podem prejudicá-la.

3 Minhas tarefas são simples: orientar as crianças para pintar de-


senhos e ensiná-las brincadeiras e jogos.

Temos quatro verbos:


1) são, que tem minhas tarefas como sujeito e simples como pre-
dicativo;
2) orientar, que tem o mesmo sujeito da oração anterior – minhas
tarefas – e o mesmo verbo da oração anterior – são –, elípticos, e as
crianças como objeto direto;
3) pintar, que tem crianças como sujeito, o que ficaria muito claro
se fosse feita a concordância – pintarem – e desenhos como objeto direto;
4) ensinar, que tem como sujeito elíptico o mesmo da primeira
oração: minhas tarefas, como mostra o paralelismo, não só sintático
estabelecido pela conjunção e mas também semântico, que se percebe
entre orientar e ensinar. Brincadeiras e jogos são o objeto direto, e aí

653
gramática e estilo

está o problema: o pronome oblíquo que refere crianças está na forma


do objeto direto: -las, que é o pronome oblíquo as acrescido do l sempre
que o verbo anterior terminar em -r.
Se, em vez de referir pelo pronome, repetíssemos as crianças,
teríamos e ensinar brincadeiras e jogos às crianças; poderíamos tam-
bém escrever ensinar pra elas. O a+as em às e a preposição para/pra
antes de elas revelam que se trata de um objeto indireto que expressa
o beneficiário da ação de ensinar. Para manter o pronome oblíquo,
teríamos:

3a Minhas tarefas são simples: orientar as crianças para pintar


desenhos e ensinar-lhes brincadeiras e jogos.

Podemos, no entanto, preferir esta outra forma:

3b Minhas tarefas são simples: orientar as crianças para pintar


desenhos e ensinar brincadeiras e jogos a elas.

Podemos escolher esta outra?

3c Minhas tarefas são simples: orientar as crianças para pintar


desenhos e ensinar brincadeiras e jogos pra elas.

4 Quando encontrei algumas amigas, contei-as a história do mala.

Temos dois verbos:


1) encontrei, que tem como sujeito a primeira pessoa do singular, eu,
expresso na desinência do verbo, e como objeto direto algumas amigas;
2) contei, que tem o mesmo sujeito da anterior, elíptico, e a história
do mala como objeto direto e o pronome oblíquo na forma do objeto
direto -as, referindo algumas amigas.

654
gramática e estilo

Se em vez de usar o pronome oblíquo, usássemos o reto, teríamos


contei para elas (a elas) a história do mala. Isso quer dizer que teríamos
uma preposição antes do pronome, ou seja, um objeto indireto:

4a Quando encontrei algumas amigas, contei-lhes a história do mala.

4b Quando encontrei algumas amigas, contei para elas a história


do mala.

5 É preciso acolher os meninos de rua para tentar ingressar-lhes


na sociedade.

Aqui temos:
1) o verbo ser com predicativo expresso por adjetivo que faz uma
avaliação – preciso – com o sujeito oracional acolher os meninos...
sociedade;
2) acolher, que tem um sujeito impessoal gente expresso pela forma
do infinitivo e como objeto direto os meninos de rua;
3) tentar, que tem o mesmo sujeito impessoal agente do verbo da
oração anterior e como objeto direto a oração de infinitivo ingressar-
-lhes na sociedade;
4) ingressar, que tem o mesmo sujeito impessoal agente das ora-
ções anteriores, os meninos de rua como objeto indireto expresso pelo
pronome oblíquo -lhes e na sociedade como locativo. Aí está o proble-
ma: ingressar, segundo o DGV, “indica ação com sujeito agente e com
locativo” (BORBA, 1990, p. 863), ou seja, não há objeto indireto na
sua valência; por isso, os meninos de rua deveriam exercer a função de
sujeito de ingressar, já que são eles que ingressam. Podemos determinar
que aquele mesmo sujeito impessoal assuma o papel de agente nesta
frase usando a perífrase fazer ingressar:

655
gramática e estilo

5a É preciso acolher os meninos de rua para tentar fazê-los ingressar


na sociedade.

Neste caso, temos -los indicando que os meninos de rua são o objeto
direto de fazer e sujeito de ingressar; se quisermos botar por escrito a
língua que falamos, podemos usar eles acusativo:

5b É preciso acolher os meninos de rua para tentar fazer eles in-


gressarem na sociedade.

Se quisermos contornar, ao mesmo tempo, o pronome oblíquo e a


língua que falamos, podemos usar fazer com que:

5c É preciso acolher os meninos de rua para tentar fazer com que


eles ingressem na sociedade.

Como não há nenhum sujeito expresso anteriormente ao verbo


na terceira pessoa do plural ingressem, também não há necessidade do
pronome pra indicar o sujeito de ingressem:

5d É preciso acolher os meninos de rua para tentar fazer com que


ingressem na sociedade.

6 Deixei tudo aquilo que eu fazia de errado para se dedicar comple-


tamente ao meu filho.

O pronome se refere-se ao sujeito, que, como mostra a forma verbal


deixei, é a primeira pessoa do singular. Recuperando para a língua escrita
o traço perdido de reflexividade, temos:

6a Deixei tudo aquilo que eu fazia de errado para me dedicar com-


pletamente ao meu filho.

7 Nota-se que, quanto mais velhos ficamos, mais solitários se tor-


namos.

656
gramática e estilo

O pronome se refere-se ao sujeito expresso pela primeira pessoa


do plural: tornamos; continuando a busca pela reflexividade perdida,
escrevemos:

7a Nota-se que, quanto mais velhos ficamos, mais solitários nos


tornamos.

8 A realidade é esta; devemos lutar pelos nossos interesses pessoais


com nossos próprios recursos e não deixar-se enganar pelos outros.

O sujeito da locução verbal devemos lutar é a primeira pessoa do


plural; o sujeito de deixar-se enganar é o mesmo; para consertar, vamos
substituir o pronome:

8a A realidade é esta; devemos lutar pelos nossos interesses pessoais


com nossos próprios recursos e não nos deixarmos enganar pelos
outros.

9 Dizem que também houve disposição por parte desta empresa de


colocar alguns de seus funcionários para ajudá-los os vizinhos que
se encontravam ao redor de sua fábrica.

Há uma incomum ocorrência do pronome e do seu referente na mes-


ma função de complemento do verbo: ajudá-los os vizinhos; ocupando
o mesmo espaço do nome, o pronome deixa de ser pronome. Trata-se,
pois, de escolher um ou outro:

9a Dizem que também houve disposição por parte desta empresa de


colocar alguns de seus funcionários para ajudar os vizinhos que se
encontravam ao redor de sua fábrica.

A escolha do pronome envolve a menção anterior do nome:

657
gramática e estilo

9b Dizem que também houve disposição por parte desta empresa de


procurar os vizinhos que se encontravam ao redor de sua fábrica e
de colocar alguns de seus funcionários para ajudá-los.

10 São muitos os que sabem o significado da palavra solidariedade,


mas poucos são os que praticam-a algum dia.

Aqui não foi usado o alomorfe do pronome que vem depois do


verbo terminado pela nasal – no/na:

10a São muitos os que sabem o significado da palavra solidariedade,


mas poucos são os que praticam-na algum dia.

Na verdade, não é essa a colocação postulada pela TGP, que atribui


às conjunções subordinativas (no caso o que) a capacidade de atraírem
o pronome oblíquo:

10b São muitos os que sabem o significado da palavra solidariedade,


mas poucos são os que a praticam algum dia.

Exercício 72

Vamos praticar um pouco mais começando por estes pouco ortodo-


xos exercícios escolares sobre os alomorfes da terceira pessoa. Trata-se de
substituir o pronome reto entre parênteses pelo oblíquo correspondente:
1. Pretendem matar (ele) antes do pôr do sol.
2. Encontraram (ela) muito assustada.
3. Dão (ele) como dissidente mas seus escritos são bastante ortodoxos.
4. Fiz todo o meu trabalho e fiz (ele) com dedicação.
5. Não pagou as encomendas e quer (elas) entregues em casa.
6. Fez (ele) dormir e quis cobrir (ele).

658
gramática e estilo

7. Será considerado coerente o trabalho que apresentar claramente


suas ideias e mantiver (elas) claras até o fim.

Exercício 73

Também não custa praticar o uso do o para o objeto direto e do lhe


para o indireto e o oblíquo.
1. Creio que deves procurar... para prevenir... do risco que ele está
correndo.
2. Todos os que... conheciam estimavam... muito.
3. Sinto desapontar..., mas sou obrigado a frustrar... a expectativa.
4. Avisamos... que a reunião seria adiada porque não queríamos
prejudicar...
5. Trata... muito bem, mas não... permite sair de casa.
6. Esse seu gesto louco? Nunca... compreendi, embora muito...
admire a coragem.
7. Obedeça... cegamente; só ele pode ensinar... a sobreviver nesta
selva.
8. Na época da celeuma, eu já era professora de Português em um
cursinho pré‐vestibular popular e gostei de ver os meus alunos (na grande
maioria adultos que haviam finalizado a EJA recentemente) refletindo
sobre aquela polêmica nacional que tanto... dizia respeito.
9. Ninguém... apresentou à anfitriã.

5.3.3.2 Colocação dos pronomes

Na GPPB, podemos ler a postulação pedagógica de que a escola


deve ensinar o que os alunos não conhecem e não dominam, mas lá está
também esta advertência: “por outro lado, a escola também não precisa

659
gramática e estilo

ensinar as regras e sub-regras da colocação pronominal clássica, porque


elas não fazem parte da gramática do PB, onde só vigora uma única regra
de colocação dos clíticos: a próclise ao verbo principal” (BAGNO, 2011,
p. 109). É claro que essa constatação, abundantemente fundamentada com
dados do Projeto NURC, não faz desaparecer a velha polêmica, tão antiga
que há muito já entrou para o terreno da galhofa, já que muitos ataques
– debochados, raivosos, inocentes – foram perpetrados aos critérios de
colocação dos pronomes oblíquos.
Então, para podermos continuar debochando disso tudo com bom
conhecimento de causa, vamos examinar a colocação dos pronomes
nestas frases sob o ponto de vista tanto da próclise para todos do PB
quanto dos critérios da TGP, que são bem mais desafiadores. Vai que
essa experimentação leva à descoberta de até agora insuspeitados efeitos
de estilo. E para inspirar esse ânimo experimentador, vai uma sugestão
de que a posição do pronome pode alterar a sua referência nesta frase.
Comparemos duas versões:

PRÓCLISE – Depois de ter escrito algumas versões deste roteiro


de reescrita, que eu agora reviso pela quarta, quinta ou sexta vez,
esmiuçando um pouco mais a minha memória que, como a memória
de todo mundo, se compõe de lembrança e esquecimento, conforme
ensinam os professores de História, estou convencido de que a me-
mória está aí, à espera de solicitação.

ÊNCLISE – Depois de ter escrito algumas versões deste roteiro


de reescrita, que eu agora reviso pela quarta, quinta ou sexta vez,
esmiuçando um pouco mais a minha memória, que, como a memória
de todo mundo, compõe-se de lembrança e esquecimento, conforme
ensinam os professores de História, estou convencido de que a me-
mória está aí, à espera de solicitação.

Seria uma arbitrariedade propor que a próclise – se compõe – faz


com que o verbo se refira à minha memória e não à memória de todo

660
gramática e estilo

mundo e de que a ênclise – compõe-se – se refira à memória de todo


mundo? É possível que isso se deva a ser a próclise – se compõe – a nossa
forma mais usual, mais próxima de mim? E que a forma da gramática –
compõe-se – seja mais próxima deles, da gramática, lá adiante? Vamos,
então, ao exercício:

Exercício 74

Examine a colocação dos pronomes.


1. A ciência não pode basear-se na opinião de uma só pessoa.
2. Tudo o incomodava e lhe irritava os nervos.
3. Isso me desaponta: aqueles meninos me pareciam bastante de-
terminados a serem alguém.
4. Se nos apoiarmos mutuamente, sem dúvida nos deveremos en-
contrar na comemoração da vitória.
5. Eles a tinham achado perdida no mar, mas só conseguiram
consertá-la numa oficina do porto.
6. Não nos entregamos, embora tivessem pressionado-nos muito.
7. O brasileiro busca retornar às origens europeias, mas nem o am-
biente nem as influências negras e tupiniquins o permitem.

5.3.3.3 Fora a mesóclise!

Evanildo Bechara (2015, p. 323) é excepcionalmente lacônico a res-


peito da mesóclise: “mesóclise é a interposição ao vocábulo fônico: Dar-
-me-ás as notícias”. Já Celso Cunha (2013, p. 323)61 é muito pouco mais
esclarecedor: “em relação ao verbo o pronome pode ser [...] mesoclítico,
ou seja, no meio dele, colocação que só é possível com formas do futuro
61 CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 6. ed. Rio
de Janeiro: Lexikon, 2013.

661
gramática e estilo

do presente ou do futuro de pretérito. Calar-me-ei / Calar-me-ia”. Como


gramáticos não costumam ser lacônicos, essa contenção parece suspeita,
e o verbo com que Celso Cunha exemplifica só reforça essa impressão.
Já Marcos Bagno (2011, p. 764), depois de recorrer às pesquisas que
apontam para a próclise absoluta do PB (próclise ao verbo principal),
assim sentencia: “sobre a mesóclise, nem vale a pena comentar. Seu ar-
tificialismo é tamanho que os manuais de redação das grandes empresas
jornalísticas já baniram de vez essa colocação para o arquivo morto das
formas linguísticas extintas”.
A tentação de debochar da colocação dos pronomes ou de, mais
amenamente, ironizá-la é historicamente contagiosa e, na mesma página,
numa caixinha significativamente ilustrada por um ponto de exclamação,
podemos ler:

No entanto, como já se repetiu aqui diversas vezes, é


função da educação linguística na escola apresentar aos
alunos as outras possibilidades de colocação dos clíticos –
a ênclise, outros casos de próclise (ao verbo auxiliar, por
exemplo) e até mesmo a mesóclise. Com isso, eles estarão
enriquecendo seu repertório linguístico e tomando ciência
de recursos que, eventualmente, poderão lhes ser úteis,
lhes poderão ser úteis, poderão ser-lhes úteis, e mesmo
poder-lhes-ão ser úteis. Esse conhecimento nos permite,
por exemplo, usar a ênclise para efeitos humorísticos.

E até mesmo a mesóclise, como vimos. Uma outra função social


da mesóclise é resgatar alguma valia em quem é capaz de construí-la na
fala, como se viu na televisão, no elogio dessa qualidade, que, na falta de
qualquer outra, um conhecido jornalista atribuiu a um até então obscuro
político que ascendeu por vias travessas à Presidência da República.
Vamos examinar estas frases para aprender a fazer graça com a mesó-
clise, sempre atentos à regra fundamental: a mesóclise é uma ênclise
ao infinitivo do verbo, que, acrescido da desinência, forma os futuros.

662
gramática e estilo

1 Te conhecerei sempre; mesmo daqui a cem anos te reconheceria


como meu irmão.

Temos duas próclises absolutas, com dois clíticos, um no início da


frase e outro na frente do verbo da outra oração, assim como falamos.
Ênclise, em qualquer um dos dois, significaria mesóclise, posto que os
verbos estão flexionados no futuro. Vejamos:

1a Conhecer-te-ei sempre; mesmo daqui a cem anos reconhecer-te-


-ia como meu irmão.

2 Em certas passagens, o autor compara os personagens e animais:


isso poderia nos parecer tentativa de caracterizar esses personagens.

Também temos próclise absoluta; podemos fazer ênclise ao verbo


principal, que está no infinitivo:

2a Em certas passagens, o autor compara os personagens e animais:


isso poderia parecer-nos tentativa de caracterizar esses personagens.

Podemos também fazer ênclise ao auxiliar, isto é, mesóclise:

2b Em certas passagens, o autor compara os personagens e animais:


isso poder-nos-ia parecer tentativa de caracterizar esses persona-
gens.

3 Algum dia seguir-se-ão apenas as boas doutrinas e se abandonarão


as falsas profecias.

Há mesóclise no primeiro verbo e próclise no segundo; podemos


fazer mesóclise nos dois:

3a Algum dia seguir-se-ão apenas as boas doutrinas e abandonar-


-se-ão as falsas profecias.

663
gramática e estilo

Podemos fazer duas próclises, tal como o português brasileiro:

3b Algum dia se seguirão apenas as boas doutrinas e se abandonarão


as falsas profecias.

4 Ela vai ficar com a gente; daremos-lhe toda atenção do mundo.

A tentativa de fazer uma ênclise tal como na língua escrita resultou


numa forma não reconhecida pela TGP; podemos fazer mesóclise:

4a Ela vai ficar com a gente; dar-lhe-emos toda atenção do mundo.

Podemos fazer próclise:

4b Ela vai ficar com a gente; lhe daremos toda atenção do mundo.

Podemos usar outra forma para o objeto indireto:

4c Ela vai ficar com a gente; daremos a ela toda atenção do mundo.

Podemos usar a forma mais simples da língua que falamos:

4d Ela vai ficar com a gente; vamos dar a ela toda atenção do mundo.

Exercício 75

Para encerrar o capítulo, aqui temos estes exercícios de botar os


pronomes adequados nos lugares mais adequados, determinando qual
critério de adequação seguir:
1. Ela afirma que... quer... mais ainda; no entanto, não está disposta
a perdoar... a traição.
2. Ele nunca deposita dinheiro no banco; traz... todo no bolso.

664
gramática e estilo

3. Que deves fazer com essa camisa... Põe.................


4. ... Entendamos...; no fundo, eles são umas crianças.
5. Confiamos... nossa avó, e pões (ela).... no asilo.
6. A moça não... despertava... paixão; mesmo assim resolveu...
impressionar...
7. Confesso que... invejo... a calma nesses momentos de crise;
acredito mesmo que o perigo... agrada...
8. ... Proíbo... de falar assim comigo; minha intenção foi livrar... de
uma situação embaraçosa.
9. Não... teremos no nosso bloco carnavalesco porque a fantasia
que usaremos não... satisfaz... a vaidade.

Exercício 76

Estas questões aqui são de revisar as frases:


1. Havia também o sadismo tão peculiar às aulas de Português de
corrigir os alunos quando esses falavam “errado”. Isso visivelmente os
faziam odiar aquela língua que estudavam.
2. Ele me prometeu a pulseira e eu disse que a pegava à noite no bar.
3. Hoje ninguém lê corretamente porque às crianças é oferecida
uma leitura que apenas lhes prejudicam.
4. A fome ele vai matando com os pães que sua mulher o fez.
5. Hoje, me parece que a utilização da norma culta praticada em
textos de cunho acadêmico é excessivamente rebuscada. Ela obedece a
uma terminologia que, de modo semelhante ao linguajar jurídico, mis-
tifica o acesso geral do cidadão a conteúdos e pesquisas de apelo social
mantendo-os indiferentes a importantes reflexões.

665
gramática e estilo

6. Como eu era, segundo a minha família, o que mais me enqua-


drava nos pré-requisitos da profissão, todas as expectativas foram
jogadas em mim.
7. O resgate da linguagem sulista à luz de sua herança africana (pa-
lavras como milonga, por exemplo, tão associada a uma raiz castelhana
mas que tem origem banto e quer dizer feitiço) ainda invisibilizada por
uma cultura regional que insiste em lhe negar são o que configuram o
meu mote no curso de Letras.
8. Hoje ilustro trabalhos. Histórias delas e de outras pessoas, sendo
que aperfeiço-o mais os meus trabalhos com qualidade e prazer.

5.3.3.4 Os complementos e as preposições

Já vimos, então, que o objeto direto é simétrico ao pronome oblíquo


o/a, e o objeto indireto, ao pronome lhe. Naquele parágrafo que revi-
samos exaustivamente no início deste capítulo, encontramos, logo no
início, a frase Posteriormente fiquei pensando sobre isso. Vimos que o
predicador é o verbo pensando, que atribui o papel temático de alguém
que pensa ao eu que fala no texto e o papel temático de conteúdo que é
pensado a sobre isso. Como já vimos, a NGPB chama de complementos
oblíquos os complementos que não são proporcionais nem ao pronome
a, do objeto direto – não é o caso de pensando-o – nem ao pronome
lhe do objeto indireto – também não é o caso de pensando-lhe. Vamos
examinar outros casos:

Os trabalhadores precisam de um descanso.

Aqui não cabem nem precisam-no nem precisam-lhe; cabe, no


entanto, precisam disso.

Ela voltou para o seu antigo namorado.

666
gramática e estilo

Aqui não cabem nem voltou-o nem voltou-lhe; cabe, no entanto,


voltou para ele.

Nós gostamos de sua tia.

Aqui não cabem nem gostamo-la nem gostamos-lhe; cabe, no en-


tanto, gostamos dela.

Essa é exatamente a forma do complemento de pensando: sobre


isso. Lá está na NGPB: “finalmente, aqueles proporcionais à expressão
preposição + pronome pessoal/advérbio dêitico/demonstrativo neutro são
complementos oblíquos” (CASTILHO, 2010, p. 299). Exemplifica com
João pôs o livro na estante / João pôs ele lá. E esclarece, com relação
a lá e isso, “[...] sendo dêiticos, os pronomes pessoais e os advérbios
dêiticos compartilham várias propriedades gramaticais. Podem, por
exemplo, ser argumentais, recebendo caso e papel temático do verbo.
Apenas a morfologia os separa”. A NGPB chama atenção ainda para o
papel da preposição nessa classificação:

A troca da preposição a por em assegura que a mes-


ma palavra ora funcione como objeto indireto, ora
como oblíquo, como demonstram Mira Mateus et al.
(1989/2003/2005:p.289):
Maria deu uma pintura às estantes (= deu-lhes uma
pintura; logo, às estantes funciona como objeto indireto).
Maria deu uma pintura nas estantes (= deu uma pintura
nelas; logo nas estantes funciona como oblíquo) (CAS-
TILHO, 2010, p. 305).

Esta noção de complemento oblíquo pode nos ajudar a exorcizar


aqueles velhos fantasmas escolares da transitividade do verbo e da re-
gência correta (ou culta) e nos liberar o uso expressivo das preposições
além de nos liberar para o uso expressivo das preposições.

667
gramática e estilo

Vamos examinar o caso do verbo namorar, tal como já está regis-


trado no DGV (BORBA, 1990, p. 934): Namorar – indica ação com
sujeito agente. 1. Com complemento, apagável, expresso por nome hu-
mano, significa “praticar ou manter relações de namoro e cortejamento,
requestar: Você já namorou todas as minhas amigas. As moças devem
namorar”. Também ocorre com complemento precedido de com: Viam
a Dondoca namorar no escuro com o Antônio. O complemento pode
coordenar-se ao sujeito e, então, condensar-se numa forma de plural.
Nesse caso pode ocorrer um indicador de reciprocidade: Leo e Rosa
estão namorando; Os dois namoravam à sombra de uma jaqueira; Mas
eu nem sabia que vocês se namoravam! 2. Com complemento expresso
por nome concreto, “significa observar com interesse, desejar ardente-
mente”: Cleô pôs-se a namorá-lo de longe. Namora o relógio de cuco.
O gavião namora a presa descuidada.
Temos aqui, então, casos em que namorar não tem complemento:

1 As moças devem namorar.


2 Leo e Rosa estão namorando.
3 Os dois namoravam à sombra de uma jaqueira.
4 Mas eu nem sabia que vocês se namoravam!

A frase 1 – As moças devem namorar – recomenda que as moças


devem praticar ou manter relações de namoro com quem acharem mais
interessante.
A frase 2 – Leo e Rosa estão namorando – anuncia que Leo está
namorando Rosa e que Rosa está namorando Leo.
A frase 3 – Os dois namoravam à sombra de uma jaqueira – observa
que esses dois aí praticam ou mantêm relações de namoro e cortejamento
nesse lugar aí.
A frase 4 – Mas eu nem sabia que vocês se namoravam! – expres-
sa o espanto de quem não esperava que justamente esses dois fossem

668
gramática e estilo

capazes de praticar ou manter tais relações um com o outro. Terá sido


para enfatizar esse espanto que ocorre o indicador de reciprocidade se?
Ou seja, há um caso de namorar sem referência a um/a namorado/a
específico/a e três casos em que está clara a reciprocidade. Tem também
casos em que namorar tem complemento:

5 Você já namorou todas as minhas amigas.


6 Viam a Dondoca namorar no escuro com o Antônio.
7 Cléo pôs-se a namorá-lo de longe.
8 Namora o relógio de cuco.
9 O gavião namora a presa descuidada.

Estas frases todas têm, cada uma, o seu complemento; quatro delas
têm objeto direto:

5 namorou todas as minhas amigas; você namorou-as.


7 pôs-se a namorá-lo de longe.
8 Namora o relógio de cuco; namora-o.
9 namora a presa descuidada; namora-a.

Uma delas tem um complemento oblíquo:

6 namorar no escuro com o Antônio; namorar com ele.

Para entender o que está fazendo aí essa preposição com, vamos


acrescentá-las às outras frases que têm complemento:

6 Você já namorou com todas as minhas amigas.


7 Cléo pôs-se a namorar com ele de longe.
8 *Namora com o relógio de cuco.
9 *O gavião namora com a presa descuidada.

669
gramática e estilo

Começando com a frase 9, parece que a última coisa que a presa


descuidada namorada pelo gavião quereria fazer na vida seria namorar
com o gavião. Com relação à frase 8, muito provavelmente não diríamos
Namora com o relógio de cuco porque não acreditamos na circunstância
de que o relógio também estivesse namorando com ela/ele, a não ser, é
claro, que se tratasse de um objeto como os daquele país em que Alice
andava. Na frase 7, diríamos Cléo pôs-se a namorar com ele de longe
apenas na circunstância de que ele estivesse também de longe, namorando
com ela. Parece, então, bem claro que só podemos dizer namorar com
se o namoro for recíproco, ou seja, para dizer, como na frase 6, Você já
namorou com todas as minhas amigas, vai ser preciso admitir que todas
as minhas amigas tenham também namorado com ele. A preposição com,
portanto, só se aplica a um dos dois sentidos registrados no DGV: 1.
praticar ou manter relações de namoro e cortejamento – não se aplicando
ao sentido; 2. observar com interesse, desejar ardentemente.
Daí, podemos perguntar o que é melhor: namorar uma objeta direta
ou namorar com, por exemplo, Eulália, a complementa oblíqua que tam-
bém namora comigo? Não vai faltar quem ache que deve namorar com
correção gramatical, mas também vai haver quem considere que a noção
de companhia expressa pela preposição com combina muito bem com a
noção de reciprocidade que está em namoro e que essa combinação é um
critério melhor do que uma presumida e postulada correção gramatical.
Também não falta quem ache que as duas formas, já que são usadas na
língua que falamos e na língua em que escrevemos, merecem o mesmo
registro no dicionário, como foi o caso do professor Francisco da Silva
Borba e os outros dez pesquisadores que com ele elaboraram o Dicio-
nário gramatical de verbos. Coitado do gavião que não pode namorar
com a presa descuidada.
Se a preposição com compatibiliza a noção de reciprocidade do
verbo namorar, com que noções destes verbos combinam as noções que
estão nestas outras preposições nestas frases?

670
gramática e estilo

1 Procuro um amigo. / Procuro por um amigo.


2 A circunstância que estamos vivendo. / A circunstância em que
estamos vivendo.
3 A ditadura dominava o país. / A ditadura dominava sobre o país.
4 Esta noção nos libera o uso expressivo das preposições. / Esta
noção nos libera para o uso expressivo das preposições.
5 O golpe quebrou ele. / O golpe quebrou com ele.

Na frase 1 – Procuro por um amigo –, a preposição por compati-


biliza com a noção de itinerário que há em procurar, ou seja, é preciso
percorrer um certo caminho para encontrar o amigo; por isso, procurar
por um amigo parece que vai dar mais trabalho do que procurar um amigo.
Na frase 2 – A circunstância em que estamos vivendo –, a prepo-
sição em compatibiliza com a noção de intervalo de tempo que há na
circunstância em que estamos vivendo; por isso, a circunstância em que
estamos vivendo parece que vai durar mais tempo do que circunstância
que estamos vivendo.
Na frase 3 – A ditadura dominava sobre o país –, a preposição sobre
compatibiliza com o sentido da posição superior que há em ditadura;
por isso, num país em que uma ditadura domina sobre ele, essa ditadura
é muito mais dominadora do que a ditadura que apenas domina o país.
Na frase 4 – Esta noção nos libera para o uso expressivo das preposi-
ções –, a preposição para compatibiliza com a noção de finalidade que há
em liberar; por isso, em libera para o uso aparece um incentivo a esse uso.
Na frase 5 – O golpe quebrou com ele –, a preposição com compa-
tibiliza com a noção de instrumento que há em golpe/golpear; por isso,
em quebrou com ele aparece o sentido de que ele foi atingido por algo
que chegou muito perto, como se tivesse invadido a pessoa representada
por ele. Na verdade, é mais comum que a relação a ser feita pela prepo-
sição com, que expressa o instrumento, coloque o atingido à esquerda e
o instrumento à direita: Ele quebrou com o golpe. / Com o golpe ele foi
quebrado. / Quebraram ele com o golpe.

671
gramática e estilo

Evanildo Bechara (2015, p. 312) nos contempla com uma explicação


singela e certeira a respeito do que a preposição atribui à relação entre
o que liga:

Preposição e significado – Já vimos que tudo na língua é


semântico, isto é, tem um significado, que varia conforme
o valor léxico ou puramente gramatical que as unidades
linguísticas desempenham nos grupos nominais unitários
e nas orações. As preposições não fazem exceção a isto:
Nós trabalhamos com ele, e não contra ele.
Contextos desse tipo ressaltam bem o significado de uni-
dades como com ele e contra ele, auxiliados por diferentes
preposições. Todavia, devemos lembrar aqui a noção
de significado unitário (que não quer dizer significado
único), expostas nas páginas da introdução.
Ora, cada preposição tem o seu significado unitário,
fundamental, primário, que se desdobra em outros signi-
ficados contextuais (sentido), em acepções particulares
que emergem do nosso saber sobre as coisas e da nossa
experiência de mundo.
Coseriu lembra para tanto, o caso da preposição com, à
qual os gramáticos atribuem englobadamente os signi-
ficados de “companhia” (Dancei com Marlit), “modo”
(Estudei com prazer), “instrumento” (Cortei o pão com
a faca), causa (Fugiu com medo do ladrão), oposição
(Lutou com o ladrão), entre outras.
A língua portuguesa só atribui a com o significado de
“copresença”; o que, na língua, mediante o seu sistema
semântico, se procura expressar com esta preposição é
que, na fórmula com+x, x está sempre presente no es-
tado de coisas designado. Os significados ou sentidos
contextuais, analisados pela nossa experiência de mundo
e saber sobre as coisas (inclusive as coisas da língua, que
constitui a nossa competência linguística) nos permitem
dar um passo a mais na interpretação e depreender uma
acepção secundária.

672
gramática e estilo

Assim, em cortar o pão com a faca, pelo que sabemos


que é “cortar”, “pão”, “faca”, entendemos que a faca
não só esteve presente no ato de “cortar o pão”, mas foi
o “instrumento” utilizado para a realização dessa ação.
Já em Dancei com Marlit, emerge, depois da noção de
copresença, o sentido de “companhia”, pois que em geral
não se pratica a dança sozinho.
Em Estudei com prazer, o prazer não só esteve “presente”
mas representou o “modo” de como a ação foi levada a
termo.
Mas que a preposição com por si não significa “instru-
mento”, prova-o que esta interpretação não se ajusta a:
Everaldo cortou o pão com a Rosa pois que, assim como
sabíamos o que significa faca, sabemos o que é Rosa: não
se trata de nenhum instrumento cortante, capaz de fatiar
o pão; teríamos, neste exemplo uma acepção contextual
(sentido) de ajuda ou companhia, por esta ou aquela
circunstância em que o pão se achava e só o entorno ou
situação poderia explicar o sentido da oração.
Assim, não se deve perder de vista que, na relação dos
“significados” das preposições, há sempre um significado
unitário de língua, que se desdobra em sentidos contextu-
ais a que se chega pelo contexto e pela situação.

A NGPB também recorre a um par mínimo para posicionar-se de


modo semelhante a respeito do sentido atribuído pela preposição ao
seu escopo:

Frequentemente os gramáticos afirmam que as preposi-


ções são palavras “vazias de sentido”, certamente dada
a dificuldade de identificar o sentido nessa classe. Nesta
gramática, vamos admitir que cada preposição tem um
sentido de base, de localização espacial ou temporal.
Nem sempre temos consciência clara disso, mas nem
por isso vamos aceitar a “explicação” do “sentido vazio”.
Palavras sem sentido seriam ruídos, signos dotados só de

673
gramática e estilo

significante – enfim, uma aberração. Por outro lado, se as


preposições não têm sentido, por que as sentenças de (1),
iguais em tudo, menos na escolha das preposições, teriam
significados diferentes?
(1)
a) Cheguei de Recife.
b) Cheguei em Recife.
c) Você está rindo pra mim ou está rindo de mim? (CAS-
TILHO, 2010, p. 583).

O sentido unitário de Bechara recebe aqui a designação de sentido


de base, especificado como localização espacial ou temporal. A NGPB,
tratando do estatuto categorial das preposições, nos orienta:

As preposições são palavras invariáveis que atuam como


núcleo do sintagma preposicional, desempenhando as
seguintes funções: (i) função sintática: ligação de palavras
ou sentenças; (ii) função semântica: atribuição ao seu
escopo de um sentido geral de localização no espaço;
função discursiva: acréscimo de informações secundárias
ao texto e organização do texto, no caso das construções
de tópico preposicionado (CASTILHO, 2010, p. 583).

Esse sentido geral de localização no espaço, que se transpõe para


o tempo e para outras noções que podem representar escalas,

[...] é uma operação relacional por excelência. Localizar


um objeto ou um evento é sempre relacioná-lo com outro
objeto ou evento. Nesta gramática, o objeto ou evento a
ser localizado será denominado FIGURA, e o objeto ou
evento por referência ao qual a FIGURA será localizada
será denominada PONTO DE REFERÊNCIA (CASTI-
LHO, 2010, p. 584).

674
gramática e estilo

FIGURA VERBO + PREPOSIÇÃO PONTO DE REFERÊNCIA


O menino chegou à a janela

Nesta frase, a preposição a atribui a o menino – o escopo – uma


localização próxima a uma janela já determinada no texto. Nem sempre
a atribuição de sentidos pelas preposições aos seus escopos é assim tão
clara quanto nesta frase ou no conjunto dos pares mínimos citados an-
teriormente, mas tentar distinguir esses sentidos pode ser um exercício
bem esclarecedor a respeito tanto do sentido unitário quanto dos sentidos
contextuais das preposições.
Costuma-se dividir as preposições em simples e complexas (ou
locuções prepositivas). Não temos muita dificuldade para lidar com
as locuções prepositivas, que podemos compor de acordo com nossas
necessidades de clareza e precisão. Podemos dizer que ele caminhou até
o precipício ou podemos especificar que ele caminhou até a beira do
precipício; que ele falava de futebol ou que ele dava esclarecimentos
acerca da estratégia defensiva que concebera para jogar a final do
campeonato.
Em termos de uso, as preposições simples são mais complexas,
especialmente aquelas que são mais gramaticalizadas. Assim a NGPB
define gramaticalização:

Alterações provocadas nas palavras levando-as a mudar


de estatuto, caminhando de um uso mais lexical para um
uso mais gramatical, indo daí para a sua transformação
num afixo, até seu desaparecimento. Atingido esse estágio,
outra palavra é acionada, reiniciando-se o mesmo ciclo
(CASTILHO, 2010, p. 679).

A gramaticalização das preposições atinge umas mais do que outras,


segundo a NGPB. Vamos acompanhar:

675
gramática e estilo

A observação de algumas propriedades permite classifi-


car as preposições simples em mais gramaticalizadas e
em menos gramaticalizadas [...]. As mais gramaticaliza-
das (i) podem mais facilmente ser amalgamadas a outros
elementos linguísticos: pelo, co’a, cocê, ao, àquela, no,
num, do, dum, disso, docê, pro, prum, praquilo, procê,
etc.; (ii) possuem valor semântico mais complexo; (iii)
podem funcionar como introdutoras tanto de argumentos
quanto de adjuntos de verbo; e (iv) são mais frequentes
que as menos gramaticalizadas (CASTILHO, 2010, p.
387-388).

Como se pode ver pelos exemplos, as mais gramaticalizadas são


por, com, a, em, de e para. O valor semântico mais complexo delas faz
com que sejam as que mais problemas causam para quem escreve; por
isso, serão examinadas mais detidamente do que as demais.

5.3.3.5 Sentidos de base (unitários) das preposições

Vamos acompanhar a disposição das preposições que faz NGPB


na seção 14.2.2 Semântica das preposições (p.596-608) nos quadros
dos eixos espaciais determinados por elas. Examinamos, a seguir cada
preposição dentro desse eixo a partir dos problemas que costumam
ocorrer em seu uso levando em consideração esta outra constatação
de NGPB a respeito da gramaticalização das preposições no português
brasileiro: Tem-se admitido que as seguintes preposições estão em
processo de substituição no PB, de que resultará o desaparecimento
da primeira:

1 A por em ou para
2 Em por ni
3 De por desde
4 Ante por diante de
5 Após por depois de

676
gramática e estilo

5.3.3.5.1 Eixo horizontal

Lemos na NGPB que “as preposições do eixo horizontal dispõem


a FIGURA [o escopo] em pontos específicos de um percurso imaginário:
o ponto inicial, ponto medial e ponto final” (CASTILHO, 2010, p. 596).

Ponto inicial: de, desde, a partir de.


Ponto medial: por, no meio de.
Ponto final: a, em, para, até, contra.

A linha horizontal fundamenta a metáfora geométrica


do movimento, do percurso que tem um começo, um
meio e um fim, através do qual nos deslocamos no
ESPAÇO e no TEMPO. Compreensível, portanto, que
as entidades aí depositadas sejam maiormente repre-
sentadas em movimento, real ou fictício (CASTILHO,
2010, p. 600).

As preposições de, desde, a partir de e outras locuções prepositivas


que podemos compor dispõem a FIGURA no ponto inicial de um eixo
horizontal; as preposições por, no meio de a dispõem no meio do caminho;
as preposições a, em, para, até, contra no ponto final.
Vamos inventar um percurso:

Vai de casa cantarolando pelo mato pra escola.


Vai na escola de casa cantarolando pelo mato.
Vai de casa à escola cantarolando pelo mato.

A preposição do início é de; a do meio é por; para o fim do percurso


dispomos de a e das que a estão substituindo no PB: para e em. Nestas
frases, em que o verbo está no presente do indicativo – vai –, o que
está sendo relatado é uma atividade comum cotidiana. As preposições
de, na e pra acentuam esse tom de atividade cotidiana: de casa indica

677
gramática e estilo

simplesmente o ponto de partida; pelo mato indica que ela passou pelo
mato e pra escola pode indicar apenas a direção que ela tomou.
Apenas a preposição a destoa pelo tom formal que agrega. Lemos
NA NGPB (p.590): “o desaparecimento progressivo de a deve explicar
as dificuldades atuais em operar com a questão da crase, tanto quanto as
flutuações na transitividade de verbos como agradecer que de transitivo
indireto caminha para transitivo direto” (CASTILHO, 2010, p. 590).
Maior relevo se pode dar a essa atividade com o uso de locuções
prepositivas e de preposições menos comuns, de menor complexidade
semântica:

Vai desde casa cantarolando pelo meio do mato até a escola.


Vai cantarolando desde casa pelo meio do mato até a escola.

A preposição desde enfatiza o ponto inicial da ida e, na segunda


frase, colocada depois de cantarolando, também do canto (de não implica
necessariamente que o canto tenha iniciado logo na saída de casa); pelo
meio de especifica mais claramente o itinerário – todo ele pelo mato e
pelo meio dele –, e até a escola indica que ela chegou na escola.
Examinemos o par de frases abaixo:

O samba nasce no coração.


O samba nasce do coração.

O verbo nascer marca o ponto inicial; a preposição em indica o


nascedouro – o coração – como continente; já a preposição de trata esse
nascedouro como a origem do movimento ali desencadeado pelo samba,
ou seja, o samba que nasce do coração tem a vocação de sair para cumprir
o percurso anunciado por aquele ponto de partida.
A partir daqui podemos determinar os sentidos de base (unitários)
das preposições em e de.

678
gramática e estilo

Em indica algo percebido como um continente ou como o transcurso


de um intervalo: no espaço – Entrou em casa –; no percurso – Na corrida
arrebatou-lhe o sorvete –; num intervalo de tempo – Tudo se resolverá
em 24 horas –; num limite de tempo – Em cem anos minha obra será
entendida; na indicação de uma situação posterior ou resultante – A flo-
resta converteu-se em deserto –; no resultado de uma operação mental:
Vivo pensado em você.
De tem uma evidente complexidade semântica em comparação com
desde e a partir de ou outra locução prepositiva que possamos compor
como desde o início de ou a partir do momento em, etc. O local de partida
de um percurso espacial marcado por de – De casa até aqui não cruzei
com ninguém – projeta-se para o tempo – De ontem para hoje ocorreu
uma mudança decisiva em nosso ânimo – e daí para outras noções que
indicam que alguma coisa se destaca da origem do seu escopo, se separa
dela, como, por exemplo, procedência: Minha família é da Fronteira;
causa: Com os olhos vermelhos de tanto chorar, sentou-se à mesa, ca-
bisbaixa; assunto: Trataram da compra do sítio; característica, modo
de ser ou de fazer: Ameaçou-o de rebenque erguido.
Vamos, então, examinar as possibilidades do ponto de chegada:

1 O menino chegou à janela – ele ficou nas proximidades da janela.


2 O menino chegou para a janela – ele se deslocou em direção à janela.
3 O menino chegou na janela – a janela é o lugar onde ele pretendia chegar.
4 O menino chegou até a janela – a janela seria o ponto final da jornada.

Desse modo, a trata do movimento; para indica o rumo; em tem sen-


tido de intencionalidade, pois a janela seria um continente; até exacerba
a ideia de finalidade. Essa distinção entre a indicação de local próximo
na preposição a e de continente na preposição em justificaria aquela
velha correção das tias letradas chatas – Não sentem na mesa; sentem à
mesa, que na mesa estão os pratos e talheres. Chatice similar à daquele
velho professor de Português que liberava seus alunos para atenderem

679
gramática e estilo

alguma necessidade premente, se eles pedissem para ir ao banheiro e


negava toda solicitação para ir no banheiro. Chatice mesmo porque o
costume é entrar no banheiro, o que faz dele um continente. Na MGP,
encontramos uma singela observação: “a língua padrão não agasalha
este emprego (Saltar em terra. Entrar em casa. De grão em grão.) com
os verbos vir, chegar, preferindo a preposição a: Ir à cidade; chegar ao
colégio” (BECHARA, 2015, p. 333).
Citando o DGV, a NGPB comenta:

[...] com os verbos ir, vir, levar chegar, conduzir, vol-


tar, mandar, descer etc. a preposição a indica a direção
desse movimento, como em ir ao restaurante, voltar
à fazenda, ao passo que a preposição em indica que o
falante não está interessado em representar a direção em
si, mas apenas a sua inclusão no ponto de chegada, como
em ir no restaurante, voltar na fazenda (CASTILHO,
2010, p. 590).

Certamente, a imensa maioria dos que querem ir ao banheiro está,


sem dúvida, interessada na sua inclusão nesse ponto de chegada, e a
tortura necessária para fazê-los interessarem-se pela mera indicação da
direção teria de ser bem mais cruel do que simplesmente obrigá-los a
fazerem xixi nas calças em plena sala de aula.
Se quiséssemos exemplificar o uso da preposição contra como
indicativa de ponto final de percurso com essa mesma frase – O menino
chegou contra a janela –, verificaríamos que vamos precisar de um verbo
de movimento mais forte e brusco, algo como isto: O menino chocou-se
contra a janela.
Vamos examinar os sentidos de base (unitários) das preposições a e
para. A indica proximidade ao fim do percurso – A duas quadras estava
montada a tocaia –; se o verbo for de movimento, indica aproximação
– Saíram à rua fantasiados de mulher. Indica o fim de um intervalo de

680
gramática e estilo

tempo – Daqui a cem anos, minha obra será entendida –; pode também
indicar a aproximação desse fim: Ao cair da tarde recolheram as vacas.
Aquilo a que se chega perto pode ser um estado de espírito – Fui do
espanto à estupefação –; pode ser uma meta – Depois de 20 anos chegou
ao topo da carreira –; pode ser o beneficiário de uma ação – Emprestei
as garrafas ao vizinho.
O que está perto pode estar na nossa mão, como um instrumento
que faz chegar nossa ação até onde queremos levá-la: Sempre escrevo
minhas cartas à máquina. No caso do instrumento, a indica a generali-
dade do instrumento; instrumentos específicos são indicados por com:
Sempre escrevo minhas cartas à máquina / Este memorando foi escrito
com uma máquina elétrica / Enxotaram-no a pedradas / Davi matou
Golias com uma pedrada na testa.
Para indica algo percebido como o ponto terminal de um movimento
– Vou para a casa de vovó – ou de um intervalo de tempo – Prometeu
o trabalho para amanhã. Na expressão de uma meta, para e a podem
substituírem-se um ao outro, como, por exemplo, na indicação da pessoa
a quem se quer levar algo: Emprestei as garrafas ao vizinho / Emprestei
as garrafas para o vizinho. Essa sinonímia só ocorre, no entanto, em
verbos que indicam movimento: Os colegas deram um presente a/para
o chefe. Ele fornece uísque a/para meu avô. Ela entregou a chave a/para
o zelador. Em verbos que não indicam movimento é preciso usar para:
Meu avô construiu uma casa para mim e não *Meu avô construiu uma
casa a mim; Compramos presentes para as crianças e não *Compramos
presentes às crianças; Guarde estas laranjas para Marina e não Guarde
estas laranjas a Marina.
Por causa da ideia de terminalidade, para tem uma componente
de permanência, que a, que indica proximidade, não tem; assim se
interpreta a diferença, no confronto destas duas frases – Vou à casa de
vovó – sem a intenção de lá ficar e – Vou para a casa de vovó – com a
intenção de lá ficar.

681
gramática e estilo

Por causa disso, verbos que implicam noção de permanência só


aceitam para: Mudou-se para o Rio de Janeiro e não *Mudou-se ao Rio de
Janeiro. Movimento com permanência limita com finalidade: Chamou-
-a para conversar. Chamou-o às falas não quer dizer a mesma coisa; é
uma expressão idiomática, que significa desafiar, exigir uma explicação.
Como interpretaríamos uma série semelhante à anterior com o verbo
estar, por exemplo, que não é de movimento?

1 O menino está à janela.


2 O menino está na janela.
3 O menino está para a janela.
4 O menino está até a janela.

Pra começar, a frase 4 – O menino está até a janela – não parece


fazer sentido; de fato, a preposição até, na sua simplicidade semântica,
indica o ponto final do percurso; como não há movimento, não há per-
curso; logo, não pode haver ponto final do percurso.
A frase 3 – O menino está para a janela – indica que o menino
pode ser visualizado ou procurado na direção da janela. Uma preposi-
ção complexa – O menino está pros lados da janela –, por exemplo, vai
expressar isso com maior clareza.
A frase 2 – O menino está na janela – e a frase 1 – O menino está à
janela – distinguem-se pelo grau de formalidade e indicam que o menino
pode ser visualizado como enquadrado pela janela; nenhuma delas quer
dizer que ele está dentro da janela. E que efeito produziria uma frase
como O menino está contra a janela? Neste caso também precisaríamos
de um verbo que expressasse um estar bem mais dinâmico: O menino
foi prensado contra a janela.

682
gramática e estilo

5.3.3.5.2 A / para / em

Nós escrevemos porque já lemos: foi a leitura que nos botou em


contato com a escrita já nos mostrando que a língua em que está escrito
o que lemos não é tal qual a língua que falamos. Mostrou-nos também
que o que é expresso por escrito tem um tipo de valor maior do que o
que podemos dizer falando. Esse valor maior nos bota a escrever tal
como está escrito o que já lemos, mas é muito comum a gente escrever
também algo que não saiu apenas do que já lemos, algo que saiu do que
dizemos quando falamos. A proporção entre esses dois produtos do que
escrevemos é desigual até porque o prestígio da fala e o da escrita são
desiguais entre os que são capazes de ler e escrever. Desigual também é
a dedicação que uns e outros dão às atividades de ler e escrever e desi-
guais são também as atitudes frente à relação entre fala e escrita no que
escrevem os que escrevem. Num limite, há os que só escrevem como se
escreve ou como pensam que se escreve, o que é a mesma coisa; no outro
limite está Patativa do Assaré, de quem vamos ver mais uma estrofe de
sua apresentação:

Meu verso rastêro, singelo e sem graça,


Não entra na praça, no rico salão,
Meu verso só entra no campo e na roça,
Na pobre paioça, da serra ao sertão.

Como o poema nasceu dentro da fala dele, da oralidade dele, é


preciso registrar por escrito tal como ele fala para que a escrita expresse
o seu amor ao som, à métrica e à rima até porque aqui também não há
outro jeito de obrigar o leitor a perceber a rima de paioça com roça.
Na língua que nós todos falamos, a preposição a está sendo subs-
tituída ou por para ou por em: “já a troca de a por em representa quase
um atestado de óbito para aquela”, registra a NGPB (CASTILHO, 2010,
p. 590). Na língua em que escrevemos, porém, essa agonia é muito,

683
gramática e estilo

muito lenta. Por isso, vamos ter de nos ocupar com a preposição a, com
a preposição em e com a preposição para convivendo até numa mesma
frase. Se, tal qual o Patativa (que se chama Antônio Gonçalves da Silva),
a gente se dedicar a escrever para se expressar e não para apaziguar o
fantasma do colonialismo que ainda tenta nos convencer de que língua
boa para nós não é a nossa, é melhor a gente usar cada uma das duas a
nosso favor. O professor que aqui escreve vai dar um depoimento em
primeira pessoa:
Quando escrevi esta parte de um relato de uma das minhas experi-
ências profissionais, apareceu aquela preposição a, que está em negrito
lá no fim da última frase:

Para me desenredar, proclamei que redação jornalística era ques-


tão de prática profissional e que eu trataria de questões básicas e
fundamentais da habilidade de escrever, no rastro das quais me pus,
através do emaranhado de frases com que meus alunos passaram
a responder às propostas de textos que eu ia apresentando a eles.

Me ocorreu, então, testar o efeito que para produziria no lugar


daquele a:

...através do emaranhado de frases com que meus alunos passaram


a responder às propostas de textos que eu ia apresentando para eles.

Mantive a eles porque a noção de proximidade sem aproximação


(sem movimento) em a eles como que fazia essas propostas de texto sur-
girem do nada, bem perto da cara deles, como desafios. Já as propostas de
textos que eu ia apresentando para eles poderiam ter sido apresentadas
de longe, mais como demonstração do que como pedrada. Isto é uma
interpretação que justifica a escolha da preposição a neste caso, mas isso
não quer dizer que essa seja a preposição certa. Minha convicção é que a
gente não escreve pra acertar; a gente escreve pra dizer o que quer dizer,
no modo em que quer dizer.

684
gramática e estilo

Já na frase Só não gostei de sua reportagem naquele trecho em


que alude para a questão dos anticoncepcionais, quem já se deparou
com esse verbo em suas leituras vai lembrar de tê-lo visto regendo a
preposição a. Se for conferir no DGV, vai encontrar isto a respeito
de aludir: “Indica ação. Constrói-se com sujeito agente e com com-
plemento da forma a+nome” (BORBA, 1990, p. 87). Como o efeito
do uso de para seria apenas produzir estranhamento no leitor sem lhe
proporcionar nenhuma compensação expressiva, a observância do
costume estabelecido na língua escrita para quem escreve e para quem
lê é a transparência da expressão, o que leva diretamente ao sentido
desejado, ou seja, é o efeito contrário ao da escolha feita no exemplo
anterior, em que a preposição a foi escolhida justamente para a obtenção
de um outro deliberado efeito.
A sinonímia de a e para costuma ser mobilizada para simplificar a
explicação do acento grave que assinala a crase do à, com a singela dica:
tem crase quando é a+a ou a+para. Essa manobra singela até pode ajudar
a identificar preposição + artigo em 1 abaixo recorrendo a 1ª (para+a
= a+a); no entanto pode induzir à crença numa sinonímia irrestrita entre
a e para, que, como já vimos, pode levar à produção de frases tal qual 2
a seguir, em que a preposição a não é adequada:

1 Deram um presente à tia dele.


1a Deram um presente para a tia dele.
2 Compraram um presente à tia dele.
2a Compraram um presente para a tia dele.

A preposição a, como vimos, indica o ponto final de uma trajetória


mas não indica movimento; por isso, funciona com o verbo que indica
movimento – deram –, mas não com compraram, que não indica o movi-
mento na direção do beneficiário do presente. Para indicar o movimento
que leva o presente até a tia, é necessária a preposição para, que é for-
mada por per (que resultou em por) + ad (que resultou em a) adquirindo

685
gramática e estilo

o movimento de por, no ponto medial do percurso, e a proximidade da


a, no fim do percurso.
Há uma outra forma de explicar a pertinência de para e a inade-
quação de a no caso de Compraram um presente a/para a tia dele: à tia
dele é o objeto indireto em Deram um presente à tia dele (deram-lhe)
e para a tia dele é um adjunto adverbial em Compraram um presente
para a tia dele. O verbo dar atribui o papel temático de beneficiário a
a tia dele. Como se costumava explicar, quem dá dá alguma coisa – um
presente, no caso – a alguém – à sua tia, no caso. Já o verbo comprar
não atribui esse papel temático: quem compra compra alguma coisa e
não precisa dar a ninguém.
Já a lenta e progressiva substituição de a por em na língua que
falamos pode tanto levar a essa substituição também na língua escrita
quanto provocar um esbaforido Salvem o a no que se escreve. Pode tam-
bém contribuir para o aumento de candidatas a substitutas de a. Vamos
examinar estas frases:
1 Acomodado na sala de Valmor, Pedro, receoso de criar falsas
expectativas ao amigo desempregado, esclareceu que ele ainda não
estava se demitindo.

A preposição em parece compatibilizar com o lugar onde algo se


cria, com o continente das expectativas, que é o amigo.

1a Acomodado na sala de Valmor, Pedro, receoso de criar falsas


expectativas no amigo desempregado, esclareceu que ele ainda não
estava se demitindo.

Podemos experimentar a preposição para:

1b Acomodado na sala de Valmor, Pedro, receoso de criar falsas


expectativas para o amigo desempregado, esclareceu que ele ainda
não estava se demitindo.

686
gramática e estilo

Neste caso, as expectativas seriam criadas dentro de Pedro, que


as transferiria a Valmor, mas podemos também achar que, nesse caso,
um verbo como transferir ficaria melhor do que criar. Enfim, verbos e
preposições precisam compatibilizar-se.

2 A alimentação tornar-se-ia escassa, provocando a fome a todos os


habitantes do Planeta.

A preposição em seria mais adequada porque a fome atua lá dentro


de cada um dos habitantes do planeta, que são todos potencialmente
continentes da fome.

2a A alimentação tornar-se-ia escassa, provocando a fome em todos


os habitantes do Planeta.

3 É preciso prestar atenção no que se escreveu para ver para onde


o texto está nos levando.

Temos um caso típico da anunciada substituição de a por em, o que


pode nos levar a considerar que a escolha de a produza formalidade e a
de em produza informalidade.

3a É preciso prestar atenção ao que se escreveu para ver para onde


o texto está nos levando.

4 Não cremos que se conseguirão melhores resultados insistindo a


ensinar teoria gramatical na escola.

Está em curso uma ação dos comandos Salvem a preposição a: no


DGV, encontramos em, para e por a ligar insistir com seus complementos
(BORBA, 1991, p. 841). Em é a preposição mais usada:

4a Não cremos que se conseguirão melhores resultados insistindo


em ensinar teoria gramatical na escola.

687
gramática e estilo

5 Foi motivo de grande orgulho, a mim e aos meus familiares, ser


uma das duas pessoas convidadas para aquela viagem.

Temos outra manifestação restauracionista: não há movimento em


Foi motivo de grande orgulho para levar o orgulho ao eu que fala; vai
ser necessário recorrer a para:

5a Foi motivo de grande orgulho, para mim e para os meus familiares,


ser uma das duas pessoas convidadas para aquela viagem.

5.3.3.5.3 Precisa mesmo de a ou para?

Do ponto de vista da avaliação que os leitores (entre eles, o profes-


sor) vão fazer a respeito do autor, o uso inadequado de uma preposição
mais chique com a intenção de parecer mais chique é o que causa a pior
impressão. Nem todos os complementos que têm o traço humano impli-
cam uma preposição e nem sempre a necessária preposição é a. Vamos
examinar estas frases:

1 Visto a todos os detalhes de grande importância, pode-se afirmar


que o trabalho é excelente.

Há uma inadequada e desnecessária preposição a ligando ver ao seu


sujeito nesta voz passiva reduzida; o que pode fazer falta para atestar a
proficiência que o autor quis alardear é a concordância:

1a Vistos todos os detalhes de grande importância, pode-se afirmar


que o trabalho é excelente.

A frase poderia ser um pouquinho menos formal:

1b Agora que já examinamos os detalhes mais relevantes, podemos


afirmar que o trabalho é excelente.

688
gramática e estilo

2 Nosso sistema de bolsas-trabalho quer estimular mais aos estudan-


tes com menos possibilidades financeiras.

A preposição a está em desvio de função: com o verbo estimular


a preposição a introduz o complemento que geralmente se expressa
por meio de uma oração infinitiva, como registra Francisco Borba no
Dicionário de usos do português do Brasil (DUPB) (2002, p. 641)62:
O Mobral estava pretendendo estimular o alfabetizador a combater a
evasão dos estudantes. Aqui o alfabetizador equivale a os estudantes,
objetos diretos, simétricos ao pronome o/os:

2a Nosso sistema de bolsas-trabalho quer estimular mais os estudan-


tes com menos possibilidades financeiras.

Podemos acrescentar o complemento introduzido pela preposição a:

2b Nosso sistema de bolsas-trabalho quer estimular mais os es-


tudantes com menos possibilidades financeiras a se qualificarem
profissionalmente.

3 O país continuará dominado por interesses que superam ao nosso


nacionalismo.

A preposição a também foi convocada só para fazer bonito; na ver-


dade, há apenas um registro no DGV – também destinado a impressionar
o leitor e mais caprichado ainda porque tem origem oratória – em que
aparece a em construção semelhante à da frase original: Superai-vos
a vós mesmos cada ano (BORBA, 1990, p. 1270). Em todas as outras
ocorrências não há preposição alguma:

3a O país continuará dominado por interesses que superam o nosso


nacionalismo.
62 BORBA, Francisco da Silva. Dicionário de usos do português do Brasil. São Paulo: Ática,
2002.

689
gramática e estilo

4 Todos aplaudiram ao quinteto de cordas.

Temos um caso típico de adesismo a uma elocução mais chique


mediante o uso de a. Em DGV não há registro de a em complementos
de aplaudir.
4a Todos aplaudiram o quinteto de cordas.

5 Acredito que as leituras, feitas desde o primário, auxiliaram para


o desenvolvimento de ideias.

A preposição para é redundante; o DGV não registra preposição no


complemento de auxiliar que expressa o beneficiário do auxílio (BOR-
BA, 1990, p. 196).

5a Acredito que as leituras, feitas desde o primário, auxiliaram o


desenvolvimento de ideias.

6 Chegar aos 18 anos e ter de escolher uma profissão provoca inde-


cisão para todo mundo.

Aparece a preposição para, que não comparece em nenhum dos


exemplos listados em no DGV (BORBA, 1990, p. 1072). A preposição
a aparece em Mas por que provocar decepção a um rapaz? Podemos
conjeturar que a preposição em é bem mais adequada para expressar o
continente da indecisão, mas a preposição em também não comparece
nos exemplos do DGV. No entanto, no DUPB está registrado: A parte
submersa é formada por tentáculos muito compridos que provocam quei-
maduras dolorosas e desmaios nos banhistas (BORBA, 2002, p. 1290).

6a Chegar aos 18 anos e ter de escolher uma profissão provoca


indecisão em/a todo mundo.

7 Ele gosta tanto de esporte que não se entusiasma aos estudos do


colégio.

690
gramática e estilo

Não há registro nem com a nem com para no DGV (BORBA, 1990,
p. 643). Há com e por causativos: O gado entusiasmava-se com os gritos
de Berto / Os pais e os mestres entusiasmavam-se por essas vocações de
intelectuais e artistas precoces. Considerando-se os estudos do colégio
também como causativo (Os estudos do colégio não o entusiasmavam
porque ele gostava muito de esporte) podemos usar por, que também
aparece no DUPB: Os técnicos agrícolas se entusiasmam passageira-
mente por certas providências (BORBA, 2002, p. 583).

7a Ele gosta tanto de esporte que não se entusiasma pelos estudos


do colégio.

Como a necessidade de explicitar que tais estudos são os do colé-


gio e não os de outra instituição muito raramente vai ocorrer, podemos
pensar em redundância nessa frase, que pode ser mais concisa sem ser
menos informativa:

7b Ele gosta tanto de esporte que não se entusiasma pelos estudos.

8 É lastimável que um país como os EUA, que nada tem a ver com o
Brasil, se intrometa a nós.

O complemento a nós é claramente locativo e ficaria mais adequa-


damente expresso por em, entre, no meio de, que aparecem no DGV
(BORBA, 1990, p. 853). No caso, entre é mais indicado.

8a É lastimável que um país como os EUA, que nada tem a ver com
o Brasil, se intrometa entre nós.

Podemos arguir que intrometer é um verbo inadequado para a gra-


vidade da questão que a frase levanta, o que evidentemente demandaria
um exame do texto de que ela faz parte.

691
gramática e estilo

5.3.3.5.4 Em / para / de / por

Examinemos estas frases:

1. O trabalho feminino é muito importante, pois possibilita à mulher


de tornar-se independente financeiramente.

Aparece a preposição de, que não está registrada no DGV (BORBA,


1990, p. 1032).

1a O trabalho feminino é muito importante, pois possibilita à mulher


tornar-se independente financeiramente.

2 Como não estava decidida da profissão que queria seguir, fiquei


um ano sem estudar.

Aqui aparece a preposição de relacionada ao verbo decidir; o DUPB


registra a preposição por em casos semelhantes: Caso se decidam por
uma luta armada... (BORBA, 2002, p. 444).
2a Como não estava decidida pela profissão que queria seguir, fiquei
um ano sem estudar.

3 Isto se deve também por falta de professores, profissionais com-


petentes e conscientes.

O verbo dever significa ser devedor, no sentido de ser causado por,


que tem um complemento a+nome (BORBA, 1990, p. 511). A preposição
por não é uma adequada substituta de a:

3a Isto se deve também à falta de professores, profissionais compe-


tentes e conscientes.

4 Acabei adquirindo o hábito pela leitura e foi por isso que acabei
escolhendo o curso de Letras para cursar.

692
gramática e estilo

O uso de por contraria o uso corrente da expressão hábito da leitura,


tão corrente quanto contestada pelos que gostariam que as crianças, mais
do que apenas o hábito, adquirissem o gosto pela leitura. É possível que
o uso de por tenha sido uma decorrência dessa polêmica. É possível tam-
bém que o uso de por em gosto pela leitura, que poderia, sem infração
à gramática, expressar-se como gosto da leitura, decorra de um reforço
enfático da contraposição ao hábito de.

4a Acabei adquirindo o hábito da leitura e foi por isso que acabei


escolhendo o curso de Letras para cursar.

5 Depois tínhamos que falar sobre o livro que havíamos lido para
os colegas. Estes relatos eram interessantes e nos faziam ter curiosi-
dade dos livros que os colegas tinham lido e acabávamos lendo eles
também, por vontade própria

Aparece curiosidade dos livros. Neste caso, curiosidade dos livros


pode levar ao entendimento mais comum da preposição de, que é o atri-
buto – a curiosidade própria dos livros, a curiosidade que os livros têm.
O DUPB registra para o complemento de curiosidade as preposições em,
sobre, de, por, para, e, para o caso de de, apresenta este exemplo: Rosana
queria apenas satisfazer a curiosidade de dar uma volta de asa delta
(BORBA, 2002, p. 434). Nesta frase, não há nenhuma ambiguidade na
interpretação como atributo já que dar uma volta de asa delta é a natureza
da curiosidade própria da personagem. Para expressar que a curiosidade
é dos participantes do evento pelos livros, nada mais claro do que usar
a preposição que indica o caminho que leva a eles:

5a Depois tínhamos que falar sobre o livro que havíamos lido para
os colegas. Estes relatos eram interessantes e nos faziam ter curio-
sidade pelos livros que os colegas tinham lido e acabávamos lendo
eles também, por vontade própria.

693
gramática e estilo

Lendo eles nesta frase, assim como está, no lugar onde está, provoca
alguma dor no ouvido?

6 Logo depois, decidi por cursar Letras na UFRGS em busca de como


ser um melhor escritor.

O verbo decidir – decidi por cursar Letras – já expressa o cami-


nho a seguir; por isso, a preposição que expressa o caminho – por – é
dispensável.

6a Logo depois, decidi cursar Letras na UFRGS em busca de como


ser um melhor escritor.

7 Acabei adquirindo o hábito da leitura, que, com o tempo, acabou


se tornando em hábito da escrita.

Aparece a preposição em; O DGV registra a preposição em apenas


nos casos de dois complementos – Cristo tornou a água em vinho –, caso
em que tornar funciona tal qual transformar (BORBA, 1990, p. 1300).
Em transformar, há regularmente dois complementos, o que se trans-
forma e o que resulta da transformação: A Proclamação da República
transformou as províncias em estados (BORBA, 1990, p. 1309). Nos
casos em que tornar tem um só complemento, não há preposição porque
não há propriamente uma transformação. Em o hábito da leitura acabou
se tornando hábito da escrita, não há perda do hábito anterior; há uma
passagem para um outro estágio de uma mesma prática.

7a Acabei adquirindo o hábito da leitura, que, com o tempo, acabou


se tornando hábito da escrita.

A preposição por leva além do percurso já iniciado, leva ao itine-


rário: em começar do começo há uma ideia locativa muito forte; já em
começar pelo começo está muito clara a ideia de que esse começo é o

694
gramática e estilo

ponto inicial de um itinerário: Veio pela floresta. Daí projeta-se para a


indicação de algo percebido como um intervalo de tempo: Esteve aqui
por uma hora. As noções de itinerário e intervalo limitam com as noções
de agente e instrumento, o caminho abstrato que leva ao fim desejado:

Agente – Foi reconhecido apenas por seu velho cão.


Instrumento – Casou-se com ele por procuração.
Causa – Apaixonou-se perdidamente pela vizinha.

5.3.3.5.5 Eixo vertical

As preposições no eixo vertical equilibram-se entre o movimento


e a ausência de movimento (BORBA, 1990, p. 600):

Posição superior: sobre, em cima de, por cima de.


Posição inferior: sob, embaixo de, debaixo de.

Neste eixo, há apenas duas preposições simples – sobre e sob –,


que estão entre as menos gramaticalizadas e não são de semântica muito
complexa. Vejamos os sentidos de base destas duas preposições:
Sobre indica algo que se percebe a partir de seu limite inferior ou
inicial; assim, no espaço – Pôs os cotovelos sobre a mesa e chorou como
uma criança –; no tempo – Saíram sobre a hora marcada. Essa ideia
de início se transpõe para o que é apresentado ou passa a ser referido,
tratado, discutido: Nada tenho a declarar sobre esse roubo. Há um
verso numa canção de Hermes Aquino – E a namorada analisada por
sobre o divã... – em que se combinam o movimento de por e a extensão
espacial de sobre, o que nos faz perceber o estiramento da namorada na
superfície do divã.
Sob indica algo que se percebe a partir de seu limite superior; assim,
no espaço – Sentaram-se sob o guarda-sol –; no tempo – Sob a ditadu-
ra, nasceu um sindicalismo autêntico. Esse limite superior expressa o

695
gramática e estilo

ponto de vista: Examinada a questão sob esse ponto de vista, teremos


de repensar nossa participação no empreendimento.
Vamos examinar estas frases:

1 No presente trabalho, desejo abordar sobre qual seria a postura


pedagógica capaz de tornar mais prazeroso o ato de ler e escrever,
considerando que esta é tarefa de todas as áreas.

O sentido básico da preposição sobre – a posição de quem tem o


poder de circunscrever o escopo, como se estivesse olhando de cima – já
está no verbo abordar: quem aborda alguma coisa ou um assunto, um
tema, faz isso a partir de um ponto de vista externo e abrangente, de cima;
logo, não há necessidade dessa preposição:

1a No presente trabalho, desejo abordar a postura pedagógica que


seria a mais capaz de tornar mais prazeroso o ato de ler e escrever,
considerando que esta é tarefa de todas as áreas.

2 Eu me questionava do que seria realmente felicidade.

O sentido básico da preposição sobre não está em questionar, que


expressa um envolvimento de quem questiona com o que é questionado
e não a posição superior de quem se pronuncia. Aqui cabe a preposição
sobre, necessária para determinar o foco, o tema:

2a Eu me questionava sobre o que seria realmente felicidade.

3 Considero de extrema importância enfocar a respeito da situação


mencionada, pelo fato de ter vivenciado, por diversas vezes, situações
desrespeitosas provocadas por alguns colegas de outras áreas do
conhecimento, afirmando que nós, da língua portuguesa, somos os
únicos responsáveis pelo desprazer da leitura e da escrita dos alunos.

696
gramática e estilo

O verbo enfocar, tal qual abordar, já expressa o foco posto sobre o


tema, dispensando a preposição sobre:

3a Considero de extrema importância enfocar a situação men-


cionada, pelo fato de ter vivenciado, por diversas vezes, situações
desrespeitosas provocadas por alguns colegas de outras áreas do
conhecimento, afirmando que nós, da língua portuguesa, somos os
únicos responsáveis pelo desprazer da leitura e da escrita dos alunos.

4 Nota-se facilmente que não há uma boa aceitação pela parte mas-
culina sobre a concorrência da mulher no trabalho.

Em aceitação, que predica a parte masculina e a concorrência da


mulher, não há uma postura que envolve algum tipo de superioridade; daí
a inadequação de sobre. Se somarmos a canhestrice da expressão parte
masculina para designar os homens e a do adjetivo boa para aceitação (o
que implicaria uma contraditória aceitação ruim), a frase fica praticamente
inviável; mesmo assim, tentemos consertar:

4a Nota-se facilmente que os homens não aceitam sem relutância a


concorrência da mulher no trabalho.

5.3.3.5.6 Eixo transversal

Na NGPB, consta o seguinte:

As preposições do eixo transversal representam o ES-


PAÇO também tomando por referência a orientação do
corpo humano: olhando para frente se constrói o ESPAÇO
ANTERIOR. Olhando para trás se constrói o ESPAÇO
POSTERIOR. A visão, portanto, assume um papel im-
portante na postulação deste eixo. Valores temporais de
futuro e passado, respectivamente, derivaram daqui. À
nossa frente, miramos o futuro. Às nossas costas, o pas-
sado (CASTILHO, 2010, p. 601).

697
gramática e estilo

Posição anterior: ante, diante, perante, diante de, antes de, em


frente de, em face de, defronte (de, a).
Posição posterior: trás, por trás de, atrás de, após, depois de.
Aqui há cinco preposições simples: ante, diante, perante, trás, após.
Como já vimos na NGPB, ante está sendo substituída por diante de, e
após por depois de. E onde ainda se usa trás em vez de atrás de? E onde
aparece diante além da expressão levar tudo por diante? Sobram, então,
neste eixo, ante e perante. Em que elas se distinguem?
Ante indica algo já existente ao ser percebido, algo com que se
confrontar; assim, no espaço: Foi intimado a comparecer ante o juiz.
Não funciona mais para indicações de tempo, substituída que foi pela
locução prepositiva antes de. Permanece apenas como prefixo: anteon-
tem, antediluviano, antevéspera.
Segundo o DUPB (p. 89), ante é sinônimo de perante na indicação
de posição fronteira: Os criados, ante os patrões, sempre se mostram
calados. Além disso, ante indica causa: ...desarvorado ante a perspectiva
de se afastar da empresa (BORBA, 2002, p. 89). Esta acepção de causa
não está atribuída a perante: às 9 horas se iniciou o comício perante
dois mil assistentes (BORBA, 2002, p. 1184).
Podemos conjeturar que a diferença entre Os criados, ante os
patrões, sempre se mostram calados e Os criados, perante os patrões,
sempre se mostram calados seria a percepção mais espacial, mais presen-
cial em perante – Os criados ficam calados na presença dos patrões – e
uma percepção mais causal em ante – Os criados ficam mais calados
porque tais criaturas são os patrões.
Se compararmos ante e perante, de um lado, e diante de, de outro,
podemos ver uma certa formalidade em comparecer ante o juiz, ou pe-
rante o juiz, e informalidade em ficar diante do juiz e um crescente grau
de descrição espacial, nessa ordem.

698
gramática e estilo

Após indica algo percebido como já esgotado, já passado ou acon-


tecido, algo com que já não se pode mais confrontar: no espaço, como
em – Entraram na caverna após os ladrões – ou tempo, como em – Após
o jantar, foi sentar na calçada.
Vamos examinar estas frases:

1 Nesse contexto dual, enquanto uns se enfureciam e outros se ama-


vam, eu fui crescendo e comecei a frequentar a pré-escola. Lá, havia
muitas pessoas diferentes, um tanto quanto bizarras, porém legais.
Tinha colegas negros, brancos, pequenos, grandes, gordos, magros,
de tudo quanto é lugar. Meu estranhamento perante eles foi grande,
mas superado.

Não se trata de descrever uma cena, mas de delinear um sentimento;


logo, ante é bem mais adequado:

1a Nesse contexto dual, enquanto uns se enfureciam e outros se


amavam, eu fui crescendo e comecei a frequentar a pré-escola. Lá,
havia muitas pessoas diferentes, um tanto quanto bizarras, porém
legais. Tinha colegas negros, brancos, pequenos, grandes, gordos,
magros, de tudo quanto é lugar. Meu estranhamento ante eles foi
grande, mas superado.

2 Acreditei que, se eu identificasse esses motivos, poderia buscar


recursos que levassem os alunos a mudarem seu comportamento
perante as aulas, adquirindo, assim, o gosto pela produção de textos
e pelas leituras.

Perante é tão inadequada quanto seria ante porque os alunos não


estão nem mesmo posicionados diante das aulas; eles estão nas aulas,
dentro delas: as aulas os contêm. A preposição adequada é em, que ex-
pressa esse continente.

699
gramática e estilo

2a Acreditei que, se eu identificasse esses motivos, poderia buscar


recursos que levassem os alunos a mudarem seu comportamento nas
aulas, adquirindo, assim, o gosto pela produção de textos e pelas
leituras.

3 Perante a insistência da moça levei-a para a casa da praia.

A preposição perante, usada para expressar causa, pode produzir


ambiguidade por causa de seu sentido predominantemente locativo: a
frase pode ser lida como se o eu que fala tenha levado outra pessoa para
a praia diante dessa moça que insistia, na frente dela. Esse confronto
mais abstrato, mais causal, se expressa por ante.

3a Ante a insistência da moça levei-a para a casa da praia.

5.3.3.5.7 Eixo proximal / distal

Lemos na NGPB o seguinte:

As preposições do eixo proximal / distal localizam a


FIGURA num eixo próximo ou distante em relação ao
PONTO DE REFERÊNCIA. As noções que configuram
este eixo são maiormente expressas por advérbios. A utili-
zação dessas preposições acarreta noções de “copresença”
para o traço /proximal/ e de /ausência/ para o traço /distal/
(CASTILHO, 2010, p. 604).

Proximal: a, com, junto com, perto de.


Distal: sem, longe de, distante de.

A preposição a está no eixo proximal em locuções como à beira


mar ou em frases como Moram num ranchinho à borda do mato. Essa
talvez seja a função de a mais usurpada por em: na beira do mar; na

700
gramática e estilo

borda do mato. A preposição com indica proximidade; lembremos Be-


chara, indicando copresença: Ela saiu outra vez com aquele rapaz. Essa
proximidade pode ser amistosa ou belicosa, mas esses traços opostos
são indicados por outros componentes da frase, no texto ou no contexto:
Com quem joga o Colorado neste fim de semana? / Contra quem joga
o Colorado neste fim de semana? Na verdade, ninguém vai entender
que com quem joga está perguntando que time vai jogar junto com o
Colorado, lado a lado, contra algum outro terceiro time. Essa existência
ou presença simultânea e solidária expressa-se no espaço – Passeava
com seu cachorro –; no tempo – Chegou com atraso –; na indicação de
solidariedade – Todos nós estamos com você.
Dessa ideia de simultaneidade solidária derivam as seguintes noções
de companhia – Reuniu-se com seu bando no deserto –; instrumento
– Abriu a fruta com o facão – característica – Abriu-lhe a porta uma
moça com um sorriso simpático. Essa expressão de característica pode ser
usada para fazer passar uma noção concessiva: Com todo o seu charme
e dinheiro, não foi capaz de conquistar a moça.
Sem indica algo que se percebe por sua ausência, por sua distância:
Vagaram sem rumo pelo deserto; Entrou sem cumprimentar ninguém.
Também pode indicar uma ideia concessiva: Sem ser formado, era um
excelente jornalista.
A presença simultânea e solidária de com pode ser subvertida por um
dos seus antônimos: Gustavo Alexandre e Pompília Augusta casaram-se
um contra outro no dia 13 de novembro de 2017, sexta-feira.
Vamos examinar estas frases:

1 Com a dependência que temos social, política, econômica e psicoló-


gica com nossas famílias não nos idealizamos como seres individuais.

A dependência não coloca o dependente no mesmo plano em que


está aquilo de que ele depende; não cabe, por isso, a preposição com.

701
gramática e estilo

Em depender ou dependência, expressa-se uma reduplicação de prefixo


e preposição: de+pender de, o que ocorre também com com+cordar
com, des+tacar-se de, etc.

1a Com a dependência que temos social, política, econômica e psico-


lógica de nossas famílias não nos idealizamos como seres individuais.

2 Só fui vencer a minha aversão com a escrita depois de ter entrado


para o curso de Letras.

Aversão é justamente o que expressa a repulsa da copresença; daí


a inadequação de com; O DUPB registra as preposições a, por e contra
(BORBA, 2002, p. 170), o que talvez exprima uma escala do menor pro
maior:

2a Só fui vencer a minha aversão à escrita depois de ter entrado


para o curso de Letras.

3 Só aceitei seu convite para passearmos e conversar para me certifi-


car de que desta vez eu tinha o sentimento certo com a pessoa certa.

A inadequação de com talvez decorra do fato de que, no estágio


vigente da relação, não parece haver compartilhamento de sentimentos,
o que levaria a com. Neste estágio, o que há é um direcionamento do
sentimento de um – o que fala – para a pessoa certa:

3a Só aceitei seu convite para passearmos e conversar para me cer-


tificar de que desta vez eu tinha o sentimento certo pela pessoa certa.

4 Esse é outro órgão que contribui muito com a solução do problema.

Aparece um dos complementos de contribuir relacionado ao verbo


pela preposição que seria mais adequada para o outro; o DGV registra
para contribuir: Indica ação com sujeito agente e com dois complementos

702
gramática e estilo

apagáveis, um por vez: um da forma com+nome não animado e outro,


de finalidade. E exemplifica: O notável lexicografo contribuiu com sua
experiência para a elaboração do dicionário (BORBA, 1990, p. 339). Por
analogia, o complemento apagado na frase 4 é o que teria sido antecedido
por com; o que está explícito é o de finalidade, introduzido por para:
4a Esse é outro órgão que contribui muito para a solução do problema
(com seus sábios conselhos).
5 Nesse ponto ela tem razão: não posso discordar com ela.

Teríamos um outro caso de reduplicação entre prefixo e preposição


– dis+cordar de; para discordar com ela, teríamos, eu e ela, de concordar
em discordar de uma terceira pessoa. Aqui é o caso de uma preposição
que separa para compatibilizar com o afastamento que há em discordar:

5a Nesse ponto ela tem razão: não posso discordar dela.

6 Com esta tranquilidade acabei me interessando mais com assuntos


desta natureza.

Interessar-se também envolve movimento em direção ao escopo,


tal como sentimento na frase 3; a preposição que expressa essa aproxi-
mação é por:

6a Com esta tranquilidade acabei me interessando mais por assuntos


desta natureza.

5.3.3.5.8 Eixo continente / conteúdo

Vejamos o que diz a NGPB:

Nas preposições do eixo continente / conteúdo, a FIGU-


RA é considerada como um conteúdo que será localizado
dentro ou fora do espaço verbalizado através do PONTO

703
gramática e estilo

DE REFERÊNCIA, interpretado como um continente,


real ou imaginário. O mundo, uma cidade, uma sala, uma
situação, um momento são imageticamente considerados
como um continente, dentro do qual é possível situar um
conteúdo expresso pela FIGURA. Os estados predicados
por essas preposições são predominantemente estáticos
(CASTILHO, 2010, p. 606).

Espaço interior – em, entre, dentro de, em meio de.


Espaço exterior – fora de, na ausência de.
Neste eixo está a grande vocação da preposição em, que expressa o
continente e se expande para a sua periferia, tomando conta do território
da preposição a; além do em aqui está a preposição entre, que indica algo
percebido por causa daquilo que o limita: no espaço – Acabaram ficando
entre dois fogos –; no tempo – Chegaram entre o almoço e a sesta –;
num estado de espírito – Entre ansiosa e feliz, perguntava a toda a hora
pela chegada do trem.
Vamos examinar estas frases:

1 Quando percebo, lá estou, meio tonta de fome, entre aquela multidão


que disputa uma vaga na fila.

A preposição entre, que localiza o escopo no meio do que o ladeia,


passa a impressão de duas multidões, uma de cada lado do eu que fala
na frase. O leitor procura algum motivo que tenha levado o autor a usar
entre em vez de em ou de alguma locução que não daria esse mesmo
trabalho a ele. Se ele não achar um bom motivo para a trabalheira vã,
vai classificar o autor como pedante, no mínimo.

1a Quando percebo, lá estou, meio tonta de fome, no meio daquela


multidão que disputa uma vaga na fila.

704
gramática e estilo

O que poderia justificar o uso de entre seria, por exemplo, uma


localização da narradora entre dois ou mais grupos identificáveis de
componentes da multidão:

1b Quando percebo, lá estou, meio tonta de fome, entre aquela multi-


dão que disputa uma vaga na fila: à esquerda, os velhos fãs, contem-
porâneos de Paul McCartney, tomando cerveja no gargalo; à direita,
menininhas de, no máximo, 13 anos mascando chicletes; um pouco
mais à frente, mulheres que pareciam filhas dos beberrões e mães
das menininhas; lá pra trás, uma mistura de homens de meia-idade
e garotões que pareciam estar disputando um concurso da botina
que mais se assemelhasse às usadas pela banda nos velhos tempos.

2 Perto do grande galpão havia uma parreira que fazia sombra a


uma mesinha de pedra.

A preposição a dá um tom solene à descrição: fazer sombra a parece


uma expressão que quer dizer mais do que impedir que o sol esquente
a mesinha. Se a intenção não era essa, é melhor usar em, que expressa
com clareza o que está posto na sombra, o que está contido pela sombra.

2a Perto do grande galpão havia uma parreira que fazia sombra


numa mesinha de pedra.

3 A educação é um bem público, sendo assim dever do Estado em


oferecer ensino público e gratuito para todos.

Há uma preposição em introduzindo indevidamente o sujeito ora-


cional da frase: (é) dever do Estado oferecer...; a expressão sendo assim
funciona como uma conjunção.

3a A educação é um bem público; sendo assim, é dever do Estado


oferecer ensino público e gratuito para todos.

705
gramática e estilo

4 Devemos dar uma atenção para os jovens que hoje cursam nos
colégios e faculdades, que mais tarde serão o futuro da nação.

A preposição em inclui os jovens nesses lugares onde se cursa, o


que está de acordo com o sentido básico da preposição em como o con-
tinente adequado para o exercício dessa ação; no entanto, nem o DGV
nem o DUPB registram qualquer uso de cursar com preposição em. Isso
quer dizer que está errado usar preposição em com o verbo cursar? Não;
isso quer dizer que a pesquisa feita pelos dois dicionários não encontrou
quem tivesse sentido necessidade dessa preposição para o entendimento
do que seja cursar os colégios e faculdades e outras instituições onde se
cursa. Podemos conjeturar que, se algum poeta (ou mesmo um prosador
caprichoso), um dia, sentir necessidade de uma sílaba a mais depois de
cursar, ele pode, sem pudor, lançar mão da preposição em, já que ela
compatibiliza com esse verbo. Sem essa necessidade, seguimos a reco-
mendação estilística da concisão:

4a Devemos dar uma atenção para os jovens que hoje cursam colégios
e faculdades, que mais tarde serão o futuro da nação.

Poderíamos também perguntar ao autor da frase: em que momento


mais tarde esses jovens se tornarão o futuro da nação e o que eles serão
até lá e até mesmo quem, neste momento, é o futuro da nação? Só os
que já terminaram de cursar? Enfim, quem lê textos com a obrigação de
dar palpites pedagógicos tem de ir muito mais além da regência verbal.

5 Resolveu passar o resto dos seus dias confinado a seu escritório


redigindo a grande obra que tinha adiado desde a juventude.

Temos uma interessante oportunidade de questionar qual seria a


diferença entre estar confinado a e estar confinado em: podemos pensar
que em, que indica o continente, aponta para um confinamento material,
isto é, ele não sai do seu escritório ou sai só para dar contas do que não

706
gramática e estilo

pode ser realizado lá dentro. Se a indica proximidade, esse confinamento


não é necessariamente material; mesmo fisicamente fora do escritório,
ele está operando nessa obra adiada.

Exercício 77

Analise estes pares mínimos explicando os diferentes usos das


preposições.

1 No caminhão vinham várias moças com as pernas de fora.


No caminhão vinham várias moças com as pernas para fora.

2 Os empresários esperam a reativação da economia.


Os empresários esperam pela reativação da economia.

3 Pediu um coquetel.
Pediu por um coquetel.

4 Esta sala não é adequada para o trabalho que temos para fazer.
A sala não é adequada ao trabalho que temos para fazer.

5 Atendeu o telefone.
Atendeu ao telefone.
Atendeu pelo telefone.

6 Desceram as escadas junto com a gente.


Desceram as escadas junto à gente.

7 Atirou a pedra.
Atirou com a pedra.

8 O mar carrega a gente pra gente pescar.


O mar carrega com a gente pra gente pescar.

9 Os atores precisam encarnar o espírito do personagem.


Os atores precisam encarnar no espírito do personagem.

707
gramática e estilo

10 A solução ficou pendente do ministério.


A solução ficou pendente no ministério.

11 Tudo está contido nele.


Tudo está contido por ele.

12 Então, ela me pegou pela gola e me disse que tinha tesão por mim.
Então, ela me pegou pela gola e me disse que tinha tesão em mim.

Exercício 78

Verifique o uso de preposições nestas frases e proponha alternativas


aos usos descabidos ou canhestros.
1. Acabei roubando a camionete pois, mais forte do que o medo foi
a vontade que eu tinha em dirigi-la.
2. Guarde estas laranjas a Marina.
3. Ele fornece uísque a meu avô.
4. Meu avô construiu uma casa a mim.
5. Mas, no fim, para todos, decepção significa a perda, a frustração
sobre alguma coisa, alguém.
6. Uma escolha malfeita acarretará em alguns anos perdidos.
7. Assim foi sendo minha vida escolar: não gostando de escrever
sobre os temas solicitados pelos professores para as redações, insegura
na hora da escrita em cometer erros de grafia.

708
gramática e estilo

O TEXTO E SUAS FRASES

V amos tratar das frases do texto em sua relação com as demais frases
do texto, isto é, vamos tratar do texto, que se compõe de frases
encadeadas umas atrás das outras para circunscrever o tema de que tra-
ta, para constituir a voz que nele fala, para interpelar o leitor ao qual se
dirige, para inserir esse leitor no modo de dizer do texto (narrar, mostrar,
expor, discutir, exortar, descrever, argumentar), para determinar o ponto
de vista a partir do qual se examina esse tema. Para o que mais, mesmo?
Com as expressões coerência e coesão, a teoria do texto caracteriza
a relação que as frases do texto precisam manter umas com as outras
para que esse conjunto de frases possa constituir, de fato, um texto. É
essa relação que o leitor, que aprendeu a ler lendo, espera encontrar –
mesmo que não lhes atribua esses nomes – no texto que está lendo e nos
textos que quer ler. O escritor, que também aprendeu a escrever lendo
textos, esforça-se por dar coerência e coesão ao conjunto de frases com
que compõe o texto que está escrevendo, mesmo que não atribua esses
nomes ao objetivo que se esforça para atingir.
A gente pode falar em problemas de coesão, assinalá-los nos textos,
analisá-los e revisá-los, reescrevendo a frase, o trecho, o parágrafo, mas
a falta de coerência obriga a repensar o texto todo, desde a intenção com
que foi/está sendo escrito até a ideia geral a respeito do leitor com quem o
texto quer conversar. Em síntese, não há soluções estilísticas para a inco-
erência. Além disso, o leitor, entre eles, às vezes, até mesmo o professor,

709
gramática e estilo

costuma, diante do que parece um caso de incoerência textual, colaborar:


até que dá pra entender. Além disso, são casos raros. Este professor só
consegue lembrar de dois abrangentes problemas de incoerência textual,
que aconteceram ainda no tempo em que era preciso ouvir a leitura de
cada texto aula sem antes ter recebido uma cópia por e-mail.
O aluno começou a ler alguma coisa como Estou descendo a
Borges, e, à minha esquerda, vejo isto e aquilo; à minha direita, tem
aquilo e aquilo outro; dou mais alguns passos e aparece... e assim foi
descrevendo o que via à direita e à esquerda e ali mais adiante até que o
professor mandou ele parar: Tu tá pensando que tu é o Coelho Maluco
pra nos obrigar a sair atrás de ti sem nos dizer pra onde é que tu tá nos
levando e o que é que nós vamos ganhar com isso?
Houve quem achasse rude a interrupção da leitura. Confessem –
disse o professor – se vocês estivessem lendo a sós, longe do colega
autor, até onde, até quando se submeteriam a serem assim arrastados
pra olhar pra isso e aquilo sabendo que não estão adentrando algum
país das maravilhas? A gente sabe por que e pra que Euclides da Cunha
abre Os sertões descrevendo a paisagem que se veria da costa brasileira
num navio que se deslocasse do sul para o norte. E é só por isso que
a gente se esforça pra ler a descrição que ele faz pra nos mostrar que
nós, que somos do sul como ele, precisamos nos apropriar até mesmo
dessa diferença de paisagem pra entender outras diferenças bem mais
relevantes entre nós e eles. Mas assim, sem dar a menor pista a respeito
da serventia daqueles fragmentos de paisagem, o texto vai perder todos
os leitores bem antes do narrador chegar lá no Mercado Público. Leitor
nenhum se deixa arrastar texto adentro sem ter uma boa razão para isso.
O segundo caso apareceu no terceiro texto de uma sequência escrita
por um aluno a respeito do trabalho que tinha começado a fazer como
bolsista de uma pesquisa antropológica, que começou por algo como
Semana passada estive na Vila Tal, acompanhado pela professora Tal...
O professor interrompeu: Essa não é a pesquisadora coordenadora da

710
gramática e estilo

pesquisa? Sim, é – respondeu o aluno. E tu, tu continua sendo o bolsista


que bate os retratos? Ele respondeu que sim, eu sou o fotógrafo. En-
tão – retornou o professor – tu não foi acompanhado pela professora;
tu foi acompanhando a professora, porque ela é a protagonista, e tu é
coadjuvante, um deles.
Essa transgressão descritiva ao arranjo comum das coisas só não
seria inadequada se o arranjo das coisas não fosse o comum, se fosse
tematizada como tal no texto ou se o texto fosse localizado explicitamente
em um mundo em que o acompanhante fosse acompanhado por quem ele
era um dos acompanhantes, algo como Eu sonhei que... Enfim, a coerência
decorre do tipo de contrato que o texto propõe ao leitor.
Passamos, então, ao que podemos chamar de problemas de coesão,
que são mais localizados e mais analíticos, e que não deixam o leitor
assim tão desamparado. Vamos ler este escrito, que tem a finalidade de
apresentar recomendações para que os usuários dos notebooks da em-
presa evitem roubos e furtos, finalidade que está claramente explícita.
A questão é o tipo de relação que nele se estabelece entre as frases que
o compõem e o que resulta disso. Em outras palavras, vamos analisar a
qualidade dessa composição. A leitura do que segue fica mais instrutiva
depois de uma tentativa de revisão desse escrito original e, se for o caso,
de uma discussão dessas revisões em sala de aula.

Tendo em vista o número considerável de colaboradores que utiliza


computadores portáteis de propriedade do Orbes 97 para a condução
de suas atividades e o aumento de ocorrências de furto e roubo destes
equipamentos, destacamos algumas dicas para prevenção destes in-
cidentes e recomendações de segurança quanto ao seu transporte e
utilização. Os aeroportos são especialmente visados pelas quadrilhas
de roubo de notebooks, portanto redobre a atenção nestes locais.
Se não for possível transportar o notebook na mala ou na mochila,
procure disfarçá-lo em uma sacola comum envolvendo-o em uma
proteção como plástico-bolha ou espuma. Fique atento ao passar a
sua máquina pelo scanner dos postos de fiscalização: a pressa em

711
gramática e estilo

embarcar em um voo pode distraí-lo e proporcionar oportunidade


para alguém mal-intencionado. Se estiver de carro, evite transportar
o equipamento no banco da frente, transporte-o no porta-malas. Evite
utilizar o notebook no saguão de aeroportos. Aguarde a entrada nas
salas de embarque, que ficam em ambientes reservados e com entrada
controlada. Jamais utilize o notebook durante deslocamentos de táxi.
Os criminosos circulam com motocicletas, nas áreas próximas dos
aeroportos e outros locais de concentração de pessoas que portam
este equipamento para concretizar seus ataques. Não comente pu-
blicamente as qualidades e diferenciais de seu computador portátil,
evitando chamar a atenção. Habilite a solicitação de usuário e senha
do sistema operacional. Preferencialmente utilize de recursos de crip-
tografia para as informações sensíveis, confidenciais e/ou pessoais
armazenadas no equipamento. Ressaltamos que os colaboradores
são considerados custodiantes destes equipamentos e que os mesmos
devem ser utilizados somente para atividades de trabalho próprias
do Orbes 97. Estes equipamentos devem permanecer nas dependên-
cias do Orbes 97 em local seguro com acesso restrito, por exemplo,
armário ou gaveta com chave. A prevenção é a melhor solução e,
em caso de assalto, a recomendação é jamais reagir e entregar o
equipamento, evitando a violência. Por fim lembramos que todos os
incidentes devem ser comunicados à Segurança Operacional.

Feitas e discutidas as revisões, vamos a uma análise do escrito. Vê-se


claramente que o alinhamento das frases uma atrás da outra obedeceu à
ordem em que foram descendo da cabeça de quem as concebeu para as
mãos que foram digitando cada uma delas. Vejamos trecho por trecho:

Tendo em vista o número considerável de colaboradores que utiliza


computadores portáteis de propriedade do Orbes 97 para a condução
de suas atividades e o aumento de ocorrências de furto e roubo destes
equipamentos, destacamos algumas dicas para prevenção destes in-
cidentes e recomendações de segurança quanto ao seu transporte e
utilização. Os aeroportos são especialmente visados pelas quadrilhas
de roubo de notebooks, portanto redobre a atenção nestes locais.
Se não for possível transportar o notebook na mala ou na mochila,

712
gramática e estilo

procure disfarçá-lo em uma sacola comum envolvendo-o em uma


proteção como plástico-bolha ou espuma. Fique atento ao passar a
sua máquina pelo scanner dos postos de fiscalização: a pressa em
embarcar em um voo pode distraí-lo e proporcionar oportunidade
para alguém mal-intencionado.

Neste trecho, digamos assim, inicial, o texto justifica a sua neces-


sidade – a prevenção de ocorrências de furto e roubo de computadores
portáteis – para, a seguir, apresentar o seu tema, dividido em dois con-
juntos: (1) dicas para prevenção destes incidentes e (2) recomendações
de segurança quanto ao seu transporte e utilização. O verbo utilizado é
destacamos, o que pode implicar que haveria outras dicas e recomen-
dações de segurança além destas que foram destacadas. O leitor pode
se perguntar por que não são apresentadas todas elas ou achar que des-
tacamos não quer dizer exatamente dar uma ênfase especial para estas.
Essa anunciada divisão em dicas para prevenção destes incidentes
(e os incidentes referidos são furtos e roubos) e recomendações de se-
gurança quanto ao transporte e utilização dos notebooks pode botar o
leitor a pensar qual seria a diferença entre uns e outros procedimentos.
Então, o leitor espera que o texto trate separadamente de uns e outros
para que essa diferença fique clara, mas a diferença que o texto esta-
belece é outra e se refere a um lugar: os aeroportos. Neles, o notebook
deve ser transportado numa sacola comum, e o usuário deve ficar atento
ao passá-lo pelo scanner da fiscalização. Temos aí uma recomendação
para o transporte e uma dica de segurança, mas transportar o notebook
numa sacola comum não é também uma medida de segurança? E ficar
atento no momento em que o notebook passa pelo scanner não é uma
recomendação para o transporte? Até aqui parece não haver muito sentido
nessa divisão. Continuemos.

Se estiver de carro, evite transportar o equipamento no banco da fren-


te, transporte-o no porta-malas. Evite utilizar o notebook no saguão
de aeroportos. Aguarde a entrada nas salas de embarque, que ficam

713
gramática e estilo

em ambientes reservados e com entrada controlada. Jamais utilize


o notebook durante deslocamentos de táxi. Os criminosos circulam
com motocicletas, nas áreas próximas dos aeroportos e outros lo-
cais de concentração de pessoas que portam este equipamento para
concretizar seus ataques. Não comente publicamente as qualidades e
diferenciais de seu computador portátil, evitando chamar a atenção.

Na primeira frase deste trecho, o texto nos carrega para fora do


aeroporto, o que faz com que o leitor imagine que o assunto aeroporto,
local especialmente visado pelas quadrilhas de roubo de notebooks, está
esgotado. Com razão, o leitor pode achar que apenas duas recomenda-
ções ou dicas são muito pouco para um lugar tão perigoso. Pode achar
também que apenas uma recomendação relativa ao transporte em carro
é muito pouco, mas o texto nos faz descer do carro e voltar para o aero-
porto, especialmente para o saguão, onde ficamos antes de passarmos
pelo scanner, ou seja, o texto nos faz andar para trás também no tempo.
Mais para trás no tempo e no espaço voltamos na frase seguinte:
agora estamos num táxi perto do aeroporto, onde os criminosos circulam
com motocicletas, ou, então, estamos em algum outro local de concentra-
ção de pessoas que portam este equipamento. Na continuação do texto
somos transportados para um outro qualquer lugar, onde não devemos
fazer comentários a respeito das virtudes do notebook que estamos
transportando. Continuemos.

Habilite a solicitação de usuário e senha do sistema operacional. Pre-


ferencialmente utilize de recursos de criptografia para as informações
sensíveis, confidenciais e/ou pessoais armazenadas no equipamento.
Ressaltamos que os colaboradores são considerados custodiantes
destes equipamentos e que os mesmos devem ser utilizados somente
para atividades de trabalho próprias do Orbes 97.

No fim do texto, andamos um pouco mais para trás no tempo, para


antes dos preparativos de qualquer viagem quando recebemos o nosso

714
gramática e estilo

computador pessoal e precisamos encaminhar os necessários trâmites


para podermos utilizá-lo: habilitarmo-nos como usuário, solicitarmos a
necessária senha e nos compenetrarmos de nossas reponsabilidades como
custodiantes desses equipamentos, que só devem ser usados para nossas
atividades funcionais. Então, andamos para um tempo um pouco posterior
a este mas anterior àquele em que estávamos no táxi: o momento em que
consideramos a hipótese de não levar um notebook nessa viagem para
não corrermos tantos riscos. O que vem depois?

Estes equipamentos devem permanecer nas dependências do Orbes 97


em local seguro com acesso restrito, por exemplo, armário ou gaveta
com chave. A prevenção é a melhor solução e, em caso de assalto, a
recomendação é jamais reagir e entregar o equipamento, evitando
a violência. Por fim lembramos que todos os incidentes devem ser
comunicados à Segurança Operacional.

Todo leitor já aprendeu que cada frase tem de ser lida, isto é, inter-
pretada, levando em consideração que foi dito nas frases anteriores; é por
isso que ninguém vai pensar que a primeira frase desta sequência – Estes
equipamentos devem permanecer nas dependências do... – cancela a
possibilidade de levar o notebook em viagens. Já a segunda frase junta
(1) o que pode nos parecer muito adequado para a primeira frase do tex-
to – A prevenção é a melhor solução – com (2) o que pode nos parecer
muito adequado para a penúltima frase do texto – em caso de assalto,
a recomendação é jamais reagir e entregar o equipamento, evitando a
violência. E, então, finalmente, chegamos à última frase, que, talvez por
coincidência, está no fim: Por fim lembramos que todos os incidentes
devem ser comunicados à Segurança Operacional.
Como já antecipamos, o que temos neste texto é um registro de
algumas dicas para prevenção de roubos e furtos e recomendações de
segurança para o transporte e utilização de notebooks, registradas na
ordem em que foram chegando na cabeça do redator deste texto. É uma
outra modalidade de escrito produzido por mero encadeamento, desta vez

715
gramática e estilo

de frases e não de meras orações. Todo esse movimento desordenado que


o texto obriga os leitores a executar durante sua leitura não favorece o
trabalho de reter na memória essas informações tão relevantes. Para que
este conjunto de dados se transforme em texto, é preciso organizá-los,
acrescidos de outros dados que se mostrarem necessários ao longo desse
trabalho de reorganização.
Se o texto não organizar sua sequência e não determinar o seu
ponto de vista, a trabalheira que o leitor vai ter para isolar e reordenar os
dados em sua cabeça é desanimadora, o que pode fazer com que o texto
resulte inútil. É preciso, portanto, conduzir o leitor, desde um momento
inicial em que ele não está consciente dos perigos que corre quando viaja
transportando consigo um notebook da empresa, até um momento final,
em que ele se torna consciente desses perigos e fica, consequentemente,
habilitado a evitá-los.
Não vai faltar, então, quem diga que faltou planejamento e que
um esquema poderia ter orientado o seu encadeamento. Não se pode
dizer, no entanto, que, assim como está, não há material disponível para
revisar o texto. Na falta de esquema prévio, um esquema subsequente
baseado nesse rascunho inicial pode ser elaborado. Podemos começar,
por exemplo, pela motivação do texto:

Como têm aumentado as ocorrências de furto e roubo dos compu-


tadores portáteis de propriedade do Orbes 97, recomendamos aos
colaboradores, a quem eles são entregues em custódia, que observem
certas medidas de segurança para evitar esses acidentes.

Prossigamos com as medidas preliminares, as que estão no início da


relação do funcionário com o notebook que lhe foi entregue pela empresa:

A primeira medida preventiva básica relaciona-se à segurança dos


dados nele armazenados: é necessário habilitar a solicitação de
usuário e senha do sistema operacional e utilizar recursos de crip-

716
gramática e estilo

tografia para as informações sensíveis, confidenciais e/ou pessoais


armazenadas no equipamento.
A segunda medida preventiva básica diz respeito à segurança dos
próprios computadores: quando não estiverem sendo utilizados em
atividades relacionadas com o trabalho do seu custodiante – durante
suas férias ou em viagens em que não haja a necessidade de utilizá-los
–, os notebooks devem permanecer nas dependências do Orbes 97
em local seguro com acesso restrito como, por exemplo, um armário
ou uma gaveta com chave.

Agora podemos encaminhar o usuário na direção dos lugares pe-


rigosos.

Em sua circulação pelo trânsito, os notebooks devem ser transpor-


tados no porta-malas e, em hipótese alguma, devem ser deixados no
banco da frente, onde ficam à vista de criminosos que circulam de
motocicletas. Pelo mesmo motivo, jamais devem ser usados durante
deslocamentos em táxi. Em lugares públicos, o notebook não deve
ser ostentado nem, menos ainda, louvado pelas suas qualidades e/
ou por seus diferenciais em relação a produtos similares. Se não
for transportado dentro da mala ou da mochila, é mais adequado
disfarçá-lo em uma sacola comum envolvendo-o em uma proteção
como plástico-bolha ou espuma.
Aeroportos são especialmente visados pelas quadrilhas de roubo de
notebooks; portanto, além de redobrar a atenção durante o trajeto que
leva até lá, é preciso também tomar cuidado dentro de suas dependên-
cias. No saguão do aeroporto, assim como em qualquer outro lugar
público, não utilize seu notebook; se for absolutamente indispensável,
use-o na sala de embarque, que fica em ambiente reservado e com
entrada controlada. No entanto, antes de chegar na sala de embarque,
não se distraia durante a passagem de sua máquina pelo scanner do
posto de fiscalização: a pressa em embarcar em um voo pode distraí-lo
e proporcionar oportunidade para alguém mal-intencionado.
Finalmente – e fundamentalmente – jamais reaja em caso de assalto;
entregue o equipamento para evitar a violência. Lembramos, ainda,
que todos os incidentes devem ser comunicados à chefia imediata.

717
gramática e estilo

Esta versão reencadeia o texto: ordena os dados segundo um critério


que vai do mais geral – a segurança dos dados armazenados no compu-
tador portátil em qualquer lugar onde ele esteja – para os cuidados que
devem reger qualquer deslocamento desses aparelhos. Torna-se, a seguir,
um pouco mais específico ao tratar da segurança em deslocamentos no
trânsito e em lugares públicos de circulação de pedestres. Particulariza,
finalmente, a situação dos aeroportos, em que os riscos são ainda maiores.
Desse modo, o leitor é conduzido num caminho em que uma etapa se
encadeia com a seguinte, e sua memória não fica sobrecarregada com
o esforço de estabelecer relações entre dados que vão sendo fornecidos
aleatoriamente.
Há também um certo ordenamento temporal, já que começa pelas
primeiras providências que o usuário precisa tomar ao receber o seu no-
tebook da empresa. Espaço – direção e itinerário – e tempo – história,
cronologia, sequência de procedimentos – são os principais guias para
ordenação do texto, mesmo que o texto não seja uma narrativa ou uma
descrição.
O segundo caso é este, que poderia ser um trecho de uma reportagem
que está vazando algum relatório policial confidencial (existe isso?):

Sequestraram o filho de um dos homens mais ricos do país ontem à


noite. Seus sequestradores exigiram do pai do menino dez milhões de
reais. Ele declarou que, se indicarem como fazê-lo, paga o resgate.
Os sequestradores, no entanto, ainda não deram essas instruções.
Disseram ao pai do menino que não avisasse a polícia. Eles matariam
a criança se o fizesse. A polícia ficou sabendo pelo jardineiro da casa
que comentou o assunto com um inspetor amigo. A polícia passou
a realizar investigações sigilosas para não chamar a atenção dos
bandidos. Essas investigações estavam conduzindo os policiais para
um rumo completamente diferente daquele onde estariam escondidos
os sequestradores.

718
gramática e estilo

O molde ou matriz para a construção de sentenças propor-


cionado pelo verbo sequestrar projeta alguém sequestrado e o(s)
sequestrador(es). Nesta versão, o tópico é a ação, com o verbo flexionado
na forma impessoal do plural de terceira pessoa: sequestraram. Seria o
tópico mais adequado se o sequestrado fosse uma pessoa comum, mas
certamente esse não é o caso do filho de um dos homens mais ricos do
país, que, mesmo nessa referência semianônima, é o tema óbvio da pri-
meira frase do texto, a que introduz o assunto como tópico e sujeito de
uma voz passiva. Se a informação sobre esse sequestro estivesse inserida
em uma discussão sobre uma onda de sequestros, seria viável topicalizar
o acontecimento e não a vítima.
Já a referência temporal – ontem à noite – pode ocupar várias posi-
ções na frase. Como a datação em notícias e reportagens é praticamente
obrigatória, e o início da frase talvez seja a sua posição mais comum, não
há competição na posição de tópico. Além disso, os olhos que leem ontem
à noite já estão vendo, quase que simultaneamente, o filho de um dos
homens mais ricos do país. Vai caber ao comentário desta frase ordenar
seus elementos de modo a conduzir o leitor até o tema da frase seguinte.

Ontem à noite, o filho de um dos homens mais ricos do país foi se-
questrado.

A inversão de ordem levou o sequestro para o fim da frase. É bom


começar a próxima frase pelo mesmo assunto:

Ontem à noite, o filho de um dos homens mais ricos do país foi se-
questrado. Seus sequestradores exigiram dez milhões de reais do
pai do menino.

É bom continuar pelo assunto que foi posto no fim da frase, o pai
do menino:

719
gramática e estilo

Ontem à noite, o filho de um dos homens mais ricos do país foi se-
questrado. Seus sequestradores exigiram dez milhões de reais do pai
do menino. Ele declarou que paga o resgate assim que lhe indiquem
como fazê-lo.

Continuemos retomando o assunto do fim da frase anterior:

Ontem à noite, o filho de um dos homens mais ricos do país foi se-
questrado. Seus sequestradores exigiram dez milhões de reais do pai
do menino. Ele declarou que paga o resgate assim que lhe indiquem
como fazê-lo. Essas instruções, no entanto, ainda não foram dadas
pelos sequestradores.

É só continuar segundo o mesmo critério: os sequestradores abrem


a próxima sentença:

Ontem à noite, o filho de um dos homens mais ricos do país foi se-
questrado. Seus sequestradores exigiram dez milhões de reais do pai
do menino. Ele declarou que paga o resgate assim que lhe indiquem
como fazê-lo. Essas instruções, no entanto, ainda não foram dadas
pelos sequestradores; apenas avisaram que matariam a criança se
a polícia fosse avisada.

O encadeamento segue pelo aviso:

Ontem à noite, o filho de um dos homens mais ricos do país foi se-
questrado. Seus sequestradores exigiram dez milhões de reais do pai
do menino. Ele declarou que paga o resgate assim que lhe indiquem
como fazê-lo. Essas instruções, no entanto, ainda não foram dadas
pelos sequestradores; apenas avisaram que matariam a criança se
a polícia fosse avisada. A informação foi dada pelo jardineiro da
casa, que comentou o assunto com um inspetor amigo.

720
gramática e estilo

O inspetor é da polícia:

Ontem à noite, o filho de um dos homens mais ricos do país foi se-
questrado. Seus sequestradores exigiram dez milhões de reais do pai
do menino. Ele declarou que paga o resgate assim que lhe indiquem
como fazê-lo. Essas instruções, no entanto, ainda não foram dadas
pelos sequestradores; apenas avisaram que matariam a criança se
a polícia fosse avisada. A informação foi dada pelo jardineiro da
casa, que comentou o assunto com um inspetor amigo. A polícia, para
não chamar a atenção dos bandidos, passou a realizar investigações
sigilosas. Essas investigações estavam conduzindo os policiais para
um rumo completamente diferente daquele onde estariam escondidos
os sequestradores.

Já designamos como fluência a qualidade que distingue nossas


versões revisadas, numa ordem deliberada, da versão inicial composta
por mero encadeamento das frases que foram sendo construídas à me-
dida que foram descendo da cabeça para a mão. Já vimos também que a
fluência decorre da releitura e do reordenamento do que já foi escrito e,
sempre que essa releitura recomendar, do acréscimo do que está faltando
escrever para que, além de fluência, o texto incorpore também clareza,
precisão, concisão, graça, leveza e tudo mais, que depende da fluência.
Convém repetir que a diferença fundamental entre o registro do discurso
ditado a um escriba e um texto escrito pelas próprias mãos do autor é a
intervenção da leitura na escrita do texto: a leitura do leitor e a leitura do
autor, que se formou leitor e autor justamente porque leu.

6.1 A FRASE E AS OUTRAS FRASES

É claro que cada frase e cada uma das outras frases é a frase e que a
frase e as outras frases compõem o texto, mas o texto é o abstrato mapa
arquetípico do leitor que vai lendo e avaliando o que está escrevendo.
Do ponto de vista do escritor, o que há é a frase que está sendo escrita e
as frases que já foram escritas e cada uma das que terão de ser escritas

721
gramática e estilo

depois desta. É por isso que este capítulo não trata do texto; trata da fra-
se, das frases. É claro que escrevemos cada frase para escrevermos um
texto, mas sabemos que é a partir do texto escrito que escrevemos cada
frase do texto. Por isso, para tratar do texto e das suas frases e das frases
e seu texto é preciso recapitular o que já sabemos a respeito da frase, das
frases, começando pelo começo.

1 A casa é bonita.
A casa é do menino.
A casa é do pai.
A casa tem uma sala.
A casa é amarela.

Esta lista de cinco declarações sobre o mesmo tema, que se


organizam cada uma delas como se fosse uma frase, foi realmente
posta no papel por um aprendiz da língua escrita. Foi aqui apresen-
tada como representativa do primeiro fruto que brotou da semente do
mal, isto é, da redação escolar. Na vida real dos textos, esse tipo de
encadeamento não existe e nunca teve funcionalidade na história da
língua escrita. Seu aparecimento na escola decorre de um equívoco a
respeito da linguagem, da finalidade da língua escrita e da pedagogia
da língua escrita.

2 Era uma vez umpionho queroia o cabelo


daí um emninopinheto dapasou um
umenino lipo enei pionho aí pasou
um emnino pionheto daí omenino
pegoupionho da amunhér pegoupionho
da todomundosaiogritãdo todomundo pegou
pionho di até sofinho begoupionho

Este encadeamento de letras do alfabeto tentando dar conta de re-


presentar os sons da língua com que sua autora contaria oralmente essa
história também é real e existem escritos similares no uso da língua escrita

722
gramática e estilo

por parte de aprendizes da escrita e de ex-aprendizes que não completaram


seus estudos e não desenvolveram a experiência de leitura e escrita capaz
de conduzi-lo para além deste estágio alfabético. A intenção de contar
uma história caracteriza este escrito como um discurso, que pode ser
trabalhado em aula para tornar-se um texto, ou seja, este encadeamento
não é uma redação escolar.

3 Eraumavezumpionhoqueroiaocabelodaiumemninopinhetodapasou-
umumenino lipoeneipionhoaípassouumemninopionhetodaíomenino-
pegoupionhodaamunhérpegoupionhodatodomundosaiogritãdotodo-
mundopegoupionhodiatesofinhobegoupionho

Este encadeamento não é real; foi forjado aqui a partir do escrito


anterior para exemplificar a scripta continua – scriptacontinua –, o modo
como se registrou por escrito o que foi ditado para o escriba habilitado
a fazer representar por meio de letras do alfabeto os barulhos que saíam
da boca de quem ditava.

4 A menina saiu de casa. A menina caminhou até a esquina. A menina


viu o cachorro vermelho. A menina correu na direção do cachorro
vermelho. O cachorro vermelho viu a menina. O cachorro vermelho
abanou o rabo. O cachorro vermelho latiu. O cachorro vermelho
correu na direção da menina.

Este encadeamento de frases também não é real: foi forjado neste


livro para ressaltar semelhanças e diferenças que há entre o que se de-
signa como frase e o que se designa como oração. Isoladamente, cada
um desses encadeamentos com um A ou um O maiúsculos no início e
um ponto-final pode ser identificado como uma frase, mas a ninguém
que estivesse escrevendo essa história ocorreria fazer um encadeamento
desses, em que cada oração está apresentada como se fosse uma frase. A
frase não decorre da oração; pelo contrário, é a frase, isto é, a unidade de
declaração, que determina quais sentenças vão se tornar as orações que

723
gramática e estilo

a compõem. Não é demais repetir que a frase foi criada para identificar
essa unidade de declaração para os olhos de um leitor.

5 Ele morreu. Bateu com a cabeça numa pedra. Ele caiu. Dei um
soco nele. Ele xingou minha mãe. Nós discutimos.

Este encadeamento também foi forjado para ressaltar uma caracte-


rística do encadeamento das frases, que se orienta por critérios externos
à estrutura da frase, como, neste caso, pela ordem cronológica dos acon-
tecimentos que narra. Ressaltou-se, na apresentação deste encadeamento
forjado, que o leitor, ao perceber que nele os acontecimentos alinham-se
numa ordem inversa à cronológica, demonstra ter, apesar disso, entendido
o que nele se narra. O papel pedagógico cumprido por esse encadeamento
foi, na sequência, mostrar o peculiar poder das conjunções na organização
da frase. O estranhamento criado no leitor por tal inversão de ordem se
dissiparia se esse encadeamento todo fosse pontuado como uma frase, e
suas orações estivessem relacionadas por conjunções, deste modo:

Ele morreu porque bateu com a cabeça numa pedra quando caiu
por causa do soco que dei nele depois de ter xingado minha mãe
enquanto discutíamos.

A frase, então, é uma unidade de declaração que determina um tema


e diz alguma coisa sobre esse tema. A frase é composta por orações, que
têm uma estrutura interna semelhante à da frase e expressa uma unidade
de conteúdo que compõe com as outras orações a declaração que é a frase.
E aqui já veio uma definição de oração, que é também o que di-
ríamos se estivéssemos falando a respeito do assunto, encadeando uma
atrás da outra, já que a fala só faz frases quando a cabeça está decidida
a produzir frases, decisão que ela só faz se estiver inserida no universo
da língua escrita.

724
gramática e estilo

Falta ainda uma definição de sentença, que está na NGPB: “sentença


ou oração é a unidade de sintaxe estruturada por um verbo que seleciona
seu sujeito e seus complementos. Os adjuntos também integram a senten-
ça, mas não são selecionados pelo verbo” (CASTILHO, 2010, p. 691).
Sintetizando: a frase foi criada para possibilitar a leitura com os olhos
à primeira vista, poupando, desse modo, o leitor da trabalheira de delimitar
uma unidade de declaração num registro de letras unidas representando
os sons produzidos oralmente por quem ditou o que foi registrado. Essa
leitura com os olhos proporcionou ao estudioso (o estudioso, até então, era
apenas mais um ouvinte entre outros numa sala de aula, onde o professor
lia em voz alta o que estava registrado em scripta continua) tornar-se o
leitor, que passou, desse modo, a tomar conhecimento do que lia, numa
relação pessoal, privada e íntima com o que estava posto por escrito nas
páginas à sua frente.
Foi essa relação pessoal, privada e íntima com o texto que lia
que criou o escritor que desenha com sua própria mão as letras para
encadear as palavras com que registra o que lhe parece ter para declarar
a respeito do tema sobre o qual delibera expressar-se. As palavras que
vai dispondo no papel organizam orações a que se seguem outras até
comporem aquela unidade de declaração, à qual o escritor já sabe que
deve agregar outra combinação semelhante, isto é, uma outra frase. E
depois, outra frase, e outra. A frase, que caracterizamos também como
um freio ao livre encadeamento do que desce da cabeça para a mão
que escreve, apresenta-se, desse modo, a quem a delimitou como tal,
como uma declaração a ser confrontada com o que a cabeça tinha a
intenção de dizer. Esse é o grande valor da frase para quem escreve:
é uma unidade que pode ser relida, rearranjada, reescrita e realocada
no encadeamento geral do texto.
O leitor que escreve e lê o que escreve pode reescrever o que es-
creveu também para o bem de seu pretendido leitor, que, numa primeira
instância, pode ser ele mesmo. Na verdade, quanto mais leitor ele for de

725
gramática e estilo

si mesmo, mais bem tratado será o leitor de seu texto. A frase e as outras
frases compõem o texto, o que pode ser lido, o que pode ser reescrito.
Nesta seção vamos tratar das dificuldades que os aprendizes apresen-
tam para encadear adequadamente suas frases, de modo a determinar com
clareza qual sua contribuição para o esclarecimento do leitor a respeito do
assunto tratado pelo conjunto de frases a que pertence. Essa contribuição
se dá pela relação que cada uma estabelece entre seu tema e o seu rema e
o seu modo de levar adiante a cadeia de informações sobre aquele assunto.

6.1.1 Tema e rema

Nem sempre a revisão pode ficar limitada a operar mudanças na


ordem das frases no trecho ou das orações dentro das frases. Há casos em
que a natureza do texto impõe outros critérios para esse ajuste, como, por
exemplo, o ordenamento em que ocorrem os fatos narrados, a direção em
que uma descrição orienta os olhos do leitor, a sequência mais adequada
para expor uma relação de causa e efeito, ou de condição e possibilidade,
ou mesmo a ordem em que os argumentos se tornam mais convincentes.
Em outros casos se torna necessário alertar mais enfaticamente o leitor
para uma mudança de tópico. São situações, enfim, em que a relação
entre tema e rema pode ser afetada.
Às vezes, o problema de ordenamento pode afetar a determinação
do referente de um pronome, do item lexical que recupera um outro e
até mesmo a ordem mais adequada para encadear um assunto no outro.
É o que vamos ver nesta seção. Examine estes encadeamentos a partir
desse ponto de vista e depois confira suas conclusões com as análises
que vêm a seguir:

1 Como é bom chegar em casa à noite, abrir a porta e sentir aquele


calorzinho. Muitas vezes chego da aula, a temperatura rodeando os
zero graus lá fora. Mas sinto um alívio ao saber que vou encontrar
a cozinha aquecida.

726
gramática e estilo

A primeira frase leva o leitor para dentro da casa: Como é bom


chegar em casa à noite e sentir aquele calorzinho. A segunda frase
volta pra trás no tempo e na generalidade: Muitas vezes chego da aula,
a temperatura rodeando os zero graus lá fora. O leitor, que já estava
lá dentro sentindo aquele calorzinho, é levado de volta pra fora e fica
sabendo que lá está frio. O narrador, por sua vez, que já tinha chegado e
sentido o calorzinho, sabe que vai encontrar a cozinha aquecida, e é isso
que o deixa aliviado. O leitor, então, pergunta por onde ele entrou em
casa e qual a diferença entre o calorzinho da chegada e o aquecimento
da cozinha. Apenas melhorar a pontuação final das frases e das orações
não vai melhorar a história. Que tal começar a história pelo começo e
levá-la ao fim?

1a Muitas vezes, com a temperatura rodeando os zero graus lá fora,


chego da aula e sinto um alívio ao saber que vou encontrar a cozinha
aquecida. Como é bom chegar em casa à noite, abrir a porta e sentir
aquele calorzinho.

Nesta ordem, percebe-se que o alívio ocorre quando o narrador chega


em casa; por isso, a relação é de e não de mas. Desse modo desaparece
o fragmento de frase Mas sinto um alívio ao saber que vou encontrar a
cozinha aquecida – aquela oração adversativa pontuada como se fosse
uma frase.

2 Foi então que comecei a me encontrar como profissional, eu con-


seguia conversar naturalmente com os alunos, não precisava ser tão
cuidadosa com o que ia dizer; eram mais independentes do que as
crianças, sentia-me muito bem com eles.

Aqui há frases sobre os alunos e sobre quem narra, e essas frases


estão misturadas e meramente umas depois das outras. Como parece haver
uma relação de causa e consequência entre o que o que a professora diz a
respeito dela mesma e o que observa nos alunos, podemos explicitar isso.

727
gramática e estilo

2a Meus novos alunos eram mais independentes do que as crianças;


por isso, eu não precisava ser tão cuidadosa com o que ia dizer. Con-
seguindo conversar naturalmente com eles, comecei a me encontrar
como profissional.

Podemos enfatizar também a trajetória profissional da professora


no tempo:

2b Só comecei a me encontrar como profissional quando passei a


trabalhar com alunos mais independentes do que as crianças pra
quem eu lecionava antes. Com eles eu não precisava ser tão cuida-
dosa com o que ia dizer e, por isso, conseguíamos conversar com
mais naturalidade.

3 Quando começaram a pedir para que escrevêssemos textos na es-


cola, os professores sempre elogiaram e deram boas notas aos meus
textos. Eu não estava totalmente de acordo, sabia que havia muito
que mudar, até que me dei conta de que os professores do colégio
geralmente corrigiam os problemas superficiais, como pontuação e
ortografia. O fato me incomodava um pouco, corrigir pequenos erros
eu mesma poderia fazer, gostaria algo mais. Foi na faculdade que tive
a oportunidade de deparar-me com a cadeira de Leitura e Produção
Textual. Confesso que não foi um processo simples porque sofri um
pouco, era diferente do que estava acostumada no colégio: escreví-
amos a primeira versão, a professora dava um retorno, escrevíamos
a segunda versão juntamente com um diário de escrita, e após todo
esse processo, recebíamos um conceito. E o mais difícil: tínhamos
que ler pelo menos uma vez para toda a turma e ouvir as críticas.
No entanto, era o “algo mais” que eu queria, a partir das leituras
feitas em sala de aula, pude refletir melhor sobre o ato de escrever.

Logo no início, as formas verbais elogiaram e deram no perfeito


podem parecer inadequadas porque é o imperfeito que expressa duração;
daí que elogiavam e davam compatibilizariam com a duração dos elogios;
no entanto, tem um sempre ali, que estabelece a duração: sempre elogia-

728
gramática e estilo

ram e deram boas notas. O que se poderia observar é que elogiaram e


deram compatibilizam mais com desde que do que com aquele quando
no início da frase: Desde que começaram a pedir, elogiaram e deram...
O problema de encadeamento está em ...era diferente do que estava
acostumada no colégio: escrevíamos a primeira versão... Na passagem
marcada pelos dois-pontos há uma armadilha para o leitor, que lê o que
vem depois dos dois-pontos relacionando com o que vem logo antes e
não com o que vem antes do que vem antes. Especificando: o leitor vai
ler escrevíamos a primeira versão... como uma continuação do que es-
tava acostumada no colégio e só ao chegar em No entanto, era o “algo
mais” que eu queria... vai dar-se conta de que a descrição era do processo
didático da cadeira de Leitura e Produção Textual mencionada antes do
colégio. Como a única referência da narradora ao que se fazia no colé-
gio tratava da correção dos professores, o leitor acha que ela vai fazer a
comparação, que ela não faz. Se o leitor tem de refazer a interpretação
que tinha feito, sua leitura perde a fluência.

3a Desde que começaram a pedir que escrevêssemos textos na escola,


os professores sempre elogiaram e deram boas notas aos meus textos.
Eu não estava totalmente de acordo porque sabia que havia muito
que mudar. Me dei conta um dia de que os professores do colégio
geralmente corrigiam os problemas superficiais, como pontuação e
ortografia. O fato me incomodava um pouco, pois corrigir peque-
nos erros eu mesma poderia fazer e gostaria de algo mais. Foi na
faculdade que tive a oportunidade de deparar-me com o processo
pedagógico da cadeira de Leitura e Produção Textual. Não foi simples
e confesso que sofri um pouco porque era diferente do que estava
acostumada no colégio. Escrevíamos a primeira versão, a professora
dava um retorno, escrevíamos a segunda versão juntamente com um
diário de escrita e, depois disso, recebíamos um conceito. E o mais
difícil: tínhamos que ler pelo menos uma vez para toda a turma e
ouvir as críticas. No entanto, era o “algo mais” que eu queria: a
partir das leituras feitas em sala de aula, pude refletir melhor sobre
o ato de escrever.

729
gramática e estilo

4 O bônus da nota final era sempre a redação. Mas nem tudo eram
flores. Uma vez me desentendi com uma professora que vetou o meu
“aloucado” de uma redação. Hoje eu sei que, além da palavra estar
de fato no dicionário, não foi legal o jeito que a professora tratou
minha tentativa de expressão, independentemente da sua presença
nele; outra vez houve um concurso de redações valendo um ponto na
média final. Era sobre clichês: o objetivo era compor uma redação
inteira com chavões populares, e as três que ela gostasse mais iriam
a júri popular na turma. Eu tinha certeza que a minha era a melhor.
Mas nesse dia eu vi o quanto era importante ser popular na escola.
A primeira redação a ser lida já levou o prêmio, porque o escritor,
o Marcos, era o “gordinho pop” da turma.

Não se trata de reforçar o dogma de que não se começa frase – como


a segunda – com mas, mas fica bem claro que a primeira frase só foi
escrita por causa do que vem depois de mas. Na verdade, o que introduz
a narrativa do parágrafo são as três primeiras frases juntas:

O bônus da nota final era sempre a redação, mas nem tudo eram
flores: uma vez me desentendi com uma professora que vetou o meu
“aloucado” de uma redação.

A frase seguinte, que começa com Hoje eu sei que, além da pala-
vra estar de fato no dicionário..., incorpora o que introduz o episódio
a ser narrado: outra vez houve um concurso... Ou seja, são duas frases
que tratam de dois assuntos diferentes. Já em Eu tinha certeza que a
minha era a melhor. Mas nesse dia eu vi o quanto era importante...
também seria bem melhor uma vírgula antes do mas porque o impacto
da realidade expressa pelo que vem depois do mas sobre o que vem
antes é maior se não houver a barreira do ponto-final protegendo a
subjetividade da narradora de ser atropelada pela objetividade do jul-
gamento já pré-julgado. Pelo mesmo motivo, as duas últimas frases
também ficam melhor numa só.

730
gramática e estilo

4a O bônus da nota final era sempre a redação, mas nem tudo eram
flores: uma vez me desentendi com uma professora que vetou o meu
“aloucado” de uma redação. Hoje eu sei que, além da palavra estar
de fato no dicionário, não foi legal o jeito que a professora tratou
minha tentativa de expressão, independentemente da sua presença
nele. Outra vez houve um concurso de redações valendo um ponto na
média final. Era sobre clichês: o objetivo era compor uma redação
inteira com chavões populares, e as três que ela gostasse mais iriam
a júri popular na turma. Eu tinha certeza que a minha era a melhor,
mas nesse dia eu vi o quanto era importante ser popular na escola:
a primeira redação a ser lida já levou o prêmio, porque o escritor,
o Marcos, era o “gordinho pop” da turma.
5 Depois de tomar banho e comer um sanduíche para enganar a
fome, já que eu passara a tarde toda sem comer e também não queria
chegar no restaurante como um diabo da Tasmânia, comendo tudo
o que aparecesse pela frente, lembrando de alguns fatos de nossa
infância, deixei o tempo passar e voltei ao presente depois de ouvir
uma buzina tocar em frente à minha casa.

Há um enorme adjunto adverbial de tempo, que começa em De-


pois de tomar banho e desenvolve-se numa coordenada – e comer – e
desdobra-se em duas causais – para e já que – e continua desdobrando-se
até quase o fim da frase em ...deixei o tempo passar..., quando parece
que a frase começa mas volta de onde não tinha ido. A frase tem um eu
que narra, mas qual é o tema da frase e o que se diz a respeito dele? Essa
frase não tem remédio, isto é, não tem tema, mas é um bom alerta contra
adjuntos adverbiais antepostos assim exuberantes.
6 Quando cheguei na graduação, UFSM – Santa Maria, cidade
grande perto da minha maravilhosa Rio Pardo, completamente per-
dida, achava que tudo era grande demais, e possível demais perante
os meus olhos, nos quais não conseguiam enxergar mais que 30 mil
habitantes, e um único ônibus urbano na cidade toda, aqui, em Santa
Maria quase me perdia entre tantos ônibus, uma vez ou outra pegava o
ônibus errado, mas parava na parada seguinte e tudo ficava resolvido.

731
gramática e estilo

Aqui parece que estamos diante do exercício aquele recomendado


lá no primeiro capítulo: escrever para desobstruir o canal que leva para
a mão as ideias que brotam na cabeça, sem freios, sem se preocupar com
a frase. O resultado aí escrito parece uma espécie de lista ainda desorde-
nada do que seria interessante tratar num texto a ser escrito a respeito da
chegada numa cidade maior vindo de uma cidade menor. Aí estão não
apenas alguns conteúdos mas também o ânimo da autora com relação
ao que pretende relatar: tudo ficava resolvido.
Diante disto, o professor teria uma boa oportunidade de esmiuçar
esse processo que passa pela arregimentação de ideias, passa por tenta-
tivas de estabelecer o início. Aqui até tem um início que pode funcionar:
Quando cheguei... – porque estabelece um momento que deixa para trás
algo que pode ser resgatado, para, por exemplo, fazer uma comparação,
que está prevista nessa lista de conteúdos. Sugerir que fale mais da chega-
da: veio fazer o quê? Por que veio exatamente pra cá? Por que saiu de lá?
Pode também questionar o encaminhamento da comparação: Santa
Maria é grande; Rio Pardo é maravilhosa. Qual é mesmo o assunto?
Se a gente levar a sério aquele nos quais, a gente não vai ter a menor
ideia de quem não conseguiam enxergar mais que 30 mil habitantes. O
professor pode aproveitar pra deixar claro que não se pode escrever sem
ler o que está sendo escrito, sem construir frases para nelas acomodar
as orações com que tentamos formular o que temos para dizer com as
orações encadeadas. Pode dizer que, quando tudo ficava resolvido, não
estamos propriamente diante de um problema, e sem problema não há
motivo para escrever. É também uma excelente oportunidade para exem-
plificar a falta de concretude: a expressão maravilhosa Rio Pardo não
mostra nada porque não tira nada de dentro da subjetividade de quem
escreve isso.
Por outro lado, é preciso dizer que o modo como a frase original
apresentou a diferença populacional é descabido: dá pra acreditar que os
olhos dela conseguiam enxergar até 30 mil habitantes (provavelmente os

732
gramática e estilo

de Rio Pardo) mas não mais do que isso? Onde um dia se reuniu toda a
população da cidade para ficarem todos assim visíveis? Se isso tivesse um
dia acontecido, daria uma interessantíssima história. Se alguém imaginar
uma história em que isso aconteceu, vai ter de torná-la verossímil, isto
é, semelhante ao que é de verdade. Ela não quis dizer exatamente isso,
mas o que foi mesmo que ela quis dizer? Ela também não quis dizer que
só tem um único ônibus circulando em Rio Pardo e que nele cabem 30
mil habitantes, mas não vai faltar um engraçadinho pra fazer essa inter-
pretação. Podemos tentar algo assim:

6a Eu fiquei completamente perdida quando cheguei em Santa Maria


vinda de Rio Pardo porque tudo me parecia grande demais. Eu quase
me perdia entre tantos ônibus; uma vez ou outra pegava o ônibus
errado, mas parava na parada seguinte, e tudo ficava resolvido.

E aí, o professor, diante desse confronto entre a falta de concretude


de completamente perdida e a narração factual – pegava o ônibus erra-
do, mas parava na parada seguinte, e tudo ficava resolvido –, pergunta:
como assim, completamente perdida, se tudo ficava resolvido tão fácil?
Aí, com certeza, a autora vai passar a ler o que escreveu.

7 Embora as assessorias da Secretaria da Educação estivessem com


certa regularidade presentes nas reuniões semanais da escola, nos
dois primeiros anos de implantação da proposta, trazendo as teorias
sobre a organização do trabalho pedagógico tais como: planejamento
coletivo, interdisciplinaridade, acolhimento à diversidade, currículo
integrado, progressão automática, enfim, os temas que envolviam a
nova proposta, os assessores não propunham relações com a prática.

Vamos repetir: começar uma frase por uma oração subordinada


é sempre um risco; com uma conjunção como embora, o risco é ainda
maior por causa da anteposição do que ficaria no fim numa frase composta
com um simples mas. O problema maior não é falta de relação entre o

733
gramática e estilo

que diz a oração subordinada e o que diz a principal – ...os assessores


não propunham relações... – lá no fim da frase, mas a distância entre
uma coisa e outra. A frase diz que as assessorias faziam um bocado
de coisas – que se apresentam encompridando o meio da frase –, mas
deixaram de fazer uma outra, que está devidamente enfatizada pela sua
posição no final. Vamos tentar nos livrar da complicação do embora e
do comprimento da frase.

7a As assessorias da Secretaria da Educação estiveram com certa


regularidade presentes nas reuniões semanais da escola, nos dois
primeiros anos de implantação da proposta. Trouxeram as teorias
sobre a organização do trabalho pedagógico tais como planejamento
coletivo, interdisciplinaridade, acolhimento à diversidade, currículo
integrado, progressão automática, enfim, os temas que envolviam a
nova proposta. O que os assessores não trouxeram foram as relações
dessas teorias com a prática.

Fizemos três frases – a segunda ficou grande por causa da lista – e,


em vez de conjunção adversativa, usamos um não. Isso obrigou a repetir
teorias.

8 Quando terminei o segundo grau tinha 17 anos. Eu não pensava


em fazer vestibular por vários motivos: precisava trabalhar, caso
contrário tinha que poupar o tênis ou usar ele furado até a mãe
ter dinheiro para comprar outro, e, principalmente, eu achava que
não tinha capacidade para passar no vestibular da UFRGS, porque
sempre estudei em escola pública e ouvia dizer que esse ensino era
fraco, não tinha dinheiro para fazer cursinho e não tinha a mínima
possibilidade de fazer outra faculdade.

Aqui temos um bom motivo para questionarmos a partir de que


quantidade podemos falar em vários: dois motivos – precisar trabalhar
e achar que não tem capacidade para passar no vestibular da UFRGS –
configuram vários? O tênis poupado ou furado e a fama de ensino fraco da

734
gramática e estilo

escola pública são decorrências desses dois motivos. Um dos serviços que
a instituição texto (conjunto de frases encadeadas) prestou à produção e à
organização do conhecimento é esse modo de articular a causa e o efeito;
o todo e a parte, o conjunto, os elementos e os subconjuntos; a condição
e o que é condicionado; o tempo e o acontecimento que nele decorre. O
risco de uma oração subordinada no começo da frase aumenta com uma
enumeração imprecisa. Podemos tentar começar a frase pela declaração
do seu tema e juntar frases e orações que tratam dos mesmos assuntos:

8a Eu não pensava em fazer vestibular quando terminei o segundo


grau, aos17 anos. Eu precisava trabalhar; caso contrário, tinha que
poupar o tênis ou usar ele furado até a mãe ter dinheiro para comprar
outro. Não tinha também, é claro, dinheiro para fazer cursinho e
menos ainda a possibilidade de fazer uma faculdade particular. Além
disso, eu achava que não tinha capacidade para passar no vestibular
da UFRGS, porque tinha estudado em escola pública e sempre ouvi
dizer que o ensino era fraco.

Aqui tem quatro frases, uma levando a questão para a outra, quase
que completamente em ordem direta, e não parecem frases comuns ou
chatas.

6.1.2 Referência

Vamos examinar estes encadeamentos, em que a recuperação de


uma referência torna-se uma tarefa problemática:

1 Minha memória sempre me leva a visitar minha primeira sala de


aula. Sinto como se jamais tivesse saído de lá. A sala grande, com
móveis pequenos e claros. Meu coração entra em desassossego
sempre que penso naquele lugar. A escola era em Vacaria, toda de
madeira, escurecida pelo tempo. O ano era 1975. Minha escola foi
meu primeiro nó para iniciar toda costura entre meu tempo já vivido
e meu tempo ainda sonhado. Eu me assentava na primeira carteira.

735
gramática e estilo

Estar perto da professora era poder apanhar seu giz quando caía ou
apagar, com pesar o quadro para outras lições. Mais que letra, sua
escrita parecia um arabesco.

O parágrafo é um retrato autobiográfico: minha memória, sinto como


se, meu coração, meu primeiro nó, eu me assentava, meu tempo. A última
frase – Estar perto da professora... – também se refere à narradora; daí que
sua escrita é uma referência difícil de ser atribuída à professora, nessa tão
abrupta troca de tema. Além disso, na frase anterior, a declaração apagar,
com pesar o quadro parece anunciar um novo tema, atropelado pelo ou-
tro novo tema anunciado: a letra de quem mesmo? Como se revisa isso?
Tratando de um tema de cada vez, explicitando a relação que há entre eles.

1a Minha memória sempre me leva a visitar minha primeira sala de


aula, uma sala grande, com móveis pequenos e claros. Meu coração
entra em desassossego sempre que penso naquele lugar porque sinto
como se jamais tivesse saído de lá. Minha escola, em Vacaria, toda
de madeira, escurecida pelo tempo, foi meu primeiro nó para iniciar
toda costura entre meu tempo já vivido e meu tempo ainda sonhado.
O ano era 1975, e eu me assentava na primeira carteira para estar
perto da professora para apanhar seu giz quando caía e apagar, com
pesar, do quadro, para outras lições, a sua escrita com letras que
mais pareciam um arabesco.

2 Nosso aluno não ignora a língua: pode ignorar, isto sim, uma
modalidade da qual a escola se diz detentora e, por isso, julga-se no
direito de impor a norma-padrão como valor absoluto e, com isso,
condena-o ao fracasso através da reprovação.

Todo mundo sabe que é o aluno que a escola condena, mas, assim
como está, o que se afirma na frase é a condenação geral do nosso aluno,
tanto os que podem ignorar a norma-padrão como valor absoluto quanto
os outros, que também são o nosso aluno. Aqui tem um problema na
determinação dos conjuntos.

736
gramática e estilo

2a Nosso aluno não ignora a língua: pode ignorar, isto sim, uma
modalidade da qual a escola se diz detentora, a norma-padrão.
Nessa condição, a escola julga-se no direito de impô-la como valor
absoluto, condenando ao fracasso, através da reprovação, os que se
recusam a adotá-la.

Aqui há uma mais clara determinação dos diferentes conjuntos: o


genérico nosso aluno e os específicos que se recusam a adotá-la; por
isso os pronomes átonos o/os não comparecem na frase. Aquele os entre
reprovação e que é um artigo: os (alunos) que...

3 Enquanto aluna de ensino fundamental e médio sempre gostei de


fazer esquemas dos conteúdos estudados, considerando essa a me-
lhor forma de estudar para provas e fixar as matérias aprendidas.
Durante a adolescência, fase mais complicada da minha vida, eu
tinha preguiça de ler, pois preferia assistir televisão do que ler um
bom livro. Essa aversão à leitura começou quando os professores
de Língua Portuguesa e Literatura nos faziam ler obras gigantescas
e com vocabulário muito longe da nossa realidade. Por causa desse
afastamento, quase rodei no terceiro ano. Mas isso passou, e eu
percebi sua devida importância!

Neste encadeamento tem muita coisa que se oferece para ser isso que
passou: o afastamento, a obrigação de ler obras gigantescas, a aversão
à leitura, a preguiça de ler, fazer esquemas dos conteúdos estudados.
Se pode dizer quase o mesmo de sua devida importância, mas a gente
conclui que seja a importância da leitura, até porque se trata de uma con-
clusão obrigatória. Não é bom, no entanto, que o leitor tire conclusões
obrigatórias; texto bom é o que faz o leitor tirar conclusões que o senso
comum dele rejeitaria.

3a Enquanto aluna de ensino fundamental e médio sempre gostei


de fazer esquemas dos conteúdos estudados, considerando essa a
melhor forma de estudar para provas e fixar as matérias aprendidas.

737
gramática e estilo

Durante a adolescência, fase mais complicada da minha vida, eu


tinha preguiça de ler, pois preferia assistir televisão a ler um bom
livro. Essa aversão à leitura começou quando os professores de
Língua Portuguesa e Literatura nos faziam ler obras gigantescas e
com vocabulário muito longe da nossa realidade. Por causa desse
repúdio à leitura, quase rodei no terceiro ano. Mas, com o tempo,
essa rejeição passou, e eu percebi a devida importância de ler o que
os professores julgavam importante.

Há um outro problema neste trecho: a relação entre o que começou


com nos faziam ler obras gigantescas. Vamos examinar esse caso na
seção 6.2.5 Complexidades virtuosas.

4 Percebi também que a gramática possui muitas falhas, mas que há


teorias buscando explicá-las e fazer com que desapareçam.

Há teorias que buscam explicar as muitas falhas da gramática, e


tais explicações vão fazer desaparecerem essas falhas? A referência está
muito clara, mas fica difícil depreender um conceito de falha a partir da
possibilidade de que ela seja explicável e mais difícil ainda imaginar
uma falha desaparecendo.

5 O dever do jornalista é checar seus dados. Esta lição, recebida nas


carteiras da faculdade, foi aplicada nesta segunda-feira, dia 27 de outu-
bro. Os alunos do Curso Intensivo de Jornalismo, desconfiados de uma
entrevista-trote, resolveram certificar-se da verdade dos fatos. Desco-
briram que tudo que ele havia dito não passava de uma grande mentira.

Esse encadeamento parece ser o início do texto; se for, é muito es-


tranho o uso de um ele sem que alguém, no caso, o cara que teria dado a
tal entrevista, tenha sido mencionado. Na verdade, isso é muito entranho
mesmo que esse não seja o encadeamento inicial do texto. Seria tão mais
habitual escrever algo como Descobriram que tudo o que foi dito não
passava de uma grande mentira.

738
gramática e estilo

6 A modernidade invade o mercado de trabalho e já podemos ver


diversas carreiras promissoras sendo anunciadas, a grande maioria
está ligada à área da tecnologia e do controle aos desastres ambien-
tais. Mas, consigo perceber outro campo profissional que promete
ressaltar a característica criativa e humana de nossa espécie. Para
que isso ocorra, falta o estabelecimento de um critério mais apurado
de classificação e o enquadramento mais específico na legislação
trabalhista.

O problema aqui é o demonstrativo isso, no começo da última frase:


Para que isso ocorra provavelmente se refere ao que vem depois do mas,
que abre a segunda frase, que anuncia, em primeira pessoa, a percepção de
um outro campo profissional prometendo coisas. É difícil imaginar o que,
nessa frase, pode ocorrer, isto é, manifestar-se: um campo profissional
pode simplesmente ocorrer? Esse encadeamento é, no mínimo, estranho.
Essas retomadas por substituição lexical, especialmente por verbos, são
particularmente sensíveis à imprecisão e à inadequação vocabular. Talvez
fique mais adequado assim, levando em consideração também os que
implicam com mas no início da frase, principalmente de uma frase que
não enuncia propriamente uma oposição. Já o controle é dos desastres
e não aos desastres.

6a A modernidade invade o mercado de trabalho e já podemos ver


diversas carreiras promissoras sendo anunciadas; a grande maioria
está ligada à área da tecnologia e do controle dos desastres ambien-
tais. Consigo perceber também outro campo profissional que promete
ressaltar a característica criativa e humana de nossa espécie. Para
que tal tendência se concretize, falta o estabelecimento de um critério
mais apurado de classificação e o enquadramento mais específico
na legislação trabalhista.

7 Sempre fui uma excelente aluna em Língua Portuguesa, e, quando


surgiu a Redação como uma vertente dela, no ensino médio, desen-
volvi mais afinidade ainda por ela. Gostava muito de escrever para
desabafar, mas agora eu tinha que escrever com outro propósito,

739
gramática e estilo

que era de acordo com o que a professora queria que eu escrevesse;


no entanto, não reclamei disso e fui aperfeiçoando a minha língua
escrita cada vez mais. Por todos esses motivos, principalmente, acabei
decidindo cursar Letras; afinal, eu me sentia muito boa naquilo tudo.

Escrever para desabafar expressa um propósito para o exercício da


língua escrita, mas que era, que vem depois de agora eu tinha que escre-
ver com outro propósito, anuncia a denominação dessa outra finalidade
para escrever. O que vem depois – de acordo com o que a professora
queria que eu escrevesse – não designa um propósito. Talvez uma for-
mulação como agora era a professora que determinava a finalidade de
cada texto a ser escrito expresse a situação sem a necessidade de sair em
busca de um termo tanto bastante geral quanto suficientemente específico
para designar esse novo propósito. Vamos ver como ficaria a frase:

7a Sempre fui uma excelente aluna em Língua Portuguesa e, quando


surgiu a Redação como uma vertente dela, no ensino médio, desen-
volvi mais afinidade ainda com ela. Gostava muito de escrever para
desabafar, mas agora era a professora que determinava a finalidade
de cada texto a ser escrito. Não reclamei disso e fui aperfeiçoando a
minha língua escrita cada vez mais. Por isso, acabei decidindo cursar
Letras; afinal, eu me sentia muito boa naquilo tudo.

Há três outras modificações na frase: (1) afinidade costuma reger a


preposição com; (2) a combinação de por todos esses motivos com prin-
cipalmente é contraditória porque, se todos os motivos forem principais,
não há secundário; não havendo secundário, não há principal; (3) como
nesse trecho do texto não aparecem tantos motivos para a escolha do
curso superior, a conta pode ser resumida.

8 Pelos idos de 1980, efetuamos uma significativa ampliação na


casa em que morávamos. Ao adquiri-la, dez anos antes, exigiu-nos,
para habitá-la, uma primeira reforma, pois a casa era velha e seu
aspecto decadente: as venezianas estavam pregadas, no banheiro e

740
gramática e estilo

na cozinha faltavam azulejos, o cheiro de mofo era insuportável e,


dentro da casa, chovia como na rua.

No início da frase Ao adquiri-la, dez anos antes, exigiu-nos... há dois


verbos com sujeitos diferentes, ambos não expressos, mas quem adqui-
riu não foi quem exigiu. O leitor resolve isso com o seu conhecimento
de mundo: quem adquiriu é o narrador, que convoca uma companhia,
levando para a primeira pessoa do plural os verbos da primeira frase.
Quem exigiu foi a casa em que morávamos. O primeiro problema deste
encadeamento é temporalidade nebulosa: os idos de 1980 só informam
ao leitor que os anos 1980 já se foram, e dez anos antes só localizaria o
leitor se ele soubesse antes de quê. Ele pode conjeturar que foi antes dos
idos dos 1980, o que não ajuda muito. Enfim, assim como está, o leitor
não consegue saber nem mesmo por quantas reformas a casa já passou
nem como ela está agora. Seria uma temeridade revisá-la sem saber o
fundamental.

Exercício 79

1. Ao longo da graduação, tive algumas disciplinas bem voltadas


para o estudo gramatical, mas a maior parte delas envolvia a leitura
de obras literárias (latina, portuguesa e brasileira), a leitura de textos
teóricos dentro da própria Literatura, dentro da Sociologia, Linguística,
Psicologia da Educação, etc. as quais me possibilitaram entender o ensino
de Português como um exercício que vai além da simples “decoreba”
de regras gramaticais, mas levar o aluno a entender a importância de se
dominar a língua, as estratégias usadas, por exemplo, por publicitários
para atrair seu público-alvo, os recursos utilizados por autores de livros
literários para elaborarem suas obras e discutirem de uma forma original
questões que envolvem a sociedade.
2. Para não ter que encarar a amiga que logo chegaria da universi-
dade, Isadora foi se deitar, mas a noite de sono não resolveu muito, pois

741
gramática e estilo

o sentimento de culpa era cada vez maior. O problema é que junto com
a culpa outro sentimento crescia, o desejo de estar com Rodrigo, porém
Isadora sabia que precisava revelar à amiga o que havia acontecido, por
pior que pudesse ser a reação de Bianca, mas ela não tinha forças para
contar e nem para resistir ao sentimento que nutria por Rodrigo.
3. Cremos que essa diminuição da exigência no exame somada ao
fato de eles se saírem bem no grau um em função, principalmente, de
um trabalho que não é efetivamente de escrita, mas que, como vimos, é
essencial para promover a participação do grupo nas aulas, é responsável
pela aprovação de grande parte da turma.
4. Foi em jornal que li sobre um astro do rock que consagrei meu
ídolo no período inicial da adolescência: Jim Morrison, vocalista e letrista
da banda The Doors, que também publicou poesia em livro. Tocador de
violão que já havia sido fanático por Raul Seixas e que idolatrava Bea-
tles passei a ouvir músicas e a ler tudo que estivesse relacionado a Jim
Morrison – um beberrão de primeira, a propósito.
5. Adoro as manhãs. São as poucas horas do dia em que sou dona da
minha rotina. Isso de segunda a sexta, pois no sábado a pós-graduação já
norteia (e bem) meu início de final de semana. Tenho de abrir mão das
manhãs também nas ocasiões em que algum projeto especial do jornal
exige meus esforços. Mas, normalmente, elas são minhas. Aprecio acordar
lentamente – isso significa ir acordando, entendem? –, me deliciar com
um bom café, tomar um banho demorado, ler os jornais do dia, zapear
pelos canais de tevê, dar seguimento a algum livro.
6. Nem gosto de me lembrar que tenho vizinhos. Não sei se todos
são iguais, mas estão sempre enxergando e falando o que não devem. Os
que moram em casa sabem como é difícil conviver com eles.
7. Quando eu vi já tava falando sozinha. Primeiro ainda disfarça-
va, dava “oi” para as plantas, xingava as baratas. Depois, era declarado
mesmo, começava pensando e acabava falando. Minha sede de barulho
começou a ficar cara. Chegava em casa e ia ligando – rádio, TV, toca-

742
gramática e estilo

-discos, todas as luzes, o ventilador. E não adiantava nada, eu me olhava


no espelho e falava, – tô sozinha, agora é tudo por minha conta.
8. A passagem do tempo não foi tão penosa nos cinco primeiros anos
de prisão, em que me ocupei com a retomada dos estudos abandonados
quando fiz as escolhas que me levaram ao crime. Ao mesmo tempo, fi-
cava muito clara a infantilidade das motivações que me tinham levado a
fazê-las, e o incentivo que eu recebia, no fim de cada semestre, dos meus
professores virtuais, só fazia aumentar a minha disposição para começar
uma nova vida numa nova ocupação. Isso tornou muito penosos cada um
dos dias dos meus dois últimos anos de penitenciária até que, finalmente,
chegou o dia de minha libertação.
9. Devido à situação da família, sabia que seria difícil uma carreira
muito promissora; com quinze anos decidiu estudar para o concurso da
escola de sargentos da Aeronáutica. Não se sabe se foi milagre ou não,
passou em sua primeira tentativa, afinal nunca foi um aluno de notas altas.
10. Eu esperava ele voltar da escola com muita expectativa, pois
queria saber tudo o que ele havia aprendido na aula e principalmente se
a professora havia dado algum tema de casa, pois eu adorava atividades
relacionadas à escrita e meu irmão, muito esperto, dava todos os seus
temas para eu fazer. Assim, eu passei a ter noção do alfabeto antes mesmo
de entrar para a escola, o problema foi quando minha mãe descobriu tudo;
obviamente, meu irmão foi castigado, mas lembro-me de ter chorado com
ele, pois não queria deixar de fazer as atividades que eu tanto gostava.
11. A diversão e o prazer não são importantes, o que realmente
importa é esconder a idade, camuflar as marcas do tempo de nosso rosto,
aumentar os anos de trabalho e de residência. Somos como camaleões,
modificamos nossa aparência conforme o ambiente em que estamos
inseridos. Também julgamos as pessoas pelos seus comportamentos em
determinado espaço de tempo de suas vidas. Jamais levamos em conta,
seu histórico, suas aprendizagens, seus sentimentos.

743
gramática e estilo

6.2 ASPECTOS, MODOS, TEMPOS E FORMAS DOS VERBOS

A interpretação de um enunciado se dá não em função do signifi-


cado das palavras que o compõem mas a partir do sentido que adquire
no contexto em que ocorre. É o leitor que constrói o sentido de um texto
na resposta que dá ao sentido que o autor do texto teve a intenção de
construir com as palavras que colocou uma depois da outra. Desse modo,
o autor que deseja que o leitor construa o sentido mais próximo possível
daquele que tentou construir precisa dar todas as condições para que isso
ocorra. Precisa, para começar, determinar, no texto, as coordenadas de
tempo e espaço, que compõem o contexto em que o conteúdo referencial
do texto deve ser entendido.
No texto narrativo, por exemplo, há dois momentos no tempo que
precisam ser construídos: o tempo do relato, constitutivo do ponto de vista
do narrador, e o tempo em que ocorre o relatado com a delimitação clara do
significado do intervalo que separa esses dois momentos. A circunstância
em que o narrador conta e o distanciamento que toma do espaço onde ocorre
o narrado são também elementos constitutivos da atitude que o narrador
toma com relação ao valor objetivo e subjetivo do que relata.
Os aspectos, modos, tempos e formas dos verbos outorgam ao
texto uma espécie de identidade de elocução: vim pra contar uma história
ou estou aqui pra esclarecer vocês a respeito desta questão ou quero que
vocês percebam como eu vejo isto que eu trouxe pra vocês verem ou
pra contar esta história, preciso que vocês entendam como eu considero
o que está em questão ou tudo isso e mais um pouco tudo junto. Vamos
organizar esse exame pela capacidade dos modos, tempos e formas
verbais organizarem as sequências com que estruturamos nossos textos.
Sequências narrativas, sequências descritivas, sequências que narram e
descrevem, sequências que expõem organizam os textos de acordo com
a necessidade que nos faz recorrer a eles para entendermos o mundo em
que estamos e os mundos para os quais somos capazes de nos transportar
levando os nossos leitores.

744
gramática e estilo

Nesta seção vamos tratar do que fazem os verbos para organizarem


as orações que compõem as frases que compõem o texto, para estabelece-
rem relações entre as orações que compõem as frases e para estabelecerem
relações entre as frases que compõem o texto. Vamos começar por ler e
esmiuçar o papel dos verbos em quatro textos exemplares, em que esses
sistemas funcionam direitinho, e depois vamos nos dedicar aos problemas
que aparecem nos textos em haver de nossos escritores em formação.

6.2.1 Os tempos com que se narra

O velho louco que removeu as montanhas


Liezi63
Perto das montanhas Taihang e Wangwu, vivia um velho de no-
venta anos que todo mundo achava louco. Ele tinha uma ideia fixa, a
de remover as montanhas da frente de sua aldeia e levá-las para outro
lugar. Ninguém acreditou que ele fosse fazer isso.
Certa noite todos foram dormir tranquilos. No dia seguinte, o ve-
lho louco acordou bem cedo e disse novamente que ia remover as duas
montanhas, para abrir um caminho até Hanying, onde os agricultores
iam vender seus produtos no mercado.
Ele começou a encher um cesto com pedras e, pouco depois, passou
perto de sua casa com a carga nas costas.
Sua mulher perguntou:
– Onde vai jogar a montanha?
– No mar Bohai.
Logo seu filho e seus três netos foram trabalhar com ele. Juntos
quebravam as pedras, tiravam a terra enchiam com ela os cestos e iam
jogá-las no mar Bohai. Até o filho de sete anos da viúva, que nascera

63 LIEZI. O velho louco que removeu as montanhas. In: CAPPARELLI, Sérgio; SCHMALTZ,
Márcia (org.). Fábulas da China fabulosa. Porto Alegre: L&PM, 2007.

745
gramática e estilo

depois da morte do vizinho, veio ajudá-los. Eles trabalhavam de domingo


a domingo, de primavera a primavera. voltando para casa apenas uma
vez por ano.
Mesmo algumas pessoas que não acreditavam que fosse possível
tirar as montanhas do lugar se dispuseram a ajudar o velho louco. Pri-
meiro sua mulher e seus outros filhos. Depois os vizinhos e os vizinhos
de seus vizinhos. Mais tarde acharam, sim, que a montanha tinha de dar
passagem até Hanying.
Um sábio que vivia na curva do rio tentou dissuadi-lo daquela
loucura:
– Deixa de ser doido. Um homem velho e fraco como você, incapaz
de carregar um saco de areia vai remover duas montanhas para mudá-
-las de lugar?
O velho deu um suspiro. Olhou para a montanha, olhou para o mar
Bohai, lá longe, como se calculasse quanto tempo faltava para terminar
o trabalho, e disse:
– Se eu morrer, eu deixo o meu filho e o filho do meu filho, o filho do
meu neto, o filho do filho do meu neto. Já as montanhas não crescem mais
nem aumentam de tamanho; por isso, eu vou continuar meu trabalho.
O sábio da curva do rio não soube o que responder.

O sistema de tempos verbais constituído numa narrativa envolve


basicamente o pretérito perfeito do indicativo, que localiza os fatos
narrados no momento em que acontecem; e o pretérito imperfeito do
indicativo, que fala do que se foi constituindo e está em vigência quando
se dão os fatos narrados. Outros tempos verbais vão ser necessários para
tratar do que aconteceu antes do momento em que o narrador assumiu
a palavra para contar a história, tratar do que poderia ter acontecido, do
que vai acontecer depois, do que poderá acontecer depois, etc.

746
gramática e estilo

Como quem narra é o narrador criado pelo autor para contar a


história, é a intenção com que ele nos conta essa história que constitui o
sistema de tempos verbais necessário para contá-la. Sendo assim, vamos
tentar caracterizar o narrador do causo (?), conto (?), fábula (?) O velho
louco que removeu as montanhas.
Abaixo do título tem o nome do autor – Liezi –, mas nada na história
nos diz que a voz que fala no texto é a voz desse autor; na verdade, a mais
relevante informação que o texto nos dá sobre o narrador é a sua muito
pouco comum disposição de nos revelar, já no título, o fim da história.
Incomum também é a sua adesão ao conceito que fazia do seu personagem
a comunidade em que ele vivia: o velho era louco. Era?
Essa antecipação do sucesso do velho apesar da descrença inicial
revela que o narrador não tem a intenção de envolver o leitor com o de-
senrolar de um enredo nem está preocupado em tratar das peculiaridades
culturais da sociedade onde a história se passa. A história parece, por
isso, uma fábula, pois, em vez de louvar explicitamente a perseverança,
o empenho, a liderança, o empreendedorismo do velho louco, se apre-
senta como um singelo causo, do qual cada leitor vai tirar as próprias
conclusões. Todo mundo achava que o velho era louco até que ele parou
de bravatear e meteu a mão na massa, e todo mundo foi atrás: simples
assim tal qual o sistema de tempos verbais ao qual recorreu para contar
a história.

Exercício 80

Vamos assinalar os verbos deste texto e identificar os aspectos,


modos e tempos em que os verbos de suas frases se apresentam para
tentar perceber qual é a contribuição de cada tempo verbal na sua or-
ganização. É melhor fazer isso antes de ler o que vem a seguir, em que
esse trabalho já está feito.

747
gramática e estilo

O velho louco que removeu as montanhas


Liezi

Perto das montanhas Taihang e Wangwu, vivia um velho de no-


venta anos que todo mundo achava louco. Ele tinha uma ideia fixa, a
de remover as montanhas da frente de sua aldeia e levá-las para outro
lugar. Ninguém acreditou que ele fosse fazer isso.
Certa noite todos foram dormir tranquilos. No dia seguinte, o ve-
lho louco acordou bem cedo e disse novamente que ia remover as duas
montanhas, para abrir um caminho até Hanying, onde os agricultores
iam vender seus produtos no mercado.
Ele começou a encher um cesto com pedras e, pouco depois, passou
perto de sua casa com a carga nas costas.
Sua mulher perguntou:
– Onde vai jogar a montanha?
– No mar Bohai.
Logo seu filho e seus três netos foram trabalhar com ele. Juntos
quebravam as pedras, tiravam a terra. Enchiam com ela os cestos e
iam jogá-las no mar Bohai. Até o filho de sete anos da viúva, que nas-
cera depois da morte do vizinho, veio ajudá-los. Eles trabalhavam de
domingo a domingo, de primavera a primavera, voltando para casa
apenas uma vez por ano.
Mesmo algumas pessoas que não acreditavam que fosse possível
tirar as montanhas do lugar se dispuseram a ajudar o velho louco. Pri-
meiro sua mulher e seus outros filhos. Depois os vizinhos e os vizinhos
de seus vizinhos. Mais tarde acharam, sim, que a montanha tinha de
dar passagem até Hanying.
Um sábio que vivia na curva do rio tentou dissuadi-lo daquela
loucura:

748
gramática e estilo

– Deixa de ser doido. Um homem velho e fraco como você, inca-


paz de carregar um saco de areia, vai remover duas montanhas para
mudá-las de lugar?
O velho deu um suspiro. Olhou para a montanha, olhou para o mar
Bohai, lá longe, como se calculasse quanto tempo faltava para terminar
o trabalho, e disse:
– Se eu morrer, eu deixo o meu filho e o filho do meu filho, o filho do
meu neto, o filho do filho do meu neto. Já as montanhas não crescem mais
nem aumentam de tamanho; por isso, eu vou continuar meu trabalho.
O sábio da curva do rio não soube o que responder.

Vamos, então, examinar como funcionam aspectos, modos e tempos


verbais neste texto.

Perto das montanhas Taihang e Wangwu, vivia um velho de noventa


anos que todo mundo achava louco. Ele tinha uma ideia fixa, a de
remover as montanhas da frente de sua aldeia e levá-las para outro
lugar. Ninguém acreditou que ele fosse fazer isso.

Esta narrativa começa apresentando o personagem e o cenário, com


dois verbos no imperfeito do indicativo: vivia, sobre o velho; e achava,
sobre o que costumavam pensar a respeito dele. Na segunda frase, um
outro verbo, também no imperfeito do indicativo, apresenta a carac-
terística que dá pra esse velho a condição de protagonista da história:
tinha uma ideia fixa. Dois verbos no infinitivo – remover e levar – apre-
sentam essa ideia fixa dizendo os nomes das ações que o velho julgava
necessário implementar para dar conta de sua ideia fixa. A última frase
do parágrafo, expressa a reação dos outros com um verbo no perfeito do
indicativo: acreditou. Já o último verbo dessa frase – fosse fazer–, numa
forma composta do mais que perfeito do subjuntivo, indica a crença,
ou melhor, a descrença com que consideravam a empreitada do velho.

749
gramática e estilo

O modo indicativo – vivia, achava, tinha e acreditou– expressa


o que a história apresenta como circunstâncias e fatos acontecidos, e o
modo subjuntivo – fosse fazer –apresenta o que aparece como uma
conjetura e não como um fato real.

6.2.1.1 Modo verbal

Como é que devemos entender o modo, os modos verbais? Recor-


ramos à NGPB (437):

Há três modos no PB: o indicativo, o subjuntivo e o impe-


rativo. Todos eles apresentam uma propriedade discursiva
comum: a de representarem atos de fala: segundo Ilari /
Basso (2008a: 316-317) há relação entre indicativo, o
subjuntivo e imperativo e a teoria dos atos de fala:
“[...] a teoria dos atos de fala [...] separa cuidadosamente
os conteúdos proposicionais e os usos que deles podemos
fazer: um dos usos que ela estuda é a asserção, pela qual
damos fé de que aquele determinado conteúdo se realiza
no mundo; outro é a construção de situações imaginárias
que não precisam corresponder pontualmente com aquilo
que acontece no mundo, mas podem ser úteis como exer-
cícios de pensamento; outra ação ainda, bem diferente da
asserção e da suposição, é a ordem.”
Essas observações são muito importantes, pois nos levam
para fora da sentença enunciada e para dentro da situação
de enunciação, mostrando que a seleção dos modos não
tem uma motivação exclusivamente sintática. Cada dictum
vem associado a um ato de fala. O modus evidencia de
que ato de fala se trata: o dos “conteúdos que se realizam
no mundo” (indicativo), o das “situações imaginárias que
não precisam corresponder ao que acontece no mundo”
(subjuntivo), e o da “ordem”, bem diferente “da asserção
e da suposição” (imperativo) (CASTILHO, 2010, p. 437).

750
gramática e estilo

O exemplo dado por Ilari e Basso (2014, p. 195-196) é este conjunto


de frases, em que o dictum, isto é, o conteúdo proposicional, é o mesmo:

Você vai falar com a proprietária.


Vai você falar com a proprietária.
[O que eu mais quero é que] você vá falar com a proprietária.
Se você for falar com a proprietária, então...

O indicativo – Você vai falar... – é o modo que nos permite falar de


situações reais; no imperativo – Vai você falar... – está presente a ideia
de ordem; no subjuntivo, num certo número de seus empregos, indica
fatos que consideramos como não reais.
Então era um fato real (dentro do mundo onde se desenvolve esta
história), que o velho vivia, achava, tinha e ninguém acreditou... Não é
real que ele fosse fazer isso: essa era a crença dos demais moradores da
localidade. O que a gente pode se perguntar é por que o verbo acreditou,
que, tal como achava, na frase anterior, expressa o que os outros pensa-
vam a respeito do velho, não está conjugado do mesmo jeito: Ninguém
acreditava que ele fosse fazer isso.

6.2.1.2 Aspecto verbal

Haveria algum estranhamento se esse verbo, que indica a incre-


dulidade das pessoas durante esse tempo todo a respeito da execução
dessa ideia fixa, estivesse, assim, também no imperfeito do indicativo?
Aparentemente não, mas vale a pena procurar pela diferença entre acre-
ditou e acreditava, que é a diferença entre o perfeito e o imperfeito,
entre o aspecto perfectivo e o aspecto imperfectivo. Vejamos o que
diz a NGPB:

O aspecto verbal é uma propriedade da predicação que


consiste em representar os graus do desenvolvimento do
estado de coisas aí codificado, ou seja, as fases que ele

751
gramática e estilo

pode compreender. [...] O aspecto é uma das gramaticali-


zações da categoria VISÃO. É como se o falante, tangido
por um inesperado transporte místico, visualizasse de
fora, do alto, do além, os estados de coisas que ele mesmo
acionou, separando diligentemente (i) o que dura, (ii) o
que começa e acaba, e (iii) o que se repete. Os aspectos
imperfectivo, perfectivo e iterativo resultam desse lance
meio esquisito (CASTILHO, 2010, p. 417).

Em ­Ninguém acreditava que ele fosse fazer isso, se infere que,


por mais que o velho tenha passado anos alardeando que ia remover
as montanhas, esse tempo todo não foi suficiente para que as pessoas
acreditassem nisso. Já em Ninguém acreditou que ele fosse fazer isso,
acrescenta-se a informação de que ninguém, em momento algum dos
seus inúmeros e reiterados alardes, acreditou nisso, ou seja, a crença
não teve sequer um átimo de vigência, duração alguma. Acreditou é
pretérito perfeito; “o perfectivo representa uma ação pontual, acabada,
isto é, uma ação cujo começo coincide com o seu desfecho”. Acreditava
é pretérito imperfeito, imperfectivo, o que marca a duração no tempo
(CASTILHO, 2010, p. 419).
Ilari e Basso (2014, p. 175) dão um exemplo muito claro dessa
diferença ao compararem estas duas frases:

Ela ia para o interior, mas resolveu não ir.


Ela foi para o interior, mas resolveu não ir.

Na primeira frase, ia – imperfeito, isto é, ação inconclusa – com-


patibiliza com não ir. Na segunda frase, foi – perfeito, isto é, ação con-
siderada em seu ponto final – não compatibiliza com não ir. Ou seja:
quem ia pode resolver não ir, mas quem foi já está lá; logo, não pode
resolver não ir.
Aqui se deu a escolha do perfeito – acreditou – onde haveria maior
probabilidade do imperfeito aparecer; costuma-se classificar esse tipo de

752
gramática e estilo

escolha como estilística porque o seu efeito é um acréscimo de sentido


com relação à forma “regular” acreditava.

Certa noite todos foram dormir tranquilos. No dia seguinte, o velho


louco acordou bem cedo e disse novamente que ia remover as duas
montanhas, para abrir um caminho até Hanying, onde os agricultores
iam vender seus produtos no mercado.
Ele começou a encher um cesto com pedras e, pouco depois, passou
perto de sua casa com a carga nas costas.
Sua mulher perguntou:
– Onde vai jogar a montanha?
– No mar Bohai.

Nesta sequência, predomina o perfeito, o que começou e já termi-


nou: o velho já não mais repetiu as suas promessas, mas pôs mãos à obra:
acordou e disse: Vou remover as duas montanhas, para abrir um caminho
até Hanying, onde os agricultores vão vender seus produtos no mercado.
As mudanças de vou remover e vão vender – formas do futuro do
indicativo, que reproduziriam as falas do velho tal qual ele disse – para
ia remover e iam vender – formas do futuro do pretérito – decorrem do
reportamento da fala do velho pelo narrador, que conta a história depois
que ela aconteceu. Na fala da mulher do velho, que não está reportada mas
citada pelo narrador, tal qual ela falou, aparece o futuro do indicativo:
Onde vai jogar a montanha? Se o narrador quisesse reportar a fala dela,
escreveria algo como isto: Ela perguntou onde ele ia jogar a montanha.

6.2.1.3 O reportamento da fala

E já que falamos em modos e aspectos, vamos considerar mais de


perto esta mudança nos tempos verbais provocada pelo reportamento
das falas pelo narrador: Vou remover para ia remover; vão vender para
iam vender; e vou jogar para ia jogar. Em Ilari e Basso (2014, p. 136)
podemos ler:

753
gramática e estilo

Para a gramática do tempo em português falado é relevante


a distinção de três “momentos” reconhecidos há mais de
meio século pelo filosofo e lógico Hans Reichenbach
(1947) e por ele utilizados no estudo dos tenses do inglês:
o momento de fala, o momento de evento e o momento de
referência. Comecemos pelos dois primeiros. É imediato
reconhecer que as três sentenças a seguir têm, respectiva-
mente, uma referência temporal passada, presente e futura:

João comeu carne de jacaré.


João está comendo carne de jacaré.
João comerá carne de jacaré.

Em todas essas sentenças está em jogo o evento de comer


carne de jacaré, e esse evento é localizado na linha do
tempo. Chamemos a este momento da linha do tempo em
que o evento se localiza “momento de evento” (abreviado
ME). O cálculo da referência temporal é o conjunto de
operações mediante as quais localizamos no tempo o “mo-
mento do evento”. Mas como acontece essa localização?

Quando falamos em “passado”, “presente” ou “futuro”


estabelecemos uma relação cronológica (de anterioridade,
simultaneidade, posterioridade) entre esse momento e
algum outro momento tomado como ponto de referência.
Nas sentenças dadas como exemplo, essa referência é o
momento em que acontece nossa fala: nesses casos entra
em jogo sem mais complicações um dispositivo dêitico
inerente ao sistema de referência temporal utilizado pela
língua, pelo qual o momento de fala é, em qualquer hi-
pótese, o termo “a quo”, ou seja, o marco a partir do qual
se faz todo cálculo temporal. [...]
Associado diretamente ao ato de fala, o “momento de fala”
(MF) é estruturalmente distinto do momento do evento,
que se define pela associação ao evento relatado. Se con-
vencionarmos que, em qualquer representação simbólica
da localização dos momentos que definem a referência

754
gramática e estilo

temporal, as fórmulas ‘x – y’ e ‘x,y’ significam respectiva-


mente que ‘x é anterior a y’ e que ‘x e y são simultâneos’
teremos em (225), (226) e (227) uma representação das
ideias correntes de passado, presente e futuro:

(225) ME – MF (passado, ou seja, o momento do evento


precede o momento de fala)
(226) ME,MF (presente, ou seja, o momento de evento e
o momento de fala coincidem)
(227) MF – ME (futuro, ou seja, o momento de fala pre-
cede o momento de evento)

Para explicar a referência temporal tal como é gramaticali-


zada nas línguas naturais, porém, distinguir ME e MF não
basta. Além desses é necessário considerar um terceiro
momento, a que Reichenbach chamava de “momento de
referência” (abreviado MR).

Ilari e Basso exemplificam com um exemplo trabalhado por Jerôni-


mo Soares Barbosa: “e quando digo: Eu tinha saído quando ele entrou é
também uma época pretérita a respeito do presente em que estou falan-
do. Mas minha saída não é só anterior e passada, mas ainda concluída
e acabada a respeito da dita entrada”. A representação simbólica seria
esta: ME – MR, MR – MF. Isso quer dizer que o momento do evento – a
saída – é anterior ao momento de referência – a entrada –, sendo esse
MR anterior ao momento de fala. A frase é proferida depois que o nar-
rador entrou, e, antes disso, esse outro, designado por ele, já tinha saído.
Vamos aplicar esta fórmula ao reportamento da fala mencionado
anteriormente, que resultou nas mudanças de vou remover e vão vender –
formas do futuro do indicativo – para ia remover e iam vender – formas
do futuro do pretérito. Se o velho diz Vou remover as duas montanhas,
para abrir um caminho até Hanying, onde os agricultores vão vender seus
produtos no mercado, o momento do evento (ME) é o momento em que
ele fala, ou seja, ME,MF (momento do evento simultâneo ao momento de

755
gramática e estilo

fala), conforme a convenção. O narrador, no entanto, reporta a fala depois


que o velho falou, ou seja, o momento do evento, isto é, o momento em
que o velho fala é anterior ao momento em que o narrador fala, ou seja,
ME – MF (momento do evento anterior ao momento de fala), conforme
a convenção. O reportamento da fala acontece num momento posterior
ao momento do passado em que ocorreu a fala que está sendo reportada.
Um momento futuro com relação a um momento passado é a definição
de futuro do pretérito; daí ia remover e iam vender.
Convém chamar atenção para a diferença entre, de um lado, vou
remover / ia remover – locuções verbais que expressam o futuro, em
que o verbo ir é o auxiliar e remover é o principal – e, de outro lado,
vão vender / iam vender, que são dois verbos: ir não é auxiliar, pois os
agricultores executam duas ações: (1) eles vão ao mercado e, no mercado,
eles (2) vendem seus produtos. É por causa dessa ida dos agricultores para
o outro lado das montanhas que o velho quer tirá-las do caminho deles.

Logo seu filho e seus três netos foram trabalhar com ele. Juntos
quebravam as pedras, tiravam a terra. Enchiam com ela os cestos
e iam jogá-las no mar Bohai. Até o filho de sete anos da viúva, que
nascera depois da morte do vizinho, veio ajudá-los. Eles trabalhavam
de domingo a domingo, de primavera a primavera, voltando para
casa apenas uma vez por ano.

Em foram trabalhar podemos considerar que ir não aparece na


condição de verbo auxiliar se considerarmos que eles se deslocaram de
onde estavam para o local onde passaram a trabalhar, isto é, tomaram
essa decisão num determinado momento e a cumpriram; daí o perfeito
do indicativo: foram. Se considerarmos que foram trabalhar significa
que eles passaram a trabalhar a partir daquele momento, o verbo ir é o
auxiliar que forma, com o verbo principal no gerúndio, o futuro com-
posto do indicativo.

756
gramática e estilo

Na forma do imperfeito – quebravam, tiravam, enchiam, iam –


vem o relato das atividades recorrentes, que perduraram no tempo, do
trabalho de remover as montanhas. Na verdade, a forma iam jogá-las pode
também ser interpretada como iam jogá-las – equivalente a jogavam-nas
–, e, nesse caso, ir seria um verbo auxiliar.
Na frase seguinte, temos a forma simples do pretérito mais que
perfeito do indicativo: nascera. Como acabamos de examinar, o pre-
térito mais que perfeito indica anterioridade em relação a outra ação
anterior. A frase que estamos examinando diz, no entanto, que o evento
expresso pelo pretérito mais que perfeito – nascera – aconteceu depois
de um outro evento:

Até o filho de sete anos da viúva, que nascera depois da morte do


vizinho, veio ajudá-los.

Além disso, a frase não faz menção a algum outro evento antes do
qual teria acontecido o nascimento do filho de sete anos da viúva, isto é,
não há momento de referência (MR) anterior. Não custa examinar como
a frase nos pareceria com esse verbo no pretérito perfeito:

Até o filho de sete anos da viúva, que nasceu depois da morte do


vizinho, veio ajudá-los.

A frase continua estranha não por causa do arranjo temporal


mas por causa dessa referência intempestiva à morte de um vizinho
que não tinha entrado na história e também ao artigo definido – da
viúva – com que é apresentada uma viúva, que também não tinha
entrado na história. É uma estranha peculiaridade deste conto chinês
traduzido: parece que ele conta a história para leitores que sabem
mais a respeito do que aqui se conta, mais do que nós, leitores da
tradução, podemos saber.

757
gramática e estilo

Mesmo algumas pessoas que não acreditavam que fosse possível


tirar as montanhas do lugar se dispuseram a ajudar o velho louco.
Primeiro sua mulher e seus outros filhos. Depois os vizinhos e os
vizinhos de seus vizinhos. Mais tarde acharam, sim, que a montanha
tinha de dar passagem até Hanying.

Além do caso de pretérito imperfeito do indicativo – acredita-


vam – indicando a duração da descrença, temos dois casos de perfeito
do indicativo – dispuseram e acharam – que indicam o momento da
mudança de estado pelas quais passaram as referidas algumas pessoas
que não acreditavam e que, então, passaram a achar que a empreitada
valia a pena; temos, aí, portanto, duas asserções. O que elas até então
não acreditavam era uma possibilidade, e aquilo em que elas passaram
a acreditar se materializou numa atitude – se dispuseram a ajudar – e
numa convicção: acharam, sim, que a montanha... ambas expressas no
perfeito do indicativo. Aquilo em que elas não acreditavam antes está
expresso no modo subjuntivo – que fosse possível tirar as montanhas...;
temos, aí, portanto, uma possibilidade. Aqui se repete o que foi dito no
fim do primeiro parágrafo da narrativa, o que apresenta a situação e os
personagens da história: Ninguém acreditou (asserção – modo indicativo)
que ele fosse fazer (possibilidade – modo subjuntivo) isso.

Um sábio que vivia na curva do rio tentou dissuadi-lo daquela


loucura:
– Deixa de ser doido. Um homem velho e fraco como você, incapaz
de carregar um saco de areia, vai remover duas montanhas para
mudá-las de lugar?
O velho deu um suspiro. Olhou para a montanha, olhou para o
mar Bohai, lá longe, como se calculasse quanto tempo faltava para
terminar o trabalho, e disse:
– Se eu morrer, eu deixo o meu filho e o filho do meu filho, o filho do
meu neto, o filho do filho do meu neto. Já as montanhas não crescem
mais nem aumentam de tamanho; por isso, eu vou continuar meu
trabalho.
O sábio da curva do rio não soube o que responder.

758
gramática e estilo

Na primeira frase, tal como já ocorreu antes, temos o imperfeito


do indicativo caracterizando um novo personagem – um sábio que vivia
na curva do rio –; temos também o perfeito do indicativo, que narra
a ação do sábio: tentou dissuadi-lo daquela loucura. A seguir, temos
um diálogo, que, como tal, reproduz as palavras proferidas pelos que
conversam, como se essa conversa estivesse sendo travada no presente,
na presença do leitor: Deixa de ser doido, disse o sábio. Se o narrador
reportasse essa fala, ela ficaria assim: O sábio disse ao velho que deixasse
de ser doido (ou apelou ao velho que deixasse de ser doido). Deixasse
é pretérito imperfeito do subjuntivo, já que disse, que introduz a fala,
está no pretérito perfeito. Na NGPB (438-9) lemos isto: “Do ponto de
vista sintático, o subjuntivo predomina nas sentenças subordinadas. Ob-
serve que subjuntivo e subordinado são termos sinônimos, pois remetem
à ‘ordenação das sentenças numa posição de dependência’, ‘debaixo de
X’, em que X é a sentença matriz”.
Sentenças subordinadas, ou orações subordinadas, no caso, são
as que vêm depois de como se e se: como se calculasse quanto... e
Se eu morrer, eu... Também é subordinada a que vem depois do que
na paráfrase O sábio disse ao velho que deixasse de ser doido. Na
segunda frase, podemos ver que o subjuntivo se aplica não apenas no
reportamento das falas pelo narrador mas também nas suas conjeturas
a respeito do que os personagens não expressam. Se o velho estivesse
dando conta em voz alta daquilo que está fazendo, ele diria isto: Estou
olhando para a montanha e para o mar Bohai e calculo/estou calcu-
lando quanto tempo falta para terminar o trabalho. O presente da fala
– Estou olhando – é substituído, no reportamento, como vimos, pela
distância temporal entre a fala do personagem, que ficou no passado,
e o discurso do narrador, que a recupera no tempo da narrativa: (o
velho) olhou. O indicativo da asserção do personagem a respeito do
que se passaria em sua cabeça – estou calculando – é substituído pelo
subjuntivo da conjetura do narrador a respeito do que o personagem
estaria pensando: como se calculasse.

759
gramática e estilo

Na última frase, é o velho que faz uma conjetura – Se eu morrer–


no futuro do subjuntivo. Faz também várias asserções no presente do
indicativo; deixo o meu filho e o..., as montanhas não crescem mais
nem aumentam de tamanho; e ainda mais assertivo ainda é o futuro
do indicativo – eu vou continuar meu trabalho. É por causa disso
que o sábio da curva do rio não soube – naquele exato momento – o
que responder.

6.2.1.4 Tempos predominantes na narrativa

Em síntese, nesta narrativa predominam verbos conjugados nos


pretéritos do indicativo:

1. O perfeito, que diz o que acontece com os personagens e o que


eles fazem; são 18 ocorrências: removeu / acreditou / foram dormir
/ acordou / disse / começou a encher / passou / perguntou / foram
/ veio / dispuseram / acharam / tentou / deu / olhou / olhou / disse
/ soube.
2. O imperfeito, que se ocupa com acontecimentos e ações que
se repetem ou que têm continuidade, compondo a situação e o cenário
onde a narrativa se passa, com 14 ocorrências: vivia / achava / tinha /
iam vender / tinha / quebravam / tiravam / enchiam / iam jogá-las /
trabalhavam /acreditavam / tinha de dar / vivia / faltava.
3. O infinitivo (os que não são o verbo principal de uma locução
verbal), que tem a função de designar ações que ocorrem, com 13 ocor-
rências: remover / levá-las / abrir / vender / encher / trabalhar / tirar
/ ajudar / dissuadi-lo / ser / carregar / mudá-las / responder.
Três outros tempos têm três ocorrências cada um:
4. O presente do indicativo: deixo / crescem / aumentam – que
reproduzem as falas do personagem.

760
gramática e estilo

5. O futuro do indicativo: vai jogar / vai remover / vou conti-


nuar – expressos no tempo composto que predomina na nossa fala, que
também reproduzem as falas do personagem.
6. O imperfeito do subjuntivo: fosse fazer / fosse / calculasse –
expressando conjeturas.
Outros três tempos têm apenas uma ocorrência:
7. O futuro do subjuntivo: se eu morrer – também expressando
uma conjetura.
8. O mais que perfeito do indicativo: nascera – um uso proble-
mático, como vimos.
9. O futuro do pretérito: ia remover – reportando a fala do per-
sonagem pelo narrador.
Há ainda uma ocorrência do modo imperativo:
10. O imperativo: deixa.
Bem diferente é o sistema de tempos verbais constituído num texto
expositivo-argumentativo, em que é o texto e não o tempo que passa dian-
te dos olhos do leitor e em que fala uma voz solidária com os pontos de
vista do autor, comprometida com a tarefa de expô-los da maneira mais
convincente possível. Vamos, então, ler o texto para tentar caracterizar
a voz que nele fala e os tempos verbais que o organizam.

761
gramática e estilo

6.2.2 Os tempos com que se expõe

O papel da escola é ensinar língua padrão


Sírio Possenti64

É importante que este tópico fique claro, e esteja na memória do


leitor, quando estiver eventualmente achando estranha alguma das
teses seguintes. Talvez deva repetir que adoto sem qualquer dúvida o
princípio (quase evidente) de que o objetivo da escola é ensinar o por-
tuguês padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar condições para
que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político
e pedagógico. A tese de que não se deve ensinar ou exigir o domínio do
dialeto padrão dos alunos que conhecem e usam dialetos não padrões
baseia-se em parte no preconceito segundo o qual seria difícil aprender
o padrão. Isto é falso, tanto do ponto de vista da capacidade dos falan-
tes quanto do grau de complexidade de um dialeto padrão. As razões
pelas quais não se aprende, ou se aprende mas não se usa um dialeto
padrão, são de outra ordem, e têm a ver em grande parte com os valores
sociais dominantes e um pouco com estratégias escolares discutíveis.
Vou expandir um pouco e justificar as afirmações acima. Antes, preciso
dizer que considero que estamos todos de acordo sobre um ponto: que o
problema do ensino do padrão só se põe de forma grave quando se trata
do ensino do padrão a quem não o fala usualmente, isto é, a questão é
particularmente grave em especial para alunos das classes populares,
por mais que também haja alguns problemas decorrentes das diferenças
entre fala e escrita, qualquer que seja o dialeto (mas, insisto sobre a
hipótese de que, provavelmente, tais problemas sejam mais de tipo textual
do que de tipo gramatical).
Como toda a boa tese, a que estou defendendo aqui é afirmada
contra alguma outra, real ou hipotética, às vezes atribuída aos linguis-
64 POSSENTI, Sírio. O papel da escola é ensinar língua padrão. In: POSSENTI, Sírio. Por que
(não) ensinar gramática na escola. Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil, 1996.

762
gramática e estilo

tas. Dentre as que defenderiam que a função da escola não é ensinar


português padrão, aquelas que vale a pena comentar são basicamente
duas. Uma é de natureza político-cultural. Outra, de natureza cognitiva.
A tese de natureza político-cultural diz basicamente que é uma
violência, ou uma injustiça, impor a um grupo social os valores de outro
grupo. Ela valeria tanto para guiar as relações entre brancos e índios
quanto para guiar as relações entre – para simplificar um pouco – pobres
e ricos, privilegiados e “descamisados”. Dado que a chamada língua
padrão é de fato o dialeto dos grupos sociais mais favorecidos, tornar
seu ensino obrigatório para os grupos sociais menos favorecidos, como
se fosse o único dialeto válido, seria uma violência cultural. Isso porque,
juntamente com as formas linguísticas (com a sintaxe, a morfologia,
a pronúncia, a escrita), também seriam impostos os valores culturais
ligados às formas ditas cultas de falar e escrever, o que implicaria em
destruir ou diminuir valores populares. O equívoco, aqui, parece-me, é
o de não perceber que os menos favorecidos socialmente só têm a ga-
nhar com o domínio de outra forma de falar e de escrever. Desde que
se aceite que a mesma língua possa servir a mais de uma ideologia, a
mais de uma função, o que parece hoje evidente.
Isso poderia parecer óbvio, mas é aqui que começa a funcionar o
outro equívoco, o de natureza cognitiva. Ele consiste em imaginar que
cada falante ou cada grupo de falantes só pode aprender e falar um
dialeto (ou uma língua). Dito de outra maneira: a defesa dos valores
“populares” suporia que o povo só fala formas populares, e que elas
são totalmente distintas das formas utilizadas pelos grupos dominan-
tes. O que vale para formas linguísticas valeria para outras formas de
manifestação cultural. A hipótese supõe também que o aprendizado
de uma língua ou de um dialeto é uma tarefa difícil, ou, pelo menos,
difícil para certos grupos ou para certas pessoas. Ora, todas as evi-
dências vão no sentido contrário. Qualquer pessoa, principalmente
se for criança, aprende com velocidade muito grande outras formas
de falar, sejam elas outros dialetos ou outras línguas, desde que ex-

763
gramática e estilo

postas consistentemente a elas. Em resumo, aprender outro dialeto é


relativamente fácil. Portanto, nenhuma das razões para não ensinar
o dialeto padrão na escola tem alguma base razoável.
Em que consistiria o domínio do português padrão? Do ponto de
vista da escola, trata-se em especial (embora não só) da aquisição de
determinado grau de domínio da escrita e da leitura. É evidentemente
difícil fixar os limites mínimos satisfatórios que os alunos deveriam
poder atingir. Mas parece razoável imaginar, como projeto, que a
escola se proponha como objetivo que os alunos, aos 15 anos de
vida e 8 de escola, escrevam, sem traumas, diversos tipos de texto
(narrativas, textos argumentativos, textos informativos, atas, cartas
de vários tipos etc.; pode-se excluir a produção de textos literários
dos objetivos da escola, já que literatos certamente não se fazem
nos bancos escolares; o máximo que se pode esperar é que eles aí
não se percam) e leiam produtivamente textos também variados:
textos jornalísticos, como colunas de economia, política, educação,
textos de divulgação científica em vários campos, textos técnicos (aí
incluído o manual de declaração do imposto de renda, por exemplo)
e, obviamente, e com muito destaque, literatura. No final do segundo
grau, deveriam conhecer a literatura contemporânea e os principais
clássicos da língua. Seria bom que conhecessem também, nesse nível
de formação escolar, pelo menos alguns dos principais clássicos da
literatura universal, pelo menos nas edições condensadas
Para que as posições aqui defendidas façam sentido, é preciso
antes ter claro que tal objetivo certamente não é atingido atualmente,
como regra. São relativamente poucos os alunos egressos do segundo
grau que executam esses dois tipos de atividade com frequência e na-
turalidade. Mas, gostaria de deixar claro que não se está propondo um
projeto inexequível, nem novo. É apenas o óbvio. O que proponho é que
o óbvio seja efetivamente realizado. Uma das medidas para que esse
grau de utilização efetiva da língua escrita possa ser atingido é escrever
e ler constantemente, inclusive nas próprias aulas de português. Ler e

764
gramática e estilo

escrever não são tarefas extras que possam ser sugeridas aos alunos
como lição de casa e atitude de vida, mas atividades essenciais ao ensino
da língua. Portanto, seu lugar privilegiado, embora não exclusivo, é a
própria sala de aula.
As razões pelas quais – às vezes – a escola fracassa na consecu-
ção desse objetivo são variadas. Como disse acima, as razões podem
ser de ordem metodológica (pedagógica) ou decorrentes de valores
sociais complexos. Alguns desses empecilhos podem ser destruídos
na própria escola. Outros, não. Alguns dos problemas que levam
ao fracasso têm a ver com a forma como se concebem a função e as
estratégias do ensino de língua. A única opção de uma escola com-
prometida com melhoria da qualidade do ensino está entre ensinar
ou deixar aprender... Qualquer outra implica em conformar-se com
o fracasso ou, pior, em atribuí-lo exclusivamente aos alunos.

Para bem caracterizar a voz que fala neste texto, podemos destacar
a única ocorrência que há nele do pretérito perfeito do indicativo –
disse – lá na segunda linha do último parágrafo: As razões pelas quais
– às vezes – a escola fracassa na consecução desse objetivo são varia-
das. Como disse acima, as razões podem ser de ordem metodológica
(pedagógica) ou... Quem disse? De quem é esta voz? Não pode haver
dúvidas de que é a de Sírio Possenti, o autor que assina o texto, até por-
que não há como atribuir uma terceira pessoa a esse disse. Também não
cabe perguntar disse quando?, porque ele disse onde, ele disse acima,
acionando a clássica metáfora espaço-tempo / tempo-espaço. Essa voz
que fala no texto se autodenomina eu e se dirige ao leitor no tempo em
que o leitor está lendo.
Ele não está, portanto, contando uma história; o que este texto
faz, desde o seu título – O papel da escola é ensinar língua padrão –, é
expressar a opinião do autor a respeito da tarefa da escola no ensino de
Língua Portuguesa e fundamentar essa opinião. Costuma-se dizer que

765
gramática e estilo

textos deste tipo expõem, comentam, explicam, argumentam, que são,


enfim, dissertativos. Vamos, então, reler o texto para desvendar o seu
sistema de tempos verbais.

O papel da escola é ensinar língua padrão


Sírio Possenti

É importante que este tópico fique claro, e esteja na memória do


leitor, quando estiver eventualmente achando estranha alguma das
teses seguintes. Talvez deva repetir que adoto sem qualquer dúvida
o princípio (quase evidente) de que o objetivo da escola é ensinar o
português padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar condições
para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco
político e pedagógico. A tese de que não se deve ensinar ou exigir o
domínio do dialeto padrão dos alunos que conhecem e usam diale-
tos não padrões baseia-se em parte no preconceito segundo o qual
seria difícil aprender o padrão. Isto é falso, tanto do ponto de vista
da capacidade dos falantes quanto do grau de complexidade de um
dialeto padrão. As razões pelas quais não se aprende, ou se aprende
mas não se usa um dialeto padrão, são de outra ordem, e têm a ver
em grande parte com os valores sociais dominantes e um pouco com
estratégias escolares discutíveis. Vou continuar um pouco e justi-
ficar as afirmações acima. Antes, preciso dizer que considero que
estamos todos de acordo sobre um ponto: que o problema do ensino
do padrão só se põe de forma grave quando se trata do ensino do
padrão a quem não o fala usualmente, isto é, a questão é particu-
larmente grave em especial para alunos das classes populares, por
mais que também haja alguns problemas decorrentes das diferenças
entre fala e escrita, qualquer que seja o dialeto (mas, insisto sobre
a hipótese de que, provavelmente, tais problemas sejam mais de tipo
textual do que de tipo gramatical)

766
gramática e estilo

Como toda a boa tese, a que estou defendendo aqui é afirmada


contra alguma outra, real ou hipotética, às vezes atribuída aos linguis-
tas. Dentre as que defenderiam que a função da escola não é ensinar
português padrão, aquelas que vale a pena comentar são basicamente
duas. Uma é de natureza político-cultural. Outra, de natureza cognitiva.
A tese de natureza político-cultural diz basicamente que é uma
violência, ou uma injustiça, impor a um grupo social os valores de outro
grupo. Ela valeria tanto para guiar as relações entre brancos e índios
quanto para guiar as relações entre - para simplificar um pouco – pobres
e ricos, privilegiados e “descamisados”. Dado que a chamada língua
padrão é de fato o dialeto dos grupos sociais mais favorecidos, tornar
seu ensino obrigatório para os grupos sociais menos favorecidos, como
se fosse o único dialeto válido, seria uma violência cultural. Isso porque,
juntamente com as formas linguísticas (com a sintaxe, a morfologia,
a pronúncia, a escrita), também seriam impostos os valores culturais
ligados às formas ditas cultas de falar e escrever, o que implicaria em
destruir ou diminuir valores populares. O equívoco, aqui, parece-me,
é o de não perceber que os menos favorecidos socialmente só têm a
ganhar com o domínio de outra forma de falar e de escrever. Desde que
se aceite que a mesma língua possa servir a mais de uma ideologia, a
mais de uma função, o que parece hoje evidente.
Isso poderia parecer óbvio, mas é aqui que começa a funcionar o
outro equívoco, o de natureza cognitiva. Ele consiste em imaginar que
cada falante ou cada grupo de falantes só pode aprender e falar um
dialeto (ou uma língua). Dito de outra maneira: a defesa dos valores
“populares” suporia que o povo só fala formas populares, e que elas
são totalmente distintas das formas utilizadas pelos grupos dominan-
tes. O que vale para formas linguísticas valeria para outras formas de
manifestação cultural. A hipótese supõe também que o aprendizado de
uma língua ou de um dialeto é uma tarefa difícil, ou, pelo menos, difícil
para certos grupos ou para certas pessoas. Ora, todas as evidências vão
no sentido contrário. Qualquer pessoa, principalmente se for criança,

767
gramática e estilo

aprende com velocidade muito grande outras formas de falar, sejam elas
outros dialetos ou outras línguas, desde que expostas consistentemente a
elas. Em resumo, aprender outro dialeto é relativamente fácil. Portanto,
nenhuma das razões para não ensinar o dialeto padrão na escola tem
alguma base razoável.
Em que consistiria o domínio do português padrão? Do ponto de
vista da escola, trata-se em especial (embora não só) da aquisição de
determinado grau de domínio da escrita e da leitura. É evidentemente
difícil fixar os limites mínimos satisfatórios que os alunos deveriam poder
atingir. Mas, parece razoável imaginar, como projeto, que a escola se
proponha como objetivo que os alunos, aos 15 anos de vida e 8 de escola,
escrevam, sem traumas, diversos tipos de texto (narrativas, textos argu-
mentativos, textos informativos, atas, cartas de vários tipos etc.; pode-se
excluir a produção de textos literários dos objetivos da escola, já que
literatos certamente não se fazem nos bancos escolares; o máximo que
se pode esperar é que eles aí não se percam) e leiam produtivamente
textos também variados: textos jornalísticos, como colunas de economia,
política, educação, textos de divulgação científica em vários campos,
textos técnicos (aí incluído o manual de declaração do imposto de renda,
por exemplo) e, obviamente, e com muito destaque, literatura. No final
do segundo grau, deveriam conhecer a literatura contemporânea e os
principais clássicos da língua. Seria bom que conhecessem também,
nesse nível de formação escolar, pelo menos alguns dos principais
clássicos da literatura universal, pelo menos nas edições condensadas
Para que as posições aqui defendidas façam sentido, é preciso
antes ter claro que tal objetivo certamente não é atingido atualmente,
como regra. São relativamente poucos os alunos egressos do segundo
grau que executam esses dois tipos de atividade com frequência e na-
turalidade. Mas, gostaria de deixar claro que não se está propondo um
projeto inexequível, nem novo. É apenas o óbvio. O que proponho é que
o óbvio seja efetivamente realizado. Uma das medidas para que esse
grau de utilização efetiva da língua escrita possa ser atingido é escrever

768
gramática e estilo

e ler constantemente, inclusive nas próprias aulas de português. Ler e


escrever não são tarefas extras que possam ser sugeridas aos alunos
como lição de casa e atitude de vida, mas atividades essenciais ao ensino
da língua. Portanto, seu lugar privilegiado, embora não exclusivo, é a
própria sala de aula.
As razões pelas quais – às vezes – a escola fracassa na consecução
desse objetivo são variadas. Como disse acima, as razões podem ser de
ordem metodológica (pedagógica) ou decorrentes de valores sociais
complexos. Alguns desses empecilhos podem ser destruídos na própria
escola. Outros, não. Alguns dos problemas que levam ao fracasso têm a
ver com a forma como se concebem a função e as estratégias do ensino
de língua. A única opção de uma escola comprometida com melhoria da
qualidade do ensino está entre ensinar ou deixar aprender... Qualquer
outra implica em conformar-se com o fracasso ou, pior, em atribuí-lo
exclusivamente aos alunos.

O que este texto faz é, desde o seu título, apresentar uma tese e, pra
deixar bem claro que essa tese está apresentada no título, o texto inicia
declarando isso: É importante que este tópico fique claro, e esteja na
memória do leitor, quando estiver eventualmente achando estranha
alguma das teses seguintes. A seguir, reitera: Talvez deva repetir que
adoto sem qualquer dúvida o princípio (quase evidente) de que o objetivo
da escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatamente,
o de criar condições para que ele seja aprendido. Para que não haja
dúvidas, reafirma: Como toda a boa tese, a que estou defendendo aqui
é afirmada contra alguma outra, real ou hipotética, às vezes atribuída
aos linguistas. Dentre as que defenderiam que a função da escola não é
ensinar português padrão... É desse modo que este texto expõe, assevera,
argumenta e, quando necessário, supõe, conjetura.
Expor, argumentar, asseverar, conjeturar, supor se faz no presente
atemporal, um tempo sem uma referência temporal. O que é referência

769
gramática e estilo

temporal? Segundo Ilari e Basso, (2014, p. 135), é “[...] tudo aquilo que
podemos descobrir respondendo à pergunta quando?”. Este presente
tempo atemporal, que não responde à pergunta quando?, aqui aparece
com 70% das ocorrências dos verbos do texto. O presente do indicativo
tem 60% dessas ocorrências. São 140, e mais de um terço delas são do
verbo ser, o verbo que assevera que as coisas são tal como o autor as
designa. Presente do indicativo e verbo ser marcam, inclusive, a frase
assertiva que expressa o título: O papel da escola é ensinar língua padrão.
A lista das ocorrências do presente do indicativo – aqui sem
repetições – apresenta os modos pelos quais a voz que fala no artigo
– frequentemente em primeira pessoa – expressa seu modo de abordar
e de encadear as asserções com que desenvolve os argumentos que
fundamentam sua tese: É / adoto / é afirmada / deve ensinar ou exigir
/ conhecem / usam / baseia-se / aprende / têm / preciso dizer / con-
sidero / estamos / põe / trata / fala / insisto / vale/ diz /parece-me /
começa a funcionar / consiste / pode aprender a falar / vale / supõe
/ vão / trata-se / proponha / pode-se excluir / fazem / pode esperar /
é atingido / executam/ proponho / fracassa / podem ser / podem ser
destruídos / levam / concebem / está implicado.
Como expor, asseverar e argumentar precisam do auxílio luxuoso
de imaginar, conjeturar, supor, propor, solicitar, é preciso recorrer ao
presente do subjuntivo, de que há 23 ocorrências, que perfazem 10%
do total do texto: dessas, oito – também pouco mais de um terço – são do
verbo ser. Eis a lista, também sem repetições: fique / esteja / deva / seja
aprendido / haja / sejam expostas / aceite / possa servir / possa ser
atingido / escrevam / percam / leiam / façam / possam ser sugeridas.
O presente do subjuntivo tem o papel de:

a) expressar o que o autor deseja do leitor a quem se dirige: É im-


portante que este tópico fique claro, e esteja na memória do leitor,
quando...;

770
gramática e estilo

b) apresentar as condições em que se pode responder pelo que se as-


severa: Desde que se aceite que a mesma língua possa servir a mais
de uma ideologia, a mais de uma função, o que parece hoje evidente...
Uma das medidas para que esse grau de utilização efetiva da língua
escrita possa ser atingido é escrever e ler constantemente;

c) distinguir entre o que se expressa como convicção e o que se apre-


senta como possibilidade, como hipótese ainda a ser investigada: ...por
mais que também haja alguns problemas decorrentes das diferenças
entre fala e escrita, qualquer que seja o dialeto (mas, insisto sobre a
hipótese de que, provavelmente, tais problemas sejam mais de tipo
textual do que de tipo gramatical);

d) compor um projeto: Mas, parece razoável imaginar, como projeto,


que a escola se proponha como objetivo que os alunos, aos 15 anos de
vida e 8 de escola, escrevam, sem traumas, diversos tipos de texto...;

e) amenizar uma acusação, apresentando-a como um procedimento


possível em vez de denunciá-lo como um efetivo uso inadequado:
Ler e escrever não são tarefas extras que possam ser sugeridas aos
alunos como lição de casa e atitude de vida, mas atividades essenciais
ao ensino da língua.

O infinitivo, que diz o nome dos estados de coisas, ou seja, as


ações, os estados e os eventos de que precisamos para dar conta quando
falamos ou escrevemos, aparece aqui com 16% das ocorrências. Textos
expositivos precisam atribuir nomes, como, por exemplo, ensinar no
próprio título do texto: O papel da escola é ensinar língua padrão. Não
estão computadas aqui as locuções verbais em que o verbo principal
está no infinitivo. São 37 ocorrências, e sua lista compõe uma espécie
de sinopse do texto: repetir / ensinar / criar / aprender/ justificar /
comentar / impor / guiar / simplificar / tornar / falar / escrever /
destruir / diminuir / perceber / ganhar / imaginar / fixar/ ter / deixar
/ deixar / aprender / conformar-se / atribuí-lo.

771
gramática e estilo

Outra forma nominal do verbo, que aparece com 11 ocorrências, é o


particípio: atribuída / dado / chamada / favorecidos / ligados / ditas
/ expostas / incluído / defendidas. Na tese atribuída aos linguistas, o
particípio funciona como uma voz passiva com elipse do verbo auxiliar
é. É o mesmo caso de os valores culturais ligados às formas ditas cultas
de... Já em Dado que a chamada língua padrão é de fato o dialeto dos
grupos sociais mais favorecidos..., dado compõe uma conjunção con-
secutiva com que, e chamada e favorecidos funcionam como adjetivos.
Do futuro do pretérito são 18 ocorrências: seria / defenderiam/
valeria / seriam impostos / implicaria / poderia / suporia / consistiria
/ deveriam poder atingir / deveriam conhecer / gostaria. Os verbos
conjugados no futuro do pretérito compõem o pano de fundo em opo-
sição ao qual se desenvolve a exposição feita pelo texto – a (tese) que
estou defendendo aqui é afirmada contra alguma outra, real ou hipo-
tética, às vezes atribuída aos linguistas. Dentre as que defenderiam que
a função da escola não é ensinar português padrão... De certa forma,
o futuro do pretérito defenderiam, aqui, isenta o autor de especificar
quais seriam as teses reais, que precisariam, nesse caso, ser anunciadas
pelo presente do indicativo: Dentre as que defendem que a função da
escola não é... Se fizesse isso, o autor seria instado a detalhar essas outras
teses. Já em ...baseia-se em parte no preconceito segundo o qual seria
difícil aprender o padrão, o futuro do pretérito seria reforça a posição
antagônica do autor já expressa pela classificação da mencionada opinião
como preconceito.
Há ainda duas ocorrências do presente contínuo – estou defenden-
do, está propondo –, que se refere à ação executada no texto pela voz
que nele toma a palavra no momento em que a executa, ou seja, em que
a referência temporal é o presente da enunciação, que responde Agora!
à pergunta Quando?. Aqui no texto estou defendendo e está propondo
estão em contraponto com aquele disse, lá no último parágrafo, que,
como já vimos, se refere ao que foi defendido, proposto, num lugar mais
distante, mais próximo ao início do texto.

772
gramática e estilo

Com três ocorrências aparece o futuro do subjuntivo – estiver


achando / for / quiserem ser –; com duas, o pretérito imperfeito do
subjuntivo: fosse / conhecessem. Estas formas do subjuntivo também
estão a serviço das conjeturas do autor.
Em síntese, é o presente do indicativo, o tempo verbal atemporal,
que predomina em textos expositivos, neste caso, num percentual de
60%, auxiliado pelo infinitivo (27%), que também cumpre a função
atemporal de atribuir nomes. O também atemporal presente do sub-
juntivo (11%) organiza, em articulação com o futuro do pretérito
(7%), as conjeturas, as hipóteses e as projeções. O multifuncional
particípio (4%) encerra a lista das formas verbais mais significativas
que organizam este texto.
Nem sempre só se narra ou só se expõe, como nos mostra o próximo
capítulo.

6.2.3 O que se conta pra entender como foi

A vaca e os livros
Zilda Piovesan

Vimos meu pai quando ele já estava próximo da casa. Eram umas
10 horas da manhã e aquele não era seu horário habitual para voltar
da lavoura. Não estava carregando a enxada, mas um objeto esbran-
quiçado que, daquela distância, não podíamos distinguir o que era. Os
braços dele estavam um pouco afastados do corpo para evitar que o
objeto encostasse em suas roupas suadas. Quando chegou na cerca do
potreiro se abaixou cuidadosamente, largou o objeto, cruzou a cerca,
apanhou-o novamente e seguiu em direção à casa. E nós amontoados
na porta, só olhando.
– Mãe – chamou meu irmão – o pai tá trazendo uma coisa esquisita
nas mãos.

773
gramática e estilo

Ela saiu da cozinha e se juntou ao grupo de crianças, sem dizer


nada.
– Me deixem passar, pediu meu pai.
– Que que é isso? Perguntou ela.
– Livros, não tá vendo? É uma minibiblioteca, foi o que me disse o
vendedor que apareceu lá na lavoura – entrou e largou a carga sobre a
mesa – o cara tá passando em todos os povoados da redondeza, me disse
que são livros bons, são um pouco caros, mas as crianças precisam. Vão
ter que ler muito se quiserem ser alguém na vida um dia.
A minibiblioteca era, na verdade, uma pequena estante constru-
ída com três pedaços de tábuas envernizadas, contendo 30 livros de
autores nacionais e estrangeiros. Para nós, um verdadeiro tesouro.
Minha mãe se aproximou da biblioteca, passou a mão muito de leve,
quase uma carícia, sobre a lombada dos livros. Ameaçou pegar um,
mas recuou a mão.
São bonitos, muitos bonitos, só não consigo imaginar como vamos
pagar isso, disse ela, com um toque de ansiedade na voz.
– Também não sei ainda, mas o vendedor vai voltar pra pegar o
dinheiro daqui a duas semanas. Até lá, penso numa saída.
– Podemos vender uma das vacas, ficando uma pro leite já tá bom,
retrucou ela, enquanto meu pai saía para o galpão em busca das madei-
ras com que construiu uma prateleira para a minibiblioteca, ao lado da
santa de devoção da minha mãe, onde os livros passaram a ocupar um
lugar de destaque na humilde sala. Tudo pronto, vieram as recomen-
dações: só podíamos pegar os livros depois de lavarmos bem as mãos,
os livros eram de todos, ninguém podia brigar por este ou aquele, pois
tinha tempo suficiente para todo mundo ler, não era para dar os livros
para as crianças menores, pois, se ainda não sabiam ler, só iam estragar.
Uns dias depois, meu pai levantou cedo, encilhou o cavalo e saiu

774
gramática e estilo

puxando uma novilha. Voltou quase ao meio-dia, com o dinheiro para


pagar a tal minibiblioteca.
Eu e meus irmãos gêmeos estávamos na quarta série, meu irmão
mais velho na quinta. Até ali, nem dá para dizer que conhecíamos livros.
Além dos textos que recebíamos na escola, líamos o jornal mensal da
central de cooperativas que meu pai recebia porque era sócio, qual-
quer pedaço de outros jornais que serviam para embrulhar coisas que
meu pai trazia para casa, rótulos de embalagens de adubo químico e
agrotóxicos, enfim, líamos qualquer coisa escrita que caísse nas nossas
mãos. Talvez isso tenha encorajado meu pai a gastar o valor de uma
vaca por aqueles livros.
Os títulos traziam alguns clássicos como Memórias Póstumas de
Brás Cubas, A Moreninha, A Normalista, alguns policiais como A Morte
no Nilo, de Agatha Christie e vários do Sidney Sheldon, além de outras
literaturas estrangeiras e um pequeno dicionário. Nos primeiros dias
estávamos agitados e curiosos demais para fazermos leituras individuais
e silenciosas. Ficávamos amontoados, lendo em voz alta trechos de dife-
rentes livros, geralmente dos capítulos finais. Olhávamos, cheirávamos,
explorávamos a textura das folhas, do papel mais grosso das capas, as
diferentes letras, os grampos ou as costuras que juntavam as muitas
folhas. A bola, nossa companheira de quase todas as tardes, ficou por
muitos dias esquecida num canto da sala. Aos poucos fomos nos acos-
tumando com a novidade e já podíamos nos dedicar à leitura de livros
inteiros, escorados nos troncos das laranjeiras.
Como não conhecíamos os autores, decidíamos as nossas leituras
pelos nomes das obras. Minha primeira escolha foi “Como era verde o
meu vale”, uma obra em dois volumes. Foi naquelas páginas que descobri
a existência de um país chamado Escócia, onde os homens trabalhavam
em minas de carvão, cavando enormes buracos na terra e morrendo cedo
por causa da fumaça tóxica e das cinzas que entravam nos pulmões.
As cinzas, despejadas no meio ambiente sem nenhum cuidado, foram

775
gramática e estilo

matando toda a vegetação, transformando os verdes vales das regiões


mineiras da Escócia num deserto acinzentado. Nas áreas em que a cinza
era despejada, nada mais brotava. Eu ficava assustada, pensando se
aqueles mineiros, que tinham o estranho hábito de se entocar na terra
para dela arrancar carvão e cinza, não chegariam até a nossa morada,
matando meu pinheiro, minha palmeira plantada com tanto carinho e
que agora começava a crescer, a grama, a horta de minha mãe e todo
o arvoredo do meu pai.
– Pai, onde fica a Escócia? eu insistia.
– Não se preocupe, menina, a Escócia fica bem longe, do outro
lado do mar. Uma explicação razoável, mas que não resolvia minhas
angústias.
Em meio aos livros, descobri duas preciosidades: Capitães de Areia
e Jubiabá, de Jorge Amado. Comecei com Capitães de Areia, livro que
me transportou para uma realidade dura, cruel, que minha mente de
criança de nove anos jamais seria capaz de imaginar. Os trechos mais
dramáticos eu lia com desespero, engolindo palavras, pulando frases,
querendo ver o que acontecia, temendo a morte de um dos meus muitos
pequenos heróis. Depois fechava o livro, os olhos e deixava minha mente
viajar pela história, tentando entender melhor, relacionando aquela pas-
sagem com outras lidas anteriormente, tentando me convencer de que eu
tinha mesmo lido aquilo tudo. Abria o livro novamente e relia a página,
agora sem pressa, saboreando o suspense de cada parágrafo, a beleza
de cada frase, a sonoridade de cada palavra desconhecida. Fechava os
olhos novamente, agora para fixar na minha mente cada imagem que eu
tinha construído para aquele novo trecho. É assim que tenho na mente
até hoje o rosto de cada um dos capitães da areia, o velho trapiche onde
os capitães dormiam amontoados, que em nada corresponde com a
imagem real de um trapiche e, especialmente, a imagem do Perna Seca
já rapazote, correndo, correndo até ficar encurralado entre os policiais
e o alto muro à beira do penhasco, o olhar aflito para um lado, para o

776
gramática e estilo

outro e o salto para o vazio dolorido da morte, ante a ameaça de perder


a liberdade para a mão de ferro da lei.
Nascida e criada no interior do Rio Grande do Sul onde, por vio-
lenta e pobre que fosse a realidade, jamais uma criança cresceria sem
casa para morar, eu não conseguia entender o que tinha acontecido
com os meninos personagens. E enlouquecia minha mãe com milhares
de perguntas que ela também não dava conta de responder. “Mas onde
foram parar as mães dessas crianças? Se morreram, onde estão os pais
que também não cuidam delas? E as avós, as tias, os tios, as vizinhas,
as madrinhas, algum adulto que possa tomar contam dessas crianças?
Como é que elas conseguem comida, roupa? Elas não têm medo de
escuro, não morrem de frio?”
– Pelo amor de Deus, pare de me perguntar tanta coisa, implorava
minha mãe. Quando meu pai chegava da lavoura, ela comentava pre-
ocupada: acho que esses livros não tão fazendo bem pra essa menina.
Diga pra ela parar de ler tanto. Meu pai pedia para que eu maneirasse,
mas não adiantava, eu li e reli até quase decorar toda a história.
Depois mudei para Jubiabá e me encantei com a força muscular,
a coragem e a valentia daquele negro, que quando era preciso se em-
brenhava no mato por dias e dias para escapar dos inimigos. Foi com
essas duas histórias de Jorge Amado que descobri que livro tem um
sabor indescritível, que só pode ser saboreado pela alma. Quando eu
fechava os olhos para me embriagar com aquelas histórias era como se
colocasse um bombom delicioso na boca e deixasse derreter devagarinho
para que cada papila gustativa pudesse identificar, sentir e registrar
para sempre aquele sabor. Aquela história passava a ser parte real da
minha vida. Acho que vem desse tempo a sensação de alegria misturada
com solidão e abandono, cada vez que termino a leitura de um livro.
Também é dessa época a mania de ler apressadamente os trechos mais
envolventes, depois fechar os olhos, curtir, recriar minha própria versão
e, então, reler a página calmamente, sentindo o sabor da leitura.

777
gramática e estilo

Quando esgotei as novidades da minibiblioteca da minha casa,


descobri que algumas amigas, já moças, que estudavam na oitava série,
costumavam trocar uns romances baratos, vendidos em bancas de rodo-
viárias, das coleções Sabrina, Bianca, Júlia e outros nomes de mulher.
Ofereci empréstimo dos livros lá de casa para que, em troca, elas me
emprestassem os seus livros. Minhas amigas não se interessaram pela
minha oferta, mas concordaram em emprestar os tais romances. Eu ficava
acordada até altas horas da noite, devorando aquelas histórias. Lia, em
média, um livro a cada três noites. No começo ficava fascinada pelas
descrições de casarões luxuosos, fazendas encantadas, as viagens em
cruzeiros magníficos, mas depois passei a me cansar dos enredos repe-
tidos. Sempre tinha uma loira estonteante, ferida de morte por um amor
cruel e incurável, um homem muito rico, alto, moreno, musculoso, uma
tórrida paixão, algo terrível a atrapalhar a vida dos apaixonados e, no
final, um final feliz. Entre livro nenhum e o pouco que esses romances
me davam, eu ainda preferia o pouco.
Para minha sorte, quando eu cursava a sétima série, meu colégio
ganhou uma biblioteca razoável, permitindo que eu trocasse as Júlias,
Sabrinas e Biancas por leituras mais interessantes. Já no segundo grau
e na faculdade, outros livros foram sendo comprados e guardados na
estante da sala da casa dos meus pais. Hoje, a minibiblioteca permanece
lá, com seus 30 livros, agora em posição não tão privilegiada, em meio
a outros tantos adquiridos.

O texto tem um título – A vaca e os livros – e uma autora – Zilda


Piovesan – e conta, em primeira pessoa do plural, no primeiro parágrafo:
vimos; depois oscila pra do singular – Mãe – chamou meu irmão – e volta
pro plural – Para nós, um verdadeiro tesouro. Então, vem de novo o
singular – Minha mãe se aproximou da... e meu pai saía para o galpão...
–, depois o plural, de novo – só podíamos pegar os livros depois... – e
se esclarece quem são o plural: Eu e meus irmãos gêmeos estávamos
na quarta série... Olhávamos, cheirávamos, explorávamos a textura...

778
gramática e estilo

Minha primeira escolha foi... (no oitavo parágrafo), enfim, con-


solida a primeira pessoa da narradora porque cada leitor, escrevendo
para leitores a respeito do leitor que é, só pode falar do leitor que é, ou
melhor, do leitor em que, por ler, acabou virando. E o que diz isso é o
texto em que diz isso. Ela narra onde foi, quando foi, ela explica como
foi, por que foi. Trata-se de um texto autobiográfico sobre a iniciação na
leitura de uma menina da zona rural, que recompõe, na sua vida adulta,
na condição de formada em um curso superior, a decisiva contribuição de
uma estante de 30 livros ao preço de uma vaca leiteira. O leitor, a partir
daí, já pode sentir-se à vontade para vincular a voz que fala no texto ao
nome da autora que assina o texto.

6.2.3.1 Papéis dos tempos verbais

Agora que a gente já estudou os papéis dos aspectos, modos e tempos


verbais, a gente pode examinar isso tudo neste texto. Então, o exercício é
identificar os tempos verbais no texto e decifrar os papéis que cada tempo
desempenha. É melhor fazer isso antes de ler a análise que vem depois.

Vimos meu pai quando ele já estava próximo da casa. Eram umas
10 horas da manhã e aquele não era seu horário habitual para voltar
da lavoura. Não estava carregando a enxada, mas um objeto esbran-
quiçado que, daquela distância, não podíamos distinguir o que era. Os
braços dele estavam um pouco afastados do corpo para evitar que o
objeto encostasse em suas roupas suadas. Quando chegou na cerca do
potreiro se abaixou cuidadosamente, largou o objeto, cruzou a cerca,
apanhou-o novamente e seguiu em direção à casa. E nós amontoados
na porta, só olhando.
– Mãe – chamou meu irmão – o pai tá trazendo uma coisa esquisita
nas mãos.
Ela saiu da cozinha e se juntou ao grupo de crianças, sem dizer
nada.

779
gramática e estilo

– Me deixem passar, pediu meu pai.


– Que que é isso? Perguntou ela.
– Livros, não tá vendo? É uma minibiblioteca, foi o que me disse o
vendedor que apareceu lá na lavoura – entrou e largou a carga sobre a
mesa – o cara tá passando em todos os povoados da redondeza, me disse
que são livros bons, são um pouco caros, mas as crianças precisam. Vão
ter que ler muito se quiserem ser alguém na vida um dia.
A minibiblioteca era, na verdade, uma pequena estante construída
com três pedaços de tábuas envernizadas, contendo 30 livros de autores
nacionais e estrangeiros. Para nós, um verdadeiro tesouro. Minha mãe se
aproximou da biblioteca, passou a mão muito de leve, quase uma carícia,
sobre a lombada dos livros. Ameaçou pegar um, mas recuou a mão.
– São bonitos, muitos bonitos, só não consigo imaginar como vamos
pagar isso, disse ela, com um toque de ansiedade na voz.
– Também não sei ainda, mas o vendedor vai voltar pra pegar o
dinheiro daqui a duas semanas. Até lá, penso numa saída.
– Podemos vender uma das vacas, ficando uma pro leite já tá
bom, retrucou ela, enquanto meu pai saía para o galpão em busca das
madeiras com que construiu uma prateleira para a minibiblioteca, ao
lado da santa de devoção da minha mãe, onde os livros passaram a
ocupar um lugar de destaque na humilde sala. Tudo pronto, vieram as
recomendações: só podíamos pegar os livros depois de lavarmos bem
as mãos, os livros eram de todos, ninguém podia brigar por este ou
aquele, pois tinha tempo suficiente para todo mundo ler, não era para
dar os livros para as crianças menores, pois, se ainda não sabiam ler,
só iam estragar.
Uns dias depois, meu pai levantou cedo, encilhou o cavalo e saiu
puxando uma novilha. Voltou quase ao meio-dia, com o dinheiro para
pagar a tal minibiblioteca.

780
gramática e estilo

Eu e meus irmãos gêmeos estávamos na quarta série, meu irmão


mais velho na quinta. Até ali, nem dá para dizer que conhecíamos livros.
Além dos textos que recebíamos na escola, líamos o jornal mensal da
central de cooperativas que meu pai recebia porque era sócio, qual-
quer pedaço de outros jornais que serviam para embrulhar coisas que
meu pai trazia para casa, rótulos de embalagens de adubo químico e
agrotóxicos, enfim, líamos qualquer coisa escrita que caísse nas nossas
mãos. Talvez isso tenha encorajado meu pai a gastar o valor de uma
vaca por aqueles livros.
Os títulos traziam alguns clássicos como Memórias Póstumas de
Brás Cubas, A Moreninha, A Normalista, alguns policiais como A Morte
no Nilo, de Agatha Christie e vários do Sidney Sheldon, além de outras
literaturas estrangeiras e um pequeno dicionário. Nos primeiros dias
estávamos agitados e curiosos demais para fazermos leituras individu-
ais e silenciosas. Ficávamos amontoados, lendo em voz alta trechos de
diferentes livros, geralmente dos capítulos finais. Olhávamos, cheirá-
vamos, explorávamos a textura das folhas, do papel mais grosso das
capas, as diferentes letras, os grampos ou as costuras que juntavam
as muitas folhas. A bola, nossa companheira de quase todas as tardes,
ficou por muitos dias esquecida num canto da sala. Aos poucos fomos
nos acostumando com a novidade e já podíamos nos dedicar à leitura
de livros inteiros, escorados nos troncos das laranjeiras.
Como não conhecíamos os autores, decidíamos as nossas leituras
pelos nomes das obras. Minha primeira escolha foi “Como era verde o
meu vale”, uma obra em dois volumes. Foi naquelas páginas que descobri
a existência de um país chamado Escócia, onde os homens trabalhavam
em minas de carvão, cavando enormes buracos na terra e morrendo cedo
por causa da fumaça tóxica e das cinzas que entravam nos pulmões.
As cinzas, despejadas no meio ambiente sem nenhum cuidado, foram
matando toda a vegetação, transformando os verdes vales das regiões
mineiras da Escócia num deserto acinzentado. Nas áreas em que a cinza
era despejada, nada mais brotava. Eu ficava assustada, pensando se

781
gramática e estilo

aqueles mineiros, que tinham o estranho hábito de se entocar na terra


para dela arrancar carvão e cinza, não chegariam até a nossa morada,
matando meu pinheiro, minha palmeira plantada com tanto carinho e
que agora começava a crescer, a grama, a horta de minha mãe e todo
o arvoredo do meu pai.
– Pai, onde fica a Escócia? eu insistia.
– Não se preocupe, menina, a Escócia fica bem longe, do outro
lado do mar. Uma explicação razoável, mas que não resolvia minhas
angústias.
Em meio aos livros, descobri duas preciosidades: Capitães de
Areia e Jubiabá, de Jorge Amado. Comecei com Capitães de Areia,
livro que me transportou para uma realidade dura, cruel, que minha
mente de criança de nove anos jamais seria capaz de imaginar. Os
trechos mais dramáticos eu lia com desespero, engolindo palavras,
pulando frases, querendo ver o que acontecia, temendo a morte de um
dos meus muitos pequenos heróis. Depois fechava o livro, os olhos e
deixava minha mente viajar pela história, tentando entender melhor,
relacionando aquela passagem com outras lidas anteriormente, ten-
tando me convencer de que eu tinha mesmo lido aquilo tudo. Abria
o livro novamente e relia a página, agora sem pressa, saboreando
o suspense de cada parágrafo, a beleza de cada frase, a sonoridade
de cada palavra desconhecida. Fechava os olhos novamente, agora
para fixar na minha mente cada imagem que eu tinha construído
para aquele novo trecho. É assim que tenho na mente até hoje o rosto
de cada um dos capitães da areia, o velho trapiche onde os capitães
dormiam amontoados, que em nada corresponde com a imagem real
de um trapiche e, especialmente, a imagem do Perna Seca já rapazote,
correndo, correndo até ficar encurralado entre os policiais e o alto
muro à beira do penhasco, o olhar aflito para um lado, para o outro
e o salto para o vazio dolorido da morte, ante a ameaça de perder a
liberdade para a mão-de-ferro da lei.

782
gramática e estilo

Nascida e criada no interior do Rio Grande do Sul onde, por vio-


lenta e pobre que fosse a realidade, jamais uma criança cresceria sem
casa para morar, eu não conseguia entender o que tinha acontecido
com os meninos personagens. E enlouquecia minha mãe com milhares
de perguntas que ela também não dava conta de responder. “Mas onde
foram parar as mães dessas crianças? Se morreram, onde estão os pais
que também não cuidam delas? E as avós, as tias, os tios, as vizinhas, as
madrinhas, algum adulto que possa tomar conta dessas crianças? Como
é que elas conseguem comida, roupa? Elas não têm medo de escuro,
não morrem de frio?”
– Pelo amor de Deus, pare de me perguntar tanta coisa, implorava
minha mãe. Quando meu pai chegava da lavoura, ela comentava pre-
ocupada: acho que esses livros não tão fazendo bem pra essa menina.
Diga pra ela parar de ler tanto. Meu pai pedia para que eu maneirasse,
mas não adiantava, eu li e reli até quase decorar toda a história.
Depois mudei para Jubiabá e me encantei com a força muscular,
a coragem e a valentia daquele negro, que quando era preciso se em-
brenhava no mato por dias e dias para escapar dos inimigos. Foi com
essas duas histórias de Jorge Amado que descobri que livro tem um
sabor indescritível, que só pode ser saboreado pela alma. Quando eu
fechava os olhos para me embriagar com aquelas histórias era como se
colocasse um bombom delicioso na boca e deixasse derreter devagarinho
para que cada papila gustativa pudesse identificar, sentir e registrar
para sempre aquele sabor. Aquela história passava a ser parte real da
minha vida. Acho que vem desse tempo a sensação de alegria misturada
com solidão e abandono, cada vez que termino a leitura de um livro.
Também é dessa época a mania de ler apressadamente os trechos mais
envolventes, depois fechar os olhos, curtir, recriar minha própria versão
e, então, reler a página calmamente, sentindo o sabor da leitura.
Quando esgotei as novidades da minibiblioteca da minha casa,
descobri que algumas amigas, já moças, que estudavam na oitava série,

783
gramática e estilo

costumavam trocar uns romances baratos, vendidos em bancas de rodo-


viárias, das coleções Sabrina, Bianca, Júlia e outros nomes de mulher.
Ofereci empréstimo dos livros lá de casa para que, em troca, elas me
emprestassem os seus livros. Minhas amigas não se interessaram pela
minha oferta, mas concordaram em emprestar os tais romances. Eu
ficava acordada até altas horas da noite, devorando aquelas histórias.
Lia, em média, um livro a cada três noites. No começo ficava fascinada
pelas descrições de casarões luxuosos, fazendas encantadas, as viagens
em cruzeiros magníficos, mas depois passei a me cansar dos enredos
repetidos. Sempre tinha uma loira estonteante, ferida de morte por um
amor cruel e incurável, um homem muito rico, alto, moreno, musculoso,
uma tórrida paixão, algo terrível a atrapalhar a vida dos apaixonados e,
no final, um final feliz. Entre livro nenhum e o pouco que esses romances
me davam, eu ainda preferia o pouco.
Para minha sorte, quando eu cursava a sétima série, meu colégio
ganhou uma biblioteca razoável, permitindo que eu trocasse as Júlias,
Sabrinas e Biancas por leituras mais interessantes. Já no segundo grau
e na faculdade, outros livros foram comprados e guardados na estante
da sala da casa dos meus pais. Hoje, a minibiblioteca permanece lá,
com seus 30 livros, agora em posição não tão privilegiada, em meio a
outros tantos adquiridos.

O texto começa contando, do ponto de vista de uma menina, a che-


gada do pai em casa, vindo da roça e trazendo os livros que acabara de
comprar de um caixeiro viajante. Relata o diálogo entre o pai e a mãe a
respeito do motivo da compra e do jeito que vão dar para pagar os livros,
ao mesmo tempo em que descreve a coleção de livros e rememora as
providências tomadas para acomodá-los em casa. Conta como a vaca
foi vendida para pagar a dívida e passa a descrever a relação que ela e
seus irmãos tinham, até então, desenvolvido com livros e com a leitura.
Segue falando das primeiras impressões da família a respeito do

784
gramática e estilo

conjunto dos livros e das primeiras leituras que fez neles. Depois, vêm
as impressões mais fortes causadas pelas leituras escolhidas, entre elas
o impacto da descoberta de realidades diferentes daquela em que a nar-
radora vivia e a criação, ao longo desse processo, de formas de degustar
a leitura. Termina narrando a superação dessa minibiblioteca original
pelo ingresso da narradora, ao longo de sua vida de estudante, no imenso
acervo dos livros do grande mundo lá fora.
Temos aqui, então, a narração da iniciação na leitura de uma me-
nina numa zona rural do sul do Brasil, onde o gosto pela leitura não
costuma(va) se desenvolver nem os livros costuma(va)m chegar, o que
quer dizer que a descrição do cenário onde a história se passa e a carac-
terização social da família e das redondezas são fundamentais para que
os leitores possam atribuir o devido valor aos fatos narrados e às ações
das personagens postas em cena. A essa narração que recorre a descrições
e a rememorações de diálogos, agregam-se as reflexões da narradora a
respeito dessas experiências de leitura. Este texto, portanto, descreve
para narrar mais adequadamente, narra para expor com maior clareza e
expõe para conferir valor ao que narra e descreve.
Vamos ver de que modo a narradora usou narração, descrição e ex-
posição para tratar dos temas que encadeou para levar o seu relato desde
o início até o fim. Trata-se, principalmente, de verificar como aspectos,
modos e tempos verbais empregados na construção das frases contribuem
para conduzir os leitores ao longo da narrativa, para orientá-los dentro do
cenário, dotando-os dos elementos necessários para que possam dialogar
com o que o texto narra, descreve e expõe.

Vimos meu pai quando ele já estava próximo da casa. Eram umas 10
horas da manhã e aquele não era seu horário habitual para voltar
da lavoura. Não estava carregando a enxada, mas um objeto esbran-
quiçado que, daquela distância, não podíamos distinguir o que era.
Os braços dele estavam um pouco afastados do corpo para evitar
que o objeto encostasse em suas roupas suadas. Quando chegou

785
gramática e estilo

na cerca do potreiro se abaixou cuidadosamente, largou o objeto,


cruzou a cerca, apanhou-o novamente e seguiu em direção à casa.
E nós amontoados na porta, só olhando.

A primeira palavra do texto é um verbo no perfeito do indicativo:


Vimos meu pai quando ele já estava próximo da casa. Vimos nos coloca
– a nós, leitores – num determinado momento anterior ao momento em
que a narradora toma a palavra para contar a história, ao lado dela e de
outras pessoas, que depois ficamos sabendo serem seus irmãos, curiosos
como eles, olhando a cena. O segundo verbo conjuga-se no imperfeito
– estava ­– tal como a maioria dos verbos das próximas três frases: Eram
umas 10 horas ...aquele não era seu horário... Não estava carregando a
enxada..., não podíamos distinguir o que era. Os braços dele estavam
um pouco afastados... Esses verbos no imperfeito compõem a cena onde
o personagem observado – o pai – se movimenta.
O perfeito só volta na quarta frase, para dar conta de ações exe-
cutadas pelo personagem que nos vinha sendo apresentado: Quando
chegou na cerca... se abaixou cuidadosamente, largou o objeto, cruzou
a cerca, apanhou-o novamente e seguiu em direção... O perfeito diz o
que fazem a narradora e seus acompanhantes e o que faz o personagem
que eles observam e que ela nos faz observar.
Está no imperfeito do subjuntivo a forma encostasse (para evitar
que o objeto encostasse...), que não descreve o que ela vê (como em
estavam um pouco afastados), mas indica a suposição da narradora a
respeito da finalidade com que o pai mantinha o objeto longe do corpo.
As demais formas verbais são nominais:

a) duas formas do infinitivo depois da preposição para: para voltar,


que completa o sentido do adjetivo habitual; e para evitar, que indica
a finalidade com que o pai mantinha o objeto afastado do corpo;

786
gramática e estilo

b) duas formas de particípio, que servem para descrever a cena tal


qual adjetivos: E nós amontoados na porta, só....; ...para evitar que
o objeto encostasse em suas roupas suadas;

c) uma forma do gerúndio, funcionando tal qual um advérbio – só


olhando – para retomar o processo que a narradora nos fez experi-
mentar com ela para levar-nos história adentro.

Essa primeira sequência narra e descreve; esta outra desenvolve


um diálogo:

Mãe – chamou meu irmão – o pai tá trazendo uma coisa esquisita


nas mãos.
Ela saiu da cozinha e se juntou ao grupo de crianças, sem dizer nada.
– Me deixem passar, pediu meu pai.
– Que que é isso? Perguntou ela.
– Livros, não tá vendo? É uma minibiblioteca, foi o que me disse o
vendedor que apareceu lá na lavoura – entrou e largou a carga sobre
a mesa – o cara tá passando em todos os povoados da redondeza, me
disse que são livros bons, são um pouco caros, mas as crianças pre-
cisam. Vão ter que ler muito se quiserem ser alguém na vida um dia.

O perfeito segue expressando a voz da narradora contando o que


aconteceu e organizando o diálogo dos personagens: chamou meu ir-
mão..., Ela saiu... se juntou ao..., pediu meu pai..., Perguntou ela...,
entrou e largou... Expressa também a voz do pai quando ele narra seu
encontro com o vendedor: foi o que me disse o vendedor que apareceu
lá na lavoura..., me disse que...
O infinitivo de sem dizer nada expressa a voz da narradora. Ela
poderia ter escrito e não disse nada, e o verbo estaria também no perfei-
to. Como não dizer nada não é propriamente uma ação executada pela
personagem ou um processo pelo qual ela passa, esta forma nominal
do verbo mais descreve do que narra.

787
gramática e estilo

Já os tempos das falas do diálogo não expressam a voz que narra


mas as vozes dos participantes da cena: o irmão diz o pai tá trazendo uma
coisa... Aqui o presente contínuo, formado pelo verbo auxiliar estar e
pelo verbo principal no gerúndio, indica que a descrição da cena que, na
sequência anterior, era expressa pelo imperfeito estava carregando agora
está sendo feita no momento que em está sendo enunciada tal como se
dá na fala posterior do pai: Livros, não tá vendo? ...o cara tá passando
em todos os povoados...
O presente aparece quando o pai deixa de narrar e passa a conceituar
e expressar opiniões: É uma minibiblioteca..., são livros bons..., são um
pouco caros, mas as crianças precisam. Ele usa também o futuro (o
composto, o que usamos quando falamos) – Vão ter que ler muito... – para
comentar a respeito do que está por acontecer e o futuro do subjunti-
vo – se quiserem ser alguém na vida um dia – para expressar o que ele
pensa que pode ocorrer se a condição anteriormente posta for respeitada.
Segue-se a descrição da minibiblioteca e a narração da reação da
mãe:

A minibiblioteca era, na verdade, uma pequena estante construída


com três pedaços de tábuas envernizadas, contendo 30 livros de
autores nacionais e estrangeiros. Para nós, um verdadeiro tesouro.
Minha mãe se aproximou da biblioteca, passou a mão muito de leve,
quase uma carícia, sobre a lombada dos livros. Ameaçou pegar um,
mas recuou a mão.

Além do imperfeito – A minibiblioteca era, na... –, a descrição


recorre ao particípio – construída com... – e ao gerúndio – contendo...
–, ambos funcionando como adjetivos a caracterizar aquilo a que se
referem; na verdade, podemos pensar em orações adjetivas reduzidas:
que tinha sido construída e que continha, respectivamente. E, para, ao
mesmo tempo, descrever e conceituar, recorre também a uma frase sem
verbo – Para nós, um verdadeiro tesouro.

788
gramática e estilo

Algo nos levou – a nós, seres dotados de linguagem e pertinazes


inventores da língua escrita – a assim construir a língua: com variedade
de formas para evitar a monotonia de expressar caracterizações usando
apenas adjetivos e orações adjetivas. Algo nos leva a lançar mão desses
recursos já construídos e, na falta deles, construir outros. Essa caracte-
rística já foi historicamente catalogada como com o nome de variedade.
A narradora, então, devolve a palavra aos pais para que nós, leitores,
possamos assistir com ela a discussão a respeito do pagamento dos livros.

– São bonitos, muitos bonitos, só não consigo imaginar como vamos


pagar isso, disse ela, com um toque de ansiedade na voz.
– Também não sei ainda, mas o vendedor vai voltar pra pegar o
dinheiro daqui a duas semanas. Até lá, penso numa saída.
– Podemos vender uma das vacas, ficando uma pro leite já tá bom,
retrucou ela.

Aqui tem o perfeito marcando a organização do diálogo – disse,


retrucou – e o presente das falas – São bonitos, ...só não consigo ima-
ginar..., não sei ainda..., penso numa saída... – com que o pai e a mãe
expressam os sentimentos de que estão tomados no momento em que
dialogam. Esta última forma do presente – penso – expressa um processo
que se prolonga do presente para o futuro com o auxílio da expressão
adverbial até lá. Com o futuro, eles se referem a um tempo posterior ao
tempo em que se falam – ...como vamos pagar..., vai voltar pra pegar o
dinheiro. Esta sequência de diálogo termina com a fala da mãe: Podemos
vender uma das vacas, ficando uma pro leite já tá bom.
Podemos pensar, por isso, se não teria sido mais adequado um
ponto-final e até mesmo um novo parágrafo para marcar a passagem do
diálogo para a construção da estante. Não foi o que a escritora fez: ela
encaixou o novo assunto na mesma frase:

789
gramática e estilo

...enquanto meu pai saía para o galpão em busca das madeiras com
que construiu uma prateleira para a minibiblioteca, ao lado da santa
de devoção da minha mãe, onde os livros passaram a ocupar um
lugar de destaque na humilde sala.

Ela poderia ter usado saiu – ...enquanto meu pai saiu para o galpão
em busca de... –, mas saía – imperfeito do indicativo, indicando ação
que se estendeu por algum tempo no passado – combina melhor com
enquanto, que impõe um intervalo: minha mãe retrucou enquanto meu
pai saía. Duas coisas acontecendo ao mesmo tempo só que uma delas já
aconteceu porque o que é expresso pelo perfeito, que termina ao começar,
não pode se dar, portanto, num intervalo. Provavelmente saía foi puxado
por enquanto, e a impropriedade decorrente do pai sair enquanto a mãe
está retrucando é para o leitor ter alguma informação a respeito do jeito
de ser do pai ao deixar a mãe falando sozinha. Aí o leitor prossegue na
leitura esperando encontrar uma confirmação dessa falta de modos do
pai. Podemos falar em pista falsa, defeito do estilo?
Uma conjunção sem compromisso com intervalo, que apenas
marcasse a sucessão das ações e um verbo com menor teor de ação do
que sair, como ir, por exemplo, evitaria a impressão de repúdio à fala
da mãe: Podemos vender uma das vacas, ficando uma pro leite já tá
bom, retrucou ela, enquanto meu pai foi para o galpão em busca de...
Foi, forma do perfeito, elimina, de vez, a noção de intervalo, trocando-a
pela de sucessão.

Tudo pronto, vieram as recomendações: só podíamos pegar os livros


depois de lavarmos bem as mãos, os livros eram de todos, ninguém
podia brigar por este ou aquele, pois tinha tempo suficiente para
todo mundo ler, não era para dar os livros para as crianças menores,
pois, se ainda não sabiam ler, só iam estragar.

Aqui as formas do imperfeito não têm função descritiva; aqui


reportam as falas dos pais, que ditam as regras, originalmente com as

790
gramática e estilo

formas do presente do indicativo: só podem pegar depois..., os livros


são de todos..., ninguém pode brigar..., tem tempo pra todo mundo ler...,
se ainda não sabem ler... A forma iam estragar, no futuro do pretérito
composto, próprio da língua que falamos, reporta vão estragar, do futuro
do presente composto, igualmente próprio da língua que falamos. Como
já vimos, o reportamento de falas pelo narrador (pela narradora, no caso)
implica mudança do momento de referência. O que era simultaneidade
para quem estava falando passa a ser anterioridade para a narradora,
que reporta.

Uns dias depois, meu pai levantou cedo, encilhou o cavalo e saiu
puxando uma novilha. Voltou quase ao meio-dia, com o dinheiro
para pagar a tal minibiblioteca.

Os verbos no perfeito – levantou, encilhou, saiu, voltou – narram, e


o gerúndio – puxando –, ao seu modo, narra e descreve tal como quando
saiu puxava uma novilha.

Eu e meus irmãos gêmeos estávamos na quarta série, meu irmão


mais velho na quinta. Até ali, nem dá para dizer que conhecíamos
livros. Além dos textos que recebíamos na escola, líamos o jornal
mensal da central de cooperativas que meu pai recebia porque era
sócio, qualquer pedaço de outros jornais que serviam para embru-
lhar coisas que meu pai trazia para casa, rótulos de embalagens de
adubo químico e agrotóxicos, enfim, líamos qualquer coisa escrita
que caísse nas nossas mãos. Talvez isso tenha encorajado meu pai
a gastar o valor de uma vaca por aqueles livros.

As formas do imperfeito do indicativo trabalham na caracterização


do bom aproveitamento do pouco envolvimento que a família tinha, até
então, com os livros: estávamos, conhecíamos, recebíamos, líamos, rece-
bia, era, serviam trazia, líamos. Há também duas formas no subjuntivo:
uma delas no imperfeito dentro de uma oração adjetiva – que caísse nas
nossas mãos –, expressando uma eventualidade possível. Em Talvez isso

791
gramática e estilo

tenha encorajado meu pai..., o pretérito perfeito do subjuntivo (como


vemos, uma forma composta pelo verbo auxiliar ter e o particípio do verbo
principal) compatibiliza com a formulação hipotética introduzida pelo
talvez referida a um fato localizado em um momento bem determinado
no passado (por causa disso o tempo é do perfeito), aquele momento em
que o pai decidiu-se por comprar a coleção de livros.

Os títulos traziam alguns clássicos como Memórias Póstumas de


Brás Cubas, A Moreninha, A Normalista, alguns policiais como A
Morte no Nilo, de Agatha Christie e vários do Sidney Sheldon, além
de outras literaturas estrangeiras e um pequeno dicionário. Nos
primeiros dias estávamos agitados e curiosos demais para fazermos
leituras individuais e silenciosas. Ficávamos amontoados, lendo em
voz alta trechos de diferentes livros, geralmente dos capítulos finais.
Olhávamos, cheirávamos, explorávamos a textura das folhas, do
papel mais grosso das capas, as diferentes letras, os grampos ou as
costuras que juntavam as muitas folhas. A bola, nossa companheira
de quase todas as tardes, ficou por muitos dias esquecida num canto
da sala. Aos poucos fomos nos acostumando com a novidade e já
podíamos nos dedicar à leitura de livros inteiros, escorados nos
troncos das laranjeiras.

Em os títulos traziam, o imperfeito promove o desfile dos títulos


dos livros diante dos nossos olhos; é ainda o imperfeito que caracteriza a
deflagração de um novo estado de espírito – estávamos agitados e curio-
sos –, de novas posturas e atividades – ficávamos amontoados, lendo...
–, de ações que começam a se tornar comuns durante sua familiarização
com os livros – ficávamos amontoados, olhávamos, cheirávamos,
explorávamos. Acrescenta-se a esta lista de formas no imperfeito do
indicativo as costuras que juntavam as muitas folhas.
As frases seguintes, talvez por causa deste acúmulo de imperfeitos,
passam a usar formas do perfeito para tratar de outras atividades dura-
douras no passado, que, por causa disso, poderiam ser expressas também
pelo imperfeito: A bola, nossa companheira de quase todas as tardes,

792
gramática e estilo

ficava esquecida num canto da sala. Aos poucos acostumávamo-nos


com a novidade. Para dar conta da imperfectibilidade da situação com o
verbo no perfeito, é preciso, providenciar outros recursos: A bola, nossa
companheira de quase todas as tardes, ficou por muitos dias esquecida
num canto da sala – no advérbio por muitos dias está expressa a duração.
Aos poucos fomos nos acostumando com a novidade e já podíamos nos
dedicar à leitura de livros inteiros, escorados nos troncos das laranjei-
ras... – a duração está em (1) aos poucos, (2) no sentido do verbo auxiliar
fomos e (3) na flexão do verbo principal no gerúndio – acostumando –,
que expressa o que está acontecendo no decorrer do tempo da narração.
Expressar a duração com o verbo no modo perfeito também exercita a
variedade.

Como não conhecíamos os autores, decidíamos as nossas leituras


pelos nomes das obras. Minha primeira escolha foi “Como era verde
o meu vale”, uma obra em dois volumes. Foi naquelas páginas que
descobri a existência de um país chamado Escócia, onde os homens
trabalhavam em minas de carvão, cavando enormes buracos na
terra e morrendo cedo por causa da fumaça tóxica e das cinzas que
entravam nos pulmões. As cinzas, despejadas no meio ambiente sem
nenhum cuidado, foram matando toda a vegetação, transformando
os verdes vales das regiões mineiras da Escócia num deserto acin-
zentado. Nas áreas em que a cinza era despejada, nada mais brotava.
Eu ficava assustada, pensando se aqueles mineiros, que tinham o
estranho hábito de se entocar na terra para dela arrancar carvão e
cinza, não chegariam até a nossa morada, matando meu pinheiro,
minha palmeira plantada com tanto carinho e que agora começava a
crescer, a grama, a horta de minha mãe e todo o arvoredo do meu pai.

Nesta sequência, predomina o relato do que foi acontecendo como


consequência dos contatos iniciais das crianças com os livros recém-
-chegados: o imperfeito em conhecíamos e decidíamos descreve os
procedimentos adotados nos primeiros exercícios de leitura; em traba-
lhavam, entravam, era despejada, brotava há uma resenha de uma dessas

793
gramática e estilo

primeiras leituras, e a resenha é uma descrição. Em ficava assustada,


tinham, começava a crescer, o imperfeito descreve a relação que vai
se estabelecendo entre a leitora e os conteúdos lidos.
Já o perfeito em foi e descobri narra o encontro da narradora com
o primeiro livro a ser lido, mas, em foram matando, temos mais uma
vez o verbo ir e o gerúndio transformando o perfeito no imperfeito,
que mata a médio prazo. Ao gerúndio, na verdade, não faz muita falta
o verbo ir para que expresse o que dura no tempo: cavando, morrendo,
transformando, pensando, matando.
As formas do particípio aproximam-se ora do adjetivo – deserto
acinzentado – ora do verbo – ...um país chamado Escócia..., cinzas,
despejadas no meio ambiente..., palmeira plantada com tanto... Temos
ainda o futuro do pretérito, que expressa um temor da narradora sobre
o que poderia acontecer depois daquele acontecido: pensando se...não
chegariam até a nossa...

– Pai, onde fica a Escócia? Eu insistia.


– Não se preocupe, menina, a Escócia fica bem longe, do outro lado
do mar. Uma explicação razoável, mas que não resolvia minhas
angústias.

O presente do indicativo fica em cada fala, assim como o impera-


tivo em Não se preocupe localiza as falas no presente em que ocorrem.
O imperfeito em insistia e em (não) resolvia expressa a duração da
angústia ao longo desses repetidos diálogos.

Em meio aos livros, descobri duas preciosidades: Capitães de Areia


e Jubiabá, de Jorge Amado. Comecei com Capitães de Areia, livro
que me transportou para uma realidade dura, cruel, que minha mente
de criança de nove anos jamais seria capaz de imaginar. Os trechos
mais dramáticos eu lia com desespero, engolindo palavras, pulando
frases, querendo ver o que acontecia, temendo a morte de um dos
meus muitos pequenos heróis. Depois fechava o livro, os olhos e

794
gramática e estilo

deixava minha mente viajar pela história, tentando entender melhor,


relacionando aquela passagem com outras lidas anteriormente, ten-
tando me convencer de que eu tinha mesmo lido aquilo tudo. Abria
o livro novamente e relia a página, agora sem pressa, saboreando
o suspense de cada parágrafo, a beleza de cada frase, a sonoridade
de cada palavra desconhecida. Fechava os olhos novamente, agora
para fixar na minha mente cada imagem que eu tinha construído
para aquele novo trecho. É assim que tenho na mente até hoje o rosto
de cada um dos capitães da areia, o velho trapiche onde os capitães
dormiam amontoados, que em nada corresponde com a imagem real
de um trapiche e, especialmente, a imagem do Perna Seca já rapazote,
correndo, correndo até ficar encurralado entre os policiais e o alto
muro à beira do penhasco, o olhar aflito para um lado, para o outro
e o salto para o vazio dolorido da morte, ante a ameaça de perder a
liberdade para a mão-de-ferro da lei.

Durante a rotina já estabelecida para a leitura, aqui expressa pela


sucessão de formas no imperfeito do indicativo – lia com desespero – e
de formas do gerúndio – engolindo palavras, pulando frases –, a narra-
dora usa, para confrontar impressões de diferentes momentos de leitura,
formas do mais que perfeito, o composto, da língua que falamos: eu
tinha mesmo lido aquilo..., imagem que eu tinha construído. O presente
do indicativo atualiza, no tempo presente da enunciação da narradora –
É assim que tenho na mente até hoje... –, aquelas impressões de leitura.

Nascida e criada no interior do Rio Grande do Sul onde, por violenta


e pobre que fosse a realidade, jamais uma criança cresceria sem casa
para morar, eu não conseguia entender o que tinha acontecido com
os meninos personagens. E enlouquecia minha mãe com milhares de
perguntas que ela também não dava conta de responder. “Mas onde
foram parar as mães dessas crianças? Se morreram, onde estão os
pais que também não cuidam delas? E as avós, as tias, os tios, as
vizinhas, as madrinhas, algum adulto que possa tomar conta dessas
crianças? Como é que elas conseguem comida, roupa? Elas não têm
medo de escuro, não morrem de frio?”

795
gramática e estilo

– Pelo amor de Deus, pare de me perguntar tanta coisa, implorava


minha mãe. Quando meu pai chegava da lavoura, ela comentava
preocupada: acho que esses livros não tão fazendo bem pra essa
menina. Diga pra ela parar de ler tanto. Meu pai pedia para que eu
maneirasse, mas não adiantava, eu li e reli até quase decorar toda
a história.

O eixo narrativo neste trecho não é conduzido pelo perfeito, mas


pelo imperfeito – eu não conseguia entender..., enlouquecia minha
mãe..., ela também não dava conta de..., implorava minha mãe..., meu
pai chegava da lavoura, ela comentava preocupada..., Meu pai pedia
para..., mas não adiantava... De fato, tudo isso se repetia ao longo desse
período.
A avaliação que a narradora fez do leitor que tinha em mente, entre os
quais ela mesma parece incluir-se, impunha-lhe apresentar as circunstân-
cias que tornavam difícil para ela produzir os sentidos que o livro estava
propondo que ela produzisse. A constituição dessa circunstância começa
com dois particípios – nascida e criada–, adjetivos e verbos que podem
indicar causa (por ter nascido e ter sido criada) ou jeito de ser, produto
duma cultura. Segue com um verbo no imperfeito do subjuntivo dentro
de uma oração comparativa – ...por violenta e pobre que fosse a reali-
dade... – e termina formulando o resultado de uma condição posta com
um verbo no futuro do pretérito – ... jamais uma criança cresceria...
Causas, comparações, condições, hipóteses são componentes típicos da
exposição, que, neste caso, tem origem no estranhamento causado pela
intrigante aventura para a qual a leitura conduziu a narradora.
Sobre o futuro do pretérito – cresceria –, em ...por violenta e pobre
que fosse a realidade, jamais uma criança cresceria sem casa para...,
convém levar em consideração esta observação na NGPB: “outra evidência
do caráter modal do ‘futuro do pretérito’ é seu emprego em enunciados
onde também é possível empregar o subjuntivo, ou seja, na enunciação de
hipóteses, desejos, dúvidas, etc.” (CASTILHO, 2010, p. 560).

796
gramática e estilo

O presente, na fala da narradora, traz para o presente da narração


a angústia presente no momento em que a narradora produzia essa fala:
estão os pais..., não cuidam..., elas conseguem comida..., não têm
medo..., não morrem de frio?. A expressão foram parar é paralela às
anteriores, pois, apesar da forma do perfeito, refere-se ao presente: as
mães das crianças foram parar onde estão agora. O perfeito se morre-
ram localiza um momento num tempo passado tornado hipotético graças
ao se. O presente do subjuntivo formula uma consideração dependente
da veracidade da anterior: ...que possa tomar conta...
Na fala da mãe, as formas do imperativo – pare e diga – presentifi-
cam o que ela disse naquele momento, assim como as formas do presente
contínuo com que expressa a sua opinião – não tão fazendo bem... E o
parágrafo termina com um uso incomum do perfeito para narrar uma ação
que, embora não tenha sido repetitiva, também se repetiu: ...eu li e reli
até quase... Desta vez é um recurso morfológico – o sufixo re – com o
auxílio luxuoso do recurso sintático da coordenação que reitera: li e reli.

Depois mudei para Jubiabá e me encantei com a força muscular,


a coragem e a valentia daquele negro, que quando era preciso se
embrenhava no mato por dias e dias para escapar dos inimigos. Foi
com essas duas histórias de Jorge Amado que descobri que livro tem
um sabor indescritível, que só pode ser saboreado pela alma. Quan-
do eu fechava os olhos para me embriagar com aquelas histórias
era como se colocasse um bombom delicioso na boca e deixasse
derreter devagarinho para que cada papila gustativa pudesse iden-
tificar, sentir e registrar para sempre aquele sabor. Aquela história
passava a ser parte real da minha vida. Acho que vem desse tempo
a sensação de alegria misturada com solidão e abandono, cada vez
que termino a leitura de um livro. Também é dessa época a mania
de ler apressadamente os trechos mais envolventes, depois fechar os
olhos, curtir, recriar minha própria versão e, então, reler a página
calmamente, sentindo o sabor da leitura.

797
gramática e estilo

As formas do perfeito do indicativo no início da sequência – mu-


dei..., me encantei..., Foi..., descobri relatam o fato: a leitura de Jubiabá.
As formas do imperfeito do subjuntivo – colocasse um bombom... e dei-
xasse derreter devagarinho..., cada papila gustativa pudesse identificar,
sentir e registrar para sempre... – descrevem o processo que essa leitura
deflagrou dentro da leitora. As formas do presente do indicativo – ...livro
tem um sabor indescritível, que só pode ser saboreado pela alma e Acho
que vem desse tempo..., cada vez que termino a leitura... – interpretam a
vivência: aí temos, encadeadas, narração, descrição e dissertação.

Quando esgotei as novidades da minibiblioteca da minha casa,


descobri que algumas amigas, já moças, que estudavam na oitava
série, costumavam trocar uns romances baratos, vendidos em bancas
de rodoviárias, das coleções Sabrina, Bianca, Júlia e outros nomes
de mulher. Ofereci empréstimo dos livros lá de casa para que, em
troca, elas me emprestassem os seus livros. Minhas amigas não se
interessaram pela minha oferta, mas concordaram em emprestar os
tais romances. Eu ficava acordada até altas horas da noite, devo-
rando aquelas histórias. Lia, em média, um livro a cada três noites.
No começo ficava fascinada pelas descrições de casarões luxuosos,
fazendas encantadas, as viagens em cruzeiros magníficos, mas depois
passei a me cansar dos enredos repetidos. Sempre tinha uma loira
estonteante, ferida de morte por um amor cruel e incurável, um ho-
mem muito rico, alto, moreno, musculoso, uma tórrida paixão, algo
terrível a atrapalhar a vida dos apaixonados e, no final, um final
feliz. Entre livro nenhum e o pouco que esses romances me davam,
eu ainda preferia o pouco..

Aqui, o perfeito – esgotei, descobri, ofereci, interessaram, con-


cordaram, passei a me cansar – narra o que foi preciso para criar as
condições para que passasse a acontecer sistematicamente o que é
descrito pelo imperfeito – estudavam, costumavam, ficava, lia, ficava
fascinada, tinha, davam, preferia. Há dois adjetivos expressos por for-
mas verbais: um particípio – vendidos – e um infinitivo – a atrapalhar

798
gramática e estilo

–, que testemunham o cuidado da narradora para nos oferecer variedade


de meios expressivos.
E aqui, inserida na narrativa, tem uma resenha da literatura de
rodoviária, que dá um testemunho do amadurecimento da leitora e faz
a sua profissão de fé na leitura: ler o que há pra ler. E o imperfeito do
indicativo, o tempo do processo, do que vai em frente repetindo-se e
acumulando o acervo em construção, mostra por que se impôs – com o
maior percentual de todos os 15 tempos verbais usados neste texto – como
o instrumento mais adequado para contar esta história, que se encerra
falando daquilo que a iniciou.

Para minha sorte, quando eu cursava a sétima série, meu colégio ga-
nhou uma biblioteca razoável, permitindo que eu trocasse as Júlias,
Sabrinas e Biancas por leituras mais interessantes. Já no segundo
grau e na faculdade, outros livros foram comprados e guardados na
estante da sala da casa dos meus pais. Hoje, a minibiblioteca perma-
nece lá, com seus 30 livros, agora em posição não tão privilegiada,
em meio a outros tantos adquiridos.

A análise dos dois textos anteriores a este já deixou claro que na


narrativa predominam o perfeito do indicativo, que conta os aconteci-
mentos; e o imperfeito do indicativo, que descreve cenários e persona-
gens e configura situações que se prolongam no tempo. Na exposição, a
predominância é do presente: o do indicativo, que expressa as asserções
que compõem o raciocínio pelo qual o autor expõe sua opinião ou sua
tese; e o do subjuntivo, que apresenta as hipóteses, as conjeturas e as
expectativas do autor.
Pudemos verificar também que a ocorrência dos tempos predomi-
nantes em cada modalidade é rara na outra modalidade e que, quando
ocorrem, podem mudar de função, como, no segundo texto – o expositivo
–, aquele disse que aponta para um lugar no texto e não para o tempo. Os
casos de presente do indicativo no primeiro texto – o narrativo – ocorrem

799
gramática e estilo

no discurso direto do personagem, expressando-se no tempo presente


de sua fala: (eu) deixo..., as montanhas não crescem nem aumentam.
Neste terceiro texto, temos 14 formas verbais:
Pretérito imperfeito do indicativo – são 78 ocorrências (26%
das formas verbais do texto), nesta lista sem repetições: estava / eram
/ estava carregando / podíamos distinguir / saía / podíamos pegar /
podia brigar / tinha / sabiam / estávamos / conhecíamos / recebíamos
/ líamos / era / serviam / trazia / líamos / ficávamos amontoados /
olhávamos / cheirávamos / explorávamos / juntavam /decidíamos /
trabalhavam / entravam /era despejada / brotava / ficava assustada
/ tinham /começava a crescer / resolvia / lia / acontecia / fechava /
deixava / abria / relia / dormiam / conseguia entender / enlouque-
cia / dava / implorava / chegava / comentava / pedia / adiantava /
embrenhava / fechava / passava a ser / estudavam / costumavam
trocar / ficava / ficava / tinha / davam / preferia / cursava. Um
exame desta lista nos mostra descrições de cenas – estava carregando
/ podíamos distinguir / saía / líamos / ficávamos amontoados – mas
principalmente descrições de processos – olhávamos / cheirávamos
/ explorávamos / conhecíamos / começava a crescer – e de mudan-
ças de estados de espírito – ficava assustada / conseguia entender /
enlouquecia.
Gerúndio – são 23 ocorrências (num percentual de 7,7%, sem
contar as que são do verbo principal de uma locução verbal): olhando /
contendo / ficando / puxando / lendo / cavando / morrendo / trans-
formando / pensando / matando / engolindo / pulando / querendo /
temendo / tentando / relacionando / saboreando / correndo / sentindo
/ devorando / permitindo – que reforçam a ênfase que o texto dá à ex-
pressão de ações e processos em curso, acontecendo durante a narração.
O gerúndio expressa o aspecto cursivo também nas perífrases verbais em
que aparece no seu núcleo, como verbo principal: estava carregando /
tá trazendo / tá vendo / tá passando / foram matando.

800
gramática e estilo

Pretérito perfeito do indicativo – tem 65 ocorrências, num per-


centual de 22%. Esta é a lista sem repetições: Vimos / chegou / abaixou
/ largou / cruzou / apanhou / seguiu / chamou / saiu / juntou / pediu
/ perguntou / foi / disse / apareceu / entrou / largou / aproximou /
passou / ameaçou pegar / recuou / retrucou / construiu / passaram /
vieram / levantou / encilhou / saiu / voltou / ficou esquecida / fomos
nos acostumando / descobri / foram matando / comecei / transportou
/ foram parar / morreram / li / reli / mudei / encantei / esgotei / ofereci
/ interessaram / concordaram / passei / ganhou / foram comprados e
guardados. Temos aí as ações dos personagens, que não deixam também,
de certa forma, de descrevê-los em seus gestos e estados de espírito –
Vimos / ameaçou pegar / encilhou /recuou / fomos nos acostumando
/ descobri /li / reli / mudei / (me) encantei / concordaram.
A soma dos pretéritos do indicativo – o perfeito, que narra, e o
imperfeito, que descreve –, que predominava naquela narração mais
simples do primeiro texto examinado (34% + 26% = 60%), chega, nesta
narrativa, a 48%, o que bem caracteriza a maior complexidade desta
narrativa comentada com relação àquela narrativa quase simplória.
Presente do indicativo – contribui com 35 ocorrências e um
percentual de 11%. Estas são as ocorrências: é / precisam / consigo
imaginar / sei / penso / podemos vender / tá / dá para dizer / fica
/ tenho / corresponde / estão / cuidam /conseguem / têm / morrem
/ acho / pode ser saboreado / acho / vem / termino / permanece.
O presente do indicativo ocorre não apenas no discurso direto dos
personagens pois a narradora também expõe, comenta: Até ali, nem dá
para dizer que conhecíamos livros...; o velho trapiche onde os capitães
dormiam amontoados, que em nada corresponde com a imagem real
de um trapiche...; descobri que livro tem um sabor indescritível, que só
pode ser saboreado pela alma; Acho que vem desse tempo a sensação
de alegria misturada com solidão e abandono, cada vez que termino a
leitura de um livro.

801
gramática e estilo

Infinitivo – cumprindo sua função de designar as ações e os pro-


cessos, tem 37 ocorrências (sem contar os que são o verbo principal de
uma locução) num percentual de 12%: voltar / evitar / dizer / ler / pegar
/ lavarmos / dar / pagar / embrulhar / gastar / fazermos / dedicar /
entocar / arrancar / imaginar / viajar / fixar / ficar / perder / morar /
responder / perguntar / parar / decorar / escapar / embriagar / fechar
/ curtir / recriar / reler / emprestar / cansar / atrapalhar.
Particípio – tem 24 ocorrências num percentual que chega 8%:
afastados / suadas / amontoados / construída / escorados / chamado /
despejadas / acinzentado / plantada / lidas / desconhecida / encurrala-
do / nascida / criada / preocupada / misturada / vendidos / acordada /
fascinada / encantadas / repetidos / ferida / privilegiada / adquiridos.
O particípio contribui para a caracterização e para a descrição de pessoas,
paisagens e estados de espírito dos seres que se movimentam no texto.
Infinitivo, gerúndio, particípio são chamados de formas nominais
dos verbos porque o infinitivo pode funcionar como um substantivo, o
gerúndio como um advérbio, e o particípio como um adjetivo. Onde
assim funcionam agregam a esses substantivos, adjetivos e advérbios
a dinâmica própria dos verbos. Estes são os tempos mais usados neste
ensaio, com um percentual de 87% do total das formas verbais do texto.
Os restantes 13% distribuem-se em nove outras formas, de uso mais
especializado. A pouca ocorrência destas nove formas no texto testemu-
nham a especificidade do uso de cada uma delas. O uso de 14 formas
verbais diferentes atesta a riqueza do texto e o domínio que a autora
tem de recursos linguísticos de raro uso, decorrência certamente de uma
experiência diversificada e quantitativamente significativa da leitura e
do exercício da escrita.
Imperfeito do subjuntivo – são 11 ocorrências, que referem (1)
ações realizadas ou apenas conjeturadas em um momento do passado e
condicionadas a uma ação recíproca, como emprestassem e trocasse
e mais estas outras: (2) encostasse, que expressa também uma conjetu-

802
gramática e estilo

ra; (3) caísse, que expressa também uma eventualidade; (4) fosse, que
expressa também uma proporção; (5) maneirasse, que faz também um
reportamento de fala: pede pra ela maneirar; (6) colocasse / deixasse
derreter / pudesse identificar / (pudesse) sentir / (pudesse) registrar,
que servem também para compor uma comparação imaginária.
Futuro do pretérito – são 4 ocorrências, que descrevem algo
como o que ainda estava por acontecer num momento futuro dentro do
passado, como chegariam – Eu ficava assustada, pensando se aqueles
mineiros, que tinham o estranho hábito de se entocar na terra para
dela arrancar carvão e cinza, não chegariam até a nossa morada... –,
cresceria, seria e iam estragar, que também reporta fala: se não sabem
usar só vão estragar.
Presente contínuo – são 4 ocorrências: tão fazendo, tá passando,
tá vendo, tá trazendo –, que reproduzem falas.
Mais que perfeito do indicativo – são três ocorrências, na forma da
nossa língua falada, que indicam o que realmente ocorreu antes de uma
referência a um momento no passado: tinha acontecido, tinha constru-
ído, tinha lido - Depois fechava o livro, os olhos e deixava minha mente
viajar pela história, tentando entender melhor, relacionando aquela
passagem com outras lidas anteriormente, tentando me convencer de
que eu tinha mesmo lido aquilo tudo.
Futuro do presente – também com três ocorrências, na reprodu-
ção de falas na nossa língua falada: vai voltar, vamos pagar, vão ter;
o futuro do presente não é de ocorrência rara, mas este texto processa
basicamente o que aconteceu no passado.
Pretérito perfeito do subjuntivo – com uma única ocorrência,
expressa uma conjetura a respeito de algo que ocorreu em um momento
bem determinado do passado: enfim, líamos qualquer coisa escrita que
caísse nas nossas mãos. Talvez isso tenha encorajado meu pai a gastar
o valor de uma vaca por aqueles livros.

803
gramática e estilo

Presente do subjuntivo – também com uma única ocorrência –


possa tomar –, na reprodução de uma fala, expressando uma conjetura:
E as avós, as tias, os tios, as vizinhas, as madrinhas, algum adulto que
possa tomar conta dessas crianças?
Futuro do subjuntivo – também com uma única ocorrência –
quiserem ser –, na reprodução de uma fala, expressando uma hipótese
a ser aventada no futuro: Vão ter que ler muito se quiserem ser alguém
na vida um dia.

6.2.3.2 Narrar, descrever, expor

Examinamos, então, do ponto de vista dos tempos verbais emprega-


dos, uma narração simples – O velho louco que removeu as montanhas
– em que predominam – com 60% de ocorrências – os pretéritos do
indicativo: o perfeito, que narra os fatos; e o imperfeito, que descreve
e compõe o cenário. Há ainda o infinitivo, que nomeia ações, processos,
estados e outros seis tempos com menos de cinco ocorrências.
O segundo texto examinado foi um artigo, que expressa a opinião
do seu autor a respeito de qual deve ser a finalidade do ensino de língua
portuguesa na escola – O papel da escola é ensinar língua padrão –, em
que predominam os presentes: o do indicativo (139 ocorrências), que
expressa as asserções, e o do subjuntivo (23 ocorrências), que expressa
conjeturas, hipóteses, possibilidades, probabilidades. Ocorrem também
o infinitivo (37 ocorrências) e o futuro do pretérito do indicativo (18),
que contribuem para a composição do pano de fundo sobre o qual se
coloca a tese do autor, e o particípio (11). Há ainda cinco outros tempos
com menos de 10 ocorrências.
O terceiro texto examinado foi um relato autobiográfico – A vaca
e os livros –, que relata a iniciação na leitura de uma menina da zona
rural do Brasil, em que aparecem 14 formas verbais diferentes e em que
o imperfeito do indicativo foi o tempo verbal mais usado, o que com-

804
gramática e estilo

patibiliza com uma narração mais preocupada em registrar os processos


pelos quais passou a narradora do que com as ações em que ela esteve
envolvida. O grande percentual de formas verbais no gerúndio (7% do
total das formas verbais) reforça essa ênfase do texto nos processos. Nesta
narrativa convivem também pretéritos e presentes, ou seja, narração e
exposição. Já dispomos, portanto, de um razoável acervo de exemplos de
usos de aspectos, modos, tempos verbais nos sistemas da narração e da
exposição. Antes de passarmos ao exame dos problemas que costumam
aparecer nos textos em haver dos escritores aprendizes, vamos completar
nosso estudo de como se relacionam as diversas formas dos verbos na
língua em que escrevemos examinando um texto que se atreve a subverter
as regras que pudemos depreender do estudo dos textos anteriores.

6.2.4 O que se conta pra mostrar como é

O último pedido

Carla Schwartz

Quando irmã Maria desperta, ouve os sons comuns da manhã. Em


seu convento as manhãs começam muito cedo. Levanta-se, veste-se, lava-
-se na pequena bacia do quarto e procura, na estreita janela, um laivo de
sol da manhã apenas pressentida. De seu pequeno quarto, de sua janela,
avista o vale imenso, a horta e o jardim. Pequenina e distante, a cidade.
Hoje, sente-se um pouco agitada. Lança um último olhar para
fora e percebe que o dia vai ser quente. Foi designada para o cuidado
da horta e do jardim, como se fosse um dia comum, como se não fosse,
hoje, seu aniversário. Mas onde vive as coisas são assim. Se soubessem,
entretanto, como ela gosta de ficar lá fora, apesar do calor que faz o
pesado e escuro hábito, talvez não a destinassem, tão seguidamente, à
tarefa junto às plantas.

805
gramática e estilo

Quando sai do quarto, muitas irmãs já dirigem-se para a capela.


As orações da manhã são lentas, arrastadas; murmuram preces intermi-
náveis em sua sonolência crônica. Nesta congregação dorme-se pouco e
reza-se muito. Para isso foi criada, a única destinada a tão somente orar,
a, simplesmente, pedir a Deus pelas outras 321 irmandades religiosas
existentes no mundo inteiro. Após as orações da manhã, fazem o desjejum
cabisbaixas, trocam sutis comentários e comem pouco. Às 7h e 30 min
seguem silenciosas rumo à tarefa de seu dia. Um dia em que somente a
irmã responsável pela cozinha terá uma tarefa diferente a executar. Ela
hoje fará um pequeno bolo. Precisa que seja, necessariamente, apenas
suficiente. Em sua cozinha as coisas também são assim. Mas está feliz
porque colocará nele toda sua arte.
Irmã Maria desce a escadaria que separa o convento do imenso
pátio. Difícil entender o porquê do jardim. A horta é útil, o bosque
atrás da clausura guarda as lamentações e, principalmente, o eterno
silêncio das irmãs ali enterradas. Mas o jardim não precisaria existir.
Difícil compreender a madre. Dizem ser tão convencional como todas
as outras que ali reinaram, mas esta criou o jardim. Jamais desce até
ele, jamais sai ao sol, mas fita-o incansavelmente, todas as manhãs, do
alto do convento.
Junto à terra e sob o sol que tanto ama, irmã Maria ajeita as rosas,
as margaridas, cheira os cravos, espeta-se em espinhos e sorri. Afofa a
terra para que os vegetais da horta cresçam libertos das ervas daninhas
e das pedras que os sufocam. A manhã passa-se rapidamente.
Ao meio-dia, guarda as ferramentas de trabalho e inicia a subida;
para cada degrau conta um ano. No trigésimo degrau, para e olha para o
vale e a cidade lá embaixo. Lembra de como é a cidade e sabe que muita
coisa deve ter mudado nestes 15 anos que passou na colina, no convento
das irmãs Carmelitas. Recorda quando entrou para a congregação: é
certo, foi conduzida, induzida para a vida religiosa, mas poderia ter
lutado por uma realidade diferente. Só que com apenas quinze anos

806
gramática e estilo

fica difícil saber como e por que lutar. Poderia ter escolhido, sim, ser
uma irmã missionária, conheceria o mundo e pessoas diferentes todos
os dias, ou, então, lecionaria como uma freira comum. Usaria roupas
mais leves, sairia para comprar suas coisas, saberia o valor do dinheiro
e conheceria a televisão a cores. Mas quis assim, escolheu assim. Tinha
15 anos e precisava escolher. Escolheu o convento da colina porque
amava o vale.
Hoje, é uma carmelita, há quinze anos é uma carmelita. Olhar para
dentro de si mesma, dias e meses voltados para Deus e orações devotadas
à salvação da humanidade. Assim é que deve ser. Mas e1a não esqueceu
o mundo. Irmã Maria ainda olha para o vale.
Sobe o restante dos degraus, entra no quarto, lava as mãos e o
rosto, encaminha-se para o refeitório. Atrasou-se um pouco, a oração
já foi feita, almoçam quietas as quarenta irmãs do convento. Ela reza,
senta-se e come vagarosamente. Ao término da refeição, a madre ordena
que tragam o bolo. Quando o tem nas mãos, levanta-se e dirige-se à irmã
Maria. O bolo é posto a sua frente, todas a cumprimentam com um sor-
riso, uma oração é feita pedindo por saúde e paz para a aniversariante.
A madre toca-lhe formalmente a mão e deseja-lhe perseverança e fé.
Mas lá dentro, no fundo de si mesma, irmã Maria queria abraçar
todas elas e dizer-lhes que as ama. Queria um abraço caloroso desta
velha senhora austera que, como ela, ama as flores e o vale e o sol.
Entretanto, somente agradece a todas e sorri. Mas ao partir a primeira
fatia de seu bolo de aniversário, irmã Maria faz como quando era crian-
ça, formula mentalmente um pedido. Um último pedido que ela repetirá
a cada aniversario: que um dia, aquele portão que as guarda abra-se
para o mundo, e ela possa descer até o vale e, deste, vislumbrar a colina.
Que ela possa, neste dia, erguer novamente os olhos e não precise mais
olhar sempre para baixo como o faz, em todas as manhãs, de seu alto
pedestal, a tristonha, sofrida e distante madre superiora.

807
gramática e estilo

6.2.4.1 As diferentes funções dos tempos verbais

Quando irmã Maria desperta, ouve os sons comuns da manhã...


Em seu convento as manhãs começam muito cedo. Levanta-se, veste-
-se, lava-se na pequena bacia do quarto e procura, na estreita janela,
um laivo de sol da manhã apenas pressentida. De seu pequeno quarto,
de sua janela, avista o vale imenso, a horta e o jardim. Pequenina e
distante, a cidade.
Hoje, sente-se um pouco agitada. Lança um último olhar para
fora e percebe que o dia vai ser quente. Foi designada para o cuidado
da horta e do jardim, como se fosse um dia comum, como se não fosse,
hoje, seu aniversário. Mas onde vive as coisas são assim. Se soubessem,
entretanto, como ela gosta de ficar lá fora, apesar do calor que faz o
pesado e escuro hábito, talvez não a destinassem, tão seguidamente, à
tarefa junto às plantas.
Quando sai do quarto, muitas irmãs já dirigem-se para a capela.
As orações da manhã são lentas, arrastadas; murmuram preces intermi-
náveis em sua sonolência crônica. Nesta congregação dorme-se pouco e
reza-se muito. Para isso foi criada, a única destinada a tão somente orar,
a simplesmente, pedir a Deus pelas outras 321 irmandades religiosas
existentes no mundo inteiro. Após as orações da manhã, fazem o desjejum
cabisbaixas, trocam sutis comentários e comem pouco. Às 7h e 30 min
seguem silenciosas rumo à tarefa de seu dia. Um dia em que somente a
irmã responsável pela cozinha terá uma tarefa diferente a executar. Ela
hoje fará um pequeno bolo. Precisa que seja necessariamente, apenas
suficiente. Em sua cozinha as coisas também são assim. Mas está feliz
porque colocará nele toda sua arte.
Irmã Maria desce a escadaria que separa o convento do imenso
pátio. Difícil entender o porquê do jardim. A horta é útil, o bosque
atrás da clausura guarda as lamentações e, principalmente, o eterno
silêncio das irmãs ali enterradas. Mas o jardim não precisaria existir.

808
gramática e estilo

Difícil compreender a madre. Dizem ser tão convencional como todas


as outras que ali reinaram, mas esta criou o jardim. Jamais desce até
ele, jamais sai ao sol, mas fita-o incansavelmente, todas as manhãs, do
alto do convento.
Junto à terra e sob o sol que tanto ama, irmã Maria ajeita as rosas,
as margaridas, cheira os cravos, espeta-se em espinhos e sorri. Afofa a
terra para que os vegetais da horta cresçam libertos das ervas daninhas
e das pedras que os sufocam. A manhã passa-se rapidamente.
Ao meio-dia, guarda as ferramentas de trabalho e inicia a subida;
para cada degrau conta um ano. No trigésimo degrau para e olha para o
vale e a cidade lá embaixo. Lembra de como é a cidade e sabe que muita
coisa deve ter mudado nestes 15 anos que passou na colina, no convento
das irmãs Carmelitas. Recorda quando entrou para a congregação: é
certo, foi conduzida, induzida para a vida religiosa, mas poderia ter
lutado por uma realidade diferente. Só que com apenas quinze anos fica
difícil saber como e por que lutar. Poderia ter escolhido, sim, ser uma
irmã missionária, conheceria o mundo e pessoas diferentes todos os
dias, ou, então, lecionaria como uma freira comum. Usaria roupas mais
leves, sairia para comprar suas coisas, saberia o valor do dinheiro, e
conheceria a televisão a cores. Mas quis assim, escolheu assim. Tinha
15 anos e precisava escolher. Escolheu o convento da colina porque
amava o vale.
Hoje, é uma carmelita, há quinze anos é uma carmelita. Olhar
para dentro de si mesma, dias e meses voltados para Deus e orações
devotadas à salvação da humanidade. Assim é que deve ser. Mas e1a
não esqueceu o mundo. Irmã Maria ainda olha para o vale.
Sobe o restante dos degraus, entra no quarto, lava as mãos e
o rosto, encaminha-se para o refeitório. Atrasou-se um pouco, a
oração já foi feita, almoçam quietas as quarenta irmãs do convento.
Ela reza, senta-se e come vagarosamente. Ao término da refeição, a
madre ordena que tragam o bolo. Quando o tem nas mãos, levanta-se

809
gramática e estilo

e dirige-se à irmã Maria. O bolo é posto a sua frente, todas a cum-


primentam com um sorriso, uma oração é feita pedindo por saúde
e paz para a aniversariante. A madre toca-lhe formalmente a mão e
deseja-lhe perseverança e fé.
Mas lá dentro, no fundo de si mesma, irmã Maria queria abraçar
todas elas e dizer-lhes que as ama. Queria um abraço caloroso desta
velha senhora austera que, como ela, ama as flores e o vale e o sol. En-
tretanto, somente agradece a todas e sorri. Mas ao partir a primeira fatia
de seu bolo de aniversário, irmã Maria faz como quando era criança,
formula mentalmente um pedido. Um último pedido que ela repetirá a
cada aniversário: que um dia, aquele portão que as guarda abra-se para
o mundo, e ela possa descer até o vale e, deste, vislumbrar a colina.
Que ela possa, neste dia, erguer novamente os olhos e não precise mais
olhar sempre para baixo como o faz, em todas as manhãs, de seu alto
pedestal, a tristonha, sofrida e distante madre superiora.

Este texto conta uma sucessão de acontecimentos que ocorrem num


dia determinado na vida da irmã Maria, uma freira carmelita: o dia do
seu aniversário de 30 anos. Trata-se, como qualquer leitor percebe, de
uma narrativa, que, do ponto de vista do sistema de tempos verbais que
usa, não se assemelha às duas que já examinamos. Como já fizemos na-
quelas, vamos identificar os tempos verbais que nela são usados e qual
o percentual de ocorrências de cada um deles:
Presente do indicativo – narra os acontecimentos e monta pano
de fundo e o cenário: desperta /ouve /começam / levanta / veste / lava
/ procura / avista / sente / lança / percebe / vive / são / gosta / faz /
sente / sai /dirigem / são /murmuram / dorme / reza /fazem / trocam
/ comem / seguem / precisa / são / está / desce / separa / é / guarda /
desce / sai / fita / ama / ajeita /cheira / espeta / sorri / afofa / sufocam
/ passa / guarda / inicia / conta / para / olha / lembra / é / sabe / deve
ter mudado / recorda / é / fica / é / há / é / é / deve ser / olha / sobe /

810
gramática e estilo

entra / lava / encaminha / almoçam / senta / come / ordena / tem /


levanta / dirige / é posto / cumprimentam / é feita / toca / deseja /
ama / ama / agradece / sorri / faz / formula / guarda / faz. São 86
ocorrências: 59,7%.
Perfeito do indicativo – narra o que não se repetiu, o que aconteceu
em algum momento muito claramente determinado: foi designada / foi
criada / reinaram / criou / passou / foi conduzida, induzida / quis
/ escolheu / esqueceu / atrasou / foi feita. São 12 ocorrências: 8,3%.
O reconhecimento pelo narrador de que, ao longo de uma relação de
acontecimentos tão repetitivos que podem ser expressos pelo presente
atemporal, houve acontecimentos tão peculiares e decisivos que precisam
ser expressos pelo perfeito do indicativo produz uma marca fortíssima
nessa distinção entre o que se repete e o que terminou no momento em
que aconteceu.
Infinitivo – diz o nome da ação ou processo a que se refere: ficar
/ orar / pedir / executar / entender / ser / lutar / ser / olhar / dizer /
partir. São 11 ocorrências: 7,6%.
Futuro do pretérito – compõe um outro tipo de pano de fundo
mostrando o que foi necessário renunciar e recusar para possibilitar a
existência do que é mostrado e narrado nesta história: precisaria existir
/ poderia ter lutado / poderia ter escolhido / conheceria / lecionaria /
usaria / sairia / saberia / conheceria. São 10 ocorrências: 6,9%.
Presente do subjuntivo – poucas ocorrências dessa forma verbal
testemunham a fortíssima vinculação da personagem com a realidade
exterior de suas tarefas cotidianas, da qual se distancia apenas em um
devaneio anual, em que aspira a uma fugaz quebra de rotina: seja/ cres-
çam / tragam / abra / possa descer / possa vislumbrar / (possa) erguer
/ precise olhar. São 8 ocorrências: 5,5%.
Pretérito imperfeito do indicativo – expressa o único momento em
que a personagem se vê envolvida, em suas lembranças, num processo, o
de escolha do rumo de sua vida: tinha / precisava escolher / amava; e se

811
gramática e estilo

faz presente no não menos esporádico e fugaz devaneio da personagem:


queria abraçar / queria / era. São 6 ocorrências: 4,1%.
Particípios – funcionam como adjetivos: pressentida / enterradas
/ voltados / devotadas / sofrida. São 5 ocorrências: 3,4%.
Futuro do presente – indica o que é posterior ao anteriormente
enunciado no presente do indicativo: vai ser / terá / fará / colocará /
repetirá. São 5 ocorrências: 3,4%.
Gerúndio – não funciona como uma forma verbal que expressa um
processo mas como um adjetivo: pedindo; ...oração que pedia... Há 1
ocorrência: 0,6%.
Na primeira das narrativas – O velho louco... – predominavam os
pretéritos do indicativo, com 60% das ocorrências, com uma pequena
vantagem de oito ocorrências para o perfeito sobre o imperfeito; na se-
gunda – A vaca e os livros – a soma das ocorrências desses dois tempos
não chega à metade do total; perfaz 47%, e o predomínio é do pretérito
imperfeito do indicativo. Em O último pedido, como podemos consta-
tar, 59,7% das ocorrências são do presente do indicativo, enquanto os
pretéritos do indicativo, somados, chegam a 12%, com apenas quatro
ocorrências do imperfeito.
Os leitores, no entanto, não terão nenhuma dificuldade de aceitar
uma narrativa que se expressa no presente do indicativo se relacionarem
a ideia de presente atemporal que o presente do indicativo expressa
em textos expositivos com usos comuns do presente do indicativo para
registrar narrativamente o que se perpetua no tempo – Todo dia ela faz
tudo sempre igual – ou o que já aconteceu – E, naquele momento¸ ela
chega e ouve toda a conversa – ou o que ainda não aconteceu – Pode
deixar, que amanhã cedo eu estou aí.

812
gramática e estilo

6.2.4.2 A “tradução” do presente pro passado

Os leitores não só aceitarão, mas saberão também traduzir com


precisão para o uso canônico dos pretéritos da narrativa, distinguindo
o que a história narra do que nela se descreve, como podemos ver, por
exemplo, nesta tradução nos dois primeiros parágrafos:

Quando irmã Maria despertou, ouviu os sons comuns da manhã.


Em seu convento as manhãs começavam muito cedo. Levantou-se,
vestiu-se, lavou-se na pequena bacia do quarto e procurou, na estreita
janela, um laivo de sol da manhã apenas pressentida. De seu pequeno
quarto, de sua janela, avistava o vale imenso, a horta e o jardim.

Sentiu-se, então, um pouco agitada. Lançou um último olhar para


fora e percebeu que o dia ia ser (seria) quente. Fora designada para
o cuidado da horta e do jardim, como se fosse um dia comum, como
se não fosse, nesse dia, o seu aniversário. Mas onde vivia as coisas
eram assim. Se soubessem, entretanto, como ela gostava de ficar lá
fora, apesar do calor que fazia o pesado e escuro hábito, talvez não
a destinassem, tão seguidamente, à tarefa junto às plantas.

Exercício 81

A discussão deste exercício de substituir as formas do presente ou


pelo perfeito ou pelo imperfeito vai propiciar uma interessantíssima
discussão não só sobre as diferenças entre o perfeito e o imperfeito mas
também sobre os outros indicadores de tempo na oração. Quais são eles?
Muito provavelmente a leitor algum vai ocorrer a ideia de fazer esta
tradução assim por escrito; todos terão, com maior ou menor clareza, a
percepção de que esse dia especial da irmã Maria é um dia quase exa-
tamente igual não apenas aos outros dias dos 15 anos que ela já passou
no convento mas também aos dias de todos os outros anos que ela vier
a passar nele. Ao descobrirem isso, dificilmente deixarão de apreciar a
sabedoria da autora por ter escolhido o presente atemporal para tratar

813
gramática e estilo

do que é presente, passado e futuro ao mesmo tempo, para contar aquilo


que, mesmo estando sujeito ao tempo, que passa, não é afetado pela
passagem do tempo.
Por outro lado, o que justifica a escolha deste dia para ser o dia
narrado é o que justifica qualquer narrativa: este, sendo um dia igual a
todos os outros, não é igual a todos os outros, pois distingue-se deles
pelo bolo que vai comemorar o aniversário da metade da vida que irmã
Maria passou no convento, mesmo que esse bolo – podemos presumir
– seja semelhante ao que comemorou cada um dos outros últimos 14
anos da vida dela.
Nesses 15 anos, o que ela fez, além de rezar pelas demais congre-
gações, foi só o necessário para garantir que pudesse continuar rezando,
com a exceção de cuidar de um jardim cuja utilidade para esse fim
ela considera duvidosa. Não há mesmo porque distinguir entre ação,
que, como já vimos, se expressaria pelo perfeito, e cenário, que se
expressaria pelo imperfeito, porque ação e cenário foram feitos um
para outro. Nada desse cenário deve impedir que as ações se repitam
dia após dia; nenhuma dessas ações deve modificar esse cenário. Ações
e cenário devem continuar pelo tempo afora nessa mesma simbiose;
nada mais adequado para expressar esse tempo de ações, que devem
passar sem deixar marcas, num cenário sempre igualmente adequado
para ações que devem passar sem passar, do que o tempo sem tempo
do presente do indicativo. Antes mesmo de lermos a versão a resultar
de nossa tradução já sabemos que a comparação das duas versões só
vai ressaltar a superior solução da versão original, em que há maior
adequação entre forma e conteúdo.
A riqueza e a variedade dos tempos verbais usados em A vaca e os
livros era a virtude que naquele texto expressava a relação dinâmica entre
a reflexão a respeito de ações que só poderiam ocorrer como ocorreram
naquele específico cenário com a finalidade de modificá-lo e de modi-
ficar os que nele se movimentavam. O que explica a predominância do

814
gramática e estilo

pretérito imperfeito do indicativo e a ocorrência de tantas formas do


gerúndio é o dinamismo do processo de transformação que o exercício
da leitura faz sobre a narradora.
Em O último pedido se dá o oposto, isto é, a singeleza e a aparente
mesmice de um mesmo tempo verbal para apresentar o primeiro e o
segundo plano da narrativa é a virtude que expressa a adequação das
ações à invariabilidade do cenário e dessa invariabilidade às repetitivas
ações que nele ocorrem.
Nesse sentido, a tradução que fizemos destes dois parágrafos
iniciais, que não vai enriquecer o original, vai servir para aprofundar
nossos conhecimentos a respeito dos tempos verbais, já que tivemos de
distinguir a narração, com o uso do pretérito perfeito do indicativo,
da descrição do cenário e da composição do pano de fundo, a que foi
atribuído o pretérito imperfeito do indicativo. A distinção entre o uso
do futuro do presente – vai ser – e o futuro do pretérito – ia ser (seria)
– também deixou essa distinção mais nítida. Uma das poucas ocorrências
do perfeito do indicativo – foi designada – teve de ser transformada
em mais que perfeito do indicativo – fora designada – porque esse é
o tempo que indica anterioridade com relação a um outro passado, que
não havia na versão original mas que passou a haver na tradução por
causa da anterior transformação de Hoje, sente-se um pouco agitada em
Naquele dia, sentiu-se um pouco agitada. Foi designada é o passado
anterior ao presente do indicativo; fora designada é passado anterior
ao perfeito do indicativo sentiu-se.

Exercício 82

Continuemos, então, a tradução para inferir as regras que orientam


a relação entre os tempos verbais ao longo da frase e de uma frase para
a seguinte (ou a anterior, nos casos de reescrita).

815
gramática e estilo

Quando saía do quarto, muitas irmãs já se dirigiam para a capela.


As orações da manhã eram lentas, arrastadas; murmuravam preces
intermináveis em sua sonolência crônica. Nesta congregação dormia-
-se pouco e rezava-se muito. Para isso fora criada, a única destinada
a tão somente orar, a simplesmente, pedir a Deus pelas outras 321
irmandades religiosas existentes no mundo inteiro. Após as orações
da manhã, faziam o desjejum cabisbaixas, trocavam sutis comentá-
rios e comiam pouco. Às 7h e 30 min seguiam silenciosas rumo à
tarefa de seu dia. Um dia em que somente a irmã responsável pela
cozinha teria uma tarefa diferente a executar. Ela, naquele dia, faria
um pequeno bolo. Era preciso que fosse, necessariamente, apenas
suficiente. Em sua cozinha as coisas também eram assim. Mas estava
feliz porque colocaria nele toda sua arte.

Há outra ocorrência do pretérito mais que perfeito – fora criada­–


que substitui foi criada do original porque a criação da Ordem das Car-
melitas antecede os hábitos relatados anteriormente: ...dormia-se pouco
e rezava-se muito.
Nas últimas quatro frases do parágrafo, que tratam do bolo, as formas
do futuro do indicativo – terá, fará, colocará –, que são posteriores
ao que vem sendo relatado no presente do indicativo – fazem, trocam,
comem, seguem –, são substituídas por formas do futuro do pretérito
– teria, faria, colocaria – porque expressam ações futuras com relação
ao que vem sendo relatado no pretérito imperfeito do indicativo: Às
7h e 30 min seguiam silenciosas rumo à tarefa de seu dia.

Irmã Maria desceu a escadaria que separava o convento do imenso


pátio. Difícil entender o porquê do jardim. A horta era útil, o bosque
atrás da clausura guardava as lamentações e, principalmente, o
eterno silêncio das irmãs ali enterradas. Mas o jardim não precisaria
existir. Difícil compreender a madre. Diziam ser tão convencional
como todas as outras que ali tinham reinado mas esta criara o jardim.
Jamais descia até ele, jamais saía ao sol, mas fitava-o incansavel-
mente, todas as manhãs, do alto do convento.

816
gramática e estilo

No original, na narração no presente do indicativo está a forma não


precisaria existir, mas (não)precisava existir poderia ter sido empregada
para indicar o que seria anterior ao presente do indicativo em separa...,
é..., guarda. Já o que é posterior a separava..., era..., guardava precisa
do futuro do pretérito precisaria existir.
Já o que é anterior a Diziam precisa ser expresso pelo mais que
perfeito – ...todas as outras que ali tinham reinado mas esta criara o...
– com o aproveitamento das suas duas formas: a composta, da língua que
falamos, e a sintética, da língua em que escrevemos, respectivamente.

Junto à terra e sob o sol que tanto amava, irmã Maria ajeitava as
rosas, as margaridas, cheirava os cravos, espetava-se em espinhos
e sorria. Afofava a terra para que os vegetais da horta crescessem
libertos das ervas daninhas e das pedras que os sufocavam. A manhã
passou-se rapidamente.

Temos aqui uma correlação indicativo – afofa, expressando o que


ela faz – com o subjuntivo – cresçam, expressando o que se espera que
aconteça –, ambos no presente, que passam ambos para o pretérito: afo-
fava (imperfeito do indicativo) e crescessem (imperfeito do subjuntivo).

Ao meio-dia, guardou as ferramentas de trabalho e iniciou a subi-


da; para cada degrau contava um ano. No trigésimo degrau parou
e olhou para o vale e a cidade lá embaixo. Lembrava de como era
a cidade e sabia que muita coisa devia ter mudado nestes 15 anos
que passara na colina, no convento das irmãs Carmelitas. Recordou
quando entrara para a congregação: é certo, fora conduzida, indu-
zida para a vida religiosa, mas poderia ter lutado por uma realidade
diferente. Só que com apenas quinze anos ficava difícil saber como
e por que lutar. Poderia ter escolhido, sim, ser uma irmã missioná-
ria, teria conhecido o mundo e pessoas diferentes todos os dias, ou,
então, teria lecionado como uma freira comum. Teria usado roupas
mais leves, saído para comprar suas coisas, teria sabido o valor do
dinheiro, e conhecido a televisão a cores. Mas quisera assim, esco-

817
gramática e estilo

lhera assim. Tinha15 anos e tinha precisado escolher. Escolhera o


convento da colina porque amava o vale.
Agora, era uma carmelita, há quinze anos era uma carmelita. Olhar
para dentro de si mesma, dias e meses voltados para Deus e orações
devotadas à salvação da humanidade. Assim é que deveria ser. Mas
e1a não esquecera o mundo. Irmã Maria ainda olhava para o vale.

Para traduzir para cada degrau conta um ano, podemos apelar ou


para o imperfeito do indicativo contava, que expressa o que se repetiu
no passado, ou para contou, que designa uma ação pontual localizada,
que, nesta oração, se repete por conta de cada degrau: para cada degrau
contava um ano / para cada degrau contou um ano. O aspecto e o tempo
expressos pela frase não decorre apenas do tempo verbal. Isso, no entanto,
não quer dizer que o efeito do emprego de um ou de outro seja o mesmo.
A correlação presente-perfeito entre sabe que muita coisa deve
ter mudado, de um lado, nestes 15 anos que passou na colina, de outro
lado, corresponde à correlação imperfeito-mais que perfeito: sabia que
muita coisa devia ter mudado, de um lado, nestes 15 anos que passara
na colina, de outro.
Há outras correlações:
Presente para passado: Recorda quando entrou para a congrega-
ção: é certo, foi conduzida, induzida para a vida religiosa.
Perfeito para mais que perfeito: Recordou quando entrara para
a congregação: é certo, fora conduzida, induzida para a vida religiosa.
Perfeito para perfeito: Mas quis assim, escolheu assim. Tinha
15 anos e precisava escolher. Escolheu o convento da colina porque
amava o vale.
Mais que perfeito para mais que perfeito: Mas quisera assim,
escolhera assim. Tinha 15 anos e tinha precisado escolher. Escolhera
o convento da colina porque amava o vale.

818
gramática e estilo

Aqui aparece pretérito imperfeito do indicativo na versão original


para expressar o único momento em que a personagem se vê envolvida
em um processo, o de escolha do rumo de sua vida: Tinha 15 anos e
precisava escolher. Escolheu o convento da colina porque amava o
vale. E este amava permanece incólume às trocas dos tempos anteriores.
Há um outro processo que se arma no último parágrafo do texto, o que
também solicita o pretérito imperfeito do indicativo: Mas lá dentro, no
fundo de si mesma, irmã Maria queria abraçar todas elas e dizer-lhes
que as ama. Queria um abraço caloroso desta velha senhora austera.

Subiu o restante dos degraus, entrou no quarto, lavou as mãos e o


rosto, encaminhou-se para o refeitório. Atrasara-se um pouco, a
oração já tinha sido feita, almoçavam quietas as quarenta irmãs do
convento. Ela rezou, sentou-se e comeu vagarosamente. Ao término
da refeição, a madre ordenou que trouxessem o bolo. Quando o teve
nas mãos, levantou-se e dirigiu-se à irmã Maria. O bolo foi posto a
sua frente, todas a cumprimentaram com um sorriso, uma oração
foi feita pedindo por saúde e paz para a aniversariante. A madre
tocou-lhe formalmente a mão e desejou-lhe perseverança e fé.

Mais correlações:
Perfeito para perfeito: Atrasou-se um pouco, a oração já foi feita.
Mais que perfeito para mais que perfeito: Atrasara-se um pouco,
a oração já tinha sido feita.
Presente do indicativo para presente do subjuntivo: A madre
ordena que tragam o bolo.
Perfeito do indicativo para imperfeito do subjuntivo: a madre
ordenou que trouxessem o bolo.

Mas lá dentro, no fundo de si mesma, irmã Maria queria abraçar


todas elas e dizer-lhes que as amava. Queria um abraço caloroso
desta velha senhora austera que, como ela, amava as flores e o vale e

819
gramática e estilo

o sol. Entretanto, somente agradeceu a todas e sorriu. Mas ao partir


a primeira fatia de seu bolo de aniversário, irmã Maria fez como
quando era criança, formulou mentalmente um pedido. Um último
pedido que ela repetiria a cada aniversário: que um dia, aquele portão
que as guardava se abrisse para o mundo, e ela pudesse descer até o
vale e, deste, vislumbrar a colina. Que ela pudesse, neste dia, erguer
novamente os olhos e não precisasse mais olhar sempre para baixo
como o fazia, em todas as manhãs, de seu alto pedestal, a tristonha,
sofrida e distante madre superiora.

As correlações são estas:


Presente do indicativo para futuro do presente: formula men-
talmente... último pedido que ela repetirá a cada aniversário... em
correlação com perfeito do indicativo para o futuro do pretérito do
indicativo: formulou mentalmente um pedido. Um último pedido que
ela repetiria a cada aniversário.
Presente do indicativo: ...aquele portão que as guarda para o
presente do subjuntivo: abra-se para o mundo, e ela possa descer até
o vale..., ela possa... erguer... e não precise mais... olhar.
Imperfeito do indicativo: ...aquele portão que as guardava para
imperfeito do subjuntivo: se abrisse para o mundo, e ela pudesse descer
até o vale..., ela pudesse... erguer... e não precisasse mais olhar.

6.2.5 Complexidades virtuosas

Numa narrativa é fundamental orientar o leitor no tempo e no espaço,


mas pode ser necessário fazer isso também na descrição ou na exposição.
Um dos complicadores é a duplicidade de formas do mais que perfeito,
porque a forma simples – a da língua em que escrevemos – que se apre-
senta como culta, erudita, faz com que o seu uso extravase da condição
de tempo verbal para a sua ostentação como saber gramatical refinado.
Vamos examinar alguns casos.

820
gramática e estilo

Comecemos por examinar este texto, que relata uma confusa situ-
ação de praia.

Quando eu ainda estava a serviço de uma empresa de turismo,


divertia-me; frequentemente contemplávamos a beleza do mar e a
serenidade do céu, na praia de Itapema, SC. Mais adiante estava um
grupo de rapazes que jogavam futebol de areia. Eu estava distraída,
mas reparei quando a bola rolou para dentro do mar, e um dos rapa-
zes entrou na água para pegá-la. Instantes depois, Liziane levantou-se
muito assustada e disse-me que o rapaz que tinha ido buscar a bola
estava se afogando e um dos seus amigos entrou no mar para tentar
salvá-lo. Foi tudo em vão o ato de coragem do amigo. Onde estava
o rapaz, era uma área de risco, perto de rochedos, e veio uma onda
e jogou-o contra elas.
Logo veio a equipe de socorro e tiraram o amigo que foi socorrer,
todo machucado, mas o rapaz que foi buscar a bola não consegui-
ram, pois estava num lugar muito difícil, entre duas pedras grandes.
Depois de duas horas, a equipe do corpo de bombeiros conseguiu
retirar o corpo do jovem, mas sem vida. Policiais e médicos, através
de perícias, concluíram que o rapaz havia falecido de traumatismo
craniano. Já estavam todos assustados, inclusive eu. Ver uma cena
daquela pra mim foi terrível, pois todo o dia após isso parecia que
eu estava vendo essa imagem.

Na primeira frase, a voz que narra situa o acontecido a ser narrado


num tempo acessível apenas à sua subjetividade – Quando ainda estava
a serviço de uma empresa de turismo – e não é nada clara a sua apresen-
tação do local, que o leitor, na falta de outro, acaba candidatando como
o cenário do acontecido – frequentemente contemplávamos a beleza do
mar e a serenidade do céu, na praia de Itapema, SC. A introdução da
cena – Mais adiante estava um grupo de rapazes que jogavam futebol
de areia –, além de nos obrigar a descobrir que não existe medida menos
calculável do que mais adiante, revela-nos que a narradora não faz a
menor ideia de onde estava quando o acontecido se deu, nem do ponto
de vista que assumiu para nos contar a história.

821
gramática e estilo

E tudo fica pior quando ela confessa que estava distraída. Ela não
viu o que aconteceu; Liziane – quem é, o que está fazendo aí? – teve de
contar pra ela. Se o leitor já não tinha nenhum motivo para dar atenção a
quem assumiu a palavra, sem dizer quem é nem o que estava fazendo ali
(onde mesmo?) para contar algo que aconteceu, que atenção daria a uma
mera conhecida de uma desconhecida? Sem contar que o modo formal,
burocrático e comercial de identificar a localidade – Itapema, SC – já
tinha criado um certo estranhamento na narrativa.
E aí vem a frase com que ela reporta a frase dita pela sua co-
nhecida: disse-me que o rapaz que tinha ido buscar a bola estava se
afogando e um dos seus amigos entrou no mar para tentar salvá-lo.
A perífrase verbal estava se afogando reporta a fala direta ele está se
afogando, no presente contínuo, que narra o que acontece simulta-
neamente à narração.
Antes de estar se afogando, o rapaz tinha ido buscar a bola – mais
que perfeito, como convém –, mas em que momento um dos seus amigos
entrou no mar? Antes ou depois dele estar se afogando? Entrou ou tinha
entrado/entrara? Há ainda o risco de que o leitor fique em dúvida sobre
qual dos dois é o rapaz e se o rapaz é o que foi jogado pela onda contra
elas. E elas quem são? Os rochedos? E essa onda não tinha vindo antes
da tentativa de salvamento? Veio ou tinha vindo?
E, no parágrafo seguinte, quando veio a equipe de socorro e tiraram
o amigo, isso não aconteceu depois que o rapaz que foi buscar a bola?
Ele não tinha ido buscar a bola? Já vimos que a autora não desconhece
o uso do mais que perfeito, pois, no parágrafo seguinte, podemos ler: a
equipe do corpo de bombeiros conseguiu retirar o corpo do jovem, mas
sem vida. Policiais e médicos, através de perícias, concluíram – perfeito
do indicativo – que o rapaz havia falecido – mais que perfeito do in-
dicativo – de traumatismo craniano. De fato, o rapaz faleceu antes dos
peritos terem chegado àquela conclusão. O problema, portanto, está no
encaminhamento da narrativa, que não se situa adequadamente nem no

822
gramática e estilo

tempo nem no espaço, o que embaralha momento de evento, momento


de fala e momento de referência.
Neste outro texto temos um outro caso de mais que perfeito do
indicativo inadequado, que não se deve, tal como o anterior, a uma de-
sorientação geral da narradora com relação ao tempo e ao espaço:

Nascida no interior do interior do interior, filha de descendentes


italianos, criei-me em meio a hábitos, costumes e valores tipicamente
italianos. Primar pelo zelo do sobrenome sempre fora lema dos mo-
radores daquela comunidade (que permanece forte até hoje) e, como
moradores, deveríamos seguir à risca os valores daquele povo. Os
filhos denegrir a honra dos pais? Jamais seria aceito. Os filhos saírem
de casa para estudar? Não podiam, a não ser fugidos ou brigados
com seus pais e parentes. A moça quando saísse de casa era para
subir ao altar no dia de seu casamento, caso contrário, difamaria o
sobrenome da família. Alguns costumes culturais tais como preparar,
aos domingos, aquele churrasco e competir num carteado, reunindo
toda a família sempre fora indispensável na minha casa.

O contraponto ao texto anterior se dá, neste outro, na localização


espaço-temporal da narradora, expressa pela combinação do particípio
nascida, no início da frase, e o perfeito do indicativo criei-me como
verbo da oração principal. Trata-se de uma narradora disposta a relatar
algo de sua vida a partir de sua origem. A segunda frase tem como sujeito
a oração substantiva complicada – Primar pelo zelo do sobrenome – e,
como predicado, sempre fora lema dos moradores daquela comunidade,
em que aparece inadequadamente esta forma do mais que perfeito do
indicativo: fora. Inadequadamente porque sempre foi o lema dos mo-
radores não é um passado anterior a nenhum outro na frase, e essa seria
a condição necessária para o uso do mais que perfeito.
Como a última frase do trecho repete o mesmo inadequado uso –
Alguns costumes culturais tais como preparar, aos domingos, aquele
churrasco e competir num carteado, reunindo toda a família sempre fora

823
gramática e estilo

indispensável na minha casa –, podemos atribuir o seu uso a uma equivo-


cada intenção de escrever mais culto por causa da falta de familiaridade
com essa forma simples do mais que perfeito, que não usamos na língua
que falamos. Se a autora tivesse escrito tinha sido, tal como falamos,
provavelmente teria percebido a inadequação e revisado: Primar pelo
zelo do sobrenome sempre foi lema dos moradores daquela comunidade
e ...preparar, aos domingos, aquele churrasco e competir num carteado,
reunindo toda a família sempre foi indispensável na minha casa. Além
disso, sempre não compatibiliza com o mais que perfeito porque sempre se
refere ao início dos tempos, ou seja, não há tempo algum antes de sempre.

Examinemos estes outros casos:

1 Os responsáveis pelo hotel mal disfarçavam o constrangimento


com os transtornos causados pela chuva; explicavam que o hotel foi
construído numa área marítima aterrada.

Provavelmente os responsáveis, no momento presente em que


davam essas explicações, falando da construção do hotel, ocorrida num
momento passado com relação a esse momento presente, tenham dito
dessa maneira, com o verbo no pretérito perfeito do indicativo: foi
construído. O narrador, que está relatando essa conversa que ocorreu
num momento anterior ao seu relato, precisa usar pretérito mais que
perfeito para referir a construção do hotel, que é anterior ao momento
do evento, que é a explicação.

1a Os responsáveis pelo hotel mal disfarçavam o constrangimento


com os transtornos causados pela chuva; explicavam que o hotel
tinha sido construído / fora construído numa área marítima aterrada.

2 Também lembro que, no terceiro ano, a professora exigia respostas


com as próprias palavras: nada de cópia direta do texto, pois queria
saber se realmente entendemos o que lemos e qual nossa capacidade
de síntese, de formulação de ideias.

824
gramática e estilo

Se a professora exigia (pretérito imperfeito do indicativo) porque


queria saber (pretérito imperfeito do indicativo) o que os alunos leram
antes disso, vai ser necessário o pretérito mais que perfeito:

2a Também lembro que, no terceiro ano, a professora exigia res-


postas com as próprias palavras: nada de cópia direta do texto, pois
queria saber se realmente entendêramos o que lêramos e qual nossa
capacidade de síntese, de formulação de ideias.

Não vai faltar quem diga que a sequência entendêramos o que


lêramos não soa muito bem por causa do encadeamento de duas propa-
roxítonas, que, além disso, rimam, o que não fica muito bem em prosa;
podemos, então, variar:

2b Também lembro que, no terceiro ano, a professora exigia res-


postas com as próprias palavras: nada de cópia direta do texto, pois
queria saber se realmente entendêramos o que tínhamos lido e qual
nossa capacidade de síntese, de formulação de ideias. (ou tínhamos
entendido o que lêramos, ou, ainda, entendêramos o tínhamos lido.)

3 Na tentativa de ser mais esperto que o sistema, certa vez, naquele


ano, saí da sala, fui a um lugar fora da escola e tirei cópia de um texto
que deveria copiar, mas a preguiça não deixou, na volta, desafiei a
professora ao rasgar o xerox.

O aluno conta que tirou xerox do texto que, segundo a ordem da


professora, todos deveriam trazer já copiado. Conta também que, antes
disso, por preguiça, não tinha copiado o texto. Vamos precisar do pre-
térito imperfeito (do subjuntivo para tratar do que não se concretizou)
e do pretérito mais que perfeito para referir o que veio antes do tempo
em que se localiza o que é narrado:

3a Na tentativa de ser mais esperto que o sistema, certa


vez, naquele ano, saí da sala, fui a um lugar fora da escola

825
gramática e estilo

e tirei cópia de um texto que deveria ter copiado, mas a


preguiça não deixara; na volta, desafiei a professora ao
rasgar o xerox.

4 Vejo hoje que tudo aprendido sobre escrever textos fora quase
inútil, pois o que eu escrevia não era algo público, nem chamava
atenção de ninguém.

A narrativa se localiza no presente – Vejo hoje... – e daí se refere


ao que é passado com relação ao presente. O passado é expresso pelo
pretérito, que tem duração em o que eu escrevia (imperfeito) não
era (imperfeito) algo público, nem chamava (imperfeito) atenção de
ninguém e que é localizado em foi (perfeito) quase inútil. Aqui não há
passado com relação a um outro passado.
4a Vejo hoje que tudo aprendido sobre escrever textos foi quase
inútil, pois o que eu escrevia não era algo público, nem chamava
atenção de ninguém.

5 Quando pequeno, morava no interior, mas, logo que completou a


escola, fora para a cidade grande.

A narrativa localiza-se no mesmo tempo do passado: morava no


interior tem duração (imperfeito) e foi (perfeito) para a cidade grande
indica um momento determinado e acabado nesse mesmo passado.

5a Quando pequeno, morava no interior, mas, logo que completou


a escola, foi para a cidade grande.

6 Como terminou a aula, saí depressa e prometi não voltar mais


naquele lugar que me fez passar tanta vergonha.

Há dois momentos diferentes no passado: o da promessa e outro,


anterior, em que o narrador passou tanta vergonha; precisamos do pre-
térito mais que perfeito para indicar esse passado anterior.

826
gramática e estilo

6ª Como terminou a aula, saí depressa e prometi não voltar mais


naquele lugar que me fizera passar tanta vergonha.

7 Vejo que, mesmo crescendo, continuara muito ligada àquela mulher.


Admirava-a como a uma heroína. Criara sozinha os filhos, desde
pequenos, pois o marido a abandonara. Mesmo assim tivera forças
para lutar e vencer na vida. Era o centro da vida de todos. Seus oito
filhos, vinte e tantos netos mais cinco bisnetos a disputavam sempre,
e ela, através disso, mantinha uma boa união entre a família.

O primeiro problema é a falta de, pelo menos, um pronome pessoal


para identificar a quem se referem as duas primeiras frases porque não
se referem ao personagem que aparece nas demais frases. Pode ser que
isso já tenha ficado claro nas frases anteriores, mas é bom lembrar que
continuara serve para eu continuara ou para ele/ela continuara. Por que
continuara? A julgar pelo admirava-a (imperfeito) na frase seguinte,
parece que continuava seria mais adequado nessa primeira frase. Pelo
mesmo motivo, criou seria melhor no início da terceira frase; no entanto,
como o marido abandonou ela antes de estarem criados os filhos, aban-
donara se adequa nesta frase. A frase seguinte é redundante e expressa
um lugar-comum, e o desnecessário mais que perfeito só ressalta o
estilo pretensioso: teve forças é mais discreto. Nas três últimas frases, o
imperfeito põe as coisas no lugar.

7a Vejo que, mesmo crescendo, continuei muito ligada àquela mulher.


Admirava-a como a uma heroína. Criou sozinha os filhos, desde pe-
quenos, pois o marido a abandonara. Mesmo assim teve forças para
lutar e vencer na vida. Era o centro da vida de todos. Seus oito filhos,
vinte e tantos netos mais cinco bisnetos a disputavam sempre, e ela,
através disso, mantinha uma boa união entre a família.

827
gramática e estilo

Exercício 83

Revise estas sequências de frases.


1. Sou uma brasileira que sonha viver no exterior, um sonho que
no início fora tímido mas que agora me impulsiona.
2. Agora eu conhecia outro mundo: estava no início do processo de
letramento pelo qual nunca me interessei mas que agora me fascinava.
3. Ela, devo dizer, me ensinou a habilidade de poder ler por conta
própria os livros que até pouco tempo minha mãe ou meu pai tinham
que narrar para mim. Ela me dera uma independência que ninguém mais
conseguira, e eu a admirava muito por isso.
4. Não houve um aprendizado ou uma evolução gradual, visto que,
em um dia, o Leo não falava nada e no outro sabia o alfabeto! Minha
experiência em alfabetização com a outra filha fora diferente: primeiro
ela falou, depois rabiscou, depois reconheceu letras e aprendeu a ler
com cinco anos.
5. “Impossível”, teria eu exclamado se pensasse ou pudesse me ex-
pressar naquele tempo como penso ou me expresso hoje. Que artimanha
ou macete é este que permite colocar meu nome numa folha de papel?
Como acontece essa forma de representação de algo tão não pertencente
ao mundo dos meus papéis, das minhas folhas em branco posterior-
mente por mim coloridas? Dado que não pensava assim, a mim sobrou
apenas o estranhamento. Um grande estranhamento, uma sensação de
incomodação ou desconforto. Ficara instigado e ainda mais curioso do
que antes estivera.
6. Voltando o olhar para o passado na tentativa de encontrar
momentos em que tive contato com o mundo da escrita, chego à
conclusão de que ela se fez bastante presente durante minha infância
e que isso havia sido de relevante importância para a minha futura
formação.

828
gramática e estilo

7. Certa vez uma professora me disse que o curso de Letras Por-


tuguês – Inglês não era lugar de aprender gramática e a língua inglesa.
Quase morri de desgosto, pois foi tão difícil ingressar na faculdade e
agora descobrir tudo tão diferente do que pensava.
8. Os dois caminhávamos das 9 da manhã até as 21 horas, durante
25 dias de férias. Passamos por aeroportos cheios, conexões malucas
por causa das promoções das passagens mais baratas, brigas devido ao
estresse que esta junção de espera com falta de tempo provoca. Ao chegar
ao destino, a gente se acalmou e todos os dias, com sol, chuva ou neve,
saíamos do hotel com o guia de viagem que compramos e quisemos
seguir minuciosamente.

6.2.5.1 Os tempos e o tempo

Para introduzir o exame da relação dos tempos verbais com as outras


formas de localização temporal que a língua disponibiliza e retomar o
que já vimos como os três momentos de Reichenbach, vamos examinar
esta frase, que já nos serviu para discutir a pontuação das intercalações:

1 Após insistência de ambas as partes – deles para que eu dormisse


na cama e minha para que eu dormisse na rede –, acabei vencendo,
deixando transparecer a eles que eu dormira em redes desde sempre.

Os momentos de Reichenbach, como vimos, são três: o momento


de fala (MF), o momento de evento (ME) e o momento de referência
(MR). O que acontece aqui (ME) é anterior ao momento em que o
narrador fala (MF), pois ele está contando o que já aconteceu: acabei
vencendo, diz ele, relatando o resultado da disputa. Esse – o resultado
da disputa – é o momento de referência (MR), pois, no início da frase,
temos após, isto é, depois, definindo uma oração temporal que, como
tal, localiza no tempo a oração principal da frase: acabei vencendo. O
que justifica as duas ocorrências do pretérito imperfeito do subjuntivo

829
gramática e estilo

– dormisse – é o, até então, hipotético lugar onde o hóspede deveria


dormir. Tudo normal até aqui.
Falta examinar as duas últimas orações – deixando transparecer a
eles que eu dormira em redes desde sempre –, onde temos uma reduzida
de infinitivo em locução com um auxiliar no gerúndio, que leva a um
objeto oracional onde aparece o mais que perfeito do indicativo dormira.
Como avaliar a adequação desse tempo nesta oração? O momento de
fala (MF) já sabemos que é posterior ao momento do evento (ME), mas
qual é mesmo o momento do evento posto em cena pelo verbo dormir?
Certamente não é o mesmo que foi evocado pelo verbo vencer, que se
refere ao evento em que se deu o debate sobre onde dormiria o narrador.
O momento do evento (ME) está expresso no final da frase: desde
sempre, que, redundantemente remonta o início dos tempos, antes de
qualquer coisa. Sendo assim, não há nada que um tempo verbal possa
fazer para mudar isso. Daí que:

1 Após insistência de ambas as partes – deles para que eu dormisse


na cama e minha para que eu dormisse na rede, acabei vencendo –,
deixando transparecer a eles que eu dormira em redes desde sempre.

1a Após insistência de ambas as partes – deles para que eu dormisse


na cama e minha para que eu dormisse na rede –, acabei vencendo,
deixando transparecer a eles que eu dormia em redes desde sempre.

1b Após insistência de ambas as partes – deles para que eu dormisse


na cama e minha para que eu dormisse na rede –, acabei vencendo,
deixando transparecer a eles que eu dormi em redes desde sempre.

1c Após insistência de ambas as partes – deles para que eu dormisse


na cama e minha para que eu dormisse na rede –, acabei vencendo,
deixando transparecer a eles que eu durmo em redes desde sempre.

830
gramática e estilo

Então, o que vai determinar a escolha do tempo verbal mais ade-


quado aqui é o contexto em que está ou vai ficar essa frase, tal como
acontece quase sempre.
Vamos examinar estas frases:

2 Os jovens, que serão os adultos de amanhã, devem votar conscien-


temente do que fazem.

O momento de referência (MR) é genericamente hoje, já que


amanhã relaciona-se ao estado posterior desses jovens. O momento de
fala (MF) é o grande presente das elocuções genéricas como essa, que
costumam ocorrer em momentos em que essas elocuções são cabíveis:
momentos de eventos em que são proferidas tais falas. Sendo assim temos
presente para ME, MR e MF. Não cabe, então, o futuro:

2a Os jovens, que são os adultos de amanhã, devem votar conscien-


temente do que fazem.

3 Os índices de violência só fazem aumentar enquanto não existi-


rem políticas sérias para afastar os jovens da marginalidade e da
delinquência juvenil.

O MF é o mesmo presente genérico da frase anterior, mas o que


a frase declara projeta momentos de eventos alternativos no futuro:
o aumento dos índices de violência ou o afastamento dos jovens da
marginalidade e da delinquência juvenil. Como enquanto expressa um
período de tempo marcado pelo seu limite final, uma inversão de ordem
pode esclarecer melhor a inadequação dos tempos e esclarecer qual é a
revisão necessária:

3a Enquanto não existirem políticas sérias para afastar os jovens


da marginalidade e da delinquência juvenil, os índices de violência
só vão aumentar.

831
gramática e estilo

Precisamos do futuro – vão aumentar – para indicar a desejada


projeção para o ME futuro.
4 Só me dou conta da liberdade que possuía, do simples fato de ca-
minhar livremente quando bem entendesse, sem fazer disso um ato
consciente, quando a perdi.

O momento de referência (MR) é bem claramente a perda da liber-


dade, que está localizado no passado: quando a perdi. O momento do
evento (ME) é o dar-se conta da antiga liberdade, que é posterior ao MR,
mas anterior ao momento de fala (MF); o tempo para expressar isso é o
passado. O dar-se conta precisa compatibilizar-se com a pontualidade
passada de perdi para expressar sua anterioridade com relação ao MF.

4a Só me dei conta da liberdade que possuía, do simples fato de ca-


minhar livremente quando bem entendesse, sem fazer disso um ato
consciente, quando a perdi.

Ou se acha um jeito da pontualidade de quando referir ao presente


expresso em dou conta, tornando o momento do evento simultâneo ao
momento de fala; um agora ajuda a agregar essa pontualidade:
4b Só me dou conta da liberdade que possuía, do simples fato de
caminhar livremente quando bem entendesse, sem fazer disso um
ato consciente, agora, quando a perdi. (ou, simplesmente, agora
que a perdi.)

5 Desde quando meu filho nasceu, há cinco anos, coloquei uma meta
na minha vida: sair da casa da minha mãe.

O MR é o nascimento do filho, que é anterior, quase simultâneo ao


ME, anteriores ao MF, em que a frase é proferida. A discrepância aqui
é produzida pelo desde, que implica persistência no tempo, isto é, início
e continuação de algum estado. A decisão, no entanto, foi tomada em
momento determinado no perfeito: coloquei. Temos então:

832
gramática e estilo

5a Quando meu filho nasceu, há cinco anos, coloquei uma meta na


minha vida: sair da casa da minha mãe.

Pra usar desde quando, precisaríamos expressar a duração do que


começa e continua:

5b Desde quando meu filho nasceu, há cinco anos, passei a trabalhar


dia e noite para sair da casa da minha mãe.

6 Lembro de uma atividade muito interessante no primeiro grau:


tínhamos que inventar um anúncio, recortávamos um desenho e
criávamos um anúncio publicitário, falamos (era em dupla) sobre a
marca de um novo bombom.

Há dois eventos atropelados: a menção a uma lembrança e o relato


de um acontecimento encadeados linearmente, sem nenhuma marca de
transição ou de relação entre eles. A sucessão de imperfeitos do indica-
tivo – tínhamos, recortávamos, criávamos – caracteriza a descrição do
processo envolvido na atividade muito interessante, que uma singela
vírgula liga a um bem específico evento orientado por tal atividade, ca-
racterizado como tal pelo verbo no perfeito do indicativo: falamos. Essa
transição da descrição para a narração costuma ser anunciada:

6a Lembro de uma atividade muito interessante no primeiro grau:


tínhamos que inventar um anúncio; então, recortávamos um desenho
e criávamos um anúncio publicitário. Como o trabalho deveria ser
feito em duplas, eu e minha amiga Dulce falamos sobre a marca de
um novo bombom.

7 Mais uma vez a avaliação das redações do exame supletivo


revelou-se instigante. Já no ano passado participara do processo de
avaliação dessas redações. No entanto, também agora o trabalho me
envolveu profundamente.

833
gramática e estilo

De fato, o ano passado é anterior a este em que a avaliação das


redações revelou-se mais uma vez instigante, mas participei também no
ano passado com o verbo no perfeito não teria sido uma solução menos
mais que perfeita? Ou será que o estranhamento não se dá por causa da
convivência pacífica entre no entanto e também agora? ...o trabalho
me envolveu profundamente neste ano; no entanto, no ano passado me
envolveu profundamente também. E se os fatos fossem narrados em
outra ordem?

7a Tal como no ano passado, participei mais uma vez da avaliação


das redações do exame supletivo e novamente me envolvi profunda-
mente naquele instigante trabalho.

Exercício 84

Revise estas sequências de frases.


1. Outras pessoas chegaram tornando insuportável o ambiente,
quando chegou a polícia, pedindo para que todos se retirassem.
2. Outrora, as transgressões das regras que regem uma sociedade
nem sempre são feitas de maneira consciente.
3. Naquele instante, o vice-reitor pediu para que todos se man-
tivessem calmos que tudo estava sendo resolvido em questão de três
minutinhos, mas a luz não voltou e tiveram que encerrar a solenidade
por ali mesmo.
4. Sempre que houver pessoas convivendo umas com as outras,
sempre haverá limites e regras.
5. Sempre fui estimulado a ler e escrever pelas minhas tias e agra-
deço porque isso me ajudou muito quando entrei na escola. Gostaria que
meus pais me alfabetizassem mas isso não foi possível porque a formação
escolar deles não os capacitava a me ensinar o que eles nem entendiam.

834
gramática e estilo

6.2.5.3 Futuro do pretérito

O futuro do pretérito, tal como o mais que perfeito, correlaciona-


-se com o pretérito: o mais que perfeito tem uma relação de anterio-
ridade, e o futuro do pretérito, de posterioridade. Assim podemos ler
na NGPB:

A estrutura sintática que caracteriza o futuro do pretérito


é aquela em que esse tempo coocorre na sentença subordi-
nada com outro verbo no pretérito perfeito ou imperfeito
na principal, criando assim uma correlação temporal entre
um evento passado e outro evento lançado para adiante,
mas ainda dentro do passado. A presença de expressões
de tempo (advérbios, etc.) também ajuda a criar essa
correlação (CASTILHO, 2010, p. 559).

Vamos examinar estes trechos:

1 A maioria dos vultos da nossa história sofreu julgamentos de que


eram violadores das leis.

O imperfeito eram seria mais adequado num caso de certeza, algo


como foram condenados porque eram violadores das leis; assim como
está é um típico caso de incerteza, em que o futuro do pretérito pode
ocorrer com a mesma função do subjuntivo para expressar essa incer-
teza.

1a A maioria dos vultos da nossa história sofreu julgamentos de que


seriam violadores das leis.

2 Fiz vestibular e passei. Na faculdade não tive nenhum choque muito


grande com as aulas de português por causa das críticas à tradição,
como a maioria das pessoas. Pelo contrário, essas discussões me
incentivam a me questionar que espécie de professora serei.

835
gramática e estilo

Trata-se de uma narrativa – fiz, passei, tive –, e a reflexão pode


perfeitamente ser expressa narrativamente: essas discussões me incen-
tivavam (ou incentivaram) a me questionar que espécie de professora
eu seria, já que a narradora passaria a ser professora num momento
posterior ao momento em que essas discussões a incentivam. Na frase
original estava ...que espécie de professora serei. O acréscimo de eu em
eu seria se deve à semelhança entre a primeira e a terceira pessoa do
singular, o que não era o caso em serei.

2a Fiz vestibular e passei. Na faculdade não tive nenhum choque muito


grande com as aulas de português por causa das críticas à tradição,
como a maioria das pessoas. Pelo contrário, essas discussões me
incentivavam a me questionar que espécie de professora eu seria.

3 Férias. Todos os anos é sempre a mesma briga lá em casa: meu


irmão prepara-se para mais um acampamento com seus amigos, e eu
preparo-me para mais uma discussão com nosso pai, pois precisava
de sua autorização para ir junto com meu irmão, e meu pai viria com
aquele velho discurso machista.

Como já vimos, o presente do indicativo (é, é, prepara-se, preparo-


-me) é adequado para narrar um acontecimento que se repete ciclicamente.
Como a autorização é uma das etapas desse processo, a necessidade
dela pode ser expressa também no presente: preparo-me para mais uma
discussão com nosso pai, pois preciso de sua autorização. Na verdade,
todo o relato pode ser feito no presente.

3a Férias. Todos os anos é sempre a mesma briga lá em casa: meu


irmão prepara-se para mais um acampamento com seus amigos, e
eu preparo-me para mais uma discussão com nosso pai, pois preciso
de sua autorização para ir junto com meu irmão, e meu pai vem com
aquele velho discurso machista.

836
gramática e estilo

Pra quem acha necessário dramatizar o papel do pai, o futuro pode


ser mais adequado:

3b Férias. Todos os anos é sempre a mesma briga lá em casa: meu


irmão prepara-se para mais um acampamento com seus amigos, e
eu preparo-me para mais uma discussão com nosso pai, pois preciso
de sua autorização para ir junto com meu irmão, e meu pai virá com
aquele velho discurso machista.

Nesse caso, o futuro simples – virá –, apesar de sua formalidade, é


melhor do que o muito esquisito vai vir da língua que falamos. Podemos
pensar também na hipotética autorização do pai, que vem depois daquela
preparação para mais uma discussão com ele:

3c Férias. Todos os anos é sempre a mesma briga lá em casa: meu


irmão prepara-se para mais um acampamento com seus amigos, e eu
preparo-me para mais uma discussão com nosso pai, pois precisaria
de sua autorização para ir junto com meu irmão, e meu pai viria com
aquele velho discurso machista.

4 Atualmente a escolha da profissão depende de aspectos que são


fundamentais. Seriam os fatores econômicos e o mercado de trabalho
que farão a grande diferença na hora da opção.

Seriam, que introduz incerteza na segunda frase, não compatibiliza com


os afirmativos depende e são na primeira; menor compatibilidade há ainda
entre seriam e farão. É o caso de escolher entre asseverar ou conjeturar:

4a Atualmente a escolha da profissão depende de aspectos que são


fundamentais: os fatores econômicos e o mercado de trabalho farão
a grande diferença na hora da opção.

4b Atualmente, a escolha da profissão dependeria de aspectos que


parecem fundamentais: seriam os fatores econômicos e o mercado
de trabalho que fariam a grande diferença na hora da opção.

837
gramática e estilo

Nesta versão, a substituição de são por parecem incorpora o hipoté-


tico que não há no presente do indicativo. A língua tem muitas maneiras
de expressar o que a gente quer dizer.

5 Mas, com toda a certeza, minha melhor recordação das aulas de


português foi na minha oitava série, e, se tivesse que citar alguém
como um modelo de professor, este alguém será a professora Maria
Del Carmem, que foi minha professora de português nesta série.

Além da incompatibilidade entre recordação e foi, não apenas


com o pretérito perfeito mas também com o próprio sentido do verbo
(recordação é um processo que se dá no presente e não no passado), a
citação é hipotética: se tivesse que citar alguém; logo, é o caso do fu-
turo do pretérito, que expressa o conteúdo da hipótese que veio num
momento anterior.

5a Mas, com toda a certeza, minha melhor recordação das aulas


de português é da minha oitava série, e, se tivesse que citar alguém
como um modelo de professor, este alguém seria a professora Maria
Del Carmem, que foi minha professora de português naquela série.

6.2.5.4 O que vem e o que vai e o que acaba e o que dura

Este é um outro caso de correlação dos tempos verbais, que diz


respeito aos aspectos perfectivo e imperfectivo. Examinemos estas frases:

1 Quando eu encontrava essa chave, sempre tive o maior prazer em


dividi-la com quem precisasse.

A ação expressa por tive ocorre sempre que ocorre a ação expressa
por encontrava; são ações apresentadas como tendo se repetido; como
o aspecto do que se repete é o imperfectivo, a forma fica adequada com
os dois verbos no imperfeito:

838
gramática e estilo

1a Quando eu encontrava essa chave, sempre tinha o maior prazer


em dividi-la com quem precisasse.

2 Afinal, era seu primeiro filho: toda a tensão e ansiedade que o


acompanhavam durante meses agora haviam se transformado em
muita alegria.

A combinação acompanhavam durante meses indica um intervalo,


isto é, um tempo que começa e acaba; por isso é caso de pretérito per-
feito do indicativo, que termina: acompanharam. O término é também
marcado pela transformação de um estado de espírito em outro, que está
em vigência, em duração. É o caso de imperfeito: haviam assevera que
a alegria está durando.

2a Afinal, era seu primeiro filho: toda a tensão e ansiedade que o


acompanharam durante meses agora haviam se transformado em
muita alegria.

3 Com os anos eu até me esqueci que havia casado com ele, e, com
isso, não lembrei das suas infidelidades, que tanto me magoaram.
Só lembrei delas neste último verão porque ele me perguntou se
realmente me havia magoado muito no passado.

O segundo lembrei ocorre num momento determinado – neste último


verão – e acaba com esse momento determinado; é o perfeito, portanto.
O primeiro lembrei refere-se ao intervalo anunciado por com os anos.
Esse é o imperfeito, que se prolonga no tempo: com isso não lembrava
das suas infidelidades.

3a Com os anos eu até me esqueci que havia casado com ele e com
isso não lembrava das suas infidelidades, que tanto me magoaram.
Só lembrei delas neste último verão porque ele me perguntou se
realmente me havia magoado muito no passado.

839
gramática e estilo

4 Durante as férias, eu voltava para Garibaldi e passava o verão na


casa da minha avó. Então podia visitar minha ex-babá, que agora
trabalhava na biblioteca municipal. Foi ali onde eu passava as tar-
des inteiras sentada em um banquinho ao lado dela, para matar a
saudade imensa que sentia.

Foi, no início da segunda frase, introduz o relato do que acontecia


nas várias tardes que a narradora passava sentada naquele banquinho;
trata-se, portanto, de imperfeito.

4a Durante as férias, eu voltava para Garibaldi e passava o verão


na casa da minha avó. Então podia visitar minha ex-babá, que ago-
ra trabalhava na biblioteca municipal. Era ali onde eu passava as
tardes inteiras sentada em um banquinho ao lado dela, para matar
a saudade imensa que sentia.

5 As pessoas que viajam no ônibus dos estudantes usam o tempo que


tinham para dormir estudando.

Dormir estudando é uma estranha atividade, que só pode acontecer


por um descuido na ordem dos componentes da frase. O problema com
o aspecto verbal é a relação do presente do indicativo em viajam e usam
com o imperfeito em tinham; trata-se ou de uma atividade que durou ou
de uma atitude comum.

5a As pessoas que viajam no ônibus dos estudantes usam para estudar


o tempo que teriam para dormir.

5b As pessoas que viajavam no ônibus dos estudantes usavam para


estudar o tempo que tinham para dormir.

5c As pessoas que viajavam no ônibus dos estudantes usavam para


estudar o tempo que teriam para dormir.

840
gramática e estilo

6 Desde o início da vida em sociedade, os líderes, muitas vezes, não


tinham consciência e bom senso para governar um grupo de pessoas.

Desde o início da vida em sociedade demarca o início de um inter-


valo, o que poderia acarretar o imperfectivo; no entanto, o que faltou aos
governantes não se apresenta durante todo esse intervalo. Apresentou
muitas vezes durante esse intervalo, pontualmente; não é o caso, portanto,
de imperfectivo; se não é imperfectivo, é perfectivo porque o aspecto itera-
tivo – o que se repete – é expresso nesta frase pelo advérbio muitas vezes.

6a Desde o início da vida em sociedade, os líderes, muitas vezes, não


tiveram consciência e bom senso para governar um grupo de pessoas.

6.2.5.5 O pretérito perfeito composto e outras perífrases verbais

Em A vaca e os livros lá está o pretérito perfeito do subjuntivo:


Talvez isso tenha encorajado meu pai a gastar o valor de uma vaca por
aqueles livros. Esse caso nos ajuda a entender como se marca nos verbos/
pelos verbos as idas e vindas do texto entre asserções e conjeturas, entre
afirmações e hipóteses. Se a narradora de A vaca e os livros fosse mais
assertiva, poderia ter escrito no modo indicativo – Foi isso que encorajou
meu pai naquele dia a gastar o valor de uma vaca por aqueles livros.
Prudentemente, no entanto, ela foi especulativa e lançou mão do modo
subjuntivo – tenha encorajado, perífrase verbal que compõe a forma
pretérita do perfeito do subjuntivo.65
No indicativo, essa perífrase composta por ter + particípio indica
um tempo que vem do passado e se prolonga no presente, como podemos
verificar neste trecho, que nos dá uma demonstração um tanto sinistra
da diferença entre o pretérito perfeito e esse outro pretérito apelidado
de pretérito perfeito composto:

65 Ela poderia não se ter aventurado no subjuntivo para expressar sua hipótese, recorrendo a um
Acho que foi isso que encorajou meu pai, mas pode ter achado que aí tem excesso de que.

841
gramática e estilo

Como a polícia alega que pode tomar providências contra cães que
atacam as pessoas na rua, mas não está autorizada a agir contra cães
que apenas assustam as pessoas na rua, a resposta da vizinhança tem
sido seguidos envenenamentos coletivos dos cachorros de rua. No
entanto, o cachorro da oficina, o grande vilão causador das queixas
que a polícia não atende, sobreviveu a essa clandestina ação entre
amigos, ou melhor, tem sobrevivido.

A especificação que o autor faz na última frase – sobreviveu..., ou


melhor, tem sobrevivido – deixa bem claro que o pretérito perfeito e
o pretérito perfeito composto não dizem a mesma coisa. O pretérito
perfeito é perfeito, isto é, já passou; o pretérito perfeito composto
não é, já que o cachorro tem sobrevivido, ainda não está perfeitamente
morto nem sobreviveu, assim como os envenenamentos que têm sido
promovidos pela vizinhança ainda estão em vigor. Tem sobrevivido
pode ser parafraseado por sobreviveu até agora, ainda sobrevive, vem
sobrevivendo. Se alguém entre os que tomaram aquela providência para
livrar as ruas dos cachorros indesejáveis achar que esse cachorro tem tido
ou está tendo muita sorte, vai ter de usar também o subjuntivo: É muita
sorte que esse cachorro tenha sobrevivido, ou melhor, é muito azar.

Ir + infinitivo

Há outras formas do indicativo que precisam de um verbo auxiliar


para manter o seu sentido na passagem para o subjuntivo.

Não tentava superar o problema, apenas pensava em deletá-lo de


minha existência, como se eu fosse perfeita e nunca precisaria da
ajuda de ninguém.

Nesta formulação hipotética, assim como o futuro do pretérito


precisaria, a forma do subjuntivo precisasse também não aponta para o
futuro; podemos usar uma forma composta:

842
gramática e estilo

Não tentava superar o problema, apenas pensava em deletá-lo de


minha existência, como se eu fosse perfeita e nunca fosse precisar
da ajuda de ninguém.

Vir + infinitivo

Se cada cidadão fizesse um pouco, começando por seu refrigerante,


jogando o litro no devido local, talvez daqui a uns anos a população
não sofreria mais ainda com a poluição ambiental.

Há uma forma composta que se desempenha melhor na tarefa de


apontar para um futuro hipotético do que sofresse:

Se cada cidadão fizesse um pouco, começando por seu refrigerante,


jogando o litro no devido local, talvez daqui a uns anos a população
não viesse a sofrer mais ainda com a poluição ambiental.

Qual será o segredo de tamanho sucesso? Talvez nunca saberemos.

Saberemos é futuro; saibamos é presente; aqui também precisamos


de uma forma de subjuntivo capaz de expressar o futuro:

Qual será o segredo de tamanho sucesso? Talvez nunca venhamos


a saber.

Talvez ela nunca saberá que aquele seu gesto foi um dos que deter-
minaram minha escolha profissional.

Talvez ela nunca venha a saber que aquele seu gesto foi um dos que
determinaram minha escolha profissional.

Vamos examinar estas outras frases:

843
gramática e estilo

1 Largaram-me num xadrez improvisado, e, cansado, adormeci. O


delegado disse que iria verificar a minha história. Talvez umas doze
horas se passaram.

Talvez implica subjuntivo:

1a Largaram-me num xadrez improvisado, e, cansado, adormeci. O


delegado disse que iria verificar a minha história. Talvez umas doze
horas se se tenham passado.

2 Faz dois anos que meu pai nunca mais colocou uma gota de álcool
na boca e se tornou um pai carinhoso e atencioso com os filhos.

Poderíamos simplificar o arranjo dos tempos verbais com o presente


do indicativo: coloca; um advérbio ajudaria a juntar a oração seguinte:
desde então, por exemplo. Se for para manter o pretérito perfeito do
indicativo, é melhor dispensar o nunca mais e fazer paralelismo entre os
verbos no pretérito perfeito composto. Se abrirmos mão do paralelismo,
podemos manter o segundo verbo no perfeito.

2a Faz dois anos que meu pai não mais coloca uma gota de álcool
na boca e, desde então, se tornou um pai carinhoso e atencioso com
os filhos.

2b Faz dois anos que meu pai não coloca uma gota de álcool na
boca, tendo se tornado, desde então, um pai carinhoso e atencioso
com os filhos.

2c Faz dois anos que meu pai não coloca uma gota de álcool na
boca e vem se tornando, desde então, um pai carinhoso e atencioso
com os filhos.

2d Faz dois anos que meu pai não tem mais colocado uma gota de
álcool na boca e tem se tornado, desde então, um pai carinhoso e
atencioso com os filhos.

844
gramática e estilo

2e Faz dois anos que meu pai não tem mais colocado uma gota de
álcool na boca; tornou-se, desde então, um pai carinhoso e atencioso
com os filhos.

3 Os que afirmam nunca transgredir mentem, pois a transgressão


está presente em toda a nossa vida social.

A troca para o pretérito perfeito composto enfatiza o currículo


dos indivíduos em questão.

3a Os que afirmam nunca terem transgredido mentem, pois a trans-


gressão está presente em toda a nossa vida social.

4 Saí do elevador e corri escada acima; nem passava pela minha


cabeça o perigo de levar um tombo. Na verdade, preferia isso a ficar
preso dentro do elevador.

Essa preferência é contemporânea do risco: começa com ele e se


esgota quando ele é superado. O risco e a preferência são referidos depois
de terminada uma e superado o outro. A combinação ter + particípio –
conjugado agora no futuro do pretérito – refere-os trazendo-os desse
passado:

4a Saí do elevador e corri escada acima; nem passava pela minha


cabeça o perigo de levar um tombo. Na verdade, teria preferido isso
a ficar preso dentro do elevador.

5 Num futuro não muito distante, não haverá mais normas e leis, pois
as pessoas já se adaptaram a viver em seus limites.

Não se trata de pretérito, mas de futuro.

5a Num futuro não muito distante, não haverá mais normas e leis,
pois as pessoas já se terão adaptado a viver em seus limites.

845
gramática e estilo

6 A ação militar em que morreram apenas seis soldados ingleses e


dois argentinos foi muito menos sangrenta do que poderia ser.

Além da conjetura, que leva o verbo para o futuro do pretérito, há


a anterioridade, que leva a uma forma de mais que perfeito.

6a A ação militar em que morreram apenas seis soldados ingleses e


dois argentinos foi muito menos sangrenta do que poderia ter sido.

7 Não sei se por culpa da abelhinha, da mosquinha ou de algum outro


inseto, mas o fato é que eu nunca me pus a pensar na minha relação
com a língua, talvez porque ela sempre fora vista como algo muito
normal ou natural.

Também é o caso de trânsito do passado para o presente, e o talvez


impõe o subjuntivo.

7a Não sei se por culpa da abelhinha, da mosquinha ou de algum


outro inseto, mas o fato é que eu nunca me pus a pensar na minha
relação com a língua, talvez porque ela sempre tenha sido vista como
algo muito normal ou natural.

Exercício 85

Examine e revise estas frases:


1. É espantoso que Senado não cassou ninguém ao longo de cem
anos, mas agora, em menos de um mês, já expurgou três de seus membros.
2. Acho difícil quem ainda não teve um daqueles dias onde o mau
humor toma conta de nós, e, coitados daqueles que nos dirigem uma só
palavra.
3. Às 7:25h da manhã seguinte, nascia o bebê que talvez veio ao
mundo por causa dos exageros da mãe durante a festa.

846
gramática e estilo

4. Enfim, embora eu não lembre com exatidão qual foi minha pri-
meira estória escrita, eu posso dizer que, ao contrário de hoje em dia, eu
sentia prazer em pensar em algo para escrever Isso não quer dizer que
meu gosto pela escrita diminuíra ou não exista mais.
5. Esta talvez foi a grande decepção da minha vida e com os meus
pais.
6. Caso, na infância, a educação não foi boa, quem vai ter esse
dever é o Estado.
7. Talvez muitos problemas de sintaxe apareceram nas redações que
não eram corrigidas, e somente a ortografia era revisada pelas professoras.
8. Não há quem nunca pensou em cometer loucuras com a chegada
do ano novo. Não há quem nunca passou com o sinal vermelho, esteve
acima do limite de velocidade.
9. Aconteceu num dia de idade pré-escolar, quando à sua chegada
falei que sabia ler, disse isso sem pensar muito, talvez, falei pela vontade
que tinha de me relacionar com aquele mundo dos adultos que parecia
tudo saber e no qual ninguém tinha medos.

6.2.5.6 Asserções e conjeturas

Esta seção vai tratar de como se afirma e de como se conjetura, de


tempos simples e de perífrases verbais que afirmam ou conjeturam e do
que acarreta subjuntivo e do que acarreta indicativo.
Vamos examinar estas frases:

1 Desta vez não guardei o prêmio, pois foi em dinheiro, embora para
sempre guardarei a magia do momento.

Embora é daquelas expressões que pedem subjuntivo; portanto,


não cabe aquele futuro do indicativo – guardarei –, para o qual também

847
gramática e estilo

não encontramos equivalente no subjuntivo, a menos que lancemos mão


de uma perífrase, como, por exemplo, vá guardar. Como a virtude de
embora é a sua possibilidade de abrir a frase, antepondo a subordinada
à principal, vamos experimentar estas duas versões:

1a Embora para sempre vá guardar a magia do momento, desta vez


não guardei o prêmio, pois foi em dinheiro.

Como esta versão parece pesada, complicada demais para a simpli-


cidade do que quer dizer; podemos pensar que não é caso nem de embora
nem de subjuntivo: é caso de mas e de indicativo:

1b Desta vez não guardei o prêmio, pois foi em dinheiro, mas para
sempre guardarei a magia do momento.

Se é mesmo pra simplificar, vamos para a língua que falamos:

1c Desta vez não guardei o prêmio, pois foi em dinheiro, mas vou
guardar para sempre a magia do momento.

2 Sua didática era regada com os frissons que ela tinha quando al-
guém pronunciava uma frase em que o português não estava correto.

Parece que o autor da frase reconhece que a professora só tinha


frissons quando o português da frase não estava realmente correto, mas
o mesmo não parece acontecer nesta outra versão.

2a Sua didática era regada com os frissons que ela tinha quando
alguém pronunciava uma frase em que o português não estivesse
correto.

Aqui parece que o autor da frase acha que, por vezes, a professora
simulava ouvir um erro de português para poder ter mais frissons. É isso

848
gramática e estilo

mesmo? Pode ser porque o indicativo expressa o que parece verdadeiro,


e o subjuntivo expressa o que parece conjetura, o que está muito mais
próximo da opinião do que do fato.

3 Na minha vida escolar, lembro muito bem de alguns professores


que faziam questão de manter distância dos alunos: entravam sérios,
não criavam condições de diálogo, muito menos de perguntas, e sa-
íam sérios. Reconheço que esta seja uma maneira de defesa que os
professores encontraram para se proteger dos desafios impertinentes
dos alunos e de sua falta de interesse.

Reconheço está no âmbito da afirmação e não da dúvida ou da


hipótese; o que é reconhecido, portanto, está no indicativo e não no
subjuntivo.
3a Na minha vida escolar, lembro muito bem de alguns professores
que faziam questão de manter distância dos alunos: entravam sérios,
não criavam condições de diálogo, muito menos de perguntas, e
saíam sérios. Reconheço que esta é uma maneira de defesa que os
professores encontraram para se proteger dos desafios impertinentes
dos alunos e de sua falta de interesse.

4 Realmente é difícil entender ou, pelo menos, descobrir o que se passa


na cabeça dos adolescentes: hoje transbordam de alegria, amanhã
pode ser que estarão sérios e carrancudos sem que se percebe os
motivos para um ou outro comportamento.

Pode ser expressa dúvida; é caso, portanto, de subjuntivo; a dúvi-


da paira igualmente sobre a tentativa malsucedida de perceber alguma
coisa; daí decorre também o subjuntivo. Amanhã nos isenta de conjugar
o verbo no futuro.
4a Realmente é difícil entender ou, pelo menos, descobrir o que se
passa na cabeça dos adolescentes: hoje transbordam de alegria, ama-
nhã pode ser que estejam sérios e carrancudos sem que se perceba
os motivos para um ou outro comportamento.

849
gramática e estilo

Não vai faltar quem diga que há um problema de concordância entre


perceba e os motivos, mas haverá também muita gente que não perceba
esse problema. Neste caso, quem escreve isto tudo percebeu e gostou
mais assim, o que não o impedirá de vir a gostar de algum outro caso de
voz passiva sintética concordada.

5 Eu tinha seis anos quando fui para a primeira série; isso fez com
que minha mãe resolvesse me ajudar em casa com receio de que eu
não estava preparada para aprender a ler.

O receio não assevera; logo, trata-se de subjuntivo, no imperfeito,


tal como está no indicativo na frase.

5a Eu tinha seis anos quando fui para a primeira série; isso fez com
que minha mãe resolvesse me ajudar em casa com receio de que eu
não estivesse preparada para aprender a ler.

6 É incrível que eu tenha passado toda a minha infância nesse clima


de insegurança. Foi difícil aguentar as críticas. Parecia que toda a
culpa fosse minha e eu deveria assumir a responsabilidade.

Parecia, na verdade, mesmo que não afirme com certeza, acarreta


indicativo, como acontece com deveria, que, mesmo incluído pelas
gramáticas no indicativo, encarrega-se também do que é hipotético,
duvidoso, incerto. Podemos, até mesmo, radicalizar o paralelismo no
indicativo:

6a Parecia que toda a culpa era minha e que eu devia assumir a


responsabilidade.

7 Se o horário da aula acabasse e nós não tínhamos terminado o


livro, não podíamos levá-lo para casa, e a leitura só continuaria na
próxima semana.

850
gramática e estilo

O paralelismo também ajuda, mas, neste caso, se implica, sim, o


subjuntivo.

7a Se o horário da aula acabasse e nós não tivéssemos terminado


o livro, não podíamos levá-lo para casa, e a leitura só continuaria
na próxima semana.

8 Em nenhum lugar está escrito ou foi dito que éramos obrigadas


a passar na federal, mas sempre senti como se eu fosse parte dessa
caminhada deles, sendo então que o mínimo esperado de mim fosse
dar seguimento a essa saga, essa luta que eles enfrentaram com
tanta dificuldade, que meu esforço manteria essa chama acesa, ou
algo do estilo.

Temos esperar acarretando subjuntivo; podemos pensar que es-


perar (assim como parecer na frase) não acarreta subjuntivo porque, na
verdade, expressa a incerteza que redundaria com a incerteza expressa
pelo próprio subjuntivo. Manteria, duas orações depois, é o futuro do
pretérito dando o mesmo serviço do subjuntivo.

8a Em nenhum lugar está escrito ou foi dito que éramos obrigadas


a passar na federal, mas sempre senti como se eu fosse parte dessa
caminhada deles, sendo então que o mínimo esperado de mim era
dar seguimento a essa saga, essa luta que eles enfrentaram com
tanta dificuldade, que meu esforço manteria essa chama acesa, ou
algo do estilo.

Exercício 86

Adeque o modo do verbo ao que se afirma e ao que se conjetura.


1. Eu agradeço que hoje não é mais como antigamente.
2. Sempre há aqueles que só cuidam de seus interesses pessoais
não se importando se isso prejudique alguém ou não.

851
gramática e estilo

3. É certo que no mundo de hoje existam leis que garantem os nossos


direitos, mas nem sempre foi assim.
4. Nem sempre vamos poder reunir somente pessoas que contribuam
positivamente para o bem estar de todos.
5. Numa destas folhas amarelecidas tinha uma lista de coisas que a
Aninha de 12 anos queria ser quando crescer.
6. O contato com a escrita na escola não foi um mundo de descober-
tas tão novas quanto as que tinha imaginado, embora o material escolar
– o lápis novo, o caderno novo – esses fetiches instigantes convidavam
a querer fazer algo de novo.
7. Não há dúvidas de que o ser humano transgrida seus limites.
8. A vida do ser humano é marcada por leis, que nos estabelecem
limites onde quer que estamos, ficando todos sujeitos à punição caso as
desrespeitamos.
9. Por mais que achamos que a nossa vida está excelente, nosso
salário está bom, o carro é o ideal, sempre poderemos melhorar.
10. Embora achamos estar em nossos direitos, não podemos cor-
romper as normas em favor próprio.

852
gramática e estilo

ESCREVEMOS TEXTO ESCREVENDO FRASES

E screvemos texto escrevendo cada uma das frases com que o com-
pomos e cada uma das frases que nos levaram às frases com que
o compomos. Escrevemos e reescrevemos desde que escrevemos com
nossas próprias mãos, atividade que, como vimos, foi provocada por
passarmos a ler com nossos próprios olhos em intimidade com o escrito
que estamos lendo.
Na contemporaneidade, entre o relato a respeito da infestação de
piolhos, escrito quase em scripta continua por uma criança em alfa-
betização, e o escrito composto por mero encadeamento de orações a
respeito da relação que a sua autora desenvolveu com a língua escrita,
está66 a alfabetização concluída e a prática de leitura da aluna do curso
de especialização formada em Letras. Pouca prática de leitura, como ela
relata: sofri muito porque fiquei muito tempo sem estudar e ainda mais
sem ler um livro sequer em todo esse tempo.
Dezesseis anos sem ler um livro sequer é uma lacuna de muito
difícil preenchimento numa história pessoal de leitura. Vale lembrar o
que escreveu Jean Foucambert (1994) a respeito dos dois modos de ler:
medeiam muitas e muitas mais horas de leitura fora da escola entre, de
um lado, a leitura dos sons que as letras representam e a consequente
66 Não sei quantas vezes reli esta frase aqui, no segundo parágrafo deste capítulo final, sem me
dar conta do sujeito posposto composto sem marcas (só uma: Letras) que, por causa dessas
circunstâncias, convocou o verbo no singular. Em homenagem a todos que cantam que a
tristeza e a saudade de você ainda existe, vai ficar assim.

853
gramática e estilo

decodificação da palavra que formam e, de outro lado, a capacidade de


ler com os olhos o ícone criado pela imagem gráfica da palavra e dos
demais sinais que as encadeiam em frases. Só uma intensa prática de
leitura é capaz de criar um sólido fundamento para o exercício da escrita.
O fenômeno que denominei escrita por mero encadeamento, que
descrevi como o registro de um ditado que o escritor fez para si mesmo
na ordem em que foi descendo da cabeça para a(s) mão(s), manifesta-se
em outros exemplares na minha coleção de problemas de língua escrita.
Em alguns deles, como vimos, cada frase – todas bem grandes – são
marcadas por uma margem de parágrafo, o que mostra que a prática
de leitura e de escrita do seu autor não foi suficiente para processar a
funcionalidade do parágrafo.
Comecei este livro pelo exame e pela revisão desse escrito composto
por mero encadeamento para colocar os meus leitores – alunos e profes-
sores de língua escrita – diante do que me pareceu o mais primitivo dos
problemas do exercício da língua escrita tal como vem se dando desde o
final do século X: a frase. O que é uma frase, como é uma frase, pra que
serve uma frase, de que se compõe uma frase? O que tem a frase a ver
com a frase que veio antes? E com a que vem depois? A ordem em que
as frases foram escritas é a melhor pra levar o texto adiante?
Para revisar aquele escrito, trabalhamos, então, com a pontuação
final de frase, com a pontuação final de oração e com as conjunções para
organizarmos e reorganizarmos a ordem em que frases se sucedem umas
às outras no texto e em que as orações se sucedem nas frases. Praticamos
o domínio do encadeamento para proporcionar aos nossos leitores a flu-
ência da leitura e encerramos o capítulo com os impasses e as limitações
do encadeamento para manter a fluência do texto.
Coordenação e subordinação vêm a seguir porque, num texto, nem
tudo o que se encadeia depois do que vem antes está depois do que veio
antes: pode se dar simultaneamente ao que foi referido antes, pode fazer
parte do mesmo conjunto a que pertence o que veio antes, e isso tem de

854
gramática e estilo

ficar claro para o leitor. A coordenação apresenta-se como um dispositivo


que freia e controla o encadeamento das orações nas frases e das frases
no texto, expressando relações de mesma pertinência, de igualdade, de
equivalência, de concomitância. O paralelismo é a mais adequada forma
de expressão da coordenação: a expressão formal similar dos elementos
ligados por coordenação ressalta tanto a pertinência desses elementos a
um mesmo conjunto quanto a semelhante função sintática que exercem
na frase. O capítulo encerra mostrando as limitações da coordenação
para expressar as relações não paralelas: relações de causa e efeito, de
condição e possibilidade, de modo e finalidade e outras tão ou mais
complexas relações que as de sequência e de equivalência.
Disso trata a subordinação a partir da relação que substantivo e
adjetivo mantêm um com o outro, uma relação similar à que se dá entre
sujeito e predicado. Semelhante é também a relação que a oração subor-
dinada adjetiva tem com o substantivo que modifica, uma relação de
predicação, que pode restringir o sentido do substantivo ou envolvê-lo
numa relação de não restrição que o caracteriza como um todo. A predica-
ção que as orações subordinadas adjetivas exercem sobre o substantivo
que caracterizam, restringindo-o ou, principalmente, não o restringindo,
candidata essas orações a proto-orações adverbiais, capazes de formular
qualquer espécie de juízo a respeito deles. As conjunções ditas adverbiais
é que decretaram a independência das orações adverbiais para expressar
o seu juízo a respeito não apenas de substantivos mas também de toda
a elocução da frase.
Depois do que as frases encadeiam, vem Ordem e nexos, o capítulo
que mostra o que se enxerga quando se olha pra dentro da frase, a unidade
de formulação inventada para frear o destrambelho do encadeamento,
ou melhor, quando se olha pra dentro da sentença, que é frase e oração.
Trata dos modos como a frase se organiza para determinar o assunto
de que vai tratar – o seu tema – e para expressar o que tem a declarar
a respeito dele: o seu rema. Vê-se, então, o que já vem pronto porque
é da língua que a gente fala e o que é da língua que a gente aprendeu,

855
gramática e estilo

lendo, que é da língua que a gente escreve. Trata do tópico, que diz
como é que a gente bota um nome no que quer falar, e do comentário,
que diz de que modo a gente quer dizer o que tem a dizer a respeito do
que determinamos como tópico. E aí, damos de cara com a gramática: o
verbo e os papéis temáticos que ele projeta, o sujeito e a concordância,
os complementos e a regência.
Da frase voltamos para as frases e o que as afeta quando se botam a
compor um texto: pra onde levam o leitor, por onde andam com o leitor,
como se movimentam no espaço e como o tempo as movimenta? Quem
fala nelas e o que dizem elas de quem nelas fala? Vemos a repercussão
textual do que se dá no encadeamento de uma frase com a outra, de uma
oração com a outra, especialmente no que se refere à relação tema-rema
e no processo de recuperação das referências. Segue pelos sistemas
de aspectos, modos, tempos e formas dos verbos que se organizam
para comporem as sequências textuais (narração, descrição, exposição,
argumentação, etc.).
Foi por esse caminho que se viabilizou esta organização da minha
coleção de problemas de construção: perseguindo a materialidade das
frases que se sucedem para expressar o que o autor quis dizer com cada
uma delas no seu esforço por configurar palavra por palavra o que ele
descobriu que queria dizer com o seu texto. Afinal de contas, cada um
dos problemas, que aqui foram exemplificados pelas frases, construções
e escritos que fui coletando e que foram trabalhados pelos similares que
reservei para os exercícios, saiu justamente de dentro de frases escritas
por quem estava empenhado em fazer exatamente o mesmo que estive
fazendo aqui. Estivemos escrevendo um texto frase a frase, lendo cada
frase escrita para confirmá-la como uma das frases que compõem o tex-
to ou para reescrevê-la, usando-a como uma frase que levou a uma das
frases com que o texto foi composto.
No meu caso, estive escrevendo este texto – este livro que pretende
ensinar a escrever bons textos – para organizar pedagogicamente aquilo

856
gramática e estilo

que as nossas leituras não nos mostraram: as frases, orações, fragmentos,


sintagmas, palavras que nos levaram às frases com que compomos nossos
textos e que se perderam nos rascunhos, isto é, os problemas. Por que
as nossas leituras não nos mostraram esses problemas? Porque só nos
mandaram ler coisas boas, onde os problemas já tinham sido substituídos
pelas frases adequadas para comporem o texto. Ninguém nos disse algo
como Lê isso aí, pra tu ver que coisa mais ruim. E alguém nos disse que
muitas daquelas frases belas dos textos que nos recomendaram tiveram
origem em frases ruins?
É claro que a prática da escrita do texto, isto é, a escrita com a in-
tenção de produzir efeitos sobre os pretendidos leitores, vai levar, quase
sempre mais cedo do que mais tarde, o escritor a ler o que escreveu
para certificar-se de que os pretendidos efeitos vão ser produzidos. A
leitura dos textos que vamos escrevendo nos ensina que o texto também
se escreve ao sinalizar que, assim como está, ainda não está bom67.
Fazemos, então, as correções e os acréscimos, as trocas de ordem e de
lugar, a substituição de palavras e a tomada de outras deliberações, até
as radicais, como deixar aquilo pra depois e escrever só isso agora, eli-
minar esse capítulo, escolher um outro rumo pra conduzir a exposição,
chegar à conclusão de que não é nada disso ou que a coisa é muito mais
complicada do que parecia, ou que é mais simples. Enfim.
Esta coleção de problemas sobre os quais refletir e sobre os quais
exercitar a reescrita tem o objetivo pedagógico de condensar e dar uma
certa ordem ao aprendizado pelo qual o texto em fase de escritura fez
passarem os escritores que aprenderam a escrever lendo os textos que
leram e os textos que se botaram a escrever. Trata-se de sensibilizar quem
escreve a prestar atenção nesses apelos do texto que está sendo escrito e
passar a exercitar a reescrita, concebendo e experimentando soluções para
expressar-se por escrito de modo a atender essas demandas. Na verdade,
67 As vírgulas aqui – ao sinalizar que, assim como está, ainda não está bom – cumprem a função
de separar para que não se leia assim como está ainda. Claro que o leitor acharia estranho e
chegaria à leitura adequada, entendendo às custas de não entender. Se o autor percebeu que
isso poderia acontecer, acho que ele deve tentar evitar.

857
gramática e estilo

só metaforicamente são demandas do texto, porque, propriamente, são


dele, do escritor, em sua busca encanzinada pela mais clara expressão
do que é bom que a gente, todos nós, autores e leitores, fiquemos saben-
do.
Do ponto de vista desse cara, que somos todos nós que quisermos
fazer isso, texto bom é o que bota o leitor a ler e a discutir com o que lê.
Texto bom é o que ensina a escrever o texto que está sendo escrito e que,
por isso, ensina a escrever os textos ainda a serem escritos. Para ensinar
quem escreve a escrever, o texto que está sendo escrito precisa revelar,
a quem o escreve, alguma coisa que ambos – autor e texto – ainda não
sabem. Aprende a escrever, portanto, quem se atreve a escrever a respeito
do que ainda não sabe muito bem sobre o que está escrevendo.
Então tá: não preciso mais falar da frase, de frases. O que vem aqui,
no encerramento deste livro que quer orientar a produção de bons textos,
é um desfile de textos bons segundo os critérios do cara que escreveu
tudo isto. Não se trata de uma seleta em prosa e verso, de uma antologia
de clássicos da língua, de inimitáveis produtos da genialidade de excelsos
artistas; pelo contrário, são textos como todos os outros textos produzidos
ao longo da história da língua escrita; todos eles, mesmo os que nós não
lemos, nos ensinaram a escrever porque ensinaram a escrever os autores
dos textos que nós lemos. A história da língua escrita, se não é a história
do ensino da língua escrita, é, pelo menos, da aprendizagem e do exercício
da língua escrita. Tal como a história de toda e qualquer prática humana.
Não se trata também de uma avaliação desses bons textos segundo
um paradigma mais sofisticado do que os das redações do vestibular ou
do ENEM, principalmente porque não se trata de comparar nem de ava-
liar e menos ainda de classificar esses textos. As qualidades não são as
mesmas em todos os textos e, na verdade, as características de cada texto
só se tornam qualidades de acordo com o papel que desempenham nesse
específico texto e, até mesmo, de acordo com o papel que desempenham
em cada leitura que se faz deles.

858
gramática e estilo

Por isso, ninguém precisa inquietar-se se não achar tão bom assim
algum dos textos que vão ser aqui elogiados por suas virtudes, entre elas,
principalmente, a de não serem indiscutíveis. Na minha sala de aula,
sempre que um aluno se retorce antes de ler em voz alta o seu texto – É
que ele não taaá muito bom –, eu digo que eu não quero texto bom: Texto
bom a gente ouve e baba; texto ruim a gente discute e se esclarece. Mas
isso é mentira: eu quero texto bom, que ensina a escrever.

7.1 PEDAGÓGICA É A ESFERA

Certamente, um dos argumentos mais importantes para


a defesa de que o texto e o discurso estão demandando a
redefinição do objeto da linguística é que o discurso e seu
texto, no sentido do parágrafo anterior (todo discurso se
textualiza), não resultam da aplicação de regras; ao contrá-
rio, não há um conjunto de regras que, uma vez seguido,
resulte num texto/discurso. Assim, é uma crença absolu-
tamente inadequada imaginar que se um estudante sabe as
características, por exemplo, de um gênero discursivo, ele
estará apto a produzir um discurso dentro desse gênero.
Produzir um discurso (ou um texto) exige muito mais do
que conhecer as formas relativamente estáveis dos gêneros
discursivos: há que se constituir como locutor, assumir o
papel de sujeito discursivo, o que impõe necessariamente
uma relação com a alteridade, com o outro. E uma relação
com o outro não se constrói sem sua participação, sem sua
presença, sem que ambos saiam desta relação modificados
(GERALDI, 2010, p. 80).68

Volto, então, como combinado, a tratar de texto, como fiz em


Da redação à produção textual, que, ao longo dos anos 1980 e 1990,
foi sendo, tal como isto aqui, escrito e reescrito. O material lá sis-

68 GERALDI, João Wanderley. Texto e discurso: questões epistemológicas para a linguística.


In: GERALDI, João Wanderley. Ancoragens: estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro e João
Editores, 2010.

859
gramática e estilo

tematizado foram os bilhetes que eu escrevia nos textos dos meus


alunos do curso de Comunicação e do curso de Letras da UFRGS e
as anotações em que eu ia consolidando esses bilhetes em busca de
recomendações gerais de escrita e de reescrita. Tinha, além disso, as
conjeturas que me inspirava a leitura do que se começou a escrever,
depois da volta da redação ao vestibular, em 1978, a respeito de
texto, de enunciação, de discurso, de ensino e avaliação de escrita
e de temas correlatos.
No começo do novo século, dei por pronto aquele livro, que saiu pela
Editora da UFRGS em 2002 e, depois, em 2009, pela Parábola Editorial.
Em março de 2012, recebo uma carta do editor:

Apresentamos o seu livro para a seleção do PNBE Profes-


sor 2010, mas ele recebeu parecer negativo. Pedimos os
pareceres para enviá-los a você, com um objetivo: pedir
que leve em conta as observações feitas na escrita pro-
vável de novos livros que possamos apresentar a futuros
PNBEs do Professor. Vale muito a pena poder ter um livro
distribuído a professores de todo o Brasil.

Sintetizo o parecer final, que, depois de ter caracterizado Da redação


à produção textual como obra de natureza teórico-metodológica, profere
a seguinte restrição:

Todavia, como o autor está mais preocupado em oferecer


ao público ao qual o livro se destina um relato de sua expe-
riência como professor de escrita, em curso universitário,
deixa de explorar, em sua obra, de forma significativa, as
mais recentes teorias sobre o estudo e o ensino do gênero
textual e da produção escrita na escola.

Os professores do Brasil não precisam, segundo o parecerista, de


relatos de experiência de um professor de escrita, mas de exploração das

860
gramática e estilo

“mais recentes teorias sobre o estudo e o ensino do gênero textual e da


produção escrita na escola”. A frase seguinte reitera a obrigatoriedade
da adesão ao que se apresenta como atualidade:

Pode-se nesse sentido, afirmar que o autor desconsidera


as atuais produções científicas e metodológicas do campo
da educação e da área de produção textual, o que acaba
configurando-se como uma desatualização conceitual
quando da abordagem da temática focalizada – a produ-
ção de texto.

Por causa disso, a expressão produção textual no título do livro


estaria em contradição com a ausência no livro de uma preocupação
com “as condições de produção e circulação do texto com indicação
clara do gênero textual a ser produzido, aspecto que, no livro, não é
explorado”. Aqui aparece o que sintetizaria a atualidade que falta: o
gênero textual. Às qualidades discursivas conceituadas e exemplifi-
cadas no livro também é atribuída uma temporalmente não localizada
desatualização conceitual:

Para compreender a natureza das desatualizações con-


ceituais do livro, é preciso ficar claro que o trabalho com
a narração, a descrição e a dissertação tem como eixo
condutor a exploração do que o autor chama de qualidades
discursivas [...]. Tais qualidades são apontadas pelo autor
como as responsáveis por transformar a redação escolar
em discurso.

No parágrafo seguinte vai ficar claro que, na opinião do parecerista,


nada além dos gêneros textuais poderia funcionar como condutor de um
trabalho de ensino da escrita.

Tem-se, então, dois problemas: primeiramente, o


trabalho limitado com a narração, a descrição e a dis-

861
gramática e estilo

sertação, sem que discuta a existência de uma série


de gêneros textuais que são produzidos em sociedade
e atualmente identificados e apontados por diversos
estudiosos. Em segundo lugar, o fato de atribuir a essas
quatro qualidades discursivas o caráter de propriedade
da textualidade e da discursividade. Ora, a textualidade
depende de uma série de elementos indicados pelos
estudos da Linguística textual, envolvendo aspectos
linguísticos, semânticos e pragmáticos, o que é pouco
valorizado pelo autor. Além disso, a própria definição
das qualidades discursivas não é suficientemente clara
para auxiliar o professor em seu trabalho de sala de
aula, a explorar essas qualidades na narração, descrição
e dissertação.

A expressão “propriedade da textualidade e da discursividade” é


um juízo da autoria do parecerista, muito adequado para contrastar com
a “série de elementos indicados pelos estudos da Linguística textual,
envolvendo aspectos linguísticos, semânticos e pragmáticos”, ressaltando
a simplória pretensão do livro em análise, que atribuiria tudo aquilo a
tão pouco. Quanto à falta de clareza da “definição das qualidades dis-
cursivas”, eu tinha muita clareza a respeito da dificuldade de defini-las,
caracterizá-las e exemplificá-las, como todo leitor pode avaliar na grande
quantidade de definições, caracterizações e exemplificações que estão
no livro. A questão central, no entanto, é esta: Da redação à produção
textual não trata de gêneros discursivos.
Por isso, quero esclarecer aqui que Da redação à produção textual
não trata de gêneros discursivos, em primeiro lugar, porque a concepção
de gênero tal como surge a partir da formulação de Bakhtin, que só entra
em pauta no fim dos anos 1990 a partir dos Parâmetros Curriculares
Nacionais, não fez falta na construção do meu dispositivo pedagógico,
durante os anos 1970 e 1980, para transformar redação escolar em tex-
to. Depois, já neste século, quando comecei a ser chamado para avaliar
dissertações de mestrado e teses de doutorado que descreviam gêneros,

862
gramática e estilo

fui ler Bakhtin, e bem no início de Os gêneros do discurso (1997, p.


301)69, lá estava escrito:

Gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis de


enunciados. Os enunciados refletem as condições especí-
ficas e as finalidades de cada esfera da atividade humana
por seu conteúdo e seu estilo verbal e pela seleção operada
nos recursos da língua: lexicais, fraseológicos, gramaticais
e pela construção composicional.
Cada esfera da atividade humana comporta um reper-
tório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e
ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve
e fica mais complexa, de tal modo que a riqueza e a va-
riedade dos gêneros do discurso são infinitas.

Que diz aí? Que o gênero é uma cria de uma esfera da atividade
humana refletindo suas condições específicas e suas finalidades, dife-
renciando-se e ampliando-se de acordo com a complexidade dela. Quero
chamar atenção para essa caracterização do gênero como produto e para
a definição da esfera, como a fábrica, o ateliê, a oficina onde os gêneros
são produzidos. E lá, mais para o fim de Os gêneros do discurso (1997,
p. 301), encontramos isto:

Todos os nossos enunciados dispõem de uma forma


padrão e relativamente estável de estruturação de um
todo. Na prática, usamo-las com segurança e destreza,
mas podemos ignorar totalmente sua existência teórica.
Esses gêneros do discurso nos são dados como nos é dada
a língua materna, que dominamos com facilidade antes
mesmo que lhe estudemos a gramática, pois que nós a
adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos
e reproduzimos durante a comunicação verbal viva que se
efetua com os indivíduos que nos rodeiam. Assimilamos
69 BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação
verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

863
gramática e estilo

as formas da língua somente nas formas assumidas pelo


enunciado e juntamente com essas formas. As formas
típicas da língua e as formas típicas dos enunciados, isto
é, os gêneros do discurso introduzem-se em nossa expe-
riência e em nossa consciência conjuntamente e sem que
essa estreita correlação seja rompida. Aprender a falar é
aprender a estruturar enunciados.

Qual seria o papel, no ensino da escrita, dos gêneros, que “domi-


namos com facilidade antes mesmo que lhe estudemos a gramática”?
Vamos pôr nossos alunos a estudar-lhes a gramática que “adquirimos
mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante
a comunicação verbal viva” tal como a escola fez com a gramática da
frase? Não seria melhor usá-los com a “segurança e destreza” que já
adquirimos, para escrever nossos enunciados?
Então, se o gênero é o produto criado dentro da oficina de uma esfera
da atividade humana, vamos ler este texto, que nos ajuda a processar
essa relação de causa e efeito e me possibilita retomar de um modo mais
concreto o processo pedagógico de transformação de redações escolares
em textos operado pelas qualidades discursivas.

Atextamentos ou atextações
Alfredo S. Barros

Textos e autores, às vezes, revelam algo mais do que a simples


relação produtor X produto. A produção textual, se analisada dentro
do ambiente acadêmico, sobretudo nas aulas de português dos calouros
aqui da Comunicação, dá margem a um universo de manifestações cuja
expressão e interpretação ultrapassam a própria atitude de responder a
mera solicitação dos temas propostos pelo professor. Ao serem pensados,
escritos e lidos para o público restrito à sala de aula, os textos adquirem
um novo significado que, muitas vezes, comunica muito mais sobre seus

864
gramática e estilo

autores e sua relação com a turma e o mestre do que o próprio conteúdo


que carregam. Há inúmeros tipos de textos.
Começo pelo tipo preferido da turma, o texto-piada. Esse texto,
geralmente ouvido e interpretado com ressalvas pelo mestre com seu
olhar do tipo vamos lá, faça-me rir se fores capaz, engraçadinho..., é
típico dos aspirantes a publicitários. Começam com uma introdução que
deve conter todos os elementos necessários para livrá-los das prováveis
críticas quanto às incongruências que apresentam a seguir. Ao serem
questionados por uma ou outra colocação menos plausível, ou seja,
contraditórias em relação ao próprio texto, sem coesão interna, sacam
rápido o argumento: ...mas lá, no início, eu disse que isso e aquilo...
Pronto, estão salvos. Do linchamento público, porém não da pena, digo,
da caneta vermelha do professor, que os massacra sem dó nem piedade.
Os futuros publicitários são a pedra no sapato do mestre. Mas, apesar
disso, a turma os adora. São maioria e, na maior parte das vezes, mesmo
incongruentes, seus textos são realmente engraçados, criativos e até
mesmo esclarecedores. A leitura de determinados textos já é aguardada
com expectativa pelos alunos e, principalmente, pelo próprio autor. Este
mal pode esperar pelos risos. Escreve pensando nas gargalhadas que há
de provocar, seu objetivo principal, enquanto escuta a última pauleira
da sua banda preferida. A qualidade do texto, assim como a qualidade
da leitura em aula – dicção e quantidade de frases lidas por segundo,
no caso do Fernando –, não fazem parte de suas preocupações. Há ex-
ceções, mas em geral, eles escrevem pensando na piada. Esta que deve
estar superengraçada.
O texto-barbosa. Da escola de Rui Barbosa, esse tipo se caracteriza
por certa pretensão erudita, linguagem selecionada e saco faraônico.
Tanto para quem escreve como, e principalmente, para quem ouve. A
quantidade de termos de estilo jargão deixam até mesmo o professor de
redação mais ortodoxo enfadado. Este texto pode ser enquadrado em
uma outra categoria também, a do texto-chato. A diferença é que o texto-
-barbosa pode até ser interessante, enquanto assunto, mas o excesso de

865
gramática e estilo

recursos de linguagem culta para descrever ou comentar algo simples


acaba causando um exagero no número de páginas, o que, aliado com
a falta de prática na sedução dos leitores, convida-os a distração. O
resultado, ao final da leitura, é um silêncio por parte da turma. Essa
se lembra apenas do que se trata no texto ou a última palavra lida pelo
autor, pois ela marca o fim do martírio que parecia interminável. Aliás,
cada página folheada é um pequeno martírio em si.
Já o texto-chato nem sempre é longo; seu problema é a falta de
profundidade com o que é tratado o tema ou ainda a falta de habilidade
do autor para torná-lo interessante, degustável e não digerível apenas,
o que resulta na inevitável pergunta: Iuquécu?. Não há muito a se falar
de tais textos por não terem eles mesmos muito o que dizer de si próprios
ou de seus autores. São um saco, e basta.
Texto-oculto é aquele que não é lido em aula. Seus autores ou
escrevem unicamente para o leitor/professor ou para eles mesmos.
Talvez, como aconteceu comigo no princípio do semestre, não confiem
na qualidade do seu texto, ou na qualidade de sua pessoa, ou ainda na
qualidade da turma enquanto leitores críticos contumazes. Guardado
até o final da aula dentro das respectivas pastas, cofres portáteis, o
texto-oculto tem como único destino receber a temida caneta vermelha,
que há de decorá-lo impiedosamente, sobretudo nos que tentam fazer
rir a esfinge, característica dos pobres, oprimidos e indefesos textos de
futuros publicitários, prato predileto da “red pen”.
Há ainda o texto-pílula. Esse, na verdade, é o texto-oculto que ousa
sair do anonimato. É pílula porque deveria ser engolido, ao invés de lido
pelo autor. Quando acontece de um tema ser genérico o suficiente para
poder englobar diversas unidades temáticas, uma para cada texto, sur-
gem textos-corolários, ou seja, que trataram de um mesmo assunto, porém
de forma diferente. Se o primeiro a ser lido é brilhante no tratamento,
os que seguem, os corolários, invariavelmente parecem ridículos pela
comparação que nos obrigam a fazer. Assim, pensamos, já que é sólido –

866
gramática e estilo

o papel e não o texto – por que o autor não engole e finge ter esquecido
o texto em casa? Ou ainda, para evitar uma indigestão literária em si
mesmo ou na turma – mais pelo texto do que pelo papel – por que não
o transforma em um texto-oculto entregando-o direto para o professor?
Já que este dispõe de estômago preparado profissionalmente para esses
venenos compostos de tinta, celulose, alguma pretensão e muita falta de
estilo. Essa atitude é típica de um grupo de indivíduos que costumam
engolir certas coisas, ainda proibidas, quando flagrados em seu uso na
inesperada presença das autoridades policiais. Esse grupo, os cabeções,
abordado recentemente em um dos textos sobre uma classificação, me
remetem à descrição de um outro tipo de texto: o texto-cabeção ou de
autodelação.
O texto-cabeção, ou de autodelação proposital, é um dos tipos mais
curiosos. O autor, a princípio, faz questão de se colocar de fora de um
grupo, supostamente marginalizado – na verdade e atualmente, dentro
do contexto universitário, muito reverenciado – e usa essa abstenção
intencional de forma brilhante, enquanto recurso estilístico para jus-
tamente enquadrar-se dentro desse grupo, sua intenção subliminar. E
essa atitude, como estilo em prol da intenção almejada, se revela ainda
mais eficiente quando o autor, ao longo do texto, demonstra um profun-
do conhecimento de causa, explorado em tom de paródia à linguagem
dissertativa tipicamente científica. O método é perfeito, principalmente
porque, em última análise, revela, de forma subliminar, o próprio perfil
do tipo em questão, cuja característica mais marcante, hoje, é justamente
não admitir sua inclusão no grupo, marginalizado mais por honra à
autenticidade da contestação que lhe deu origem do que pela rejeição
social propriamente dita. Assim, fazem questão de que, subliminarmente,
todos os identifiquem. É claro que, apesar de meu conhecimento pro-
fundo do tema, eu também não faço parte desse grupo, qualquer tipo de
semelhança com um tipo desses...
O texto-relatório. Este texto... ahm, ahm... geralmente versa sobre
assuntos ou fatos que marcam ou que de alguma forma marcaram a

867
gramática e estilo

vida em comum aos integrantes da turma em questão. Analisa com olho


clínico as atitudes, comportamentos, características enfim, sem, é cla-
ro, dispensar uma atitude crítica e debochada dessas situações vividas
em grupo, bem como de seus tipos mais revelantes. São bem recebidos
pelos colegas que procuram encaixar na sua memória os fatos ou tipos
narrados, identificando-os. O recurso estilístico em conjunto com o
próprio tema escolhido é de fácil aceitação por tratar justamente de
uma experiência, ou a visão que tem dela o autor, que foi vivenciada
por todos, ou quase todos, logo, de interesse comum. É como um álbum
de fotografia ou fita de vídeo, em formato literário. O típico “vale a
pena ver de novo”.
Também tem o “novo que não vale a pena ser visto”, ou, no caso,
ouvido: o texto-trailer. Este, definitivamente, me tira do sério, tamanha
é a discrepância e falta de senso, vergonha na cara e de laço d(n)os seus
autores. Prêmio Nobel da cara-de-pau, da falta de estilo, de respeito ao
leitor(?!) e, principalmente, da falta de texto! O autor (se é que se pode
chamá-lo assim, já que, para que o seja, é mister que haja uma obra a
que lhe possa ser atribuída autoria, o que de fato não acontece) se en-
trega ao devaneio de tentar narrar brevemente o conteúdo de seu texto,
se é que este possui algum, pois conversa de bar é conversa de bar e
texto é texto(!); ou o tratamento que deu a ele, no mínimo o de desleixo,
na minha opinião; ou ainda ousa ocupar o precioso tempo da nossa
preciosa aula com justificativas de seu esquecimento ou relaxamento,
que, nem de longe, lhe foram solicitadas.
Só rindo. Se a moda pega, logo teremos um trailer de jornal também,
cuja manchete de capa ficaria a cargo dos futuros e infames comuni-
cadores adeptos do novo estilo: Prezados leitores, pedimos desculpas
pela falta de tempo dos nossos jornalistas para terminar as matérias;
segue, no entanto, para vosso deleite, o trailer das futuras notícias de
um passado recente, Bom proveito. É patético, porém admissível para
alguns tipos, os pseudoautores.

868
gramática e estilo

Na verdade, o último tipo a ser analisado é esse que você, leitor-


-crítico-contumaz-de-textos, acabou de ler, ou melhor está quase, pois
ainda restam 23 linhas para serem digeridas. Este texto versou sobre
alguns dos tipos possíveis de caracterizá-lo como um todo. É piada por
ter passagens engraçadinhas, ainda que escrito por um aspirante a jor-
nalista. É barbosa tanto por ser interminável como por conter pretensão
erudita, linguagem sofisticada e um saco faraônico para ser escrito. É
chato por ser superficial e do tipo iuquécu? É oculto: não foi lido em
aula nem escrito antes dela, mas anunciado para alguns, o que também
o torna trailer. É pílula: talvez eu o engula quando, se reescrito, for
devolvido rabiscado um D vermelho pela malditapreciada caneta-da-
-verdade-reconhecida-louvada-atestada-e-comprovada-unanimemente;
de autodelação, ainda que apenas estilística, por uma pequenina passa-
genzinha...; e, por fim, é relatório por identificar e comentar determina-
dos tipos de textos produzidos pela minha turma. Eis um retrato literário
da produção textual da turma de calouros do curso de Comunicação
Social da UFRGS/95. Com esta conclusão-manifesto, inauguro um novo
tipo de texto: o texto-pretensão. Egocêntrico por natureza, forma, estilo
e conteúdo. Pretende ser inovador, verdadeiro, de apreciação unânime.
No entanto, não escapa à tipologia tradicional, ainda que esta apareça
de forma simultânea e onipresente em todo texto, o que o torna, no mí-
nimo, diferente. Mas não é justamente o anseio por diferença, mesmo
que superficial e bacaninha, que enfim, aglutina o sentido da postura
pretensiosa de alguns textos ou de seus autores?

Este texto foi produzido no primeiro semestre de 1995, no decurso


da disciplina Comunicação em Língua Portuguesa I, no primeiro semes-
tre do curso de Comunicação Social da UFRGS, a partir da solicitação
de fazer uma classificação, caracterizada em Da redação à produção
textual como a atividade de “enquadrar um grupo de ideias em um con-
junto maior juntamente com outros grupos de ideias com características
semelhantes” (GUEDES, 2009, p. 189). Na relação de temas sobre os

869
gramática e estilo

quais escrever, este é o décimo primeiro, o antepenúltimo, antecedido,


no capítulo que trata de textos dissertativos, por uma comparação e por
uma análise. A solicitação seguinte é uma definição.
Como está descrito em Atextamentos e atextações, todos os dez
textos solicitados antes deste foram lidos em voz alta e discutidos em
aula. As dez sessões anteriores de leitura e discussão de textos escritos
pelos alunos já produziram efeitos sobre o processo criativo: Ao serem
questionados por uma ou outra colocação menos plausível, ou seja,
contraditórias em relação ao próprio texto, sem coesão interna, sacam
rápido o argumento: ...mas lá, no início, eu disse que isso e aquilo...
E a referência à caneta vermelha do professor remete a uma outra
prática daquela esfera de produção, leitura, discussão e revisão de textos:
os palpites do professor e suas solicitações de reescrita, que não parecem
inibir a determinação que leva os autores citados a tentar produzir efeito
sobre a plateia: Escreve pensando nas gargalhadas que há de provocar...
O trabalho de produção de textos nessa disciplina foi orientado pelas
práticas e reflexões que depois foram consolidadas e publicadas como Da
redação à produção textual. Como já está relatado no capítulo A teoria
do texto em haver, redação refere-se, nesse título, ao que nós aprendemos
a escrever na escola, e a expressão produção textual refere-se ao texto.
Texto, naquele título, designa instâncias de uso da língua escrita para
produzir deliberados efeitos de sentido sobre bem determinados leitores.
O livro Da redação à produção textual tem, como já vimos, o objetivo
de orientar quem quer ensinar a escrever e quem quer aprender a escrever
textos tal como definidos anteriormente, superando os condicionamentos
de sua formação escolar.
De fato, como alegou o parecerista, Da redação à produção textual
não ensina a escrever resenhas, relatórios, artigos, monografias, disser-
tações, teses, pareceres e outros gêneros. Cabe, então, argumentar que
a conversão do produtor de redações escolares em produtor de textos é
o que vai assegurar que suas resenhas, relatórios, artigos, monografias,

870
gramática e estilo

dissertações, teses, pareceres e outras coisas da mesma família resultem


em textos e não em redações escolares. Lá se ensina o que é necessário
para que o aluno, ao escrever qualquer um desses gêneros, escreva o que
ele quer escrever sem que seu texto seja escrito pelo gênero ou, pior, sem
que seu texto seja não escrito pelo gênero.
O tema escolhido pelo Alfredo – os textos até então produzidos na-
quela disciplina e lidos naquela sala de aula – decorre da prática induzida
pelo conjunto dos temas sobre os quais escrever apresentados até então
pelo professor, tal como constam em Da redação à produção textual.
São quatro conjuntos de texto:

1 Trata-se de escrever a respeito do que está próximo, iniciando


por uma apresentação pessoal, a que se segue um relato do cotidiano
pessoal do autor. Genericamente, não há dificuldade em escrever um texto
para apresentar-se ou em inventar um personagem para apresentar como
se fosse uma apresentação pessoal. O mesmo se pode dizer a respeito de
expor o seu cotidiano ou de falsificar um cotidiano como sendo o seu.
Na discussão em aula desses textos, o professor enfatiza a necessidade
de unidade temática em vez de meras listas de características físicas,
psicológicas e espirituais do seu autor ou de atividades do seu dia a dia.
A hipótese de inventar um personagem como se fosse o autor e de
falsificar um cotidiano para ele foi legitimada na prática para livrar a
discussão dos textos de julgamentos e avaliações pessoais dos autores e
de suspeitas de não contarem a verdade. Nesses casos, o professor dizia
que não ia botar um detetive atrás de ninguém, que todas as suspeitas
deveriam recair sobre o personagem construído pelo texto. Para evitar
a ocorrência de interpretações psicanalíticas, do tipo isso que tu escre-
veu revela que é uma pessoa assim, assim e assim, o professor também
recorreu à literatura70: Não foi ela/ele que escreveu isso; quem escreveu
foi um narrador que ela/ele inventou pra escrever isso.
70 No caso, o professor não foi eu, mas meu amigo Luís Augusto Fischer, personagem deste
capítulo. Eu adotei esse truque na hora.

871
gramática e estilo

2 Segue-se o exercício da narrativa com dois textos: o relato de


um acontecimento que produziu uma emoção forte e o relato de uma
situação que produziu um aprendizado. Os textos resultantes desses
temas quase sempre já se apresentam orientados por algum tema mais
ou menos determinado, o que é bom para retomar e esclarecer melhor o
conceito de unidade temática durante sua leitura e discussão. O problema
mais específico da narrativa é a objetividade, isto é, a exposição diante
dos olhos leitores de todos os dados necessários para o entendimento
da história sem a necessidade de uma entrevista com o autor – que, no
caso, está presente na mesma sala de aula – para saber o que é mesmo
que ele queria contar.
Na verdade, se alguém faz uma pergunta dessas ao autor do texto
que está em discussão, e ele se bota a contar e explicar, essa metafórica
hipótese materializa-se. É a ocasião propícia para o professor observar
que o texto seria o mais adequado lugar para contar e explicar o que ele
agora está contando e explicando oralmente. Nas observações da caneta
vermelha do professor também apareciam menções às informações que
os autores não tinham dado aos seus leitores, que não se tinham trans-
formado em objetos postos diante dos olhos deles.
O relato de uma emoção forte pode se resumir a um relato dos
fatos, desde que eles sejam convincentes, mas a situação que produziu
um aprendizado vai ter de recorrer a algum tipo de exposição para de-
signar e descrever o aprendizado angariado pelo personagem em questão.

3 O terceiro bloco solicita quatro textos, rotulados como descrições.


Começamos pela descrição de uma pessoa, em que pode haver casos de
recaída na lista de características, o que serve para reforçar a necessidade
de unidade temática no texto. Vai ser preciso também deixar claro o
motivo pelo qual é necessário descrever tal pessoa, ou seja, ela precisa
aparecer desempenhando seu papel no mundo, e isso se mostra numa
narração. Esclarecer o motivo pelo qual se escreve a respeito de tal tema
é um dos aspectos do questionamento.

872
gramática e estilo

Segue-se a descrição um objeto, em que a questão é a atribuição de


um valor ao objeto descrito, outro aspecto do questionamento. A objeti-
vidade é que vai guiar a apresentação dos aspectos mais característicos
do objeto descrito. Vai ser muito difícil fugir de alguma narração.
Depois vem a descrição de um processo, que bota o autor, para
começar, a prestar atenção nos processos com os quais está envolvido.
A qualidade discursiva que se torna crítica aqui é a concretude: é pre-
ciso, além de determinar o tema com toda clareza e fornecer todas as
informações necessárias para levar o leitor do começo ao fim, mostrar a
relevância do processo e em que pode interessar o leitor. Esse processo e
o texto que o descreve precisam ser expressos com recursos linguísticos
que individualizem tanto o processo quanto o texto. Estamos no caminho
do dissertativo, mas isto tudo pode acontecer narrativamente também.
O quarto texto do bloco é a descrição de um tipo de pessoa; trata-se
de, no mínimo, chamar atenção dos alunos para a necessidade de des-
crever um tipo ainda não descrito. Este tema envolve o registro de uma
observação de características singulares comuns às individualidades que
compõem o tipo descrito, ou seja, é necessário o exercício da abstração. A
escrita deste texto vai fazer a necessária transição para o bloco de textos
a seguir, em que a abstração vai ser a tônica.

4 Para levar adiante o exercício da abstração, o quarto bloco começa


com uma comparação, que estabelece o primeiro estágio de uma apro-
ximação do escritor em formação com um modo de perceber e avaliar
as coisas do mundo. A comparação é um modo mais simples, mais
imediato, menos abstrato ou, pelo menos, mais corriqueiro de estabelecer
relações entre seres, lugares, situações, eventos postulados como perten-
centes a um mesmo conjunto. A própria possibilidade de comparar isto
com aquilo já estabelece que isto e aquilo têm algo em comum.
A seguir vem uma análise: quais são os componentes próprios deste
ou daquele elemento que são relevantes para caracterizá-lo como perten-

873
gramática e estilo

cente ao conjunto tal e quais seriam as peculiaridades desse particular


elemento que o distinguiriam dos demais elementos do mesmo conjunto?
Temos aí o fundamento da classificação, o terceiro tema: quais
seriam as peculiaridades relevantes de determinados elementos de um
conjunto que os distinguiriam dos demais integrantes desse mesmo con-
junto a ponto de, a partir de algum interesse de conhecimento, distingui-
-los como um subconjunto relevante, a merecer uma descrição? Daí pode
resultar num texto tão interessante como esse que lemos, desde que – não
é demais repetir – o tema venha ao encontro dos interesses dos leitores.
Feito tudo isso, trata-se de pôr o foco no ainda não visitado ponto de
partida, solicitando uma definição, o quarto tema. Solicitar uma definição
depois de feito o esforço de comparar, analisar e classificar deixa muito
claro que a definição está no ponto de partida funcionando como o que
já estava dado: os elementos comparados, analisados e classificados só
puderam ser submetidos a esses processos porque já estavam identifica-
dos e denominados por uma consuetudinária definição, que expressa o
interesse de quem a formulou. Definir, agora, é tomar consciência disso
e, conscientemente, postular e formular uma definição que expresse sua
própria visão de mundo. As qualidades discursivas – unidade temática,
objetividade, concretude e questionamento – estão no fundamento
deste tipo de texto.
Na verdade, Atextamentos e atextações nos dá uma muito clara
noção do papel das qualidades discursivas na constituição do texto
porque (1) determina sua unidade temática circunscrevendo um tema
do maior interesse para os leitores; (2) o conjunto de objetos com que
constrói a sua objetividade – os textos aos quais atribui características
que os individualizam e os aproximam dos demais componentes do
subconjunto em que os insere – constitui a produção desses leitores; (3)
a concretude se expressa no entrelaçamento dessas características com
os objetivos que pretendem atingir e nas afinidades que os aproximam
de uns e os distinguem de outros; o mesmo se dá nas caracterizações dos

874
gramática e estilo

personagens, que são o professor e os colegas; (4) o questionamento


está na proposta do texto: o que vai ser esclarecido é que aqui se dá um
outro processo além do que costuma ocorrer em aulas de produção de
texto, ou seja, as coisas não são o que parecem. E isto parece ser uma
boa definição para questionamento: questionar é dizer que alguma coisa
não é o que parece, que não é bem isso que vocês estão pensando que é.
A caracterização dos tipos de texto gerados ao longo do semestre
na disciplina Comunicação em Língua Portuguesa I em Atextamentos
ou atextações, ainda que em tom de paródia, correlaciona-se à descrição
bakhtiniana da criação de gêneros do discurso dentro de uma esfera
da atividade humana. O objetivo do curso, tal como registrado em Da
redação à produção textual, que é escrever textos e não mais redações
escolares, revela-se ali atingido: ali estão descritas as diligências dos
alunos ao longo do semestre para produzirem efeitos de sentido sobre
os seus bem determinados e próximos leitores: o professor e os colegas,
companheiros trabalhadores da mesma esfera da atividade humana de
produzir textos, como queríamos demonstrar.
Testemunhar a respeito do papel decisivo da esfera para a aprendi-
zagem da produção de textos não é a única qualidade deste texto, que, em
Da redação à produção textual, exemplifica a noção de originalidade
(GUEDES, 2009, p. 189). É original o que está tratando da origem, no
caso, da produção de textos, atividade que deu sentido e conteúdo ao
evento em que alunos e professor compartilharam o trabalho de escre-
ver, ler, discutir, avaliar texto ao longo do semestre. É original também
aquilo que é, pela primeira vez, elevado à condição de tema sobre o qual
se proferem palavras, aquilo que é concebido, escolhido, apresentado,
definido, descrito, aquilo a que é atribuído valor.
É original o que desafia os interlocutores a se ocuparem de uma
questão até então não formulada: como são os textos produzidos aqui?
Que respostas vêm dando os alunos às provocações do professor expres-
sas nas propostas de tema e nos recados de reescrita? Que respostas vêm

875
gramática e estilo

sendo dadas às provocações dos textos lidos em aula pelos colegas? O


mérito da originalidade é despertar o interesse dos leitores a quem se
dirige, escrevendo para eles sobre eles.
Há outras qualidades além da originalidade e da capacidade de
mobilizar o interesse dos seus leitores como, por exemplo, o minucioso
o trabalho de caracterizar o acervo dos textos e de designar as categorias
em que esses textos são agrupados: texto-piada, texto-barbosa, texto-
-chato, texto-oculto, texto-pílula, textos-corolários, texto-cabeção ou de
autodelação proposital, texto-relatório, texto-trailer, texto-pretensão.
As descrições das características de cada grupo de textos são muito per-
tinentes e específicas, e o mesmo pode ser dito a respeito das descrições
dos processos que ocorrem durante o evento: os olhares do professor, as
intervenções dos que estão ouvindo as leituras, as reações dos autores
lidos. As várias paródias com que são apresentadas essas caracterizações
são certeiras tanto na caracterização quanto na crítica ao que é parodiado.
Há um cuidadoso trabalho sobre a linguagem em que o texto se
expressa: o coloquial, as paródias dos termos técnicos e do reportamento
das falas do professor e dos colegas. É muito eficiente também o modo
autocrítico como o narrador, que se coloca numa posição de avaliador do
comportamento dos seus personagens, insere-se nos mesmos enroscos que
os afligem, inclusive avaliando o próprio texto em que os está avaliando.
Tendo sido os gêneros do discurso içados à condição de remate e
fim da história do ensino da produção textual, apresentei aqui a tipologia
elaborada em Atextamentos e atextações para mostrar que, de fato, a
esfera cria gêneros, e o ânimo paródico desta classificação não desquali-
fica essa formulação bakhtiniana nem a minha constatação de que, neste
caso, das categorias propostas por Bakhtin, a instituição pedagógica é a
esfera, que é a oficina, o atelier, a fábrica. Pelo contrário, a paródia é a
mais evidente prova não só da existência mas também e principalmente
da importância daquilo que é parodiado. Não se parodia insignificâncias
nem se parodiam insignificâncias.

876
gramática e estilo

Durante a vigência da esfera da atividade de produção de textos no


primeiro semestre de 1995 na disciplina Comunicação em Língua Portu-
guesa I do curso de Comunicação da UFRGS nunca se falou em gêneros
do discurso. Isso não foi necessário para que os alunos escrevessem para
os colegas e o professor, envolvidos no processo como ouvintes leitores
comentadores avaliadores dos textos produzidos por todos. Também não
foi necessário para que o Alfredo resolvesse fazer uma tipologia paródica
dos textos lidos em aula e um relato burlesco do processo de criação,
recepção e avaliação dos textos produzidos naquela esfera da atividade
humana de produzir textos.
Além disso, é Bakhtin quem legitima essa atividade a que o Alfredo
se entregou ao constatar que os gêneros são infinitos e adquirem sua
complexidade da complexificação da esfera em que são gerados. Logo,
os subgêneros em que cada gênero pode se subdividir não podem ser me-
nos do que igualmente infinitos, cada um deles, mais ou menos instáveis
porque mais ou menos estáveis e, principalmente, complexificáveis.71

7.2 PEDAGOGIA DA ESCRITA

O texto exemplar do Alfredo está, então, curricularmente locali-


zado no fim do programa previsto em Da redação à produção textual,
que, nos anos 1990, estava em vigência na disciplina Comunicação em
Língua Portuguesa I, do primeiro semestre do curso de Comunicação
da UFRGS, obrigatória para os alunos de todos os cursos. Era também o
programa da disciplina Composição em Língua Portuguesa I, disciplina
eletiva do curso de Letras da mesma UFRGS. É claro que a distinção
entre redação escolar e texto, que fundamenta o programa proposto em
Da redação à produção textual, não implica a suposição de que todos

71 Com base neste mesmo texto exemplar, escrevi uma comunicação chamada Pedagógica é a
esfera; o gênero é pura decoreba, para o Celsul de 2016, em que apresento outras pedagógicas
esferas, entre elas, a escola, que criou o gênero redação escolar. Essa comunicação está em:
SCHERER, Amanda Eloína; MEDEIROS, Caciane Souza de; OLIVEIRA, Simone de Mello
de (org.). Linguística de nosso tempo: teorias e práticas. Santa Maria: Ed. UFSM, 2018.

877
gramática e estilo

os alunos matriculados nas disciplinas Comunicação em Língua Por-


tuguesa I ou Composição Língua Portuguesa I não fossem capazes de
produzir textos, nem supõe que estivessem todos enredados nas malhas
da redação escolar.
Diferentes disposições para o exercício da língua escrita são perce-
bidas desde a alfabetização, como testemunham os exemplares coletados
por Geraldi. Por que alguns, como o aluno da casa bonita, entendem o
jogo da escola e um outro/uma outra, à revelia do jogo da escola, resol-
ve, inocentemente, tratar da infestação dos pionhos, a respeito da qual
ninguém tinha perguntado nada?
Muita gente chega na universidade escrevendo textos e até mesmo
bons textos, o que é objetivo deste outro livro. Para esses, o conjunto e a
sucessão de temas propostos por Da redação à produção textual é uma
boa oportunidade para exercitarem a produção de textos, que, no caso de
serem lidos e discutidos em sala de aula, enriquecem a produção daquela
esfera e dão concretude às diferenças a serem apontadas, em aula, na
discussão dos textos lidos, entre redação escolar e texto.
Os que chegam domesticados pela redação escolar têm a oportuni-
dade de, se estiverem dispostos, exercitar a escrita do que são incitados
a descobrir que têm para dizer, também graças à influência da produção
daqueles outros colegas. Uso a expressão diferentes disposições para o
exercício da escrita pra não usar essa categoria elitista e sem concretude
que se expressa por talento e seus congêneres. A grande virtude pedagó-
gica da leitura e da discussão em sala de aula dos textos produzidos pelos
alunos é a circulação de produtos oriundos dessas diferentes disposições,
que produzem escritos de diferente qualidade. O reconhecimento de tais
diferenças, na discussão dos textos lidos em sala de aula, é um instrumento
pedagógico fundamental para o ensino da escrita.
Professor nenhum me ensinou a escrever: minhas professoras, meus
professores e eu também fomos criados na crença de que isso não se
ensina, que isso vem junto. De mim, eles diziam, desde o segundo ano

878
gramática e estilo

do primário, que eu escrevia bem, que tinha vindo junto, e, vida escolar
afora, continuaram dizendo. Mesmo assim, fiz vestibular para o curso
de Letras porque eu queria aprender a escrever para ser escritor, ou seja,
não acreditei neles, pois ninguém tinha me dito que escritores precisam
aprender a escrever para escreverem. Isso é o que deve ter vindo junto:
minha particular disposição para o exercício da escrita e para o apren-
dizado da escrita, que opinava que eu devia aprender a escrever em vez
me contentar com o que tinha vindo junto.
Mesmo depois que tomei consciência de que o curso de Letras
não ia me ensinar a escrever, pelo menos não em português, continuei
dizendo que não queria ser professor; queria ser escritor. E escrevia e
mostrava pros colegas que escreviam, que mostravam o que escreviam,
e trocávamos impressões, palpites, críticas. Eu não queria ser professor:
só dei aula de Inglês, por um semestre, no Yázigi; por um ano na ACM,
no noturno; fui pro Rondon e pro Protásio Alves quando saí do Instituto
Estadual do Livro; aí me chamaram pro Básico da UFRGS pra dar aula
de Redação técnica: virei professor.
Não. Virei professor quando me mandaram dar aula de Redação
Jornalística, disciplina dos semestres finais do curso de Jornalismo: Tu
nunca teve aula de Redação Jornalística na vida mas tu é professor e
tu já escreveu pra jornal. Entrei numa sala de aula onde talvez nem um
jornalista teria sido bem acolhido e tive de bravatear a minha intenção –
que inventei na hora – de ensinar coisa mais importante do que redação
jornalística. Mandei escrever, recolhi, fui pra casa, li e escrevi recados em
todos os textos, devolvi pra cada um, discuti com cada um que reclamou,
mandei escrever outro texto, fiz tudo de novo, e de novo, e de novo, e
de novo. Só muito tempo depois me dei conta de que fiz isso – mandar
escrever pra eu ler e comentar – porque era isso o que eu tinha: muita
leitura. Eu tinha lido muita coisa boa entre 1950 e 1974 para comparar
com o que eles escreviam e pra arriscar palpites sobre como deveriam
escrever.

879
gramática e estilo

Aí, em algum momento dos meados dos anos 1980, achei que algu-
ma interessante repercussão pedagógica poderia decorrer de eu mesmo
me meter a escrever aqueles textos que eu andava botando os alunos a
produzir. Não apenas escrever mas também ler em aula para discuti-los.
E fiz isso nas aulas de Redação Jornalística, para alunos que já estavam,
no mínimo, fazendo estágio em jornais. Presumia eu que, por causa
disso, eles teriam condições de comentar esses textos mais de igual pra
igual, de arriscarem alguma crítica mais contundente. De fato, como
muito argutamente percebeu o Alfredo dez anos depois, o professor era
bacaninha e escreveu sua apresentação pessoal, relatou um aspecto do
seu cotidiano e sua emoção forte. Li em aula e discutimos.
Então, escrevi, com especial capricho, o próximo da lista: contar
um acontecimento que produziu um aprendizado – e levei para a aula
seguinte. Cheguei um pouco antes do início da aula, entrei na sala, sentei
e tirei o manuscrito da pasta. Um grupo de alunos, pedindo licença (?)
– Queremos falar contigo – entraram e sentaram:

– A gente queria que tu não lesse mais os teus textos em aula.


Machadianamente, caí das nuvens:
– Qualéééé? Por quêêêê?
– É que a gente vai acabar ficando muito influenciado pelo teu jeito
de escrever.
– Como assimmmm? Vocês não têm nenhum pudor de passar o tempo
todo imitando o Luis Fernando Verissimo e agora não querem nem
o ouvir o texto do professor??? Sabe o que que pode acontecer se
vocês chegarem escrever como eu? Ces vão passar a escrever, no
mínimo, muito bem.

Não passei bem depois disso, mas, como eu já tinha dito o pior que
eu conseguiria formular, o assunto estava encerrado. Esse texto – com o
título E o que somos agora, depois que viramos brasileiros? – eu revisei
para incluí-lo em Nós, os gaúchos72, coletânea de artigos organizada
72 FISCHER, Luís Augusto; GONZAGA, Sergius. Nós, os gaúchos. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1992.

880
gramática e estilo

por Luís Augusto Fischer e Sergius Gonzaga e publicado em 1992 pela


Editora da UFRGS. Fez tanto sucesso – o livro – que acabou virando o
primeiro de uma série que se completou com Nós, os ítalo-gaúchos, Nós,
os teuto-gaúchos e Nós, os afro-gaúchos. Disseram os editores, meus
colegas e amigos, que o meu texto também fez sucesso, o que deve ter
obrigado aqueles meus então ex-alunos e já jornalistas profissionais a
lê-lo, correndo, de novo, o risco de serem influenciados pelo meu ali-
ciante estilo.
Tivesse eu conseguido ser mais irônico do que birrento, teria agra-
decido o elogio e lido, mesmo assim, aquele texto em aula e escrito e
lido e discutido todos os outros. Eu teria – vejam só – tal como os meus
alunos, aprendido a escrever, cumprindo, enfim, o propósito que tinha
me levado para o curso de Letras. Eu nunca tinha formulado isso desta
maneira, mas, dando aulas numa disciplina sobre ensino de Língua
Portuguesa, expondo a minha convicção de que a tarefa do professor
de Português é ensinar a escrever e deplorando a choramingação dos
alunos que o curso não tinha ensinado eles a fazer isso, eu proclamei o
meu princípio pedagógico fundamental:

Professor tem de ser o seu mais atento e interessado aluno: ensinem-


-se o que não ensinaram pra vocês.

Sendo assim, como professor do aluno que sou eu, recomendei


E o que somos nós, agora que viramos brasileiros? para publicação
em Nós, os gaúchos porque, desde a primeira versão, eu achei esse
texto muito interessante. Vou botar aqui esse texto desse meu aluno
e comentá-lo dando concretude àquele meu princípio pedagógico
fundamental.

881
gramática e estilo

E o que somos agora, depois que viramos brasileiros?

Paulo Coimbra Guedes73

Copa de 82: aquela nossa maravilhosa seleção ganhava da Ar-


gentina a “final antecipada”, aquele terrível jogo que, se não tivesse
esgotado todas as energias do time, teria sido registrado como o mais
memorável de toda a história do nosso futebol. Maradona entra de sola
na barriga do Batista, a família e os comentaristas explodem em revolta
na sala. Minha bronca com santas indignações unânimes ou a cena de
Batista, um gaúcho, rolando como um cachorro atropelado, visivelmente
exagerando as contorções de dor, como teria feito um carioca qualquer,
o que me terá levado a comentar que eu “entendia o Maradona”? Meu
cunhado, que era editor-assistente do velho Correio do Povo, me mandou
pra máquina, que ele me garantia trinta linhas. Em vez disso, intimei
meu pai, velho fronteiriço: aquelas histórias de São Borja?
Meu pai, que não tinha nenhuma vocação de troglodita, contava
que, em domingos alternados, o time de São Borja ia jogar em Santo
Tomé, do outro lado do rio Uruguai, na Argentina, e o de Santo Tomé,
em São Borja, e a torcida de um corria o time e a torcida do outro a
taquaraços até o porto. Falava do negro Neco, “muito melhor do que o
Pelé”: não caía nunca, por mais pau que tomasse. Na pequena área, o
goleiro batia sempre com as duas mãos e com os dois joelhos ou levava;
sola ele só ficou sabendo que era falta já em Porto Alegre, assistindo jogo
do Grêmio na Baixada. Era uma doce criatura o meu pai, que me dizia
pra nunca deixar de revidar porrada na rua, se não quisesse apanhar
em casa também. Sorte minha, que nasci em Porto Alegre: dos meus
primos de São Borja e do Itaqui exigiam pelo menos uma demonstração
de machice de hora em hora.

73 GUEDES, Paulo Coimbra. E o que somos agora, depois que viramos brasileiros? In: FISCHER,
Luís Augusto; GONZAGA, Sergius. Nós, os gaúchos. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1992.

882
gramática e estilo

Pois eu, que nasci em 42, também sem nenhuma vocação pra tro-
glodita, passei toda a minha primeira juventude sem ver muita diferença
entre ganhar no jogo e ganhar no pau. E a minha tese é a seguinte: a
partir de 1958 nós começamos a deixar de ser platinos. A televisão
é que nos fez brasileiros. E éramos platinos não apenas porque aqui
se ouvia mais tango do que samba, porque se ia mais a Montevideo e
Buenos Aires do que ao Rio e São Paulo; nem por causa de nosso en-
gatilhado separatismo, que essa foi uma oportunidade definitivamente
perdida em 1845, sobrevivendo apenas como reserva de ressentimento,
expressando-se, por exemplo, naquele também memorável empate em 72
entre a seleção brasileira e a gaúcha, quando, mordidos pela ausência
até mesmo do tricampeão Everaldo na seleção que disputaria a Copa do
Sesquicentenário da Independência, proclamamos, no Beira-Rio lotado,
que o Brasil era um país que se estendia do Oiapoque ao Mampituba74.
Foi coisa do futebol e nem mesmo nos impediu de saudar Paulo
César Carpegiani como o único a se salvar naquela ridícula seleção de
74 e alegar com razão que perdemos a de 78 porque o pedante tecno-
crata Cláudio Coutinho (que Deus o tenha numa guampa de mijo, dizia
o meu também fronteiriço avô) não convocou o Falcão. Bom, em 1978,
já jogávamos futebol brasileiro, e a prova é que o Colorado bicampeão
era chamado de time europeu, e seu capitão, o chileno Figueroa, era
considerado um gentleman.
E a unânime e chorosa condenação à deslavada sola de Maradona
era a prova de que já não éramos platinos, de que já não reconhecíamos
naquele gesto – inútil e desleal, por certo – a reserva de gana, de raiva,
de – ouso dizer – furiosa e brutal dignidade do degolado que xinga –
também inutilmente – a mãe do degolador. O mitológico negro Neco do
XIV de Julho de São Borja do meu pai, além de não cair, teria batido com
as duas mãos na barriga, provocando Maradona a dar outro pontapé
74 Rio que separa o Rio Grande do Sul de Santa Catarina, perto do litoral. Só mais pro interior é
que os rios Canoas e Pelotas formam o rio Uruguai, que também separa o Rio Grande do Sul
do Brasil, além de separar da Argentina e do Uruguai, e que, tal como aos uruguaios, nos faz
também orientais.

883
gramática e estilo

de perdedor, mas, vinte e quatro anos depois de 1958, o gaúcho Batista


já era um brasileiro.
Em 1958, eu estava fazendo dezesseis anos, arrumando a primeira
namorada e saindo do Ginásio. Ou seja: os dados com que tentava cons-
tituir minha identidade eram legitimamente gaúchos, mas em 58 vivíamos
um decisivo momento também para a constituição de uma identidade
brasileira: ganhamos a primeira Copa do Mundo, jogando com o jeito
brasileiro, depois de termos perdido a de 50 pela falta de jeito platino
dos brasileiros. No rádio tocava bossa-nova, tinha a nascente indústria
automobilística e Brasília; logo veio o cinema novo, o teatro popular, a
MPB e toda a agitação cultural e política que culminou no Golpe de 64,
todo um apelo de brasilidade que deve ter amenizado o árduo trabalho
de constituição de uma identidade pessoal gaúcha, e que, no mínimo,
tornou impensável a constituição de uma identidade cetegista.75
Depois veio o Golpe e a modernidade galopante do “milagre” e o
trabalho sob o arrocho; o encaminhamento da resistência e a vida pra
viver, e, enquanto nos mantinham ocupado com isso, a televisão nos abra-
sileirava não só com programas de auditório e telenovelas, mas também
com o jornalismo, as entrevistas, os festivais e a discussão ao vivo entre
a MPB e os Tropicalistas, com a renegada Elis Regina chiando no meio
de cariocas, paulistas e baianos. Até os vigilantes da tradição tinham
aderido, mateando76 despudoradamente na frente das câmeras. Se em
58 eles pareciam retrógrados, agora estavam anacrônicos. E, então, os
Setenta chegavam à primeira crise do petróleo, e perdemos a Copa de
74, e aquele fantástico time do Colorado se armava, e os brasileiros já
não estavam mais tão charmosos. Aí, em 75 descobri que sou gaúcho.
Não que eu renegasse oficialmente, de jeito nenhum. Sempre tive
nojo de quem voltava do Rio falando você, e nunca deixou minha gar-

75 Cetegista é o adepto da ideologia dos Centros de Tradições Gaúchas, que se organizam ad-
ministrativamente como se fossem um tradicional latifúndio pecuarista, em que o dirigente
maior é chamado de Patrão, o segundo de Capataz e os demais de Peões.
76 Tomando chimarrão, aquela coisa.

884
gramática e estilo

ganta de se apertar ao som dos poemas de Aureliano de Figueiredo


Pinto; falo tchê, tomo chimarrão e jamais xinguei nossa sociedade
de provinciana como fazem os gaúchos que querem ser reconhecidos
como cosmopolitas só por assim adjetivá-la. Reneguei o cetegismo: o
sotaque, a bravata, a comilança, a faca na cinta. Não falo aos gritos,
não danço a chula, não cultivo a grossura, embora tenha concebido a
fantasia ufanista de desembarcar no Rio de Janeiro de camisa vermelha
e boné branco com o distintivo do Inter bicampeão em 76. Meu pudor
(gaúcho?) me impediu de passar esse vexame. E só durante um mês,
logo depois do resultado da eleição pra governador em 8277, pensei em
sair daqui batendo a porta.
Se eu dedicava algum pensamento a essa questão, é possível que eu
achasse até que via com madura ironia a cultura que compartilho com
meus conterrâneos, mas a gente só enxerga mesmo quando estranha,
como aquele francês, meu professor no Curso de Letras, acusado de
veado no bar da Filosofia por um brasileiro, também meu professor:
“Essa gesticulação frouxa de antebraço, essas torcidinhas de pescoço,
esse jeitinho de caminhar com os braços esticados”. Respondeu ele:
“E vocês, brasileiros, que ficam o tempo todo coçando as bolas em pú-
blico?” Como assim, coçamos as bolas em público? Ele nos desafiou a
caminhar por aí e olhar. Olhamos, e ele tinha toda a razão: eram muitos
os brasileiros que coçavam as bolas conversando na rua, tomando cer-
veja nos bares e até falando com as moças. Só daí por diante passei a
reparar – porque me chamaram a atenção – que nós coçamos as bolas
em público, e o francês só reparou porque não estava habituado a esse
grotesco espetáculo. Veio para uma cultura de coçadores públicos de
bolas de uma cultura onde certamente só se as coçam privadamente78.
77 Ganhou o cara da ditadura porque PMDB e PDT saíram com candidaturas próprias, em vez
de se juntarem.
78 Apesar de tudo o que está estabelecido em 5.3.2.7 Voz passiva sintética, esta oração – onde
certamente só se as coçam privadamente – tem muito jeito de voz passiva. Acho que pode ser
por causa do jeito culto e formal com esse pronome oblíquo – as – que faz a coisa coçada vir
antes do verbo e também por causa do evidente consenso a respeito da circunstância de que
as bolas são coçadas; não se coçam reciprocamente, nem é o se que coça as bolas.

885
gramática e estilo

Aí fui passar um mês de fevereiro, com carnaval e tudo, em Salvador,


com a Denise, minha companheira então. Viajamos com pouca grana;
ficamos, por isso, num pequeno hotel no Centro da cidade, perto do
Elevador, da Praça Castro Alves, da Praça da Sé, da Igreja da Ordem
Terceira de São Francisco e de outros personagens de Jorge Amado, de
Caetano Veloso e de cartão postal. Salvador tem o dom de corresponder
a toda propaganda que os baianos fazem dela, até porque – desconfio
– os baianos estão sempre atentos a cada nova virtude alardeada por
seus poetas para cumprirem-na rigorosamente na frente de cada turis-
ta. Chegou o Carnaval, e deslumbrávamo-nos que pudéssemos passear
no meio do povo, sem nenhum problema, cercados de tanta simpatia e
cordialidade. Passamos, por exemplo, o sábado de Carnaval todo ele na
Praça Castro Alves, comendo caranguejos, bebendo cerveja e correndo
atrás de trios elétricos sem nenhum incidente do tipo dos que costumam
ocorrer aqui de quinze em quinze minutos em qualquer baile de carnaval.
Lembrei – e comentamos – a teoria que Erico Verissimo expõe no
Tempo e o Vento a respeito do machismo do gaúcho: uma colonização
de escassas mulheres, de guerreiros sempre necessitados de defender
seu rabo e, quando fosse o caso, também seu rabo de saia de qualquer
olhar mais desesperadamente guloso. Me olhou ou olhou pra minha
mulher já saímos na faca. Aqui na Bahia não – dizia eu – aqui nunca
faltaram índias, negras, mestiças, mulatas e também branquelas, aque-
las órfãs que o Rei mandava para casarem, à disposição de todos. Pra
que brigar? É só estender a mão, que alguma deve estar passando. E,
de fato: se ela se afastava um pouco e alguém ficava olhando, bastava
eu chegar perto pra ele cair fora e ainda sorria pra mim, simpático e
aprovador. Equacionada assim essa questão, foi bem mais agradável
curtir a Bahia, o Carnaval, o Mar, o Trio Elétrico, o Caranguejo Cozido
e as outras instituições baianas de verão.
Aí, no dia seguinte, Domingo de Carnaval, fomos ver a Igreja do
Nosso Senhor do Bonfim, passeamos e, perto do meio-dia, pegamos um
ônibus para voltar ao Centro. Sentamos na parte de atrás, antes da roleta,

886
gramática e estilo

e ali ficamos conversando, pois íamos descer uma ou duas paradas antes
do terminal, e o ônibus estava vazio. Pouco depois, entrou um bando de
uns dez, um pedaço de um bloco de carnaval todos vestidos com mor-
talhas do mesmo pano, muito bêbados. Passaram por nós, espalharam-
-se pela parte da frente do ônibus, e um deles, o mais gritão e agitado,
sentou-se em cima da mesinha do cobrador, com os pés na roleta. Uma
tétrica certeza tomou conta do meu coração: é hoje que eu apanho. E
muito. Quando quisermos passar aquela roleta, eles vão mexer, botar
a mão, e eu vou ter que sair no braço, e eles vão me massacrar. Falar
com ela, a gente sai correndo pela porta de trás, assim que ela se abrir,
claro que não, o que ela vai pensar de mim? Que eu estou com medo de
ser chutado, esfaqueado por esses capoeiras aí? Nunca. Como naquele
conto do Borges, o Nordeste quer que eu lute. E continuei conversando:
para um condenado, disfarcei com dignidade.
Aí estávamos chegando à nossa parada. Me levantei, puxei ela pela
mão e falei com o cara de cima da roleta com aquele tom de voz – para-
fraseando o general Flores da Cunha – nem tão decidido que pudesse
parecer provocação nem tão humilde que pudesse parecer covardia:
“Õ amiguinho, dá uma força aí pra gente passar.” “Claro”, disse ele.
“Ô, seus vagabundo, vamos sair da frente aí pro casal passar”. E os
vagabundos saíram da frente, nos sorriram, um deles me ofereceu uma
bolacha. Mario Quintana diz que o receio de sermos vistos não chega
a ser vergonha; vergonha é o que sentimos no escuro. E a minha cara
irradiava ondas de calor. Denise continuava falando, nem reparou no que
eu sentia ali, no claro, pois o sol nos botava todos igualmente vermelhos.
Eu gostei muito de não ter sido massacrado na Bahia e reconheço
que, brasileiros, não precisamos dar e levar tanta porrada e que, sem
dúvida, esse é um ganho pra comemorar, assim como acho muito mais
divertido dançar lambada mexendo a bunda do que saltitar furiosamente
numa rancheira, mas não consigo perdoar o Batista por aquele eficien-
te contorcer-se de brasileiro nem aturar o jeito como os brasileiros
desculpam-se de serem brasileiros dizendo que, afinal, são brasileiros.

887
gramática e estilo

E acho mesmo que, nós, gaúchos, estaremos para sempre isentos, pelo
menos, dessa “descontração”: na Província da Fronteira da Colônia
nós não vivemos nossa identidade; nós a sofremos, mesmo quando fun-
damentamos nosso discurso sobre ela em dois tão brasileiros temas:
futebol e mulher.

Os leitores de um livro que trata de Nós, os gaúchos que expec-


tativas podem conceber a partir do título E o que somos agora, depois
que viramos brasileiros? O que pergunta essa pergunta que afirma que
viramos brasileiros? Para os leitores que o texto não teve na sala de aula
para a qual foi escrito, que sabiam que o texto trataria do aprendizado
proporcionado por uma situação vivida por seu autor, o que esse título
antecipa? Que viramos brasileiros e, por causa disso, viramos o quê,
mesmo? Bem intrigante este título.
E que tem a ver com nós, os gaúchos a cena familiar em que o leitor
é atirado no sofá da sala para assistir uma grosseira bagacerice perpetra-
da por um craque indiscutível de rara lucidez política, na Copa perdida
pela melhor seleção brasileira todos os tempos? Surge, então, a primeira
pista, que é muito tênue: o narrador relativiza a brutalidade (ele entende
o Maradona) e lamenta que um gaúcho tenha agido como um carioca
qualquer. Isso emenda com o meu pai na fronteira de antigamente, onde
reinou o negro Neco, que não caía nunca.
Só no terceiro parágrafo chegamos à segunda pista: 1958, quando
começamos a deixar de ser platinos. A televisão é que nos fez bra-
sileiros, apesar do futebol, que, 14 anos depois, em 1972, na plena
escuridão da ditadura, nos botou naquela manifestação separatista
no Beira-Rio, que acabou em passeata, com a polícia acompanhando
de muito longe.
Os dois parágrafos que seguem esclarecem, pelo menos, a questão
identitária do futebol, ou melhor, narram a diluição daquela identidade,
ao longo de duas décadas, na geleia geral do campeonato nacional do

888
gramática e estilo

futebol brasileiro: vinte e quatro anos depois de 1958, o gaúcho Batista


já era um brasileiro.
E aí, só no sexto parágrafo, o texto retoma o narrador e o marco
temporal já estabelecido – Em 1958, eu estava fazendo dezesseis anos.
Os leitores que o texto não teve poderiam achar que aí começaria o
cumprimento da pauta – o aprendizado de uma lição significativa por
causa de um acontecimento em que o narrador participou – mas, pros
leitores do texto no livro, isso não fez diferença alguma. Os dezesseis
anos é que fizeram diferença: a televisão estabelecendo o Brasil na sala,
as vitórias em duas Copas do Mundo, as esperanças com as reformas
de base semeadas nos primeiros anos da década de 1960, e o parágrafo
seguinte recorre à toda brasilidade construída pela cultura brasileira para
resistir ao arcaísmo da ditadura.
É no fim desse sétimo parágrafo, pros leitores do livro, que o texto
começa: Aí, em 75 descobri que sou gaúcho. Vem uma contextualização,
que desemboca onde certamente houve quem largasse imediatamente
a leitura: Reneguei o cetegismo: o sotaque, a bravata, a comilança, a
faca na cinta. O cetegismo não é só isso, argumentariam com razão. Pra
amenizar o que a sequência do parágrafo deixa pior, o texto volta a uma
cetegice79 futebolística concebida pelo narrador: a bravata de desembarcar
de vermelho no Santos Dumont, no Galeão ou na Rodoviária do Rio.
Fazendo a transição entre esse preâmbulo e a narração do pro-
priamente dito acontecimento que produziu um aprendizado, no nono
parágrafo, o narrador recorre meio selvagemente a uma antropologia de
boteco, ou melhor, de bar da faculdade. Colorindo um pouco – pra moral
da história ficar mais clara – uma conversa que ouvira entre um profes-
sor seu e um professor visitante, na mesa ao lado, o narrador abusa da
concretude com as bolas coçadas em público. A história é boa, contada
sem as mediações que os tempos correntes passaram a recomendar para
79 Antecipando uma referência ao que ainda vem pela frente, é bom lembrar que Elis Regina,
respondendo a uma cobrança de gente daqui reclamando que ela tinha esquecido as raízes ou
coisa que o valha, lascou: eu nunca disse que eu ia pro Rio fundar um CTG.

889
gramática e estilo

tratar de certas referências feitas nela. De todo modo, essa história é muito
esclarecedora, tanto do que já está dito quanto do que vem pela frente.
A narrativa do acontecimento, com o aprendizado que aportou,
começa no décimo parágrafo, que apresenta as personagens – o
narrador e sua companheira – e o cenário: Salvador, no Carnaval de
rua. Depois da descrição vem uma comparação entre a complacência
baiana com o direito das mulheres alheias escolherem outro que não
o que se interessa eventualmente por ela e o embestamento gaúcho na
compulsão por reafirmar permanentemente o seu direito à proprieda-
de. Essa observação cria o contexto para o conflito que está por vir.
E vem antecedido de fundamentação teórica: Erico Verissimo
explica no parágrafo 11, e a gente, que leu, entende a diferença,
que tranquiliza a nossa cabeça, que relaxa. Relaxa até que, no dia
seguinte e no parágrafo 12, os vagabundos entram no ônibus: baixa,
então, a ancestralidade farrapa, e o guri cagado de medo estufa o
peito pro que der e vier. Deu no que deu: os vagabundos eram os
mesmos louvados por ele no sábado, na Praça Castro Alves, mas o
nosso herói sai transfigurado da aventura. A cara, pelo menos, saiu
vermelha. Como está escrito no último parágrafo, na Bahia é melhor,
mas deve ter o seu preço.
Acho que a publicação deste meu texto exemplificativo (não
vou chamar ele de exemplar) em Nós, os gaúchos não foi um contra-
bando da minha sala de aula pra lá. O texto propõe que, mesmo que
eventualmente a gente passe vergonha no escuro por causa de nossa
identidade gaúcha, não se trata só de sofrer com ela como sofrem os
cetegistas 24 horas porque nós, que não somos tão... – tão o quê? –
como eles, podemos também descansar na sombra da nossa identidade
brasileira. Além disso, eu gostei de ter escrito isto porque este texto
me proporcionou a alegria de me ter esclarecido existencialmente e
de ter organizado o seu conteúdo num modo instigante e ardiloso de
puxar e empurrar o leitor até o fim. Além disso, e principalmente, me

890
gramática e estilo

convenceu de que escrever sobre isso – experiências que produziram


aprendizado – só podia estar fazendo muito bem para os meus alunos.

7.3 PARA ALÉM DAS QUALIDADES DISCURSIVAS

Não disponho de um teste ou de um exame de proficiência ou coi-


sa que o valha que comprove que tais e tais alunos já estão escrevendo
textos e não mais redações escolares e que os outros que não estes ainda
estão enredados nelas, nem vou me ocupar disso. Quem já produziu, leu
e discutiu os 12 temas de Da redação à produção textual certamente já
foi, no mínimo, alertado para necessidade de arriscar-se a cumprir essa
travessia. O professor só ensina; quem aprende é o aluno. Além disso,
é convicção minha que da tarefa de escrever sobre esses temas, dos
quais costumam brotar textos úteis e interessantes, ninguém sai como
entrou, como tentei demonstrar nos comentários que fiz a Atextamentos
e atestações. Ou seja, há, no mínimo, um que escreveu antes e outro que
escreve depois.
Além daquela disposição para escrever, além da convicção de que
escrever é útil, além da vontade de expressar-se por escrito, há uma
necessidade objetiva de escrever por demandas da sociedade em que
vivemos. Há, além disso, uma tecnologia tal que nos leva a conjeturar
se a expansão do uso da língua escrita não se deve primordialmente a
esses avanços tecnológicos. É só imaginar-se ou usando uma talhadeira
e uma marreta pra escrever numa pedra ou usando uma Bic para escrever
numa folha de papel. Ou comparar a trabalheira que dá escrever uma
carta, envelopar, levar no correio, comprar selo, colar e botar na caixa de
coleta, ir para casa curtir a espera da resposta, com o conforto de, em vez
disso, digitar no tecladinho do celular e postar para a mensagem chegar
instantaneamente na tela do destinatário. Já pude observar que a ortografia
não é empecilho para muitas das necessidades que se resolvem com o
WhatsApp. Na verdade, o WhatsApp, que está alojado no aparelho que
veio simplificar a comunicação enviando longe a fala para nos poupar da

891
gramática e estilo

escrita da carta e dos trâmites correlatos, mostrou – o WhatsApp – que


há circunstâncias em que é mais confortável mandar pra longe a escrita
em vez da fala.
O que vem depois do programa de Da redação à produção textual é
a prática da escrita do texto, ou seja, repetindo o que afirmei na primeira
frase deste último capítulo, vamos escrever cada uma das frases com que
o compomos e cada uma das frases que nos levaram às frases com que o
compomos. São frases que narram, descrevem, explicam, argumentam,
botam em ordem, recomendam, perguntam, exortam. Frases que se en-
cadeiam seguindo a orientação de um dos tipos relativamente estáveis
de enunciados, que, se não estão todos em suas infinitas manifestações
armazenados na cabeça de todos nós, estão acessíveis à nossa leitura nos
arquivos dos escritos deste mundo. Sem contar que eles são infinitos
justamente porque estão sempre ao alcance de nossa necessidade de
inventar mais um deles.
De fato, narração, descrição, dissertação, exposição, prescrição,
regramento não fazem parte do mesmo conjunto em que estão testa-
mentos, contratos pré-nupciais, declaração de intenções, projeto de
dissertação de mestrado, crônicas, atestados de antecedentes crimi-
nais, resenhas, agravos de instrumentos, pedidos em namoro, atas de
reunião de condomínio, orações para quebrar feitiços e outros tipos
relativamente estáveis de enunciados. Não são gêneros do discurso.
Jean-Michel Adam (1990)80 designa esse conjunto de sequências – se-
quências narrativas, sequências descritivas, dissertativas, injuntivas,
dialogais, etc. – porque ocorrem dentro dos textos para dar conta da
necessidade de, por exemplo, narrar em um habeas corpus, que vai ter
principalmente que argumentar pela soltura do indiciado. Do mesmo
modo, pode ocorrer a necessidade de descrever uma cena para funda-
mentar a solicitada soltura.
Enfim, acho muito adequada a designação de gêneros que Bakhtin
80 ADAM, Jean-Michel. Élements de linguistique textuelle. Liège: Pierre Mardaga, 1990.

892
gramática e estilo

(1997, p. 301) propõe aos infinitos tipos relativamente estáveis de enun-


ciados, que

[...] nos são dados como nos é dada a língua materna,


que dominamos com facilidade antes mesmo que lhe
estudemos a gramática, pois que nós a adquirimos me-
diante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos
durante a comunicação verbal viva que se efetua com os
indivíduos que nos rodeiam.

Acho também muito útil a designação de sequência atribuída por


Adam ao que outrora foi chamado de gênero – narração, descrição, dis-
sertação – até porque esclarece sua similitude funcional com o que nunca
chegou à categoria de gênero como a instrução, o diálogo, o conselho, etc.
Nossa leitura, orientada pela comunicação verbal viva que se efetua
com os indivíduos que nos rodeiam já está, desde muito cedo, habilitada
a reconhecer a relativa estabilidade dos enunciados que frequenta. Não
terá, por isso, dificuldade de perceber que, nos gêneros com que está
começando a tomar contato, as frases fazem genericamente as mesmas
coisas que faziam nos gêneros já conhecidos. Das especificidades que
contrariarem essa generalidade, o leitor vai tratar de se informar, como
já se acostumou a fazer durante essa comunicação verbal viva.

7.3.1 O necessário exercício da narração

Trata-se, então, de botar os alunos a escreverem cada uma das frases


necessárias para fazer o que as frases precisam fazer para encordoarem-se
de modo a compor o texto. Para tanto, nas disciplinas subsequentes, nos
dedicávamos a narrar e a dissertar em textos em que descrição, exposição,
instrução, argumentação, tergiversação, peroração, insulto, adulação e
outros tipos de sequências também podiam ser necessárias. A partir da
convicção de que texto e narração têm em comum o que começa, anda,
se desenvolve na direção de um fim, de uma finalidade, tratávamos de

893
gramática e estilo

praticar a narração em um grau crescente de complexidade, incorporan-


do a necessidade de agregar outros tipos de sequências às sequências
narrativas.

1 Um dia na vida de...: o texto que decorre deste tema junta a


apresentação pessoal e o relato de um aspecto do cotidiano. É sempre
interessante reescrever um texto (no caso, dois em um) numa versão
que exige mais complexidade. Vai ser necessário criar um narrador
para apresentar um personagem e descrever um cotidiano compatível
com ele. Foi essa proposta de texto que gerou O último pedido, o dia do
aniversário de 30 anos da freira carmelita, narrado, adequadamente, à
revelia do costume, no presente do indicativo.
2 Uma viagem feita por dois personagens narrada em primeira
pessoa por um deles: este texto tem naturalmente começo, meio e fim:
coincidem com o início, o transcurso e o fim da viagem. O desafio nar-
rativo aqui é o narrador dar ao seu acompanhante o estatuto de persona-
gem, pondo-o a agir. Ele não pode ficar parado como um elemento da
paisagem. Entre eles deve haver um conflito para que haja uma história
digna de ser contada, ou, então, um conflito entre eles e outros viajantes
ou entre eles e os nativos. Esses requisitos, além de renderem interes-
santes discussões sobre narrativa, ajudam a tornar mais complexos os
textos a serem produzidos.
3 Um triângulo amoroso: esse enredo impõe um conflito e acres-
centa necessariamente um terceiro personagem, o que aumenta as exi-
gências de que o narrador tem de dar conta. Vai ser necessário escolher
o narrador e determinar a relação entre o tempo da narração e o tempo
do acontecimento. Além disso, processa uma experiência pela qual a
maioria passou, passa, vai passar ou, pelo menos, está sujeito a.
4 Um grupo de pessoas enfrentando juntos uma dificuldade: esta
história implica um cenário e sua necessária descrição; além disso, há um
aumento da quantidade de personagens – é bom exigir mais de três – e,

894
gramática e estilo

consequentemente, a dificuldade de manejá-los. Vai ser necessário dar a


cada um deles uma função na história e um papel dentro do grupo, além
de descrevê-los para distingui-los uns dos outros.
5 Desenvolvimento de um mesmo enredo por todos: trata-se de
construir coletivamente um enredo ou adotar um enredo conhecido, e
cada um produzir a sua história seguindo-o e preenchendo-o. Possibilita
um estudo da diferença entre o enredo e a narrativa e permite a criação
de várias histórias.
6 Recontar uma história já conhecida sob um outro ponto de
vista: todos recontam alguma reconhecida história clássica com a in-
tenção de expressar uma outra opinião, uma outra mensagem sobre ela.
Pode-se pensar em paródia, em atualização, mas a discussão essencial é
a finalidade com que se conta uma história.
7 Inventar uma continuação para uma história conhecida: trata-
-se de projetar personagens conhecidos que saíram de um mesmo enredo
para situações diferentes das que já teve de enfrentar na história original.

Narrar, vou repetir, não é uma necessidade apenas de jornalistas


e de literatos nem a descrição é uma eventualidade para, por exemplo,
delegados de polícia, que precisam descrever cenas, nem para antropó-
logos, que precisam dar conta da análise dos costumes dos povos que
observam, nem para agentes de segurança de trabalho, que precisam ser
minuciosos no relato das circunstâncias em que os acidentes ocorreram.
Todo mundo precisa botar alguma cronologia em algum evento, ressaltar
a importância de alguma disposição do cenário e da cena. Todo mundo
precisa botar uma certa cronologia na própria vida, salientar o que foi
relevante, esmiuçar o que ainda perturba, dar o devido valor ao que de-
cidiu rumos. Todo mundo precisa aprender a botar atenção em detalhes.
Quando escrevi minha tese sobre ensino de Língua Portuguesa, senti
a necessidade de relatar – não só para a banca examinadora e para os meus
outros eventuais leitores mas, principalmente, para mim mesmo – que

895
gramática e estilo

espécie de professor de Português eu vinha sendo até então. Descobri,


entre outras coisas, que foi a minha relação pessoal com a língua escrita
que orientou minha concepção a respeito da finalidade de ler e escrever
e, consequentemente, a respeito do ensino da língua escrita: esse foi o
meu primeiro capítulo.
Depois, quando comecei a lecionar disciplinas que tratavam disso
ou de temas correlatos, passei a solicitar aos meus alunos a escrita de
um texto a respeito da relação que vinham desenvolvendo ao longo de
suas vidas com a língua escrita porque achei que isso seria igualmente
esclarecedor para eles. Nesse texto é necessário narrar, descrever, expor,
expor-se, conjeturar, argumentar, etc. Já apareceram aqui vários desses
textos produzidos por alunos de graduação em Letras ou por professores
de Português formados cursando especialização em texto, em ensino de
Português, em ensino de revisão e produção de textos. Aqui vamos exa-
minar um texto de um aluno de graduação, que nos conta uma história
original, narrando, descrevendo, expondo. Este texto foi escrito em 2018.

A palavra escrita e o que se passa pela cabeça

Gibran Ayub

A mais antiga lembrança que tenho da minha relação com a pa-


lavra escrita se baseia em uma sensação quase infantil demais para
ser recuperada pela memória. Essa lembrança é a de ler um livro pela
primeira vez, ou melhor, ler sozinho um livro razoavelmente longo pela
primeira vez. A sensação, fruto de uma mente muito bem condicionada
pela televisão, era a de ter um filme se passando dentro da minha cabeça.
Na verdade, essa leitura foi, por assim dizer, questão de honra.
Lembro-me de, nessa época, passar as manhãs despreocupadas da infân-
cia deitado no sofá, assistindo ao Sítio do Picapau Amarelo na televisão,
até que, por algum motivo, a série deixou de ser transmitida, substituída

896
gramática e estilo

por algum programa de gente grande. Fiquei ultrajado. Felizmente, não


demorei a descobrir, através de minha mãe, que a série existia porque
existiam livros do Sítio, todos eles disponíveis na biblioteca, logo na
esquina do trabalho dela. Foi o suficiente: se não tinha mais a série, fui
em busca dos livros, que descobri serem bem mais grossos do que os
costumeiros livros de fábulas infantis. A natureza contínua dos livros
do Sítio, com uma aventura sucedendo a outra, me levou sempre para o
volume seguinte, e ler virou um hábito. De fato, a série que não passava
mais na televisão passava agora, ainda que de outra forma, em minha
mente.
A criança acometida por essa sensação – deslumbrada com sua
descoberta mas ainda não possuidora de um vocabulário lá muito exten-
so – não saberia descrevê-la mais refinadamente do que isso: um filme
dentro da cabeça, e só. Agora, conhecendo algumas palavras a mais, eu
tento. Quando me senti assim pela primeira vez, fiquei imediatamente
empolgado porque fiquei imediatamente surpreso. Eu jamais imaginaria
ter diante dos meus olhos linha abaixo de linha de texto estático e, dentro
da minha mente, uma galeria de imagens animadas se desenrolando tão
nitidamente quanto seria em uma TV. O efeito que a leitura causava no
cérebro, dessa forma, se mostrou tão impressionante quanto as próprias
histórias que eu já ansiava por ler. Em alguma medida, devo ter imagi-
nado, ainda, que fazia algo como protagonizar o descobrimento da roda.
Meu jovem “eu” talvez tenha acreditado ter decifrado o segredo dos
livros e, portanto, ser o seu detentor: ninguém mais saberia reproduzir
um filme mentalmente, não como eu.
Depois disso, uma vez acostumado com a habilidade recém-
-adquirida, seguindo, aos poucos, para volumes maiores, que exigiam
marca-páginas, passei a gostar da possibilidade de reproduzir e parar
esses filmes a meu bel-prazer; apanhava os livros na biblioteca e,
sempre que necessário, parava a leitura com um marcador, algo que
não poderia fazer com uma série de TV. É claro que, passada mais de
uma década desde essa infância no início dos anos 2000, já é possível

897
gramática e estilo

parar a série como se “para” o livro: durante a reprodução de um


título da Netflix, um toque na barra de espaço do teclado funciona tão
bem quanto um marcador colocado entre as páginas do livro, durante
a leitura. De todo modo, para a criança que só assistia aos programas
de que gostava quando eles passavam na televisão – e que, sendo assim,
não podia simplesmente abandonar um episódio no meio, sob a pena de
perder algo importante –, a liberdade que vinha com os livros, de ler (e
parar de ler) quando quisesse, contribuía para que os filmes “de dentro
da cabeça” se tornassem ainda mais divertidos que os “de fora” dela.
Em pouco tempo, eu já não queria mais nem saber da ideia de
filmes reproduzidos convencionalmente, isto é, fora da minha cabeça, e
a leitura, poderosa, logo assumiu com orgulho o lugar de passatempo
favorito, antes ocupado pelos programas infantis. Não demorou muito,
também, para que eu passasse a reivindicar as histórias que lia, como
se fossem aventuras que eu vivia no momento que lia – o que, de certa
forma, elas eram. Tê-las dentro da minha mente com certeza contribuiu
para que eu me apropriasse delas, afinal. Uma vez em posse delas, não
quis mais saber de largá-las.
Como consequência, em seguida comecei a escrever. Uma atividade
talvez tenha decorrido da outra, como a transição entre o engatinhar e
o andar, ou talvez ambas tenham surgido pelo mesmo impulso desbra-
vador. Não era mais suficiente ler a palavra escrita (ou seja, escrita por
outrem); eu precisava passar a escrever também. No início, meus escritos
eram simples, de uma só página, rascunhados em folhas arrancadas
do caderno. Em sua maioria, contavam histórias de meninos de doze
anos que encontravam seres mágicos em parques, ou outras situações
fantásticas que o menino de doze anos da realidade quisesse vivenciar,
muito parecidas com aquelas vivenciadas pelos personagens do Sítio.
Se antes eu ficara maravilhado com a possibilidade de descobrir
universos inteiros através dos olhos da mente, com a escrita essa sensa-
ção ganhou uma nova dimensão. Agora, eu poderia criar tantos desses

898
gramática e estilo

universos quanto quisesse e talvez até suscitar nos outros a mesma


sensação que me despertara para a leitura. A escrita também se reve-
lou uma forma de compensar por todas as vezes que os filmes que se
desenrolaram em minha mente foram insuficientes, por todas as vezes
que eu quis interferir nas histórias que não eram minhas e não podia.
De certa forma, a escrita expandiu a experiência do leitor, com novas
possibilidades e novas formas de perceber a palavra escrita.
Essa relação, que, como todas as relações, evoluiu aos poucos e
com o passar do tempo, logo determinou que eu não poderia fazer outra
coisa na vida que não tivesse a ver com as letras. Quando criança, não
entendia muito bem o que isso significava; via minha mãe indo todas as
manhãs para o trabalho, lidando com finanças (embora só conhecesse
essa palavra de ouvir minha mãe dizê-la) porque gostava de matemática,
e perguntava a mim mesmo se isso queria dizer que, no futuro, eu iria
bem cedo da manhã para o meu escritório e passaria os dias lendo e
escrevendo porque gostava das letras. Bem que poderia ser assim.
Demorei mais tempo do que gostaria de admitir – porque parece
bem óbvio – para descobrir que o curso que eu queria seguir, um curso
que tivesse a ver com as letras, era, afinal,… Letras. Espero, um dia,
poder ensinar leitura e escrita, talvez por meio da minha própria analogia
da televisão dentro da cabeça, e, assim, proporcionar a outros a mesma
experiência libertadora que tive com a palavra escrita.

Quando ouvi, em aula, a leitura do Gibran, eu, que li antes de ter ido
ao cinema e que vivi os primeiros 15 anos da minha vida sem televisão
na cidade, no estado, recuperei a decepção que foi a pobreza realista
dos cenários em que se passavam os filmes do Tarzan em comparação
com os cenários descritos nos livros do Tarzan que eu já tinha lido. Não
só os cenários mas também as ações: a chimpanzé que interagia com o
Tarzan dos filmes era uma ridícula compensação pela falta dos gorilas
gigantes que ele enfrentava nas narrativas escritas. O cinema da minha

899
gramática e estilo

infância não dispunha dos efeitos especiais que fazem pelos filmes o que
as histórias em quadrinhos faziam pelas narrativas escritas: materiali-
zavam as lutas do Tarzan com leões, os elefantes amigos, os nativos de
orelhas pontudas, etc.
Foi muito instrutivo acompanhar o caminho inverso percorrido pelo
Gibran, que me pareceu bem mais harmônico do que o meu: o livro que
ele lia produzia um filme bacana dentro da cabeça dele; o filme que eu
via era uma versão degradada, bisonha, do livro que eu já tinha lido. Na
verdade, até hoje filme algum, novela ou série nunca botaram na tela
nem a história nem o personagem que eu conheci pelo livro, mas isso,
pelo que ouço, é comum.
O segundo parágrafo do texto ilustra uma formulação pedagógica
feita por João Wanderley Geraldi a respeito da iniciação à leitura,
algo como (sintetizo de memória): não é a história curta que cria o
leitor; o que enreda o leitor no que ele está lendo é o enredo, por
causa da vontade de ficar sabendo o que mais vem pela frente. Que
diz Gibran? A natureza contínua dos livros do Sítio, com uma aven-
tura sucedendo a outra, me levou sempre para o volume seguinte, e
ler virou um hábito.
A utilidade de escrever sobre a relação pessoal com a língua
escrita aparece a seguir: a sensação que a criança conseguia expressar
por um filme dentro da cabeça ganha, na trajetória do estudante de
Letras, a oportunidade para aprofundar a questão: Agora, conhecendo
algumas palavras a mais, eu tento... E essa avaliação evolui para
uma formulação sofisticada: O efeito que a leitura causava no cére-
bro, dessa forma, se mostrou tão impressionante quanto as próprias
histórias que eu já ansiava por ler. À tomada de conhecimento das
histórias pela leitura agregou-se o desenrolar do filme no cérebro:
é como se houvesse uma hierarquia nessa formulação. O filme que
formou o apreciador de narrativas incorporou-se à sua apreciação da
narrativa escrita quando ele passou a dedicar-se à leitura de narrativas.

900
gramática e estilo

Desse leitor de narrativas emergiu o escritor de narrativas e não um


cineasta: Não demorou muito, também, para que eu passasse a reivindicar
as histórias que lia, como se fossem aventuras que eu vivia no momento
que lia – o que, de certa forma, elas eram. Tanto eram que deram cria: Não
era mais suficiente ler a palavra escrita (ou seja, escrita por outrem); eu
precisava passar a escrever também: mais uma vez a intimidade entre o
texto e o leitor gerando o impulso dialógico. Em sua maioria, contavam
histórias de meninos de doze anos que encontravam seres mágicos em
parques, ou outras situações fantásticas que o menino de doze anos da
realidade quisesse vivenciar, muito parecidas com aquelas vivenciadas
pelos personagens do Sítio. Daí por diante, é o exercício da leitura e da
escrita que passa conduzir a vida dele.
O prosaico marcador de página mereceu uma inusitada louvação: a
grande vantagem das narrativas impressas em livros sobre as narrativas
audiovisuais seria o domínio do leitor sobre a narrativa, expressa no
poder de parar de ler e não perder nada da história, que trava, submissa,
à espera dele. Há quem julgue que, graças a esse marcador de página
e à possibilidade, mais recentemente agregada ao audiovisual, de rodar
pra trás e rever a cena, o cinema pôde passar a produzir as sutilezas das
narrativas escritas, que só se esclarecem com a releitura.

7.3.2 No âmago da dissertação

No programa a seguir, as propostas de texto exploram as poten-


cialidades da atividade de definir, que foi o ponto de chegada em Da
redação à produção textual justamente porque nesse ponto de chegada
está o ponto de partida, que é a identificação do objeto de interesse. Os
temas do início desse programa têm um ponto de partida que limita com
o modo de ser da narração.

901
gramática e estilo

1 Como foi que descobri que sou...: trata-se justamente de tema-


tizar a narração – a narração da descoberta – como o eixo condutor da
exposição, que é necessária para expressar o que o narrador julga ser. Já
o que ele julga ser implica alguma descrição e uma exposição. O que se
pode dizer a respeito de si mesmo nesse nível não é nada esotérico nem
implica necessariamente algum sofrimento até porque é possível inventar
um personagem para fazer o papel de eu. Tais textos são particularmente
interessantes para leitura e discussão em sala de aula e costumam trazer
repercussões ao longo de todo o decorrer da disciplina.
2 Nunca me senti tão injustiçado como no dia em que...: a re-
tomada da narrativa aqui é muito mais evidente porque a narrativa é
decisiva para que o leitor possa perceber o conceito de injustiça alegado
pelo autor. A discussão do texto pode levar à formulação do conceito
de injustiça/justiça que embasa essa reivindicação do autor. O trabalho
de formular o conceito é um muito interessante exercício de escrita e de
lógica, assim como a discussão do conceito formulado. O conceito que
gera o texto pode ser substituído por outro; injustiça está aqui porque
tem o potencial de produzir uma interessante discussão.
3 Expressar o significado pessoal que atribui a alguma coisa par-
ticularmente importante: já a escolha de alguma coisa particularmente
importante envolve trabalho sobre a memória e os afetos. O desafio aqui
é a concretude na atribuição do valor positivo ou negativo.
4 Atribuir um nome mais adequado a um determinado aspecto
que julga mal denominado na realidade mais próxima: aqui é neces-
sário determinar o que está com nome inadequado, explicar por que julga
inadequado, propor outro nome, justificar a adequação do outro nome. É
claro que a exposição, por exemplo, dessa inadequação pode necessitar
da narração de algum acontecimento, assim como a apresentação do que
está com o nome inadequado pode necessitar de alguma descrição. O
que é imprescindível aqui é a argumentação.

902
gramática e estilo

4 Reformular de um conceito: reformular um conceito é um


procedimento muito útil para o exercício de examinar a realidade de um
ponto de vista diferente do ponto de vista do senso comum. Envolve a
conceituação comum do que vai ser redefinido, sua descrição, a expli-
citação do ponto de vista pelo qual foi denominado, argumentação a
respeito da inadequação do conceito já estabelecido, o estabelecimento
do novo ponto de vista, a definição que decorre desse novo ponto de
vista, a argumentação a favor da nova designação. É um procedimento
complexo e não precisa seguir necessariamente essa ordem.
5 Desambiguizar uma palavra pelo esclarecimento dos seus
vários sentidos: as palavras costumam ter mais de um sentido, mas, às
vezes, com a finalidade de enganar ou de maldizer, esses sentidos são
confundidos. O trabalho, então, é estabelecer as condições de vigência
de outro(s) sentido(s).
6 Denominar um fenômeno que ainda não foi suficientemente
evidenciado para ter recebido um nome e justificar a adequação
do nome a ele atribuído: trata-se de estipular uma definição, isto é, de
denominar, definir e descrever um tipo de pessoa, uma situação, um tipo
de acontecimento que existe mas que ainda não foi nem percebido nem
denominado nem descrito. Este tema aparece desenvolvido em textos
que anunciam descobertas científicas, mas também é desenvolvido no
jornalismo para apresentar modas e maneiras que estão se tornando co-
nhecidas e notórias. Às vezes, numa conversa, quando alguém começa
uma frase dizendo Vocês já notaram que..., é bem possível que, a seguir,
venha uma descrição, uma definição e uma atribuição de nome a uma
coisa para cuja existência todos estejam sendo alertados. Se mais partici-
pantes da conversa já tinham notado alguma coisa, logo em seguida tem
muita gente colaborando com essa descrição, aperfeiçoando a definição
e sugerindo nomes para o novo fenômeno que se apresenta.
7 Como foi a relação desenvolvida com a própria cultura: neste
tema, a narrativa pressupõe uma designação/conceituação/ definição e

903
gramática e estilo

uma certa descrição, ou, pelo menos, uma apresentação de algumas das
características do que o autor considera ser a sua cultura e do que ele
entende por cultura, além de uma caracterização de sua relação com ela.

Vou comentar aqui um outro texto composto a partir da proposta


de relatar a relação estabelecida com língua portuguesa. Neste caso foi
num curso de especialização para alunos formados em Letras, a maioria
com experiência em sala de aula. Foi escrito em 2006.

Caminhos possíveis (?) para a aprendizagem de uma língua

Roque Luiz Wagner

Se alguém pensa que as piores coisas dos anos setenta e seguintes


(infelizmente, até hoje) neste país se resumem às torturas do regime
militar está muito enganado. Existem coisas armazenadas nos porões
do subconsciente da vida da gente que, de tão estúpidas e inconsequen-
tes, não deveriam nunca ser trazidas à tona. Mas, como o ser humano
tem a capacidade de rir-se até da própria desgraça (Talvez seja essa
uma forma sábia de sobreviver a elas.), e como a desgraça dos que nos
precedem pode ser caminho a não ser seguido pelos demais, te convido,
caro leitor, a remexer comigo, em escuros labirintos, os malfadados
entulhos da minha alfabetização. Cuidado, porém, porque, por onde se
ande, há cacos pontiagudos espalhados.
Para alumiar um pouco, acendamos o lampião de querosene da casa
de meus pais em 1971 e veremos redutos de imigrantes alemães no Vale
do Rio Pardo, interior do Rio Grande do Sul, comunicando-se num dialeto
germânico, respingado aqui e ali, por um falar brasileiro solavancado e
capengueado por gente ainda mais pobre e desprestigiada do que nós.
Pois nesse contexto apareceu um descendente do Hitler, em todos
os sentidos, que tinha aprendido um pouco de brasileiro para nos alfa-

904
gramática e estilo

betizar em português. Se as pretensões pedagógico-linguísticas tivessem


sido aramaico ou russo, com certeza, as dificuldades não teriam sido
maiores porque docente e discentes estariam ainda, e de novo, no mesmo
patamar de ignorância e antagonismo.
Vamos aos minutos iniciais de aula da minha vida. A sala estava
congestionada de alunos e de estantes escolares velhas (castanho-
-escuras), aquelas, cuja mesinha emendava ao assento, em que cabiam
três alunos, mas o professor enfiava cinco. Nós, da primeira série, que
não tínhamos entendido nada das coisas severas ditas lá fora na “fila
militar”, fomos cabresteados pela mão pesada e peluda do “mestre”
aos primeiros bancos; muito próximos de uma vara de marmelo grossa
que avançava palmo e meio além da mesa central do brabo e perigoso
professor. Bem como tinham-nos prevenido, nossos pais.
Sem preâmbulo, sem a mínima explicação do que seria conferir
a chamada, o Dom Casmurro, fera rosnando, começou a relacionar o
nome dos alunos, aguardando que fôssemos adivinhar responder-lhe a
presença. No entanto, ninguém pronunciou sílaba sequer. Uma angústia
silenciosa, quase mortal, inflava-nos a pele e ecoava por toda a sala.
Ninguém sabia ao certo o que ele desejava. E então, termos indecifráveis
e assustadores foram cuspidos. O professor literalmente cuspia quando
xingava.
Que começo de ano letivo! Se tivesse iniciado a chamada pela
“quarta séria” (português dele), nós, da primeira, por dedução, po-
deríamos ter macaqueado aqueles, e todos teriam se safado. Mas não.
Principiou pela “primeira séria” e arrepiou geral, de saída.
Por vários anos, mais tarde, em minhas análises psicopedagopa-
ranóicas, supus que o infeliz não tivesse pedagogia nenhuma. Hoje, no
entanto, creio, aquilo, fê-lo intencionalmente. Pedagogia? Possuía, não.
Era possuído aquele demônio. Pela truculência atroz e autoritária dos
generais do Médici e do Geisel. Só não nos afogou em latrinas infectas,
em subterrâneos, porque nossa escola não tinha subterrâneos. E a la-

905
gramática e estilo

trina, do assento de tijolo cru à canaleta que desembocava no arroio,


era seca a semana toda, graças a Deus. Só às sextas de tarde recebia
água, de balde, mas não “de barde”. “Era prá ‘rastá o material e os
sabugo usado, pro mod’ da higiene.” Mas, àquela hora, o professor só
tinha olhos pra ir embora pro fim de semana; portanto, não afogaria
mais ninguém.
Voltemos à chamada. Quando o professor baixou a vista para ler o
próximo da relação, meu irmão mais velho, “terceira séria”, assoprou
rapidinho do banco de trás que eu deveria responder presente se quisesse
presente. Mesmo não acreditando que aquele paquiderme construísse um
dia a possibilidade de distribuir presentes, ensaiei um sorriso amarelo de
criança que não chegou a tempo à latrina, e arrisquei um “pressénte”
sotaqueado com dois “s”, um acento paroxítono agudo e um “e” final
que só um alemão de raízes consegue pronunciar.
Dei-me bem (foneticamente soa melhor “me dei bem”) porque ele
me retribuiu o sorriso com um olhar não tão carrancudo. E por uma
semana alimentei a esperança de, efetivamente, porque eu tinha sido
o primeiro da primeira série a atender à sua expectativa, receber um
presente. Mas não recebi. Compreendi, no estorricado esturricado,
conforme o VOLP, sertão dos meus primeiros dias de alfabetização,
que uma palavra, presente, por exemplo, só tem sentido se inserida num
contexto. E o contexto, apesar de exigir que eu estivesse presente, não
estava para presentes.
Mas a guerra, de fato, inescrupulosa, aconteceu depois da cha-
mada. Começou a alfabetização. (Alfa e Beta são as letras iniciais do
abecedário grego.) Sem aquecimento. Sem preliminares. Jogo duro. Em
português. Para alunos brasileiros cuja língua materna era o alemão.
O professor escreveu uma palavra relativamente curta no quadro e
começou a decifração oral.
“eéssi igual aesseó igual acóélia igual alá”.

906
gramática e estilo

Nossa! Que Alá nos protegesse! Era grego mesmo o que esse cara
estava tentando ensinar. Ninguém entendeu. Ainda assim, mandou re-
petir. E repetir. E repetir. E embora tenha tentado, mais tarde, resumir
aquela incógnita por um termo menos complexo: “es cola”, nós conti-
nuamos não entendendo porque nossa língua era outra.
Lembra da vara saliente sobre a mesa? Pois meu colega lembra.
Minutos antes do recreio daquele primeiro dia de aula ele já experimen-
tara o poder de persuasão da dita (ou maldita). O assoalho ficou tão
coletivamente mijado que escorreu por cima inclusive do meu chinelo
de dedo.
Ainda assim, o baile continuou:
“émia igual a má émia til mais ê igual a maenm mamãe”.
“Pea pá mais peai tudochunto igual a papai”
P. t. que pariu! O igual e o mais podiam ter ficado de fora. Devem
ter vindo da desgraçada da Matemática para ajudar. A atrapalhar.
Desse jeito, até o final do ano. Abaixo de gritos, varadas, e tampas
de garrafa para os joelhos. Às vezes, braços estendidos segurando a
enciclopédia para aumentar o peso e a agonia.
Para os “borra-bota” que nem eu, olhares bastavam.
É óbvio que não aprendemos. Obedientes, decoramos “A vaca da
vovó” e “O zebu do vovô”. E como essas eram as últimas lições e letras
do alfabeto (grego) português, aprovado.
Nos anos seguintes vieram os substantivos (só os abstratos), os
artigos (sempre indefinidos), os verbos (todos irregulares), os tipos de
sujeito e os objetos. Tipos de sujeito, na verdade, não. Um sujeito. O
professor. Tipo, único. Objetos? Bom, os objetos eram os objetos da sala
de aula: mesa, cadeira, lápis e nós, os alunos.
E dessa forma, aos poucos, amargamente, meninos e meninas que
sabiam uma língua materna, o alemão (o guarani, o italiano, o tupi, o

907
gramática e estilo

brasileiro, e tantas outras) foram aprendendo no Brasil, pelas normas


gramaticais de Portugal, a fazer silêncio.
Trágico, isso, para a sobrevivência e a autonomia dos seres hu-
manos que engasgaram com esse angu. Mas é a história de milhares e
milhares de crianças que viveram felizes até o dia em que frequentaram
uma sala de aula.
Se o caos da humilhação e dos vergões da vara se restringisse a
uma ação isolada na década de setenta, poderíamos tê-lo até ignorado.
Todavia, infelizmente, os sulcos do normativismo e da gramatiquice
medieval de que tanto nos fala Faraco, continuam se perpetuando nas
veredas tortuosas da nossa escola. E as ações impositivas de silêncio,
mesmo que veladamente, muito mais do que se possa imaginar, continuam
ecoando nos dias atuais, na medida em que uma única língua, a culta,
a que ninguém emprega no cotidiano (nem mesmo os professores que a
ensinam), é tida como a correta.
O normativismo e a gramatiquice não são apenas concepções e
atitudes ligadas à língua e ao ensino. Pelo seu caráter conservador,
impositivo e excludente, o normativismo e a gramatiquice são parte
intrínseca de todo um conjunto de conceitos, atitudes e valores funda-
mentalmente autoritários, muito adequados ao funcionamento de uma
sociedade profundamente marcada pela divisão e exclusão social.
O ensino de português, nesse sentido, não está separado da so-
ciedade que o justifica e o sustenta. Desse modo, criticá-lo é também
criticar essa mesma sociedade; agir para mudá-lo é também agir para
transformar a sociedade. Temos que ter claro que a questão da língua
é, fundamentalmente, uma questão política e como tal deve ser tratada.
(FARACO, 2006(?), p. l5. Ensinar X não ensinar gramática; ainda cabe
esta questão? Artigo inédito.)
Similarmente ao desastre que foram os meus anos iniciais de es-
tudo, possivelmente muitas outras histórias de terror, em muitos outros
lugares deste país, devem estar registradas na memória de pessoas que

908
gramática e estilo

sentiram na infância, ao invés do carinho e do prazer da aprendizagem


de uma língua, as patas do autoritarismo gramatical e do “cala a boca”
na escola. Mais triste é perceber que essa realidade não se efetivou por
acaso nos educandários. Havia todo um submundo de perversidades
assassinas e de imposições, muito mais severas do que as que experi-
mentamos, rastejando silenciosamente por entre a sociedade brasileira.
Por fim, de todas as tristezas, a mais grave é perceber que, se desta
(as torturas do regime militar estão efetivamente banidas em nosso país.)
nos livramos, a gramática impositiva continua até hoje arraigada no
chão da escola rasgando fissuras e impondo silêncio.
Minha iniciação profissional, repentina e prematura, sem funda-
mentação pedagógica, não teria sido diferente (salvo, é obvio, o au-
toritarismo) daquela do meu professor das séries iniciais, não fossem
algumas casualidades. Aliás, antes que alguém pense que eu esteja
arrastando correntes de ódio incontido àquele, saiba-se que ele já foi,
há muito, perdoado. Até porque, por incrível que pareça, às avessas,
tenho aprendido com suas atitudes.
Exatamente dez anos depois da minha primeira aula de alfabeti-
zação eu já estava sendo jogado a uma escola para lecionar. (Em terra
de cego, caolho é rei.) Eu não sabia absolutamente nada do que devia
fazer, mas tinha uma noção clara do que não devia.
Fatalidade, ou não, logo nos primeiros dias apareceu por lá um
vendedor de livros, daqueles teimosos que, mesmo sabendo que a escola
não tem um centavo, insistem com o professor que com certeza absoluta
não tem. Mas que tem a possibilidade de, talvez em cinquenta parcelas,
ver-se livre do negociante.
Mercadoria encalhada, negócio fechado. Comprei uma coleção
de vinte e quatro livros infantis, a Pingo de gente, colorida, capa dura,
(Grande investimento; só fui percebendo mais tarde, aos poucos.) cujas
histórias passaram a ser meu argumento para matar o tempo. Hoje eu
sei o significado e a bênção que foi aquela matação de aula.

909
gramática e estilo

Lendo e mostrando as figuras eu imitava a voz das personagens: o


Lobo Mau, a Vovozinha, o Patinho Feio. E me divertia, já que em tempos
idos, nunca tivera a oportunidade de ler aquilo.
As crianças babavam...
De vez em quando eu trabalhava um pouco. Para que tivessem um
conteúdo no caderno, caso os pais olhassem. Porém, mais eu deixava
que eles desenhassem as gravuras do livro e depois escrevessem sobre
a história que tinham ouvido. Assim me sobrava tempo de decorar os
Métodos e Técnicas de Pesquisa e outras baboseiras da faculdade.
Ingenuamente, sem que as crianças nem o professor o soubessem,
nessas ações, residia a apropriação da língua portuguesa, com o in-
cremento de vocábulos novos; com sua estrutura frasal ou gramatical,
também. Contudo, esta, diluída nos contextos dos enunciados que povo-
avam o imaginário infantil. A prática da leitura de textos, tão apregoada
por Geraldi nas Unidades básicas do ensino de português, tornou-se
uma constante nas nossas aulas. Havia certa avidez renovada, dia sim,
dia não, para que eu aglomerasse a turma à mesa, a um canto da sala
ou até no pátio, para ler-lhes as histórias. Nem se importavam com as
repetidas; pelo contrário, pediam-nas.
Quando eu cansava dessa chatice, inventávamos juntos algumas
abobrinhas do antes e do depois das histórias, porque (isso todos sabiam)
uma história nem sempre, quase nunca, termina com o FIM no final do
livro. E todo mundo metia a colher. “Nas séries iniciais, a experiência
tem mostrado que, independente de qualquer pergunta do professor, os
alunos acabam falando sobre o livro que leram (e isto é o que importa)”
(GERALDI, 1999, p. 51). A oralidade corria solta. Histórias do dia a dia
e mentiras, também, estavam incluídas. E outros livros foram comprados
porque só de mentiras, não dá. Os olhinhos da gurizada brilhavam, e eu
me realizava como professor.
Ensinar português é não tratar os alunos como se devessem ter
aprendido a língua escrita antes de chegar à escola, pois eles só vão

910
gramática e estilo

poder aprender português, uma língua que não falam, na escola, lendo
uma grande quantidade de textos, expondo-se à língua escrita assim
como aprenderam a língua que falam ouvindo-a o dia inteiro por toda
parte e tentando falar como falavam as pessoas ao seu redor (GUEDES,
2006, p. 143).
As redações, estrategicamente mescladas com desenhos e carica-
turas, fluíam descompromissadas porque eu não tinha muito interesse
nem tempo, graças a Deus, de corrigir-lhes todos os detalhes. Esse era
o grande lance. Não havia cobrança. Todo mundo participava, do seu
jeito. A única competição que havia, era entre eles: para ver quem tinha
os desenhos e a letra mais bonitos. E essa disputa, salvo prova em con-
trário, era salutar. Todos aprendiam a ouvir, a falar, a ler e a escrever
em português; coisa que os gramatiqueiros da época, nem os de agora,
conseguem. As redações dos vestibulares são a prova mais cabal desse
fracasso. Ensinar português, segundo Guedes (2006, p. 141) é dar con-
dições “aos alunos para que se tornem capazes de entender os textos
que leem e não limitar-se a apenas estigmatizá-los como incapazes de
entender o que leem”.
Na minha aula ninguém bagunçava. Laço? Muito, não! Uma vez
por semana, se eles me deixassem estudar, eu levava o violão, e a gente
se esgoelava em coisas desafinadas. E bonitas, também. O professor da
sala ao lado, único colega na escola, gostou da ideia e perguntou se a
turma dele não podia, àquela hora, participar. Eu disse que sim, porém,
me arrependi. No canto, era ruim de pedra, o tio. De qualquer forma,
lucrei porque, desde então, a baderna deles diminuiu.
Antes de terminar, tenho que dizer por questão de justiça, injustiças,
lá no início, também cometi. Quando perdia a rédea, para me impor,
passava o galho em um e outro abestalhado que achava que podia fazer
na escola tudo o que fazia em casa.
Também, alguns, fi-los caminhar uma vez, num dia desses de
mormaço insuportável, por sobre rosetas maduras. Pediram água, mas

911
gramática e estilo

não teve pra ninguém. Gemiam e pipocavam entre os vãos de grama,


mas na calçada não os deixei subir. Desse crime ainda não consegui
absolvição. Contudo, gramática pura, como eu tive que engolir, nunca
servi aos meus alunos das séries iniciais.
Mais tarde, sim. Depois de formado (grande coisa!), quando já sabia
“tudo sobre gramática” e quando passei a trabalhar numa escola maior
onde havia supervisão e orientação escolar, mais um plano de curso a ser
vencido e umas colegas “experientes” de olho, foi que eu, por uns três ou
quatro anos, enveredei de vez para a gramática. Anos difíceis, aqueles.
A gurizada queria o meu pescoço e eu, o deles. Diariamente. Mas não
há porque falar disso, sob pena de sermos redundantes com o que está
exposto aqui desde o início, e sob pena de sermos redundantes, também,
com o inferno que são algumas salas de aula que se escancaram por aí.
Esta convivência com o ensino tradicional forçada pela companhia dos
experientes colegas merece um relato detalhado, pois este é o problema
com que vão se defrontar os professores que estão se formando agora.
Pra eles essa narrativa poderia ser tão inspiradora quanto é o relato
anterior, o da leitura para as crianças.
As narrativas aqui expostas e efetivamente vividas, com seus erros
e acertos (quase na totalidade involuntários) só receberam a ousadia da
transcrição depois de diversas leituras realizadas a partir da sugestão de
docentes comprometidos com a superação da gramatiquice estanque que
ainda impera no ensino da língua portuguesa; docentes comprometidos
com a autonomia cidadã de nossos educandos.
Se a linguagem desenvolvida na escola for somente a encaixotada
nas normas e estruturas gramaticais, teremos com certeza, amanhã,
tal como hoje infelizmente ainda se percebe, cidadãos amordaçados na
inércia pobre de algumas poucas frases. Urge que se supere isso.
Se você, caro leitor, teve a ousadia ou a paciência de me acompa-
nhar até aqui no revolver dos entulhos de que falávamos no início, sinto
muito informá-lo: a luz do lampião de querosene, de lá, está no fim.

912
gramática e estilo

Procure outra mais moderna e comprometida com a transformação da


penumbra que infelizmente paira sobre a educação. Caso esteja ainda
ensinando gramatiquices e normativismos medievais na e da língua
portuguesa, a busca de conhecimento torna-se premente. Há muita luz
escrita por aí que contribuirá indubitavelmente para uma mudança de
paradigma e uma vida menos estressante nas salas de aula. No entanto,
a liberdade é uma mãe (vagabunda, às vezes) que Deus nos deu. Quem
se deixar levar pela leseira da acomodação; quem não quiser ler e se
aperfeiçoar, não reclame, como tantos, se a gurizada antecipar as câ-
maras ardentes do inferno às salas de aula.

O autor não se limita a relatar a sua história pessoal mas faz também
a contextualização histórica e política dos acontecimentos correlatos à
sua experiência escolar e docente. Sua origem social e cultural como
descendente de imigrantes alemães no Vale do Rio Pardo, que conti-
nuam se comunicando num dialeto germânico, respingado aqui e ali,
por um falar brasileiro, depois de mais de cem anos da chegada desses
imigrantes no Rio Grande do Sul, é um dado muito eloquente a respeito
das políticas públicas para educação que ainda vigorava no começo dos
anos 1970 no Rio Grande do Sul. Tão eloquente quanto essa narração é a
descrição da classe multisseriada para onde foi tangido sem ter a menor
ideia do que estaria para acontecer.
O realismo miúdo deste relato faz uma diferença significativa com
relação à grande maioria dos textos que resultam desta demanda, que
se limitam a contar os acontecimentos da história pessoal do seu autor,
do que resultaria algo como A minha alfabetização se deu numa classe
multisseriada; por isso, eu não consegui aprender a ler na primeira série,
mas, graças ao meu esforço... Esta descrição aprofunda e especifica: a
mencionada ditadura não trazia grandes novidades com relação à ditadura
que se expressava naquele cotidiano com muito mais naturalidade do que
nas engrenagens da política com que o país era desgovernado, pois a vara
de marmelo ali não era um símbolo mas indispensável material didático.

913
gramática e estilo

A rotina daquela sala de aula – em que um professor (não) ensi-


na o que não sabe do que se trata e em que os alunos aprendem que
aprender é repetir o que já sabem que nunca vão aprender – compati-
biliza com as cicatrizes de uma vara de marmelo muito mais antiga,
narrada e descrita nos cinco parágrafos seguintes. São os sulcos do
normativismo e da gramatiquice medieval, na sua infatigável rotina
de silenciamento das vozes para que não falem de quem são, do que
pensam, do que desejam.
Na sequência, ficamos sabendo que o improvável aconteceu: o
descendente de imigrantes alemães aluno de uma escola multisseriada
alfabetizou-se em português, leu, escreveu, estudou, passou no vestibu-
lar para virar professor de Português. Dez anos depois do início de sua
alfabetização, ele foi empurrado para uma sala de aula, tal qual o des-
cendente do Hitler, sem formação pedagógica, como costuma acontecer
com a maioria de todos nós.
Como ele tinha aprendido bem mais do que um pouco de brasilei-
ro, sensibilizou-se pela conversa do vendedor de livros e inventou um
professor de Português com o material que tinha: ele mesmo, os livros
que comprou e os colegas professores que tinha lido. Na sua aula, ele
lia, interpretava, tocava, cantava, mandava ler, interpretar, escrever,
desenhar e, de vez em quando, dava umas aulas quaisquer pra gurizada
usar o caderno. Além disso, passava o galho nos abestalhados, pois o
professor que somos é também, inevitavelmente, os professores que
tivemos, assim, como se fosse uma praga.
Professor é quem se ensina: e me divertia, já que em tempos idos,
nunca tivera a oportunidade de ler aquilo. As crianças também apren-
diam: apropriavam-se da língua portuguesa... diluída nos contextos dos
enunciados que povoavam o imaginário infantil. E conversavam com as
histórias que liam e contavam outras histórias e falavam sobre os livros
que tinham lido. Todos aprendiam a ouvir, a falar, a ler e a escrever em
português, isto é, na língua em que aquelas histórias estavam escritas,

914
gramática e estilo

botando a língua que falavam também naquela língua, que as línguas


convivem.
Aquilo era muito bom, mas não era bom, porque a gente se forma
professor pra dar aula em escola, escola boa, com supervisão e orientação
escolar, mais um plano de curso a ser vencido. E lá a gente descobre que
a gramática não passa de uma metafórica vara de marmelo, que as colegas
experientes só falam da matéria porque lá professor só fala da matéria, e
quem fala da matéria é livro didático. Professor mesmo fala de si mesmo:
do lobo mau que ele é, da mesóclise que não faz, do futuro simples que
não usa. Não é dando a aula dos outros que professor aprende a dar aula.
Quem dá a aula dos outros não dá aula pros alunos que tem, nem tem os
alunos que tem; tem outros, que querem o pescoço dele.
Se todos aqueles não faço ideia quantos pra quem solicitei que
escrevessem esse texto contando a sua experiência como alunos e profes-
sores de Português tivessem se preocupado em problematizar com tanta
atenção e minúcia o que viveram como alunos e professores, teríamos
uma documentação bem interessante a respeito da história da educação
no sul do Brasil.

7.4 ENSAIO?

Se um dia se tornar mesmo obrigatório incluir gênero – salvo con-


duto, panegírico, discurso fúnebre, alvará de outorga, carta de alforria,
palavras de consolo, contrato de casamento, auto de apreensão81, etc. –
em toda e qualquer pedagogia da escrita, eu posso alegar que, desde o
início, estive me aproximando do ensaio. Nessa proposta de tema que
eu tanto solicitei para alunos com os quais eu discutia o ensino da escrita
81 Pensando bem, que tipo de escola, de aula de escrita, daria conta de ensinar os infinitos gêne-
ros? Que tipo de escritor dedicar-se-ia a escrever todos eles? Onde se aprende e quem ensina
a escrever um auto de apreensão, por exemplo? É claro que alguém ensina pra alguém que
aprende, porque eles existem, mas passaria pela cabeça de um professor de Português ensinar
isso? Sim – por que não? – se o projeto fosse, por exemplo, escrever uma novela policial em
que um auto de apreensão fosse um elemento-chave. Dá pra conceber um jeito de aprender a
fazer isso?

915
gramática e estilo

ou, mais genericamente, o ensino de Português, não se trata de apenas


de relatar fatos que ocorreram mas também de refletir a respeito do que
ocorreu. Quem nunca se botou a refletir sobre isso ou sobre o que quer
que seja vai escrever a respeito do que se diz sobre isso ou do que se
deve dizer sobre isso, mas, como já vimos, dificilmente vai faltar uma
referência ao que foi autêntico, como as brincadeiras de que se lembrava
a autora do primeiro escrito que aqui examinamos lá no primeiro e no
segundo capítulos. Aí, o atento professor pode intervir: Escreve, então,
sobre essas brincadeiras. E esse escrito talvez entreabra uma porta para
o vislumbre de alguma autenticidade.
No já mencionado Curso básico de redação, Cláudio Moreno e eu
usamos, influenciados pela bibliografia didática americana, os gêneros
ensaio curto e ensaio documentado. Era um arranjo que funcionava
bem e, em 1977, quando foi anunciada a obrigatoriedade da redação nos
exames vestibulares, apostamos que seria algo como o ensaio curto que
vinha pela frente. E foi mais ou menos o que veio. Já contei essa história
com detalhes no primeiro capítulo de Da redação à produção textual. A
palavra ensaio designava, então, um texto em que se dava uma opinião
e se justificava a opinião dada.
Simultaneamente, na universidade, eu fui encaminhando o meu
trabalho de ensinar a escrever na direção de escrever textos interessantes
de serem lidos e discutidos em aula. Depois que eu concebi a sequência
de Da redação à produção textual, o que eu passei a propor foram temas
da mesma natureza: acessíveis à experiência de vida dos alunos e inte-
ressantes de serem discutidos depois da leitura em aula, e, se precisasse
de um termo para designar esse conjunto de propostas de texto, o nome
que eu dava era ensaio.
No que chamo de proposta de texto, o que vigora não é propria-
mente o assunto sobre o qual escrever mas a finalidade: em apresentação
pessoal e aspecto do cotidiano ressalta a finalidade de apresentar-se.
As narrativas de uma emoção forte e de uma situação que produziu

916
gramática e estilo

um aprendizado propiciam a inserção do autor como escritor e como


personagem no processo de seleção do que se conta, do que se encadeia
e do que se atribui valor numa narrativa. Selecionar, articular e atribuir
valor são ações próprias do ensaio. O mesmo processo se dá nos temas
descritivos – pessoa, objeto, tipo de pessoa –, agora dirigindo o interesse
e o olhar do autor para a realidade lá fora dele. Já fazer uma comparação,
uma análise, uma classificação, uma definição também não são assuntos
impostos a quem vai escrever mas modos de abordar o assunto que cada
um escolher.
Como contei anteriormente, depois que eu defendi minha tese sobre
o ensino de Língua Portuguesa e comecei a dar aula em disciplinas que
tratavam disso, imitando a mim mesmo, passei a solicitar aos meus alunos
que escrevessem a respeito da sua própria história como alunos de Língua
Portuguesa, dos professores que tiveram, de sua vida de leitores, do que
escreviam, até que resolvi sintetizar tudo isso num texto só: a história
de cada um com a língua escrita. Passei, então, a pedir esse texto para
todo tipo de aluno que eu tive, a maioria vinculados pela língua escrita,
pelo ensino de Português. As melhores versões produzidas a partir desta
proposta foram escritas no modo do ensaio porque é óbvio que não é
só pra relatar os fatos acontecidos: é pra dizer, principalmente, qual foi
o papel constitutivo de cada um dos fatos relatados, as reflexões que
provocaram, as atitudes e decisões que impulsionaram. Dizer qual foi o
papel constitutivo do que aconteceu na vida de quem está dizendo é o
propósito geral do ensaio.
Neste século, implanta-se no curso de Letras, a monografia de
conclusão de curso – o TCC –, que é menos do que uma dissertação de
mestrado, mas que deve dizer o que o autor pensa e justificar por que
pensa isso, ou seja, um ensaio. Pelo menos foi assim que eu e a minha
turma passamos a considerar a questão.
A coisa ficou séria quando o meu amigo Luís Augusto Fischer, que
também trabalhou comigo alguns anos no Colégio Anchieta, escreveu

917
gramática e estilo

Inteligência com dor: Nelson Rodrigues ensaísta82, sua tese de doutora-


do, que traça, a meu ver, o mais interessante caminho para chegar a uma
clara, adequada e funcional caracterização de um gênero. Nesse estudo,
Nelson Rodrigues é retirado da agremiação dos cronistas, onde estava
historicamente alocado, e é entronizado na estirpe dos ensaístas. Ou seja,
não se trata de descrever um gênero para dizer como é que ele é; trata-se
de caracterizar a crônica e o ensaio e de mostrar que as características
dos textos que a tradição reconhece como o conjunto das crônicas jorna-
lísticas de Nelson Rodrigues compatibilizam com aquilo que uma outra
tradição caracterizou como ensaio. E esse esforço conduz à proclamação
do conjunto dos seus escritos como o marco zero do ensaio brasileiro e
à postulação de um lugar de destaque para esse ensaísta no quadro do
ensaio ocidental.
Não vou resenhar o livro aqui porque não quero fazer a maldade de
poupar meus leitores da leitura de Inteligência com dor porque essa leitura
ensina a escrever. O que eu vou fazer aqui é uma apropriação interesseira
de Inteligência com dor porque há, de fato, uma convergência entre a
caracterização que o Fischer faz do ensaio e os traços que considero bons
nos textos resultantes das propostas de texto que o meu trabalho como
professor de escrita apresentou aos meus alunos. Além disso, a descrição
do ensaio comparada às outras descrições de gênero que eu tenho visto
por aí me faz crer que o ensaio é, na verdade, uma espécie de antigênero,
e acho que os meus leitores também não podem perder isso.
Começo com a citação de uma citação que me ajuda a fundamentar
o que eu disse a respeito do escrito que se pode obter de conte a história
da relação desenvolvida em sua vida com a língua escrita. Tratando a
respeito da forma do ensaio, Fischer (2009, p. 112) diz assim:

Formulando de modo provisório, o ensaio se define mais


por caráter do que por fachada, mais por alma do que por

82 FISCHER, Luís Augusto. Inteligência com dor: Nelson Rodrigues ensaísta. Porto Alegre:
Arquipélago Editorial, 2009.

918
gramática e estilo

corpo. Não é à toa que dez em dez comentadores do ensaio


enquanto gênero principiam por declarar, com pequenas
mudanças, que a forma do ensaio é extremamente variável.

Um pouco adiante, continua:

O ensaio, “essa movediça ordem de dissertação”, segundo


a síntese de Alexandre Eulálio, é um texto analítico que
reconhece diante de si um objeto, solidamente constitu-
ído no mundo, isto é, fora do texto; entretanto, o ensaio
procederá à análise deste objeto a partir da luz que vem
de dentro da individualidade do ensaísta.

Não sei se todo mundo vai concordar que “a história da relação


desenvolvida em sua vida com a língua escrita é um objeto, solidamente
constituído no mundo”, mas, certamente, está fora do texto e só vai pra
dentro de um texto se o autor botar lá, frase por frase, a partir da luz
que vem de dentro da sua individualidade. O texto que costuma resultar
desse tema, pelo menos, compatibiliza com esta definição: o ensaio é
um gênero experimental e mutante entre narração e dissertação, entre
o registro da realidade e a subjetividade de quem olha para a realidade,
entre o confessional e o argumentativo. E, acrescento eu, mais interes-
seiramente, que, em termos bakhtinianos, o ensaio é bem menos do que
mais ou menos estruturado.

7.4.1 Traços do ensaio

O capítulo IV de Inteligência com dor – Traços do ensaio – atribui


ao ensaio sete características. A primeira delas seria a coragem para a
confissão. Na p. 153, podemos ler que Montaigne, o primeiro a usar o
termo ensaio, no título do livro que publicou em 1580, “declara que escre-
ve para almas bem nascidas, que por elas deseja ser lido, com elas deseja
entrar em comunicação”. Em plena vigência do domínio da aristocracia,

919
gramática e estilo

ele faz uma distinção entre almas bem nascidas e corpos bem nascidos,
insinuando que há almas bem nascidas em corpos plebeus e almas mal
nascidas em corpos nobres. Não é, no entanto, a política que parece vir
ao caso para Montaigne, mas a receptividade desses leitores ao que ele
tem pra dizer: “impus-me a obrigação de dizer tudo o que ouso fazer, e
lamento até que todo pensamento não seja passível de exteriorização”.
O texto do Gibran, por exemplo, tem a cara limpa do ensaísta, a
desfaçatez, a coragem de sair descrevendo aquela sensação absurda de que
ler fazia passar um filme dentro da cabeça dele. E ele não só diz isso; ele
se atreve a descrever isso, e a descrição dele é plena de concretude como
se quisesse dizer que achou que estava ganhando alguma coisa com isso:

Em pouco tempo, eu já não queria mais nem saber da ideia de filmes


reproduzidos convencionalmente, isto é, fora da minha cabeça, e a
leitura, poderosa, logo assumiu com orgulho o lugar de passatempo
favorito, antes ocupado pelos programas infantis. Não demorou
muito, também, para que eu passasse a reivindicar as histórias que
lia, como se fossem aventuras que eu vivia no momento que lia – o
que, de certa forma, elas eram. Tê-las dentro da minha mente com
certeza contribuiu para que eu me apropriasse delas, afinal.

Estava ganhando, sim, muita coisa com isso.


Já o texto do Roque tem um coloquial vingativo, um pouco como
o do Nelson Rodrigues, com uma ênclise das mais debochadas seguidas
de uma gíria de igual teor; uma, não: duas.

Antes de terminar, tenho que dizer por questão de justiça, injustiças,


lá no início, também cometi. Quando perdia a rédea, para me impor,
passava o galho em um e outro abestalhado que achava que podia
fazer na escola tudo o que fazia em casa. Também, alguns, fi-los
caminhar uma vez, num dia desses de mormaço insuportável, por
sobre rosetas maduras. Pediram água, mas não teve pra ninguém.
Gemiam e pipocavam entre os vãos de grama, mas na calçada não

920
gramática e estilo

os deixei subir. Desse crime ainda não consegui absolvição. Contu-


do, gramática pura, como eu tive que engolir, nunca servi aos meus
alunos das séries iniciais.

Vejam só a coragem para confessar os maus tratos a que submeteu


quem achava que podia fazer na escola tudo o que fazia em casa e a
correspondente coragem para confessar que derrotar o conteúdo nem
passou pela cabeça dele.
Em homenagem a essa obrigação de dizer tudo que Montaigne se
impôs e aos seus seguidores, vou confessar que o Essais de Montaigne
está na minha prateleira com muitíssimas páginas ainda conectadas por
aqueles pequenos istmos de papel que requeriam uma faca ou uma elegan-
te espátula para separá-las. Isso quer dizer que eu não fui muito longe na
leitura daquele livro que eu comprei na primeira metade dos anos 1960,
ainda aluno da graduação. Não lembro por que comprei; lembro que achei
chato, muito chato: eu não compreendia por que ele tinha de dizer aquilo
tudo conversando com uma gente que eu não conseguia entender quem
era. Essa primeira impressão me deixou tão acabrunhado que eu nunca
mais consegui arregimentar forças para chegar até a recôndita estante
onde eu sei que ele está. Terá sido minha alma não tão bem nascida assim?
Claro que eu li uma porção de ensaios na minha vida, mas muito
mais ensaios sobre do que ensaios de. Ensaio de é o que fazem Montaigne
e Nelson Rodrigues, que se tomam como assunto; ensaio sobre é, por
exemplo, o de Darcy Ribeiro intitulado Sobre o óbvio, em que ele faz
o elogio da prudência das elites brasileiras ao negarem educação para o
povo com a finalidade continuarem explorando o povo, como sempre
exploraram. Desse ensaio retirei a epígrafe deste livro porque, pra mim,
esse é o melhor ensaio brasileiro.
É claro que eu não avaliei nem li todos os ensaios brasileiros; por-
tanto, essa balela de primeiro e segundo não é melhor do que nenhuma
das outras tantas balelas de primeiro e segundo lugar que andam por aí.

921
gramática e estilo

Li, mesmo assim, uma porção de ensaios; acho até que escrevi alguns,
como, por exemplo, E o que somos agora, depois que viramos brasilei-
ros? É um ensaio sobre que emerge de um ensaio de?
O segundo traço do ensaio é trivialidade inicial, profundidade
final. Lá está assim descrito:

O segundo traço do ensaio pode ser resumido a esta fórmu-


la: o ensaio é um texto capaz de partir de uma banalidade
qualquer e de, por caminhos peculiares, chegar a abismos
inimagináveis. Partilha com a crônica, assim, o ponto de
partida, mas se afasta dela no percurso e na destinação
(FISCHER, 2009, p. 164).

Eu deixei de gostar de crônica ainda antes dos 30 anos; pra quem


ainda não deixou, recomendo, com mais ênfase, a leitura de Inteligência
com dor. A crônica não tem wit.
Um dos truques que pode explicar a capacidade de partir do trivial
e alcançar o profundo é a capacidade de valorizar aspectos em regra
desprezados na vida cotidiana.
Digamos “[...] que o elo de ligação sutil entre o trivial e o transcen-
dental aconteça pela mediação de um estalo, de um insight (no sentido
em que Freud o trouxe ao mundo), de uma sacação” (FISCHER, 2009,
p. 170). Aparece, então, a noção de wit e segue: “Uma tradução para o
brasileiro, pelo menos tal como o concebo, daria para o verbo “to wit”
sentido de bispar: sacar, dar-se conta, perceber antes ou mais que outros;
e mesmo assim, poderia significar bispar contra a percepção mediana e
comum” (FISCHER, 2009, p. 170). Pra mim é o que faz Darcy Ribeiro ao
sacar que o projeto educacional das elites brasileiras não foi um fracasso
por não proporcionar educação para o povo; foi um sucesso porque era
isso mesmo que eles queriam.
Já um texto chamado E o que somos agora, depois que viramos bra-
sileiros? não pode ser nada menos do que um ensaio, todo ele girando ao

922
gramática e estilo

redor – desde a intenção de escrevê-lo – de dúvidas, broncas, de questões


do seu autor lá com a alma dele mesmo e as dos seus pretendidos leitores.
Também é ensaística a coragem do narrador que o autor inventou para
contar essa história em que confessa aquilo tudo que aconteceu. Para
amenizar o impacto da confissão, apela para a trivialidade inicial: o que
dispara o texto é uma trivial (em se tratando de Brasil X Argentina) sola
na barriga e a trivial bronca gaúcha do narrador (do ensaio, não o do
jogo) com a cena de coitadinho do Batista, centromédio do Colorado, se
atirando no chão por um encontrãozinho qualquer. Trivial e popular: eu
teria ganhado o público daquela minha sala de aula onde fui liminarmente
barrado, assim como ajudei a ganhar os muitíssimos leitores que geraram
as tantas reimpressões de Nós, os gaúchos. Não vou alegar que o meu
texto tem também profundidade final. Releiam e votem.
O terceiro traço do ensaio é o esforço por diagnosticar o presen-
te: tanto a crônica quanto o ensaio ocupam-se das mudanças causadas
pela passagem do tempo; a diferença entre o cronista e o ensaísta é que
o cronista limita-se a lastimar a passagem do tempo, que provoca mo-
dificações nos costumes. O ensaísta, a partir das diferenças que percebe
e descreve, procura entender o tempo presente e esclarecer o seu leitor.
O ensaio, enfim, preocupa-se com o que está acontecendo, e, como o
que está acontecendo não está, por definição, esclarecido, não pode ser
esclarecido a partir do que já é conhecido. Então, não há outro recurso
para o ensaísta senão confiar em sua intuição, no que é capaz de bispar,
sacar, dar-se conta, perceber antes ou mais que outros e, principalmente
contra a percepção mediana e comum.
O texto do Roque, por exemplo, conta da alfabetização dele numa
escola multisseriada, pra onde ele voltou dez anos depois para exercitar
a sabedoria de fazer o contrário do que tinham feito com ele, tirando
fora o que ele fez como tinham feito com ele. Ele saca, no entanto, que
problema mesmo é a escola maior onde havia supervisão e orientação
escolar, mais um plano de..., onde, sobretudo, se honra a palmatória da
gramática tradicional.

923
gramática e estilo

O quarto traço é a postulação do leitor: o ensaísta escreve como se


escrevesse para si mesmo, para esclarecer-se, mas, já que escreve, quer
ser lido; precisa, portanto, do leitor. Podemos ler na p. 192:

O ensaísta, assim, postula um leitor, isto é, o ensaísta


assume como pressuposto a inexistência de leitor e,
simultaneamente, a urgência, a imprescindibilidade
da existência do leitor. Precisa dele, e ele não está aí.
Depende dele, mas ele só existirá na medida em que for
construído, ou melhor, postulado no ensaio, dentro do
ensaio, na alma do ensaio, pela linguagem que se vai
armando. O leitor não está dado. O leitor precisa ser
conquistado ou, mais do que isso, construído (FISCHER,
2009, p. 192).

Nesse sentido, em Atextamentos e atextações, já na escolha que


o Alfredo fez do que classificar, manifesta-se o espírito do ensaio:
escrever para leitores em quem o autor reconhece um interesse
comum – os colegas e o professor, que fornecem a matéria-prima
da classificação, da narração dos fatos, das descrições de cenário e
de personagens e das análises de atitudes e comportamentos – com
a finalidade de intervir no trabalho que se realiza naquela sala de
aula e o que nela se encomenda de trabalho fora dela. A provocação
faz o leitor reagir, e a reação é “[...] condição necessária à leitura
aguerrida, talvez a única que valha a pena no terreno do ensaio”
(FISCHER, 2009, p. 192).

Como o autor (do ensaio), o leitor (do ensaio) é também


um interessado em entender o funcionamento do mundo,
com base na partilha (na compartilha) de experiências. Por
um paradoxo simples, o leitor do ensaio é tão mais leitor
quanto mais autor for o ensaísta: quanto mais o autor do
texto exercer sua prerrogativa de escrever para entender
o mundo a partir de sua solidão e de sua coragem [...],

924
gramática e estilo

mais o leitor poderá examinar sua própria maneira de ver o


mundo, cotejando-a com a de alguém que teve a dignidade
de expor-se (FISCHER, 2009, p. 202).

O quinto traço do ensaio é o humor, mas eu não vou resenhar essa


seção porque isto aqui é um livro didático, que quer ensinar a escrever;
por isso, eu acho melhor não falar de humor pra que ninguém pense
que o humor é obrigatório no ensaio. Na verdade, o obrigatório é um
dos motivos pelos quais eu me recuso a ensinar por gêneros: desde
que empreendemos, lá no começo dos anos 1980, a caracterização da
redação escolar com a finalidade de denunciar as suas mazelas, a ideia
geral era botar todo mundo a escrever o que queria dizer e não o que era
obrigado a escrever. Nesse ensino de gêneros, o que vejo é a volta das
obrigatoriedades. Fico tentado, por isso, a declarar que nada disso aqui
é obrigatório no ensaio, mas isso não é verdade.
Eu não quero dizer que o humor faz parte porque tem quem pense
que fazer humor depende de um dom especial, outorgado a alguns poucos
privilegiados. Acho que todo mundo que quiser fazer humor tem todo
o direito de se meter a fazer humor. O que eu não quero é que alguém
abra mão de escrever ensaio porque não quer ou, pior, não se acha capaz
de fazer humor.
Então, recomendo enfaticamente a leitura de Inteligência com dor.
É um ensaio fundamental – no sentido estrito da palavra, pois lança os
fundamentos, isto é, constrói as bases sobre as quais se pode estabelecer
a discussão – para desvelar e configurar o ensaio brasileiro. É, portanto,
uma leitura estimulante para quem gosta de escrever e quer escrever.
O que eu vou fazer é juntar o que me parece que há de comum e
de reciprocamente causa e consequência entre o quinto – humor – e o
sexto traço – linguagem livre. Pra começar vou reproduzir a abertura
da seção sobre linguagem livre:

925
gramática e estilo

Vamos manter ainda por algum tempo em vista os teó-


ricos do humor, agora para especular sobre a linguagem
do ensaio. Estamos ainda tomando por base a certeza de
que entre humor e ensaio há um parentesco nada remoto.
E agora veremos que para os dois casos a linguagem de-
sempenha um papel central: no sentido imediato, porque
se trata de uma realização da literatura, esta coisa que se
faz com palavras; no sentido mais sutil, porque o ensaio,
prática literária de contornos não muito precisos, preci-
sou inventar uma linguagem, ou melhor, pelo fato de ter
inventado uma linguagem adquiriu estatuto de literatura
específica (FISCHER, 2009, p. 234).

Nesta abertura aparece um termo que eu evitei o tempo todo tanto


em Da redação à produção textual quanto aqui em Gramática e estilo:
literatura. Evitei porque, no nosso senso comum, literatura não é coisa
pra qualquer um; só pra quem tem o dom. Também porque, formado num
curso de Letras onde tinha entrado para me habilitar a estudar e praticar
literatura, comecei dando aula pra estudantes de Jornalismo, gente com
quem eu convivia durante a graduação. Daí que eu sabia que era muito
complicado falar em literatura com eles. Depois, quando fui dar aula no
curso de Letras, para onde entram pessoas que querem estudar e praticar
literatura, logo aprendi que era ainda muito mais complicado falar em
literatura com eles.
Com os estudantes de Jornalismo eu podia apelar para a aferição da
clareza do texto, à qual eles eram sensíveis por obrigação profissional.
Nas Letras, os melindres eram mais intrincados: se eu acusava uma am-
biguidade, o autor retrucava: Mas a ambiguidade não é uma qualidade?
E eu respondia: Se somar sentido é, mas essa aí no teu texto empata os
sentidos. Quando uma aluna que tinha tido um poema escolhido para ser
exposto nos ônibus da Carris – a secular empresa do transporte público
da cidade – me apresentou um poema como relato do cotidiano, eu de-
clarei que não queria poesia e, pra controlar a rebelião a bordo, aleguei

926
gramática e estilo

que eu não queria poesia porque eu não sabia dar aula de poesia, que
eles levassem em consideração essa minha limitação.
Passei a achar – depois que eu li que o ensaio, prática literária de
contornos não muito precisos, precisou inventar uma linguagem – que eu
queria que eles fizessem isso mesmo: que inventassem uma linguagem,
ou, pelo menos, se arriscassem numa linguagem livre. Luigi Pirandello,
um dos anteriormente convocados por Fischer (2009, p. 234) para tratar
do humor, demonstra o “nexo íntimo” que há entre o humor e a linguagem
do humor: “o humor se estabelece contra a Retórica”. Substituam Retórica
por redação escolar porque a Retórica – a arte da eloquência, a arte de
bem argumentar, arte da palavra, segundo o Dicionário Houaiss (2009)
– já tinha sido banida inclusive do Colégio Anchieta, o colégio jesuíta
de Porto Alegre, quando eu comecei a dar aula lá, em agosto de 1975.
Quando eu estudava no Colégio de Aplicação da URGS, que, já nos
anos 1950, era escola-novista e modernista, meus amigos e primos que
estudavam nos colégios de padre participavam de concursos de oratória,
discursando sobre velhos temas clássicos morais e religiosos. Assisti dois
ou três, e não consegui atinar com a serventia que eles podiam achar
naquilo. No Anchieta, em agosto de 1975, a coordenação pedagógica
do segundo grau sequer torceu o nariz quando comecei meu trabalho de
ensinar escrita a partir de um contemporâneo manual americano.
Aproveito a citação de Pirandello:

“Retórica e imitação são, basicamente, a mesma coisa.


A cultura, para Retórica, não era o preparo do terreno, o
alvião, o arado, a enxada, o estrume, para que o germe fe-
cundo, o pólen vital que uma aura propícia, num momento
feliz, devia deixar cair naquele terreno, aí se enraizasse
e encontrasse nutrimento abundante [...]. Não: a cultura
para a Retórica consistia em plantar paus e vesti-los com
ramos” [...].
Ora, o humorismo é o contrário disso. Se, para a Retórica,

927
gramática e estilo

a arte se resumia a um processo de composição a partir do


guarda-roupa cheio de moldes cortados sobre os modelos
antigos e se a forma não era criada mas feita, o humorismo,
de sua parte, “inevitavelmente descompõe, desordena e
discorda”. [...] O humorismo tem necessidade do mais
vivaz, livre e espontâneo e imediato movimento da língua,
movimento que se pode ter somente quando pouco a pouco
se cria a forma (FISCHER, 2009, p. 234-235).

Humor é função da economia de meios da língua ou, mais


radicalmente, é função direta do dialeto popular. Para ir
um pouco mais ao detalhe, poderíamos dizer que humor
se faz com a linguagem corrente da vida, com a gíria, com
a observação do detalhe cotidiano, tendo ao fundo, como
inimigo à vista, a linguagem sistematizada, canonizada,
empolada. Fischer (2009, p. 235), então, sintetiza:

o humorismo precisa da linguagem viva e espontânea,


contra a retórica; e o humorismo depende de certa inti-
midade de estilo, que se consegue com a demarcação de
um modo particular de trato com o campo objetivante
que é a língua. No primeiro caso, temos a necessidade de
uma linguagem livre ou mesmo libertária; no segundo,
a ousadia de inventar uma linguagem. Nos dois casos,
há uma ideia de expressão individualizada, por um lado
contra a retórica assente, por outro, original, e contra o
passado estável já conquistado na linguagem, a favor da
novidade que significa instabilidade e invenção.

O sétimo traço do ensaio é a unidade, mas isso não me interessa


discutir assim, sem o texto do aluno pra ler e dar palpites. Eu não quero
que o texto tenha unidade, quer dizer, é claro que eu quero, mas não
quero que o meu aluno escreva para produzir unidade. Eu quero que
o meu aluno escreva pra dizer o que ele quer dizer; na verdade, quero
que ele escreva pra descobrir o que ele quer dizer, e é a descoberta do
que ele quer dizer é que pode configurar a unidade do texto.

928
gramática e estilo

Exemplifico: no capítulo anterior, na seção 6.2 Aspectos, modos,


tempos e formas dos verbos, são louvados dois textos pelo bom uso
que fazem dos tempos e formas verbais. O primeiro deles é A vaca e os
livros: sua narradora, que vive numa propriedade rural no sul do Brasil,
conta a descoberta do mundo lá fora durante a sua iniciação na leitura
e por causa da sua leitura. Para apresentar o cenário e as atividades
da fazenda, descrever os costumes da família, relatar o episódio da
aquisição dos livros, comentar as mudanças de hábito provocadas pela
leitura desses livros sobre as relações familiares, para tentar entender
e expor o seu processo emocional e intelectual ao tomar conhecimento
do que ficava sabendo do mundo lá fora, para equacionar os novos
sentimentos que experimentava, para dar conta do desafio que tudo isso
fazia ao que já conhecia e sentia, precisou de uma grande variedade
de modos, tempos e formas verbais para, como já vimos, dar conta da
complexidade desses processos. É a exuberância garantindo a unidade.
O outro é O último pedido, em que um narrador, grudado na
personagem a respeito da qual fala, conta com alguma minúcia o que
aconteceu num dia especial obrigatoriamente igual a todos os outros.
Esse narrador acompanha a protagonista, que vive, nesse dia, o que
vem vivendo em todos os dias dos últimos 15 anos com a perspectiva
de vivê-lo em cada um dos dias que estão por vir. Tudo o que aconte-
ce já aconteceu tal qual, num eterno presente, narrado no tempo sem
tempo do presente do indicativo: é a unidade preservando a unidade.
Eu disse que eu estive o tempo todo me aproximando do ensaio,
mas não disse que eu quero estabelecer relações amistosas com o ensino
de escrever gêneros. E mesmo que eu resolvesse ensinar a escrever
o ensaio, eu estaria ensinando a escrever um único gênero, e isso é o
contrário de ensinar a escrever gêneros.

929
gramática e estilo

7.4.2 O que nos bota a falar como falamos o que falamos

O Dicionário de porto-alegrês83 foi lançado em 1999 na Feira


do Livro de Porto Alegre e foi o livro mais vendido na Feira. No ano
seguinte, numa edição já revista, foi o mais vendido entre os livros que
não eram literários. Vinte anos depois, em edições revistas em 2000 e em
2007, chegou à 14ª edição revista e ampliada, ou seja, continua a fazer
sucesso. Com quem? Não sendo Porto Alegre uma cidade propriamente
turística, não é com os que querem saber como falam os nativos de uma
cidade tão famosa. Também não tenho notícia de alguma pesquisa com
quem comprou.
A gente pode conjeturar: quem lê dicionário? Em que dicionário a
gente encontra coisas interessantes para serem lidas? Se nos incomoda
não saber o que significa uma palavra, então tá: a gente tira o dicionário
da estante, abre, procura, acha e lê. E quando a gente já sabe muito bem
que Então, tá “é uma expressão de conveniência, mais ou menos polida,
que significa concordância final e já insinua a despedida de quem usa a
expressão. Mas também pode ser a expressão de descrédito: alguém diz
que vai sem falta te devolver o livro que está em sua casa há cem anos,
e tu dizes, incrédulo: ‘Então, tá’”, pra que a gente vai ler o Dicionário
de porto-alegrês pra saber o que significa então tá em porto-alegrês?
Desagravo pode ser um bom motivo: há uma cena tão luminosa-
mente esclarecedora que eu já não sei mais se ele, Fischer, me relatou
ou se eu estava lá, ao lado dele, na Feira do Livro, na banca da editora,
assistindo tudo. O rapaz se apresentou como sargento da Aeronáutica e
disse algo como: Faz uma dedicatória aí pro tenente Fulano, lá da Base
Aérea de Canoas, que é pra aquele carioca, que diz que eu falo tudo
errado, ver que é assim mesmo que a gente fala aqui. Identificação é o
nome do fenômeno, mas não é só isso: a gente vai ler porque lá estão a
pertinência, a adequação e a regularidade da nossa fala. Imagino mesmo
que a grande maioria começou pela busca de alguma palavra ou expres-
83 FISCHER, Luís Augusto. Dicionário de porto-alegrês. Porto Alegre: L&PM, 2007.

930
gramática e estilo

são que julga que faz parte do nosso, como dizem os sociolinguistas,
vernáculo: tri, por exemplo.

Tri – Advérbio de uso universal em porto-alegrês, mas


também adjetivo (algo pode ser muito tri). Em geral,
quer dizer “muito”: um sorvete pode ser tri bom, um jogo
pode ser tri disputado, uma mulher pode ser tri gostosa,
uma comida pode ser tri ruim, um sujeito pode ser tri
pentelho, etc.
Há uma teoria corrente na cidade que atribui a origem do
termo à conquista da Copa do México, em 1970, quando
o Brasil foi tricampeão, a primeira seleção a alcançar tal
feito. O Luiz Dario Ribeiro me garantiu que tem a ver com
o velho e bom Pasquim, jornal carioca, que teria começado
a usar o tri justamente nessa altura. O Giba Assis Brasil
refina a teoria, dizendo que, além desse tricampeonato,
houve também um tri estadual do nosso (meu e do Giba)
Colorado, que, a partir da inauguração do Beira-Rio
(1969) iniciou mais uma “senda de vitorias”, conforme
reza o nosso hino, vindo a completar um ciclo que alcan-
çou o octacampeonato e três campeonatos nacionais, em
1975, 1976 e 1979. Faz todo o sentido.
O Giba me dá mais uma dimensão de época: quando o
Brasil foi tricampeão no México, ocorreu a pura casua-
lidade de um gremista estar no time. Everaldo, o lateral
esquerdo. Então os gremistas diziam que tudo bem, todos
eram tricampeões, mas eles, gremistas eram mais do que
os colorados, por causa do Everaldo, que morreu em se-
guida, de acidente de carro. Daí que, quando nós fomos tri
estaduais, em 1971, e depois tri nacionais, a coisa reverteu.
Outra hipótese, com grande sentido, que deve ter colabo-
rado para a consolidação do uso do “tri” entre nós: naquela
altura da virada dos 1960 para os 1970, começou-se a
usar a gíria joia, para coisas boas, positivas, legais. E
havia quem fizesse a associação com a palavra francesa
joli, bonito, lindo; daí para a três jolie, muito bonito,

931
gramática e estilo

era um passo. Esse très, muito, em francês, é a cara do


nosso “tri”. Me lembro que de brincadeira, para elogiar
algo muito bom, se dizia, misturando as línguas e com
pronúncia adaptada, “trèsjoli de biutifúl” (do beautiful, do
inglês, que nessa época passava a ser a língua dominante
no mundo em geral e na escola em particular, tomando o
lugar precisamente do francês), com esse acento. O Uda,
por extenso Leonid Streliaev, fotógrafo, lembra de uma
outra forma, “trèsjoli de picumã”.
Mais uma hipótese: em certo momento, mais ou menos
na altura de 1977, houve um caso rumoroso de doping
futebolístico, não lembro de quem, se gremista ou colo-
rado, que teria tomado um remédio chamado Trimedal,
que pelo jeito fazia mais do que curar gripe. Vai ver, a
circulação do nome “trimedal” pode ter reforçado o uso
do “tri”. Vai mais uma bobagem associada ao “tri”: Maria
de Lurdes Derenji divulgou uma lista de equivalências
engraçadas para a designação do Instituto Médico Legal,
que segundo ela só no Paraná seria assim mesmo, porque
no Rio Grande do Sul seria Instituto Médico Trilegal, na
Bahia IM Porreta, em Minas IM Bom Demais da Conta,
no Rio de Janeiro, IM Maneiro, em Pernambuco IM Pai
d’égua, no Ceará IM da Muléstia, e em Santa Catarina,
“Ichtituto Méidico Doj Difunto”. Ver também “troço tri”
(FISCHER, 2007, p. 561-563).

Troço tri – Todo um juízo de valor se esconde sob essa


forma sintética. É todo um comentário positivo. Tu olhas
na vitrine um lance ali exposto, ficas admirado, e dizes,
“Bah, troço tri”. É um uso do “tri” em seu estado depurado,
mais, poderia dizer, sublime (FISCHER, 2007, p. 566).

Na verdade, eu costumo dizer isso num falsete cool, caprichando


naquela nossa entoação meio monótona, que sobe e desce – Bah, que
troço tri, meu –, com uma pausa maior do que a comum entre tri e meu
pra providenciar uma sílaba a mais, de modo a compor uma redondilha

932
gramática e estilo

maior. E eu só escrevi isto aqui pra entrar no clima do Dicionário, e


tenho certeza de que é isso que todo leitor acaba fazendo depois de se
envolver com todo esse coletivo de gente e de falas que colaborou para
esse registro esclarecedor, erudito, interessante, engraçado, instigante dos
nossos modos de dizermos quem somos, o que queremos, como queremos
que nos considerem, como nos queremos uns aos outros, o que queremos
dizer quando não conseguimos dizer o que queremos, o que não queremos
quando dizemos o que queremos. Enfim, o Dicionário é coletivo não
apenas em sua construção, mas principalmente nas interpretações que
faz dos nossos modos de dizer, interpretações particularmente abertas
à sensibilidade linguística dos leitores, dos falantes de porto-alegrês.
Mais do que isso, o Dicionário fez com que a gente se desse conta
da graça meio rude, ou, muito melhor, da rudeza engraçada e autocrítica
do nosso jeito de dizer, de pronunciar e de proferir o que nós dizemos.
Fez também com que nos déssemos conta do quanto essas duas quali-
dades – graça e autocrítica – nos distinguem da rudeza sem graça e sem
nenhuma autocrítica dos que, por exemplo, compuseram e se botam a
cantar despudoradamente um hino que oferece ao planeta o exemplo de
nossas façanhas pregressas, numa referência não muito cifrada a uma certa
guerra, perdida em circunstâncias inconfessáveis e que, se tivéssemos
ganho, também teria sido naquelas mesmas circunstâncias inconfessáveis.
Sem contar que é também despudoradamente racista.
A nossa oferta porto-alegrense é o que pode ser registrado num
dicionário, tal como o caracteriza o autor na abertura do prefácio da
primeira edição: “impreciso, precário, perecível, incompleto e várias
vezes arbitrário” (FISCHER, 2007, p. 13). Tem mais alguém por aí que
se atreva, como nós, a se encontrar exatamente na confluência de toda
essa adjetivação?
Dicionário de porto-alegrês foi sendo escrito ao longo dos 1980 e
1990, décadas em que o sol da liberdade e da fraternidade passou a ilu-
minar cada vez mais intensamente esta cidade, sede, na virada do novo

933
gramática e estilo

século, do Fórum Social Mundial com suas discussões anuais sobre um


outro mundo possível. Eu acho que é isso que explica a audácia e a alegria
dos verbetes e explica a audácia e a alegria da nossa adesão ao jeito de
ser do Dicionário, adesão que, como se pôde observar nas comemorações
dos seus 20 anos na Feira do Livro de 2019, renovou nossa fidelidade à
alegria de toda aquela imprecisão, precariedade, perecibilidade, incom-
pletude e arbitrariedade.
Agora, no final de uma década que vem se autoproclamando como
a supressão de tudo o que se designa por qualquer conceito que se enra-
íze na luz, a daquele sol, a do conhecimento, a da esperança, o autor do
Dicionário de porto-alegrês escreveu um outro verbete no Editorial do
segundo número da Parêntese, do dia 8 de dezembro de 2019.

Há uma diferença, pequena mas decisiva, entre “fazer


diferença” e “fazer a diferença”. A primeira é a minha
predileta: “fazer diferença” resulta de um processo que
envolve analisar, prestar bem atenção e então estabelecer
diferenças entre as partes que compõem o todo observado.
Tipo: olha um mato, uma floresta. Tudo verde, tudo árvo-
re, uma mancha homogênea. Agora para, desliga o carro
e olha melhor: já tem umas altas e outras baixas; umas
de verde bem escuro e outras de verde mais claro, e olha
aquelas ali, com folhas bem verdinho claro!
Fez diferença.
A outra tem, para mim, um ar arrogante: “fazer a diferen-
ça”, com aquele artigo definido ali, aquele “a”, sugere que
só existe aquela diferença, aquela que o sujeito detectou.
E não é nada disso: há diferenças várias, que dependem
de a gente prestar mais atenção.
Parêntese quer fazer diferença. E aqui está o fundo de
nosso otimismo: a certeza de que, olhando de perto, tem
muita gente boa e bacana saindo do lugar, escrevendo,
pensando, pesquisando, inventando, produzindo, empre-
endendo. Fazendo diferença, num mar de diferenças possí-
veis. Em palavras mais abstratas, Parêntese está prestando

934
gramática e estilo

mais atenção na Sociedade do que no Estado; dando mais


ênfase ao que se move do que ao que fica parado.
Parêntese quer ser uma arena em que essas vozes e pensa-
mentos se expressem e se deem a conhecer. Não é só pra
sair deste buraco atual, que tem vários níveis, patamares,
alcances. É pra olhar para fora do buraco, da bolha, do
esconderijo confortável em que tantas vezes nos metemos
ou nos meteram.

O editorial é aquela seção do jornal que ninguém lê, a menos que leia.
Como eu, que não leio, mas li, porque achei que o verbete, tal como os
do Dicionário de porto-alegrês, me esclareceria. Não brilha mais lá fora
o sol da racionalidade, da distribuição mais equitativa das riquezas que
geramos, do Estado equipando-se para garantir uma gestão republicana.
Nesta penumbra, é preciso olhar de perto, tentar ver o que se mexe nas
sombras e que negligenciamos naqueles luminosos tempos.
Eu tinha uma implicância surda e muda com a disseminação e o
barateamento dessa exortação ao fazimento da diferença da consequente
louvação dos premiados nessa loteria; este verbete, no entanto, recoloca
a diferença no plano em que se expressa o melhor da nossa igualdade.
Além disso, consolida entre a nós a vigência do cultivo do verbete etno-
gráfico narrativo explicativo.

7.4.3 Elis Regina e Hermeto Pasqual no Festival de Montreux

No Festival de Montreux, em 1979, Elis Regina e Hermeto Pas-


qual fecharam a noite numa jam session que todo mundo pode assistir
no YouTube e comprovar se foi, de fato, um dos maiores momentos da
música do século XX, como sintetiza – entre as p. 185 e 189 de Elis: uma
biografia musical84– Arthur de Faria, músico, compositor, jornalista e
autor de uma história da música de Porto Alegre, de que esta biografia
é o 13º capítulo.
84 FARIA, Arthur de. Elis: uma biografia musical. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2015.

935
gramática e estilo

Os ingressos para o seu esperado show haviam se esgotado há mais


de mês, e muita gente ainda queria assistir. Foi com esse argumento que
a produção convenceu Elis a fazer uma sessão extra, à tarde – deixando
claro para o público que seria uma espécie de ensaio geral, informal.
Ideia que podia funcionar com outros. Não com ela.
Entrou com tudo.
No que era para ser um clima mais leve, talvez nem mesmo o show
completo, revirou tripas e coração. Resultado: quando acabou, estava
obviamente cansada e ainda tinha pela frente o espetáculo da noite,
principal motivo de estar ali.
A noite seria dividida com Hermeto Pascoal que, menos conhecido
do que ela, estava, no entanto, no seu habitat natural: um gênio da
música instrumental, com uma banda extraordinária, num festival de
jazz. Para piorar, Elis soube que a plateia tinha, além de executivos
de gravadoras e diretores de festivais do mundo inteiro, Chick Corea
e Rick Wakemann.
Diria horas depois: “Aí eu me lembrei que era filha de uma lava-
deira. Como é que eu estava naquele palco?”
Nem a orquídea de Billie Holiday (visual de Essa mulher), nem a
segurança e o suingue da banda pareciam ajudar. À medida que o show
acontecia, ela e os seus músicos foram ficando com a sensação de que
o que haviam feito à tarde tinha sido bem melhor. Elis suava, tensa. Foi
o próprio André Midani que entrou no palco, de quatro, bancando o
roadie, para, discretamente, lhe alcançar um copo d’água.
Hoje é fácil comparar os dois espetáculos, relançados juntos no CD
duplo Um dia, e concluir que não, não é verdade que o show da noite
foi pior. Mas vai lá saber o que eles sentiram naquele momento...Talvez
à tarde o público estivesse mais eufórico, por poder assistir a um show
que já tinham se resignado a não ver. Jamais saberemos. Mas esse tipo
de coisa realmente acontece: as percepções de quem está no palco e de

936
gramática e estilo

quem está na plateia (ou ouvindo o CD, décadas depois) muitas vezes
não são as mesmas.
O fato é que termina o segundo espetáculo e os aplausos são
intensos. Mas superados, duas horas mais tarde, pelos 15 minutos de
aclamação a Hermeto (em várias publicações conta-se a história como
se Elis tivesse fechado a noite, mas foi o contrário: ela primeiro, Hermeto
depois). Sabe lá o que isso provoca na cabeça de duas personalidades
como essas?
O melhor e o pior estavam por vir.
Hermeto, já fora do palco, ainda recebia as palmas do último bis
quando Claude Nobs, diretor do festival, viu Elis na coxia. Ele chama
Hermeto de volta, que vai sentando no piano para tocar um novo solo.
E aí, numa jogada de mestre, chama também Elis.
Era a senha para o que muitas vezes acontece em festivais de jazz:
uma jam session com os artistas da noite. Só que esses dois não tinham
combinado nada, e o momento era de evidente enfrentamento de egos,
diante de uma plateia faminta.
Só não valeu dedo no olho e golpe abaixo da cintura.
Midani conta a história ligeiramente diferente. Diz que, durante os
onze minutos de aplausos para Elis, Hermeto, na coxia, lhe disse: “Essa
mulher é fantástica. Mas eu tenho de ensiná-la a cantar!!!”
Era para ser apenas uma música. Combinam qual no palco, acertam
o tom e Elis ainda comenta, com sotaque nordestino, enquanto Hermeto
equaliza o piano elétrico conforme seu gosto:
– É butão que pernambucano não aguenta.
Hermeto é alagoano.
Fazem então, o “Corcovado” mais cheio de corcovas da história.
Ela tira de letra, ainda que seus primeiros sorrisos sejam amarelíssi-
mos. A forma como Elis volta para a segunda parte da canção depois

937
gramática e estilo

do despirocadíssimo (e brilhante) solo de piano é um dos mistérios de


Nossa Senhora de Fátima.
Tudo se encerra com um psicanalítico “falso” soco dado por ela
na testa de Hermeto, que o recebe com um acorde igualmente tenso de
piano. Abraçam-se, e é visível o alivio e a sensação de missão cumprida
quando ela, eufórica, lhe sussurra um inconfundível “filho da puta” pou-
co antes de saírem do palco aclamados pelo povo, que grita “mais um”.
Ela ainda abraçava o albino gorducho quando ele se desvencilha,
sai correndo e volta para o piano. Ela tenta segurá-lo, mas acaba indo
atrás.
Segundo round.
O bruxo ataca uma levada meio baião, no ritmo das palmas que o
público havia puxado. Do nada, Elis sai cantando “Garota de Ipanema”.
Vai entender; ela de-tes-ta-va a “Garota”, e havia jurado que
jamais a cantaria. Mas deve ter pensado na plateia de gringos e aí já
estava mesmo dona do campinho.
Faz misérias com os andamentos, acentos e divisões da surradís-
sima canção. Brinca com a letra em inglês, faz uma paródia ao jeito
tatibitate-Astrud Gilberto de ser, arrasa nas caras e bocas. Até que
Hermeto modula uma vez e outra, fica trocando insanamente de tom, e
recoloca na cara de Elis o sorriso amarelo do início da jam. Ela ganha
tempo até reconhecer o terreno. Numa rápida troca de olhares, retoma
a canção, agora uma paródia de jazz singer. Ele a interrompe com um
acorde absurdo, ao qual a reação elisiana é um:
– Uaaaaaau!
A plateia ri de nervosa. Ela também. Hermeto, satisfeito sai empi-
lhando clusters, blocos de nota que não são propriamente acordes. Vai
começar um novo solo quando Elis aponta para a cabeça, chamando
o foco de volta para si, e desembesta a cantar, novamente na primeira

938
gramática e estilo

parte da música. Hermeto toca o inferno por baixo. E ela só sorri, dando-
-se ao luxo de redescobrir a sensualidade há muito esquecida da velha
”Garota” descrita por Vinícius e Jobim.
Jogo virado.
Mas, quando ela vai entrar na segunda parte, o acorde que Hermeto
apresenta quase a nocauteia. Elis chega a apertar os olhos num segundo
de incerteza, mas a nota não perde a afinação. Segue ela, impávido co-
losso, rumo ao final. Concentradíssima, olhos fechados, reagindo com
um sorriso a cada acorde. Quando abre finalmente as pálpebras, está
vesguíssima – coisa que, naquele momento de sua vida, só acontecia em
momentos de muita tensão.
Terminam o segundo número, abraçam-se já sem a mesma natu-
ralidade e Elis puxa Hermeto pela mão para fora do palco, pulando.
Claude Nobs passa por eles, extasiado. O público, ensandecido, sabia
que tinha tido o privilégio raro de ver os dois gênios num momento único.
Claude, então, os nomina mais uma vez.
A dupla volta para receber mais palmas e acaba decidindo fazer
mais um número.
Numa última arremetida, o bruxo cai como um carcará faminto em
cima de uma indefesa “Asa branca”. Mas agora nada mais derrubaria
Elis. Nem mesmo o fato de ela saber uma estrofe da letra. E sua segunda
e definitiva entrada na canção, encerra a noite, carregando no sotaque
do mestre da Lagoa da Canoa:
Entonce eu disse
Adeus Héhrméétu
Guahrde consigo
Todo meeuco-ra-ção...

O saldo final não é um dos maiores momentos do festival.


É um dos maiores momentos da música do século 20.

939
gramática e estilo

Quando eu terminei de ler Elis: uma biografia musical, a primeira


coisa que me ocorreu foi que aquilo tudo estava escrito em porto-alegrês.
Depois, quando me ocorreu a ideia deste capítulo final para tratar de bons
textos, este foi o primeiro que me veio à cabeça, justamente por causa
disso: um bom texto escrito em porto-alegrês. Por quê? Porque em A
formação do professor de Português; que língua vamos ensinar?85, que
é a minha tese sobre o ensino de Língua Portuguesa na escola, eu digo
que a tarefa do professor de Português é ensinar seus alunos a escrever tal
como escreveu a literatura brasileira: como produção de conhecimento a
respeito de nós mesmos e a respeito da língua que nós falamos.
Decorre daí que escrever em porto-alegrês – em pelotês, santa-rita-
-do-passaquatrês, em anta-gordês, em catolé-do-noiês, etc. – é uma...
uma... uma... – fico tentado a escrever aqui radicalização, mas esse
passo pra longe de um padrão de língua literária em que nos reconhece-
ríamos todos numa cultura nacional já foi dado por Simões Lopes Neto
e Guimarães Rosa, seguidos por muitos outros. Então, não se trata de
radicalização mas da continuidade de um caminho já tomado desde o
século XIX que botou Alencar, Macedo, Machado, Lima Barreto e outros
a escreverem na língua que falavam e que ouviam as pessoas ao redor
falarem, escrevendo essa língua em diferentes graus de conciliação com
a tradição escrita do português.
A quantidade de palpiteiros colaboradores referidos ao longo do Di-
cionário de porto-alegrês demonstra a entusiasmada adesão que recebeu
a intuição – que o Fischer transformou em projeto – de que estávamos
precisando de um registro organizado do jeito como dizemos quem so-
mos pelo modo como nos referimos ao que fazemos e ao que pensamos
a respeito de onde e como vivemos. Ou seja, o porto-alegrês já estava
entre nós, e o Dicionário de porto-alegrês, escrito em porto-alegrês, foi
o alvará para o seu pleno funcionamento. Ainda antes de fechar a Feira
do Livro de 1999, já tinha gente falando, no rádio, tu foi, tu viu, tu falou,
85 GUEDES, Paulo Coimbra. A formação do professor de Português: que língua vamos ensinar?
São Paulo, Parábola Editorial, 2006.

940
gramática e estilo

que tu tá pensando?, onde, até então, o você era obrigatório por causa
dessa nossa concordância errada.
Pra começar a se escrever demorou um pouco, e, na verdade, me
ocorre agora que pode ter sido aquela coisa horrorosa naquela citação
do livro do André Midani – “Essa mulher é fantástica. Mas eu tenho
de ensiná-la a cantar!!!” – que sintonizou de vez o meu ouvido com o
porto-alegrês que eu já vinha escutando naquelas páginas. Midani – me
informa o Arthur – assina ele mesmo a autoria do livro. Ele nasceu na
Síria e foi pra França com três anos de idade; só veio pro Brasil depois
de adulto. Sem ghostwriter, certamente teve um revisor, e revisores têm
ideias drásticas a respeito do que devem fazer, e eu não tenho notícia de
nenhum capaz de deixar que alguém escreva preciso ensinar ela a cantar,
como o Hermeto certamente disse porque nunca na vida dele ele disse
ensiná-la, nem nós nas nossas vidas: isso não é português brasileiro. E
é sempre a contragosto que eu digo e escrevo português brasileiro em
vez de brasileiro, mas, por enquanto, só assim entendem o que a gente
quer dizer.
Eu não estou dizendo que o texto do Arthur é bom porque se ex-
pressa em porto-alegrês; o texto é bom porque assume – e comunica isso
pro leitor – que aquele encontro não podia ser nada menos do que tenso
porque Elis era tensa: “Ideia que podia funcionar com outros. Não com
ela. Entrou com tudo”. E materializa, no vocabulário e na sintaxe, essa
tensão – “revirou tripas e coração”; no aparecimento do oponente no seu
“habitat natural”; nas testemunhas – “executivos de gravadoras e diretores
de festivais do mundo inteiro, Chick Corea e Rick Wakemann” – e nos
fantasmas – “me lembrei que era filha de uma lavadeira”; e culmina com
“a sensação de que o que haviam feito à tarde tinha sido bem melhor”.
Ficamos sabendo também que há quem cronometre a duração dos
aplausos de uns e outros e que esses dados ficam armazenados para a
eternidade e que não foi combinado o que podia ter sido combinado: tudo
arranjado, enfim, pra dar tudo errado.

941
gramática e estilo

Confesso que fui pro YouTube assistir à jam session e vi tudo já


pautado pelo Arthur; acho mesmo que chamar alagoano de pernambucano
foi de mau gosto, mas o Arthur não diz que a cara do Hermeto é de pau,
no sentido de que nada se depreende dela, até porque quase nada dela
aparece atrás daqueles cabelos e o que aparece é meio parado, parece
fotografia. Não diz também que ela fica afastando os cabelos dele como
se estivesse tentando ver o que a cara dele estava dizendo.
O Corcovado é, de fato, o “mais cheio de corcovas da história”, mas
me esqueci de verificar se os primeiros sorrisos estavam “amarelíssimos”,
e não alcanço a metáfora dos “mistérios de Nossa Senhora de Fátima”,
e “despirocadíssimo” é porto-alegrês puro, seminal. Já a frase “Tudo se
encerra com um psicanalítico ‘falso’ soco dado por ela na testa de Her-
meto, que o recebe com um acorde igualmente tenso de piano” tem seu
poder descritivo, principalmente pela qualidade dos adjetivos ao redor
de soco: “falso”, que as aspas dizem que não é, e psicanalítico. E o soco
é dado ou o soco dado é “falso”? O que dá pra saber é que o soco é tão
tenso quanto o acorde que o recebe. O “filho da puta” eu não consegui
ouvir, mas ela não poderia ter dito outra coisa.
Pena que eu já tinha lido que ela intrometeu Garota de Ipanema
no meio do baião, até porque consegui distinguir o baião nas primeiras
batidas dele. Ou só distingui porque tinha lido? Na verdade, foi aí que eu
aderi definitivamente ao ponto de vista da descrição do Artur: intrometer
uma bossa nova num convite pra baião é uma declaração de guerra, ainda
mais sabendo que ela estava rompendo um compromisso com o ódio
àquela canção. Ou reforçando o compromisso, pelo exercício da paródia
debochada. Depois, quando ela entra em Asa Branca, de fato, ela entra
e sai quando quer, com aquele terno deboche da despedida.
Pois é, eu li antes e vi depois; o Arthur viu antes e escreveu depois
(provavelmente leu a respeito antes e depois), mas ele não estava lá, em
1979: ele viu o mesmo vídeo que eu vi e achou que tinha de descrever o
que viu. Acho que foi pra dar sustentação ao julgamento de que aquilo é

942
gramática e estilo

um dos maiores momentos da música do século 20. E esse julgamento, por


sua vez, dá sustentação ao julgamento de que Elis é a melhor de todas. É
a providências desse tipo que atribuo a qualidade da concretude, e esta
atribuição reforça a minha convicção de que, pelo menos, esta qualidade
discursiva é também estilística.
E aí eu volto ao filme que passava dentro da cabeça do Gibran, que
ativou nele disposição de entrar nessa conversa da língua escrita: o filme
que o Artur fez passar dentro da minha cabeça ficou muito melhor depois
que eu vi o vídeo, mesmo que eu não tenha conseguido ver quando foi
que ela ficou vesga.

7.4.3.1 Entre os limites do ponto de vista

Hique Gomez é músico, compositor, encenador, arranjador, roteiris-


ta, ator, que encenou com Nico Nicolaiewsky (que eu acho que também
foi tudo isso) Tangos e tragédias86, que assisti várias vezes em algumas
noites dos janeiros de alguns dos anos entre 1988 e 2013, no Theatro São
Pedro. Nos outros meses desses quase 30 anos (eles estrearam em 1984,
num bar) o espetáculo corria o Brasil e o mundo. Em 2019, Hique Gomez
publicou Para além da Sbornia87, e este é o seu interessantíssimo prefácio.

Eu sou um artista privilegiado. Tive o privilégio de dividir metade


de minha vida, hoje de sessenta anos, com um dos artistas mais criati-
vos da sua geração, o Nico Nicolaiewsky. Quando iniciamos a nossa
trajetória com Tangos e tragédias, jamais pensamos que estaríamos
dividindo nossas vidas por 30 anos. Eu tinha 24 quando começamos
os ensaios.

86 Pra quem não sabe, Tangos e tragédias é um espetáculo musical com dois cantores, músicos,
instrumentistas, compositores, atores, roteiristas naturais da Sbornia do Sul, que é uma ilha à
deriva no mar, originária do rompimento do istmo que a ligava ao Continente, ambos refugiados
em Porto Alegre: o maestro Pletskaya e o seu fiel escudeiro KaunusSang.
87 GOMEZ, Hique. Para além da Sbornia. Porto Alegre: Besouro Box, 2019.

943
gramática e estilo

Isso quer dizer que quando completamos 24 anos em cartaz, Tangos


e Tragédias passou a estar comigo a maioria dos meus anos vividos.
Quando interrompemos nossa trajetória pela partida do meu parceiro,
nós tínhamos mais tempo vivido dentro do Tangos e Tragédias do que
fora dele.
Os anos de Tangos e tragédias nos trouxeram um avanço fantástico
em termos de desenvolvimento artístico e profissional. Nós nos permi-
timos, um ao outro, nos expressarmos da forma mais integral possível
e criamos uma forma de arte radical, enquanto nos lapidávamos como
seres humanos, descobrindo formas de valorizar o que considerávamos
o essencial em nossas vidas.
O tom de autobiografia surge porque tudo está intrínseco. O quanto
de minha espontaneidade infantil permeou esta narrativa, foi o que me
trouxe o prazer de escrever esta história. O quanto da minha infância
permaneceu em nosso trabalho, pode ser um dado importante para o
leitor.
Nisso, me dou conta do quanto é rica a cena artística do nosso
lugar. Tendo passado metade da minha vida apurando processos cria-
tivos, descobrindo e criando sistemas, junto com amigos e colegas e,
acima de tudo, buscando sempre a conquista de um patamar além do já
conquistado, conscientes de que nunca se chega ao ponto final. Chegar
à conclusão de que eu deveria registrar tudo com minhas próprias pa-
lavras me coloca novamente no ponto zero de minha vida. Assim como
em uma boa conversa em encontros casuais, disponibilizo este registro,
e lanço uma proposta a todos os artistas, produtores e escritores brasi-
leiros: escrevam suas histórias! Escritores, escrevam biografias. Contar
nossas histórias está na base do processo civilizatório. Nós aprendemos
muito uns com os outros. Todas as histórias se encontram em pontos
convergentes e nós nos identificamos muito em nossos conflitos. Nossas
vidas não são tão diferentes. Nós nos fortalecemos quando registramos
nossas histórias e vamos dando dignidade à nossa existência, filtrando

944
gramática e estilo

e descobrindo o que é digno de registro. Nenhum sucesso é maior do


que a dignidade. Dignidade é tudo o que se espera no final de uma vida.
Como sabemos, tudo muda de acordo com o ponto de vista do ob-
servador. Em se tratando de um ponto de vista tão exclusivo como o meu,
está aberta, então, a possibilidade de outras pessoas se candidatarem a
contarem a história do Tangos e tragédias, já que este livro não inclui
apenas a história do nosso espetáculo, mas é sobre tudo minha história
pessoal. Outras pessoas envolvidas em nosso processo poderão trazer
ricas contribuições à história do nosso trabalho, que passou a ser vivida
de forma coletiva. Entrevistas com familiares, produtores, colaboradores,
colegas, técnicos, jornalistas, e habitués do nosso trabalho, podem trazer
dados relevantes que eu não pude trazer pela limitação do meu ponto
de vista. Tudo o que sei sobre Nico foi através do nosso pequeno/vasto
ponto de intersecção pela via do amor que tivemos pelo nosso trabalho.
Não sei nada de sua infância, nem de seus processos individuais no seu
excelente trabalho como compositor, tampouco me preocupei em ter
acesso a seus diários. Isso será uma outra grande surpresa para todos
nós se for publicado.
Me entreguei ao trabalho de escrever sem filtros, o que resultou em
cerca de 500 páginas. No final, a experiência do editor somou muito limi-
tando esta publicação e permitindo que o mais interessante prevalecesse.

Escalei o prefácio de Para além da Sbornia para esta seleção porque


ele também me expressa: “Chegar à conclusão de que eu deveria registrar
tudo com minhas próprias palavras me coloca novamente no ponto zero
de minha vida”. Esta frase aponta para a mesma direção para onde levam
as minhas propostas de tema: relata aí uma emoção forte, conta como foi
que tu descobriu alguma coisa que foi significativa para ti, conta qual foi
a relação que tu estabeleceu com a língua escrita ao longo da tua vida,
escreve, enfim, a respeito do que está perto de ti, do que te incomoda,
do que te intriga, do que te falta, do que tu quer, do que tu fez, deixou

945
gramática e estilo

de fazer, do que tu quer fazer. Desde sempre foi isso o que botei meus
alunos a escrever como pré-requisito para não chegarem à tese de dou-
torado na condição de imitadores do jeito de ser dos artigos dos outros.
Falando de ti e do que está perto de ti, não há outro remédio a não ser
escrever do jeito que melhor organiza e expressa o que tu tem pra dizer.
É o que faz o prefácio do Hique: ele apresenta as credenciais que
justificam sua empreitada: ele é um artista privilegiado porque foram
24 anos trabalhando com a melhor das parcerias. Disso decorre que sua
vida passou a se orientar pela mesma busca. Logo, a autobiografia é não
só uma decorrência mas um imperativo: a autobiografia surge porque
tudo está intrínseco. Pra quem não conseguiu entender por que a gente
assistia Tangos e tragédias ano após ano em janeiro, explico que o espe-
táculo era sempre o mesmo e muito diferente do que tinha sido nos anos
anteriores, sempre atento aos acontecimentos e em constante mutação
e aperfeiçoamento.
É do impulso autobiográfico que brota a lucidez que qualifica o
cenário: “Nisso, me dou conta do quanto é rica a cena artística do nosso
lugar”. Ao longo desses 24 anos, ele esteve aqui e no mundo lá fora
permanentemente compondo e recompondo, apresentando e reapresen-
tando um espetáculo mutante e inventando outros, originários do mesmo
processo: “disponibilizo este registro, e lanço uma proposta a todos os
artistas, produtores e escritores brasileiros: escrevam suas histórias!
Escritores, escrevam biografias. Contar nossas histórias está na base do
processo civilizatório”. Ou seja, o lugar deste país onde cada um de nós
vive, trabalha e se expressa não é mais um pedaço do todo: cada um de
nós é tão todo quanto o todo. No último parágrafo está a informação de
que foram mais de 500 páginas a respeito da nossa rica cena artística,
reduzidas a 367 pela diligência do editor. Pra quem acha, como eu, que
tamanho é documento, aí tem mais uma afinidade.
Como a finalidade declarada deste meu último capítulo é mostrar
bons textos e tentar explicar por que são bons, não quero insinuar que

946
gramática e estilo

texto bom é o que converge com as minhas convicções a respeito da lín-


gua escrita. Prefácios, além disso, costumam ser textos, digamos assim,
instrumentais, o que não impede que seja um texto bacana como esse,
que, por isso, mais adequadamente cumpre a sua função instrumental de
nos dar ganas de ler o livro.
E eu segui lendo o livro e logo adiante achei uma narração/descrição/
avaliação do desempenho de uma outra cantora: Rita Lee num show no
Gigantinho. É uma cena composta pelo complexo ponto de vista do autor/
personagem da autobiografia reportando o ponto de vista da memória
deles – autor e personagem – a respeito da percepção do que ambos eram
aos 14 anos. Como eu já tinha debulhado o texto do Artur sobre Hermeto
e Elis e o do Gibran sobre o filme passando na cabeça, me ocorreu tentar
dar conta da complexidade do cruzamento desses pontos de vista. Artur
não estava lá em Montreux, na Suíça, em 1979, e escolheu descrever
esse evento pra sustentar a objetividade de seu julgamento a respeito de
sua biografada. Hique tinha estado lá no Gigantinho, mas não estava lá
quando escrevia. E, quando ele escreveu, ele não era propriamente o que
tinha estado lá. Na cabeça de quem o filme passava?
Descobri, então, que eu tinha de saber o que esse cara achava que
esse cara era, o que esses caras acabaram sendo, ou melhor, não acaba-
ram. Então, li o livro até o fim. Quando eu quis voltar pro show da Rita
Lee no Gigantinho, me dei conta de que o livro não tinha sumário e que
os capítulos, intitulados, eram muitos. Contei até quase 140 e perdi a
conta. Por quantas páginas se espalharia um sumário com os títulos de
140 capítulos? São capítulos pequenos: uma, duas, três, quatro páginas;
lá pro fim tem um com seis. Me ocorre que cada um deles tem um jeito
de canção, que tem de ter um título para ser identificada e o tamanho
medido pra tocar no rádio. E, desse jeito, pequenas histórias encarreira-
das, o leitor não vai cobrar que o próximo capítulo continue o anterior.
Só que o próximo capítulo continua o anterior, obedecendo uma certa
cronologia dos fatos, do aperfeiçoamento do biografado nos seus afazeres

947
gramática e estilo

artísticos, das conquistas da sua autoconsciência e da sua inserção ativista


na movimentação artística da cidade, do país, do hiperpampa, dando
concretude ao nosso dar-nos conta de quanto é rica a cena artística do
nosso lugar. Mas o que eu gosto mesmo neste capítulo é o resultado do
esforço do cara de 60 anos pra falar pelo piá de 14 e, ao mesmo tempo,
falar com o leitor pelo cara de 60 anos que já vinha falando.
Vamos então ao capítulo que narra, descreve e delirantemente avalia
o show da Rita Lee no Gigantinho em 1974 e que se chama – o capítulo
– Uma Pachamama da era pós-moderna.

A lembrança não é só um mecanismo da memória física; ela está


sobretudo na consciência das situações vividas. Para quem acredita
que a consciência permanece depois da morte do corpo, quando os me-
canismos da consciência física deixam de funcionar, esta parece ser só
um programa na interface da consciência; importante, mas apenas isso.
Todas as coisas que aconteceram são guardadas na memória essencial
e fazem parte dos momentos eternos de uma vida.
Aí, veja bem... Anunciaram um show da Rita Lee em Porto Alegre.
Eu, Helinho e seu irmão Paulo queríamos ir. Fui pedir aos meus pais,
mas eles não me deixaram ir. Mas eu queria tanto que consegui convencer
minha mãe a me emprestar uma graninha para outra coisa, evitamos meu
pai e fomos para a estrada. Pegamos uma carona até a casa da minha avó
em Porto Alegre. Depois fomos para o Gigantinho – ginásio de esportes
do clube Internacional, de Porto Alegre, que recebe eventos – onde foi o
show. O disco era “Atrás do porto tem uma cidade”. Rita Lee!!!
Chegamos, e o show já tinha começado. Foi o maior impacto que
já tive com um espetáculo. Aquilo me desvirginou para o show business.
Lee Marcucci no baixo era uma figura gigantesca, tocando e dançando
com uma explosão jovial, uma energia pulsante, com um batom preto na
boca e um corte de cabelo de indígena futurista de São Paulo. O batera,
chamado Mamão, era ótimo. Lucinha Turnbull, uma descendente de

948
gramática e estilo

escoceses, totalmente alinhada com Rita, tocava guitarra, violão e fazia


os backings. É Ela! A Rita Lee verdadeira! Uma entidade absoluta, com
uma voz transcendental afinadíssima e uma presença avassaladora, uma
vibe fluente em absoluta ligação com o mais alto nível de inspiração,
totalmente entregue à sua arte.
Nós seguíamos a produção de músicas inglesas e americanas
através de revistas e publicações brasileiras, mas aquilo que Rita fa-
zia estava acima de tudo que conhecíamos. Eu não entendia inglês na
época, mas as letras da Rita cumpriam uma função absoluta na comu-
nicação da nova linguagem, usando palavras da nossa gíria e dando
legitimidade à expressão da nossa geração. A performance, o conceito
artístico, a originalidade, a consistência... Muitos diziam que, se Rita
fosse inglesa, estaria entre os artistas mais importantes do mundo. Isso
ficou comprovado quando artistas como Beck e Kurt Cobain citaram os
Mutantes como referência. Uma música sofisticada, com um alto grau
de complexidade, progressivo, até.
Eu já tinha a fita cassete que o Sergio Vilanova tinha me dado; de-
pois comprei o disco e decorei cada compasso de todos os instrumentos.
Até hoje consigo cantar partes instrumentais inteiras. As letras eram
criativas e traziam a profundidade do comportamento da contracultu-
ra: “Eu não sei se estou pirando ou se as coisas estão melhorando...”
(Mamãe Natureza). Ela sabia. Sabia que estava dando um grande
salto, intuía que seria uma artista de primeira importância na história
da música popular brasileira, uma libertadora e uma quebradora de
paradigmas. O melhor que um grande artista pode fazer é construir seu
nicho próprio, a ponto de não poder ser comparado com nenhum outro
artista. Por isso, e só por isso não se pode compará-la com Carmem
Miranda ou com sua amiga Elis Regina, Gal Costa ou com qualquer
homem. Rita é incomparável. Devido aos seus talentos como musicista,
compositora, cantora, performer, provocadora social, comediante, cria-
dora de personagens e anarquista, ela tornou-se um padrão muito alto
de realização artística. Sua espontaneidade e criatividade estão acima

949
gramática e estilo

de tudo que foi feito na música pop brasileira. O padrão pop inglês da
arte da contracultura atingiu com ela a mais alta escala de legitimidade
na revolução comportamental daquele período no Brasil, com reflexo
em toda a América Latina.
No álbum “Atrás do porto tem uma cidade”, transparecia que Rita
queria provar para os outros Mutantes que podia fazer música progres-
siva sem perder o traço anárquico e a graça. Para mim, os primeiros
itens do trabalho artístico passaram a ser esses. E ela mostrou... Tocava
Minimoog, harpstrings e clavinete, como um Rick Wackeman. Tocava
violões perfeitamente e ainda fazia uns solos de flauta transversa. Can-
tou em inglês uma música do Bad Company, uma banda que a gente
curtia, e, mesmo não entendendo as letras, tivemos a certeza de que, se
estivéssemos em Londres, estaríamos na vibe mais confirmada do rock
naquele momento. Equivalia a um show do David Bowie, só que com
músicos melhores e um conceito de arranjos mais sofisticado – isso eu
repito até hoje. O som do Bowie era menos elaborado, e os seus músicos,
menos eficientes, embora surfassem no pico da onda roqueira da época.
A iluminação não era tão pujante porque nem havia tanto equipa-
mento naquela época, mas o conteúdo musical sobrepujava todo o resto.
O repertório desse trabalho é genial, uma obra de arte permanente, como
todo trabalho da Rita, mas ela estava saindo dos Mutantes levando con-
sigo o melhor que os Mutantes podiam oferecer. Além disso, ao mesmo
tempo, ela evitava qualquer deslize que a banda pudesse estar vivendo
naquele momento. Aquilo era Mutantes em sua essência. Lógico que
uma banda se forma pela química entre os seus componentes, mas isso
para mim era tão claro como a luz do dia: “Rita Lee é a essência dos
Mutantes”. Eu não tinha quinze anos ainda e não poderia escrever nada
tão acurado sobre esse trabalho naquela época, mas guardo também a
impressão essencial daquele momento que ainda sou capaz de fazer todo
tipo de associação. Esse trabalho compõe a base de minha formação
artística musical e é uma de suas pedras fundamentais, referência de boa
música, criatividade, anarquia, humor, alegria, beleza, complexidade,

950
gramática e estilo

precisão, espontaneidade e profissionalismo.


Mamãe Natureza diz: “Estou no colo da mãe natureza, ela toma
conta da minha cabeça...”. Ela sabia que ela, Rita, era a natureza falan-
do! Uma Pachamama da era pós-moderna. Dá pra entender o tamanho
do presente de quem participou dessa experiência? O suprassumo da
música universal na minha frente! Algo que eu passaria a vida inteira
decifrando, até os dias de hoje. Um universo vivo que sempre vou poder
fazer relações com tudo no futuro, incluindo o cancioneiro de inspirações
folclóricas para chegar à conclusão de que “o folclore é a natureza se
manifestando através do ser humano”. É a natureza humana! É a própria
natureza. Ela era Mamãe Natureza, brotada no centro de São Paulo.
O Gigantinho não é conhecido pela boa acústica, mas até isso es-
tava jogando a favor. Escutávamos todas as letras. “Yo no creo pero”
tem um arranjo tão complexo quanto os do Yes, o grupo inglês, tudo
amarrado por um bom gosto artístico ímpar. Tudo tão explosivo, tão
espetacular, tão revelador que é claro que eu levaria todos esses anos
para processar a informação de que Rita e seus grupos produziam. Eles
eram a “melhor banda inglesa do Brasil”. A anarquia hippie com a força
ancestral do circo inglês se materializava em cima do palco na “cidade
atrás do porto”. A cultura de língua inglesa, na força da contracultura
legitimamente brasileira, ululava no palco com Rita Lee Jones, filha de
pai americano, ao lado de Lucia Turnbull, descendente de escoceses.
Uma espécie de Reino Unido do Brasil. Uma bomba em forma de arte.
O Gigantinho fica perto do cais de Porto Alegre. E este nome,
Atrás do porto tem uma cidade? Que cidade é essa? Que porto é esse?
Quem ou o quê ela estava procurando nessa cidade atrás do porto? Eu
já havia descoberto que aquela loirinha de Soledade não era quem eu
pensava que fosse... E agora a Rita estava ali... Não sei o que houve
comigo naqueles dias... não lembro! Acho que fiquei em estado alfa,
processando as informações, sem me dar conta do resto da minha vida.

951
gramática e estilo

O capítulo anterior a este, que se chama Ovelha negra, trata dos


Mutantes e de Rita Lee, por quem ele se apaixona aos 14 anos e que se
materializa “numa loirinha na minha escola com o cabelo igualzinho”
e que recalcitra, mas acaba concedendo namorar com ele. O capítulo
tem uma só página e termina assim: “Descobrir que ela não era a Rita
Lee e não estaria de tênis e vestido de noiva no dia do nosso casamento
cantando Ovelha negra me deixou muito abalado”.
E neste capítulo aqui está a narração/descrição/avaliação de lembran-
ças dos 14 anos escritas aos 60 por um artista que declara que registrou
tudo com as próprias palavras. O obscuro tema do primeiro parágrafo
deste capítulo, que parece opor categorias como memória física/memória
essencial e mecanismo da memória/consciência das situações vividas
e que parece uma introdução de redação do vestibular, vai ganhando
concretude ao ser retomado nos entremeios das narrativas dos capítulos
que se sucedem. Já o segundo parágrafo é pura narrativa de aventura:
“Aí, veja bem... Anunciaram um show da Rita Lee em Porto Alegre”. E
o relato da escapada se limita ao essencial: enrolou a mãe e foi arranjar
uma carona e chegaram no Gigantinho.
Segue-se uma panorâmica da banda, que já estava tocando: o maior
impacto. O baixista, o baterista, Lucinha Turnbull e sua guitarra e Rita
Lee verdadeira, a entidade absoluta, com quem ele já se identificava:
“aquilo que Rita fazia estava acima de tudo que conhecíamos, mas ela
cantava palavras da nossa gíria e dando legitimidade à expressão da nossa
geração numa música sofisticada, com um alto grau de complexidade”.
Pra deixar bem claro que esses adjetivos não estão aí só pra dar
andamento à descrição, vem o testemunho que lhes dá concretude:
“comprei o disco e decorei cada compasso de todos os instrumentos.
Até hoje consigo cantar partes instrumentais inteiras”. E é dessa posi-
ção aí que ele formula o seu juízo: Rita é incomparável. Assumindo a
responsabilidade desse veredito, ele se obriga a falar para os seus iguais,
os músicos: “fazer música progressiva sem perder o traço anárquico e

952
gramática e estilo

a graça”, “tocava Minimoog, harpstrings e clavinete”, “tocava violões


perfeitamente”, “uns solos de flauta transversa”, “conceito de arranjos
mais sofisticado do que os do David Bowie”.
E aí ele volta pra ele e pro show, pro conteúdo musical: “a base
de minha formação artística musical” e “referência de boa música,
criatividade, anarquia, humor, alegria, beleza, complexidade, precisão,
espontaneidade e profissionalismo”. Não é qualquer um que se arrisca a
assumir uma lista de dez compromissos. E depois vem o compromisso
maior para as trezentas e vinte e tantas páginas que estão por vir: deci-
frar pra nós, seus leitores, “o suprassumo da música universal”, que ele
“passaria a vida inteira decifrando”, para chegar à conclusão de que “o
folclore é a natureza se manifestando através do ser humano”.
Este leitor de Para além da Sbornia dá o testemunho de que o com-
promisso foi cumprido: dá pra ler (1) como um romance de formação, (2)
como um grande ensaio sobre a música popular produzida no Brasil nas
últimas décadas do século XX e nas primeiras do século XXI, (3) como
um grande ensaio sobre a música popular produzida no Rio Grande do
Sul nesse mesmo período e (4) sobre a música produzida no hiperpampa
desde que o hiperpampa é hiperpampa, (5) como um livro didático que
ensina o artista a sobreviver e, principalmente, a viver. Dá pra ler também
(6) como uma autobiografia. Vou sugerir como (7) leitura obrigatória
para a prova de Literatura no vestibular.
O capítulo seguinte começa assim: Voltamos para Soledade, e eu
disse aos meus pais que queria ser músico.

7.4.3.2 Pra dizer o que vem ao caso

O texto que segue foi publicado no livro EMEF Getúlio Vargas:


redescobrindo a nossa história88, organizado por Claudia Plá e Jane
Mari de Souza. É um livro comemorativo dos 50 anos dessa escola,
88 PLÁ, Cláudia; SOUZA, Jane Mari de. EMEF Getúlio Vargas: redescobrindo nossa história.
Porto Alegre: Comunicação Impressa, 2019.

953
gramática e estilo

da Rede Municipal de Educação de Cachoeirinha, município da zona


metropolitana de Porto Alegre. Está entre as p. 121 e 124, encerrando o
livro. Assim são apresentados os créditos da autora: “Brenda de Fraga
Espíndula foi aluna da escola de 1987 a 1994. Hoje é militante comunista,
socióloga, doutoranda em Sociologia pela UFRGS e pesquisadora dos
temas tecnologia e sociedade”.

Re+lato de amor e de esperança

Brenda Espíndula

Aqui começa um relato sobre a minha vivência na escola pública


Getúlio Vargas entre final da década de oitenta e meados da década
de noventa, sobre os oito anos da minha infância vividos nessa escola.
Eu queria que esse relato – re mais lato ou re+lato– fosse escrito com
o coração, com os sentimentos que pulsam lá dentro do meu corpo. Um
relato que tocasse as pessoas nesse aniversário de 50 anos da escola.
Mas isso tudo que pulsa, talvez não só no coração, me impediu por
algumas semanas de sentar e enfrentar a página em branco. Mas por
quê? Será que a escola te traz lembranças ruins e apavorantes? Ou será
que as lembranças são tão lindas que quer deixar lá assim nesse lugar
intocado e seguro das boas e lindas lembranças do passado? Ou será
que é mais para além ainda desse maniqueísmo – nem más, nem boas
recordações? Será que são memórias e sentimentos que borbulham
esperando um lugar nesse presente, no presente de um corpo – mente
– coração de adulta de quase quarenta anos? Relatar, refero, volver a
llevar. Esse re+lato da Brenda cheio de perguntas, para ela mesma e
por ela mesma, pretende trazer de volta as tantas histórias do primeiro
grau e dar a elas um lugar no presente.
A escola era parte mais importante do meu dia a dia. Lembro tão
bem das minhas professoras. Das atividades escolares, dos meus colegas,
das amigas, dos livros da biblioteca, da estrutura da escola, dos cantos

954
gramática e estilo

e vãos. Lembro-me de dentro da sala de aula, bem como do pátio da


escola. Passei oito anos naquela quadra convivendo basicamente ano
após ano com quase a mesma turma. Era a escola municipal do bairro
e tinha até a quarta série.
Pelos olhos da Brendinha, vejo a horta e o zelador que cuidava
dela. Era a primeira série. Entre os canteiros enfileirados, as crianças
se dispersavam e a professora explicava sobre as hortaliças. Tinha pé
de couve, radite, espinafre, alface, tomate, pimentão, pepino, abóbora.
Colhíamos o que já estava bom e levávamos ao refeitório. Lá já espe-
ravam as tias da merenda que nos ajudavam a limpar e a processar a
salada. Tudo pronto, todo mundo recebia o seu prato, ou massa com
molho ou o risoto ou carne com guisadinho, junto com a salada da horta.
Não lembro o nome do professor do coral. Tínhamos aulas no con-
traturno. Eu adorava, conhecia pessoas das outras turmas e desafiava
a timidez abrindo a boca e cantando desafinada. Preparamo-nos o ano
todo para fazer a apresentação final no palquinho da escola. Chegada
a hora, todo mundo foi orientado a trazer lenços para encenar o secar
de uma lágrima durante a execução de certa música do repertório. Per-
gunto para a minha mãe sobre que lenço poderia levar e ela me oferece
um lenço de pescoço dela que era preto e vermelho. Bati pé e falei que
aquele não servia, tinha que ser branco. Ela falou que não tinha, nem o
pai tinha. Chorando, saí para apresentação, encorajada pela mãe que
daria tudo certo. E hoje, as poucas fotos de criança que tenho, mostra a
Brendinha na apresentação do coral, com sua roupinha branca, secando
as lágrimas com o enorme lenço preto e vermelho.
Outra coisa incrível foi aprender sobre as ervas medicinais e aro-
máticas com a professora de Ciências. Foi tão lindo conversar com a
mãe, com a vizinha e elas falarem sobre as plantas que conheciam, que
tinham no quintal. Na escola, aprendemos a secar para chá e a fazer
tinturas. Fizemos um grande catálogo coletivo com todas as plantas que
a turma conseguiu. As gurias com letra bonita - eu era uma delas - aí

955
gramática e estilo

faziam as fichas com a descrição das plantas, o nome científico e os


benefícios das ervas. Até hoje sou capaz de reconhecer as plantas, saber
para que servem e recomendar boas misturas de chás, graças àquela
professora que morava lá na Lomba do Sabão e ia até Cachoeirinha
todos os dias nos dar aulas.
Mágica era a biblioteca. Era pequena e bem cuidada. A bibliote-
cária sempre afetuosa a orientar e a sugerir recomendações. Trazia-me
um aconchego imenso, uma paz em estar ali naquele mundo vasto de
informações e coisas novas que o meu mundinho de bairro nem imagi-
nava saber. Não tinha TV em casa, então os livros eram o meu prazer.
Lia muito, as tardes eram devorando livros, fazendo os temas de aula.
A sensação ao lembrar é mergulhar nesse sentimento de que nada dará
errado na vida, tudo é esperança nas aventuras dos personagens dos
livros, mesmo as tristezas mais tristes.
E a escola foi crescendo, os pavilhões se ampliaram, a oferta das
séries também, depois de muita mobilização para se ter os anos finais do
primeiro grau, sem que as crianças precisassem ir para o outro bairro
estudar. Os hormônios dos pré-adolescentes já se alvoroçavam, os pri-
meiros beijos aconteciam. E cada vez mais descobertas, a Brendinha, que
já se achava Brenda, começava a entender coisas mais complexas. E nas
tardes a professora de Português nos levava ao Centro Social Urbano e
ensinava a escrever livros. Sim, a escrever os livros em vez de somente
lê-los. Escrever sobre as histórias das nossas famílias, escrever sobre a
escola, sobre os nossos sonhos, sobre o bairro, sobre como as pessoas
se reúnem para construir coisas novas e diferentes. Ensinava a ser a
gente mesmo por meio das palavras que estão naqueles livros. A Brenda
socióloga de hoje já fazia entrevista e escrevia sobre movimentos sociais
aos 10 anos!! Pura magia e diversão daqueles anos lindos no Getúlio.
Mas por que a demora em sentar e escrever essas memórias lindas,
Brenda?

956
gramática e estilo

Agora parece que tudo fica claro, o porquê de relutar em re+latar


torna-se evidente: porque a Brendinha me olha e pergunta:
‒ As crianças aí do presente têm horta? Elas podem ir a pé para
a escola? Elas podem aprender a cantar na escola delas? As crianças
conhecem sobre as plantas, sobre o planeta Terra que gira e é redondo?
E os livros? Todas as crianças sabem ler e têm os livros que quiserem?
Têm uma biblioteca gostosinha com tapete para sentar? E elas sabem e
podem escrever histórias fascinantes de bruxas, de magia, de gnomos?
E elas podem andar pelo bairro assim perguntando coisas para os vi-
zinhos? E elas…
‒ Relaxa, Brendinha! Muitas perguntas, respira. Não posso te dar
respostas positivas. Só posso te dizer que hoje faço de tudo para que
todas as crianças tenham tudo isso, uma escola viva, que interaja com a
vizinhança, que resgate as histórias das famílias e as envolva no cotidiano
da escola, que as professoras e todos os profissionais que estão envol-
vidos com a escola sejam reconhecidos e valorizados e que a sociedade
não deixe de construir ambientes coletivos seguros e mágicos para a
infância aprender e amar as coisas do mundo. Não quero que isso seja
só lembrança do teu passado, Brendinha. Quero que toda a esperança
e amor transbordem por aí e mantenham vivo o desejo de uma escola
acolhedora e vibrante. Vem cá, vem… me dá um abraço, Brendinha.

Não é assim que se costuma comemorar os 50 anos do que quer


que seja, e a Brenda que comemora sabe disso. Tanto ela sabe que, por
algumas semanas, consulta as suas lembranças, que se recusam a des-
cer pro papel como boas ou más, se recusam até mesmo a descer como
lembranças: “são memórias e sentimentos que borbulham esperando
um lugar nesse presente, no presente de um corpo – mente – coração de
adulta”. Ela não quer discorrer sobre o que lembra: o que ela quer é pôr
sua memória a serviço da causa; por isso, não vai abandonar no passado
a Brendinha que viveu o presente, isto é, o corpo dessas memórias e

957
gramática e estilo

sentimentos. Brendinha conta, então, que a professora explicava sobre


as hortaliças, sobre as ervas medicinais e aromáticas. Conta que as tias
da merenda mostravam como limpar e a processar a salada, conta que
a mãe e a vizinha eram entrevistadas para falarem sobre as ervas que
tinham no quintal.
Na biblioteca tinha livros e aconchego, na aula de Português se es-
crevia livros, além de se ler livros e se ler o mundo ali por perto: “escrever
sobre as histórias das nossas famílias, escrever sobre a escola, sobre os
nossos sonhos, sobre o bairro, sobre como as pessoas se reúnem para
construir coisas novas e diferentes”. Não há saudosismo nesse diálogo
em que o presente reivindica o passado em nome do futuro: “A Brenda
socióloga de hoje já fazia entrevista e escrevia sobre movimentos sociais
aos 10 anos!!”
E o presente? É digno desse passado? E como chegou ao presente
quem passou por este passado? Estamos fazendo “de tudo para que todas
as crianças tenham tudo isso, uma escola viva, que interaja com a vizi-
nhança, que resgate as histórias das famílias e as envolva no cotidiano da
escola, que as professoras”? Não é assim, com os concretíssimos dados
irrefutáveis da memória, do desejo, da esperança e da militância que se
devia comemorar todos os dias de vida de toda escola? Esse texto deixa
bem clara a origem de toda originalidade: o presente, isto é, o corpo com
o que nele borbulha. Texto bom, a meu ver, trata do que vem ao caso.

7.4.3.3 Quando o texto provoca as necessárias confluências

O texto que segue foi produzido para dar conta da mesma demanda
da maioria dos textos examinados neste livro: um relato sobre a relação
desenvolvida pela sua autora com a língua escrita. Neste caso, com ên-
fase na experiência escolar, já que foi numa disciplina da graduação em
Letras em que se discutia o ensino de Português na escola. A leitura e a
discussão deste texto em sala de aula determinaram o rumo que tomou
a discussão sobre o assunto daí por diante. Só esse mérito já qualifica,

958
gramática e estilo

na minha opinião, um texto como bom, e nos meus arquivos – as caixas


com textos xerocados, arquivos eletrônicos com os originais e com os
comentários que eu escrevi –, além das lembranças na minha cabeça,
há alguns outros que fizeram isso. Este tem outros méritos além deste,
intrínsecos.

O dia da árvore

Luciane Tomé Bittencourt

Em 1982, a Restinga, uma vila de Porto Alegre, já não era mais


um lugar sem recursos para se morar, isso comparando com quando lá
cheguei na década de 70. Falo de recursos que tornam um cenário quase
rural num cenário mais urbano, ou melhor, suburbano. Em 1982, na
Restinga já existiam ruas calçadas, faixas asfaltadas, farmácias, super-
mercados, posto médico, escolas, creches, delegacia de polícia, posto da
BM, clube com piscina, sorveteria, etc... De vez em quando aparecia um
circo ou um parque de diversões, muito murrinhas, diga-se de passagem.
De modo que, para mim, uma criança de dez anos que tinha pais que
não me levavam ao Parque Marinha, ao Zoo, ao Planetário, ao Parque
Farroupilha, ao cinema, ao teatro, e nem na Restinga havia diversões
desse tipo, restava-me a escola como local de aprendizagem e diversão.
Para mim, a escola era o local onde as coisas aconteciam, pois era lá
que eu tinha a oportunidade de ter um envolvimento social extrafamiliar.
Lembro-me que vivi experiências interessantes na Escola Estadual
Raul Pilla, que ficava a cinco minutos da minha casa. Eu estava na 5ª
série e, como todos sabem, a 5ª série é o começo de uma nova fase: a gen-
te começa a escrever de caneta, aumenta a responsabilidade, é exigida
mais organização, etc. e tal. Dessa forma, iniciei o ano letivo com frio
na barriga, pois tudo que é novo assusta um pouco. Mas o medo passou
logo depois que recebi a prova de História com um DEZ estampado,

959
gramática e estilo

além, é claro, dos elogios da professora; depois foi a vez da prova de


Ciências, que também tirei dez, aliás, o único da turma. Com duas notas
máximas no primeiro bimestre, fiquei com a bola cheia, achando a 5ª
série uma moleza. Só que, como diz o dito popular, alegria de pobre dura
pouco: a decepção surgiu quando comecei a receber minhas redações
corrigidas: todas com notas baixas. A professora dizia que era porque
eu colocava diálogos nas redações e não era aquele tipo de redação que
ela havia pedido. Isto, para mim, não explicava absolutamente nada;
então, eu lia as redações dos colegas que tinham notas altas. Mas não
adiantava: eu continuava sem entender o motivo de ter tirado notas tão
baixas. Eu achava as minhas histórias com personagens que falavam
por si próprios muito melhores do que as histórias deles, que não tinham
diálogos. A minha professora de Português, a Zilda, levava em conta
que eu era uma aluna interessada, responsável e disciplinada, embora
não fosse uma de suas queridinhas. Aliás, eu nunca fui queridinha de
nenhuma professora, pois eu não era do tipo simpática, que elogiava o
corte de cabelo da professora, a roupa nova, a cor do batom ou outras
frescuras do gênero. Eu era quieta, não gostava de muita conversa e tinha
receios que achassem que eu estava puxando o saco dos professores. E
isto seria o fim: ser considerada uma puxa-saco. E, além do mais, eu
sempre fui tímida mesmo, e muitas vezes minha timidez foi confundida
com arrogância. Mas com os meus colegas que eu já convivia desde a
5ª série, eu não tinha problemas: conversava até demais com eles.
Então, apesar das minhas péssimas (?) redações, a professora Zilda
resolveu me dar um voto de confiança e me incumbiu de preparar algum
evento para a hora cívica que haveria na escola em comemoração ao
dia da árvore.
A hora cívica consistia em reunir todas as turmas de 5ª a 8ª do
turno da tarde, depois do recreio, no saguão da escola. No saguão havia
um pequeno palco onde a diretoria daria abertura ao evento cívico. A
diretora tinha voz tão alta que dispensava microfone, e era até melhor;
afinal, o aparelho de som estava sempre com defeito. Os alunos ficavam

960
gramática e estilo

em filas por ordem de tamanho, de frente para o palco. Após a diretora


explicar o motivo da reunião, cantávamos o hino nacional. E, depois do
hino, uma professora subia ao palco e anunciava os eventos que seriam
apresentados: jogral, declamação de poemas, leituras de textos. Todos os
eventos giravam em torno do tema da comemoração. Naturalmente que
tinham a honra de subir ao palco os alunos que se destacavam em aula,
ou seja, os mais bonitinhos, os que escreviam melhor; enfim, aqueles
que constituíam a nata da escola. Eu achava aquilo uma panelinha, pois
só tinham vez os queridinhos dos professores.
Então, como eu ia dizendo, fui convocada pela professora Zilda
para participar da panelinha da hora cívica. Aceitei a convocação: era
a oportunidade de eu mostrar o meu valor. Fui para casa pensando no
que faria para apresentar diante da escola inteira no dia da árvore. Que-
ria algo diferente do que os queridinhos apresentavam. Pensei, pensei
e decidi escrever uma peça de teatro. Imaginem! Eu, que nunca havia
assistido e nem lido uma peça, escreveria e encenaria uma. Fui para a
minha cama, que era o único lugar da casa exclusivamente meu, onde
meus três irmãos mais novos não ousavam tocar e escrevi uma peça de
três atos. Inventei uma história com muitos personagens, pois não queria
a dita panelinha na minha apresentação, queria a participação dos 30
alunos da turma 51, e os que não tivessem papel na peça trabalhariam
nos bastidores como cenógrafos ou técnicos e no final da peça seriam
apresentados ao público.
A história da peça se passava em uma praça cheia de árvores,
plantas, flores e animais silvestres. Todos falavam, ou seja, conversa-
vam entre si e com as crianças boas que iam brincar naquela praça.
Além do grupo de crianças boas, havia o grupo de crianças más que
maltratavam as árvores, flores e animais que moravam na praça. O
1º ato era destinado à apresentação da praça com seus moradores e a
harmonia deles com as crianças boas. No 2º ato, apareciam os meninos
maus, que com fundas e pedras praticavam atos de vandalismo. O 3º e
último ato era para o happy end, quando as crianças boas passavam um

961
gramática e estilo

pito e um chá de moral nos maus, bem como exaltavam os valores da


natureza e principalmente das árvores, que eram as homenageadas da
festa. E, como é previsível, os maus aprendiam a lição e se convertiam
em crianças boas que cuidavam das árvores. Entre um ato e outro, eu,
que era a autora e diretora da peça, subia ao palco e fazia comentários
sobre a cena que havia-se passado e anunciava a próxima.
Eu dirigi os ensaios com os atores, bem como o trabalho de con-
fecção das roupas de árvores que eram de papelão e papel crepom. O
pessoal da técnica ficou encarregado de conseguir um aparelho de som
que funcionasse bem para podermos colocar fundo musical e para ins-
talarmos um microfone que o público conseguisse ouvir com clareza a
fala dos atores. Nem preciso dizer que foi máximo: tanto os preparativos
quanto a apresentação, tudo saiu perfeito, fomos aplaudidos e elogiados.
Deu um trabalho enorme e muita briga também, mas valeu a pena, pois
todos fizeram tudo exatamente como eu queria. Os professores ficaram
admirados com o resultado, não tanto pela história da peça porque era
muito piegas, mas gostaram mais por causa da organização do evento.
A peça foi realizada exclusivamente pela nossa turma sem a ajuda de
qualquer professor.
Guardo com muita estima esta vivência escolar que para mim foi
um perfeito acontecimento social com direito a badalação e tudo.
Depois disso, fui convidada a escrever uma peça para marionetes
e ainda outra para os alunos da 6ª série; aceitei e escrevi com muito
gosto. Posso dizer que naquele ano lancei a moda de espetáculos tea-
trais no Raul Pila: vinham até alunos de escolas vizinhas para assistir
as peças do Raul.
Sei que não tive professores geniais ou revolucionários, mas que
tive professores interessados. A professora Zilda não soube me ensinar
a escrever textos narrativos, mas me deu a chance de realizar aquilo que
eu sabia fazer: escrever diálogos. Melhor que isso, me deixou dar vida
aos meus diálogos juntamente com meus colegas da turma 51.

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gramática e estilo

Pena que o meu talento teatral tenha se perdido há 16 anos atrás,


lá na 5ª série, mas meu gosto pelo teatro com certeza permanecerá
enquanto eu durar.

A autora, já aos 10 anos, se bancava como escritora de narrativas: “a


professora dizia que era porque eu colocava diálogos nas redações [...].
Mas não adiantava [...]. Eu achava as minhas histórias [...] melhores do
que as histórias deles, que não tinham diálogos”. Ela sabia o que estava
dizendo, e foi essa desenvoltura numa aluna de quinta série que trouxe
a questão para os professores que estavam se formando naquela sala de
aula: que fariam vocês com uma aluna dessas em sala de aula?
Pra começar, a contextualização do papel da escola na comunidade
onde se deu a vida escolar da autora não é uma ocorrência comum nesses
textos e demonstra a vinculação da autora com a peculiar história da
Restinga, um bairro construído na periferia para escoar os moradores
da centenária Ilhota, uma vila89 encrustada muito perto do centro da
cidade, a ser posta abaixo para abrir o caminho da futura avenida Erico
Verissimo, que se prolongaria na também futura avenida Aureliano de
Figueiredo Pinto, desembocando na direção da remota promessa da ave-
nida Beira-Rio. Como se vê, o povo assentado não deixou barato o seu
confinamento em prol da mobilidade urbana dos outros: “ruas calçadas,
faixas asfaltadas, farmácias, supermercados, posto médico, escolas, cre-
ches, delegacia de polícia, posto da BM, clube com piscina, sorveteria,
etc.”, em pouco mais de dez anos.
Tal Restinga, tal restingueira: ela queria os DEZ dela; não os da
professora. Naquele tempo não se falava em gêneros do discurso, mas a
professora, que tinha convicções fortes a respeito do papel dos diálogos
nas narrativas, tinha também sensibilidade e tratou de impulsionar uma
89 Sobre vila, consta o seguinte no Dicionário de porto-alegrês: “Parece que Porto Alegre não
pegou totalmente a designação de favela para aquelas tristes ajuntações de casas precárias (que
se chamavam aqui de malocas, donde os ‘maloqueiros’ – v.): pelo menos meu ouvido registra
que ainda se fala mais ‘vila’. ‘Lá na vila’ é muito mais frequente do que ‘Lá na favela’, que
eu nunca ouvi por aqui” (FISCHER, 2009, p. 272).

963
gramática e estilo

carreira na dramaturgia. Pelo espetáculo que ela armou aos 10 anos de


idade e pela disposição que mostrou para escrever e encenar sob enco-
menda, é de se deplorar que não tenha sido recrutada pela equipe de
carnavalescos da Sociedade Beneficente e Recreativa Estado Maior da
Restinga, que já tinha sido fundada.
Tão bem montado quanto aquele espetáculo é este texto que contex-
tualiza, narra, descreve, estabelece relações de causa e efeito, confronta
argumentos para dar este testemunho a respeito do que pode acontecer
de significativo numa escola quando se abre uma fenda na rigidez do
invencível programa e das convicções de uma professora a respeito do
que se pode e do que não se pode fazer. Uma menina assume uma posição
com firmeza, e uma professora inventa uma tangente: Então tá: vai lá
fazer, mas fora da sala de aula.
Em 1982, a ditadura estava de saída; talvez a professora já
tivesse lido alguma coisa do que a gente já andava escrevendo a res-
peito de dar a palavra aos alunos para que eles contassem a história
contida e não contada da sua gente, formulação contemporânea de
Geraldi. Talvez ela tivesse participado de algum dos eventos e dos
cursos que a gente andava promovendo. De qualquer maneira, mes-
mo não abrindo mão de suas convicções, ela deu a palavra à aluna,
que também não abriu mão de sua convicção a respeito do poder do
diálogo, dos diálogos.
A história da Restinga desde a ida da família dela pra lá no
começo dos anos 1970 continuou sendo o pano de fundo em outros
textos produzidos pela Luciane ao longo do semestre. Essa vincu-
lação parece ser uma marca distintiva dos restingueiros, que, em
2010, conquistaram a instalação de um campus do Instituto Federal
do Rio Grande do Sul.

964
gramática e estilo

7.5 ENSINAR A ESCREVER, APRENDER A ESCREVER, APREN-


DER A ENSINAR A ESCREVER

Como é que é isso? Uma menina de 10 anos convencida de que os


textos com diálogos que ela escreve são melhores do que os textos sem
diálogos dos colegas, elogiados pela professora? E que, desafiada, se
interna no seu escritório – a sua cama, no mesmo quarto com seus irmãos
menores – e concebe todo o espetáculo que vai fazer materializar-se no
palco do salão da escola, sem nunca ter ido ao teatro? De onde vieram
essa convicção e essa disposição? Tudo o que ela disse dos seus profes-
sores foi que não eram geniais nem revolucionários; foram professores
interessados, como essa professora, que admitiu que ela sabia escrever
diálogos. Onde a gente aprende a escrever diálogos? Como?
A história da escola da Brenda contada no livro comemorativo relata
que foi a mobilização do bairro que forçou a prefeitura a criar a escola e
ampliá-la de acordo com as necessidades que iam surgindo. E a escola
foi fiel a quem a criou: já nas séries iniciais, a professora de Ciências
encomendava aos alunos a catalogação das receitas de chá da mãe, da
avó e da vizinhança. Os saberes escolares atribuindo aos saberes popu-
lares o estatuto de documentos escritos para registro, leitura, divulgação,
interpretação.
Esse trabalho teve continuidade no início da década de 1990, quando
são implantadas as séries finais do ensino fundamental: a partir da quinta
série, a professora de Português tomava providências: “E nas tardes a
professora de Português nos levava ao Centro Social Urbano e ensinava
a escrever livros. Sim, a escrever os livros em vez de somente lê-los”.
Os alunos passaram a escrever a respeito da chegada em Cachoeirinha
de suas famílias, vindas da roça, sobre a história recente do bairro onde
moravam, sobre o panorama geral da educação nesse mesmo bairro,
sobre os movimentos sociais na cidade de Cachoeirinha. A professora
Jane Mari de Souza – que é também uma das organizadoras do livro
comemorativo – relata esse trabalho em Quando as aulas de língua

965
gramática e estilo

portuguesa na perspectiva da leitura e da produção escrita propiciam a


promoção coletiva e a construção de um inédito viável na vida de alunos
de escola pública destinada à classe popular.90
Brenda e seus colegas das séries finais tiveram, portanto, uma pro-
fessora que se dedicou a botá-los a escrever, ler e discutir com eles o que
eles escreviam, orientar a reescrita do que tinham escrito, organizar com
eles a publicação, o lançamento e comemorar com eles a repercussão do
trabalho feito. E, no começo do ano seguinte, discutir a escolha do tema
a ser tratado no próximo livro. Há, portanto, professoras que ensinam
a escrever.
É preciso, no entanto, que o programa da escola não os impeça de
fazer isso, como na “escola maior onde havia supervisão e orientação
escolar”, pra onde o Roque foi depois de formado, obrigado a enveredar
“de vez para a gramática”. Era melhor quando ele não “sabia absoluta-
mente nada do que devia fazer, mas tinha uma noção clara do que não
devia” e lia para as crianças, contava histórias pra elas, deixava as crianças
falarem, inventarem histórias, escreverem histórias? Era melhor, mas...
Mas, e ele, o professor, aluno de um curso de formação de profes-
sores de Português, que teve uma tão lastimável apresentação à língua
escrita naquela escola multisseriada, onde foi que aprendeu a escrever
desse jeito, com essa desenvoltura, com essa cara limpa, com essa con-
vicção sobre a importância do depoimento que tem pra dar? Pois é, como
ele diz daquele seu professor – às avessas, tenho aprendido com suas
atitudes –, pra quem embesta que vai aprender, até quem nada ensina
acaba ensinando. E quem embesta que vai ensinar aprende o que precisa
aprender pra fazer isso.
Nas escolas onde estudou Hique Gomez, na segunda metade dos
anos 1960 e nos primeiros dos anos 1970, tinha banda, uma loirinha com
90 SOUZA, Jane Mari de. Quando as aulas de língua portuguesa na perspectiva da leitura e da
produção escrita propiciam a promoção coletiva e a construção de um inédito viável na vida de
alunos de escola pública destinada à classe popular. In: GUEDES, Paulo Coimbra. Educação
linguística e cidadania. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012.

966
gramática e estilo

um falso jeito de Rita Lee e, certamente, aulas de Português, que não


fizeram nenhuma diferença pra ele. Lá pelas tantas, ele relata que foi a
namorada estudante de Letras que botou ele a ler literatura e, a propósito,
observa que, na casa dos pais dele, os livros tratavam de outras coisas.
Perguntei pra ele por e-mail se ele já tinha publicado alguma outra coisa
e o que mais ele escrevia. Ele me respondeu assim: “É o primeiro livro
publicado. Escrevo textos para teatro. Já fiz adaptações traduções para
meu uso no palco”.
Perguntei isso porque minha impressão geral sobre o texto dele foi
que ele tinha uma prática de escrever mais para uso próprio do que pra
mostrar pros outros, mais pra ver se funcionava do que pra verificar se
estava bonito. Eu entendo escrevo textos para teatro assim: escrevo a
cena tal como acho que tem de ser, e a cena é ensaiada tal qual, pra ver
se, assim, como foi escrito, dá pra executar no palco. Se der, a gente passa
pra próxima cena; se não der, se reescreve, até que dê pra executar, e aí
o texto já cumpriu a sua função: isso é o que eu chamaria de escrever
para uso próprio.
Tento explicar: eu e a minha turma – universitários das Humanidades
nos anos 1960 – nos constituímos escritores trocando contos, poemas,
crônicas e ensaios para saber o que nossos camaradinhas achavam, quer
dizer, a gente só escrevia para ser lido pelos outros. Eu, por exemplo,
relutei em fazer lista pro supermercado, até que cansei de voltar lá pra
buscar o que tinha esquecido.
Na escola, onde foi gestado e cultivado o gênero redação escolar,
a gente só escreve pra mostrar pros outros, que são, quase sempre, só o
professor. Além disso, a escola tem o cacoete de tratar as leituras obri-
gatórias – aqueles veneráveis textos dos gênios da literatura brasileira
– como oferendas dos seus criadores em prol da iluminação dos que vão
adquirir o hábito da leitura e, principalmente, dos que vão enveredar pelo
caminho da escrita: Direito, Jornalismo, Letras, Filosofia, ou vão virar
médicos, sociólogos, antropólogos, economistas que escrevem. Então,

967
gramática e estilo

a gente escrevia pra que avaliassem se estávamos ou não trilhando a


mesma senda desse elitismo beletrista. Que que é beletrismo? É isso: o
uso da língua escrita só pra bonito, sem utilidade prática.
E aí chega um músico, que sabe de cor todos os compassos de todos
os instrumentos que tocaram no show que ele assistiu aos 14 anos. Acho
que, se fosse o caso, ele teria dito que foi um professor de música que
mandou ele fazer isso; por isso, acho que ele fez isso porque achou que
devia fazer isso. Na verdade, foi um professor: ele mandou ele mesmo
fazer isso: professor é quem se ensina. Ele se ensinou também a atuar
no palco: precisou inventar-se ator pra fazer os espetáculos musicais
que queria fazer. Ensinou-se a escrever para registrar por escrito o que
precisava de registro, fosse para ver se ia ficar bem no palco, fosse pra
nos contar em livro o que viu, o que aprendeu, o que julga que é bom que
todo mundo fique sabendo. E julga com muita sabedoria: o que eu não
vi e vocês viram contem vocês, que todo mundo vai ganhar com isso,
diz ele, com outras palavras, naquele prefácio.
Vou tentar explicar melhor isso de escrever para uso próprio: em
Variados mas combinados: ensaios sobre literatura (2018)91, do meu
amigo e colega Homero Viseu de Araújo, num ensaio chamado A pe-
ripécia brasileira de Robinson Crusoé: o herói burguês e negreiro na
origem da ascensão do romance, encontro esta citação de uma citação,
cujo autor é John Riquetti (2011, p. 24-25) 92:

Os puritanos e outros protestantes, devotos do século XVII


e do início do XVIII eram estimulados a manter diários
religiosos e a escrever autobiografias espirituais, relatos
de como lhes ocorria a sensação de terem sido salvos,
registros dos sentimentos mais profundos que deviam
garantir-lhes que eram alvos da graça divina, estimulando-
-os a ter sempre em mente o seu destino espiritual mais
91 ARAÚJO, Homero Vizeu de. Variados mas combinados: ensaios sobre literatura. Porto Alegre:
Ed. UFRGS. 2018.
92 RIQUETTI, John. Introdução. In: DEFOE, Daniel. Robinson Crusoé. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011.

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gramática e estilo

alto. O romance de Defoe, produzido nesse período,


encaixa-se no modelo, e pode-se dizer que essa abordagem
foi sancionada pelo próprio Defoe, ao publicar, em 1720,
Serious reflections during life and surprising adventures
of Robinson Crusoe [...]. Ele desperta da indiferença reli-
giosa e espiritual para a ideia da intervenção providencial
de Deus em sua vida.

Já tratei, lá no primeiro capítulo, daquela prática do registro escrito


do que desce da cabeça para a mão como instrumento tanto de autoconhe-
cimento quanto de desobstrução do canal que leva as frases do cérebro
através do braço para as mãos que rabiscam ou digitam. Acho que tam-
bém se pode atribuir função instrumental e, dentro dumas93, terapêutica
a esse diário protestante. Provavelmente houve os que seguiram à risca
a finalidade piedosa, mas todos eram feitos da mesma massa em que
tinham sido modelados os monges católicos da Idade Média, também
comprometidos com os dogmas e os seus votos e que, apesar disso, se
botaram a escrever poemas eróticos e interpretações não canônicas das
escrituras. Essas mesmas serious reflections já compõem um diário fa-
juto, do personagem, escrito pelo autor. Já a nossa tradição, católica, é
ágrafa: há o vigário interposto entre o fiel e Deus, desestimulando, pra
dizer o mínimo, a interlocução direta do fiel com Ele. Não precisa nem
ler a Bíblia: confessa pro padre que ele te explica tudo.
O que eu quero dizer é que é preciso escrever para aprender a es-
crever, e a nossa escola, implicitamente, pelo rumo que deu ao ensino de
Português e de Literatura, acabou nos levando a desenvolver a pretensão
masoquista de que só vale a pena escrever para, no mínimo, mudar os
rumos da literatura brasileira. Com isso, perdeu-se a chance de simples-
93 Dentro dumas não tem um verbete específico no Dicionário de porto-alegrês, mas aparece
uma referência no verbete numas. Como eu acho isso uma injustiça, me atrevo a definir: dentro
dumas relativiza a afirmação que vem depois: a minha frase afirma que esse diário protestante
tem função instrumental e, dentro dumas, terapêutica. Isso quer dizer que pode ter função
terapêutica se certas providências forem tomadas, se determinadas condições forem atendidas.
A capacidade de relativizar é um índice civilizatório; expressar dialetalmente essa disposição
demarca um território dentro de uma cultura.

969
gramática e estilo

mente nos adestrarmos nas práticas da anotação, do esquema, da narrativa,


da descrição, do elencamento de razões, de causas, de consequências,
na elaboração de argumentos, de singelos pedidos e sugestões na lista
do supermercado.
Escrever para organizar as ideias ensina a escrever e a organizar as
ideias, duas habilidades fundamentais para quem tem de se orientar num
mundo letrado – todos nós –, além de desobrigar as crianças de produzi-
rem arte sempre que escrevem. Mas produzir arte também é muito bom,
como, por exemplo, poemas, que podem virar canções, o que a gente,
nós, o povo brasileiro, faz muito e muito bem. Também é bom produzir
arte para si mesmo, para se ajudar a andar por este mundo, se orientar
nele, escrever, por exemplo, um romance.
Eu já escrevi um, que até foi publicado, e recomendo. Escrever
um romance só não é a mesma coisa que escrever um ensaio, porque o
romance não trata de um objeto solidamente constituído no mundo. O
romancista, isto é, quem se atreve a escrever, pelo menos, um romance
tem de tirar tudo lá de dentro dele mesmo, e é por isso mesmo que eu
recomendo: escrevam, pelo menos, um romance, nem que seja só pra
tirar um monte de coisa lá de dentro, botar no papel e olhar na cara delas
aqui fora. E eu garanto que a cara delas aqui fora não assusta tanto quanto
assustava lá dentro.
Já contei aqui que entrei pro curso de Letras para aprender a escre-
ver poemas, contos, romances, ensaios. Não tive aula disso, mas, como
também já contei, nós – estudantes de Humanidades – nos líamos, nos
comentávamos, nos avaliávamos. Às vezes, alguns de nós até publicavam
alguma coisa no jornal da Faculdade, no do DCE e até na imprensa lá
de fora. Eu tinha um romance concebido e até uma cena escrita, mas os
contos prosperavam mais até porque era bom ter alguma coisa pra mostrar,
e o romance ia dar muito trabalho. E assim foi, até que me mandaram
pra escola, pra dar aula.

970
gramática e estilo

Não parei de escrever, mas, se eu não quisesse mesmo ser profes-


sor, eu não teria inventado de ensinar os meus alunos do curso técnico
de Publicidade a escrever; eu dava – daria – as aulas do livro didático
e, em vez de ler e bilhetar os textos deles, eu escrevia – escreveria – as
minhas obras-primas. Virar professor, na passagem dos 1960 pros 1970,
significava aceitar toda e qualquer proposta de trabalho. Só no começo
dos 1980, quando uma greve nacional forçou as universidades federais a
reconhecerem os direitos trabalhistas e políticos dos professores até então
contratados pela CLT e fui demitido de dois dos meus quatro empregos,
achei que dava pra viver com os outros dois. Agora eu dava aulas só no
curso de Jornalismo, no de Letras e no Colégio Anchieta.
Em 1983 reunimos um grupo, que incluía colegas como Luís Au-
gusto Fischer e Paulo Seben, ex-aluno, poeta, professor de literatura e
amigo e outros amigos (e) ex-alunos nossos para nos lermos, nos dis-
cutirmos, nos incentivarmos. Fiquei fazendo o meu papel de professor
até que cobraram os meus escritos. Desovei os contos, e eles acharam
tudo muito engraçado; só que, 20 anos antes, ninguém achava aquilo
engraçado. Me dei conta, então, que agora eu tinha tempo: ressuscitei o
projeto de romance, que passou a incluir aqueles contos.
Aí, passei uns quatro esclarecedores anos tentando solucionar
problemas de narração, da minha e das dos outros. Descobri que minha
cabeça não era povoada de narrativas, mas movida pela busca da so-
lução do problema: continuar a narração interrompida de um episódio
já delineado era muito divertido; inventar um episódio novo para dar
continuidade à história era um sofrimento. Quando dei a minha história
por pronta, gostei do que tinha escrito, mas acho que gostei mais de já
ter escrito, tanto que até hoje não encarei nenhum dos outros enredos
que me ocorreram para escrever o próximo romance.
Uma editora se interessou, mas logo me encaminhou um parecer
de uma criatura que não gostou, e eu escrevi um contraparecer dizendo
que ele não tinha lido o que eu tinha escrito, que ele tinha tentado ler o

971
gramática e estilo

que ele achava que eu deveria ter escrito. Imagino hoje que não é bem
assim que um candidato a romancista bem-sucedido negocia com as
editoras e seus pareceristas. Também não saí atrás de outra editora, mas
posso alegar que, quando terminei de escrever, em 1986, eu já estava
botando em ordem as anotações que eu vinha acumulando a respeito do
que eu escrevia nos textos dos meus alunos, redigindo o que ia acabar
compondo Da redação à produção textual, cuja primeira versão só ficou
pronta em 1990, quando eu já estava no doutorado, escrevendo a tese,
defendida em 1994.
Posso alegar também que doutores são muito solicitados: muito
tive de ler, escrever e reescrever a partir de 1995. Em 1998, graças à
insistência de Luís Augusto Fischer, a editora Artes e Ofícios, de Porto
Alegre, dispôs-se a editar o Tratado geral da reunião dançante94. Deixa
eu revisar; são mais de dez anos. Revisei e cortei acho que um terço do
que tinha ali. Paulo Seben, já em 1986, tinha me avisado: Tá prolixo,
tá copioso, tem coisa demais. Eu fui reler e disse pra ele depois: Tirei
três frases. É pouco, insistiu ele. Era, de fato, muito pouco, e agradeci
aos fados, que impediram a publicação antes de eu me tornar capaz de
perceber isso. E daí? Isso – perceber que a gente está tratando o leitor
como um burro que ainda não entendeu o que a gente já disse – isso se
ensina, ou não tem outro jeito a não ser passar dez anos sem olhar pro
texto? No modo de produção que desenvolvi com os meus alunos essa
prática não se encaixa.
Quem me deu a pista pra começar a deslindar o enleio entre o ro-
mancista e o professor foi Valter Avancini, diretor de telenovelas. Numa
esclarecedora entrevista (acho que no Roda Viva) ele aproveitou uma
pergunta simplória a respeito de sua relação com a “filha atriz” – como
ele a tratava: como diretor rigoroso ou como pai coruja? – para dizer
que ele sempre inquiria ela sobre a vocação. O talento – disse ele – pode
não levar longe se não houver a vocação. Na hora, lembrei da Carla
94 GUEDES, Paulo Coimbra. Tratado geral da reunião dançante. Porto Alegre: Artes e Ofícios,
1998.

972
gramática e estilo

Schwartz, que escreveu O último pedido, aquele conto sobre o aniversário


de 30 anos da irmã Maria, narrado no presente do indicativo, que – para
espanto geral dos colegas e do professor – declarou que não tinha nada
escrito além do que já tinha lido em aula.
Escreveu pra minha aula, e o talento produziu uma obra-prima.
Faltou vocação pra produzir outra e outra e outra, encarando a trabalheira
de, em cada uma delas, botar uma palavra depois da outra, da primeira à
última, de tal modo que a posição de cada uma delas acabe assegurada
como a posição em que deve estar. O que leva longe é a vocação, disse
o Avancini. Esta é a definição que eu montei a partir do que ele disse e
da lembrança do episódio da Carla:

Vocação é a disposição de encarar tanto a trabalheira que vai dar


fazer o que se tem pra fazer quanto a chatice que sempre acompanha
qualquer empreitada, tudo isso pela alegria de ver aquilo pronto, pela
birra de ter levado aquilo tudo até o fim, pelo desagravo de imaginar
a cara dos outros quando lerem, virem, ouvirem, cheirarem o que a
gente embestou que tinha de fazer.

Também não se pode desprezar a hipótese de que a Carla tenha


mentido pra nós, e que, em algum baú deste mundo, repouse a vasta obra
que ela embestou de negar à leitura dos seus contemporâneos. Kafka não
mandou queimar? Ernesto Sabato não queimou ele mesmo?
O que me levou a pipocar diante da trabalheira e da chatice de
encarar aqueles outros enredos não foi capaz de deter este professor
de escrita de escrever e publicar Da redação à produção textual e de,
outra vez, botar uma palavra atrás da outra para escrever este bem mais
alentado livro chamado Gramática e estilo. Radicalizando, posso con-
ceber que foi a minha vocação de professor que me levou ao extremo de
escrever um romance, que, entre outros muitos ensinamentos a respeito
da atividade de escrever, me fez perceber que esse romance precisava
de uma revisão antes de ser publicado, tudo isso pra eu me credenciar

973
gramática e estilo

como professor de escrita. Depois daquela Feira do Livro de 1998, em


que o Tratado geral da reunião dançante foi lançado, das entrevistas e
das resenhas (acho que foram duas) nos jornais, os narizes dos artistas
que frequentavam as minhas aulas empinavam menos. Não, não é só
isso: eu gostei muito de ter escrito o Tratado no sentido não apenas de
já estar livre da trabalheira que me deu mas também porque eu gosto de
ler o que está escrito lá e saber que os meus amigos e os meus amigos
especialistas também gostam.
Mas se não fosse assim, tava muito bem assim mesmo: recomendo
pra todo mundo: vai, escreve um romance, vai de preferência sem a
ambição de ser escalado pra literatura brasileira, nem pra gaúcha ou pra
porto-alegrense (pra catolé-do-noiense, pra anta-gordense, pra tupanci-
retense) porque essa renúncia aumenta a probabilidade de se escrever
um romance que ainda não foi escrito. Desconsidera a aleatoriedade do
talento e a imponderabilidade da vocação. Vai lá e escreve um romance
por terapia e por formação: todos os caminhos se abrem para quem ob-
teve o certificado de ter encarado a trabalheira de ter botado uma palavra
depois da outra, da primeira à última, de tal modo que a posição de cada
uma delas acabe assegurada como a posição em que deve estar no relato
miúdo do enredo concebido pra botar uma certa ordem na vida que a gente
leva nesta parte do mundo.95 Escreve ensaio também, mas não um só;
ensaio tem de escrever muitos. Publicar o que a gente escreveu também
é bom desde que não seja só pra se tornar autor publicado.

95 Eu sempre achei que a solenidade é obrigatória na antepenúltima frase; por isso, ela vai ficar
desse tamanho. Se eu dividir ela, perde-se a solenidade.

974
gramática e estilo

REFERÊNCIAS

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978
gramática e estilo

POSFÁCIO

“O real não está na saída nem na chegada:


ele se dispõe para a gente
é no meio da travessia.”
(Guimarães Rosa)

L eitoras e leitores que carregam inquietações sobre a língua que usam para
falar e para escrever (especialmente se for o português brasileiro, que
aprendemos desde que nascemos para, depois, nos dizerem que não aprende-
mos direito ao escrever na escola), ou que carregam questionamentos sobre
que língua devem ensinar, no caso de professores de português, certamente
foram afetados pelas provocações do autor ao longo dessa travessia, em que
nos convida a olhar para o objeto que nos constitui: nossa língua.
Antes de terminar essa conversa, cabe, ainda, um aviso ao leitor e
à leitora: o livro do Paulo, hoje, torna-se expressão ambígua. Explico:
entre as publicações de Paulo Coimbra Guedes, há o Da redação à
produção textual: o ensino da escrita, mencionado, não por acaso, já na
apresentação da obra. Esse é o livro do Paulo. O livro do Paulo, faz anos,
passou a ser meu livro, nosso livro. Não pense, leitora e leitor, que se
trata de uma espécie de Bíblia, que orientaria pela pregação da palavra,
ou de um manual (embora ele já tenha se chamado assim): trata-se de
uma leitura pela qual não passamos incólumes, estudantes ou docentes.
Lanço mão do plural porque, de fato, são muitos os trabalhos de pesquisa
acadêmica e de prática de sala de aula que dialogam diretamente com o
livro do Paulo e, portanto, dialogam também com Wanderley Geraldi,
que há tempos alertou que docentes devem ter e promover atitude de
pesquisa dentro de suas salas de aula.

979
gramática e estilo

Olhar para a escrita e escrever é sempre diferente após a leitura do


livro do Paulo. Os textos que ilustram a proposta aplicada e compartilhada
em Da redação à produção textual foram produzidos em e para uma
esfera da atividade humana que tem algo de muito particular: trata-se
de uma esfera em que estudantes devem pensar epistemologicamente
sobre escrita, com base em qualidades discursivas – unidade temática,
objetividade, concretude e questionamento.
Paulo propõe em seu livro uma comunidade de prática (LAVE;
WENGER, 1991) de escrita, em uma esfera da atividade humana genuína,
que exime estudantes de simulações como “escreva uma crônica sobre
[…] para ser publicada no jornal da cidade”. E o que se produz – além de
textos lidos, discutidos no grande grupo e reescritos –, na esfera proposta
pelo Paulo? Produz-se conhecimento sobre escrita. A linha de chegada é
celebrada, agora, com este outro livro do Paulo, Gramática e estilo, tão
rico quanto Da redação à produção textual, porque instiga a atitude de
pesquisa, aquela que docentes e estudantes devem carregar consigo para
suas salas de aula. Em Gramática e estilo, como visto, o convite não se
mostrou diferente: leitora e leitor, pensemos juntos sobre a língua que
escrevemos – afinal, se escrevemos o português, e não em português, de
algumas contenções conseguimos nos libertar.
Em Da redação à produção textual, o livro do Paulo, o autor propõe
a refutação do triângulo aluno-texto-professor, pois é a conversa com
leitores reais que dará um retorno ao autor sobre a leitura feita. Gramática
e estilo, o livro do Paulo, não faz diferente: “esfria, aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta”. Leitores atentos concluirão que é preciso
coragem para olhar para o real da língua, a língua em uso; é preciso co-
ragem para desinquietar e refutar algumas contenções para escrevermos
a nossa língua. Corrijo, então, a afirmação feita na apresentação da obra,
de que ela é para todos: a travessia só é feita por quem tem coragem.

Daniela Favero Netto

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gramática e estilo

AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal do Rio Grande do Sul, à qual pertenço desde


os 12 anos de idade, quando ingressei, em 1955, no Ginásio do Colégio
de Aplicação da Faculdade de Filosofia.
Ao Curso de Letras da Faculdade de Filosofia, onde entrei como
aluno em 1962 porque queria aprender a escrever.
Ao Curso de Comunicação da UFRGS, onde, em 1974, ensinando
a escrever, comecei a aprender a escrever.
Ao Instituto de Letras da UFRGS, para onde me chamaram, em
1982, para lecionar as recém-criadas disciplinas Comunicação em Língua
Portuguesa I, II, III e IV, com a incumbência de descobrir e formular os
programas que eu julgasse mais adequados para aprendermos a escrever.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS, onde, desde
1995, tenho me dedicado ao ensino, à pesquisa e à orientação de trabalhos
na área da produção de texto e do ensino de Português, isto é, de como
se ensina a escrever na escola.
À Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFR-
GS, que viabilizou a publicação de Gramática e estilo.

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